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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória Jurisprudencial
MINISTRO NELSON HUNGRIA

Luciano Felício Fuck


Brasília
2012
ISBN 978-85-61435-33-2
Disponível também em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=publicacaoPubl
icacaoInstitucionalMemoriaJurisprud
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Alcides Diniz da Silva
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Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência
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Preparação de originais: Flávia Teixeira da Silva, Janeth Aparecida Dias de Melo, Rochelle
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Revisão: Amélia Lopes Dias de Araújo, Lilian de Lima Falcão Braga e Rochelle Quito
Revisão de referências bibliográficas: Seção de Gerência do Acervo
Diagramação: Carolina Woortmann Lima
Capa: Jorge Luis Villar Peres
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Fuck, Luciano Felício.

Memória jurisprudencial : Ministro Nelson Hungria / Luciano


Felício Fuck. -- Brasília : Supremo Tribunal Federal, 2012.

372 p.

(Série Memória Jurisprudencial).

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal, jurisprudência. 2.


Ministro do Supremo Tribunal Federal, biografia. 3. Tribunal
supremo, Brasil. 3. Hoffbauer, Nélson Hungria - jurisprudência. I.
Título. II. Série.
–––
ISBN 978-85-61435-33-2 CDD-341.419108

Seção de Distribuição de Edições


Maria Cristina Hilário da Silva
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25‑6‑2003), Presidente


Ministro Carlos Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25‑6‑2003), Vice-Presidente
Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17‑8‑1989)
Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13‑6‑1990)
Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20‑6‑2002)
Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25‑6‑2003)
Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (16‑3‑2006)
Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21‑6‑2006)
Ministro José Antonio DIAS TOFFOLI (23-10-2009)
Ministro LUIZ FUX (3-3-2011)
Ministra ROSA Maria WEBER Candiota da Rosa (19-12-2011)
Ministro Nelson Hungria
APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido


pelo período militar.
Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou
uma renovada época.
Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das pres-
tações de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da
sociedade civil.
É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.
É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valo-
res expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os hori-
zontes de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.
O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser
alcançado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção
da unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.
A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-
ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a conso-
lidação da função do próprio Poder Judiciário.
Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal
de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28‑2‑1891) não significaram sim-
plesmente uma sequência de decisões de cunho protocolar.
Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacio-
nal em que a atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com
defesa intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.
Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve tam-
bém delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da
independência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.
Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do
caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos
brasileiros em um regime constitucional democrático.
Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende
a enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um ple-
nário, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.
O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram
o munus publicum de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à
defesa das instituições democráticas.
Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.
Entender suas decisões e sua jurisprudência.
Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determi-
nado julgamento.
Interpretar a história de fortalecimento da instituição.
Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acre-
ditavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que
tiveram, a carreira jurídica ou política que trilharam.
Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra,
colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.
Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma
decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus
votos e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignora-
dos entre os juristas.
A injustiça dessa realidade não vem sem preço.
O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma
visão burocrática do Tribunal.
Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena-
gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um
regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.
Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma
inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria for-
mação do pensamento político brasileiro.
Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do
direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-
fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem
e consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal,
que constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da
interpretação constitucional.
As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988)
consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.
Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-insti-
tucionais do país, também foram influenciadas pelos valores, pelas práticas e
pelas circunstâncias políticas e sociais de cada um desses períodos.
Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-
mica própria dessas transformações.
Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.
Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também
essa realidade no âmbito do SUPREMO.
A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no
tempo e localizada no espaço.
Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e dos polí-
ticos que tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucio-
nais tanto no campo da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de
sua interpretação.
A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão
empregada por Ferdinand Lassale.
O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é
constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér-
prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.
É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.
O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes ofi-
ciais da Constituição, sempre teve caráter fundamental.
Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-polí-
tica, não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou
o trabalho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo nor-
mativo aos dispositivos da Constituição.
Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e
consolidava jurisprudências.
Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no
campo da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como
fonte primária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram,
em primeiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.
Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo
ou o princípio da separação dos Poderes, em larga medida, tiveram suas fron-
teiras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus
membros traziam de suas experiências profissionais.
Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-
dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber
quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as
pautas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo
da Corte.
Por isso, esta coleção visa a recuperar a memória institucional, política e
jurídica do SUPREMO.
A ideia e a finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada
por Ministros como Castro Nunes, Orozimbo Nonato, Victor
Nunes Leal e Aliomar Baleeiro, além de outros.
A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor
compreensão de nossa história institucional.
Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional
no Brasil.
Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-polí-
tico brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas
alhures.
E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve
ser um Tribunal da carreira da magistratura.
Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006


Ministro Nelson A. Jobim
Presidente do Supremo Tribunal Federal
“Éramos uma lagoa plácida e o Nelson nos transformou em um mar revolto.”
Orozimbo Nonato

“Muitas vezes, com a minha fácil e irreprimível exaltação, fui


provocador de acalorados debates, em que todos nos empenhávamos,
imprimindo ondulações na superfície de nosso até então invariável
‘manso lago azul’. Não me arrependo de tê-lo feito. Tenho aversão às
águas estagnadas, que só servem para emitir eflúvios malignos ou causar
emanações mefíticas.”
Nelson Hungria, 14 de abril de 1961
Sumário

ABREVIATURAS 17
DADOS BIOGRÁFICOS 19
NOTA DO AUTOR 23
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA 29
2. JURISPRUDÊNCIA 35
2.1 Direito penal e processual penal 35
2.1.1 Crimes políticos 35
2.1.2 Crimes de imprensa 41
2.1.3 Ampliação da garantia do habeas corpus 46
2.1.3.1 Exame de fatos e provas no habeas corpus 46
2.1.3.2 Efeito suspensivo e habeas corpus 55
2.1.3.3 Local inapropriado para internação de menores 57
2.1.3.4 Reiteração de habeas corpus 60
2.1.4 Tribunal do Júri 61
2.1.4.1 Constitucionalidade do novo julgamento pelo Tribunal do
Júri na decisão contrária à prova dos autos 64
2.1.4.2 Nulidade do novo Júri pela participação de jurado
presente no conselho de sentença anterior 65
2.1.4.3 Nulidade de quesito 66
2.1.5 Foro por prerrogativa de função 67
2.1.6 Crimes de espionagem 71
2.1.7 Crimes praticados por funcionário público contra a
administração em geral 74
2.1.8 Crimes de responsabilidade 79
2.1.9 Crimes contra o patrimônio 80
2.1.10 Crimes de quadrilha ou bando 83
2.1.11 Defesa no processo penal 84
2.1.12 Prescrição da pena in concreto 85
2.1.13 Desacato e vias de fato 86
2.2 Direito constitucional 87
2.2.1 Separação dos Poderes 88
2.2.1.1 Atos políticos do Congresso e intervenção judicial 88
2.2.1.2 Caso Café Filho 91
2.2.1.2.1 MS 3.557/DF 95
2.2.1.2.2 HC 33.908/DF 101
2.2.1.2.3 Petições apreciadas na sessão de 11-1-1956 102
2.2.1.2.4 Rp 258/DF 103
2.2.1.2.5 Petição apreciada na sessão de 7-11-1956 104
2.2.1.3 Reserva de iniciativa 105
2.2.1.4 Retratação de veto 109
2.2.1.5 Delegação legislativa para o presidente da República 110
2.2.2 Federalismo 117
2.2.2.1 Autonomia municipal 117
2.2.2.1.1 Criação de Municípios 117
2.2.2.1.2 Nomeação de prefeitos 125
2.2.2.1.3 Autonomia financeira 128
2.2.2.2 Simetria constitucional 129
2.2.2.3 Aplicação do Código Penal Militar aos militares
estaduais 132
2.2.2.4 Excepcionalidade da intervenção federal 133
2.2.2.5 Possibilidade de isenções heterônomas 134
2.2.3 Controle de constitucionalidade 135
2.2.3.1 Prescrição e decadência da representação pela
inconstitucionalidade 135
2.2.3.2 Necessidade do full bench 136
2.2.3.3 Mandado de segurança contra lei em tese 138
2.2.4 Direito intertemporal 139
2.3 Outros ramos do direito 141
2.3.1 Direito administrativo 142
2.3.1.1 Responsabilidade civil do Estado e guerra civil 142
2.3.1.2 Concurso público e magistratura 143
2.3.1.3 Estabilidade de servidor público 145
2.3.1.4 Anistia e retorno ao cargo público 149
2.3.2 Direito tributário 150
2.3.2.1 Isenções concedidas em tratados internacionais 150
2.3.2.2 Nomenclatura e natureza jurídica de tributos 151
2.3.2.3 Bitributação e taxas 153
2.3.2.4 Constitucionalidade do imposto de vendas incidente
na exportação 154
2.3.2.5 Imunidade recíproca 155
2.3.3 Direito civil 156
2.3.3.1 Proteção do adquirente de boa-fé 156
2.3.3.2 Reconhecimento de paternidade 157
2.3.3.3 Equiparação entre filhos adotivos e legítimos 159
2.3.4 Direito eleitoral 159
CONCLUSÃO 164
REFERÊNCIAS 167
APÊNDICE 169
ÍNDICE NUMÉRICO 367
ABREVIATURAS

ACi Apelação Cível


ACr Apelação Criminal
AI Agravo de Instrumento
AR Ação Rescisória
art. artigo
c/c combinado com
CE Código Eleitoral
Cexim Carteira de Exportação e Importação
cf. confronte
CJ Conflito de Jurisdição
Den Denúncia
DJ Diário de Justiça
EC Emenda Constitucional
EI Embargos Infringentes
FPM Fundo de Participação dos Municípios
HC Habeas Corpus
IF Intervenção Federal
Inq Inquérito
LICC Lei de Introdução ao Código Civil
min. ministro
MS Mandado de Segurança
PSD Partido Social Democrático
PSP Partido Social Progressista
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
QO Questão de Ordem
RC Recurso Criminal
RE Recurso Extraordinário
rel. relator
RHC Recurso de Habeas Corpus
RMS Recurso Ordinário em Mandado de Segurança
Rp Representação
RvC Revisão Criminal
STF Supremo Tribunal Federal
UDN União Democrática Nacional
v.g. verbi gratia
Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria

DADOS BIOGRÁFICOS

Nelson Hungria Hoffbauer nasceu junto com a primeira Constituição


Republicana (CF/1891)1, em 16-5-1891, na Fazenda “Solidão”, propriedade de
seus avós maternos, localizada no Município de Além Paraíba, na Zona da Mata
do Estado de Minas Gerais. Seus pais, ricos apenas em valores morais2, cha-
mavam-se Alberto Teixeira de Carvalho Hungria, humilde funcionário público
municipal, e Anna Paula Domingues Hungria, costureira.
Precoce, foi alfabetizado aos 3 anos de idade pela mãe. Em virtude das
viagens ocasionadas pela profissão do pai3, Nelson Hungria fez o curso primá-
rio no Colégio Cassão, em Belo Horizonte, e o secundário em 3 estabelecimen-
tos diversos: no Colégio Cassão, em Belo Horizonte; no Colégio Azevedo, em
Sabará — onde estudou latim com Francisco Campos e Orozimbo Nonato4 — e
no Ginásio Nogueira da Gama, em Jacareí, Estado de São Paulo.
Ainda criança, aos 7 anos de idade, fundou um semanário de uma
página denominado A Vespa, em Santo Antônio do Pinhal, e impresso em
Pindamonhangaba no Estado de São Paulo5, no qual ferroava os fazendeiros
locais.
Aos 14 anos, o menino pobre ingressou na Faculdade de Direito em Belo
Horizonte. No final do segundo ano, mudou-se sozinho para o Rio de Janeiro,
onde conseguiu emprego como mata-mosquito, para se sustentar. Bacharelou-se
aos 18 anos no curso de Direito da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro.
Retornou a Minas Gerais, onde foi nomeado promotor público em Rio
Pomba, agreste interior do Estado.
Aos 21 anos, em 1912, casou-se com D. Isabel Maria Machado Hungria
Hoffbauer, com quem teve quatro filhos.

1
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891.
2
Cf. LIMA, Leopoldo César de Miranda. Discurso como representante dos advogados de
Brasília, na homenagem de 14-4-1961 ao ministro Nelson Hungria. In: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Homenagens prestadas aos ministros que deixaram a Corte no período de
1960 a 1975. Brasília: STF, 1975. p. 17.
3
Cf. SCARTEZZINI, Cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso de posse
na Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia Paulista de Direito, 1974.
p. 6.
4
Cf. TAVARES, Adelmar. Discurso por ocasião da posse do ministro Nelson Hungria
no Supremo Tribunal Federal, em 5-6-1951. Revista Forense, v. 48, n. 135, p. 619-623, e
PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. Discurso na homenagem do centenário do ministro Nelson
Hungria. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Nelson Hungria: centenário de seu nasci-
mento. Brasília: STF, 1993.
5
Cf. SCARTEZZINI, loc. cit.

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Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria

Em 1918, mudou-se para Belo Horizonte e advogou até 1922, quando se trans-
feriu novamente para o Rio de Janeiro. Na antiga Capital, foi delegado de polícia por
dez meses e vendedor de estampilhas no Tesouro Nacional.
Em 1924, passou em primeiro lugar no Brasil para o concurso de pretor, assu-
mindo como juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo Distrito Federal, nomeado por
decreto de 12 de novembro de 1924. Serviu posteriormente como juiz de órfãos e da
Vara dos Feitos da Fazenda Pública.
Em 1934, também foi aprovado em primeiro lugar para a livre-docência da
cadeira de Direito Penal na Faculdade Nacional de Direito.
Em 1936, foi promovido por merecimento a juiz de direito e, em 1944, ascen-
deu ao cargo de desembargador, após vinte anos de exercício da magistratura, no
Tribunal de Apelação do Distrito Federal.
Por decreto de 29 de maio de 1951, foi nomeado ministro do Supremo Tribunal
Federal pelo presidente Getúlio Vargas, para a vaga decorrente da aposentadoria do
ministro Annibal Freire. Tomou posse em 4 de junho do mesmo ano, época em que
compunham o Plenário os ministros José Linhares (presidente), Barros Barreto,
Orozimbo Nonato (vice-presidente), Lafayette de Andrada, Edgard Costa, Ribeiro
da Costa, Hahnemann Guimarães, Rocha Lagôa e Mario Guimarães.
Foi eleito, como membro substituto (1955-1957) e efetivo (1957-1961), pelo
Supremo Tribunal Federal para integrar o Tribunal Superior Eleitoral, tendo ocupado
a presidência do órgão, no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961.
Apesar dos árduos trabalhos como magistrado, inclusive no Supremo Tribunal
Federal, dedicou-se com profundidade à academia e outras atividades jurídicas.
Argumentava que “a natureza me privilegiou com boa memória e decretou que só
dormiria cinco horas por noite, o que me sobre tempo para ler”6.
Entre outras medidas legislativas, participou da elaboração do Código Penal7,
do Código de Processo Penal8, da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia
Popular.
O ministro Nelson Hungria já era professor e doutrinador renomado quando
nomeado para o Supremo Tribunal Federal, destacando-se entre seus quinze livros
e cerca de trezentas monografias: Fraude penal e legítima defesa putativa —
teses destinadas à conquista da cátedra universitária — Estudos sobre a
Parte Especial do Código Penal de 1890; Crimes contra a economia popular;
Questões jurídico-penais; Novas questões jurídico-penais; Comentários ao

6
HOFFBAUER, Clemente Hungria. Nelson Hungria, meu pai. AIDP, ano 5, n. 4, p. 3, 2009.
7
Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
8
Decreto-Lei 3.689, de 3 de outubro de 1941.

21
Memória Jurisprudencial Ministro Nelson Hungria

Código Penal (8 volumes) e ainda Cultura, religião e direito; O sermão da mon-


tanha e A obrigação absoluta no direito cambiário.
Ainda, participou ativamente de congressos nacionais e internacionais,
entre os últimos o 2º Congresso Latino-Americano (Santiago — Chile, 1947),
o 3º Congresso Latino-Americano de Criminologia (1949) e Jornadas Penales
(Buenos Aires — Argentina, 1960).
Foi agraciado com inúmeras condecorações, com destaque para o prê-
mio Teixeira de Freitas, outorgado em 1958, pelo Instituto dos Advogados
Brasileiros, pela obra Comentários ao Código Penal; além da Medalha Rui
Barbosa, Medalha do Rio Branco, Medalha do Sesquicentenário do Superior
Tribunal Militar, Medalha Teixeira de Freitas e a Comenda do Mérito do
Ministério Público.
Em razão do limite constitucional de idade, foi aposentado por decreto
de 11 de abril de 1961, despedindo-se da Corte na sessão de 14 do mesmo mês.
A mencionada cerimônia de despedida foi marcada pela presença do presidente
da República, Dr. Jânio Quadros, circunstância excepcional jamais repetida,
antes ou depois, em preito semelhante no Tribunal. Na ocasião, foi saudado,
em nome do Tribunal, pelo ministro Ary Franco, falando pela Procuradoria-
-Geral da República o Dr. Joaquim Canuto Mendes de Almeida; pela Ordem
dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Leopoldo Cesar de
Miranda Lima; pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo, o
Dr. Eloy Franco de Oliveira; pelo Instituto dos Advogados Brasileiros o Dr. Ruy
Nunes Pereira e pelos advogados criminalistas do então Estado da Guanabara, o
Dr. Evandro Lins e Silva, que viria a ser ministro do Supremo Tribunal Federal
pouco tempo depois.
Após a aposentadoria retornou à advocacia, que exerceu até seu faleci-
mento, em 26 de março de 1969, aos 78 anos, na cidade do Rio de Janeiro.
Na mesma data, foi homenageado pelo Supremo Tribunal Federal, falando
pela Corte o ministro Luiz Gallotti; pela Procuradoria-Geral da República, o
Dr. Décio Miranda; e, pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito
Federal, o Dr. Antonio Carlos Osório.
Ainda foi celebrado no Supremo Tribunal Federal por ocasião de seu
centenário de nascimento, em sessão de 16 de maio de 1991, quando falou pela
Corte o ministro Sepúlveda Pertence; pelo Ministério Público Federal, o Dr.
Affonso Henriques Prates Correia, Procurador-Geral da República em exercí-
cio; e, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Prof. René
Ariel Dotti.
É conhecido pelo epíteto de “Príncipe dos Penalistas Brasileiros”.

22
Ministro Nelson Hungria

23
Ministro Nelson Hungria

NOTA DO AUTOR

A memória jurisprudencial do ministro Nelson Hungria busca identificar as


principais marcas deixadas pelo “Príncipe dos Penalistas Brasileiros” na jurispru-
dência e no papel institucional do Supremo Tribunal Federal.
A partir da contextualização histórica e institucional, o trabalho objetiva
destacar as mais importantes intervenções do ministro Nelson Hungria na Primeira
Turma e no Plenário da Corte.
Para essa finalidade, a memória jurisprudencial limitar-se-á aos votos proferi-
dos em colegiado pelo eminente ministro e que foram anotados na jurisprudência da
Corte, seja por votos escritos, seja por registros taquigráficos.
É certo que, no exercício da judicatura, os ministros elaboram também grande
quantidade de despachos, liminares e decisões monocráticas de toda natureza. No
entanto, por limitações de espaço e de foco, essas decisões singulares não serão con-
sideradas neste trabalho. Também não serão contemplados os votos do ministro pro-
latados no Tribunal Superior Eleitoral, nem em qualquer outro órgão jurisdicional.
Pela mesma razão, o estudo não abarcará artigos e obras doutrinárias do pro-
fessor Nelson Hungria, apesar da inegável riqueza desses trabalhos para o direito
brasileiro.
Nesse contexto, a monumental obra do ministro Nelson Hungria enquanto
membro do Supremo Tribunal Federal, que compreende mais de cinco mil acórdãos,
será selecionada, reunida e analisada de acordo com o respectivo ramo do direito em
que estão fundamentadas as decisões.
Registre-se que os acórdãos serão citados sempre pela classe processual,
número e origem de autuação, acompanhados do nome do relator (ou relator para
o acórdão), do órgão e da data de conclusão do julgamento. Tendo em vista a falta
de regularidade nas publicações mais antigas do Diário da Justiça, optou-se por
somente citar essa fonte de informação quanto aos acórdãos mais recentes, lavrados
após a CF/19889.
Antes de agrupar pela classe processual em que julgados, o critério do ramo
do direito permite a mais ampla percepção da universalidade das contribuições do
ministro Nelson Hungria, inclusive destacando os avanços de suas opiniões, bem
como das opiniões do colegiado, durante os quase dez anos (4-6-1951 a 14-4-1961)
em que serviu ao Supremo Tribunal Federal.

9
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Memória Jurisprudencial

Os característicos votos enfáticos e precisos do ministro Nelson Hungria reú-


nem extensa riqueza não só de conhecimento dogmático, como também de lógica
jurídica e de bom senso, qualidades indispensáveis ao devido exercício da magistratura.
Para melhor destacar toda essa riqueza, a obra conterá breve contextualização
histórica do Supremo Tribunal Federal. O comentário das manifestações será dividido
em três partes: (a) os votos do ministro Nelson Hungria relacionados ao direito penal
e ao processo penal; (b) as grandes discussões de direito constitucional da época; e (c)
as mais relevantes manifestações do ministro nos demais ramos do direito, de que Sua
Excelência tratou com acuidade e brilhantismo, desde o direito civil e o processo civil,
até o direito administrativo e o tributário.
É importante destacar que o desenvolvimento do direito penal no Brasil, de
forma especial, deve muito ao ministro Nelson Hungria, razão pela qual grande parte
desta obra dedicar-se-á a ilustrar essas contribuições.
Assim, serão analisados, de início, os acórdãos relacionados à ciência penal,
com ênfase nos crimes políticos — examinados, à época, em sede de apelação criminal
pelo Supremo Tribunal Federal — e na defesa dos direitos fundamentais, que basearam
grandes decisões no âmbito do habeas corpus.
Manifestações já no primeiro ano do ministro Nelson Hungria no Supremo
Tribunal Federal consistem em pronunciamentos marcantes em defesa da liberdade de
pensamento e de expressão, como as proferidas na ACr 1.456, rel. para o acórdão min.
Luiz Gallotti, julgado em 19-9-1951, Primeira Turma, DJ de 4-4-1952, e na ACr 1.450,
rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma, julgado em 6-6-1951, DJ de 30-8-1951, entre
outros.
É importante registrar que posteriormente esses posicionamentos tornaram-se
vencedores na Casa, a exemplo do decidido na ACr 1.516, rel. min. Nelson Hungria,
Pleno, em julgado de 16-7-1954.
Por outro lado, o voto condutor na ACr 1.486 (rel. para o acórdão min. Nelson
Hungria, Pleno, julgado em 30-12-1952, DJ de 4-11-1953), decidido por voto de desem-
pate do ministro presidente, pontuou a necessidade de dolo específico para a perturba-
ção da ordem político-social quanto aos delitos inscritos na Lei de Segurança Nacional,
em vigor à época.
Outros casos marcantes referentes à citada lei também serão expostos, como o
HC 32.618, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 16-9-1953; o HC 32.445, rel.
min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 16-12-1953; e o HC 32.331, rel. min. Luiz Gallotti,
julgado em 5-12-1952, este concedido para relaxar a prisão preventiva de Carlos
Lacerda, ocasião em que o ministro Nelson Hungria deixou importante testemunho da
consciência do magistrado, afirmando:
Senhor Presidente, quando entrei hoje neste recinto, vinha com o propó-
sito de alhear-me a este julgamento, dando-me por impedido.
Ministro Nelson Hungria

Sofri, como é sabido, uma tremenda campanha difamatória por parte


do jornalista ora paciente, e me achei, hoje, entre as guampas deste dilema: se
denegasse o habeas corpus, estaria obedecendo a espírito de vingança; se o
concedesse, estaria revelando medo, querendo fazer as pazes, levantar bandeira
branca, acovardar-me diante desse jornalista, que, realmente, é truculento. Mas
por um lado, de mim para mim, fiz exame de consciência e me certifiquei de que
jamais guardei ódios, nunca meu coração foi ninho de rancores, e apesar de ter
nascido na hinterlândia e lá vivido minha mocidade, nunca aprendi a dormir na
pontaria, atrás do toco. Não sei exercer vindictas, aguardando o adversário na
“volta do caminho”.
Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou
um destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um
covarde; sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as
coisas que me vêm do coração à guela, custe o que custar.
Houve, porém, um argumento que me decidiu. Fiel ao meu ponto de
vista, reiteradamente manifestado em julgamentos, livros e artigos, meu voto
tinha de ser a favor desse homem; e suponhamos que esse meu voto lhe faltasse
e ele viesse, por isso, a ter o habeas corpus denegado. Teria eu contribuído para
uma iniquidade em virtude de minha abstenção.
(...)
Devo insistir em que o paciente não me causa temor; pode ele reiniciar
quando quiser e como entender a campanha de difamação contra mim, o que,
aliás, deve fazer a qualquer pretexto, para ser coerente consigo mesmo; e já que
lhe incorri nos ódios. Não o temo em terreno algum. Não é ele santo da minha
igreja, mas é preciso que eu faça justiça, evitando que a minha subconsciente
malquerança possa prejudicar a sua causa neste momento.
Concedo a ordem.

Nessa primeira parte, também serão analisados votos significativos em pro-


cesso penal, ainda que pertencentes à corrente minoritária, como o amplo conheci-
mento da garantia do habeas corpus e o reconhecimento de prejuízo, não só ao réu,
mas à administração da justiça, no caso de participação de um jurado impedido (HC
31.653, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 26-9-1951).
Além disso, merecem destaque votos valiosos que não perderam atuali-
dade, apesar dos quase sessenta anos decorridos desde que foram proferidos:
o HC 32.386, Pleno, julgado em 25-3-1954, rel. para o acórdão min. Nelson
Hungria, a respeito da tipicidade do crime de prevaricação; o HC 33.440, rel.
para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 26-1-1955, no qual se
decidiu que, “deixado definitivamente o cargo, por qualquer motivo, o seu ex-
-titular responderá no foro comum”; o RC 1.032-EI, rel. para o acórdão min.
convocado Henrique D’Ávila, Pleno, julgado em 16-9-1959, sobre os crimes
de imprensa; e o HC 37.921, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 14-9-
1960, que, superando a vedação de reapreciar provas em habeas corpus, assen-
tou a possibilidade de considerar e valorar provas e elementos fáticos.
Memória Jurisprudencial

Na segunda parte, será dada atenção à jurisdição constitucional, especial-


mente quanto aos votos do ministro Nelson Hungria sobre graves discussões
institucionais, tais como o célebre caso Café Filho (HC 33.908, rel. min. convo-
cado Afrânio Costa, Pleno, julgado em 21-12-1955; e MS 3.557, rel. para o acór-
dão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, julgado em 7-11-1956). O polêmico
voto, até hoje criticado e debatido, sobressai por sua clareza, aduzindo:
Afastado “o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade”, a
resolução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material
em que se acha o Sr. Café Filho, de reassumir a Presidência da República, em
face da imposição dos tanke e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da
Constituição e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os
bons propósitos dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a
ilicitude dos meios, não há jeito, por mais auspicioso, de considerá-la uma situa-
ção que possa ser apreciada e resolvida de jure por esta Corte.
É uma situação de fato criada e mantida pelas forças das armas, contra
a qual seria, obviamente, inexequível qualquer decisão do Supremo Tribunal.
A insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título
de glória, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infligiram; sua
vontade é que conta, e nada mais.
(...)
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá
uma contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser
feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade
de, numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a
insurreição.
(...)
Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir,
a pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples
pintura decorativa — no teto ou na parede das salas de Justiça. Não pode ser
oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta
seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano
preto de nossas togas.

Ademais, serão destacados os votos vencidos do ministro Nelson Hungria na


importante questão de desmembramento de municípios e da autonomia municipal
(Rp 199, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 30-7-1954; Rp 210, rel. para o
acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, julgado em 4-10-1955; e Rp 285, rel.
min. Rocha Lagôa, Pleno, julgado em 22-1-1958, entre outros).
Importantes temas hodiernos também foram apreciados com maestria
pelo ministro Nelson Hungria e precisam ser analisados. Nesse sentido, tem-se
a declaração de inconstitucionalidade de emenda constitucional estadual edi-
tada com o propósito de circunscrever a iniciativa do chefe do Poder Executivo
(Rp 164, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, julgado em 16-6-1952); a regra do
full bench para a declaração de inconstitucionalidade de normas (RE 15.343, rel.
min. Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 18-9-1952); e a aplicação da
Ministro Nelson Hungria

lei vigente ao tempo da aposentadoria, e não do ingresso no serviço (MS 3.126,


rel. min. convocado Sampaio Costa, Pleno, julgado em 27-5-1955).
Outras manifestações devem ser destacadas: a aplicação retroativa de lei
sucessória sob a égide da Constituição de 1937 (AR 215, rel. min. Edgard Costa,
Pleno, julgado em 17-7-1951), a manutenção de prefeitos indicados pelo governa-
dor até a posse dos prefeitos e vice-prefeitos eleitos (Rp 179, rel. min. Hahnemann
Guimarães, Pleno, julgado em 15-12-1952), a aplicabilidade de lei federal (Código
Penal Militar) a policiais militares estaduais (CJ 2.046, rel. min. Nelson Hungria,
julgado em 6-7-1953) e a constitucionalidade da delegação legal ao presidente da
República para regulamentar o salário mínimo (MS 2.655, rel. para o acórdão min.
convocado Afrânio Costa, Pleno, julgado em 5-7-1954).
Em síntese, nessa parte serão abordados os mais relevantes temas consti-
tucionais discutidos pelo ministro Nelson Hungria na época, os quais iluminam
atuais questões.
Por fim, na terceira parte, serão salientados os votos do ministro Nelson
Hungria nos demais ramos dogmáticos do direito, tais como o direito civil, o
processo civil, o direito internacional, o administrativo e o tributário.
No que tange ao direito administrativo, destacam-se os votos prolatados
a respeito da responsabilidade civil do Estado em caso de guerra externa ou
guerra civil (ACi 7.496-embargos, rel. min. Edgard Costa, Pleno, julgada em
13-7-1953), da necessidade de concurso público para ingresso na magistratura
de carreira (RE 22.542, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, julgado em
31-8-1953) e da obrigatoriedade do aproveitamento de funcionário em disponi-
bilidade no caso de restabelecimento do cargo extinto (RE 21.219, rel. min. Luiz
Gallotti, Primeira Turma, julgado em 10-11-1952).
Relativamente ao direito tributário, revelam-se importantes os seguin-
tes precedentes: o que concluiu que não se estendem aos sócios as isenções
concedidas à renda de pessoas jurídicas (ACi 9.597, rel. min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, julgada em 31-7-1952), o que declarou a inconstitucionalidade
da taxa de registro e fiscalização de São Paulo (RE 18.606, rel. para o acórdão
min. convocado Afrânio Costa, Pleno, julgado em 15-8-1954), o que garantiu a
isenção das cooperativas (RE 18.998, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, julgado em 8-5-1952) e o que diferenciou taxas e impostos para
efeito de bitributação (RE 19.027, rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma, jul-
gado em 20-12-1951), entre outros importantes votos.
No que concerne ao direito civil, pronunciou-se o ministro Nelson Hungria
em interessantes casos, como o a propósito da proteção do adquirente de boa-fé,
seja com relação a imóveis (RE 19.715, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, julgado em 26-6-1952), seja com relação a títulos da bolsa vendidos
Memória Jurisprudencial

sem intermediação de corretores (RE 20.256, rel. min. Mario Guimarães, Primeira
Turma, julgado em 19-6-1952); e a respeito da possibilidade de reconhecimento
de paternidade sem prévia anulação do falso registro (RE 21.046, rel. min. Nelson
Hungria, Primeira Turma, julgado em 18-9-1952).
No que se refere ao direito eleitoral, ganha relevo o decidido no RE
19.285/DF, rel. para o acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado em 22-11-
1951, no qual se determinou que o partido que não alcançou o quociente eleito-
ral não pode concorrer na distribuição das sobras.
Infelizmente, apenas uma pequena parte dos arestos que contaram com a
participação do ministro Nelson Hungria poderá ser destacada neste trabalho,
por contingência de tamanho e de foco. Por essa razão, o autor pede escusas,
desde logo, da inevitável ausência de votos não selecionados para comporem
esta obra.
Memória Jurisprudencial

1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

Como bem apontou Emilia Viotti da Costa, o ministro Nelson Hungria e


a maioria de seus contemporâneos no Supremo Tribunal Federal nasceram nas
últimas décadas do século XIX e amadureceram durante a Primeira República10.
Com efeito, eles testemunharam acontecimentos mundiais significativos,
como as duas guerras mundiais, a crise de 1929, a ascensão de regimes totalitá-
rios nazistas, fascistas e comunistas e o acirramento da Guerra Fria.
Destaque-se, em especial, não só o impacto das duas guerras mundiais,
como também o da expansão dos regimes autoritários, que marcaram o século
XX por sua violência e tragédia em escalas sem precedentes.
No País, esses ministros vivenciaram crescentes greves; golpes e contra-
golpes; as Revoltas de 1922 e 1924 e a Coluna Prestes; constantes restrições aos
direitos fundamentais e reiteradas decretações de estado de sítio; a Revolução
de 1930; a ditadura do Estado Novo; o crescimento da inflação; e as habituais
intervenções do Exército no cenário político.
O próprio Supremo Tribunal Federal sofreu diversos ataques à sua
independência e autonomia, que culminaram na redução de sua competência
e do número de ministros, além de na aposentadoria compulsória de seis de
seus membros, em 18-2-1931: ministros Pires e Albuquerque, Muniz Barreto,
Pedro Mibieli, Godofredo Cunha, Geminiano da Franca e Pedro dos Santos.
A CF/193711 chegou a delegar ao presidente da República a nomeação do presi-
dente e do vice-presidente da Suprema Corte.
Nos quase dez anos de exercício da judicatura no Supremo Tribunal
Federal do ministro Nelson Hungria, esteve vigente no País apenas a democrá-
tica Constituição de 1946 (CF/1946)12.
Não obstante, o período compreendeu momentos institucionais deli-
cados, tais como o suicídio do presidente Getúlio Vargas, em 1954, e a crise
do presidente Café Filho, impedido de reassumir a presidência da República.
Naquela época, grande era a responsabilidade da Corte Suprema pela estabili-
dade da Carta Magna e do incipiente sistema democrático.
Atualmente, parece autoevidente o exercício de direitos relacionados à
livre manifestação de pensamento na democracia, como a propaganda de parti-
dos políticos e de movimentos ideológicos — ainda que tendentes a desconsti-
tuir o próprio sistema democrático. No entanto, na década de 1950, o avanço dos
10
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 142.
11
Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937.
12
Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946.

30
Ministro Nelson Hungria

regimes totalitários comunistas, sob patrocínio e orientação da então União das


Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), demandou limites que culminaram
na própria ilegalidade do Partido Comunista no Brasil.
Naquele período, o estabelecimento da cortina de ferro na Europa orien-
tal, o bloqueio de Berlim (24-6-1948), a Revolução Maoísta (1949), a Guerra
da Coreia (25-6-1950), a divulgação dos crimes de Stalin por Nikita Kruschev
(25-2-1956) e a Revolução Cubana (1959) — associados a levantes armados
no País, como os de novembro de 193513 — dominavam o imaginário popular,
dividiam a sociedade e justificavam o receio da implantação de ditadura comu-
nista no Brasil e o emprego de restrições a direitos e liberdades fundamentais.
Obviamente, essas circunstâncias se refletiam nas leis e na jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal no período.
Por outro lado, instituições e garantias democráticas ainda estavam
pouco maduras, razão pela qual era comum o rigor no tratamento de ativis-
tas comunistas e debates árduos em assuntos atualmente corriqueiros, como a
declaração da imprestabilidade de provas obtidas mediante tortura de acusados
e testemunhas. A propósito desse tema, confira-se o HC 37.921/SE, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960.
Além disso, os resultados eleitorais eram reiteradamente desafiados pelos
derrotados, desde a primeira eleição realizada, que elegeu o general Eurico
Gaspar Dutra em 1945 com 55% dos votos, pelo Partido Social Democrático
(PSD), o que representava cerca de 13% da população do País.14
Naquele momento, dispunha a Constituição de 1946 sobre a competência
do Supremo Tribunal Federal:
Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete:
I — processar e julgar originariamente:
a) o Presidente da República nos crimes comuns;
b) os seus próprios Ministros e o Procurador-Geral da República nos
crimes comuns;
c) os Ministros de Estado, os Juízes dos Tribunais Superiores Federais,
os Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados, do Distrito Federal
e dos Territórios, os Ministros do Tribunal de Contas e os Chefes de Missão
Diplomática em caráter permanente, assim nos crimes comuns como nos de res-
ponsabilidade, ressalvado, quanto aos Ministros de Estado, o disposto no final
do art. 92;
d) os litígios entre Estados estrangeiros e a União, os Estados, o Distrito
Federal ou os Municípios;

13
Cf. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por Ismênia
Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 42-43.
14
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 123.

31
Memória Jurisprudencial

e) as causas e conflitos entre a União e os Estados ou entre estes;


f) os conflitos de jurisdição entre Juízes ou Tribunais Federais de Justiças
diversas, entre quaisquer Juízes ou Tribunais Federais e os dos Estados, e entre
Juízes ou Tribunais de Estados diferentes, inclusive os do Distrito Federal e os
dos Territórios;
g) a extradição dos criminosos, requisitada por Estados estrangeiros e a
homologação das sentenças estrangeiras;
h) o habeas corpus, quando o coator ou paciente for Tribunal, funcio-
nário ou autoridade cujos atos estejam diretamente sujeitos à jurisdição do
Supremo Tribunal Federal; quando se tratar de crime sujeito a essa mesma juris-
dição em única instância; e quando houver perigo de se consumar a violência,
antes que outro Juiz ou Tribunal possa conhecer do pedido;
i) os mandados de segurança contra ato do Presidente da República, da
Mesa da Câmara ou do Senado e do Presidente do próprio Supremo Tribunal
Federal;
j) a execução das sentenças, nas causas da sua competência originá-
ria, sendo facultada a delegação de atos processuais a Juiz inferior ou a outro,
Tribunal;
k) as ações rescisórias de seus acórdãos;
II — julgar em recurso ordinário:
a) os mandados de segurança e os habeas corpus decididos em última
instância pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão;
b) as causas decididas por Juízes locais, fundadas em tratado ou con-
trato da União com Estado estrangeiro, assim como as em que forem partes um
Estado estrangeiro e pessoa domiciliada no País;
c) os crimes políticos;
III — julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou
última instância por outros Tribunais ou Juízes:
a) quando a decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à
letra de tratado ou lei federal;
b) quando se questionar sobre a validade de lei federal em face desta
Constituição, e a decisão recorrida negar aplicação à lei impugnada;
c) quando se contestar a validade de lei ou ato de governo local em face
desta Constituição ou de lei federal, e a decisão recorrida julgar válida a lei ou
o ato;
d) quando na decisão recorrida a interpretação da lei federal invocada
for diversa da que lhe haja dado qualquer dos outros Tribunais ou o próprio
Supremo Tribunal Federal.
IV — rever, em benefício dos condenados, as suas decisões criminais em
processos findos.
Art. 102. Com recurso voluntário para o Supremo Tribunal Federal, é
da competência do seu Presidente conceder exequatur a cartas rogatórias de
Tribunais estrangeiros.

32
Ministro Nelson Hungria

Além de ter retomado princípios democráticos e direitos fundamentais, a


CF/1946 restaurou a tradição de controle judicial, principalmente do controle de
constitucionalidade de leis e atos normativos15.
Com efeito, extinguiu-se a possibilidade de o presidente da República
submeter ao parlamento a confirmação de lei declarada inconstitucional pelo
Supremo Tribunal Federal, prevista na Constituição de 1937 (CF/1937), e for-
taleceu-se a representação interventiva, assim prevista no texto constitucional:
Art. 7º O Governo federal não intervirá nos Estados salvo para:
(...)
VII — assegurar a observância dos seguintes princípios:
a) forma republicana representativa;
b) independência e harmonia dos Poderes;
c) temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das
funções federais correspondentes;
d) proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, para o período
imediato;
e) autonomia municipal;
f) prestação de contas da Administração;
g) garantias do Poder Judiciário.
Art. 8º A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos nº s VI
e VII do artigo anterior.
Parágrafo único. No caso do nº VII, o ato arguido de inconstitucionali-
dade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo
Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção.

A Lei 2.271, de 22 de julho de 1954, regulamentou a arguição de incons-


titucionalidade nos seguintes termos:
O Congresso Nacional decreta e eu promulgo, nos termos do art. 70, §4º,
da Constituição Federal, a seguinte Lei:
Art. 1º Cabe ao Procurador-Geral da República, toda vez que tiver
conhecimento da existência de ato que infrinja algum dos preceitos assegurados
no art. 7º, inciso VII, da Constituição Federal, submeter o mesmo ao exame do
Supremo Tribunal Federal.
Parágrafo único. Havendo representação de parte interessada, a qual
deverá ser em 2 (duas) vias, o ato arguido de inconstitucionalidade será, subme-
tido pelo Procurador-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, dentro
de 90 (noventa) dias, a partir do seu recebimento.
Art. 2º Nesse prazo, por 45 (quarenta e cinco) dias improrrogáveis, conta-
dos da comunicação da respectiva assinatura, o Procurador-Geral da República
ouvirá, sobre as razões da impugnação do ato, os órgãos que o tiverem elabo-
rado, ou expedido.

15
Cf. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo
Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 989-991.

33
Memória Jurisprudencial

Art. 3º A falta, ou retardamento, da manifestação dos órgãos em apreço,


não prejudicará a observância do prazo constante do parágrafo único do art. 1º
desta Lei.
Art. 4º Aplica-se ao Supremo Tribunal Federal o rito do processo do man-
dado de segurança, de cuja decisão caberá embargos caso não haja unanimidade.
Art. 5º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.

Nessa época, a classe processual representação era utilizada tanto para


fins penais (v.g., Rp 211/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 26-5-1954), como
para conflitos entre Poderes (v.g., Rp 406/RN, rel. min. Vilas Boas, Pleno, 5-8-
1959) e para declaração de inconstitucionalidade de atos e normas (Rp 414/PR,
rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 11-7-1960).
Preparam-se, assim, os primeiros passos do controle abstrato de consti-
tucionalidade de leis e atos normativos no Brasil, culminando na EC 16/1965.
Portanto, investiam-se novos poderes e responsabilidades no Supremo
Tribunal Federal, que deveria zelar não só pelos direitos fundamentais assegu-
rados na Carta Magna como pela própria ordem constitucional vigente, cons-
tantemente ameaçada por instabilidades e conflitos passados.
Quando Nelson Hungria tomou posse no cargo de ministro do Supremo
Tribunal Federal, em 4 de junho de 1951, compunham a Corte os ministros José
Linhares (presidente), Barros Barreto e Orozimbo Nonato (vice-presidente) —
nomeados pelo presidente Getúlio Vargas; Lafayette de Andrada, Edgard
Costa, Ribeiro da Costa — nomeados por José Linhares no exercício da pre-
sidência; Hahnemann Guimarães, Luiz Gallotti e Rocha Lagôa — nomea-
dos pelo presidente Eurico Gaspar Dutra; e Mario Guimarães — nomeado na
segunda presidência de Getúlio Vargas, assim como o próprio Nelson Hungria.
Durante o exercício de sua judicatura no Supremo Tribunal Federal,
foram também contemporâneos na Corte, além dos convocados, os ministros
Ary Franco (nomeado por Nereu Ramos no exercício da presidência para a
vaga do ministro José Linhares), Candido Motta (nomeado pelo presidente
Juscelino Kubitschek para a vaga do ministro Mario Guimarães), Vilas Boas
(nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek para a vaga do ministro Edgard
Costa), Gonçalves de Oliveira (nomeado pelo presidente Juscelino Kubitschek
para a vaga do ministro Orozimbo Nonato) e Victor Nunes (nomeado pelo pre-
sidente Juscelino Kubitschek para a vaga do ministro Rocha Lagôa).
Ainda, merecem ser ressaltados os ministros convocados do extinto
Tribunal Federal de Recursos, que constantemente compunham a Primeira
Turma e o Plenário do Supremo Tribunal Federal nesse período, entre os
quais Abner de Vasconcelos, Afrânio Costa, Candido Lôbo, Cunha Mello,
Henrique D’Ávila e Sampaio Costa. Não por acaso, esses ministros convocados

34
Ministro Nelson Hungria

funcionavam em casos importantíssimos decididos pelo Supremo Tribunal


Federal e restavam como redatores da posição majoritária, uma vez que eram os
primeiros a votar, após a manifestação do relator.

35
Memória Jurisprudencial

2. JURISPRUDÊNCIA

2.1 Direito penal e processual penal


O Príncipe dos Penalistas Brasileiros muito marcou a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal pelos magníficos votos na matéria penal e de pro-
cesso penal.
Por vocação e dedicado aprofundamento acadêmico, o ministro Nelson
Hungria notabilizou-se pelo domínio do direito penal, seja como magistrado,
seja como professor, seja como ativo participante dos projetos legislativos.
Nesta primeira parte, serão analisados os mais significativos votos do
ministro Nelson Hungria concernentes ao direito penal e ao processual penal.
Destaque-se que esses precedentes tratam de diversos dispositivos legais
que estão em vigor até hoje, principalmente considerando o Código Penal e o
Código de Processo Penal.
2.1.1 Crimes políticos
Consoante o art. 101, II, c, da CF/1946, cabia ao Supremo Tribunal Federal
julgar os recursos ordinários de sentenças que apreciavam crimes políticos.
Essencialmente, os crimes políticos eram definidos pelo Decreto-Lei 431, de
18 de maio de 1938, e pela Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que tipificava as ações,
inclusive a propaganda, que visavam modificar a ordem política e social por meios
não permitidos em lei.
Neste contexto, enquadravam-se as ações de movimentos revolucionários,
em especial integralistas e comunistas16. É certo que esses grupos, capitaneados
respectivamente pela Ação Integralista Brasileira (AIB) e pela Aliança Nacional
Liberadora (ANL), pretendiam implantar regimes totalitários, baseados em partidos
únicos e que se afastavam do ideal democrático.
No entanto, a perseguição a esses movimentos muitas vezes atentava contra
direitos fundamentais, principalmente quanto à manifestação de pensamento e opi-
nião, e servia como fundamento para o autoritarismo crescente do Estado Novo e
para a desestabilização do regime democrático inaugurado pela CF/1946.
Relativamente aos comunistas, de forma particular, muitos crimes políticos
foram apreciados pelo Poder Judiciário, sobretudo em decorrência da declaração da
ilegalidade do Partido Comunista pela Justiça Eleitoral, em sentença judicial transi-
tada em julgado, sob o fundamento de ser contrário à ordem pública.

16
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 98.

36
Ministro Nelson Hungria

Assim, cabia ao Supremo Tribunal Federal julgar as apelações dos pro-


cessos criminais, como forma de garantir os direitos constitucionais e a ordem
constitucional.
Desde sua posse, o ministro Nelson Hungria não tergiversou ao votar
pela condenação dos acusados que, extrapolando seu direito de manifestação
de pensamento, incitavam à luta armada contra a ordem política democrática da
CF/1946, aduzindo:
Senhor Presidente, a incriminação da difusão ou perigo de difusão de
processos subversivos da nossa ordem política, no meu entender, em que pese o
Sr. ministro revisor, não colide com a Constituição, não ofende nenhum de seus
preceitos. Não era possível que a Constituição impedisse essa incriminação,
isto é, a incriminação da propaganda ou perigo de difusão ou propaganda de
processos atentatórios da ordem política, que dizem de perto com a segurança
do Estado.
Evidentemente, estava implicitamente excepcionado, no preceito invo-
cado pelos Srs. ministros relator e revisor, esse caso. Se o direito penal comum
incrimina a apologia dos crimes comuns, por que a ordem política teria de se
abster de incriminar os fatos orientados no sentido de sua própria subversão?
Teria de cruzar os braços diante da ameaçadora onda subversiva? No caso,
segundo leitura que acaba de ser feita pelo Sr. ministro Afrânio Antonio da
Costa, verifica-se o caráter francamente subversivo dos panfletos apreendidos,
com incitamento à luta pela violência, ou concitamento a uma ação tendente a
destruir o regime atual.
(Voto na ACr 1.450/SP, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 6-6-1951.)
Senhor Presidente, em que pese ao eminente Sr. ministro relator, fico
com o eminente Sr. ministro revisor.
Se a Constituição proíbe a propaganda de meios subversivos contra a
segurança do Estado, contra a ordem política, evidentemente permite que a lei
ordinária incrimine todos os fatos que tenham por fim essa propaganda.
Em matéria de defesa do Estado, os critérios penais, tradicionalmente,
secularmente, divergem daqueles adotados na lei penal comum.
Já dizia Catão da Útica que, nos crimes contra o Estado, se se fosse
esperar pela consumação deles, não haveria criminosos a punir, mas heróis a
aplaudir. De modo que o Estado, advertido pela lição da História, não se limita
a incriminar, em tal caso, o dano efetivo ou o concreto perigo de dano: incri-
mina o próprio perigo remoto, e vai colher o crime nos atos preparatórios, antes
mesmo que surja um perigo imediato, um perigo iminente. É punida a criação
do simples perigo de perigo.
É o que ocorre na espécie. O apelante tinha em seu poder uma série de
panfletos subversivos, de franco incitamento ao emprego de meios violentos
contra o nosso vigente regime político. Não há indagar se ele, no momento,
estava distribuindo esses panfletos: a lei incrimina o simples fato de ele os ter
em seu poder ou sob sua guarda.
(...)

37
Memória Jurisprudencial

Não vejo em que o dispositivo da Lei de Segurança colide com o preceito


constitucional; ao contrário, a ele se ajusta, a ele se afeiçoa plenamente, pois a
Constituição proíbe a propaganda de meios violentos contra a ordem política.
(Voto na ACr 1.452/SP, rel. para o acórdão min. Edgard Costa, Pleno,
20-6-1951.)
Da mesma forma, é da relatoria do ministro Nelson Hungria precedente
do Plenário que declarou a constitucionalidade da Lei 1.802/1953 em face da
CF/1946 (HC 32.618/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-9-1953). Na opor-
tunidade, o ministro Nelson Hungria assim se manifestou:
Nada tem de inconstitucional a Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, defi-
nidora dos crimes contra o Estado e a ordem política e social. Ao contrário,
encontra ela evidente apoio no próprio capítulo que a Constituição vigente con-
sagra aos “direitos e garantias individuais”, isto é, nos § 5º, in fine, § 12 e § 13
do art. 141. Não há liberdade de manifestação do pensamento para o preconício
de processos violentos e subversivos da ordem político-social, nem liberdade de
associação para fins ilícitos, ou para organização ou funcionamento de partidos
políticos ou agremiações cujo programa ou ação contrarie o regime democrático
instituído pela Carta de 1946.
(HC 32.618/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-9-1953.)
Por outro lado, já no ano de 1951, diversos votos do ministro Nelson Hungria
contrariaram a orientação predominante e manifestaram posição mais tolerante, fun-
dada na liberdade de opinião quanto aos crimes contra a segurança nacional.
Por exemplo, destacam-se os votos vencidos do ministro Nelson Hungria
que exigiam dolo específico para os crimes contra a segurança nacional, desde
o crime de injúria, previsto no Decreto-Lei 431/1938 (HC 31.682/DF, rel. min.
Lafayette de Andrada, Pleno, 29-8-1951), e a organização e direção de socie-
dades de fins subversivos da ordem política e social (RvC 4.544/SP, rel. para
o acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 28-11-1952), até crimes vio-
lentos, como homicídio de magistrado (RC 1.024/RJ, rel. min. Barros Barreto,
Pleno, 7-8-1957).
Além disso, constantemente, os votos do ministro Nelson Hungria apon-
tavam a ausência de crime na simples realização de propaganda comunista,
diferenciando-a da propaganda de processos violentos contra a ordem consti-
tucional. Na ACr 1.456/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 19-9-1951,
manifestou-se, em voto vencido, o ministro Nelson Hungria:
Senhor Presidente, data venia dos Srs. ministros relator e revisor e dos
que me precederam na votação, entendo que, no caso, não se configura crime
algum. O que a atual Constituição proíbe é a propaganda de processos violentos
contra a ordem político-social. Em face do art. 141, § 5º, é lícita a propaganda
de qualquer credo político, uma vez que se não faça apologia do emprego de
meios subversivos do regime político-social. Neste ponto, o genérico inciso 9º

38
Ministro Nelson Hungria

do art. 3º da Lei de Segurança, de 1938, está derrogado: só continua em vigor


no tocante à propaganda de processos violentos contra o atual regime de Estado.
Fazer propaganda do comunismo ou fazer propaganda do partido comunista
não é, necessariamente, fazer propaganda de tais processos. O credo comunista
não se confunde com o famoso Manifesto Comunista, que aconselhava a revo-
lução universal. Pode haver comunismo e partido comunista sem esse objetivo
belicoso.
Dentro dos trâmites do próprio processo chamado “constitucionalismo”,
que impera nos países democrático-liberais, será possível a implantação do
regime marxista. Não se pode dizer, assim, que a simples propaganda do comu-
nismo, como um ideal político a realizar-se, sem que se faça referência alguma
a emprego de meios violentos, ou mesmo à apologia da Revolução Russa,
como acontecimento histórico, continua a ser crime. Pode fazer-se o elogio
da Revolução Russa, como se faz da Revolução Francesa. Não vejo como isso
possa exceder a órbita da liberdade de opinião assegurada pela Constituição.
(Voto vencido na ACr 1.456/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno,
19-9-1951.)
Nelson Hungria também afastava com bastante veemência os delitos de
propaganda subversiva, apontando o exagero na tipificação pela posse de um
único folheto ou exemplar do estatuto do Partido Comunista, como no julga-
mento da ACr 1.462/SP, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 18-1-1952, em que afirmou, em voto vencido:
Entre os papéis apreendidos, há, realmente, um estatuto do Partido
Comunista. Mas, quid inde? Também eu tenho entre os meus papéis um
exemplar desse estatuto, e estarei, acaso, infringindo a Lei de Segurança?
Absolutamente não. A própria unidade do exemplar está a significar que sua
posse não atende a fim de propaganda, mas de estudo ou leitura exclusivamente
por parte do possuidor.
(ACr 1.462/SP, rel. para o acordão min. convocado Afrânio Costa, Pleno,
18-1-1952.)
Marcantes, neste ponto, foram seus votos pela não configuração, como
crime de propaganda de guerra, das manifestações contra a intervenção do
Brasil na Guerra da Coreia. Com efeito, assentou o ministro Nelson Hungria,
com fundamento na CF/1946, que as manifestações pela não intervenção brasi-
leira à invasão da Coreia do Norte pela Coreia do Sul, em 25-6-1950, não eram
equivalentes à propaganda de guerra:
Quanto à posse dos boletins acentuando o horror das mãos pela guerra,
também não é criminosa.
O que a Constituição proíbe e a Lei de Segurança incrimina é a propa-
ganda de guerra.
A propaganda contra a guerra é ato lícito e indiscutivelmente louvável.
Entende o Sr. ministro relator, porém, que no caso concreto, esses boletins, con-
jugados com a bandeirola anunciando que “os soldados, nossos filhos, não irão à
Coreia” constituem crime de incitamento, entre militares, à desobediência à lei, à

39
Memória Jurisprudencial

indisciplina e à deserção. Ora, pergunto eu: onde há lei que ordenava a expedição de
tropas à Coreia? Será, acaso, verdade que, algum dia, o nosso Governo pretendeu,
realmente, enviar tropas à Coreia? Se isto, alguma vez, foi objeto de cogitações, não
passou daquele material que serve para calcamento do Inferno. Tudo quanto se disse
a respeito não passou de boato. E, se o nosso Governo tivesse chegado a cogitar dessa
expedição, teria desistido de tal propósito, de modo que sua atitude de abstenção
veio a coincidir com o pensamento externado pela apelante. O crime a atribuir-se à
apelante, admitida a desclassificação proposta pelo Sr. ministro relator, teria como
elemento condicionante um boato, e, o que é mais, um boato desmentido. (...)
A mulher que erradamente se supõe grávida e ingere substâncias abortivas
não comete o crime de aborto. Assim também a apelante, que, supondo falsamente
a iminência de participação do Brasil na guerra coreana, incita os soldados a não
seguir, não cometeu o crime de incitamento à desobediência, indisciplina ou deser-
ção. Num caso e noutro, falta um elemento mínimo objetivo indispensável à configu-
ração do crime: a ocorrência concreta de um perigo de dano.
(Voto que acompanhou a maioria na ACr 1.448/SP, rel. p/ o ac. min. con-
vocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 20-9-1951.)
Entendo que os fatos imputados não constituem crime, em face da
Constituição vigente. O que esta proíbe é a propaganda de guerra ou de subver-
são violenta da ordem política ou social. No caso, trata-se de difusão de bole-
tins convidando o povo para a Conferência de Paz. Não pode ser incriminada a
propaganda de paz. Provocar movimento de opinião pela paz não é apenas uma
ação lícita, senão também louvável.
(Voto na ACr 1.455/SP, rel. min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno,
28-11-1951.)
Com a edição da Lei 1.802/1953, o entendimento do ministro Nelson
Hungria — até então reiteradamente vencido — passou a prevalecer em diversos
julgamentos do Plenário, como na ACr 1.511/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães,
Pleno, 28-5-1954; na ACr 1.497/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 12-6-1953; na
ACr 1.496/DF, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 12-6-1953; na ACr 1.498/SP,
rel. para o acórdão min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-6-1953; no RC 993/GO,
rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 6-6-1953; na ACr 1.504/SP, rel.
para o acórdão min. convocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 19-10-1953; na ACr
1.557/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 11-11-1960; no HC 37.928/SP, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 21-12-1960; e na ACr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria,
Pleno, 16-7-1954, esta última assim ementada:
O simples fato de proferir, num raptus de entusiasmo, “vivas”, ao comunismo
e “morra” ao chefe de Governo, não pode ser considerado propaganda subversiva e,
muito menos, serviço prestado à tentativa de reorganização do partido comunista.
(ACr 1.516/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-7-1954.)
Em sentido semelhante, o decidido na ACr 1.530/SP, rel. min. Orozimbo
Nonato, Pleno, 16-8-1955, cujo voto do ministro Nelson Hungria constitui ver-
dadeiro libelo na defesa da liberdade de convicção e de manifestação, verbis:

40
Ministro Nelson Hungria

Senhor Presidente, nunca é demais acentuar que a nossa Constituição


dispõe, com todas as letras, no § 8º do art. 141: “Por motivo de convicção reli-
giosa, filosófica ou política, ninguém será privado de nenhum de seus direitos”.
E, em outro parágrafo do mesmo artigo, assegura a liberdade de pen-
samento, salvo no tocante à propaganda de meios subversivos da ordem
político-social.
Se interpretarmos a Lei 1.802, no sentido de incriminar até mesmo a mani-
festação de ideias comunistas, estamos contrariando preceitos constitucionais.
Não há crime em ter-se convicções comunistas e manifestá-las. Não
comete crime algum quem afirma, de público e razo, que o clima soviético é
mais saudável que o clima democrático.
O que é crime é fazer propaganda e defender ideias no sentido da subver-
são violenta do regime vigente entre nós. A Lei 1.802 só pode ser interpretada à
luz dos citados dispositivos constitucionais.
Declara a Lei 1.802 que é crime reorganizar ou tentar reorganizar partido
cujo registro tenha sido cassado, tal como no caso anterior, do julgamento da
ACr 1.534, também no processo que estamos julgando não se apresenta partido
comunista reorganizado ou que se tenta reorganizar. Trata-se, apenas, de dois ou
três indivíduos surpreendidos na posse de impressos que se diz serem de caráter
subversivo ou pleiteando ideias no sentido implícito de uma rebelião violenta
contra a ordem político-social, que impera entre nós.
Desconfio muito dessa imputação, pois já uma vez disse aqui, e repito: o sim-
ples fato de propugnar por ideias dentro da corrente comunista não implica, neces-
sariamente, o precocínio do emprego de meios violentos. É possível a transformação
de um Estado democrático em Estado soviético sem derramamento de sangue, sem
emprego de violência, a história contemporânea dá exemplo disso.
(Voto na ACr 1.530/SP, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno, 16-8-1955.)
Além disso, o ministro proferiu o voto condutor na ACr 1.486 (rel. para o
acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, julgado em 30-12-1952), decidido por voto
desempate do ministro presidente. Nele, Nelson Hungria pontuou a necessidade de
dolo específico para a perturbação da ordem político-social quanto aos delitos ins-
critos na Lei de Segurança Nacional, em vigor à época. Ou seja, a maioria liderada
pelo ministro Nelson Hungria entendeu que a convocação de greve para aumento de
salários — ainda que greve ilegal — não constituía crime contra a segurança nacio-
nal quando não visava “à perturbação da ordem político-social”.
Nesse sentido, o Plenário começou a exigir, com o voto do ministro
Nelson Hungria, o dolo específico para configuração de outros crimes contra
a segurança nacional, como a posse de armas de guerra (ACr 1.479, rel. min.
Ribeiro da Costa, Pleno, 20-6-1952).
Outro caso significativo em que prevaleceu o voto do ministro Nelson
Hungria, também por voto desempate do ministro presidente, cuidou da dispersão de
comício de estudantes realizado nas escadarias do Palácio da Justiça em São Paulo
(ACr 1.515/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 30-7-1954).

41
Memória Jurisprudencial

O então relator, ministro Mario Guimarães, mantinha a sentença condenatória


dos dois oradores sob o fundamento de que o comício não tinha sido autorizado para
aquele local e os réus só se retiraram “quando entraram na praça as forças policiais e
os agarraram, donde então resultou o pânico”.
A divergência foi inaugurada, então, pelo ministro Nelson Hungria, que res-
saltou que a desobediência só poderia configurar-se caso houvesse recalcitrância ou
resistência após a determinação de dissolução da manifestação. Assentou seu voto
vencedor, que não se eximiu de criticar o aparato repressivo policial:
Não houve recalcitrância alguma; ao contrário, o que ocorreu, logo após a
chegada dos policiais, foi o movimento geral de retirada, dissolvendo-se o comício.
Precisamente a hipótese prevista pelo referido parágrafo [§ 2º do art. 19
da Lei 1.802/1953], como excludente de punibilidade.
O processo penal contra os apelantes foi uma demasia, em contraste
franco com a lei.
Com o imediato movimento de dissolução do comício, a autoridade poli-
cial estava adstrita a abster-se de efetuar prisões, aguardando o completo resta-
belecimento da normalidade da ordem no local.
O comício criminoso é somente aquele cujos componentes, à aproxima-
ção da autoridade policial ou após a determinação da dissolução, mostram-se
rebeldes e teimam na continuidade da reunião. E tal não ocorreu na espécie.
(Voto condutor da ACr 1.515/SP, rel. para o acordão min. Nelson Hungria,
30-7-1954.)
Desta forma, as firmes convicções do ministro Nelson Hungria, apuradas por
fina técnica penal, muito iluminaram os julgamentos de crimes contra a segurança
nacional, nesse período, na Suprema Corte. Importantes precedentes marcaram a
tolerância da própria democracia com relação à manifestação de pensamento, sem
hesitar em punir os delitos de violência contra o Estado Democrático de Direito.
2.1.2 Crimes de imprensa
Além dos crimes políticos, é importante ressaltar também a contribuição
dada à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na época, pelo ministro
Nelson Hungria, quanto a outro gênero de delitos, também ligados à livre mani-
festação de pensamento, quais sejam, os denominados crimes de imprensa.
Entre eles, cabe destacar o célebre habeas corpus impetrado pelo futuro
ministro Adaucto Cardoso e por Sobral Pinto em favor do jornalista Carlos
Lacerda, em 2-12-1952 (HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952).
Na ocasião, o jornalista fora preso preventivamente por deixar de com-
parecer para depor como testemunha em inquérito que apurava suposto crime
de injúria, por meio da palavra na imprensa contra agente público. Na oportu-
nidade, o polêmico jornalista recusou-se a comparecer e limitou-se a prestar
depoimento por meio de carta aberta, transcrita no jornal que dirigia.

42
Ministro Nelson Hungria

À época, Carlos Lacerda, que já tinha muitos desafetos políticos e seria


figura central no suicídio do presidente Vargas, havia publicado, no Tribuna da
Imprensa, vespertino que dirigia, acusações de irregularidades cometidas por
autoridades policiais na antiga capital. Os acusados, então, ajuizaram queixa-
-crime contra a fonte da matéria, e o jornalista foi arrolado como testemunha.
Com a recusa de prestar depoimento na delegacia, o juiz da 24ª Vara
Criminal do Distrito Federal converteu a testemunha em indiciado e decretou
sua prisão preventiva a requerimento da autoridade policial, sob o fundamento
de que o paciente incidira também no crime de injúria contra agente público,
nos termos do art. 3º, item 25, do Decreto-Lei 431/1938, além de criar obstá-
culos ao regular andamento do inquérito. O decreto de prisão praticamente se
justifica no fato de o paciente ser jornalista, assim dispondo:
Atendendo a que assim dito indiciado [Carlos Werneck Lacerda] vem
criando obstáculos ao regular andamento do inquérito, além de manter uma
atitude de desafio à autoridade o que não se pode admitir em indiciado, o que
legitima a decretação de sua prisão preventiva a bem de instrução criminal;
Atendendo a que essa medida também se impõe porque o citado indi-
ciado está aproveitando a sua liberdade para influir no ânimo da autoridade,
a quem pretende atemorizar com as facilidades da imprensa que possui, o que
constitui uma modalidade de contempt of Court, que o juízo não pode permitir,
porque traria a desmoralização da autoridade de polícia judiciária e afinal recai-
ria sobre o próprio juízo, impedindo-o de proferir sentença final com a liberdade
imprescindível, uma vez que ficaria sujeito a no curso do processo vir a sofrer
campanhas de acintes e insultos, o que o princípio da liberdade de imprensa não
tutela, porque as demais liberdades asseguradas na Constituição dependem...
“upon an untramled aroused and whose minds are not distorted by extra-judi-
cial considerations”, como bem acentuou o ministro Frankfurter ao apreciar
um caso de demasia da imprensa pendente julgamento, o que motivou a sanção
legal (314 US 252, caso “Times-mirror c. versus Superior Court of California”).

O caso é significativo não só pelas figuras que o compõem, como também


pelo precedente que assentou, a um só tempo, amplo prestígio à liberdade de
imprensa, excepcionalidade da prisão preventiva e necessidade de dolo especí-
fico para a injúria fundada na Lei de Segurança Nacional.
Ressalte-se que o habeas corpus, julgado diligentemente pelo Plenário
no dia seguinte à impetração, era de competência do Supremo Tribunal Federal
justamente pelo enquadramento de crime político. Tal fato deslocou para a
Suprema Corte a competência para apreciar a apelação e, consequentemente,
também para julgar o respectivo habeas corpus.
O relator, ministro Luiz Gallotti, votou pela concessão da ordem, desta-
cando que o paciente sofrera “violência inútil”, tendo em seu depoimento apenas
confirmado as informações constantes na carta aberta publicada no vespertino.
Além disso, não cabia prisão preventiva para escutar testemunha; convinha, no
43
Memória Jurisprudencial

máximo, a condução coercitiva, quando necessária. Ademais, assentou o minis-


tro relator, quanto aos obstáculos criados pelo paciente na imprensa:
Outro motivo alegado no decreto de prisão preventiva é que o paciente,
com as facilidades de imprensa que possui, traria a desmoralização da autori-
dade de polícia judiciária e afinal recairia sobre o próprio juízo, impedindo-o de
proferir sentença final com a liberdade imprescindível.
Ora, isso não constitui motivo para prisão preventiva e, se admitido
como tal, deveria levar logicamente não à prisão do paciente, mas ao fecha-
mento do jornal, pois só com tal fechamento, ou mesmo de toda a imprensa, o
juiz pode evitar a influência a que alude.
Por outro lado, o argumento levaria a tornar forçosa a decretação da pri-
são preventiva, sempre que contra jornalista fosse intentada ação penal.
(HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.)
O voto do relator foi seguido à unanimidade pelo Plenário. Ao acompa-
nhá-lo, o ministro Nelson Hungria deixou importante voto que se destaca não
só pelo brilho da técnica jurídica, como, principalmente, pelo testemunho da
consciência do magistrado.
Registre-se que o paciente já havia publicado ácidas críticas pessoais ao
ministro Nelson Hungria. Isso não impediu, no entanto, que o eminente juiz
repudiasse iniquidade praticada contra o polêmico jornalista. Na oportunidade,
assentou o ministro Nelson Hungria:
Senhor Presidente, quando entrei hoje neste recinto, vinha com o propó-
sito de alheiar-me a este julgamento, dando-me por impedido.
Sofri, como é sabido, uma tremenda campanha difamatória por parte
do jornalista ora paciente, e me achei, hoje, entre as guampas deste dilema: se
denegasse o habeas corpus, estaria obedecendo a espírito de vingança; se o
concedesse, estaria revelando medo, querendo fazer as pazes, levantar bandeira
branca, acovardar-me diante desse jornalista, que, realmente, é truculento. Mas
por um lado, de mim para mim, fiz exame de consciência e me certifiquei de que
jamais guardei ódios, nunca meu coração foi ninho de rancores, e apesar de ter
nascido na hinterlândia e lá vivido minha mocidade, nunca aprendi a dormir na
pontaria, atrás do toco. Não sei exercer vindictas, aguardando o adversário na
“volta do caminho”.
Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou
um destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um
covarde; sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as
coisas que me vêm do coração à guela, custe o que custar.
Houve, porém, um argumento que me decidiu. Fiel ao meu ponto de
vista, reiteradamente manifestado em julgamentos, livros e artigos, meu voto
tinha de ser a favor desse homem; e suponhamos que esse meu voto lhe faltasse
e ele viesse, por isso, a ter o habeas corpus denegado. Teria eu contribuído para
uma iniquidade em virtude de minha abstenção.
(...)
Devo insistir em que o paciente não me causa temor; pode ele reiniciar
quando quiser e como entender a campanha de difamação contra mim, o que,

44
Ministro Nelson Hungria

aliás, deve fazer a qualquer pretexto, para ser coerente consigo mesmo; e já que lhe
incorri nos ódios. Não o temo em terreno algum. Não é ele santo da minha igreja,
mas é preciso que eu faça justiça, evitando que a minha subconsciente malquerança
possa prejudicar a sua causa neste momento.
Concedo a ordem.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.)
No mérito, o ministro Nelson Hungria afastou a incidência do delito político
por três precisos fundamentos: (i) ausência de dolo específico para crime contra a
segurança nacional; (ii) ausência de “injúria”, uma vez que a acusação era de calúnia,
delito não previsto no Decreto-Lei 431/1938; e (iii) ausência de “agente público”, uma
vez que a expressão do tipo penal não se refere a qualquer funcionário público, mas
apenas ao que “encarna qualquer dos poderes políticos, aquele que exerce o poder
político direto e primacialmente”. A propósito deste último fundamento, afirmou o
ministro Nelson Hungria, no seu enfático estilo linguístico:
E parece que essa interpretação restritiva é a acertada, porque, a adotar-se o
ponto de vista de amplitude do conceito de “agente de poder público” e desde que se
dispense o dolo específico, vamos chegar a situações verdadeiramente irrisórias. Se,
amanhã, eu me queixar violentamente, numa carta que dirigir a um jornal, da desídia
do lixeiro que serve à minha rua, estaria incorrendo na Lei de Segurança, porque o
gari, o lixeiro da minha rua, é um “agente do poder público”. Não é possível que ado-
temos esse ponto de vista, cuja lógica levará a tal extremo da comédia.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952.)
Por fim, o ministro Nelson Hungria destacou a inadequação dos fundamentos
da prisão preventiva, apontando, inclusive, o ridículo de a medida drástica da prisão
acirrar ainda mais as pressões sobre autoridades, inclusive do próprio juiz:
Em primeiro lugar, o paciente não é preso incomunicável, não está atirado
para dentro de um cárcere sob regime penitenciário. Acha-se sob custódia honesta,
continua com a possibilidade de escrever os seus artigos e de se comunicar com os
seus amigos e companheiros de jornal, que prosseguirão por certo, na campanha
encetada por ele e, talvez, com maior recrudescimento, espicaçados que estão pelo
espírito de desforra. E faltou ao juiz elementar habilidade psicológica; não percebeu
que estava, com seu precipitado ato, contribuindo para a glorificação do paciente,
isto ensejando-lhe a glorificação do martírio. Os próprios inimigos do paciente
devem estar de armas ensarilhadas, de bandeira branca alçada, porque ele sofreu a
injusta violência da prisão preventiva. Foi ele transformado em herói da liberdade
de imprensa, sobre cuja cabeça estão a chover as simpatias nacionais e as bênçãos
cívicas de todo o povo. Aí está o que o juiz foi arranjar. E agora, sim, é que ele, pro-
vocando a opinião pública em favor do acusado, criou a mais grave pressão sobre o
ânimo de policiais e julgadores. Raros são os que resistem aos punhos crispados da
multidão idêntica à que exigiu de Pilatos a condenação de Cristo, em Jerusalém.
Foi contraproducente o desarrazoado decreto de prisão preventiva.
(Voto no HC 32.331/DF, rel. min. Luiz Gallotti, 3-12-1952, destaques no
original.)

45
Memória Jurisprudencial

O Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu, então, à unanimidade,


pela concessão da ordem.
Outrossim, no julgamento dos embargos infringentes no AC 1.032/DF,
rel. para o acórdão min. convocado Henrique D´Ávila, Pleno, julgado em 16-9-
1959, o voto do ministro Nelson Hungria compôs a maioria do Plenário que
entendeu pela possibilidade de configuração de crimes de imprensa impróprios,
isto é, a tipificação de delitos não previstos na lei especial por meio da imprensa.
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria afirmou que a Lei de Imprensa
estabelecia — em razão da garantia constitucional da liberdade de imprensa —
“critérios e regras, cuja peculiaridade se acentua pelo privilegium que passam
a assumir tais crimes” (voto do ministro Nelson Hungria no RC 1.032-EI/DF,
rel. para o acórdão min. convocado Henrique D´Ávila, Pleno, 16-9-1959), mas
sem a pretensão de monopólio sobre todos os delitos que podem ser cometidos
por meio da imprensa. Com a vocação do magistério, o voto do ministro Nelson
Hungria destaca didaticamente vários exemplos de crimes que podem ser come-
tidos por intermédio da imprensa, apesar de não tipificados na Lei de Imprensa,
como violação de direito autoral, estelionato, divulgação de segredo etc.
Em sentido convergente, no julgamento do HC 37.522/DF, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 25-1-1960, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a
Lei de Imprensa é especial em relação aos delitos mais genéricos previstos na Lei
de Segurança Nacional. O aresto restou assim ementado:
A provocação de animosidade entre as classes armadas se enquadra
exclusivamente no art. 9º da Lei de Imprensa, quando praticado por meio de
imprensa.
(HC 37.522/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 25-1-1960.)
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria deixou um brado a favor da liber-
dade de imprensa, nada obstante rechaçar a alegação de inexistência de crime
quando não tipificado na Lei de Imprensa:
Senhor Presidente, ninguém mais do que eu defende, dentro de indecli-
náveis limites, a liberdade de opinião. Nascido nos flancos generosos das mon-
tanhas de Minas, bebi o leite da liberdade até escorrer pelos cantos da boca.
Mas não estamos aqui para dizer se a lei atende ou não atende, extensivamente,
às exigências de liberdade. Temos de cumprir a lei, desde que se apresente na
medida constitucional. No caso presente, afirma-se que os pacientes estariam
incursos, não na Lei de Segurança, mas na Lei de Imprensa, e se algum dos
fatos imputados não está previsto nesta última, não poderá ser considerado
crime. A tese é subversiva: ainda o mais grave dos crimes, quando praticado
por meio de imprensa, deixará de ser ilícito penal, se não está previsto na Lei
de Imprensa. Em anterior julgamento, alinhei toda uma série de crimes que,
segundo semelhante tese, passariam a fatos penalmente lícitos. Imagine-se a
situação de desconforto e perigo a que ficaria sujeita a sociedade brasileira, se

46
Ministro Nelson Hungria

o Supremo Tribunal viesse a sufragar esse entendimento. Já acentuei, de outra


feita, que todas as leis do mundo civilizado que tratam especialmente do crime
de imprensa, própria ou impropriamente tais, de modo algum se orientam no
sentido dessa estranha abolitio criminis. Formule-se o seguinte exemplo, para
evidenciar o despropósito da tese em questão: um indivíduo, “a pedido” de um
jornal, usando linguagem convencional, dá a seus comparsas certas instruções
que tornam possível um homicídio, que, a seguir, é por eles praticado. Pois bem;
ainda que se provasse que as instruções foram condição sine qua non do homi-
cídio, o indivíduo que as forneceu não seria punível como partícipe, porque seu
auxílio foi prestado por meio de imprensa!
Por mais defensor que seja da liberdade de imprensa, jamais poderia con-
cordar com semelhante política criminal.
(Voto no HC 37.522/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 25-1-1960.)
Além disso, cabe destacar o decidido no HC 32.036/AL, rel. min. Nelson
Hungria, 9-7-1952, que assentou a impossibilidade de conversão de pena de
multa em prisão nos crimes de imprensa.
Apesar de o ministro Nelson Hungria entender possível a repristinação
de lei (no caso, de dispositivo da Lei de Imprensa de 1934 que previa a conver-
são da multa não paga em pena de prisão) antes do advento da Lei de Introdução
do Código Civil (LICC)17, seu voto concluiu pela concessão da ordem em razão
do princípio in dubio pro reo, uma vez que na doutrina era bastante controver-
tida a discussão antes da LICC. Como a lei revogada era prejudicial ao réu, o
ministro Nelson Hungria abriu mão de seu entendimento e considerou não cabí-
vel, no caso, a repristinação da regra que permitia a conversão da multa em pena
restritiva de liberdade.
2.1.3 Ampliação da garantia do habeas corpus
Os votos do ministro Nelson Hungria muito contribuíram para a ampli-
tude do habeas corpus como garantia institucional, acolhendo extenso manejo
do remédio heroico.
Mesmo quando denegava a ordem, o ministro Nelson Hungria fazia
questão de frisar que “a garantia do habeas corpus não pode ser restringida na
amplitude com que a assegura a Constituição” (HC 31.623/DF, rel. min. Nelson
Hungria, Pleno, 13-6-1951).
2.1.3.1 Exame de fatos e provas no habeas corpus
Exemplo característico desta ampla cognição é o HC 37.921/SE, rel.
min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960, em que se discutia possibilidade de o

17
Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942.

47
Memória Jurisprudencial

Supremo Tribunal Federal examinar a idoneidade das provas utilizadas para


pronúncia do paciente. O aresto foi assim ementado:
Habeas corpus; sua concessão. De regra, em habeas corpus, não se
reapreciam provas; mas uma coisa é reapreciar provas e outra é reconhecer
a imprestabilidade subjetiva de meios e órgãos de prova. Confissão extor-
quida pela violência conforme reconhece o próprio acórdão confirmatório da
pronúncia.
Depoimentos prestados no inquérito policial e não reproduzidos em
juízo. Conjecturas que, sem base alguma, não podem ser confundidas com
indícios.
Aplicação do art. 580 do Código de Processo Penal.
(HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960.)
Para a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é rotineira a
concessão de habeas corpus para extirpar provas ilícitas e trancar ações penais
fundadas em evidências obtidas ilicitamente (cf., v.g., HC 90.094/ES, rel. min.
Eros Grau, Segunda Turma, 8-6-2010, DJ de 6-8-2010; HC 90.298/RS, rel. min.
Cezar Peluso, Segunda Turma, 8-9-2009, DJ de 16-10-2009; HC 93.050/RJ,
rel. min. Celso de Mello, 10-6-2008, DJ de 1º-8-2008). No entanto, esse enten-
dimento é fruto do desenvolvimento da compreensão do habeas corpus como
garantia à liberdade de locomoção.
Na década de 1950, o entendimento do Supremo Tribunal Federal era
muito mais restritivo quanto à possibilidade de utilização do habeas corpus,
principalmente no que concerne ao convencimento do juiz fundado em provas
e indícios. Naquela época, a Corte não conhecia de habeas corpus impetrados
contra decisão de pronúncia para julgamento do Tribunal do Júri, nem para
qualquer consideração sobre a prova ou indícios utilizados no convencimento
do juízo ordinário.
Os votos do ministro Nelson Hungria — entre eles o proferido no HC 37.921/
SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960 — muito auxiliaram nesse desenvol-
vimento, permitindo ampla abrangência do writ.
Naquela oportunidade, o paciente, tenente-coronel da Aeronáutica, Afonso
Ferreira Lima, tinha sido denunciado como mandante de homicídio executado por
dois outros homens, supostamente para “eliminação de obstáculo às relações amoro-
sas entre o paciente e a mulher da vítima”. No entanto, tanto a sentença de pronúncia
como o acórdão do Tribunal de Justiça de Sergipe fundaram-se na confissão dos
corréus e no depoimento da esposa e da empregada doméstica da vítima, obtidos
por meio de tortura, além de coação moral e física. O relatório do ministro Nelson
Hungria chega a ser chocante:
(...) Os coacusados Euclides Timoteo e José Pereira dos Santos [supostos exe-
cutantes] foram levados, à noite, para a solidão da Estrada da Cerâmica em Aracaju

48
Ministro Nelson Hungria

e, ali, o primeiro deles foi submetido a tais violências, como confessa a própria auto-
ridade que presidiu o inquérito, o então secretário de Justiça e hoje senador Haribaldo
Vieira e declaram três testemunhas presenciais, o deputado Seixas Doria, o chefe de
Polícia de Aracaju e o Sr. Umberto Mandarino, que veio a falecer no mesmo local, em
consequência das lesões sofridas, embora no atestado de óbito, assinado por médico
oficial, conste como causa mortis “edema pulmonar agudo decorrente de miocar-
dite crônica”. Para que não fosse apurada a verdadeira causa da morte, o cadáver de
Euclides foi enterrado clandestinamente por coveiros da própria Polícia como sendo
o de Manoel dos Santos. Sob cruel espancamento, Euclides teria confessado que
o mandante do crime, que ele dizia, a princípio, ser um indivíduo de nome Carlos
Alberto, era o coronel Afonsinho, nome por que é conhecido o paciente.
(...) Explica-se, entretanto, diz o impetrante, a incongruência de tais decla-
rações [da esposa da vítima], que, em juízo, foram categoricamente desmentidas, é
que, como está provado nos autos e o reconhece a própria autoridade que inquiriu d.
Milena, isto é, o secretário da Justiça, Haribaldo, a depoente, a certa altura, teve um
desmaio, tendo sido necessário chamar-se um médico, que lhe teria aplicado uma
injeção de coramina, prosseguindo a inquirição, não obstante o estado de perturba-
ção da depoente. Todos os elementos básicos da pronúncia são declarações obtidas
no inquérito policial em depoimentos de agente de Polícia, entre eles um dos próprios
matadores de Euclides. (...) Uma criada do casal Firpo-Milena foi igualmente sujeita
a torturas, também na Estrada da Cerâmica, para declarar que presenciara cenas
amorosas entre Milena e o paciente. O próprio acórdão confirmatório da pronúncia
reconheceu as violências praticadas contra Euclides Timoteo de Lima e determinou
que se remetessem cópias de tais ou quais peças do processo ao Sr. procurador-geral
do Estado, para apuração da responsabilidade criminal dos culpados.
(Relatório no HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960.)
Contra esses evidentes abusos, o ministro Nelson Hungria não se furtou de
examinar e declarar imprestáveis os mencionados indícios, com seu forte estilo:
Uma das condições precípuas da confissão, para que tenha mérito de
prova, é que seja prestada livremente, sem coação, sem violência física ou
moral. Assim, no caso vertente, a confissão que teria prestado Euclides Timoteo
de Lima, aliás, não tomada por termo, não tem o mais mínimo valor probante.
A tortura inquisitorial a que o submeteram até a morte foi presenciada
pelos então secretário da Justiça e chefe de Polícia do Estado de Sergipe e
pelo deputado e advogado Seixas Doria, que, para cúmulo dos cúmulos, a
apoiaram, ou contra ela não protestaram ou procuraram até mesmo justificá-
-la, corum judice, e ainda foram a juízo repetir a confissão que Euclides teria
feito, considerando-a convincente do mandato atribuído ao paciente. Jamais se
viu tamanho desplante e desenvoltura no desrespeito a elementares princípios
constitucionais e legais em proteção do indivíduo. E não somente Euclides
foi espancado. O outro coacusado José Pereira dos Santos, também levado ao
ermo da Estrada da Cerâmica, na calada da noite, onde testemunhou o truci-
damento de Euclides, foi igualmente vítima, além da intimidação, da violência
física para fazer as declarações que prestou. Quem no-lo informa é Umberto
Mandarino, irmão da acusada Milena, a quem convenceram de acompanhar as
autoridades até a Estrada da Cerâmica. Diz ele à fl. 661 dos autos do processo:
“foi realmente nessa diligência policial que o suplicante ouviu José Pereira dos
Santos, depois de apanhar um pouco, dizer que não sabia de nenhum mandante,
49
Memória Jurisprudencial

ouvindo, a seguir, Euclides Timoteo de Lima, depois de muito espancamento,


insistir primeiro em que não sabia de mandante algum, em seguida declinar o
nome de Carlos Alberto, depois de um médico e mais tarde o do coronel Afonso.
Chocado com a violência da cena, o suplicante e o deputado Seixas Doria se
afastaram por uns instantes, até o jipe que havia sido deixado na estrada, e
quando retornaram, encontraram Euclides Timoteo de Lima estirado na areia,
arquejando”. Praticado o bárbaro assassinato de Euclides, as autoridades obtive-
ram o atestado de óbito com a menção da causa mortis patentemente falsa, pois
como asseverou o Dr. Nilton Sales, ex-diretor do Gabinete Médico-Legal do
Rio de Janeiro e que foi a Sergipe proceder à autópsia do cadáver de Euclides, o
diagnóstico de “edema pulmonar agudo decorrente de miocardite crônica” não
podia ser obtido pelo simples exame externo; e, furtivamente, como confessa o
secretário Haribaldo Vieira, ou sigilosamente, como preferiu declarar o chefe
de Polícia, foi enterrado o cadáver como sendo o de Manoel dos Santos, sob
o incrível pretexto de não ficar prejudicada a apuração da verdade no ulterior
curso do processo. É verdadeiramente estranho que o testemunho de Umberto
Mandarino tenha sido invocado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe como ele-
mento de prova, depois não só do que ele disse nos autos, como da informação
que prestou ao major Donato Ferreira Macedo, incumbido pelo Conselho de
Segurança Nacional de apurar o caso vertente, na qual igualmente descreve o
brutal espancamento de que foi vítima Euclides Timoteo, espancamento que foi
reconhecido pelo próprio Tribunal de Justiça.
As declarações de Eunice Maria dos Santos, empregada do casal Firpo-
Milena, prestadas na polícia, relativamente a cenas amorosas entre o paciente
e Milena, foram igualmente extorquidas pela violência, como ela denuncia, na
sua linguagem pitoresca, ao depor em juízo: “(...) apanhei bastante, faca puxa-
ram para mim, para me furarem; disseram que iam vingar a morte do Dr. Carlos
Firpo em mim, botaram revólver na minha boca... ‘responde, nega safada’, ‘res-
ponde, nega sem-vergonha’, ‘tu vais para a penitenciária, te meto esta faca e te
mexo todinha por dentro...’ e me sentaram outro tapa na cara.”
A mãe de Eunice depõe também revelando o estado deplorável de desali-
nho e maus-tratos com que a filha voltou da inquirição na Estrada da Cerâmica,
tendo sido necessário interná-la no Hospital Santa Izabel, onde lhe foi minis-
trado tratamento por penicilina.
Quanto às declarações da acusada Milena Mandarino Firmo, foram
prestadas, de certo ponto em diante, isto é, depois do desmaio que sofreu e da
injeção que lhe aplicaram, em manifesto estado de confusionismo mental ou
perturbação psíquica, pois, em gritante contradição com o que dissera antes,
pôs-se a responder afirmativamente todas as perguntas tendenciosas e suges-
tivamente formuladas pelo secretário de Justiça. E já terminado o depoimento,
fez questão que, num “em tempo”, fosse declarado que “ela desde menina tem
loucura pelo coronel Afonsinho”. Em juízo, porém, desmentiu ela tudo quanto
foi escrito após o seu desmaio, atribuindo ao secretário Haribaldo, a quem
interpelou a respeito, o haver mandado escrever coisas que não foram ditas. O
desmaio sofrido pela acusada e a injeção que lhe ministraram (como sendo de
coramina) é confirmado pelo próprio secretário Haribaldo e pelo médico José
Machado de Souza, chamado para socorrer Milena e que opinou no sentido de
se prosseguir no interrogatório, não obstante a prostração da acusada Milena.

