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Nelson Hungria
Nelson Hungria
Memória Jurisprudencial
MINISTRO NELSON HUNGRIA
372 p.
ABREVIATURAS 17
DADOS BIOGRÁFICOS 19
NOTA DO AUTOR 23
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 29
2. JURISPRUDÊNCIA 35
2.1 Direito penal e processual penal 35
2.1.1 Crimes políticos 35
2.1.2 Crimes de imprensa 41
2.1.3 Ampliação da garantia do habeas corpus 46
2.1.3.1 Exame de fatos e provas no habeas corpus 46
2.1.3.2 Efeito suspensivo e habeas corpus 55
2.1.3.3 Local inapropriado para internação de menores 57
2.1.3.4 Reiteração de habeas corpus 60
2.1.4 Tribunal do Júri 61
2.1.4.1 Constitucionalidade do novo julgamento pelo Tribunal do
Júri na decisão contrária à prova dos autos 64
2.1.4.2 Nulidade do novo Júri pela participação de jurado
presente no conselho de sentença anterior 65
2.1.4.3 Nulidade de quesito 66
2.1.5 Foro por prerrogativa de função 67
2.1.6 Crimes de espionagem 71
2.1.7 Crimes praticados por funcionário público contra a
administração em geral 74
2.1.8 Crimes de responsabilidade 79
2.1.9 Crimes contra o patrimônio 80
2.1.10 Crimes de quadrilha ou bando 83
2.1.11 Defesa no processo penal 84
2.1.12 Prescrição da pena in concreto 85
2.1.13 Desacato e vias de fato 86
2.2 Direito constitucional 87
2.2.1 Separação dos Poderes 88
2.2.1.1 Atos políticos do Congresso e intervenção judicial 88
2.2.1.2 Caso Café Filho 91
2.2.1.2.1 MS 3.557/DF 95
2.2.1.2.2 HC 33.908/DF 101
2.2.1.2.3 Petições apreciadas na sessão de 11-1-1956 102
2.2.1.2.4 Rp 258/DF 103
2.2.1.2.5 Petição apreciada na sessão de 7-11-1956 104
2.2.1.3 Reserva de iniciativa 105
2.2.1.4 Retratação de veto 109
2.2.1.5 Delegação legislativa para o presidente da República 110
2.2.2 Federalismo 117
2.2.2.1 Autonomia municipal 117
2.2.2.1.1 Criação de Municípios 117
2.2.2.1.2 Nomeação de prefeitos 125
2.2.2.1.3 Autonomia financeira 128
2.2.2.2 Simetria constitucional 129
2.2.2.3 Aplicação do Código Penal Militar aos militares
estaduais 132
2.2.2.4 Excepcionalidade da intervenção federal 133
2.2.2.5 Possibilidade de isenções heterônomas 134
2.2.3 Controle de constitucionalidade 135
2.2.3.1 Prescrição e decadência da representação pela
inconstitucionalidade 135
2.2.3.2 Necessidade do full bench 136
2.2.3.3 Mandado de segurança contra lei em tese 138
2.2.4 Direito intertemporal 139
2.3 Outros ramos do direito 141
2.3.1 Direito administrativo 142
2.3.1.1 Responsabilidade civil do Estado e guerra civil 142
2.3.1.2 Concurso público e magistratura 143
2.3.1.3 Estabilidade de servidor público 145
2.3.1.4 Anistia e retorno ao cargo público 149
2.3.2 Direito tributário 150
2.3.2.1 Isenções concedidas em tratados internacionais 150
2.3.2.2 Nomenclatura e natureza jurídica de tributos 151
2.3.2.3 Bitributação e taxas 153
2.3.2.4 Constitucionalidade do imposto de vendas incidente
na exportação 154
2.3.2.5 Imunidade recíproca 155
2.3.3 Direito civil 156
2.3.3.1 Proteção do adquirente de boa-fé 156
2.3.3.2 Reconhecimento de paternidade 157
2.3.3.3 Equiparação entre filhos adotivos e legítimos 159
2.3.4 Direito eleitoral 159
CONCLUSÃO 164
REFERÊNCIAS 167
APÊNDICE 169
ÍNDICE NUMÉRICO 367
ABREVIATURAS
DADOS BIOGRÁFICOS
1
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891.
2
Cf. LIMA, Leopoldo César de Miranda. Discurso como representante dos advogados de
Brasília, na homenagem de 14-4-1961 ao ministro Nelson Hungria. In: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Homenagens prestadas aos ministros que deixaram a Corte no período de
1960 a 1975. Brasília: STF, 1975. p. 17.
3
Cf. SCARTEZZINI, Cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso de posse
na Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia Paulista de Direito, 1974.
p. 6.
4
Cf. TAVARES, Adelmar. Discurso por ocasião da posse do ministro Nelson Hungria
no Supremo Tribunal Federal, em 5-6-1951. Revista Forense, v. 48, n. 135, p. 619-623, e
PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. Discurso na homenagem do centenário do ministro Nelson
Hungria. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Nelson Hungria: centenário de seu nasci-
mento. Brasília: STF, 1993.
5
Cf. SCARTEZZINI, loc. cit.
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Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria
Em 1918, mudou-se para Belo Horizonte e advogou até 1922, quando se trans-
feriu novamente para o Rio de Janeiro. Na antiga Capital, foi delegado de polícia por
dez meses e vendedor de estampilhas no Tesouro Nacional.
Em 1924, passou em primeiro lugar no Brasil para o concurso de pretor, assu-
mindo como juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo Distrito Federal, nomeado por
decreto de 12 de novembro de 1924. Serviu posteriormente como juiz de órfãos e da
Vara dos Feitos da Fazenda Pública.
Em 1934, também foi aprovado em primeiro lugar para a livre-docência da
cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito.
Em 1936, foi promovido por merecimento a juiz de direito e, em 1944, ascen-
deu ao cargo de desembargador, após vinte anos de exercício da magistratura, no
Tribunal de Apelação do Distrito Federal.
Por decreto de 29 de maio de 1951, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal
Federal pelo presidente Getúlio Vargas, para a vaga decorrente da aposentadoria do
ministro Annibal Freire. Tomou posse em 4 de junho do mesmo ano, época em que
compunham o Plenário os ministros José Linhares (presidente), Barros Barreto,
Orozimbo Nonato (vice-presidente), Lafayette de Andrada, Edgard Costa, Ribeiro
da Costa, Hahnemann Guimarães, Rocha Lagôa e Mario Guimarães.
Foi eleito, como membro substituto (1955-1957) e efetivo (1957-1961), pelo
Supremo Tribunal Federal para integrar o Tribunal Superior Eleitoral, tendo ocupado
a presidência do órgão, no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961.
Apesar dos árduos trabalhos como magistrado, inclusive no Supremo Tribunal
Federal, dedicou-se com profundidade à academia e outras atividades jurídicas.
Argumentava que “a natureza me privilegiou com boa memória e decretou que só
dormiria cinco horas por noite, o que me sobre tempo para ler”6.
Entre outras medidas legislativas, participou da elaboração do Código Penal7,
do Código de Processo Penal8, da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia
Popular.
O ministro Nelson Hungria já era professor e doutrinador renomado quando
nomeado para o Supremo Tribunal Federal, destacando-se entre seus quinze livros
e cerca de trezentas monografias: Fraude penal e legítima defesa putativa —
teses destinadas à conquista da cátedra universitária — Estudos sobre a
Parte Especial do Código Penal de 1890; Crimes contra a economia popular;
Questões jurídico-penais; Novas questões jurídico-penais; Comentários ao
6
HOFFBAUER, Clemente Hungria. Nelson Hungria, meu pai. AIDP, ano 5, n. 4, p. 3, 2009.
7
Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
8
Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.
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Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria
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Ministro Nelson Hungria
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NOTA DO AUTOR
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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
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sem intermediação de corretores (RE 20.256, rel. min. Mario Guimarães, Primeira
Turma, julgado em 19-6-1952); e a respeito da possibilidade de reconhecimento
de paternidade sem prévia anulação do falso registro (RE 21.046, rel. min. Nelson
Hungria, Primeira Turma, julgado em 18-9-1952).
No que se refere ao direito eleitoral, ganha relevo o decidido no RE
19.285/DF, rel. para o acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado em 22-11-
1951, no qual se determinou que o partido que não alcançou o quociente eleito-
ral não pode concorrer na distribuição das sobras.
Infelizmente, apenas uma pequena parte dos arestos que contaram com a
participação do ministro Nelson Hungria poderá ser destacada neste trabalho,
por contingência de tamanho e de foco. Por essa razão, o autor pede escusas,
desde logo, da inevitável ausência de votos não selecionados para comporem
esta obra.
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1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
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13
Cf. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por Ismênia
Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 42-43.
14
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 123.
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15
Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 989-991.
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2. JURISPRUDÊNCIA
16
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 98.
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indisciplina e à deserção. Ora, pergunto eu: onde há lei que ordenava a expedição de
tropas à Coreia? Será, acaso, verdade que, algum dia, o nosso Governo pretendeu,
realmente, enviar tropas à Coreia? Se isto, alguma vez, foi objeto de cogitações, não
passou daquele material que serve para calcamento do Inferno. Tudo quanto se disse
a respeito não passou de boato. E, se o nosso Governo tivesse chegado a cogitar dessa
expedição, teria desistido de tal propósito, de modo que sua atitude de abstenção
veio a coincidir com o pensamento externado pela apelante. O crime a atribuir-se à
apelante, admitida a desclassificação proposta pelo Sr. ministro relator, teria como
elemento condicionante um boato, e, o que é mais, um boato desmentido. (...)
A mulher que erradamente se supõe grávida e ingere substâncias abortivas
não comete o crime de aborto. Assim também a apelante, que, supondo falsamente
a iminência de participação do Brasil na guerra coreana, incita os soldados a não
seguir, não cometeu o crime de incitamento à desobediência, indisciplina ou deser-
ção. Num caso e noutro, falta um elemento mínimo objetivo indispensável à configu-
ração do crime: a ocorrência concreta de um perigo de dano.
(Voto que acompanhou a maioria na ACr 1.448/SP, rel. p/ o ac. min. con-
vocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 20-9-1951.)
Entendo que os fatos imputados não constituem crime, em face da
Constituição vigente. O que esta proíbe é a propaganda de guerra ou de subver-
são violenta da ordem política ou social. No caso, trata-se de difusão de bole-
tins convidando o povo para a Conferência de Paz. Não pode ser incriminada a
propaganda de paz. Provocar movimento de opinião pela paz não é apenas uma
ação lícita, senão também louvável.
(Voto na ACr 1.455/SP, rel. min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno,
28-11-1951.)
Com a edição da Lei 1.802/1953, o entendimento do ministro Nelson
Hungria — até então reiteradamente vencido — passou a prevalecer em diversos
julgamentos do Plenário, como na ACr 1.511/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães,
Pleno, 28-5-1954; na ACr 1.497/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 12-6-1953; na
ACr 1.496/DF, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 12-6-1953; na ACr 1.498/SP,
rel. para o acórdão min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-6-1953; no RC 993/GO,
rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 6-6-1953; na ACr 1.504/SP, rel.
para o acórdão min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 19-10-1953; na ACr
1.557/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 11-11-1960; no HC 37.928/SP, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 21-12-1960; e na ACr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria,
Pleno, 16-7-1954, esta última assim ementada:
O simples fato de proferir, num raptus de entusiasmo, “vivas”, ao comunismo
e “morra” ao chefe de Governo, não pode ser considerado propaganda subversiva e,
muito menos, serviço prestado à tentativa de reorganização do partido comunista.
(ACr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-7-1954.)
Em sentido semelhante, o decidido na ACr 1.530/SP, rel. min. Orozimbo
Nonato, Pleno, 16-8-1955, cujo voto do ministro Nelson Hungria constitui ver-
dadeiro libelo na defesa da liberdade de convicção e de manifestação, verbis:
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aliás, deve fazer a qualquer pretexto, para ser coerente consigo mesmo; e já que lhe
incorri nos ódios. Não o temo em terreno algum. Não é ele santo da minha igreja,
mas é preciso que eu faça justiça, evitando que a minha subconsciente malquerança
possa prejudicar a sua causa neste momento.
Concedo a ordem.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.)
No mérito, o ministro Nelson Hungria afastou a incidência do delito político
por três precisos fundamentos: (i) ausência de dolo específico para crime contra a
segurança nacional; (ii) ausência de “injúria”, uma vez que a acusação era de calúnia,
delito não previsto no Decreto-Lei 431/1938; e (iii) ausência de “agente público”, uma
vez que a expressão do tipo penal não se refere a qualquer funcionário público, mas
apenas ao que “encarna qualquer dos poderes políticos, aquele que exerce o poder
político direto e primacialmente”. A propósito deste último fundamento, afirmou o
ministro Nelson Hungria, no seu enfático estilo linguístico:
E parece que essa interpretação restritiva é a acertada, porque, a adotar-se o
ponto de vista de amplitude do conceito de “agente de poder público” e desde que se
dispense o dolo específico, vamos chegar a situações verdadeiramente irrisórias. Se,
amanhã, eu me queixar violentamente, numa carta que dirigir a um jornal, da desídia
do lixeiro que serve à minha rua, estaria incorrendo na Lei de Segurança, porque o
gari, o lixeiro da minha rua, é um “agente do poder público”. Não é possível que ado-
temos esse ponto de vista, cuja lógica levará a tal extremo da comédia.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.)
Por fim, o ministro Nelson Hungria destacou a inadequação dos fundamentos
da prisão preventiva, apontando, inclusive, o ridículo de a medida drástica da prisão
acirrar ainda mais as pressões sobre autoridades, inclusive do próprio juiz:
Em primeiro lugar, o paciente não é preso incomunicável, não está atirado
para dentro de um cárcere sob regime penitenciário. Acha-se sob custódia honesta,
continua com a possibilidade de escrever os seus artigos e de se comunicar com os
seus amigos e companheiros de jornal, que prosseguirão por certo, na campanha
encetada por ele e, talvez, com maior recrudescimento, espicaçados que estão pelo
espírito de desforra. E faltou ao juiz elementar habilidade psicológica; não percebeu
que estava, com seu precipitado ato, contribuindo para a glorificação do paciente,
isto ensejando-lhe a glorificação do martírio. Os próprios inimigos do paciente
devem estar de armas ensarilhadas, de bandeira branca alçada, porque ele sofreu a
injusta violência da prisão preventiva. Foi ele transformado em herói da liberdade
de imprensa, sobre cuja cabeça estão a chover as simpatias nacionais e as bênçãos
cívicas de todo o povo. Aí está o que o juiz foi arranjar. E agora, sim, é que ele, pro-
vocando a opinião pública em favor do acusado, criou a mais grave pressão sobre o
ânimo de policiais e julgadores. Raros são os que resistem aos punhos crispados da
multidão idêntica à que exigiu de Pilatos a condenação de Cristo, em Jerusalém.
Foi contraproducente o desarrazoado decreto de prisão preventiva.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952, destaques no
original.)
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Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942.
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e, ali, o primeiro deles foi submetido a tais violências, como confessa a própria auto-
ridade que presidiu o inquérito, o então secretário de Justiça e hoje senador Haribaldo
Vieira e declaram três testemunhas presenciais, o deputado Seixas Doria, o chefe de
Polícia de Aracaju e o Sr. Umberto Mandarino, que veio a falecer no mesmo local, em
consequência das lesões sofridas, embora no atestado de óbito, assinado por médico
oficial, conste como causa mortis “edema pulmonar agudo decorrente de miocar-
dite crônica”. Para que não fosse apurada a verdadeira causa da morte, o cadáver de
Euclides foi enterrado clandestinamente por coveiros da própria Polícia como sendo
o de Manoel dos Santos. Sob cruel espancamento, Euclides teria confessado que
o mandante do crime, que ele dizia, a princípio, ser um indivíduo de nome Carlos
Alberto, era o coronel Afonsinho, nome por que é conhecido o paciente.
(...) Explica-se, entretanto, diz o impetrante, a incongruência de tais decla-
rações [da esposa da vítima], que, em juízo, foram categoricamente desmentidas, é
que, como está provado nos autos e o reconhece a própria autoridade que inquiriu d.
Milena, isto é, o secretário da Justiça, Haribaldo, a depoente, a certa altura, teve um
desmaio, tendo sido necessário chamar-se um médico, que lhe teria aplicado uma
injeção de coramina, prosseguindo a inquirição, não obstante o estado de perturba-
ção da depoente. Todos os elementos básicos da pronúncia são declarações obtidas
no inquérito policial em depoimentos de agente de Polícia, entre eles um dos próprios
matadores de Euclides. (...) Uma criada do casal Firpo-Milena foi igualmente sujeita
a torturas, também na Estrada da Cerâmica, para declarar que presenciara cenas
amorosas entre Milena e o paciente. O próprio acórdão confirmatório da pronúncia
reconheceu as violências praticadas contra Euclides Timoteo de Lima e determinou
que se remetessem cópias de tais ou quais peças do processo ao Sr. procurador-geral
do Estado, para apuração da responsabilidade criminal dos culpados.
(Relatório no HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960.)
Contra esses evidentes abusos, o ministro Nelson Hungria não se furtou de
examinar e declarar imprestáveis os mencionados indícios, com seu forte estilo:
Uma das condições precípuas da confissão, para que tenha mérito de
prova, é que seja prestada livremente, sem coação, sem violência física ou
moral. Assim, no caso vertente, a confissão que teria prestado Euclides Timoteo
de Lima, aliás, não tomada por termo, não tem o mais mínimo valor probante.
A tortura inquisitorial a que o submeteram até a morte foi presenciada
pelos então secretário da Justiça e chefe de Polícia do Estado de Sergipe e
pelo deputado e advogado Seixas Doria, que, para cúmulo dos cúmulos, a
apoiaram, ou contra ela não protestaram ou procuraram até mesmo justificá-
-la, corum judice, e ainda foram a juízo repetir a confissão que Euclides teria
feito, considerando-a convincente do mandato atribuído ao paciente. Jamais se
viu tamanho desplante e desenvoltura no desrespeito a elementares princípios
constitucionais e legais em proteção do indivíduo. E não somente Euclides
foi espancado. O outro coacusado José Pereira dos Santos, também levado ao
ermo da Estrada da Cerâmica, na calada da noite, onde testemunhou o truci-
damento de Euclides, foi igualmente vítima, além da intimidação, da violência
física para fazer as declarações que prestou. Quem no-lo informa é Umberto
Mandarino, irmão da acusada Milena, a quem convenceram de acompanhar as
autoridades até a Estrada da Cerâmica. Diz ele à fl. 661 dos autos do processo:
“foi realmente nessa diligência policial que o suplicante ouviu José Pereira dos
Santos, depois de apanhar um pouco, dizer que não sabia de nenhum mandante,
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transformada em uma ferida viva, veias próprias para receber transfusão de san-
gue total ou de plasma? Ainda mais: afirmam os médicos, opinando à distância e
sem o manuseio dos autos, que, dada a inapetência da enferma devia ter-lhe sido
aplicada alimentação por meio de sondas gastroduodenais ou por via parenteral,
isto é, mediante clisteres alimentares. Será admissível que aquela pobre mártir,
entre dores, apuantes, ainda fosse submetida ao suplício de receber frequente-
mente pelo esôfago uma sonda ou tomar clisteres alimentares? Os pareceres
juntos aos autos são tendenciosos, formulados por críticos de obra feita, por
médicos que estejam talvez, servindo a rivalidade ou competições pessoais.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência está fazendo uma
acusação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Faço-a porque os aspectos do
caso o permitem. (...)
Pois bem; o acórdão não se limitou a fazer obra com unilaterais pareceres
extra-autos, sem o menor valor como prova judiciária. Entendeu ainda de lhes
encher as entrelinhas, e entrou a dissertar sobre matéria médica, como se fora
um pronunciamento ex cathedra.
(...)
O que se apresenta, no caso, é o seguinte, em última análise: foram con-
denados três médicos, por erro profissional, porque, se eles tivessem aplicado
o tratamento “x” em vez do tratamento “y”, a enferma teria sobrevivido. Ora,
como se pode afirmar isto sem a apreciação técnica dos elementos informativos
que o processo contém ou com fundamentos em opiniões de médicos formula-
das in abstracto, contando com a impunidade de pareceres extra-autos? Venham
esses médicos a juízo, e então, se tiverem coragem, que afirmem, individuado
meticulosamente o caso, a mesma coisa que afirmaram em pareceres elabora-
dos, pecunia acepta, no recesso de seus gabinetes. Que eles venham para dentro
dos autos repetir, perante o juiz, sob a sanção do art. 342 do Código Penal, o que
disseram, e só então poderão ser cridos.
(Debates no HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
O exaltado pronunciamento foi coroado pelo sincero pedido de desculpas do
ministro Nelson Hungria, pelo seu peculiar jeito inflamado de debater no Plenário,
que é verdadeira pérola de sinceridade e comprometimento com a justiça:
Perdoe-me o Tribunal pela minha exaltação, exaltação a que me impele o
desejo de ver assegurado, no caso, o que entendo ser o interesse da justiça. Isso
de falar com veemência é, aliás, do meu jeito, do meu modo de ser. Enquanto
falava o eminente colega ministro Mario Guimarães, confesso que fiz de tudo
para manter controlada minha emotividade, e isso pelo grande respeito que
dispenso a Sua Excelência e ao acatamento que devo ao Tribunal. Pedi a todos
os deuses que não me deixassem exaltar. Mas as ideias que me foram vindo no
raciocínio de improviso, aquecidas do coração, que sempre me vêm aos gor-
gomilos, conduziram-me ao acaloramento. Não sou um intolerante, por mais
que pareça tal, quando defendo minhas opiniões. Jamais fui um ultramontano.
Defendo os meus pontos de vista com ardor, mas sem o intuito de impô-los aos
que pensam de modo contrário. Defendo-os unguibus et rostris, com todas as
energias do meu espírito e do meu fôlego. Mas fico aí. A minha funda convicção
de que estou pugnando pela justiça do caso concreto é que provoca o meu ardor;
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mas, findo o debate, ainda que não prevaleça meu entendimento, ensarilho as
armas e não me fica o menor ressentimento, pois não me suponho o detentor
exclusivo da verdade.
Peço perdão ao Tribunal, que não deve ver na exaltação do meu voto
senão o meu amor pela Justiça, o meu propósito de que a justiça e o direito sejam
atendidos no caso concreto, impedindo a continuidade de uma condenação que
talvez represente um grave erro judiciário, que ainda pode ser corrigido.
(Debates HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
2.1.3.2 Efeito suspensivo e habeas corpus
O ministro Nelson Hungria permitia também o manejo de habeas corpus
para o reconhecimento de efeito suspensivo a recurso, como no julgamento
do HC 36.801/DF, rel. min. convocado Candido Lôbo, Pleno, 12-5-1959, em que,
mesmo vencido, legou esplendorosa manifestação, nos seguintes termos:
(...) Um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído.
O nobre advogado do paciente diz que só Deus pode reparar essa tran-
sitória perda de liberdade. Nem Deus, porém, pode fazê-lo. É a única coisa que
Deus não pode fazer: tornar “desacontecido” aquilo que já aconteceu. Deus nos
pode ferir de amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um
dia livre a vida do prejudicado, mas não suprimir no passado o dia de privação
de liberdade.
(...)
O paciente, como é notório, pois todos os jornais noticiaram, foi punido
com prisão por dez dias; de modo que terá de cumprir integralmente essa puni-
ção, ainda que fosse reconhecida ilegal, se tivermos de aguardar a decisão do
recurso ordinário que foi interposto do mandado de segurança denegado.
(...)
Jamais apareceu aqui um caso tão singular como este, tão anômalo como
este: pode ter decorrido da denegação de um mandado de segurança a possível
consequência de privar alguém de sua liberdade. E para os casos anômalos o
remédio deve ser heroico. Ainda que a lei, de modo claro, expresso, categórico,
tivesse negado o efeito suspensivo ao recurso ordinário de decisão denegatória
de mandado de segurança, nós, do Supremo Tribunal Federal, mais do que os
juízes de qualquer outro Tribunal, teríamos, por dever, de ajustar a lei aos casos
concretos, negando-nos a ser escravos submissos do texto da lei, para evitar,
num caso excepcional, intolerável gravame à liberdade individual.
(Voto vencido no HC 36.801/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 26-8-
1953, destacamos.)
Adicionalmente, o ministro Nelson Hungria também acolhia habeas
corpus para permitir a comunicabilidade entre o réu preso e seu defensor,
como no HC 37.399/DF, rel. para o acórdão min. convocado Henrique D´Ávila,
Pleno, 4-1-1960. No acalorado debate com o relator originário, ministro Rocha
Lagôa, o ministro Nelson Hungria não se furtou de reconhecer a arbitrariedade
da Justiça Militar, que sequer comunicou ao defensor onde o réu estava custo-
diado, verbis:
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Ministro Nelson Hungria
O Sr. Ministro Nelson Hungria: (...) Não há, pois, a menor dúvida de que
a permanência da incomunicabilidade do paciente é ilegal, traduzindo um abuso
do poder.
Há ainda que ponderar seguinte: que incomunicabilidade é essa que per-
mite a comunicação do paciente com sua esposa e a sua mãe? Não há incomuni-
cabilidade parcial. Se o paciente já pode ser visitado por pessoas de sua família,
a proibição da visita do seu advogado é um injustificável capricho, um puro
arbítrio, tanto mais censurável quanto esse advogado, após entendimento
com o seu constituinte, poderá até mesmo promover sua imediata liberação, se
for o caso.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Vossa Excelência parece que não
leu a impetração. Eu a li quando do julgamento. Nele o ilustre advogado, a quem
rendo as homenagens do meu respeito e de minha velha amizade, afirma, com
todas as letras, ignorar onde se encontra o paciente. Se Sua Excelência desco-
nhecia onde se encontrava esse paciente, é impossível afirmar-se que lhe teria
sido recusado a possibilidade de comunicar-se com o paciente. Tive o cuidado
de ler a impetração e quando proferi meu voto, que foi escrito, baseei-me no que
consta da inicial.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se Vossa Excelência ouvisse meu voto,
não teria necessidade de me dar esse aparte.
Concedo o habeas corpus para que o advogado do impetrante tenha
conhecimento do paradeiro do paciente...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas Vossa Excelência acaba de
reconhecer que a esposa e a mãe do paciente o visitam.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Das próprias informações se verifica que
foi permitida a visita apenas à mãe e à esposa do paciente, e não do advogado,
sendo muito possível que aquelas tenham assumido compromisso de sigilo...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): nesse particular é que Vossa
Excelência está equivocado. Vou ler o que diz o advogado na petição. Ele diz
desconhecer o paradeiro do acusado; logo não podia ter sido negado a Sua
Excelência a possibilidade de se aproximar do paciente.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não pedi essa leitura. A negativa de
comunicação pode envolver a recusa em dar conhecimento do paradeiro do
paciente. Como quer que seja o Sr. ministro da Aeronáutica afirma categorica-
mente que o réu está incomunicável.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Ao contrário, diz que está rece-
bendo a visita da mãe e da esposa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas o paciente não pode se avistar com o
seu advogado. Estranha incomunicabilidade parcial. Permitir visitas da esposa
e da mãe do paciente e não permitir a de outras pessoas, entre as quais o seu
advogado, é uma arbitrariedade só compreensível em época de suspensão
de garantias constitucionais.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas o próprio advogado ignorava
onde se encontrava o paciente e ainda não tinha instrumento de mandato.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, concedo a ordem
para que o advogado, informado do paradeiro do paciente, possa dele se aproxi-
mar, tenha ou não instrumento de mandato.
Para promover a defesa do paciente, por meio do habeas corpus não há neces-
sidade de instrumento de mandato.
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Ministro Nelson Hungria
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inferno, que é o SAM. Precisa ele de continuar seu curso de ensino médio, e o pró-
prio Sr. ministro da Educação já obteve que fosse ele admitido na Escola Técnica de
Curitiba, tenho para mim que esse é o estabelecimento aconselhável no caso. No Rio
ou cidades próximas não se encontraria colégio adequado que recebesse o paciente,
pois a impiedosa campanha que este sofreu, por parte dos jornais cariocas, criou para
ele, no antigo Distrito Federal e adjacências, um ambiente de tal modo hostil, que sua
presença em tal ou qual colégio acarretaria o êxodo dos demais alunos, por escrúpulo
dos respectivos pais.
Isto posto, Senhor Presidente, concedo o habeas corpus, para que o paciente
seja internado na Escola Técnica de Curitiba, salvo se, por acaso, o dr. juiz de meno-
res conseguir sua internação em outro instituto mais conveniente.
(Voto no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25-1-1961.)
Na oportunidade, a maioria do Supremo Tribunal Federal concluiu pela
existência de constrangimento ilegal na reintegração do menor ao nefasto estabe-
lecimento. Ressalte-se que o voto do ministro Nelson Hungria — e seus veementes
apartes — afastaram qualquer alegação de isonomia pelo fato de haver outros quatro
mil jovens, de origem humilde, internados no local. Para o ministro, a vilania prati-
cada contra uns não deveria ser estendida a outros com fundamento no princípio da
igualdade. Ao responder argumento de que o paciente havia fugido de onde estava
sob vigilância especial, Nelson Hungria não pestanejou em afirmar:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Fez ele muito bem. Fugiu a uma sucursal do
Inferno. Todos os internados do SAM deveriam fazer o mesmo, pois fora dele sua
recuperação seria muito mais provável.
(Apartes no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25-1-1961.)
Com a fúria dos injustiçados, o ministro Nelson Hungria alertou, ainda, para a
superlotação do reformatório de jovens, em conflito com a lei em comento, anotando
que havia no local mais de 4 mil internos, embora só existissem 400 vagas. E arre-
matou: “as migalhas do banquete de Brasília, como já disse de outra feita, poderiam
resolver o problema dos menores, sob o ponto de vista financeiro”.
O Tribunal, nesse contexto, não se limitou a conceder a ordem, mas, por ini-
ciativa do ministro Ribeiro da Costa, deliberou para que o ministro Barros Barreto,
presidente do Supremo Tribunal Federal, comunicasse ao presidente da República a
decisão tomada, remetendo os votos proferidos na ocasião.
Igualmente, no julgamento do HC 31.649/DF, rel. min. convocado Abner de
Vasconcelos, Pleno, 28-8-1951, o ministro Nelson Hungria abriu divergência para
denotar a patente insuficiência da Colônia Penal Cândido Mendes, utilizada para a
progressão de regime de condenados, para a aplicação de medidas de segurança em
jovens em conflito com a lei.
O ministro Nelson Hungria recusava-se a entender adequado o local, em
virtude de mera prescrição normativa, sem disposições específicas — inclusive de
normas de organização e procedimentos — a respeito do tratamento dos jovens
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Ministro Nelson Hungria
infratores. Para ele, o Supremo Tribunal Federal não poderia deixar de verificar se,
de fato, a Colônia agrícola fora adequadamente instalada, ou se se tratava de mera
mudança no nome dos mesmos estabelecimentos dirigidos aos presidiários:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia do Sr.
ministro relator, não posso endossar o seu ponto de vista. O decreto-lei a que se
refere Sua Excelência não passou, até agora, de um decreto de fachada, não foi
ainda regulamentado. Em virtude dele, não se pode entender que, automatica-
mente, se instalou a “seção especial” na Colônia Cândido Mendes, para o fim
de cumprimento de medida de segurança. Nada existe de concreto. O que con-
tinua a existir, na Ilha Grande, é tão somente uma Colônia destinada à segunda
ou terceira fase do regime progressivo da pena de reclusão ou detenção. Para lá
são mandados os indivíduos que, já tendo cumprido certo período da pena intra
muros e revelado boa conduta, merecem esse regime de prisão com trabalho
all´sperto. A lei chama esse estabelecimento “colônia penal”. Trata-se, como
disse, de uma etapa do regime penitenciário progressivo, adotado pelo nosso
Código. Nada tem a ver com a medida de segurança “colônia agrícola”, e nem
era possível funcionar nela uma seção especial destinada a essa medida, sem
minucioso regulamento prévio. De outro modo, o que poderia resultar na prática
seria uma situação incompatível com o preceito constitucional, que proíbe as
penas perpétuas, sabendo-se que a medida de segurança é indefinida, indeter-
minada no tempo. O juiz e a lei apenas limitam seu tempo de duração.
Não há nada regulamentado. É um engano supor-se o contrário, em face
do Decreto 26.401, de 1949, que, a tal respeito, não passou do terreno teórico ou
de boa intenção a realizar-se quando Deus for servido. Em matéria de medida de
segurança. Infelizmente, começamos a construir pelo telhado e ficamos neste.
Não seria possível que a execução das medidas de segurança, que exige a aplica-
ção de métodos e critérios inteiramente diversos dos da execução da pena, fosse
entregue ao puro arbítrio e empirismo do carcereiro e guardas. Em vez da recupe-
ração social do internado, por meio da difícil “técnica da regeneração”, teríamos
apenas mudado a etiqueta do cárcere destinado ao rigor da pena-castigo.
É inadmissível que essa vaga seção especial, mencionada pelo decreto de
1949, mas não regulamentada e não instalada oficialmente, possa servir como
estabelecimento de execução de medida de segurança.
(Voto no HC 31.649/DF, rel. min. convocado Abner de Vasconcelos,
Pleno, 28-8-1951.)
2.1.3.4 Reiteração de habeas corpus
Por fim, ressalte-se que o ministro Nelson Hungria também conside-
rava cabível a reiteração de habeas corpus, inclusive pelo mesmo fundamento.
Em seu entender, as decisões denegatórias não faziam coisa julgada, como
demonstra o seu voto vencido no julgamento do HC 32.983-AgR/DF, rel. min.
Hahnemann Guimarães, Pleno, 22-4-1954.
Destaque-se o amplo espaço compreendido por Nelson Hungria para a
defesa dos acusados. O ministro preteria inclusive institutos como a coisa jul-
gada, a cujo respeito ele chegou a mencionar que, “em matéria penal (...) é santa
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Memória Jurisprudencial
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SCARTEZZINI, Cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso de posse na
Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia Paulista de Direito, 1974. p. 8.
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pelo Tribunal do Júri quando o resultado fosse contrário à prova dos autos. Eis
o fundamento do magistrado para alterar sua opinião:
Já fui daqueles que adotaram esse ponto de vista, mas o reexame da
matéria me convenceu de que não havia nessa duplicidade uma ofensa ao prin-
cípio constitucional da anacrônica soberania do Júri, uma vez que o segundo jul-
gamento era devolvido ao próprio tribunal de jurados, que, assim, seria o único
a rever sua própria decisão.
(Voto no HC 32.271/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 19-11-1952.)
2.1.4.2 Nulidade do novo Júri pela participação de jurado presente no
conselho de sentença anterior
Outro voto importante do ministro Nelson Hungria quanto ao Tribunal
do Júri diz respeito à formação do Conselho de Sentença em caso de anulação
de julgamento anterior e reconhecimento de prejuízo, não só ao réu, mas à
administração da justiça, na hipótese de participação de um jurado impedido
(HC 31.653/PB, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 26-9-1951).
Na oportunidade, o primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri absolvera
o réu por legítima defesa. Interposta apelação pela acusação, o Tribunal de
Justiça da Paraíba mandou que o réu fosse submetido a novo julgamento, por
considerar a decisão contrária à evidência dos autos. No sorteio para o novo
Conselho de Sentença, no entanto, foi indicado jurado que havia participado do
primeiro julgamento, sem impugnação nem pela defesa nem pela promotoria.
Após a condenação do réu a onze anos de reclusão, além de um ano de inter-
namento em Colônia Agrícola, confirmada pelo Tribunal de Justiça, foi impetrado
habeas corpus alegando nulidade na composição do Conselho de Sentença.
O relator, ministro Luiz Gallotti, votou pelo indeferimento do writ, sus-
tentando ausência de nulidade, na medida em que o Código de Processo Penal
não impedia a repetição de jurado no caso específico, mas apenas no protesto
por novo Júri (Código de Processo Penal, art. 607, § 3º). Além disso, eventual
nulidade deveria ter sido arguida na primeira oportunidade concedida à defesa,
que sequer vetou o jurado ou demonstrou configurado o prejuízo.
De outro lado, o voto vencido do ministro Nelson Hungria foi enfático no
sentido da nulidade pela participação do mesmo jurado. Segundo sua orientação, a
CF/1946 criara novas hipóteses de realização de novo Júri e, a partir daí, participação
de jurado no primeiro julgamento tornava-o impedido para o segundo.