50
Ministro Nelson Hungria

De regra, em habeas corpus não se reapreciam provas; mas uma coisa é


reapreciar provas e outra é reconhecer a inadmissibilidade ou imprestabilidade
subjetiva de meios e órgãos de prova. É elementar que não podem valer como
prova confissões ou testemunhos extorquidos pela violência ou abusando de per-
turbação psíquica de acusados ou testemunhas.
(Voto no HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960,
destacamos.)
Esse contundente voto convenceu a maioria do Plenário, nada obstante a
resistência à ampliação do conhecimento do habeas corpus, ficando vencidos
os ministros Candido Motta e Hahnemann Guimarães. É interessante registrar
os debates com este último que demonstram a enorme resistência vencida pelo
ministro Nelson Hungria:
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Senhor Presidente, peço vênia ao Sr.
ministro relator para acompanhar o voto do Sr. ministro Candido Motta, negando
também o habeas corpus.
Convenceu-se o juiz, em decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça — da
qual divergiu apenas o Sr. desembargador Hunald Cardoso — da existência do crime
e dos indícios de sua autoria, nos termos do art. 408 do Código de Processo Penal.
Fez o Sr. ministro Nelson Hungria exaustivo exame da prova desses indícios,
julgando-a inidônea.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O próprio acórdão reconhece o
espancamento do acusado pseudoconfidente. Tem como um de seus arrimos a con-
fissão de Euclides Timoteo de Lima.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Parece-me, data venia, que não cabe
neste processo o exame da prova dos indícios pelos quais se convenceu o juiz.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Os órgãos de prova são imprestá-
veis: confissão de um homem espancado até a morte e declarações de uma mulher em
estado de prostração física e confusão mental.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Os fatos são impressionantes,
mas não podemos examiná-los, agora, neste processo.
Assim, data venia do Sr. ministro relator, acompanho o voto do ministro
Candido Motta, negando, também, o habeas corpus.
(Debates no HC 37.921/SE, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 14-9-1960.)
A propósito da possibilidade do exame de fatos e provas em sede de
habeas corpus, é importante citar o voto do ministro Nelson Hungria no HC
32.680/AL, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 26-8-1953. De forma bastante didá-
tica, o ministro estende os limites do writ, inclusive contrastando com o recurso
extraordinário, de modo a permitir verificar os requisitos da prisão preventiva,
a legalidade da sentença de pronúncia e se há ou não justa causa para o proces-
samento de ação penal:
Senhor Presidente, meu voto, no recurso extraordinário criminal, foi no
sentido do não conhecimento do recurso, dado o âmbito muito estreito desse
recurso. Já o mesmo não acontece no habeas corpus, em que podemos ter maior
amplitude na apreciação da matéria questionada, notadamente no que concerne
à justa causa que legitima a coação. A respeito da órbita do habeas corpus, a
51
Memória Jurisprudencial

jurisprudência tem sido reiterada no sentido de que os tribunais e juízes podem,


em certos casos, entrar na apreciação da prova. Assim, por exemplo, no caso de
prisão preventiva, para cuja decretação a lei exige “indícios suficientes”, indí-
cios que possam realmente levar o julgador à convicção da existência de crime
e de quem seja o seu autor; não havendo esses indícios, deve ser concedido o
habeas corpus. Ora, a pronúncia, segundo entendo, está no mesmo caso; embora
represente uma decisão provisória, exige, para ser decretada, que existam, no
processo, indícios que levem a essa mesma convicção ou, pelo menos, acarretem
fundada suspeita de que o acusado é realmente o autor do crime, que se acha
materialmente provado.
A lei processual exige que esses indícios sejam apontados motivada-
mente pelo juiz da pronúncia, a fim de que a superior instância aprecie o mérito
dessa motivação, pois o livre convencimento do juiz não é o puro arbítrio. O
livre convencimento — já eu o disse por mais de uma vez, e isto é pacífico na
doutrina e na jurisprudência — não é o arbítrio sem rei nem roque, não é o con-
vencimento à margem dos autos ou que se possa formar sem base alguma.
(Voto no HC 32.680/AL, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 26-8-1953.)
Nessa linha, o ministro Nelson Hungria admitia o habeas corpus para
examinar com profundidade a legalidade de todas as prisões decretadas, mesmo
das disciplinares, apesar da resistência do colegiado (HC 35.315/DF, rel. min.
Ary Franco, Pleno, 4-10-1957).
Outro voto importante na consolidação do habeas corpus como instru-
mento de garantia no processo penal foi proferido no HC 32.468/SP, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.
No caso, discutia-se a validade da condenação de três médicos pelo homi-
cídio culposo de criança que não sobreviveu ao tratamento de extensas e graves
queimaduras, em decorrência de suposta negligência e imperícia dos acusados.
A conclusão da condenação, no entanto, fundou-se não na autópsia da
vítima ou em perícia médica, mas em testemunhas leigas, nas fichas hospita-
lares do tratamento e em opiniões de médicos produzidas extrajudicialmente e
trazidas pela acusação sem o crivo do contraditório ou compromisso judicial.
Na oportunidade, o ministro Nelson Hungria superou os óbices ao exame
da prova em sede de habeas corpus e admitiu seu emprego para reconhecer a
falta de prova essencial para a condenação dos acusados. Isto é, concluiu que o
exame de corpo de delito ou perícia médica é essencial para atestar a suposta
omissão ou imperícia no tratamento hospitalar. O acórdão foi assim ementado:
Nulidade processual. Inexistência e dispensa de exame de corpo de
delito, entendido este como o conjunto de “todas as materialidades, relativa-
mente permanentes, sobre as quais ou mediante as quais foi cometido o crime,
como também qualquer outra coisa que seja efeito imediato do crime ou que de
qualquer modo se refira a este, de sorte a poder ser utilizado para a prova do

52
Ministro Nelson Hungria

mesmo” (Manzini). Imprescindibilidade de exame pericial quando haja necessi-


dade de conhecimentos técnicos ou especializados.
(HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
O notável voto do ministro Nelson Hungria permitiu discutir se havia
provas suficientes para a condenação dos pacientes, contra a jurisprudência
predominante à época, que restringia bastante o conhecimento do writ constitu-
cional. Afirmou o magistrado:
Tenho para mim que o colendo Tribunal de Alçada de São Paulo desa-
tendeu, no caso vertente, a salutar advertência de Jimenez de Adúa, no recente
volume IV do seu notável “Tratado de Derecho Penal” (p. 682): “Nunca será
bastante aconsejable la prudencia a los jueces al decidir sobre la responsabili-
dad de los médicos.” Partindo de mera possibilidade de sobrevivência da menor
Sonia, se lhe fossem administrados tais ou quais meios de tratamento, e pres-
cindindo de perícia médica sobre dados cuja apreciação não podia deixar de ser
feita por médicos especializados, que viessem a juízo, para esclarecer, mediante
solene compromisso de exação e fidelidade, a questão técnica em debate, o dito
Tribunal admitiu a relação de concausalidade entre as arguidas ações e omis-
sões dos pacientes e a morte da referida Sonia. (...) Ora, as “fichas hospitalares”,
que são a documentação, o registro do tratamento a que foi submetida a menor
Sonia, não podem deixar de ser consideradas “vestígios” da ação ou omissão
concausal atribuída aos pacientes no evento letal, e, assim, deviam ser direta-
mente examinadas por técnicos.
O exame dessas fichas, ilustrado pelo que os franceses chamam commu-
nication du dossier (acesso dos peritos à leitura dos autos), não podia deixar de
ser feita por médicos especializados (desde que os há, e abalizados, na capital
de São Paulo). A perícia se impõe toda vez que haja necessidade de apreciação
científica ou técnica de questões em torno de certos fatos que podem influir na
solução do caso criminal. (...) O juiz pode valer-se de sua cultura geral, mas
onde há necessidade de conhecimentos especializados, não pode dispensar a
elucidação de peritos, não pode ele usurpar função de peritos. Está obrigado
por lei a determinar a perícia sempre que se tenha de proceder a uma indagação
que exija particular conhecimento de determinada ciência ou arte, alheia aos
estudos jurídicos.
(Voto no HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
No entanto, as razões do ministro Nelson Hungria não sensibilizaram
todos os colegas de Plenário. O primeiro a divergir, ministro Mario Guimarães,
assentou os estreitos limites do habeas corpus, concluindo que “não há indagar,
por enquanto, da justiça ou injustiça da condenação, da boa ou má apreciação
das provas, mas, simplesmente, de nulidades processuais”.
Ressalte-se que, nada obstante sua posição pessoal, o ministro Mario
Guimarães examinou as evidências e provas para concluir pela configuração
de negligência e imperícia no tratamento médico da vítima. Ademais, finalizou
argumentando que sequer haveria constrangimento à liberdade de ir e vir, uma
vez que os réus não estavam presos, em razão de sursis concedida:

53
Memória Jurisprudencial

Em conclusão: nenhuma nulidade vejo neste processo. Se merecem os


réus ser condenados ou não, é questão de mérito. Ilegalidade não houve na sen-
tença proferida. Os réus, ainda que condenados, estão soltos, porque lhes foi
concedido o sursis. De que constrangimento padecem? Contra o acórdão, mani-
festaram recurso extraordinário, que foi admitido e está sendo processado (...).
Não vejo como juridicamente, vamos entrar na apreciação de provas e, sem a
leitura do processo, reformar a sentença em matéria de tal gravidade.
(Voto do min. Mario Guimarães no HC 32.468/SP, rel. min. Nelson
Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
Na mesma linha de não cabimento do habeas corpus, seguiram os minis-
tros Luiz Gallotti, que entendia cabível o recurso extraordinário; Edgard Costa,
que sugeriu o cabimento de revisão criminal; e Barros Barreto. A estas ponde-
rações, respondeu o ministro Nelson Hungria:
Advertiu o eminente Sr. ministro Mario Guimarães que, no caso, já
houve interposição de recurso extraordinário; mas isto nada importa: desde o
momento que se apresenta uma nulidade flagrante, ou seja, a ausência de corpo
de delito indireto em suprimento do inexistente ou deficiente corpo de delito
direto, o habeas corpus tem cabimento, independentemente da interposição de
qualquer outro recurso, mesmo o de apelação.
(Voto no HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
A maioria acompanhou a orientação proposta pelo ministro Nelson Hungria,
que arrematou críticas veementes aos vestígios e ao acórdão impugnado, verbis:
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): (...) O acórdão somente busca
apoio nesses pareceres dados extrajudicialmente e que, na sua parcialidade, não
resistem à crítica de um leigo. Assim é que neles se diz, por exemplo, que era de
se aplicar, como recurso terapêutico, a enxertia. Sou um leigo, como leigos são,
em matéria médica, o ilustre professor Soares de Melo e seus preclaros colegas
signatários do acórdão; mas, mesmo assim, apesar de minha laicidade, ouso
afirmar que essa opinião é positivamente temerária.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Então para que o exame médico?
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Porque o exame médico, que
se impõe, há de ser feito por profissionais com garantia de seriedade, por isso
que compromissado coram judice, ficarão sujeitos até a sanção penal, no caso de
falsidade. Ao contrário do que ocorre com médicos que opinam extra-autos, o
seu laudo lhes poderá acarretar a própria responsabilidade penal. Mas, como ia
dizendo, nos pareceres se assevera que era indicado o tratamento por enxertia.
Ora, pergunto eu: o corpo da menina enferma continha suficiente e adequado
espaço para receber enxerto? O próprio colendo Tribunal a quo reconheceu
a inanidade desse “palpite” dos médicos, tanto assim que o excluiu de sua
argumentação. Nem seria admissível que, havendo dois métodos científicos
de tratamento, a preferência por um deles (no caso, o emprego de ácido tânico)
importasse em indesculpável erro profissional, sujeitando os seus aplicadores a
pena criminal. Seria isto um absurdo, um desconchavo, um despropósito. Diz
ainda um dos pareceres, apoiado pelo acórdão, que não foi feita a indispensá-
vel inoculação de plasma ou transfusão de sangue. Teria a menininha enferma,

54
Ministro Nelson Hungria

transformada em uma ferida viva, veias próprias para receber transfusão de san-
gue total ou de plasma? Ainda mais: afirmam os médicos, opinando à distância e
sem o manuseio dos autos, que, dada a inapetência da enferma devia ter-lhe sido
aplicada alimentação por meio de sondas gastroduodenais ou por via parenteral,
isto é, mediante clisteres alimentares. Será admissível que aquela pobre mártir,
entre dores, apuantes, ainda fosse submetida ao suplício de receber frequente-
mente pelo esôfago uma sonda ou tomar clisteres alimentares? Os pareceres
juntos aos autos são tendenciosos, formulados por críticos de obra feita, por
médicos que estejam talvez, servindo a rivalidade ou competições pessoais.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência está fazendo uma
acusação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Faço-a porque os aspectos do
caso o permitem. (...)
Pois bem; o acórdão não se limitou a fazer obra com unilaterais pareceres
extra-autos, sem o menor valor como prova judiciária. Entendeu ainda de lhes
encher as entrelinhas, e entrou a dissertar sobre matéria médica, como se fora
um pronunciamento ex cathedra.
(...)
O que se apresenta, no caso, é o seguinte, em última análise: foram con-
denados três médicos, por erro profissional, porque, se eles tivessem aplicado
o tratamento “x” em vez do tratamento “y”, a enferma teria sobrevivido. Ora,
como se pode afirmar isto sem a apreciação técnica dos elementos informativos
que o processo contém ou com fundamentos em opiniões de médicos formula-
das in abstracto, contando com a impunidade de pareceres extra-autos? Venham
esses médicos a juízo, e então, se tiverem coragem, que afirmem, individuado
meticulosamente o caso, a mesma coisa que afirmaram em pareceres elabora-
dos, pecunia acepta, no recesso de seus gabinetes. Que eles venham para dentro
dos autos repetir, perante o juiz, sob a sanção do art. 342 do Código Penal, o que
disseram, e só então poderão ser cridos.
(Debates no HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
O exaltado pronunciamento foi coroado pelo sincero pedido de desculpas do
ministro Nelson Hungria, pelo seu peculiar jeito inflamado de debater no Plenário,
que é verdadeira pérola de sinceridade e comprometimento com a justiça:
Perdoe-me o Tribunal pela minha exaltação, exaltação a que me impele o
desejo de ver assegurado, no caso, o que entendo ser o interesse da justiça. Isso
de falar com veemência é, aliás, do meu jeito, do meu modo de ser. Enquanto
falava o eminente colega ministro Mario Guimarães, confesso que fiz de tudo
para manter controlada minha emotividade, e isso pelo grande respeito que
dispenso a Sua Excelência e ao acatamento que devo ao Tribunal. Pedi a todos
os deuses que não me deixassem exaltar. Mas as ideias que me foram vindo no
raciocínio de improviso, aquecidas do coração, que sempre me vêm aos gor-
gomilos, conduziram-me ao acaloramento. Não sou um intolerante, por mais
que pareça tal, quando defendo minhas opiniões. Jamais fui um ultramontano.
Defendo os meus pontos de vista com ardor, mas sem o intuito de impô-los aos
que pensam de modo contrário. Defendo-os unguibus et rostris, com todas as
energias do meu espírito e do meu fôlego. Mas fico aí. A minha funda convicção
de que estou pugnando pela justiça do caso concreto é que provoca o meu ardor;

55
Memória Jurisprudencial

mas, findo o debate, ainda que não prevaleça meu entendimento, ensarilho as
armas e não me fica o menor ressentimento, pois não me suponho o detentor
exclusivo da verdade.
Peço perdão ao Tribunal, que não deve ver na exaltação do meu voto
senão o meu amor pela Justiça, o meu propósito de que a justiça e o direito sejam
atendidos no caso concreto, impedindo a continuidade de uma condenação que
talvez represente um grave erro judiciário, que ainda pode ser corrigido.
(Debates HC 32.468/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 17-6-1953.)
2.1.3.2 Efeito suspensivo e habeas corpus
O ministro Nelson Hungria permitia também o manejo de habeas corpus
para o reconhecimento de efeito suspensivo a recurso, como no julgamento
do HC 36.801/DF, rel. min. convocado Candido Lôbo, Pleno, 12-5-1959, em que,
mesmo vencido, legou esplendorosa manifestação, nos seguintes termos:
(...) Um dia de privação de liberdade jamais poderá ser restituído.
O nobre advogado do paciente diz que só Deus pode reparar essa tran-
sitória perda de liberdade. Nem Deus, porém, pode fazê-lo. É a única coisa que
Deus não pode fazer: tornar “desacontecido” aquilo que já aconteceu. Deus nos
pode ferir de amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um
dia livre a vida do prejudicado, mas não suprimir no passado o dia de privação
de liberdade.
(...)
O paciente, como é notório, pois todos os jornais noticiaram, foi punido
com prisão por dez dias; de modo que terá de cumprir integralmente essa puni-
ção, ainda que fosse reconhecida ilegal, se tivermos de aguardar a decisão do
recurso ordinário que foi interposto do mandado de segurança denegado.
(...)
Jamais apareceu aqui um caso tão singular como este, tão anômalo como
este: pode ter decorrido da denegação de um mandado de segurança a possível
consequência de privar alguém de sua liberdade. E para os casos anômalos o
remédio deve ser heroico. Ainda que a lei, de modo claro, expresso, categórico,
tivesse negado o efeito suspensivo ao recurso ordinário de decisão denegatória
de mandado de segurança, nós, do Supremo Tribunal Federal, mais do que os
juízes de qualquer outro Tribunal, teríamos, por dever, de ajustar a lei aos casos
concretos, negando-nos a ser escravos submissos do texto da lei, para evitar,
num caso excepcional, intolerável gravame à liberdade individual.
(Voto vencido no HC 36.801/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 26-8-
1953, destacamos.)
Adicionalmente, o ministro Nelson Hungria também acolhia habeas
corpus para permitir a comunicabilidade entre o réu preso e seu defensor,
como no HC 37.399/DF, rel. para o acórdão min. convocado Henrique D´Ávila,
Pleno, 4-1-1960. No acalorado debate com o relator originário, ministro Rocha
Lagôa, o ministro Nelson Hungria não se furtou de reconhecer a arbitrariedade
da Justiça Militar, que sequer comunicou ao defensor onde o réu estava custo-
diado, verbis:
56
Ministro Nelson Hungria

O Sr. Ministro Nelson Hungria: (...) Não há, pois, a menor dúvida de que
a permanência da incomunicabilidade do paciente é ilegal, traduzindo um abuso
do poder.
Há ainda que ponderar seguinte: que incomunicabilidade é essa que per-
mite a comunicação do paciente com sua esposa e a sua mãe? Não há incomuni-
cabilidade parcial. Se o paciente já pode ser visitado por pessoas de sua família,
a proibição da visita do seu advogado é um injustificável capricho, um puro
arbítrio, tanto mais censurável quanto esse advogado, após entendimento
com o seu constituinte, poderá até mesmo promover sua imediata liberação, se
for o caso.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Vossa Excelência parece que não
leu a impetração. Eu a li quando do julgamento. Nele o ilustre advogado, a quem
rendo as homenagens do meu respeito e de minha velha amizade, afirma, com
todas as letras, ignorar onde se encontra o paciente. Se Sua Excelência desco-
nhecia onde se encontrava esse paciente, é impossível afirmar-se que lhe teria
sido recusado a possibilidade de comunicar-se com o paciente. Tive o cuidado
de ler a impetração e quando proferi meu voto, que foi escrito, baseei-me no que
consta da inicial.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se Vossa Excelência ouvisse meu voto,
não teria necessidade de me dar esse aparte.
Concedo o habeas corpus para que o advogado do impetrante tenha
conhecimento do paradeiro do paciente...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas Vossa Excelência acaba de
reconhecer que a esposa e a mãe do paciente o visitam.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Das próprias informações se verifica que
foi permitida a visita apenas à mãe e à esposa do paciente, e não do advogado,
sendo muito possível que aquelas tenham assumido compromisso de sigilo...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): nesse particular é que Vossa
Excelência está equivocado. Vou ler o que diz o advogado na petição. Ele diz
desconhecer o paradeiro do acusado; logo não podia ter sido negado a Sua
Excelência a possibilidade de se aproximar do paciente.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não pedi essa leitura. A negativa de
comunicação pode envolver a recusa em dar conhecimento do paradeiro do
paciente. Como quer que seja o Sr. ministro da Aeronáutica afirma categorica-
mente que o réu está incomunicável.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Ao contrário, diz que está rece-
bendo a visita da mãe e da esposa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas o paciente não pode se avistar com o
seu advogado. Estranha incomunicabilidade parcial. Permitir visitas da esposa
e da mãe do paciente e não permitir a de outras pessoas, entre as quais o seu
advogado, é uma arbitrariedade só compreensível em época de suspensão
de garantias constitucionais.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas o próprio advogado ignorava
onde se encontrava o paciente e ainda não tinha instrumento de mandato.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, concedo a ordem
para que o advogado, informado do paradeiro do paciente, possa dele se aproxi-
mar, tenha ou não instrumento de mandato.
Para promover a defesa do paciente, por meio do habeas corpus não há neces-
sidade de instrumento de mandato.

57
Memória Jurisprudencial

É preciso não esquecer a lição de Rui Barbosa, no sentido de que o habeas


corpus é um remedium iuris que pode ser impetrado até mesmo contra a vontade
do paciente.
(Voto no HC 37.399/DF, rel. para o acordão min. convocado Henrique
D´Ávila, Pleno, 4-1-1960, destacamos.)
2.1.3.3 Local inapropriado para internação de menores
Nesta amplitude do conhecimento do remédio heroico, os pronunciamen-
tos do ministro Nelson Hungria também acolhiam a possibilidade de examinar,
nessa sede, a ameaça de internação de menores em local inapropriado, como
no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25-1-1961.
No caso, a mãe de menor envolvido no comovente assassinato da jovem
Aida Curi impetrou habeas corpus para garantir que seu filho não fosse inter-
nado em estabelecimento inadequado e sem curso ginasial. O assassinato
da jovem de dezoito anos foi caso bastante rumoroso na época, por envolver
suposta tentativa de estupro, maus-tratos e espancamento. O crime foi cometido
por três rapazes, entre eles um menor, residentes em Copacabana, no antigo
Estado da Guanabara.
Por ser irresponsável penalmente, foram impostas medidas correcionais
ao menor, que chegou a ser foi internado no Presídio do Distrito Federal. De
plano, o ministro convocado Sampaio Costa levantou o óbice à discussão que
extravasa o direito de ir e vir tutelado por meio de habeas corpus. A objeção foi
respondida pelo ministro Nelson Hungria, nos seguintes termos:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, rejeito a preliminar,
que não tem, no caso, fundamento.
Trata-se de ameaça de internação num estabelecimento de assistência a
menores que se transformou, na prática, numa fábrica de criminosos, onde não
há ensino secundário senão para a perversão moral. É isto o que se quer evitar a
esse menor: o constrangimento de internação num reformatório falido, que, ao
invés de reabilitá-lo, apenas o aviltará irremediavelmente.
(Voto preliminar no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira,
Pleno, 25-1-1961.)
No mérito, a manifestação do ministro Nelson Hungria configurou ver-
dadeiro libelo do habeas corpus e do papel do Judiciário, sobretudo em face do
clamor das ruas e do transitório humor das multidões:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é notório que esse
menino, o paciente, vem sendo vítima de uma tremenda prevenção, como se
fosse o último dos réprobos, o pior dos facínoras.
O Sr. Ministro Sampaio Costa: Não de minha parte.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Tudo se negou a esse menino. Em torno
dele se criou um ambiente de absoluta incompreensão. A imprensa açulou

58
Ministro Nelson Hungria

contra ele o ódio da multidão. A excitada e desorientada opinião pública recla-


mou para ele o ferrete da ignomínia e a morte civil. O seu nome, que o Código
de Menores proibia que fosse publicado, foi arrastado pela rua da amargura e
serviu de alvo a todas as maldições. No entanto, o complexo fato criminoso de
que teria participado, segundo o noticiário escandaloso, não foi, sequer, convin-
centemente esclarecido quanto ao episódio mais grave, não sabendo se houve
homicídio ou suicídio, dada a imprestabilidade de um laudo pericial que não faz
honra à nossa Polícia Técnica, pois nada mais é que uma sucessão de conjecturas
indignas de figurar na mais reles novela policial.
O ambiente de repulsa que se criou em torno desse menor redundou em
pressão constrangedora sobre o próprio juízo de menores, que fraquejou diante
o insensato clamor de vingança e chegou a mandar o paciente para o presídio
dos indiciados adultos. Houve protestos contra semelhante crueldade, e Cácio
Murilo foi, então, remetido para o SAM, para esse depósito de menores delin-
quentes que procedem das oitenta “favelas” da antiga Capital da República.
Sabe-se o que é o SAM: uma escola para o crime, uma fábrica de monstros
morais. Superlotado e sob regime da mais hedionda promiscuidade, a sua fina-
lidade prática tem sido a de instruir para o vício, para a reação pelo crime, para
todas as infâmias e misérias. Todos os famosos delinquentes precoces trazem
a marca que o SAM lhes imprimiu, isto é, a erradicação total do brio, do amor
próprio, do mínimo ético indispensável à vida em sociedade. Zé da Ilha, Mauro
Guerra, Cabeleira, Moleque33, são produtos específicos do SAM. O que lá se
aprende é fazer do crime profissão e meio de vida. Não apenas o SAM, senão
também os 17 pseudorreformatórios que ele superintende, falharam redonda-
mente nos seus objetivos. Deveriam ser arrasados, desde o teto até os alicer-
ces, para que se recomeçasse tudo de novo e sob moldes inteiramente diversos.
Para os menores que uma vez delinquiram só há uma salvação ou possibilidade
de recuperação: não serem recolhidos ao SAM ou dele escaparem pela fuga.
Conta-se de dois menores que foram surpreendidos a furtar numa barraca de
feira, tendo sido um deles capturado, enquanto o outro conseguia fugir. O menor
detido foi mandado para o SAM, e, no correr do tempo, transformou-se num
ladrão profissional; ao passo que o outro menor, salvo das garras do SAM, pôde
frequentar um seminário e tornou-se um sacerdote exemplar. Este paradoxal
epílogo bom define o que é, no Brasil, a assistência aos menores.
Senhor Presidente, ainda que tivéssemos de romper com os textos cla-
ros e positivos da lei, não poderíamos vacilar em conceder este habeas corpus,
para evitar que o paciente seja, de novo internado no SAM. Não há falar, aqui,
em igualdade de tratamento para os menores delinquentes, pois seria o nivela-
mento na perversão e aviltamento, a identidade para o despudor, para a perdição
moral, para o bacharelato do crime. Não admissível que, em nome do princípio
democrático de igualdade, se juntem, para destino comum, os menores delin-
quentes provindos do basfond, dos focos criminológicos endêmicos, que são as
favelas e cortiços dos grandes centros urbanos, e um adolescente que, embora
se descontrolasse nos seus ímpetos sexuais, praticando um ato profundamente
reprovável, foi criado no solo de boa família e não apresenta índice de periculo-
sidade. Equivaleria isso a praticar a mais grave das iniquidades, qual a de tratar
igualmente coisas desiguais.
Ao paciente deve ser dado ensejo de prosseguir na sua educação, para o que
dispõe de suficientes recursos pecuniários, e não remetido para esse sucursal do

59
Memória Jurisprudencial

inferno, que é o SAM. Precisa ele de continuar seu curso de ensino médio, e o pró-
prio Sr. ministro da Educação já obteve que fosse ele admitido na Escola Técnica de
Curitiba, tenho para mim que esse é o estabelecimento aconselhável no caso. No Rio
ou cidades próximas não se encontraria colégio adequado que recebesse o paciente,
pois a impiedosa campanha que este sofreu, por parte dos jornais cariocas, criou para
ele, no antigo Distrito Federal e adjacências, um ambiente de tal modo hostil, que sua
presença em tal ou qual colégio acarretaria o êxodo dos demais alunos, por escrúpulo
dos respectivos pais.
Isto posto, Senhor Presidente, concedo o habeas corpus, para que o paciente
seja internado na Escola Técnica de Curitiba, salvo se, por acaso, o dr. juiz de meno-
res conseguir sua internação em outro instituto mais conveniente.
(Voto no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25-1-1961.)
Na oportunidade, a maioria do Supremo Tribunal Federal concluiu pela
existência de constrangimento ilegal na reintegração do menor ao nefasto estabe-
lecimento. Ressalte-se que o voto do ministro Nelson Hungria — e seus veementes
apartes — afastaram qualquer alegação de isonomia pelo fato de haver outros quatro
mil jovens, de origem humilde, internados no local. Para o ministro, a vilania prati-
cada contra uns não deveria ser estendida a outros com fundamento no princípio da
igualdade. Ao responder argumento de que o paciente havia fugido de onde estava
sob vigilância especial, Nelson Hungria não pestanejou em afirmar:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Fez ele muito bem. Fugiu a uma sucursal do
Inferno. Todos os internados do SAM deveriam fazer o mesmo, pois fora dele sua
recuperação seria muito mais provável.
(Apartes no HC 38.193/GB, rel. min. Gonçalves de Oliveira, Pleno, 25-1-1961.)
Com a fúria dos injustiçados, o ministro Nelson Hungria alertou, ainda, para a
superlotação do reformatório de jovens, em conflito com a lei em comento, anotando
que havia no local mais de 4 mil internos, embora só existissem 400 vagas. E arre-
matou: “as migalhas do banquete de Brasília, como já disse de outra feita, poderiam
resolver o problema dos menores, sob o ponto de vista financeiro”.
O Tribunal, nesse contexto, não se limitou a conceder a ordem, mas, por ini-
ciativa do ministro Ribeiro da Costa, deliberou para que o ministro Barros Barreto,
presidente do Supremo Tribunal Federal, comunicasse ao presidente da República a
decisão tomada, remetendo os votos proferidos na ocasião.
Igualmente, no julgamento do HC 31.649/DF, rel. min. convocado Abner de
Vasconcelos, Pleno, 28-8-1951, o ministro Nelson Hungria abriu divergência para
denotar a patente insuficiência da Colônia Penal Cândido Mendes, utilizada para a
progressão de regime de condenados, para a aplicação de medidas de segurança em
jovens em conflito com a lei.
O ministro Nelson Hungria recusava-se a entender adequado o local, em
virtude de mera prescrição normativa, sem disposições específicas — inclusive de
normas de organização e procedimentos — a respeito do tratamento dos jovens

60
Ministro Nelson Hungria

infratores. Para ele, o Supremo Tribunal Federal não poderia deixar de verificar se,
de fato, a Colônia agrícola fora adequadamente instalada, ou se se tratava de mera
mudança no nome dos mesmos estabelecimentos dirigidos aos presidiários:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia do Sr.
ministro relator, não posso endossar o seu ponto de vista. O decreto-lei a que se
refere Sua Excelência não passou, até agora, de um decreto de fachada, não foi
ainda regulamentado. Em virtude dele, não se pode entender que, automatica-
mente, se instalou a “seção especial” na Colônia Cândido Mendes, para o fim
de cumprimento de medida de segurança. Nada existe de concreto. O que con-
tinua a existir, na Ilha Grande, é tão somente uma Colônia destinada à segunda
ou terceira fase do regime progressivo da pena de reclusão ou detenção. Para lá
são mandados os indivíduos que, já tendo cumprido certo período da pena intra
muros e revelado boa conduta, merecem esse regime de prisão com trabalho
all´sperto. A lei chama esse estabelecimento “colônia penal”. Trata-se, como
disse, de uma etapa do regime penitenciário progressivo, adotado pelo nosso
Código. Nada tem a ver com a medida de segurança “colônia agrícola”, e nem
era possível funcionar nela uma seção especial destinada a essa medida, sem
minucioso regulamento prévio. De outro modo, o que poderia resultar na prática
seria uma situação incompatível com o preceito constitucional, que proíbe as
penas perpétuas, sabendo-se que a medida de segurança é indefinida, indeter-
minada no tempo. O juiz e a lei apenas limitam seu tempo de duração.
Não há nada regulamentado. É um engano supor-se o contrário, em face
do Decreto 26.401, de 1949, que, a tal respeito, não passou do terreno teórico ou
de boa intenção a realizar-se quando Deus for servido. Em matéria de medida de
segurança. Infelizmente, começamos a construir pelo telhado e ficamos neste.
Não seria possível que a execução das medidas de segurança, que exige a aplica-
ção de métodos e critérios inteiramente diversos dos da execução da pena, fosse
entregue ao puro arbítrio e empirismo do carcereiro e guardas. Em vez da recupe-
ração social do internado, por meio da difícil “técnica da regeneração”, teríamos
apenas mudado a etiqueta do cárcere destinado ao rigor da pena-castigo.
É inadmissível que essa vaga seção especial, mencionada pelo decreto de
1949, mas não regulamentada e não instalada oficialmente, possa servir como
estabelecimento de execução de medida de segurança.
(Voto no HC 31.649/DF, rel. min. convocado Abner de Vasconcelos,
Pleno, 28-8-1951.)
2.1.3.4 Reiteração de habeas corpus
Por fim, ressalte-se que o ministro Nelson Hungria também conside-
rava cabível a reiteração de habeas corpus, inclusive pelo mesmo fundamento.
Em seu entender, as decisões denegatórias não faziam coisa julgada, como
demonstra o seu voto vencido no julgamento do HC 32.983-AgR/DF, rel. min.
Hahnemann Guimarães, Pleno, 22-4-1954.
Destaque-se o amplo espaço compreendido por Nelson Hungria para a
defesa dos acusados. O ministro preteria inclusive institutos como a coisa jul-
gada, a cujo respeito ele chegou a mencionar que, “em matéria penal (...) é santa

61
Memória Jurisprudencial

de muito pouca devoção” (voto no HC 33.123/SP, rel. min. convocado Abner de


Vasconcelos, Pleno, 9-6-1954).
Naquela época, evidentemente, o número de feitos atribuídos ao Supremo
Tribunal Federal não era pequeno, mas nem se aproximava dos mais de 100
mil processos protocolados por ano, como ocorreu na primeira década deste
século. É curioso anotar o fundamento do ministro Nelson Hungria: era legí-
timo aos réus suscitar a mesma questão reiteradamente ante a comum mudança
de composição das Cortes, inclusive da Suprema Corte. Eventual ausência de
ministros ou substituição por convocados, muito comum na década de 1950 no
Pretório Excelso, poderia aproveitar ao acusado e, assim, legitimaria, na con-
cepção do ministro Nelson Hungria, a repetição de habeas corpus com funda-
mento idêntico.
Atualmente, esse grau de liberalidade à defesa revela-se completamente
inviável, não só pelo eventual abuso no direito de ação, como pela própria sobre-
carga de causas dirigidas ao Supremo Tribunal Federal. Parece, no mínimo,
desproporcional exigir da Corte Suprema reiterados pronunciamentos sobre o
mesmo tema, quando há tantas questões importantes pendentes de julgamento.
No entanto, é certo que essas manifestações do ministro Nelson Hungria
serviram como verdadeiras sementes da atual jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, que transformou o habeas corpus em um dos mais eficientes
e valiosos instrumentos de proteção a liberdades fundamentais.
2.1.4 Tribunal do Júri
O ministro Nelson Hungria jamais pautou suas convicções por modismos
ou pela popularidade das ideias. Seu espírito de magistério e sua devoção à ver-
dade e à ciência sempre guiaram suas investigações e seu juízo sobre o acerto
ou desacerto, qualidade ou deficiências de teorias, soluções e até institutos.
Após reflexão cuidadosa e criteriosa, ele não tinha o menor receio ou pudor de
expressar suas conclusões em votos e apartes de forma veemente e inflamada.
Exemplo marcante de sua crítica incisiva deu-se com o instituto do
Tribunal do Júri. Fundado na sua experiência pessoal como promotor em áreas
e épocas dominadas pelo coronelismo, o ministro Nelson Hungria combateu o
tribunal popular durante toda a vida.
Cid Flaquer Scartezzini relata, em conferência na Academia Paulista de
Direito18, duas experiências com o Tribunal do Júri, vividas pelo jovem promo-
tor no interior de Minas Gerais, que marcaram suas convicções.

18
SCARTEZZINI, Cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso de posse na
Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia Paulista de Direito, 1974. p. 8.

62
Ministro Nelson Hungria

O primeiro episódio foi a absolvição por unanimidade de sicário, apesar


de provas incontestáveis, inclusive confissão e testemunhos que declararam ter
presenciado o homicídio. Na oportunidade, bastou ao rábula defensor gritar:
“Se o acusado é culpado, quero ver minha mulher num prostíbulo da cidade!”,
para convencer os membros do Conselho de Sentença a inocentar o réu.
O segundo evento consistiu na condenação à pena máxima de forasteiro,
desamparado e desprotegido na Comarca de Rio Pomba. Na ocasião, um cai-
xeiro viajante provocou a morte de conhecido arruaceiro na cidade, em excesso
a sua legítima defesa. Nada obstante a acusação desprovida de veemência pelo
jovem Nelson Hungria e as evidentes atenuantes, o acusado foi condenado a
trinta anos de reclusão. Condoído, o jovem promotor não só pediu à esposa que
preparasse as refeições do condenado, como só sossegou depois de obter a redu-
ção da pena e a concessão de seu livramento condicional, passados cinco anos
da condenação, para reparar tamanha injustiça.
Essas experiências pessoais certamente influenciaram o pensamento do
ministro Nelson Hungria, que considerava falido o sistema do Júri. No entanto,
sua notória irresignação com o instituto jamais ensejou a utilização de atalhos
ou sofismas para circunscrever a disposição constitucional que impunha o tribu-
nal popular, como declarou no RC 1.024/RJ, rel. min. Barros Barreto, 7-8-1957:
(...) Assoalha-se que o Supremo Tribunal, na sua alta função política,
deve examinar cada caso em concreto, de acordo com os aspectos que apre-
sente, para melhor salvaguardar o interesse geral, ainda que, para isso, tenha de
contornar o rígido texto legal. Assim, no caso de que se trata, deve impedir que
um sicário da pior espécie, o covarde matador de um insigne magistrado, seja
julgado pelo Júri, que, na sua sistemática frouxidão, o absolvera. É verdade,
Senhor Presidente, que o Tribunal do Júri é uma falência irremediável.
O Tribunal do Júri, no Brasil, é uma vergonha, um atentado à nossa civi-
lização jurídica. Somente condena, ainda mesmo os inocentes, quando a
imprensa sensacionalista o reclama ou as paixões políticas o exigem. Será
inútil para reabilitá-lo a “Semana do Júri”, que se está anunciando para os
próximos dias, pois não é possível galvanizar-se um cadáver em putrefação.
Mas, Senhor Presidente, não é possível que neguemos a lei, nem que
neguemos um preceito constitucional, claro, preciso, categórico, iniludível, no
sentido de que, toda vez que se apresentar um homicídio doloso, a não ser nos
casos de jurisdição especial, o único competente para o julgamento é o Tribunal
do Júri. Não podemos abstrair esse imperativo preceito constitucional, por oca-
sional interesse coletivo. Não posso admitir, aliás, que, não obstante a ruína, o
descrédito, a desmoralização do Tribunal do Júri, o de Niterói tenha a afrontosa
audácia de apreciar o caso vertente com a indulgência prostitucional que carac-
teriza o contubérnio dos juízes de fato.
(Voto no RC 1.024/RJ, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 7-8-1957,
destacamos.)

63
Memória Jurisprudencial

O recurso criminal em questão é relevante não só pelo inflamado voto do


ministro Nelson Hungria mas também pela controvérsia que cercava os crimes polí-
ticos e o Tribunal do Júri.
Naquela ocasião, cuidava-se do assassinato do então presidente do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro. O juiz de primeira instância desclassificou o homicí-
dio (art. 121 do Código Penal) para o crime político enquadrado no art. 6º, c, da Lei
1.802/1953, a denominada Lei de Segurança, que assim dispunha:
Art. 6º Atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade:
(...)
c) de magistrado, senador ou deputado, para impedir ato de ofício ou fun-
ção ou em represália do que houver praticado.
Pena: reclusão de 6 a 12 anos aos cabeças e de 3 a 8 anos aos demais
agentes, se o fato não constituir crime mais grave.

Em primeiro lugar, o ministro Nelson Hungria apontou a inadequação


da incidência do mencionado dispositivo da Lei de Segurança para os casos de
morte da vítima, uma vez que o tipo penal especial, qualificado pelo cargo da
vítima, impõe pena menor do que o delito previsto no art. 121 do Código Penal.
Em outras palavras, a seguir essa lógica, o homicídio de cidadão comum seria
punido com pena mais grave que o homicídio de magistrado, de parlamentar ou
mesmo do presidente da República.
Em segundo lugar, o voto vencido do ministro Nelson Hungria assentou
que, mesmo se reconhecido o assassinato de magistrado como crime político,
caberia ao Tribunal do Júri, e não ao magistrado singular, julgar o feito em pri-
meira instância, sob pena de inconstitucionalidade. Por consequência, competi-
ria ao Supremo Tribunal Federal julgar o recurso contra a decisão do Júri (nos
termos do art. 101, II, c, da CF/1946), respeitada a soberania deste.
A questão gerou grande polêmica e acalorados debates, uma vez que
submetia o Supremo Tribunal Federal, como segunda instância dos crimes polí-
ticos, à soberania do Tribunal do Júri, cujas sentenças eram bastante controver-
tidas naquela época.
Ressalte-se que o ministro Nelson Hungria, com a coragem e a objetivi-
dade que lhe eram peculiares, não deixou de apontar e enfrentar o argumento
extrajurídico que sensibilizava silenciosamente a opinião geral: o grande receio
de impunidade pelo Tribunal do Júri em razão de o acusado possuir grande
influência nos círculos sociais de Niterói.
A questão da parcialidade do Júri também foi refletida no HC 35.742/RJ, rel.
para o acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 30-4-1958, em que o ministro
Nelson Hungria restou vencido ao apontar a necessidade de desaforamento na apre-
ciação de homicídio de chefe político local. Na oportunidade, ele aduziu:

64
Ministro Nelson Hungria

Senhor Presidente, é preciso que se tenha vivido em comarcas do interior,


como eu, durante anos, para que se conheça o drama que é a luta entre partidos
políticos locais. Os rancores de caráter partidário, dir-se-ia que são ali absorvidos
com o leite materno, criando as mais profundas dissensões. É a situação dos clãs
primitivos. Atacar um membro do partido adverso é atacar todos os membros
deste. Tal como numa colônia de infusórios, tocar em um é tocar em todos.
Estou a ver o que se passa em Barra Mansa, com o homicídio do chefe
de um dos partidos locais, presidente do diretório municipal do PSD; a exaltada
revolta causada no seio dos seus correligionários, o ódio político-partidário contra os
indiciados autores do crime, o estuante sentimento de vingança por parte dos amigos
políticos da vítima.
O crime surgiu por questão de ordem partidária e assumiu, como não podia
deixar de assumir, a feição de afronta aos correligionários do morto, que era chefe do
partido majoritário de Barra Mansa. (...)
Quero invocar aqui um caso, do qual tem mais conhecimento do que eu o
eminente Sr. ministro Vilas Boas, pois ocorreu na sua cidade natal — Rio Branco,
Estado de Minas Gerais. Foi lá assassinado um chefe político, também do partido
majoritário, em represália a uma bofetada que desferira contra o assassino. Inexistia
naquela época a medida salutar do desaforamento, e o criminoso teve de ser julgado
no distrito da culpa, vindo a ser condenado pelo Júri, e não obstante haver fugido,
quando na sala secreta, um dos jurados, que assim deixara de participar do conselho
de sentença, nem os defensores, nem o promotor de justiça, como fiscal da lei, tive-
ram a coragem de apelar. Só mais tarde, quando um ilustre irmão da vítima foi eleito
presidente do Estado, é que, nobremente, resolveu indultar o condenado.
Isso revela a quanto pode levar o ódio partidário no interior, notadamente no
que concerne à sua influência sobre o júri, esse instrumento passivo da politicalha,
do coronelismo do interior.
(Voto vencido no HC 35.742/RJ, rel. para o acórdão min. Afrânio Costa,
Pleno, 30-4-1958.)
Nesse caso, o ministro Nelson Hungria ficou vencido com os ministros
Barros Barreto e Sampaio Costa, este convocado, em acórdão que reconheceu
direito aos conterrâneos de julgar o feito. Segue o conteúdo da ementa:
Homicídio; desaforamento por serem duvidosas a imparcialidade do
Júri e a segurança pessoal dos réus; deve o desaforamento resultar de provas
inequívocas que demonstrem os temores alegados; não pode ser frustrado aos
cidadãos do município o direito de julgar três conterrâneos seus acusados de
perpetração de crime praticado em circunstâncias de especial relevo local.
(Voto vencido no HC 35.742/RJ, rel. para o acordão min. Afrânio Costa,
Pleno, 30-4-1958.)
2.1.4.1 Constitucionalidade do novo julgamento pelo Tribunal do Júri na
decisão contrária à prova dos autos
Cabe destacar o decidido no HC 32.271/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno,
19-11-1952, no qual o ministro Nelson Hungria reconsidera sua posição anterior
e vota pela constitucionalidade da Lei 263/1948, que previa novo julgamento

65
Memória Jurisprudencial

pelo Tribunal do Júri quando o resultado fosse contrário à prova dos autos. Eis
o fundamento do magistrado para alterar sua opinião:
Já fui daqueles que adotaram esse ponto de vista, mas o reexame da
matéria me convenceu de que não havia nessa duplicidade uma ofensa ao prin-
cípio constitucional da anacrônica soberania do Júri, uma vez que o segundo jul-
gamento era devolvido ao próprio tribunal de jurados, que, assim, seria o único
a rever sua própria decisão.
(Voto no HC 32.271/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 19-11-1952.)
2.1.4.2 Nulidade do novo Júri pela participação de jurado presente no
conselho de sentença anterior
Outro voto importante do ministro Nelson Hungria quanto ao Tribunal
do Júri diz respeito à formação do Conselho de Sentença em caso de anulação
de julgamento anterior e reconhecimento de prejuízo, não só ao réu, mas à
administração da justiça, na hipótese de participação de um jurado impedido
(HC 31.653/PB, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, julgado em 26-9-1951).
Na oportunidade, o primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri absolvera
o réu por legítima defesa. Interposta apelação pela acusação, o Tribunal de
Justiça da Paraíba mandou que o réu fosse submetido a novo julgamento, por
considerar a decisão contrária à evidência dos autos. No sorteio para o novo
Conselho de Sentença, no entanto, foi indicado jurado que havia participado do
primeiro julgamento, sem impugnação nem pela defesa nem pela promotoria.
Após a condenação do réu a onze anos de reclusão, além de um ano de inter-
namento em Colônia Agrícola, confirmada pelo Tribunal de Justiça, foi impetrado
habeas corpus alegando nulidade na composição do Conselho de Sentença.
O relator, ministro Luiz Gallotti, votou pelo indeferimento do writ, sus-
tentando ausência de nulidade, na medida em que o Código de Processo Penal
não impedia a repetição de jurado no caso específico, mas apenas no protesto
por novo Júri (Código de Processo Penal, art. 607, § 3º). Além disso, eventual
nulidade deveria ter sido arguida na primeira oportunidade concedida à defesa,
que sequer vetou o jurado ou demonstrou configurado o prejuízo.
De outro lado, o voto vencido do ministro Nelson Hungria foi enfático no
sentido da nulidade pela participação do mesmo jurado. Segundo sua orientação, a
CF/1946 criara novas hipóteses de realização de novo Júri e, a partir daí, participação
de jurado no primeiro julgamento tornava-o impedido para o segundo.
Além disso, o voto do ministro Nelson Hungria concluiu que a participa-
ção de jurado impedido importava no desrespeito do quórum legal exigido para
deliberação do Conselho de Sentença, gerando nulidade insanável que, por si

66
Ministro Nelson Hungria

só, acarretava prejuízo não só ao réu como à administração da Justiça. O ministro


Nelson Hungria, ao conceder a ordem, afirmou:
Houve prejuízo não somente para o paciente como para o interesse da regular
administração da justiça. Não pode deixar de ser sempre prejudicial o julgamento por
um conselho formado ilegalmente, isto é, com a participação de um jurado impedido.
Atrita isso, indisfarçavelmente, com o interesse da justiça legalmente disciplinado.
(Voto vencido no HC 31.653/PB, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 26-9-1951.)
Apesar de isolado na ocasião, ressalte-se que esse entendimento tornou-se pre-
dominante no Supremo Tribunal Federal pouco tempo depois, inclusive originando
o verbete 206 de sua Súmula, verbis: “É nulo o julgamento ulterior pelo Júri com a
participação de jurado que funcionou em julgamento anterior do mesmo processo.”
Oportunamente, o próprio relator do mencionado habeas corpus, ministro
Luiz Gallotti, mudou seu entendimento para considerar nulidade insanável a partici-
pação de jurado de julgamento anterior, inclusive a despeito da ausência de impug-
nação da defesa no momento apropriado, nos autos do RE 49.353/MG, rel. min.
Gonçalves de Oliveira, Primeira Turma, 7-6-1962.
2.1.4.3 Nulidade de quesito
A propósito da nulidade de quesitos apresentados ao Júri, o ministro Nelson
Hungria restou vencido no julgamento do RE 42.189/SP, rel. min. Ary Franco,
Primeira Turma, 21-5-1959, ao entender que se trata de nulidade insanável e não
sujeita a preclusão.
No caso, o quesito que tratou do emprego de recurso que dificultou ou impos-
sibilitou a defesa da vítima não foi desdobrado para identificar o eventual meio ou o
recurso empregado. Em que pese à ausência de identificação do meio, por maioria o
Júri respondeu positivamente ao quesito, em prejuízo do réu.
Apesar de o relator, ministro Ary Franco, reconhecer a nulidade da formula-
ção de quesito, rejeitou o recurso extraordinário sob o fundamento de que a nulidade
não fora alegada no momento oportuno.
Por outro lado, o ministro Nelson Hungria aparteou o voto do relator para des-
tacar o caráter insanável da nulidade, e aduziu:
Não é admissível que se deixe ao puro arbítrio dos jurados o reconhecimento
do meio insidioso e que o reservem in mente, sem dizer qual seja. (...)
A nulidade do julgamento, no caso vertente, não pode ser posta em dúvida, e
trata-se de nulidade insanável, isto é, não incluída entre aqueles que convalescem se
não alegadas oportunamente.
Data venia do eminente Sr. ministro relator, conheço do recurso e dou-lhe
provimento, para anular o julgamento.
(Voto vencido no RE 42.189/SP, rel. min. Ary Franco, Primeira Turma,
21-5-1959.)
67
Memória Jurisprudencial

Enquanto o ministro Candido Motta votou pelo provimento, os ministros


Luiz Gallotti e Barros Barreto acompanharam o relator, para deixar de conhecer
do recurso.
2.1.5 Foro por prerrogativa de função
Na década de 1950, o foro por prerrogativa de função previsto na CF/1946
gerava muita polêmica, assim como hoje. A discussão ganhava bastante relevo
com relação à manutenção do foro após o fim do exercício da função, fosse por
aposentadoria, fosse pela extinção de mandato.
No julgamento do HC 32.097/MT, rel. min. Mario Guimarães, Pleno,
20-8-1952, impetrado em favor de desembargador aposentado, contra o Tribunal
Superior Eleitoral, o Plenário assentou, com voto concorrente do ministro
Nelson Hungria, que a aposentadoria de magistrado não acarretava a perda do
foro privilegiado. A ementa do citado aresto foi assim redigida:
— Têm os desembargadores, ainda que estejam servindo nos Tribunais
Eleitorais, assegurado o foro privativo do Supremo Tribunal Federal para o pro-
cesso e julgamento dos crimes que cometam no exercício de funções eleitorais.
— Tais crimes são de responsabilidade.
— O art. 12, letra a do Código Eleitoral não abrange os juízes daquele
Tribunal que forem ministros ou desembargadores.
Não se modificam as regras de competência, acima exaradas, pela apo-
sentadoria, que sobrevenha, do magistrado.
(HC 32.097/MT, rel. min. Mario Guimarães, 20-8-1952.)
A manifestação do ministro Nelson Hungria, na oportunidade, aderiu ao
voto do ministro Mario Guimarães e, ainda, assentou que a competência ficava
prorrogada, no caso de aposentadoria, tanto para crimes comuns quanto de
responsabilidade.
Apesar da ausência de dissonância, esse julgamento do Plenário não con-
tou com os ministros impedidos Luiz Gallotti, Hahnemann Guimarães, Rocha
Lagôa, Lafayette de Andrada, nem com o ministro Edgard Costa, que estava em
exercício no Tribunal Superior Eleitoral.
Mais significativo foi o julgamento do HC 33.440/SP, rel. para o acór-
dão min. Nelson Hungria, 26-1-1955. Decidido por maioria de votos, com voto
desempate do presidente, ministro José Linhares, restou assim ementado:
Foro privilegiado em razão de função. A prerrogativa é concedida em
obséquio à função, a que é inerente, e não ao cidadão que a exerce. Deixado
definitivamente o cargo, por qualquer motivo, o seu ex-titular responderá no
foro comum.
(HC 33.440/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 26-1-1955.)

68
Ministro Nelson Hungria

O habeas corpus impugnava o processamento de ação penal pelo Tribunal


de Justiça do Estado de São Paulo por suposto crime de peculato contra o céle-
bre ex-governador Ademar Pereira de Barros.
No caso, a ação penal foi ajuizada pelo procurador-geral do Estado de
São Paulo mais de três anos depois do encerramento do mandato do governa-
dor — e a dez dias do novo pleito em que o paciente seria candidato — por atos
ocorridos na sua gestão.
Na época, o paciente ordenara a aquisição de veículos à conta do Estado
de São Paulo, inclusive por meio de financiamento de banco estadual. A des-
pesa, no entanto, não correspondia ao valor empenhado, o que acarretaria nuli-
dade da operação e transferência do custo para o ordenador da despesa, o então
governador, consoante legislação estadual.
Entretanto, o Banco do Estado de São Paulo abriu crédito em nome do
Estado e pagou à vendedora dos veículos, deixando de estornar e atribuir a dívida
pessoalmente ao governador, mesmo depois de recebida comunicação oficial
para tanto. Subscrita a dívida em nome do Estado de São Paulo, o paciente, ao
vender os automóveis, foi acusado de locupletar-se do preço da venda.
A defesa, realizada pelo futuro ministro Evandro Lins e Silva, reiterou
os fundamentos de prévio remédio constitucional já denegado pelo Supremo
Tribunal Federal (HC 33.359/SP, rel. min. convocado Henrique D´Ávila, Pleno,
10-11-1954), e ofereceu novos argumentos, notadamente a ausência de tipici-
dade do crime de peculato e a incompetência absoluta do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo para processar a ação penal.
O relator originário, ministro Hahnemann Guimarães, afastou a possibi-
lidade de o ex-governador responder por crime de responsabilidade, mas assen-
tou pela competência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para julgar
o eventual crime comum, com fundamento na Constituição paulista de 1947 e
no art. 87 do Código de Processo Penal. Na oportunidade, consignou o ministro
Hahnemann Guimarães:
Assim, parece-me que são claras, lógicas, as conclusões por mim pro-
postas. Se o governador estivesse no exercício do cargo, teria de responder à
ação penal pelo processo judiciário parlamentar; mas, se deixar o cargo, nem
por isso, deixará de ser penalmente responsável pelos atos que tenha praticado
no exercício do governo. Se esses fatos foram praticados em virtude da fun-
ção pública, em razão do cargo que exerceu, evidentemente, é competente o
Tribunal de Justiça, por prerrogativa da função, nos termos do art. 87 do Código
de Processo Penal.
(Voto do min. Hahnemann Guimarães, HC 33.440/SP, rel. para o acórdão
min. Nelson Hungria, 26-1-1955.)

69
Memória Jurisprudencial

Aparteando o relator, o ministro Nelson Hungria ressaltou a diferença entre


o fim do mandato e a inatividade de servidor com foro por prerrogativa de função:
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: (...) Ora, o crime foi praticado no
exercício de função pública.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Tivemos já o caso do desembargador
Ernesto Góes, que, tendo praticado um crime, e já aposentado, foi processado
por este Tribunal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É diferente. O aposentado continua fun-
cionário público, leva consigo as prerrogativas da função.
(Voto do min. Hahnemann Guimarães, HC 33.440/SP, rel. para o acórdão
min. Nelson Hungria, 26-1-1955.)
Ao abrir a divergência, o próprio ministro Nelson Hungria reconheceu
que seu voto divergia da jurisprudência predominante anterior, mas foi enfá-
tico na extinção do acessório (foro privilegiado) quando o principal se findasse
(exercício da função). O contrário seria tão “absurdo quanto admitir-se que uma
sombra continue a existir por si mesma, independentemente do corpo que a
projetava”, verbis:
Já inteiramente procedente parece-me, entretanto, o argumento sobre
a incompetência do Tribunal de Justiça, para processar originariamente o
paciente, que há muito deixou, definitivamente, de ser governador do Estado de
São Paulo. O foro especial, de que cogita o art. 87 do Código de Processo Penal,
é uma “prerrogativa de função”, e, como tal, condicionada à continuidade do
exercício da função por parte do acusado. Trata-se de um obsequium conce-
dido ao governador como tal, e não como cidadão. O art. 45 da Constituição
do Estado de São Paulo não diz, nem podia dizer outra coisa, sob pena de estar
inovando sobre matéria de processo penal, que é reservada pela Carta Magna
à competência da União. Desde que o titular do governo deixa definitivamente
o cargo, volta a ser um cidadão como outro qualquer, não podendo eximir-se
ao preceito constitucional de que todos são iguais perante a lei. Assim, Senhor
Presidente, data venia do eminente Sr. ministro relator, considero incompetente
o Tribunal de Justiça de São Paulo para conhecer, originariamente, do processo
contra o paciente. É verdade que esse Colendo Tribunal tem insistido no ponto
de vista contrário ao que ora sustento. Tenho conhecimento de um seu aresto em
tal sentido; mas conheço, igualmente, a crítica, cerrada e exaustiva, que lhe fez,
em um dos números da Revista de Direito Administrativo, o exímio jurista, que
é Romão Cortes de Lacerda. São irrespondíveis os argumentos por este formu-
lados. Nem seria concebível um privilégio concedido ou inerente à função per-
sistisse após o término do exercício desta. Não é admissível que o acessorium
sobreviva autonomamente após a extinção do principale. Seria isso tão absurdo
quanto admitir-se que uma sombra continue a existir por si mesma, independen-
temente do corpo que a projetava.
(Voto no HC 33.440/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria,
26-1-1955.)

70
Ministro Nelson Hungria

O ministro Nelson Hungria concedia, ainda, a ordem para impedir a ins-


tauração de novo processo contra o paciente, reconhecendo a ausência de justa
causa. Os ministros Mario Guimarães, Macedo Ludolf (convocado), Rocha
Lagôa e Lafayette de Andrada acompanharam, ao menos em parte, o voto
divergente do ministro Nelson Hungria. Por outro lado, acompanharam o relator
os ministros Hahnemann Guimarães, denegando a ordem; Afrânio Costa, con-
vocado; Luiz Gallotti; Ribeiro da Costa; e Orozimbo Nonato.
O então presidente, ministro José Linhares, reconhecendo o empate apenas
quanto à questão da competência, acompanhou a divergência e deferiu a ordem.
Posteriormente, no entanto, a corrente liderada pelo ministro Nelson
Hungria restou vencida no HC 35.301/MG, rel. para o acórdão min. Ary Franco,
21-10-1957, em acórdão que foi assim ementado:
Competência pela prerrogativa de função — Persistência após a demis-
são — Art. 87 do Código de Processo Penal.
Praticado o crime na função e em razão da função, embora deixando
depois o cargo, deve subsistir o foro por prerrogativa de função. Aplicação do
art. 87 do Código de Processo Penal.
(HC 35.301/MG, rel. para o acórdão min. Ary Franco, 21-10-1957.)
Nesse caso, o acusado foi exonerado do cargo de juiz de direito, e a
defesa pleiteava a incompetência do Tribunal de Justiça para julgar a ação penal.
Restaram vencidos o relator, ministro Barros Barreto, e os ministros Nelson
Hungria e Candido Motta.
Nessa linha, contrário ao entendimento do ministro Nelson Hungria, foi
editado o verbete 394 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:
Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competên-
cia especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal
sejam iniciados após a cessação daquele exercício.

Destaque-se, por outro lado, que o entendimento do ministro Nelson


Hungria passou a prevalecer mais de quarenta anos depois, desde o julgamento
do Inq 687-QO/SP, rel. min. Sydney Sanches, Pleno, 25-8-1999, DJ de 9-11-2001.
Na ocasião, o Supremo Tribunal Federal revogou a Súmula 394 e enten-
deu que a CF/1988 não admitia a manutenção da prerrogativa de foro após a
extinção da função pública, com os votos dos ministros Sydney Sanches (rela-
tor), Moreira Alves, Octavio Gallotti, Celso de Mello, Marco Aurélio, Carlos
Velloso e Maurício Corrêa. Ficaram vencidos os ministros Néri da Silveira,
Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão e Nelson Jobim.
No entanto, a difícil discussão parece ainda não inteiramente pacificada
no Plenário, dada a possibilidade de verdadeira manipulação da jurisdição pelo

71
Memória Jurisprudencial

acusado, como arguido na AP 333/PB, rel. min. Joaquim Barbosa, Pleno, 5-12-2007,
DJ de 11-4-2008; e na AP 396/RO, rel. min. Cármen Lúcia, Pleno, 28-10-2010.
Nesse contexto, os votos do ministro Nelson Hungria, ao lado das poste-
riores manifestações do ministro Victor Nunes, parecem muito iluminar a atual
controvérsia.
2.1.6 Crimes de espionagem
Na década de 1950, o Supremo Tribunal Federal ainda tratou de curioso
caso de crimes de espionagem, decorrentes principalmente da II Guerra
Mundial.
Cuida-se da acusação contra Túlio Regis de Nascimento, oficial da
Marinha brasileira, por ter dirigido, em território nacional, serviço de espiona-
gem no interesse das nações do Eixo na II Guerra Mundial.
No caso, o réu informava a Alemanha acerca dos navios norte-america-
nos ancorados na costa brasileira antes de o Brasil declarar guerra e entrar defi-
nitivamente no esforço aliado contra os países do Eixo, em 31 de agosto de 1942.
O paciente ficou notório por impetrar diversos habeas corpus para o
Supremo Tribunal Federal, à época. A princípio, ele foi julgado pelo Tribunal de
Segurança e condenado a trinta anos de prisão, por crimes previstos no Decreto-
Lei 4.766, de 1º de outubro de 1942, também posterior aos atos de espionagem.
A Corte já havia rejeitado o HC 29.655/DF, rel. min. Edgard Costa, Pleno,
21-5-1947. No entanto, em 1947, concedeu habeas corpus ao paciente, reconhe-
cendo cerceamento de defesa, sem prejuízo de novo processo (HC 30.086/DF,
rel. min. Lafayette de Andrada, Pleno, 17-12-1947).
Renovado o julgamento perante a Justiça Militar, o paciente foi nova-
mente condenado, nas penas do Decreto-Lei 4.766/1942, razão pela qual novo
habeas corpus foi impetrado (HC 31.552/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno,
27-6-1951).
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria ficou vencido isoladamente, apon-
tando a impossibilidade de recepção pela nova ordem constitucional da conde-
nação por lei ex post facto.
É certo que, no período da II Guerra, as garantias constitucionais foram
suspensas, inclusive a aplicação de leis penais ex posto facto, porém o ministro
Nelson Hungria não se omitiu de afirmar que o retorno à normalidade constitu-
cional e a promulgação da CF/1946 reintroduziram a nulidade da retroatividade
da norma penal e impediram a manutenção da execução, senão “estaria implan-
tado o mais desmarcado arbítrio do Estado contra o indivíduo” (voto no HC
32.928/DF, rel. para o acórdão min. Rocha Lagôa, Pleno, 4-4-1954).

72
Ministro Nelson Hungria

Mais uma vez, utilizando-se de exemplos didáticos, o ministro Nelson


Hungria argumentou, demonstrando o absurdo da condenação:
O meu desacordo, entretanto, se manifesta no ponto em que o ilustre Sr.
ministro relator entende que a lei excepcional ou temporária continua a vigorar
além de seu término, ainda quando só foi possível em razão da suspensão das
garantias constitucionais.
O art. 3º do Código Penal, quando disciplina as penas excepcionais ou
temporárias, evidentemente pressupõe que continue indene a lei máxima, a
lei constitucional. Se a lei temporária ou excepcional só foi possível porque
estava suspenso o regime constitucional, essa não pode mais vigorar desde
que a Constituição volte a imperar, porquanto, de outro modo, criar-se-ia uma
situação duradoura de contraste com a Constituição. Vou formular um exem-
plo ad terrorem. Suponha-se que durante o antigo “estado de emergência” em
que estavam suspensas as garantias constitucionais e suprimido o Parlamento,
o chefe da Nação, aproveitando-se dessa circunstância, promulgasse lei penal
com efeito retroativo, punindo com trinta anos de prisão milhares de adversá-
rios seus, que houvessem assinado determinado manifesto contra o Governo.
Algum tempo depois, terminado o estado de emergência e voltando a vigorar
a Constituição, essa pena de trinta anos aplicada retroativamente a milhares de
cidadãos poderia continuar a ser cumprida? Evidentemente, não, porque, do
contrário, ter-se-ia de admitir a possibilidade de o chefe de Governo neutralizar,
por trinta anos, mesmo com o retorno da vigência da Constituição, a atuação dos
seus adversários políticos.
(...)
Nesse ponto, por conseguinte, divirjo do eminente Sr. ministro relator, para
conceder o habeas corpus. O paciente foi condenado à pena de doze anos de reclusão
por fato que, ao tempo da sua prática, não era incriminado. Há ainda outros indiví-
duos apodrecendo na Ilha Grande, como já tive oportunidade de verificar pessoal-
mente, em cumprimento de penas ainda mais longas, até de trinta anos, em virtude
do efeito retroativo do Decreto 4.766. É uma inconstitucionalidade que precisa ser
conjurada. Foi o paciente condenado por lei ex post facto.
(Voto no HC 31.552/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 31-7-1951.)
Posteriormente, outro habeas corpus foi impetrado no Supremo Tribunal
Federal e distribuído ao ministro Nelson Hungria. Desde logo, o então rela-
tor reiterou o absurdo da aplicação retroativa do Decreto-Lei 4.766/1942 para
fatos ocorridos antes de sua vigência, no caso as operações de espionagem do
paciente em favor da Alemanha. E complementou o magistrado:
Não é verdade que seja o paciente o único, no mundo, a sofrer pena desta
natureza; aí estão, curtindo pena iníqua, as vítimas do Tribunal de Nuremberg,
esse atentado inominável.
(Voto no HC 32.928/DF, rel. para o acórdão min. Rocha Lagôa, Pleno,
4-4-1954.)
Todavia, a orientação do ministro restou vencida, prevalecendo o voto
do ministro Rocha Lagôa, que concedia parcialmente a ordem e anulava o

73
Memória Jurisprudencial

processo a partir da sentença, para afastar a incidência retroativa do Decreto-


Lei 4.766/1942, mas possibilitava que se prosseguisse o julgamento quanto ao
art. 79, 2, do Código Penal da Armada de 1891.
Inconformado, o ministro Nelson Hungria manteve seu voto, uma vez
que tampouco admitia a incidência do art. 79, 2, do Código Penal da Armada de
1891, pois o mencionado dispositivo exigia a declaração de guerra, situação que
só se verificou em 31-8-1942, após a ocorrência dos fatos imputados ao paciente.
Tal inconformismo restou patente quando da apreciação da prisão pre-
ventiva do paciente, nos autos do HC 33.150/DF, rel. para o acórdão min. convo-
cado Afrânio Costa, Pleno, 14-7-1954:
A prisão preventiva do paciente seria um luxo de rigor e uma flagrante
ilegalidade. Ainda que tal medida, negando sua própria finalidade, fosse cabível
após o término da instrução criminal, seria, no caso, inteiramente desnecessária:
o paciente, ao fim do martírio de mais dez anos no ciclo dantesco da relegação
na Ilha Grande, foi posto em liberdade pelo Supremo Tribunal, que reconheceu
a inconstitucionalidade da permanência do efeito retroativo da ominosa lei de
exceção que lhe fora aplicada, e durante quarenta dias após sua liberação, não
cuidou de se eximir ao novo julgamento e, longe de fugir ou esconder-se, esteve
em lugar certo e sabido, a clamar pela sua inocência e a reclamar que, afinal, se
lhe faça justiça.

Nesse último caso, o relator, ministro Hahnemann Guimarães, ficou


vencido ao opinar pelo indeferimento da ordem, compondo o ministro Nelson
Hungria a maioria.
Finalmente, no julgamento do HC 33.780/DF, rel. min. convocado
Sampaio Costa, Pleno, 7-12-1955, prevaleceu o entendimento já externado pelo
ministro Nelson Hungria. Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal concedeu a
ordem para cassar a condenação do paciente e deixá-lo livre de novos processos,
em acórdão assim ementado:
Habeas corpus. Espionagem. Inteligência do art. 79, n. 2, do Código
Penal da Armada.
Estado de guerra; sua caracterização jurídica no campo internacional e
no direito público interno; seus efeitos. Exigência no nosso direito (pátrio) da
declaração formal de estado de guerra para a caracterização do mesmo estado.
(HC 33.780/DF, rel. min. convocado Sampaio Costa, Pleno, 7-12-1955.)
Mais uma vez, o voto do ministro Nelson Hungria é contundente ao rechaçar
um a um os argumentos do Superior Tribunal Militar, que tentava enquadrar a con-
duta do paciente, a despeito de giros hermenêuticos contestáveis. O ministro utilizou
até a ironia como recurso para demonstrar o absurdo da situação:
(...) Sentindo a fragilidade dos seus argumentos, o Superior Tribunal
Militar usou de mais um argumento contra o paciente. Afirmou que ele, pelo

74
Ministro Nelson Hungria

menos, silenciara sobre a existência de espiões no Brasil. Pela primeira vez,


ouço dizer que o simples silêncio, que o simples fato de não delatar crime, de
que se tem conhecimento, importa em coparticipação nesse crime. Isso é novi-
dade, que pode honrar o alto descortino do Superior Tribunal Militar, mas que
eu contesto, em nome de tudo quanto se tem escrito no mundo civilizado em
matéria de coparticipação criminosa.

Ressalte-se que, nesse último julgamento, surgiu a discussão sobre a sub-


sistência da condenação acessória por perda de patente. Por um lado, o minis-
tro Nelson Hungria defendia que o retorno à normalidade constitucional não
implicava anulação dos efeitos da condenação surgida no período de guerra e de
suspensão das garantias constitucionais, mas mera cessão das penas. Por outro
lado, o ministro Rocha Lagôa entendeu que a decisão do Supremo Tribunal
Federal importava na anulação como um todo da condenação, com eficácia ex
tunc, sendo nula a perda de patente.
Concordaram, por fim, que a matéria não era objeto do habeas corpus
e que deveria ser examinada em pertinente processo cível (HC 33.780/DF, rel.
min. convocado Sampaio Costa, Pleno, 7-12-1955).
2.1.7 Crimes praticados por funcionário público contra a administração
em geral
Em relação à inteligência dos crimes de responsabilidade ou contra a
administração pública, o ministro Nelson Hungria deixou notáveis contribui-
ções nas suas manifestações na Corte.
Com efeito, ele foi um dos primeiros a denunciar a utilização do processo
penal, em especial por acusações de peculato e prevaricação, como arma para
prejudicar opositores políticos.
Não só a instauração de processos criminais dias antes de pleitos eleito-
rais (HC 33.440/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 26-1-1955) mas
a própria tentativa de criminalização da atividade política revelavam completa
deturpação do processo penal como forma de desgaste dos oponentes eleitorais.
No julgamento do HC 34.809/SP, rel. min. Nelson Hungria, 23-1-1957, o
contundente voto do ministro relator dispôs:
O presente caso é mais um da série de imaginários peculatos e supostos
desregramentos administrativos maquinados, com maior ou menor habilidade,
contra figurões de proa de determinado partido político de São Paulo, por parte
de seus adversários, naturalmente para vexá-los e desacreditá-los, num verda-
deiro steeple chase de competição desleal. No caso vertente, sobe de ponto a
sem-razão de processo penal, dado que mais do que em casos anteriores, no
meu entender, é manifesta a inconsistência da acusação, evidente a abstração de
indeclináveis preceitos legais. (...)

75
Memória Jurisprudencial

Segundo declaração que o corréu José de Barros Júnior fizera quando


da investigação pela comissão designada pela Câmara Municipal, mas que veio
a repudiar no ulterior inquérito policial, o paciente William Salem teria, como
presidente da dita Câmara, autorizado verbalmente o referido corréu, tesoureiro
Barros Junior, a depositar dinheiros sob sua guarda em bancos particulares.
Quid inde? Não consta que haja alguma lei municipal proibindo tais
depósitos; mas, ainda mesmo que existisse a proibição e que aos depósitos se
seguisse a apropriação dos dinheiros por parte do tesoureiro, qual o crime de
Salem, que não era responsável pela fidelidade de Barros Junior e posto que seu
único vínculo com o fato teria sido a autorização do depósito, sem qualquer
consilium fraudis com o dito funcionário? A dizer-se que Salem, na espécie, é
coautor do peculato, teríamos também de admitir que, se ele tivesse autorizado
Barros Junior a ausentar-se durante as horas do expediente e o mesmo viesse a
praticar, nesse meio tempo, uma infidelidade conjugal, seria corresponsável do
crime de adultério. Acresce que não se afirma, sequer, que os dinheiros depo-
sitados em Bancos particulares, segundo autorização de Salem, é que foram os
desfalcados por Barros Junior, se é que, realmente, existe alcance de dois mil e
tantos contos que se lhe atribui.
(...)
Finalmente, há esta incoerência verdadeiramente inacreditável: o vene-
rando Tribunal paulista manteve a rejeição da denúncia quanto aos irmãos
Chames, reconhecendo que, realmente, não haviam praticado atos de corrupção
ativa; mas recebeu a denúncia, mesmo pelo art. 317 do Código Penal, contra
Salem, que, segundo a denúncia, teria sido, juntamente com “Barros Junior”,
corrompido pelos irmãos Chames.
O despropósito ultrapassa todas as raias do tolerável: uma corrupção pas-
siva consumada sem a correspondente corrupção ativa. (!?)
(...)
Não tenho dúvida, Senhor Presidente, em reconhecer a ilegalidade da
coação que está sofrendo o paciente e concedo, portanto, a ordem impetrada.
(Voto no HC 34.809/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 23-1-1957.)
Nesse caso, a ordem foi concedida à unanimidade pelo Plenário do
Supremo Tribunal Federal.
Adicionalmente, o voto divergente do ministro Nelson Hungria no HC
32.386/DF e no RHC 32.398 acabou prevalecendo para afastar o crime de pre-
varicação imputado a promotor de justiça que tenha deixado de opinar pela
prisão preventiva e de oferecer denúncia por carência de elementos suficientes
contra determinados indiciados. O aresto restou assim ementado:
Crime de prevaricação; quando se tem de reconhecer a sua inexistência.
O exercício de uma faculdade legal, dentro das condições a que é subordinada,
jamais poderá ser considerado crime.
(Voto no HC 32.386/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
23-3-1954.)
Na oportunidade, o voto vencedor do ministro Nelson Hungria analisou
de forma magistral o tipo da prevaricação:
76
Ministro Nelson Hungria

(...) Verifica-se, pois, desde logo, que dois elementos se apresentam na


configuração do crime [de prevaricação]: o elemento objetivo e o elemento sub-
jetivo, ambos essenciais para essa configuração do delito.
O elemento objetivo é que o retardamento ou a omissão do ato haja sido
indevido, isto é, ilegal, arbitrário, ou, então, que o atos praticados tenham infrin-
gido disposição de lei. Este o elemento do crime, a parte objecti.
(...) Não é de confundir-se a prevaricação com a corrupção: nesta pouco
importa a legalidade ou ilegalidade da ação ou omissão pelo funcionário, pois se tem
em conta apenas o mercado em torno da função pública; na prevaricação, ao contrá-
rio, é indispensável a ilegalidade, a infringência de expresso dispositivo legal.
(Voto no HC 32.386/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
23-3-1954.)
E ainda ressaltou a necessidade de distanciamento dos magistrados dos
clamores públicos:
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O Dr. procurador-geral concordou; depois,
ofereceu denúncia.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É isso mesmo: o Dr. procurador-geral,
ele próprio, concordara de início com a atuação do paciente, mas, depois, pre-
mido pelo ambiente que se criou em torno do caso, decorrente do novo surto da
campanha anticomunista e que se encontra no auge da efervescência, propensa a
ver em qualquer atitude, por mais inofensiva ou explicável, um perigo de mani-
festação de cor partidária, adotou outra maneira de proceder. Foi a compressão
do ambiente a causa da contramarcha. Passou a bastar a acusação de comunista
militante, por mais gratuita que seja, para que se imponha aos espíritos como
verdade provada e indiscutível. É o perigo dos apaixonamentos, dos ardo-
res partidários. Mas, evidentemente, a justiça tem de ficar acima dessas
paixões, tem de andar sobre elas com os pés enxutos, como Cristo sobre as
ondas do mar da Galileia.
Não vejo como o Supremo Tribunal Federal possa apoiar a injustiça de
fazer sentar no banco dos réus um inocente, um funcionário que agiu dentro do
cumprimento do seu dever e está sendo, por isso, criminalmente processado,
sujeito ao vexame de responder perante o foro penal. Não é possível que se pac-
tue com isso, num país de civilização jurídica. Assim, não hesito em dar provi-
mento ao recurso e conceder o habeas corpus.
(Voto no HC 32.386/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
23-3-1954, destacamos.)
Por outro lado, o ministro Nelson Hungria foi enfático ao refutar a neces-
sidade de tomadas de contas — no julgamento do HC 33.515/DF, rel. min. Luiz
Gallotti, Pleno, 11-5-1955 — e ao assentar a indispensabilidade de dano patrimonial
para consumação do peculato no HC 34.114/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães,
Pleno, 9-5-1956. Esse último voto foi proferido nos seguintes termos:
Senhor Presidente, o acórdão que condenou o paciente apresenta, data
venia, tantos pontos sem resistência, oferece o flanco a tantas críticas, que não se
sabe por onde começar. Há, porém, um ponto que fere mais intensamente minha

77
Memória Jurisprudencial

sensibilidade de estudioso de direito penal: é aquele em que se afirma que pode


existir peculato consumado sem dano patrimonial efetivo.
(...)
(...) O peculato não é mais que a apropriação indébita trasladada para
o quadro dos crimes contra a administração pública, porque praticada contra
o patrimônio desta (interesse mais relevante que o do patrimônio privado) e
por funcionário seu, com infidelidade ao cargo público (cujo exato exercício
afeta diretamente ao interesse do Estado e, portanto, da coletividade). É ele
incriminado separadamente da apropriação indébita comum, para mais severo
tratamento, não apenas porque seja uma violação do dever funcional, senão tam-
bém, substancialmente, porque lesa o interesse patrimonial do Estado. É com a
apropriação do dinheiro ou coisa imóvel pertencente ou sob a guarda do Estado
que se realiza a violação do dever funcional. Uma e outra são como corpo e
alma, como esmeralda e cor verde, como fel e amargor. Sem esses dois elemen-
tos, que se conjugam incindivelmente, não pode haver o summatune opus do
peculato. O momento consumativo é, aqui, a apropriação sine jure do dinheiro
ou coisa móvel, e nesse momento está necessariamente inserto o efetivo dano
patrimonial, isto é, a retirada ou desvio do dinheiro ou coisa móvel pertencente
ou sob a guarda do Estado, que perde a respectiva disponibilidade, servindo-se
o agente da pecúnia ou do objeto como se fosse o dono. Ainda no caso de sim-
ples desvio (como, por exemplo, retirar o dinheiro do Estado, para emprestar,
transitoriamente, a outrem), não deixa de haver efetivo dano patrimonial. Na
própria modalidade da “malversação”, em que o dinheiro ou coisa não pertence
ao Estado, mas está sob sua guarda e responsabilidade, a obrigação legal que
decorre para o Estado, de restituir ao proprietário o dinheiro ou valor da coisa,
já é autêntico dano patrimonial. Não tenho dúvida, portanto, em repetir o que já
disse de outra feita: peculato consumado sem dano efetivo é tão absurdo quanto
dizer-se que pode haver fumaça sem fogo, ou sombra sem corpo que a projete,
ou telhado sem paredes ou esteios de sustentação.
(Voto no HC 34.114/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 9-5-1956.)
Além disso, na notória representação contra o então governador de São
Paulo e futuro presidente da República, Jânio da Silva Quadros, o ministro
Nelson Hungria não deixou de alertar sobre o abuso da utilização do processo
penal como arma política.
Trata-se do RE 33.827/SP, rel. min. Ary Franco, Primeira Turma, 14-1-1957,
interposto contra decisão do Tribunal de Justiça Local, que não processou represen-
tação criminal privada contra o então governador de São Paulo por supostos atos
desabonadores cometidos quando prefeito do Município de São Paulo.
Nesse caso, o referido Município, comandado por opositor político de
Jânio Quadros, apresentou representação, munida de parecer do professor
Roberto Lyra, ao chefe do Ministério Público do Estado de São Paulo, em face
da realização de obras sem autorização da Câmara de Vereadores, gerando
grandes débitos ao erário municipal.
Em vez de promover o arquivamento ou solicitar a abertura do processo
criminal perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o procurador-geral
78
Ministro Nelson Hungria

de justiça do Estado invocou a ausência da prévia autorização da Assembleia


Legislativa para não processar o requerimento. O Município, então, representou
diretamente em juízo contra Jânio Quadros. O Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, por sua vez, admitiu a ação penal privada, mas arquivou o feito ante
a ausência da autorização da Assembleia estadual, entendendo que caberia ao
interessado — e não ao Poder Judiciário — requerer a autorização legislativa
para a abertura do processo criminal contra o então governador.
Contra essa decisão foi interposto o apelo extremo, alegando a desneces-
sidade de autorização da Assembleia estadual para a apuração de crimes come-
tidos contra a municipalidade.
No julgamento, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal manteve
o acórdão recorrido, pois entendeu que o processamento da ação penal contra
governador dependia de iniciativa do Ministério Público e de autorização da
Assembleia Legislativa, independentemente do tempo em que supostamente
cometida a infração penal.
O ministro Nelson Hungria, por sua vez, não deixou de censurar a atitude
do chefe do Ministério Público do Estado de São Paulo e do Tribunal de Justiça
local, que não remeteram o caso para a autorização da Assembleia Legislativa,
mas se limitaram a arquivar o procedimento criminal:
(...) Competia-lhe [ao procurador-geral do Estado de São Paulo] provocar
esse pronunciamento, ou promover perante o Tribunal de Justiça, o arquivamento
da representação, caso entendesse não haver crime ou prova de imputada autoria. O
mais acertado, na hipótese de existência de crime e elementos de convicção da auto-
ria, seria o oferecimento da denúncia perante o Tribunal de Justiça, cabendo ao relator
do feito, antes de qualquer outro despacho, provocar a manifestação da Assembleia
Legislativa. Esses os trâmites regulares, que, entretanto, não foram seguidos.
(Voto no RE 33.827/SP, rel. min. Ary Franco, Primeira Turma, 14-1-1957.)
E complementou:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: (...) Há poucos dias, no julgamento de um
habeas corpus e, a seguir, no de um recurso extraordinário, tive oportunidade
de profligar o expediente posto em moda pelos competidores políticos, consis-
tente armar contra o adversário a falsa acusação de peculato ou de outros crimes
contra a administração pública. Chamei a esse desleal processo de “borduna”,
pois, criando para a vítima a situação de iminente prisão preventiva e expondo-
-a à maledicência pública, represente um golpe sem piedade. Não se vacila para
isso em deturpar fatos, sonegar documentos, produzir testemunhas falsas, etc.,
de tal modo que o acusado, perseguido como lobo mau, vê-se na contingência
até mesmo de buscar asilo em país estrangeiro. Vejo que tal expediente, usado
até agora por determinado partido político, passou a ser empregado pelos do
outro lado, onde também se aprendeu a manejar a “borduna”.
O Sr. Ministro Ary Franco (Relator): Hoje, todos têm a bomba atômica...

79
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Nelson Hungria: É isso mesmo, é de desejar-se que o


modo recíproco termine a guerra... Repito, Senhor Presidente: ainda que fosse
possível, no caso, a iniciativa privada, ao Tribunal a quo é que caberia provocar
a Assembleia Legislativa; mas isso não é pleiteado pela recorrente, e pour couse:
está ela ciente de que o recorrido dispõe de maioria na Assembleia, e a acusação
seria julgada, na certa, improcedente.
Não podendo julgar extra ou ultra petita, também não conheço do recurso.
(Voto no RE 33.827/SP, rel. min. Ary Franco, Primeira Turma, 14-1-1957.)
Denota-se, assim, o apego do ministro Nelson Hungria à precisão técnica
de seus votos, que se revestiam em verdadeiras aulas sobre o direito penal, sem
prejuízo de repudiar os abusos da criminalização da atividade política.
2.1.8 Crimes de responsabilidade
O ministro Nelson Hungria foi relator de representação formulada contra
o então ministro da Fazenda, Dr. Oswaldo Aranha, por suposta desobediência a
decisão judicial e por prevaricação (Rp 211/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno,
26-5-1954).
No caso, o juiz Amilcar Laurindo Ribas, da 2ª Vara da Fazenda Pública
do Distrito Federal, concedera mandado de segurança contra a Carteira de
Exportação e Importação (Cexim) — órgão ligado ao Banco do Brasil, respon-
sável pela política cambial antes da criação do Banco Central — para permitir a
entrada de veículos adquiridos no exterior aos então impetrantes.
Ao assumir o Ministério da Fazenda no governo Vargas, o Dr. Oswaldo
Aranha entendeu por bem extinguir a Cexim e assumiu, temporariamente,
a direção de suas operações. Ao ser informado das alterações estruturais, o
Juízo da 2ª Vara da Fazenda Pública encaminhou a ordem ao então ministro da
Fazenda, para que a cumprisse no prazo de cinco dias.
Descumprida a ordem no prazo assentado, o juiz representou ao procura-
dor-geral da República, por suposta ocorrência dos delitos de prevaricação e
desobediência (arts. 319 e 330 do Código Penal).
O então procurador-geral da República encaminhou a representação ao
Supremo Tribunal Federal, opinando pelo arquivamento do feito.
Nada obstante a opinião do titular da ação penal, o relator fez questão de
examinar o mérito da controvérsia.
Em primeiro lugar, o ministro Nelson Hungria desclassificou os delitos
descritos na representação para o crime de responsabilidade de “recusar o cum-
primento das decisões do Poder Judiciário”, previsto no art. 12, 2, c/c art. 13, 1,
da Lei 1.079, de 10 de abril de 1950.

80
Ministro Nelson Hungria

Em segundo lugar, o magistrado suscitou preliminar de inconstituciona-


lidade da Lei 1.079/1950, no ponto em que previa a acusação perante a Câmara
dos Deputados e o julgamento perante o Senado para crimes de responsabilidade
de ministros de Estado, mesmo nos casos não conexos com os do presidente da
República. Por unanimidade, o Pleno do Supremo Tribunal Federal acompa-
nhou o ministro relator, reconhecendo a mencionada inconstitucionalidade.
Finalmente, o ministro Nelson Hungria anotou a inexistência do delito de
descumprimento de decisão judicial, eis que o órgão competente para apreciar
mandado de segurança contra ministro de Estado — e que, portanto, poderia
dar ordem judicial ao ministro — seria o Tribunal Federal de Recursos. Logo,
a ordem emanada de juízo de primeiro grau era manifestamente ilegal, e seu
descumprimento não implicava crime de responsabilidade.
Ressalte-se, por fim, que, como bom professor, o ministro Nelson Hungria
não deixou de corrigir “a noção inexata dos crimes de prevaricação e desobedi-
ência” que o juiz representante tinha.
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal acompanhou
o voto do ministro Nelson Hungria, e o aresto restou assim ementado:
Inconstitucionalidade parcial da Lei 1.079, de 1950, sobre crimes de res-
ponsabilidade. Crimes de responsabilidade de ministros de Estado, não cone-
xos com os de presidente da República; o processo e o julgamento cabem ao
Supremo Tribunal Federal. Inexistência dos crimes apontados em representação
contra o ministro da Fazenda. Quando não se pode identificar o crime de preva-
ricação com o de desobediência. Arquivamento de representação, pedida, aliás,
pelo procurador-geral da República.
(Rp 211/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 26-5-1954.)
2.1.9 Crimes contra o patrimônio
Também a respeito dos delitos contra o patrimônio, deixou o ministro
Nelson Hungria valiosíssimas lições de técnica jurídica e postura de magistrado.
Já naquela época assentou-se, por exemplo, o momento da consumação
do crime de estelionato na emissão de cheque sem fundos, no HC 36.908/SP,
rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 2-9-1959. Na oportunidade, o ministro Nelson
Hungria sucintamente resumiu a consumação do delito de estelionato:
Senhor Presidente, também entendo que, sendo o cheque emitido, isto é,
entregue pelo emitente a outrem e, assim, posto em circulação, o crime do art.
171, § 2º, VI, do Código Penal, na sua primeira modalidade, se consuma; e, em
se tratando da outra modalidade ulterior, retirada ou bloqueio da provisão, o
momento consumativo é o dessa frustração do pagamento.
Ora, no caso, o emitente entregou a um banco, para depósito em sua
conta, três cheques, recebendo em correspondência três cheques visados, e ao
serem aqueles apresentados ao banco sacado, não havia fundos, pois os que
81
Memória Jurisprudencial

existiam, ainda que insuficientes, haviam sido, intercorrentemente, retirados


pelo recorrente.
(Voto no HC 36.908/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 2-9-1959.)
Logo, consumado o delito, a posterior entrega do numerário suficiente
para adimplir os cheques não desconstitui o crime, segundo o decidido pelo
Supremo Tribunal Federal.
A Corte também teve a oportunidade de assentar, definitivamente, que o
crime de latrocínio é de competência do juiz singular, não do Tribunal do Júri, por
ser, preponderantemente, crime contra o patrimônio, no HC 32.217/RN, rel. para o
acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 5-11-1953, que restou assim ementado:
Latrocínio; o julgamento compete ao juiz singular, e não ao Tribunal do Júri.
(HC 32.217/RN, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
5-11-1953.)
Tratava-se da interpretação do art. 141, § 28, da CF/1946, com redação
semelhante à atual disposição da CF/1988, determinando a competência do tri-
bunal popular para julgar os “crimes dolosos contra a vida”.
É certo que já havia outros precedentes do Supremo Tribunal Federal
afastando a competência do Tribunal do Júri nesses casos, inclusive com o
voto concorrente do ministro Nelson Hungria, como o RHC 32.228/SP, rel.
min. Lafayette de Andrada, Pleno, 5-11-1952. A controvérsia, no entanto, ainda
tinha duros debates, principalmente por conta da oposição do saudoso ministro
Orozimbo Nonato.
Na oportunidade do julgamento do HC 32.217/RN, o relator originário,
ministro Orozimbo Nonato, entendia que a ratio legis da CF/1946 era “entregar
aos juízes populares o julgamento dos casos em que ocorresse assassínio volun-
tariamente procurado.” E afirmou:
Não se trata, é claro, de pindarizar a orientação do constituinte nem de atirar-
-lhe exprobações e grasnos, senão, simplesmente, de medir o alcance de seu preceito.
E este alcance apenas deixa fora de suas raias, entre os crimes contra a
vida, os culposos.
O latrocínio é crime de que resulta morte. E é o que basta, sem necessidade
de indagações de suas determinantes, uma vez que não se trata de crime culposo.
Desde que ocorra homicídio, em conexidade com outro crime ou, ainda,
ligado a outro como entidade complexa (caso do latrocínio) a competência é do Júri,
como é, aí incontestamente, no caso de praticado o homicídio para assegurar a execu-
ção, a ocultação, a impunidade do roubo (art. 121, § 2º, V, do Código Penal).
(Voto do ministro Orozimbo Nonato no HC 32.217/RN, rel. para o acór-
dão min. Nelson Hungria, Pleno, 5-11-1953.)

82
Ministro Nelson Hungria

Por outro lado, o ministro Nelson Hungria liderou a maioria, opinando


que o latrocínio constitui crime contra o patrimônio, essencialmente, e que tam-
pouco demandava dolo quanto ao evento morte:
Senhor Presidente, também entendo, de acordo, aliás, com reiterados arestos
deste Supremo Tribunal, que o crime de latrocínio não se inclui entre aqueles que
a Constituição Federal e a vigente Lei do Júri atribuem à competência do tribunal
popular. O latrocínio é crime contra o patrimônio, e a Constituição, ao definir a com-
petência do Júri, fala em crimes dolosos contra a vida.
A Carta Magna não podia usar de expressões fora de seu sentido técnico.
O legislador constituinte não podia ignorar o idioma da lei específica sobre a
repressão dos crimes, isto é, o subsistente Código Penal de 1940, que distingue
nitidamente entre crimes contra a vida e crimes contra o patrimônio, incluindo
entre os últimos o latrocínio. E ainda mais: o latrocínio existe ainda quando o
evento “morte” tenha sido meramente culposo ou preterdoloso. Não é preciso
que o evento letal se compreenda na intenção ou vontade consciente do réu. O
latrocínio é reconhecível ainda quando não envolva homicídio doloso, bastando
o simplesmente culposo.
(Voto no HC 32.217/RN, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
5-11-1953, grifos no original.)
Na ocasião, acompanharam o voto condutor do ministro Nelson Hungria
os ministros Mario Guimarães, Luiz Gallotti, Hahnemann Guimarães, Ribeiro
da Costa, Lafayette de Andrada e Barros Barreto.
Nesse sentido, o mencionado precedente afastou, definitivamente, a com-
petência do Tribunal do Júri para apreciar os crimes de latrocínio.
Além disso, um dos casos mais interessantes da época cuidou da impu-
tação de estelionato para comerciantes que vendiam balas com propaganda
enganosa, divulgando a existência de figurinhas premiadas que nunca foram
incluídas nas balas colocadas em circulação no mercado.
No julgamento do HC 32.883/SP, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno,
23-12-1953, o ministro Nelson Hungria ficou vencido, na companhia dos ministros
Rocha Lagôa, Ribeiro da Costa e Lafayette de Andrada, ao afastar a configuração do
estelionato, sustentando a mera configuração de ilícito administrativo, ante a ausên-
cia de enriquecimento ilícito, como esclarecem os debates:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: (...) Há, porém, que resolver uma questão:
configurar-se-á realmente, no caso vertente, o crime de estelionato? Estelionato
é obter lucro ilícito, mediante fraude. Será ilícito o lucro obtido pelos pacientes,
mesmo aceitando-se a versão da denúncia? O lucro que obtinham, com a venda
das balas, era o preço das mesmas, naturalmente correspondente ao seu valor
intrínseco mais o lucro mercantil.
Se, para fomentar essa venda, através de sugestiva propaganda do pro-
duto, a empresa prometia um prêmio, dependente de serem encontradas, dentro
dos pacotes de balas, certas “figurinhas” carimbadas e chamadas “figurinhas
chaves”, mas que, realmente, não eram colocadas nos pacotes, não vejo nisso
83
Memória Jurisprudencial

o crime de estelionato, que pressupõe something for nothing e lesão patrimo-


nial de pessoas determinadas. Parece-me que o caso deveria ficar circunscrito
à órbita fiscal ou ao ilícito administrativo, isto é, de ofensa à lei reguladora da
venda de mercadorias com promessa de prêmios. Não se apresenta um enrique-
cimento sem causa, nem é admissível estelionato in incertam personam. (...)
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A fraude resultava do erro em que
induzia os compradores das balas. Daí o lucro ilícito. As crianças ficavam esperando.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Havia uma contraprestação, havia um do
ut des, isto é, o fornecimento de balas pelo seu justo preço.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Era uma contraprestação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se a empresa usou de ardil ou fraude para
desobrigar-se da promessa de recompensa, o que me parece esboçar-se é um ilícito
civil ou uma questão de direito privado, abstraída a questão de direito fiscal ou admi-
nistrativo. Não houve o enriquecimento sem causa, que é essencial ao estelionato.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Eles acenavam com uma sorte
que não era possível tirar.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A propaganda tem por fim aumentar a
venda de qualquer mercadoria, visa a tornar mais procurado o produto, e se ela
contém falsidade, isto é, mentirosa promessa de prêmios, nem por isso haverá
ganho ilícito, desde que o produto valha o preço que por ele se deu. O dinheiro
recebido correspondia a um valor, que era o das balas fornecidas. A promessa de
prêmio acarretou maior venda, mas não lucros ilícitos.
(Voto no HC 32.883/SP, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 23-12-
1953, grifos no original.)
Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, com voto
concorrente do ministro Nelson Hungria, para que os fabricantes das balas tivessem
a oportunidade de provar que as propagandeadas figurinhas premiadas existiam (HC
32.928/SP, rel. para o acórdão min. convocado Abner de Vasconcelos, 19-1-1954).
2.1.10 Crimes de quadrilha ou bando
No julgamento do HC 34.088/RS, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 13-6-
1956, o ministro Nelson Hungria lavrou didático voto — que merece ser desta-
cado — distinguindo o crime de quadrilha ou bando (art. 288 do Código Penal)
da coautoria delitiva.
No caso, a impetração alegava bis in idem pela cumulação do crime de
quadrilha e da condenação por crime qualificado pelo concurso de agentes.
O Supremo Tribunal Federal afastou a mencionada alegação, assentando
que o crime de quadrilha é autônomo e independe dos crimes cometidos pelo
bando, inclusive porque apenas alguns integrantes da associação podem parti-
cipar de alguns crimes. Como professor, o ministro Nelson Hungria ensinou:
(...) Ao que parece, o impetrante entende que não há coautoria com a
simples presença ao lado do executor, ainda quando seja expressão de solida-
riedade ou “causa comum” com ele, acoroçoando-o, animando-o, servindo-lhe

84
Ministro Nelson Hungria

de “força de reserva”. Tal entendimento, porém, é errôneo. Finalmente, não há


confundir-se o crime de quadrilha ou bando com a participação criminosa ou
excluí-lo quando algum crime subsequente seja qualificado pelo concurso de
agentes. A quadrilha ou bando é crime per se stante, consistente no associarem-
-se mais de três pessoas, não acidentalmente para a prática de um crime deter-
minado, mas estável ou permanentemente para a prática de crimes ainda não
previamente individuados. Tanto não se identifica com a participação criminosa
que, enquanto por ele respondem todos os associados, pelo crime efetivamente
praticado, dentro do plano genérico da associação, respondem tão somente os
respectivos agentes.
Se, para a prática do crime que atende ao programa da associação, não é
necessário o concurso de todos os associados, podendo mesmo ser praticado por um
só deles, é claro que a reunião de todos ou de alguns para esse crime individuado é
circunstância que não se identifica com a anterior associação de delinquir.
Reconhecendo-se, portanto, concurso material entre o crime de bando ou
quadrilha e o subsequente crime qualificado pela pluralidade de agentes, não há
o bis in idem alegado pelo impetrante.
(Voto no HC 34.088/RS, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 13-6-1956.)
Não deixou dúvidas, portanto, quanto à inexistência do bis in idem, inclu-
sive exemplificando situações em que poderia haver condenação pelo delito de
quadrilha, sem participação no crime cometido pelo bando.
2.1.11 Defesa no processo penal
No que tange à defesa no âmbito do processo penal, o ministro Nelson
Hungria deixou importantes votos que iluminam a jurisprudência até hoje.
Em primeiro lugar, cabe destacar as considerações do ministro sobre
o defensor dativo. No julgamento do RHC 32.228/SP, rel. min. Lafayette de
Andrada, Pleno, 5-11-1952, discutiu-se sobre a nulidade do processo penal tendo
em vista a negligência do defensor dativo. A alegação foi rejeitada, contudo, por
unanimidade pelo Plenário, e o ministro Nelson Hungria bem resumiu os con-
tornos da exigência constitucional de ampla defesa e contraditório:
(...) O segundo fundamento do pedido é que teria sido prejudicada a defesa
do paciente pela negligência do defensor dativo. Ora, o que a Constituição asse-
gura é a contraditoriedade do processo, e processo contraditório é aquele em
que, toda a vez que haja acusação, se proporcione oportunidade de exercício à
defesa. Pouco importa que o defensor, constituído pelo réu ou dativo, não haja
produzido defesa a contento (...) Não se pode exigir que a defesa se faça a todo
preço, ainda mesmo na tentativa de burlar a justiça ou de negar a evidência. O
que a lei assegura é tão somente que a acusação deve corresponder ensejo à pro-
dução de defesa.
(Voto no HC 32.228/SP, rel. min. Lafayette de Andrada, Pleno, 5-11-1952.)
Esse mesmo entendimento foi desenvolvido no HC 34.088/RS, rel. min.
Barros Barreto, Pleno, 13-6-1956, no qual o ministro Nelson Hungria afirmou

85
Memória Jurisprudencial

que a nulidade processual ocorre com a negação de ensejo à defesa, e não com
a desídia ou a improficuidade do defensor.
Por outro lado, o ministro Nelson Hungria não tergiversava em entender o
interrogatório como também uma peça de defesa. Daí que “deixar de interrogar um
réu é, positivamente, omitir um termo essencial do processo e cercear a defesa” (voto
vencido no HC 31.635/RS, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 22-8-1951).
Ademais, o ministro Nelson Hungria conduziu a maioria em caso em que
o Pleno do Supremo Tribunal Federal afastou a nulidade de processo no qual a
defesa do réu foi realizada por estagiário, com visto de aprovação do defensor
público. Trata-se do voto-vista proferido no HC 36.897-segundo/DF, rel. para o
acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 25-11-1959, que restou assim ementado:
Habeas corpus; sua denegação. A competência do estagiário no processo
penal é definida por instrução do procurador-geral. Pode ele formular alegações
finais, desde que estas obtenham o “visto” do chefe do Ministério Público, e não
lhe é defesa assistência ao réu no curso da inquirição de testemunhas.
(HC 36.897-segundo/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno,
25-11-1959.)
O ministro Nelson Hungria não deixou de destacar a qualidade da defesa
apresentada pelo estagiário, afirmando: “no caso vertente eu assinaria com
orgulho as alegações feitas pelo estagiário” (apartes no HC 36.897-segundo/DF,
rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Pleno, 25-11-1959).
De outra sorte, em acórdão relatado pelo ministro Nelson Hungria,
reconheceu-se sanável a ausência de intimação para expedição de carta preca-
tória inquisitorial no RE 46.523/SP, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
15-12-1960.
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria pontuou que a falta de intimação
configurava mera nulidade relativa, que deveria ser arguida em tempo oportuno.
Como a defesa não havia impugnado essa nulidade a tempo, a Primeira
Turma deu provimento ao recurso extraordinário para reformar o acórdão
recorrido e manter hígido o processo penal na espécie.
2.1.12 Prescrição da pena in concreto
O ministro Nelson Hungria foi um dos mais obstinados membros do
Supremo Tribunal Federal a defender a aplicação da pena in concreto, isto é, o
reconhecimento da prescrição com base na pena fixada pela decisão condenató-
ria, considerando o período anterior à mencionada decisão.
Esse entendimento, a princípio, foi objeto de vários votos vencidos do
ministro Nelson Hungria, como o proferido no HC 33.135/RS, rel. para o acór-
dão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 14-7-1954.
86
Ministro Nelson Hungria

Posteriormente, no entanto, prevaleceu o entendimento esposado pelo minis-


tro Nelson Hungria, relator no HC 38.186/GB, Pleno, 30-1-1961, assim ementado:
Prescrição; deve ser declarada se entre o momento da última causa
interruptiva e a sentença condenatória, de que não apelou o Ministério Público,
decorreu tempo suficiente, tendo-se em vista a pena concretizada.
(HC 38.186/GB, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 30-1-1961.)
Nesse writ, a pedido da defesa efetuada pelo futuro ministro Evandro
Lins, o Supremo Tribunal Federal acolheu a alegação da prescrição calculada
pela pena in concreto, tendo em vista o curso do prazo entre a última interrup-
ção ocorrida e a decisão condenatória.
Essa mudança de jurisprudência gerou o verbete 146 da Súmula da
Suprema Corte, assim redigido: “A prescrição da ação penal regula-se pela pena
concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação.”
2.1.13 Desacato e vias de fato
Outro caso curioso foi apreciado pelo Plenário do Supremo Tribunal
Federal no julgamento da Den 118/DF, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno,
26-5-1955.
Na oportunidade, apreciou-se denúncia oferecida pelo procurador-geral da
República contra o presidente do Tribunal de Contas da União, à época, Sr. Márcio
Bittencourt Sampaio, que teria surpreendido o então ministro da Fazenda, Sr.
Eugenio Gudin, trocado ofensas e, inclusive, recorrido à agressão física.
Segundo a denúncia, em razão de entrevista concedida pelo ministro da
Fazenda, o denunciado, no dia 17 de dezembro de 1954, “compareceu ao gabi-
nete do ministro de Estado dos Negócios da Fazenda, em cuja sala de espera,
depois de interpelar o respectivo titular — Dr. Eugenio Gudin — sobre uma
referência que este lhe teria feito, momentos antes, ao dar uma entrevista à
imprensa, desacatou-o, com palavras e gestos, tentando, inclusive, agredi-lo
fisicamente, no que foi obstado pelas pessoas presentes”.
Nada obstante a censura aos deploráveis atos do presidente do Tribunal de
Contas da União, o relator, ministro Ribeiro da Costa, apresentou voto pelo arquiva-
mento da denúncia, sustentando tanto que a ofensa foi justificada na legítima defesa
da própria honra, como que não houve dolo específico, uma vez que as injúrias não
decorriam do serviço ou do cargo de ministro exercido pelo ofendido.
O ministro Nelson Hungria, no entanto, abriu divergência e votou contra
o arquivamento da denúncia. Bem esclareceu o magistrado que o desacato pode
ocorrer tanto quando a autoridade estiver a serviço quanto quando estiver fora
dele, deixando de minimizar o episódio:

87
Memória Jurisprudencial

Tal dispositivo [art. 331 do Código Penal], portanto, ao definir o desacato,


aplica o art. 134 do Código Penal de 1890, isto é, não exige, necessariamente,
que o desacato atinja o funcionário in officio, pois o crime existirá ainda que o
sujeito passivo se encontre extra officium, posto que a ofensa se realize propter
officium.
No caso vertente, entretanto, não há indagar se a ofensa foi feita ratione
offici, pois o ofendido se achava in officio.
Não se pode negar que o Sr. Eugênio Gudin, então ministro da Fazenda,
no momento de ser agredido, estivesse no exercício do cargo, pois estava a sair
do seu gabinete, para empreender uma viagem até São Paulo, em desempenho
de suas funções ministeriais. Estava em ato de exercício de suas altas funções,
e o denunciado sabia disso.
(...)
O denunciado, ministro Bittencourt Sampaio, ao invés de processar
criminalmente o Sr. ministro da Fazenda, achou, insolitamente, atestando a
indisciplina que reina no Brasil atual, até nas mais altas camadas da administra-
ção, de se dirigir ao gabinete do Sr. Gudin para tomar uma satisfação. Atitude
indesculpável, pois teria de provocar, naturalmente, uma troca de desaforos ou
mesmo vias de fato.
(...)
O desabrimento do denunciado, que provocara a cena com pedido de
satisfações, é imperdoável. É o que é mais, Senhor Presidente: não se tratava
apenas do ministro da Fazenda, não se tratava apenas de uma pessoa, por todos
os títulos ilustre, mas, acima de tudo, de um homem de idade provecta, que só
por isso deveria estar a coberto da grosseria de uma agressão física.
(Voto vencido na Den 118/DF, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno,
26-5-1955.)
Além disso, o ministro Nelson Hungria reconheceu configurada, no
mínimo, a contravenção de vias de fato, destacando que esta não depende de
lesão corporal.
A maioria do Plenário, no entanto, entendeu melhor encerrar o desafor-
tunado episódio, arquivando a denúncia, restando vencidos os ministros Nelson
Hungria, Rocha Lagôa e Orozimbo Nonato. O aresto restou assim ementado:
Crime de desacato. Circunstâncias de fato que desfiguram essa modali-
dade penal. Ausência de dolo específico. Qualidade do ofendido. Lugar da infra-
ção penal. Iniciativa da ofensa por parte do ofendido. Legítima defesa da própria
honra. Vias de fato: inconsequência. Arquivamento da denúncia.
(Den 118/DF, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno, 26-5-1955.)

2.2 Direito constitucional

O príncipe dos penalistas brasileiros também legou à Suprema Corte bri-


lhantes manifestações ao discutir importantes temas constitucionais.

88
Ministro Nelson Hungria

É certo que a vocação do Supremo Tribunal Federal como Corte


Constitucional demorou muito a amadurecer, principalmente por conta da
sobrecarga de temas de legislação federal que atingiam a Corte por meio do
recurso extraordinário.
No entanto, na década de 1950, período em que atuou o ministro Nelson
Hungria, o Supremo não se furtou de preservar e tornar eficaz a incipiente e
democrática CF/1946.
Nesta segunda parte, serão destacados os mais significativos votos do
ministro Nelson Hungria envolvendo a interpretação e a aplicação da constitui-
ção vigente à época.
Destaque-se que esses precedentes cuidam de institutos e princípios
repetidos na CF/1988 e constituem a base segura, na qual a atual jurisprudência
se aproveitou para desenvolver-se com consistência e segurança.
2.2.1 Separação dos Poderes
Na democracia constitucional, é comum a tensão entre os Poderes consti-
tuídos até a consolidação de harmonia e independência entre eles.
Com o retorno da normalidade constitucional, ocasionada pela CF/1946,
a separação entre os Poderes surge como inevitável questão a ser trilhada pelo
Supremo Tribunal Federal para assentar sua competência e garantir o império
da constituição perante os abusos do Legislativo e do Executivo.
2.2.1.1 Atos políticos do Congresso e intervenção judicial
Um dos primeiros casos, sob a CF/1946, em que a discussão ganhou
relevos mais bem definidos foi no julgamento do MS 1.959/DF, rel. min. Luiz
Gallotti, Pleno, 23-1-1953.
No caso, tratava-se de mandado de segurança impetrado pelo Sindicato
dos Bancos contra ato da Câmara dos Deputados, que adotou resolução man-
dando publicar no Diário do Congresso parte de sindicância sigilosa ordenada
pelo presidente da República ao Banco do Brasil. A mencionada investigação
teve amplos poderes para devassar todos os segredos bancários do País.
A ação recebeu grande repercussão na imprensa, seja pela atuação do
deputado José Bonifácio de Andrada, seja pela atenção dada às atividades ban-
cárias, em virtude da inflação crescente e da pressão do câmbio. Essas circuns-
tâncias econômicas que desaguariam no confisco cambial de outubro de 1953 e
no histórico discurso do presidente Getúlio Vargas de 31 de janeiro de 1954, que
condenava com veemência a remessa de lucros ao exterior19.
19
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 146.
89
Memória Jurisprudencial

A primeira preliminar suscitada era da possibilidade de o Poder Judiciário


intervir numa decisão política da Câmara dos Deputados, no caso a publicação
de inquérito sigiloso obtido por um dos parlamentares.
Apesar de já afastada por outros precedentes mais antigos do Supremo
Tribunal Federal, a suposta proibição de o Poder Judiciário intervir sobre deci-
sões políticas, em razão da separação dos poderes, foi levantada pela Mesa da
Câmara dos Deputados.
A manifestação do ministro Nelson Hungria, que acompanhou o ministro
relator, bem resumiu a discussão preliminar:
Senhor Presidente, alega-se que se trata na espécie de matéria que escapa
à censura do Poder Judiciário, por isso que consiste numa “resolução” votada
pela Câmara dos Deputados sobre assunto político-administrativo, compreen-
dido no âmbito de sua atuação discricionária. É o que se depreende das infor-
mações prestadas pela ilustre Mesa da Câmara dos Deputados.
Entendo que não é exata, assim formulada, a pretensa imunidade do
Poder Legislativo. Como muito bem acentuou o eminente ministro Relator,
constitui, hoje, ponto morto, que é irrelevante indagar se se trata, ou não, de ato
político, para que seja excluída ou admitida a intervenção do Poder Judiciário.
O que há a indagar é se o ato, político ou não, lesa um direito individual, um
interesse individual legalmente protegido.
Se se apresenta essa lesão direta, esse dano imediato a um direito indi-
vidual, surge a possibilidade, a legitimidade constitucional da intervenção do
Poder Judiciário. Evidentemente, não pode o Supremo Tribunal Federal arro-
gar-se a faculdade de praticar ou obstar a política legislativa, como não pode
criticar ou inibir a política do Poder Executivo. Não pode o Poder Judiciário
entender, por exemplo, que determinada medida tomada por qualquer dos dois
outros Poderes não atende o interesse nacional. (...) Mas, desde que se identifique
lesão direta e imediata a direito individual, aí pode interferir o Judiciário, e isto
está escrito com todas as letras na Constituição, cujo art. 141, § 4º, dispõe que
nenhuma lesão a direito individual escapará à apreciação do Poder Judiciário.
Não há que renovar discussão em torno do tema; não é mais possível estar-se a
revolver debates de um passado longínquo, do tempo em que Rui Barbosa ensi-
nava o ABC do Direito Constitucional no Brasil.
(Voto na preliminar no MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno,
23-1-1953.)
Por unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu o
cabimento do mandado de segurança e a competência da Corte para apreciá-lo
e, no mérito, denegou a ordem por considerar que o dever de sigilo no inquérito
não vinculava a Câmara dos Deputados. O acórdão foi assim ementado:
Mandado de segurança requerido pelo Sindicato dos Bancos do Rio de
Janeiro.
Desde que se recorre ao Judiciário alegando que um direito individual foi
lesado por ato de outro Poder, cabe-lhe examinar se esse direito existe e foi lesado.

90
Ministro Nelson Hungria

Eximir-se com a escusa de tratar-se de ato político seria fugir ao dever que a
Constituição lhe impõe, maxime após ter ela inscrito entre as garantias fundamen-
tais, como nenhuma outra antes fizera, o princípio de que nem a lei poderá excluir
da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual (art. 141, § 4º).
Se compete ao Supremo Tribunal conhecer do mandado de segurança contra
atos da Mesa de uma Câmara Legislativa, competente também há de ser, por mais
forte razão, já que outro tribunal superior a ele não existe, para conhecer do pedido
quando o ato impugnado é da própria Câmara.
O pretendido direito a um segredo já quebrado não pode ser contraposto ao
direito que tem a Câmara de publicar no seu órgão oficial um inquérito realizado no
Banco do Brasil, cuja divulgação a maioria dos representantes do Povo deliberou,
como conveniente aos interesses da Nação.
Indeferimento da segurança.
(MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)
O ministro Nelson Hungria, em sentido contrário ao do excepcional voto do
relator, ministro Luiz Gallotti, não admitia a legitimidade ativa do sindicato, pois a
restringia aos limites das relações de trabalho:
Os sindicatos foram criados pela legislação do trabalho e são institutos exclu-
sivos do direito trabalhista. Somente gravitam na órbita das relações entre emprega-
dores e empregados, para defesa de interesses, de direitos e garantias assegurados
na legislação trabalhista. Fora da esfera trabalhista, eles são coisa nenhuma ou zeros
à esquerda. Seu poder de representação sem mandato somente se legitima quando
estão em jogo relações de trabalho disciplinadas pela legislação específica.
(Voto no MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)
No que se refere ao mérito, o ministro Nelson Hungria deixou clara a questão
jurídica em debate: a imposição legal do sigilo profissional. No seu estilo caracterís-
tico, esclareceu a inexistência de direito líquido e certo de preservar o sigilo já vazado
para pessoas que não se obrigavam ao sigilo profissional:
Precipuamente, Senhor Presidente, o que há a fixar é a extensão da tutela do
segredo profissional.
A inviolabilidade do segredo, mesmo o confiado aos chamados confidentes
necessários, é de ordem pública eminentemente relativa.
O que a lei veda, e isto foi inteiramente abstraído, o que a lei proíbe é a reve-
lação do segredo por parte de seu depositário, isto é, da pessoa que é obrigada a
guardá-lo, em razão de ofício ou profissão. De modo algum a autoridade competente
está inibida, em se tratando de um crime, de uma fraude civil ou de uma grave irre-
gularidade administrativa, de investigar e devassar esse segredo, por outros meios
ao seu alcance, que não seja a revelação do depositário, que a lei declara até mesmo
impedido de depor, ainda que pretendesse fazê-lo.
(...)
Ora, Senhor Presidente, segredo revelado a terceira pessoa não obrigada a
guardá-lo, não obrigada a mantê-lo, deixa de ser segredo, “cai na boca do mundo”,
é “segredo de Polichinelo”. Não há proteger segredo que já se tornou conhecido de
quem não está adstrito a não divulgá-lo.
(Voto no MS 1.959/DF, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 23-1-1953.)

91
Memória Jurisprudencial

Em raciocínio semelhante, decidiu recentemente o Supremo Tribunal


Federal, ao rejeitar a denúncia contra o então ministro da Fazenda, Antônio
Palocci Filho, por violação de sigilo bancário (Pet 3.898/DF, rel. min. Gilmar
Mendes, Pleno, 27-8-2009, DJ de 18-12-2009). Nesse caso, a Corte entendeu que
só poderia haver delito de quebra de sigilo na revelação de dados sigilosos por
quem os detinha de direito, o que não era o caso do ministro da Fazenda, ou na
intrusão indevida nos bancos de dados.
2.2.1.2 Caso Café Filho
Entre as graves discussões institucionais travadas no período, envolvendo a
separação de poderes, nenhuma outra se tornaria tão célebre como o caso Café Filho
(HC 33.908/DF, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 21-12-1955; e o MS 3.557/
DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956).
Evidentemente, para avaliar a decisão do Supremo Tribunal Federal e o caso
em comento, é necessário conhecer o acirrado contexto histórico do momento e
distanciar-nos do maduro e estável parâmetro institucional em que vivemos.
A própria posse de Café Filho já ocorreu em meio à grave crise institucio-
nal que culminou com o suicídio de Vargas, em 24 de agosto de 1954.
Em síntese, João Fernandes Café Filho foi eleito vice-presidente da
República junto com Getúlio Vargas, em 1950, numa aliança entre o Partido
Social Progressista (PSP) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), contra os
candidatos Cristiano Machado, do Partido Social Democrático (PSD), apoiado
pelo presidente Dutra; e Eduardo Gomes, da União Democrática Nacional
(UDN). Getúlio Vargas foi o mais votado: obteve 48% dos votos, o que desde
logo foi impugnado pela UDN, sustentando a necessidade da maioria absoluta
de votos, ante a inexistência de segundo turno20.
A partir de então, a UDN fez uma oposição vigorosa contra o governo,
principalmente por meio de denominada “Banda de Música” — parte exaltada
da bancada da UDN formada por Afonso Arinos, Milton Campos e pelos futu-
ros ministros Aliomar Baleeiro, Adaucto Cardoso, Prado Kelly e Bilac Pinto —
e do polêmico jornalista Carlos Lacerda21.

20
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 143.
21
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. 3. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1998. p. 153.

92
Ministro Nelson Hungria

Este último se tornou a principal figura de oposição ao presidente Vargas


e sofreu vários atentados contra sua vida, sendo guardado dia e noite por um
corpo de voluntários, jovens oficiais da aeronáutica22.
No dia 5 de agosto, à meia noite e quarenta e cinco minutos, ocorreu o
atentado mais impactante: um pistoleiro atirou contra Lacerda, na frente do pré-
dio onde morava o jornalista, na rua Toneleros, em Copacabana, Rio de Janeiro.
No episódio, Carlos Lacerda ficou apenas ligeiramente ferido, mas morreu seu
acompanhante, o major Rubens Florentino Vaz23.
O impacto político do ato foi enorme, principalmente após a captura do
assassino, que revelou em inquérito estar sob as ordens de Gregório Fortunato,
chefe da Guarda Presidencial do Palácio. Tratava-se de gaúcho analfabeto, que
servia havia mais de trinta anos o presidente Getúlio Vargas24.
Pressionado para renunciar, inclusive pelas Forças Armadas, Getúlio Vargas
apontou a arma contra o coração e cometeu suicídio no dia 24 de agosto de 195425.
Nesse contexto, Café Filho toma posse, compondo um ministério for-
mado essencialmente por políticos da UDN26.
Em outubro de 1955 é eleita a coligação PSD/PTB, encabeçada por
Juscelino Kubitschek, com pouco mais de três milhões de votos, ou 36% do
eleitorado, contra os candidatos Juarez Távora (UDN), Ademar de Barros (PSP)
e Plínio Salgado, líder integralista. Ressalte-se que, na eleição para vice-presi-
dente, João Goulart (PTB) teve mais votos que Juscelino Kubitschek 27.
De imediato, os antipopulistas e representantes da UDN impugnaram o resul-
tado da eleição que deu vitória ao candidato com pouco mais de um terço dos votos.
Por ocasião do enterro do general Canrobert Pereira da Costa, em 1º de
novembro de 1955, então expoente dos militares que se opunham a Getúlio
Vargas, o coronel Jurandir Bizarria Mamede proferiu discurso em nome do
Clube Militar contra a denominada “vitória da minoria”, calculado como o esto-
pim contra a posse do presidente eleito28.

22
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por Ismênia
Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 176.
23
Id., loc. cit.
24
Id., loc. cit.
25
Id., loc. cit.
26
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 150.
27
CHACON, Vamireh. História dos partidos brasileiros. 3. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1998. p. 153.
28
RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. V. I, tomo IV, p. 165.

93
Memória Jurisprudencial

Concomitantemente, Carlos Lacerda pleiteava de seu jornal, Tribuna da


Imprensa, a intervenção das Forças Armadas contra a posse de Juscelino29.
O ministro da Guerra, general Henrique Duffles Teixeira Lott, era firme
no princípio da legalidade e no caráter apolítico das Forças Armadas. Ele ficou
irritadíssimo com o discurso do coronel Mamede e procurou tão logo quanto
possível responsabilizá-lo administrativa e penalmente30.
Como o coronel era membro do corpo permanente da Escola Superior de
Guerra, ligada não ao Ministério da Guerra, mas diretamente à Presidência da
República, o general Lott, logo após o feriado de 2 de novembro de 1955, entrou
em contato com o presidente31.
Ocorre que, na madrugada do dia 3 novembro, o presidente Café Filho
teve um ataque cardíaco e ficou hospitalizado. No dia 7 de novembro de 1955,
Café Filho enviou ofício ao presidente da Câmara dos Deputados, deputado
Carlos Coimbra da Luz, transmitindo-lhe o exercício da Presidência até o fim
de seu impedimento por motivo de saúde, nos termos do art. 79, § 1º, CF/194632.
Carlos Luz tomou posse no dia 8 de novembro de 1955 e, de imediato, o
general Lott pediu audiência privada para tratar do caso Mamede.
No dia 9 de novembro, a Tribuna da Imprensa de Carlos Lacerda pro-
clamava: “Esses homens [Kubitschek e Goulart] não podem tomar posse, não
devem tomar posse, nem tomarão posse”. Boatos de golpe, com a participação
do presidente em exercício, agitavam a Capital da República33.
No dia 10 de novembro de 1955, após deixar o general Lott aguardando
por uma hora e meia, o presidente Carlos Luz o recebeu para entregar o parecer
do consultor-geral da República e futuro ministro do Supremo Tribunal Federal,
Themistocles Cavalcanti, no sentido de que a decisão era privativa do presidente
da República. Na ocasião, foi comunicado ao general Lott que o presidente
Carlos Luz não devolveria Mamede ao Exército e à autoridade do ministro da
Guerra. A decisão final era de que o coronel Mamede não seria punido34.
Forçado a renunciar, o general Lott retorna à sua residência oficial por
volta das 21 horas e chama seu vizinho, general Odilo Denys. Convencidos de
que se preparava um golpe contra a democracia brasileira, ambos partem rumo
29
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por Ismênia
Tunes Dantas. 10 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 192.
30
Ibid., p. 193.
31
RODRIGUES, Lêda Boechat, História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002. V.I, tomo IV, p. 166.
32
Id., loc. cit.
33
SKIDMORE, ob. cit., loc. cit.
34
RODRIGUES, ob. cit., p. 167.

94
Ministro Nelson Hungria

ao Ministério da Guerra à 1h30 da madrugada, decididos a assegurar a transi-


ção ao presidente eleito35.
A ação do general Lott foi enérgica e célere. Na alvorada de 11 de novem-
bro, o Palácio do Catete e a Tribuna da Imprensa estavam ocupados e as bases
resistentes da Marinha e Aeronáutica estavam cercadas. Carlos Luz refugiou-se
a bordo do Cruzador Tamandaré.
No próprio 11 de novembro de 1955, o jornal O Globo publicou a seguinte
proclamação do general Lott:
Eram 4 horas, quando o general Teixeira Lott lançou a seguinte proclama-
ção: “Tendo em conta a solução dada pelo presidente Carlos Luz ao caso do coronel
Jurandir Mamede, os chefes do Exército, julgando tal ato de positiva provocação aos
brios do Exército, que viu postergados os princípios de disciplina, decidiram creden-
ciar-me como intérprete dos anseios do Exército, objetivando o retorno à situação
dos quadros normais, o regime constitucional vigente. Acreditamos na solidariedade
dos companheiros da Marinha e da Aeronáutica e apelamos aos governadores dos
Estados, solicitando o seu apoio à nossa atitude.36

Enquanto o Cruzador se dirigia a São Paulo, onde Carlos Luz pretendia


reinstalar o governo federal, o general Lott buscou o Congresso para legitimar
o afastamento do presidente em exercício. O Congresso declarou Carlos Luz
impedido e deu posse no exercício da Presidência ao senador Nereu Ramos,
vice-presidente do Senado37.
Em 14 de novembro de 1955, ainda convalescente, Café Filho encami-
nhou ofício ao Congresso Nacional, pretendendo reassumir a Presidência. O
general Lott visitou-o no hospital e tentou dissuadi-lo, sem sucesso, da intenção
de reassumir o poder.
Assim, em 22 de novembro de 1955, o Congresso Nacional declarou
estado de sítio e impedimento do presidente Café Filho. Além disso, o Exército
cercou sua casa com tanques e metralhadoras, impossibilitando-o fisicamente
de reassumir a Presidência da República.
Contra essa decisão de impedi-lo de reassumir a presidência, Café Filho
impetrou mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal.

35
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 151.
36
O Globo, 11-11-1955, p. 6.
37
COSTA, ob. cit., loc. cit.

95
Memória Jurisprudencial

2.2.1.2.1 MS 3.557/DF
O mandado de segurança em favor de Café Filho foi impetrado pelo
advogado Jorge Dyott Fontenelle, sob o fundamento de inconstitucionalidade
das resoluções da Câmara dos Deputados e do Senado que mantinham seu
impedimento, em alegado abuso de poder.
Além disso, outra preliminar foi levantada pelo então procurador-geral
da República, Dr. Plínio de Freitas Travassos: o estado de sítio decretado pelo
Congresso Nacional implicava suspensão dos direitos constitucionais, inclusive
o direito de ação quanto a mandados de segurança.
Logo, para conhecer do mandado de segurança, era necessário declarar a
inconstitucionalidade, em primeiro lugar, do estado de sítio.
O Plenário, então, reuniu-se no dia 14 de dezembro de 1955, sob a
presidência do ministro José Linhares e a relatoria do ministro Hahnemann
Guimarães, para discutir sobre o mandado de segurança, com ampla repercus-
são política e pressão popular e da imprensa.
O ministro Hahnemann Guimarães, em voto curto, primeiro afastou as
preliminares, entendendo que o caráter político do ato impugnado não afastava
a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, inclusive citando o MS 1.959/DF, e
que, por anteceder a declaração do estado de sítio, não estava obstada a via do
mandado de segurança.
Relativamente ao mérito, o ministro relator denegou a segurança, por
entender que não havia inconstitucionalidade nas resoluções do Senado e da
Câmara, a quem competia avaliar a situação de fato que impede o pleno exercí-
cio da Presidência da República.
Por outro lado, desde logo o ministro Ribeiro da Costa, em longo e inci-
sivo voto, abriu divergência reconhecendo o direito líquido e certo do impetrante
de ser conduzido à Presidência da República. Na oportunidade, ele aduziu:
Senhor Presidente, está em jogo, neste Tribunal, num lance de cara e de
coroa, a sorte do regime democrático.
Reconheçamos que mau grado o tempo decorrido desde o aportamento
de Cabral a estas terras, até os angustiosos momentos que estamos vivendo, o
vai e vem da orientação política nos tem conduzido, desde antes, mas, acentua-
damente, de 1930 para cá, a uma tergiversação, na qual se sentem influências de
exóticas matizes, de tal sorte que a nação, ainda se apercebeu, ou mal tem podido
delinear seu anseio de estrutura política.
É mister, Senhor Presidente, que parta precisamente das instituições
mais autorizadas a palavra de serenidade, mas também a orientação no sentido
político ou cívico-pedagógico, a fim de que o nosso povo não tenha os olhos ven-
dados por quaisquer nuvens que empanem o seu sentimento, as raízes profundas
da nacionalidade, pois são elas as fontes perenes da organização social.

96
Ministro Nelson Hungria

(...)
Nos regimes democráticos, o medo não deve subsistir; eles se voltam
contra o regime de intimidação. O seu ambiente próprio, o clima de liberdade,
de confiança, e de respeito à vontade do povo não oferece lugar às ameaças nem
à menor tentativa de opressão.
O sistema de intimidação não prospera nas sociedades livres onde os
indivíduos desenvolvem suas atividades sem as incertezas do dia seguinte.
(...)
O Supremo Tribunal tem a seu cargo o julgamento da espécie, como,
igualmente, o tem de todos os outros contidos nas suas atribuições. O nosso
dever é apreciar com verdade, esgotando toda a matéria, para que, quando
sairmos daqui, ninguém possa dizer que este Tribunal escusou-se examinar,
por menor que fosse, a minúcia ou a grandeza deste caso; penso, sinceramente,
que devemos dar a nossa contribuição, ainda que com sacrifício, como estou
fazendo agora — porque estou doente —, mas hei de fazê-lo até o fim, para que
a Nação saiba como os fatos se passaram e como devem ser interpretados em
face da Constituição.
(...)
Ela está aqui, no recinto deste Tribunal, aberta nesta urna, a Constituição que
nos foi entregue, para que a guardemos, não como páginas frias, que ali estão, mas
como letras de fogo, que queimam a quem se aproximar delas, para violá-las. Esta é a
Constituição, regra e caminho de grandeza traçado pelo povo e para o povo.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min.
convocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
O voto do ministro Ribeiro da Costa não deixou de apelar à verdadeira
força por trás do impedimento do presidente Café Filho, ao general Lott:
Considero de suma importância que o eminente ministro da Guerra, Sr.
general Teixeira Lott, reflita no ato que praticou e que, na hora em que este Tribunal
resolver, por sua maioria, como espero, conceder a medida de segurança, haja Sua
Excelência, o ministro da Guerra, de elevar-se perante a Nação, não como aquele
que, humilhado, cumpre um decreto judiciário, mas como homem superior, que se
eleva perante si e perante todos, por ter sabido curvar-se diante da Lei, da Ordem e da
Justiça. Não o antevejo empedernido ou impermeável às solicitações da consciência.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. con-
vocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
O ministro Ribeiro da Costa fez suas as palavras do professor Sampaio Dória,
invocando a autoridade do Supremo Tribunal Federal para resolver a questão inde-
pendentemente das consequências da decisão:
Ora, ao Congresso nacional foram atribuídas as competências, comuns com
presidente da República no art. 65, e privativas no art. 66. Leia-se e releia-se cada
uma das atribuições que ali se exaram, e não se encontra nada, absolutamente nada,
nem explícita nem implicitamente, que autorize o Congresso, pelo voto da maioria,
ou mesmo unânime, a declarar o presidente da República impedido de exercer o
mandato que as urnas lhe conferiram. Não só nos dez itens em que se enumera a
competência exclusiva do Congresso Nacional, nada autoriza ao Congresso destituir

97
Memória Jurisprudencial

o presidente da República do exercício do seu cargo, como o art. 36 da mesma


Constituição [CF/1946] firmou em base do regime, a independência dos poderes, isto
é, não estar nenhum mercê do outro.
Em matéria de crime comum, ou de responsabilidade, de que o presidente seja
acusado, cabe à Câmara dos Deputados apenas declarar procedente ou não, a acusa-
ção processada na forma da lei. O julgamento cabe, nos crimes comuns, ao Supremo
Tribunal, e, nos de responsabilidade, ao Senado Federal. Só quando declarada a pro-
cedência da acusação ficará o presidente suspenso de suas funções.
Suspendê-lo, porém, de suas funções fora deste caso específico, é o mais
patente abuso de poder. Nem no regime parlamentar jamais se praticou tamanho
despropósito. Naquele regime, o parlamento pode, pelo voto da maioria dos seus
membros, derrubar o primeiro-ministro. Nunca, porém, o chefe da nação, presidente
ou rei. O impedimento decretado pelo Congresso Nacional para suspender de suas
funções constitucionais o presidente da República, é caso inédito nos anais do regime
presidencial ou de qualquer democracia decente. Não se concede entre nós maior
abuso de poder.
O direito que o presidente da República tem de exercer o mandato a ele con-
ferido pela Nação Soberana é líquido e certo. Está apoiado no art. 36 da Constituição,
onde se veda a subordinação do Executivo de maiores congressais.
A missão suprema do Supremo Tribunal, no sistema federativo, é sustentar
a Constituição na defesa dos direitos contra o abuso de poder. Esta a majestade do
Supremo Tribunal Federal, sejam quais forem as consequências.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. con-
vocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
E concluiu o ministro Ribeiro da Costa:
Como admitir que a Câmara dos Deputados possa, mesmo numa suposta
conjuntura de salvação nacional, rasgar a Constituição para declarar impedido o pre-
sidente da República? (...)
Senhor Presidente, entendo que, se o afastamento do presidente da República
resultou do ato de força e de violência, já exposto ao Supremo Tribunal, a assunção
àquele alto cargo do Sr. Nereu Ramos é ato que não somente ofende à Constituição,
como também resulta manifestamente nulo. O Sr. Nereu Ramos, a meu ver, é um
funcionário de fato, nada mais do que isso. Não é detentor autêntico da autoridade
que exerce, porque o afastamento do legítimo substituto do presidente da República
se deu por maneira inconstitucional. O Sr. Nereu Ramos é, pois, tão somente um fun-
cionário de fato, que assina papéis na Presidência da República. Qual será, porém,
a consequência lógica, inevitável e jurídica dessa situação de fato? A Câmara dos
Deputados e o Senado, votando a lei de estado de sítio, entregaram ao Sr. Nereu
Ramos a complementação desse irrisório veículo da lei. Pergunto eu: nestas condi-
ções, estará a lei do estado de sítio vigendo no país? Deverá ser respeitada? Em face
dela, poderá alguém sofrer vexame por ato político, de natureza política? Não, não e
não, conforme diz a Bíblia.
(...)
Qual a função do juiz? A maior, a mais elevada, a mais pura? É aplicar a
Constituição. Talvez após quarenta anos de serviços à causa pública, dos quais trinta
e dois à magistratura, também eu tenha de dizer, com melancolia como o grande
escritor: “Perdi meu ofício”. Arrebataram meu instrumento de trabalho, meu gládio
e meu escudo: a Constituição.
98
Ministro Nelson Hungria

Assim, concedo o mandado de segurança, para que Câmara dos Deputados,


acatando nossa decisão, tome as providências que quiser para que o presidente Café
Filho se emposse no cargo de que é legítimo detentor.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. con-
vocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
A citação que o ministro Ribeiro da Costa faz do escritor Monteiro Lobato
quando da instalação do Estado Novo bem demonstra o delicado da decisão. Com
efeito, a CF/1946 encontrava-se vigente apenas em razão da autocontenção das
Forças Armadas, que se limitaram a obstar Café Filho e Carlos Luz do poder e a
decretar o estado de sítio. De fato, poderiam as tropas do general Lott a qualquer
momento fechar o Congresso e o próprio Supremo Tribunal Federal pela força bruta
das armas e revogar a Constituição.
Os ministros convocados Sampaio Costa e Afrânio Costa, substituindo res-
pectivamente os ministros Luiz Gallotti e Barros Barreto, votaram pela suspensão
do julgamento até o final do estado de sítio, quando restabelecidas as garantias
constitucionais.
Nesse momento, o ministro Nelson Hungria proferiu seu polêmico voto, até
hoje criticado e debatido. Em primeiro lugar, rechaçou veementemente a proposta de
suspensão do julgamento:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que o ponto
de vista adotado pelos eminentes Srs. ministros Sampaio Costa e Afrânio Costa é
inadmissível.
Estamos diante de um dilema: ou não conhecemos do mandado de segurança
ou conhecemos dele, para deferi-lo ou negá-lo. Não há sair daí. Ou o estado de sítio é
constitucional, e não podemos conhecer do presente mandado; ou é inconstitucional,
ou o caso vertente não incide sob o seu império, por ser anterior, como entendeu o
eminente Sr. ministro relator, e teremos de conhecer do mandado, para concedê-lo
ou recusá-lo.
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 7-11-1956.)
Destaque-se que o ministro Nelson Hungria acabou prevendo o resultado
final que a posição inaugurada pelo ministro Sampaio Costa comportaria e que, efe-
tivamente, ocorreu no caso:
(...) Isso valeria por uma negativa de julgamento. Suponha-se que o estado de
sítio seja prorrogado até a posse do novo presidente eleito. O mandado de segurança
ficaria, então, prejudicado, e ao Supremo Tribunal apenas restaria a melancólica situ-
ação de, se tivesse de conceder o mandado de segurança, ter representado o papel dos
carabineiros de Offenbach.
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 7-11-1956.)

99
Memória Jurisprudencial

A seguir, em corajoso voto, o ministro Nelson Hungria opina pela constitucio-


nalidade da decretação do estado de sítio, pontuando-o como mero desdobramento
da insurreição do Exército, contra o qual não havia qualquer remédio jurídico:
Senhor Presidente, pode-se discordar de certas razões expendidas no ofí-
cio de informações do Poder ao Sr. ministro relator; mas há uma que é irrecusável,
embora não formulada francamente: ao declarar o impedimento do ilustre Sr. João
Café Filho, o Congresso não fez mais que reconhecer uma situação de fato irremo-
vível dentro dos quadros constitucionais ou legais, qual a criada pelo imperativo dos
canhões e metralhadoras insurrecionais que barravam e continuam barrando o cami-
nho do Sr. João Café Filho até o Catete. A presidência da República não podia ficar
acéfala, e a sua ocupação pelo Sr. vice-presidente do Senado, dada a anterior renúncia
do Sr. Carlos Luz à presidência da Câmara dos Deputados, era mandamento do art.
79, § 1º, da Constituição (...)
Qual o impedimento mais evidente, e insuperável pelos meios legais, do
titular da presidência da República, que o obstáculo oposto por uma vitoriosa
insurreição armada?
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 7-11-1956.)
Em nenhum momento, a manifestação utilizou de ambiguidade ou subterfú-
gios para deixar de apreciar a realidade: a limitação do Supremo Tribunal Federal
em interromper a revolução das armas. O ministro Nelson Hungria afirmou naquela
data, com todas as letras:
Afastado “o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade”, a reso-
lução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em que
se acha o Sr. Café Filho, de reassumir a presidência da República, em face da impo-
sição dos tanke e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição
e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos
dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios,
não há jeito, por mais auspicioso, de considerá-la uma situação que possa ser apre-
ciada e resolvida do jure por esta Corte.
É uma situação de fato criada e mantida pelas forças das armas, contra a qual
seria, obviamente, inexequível qualquer decisão do Supremo Tribunal Federal. A
insurreição é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de gló-
ria, e os insurretos estarão a cavaleiro do regime legal que infligiram; sua vontade é
que conta, e nada mais.
Admita-se que este Tribunal reconhecesse inconstitucionais o impedimento
do Sr. Café Filho e o estado de sítio: volver-se-ia ao statu quo ante, isto é, à situação
insurrecional do Exército, que ainda continua com seus canhões em pé de guerra no
Campo de Santana e alhures, para impedir o retorno do Sr. Café Filho à presidência
da República. Desde que o chefe da insurreição não assumiu, ex proprio Marte, a
presidência da República, quem devia assumi-la? O Sr. vice-presidente do Senado, o
penúltimo atualmente disponível na escala do art. 79, § 1º, da Constituição. A decla-
ração de impedimento do Sr. Café Filho pelo Congresso foi, em última análise, uma
superfluidade. Com ou sem essa declaração, e não querendo os insurretos assumir
o governo da República, o Sr. vice-presidente do Senado é que tinha que ocupar o
Catete, posto que a presidência da República não podia ficar em acefalia.
100
Ministro Nelson Hungria

A lei do estado de sítio foi sancionada por quem, constitucional-


mente, está substituindo o Sr. Café Filho, na presidência da República, dado
o impedimento deste, decorrente do inelutável sic vole, sic inbec, das forças
insurrecionais.
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá
uma contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser
feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade
de, numa inócua declaração de princípio, expedir mandado para cessar a
insurreição.
Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não poder cortar, pois não
dispõe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu
em porta errada.
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 7-11-1956.)
Continuando, o ministro Nelson Hungria não deixou de responder às
provocações de acadêmicos e políticos, como o professor Afonso Arinos,
citado expressamente pelo magistrado:
(...) Um insigne professor de direito constitucional, doubie do exaltado
político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento
deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os ministros
desta Corte “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”.
Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir, a
pele do rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples
pintura decorativa no teto ou na parede das salas de justiça. Não pode ser
oposta a uma rebelião armada. Conceder mandado de segurança contra esta
seria o mesmo que pretender afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano
preto de nossas togas.
Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucio-
nal, e o impedimento do impetrante para assumir a presidência da República,
antes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurrecionais
do Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica.
Não conheço do pedido de segurança.
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 7-11-1956.)
Dessa forma, com sua verve peculiar, o ministro Nelson Hungria apre-
sentou o problema pelo nome, de forma clara e direta, sem tergiversações ou
soluções sub-reptícias. Não se tratou tampouco de acovardamento ou rebaixa-
mento do Tribunal, mas de reconhecimento de situação de fato que indepen-
dia da situação jurídica. Em suma, a legitimidade para o Supremo Tribunal
Federal deliberar ia até onde a força de suas decisões poderia alcançar.
O ministro Mario Guimarães acompanhou o entendimento do minis-
tro Nelson Hungria, de forma até mais elegante, assentando o respeito do
Judiciário para com o governo de fato:

101
Memória Jurisprudencial

Qual a atitude da magistratura em face dos governos de fato?


De absoluto respeito. De acatamento às suas deliberações. A magis-
tratura, no Brasil ou alhures, não entra na apreciação da origem do governo.
Do contrário, teríamos o Poder Judiciário a ordenar a contrarrevolução, o que
jamais se viu em qualquer país do mundo. (...) Quando, em 1930, as forças do
Sr. Getúlio Vargas venceram o Sr. Washington Luiz, ninguém se lembrou de
recorrer ao Judiciário a fim de que fossem restituídos os quinze dias que falta-
vam para o término do quadriênio. E quem se lembraria de, por intermédio da
Justiça, tomar contas do glorioso marechal Deodoro quando, em 1889, derrubou
de seu trono o venerando D. Pedro II, imperador vitalício do Brasil? O próprio
governo do marechal Floriano, o ínclito marechal de Ferro, não resistiria a uma
análise constitucional, pois que a Carta de 91 prescrevia novas eleições quando a
vaga de presidente ocorresse no primeiro biênio. E, se mergulharmos mais para
o passado, veremos que até o reinado de D. Pedro II se instalou com infringência
da Constituição do Império, que estatuía a maioridade aos 18 anos.
A regra, pois, é que a magistratura não examina a origem dos gover-
nos de fato. A ascensão ao Poder máximo é assunto de natureza estritamente
política.
(...)
Não é o direito do Sr. Nereu Ramos ou do Sr. Café Filho, simplesmente,
que está em jogo. É a orientação a ser dada aos destinos da nação. Essa compete
aos órgãos políticos, não a nós.
(Voto do min. Mario Guimarães no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão
min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
De outro lado, acompanharam a suspensão do julgamento os ministros
Lafayette de Andrada, Edgard Costa e Orozimbo Nonato. Ou seja, por cinco
votos a quatro — uma vez que o ministro Rocha Lagôa se deu por impedido e
o presidente, ministro José Linhares, só votava para desempatar — o Plenário
deliberou por suspender o julgamento do feito até a cessão do estado de sítio.
2.2.1.2.2 HC 33.908/DF
Na mesma sessão de 14 de dezembro de 1955, do julgamento que suspen-
deu o trâmite do MS 3.557/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal come-
çou a apreciar o habeas corpus impetrado em favor do presidente Café Filho,
para cessar o impedimento à locomoção do paciente, em face da instalação de
tropas militares na entrada de sua residência.
O relator, ministro convocado Afrânio Costa, votou pelo prejuízo da impetra-
ção em razão das informações prestadas pela Presidência da República, atestando
que a locomoção de qualquer pessoa não estava mais obstada pela presença dos mili-
tares, que permaneciam no local apenas para preservar a ordem.
Por sua vez, o ministro Ribeiro da Costa suscitou a necessidade de o
habeas corpus ser apreciado após o mandado de segurança impetrado pelo ora
paciente, em virtude da interdependência dos casos. A questão foi acolhida pela

102
Ministro Nelson Hungria

maioria contra os votos dos ministros Nelson Hungria, Hahnemann Guimarães


e do relator, ministro convocado Afrânio Costa.
Novamente, o ministro Nelson Hungria divergiu da orientação da maio-
ria, propugnando o julgamento imediato do pedido.
Na semana seguinte, no entanto, o pedido de habeas corpus voltou à
pauta do Plenário para se deliberar sobre a suspensão do julgamento, da mesma
forma que o MS 3.557/DF. Na ocasião, ausente o substituto do ministro Luiz
Gallotti e impedido o ministro Rocha Lagôa, a decisão de suspensão empatou
em quatro votos a quatro. O presidente, ministro José Linhares, votou pelo ime-
diato julgamento do habeas corpus.
Com a continuação do julgamento, a maioria acompanhou o relator,
ministro convocado Afrânio Costa, por entender que o pedido restara prejudi-
cado, em razão das informações apresentadas pela Presidência da República.
Ficaram vencidas as duas correntes mais firmes no julgamento do mandado de
segurança: o ministro Ribeiro da Costa, que deferia a ordem; e os ministros
Nelson Hungria e Mario Guimarães, que não conheciam do pedido; além dos
ministros Lafayette de Andrada e Orozimbo Nonato, que insistiam na suspen-
são do julgamento.
Em conclusão, o Supremo Tribunal Federal julgou prejudicado o writ de
habeas corpus.
2.2.1.2.3 Petições apreciadas na sessão de 11-1-1956
Na primeira semana de janeiro, a poucos dias de expirar o mandato de Café
Filho, uma vez que a posse de Juscelino Kubitschek estava marcada para 31 de
janeiro de 1956, a defesa do impetrante pediu a continuação do julgamento do MS
3.557/DF.
Em suma, o impetrante atacou a prorrogação do estado de sítio, ocorrida
como havia alertado o ministro Nelson Hungria.
Em primeiro lugar, o Tribunal decidiu que a relatoria das petições ficaria com
o ministro Afrânio Costa, uma vez que o relator originário, ministro Hahnemann
Guimarães, ficara vencido na proposta de suspensão do julgamento e Sampaio
Costa, cujo voto fora o primeiro a indicar a suspensão do feito, não estava mais con-
vocado no Supremo Tribunal Federal.
Em segundo lugar, o Plenário entendeu por bem conhecer do pedido, apesar
de o aresto prolatado em 14 de dezembro de 1955 não ter sido lavrado à época.
Por fim, o Plenário deliberou por indeferir as petições, mantendo a suspensão
do feito enquanto perdurasse o estado de sítio, contra o voto do ministro Ribeiro da
Costa, que deferia a segurança.

103
Memória Jurisprudencial

Na oportunidade, não deixou o ministro Nelson Hungria de ressaltar a posi-


ção do Supremo Tribunal Federal:
Tem-se afirmado, e já foi repetido no seio da própria Câmara dos Deputados,
que o Supremo Tribunal, nos casos do mandado de segurança e habeas corpus em
favor do Sr. Café Filho, mais uma vez está falhando à sua missão dentro do nosso
regime democrático. Protesto veementemente contra essa assacadilha. Jamais o
Supremo Tribunal desertou de sua função constitucional, que não é, positivamente,
a de debelar insurreições vitoriosas. O que ocorre é que o Brasil, com a implantação
da República, entrou no ciclo político da América Latina, em que as mudanças de
regime e a queda dos governos se operam, frequentemente, mediante pronunciamen-
tos militares, contra os quais não há opor-se a força do direito. Bem ou mal intencio-
nados, tais pronunciamentos fazem calar a voz das leis e os ditames jurídicos. Contra
o fatalismo histórico dos pronunciamentos militares não vale o Poder Judiciário —
como não vale o Poder Legislativo. Esta é que é a verdade, que não pode ser obscure-
cida por aqueles que parecem supor que o Supremo Tribunal, ao invés de um arsenal
de livros de direito, disponha de um arsenal de Schrapnels e de torpedos.
Se o ilustre impetrante quer que esta Corte declare que o movimento militar
de 11 de novembro é contrário à Constituição e que seus promotores estarão sujei-
tos à lei penal, de que só se isentarão com uma futura lei de anistia, a não ser que
imponham um governo de fato, que acabará se legitimando no correr dos dias, com a
implantação de novo regime legal, não tenho dúvida em fazer tal declaração.
E nada mais, segundo penso, poderia fazer o Supremo Tribunal, além dessa
declaração, que é, nem pode deixar de ser, na atualidade, puramente platônica.
(Voto no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 7-11-1956.)
A obviedade das limitações do Supremo Tribunal Federal ficou também
marcada na manifestação do ministro Orozimbo Nonato:
O Tribunal não pode opor força à força, violência à violência. Pode ape-
nas definir a natureza do governo. O governo de fato tem seus atos legitimados
pela própria situação em que se mantém. Reconhecê-lo não é se acurvar, servil-
mente, ao império da força; é reconhecer a contingência inevitável na história
de cada povo. Ou obedecemos ao governo de fato ou cairemos na anarquia, na
acracia, na aversão generalizada de todos os princípios da ordem.
(Voto do min. Orozimbo Nonato no MS 3.557/DF, rel. para o acórdão
min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 7-11-1956.)
Registre-se que os ministros Nelson Hungria e Mario Guimarães manti-
veram seus votos no sentido do não conhecimento do writ.
2.2.1.2.4 Rp 258/DF
Em 11 de janeiro de 1956, diversos deputados federais, entre eles os futu-
ros ministros do Supremo Tribunal Federal Adaucto Cardoso, Aliomar Baleeiro
e Oscar Corrêa, representaram ao procurador-geral da República para que ele
oferecesse denúncia contra o general Henrique Duffles Baptista Teixeira Lott e
outros generais que participaram do levante de 11 de novembro de 1955.
104
Ministro Nelson Hungria

O então procurador-geral da República, Dr. Plinio de Freitas Travassos,


pediu o arquivamento do feito, “por falta de base para o oferecimento de qual-
quer denúncia”, e destacou:
Acresce que não há exemplo, nos anais judiciários de qualquer país, de
ser oferecida denúncia contra os participantes de um movimento militar vito-
rioso, conforme a própria conceituação dos signatários da representação.
(Fl. 8 da Rp 258/DF.)
Tendo em vista a promoção do procurador-geral da República, titular
da ação penal, pelo arquivamento, não cabia outra opção ao Supremo Tribunal
Federal, como foi decidido no aresto da Rp 258/DF, rel. min. Rocha Lagôa,
Pleno, 31-8-1956, sem a participação do ministro Nelson Hungria:
Representação do procurador-geral da República opinando pelo arquiva-
mento de petição que lhe fora apresentada para que oferecesse denúncia contra
militares que participaram do movimento de 11 de novembro. Seu arquivamento.
(Rp 258/DF, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 31-8-1956.)
2.2.1.2.5 Petição apreciada na sessão de 7-11-1956
Em novembro de 1956, encerrado o estado de sítio e decorrida a posse
de Juscelino Kubitschek e João Goulart na Presidência e na Vice-Presidência da
República, o impetrante voltou a solicitar que o Supremo Tribunal Federal exa-
minasse o mérito do mandado de segurança.
Na ocasião, nada mais restou à Corte senão declarar prejudicada a impe-
tração, nos termos do voto do ministro Afrânio Costa, do qual só divergiu o
ministro Ribeiro da Costa, que mantinha sua posição pela concessão da ordem.
O histórico julgamento restou laconicamente ementado:
Mandado de segurança; prejudicado por falta de objeto.
(MS 3.557/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno,
7-11-1956.)
Do conforto da nossa época, na qual os golpes militares e insurreições
armadas são memórias longínquas e notícias distantes, é fácil cair na tentação
de criticar o Supremo Tribunal Federal pela ausência de intervenção nos fatos
ocorridos em 11 de novembro de 1955.
O fato é que o Tribunal se encontrava manietado, limitado a garantir
o que era possível naquele contexto. Como bem ilustrou o ministro Nelson
Hungria, o Supremo Tribunal Federal era armado apenas de livros jurídicos,
não de torpedos ou canhões. A espada do Judiciário é apenas “uma pintura no
teto” que só tem a força da legitimidade das decisões que produz.

105
Memória Jurisprudencial

Na realidade, exigir que a Corte devolvesse o poder, retirado pela força


bruta, a Café Filho significava atribuir missão que se sabia impossível. Logo,
condenar o Tribunal por não lhe restituir o exercício da Presidência da República
é tarefa para ingênuos ou pérfidos.
Além disso, há dúvidas se o simbolismo de eventual decisão concessiva
da segurança poderia efetivamente contribuir com o fim da crise institucional.
Ao contrário, é razoável supor que a inócua concessão da segurança provavel-
mente acarretaria a ruptura completa das forças insurrecionais com a CF/1946
e, talvez, o fechamento do próprio Supremo Tribunal Federal.
Ressalte-se que os desdobramentos do episódio, que culminariam no golpe de
31 de março de 1964, realizado pela outra parte dos militares, revelam que os aconte-
cimentos estavam bem acima da capacidade de decisão do Tribunal.
Naquele contexto, se é certo que a decisão da Corte frustrou muitas
expectativas, não se pode negar que essas mesmas expectativas eram irreais. É
grande a diferença de apequenar-se e ter humildade para se reconhecer pequeno
ante as forças incontroláveis de uma revolução.
Definitivamente, o Supremo Tribunal Federal não faltou às suas respon-
sabilidades nem à sua missão constitucional, nesse fato histórico. Antes, os
eminentes ministros que tomaram parte desse julgamento souberam enfrentar
os reveses de uma insurreição armada com galhardia e sinceridade, sem dema-
gogias irresponsáveis e sem atalhos artificiais.
2.2.1.3 Reserva de iniciativa
Já na década de 1950, havia tentativas de circunscrever as disposições
constitucionais que dispunham sobre a reserva de iniciativa de projetos de leis
conferida a um dos Poderes.
Como cediço, a reserva de iniciativa é uma das formas de garantir atribui-
ção a cada um dos Poderes para determinadas matérias legislativas. A ausência
de iniciativa de quem a Constituição a exigiu acarreta a inconstitucionalidade
formal da medida legislativa.
No julgamento da Rp 164/SC, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 16-6-
1952, o Supremo Tribunal Federal apreciou se a ampliação realizada pelo Poder
Legislativo a projeto de iniciativa reservada ao chefe do Poder Executivo era
compatível com a CF/1946.
Na oportunidade, o relator, ministro Mario Guimarães, assentou que
“o poder de emendar é corolário do poder de iniciativa”. Com fundamento
em ampla pesquisa no direito comparado, inclusive nos exemplos dos Estados
Unidos da América, França e Itália, o ministro Mario Guimarães entendeu

106
Ministro Nelson Hungria

inconstitucional a emenda a projeto de lei que concedia aumento a três catego-


rias funcionais para elevar os vencimentos de todo o funcionalismo estadual.
Além disso, o ministro relator acolheu o fundamento de que a lei apro-
vada pela assembleia catarinense não continha a indispensável fonte de receita
para o aumento do gasto público. Ele rejeitou tão somente a alegação de que o
veto não fora levantado pela maioria absoluta da assembleia. Segundo sua con-
cepção, é falha a definição de maioria absoluta como equivalente à metade mais
um do número de votantes, quando esse número é ímpar. Nesse caso, a melhor
definição é a de que “maioria absoluta é a representada pelo número imediata-
mente superior à metade”. Logo, a maioria absoluta de 39 deputados estaduais
seria o número 20.
Por sua vez, o ministro Nelson Hungria rejeitou os dois últimos funda-
mentos, nos seguintes termos:
Senhor Presidente, três são as razões invocadas na presente representa-
ção contra a lei estadual em debate. Vou começar pela última, que é a de que
não teria ocorrido maioria absoluta para a rejeição do voto do governador. Não
tenho dúvida alguma que a maioria absoluta de 39 é 20. Tratando de votantes
em número ímpar, a maioria absoluta é a mesma do número par imediatamente
inferior. Já neste sentido tenho aqui votado. Também rejeito a increpação de
que a lei não indicou a fonte de receita ou a fonte de recursos para fazer face ao
aumento de despesa. Indicou, sim. Disse que o aumento de despesa devia ser
coberto pela receita arrecadada, que o fora em muito mais do que o previsto no
orçamento. E o que é mais: indicou como fonte de recursos a mesma que havia
indicado o próprio chefe do Executivo estadual, isto é, o superávit da receita, a
ser utilizado mediante créditos suplementares.
(Voto na Rp 164/SC, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 16-6-1952.)
No que tange ao vício de iniciativa, relativo à ampliação dos aumentos
sugeridos no projeto encaminhado à assembleia estadual, o ministro Nelson
Hungria foi pontual quanto à inconstitucionalidade:
Agora, Senhor Presidente, resta a questão central, nuclear, de que cogita
a representação. Entendo que o art. 27 da Constituição catarinense, que repro-
duz, se não na forma, pelo menos no fundo, dispositivo da Constituição Federal,
exerce uma função frenadora ao predomínio ou arbítrio do poder legiferante.
Não exige, apenas, como muito bem acentuou no seu brilhante voto o eminente
Sr. ministro relator, simples prioridade da proposta do Poder Executivo, idêntica
à primazia que, no regime bicameral, cabe a uma das casas do Congresso no
tocante a certo projetos. Não: aqui se exige uma iniciativa condicionante e par-
ticularizada, referente não só à apresentação da proposta como ao seu conteúdo.
Entre outros assuntos a que devem ser atinentes os projetos cuja inicia-
tiva cabe ao Poder Executivo, figura o de aumento de vencimentos. Estaria,
sem dúvida, inteiramente burlado o preceito constitucional se se permitisse ao
Poder Legislativo um maior aumento do que o proposto pelo Executivo. Estaria
totalmente iludida a finalidade do preceito, qual a de evitar que o Legislativo,

107
Memória Jurisprudencial

não conhecendo, realmente, como conhece o Executivo, as forças do erário


público, as probabilidades da receita, ou as possibilidade de granjeio do nume-
rário, pudesse estabelecer um tal aumento de despesa que colocasse o Tesouro
em pânico, na impossibilidade prática de poder arrostar com esse acréscimo
passivo. Pode a Câmara, pode a legis latis emendar a proposta ou anteprojeto do
Executivo, mas dentro de sua própria lógica, como um corolário necessário dos
próprios critérios adotados pela proposta, e, notadamente, dentro do provável
algarismo máximo indicado pelo Poder Executivo relativamente às fontes de
cobertura.
(...)
Conhece-se a razão desse dispositivo, que a Constituição de Santa
Catarina copiou da Constituição Federal: é evitar o jubileu de indulgências a
que, por vezes, no passado, se entregava o Poder Legislativo, sem cuidar das
possibilidades do Tesouro, sem indagar das condições financeiras, ainda quando
desfavoráveis, em que se achasse o Estado. E, então, se cuidou de criar esse
entrave, esse contrapeso à autonomia do Legislativo. O Executivo, que conhece
de perto quais as possibilidades do Tesouro e as necessidades reais da admi-
nistração; que conhece o que se pode dar, em face da situação do erário ou dos
algarismos possíveis de arrecadação da receita, da capacidade de tal ou qual
imposto ou de tal ou qual verba; o Executivo que, para usarmos uma linguagem
pitoresca, sabe onde dói o calo, e o que se pode fazer, no limite da realidade, para
remediar o mal, foi erigido, neste particular, em controlador do Legislativo. Ora,
essa finalidade, esse objetivo do preceito constitucional, que não pode deixar de
ser interpretado dentro de sua função teleológica, estaria inquestionavelmente
cancelada, se fosse permitido ao Poder Legislativo entregar-se, de novo, aos
excessos de liberalidade com sacrifício do erário público. De nada teria valido
o empecilho criado pela Constituição que atendeu a uma lição, a uma longa e
alarmante lição da experiência. Não é a primeira vez que me manifesto contra o
subterfúgio com que se tem enganado o preceito constitucional em questão. (...)
Assim, estou sendo fiel a mim mesmo, neste momento, ao reconhecer,
positivamente, a inconstitucionalidade da Lei catarinense 22, porque, desaten-
dendo a um preceito de ordem constitucional sobre interdependência de pode-
res, quebrou a harmonia entre estes, traduzindo uma incursão do Legislativo na
órbita do Executivo.
(Voto na Rp 164/SC, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 16-6-1952.)
Em síntese, o Supremo Tribunal Federal impediu qualquer tentativa de
solapar ou circunscrever a reserva de iniciativa, que em última análise dá den-
sidade à separação de poderes.
No mesmo sentido, o ministro Nelson Hungria foi relator da representação
que declarou a inconstitucionalidade, por unanimidade, da Lei paulista 2.970, de
6 de abril de 1955, que criava cargos sem a iniciativa do Poder Executivo (Rp
248/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 2-7-1956), além da Lei 8, de 12 de feve-
reiro de 1959, do Estado do Paraná, que criava cargos e aumentava vencimentos
sem o respeito à reserva de iniciativa (Rp 414/PR, rel. min. Nelson Hungria,
Pleno, 11-7-1960).

108
Ministro Nelson Hungria

O Supremo Tribunal Federal censurava também quaisquer formas de


desvio da reserva de iniciativa, inclusive por meio da utilização de emendas à
Constituição estadual, como na Rp 201/RS, rel. min. Mario Guimarães, Pleno,
22-4-1955. Essa orientação permanece bastante atual, como demonstram os
seguintes precedentes: ADI 4.154/MT, rel. min. Ricardo Lewandowski, Pleno,
26-5-2010, DJ de 18-6-2010; e ADI 1.759/SC, rel. min. Gilmar Mendes, Pleno,
14-4-2010, DJ de 20-8-2010.
De outra sorte, na Rp 249/SC, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-12-1955,
o ministro Nelson Hungria reconheceu a reserva de iniciativa do Judiciário para
alteração da organização judiciária estadual, inclusive com a inerente possibili-
dade de criar cargos, independentemente de concordância do Poder Executivo.
Na oportunidade, o acórdão restou assim ementado:
Art. 124, I, da Constituição Federal; quando aí se atribui ao Tribunal de
Justiça a proposta de alteração da organização judiciária estadual, mesmo no
correr do quinquênio, deve entender-se que tal iniciativa não precisa ser acom-
panhada do placet do chefe do Executivo, ainda quando a alteração importa
criação de cargos.
(Rp 249/SC, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-12-1955.)
O voto do ministro Nelson Hungria não deixou dúvidas quanto à neces-
sidade de garantia da reserva de iniciativa para fiel observância da separação
de poderes:
Quando, no art. 124, I, a Constituição Federal, depois de assegurar a
intangibilidade quinquenal da organização judiciária, ressalva o caso de inter-
corrente proposta motivada do Tribunal de Justiça, está, necessariamente, atri-
buindo a este, com exclusividade, a iniciativa perante o Legislativo estadual,
da alteração da dita organização, pouco importando que tal alteração envolva
criação de cargos. De outro modo, isto é, se fosse indispensável o prévio assen-
timento do Executivo, quando a proposta do Judiciário implicasse criação de
cargos, aplicando-se o disposto no § 2º do art. 67 da mesma Constituição, o
desacordo do Executivo criaria um impasse, e estaria praticamente anulando
a prerrogativa do Judiciário. O art. 124, I, da Magna Carta, quando ressalva a
proposta do Judiciário, não a restringe, de modo algum, ao placet do Executivo,
nem poderia restringi-la, sob pena de torná-la inócua, toda vez que com ela não
concordasse o Executivo. A anomalia ocorrida no caso vertente bem revela a
inadmissibilidade da tese sustentada pelo Sr. governador de Santa Catarina e
apoiada pelo Sr. procurador-geral da República. O Sr. governador sancionara
a criação de comarcas, mas vetara, por haver sido omitida a sua iniciativa, a
criação dos respectivos cargos de juiz, promotor e demais funcionários impres-
cindíveis à existência funcional das novas comarcas. Seria este o “beco cego”,
a que frequentemente se teria de chegar, se prevalecesse o critério de distribuir
a iniciativa de criação de comarcas e a de criação dos correspondentes car-
gos, respectivamente, entre o Judiciário e o Executivo. Não é aceitável que a

109
Memória Jurisprudencial

Constituição, ao mesmo tempo que outorgava uma prerrogativa ao Judiciário,


subordinasse esta ao placet do Executivo, abstraindo que ceci tuera cela.
(Voto na Rp 249/SC, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 16-12-1955.)
Nesses termos, a iniciativa outorgada pela Constituição não poderia
ser anulada pela interpretação de que a parte funcional estaria subordinada à
reserva de iniciativa de outro Poder.
2.2.1.4 Retratação de veto
O Supremo Tribunal Federal também teve a oportunidade de garantir a
separação de poderes mesmo em caso de acordo de vontade entre eles.
Cuida-se da Rp 432/PE, relator o ministro Ary Franco, Pleno, 22-1-1960,
em que o Tribunal declarou a inconstitucionalidade de lei estadual, cujo projeto
o governador do Estado de Pernambuco inicialmente vetara, porém, posterior-
mente, em acordo com a Assembleia Legislativa, pedira o retorno da respectiva
mensagem e retratara-se, passando a sancionar o projeto de lei.
O Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu que o veto, assim
como a sanção, não pode ser retratado, ainda que tenha sido realizado em
comum acordo com a Assembleia Legislativa, que poderia derrubá-lo, nos
termos do voto do relator, ministro Ary Franco. Na oportunidade, o ministro
Nelson Hungria pontuou, assentando que a ausência de interferência de um
Poder sobre outro se impõe, mesmo no caso de concordância do Poder suposta-
mente vilipendiado:
Senhor Presidente, também entendo que, se se admite a possibilidade
de retratação de um veto, a lógica nos levaria à conclusão de que o governador
poderia, igualmente, revogar a sanção, desde que ainda não expirado o prazo
que tinha, para esta.
É verdade que houve um acordo, uma entente entre a Assembleia Legislativa
e o governador, mas, quando estão em jogo interesse público e um preceito consti-
tucional, em face do qual não é possível que dois Poderes se entendam, para que um
interfira na órbita de outro, não pode haver essa transação ou acomodação recíproca.
A Assembleia Legislativa, ao receber o veto do governador, não podia, a seguir,
renunciar o direito de apreciá-lo, para aceitá-lo ou rejeitá-lo.
(Voto na Rp 432/PE, rel. min. Ary Franco, Pleno, 22-1-1960, grifo no original.)
Em síntese, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, de forma geral, e a mani-
festação do ministro Nelson Hungria, de forma específica, expressam que a imposi-
ção da separação dos Poderes, estabelecida pela Carta Magna e garantida pela Corte,
deve ser respeitada independentemente da vontade do poder mitigado.

110
Ministro Nelson Hungria

2.2.1.5 Delegação legislativa para o presidente da República


Também foi objeto de acirrados debates no Supremo Tribunal Federal a
constitucionalidade da delegação legal ao presidente da República para regula-
mentar o salário mínimo (MS 2.655/DF, rel. para o acórdão min. Afrânio Costa,
Pleno, 5-7-1954).
Naquele momento, havia grande comoção no País por conta das pressões
inflacionárias e da ferrenha oposição que denunciava as práticas populistas do
governo Vargas. Então ministro do Trabalho, o futuro presidente João Goulart
apresentou proposta de aumento de 100% do salário mínimo e seu pedido de demis-
são38, provocando escândalo entre os industriais e a classe média e dificuldades na
tentativa de estabilização monetária39. Apesar da oposição do ministro da Fazenda,
Oswaldo Aranha, e de toda a assessoria econômica, o presidente Getúlio Vargas
adotou a proposta de João Goulart, em pronunciamento de 18 de maio de 195440,
dobrando o salário mínimo por meio do Decreto 35.450, de 1º de maio de 1954.
Contra esse decreto, o Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Rio
de Janeiro impetrou mandado de segurança, autuado como MS 2.655/DF, distribuído
ao ministro Ribeiro da Costa e levado a julgamento em 5 de julho de 1954.
Na data do julgamento, o relator originário, ministro Ribeiro da Costa,
votou pelo conhecimento do writ e pela inconstitucionalidade da fixação do
salário mínimo por meio de decreto, amparado em parecer de 1952 da lavra do
consultor-geral da República e futuro ministro do Supremo Tribunal Federal,
Carlos Medeiros, aprovado pelo presidente Getúlio Vargas. No longo e brilhante
voto, o ministro Ribeiro da Costa concluiu:
A faculdade de fixar, estabelecer, estipular, limitar o salário mínimo, se
contém, privativamente, na alçada do Poder Legislativo; não a podia exercer, na
escala da função executiva, o Sr. presidente da República, seja a título de com-
petência derivada, seja sob o disfarce de delegação legislativa.
Na linha de princípios em que se estaquia a separação de funções, inde-
pendência e harmonia de poderes, é de essência, na Carta Política de 1946, a
indelegabilidade de atribuições (art. 36, § 2º).
(...)
Neste lugar e nesta hora, toca ao Supremo Tribunal Federal soerguer-se
nas suas colunas, diante do grave conflito de atribuições aberto entre os Poderes
Executivo e Legislativo, não, porém, para assistir, insensível a refrega, no fim
da qual ninguém sabe a que consequências atingiremos, mas que, na hipótese
de falharmos à nossa atribuição constitucional, há de ser, fatalmente, a da ruína

38
COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed.
São Paulo: IEJE, 2007. p. 148.
39
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. 7. ed. Rio de Janeiro: 1982. p. 159.
40
Ibid., p. 171.