Além disso, o voto do ministro Nelson Hungria concluiu que a participa-
ção de jurado impedido importava no desrespeito do quórum legal exigido para
deliberação do Conselho de Sentença, gerando nulidade insanável que, por si
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acusado, como arguido na AP 333/PB, rel. min. Joaquim Barbosa, Pleno, 5-12-2007,
DJ de 11-4-2008; e na AP 396/RO, rel. min. Cármen Lúcia, Pleno, 28-10-2010.
Nesse contexto, os votos do ministro Nelson Hungria, ao lado das poste-
riores manifestações do ministro Victor Nunes, parecem muito iluminar a atual
controvérsia.
2.1.6 Crimes de espionagem
Na década de 1950, o Supremo Tribunal Federal ainda tratou de curioso
caso de crimes de espionagem, decorrentes principalmente da II Guerra
Mundial.
Cuida-se da acusação contra Túlio Regis de Nascimento, oficial da
Marinha brasileira, por ter dirigido, em território nacional, serviço de espiona-
gem no interesse das nações do Eixo na II Guerra Mundial.
No caso, o réu informava a Alemanha acerca dos navios norte-america-
nos ancorados na costa brasileira antes de o Brasil declarar guerra e entrar defi-
nitivamente no esforço aliado contra os países do Eixo, em 31 de agosto de 1942.
O paciente ficou notório por impetrar diversos habeas corpus para o
Supremo Tribunal Federal, à época. A princípio, ele foi julgado pelo Tribunal de
Segurança e condenado a trinta anos de prisão, por crimes previstos no Decreto-
Lei 4.766, de 1º de outubro de 1942, também posterior aos atos de espionagem.
A Corte já havia rejeitado o HC 29.655/DF, rel. min. Edgard Costa, Pleno,
21-5-1947. No entanto, em 1947, concedeu habeas corpus ao paciente, reconhe-
cendo cerceamento de defesa, sem prejuízo de novo processo (HC 30.086/DF,
rel. min. Lafayette de Andrada, Pleno, 17-12-1947).
Renovado o julgamento perante a Justiça Militar, o paciente foi nova-
mente condenado, nas penas do Decreto-Lei 4.766/1942, razão pela qual novo
habeas corpus foi impetrado (HC 31.552/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno,
27-6-1951).
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria ficou vencido isoladamente, apon-
tando a impossibilidade de recepção pela nova ordem constitucional da conde-
nação por lei ex post facto.
É certo que, no período da II Guerra, as garantias constitucionais foram
suspensas, inclusive a aplicação de leis penais ex posto facto, porém o ministro
Nelson Hungria não se omitiu de afirmar que o retorno à normalidade constitu-
cional e a promulgação da CF/1946 reintroduziram a nulidade da retroatividade
da norma penal e impediram a manutenção da execução, senão “estaria implan-
tado o mais desmarcado arbítrio do Estado contra o indivíduo” (voto no HC
32.928/DF, rel. para o acórdão min. Rocha Lagôa, Pleno, 4-4-1954).
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que a nulidade processual ocorre com a negação de ensejo à defesa, e não com
a desídia ou a improficuidade do defensor.
Por outro lado, o ministro Nelson Hungria não tergiversava em entender o
interrogatório como também uma peça de defesa. Daí que “deixar de interrogar um
réu é, positivamente, omitir um termo essencial do processo e cercear a defesa” (voto
vencido no HC 31.635/RS, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 22-8-1951).
Ademais, o ministro Nelson Hungria conduziu a maioria em caso em que
o Pleno do Supremo Tribunal Federal afastou a nulidade de processo no qual a
defesa do réu foi realizada por estagiário, com visto de aprovação do defensor
público. Trata-se do voto-vista proferido no HC 36.897-segundo/DF, rel. para o
acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 25-11-1959, que restou assim ementado:
Habeas corpus; sua denegação. A competência do estagiário no processo
penal é definida por instrução do procurador-geral. Pode ele formular alegações
finais, desde que estas obtenham o “visto” do chefe do Ministério Público, e não
lhe é defesa assistência ao réu no curso da inquirição de testemunhas.
(HC 36.897-segundo/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
25-11-1959.)
O ministro Nelson Hungria não deixou de destacar a qualidade da defesa
apresentada pelo estagiário, afirmando: “no caso vertente eu assinaria com
orgulho as alegações feitas pelo estagiário” (apartes no HC 36.897-segundo/DF,
rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 25-11-1959).
De outra sorte, em acórdão relatado pelo ministro Nelson Hungria,
reconheceu-se sanável a ausência de intimação para expedição de carta preca-
tória inquisitorial no RE 46.523/SP, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
15-12-1960.
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria pontuou que a falta de intimação
configurava mera nulidade relativa, que deveria ser arguida em tempo oportuno.
Como a defesa não havia impugnado essa nulidade a tempo, a Primeira
Turma deu provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão
recorrido e manter hígido o processo penal na espécie.
2.1.12 Prescrição da pena in concreto
O ministro Nelson Hungria foi um dos mais obstinados membros do
Supremo Tribunal Federal a defender a aplicação da pena in concreto, isto é, o
reconhecimento da prescrição com base na pena fixada pela decisão condenató-
ria, considerando o período anterior à mencionada decisão.
Esse entendimento, a princípio, foi objeto de vários votos vencidos do
ministro Nelson Hungria, como o proferido no HC 33.135/RS, rel. para o acór-
dão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 14-7-1954.
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Eximir-se com a escusa de tratar-se de ato político seria fugir ao dever que a
Constituição lhe impõe, maxime após ter ela inscrito entre as garantias fundamen-
tais, como nenhuma outra antes fizera, o princípio de que nem a lei poderá excluir
da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual (art. 141, § 4º).
Se compete ao Supremo Tribunal conhecer do mandado de segurança contra
atos da Mesa de uma Câmara Legislativa, competente também há de ser, por mais
forte razão, já que outro tribunal superior a ele não existe, para conhecer do pedido
quando o ato impugnado é da própria Câmara.
O pretendido direito a um segredo já quebrado não pode ser contraposto ao
direito que tem a Câmara de publicar no seu órgão oficial um inquérito realizado no
Banco do Brasil, cuja divulgação a maioria dos representantes do Povo deliberou,
como conveniente aos interesses da Nação.
Indeferimento da segurança.
(MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)
O ministro Nelson Hungria, em sentido contrário ao do excepcional voto do
relator, ministro Luiz Gallotti, não admitia a legitimidade ativa do sindicato, pois a
restringia aos limites das relações de trabalho:
Os sindicatos foram criados pela legislação do trabalho e são institutos exclu-
sivos do direito trabalhista. Somente gravitam na órbita das relações entre emprega-
dores e empregados, para defesa de interesses, de direitos e garantias assegurados
na legislação trabalhista. Fora da esfera trabalhista, eles são coisa nenhuma ou zeros
à esquerda. Seu poder de representação sem mandato somente se legitima quando
estão em jogo relações de trabalho disciplinadas pela legislação específica.
(Voto no MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)
No que se refere ao mérito, o ministro Nelson Hungria deixou clara a questão
jurídica em debate: a imposição legal do sigilo profissional. No seu estilo caracterís-
tico, esclareceu a inexistência de direito líquido e certo de preservar o sigilo já vazado
para pessoas que não se obrigavam ao sigilo profissional:
Precipuamente, Senhor Presidente, o que há a fixar é a extensão da tutela do
segredo profissional.
A inviolabilidade do segredo, mesmo o confiado aos chamados confidentes
necessários, é de ordem pública eminentemente relativa.
O que a lei veda, e isto foi inteiramente abstraído, o que a lei proíbe é a reve-
lação do segredo por parte de seu depositário, isto é, da pessoa que é obrigada a
guardá-lo, em razão de ofício ou profissão. De modo algum a autoridade competente
está inibida, em se tratando de um crime, de uma fraude civil ou de uma grave irre-
gularidade administrativa, de investigar e devassar esse segredo, por outros meios
ao seu alcance, que não seja a revelação do depositário, que a lei declara até mesmo
impedido de depor, ainda que pretendesse fazê-lo.
(...)
Ora, Senhor Presidente, segredo revelado a terceira pessoa não obrigada a
guardá-lo, não obrigada a mantê-lo, deixa de ser segredo, “cai na boca do mundo”,
é “segredo de Polichinelo”. Não há proteger segredo que já se tornou conhecido de
quem não está adstrito a não divulgá-lo.
(Voto no MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)
91
Memória Jurisprudencial
20
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 143.
21
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. 3. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1998. p. 153.
92
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22
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por Ismênia
Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 176.
23
Id., loc. cit.
24
Id., loc. cit.
25
Id., loc. cit.
26
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 150.
27
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. 3. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1998. p. 153.
28
RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. V. I, tomo IV, p. 165.
93
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35
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 151.
36
O Globo, 11-11-1955, p. 6.
37
COSTA, ob. cit., loc. cit.
95
Memória Jurisprudencial
2.2.1.2.1 MS 3.557/DF
O mandado de segurança em favor de Café Filho foi impetrado pelo
advogado Jorge Dyott Fontenelle, sob o fundamento de inconstitucionalidade
das resoluções da Câmara dos Deputados e do Senado que mantinham seu
impedimento, em alegado abuso de poder.
Além disso, outra preliminar foi levantada pelo então procurador-geral
da República, Dr. Plínio de Freitas Travassos: o estado de sítio decretado pelo
Congresso Nacional implicava suspensão dos direitos constitucionais, inclusive
o direito de ação quanto a mandados de segurança.
Logo, para conhecer do mandado de segurança, era necessário declarar a
inconstitucionalidade, em primeiro lugar, do estado de sítio.
O Plenário, então, reuniu-se no dia 14 de dezembro de 1955, sob a
presidência do ministro José Linhares e a relatoria do ministro Hahnemann
Guimarães, para discutir sobre o mandado de segurança, com ampla repercus-
são política e pressão popular e da imprensa.
O ministro Hahnemann Guimarães, em voto curto, primeiro afastou as
preliminares, entendendo que o caráter político do ato impugnado não afastava
a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, inclusive citando o MS 1.959/DF, e
que, por anteceder a declaração do estado de sítio, não estava obstada a via do
mandado de segurança.
Relativamente ao mérito, o ministro relator denegou a segurança, por
entender que não havia inconstitucionalidade nas resoluções do Senado e da
Câmara, a quem competia avaliar a situação de fato que impede o pleno exercí-
cio da Presidência da República.
Por outro lado, desde logo o ministro Ribeiro da Costa, em longo e inci-
sivo voto, abriu divergência reconhecendo o direito líquido e certo do impetrante
de ser conduzido à Presidência da República. Na oportunidade, ele aduziu:
Senhor Presidente, está em jogo, neste Tribunal, num lance de cara e de
coroa, a sorte do regime democrático.
Reconheçamos que mau grado o tempo decorrido desde o aportamento
de Cabral a estas terras, até os angustiosos momentos que estamos vivendo, o
vai e vem da orientação política nos tem conduzido, desde antes, mas, acentua-
damente, de 1930 para cá, a uma tergiversação, na qual se sentem influências de
exóticas matizes, de tal sorte que a nação, ainda se apercebeu, ou mal tem podido
delinear seu anseio de estrutura política.
É mister, Senhor Presidente, que parta precisamente das instituições
mais autorizadas a palavra de serenidade, mas também a orientação no sentido
político ou cívico-pedagógico, a fim de que o nosso povo não tenha os olhos ven-
dados por quaisquer nuvens que empanem o seu sentimento, as raízes profundas
da nacionalidade, pois são elas as fontes perenes da organização social.
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(...)
Nos regimes democráticos, o medo não deve subsistir; eles se voltam
contra o regime de intimidação. O seu ambiente próprio, o clima de liberdade,
de confiança, e de respeito à vontade do povo não oferece lugar às ameaças nem
à menor tentativa de opressão.
O sistema de intimidação não prospera nas sociedades livres onde os
indivíduos desenvolvem suas atividades sem as incertezas do dia seguinte.
(...)
O Supremo Tribunal tem a seu cargo o julgamento da espécie, como,
igualmente, o tem de todos os outros contidos nas suas atribuições. O nosso
dever é apreciar com verdade, esgotando toda a matéria, para que, quando
sairmos daqui, ninguém possa dizer que este Tribunal escusou-se examinar,
por menor que fosse, a minúcia ou a grandeza deste caso; penso, sinceramente,
que devemos dar a nossa contribuição, ainda que com sacrifício, como estou
fazendo agora — porque estou doente —, mas hei de fazê-lo até o fim, para que
a Nação saiba como os fatos se passaram e como devem ser interpretados em
face da Constituição.
(...)
Ela está aqui, no recinto deste Tribunal, aberta nesta urna, a Constituição que
nos foi entregue, para que a guardemos, não como páginas frias, que ali estão, mas
como letras de fogo, que queimam a quem se aproximar delas, para violá-las. Esta é a
Constituição, regra e caminho de grandeza traçado pelo povo e para o povo.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min.
convocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
O voto do ministro Ribeiro da Costa não deixou de apelar à verdadeira
força por trás do impedimento do presidente Café Filho, ao general Lott:
Considero de suma importância que o eminente ministro da Guerra, Sr.
general Teixeira Lott, reflita no ato que praticou e que, na hora em que este Tribunal
resolver, por sua maioria, como espero, conceder a medida de segurança, haja Sua
Excelência, o ministro da Guerra, de elevar-se perante a Nação, não como aquele
que, humilhado, cumpre um decreto judiciário, mas como homem superior, que se
eleva perante si e perante todos, por ter sabido curvar-se diante da Lei, da Ordem e da
Justiça. Não o antevejo empedernido ou impermeável às solicitações da consciência.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. con-
vocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
O ministro Ribeiro da Costa fez suas as palavras do professor Sampaio Dória,
invocando a autoridade do Supremo Tribunal Federal para resolver a questão inde-
pendentemente das consequências da decisão:
Ora, ao Congresso nacional foram atribuídas as competências, comuns com
presidente da República no art. 65, e privativas no art. 66. Leia-se e releia-se cada
uma das atribuições que ali se exaram, e não se encontra nada, absolutamente nada,
nem explícita nem implicitamente, que autorize o Congresso, pelo voto da maioria,
ou mesmo unânime, a declarar o presidente da República impedido de exercer o
mandato que as urnas lhe conferiram. Não só nos dez itens em que se enumera a
competência exclusiva do Congresso Nacional, nada autoriza ao Congresso destituir
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Memória Jurisprudencial
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38
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 148.
39
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. 7. ed. Rio de Janeiro: 1982. p. 159.
40
Ibid., p. 171.
111
Memória Jurisprudencial
total das Instituições, por isso que, como vaticinara Rui, “Cada atentado que se
tolera à desordem é um novo alimento que se lhe administra”.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 2.655/DF, rel. para o acórdão min.
convocado Afrânio Costa, Pleno, 5-7-1954, grifos no original.)
Por outro lado, o ministro convocado Afrânio Costa abriu divergência
para não conhecer do mandado de segurança, sob o fundamento de que se tra-
tava de impugnação contra norma geral em tese. O ministro convocado Abner
de Vasconcelos, por sua vez, conheceu do pedido, mas declarou a constituciona-
lidade do decreto, entendendo que o presidente da República pode regulamentar
o salário mínimo, sem prejuízo de que o Congresso Nacional altere esse valor
por meio de lei.
Assim, o ministro Nelson Hungria votou pelo não conhecimento do
mandado de segurança, mas não deixou de apreciar a constitucionalidade do
decreto presidencial. Com efeito, a manifestação do ministro assentou que o
Decreto 35.450/1954 limitou-se a regulamentar lei federal, qual seja, o art. 81 da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)41, que estipulava critérios objetivos
para fixação do salário mínimo. Ademais, ressaltou as dificuldades da fixação
de numerário mediante lei:
Aí [no art. 81 da CLT] estão os critérios objetivos, os critérios marca-
damente objetivos que a lei ordinária, a que se refere a Constituição, impõe à
Comissão do Salário Mínimo, criada ad rem e cujas conclusões para fixação do
algarismo do salário mínimo devem ser levadas à aprovação, mediante decreto,
do Sr. presidente da República.
A Constituição não exige mais do que isso. Nem seria admissível que
exigisse mais do que isso. Se o salário mínimo depende das variáveis, das cam-
biantes condições econômicas e financeiras, não é concebível que a fixação do
algarismo salarial mínimo, a fixação aritmética do salário mínimo ficasse a
cargo exclusivo da lei, cuja elaboração poderia durar além do período de uma
legislatura, o que vale dizer, mais de um ano ou até dois.
A entender-se de modo contrário, essa lei seria sempre uma dissonância
irrisória com a realidade, um método de cura sempre anacrônico, uma lei de
opereta, uma lei — carabineiro de Offenbach, um figurino que, ao chegar, já
estaria fora de moda.
Não é aceitável que semelhante critério fosse adotado pela lei consti-
tucional, notadamente num país como o nosso, em que, como bem salientou o
próprio eminente ministro relator, se apresenta um progressivo, pode mesmo
dizer-se, um cotidiano aviltamento da moeda. Não é admissível que ficasse a
cargo exclusivo da lei a fixação aritmética do salário, porque a lei não dispõe
da flexibilidade da régua lésbica e antes mesmo de sua promulgação já estaria
obsoleta.
Com o deixar-se ao poder regulamentar do Executivo a fixação aritmética
do salário mínimo, dentro dos critérios legais objetivos, não há propriamente
41
Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943.
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Memória Jurisprudencial
lesão ao seu direito, uma vez que a pequena frota do impetrante estava impedida
de funcionar nas ruas, sob risco de apreensão.
O ministro Nelson Hungria procurou, assim, amenizar a vedação ao
conhecimento do mandado de segurança, sustentando a existência à restrição
ou à lesão de direitos.
Acompanhado pelos ministros Luiz Gallotti e Ribeiro da Costa, o minis-
tro Nelson Hungria acabou vencido no acórdão que restou assim ementado:
Mandado de segurança contra aplicação provável ou iminente do decreto,
Descabimento do writ.
(MS 2.089/DF, rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-8-1953.)
De outra sorte, o ministro Nelson Hungria acompanhou a maioria para negar
o cabimento do mandado de segurança impetrado contra o decreto que estabeleceu o
salário mínimo, sob o fundamento de que a lei geral, nesse segundo caso, não com-
punha restrição ou lesão de direito direta aos impetrantes (MS 2.655/DF, rel. para o
acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 5-7-1954).
2.2.4 Direito intertemporal
A sucessão de leis no tempo sempre tem suscitado questões importantes
e demandado proteção especial nas Constituições brasileiras.
As garantias da irretroatividade, do direito adquirido, do ato jurídico
perfeito e da coisa julgada são tuteladas pelas constituições democráticas como
elementos indispensáveis à estabilidade das relações e à segurança jurídica.
Na década de 1950, interessantes questões de direito intertemporal foram
debatidas pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente em razão da dife-
rença de proteção que existia com as Constituições outorgadas de 1934 e 1937
e com a CF/1946.
No julgamento da AR 154/DF, rel. para o acórdão min. Hahnemann
Guimarães, Pleno, 13-4-1953, o Supremo Tribunal Federal manteve acórdãos
anteriores à CF/1946 que chancelaram a aplicação retroativa do Decreto-Lei
1.907, de 28 de dezembro de 1939. Esse decreto excluiu da sucessão primos e
sobrinhos do de cujus, alterando as regras inclusive para as sucessões abertas na
data da edição do ato normativo.
Na oportunidade, o Plenário da Corte reconheceu a constitucionalidade
do art. 6º do Decreto-Lei 1.907/1939, que tratou da retroatividade quanto ao
parâmetro da CF/1937, com importantes considerações do ministro Nelson
Hungria sobre o contexto constitucional do tempo em que o mencionado
decreto-lei foi editado:
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Memória Jurisprudencial
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
Por outro lado, o ministro Nelson Hungria abriu a divergência por con-
siderar que a vitaliciedade conferida pelo art. 95, § 3º, da CF/1946 restringia-se
ao cargo de pretor, distinto do cargo de juiz de direito, a que só se tinha acesso
mediante concurso público. Na oportunidade, ele aduziu:
Entendo que a condicionada vitaliciedade que aí [art. 95, § 3º, CF/1946] se
assegura aos juízes temporários, com função limitada de meros preparadores de
processo ou de substitutos ocasionais de juízes de direito, se refere exclusivamente
a esse mesmo cargo de juiz com função limitada. De modo algum, é assegurado
a esses juízes, ainda quando declarados vitalícios, pelo decurso de dez anos de
contínuo exercício, o direito de acesso, independentemente de concurso, à magis-
tratura vitalícia, com plenitude de funções.
Esta é que é a conciliação entre os arts. 93, § 3º, e 124, da Magna Carta,
e não a que, data venia do eminente Sr. ministro relator, é defendida por Afonso
Arinos, com apoio de Sua Excelência, pois chega a criar um caso de ingresso na
magistratura de carreira ou, com plenitude de funções, ao arrepio da Constituição.
Esta não permite o ingresso nessa magistratura senão mediante o concurso de
provas.
(Voto no RE 22.542/RJ, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 31-8-1953.)
Esse voto acabou acompanhado pelos ministros Mario Guimarães, Luiz
Gallotti e Barros Barreto, restando vencido apenas o relator originário, ministro
Ribeiro da Costa.
O mesmo ficou decidido nos autos do RE 29.127/DF, rel. para o acórdão
min. convocado Sampaio Costa, Primeira Turma, 7-11-1956, no qual se consi-
derou estável auditor substituto da Justiça Militar. Na oportunidade, o ministro
Nelson Hungria assentou que essa estabilidade não implicava migração para a
carreira da magistratura:
Eu [o recorrente] o considero Juiz, mas não Juiz de carreira, porque para
tanto seria necessário que tivesse prestado concurso, senão aquele juiz preparador
de que fala a Constituição, de funções limitadas, semelhantes aos juízes muni-
cipais ou substitutos temporários, e a respeito dos quais este Supremo Tribunal
Federal tem jurisprudência pacífica, no sentido de que, não obstante a temporarie-
dade de sua nomeação, de quatriênio em quatriênio, uma vez que perfaça o tempo
de dez anos de exercício, passa a ser estável.
Fico no art. 124, XI, da Constituição Federal, para considerar o recorrente
como Juiz, Juiz de uma categoria especial, Juiz que não é de carreira, Juiz que não
tem acesso a postos superiores, mas Juiz.
(Voto no RE 29.127/DF, rel. para o acórdão min. convocado Sampaio
Costa, Primeira Turma, 7-11-1956.)
Ademais, essa orientação pode ser considerada precursora da forte tradi-
ção do Supremo Tribunal Federal de não admitir a transposição de cargos sem o
devido concurso público, sempre valorizado pela jurisprudência da Corte.
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Cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 946.
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Memória Jurisprudencial
Por outro lado, essa interpretação dos tratados internacionais não acarre-
tou a extensão aos sócios das isenções concedidas à renda de pessoas jurídicas,
como decidido na ACi 9.597/DF, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
31-7-1952, assim ementado:
A isenção fiscal concedida a uma sociedade não abrange o imposto de
renda progressivo devido pelos sócios em relação aos lucros nela auferidos.
(ACi 9.597/DF, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 31-7-1952.)
Nesse caso, tratava-se da cobrança de imposto de renda sobre os valores
repassados aos sócios por companhia que construía estrada de ferro entre Brasil
e Bolívia. A mencionada empreitada foi isenta de tributos pelos dois países.
Na oportunidade, o imposto de renda era devido de forma proporcional
pelas sociedades e firmas e de forma progressiva pelos lucros auferidos pelos
sócios, descontado o imposto recolhido pela pessoa jurídica.
O ministro Nelson Hungria, com a adesão de toda a Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, acolheu a apelação da União por concluir que o
imposto de renda dos sócios não é acessório ao imposto de renda das pessoas
jurídicas, inclusive no tocante à distribuição de lucros.
Dessa forma, a isenção concedida à sociedade não abrange o imposto de
renda incidente sobre a remuneração do sócio.
2.3.2.2 Nomenclatura e natureza jurídica de tributos
No julgamento do RE 18.606/SP, rel. para o acórdão min. convocado
Afrânio Costa, Pleno, 15-8-1954, o ministro Nelson Hungria, relator originário,
afetou ao Plenário do Supremo Tribunal Federal a questão sobre a constitu-
cionalidade da taxa de registro e fiscalização instituída pelo Município de São
Paulo.
Apesar de denominada de taxa, o tributo em questão não estava asso-
ciado a qualquer serviço prestado ou colocado à disposição dos contribuintes.
No entanto, o ministro Nelson Hungria ponderou que o Ato Municipal
998, de 9 de janeiro de 1936, apenas mudara a nomenclatura dos adicionais que
anteriormente vigoravam no Município de São Paulo, sem mudar sua natureza
de tributo acessório. Daí o ministro invocar o brocardo nihil interest de nomine,
cum de corpore constat, para aduzir que o nome é desimportante em detrimento
da substância, da natureza jurídica do tributo.
O ministro convocado Afrânio Costa pediu vista e abriu a divergência,
assentando:
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Contra essas alienações, o Banco ajuizou ação pauliana. As instâncias ordinárias jul-
garam improcedente a ação, tendo como não demonstrada a má-fé dos adquirentes.
O relator originário, ministro Ribeiro da Costa, votou pelo provimento do
apelo extremo, destacando que a primeira alienação fora, indubitavelmente, reali-
zada contra disposições contratuais e legais.
Por sua vez, o ministro Nelson Hungria apresentou voto divergente, assen-
tando a presunção de boa-fé do segundo adquirente, uma vez que não comprovada
nas instâncias ordinárias, nem o consilium fraudis, nem a notoriedade da insolvência
do devedor.
Assim, nos termos da fundamentação exposta pelo ministro Nelson Hungria,
restava indispensável a configuração da má-fé do adquirente para sucesso da ação
revocatória. A essa manifestação aderiram os restantes dos ministros da Primeira
Turma, e o acórdão restou assim ementado:
Fraude contra credores; quando não pode ser reconhecida, desde que admi-
tido como não provado o consilium fraudis. Aquisição de imóvel de quem o adquirira
do devedor; não é anulável, desde o segundo adquirente agiu de boa fé, não estando
adstrito a indagar da insolvência do primitivo proprietário, ao tempo da anterior
alienação.
(RE 19.715/MG, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
26-6-1952.)
Em sentido semelhante, a Primeira Turma assegurou o direito do adquirente
de boa-fé de títulos da bolsa vendidos sem intermediação de corretores, no jul-
gamento do RE 20.256, rel. min. Mario Guimarães, Primeira Turma, julgado em
19-6-1952.
Também nesse caso, o ministro Nelson Hungria pontuou que o adquirente de
boa-fé não estava obrigado a pagar novamente o valor das apólices, porquanto ele
não podia presumir que elas lhe tinham sido vendidas irregularmente.
Esses precedentes certamente contribuíram para a consolidação da jurispru-
dência em prestígio à boa-fé.
2.3.3.2 Reconhecimento de paternidade
Nelson Hungria foi relator, ainda, de interessante processo envolvendo a pre-
tensão de reconhecimento de paternidade.
Com efeito, no RE 21.046/RS, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
18-9-1952, discutiu-se a possibilidade de ajuizamento de ação de reconhecimento de
paternidade sem prévia ação de nulidade do primeiro registro de paternidade. Além
disso, o recurso extraordinário suscitava a manutenção da transação quanto aos efei-
tos patrimoniais da herança.
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Ministro Nelson Hungria
Na situação, a filha tida fora do casamento fora registrada aos quatro anos de
idade pelo padrasto. Após o falecimento tanto do pai quanto do padrasto que a reco-
nhecera no cartório, a filha entrou em contato com os demais herdeiros do genitor e
fez uma transação, por certidão de cartório, de que não procuraria a regularização de
sua filiação, recebendo valores bem aquém ao seu quinhão.
Posteriormente, a filha ajuizou a ação de investigação de paternidade, cumu-
lada com a petição de herança, que foi julgada procedente pelas instâncias ordinárias.
O relator, ministro Nelson Hungria, negou provimento ao recurso extraordi-
nário, assentando que era dispensável a prévia anulação do registro equivocado de
paternidade e afastando qualquer transação sobre o estado das pessoas.
De outra sorte, o ministro Mario Guimarães, em elaborado voto-vista, diver-
giu do eminente relator. Embora afastasse o fundamento de prévia anulação do
registro de paternidade da autora — reconhecendo o excesso de formalismo exigido
para tal posição —, o ministro Mario Guimarães entendeu que a transação efetuada
entre os litigantes prevalecia quanto à parte indisponível do acordo, isto é, os valores
correspondentes ao quinhão da autora.
A esta ponderação, o ministro Nelson Hungria retrucou que o acordo versava
essencialmente sobre o estado de pessoa, no caso da autora ora recorrida. Ademais,
o ministro Nelson Hungria argumentou que a transação fora baseada em erro, uma
vez que se sugerira que o valor concedido seria equivalente ao quinhão a que a autora
teria direito.
Após intensa discussão, os ministros Luiz Gallotti e Ribeiro da Costa
acompanharam o ministro Nelson Hungria, entendendo que, se a transação não
estava restrita a direitos patrimoniais, não poderia subsistir.
Os ministros Mario Guimarães e Barros Barreto restaram vencidos, assim,
em importante precedente que garante de forma ampla a investigação de paterni-
dade e os respectivos direitos patrimoniais. O ministro Nelson Hungria redigiu a
ementa do acórdão da seguinte forma:
Investigação de paternidade; pode ser proposta sem necessidade de prévia
anulação do falso reconhecimento ou legitimação do autor, da parte de outrem.
Invalidade da transação em torno de questão de estado pessoal.
(RE 21.046/RS, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 18-9-1952.)
Além disso, o magistrado foi revisor no julgamento da AR 270/SP, rel.
min. Mario Guimarães, Pleno, 20-11-1953, precedente no qual se fixou a orien-
tação de que a absolvição do crime de sedução não impede a ação de reconhe-
cimento de paternidade.
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Memória Jurisprudencial
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Lei 1.164, de 24 de julho de 1950.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
Por sua vez, contra essa decisão foi interposto recurso extraordinário, ao qual o
relator, ministro Rocha Lagôa, negou provimento, entendendo correta a decisão do TSE.
O ministro Barros Barreto abriu divergência por entender que a decisão do
TSE que permitia a distribuição de sobras entre partidos que não houvessem atingido
o quociente eleitoral violaria o sistema eleitoral nacional, transformando o sistema
proporcional em sistema majoritário.
O ministro Nelson Hungria acompanhou o relator, aduzindo que a regra
específica do art. 46, § 3º, do CE/1950 excepcionava a eleição que tinha apenas duas
vagas. Na sua concepção, o CE/1950 criara a ficção de existência de sobras para dife-
renciar a hipótese de eleição para duas vagas. Também acompanharam a corrente do
relator os ministros Luiz Gallotti, Edgard Costa e Orozimbo Nonato.
Na outra corrente, os ministros Mario Guimarães, Lafayette de Andrada,
Afrânio Costa e Abner de Vasconcelos votaram, junto com o ministro Barros
Barreto, pelo provimento do recurso.
Pela terceira vez, o julgamento desse polêmico recurso extraordinário aca-
bou empatado em quatro votos a quatro, restando o desempate ao ministro José
Linhares, presidente. Nesse caso, ele acompanhou a divergência, em acórdão que
restou assim ementado:
Inconstitucionalidade do art. 13, § 4º, do Código Eleitoral — Cabimento
do recurso, pelo fundamento do art. 120 da Carta Maior — Sistema de represen-
tação proporcional; distribuição de sobras — Não pode concorrer, na distribuição
das sobras, o partido que não tiver alcançado o quociente eleitoral — Violação da
Constituição e do Código Eleitoral — Dá-se provimento ao recurso, a fim de restabe-
lecer a decisão do Tribunal Regional Eleitoral.
(RE 19.285/DF, rel. para o acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado
em 22-11-1951.)
Destaque-se a posição dos ministros Nelson Hungria e Rocha Lagôa, que dis-
cutiram ardorosamente pelo conhecimento do apelo extremo, mesmo concordando
com a orientação exposta no acórdão recorrido. Ambos os ministros eram ciosos de
manter a coesão do sistema e preservar o Supremo Tribunal Federal como último
guardião da Constituição, mantendo-o supremo em relação a todos os demais tribu-
nais, mesmo em relação ao Tribunal Superior Eleitoral.
Frise-se que no julgamento dos embargos a esse acórdão (RE 19.285-embar-
gos/DF, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 15-9-1952) ocorreu novo empate:
os ministros Nelson Hungria, Rocha Lagôa, Luiz Gallotti e Orozimbo Nonato vota-
ram pelo acolhimento dos embargos, enquanto os rejeitaram os ministros Lafayette
de Andrada, Mario Guimarães, Barros Barreto e Afrânio Costa, este convocado e
relator. Novamente, coube ao presidente, ministro José Linhares, o desempate pela
rejeição dos embargos.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
CONCLUSÃO
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
REFERÊNCIAS
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Ministro Nelson Hungria
169 169
APÊNDICE
Ministro Nelson Hungria
INTERVENÇÃO FEDERAL 20 — MG
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não padece dúvida que a in-
tervenção autorizada pelo art. 7º, V, da Constituição Federal tem como pressu-
posto a injustificada oposição, por parte do governo estadual, de embaraço ou
impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária.
Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário
que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à
ordem ou decisão judicial.
É o que já ensinava Barbalho, comentando o § 4º do art. 6º da Constituição de
1891: a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger
à obediência os governos dos Estados, “quando embaracem ou se oponham à execu-
ção” das decisões judiciais (Constituição Federal Brasileira, p. 27).
No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição:
“Há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou or-
dem” (Comentários à Constituição de 1946, ed. 1953, vol. 1º, p. 486).
É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo governo
estadual à execução da decisão ou ordem.
Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstá-
culo criado pelo governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário
do Estado.
Plenamente justificada é a mora de pagamento.
Onde não há, até rei perde.
Quanto à alegada antecipação de consignação, em detrimento do reque-
rente, sobre não autorizar isso a intervenção, mas tão somente a medida de se-
questro das quantias consignadas, na conformidade da lei processual civil, não
chegou a efetuar-se, tendo sido revogada a ordem em tal sentido.
Indefiro o pedido.
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Memória Jurisprudencial
DENÚNCIA 118 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o Código Penal vigente,
no art. 331, diz o seguinte: (ler)
Tal dispositivo, portanto, ao definir o desacato, aplica o art. 134 do Código
Penal de 1890, isto é, não exige, necessariamente, que o desacato atinja o funcio-
nário in officio, pois o crime existirá ainda que o sujeito passivo se encontre extra
officium, posto que a ofensa se realize propter officium.
No caso vertente, entretanto, não há indagar se a ofensa foi feita ratione
offici, pois o ofendido se achava in officio.
Não se pode negar que o Sr. Eugênio Gudin, então ministro da Fazenda,
no momento de ser agredido, estivesse no exercício do cargo, pois estava a sair
do seu gabinete, para empreender uma viagem até São Paulo, em desempenho de
suas funções ministeriais. Estava em ato de exercício de suas altas funções, e o
denunciado sabia disso.
Ao que reza a denúncia, o ofendido teria, numa entrevista, formulado con-
ceito desairoso em relação ao denunciado, ministro Bittencourt Sampaio. Teria
proferido contra este uma injúria indireta, porque, interpelado sobre uma confe-
rência que o mesmo fizera no Clube Militar, asseverara o ministro Gudin que, em
matéria de petróleo, não se entenderia se não com determinadas pessoas, cujos
nomes mencionou, por serem pessoas honradas.
O denunciado, ministro Bittencourt Sampaio, ao invés de processar criminal-
mente o Sr. ministro da Fazenda, achou, insolitamente, atestando a indisciplina que
reina no Brasil atual, até nas mais altas camadas da administração, de se dirigir ao
gabinete do Sr. Gudin para tomar uma satisfação. Atitude indesculpável, pois teria de
provocar, naturalmente, uma troca de desaforos ou mesmo vias de fato.
Interpelado, o ministro Gudin negou que tivesse usado a expressão inju-
riosa em relação ao denunciado. Apenas o denunciado e seu corréu é que dizem
ter sido reiterada a injúria, nestes termos, mais ou menos: “Eu disse que me en-
tenderia apenas com Fulano e Sicrano, porque são homens honrados, e não posso,
ou não estou habilitado a dizer o mesmo em relação ao Senhor.”