111
Memória Jurisprudencial

total das Instituições, por isso que, como vaticinara Rui, “Cada atentado que se
tolera à desordem é um novo alimento que se lhe administra”.
(Voto do min. Ribeiro da Costa no MS 2.655/DF, rel. para o acórdão min.
convocado Afrânio Costa, Pleno, 5-7-1954, grifos no original.)
Por outro lado, o ministro convocado Afrânio Costa abriu divergência
para não conhecer do mandado de segurança, sob o fundamento de que se tra-
tava de impugnação contra norma geral em tese. O ministro convocado Abner
de Vasconcelos, por sua vez, conheceu do pedido, mas declarou a constituciona-
lidade do decreto, entendendo que o presidente da República pode regulamentar
o salário mínimo, sem prejuízo de que o Congresso Nacional altere esse valor
por meio de lei.
Assim, o ministro Nelson Hungria votou pelo não conhecimento do
mandado de segurança, mas não deixou de apreciar a constitucionalidade do
decreto presidencial. Com efeito, a manifestação do ministro assentou que o
Decreto 35.450/1954 limitou-se a regulamentar lei federal, qual seja, o art. 81 da
Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT)41, que estipulava critérios objetivos
para fixação do salário mínimo. Ademais, ressaltou as dificuldades da fixação
de numerário mediante lei:
Aí [no art. 81 da CLT] estão os critérios objetivos, os critérios marca-
damente objetivos que a lei ordinária, a que se refere a Constituição, impõe à
Comissão do Salário Mínimo, criada ad rem e cujas conclusões para fixação do
algarismo do salário mínimo devem ser levadas à aprovação, mediante decreto,
do Sr. presidente da República.
A Constituição não exige mais do que isso. Nem seria admissível que
exigisse mais do que isso. Se o salário mínimo depende das variáveis, das cam-
biantes condições econômicas e financeiras, não é concebível que a fixação do
algarismo salarial mínimo, a fixação aritmética do salário mínimo ficasse a
cargo exclusivo da lei, cuja elaboração poderia durar além do período de uma
legislatura, o que vale dizer, mais de um ano ou até dois.
A entender-se de modo contrário, essa lei seria sempre uma dissonância
irrisória com a realidade, um método de cura sempre anacrônico, uma lei de
opereta, uma lei — carabineiro de Offenbach, um figurino que, ao chegar, já
estaria fora de moda.
Não é aceitável que semelhante critério fosse adotado pela lei consti-
tucional, notadamente num país como o nosso, em que, como bem salientou o
próprio eminente ministro relator, se apresenta um progressivo, pode mesmo
dizer-se, um cotidiano aviltamento da moeda. Não é admissível que ficasse a
cargo exclusivo da lei a fixação aritmética do salário, porque a lei não dispõe
da flexibilidade da régua lésbica e antes mesmo de sua promulgação já estaria
obsoleta.
Com o deixar-se ao poder regulamentar do Executivo a fixação aritmética
do salário mínimo, dentro dos critérios legais objetivos, não há propriamente

41
Decreto-Lei 5.452, de 1º de maio de 1943.

112
Ministro Nelson Hungria

uma delegação, que pressupõe uma renúncia voluntária de função. O que se


apresenta, realmente, é uma injunção inelutável dos fatos, uma irremovível
necessidade prática, imposta pela adequada execução finalística da própria lei.
Como a lei poderia atender à sua finalidade, que é a de afeiçoar o salário mínimo
às rapidamente mutáveis condições econômicas e financeiras, se não confiasse
ao Poder Executivo a frequente averiguação destas, para a sucessiva adequação
do algarismo salarial?
(...)
Não quero dizer, Senhor Presidente, de modo algum, que seria inconsti-
tucional a iniciativa do Poder Legislativo, no sentido de fixar até mesmo o alga-
rismo, a cota aritmética do salário mínimo. Não estaria essa lei em contraste
com a Constituição. E é possível que ela se faça, pois no Brasil só não há lei
proibindo tempestades e furacões. É possível que surja uma lei encerrando o
desconserto, o desconchavo de fixar, de acordo com os dados contemporâneos
à apresentação do seu projeto, o algarismo do salário mínimo, que deve corres-
ponder às condições econômicas e financeiras, que estão a mudar de mês em
mês.
Mas, assim como não nego a constitucionalidade do Projeto Bilac Pinto,
de que só agora tive conhecimento, também, não posso negar a impecável cons-
titucionalidade do Decreto 35.450, que não fez mais do que atender à necessi-
dade prática de executar a lei do salário mínimo dentro da própria finalidade que
lhe atribuiu a Carta de 1946, isto é, a de amparar os trabalhadores, dentro de um
padrão de vida compatível com a atualidade econômica e financeira.
(Voto no MS 2.655/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 5-7-1954, grifos no original.)
Dessa forma, o ministro Nelson Hungria destacou a própria inviabilidade da
fixação do valor aritmético do salário mínimo frente ao processo legislativo, devido
ao contexto inflacionário da época, com atualização significativa mês a mês.
Em seguida, o ministro Mario Guimarães pronunciou-se pela inconstitu-
cionalidade do decreto, sob o fundamento de invasão das atribuições do Poder
Legislativo. O ministro Nelson Hungria não conteve, contudo, seu ímpeto e tra-
vou um dos debates mais interessantes da época, em que os dois ministros indi-
cados pelo presidente Getúlio Vargas confrontaram fundamentos pertinentes e
bem desenvolvidos sem qualquer tibieza:
O Sr. Ministro Mario Guimarães: (...) No presente caso, em primeiro
lugar, não haverá nenhum ato executório posterior. O ato é executório por si
mesmo. As autoridades não precisam mais intervir para que a lei produza os
seus efeitos danosos. Se no dia designado para entrar em execução, não fizerem
os patrões os pagamentos na base do novo salário, os operários, independente da
ação do executivo, poderão entrar em greve, como lhes permite a Constituição.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Depois do pronunciamento da Justiça
Trabalhista, e se é que o governo levaria à execução o decreto.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Supõe-se que o governo tenha feito o
decreto para executá-lo. De modo que não interviria nenhum agente do Executivo
e, por conseguinte, se dano houvesse, já estaria a ameaçar os empregadores. Há,
ainda, a notar uma circunstância, posta em foco pelo eminente Sr. ministro
113
Memória Jurisprudencial

relator, e é de que o que se discute não é o conteúdo do decreto, mas o haver do


Poder Executivo transposto a linha que o separa do Legislativo, entrando a pra-
ticar ato que era das atribuições deste. É essa invasão que se vai examinar. Não
é, por conseguinte, o decreto em si. Outra consideração me acode: ante a ameaça
da prática de um ato arbitrário, inconstitucional, prejudicial aos empregadores,
de que meio poderiam eles lançar mão, para se defenderem? Qual o remédio
jurídico, senão o mandado de segurança, que atua supletivamente quando outros
a lei não indicar? Assim, preliminarmente, conheço do recurso.
No mérito, a mim me parece fora de dúvida que a competência para
legislar, na matéria, é exclusivamente do Congresso Nacional. Peço vênia aos
eminentes colegas que se manifestem em sentido contrário.
Diz o art. 157 da Constituição Federal:
“A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão aos
seguintes preceitos, além de outros que visem à melhoria da condição
dos trabalhadores:
I — Salário mínimo capaz de satisfazer, conforme as condições
de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de sua família.”
Não me parece que a Constituição tenha dito competir à legislação fixar
as condições para o salário. As normas estão apontadas: serão conformes às
condições econômicas de cada região e as necessidades normais do trabalhador.
O salário é que é a questão toda. O que se discute é o salário.
O ilustre procurador-geral da República disse que, em 1951, já havia um
decreto a esse respeito e ninguém protestou. Ninguém reclamou porque o salá-
rio seria, naturalmente, compensador. Não teria ferido interesses que obrigas-
sem os prejudicados a se defenderem.
Assim, pois, o quantum do salário é tudo na questão. É o pivot da con-
trovérsia. Diz-se que a matéria deveria ter sido deixada para a regulamentação.
Não seria tratada pelo legislador. Mas a matéria tem que constar da legislação,
conforme determina a lei. E compete ao Congresso Nacional legislar sobre ela.
A competência é assim do Congresso Nacional. Dir-se-á que não é melhor solu-
ção. O Poder Executivo está em mais favoráveis condições para reunir os ele-
mentos, aquilatando das necessidades do meio.
A meu ver, isso é uma arma de dois gumes: se, por um lado, o Poder
Executivo está mais habilitado a perfeitamente examinar as várias questões e
apalpar as necessidades sociais, por outro lado, há notar que constituirá uma
arma perigosíssima nas mãos do Executivo. Pode acarretar o fechamento ime-
diato das fábricas. Pode provar um colapso no País. Há Estados que têm o seu
progresso caminhando em determinado sentido e, de um momento para outro,
se verão emperrados na sua marcha.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não se pode criticar uma lei, invocando
possíveis abusos.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: É fato comum: quando a resolução é
tomada pelo legislador é o próprio povo, porque o legislador representa o povo.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se vamos argumentar com a possibi-
lidade de abusos, nenhuma legislação seria viável, porque todas as leis estão
sujeitas a abusos.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: A Constituição não deu poderes tão
amplos ao Executivo. E por que não o fez? As Constituições de 1946 como a
de 1934 vinham de um período arbitrário. Formaram-se várias correntes de um

114
Ministro Nelson Hungria

lado, os simpatizantes dos governos de força, que estavam em moda na Europa


e em alguns países da América. De outro lado, os que viam a felicidade do País
no regime democrático. Prevaleceu esta corrente, e os constituintes, de 1946
como os de 1934, tiveram medo de dar ao Poder Executivo poderes ilimita-
dos. Tiveram em mente, talvez, o conselho de Laboulays, que dizia ser o Poder
Executivo de tal maneira absorvente que se não o organizaram bem as constitui-
ções, dentro de algum tempo se tornará um só.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A disciplina legislativa do salário
mínimo surgiu em 1936, muito antes do Estado Novo.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Já demonstrei que a Constituição de
1934 como a de 1946, após a deposição de 1945...
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É atualmente integrante de todo o regime
político, o intervencionismo do Estado na vida econômica; não é isso peculiari-
dade desse ou daquele regime de governo, mas de princípio comum a todos eles.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: São questões outras.
Diz-se, porém, que a União, o Poder Executivo tem a faculdade de
regulamentação. Há várias teorias sobre a ação do Poder Executivo, na regu-
lamentação das leis — pela teoria clássica, o Executivo não pode mais que
tomar as providências necessárias a fim de que se facilite a execução das leis.
Alguns autores, porém, sustentam que o poder de regulamentar pode abranger
o de legislar, em caso de omissão das leis, suprindo as necessidades sociais. Os
alemães dividem a regulamentação em dois tipos: o tipo de regulamentação do
direito, o tipo de regulamentação administrativa.
Na regulamentação de direito, o poder do regulamentador é amplo. Na
regulamentação administrativa, o poder do regulamentador é restrito a facilitar
a execução das leis.
Qual foi o sistema que a nossa Constituição consagrou? A Constituição
admitiu precisamente o sistema clássico. Dispõe o art. 87: “Compete ao
Executivo expedir regulamentos, para facilitar a execução das leis.”
A nossa Constituição ficou, portanto, fechada dentro desse princípio, em
matéria de regulamentação: não admitiu a liberdade ampla, que se quer dar ao
Executivo. E não admitiu precisamente porque o legislador constituinte, com
razão ou sem ela, tinha medo do Executivo.
Pretende-se que houve uma delegação de atribuições. Eu pondero que as
delegações de poderes estão expressamente proibidas pelo art. 36, § 2º, da nossa
Carta: “É vedado a qualquer dos poderes delegar atribuições.”
O eminente Dr. procurador-geral citou, em vários tópicos, a opinião sem-
pre acatada por nós, de Rui Barbosa. Aliás, Rui Barbosa era, em princípio, con-
trário à delegação de poderes, embora reconhecesse que muitas e muitas vezes
tenha sido o governo obrigado a lançar mão dela.
Mas, tudo quanto ensinou Rui Barbosa foi em face da Constituição de
1891. E a nossa Constituição atual é positiva, mesmo pelas razões que eu acabei
de declinar: o legislador constituinte não queria a intromissão do Executivo e,
por isso, a proibiu.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Nenhuma outra lei mais do que a consti-
tucional repele a interpretação estritamente literal. A Constituição de 1946 é um
sistema de onde não foi exilado o bom senso.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência atribua falta de bom
senso ao legislador e não a nós outros.

115
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Ao contrário: entendo que a Constituição


não é infensa ao bom senso e com bom senso tem de ser interpretado. Vossa
Excelência é que não atende ao bom senso de que ela não pode deixar de estar
impugnada.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: É vedado — diz a Constituição. Uso de
termo enérgico: é vedado a qualquer dos Poderes delegar atribuições.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas, se Vossa Excelência prosseguir a leitura
dos artigos, verá que há todo um sistema orgânico que não admite o servilismo da
interpretação literal do texto a que Vossa Excelência se referiu isoladamente.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência quer fazer preva-
lecer o sistema que a Constituição atual aboliu. Sei que existem, em doutrina,
opiniões várias. Sei que os países, nesta matéria, se classificam também em três
grupos: um, em que a Constituição é omissa, como era a nossa de 1891 e é a
Constituição americana; outro, em que a Constituição expressamente permite a
delegação, como alguns países europeus; e outro, como a nossa agora, em que o
texto expressamente proíbe.
Mas o eminente colega — já que Sua Excelência me aparteou, vai permitir
que me dirija aos seus argumentos — disse que tinha havido delegação, porque citou
uma lei de 1936, feita, portanto, no regime da Constituição de 1934. Mas é sabido
que, em matéria de delegação, se aplicam analogicamente os princípios que regulam
os mandatos especiais. As delegações legislativas são feitas para determinado fim.
Executado o ato a que elas se referem, exaure-se o poder delegante.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não é exato.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: É princípio doutrinário.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Vossa Excelência está abstraindo o
axioma de que necessitas caret legem.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Por esta interpretação Vossa Excelência
anula toda a construção do direito; assim, o ladrão pode roubar.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: E pode, para matar a fome, caso típico
do estado de necessidade. É o chamado “furto famélico”, que escapa à punição.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vem Vossa Excelência querer fazer
apologia a Jean Valjan.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Desde a Idade Média se autoriza o per-
dão daquele que furta para matar a fome, porque acima do direito de proprie-
dade está o direito à vida.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: E a matéria tinha fatalmente de esca-
par à ação do Executivo, pelo seguinte: ainda que não se admita regulamentação
com poderes amplos, para-se num ponto quando a regulamentação encontra
direitos adquiridos, quando a regulamentação encontra direito preexistente.
Ora, no caso, o que se pretende, por um ato do Executivo, é modificar todas as
convenções feitas entre patrões e operários para impor novo salário. É um ato
que, pela natureza da matéria, não podia ser delegado ao Executivo.
Como comparação, o meu eminente colega viu dois irmãos a andarem pelo
mundo, como no caso da fixação dos preços de alimentação. Mas a fixação dos
preços da alimentação é matéria relativamente muito vulgar, que normalmente se
entrega às municipalidades. Estas é que habitualmente regulam os preços.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Acho que a questão dos preços dos
gêneros de primeira necessidade é de maior relevância ainda do que o salário

116
Ministro Nelson Hungria

mínimo, porque esta só interessa a empregadores e empregados, enquanto


aquela afeta à toda a coletividade.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Também vou fazer uma comparação
com a lei dos alugueres. Ir-se-á permitir que o Executivo venha a modificar a lei
do inquilinato, por exemplo?
O que positivamente houve foi uma invasão da parte do Executivo em
atribuições do Poder Legislativo.
Compete ao Judiciário, como se disse ainda há pouco, agir como guar-
dião da Constituição. Para que haja democracia, é preciso que esses Poderes
sejam harmônicos e se respeitem e não invadam as atribuições do outro. O sis-
tema de divisão de poderes serve de amparo dos direitos individuais, porque, se
um dos Poderes dominar os outros, então, não haverá mais que a vontade de um
e as garantias individuais ficarão a mercê desse único Poder.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas foi o Poder Legislativo que conce-
deu ao Executivo a faculdade de fixar os algarismos de salário mínimo, como,
aliás, já a concedeu para o arbitramento de aluguéis.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência está voltando a
assunto já discutido e repisando. Vamos adiante.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não estou repisando, mas procurando
evitar que Vossa Excelência estabeleça premissas falsas para chegar a uma con-
clusão falsa.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: A premissa falsa é a Constituição.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Estou argumentando que o próprio
Legislativo é que abdicou de sua prerrogativa em lei promulgada em pleno
regime constitucional.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Mas esta lei é de 1936 e está revogada
pelos dispositivos da Constituição atual.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Como se explicaria, então, que jamais se
tivesse acoimada a Lei 185 de contrária à Constituição de 1934?
O Sr. Ministro Mario Guimarães: A nossa função é resguardar a harmo-
nia dos Poderes e temos cumprido esta nobre missão. Acentuou muito bem o Sr.
ministro relator que estamos numa situação de especial gravidade. Eu também
sinto, como o meu eminente colega, a situação dolorosa em que se encontram os
operários. Este anseio que eles têm de melhoria de vida é o anseio de todos nós
e neles absolutamente justo. E por isto eu também faço votos, como o meu emi-
nente colega, para que o Congresso ponha em mira esse ponto e faça a reforma
dos seus salários. Eles a merecem. Mas o fato de a merecerem não é motivo para
que se rasgue a Constituição.
Posso, como particular, aplaudir e colocar-me ao lado dos que pedem
aumento de salário para os operários, mas não posso, como juiz, dar o meu voto
contra a lei.
Concedo a segurança, pelos motivos expostos.
(Voto do min. Mario Guimarães no MS 2.655/DF, rel. para o acórdão
min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 5-7-1954, grifos no original.)
Apesar dos acirrados debates, ambas as perspectivas possuem funda-
mentos válidos a respeito dos limites da delegação para harmonia dos Poderes,
principalmente tendo em conta o contexto histórico de prevalecimento do Poder
Executivo sobre o Legislativo.
117
Memória Jurisprudencial

A ponderação do ministro Nelson Hungria, no entanto, quanto ao brocardo


“Not kennt kein Gebot” ou, na versão latina, “necessitas caret legem”, isto é, a neces-
sidade carece de leis, revela a imposição dos fatos. Até hoje, a questão ainda não
está pacificada, como demonstra a questão semelhante de delegação para o Poder
Executivo fixar o salário mínimo, previsto na recente Lei 12.382/2011, cuja constitu-
cionalidade é discutida na ADI 4.568/DF, rel. min. Cármen Lúcia.
2.2.2 Federalismo
O Princípio do Federalismo também foi bastante debatido pelo Supremo
Tribunal Federal na década de 1950, principalmente em relação à autonomia
municipal e ao princípio da simetria.
2.2.2.1 Autonomia municipal
A autonomia municipal era assegurada na CF/1946 de forma bastante
semelhante à CF/1891, garantindo a competência dos Municípios para regula-
rem matéria de seu “peculiar interesse”.
Essa expressão gerou grandes controvérsias no Plenário do Supremo
Tribunal Federal desde a primeira Constituição republicana e, com o expressivo
desenvolvimento da CF/1988 no papel dos Municípios na Federação, acarreta
divergências de entendimento até hoje.
Essencialmente, duas questões sobre a interpretação da autonomia ganha-
ram relevo na década de 1950: a constitucionalidade das normas estaduais sobre
a criação, fusão e desmembramento de Municípios; e a nomeação dos prefeitos.
2.2.2.1.1 Criação de Municípios
O desmembramento e a criação de municípios têm grande relevo até hoje, não
só por conta da criação de nova entidade política, com estrutura, governo e autono-
mia próprios, como também por seus reflexos na participação nos tributos estaduais
e federais que compõem o Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
Em regra, normas estaduais mais flexíveis para desmembramento e
criação de Municípios geram certas distorções, pois permitem a cisão de dis-
tritos rentáveis, deixando somente a parte que arrecada menos para os antigos
Municípios. Por outro lado, o desmembramento de Município que tenha a parti-
cipação mínima no FPM acaba dobrando artificialmente a receita para a mesma
localidade, com prejuízo para os demais Municípios que dividem o fundo.
Neste ponto, há marcantes votos do ministro Nelson Hungria declarando
a inconstitucionalidade de normas estaduais que admitem a criação ou desmembra-
mento de Municípios sem ouvir toda a população atingida, seja por meio direto, seja
por meio de sua câmara de vereadores. Ainda que vencidas, essas manifestações

118
Ministro Nelson Hungria

ganham relevo atualmente pela extensão da autonomia municipal, erigidos os


Municípios à condição de partícipes integrais da Federação pela CF/1988.
Entre elas, destaca-se a manifestação proferida na Rp 199/RS, rel. min.
Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954, que tratava da representação pela inconstitucio-
nalidade de dispositivos da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. No
caso, as normas estaduais permitiam a mudança do território municipal sem
qualquer consulta à localidade, em suposta afronta à autonomia municipal.
O relator, ministro Luiz Gallotti, votou pela constitucionalidade dos dis-
positivos estaduais, assentando a competência do Estado na demarcação das
áreas dos Municípios.
Divergindo dessa orientação, o ministro Nelson Hungria bem definiu os
contornos do peculiar interesse municipal na questão:
Senhor Presidente, a vigente Constituição [CF/1946] assegura a autono-
mia dos Municípios em tudo quanto concerne ao seu “peculiar interesse”. E o
sistema do self government ou home rule do Município, no tocante às necessida-
des e interesses marcadamente locais. A expressão “peculiar interesse”, desde
a Constituição de 1891 [CF/1891], tem dado margem a controvérsia; mas, atual-
mente, pode dizer-se assentado que tal expressão não quer significar “interesse
exclusivo” (pois, dada a íntima sinergia entre Município, Estado e União, não
se pode falar em exclusividade de interesses municipais), mas, sim, interesse
prevalentemente local, interesse que mais de perto ou mais estritamente diz
com as necessidades municipais. Ora, Senhor Presidente, se há um interesse
preponderantemente municipal, um interesse vital do Município, é o de sua
integridade territorial. Pode dizer-se que é o direito do Município ao seu próprio
corpo, o seu jus in se ipsum. Entre os direitos e poderes do home rule municipal
não pode deixar de figurar, na primeira plana, o de manter o Município a inte-
gridade da área territorial em que assenta. Não se trata de um desses poderes
que se situam na “zona cinzenta”, na twilight zone entre os poderes do Estado e
os poderes do Município, mas de um poder reclamado pelo próprio instinto de
conservação do Município, pois, muitas vezes, se identificará com seu direito à
própria sobrevivência.
(Voto vencido na Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954.)
E continuou o ministro, assentando a indispensabilidade de os limites
territoriais dizerem respeito ao cerne do interesse municipal:
Perda de território é golpe na própria carne do Município. É perda de sua
base geográfica, perda de sua população, perda de seu vigor econômico, perda
de suas fontes de receita, perda de eficiência de seu governo interno, perdas de
suas condições de prosperidade, perda da própria possibilidade de consecução
de seus fins políticos. Como duvidar-se, então, um só instante, que seja do pecu-
liar interesse do Município a questão de seu desmembramento? Não se diga que
a autonomia municipal, outorgada pela Constituição, somente diz com a admi-
nistração local, que não abrange a inteireza territorial. Esta, Senhor Presidente,
será, as mais das vezes, a condição essencial do êxito mesmo da administração

119
Memória Jurisprudencial

municipal, da prosperidade econômico-financeiro ou progresso material que


ela se propõe. Não é concebível autonomia administrativa do Município sem o
correlato direito à integridade da base territorial em que se exerce a adminis-
tração municipal. Nem se argumente que o desmembramento de um Município
é, muitas vezes, exigido pelo interesse geral, porque, com a criação de novos
Municípios, movidos estes pelo estímulo da própria autonomia na competi-
ção com os demais, haverá ensejo ou probabilidade ao maior progresso deles,
redundando isso em benefício para o Estado e para a própria Nação. Não passa
tal argumento de uma hipótese teórica, que a desoladora realidade desmente. O
retalhamento de Municípios apenas resulta, praticamente, na maioria dos casos,
em transformar um todo vigoroso e próspero em partes raquíticas e enfezadas,
competindo-se no desgoverno e na decadência.
(Voto vencido na Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954,
grifos no original.)
Como de hábito, o ministro Nelson Hungria não teve receio de tocar nas
feridas e de afirmar, em alto e bom som, onde o problema residia:
O que se está presenciando atualmente, no Brasil, é a profusa criação de
Municípios novos, que quiseram tornar-se independentes apenas para parasi-
tarem, num rotina deplorável, em torno à porcentagem de tributos que a União
está constitucionalmente obrigada a repartir com as municipalidades. Tão
somente isso, a não ser quando entre em jogo subalternos interesses de ordem
político-partidária ou eleitoral, inspirados pelo princípio maquiavélico do “divi-
dir para governar”.
(Voto vencido na Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954.)
Além disso, também trouxe de sua farta experiência pessoal elementos de
convencimento sobre a melhor interpretação constitucional:
Estendo os olhos para o meu Estado natal, por exemplo, e o que vejo
é uma constritadora fragmentação de antigos Municípios florescendo em
Municípios arruinados, que para disfarçarem a própria incapacidade de pro-
gresso, entregam-se ao culto da ruína, disputando a glória de se transformarem
em monumentos históricos. Onde outrora havia Municípios afortunados, hoje
apenas existem cacos e caraminguás de Municípios. É o melancólico rosário das
“cidades mortas”. Somente se salvaram os Municípios cujos dirigentes são gran-
des chefes da política estadual. E este é o caso comum por todo o Brasil; e foi por
isso que a Constituição de 1946 entendeu de não mais permitir que se despeda-
cem, à sua revelia, os Municípios. Terão estes de ser consultados, porque sem
o assentimento, sem a sua expressa renúncia, já não podem ser desmembrados.
(Voto vencido na Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954.)
Nelson Hungria pontuou, então, as condições para alteração da base ter-
ritorial de Municípios, em raciocínio magistral:
As Constituições e leis estaduais somente podem disciplinar, e em ter-
mos, a forma desse imprescindível assentimento: ou será dado pelo voto dos
vereadores, representantes do povo do Município, ou mediante plebiscito, que

120
Ministro Nelson Hungria

evidentemente, não poderá ser limitado à população do distrito a ser destacado,


mas terá de ser ampliado à população de todo o Município, que é o máximo
interessado e o máximo árbitro. Não se trunca um condomínio sem audiência do
cabecel. Não se emancipa um filho sem audiência do pai. De todo inadmissível
é a equiparação entre Municípios e autarquias, porque estas, com desincorpora-
ções voluntárias da União ou do Estado, podem ser, a qualquer hora, extintas ou
reabsorvidas pelo poder criador.
Dir-se-á que, em certos casos, o dissentimento do Município poderá ser
injustificado capricho. Sem dúvida que isso pode ocorrer; mas que, então, se
cuide de reformar a Constituição Federal para ser dado remédio ou meio de solu-
ção a esse impasse. Atualmente, em face dos preceitos da Lei Básica, não é pos-
sível o esquartejamento de Municípios sem a prévia e explícita anuência destes.
Isto posto, data venia do Sr. ministro relator, julgo procedente a repre-
sentação, para declarar irreconciliável com a Constituição Federal as ora ques-
tionadas emenda constitucional e lei ordinária do Estado do Rio Grande do Sul.
(Voto vencido na Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954.)
Na oportunidade, no entanto, apenas o ministro convocado Abner de
Vasconcelos, que substituía o ministro Barros Barreto, votou na linha do minis-
tro Nelson Hungria, restando o acórdão assim ementado:
Em face da Constituição Federal, não é possível proclamar que os
Municípios têm direito às suas áreas territoriais, só alteráveis pela Assembleia
Legislativa, do Estado se nisso assentirem eles.
Isso seria estender à vida de relação entre o Estado-membro e seus
Municípios a norma do art. 2º daquela Constituição, peculiar ao sistema federa-
tivo, e só compreensível no plano político da União e dos Estados.
A organização dos Municípios, asseguradas as suas instituições repre-
sentativas e resguardada a sua esfera administrativa, compete ao Estado.
Tal competência, embora não expressa, esta claramente subentendida,
com as limitações do art. 28 e outras que possam ser encontradas no texto
constitucional.
Se os Municípios não se organizam por si mesmos, à revelia do Estado (o
que seria, aliás, inconcebível sem a completa subversão do regime, que passaria
a ser federativo-municipal, e não, como é, federativo-provincial); se é do Estado,
em cujo território existem ou podem existir, que eles, por traçado uniforme ou
mediante cartas próprias (que serão, ainda, modalidade da organização ditada
pelo Estado, se este lhes concede tal prerrogativa, nos moldes ou com os limites
prefixados), recebem a estruturação dos seus órgãos representativos e o elenco
das suas atribuições; se é ao Estado que compete, portanto, criá-los e aparelhá-
-los para o exercício da sua autonomia, não se compreende a mutilação dessa
competência no tocante ao território a ser destinado a cada uma das municipa-
lidades, competência que estaria virtualmente comprometida, se dependente da
anuência das circunscrições interessadas.
O Estado pode por suas leis sujeitar-se a essa anuência, mas a Constituição
Federal não o obriga a fazê-lo.
(Rp 199/RS, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 30-7-1954.)

121
Memória Jurisprudencial

Nesse mesmo sentido, o Plenário decidiu na Rp 200/DF, rel. para o acór-


dão ministro convocado Afrânio Costa, Pleno, 19-9-1955, que assentou ser pos-
sível a realização de plebiscito apenas abrangendo os habitantes do distrito a ser
erigido Município.
Naquela ocasião — em que restou vencido com os votos dos ministros
Rocha Lagôa, relator originário, e Macedo Ludolf, convocado para substituir o
ministro Luiz Gallotti — o ministro Nelson Hungria votou pela inconstitucio-
nalidade da então Constituição do Estado de São Paulo:
Senhor Presidente, entendo que é uma intolerável ofensa à autonomia
municipal o desmembrar o município sem ouvir o seu órgão representativo, que
é a Câmara Municipal, ou, sem auscultar a respectiva população, através de um
plebiscito.
Não é possível, ouvindo-se apenas a população do distrito a desmem-
brar, minoria da população do município, não é possível, repito, que, com esse
limitado plebiscito, se vá truncar município, ferindo-o, muitas vezes, de morte.
Sei que, no regime da Constituição de 1891, nunca se entendeu que isso
era inconstitucional, não obstante fosse, já àquele tempo, garantida a autonomia
municipal.
Mas, senhores, nunca é tarde para se corrigir um erro, tanto mais quando
a Constituição atual proclama, ainda com maior ênfase, o home rule, o autogo-
verno municipal.
(Voto vencido na Rp 200/DF, rel. para o acórdão min. Afrânio Costa,
Pleno, 19-9-1955.)
Mais de uma vez, o ministro Nelson Hungria utilizou de exemplos didá-
ticos, além de palavras duras, para demonstrar o desacerto da orientação preva-
lecente, como na Rp 285, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, julgado em 22-1-1958:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, continuo a entender
que nada mais afeta o interesse peculiar de um Município que o seu território. É
a base da sua administração, é a condição de sua existência.
Como dizer-se, então, que não concerne ao peculiar interesse, ao inte-
resse vital do Município o desmembramento do seu território? Não pode haver a
menor dúvida que estamos, aqui, na órbita da autonomia municipal, assegurada
pela Constituição. É verdade que só recentemente se veio a postular em tal sen-
tido, mas, explica-se: com o ter a União, após a Constituição de 1946, de repartir
com os Municípios o quantum do imposto de renda, surgiu a febricitante ânsia
de novos Municípios, para parasitarem em torno das quotas de tal tributo.
Encetou-se a inglória tarefa de miúda subdivisão dos Municípios. Foram
estes submetidos ao “picadinho”. Municípios outrora prósperos estão hoje trans-
formados em “cacos”, em “farrapos” de Municípios, incapazes de progresso,
fadados à mais desoladora rotina. Conheço eu, no meu Estado natal, Municípios
que, partidos e repartidos, ficaram reduzidos à quase mendicância.
Os melhores distritos foram adquirindo autonomia e os antigos
Municípios, ficando com o pior, estão hoje como o velho leão da fábula.
(...)

122
Ministro Nelson Hungria

É inteiramente desarrazoado que, como no caso vertente, somente se


ouça o distrito interessado, num iníquo unilateralismo.
O Sr. Ministro Vilas Boas: O Município de Canápolis é um dos mais
prósperos de Minas Gerais, sendo grande produtor de arroz e possuindo terras
fertilíssimas.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Suponhamos...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: No caso, é o próprio Município que reco-
nhece e proclama que se trata de outro, em condições satisfatórias.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: ...que o resto do Município não seja
assim; mas, ao contrário, constituído de terras áridas e infrutíferas. Será justo
presumir que o Município concorde em ser desfalcado da sua melhor parte
para ficar reduzido à miséria? Todos os distritos se vinculam para o progresso
comum. Se o melhor “boi do arado” é destacado, o antigo Município será sacri-
ficado, não podendo mesmo, talvez, dentro de algum tempo, preencher as condi-
ções necessárias para sua própria existência político-administrativa.
(Voto vencido na Rp 285/MG, rel. min. Rocha Lagôa, Pleno, 22-1-1958.)
O ministro Nelson Hungria ficou vencido nesse posicionamento em
diversos outros casos, como, por exemplo, nos referentes às normas do Estado
do Mato Grosso (Rp 210/DF, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 4-10-1955), de Minas Gerais (Rp 212/MG, rel. min. Mario Guimarães,
Pleno, 15-4-1955 e Rp 232/MG, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 1º-6-
1956), de São Paulo (Rp 292/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 30-12-
1957), do Rio Grande do Sul (Rp 299/RS rel. min. Hahnemann Guimarães,
Pleno, 30-12-1957) e do Rio de Janeiro (Rp 254/RJ, rel. min. Ribeiro da Costa,
16-12-1955).
Posteriormente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu, ao
menos, a necessidade de consulta à população da área atingida pela criação de novo
Município, em face de previsão da Constituição paulista em vigor à época. Trata-se
da Rp 223/SP, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno, 16-8-1955, assim ementado:
Desmembramento de Município. O poder deferido ao Estado de se auto-
-organizar, alcançando-o através de sistema descentralizador no qual o instru-
mento fundamental, é o Município, não o investe de arbítrio absoluto, antes o
subordina, em obséquio à preservação da autonomia municipal, a observância
de requisitos essenciais cuja quebra torna nulo o ato de desmembramento ou
anexação do respectivo território.
Dentre esses requisitos, impõe-se a consulta plebiscitária, restrita à
população da área atingida pelo ato de criação do novo departamento municipal.
Omissão parcial dessa exigência.
(Rp 223/SP, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno, 16-8-1955.)
Nesse caso, o ministro Nelson Hungria não acompanhou integralmente o
relator para insistir na necessidade de a consulta alcançar toda a população do
Município, e não apenas aquela da área atingida. Daí por que também ficou ven-
cido o relator originário, min. Nelson Hungria, na Rp 226/SP, rel. para o acórdão

123
Memória Jurisprudencial

min. Afrânio Costa, 16-12-1955, que tratava de outro plebiscito em Município


no Estado de São Paulo.
O ministro Nelson Hungria apenas compunha o entendimento predomi-
nante do Plenário quando as normas estaduais previam a consulta do Município
originário, fosse por meio de sua câmara de vereadores, fosse por meio de ple-
biscito a toda a população municipal, como na Paraíba (Rp 221/PB, rel. min.
Nelson Hungria, Pleno, 24-8-1956).
Por outro lado, na Rp 398/SC, rel. min. Nelson Hungria, 20-7-1959, o
Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade, por unanimidade, da criação de
Município em desacordo com a lei orgânica desse ente federativo.
No pertinente à fusão de distritos, no entanto, prevaleceu o entendimento
do ministro Nelson Hungria, na Rp 423/RJ, rel. para o acórdão min. convo-
cado Sampaio Costa, 12-12-1960, em um dos julgamentos mais curiosos que o
Supremo Tribunal Federal já enfrentou.
Na ocasião, tratava-se de representação ajuizada pelo procurador-geral
da República por provocação do Município de Vassouras/RJ contra a Lei esta-
dual 3.785/1958, que desmembrara os distritos de Sacra Família do Tinguá e
Paulo de Frontim do mencionado Município de Vassouras/RJ para constituir o
novo Município Engenheiro Paulo de Frontim/RJ.
Ocorre que o plebiscito realizado nos dois distritos, previsto na respectiva
legislação estadual, obteve resultados distintos: enquanto no distrito de Paulo
de Frontim o plebiscito foi aprovado, houve resultado negativo no distrito de
Sacra Família do Tinguá. A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
considerou, porém, o resultado global da votação, em que o desmembramento
apresentou mais votos que a negativa, e editou a lei criando o novo Município.
Destaque-se que o distrito de Paulo de Frontim, isoladamente considerado, não aten-
deria os demais requisitos de população e base territorial exigidos para criação de
Município no Estado do Rio de Janeiro.
O relator originário — ministro convocado Henrique D´Ávila, que substituía
na ocasião o ministro Hahnemann Guimarães — apresentou voto rejeitando a repre-
sentação, considerando legítima a contagem global dos votos no plebiscito.
Na hipótese, prevaleceu a divergência suscitada pelo ministro Nelson Hungria
em breve, porém notável, voto-vista que demandava a consideração em separado da
votação de cada distrito, sob pena de o distrito mais denso arrastar eleitoralmente o
mais fraco, de opinião contrária.
A questão não foi, entretanto, resolvida facilmente. De fato, após o voto do
relator, proferido na sessão de 25 de junho de 1960, o ministro Nelson Hungria
apresentou seu voto-vista em 29 de julho de 1960, sendo acompanhado pelos minis-
tros Sampaio Costa, este substituindo o ministro Ribeiro da Costa, Candido Motta,
124
Ministro Nelson Hungria

Lafayette de Andrada e Afrânio Costa. Por outro lado, os ministros Gonçalves de


Oliveira e Vilas Boas acompanharam o relator.
Assim, o julgamento foi suspenso temporariamente com quatro votos pelo
acolhimento e três pela rejeição da representação por inconstitucionalidade, para
aguardar o quorum necessário.
Em 9 de dezembro de 1960, o Plenário se reuniu mais uma vez para tratar da
questão. Nessa data, o ministro Victor Nunes rejeitou a representação, enquanto o
ministro Ary Franco votou pela sua procedência, restando o julgamento obstado em
cinco votos a quatro pelo acolhimento do pleito.
A perplexidade, então, instalou-se no Plenário. A ausência do ministro Luiz
Gallotti, na oportunidade, era suprida pelo ministro convocado Sampaio Costa, mas
este já havia votado em substituição ao ministro Ribeiro da Costa. Logicamente,
o ministro convocado Sampaio Costa não poderia ter dois votos, substituindo dois
ministros no mesmo feito.
Apesar de presentes, na sessão de 9 de dezembro de 1960, três ministros
nomeados para o Supremo Tribunal Federal que não votaram na questão — a saber,
Hahnemann Guimarães, Ribeiro da Costa e o Presidente, Barros Barreto —, deli-
berava-se para aguardar a vinda de outro ministro convocado do extinto Tribunal
Federal de Recursos.
Por essa razão, o ministro presidente suscitou questão de ordem no sen-
tido de que um dos membros efetivos do Supremo Tribunal Federal desse o
décimo voto, no lugar do ministro Luiz Gallotti. Ressalte-se que o ministro pre-
sidente recusou-se a votar, pois ainda não havia empate configurado. Somente
o ministro Ribeiro da Costa admitiu a questão de ordem suscitada pelo minis-
tro presidente. Os demais entenderam que, tendo os ministros convocados
Henrique D’Ávila e Sampaio Costa já votado no feito, os ministros efetivos
outrora substituídos não poderiam votar.
Na realidade, a confusão toda era causada pela antiga regra regimen-
tal que permitia a convocação de ministros do Tribunal Federal de Recursos
para compor o quorum do Plenário e, em última instância, decidir os rumos do
Supremo Tribunal nas questões mais controvertidas, em geral as questões tam-
bém mais relevantes.
Na época, era constante a convocação de ministros do Tribunal Federal
de Recursos, os quais variavam de ano a ano, alterando a frágil estabilidade
das decisões na mais alta Corte do País. Não por outra razão, o ministro Nelson
Hungria admitia a impetração de habeas corpus idênticos para que os pacientes
pudessem aproveitar a fluidez da jurisprudência da Corte.
Considerando a grande quantidade de licenças necessárias no perí-
odo, sobretudo para que o ministro designado para a Presidência do TSE se
125
Memória Jurisprudencial

dedicasse quase integralmente àquela Corte, os ministros convocados tiveram


papel importantíssimo no Supremo Tribunal Federal.
Sem desprezar a grande competência dos ministros do Tribunal Federal
de Recursos, sobretudo aqueles que mais frequentemente eram convocados para
substituir os magistrados da Suprema Corte, parece temerária e inadequada a
substituição, ainda que eventual, das imensas responsabilidades de ministro do
Supremo Tribunal Federal.
Destaque-se que as mais importantes decisões do Tribunal, na década de
1950, tiveram a constante participação de ministros convocados, a exemplo do
célebre caso Café Filho, cujo relator designado para o acórdão foi, inclusive, um
dos ministros convocados.
Outra regra regimental que só autorizava o ministro presidente a votar
em caso de empate tampouco ajudou a solucionar a situação. A regra que foi
criada para não sobrecarregar o ministro presidente, responsável por gran-
des atribuições administrativas, pôde gerar perplexidades marcantes, como a
do caso em comento. O presidente sequer votou na questão de ordem que ele
mesmo suscitou!
É realmente impactante que tenha sido necessário convocar um quarto
ministro do Tribunal Federal de Recursos para decidir a importante questão
em comento, quando havia três ministros efetivos da Corte presentes que não
puderam manifestar-se.
Registre-se que o voto do presidente foi alterado no Regimento Interno
de 15 de outubro de 1980 (RISTF/1980), impondo-se seu voto em questões
regimentais e constitucionais. De outra sorte, essa restrição foi completamente
revogada pela Emenda Regimental 35/2009.
Em conclusão, na sessão de 12 de dezembro de 1960, o Plenário se reuniu
para ouvir o ministro convocado Cunha Mello, que votou pela total procedên-
cia da representação. O Plenário declarou, então, a inconstitucionalidade da lei
fluminense por seis votos a quatro, entendendo que a votação de cada distrito
deveria ser contada separadamente.
2.2.2.1.2 Nomeação de prefeitos
Outros precedentes examinaram a restrição à autonomia municipal
decorrente da exceção constitucional que permitia a nomeação de prefeitos
pelos governadores. A autonomia municipal era disciplinada da seguinte forma
na CF/1946:
Art. 28. A autonomia dos Municípios será assegurada:
I — pela eleição do Prefeito e dos Vereadores;

126
Ministro Nelson Hungria

II — pela administração própria, no que concerne ao seu peculiar inte-


resse e, especialmente,
a) à decretação e arrecadação dos tributos de sua competência e à aplica-
ção das suas rendas;
b) à organização dos serviços públicos locais.
§ 1º Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos
Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde hou-
ver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela
União.
§ 2º Serão nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios
os Prefeitos dos Municípios que a lei federal, mediante parecer do Conselho de
Segurança Nacional, declarar bases ou portos militares de excepcional impor-
tância para a defesa externa do País.

A exceção prevista no art. 28, § 2º, da CF/1946 foi regulamentada pela


Lei 121, de 22 de outubro de 1947, que assim dispôs, intervindo em várias capi-
tais do País:
Art. 1º São declarados bases ou portos militares de excepcional impor-
tância para a defesa externa do País, e para os fins determinados no § 2º do
art. 28, da Constituição Federal, os seguintes Municípios: Manaus, o Estado
do Amazonas; Belém, no Estado do Pará; Natal, no Estado do Rio Grande do
Norte; Recife, no Estado do Pernambuco; Salvador, no Estado da Bahia; Niterói
e Angra dos Reis, no Estado do Rio de Janeiro; S. Paulo, Santos e Guarulhos,
no Estado de São Paulo; Florianópolis e São Francisco, no Estado de Santa
Catarina; Porto Alegre, Rio Grande, Santa Maria, Gravataí e Canoas, no Estado
do Rio Grande do Sul; e Corumbá, no Estado de Mato Grosso.
Art. 2º A presente Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revo-
gadas as disposições em contrário.

Posteriormente, legislação federal passou a restabelecer, gradualmente,


cada um dos Municípios, permitindo a realização de eleições para prefeito,
como a Lei 1.720, de 3 de novembro de 1952, que retirou desse regime o
Município de São Paulo.
Nesse contexto, a Câmara de Vereadores do Município de São Paulo plei-
teou a substituição do então prefeito nomeado pelo governador do Estado de
São Paulo, em face da linha sucessória prevista na Lei Orgânica do Município
de São Paulo/SP.
Recusada a substituição pelo governador até a realização das eleições, a
Câmara Municipal representou ao procurador-geral da República, pleiteando
que o presidente da Câmara Municipal assumisse pro tempore a prefeitura.
Daí a Rp 179/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 15-12-1952,
que foi conhecida, mas julgada improcedente nos seguintes termos:

127
Memória Jurisprudencial

O Supremo Tribunal Federal deve declarar a inconstitucionalidade de ato


de qualquer dos poderes estaduais, que contraria princípio enunciado no art. 7º,
VII, da Constituição.
Não é contrário ao princípio da autonomia municipal o ato do gover-
nador do Estado de São Paulo, que mantém o prefeito por ele nomeado para o
Município de São Paulo, até que sejam providos nos cargos de prefeito e vice-
-prefeito os candidatos eleitos, em cumprimento da Lei 1.720, de 3 de novembro
de 1952.
(Rp 179/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 15-12-1952.)
Nesses termos, o ministro relator entendeu que, até a realização das elei-
ções a serem marcadas pelo respectivo Tribunal Regional Eleitoral, permanece-
ria no cargo o prefeito nomeado pelo regime anterior.
Na oportunidade, o delicado caso suscitou razoáveis dúvidas sobre como
proceder a transição para a normalidade no Município sem maiores transtornos.
O ministro Nelson Hungria acompanhou o eminente relator, com sábias admo-
estações à segurança jurídica, aduzindo:
Senhor Presidente, é assente, em direito público e administrativo, o crité-
rio da continuidade da administração pública, de modo que em casos de reforma
acarrete alteração nas condições de investidura dos respectivos titulares, estes
permanecem provisoriamente nos cargos, à proporção que forem tomando posse
os novos titulares. É um princípio pacífico, imposto pelo interesse geral.
(...)
A substituição atribuída ao presidente da Câmara Municipal é, antes de
tudo, referida a prefeito e vice-prefeito eleitos. Na hipótese de que ora se trata,
não existe prefeito ou vice-prefeito eleito. Não é admissível que se aplique um
sistema fora de sua órbita, fora dos motivos e condições que inspiraram e dita-
ram. É formulável uma hipótese perfeitamente plausível: se aqueles que elege-
ram o atual prefeito da Câmara Municipal de São Paulo soubessem, tivessem
consciência de que ele poderia vir a ser, eventualmente, o prefeito da capital
paulista, talvez não o tivessem elegido. Basta essa hipótese para mostrar que
não é aceitável o entendimento que a Câmara Municipal de São Paulo que dar ao
caso. Não pode deixar de redundar em incongruência a aplicação de um sistema
à margem das razões condicionantes de sua atuação.
Entre os argumentos válidos expendidos em torno do presente caso, há
um que me impressionou profundamente e me leva à conclusão da improcedên-
cia da representação: é o de que com o advento da Lei federal 1.720, as condições
atuais em que se acha a municipalidade de São Paulo é como se existissem ao
tempo da promulgação ou início da vigência da Constituição de 1946, devendo
o caso, portanto, ser regulado pelo art. 12 das Disposições Constitucionais
Transitórias que expressamente dispõe:
“Os Estados e os Municípios, enquanto não se promulgarem as
Constituições estaduais, e o Distrito Federal, até ser decretada a sua lei
orgânica, serão administrados de conformidade com a lei vigente na data
da promulgação deste Ato.”
Quero, porém, admitir, Senhor Presidente, que não se encontra para o
caso uma solução incensurável, quer em face da Constituição Federal, quer

128
Ministro Nelson Hungria

em face da lei estadual. Se, por um lado, o presidente da Câmara só é substi-


tuto do prefeito quando este é eleito, não haveria, por outro lado, um preceito
categórico, positivo, iniludível, no sentido da continuação do prefeito nomeado.
Estaríamos, assim, numa situação de perplexidade. E como resolver a questão?
Há um velho princípio de sabedoria que assim nos aconselha: in dubio,
abstine. Na dúvida, abstém-se.
Deixemos, portanto, a situação como está e aguardemos o advento do
fato que será a solução radical e inquestionável do caso, isto é, a futura posse ou
investidura do prefeito cuja eleição já está marcada.
(Rp 179/SP, rel. min. Hahnemann Guimarães, Pleno, 15-12-1952.)
Por outro lado, restaram vencidos no caso os ministros Ribeiro da Costa
e Orozimbo Nonato, que votaram pelo imediato afastamento do nomeado e
pela aplicação da preexistente linha sucessória prevista na Lei orgânica do
Município, em prestígio à autonomia municipal.
Esse entendimento minoritário acabou prevalecendo posteriormente,
contra o voto do ministro Nelson Hungria, como se percebe no caso do restabe-
lecimento da autonomia do Município de Natal/RN (Rp 406/RN, rel. min. Vilas
Boas, Pleno, 5-8-1959).
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria insistiu que, do regime de transi-
ção até a realização da eleição, não poderia vigorar a linha sucessória dos pre-
feitos eleitos em detrimento do atual prefeito indicado pelo governador. Isto é,
não poderia haver mistura do regime eletivo pleno com o regime de nomeação
de prefeitos pelo governador.
A divergência do ministro Nelson Hungria teve a companhia dos minis-
tros Candido Motta e Luiz Gallotti, nessa oportunidade.
2.2.2.1.3 Autonomia financeira
No julgamento do RE 26.855/MG, rel. min. Ribeiro da Costa, Primeira
Turma, 30-5-1955, fixou-se importante precedente no sentido de que nem as leis esta-
duais, nem a Constituição estadual poderiam limitar o poder municipal de tributar.
Naquele caso, tratava-se da instituição do imposto de indústria e pro-
fissões — competência atribuída aos Municípios pela CF/1946 —, fixado pelo
Município de Juiz de Fora/MG, com alíquota superior a 20% do tributo similar
anteriormente cobrado pelo Estado, com fundamento na CF/1937.
A Constituição do Estado de Minas Gerais vigente à época vedava o aumento
de tributos acima de 20% em relação ao ano anterior. Em razão dessa disposição, o
Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais declarou inválida a lei municipal que
regulamentara o mencionado imposto.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no entanto, deu provimento
ao recurso extraordinário do Município de Juiz de fora, para reconhecer que a

129
Memória Jurisprudencial

disposição da Constituição estadual só poderia atingir os tributos estaduais, mas não


os municipais. Ademais, ressaltou o relator que não se tratava de majoração, mas de
instauração originária do imposto no âmbito municipal.
Na oportunidade, o ministro Nelson Hungria afirmou:
Uma vez que a Constituição Federal assegura a plena autonomia municipal,
e expressamente no que concerne à decretação e arrecadação de impostos, segue-se
que o Estado não pode, de modo algum, quer na sua Constituição, quer em lei ordi-
nária, procurar cercear essa autonomia.
(RE 26.855/MG, rel. min. Ribeiro da Costa, Primeira Turma, 30-5-1955.)
É certo que essa posição radical não era compartilhada pela unanimidade
dos magistrados, com destaque para os ministros Luiz Gallotti e Orozimbo Nonato.
Mas ganhou bastante relevo em face da atual jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal, que consagra a autonomia financeira dos Municípios, mesmo em face da
Constituição estadual.
2.2.2.2 Simetria constitucional
A propósito do federalismo, já nessa época o Supremo Tribunal Federal
teve a oportunidade de declarar a inconstitucionalidade de normas constitucionais
estaduais, em razão do princípio da simetria.
Foi o caso da Rp 201/RS, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 22-4-1955, que
restou assim ementada, no pertinente:
Representação do Estado do Rio Grande do Sul.
Arguições de incompatibilidade de vários artigos da Carta Magna
daquele Estado com a Constituição Federal de 1946.
Não pode o deputado, em face dos arts. 36, § 1º, e 50 da Constituição
Brasileira, exercer, cumulativamente, o seu mandato e as funções de profes-
sor. Não pode, também, por força do que dispõe o art. 48, letra b, da mesma
Constituição, pleitear, durante o mandato, mediante concurso ou não, cadeira de
ensino ainda que secundário ou superior.
Às Constituições Estaduais é defeso ampliar as exceções de que cogita o
art. 51 da Constituição de 1946. Aprovar planos de obras e serviços é atribuição
do Poder Executivo. Disposição das Constituições Estaduais que transfira tais
atribuições ao Legislativo fere o princípio da separação dos Poderes.
Não merece qualquer reproche o dispositivo que confira às Assembleias
Legislativas Estaduais poderes para aprovar o orçamento das autarquias. Estas
entidades de Direito Público têm o seu âmbito de ação dilatado ou restringido
conforme o diploma legal que lhes houver dado vida.
Fere a órbita de ação do Judiciário e a autonomia municipal o artigo de lei
que confere à Assembleia poderes para dirimir conflitos que se suscitarem entre
municípios, na aplicação das respectivas leis.
É constitucional a exigência de transmissão do cargo para que possa
o governador ausentar-se do Estado, ainda que somente por 15 dias. Embora,
pelo art. 87, XVIII, da Constituição Federal, possa o presidente da República

130
Ministro Nelson Hungria

remeter, anualmente, a sua mensagem ao Congresso, sem o comparecimento


pessoal, nada obsta a que as Constituições Estaduais incluam, no ritual de ins-
talação das Assembleias, o comparecimento dos governadores. Será o restabe-
lecimento de uma usança que foi tradicional entre nós e é praticada, ainda hoje,
em alguns países.
É inconstitucional o art. 134 da Constituição rio-grandense-do-sul na
parte em que confere ao Conselho Superior do Ministério Público competên-
cia para “resolver” sobre remoções tomada aquela palavra não como sinônima
de “indicar”, mas como compreensiva dos poderes de autorizar, determinar ou
denegar.
Incompatibilidade de funções de vereador com o exercício de cargos
públicos.
Constitucionalidade do art. 241 da referida Carta.
(Rp 201/RS, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 22-4-1955.)
Nesse sentido, a orientação do Plenário, acompanhada integralmente
pelo ministro Nelson Hungria, balizava diversas disposições da Constituição
estadual, inclusive quanto à incompatibilidade do exercício do cargo de depu-
tado estadual e de vereadores com outras funções públicas, em decorrência da
disciplina constitucional prevista para os representantes de Poderes da União
(art. 36, § 1º, da CF/1946).
Além disso, no julgamento do RHC 31.799/PE, rel. min. Barros Barreto,
Pleno, 14-11-1951, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional o art. 15 da
Constituição do Estado de Pernambuco, que previa imunidades parlamentares a
suplentes de deputados da Assembleia Legislativa. O acórdão foi assim ementado:
Imunidades parlamentares. Inconstitucionalidade do art. 15 da Carta do
Estado de Pernambuco, no ponto em que concede imunidades aos suplentes de
deputados à assembleia legislativa. Prerrogativa assegurada aos legisladores, no
exercício das suas funções. Habeas corpus denegado. Nega-se provimento ao
recurso.
(RHC 31.799/PE, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 14-11-1951.)
Anteriormente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal já havia julgado
inconstitucional a extensão da imunidade aos vereadores, com o voto con-
corrente do ministro Nelson Hungria, nos autos do RHC 31.647/MT, rel. min.
Orozimbo Nonato, 9-7-1951, vencido apenas o ministro Edgard Costa.
No caso da Constituição do Estado de Pernambuco, ficou clara a neces-
sidade de simetria com as balizas da Constituição Federal. O curto, porém pre-
ciso, voto do ministro Nelson Hungria aduziu:
Senhor Presidente, com a devida vênia do eminente Sr. ministro Abner
de Vasconcelos, entendo que é inquestionável que a Constituição do Estado de
Pernambuco rompeu o sistema instituído pela Carta Política de 1946 no tocante
a imunidades parlamentares. Ampliando tais imunidades aos suplentes de depu-
tados estaduais, quando dela não gozam nem mesmo os suplentes de deputados

131
Memória Jurisprudencial

federais, como bem acentuou o eminente Sr. ministro relator, o dispositivo


da Constituição pernambucana não é apenas inconstitucional, senão também
desarrazoado, pois, na sua ratio, a imunidade é concedida estritamente em obsé-
quio à função, não se compreendendo sua outorga a quem não está exercendo a
função parlamentar.
(RHC 31.799/PE, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 14-11-1951.)
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal assentou, com voto
concorrente do ministro Nelson Hungria, a constitucionalidade da criação de
Tribunal de Contas Estadual e da extensão da prerrogativa da vitaliciedade aos
seus membros, em simetria ao art. 187 da CF/1946, que dispunha:
Art. 187. São vitalícios somente os magistrados, os Ministros do Tribunal
de Contas, titulares de Ofício de Justiça e os professores catedráticos.

No caso em apreço, julgado no RE 21.198/AM, rel. min. Luiz Gallotti,


Pleno, 29-5-1953, o Plenário reconheceu a constitucionalidade dos dispositi-
vos amazonenses que concediam a vitaliciedade aos membros do Tribunal de
Contas do Estado do Amazonas.
Em seu voto, o ministro Nelson Hungria expressou a grande importância
desse dispositivo constitucional, que limitava não só a União, mas os Estados e
os Municípios, ao conceder prerrogativa tão importante quanto a vitaliciedade.
O acórdão restou assim ementado:
Tribunal de Contas do Amazonas.
Criando-o, usou o Poder Legislativo do Estado de faculdade que lhe con-
fere a Constituição Estadual, competente para dispor a respeito, nos termos do
art. 22 da Carta Federal.
Além disso, criando o referido Tribunal e dando vitaliciedade aos seus
membros, a lei estadual não se afastou do modelo federal, pois na União existe
Tribunal de Contas e com membros vitalícios. Não estava a lei estadual obrigada
a exigir aprovação da Assembleia Legislativa para a escolha dos membros do
Tribunal de Contas.
Os Estados, em suas Constituições, não são obrigados a copiar a
Constituição Federal, senão a respeitá-la nos seus princípios fundamentais.
Acresce que a Constituição Federal não deu ao Congresso Nacional (cor-
respondente à Assembleia Legislativa) a atribuição de aprovar a escolha dos
ministros do Tribunal de Contas, deu essa atribuição ao Senado, que os Estado
não são obrigados a ter. Rejeita-se a arguição de inconstitucionalidade da lei
amazonense.
(RE 21.198/AM, rel. min. Luiz Gallotti, Pleno, 29-5-1953.)
Nesse sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal já restringia
a tendência das constituições estaduais de extensão de prerrogativas além das
regras estipuladas aos congressistas pela Constituição Federal. Impunha-se o
dever de as constituições estaduais seguirem o sistema da Constituição Federal.

132
Ministro Nelson Hungria

2.2.2.3 Aplicação do Código Penal Militar aos militares estaduais


É importante ressaltar que o ministro Nelson Hungria diferenciava com
muito zelo o regime jurídico e, principalmente, as penalidades impostas aos
servidores, evitando a aplicação de normas federais aos servidores estaduais.
Nesse sentido, ele não admitia a aplicação do Código Penal Militar — lei
federal destinada aos integrantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica —
aos policiais militares estaduais.
A questão foi discutida em conflitos de jurisdição, entre os quais se destaca
o CJ 2.046/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 6-7-1953. Na oportunidade, o
Plenário do Supremo Tribunal Federal deliberou que cabia ao Tribunal de Justiça
estadual, e não ao Tribunal de Justiça militar estadual, o julgamento de crimes
praticados por policiais militares quando em atividade nas ruas.
Na ocasião, esclareceu o ministro Nelson Hungria:
Conhece o Tribunal o meu ponto de vista a respeito da Justiça Militar
estadual: não pode ela aplicar o Código Penal Militar, destinado exclusivamente
aos militares federais.
Não existe lei federal alguma mandando ampliar a aplicação desse
Código aos militares estaduais, e seria inconstitucional a lei estadual que dispu-
sesse sobre tal ampliação.
Assim sendo, é bem de ver que a Justiça Militar estadual não pode estar
a invocar, para dizer dos crimes de sua competência, os incisos do art. 6º do
citado Código. E tanto é inaplicável na espécie o Código Penal Militar, que a
Constituição, no seu art. 124, XII, dispõe que, na falta de tribunal especial de segunda
instância da Justiça Militar estadual, será segunda instância deste o Tribunal de
Justiça estadual. Este não tem competência para aplicar o Código Penal Militar. O
Código Penal aplicável é o comum, e somente podem ser atribuídos à Justiça Militar
estadual, pela lei de sua organização, os crimes praticados pelos militares da Força
Pública estadual na sua específica e exclusiva função militar.
(CJ 2.046/SP, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 6-7-1953.)
Ressalte-se que esse entendimento era minoritário, apesar da unanimi-
dade da conclusão do julgamento citado. A maioria dos ministros entendia
aplicável o art. 6º do Código Penal Militar, cuja interpretação determinava a
competência comum para apreciar o feito.
De outra sorte, no julgamento do CJ 1.908/MT, rel. para o acórdão
min. Luiz Gallotti, 4-7-1951, o ministro Nelson Hungria, relator originário, já
havia ficado vencido no ponto, junto com os ministros Rocha Lagôa, Mario
Guimarães e Afrânio Costa, este convocado.
Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal decidiu que cabia à Justiça
Militar da União processar e julgar o conflito entre militares estaduais e reser-
vistas e soldados do Exército, que estavam fora de serviço. O ministro Nelson

133
Memória Jurisprudencial

Hungria foi enfático ao acentuar a ausência de hierarquia entre uns e outros,


utilizando de seus didáticos exemplos:
(...) vê-se que não é possível incluir-se no quadro das “Forças Armadas”
federais as polícias militares estaduais e do Distrito Federal. Não obstante serem
estas constitucionalmente consideradas “como forças auxiliares, reservas do
Exército” (art. 183 da Carta Magna), “não há situação de hierarquia entre os
militares do Exército e os militares dessas forças auxiliares” (...). Suponha-se
que, na via pública, um tenente da Polícia Militar do Distrito Federal esbofeteie
um major do Exército, ou que o capitão dessa Polícia empregue vias de fato con-
tra um tenente do Exército. Configurar-se-á, acaso, respectivamente, o crime
militar de violência de inferior contra superior ou de superior contra inferior?
Ninguém teria coragem de afirmá-lo.
(CJ 1.908/MT, rel. para o acórdão min. Luiz Gallotti, 4-7-1951.)
2.2.2.4 Excepcionalidade da intervenção federal
A intervenção federal, prevista em todas as constituições do período repu-
blicano no Brasil, é instituto fundamental para o funcionamento do federalismo.
Apesar de indispensável, até para assegurar a federação, o instituto é inerente-
mente excepcional, pois a regra é a autonomia dos Estados.
O ministro Nelson Hungria foi relator do pioneiro precedente que assenta
a excepcionalidade da decretação da intervenção federal, ainda que por emba-
raço à execução de determinação judicial, em razão dos limites do financeira-
mente possível.
No julgamento da IF 20/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 3-5-1954, o
Supremo Tribunal Federal decidiu que não bastava a demora no pagamento para
ensejar a intervenção, sendo indispensável a intenção ou o propósito de impedir
o cumprimento da ordem judicial.
Tratava-se de pedido de intervenção no Estado de Minas Gerais, que
alegou falta de numerário para o pagamento de condenação imposta pelo Poder
Judiciário, inexistindo deliberado propósito de obstar a ordem.
O aresto restou assim ementado:
Pedido de intervenção federal; seu indeferimento. Art. 7º, V, da
Constituição. Para justificar a intervenção, não basta a demora de pagamento,
na execução de ordem ou decisão judiciária, por falta de numerário: é necessário
o intencional ou arbitrário embaraço ou impedimento oposto a essa execução.
(IF 20/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 3-5-1954.)
Na oportunidade, o voto condutor assentou que a falta de numerário justifica
a demora no adimplemento da ordem judicial. A intervenção em Estado membro da
Federação é tarefa excepcional que só encontra autorização constitucional quando o

134
Ministro Nelson Hungria

descumprimento de decisão judicial decorra de “desarrazoado obstáculo (...) oposto


pelo Governo estadual”. Afirmou o ministro Nelson Hungria:
Não padece dúvida que a intervenção autorizada pelo art. 7º, V, da
Constituição Federal tem como pressuposto a injustificada oposição, por parte
do governo estadual, de embaraço ou impedimento à execução de ordem ou
decisão judiciária.
Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário
que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à
ordem ou decisão judicial.
(...)
Ora, no caso vertente, o retardamento da execução não promana de
obstáculo criado pelo governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do
erário do Estado.
Plenamente justificada é a mora de pagamento.
Onde não há, até rei perde.
(Voto na IF 20/MG, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 3-5-1954.)
Essa mesma orientação balizou diversos julgamentos atuais como a IF
470/SP, rel. para o acórdão min. Gilmar Mendes, Pleno, 26-2-2003, DJ de 20-6-
2003; IF 2.117-AgR/DF, rel. min. Ellen Gracie, Pleno, 9-8-2006, DJ de 29-9-
2006; IF 2.915/SP, rel. para o acórdão min. Gilmar Mendes, Pleno, 3-2-2003, DJ
de 28-11-2003, entre inúmeros outros.
2.2.2.5 Possibilidade de isenções heterônomas
Relativamente ao federalismo, é importante destacar a admissão de isen-
ções heterônomas que foi apreciada pela Primeira Turma do Supremo Tribunal
Federal no julgamento do RE 18.998/SP, rel. para o acórdão min. Nelson
Hungria, julgado em 8-5-1952.
Na ocasião, o voto divergente apresentado pelo ministro Nelson Hungria
considerou recepcionada pela CF/1946 legislação federal que tornava isentas as
cooperativas, inclusive de tributos estaduais e municipais.
O relator originário, ministro Mario Guimarães, entendeu que a mencio-
nada legislação só vigorou perante a centralizadora CF/1937, mas não sob a demo-
crática CF/1946, que privilegiou a autonomia municipal.
A posição do ministro Nelson Hungria, no entanto, ressaltou que a com-
petência da União Federal para legislar sobre produção e consumo incluía a
disciplina das cooperativas. E afirmou:
Nem se compreenderia que, tratando-se de assunto ou interesse que se
projeta no plano nacional, fosse retirada a prevalente intervenção legislativa da
União. Acima do interesse da autonomia fiscal dos Municípios há de estar o
interesse da proteção a institutos de interesse nacional. A prevalecer o entendi-
mento contrário, os Municípios, com a sua política fiscal, poderiam embaraçar

135
Memória Jurisprudencial

ou anular, na espécie, o poder regulador da União. O direito de tributar, como


dizia Marshall, envolve o de destruir.
(Voto no RE 18.998/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 8-5-1952.)
Acompanharam o ministro Nelson Hungria os ministros Luiz Gallotti,
Ribeiro da Costa e Barros Barreto, restando o acórdão assim ementado:
As cooperativas de que cogita o Decreto-Lei 22.239 continuam sobre
a proteção da União e do direito federal, que lhes concedeu isenção fiscal. De
outro modo, isto é, permitindo-se aos Estados ou Municípios o direito de tri-
butá-las, estaria frustrada, em parte, a política econômica reservada, no tocante
à produção e ao consumo, à União Federal.
(RE 18.998/SP, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 8-5-1952.)
Destarte, ao menos quanto às cooperativas, o Supremo Tribunal Federal
admitiu a possibilidade de isenções heterônomas, isto é, concedida por um ente da
Federação relativamente a tributo constitucionalmente abrangido por outro ente.
2.2.3 Controle de constitucionalidade
Nesse período, o controle de constitucionalidade avançou significativa-
mente, lançando bases principalmente no que tange ao controle concentrado de
constitucionalidade.
Certamente, decisões procedimentais tomadas nesse período repercutem
na práxis do Supremo Tribunal Federal até hoje e merecem ser abordadas.
2.2.3.1 Prescrição e decadência da representação pela inconstitucionalidade
Um destes casos paradigmáticos foi o afastamento completo da pres-
crição e da decadência para o ajuizamento da representação para arguição da
inconstitucionalidade de leis e atos normativos, como decidido na Rp 243/BA,
rel. min. Edgard Costa, Pleno, 16-12-1955.
Nesse caso, a representação pela inconstitucionalidade ainda era regula-
mentada pela Lei 2.271/1954, que impunha a aplicação “do rito do processo do
mandado de segurança, de cuja decisão caberá embargos caso não haja unani-
midade” (art. 4º da Lei 2.271/1954).
Nesse sentido, o então relator, ministro Edgard Costa, propôs o não
conhecimento da representação ante a decorrência do prazo de 120 dias.
O ministro Nelson Hungria, por outro lado, abriu a divergência no sen-
tido de a representação sobre matéria constitucional não estar sujeita à prescri-
ção ou à decadência, no que foi acompanhado pelos demais ministros, tendo o
ministro Mario Guimarães aduzido:

136
Ministro Nelson Hungria

Na representação é o interesse da coletividade que se supõe periclitar. A


pecha de inconstitucionalidade perdura para sempre. Pode acontecer até que não
haja oportunidade de ser debatida, em ação, perante os pretórios. Daí a impossi-
bilidade de cerceá-la ao prazo curto do mandado de segurança.
(Voto do min. Mario Guimarães na Rp 243/BA, rel. min. Edgard Costa,
Pleno, 16-12-1955.)
Não é exagerado especular que essas primeiras decisões procedimentais
tenham dado os contornos à tradição do Supremo Tribunal Federal, permitindo
que a Corte declarasse a inconstitucionalidade, ou não recepção, mais de duas
décadas depois de editado o ato normativo, como na ADPF 130, rel. min. Ayres
Britto, Pleno, 30-4-2009, DJe de 6-11-2009; e na ADPF 151-MC, rel. para o
acórdão min. Gilmar Mendes, Pleno, 2-2-2011, Informativo/STF 614. Nesse
último caso, o ministro Gilmar Mendes chegou a fundamentar que sequer o
periculum in mora poderia ser afastado pelo longo decurso de prazo da data da
edição do ato normativo até o ajuizamento da arguição, inexistindo “usucapião
de inconstitucionalidade”.
2.2.3.2 Necessidade do full bench
Além disso, merece atenção o RE 15.343/MG, rel. min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, 18-9-1952, a respeito do quorum para a decisão de declaração
de inconstitucionalidade. Na época, dispunha o art. 200 da CF/1946:
Art. 200. Só pelo voto da maioria absoluta dos seus membros poderão
os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público.

No caso, o Plenário do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais


apreciou a constitucionalidade de norma federal anterior à CF/1946, a saber, o
Decreto-Lei 6.953, de 12 de outubro de 1944, com apenas 13 dos 21 desembar-
gadores que compunham a Corte.
Destaque-se que o baixo quorum no Tribunal de Justiça do Estado de
Minas Gerais ocorreu por conta de 5 desembargadores que se deram por impe-
didos; 2 que estavam licenciados para tratamento de saúde; e 1 que estava em
férias.
No mencionado julgamento, 7 dos 13 desembargadores votaram pela
inconstitucionalidade total do Decreto-Lei 6.953/1944 e 8 reconheceram, pelo
menos, a inconstitucionalidade parcial do mencionado ato normativo. Como a
maioria absoluta do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, à época,
demandava 11 votos (cf. Rp 164/SC, rel. min. Mario Guimarães, Pleno, 16-6-
1952), o Plenário daquele Pretório estadual não aguardou o retorno dos desem-
bargadores ausentes nem determinou a convocação para complementação do
quorum. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais declarou, portanto,

137
Memória Jurisprudencial

a constitucionalidade do Decreto-Lei 6.953/1944, apesar de apenas 5 de 21


desembargadores terem assim votado.
Contra essa decisão, foram interpostos os RE 15.343/MG, 16.706/MG e
19.645/MG, relatados pelo ministro Nelson Hungria e julgados conjuntamente
pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal na sessão de 18-9-1952.
Na ocasião, o ministro Nelson Hungria destacou a interpretação conce-
dida pela Corte ao art. 200 da CF/1946, que demandava “uma presença tal, que
não exclua a possibilidade de que os votos no sentido da inconstitucionalidade
atinjam a maioria absoluta, se no mesmo sentido viessem a votar os juízes ausen-
tes” (voto no RE 15.343, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 18-9-1952).
Em que pese à possibilidade de os tribunais nacionais não necessitarem
do full bench para apreciar a inconstitucionalidade de normas, isto é, de esta-
rem presentes todos os componentes do Plenário, o voto do ministro Nelson
Hungria entendeu indispensáveis os votos necessários para tornar a questão
definitiva. Em outras palavras, os votos ausentes não poderiam gerar mudança
do resultado.
Daí a orientação do relator no sentido de dar provimento ao apelo
extremo, para que o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais “renove
o julgamento sobre a arguida matéria constitucional, convocados juízes para
substituição não só dos desembargadores impedidos, como, se ainda for o caso,
dos licenciados”.
Essa conclusão foi acompanhada, na oportunidade, pelo ministro Ribeiro
da Costa.
Por outro lado, o ministro Mario Guimarães abriu divergência, acompa-
nhada pelo ministro Barros Barreto, por considerar que, se estava satisfeito o
quorum para apreciação da controvérsia, a ausência de votos pela maioria abso-
luta importava a constitucionalidade da norma em comento. Adicionalmente,
suscitou que a matéria fosse encaminhada diretamente ao Pleno do Supremo
Tribunal Federal, para que, desde logo, fosse apreciada a constitucionalidade do
Decreto-Lei 6.953/1944.
Tendo em vista o impedimento do ministro Luiz Gallotti, a Turma foi
complementada pelo ministro convocado Afrânio Costa, que acompanhou a
orientação do ministro Nelson Hungria.
Nesse mesmo sentido, foram decididos o RE 16.413/PA, rel. min. Edgard
Costa, Segunda Turma, 15-5-1951, e o RE 16.545/MG, rel. min. Luiz Gallotti,
Primeira Turma, 28-4-1952. A fixação dessa orientação foi bastante importante
para demonstrar a necessidade de juízo definitivo dos tribunais na apreciação
da constitucionalidade.

138
Ministro Nelson Hungria

Com o advento da ação declaratória de constitucionalidade, que possui efeito


vinculante, ficou isento de dúvida que a maioria absoluta é necessária para assentar
tanto a constitucionalidade quanto a inconstitucionalidade de normas.
Ressalte-se que não houve divergência quanto à necessidade de reserva de
Plenário para decidir a constitucionalidade de norma pré-constitucional, ou, mais
precisamente, para decidir se a norma em comento fora recebida pela Carta Magna.
A questão aplica-se também quanto a outros tipos de maiorias, como
aquela necessária à modulação de efeitos da declaração de inconstitucionali-
dade, prevista no art. 27 da Lei 9.868, de 10-11-1999. Suponha-se que, com 10
ministros presentes à sessão, 7 votem pela restrição dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade e apenas 3 deneguem essa restrição. A práxis do Supremo
Tribunal Federal, para casos como esse, fixou-se em aguardar o retorno do
ministro ausente, que pode consistir no oitavo e decisivo voto para a modulação
de efeitos.
Frise-se que já nessa época o Supremo Tribunal Federal entendia dis-
pensável nova remessa ao plenário dos tribunais quando a constitucionalidade
da norma em questão já houvesse sido decidida anteriormente por aquele
órgão, consoante firmado no RE 18.606/SP, rel. para o acórdão min. convocado
Afrânio Costa, Pleno, 15-8-1954.
2.2.3.3 Mandado de segurança contra lei em tese
Também nesse período, o Supremo Tribunal Federal manteve firme a
antiga orientação de descabimento do mandado de segurança contra a inconsti-
tucionalidade de leis e atos normativos.
Em que pese às estreitíssimas hipóteses vigentes à época de representa-
ção pela inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal foi bastante rígido
no conhecimento de mandados de segurança, como destacado no MS 2.089/DF,
rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-8-1953.
Na espécie, tratava-se de mandado de segurança impetrado contra o
Decreto 31.181, de 25 de julho de 1952, que obrigava proprietários de mais de
um carro de táxi de lotação a organizarem-se sob a forma de pessoa jurídica e,
além disso, possuírem frota de no mínimo vinte carros e remunerar os motoris-
tas na base de salário. O impetrante alegava ilegalidade e inconstitucionalidade
da obrigação imposta aos pequenos proprietários de táxi de lotação.
O relator, ministro Orozimbo Nonato, levantou o óbice de que o writ não
caberia contra norma geral e abstrata, como o Decreto 31.181/1952.
Desde logo, o ministro Nelson Hungria abriu divergência para destacar
que o Decreto 31.181/1952 possuía restrições concretas ao impetrante, com atual

139
Memória Jurisprudencial

lesão ao seu direito, uma vez que a pequena frota do impetrante estava impedida
de funcionar nas ruas, sob risco de apreensão.
O ministro Nelson Hungria procurou, assim, amenizar a vedação ao
conhecimento do mandado de segurança, sustentando a existência à restrição
ou à lesão de direitos.
Acompanhado pelos ministros Luiz Gallotti e Ribeiro da Costa, o minis-
tro Nelson Hungria acabou vencido no acórdão que restou assim ementado:
Mandado de segurança contra aplicação provável ou iminente do decreto,
Descabimento do writ.
(MS 2.089/DF, rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 12-8-1953.)
De outra sorte, o ministro Nelson Hungria acompanhou a maioria para negar
o cabimento do mandado de segurança impetrado contra o decreto que estabeleceu o
salário mínimo, sob o fundamento de que a lei geral, nesse segundo caso, não com-
punha restrição ou lesão de direito direta aos impetrantes (MS 2.655/DF, rel. para o
acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 5-7-1954).
2.2.4 Direito intertemporal
A sucessão de leis no tempo sempre tem suscitado questões importantes
e demandado proteção especial nas Constituições brasileiras.
As garantias da irretroatividade, do direito adquirido, do ato jurídico
perfeito e da coisa julgada são tuteladas pelas constituições democráticas como
elementos indispensáveis à estabilidade das relações e à segurança jurídica.
Na década de 1950, interessantes questões de direito intertemporal foram
debatidas pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente em razão da dife-
rença de proteção que existia com as Constituições outorgadas de 1934 e 1937
e com a CF/1946.
No julgamento da AR 154/DF, rel. para o acórdão min. Hahnemann
Guimarães, Pleno, 13-4-1953, o Supremo Tribunal Federal manteve acórdãos
anteriores à CF/1946 que chancelaram a aplicação retroativa do Decreto-Lei
1.907, de 28 de dezembro de 1939. Esse decreto excluiu da sucessão primos e
sobrinhos do de cujus, alterando as regras inclusive para as sucessões abertas na
data da edição do ato normativo.
Na oportunidade, o Plenário da Corte reconheceu a constitucionalidade
do art. 6º do Decreto-Lei 1.907/1939, que tratou da retroatividade quanto ao
parâmetro da CF/1937, com importantes considerações do ministro Nelson
Hungria sobre o contexto constitucional do tempo em que o mencionado
decreto-lei foi editado:

140
Ministro Nelson Hungria

Senhor Presidente, uma lei não pode ser analisada abstraindo-se o


regime jurídico-político em que ela foi promulgada. Se formos apreciar uma lei
editada pelo que se denominou “Estado Novo” à luz dos princípios tradicionais,
que o estatuto fundamental desse regime afastou, estaríamos fazendo o mesmo
que analisar e criticar dissonâncias, os contrastes da moderna música cacofô-
nica à luz dos princípios da música clássica, o que me parece não ser admissível,
porque incidiríamos num anacronismo.
A Constituição de 1937 não consagrou o princípio da irretroatividade das
leis. Tanto assim é que a Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, expres-
samente declarava que a lei pode ser retroativa, uma vez que expressamente o
declarasse.
Se a Constituição de 1937 houvesse consagrado o princípio da irretroati-
vidade, não seria possível semelhante dispositivo. Tal Constituição não somente
deixou de incluir entre os direitos fundamentais do indivíduo a irretroativadade
da lei, como ainda erigiu o presidente da República em constituinte perma-
nente. Se um dos artigos da mesma Constituição permitiu que o presidente da
República governasse em continuado estado de emergência, com suspensão das
garantias constitucionais, como se poderá criticar a lei de que se trata, por ter
violado o princípio da irretroatividade das lei, ainda que tal princípio tivesse
sido por ele consagrado?
(AR 154/DF, rel. para o acórdão min. Hahnemann Guimarães, Pleno,
13-4-1953.)
No caso, restaram vencidos os ministros Ribeiro da Costa, relator originário,
e Orozimbo Nonato. No mesmo sentido, foi decidida a AR 215/DF, rel. min. Edgard
Costa, Pleno, 17-7-1951, com voto concorrente do ministro Nelson Hungria e venci-
dos os ministros Orozimbo Nonato e Abner de Vasconcelos, este convocado.
Por outro lado, o Plenário do Supremo Tribunal Federal também exami-
nou a constitucionalidade da aplicação imediata da lei posterior que restringiu o
direito à aposentadoria nos autos do MS 3.126/DF, rel. min. convocado Sampaio
Costa, Pleno, 27-5-1955.
No mencionado caso, oficiais da aeronáutica pretendiam afastar a aplicação
do Estatuto dos Militares de 1946 (Decreto-Lei 9.698, de 2 de setembro de 1946) em
proveito da contagem do tempo de serviço previsto na Lei 5.168, de 13 de janeiro de
1927, que criou a Arma de Aviação do Exército, origem da Aeronáutica. Segundo
as informações oferecidas pelo então ministro da Aeronáutica, esse normativo
de 1927, complementado por disposições infralegais, estabelecia vantagens
próprias aos riscos da inauguração de operações militares com aviões, como
a contagem de dez dias de trabalho, para efeitos de reforma, para cada hora de
voo noturno.
À unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal consagrou o
entendimento de que é aplicável a lei vigente ao tempo da aposentadoria, e não
do ingresso no serviço, em acórdão assim ementado:

141
Memória Jurisprudencial

Mandado de segurança. Aposentadoria. Reforma. Inatividade. Suas con-


dições e vantagens regem-se pela lei do tempo em que é concedida, ou, com
mais liberalidade, em que é requerida. Direito do militar à passagem para a
reserva remunerada, a pedido. Inteligência dos arts. 51, b, e 97 do Decreto-Lei
9.698, de 1946. As leis políticas, de direito público, inclusive administrativas,
aplicam-se imediatamente abrangendo as situações em curso.
(MS 3.126/DF, rel. min. Convocado Sampaio Costa, Pleno, julgado em
27-5-1955.)
O voto convergente do ministro Nelson Hungria bem salientou o entendi-
mento da ausência de direito adquirido a regime jurídico, prevalecente até hoje
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Não tenho dúvida em admitir, como admito, que a lei de 1927, sobre con-
tagem do tempo, aplica-se não apenas à reforma, senão também à transferência
para a reserva.
Ocorre, entretanto, que com o advento do atual Estatuto Militar, que é de
1946, os impetrantes ainda não contavam, mesmo computado o seu tempo de
serviço na forma da lei de 1927, o tempo a que a legislação anterior subordinava
a transferência para a reserva, ou seja, vinte e cinco anos de serviço. Tinham
eles, respectivamente, seis, sete e oito anos de serviços computados dia a dia, os
quais somados ao tempo contado segundo a lei de 1927, até o limite de dez anos,
perfaziam os totais de dezesseis, dezessete e dezoito anos.
É princípio, hoje pacífico, e reiteradamente adotado por esta Suprema Corte,
que nenhum funcionário público, seja militar ou civil, pode arrogar-se direito a todo
desdobramento de sua carreira dentro da perspectiva que se apresenta no momento
de sua investidura, e isto tanto no que diz com as condições de promoção e vencimen-
tos quanto em relação às condições de aposentadoria, de reforma ou de transferência
para a reserva. Estas últimas condições, segundo expresso dispositivo legal, são regu-
ladas pela lei vigente ao tempo dos referidos atos. Antes do advento da Constituição
de 1946, os impetrantes não tinham mais que uma expectativa de direito. O direito só
se diz adquirido quando atendidas todas as condições a que a lei anterior subordinava
a sua existência.
Ora, os impetrantes, em 1946, não tinham as condições com que se
contentava a lei anterior, e, assim, ficaram sujeitos às novas condições, entre as
quais a de que os 25 anos de serviço têm de ser contados dia a dia, desde a inves-
tidura até o momento da transferência para a reserva.
(Voto no MS 3.126/DF, rel. min. convocado Sampaio Costa, Pleno, jul-
gado em 27-5-1955.)
Logo, já naquela época, diferenciava-se a situação de direito adquirido
ao regime jurídico, entendendo-se que, antes da implementação das condições
necessárias à aposentadoria, só existia mera expectativa de direito.

2.3 Outros ramos do direito

Além do direito penal e do direito constitucional, convém mencionar manifes-


tações do ministro Nelson Hungria a propósito de outros ramos do direito.
142
Ministro Nelson Hungria

Nada obstante o caráter universalista e, até mesmo, enciclopédico do


ministro Nelson Hungria, que proferiu votos brilhantes nas mais diversas áreas,
neste título pretende-se destacar apenas algumas de suas contribuições à juris-
prudência do Supremo Tribunal Federal.
Assim, serão salientados os votos do ministro Nelson Hungria nos
demais ramos dogmáticos do direito, tais como o direito civil, processo civil,
direito internacional, administrativo e tributário.
Destaque-se que, como várias das leis e ordenamentos apreciados na
década de 1950 já foram revogados, limitar-se-á este estudo aos votos que reve-
lam as bases e tradições que sustentam o atual desenvolvimento da jurisdição
da Suprema Corte.
2.3.1 Direito administrativo
No que se refere ao direito administrativo, o ministro Nelson Hungria
deixou importantes lições quanto à responsabilidade civil do Estado, aos prin-
cípios aplicados aos servidores públicos, entre outros temas relevantes para a
construção da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
2.3.1.1 Responsabilidade civil do Estado e guerra civil
A propósito da responsabilidade civil do Estado, tema recorrente até hoje,
o ministro Nelson Hungria teve a oportunidade de examinar se havia responsa-
bilidade objetiva no caso de comoções internas ou de guerra civil no julgamento
dos embargos em apelação cível (ACi 7.496-embargos/SP, rel. min. Edgard
Costa, Pleno, 13-7-1953).
Na ocasião, o Pleno do Supremo Tribunal Federal apreciou o recurso de
embargos oposto contra acórdão da Primeira Turma da Suprema Corte que, por
maioria, entendera que “os poderes públicos não respondem, civilmente, por
danos e prejuízos causados a particulares decorrentes das medidas tomadas
pelos governos e seus agentes, para dominar tumultos, motins ou insurreições
armadas, a assegurar a ordem constituída”. Note-se que, à época da decisão na
ACi 7.496/SP, o ministro Nelson Hungria ainda não compunha o Tribunal.
Discutia-se, então, se a União deveria indenizar, ou não, determinado
estabelecimento comercial por conta da ação das forças militares na repressão
do movimento revolucionário de 1924 na capital do Estado de São Paulo.
O relator, ministro Edgard Costa, manteve o acórdão embargado, rejei-
tando a responsabilidade objetiva do Estado. Essa posição foi acolhida pelo
Pleno com dissenso apenas do ministro Orozimbo Nonato. O aresto ficou assim
ementado:

143
Memória Jurisprudencial

A responsabilidade do Estado oriunda de atos praticados na repressão


ou combate a insurreições e rebeliões; enquadrando-se ela no conceito da culpa
de direito privado — teoria civilista — e não na fundada no direito público, ou
objetiva — aqueles atos considerados como praticados em legítima defesa, não
envolvendo dolo ou culpa, devem ser reputados como resultantes de força maior,
e, portanto, não indenizáveis os danos e prejuízos consequentes.
(ACi 7.496-embargos/SP, rel. min. Edgard Costa, Pleno, 13-7-1953.)
O ministro Nelson Hungria, por sua vez, enfatizou a condição de legítima
defesa do Estado, em ocasião de guerra ou comoção interna, para acompanhar
o relator. Em outras palavras, a ação de repulsa a inimigos ou rebeldes pelo
Estado caracterizava, no entendimento do ministro Nelson Hungria, o exercício
regular de um direito, a atuação em legítima defesa, tornando-o irresponsável
pelos danos causados.
Ainda que a possibilidade de afastamento da responsabilidade objetiva
do Estado esteja hoje expressamente consignada na CF/1988, o aresto citado
constitui importante precedente da aplicação da legítima defesa ao Estado.
2.3.1.2 Concurso público e magistratura
Também a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal deliberou sobre
a possibilidade de vitaliciedade de magistrados que não ingressaram na carreira
por concurso.
No julgamento do RE 22.542/RJ, rel. para o acórdão min. Nelson
Hungria, Primeira Turma, 31-8-1953, cuidava-se do pedido de reconhecimento
ao ingresso na classe de juiz de direito de pretor nomeado que contava com mais
de dez anos no exercício do cargo.
O recorrente sustentava que o art. 95, § 3º, da CF/1946 estendia a vitali-
ciedade e garantia a promoção a juiz de primeira entrância aos juízes com atri-
buições limitadas, ao dispor:
Art. 95. Salvo as restrições expressas nesta Constituição, os Juízes goza-
rão das garantias seguintes:
(...)
§ 3º A vitaliciedade não se estenderá obrigatoriamente aos Juízes com
atribuições limitadas ao preparo dos processos e à substituição de Juízes julga-
dores, salvo após, dez anos de contínuo exercício no cargo.

O relator originário, ministro Ribeiro da Costa, acolheu o argumento de


violação ao dispositivo constitucional e deu provimento ao recurso extraordi-
nário, para considerar que o pretor tinha direito a ser considerado membro da
magistratura com o decurso de dez anos de exercício no cargo, adquirindo a
vitaliciedade.

144
Ministro Nelson Hungria

Por outro lado, o ministro Nelson Hungria abriu a divergência por con-
siderar que a vitaliciedade conferida pelo art. 95, § 3º, da CF/1946 restringia-se
ao cargo de pretor, distinto do cargo de juiz de direito, a que só se tinha acesso
mediante concurso público. Na oportunidade, ele aduziu:
Entendo que a condicionada vitaliciedade que aí [art. 95, § 3º, CF/1946] se
assegura aos juízes temporários, com função limitada de meros preparadores de
processo ou de substitutos ocasionais de juízes de direito, se refere exclusivamente
a esse mesmo cargo de juiz com função limitada. De modo algum, é assegurado
a esses juízes, ainda quando declarados vitalícios, pelo decurso de dez anos de
contínuo exercício, o direito de acesso, independentemente de concurso, à magis-
tratura vitalícia, com plenitude de funções.
Esta é que é a conciliação entre os arts. 93, § 3º, e 124, da Magna Carta,
e não a que, data venia do eminente Sr. ministro relator, é defendida por Afonso
Arinos, com apoio de Sua Excelência, pois chega a criar um caso de ingresso na
magistratura de carreira ou, com plenitude de funções, ao arrepio da Constituição.
Esta não permite o ingresso nessa magistratura senão mediante o concurso de
provas.
(Voto no RE 22.542/RJ, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, 31-8-1953.)
Esse voto acabou acompanhado pelos ministros Mario Guimarães, Luiz
Gallotti e Barros Barreto, restando vencido apenas o relator originário, ministro
Ribeiro da Costa.
O mesmo ficou decidido nos autos do RE 29.127/DF, rel. para o acórdão
min. convocado Sampaio Costa, Primeira Turma, 7-11-1956, no qual se consi-
derou estável auditor substituto da Justiça Militar. Na oportunidade, o ministro
Nelson Hungria assentou que essa estabilidade não implicava migração para a
carreira da magistratura:
Eu [o recorrente] o considero Juiz, mas não Juiz de carreira, porque para
tanto seria necessário que tivesse prestado concurso, senão aquele juiz preparador
de que fala a Constituição, de funções limitadas, semelhantes aos juízes muni-
cipais ou substitutos temporários, e a respeito dos quais este Supremo Tribunal
Federal tem jurisprudência pacífica, no sentido de que, não obstante a temporarie-
dade de sua nomeação, de quatriênio em quatriênio, uma vez que perfaça o tempo
de dez anos de exercício, passa a ser estável.
Fico no art. 124, XI, da Constituição Federal, para considerar o recorrente
como Juiz, Juiz de uma categoria especial, Juiz que não é de carreira, Juiz que não
tem acesso a postos superiores, mas Juiz.
(Voto no RE 29.127/DF, rel. para o acórdão min. convocado Sampaio
Costa, Primeira Turma, 7-11-1956.)
Ademais, essa orientação pode ser considerada precursora da forte tradi-
ção do Supremo Tribunal Federal de não admitir a transposição de cargos sem o
devido concurso público, sempre valorizado pela jurisprudência da Corte.

145
Memória Jurisprudencial

2.3.1.3 Estabilidade de servidor público


O ministro Nelson Hungria também legou importantes manifestações a
respeito do direito à estabilidade dos servidores públicos.
A propósito, um dos casos mais controvertidos do período foi o mandado
de segurança impetrado pelo Sr. Edgard Pinto Estrela contra sua demissão pelo
presidente da República de cargo que, outrora efetivo, foi transformado em
comissão. O processo foi autuado como MS 1.277/DF, rel. para o acórdão min.
convocado Abner de Vasconcelos, Pleno, 12-12-1951.
No caso, o impetrante havia sido nomeado inspetor de tráfego da polícia
do Distrito Federal, cargo efetivo, em 12-5-1933. Após múltiplas modificações
em que se procurava reorganizar a administração pública e tornar os cargos
de direção e chefia cargos para provimento em comissão, o cargo passou a ser
comissionado, e o impetrante terminou exonerado em 1950.
Relator originário, o ministro Luiz Gallotti votou pelo indeferimento da
ordem, entendendo que não haveria direito líquido e certo do impetrante de
continuar no cargo. Em síntese, Luiz Gallotti entendeu que cabia ao impetrante
impugnar, dentro do prazo prescricional e decadencial, a transformação do
cargo efetivo em comissão, mas não sua posterior exoneração.
O ministro Nelson Hungria, por sua vez, aderiu à divergência instaurada
pelo ministro convocado Afrânio Costa, para conceder a segurança. Apesar de
entender que a administração poderia transformar os cargos e até mesmo retirar
o servidor do cargo de chefia, ressalvados seus direitos patrimoniais, o ministro
Nelson Hungria reconheceu, em forte voto-vista, que a específica legislação da
transformação garantiu a manutenção do servidor no cargo, verbis:
(...) a administração pública pode reestruturar os seus quadros, transfor-
mando cargos de provimento efetivo em cargos de provimento em comissão, e
afastar deles os antigos titulares, desde que asseguradas as vantagens patrimo-
niais; mas, no caso vertente, a lei expressamente assegurou a permanência do
antigo titular no cargo transformado em comissão. Não deixou ao arbítrio do
Executivo o afastamento do funcionário: garantiu a este, contra tal arbítrio, o
direito de continuar no cargo.
Data venia do Sr. ministro relator, concedo a segurança.
(Voto no MS 1.277/DF, rel. para o acórdão min. convocado Abner de
Vasconcelos, Pleno, 12-12-1951.)
Essa interpretação foi também acompanhada pelos ministros Lafayette
de Andrada e Barros Barreto.
Ao cabo, o voto médio do ministro convocado Abner de Vasconcelos pre-
valeceu, acompanhado pelo ministro Mario Guimarães, no sentido de conceder
em parte a segurança para assegurar ao impetrante os efeitos das vantagens

146
Ministro Nelson Hungria

do cargo, sem direito à reintegração ao cargo e às funções. Os ministros Luiz


Gallotti, relator originário, Rocha Lagôa e Edgard Costa restaram inteiramente
vencidos, no aresto que foi assim ementado:
Ao funcionário, que tem estabilidade e não perde esta qualidade, se
o cargo passa a ser exercido em comissão ficam asseguradas as vantagens
respectivas.
(MS 1.277/DF, rel. para o acórdão min. convocado Abner de Vasconcelos,
Pleno, 12-12-1951.)
A questão, no entanto, não se encerrou, uma vez que foram opostos
embargos da decisão não unânime, tanto pelo impetrante, quanto pela União
Federal.
No novo julgamento, finalizado em 13-8-1952, houve acalorado debate
no Plenário, no qual o ministro Nelson Hungria não se absteve de reiterar seu
posicionamento:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, era meu intuito limi-
tar-me, no tocante ao mérito dos embargos, a invocar meu voto anterior. Mas
fui chamado, nominalmente à arena, pelo eminente Sr. ministro Luiz Gallotti
que, para maior pressão do desafio, chegou mesmo a atirar-me em rosto a sua
luva, dizendo que a pretensão do impetrante, não obstante o apoio que recebeu
de vários ministros desta Suprema Corte, entre os quais me encontro, é um
absurdo, o que vale dizer, obliquamente, que nós outros estamos contrabande-
ando um absurdo como direito líquido e certo.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Eu disse isso, acentuando que o fazia com o
respeito de sempre. Aquilo que a mim se me afigura um absurdo pode ser a ver-
dade para Vossa Excelência.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas foi um pouco forte a expressão, de
que Vossa Excelência se serviu, ao que parece, porque adotou como premissa o
critério de que a lógica deixou de ser a coerência do raciocínio.
Assim, Senhor Presidente, convocado à liça sou obrigado a expender algu-
mas considerações em torno do meu voto anterior, que sustento, que mantenho,
linha a linha, ponto a ponto, sem tirar nem pôr uma vírgula.
(...)
É a própria informação oficial — para isso eu chamo a atenção do
Tribunal — que o reconhece: “Este dispositivo legal (o do art. 4º do Decreto
9.654) aplica-se, evidentemente, ao cargo em comissão de que estava investido
o Dr. Edgard Pinto Estrela”.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Devo acentuar que, na informação do
Governo, aí existe uma vírgula, e prossegue o período: Vossa Excelência não pode
cortar em meio ao período constante da informação oficial, de modo a alterar-lhe
profundamente o sentido.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Admitida essa premissa, não há argu-
mento, por mais, especioso, que possa afastar a conclusão no sentido do direito
líquido e certo do impetrante. Se o Governo reconhece que o impetrante se bene-
ficiou do art. 4º do Decreto 9.654, não há possibilidade para outra ilação que não

147
Memória Jurisprudencial

esta: o direito do impetrante ao exercício efetivo do cargo de diretor do trânsito, de


que era, então, ocupante, foi ressalvado.
Não importa que se alinhem argumentos de requintada sutileza para iludir
o silogismo, de que a maior é a garantia do atual ocupante do cargo e a menor é
que esse ocupante era o impetrante. As premissas impõem inexoravelmente como
conclusão a certeza e liquidez do direito do impetrante.
O eminente relator do acórdão embargado, o Sr. ministro Luiz Gallotti,
de cuja inteligência, de cujo poder de raciocínio, de cuja lógica e dialética sou
admirador cotidiano, pois realmente Sua Excelência dispõe de uma tal claridade
de percepção e entendimento que já a comparei à do sol mediterrâneo, traindo
ascendência originária da grande e iluminada Itália, precisa de vir ter consigo, até
a minha obscuridade, para demorar sua atenção sobre o tópico da confissão do
Governo, de que o art. 4º do Decreto-Lei 9.654 se aplica, evidentemente — este
advérbio de modo é o empregado pela informação oficial —, ao Sr. Edgard Pinto
Estrela, o impetrante, ora embargante.
(Voto no MS 1.277-embargos/DF, rel. min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 13-8-1952, destaques no original.)
Por fim, a posição defendida com tanta ênfase pelo ministro Nelson
Hungria foi vencedora, sendo os embargos do impetrante recebidos para a con-
cessão integral da segurança, contra os votos dos ministros Mario Guimarães,
Rocha Lagôa, Luiz Gallotti e Hahnemann Guimarães.
A maioria foi composta pelos ministros Nelson Hungria, Lafayette de
Andrada, Barros Barreto, Ribeiro da Costa e pelo ministro convocado Afrânio
Costa, que redigiu o acórdão, com a seguinte ementa:
Funcionário público, efetivado na função: desde que tal decorra dos ter-
mos da lei, todas as vantagens consequentes devem ser asseguradas.
(Voto no MS 1.277-embargos/DF, rel. min. convocado Afrânio Costa,
Pleno, 13-8-1952, destaques no original.)
Além disso, no julgamento do RE 16.596/MG, rel. min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, 7-4-1952, assentou-se que o servidor estável em disponibilidade
tem direito à respectiva remuneração, apontando o ministro Nelson Hungria
que “somente a extremada unilateralidade da recorrente [Prefeitura Municipal
de Ubá] pode explicar a interposição do presente recurso extraordinário”.
Outro precedente bastante relevante a propósito da disponibilidade do
servidor estável foi o MS 2.248/DF, rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 7-7-1954,
impetrado por Antônio Houaiss e outros diplomatas contra ato do presidente da
República que os colocara em disponibilidade inativa e sem remuneração em
razão do envolvimento dos impetrantes com o extinto Partido Comunista.
Na época, o ministro das Relações Exteriores, Vicente Rao, havia deter-
minado a abertura de inquérito administrativo para apurar a ligação de diplo-
matas com atividades subversivas, entre eles o poeta João Cabral de Melo Neto
e os impetrantes.
148
Ministro Nelson Hungria

À unanimidade, o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu o


direito líquido e certo dos impetrantes a receberem seus proventos. A Corte
concluiu que ocorrera cerceamento de defesa no inquérito administrativo e que
a disponibilidade de servidor público estável não pode ser imposta como pena
administrativa.
Na oportunidade, o ministro Nelson Hungria acompanhou o voto do emi-
nente relator e focou no direito líquido e certo dos impetrantes de declarar nulo
o ato que impunha a pena de disponibilidade sem remuneração. O aresto restou
assim ementado:
Disponibilidade inativa sem remuneração. Processo administrativo em
que não se guardam as formalidades legais.
Defesa cerceada. Anulação do processo e da disponibilidade sem remu-
neração dos impetrantes do mandado de segurança.
(RMS 2.248/DF, rel. min. Orozimbo Nonato, Pleno, 7-7-1954.)
A obrigatoriedade do aproveitamento de funcionário em disponibilidade
no caso de restabelecimento do cargo extinto foi tratada também pelo ministro
Nelson Hungria nos autos do RE 21.219/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Primeira
Turma, 10-11-1952, que restou assim ementado:
Funcionário em disponibilidade, por extinção do cargo.
Direito a aproveitamento, se restabelecido o cargo, em face do art. 189,
parágrafo único, da Constituição Federal, ainda que o restabelecimento se tenha
dado com melhoria do padrão de vencimentos.
Entender de outro modo seria tornar ilusória a garantia constitucional da
estabilidade, permitindo que o legislador ordinário e o Executivo a anulassem,
mediante a extinção e posterior restabelecimento do cargo a que tem direito o
funcionário estável, usado o intervalo para o aproveitamento em outro cargo (na
espécie, nem esse aproveitamento verdadeiramente existiu).
Diferença entre o caso presente e os relativos a Edgard Estrela e Amerino
Wanick.
Mandado de segurança bem concedido.
(RE 21.219/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Primeira Turma, 10-11-1952, grifo
no original.)
No caso, o relator, ministro Luiz Gallotti, entendeu que haveria fraude
à estabilidade do servidor público caso se negasse direito de ocupar cargo
recriado ao servidor em disponibilidade em razão da extinção do seu cargo.
O ministro Nelson Hungria, no entanto, divergiu desse fundamento, pon-
tuando em debate com o relator:
O Sr. Ministro Nelson Hungria: (...) Estou em desacordo com a tese
do acórdão no ponto em que diz que o funcionário em disponibilidade pode
escolher o cargo, equivalente ao que ocupava e em que deseja ser aproveitado.

149
Memória Jurisprudencial

Entendo que o Governo não é obrigado a nomear o funcionário em disponibili-


dade para o equivalente cargo vago, que ele escolha.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não foi essa a tese do acórdão. O acórdão
diz que o cargo a que o recorrido tem direito é aquele que foi extinto e depois
restabelecido.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Esse cargo não mais existe, uma vez que
foi extinto legalmente. Mesmo restabelecido, é cargo que surgiu ex novo nos
quadros do funcionalismo do Estado. (...) Nem se pode, de resto, usar o termo
“restabelecido”, que traz consigo a ideia de um retorno ao statu quo ante. Na
realidade, foi criado de novo, sem qualquer ligação com o passado. Não vejo
como se possa, por isso mesmo, reconhecer o pretendido direito do recorrido.
Dir-se-á que, dessa forma, o preceito constitucional poderá ser burlado. É exato;
mas a Constituição que fosse mais previdente e mais explícita em seus precei-
tos. Nem mesmo implicitamente é proibido, em face dela, o que ocorreu no caso
vertente. Ora, é preceito escrito no frontal da democracia que é permitido o que
não é proibido.
(RE 21.219/SP, rel. min. Luiz Gallotti, Primeira Turma, 10-11-1952.)
Ressalte-se, no entanto, que o ministro Nelson Hungria acompanhou o
eminente relator em razão das disposições da lei estadual em questão, que obri-
gava a lotação dos funcionários do órgão extinto no novo departamento.
Nesses termos, o ministro Nelson Hungria rejeitava a existência de obri-
gação constitucional para recolocar o servidor público em cargo semelhante ao
ocupado antes da extinção. Para ele, a administração é que tinha a escolha de
indicar outro cargo vago, semelhante ao extinto, e não o servidor.
Nesse caso, a Turma, por unanimidade, não conheceu do recurso, por
não verificar ofensa à norma constitucional na decisão do tribunal de origem de
garantir o direito do servidor em disponibilidade à nova lotação, nada obstante
a ressalva do voto do ministro Nelson Hungria.
2.3.1.4 Anistia e retorno ao cargo público
O ministro Nelson Hungria ainda restou como relator para o acórdão em
importante precedente que reconheceu a anistia como instituto eminentemente
do direito penal.
No julgamento do RE 27.209/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria,
Primeira Turma, 20-6-1955, prevaleceu a orientação de que a anistia não impor-
tava, necessariamente, o retorno do servidor público anistiado às suas funções.
O ministro Nelson Hungria assim redigiu a ementa:
Anistia; seus efeitos. A reversão do anistiado a cargo público, seja ela
determinada na própria lei concessiva da anistia, ou em lei posterior, não é efeito
necessário de anistia.
(RE 27.209/DF, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Primeira
Turma, 20-6-1955.)
150
Ministro Nelson Hungria

No caso, o breve voto condutor do ministro Nelson Hungria foi claro ao


fixar que a lei que concedia a reversão ao cargo público tinha efeito constitu-
tivo, e não meramente declaratório, uma vez que o retorno não é intrínseco da
anistia.
2.3.2 Direito tributário
Relativamente ao direito tributário, revelam-se também importantes
precedentes, a exemplo da interpretação das isenções previstas em acordos
internacionais.
2.3.2.1 Isenções concedidas em tratados internacionais
É recorrente na doutrina tributária a máxima de que as isenções devem
ser sempre interpretadas restritivamente42.
No entanto, outra é a tradição do Supremo Tribunal Federal em se tra-
tando de isenções concedidas por meio de tratados internacionais.
Nesse sentido, é importante destacar o julgamento da ACi 9.598/RS, rel.
para o acórdão min. Ribeiro da Costa, Primeira Turma, 24-9-1953, em que a
Primeira Turma da Corte apreciou isenção prevista em tratado entre Brasil e
Uruguai para concluir que esta prevalece inclusive quanto aos tributos e taxas
criados posteriormente. O acórdão ficou assim ementado:
Isenção fiscal inerente a tratado de comércio e navegação firmado entre o
Brasil e a República do Uruguai — Cláusula de isenção ampla, irrestrita.
Interpretação. Sentença confirmada.
(ACi 9.598/RS, rel. para o acórdão min. Ribeiro da Costa, Primeira
Turma, 24-9-1953.)
O relator originário, ministro Barros Barreto, admitia apenas a interpre-
tação restritiva das isenções, de sorte que o mencionado tratado internacional
deveria abranger apenas os impostos aduaneiros sobre as importações, não exo-
nerando taxas por serviços prestados ou tributos adicionais.
De outra sorte, prevaleceu a corrente divergente inaugurada pelo minis-
tro Ribeiro da Costa e acompanhada pelos ministros Nelson Hungria e Mario
Guimarães, de interpretação extensiva da isenção prevista em tratado interna-
cional sobre toda a operação de importação.
O ministro Nelson Hungria acentuou a impropriedade de isentar os tribu-
tos principais e manter os tributos adicionais ou acessórios.

42
Cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 946.

151
Memória Jurisprudencial

Por outro lado, essa interpretação dos tratados internacionais não acarre-
tou a extensão aos sócios das isenções concedidas à renda de pessoas jurídicas,
como decidido na ACi 9.597/DF, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
31-7-1952, assim ementado:
A isenção fiscal concedida a uma sociedade não abrange o imposto de
renda progressivo devido pelos sócios em relação aos lucros nela auferidos.
(ACi 9.597/DF, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 31-7-1952.)
Nesse caso, tratava-se da cobrança de imposto de renda sobre os valores
repassados aos sócios por companhia que construía estrada de ferro entre Brasil
e Bolívia. A mencionada empreitada foi isenta de tributos pelos dois países.
Na oportunidade, o imposto de renda era devido de forma proporcional
pelas sociedades e firmas e de forma progressiva pelos lucros auferidos pelos
sócios, descontado o imposto recolhido pela pessoa jurídica.
O ministro Nelson Hungria, com a adesão de toda a Primeira Turma
do Supremo Tribunal Federal, acolheu a apelação da União por concluir que o
imposto de renda dos sócios não é acessório ao imposto de renda das pessoas
jurídicas, inclusive no tocante à distribuição de lucros.
Dessa forma, a isenção concedida à sociedade não abrange o imposto de
renda incidente sobre a remuneração do sócio.
2.3.2.2 Nomenclatura e natureza jurídica de tributos
No julgamento do RE 18.606/SP, rel. para o acórdão min. convocado
Afrânio Costa, Pleno, 15-8-1954, o ministro Nelson Hungria, relator originário,
afetou ao Plenário do Supremo Tribunal Federal a questão sobre a constitu-
cionalidade da taxa de registro e fiscalização instituída pelo Município de São
Paulo.
Apesar de denominada de taxa, o tributo em questão não estava asso-
ciado a qualquer serviço prestado ou colocado à disposição dos contribuintes.
No entanto, o ministro Nelson Hungria ponderou que o Ato Municipal
998, de 9 de janeiro de 1936, apenas mudara a nomenclatura dos adicionais que
anteriormente vigoravam no Município de São Paulo, sem mudar sua natureza
de tributo acessório. Daí o ministro invocar o brocardo nihil interest de nomine,
cum de corpore constat, para aduzir que o nome é desimportante em detrimento
da substância, da natureza jurídica do tributo.
O ministro convocado Afrânio Costa pediu vista e abriu a divergência,
assentando:

152
Ministro Nelson Hungria

Não me parece questão de somenos a da nomenclatura dos tributos, a


propriedade técnica da sua designação específica corresponde a uma necessi-
dade imperiosa de evitar abusos na procura das fontes de receita.
(Voto do min. convocado Afrânio Costa no RE 18.606/SP, rel. para o
acórdão min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 15-8-1954.)
Contra essa manifestação, o ministro Nelson Hungria retrucou:
Senhor Presidente, conforme procurei bem acentuar, em meu voto favo-
rável à constitucionalidade do tributo em questão, que chamei de sobreimposto,
não há diferença alguma entre o que era antigamente considerado adicional e
o que passou a ser, impropriamente, denominado taxa. Deu-se novo rótulo ao
acréscimo de cinco por cento, mas, afora isso, nada mudou. Não houve, em subs-
tância, modificação alguma, de modo que não se pode recusar sua previsão na
lei orçamentária, embora com o nome antigo.
Não vejo motivo para que se decrete a sua inconstitucionalidade, sob o
fundamento de que se trata de novo tributo. Temos de julgar pela substância e
não pela epígrafe. O que se apresenta realmente como simples “adicional” não
pode ser considerado “taxa”, apesar de assim denominado inadequadamente
por lei posterior.
Daí a razão por que entendo inexistir a inconstitucionalidade arguida.
(Explicação no RE 18.606/SP, rel. para o acórdão min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 15-8-1954, grifos no original.)
Tendo o ministro convocado Abner de Vasconcelos acompanhado o relator
originário, houve novo pedido de vista, desta vez pelo ministro Mario Guimarães.
Na sessão de 15 de agosto de 1954, o julgamento foi retomado com o
voto do ministro Mario Guimarães pela inconstitucionalidade do mencionado
tributo, tanto por considerá-lo como taxa desvinculada de prestação de serviço,
como pela ausência de lei formal para instituí-lo com natureza de adicional de
imposto, nos termos da CF/1946.
Os demais ministros acompanharam a divergência para declarar a incons-
titucionalidade da denominada Taxa de Registro e Fiscalização do Município de
São Paulo.
Destaque-se, no entanto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal passou a admitir o prevalecimento da substância sobre o nomen juris.
Além disso, a superveniente inconstitucionalidade formal, apontada no voto do
ministro Mario Guimarães, uma vez que o ato de 1936 foi considerado incons-
titucional com referência à CF/1946, tampouco encontra respaldo na atual juris-
prudência do Tribunal.

153
Memória Jurisprudencial

2.3.2.3 Bitributação e taxas


A vedação da bitributação também foi objeto de apreciação pela Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal quando o ministro Nelson Hungria fazia
parte da composição.
Cuida-se do RE 19.027/MG, rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma,
20-12-1951, que versava sobre a possibilidade de cumulatividade de duas taxas,
uma estadual e outra federal, sobre a produção de açúcar e álcool.
O relator, ministro Barros Barreto, entendeu constitucional a cobrança
da taxa estadual, descaracterizando a existência de bitributação no caso. Em
memorável e didático voto, o ministro Nelson Hungria acompanhou o relator,
esclarecendo a situação:
É bem conhecida a diferença conceitual entre imposto e taxa. Taxa é a
contribuição que se cobra em correspondência ou em compensação de serviços
públicos prestados direta ou especialmente a um grupo de cidadãos mais ou
menos extenso; ao passo que o imposto é destinado a prover as necessidades de
caráter geral. Dado o caráter de contraprestação da taxa é que a Constituição
não reconhece incompatibilidade entre imposto e taxa ou entre taxa e taxa,
excluindo em tais casos a censura do non bis in idem. Se a União presta serviços
tendentes a favorecer ou a tutelar especialmente uma determinada indústria, e
passa a cobrar por isso uma taxa, não fica o Estado inibido de, na órbita de sua
competência, decretar um imposto de caráter geral que atinja essa indústria.
Do mesmo modo, se o Estado, embora a União já cobre imposto sobre determi-
nada atividade, presta serviços especiais em benefício desta, não está inibido de
cobrar uma taxa correspondente. Por quê? Porque a taxa é o preço de um serviço
público prestado e que deve ser pago por aqueles que dele mais diretamente se
beneficiam.
(Voto no RE 19.027/MG, rel. min. Barros Barreto, Primeira Turma,
20-12-1951.)
Por outro lado, se a taxa instituída não estiver associada a serviço especí-
fico e divisível, configura-se em verdadeiro imposto, razão pela qual a bitribu-
tação implica sua inconstitucionalidade.
Assim foi decidido no RE 41.169/MG, rel. min. Ribeiro da Costa, Pleno,
11-11-1960, em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionali-
dade da taxa de recuperação econômica do Estado de Minas Gerais, na parte em
que incidia sobre os contratos de locação de filmes cinematográficos, da mesma
forma que o imposto federal do selo.
Apesar de reconhecida por apertada minoria a constitucionalidade da
referida taxa mineira, em julgamento anterior de que não participou o minis-
tro Nelson Hungria (RE 27.960/MG, rel. para o acórdão min. convocado
Henrique D’Ávila, Pleno, 26-6-1957), o Supremo Tribunal Federal declarou a

154
Ministro Nelson Hungria

inconstitucionalidade da incidência da mencionada taxa em contratos tributa-


dos pelo imposto do selo.
O voto do ministro Nelson Hungria, acompanhando o ministro Ribeiro
da Costa, relator, destacou a manifesta inconstitucionalidade da taxa no ponto
em que tinha fato gerador idêntico ao do imposto federal.
Contra o voto do ministro Nelson Hungria também foi reconhecida a
bitributação do imposto sobre transação econômica, instituído pelo antigo
Distrito Federal, e o imposto de selo federal, no RE 42.539/DF, rel. min. Barros
Barreto, Pleno, 6-11-1959. Na ocasião, destacou o ministro Nelson Hungria:
Senhor Presidente, reputo constitucional o imposto de transação. Não
vejo a arguida bitributação. O imposto de selo incide sobre o documento como
meio probante, ou portador de “coação jurídica”, enquanto o imposto de transa-
ção incide sobre negócio substancial, representativo de circulação de riquezas.
Cotejados os dois impostos, verifica-se que diverso é o fato gerador.
(Voto no RE 42.539/DF, rel. min. Barros Barreto, Pleno, 6-11-1959.)
2.3.2.4 Constitucionalidade do imposto de vendas incidente na exportação
É da relatoria do ministro Nelson Hungria o acórdão proferido no RE
27.507/DF, de 30 de julho de 1957, em que o Plenário do Supremo Tribunal
Federal reconheceu a constitucionalidade do imposto de vendas para compra-
dores localizados no exterior.
O mencionado imposto, instituído pela prefeitura do Distrito Federal,
incidia sobre a venda de café na praça do Rio de Janeiro. Em geral, o imposto
afetava o intermediário localizado no Distrito Federal, que realizava a venda do
café produzido em outros Estados para o exterior e aproveitava a infraestrutura
portuária da antiga capital.
O ministro Nelson Hungria apresentou voto diferenciando o fato gerador
do mencionado imposto daquele presente no imposto de exportação, acentu-
ando que o imposto sobre venda incidia em cada operação de compra e venda,
sem qualquer vedação de cumulatividade.
Por sua vez, o ministro Rocha Lagôa levantou divergência pugnando
pela inconstitucionalidade do imposto municipal. O voto discrepante susten-
tou que o mencionado imposto só incidia nas operações em que o comprador
localizava-se no exterior, transvestindo-se em verdadeiro imposto de exporta-
ção indevidamente cobrado. Isso porque o imposto de exportação caberia tão
somente à unidade política que produzisse o bem exportado.
O ministro relator, em contrapartida, ressaltou que o imposto de vendas
incidia também nas operações tendentes ao mercado interno, razão pela qual
não haveria distinção, fosse com relação à procedência, fosse com relação ao

155
Memória Jurisprudencial

destino dos produtos. Destaque-se que a vedação da diferença pela origem


ou pelo destino, semelhantemente à CF/1988, era prevista no art. 19, § 5º, da
CF/1946.
Logo, contra o voto do ministro Rocha Lagôa, o aresto julgado no
Plenário restou assim ementado:
A Lei 687 de 29-12-1951, do Distrito Federal, não mascara, no tocante ao
imposto sobre as vendas de café para o estrangeiro, um imposto de exportação.
O imposto de vendas e consignações incide tantas vezes quantos os atos suces-
sivos de venda ou consignação. Constitucionalidade da referida lei.
(RE 27.507/DF, rel. min. Nelson Hungria, Pleno, 30-7-1957).
Note-se que essa decisão foi confirmada novamente no Plenário no julga-
mento do RE 27.507-embargos/GB, rel. min. Lafayette de Andrada, Pleno, 30-7-1957.
2.3.2.5 Imunidade recíproca
O alcance da imunidade recíproca sempre tem retornado à pauta do
Supremo Tribunal Federal, em razão da crescente atividade estatal e do choque
de interesses entre União, Estados e Municípios.
Interessante caso tributário decidido à época refere-se à questão da apli-
cabilidade da imunidade recíproca ao Banco do Brasil.
No período, o art. 31, V, a, da CF/1946 vedava a incidência de impostos
sobre “bens, rendas e serviços uns dos outros”, de forma bem semelhante à atual
disposição da CF/1988. Diferentemente do contexto atual, muitas atividades do
Banco do Brasil eram delegadas pela União.
Recorde-se que o Banco Central só foi criado na década de 1960. Até lá,
o Banco do Brasil realizava muitas de suas funções. Daí a jurisprudência vaci-
lante da época sobre a imunidade dessa sociedade de economia mista.
Nos autos do RE 30.424/SP, rel. min. Ribeiro da Costa, Segunda Turma,
16-6-1956, o ministro Nelson Hungria foi convocado para desempatar o julga-
mento de recurso extraordinário interposto contra acórdão que julgara impro-
cedente ação rescisória.
No caso, enquanto o relator e o ministro Rocha Lagôa votaram pelo pro-
vimento ao recurso, julgando procedente a ação rescisória para reconhecer a
imunidade do Banco do Brasil, os ministros Hahnemann Guimarães e Edgard
Costa, então presidente da Segunda Turma, votaram pelo não conhecimento
do apelo extremo. A situação de empate surgiu por conta do impedimento do
último integrante da Segunda Turma: ministro Edgard Costa.
Frise-se que naquele período já vigia o entendimento de que era inca-
bível ação rescisória contra arestos que decidiam matérias controvertidas,

156
Ministro Nelson Hungria

posteriormente consagrado no verbete 343 da Súmula do Supremo Tribunal


Federal.
O ministro Nelson Hungria, no entanto, afastou-se da corrente mais for-
malista e votou pelo conhecimento e provimento do recurso extraordinário,
entendendo que o Banco do Brasil era “delegado de serviços públicos federais
do mais alto relevo”, não admitindo sequer cindir os serviços como delegado da
União com suas funções específicas.
Convém destacar que o Plenário manteve essa decisão em sede de embar-
gos no julgamento do RE 30.424-embargos/SP, rel. min. convocado Afrânio
Costa, Pleno, 6-10-1958, contra os votos apenas dos ministros Hahnemann
Guimarães e Barros Barreto.
Todavia, essa orientação foi alterada em posteriores precedentes, res-
tando consagrada no verbete 79 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
Ressalte-se que o ministro Nelson Hungria restou vencido no debate
quanto à extensão da imunidade recíproca às autarquias.
No julgamento do RE 37.780/MG, rel. min. Candido Motta, Pleno, 15-5-
1961, o ministro Nelson Hungria votou pela incompatibilidade com a CF/1946
de legislação pré-constitucional que garantia a não incidência de tributos sobre
institutos de previdência, junto com os ministros Ary Franco, Lafayette de
Andrada e Sampaio Costa, este convocado.
A maioria do Plenário, diferentemente, julgou constitucional a referida
norma na linha do voto condutor do ministro Candido Motta.
2.3.3 Direito civil
No que concerne ao direito civil, pronunciou-se o ministro Nelson Hungria
em interessantes casos, os quais, apesar da mudança de Código Civil, ainda servem
de referência para a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
2.3.3.1 Proteção do adquirente de boa-fé
O ministro Nelson Hungria deixou votos importantes quanto ao princípio da
presunção da boa-fé, garantindo sempre a proteção do sistema àqueles adquirentes
que dele gozavam.
É o caso do decidido no RE 19.715/MG, em que ficou como relator para o
acórdão o ministro Nelson Hungria, Primeira Turma, julgado em 26-6-1952, que
cuidou de segundo adquirente de imóvel.
Na espécie, o devedor de instituição financeira alienara bem imóvel ao sobri-
nho na tentativa de fraudar a dívida de contrato que vinculava aquele bem como
garantia. Um ano depois, o imóvel foi vendido novamente ao segundo adquirente.

157
Memória Jurisprudencial

Contra essas alienações, o Banco ajuizou ação pauliana. As instâncias ordinárias jul-
garam improcedente a ação, tendo como não demonstrada a má-fé dos adquirentes.
O relator originário, ministro Ribeiro da Costa, votou pelo provimento do
apelo extremo, destacando que a primeira alienação fora, indubitavelmente, reali-
zada contra disposições contratuais e legais.
Por sua vez, o ministro Nelson Hungria apresentou voto divergente, assen-
tando a presunção de boa-fé do segundo adquirente, uma vez que não comprovada
nas instâncias ordinárias, nem o consilium fraudis, nem a notoriedade da insolvência
do devedor.
Assim, nos termos da fundamentação exposta pelo ministro Nelson Hungria,
restava indispensável a configuração da má-fé do adquirente para sucesso da ação
revocatória. A essa manifestação aderiram os restantes dos ministros da Primeira
Turma, e o acórdão restou assim ementado:
Fraude contra credores; quando não pode ser reconhecida, desde que admi-
tido como não provado o consilium fraudis. Aquisição de imóvel de quem o adquirira
do devedor; não é anulável, desde o segundo adquirente agiu de boa fé, não estando
adstrito a indagar da insolvência do primitivo proprietário, ao tempo da anterior
alienação.
(RE 19.715/MG, rel. para o acórdão min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
26-6-1952.)
Em sentido semelhante, a Primeira Turma assegurou o direito do adquirente
de boa-fé de títulos da bolsa vendidos sem intermediação de corretores, no jul-
gamento do RE 20.256, rel. min. Mario Guimarães, Primeira Turma, julgado em
19-6-1952.
Também nesse caso, o ministro Nelson Hungria pontuou que o adquirente de
boa-fé não estava obrigado a pagar novamente o valor das apólices, porquanto ele
não podia presumir que elas lhe tinham sido vendidas irregularmente.
Esses precedentes certamente contribuíram para a consolidação da jurispru-
dência em prestígio à boa-fé.
2.3.3.2 Reconhecimento de paternidade
Nelson Hungria foi relator, ainda, de interessante processo envolvendo a pre-
tensão de reconhecimento de paternidade.
Com efeito, no RE 21.046/RS, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
18-9-1952, discutiu-se a possibilidade de ajuizamento de ação de reconhecimento de
paternidade sem prévia ação de nulidade do primeiro registro de paternidade. Além
disso, o recurso extraordinário suscitava a manutenção da transação quanto aos efei-
tos patrimoniais da herança.

158
Ministro Nelson Hungria

Na situação, a filha tida fora do casamento fora registrada aos quatro anos de
idade pelo padrasto. Após o falecimento tanto do pai quanto do padrasto que a reco-
nhecera no cartório, a filha entrou em contato com os demais herdeiros do genitor e
fez uma transação, por certidão de cartório, de que não procuraria a regularização de
sua filiação, recebendo valores bem aquém ao seu quinhão.
Posteriormente, a filha ajuizou a ação de investigação de paternidade, cumu-
lada com a petição de herança, que foi julgada procedente pelas instâncias ordinárias.
O relator, ministro Nelson Hungria, negou provimento ao recurso extraordi-
nário, assentando que era dispensável a prévia anulação do registro equivocado de
paternidade e afastando qualquer transação sobre o estado das pessoas.
De outra sorte, o ministro Mario Guimarães, em elaborado voto-vista, diver-
giu do eminente relator. Embora afastasse o fundamento de prévia anulação do
registro de paternidade da autora — reconhecendo o excesso de formalismo exigido
para tal posição —, o ministro Mario Guimarães entendeu que a transação efetuada
entre os litigantes prevalecia quanto à parte indisponível do acordo, isto é, os valores
correspondentes ao quinhão da autora.
A esta ponderação, o ministro Nelson Hungria retrucou que o acordo versava
essencialmente sobre o estado de pessoa, no caso da autora ora recorrida. Ademais,
o ministro Nelson Hungria argumentou que a transação fora baseada em erro, uma
vez que se sugerira que o valor concedido seria equivalente ao quinhão a que a autora
teria direito.
Após intensa discussão, os ministros Luiz Gallotti e Ribeiro da Costa
acompanharam o ministro Nelson Hungria, entendendo que, se a transação não
estava restrita a direitos patrimoniais, não poderia subsistir.
Os ministros Mario Guimarães e Barros Barreto restaram vencidos, assim,
em importante precedente que garante de forma ampla a investigação de paterni-
dade e os respectivos direitos patrimoniais. O ministro Nelson Hungria redigiu a
ementa do acórdão da seguinte forma:
Investigação de paternidade; pode ser proposta sem necessidade de prévia
anulação do falso reconhecimento ou legitimação do autor, da parte de outrem.
Invalidade da transação em torno de questão de estado pessoal.
(RE 21.046/RS, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 18-9-1952.)
Além disso, o magistrado foi revisor no julgamento da AR 270/SP, rel.
min. Mario Guimarães, Pleno, 20-11-1953, precedente no qual se fixou a orien-
tação de que a absolvição do crime de sedução não impede a ação de reconhe-
cimento de paternidade.

159
Memória Jurisprudencial

2.3.3.3 Equiparação entre filhos adotivos e legítimos


O ministro Nelson Hungria foi relator, ainda, de um breve porém impor-
tante precedente que reconheceu, já na década de 1950, a equiparação entre
filhos adotivos e filhos legítimos para fins de sucessão.
Trata-se do RE 23.584/SP, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma,
10-9-1953, que restou assim ementado:
Arts. 1.605 e 1.750 do Código Civil: entre os “descendentes sucessíveis”,
inclui-se o filho adotivo, que é equiparado ao filho legítimo.
(RE 23.584/SP, rel. min. Nelson Hungria, Primeira Turma, 10-9-1953.)
No caso, o ministro Nelson Hungria, apesar de afastar a divergência pre-
toriana invocada no recurso extraordinário, não deixou de abordar o mérito da
questão.
O relator, acompanhado à unanimidade pela Turma, concordou com a
interpretação do acórdão de que a adoção de sete pessoas pelo de cujus impor-
tava o rompimento do legado previsto em testamento, nos termos dos arts. 1.605
e 1.750 do Código Civil de 1916.
De forma semelhante também foi decidido o RE 16.847/SP, rel. min.
Ribeiro da Costa, Primeira Turma, 29-12-1952, com voto concorrente do minis-
tro Nelson Hungria. Destaque-se que o relator e o ministro Nelson Hungria, na
ocasião, avançaram nas provas dos autos, inclusive fundando-se nas cartas dei-
xadas pelo de cujus para o reconhecimento da vontade do testador.
É certo que a equiparação dos filhos adotivos à prole legítima sofreu tra-
tamentos legais e jurisprudenciais diversos até a promulgação da CF/1988, que
pacificou definitivamente o tema.
Esse precedente deixa, no entanto, clara tendência do Supremo Tribunal
Federal de amparar e proteger o regime de adoção.
2.3.4 Direito eleitoral
Apesar de escapar ao foco deste trabalho o exame dos votos proferidos
pelo ministro Nelson Hungria no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, Corte
que ele chegou a presidir com muito esmero, também no Plenário do Supremo
Tribunal Federal foram julgadas questões interessantes de direito eleitoral.
A título ilustrativo, ganha relevo o decidido no RE 19.285/DF, rel. para o
acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado em 22-11-1951, no qual se determi-
nou que o partido que não tivesse alcançado o quociente eleitoral não poderia
concorrer na distribuição das sobras.

160
Ministro Nelson Hungria

Em primeiro lugar, esse recurso é bastante significativo pela interpre-


tação a respeito da previsão da irrecorribilidade das decisões do Tribunal
Superior Eleitoral presente na CF/1946 e, frise-se, repetida na CF/1988.
A propósito, o art. 120 da CF/1946 previa:
Art. 120. São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral,
salvo as que declararem a invalidade de lei ou ato contrários a esta Constituição
e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança, das quais caberá
recurso para o Supremo Tribunal Federal.

Disposição muito similar foi repetida no art. 121, § 3º, da CF/1988.


Logo no início do julgamento, ponderou-se se caberia a interposição de
recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal, ante essa disposição de
irrecorribilidade.
Nesse contexto, o ministro Edgard Costa suscitou questão de ordem para
decidir se o art. 13, § 4º, do Código Eleitoral de 24 de julho de 1950 (CE/1950)43, que
previa o cabimento de recurso extraordinário contra decisões do Tribunal Superior
Eleitoral, era compatível com a Constituição. A questão foi, com simplicidade, afas-
tada pelo ministro Nelson Hungria, que acompanhou o ministro relator no conheci-
mento do pleito:
Senhor Presidente, também entendo que a irrecorribilidade, como regra
geral, a que se refere o art. 120 da Constituição é a não interponibilidade de recurso
ordinário.
Não exclui, de modo algum, o recurso extraordinário permitido pelo art. 101,
III, e suas alíneas. A entender-se de outro modo, a Constituição teria incorrido em
grave contradição e em inexplicável erro de técnica, pois irrecorríveis se entendem
as sentenças de que já não cabe recurso ordinário, não deixando de ser tais ainda
quando sujeitas a recurso extraordinário. Assim, considero perfeitamente afeiçoado
ao sistema constitucional o art. 13, § 4º, do Código Eleitoral.
(Voto sobre inconstitucionalidade no RE 19.285/DF, rel. para o acórdão min.
Barros Barreto, Pleno, julgado em 22-11-1951.)
A conclusão da maioria, no entanto, foi contrária a essa orientação, por voto
desempate do ministro presidente.
No caso, votaram pela inconstitucionalidade do art. 13, § 4º, CE/1950, os
ministros Mario Guimarães, Luiz Gallotti, Lafayette de Andrada, Orozimbo
Nonato, José Linhares e Afrânio Costa, este convocado. Nesse diapasão, os minis-
tros Rocha Lagôa, relator, Nelson Hungria, Edgard Costa, Barros Barreto e Abner de
Vasconcelos, este também convocado, restaram vencidos.

43
Lei 1.164, de 24 de julho de 1950.

161
Memória Jurisprudencial

Portanto, o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitu-


cionalidade do mencionado dispositivo por estreita maioria. O ministro Nelson
Hungria, todavia, não se deu por rogado e, ato contínuo, entendeu que o recurso
poderia ser conhecido com fundamento no art. 120 da CF/1946. Ele ponderou que
o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, implicou a declara-
ção de inconstitucionalidade do art. 59, § 2º, do CE/1950, ainda que de forma oblí-
qua. Os ministros Lafayette de Andrada, Rocha Lagôa, Barros Barreto e Abner de
Vasconcelos, convocado, desde logo aderiram ao seu voto pelo conhecimento do
apelo extremo com fundamento no art. 120 da CF/1946.
Por outro lado, os ministros Mario Guimarães, Luiz Gallotti, Edgard Costa,
Orozimbo Nonato e Afrânio Costa, este também convocado, votaram contra o
conhecimento do recurso extraordinário quanto ao art. 120 da CF/1946.
Coube, novamente, ao presidente, ministro José Linhares, desempatar. Desta
vez, o presidente resolveu aderir ao posicionamento do ministro Nelson Hungria e
conheceu do recurso, possibilitando o julgamento de mérito.
Relativamente ao mérito da controvérsia, tratava-se do resultado da eleição no
então Território do Acre, ocorrida em outubro de 1950.
Havendo apenas duas vagas de deputado federal pelo Acre, o quociente eleito-
ral apurado foi igual a 4.605 votos, tendo o PSD obtido 5.050 votos, e o PTB, segundo
mais votado, obtido 3.666 votos no Território.
Com esse resultado, o Tribunal Regional Eleitoral do Distrito Federal enten-
deu que apenas o PSD atingira o quociente eleitoral, proclamando eleitos os dois
candidatos mais votados desse partido: o Sr. José Guiomard dos Santos, que obtivera
3.900 votos, e o Sr. Hugo Carneiro, com 603 sufrágios.
Contra essa proclamação, o candidato mais votado do PTB, Sr. Oscar Passos,
recorreu ao Tribunal Superior Eleitoral, sustentando que sozinho conquistara 2.035
votos, de sorte que, pela distribuição proporcional, deveria ser contemplado no lugar
do candidato que obtivera menos de um terço de seus votos.
O Tribunal Superior Eleitoral, em acórdão relatado pelo ministro Hahnemann
Guimarães, acolheu o recurso, para cassar a diplomação do Sr. Hugo Carneiro e
determinar a diplomação do Sr. Oscar Passos, tendo em vista a aplicação da regra
mais específica prevista no art. 46, § 3º, do Código Eleitoral de 1950, que assim
dispunha:
Art. 46. O sufrágio é universal e direto; o voto, obrigatório e secreto.
(...)
§ 3º Quando os lugares a serem preenchidos nas câmaras legislativas forem
dois, serão distribuídos pelo sistema previsto neste Código para a distribuição das
sobras e quando forem três ou mais, serão eles distribuídos pela forma estabelecida
no art. 58.

162
Ministro Nelson Hungria

Por sua vez, contra essa decisão foi interposto recurso extraordinário, ao qual o
relator, ministro Rocha Lagôa, negou provimento, entendendo correta a decisão do TSE.
O ministro Barros Barreto abriu divergência por entender que a decisão do
TSE que permitia a distribuição de sobras entre partidos que não houvessem atingido
o quociente eleitoral violaria o sistema eleitoral nacional, transformando o sistema
proporcional em sistema majoritário.
O ministro Nelson Hungria acompanhou o relator, aduzindo que a regra
específica do art. 46, § 3º, do CE/1950 excepcionava a eleição que tinha apenas duas
vagas. Na sua concepção, o CE/1950 criara a ficção de existência de sobras para dife-
renciar a hipótese de eleição para duas vagas. Também acompanharam a corrente do
relator os ministros Luiz Gallotti, Edgard Costa e Orozimbo Nonato.
Na outra corrente, os ministros Mario Guimarães, Lafayette de Andrada,
Afrânio Costa e Abner de Vasconcelos votaram, junto com o ministro Barros
Barreto, pelo provimento do recurso.
Pela terceira vez, o julgamento desse polêmico recurso extraordinário aca-
bou empatado em quatro votos a quatro, restando o desempate ao ministro José
Linhares, presidente. Nesse caso, ele acompanhou a divergência, em acórdão que
restou assim ementado:
Inconstitucionalidade do art. 13, § 4º, do Código Eleitoral — Cabimento
do recurso, pelo fundamento do art. 120 da Carta Maior — Sistema de represen-
tação proporcional; distribuição de sobras — Não pode concorrer, na distribuição
das sobras, o partido que não tiver alcançado o quociente eleitoral — Violação da
Constituição e do Código Eleitoral — Dá-se provimento ao recurso, a fim de restabe-
lecer a decisão do Tribunal Regional Eleitoral.
(RE 19.285/DF, rel. para o acórdão min. Barros Barreto, Pleno, julgado
em 22-11-1951.)
Destaque-se a posição dos ministros Nelson Hungria e Rocha Lagôa, que dis-
cutiram ardorosamente pelo conhecimento do apelo extremo, mesmo concordando
com a orientação exposta no acórdão recorrido. Ambos os ministros eram ciosos de
manter a coesão do sistema e preservar o Supremo Tribunal Federal como último
guardião da Constituição, mantendo-o supremo em relação a todos os demais tribu-
nais, mesmo em relação ao Tribunal Superior Eleitoral.
Frise-se que no julgamento dos embargos a esse acórdão (RE 19.285-embar-
gos/DF, rel. min. convocado Afrânio Costa, Pleno, 15-9-1952) ocorreu novo empate:
os ministros Nelson Hungria, Rocha Lagôa, Luiz Gallotti e Orozimbo Nonato vota-
ram pelo acolhimento dos embargos, enquanto os rejeitaram os ministros Lafayette
de Andrada, Mario Guimarães, Barros Barreto e Afrânio Costa, este convocado e
relator. Novamente, coube ao presidente, ministro José Linhares, o desempate pela
rejeição dos embargos.

163
Memória Jurisprudencial

Restou rejeitada, à unanimidade, também a arguição de inconstitucionalidade


do art. 13, § 4º, do CE/1950.
Posteriormente, a tese de cabimento do recurso extraordinário contra deci-
sões do Tribunal Superior Eleitoral acabou prevalecendo na orientação do Supremo
Tribunal Federal. Repita-se que a CF/1988 possui dispositivo muito semelhante a
respeito da irrecorribilidade das decisões daquela Corte, mas não há dúvida de que
seus efeitos limitam-se aos recursos ordinários.
No que se refere ao mérito, é importante destacar que a presente decisão teve
a participação decisiva, mais uma vez, dos votos de ministros convocados. Nem o
ministro Ribeiro da Costa nem o ministro Hahnemann Guimarães participaram
desse julgamento.
Note-se que Hahnemann Guimarães fora relator do acórdão do Tribunal
Superior Eleitoral que acabou reformado pelo Supremo Tribunal Federal. Esse resul-
tado ilustra o desvirtuamento causado pela convocação de magistrados, por mais
ilustres e brilhantes que sejam.
A interferência no frágil equilíbrio da Suprema Corte provoca graves reper-
cussões no papel de pacificador da interpretação constitucional.
É certo que até hoje prepondera o entendimento que exclui os partidos que não
atingiram o quociente eleitoral. No entanto, o CE/1950 possuía regras bem específi-
cas para o caso de apenas duas vagas, regras que não foram declaradas inconstitucio-
nais. Além disso, há sérias questões, principalmente quanto ao respeito ao princípio
da proporcionalidade e da proteção das minorias, que ainda não foram completa-
mente examinadas pelo Supremo Tribunal Federal.

164
Ministro Nelson Hungria

CONCLUSÃO

Da análise dos votos do ministro Nelson Hungria, é fácil perceber


sua superior inteligência e seu incrível bom senso na discussão das ques-
tões mais complexas e delicadas. A vasta erudição do magistrado jamais foi
óbice, mas sempre instrumento para o exercício da Prudência, da Justiça e da
Razoabilidade.
Suas manifestações eram repletas de citações tanto de autores nacionais
quanto de estrangeiros. Da Bíblia e clássicos romanos até os mais modernos
autores de sua época, essas citações tinham em comum apenas uma caracte-
rística: nunca foram usadas desnecessariamente por vaidade ou soberba, mas
tinham sempre o objetivo de melhor esclarecer um aspecto da discussão.
Além disso, o registro escrito dos votos e as notas taquigráficas não
escondem a notória exaltação e o entusiasmo que as mais diversas discussões
jurídicas suscitavam no experiente magistrado. Sua dedicação transparece pela
inconfundível verve, própria de quem se importa e ama seu ofício a ponto de
engajar-se com tal afinco aos debates em Plenário.
Por outro lado, a vocação de professor incutia-lhe o apego à verdade e a
coragem de apontar as dificuldades, chamando-as pelo nome, sem quaisquer
ambiguidades, tergiversações ou subterfúgios. Suas críticas à instituição do
Júri, por exemplo, são frutos da sua sinceridade e do seu desassombro.
As manifestações do ministro Nelson Hungria eram sempre firmes e
claras. Alguns as teriam, por vezes, como agressivas e destemperadas. Em res-
posta às suas ácidas ponderações, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
chegou a enviar um protesto coletivo ao Supremo Tribunal Federal contra um
voto exarado pelo ministro (cf. o voto no RE 33.827/SP, rel. min. Ary Franco,
Primeira Turma, 14-1-1957).
O ardor de Nelson Hungria, porém, logo se revelava conduzido pela boa
vontade e pela constante busca da Justiça, que o absolviam de qualquer exagero.
A propósito de seu espírito inquieto, são inesquecíveis as palavras de seu dis-
curso de posse como ministro efetivo do Tribunal Superior Eleitoral, em 23 de
janeiro de 1957, que soam como antecipado pedido de desculpas para as sensi-
bilidades mais exageradas:
É possível, meus Senhores, que eu, vez por outra, me exalte, me exprima com
veemência, mas vós me conheceis e a vós mesmo peço o testemunho de que esta
minha veemência, de que este meu ardor, esta minha exaltação jamais foi e será uma
demonstração da intolerância ou de paixão subalterna. Não, Senhores! Este espírito,
este sentimento exaltado que possuo, que o berço deu e só a tumba há de levar, ainda
mesmo que me ameacem dores anginoides, é um sinal, precisamente, da fé que con-
sagro, da fé que deposito no Direito, na Justiça e nos ideais humanos.

165
Memória Jurisprudencial

E veemente foi sua atuação no Supremo Tribunal Federal, na defesa do


instrumento do habeas corpus, da ampla consulta no procedimento de criação
de novos Municípios e de tantos institutos caros ao Estado de Direito.
Por um lado, o já referido uso recorrente de doutrina e jurisprudên-
cia estrangeiras norteava a constante precisão técnica. Por outro, o frequente
emprego de exemplos ad absurdum alimentava o apelo retórico necessário ao
julgamento colegiado.
De tudo, resta o legado de votos e acórdãos que, até hoje, fundamentam
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Este trabalho pretendeu eviden-
ciar alguns dos magníficos votos proferidos pelo ministro Nelson Hungria, que
ajudaram a construir a rica tradição da Suprema Corte.
Oxalá seus lúcidos pronunciamentos e suas fecundas lições continuem
a encontrar eco nos pensadores do direito e, sobretudo, nos seus sucessores no
Pretório Excelso.

166
Ministro Nelson Hungria

167
Memória Jurisprudencial

REFERÊNCIAS

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro:


Forense, 2007.

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Universidade de Brasília, 1998.

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dania. 2. ed. São Paulo: IEJE, 2007.

HOFFBAUER, Clemente Hungria. Nelson Hungria, meu pai. AIDP, ano 5, n.


4, p. 3, 2009.

LAGO, Laurenio. Supremo Tribunal Federal e Supremo Tribunal de Justiça. 3.


ed. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2001.

LIMA, Leopoldo César de Miranda. Discurso como representante dos advoga-


dos de Brasília, na homenagem de 14-4-1961. In: BRASIL. Supremo Tribunal
Federal. Homenagens prestadas aos ministros que deixaram a Corte no período
de 1960 a 1975. Brasília: STF, 1975.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo


Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007.

PERTENCE, José Paulo Sepúlveda. Discurso na homenagem do centenário


do ministro Nelson Hungria. In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Nelson
Hungria: centenário de seu nascimento. Brasília: STF, 1993.

RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

SCARTEZZINI, Cid Flaquer. Nelson Hungria: o homem e o jurista. Discurso


de posse na Academia Paulista de Direito em 23-9-1974. São Paulo: Academia
Paulista de Direito, 1974.

168 168
Ministro Nelson Hungria

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio a Castelo. Tradução coordenada por


Ismênia Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

TAVARES, Adelmar. Discurso por ocasião da posse do ministro Nelson


Hungria no Supremo Tribunal Federal, em 5-6-1951. Revista Forense, v. 48, n.
135, p. 619-623, 1951.

169 169
APÊNDICE
Ministro Nelson Hungria

INTERVENÇÃO FEDERAL 20 — MG

Pedido de intervenção federal; seu indeferimento. Art. 7º,


V, da Constituição. Para justificar a intervenção, não basta a de-
mora de pagamento, na execução de ordem ou decisão judiciária,
por falta de numerário: é necessário o intencional ou arbitrário
embaraço ou impedimento oposto a essa execução.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não padece dúvida que a in-
tervenção autorizada pelo art. 7º, V, da Constituição Federal tem como pressu-
posto a injustificada oposição, por parte do governo estadual, de embaraço ou
impedimento à execução de ordem ou decisão judiciária.
Não basta a demora, que pode ser justificada, na execução: é necessário
que se apresente uma desobediência manifesta, propositada ou por descaso, à
ordem ou decisão judicial.
É o que já ensinava Barbalho, comentando o § 4º do art. 6º da Constituição de
1891: a intervenção em tal caso se deve entender como uma sanção para constranger
à obediência os governos dos Estados, “quando embaracem ou se oponham à execu-
ção” das decisões judiciais (Constituição Federal Brasileira, p. 27).
No mesmo sentido, Pontes de Miranda, comentando a atual Constituição:
“Há intervenção sempre que se impede a eficácia da sentença, decisão ou or-
dem” (Comentários à Constituição de 1946, ed. 1953, vol. 1º, p. 486).
É preciso que um desarrazoado obstáculo tenha sido oposto pelo governo
estadual à execução da decisão ou ordem.
Ora, no caso vertente, o retardamento na execução não promana de obstá-
culo criado pelo governador mineiro, mas da acidental exaustão atual do erário
do Estado.
Plenamente justificada é a mora de pagamento.
Onde não há, até rei perde.
Quanto à alegada antecipação de consignação, em detrimento do reque-
rente, sobre não autorizar isso a intervenção, mas tão somente a medida de se-
questro das quantias consignadas, na conformidade da lei processual civil, não
chegou a efetuar-se, tendo sido revogada a ordem em tal sentido.
Indefiro o pedido.

171
Memória Jurisprudencial

DENÚNCIA 118 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o Código Penal vigente,
no art. 331, diz o seguinte: (ler)
Tal dispositivo, portanto, ao definir o desacato, aplica o art. 134 do Código
Penal de 1890, isto é, não exige, necessariamente, que o desacato atinja o funcio-
nário in officio, pois o crime existirá ainda que o sujeito passivo se encontre extra
officium, posto que a ofensa se realize propter officium.
No caso vertente, entretanto, não há indagar se a ofensa foi feita ratione
offici, pois o ofendido se achava in officio.
Não se pode negar que o Sr. Eugênio Gudin, então ministro da Fazenda,
no momento de ser agredido, estivesse no exercício do cargo, pois estava a sair
do seu gabinete, para empreender uma viagem até São Paulo, em desempenho de
suas funções ministeriais. Estava em ato de exercício de suas altas funções, e o
denunciado sabia disso.
Ao que reza a denúncia, o ofendido teria, numa entrevista, formulado con-
ceito desairoso em relação ao denunciado, ministro Bittencourt Sampaio. Teria
proferido contra este uma injúria indireta, porque, interpelado sobre uma confe-
rência que o mesmo fizera no Clube Militar, asseverara o ministro Gudin que, em
matéria de petróleo, não se entenderia se não com determinadas pessoas, cujos
nomes mencionou, por serem pessoas honradas.
O denunciado, ministro Bittencourt Sampaio, ao invés de processar criminal-
mente o Sr. ministro da Fazenda, achou, insolitamente, atestando a indisciplina que
reina no Brasil atual, até nas mais altas camadas da administração, de se dirigir ao
gabinete do Sr. Gudin para tomar uma satisfação. Atitude indesculpável, pois teria de
provocar, naturalmente, uma troca de desaforos ou mesmo vias de fato.
Interpelado, o ministro Gudin negou que tivesse usado a expressão inju-
riosa em relação ao denunciado. Apenas o denunciado e seu corréu é que dizem
ter sido reiterada a injúria, nestes termos, mais ou menos: “Eu disse que me en-
tenderia apenas com Fulano e Sicrano, porque são homens honrados, e não posso,
ou não estou habilitado a dizer o mesmo em relação ao Senhor.”
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Houve uma testemunha, além do
denunciado e do corréu, que afirmou isso categoricamente. Além dos acusados,
estava presente um jornalista, que prestou depoimento.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Aceito a retificação de Vossa Excelência.
172
Ministro Nelson Hungria

Vossa Excelência não leu em voz muito alta o relatório, e, daí, o ter-me
escapado a informação.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Procedi à leitura do depoi-
mento, por se tratar da testemunha mais importante.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Pareceu-me que só os acusados houves-
sem dito que a injúria tinha sido reproduzida face a face.
Mas a repetição da injúria não legitimava o desforço violento, o ministro
Gudin não prorrompera em injúrias, seguidas, cuja interrupção só fosse possí-
vel pela reação brutal.
Esta ocorreu contra uma injúria já proferida, isto é, contra uma agressão
moral já finda. Não haveria falar-se em legítima defesa, ainda quando o denun-
ciado Bittencourt Sampaio se limitasse a retorquir com outra injúria. Muito me-
nos se poderá reconhecê-la na reação a socos, por mero espírito de vindicta ou
pela vaidade de “não levar desaforo para casa”.
O desabrimento do denunciado, que provocara a cena com o pedido de
satisfações, é imperdoável. É o que é mais, Senhor Presidente: não se tratava
apenas do ministro da Fazenda, não se tratava apenas de uma pessoa, por todos
os títulos ilustre, mas, acima de tudo, de um homem em idade provecta, que só
por isso devia estar a coberto da grosseria de uma agressão física.
Não há indagar, como disse e repito, se houve vínculo causal entre a fun-
ção do ofendido e a agressão, praticada pelo denunciado. Basta que o Sr. Gudin
tenha sido agredido quando se achava em ofício, dentro da própria sede do
Ministério, para que se tenha de reconhecer o desacato.
Não vejo, assim, motivo para arquivar a denúncia.
Fala-se em estado emocional do denunciado; mas está no Código Penal,
com todas as letras, que a emoção não exclui a responsabilidade penal.
O arquivamento impõe-se, sim, mas quanto ao corréu. Foi um intrigante,
um imponderado, um imprudente, mas não se concebe coparticipação culposa
em crime doloso.
De modo algum se pode dizer que ele tenha intencionalmente contribu-
ído para que o denunciado Bittencourt Sampaio desacatasse o Sr. ministro da
Fazenda. Sua inclusão na denúncia é realmente insustentável.
O meu voto, portanto, é no sentido de prosseguir o processo contra o denun-
ciado, Bittencourt Sampaio, excluído o denunciado, João Crisóstomo Faria.

173
Memória Jurisprudencial

AÇÃO RESCISÓRIA 154 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, uma lei não pode ser
analisada abstraindo-se o regime jurídico-político em que ela foi promulgada.
Se formos apreciar uma lei editada pelo que se denominou “Estado Novo” à luz
dos princípios tradicionais, que o estatuto fundamental desse regime afastou, es-
taríamos fazendo o mesmo que analisar e criticar as dissonâncias, os contrastes
da moderna música cacofônica à luz dos princípios da música clássica, o que me
parece não ser admissível, porque incidiríamos num anacronismo.
A Constituição de 1937 não consagrou o princípio da irretroatividade das leis.
Tanto assim é que a Lei de Introdução ao Código Civil, de 1942, expressamente de-
clarava que a lei pode ser retroativa, uma vez que expressamente o declarasse.
Se a Constituição de 1937 houvesse consagrado o princípio da irretroativi-
dade, não seria possível semelhante dispositivo. Tal Constituição não somente dei-
xou de incluir entre os direitos fundamentais do indivíduo a irretroatividade da lei,
como ainda erigiu o presidente da República em constituinte permanente. Se um dos
artigos da mesma Constituição permitiu que o presidente da República governasse
em continuado estado de emergência, com suspensão das garantias constitucionais,
como se poderá criticar a lei de que se trata, por ter violado o princípio da irretroati-
vidade da lei, ainda que tal princípio tivesse sido por ele consagrado?
Ainda mesmo que não se aceite a argumentação do eminente Sr. ministro
revisor, não se pode negar que essa lei era possível no regime político dentro do
qual concebida e promulgada.
É exato que a Constituição de 1937 proibia o confisco; mas, entende-se: o
confisco total de bens como sanção penal, conforme se fazia outrora em relação aos
crimes de lesa-majestade, e foi considerada punição odiosa, que os tempos modernos
repudiaram. Tal proibição nada tem a ver com o fato de o Estado, entendendo a inte-
resses de ordem pública, promulgar lei modificando o sistema sucessório ou regime
de vocação hereditária, ainda que com lesão de direitos à sucessão abertas.
Na hipótese, conforme bem acentuou o eminente Sr. ministro revisor, a lei
estabeleceu retroatividade limitada, determinando sua própria aplicação tão somente
aos processos em curso. De qualquer modo, porém, examinando-a dentro do regime
político-jurídico do tempo em que foi editado, não é possível negar-se-lhe validade.
Assim, data venia do eminente Sr. ministro relator, acompanho integral-
mente o voto do ilustre Sr. ministro revisor, julgando improcedente a presente
ação rescisória.

174
Ministro Nelson Hungria

REPRESENTAÇÃO 164 — SC
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, três são as razões in-
vocadas na presente representação contra a lei estadual em debate. Vou começar
pela última, que é a de que não teria ocorrido maioria absoluta para a rejeição do
voto do governador. Não tenho dúvida alguma que a maioria absoluta de 39 é 20.
Tratando de votantes em número ímpar, a maioria absoluta é a mesma do número
par imediatamente inferior. Já neste sentido tenho aqui votado. Também rejeito a
increpação de que a lei não indicou a fonte da receita ou a fonte de recursos para
fazer face ao aumento de despesa. Indicou, sim. Disse que o aumento de despesa
devia ser coberto pela receita arrecadada, que o fora em muito mais do que o
previsto no orçamento. E o que é mais: indicou como fonte de recursos a mesma
que havia indicado o próprio chefe do Executivo estadual, isto é, o superávit da
receita, a ser utilizado mediante créditos suplementares.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Permita, Vossa Excelência, um escla-
recimento: não é bem este ponto, porque a proposta do Executivo propunha um
aumento da lei do selo para fazer face à despesa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas na mensagem não se dizia isto. Só
mais tarde, é que o chefe do Executivo estadual declarou que pretendia cobrir essa
despesa com a revisão da lei do selo. Na proposta, porém, falava em cobertura da
despesa mediante créditos suplementares sobre a receita arrecadada. Portanto, a
indicada fonte da receita era a mesma.
Agora, Senhor Presidente, resta a questão central, nuclear, de que cogita a
representação. Entendo que o art. 27 da Constituição catarinense, que reproduz,
se não na forma, pelo menos no fundo, dispositivo da Constituição Federal, exerce
uma função frenadora ao predomínio ou arbítrio do poder legiferante. Não exige,
apenas, como muito bem acentuou no seu brilhante voto o eminente Sr. ministro
relator, simples prioridade da proposta do Poder Executivo, idêntica à primazia
que, no regime bicameral, cabe a uma das casas do Congresso no tocante a certos
projetos. Não: aqui se exige uma iniciativa condicionante e particularizada, refe-
rente não só à apresentação da proposta como ao seu conteúdo.
Entre outros assuntos a que devem ser atinentes os projetos cuja iniciativa
cabe ao Poder Executivo, figura o de aumento de vencimentos. Estaria, sem dúvida,
inteiramente burlado o preceito constitucional se se permitisse ao Poder Legislativo
um maior aumento do que o proposto pelo Executivo. Estaria totalmente iludida
a finalidade do preceito, qual a de evitar que o Legislativo, não conhecendo, real-
mente, como conhece o Executivo, as forças do erário público, as probabilidades da
receita, ou as possibilidades de granjeio do numerário, pudesse estabelecer um tal
aumento de despesa que colocasse o Tesouro em pânico, na impossibilidade prática
175
Memória Jurisprudencial

de poder arrostar com esse acréscimo de passivo. Pode a Câmara, pode a legis
latis emendar a proposta ou anteprojeto do Executivo, mas dentro da sua própria
lógica, como um corolário necessário dos próprios critérios adotados pela pro-
posta, e, notadamente, dentro do provável algarismo máximo indicado pelo Poder
Executivo relativamente às fontes de cobertura.
Nada disso ocorreu no caso vertente. A extensão ao funcionalismo público
em geral do aumento proposto para os magistrados e membros do Ministério
Público não era um corolário necessário da proposta governamental. Várias
são as condições que reclamam um tratamento diferente entre os membros da
Magistratura e do Ministério Público e os funcionários em geral. Sem querer
tocar em outros pontos, bastaria que se destacasse o seguinte: os magistrados e
membros do Ministério Público estão obrigados à constante aquisição, por conta
própria, de livros que os aparelhem para o exato exercício de suas funções, que os
coloquem ao nível da evolução jurídica, e isso importa despesas de grande vulto,
e mesmo, algumas vezes arrasadoras. Basta este fato para que se não possa exigir
uma igualdade de tratamento entre os juízes e promotores e os funcionários públi-
cos em geral. Tal igualdade redundaria numa iníqua desigualdade.
Por outro lado, admitir que o Legislativo faça acréscimos ao aumento
proposto pelo Executivo é evidentemente atribuir àquele a iniciativa que a
Constituição proíbe. Quanto a esses acréscimos, evidentemente interfere a ini-
ciativa do Legislativo, que o preceito constitucional proíbe. Como precisamente
acentuou, no seu erudito e notável voto, o Sr. ministro relator, não há “direito de
emenda” onde não há “direito de iniciativa”. A entender-se de outro modo, estaria
rompido o freio imposto pelo dispositivo da lei fundamental.
Conhece-se a razão desse dispositivo, que a Constituição de Santa Catarina
copiou da Constituição Federal; é evitar o jubileu de indulgências a que, por ve-
zes, no passado, se entregava o Poder Legislativo, sem cuidar das possibilidades
do Tesouro, sem indagar das condições financeiras, ainda quando desfavoráveis,
em que se achasse o Estado. E, então, se cuidou de criar esse entrave, esse con-
trapeso à autonomia do Legislativo. O Executivo, que conhece de perto quais as
possibilidades do Tesouro e as necessidades reais da administração; que conhece
o que se pode dar, em face da situação do erário ou dos algarismos possíveis de
arrecadação da receita, da capacidade de tal ou qual imposto ou de tal ou qual
verba; o Executivo que, para usarmos uma linguagem pitoresca, sabe onde dói o
calo, e o que se pode fazer, no limite da realidade, para remediar o mal, foi erigido,
neste particular, em controlador do Legislativo. Ora, essa finalidade, esse objetivo
do preceito constitucional, que não pode deixar de ser interpretado dentro da sua
função teleológica, estaria inquestionavelmente cancelada, se fosse permitido ao
Poder Legislativo entregar-se, de novo, aos excessos de liberalidade com sacrifí-
cio do erário público. De nada teria valido o empecilho criado pela Constituição,

176
Ministro Nelson Hungria

que atendeu a uma lição, a uma longa e alarmante lição da experiência. Não é a
primeira vez que me manifesto contra o subterfúgio com que se tem enganado o pre-
ceito constitucional em questão, já de outra feita, quando foi de uma criação de varas
na Justiça local, tendo a proposta do Poder Executivo limitado o número dessas varas
a seis, a Câmara dos Deputados, com apoio do Senado, emendou o projeto, aumen-
tando para nove o número dessas varas. Como membro que era então, do Tribunal de
Justiça local, tive ensejo de, em sessão plenária, declarar a minha estranheza quanto
ao que eu reputava um indisfarçável desrespeito à Constituição.
Assim, estou sendo fiel a mim mesmo, neste momento, ao reconhecer, positi-
vamente, a inconstitucionalidade da Lei catarinense 22, porque, desatendendo a um
preceito de ordem constitucional sobre interdependência de poderes, quebrou a har-
monia entre estes, traduzindo uma incursão do Legislativo na órbita do Executivo.
Por essa razão, e tão somente por essa razão, estou de acordo com a conclusão
do eminente Sr. ministro relator.

REPRESENTAÇÃO 179 — DF
VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que
é arbitrária a pretendida restrição ao vocábulo “aro” pretendida pelo ilustre
Castro Nunes. Em todo ato administrativo, seja ele qual for, desde que acoi-
mado de inconstitucional e desde que afete qualquer das matérias enumeradas
na Constituição, cabe representação. Assim, acompanho o voto do eminente
ministro relator quanto à preliminar.

REPRESENTAÇÃO 199 — RJ
VOTO
(Antecipação)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, meditando sobre o
que ouvi na primeira fase do julgamento desta representação, achei de bom
aviso fixar por escrito o meu ponto de vista, a fim de evitar desvios ou divaga-
ções dispersivas a que sempre nos leva a improvisação.

177
Memória Jurisprudencial

Passo a ler o meu voto:


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, a vigente Constituição
assegura a autonomia dos Municípios em tudo quanto concerne ao seu “peculiar
interesse”. E o sistema do self government ou home rule do Município, no to-
cante às necessidades e interesses marcadamente locais. A expressão “peculiar
interesse”, desde a Constituição de 1891, tem dado margem a controvérsia; mas,
atualmente, pode dizer-se assentado que tal expressão não quer significar “inte-
resse exclusivo” (pois, dada a íntima sinergia entre Município, Estado e União,
não se pode falar em exclusividade de interesses municipais), mas, sim, inte-
resse prevalentemente local, interesse que mais de perto ou mais estritamente
diz com as necessidades municipais. Ora, Senhor Presidente, se há um interesse
preponderantemente municipal, um interesse vital do Município, é o da sua in-
tegridade territorial. Pode dizer-se que é o direito do Município ao seu próprio
corpo, o seu jus in se ipsum. Entre os direitos e poderes do home rule municipal,
não pode deixar de figurar, na primeira plana, o de manter o Município a inte-
gridade da área territorial em que assenta. Não se trata de um desses poderes
que se situam na “zona cinzenta”, na twilight zone entre os poderes do Estado e
os poderes do Município, mas de um poder reclamado pelo próprio instinto de
conservação do Município, pois, muitas vezes, se identificará com o seu direito
à própria sobrevivência. Eis o preciso e justo conceito de Mac Bain (The law
and the practice of municipal home rule, p. 247): “The division of a municipality
into two separate corporations may, not without considerable force of logic, be
regarded as a matter of strictly local concern” (“A divisão de uma municipali-
dade em duas corporações separadas pode, sem necessidade de grande esforço
de raciocínio lógico, ser considerada como matéria de estrito interesse local”).
Perda de território é golpe na própria carne do Município. É perda de sua base
geográfica, perda de sua população, perda de seu vigor econômico, perda de
suas fontes de receita, perda de eficiência do seu governo interno, perdas de suas
condições de prosperidade, perda da própria possibilidade de consecução de
seus fins políticos. Como duvidar-se, então, um só instante, que seja do peculiar
interesse do Município a questão do seu desmembramento? Não se diga que a
autonomia municipal, outorgada pela Constituição, somente diz com a admi-
nistração local, que não abrange a inteireza territorial. Esta, Senhor Presidente,
será, as mais das vezes, a condição essencial do êxito mesmo da administração
municipal, da prosperidade econômico-financeiro ou progresso material que
ela se propõe. Não é concebível autonomia administrativa do Município sem o
correlato direito à integridade da base territorial em que se exerce a adminis-
tração municipal. Nem se argumente que o desmembramento de um Município
é, muitas vezes, exigido pelo interesse geral, porque, com a criação de novos

178
Ministro Nelson Hungria

Municípios, movidos estes pelo estímulo da própria autonomia na competição


com os demais, haverá ensejo ou probabilidade ao maior progresso deles, re-
dundando isso em benefício para o Estado e para a própria Nação. Não passa
tal argumento de uma hipótese teórica, que a desoladora realidade desmente.
O retalhamento de Municípios apenas resulta, praticamente, na maioria dos
casos, em transformar um todo vigoroso e próspero em partes raquíticas e
enfezadas, competindo-se no desgoverno e na decadência. O que se está pre-
senciando atualmente, no Brasil, é a profusa criação de Municípios novos,
que quiseram tornar-se independentes apenas para parasitarem, numa rotina
deplorável, em torno à porcentagem de tributos que a União está constitucio-
nalmente obrigada a repartir com as municipalidades. Tão somente isso, a não
ser quando entra em jogo subalternos interesses de ordem político-partidária
ou eleitoral, inspirados pelo princípio maquiavélico do “dividir para governar”.
Estendo os olhos para o meu Estado natal, por exemplo, e o que vejo
é uma constritadora fragmentação de antigos Municípios florescendo em
Municípios arruinados, que para disfarçarem a própria incapacidade de pro-
gresso, entregam-se ao culto da ruína, disputando a glória de se transformarem
em “monumentos históricos”. Onde outrora havia Municípios afortunados, hoje
apenas existem cacos e caraminguás de Municípios. É o melancólico rosário
das “cidades mortas”. Somente se salvaram os Municípios cujos dirigentes são
grandes chefes da política estadual. E este é o caso comum por todo o Brasil;
e foi por isso que a Constituição de 1946 entendeu de não mais permitir que
se despedacem, à sua revelia, os Municípios. Terão estes de ser consultados,
porque sem o seu assentimento, sem a sua expressa renúncia, já não podem
ser desmembrados. As Constituições e as leis estaduais somente podem disci-
plinar, e em termos, a forma desse imprescindível assentimento: ou será dado
pelo voto dos vereadores, representantes do povo do Município, ou mediante
plebiscito, que, evidentemente, não poderá ser limitado à população do distrito
a ser destacado, mas terá de ser ampliado à população de todo o Município,
que é o máximo interessado e o máximo árbitro. Não se trunca um condomínio
sem audiência do cabecel. Não se emancipa um filho sem audiência do pai. De
todo inadmissível é a equiparação entre os Municípios e as autarquias, porque
estas, como desincorporações voluntárias da União ou do Estado, podem ser, a
qualquer hora, extintas ou reabsorvidas pelo poder criador.
Dir-se-á que, em certos casos, o dissentimento do Município poderá ser
um injustificado capricho. Sem dúvida que isso pode ocorrer; mas que, então, se
cuide de reformar a Constituição Federal para ser dado remédio ou meio de solu-
ção a esse impasse. Atualmente, em face dos preceitos da Lei Básica, não é pos-
sível o esquartejamento de Municípios sem a prévia e explícita anuência destes.

179
Memória Jurisprudencial

Isto posto, data venia do Sr. ministro relator, julgo procedente a represen-
tação, para declarar irreconciliável com a Constituição Federal as ora questio-
nadas emenda constitucional e lei ordinária do Estado do Rio Grande do Sul.

REPRESENTAÇÃO 200 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já mais de uma vez tenho
sustentado que o desmembramento de um Município, sem prévio assentimento da
respectiva Câmara ou de plebiscito extensivo a toda população municipal, é antinô-
mico com a Constituição Federal. Diz esta que ao Município é assegurada irrestrita
autonomia administrativa, no que diz com o seu peculiar interesse.
Ora, não há interesse mais peculiar ao Município do que o concernente ao seu
território, o que vale dizer, à sua própria existência no espaço. Procurei apadrinhar-
-me com a jurisprudência norte-americana, que é sempre invocada como modelo para
a interpretação do nosso direito constitucional, e mostrei como na Federação Norte-
Americana é imprescindível, para a divisão ou desmembramento dos Municípios, o
prévio consentimento destes, através de seus órgãos representativos.
Afirma-se que, a se decidir assim, jamais haveria possibilidade do des-
membramento de um distrito, para constituir novo Município, porque aquele
a que estava vinculado sistematicamente se oporia, impedindo-se o progresso
geral pela emulação entre as novas e velhas comunas.
Esse argumento não demoveu o legislador constituinte de 1946, quando asse-
gurou self-government municipal, e naturalmente porque a realidade prática, a do-
lorosa realidade prática é que se despedaçam Municípios grandes, florescentes, para
formação de novos Municípios raquíticos e incapazes de êxito.
Em noventa e cinco por cento dos casos, assim se procede por interesse
político-partidário, e não no sentido do interesse superior do desenvolvimento
do Brasil. Somente se cuida de atender a subalternos interesses da ordem elei-
toral, a que os novos Municípios se afeiçoam, para parasitarem em torno das
quotas de impostos que com eles partilham a União.
Senhor Presidente, entendo que é uma intolerável ofensa à autonomia
municipal o desmembrar o Município sem ouvir o seu órgão representativo, que
é a Câmara Municipal, ou sem auscultar a respectiva população, através de um
plebiscito.

180
Ministro Nelson Hungria

Não é possível, ouvindo-se apenas a população do distrito a desmembrar,


minoria da população do Município, não é possível, repito, que, com esse limitado
plebiscito, se vá truncar o Município, ferindo-o, muitas vezes, de morte.
Sei que, no regime da Constituição de 1891, nunca se entendeu que isso era in-
constitucional, não obstante fosse, já àquele tempo, garantida a autonomia municipal.
Mas, Senhores, nunca é tarde para se corrigir um erro, tanto mais quando
a Constituição atual proclama, ainda com maior ênfase, o home rule, o autogo-
verno municipal.
Assim, Senhor Presidente, não desconvencido, data venia dos eminentes Srs.
ministros que pensam de modo contrário, acompanho o voto do eminente Sr. minis-
tro relator, considerando contrariado, na espécie, o preceito constitucional federal.
Julgo procedente a representação.

REPRESENTAÇÃO 210 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é certo que a Constituição
de Mato Grosso não faz exigência expressa do prévio assentimento do Município
a desmembrar, quer pelo voto de sua Câmara, quer mediante plebiscito entre a
população total. Acontece, porém, que a Lei Orgânica dos Municípios de Mato
Grosso faz exigência categórica, no sentido de que esse desmembramento não se
poderá fazer sem que preceda consulta e aprovação da Câmara Municipal.
Ora, se a Constituição de Mato Grosso é omissa a tal respeito, e se a Lei
Orgânica dos Municípios do Estado, não desafeiçoada à Constituição Federal,
faz tal exigência, não há como deixar de cumpri-la.
Em aparte ao eminente ministro Orozimbo Nonato, quando defendia tese
contrária, eu indaguei: — Será inconstitucional o preceito das Constituições de
alguns Estados que exige, para o desmembramento do Município, a aprovação
da Câmara Municipal respectiva, ou a extensão do plebiscito a toda população
municipal? Sua Excelência não me deu resposta categórica.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Entendo que o Município não pode
impedir a expansão.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Não é possível que Minas Gerais veja
o seu peculiar interesse de uma maneira e Goiás de outra, e assim por diante. O
Supremo Tribunal deve estabelecer o que se deve entender por peculiar interesse.

181
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Já foram trazidas ao Supremo Tribunal re-


presentações sobre incompatibilidade de várias leis constitucionais estaduais com
a Constituição Federal, e algumas delas continham o preceito que subordina o des-
membramento do Município ao assentimento da respectiva Câmara municipal.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Tenho um caso, do Espírito
Santo, em que a Constituição estabelece a necessidade do consentimento da
Câmara dos vereadores.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: E o preceito em questão não foi conside-
rado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: De modo algum.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Vai haver, portanto, desigualdade de tra-
tamento entre os Estados quanto à autonomia municipal. O Supremo Tribunal
deve adotar um critério único e exclusivo.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Isso resulta do art. 18 da
Constituição. A Constituição não limita a autonomia do Estado.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: De duas, uma: ou se adota a tese que de-
fendo ou a tese agora esposada por Vossa Excelência e demais ministros. Não é
possível ficarmos numa situação ambígua.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Nesse ponto, estou de inteiro acordo
com Vossa Excelência.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A Constituição não pode estabe-
lecer regras rígidas.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Supremo Tribunal já reconheceu a
validade de preceitos constitucionais estaduais, no sentido da necessidade do
prévio assentimento do legislador municipal. Em que ficamos, então? Senhor
Presidente, já disse e repito que na realidade prática, com exceção de um ou ou-
tro caso, o desmembramento dos Municípios só tem trazido a decadência, a ru-
ína, a desoladora rotina de Municípios “ao picadinho”, gravitando em torno das
magras quotas que a Constituição lhes garante, na distribuição do imposto de
renda. Ao invés dos antigos Municípios, grandes e prósperos, uma sucessão de
Municípios esfarelados, disputando a primazia na incapacidade de progresso.
Entendo, Senhor Presidente, pelo conhecimento pessoal que tenho da vida
municipal na hinterlândia, que a realidade desmente a afirmação do critério
ideal, encarecido pelo Sr. ministro Afrânio Costa, no sentido de que os distritos
desmembrados, transformados em Municípios, terão entre si aquele espírito de
sadia e fecunda emulação, que acarretará o progresso de todos. Não, Senhor
Presidente. A realidade no Brasil é dolorosa e inteiramente diversa. E o legisla-
dor constituinte sabia disso.
182
Ministro Nelson Hungria

O Sr. Ministro Mario Guimarães: E resolveu bem, porque não criou mais
nenhum Município.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Estará anulada a autonomia municipal,
se prevalecer a tese que só agora defende a maioria deste Tribunal, sem que ti-
vesse havido intercorrente emenda constitucional a respeito.
Não tenho dúvida nenhuma em que, exigindo a Lei Orgânica dos
Municípios de Mato Grosso, afeiçoada à Constituição Federal, a aprovação da
Câmara dos vereadores para o desmembramento das câmaras, tal requisito é
indeclinável.
De pleno acordo com o Sr. ministro relator, julgo procedente a representação.