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Houve uma testemunha, além do
denunciado e do corréu, que afirmou isso categoricamente. Além dos acusados,
estava presente um jornalista, que prestou depoimento.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Aceito a retificação de Vossa Excelência.
172
Ministro Nelson Hungria
Vossa Excelência não leu em voz muito alta o relatório, e, daí, o ter-me
escapado a informação.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Procedi à leitura do depoi-
mento, por se tratar da testemunha mais importante.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Pareceu-me que só os acusados houves-
sem dito que a injúria tinha sido reproduzida face a face.
Mas a repetição da injúria não legitimava o desforço violento, o ministro
Gudin não prorrompera em injúrias, seguidas, cuja interrupção só fosse possí-
vel pela reação brutal.
Esta ocorreu contra uma injúria já proferida, isto é, contra uma agressão
moral já finda. Não haveria falar-se em legítima defesa, ainda quando o denun-
ciado Bittencourt Sampaio se limitasse a retorquir com outra injúria. Muito me-
nos se poderá reconhecê-la na reação a socos, por mero espírito de vindicta ou
pela vaidade de “não levar desaforo para casa”.
O desabrimento do denunciado, que provocara a cena com o pedido de
satisfações, é imperdoável. É o que é mais, Senhor Presidente: não se tratava
apenas do ministro da Fazenda, não se tratava apenas de uma pessoa, por todos
os títulos ilustre, mas, acima de tudo, de um homem em idade provecta, que só
por isso devia estar a coberto da grosseria de uma agressão física.
Não há indagar, como disse e repito, se houve vínculo causal entre a fun-
ção do ofendido e a agressão, praticada pelo denunciado. Basta que o Sr. Gudin
tenha sido agredido quando se achava em ofício, dentro da própria sede do
Ministério, para que se tenha de reconhecer o desacato.
Não vejo, assim, motivo para arquivar a denúncia.
Fala-se em estado emocional do denunciado; mas está no Código Penal,
com todas as letras, que a emoção não exclui a responsabilidade penal.
O arquivamento impõe-se, sim, mas quanto ao corréu. Foi um intrigante,
um imponderado, um imprudente, mas não se concebe coparticipação culposa
em crime doloso.
De modo algum se pode dizer que ele tenha intencionalmente contribu-
ído para que o denunciado Bittencourt Sampaio desacatasse o Sr. ministro da
Fazenda. Sua inclusão na denúncia é realmente insustentável.
O meu voto, portanto, é no sentido de prosseguir o processo contra o denun-
ciado, Bittencourt Sampaio, excluído o denunciado, João Crisóstomo Faria.
173
Memória Jurisprudencial
174
Ministro Nelson Hungria
REPRESENTAÇÃO 164 — SC
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, três são as razões in-
vocadas na presente representação contra a lei estadual em debate. Vou começar
pela última, que é a de que não teria ocorrido maioria absoluta para a rejeição do
voto do governador. Não tenho dúvida alguma que a maioria absoluta de 39 é 20.
Tratando de votantes em número ímpar, a maioria absoluta é a mesma do número
par imediatamente inferior. Já neste sentido tenho aqui votado. Também rejeito a
increpação de que a lei não indicou a fonte da receita ou a fonte de recursos para
fazer face ao aumento de despesa. Indicou, sim. Disse que o aumento de despesa
devia ser coberto pela receita arrecadada, que o fora em muito mais do que o
previsto no orçamento. E o que é mais: indicou como fonte de recursos a mesma
que havia indicado o próprio chefe do Executivo estadual, isto é, o superávit da
receita, a ser utilizado mediante créditos suplementares.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Permita, Vossa Excelência, um escla-
recimento: não é bem este ponto, porque a proposta do Executivo propunha um
aumento da lei do selo para fazer face à despesa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas na mensagem não se dizia isto. Só
mais tarde, é que o chefe do Executivo estadual declarou que pretendia cobrir essa
despesa com a revisão da lei do selo. Na proposta, porém, falava em cobertura da
despesa mediante créditos suplementares sobre a receita arrecadada. Portanto, a
indicada fonte da receita era a mesma.
Agora, Senhor Presidente, resta a questão central, nuclear, de que cogita a
representação. Entendo que o art. 27 da Constituição catarinense, que reproduz,
se não na forma, pelo menos no fundo, dispositivo da Constituição Federal, exerce
uma função frenadora ao predomínio ou arbítrio do poder legiferante. Não exige,
apenas, como muito bem acentuou no seu brilhante voto o eminente Sr. ministro
relator, simples prioridade da proposta do Poder Executivo, idêntica à primazia
que, no regime bicameral, cabe a uma das casas do Congresso no tocante a certos
projetos. Não: aqui se exige uma iniciativa condicionante e particularizada, refe-
rente não só à apresentação da proposta como ao seu conteúdo.
Entre outros assuntos a que devem ser atinentes os projetos cuja iniciativa
cabe ao Poder Executivo, figura o de aumento de vencimentos. Estaria, sem dúvida,
inteiramente burlado o preceito constitucional se se permitisse ao Poder Legislativo
um maior aumento do que o proposto pelo Executivo. Estaria totalmente iludida
a finalidade do preceito, qual a de evitar que o Legislativo, não conhecendo, real-
mente, como conhece o Executivo, as forças do erário público, as probabilidades da
receita, ou as possibilidades de granjeio do numerário, pudesse estabelecer um tal
aumento de despesa que colocasse o Tesouro em pânico, na impossibilidade prática
175
Memória Jurisprudencial
de poder arrostar com esse acréscimo de passivo. Pode a Câmara, pode a legis
latis emendar a proposta ou anteprojeto do Executivo, mas dentro da sua própria
lógica, como um corolário necessário dos próprios critérios adotados pela pro-
posta, e, notadamente, dentro do provável algarismo máximo indicado pelo Poder
Executivo relativamente às fontes de cobertura.
Nada disso ocorreu no caso vertente. A extensão ao funcionalismo público
em geral do aumento proposto para os magistrados e membros do Ministério
Público não era um corolário necessário da proposta governamental. Várias
são as condições que reclamam um tratamento diferente entre os membros da
Magistratura e do Ministério Público e os funcionários em geral. Sem querer
tocar em outros pontos, bastaria que se destacasse o seguinte: os magistrados e
membros do Ministério Público estão obrigados à constante aquisição, por conta
própria, de livros que os aparelhem para o exato exercício de suas funções, que os
coloquem ao nível da evolução jurídica, e isso importa despesas de grande vulto,
e mesmo, algumas vezes arrasadoras. Basta este fato para que se não possa exigir
uma igualdade de tratamento entre os juízes e promotores e os funcionários públi-
cos em geral. Tal igualdade redundaria numa iníqua desigualdade.
Por outro lado, admitir que o Legislativo faça acréscimos ao aumento
proposto pelo Executivo é evidentemente atribuir àquele a iniciativa que a
Constituição proíbe. Quanto a esses acréscimos, evidentemente interfere a ini-
ciativa do Legislativo, que o preceito constitucional proíbe. Como precisamente
acentuou, no seu erudito e notável voto, o Sr. ministro relator, não há “direito de
emenda” onde não há “direito de iniciativa”. A entender-se de outro modo, estaria
rompido o freio imposto pelo dispositivo da lei fundamental.
Conhece-se a razão desse dispositivo, que a Constituição de Santa Catarina
copiou da Constituição Federal; é evitar o jubileu de indulgências a que, por ve-
zes, no passado, se entregava o Poder Legislativo, sem cuidar das possibilidades
do Tesouro, sem indagar das condições financeiras, ainda quando desfavoráveis,
em que se achasse o Estado. E, então, se cuidou de criar esse entrave, esse con-
trapeso à autonomia do Legislativo. O Executivo, que conhece de perto quais as
possibilidades do Tesouro e as necessidades reais da administração; que conhece
o que se pode dar, em face da situação do erário ou dos algarismos possíveis de
arrecadação da receita, da capacidade de tal ou qual imposto ou de tal ou qual
verba; o Executivo que, para usarmos uma linguagem pitoresca, sabe onde dói o
calo, e o que se pode fazer, no limite da realidade, para remediar o mal, foi erigido,
neste particular, em controlador do Legislativo. Ora, essa finalidade, esse objetivo
do preceito constitucional, que não pode deixar de ser interpretado dentro da sua
função teleológica, estaria inquestionavelmente cancelada, se fosse permitido ao
Poder Legislativo entregar-se, de novo, aos excessos de liberalidade com sacrifí-
cio do erário público. De nada teria valido o empecilho criado pela Constituição,
176
Ministro Nelson Hungria
que atendeu a uma lição, a uma longa e alarmante lição da experiência. Não é a
primeira vez que me manifesto contra o subterfúgio com que se tem enganado o pre-
ceito constitucional em questão, já de outra feita, quando foi de uma criação de varas
na Justiça local, tendo a proposta do Poder Executivo limitado o número dessas varas
a seis, a Câmara dos Deputados, com apoio do Senado, emendou o projeto, aumen-
tando para nove o número dessas varas. Como membro que era então, do Tribunal de
Justiça local, tive ensejo de, em sessão plenária, declarar a minha estranheza quanto
ao que eu reputava um indisfarçável desrespeito à Constituição.
Assim, estou sendo fiel a mim mesmo, neste momento, ao reconhecer, positi-
vamente, a inconstitucionalidade da Lei catarinense 22, porque, desatendendo a um
preceito de ordem constitucional sobre interdependência de poderes, quebrou a har-
monia entre estes, traduzindo uma incursão do Legislativo na órbita do Executivo.
Por essa razão, e tão somente por essa razão, estou de acordo com a conclusão
do eminente Sr. ministro relator.
REPRESENTAÇÃO 179 — DF
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que
é arbitrária a pretendida restrição ao vocábulo “aro” pretendida pelo ilustre
Castro Nunes. Em todo ato administrativo, seja ele qual for, desde que acoi-
mado de inconstitucional e desde que afete qualquer das matérias enumeradas
na Constituição, cabe representação. Assim, acompanho o voto do eminente
ministro relator quanto à preliminar.
REPRESENTAÇÃO 199 — RJ
VOTO
(Antecipação)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, meditando sobre o
que ouvi na primeira fase do julgamento desta representação, achei de bom
aviso fixar por escrito o meu ponto de vista, a fim de evitar desvios ou divaga-
ções dispersivas a que sempre nos leva a improvisação.
177
Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
179
Memória Jurisprudencial
Isto posto, data venia do Sr. ministro relator, julgo procedente a represen-
tação, para declarar irreconciliável com a Constituição Federal as ora questio-
nadas emenda constitucional e lei ordinária do Estado do Rio Grande do Sul.
REPRESENTAÇÃO 200 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já mais de uma vez tenho
sustentado que o desmembramento de um Município, sem prévio assentimento da
respectiva Câmara ou de plebiscito extensivo a toda população municipal, é antinô-
mico com a Constituição Federal. Diz esta que ao Município é assegurada irrestrita
autonomia administrativa, no que diz com o seu peculiar interesse.
Ora, não há interesse mais peculiar ao Município do que o concernente ao seu
território, o que vale dizer, à sua própria existência no espaço. Procurei apadrinhar-
-me com a jurisprudência norte-americana, que é sempre invocada como modelo para
a interpretação do nosso direito constitucional, e mostrei como na Federação Norte-
Americana é imprescindível, para a divisão ou desmembramento dos Municípios, o
prévio consentimento destes, através de seus órgãos representativos.
Afirma-se que, a se decidir assim, jamais haveria possibilidade do des-
membramento de um distrito, para constituir novo Município, porque aquele
a que estava vinculado sistematicamente se oporia, impedindo-se o progresso
geral pela emulação entre as novas e velhas comunas.
Esse argumento não demoveu o legislador constituinte de 1946, quando asse-
gurou self-government municipal, e naturalmente porque a realidade prática, a do-
lorosa realidade prática é que se despedaçam Municípios grandes, florescentes, para
formação de novos Municípios raquíticos e incapazes de êxito.
Em noventa e cinco por cento dos casos, assim se procede por interesse
político-partidário, e não no sentido do interesse superior do desenvolvimento
do Brasil. Somente se cuida de atender a subalternos interesses da ordem elei-
toral, a que os novos Municípios se afeiçoam, para parasitarem em torno das
quotas de impostos que com eles partilham a União.
Senhor Presidente, entendo que é uma intolerável ofensa à autonomia
municipal o desmembrar o Município sem ouvir o seu órgão representativo, que
é a Câmara Municipal, ou sem auscultar a respectiva população, através de um
plebiscito.
180
Ministro Nelson Hungria
REPRESENTAÇÃO 210 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é certo que a Constituição
de Mato Grosso não faz exigência expressa do prévio assentimento do Município
a desmembrar, quer pelo voto de sua Câmara, quer mediante plebiscito entre a
população total. Acontece, porém, que a Lei Orgânica dos Municípios de Mato
Grosso faz exigência categórica, no sentido de que esse desmembramento não se
poderá fazer sem que preceda consulta e aprovação da Câmara Municipal.
Ora, se a Constituição de Mato Grosso é omissa a tal respeito, e se a Lei
Orgânica dos Municípios do Estado, não desafeiçoada à Constituição Federal,
faz tal exigência, não há como deixar de cumpri-la.
Em aparte ao eminente ministro Orozimbo Nonato, quando defendia tese
contrária, eu indaguei: — Será inconstitucional o preceito das Constituições de
alguns Estados que exige, para o desmembramento do Município, a aprovação
da Câmara Municipal respectiva, ou a extensão do plebiscito a toda população
municipal? Sua Excelência não me deu resposta categórica.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Entendo que o Município não pode
impedir a expansão.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Não é possível que Minas Gerais veja
o seu peculiar interesse de uma maneira e Goiás de outra, e assim por diante. O
Supremo Tribunal deve estabelecer o que se deve entender por peculiar interesse.
181
Memória Jurisprudencial
O Sr. Ministro Mario Guimarães: E resolveu bem, porque não criou mais
nenhum Município.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Estará anulada a autonomia municipal,
se prevalecer a tese que só agora defende a maioria deste Tribunal, sem que ti-
vesse havido intercorrente emenda constitucional a respeito.
Não tenho dúvida nenhuma em que, exigindo a Lei Orgânica dos
Municípios de Mato Grosso, afeiçoada à Constituição Federal, a aprovação da
Câmara dos vereadores para o desmembramento das câmaras, tal requisito é
indeclinável.
De pleno acordo com o Sr. ministro relator, julgo procedente a representação.
REPRESENTAÇÃO 211 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Tenho, Senhor Presidente, uma
preliminar a suscitar.
A Lei 1.079, de 10-4-1950, que “define os crimes de responsabilidade e
regula o respectivo processo e julgamento”, dispõe, nos seus arts. 13, I, e se-
guintes, que os crimes de responsabilidade dos ministros de Estado, definidos
na lei, ainda quando não conexos com os do presidente da República, isto é,
quando praticados ou ordenados por exclusiva iniciativa dos próprios ministros,
ficarão sujeitos à acusação perante a Câmara dos Deputados e julgamento pe-
rante o Senado.
Entre os crimes de responsabilidade dos ministros de Estado figura o de
“recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do
exercício das funções do Poder Executivo” (art. 13, I, c/c art. 12, n. 2). Em face,
183
Memória Jurisprudencial
portanto, da Lei 1.079, no caso somente caberia denúncia perante a Câmara dos
Deputados, na forma do art. 14, escapando a ação penal ao Supremo Tribunal.
E suscitando a preliminar, eu a desprezo. Os dispositivos dessa lei, no tocante
a crimes de responsabilidade dos ministros de Estado não conexos com os do
presidente da República, são manifestamente inconstitucionais.
Eis o que preceitua o art. 92 da Constituição: “Os Ministros de Estado
serão, nos crimes comuns e nos crimes de responsabilidade, processados e jul-
gados pelo Supremo Tribunal Federal e, nos conexos com os do presidente da
República, pelos órgãos competentes para o processo e julgamento deste.” A
seguir, dispõe o art. 93: “São crimes de responsabilidade, além do previsto no
art. 54 (isto é, falta injustificada de comparecimento a qualquer das casas do
Congresso ou às suas comissões quando por elas convocados), os atos definidos
em lei (art. 89), quando praticados ou ordenados pelos ministros de Estado”.
O art. 89 e seu parágrafo único, por sua vez, declaram que são crimes de
responsabilidade, a serem “definidos em lei especial, que estabelecerá as nor-
mas do processo e julgamento”, os que atentarem contra a Constituição Federal
e, especialmente, entre outros, os que atentarem “contra o cumprimento das de-
cisões judiciárias”.
Finalmente, o art. 101, I, c, reafirma que ao Supremo Tribunal compete
processar e julgar originariamente “os ministros de Estado (...), assim nos crimes
comuns como nos de responsabilidade”, ressalvado apenas o disposto no final do
art. 92 (isto é, salvo quando, em se tratando de crimes de responsabilidade, sejam
conexos com os do presidente da República).
Assim concatenados os preceitos constitucionais, é fora de dúvida que os
crimes de responsabilidade dos ministros de Estado, ainda mesmo aqueles que
somente são definidos ou previstos na Lei 1.079, com a só cominação de perda do
cargo e inabilitação temporária para o exercício de qualquer função pública, são
privativamente processados e julgados pelo Supremo Tribunal.
Isso posto, dou pela competência deste Tribunal para conhecer do pre-
sente caso.
De meritis:
O fato imputado ao Sr. ministro da Fazenda não constitui crime de espé-
cie alguma, e isto pela singela razão de que o mandado de segurança de que se
trata não foi concedido contra ele, mas contra a Carteira de Comércio Exterior,
como substituta da Cexim. É verdade que o Decreto 34.893, de 5-1-1954, que re-
gulamentou a Lei 2.145, de 28-12-1953, determinou que o ministro da Fazenda
assumiria a direção do acervo da extinta Cexim, para os fins da liquidação do
mesmo acervo e competência para decidir sobre pedidos de licença protocolados
184
Ministro Nelson Hungria
anteriormente na mesma Cexim; mas não é menos verdade que tal determinação
exorbitou da lei regulamentada, em cujas linhas ou entrelinhas não se autori-
zava semelhante medida. O que a Lei 2.145 deixou bem claro é que a Carteira
de Comércio Exterior era criada em substituição à extinta Cexim.
Não se compreende, portanto, que, à margem da lei, o regulamento fosse
determinar que, na fase de liquidação da Cexim, esta ficaria substituída pelo
ministro da Fazenda. Tal competência só seria admissível se houvesse a respeito
algum dispositivo transitório da Lei 2.145. E como não existe tal dispositivo,
para solução de questões afetas à Cexim, antes da Lei 2.145, há de caber à pró-
pria Carteira de Comércio Exterior a competência para tanto.
A ordem expedida pelo Dr. Juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública tinha de
ser endereçada, como foi de início, à Carteira de Comércio Exterior, e por esta
é que terá de ser cumprida, como, aliás, já acentuou o Sr. presidente do Tribunal
Federal de Recursos. Admita-se, porém, que assim não seja, devendo o art. 55 do
Decreto 34.893 ser atendido como nele se contém, porque corolário da Lei 2.145.
O raciocínio, então, seria o seguinte: como, ao proferir a sentença, já
estava em vigor o Decreto 34.893, o Dr. juiz errou: em vez de se declarar in-
competente, remetendo os autos ao Tribunal Federal de Recursos, concedeu o
mandado contra a Carteira de Comércio Exterior; e é certo que, na execução
da sentença, não poderia emendar a mão, determinando que o mandado fosse
cumprido pelo ministro da Fazenda. Salvo os casos do art. 888 do Código do
Processo Civil, que não ocorrem na espécie, a sentença somente se executa
contra o vencido. A ordem expedida contra o ministro da Fazenda terá sido,
portanto, uma ordem ilegal, e ordens ilegais não se cumprem.
Por último, é preciso advertir que o Dr. juiz representante tem uma noção
inexata dos crimes de prevaricação e desobediência.
A prevaricação exige, como dolo específico, o fim de satisfazer “interesse
ou sentimento pessoal”.
Interesse pessoal é o interesse privado, econômico ou moral, e sentimento
pessoal é a afeição, o ódio, o espírito de vingança, a parcialidade, a obsequiosi-
dade, a benevolência, o favoritismo, etc. Assim se resumiam, em outros tempos,
os motivos do crime que hoje se chama prevaricação: cupiditas, amor, odium,
obsequium. Dizer-se que o propósito do Sr. ministro da Fazenda de salvaguar-
dar a sua autoridade, por entender que não está sujeito, na espécie, à jurisdição
de juízes de primeira instância, traduz ou revela o “sentimento ‘pessoal’ a que
se refere a lei, é confundir sentimento com entendimento, o affectus com o ra-
ciocínio lógico, para interpretar aberrantemente o art. 319 do Código Penal.
185
Memória Jurisprudencial
REPRESENTAÇÃO 212 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, fiel aos meus votos em ca-
sos análogos, entendo que nenhum Município pode ser desmembrado sem que haja
o seu prévio consentimento seja por que forma for, sob pena de subversão do regi-
men de self- government que a vigente Constituição assegura aos Municípios. Tirar
território a um Município pode significar até mesmo a supressão de sua capacidade
de sobrevivência, e, portanto, não se compreende que, sendo ele, no caso, o máximo
interessado, não seja ouvido. É preciso por termo à política de esfacelamento dos
Municípios, que, na prática, tem dado os mais lamentáveis resultados. E contra ela se
ergue, no meu entender, a Constituição de 46.
Julgo procedente a representação, data venia do eminente Sr. ministro relator.
186
Ministro Nelson Hungria
Ocorre, porém, de outro lado, que a lei citada foi promulgada numa época em
que era permitido atribuir-se efeito retroativo à lei. Tal efeito teria de ser reconhecido
quando a própria lei trouxesse em seu texto a cláusula da retroatividade. É o que
ocorreu com a lei em questão: dela constava cláusula determinativa da sua própria
aplicação aos casos, pendentes aos processos em curso. Não há indagar se a lei sobre-
veio ou não antes da partilha. Também entendo que a partilha é meramente declara-
tória, e não constitutiva de direito. Isso, porém, está à margem da discussão. O ponto
principal, o punctum saliens, é o de que a lei em questão podia ter o efeito retroativo
que ela mesma se atribuía porque, então, não era isso vedado.
Nestas condições, julgo improcedente a ação rescisória, nos termos dos votos
dos eminentes ministros relator e revisor.
REPRESENTAÇÃO 243 — BA
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em face da Lei 2.271, de
1954, ao que se infere de um de seus artigos, o mandado de segurança, no Supremo
Tribunal, admite embargos, quando não unânime a decisão.
O legislador aí, é certo, tratou do assunto que não corresponde à epígrafe da
lei. Não me parece se possa deduzir desse artigo que o processo relativo à represen-
tação sobre inconstitucionalidade, formulada pelo Sr. procurador-geral da República,
tenha o mesmo processo do mandado de segurança.
O Sr. Ministro Edgard Costa: É o que determina a lei, no art. 4º.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Vossa Excelência leia o artigo.
O Sr. Ministro Edgard Costa: Qual é a lei?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não a tenho aqui, estou citando de me-
mória. Interpretou assim o artigo referido por Vossa Excelência: os mandados
de segurança, de competência originária do Supremo Tribunal, e da data desta
lei em diante, admitem embargos.
Não entendo que tal dispositivo tenha aplicação ao caso de representação so-
bre matéria constitucional, embora figure em lei que trata de tal assunto.
Conheço da representação de inconstitucionalidade, que não está sujeita à
prescrição ou decadência.
187
Memória Jurisprudencial
REPRESENTAÇÃO 248 — SP
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Verifica-se, para logo, que a ques-
tionada Lei paulista 2.970, de 1955, no seu art. 1º, reproduz ampliativamente o art.
1º da Lei federal 2.284, de 9-8-1954. Esta se refere tão somente aos extranumerá-
rios mensalistas, enquanto a lei paulista abrange também os “diaristas”.
É preciso, porém, não esquecer que o dispositivo da referida lei federal foi
vetado pelo Sr. presidente da República e sua constitucionalidade ainda não foi
reconhecida pelo Poder Judiciário. A questão, portanto, continua “aberta”.
Tenho para mim que, realmente, a lei paulista é manifestamente inconstitucional.
Ao declarar, no seu art. 1º, que os extranumerários mensalistas e diaristas
“serão equiparados aos funcionários efetivos para todos os efeitos”, importou,
necessariamente, em criar “cargos”, pois, na ausência destes, tendo-se em vista o
capítulo da Constituição Federal sobre os funcionários públicos, não há falar-se
em efetivação e estabilidade, e, muito menos, em estabilidade sem efetivação.
Não há, assim, pretender iludir o texto da lei paulista, dizendo-se que ela não
efetivou os extranumerários, se não apenas os tornou estáveis. Se os extranumerários
foram equiparados aos funcionários efetivos para todos os efeitos. É claro que teriam
de adquirir efetividade, e somente desta poderia decorrer o direito à estabilidade.
Ora, repita-se, efetividade e estabilidade não são possíveis sem a existência de
cargo; logo, a lei criou tantos cargos quantos fossem os extranumerários com mais de
cinco anos de serviço. Não vale invocar a lei estatutária dos funcionários, segundo a
qual a estabilidade “diz respeito ao serviço público e não ao cargo”.
O que aí se quer dizer é que a estabilidade não se opera no cargo, podendo
o respectivo titular ser removido para outro. De modo algum, quer significar que
possa existir estabilidade sem cargo. Assim, importando em criação de cargos, a
lei em questão dependia de iniciativa do chefe do Executivo.
Nem se diga que leis federais (entre as quais o próprio Estatuto dos
Funcionários Civis da União) já adotaram medida idêntica à da lei paulista,
como, por exemplo, no caso dos extranumerários participantes da Força
Expedicionária, porque, ou emanaram do legislador federal constituinte, que é
soberano, ou tiveram a iniciativa do chefe do Executivo; ou não foram por este
vetadas, ao contrário do que ocorreu no caso vertente.
188
Ministro Nelson Hungria
REPRESENTAÇÃO 249 — SC
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Quando, no art. 124, I, a Constituição
Federal, depois de assegurar a intangibilidade quinquenal da organização judici-
ária, ressalva o caso de intercorrente proposta motivada do Tribunal de Justiça,
está, necessariamente, atribuindo a este, com exclusividade, a iniciativa, perante o
Legislativo estadual, da alteração da dita organização, pouco importando que tal
alteração envolva criação de cargos. De outro modo, isto é, se fosse indispensável
o prévio assentimento do Executivo, quando a proposta do Judiciário implicasse a
criação de cargos, aplicando-se o disposto no § 2º do art. 67 da mesma Constituição,
o desacordo do Executivo criaria um impasse, e estaria praticamente anulada a prer-
rogativa do Judiciário. O art. 124, I, da Magna Carta, quando ressalva a proposta do
Judiciário, não a restringe, de modo algum, ao placet do Executivo, nem poderia
restringi-la, sob pena de torná-la inócua, toda vez que com ela não concordasse o
Executivo. A anomalia ocorrida no caso vertente bem revela a inadmissibilidade da
189
Memória Jurisprudencial
tese sustentada pelo Sr. governador de Santa Catarina e apoiada pelo Sr. procurador-
-geral da República: o Sr. governador sancionara a criação de comarcas, mas vetara,
por haver sido omitida a sua iniciativa, a criação dos respectivos cargos de juiz,
promotor e demais funcionários imprescindíveis à existência funcional das novas
comarcas. Seria este o “beco cego”, a que frequentemente se teria de chegar, se pre-
valecesse o critério de distribuir a iniciativa de criação de comarcas e a de criação
dos correspondentes cargos, respectivamente, entre o Judiciário e o Executivo. Não
é aceitável que a Constituição, ao mesmo tempo que outorgava uma prerrogativa ao
Judiciário, subordinasse esta ao placet do Executivo, abstraindo que ceci tuera cela.
Tenho para mim que a lei catarinense em questão não merece a coima de
inconstitucional.
Julgo improcedente a representação.
190
Ministro Nelson Hungria
REPRESENTAÇÃO 406 — RN
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não somente o preceito
constitucional que determinou a eleição do prefeito, em substituição ao regime de
nomeação pelo chefe do Executivo estadual, como a lei ordinária que retirou do
chefe do Poder Executivo a atribuição de nomear prefeito estão necessariamente
condicionados à ulterior eleição do prefeito. São dispositivos legais subordinados
a uma condição suspensiva, isto é, dependerá a sua execução da superveniente
eleição do prefeito, porque, de outro modo, nesse meio tempo, como seria suprido
o cargo de prefeito, acaso o anterior falecesse ou terminasse o cargo?
O Sr. Ministro Vilas Boas: A lei local que assume o vice-presidente da Câmara.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Isso é no regime eletivo pleno, em que não só
o Poder Legislativo como o Poder Executivo são eleitos.
O Sr. Ministro Ary Franco: Mas a Câmara é eleita.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Em meu voto na Rp 179, de São Paulo,
acentuei isto:
(...) é assente, em direito público e administrativo, o critério de continui-
dade da administração pública, de modo que em casos de reforma que acarrete
alteração nas condições de investidura dos respectivos titulares, estes permane-
cem provisoriamente nos cargos, à proporção que forem tomando posse os novos
titulares. É um princípio pacífico, imposto pelo interesse geral.
No caso vertente, entretanto, afirma-se que não pode ser aplicado esse
princípio, por isso que a lei constitucional estadual ou a orgânica dos Municípios
determina que, na falta do prefeito e do vice-prefeito, deverá assumir o cargo o
presidente da Câmara municipal. Entretanto, os dispositivos constitucionais ou
legais invocados dizem com um sistema que obedece a um complexo orgânico de
motivos, e condições a que se alheia o caso em debate.
A substituição atribuída ao presidente da Câmara municipal é, antes de
tudo, referida a prefeito ou vice-prefeito eleitos. Na hipótese de que hora se trata,
não existe presidente ou vice-prefeito eleito. Não é admissível que se aplique um
sistema fora de sua órbita, fora dos motivos e condições que o inspiraram e dita-
ram. É formulável uma hipótese perfeitamente plausível: se aqueles que elegeram
o atual presidente da Câmara municipal de São Paulo soubessem, tivessem a cons-
ciência de que ele poderia vir a ser, eventualmente, o prefeito da capital paulista,
talvez não o tivessem elegido. Basta essa hipótese para mostrar que não é aceitável
o entendimento que a Câmara municipal de São Paulo quer dar ao caso. Não pode
deixar de redundar em incongruências a aplicação de um sistema à margem das
razões condicionantes de sua atuação.
Entre os argumentos válidos expendidos em torno do presente caso, há um
que me impressionou profundamente e me leva à conclusão da improcedência da
representação: é o de que, com o advento da Lei federal 1.720, as condições atuais
em que se acha a Municipalidade de São Paulo é como se existissem ao tempo da
promulgação ou início de vigência da Constituição de 1946, devendo o caso,
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
REPRESENTAÇÃO 414 — PR
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): É fora de dúvida que a Lei para-
naense 8, de 1959, criou cargos e aumentou vencimentos, sem iniciativa do Sr. go-
vernador do Estado e sem que fornecesse os recursos necessários à sua execução.
Manifesta, portanto, é a sua inconstitucionalidade. E neste sentido é o meu voto.
REPRESENTAÇÃO 423 — RJ
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Peço vista, Senhor Presidente.
DECISÃO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: adiado o julgamento, por pedido
de vista do Sr. ministro Nelson Hungria, após votar pela improcedência da represen-
tação do Sr. ministro relator.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Quando para a formação de novo Município
se desmembram de outro ou outros territórios correspondentes a distritos, tem que
ser consultado separadamente, mediante plebiscito ou outro processo adotado pela
Constituição estadual ou lei orgânica dos Municípios, o eleitorado de cada distrito. A
Constituição fluminense, ao dizer, na espécie, que “no plebiscito votarão os eleitores
do território que deva constituir o novo Município”, não abrange, evidentemente,
o caso em que se acham interessados dois distritos inteiros. Como justamente ar-
gumenta o preclaro advogado do Município, “se os territórios, como na espécie,
são dois e constituem duas unidades administrativas distintas, a manifestação de
cada qual há de ser contada separadamente, pois, de outro modo, a unidade elei-
toralmente mais forte pode arrastar a outra, de opinião contrária”. Trata-se de dois
territórios constituindo bases espaciais de dois distritos, cada qual com interesses
peculiares e condições próprias. Há que adotar, em tal hipótese, o mesmo critério
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Memória Jurisprudencial
que a Constituição Federal determina para a fusão de dois ou mais Estados, isto é, a
aprovação plebiscitária de cada qual das populações interessadas, ou o critério esta-
belecido pela lei orgânica dos Municípios fluminenses para o caso de fusão de dois
ou mais Municípios confrontantes, isto é, a manifestação favorável da maioria dos
eleitores de cada uma das entidades municipais em causa. Ora, no caso vertente, a
manifestação de um dos distritos desmembrados do Município de Vassouras para
constituir o novo Município de Engenheiro Paulo de Frontin, isto é, o distrito de
Sacra Família de Tinguá, foi contrária ao seu desmembramento. Dos 435 votantes
que compareceram, 252 se pronunciaram contra a emancipação.
Isso posto, não tenho dúvida em julgar procedente, em parte, a representação,
pois reconheço que a Lei fluminense 3.785, de 25-11-1958, violou a autonomia do
Município de Vassouras, e a declaro, portanto, inconstitucional, devendo ser nova-
mente incorporado ao dito Município o distrito de Sacra Família do Tinguá.
VOTO
(Retificação)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, melhor esclarecido diante
do voto do eminente Sr. ministro Cunha Mello, verifico o seguinte: votara eu, ante-
riormente, apenas no sentido da inconstitucionalidade da união do distrito de Sacra
Família do Tinguá ao distrito de Paulo de Frontin, para formar-se um Município;
mas, reconhecida a insubsistência de tal união, é força reconhecer que, sozinho, o
distrito de Paulo Frontin não oferecia as condições mínimas necessárias para sua
elevação a Município.
Assim, retifico meu voto, no sentido de admitir a procedência total da
representação.
REPRESENTAÇÃO 432 — PE
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que, se
admito a possibilidade da retratação de um veto, a lógica nos levaria à conclusão de
que o governador poderia, igualmente, revogar a sanção, desde que ainda não expi-
rado o prazo que tinha, para esta.
É verdade que houve um acordo, uma entente entre a Assembleia Legislativa
e o governador, mas, quando estão em jogo interesse público e um preceito consti-
tucional, em face do qual não é possível que dois Poderes se entendam, para que um
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Ministro Nelson Hungria
interfira na órbita do outro, não pode haver essa transação ou acomodação recíproca.
A Assembleia Legislativa, ao receber o veto do governador, não podia, a seguir, re-
nunciar o direito de apreciá-lo, para aceitá-lo ou rejeitá-lo.
Assim, estou de acordo com o voto do Sr. ministro relator.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Além do art. 410, aplicou o art. 384.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Há, porém, outro aspecto, Senhor
Presidente, que considero decisivo para a solução do caso pendente e que não
foi apreciado pelos eminentes ministros que me precederam na votação.
Admitimos que o crime previsto na letra c do art. 6º da Lei 1.802 não seja
um crime coletivo, um crime que exija pluralidade de agentes e que também não
exija dolo específico, isto é, o fim de hostilizar o Estado ou a ordem político-so-
cial; admitamos que ele pudesse ter sido praticado por um único agente (e, aliás,
no regime do Código de 1890 e mesmo no regime da primeira lei de segurança
nacional, eu entendia que era admissível, na espécie, a unidade de agente, pois
um indivíduo sozinho, com uma bomba de dinamite, é capaz de impedir, transi-
toriamente, até mesmo o funcionamento de uma das casas do Congresso) e que
baste, no caso, o dolo genérico, ou, seja, a simples consciência de que a vítima é
um magistrado, sendo indiferente o fim do agente.
Acontece, porém, o seguinte: a letra c do art. 6º da Lei 1.802 não cuida,
não cogita da hipótese em que, do atentado à vida do magistrado, resulte morte.
Ao contrário do que ocorre na letra b, em que chega a ser cominada a pena
máxima de trinta anos de reclusão, a letra c não fala em evento “morte” e não
ultrapassando de doze anos de reclusão a pena aí cominada.
É bem de ver que, a entender-se compreendido aí o evento “morte”, seria
de todo absurdo que a atual lei de segurança considerasse o homicídio de um
magistrado, deputado ou senador, crime merecedor de menor pena que o homi-
cídio de outra pessoa.
Assim, Senhor Presidente, quando, em tal hipótese, ocorrer o evento
“morte”, o fato passa a ser disciplinado pela cláusula final do dispositivo: “se
o fato não constituir crime mais grave”. Se o fato constitui crime mais grave,
como quando ocorre o evento “morte”, que é que se apresenta? Homicídio do-
loso, que passa a ser enquadrado exclusivamente no art. 121 do Código Penal,
caput ou § 2º, cabendo o julgamento não ao juiz singular, mas ao Tribunal do
Júri, ut art. 141, § 28, da Constituição.
Dir-se-á que, mesmo reconhecido na espécie o homicídio doloso, não
deixaria de se tratar de crime político. Quid inde? Nem por isso teria de cessar
a competência do Júri, como primeira instância. Se o contrário dispusesse a Lei
de Segurança, seria inconstitucional.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O homicídio doloso é punido, na
primeira instância, pelo juiz singular, enquanto que, na segunda, pelo Supremo
Tribunal.
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Memória Jurisprudencial
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O homicídio doloso não pode ser afe-
tado à competência do juiz singular, salvo na hipótese de jurisdição especial.
Somente o tribunal popular é que poderá julgar o caso. Não se trata de crime
complexo, como afirmou o ilustre advogado do paciente, a afastar o homicídio
doloso da classe dos crimes contra a vida. Ainda que com caráter político, o
crime será naturalmente uno. Mesmo, porém, que se tivesse de reconhecer, de
par com o homicídio doloso, o crime de rebelião, a regra a aplicar seria a de
concurso material, como expressamente determina o art. 39 da Lei 1.802, de
1953, e, assim, a jurisdição do Júri seria prevalente, em face da Lei 263, de 1948,
modificativa do Código de Processo Penal.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Vossa Excelência, então, declara inconstitu-
cional toda a Lei 1.802. O crime doloso contra a vida, sendo tentativa ou consu-
mado, seria da competência do Júri.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não tenho a menor dúvida: toda vez que
ocorra o evento “morte”, isto é, se do atentado resulta morte, apresentando-se
homicídio consumado ou tentado, a jurisdição competente é a de tribunal popu-
lar. Nem outra coisa dispõe a Lei 1.802, no seu art. 42, parágrafo único.
Vossa Excelência afirmou que há incompatibilidade entre a soberania do
Júri e a do Supremo Tribunal? De modo algum. O Supremo Tribunal, na espé-
cie, passa a funcionar como tribunal de apelação, e tem de respeitar a soberania
do Júri, que é preceito constitucional. A Lei 1.802 dispõe, na espécie, que é
competente a Justiça ordinária, com recurso para o Supremo Tribunal...
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Há preceito constitucional
dando competência ao Supremo Tribunal Federal, para julgar os recursos ordi-
nários de crimes políticos.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas isso não quer dizer que, no caso de
homicídio doloso, deixe de ser este julgado pelo Tribunal do Júri.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Vossa Excelência quer fazer res-
trição, limitação, que não existe na lei.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Supremo Tribunal, no caso, funciona
como se fosse tribunal de apelação, e terá de render-se diante a decisão dos sete
juízes leigos, pelo menos quando do segundo julgamento.
O Sr. Ministro Ary Franco: Aplica-se ao Supremo Tribunal a regra do
Código de Processo Penal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Perfeitamente. É o que diz o parágrafo
único do art. 42 da Lei 1.802. O homicídio doloso somente deixa de ser da com-
petência do Júri quando se apresenta jurisdição especial, como sejam a militar, a
eleitoral e a decorrente de prerrogativa de função. Diariamente, em julgamento
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Memória Jurisprudencial
Podem ser acrescentadas várias outras infrações que, ainda quando co-
metidas por meio da imprensa, não ficam expungidas de criminosidade: de-
nunciação caluniosa, estelionato, divulgação de segredo, concorrência desleal,
violação de direito autoral, ultraje e culto etc., sem se esquecer o crime de que
ora se trata, isto é, provocação de animosidade entre as classes armadas. Até
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Ministro Nelson Hungria
mesmo instruções para homicídio podem ser feitas por meio de imprensa, e ja-
mais poderia alguém sustentar que, em tal caso, deixaria de haver participação
criminosa, porque a hipótese não foi prevista na Lei 2.083.
A insuspeição da tese do professor Rui da Costa Antunes transparece
dos seguintes trechos, em que, para o reforçamento da garantia de liberdade de
imprensa, sustenta:
Que nenhuma outra lei, a não ser a lei especial, pudesse impor pena aos
delitos de imprensa. Entre nós, além das figuras previstas pela Lei 2.083, nu-
merosas outras leis ordinárias, como será apreciado em capítulo próprio deste
trabalho, punem determinadas ações praticadas através da imprensa. Daí resulta
que bem poucos cidadãos — mesmo profissionais do Direito — serão capazes
de dizer prontamente até que limite poderá se exercer a liberdade de imprensa.
Visíveis os prejuízos de uma tal liberdade legislativa na descrição dos
delitos de imprensa.
Em primeiro lugar, ficam submetidos às regras da lei especial tão so-
mente as figuras delituosas nela descritas: as demais espécies serão tratadas de
conformidade com as regras comuns, o que é indefensável. Ou o delito de im-
prensa fez jus a tratamento especial e as regras especiais se estenderão a todas
as suas hipóteses, ou o delito de imprensa é considerado comum e neste caso não
se há de excluir nenhum dos seus tipos às regras do Código.
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Memória Jurisprudencial
Explica a informação oficial que tal critério obedecia a um sistema que já vi-
nha da Lei 284, de 28-10-1936, e acrescenta: “Um dos aspectos mais característicos
desse sistema foi a criação de quadros paralelos nos diversos Ministérios.
Esses quadros denominados, respectivamente, Quadro Permanente e Quadro
Suplementar, tinham e têm por finalidade permitir ao Executivo enfrentar a transi-
ção entre o estado caótico anteriormente existente em matéria de pessoal e a plena
realização do novo sistema. Como uma das partes essenciais do novo sistema fosse
precisamente o de tornar todos os cargos de chefia em cargos de provimento em co-
missão, a fim de permitir que os seus ocupantes fossem de livre escolha do governo e
como, entretanto, os seus antigos ocupantes não devessem ter prejudicada a sua situ-
ação pessoal, foram eles transferidos para o Quadro Suplementar, cuja característica
é a de ser constituído de cargos extintos à medida que se forem vagando, ficando no
Quadro Permanente apenas os cargos, em comissão, correspondentes.
O critério de solução do Decreto 6.461 foi mantido pelo DL 8.265, de 1945;
mas, em 8 de janeiro de 1946, foi baixado o DL 8.577, que dispôs:
Os cargos isolados, de provimento em comissão de Diretor (Serviço
Médico — D. F. S. P.) padrão N, do quadro permanente do M. J. N. I., ficam trans-
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Memória Jurisprudencial
exemplar do famoso manifesto de Prestes, uma bandeirola com o dístico: “Os solda-
dos, nossos filhos, não irão à Coreia” e dous boletins varando literariamente o tema
“bella matribus detestata”.
A posse de um único exemplar do manifesto de Prestes obviamente não vi-
sava o fim de difusão ou propaganda. Para isto, seria necessária a multiplicidade de
exemplares. O exemplar, isolado, possuía-o a apelante naturalmente para uso próprio,
para satisfação, digamos, de seu fanático credo comunista, do mesmo modo que um
cristão pode comprazer-se em trazer consigo um exemplar da Bíblia, ou um demo-
crata um catecismo dos direitos do homem ou o discurso de Lincoln em Gettysburg.
Quanto à posse dos boletins acentuando o horror das mães pela guerra, tam-
bém não é criminosa.
O que a Constituição proíbe e a Lei de Segurança incrimina é a propaganda
de guerra.
A propaganda contra a guerra é ato lícito e indiscutivelmente louvável.
Entende o Sr. ministro relator, porém, que no caso concreto esses boletins, con-
jugados com a bandeirola anunciando que “os soldados, nossos filhos, não irão
à Coreia”, constituem o crime de incitamento, entre militares, à desobediência à
lei, à indisciplina e à deserção. Ora, pergunto eu: onde há lei que ordenava expe-
dição de tropas à Coreia? Será acaso verdade que, algum dia, o nosso Governo
pretendeu, realmente, enviar tropas à Coreia? Se isto, alguma vez, foi objeto de
cogitações, não passou daquele material que serve para calcamento do inferno.
Tudo quanto se disse a respeito não passou de boato. E, se o governo tivesse
chegado a cogitar dessa expedição, teria desistido de tal propósito, de modo
que sua atitude de abstenção veio a coincidir com o pensamento externado pela
apelante. O crime a atribuir-se à apelante, admitida a desclassificação proposta
pelo Sr. ministro relator, teria como elemento condicionante um boato, e, o que
é mais, um boato desmentido. Se o Governo não manifestou, sequer, a intenção
de enviar tropas contra os chineses vermelhos, onde há provocação dos solda-
dos à desobediência à lei, à indisciplina, à deserção? À apelante não se pode
imputar senão um flatus voci, um vanilóquio, um soco no ar, a irrelevante ma-
nifestação de um pensamento inócuo. Se a expedição dos soldados à Coreia não
passava de uma improvável eventualidade, ou, melhor, de uma eventualidade
imaginada tão somente pelos boateiros e pela imprensa sensacionalista, onde
o elemento perigo de dano a possibilidade relevante, iminente ou próxima de
dano, indispensável à existência de crime formal, de que se trata?
Reduza-se a troco miúdo o dístico de bandeirola, e teremos: “Se for de-
cretada a expedição de tropas à Coreia, os soldados brasileiros não deverão
seguir.” Assim, a provocada desobediência era condicionada a um fato futuro,
eventual, problemático, e que, na realidade, não veio a ocorrer e do qual, talvez,
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Revisor): Entendo que o induzimento à greve
somente incide no art. 3º, 22, da Lei de Segurança Nacional quando visa à perturba-
ção da ordem político-social. Se a greve é sugerida para melhoria de salários ou das
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VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Em face da vigente Lei de
Segurança Nacional, de 5 de janeiro último, somente constitui crime a pro-
paganda de processos violentos para a subversão da ordem política ou social,
quando feita publicamente. No caso vertente, mesmo admitindo-se que os do-
cumentos apreendidos contenham, implicitamente, a sugestão do emprego de
meios violentos contra a ordem política ou social, e fossem destinados à dis-
tribuição, não haveria crime, pois o apelado não os estava distribuindo coram
populo, nem mesmo às escondidas. Já não vigora o inciso 9 do art. 3° da Lei 431,
de 1938, e em face do § 20° do art. 141 da Constituição e dos arts. 2° e l08, III,
do Código Penal, que determinam a retroatividade benigna da lei penal, é força
reconhecer, no caso, a extinção da punibilidade.
Assim, nego provimento à apelação, que, aliás, eu não teria provido, eis
que, realmente, não se depara nos documentos apreendidos a insinuação para o
emprego de meios violentos ou subversivos contra a ordem político-social.
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Memória Jurisprudencial
Não se pode dizer que o porte da arma, ainda que o portador esteja no propó-
sito de matar alguém, seja começo de execução do homicídio.
Também no caso presente, não se pode dizer que o simples transporte de bo-
letins seja começo de propaganda.
A execução desta só começaria com a distribuição do primeiro boletim.
Nem há falar-se em tentativa de propaganda criminosa.
Tentativa haveria se o agente fosse surpreendido, no primeiro ato de distribui-
ção dos boletins, antes que a pessoa a quem fosse entregue o boletim o tivesse lido.
Até então, o que se pode reconhecer é simples ato preparatório, que a Lei
1.802 não incrimina especialmente.
Estou com o Sr. ministro relator, em que há divergência, porque o juiz entendeu
que havia uma tentativa, que não é mais que uma subespécie do crime, de que se trate.
A meu ver, a conclusão do voto do Sr. ministro relator está certa.
Dou provimento para absolver o réu.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Revisor): O art. 19 da Lei 1.802, de 1953,
depois de incriminar e apenar o fato “de convocar ou realizar comício ou reunião
pública, a céu aberto, em lugar não autorizado pela polícia ou desobedecer a de-
terminação da autoridade competente sobre a sua dissolução, quando tumultu-
osa ou armada, observado sempre o disposto no art. 141, § 11, da Constituição”,
acrescenta, no seu § 2º: “Ficarão isentos das sanções deste artigo, os que antes da
ordem de dissolução, ou para obedecê-la, se retirarem da reunião.”
Vejamos, agora, o que ocorreu no caso vertente:
Diz a testemunha Valdemar Alcântara, investigador da polícia:
que em virtude do número de pessoas ser elevado, o depoente comunicou-se
com o Sr. Mario Centola, encarregado e responsável pela manutenção da ordem na
referida praça, sendo certo que o Dr. Mario Centola, instantes após, ali comparecia
em uma viatura policial, bem como acompanhado de uma “perua” da Força Policial;
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Ministro Nelson Hungria
que, com a sirene aberta ali ingressaram, sendo que o povo que ali se achava,
ao ver isso, passou a correr;
que o depoente ainda conseguiu alcançar o acusado Aquízio, sendo que o
mesmo, ao ser preso, havia retirado os seus óculos;
que Geraldo não ofereceu resistência alguma ao depoente, sendo assim enca-
minhado à “perua” e, posteriormente, ao D.O.P.S.
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): É incensurável a sentença apelada.
A propaganda que a anterior Lei de Segurança incriminava era a exercida
para o fim de promover ou organizar ou reconstituir sociedade cuja atividade
se exerça no sentido de atentar contra a segurança do Estado ou modificar, por
meio não permitido em lei, a ordem política ou social.
Ora, dar “vivas” ao comunismo e “morras” ao Governo, num raptus de
entusiasmo, jamais poderia ser considerado como tal propaganda.
Esta exige o ânimo deliberado de propagar, de difundir uma ideia, de ali-
ciar adeptos para um determinado objetivo.
E não se chega a compreender o interesse do apelante em que se reconheça
que propaganda é serviço no sentido do art. 10 da vigente Lei de Segurança.
Preliminarmente, serviço é um trabalho que se presta por conta de ou-
trem ou que pressupõe a existência concreta de uma pessoa ou agrupamento de
pessoas a quem se serve.
Serviço, no sentido da lei, jamais poderia ser o simples fato de opinar em favor
de um credo político, in abstracto contrário ao atual regime de governo.
Serviço, no dito sentido, é o que se faz para o efetivo funcionamento de
um partido político que, depois de dissolvido, venha a ser reconstituído ou es-
teja tentando reconstituir-se.
É o que se lê no texto legal, e está em harmonia com a Constituição.
Não proíbe esta o credo comunista em si mesmo. Qualquer cidadão pode ser
comunista; e manifestá-lo coram populo: o que lhe é vedado é o emprego ou a pro-
paganda do emprego de meios subversivos para a implantação do regime marxista.
Mas admite-se que os brados do apelado representem propaganda e que
esta seja serviço.
Ora, a lei antiga, do mesmo modo que a atual, não incriminava a propaganda,
quando não houvesse o preconício de meios subversivos da ordem política ou social.
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Ministro Nelson Hungria
De modo que o que pretende o Dr. promotor, com o insistir que a conduta
do apelado representa serviço, no sentido da lei atual, é a retroatividade in pejus
da lei penal.
Se pela 1ei vigente ao tempo do fato, não era este incriminado, é claro que não
pode ser atingido por lei ex post facto.
Nego provimento à apelação.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, evidentemente
houve, data venia, equívoco da parte do eminente Sr. ministro revisor. O que a
Constituição proíbe é a propaganda de emprego de meios subversivos contra a ordem
política ou social. Isto é que continuou a ser crime, ainda na vigência do Decreto-Lei
431. E a Lei 1.802 igualmente incrimina a propaganda de meios subversivos ou pres-
tação de serviços à reorganização ou tentativa de reorganização de partido contrário
à ordem político-social. Nada disso, porém, ocorre no caso dos autos.
Trata-se de um homem de que não se diz, sequer, que seja comunista
“fixado” e que, ao sair do edifício do Foro de Santos, deu um “viva” a Luís
Carlos Prestes e ao comunismo e um “morra” a Getúlio. Não se pode ver aí ser-
viço prestado à reorganização do Partido Comunista. O Sr. ministro Abner de
Vasconcelos, data venia, partiu da premissa errônea de que é crime o fato de al-
guém adotar ideias contrárias ao regime vigente. A Constituição assegura os cre-
dos políticos, e ninguém é criminoso por declarar-se comunista. Qualquer pessoa
pode declarar-se comunista, integralista ou monarquista. O que a lei não permite
é a propaganda do emprego de meios subversivos ou a revolta das massas contra
o Estado, contra a ordem constituída. Isto é que é crime, e não o fazer praça de
inconformismo teórico com o credo democrático. Mantenho, pois, o meu voto.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
Não deparo aqui, como não deparei no caso anterior, nenhum crime, ape-
nas lamento que pela eventualidade da ausência de alguns dos Srs. ministros,
ora se decida de uma maneira, ora de outra, na interpretação da Lei 1.802, o que
é uma grave iniquidade.
Meu voto é no sentido de acompanhar a ilustre Turma.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Conheço do conflito, em face do art.
101, I, letra f, da Constituição e dou pela competência do Dr. juiz de direito de Três
Lagoas. Não se trata de crime militar, isto é, o caso de que se trata não se inclui no
quadro do art. 6º do Código Penal Militar.
As forças públicas ou policiais militares estaduais não fazem parte do Exército,
senão quando convocados e mobilizados a serviço da União, como forças auxiliares.
Não importa que a Constituição as declare reservas do Exército. Nem por isso são,
por si mesmas, parte integrante e permanente do Exército. É o que se deduz a con-
trario sensu, do parágrafo único do art. 183 da Constituição: “Quando mobilizado
a serviço da União em tempo de guerra externa ou civil, o seu pessoal (isto é, das
polícias militares estaduais) gozará das mesmas vantagens atribuídas ao pessoal do
‘Exército’.”
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Memória Jurisprudencial
O foro penal especial dos militares do Exército é, sem dúvida, uma vantagem,
qual seja, a de ser julgado o militar por seus próprios companheiros de classe. Em
tempo de paz, as polícias militares se limitam, sob as ordens de autoridade civil
(delegados e subdelegados de polícia), ao serviço de policiamento preventivo ou
repressivo, no território estadual – o que as distancia das “Forças Armadas” a
que se refere a Constituição e cuja finalidade é a defesa da Pátria, dos poderes
constituídos, da lei e da ordem em todo o território nacional.
Não é possível a equiparação entre umas e outras. Somente no caso de
convocação é que as polícias militares se põem em pé de igualdade com as
forças do Exército. Fora daí, estão os seus elementos sujeitos à lei e foro penal
comuns. No caso vertente, os soldados do Exército não se achavam em serviço,
nem o local do conflito era estabelecimento militar. Inexiste, repita-se, qualquer
das hipóteses da casuística do art. 6º do Código Penal Militar.
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Ministro Nelson Hungria
indébita intromissão do Judiciário. Ainda que dessa medida possa decorrer, por via
remota ou indireta, qualquer dano a interesse privado, será defeso ao Judiciário inter-
vir. O indivíduo, atingido em ricochete, não poderia vir bater às portas do Supremo
Tribunal Federal, porque as encontraria fechadas. Mas, desde que se identifique lesão
direta e imediata a direito individual, aí pode interferir o Judiciário, e isto está escrito
com todas as letras na Constituição, cujo art. 141, § 4º, dispõe que nenhuma lesão
a direito individual escapará à apreciação do Poder Judiciário. Não há que renovar
discussão em torno do tema; não é mais possível estar-se a revolver debates de um
passado longínquo, do tempo em que Rui Barbosa ensinava o ABC do direito cons-
titucional no Brasil. No caso, apresenta-se o seguinte: um mandado de segurança
contra um ato político-administrativo da Câmara dos Deputados, que terá como
consequência direta a violação de um interesse individual legalmente tutelado, qual
seja o sigilo bancário. Em tese, não pode haver dúvida sobre a competência do Poder
Judiciário para conhecer do caso e resolvê-lo.
Estou de pleno acordo com o eminente Sr. ministro relator nesta preliminar.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Dou pela competência deste
Supremo Tribunal. O Dr. auditor da Justiça Militar da Força Pública, no Estado de
São Paulo, não está subordinado ao Tribunal de Justiça paulista, mas ao Tribunal de
Justiça Militar de Segunda Instância do Estado, de hierarquia idêntica à daquele. Se
o Supremo Tribunal se negasse a intervir, o conflito ficaria insolúvel, de modo que
sua competência, embora não expressamente prevista para o caso pela Constituição,
tem-se de entender implícita.
E, por construção, em casos análogos, já assim aqui temos decidido.
Conheço do recurso e, julgando-o procedente, dou pela competência do Dr.
juiz de direito de Botucatu.
Conhece o Tribunal o meu ponto de vista a respeito da Justiça Militar es-
tadual: não pode ela aplicar o Código Penal Militar, destinado exclusivamente aos
militares federais.
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Memória Jurisprudencial
mandado de segurança, desde que atual a lesão do seu direito? Não se reclama
contra preceito legal ou regulamentar em tese, mas contra uma lesão concreta e
ameaça de lesão maior.
Concedo a segurança.
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Memória Jurisprudencial
general principles have been established for the guidance and control (o grifo
é nosso) of these administrative bodies in the exercise, in specific instances, of
their rate-making powers”.
É precisamente o que ocorre no caso em debate.
Disse o eminente Sr. ministro relator que não há paridade, não há afini-
dade entre o caso do tabelamento dos preços e o de que ora se trata.
Entendo, data venia, que os dois casos não são apenas parentes afins; são ir-
mãos germanos. A mesma ratio que levou o legislador a declinar no Poder Executivo
a função de fixar os preços dos gêneros de primeira necessidade de acordo com a ver-
satilidade, com a feição cambiante do mercado, é a que leva o legislador a declinar no
Poder Executivo a alterável fixação do algarismo salarial mínimo, de conformidade
com a mutabilidade das condições econômicas e financeiras.
Não quero dizer, Senhor Presidente, de modo algum, que seria inconstitucio-
nal a iniciativa do Poder Legislativo, no sentido de fixar até mesmo o algarismo, a cota
aritmética do salário mínimo. Não estaria essa lei em contraste com a Constituição. E
é possível que ela se faça, pois no Brasil só não há lei proibindo tempestades e fura-
cões. É possível que surja uma lei encerrando o desconserto, o desconchavo de fixar,
de acordo com os dados contemporâneos à apresentação do seu projeto, o algarismo
do salário mínimo, que deve corresponder às condições econômicas e financeiras,
que estão a mudar de mês em mês.
Mas, assim como não nego a constitucionalidade do Projeto Bilac Pinto, de
que só agora tive conhecimento, também não posso negar a impecável constitucio-
nalidade do Decreto 35.450, que não fez mais do que atender à necessidade prática de
executar a lei do salário mínimo dentro da própria finalidade que lhe atribuiu a Carta
de 1946, isto é, a de amparar os trabalhadores, dentro de um padrão de vida compa-
tível com a atualidade econômica e financeira.
Senhor Presidente, o ilustre Dr. procurador-geral da República trouxe à cola-
ção um julgamento deste Supremo Tribunal, num mandado de segurança, a respeito
do Decreto 31.l8l, de 25 de julho de 1952, que obrigava, a partir de certa data, aos
proprietários de mais de um táxi de lotação a se organizarem em empresa, com mais
de vinte carros, sob pena de ser proibido o tráfego desses veículos ou de serem eles
apreendidos pela autoridade policial.
Fui voto vencido nesse caso e continuo no mesmo ponto de vista em que então
me coloquei. Por quê? Porque nesse caso se tratava de uma disposição regulamentar
proibitiva, e, segundo a justa lição de Castro Nunes — que não sei a que propósito foi
invocada, nesse passo, pelos advogados dos impetrantes —, há de se fazer uma exce-
ção à regra geral de que não cabe mandado de segurança contra a lei em tese. E isto
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Ministro Nelson Hungria
porque há necessidade de vencer uma pressão direta e atual, reforçada pela ameaça
de uma penalidade de aplicação imediata.
Em tal caso, não é preciso um ato formal da autoridade para que se apresente a
violação ou ameaça de violação do direito individual. Ou o indivíduo se resigna a não
agir, sofrendo prejuízo do seu interesse, ou, se agir, incidirá nas sanções coercitivas
da lei ou regulamento. Não há necessidade de um ato executório para que se apre-
sente a efetiva coação ao exercício de um direito subjetivo individual ou in concreto.
Não tenho dúvida, Senhor Presidente, que, no caso vertente, se apresenta um
decreto regulamentador dos arts. 81 e seguintes da Lei Trabalhista, e não um ato ar-
bitrário do presidente da República.
E indago eu: que é um regulamento? Regulamento é o meio pelo qual se torna
possível, viável, a execução, a aplicação efetiva de uma lei.
O poder de regulamentar é exercido em função da lei, de modo que o regula-
mento faz com a lei um corpo único, um corpo comum. O regulamento é complemen-
tação da lei, embora não possa criar jus novum. O regulamento, consubstanciando-se
com a lei, é também lei, ou seja, uma norma jurídica de caráter geral e abstrato.
E nisso está a diferença entre regulamento e ato administrativo puro, a que, no
seu voto, o eminente Sr. ministro relator procurou identificar o decreto em questão.
Não se trata de um ato administrativo puro. O ato administrativo, ao contrário do re-
gulamento, é expedido para a solução de um caso concreto, individuado, circunscrito.
O regulamento, facilitando ou tornando viável a execução da lei, não se dirige
a um caso singular: é, como a lei, um conjunto de regras genéricas ou in abstracto.
Regulamento e lei, enquanto letras no Diário Oficial, são como um dínamo parado,
pois para que possam atuar no mundo objetivo é preciso que sejam postos em movi-
mento. Antes disso, como é óbvio, não podem ofender direito de quem quer que seja.
Antes disso, são meros espíritos à espera de encarnação, à espera dos músculos que
os hão de realizar no mundo sensível.
No caso dos proprietários de táxis de lotação, havia uma proibição, cuja in-
fringência importaria em imediata penalidade ou coercisão.
No caso em debate, não ocorre isso, de modo nenhum. Os empregadores não
terão que fechar suas fábricas, de cerrar seus estabelecimentos, se acaso não paga-
rem o fixado salário mínimo. Ainda não se apresentou, em relação a eles, nenhum
ato executório, nem mesmo ameaça dele. Só haverá isso, quando lhes for ordenado
coercitivamente esse pagamento, e só então é que caberá mandado de segurança,
não contra o Sr. presidente da República, mas contra a autoridade que expedir o ato
executório. Antes disso, o que há é apenas um regulamento in astrasto, que, em si
mesmo e por si mesmo, não pode, absolutamente, estar violando direitos individuais.
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Memória Jurisprudencial
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Memória Jurisprudencial
Senhor Presidente:
O art. 2º e seu parágrafo único da lei que decretou o atual estado de sítio
e é de aplicação imediata, suspenderam a garantia constitucional do mandado
de segurança, desde que se trate, entre outros, de atos emanados do Congresso
Nacional. Acontece, porém, que a Constituição Federal, após disciplinar o es-
tado de sítio nos arts. 206 a 214, dispõe no art. 215:
A inobservância de qualquer das prescrições dos arts. 206 a 214 tornará
ilegal a coação e permitirá aos pacientes recorrerem ao Poder Judiciário.
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Ministro Nelson Hungria
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Ministro Nelson Hungria
Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dis-
põe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em
porta errada. Um insigne professor de direito constitucional, doubie do exaltado
político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento
deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os ministros
desta Corte “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”.
Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir a pele do
rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decora-
tiva — no teto ou na parede das salas da Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião
armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender
afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas.
Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional,
e o impedimento do impetrante para assumir a presidência da República, an-
tes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurrecionais do
Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica.
Não conheço do pedido de segurança.
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O imposto complementar
progressivo sobre a renda incide somente sobre as pessoas físicas. As pessoas
jurídicas não são passíveis dele. Por aí logo se vê que a isenção concedida à
sociedade limitada J.O.Machado & Cia. nada tem a ver com o imposto comple-
mentar exigido de seus sócios pelos lucros nela auferidos. Como ensina Ingrosso
(Instituzioni di diritto finanziario, v. II, p. 127), tratando desse imposto. “I re-
dditi che le persone fisiche percepiscono dagli enti collettivi in qualità di impie-
gate, salariati, pensionati, assegurati, soci, azionisti, amministratori, portatori
di obbligazioni e per qualsiasi altro titolo, sono tassati in confronto delle per-
sone dei percipiente, in quanto sono fattori del reddito complessivo che è og-
getto di questa imposta.” Os lucros auferidos pelos sócios. Assim, alheiam-se
inteiramente “à imunidade fiscal concedida à sociedade. Objeta o apelado que o
imposto complementar é um acessório do imposto proporcional.
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Ministro Nelson Hungria
Não é exato. Tanto não há acessoriedade que a lei os separa, para deter-
minar que o proporcional seja pago pela pessoa jurídica e o progressivo pelos
sócios, no tocante aos lucros auferidos, feito o desconto do imposto proporcio-
nal devido pela pessoa jurídica.
Há relação entre as duas taxações, mas não acessoriedade. Assim, pode
haver isenção do imposto proporcional em favor da pessoa jurídica e não haver
isenção do imposto progressivo em favor dos sócios.
Figura o apelado o caso da firma individual, para argumentar que, em tal
caso, seria ilusória a isenção.
Ora, tratando-se de firma individual beneficiária da isenção, o seu titu-
lar, pelos lucros auferidos, não paga o imposto proporcional, que é devido pela
firma, mas apenas o progressivo. E, assim, vai-se chegar à mesma conclusão: a
isenção concedida à firma individual somente diz com o imposto proporcional,
pois é o único que ela podia dever, de modo que não abrange o imposto progres-
sivo devido pelo sócio em relação aos lucros obtidos. Isto posto, dou provimento
à apelação para julgar a ação improcedente.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Várias são as questões que se
impõem a julgamento precípuo, antes mesmo de atingidas as questões constitu-
cionais, cuja apreciação nos escapa nesta Turma. A primeira é a que diz com a
legitimidade ad processum dos recorrentes para cuja representação na causa foi
ordenada caução de rato. Somente nas contrarrazões do recurso extraordinário
sob número 19.645 é que o Estado de Minas alegou essa matéria, sustentando
que a caução não foi processada ou prestada. Replicam os recorrentes, entre-
tanto, que a dita caução, mediante garantia promissória do Dr. Estevão Pinto,
aceita pelo Estado, foi processada em autos separados, que se acham no Cartório
dos Feitos da Fazenda Estadual. Não foi exibida prova em contrário por parte do
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Memória Jurisprudencial
Estado e, além disso, o que é decisivo, não recorreu o Estado do acórdão que se
encontra à fl. 2050 dos autos dos aludidos recursos, precisamente reconhecendo
que os então embargantes Bauer, Marchal & Cia. Union Sucrière de l’Aisne e
Sucrière Rio Branco “figuraram como partes no processo de desapropriação e
assim também como apelantes no recurso, como se vê da petição à fl. 522 do
2º volume”. Por último, os ditos recorrentes vieram a fazer-se representar pelo
advogado Jair Lins (fls. 991 e 1000 e 1119), ficando ratificada a atuação de seus
gestores de negócios ou procuradores de rato.
Outra questão preliminar é a da tempestividade dos recursos, dado que,
não embargável o acórdão sobre matéria constitucional, o prazo para interpo-
sição deles teria de ser contado da data do dito acórdão, e não da do acórdão
sobre os embargos, e também que não podiam ser interpostos os ditos recur-
sos do acórdão último da Turma de apelação, para ressuscitar-se a questão de
inconstitucionalidade já afastada pelo Tribunal Pleno. O Dr. procurador-geral,
opinando que o único recurso tempestivo é o da Union Snerière de l´Aisne, in-
terposto contra o primeiro acórdão do Tribunal Pleno, invoca jurisprudência
deste Supremo Tribunal no sentido da não embargabilidade da decisão sobre
matéria constitucional. Podia mesmo invocar o art. 87 do nosso Regimento
Interno, que declara definitiva tal decisão. Não me inclino, entretanto, por este
critério, considerando-o em contraste com o Código de Processo Civil, no caso
em que a questão constitucional é suscitada em grau de apelação, não se po-
dendo destacar do âmbito desta, com caráter autônomo, o acórdão do Tribunal
Pleno sobre tal questão. Embora, no caso, o Tribunal Pleno não seja instância
de apelação, não deixa o seu acórdão de ser proferido sobre matéria da apelação
(que, muitas vezes, se circunscreve à matéria constitucional), e, assim, desde
que o acórdão não seja unânime, é embargável, na conformidade do art. 833 do
citado Código do Processo.
Admita-se, porém, que o critério certo seja o da inembargabilidade, e
enfrentemos a terceira questão preliminar, qual seja, a do aproveitamento do
recurso da Union Snerière de l´Aisne pelos demais acionistas do Banco expro-
priado que não entraram em acordo com o expropriante. Tenho para mim que
cumpre admitir essa propagação de efeito. Os acionistas do Banco, embora
titulares de um condomínio divisível, estão intimamente ligados pela unidade
de objetivo e pela comunhão de interesses. Não compadece com a realidade o
dizer-se que os seus interesses são distintos, só porque a ação de desapropriação
poderia fragmentar-se contra cada um deles de per si ou que o acordo de uns não
impediria o desacordo dos outros.
Não se trata, é certo, de litisconsórcio necessário; mas, entre os acionistas
que persistem no desacordo e figuram na demanda, os interesses são comuns e
a solução tem de ser dada de modo uniforme para todos eles.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
exigir na espécie “a majority of the full bench” . No caso New York versus Miln,
em 1834, Marshall assim declarou:
The practice of this court is not (except in cases of absolute necessity)
to deliver any judgement in cases where constitucional questions are involved,
unless four justices [a Corte se compunha, então, de sete membros] concur in
the opinion, thus making the decision that of a majority of the whole court. In
the present case four justices do not concur in opinion as to the constitucional
questions which have been argued. The court there fore direct the cases to be
reargued at the next term, under the expectation that a larger number of the
judges may then be present.
Trata-se, como adverte Black, de uma praxe, não de uma norma legal ou
obrigatória: But, this rule is not imposed upon the courts by any constitucional
provision or statute.
É o que também acentua Cooley (A Treatise on the Constitutional
Limitation, 6. ed., p. 195):
But this is a rule of propriety, not of constitutional obligation; and
though generally adopted and observed cach court will regulate, in its own dis-
cretion, its practice in this particular.
Não é fiel a tradução que deste trecho faz o ilustre recorrente. A expres-
são “a rule of propriety” não pode ser entendida, mesmo fora da letra, como
“princípio legal”, mas, sim, como “regra de conveniência” ou “critério de opor-
tunidade”. Não é senão em um ou outro Estado da União Americana, conforme
reporta Black, que se impõe como exigência constitucional “that no act of the
legislation shall be held void unless the decision is concurred in by more than
a majority of the court, as, four out five judges, or five out of seven”. Esta exi-
gência da maioria especial ou de maioria absoluta da totalidade dos membros do
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Ministro Nelson Hungria
245
Memória Jurisprudencial
Não há, porém, que se inferir daí que o funcionamento do Tribunal mi-
neiro, com 16 membros apenas, foi inconstitucional. Nem tal decisão poderia
ser proferida pela Turma. Esta reconheceu que o Tribunal podia funcionar com
os 16 juízes presentes, mas, como na hipótese de presença dos desembargado-
res faltosos, em número de cinco, podia a votação no sentido da inconstitucio-
nalidade ter alcançado a maioria absoluta, deveria ser renovado o julgamento,
declarando-se a inconstitucionalidade, caso viesse a colher a maioria absoluta,
de acordo com o art. 200 da Constituição.
Dos acórdãos citados, apenas o proferido no RE 16.413 fala em convoca-
ção de substitutos. Dir-se-á que se a hipótese da presunção de maior número é
excluída pelo impedimento ou licenciamento dos restantes juízes, não há lugar
para a renovação do julgamento. O critério de adiamento, na expectativa do full
bench, só se justificaria quando a falta dos juízes fosse apenas ocasional.