REPRESENTAÇÃO 211 — DF

Inconstitucionalidade parcial da Lei 1.079, de 1950, sobre


crimes de responsabilidade. Crimes de responsabilidade de mi-
nistros de Estado, não conexos com os de presidente da República;
o processo e o julgamento cabem ao Supremo Tribunal Federal.
Inexistência dos crimes apontados em representação contra o
ministro da Fazenda. Quando não se pode identificar o crime de
prevaricação com o de desobediência. Arquivamento de repre-
sentação, pedida, aliás, pelo procurador-geral da República.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Tenho, Senhor Presidente, uma
preliminar a suscitar.
A Lei 1.079, de 10-4-1950, que “define os crimes de responsabilidade e
regula o respectivo processo e julgamento”, dispõe, nos seus arts. 13, I, e se-
guintes, que os crimes de responsabilidade dos ministros de Estado, definidos
na lei, ainda quando não conexos com os do presidente da República, isto é,
quando praticados ou ordenados por exclusiva iniciativa dos próprios ministros,
ficarão sujeitos à acusação perante a Câmara dos Deputados e julgamento pe-
rante o Senado.
Entre os crimes de responsabilidade dos ministros de Estado figura o de
“recusar o cumprimento das decisões do Poder Judiciário no que depender do
exercício das funções do Poder Executivo” (art. 13, I, c/c art. 12, n. 2). Em face,

183
Memória Jurisprudencial

portanto, da Lei 1.079, no caso somente caberia denúncia perante a Câmara dos
Deputados, na forma do art. 14, escapando a ação penal ao Supremo Tribunal.
E suscitando a preliminar, eu a desprezo. Os dispositivos dessa lei, no tocante
a crimes de responsabilidade dos ministros de Estado não conexos com os do
presidente da República, são manifestamente inconstitucionais.
Eis o que preceitua o art. 92 da Constituição: “Os Ministros de Estado
serão, nos crimes comuns e nos crimes de responsabilidade, processados e jul-
gados pelo Supremo Tribunal Federal e, nos conexos com os do presidente da
República, pelos órgãos competentes para o processo e julgamento deste.” A
seguir, dispõe o art. 93: “São crimes de responsabilidade, além do previsto no
art. 54 (isto é, falta injustificada de comparecimento a qualquer das casas do
Congresso ou às suas comissões quando por elas convocados), os atos definidos
em lei (art. 89), quando praticados ou ordenados pelos ministros de Estado”.
O art. 89 e seu parágrafo único, por sua vez, declaram que são crimes de
responsabilidade, a serem “definidos em lei especial, que estabelecerá as nor-
mas do processo e julgamento”, os que atentarem contra a Constituição Federal
e, especialmente, entre outros, os que atentarem “contra o cumprimento das de-
cisões judiciárias”.
Finalmente, o art. 101, I, c, reafirma que ao Supremo Tribunal compete
processar e julgar originariamente “os ministros de Estado (...), assim nos crimes
comuns como nos de responsabilidade”, ressalvado apenas o disposto no final do
art. 92 (isto é, salvo quando, em se tratando de crimes de responsabilidade, sejam
conexos com os do presidente da República).
Assim concatenados os preceitos constitucionais, é fora de dúvida que os
crimes de responsabilidade dos ministros de Estado, ainda mesmo aqueles que
somente são definidos ou previstos na Lei 1.079, com a só cominação de perda do
cargo e inabilitação temporária para o exercício de qualquer função pública, são
privativamente processados e julgados pelo Supremo Tribunal.
Isso posto, dou pela competência deste Tribunal para conhecer do pre-
sente caso.
De meritis:
O fato imputado ao Sr. ministro da Fazenda não constitui crime de espé-
cie alguma, e isto pela singela razão de que o mandado de segurança de que se
trata não foi concedido contra ele, mas contra a Carteira de Comércio Exterior,
como substituta da Cexim. É verdade que o Decreto 34.893, de 5-1-1954, que re-
gulamentou a Lei 2.145, de 28-12-1953, determinou que o ministro da Fazenda
assumiria a direção do acervo da extinta Cexim, para os fins da liquidação do
mesmo acervo e competência para decidir sobre pedidos de licença protocolados

184
Ministro Nelson Hungria

anteriormente na mesma Cexim; mas não é menos verdade que tal determinação
exorbitou da lei regulamentada, em cujas linhas ou entrelinhas não se autori-
zava semelhante medida. O que a Lei 2.145 deixou bem claro é que a Carteira
de Comércio Exterior era criada em substituição à extinta Cexim.
Não se compreende, portanto, que, à margem da lei, o regulamento fosse
determinar que, na fase de liquidação da Cexim, esta ficaria substituída pelo
ministro da Fazenda. Tal competência só seria admissível se houvesse a respeito
algum dispositivo transitório da Lei 2.145. E como não existe tal dispositivo,
para solução de questões afetas à Cexim, antes da Lei 2.145, há de caber à pró-
pria Carteira de Comércio Exterior a competência para tanto.
A ordem expedida pelo Dr. Juiz da 2ª Vara da Fazenda Pública tinha de
ser endereçada, como foi de início, à Carteira de Comércio Exterior, e por esta
é que terá de ser cumprida, como, aliás, já acentuou o Sr. presidente do Tribunal
Federal de Recursos. Admita-se, porém, que assim não seja, devendo o art. 55 do
Decreto 34.893 ser atendido como nele se contém, porque corolário da Lei 2.145.
O raciocínio, então, seria o seguinte: como, ao proferir a sentença, já
estava em vigor o Decreto 34.893, o Dr. juiz errou: em vez de se declarar in-
competente, remetendo os autos ao Tribunal Federal de Recursos, concedeu o
mandado contra a Carteira de Comércio Exterior; e é certo que, na execução
da sentença, não poderia emendar a mão, determinando que o mandado fosse
cumprido pelo ministro da Fazenda. Salvo os casos do art. 888 do Código do
Processo Civil, que não ocorrem na espécie, a sentença somente se executa
contra o vencido. A ordem expedida contra o ministro da Fazenda terá sido,
portanto, uma ordem ilegal, e ordens ilegais não se cumprem.
Por último, é preciso advertir que o Dr. juiz representante tem uma noção
inexata dos crimes de prevaricação e desobediência.
A prevaricação exige, como dolo específico, o fim de satisfazer “interesse
ou sentimento pessoal”.
Interesse pessoal é o interesse privado, econômico ou moral, e sentimento
pessoal é a afeição, o ódio, o espírito de vingança, a parcialidade, a obsequiosi-
dade, a benevolência, o favoritismo, etc. Assim se resumiam, em outros tempos,
os motivos do crime que hoje se chama prevaricação: cupiditas, amor, odium,
obsequium. Dizer-se que o propósito do Sr. ministro da Fazenda de salvaguar-
dar a sua autoridade, por entender que não está sujeito, na espécie, à jurisdição
de juízes de primeira instância, traduz ou revela o “sentimento ‘pessoal’ a que
se refere a lei, é confundir sentimento com entendimento, o affectus com o ra-
ciocínio lógico, para interpretar aberrantemente o art. 319 do Código Penal.

185
Memória Jurisprudencial

No tocante à desobediência, esqueceu-se o Dr. juiz que tal crime, em face da


nova lei penal, só é praticável por particular contra funcionário público. O art. 330 do
Código Penal figura no capítulo sob a rubrica “Dos crimes praticados por particular
contra a administração em geral”. Não há crime de desobediência entre membros da
administração em geral, nas suas relações oficiais, haja ou não hierarquia entre eles.
No caso vertente, se o ministro da Fazenda, como tal, tivesse descumprido ar-
bitrariamente a decisão judicial, o crime seria o de responsabilidade previsto na Lei
1.079, e não o de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.
Meu voto, Senhor Presidente, é no sentido de deferir o arquivamento desta
imponderada representação, como pede o Dr. procurador-geral da República.

REPRESENTAÇÃO 212 — DF
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, fiel aos meus votos em ca-
sos análogos, entendo que nenhum Município pode ser desmembrado sem que haja
o seu prévio consentimento seja por que forma for, sob pena de subversão do regi-
men de self- government que a vigente Constituição assegura aos Municípios. Tirar
território a um Município pode significar até mesmo a supressão de sua capacidade
de sobrevivência, e, portanto, não se compreende que, sendo ele, no caso, o máximo
interessado, não seja ouvido. É preciso por termo à política de esfacelamento dos
Municípios, que, na prática, tem dado os mais lamentáveis resultados. E contra ela se
ergue, no meu entender, a Constituição de 46.
Julgo procedente a representação, data venia do eminente Sr. ministro relator.

AÇÃO RESCISÓRIA 215 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não há dúvidas que
a nossa lei civil consagra o princípio da saisine, isto é, da transmissibilidade
da herança aos herdeiros, seus titulares, desde que ocorra a morte do de cujus.
Realmente, assim sendo, quando sobreveio a lei sobre herança jacente, já o direito
sucessório se incorporara ao patrimônio dos herdeiros no caso vertente.

186
Ministro Nelson Hungria

Ocorre, porém, de outro lado, que a lei citada foi promulgada numa época em
que era permitido atribuir-se efeito retroativo à lei. Tal efeito teria de ser reconhecido
quando a própria lei trouxesse em seu texto a cláusula da retroatividade. É o que
ocorreu com a lei em questão: dela constava cláusula determinativa da sua própria
aplicação aos casos, pendentes aos processos em curso. Não há indagar se a lei sobre-
veio ou não antes da partilha. Também entendo que a partilha é meramente declara-
tória, e não constitutiva de direito. Isso, porém, está à margem da discussão. O ponto
principal, o punctum saliens, é o de que a lei em questão podia ter o efeito retroativo
que ela mesma se atribuía porque, então, não era isso vedado.
Nestas condições, julgo improcedente a ação rescisória, nos termos dos votos
dos eminentes ministros relator e revisor.

REPRESENTAÇÃO 243 — BA
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em face da Lei 2.271, de
1954, ao que se infere de um de seus artigos, o mandado de segurança, no Supremo
Tribunal, admite embargos, quando não unânime a decisão.
O legislador aí, é certo, tratou do assunto que não corresponde à epígrafe da
lei. Não me parece se possa deduzir desse artigo que o processo relativo à represen-
tação sobre inconstitucionalidade, formulada pelo Sr. procurador-geral da República,
tenha o mesmo processo do mandado de segurança.
O Sr. Ministro Edgard Costa: É o que determina a lei, no art. 4º.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Vossa Excelência leia o artigo.
O Sr. Ministro Edgard Costa: Qual é a lei?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não a tenho aqui, estou citando de me-
mória. Interpretou assim o artigo referido por Vossa Excelência: os mandados
de segurança, de competência originária do Supremo Tribunal, e da data desta
lei em diante, admitem embargos.
Não entendo que tal dispositivo tenha aplicação ao caso de representação so-
bre matéria constitucional, embora figure em lei que trata de tal assunto.
Conheço da representação de inconstitucionalidade, que não está sujeita à
prescrição ou decadência.

187
Memória Jurisprudencial

REPRESENTAÇÃO 248 — SP

Lei paulista 2.970, de 6-4-1955; sua inconstitucionalidade.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Verifica-se, para logo, que a ques-
tionada Lei paulista 2.970, de 1955, no seu art. 1º, reproduz ampliativamente o art.
1º da Lei federal 2.284, de 9-8-1954. Esta se refere tão somente aos extranumerá-
rios mensalistas, enquanto a lei paulista abrange também os “diaristas”.
É preciso, porém, não esquecer que o dispositivo da referida lei federal foi
vetado pelo Sr. presidente da República e sua constitucionalidade ainda não foi
reconhecida pelo Poder Judiciário. A questão, portanto, continua “aberta”.
Tenho para mim que, realmente, a lei paulista é manifestamente inconstitucional.
Ao declarar, no seu art. 1º, que os extranumerários mensalistas e diaristas
“serão equiparados aos funcionários efetivos para todos os efeitos”, importou,
necessariamente, em criar “cargos”, pois, na ausência destes, tendo-se em vista o
capítulo da Constituição Federal sobre os funcionários públicos, não há falar-se
em efetivação e estabilidade, e, muito menos, em estabilidade sem efetivação.
Não há, assim, pretender iludir o texto da lei paulista, dizendo-se que ela não
efetivou os extranumerários, se não apenas os tornou estáveis. Se os extranumerários
foram equiparados aos funcionários efetivos para todos os efeitos. É claro que teriam
de adquirir efetividade, e somente desta poderia decorrer o direito à estabilidade.
Ora, repita-se, efetividade e estabilidade não são possíveis sem a existência de
cargo; logo, a lei criou tantos cargos quantos fossem os extranumerários com mais de
cinco anos de serviço. Não vale invocar a lei estatutária dos funcionários, segundo a
qual a estabilidade “diz respeito ao serviço público e não ao cargo”.
O que aí se quer dizer é que a estabilidade não se opera no cargo, podendo
o respectivo titular ser removido para outro. De modo algum, quer significar que
possa existir estabilidade sem cargo. Assim, importando em criação de cargos, a
lei em questão dependia de iniciativa do chefe do Executivo.
Nem se diga que leis federais (entre as quais o próprio Estatuto dos
Funcionários Civis da União) já adotaram medida idêntica à da lei paulista,
como, por exemplo, no caso dos extranumerários participantes da Força
Expedicionária, porque, ou emanaram do legislador federal constituinte, que é
soberano, ou tiveram a iniciativa do chefe do Executivo; ou não foram por este
vetadas, ao contrário do que ocorreu no caso vertente.

188
Ministro Nelson Hungria

A lei paulista, além de criar cargos, usurpou função do Poder Executivo,


ao prover, ela própria, os extranumerários nesses cargos, determinando obrigato-
riamente apostilas e expedição de títulos. Ainda mais: transformou salários em
vencimentos, estes com algarismos superiores aos daqueles, pois nem todos os
mensalistas ganhavam o mesmo provento que os titulares dos cargos efetivos e os
diaristas somente percebiam por dia de trabalho prestado.
Assim, em face do dispositivo expresso da Constituição estadual, que é
a reprodução do art. 67, § 2º, da Constituição Federal, a que aquela estava ads-
trita, em razão do art. 18 desta, era indispensável a iniciativa ou aquiescência
do Poder Executivo.
Não é preciso dizer mais para evidenciar a inconstitucionalidade da Lei
paulista 2.970, de 6-4-1955.
Neste sentido é o meu voto.

REPRESENTAÇÃO 249 — SC

Art. 124, I, da Constituição Federal; quando aí se atribui ao


Tribunal de Justiça a proposta de alteração da organização judiciá-
ria estadual, mesmo no correr do quinquênio, deve entender-se que
tal iniciativa não precisa de ser acompanhada do placet do chefe do
Executivo, ainda quando a alteração importa criação de cargos.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Quando, no art. 124, I, a Constituição
Federal, depois de assegurar a intangibilidade quinquenal da organização judici-
ária, ressalva o caso de intercorrente proposta motivada do Tribunal de Justiça,
está, necessariamente, atribuindo a este, com exclusividade, a iniciativa, perante o
Legislativo estadual, da alteração da dita organização, pouco importando que tal
alteração envolva criação de cargos. De outro modo, isto é, se fosse indispensável
o prévio assentimento do Executivo, quando a proposta do Judiciário implicasse a
criação de cargos, aplicando-se o disposto no § 2º do art. 67 da mesma Constituição,
o desacordo do Executivo criaria um impasse, e estaria praticamente anulada a prer-
rogativa do Judiciário. O art. 124, I, da Magna Carta, quando ressalva a proposta do
Judiciário, não a restringe, de modo algum, ao placet do Executivo, nem poderia
restringi-la, sob pena de torná-la inócua, toda vez que com ela não concordasse o
Executivo. A anomalia ocorrida no caso vertente bem revela a inadmissibilidade da

189
Memória Jurisprudencial

tese sustentada pelo Sr. governador de Santa Catarina e apoiada pelo Sr. procurador-
-geral da República: o Sr. governador sancionara a criação de comarcas, mas vetara,
por haver sido omitida a sua iniciativa, a criação dos respectivos cargos de juiz,
promotor e demais funcionários imprescindíveis à existência funcional das novas
comarcas. Seria este o “beco cego”, a que frequentemente se teria de chegar, se pre-
valecesse o critério de distribuir a iniciativa de criação de comarcas e a de criação
dos correspondentes cargos, respectivamente, entre o Judiciário e o Executivo. Não
é aceitável que a Constituição, ao mesmo tempo que outorgava uma prerrogativa ao
Judiciário, subordinasse esta ao placet do Executivo, abstraindo que ceci tuera cela.
Tenho para mim que a lei catarinense em questão não merece a coima de
inconstitucional.
Julgo improcedente a representação.

AÇÃO RESCISÓRIA 270 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Revisor): Homologo a habilitação incidente e
julgo improcedente a rescisória, que chega a assumir o caráter da lide temerária. A ar-
guida suspeição do juiz de primeira instância, justamente repelida pela decisão rescin-
denda, fora anteriormente suscitada pela ora ré e combatida pela parte contrária, que
agora pretende desertar de um ponto de vista, porque não alcançou ganho de causa.
Não houve infringência alguma de coisa julgada. A absolvição do investi-
gando João Rodrigues Alves pelo juiz, reconhecido que o mesmo não fora o sedutor
da mãe da investigante, ora ré, não exclui, de modo algum, o reconhecimento da
existência de relações sexuais entre ambos, ao tempo da concepção da investigante.
O que se qualifica de violação do art. 363, n. 2, do Código Civil não é mais do
que o ter sido admitida, em face da prova, a existência dessas relações sexuais.
Finalmente, não há reconhecimento judicial algum da alegada falsidade das
testemunhas e laudo pericial. As testemunhas cujo processo criminal teve lugar por
provocação da antecessora dos ora autores foram absolvidas de primeira instância,
e, tendo havido apelação, foi julgada prescrita a ação penal. No tocante aos peritos
também acoimados de falsidade, foram igualmente absolvidos.
Julgo improcedente a ação.

190
Ministro Nelson Hungria

REPRESENTAÇÃO 406 — RN
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não somente o preceito
constitucional que determinou a eleição do prefeito, em substituição ao regime de
nomeação pelo chefe do Executivo estadual, como a lei ordinária que retirou do
chefe do Poder Executivo a atribuição de nomear prefeito estão necessariamente
condicionados à ulterior eleição do prefeito. São dispositivos legais subordinados
a uma condição suspensiva, isto é, dependerá a sua execução da superveniente
eleição do prefeito, porque, de outro modo, nesse meio tempo, como seria suprido
o cargo de prefeito, acaso o anterior falecesse ou terminasse o cargo?
O Sr. Ministro Vilas Boas: A lei local que assume o vice-presidente da Câmara.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Isso é no regime eletivo pleno, em que não só
o Poder Legislativo como o Poder Executivo são eleitos.
O Sr. Ministro Ary Franco: Mas a Câmara é eleita.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Em meu voto na Rp 179, de São Paulo,
acentuei isto:
(...) é assente, em direito público e administrativo, o critério de continui-
dade da administração pública, de modo que em casos de reforma que acarrete
alteração nas condições de investidura dos respectivos titulares, estes permane-
cem provisoriamente nos cargos, à proporção que forem tomando posse os novos
titulares. É um princípio pacífico, imposto pelo interesse geral.
No caso vertente, entretanto, afirma-se que não pode ser aplicado esse
princípio, por isso que a lei constitucional estadual ou a orgânica dos Municípios
determina que, na falta do prefeito e do vice-prefeito, deverá assumir o cargo o
presidente da Câmara municipal. Entretanto, os dispositivos constitucionais ou
legais invocados dizem com um sistema que obedece a um complexo orgânico de
motivos, e condições a que se alheia o caso em debate.
A substituição atribuída ao presidente da Câmara municipal é, antes de
tudo, referida a prefeito ou vice-prefeito eleitos. Na hipótese de que hora se trata,
não existe presidente ou vice-prefeito eleito. Não é admissível que se aplique um
sistema fora de sua órbita, fora dos motivos e condições que o inspiraram e dita-
ram. É formulável uma hipótese perfeitamente plausível: se aqueles que elegeram
o atual presidente da Câmara municipal de São Paulo soubessem, tivessem a cons-
ciência de que ele poderia vir a ser, eventualmente, o prefeito da capital paulista,
talvez não o tivessem elegido. Basta essa hipótese para mostrar que não é aceitável
o entendimento que a Câmara municipal de São Paulo quer dar ao caso. Não pode
deixar de redundar em incongruências a aplicação de um sistema à margem das
razões condicionantes de sua atuação.
Entre os argumentos válidos expendidos em torno do presente caso, há um
que me impressionou profundamente e me leva à conclusão da improcedência da
representação: é o de que, com o advento da Lei federal 1.720, as condições atuais
em que se acha a Municipalidade de São Paulo é como se existissem ao tempo da
promulgação ou início de vigência da Constituição de 1946, devendo o caso,
191
Memória Jurisprudencial

portanto, ser regulado pelo art. 12 das Disposições Constitucionais Transitórias,


que expressamente dispõe:
“Os Estados e os Municípios, enquanto não se promulgarem as
Constituições estaduais, e o Distrito Federal, até ser decretada a sua lei or-
gânica, serão administrados de conformidade com a legislação vigente na
data da promulgação deste Ato.”
Quero, porém, admitir, Senhor Presidente, que não se encontre para o caso
uma solução incensurável, quer em face da Constituição Federal, quer em face da
lei estadual. Se, por um lado, o presidente da Câmara só é substituto do prefeito
quando este é eleito, não haveria, por outro lado, um preceito categórico, positivo,
iniludível, no sentido da continuação do prefeito nomeado. Estaríamos, assim,
numa situação de perplexidade. E como resolver a questão?
Há um velho princípio de sabedoria que assim nos aconselha: in dubio abs-
tine. Na dúvida, abstém-te.
Deixemos, portanto, a situação como está e aguardemos o advento do fato
que será a solução radical e inquestionável do caso, isto é, a futura posse ou inves-
tidura do prefeito cuja eleição já está marcada.

Embora o caso concreto, o caso vertente não tenha as mesmíssimas carac-


terísticas do de São Paulo, insisto neste meu argumento: enquanto não se realiza-
rem as eleições, estaremos em face de uma condição suspensiva, porque não só
o preceito constitucional como a lei ordinária estão condicionados, necessaria-
mente, à ulterior eleição do novo prefeito.
Do contrário, de onde surgiria o prefeito?
O Sr. Ministro Vilas Boas: Por analogia, aplica-se o art. 94 da Constituição
estadual.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: De modo nenhum. Vossa Excelência está to-
mando uma regra de outro regime, isto é, em que todo o governo municipal é eletivo.
No caso, há uma anomalia: o prefeito era nomeado, e agora a Constituição
determina que ele seja eleito por cinco anos.
Mas, enquanto não for eleito o titular da prefeitura, evidentemente há de con-
tinuar a atribuição do chefe do Executivo estadual, de fazer a nomeação do prefeito,
sob pena de ficar acéfala a prefeitura.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Não ficaria acéfala a prefeitura.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A única solução que se poderia admitir
seria a pleiteada pelo próprio representante: que assumisse o cargo o presidente da
Câmara municipal. Mas esta substituição a lei só admite, só prescreve, quando se
trata de um regime total de eleição.
Nestas condições, data venia, sinto muito discordar do eminente Sr. ministro
relator: julgo improcedente a representação.

192
Ministro Nelson Hungria

REPRESENTAÇÃO 414 — PR

Lei 8, de 12-2-1959, do Estado do Paraná; sua inconstituciona-


lidade. Criou cargos e aumentou vencimentos sem iniciativa do chefe
do Executivo estadual e sem que fornecesse os recursos necessários à
própria execução.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): É fora de dúvida que a Lei para-
naense 8, de 1959, criou cargos e aumentou vencimentos, sem iniciativa do Sr. go-
vernador do Estado e sem que fornecesse os recursos necessários à sua execução.
Manifesta, portanto, é a sua inconstitucionalidade. E neste sentido é o meu voto.

REPRESENTAÇÃO 423 — RJ
PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Peço vista, Senhor Presidente.

DECISÃO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: adiado o julgamento, por pedido
de vista do Sr. ministro Nelson Hungria, após votar pela improcedência da represen-
tação do Sr. ministro relator.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Quando para a formação de novo Município
se desmembram de outro ou outros territórios correspondentes a distritos, tem que
ser consultado separadamente, mediante plebiscito ou outro processo adotado pela
Constituição estadual ou lei orgânica dos Municípios, o eleitorado de cada distrito. A
Constituição fluminense, ao dizer, na espécie, que “no plebiscito votarão os eleitores
do território que deva constituir o novo Município”, não abrange, evidentemente,
o caso em que se acham interessados dois distritos inteiros. Como justamente ar-
gumenta o preclaro advogado do Município, “se os territórios, como na espécie,
são dois e constituem duas unidades administrativas distintas, a manifestação de
cada qual há de ser contada separadamente, pois, de outro modo, a unidade elei-
toralmente mais forte pode arrastar a outra, de opinião contrária”. Trata-se de dois
territórios constituindo bases espaciais de dois distritos, cada qual com interesses
peculiares e condições próprias. Há que adotar, em tal hipótese, o mesmo critério
193
Memória Jurisprudencial

que a Constituição Federal determina para a fusão de dois ou mais Estados, isto é, a
aprovação plebiscitária de cada qual das populações interessadas, ou o critério esta-
belecido pela lei orgânica dos Municípios fluminenses para o caso de fusão de dois
ou mais Municípios confrontantes, isto é, a manifestação favorável da maioria dos
eleitores de cada uma das entidades municipais em causa. Ora, no caso vertente, a
manifestação de um dos distritos desmembrados do Município de Vassouras para
constituir o novo Município de Engenheiro Paulo de Frontin, isto é, o distrito de
Sacra Família de Tinguá, foi contrária ao seu desmembramento. Dos 435 votantes
que compareceram, 252 se pronunciaram contra a emancipação.
Isso posto, não tenho dúvida em julgar procedente, em parte, a representação,
pois reconheço que a Lei fluminense 3.785, de 25-11-1958, violou a autonomia do
Município de Vassouras, e a declaro, portanto, inconstitucional, devendo ser nova-
mente incorporado ao dito Município o distrito de Sacra Família do Tinguá.

VOTO
(Retificação)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, melhor esclarecido diante
do voto do eminente Sr. ministro Cunha Mello, verifico o seguinte: votara eu, ante-
riormente, apenas no sentido da inconstitucionalidade da união do distrito de Sacra
Família do Tinguá ao distrito de Paulo de Frontin, para formar-se um Município;
mas, reconhecida a insubsistência de tal união, é força reconhecer que, sozinho, o
distrito de Paulo Frontin não oferecia as condições mínimas necessárias para sua
elevação a Município.
Assim, retifico meu voto, no sentido de admitir a procedência total da
representação.

REPRESENTAÇÃO 432 — PE
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que, se
admito a possibilidade da retratação de um veto, a lógica nos levaria à conclusão de
que o governador poderia, igualmente, revogar a sanção, desde que ainda não expi-
rado o prazo que tinha, para esta.
É verdade que houve um acordo, uma entente entre a Assembleia Legislativa
e o governador, mas, quando estão em jogo interesse público e um preceito consti-
tucional, em face do qual não é possível que dois Poderes se entendam, para que um

194
Ministro Nelson Hungria

interfira na órbita do outro, não pode haver essa transação ou acomodação recíproca.
A Assembleia Legislativa, ao receber o veto do governador, não podia, a seguir, re-
nunciar o direito de apreciá-lo, para aceitá-lo ou rejeitá-lo.
Assim, estou de acordo com o voto do Sr. ministro relator.

RECURSO CRIMINAL 993 — GO

Em face atual lei de segurança, já não constitui crime contra


a ordem político-social a injúria ao Poder Público.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já manifestei, em ou-
tra oportunidade, meu voto radicalmente contrário à interpretação no sentido de
que o inciso 25 do art. 3º do Decreto-Lei 431, de 1938, quando fala em injuriar,
compreende a própria calúnia. Não posso admitir semelhante interpretação,
data venia do eminente ministro Orozimbo Nonato, que a defende convencida-
mente. O nomem juris “injúria” só foi usado, em sentido lato, no direito romano
e no primeiro período da Idade Média. Daí por diante, sempre se distinguiu, ni-
tidamente, entre injúria e calúnia. Injúria é o impropério, o xingamento, o termo
ultrajante, e calúnia é a imputação falsa do fato que constitua crime.
Não é possível que, a esta altura do tempo, se use o termo “injuriar” como
abrangendo não somente o simples vilipêndio, senão também a falsa imputação
de crime, como se ainda pudéssemos repetir o versículo romanístico, de que
omnem que injuriam aut in corpus inferri, aut ad dignitatem aut ad infamiam
pertinere.
Outro argumento que me leva a rejeitar essa interpretação é o de que não
era admissível, no caso do citado inciso da antiga Lei de Segurança, a exceptio
veritatis. O que aí se punia era o desrespeito, a afronta, o desprestígio ocasio-
nado ao titular do Poder Público. Ora, a inadmissibilidade da exceptio veritatis
estava a indicar a exclusão da calúnia, a que é inseparável essa causa excludente
de ilicitude penal. Se se apresentasse a calúnia, o fato teria de ser enquadrado
na lei penal comum, para admitir-se a exceptio veritatis, que é do máximo in-
teresse público.
Tal discussão, porém, no caso vertente, tornou-se ociosa, porque, com-
preendida ou não a calúnia no termo “injuriar” usado no inciso 25 do art. 3º do
Decreto-Lei 431, o certo é que o fato ali previsto não constitui mais crime contra

195
Memória Jurisprudencial

a segurança do Estado ou a ordem político-social. A Lei 1.802, de 1953, já não


inclui entre os crimes de tal natureza o injuriar o Poder Público ou seus agentes.
Assim, nego provimento ao recurso, porque o fato deixou de ser crime, porque
ocorreu, supervenientemente, a abolitio criminis. Restaria a qualificação do fato
como crime previsto na Lei da Imprensa, mas crime que tem processo especial,
que deve ser julgado por júri especial, com recurso direto para o Tribunal de
Justiça do Estado. E isso mesmo foi ressalvado na sentença do juiz, que eu subs-
creveria com vaidade, tal a mestria e incensurabilidade de seus termos.
Nego provimento ao recurso.

RECURSO CRIMINAL 1.024 — RJ


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já antes do Sr. minis-
tro relator emitir o seu voto, quisera pedir a palavra pela ordem, para focalizar
aspectos que reputo preliminares ou processuais, para o julgamento deste feito.
O primeiro deles é concernente à suspeição, que foi arguida ao juiz pro-
cessante e de que se não cogitou.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Foi provado isso?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A defesa, conforme ouvimos, afirmou,
categoricamente, que arguiu a suspeição.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Parece que não, porque o memorial que re-
cebi não o diz.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Sr. ministro relator poderá informar a
respeito.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Na defesa prévia do acusado,
vejo o seguinte: (lê).
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não foi, então, processada a exceção.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Para se ver qual o tribunal competente, para
julgar a exceção de competência, teremos antes de examinar se o crime é polí-
tico, ou não.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Quando o juiz desclassificou o
delito, para crime político, determinou fosse reaberto o prazo, para a defesa e
indicação de testemunhas.

196
Ministro Nelson Hungria

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Além do art. 410, aplicou o art. 384.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Há, porém, outro aspecto, Senhor
Presidente, que considero decisivo para a solução do caso pendente e que não
foi apreciado pelos eminentes ministros que me precederam na votação.
Admitimos que o crime previsto na letra c do art. 6º da Lei 1.802 não seja
um crime coletivo, um crime que exija pluralidade de agentes e que também não
exija dolo específico, isto é, o fim de hostilizar o Estado ou a ordem político-so-
cial; admitamos que ele pudesse ter sido praticado por um único agente (e, aliás,
no regime do Código de 1890 e mesmo no regime da primeira lei de segurança
nacional, eu entendia que era admissível, na espécie, a unidade de agente, pois
um indivíduo sozinho, com uma bomba de dinamite, é capaz de impedir, transi-
toriamente, até mesmo o funcionamento de uma das casas do Congresso) e que
baste, no caso, o dolo genérico, ou, seja, a simples consciência de que a vítima é
um magistrado, sendo indiferente o fim do agente.
Acontece, porém, o seguinte: a letra c do art. 6º da Lei 1.802 não cuida,
não cogita da hipótese em que, do atentado à vida do magistrado, resulte morte.
Ao contrário do que ocorre na letra b, em que chega a ser cominada a pena
máxima de trinta anos de reclusão, a letra c não fala em evento “morte” e não
ultrapassando de doze anos de reclusão a pena aí cominada.
É bem de ver que, a entender-se compreendido aí o evento “morte”, seria
de todo absurdo que a atual lei de segurança considerasse o homicídio de um
magistrado, deputado ou senador, crime merecedor de menor pena que o homi-
cídio de outra pessoa.
Assim, Senhor Presidente, quando, em tal hipótese, ocorrer o evento
“morte”, o fato passa a ser disciplinado pela cláusula final do dispositivo: “se
o fato não constituir crime mais grave”. Se o fato constitui crime mais grave,
como quando ocorre o evento “morte”, que é que se apresenta? Homicídio do-
loso, que passa a ser enquadrado exclusivamente no art. 121 do Código Penal,
caput ou § 2º, cabendo o julgamento não ao juiz singular, mas ao Tribunal do
Júri, ut art. 141, § 28, da Constituição.
Dir-se-á que, mesmo reconhecido na espécie o homicídio doloso, não
deixaria de se tratar de crime político. Quid inde? Nem por isso teria de cessar
a competência do Júri, como primeira instância. Se o contrário dispusesse a Lei
de Segurança, seria inconstitucional.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O homicídio doloso é punido, na
primeira instância, pelo juiz singular, enquanto que, na segunda, pelo Supremo
Tribunal.

197
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Nelson Hungria: O homicídio doloso não pode ser afe-
tado à competência do juiz singular, salvo na hipótese de jurisdição especial.
Somente o tribunal popular é que poderá julgar o caso. Não se trata de crime
complexo, como afirmou o ilustre advogado do paciente, a afastar o homicídio
doloso da classe dos crimes contra a vida. Ainda que com caráter político, o
crime será naturalmente uno. Mesmo, porém, que se tivesse de reconhecer, de
par com o homicídio doloso, o crime de rebelião, a regra a aplicar seria a de
concurso material, como expressamente determina o art. 39 da Lei 1.802, de
1953, e, assim, a jurisdição do Júri seria prevalente, em face da Lei 263, de 1948,
modificativa do Código de Processo Penal.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Vossa Excelência, então, declara inconstitu-
cional toda a Lei 1.802. O crime doloso contra a vida, sendo tentativa ou consu-
mado, seria da competência do Júri.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não tenho a menor dúvida: toda vez que
ocorra o evento “morte”, isto é, se do atentado resulta morte, apresentando-se
homicídio consumado ou tentado, a jurisdição competente é a de tribunal popu-
lar. Nem outra coisa dispõe a Lei 1.802, no seu art. 42, parágrafo único.
Vossa Excelência afirmou que há incompatibilidade entre a soberania do
Júri e a do Supremo Tribunal? De modo algum. O Supremo Tribunal, na espé-
cie, passa a funcionar como tribunal de apelação, e tem de respeitar a soberania
do Júri, que é preceito constitucional. A Lei 1.802 dispõe, na espécie, que é
competente a Justiça ordinária, com recurso para o Supremo Tribunal...
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Há preceito constitucional
dando competência ao Supremo Tribunal Federal, para julgar os recursos ordi-
nários de crimes políticos.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas isso não quer dizer que, no caso de
homicídio doloso, deixe de ser este julgado pelo Tribunal do Júri.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Vossa Excelência quer fazer res-
trição, limitação, que não existe na lei.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Supremo Tribunal, no caso, funciona
como se fosse tribunal de apelação, e terá de render-se diante a decisão dos sete
juízes leigos, pelo menos quando do segundo julgamento.
O Sr. Ministro Ary Franco: Aplica-se ao Supremo Tribunal a regra do
Código de Processo Penal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Perfeitamente. É o que diz o parágrafo
único do art. 42 da Lei 1.802. O homicídio doloso somente deixa de ser da com-
petência do Júri quando se apresenta jurisdição especial, como sejam a militar, a
eleitoral e a decorrente de prerrogativa de função. Diariamente, em julgamento
198
Ministro Nelson Hungria

de recursos extraordinários, está o Supremo Tribunal cedendo ante a soberania


do tribunal de jurados.
Não podemos, aqui, decidir contra o entendimento do Júri, como se de
maior grau fosse a soberania do Supremo Tribunal...
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Quando não haja infração do
texto da lei federal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É clara toda argumentação que estou
expondo, Senhor Presidente, e formulada no pressuposto de que se trata, na es-
pécie, realmente, de crime político. A verdade, entretanto, é que o crime atribu-
ído ao paciente não pode ser reconhecido como tal, isto é, como crime contra o
Estado ou a ordem político-social. Crime político será o atentado contra a vida
de magistrado quando, por exemplo, os agentes visam a eliminar no juiz um
órgão do regime político ou a prática de um ato de “terrorismo”.
No caso concreto, o paciente não eliminou, na vítima, o presidente do
Tribunal fluminense, como tal ou porque tal. O que ele fez foi eliminar um ci-
dadão que, na qualidade de presidente do Tribunal fluminense, estava, no seu
entender, prejudicando os seus interesses patrimoniais, confessáveis ou não, e
ofendendo o seu brio funcional ou de homem. O paciente não teve a intenção,
de modo algum, de derrubar um “pilar” do Estado, um elemento da ordem
político-social...
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Praticou o crime em represália
de ato de ofício da vítima.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não importa isso, por si só, para decidir
da classificação política do crime. O paciente praticou o crime, não para aba-
ter um sustentáculo do regime, mas para destruir um seu inimigo pessoal, que
estaria lesando os seus interesses econômicos e morais. Este, o motivo e o fim
do crime. Não importa que este tenha sido praticado por ocasião e em razão de
ato de ofício da vítima. O paciente não se conformava com a atitude do seu su-
perior hierárquico, que estava disposto a imprimir honestidade e disciplina no
serviço da Secretaria do Tribunal fluminense. Sentindo-se atingido na sua bolsa
e profundamente desrespeitado, resolveu reagir pela violência. Nenhuma fina-
lidade política, nenhum objetivo nobre. Seu crime, revestido de extrema covar-
dia, obedeceu apenas a sentimentos subalternos, quais os de cobiça contrariada
e odiento despeito. Crime tipicamente comum. Assoalha-se que o Supremo
Tribunal, na sua alta função política, deve examinar cada caso em concreto, de
acordo com os aspectos que apresente, para melhor salvaguardar o interesse
geral, ainda que, para isso, tenha de contornar o rígido texto legal. Assim, no
caso de que se trata, deve impedir que um sicário da pior espécie, o covarde ma-
tador de um insigne magistrado, seja julgado pelo Júri, que, na sua sistemática

199
Memória Jurisprudencial

frouxidão, o absolvera. É verdade, Senhor Presidente, que o Tribunal do Júri é


uma falência irremediável. O Tribunal do Júri, no Brasil, é uma vergonha, um
atentado à nossa civilização jurídica. Somente condena, ainda mesmo os ino-
centes, quando a imprensa sensacionalista o reclama ou as paixões políticas o
exigem. Será inútil para reabilitá-lo a “Semana do Júri”, que se está anunciando
para estes próximos dias, pois não é possível galvanizar-se um cadáver em
putrefação.
Mas, Senhor Presidente, não é possível que neguemos a lei, que negue-
mos um preceito constitucional, claro, preciso, categórico, iniludível, no sentido
de que, toda vez que se apresentar um homicídio doloso, a não ser nos casos de
jurisdição especial, o único competente para o julgamento é o Tribunal do Júri.
Não podemos abstrair esse imperativo preceito constitucional, por ocasional
interesse coletivo. Não posso admitir, aliás, que, não obstante a ruína, o descré-
dito, a desmoralização do Tribunal do Júri, o de Niterói tenha a frontosa audácia
de apreciar o caso vertente com a indulgência prostitucional que caracteriza o
contubérnio dos juízes de fato.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Incompreensível esse receio
de ser o paciente julgado pela Justiça comum singular e, não, pelo Tribunal do
Júri. Cuida-se de uma questão de princípio o julgamento pelo tribunal popu-
lar ou teme-se a Suprema Corte, onde o réu deixaria de desfrutar das mesmas
facilidades?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não é possível, Senhor Presidente, que,
pelo receio de o Júri absolver o recorrente, que é, ao que se diz, um homem de
largo círculo de amizades em Niterói, se negue, com os dedos em cruz, um pe-
remptório dispositivo constitucional.
Senhor Presidente, eu desejava que o Dr. juiz da primeira instância,
que afirmou funcionar, no caso, como condição de maior penalidade, o evento
“morte”, apontasse o dispositivo da Lei 1.802 que determina essa majoração de
pena. Se não admitimos que o crime se enquadre exclusivamente, no art. 121 do
Código Penal, onde vamos classificá-lo? Fora daí, não existe dispositivo penal
em que se possa capitulá-lo.
A letra c do art. 6º refere-se a atentado de que não resulte morte. Não é
admissível identificar-se condição de maior punibilidade quando a lei não a de-
clara expresis verbis.
O Sr. Ministro Vilas Boas: A pena para esses casos é de seis a doze anos
para os cabeças e de três a oito para os demais agentes, se o fato não constituir
crime mais grave.

200
Ministro Nelson Hungria

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se não constituir crime mais grave. Aí


está. Se o fato constituir crime mais grave, não continuará enquadrado na letra
c do art. 6º. No caso concreto, tendo ocorrido homicídio doloso, o fato incide no
art. 121 do Código Penal, e nada mais.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Havendo o crime mais grave, a
pena será majorada.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Onde é que está isso? Vejamos o art. 39
da Lei 1.802.
O Sr. Ministro Ary Franco: Manda aplicar a regra do art. 55 do Código
Penal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se ocorrer, conexamente, crime comum,
manda aplicar, também, as penas deste.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Não haveria uma combinação?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Admitamos que houvesse um concurso
material, tal como na violência arbitrária, em que o agente responde pelo crime
contra a administração pública e, simultaneamente, pelo correspondente à vio-
lência. Em tal hipótese, ainda prevaleceria a jurisdição do Júri.
Toda vez que há concurso material, entre crime político e crime comum,
sendo este um homicídio doloso, funciona a força atrativa da jurisdição do Júri.
O Júri, na espécie, não poderia deixar de ser a primeira instância, e a segunda
este Supremo Tribunal.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: O Supremo Tribunal fica sujeito
às limitações do Júri?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Evidentemente, tem que respeitar a so-
berania do Júri, assegurada, de modo irrestrito, categórico, pela Constituição
Federal. Sempre que há crime político, em conexidade com homicídio doloso,
o Supremo Tribunal funciona como tribunal de apelação e fica adstrito ao pre-
ceito constitucional segundo o qual os veredictos do Júri são soberanos.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Se um desembargador mata, é submetido ao
Supremo Tribunal, competência ratione materiae. Se se trata de delito político
complexo com homicídio...
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não se trata de crime complexo. Ainda
mesmo reconhecendo-se caráter político ao fato em causa, não se tem de aplicar
o art. 39, que somente ad argumentandum eu chamei à colação. No caso, em
realidade, há um crime naturalmente único, ex vi, do próprio dispositivo da Lei
1.802 e que é um homicídio doloso.

201
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Vilas Boas: Se vem com o delito político, um homicídio, a


competência do Supremo é ratione materiae.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas o Supremo é, no caso, tribunal re-
cursal do Tribunal do Júri, pois êste é a primeira instância.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): É o art. 101, inciso II, letra c, da
Constituição determinando que, nos casos de crime político, o recurso ordinário
é do Supremo Tribunal, haja ou não morte.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Júri julga como primeira instância, e o
recurso é para aqui. Já disse isso três vezes.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Vai colidir com o princípio da
soberania do Supremo.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Supremo não pode jamais sobrepor-se
à soberania do Júri. O Supremo funcionará como tribunal de apelação...
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Então, desaparece a soberania
do Júri.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Só podemos apreciar as nulidades ou, por
uma vez única, se a decisão foi contra a prova dos autos.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Nos crimes políticos, o recurso
é para a Corte Suprema, sem cogitar de soberania.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Vossa Excelência acha que da decisão do
Júri, julgando crime político, não pode caber recurso para o Supremo Tribunal
Federal?
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Nesse julgamento, não aprecia-
mos a soberania; vamos, apenas, verificar se a decisão infringiu a lei federal.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Em se tratando de primeiro julgamento,
poderemos apreciar também o mérito; mas, depois, a soberania dos veredic-
tos do Júri obriga o próprio Supremo Tribunal. Não estou fazendo afirmação
gratuita.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Vossa Excelência fala com
grande autoridade.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não tenho autoridade de espécie alguma.
Tenho raciocínio perfeitamente idêntico ao de Vossa Excelência. Não levo van-
tagem alguma, mesmo em matéria penal, que é da minha predileção.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): É modéstia de Vossa Excelência.

202
Ministro Nelson Hungria

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Ainda mesmo que se tivesse de aplicar,


no caso, o art. 39 da Lei 1.802, repito, defrontar-se-iam a justiça do juiz singular
e a do Júri, e esta é que teria de predominar.
Senhor Presidente, é preciso que eu reitere a afirmação de que a Lei 1.802 não
cogita da hipótese em que ocorre o evento “morte”, em se tratando de atentado contra
a vida de magistrado.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Vossa Excelência sustenta que o crime não é
político?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Entendo que não é político, mas para argu-
mentar, admito que o seja. Admito, ainda mais, argumentandi gratia, que haja um
concurso material de crime político e crime doloso. Nem por isso a competência dei-
xaria de ser do Tribunal do Júri, dada, na espécie, a sua vis atractiva.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Com recurso para quem?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Para o Supremo Tribunal, é claro. Já afirmei
isso um ror de vezes.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Se é para o Supremo Tribunal, temos
que respeitar a soberania do Júri.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Sem dúvida alguma. O Supremo funciona
como tribunal de apelação.
O Sr. Ministro Barros Barreto (Relator): Terá que atender à soberania do Júri.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Tal como ocorre, quando o Supremo aprecia,
em recursos extraordinários criminais, decisões do Júri. Entendi, Senhor Presidente,
que devia acentuar aspectos ainda não ventilados do caso vertente. Fi-lo para evitar
a incidência em equívocos.
Data venia, dou provimento ao recurso, para que o réu seja pronunciado e
submetido ao julgamento do Tribunal do Júri.

EMBARGOS NO RECURSO CRIMINAL 1.032 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em quase todos os países
do mundo civilizado, há leis especiais atinentes aos chamados abusos de liberdade
de imprensa. Mas nenhuma dessas leis, em qualquer desses paí­ses, jamais monopo-
lizou todos os crimes praticados por meio da imprensa. Selecionam elas um certo

203
Memória Jurisprudencial

número de crimes, quando praticados por meio de imprensa, e, em torno deles,


estabelecem critérios e regras, cuja peculiaridade se acentua pelo privilegium
que passam a assumir tais crimes. Explica-se, assim, a tradicional distinção
doutrinária, no sentido de crimes de imprensa propriamente ditos e crimes de
imprensa impropriamente tais, isto é, aqueles crimes que, embora praticados
pela imprensa, não figuram na lei especial ou são deixados à lei comum.
Entre nós, não é exato que a Lei 2.083, de 1951, chamou a si a disciplina
legal em torno a todos os crimes praticados por meio da imprensa. Tenho em
mão uma tese recentíssima, sobre “direito penal da imprensa”, de Rui da Costa
Antunes, que com ela conquistou o primeiro lugar no concurso à cátedra de
direito penal da Faculdade de Direito do Recife, na qual o autor, embora defen-
dendo, de lege ferenda, a opinião daqueles que sustentam dever a lei especial
de imprensa abranger todos os crimes que possam ser praticados pela imprensa,
não vacila em reconhecer que perante o direito pátrio, mesmo após o advento da
Lei 2.083, os crimes não previstos taxativamente por esta, continuam punidos
pela lei ordinária. Diz ele:
Infrações penais há, que apesar de cometidas através da imprensa, são
descritas em outras leis que não a especial de imprensa.
Escapam, assim, ao direito penal de imprensa.
Por isso, limitar-nos-emos aqui a lembrar algumas figuras do que deno-
minamos infrações impróprias de imprensa:
a) Na Lei das Contravenções: anúncio de meio abortivo ou anticoncep-
cional (art. 20); impressão de bilhetes, listas ou anúncio de loteria em lugar onde
ele não possa legalmente circular (art. 55); publicidade de sorteio (art. 57);
b) Na Lei 1.164, de 24 de julho de 1950 (Código Eleitoral): referir na pro-
paganda fatos inverídicos ou injuriosos em relação a partidos ou candidatos e
com possibilidade de exercerem influências perante o eleitorado (art. 175, n. 28);
c) Na Lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951 (que altera dispositivo da le-
gislação vigente sobre crimes contra a economia popular): provocar a alta ou a
baixa dos preços de mercadorias, títulos públicos, valores ou salários por meio
de notícias falsas (art. 3º, VI); dar indicações ou fazer afirmações falsas em
prospectos ou anúncios, para o fim de substituição, compra ou venda de títulos,
ações ou quotas (art. 3º, VII);
d) No Decreto-Lei 7.903, de 27 de agosto de 1945 (Código de Propriedade
Industrial): publicar falsa afirmação em detrimento de concorrente, com o fim
de obter vantagem indevida (art. 178, I);
e) No Código Penal: anunciar cura por meio secreto ou infalível (art.
283); fazer apologia de fato criminoso (art. 287).

Podem ser acrescentadas várias outras infrações que, ainda quando co-
metidas por meio da imprensa, não ficam expungidas de criminosidade: de-
nunciação caluniosa, estelionato, divulgação de segredo, concorrência desleal,
violação de direito autoral, ultraje e culto etc., sem se esquecer o crime de que
ora se trata, isto é, provocação de animosidade entre as classes armadas. Até

204
Ministro Nelson Hungria

mesmo instruções para homicídio podem ser feitas por meio de imprensa, e ja-
mais poderia alguém sustentar que, em tal caso, deixaria de haver participação
criminosa, porque a hipótese não foi prevista na Lei 2.083.
A insuspeição da tese do professor Rui da Costa Antunes transparece
dos seguintes trechos, em que, para o reforçamento da garantia de liberdade de
imprensa, sustenta:
Que nenhuma outra lei, a não ser a lei especial, pudesse impor pena aos
delitos de imprensa. Entre nós, além das figuras previstas pela Lei 2.083, nu-
merosas outras leis ordinárias, como será apreciado em capítulo próprio deste
trabalho, punem determinadas ações praticadas através da imprensa. Daí resulta
que bem poucos cidadãos — mesmo profissionais do Direito — serão capazes
de dizer prontamente até que limite poderá se exercer a liberdade de imprensa.
Visíveis os prejuízos de uma tal liberdade legislativa na descrição dos
delitos de imprensa.
Em primeiro lugar, ficam submetidos às regras da lei especial tão so-
mente as figuras delituosas nela descritas: as demais espécies serão tratadas de
conformidade com as regras comuns, o que é indefensável. Ou o delito de im-
prensa fez jus a tratamento especial e as regras especiais se estenderão a todas
as suas hipóteses, ou o delito de imprensa é considerado comum e neste caso não
se há de excluir nenhum dos seus tipos às regras do Código.

Atualmente, sem explícito monopólio incriminador e adequada previsão


da Lei 2.083, o critério contrário será francamente subversivo de ordem jurídica.
Senhor Presidente, no caso concreto apresenta-se hipótese perfeitamente
idêntica à de anterior julgado deste Tribunal, provocado pelo jornalista João
Duarte Filho, em que se decidiu que o fato de provocar, pela imprensa, a ani-
mosidade entre as classes armadas, não estava prevista na Lei de Imprensa, de
modo que continuava punido pela Lei de Segurança Nacional, isto é, pela Lei
1.802, que foi elaborada e promulgada em pleno regime da constituição vigente,
de 1946.
Não vejo razão para que se modifique nossa decisão anterior. Se, de jure
constituendo, não estaria longe de adotar o critério de monopólio dos crimes de
imprensa por uma lei especial, que seria o Código da Imprensa já uma vez pre-
conizado por Francisco Campos, não posso assentir em que a Lei 2.083 haja as-
sumido tal critério. Não cogitou ela senão de “abusos de liberdade de imprensa”
que expressamente menciona, mantendo, quanto aos outros, o status quo.
Rejeito os embargos.

205
Memória Jurisprudencial

MANDADO DE SEGURANÇA 1.277 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O impetrante foi nomeado inspetor do
tráfego de polícia do Distrito Federal, em caráter efetivo, a 12 de maio de 1939.
Adquiriu estabilidade no cargo, ex vi do art. 156, c, da Constituição de 1937, em
1943. Em virtude do DL 6.461, de 2 de maio de 1944, o cargo de Inspetor de tráfego,
sob o nome de diretor do Serviço de Trânsito, passou a ser de provimento em comis-
são, e o impetrante foi incluído no Quadro Suplementar do Ministério da Justiça,
dizendo-se o seu cargo “isolado, de provimento efetivo, extinto quando vagar”, con-
forme foi então apostilado no seu título de nomeação. Continuou, entretanto, no exer-
cício do cargo que vinha ocupando. Dispôs o art. 1º do referido decreto-lei:
Ficam criados, no quadro permanente do M. J. N. I., para o D. F. S. P., os se-
guintes cargos isolados, de provimento em comissão:
(...)
1 Diretor (S. T. — D. F. S. P.) Padrão “N”.

E no seu art. 4º:


Ficam incluídos no Quadro Suplementar do M. J. N. I., e transformados em
cargos isolados, de provimento efetivo, extintos quando vagarem, os cargos isolados,
de provimento em comissão, do Quadro Permanente do mesmo Ministério, constan-
tes da Tabela anexa.

Explica a informação oficial que tal critério obedecia a um sistema que já vi-
nha da Lei 284, de 28-10-1936, e acrescenta: “Um dos aspectos mais característicos
desse sistema foi a criação de quadros paralelos nos diversos Ministérios.
Esses quadros denominados, respectivamente, Quadro Permanente e Quadro
Suplementar, tinham e têm por finalidade permitir ao Executivo enfrentar a transi-
ção entre o estado caótico anteriormente existente em matéria de pessoal e a plena
realização do novo sistema. Como uma das partes essenciais do novo sistema fosse
precisamente o de tornar todos os cargos de chefia em cargos de provimento em co-
missão, a fim de permitir que os seus ocupantes fossem de livre escolha do governo e
como, entretanto, os seus antigos ocupantes não devessem ter prejudicada a sua situ-
ação pessoal, foram eles transferidos para o Quadro Suplementar, cuja característica
é a de ser constituído de cargos extintos à medida que se forem vagando, ficando no
Quadro Permanente apenas os cargos, em comissão, correspondentes.
O critério de solução do Decreto 6.461 foi mantido pelo DL 8.265, de 1945;
mas, em 8 de janeiro de 1946, foi baixado o DL 8.577, que dispôs:
Os cargos isolados, de provimento em comissão de Diretor (Serviço
Médico — D. F. S. P.) padrão N, do quadro permanente do M. J. N. I., ficam trans-

206
Ministro Nelson Hungria

formados em cargos isolados, de provimento efetivo, de diretor (S. M. — D. F. S. P.)


e Diretor (S. T. — D. F. S. P.) padrão O do mesmo Ministério.

Voltou, assim, o impetrante a ser titular efetivo, já agora com o padrão O,


do cargo de diretor do Serviço de Trânsito (antigo inspetor de tráfego).
Veio, porém, em seguida, o DL 9.457, de 12 de julho de 1946, que, de
novo, transformou em cargo isolado, de provimento em comissão, com o padrão
N, do Quadro Permanente, o de diretor do Serviço de Trânsito. E, no mesmo
passo, declarou que, entre outros, ficava transferido para o Quadro Suplementar
um cargo de diretor do Serviço de Trânsito, isolado e de provimento efetivo. A
18 do mesmo mês, surgiu o DL 9.479, que, retificando o art. 2º do Decreto 9.457,
declarou que o cargo de diretor do S. T., transferido para o Quadro Suplementar,
era de padrão O. Sempre o jogo de dois cargos de diretor do Serviço de Trânsito:
um de provimento efetivo no Quadro Suplementar, e outro de provimento em
comissão, no Quadro Permanente.
A 5 de agosto do mesmo ano de 1946, foi o impetrante, com a declara-
ção de ser ocupante do cargo de diretor, padrão O, do Quadro Suplementar do
Ministério da Justiça, nomeado para exercer, em comissão, o cargo de diretor
do Serviço (S. T. — D. F. S. P.), padrão N, do D. F. S. P. do Quadro Permanente
do mesmo Ministério, criado pelo DL 9.457, de 12-7-1946. Tomou posse o impe-
trante a 8 de agosto, e a 26 do mesmo mês sobreveio o DL 9.654, que dispôs no
seu art. 1º: “Ficam alterados, conforme tabela anexa, os Quadros Permanente
e Suplementar e o Quadro da Justiça — Partes Permanente e Suplementar, do
Ministério da Justiça e Negócios Interiores”. Na tabela anexa se verifica que
o cargo de diretor do Serviço de Trânsito, do Quadro Permanente, padrão N,
passou a padrão O. E no art. 4º, dispõe o mesmo decreto: “Os cargos atingidos
pelo disposto neste decreto-lei continuarão exercidos pelos seus atuais ocupan-
tes, cujos títulos, quando for o caso, serão apostilados pelo órgão do pessoal do
mesmo Ministério”.
A 10 de junho de 1947, foi o título do impetrante apostilado, para se de-
clarar que o cargo fora elevado a padrão O. Finalmente, foi baixado o DL 488,
de 15 de novembro de 1948, que é de caráter geral. Inclui o cargo de diretor do
Serviço de Trânsito entre os cargos do Ministério da Justiça supríveis em comis-
são, atribuindo-lhe o padrão CC-h. Não faz referência alguma a outro cargo de
diretor padrão O, e declara no seu art. 6º, § 4º: “É assegurada a situação pessoal
dos atuais ocupantes dos cargos de provimento efetivo, que se tornam de provi-
mento em comissão (...)” Se havia um cargo in nomine de diretor do Serviço de
Trânsito no Quadro Suplementar do M. J. N. I., padrão O, de provimento, efe-
tivo, já não mais se encontra traço dele na Lei 488. Conclusão: se ao tempo do
Decreto 9.654, de 26 de agosto de 1946, o impetrante era o ocupante do cargo
realmente existente de diretor do Serviço de Trânsito, sua permanência nele
207
Memória Jurisprudencial

ficou assegurada pelo art. 4º do mesmo decreto; e, se com o advento do Decreto


488 desapareceu o cargo hipotético, padrão O, de provimento efetivo, do Quadro
Suplementar, a permanência do impetrante no cargo realmente existente, embora
provível em comissão, ficou assegurada pelo art. 6º, § 4º, do referido decreto.
Diz a informação oficial que ficou
assegurada plenamente a situação pessoal do Dr. Edgard Pinto Estrela,
ocupante, em caráter efetivo, de um cargo extinto, padrão O, do Quadro
Suplementar do M. J. N. I. e criado um cargo, em comissão, padrão N, de diretor
do Serviço de Trânsito (S. T. — D. F. S. P.) no Quadro Permanente do M. J. N. I.

Não é exato. Não havia cargo efetivamente extinto. A extinção somente


ocorreria quando ele se vagasse. O que na realidade se verificou é que tal cargo,
no Quadro Suplementar, foi apenas criado nominalmente, não correspondendo
a nenhuma função específica. Não passava tal cargo de pura ficção. E por isso
mesmo é que o DL 9.654, no seu art. 4º, garantiu a permanência do impetrante
no cargo em comissão, e único realmente existente, de diretor do Serviço de
Trânsito.
É a própria informação oficial que o reconhece: “Este dispositivo legal (o
art. 4º do Decreto 9.654) aplica-se, evidentemente, ao cargo em comissão de que
estava investido o Dr. Edgard Pinto Estrela”.
No seu brilhante voto, o Sr. ministro relator argumentou que o impetrante
não reclamou oportunamente contra a transformação do seu cargo, de provi-
mento efetivo para provimento em comissão, e, ao contrário, resignou-se à nova
situação; mas o impetrante responde, e com vantagem, que, com o advento do
DL 9.654, dezoito dias após sua posse, ficou assegurada a sua permanência, e
já não havia contra o que protestar. A aparente resignação do impetrante não
importara renúncia alguma ao seu direito, e por este não tinha que pleitear, quer
em mandado de segurança, quer em ação ordinária, uma vez que, ulteriormente,
com o transcurso de poucos dias, veio a ser reconhecido.
Não tenho dúvida, portanto, em considerar ilegal a demissão do impe-
trante. Como já disse na anterior sessão do Tribunal Pleno, a administração
pública pode reestruturar os seus quadros, transformando cargos de provimento
efetivo em cargos de provimento em comissão, e afastar deles os antigos titula-
res, desde que asseguradas as vantagens patrimoniais; mas, no caso vertente,
a lei expressamente assegurou a permanência do antigo titular no cargo trans-
formado em comissão. Não deixou ao arbítrio do Executivo o afastamento do
funcionário: garantiu a este, contra tal arbítrio, o direito de continuar no cargo.
Data venia do Sr. ministro relator, concedo a segurança.

208
Ministro Nelson Hungria

EMBARGOS NO MANDADO DE SEGURANÇA 1.277 — DF


VOTO
(Preliminar)
(Sobre petições)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o requerimento do emi-
nente Dr. procurador-geral da República impressionou-me no primeiro momento.
Pareceu-me realmente, diante do recente decreto do Governo em relação ao embar-
gante, que a questão suscitada no presente mandado de segurança ficara prejudicada,
ou sua solução adquirira interesse puramente acadêmico.
Todavia, em subsequente raciocínio, convenci-me do contrário. O que foi
dado pelo Governo ao embargante representa um minus em relação ao que ele pede.
A segurança que impetra é no sentido de sua reintegração como titular efetivo e per-
manente no cargo de diretor de trânsito. No entanto, que fez o Governo? Ao invés de
reintegrá-lo plenamente, apenas o readmitiu, e em mera comissão.
Se o embargante já tivesse tomado posse do cargo, poder-se-ia pretender que
houvera desistência de sua parte quanto ao majus que pleiteia por meio deste writ.
Mas tal não aconteceu, nem seria além disso, inquestionável a pretendida renúncia
tácita. O ato do Governo não restituiu o embargante ao status quo ante, isto é, à si-
tuação de estabilidade que ele pretende legalmente ressalvada, não obstante a trans-
formação do cargo, de provimento efetivo, em cargo de provimento em comissão.
O que ele postula não é uma nomeação ex novo, mas uma reintegração plena,
com garantia de estabilidade enquanto for o ocupante do cargo.
Não ficou sem objetivo o mandado e, assim, estou de acordo com o eminente
Sr. ministro relator.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.448 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, como vimos pela leitura
de peças dos autos, feita pelo Sr. ministro relator, a prova da acusação, no tocante aos
crimes dos incisos 9 e 10 do art. 3º da Lei de Segurança, não se exime a de crédito. A
mesma pessoa que figura no auto de apreensão como tendo apreendido os documen-
tos cuja posse se atribuiu à apelante, veio afirmar em Juízo, como testemunha, que
ignora quem teria feito a apreensão e quais os documentos apreendidos. Admite-se,
porém, que não houvesse semelhante contradição. Que é que foi apreendido? Um

209
Memória Jurisprudencial

exemplar do famoso manifesto de Prestes, uma bandeirola com o dístico: “Os solda-
dos, nossos filhos, não irão à Coreia” e dous boletins varando literariamente o tema
“bella matribus detestata”.
A posse de um único exemplar do manifesto de Prestes obviamente não vi-
sava o fim de difusão ou propaganda. Para isto, seria necessária a multiplicidade de
exemplares. O exemplar, isolado, possuía-o a apelante naturalmente para uso próprio,
para satisfação, digamos, de seu fanático credo comunista, do mesmo modo que um
cristão pode comprazer-se em trazer consigo um exemplar da Bíblia, ou um demo-
crata um catecismo dos direitos do homem ou o discurso de Lincoln em Gettysburg.
Quanto à posse dos boletins acentuando o horror das mães pela guerra, tam-
bém não é criminosa.
O que a Constituição proíbe e a Lei de Segurança incrimina é a propaganda
de guerra.
A propaganda contra a guerra é ato lícito e indiscutivelmente louvável.
Entende o Sr. ministro relator, porém, que no caso concreto esses boletins, con-
jugados com a bandeirola anunciando que “os soldados, nossos filhos, não irão
à Coreia”, constituem o crime de incitamento, entre militares, à desobediência à
lei, à indisciplina e à deserção. Ora, pergunto eu: onde há lei que ordenava expe-
dição de tropas à Coreia? Será acaso verdade que, algum dia, o nosso Governo
pretendeu, realmente, enviar tropas à Coreia? Se isto, alguma vez, foi objeto de
cogitações, não passou daquele material que serve para calcamento do inferno.
Tudo quanto se disse a respeito não passou de boato. E, se o governo tivesse
chegado a cogitar dessa expedição, teria desistido de tal propósito, de modo
que sua atitude de abstenção veio a coincidir com o pensamento externado pela
apelante. O crime a atribuir-se à apelante, admitida a desclassificação proposta
pelo Sr. ministro relator, teria como elemento condicionante um boato, e, o que
é mais, um boato desmentido. Se o Governo não manifestou, sequer, a intenção
de enviar tropas contra os chineses vermelhos, onde há provocação dos solda-
dos à desobediência à lei, à indisciplina, à deserção? À apelante não se pode
imputar senão um flatus voci, um vanilóquio, um soco no ar, a irrelevante ma-
nifestação de um pensamento inócuo. Se a expedição dos soldados à Coreia não
passava de uma improvável eventualidade, ou, melhor, de uma eventualidade
imaginada tão somente pelos boateiros e pela imprensa sensacionalista, onde
o elemento perigo de dano a possibilidade relevante, iminente ou próxima de
dano, indispensável à existência de crime formal, de que se trata?
Reduza-se a troco miúdo o dístico de bandeirola, e teremos: “Se for de-
cretada a expedição de tropas à Coreia, os soldados brasileiros não deverão
seguir.” Assim, a provocada desobediência era condicionada a um fato futuro,
eventual, problemático, e que, na realidade, não veio a ocorrer e do qual, talvez,

210
Ministro Nelson Hungria

nem sequer se tenha cogitado seriamente na esfera governamental. Tratar-se-ia,


dessarte, de um crime imaginário, do qual não podia resultar perigo algum, por-
que tudo nasceu e morreu no bojo de um boato, de uma atoarda, de uma lenda
difundida pelos que se atribuem a visão de espectros ao meio-dia.
Indagou-se, e com razão, por que não estão sendo penalmente processados os
redatores da Revista do Club Militar, que se mostraram infensos à participação do
Brasil na guerra contra os comunistas chineses. Creio que a razão é simples: teriam
eles cometido um ato criticável sob vários aspectos, uma indiscrição sobre melin-
droso assunto internacional, imprópria ou inconveniente da parte de militares; mas
não infringiram a Lei de Segurança, porque nossa participação na guerra coreana
não fora decretada, nem talvez tenha sido efetivo propósito do Governo. É a mesmís-
sima razão por que à apelante não pode ser atribuído o crime do art. 3º, 13, da Lei de
Segurança. E foi naturalmente essa a razão por que o zeloso e vigilante Ministério
Público não cogitou, na denúncia, de semelhante modalidade criminal. Não se pode
admitir um crime cujo elemento é uma condição improvável ou de probabilidade re-
mota, e que, na realidade, não veio a verificar-se. Como se pode conceber criminoso
o incitamento à desobediência de uma ordem que falsamente se supõe que vai ser
emanada? O que se poderia identificar, na espécie, seria um crime putativo, porque
fundado num falso pressuposto de fato.
A mulher que erradamente se supõe grávida e ingere substâncias abor-
tivas não comete o crime de aborto. Assim também a apelante, que, supondo
falsamente a iminência de participação do Brasil na guerra coreana, incita os
soldados a não seguir, não cometeu o crime de incitamento à desobediência, in-
disciplina ou deserção. Num caso e noutro, falta um elemento mínimo objetivo
indispensável à configuração do crime: a ocorrência concreta de um perigo de
dano.
Dou provimento à apelação, para absolver a apelante.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.450 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, a incriminação da di-
fusão ou perigo de difusão de processos subversivos da nossa ordem política, no
meu entender, em que pese o Sr. ministro revisor, não colide com a Constituição,
não ofende nenhum dos seus preceitos. Não era possível que a Constituição im-
pedisse essa incriminação, isto é, a incriminação da propaganda ou perigo de

211
Memória Jurisprudencial

difusão ou propaganda de processos atentatórios da ordem política, que dizem


de perto com a segurança do Estado.
Evidentemente, estava implicitamente excepcionado, no preceito invo-
cado pelos Srs. ministros relator e revisor, esse caso. Se o direito penal comum
incrimina a apologia dos crimes comuns, por que a ordem política teria de se
abster de incriminar os fatos orientados no sentido de sua própria subversão?
Teria de cruzar os braços diante da ameaçadora onda subversiva? No caso, se-
gundo leitura que acaba de ser feita pelo Sr. ministro Afrânio Antonio da Costa,
verifica-se o caráter francamente subversivo dos panfletos apreendidos, com in-
citamento à luta pela violência, ou concitamento a uma ação tendente a destruir
o regime atual. Chega mesmo o seu teor a fazer um apelo a elementos das Forças
Armadas. O apelado tinha em sua residência, dentro de uma gaveta, numerosos
desses panfletos subversivos. É certo que se trata de um quarto de hospedaria,
mas este era a sua residência inviolável, tão inviolável e inacessível a outrem sem
seu consentimento, como qualquer outro local fechado em que se habitasse.
O Sr. ministro revisor entende que não está provado o elemento subjetivo;
mas este se prova por indução do elemento objetivo. Qual o elemento objetivo?
Panfletos subversivos encontrados no quarto onde o apelado tinha o seu domicí-
lio, dentro de uma gaveta. Até prova em contrário, evidentemente, ele é que teria
guardado esses panfletos ali. Se algum, à sua revelia, a son insu, os colocou ali, a
ele competia provar tal circunstância, pois o elemento objetivo, por si mesmo, está
a indicar, a evidenciar o elemento subjetivo do crime. Nesse quarto residia o ape-
lado, aí ninguém podia entrar sem o seu consentimento, de modo que a conclusão
é esta: se do elemento objetivo se induz o elemento subjetivo, era o apelado quem
guardava consciente e intencionalmente os panfletos. Fa-lo-ia pelo simples prazer,
pelo mero capricho de os ter sob sua guarda? Evidentemente, a sua intenção era
espalhá-los, distribuí-los. De modo que, a não ser que estivesse provado tivesse al-
guém penetrado sub-repticiamente no seu quarto, sem que o percebesse o apelado
ou que o apelado ignorasse a existência desses panfletos, onde foram encontra-
dos, entendo demonstrado o dolo específico do apelado. O fato é eloquente por si
mesmo. Res ipso loquitur. Nada exclui, no caso, a praesumptio doli. Competia ao
réu, diante dessa evidência, demonstrar o contrário, isto é, que evidência era ape-
nas aparente, pois fora inteiramente estranho à colocação desses panfletos dentro
da gaveta de uma mesa de seu quarto. Inexiste prova em tal sentido.
Nestas condições, dou provimento à apelação, de acordo com o voto do Sr.
ministro relator.

212
Ministro Nelson Hungria

APELAÇÃO CRIMINAL 1.452 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em que pese ao eminente
Sr. ministro relator, fico com o eminente Sr. ministro revisor.
Se a Constituição proíbe a propaganda de meios subversivos contra a segu-
rança do Estado, contra a ordem política, evidentemente permite que a lei ordinária
incrimine todos os fatos que tenham por fim essa propaganda.
Em matéria de defesa do Estado, os critérios penais, tradicionalmente, secu-
larmente, divergem daqueles adotados na lei penal comum.
Já dizia Catão da Útica que, nos crimes contra o Estado, se se fosse esperar
pela consumação deles, não haveria criminosos a punir, mas heróis a aplaudir. De
modo que o Estado, advertido pela lição da História, não se limita a incriminar, em
tal caso, o dano efetivo ou o concreto perigo de dano: incrimina o próprio perigo re-
moto, e vai colher o crime nos atos preparatórios, antes mesmo que surja um perigo
imediato, um perigo iminente. É punida a criação do simples perigo de perigo.
É o que ocorre na espécie. O apelante tinha em seu poder uma série de panfle-
tos subversivos, de franco incitamento ao emprego de meios violentos contra o nosso
vigente regime político. Não há indagar se ele, no momento, estava distribuindo esses
panfletos: a lei incrimina o simples fato de ele os ter em seu poder ou sob sua guarda.
O raciocínio que ainda há pouco foi invocado, do juiz Raul Machado, que eu
não conhecia — devo dizer —, coincide plenamente com aquele mesmo que expendi
neste Tribunal, numa de suas últimas sessões. Não é possível que o indivíduo seja
encontrado na posse consciente de boletins subversivos, ou os tenha guardados no
cômodo da casa em que vive, com o só fim de coleção. A posse de tais boletins seria
positivamente um absurdo, se consistisse em um fim em si mesmo. Evidentemente,
essa guarda era um meio para um fim ulterior — o de difundir, distribuir, espalhar
esses panfletos.
Não vejo em que o dispositivo da Lei de Segurança colida com o preceito
constitucional; ao contrário, a ele se ajusta, a ele se afeiçoa plenamente, pois a
Constituição proíbe a propaganda de meios violentos contra ordem política.
De outro lado, é do próprio elemento objetivo, é das próprias circunstâncias do
fato que se há de inferir a prova do elemento subjetivo, ou seja, no caso, a presunção
de dolo. A não ser que o apelado provasse que tais boletins tivessem sido subrepti-
ciamente, a sua revelia, levados ao seu cômodo de habitação, evidentemente terá de
responder pelo crime, porque a sua intenção não podia ser outra senão a de distribuir
os boletins. Não os tinha como simples colecionista, não os tinha pelo simples prazer
ou capricho de os possuir; evidentemente, visava um fim ulterior, isto é, a sua distri-
buição. Assim, não tenho dúvida em acompanhar o voto do eminente Sr. ministro
revisor, sentindo muito discordar do eminente Sr. ministro relator.
213
Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CRIMINAL 1.455 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, estou de acordo com
o eminente Sr. ministro relator. Entendo que os fatos imputados não constituem
crime, em face da Constituição vigente. O que esta proíbe é a propaganda de
guerra ou de subversão violenta da ordem política e social. No caso, trata-se de
difusão de boletins convidando o povo para a Conferência da Paz. Não pode ser
incriminada a propaganda da paz. Provocar movimento de opinião pela paz não
é apenas uma ação lícita, se não também louvável.
No caso, como acentuou o eminente Sr. ministro revisor, dadas as cir-
cunstâncias, poderia resultar perturbação da ordem pública, tendo a polícia,
por isso mesmo, proibido a Conferência. Mas, então, o que se poderia reconhe-
cer seria uma “tentativa de desobediência”, de que não cogitou, entretanto, a
denúncia.
Confirmo a sentença apelada.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.456 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia dos Srs.
ministros relator e revisor e dos que me precederam na votação, entendo que,
no caso, não se configura crime algum. O que a atual Constituição proíbe é a
propaganda de processos violentos contra a ordem político-social. Em face do
art. 141, § 5º, é lícita a propaganda de qualquer credo político, uma vez que se
não faça apologia do emprego de meios subversivos do regime político-social.
Neste ponto, o genérico inciso 9º do art. 3º da Lei de Segurança, de 1938, está
derrogado: só continua em vigor no tocante à propaganda de processos violen-
tos contra o atual regime do Estado. Fazer propaganda do comunismo ou fazer
propaganda do partido comunista não é, necessariamente, fazer propaganda de
tais processos. O credo comunista não se confunde com o famoso Manifesto
Comunista, que aconselhava a revolução universal. Pode haver comunismo e
partido comunista sem esse objetivo belicoso.
Dentro dos trâmites, do próprio processo chamado “constitucionalismo”,
que impera nos países democrático-liberais, será possível a implantação do re-
gime marxista. Não se pode dizer, assim, que a simples propaganda do comu-
nismo, como um ideal político a realizar-se, sem que se faça referência alguma

214
Ministro Nelson Hungria

a emprego de meios violentos, ou mesmo à apologia da Revolução Russa,


como acontecimento histórico, continua a ser crime. Pode fazer-se o elogio
da Revolução Russa, como se faz da Revolução Francesa. Não vejo como isso
possa exceder a órbita da liberdade de opinião assegurada pela Constituição.
Não encontro, no caso dos autos, em face das provas, crime algum.
Nestas condições, dou provimento à apelação, para absolver o réu.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.462 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, se no caso anterior-
mente julgado votei no sentido de dar provimento à apelação para absolver o
apelante, com maioria de razão no caso de que ora se trata terá de ser o meu
voto no mesmo sentido.
Tive sob os olhos o processo: os boletins achados em poder ou sob a
guarda da apelante são inteiramente inócuos, pois apenas defendem a manu-
tenção da paz, isto é, atendem precisamente o mandamento constitucional que
declara não permitida a propaganda de guerra. Fazem justamente aquilo que
a Constituição implicitamente determina: ao invés de propaganda de guerra,
a propaganda da paz. Entre os papéis apreendidos, há, realmente, um estatuto
do Partido Comunista. Mas, quid inde? Também eu tenho entre os meus papéis
um exemplar desse estatuto, e estarei, acaso, infringindo a Lei de Segurança?
Absolutamente não. A própria unidade do exemplar está a significar que sua
posse não atende a fim de propaganda, mas de estudo ou leitura exclusivamente
por parte do possuidor.
Outro fato por que foi denunciada a apelada é a distribuição do jornal
comunista Hoje, cuja circulação a polícia admite. Não pode constituir crime a
distribuição de um jornal que circula livremente — o que ocorre, naturalmente,
porque não representa perigo à segurança do Estado. Não deparo, no caso,
crime de espécie alguma. A sentença absoluta é incensurável, e por isso mesmo
nego provimento à apelação.

215
Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CRIMINAL 1.479 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, sempre entendi que, para exis-
tência do crime previsto no inciso 18 do art. 3º da Lei 431, de 1938, é indispensável que seja
reconhecido o seu dolo específico, que é o fim de atentar contra a segurança nacional ou a
ordem político-social. Este entendimento, aliás, foi o que prevaleceu no extinto Tribunal de
Segurança. É assim concebida a rubrica da lei: “Define crimes contra a personalidade do
Estado, a estrutura e a segurança do Estado, e contra a ordem política e social”.
Ora, de acordo com um indeclinável princípio de hermenêutica, os dispositivos da
lei, para sua boa inteligência, não podem ser desligados da rubrica que os precede. Si vis
intelligere nigrum, inspice rubrum. Assim, na espécie, era de mister que se comprovasse
o dolo distintivo, isto é, o fim de atentar contra a segurança nacional ou contra a ordem
política ou social.
Estou, portanto, de acordo com os eminentes ministros relator e revisor, quando
excluem a configuração do crime imputado. Ressalvo, entretanto, meu ponto de vista no
tocante ao emprego, no preceito legal, do plural “armas”. Parece-me que, com isso, quis
significar o gênero, e não que seja necessária a multiplicidade de armas. A lei penal, em
vários dispositivos, emprega substantivos no plural, sem que isso importe em exigir a plu-
ralidade dos atos ou objetos. Também o art. 146 do Código Penal, por exemplo, fala, no
seu § 1º, como agravante especial, no emprego de armas, e não se duvida que a majorante
exista ainda no caso de ser empregada uma só arma.
Não constituindo o fato imputado crime enquadrado na Lei de Segurança, restaria
saber se configura simples contravenção. Também não. O que é contravenção é o porte de
armas fora de casa — o que não ocorre no caso concreto.
Acompanho o voto da turma julgadora.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.486 — SC

Induzimento a greve: quando não constitui crime contra a or-


dem político-social, mas simples “incitação a crime”, prevista no art.
286 do Código Penal, combinado este com o Decreto-Lei 9.070, de
1946, que continua em vigor.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Revisor): Entendo que o induzimento à greve
somente incide no art. 3º, 22, da Lei de Segurança Nacional quando visa à perturba-
ção da ordem político-social. Se a greve é sugerida para melhoria de salários ou das

216
Ministro Nelson Hungria

condições do trabalho, fora dos casos permitidos em lei, isto é, em desconformidade


com o Decreto-Lei 9.070, o fato somente se enquadra no art. 286 do Código Penal, que
incrimina o fato de “incitar publicamente a prática de crime”. É o que ocorre na espé-
cie. Não é o apelante um secretário de credo político subversivo de nosso regime de
governo, mas um operário que achou de fazer propaganda de greve, à margem da lei,
como meio eficiente para obtenção da alta dos salários.
É de salientar o seguinte: supervenientemente ao Decreto 431, surgiu o Decreto-
Lei 9.070, de março de 1946, que, regulando inteiramente a matéria de greve, declarou
esta lícita em certos casos; e com o advento da atual Constituição, que explicitamente
reconheceu o direito de greve, a regular-se pela lei ordinária, continuou em plena
vigência o referido Decreto 9.070. Ora, segundo este, a greve resultante de dissídio
entre empregados e empregadores só é proibida quando anteceda ao apelo à Justiça
Trabalhista. Não tenho dúvida, portanto, que o inciso 22 do art. 3º do Decreto 431 teve a
sua amplitude grandemente limitada, e já não diz com a greve alheia a fins subversivos
de ordem político-social.
Admita-se, porém, que assim não seja. A Lei de Segurança incrimina a “indu-
zir” empregados à cessação do trabalho. Ora, que é “induzir”? O próprio Sr. ministro
relator deu o sentido deste verbo: levar alguém, suasoriamente, a fazer isto ou aquilo.
Induzir não é apenas “incitar”, “sugerir”, “instigar”: é provocar alguém a efetivamente
praticar ou abster-se de praticar um ato. Pois bem, no caso concreto, o apelante limitou-
se a espalhar boletins em que se dizia que os operários deviam pleitear a melhoria de
salários e, se não o conseguissem, o único recurso seria a greve. Assim, ainda que a
greve para melhoria de salários ou das condições do trabalho, sem nenhum intuito
político, incorresse na censura da Lei de Segurança, não poderia ser identificado na
espécie o “induzimento” a ela, pois a sugestão dos boletins espalhados pelo apelante
resultou inteiramente inócua. Cumpre acentuar que o apelante não é sectário do credo
comunista. Digo isso para conjurar qualquer prevenção contra ele ou atalhar suspeita
de seu intuito contrário à segurança do Estado. Tem toda razão o advogado do apelante
quando insinua que o crime reconhecível no caso é o previsto no art. 286 do Código
Penal: incitar publicamente à prática de crime. A greve, fora daqueles casos em que
a permite o Decreto 9.070, é crime, e justamente a essa greve irregular, a essa greve
declarada antes do apelo à Justiça trabalhista, a essa greve criminosa, enfim, é que o
apelante incitou seus companheiros de trabalho, embora sem conseguir o aliciamento
de nenhum deles, não passando a sua ação de anódina “pregação no deserto”.
Por essas razões, dou provimento, em parte, à apelação, para desclassificar
o crime imputado para o art. 286 do Código Penal e, mantida a competência deste
Tribunal, na forma do § 2º do art. 74 do Código do Processo Penal, condenar o apelante
à multa de mil cruzeiros.

217
Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CRIMINAL 1.496 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Nego provimento à apelação. Ainda que
os documentos apreendidos na posse do apelado contivessem o preconício de
meios subversivos contra a ordem político-social (o que não é exato, pois o que
neles se prega é apenas a necessidade da paz mundial), não estava o apelado a
fazer propaganda pública, nem a distribuir, ostensiva ou clandestinamente, tais
documentos — hipóteses únicas em que, face à vigente Lei de Segurança, de 5
de janeiro de 1953, se pode identificar crime.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.497 — SP

Em face da vigente Lei de Segurança Nacional, já não constitui


crime a simples guarda ou detenção de boletins subversivos, desa-
companhado do ato da distribuição.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Em face da vigente Lei de
Segurança Nacional, de 5 de janeiro último, somente constitui crime a pro-
paganda de processos violentos para a subversão da ordem política ou social,
quando feita publicamente. No caso vertente, mesmo admitindo-se que os do-
cumentos apreendidos contenham, implicitamente, a sugestão do emprego de
meios violentos contra a ordem política ou social, e fossem destinados à dis-
tribuição, não haveria crime, pois o apelado não os estava distribuindo coram
populo, nem mesmo às escondidas. Já não vigora o inciso 9 do art. 3° da Lei 431,
de 1938, e em face do § 20° do art. 141 da Constituição e dos arts. 2° e l08, III,
do Código Penal, que determinam a retroatividade benigna da lei penal, é força
reconhecer, no caso, a extinção da punibilidade.
Assim, nego provimento à apelação, que, aliás, eu não teria provido, eis
que, realmente, não se depara nos documentos apreendidos a insinuação para o
emprego de meios violentos ou subversivos contra a ordem político-social.

218
Ministro Nelson Hungria

APELAÇÃO CRIMINAL 1.498 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia do Sr. ministro
relator, estou de acordo com o eminente Sr. ministro revisor, porque, realmente, com
o advento da nova Lei de Segurança, deixou de ser crime o simples fato de guarda ou
posse de boletins subversivos contra o Estado ou a ordem política e social, só é incri-
minado, atualmente, o fato da efetiva distribuição, seja pública ou clandestina, desses
boletins ou panfletos. A posse, a detenção, passou a ser simples ato preparatório, que
a lei vigente deixou de considerar crime sui generis.
Nestas condições, nego provimento ao recurso.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.504 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o meu raciocínio, no caso
presente, coincide com as considerações que acaba de expender o eminente Sr. mi-
nistro Abner de Vasconcelos. Também não posso verificar, na hipótese, qualquer
atentado à ordem político-social, incriminado pela Lei de Segurança Nacional. Não
houve propaganda de meios violentos ou subversivos — contra a ordem social, nem
tão pouco instigação ou excitamento — de ódio entre as classes. Defender uma certa
classe de empregados rurais contra medidas escorchantes da parte dos empregado-
res, de modo nenhum é suscitar ódio entre as classes, entre essas duas limitadas clas-
ses da região em que o fato ocorreu. Data venia dos eminentes Srs. ministros relator
e revisor, dou provimento à apelação, para absolver o acusado.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.511 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o fato de quem trans-
porta boletins subversivos é, inquestionavelmente, mero ato preparatório para
o crime de propaganda contra a ordem política ou social, do mesmo modo que
realiza ato preparatório de homicídio quem leva consigo uma arma com propó-
sito de matar alguém.

219
Memória Jurisprudencial

Não se pode dizer que o porte da arma, ainda que o portador esteja no propó-
sito de matar alguém, seja começo de execução do homicídio.
Também no caso presente, não se pode dizer que o simples transporte de bo-
letins seja começo de propaganda.
A execução desta só começaria com a distribuição do primeiro boletim.
Nem há falar-se em tentativa de propaganda criminosa.
Tentativa haveria se o agente fosse surpreendido, no primeiro ato de distribui-
ção dos boletins, antes que a pessoa a quem fosse entregue o boletim o tivesse lido.
Até então, o que se pode reconhecer é simples ato preparatório, que a Lei
1.802 não incrimina especialmente.
Estou com o Sr. ministro relator, em que há divergência, porque o juiz entendeu
que havia uma tentativa, que não é mais que uma subespécie do crime, de que se trate.
A meu ver, a conclusão do voto do Sr. ministro relator está certa.
Dou provimento para absolver o réu.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.5I5 — SP


Art. 19 da Lei de Segurança Nacional. Ficam isentos de pena
aqueles que, antes da ordem da dissolução do comício, ou para obe-
decê-la, se retirarem da reunião.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Revisor): O art. 19 da Lei 1.802, de 1953,
depois de incriminar e apenar o fato “de convocar ou realizar comício ou reunião
pública, a céu aberto, em lugar não autorizado pela polícia ou desobedecer a de-
terminação da autoridade competente sobre a sua dissolução, quando tumultu-
osa ou armada, observado sempre o disposto no art. 141, § 11, da Constituição”,
acrescenta, no seu § 2º: “Ficarão isentos das sanções deste artigo, os que antes da
ordem de dissolução, ou para obedecê-la, se retirarem da reunião.”
Vejamos, agora, o que ocorreu no caso vertente:
Diz a testemunha Valdemar Alcântara, investigador da polícia:
que em virtude do número de pessoas ser elevado, o depoente comunicou-se
com o Sr. Mario Centola, encarregado e responsável pela manutenção da ordem na
referida praça, sendo certo que o Dr. Mario Centola, instantes após, ali comparecia
em uma viatura policial, bem como acompanhado de uma “perua” da Força Policial;

220
Ministro Nelson Hungria

que, com a sirene aberta ali ingressaram, sendo que o povo que ali se achava,
ao ver isso, passou a correr;
que o depoente ainda conseguiu alcançar o acusado Aquízio, sendo que o
mesmo, ao ser preso, havia retirado os seus óculos;
que Geraldo não ofereceu resistência alguma ao depoente, sendo assim enca-
minhado à “perua” e, posteriormente, ao D.O.P.S.