Nesse sentido, aliás, é o exemplo da Suprema Corte americana, no fa-
moso Chicago Lake Front Case: contra sua própria praxe, deliberou ela com
apenas sete membros, dos nove de que se compõe, porque não era possível o
full bench dado que dois juízes estavam impedidos “on account of interest”
(Black, loc. cit.). Não atenderia ao fim do full bench, qual seja o de evitar a
variabilidade das decisões em matéria constitucional, a convocação de subs-
titutos, pois em ulteriores casos trazidos a julgamento, em que desaparecesse
o impedimento dos juízes efetivos, voltariam estes a julgar, e a decisão pode-
ria modificar-se. Replicar-se-á, entretanto, e com toda razão que o acórdão no
RE 16.413 não ressalvou o caso de impedimento ou licenciamento dos juízes,
e mais que, no caso vertente, tratando-se de uma lei para caso singular, não é
formulável a hipótese de diversidade de decisões, posto que os desembargado-
res impedidos serão sempre tais. Nem me parece aceitável a opinião de Castro
Nunes (Teoria e prática do Poder Judiciário, p. 599) de que, no julgamento de
matéria constitucional, “não podem ser convocados os substitutos dos ministros
para completarem o quorum exigido”. A entender-se, assim, como justamente
observa Lucio Bittencourt (O controle jurisdicional da constitucionalidade das
leis, p. 48), “bastaria o impedimento de alguns juízes para que se tornasse impos-
sível a declaração de inconstitucionalidade”, ou “seria bastante que o presidente
da República mantivesse duas ou três vagas nos tribunais para evitar a declaração
contrária aos seus desejos”.
É verdade que, como acentuou no seu brilhante voto o Sr. desembargador
Lincoln Prates, nem a lei mineira de organização judiciária, nem o que estava
publicado no Regimento Interno do Tribunal de Minas, dispõem que para o
julgamento de matéria constitucional sejam, na falta ou impedimento de de-
sembargadores, convocados juízes para sua substituição. Ocorre, porém, que,
sendo os juízes os substitutos naturais dos desembargadores, como, aliás, o
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Ministro Nelson Hungria
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não conheço do recurso.
Precisamente em face do parágrafo único do art. 189 da Constituição é que
se apresenta, em toda a sua evidência, a ilegitimidade do ato de destituição
do impetrante, posto que, em face da prova dos autos, foi reconhecida a sua
estabilidade.
Dispõe o aludido parágrafo que, “extinguindo-se o cargo, o funcionário está-
vel ficará em disponibilidade remunerada até o seu obrigatório aproveitamento em
outro cargo de natureza e vencimentos compatíveis com o que ocupava”.
O acórdão recorrido não tem mais do que declarar a limpidez e certeza de
que se revertia, ictu oculi, o direito do impetrante de restabelecer, no caso ver-
tente, o império do preceito constitucional violado por ato do prefeito municipal
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, conforme pro-
curei bem acentuar, em meu voto favorável à constitucionalidade do tributo em
questão, que chamei de sobreimposto, não há diferença alguma entre o que era anti-
gamente considerado adicional e o que passou a ser, impropriamente, denominado
taxa. Deu-se novo rótulo ao acréscimo de cinco por cento, mas, afora isso, nada
mudou. Não houve, em substância, modificação alguma, de modo que não se pode
recusar sua previsão na lei orçamentária, embora com o nome antigo.
Não vejo motivo para que se decrete a sua inconstitucionalidade, sob o fun-
damento de que se trata de novo tributo. Temos de julgar pela substância e não pela
epígrafe. O que se apresenta realmente como simples “adicional” não pode ser con-
siderado “taxa”, apesar de assim denominado inadequadamente por lei posterior.
Daí a razão por que entendo inexistir a inconstitucionalidade arguida.
Era a explicação que desejava dar.
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Memória Jurisprudencial
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.
VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O art. 38 do Decreto-Lei 22.239, de 19-12-1932,
dispõe que são sociedades civis e como tais não sujeitas à falência, nem à incidência
de impostos, que recaiam sobre atividades mercantis, as cooperativas para certos fins,
como as de produção ou trabalho agrícolas, de consumo, etc., e o Decreto-Lei 8.401,
de 19-12-1945, expressamente revigorou, no seu art. 1º, as disposições do Decreto
22.239. Não me parece que tais decretos tenham sido implicitamente revogados ou
considerados insubsistentes pela Constituição de 1946. É certo que esta já não declara
expressamente, como a Constituição de 1937, que as “cooperativas” constituem ob-
jeto privativo da legislação federal, mas não é menos certo que atribui exclusivamente
à União o legislar sobre a produção e o consumo. E neste âmbito está necessaria-
mente incluído tudo quanto diz respeito às cooperativas. Nem se compreenderia que,
tratando-se de assunto ou interesse que se projeta no plano nacional, fosse retirada a
prevalente intervenção legislativa da União. Acima do interesse da autonomia fiscal
dos Municípios, há de estar o interesse da proteção a institutos de interesse nacional.
A prevalecer o entendimento contrário, os Municípios, com a sua política fiscal, po-
deriam embaraçar ou anular, na espécie, o poder regulador da União. O direito de
tributar, como dizia Marshall, envolve o de destruir. Como já decidiu este Supremo
Tribunal Federal sobre caso semelhante ao de que ora se trata, embora resolvido prin-
cipalmente à luz da Constituição de 1937, o “Governo Central, visando ao bem co-
mum e a fins de interesses coletivos, pode dar a certo instituto tais características que
torne intributável sua expansão, sem o que aqueles fins seriam inatingidos”. Não vejo
por que não possa ser isso repetido em face da Constituição atual, que reserva à União
o legislar sobre a produção e consumo. São ainda do citado acórdão desta Suprema
Corte os seguintes tópicos: “(...) a lei federal regulou, como lhe compete, as coopera-
tivas agrícolas e, sem proceder ultra vires, definiu-lhes a natureza de sociedade civil,
sociedade de pessoas e não de capitais, e, assim, sobranceira à imposição de tributos
que incidam em atividades mercantis. Podia, maiormente em face da outorga de 1937,
o legislador federal tornar a “cooperativa” isenta de tributação, como o fez, atendendo
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Ministro Nelson Hungria
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, a Constituição, no art. 21,
dispõe o seguinte: “A União e os Estados poderão decretar outros tributos além dos
que lhes são atribuídos por esta Constituição. Mas o imposto federal excluirá o esta-
dual idêntico”.
Pretende o recorrente — e em torno disso gira o núcleo de sua argumentação
— que a Constituição, aqui, se refere não só a imposto como a taxa, porque usa da ex-
pressão genérica tributos. Mas cumpre atender que se, realmente, no início, o artigo se
refere a tributos, já em sua parte final declara proibido o bis in idem somente em ma-
téria de imposto, isto é, a União e os Estados poderão decretar “outros tributos”, mas,
em se tratando de impostos, o federal excluirá o estadual. É bem conhecida a diferença
conceitual entre imposto e taxa. Taxa é a contribuição que se cobra em correspondên-
cia ou em compensação de serviços públicos prestados direta ou especialmente a um
grupo de cidadãos mais ou menos extenso; ao passo que o imposto é destinado a pro-
ver as necessidades de caráter geral. Dado o caráter de contraprestação da taxa é que
a Constituição não reconhece incompatibilidade entre imposto e taxa ou entre taxa e
taxa, excluindo em tais casos a censura do non bis in idem. Se a União presta serviços
tendendo a favorecer ou a tutelar especialmente uma determinada indústria, e passa a
cobrar por isso uma taxa, não fica o Estado inibido de, na órbita de sua competência,
decretar um imposto de caráter geral que atinja essa indústria. Do mesmo modo, se o
251
Memória Jurisprudencial
Estado, embora a União já cobre imposto sobre determinada atividade, presta serviços
especiais em benefício desta, não está inibido de cobrar uma taxa correspondente. Por
quê? Porque a taxa é o preço de um serviço público prestado e que deve ser pago por
aqueles que dele mais diretamente se beneficiam.
Entendo que, no caso de quo agetur, não é identificável a bitributação vedada
pela Constituição vigente, de acordo, aliás, com o que já decidiu o Tribunal Pleno. Se
era possível discussão em face das Constituições anteriores, já não o é com o advento
da Carta de 1946.
Por essas razões, Senhor Presidente, estou, de acordo com Vossa Excelência.
VOTO
(Preliminar)
(Sobre a arguição de inconstitucionalidade)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, sempre entendi que “ma-
téria constitucional” pode ser arguida em qualquer fase do processo, seja na primeira,
seja na segunda instância. Por isto dei meu voto para que, no caso, fosse prejudicial-
mente decidida a suscitada questão constitucional.
De meritis, é certo que o art. 69 da Constituição dispõe que, se o projeto de lei
de uma Câmara for emendado na outra, será devolvido àquela, para que se pronuncie
a respeito. Afirma-se que determinado dispositivo do atual Código Eleitoral, quando
o respectivo projeto transitava no Congresso Nacional, resultou de uma emenda do
Senado ao projeto da Câmara; e que, ao voltar a esta o projeto, tal emenda teria sido
suprimida, embora se omitisse a comunicação de tal fato ao Senado. Em primeiro
lugar, uma lei, depois de sancionada e publicada, tem por si, indiscutivelmente, a
presunção de que, na sua elaboração, na sua tramitação pelo Parlamento, foram
atendidas todas as formalidades constitucionais. Não é admissível que se abstraia
essa presunção, imposta pela própria necessidade de estabilidade e prestígio das leis.
Se houvesse uma prova inconcussa, a entrar pelos olhos, vá que se reconhecesse a
irregularidade; mas, no caso, o que se apresenta como prova da irregularidade e,
portanto, da inconstitucionalidade do preceito de que se trata seriam exemplares do
Diário do Congresso. Sabe-se que até o Diário Oficial, na publicação definitiva das
leis, constantemente, diariamente, vem inçado de erros, de equívocos, de quiproquós.
Imagine-se, agora, o que ocorre com o Diário do Congresso. Se houvesse uma cer-
tidão autenticada de documentos arquivados na Câmara dos Deputados e pela qual
se averiguasse, de modo irretorquível, a supressão da emenda, não estaria eu longe
de reconhecer a arguida irregularidade. Mas tal não acontece. Da própria certidão,
cuja fotocópia nos foi remetida extra-autos pelo embargado, consta que não existem
quaisquer vestígios do fato no arquivo daquela Casa do Congresso. Só se poderia
retraçá-los através do Diário do Congresso.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Verifica-se que a emenda supressiva do art.
46, § 3º, foi rejeitada.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Louvando-se Vossa Excelência em exem-
plares ou noticiário do Diário do Congresso. De qualquer maneira, não se pode
resolver de improviso, na hora Z, esse ponto da impugnação de embargos, a exigir
detida e meticulosa indagação de fato. A matéria constitucional pode ser apreciada
nesta oportunidade, mas, desde que ela traz no bojo toda uma questão de alta in-
dagação, que envolve meditado exame e cotejo de documentos e de fatos, não é
possível julgá-la de plano, levato velo. Compreende-se que uma lei possa ser corri-
gida, sem mais delongas, quando do seu próprio texto, da sua própria redação, se
verifica o erro, prima facie, ou a sua incompatibilidade com a Constituição. Se para
253
Memória Jurisprudencial
VOTO
(Sobre diligência)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já acentuei que, como ele-
mentos probatórios, a fotocópia que recebi e os exemplares do Diário do Congresso
ressentem-se de precariedade. Não lhes reconheço importância decisiva. Não tem
utilidade, portanto, sua juntada aos autos.
Voto contra a diligência.
VOTO
(Preliminar)
(Sobre cabimento do recurso)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quanto ao reexame da
questão preliminar do cabimento do recurso, entendo que, com o oferecimento dos
embargos, a causa continuou re integra. Podemos e devemos retornar ao julgamento
de tal matéria.
Meu voto anterior foi no sentido da admissibilidade do recurso. Entendi que,
parecendo ter o acórdão do Tribunal a quo declarado, em parte, a invalidade de um
preceito do Código Eleitoral, em face da Constituição, cabia, em tese, o recurso. Só
posteriormente, fazendo o estudo do conjunto da lei, cotejados os vários dispositivos
do sistema legal eleitoral, é que cheguei à conclusão de que, realmente, não houvera
esse truncamento, essa invalidação parcial arguida pelo recorrente.
Continuo a afirmar que o recurso era de ser conhecido. Rejeito, portanto, a
preliminar levantada pelo Sr. ministro Mario Guimarães.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, no mérito, não tenho dú-
vida em manter o meu voto anterior. A conclusão a que chegaram os eminentes Srs.
ministros relator e revisor estaria certa, se certa estivesse a premissa. Mas a questão
surge precisamente em torno da premissa adotada pelos meus ilustres colegas e cujo
254
Ministro Nelson Hungria
acerto contesto formalmente. O Código Eleitoral tem dois sistemas: o sistema de co-
cientes e o sistema de sobras. Segundo a regra geral, esses sistemas se entrosam, se
conjugam. Quando aplicado o sistema de cocientes, se apresenta irredutível sobejo
de votos, entra em jogo o sistema de sobras. Ora, no caso do art. 46, § 3º, o que o
Código Eleitoral manda aplicar é tão somente o sistema de sobras. Nada tem a ver
com esse caso o sistema de cocientes. Não se fala, de modo algum, no § 3º do art. 46,
em cociente, quer partidário, quer eleitoral. É isto inteiramente abstraído. O disposi-
tivo, como salientei, exclui a indagação sobre os ditos cocientes e finge que os votos
apurados constituem “sobras”. Na realidade, não são “sobras”, mas tem-se de fazer
de conta que o são. A lei tem o poder de criar ficções, para facilitar a solução de certas
hipóteses que, de outro modo, seriam insolúveis.
Aplicando-se o sistema de sobras, sem qualquer outra indagação, tem-se de
fazer dois cálculos sucessivos para indicar os deputados eleitos. No primeiro, o divi-
sor é um só para as operações, de modo que o partido majoritário obtém o primeiro
deputado; no segundo, porém, o divisor é maior para o partido majoritário, enquanto
para o partido em minoria continua o mesmo. Se feitas as operações da segunda divi-
são, o partido minoritário alcança maior algarismo do resultado, o segundo deputado
lhe caberá. Foi o que ocorreu no caso vertente. Por este critério, inteiramente ajustado
ao espírito da Constituição de 1946, de que o Código Eleitoral é reflexo, é indubitável
que o diploma tem de ser conferido ao embargante, e não ao embargado. Trata-se
de uma questão de matemática, a ser resolvida segundo as regras tradicionais, que
eu aprendi, e não com a teoria dos quanta ou do relativismo de Einstein, que, aliás,
ignoro. Dentro das regras da aritmética clássica, o deputado eleito em segundo lugar
não foi o Sr. Hugo Carneiro, mas o Sr. Oscar Passos.
Não há razão alguma para que modifique o meu voto. Recebo os embargos,
data venia dos Srs. ministros relator e revisor.
QUESTÃO DE ORDEM
(Sobre desempate)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que Vossa
Excelência não tem voto, prevalecendo a decisão anterior.
VOTO
(Questão de ordem)
(Sobre a ata)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, Vossa Excelência foi intei-
ramente fiel na proclamação do resultado, e nestas condições o remédio que caberia
na espécie, se há erro ou omissão do julgado, seria outro que não a presente reclama-
ção, que indefiro.
255
Memória Jurisprudencial
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O atual proprietário do imóvel em questão
não o adquiriu do devedor do Banco do Brasil, mas de outra pessoa que, por sua vez,
o adquiriu do dito devedor. Ainda, porém, que admissível a averiguação de má-fé
por parte do segundo adquirente ou atual proprietário, dada a sua arguida ciência ou
a notoriedade da insolvência do devedor do banco, já ao tempo da anterior alienação,
o certo é que o acórdão recorrido, confirmando a sentença de primeira instância, en-
tendeu não provada essa ciência ou notoriedade.
Por outro lado, o acórdão recorrido não cuidou da cláusula contratual de não
alienação do imóvel de que se trata e onde se achavam os animais apanhados. Não foi
isso objeto de discussão na causa, e só agora, no arrazoado do presente recurso, é que
foi aventada a questão. Mesmo, porém, admitido que o tema ainda fosse oportuno, é
bem de ver que a referida cláusula, embora registrado o contrato, não poderia valer
contra o atual proprietário, que, como já ficou esclarecido, não adquiriu o imóvel do
devedor recorrente, mas de terceiro, que o adquirira daquele, a não ser que tivesse
agido de má-fé ou em conluio fraudulento com o devedor e primeiro adquirente, o
que o acórdão recorrido declara não provada.
Assim, não conheço do recurso, data venia do eminente Sr. ministro relator.
256
Ministro Nelson Hungria
257
Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): A falsidade do reconhecimento da
recorrida por João Winter era proposição necessariamente implícita na inicial da in-
vestigação de paternidade, e, como o dito reconhecimento foi um dos pontos centrais
da contestação dos recorrentes, não podia deixar de ser matéria do julgamento final.
Nem era imprescindível a prévia anulação desse reconhecimento para que pudesse
ter ingresso em juízo a investigação de paternidade. Dispõe o art. 348 do Código
Civil, na sua atual redação, que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que
resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.
Em primeiro lugar, cumpre notar que a lei prestigia o assento de nascimento,
ao qual não se pode equiparar, quanto à força probatória, o ato de legitimação.
Em segundo lugar, a cláusula final do artigo não se refere à condição de
prévia anulação do assentamento do registro civil. Sem dúvida que a boa técnica
aconselha a cumulação da ação de investigação de paternidade com a de anulação
do reconhecimento anterior; mas isto não é imprescindível. Apreciando o tema, em
parecer publicado na Revista Forense, v. 84, p. 64-66, Philadelpho Azevedo sus-
tenta, com cerrada argumentação, “a possibilidade de um segundo reconhecimento,
sem necessidade de prévia anulação do primeiro, o que, consequentemente, autoriza
o ingresso de ação de investigação sem necessidade de prévia anulação de falso re-
conhecimento anterior”. E invoca as opiniões de Wahl e Barde. Diz o primeiro: “(...)
l'annullation de la reconnaissance n'ést pas une condition préalable de tout action en
declaration de paternité”; e o segundo observa: “La reconnsaissance est loin d'ávoir
la force probatoire de l'acte de naissance d'une enfant legitime, la presomption de
verité que s'ettache á elle n'est que celle d'an aveu”.
No mesmo sentido de Philadelpho se pronunciam Serra Lopes (Tratado dos
registros públicos, v. I) e Carvalho Santos (parecer citado pela recorrida). Trata-se
de matéria de ordem pública, qual a que concerne ao estado das pessoas. É o que
acentua Carvalho Santos:
Não seria possível, evidentemente, admitir-se fosse julgada improcedente a
ação de investigação de paternidade, mesmo que provado estivesse a filiação preten-
dida, sob o fundamento de estar a autora reconhecida falsamente por outrem. Seria
ferir de morte os interesses superiores de ordem pública, e que exigem não prevaleça
a falsidade principalmente nas relações de parentesco.
258
Ministro Nelson Hungria
Como se vê, não é possível dissimular que a transação versou sobre a fi-
liação natural da recorrida, no sentido de que esta desistisse de pleitear qualquer
direito a tal respeito. Incensurável, portanto, foi o acórdão recorrido, negando
validade a essa transação, embora ressalvando que, no que tenha a receber fu-
turamente Maria Alzira, de seu quinhão hereditário na sucessão de Rinaldo
Selbach, seja deduzido o que já lhe foi pago no ato da transação, e isto, não por-
que se pretenda atribuir qualquer valor a esta, mas pelo princípio da proibição
do enriquecimento sem causa.
Realmente, existe dissídio jurisprudencial, embora não me tenham aper-
cebido da indicação de arestos divergentes; mas a solução que tenha como certa
é a do acórdão recorrido. Conheço do recurso tão somente pela letra d e lhe
nego provimento.
259
Memória Jurisprudencial
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, em face do
voto do eminente Sr. ministro Mario Guimarães, devo uma explicação no sen-
tido de fixar, mais nitidamente, a natureza do contrato celebrado entre as partes.
Ao contrário do que parece entender o Sr. ministro Mario Guimarães, a
transação não foi feita em torno do algarismo de interesses patrimoniais, mas
exclusivamente em torno da questão do estado da pessoa, isto é, para que a
recorrida não prepusesse ação de investigação de paternidade, porque isso po-
deria importar em grave escândalo para a família do de cujus ou investigando.
No tocante à cota hereditária, não houve transação nenhuma, pois a
recorrida recebeu no ato determinada quantia, que se dizia corresponder exa-
tamente à sua cota hereditária, caso fosse vencedora na ação de investigação.
Recebeu a importância porque, induzida em erro, estava convicta de que repre-
sentava fielmente o que lhe caberia no inventário.
Na realidade, essa cota hereditária é muito maior o consentimento da
recorrida, captado por meio de induzimento a erro, não tem valia. Nem seria
possível fazer cisão do contrato de transação no caso vertente, para julgá-lo nulo
numa parte e válido em outra. Não houve transação alguma, repita-se, em torno
da cota hereditária, e somente neste caso é que se poderia concordar com o voto
do eminente Sr. ministro Mario Guimarães.
Assim, Senhor Presidente, mantenho meu voto.
260
Ministro Nelson Hungria
o acórdão admite como provado, e, nessa parte, não podemos apreciá-lo, porque se
trata de matéria de fato e regulada por lei estadual.
Estou em desacordo com a tese do acórdão no ponto em que diz que o fun-
cionário em disponibilidade pode escolher o cargo, equivalente ao que ocupava e
em que deseja ser aproveitado. Entendo que o Governo não é obrigado a nomear
o funcionário em disponibilidade para o equivalente cargo vago, que ele escolha.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não foi essa a tese do acórdão. O
acórdão diz que o cargo a que o recorrido tem direito é aquele que foi extinto e
depois restabelecido.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Esse cargo não mais existe, uma vez que foi
extinto legalmente. Mesmo restabelecido, é cargo que surgiu ex novo nos quadros do
funcionalismo do Estado. O cargo anterior foi extinto sine conditione. O cargo atual
é outro cargo, embora com o mesmo nome e com funções idênticas. Nem se pode,
de resto, usar o termo “restabelecido”, que traz consigo a ideia de um retorno ao statu
quo ante. Na realidade, foi criado de novo, sem qualquer ligação com o passado. Não
vejo como se possa, por isso mesmo, reconhecer o pretendido direito do recorrido.
Dir-se-a que, dessa forma, o preceito constitucional poderá ser burlado. É exato; mas
a Constituição que fosse mais previdente e mais explícita em seus preceitos. Nem
mesmo implicitamente é proibido, em face dela, o que ocorreu no caso vertente. Ora,
é preceito escrito no frontal da democracia que é permitido o que não é proibido.
Estou de acordo, entretanto, com o voto do ilustre desembargador Costa
Manso, pois, ao contrário do que afirmou o nobre advogado do recorrente,
o aproveitamento dos funcionários do extinto Departamento Estadual de
Estatística, segundo a lei estadual, não é facultativo, mas, sim, imperativo.
Determina essa lei, categoricamente, que o presidente do Estado lotará no de-
partamento criado os funcionários do anterior, que forem necessários.
Dir-se-á que essa necessidade não se refere apenas à quantidade, se não tam-
bém à qualidade. Mas, se a própria recorrente, a Fazenda do Estado, nada informa
contra o recorrido, não faz qualquer restrição à sua exação funcional, tendo-lhe,
até, prestado a homenagem de atribuição de cargo inexistente, evidentemente não
se pode dizer, no caso concreto, que o recorrido tenha sido sacrificado a um critério
seletivo. Se havia no departamento criado um cargo de diretor-geral, era necessário,
em face da lei estadual, que nele fosse lotado o recorrido.
Tão somente em face deste fundamento é que reconheço o direito do recorrido.
Não conheço, pois, do recurso.
262
Ministro Nelson Hungria
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em caso anterior,
proveniente de Minas Gerais, já tive oportunidade de manifestar o meu pensa-
mento em torno do art. 95, § 3º, da Constituição Federal.
Entendo que a condicionada vitaliciedade que aí se assegura aos juí-
zes temporários, com função limitada de meros preparadores de processo ou
de substitutos ocasionais de juízes de Direito, se refere exclusivamente a esse
mesmo cargo de juiz com função limitada. De modo algum, é assegurado a
esses juízes, ainda quando declarados vitalícios, pelo decurso de dez anos de
contínuo exercício, o direito de acesso, independentemente de concurso, à ma-
gistratura vitalícia, com plenitude de funções.
Esta é que é a conciliação entre os arts. 93, § 3º, e 124, da Magna Carta,
e não a que, data venia do eminente Sr. ministro relator, é defendida por
Afonso Arinos, com apoio de Sua Excelência, pois chega a criar um caso de in-
gresso na magistratura de carreira ou, com plenitude de funções, ao arrepio da
Constituição. Esta não permite o ingresso nessa magistratura senão mediante
concurso de provas.
No Estado de Minas Gerais, houve o seguinte: lei estadual transformou
o cargo de juiz municipal que corresponde ao dos pretores no Estado do Rio de
Janeiro, em cargo autônomo, isto é, desvinculando-o da carreira da magistra-
tura, a que se achava integrado antes da Constituição de 1946, embora sem con-
curso. O legislador mineiro, assim, contornou a situação criada pelo contraste
entre a Constituição vigente e a anterior.
Se o Supremo Tribunal já reconheceu acertado o critério da lei mineira,
que se ajustou precisamente à injunção do art. 95, § 3º, da Constituição, estamos
adstritos, no caso vertente, a manter o acórdão recorrido, que está enquadrado
na interpretação do Supremo Tribunal, no sentido de que vitaliciedade condi-
cionada a que se refere o § 3º do art. 95 é tão somente a vitaliciedade no cargo
de juiz preparador ou substituto eventual, sem direito a acesso à carreira de
magistrado, para cujo ingresso é indispensável o concurso.
263
Memória Jurisprudencial
Não se pode ler nas linhas ou entrelinhas da Constituição que, com essa vita-
liciedade, esses juízes adquiram o direito de se isentarem do concurso para transpo-
sição dos humbrais da magistratura de carreira.
Assim sendo, Senhor Presidente, data venia do Sr. ministro relator, não co-
nheço do recurso.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não há identidade entre o presente
caso e o resolvido pelo indicado aresto deste Supremo Tribunal. No último, cogitava-
-se de um fideicomisso, devendo os bens, por morte do fiduciário, passar a seus filhos
e, na falta destes, a certas instituições de caridade: como ao fiduciário não tivesse
advindo prole, resolveu ele adotar um filho, e decidiu o Tribunal o seguinte:
A vontade do testador não pode ser substituída pela vontade arbitrária de um
fiduciário, e a esta consequência levaria a possibilidade, reconhecida ao herdeiro, de,
na falta de prole, adotar alguém, com prejuízo de outros fideicomissários determina-
dos. Prole, de que fala o art. 1.718, é a descendência natural. A essa descendência, le-
gítima, legitimada, ou ilegítima, é que se dá a capacidade de receber por testamento.
Ora, reconhecer que a prole de que fala o art. 1.718 do Código Civil é a natural,
não importa dizer que entre os “descendentes sucessíveis” mencionados no art. 1.750
não se devem incluir, ainda em face do art. 1.605, os filhos adotivos. São estes equi-
parados, para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos, e, no caso vertente, trata-se
de filhos adotivos do testador, e não de herdeiro do testador. Ainda, porém, que se
apresentasse o dissídio jurisprudencial, a solução do acórdão recorrido é a que se me
afigura acertada, tendo em seu apoio a autoridade dos mais ilustres comentadores da
nossa lei civil (Beviláqua, Código Civil, observação ao art. 1.750; João Luiz Alves,
Código Civil, ed. 1917, p. 1237; Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro interpre-
tado, v. XXIV, p. 250; Itabaiana, Direito das sucessões, ed. 1929, p. 396; Ferreira
Alves, Do direito das sucessões, in Manual do Código Civil Brasileiro, p. 396; Carlos
Maximiliano, Direito das sucessões, v. II, p. 501).
Não conheço do recurso.
264
Ministro Nelson Hungria
265
Memória Jurisprudencial
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que a anistia
é instituto de direito penal, não se estendendo à esfera do direito administrativo,
como não se estende à esfera do direito civil.
A reversão do anistiado a cargo público, seja ela determinada na própria
lei concessiva da anistia, ou em lei posterior, não é efeito necessário da anistia.
De modo algum.
O Estado pode, além de dar a anistia, autorizar a reversão, mas a lei que
assim determinar não é lei declarativa, mas, sim, lei constitutiva.
Assim, discordo de Vossa Excelência, Senhor Presidente, data venia, e
não conheço do recurso.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O acórdão recorrido assenta, ao
que me parece, sobre duas premissas falsas: a) a de que, uma vez pago num Estado
o imposto de vendas e consignações sobre determinada venda ou consignação de
um produto para outro Estado, tal tributo não poderá ser novamente cobrado sobre
ulteriores vendas ou consignações do mesmo produto nesse outro Estado; b) a de
que o dito imposto não é outra coisa senão o antigo imposto de vendas mercantis, e,
portanto, limitado às operações realizadas entre pessoas domiciliadas no território
266
Ministro Nelson Hungria
nacional. Quanto à primeira proposição, sua falsidade está em que, como juntamente
acentua Oto Gil, ao dissertar sobre o imposto de vendas e consignações in Revista de
Direito Administrativo, v. 22, p. 405, “entre nós, ao contrário do que sucede na legis-
lação de outros países (na Argentina, por exemplo), o imposto incide, sem nenhuma
limitação, tantas vezes quantas sejam as vendas e consignações do produto, desde o
produtor até o varejista”. Se um produto é vendido pelo seu produtor no Amazonas e
vem a ser revendido, sucessivamente, aí mesmo ou em cada um dos demais Estados,
incidirá sob o imposto tantas vezes quantas forem as operações de compra e venda.
Também manifesta é a falsidade da segunda premissa. O imposto de vendas e con-
signações não é sobrevivência integral do imposto sobre vendas mercantis, que,
inerente à disciplina da emissão de duplicatas, não podia deixar de se limitar a ope-
rações efetuadas entre contratantes domiciliados ou residentes no território nacio-
nal. O imposto de vendas e consignações nada tem a ver com duplicatas e, assim, a
referida limitação, no que lhe diz respeito, não teria razão de ser, o que, aliás, está
expresso no § 5º do art. 19 da Constituição: “O imposto sobre vendas e consignações
será uniforme, sem distinção de precedência ou destino”. Aí está patente que não há
distinguir entre venda para consumo interno do país e venda para o exterior. Nem
há confundir, como incontestavelmente argumenta a recorrente, entre venda em que
o produto se destine ao estrangeiro e a efetiva exportação do produto, pois são dois
fatos distintos e, assim, distintamente tributáveis. Se os cafés fossem produzidos no
Distrito Federal e aqui vendidos com destino ao exterior, poderia o fisco municipal
cobrar o imposto de vendas e consignações sobre a venda e, a seguir, o imposto de
exportação quando da efetiva saída do produto do país.
Não haveria nisso um bis in idem, e perfeitamente constitucional seria a co-
brança sucessiva dos impostos. E isso mesmo é o que ocorre, atualmente, em certos
Estados cafeeiros que dispõem de portos próprios e quando por estes se escoa o pro-
duto para o exterior.
A Lei municipal 687 não mascara, nem precisava de mascarar, na espécie, um
imposto de exportação sob o rótulo de imposto de vendas e consignações, pois que
deste realmente se trata, e nada tem de incompatível com a Constituição Federal. Se
os produtores dos Estados de Minas, São Paulo, Rio ou Espírito Santo vendessem
os cafés diretamente a compradores domiciliados no estrangeiro, aí, sim, o Distrito
Federal, por onde o produto apenas passasse em trânsito, não poderia cobrar imposto
algum (nem o de vendas e consignações, porque nenhuma venda se estava operando
no Distrito Federal, nem o de exportação, porque o café não é de sua produção). Tal,
porém, não acontece no caso vertente: os cafés são comprados pelos recorridos nos
Estados produtores, ou lhes são consignados para venda, e aqui revendidos ou ven-
didos, quer para o consumo local, quer com destino ao estrangeiro. A prevalecer o
ponto de vista do acórdão, o Distrito Federal ficaria numa situação de iníqua infe-
rioridade fiscal: confundida a venda, quando destinado o café ao estrangeiro, com o
fato da exportação, não poderia cobrar o imposto de vendas e consignações, porque
267
Memória Jurisprudencial
se tratava de exportação, nem poderia cobrar o imposto de exportação, porque este so-
mente cabe ao Estado produtor. Ainda mais: se os produtores dos Estados instalarem
agências ou depósitos no Distrito Federal, para aí remetendo os seus cafés, ao invés de
os venderem ou consignarem nos Estados de origem e, a seguir, os vendessem para o
exterior, por intermédio de tais agências ou depósitos, não pagariam imposto algum,
nem no Estado de origem (porque nenhuma operação aí efetuada), nem do Distrito
Federal (porque se trataria de exportação).
Semelhantes desconchavos estão a evidenciar o desacerto da decisão do
Tribunal local. Repita-se: o que a lei municipal tributa é a venda de cafés na praça do
Rio, e tal venda, ainda quando destinado o produto ao estrangeiro, não é exportação,
que só ocorre, como é óbvio, quando o café sai efetivamente do território nacional. O
fato gerador ou “suporte fático” (segundo uma expressão rebarbativa que entrou em
uso) do imposto de vendas e consignações é a operação de compra e venda, pouco im-
portando que a res vendita seja destinada ao consumo interno, ou tenha de ser expor-
tado. Ao contrário de colidir com a Constituição, a Lei 687 se enquadra plenamente
no § 5º do art. 19 da Magna Carta.
Os recorridos, num verdadeiro fogo de barragem de memoriais e pareceres,
procuram fazer coincidir o seu interesse com os Estados cafeeiros que não dispõem de
portos marítimos e que, assim, não poderiam vencer o handicap que sobre eles leva-
riam os Estados que não precisam do porto da Capital da República para exportação
de seus cafés. Ora, não há handicap de espécie alguma contra os Estados centrais:
também nos Estados marítimos se paga o imposto de vendas e consignações tantas
vezes quantas o café é objeto de compra e venda. Também lá os produtores não ven-
dem diretamente para o estrangeiro, pois sempre estão de permeio as empresas expor-
tadoras. E se os produtores paulistas ou paranaenses podem vender diretamente para
os compradores domiciliados no estrangeiro, o mesmo poderão fazer os produtores
mineiros ou goianos, evitando os intermediários, que são os ora recorridos.
O que pretendem os recorridos não é a defesa dos produtores mineiros ou
goianos, que, aliás, não os incumbiram dela, mas seu próprio e exclusivo interesse,
que é o de se eximirem ao pagamento do imposto de vendas e consignações por suas
operações no Distrito Federal. Se acaso transferissem eles as respectivas sedes para
o Estado de Minas ou de Goiás, aí teriam de pagar o imposto pela revenda a compra-
dores residentes no estrangeiro, do mesmíssimo modo que atualmente pagam pela
revenda no Distrito Federal. Se vingasse a pretensão dos recorridos é que se estabele-
ceria uma concorrência desleal em detrimento dos produtores dos Estados marítimos.
Senhor Presidente, rejeito a arguida inconstitucionalidade da Lei muni-
cipal 687.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Conheço do pedido, embora
reiteração de outros já denegados. A garantia do habeas corpus não pode ser
restringida na amplitude com que a assegura a Constituição. Ademais, se o pe-
dido de habeas corpus ficasse prejudicado por anteriores, versando o mesmo
argumento, estaria o paciente inibido de se aproveitar de uma possível mudança
de votos — fato que frequentemente ocorre nos tribunais. Muitas vezes, há di-
vergência de votos, verificando-se a denegação por maioria de um ou dois votos,
de modo que, faltando ao julgamento, acidentalmente, um ou dois membros do
tribunal, que se hajam pronunciado pela denegação, apresenta-se a eventuali-
dade de êxito do impetrante.
O presente pedido de habeas corpus é reticente no seu teor, do mesmo
modo que sói reticentes as certidões que o instruam. Uma destas é a prova es-
pecífica da idade do paciente, que nasceu em 29 de setembro de 1926, e outra
informa que os autos do processo contra o paciente foram conclusos ao juiz em
25 de setembro de 1947, isto é, quando ainda faltavam quatro dias para que o pa-
ciente completasse 21 anos. Mas, para que fim foram os autos conclusos ao juiz?
Para recebimento da denúncia ou para a prolação da sentença? Não se menciona
sequer a data do recebimento da denúncia. Seria ainda, a esse tempo, menor o
requerente? Tal ponto, entretanto, perde relevo quando se verifica que o próprio
paciente, ao ser interrogado em juízo, declarou-se maior de 21 anos, tendo cons-
tituído, sucessivamente, dois advogados, que o assistiram durante todo o processado.
O art. 565 do Código de Processo Penal dispõe que “nenhuma das partes
poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido”, e o
art. 566 acrescenta: “Não será declarada a nulidade do ato processual que não hou-
ver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.” No caso
vertente, foi o paciente quem deu causa à não nomeação de curador, e a ausência
deste foi suprida pela assistência militante de dois advogados de defesa. Ainda que
continuasse menor no curso de processo, não seria de reconhecer nulidade. Por ou-
tro lado, em nada teria sido prejudicada a verdade substancial em que se baseou a
decisão da causa. Nem vale dizer que o inquérito policial transcorreu sem curador
ao paciente, pois a irregularidade de peça destinada à informação do Ministério
272
Ministro Nelson Hungria
Público não pode afetar a validade de ulterior processo judicial. Somente ficariam
destituídos de valia os atos da prova a que é indispensável a presença do indiciado
e que houvessem de integrar os elementos probatórios do processo judicial.
Para melhor esclarecimento, entretanto, do caso sub judice, será conve-
niente ler-se o acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
de que houve recurso para este Tribunal, que lhe negou provimento (ler p. 20 do
apenso de recurso de habeas corpus).
Foram aqui bem fixados os termos da questão, e incensurável foi a decisão. E
vê-se que o paciente teve curador no próprio inquérito policial, embora tal curador
não estivesse presente à acareação do paciente com a ofendida.
Nem mesmo está provado que, ao tempo do recebimento da denúncia,
ainda fosse menor o paciente. Como já acentuei, quer na petição inicial, quer
nas certidões, evitou-se a precisão de datas. Como quer que seja, porém, o pa-
ciente não pode alegar uma nulidade que ele próprio teria provocado e de que
lhe não resultou prejuízo algum.
Denego a ordem.
273
Memória Jurisprudencial
É possível que tenha ocorrido esta última hipótese e, então, não teria ha-
vido ensejo ao interrogatório.
Mas suponhamos que a primeira hipótese, a mais plausível, é a que tenha
realmente ocorrido. Desde que o réu foi preso, há necessidade imprescindível
do seu interrogatório. O interrogatório, atualmente, não é só uma peça de acu-
sação senão também uma peça de defesa.
Deixar de interrogar o réu é, positivamente, omitir um termo essencial do
processo, é cercear a defesa.
O tribunal ad quem estava adstrito a converter o julgamento em diligên-
cia para que o juiz de primeira instância interrogasse o réu. Assim sempre se
procedeu.
Nessa incerteza, só me ocorre um alvitre: propor que se converta o julga-
mento em diligência, para que se esclareça este ponto: se o réu foi recolhido à
prisão, antes de apelar.
Se se verificar que o paciente já estava preso, a falta do interrogatório
anulará não a sentença, mas a decisão da superior instância.
Proponho a diligência.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
com o detido cotejo das atas, é que poderia ter atinado com a irregularidade. Não
propriamente o paciente, mas o seu advogado, que pode não ter sido o mesmo em
ambos os julgamentos.
Mas esta indagação tem de ser posta à margem.
Trata-se de nulidade insanável, daquelas que não se julgam sanadas quando
não arguidas em determinada oportunidade processual.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Mas as nulidades insanáveis estão su-
jeitas ao primeiro artigo do título relativo às nulidades sem prejuízo. Este artigo rege
todo o sistema das nulidades.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Houve prejuízo não somente para o paciente
como para o interesse da regular administração da justiça. Não pode deixar de ser
sempre prejudicial o julgamento por um conselho formado ilegalmente, isto é, com a
participação de um jurado impedido. Atrita isso, indisfarçavelmente, com o interesse
da justiça legalmente disciplinado.
O eminente Sr. ministro relator argumenta, conjecturalmente, dizendo que a
participação desse jurado no segundo julgamento só podia ser favorável ao paciente,
porque a decisão anterior fora absolutória.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu não disse precisamente isto.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A decisão absolutória foi proferida por
unanimidade?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não. No primeiro julgamento da série
de quesitos de legítima defesa foram afirmados — os três primeiros, por seis votos, o
quarto por sete, o quinto por cinco e o sexto por quatro.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não houve unanimidade. Suponhamos que
um dos votos divergentes tenha sido, precisamente, o desse jurado e que ele, no inevi-
tável contato e troca de ideias com seus pares, tenha exercido sobre estes sub-reptícia
influência, no segundo julgamento...
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Data venia, isto é que é uma conjec-
tura. Não posso decretar nulidade diante de conjecturas.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Conjectura contra conjectura. E as conjectu-
ras só podem valer quando favoráveis ao réu. Também conjectura seria o supor-se
que o jurado estivesse entre os que absolviam.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu não disse isso.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Implicitamente, sim.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu falei que o prejuízo presumido seria
o da acusação, porque o primeiro julgamento foi absolutório. Não podia eu falar em
voto, porque este é secreto.
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
Acresce que a lei fala em “injuriar”, presta-se atenção, não em “caluniar”. Da “calú-
nia” contra agentes dos Poderes Públicos não cogita o Decreto-Lei 431, que a deixou
à lei penal comum, não excluindo esta a exceptio veritatis pois, salvo casos singula-
res, é sempre do interesse social que se apure a verdade em torno da imputação de
um crime.
O dispositivo da Lei de Segurança fala em “injúria” contra os agentes dos
Poderes Públicos, mas, é bem de ver, quando estes são atingidos como tais. E deve
entender-se: agentes que diretamente exercem os Poderes Públicos, como sejam: o
presidente da República e os governadores dos Estados, os seus ministros ou secre-
tários; os membros do Congresso e do Poder Judiciário, os prefeitos, os vereadores,
os chefes de polícia, e não toda a classe, toda a imensa legião dos funcionários pú-
blicos. No caso, estaria satisfeito o requisito da “propriedade do sujeito passivo”. O
ofendido era chefe da segurança pública de um Estado, exercia diretamente uma
relevante parcela do Poder Executivo estadual. O que, porém, não lobrigo é o fim
específico ou característico do crime político. Trata-se de uma questão pessoal. De
modo algum visou o paciente a perturbar a ordem político-social, conceituada no art.
1º do Decreto-Lei 431, ou a erguer a bandeira vermelha contra o regime estatal sob
o qual vivemos. Movido por antipatia ou ira, justificadas ou não, contra a pessoa do
chefe de polícia pernambucano, teria ele atribuído a este certo fato criminoso prati-
cado ao tempo em que exercia o cargo de delegado de polícia. Nada tem a ver isso
com o interesse da ordem política, senão exclusivamente com o da honra pessoal do
ofendido. Não importa isso, de modo algum, num atentado à estrutura ou segurança
do Estado. Não foi com tal fim que agiu o paciente, pois apenas quis dar desabafo à
sua indignação, ao seu ódio, à sua animadversão contra um seu inimigo pessoal, que
exercia, então, o cargo de chefe de segurança numa unidade da Federação. Visava ao
homem, não ao titular do Poder Público.
Impugno a elasticidade que se pretende imprimir ao dispositivo da Lei de
Segurança. A prevalecer o critério ampliativo, verificar-se-iam excessos e descon-
chavos irrisórios. Ninguém mais poderia, pela imprensa, usar de qualquer palavra
menos delicada para com um funcionário, fosse qual fosse a sua categoria, que não se
visse envolvido em processo penal contra a ordem político-social ou como agente de
crime político. O crime político tem sentido especial, não podendo confundir-se com
esse desafogo de ira que redunda em crimes contra a honra individual, em injúria,
difamação, ou calúnia. Entendendo que não se apresenta, na espécie, crime de natu-
reza política, ou, mais precisamente, fato que possa ser enquadrado na alínea 25 do
art. 3º do Decreto-Lei 431, concedo a ordem de habeas corpus. Inexiste crime contra
a ordem político-social, e a punibilidade do crime contra a honra, previsto pela Lei
de Imprensa, já se acha extinta pela prescrição.
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): No tocante ao invocado indulto,
nenhuma razão assiste ao paciente. O art. 1º da Lei 63 diz o seguinte: “São anis-
tiados os responsáveis pela prática do crime de injúria ao Poder Público ou aos
agentes que o exercem, capitulado no item 25, do art. III, do Decreto-Lei n. 431,
de 18 de maio de 1938.”
Ora, o paciente foi denunciado e condenado por crime de Lei de Imprensa,
que nada tem a ver com a Lei de Segurança. A anistia não se estende aos crimes
contra a honra de particulares por meio de imprensa.
Resta a outra parte da argumentação do impetrante.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
Não tenho também dúvida que o desembargador, eleito por seus pares
para o Tribunal Regional Eleitoral, leva consigo sua qualidade de desembarga-
dor. Esta é a condição sine qua non para que ele seja juiz do Tribunal Eleitoral.
Sua qualidade de desembargador é como que um substantivo e o exercício do
juizado eleitoral um adjetivo.
Não se pode, de maneira nenhuma, admitir que o desembargador se dispa
dessa qualidade quando em exercício no juízo eleitoral.
O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Já se considerou dispensado das fun-
ções de juiz eleitoral um desembargador que se aposentou. O juizado eleitoral está
ligado, portanto, à pessoa do desembargador.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Código Eleitoral diz que compete ao
Tribunal Superior Eleitoral Julgar os crimes eleitorais. Evidentemente, há de se en-
tender como ressalvado o caso da prática desses crimes por parte de um desembar-
gador, pois, de outro modo, estaria em colisão franca com o preceito constitucional.
Por último, Senhor Presidente, não tenho dúvida, igualmente, que o magis-
trado leve consigo a prerrogativa do cargo, não somente em se tratando de crime
comum, como nos de responsabilidade. Continua a ter direito ao foro privilegiado.
Nesse ponto, dissentiria do eminente Sr. ministro relator, a cujo voto, entre-
tanto, adiro quanto ao mais.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo, de
acordo, aliás, com reiterados arestos deste Supremo Tribunal, que o crime de
latrocínio não se inclui entre aqueles que a Constituição Federal e a vigente Lei
do Júri atribuem à competência do tribunal popular. O latrocínio é crime contra
o patrimônio, e a Constituição, ao definir a competência do Júri, fala em crimes
dolosos contra a vida.
A Carta Magna não podia usar de expressões fora do seu sentido técnico.
O legislador constituinte não podia ignorar o idioma da lei específica sobre a
repressão dos crimes, isto é, o subsistente Código Penal de 1940, que distingue
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
que a lei assegura é tão somente que a acusação deve corresponder ensejo à produção
de defesa. E isto foi atendido no caso vertente. Não procede, pois, o segundo funda-
mento do pedido.
Quanto ao terceiro motivo, isto é, o de que o julgamento caberia ao Tribunal
do Júri, por se tratar de latrocínio, é reiterada decisão deste Supremo Tribunal, com
o meu decidido apoio, que tal crime não se inclui entre aqueles cujo julgamento a Lei
263, de 1948, interpretando com acerto a Constituição, atribuiu à alçada do tribunal
popular.
Assim, acompanho o voto do eminente ministro relator, negando a ordem.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
De modo, Senhor Presidente, que resolvi dar meu voto, que é a favor do pa-
ciente. Ao contrário do que pensa o eminente Sr. ministro relator, entendo que, para
a existência de qualquer dos crimes previstos no Decreto-Lei 431, de novembro de
1938, é indispensável o dolo específico, ou seja, a intencional finalidade de atacar, de
agredir a ordem política e social, ou a segurança da estrutura do Estado.
Não vale invocar o art. 1º, que se arroga o definir o que seja ordem política e
ordem social.
Não obstante os detalhes ou a amplitude que esse artigo imprime à noção de
ordem política e ordem social, uma e outra não podem deixar de ser precisamente
isto: “ordem política” é o que diz com o regime governamental, constitucionalmente
adotado, que, entre nós, é o da democracia liberal burguesa; “ordem social” é tudo
aquilo que diz com a estrutura social, com as instituições sociais dentro do Estado
liberal burguês.
Para nós, no Brasil, isto é que é “ordem política” e é “ordem social”. E por
isso mesmo que é indispensável o mencionado dolo específico, a intenção de investir
contra a ordem político-social, o fim de destruí-la, desprestigiá-la, desmoralizá-la, é
que o fato em questão só é político quando informado por esse dolo. Realmente, se
fosse desnecessária essa finalidade ou esse propósito, teria toda razão o eminente Sr.
ministro relator, quando entende que a lei ordinária não pode, arbitrariamente, dizer
que determinado fato é crime político quando na realidade não tenha esse caráter,
transformando, contra o espírito constitucional, o quadrado em redondo e o preto em
branco. Precisamente porque é indeclinável essa intenção é que o fato incriminado
pela Lei de Segurança ali figura como crime político.
Mas há outro aspecto da questão: o dispositivo legal diz o seguinte: “injuriar
os poderes públicos ou os agentes que os exercem.”
Já tive oportunidade de comentar, em artigo que escrevi sobre a Lei de
Segurança anterior à que ainda está vigente, que, através dos Anais do Congresso,
quando da elaboração dessa lei, não se atinava qual era a diferença entre “agentes dos
poderes públicos” e “funcionários públicos”, posto que a lei falava ora em “agentes
dos poderes públicos”, ora em “funcionários públicos”.
Só encontrei, para minha curiosidade, uma resposta dada pelo relator do pro-
jeto, no seio da Comissão, a apartes dos deputados Bergamini e Covielo. Limitou-se
ele a dizer que as hipóteses eram diferentes. Prosseguindo na minha indagação e
interpelando os principais responsáveis da elaboração da lei, vim, então, a saber o
seguinte: “agente do poder público” é aquele que encarna qualquer dos poderes po-
líticos, aquele que exerce o poder público direto e primacialmente. É qualquer dos
membros mais graduados dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim,
só estaria enquadrada na Lei de Segurança a injúria irrogada ao presidente da
República, aos governadores ou interventores estaduais, aos prefeitos, aos ministros
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o crime pelo qual está
denunciado o paciente é assim definido, sob o titulo “prevaricação”, no art. 235
do Código Penal Militar:
Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo con-
tra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.
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Ministro Nelson Hungria
bastante para tornar ociosa qualquer outra indagação. Mas vale a pena acentuar a tal
respeito a inanidade da denúncia que vem de ser lida pelo eminente Sr. ministro re-
lator. O que nessa denúncia se aponta como indício de elemento subjetivo é o fato de
haver o paciente, certa vez, publicado um livro sobre o direito penal soviético. Senhor
Presidente, tenho esse livro em minha estante, tenho-o consultado várias vezes, como
elucidário para estudos de direito penal comparado. De modo nenhum se pode vis-
lumbrar, ainda que longinquamente, qualquer sentimento sectarista nos comentários,
nas observações que o paciente faz à lei penal soviética.
A adotar-se o critério simplista da denúncia, ter-se-ia de chegar à seguinte
conclusão: se, ulteriormente, os acusados forem absolvidos, ou se os fatos que se lhes
imputam forem reconhecidos como não constituindo crime, ter-se-ia de fazer sentar
no banco dos réus o promotor que ofereceu a denúncia, ou o auditor que a recebeu,
porque prevaricaram, cedendo ao seu anticomunismo intelectual, do mesmo modo
que o paciente teria prevaricado por comunismo intelectual!
Há uma outra circunstância que é do nosso conhecimento: decretada a prisão
preventiva dos indiciados a respeito dos quais o paciente entendeu que não havia lu-
gar para tal medida, nas condições legais, um deles veio a este Supremo Tribunal pe-
dir habeas corpus e o obteve. Por quê? Porque faltava, nada mais, nada menos, que o
corpo de delito, a prova material do crime. Havia-se decretado a prisão preventiva do
indiciado sem a prova da existência mesma do crime. E outros habeas corpus foram
concedidos pelo Superior Tribunal Militar a vários dos indiciados arbitrariamente
presos, não obstante o parecer contrário do paciente.
Como quer que seja, porém, não podemos abstrair a prejudicial de falta de
elemento objetivo da prevaricação. Definindo este crime, diz o Código Penal Militar:
“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra
expressa disposição de lei (...).” Onde a omissão ou prática indevida ou ilegal de ato
de ofício por parte do paciente? A lei processual militar lhe dava a faculdade, não só
de opinar contra a prisão preventiva, como de deixar de a requerer, por carência de
elementos suficientes, como de deixar de oferecer a denúncia por ausência de prova
ou maiores esclarecimentos quanto à autoria imputada ou por inexistência de crime.
Exerceu ele faculdade legal. Mesmo quanto àqueles em cujo favor entendeu não
existir crime, opinou no sentido de que estavam sujeitos a penas administrativas ou
disciplinares, que indicou. Como dizer, então, que o paciente agiu como parti pris,
com espírito prevenido, influenciado por sentimentos pessoais?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O Dr. procurador-geral concordou; depois, ofe-
receu denúncia.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É isso mesmo: o Dr. procurador-geral,
ele próprio, concordara de início com a atuação do paciente, mas, depois, pre-
mido pelo ambiente que se criou em torno do caso, decorrente de novo surto da
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
pacientes e a morte da referida Sonia. Não estou de acordo com o parecer do ilustre
Dr. procurador-geral do Estado de São Paulo, quando afirma que “os vestígios, a que
se refere a lei, são e só podem ser os encontrados naquilo que foi atingido pelo crime;
na própria pessoa da vítima, quando se trata de crime contra a pessoa”. Vale isto con-
fundir “corpo de delito” com “corpo da vítima” — o que, evidentemente, não é ad-
missível. O exame do corpo da vítima pode não passar de um “momento” ou fase do
exame pericial de corpo de delito. Corpo de delito, segundo a definição de Manzini
(Trattato di Direito Processuale Penale, III, p. 378), “são todas as materialidades re-
lativamente permanentes sobre as quais ou mediante as quais foi cometido o crime,
como também qualquer outra coisa que seja efeito imediato do crime ou que de qual-
quer modo se refira a ele, de sorte a poder ser utilizado para a prova do mesmo. O
exame de corpo de delito, como adverte Bento de Faria, com apoio em João Mendes
Júnior e Manzini, abrange até mesmo os objetos que se liguem a ele ainda que se
achem afastados do lugar e do tempo do delito. Tal exame, no caso de homicídio,
tende à verificação não só do evento letal, como da causa mortis imediata e de todo
o complexo de elementos causais que operaram no caso concreto. Conforme a noção
clássica de João Mendes Júnior, corpo de delito é o conjunto dos elementos sensíveis
do fato criminoso. De modo que os vestígios, de que fala o art. 158 do Código de
Processo Penal, não podem ser apenas, no caso de impactado homicídio, os encon-
trados no cadáver da vítima. Vestígios, ensina justamente Borges da Rosa (Processo
penal brasileiro, I, p. 451), “são sinais, dados materiais, resquícios perceptíveis pelos
sentidos, manifestações físicas que se ligam a um ato ou fato ocorrido ou cometido,
isto é, a infração penal”. Ora, as “fichas hospitalares”, que são a documentação, o
registro do tratamento a que foi submetida a menor Sonia, não podem deixar de ser
consideradas “vestígios” da ação ou omissão concausal atribuída aos pacientes no
evento letal, e, assim, deviam ser diretamente examinadas por técnicos.
O exame dessas fichas, ilustrado pelo que os franceses chamam comunication
du dossier (acesso dos peritos à leitura dos autos), não podia deixar de ser feita por
médicos especializados (desde que os há, e abalizados, na capital de São Paulo). A
perícia se impõe toda vez que haja necessidade de apreciação científica ou técnica
de questões em torno de certos fatos que podem influir na solução do caso criminal.
Consoante a lição de Navarro de Paiva (Provas no processo penal, p. 66), “o exame
pericial é o ato pelo qual o juiz procura conhecer, por meios apropriados, a existência
ou não existência de certos fatos, que podem influir na decisão de uma questão de
penalidade”. E entre tais fatos se encontra, primordialmente, a demonstração do vín-
culo causal entre a conduta do réu e o evento letal. O juiz pode valer-se de sua cultura
geral, mas onde há necessidade de conhecimentos especializados, não pode dispensar
a elucidação de peritos. Não pode ele usurpar função dos peritos. Está obrigado por
lei a determinar a perícia sempre que se tenha de proceder a uma indagação que
exija particular conhecimento de determinada ciência ou arte, alheia aos estu-
dos jurídicos. O mesmo Navarro de Paiva cita um aresto do Supremo Tribunal
294
Ministro Nelson Hungria
português, que pode ser invocado na espécie: “No caso de incerteza da verda-
deira causa da morte, a falta de corpo delito não pode ser suprida pelo corpo de
delito indireto e competente sumário, nem pelo júri, vista a incompetência deste
para o exame” (ob. cit., p. 61). Se os próprios médicos, com a sua ciência e ex-
periência, sentem, por vezes, dificuldade em dizer sobre a causalidade mediata
ou imediata da morte, é claro que leigos em medicina (testemunhas ou juízes de
fato ou de direito) não podem atribuir-se tal demonstração.
Quanto não foi possível ou resultou inútil a autópsia, por demasiadamente
tardia, como no caso concreto, o que há a fazer é o que indica Borettini (La peri-
zia nel processo penale, p. 226): devem ser os peritos interrogados “in rapporto
ai dati di fatto raccolti e alle informazioni attinte o avute dal magistrato”. É
precisamente o que cumpria se fizesse no caso em apreço, formulando-se a pe-
ritos médicos um questionário que poderia ser assim concebido: 1º Em face dos
dados coligidos e constantes dos autos, podem os peritos afirmar que houve im-
perícia dos réus? 2º Essa imperícia contribuiu para a morte da menor Sonia? 3ª
Se tivessem sido empregados outros recursos de tratamento, aconselhados pela
ciência médica, a dita menor teria sobrevivido?
Entendeu o acórdão do Tribunal de Alçada que houve corpo de delito
indireto. Mas como? Pelos depoimentos das testemunhas? Evidentemente, não;
porque pessoas leigas não poderiam dizer da relação de concausalidade entre a
ação ou omissão dos pacientes e a morte da menor Sonia. Pelos pareceres mé-
dicos que não foram trazidos a juízo? Também não, porque tais pareceres, que,
aliás, nada têm de positivo a respeito, só teriam valor se reproduzidos em juízo,
sob compromisso e sujeitos os seus autores à sanção do art. 342 do Código
Penal. Para evidenciar, data venia, o desacerto do acórdão condenatório, basta
que se atente para o seguinte: aos pareceres extrajudicialmente emitidos, cujos
silêncios foram preenchidos pelo próprio acórdão, numa dissertação teórica em
torno de critérios científicos, que não se sabe se seriam ou não aconselháveis
ou viáveis no caso vertente, foram contrapostos outros pareceres, também for-
necidos extraprocesso, por sumidades da medicinal-legal no Brasil, que procu-
ram destruir um a um dos argumentos expedidos no sentido da concausalidade
atribuída à conduta dos pacientes. E pergunta-se: com quem está a verdade, se
qualquer desses pareceres não tem valor de prova, por isso que formulados ex-
trajudicialmente, sem a garantia legal de sinceridade? Por outro lado, olvidou
o acórdão que ensinamentos da ciência médica não são de aplicação irrestrita
a todos os casos. Já se disse que há doentes, e não doenças. As condições pes-
soais de cada enfermo exigem, constantemente, diversidades de critérios de
tratamento. Daí, igualmente, a dificuldade de prognósticos, que o acórdão su-
pôs superada no caso dos autos, mesmo sem apoio nos pareceres exibidos pela
acusação. Tão somente porque determinados métodos ou critérios de tratamento
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Memória Jurisprudencial
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, ao proferir meu
voto como relator, procurei deixar bem acentuado o seguinte: no caso, o exame de
corpo de delito não podia limitar-se e não se limita a simples averiguação material
do evento “morte”. Compreende, necessariamente, a averiguação da concausalidade
atribuída à omissão, à imperícia, a erro técnico por parte dos médicos condenados.
Negar-se que essa relação lógica de concausalidade não faz parte integrante do corpo
de delito será, positivamente, negar a evidência.
Ninguém pode duvidar de que a prova desse nexo de concausalidade se
integra, se entrosa, indeclinavelmente, no exame, na prova do corpo de delito. E
procurei demonstrar que essa relação de causa e efeito, para ser afirmada, para ser
reconhecida, dependia de conhecimentos técnicos, de conhecimentos apuradamente
especializados, que não podiam ser substituídos pelo testemunho de pessoas
inteiramente bisonhas em assuntos médicos. Não se pode, portanto, admitir ou
reconhecer, no caso, “corpo de delito indireto” por meio de testemunhas leigas, sendo
de notar, aliás, que as testemunhas ouvidas nada disseram a respeito da questionada
concausalidade, mesmo porque não podiam dizer, não saberiam como dizer. É de
toda evidência que pessoas jejunas em medicina não podiam vir a juízo declarar que
a omissão de tal ou qual tratamento acarretou, positivamente, uma concausa, uma
condição cooperante para o subsequente evento letal. Nas minhas considerações,
cuidei de me abrigar à sombra dos que autorizadamente têm versado o assunto, pois
não me atribui autoridade alguma. Toda vez que se trata de tema controvertido ou
intranquilo, trato de me apadrinhar com autoridades de valor reconhecido, para emitir
296
Ministro Nelson Hungria
e sem o manuseio dos autos, que, dada a inapetência da enferma, devia ter-lhe sido
aplicada a alimentação por meio de sondas gastroduodenais ou por via parenteral,
isto é, mediante clisteres alimentares. Será admissível que aquela pobre mártir, entre
dores, apuantes, ainda fosse submetida ao suplício de receber frequentemente pelo
esôfago uma sonda ou tomar clisteres alimentares? Os pareceres juntos aos autos são
tendenciosos, formulados por críticos de obra feita, por médicos que estejam, talvez,
servindo a rivalidade ou competições pessoais.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência está fazendo uma acusação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Faço-a porque os aspectos do caso
o permitem. A lei exige que, para se dar valor ao parecer de técnicos não oficiais,
seja ele dado, mediante compromisso, coram judice. Se é fornecido fora dos autos,
inteiramente à revelia do juiz do processo, está sujeito a todas as suspeitas. Não há
que se atribuir valia aos pareceres extrajudiciais, quer aos desfavoráveis, quer aos
favoráveis aos pacientes, apesar de que os últimos são assinados por luminares da
medicina legal no Brasil, quais sejam, Flaminio Fávero e Almeida Junior; mas, para
mostrar o novelo de dúvidas com que até agora se apresenta a acusação, cumpre
acentuar que essas duas glórias autênticas da medicina brasileira afirmam que o
tratamento empregado pelos pacientes foi tão acertado que produziu o milagre, o
prodígio de sobrevida, por 101 dias, da desditosa enferma, tendo-se em vista que,
noventa casos em cem, as queimaduras graves ocasionam a fatal glomerulonefrite.
Pois bem, o acórdão não se limitou a fazer obra com unilaterais pareceres
extra-autos, sem o menor valor como prova judiciária. Entendeu ainda de lhes
encher as entrelinhas, e entrou a dissertar sobre matéria médica, como se fora um
pronunciamento ex cathedra.
Senhor Presidente, ninguém mais do que eu reconhece a grande sabedoria
jurídica do professor Soares de Melo, tão justamente salientada pelo Sr. ministro Mario
Guimarães; mas é evidente que a sua autoridade no campo do direito penal não pode
alongar-se ao terreno médico, para vir pontificar sobre temas da ciência hipocrática.
Fixemos um dos tópicos do acórdão condenatório. Ali se diz que, se tivesse sido dada
à enferma uma alimentação adequada, contendo tais ou quais elementos químicos
(que os pacientes sustentam que existiam em todos aqueles que eram ministrados,
segundo informam as testemunhas, como sejam hidratos de carbono, proteínas etc.,)
aquela possivelmente teria sobrevivido. Este advérbio possivelmente trai a incerteza,
a dúvida do Tribunal de Alçada quando condenou esses homens. A possibilidade é
menos que probabilidade, que é a frequência estatística superior a 50%. E como se
pode condenar alguém, quando, ao invés de certeza de culpa, há mera possibilidade?
E como se pode convir que uma alimentação rica em hidratos de carbono ou proteínas
seja preventivo ou remédio específico contra a glomerulonefrite?
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Ministro Nelson Hungria
Ninguém pode aceitar que uma tal ou qual alimentação possa conjurar a nefrite
aguda ou que, como diz o acórdão, no caso concreto, se houvesse sido ministrada
uma alimentação adequada, possivelmente a enferma teria sobrevivido. Seria isso
uma “descoberta” alheia aos cultores da ciência médica. Estou argumentando, Senhor
Presidente, em torno de provas, com transposição da órbita do habeas corpus, para
demonstrar como a lei é sábia ao reclamar, para casos como este, o exame pericial com
as formalidades e condições que assegurem a sua fidelidade, e ao ferir de nulidade o
processo que não contenha um tal exame.
O que se apresenta, no caso, é o seguinte, em última análise: foram condenados
três médicos, por erro profissional, porque, se eles tivessem aplicado o tratamento “x”
em vez do tratamento “y”, a enferma teria sobrevivido. Ora, como se pode afirmar
isso sem a apreciação técnica dos elementos informativos que o processo contém
ou com fundamento em opinião de médicos formuladas in abstracto, contando com
a impunidade de pareceres extra-autos? Venham esses médicos a juízo e, então,
se tiverem coragem, que afirmem, individuado meticulosamente o caso, a mesma
coisa que afirmaram em pareceres elaborados, pecunia accepta, no recesso de seus
gabinetes. Que eles venham para dentro dos autos repetir, perante o juiz, sob a sanção
do art. 342 do Código Penal, o que disseram, e só então poderão ser cridos.
Advertiu o eminente Sr. ministro Mario Guimarães que, no caso, já houve
interposição de recurso extraordinário; mas isto nada importa: desde o momento que
se apresenta uma nulidade flagrante, ou seja, a ausência de corpo de delito indireto em
suprimento do inexistente ou deficiente corpo de delito direto, o habeas corpus tem
cabimento, independentemente de interposição de qualquer outro recurso, mesmo o
de apelação.
Afirmou o ilustre Sr. ministro Mario Guimarães que o acórdão se colocou
neutro entre as duas correntes de opiniões. Estranha neutralidade! Entre duas séries
de opiniões que divergiam, de um lado a de três médicos que podem ter nomeada
em São Paulo, mas que não são conhecidos no resto do Brasil, e de outro lado a de
Flaminio Fávero e Almeida Junior, com projeção em todo o país e até no estrangeiro,
o acórdão não se colocou em situação de dúvida ou de perplexidades e entrou de ler
nas próprias entrelinhas dos pareceres que preferiu, com franca incursão em seara
alheia.
Perdoe-me o Tribunal pela minha exaltação, exaltação a que me impele o
desejo de ver assegurado, no caso, o que entendo ser o interesse da justiça. Isso de
falar com veemência é, aliás, do meu jeito, do meu modo de ser. Enquanto falava
o eminente colega ministro Mario Guimarães, confesso que fiz tudo para manter
controlada a minha emotividade, e isso pelo grande respeito que dispenso a Sua
Excelência e ao acatamento que devo ao Tribunal. Pedi a todos os deuses que
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Nada tem de inconstitucional a
Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, definidora dos crimes contra o Estado e a or-
dem política e social. Ao contrário, encontra ela evidente apoio no próprio capí-
tulo que a Constituição vigente consagra aos “direitos e garantias individuais”,
isto é, nos § 5º, in fine, § 12 e § 13 do art. 141. Não há liberdade de manifestação
do pensamento para o preconício de processos violentos e subversivos da ordem
político-social, nem liberdade de associação para fins ilícitos, ou para organiza-
ção ou funcionamento de partidos políticos ou agremiações cujo programa ou
ação contrarie o regime democrático instituído pela Carta de 1946.
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Memória Jurisprudencial
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fato que se quer provar. O que existe nos autos não são indícios, mas simples
“palpites” sem qualquer fundamento objetivo.
Estou convencido de que, no caso, não houve a “justa causa” que tem de
legitimar a coação à liberdade individual.
Quando do recurso extraordinário perante a Primeira Turma, acentuei
que estava o paciente à mercê de um ambiente alvoroçado do desejo de vin-
gança. Toda aquela gente que viveu, segundo se percebe dos autos, perseguida
pelo ex-governador Silvestre Péricles Góis Monteiro, e que domina atualmente a
situação política em Maceió, reclama o paciente como “bode expiatório”. Já que
não pode vingar-se no inimigo máximo, no ministro Silvestre Góis Monteiro,
que está distante e acoberto de vindictas, quer desalterar o ódio naqueles que se
deixaram ficar na capital alagoana.
Disse e repito: a pronúncia do paciente é um traço do parcialismo que iria
informar o julgamento final pelo Júri, inspirado pela paixão, pelo ódio popular
de cujo influxo, muitas vezes, nem mesmo consegue isentar-se o subconsciente
dos juízes togados.
Dou meu voto em sentido idêntico ao do eminente ministro relator, con-
cedendo a ordem.
chaves”, mas que, realmente, não eram colocadas nos pacotes, não vejo nisso o
crime de estelionato, que pressupõe something for nothing e lesão patrimonial
de pessoas determinadas. Parece-me que o caso deveria ficar circunscrito à ór-
bita fiscal ou ao ilícito administrativo, isto é, de ofensa à lei reguladora da venda
de mercadorias com promessa de prêmios. Não se apresenta um enriquecimento
sem causa, nem é admissível estelionato in incertam personam. Poder-se-ia
alegar que, então, ocorreria na espécie o crime prescrito no art. 2º, IX, da Lei
1.521, de 1951, que é reprodução do art. 3º, III, do Decreto-Lei 869, de 1938, isto
é, “obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número
indeterminado de pessoas, mediante especulações ou processos fraudulentos.”
Não posso, entretanto, identificar ganhos ilícitos mediante fraude onde há um
correspectivo, que não se demonstra insuficiente.
O Sr. Ministro Hannemann Guimarães: A fraude resultava do erro em
que induzia os compradores das balas. Daí o lucro ilícito. As crianças ficavam
esperando.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Havia uma contraprestação, havia um do
ut des, isto é, o fornecimento de balas pelo seu justo preço.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Era uma contraprestação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se a empresa usou de ardil ou fraude para
desobrigar-se da promessa de recompensa, o que me parece esboçar-se é um ilí-
cito civil ou uma questão de direito privado, abstraída a questão de direito fiscal
ou administrativo. Não houve o enriquecimento sem causa, que é essencial no
estelionato.
O Sr. Ministro Hannemann Guimarães: Eles acenavam com uma sorte
que não era possível tirar.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A propaganda tem por fim aumentar a
venda de qualquer mercadoria, visa a tornar mais procurado o produto, e se ela
contém falsidade, isto é, mentirosa promessa de prêmios, nem por isso haverá
ganho ilícito, desde que o produto valha o preço que por ele se deu. O dinheiro
recebido correspondia a um valor, que era o das balas fornecidas. A promessa
de prêmio acarretou maior venda, mas não lucros ilícitos.
O Sr. Ministro Barros Barreto: Seria ou não valor intrínseco, porque
qualquer de nós pode comprar um artigo por determinado preço e outro inferior
a ele pelo mesmo preço.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Essa é outra questão. Houve laudo pe-
ricial no sentido de que o valor das balas não correspondia ao preço justo?
Positivamente, é uma conjectura de Vossa Excelência a de que as balas não va-
liam o preço pedido.
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Memória Jurisprudencial
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Dos elementos constantes dos autos, não
vejo referência ao valor intrínseco da mercadoria. Isso não foi objeto de cogita-
ções. Da tribuna é que o advogado, com habilidade que lhe é peculiar, lançou o
argumento.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Devemos admitir que uma mercadoria só
é vendável quando o preço corresponde ao seu atual valor intrínseco. Trata-se,
aliás, de um axioma de economia. Temos de admitir que o preço cobrado era
proporcionado ao valor da mercadoria, correspondendo à sua qualidade e
quantidade.
Senhor Presidente, não deparo no caso o crimen stellionatus, a fraude
patrimonial que incide sob sanção penal.
Assim, data venia do eminente Sr. ministro relator, concedo o habeas
corpus.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
O paciente, que se diz o único indivíduo que ainda está a sofrer o efeito retro-
ativo do Decreto-Lei 4.766, é uma vítima de desconchavo semelhante.
A continuidade da sua prisão é uma iniludível coação inconstitucional.
Concedo a ordem impetrada.
E ainda desejo mencionar que, pelo estudo que fiz do caso do paciente, verifi-
quei o seguinte: ele não merece o nome de traidor da Pátria, de modo algum.