A testemunha Abílio Augusto Serra informa:


que a autoridade policial que compareceu foi o Dr. Centola; que o Dr.
Centola, ali chegando, dissolveu o comício; que assim que chegaram as autori-
dades policiais, o comício se dissolveu, não podendo o depoente precisar se essa
dissolução se deu por ordem da autoridade policial ou se os próprios componen-
tes da massa popular se dissolveram por si mesmos: que o acusado Silva Teles
foi preso quando o comício estava se dissolvendo e várias pessoas correndo.
A testemunha Orlando Milanesi, logo depois de afirmar que “antes de
qualquer procedimento policial alguns investigadores pediram que se retiras-
sem, mas diante da recusa começaram a proceder às prisões” numa contradição
flagrante, declara que, “não sabe informar se a polícia, antes de efetuar as pri-
sões, aconselhou os presentes a se retirarem”.
Está-se a ver que, com a simples aproximação da polícia, os componentes
do comício começaram a debandar.
Sem que precedesse, por parte do delegado Centola, qualquer ordem para
a dissolução do comício, como lhe cumpria, segundo os próprios termos do ca-
put e do § 2º do art. 19 da Lei de Segurança, foram presos os apelantes, isto é,
os dois únicos oradores que se haviam feito ouvir e que já se retiravam.
Não houve recalcitrância alguma; ao contrário, o que ocorreu, logo após a
chegada dos policiais, foi o movimento geral de retirada, dissolvendo-se o comício.
Precisamente a hipótese prevista pelo referido parágrafo, como exclu-
dente de punibilidade.
O processo penal contra os apelantes foi uma demasia, em contraste
franco com a lei.
Com o imediato movimento da dissolução do comício, a autoridade poli-
cial estava adstrita a abster-se de efetuar prisões, aguardando o completo resta-
belecimento da normalidade da ordem no local.
O comício criminoso é somente aquele cujos componentes, à aproxima-
ção da autoridade policial ou após a determinação de dissolução, mostram-se
rebeldes e teimam na continuidade da reunião. E tal não ocorreu na espécie.
Isto posto, dou provimento à apelação, para absolver os apelantes.

221
Memória Jurisprudencial

APELAÇÃO CRIMINAL 1.516 — SP

O simples fato de proferir, num raptus de entusiasmo, “vivas”


ao comunismo e “morras” ao chefe do Governo não pode ser consi-
derado propaganda subversiva e, muito menos, serviço prestado à
tentativa de reorganização do Partido Comunista.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): É incensurável a sentença apelada.
A propaganda que a anterior Lei de Segurança incriminava era a exercida
para o fim de promover ou organizar ou reconstituir sociedade cuja atividade
se exerça no sentido de atentar contra a segurança do Estado ou modificar, por
meio não permitido em lei, a ordem política ou social.
Ora, dar “vivas” ao comunismo e “morras” ao Governo, num raptus de
entusiasmo, jamais poderia ser considerado como tal propaganda.
Esta exige o ânimo deliberado de propagar, de difundir uma ideia, de ali-
ciar adeptos para um determinado objetivo.
E não se chega a compreender o interesse do apelante em que se reconheça
que propaganda é serviço no sentido do art. 10 da vigente Lei de Segurança.
Preliminarmente, serviço é um trabalho que se presta por conta de ou-
trem ou que pressupõe a existência concreta de uma pessoa ou agrupamento de
pessoas a quem se serve.
Serviço, no sentido da lei, jamais poderia ser o simples fato de opinar em favor
de um credo político, in abstracto contrário ao atual regime de governo.
Serviço, no dito sentido, é o que se faz para o efetivo funcionamento de
um partido político que, depois de dissolvido, venha a ser reconstituído ou es-
teja tentando reconstituir-se.
É o que se lê no texto legal, e está em harmonia com a Constituição.
Não proíbe esta o credo comunista em si mesmo. Qualquer cidadão pode ser
comunista; e manifestá-lo coram populo: o que lhe é vedado é o emprego ou a pro-
paganda do emprego de meios subversivos para a implantação do regime marxista.
Mas admite-se que os brados do apelado representem propaganda e que
esta seja serviço.
Ora, a lei antiga, do mesmo modo que a atual, não incriminava a propaganda,
quando não houvesse o preconício de meios subversivos da ordem política ou social.

222
Ministro Nelson Hungria

De modo que o que pretende o Dr. promotor, com o insistir que a conduta
do apelado representa serviço, no sentido da lei atual, é a retroatividade in pejus
da lei penal.
Se pela 1ei vigente ao tempo do fato, não era este incriminado, é claro que não
pode ser atingido por lei ex post facto.
Nego provimento à apelação.

EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, evidentemente
houve, data venia, equívoco da parte do eminente Sr. ministro revisor. O que a
Constituição proíbe é a propaganda de emprego de meios subversivos contra a ordem
política ou social. Isto é que continuou a ser crime, ainda na vigência do Decreto-Lei
431. E a Lei 1.802 igualmente incrimina a propaganda de meios subversivos ou pres-
tação de serviços à reorganização ou tentativa de reorganização de partido contrário
à ordem político-social. Nada disso, porém, ocorre no caso dos autos.
Trata-se de um homem de que não se diz, sequer, que seja comunista
“fixado” e que, ao sair do edifício do Foro de Santos, deu um “viva” a Luís
Carlos Prestes e ao comunismo e um “morra” a Getúlio. Não se pode ver aí ser-
viço prestado à reorganização do Partido Comunista. O Sr. ministro Abner de
Vasconcelos, data venia, partiu da premissa errônea de que é crime o fato de al-
guém adotar ideias contrárias ao regime vigente. A Constituição assegura os cre-
dos políticos, e ninguém é criminoso por declarar-se comunista. Qualquer pessoa
pode declarar-se comunista, integralista ou monarquista. O que a lei não permite
é a propaganda do emprego de meios subversivos ou a revolta das massas contra
o Estado, contra a ordem constituída. Isto é que é crime, e não o fazer praça de
inconformismo teórico com o credo democrático. Mantenho, pois, o meu voto.

APELAÇÃO CRIMINAL 1.530 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, nunca é demais acen-
tuar que a nossa Constituição dispõe, com todas as letras, no § 8º do art. 141:
“Por motivo de convicção religiosa, filosófica ou política, ninguém será privado
de nenhum dos seus direitos.” E, em outro parágrafo do mesmo artigo, assegura
a liberdade de pensamento, salvo no tocante à propaganda de meios subversivos
da ordem político-social.

223
Memória Jurisprudencial

Se interpretarmos a Lei 1.802, no sentido de incriminar até mesmo a ma-


nifestação de ideias comunistas, estamos contrariando preceitos constitucionais.
Não há crime em ter-se convicções comunistas e manifestá-las. Não co-
mete crime algum quem afirma, de público e razo, que o clima soviético é mais
saudável que o clima democrático.
O que é crime é fazer propaganda e defender ideias no sentido da subver-
são violenta do regime vigente entre nós. A Lei 1.802 só pode ser interpretada à
luz dos citados dispositivos constitucionais.
Declara a Lei 1.802 que é crime reorganizar ou tentar reorganizar partido
cujo registro tenha sido cassado. Tal como no caso anterior, do julgamento da
ACr 1.534, também no processo que estamos julgando não se apresenta partido
comunista reorganizado ou que se tenta reorganizar. Trata-se, apenas, de dois
ou três indivíduos surpreendidos na posse de impressos que se diz serem de
caráter subversivo ou pleiteando ideias no sentido implícito de uma rebelião vio-
lenta contra a ordem político-social, que impera entre nós.
Desconfio muito dessa imputação, pois já uma vez disse aqui, e repito: o sim-
ples fato de propugnar por ideias dentro da corrente comunista não implica, neces-
sariamente, o preconício do emprego de meios violentos. É possível a transformação
de um Estado democrático em Estado soviético sem derramamento de sangue, sem
emprego de violência. A história contemporânea dá exemplos disso.
No caso presente, nem mesmo se formulou a hipótese de que os acusados
estivessem tentando reorganizar o Partido Comunista. Diz-se que são filiados ao
Partido Comunista. Mas que Partido Comunista é esse, desde que o seu registro foi
cassado, restando apenas prosélitos do credo comunista e não membros do Partido
Comunista? Qual a sua sede? Como funciona? É um partido fantasma...
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Vossa Excelência acha que, quando a lei fala
em partido, é só o que existe de direito e não de fato?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Continua esse partido, ainda que sob
falso nome ou forma simulada, agindo à sombra, à margem da lei?
O Sr. Ministro Luiz Galloti: Vossa Excelência terá dúvida de que esse
partido existe de fato?
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não duvido que haja quem pregue ideias
comunistas, mas não existe prova, pelo menos nestes autos, de que esteja reor-
ganizado o antigo Partido Comunista. Podemos dizer que existe, por exemplo,
um partido monarquista, porque há sebastianistas do credo monárquico, entre
os quais, ultimamente, até eu mesmo estou inclinado a inscrever-me?

224
Ministro Nelson Hungria

Não deparo aqui, como não deparei no caso anterior, nenhum crime, ape-
nas lamento que pela eventualidade da ausência de alguns dos Srs. ministros,
ora se decida de uma maneira, ora de outra, na interpretação da Lei 1.802, o que
é uma grave iniquidade.
Meu voto é no sentido de acompanhar a ilustre Turma.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO 1.908 — MT

Crime de soldado de Polícia Militar estadual contra soldado


do Exército. Crime militar ratione personae é o que se configura
em tal hipótese, conforme o disposto no art. 6º, II, letra a, do
Código Penal Militar. Não interessa saber o militar estava em
serviço, pois este critério é adotado em outro inciso (art. 6º, II,
letra c), ainda que seja o crime cometido contra civil, e na espécie
o crime é militar porque cometido por militar da ativa contra mi-
litar da ativa (art. 6º, II, letra a).
Distinção entre Justiça Militar federal e Justiça Militar es-
tadual, ambas previstas na Constituição (arts. 106 e 124, XII).
Se o crime é cometido por militar estadual contra federal,
competente será a Justiça Militar federal, mormente não havendo
no caso (Mato Grosso) Justiça Militar estadual.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Conheço do conflito, em face do art.
101, I, letra f, da Constituição e dou pela competência do Dr. juiz de direito de Três
Lagoas. Não se trata de crime militar, isto é, o caso de que se trata não se inclui no
quadro do art. 6º do Código Penal Militar.
As forças públicas ou policiais militares estaduais não fazem parte do Exército,
senão quando convocados e mobilizados a serviço da União, como forças auxiliares.
Não importa que a Constituição as declare reservas do Exército. Nem por isso são,
por si mesmas, parte integrante e permanente do Exército. É o que se deduz a con-
trario sensu, do parágrafo único do art. 183 da Constituição: “Quando mobilizado
a serviço da União em tempo de guerra externa ou civil, o seu pessoal (isto é, das
polícias militares estaduais) gozará das mesmas vantagens atribuídas ao pessoal do
‘Exército’.”

225
Memória Jurisprudencial

O foro penal especial dos militares do Exército é, sem dúvida, uma vantagem,
qual seja, a de ser julgado o militar por seus próprios companheiros de classe. Em
tempo de paz, as polícias militares se limitam, sob as ordens de autoridade civil
(delegados e subdelegados de polícia), ao serviço de policiamento preventivo ou
repressivo, no território estadual – o que as distancia das “Forças Armadas” a
que se refere a Constituição e cuja finalidade é a defesa da Pátria, dos poderes
constituídos, da lei e da ordem em todo o território nacional.
Não é possível a equiparação entre umas e outras. Somente no caso de
convocação é que as polícias militares se põem em pé de igualdade com as
forças do Exército. Fora daí, estão os seus elementos sujeitos à lei e foro penal
comuns. No caso vertente, os soldados do Exército não se achavam em serviço,
nem o local do conflito era estabelecimento militar. Inexiste, repita-se, qualquer
das hipóteses da casuística do art. 6º do Código Penal Militar.

MANDADO DE SEGURANÇA 1.959 — DF


VOTO
(Primeira preliminar de competência)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, alega-se que se trata
na espécie de matéria que escapa à censura do Poder Judiciário, por isso que
consiste numa “resolução” votada pela Câmara dos Deputados sobre assunto
político-administrativo, compreendido no âmbito da sua atuação discricionária.
É o que se depreende das informações prestadas pela ilustre Mesa da Câmara
dos Deputados.
Entendo que não é exata, assim formulada, a pretensa imunidade do
Poder Legislativo. Como muito bem acentuou o eminente Sr. ministro relator,
constitui, hoje, ponto morto, que é irrelevante indagar se se trata, ou não, de ato
político, para que seja excluída ou admitida a intervenção do Poder Judiciário.
O que há a indagar é se o ato, político ou não, lesa um direito individual, um
interesse individual legalmente protegido.
Se se apresenta essa lesão direta, esse dano imediato a um direito indivi-
dual, surge a possibilidade, a legitimidade constitucional da intervenção do Poder
Judiciário. Evidentemente, não pode o Supremo Tribunal Federal arrogar-se a fa-
culdade de praticar ou obstar a política legislativa, como não pode criticar ou inibir
a política do Poder Executivo. Não pode o Poder Judiciário entender, por exemplo,
que determinada medida tomada por qualquer dos dois outros Poderes não atende
ao interesse nacional. Haveria, com isso, uma evidente usurpação de poder, uma

226
Ministro Nelson Hungria

indébita intromissão do Judiciário. Ainda que dessa medida possa decorrer, por via
remota ou indireta, qualquer dano a interesse privado, será defeso ao Judiciário inter-
vir. O indivíduo, atingido em ricochete, não poderia vir bater às portas do Supremo
Tribunal Federal, porque as encontraria fechadas. Mas, desde que se identifique lesão
direta e imediata a direito individual, aí pode interferir o Judiciário, e isto está escrito
com todas as letras na Constituição, cujo art. 141, § 4º, dispõe que nenhuma lesão
a direito individual escapará à apreciação do Poder Judiciário. Não há que renovar
discussão em torno do tema; não é mais possível estar-se a revolver debates de um
passado longínquo, do tempo em que Rui Barbosa ensinava o ABC do direito cons-
titucional no Brasil. No caso, apresenta-se o seguinte: um mandado de segurança
contra um ato político-administrativo da Câmara dos Deputados, que terá como
consequência direta a violação de um interesse individual legalmente tutelado, qual
seja o sigilo bancário. Em tese, não pode haver dúvida sobre a competência do Poder
Judiciário para conhecer do caso e resolvê-lo.
Estou de pleno acordo com o eminente Sr. ministro relator nesta preliminar.

CONFLITO DE JURISDIÇÃO 2.046 — SP

O policiamento das ruas não é função militar: dele participam


os soldados da Força Pública estadual como auxiliares da Polícia
Civil, e os crimes que pratiquem nessa ocasião é como se fossem pra-
ticados por um policial civil durante ofício.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Dou pela competência deste
Supremo Tribunal. O Dr. auditor da Justiça Militar da Força Pública, no Estado de
São Paulo, não está subordinado ao Tribunal de Justiça paulista, mas ao Tribunal de
Justiça Militar de Segunda Instância do Estado, de hierarquia idêntica à daquele. Se
o Supremo Tribunal se negasse a intervir, o conflito ficaria insolúvel, de modo que
sua competência, embora não expressamente prevista para o caso pela Constituição,
tem-se de entender implícita.
E, por construção, em casos análogos, já assim aqui temos decidido.
Conheço do recurso e, julgando-o procedente, dou pela competência do Dr.
juiz de direito de Botucatu.
Conhece o Tribunal o meu ponto de vista a respeito da Justiça Militar es-
tadual: não pode ela aplicar o Código Penal Militar, destinado exclusivamente aos
militares federais.
227
Memória Jurisprudencial

Não existe lei federal alguma mandando ampliar a aplicação desse


Código aos militares estaduais, e seria inconstitucional a lei estadual que dispu-
sesse sobre tal ampliação.
Assim sendo, é bem de ver que a Justiça Militar estadual não pode estar a
invocar, para dizer dos crimes de sua competência, os incisos do art. 6º do citado
Código. E tanto é inaplicável na espécie o Código Penal Militar, que a Constituição,
no seu art. 124, XII, dispõe que, na falta de tribunal especial de segunda instância na
Justiça Militar estadual, será segunda instância deste o Tribunal de Justiça estadual,
e este não tem competência para aplicar o Código Penal Militar. O Código Penal
aplicável é o comum, e somente podem ser atribuídos à Justiça Militar estadual, pela
lei de sua organização, os crimes praticados pelos militares da Força Pública esta-
dual na sua específica e exclusiva função militar. Ora, o policiamento das ruas não
é função militar per definitionem: dele participam os soldados ou militares da Força
Pública estadual como auxiliares da Polícia Civil, a cujos chefes e delegados ficam
subordinados, enquanto estão cooperando no dito policiamento. Os crimes que
pratiquem nessa ocasião são como os que fossem praticados por um policial civil
durante ofício. Por tais crimes respondem perante a Justiça comum, que nada tem a
ver com os Códigos Penal e Processual Penal privativos dos militares federais, isto
é, dos militares pertinentes ao Exército, Marinha e Aeronáutica nacionais.

MANDADO DE SEGURANÇA 2.089 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o caso apresenta fei-
ção especial. Não se pode dizer que este mandado de segurança é impetrado
contra dispositivo legal em tese. O ato impugnado é um decreto do Executivo,
que não encontra apoio em lei, nem pode ser identificado, propriamente, como
exercício do poder de polícia. Encerra esse ato uma restrição ao exercício do
direito de propriedade e ao direito de exercer profissão lícita. A atribuição re-
gulamentadora do Poder Executivo não pode ir a tal extremo, salvo casos de
premente interesse da ordem pública ou da harmonia no convívio social. O de-
creto em questão tornou-se exequível a partir de janeiro último. O impetrante,
realmente, ainda não foi atingido em cheio, mas poderá sê-lo amanhã ou depois,
como já foram outros nas mesmas condições. Já está mesmo sofrendo dano em
razão do direito, pois está inibido de fazer funcionar na praça a sua pequena
“frota” de automóveis, pois, de outro modo, arrisca-se a vê-la apreendida. Já se
encontra sob ameaça inibidora, e maior será a lesão do seu direito se tentar fa-
zer correr seus quatro ou cinco carros de praça. Como se lhe pode negar, então,
228
Ministro Nelson Hungria

mandado de segurança, desde que atual a lesão do seu direito? Não se reclama
contra preceito legal ou regulamentar em tese, mas contra uma lesão concreta e
ameaça de lesão maior.
Concedo a segurança.

MANDADO DE SEGURANÇA 2.655 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, preliminarmente,
nego ao Sindicato das Indústrias de Fiação e Tecelagem do Rio de Janeiro quali-
dade para impetrar, em nome de seus associados, mas sem procuração ad litem,
mandado de segurança perante a Justiça comum. O poder de representação dos
sindicatos, na defesa dos interesses de empregadores ou empregados, exaure-se
na esfera administrativa e da Justiça do Trabalho. Instituto específico do direito
do trabalho, o sindicato só pode atuar dentro da órbita trabalhista, limitada-
mente às relações entre empregadores e empregados, disciplinados pela legisla-
ção do trabalho. Ainda que se trate de interesses gerais de seus associados, não
podem vir ao juízo comum, com abstração da regra de que a ninguém é dado
representar outrem em juízo sem mandato expresso.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): O Sindicato requereu o man-
dado, mas o pedido está acompanhado de cerca de cem pedidos de associados.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Muito grato a Vossa Excelência pela informa-
ção, mas eu não ignorava esse fato. Aguarde Vossa Excelência a minha conclusão.
Os empregadores e empregados, ao que me consta, não são pessoas ci-
vilmente incapazes, que devam ser substituídas em juízo, ex vi legis, por seus
representantes legais. Os sindicatos não são tutores ou curadores de seus asso-
ciados, nem estes são pupilos ou interditos.
Assim, liminarmente, só conheço do presente mandado em relação aos
impetrantes que se fizeram representar mediante procuração. Não conheço dele
em relação aos demais. Este meu ponto de vista, já o tenho sustentado de outras
vezes, apoiado na autoridade de Cesarino Junior e Castro Nunes e aceitando a
tese de um notável aresto do Tribunal de Alagoas.
Senhor Presidente, entendeu o eminente Sr. ministro relator, para conhe-
cer preliminarmente do presente pedido de segurança — e isto encerra o seu ar-
gumento central, o seu raciocínio medular — que não se trata, na espécie, de um
decreto regulamentar em tese, mas de um puro ato administrativo, de caráter
229
Memória Jurisprudencial

executório, do Sr. presidente da República, sem vinculação a uma indispensável


lei anterior. Discordo, data venia, de Sua Excelência. A lei a que se vincula o
Decreto 35.450 existe, é uma realidade concreta. A lei reclamada pelo art. 157
da Constituição aí está, na sua existência palpitante, na sua objetividade tangí-
vel: é o art. 81 da Consolidação das Leis do Trabalho, reprodução fiel de uma lei
de 1936, promulgada no regime de uma Constituição que, como a atual, vedava
a delegação de poderes. Diz o art. 81 da Consolidação das Leis do Trabalho:
Art. 81. O salário mínimo será determinado pela fórmula Sm = a + b + c
+ d + e, em que a, b, c, d e e representam, respectivamente, o valor das despesas
diárias, com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte necessários
à vida de um trabalhador.
§ 1º A parcela correspondente à alimentação terá um valor mínimo igual
aos valores da lista de provisões, constante dos quadros devidamente aprovados
e necessários à alimentação diária do trabalhador adulto.
§ 2º Poderão ser substituídos pelos equivalentes de cada grupo, tam-
bém mencionados nos quadros a que alude o parágrafo anterior, os alimentos,
quando as condições da região, zona ou subzona o aconselharem, respeitados os
valores nutritivos determinados nos mesmos quadros.

Aí estão os critérios objetivos, os critérios marcadamente objetivos que a lei


ordinária, a que se refere a Constituição, impõe à Comissão do Salário Mínimo,
criada ad rem e cujas conclusões para fixação do algarismo do salário mínimo de-
vem ser levadas à aprovação, mediante decreto, do Sr. presidente da República.
A Constituição não exige mais do que isso. Nem seria admissível que
exigisse mais do que isso. Se o salário mínimo depende das variáveis, das cam-
biantes condições econômicas e financeiras, não é concebível que a fixação do
algarismo salarial mínimo, a fixação aritmética do salário mínimo ficasse a
cargo exclusivo da lei, cuja elaboração poderia durar além do período de uma
legislatura, o que vale dizer, mais de um ano ou até dois.
A entender-se de modo contrário, essa lei seria sempre uma dissonância
irrisória com a realidade, um método de cura sempre anacrônico, uma lei de
opereta, uma lei — carabineiro de Offenbach, um figurino que, ao chegar, já
estaria fora da moda.
Não é aceitável que semelhante critério fosse adotado pela lei constitucional,
notadamente num país como o nosso, em que, como bem salientou o próprio emi-
nente ministro relator, se apresenta um progressivo, pode mesmo dizer-se, um coti-
diano aviltamento da moeda. Não é admissível que ficasse a cargo exclusivo da lei a
fixação aritmética do salário, porque a lei não dispõe da flexibilidade da régua lésbica
e antes mesmo de sua promulgação já estaria obsoleta.
Com o deixar-se ao poder regulamentar do Executivo a fixação aritmética
do salário mínimo, dentro dos critérios legais objetivos, não há propriamente uma

230
Ministro Nelson Hungria

delegação que pressupõe uma renúncia voluntária de função. O que se apresenta,


realmente, é uma injunção inelutável dos fatos, uma irremovível necessidade prática,
imposta pela adequada execução finalística da própria lei. Como a lei poderia aten-
der à sua finalidade, que é a de afeiçoar o salário mínimo às rapidamente mutáveis
condições econômicas e financeiras, se não confiasse ao Poder Executivo a frequente
averiguação destas, para a sucessiva adequação do algarismo salarial?
Senhor Presidente, o eminente Sr. ministro relator, a quem rendo a homena-
gem do meu respeito, da minha estima e da minha admiração, disse, no seu relatório,
chemin faisan que não interessava, na espécie, o direito norte-americano, pois esta-
mos tratando de uma solução em face do direito brasileiro, e não em face do direito
da América do Norte.
Devo lembrar, entretanto, que há uma lei, ainda não revogada, dos primór-
dios da República, que determina aos nossos juízes e tribunais que se socorram, em
matéria constitucional, do direito americano, como subsidiário do direito brasileiro.
Mas, abstraindo isso, é bem de ver que todos os juízes, todos os tribunais es-
tão adstritos ao estudo do direito comparado, para verificar como são aplicados tais
ou quais princípios de direito nos seus países de origem; e, no caso, o princípio da
indelegabilidade dos poderes nos veio, por importação direta, dos Estados Unidos.
Assim, temos de esticar o pescoço para o país dos ianques e auscultar a lição
da Suprema Corte americana, no tocante ao tema que ora nos preocupa.
Tenho aqui apontamentos em torno do que tem decidido, a propósito, a
Suprema Corte dos Estados Unidos, principalmente num caso de grande relevo, num
leading case, que é conhecido pelo nome de Locke’s Appeal.
Eis um trecho do aresto proferido em tal caso:
To assert that a law is less than a law, because it is made do depend of a future
event or act, is to rob the legislature of the power to act wisely for the public welfare
whenever a law is passed relating to a state of affairs not yet developed, or to
things future and impossible to fully know. The court cannot delegate its power
to make a law, but it can make a law to delegate a power to determine some fact
or state of things upon which the law makes, or intends to make, its own action
depend. To deny this would be to stop the wheels of government. There are many
things upon which wise and useful legislation must depend which cannot be
known to the law making power, and must, therefore, be a subject of inquiry and
determination outside of the halls of legislation.

É um pronunciamento que está a calhar para a solução do caso que esta-


mos julgando.
Willoughby (On the Constitution of the United States, 3º, p. 1641) reporta
que “in the States the delegation by the legislative body to commissions or other
boards, of authority to fix rates has been generally sustained where by law

231
Memória Jurisprudencial

general principles have been established for the guidance and control (o grifo
é nosso) of these administrative bodies in the exercise, in specific instances, of
their rate-making powers”.
É precisamente o que ocorre no caso em debate.
Disse o eminente Sr. ministro relator que não há paridade, não há afini-
dade entre o caso do tabelamento dos preços e o de que ora se trata.
Entendo, data venia, que os dois casos não são apenas parentes afins; são ir-
mãos germanos. A mesma ratio que levou o legislador a declinar no Poder Executivo
a função de fixar os preços dos gêneros de primeira necessidade de acordo com a ver-
satilidade, com a feição cambiante do mercado, é a que leva o legislador a declinar no
Poder Executivo a alterável fixação do algarismo salarial mínimo, de conformidade
com a mutabilidade das condições econômicas e financeiras.
Não quero dizer, Senhor Presidente, de modo algum, que seria inconstitucio-
nal a iniciativa do Poder Legislativo, no sentido de fixar até mesmo o algarismo, a cota
aritmética do salário mínimo. Não estaria essa lei em contraste com a Constituição. E
é possível que ela se faça, pois no Brasil só não há lei proibindo tempestades e fura-
cões. É possível que surja uma lei encerrando o desconserto, o desconchavo de fixar,
de acordo com os dados contemporâneos à apresentação do seu projeto, o algarismo
do salário mínimo, que deve corresponder às condições econômicas e financeiras,
que estão a mudar de mês em mês.
Mas, assim como não nego a constitucionalidade do Projeto Bilac Pinto, de
que só agora tive conhecimento, também não posso negar a impecável constitucio-
nalidade do Decreto 35.450, que não fez mais do que atender à necessidade prática de
executar a lei do salário mínimo dentro da própria finalidade que lhe atribuiu a Carta
de 1946, isto é, a de amparar os trabalhadores, dentro de um padrão de vida compa-
tível com a atualidade econômica e financeira.
Senhor Presidente, o ilustre Dr. procurador-geral da República trouxe à cola-
ção um julgamento deste Supremo Tribunal, num mandado de segurança, a respeito
do Decreto 31.l8l, de 25 de julho de 1952, que obrigava, a partir de certa data, aos
proprietários de mais de um táxi de lotação a se organizarem em empresa, com mais
de vinte carros, sob pena de ser proibido o tráfego desses veículos ou de serem eles
apreendidos pela autoridade policial.
Fui voto vencido nesse caso e continuo no mesmo ponto de vista em que então
me coloquei. Por quê? Porque nesse caso se tratava de uma disposição regulamentar
proibitiva, e, segundo a justa lição de Castro Nunes — que não sei a que propósito foi
invocada, nesse passo, pelos advogados dos impetrantes —, há de se fazer uma exce-
ção à regra geral de que não cabe mandado de segurança contra a lei em tese. E isto

232
Ministro Nelson Hungria

porque há necessidade de vencer uma pressão direta e atual, reforçada pela ameaça
de uma penalidade de aplicação imediata.
Em tal caso, não é preciso um ato formal da autoridade para que se apresente a
violação ou ameaça de violação do direito individual. Ou o indivíduo se resigna a não
agir, sofrendo prejuízo do seu interesse, ou, se agir, incidirá nas sanções coercitivas
da lei ou regulamento. Não há necessidade de um ato executório para que se apre-
sente a efetiva coação ao exercício de um direito subjetivo individual ou in concreto.
Não tenho dúvida, Senhor Presidente, que, no caso vertente, se apresenta um
decreto regulamentador dos arts. 81 e seguintes da Lei Trabalhista, e não um ato ar-
bitrário do presidente da República.
E indago eu: que é um regulamento? Regulamento é o meio pelo qual se torna
possível, viável, a execução, a aplicação efetiva de uma lei.
O poder de regulamentar é exercido em função da lei, de modo que o regula-
mento faz com a lei um corpo único, um corpo comum. O regulamento é complemen-
tação da lei, embora não possa criar jus novum. O regulamento, consubstanciando-se
com a lei, é também lei, ou seja, uma norma jurídica de caráter geral e abstrato.
E nisso está a diferença entre regulamento e ato administrativo puro, a que, no
seu voto, o eminente Sr. ministro relator procurou identificar o decreto em questão.
Não se trata de um ato administrativo puro. O ato administrativo, ao contrário do re-
gulamento, é expedido para a solução de um caso concreto, individuado, circunscrito.
O regulamento, facilitando ou tornando viável a execução da lei, não se dirige
a um caso singular: é, como a lei, um conjunto de regras genéricas ou in abstracto.
Regulamento e lei, enquanto letras no Diário Oficial, são como um dínamo parado,
pois para que possam atuar no mundo objetivo é preciso que sejam postos em movi-
mento. Antes disso, como é óbvio, não podem ofender direito de quem quer que seja.
Antes disso, são meros espíritos à espera de encarnação, à espera dos músculos que
os hão de realizar no mundo sensível.
No caso dos proprietários de táxis de lotação, havia uma proibição, cuja in-
fringência importaria em imediata penalidade ou coercisão.
No caso em debate, não ocorre isso, de modo nenhum. Os empregadores não
terão que fechar suas fábricas, de cerrar seus estabelecimentos, se acaso não paga-
rem o fixado salário mínimo. Ainda não se apresentou, em relação a eles, nenhum
ato executório, nem mesmo ameaça dele. Só haverá isso, quando lhes for ordenado
coercitivamente esse pagamento, e só então é que caberá mandado de segurança,
não contra o Sr. presidente da República, mas contra a autoridade que expedir o ato
executório. Antes disso, o que há é apenas um regulamento in astrasto, que, em si
mesmo e por si mesmo, não pode, absolutamente, estar violando direitos individuais.

233
Memória Jurisprudencial

Isso posto, Senhor Presidente, deixando à margem, por ociosas, as de-


mais questões que se formularam em torno do mérito deste mandado de segu-
rança, não conheço do pedido.

MANDADO DE SEGURANÇA 3.126 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, desde a primeira fase
do julgamento deste mandado de segurança foi com muita simpatia que encarei
a causa dos impetrantes, distintos oficiais da Aeronáutica, bravos moços (é a ex-
pressão que lhes cabe), porque, mesmo em tempo de paz, estão eles, frequente-
mente, arriscando a própria vida, não só para o adestramento a que estão sujeitos,
como na execução de missões de que são encarregados. Eles fazem jus a todo o
apoio, mas, bem entendido, desde que esse apoio encontre permissão da lei.
No primeiro momento, dado o entrecruzamento de leis sucessivas aplicáveis à
espécie, cheguei a ficar convencido da liquidez e certeza do direito por eles invocado.
Mas, uma análise detida e meditada levou-me, infelizmente, para eles, e a contra-
gosto meu, a uma conclusão contrária.
Não tenho dúvida em admitir, como admito, que a lei de 1927, sobre con-
tagem de tempo, aplica-se não apenas à reforma, senão também à transferência
para a reserva.
Ocorre, entretanto, que com o advento do atual Estatuto Militar, que é de
1946, os impetrantes ainda não contavam, mesmo computado o seu tempo de
serviço na forma da lei de 1927, o tempo a que a legislação anterior subordinava
a transferência para a reserva, ou seja, vinte e cinco anos de serviço. Tinham
eles, respectivamente, seis, sete e oito anos de serviço computados dia a dia, os
quais somados ao tempo contado segundo a lei de 1927, até o limite de dez anos,
perfaziam os totais de dezesseis, dezessete e dezoito anos.
É princípio, hoje pacífico, e reiteradamente adotado por esta Suprema Corte,
que nenhum funcionário público, seja militar ou civil, pode arrogar-se direito a todo
o desdobramento de sua carreira dentro da perspectiva que se apresentava no mo-
mento de sua investidura, e isto tanto no que diz com as condições de promoção e
de vencimentos quanto em relação às condições de aposentadoria, de reforma ou de
transferência para a reserva. Estas últimas condições, segundo expresso dispositivo
legal, são reguladas pela lei vigente ao tempo dos referidos atos. Antes do ad-
vento do Estatuto de 1946, os impetrantes não tinham mais que uma expectativa
de direito. O direito só se diz adquirido quando atendidas todas as condições a
que a lei anterior subordinava a sua existência.
234
Ministro Nelson Hungria

Ora, os impetrantes, em 1946, não tinham as condições com que se conten-


tava a lei anterior, e, assim, ficaram sujeitos às novas condições, entre as quais a de
que os 25 anos do serviço têm de ser contados dia a dia, desde a investidura até o
momento da transferência para a reserva.
Assim, Senhor Presidente, não posso deixar de negar meu apoio ao “Aviso”
do Sr. ministro da Aeronáutica, que foi vazado dentro do critério jurídico e legal.
Também nego a segurança, de acordo com o eminente Sr. ministro relator.

MANDADO DE SEGURANÇA 3.557 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que o ponto
de vista adotado pelos eminentes Srs. ministros Sampaio Costa e Afrânio Costa
é inadmissível.
Estamos diante de um dilema: ou não conhecemos do mandado de se-
gurança ou conhecemos dele, para deferi-lo ou negá-lo. Não há sair daí. Ou o
estado de sítio é constitucional, e não podemos conhecer do presente mandado;
ou é inconstitucional, ou o caso vertente não incide sob o seu império, por ser
anterior, como entendeu o eminente Sr. ministro relator, e teremos de conhecer
do mandado, para concedê-lo ou recusá-lo.
O eminente Sr. ministro relator foi lógico. Sua Excelência conheceu do
mandado de segurança e, entrando no mérito, o indeferiu. Mas, entender que o
caso concreto incide sob a lei do estado de sítio conhecer do pedido e, a seguir,
adiar o julgamento do mérito para após o término da duração do estado de sítio,
parece-me, data venia, uma incoerência. Isso valeria por uma negativa de julga-
mento. Suponha-se que o estado de sítio seja prorrogado até a posse do novo pre-
sidente eleito. O mandado de segurança ficaria, então, prejudicado, e ao Supremo
Tribunal Federal apenas restaria a melancólica situação de, se tivesse de conceder
o mandado de segurança, ter representado o papel dos carabineiros de Offenbach.
Para forrar-me aos azares de uma improvisação, em que as palavras mui-
tas vezes traem o pensamento, achei de bom aviso fixar, por escrito, os meus
pontos de vista, os prismas pelos quais encaro e hei de resolver o presente caso,
tendo em vista a petição inicial, as informações do parecer do Dr. procurador-
-geral da República e, já agora, os votos do eminente Sr. ministro relator e dos
que lhe seguiram na votação.
Passo a ler meu voto:

235
Memória Jurisprudencial

Senhor Presidente:
O art. 2º e seu parágrafo único da lei que decretou o atual estado de sítio
e é de aplicação imediata, suspenderam a garantia constitucional do mandado
de segurança, desde que se trate, entre outros, de atos emanados do Congresso
Nacional. Acontece, porém, que a Constituição Federal, após disciplinar o es-
tado de sítio nos arts. 206 a 214, dispõe no art. 215:
A inobservância de qualquer das prescrições dos arts. 206 a 214 tornará
ilegal a coação e permitirá aos pacientes recorrerem ao Poder Judiciário.

O vocábulo “coação” está aí empregado sem restritivo algum, abran-


gendo a coação exercida não só contra o direito de locomoção, como a em-
pregada contra qualquer outro direito, seja civil, seja político. Temos, assim,
prejudicialmente, de indagar da constitucionalidade do atual estado de sítio, ou,
seja, da Lei 2.654, de 25 de novembro último.
Que é que se tem alegado contra a sua constitucionalidade? Segundo se
depreende dos debates que o tema tem suscitado, três, em resumo, seriam as ra-
zões de insubsistência ou invalidade da dita lei em face da Magna Carta:
1º) não se enquadrar o presente estado de sítio na casuística do art. 206;
2º) não ter sido o projeto da lei votado em sessão conjunta das duas Casas
do Congresso;
3º) ter sido a lei sancionada por quem, na qualidade de vice-presidente do
Senado, mas, indevidamente, assumiu a presidência da República em substitui-
ção ao Sr. João Café Filho, era impetrante, cujo impedimento, decretado pelo
Congresso, seria inconstitucional.
Analisemos a primeira razão:
Não consta da lei o motivo do estado de sítio, mas das informações pres-
tadas pelo Congresso verifica-se que ele teria decorrido de “grave contingência
nacional,” de “perigo iminente” de comoção intestina ou guerra civil. Ora, a
alta ou longa indagação em termo à existência ou não inexistência desse perigo
concreto não é comportável no âmbito do mandado de segurança. Não permite
o processo deste writ que, à falta de elementos objetivos e concludentes produzi-
dos desde logo pelo impetrante, se abra uma fase para colheita de prova aliunde.
E, na ausência de tais elementos, tem de ser acreditada a palavra oficial.
Vejamos, agora, a segunda razão. É inteiramente destituída do funda-
mento. A “sessão conjunta” do Senado e da Câmara dos Deputados só é exigida
para a apreciação a posteriori e aprovação do estado de sítio decretado pelo
presidente da República, no processo do Parlamento. Fora daí a elaboração da
lei que decreta o estado de sítio terá o mesmo rito das outras leis.

236
Ministro Nelson Hungria

Passemos, afinal, à terceira razão, qual a da arguida usurpação da pre-


sidência da República pelo vice-presidente do Senado, dada a inconstitucio-
nalidade de impedimento do ora impetrante, declarado mediante resolução do
Congresso. E, aqui, surge uma preliminar: pode o Supremo Tribunal Federal
submeter ao crivo de sua censura um ato do Poder Legislativo, de caráter emi-
nentemente político, qual o de que ora se trata?
Não tenho dúvida ao responder afirmativamente.
Desde que se encontre em jogo uma lesão de direito individual, seja ci-
vil, seja político, decorrente de ato do Poder Legislativo, ao arrepio de preceito
constitucional, a interferência do Poder Judiciário, pelo órgão do Supremo
Tribunal, é incontestável, pouco importando a feição marcadamente política do
ato. O Poder Legislativo não está imune à censura do Poder Judiciário quando,
descarrilando de cânones constitucionais, ofende direitos subjetivos individuais.
Quando a Constituição, no seu art. 141, § 4º, declara que nenhuma lesão
a direito individual pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário, não
isenta os atos do Poder Legislativo. O disposto no art. 101, n. I, letra i, da Magna
Carta não pode ser interpretado no sentido de que somente os atos da Mesa da
Câmara ou do Senado podem incidir na competência jurisdicional do Supremo
Tribunal. Tal exegese estaria em contradição aberta com o art. 141, § 4º, que não
consigna exceções. E redundaria num despropósito. Suponha-se, por exemplo,
que o Congresso, invadindo atribuição privativa do presidente da República,
expedisse uma lei, afinal promulgada pelo presidente do Senado, demitindo
um ministro de Estado. É de toda evidência que, se o ministro atingido não
encontrasse obediência no continuado exercício de seu cargo, poderia vir pedir
segurança a esta Corte, com declaração de invalidade da lei inconstitucional.
O reconhecimento de nossa competência na espécie está, contrario sensu, na
própria lei do atual estado de sítio, quando declara que, durante o prazo deste, o
Poder Judiciário não poderá conhecer de mandados de segurança contra atos do
Congresso Nacional. Logo, fora do estado de sítio, incidirão estes sob a jurisdi-
ção do Supremo Tribunal. Vencida a preliminar, entramos no mérito.
Senhor Presidente, pode-se discordar de certas razões expendidas no ofí-
cio de informações do Poder ao Sr. ministro relator; mas há uma que é irrecusá-
vel, embora não formulada francamente: ao declarar o impedimento do ilustre
Sr. João Café Filho, o Congresso não fez mais que reconhecer uma situação de
fato irremovível dentro dos quadros constitucionais ou legais, qual a criada pelo
imperativo dos canhões e metralhadoras insurrecionais que barravam e conti-
nuam barrando o caminho do Sr. João Café Filho até o Catete. A presidência da
República não podia ficar acéfala, e a sua ocupação pelo Sr. vice-presidente do
Senado, dada a anterior renúncia do Sr. Carlos Luz à presidência da Câmara dos
Deputados, era mandamento do art. 79, § 1º, da Constituição, que assim preceitua:
237
Memória Jurisprudencial

Em caso de impedimento do Presidente da República, serão sucessi-


vamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos
Deputados o Vice-Presidente do Senado Federal e o Presidente do Supremo
Tribunal Federal.

Qual o impedimento mais evidente, e insuperável pelos meios legais, do


titular da presidência da República, que o obstáculo oposto por uma vitoriosa
insurreição armada?
Afastado “o manto diáfano da fantasia sobre a nudez rude da verdade”, a re-
solução do Congresso não foi senão a constatação da impossibilidade material em
que se acha o Sr. Café Filho, de reassumir a presidência da República, em face da im-
posição dos tanke e baionetas do Exército, que estão acima das leis, da Constituição
e, portanto, do Supremo Tribunal Federal. Podem ser admitidos os bons propósitos
dessa imposição, mas como a santidade dos fins não expunge a ilicitude dos meios,
não há jeito, por mais auspicioso, de considerá-la uma situação que possa ser apre-
ciada e resolvida de jure por esta Corte.
É uma situação de fato criada e mantida pela força das armas, contra a qual
seria, obviamente, inexequível qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição
é um crime político, mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os in-
surretos estarão a cavaleiro do regime legal que infligiram; sua vontade é que conta,
e nada mais.
Admita-se que este Tribunal reconhecesse inconstitucionais o impedimento
do Sr. Café Filho e o estado de sítio; volver-se-ia ao statu quo ante, isto é, à situação
insurrecional do Exército, que ainda continua com os seus canhões em pé de guerra
no Campo de Santana e alhures, para impedir o retorno do Sr. Café Filho à presidên-
cia da República. Desde que o chefe da insurreição não assumiu, ex proprio Marte, a
presidência da República, quem devia assumi-la? O Sr. vice-presidente do Senado, o
penúltimo atualmente disponível na escala do art. 79, § 1º, da Constituição. A decla-
ração de impedimento do Sr. Café Filho pelo Congresso foi, em última análise, uma
superfluidade. Com ou sem essa declaração, e não querendo os insurretos assumir o
governo da República, o Sr. vice-presidente do Senado é que tinha e tem de ocupar o
Catete, posto que a presidência da República não podia ficar em acefalia.
A lei do estado de sítio foi sancionada por quem, constitucionalmente, está
substituindo o Sr. Café Filho, na presidência da República, dado o impedimento
deste, decorrente do inelutável sic vole, sic inbec, das forças insurrecionais.
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma
contrainsurreição com maior força. E esta, positivamente, não pode ser feita pelo
Supremo Tribunal, posto que este não iria cometer a ingenuidade de, numa inócua
declaração de princípio, expedir mandado para cessar a insurreição.

238
Ministro Nelson Hungria

Aí está o nó górdio que o Poder Judiciário não pode cortar, pois não dis-
põe da espada de Alexandre. O ilustre impetrante, ao que me parece, bateu em
porta errada. Um insigne professor de direito constitucional, doubie do exaltado
político partidário, afirmou, em entrevista não contestada, que o julgamento
deste mandado de segurança ensejaria ocasião para se verificar se os ministros
desta Corte “eram leões de verdade ou leões de pé de trono”.
Jamais nos incalcamos leões. Jamais vestimos, nem podíamos vestir a pele do
rei dos animais. A nossa espada é um mero símbolo. É uma simples pintura decora-
tiva — no teto ou na parede das salas da Justiça. Não pode ser oposta a uma rebelião
armada. Conceder mandado de segurança contra esta seria o mesmo que pretender
afugentar leões autênticos sacudindo-lhes o pano preto de nossas togas.
Senhor Presidente, o atual estado de sítio é perfeitamente constitucional,
e o impedimento do impetrante para assumir a presidência da República, an-
tes de ser declaração do Congresso, é imposição das forças insurrecionais do
Exército, contra a qual não há remédio na farmacologia jurídica.
Não conheço do pedido de segurança.

REVISÃO CRIMINAL 4.544 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, se o fato imputado ao re-
querente, de que resultou sua condenação, foi organizar, promover, dirigir sociedade
de fins subversivos da ordem política e social, não há negar que, no caso vertente, não
se pode identificar semelhante crime.
A argumentação do eminente ministro relator, data venia do eminente Sr.
ministro revisor, é convincente: não interessa a questão de comícios para os quais
haja o requerente contribuído, e dos quais teriam resultado conflitos, rixas, tumultos,
até mesmo a morte de um agente da autoridade. Por esses fatos não foi o reque-
rente, sequer, denunciado. Foi ele condenado tão somente pelo crime previsto
no inciso 8º do art. 3º do Decreto-Lei 431, isto é, promover, organizar, dirigir
sociedade com fins subversivos. Onde está, porém, a prova disso?
Em que pese ao ilustre Sr. ministro revisor, defiro a revisão, de acordo
com o Sr. ministro relator.

239
Memória Jurisprudencial

EMBARGOS NA APELAÇÃO CÍVEL 7.496 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, sempre me tenho mani-
festado no sentido da irresponsabilidade do Estado por danos causados, em ocasião
de guerra ou de comoção intestina, na sua ação de repulsa a inimigos ou rebeldes.
O Estado, assim agindo, se encontra em situação de legítima defesa, não
podendo ser chamado a indenizar os danos daí decorrentes.
A reiterada objeção a essa teoria é de que não é justo que um só ou um grupo
de indivíduos sofra em benefício de toda a coletividade. Ora, para remediar essa
desigualdade, há o recurso a leis ad hoc, que poderão remediar o desequilíbrio;
mas, em face da lei geral ou comum, nenhuma indenização é devida.
Em face da nossa lei civil, não é possível responsabilizar o Estado por
danos decorrentes de sua atuação em legítima defesa, no exercício necessário e
regular de um direito.
Estou, assim, de pleno acordo com a ilustre Turma.

APELAÇÃO CÍVEL 9.597 — DF

A isenção fiscal concedida a uma sociedade não abrange o


imposto de renda progressivo devido pelos sócios em relação aos
lucros nela auferidos.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O imposto complementar
progressivo sobre a renda incide somente sobre as pessoas físicas. As pessoas
jurídicas não são passíveis dele. Por aí logo se vê que a isenção concedida à
sociedade limitada J.O.Machado & Cia. nada tem a ver com o imposto comple-
mentar exigido de seus sócios pelos lucros nela auferidos. Como ensina Ingrosso
(Instituzioni di diritto finanziario, v. II, p. 127), tratando desse imposto. “I re-
dditi che le persone fisiche percepiscono dagli enti collettivi in qualità di impie-
gate, salariati, pensionati, assegurati, soci, azionisti, amministratori, portatori
di obbligazioni e per qualsiasi altro titolo, sono tassati in confronto delle per-
sone dei percipiente, in quanto sono fattori del reddito complessivo che è og-
getto di questa imposta.” Os lucros auferidos pelos sócios. Assim, alheiam-se
inteiramente “à imunidade fiscal concedida à sociedade. Objeta o apelado que o
imposto complementar é um acessório do imposto proporcional.

240
Ministro Nelson Hungria

Não é exato. Tanto não há acessoriedade que a lei os separa, para deter-
minar que o proporcional seja pago pela pessoa jurídica e o progressivo pelos
sócios, no tocante aos lucros auferidos, feito o desconto do imposto proporcio-
nal devido pela pessoa jurídica.
Há relação entre as duas taxações, mas não acessoriedade. Assim, pode
haver isenção do imposto proporcional em favor da pessoa jurídica e não haver
isenção do imposto progressivo em favor dos sócios.
Figura o apelado o caso da firma individual, para argumentar que, em tal
caso, seria ilusória a isenção.
Ora, tratando-se de firma individual beneficiária da isenção, o seu titu-
lar, pelos lucros auferidos, não paga o imposto proporcional, que é devido pela
firma, mas apenas o progressivo. E, assim, vai-se chegar à mesma conclusão: a
isenção concedida à firma individual somente diz com o imposto proporcional,
pois é o único que ela podia dever, de modo que não abrange o imposto progres-
sivo devido pelo sócio em relação aos lucros obtidos. Isto posto, dou provimento
à apelação para julgar a ação improcedente.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 15.343 — MG

Matéria constitucional; seu julgamento. Nulidade do full bench


ou, pelo menos, de uma presença tal, que não exclua a possibilidade
de que os votos no sentido da inconstitucionalidade atinjam a maioria
absoluta dos membros do Tribunal, se no mesmo sentido viessem a
votar os juízes ausentes.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Várias são as questões que se
impõem a julgamento precípuo, antes mesmo de atingidas as questões constitu-
cionais, cuja apreciação nos escapa nesta Turma. A primeira é a que diz com a
legitimidade ad processum dos recorrentes para cuja representação na causa foi
ordenada caução de rato. Somente nas contrarrazões do recurso extraordinário
sob número 19.645 é que o Estado de Minas alegou essa matéria, sustentando
que a caução não foi processada ou prestada. Replicam os recorrentes, entre-
tanto, que a dita caução, mediante garantia promissória do Dr. Estevão Pinto,
aceita pelo Estado, foi processada em autos separados, que se acham no Cartório
dos Feitos da Fazenda Estadual. Não foi exibida prova em contrário por parte do

241
Memória Jurisprudencial

Estado e, além disso, o que é decisivo, não recorreu o Estado do acórdão que se
encontra à fl. 2050 dos autos dos aludidos recursos, precisamente reconhecendo
que os então embargantes Bauer, Marchal & Cia. Union Sucrière de l’Aisne e
Sucrière Rio Branco “figuraram como partes no processo de desapropriação e
assim também como apelantes no recurso, como se vê da petição à fl. 522 do
2º volume”. Por último, os ditos recorrentes vieram a fazer-se representar pelo
advogado Jair Lins (fls. 991 e 1000 e 1119), ficando ratificada a atuação de seus
gestores de negócios ou procuradores de rato.
Outra questão preliminar é a da tempestividade dos recursos, dado que,
não embargável o acórdão sobre matéria constitucional, o prazo para interpo-
sição deles teria de ser contado da data do dito acórdão, e não da do acórdão
sobre os embargos, e também que não podiam ser interpostos os ditos recur-
sos do acórdão último da Turma de apelação, para ressuscitar-se a questão de
inconstitucionalidade já afastada pelo Tribunal Pleno. O Dr. procurador-geral,
opinando que o único recurso tempestivo é o da Union Snerière de l´Aisne, in-
terposto contra o primeiro acórdão do Tribunal Pleno, invoca jurisprudência
deste Supremo Tribunal no sentido da não embargabilidade da decisão sobre
matéria constitucional. Podia mesmo invocar o art. 87 do nosso Regimento
Interno, que declara definitiva tal decisão. Não me inclino, entretanto, por este
critério, considerando-o em contraste com o Código de Processo Civil, no caso
em que a questão constitucional é suscitada em grau de apelação, não se po-
dendo destacar do âmbito desta, com caráter autônomo, o acórdão do Tribunal
Pleno sobre tal questão. Embora, no caso, o Tribunal Pleno não seja instância
de apelação, não deixa o seu acórdão de ser proferido sobre matéria da apelação
(que, muitas vezes, se circunscreve à matéria constitucional), e, assim, desde
que o acórdão não seja unânime, é embargável, na conformidade do art. 833 do
citado Código do Processo.
Admita-se, porém, que o critério certo seja o da inembargabilidade, e
enfrentemos a terceira questão preliminar, qual seja, a do aproveitamento do
recurso da Union Snerière de l´Aisne pelos demais acionistas do Banco expro-
priado que não entraram em acordo com o expropriante. Tenho para mim que
cumpre admitir essa propagação de efeito. Os acionistas do Banco, embora
titulares de um condomínio divisível, estão intimamente ligados pela unidade
de objetivo e pela comunhão de interesses. Não compadece com a realidade o
dizer-se que os seus interesses são distintos, só porque a ação de desapropriação
poderia fragmentar-se contra cada um deles de per si ou que o acordo de uns não
impediria o desacordo dos outros.
Não se trata, é certo, de litisconsórcio necessário; mas, entre os acionistas
que persistem no desacordo e figuram na demanda, os interesses são comuns e
a solução tem de ser dada de modo uniforme para todos eles.

242
Ministro Nelson Hungria

Assim, os litisconsortes que hajam perdido algum prazo serão represen-


tados pelos demais (art. 90 do CPC) e o recurso de uns aproveita aos outros
(art. 816). Não me parece duvidoso que o recurso da Union Suerière de l´Aisne
aproveita aos demais acionistas, ainda mesmo àqueles que interpuseram o ex-
traordinário do acórdão final da Turma de apelação.
Passemos agora ao exame das últimas questões que exigem decisão pre-
cípua, quais sejam a relativa ao quorum do tribunal a quo para pronunciamento
sobre matéria constitucional e a concernente à contagem dos votos.
No tocante a esta última, entendo que não podia ser atendido o voto con-
dicional do desembargador J. Benício, que, aliás, não repudiou, em momento
algum, sua opinião no sentido de que o art. 3º do Decreto-Lei 6.953 encerra
simples oferta de preço. Seu voto somente poderia ser tomado no sentido da
inconstitucionalidade, se ele tivesse renunciado a essa opinião, e não porque os
seus colegas, em maioria, viessem a considerar o artigo como traduzindo preço
obrigatório. É de notar que, no final da votação, teria ele podido reconsiderar
o seu voto, para mudar de opinião e, no entanto, ficou em silêncio, não protes-
tando contra a proclamação do resultado do julgamento, que o incluía entre os
que votaram pela constitucionalidade do art. 3º.
Vejamos, agora, a questão do quorum de presença do Tribunal Pleno,
para julgamento de matéria constitucional.
Na interpretação do art. 200 da Constituição, tem havido, realmente, dis-
paridade de critérios: ora se entende que basta a presença, no tribunal colegial,
da maioria normal (isto é, a metade mais um ou a maioria absoluta da totalidade
dos membros do tribunal); ora que é necessário o full bench ou, pelo menos,
uma presença tal que não exclua a possibilidade de que os votos no sentido da
inconstitucionalidade atinjam a maioria absoluta, se no mesmo sentido viessem
a votar os juízes ausentes. Na primeira corrente, inscreve-se o Tribunal mineiro;
na segunda, este Supremo Tribunal. Não se pode dizer que, adotando o primeiro
critério, o Tribunal mineiro tenha infringido o preceito constitucional. O que
se apresenta é um graúdo contraste entre ele e o Supremo na interpretação ou
aplicação prática do art. 200 da Magna Carta — o que enseja, ao que me pa-
rece, a interposição do recurso extraordinário com fundamento na alínea d da
casuística constitucional. Estou decidindo pelo critério de decisão do Supremo
Tribunal. É um velho tema o de que ora se cuida. Nos Estados Unidos apre-
sentou-se ele à Suprema Corte depois que a Corte de Apelação de Kentucky,
em 1825, recusou cumprimento a um seu aresto sobre inconstitucionalidade
de certa lei, dando como razão de recusa o não ter sido tal decisão tomada
pela maioria da mais alta Corte. Passou esta, desde então, segundo informa
Willoughby (The Constitucional Law of the United States, 2. ed., v. 1º, p. 34), a

243
Memória Jurisprudencial

exigir na espécie “a majority of the full bench” . No caso New York versus Miln,
em 1834, Marshall assim declarou:
The practice of this court is not (except in cases of absolute necessity)
to deliver any judgement in cases where constitucional questions are involved,
unless four justices [a Corte se compunha, então, de sete membros] concur in
the opinion, thus making the decision that of a majority of the whole court. In
the present case four justices do not concur in opinion as to the constitucional
questions which have been argued. The court there fore direct the cases to be
reargued at the next term, under the expectation that a larger number of the
judges may then be present.

Black (Hand Book of American Constitutional Law, 4. ed., p. 62) informa


que “ordinarily, a majority of the judges taking part in the decision may pro-
nounce against the validity of the statute”, mas “it is a rule adopted by many
appellate courts, though not all, that they will not decide the question of cons-
titucionality of a statute until a hearing has been had before the full bench of
judges”. E disserta o mesmo autor:
The reasons for this rule are two: In the first place it is possible that a
judgment pronounced by less than a majority of the whole court might be over-
ruled by the full court when the question again arises; and all courts are dispo-
sed to avoid events which so seriously unsettle the law. Secondly, the courts are
inclined do defer the decision of such questions until a full bench can be had on
account of the great importance of the question involved and on account of a
delicacy in the matter of setting aside a legislative act unless their full number
has considered it.

Trata-se, como adverte Black, de uma praxe, não de uma norma legal ou
obrigatória: But, this rule is not imposed upon the courts by any constitucional
provision or statute.
É o que também acentua Cooley (A Treatise on the Constitutional
Limitation, 6. ed., p. 195):
But this is a rule of propriety, not of constitutional obligation; and
though generally adopted and observed cach court will regulate, in its own dis-
cretion, its practice in this particular.

Não é fiel a tradução que deste trecho faz o ilustre recorrente. A expres-
são “a rule of propriety” não pode ser entendida, mesmo fora da letra, como
“princípio legal”, mas, sim, como “regra de conveniência” ou “critério de opor-
tunidade”. Não é senão em um ou outro Estado da União Americana, conforme
reporta Black, que se impõe como exigência constitucional “that no act of the
legislation shall be held void unless the decision is concurred in by more than
a majority of the court, as, four out five judges, or five out of seven”. Esta exi-
gência da maioria especial ou de maioria absoluta da totalidade dos membros do

244
Ministro Nelson Hungria

tribunal, no sentido da inconstitucionalidade, é o que veio a ser adotado entre


nós, a partir da Constituição de 1934, figurando hoje no art. 200 da Constituição
de 1946, apesar de possibilitar ensejo à anomalia apontada pelos recorrentes e se
pretende ocorrida no caso vertente: O Tribunal como um todo, obrigado a jul-
gar uma lei constitucionalmente válida, ainda que a maioria dos juízes presen-
tes a considere inconstitucional. Precisamente para evitar essa anomalia é que
é aconselhável a presença do full bench, embora este não seja reclamado pelo
preceito constitucional, pelo menos no seu texto literal, nem por lei alguma. O
regimento deste Supremo Tribunal, modificado pela Resolução de 28-6-1945,
dispunha que, para julgamento de matéria constitucional, devia estar o Tribunal
integrado no seu quorum total, convocando-se, no caso de falta de ministros, os
seus substitutos legais; mas, posteriormente, como, por exemplo, no julgamento
do RMS 913, em sessão de 29-12-1948, decidiu o Tribunal que “para declaração
de inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público não é necessária a pre-
sença da totalidade dos membros dos Tribunais”, pois “o que se requer é apenas
o voto de maioria absoluta dos membros”. Entendeu-se que, já não mais falando
a Constituição de 1946 em “maioria absoluta da totalidade” dos juízes, mas em
“maioria absoluta” dos juízes, tout court, o Regimento já não podia prevalecer.
O Sr. ministro Edgard Costa fez uma consideração muito razoável, mas que,
então, pelo menos na sua explicitude, ficou isolada. Eis o seu voto:
Não vejo, para o cumprimento do preceito do art. 200 da Constituição, a
necessidade de que estejam presentes todos os membros do Tribunal, porque, se os
votos dos que concluírem pela inconstitucionalidade, ainda quando somados aos dos
ausentes, no mesmo sentido, não puderem atingir o quorum exigido para sua decre-
tação, isto é, maioria absoluta, desde logo, por essa circunstância, fica firmada a cons-
titucionalidade da lei ou ato impugnado. Se, entretanto, hipótese diversa se puder
verificar, adiar-se-á a decisão para serem tomados os votos dos ausentes.

Esta solução, embora não adotada no RE 13.080, veio a prevalecer em


reiterados julgamentos, como no do HC 30.355, RE 9.863 e RE 16.413, e ainda
recentemente foi confirmada, com meu desvalioso voto, pela Primeira Turma
seguindo o ponto de vista do Sr. ministro Luiz Gallotti, no RE 16.545, inter-
posto precisamente de decisão do Tribunal mineiro. O acórdão relatado pelo
nosso ilustre colega tem a seguinte ementa:
Compondo-se o Tribunal mineiro de 21 desembargadores, só com 11
votos, no mínimo, favoráveis à inconstitucionalidade, poderá decretá-la (art.
200 da Constituição). No caso, 9 desembargadores, dos 16 que participaram do
julgamento, votaram pela inconstitucionalidade, não se tendo alcançado, assim,
o quorum necessário, que, entretanto, poderá ser obtido com os votos dos 5 de-
sembargadores ausentes. Por isso, deve ser renovado o julgamento, atendido o
disposto no art. 200 da Constituição.

245
Memória Jurisprudencial

Não há, porém, que se inferir daí que o funcionamento do Tribunal mi-
neiro, com 16 membros apenas, foi inconstitucional. Nem tal decisão poderia
ser proferida pela Turma. Esta reconheceu que o Tribunal podia funcionar com
os 16 juízes presentes, mas, como na hipótese de presença dos desembargado-
res faltosos, em número de cinco, podia a votação no sentido da inconstitucio-
nalidade ter alcançado a maioria absoluta, deveria ser renovado o julgamento,
declarando-se a inconstitucionalidade, caso viesse a colher a maioria absoluta,
de acordo com o art. 200 da Constituição.
Dos acórdãos citados, apenas o proferido no RE 16.413 fala em convoca-
ção de substitutos. Dir-se-á que se a hipótese da presunção de maior número é
excluída pelo impedimento ou licenciamento dos restantes juízes, não há lugar
para a renovação do julgamento. O critério de adiamento, na expectativa do full
bench, só se justificaria quando a falta dos juízes fosse apenas ocasional.
Nesse sentido, aliás, é o exemplo da Suprema Corte americana, no fa-
moso Chicago Lake Front Case: contra sua própria praxe, deliberou ela com
apenas sete membros, dos nove de que se compõe, porque não era possível o
full bench dado que dois juízes estavam impedidos “on account of interest”
(Black, loc. cit.). Não atenderia ao fim do full bench, qual seja o de evitar a
variabilidade das decisões em matéria constitucional, a convocação de subs-
titutos, pois em ulteriores casos trazidos a julgamento, em que desaparecesse
o impedimento dos juízes efetivos, voltariam estes a julgar, e a decisão pode-
ria modificar-se. Replicar-se-á, entretanto, e com toda razão que o acórdão no
RE 16.413 não ressalvou o caso de impedimento ou licenciamento dos juízes,
e mais que, no caso vertente, tratando-se de uma lei para caso singular, não é
formulável a hipótese de diversidade de decisões, posto que os desembargado-
res impedidos serão sempre tais. Nem me parece aceitável a opinião de Castro
Nunes (Teoria e prática do Poder Judiciário, p. 599) de que, no julgamento de
matéria constitucional, “não podem ser convocados os substitutos dos ministros
para completarem o quorum exigido”. A entender-se, assim, como justamente
observa Lucio Bittencourt (O controle jurisdicional da constitucionalidade das
leis, p. 48), “bastaria o impedimento de alguns juízes para que se tornasse impos-
sível a declaração de inconstitucionalidade”, ou “seria bastante que o presidente
da República mantivesse duas ou três vagas nos tribunais para evitar a declaração
contrária aos seus desejos”.
É verdade que, como acentuou no seu brilhante voto o Sr. desembargador
Lincoln Prates, nem a lei mineira de organização judiciária, nem o que estava
publicado no Regimento Interno do Tribunal de Minas, dispõem que para o
julgamento de matéria constitucional sejam, na falta ou impedimento de de-
sembargadores, convocados juízes para sua substituição. Ocorre, porém, que,
sendo os juízes os substitutos naturais dos desembargadores, como, aliás, o

246
Ministro Nelson Hungria

reconhecem e declaram, em casos previstos, a dita lei de organização judiciária


e o Regimento do Tribunal Mineiro, e entendendo o Supremo Tribunal que, para
melhor aplicação do art. 200 da Constituição, seja necessário o full bench ou um
quorum de presença que, dada a votação, exclua a possibilidade de declaração
de inconstitucionalidade, ainda na hipótese de presença dos juízes impedidos ou
faltosos, parece-me que tal solução independe de lei local expressa. O Supremo
Tribunal, para atender à mais conveniente aplicação prática do citado art. 200,
entendeu que entre os casos de convocação de substitutos há de incluir-se, ne-
cessariamente, o de ausência dos juízes efetivos para o julgamento de matéria
constitucional.
E é esta a solução que se impõe no caso vertente, pela necessidade de
unificação de entendimento dos Tribunais em geral.
Isto posto, conheço dos recursos enfeixados sob o número 15.343, pela
letra d do preceito constitucional, para que o colendo Tribunal a quo renove
o julgamento sobre a arguida matéria constitucional, convocados juízes para
substituição não só dos desembargadores impedidos, como, se ainda for caso,
dos licenciados; ficando prejudicados, consequentemente, os demais recursos.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 16.596 — MG

Estabilidade do funcionário e extinção do cargo. Disponibilidade


remunerada, na conformidade do parágrafo único do art. 189 da
Constituição.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não conheço do recurso.
Precisamente em face do parágrafo único do art. 189 da Constituição é que
se apresenta, em toda a sua evidência, a ilegitimidade do ato de destituição
do impetrante, posto que, em face da prova dos autos, foi reconhecida a sua
estabilidade.
Dispõe o aludido parágrafo que, “extinguindo-se o cargo, o funcionário está-
vel ficará em disponibilidade remunerada até o seu obrigatório aproveitamento em
outro cargo de natureza e vencimentos compatíveis com o que ocupava”.
O acórdão recorrido não tem mais do que declarar a limpidez e certeza de
que se revertia, ictu oculi, o direito do impetrante de restabelecer, no caso ver-
tente, o império do preceito constitucional violado por ato do prefeito municipal

247
Memória Jurisprudencial

de Ubá. Somente a extremada unilateralidade da recorrente pode explicar a inter-


posição do presente recurso extraordinário, que devera ter sido negado deferimento.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 16.847 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o acórdão indicado como
discrepante, realmente, não chega a uma conclusão positivamente contrária à do
acórdão recorrido, mas há nele uma afirmação categórica, formulada chámin faisant,
no sentido de que o fiduciário não pode, mediante o artifício da adoção, desviar os
bens dos seus destinatários, isto é, aqueles que terão de receber os bens, caso o fidu-
ciário não tenha filhos, propriamente tais.
E neste ponto é indisfarçável o contraste, a colisão. O advogado dos recorren-
tes demonstrou-o, e entendo que a referida tese é inteiramente razoável, porque, de
outro modo, estaria o fiduciário, por meio de um subterfúgio, por meio de um ex-
pediente artificial, desviando os bens do seu destino legal, sabendo-se que a adoção
não extende o parentesco além das pessoas do adotante e adotado. Não se estabelece
parentesco entre o adotado e o pai do adotante. Mesmo em vida do pai adotivo, o pa-
rentesco não se amplia à família deste ou à do adotado. A lei é claríssima, quando diz
(art. 376 do Código Civil): “o parentesco resultante da adoção limita-se ao adotante e
ao adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais”. Logo, é de toda evidên-
cia que o testador não cuidou de modo nenhum em favorecer filhos adotivos de sua
filha, mas, sim, aqueles que resultassem do casamento dela.
Parece-me que o acórdão recorrido feriu de rosto o art. 1.666, segundo o qual,
na interpretação do testamento, deve-se procurar o mais possível, apurar, fixar qual
teria sido a vontade real do testador e, no caso, evidentemente, não cogitava ele de
semelhante filha adotiva. Não podia o acórdão, ao arrepio do testamento, decidir que
os bens fossem para a filha adotiva de sua filha, em prejuízo dos autênticos parentes
do testador.
Nestas condições, data venia do Sr. ministro relator, conheço do recurso e lhe
dou provimento.

248
Ministro Nelson Hungria

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 18.606 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Conforme se vê da própria “justifi-
cação” do Ato 998, de 9-1-1936, da Municipalidade de São Paulo, o que ele fez foi dar
o nome de “taxa de registro e fiscalização” à taxa adicional de cinquenta por cento
sobre determinadas rubricas da receita municipal criada pelo Decreto 5.756, de 19-
12-1932, e elevada a dez por cento pelo Ato 737, de 1934.
O nome especial que lhe achou de dar o Ato 998 não modificou o seu caráter
de adicional ou majoração dos impostos de que é deduzida percentualmente. Não
se trata de tributação autônoma, mas acessória. É um adicional de certos impostos,
embora, impropriamente, se lhe tenha dado o nome de “taxa”. A recorrente invoca,
e com toda adequação, o brocardo de que nihil interest de nomine, cum de corpore
constat, e argumenta irrefutavelmente: “(...) aquela imprópria designação que teria
sido dada ao tributo em causa não afetou a incontestável substância de adicional, de
mero acessório das rubricas de receita de que depende para subsistir, com que foi
instituído. E, como acessório de outros impostos e taxas, acompanha a condição ju-
rídica do principal a que se vincula, participa da sua natureza, e, por conseguinte, da
sua indiscutível legitimidade que se fundamenta na discriminação constitucional das
rendas públicas”. Não há de ser um rótulo, por mais pretensioso, que há de impedir
se reconheça na espécie um simples sobreimposto, um mero satélite a gravitar na
rabadilha do imposto predial. Por essas razões, meu voto é no sentido da constitucio-
nalidade do Ato 998, de 9-1-1936, da Municipalidade de São Paulo.

EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, conforme pro-
curei bem acentuar, em meu voto favorável à constitucionalidade do tributo em
questão, que chamei de sobreimposto, não há diferença alguma entre o que era anti-
gamente considerado adicional e o que passou a ser, impropriamente, denominado
taxa. Deu-se novo rótulo ao acréscimo de cinco por cento, mas, afora isso, nada
mudou. Não houve, em substância, modificação alguma, de modo que não se pode
recusar sua previsão na lei orçamentária, embora com o nome antigo.
Não vejo motivo para que se decrete a sua inconstitucionalidade, sob o fun-
damento de que se trata de novo tributo. Temos de julgar pela substância e não pela
epígrafe. O que se apresenta realmente como simples “adicional” não pode ser con-
siderado “taxa”, apesar de assim denominado inadequadamente por lei posterior.
Daí a razão por que entendo inexistir a inconstitucionalidade arguida.
Era a explicação que desejava dar.

249
Memória Jurisprudencial

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 18.998 — SP

As cooperativas de que cogita o Decreto-Lei 22.239 continuam


sob a proteção da União e do direito federal, que lhes concedeu isenção
fiscal. De outro modo, isto é, permitindo-se aos Estados ou Municípios
o direito de tributá-las, estaria frustrada, em parte, a política econô-
mica reservada, no tocante à produção e consumo, à União Federal.

PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.

VOTO-VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O art. 38 do Decreto-Lei 22.239, de 19-12-1932,
dispõe que são sociedades civis e como tais não sujeitas à falência, nem à incidência
de impostos, que recaiam sobre atividades mercantis, as cooperativas para certos fins,
como as de produção ou trabalho agrícolas, de consumo, etc., e o Decreto-Lei 8.401,
de 19-12-1945, expressamente revigorou, no seu art. 1º, as disposições do Decreto
22.239. Não me parece que tais decretos tenham sido implicitamente revogados ou
considerados insubsistentes pela Constituição de 1946. É certo que esta já não declara
expressamente, como a Constituição de 1937, que as “cooperativas” constituem ob-
jeto privativo da legislação federal, mas não é menos certo que atribui exclusivamente
à União o legislar sobre a produção e o consumo. E neste âmbito está necessaria-
mente incluído tudo quanto diz respeito às cooperativas. Nem se compreenderia que,
tratando-se de assunto ou interesse que se projeta no plano nacional, fosse retirada a
prevalente intervenção legislativa da União. Acima do interesse da autonomia fiscal
dos Municípios, há de estar o interesse da proteção a institutos de interesse nacional.
A prevalecer o entendimento contrário, os Municípios, com a sua política fiscal, po-
deriam embaraçar ou anular, na espécie, o poder regulador da União. O direito de
tributar, como dizia Marshall, envolve o de destruir. Como já decidiu este Supremo
Tribunal Federal sobre caso semelhante ao de que ora se trata, embora resolvido prin-
cipalmente à luz da Constituição de 1937, o “Governo Central, visando ao bem co-
mum e a fins de interesses coletivos, pode dar a certo instituto tais características que
torne intributável sua expansão, sem o que aqueles fins seriam inatingidos”. Não vejo
por que não possa ser isso repetido em face da Constituição atual, que reserva à União
o legislar sobre a produção e consumo. São ainda do citado acórdão desta Suprema
Corte os seguintes tópicos: “(...) a lei federal regulou, como lhe compete, as coopera-
tivas agrícolas e, sem proceder ultra vires, definiu-lhes a natureza de sociedade civil,
sociedade de pessoas e não de capitais, e, assim, sobranceira à imposição de tributos
que incidam em atividades mercantis. Podia, maiormente em face da outorga de 1937,
o legislador federal tornar a “cooperativa” isenta de tributação, como o fez, atendendo

250
Ministro Nelson Hungria

à sua finalidade e ao proveito esperado do florescimento e expansão desse tipo espe-


cial de sociedade. Em rigor, não se trata de isenção, mas de não incidência de imposto
em face da natureza da atividade das cooperativas”. As mesmas palavras podem ser
reiteradas atualmente, em face do art. 5º, XV, c, da Constituição de 1946. Não tenho
dúvida de que a recorrente, como sociedade cooperativa incluída na classificação do
Decreto-Lei 22.239, não tem sua atividade sob incidência de impostos, não podendo o
fisco municipal infringir a lei federal.
Assim, conheço do recurso e dou-lhe provimento, data venia do eminente Sr.
ministro relator, quer quanto a impostos no exercício de 1940, quer quanto aos demais.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 19.027 — MG


VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia do eminente Sr.
ministro Abner de Vasconcelos, dispenso a remessa dos autos ao Tribunal Pleno.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, a Constituição, no art. 21,
dispõe o seguinte: “A União e os Estados poderão decretar outros tributos além dos
que lhes são atribuídos por esta Constituição. Mas o imposto federal excluirá o esta-
dual idêntico”.
Pretende o recorrente — e em torno disso gira o núcleo de sua argumentação
— que a Constituição, aqui, se refere não só a imposto como a taxa, porque usa da ex-
pressão genérica tributos. Mas cumpre atender que se, realmente, no início, o artigo se
refere a tributos, já em sua parte final declara proibido o bis in idem somente em ma-
téria de imposto, isto é, a União e os Estados poderão decretar “outros tributos”, mas,
em se tratando de impostos, o federal excluirá o estadual. É bem conhecida a diferença
conceitual entre imposto e taxa. Taxa é a contribuição que se cobra em correspondên-
cia ou em compensação de serviços públicos prestados direta ou especialmente a um
grupo de cidadãos mais ou menos extenso; ao passo que o imposto é destinado a pro-
ver as necessidades de caráter geral. Dado o caráter de contraprestação da taxa é que
a Constituição não reconhece incompatibilidade entre imposto e taxa ou entre taxa e
taxa, excluindo em tais casos a censura do non bis in idem. Se a União presta serviços
tendendo a favorecer ou a tutelar especialmente uma determinada indústria, e passa a
cobrar por isso uma taxa, não fica o Estado inibido de, na órbita de sua competência,
decretar um imposto de caráter geral que atinja essa indústria. Do mesmo modo, se o

251
Memória Jurisprudencial

Estado, embora a União já cobre imposto sobre determinada atividade, presta serviços
especiais em benefício desta, não está inibido de cobrar uma taxa correspondente. Por
quê? Porque a taxa é o preço de um serviço público prestado e que deve ser pago por
aqueles que dele mais diretamente se beneficiam.
Entendo que, no caso de quo agetur, não é identificável a bitributação vedada
pela Constituição vigente, de acordo, aliás, com o que já decidiu o Tribunal Pleno. Se
era possível discussão em face das Constituições anteriores, já não o é com o advento
da Carta de 1946.
Por essas razões, Senhor Presidente, estou, de acordo com Vossa Excelência.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 19.285 — DF


VOTO
(Sobre inconstitucionalidade)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que a
irrecorribilidade, como regra geral, a que se refere o art. 120 da Constituição é a não
interponibilidade de recurso ordinário.
Não exclui, de modo algum, o recurso extraordinário permitido pelo art. 101,
III, e suas alíneas. A entender-se de outro modo, a Constituição teria incorrido em
grave contradição e em inexplicável erro de técnica, pois irrecorríveis se entendem
as sentenças de que já não cabe recurso ordinário, não deixando de ser tais ainda
quando sujeitos a recurso extraordinário. Assim, considero perfeitamente afeiçoado
ao sistema constitucional o art. 13, § 4º, do Código Eleitoral.

EMBARGOS NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 19.285 — DF


VOTO
(Sobre questão de ordem)
(Apreciação de arguição de inconstitucionalidade)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, para chegar, no caso,
ao exame da alegada inconstitucionalidade, seria preciso que se fizesse escala
por um exame de prova ou por uma questão de fato. Poderia ser esta admitida ou
suscitada em grau de embargos? A meu ver, considerada a matéria in abstrato é
admissível que se aprecie a questão.
252
Ministro Nelson Hungria

VOTO
(Preliminar)
(Sobre a arguição de inconstitucionalidade)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, sempre entendi que “ma-
téria constitucional” pode ser arguida em qualquer fase do processo, seja na primeira,
seja na segunda instância. Por isto dei meu voto para que, no caso, fosse prejudicial-
mente decidida a suscitada questão constitucional.
De meritis, é certo que o art. 69 da Constituição dispõe que, se o projeto de lei
de uma Câmara for emendado na outra, será devolvido àquela, para que se pronuncie
a respeito. Afirma-se que determinado dispositivo do atual Código Eleitoral, quando
o respectivo projeto transitava no Congresso Nacional, resultou de uma emenda do
Senado ao projeto da Câmara; e que, ao voltar a esta o projeto, tal emenda teria sido
suprimida, embora se omitisse a comunicação de tal fato ao Senado. Em primeiro
lugar, uma lei, depois de sancionada e publicada, tem por si, indiscutivelmente, a
presunção de que, na sua elaboração, na sua tramitação pelo Parlamento, foram
atendidas todas as formalidades constitucionais. Não é admissível que se abstraia
essa presunção, imposta pela própria necessidade de estabilidade e prestígio das leis.
Se houvesse uma prova inconcussa, a entrar pelos olhos, vá que se reconhecesse a
irregularidade; mas, no caso, o que se apresenta como prova da irregularidade e,
portanto, da inconstitucionalidade do preceito de que se trata seriam exemplares do
Diário do Congresso. Sabe-se que até o Diário Oficial, na publicação definitiva das
leis, constantemente, diariamente, vem inçado de erros, de equívocos, de quiproquós.
Imagine-se, agora, o que ocorre com o Diário do Congresso. Se houvesse uma cer-
tidão autenticada de documentos arquivados na Câmara dos Deputados e pela qual
se averiguasse, de modo irretorquível, a supressão da emenda, não estaria eu longe
de reconhecer a arguida irregularidade. Mas tal não acontece. Da própria certidão,
cuja fotocópia nos foi remetida extra-autos pelo embargado, consta que não existem
quaisquer vestígios do fato no arquivo daquela Casa do Congresso. Só se poderia
retraçá-los através do Diário do Congresso.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Verifica-se que a emenda supressiva do art.
46, § 3º, foi rejeitada.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Louvando-se Vossa Excelência em exem-
plares ou noticiário do Diário do Congresso. De qualquer maneira, não se pode
resolver de improviso, na hora Z, esse ponto da impugnação de embargos, a exigir
detida e meticulosa indagação de fato. A matéria constitucional pode ser apreciada
nesta oportunidade, mas, desde que ela traz no bojo toda uma questão de alta in-
dagação, que envolve meditado exame e cotejo de documentos e de fatos, não é
possível julgá-la de plano, levato velo. Compreende-se que uma lei possa ser corri-
gida, sem mais delongas, quando do seu próprio texto, da sua própria redação, se
verifica o erro, prima facie, ou a sua incompatibilidade com a Constituição. Se para

253
Memória Jurisprudencial

demonstração do erro ou da inconstitucionalidade arguida é necessária uma pes-


quisa sobre as etapas de sua elaboração no Congresso, o mais prudente será provocar
uma nova lei, para o efeito da correção. O Poder Judiciário praticaria uma leviandade
ou talvez uma usurpação, se proclamasse a insubsistência de uma lei sem plena cer-
teza da arguida irregularidade de sua formação pelo Poder Legislativo.
Tenho para mim que, se o Supremo Tribunal Federal se arrogasse a faculdade
de declarar insubsistente o questionado dispositivo do Código Eleitoral, incidiria na
justa censura de precipitação ou imponderação.
Não acolho a arguição de inconstitucionalidade.

VOTO
(Sobre diligência)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, já acentuei que, como ele-
mentos probatórios, a fotocópia que recebi e os exemplares do Diário do Congresso
ressentem-se de precariedade. Não lhes reconheço importância decisiva. Não tem
utilidade, portanto, sua juntada aos autos.
Voto contra a diligência.

VOTO
(Preliminar)
(Sobre cabimento do recurso)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quanto ao reexame da
questão preliminar do cabimento do recurso, entendo que, com o oferecimento dos
embargos, a causa continuou re integra. Podemos e devemos retornar ao julgamento
de tal matéria.
Meu voto anterior foi no sentido da admissibilidade do recurso. Entendi que,
parecendo ter o acórdão do Tribunal a quo declarado, em parte, a invalidade de um
preceito do Código Eleitoral, em face da Constituição, cabia, em tese, o recurso. Só
posteriormente, fazendo o estudo do conjunto da lei, cotejados os vários dispositivos
do sistema legal eleitoral, é que cheguei à conclusão de que, realmente, não houvera
esse truncamento, essa invalidação parcial arguida pelo recorrente.
Continuo a afirmar que o recurso era de ser conhecido. Rejeito, portanto, a
preliminar levantada pelo Sr. ministro Mario Guimarães.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, no mérito, não tenho dú-
vida em manter o meu voto anterior. A conclusão a que chegaram os eminentes Srs.
ministros relator e revisor estaria certa, se certa estivesse a premissa. Mas a questão
surge precisamente em torno da premissa adotada pelos meus ilustres colegas e cujo

254
Ministro Nelson Hungria

acerto contesto formalmente. O Código Eleitoral tem dois sistemas: o sistema de co-
cientes e o sistema de sobras. Segundo a regra geral, esses sistemas se entrosam, se
conjugam. Quando aplicado o sistema de cocientes, se apresenta irredutível sobejo
de votos, entra em jogo o sistema de sobras. Ora, no caso do art. 46, § 3º, o que o
Código Eleitoral manda aplicar é tão somente o sistema de sobras. Nada tem a ver
com esse caso o sistema de cocientes. Não se fala, de modo algum, no § 3º do art. 46,
em cociente, quer partidário, quer eleitoral. É isto inteiramente abstraído. O disposi-
tivo, como salientei, exclui a indagação sobre os ditos cocientes e finge que os votos
apurados constituem “sobras”. Na realidade, não são “sobras”, mas tem-se de fazer
de conta que o são. A lei tem o poder de criar ficções, para facilitar a solução de certas
hipóteses que, de outro modo, seriam insolúveis.
Aplicando-se o sistema de sobras, sem qualquer outra indagação, tem-se de
fazer dois cálculos sucessivos para indicar os deputados eleitos. No primeiro, o divi-
sor é um só para as operações, de modo que o partido majoritário obtém o primeiro
deputado; no segundo, porém, o divisor é maior para o partido majoritário, enquanto
para o partido em minoria continua o mesmo. Se feitas as operações da segunda divi-
são, o partido minoritário alcança maior algarismo do resultado, o segundo deputado
lhe caberá. Foi o que ocorreu no caso vertente. Por este critério, inteiramente ajustado
ao espírito da Constituição de 1946, de que o Código Eleitoral é reflexo, é indubitável
que o diploma tem de ser conferido ao embargante, e não ao embargado. Trata-se
de uma questão de matemática, a ser resolvida segundo as regras tradicionais, que
eu aprendi, e não com a teoria dos quanta ou do relativismo de Einstein, que, aliás,
ignoro. Dentro das regras da aritmética clássica, o deputado eleito em segundo lugar
não foi o Sr. Hugo Carneiro, mas o Sr. Oscar Passos.
Não há razão alguma para que modifique o meu voto. Recebo os embargos,
data venia dos Srs. ministros relator e revisor.

QUESTÃO DE ORDEM
(Sobre desempate)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que Vossa
Excelência não tem voto, prevalecendo a decisão anterior.

VOTO
(Questão de ordem)
(Sobre a ata)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, Vossa Excelência foi intei-
ramente fiel na proclamação do resultado, e nestas condições o remédio que caberia
na espécie, se há erro ou omissão do julgado, seria outro que não a presente reclama-
ção, que indefiro.

255
Memória Jurisprudencial

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 19.715 — MG

Fraude contra credores; quando não pode ser reconhecida, desde


que admitido como não provado o consilium fraudis. Aquisição de imó-
vel de quem o adquirira do devedor; não é anulável, desde o segundo
adquirente agiu de boa-fé, não estando adstrito a indagar da insolvên-
cia do primitivo proprietário, ao tempo da anterior alienação.

PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O atual proprietário do imóvel em questão
não o adquiriu do devedor do Banco do Brasil, mas de outra pessoa que, por sua vez,
o adquiriu do dito devedor. Ainda, porém, que admissível a averiguação de má-fé
por parte do segundo adquirente ou atual proprietário, dada a sua arguida ciência ou
a notoriedade da insolvência do devedor do banco, já ao tempo da anterior alienação,
o certo é que o acórdão recorrido, confirmando a sentença de primeira instância, en-
tendeu não provada essa ciência ou notoriedade.
Por outro lado, o acórdão recorrido não cuidou da cláusula contratual de não
alienação do imóvel de que se trata e onde se achavam os animais apanhados. Não foi
isso objeto de discussão na causa, e só agora, no arrazoado do presente recurso, é que
foi aventada a questão. Mesmo, porém, admitido que o tema ainda fosse oportuno, é
bem de ver que a referida cláusula, embora registrado o contrato, não poderia valer
contra o atual proprietário, que, como já ficou esclarecido, não adquiriu o imóvel do
devedor recorrente, mas de terceiro, que o adquirira daquele, a não ser que tivesse
agido de má-fé ou em conluio fraudulento com o devedor e primeiro adquirente, o
que o acórdão recorrido declara não provada.
Assim, não conheço do recurso, data venia do eminente Sr. ministro relator.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 20.256 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, devo declarar que, no
Tribunal de Justiça do Distrito Federal, funcionei em processo criminal contra
o filho do corretor Meira Guimarães, acusado de se locupletar com dinheiro,

256
Ministro Nelson Hungria

provenientes da venda de apólices emitidas pela prefeitura de Porto Alegre e a


esse tempo depositadas no Banco União, e, incidentalmente, reconheci a irregu-
laridade da venda de certo número dessas apólices ao atual recorrido. Não me
pronunciei, porém, sobre a boa ou má-fé do recorrido ou sobre as consequências
jurídicas decorrentes da operação irregular; de modo que não estou impedido
de funcionar no presente feito.
Dada esta explicação, passo a dar o meu voto, que se ajusta ao do emi-
nente Sr. ministro relator. Não se pode reconhecer no caso, em face da análise
de textos legais tão precisamente feita por Sua Excelência e dos convincentes
argumentos expendidos pelo advogado do recorrido, uma nulidade absoluta.
Ainda mesmo admitida a sanção de que não fala o regulamento então
vigente sobre o assunto, ainda nessa hipótese, tratar-se-ia de nulidade relativa,
a qual, entretanto, não poderia atingir o adquirente bona lide das apólices. Este
— e lembro-me muito bem da prova que se fez no processo criminal — tinha
a mais fundada confiança na lisura e legalidade da operação. O corretor Meira
Guimarães era seu corretor habitual e jamais teve razão para duvidar de sua
fidelidade ou exação funcional. No caso vertente, encarregou-o de adquirir títu-
los que julgasse proveitosos ou garantidos, e alheiou-se à execução do mandato.
Assim, quando o filho do corretor lhe entregou as apólices em causa, estava ele
convencido de que a compra fora feita regularmente. Não tinha razão alguma
para deixar de confiar no seu antigo corretor. Estava na inteira ignorância do
que se havia passado e não tinha o mais longínquo conhecimento de que o fi-
lho de Meira Guimarães é que estava dispondo irregularmente das apólices, de
parceria com outro ejusdem furfuria. Foi o recorrido ilaqueado na sua boa-fé,
tanto mais quanto a confiança no corretor se impõe, porque este tem fé pública,
exerce função pública ou sob a vigilância do Poder Público. O recorrido não po-
dia deixar de crer que a operação, de que resultara a entrega das apólices, estava
de acordo com todos os requisitos legais. Seria profundamente chocante que o
direito aprovasse a iniquidade de fazer o recorrido, por ter sido surpreendido na
sua boa-fé ou ter sido coagido juridicamente pela fé que a lei atribui ao corretor,
pagar duas vezes o preço das apólices.
Assim, acompanho o voto do eminente Sr. ministro relator, negando pro-
vimento ao recurso.