O que ele fez foi o seguinte: no período do rompimento das relações diplomá-
ticas do Brasil com a Alemanha, quando ainda o Brasil não era inimigo declarado
da Alemanha, ele serviu à Alemanha, prestando-lhe informações acerca de navios
norte-americanos ancorados no Brasil.
Isso de modo nenhum pode ser qualificado como traição à Pátria.
Também é verdade — porque fato notório — que todos aqueles que ainda
estavam na Ilha Grande sofreram essa iniquidade, de uma condenação retroativa,
a perdurar mesmo após a volta do regime constitucional, todos já foram postos em
liberdade, até mesmo os estrangeiros.
Não é verdade que seja o paciente o único, no mundo, a sofrer pena dessa
natureza; aí estão, curtindo pena iníqua, as vítimas do Tribunal de Nuremberg, esse
atentado inominável.
Mas, no Brasil, é o paciente o único a sofrer esta injustiça sem nome, que
é contrária à nossa tradição jurídica e é contrária à multissecular regra da não
aplicabilidade de leis penais com efeito retroativo.
Assim, concedo a ordem impetrada.
EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, em seu bri-
lhante voto, o eminente Sr. ministro Abner de Vasconcelos não respondeu ao
argumento central do voto por mim formulado. Não contesto a ultra-atividade
das leis transitórias ou excepcionais, de modo algum. O que eu disse e repito
é que a ultra-atividade das leis excepcionais ou transitórias não significa que
elas conservem tal qualidade ainda nos pontos em que tenham sido aplicadas
retroativamente, desde que isto somente teria sido possível pelo fato de que
estava suspensa a Constituição, que expressamente vedava a retroatividade da
lei penal mais grave. Desde que se voltou ao regime constitucional, já não era
possível a continuidade do efeito retroativo. As leis excepcionais ou transitórias
imperam além do seu término de vigência, mas, no tocante aos fatos praticados
durante a sua vigência, pois não podem fazer marcha a ré, salvo quando e en-
quanto estiver suspensa a garantia constitucional em sentido contrário.
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
condenação deste, por efeito retroativo do Decreto-Lei 4.766, de 1942, desde que
o país voltara ao regime constitucional. Impugnei a ressalva por dois motivos.
Em primeiro lugar, o próprio Superior Tribunal Militar, reiteradamente,
de modo expresso, já reconheceu que os fatos imputados ao paciente não se
enquadram no art. 79 do Código Penal Militar de 1891, que pressupunha na
espécie o estado de guerra. Não era compreensível que o dito Tribunal, depois
de assim se pronunciar, pudesse voltar atrás e julgar de modo diverso, ou reexa-
minar a questão, para entender o paciente incurso no referido artigo da antiga
lei penal militar.
Em segundo lugar, é de toda evidência que o crime previsto no art. 79
II, do Código Penal Militar de 1891, não se apresenta no caso vertente. Na
definição do crime de que cogitava, exigia ele, como condição sine qua non,
a existência do estado de guerra. O que se incriminava, o que se punia era a
espionagem em favor do inimigo. Ora, na ocasião dos fatos atribuídos ao pa-
ciente, o Brasil não estava em estado de guerra com a Alemanha a cujo favor
e contra os Estados Unidos, não contra o Brasi1, teria sido exercida a espiona-
gem. É um absurdo dizer-se que o paciente é um traidor da Pátria, pois esta é o
Brasil, e não os Estados Unidos. Teria ele praticado uma leviandade, ou um ato
indecoroso, porque um oficial do Exército Brasileiro não pode fazer-se espião
em favor de um país estrangeiro contra outro. Talvez uma desculpa lhe tivesse
de ser reconhecida, porque o próprio governo brasileiro e figuras do alto co-
mando do Exército Nacional, pouco tempo antes do rompimento de relações
com a Alemanha de Hitler, se achavam em plenilúnio de mel com o nazismo.
Acontece, porém, Senhor Presidente, que a ressalva foi feita, e o Supremo
Tribunal ordenou ao Superior Tribunal Militar que reapreciasse o caso concreto
à luz do Código Penal Militar de 1891. “Não quero contribuir para a insubsis-
tência desse julgado, mesmo porque estou certo de que a Corte Militar manterá
seu anterior critério de decisão, adstrita, como está, aos mesmíssimos fatos que
foram objeto do antecedente julgamento. O que não posso admitir, entretanto,
é que se decrete, a esta altura, a prisão preventiva do paciente — medida que
não foi julgada necessária nem mesmo quando da instrução criminal. Houve
equívoco do Sr. ministro Abner de Vasconcelos, quando falou em decretação de
nova prisão preventiva. Nunca foi o paciente preso preventivamente. Nunca se
julgou de utilidade ou conveniência essa medida, quer antes, quer no curso do
sumário de culpa. Preso administrativamente, por ocasião do inquérito militar,
veio a ser posteriormente solto, e solto acompanhou todo o processo.
Somente tornou a ser preso para cumprir a pena que afinal lhe foi im-
posta. Pois bem; passados dez anos de execução da pena, que veio a ser con-
siderada uma iniquidade ou uma inconstitucionalidade, o paciente é posto em
liberdade, transformado numa ruína humana pelo regime de Caiena que se
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Memória Jurisprudencial
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quatro foram os ar-
gumentos formulados, pelo nobre advogado do paciente em apoio do pedido
de habeas corpus, o de que, no caso, não tendo precedido, a seu tempo, o
processo por crime de responsabilidade e tendente ao impeachment, não é le-
galmente possível o processo por crime comum; o de que um governador não
pode praticar peculato, porque não tem a posse dos bens do Estado; o de que é
incompetente o Tribunal de Justiça para conhecer originariamente do processo
instaurado contra o paciente, pois este, ao deixar o cargo de governador, perdeu
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Ministro Nelson Hungria
o privilégio de foro especial, que é inerente a essa alta função e não sobrevive
ao definitivo afastamento, por qualquer motivo, do exercício dela; e o de que, de
qualquer modo, inexiste, na espécie, o crime de peculato.
O primeiro argumento é, de todo, improcedente. Se fato imputado a um
governador é, ao mesmo tempo, crime de responsabilidade e crime funcional
comum, há que preceder o processo pelo primeiro enquanto o acusado perma-
necer no cargo e, então, de duas, uma: ou o acusado é absolvido e não será pos-
sível o processo pelo crime funcional comum, ou será condenado, e não ficará
impedida a responsabilidade perante a Justiça comum, na conformidade do que
dispõe o art. 3º da Lei 1.079, de 1950. Pode ocorrer, no entanto, que o acusado,
intercorrentemente, deixe definitivamente o cargo de governador, e, tal caso,
segundo dispõe a citada lei, não será recebida a denúncia pelo crime de res-
ponsabilidade, de vez que a única sanção a este cominada é a perda do cargo,
como pena principal, e a inabilitação temporária para o exercício de função
pública, como pena acessória. Assim, já não mais havendo possibilidade para
o processo por crime de responsabilidade, fica inteiramente aberta a via para o
processo pelo crime funcional comum.
Quanto ao segundo argumento, não é menos improcedente. O governador
tem a posse dos bens patrimoniais do Estado como um administrador qualquer
tem a posse dos bens administrados. Ainda que não possa exercê-la diretamente
sobre todos esses bens, exerce-a indiretamente ou por intermédio de auxiliares
da administração pública, isto é, de funcionários que lhe são hierarquicamente
inferiores. Pela lógica do radical ponto de vista do ilustre advogado, um gover-
nador não poderia ser sujeito ativo de peculato nem mesmo quanto ao patrimô-
nio estatal sob sua imediata posse. Assim, poderia, impunemente, apropriar-se,
digamos da baixela de prata que integra os pertences do palácio governamental.
O absurdo da ilação está a evidenciar o desacerto da tese sustentada pelo pa-
trono do paciente.
Já inteiramente procedente parece-me, entretanto, o argumento sobre
já incompetência do Tribunal de Justiça, para processar originariamente o pa-
ciente, que há muito deixou, definitivamente, de ser governador do Estado de
São Paulo. O foro especial, de que cogita o art. 87 do Código de Processo Penal,
é uma “prerrogativa de função”, e, como tal, condicionada à continuidade do
exercício da função por parte do acusado. Trata-se de um obsequium concedido
ao governador como tal, e não como um cidadão. O art. 45 da Constituição do
Estado de São Paulo não diz, nem podia dizer outra coisa, sob pena de estar
inovando sobre matéria de processo penal, que é reservada pela Carta Magna
à competência da União. Desde que o titular do governo deixa definitivamente
o cargo, volta a ser um cidadão como outro qualquer, não podendo eximir-se
ao preceito constitucional de que todos são iguais perante a lei. Assim, Senhor
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
decisão pode ser cassada por meio do habeas corpus, do mesmo modo que pode
ser cassado por meio de um despacho de prisão preventiva não apoiado na prova
da existência do crime e em indícios suficientes da autoria. Ademais, nem quase
é preciso entrar no exame da prova para que se reconheça a improcedência da
acusação de peculato contra o paciente.
Não é exato que este, quando governador de São Paulo, tenha vendido
coisa pertencente ao Estado, locupletando-se com o preço da venda.
A compra e venda dos automóveis no valor de quase três milhões de cruzei-
ros, em nome do Estado, foi um ato nulo, absolutamente nulo, nulo ex vi legis. A
verba empenhável, no caso, não montava, sequer, a trezentos mil cruzeiros, e, se-
gundo expressamente dispõe uma lei do Estado de São Paulo, a despesa ordenada
sem correspondência com verba empenhável será atribuída à responsabilidade pes-
soal de quem a ordenou. É meridianamente claro que se despesa é relativa a uma
compra e venda, a transferência da responsabilidade para quem a ordenou importa,
por via de consequência, o desfazimento da operação por conta do Estado, que
não pode locupletar-se à custa alheia. Assim no caso vertente, invalida opere legis
a compra e venda dos automóveis, o devedor pelo preço passou a ser o paciente,
que, como governador, ordenara a operação. É verdade que o Banco do Estado de
São Paulo, cumprindo anterior determinação oficial, abrira um crédito em nome
do Estado e em favor de empresa vendedora, e pagou a esta integralmente. Mas,
nula a compra por parte do Estado, o que se tinha de fazer era o estorno da quantia
paga, do débito do Estado para o débito do paciente, que, aliás, possuía em depósito
no banco quantia muitas vezes maior que a do preço dos automóveis. Já havia sido
mesmo expedido pelo secretário-geral do Governo um ofício ao banco no sentido
de suspensão do crédito, mas, ao que parece, chegou atrasado. E o que é verdadei-
ramente estranho; esse ofício serviu como razão para ser rejeitada ou arquivada a
denúncia contra o secretário, e não serviu para que o mesmo ocorresse em relação
ao ex-governador, que necessariamente é que ordenara a suspensão do crédito,
sabendo-se que, no regime presidencialista, o secretário é, por assim dizer, um
servus a mandatus do chefe do Executivo, um mero chancelador do pensamento e
vontade deste, notadamente quando se trata do chamado secretário-geral, figura
eminentemente aderente ao governador. Não me posso conformar com essa dupli-
cidade de pesos e medidas. Um ex-diretor do banco deu seu testemunho no sentido
de que houve démarches para o estorno que se impunha, mas a alteração de escrita
não se fez e o banco, afinal, já fora do Governo o paciente, negou-se categorica-
mente a fazê-la, seguindo-se a consignação judicial da quantia devida.
Ora, é de todo inadmissível que, por injustificado capricho do banco em
negar-se a converter uma dívida formal do Estado em dívida real do paciente, se
considere vigente a compra dos automóveis em nome do Estado. Não é tolerável
que a grave acusação contra o paciente tenha como único apoio uma rubrica
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
processo penal, ainda que o processo administrativo não haja reconhecido causa
justificativa. Por outro lado, as decisões do Tribunal de Contas não fazem caso
julgado em face do Poder Judiciário. Esse Tribunal pode aprovar ou desapro-
var as contas, e o juízo criminal entender que decidiu mal. Não há dependên-
cia entre um julgamento e outro. Daí, por certo, a razão por que este Supremo
Tribunal, abandonando uma velha e remansosa jurisprudência, veio a adotar, a
partir do acórdão por mim citado, e cuja menção acaba de ser feita pelo emi-
nente Sr. ministro relator, a opinião no sentido de que não há necessidade de
tomada de contas como condição de reconhecimento do peculato.
Não tenho dúvida em acompanhar o voto do eminente Sr. ministro rela-
tor, negando provimento ao recurso.
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Memória Jurisprudencial
num anterior processo de revisão, que, afinal, acabou insubsistente, por uma
superveniente anulação integral do processo, mas também na própria decisão
condenatória, de que se tratava, repeliu ele essa hipótese, deixando de condenar
o paciente no citado art. 79, II, apesar de ter sido denunciado por violação dele.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Foi porque ele condenou como incurso nas
penas do Decreto-Lei 4.766; de modo que, afastada essa condenação, por se tra-
tar de aplicação de lei ex post facto, ficou de lado a primeira imputação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O raciocínio de Vossa Excelência é
aparentemente lógico, mas há que acentuar o seguinte: a denúncia havia en-
quadrado o crime no art. 79, II, e o Tribunal, expressis verbis, afastou essa
acusação, argumentando que o fato tinha sido cometido antes da declaração do
estado de guerra e não era possível equiparar-se a ruptura das relações diplomá-
ticas com o estado de guerra.
Quando expandi o meu raciocínio, não podia, de modo algum, calcular
que o Superior Tribunal Militar contramarchasse, voltasse atrás, ferindo a res
judicata e incorrendo na grave inocência de vir a reconhecer equiparação entre
estado de guerra e rompimento de relações diplomáticas, quando isso mesmo já
ele havia repelido como inadmissível, pelo menos para efeitos penais.
E quais foram os motivos da contramarcha do Superior Tribunal Militar?
Não invocou ele texto algum de lei nacional, mas tão somente a opinião doutri-
nária de um outro autor, alienígena, como se doutrina estrangeira pudesse valer
como direito positivo interno de um país, como se a opinião de qualquer inter-
nacionalista, por mais acatado, pudesse servir de base para identificar crimes
por analogia.
Muito bem entrou o eminente Sr. ministro relator que a Constituição de
1937 era explícita, reiteradamente explícita, no sentido de que não podia haver
“estado de guerra” sem declaração formal. E aí está o vigente Código Penal
Militar que, no seu art. 13, com todas as letras, diz que só existe estado de
guerra depois da declaração formal ou quando já iniciada a mobilização e sub-
sequente reconhecimento desse estado de guerra.
Não vale dizer que já havia “sossego das hostilidades”. É vaga e incerta a
supressão “sossego das hostilidades”. O vocábulo “hostilidades” faz supor reci-
procidade de ataques ou de atos simultâneos ou sucessivos de agressão e reação,
e há o provérbio segundo o qual, “quando um não quer, dois não brigam”. Não
obstante atos de agressão da Alemanha, o Brasil entendeu que não devia decla-
rar guerra; que bastaria o rompimento das relações diplomáticas, pelo menos até
quando se averiguasse que o afundamento dos nossos navios havia sido realmente
praticado por submarinos alemães, e não por submarinos de outro país, que, inte-
ressado em que o Brasil entrasse na guerra, assim houvesse procedido para que a
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Ministro Nelson Hungria
culpa recaísse na Alemanha. O Brasil entendeu que não devia, desde logo, preci-
pitadamente, declarar a guerra, e limitou-se à ruptura das relações diplomáticas.
O último acórdão do Superior Tribunal Militar abstraiu, fez tabula rasa da lei
vigente ao tempo em que o fato ocorreu, equiparando, para efeitos penais, simples
ruptura de relações diplomáticas a estado de guerra e desatendendo ao próprio
Decreto-Lei 4.766, de 1942, que, distinguindo entre estado de guerra e rompi-
mento das relações diplomáticas, dispunha: “Esta lei retroage à época da ruptura
das relações diplomáticas com os países do Eixo.” Era o próprio decreto de 1942
que reconhecia a diversidade entre estado de beligerância e simples descontinui-
dade de relações diplomáticas.
Há, ainda, a considerar o seguinte: quais os atos de espionagem que teria
praticado o paciente? O Superior Tribunal Militar faz ressaltar um fato novo,
um fato de que não se cogitara até então, para imputação dele, como crime, ao
paciente. Trata-se de um projeto, de um vago e remoto projeto de afundamento
do cruzador alemão “Winduck”, apreendido pelas autoridades brasileiras, e
cujos canhões, dizia-se, iriam servir contra a própria Alemanha. Se esse fato
fosse crime, ainda que como simples tentativa, estaria também enquadrado
no Decreto-Lei 4.766, que previa, no seu art. 49, § 2º, o crime de sabotagem.
E por que, então, não se cuidou de enquadrar o paciente também nesse artigo,
limitando-se o Superior Tribunal Militar a considerá-lo incurso apenas no art.
21 desse mesmo decreto? E como seria possível fazer regredir esse fato, já pra-
ticado no período de estado de guerra, ao período anterior, para afirmar que
se trata de ato de espionagem e enquadrá-lo no art. 94, 2, do Código Militar
de 1991? E onde já se ouviu dizer que um simples projeto, que não atinge a
fase executiva, constitui tentativa do crime colimado? Sentindo a fragilidade
dos seus argumentos, o Superior Tribunal Militar usou de mais um argumento
contra o paciente. Afirmou que ele, pelo menos, silenciara sobre a existência de
espiões no Brasil. Pela primeira vez, ouço dizer que o simples silêncio, que o
simples fato de não delatar crime, de que se tem conhecimento, importa em co-
participação nesse crime. Isso é novidade, que pode honrar o alto descortino do
Superior Tribunal Militar, mas que eu contesto, em nome de tudo quanto se tem
escrito no mundo civilizado em matéria de coparticipação criminosa.
Finalmente, entendo que este Supremo Tribunal não pode esquivar-se ao
exame de outra questão: a relativa à pena acessória, e isto para esclarecer mal
entendidos. Como acentuei de início, a condenação do paciente não foi anulada
de modo algum. Ao tempo em que ela foi proferida, e até o advento, até o re-
torno do regime constitucional, ela foi inteiramente válida e produziu todos os
seus efeitos. Por conseguinte, a pena acessória da perda do posto e da patente,
inerente à condenação do paciente por tempo superior a dois anos, tem de preva-
lecer. Não se declarou nula a condenação do paciente, nem insubsistente a pena
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vez que inconstitucional o impedimento do Sr. João Café Filho, decretado pelo
Congresso.
Senhor Presidente, no seu voto, se tiver que proferi-lo hoje, vou entrar no
exame dessas questões, para resolvê-las.
Se tais questões são também objeto do mandado de segurança, evidente-
mente o meu voto importará num prejulgamento desta. Mas, agora, indago eu,
Senhor Presidente, a necessidade de impedir o prejulgamento do mandado de
segurança é tão premente ou indeclinável, que nos impeça, hoje, de decidir so-
bre o pedido de habeas corpus, que prefere a qualquer outro feito?
Entendo que não.
O habeas corpus está submetido à nossa decisão e temos que deferi-lo ou in-
deferi-lo, sem cuidar o que possa ocorrer dessa decisão relativamente a outros feitos.
Agora, Senhor Presidente, se o eminente ministro Ribeiro da Costa se
declara irredutível no sentido de que se deve adiar este julgamento, para que o
Supremo Tribunal tenha oportunidade de uma decisão simultânea, do habeas
corpus e do mandado de segurança, Sua Excelência tem o recurso a que já se
referiu antecipadamente, qual o de pedir vista dos autos. Que Sua Excelência
peça vista; mas não concordo com o adiamento.
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Concedo a ordem, porque, como disse de início, não há crime algum no fato
imputado ao paciente, que, aliás, neste sentido, já tem a seu favor a res judicata.
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drama que é a luta entre partidos políticos locais. Os rancores de caráter par-
tidário, dir-se-ia que são ali absorvidos com o leito materno, criando as mais
profundas dissenssões. É a situação dos clãs primitivos. Atacar um membro do
partido adverso é atacar todos os membros desse. Tal como numa colônia de
infusórios, tocar em um é tocar em todos.
Estou a ver o que se passa em Barra Mansa, com o homicídio do chefe
de um dos partidos locais, presidente do diretório municipal do PSD; a exaltada
revolta causada no meio dos seus correligionários, o ódio político-partidário
contra os indiciados autores do crime, o estuante sentimento de vingança por
parte dos amigos políticos da vítima.
O crime surgiu por questão de ordem partidária e assumiu, como não
podia deixar de assumir, a feição de afronta aos correligionários do morto, que
era chefe do partido majoritário de Barra Mansa. Tal é a animadversão contra os
réus, que o Dr. juiz da comarca teve de assegurar a incolumidade dos pacientes,
transferindo-os para o presídio de Niterói, para ali aguardarem o julgamento.
Pressentiu que a permanência deles em Barra Mansa seria um grave perigo à
sua vida, pois estariam sujeitos às represálias, aos atos de vindicta de seus in-
conformados adversários políticos.
Esse cunho político-partidário que assumiu o fato é refletido quer nos jor-
nais da terra, quer no noticiário publicado em jornais de Niterói e desta Capital.
Nos grandes centros urbanos, os ódios partidários se diluem, se dissol-
vem na caudal da vida citadina. Nos municípios do interior, não. Permanecem
chamejantes, intransigentes, incansáveis, a reclamar desafogos vingativos.
Quero invocar aqui um caso, do qual tem mais conhecimento do que eu o
eminente Sr. ministro Villas Boas, pois ocorreu na sua cidade natal — Rio Branco,
Estado de Minas Gerais. Foi lá assassinado um chefe político, também do partido
majoritário, em represália a uma bofetada que desferira contra o assassino. Inexistia
naquela época a medida salutar do desaforamento, e o criminoso teve de ser julgado
no distrito da culpa, vindo a ser condenado pelo júri, e não obstante haver fugido,
quando na sala secreta, um dos jurados, que assim deixara de participar do conselho
de sentença, nem os defensores, nem o promotor de justiça, como fiscal da lei, tive-
ram a coragem de apelar. Só mais tarde, quando um ilustre irmão da vítima foi eleito
presidente do Estado, é que, nobremente, resolveu indultar o condenado.
Isso revela a quanto pode levar o ódio partidário no interior, notadamente
no que concerne à sua influência sobre o júri, esse instrumento passivo da poli-
ticalha, do coronelismo do interior.
Senhor Presidente, depois da primeira fase do julgamento, recebi um me-
morial dos assistentes da acusação, que, naturalmente, também o distribuíram
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amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um dia livre a vida do
prejudicado, mas não suprimir no passado o dia de privação de liberdade.
Indagar-se-á no caso vertente: como se pôde conhecer do mandado de segu-
rança se não estava em jogo a liberdade de locomoção, a liberdade física da pessoa?
Estamos diante de uma realidade anômala, mas iniludível. O mandado foi
conhecido pelo Tribunal Federal de Recursos, embora incabível; e o digno presidente
desse Tribunal deu efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão denegatória,
mas o Tribunal Pleno cassou esse despacho.
É possível que aos eminentes ministros do Tribunal Federal de Recursos não
tenha ocorrido a hipótese de que, reconhecida a faculdade do ministro da Guerra, de
punir disciplinarmente um oficial da reserva, tal punição poderá ser a privação de
liberdade do transgressor. Mas o fato é que o Tribunal Federal de Recursos conheceu
do mandado de segurança, achou que ele era cabível em tese, embora o negasse in
hypothesi.
Interposto o recurso ordinário, por que desconhecer-se que persiste a mesmís-
sima situação de quando se concedeu a liminar, isto é, a necessidade de se evitar a
prática de um ato que frustre o direito pleiteado?
O paciente, como é notório, pois todos os jornais noticiaram, foi punido com
prisão por dez dias; de modo que terá de cumprir integralmente essa punição, ainda
que fosse reconhecida ilegal, se tivermos de aguardar a decisão do recurso ordinário
que foi interposto do mandado de segurança denegado.
Mas, Senhor Presidente, é preciso insistir neste ponto: não existe na lei pro-
cessual dispositivo algum que diga, de modo categórico, que o recurso ordinário não
tem efeito suspensivo. Desafio a que me apontem. E, se a lei não declara, expressis
verbis, o efeito não suspensivo, não se pode admiti-lo, principalmente quando está
em causa a liberdade individual, que é o mais respeitável dos direitos.
Jamais apareceu aqui um caso tão singular como este, tão anômalo como
este: pode ter decorrido da denegação de um mandado de segurança a possível
consequência de privar alguém de sua liberdade. E para os casos anômalos o
remédio dever ser heroico. Ainda que a lei, de modo claro, expresso, categórico,
tivesse negado o efeito suspensivo ao recurso ordinário da decisão denegatória
do mandado de segurança, nós, do Supremo Tribunal Federal, mais do que os
juízes de qualquer outro tribunal, teríamos, por dever, de ajustar a lei aos casos
concretos, negando-nos a ser escravos submissos do texto da lei, para evitar,
num caso excepcional, intolerável gravame à liberdade individual.
O paciente teria sido um indisciplinado, teria usado de palavras rudemente
grosseiras, contundentemente injuriosas ao seu superior hierárquico, que é o Sr.
ministro da Guerra, pouco importando que o paciente se encontre atualmente na
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Memória Jurisprudencial
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O art. 201 do Decreto-Lei 8.527, de 31-12-
1945 (Código de Organização Judiciária do Distrito Federal), dispõe que “incumbe
ao estagiário auxiliar os órgãos do Ministério Público e os advogados de ofício no
respectivo serviço, pela forma regulada em instruções do procurador-geral”. Ora,
pelas instruções dadas pelo Dr. procurador-geral do Distrito, as “alegações finais”,
no processo penal, podem ser formuladas e assinadas pelo estagiário, desde que,
como no caso vertente, tenham o “visto” de aprovação do defensor público, que, as-
sim, as faz suas. Por outro lado, não há proibição alguma quanto a assistência do réu
pelo estagiário durante a instrução criminal. Ainda mesmo que se queira equipará-
-lo ao solicitador, não há dizer que exista para ele tal proibição. O § 4º do art. 22 do
Regulamento da Ordem dos Advogados declara que
compete aos solicitadores (...) a assistência das causas em juízo, recebendo as
intimações para andamento dos feitos e assinando os termos de recurso e todas as
petições que não sejam iniciais, escritos que não sejam articulados nem arrazoados, e
praticando atos de cartório e de audiência que não sejam julgamento.
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Ministro Nelson Hungria
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paradeiro do acusado; logo não podia ter sido negado a Sua Excelência a possibili-
dade de se aproximar do paciente.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não pedi essa leitura. A negativa de comuni-
cação pode envolver a recusa em dar conhecimento do paradeiro do paciente. Como
quer que seja o Sr. ministro da Aeronáutica afirma categoricamente que o réu está
incomunicável.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Ao contrário, diz que está recebendo a
visita da mãe e da esposa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas o paciente não pode se avistar com o seu
advogado. Estranha incomunicabilidade parcial. Permitir visitas da esposa e da mãe
do paciente e não permitir a de outras pessoas, entre as quais o seu advogado, é uma
arbitrariedade só compreensível em época de suspensão de garantias constitucionais.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas o próprio advogado ignorava onde
se encontrava o paciente e ainda não tinha instrumento de mandato.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, concedo a ordem para que
o advogado, informado do paradeiro do paciente, possa dele se aproximar, tenha ou
não instrumento de mandato.
Para promover a defesa do paciente, por meio de habeas corpus, não há neces-
sidade de instrumento de mandato.
É preciso não esquecer a lição de Rui Barbosa, no sentido de que o habeas
corpus é um remedium iuris que pode ser impetrado até mesmo contra a vontade do
paciente.
VOTO
(Acréscimo)
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, ninguém mais
do que eu defende, dentro de indeclináveis limites, a liberdade de opinião. Nascido
nos flancos generosos das montanhas de Minas, bebi o leite de liberdade até escorrer
pelos cantos da boca. Mas não estamos aqui para dizer se a lei atende ou não atende,
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Memória Jurisprudencial
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Ministro Nelson Hungria
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Uma das condições precípuas
da confissão, para que tenha mérito de prova, é que seja prestada livremente,
sem coação, sem violência física ou moral. Assim, no caso vertente, a confissão
que teria prestado Euclides Timoteo de Lima, aliás, não tomada por termo, não
tem o mais mínimo valor probante.
A tortura inquisitorial a que o submeteram até a morte foi presenciada
pelos então secretário da Justiça e chefe de Polícia do Estado de Sergipe e pelo
deputado e advogado Seixas Doria, que, para cúmulo dos cúmulos, a apoiaram,
ou contra ela não protestaram ou procuraram até mesmo justificá-la, corum ju-
dice, e ainda vieram a juízo repetir a confissão que Euclides teria feito, conside-
rando-a convincente do mandato atribuído ao paciente. Jamais se viu tamanho
desplante e desenvoltura no desrespeito a elementares princípios constitucionais
e legais em proteção do indivíduo. E não somente Euclides foi espancado. O ou-
tro coacusado José Pereira dos Santos, também levado ao ermo da Estrada da
Cerâmica, na calada da noite, onde testemunhou o trucidamento de Euclides, foi
igualmente vítima, além da intimidação, de violência física para fazer as decla-
rações que prestou. Quem no-lo informa é Umberto Mandarino, irmão da acu-
sada Milena, a quem convenceram de acompanhar as autoridades até a Estrada
da Cerâmica. Diz ele a fl. 661 dos autos do processo:
Foi realmente nessa diligência policial que o suplicante ouviu José
Pereira dos Santos, depois de apanhar um pouco, dizer que não sabia de ne-
nhum mandante, ouvindo, a seguir, Euclides Timoteo de Lima, depois de muito
espancamento, insistir primeiro em que não sabia de mandante algum, em se-
guida declinar a nome de Carlos Alberto, depois de um médico e mais tarde o
do coronel Afonso. Chocado com a violência da cena, o suplicante e o deputado
Seixas Dória se afastaram por uns instantes, até o jipe que havia sido deixado na
estrada, e quando retornaram, encontraram Euclides Timoteo de Lima estirado
na areia, arquejando.
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Ministro Nelson Hungria
José Machado de Souza, chamado para socorrer Milena e que opinou no sentido de
se prosseguir no interrogatório, não obstante a prostração da acusada Milena.
De regra, em habeas corpus não se reapreciam provas; mas uma coisa é
reapreciar provas e outra é reconhecer a inadmissibilidade ou imprestabilidade
subjetiva de meios e órgãos de prova. É elementar que não podem valer como
prova confissões ou testemunhos extorquidos pela violência ou abusando de per-
turbação psíquica de acusados ou testemunhas.
Na sua quase totalidade, todos os elementos em que se arrimaram os acór-
dãos confirmatórios da pronúncia são declarações prestadas no inquérito policial,
que apenas servem para instrução do Ministério Público, e jamais para legitimar
uma sentença de pronúncia.
Um dos signatários desses acórdãos, o ilustre desembargador Luiz Magalhães,
alinha os indícios que haveria contra o paciente. Vejamos quais são: 1º Amores ilíci-
tos entre o paciente e a esposa da vítima. Ora, essa versão é baseada nas declarações
que a Polícia, sob espancamento, obteve da criada Eunice e da acusada Milena antes
de se refazer de uma lipotimia.
2º Repetidas viagens realizadas à cidade de Paulo Afonso, onde residiam
Euclides Timoteo e José Pereira dos Santos, tendo sido intermediário no ajuste deste
um tal Enoque Pessoa de Carvalho, conforme atestam José Pereira dos Santos, por
ouvir a Euclides, e Benedito Tavares da Silva, que teria visto em colóquio, dentro de
um avião, Enoque e o paciente. Ora, além de que o paciente tem sua família residindo
num distrito do próximo Município baiano de Paulo Afonso, onde constantemente ia
visitá-la, pilotando o seu avião, as declarações de José Pereira dos Santos e Benedito,
sobre tal ponto, foram prestadas na polícia, e não reproduzidas em juízo.
3º Declaração de Umberto Mandarino, ouvida por Walfrido Rezende e
Dr. José Machado de Souza, de que o paciente estava envolvido no crime. Já
se viu que Umberto apenas ouviu de Euclides Timoteo, quando barbaramente
espancado, que o paciente é que fora o mandante do crime.
4º Revelação feita por Walter Rezende no sentido de que o paciente, dois
dias antes do crime, estava bastante nervoso, como que sobressaltado, o que,
como indício de participação no crime, é tudo quanto há de mais ridiculamente
imponderável ou inócuo, ainda que se admita que a esse tempo já haviam che-
gado a Aracaju os indigitados executadores do homicídio do Dr. Firpo.
5º Informação de José Resendo dos Santos de ter ouvido Euclides
Timoteo declarar que fora mandado por Enoque a Aracaju para entender-se
com o paciente à rua Simão Dias n. 999, onde mora um irmão do paciente, que,
sendo capenga, teve o seu defeito notado por Euclides. Ora, José Resendo dos
Santos é agente de polícia, apontado precisamente como um dos autores do
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caso e da prova, no sentido de poder fixar na hipótese sujeita, até onde deve ir a re-
pressão. Inspirar-me-ei, sobretudo, no desempenho desse espinhoso dever de ofício,
nas edificantes palavras proferidas pelo nosso eminente antístite, o excelentíssimo e
reverendíssimo senhor Dr. José Vicente Távora, na Catedral diocesana, onde está,
entre nós, a fazer esplender a tribuna sacra, “na sublimação do trabalho docente, nos
lábios de Jesus Cristo, quando, ao recomendar sua obra redentora a seus discípulos,
os investiu na mais alta função educadora, dizendo-lhes — ite et docete”, advertindo
e conquistando almas, ao inculcar, em memorável, recente e oportuna prédica, sobre
A Justiça e os fariseus, este grande ensinamento: “Ninguém tem o direito de julgar,
senão recebeu de Deus, ou da autoridade humana, missão de tamanha importância e
responsabilidade”. Não julgueis, para não serdes julgados. Porque com a mesma me-
dida que julgardes os outros, sereis vós mesmos julgados”, disse Jesus Cristo. Mas,
se o homem vai sentenciar seu semelhante, por força da missão que recebeu, então,
veja que seu julgamento não seja mau, claudicante, injusto. Pois, se julgar sem auto-
ridade não é lícito, muito mais grave, muito mais tremendo — conclui sua excelência
reverendíssima — é o juiz ser injusto ou temerário, no seu veredicto”. Destarte, a
Justiça penal deve, antes de tudo, esclarecer-se e manter a própria serenidade, sem se
deixar influenciar por nenhuma paixão, seja ela qual for, ficando indiferente às ame-
aças, às calúnias, murmurejadas à sombra ou a descoberto, destinadas a enfraquecer-
-lhe o ânimo, na proclamação da verdade. É preciso, pois, estar atenta, para o que
doutrinou Rui Barbosa, em causa sob seu inigualável patrocínio, ao emitir estes con-
ceitos, como se estivesse a advogar neste processo: “Quando a título de investigações
policiais, sem mais fundamento que as suspeitas, cuja cor de ânimos prevenidos se
reflete sobre quanto os cerca, não há mais nada, não há mais nada, que se não faça
impunemente.” E se o juiz não levar em conta tudo isso a que me hei reportado, para
decidir em processo penal, de tão intensa repercussão, como o que está sendo subme-
tido ao nosso exame, é certo que falha ao cumprimento do seu dever e se incrimine
a si próprio, se, por considerações pessoais, fraqueza, medo, ou outro sentimento su-
balterno, considera criminosas e pessoas sem culpa, pelo receio de desagradar aos
que, obturados pela paixão e pelo ódio, se apresentam como falsos zelotas da Justiça,
quando não tem outro intuito, senão o de manejá-la, dominando-a, para o triunfo
integral de suas intolerâncias, ardis, e maquinações. No caso, por conseguinte, é pre-
ciso ter vigor de espírito, para julgar com calma, não se deixando levar, nem pela
exaltação de ânimos, nem pela nevrose de hostilidade contra alguns dos acusados.
Assim sendo, torna-se mister resistir, a todo o transe, à tendência a incriminar, so-
mente por conjecturas ou prevenções, não permitindo que sobrejuízes queiram
substituir-se aos verdadeiros juízes, ditando-lhes o aresto a proferir e transformando-
-os em feras togadas. Equivaleria, se assim se não acautelar a consciência de julga-
dor, a aceitar a temeridade das suposições, sem descer à verificação das provas de
culpabilidade, realmente dignas desse nome, existentes nos autos. E infringiria sem
remissão ao mandamento das Sagradas Escrituras, expressos nesta regra
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Ministro Nelson Hungria
de conduta: “Não seguirás a multidão para fazer o mal, nem, em juízo, adotarás a
opinião do maior número, desviando-te da verdade.” Acentuando isto, tenho, em
face dos elementos condensados no processo, nada obstante os defeitos e falhas que
apresenta, como cumpridamente demonstrada a responsabilidade moral e material
de Euclides Timoteo de Lima, e de José Pereira dos Santos, vulgo “Pereirinha”, na
qualidade de coautores diretos do assassínio do malogrado Dr. Carlos Firpo.
Provam-no os instrumentos do crime apreendidos em poder de ambos, a sua pre-
sença e fuga precipitada desta Capital, para Paulo Afonso, depois do delito, a con-
versa e atitudes suspeitas que fizeram o chaufeur que os conduzia, desconfiar de
ambos, levando essa desconfiança ao conhecimento do então deputado Euclides
Paes Mendonça, e posteriormente, a conselho daquele, ao do Excelentíssimo Sr. go-
vernador do Estado, bem como as declarações positivas de Euclides Timoteo de
Lima ao Dr. Augusto Azevedo, engenheiro da Chesf e testemunha acima de qual-
quer contradita, de que fora, pessoalmente, o autor da morte do Dr. Carlos Firpo,
havendo, como esclarecem os autos, entrado em entendimentos, para isso, com José
Pereira dos Santos. Quanto, porém, à participação dos demais indiciados no evento
criminoso, colhidos na denúncia e na pronúncia, como autores intelectuais do inqua-
lificável e selvagem atentado à vida do Dr. Carlos Firpo, não na tenho como proce-
dente, e muito menos provada, segundo passarei a demonstrar. É a convicção que me
resultou do demorado estudo dos autos, através dos seis volumes que os constituem.
Em primeiro lugar, salientarei, neste sentido, as inúmeras contradições e in-
certezas que se avolumam no processo, ao analisar-se, pormenorizadamente, a prova
da acusação, a partir das investigações policiais, até culminar no seu espraiamento,
por todo o sumário de culpa. Por aqueles, sobretudo, e também no curso da instrução,
apura-se que todo o edifício da acusação, a acusação inteira, de começo a fim, quanto
aos autores intelectuais ou indigitados mandantes do crime, assenta, exclusivamente,
nas pretensas confissões na Polícia, de Euclides Timoteo de Lima e Milena Mandarino
Firpo. Sofreu a desta última, formal contradita em juízo. Afirmou aí a acusada não
havê-la feito, sendo-lhe dada a assinar, no dia seguinte ao do seu interrogatório.
Corroboram-na, neste particular, outros depoimentos. No sumário, já não existia
Euclides Ti moteo de Lima, para que pudesse ser ouvido, a respeito da sua, porque já
se perfizera o ciclo do processo elimatório contra ele posto em prática, processo esse
gritante dentro dos autos, mas que o Ministério Público, nas duas instâncias, e o juiz
a quo, não quiseram ver, preferindo silenciar. Verifica-se, em verdade, dos autos que
a confissão atribuída à indiciada Milena Mandarino Firpo não obedeceu às cautelas
prescritas no Código de Processo Penal, pois, de acordo com o número V do seu art.
6º, não foi ela ouvida, no inquérito policial, como era imprescindível, com observân-
cia, no que lhe fosse aplicável, do disposto no Capítulo III, Título VII, do Livro I, não
tendo sido o respectivo termo assinado por duas testemunhas, que lhe tivessem assis-
tido à leitura. Quanto à forma, portanto, não tem valor jurídico algum, o que lhe re-
tira também qualquer validade intrínseca, relativamente ao respectivo conteúdo,
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Ministro Nelson Hungria
relações de amizade e confiança mútuas, visto serem muito amigos o Dr. Carlos
Firpo e o tenente coronel Afonso, de longos anos, isto é, desde a infância, sendo cos-
tume de um hospedar-se em casa do outro, desde que se tornaram homens feitos e
constituíram família. Assinala-se que, em Aracaju, até seis depois do crime, nin-
guém jamais levantara a menor suspeita, quanto a possíveis relações amorosas entre
os dois indiciados. Se o fato fosse verdadeiro, ninguém o deixaria de conhecer, entre
nós, dada a pequenez do meio e a preferência que os assuntos pecaminosos desper-
tam, nas altas rodas sociais, onde fatos dessa natureza não deixam de ser divulgados
e comentados. Não se precisará, destarte, ir ao depoimento das testemunhas arrola-
das pela defesa para estabelecer o alto conceito moral que a indiciada Milena
Mandarino Firpo desfrutava em nosso meio, como esposa, mãe e filha exemplar,
imbuída dos mais puros sentimentos cristãos. Ninguém ignora o desvelo com que a
cerca e a assiste a sociedade católica desta Capital, desde que começou a galgar, no
transe que está vivendo, as escaleiras do mais atroz sofrimento. No seu seio, não há
uma só vez que não a considera isenta de culpa, na morte trágica e reprovável de seu
inditoso marido. Veja-se, por exemplo, o que disseram, a seu respeito, pessoas que,
no processo, lhes são contrárias, tais como o deputado Seixas Dória e o Dr. José
Machado de Souza, duas das principais testemunhas de acusação, extra e dentro dos
autos. O primeiro: “Perguntado qual o conceito em que o depoente tem Dona Milena
Mandarino Firpo? Respondeu que sempre teve o melhor conceito em torno da pessoa
de Dona Milena, como esposa, como mãe e como tudo mais.” Perguntando se, como
amigo íntimo da família Carlos Firpo, nunca notou entre Dona Milena Mandarino
Firpo e o coronel Afonso Ferreira Lima, qualquer manifestação de namoro?
Respondeu que não.” Passemos, agora, a sindicar da pretendida confissão de Euclides
Timoteo de Lima, na Polícia, invocando, para isso, o que se condensa nos autos sobre
a mesma, para saber em que consistiu, na sua crua realidade. Observar-se-á que a sua
inquirição na Polícia não foi reduzida a termo, dela só se sabendo através de informa-
ções de terceiros. Todavia, foi ele interrogado, em lugar ermo, à noite, às dez horas,
nas proximidades da Cerâmica, nas clamorosas condições com que os seguintes de-
poimentos a reproduzem e tudo definem, quanto ao método empregado, no sentido
de obtê-la. Sobre ela, disse, em juízo, o Sr. secretário da Justiça e Interior, ao depor:
“À noite procurou a Polícia, não negamos, criar um ambiente em que os criminosos
atemorizados, pudessem vir a confessar o crime. Foram eles levados para a Estrada
da Cerâmica e a essa diligência estiveram presentes dentre outras pessoas, a testemu-
nha e o secretário da Segurança, o deputado Seixas Dória e o Dr. Humberto
Mandarino, empenhados todos que estávamos, na descoberta da verdade sobre tão
monstruoso crime. Nós, da Polícia, que já estávamos de posse de quase toda a ver-
dade, com facilidade, somente diante daquela cena preparada, mas sem o emprego
de qualquer violência corporal obtivemos, depois de repetidas inquirições em que
Timoteo caía a toda hora em contradições, que este confessasse que o Carlos
Alberto a quem ele e Pereirinha se referiam era um coronel da Aeronáutica, de
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Memória Jurisprudencial
nome Afonso.” E, continuando, “nós que conhecíamos o coronel Afonso, que pri-
vávamos de sua amizade que o unia à família Mandarino e ao Dr. Carlos Firpo
sentimos uma repugnância diante da declaração, repugnância que contagiou a todos
os presentes, pois logo calculamos que Timoteo, de posse de documentos, inclusive
o da identificação profissional do coronel Afonso Ferreira, que este nos dizia haver
sido subtraído, há cinco meses passados, da residência do Dr. Carlos Firpo, onde es-
tava hospedado, não acreditamos e protestamos veementemente achando que era
mais uma saída de Timoteo, que não queria confessar a verdade. Foi, então, que dois
ou três policiais, não me recordo bem, que guardavam Timoteo, talvez pensando que
a revolta de todos nós terminava violência física, deram algumas pancadas em
Timoteo, sendo logo advertidos pelo secretário de Segurança, que energicamente
não consentiu que se procedesse daquela maneira. Sobre esse ponto crucial do pro-
cesso, há nos autos o depoimento das testemunhas Walter de Assis Ferreira Batista,
no qual se encontra o seguinte e pasmoso trecho: “Os dias que se seguiram, o Dr.
Humberto Mandarino constantemente ia para a Polícia e aos poucos foi se traumati-
zando, por continuamente assistir os interrogatórios, sendo que no dia seis de maio o
encontrei bastante chocado e desoladamente, falando por metáforas. Perguntei-lhe
que havia e respondeu que, em virtude dos excessos praticados para a obtenção de
depoimentos, ele vinha se sentindo mal com aquilo e sempre pedia aos seus amigos
mais íntimos como o Dr. José Machado de Souza, para acompanhá-lo, sendo que na
noite passada, não obstante o Dr. José Machado de Souza tê-lo acompanhado à
Polícia para assistir ao depoimento de Euclides Timoteo, juntamente com o deputado
Seixas Dória e outros amigos seus mais íntimos, o depoimento fora efetuado em lu-
gar ermo do caminho da Cerâmica, tendo o Dr. Machado de Souza se desencontrado
nesse dia; que assistira aos espancamentos de Euclides Timoteo, até ele sentar ou cair
no chão e, como acreditasse que o Sr. Euclides Timoteo nada mais pudesse falar, re-
tirou-se para o jeep, acompanhado do deputado Seixas Dória. Já no jeep, alguns mi-
nutos depois, enquanto falava sobre o caso, vieram chamá-lo, dizendo que o Sr.
Euclides Timoteo estava confessando. Lá assistiu ao Sr. Euclides Timoteo dizer que
tinha sido um médico. Continuaram a espancá-lo e ele, então, dissera que tinha sido
um Carlos Alberto. Continuou apanhando e disse que era um deputado Luchinho.
Apanhando mais, ainda, dissera que era o coronel Afonsinho. Ainda batendo-se no
Euclides Timoteo, ele haveria feito um gesto, cuja expressão não tinha sido obser-
vada ou compreendida. Perguntei ao Sr. Humberto Mandarino se estava convencido
do depoimento, e ele me respondeu que, naquelas condições, não lhe merecia muita
ou alguma fé. Perguntei se Euclides Timoteo, digo, perguntei ao Sr. Humberto
Mandarino se estava convencido do depoimento, ele me respondeu que, naquelas
condições, não lhe merecia muita ou alguma fé. Perguntei se Euclides Timoteo teria
morrido ou não, respondeu-me que não sabia informar, pois se retirara imediata-
mente com o deputado Seixas Dória. “Sobre o fato da confissão de Euclides Timoteo
na Polícia, assim depôs em juízo, o deputado Seixas Dória, corroborando os dois
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Ministro Nelson Hungria
Afonso ir a Paulo Afonso, isto é, no dia 11 de abril não era possível encontrar o Dr.
Carlos Firpo naquele nosocômio, pois estava viajando e, portanto, ausente do Estado.
Assim sendo, nenhum crédito merece. A testemunha Eunice Maria dos Santos foi
também levada à Estrada da Cerâmica, à noite, e submetida a sevícia, tendo ficado
com sua genitora Maria da Conceição Santos e Gilena Santana, sob custódia de pes-
soas influentes e internadas no Hospital de Santa Isabel, para que não tivessem liber-
dade de movimentos e recebessem a orientação que lhes inculcava. Não é aceitável a
versão de que tenha havido, no avião, em Paulo Afonso, uma conferência, a portas
fechadas, do coronel Afonso com os autores materiais do delito, porque o avião mili-
tar que viajou para ali, não tem portas, só dando lugar a uma pessoa, em cada as-
sento, e ficando a segunda, atrás da primeira, separada desta por engrenagens, sendo
a aeronave toda envidraçada, podendo, assim, os ocupantes ser vistos de fora. Sendo
o coronel Afonso natural de Glória e tendo sua genitora lá residente, o fato de ir até
lá, como o fazia, sempre que vinha a Sergipe, não pode sequer constituir indício re-
moto de coautoria intelectual, no crime de que se trata. Diz-se, nos autos, que, nas
vésperas do crime, os autores materiais procuraram o tenente coronel Afonso, na
casa de seu irmão Dr. Afonso Ferreira dos Santos, sendo atendidos por este e infor-
mados de que ele não estava ali, no momento. Qual a razão, por que o Dr. Afonso
Ferreira dos Santos não foi chamado a depor, fazendo-se a acareação dele, como fa-
zia mister com os agentes materiais do crime? E por que razão, nas investigações
policiais, não se ouviu o tenente coronel Afonso, para confrontá-lo com os seus acu-
sadores? Em relação ainda à não participação do tenente coronel Afonso no delito
não se deve perder de vista o que declarou Euclides Timoteo ao deputado Seixas
Dória, quando interpelado por este, exprimindo-se por esta forma: “Só se o coronel
me enganava e não era mesmo o coronel Afonso.” Ora, depois de tanta confabulação
que se diz ter havido, entre Euclides Timoteo e o tenente coronel Afonso, como ex-
plicar essa dúvida do principal mandátario? Por ela, não se torna manifesto que
Euclides Timoteo não identificava o tenente coronel Afonso e tinha incerteza de ha-
ver ajustado qualquer coisa com ele? Por outro lado, a fé de ofício do tenente coronel
Afonso, valoroso oficial da Aeronáutica, repele a acusação que se lhe faz, com essa
fragilidade, não só pelo modo como foi extorquida a confissão de Timoteo, como
também pela inexistência de relações ilícitas, entre ele e a esposa do Dr. Carlos
Firpo. Há ainda a acrescentar que todos os que conhecem o tenente coronel Afonso
sabem-no capaz de fazer e de não mandar fazer. Segundo é corrente e moente, nesta
capital, tornando-se, assim, fato notório, Pereirinha tem dito a pessoas que com ele
têm conversado na penitenciária, não ter sido ele próprio que feriu o Dr. Carlos Firpo,
mas Euclides Timoteo, Tem esclarecido que o encontro dos mandatários com o man-
dante, numa das ruas desta capital, não ocorreu na data apontada no processo, mas
no dia do crime. Nesse dia, entretanto, o tenente coronel Afonso estava no Rio. Como
confabular com os sicários, pessoalmente, em Aracaju, nesta data? Muitos outros
fatos e circunstâncias que emergem do processo concorrem para infirmar e vulnerar
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a acusação, com a feição que lhe foi dada, como sejam a substituição clandestina de
páginas do inquérito policial depois de haver dada entrada em juízo e ser enviado à
Polícia, para uma diligência; a carta afetuosa e quase paternal do delegado Nolasco à
mulher de Timoteo, enviando-lhe dinheiro; o atestado de óbito de Euclides Timoteo
contendo nome suposto; a declaração do médico que o firmou, dizendo haver-lhe
encontrado o cadáver na estrada; a realização de uma apressada audiência, em dia
feriado, para a inquirição de determinadas pessoas, sem prévia notificação e pre-
sença dos advogados dos acusados; a inexistência de uma só testemunha que afirme
ter sido Pereirinha o executor do golpe no Dr. Carlos Firpo, ficando reduzida, por-
tanto, à única e exclusiva informação desse acusado tudo o que consta a respeito nos
autos. O corte do fio telefônico, no momento do delito, na casa da vítima, só diz a
favor das pessoas de sua família que estavam dentro dela, pois, se não quisessem
chamada, para o exterior, ou vice-versa, bastaria que retirassem o fone do gancho ou
não fizessem ligação alguma, pedindo socorro. Ao contrário disso, há, nos autos,
provas robustas de que os pedidos de socorro, por parte daquelas pessoas, quando
despertadas, com a eclosão da tragédia, foram feitos a gritos de desespero e de afli-
ção e através do telefone do vizinho, ao acorrer este último em seu auxílio. O depoi-
mento do general Nelson de Oliveira Sampaio, concunhado da vítima, não pode ser
avaliado, senão com as devidas reservas, pois sendo sua esposa, parte no processo,
como assistente da acusação, não se pode negar-lhe qualidade, incorrendo, portanto,
em suspeita de parcialidade. Não residindo essa testemunha nesta capital, teatro dos
acontecimentos, mas no Rio, é muito compreensível tivesse aceito versão truncada
do crime, como lha transmitiram e se supôs, de início, ser exata quanto não era co-
nhecida a maneira como foram realizadas as investigações policiais. Ainda que não
estivessem exuberantemente provadas as torturas infligidas a Euclides Timoteo, para
arrancar-lhe a confissão, o lugar ermo, em que interrogado, a céu descoberto e a
altas horas da noite, bastariam, por si sós, irrefragavelmente, para retirar-lhe qual-
quer vislumbre de procedência. As indicações, por ele feitas, naquela ocasião, de
nomes de mandantes, não pode produzir efeitos, não sendo necessário obtemperar
que a referida confissão, além de não ter sido livre e espontânea, não obedeceu à
forma prescrita em lei. Não foi reduzida a termo; nem lida na presença de duas tes-
temunhas a quem, como confitente, deveria subscrevê-la. Cumpre acentuar que
sendo inaceitáveis as declarações de nomes de mandantes atribuídas a Euclides
Timoteo, em razão do modo por que foram extorquidas, não se apresentam persis-
tentes nem uniformes. Por elas, foram indicadas várias pessoas: Carlos Alberto, um
médico, Luchinho e Afonsinho e, por último, o tenente coronel Afonso Ferreira. O
depoimento do Sr. secretário da Justiça dá bem a medida como conseguiu a Polícia
incluir o nome do tenente coronel Afonso no rol das pessoas indicadas por Timoteo.
Em relação a José Pereira dos Santos, se bem que tenha como provada a sua partici-
pação, como um dos dois agentes materiais do delito, não aceito, a seu respeito, a
versão, esposada pela acusação, de que tenha sido ele, pessoalmente, o autor
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do intenso golpe desferido contra o Dr. Carlos Firpo. Estribo-me, para isso, em dois
motivos: sendo ele canhoto, e aparecendo, em uma das fotografias de reconstituição
do delito, efetuada pela Polícia, a empunhar a peixeira homicida, com a mão es-
querda, não daria, com esta, um golpe de extensão e profundidade, como o que foi
desferido contra o Dr. Carlos Firpo. Tudo indica que o referido golpe foi de autoria
pessoal de Euclides Timoteo. Além de magarefe profissional, vivendo da matança de
porcos e carneiros, ultimamente, era também profissional do crime. E o Dr. Augusto
Azevedo, testemunha de elevado conceito, depôs ter assistido Timoteo dizer que era
culpado de ter pessoalmente morto o médico. E o outro é o seguinte: na camisa que
vestia Euclides Timoteo, no momento do crime, foram encontrados, na parte interna
do punho da manga direita, uma ligeira mancha vermelha e alguns traços vermelhos,
em outros lugares dessa peça do seu vestuário. Apreendida pela Polícia essa camisa,
na sua residência, em Paulo Afonso, não foi remetida à Justiça, para ser submetida ao
necessário exame pericial. Desejando a defesa provar, por meio de nova reconstitui-
ção do crime, realizada perante a Justiça, não ter sido Pereirinha o autor do golpe, lhe
foi, entretanto, indeferida essa diligência. Em relação ainda a Pereirinha, nunca se
lhe permitiu falar a sós com o seu defensor, dando essa ilegal restrição lugar até a
uma reclamação da Secção da Ordem dos Advogados Brasileiros, neste Estado, con-
forme consta dos autos. Não considero indício suficiente, nem sequer remoto, contra
os acusados Nicola Mandarino, Milena Mandarino Firpo e Gilena Santana, o fato de
estarem dormindo à noite, no mesmo prédio em que dormia o Dr. Carlos Firpo, no
dia em que foi assassinado. Tratando-se de sogro, mulher e empregada da vítima,
eram, portanto, pessoas da família e da intimidade daquela. Nada há, por conse-
guinte, de estranhável que ali estivessem e o fato, por si só, nada demonstra contra
esses três indiciados, principalmente, quando se considere que sogro e mulher se
encontravam na melhor harmonia com a vítima, com a qual regressaram para o lar,
no dia do crime, de jeep, cerca de 23 horas da noite, recolhendo-se cada qual aos seus
aposentos e só sendo despertados pelo grito daquela, ao receber o golpe que lhe rou-
bou a vida. Do depoimento, na instrução, da testemunha Paulo Rosa Santos, jardi-
neiro da residência do Dr. Carlos Firpo, consta que “o Sr. secretário de Segurança lhe
perguntava se havia namoro entre o coronel Afonso e Dona Milena e o depoente di-
zia que não; perguntava se o coronel era amigo do Dr. Carlos e o depoente respondia
que eram muito amigos, até o dia da morte: perguntava se achava que a porta, tinha
sido aberta por dentro ou por fora e o depoente respondia que a porta fora aberta por
fora, mas que, no seu depoimento eles botaram por dentro, quando ele dissera que
fora por fora. Ora bem. Se é ponto importante, no caso, saber como foi aberta a porta,
por onde entrou o sicário na residência do Dr. Carlos Firpo, para perpetrar o delito, aí
está um esclarecimento preciso, fazendo luz sobre ele e que não pode ser desprezado.
Como, pois, atribuir a uma das três pessoas adultas que estavam dentro da casa, no
momento do crime, o desempenho desse concurso, quando não havia nenhum mo-
tivo de hostilidade entre elas e o Dr. Carlos Firpo? E, como, escolher-se, entre elas, a
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Memória Jurisprudencial
que o teria prestado, como identificá-la como tendo sido a indiciada Milena
Mandarino Firpo, quando todas o negam? Somente, não duvida, por prestidigitação.
Assim, a má impressão que a primeira vista tenha produzido o caso dos autos,
quanto aos indigitados nele de autoria intelectual, ante a publicidade dirigida que se
fez, para atingir a determinado fim, invertendo e subvertendo os fatos, será apagada,
totalmente, quando se lhe faça atento, consciencioso e desapaixonado estudo, po-
dendo-se, depois, invocar a seu respeito, o conhecido provérbio inglês de que cem
coelhos não valem um cavalo, nem cem conjecturas constituem uma prova.
Incriminar a qualquer das pessoas que estavam, dentro de casa, no momento em que
se consumou o crime, sem qualquer prova que autorize a fazê-lo, é inteiramente ab-
surdo, porque como li alhures, “em todas as acusações graves e importantes, não é
pelas alegações do acusador, mas segundo o caráter do acusado que se deve apreciar
o que um homem intentou empreender ou executar; ninguém se transforma de um
salto; ninguém muda em um momento de conduta e de caráter.” A acusação, baseada
nessa tênue e desvaliosa circunstância, sem nenhum elemento que a supedite, a não
ser o conjectural, faz até lembrar o célebre caso Calas, que André Maurois assim
narra, na sua biografia de Voltaire e que, mutatis mutandis, oferece, sob certos aspec-
tos, muitas semelhanças com o que estamos apreciando: “Nos fins de março de 1762,
um viajante que vinha do Languedoc passa por Ferney e conta a Voltaire um caso
judicial que acabava de emocionar a cidade de Toulouse. Jean Calas, negociante pro-
testante muito conhecido nessa cidade, fora supliciado nas seguintes circunstâncias:
Um dos seus filhos, Marcos Antonio Calas, rapaz de genio sombrio havia muito
tempo, fora atacado de melancolia. Não podia prosseguir nos estudos e estava no seu
direito, porque era protestante. Ora, ele não desejava ser negociante como o pai. Suas
leituras eram Hamlet e as páginas de Sêneca, sobre o suicídio. Um dia, a 13 de outu-
bro de 1761, quando a família hospedava um dos seus amigos, ele se levanta da
mesa, antes dos outros e passa pela cozinha, onde lhe diz a criada: “O senhor
está muito perto do fogo”. “Ah! respondeu ele — estou queimado”. Depois
disso, vai para o armazém. Um pouco mais tarde, o amigo e hóspede deseja par-
tir. O segundo filho guia-o com luz através do armazém e descobre o seu irmão
enforcado na porta. Grita; o pai e a mãe correm para ver de que se tratava.
Corta-se a corda, chegam vizinhos e logo algum fanático insinua que Marco
Antonio fora assassinado pelos seus parentes; que ele queria ser católico; que
iria abjurar na manhã próxima e que é regra entre os protestantes um pai de fa-
mília preferir a morte de um filho à sua abjuração. A acusação parecia absurda.
Esse costume nunca existira entre os protestantes. Todas as testemunhas da
vida dos Calas descreviam a ternura e a indulgência do pai. Um dos seus filhos,
Luiz, convertera-se pouco antes sob a influência de uma criada católica; Calas
perdoara o filho e até conservara a criada. Enfim, como poderia um ancião en-
forcar um jovem vigoroso? Era preciso admitir a cumplicidade de toda a família
e do hóspede. Pode-se imaginar um pai, uma mãe e os irmãos, se reunirem para
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Ministro Nelson Hungria
matar um dos seus? Além disso, nenhuma testemunha séria poderia provar que
a vítima pensasse em abjurar. Mas, o caso cai nas mãos de um magistrado apai-
xonado. Os devotos metem-se nele. Faz-se um solene serviço público para
Marco Antonio, numa igreja revestida de branco, no meio da qual se colocara
um esqueleto emprestado por um cirurgião. Esse esqueleto tinha numa das
mãos um papel: “Abjuração contra a heresia”; na outra, uma palma, símbolo do
seu martírio. O caso vai ao Parlamento de Toulon. Todos os Calas, presos, foram
interrogados, separadamente. Todos sustentaram a verdade do primeiro depoi-
mento. Por oito votos contra cinco, o pai foi condenado a morrer sobre a roda,
seu filho Pedro banido, os outros postos em liberdade. Julgamento tão estúpido
quanto cruel, porque ou toda família era cúmplice ou toda ela era inocente. O
velho Calas sofria esses horrores com uma constância admirável. Interrogado
sobre os seus cúmplices, não cessa de responder: Ah! Onde não há crime, pode
haver cúmplices?” Afinal, foi supliciado. Essa história impressiona muito
Voltaire. O crime atribuído aos Calas, parece-lhe inverossímil, mas mal podia
acreditar na maldade dos magistrados de Toulouse. Sabe que uma parte da fa-
mília fora refugiar-se perto de Ferney, em Genéve. Fê-la ir à sua casa e, depois
de os ter interrogado muitas vezes, não duvida de sua inocência. A partir desse
momento, e durante quatro anos, a reabilitação dos Calas torna-se a grande ta-
refa da sua vida. O parlamento de Paris avoca o processo e se conduz bem.
Cassa a sentença de Toulouse. Trinta anos depois, a Convenção Nacional de-
creta seja erguida por conta da República, no lugar onde o fanatismo fizera mor-
rer Calas, uma coluna de mármore, na qual seria gravada a seguinte inscrição:
“A Convenção Nacional ao Amor Paterno, à Natureza, a Calas, vítima do fana-
tismo”. Quanto aos indigitados autores intelectuais, tudo o que se alegou contra
eles, como se apura dos autos, não implica em ação, não atinge sua responsabi-
lidade, sua vontade, ou culpabilidade. Não há contra eles a demonstração de um
acordo de vontades – o concursus plurium ad idem delictum, e do processo não
sobressaem senão fatos isolados, sem relações e sem entrelaçamentos com o
crime que lhes imputa; não há contra eles um conjunto de fatos, um conjunto
cronológico que traduza um concerto de vontades, para dirigi-los a um fim, es-
tabelecendo uma correlação entre o delito e sua conduta. Tudo, em seu desfavor,
não sai do terreno das conjecturas. Em matéria de autoria intelectual, entre-
tanto, como decidiu o Tribunal de Justiça de Goiás, no Acórdão de 26 de março
de 1941, “não se pode aceitar qualquer gênero de prova afim de se haver a
mesma como apuradas; pelo contrário, é mister que semelhante prova seja
plena, isto é, completa cabal. “A meu ver, o mistério, quanto à autoria intelectual
do nefando assassinato do Dr. Carlos Firpo, continua indecifrado e a exigir so-
lução. Seu termo, porém, não pode ser a culpabilidade de inocentes, por mais
repulsivo e bárbaro que tenha sido aquele crime. No prefácio do tradutor fran-
cês do Tratado da Prova em Matéria Criminal, de Mittermayer, encontram-se
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Memória Jurisprudencial
ensinamentos cuja aplicação se impõe neste instante, em face das graves irregu-
laridades verificadas neste processo, desde o seu início na Polícia, ao encerra-
mento da instrução em juízo, para mostrar como ele dista das regras de
verificação jurídica dos fatos, salvaguardas do próprio processo e das pessoas
nele indigitadas e que põem de manifesto que a justiça penal não pode degene-
rar em desforço ou vingança. Deixa ali assentado o referido tradutor o seguinte:
“O fim da lei penal é a repressão do delito, mas, antes de puni-lo, é mister veri-
ficar a sua existência; daí a necessidade da prova. Como fazer a prova? Como
procurar a Justiça os meios de uma apreciação certa do fato e da intenção qua-
lificadora do crime? Como dar, ao mesmo tempo, à ordem social lesada garan-
tias de uma infalível repressão, ao cidadão acusado as garantias devidas à
liberdade que a lei social promulga, ao homem, inocente talvez, as devidas à sua
segurança individual? Problemas imensos, cuja solução compreende a organi-
zação de todo processo penal! Com razão se disse que a lei, que fixa o modo e a
taxa da pena, é menos importante talvez do que a lei do processo que determina
as formas necessárias para assegurar a sua aplicação. Quando a prova é mani-
festa, a pena é sempre uma consequência necessária e, portanto, ganha com isto
a causa da Justiça. Quando, pelo contrário, a prova é mal ordenada, a sentença,
em lugar da verdade, pode decretar o erro, em lugar do culpado, condenar um
inocente; pode fazer nascer em todos os espíritos a desconfiança e neles destruir
o respeito à lei em seu princípio, que é a face sagrada da ordem pública.” Cabe,
pois, ao juiz de instrução, que tem a missão de investigar e fornecer os materiais
da prova, não se afastar dos aludidos ensinamentos, decorrendo daí, para todos
os espíritos sérios, a necessidade do exame de bases fundamentais da prova,
antes de qualquer pronunciamento, de acordo com a apreciação que a lei, a ló-
gica, e a sã experiência recomendam. A convicção íntima do juiz e a sã experi-
ência recomendam. A convicção íntima do juiz há de ser razoável, fundando-se
sobre graves motivos dos quais possa dar contas à sua própria consciência. E o
próprio Mittermayer doutrina, nesse pressuposto, à fl. 19 do seu supramencio-
nado Tratado, o seguinte: “Não é somente no final do processo, no momento em
que a sentença definitiva vai decidir se é verdadeira a acusação, se a culpabili-
dade existe, que o valor das provas produzidas se apresenta: é também no correr
e em cada uma fases do processo: o juiz formador da culpa, com efeito, deve
examinar se tal crime foi verossimilmente cometido, se tal ou tal pessoa é dele
culpado, e, conseguintemente, se deve proceder a tais ou tais diligências. Esta
questão se oferece ao juiz todas as vezes que examina: primeiro, se pode proce-
der contra uma determinada pessoa; segundo, se as presunções são bastante
graves, para autorizar uma prisão; terceiro, se estão cumpridas as condições que
autorizam a pronúncia. “Com estas ponderações, não quero dizer que todos
nesta cidade, não tenham ficado profundamente abalados, com o hediondo as-
sassinato do inditoso Dr. Carlos Firpo. Ao contrário, criou-se um clima psicológico
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Ministro Nelson Hungria
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Memória Jurisprudencial
ir-lhes ao âmago, como se fazia mister. Entretanto, como adverte Gabba, “em todo e
qualquer processo, nunca se poderá considerar averiguada a criminalidade do acu-
sado, senão em virtude de um confronto entre a querela e a defesa, depois de aduzi-
das as provas de ambos” (Rettroativitá delle legge, v. 2º, p. 408: Rettroativitá in
materia penale, p. 189). No caso sub judice, o juiz a quo não fez esse indispensável
confronto e daí a sua sentença de pronúncia, quanto aos presumidos autores intelec-
tuais, ter caráter manifestamente unilateral. Não se fundamenta na prova contraditó-
ria produzida em juízo, mas em simples presunções. Como doutrina Malatesta, à fl.
195, da sua Lógica das Provas em Matéria Criminal, “A Justiça penal não atinge o
seu fim, ferindo um bode expiatório qualquer; é-lhe necessário o verdadeiro delin-
quente, para que a sua ação seja legítima”. E como o juiz é proposto no crime, tanto
para a convicção, como o juiz, digo, como para a defesa do réu, nego provimento aos
recursos interpostos pelo Ministério Público, assistente da acusação e José Pereira
dos Santos, vulgo Pereirinha e dou provimento aos recursos do tenente coronel
Afonso Ferreira Lima, Milene Mandarino Firpo e Enoque Pessoa de Carvalho, para,
reformando, em parte, a sentença recorrida, despronunciá-los da acusação que lhes
foi intentada, porque, de modo algum, concorreram para o crime. E mando que se
apure a responsabilidade dos implicados na eliminação de Euclides Timoteo de
Lima.”
À vista disso, Senhor Presidente, à vista de tudo isso, concedo o habeas cor-
pus, pois a pronúncia do paciente desatendeu, indubitavelmente, o dispositivo do art.
408 do Código do Processo Penal.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Diante o evidente propósito do Dr.
juiz da Comarca de Jales no sentido de sonegar a esta Corte o conhecimento dos au-
tos originais do processo contra o paciente, temos de julgar o caso, que está a pedir
solução urgente, em face das certidões que instruem a inicial. As informações presta-
das, aliás, como já salientei, não contestam os fatos referidos na inicial, confirmando
que ao paciente é imputado o fato de, como líder de um grupo de lavradores, haver
incitado estes a danificar a propriedade alheia e criado um clima de intranquilidade
na região. Não é a primeira vez que, por fato perfeitamente idêntico, o paciente é
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processado como infrator da Lei de Segurança, tendo obtido habeas corpus há cerca
de dois anos, dada a ausência de ilicitude penal. É positivamente abusar dos vocábu-
los dizer que, pelo fato de haver o paciente induzido os arrendatários de uma fazenda
a arrancar o capim “Colonião” que ali haviam plantado, quando ainda esperançosos
de ver prorrogado o seu contrato de arrendamento, praticou ele o crime de “incitar
diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência”. O latifun-
diário José Carvalho Diniz e um grupo de pequenos lavradores, interessados estes
na continuidade de um arrendamento que lhes asseguraria o proveito do esforço em-
pregado nas terras arrendadas, erigidas em “classes sociais”! Não pode haver maior
incompreensão de uma lei que, editada para segurança da ordem político-social, é
de todo inaplicável para a solução de uma pendenga entre arrendante e arrendatários
de terras, a resolver-se exclusivamente no juízo cível, por outro lado, como se pode
configurar no caso vertente invasão de estabelecimento agrícola com o objetivo de
impedir o trabalho e subverter a ordem político-social, quando o máximo que se po-
deria reconhecer seria esbulho possessório, exercício arbitrário das próprias razões
ou danificação de coisa sem violência à pessoa, não se apresentando, portanto, dado
o confinamento das partes a um limitado círculo de pessoas, crime algum ou, pelo
menos, crime de ação pública?
O paciente foi apenas sacrificado à prepotência e ao prestígio do proprietário
da Fazenda Mariana, na comarca de Jales.
Concedo a ordem para que seja ele imediatamente posto em liberdade, arqui-
vando-se o processo contra ele instaurado.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não se apresenta, na espécie, a
torpeza bilateral que, na opinião de grande número de escritores de direito penal,
entre os quais me incluo, exclui o estelionato. Aquele que procurou um curandeiro,
na esperança de alívio para seus males, evidentemente não está visando a fim ilícito
ou imoral. Seu objetivo não é contribuir para o exercício do curandeirismo, mas
obter cura ou lenitivo para sua enfermidade. Notadamente os curandeiros espíritas
gozam de grande prestígio no seio de pessoas crédulas ou simplórias. Reconhecendo
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VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): A omissão de intimação às par-
tes, da expedição de precatória inquisitória, é nulidade enquadrada no art. 564,
inciso IV, do Código de Processo Penal e, portanto, se considera sanada, na con-
formidade do art. 572, II, desde que não arguida no prazo do art. 500, ut art. 571,
n. II, do mesmo Código. Não há dizer que tal omissão não é sanável pelo silên-
cio das partes, porque infringe o princípio da contraditoriedade e da plenitude
da defesa consagrado no art. 141, § 25, da Constituição, pois a lei processual
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ÍNDICE NUMÉRICO
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Este livro foi concluído
em 2 de abril de 2012.
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