257
Memória Jurisprudencial

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 21.046 — RS

Investigação de paternidade; pode ser proposta sem necessi-


dade de prévia anulação do falso reconhecimento ou legitimação do
autor, da parte de outrem. Invalidade de transação em torno de ques-
tão de estado pessoal.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): A falsidade do reconhecimento da
recorrida por João Winter era proposição necessariamente implícita na inicial da in-
vestigação de paternidade, e, como o dito reconhecimento foi um dos pontos centrais
da contestação dos recorrentes, não podia deixar de ser matéria do julgamento final.
Nem era imprescindível a prévia anulação desse reconhecimento para que pudesse
ter ingresso em juízo a investigação de paternidade. Dispõe o art. 348 do Código
Civil, na sua atual redação, que “ninguém pode vindicar estado contrário ao que
resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.
Em primeiro lugar, cumpre notar que a lei prestigia o assento de nascimento,
ao qual não se pode equiparar, quanto à força probatória, o ato de legitimação.
Em segundo lugar, a cláusula final do artigo não se refere à condição de
prévia anulação do assentamento do registro civil. Sem dúvida que a boa técnica
aconselha a cumulação da ação de investigação de paternidade com a de anulação
do reconhecimento anterior; mas isto não é imprescindível. Apreciando o tema, em
parecer publicado na Revista Forense, v. 84, p. 64-66, Philadelpho Azevedo sus-
tenta, com cerrada argumentação, “a possibilidade de um segundo reconhecimento,
sem necessidade de prévia anulação do primeiro, o que, consequentemente, autoriza
o ingresso de ação de investigação sem necessidade de prévia anulação de falso re-
conhecimento anterior”. E invoca as opiniões de Wahl e Barde. Diz o primeiro: “(...)
l'annullation de la reconnaissance n'ést pas une condition préalable de tout action en
declaration de paternité”; e o segundo observa: “La reconnsaissance est loin d'ávoir
la force probatoire de l'acte de naissance d'une enfant legitime, la presomption de
verité que s'ettache á elle n'est que celle d'an aveu”.
No mesmo sentido de Philadelpho se pronunciam Serra Lopes (Tratado dos
registros públicos, v. I) e Carvalho Santos (parecer citado pela recorrida). Trata-se
de matéria de ordem pública, qual a que concerne ao estado das pessoas. É o que
acentua Carvalho Santos:
Não seria possível, evidentemente, admitir-se fosse julgada improcedente a
ação de investigação de paternidade, mesmo que provado estivesse a filiação preten-
dida, sob o fundamento de estar a autora reconhecida falsamente por outrem. Seria
ferir de morte os interesses superiores de ordem pública, e que exigem não prevaleça
a falsidade principalmente nas relações de parentesco.

258
Ministro Nelson Hungria

Ocorre ainda, advertir que, em se tratando de questão de estado, a sentença


deve ter efeito não somente em relação às partes, senão erga omnes. É o que pondera
Miglire (Autoridad de la cosa juzgada, p. 167):
(...) al regimentar el derecho una conducta, en una cuestion de estado, no lo
hace relacionandola exclusivamente com la parte contraria en el juicio, sino frente
a la sociedad, y aún poderia decirse que la “situacion de derecho” entre partes, em
tales cuestiones, sólo adquiere sentido considerandola como “situacion de derecho”
dentro de la sociedad.

No caso vertente, aliás, a única interessada na subsistência do reconhecimento


anterior, considerado falso, é a mãe de Maria Alzira, Antonia Inês Winter, e esta,
depondo como testemunha, faz causa comum com a filha, e, sobrevindo a decisão fi-
nal, ao invés de recorrer como terceira prejudicada, declara em escritura pública que
está plenamente conformada com ela, desistindo de qualquer recurso. Não me parece
que haja necessidade, sequer, de ação específica para anulação de reconhecimento
anterior, devendo seguir-se o respectivo cancelamento como execução do acórdão
recorrido, sem ofensa ao art. 121 da Lei de Registros Públicos, interpretando na sua
finalidade e na sua lógica. Finalmente, no que respeita à transação, foi o seguinte o
que se fez constar da escritura:
(...) que pende uma dúvida sobre se a outorgante e reciprocamente outorgada,
D. Maria Alzira Peter, é filha, natural do falecido senhor Rinaldo Selbach; mas que,
no intuito de evitarem uma demanda judicial, que, além de dispendiosa, poderá ferir
susceptibilidade e macular o conceito de que gozam os mesmos outorgantes e outor-
gados (os ora recorrentes), resolveram eles confiar a solução do caso a um amigo co-
mum, o qual, depois de considerar as alegações que lhe forem feitas e o propósito dos
segundos outorgantes e outorgados, apresentou a seguinte proposta de conciliação: 1)
os primeiros outorgantes e reciprocamente outorgados (Maria Alzira e seu marido),
receberam a importância de CR$ 173.377,22, em quanto importaria a legítima de
dona Maria Alzira Peter, se habilitada tivesse sido no inventário dos bens deixados
pelo Sr. Rinaldo Selbach, etc.

Como se vê, não é possível dissimular que a transação versou sobre a fi-
liação natural da recorrida, no sentido de que esta desistisse de pleitear qualquer
direito a tal respeito. Incensurável, portanto, foi o acórdão recorrido, negando
validade a essa transação, embora ressalvando que, no que tenha a receber fu-
turamente Maria Alzira, de seu quinhão hereditário na sucessão de Rinaldo
Selbach, seja deduzido o que já lhe foi pago no ato da transação, e isto, não por-
que se pretenda atribuir qualquer valor a esta, mas pelo princípio da proibição
do enriquecimento sem causa.
Realmente, existe dissídio jurisprudencial, embora não me tenham aper-
cebido da indicação de arestos divergentes; mas a solução que tenha como certa
é a do acórdão recorrido. Conheço do recurso tão somente pela letra d e lhe
nego provimento.

259
Memória Jurisprudencial

EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, em face do
voto do eminente Sr. ministro Mario Guimarães, devo uma explicação no sen-
tido de fixar, mais nitidamente, a natureza do contrato celebrado entre as partes.
Ao contrário do que parece entender o Sr. ministro Mario Guimarães, a
transação não foi feita em torno do algarismo de interesses patrimoniais, mas
exclusivamente em torno da questão do estado da pessoa, isto é, para que a
recorrida não prepusesse ação de investigação de paternidade, porque isso po-
deria importar em grave escândalo para a família do de cujus ou investigando.
No tocante à cota hereditária, não houve transação nenhuma, pois a
recorrida recebeu no ato determinada quantia, que se dizia corresponder exa-
tamente à sua cota hereditária, caso fosse vencedora na ação de investigação.
Recebeu a importância porque, induzida em erro, estava convicta de que repre-
sentava fielmente o que lhe caberia no inventário.
Na realidade, essa cota hereditária é muito maior o consentimento da
recorrida, captado por meio de induzimento a erro, não tem valia. Nem seria
possível fazer cisão do contrato de transação no caso vertente, para julgá-lo nulo
numa parte e válido em outra. Não houve transação alguma, repita-se, em torno
da cota hereditária, e somente neste caso é que se poderia concordar com o voto
do eminente Sr. ministro Mario Guimarães.
Assim, Senhor Presidente, mantenho meu voto.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 21.198 — AM


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, preliminarmente,
quero defender o art. 187 da Constituição, das increpações que lhe fez o ilustre
advogado que acaba de ocupar a tribuna.
Não há nele ociosidade, nem defeito de técnica.
Era imprescindível um preceito que limitasse o benefício da vitaliciedade,
pois, de outro modo, ficaria à lei ordinária a faculdade de espalhar a mancheias esse
benefício excepcional, pouco importando que artigo anterior já tivesse atribuído vi-
taliciedade aos magistrados e aos ministros do Tribunal de Contas.
Era imprescindível um preceito que resguardasse a excepcionalidade da ga-
rantia legal. Impunha-se, portanto, a formulação do art. 187. E não é falta de técnica

260
Ministro Nelson Hungria

o chamar a nós outros, magistrados, de funcionários públicos. Somos funcionários


públicos com garantias especiais, funcionários de alta categoria, mas funcionários
públicos, quand même, mesmo porque não somos eleitos pelo povo, mas nomeados
pelo Poder Executivo, com ou sem o placet de uma das casas do Poder Legislativo.
Feita esta defesa espontânea do art. 187 da Constituição, passo a examinar a
questão sub judice.
Já o Tribunal entendeu, por mais de uma vez, que a limitação do art. 187
da Constituição Federal projeta-se nos Estados. Assim, decidiu no citado caso de
Santa Catarina, onde o legislador estadual entendera de ampliar a vitaliciedade a
funcionários outros que não aqueles de que cogita o art. 187. Se se reconheceu que
esse dispositivo se projeta no campo estadual, é força reconhecer que tudo quanto o
Estado fizer, dentro dos limites do referido artigo, de modo nenhum estará violando
a Constituição. Ao contrário, estará se adaptando, aderindo a ela.
Ainda que se não admita que o art. 187 não se propague obrigatoriamente
no plano estadual, o fato é que de modo algum se poderá impedir que o Estado
o tome como modelo, em sua legislação própria, e, uma vez que o Estado assim
procedeu, baixando uma lei criando o Tribunal de Contas, declarando vitalícios
seus membros, também se pode admitir que lei anterior, em relação a futu-
ros membros desse Tribunal de Contas, possam deixar de ser vitalícios. Mas,
quanto àqueles outros, aqueles que já foram nomeados e assumiram o cargo no
regime da lei que garantia vitaliciedade, não há a menor dúvida que lei alguma
pode alterar, poderá cancelar essa situação.
De modo que estou de pleno acordo com o voto do Sr. ministro relator, no
sentido da constitucionalidade da lei estadual em questão.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 21.219 — SP


VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o acórdão impugnado es-
tabelece, como uma de suas premissas, que o recorrido não foi, na realidade, aprovei-
tado em cargo equivalente, conforme determina o dispositivo constitucional. Teria
ele “sido encostado” na Secretaria da Fazenda, porquanto, nomeado diretor-geral
dessa Secretaria, não havia cargo vago com esse título. Não houve, propriamente, o
aproveitamento do recorrido. Houve, apenas um “arranjo” para resolver, provisoria-
mente, a sua situação. Na realidade, inexistia vaga de diretor-geral na Secretaria da
Fazenda, de maneira que não podia ter sido ele nomeado para tal cargo. Tudo isso
261
Memória Jurisprudencial

o acórdão admite como provado, e, nessa parte, não podemos apreciá-lo, porque se
trata de matéria de fato e regulada por lei estadual.
Estou em desacordo com a tese do acórdão no ponto em que diz que o fun-
cionário em disponibilidade pode escolher o cargo, equivalente ao que ocupava e
em que deseja ser aproveitado. Entendo que o Governo não é obrigado a nomear
o funcionário em disponibilidade para o equivalente cargo vago, que ele escolha.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não foi essa a tese do acórdão. O
acórdão diz que o cargo a que o recorrido tem direito é aquele que foi extinto e
depois restabelecido.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Esse cargo não mais existe, uma vez que foi
extinto legalmente. Mesmo restabelecido, é cargo que surgiu ex novo nos quadros do
funcionalismo do Estado. O cargo anterior foi extinto sine conditione. O cargo atual
é outro cargo, embora com o mesmo nome e com funções idênticas. Nem se pode,
de resto, usar o termo “restabelecido”, que traz consigo a ideia de um retorno ao statu
quo ante. Na realidade, foi criado de novo, sem qualquer ligação com o passado. Não
vejo como se possa, por isso mesmo, reconhecer o pretendido direito do recorrido.
Dir-se-a que, dessa forma, o preceito constitucional poderá ser burlado. É exato; mas
a Constituição que fosse mais previdente e mais explícita em seus preceitos. Nem
mesmo implicitamente é proibido, em face dela, o que ocorreu no caso vertente. Ora,
é preceito escrito no frontal da democracia que é permitido o que não é proibido.
Estou de acordo, entretanto, com o voto do ilustre desembargador Costa
Manso, pois, ao contrário do que afirmou o nobre advogado do recorrente,
o aproveitamento dos funcionários do extinto Departamento Estadual de
Estatística, segundo a lei estadual, não é facultativo, mas, sim, imperativo.
Determina essa lei, categoricamente, que o presidente do Estado lotará no de-
partamento criado os funcionários do anterior, que forem necessários.
Dir-se-á que essa necessidade não se refere apenas à quantidade, se não tam-
bém à qualidade. Mas, se a própria recorrente, a Fazenda do Estado, nada informa
contra o recorrido, não faz qualquer restrição à sua exação funcional, tendo-lhe,
até, prestado a homenagem de atribuição de cargo inexistente, evidentemente não
se pode dizer, no caso concreto, que o recorrido tenha sido sacrificado a um critério
seletivo. Se havia no departamento criado um cargo de diretor-geral, era necessário,
em face da lei estadual, que nele fosse lotado o recorrido.
Tão somente em face deste fundamento é que reconheço o direito do recorrido.
Não conheço, pois, do recurso.

262
Ministro Nelson Hungria

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 22.542 — RJ

A vitaliciedade condicionada, a que se refere o art. 95, § 3º,


da Constituição Federal não dá direito a ingresso na magistra-
tura de carreira, independentemente de concurso.

VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em caso anterior,
proveniente de Minas Gerais, já tive oportunidade de manifestar o meu pensa-
mento em torno do art. 95, § 3º, da Constituição Federal.
Entendo que a condicionada vitaliciedade que aí se assegura aos juí-
zes temporários, com função limitada de meros preparadores de processo ou
de substitutos ocasionais de juízes de Direito, se refere exclusivamente a esse
mesmo cargo de juiz com função limitada. De modo algum, é assegurado a
esses juízes, ainda quando declarados vitalícios, pelo decurso de dez anos de
contínuo exercício, o direito de acesso, independentemente de concurso, à ma-
gistratura vitalícia, com plenitude de funções.
Esta é que é a conciliação entre os arts. 93, § 3º, e 124, da Magna Carta,
e não a que, data venia do eminente Sr. ministro relator, é defendida por
Afonso Arinos, com apoio de Sua Excelência, pois chega a criar um caso de in-
gresso na magistratura de carreira ou, com plenitude de funções, ao arrepio da
Constituição. Esta não permite o ingresso nessa magistratura senão mediante
concurso de provas.
No Estado de Minas Gerais, houve o seguinte: lei estadual transformou
o cargo de juiz municipal que corresponde ao dos pretores no Estado do Rio de
Janeiro, em cargo autônomo, isto é, desvinculando-o da carreira da magistra-
tura, a que se achava integrado antes da Constituição de 1946, embora sem con-
curso. O legislador mineiro, assim, contornou a situação criada pelo contraste
entre a Constituição vigente e a anterior.
Se o Supremo Tribunal já reconheceu acertado o critério da lei mineira,
que se ajustou precisamente à injunção do art. 95, § 3º, da Constituição, estamos
adstritos, no caso vertente, a manter o acórdão recorrido, que está enquadrado
na interpretação do Supremo Tribunal, no sentido de que vitaliciedade condi-
cionada a que se refere o § 3º do art. 95 é tão somente a vitaliciedade no cargo
de juiz preparador ou substituto eventual, sem direito a acesso à carreira de
magistrado, para cujo ingresso é indispensável o concurso.

263
Memória Jurisprudencial

Não se pode ler nas linhas ou entrelinhas da Constituição que, com essa vita-
liciedade, esses juízes adquiram o direito de se isentarem do concurso para transpo-
sição dos humbrais da magistratura de carreira.
Assim sendo, Senhor Presidente, data venia do Sr. ministro relator, não co-
nheço do recurso.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 23.584 — SP

Arts. 1.605 e 1.750 do Código Civil: entre os “descendentes su-


cessíveis”, inclui-se o filho adotivo, que é equiparado ao filho legítimo.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não há identidade entre o presente
caso e o resolvido pelo indicado aresto deste Supremo Tribunal. No último, cogitava-
-se de um fideicomisso, devendo os bens, por morte do fiduciário, passar a seus filhos
e, na falta destes, a certas instituições de caridade: como ao fiduciário não tivesse
advindo prole, resolveu ele adotar um filho, e decidiu o Tribunal o seguinte:
A vontade do testador não pode ser substituída pela vontade arbitrária de um
fiduciário, e a esta consequência levaria a possibilidade, reconhecida ao herdeiro, de,
na falta de prole, adotar alguém, com prejuízo de outros fideicomissários determina-
dos. Prole, de que fala o art. 1.718, é a descendência natural. A essa descendência, le-
gítima, legitimada, ou ilegítima, é que se dá a capacidade de receber por testamento.

Ora, reconhecer que a prole de que fala o art. 1.718 do Código Civil é a natural,
não importa dizer que entre os “descendentes sucessíveis” mencionados no art. 1.750
não se devem incluir, ainda em face do art. 1.605, os filhos adotivos. São estes equi-
parados, para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos, e, no caso vertente, trata-se
de filhos adotivos do testador, e não de herdeiro do testador. Ainda, porém, que se
apresentasse o dissídio jurisprudencial, a solução do acórdão recorrido é a que se me
afigura acertada, tendo em seu apoio a autoridade dos mais ilustres comentadores da
nossa lei civil (Beviláqua, Código Civil, observação ao art. 1.750; João Luiz Alves,
Código Civil, ed. 1917, p. 1237; Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro interpre-
tado, v. XXIV, p. 250; Itabaiana, Direito das sucessões, ed. 1929, p. 396; Ferreira
Alves, Do direito das sucessões, in Manual do Código Civil Brasileiro, p. 396; Carlos
Maximiliano, Direito das sucessões, v. II, p. 501).
Não conheço do recurso.

264
Ministro Nelson Hungria

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 26.855 — MG


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, ainda hoje veio a
nosso julgamento, de retorno do Tribunal Pleno, um recurso extraordinário
do Município de Curitiba, em que se debatia matéria idêntica à de que ora se
trata, tendo sido deliberado que o Estado não pode intervir na autonomia do
Município, assegurada pela Constituição, no sentido de fixar limite às porcenta-
gens de acréscimo aos impostos municipais.
É verdade que, no caso anterior, a proibição do aumento além de 20%
decorria de lei orgânica, baixada pelo Estado em relação aos seus Municípios,
e é verdade que o eminente Sr. ministro Orozimbo Nonato ressalvou que, se,
ao invés da lei orgânica, tivesse sido a Constituição estadual que proibisse tal
aumento, o Município teria de se submeter. Eu, porém, data venia, não distingo.
Uma vez que a Constituição Federal assegura a plena autonomia municipal, e
expressamente no que concerne à decretação e arrecadação de impostos, segue-
-se que o Estado não pode, de modo algum, quer na sua Constituição, quer em
lei ordinária, procurar cercear essa autonomia.
No caso vertente, ainda mais há a considerar o seguinte: a hipótese não
teria sido aquela que o acórdão encerou, para decidir, mas outra, qual seja a de
que não houve realmente aumento do imposto em causa, isto é, o de indústrias
e profissões, mas fixação do seu quantum, quando de sua transferência, da com-
petência do Estado para a do Município. Ora, não se pode dizer que o Município
haja aumentado tal imposto, porque a taxa até então vigente decorrera de lei es-
tadual, ao tempo em que ao Estado cabia a cobrança do imposto de indústrias e
profissões. Mas admitamos que, intercorrentemente, o Município tenha adotado
como lei sua a lei estadual e tenha endossado o mesmo quantum determinado na
lei estadual. Voltamos, então, à mesma situação que foi resolvida no precedente
caso da municipalidade de Curitiba.
Ainda mesmo admitida a feição que ao caso dá o acórdão recorrido,
não pode o Estado, nem na sua Constituição, nem em lei ordinária, intervir na
autonomia municipal, notadamente no tocante à decretação e arrecadação de
impostos.
Assim, estou de inteiro acordo com Vossa Excelência.

265
Memória Jurisprudencial

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 27.209 — DF

Anistia; seus efeitos. A reversão do anistiado a cargo pú-


blico, seja ela determinada na própria lei concessiva da anistia,
ou em lei posterior, não é efeito necessário de anistia.

VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que a anistia
é instituto de direito penal, não se estendendo à esfera do direito administrativo,
como não se estende à esfera do direito civil.
A reversão do anistiado a cargo público, seja ela determinada na própria
lei concessiva da anistia, ou em lei posterior, não é efeito necessário da anistia.
De modo algum.
O Estado pode, além de dar a anistia, autorizar a reversão, mas a lei que
assim determinar não é lei declarativa, mas, sim, lei constitutiva.
Assim, discordo de Vossa Excelência, Senhor Presidente, data venia, e
não conheço do recurso.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 27.507 — DF

A Lei 687 de 29-12-1951, do Distrito Federal, não mascara,


no tocante ao imposto sobre as vendas de café para o estrangeiro,
um imposto de exportação. O imposto de vendas e consignações
incide tantas vezes quantas os atos sucessivos de venda ou consig-
nação. Constitucionalidade da referida lei.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O acórdão recorrido assenta, ao
que me parece, sobre duas premissas falsas: a) a de que, uma vez pago num Estado
o imposto de vendas e consignações sobre determinada venda ou consignação de
um produto para outro Estado, tal tributo não poderá ser novamente cobrado sobre
ulteriores vendas ou consignações do mesmo produto nesse outro Estado; b) a de
que o dito imposto não é outra coisa senão o antigo imposto de vendas mercantis, e,
portanto, limitado às operações realizadas entre pessoas domiciliadas no território

266
Ministro Nelson Hungria

nacional. Quanto à primeira proposição, sua falsidade está em que, como juntamente
acentua Oto Gil, ao dissertar sobre o imposto de vendas e consignações in Revista de
Direito Administrativo, v. 22, p. 405, “entre nós, ao contrário do que sucede na legis-
lação de outros países (na Argentina, por exemplo), o imposto incide, sem nenhuma
limitação, tantas vezes quantas sejam as vendas e consignações do produto, desde o
produtor até o varejista”. Se um produto é vendido pelo seu produtor no Amazonas e
vem a ser revendido, sucessivamente, aí mesmo ou em cada um dos demais Estados,
incidirá sob o imposto tantas vezes quantas forem as operações de compra e venda.
Também manifesta é a falsidade da segunda premissa. O imposto de vendas e con-
signações não é sobrevivência integral do imposto sobre vendas mercantis, que,
inerente à disciplina da emissão de duplicatas, não podia deixar de se limitar a ope-
rações efetuadas entre contratantes domiciliados ou residentes no território nacio-
nal. O imposto de vendas e consignações nada tem a ver com duplicatas e, assim, a
referida limitação, no que lhe diz respeito, não teria razão de ser, o que, aliás, está
expresso no § 5º do art. 19 da Constituição: “O imposto sobre vendas e consignações
será uniforme, sem distinção de precedência ou destino”. Aí está patente que não há
distinguir entre venda para consumo interno do país e venda para o exterior. Nem
há confundir, como incontestavelmente argumenta a recorrente, entre venda em que
o produto se destine ao estrangeiro e a efetiva exportação do produto, pois são dois
fatos distintos e, assim, distintamente tributáveis. Se os cafés fossem produzidos no
Distrito Federal e aqui vendidos com destino ao exterior, poderia o fisco municipal
cobrar o imposto de vendas e consignações sobre a venda e, a seguir, o imposto de
exportação quando da efetiva saída do produto do país.
Não haveria nisso um bis in idem, e perfeitamente constitucional seria a co-
brança sucessiva dos impostos. E isso mesmo é o que ocorre, atualmente, em certos
Estados cafeeiros que dispõem de portos próprios e quando por estes se escoa o pro-
duto para o exterior.
A Lei municipal 687 não mascara, nem precisava de mascarar, na espécie, um
imposto de exportação sob o rótulo de imposto de vendas e consignações, pois que
deste realmente se trata, e nada tem de incompatível com a Constituição Federal. Se
os produtores dos Estados de Minas, São Paulo, Rio ou Espírito Santo vendessem
os cafés diretamente a compradores domiciliados no estrangeiro, aí, sim, o Distrito
Federal, por onde o produto apenas passasse em trânsito, não poderia cobrar imposto
algum (nem o de vendas e consignações, porque nenhuma venda se estava operando
no Distrito Federal, nem o de exportação, porque o café não é de sua produção). Tal,
porém, não acontece no caso vertente: os cafés são comprados pelos recorridos nos
Estados produtores, ou lhes são consignados para venda, e aqui revendidos ou ven-
didos, quer para o consumo local, quer com destino ao estrangeiro. A prevalecer o
ponto de vista do acórdão, o Distrito Federal ficaria numa situação de iníqua infe-
rioridade fiscal: confundida a venda, quando destinado o café ao estrangeiro, com o
fato da exportação, não poderia cobrar o imposto de vendas e consignações, porque
267
Memória Jurisprudencial

se tratava de exportação, nem poderia cobrar o imposto de exportação, porque este so-
mente cabe ao Estado produtor. Ainda mais: se os produtores dos Estados instalarem
agências ou depósitos no Distrito Federal, para aí remetendo os seus cafés, ao invés de
os venderem ou consignarem nos Estados de origem e, a seguir, os vendessem para o
exterior, por intermédio de tais agências ou depósitos, não pagariam imposto algum,
nem no Estado de origem (porque nenhuma operação aí efetuada), nem do Distrito
Federal (porque se trataria de exportação).
Semelhantes desconchavos estão a evidenciar o desacerto da decisão do
Tribunal local. Repita-se: o que a lei municipal tributa é a venda de cafés na praça do
Rio, e tal venda, ainda quando destinado o produto ao estrangeiro, não é exportação,
que só ocorre, como é óbvio, quando o café sai efetivamente do território nacional. O
fato gerador ou “suporte fático” (segundo uma expressão rebarbativa que entrou em
uso) do imposto de vendas e consignações é a operação de compra e venda, pouco im-
portando que a res vendita seja destinada ao consumo interno, ou tenha de ser expor-
tado. Ao contrário de colidir com a Constituição, a Lei 687 se enquadra plenamente
no § 5º do art. 19 da Magna Carta.
Os recorridos, num verdadeiro fogo de barragem de memoriais e pareceres,
procuram fazer coincidir o seu interesse com os Estados cafeeiros que não dispõem de
portos marítimos e que, assim, não poderiam vencer o handicap que sobre eles leva-
riam os Estados que não precisam do porto da Capital da República para exportação
de seus cafés. Ora, não há handicap de espécie alguma contra os Estados centrais:
também nos Estados marítimos se paga o imposto de vendas e consignações tantas
vezes quantas o café é objeto de compra e venda. Também lá os produtores não ven-
dem diretamente para o estrangeiro, pois sempre estão de permeio as empresas expor-
tadoras. E se os produtores paulistas ou paranaenses podem vender diretamente para
os compradores domiciliados no estrangeiro, o mesmo poderão fazer os produtores
mineiros ou goianos, evitando os intermediários, que são os ora recorridos.
O que pretendem os recorridos não é a defesa dos produtores mineiros ou
goianos, que, aliás, não os incumbiram dela, mas seu próprio e exclusivo interesse,
que é o de se eximirem ao pagamento do imposto de vendas e consignações por suas
operações no Distrito Federal. Se acaso transferissem eles as respectivas sedes para
o Estado de Minas ou de Goiás, aí teriam de pagar o imposto pela revenda a compra-
dores residentes no estrangeiro, do mesmíssimo modo que atualmente pagam pela
revenda no Distrito Federal. Se vingasse a pretensão dos recorridos é que se estabele-
ceria uma concorrência desleal em detrimento dos produtores dos Estados marítimos.
Senhor Presidente, rejeito a arguida inconstitucionalidade da Lei muni-
cipal 687.

268
Ministro Nelson Hungria

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 30.424 — SP


VOTO
(Desempate)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, sempre tenho enten-
dido que o Banco do Brasil, sobre ser uma sociedade mista, é um delegado de
serviços públicos federais do mais alto relevo, e que as suas funções como de-
legado da União se entrosam ou se conjugam de tal forma com as suas funções
específicas como sociedade mista, que não é possível cindir entre umas e outras.
Há uma espécie de auxílio recíproco entre as suas funções como delegado do
serviço público e como sociedade de direito privado.
Por isso mesmo, entendo ser ele isento de “impostos”, estaduais e muni-
cipais, de acordo com o art. 31, V, letra a, da Constituição Federal, como, aliás,
consigna uma série de leis e decretos ainda em vigor.
Assim, conheço do recurso e lhe dou provimento.

HABEAS CORPUS 31.552 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não tenho dúvida
em reconhecer que o eminente Sr. ministro relator proferiu um voto brilhante.
Ofereceu-nos Sua Excelência incensurável dissertação sobre o crime político,
bem fixando o critério predominante na doutrina a esse respeito, ou seja, o cri-
tério misto, que exige não apenas o aspeto objetivo, senão também o subjetivo.
Não basta que o crime seja dirigido contra o Estado, para que seja considerado
político; é também necessário que se inspire em motivos nobres ou altruísticos,
embora contrários à cartilha do Poder Constituído. Justamente na consideração
dessa nobreza de fim é que assenta a benignidade tradicional para com os crimi-
nosos políticos. São indivíduos que, certos ou errados, agem convictos de que o
fazem em bem da Nação, em bem da Pátria, em bem do povo. Os crimes políti-
cos já foram mesmo denominados “crimes evolutivos”, porque, via de regra, são
praticados por indivíduos que madrugam para as jornadas da civilização e cuja
visão se estende além dos horizontes que limitam a de seus contemporâneos.
Esplêndidas conquistas do mundo social moderno foram devidas a crimes políti-
cos, ou derivaram de crimes políticos. Mas por isso mesmo que se adota esse cri-
tério misto, excluem-se da classe dos crimes políticos aqueles que atentam contra
a integridade ou independência da Pátria. Já aí não é possível falar em nobreza

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Memória Jurisprudencial

de objetivos. É o indivíduo que quer entregar sua Pátria ao estrangeiro ou quer


expô-la aos seus ataques, procurando anular ou enfraquecer seus recursos de
defesa. É crime que não merece perdão ou contemplação. A execrável traição à
Pátria não pode ser incluída no elenco dos chamados “crimes políticos”.
Acresce, que, a tal respeito, legem habemus. O Decreto-Lei 4.766 tem
rubrica explícita: “dos crimes militares em tempo de guerra”. Ainda que, dou-
trinariamente, se pudesse admitir no crime de que é acusado o impetrante a na-
tureza, o caráter de político, mesmo assim teriam de recuar desse ponto de vista,
em face daquela rubrica. “Si vis intelligere nigrum, inspice rubrum”. Se queres
entender o texto, atenta para a rubrica. Temos de nos afeiçoar a esse rótulo, a
essa epígrafe, que não dá margem a veleidades do intérprete. Ita lex scripta est.
Trata-se no caso vertente, sem a menor dúvida, de crime militar, e não
do crime político a que se refere a Constituição, quando atribui a este Supremo
Tribunal a competência para julgar dos recursos.
Estou, outrossim, de acordo com o eminente Sr. ministro relator quando
Sua Excelência não dá pela nulidade arguida. Foi o impetrante julgado pe-
rante juízo competente, porquanto a anterior decisão, que o havia excluído do
Exército, fora anulada. A pena de indignidade, que lhe fora imposta, desapa-
recera, como acessória que era da pena principal. A insubsistência da pena de
indignidade é, como bem acentuou o Supremo Tribunal Militar, um corolário da
insubsistência da pena principal que fora aplicada pelo crime imputado.
O meu desacordo, entretanto, se manifesta no ponto em que o ilustre Sr.
ministro relator entende que a lei excepcional ou temporária continua a vigorar
além do seu término, ainda quando só foi possível em razão da suspensão das
garantias constitucionais.
O art. 3º do Código Penal, quando disciplina as penas excepcionais ou
temporárias, evidentemente pressupõe que continue indene a lei máxima, a
lei constitucional. Se a lei temporária ou excepcional só foi possível porque
estava suspenso o regime constitucional, essa não pode mais vigorar desde
que a Constituição volte a imperar, porquanto, de outro modo, criar-se-ia uma
situação duradoura de contraste com a Constituição. Vou formular um exem-
plo ad terrorem. Suponha-se que durante o antigo “estado de emergência” em
que estavam suspensas as garantias constitucionais e suprimido o Parlamento,
o chefe da Nação, aproveitando-se dessa circunstância, promulgasse lei penal
com efeito retroativo, punindo com trinta anos de prisão milhares de adversá-
rios seus, que houvessem assinado determinado manifesto contra o Governo.
Algum tempo depois, terminado o estado de emergência e voltando a vigorar
a Constituição, essa pena de trinta anos aplicada retroativamente a milhares de
cidadãos poderia continuar a ser cumprida? Evidentemente, não, porque, do

270
Ministro Nelson Hungria

contrário, ter-se-ia de admitir a possibilidade de o chefe do Governo neutralizar


por trinta anos, mesmo com o retorno de vigência da Constituição, a atuação
dos seus adversários políticos.
Não é possível, no presente caso, invocar o art. 3º do Código Penal. Esse
artigo pressupõe leis que não hajam violado preceito constitucional. Uma lei
ordinária apresenta-se ineficiente diante de circunstâncias especiais que sobre-
venham; surge, então, a lei excepcional que, sem ferir a Constituição, regulará
tais ou quais fatos durante a persistência dessa situação de fato, dessas circuns-
tâncias excepcionais. Uma vez, porém, terminado esse período excepcional,
voltando a vigorar a lei ordinária, é natural que a lei excepcional ultrapasse o
seu término de existência, mas sempre imunes os preceitos constitucionais.
Nesse ponto, por conseguinte, divirjo do eminente Sr. ministro relator,
para conceder o habeas corpus. O paciente foi condenado à pena de doze anos
de reclusão por fato que, ao tempo de sua prática, não era incriminado. Há ainda
outros indivíduos apodrecendo na Ilha Grande, como já tive oportunidade de ve-
rificar pessoalmente, em cumprimento de penas ainda mais longas, até de trinta
anos, em virtude do efeito retroativo do Decreto 4.766. É uma inconstitucionali-
dade que precisa de ser conjurada. Foi o paciente condenado por lei ex post facto.
Ao tempo em que praticou o fato imputado, não estava este previsto em
nossa legislação penal. Revogado o Código Penal de 1890, só havia, em matéria
de repressão dos crimes contra o Estado, as Leis de Segurança, que não cuidavam
do crime de espionagem. O fato só voltou a ser incriminado com a promulgação
do Decreto 4.766, do qual constava ominosa cláusula determinando sua retroação
até a data do rompimento das relações com os países do Eixo.
Esse efeito retroativo só foi possível por quê? Porque estava suspenso o § 13
do art. 122 da Constituição de 1937, a qual, apesar das profusas críticas de que foi
e continua sendo alvo como antiliberal, manteve o princípio da irretroatividade in
pejus da lei penal. Em condições normais, vigente a Constituição de 1937, a lei pe-
nal não podia retroagir. Foi preciso que se suspendesse essa franquia constitucio-
nal para que surgisse o Decreto 4.766, que, nesse ponto, macula a nossa legislação
penal. Por conseguinte, voltando a vigorar a própria Constituição de 1937, e isto
ocorreu antes de promulgada a de 1946, já não era mais possível a continuidade
desse efeito retroativo, em gritante antinomia com a garantia de que a lei penal
não pode ter oculos retro, senão quando mais benigna.
Assim, concedo o habeas corpus, pois o paciente está livre de crime e
pena, sendo insubsistente a sua condenação.

271
Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS 31.623 — DF

Falta de curador a réu menor no inquérito policial; somente


acarreta nulidade dos atos a que é indispensável a presença do in-
diciado e hajam de integrar a prova do ulterior processo judicial.
Não pode o réu alegar nulidade a que deu causa, e não há nuli-
dade onde não há prejuízo da verdade substancial.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Conheço do pedido, embora
reiteração de outros já denegados. A garantia do habeas corpus não pode ser
restringida na amplitude com que a assegura a Constituição. Ademais, se o pe-
dido de habeas corpus ficasse prejudicado por anteriores, versando o mesmo
argumento, estaria o paciente inibido de se aproveitar de uma possível mudança
de votos — fato que frequentemente ocorre nos tribunais. Muitas vezes, há di-
vergência de votos, verificando-se a denegação por maioria de um ou dois votos,
de modo que, faltando ao julgamento, acidentalmente, um ou dois membros do
tribunal, que se hajam pronunciado pela denegação, apresenta-se a eventuali-
dade de êxito do impetrante.
O presente pedido de habeas corpus é reticente no seu teor, do mesmo
modo que sói reticentes as certidões que o instruam. Uma destas é a prova es-
pecífica da idade do paciente, que nasceu em 29 de setembro de 1926, e outra
informa que os autos do processo contra o paciente foram conclusos ao juiz em
25 de setembro de 1947, isto é, quando ainda faltavam quatro dias para que o pa-
ciente completasse 21 anos. Mas, para que fim foram os autos conclusos ao juiz?
Para recebimento da denúncia ou para a prolação da sentença? Não se menciona
sequer a data do recebimento da denúncia. Seria ainda, a esse tempo, menor o
requerente? Tal ponto, entretanto, perde relevo quando se verifica que o próprio
paciente, ao ser interrogado em juízo, declarou-se maior de 21 anos, tendo cons-
tituído, sucessivamente, dois advogados, que o assistiram durante todo o processado.
O art. 565 do Código de Processo Penal dispõe que “nenhuma das partes
poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido”, e o
art. 566 acrescenta: “Não será declarada a nulidade do ato processual que não hou-
ver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.” No caso
vertente, foi o paciente quem deu causa à não nomeação de curador, e a ausência
deste foi suprida pela assistência militante de dois advogados de defesa. Ainda que
continuasse menor no curso de processo, não seria de reconhecer nulidade. Por ou-
tro lado, em nada teria sido prejudicada a verdade substancial em que se baseou a
decisão da causa. Nem vale dizer que o inquérito policial transcorreu sem curador
ao paciente, pois a irregularidade de peça destinada à informação do Ministério

272
Ministro Nelson Hungria

Público não pode afetar a validade de ulterior processo judicial. Somente ficariam
destituídos de valia os atos da prova a que é indispensável a presença do indiciado
e que houvessem de integrar os elementos probatórios do processo judicial.
Para melhor esclarecimento, entretanto, do caso sub judice, será conve-
niente ler-se o acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
de que houve recurso para este Tribunal, que lhe negou provimento (ler p. 20 do
apenso de recurso de habeas corpus).
Foram aqui bem fixados os termos da questão, e incensurável foi a decisão. E
vê-se que o paciente teve curador no próprio inquérito policial, embora tal curador
não estivesse presente à acareação do paciente com a ofendida.
Nem mesmo está provado que, ao tempo do recebimento da denúncia,
ainda fosse menor o paciente. Como já acentuei, quer na petição inicial, quer
nas certidões, evitou-se a precisão de datas. Como quer que seja, porém, o pa-
ciente não pode alegar uma nulidade que ele próprio teria provocado e de que
lhe não resultou prejuízo algum.
Denego a ordem.

HABEAS CORPUS 31.635 — RS


DILIGÊNCIA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quanto à alegada nu-
lidade, por falta de motivação da sentença, no tocante à medida da pena, não
concedo o habeas corpus, de acordo com o voto do Sr. ministro relator. No
caso vertente não houve ou, pelo menos, não foram reconhecidas circunstân-
cias gradativas legais, isto é, agravantes ou atenuantes. O juiz calculou a pena
tendo em vista as diretrizes ou as circunstâncias judiciais do art. 42 do Código
Penal. Não estava, assim, adstrito a maior indagação para o cálculo da pena.
Houvesse agravantes ou atenuantes, aí, sim, teria ele, previamente, de fixar uma
pena-base, sobre a qual seria calculado o aumento decorrente das agravantes ou
a redução consequente às atenuantes.
A sentença de que se trata não pode ser censurada sobre esse aspeto.
Quanto ao outro aspeto, entretanto, é que estou na dúvida. De duas, uma:
ou o paciente foi preso, após a sentença, em virtude de mandado expedido
pelo juiz, e, tão cedo tivesse este comunicação dessa prisão, estava obrigado a
requisitá-lo para o interrogatório, ou, então, a apelação teria sido admitida irre-
gularmente, sem estar o paciente recolhido à prisão.

273
Memória Jurisprudencial

É possível que tenha ocorrido esta última hipótese e, então, não teria ha-
vido ensejo ao interrogatório.
Mas suponhamos que a primeira hipótese, a mais plausível, é a que tenha
realmente ocorrido. Desde que o réu foi preso, há necessidade imprescindível
do seu interrogatório. O interrogatório, atualmente, não é só uma peça de acu-
sação senão também uma peça de defesa.
Deixar de interrogar o réu é, positivamente, omitir um termo essencial do
processo, é cercear a defesa.
O tribunal ad quem estava adstrito a converter o julgamento em diligên-
cia para que o juiz de primeira instância interrogasse o réu. Assim sempre se
procedeu.
Nessa incerteza, só me ocorre um alvitre: propor que se converta o julga-
mento em diligência, para que se esclareça este ponto: se o réu foi recolhido à
prisão, antes de apelar.
Se se verificar que o paciente já estava preso, a falta do interrogatório
anulará não a sentença, mas a decisão da superior instância.
Proponho a diligência.

HABEAS CORPUS 31.649 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, data venia do Sr. ministro
relator, não posso endossar o seu ponto de vista. O decreto-lei a que se refere Sua
Excelência não passou, até agora, de um decreto de fachada, não foi ainda regula-
mentado. Em virtude dele, não se pode entender que, automaticamente, se instalou a
“seção especial” na Colônia Cândido Mendes, para o fim de cumprimento de medida
de segurança. Nada existe de concreto. O que continua a existir, na Ilha Grande, é tão
somente uma colônia destinada à segunda ou terceira fase do regime progressivo da
pena de reclusão ou de detenção. Para lá são mandados os indivíduos que, já tendo
cumprido certo período da pena intra muros e revelado boa conduta, merecem esse
regime de prisão com trabalho all’sperto. A lei chama a esse estabelecimento “colô-
nia penal”. Trata-se, como disse, de uma etapa do regime penitenciário progressivo,
adotado pelo nosso Código. Nada tem a ver com a medida de segurança denominada
“colônia agrícola”, e nem era possível funcionar nela uma seção especial destinada
a essa medida, sem minucioso regulamento prévio. De outro modo, o que poderia
resultar na prática seria uma situação incompatível com o preceito constitucional,
274
Ministro Nelson Hungria

que proíbe as penas perpétuas, sabendo-se que a medida de segurança é indefinida,


indeterminada no tempo. O juiz e a lei apenas limitam o seu mínimo de duração.
Não há nada regulamentado. É um engano supor-se o contrário, em face do
Decreto 26.401, de 1949, que, a tal respeito, não passou de terreno teórico ou de boa
intenção a realizar-se quando Deus for servido. Em matéria de medidas de segu-
rança, infelizmente, começamos a construir pelo telhado e ficamos neste. Não seria
possível que a execução das medidas de segurança, que exige a aplicação de mé-
todos e critérios inteiramente diversos dos da execução da pena, fosse entregue ao
puro arbítrio e empirismo de carcereiro e guardas. Em vez da recuperação social do
internado, por meio da difícil “técnica da regeneração”, teríamos apenas mudado a
etiqueta do cárcere destinado ao rigor da pena-castigo.
É inadmissível que essa vaga seção especial, mencionada pelo decreto de
1949, mas não regulamentada e não instalada oficialmente, possa servir como esta-
belecimento de execução de medida de segurança.
Continuamos no regime anterior do Código de 1940. A única medida de
segurança em efetiva execução é a dos “manicômios judiciários”, já existentes e re-
gulamentados antes do Código, e que, por sua escassez de espaço e por se acharem
superlotados, não passam de meros depósitos de loucos, sem maior eficiência prática.
A própria casa de custódia e tratamento, tão imprescindível quanto o “manicômio
judiciário”, até hoje, não foi instalada em parte alguma, e é ainda simples objeto
de cogitação, no Distrito Federal, para quando se instalar o novo edifício do mani-
cômio, que deixamos à iniciativa de Heitor Carrilho. A solução única, em face da
lei de introdução do Código Penal, enquanto perdurar esse estado de coisas, é esta:
converter-se a medida de segurança detentiva em liberdade vigiada, embora esta seja
praticamente ilusória.
Até agora, de nada valeu a reforma trazida pelo Código de 1940 no tocante ao
combate à criminalidade. Persiste o mesmo, o mesmíssimo regime de outrora. Não
há a menor dúvida de que o paciente está sofrendo coação ilegal, ilegalíssima, pois
absolutamente não poderia ter sido mandado para a Colônia Penal Cândido Mendes,
onde apenas se cumpre pena comum, desde que ainda não foi instalada ou sequer
regulamentada a seção especial de que fala o Decreto de 1949. E isto mesmo já in-
formou, por mais de uma vez, o professor Lemos Brito, ilustre inspetor-geral das pri-
sões, em ofícios enviados às autoridades judiciárias: a tal seção especial não passou
da letra da lei. A lei criou a seção especial, mas não tornou possível o seu funciona-
mento, e ficamos no statu quo ante.
Concedo o habeas corpus, sem prejuízo da “liberdade vigiada” a que está
sujeito o paciente.

275
Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS 31.653 — PB


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, estou de acordo com o
eminente Sr. ministro relator, salvo, data venia, no que se refere à terceira questão,
ou seja, a da nulidade decorrente da participação de um mesmo jurado no primeiro
e no segundo julgamento.
Realmente, o Código de Processo Penal não veda essa reiterada participação,
senão no caso do “protesto por novo Júri”, em que expressamente dispõe que os ju-
rados que participaram do primeiro não poderão participar do segundo julgamento.
Mas o Código de Processo Penal não podia cuidar da hipótese que se apresenta no
caso vertente, porque em face dele essa hipótese não era possível. Perante esse di-
ploma legal, que, anteriormente à Constituição vigente, autorizava a reforma de me-
ritis dos veredita do Júri, jamais poderia ocorrer segundo julgamento pelos juízes de
fato, a não ser no caso de nulidade do primeiro.
Essa eventualidade só se tornou possível com o advento da Constituição de
1946 e com a nova lei do Júri, que regulamentou o dispositivo constitucional. Não
tenho, porém, dúvida que, já agora, o princípio atinente ao protesto por novo Júri tem
de ser aplicado, ex vi do art. 3º do Código de Processo Penal, ao segundo julgamento
do réu pelo próprio Júri, por ter sido o primeiro veredictum manifestamente contrário
à prova dos autos.
O Sr. Ministro Luiz Galloti (Relator): Até aí estamos de acordo.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Perfeitamente. O desacordo é quanto ao en-
quadramento dessa nulidade em outro inciso que não o da letra j do art. 564, III, do
Código, que assim preceitua:
A nulidade ocorrerá nos seguintes casos:
(...)
III – por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
(...)
j) o sorteio dos jurados do conselho de sentença em número legal e sua
incomunicabilidade.

Se no segundo julgamento funcionou um jurado impedido ex vi legis, eviden-


temente não houve um conselho de sentença com o quorum legal. Um dos jurados
não podia participar do conselho, que, assim, ficou desfalcado, deixando de ser o
conselho a que a lei se refere.
Ora, se a nulidade incide na letra j, é insanável. Pouco importa que o paciente
não a tenha alegado no plenário. Era isso, aliás, impraticável, pois, dado o seu natural
esquecimento quanto aos jurados do primeiro julgamento, não podia estar afastado
com a presença de um deles no segundo conselho de sentença. Só anteriormente,

276
Ministro Nelson Hungria

com o detido cotejo das atas, é que poderia ter atinado com a irregularidade. Não
propriamente o paciente, mas o seu advogado, que pode não ter sido o mesmo em
ambos os julgamentos.
Mas esta indagação tem de ser posta à margem.
Trata-se de nulidade insanável, daquelas que não se julgam sanadas quando
não arguidas em determinada oportunidade processual.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Mas as nulidades insanáveis estão su-
jeitas ao primeiro artigo do título relativo às nulidades sem prejuízo. Este artigo rege
todo o sistema das nulidades.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Houve prejuízo não somente para o paciente
como para o interesse da regular administração da justiça. Não pode deixar de ser
sempre prejudicial o julgamento por um conselho formado ilegalmente, isto é, com a
participação de um jurado impedido. Atrita isso, indisfarçavelmente, com o interesse
da justiça legalmente disciplinado.
O eminente Sr. ministro relator argumenta, conjecturalmente, dizendo que a
participação desse jurado no segundo julgamento só podia ser favorável ao paciente,
porque a decisão anterior fora absolutória.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu não disse precisamente isto.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A decisão absolutória foi proferida por
unanimidade?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não. No primeiro julgamento da série
de quesitos de legítima defesa foram afirmados — os três primeiros, por seis votos, o
quarto por sete, o quinto por cinco e o sexto por quatro.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não houve unanimidade. Suponhamos que
um dos votos divergentes tenha sido, precisamente, o desse jurado e que ele, no inevi-
tável contato e troca de ideias com seus pares, tenha exercido sobre estes sub-reptícia
influência, no segundo julgamento...
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Data venia, isto é que é uma conjec-
tura. Não posso decretar nulidade diante de conjecturas.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Conjectura contra conjectura. E as conjectu-
ras só podem valer quando favoráveis ao réu. Também conjectura seria o supor-se
que o jurado estivesse entre os que absolviam.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu não disse isso.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Implicitamente, sim.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Eu falei que o prejuízo presumido seria
o da acusação, porque o primeiro julgamento foi absolutório. Não podia eu falar em
voto, porque este é secreto.
277
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Nelson Hungria: Por que se há de repelir a hipótese, per-


feitamente plausível, de que um dos votos para a condenação fosse o do mesmo
jurado que funcionou no segundo julgamento aliciando os demais jurados?
Basta que essa hipótese seja formulável, para que não se possa afirmar a
ausência de prejuízo.
Lamentando discordar do eminente Sr. ministro relator, concedo a ordem.

HABEAS CORPUS 31.682 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo, como o
Sr. ministro relator, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco não estava adstrito, no
caso, ao ponto sobre o qual se questionava no recurso. E isto por uma razão de ordem
legal e que se encontra no art. 40 do Código de Processo Penal:
Quando, em autos ou papéis que conhecerem, os juízes e tribunais verifica-
rem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias
e documentos necessários ao oferecimento da denúncia.

Se o Tribunal chegou à conclusão de que, configurado o fato como crime de


imprensa, a ação penal já estava prescrita, mas entendendo, no mesmo passo, que,
na espécie, ocorria uma modalidade de crime previsto no Decreto-Lei 431, de 1938,
estava obrigado, ex vi legis, a mandar que os autos fossem remetidos ao Ministério
Público para a possível ação penal relativamente ao reconhecido crime contra a or-
dem política social.
Divirjo, entretanto, do Tribunal pernambucano e do eminente ministro relator
no que diz respeito à identificação do fato imputado como crime previsto no art. 3º,
25, do Decreto-Lei 431.
Não se pode abstrair que os crimes enquadráveis neste decreto têm um fim
específico, ou seja, o fim de atentar contra a ordem político-social, casuisticamente
definida no seu art. 1º.
Se fizermos caso omisso desse “dolo distintivo”, iremos incidir nos maiores
absurdos. E estes ainda seriam mais desmarcados se não limitássemos o conceito de
“agentes dos Poderes Públicos”, a que se refere a Lei de Segurança de 1938. Qualquer
injúria a qualquer funcionário, por mais humilde que fosse este na hierarquia ad-
ministrativa, digamos um servente, um “gari”, “um mata-mosquitos”, deixaria de
ser crime comum, para ser crime político, atentado contra a ordem político-social.

278
Ministro Nelson Hungria

Acresce que a lei fala em “injuriar”, presta-se atenção, não em “caluniar”. Da “calú-
nia” contra agentes dos Poderes Públicos não cogita o Decreto-Lei 431, que a deixou
à lei penal comum, não excluindo esta a exceptio veritatis pois, salvo casos singula-
res, é sempre do interesse social que se apure a verdade em torno da imputação de
um crime.
O dispositivo da Lei de Segurança fala em “injúria” contra os agentes dos
Poderes Públicos, mas, é bem de ver, quando estes são atingidos como tais. E deve
entender-se: agentes que diretamente exercem os Poderes Públicos, como sejam: o
presidente da República e os governadores dos Estados, os seus ministros ou secre-
tários; os membros do Congresso e do Poder Judiciário, os prefeitos, os vereadores,
os chefes de polícia, e não toda a classe, toda a imensa legião dos funcionários pú-
blicos. No caso, estaria satisfeito o requisito da “propriedade do sujeito passivo”. O
ofendido era chefe da segurança pública de um Estado, exercia diretamente uma
relevante parcela do Poder Executivo estadual. O que, porém, não lobrigo é o fim
específico ou característico do crime político. Trata-se de uma questão pessoal. De
modo algum visou o paciente a perturbar a ordem político-social, conceituada no art.
1º do Decreto-Lei 431, ou a erguer a bandeira vermelha contra o regime estatal sob
o qual vivemos. Movido por antipatia ou ira, justificadas ou não, contra a pessoa do
chefe de polícia pernambucano, teria ele atribuído a este certo fato criminoso prati-
cado ao tempo em que exercia o cargo de delegado de polícia. Nada tem a ver isso
com o interesse da ordem política, senão exclusivamente com o da honra pessoal do
ofendido. Não importa isso, de modo algum, num atentado à estrutura ou segurança
do Estado. Não foi com tal fim que agiu o paciente, pois apenas quis dar desabafo à
sua indignação, ao seu ódio, à sua animadversão contra um seu inimigo pessoal, que
exercia, então, o cargo de chefe de segurança numa unidade da Federação. Visava ao
homem, não ao titular do Poder Público.
Impugno a elasticidade que se pretende imprimir ao dispositivo da Lei de
Segurança. A prevalecer o critério ampliativo, verificar-se-iam excessos e descon-
chavos irrisórios. Ninguém mais poderia, pela imprensa, usar de qualquer palavra
menos delicada para com um funcionário, fosse qual fosse a sua categoria, que não se
visse envolvido em processo penal contra a ordem político-social ou como agente de
crime político. O crime político tem sentido especial, não podendo confundir-se com
esse desafogo de ira que redunda em crimes contra a honra individual, em injúria,
difamação, ou calúnia. Entendendo que não se apresenta, na espécie, crime de natu-
reza política, ou, mais precisamente, fato que possa ser enquadrado na alínea 25 do
art. 3º do Decreto-Lei 431, concedo a ordem de habeas corpus. Inexiste crime contra
a ordem político-social, e a punibilidade do crime contra a honra, previsto pela Lei
de Imprensa, já se acha extinta pela prescrição.

279
Memória Jurisprudencial

RECURSO DE HABEAS CORPUS 31.799 — PE


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, com a devida vênia do
eminente Sr. ministro Abner de Vasconcelos, entendo que é inquestionável que a
Constituição do Estado de Pernambuco rompeu o sistema instituído pela Carta
Política de 1946 no tocante a imunidades parlamentares. Ampliando tais imuni-
dades aos suplentes de deputados estatuais, quando dela não gozam nem mesmo
os suplentes de deputados federais, como bem acentuou o eminente Sr. ministro
relator, o dispositivo da Constituição pernambucana não é apenas inconstitucio-
nal, senão também desarrazoado, pois, na sua ratio, a imunidade é concedida es-
tritamente em obséquio à função, não se compreendendo sua outorga a quem não
está exercendo a função parlamentar.
Estou de inteiro acordo com o eminente Sr. ministro relator.

HABEAS CORPUS 32.036 — DF

Crime contra a honra pela imprensa. A possibilidade de


substituição da pena de multa pela de prisão, consagrada pela
Lei de Imprensa, mas vedada pelo Decreto-Lei 24.797, publicado
no mesmo dia que aquela, não foi ressuscitada pela ulterior legis-
lação, que voltou a permitir essa substituição tendo-se em vista
o princípio de que, salvo disposição em contrário, a lei revogada
não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): No tocante ao invocado indulto,
nenhuma razão assiste ao paciente. O art. 1º da Lei 63 diz o seguinte: “São anis-
tiados os responsáveis pela prática do crime de injúria ao Poder Público ou aos
agentes que o exercem, capitulado no item 25, do art. III, do Decreto-Lei n. 431,
de 18 de maio de 1938.”
Ora, o paciente foi denunciado e condenado por crime de Lei de Imprensa,
que nada tem a ver com a Lei de Segurança. A anistia não se estende aos crimes
contra a honra de particulares por meio de imprensa.
Resta a outra parte da argumentação do impetrante.

280
Ministro Nelson Hungria

Conforme se viu das informações prestadas pelo ilustre presidente do Tribunal


de Alagoas, o processo foi regularmente feito, as citações determinadas e executadas
de acordo com a lei, e, não tendo sido pagas, nem tendo o paciente procurado pagar
as multas a que foi condenado, estas foram convertidas em prisão.
Não há nos autos a menor prova de que o paciente tivesse procurado tentar
pagar essas multas e que não tivesse obtido êxito, segundo alega, dada a dúvida sobre
se o pagamento devia ser feito ao Estado ou ao lesado, dúvida, aliás, que de modo al-
gum podia existir, porque o lesado querelara o paciente como particular e não como
agente do Poder Público. Evidentemente, a ele é que caberia o quantum das multas.
A questão, porém, se torna complexa no tocante à conversão da multa em prisão.
Não ignora o Tribunal que, no mesmo dia em que foi publicada a Lei de
Imprensa, foi publicado, também, o Decreto 24.797, chamado do “Selo Penitenciário”,
e nota-se que é alheio ao caso o Código Penal de 1940, que expressamente deixou
íntegra a legislação sobre crimes contra a honra pela imprensa.
A Lei de Imprensa dominava, alternativamente, pena privativa da liberdade
ou multa, e somente no caso de falta de pagamento desta seria aplicada aquela. Veio,
entretanto, o Decreto 24.797 e disse: nenhuma multa penal será convertida em prisão.
Ora, o que fazia a Lei da Imprensa não era outra cousa, afinal, que converter a multa
em prisão. O conflito dessas leis publicadas no mesmo dia foi trazido à solução deste
Supremo Tribunal, como já assinalei em livro (Comentários ao Código Penal, v. 6º,
p. 267):
Na vigência do art. 8º do Dec. nº 24.797, publicado no mesmo dia em que o
foi a Lei de Imprensa, e no regime da Constituição de 34, foi reconhecida a insub-
sistência do sistema de alternatividade, de penas inaugurado pelo Decreto n. 24.776.
A tal respeito, escrevemos nós, em comentário ao parágrafo único do art. 24 da Lei
de Imprensa (Direito Penal, II, 1937, p. 241): “Tal critério, porém, pouco mais durou
que as famigeradas rosas de Malherbe. A argumentar-se com o ministro Laudo de
Camargo, da Corte Suprema, não chegou, sequer, a ter vigência a sanção alternativa
do Decreto n. 24.776 (Lei de Imprensa), pois no mesmo dia da publicação deste era
baixado o Decreto n. 24.797 (sobre o selo penitenciário), que, no seu art. 8º proibiu,
de modo genérico, a conversão da pena de multa em prisão, autorizando mesmo a ex-
tinção da condenação no caso de absoluta indigência do condenado. Poder-se-ia, en-
tretanto, objetar que, dada a simultaneidade dos dois decretos do governo provisório,
o dispositivo penal sobre crimes de imprensa constituiria uma exceção à regra geral
proibitiva da conversão da multa em prisão. Qualquer dúvida, porém, suscitável em
torno ao critério alternativo em questão, estaria dirimida pelo inciso 30 do art. 113 da
atual Constituição, sobrevinda dois dias após a publicação da Lei da Imprensa: ’Não
haverá prisão por dívida, multas ou custas’. Conforme claramente se depreendia do
art. 24, parágrafo único, da dita lei, a pena de prisão, cominada nos arts 13 e 14, não
era senão um substitutivo da de multa, na eventualidade de não pagamento desta.
Tratava-se, no fundo, inquestionavelmente, da mesma conversão de multa em prisão,
da sistemática da Consolidação Penal. A Corte Suprema, que já havia reconhecido
a abolição dessa metamorfose de penas, logicamente pronunciou-se, a seguir, pela

281
Memória Jurisprudencial

insubsistência do disfarce com que ela se apresentava na Lei de Imprensa. O que a


Constituição procurou obviar, como é sabido, foi a desigualdade que acarretava, na
prática, conversibilidade da multa em prisão: os réus solventes eram mandados em
liberdade, enquanto os insolventes tinham de resgatar in corpore. Não cabe, aqui,
discutir se o mérito da radical proibição constitucional (que no seu critério simplista,
evitou um erro para incidir em outro maior, transformando a pena pecuniária, em
relação à quase totalidade dos réus, numa ridícula inocuidade, com grave prejuízo do
interesse social), mas é força reconhecer que, com o critério do Decreto n. 24.776, es-
taria de retorno a desigualdade condenada pela Lei Magna. Deve ser, assim, conside-
rada como não escrita, em tal decreto, a cominação da pena de prisão no tocante aos
crimes contra a honra. Não há obtemperar, como faz o ministro Kelly, que o tribunal
especial de julgamento dos crimes de imprensa (já agora identificado como simples
variante do Tribunal do Júri) poderá aplicar, conforme o caso, somente a pena de
prisão, abstraída a de multa, pois isto importaria em transferir ao tribunal a facul-
dade de aplicar aos réus pobres somente a pena de prisão. Admitida a sobrevivência
integral do sistema punitivo da Lei de Imprensa, não se poderia evitar esta conclusão:
a pena de multa é a principal e a de prisão a subsidiária, isto é, só aplicável no caso
de não ser solvida a multa. Era iniludível o preceito do art. 24, parágrafo único: ‘a
sentença fixará o prazo dentro do qual deverá ser paga a multa imposta, prazo que
não poderá exceder de 15 dias. Se não for paga pelo condenado, ou no caso do art. 31,
pelo responsável subsidiário, dentro de igual prazo, será executada a pena de prisão
imposta pela mesma sentença em substituição à multa...’ Com o ajustamento da Lei
de Imprensa ao dispositivo constitucional, e tendo-se em vista que a multa cominada
reverterá em favor do ofendido ou do Estado (art. 24), verifica-se que, não obstante
alheio à cogitação do legiferante governo provisório, ficou adotado entre nós, inte-
gralmente, o ponto de vista doutrinário de Garofalo na repressão dos crimes contra a
honra. Mais uma vitória para a escola positiva...”

Acontece, porém, que sobreveio a Constituição de 1937, não repetindo esta


a proibição da Carta de 1934. E veio depois o atual Código Penal, que não só re-
vogou o art. 8º da Lei do Selo Penitenciário, como ressalvou a legislação sobre
crimes de imprensa. Por último, a Constituição de 1946 permite a conversão da
multa penal em prisão. Indaga-se: voltou a vigorar o critério de conversibilidade
da multa em prisão, consagrado pela Lei de Imprensa? Segundo a última Lei de
Introdução do Código Civil, a lei revogada não se restaura por ter a lei revigo-
radora perdido a vigência. Ocorre, entretanto, que a atual Lei de Introdução foi
posterior à vigência do atual Código Penal. Quer me parecer que a Constituição
de 1937, revogando, no ponto em questão, a de 1934, restaurou o critério da Lei
da Imprensa.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: A revogação da Lei de Imprensa não se fez
em virtude de mandamento constitucional, mas em virtude do Decreto 24.797.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): E esse decreto foi revogado pela
Constituição de 1937, pois esta passou a permitir que a multa se convertesse em
prisão.

282
Ministro Nelson Hungria

Foi ressuscitado o dispositivo da Lei de Imprensa. Antes da Lei de


Introdução atual, sempre entendi que, revogada a lei revogadora, ressuscitava a
lei primitiva.
O Sr. Ministro Orozimbo Nonato: Na doutrina, data venia, não prevalece
este princípio. Fora a opinião de um único autor.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Antes da atual Lei de Introdução, a dou-
trina se inclinava ora num sentido ora noutro.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A Lei de Introdução consagrou o princípio
dominante na doutrina.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Antes de o princípio ser inscrito
em lei, a própria jurisprudência vacilava. Quanto a mim, sempre decidi no sentido
de que, revogada a lei revogadora, ressurgia a lei primitiva. Só depois do advento
da vigente Lei de Introdução é que passei a decidir de modo diverso. Entretanto,
reconheço a existência da dúvida, e esta, in poenalibus, deve ser decidida pro
libertate.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: In dubio pro reo.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Diante das manifestações dos
meus eminentes colegas, ainda mais inegável me apresenta a incerteza ou o
duvidoso acerto do meu ponto de vista. Não me suponho exclusivo detentor da
verdade. O que eu tinha como certo é, ao contrário, acoimado de erro. Tenho,
pois de me render ao in dubio praevalet libertas, para reconhecer que não foi
restaurado o critério penal da Lei da Imprensa e, em consequência, conceder o
impetrado habeas corpus.

HABEAS CORPUS 32.097 — MT


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não tenho dúvida de que,
quando a Constituição fala em crimes comuns, é para distingui-los dos crimes de
responsabilidade, ou melhormente chamados “crimes funcionais”. Mas isto perde in-
teiramente de relevo na espécie, desde que o preceito constitucional, ao conceder foro
privilegiado aos juízes dos tribunais estaduais, abrangeu não só os crimes comuns,
senão também os de responsabilidade.
Os crimes eleitorais são ora de responsabilidade, ora comuns, de modo
que não há dúvida de que o foro especial, em relação aos desembargadores,
compreende esses crimes.
283
Memória Jurisprudencial

Não tenho também dúvida que o desembargador, eleito por seus pares
para o Tribunal Regional Eleitoral, leva consigo sua qualidade de desembarga-
dor. Esta é a condição sine qua non para que ele seja juiz do Tribunal Eleitoral.
Sua qualidade de desembargador é como que um substantivo e o exercício do
juizado eleitoral um adjetivo.
Não se pode, de maneira nenhuma, admitir que o desembargador se dispa
dessa qualidade quando em exercício no juízo eleitoral.
O Sr. Ministro Lafayette de Andrada: Já se considerou dispensado das fun-
ções de juiz eleitoral um desembargador que se aposentou. O juizado eleitoral está
ligado, portanto, à pessoa do desembargador.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O Código Eleitoral diz que compete ao
Tribunal Superior Eleitoral Julgar os crimes eleitorais. Evidentemente, há de se en-
tender como ressalvado o caso da prática desses crimes por parte de um desembar-
gador, pois, de outro modo, estaria em colisão franca com o preceito constitucional.
Por último, Senhor Presidente, não tenho dúvida, igualmente, que o magis-
trado leve consigo a prerrogativa do cargo, não somente em se tratando de crime
comum, como nos de responsabilidade. Continua a ter direito ao foro privilegiado.
Nesse ponto, dissentiria do eminente Sr. ministro relator, a cujo voto, entre-
tanto, adiro quanto ao mais.

HABEAS CORPUS 32.217 — RN

Latrocínio; o julgamento compete ao juiz singular, e não ao


Tribunal do Júri.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo, de
acordo, aliás, com reiterados arestos deste Supremo Tribunal, que o crime de
latrocínio não se inclui entre aqueles que a Constituição Federal e a vigente Lei
do Júri atribuem à competência do tribunal popular. O latrocínio é crime contra
o patrimônio, e a Constituição, ao definir a competência do Júri, fala em crimes
dolosos contra a vida.
A Carta Magna não podia usar de expressões fora do seu sentido técnico.
O legislador constituinte não podia ignorar o idioma da lei específica sobre a
repressão dos crimes, isto é, o subsistente Código Penal de 1940, que distingue

284
Ministro Nelson Hungria

nitidamente entre crimes contra a vida e crimes contra o patrimônio, incluindo


entre os últimos o latrocínio. E ainda mais: o latrocínio existe ainda quando o
evento “morte” tenha sido meramente culposo ou preterdoloso. Não é preciso
que o evento letal se compreenda na intenção ou vontade consciente do réu. O
latrocínio é reconhecível ainda quando não envolva homicídio doloso, bastando
o simplesmente culposo.
Neste ponto, data venia, divirjo do eminente Sr. ministro relator, embora
esteja de acordo com os dois primeiros fundamentos do seu voto.
Nego a ordem.

RECURSO DE HABEAS CORPUS 32.228 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, conforme certidão do
oficial de justiça, lida pelo eminente Sr. ministro relator, é incensurável, no caso,
a citação inicial. Para elidi-la, seria preciso prova categórica e incontrastável de
que o paciente, quando da diligência de citação, realmente se encontrava ainda
na residência que indicou ao ser ouvido no inquérito.
O oficial de justiça não podia fazer mais do que fez, tendo encontrado a
casa fechada, fez indagação na vizinhança e veio a saber que os antigos mora-
dores se haviam mudado certa noite, sendo ignorado o paradeiro do paciente. Se
em outro local poderia ter sido achado o paciente, não constava isso, até então, do
processo. O que, aliás, se depreende dos fatos é que ele estava foragido. Não se
pode dizer que o meirinho tenha sido desidioso ou apressado. A mais do que fez
não era legalmente obrigado. Não deparo, sob esse aspeto, nulidade do processo.
O segundo fundamento do pedido é que teria sido prejudicada a defesa
do paciente pela negligência do defensor dativo. Ora, o que a Constituição as-
segura é a contraditoriedade do processo, e processo contraditório é aquele em
que toda a vez que haja acusação se proporcione oportunidade de exercício à
defesa. Pouco importa que o defensor, constituído pelo réu ou dativo, não haja
produzido defesa a contento. Nem em habeas corpus se pode aferir da suficiente
ou insuficiente atuação do defensor, que, muitas vezes, pode achar preferível o
próprio silêncio. Teria deixado de ser apresentada defesa prévia? Ainda mesmo,
porém, que tenha sido omitida, desde que foi assinado prazo legal para tal fim,
foi satisfeita a exigência legal. Não se pode exigir que a defesa se faça a todo
preço, ainda mesmo na tentativa de burlar a justiça ou de negar a evidência. O

285
Memória Jurisprudencial

que a lei assegura é tão somente que a acusação deve corresponder ensejo à produção
de defesa. E isto foi atendido no caso vertente. Não procede, pois, o segundo funda-
mento do pedido.
Quanto ao terceiro motivo, isto é, o de que o julgamento caberia ao Tribunal
do Júri, por se tratar de latrocínio, é reiterada decisão deste Supremo Tribunal, com
o meu decidido apoio, que tal crime não se inclui entre aqueles cujo julgamento a Lei
263, de 1948, interpretando com acerto a Constituição, atribuiu à alçada do tribunal
popular.
Assim, acompanho o voto do eminente ministro relator, negando a ordem.

HABEAS CORPUS 32.271 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o ilustre advogado do im-
petrante argui dois motivos: um, já velho e batido, de que a Lei 263 é inconstitucio-
nal, quando manda o réu a novo Júri, porque o preceito constitucional, determinando
a soberania absoluta do tribunal popular, não comporta a duplicidade de julgamento
ou um segundo julgamento por outro conselho de justiça.
Já fui daqueles que adotaram esse ponto de vista, mas o reexame da matéria
me convenceu de que não havia nessa duplicidade uma ofensa ao princípio constitu-
cional da anacrônica soberania do Júri, uma vez que o segundo julgamento era de-
volvido ao próprio tribunal de jurados, que, assim, seria o único a rever sua própria
decisão.
Quanto ao outro motivo, se o acórdão paulista deixasse perceber, através do
seu texto, qualquer dúvida ou incerteza sobre a reconhecida legítima defesa, teria de
prevalecer o princípio in dubio pro reo, e o paciente não podia ser mandado a novo
Júri. Se a prova dos autos conduz à perplexidade, tem de ser mantida a decisão do
Júri, salvo quando é condenatória, porque, neste caso, tem de prevalecer sempre,
acima de qualquer outro, o princípio de que, na dúvida, se deve decidir em favor do
réu.
O tribunal paulista, porém, não se achou em perplexidade: entendeu que po-
sitivamente não existia a descriminante. Haveria, aliás, grave incongruência se o
acórdão do tribunal togado, depois de deixar perceber dúvida a respeito, chegasse
à conclusão de que a decisão do Júri teria sido evidentemente contrária à prova dos
autos.

286
Ministro Nelson Hungria

O acórdão argumenta no sentido de que os coligidos elementos de convicção


levam à conclusão de que não houve agressão por parte da vítima. Ainda mesmo ad-
mitido o depoimento da sogra da vítima, de que esta, ao sair de casa, estava armada
e um tanto agitada, tal depoimento, de modo algum, implica concluir-se que, no re-
encontro com o paciente, a vítima tivesse tido a iniciativa da agressão.
O acórdão, pela apreciação das provas in concreto, entendeu que, de modo
nenhum, estava provada a legítima defesa alegada.
Se houve erro do acórdão, poderá ser corrigido em revisão, mas nunca no su-
maríssimo do habeas corpus.
Acompanho o voto do Sr. relator.

HABEAS CORPUS 32.331 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quando entrei hoje neste
recinto, vinha com o propósito de alhear-me a este julgamento, dando-me por
impedido.
Sofri, como é sabido, uma tremenda campanha difamatória por parte do jor-
nalista ora paciente, e me achei, hoje, entre as guampas deste dilema: se denegasse o
habeas corpus, estaria obedecendo a espírito de vingança; se o concedesse, estaria
revelando medo, querendo fazer as pazes, levantar bandeira branca, acovardar-me
diante desse jornalista, que, realmente, é truculento. Mas, por um lado, de mim para
mim, fiz exame de consciência e me certifiquei de que jamais guardei ódios, nunca
meu coração foi ninho de rancores, e apesar de ter nascido na hinterlândia e lá vivido
a minha mocidade, nunca aprendi a dormir na pontaria, atrás do toco. Não sei exer-
cer vindictas, aguardando o adversário na “volta do caminho”.
Por outro lado, creio que meu passado de juiz fala por mim. Se não sou um
destemido, se não sou um Dom Quixote de la Mancha, também não sou um covarde;
sou um homem que nunca deixei de ser igual a mim mesmo, e digo as coisas que me
vêm do coração à goela, custe o que custar.
Houve, porém, um argumento que me decidiu. Fiel ao meu ponto de vista,
reiteradamente manifestado em julgamentos, livros e artigos, meu voto tinha de ser
a favor desse homem; e suponhamos que esse meu voto lhe faltasse e ele viesse, por
isso, a ter o habeas corpus denegado. Teria eu contribuído para uma iniquidade em
virtude da minha abstenção.

287
Memória Jurisprudencial

De modo, Senhor Presidente, que resolvi dar meu voto, que é a favor do pa-
ciente. Ao contrário do que pensa o eminente Sr. ministro relator, entendo que, para
a existência de qualquer dos crimes previstos no Decreto-Lei 431, de novembro de
1938, é indispensável o dolo específico, ou seja, a intencional finalidade de atacar, de
agredir a ordem política e social, ou a segurança da estrutura do Estado.
Não vale invocar o art. 1º, que se arroga o definir o que seja ordem política e
ordem social.
Não obstante os detalhes ou a amplitude que esse artigo imprime à noção de
ordem política e ordem social, uma e outra não podem deixar de ser precisamente
isto: “ordem política” é o que diz com o regime governamental, constitucionalmente
adotado, que, entre nós, é o da democracia liberal burguesa; “ordem social” é tudo
aquilo que diz com a estrutura social, com as instituições sociais dentro do Estado
liberal burguês.
Para nós, no Brasil, isto é que é “ordem política” e é “ordem social”. E por
isso mesmo que é indispensável o mencionado dolo específico, a intenção de investir
contra a ordem político-social, o fim de destruí-la, desprestigiá-la, desmoralizá-la, é
que o fato em questão só é político quando informado por esse dolo. Realmente, se
fosse desnecessária essa finalidade ou esse propósito, teria toda razão o eminente Sr.
ministro relator, quando entende que a lei ordinária não pode, arbitrariamente, dizer
que determinado fato é crime político quando na realidade não tenha esse caráter,
transformando, contra o espírito constitucional, o quadrado em redondo e o preto em
branco. Precisamente porque é indeclinável essa intenção é que o fato incriminado
pela Lei de Segurança ali figura como crime político.
Mas há outro aspecto da questão: o dispositivo legal diz o seguinte: “injuriar
os poderes públicos ou os agentes que os exercem.”
Já tive oportunidade de comentar, em artigo que escrevi sobre a Lei de
Segurança anterior à que ainda está vigente, que, através dos Anais do Congresso,
quando da elaboração dessa lei, não se atinava qual era a diferença entre “agentes dos
poderes públicos” e “funcionários públicos”, posto que a lei falava ora em “agentes
dos poderes públicos”, ora em “funcionários públicos”.
Só encontrei, para minha curiosidade, uma resposta dada pelo relator do pro-
jeto, no seio da Comissão, a apartes dos deputados Bergamini e Covielo. Limitou-se
ele a dizer que as hipóteses eram diferentes. Prosseguindo na minha indagação e
interpelando os principais responsáveis da elaboração da lei, vim, então, a saber o
seguinte: “agente do poder público” é aquele que encarna qualquer dos poderes po-
líticos, aquele que exerce o poder público direto e primacialmente. É qualquer dos
membros mais graduados dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Assim,
só estaria enquadrada na Lei de Segurança a injúria irrogada ao presidente da
República, aos governadores ou interventores estaduais, aos prefeitos, aos ministros

288
Ministro Nelson Hungria

de Estado, aos senadores ou deputados, aos vereadores, aos ministros do Supremo


Tribunal e juízes dos demais tribunais.
E parece que essa interpretação restritiva é a acertada, porque, a adotar-se o
ponto de vista de amplitude do conceito de “agente do poder público” e desde que se
dispense o dolo específico, vamos chegar a situações verdadeiramente irrisórias. Se,
amanhã, eu me queixar violentamente, numa carta que dirigir a um jornal, da desídia
do lixeiro que varre a minha rua, estaria incorrendo na Lei de Segurança, porque o
gari, o lixeiro da minha rua é um “agente do poder público”. Não é possível que ado-
temos esse ponto de vista, cuja lógica levará a tal extremo da comédia.
Há outro argumento ainda. A lei fala em “injuriar o poder público”. Ora, “in-
juriar” é um termo técnico, tem uma noção confirmada do ponto de vista jurídico pe-
nal: é toda palavra ou todo gesto insultante, que possa ocasionar o desprezo público
contra a vítima, contra a pessoa alvejada.
No caso, trata-se da calúnia, ou seja, de imputação de um fato criminoso, que
tal é a prevaricação ou a corrupção. Determinado delegado de polícia ou determina-
dos funcionários policiais estariam, mediante propinas, segundo propalou o paciente,
alimentando a continuidade do lenocínio da instalação de prostíbulos. Portanto, é a
imputação de um crime. Dir-se-á: o termo “injuriar” empregado na Lei de Segurança
tem um sentido genérico, amplo, abrangendo todos os crimes contra a honra. Mas,
data venia, discordo, radicalmente, em primeiro lugar porque isso desatende ao sig-
nificado técnico do termo “injuriar” e, em segundo lugar, porque desatende à própria
intenção do legislador, que não podia ignorar a distinção entre injúria e calúnia ad-
mitindo esta a “exceção da verdade”, que corresponde ao indeclinável interesse do
conhecimento da verdade em torno da existência e autoria dos crimes. É verdade que
se tem admitido a exceptio veritatis na injúria da Lei de Segurança, mas isso com o
só propósito de humanizá-la, ao arrepio do texto legal.
Entendo que o legislador não quis se referir à calúnia precisamente porque
esta deve permitir a exceção de verdade, e é do máximo interesse da sociedade e do
Estado que se conheçam os crimes e os seus autores.
Foi muito de indústria, muito de propósito que o legislador de 38 não incluiu
no inciso 25 do art. 3º da Lei 431 a calúnia.
Passemos a considerar a prisão preventiva em si. Realmente, trata-se de crime
inafiançável e estaria provada a coautoria imputada ao paciente. Vejamos, porém, o
motivo da necessidade da prisão preventiva: decretou-se a prisão do paciente para
que ele não pudesse continuar a sua atuação jornalística, a sua campanha de im-
prensa, a criar pressão, quer sobre a autoridade policial, quer, até mesmo, sobre a
autoridade judicial.

289
Memória Jurisprudencial

Em primeiro lugar, o paciente não é preso incomunicável, não está atirado


para dentro de um cárcere sob regime penitenciário. Acha-se sob custódia honesta,
continua com a possibilidade de escrever os seus artigos e de se comunicar com os
seus amigos e companheiros de jornal, que prosseguirão, por certo, na campanha en-
cetada por ele e, talvez, com maior recrudescimento, espicaçados que estão pelo espí-
rito de desforra. E faltou ao juiz elementar habilidade psicológica; não percebeu que
estava, com o seu precipitado ato, contribuindo para a glorificação do paciente, isto
ensejando-lhe a glorificação do martírio. Os próprios inimigos do paciente devem
estar de armas ensarilhadas, de bandeira branca alçada, porque ele sofreu a injusta
violência da prisão preventiva. Foi ele transformado em herói da liberdade de im-
prensa, sobre cuja cabeça estão a chover as simpatias nacionais e as bênçãos cívicas
de todo o povo. Aí está o que o juiz foi arranjar. E agora, sim, é que ele, provocando
a opinião pública em favor do acusado, criou a mais grave pressão sobre o ânimo de
policiais e julgadores. Raros são os que resistem aos punhos crispados da multidão
idêntica à que exigiu de Pilatos a condenação de Cristo, em Jerusalém.
Foi contraproducente o desarrazoado decreto de prisão preventiva.
Devo insistir em que o paciente não me causa temor; pode ele reiniciar quando
quiser e como entender a campanha de difamação contra mim, o que, aliás, deve
fazer a qualquer pretexto, para ser coerente consigo mesmo; e já que lhe incorri nos
ódios. Não o temo em terreno algum. Não é ele santo da minha igreja, mas é preciso
que eu faça justiça, evitando que a minha subconsciente malquerença possa prejudi-
car a sua causa neste momento.
Concedo a ordem.

HABEAS CORPUS 32.386 — DF

Crime de prevaricação; quando se tem de reconhecer a sua


inexistência. O exercício de uma faculdade legal, dentro das con-
dições a que é subordinada, jamais poderá ser considerado crime.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, o crime pelo qual está
denunciado o paciente é assim definido, sob o titulo “prevaricação”, no art. 235
do Código Penal Militar:
Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou prati­cá-l­o con-
tra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

290
Ministro Nelson Hungria

Verifica-se, pois, desde logo, que dois elementos se apresentam na confi-


guração do crime: o elemento objetivo e o elemento subjetivo, ambos essenciais
para essa configuração do delito.
O elemento objetivo é que o retardamento ou a omissão do ato haja sido
indevido, isto é, ilegal, arbitrário, ou, então, que os atos praticados tenham in-
fringido disposição de lei. Este o elemento do crime, a parte objecti.
Desde, porém, que o funcionário tenha faculdade para retardar ou omitir o
ato, desde que possa praticá-lo, ou não, desaparece a figura da prevaricação. Isso
é que ensinam os tratadistas de direito penal, a começar pelo mestre dos mestres,
que é Mancini. Todos, afinando pelo mesmo diapasão, afirmam que não é possí-
vel falar em crime de prevaricação quando o exercente da função pública tenha
a faculdade de retardar, omitir ou praticar o ato de ofício.
Inexiste, pois, no caso, elemento essencial para a configuração do crime,
isto é, a arguida omissão indevida, ilegal, de ato de ofício, pois o paciente tinha a
faculdade de deixar de requerer desde logo a prisão preventiva de determinados
indiciados ou de oferecer desde logo a denúncia, para obter maiores esclareci-
mentos. Se o paciente usou de faculdade legal, dando as razões de sua conduta;
se era mesmo do seu dever não opinar pela prisão preventiva ou deixar de ofere-
cer a denúncia, quando não encontrasse elementos suficientes, requerendo novas
diligências, ou quando chegasse à conclusão de que não existe crime em tese, é
bem de ver que será um desconchavo atribuir-lhe crime de prevaricação. Não é
de confundir-se a prevaricação com a corrupção: nesta pouco importa a legali-
dade ou ilegalidade da ação ou omissão pelo funcionário, pois se tem em conta
apenas o mercado em torno da função pública; na prevaricação, ao contrário, é
indispensável a ilegalidade, a infringência de expresso dispositivo legal.
Onde ou quando já se ouviu dizer que é ilegal, que é indevida a recusa de
um promotor de justiça, de um representante do Ministério Público em opinar
pela prisão preventiva de certo indiciado, ou de oferecer denúncia contra ele,
porque não depara com elementos bastantes dentro do inquérito? Ou o seu pedido
de outros esclarecimentos, mediante ulteriores investigações? Evidentemente,
se deixássemos de conceder este habeas corpus, criaríamos para o Ministério
Público Militar, como também, logicamente para o Ministério Público em ge-
ral, uma situação de perplexidade ou de intolerável constrangimento. Nenhum
promotor que deixasse, em caso de inquéritos contra comunistas, de concordar
com a prisão preventiva, ou de oferecer denúncia, poderia escapar à imputação
de estar prevaricando, para servir a sentimentos pessoais contra o nosso atual
regime político social! Estou bem certo de que, em habeas corpus, não se pode
entrar na apreciação de provas. Mas quero chamar a atenção do Tribunal para
este ponto: não há indagar, através de provas, o elemento subjetivo da prevarica-
ção, quando o elemento objetivo não existe. A ausência do elemento objetivo é
291
Memória Jurisprudencial

bastante para tornar ociosa qualquer outra indagação. Mas vale a pena acentuar a tal
respeito a inanidade da denúncia que vem de ser lida pelo eminente Sr. ministro re-
lator. O que nessa denúncia se aponta como indício de elemento subjetivo é o fato de
haver o paciente, certa vez, publicado um livro sobre o direito penal soviético. Senhor
Presidente, tenho esse livro em minha estante, tenho-o consultado várias vezes, como
elucidário para estudos de direito penal comparado. De modo nenhum se pode vis-
lumbrar, ainda que longinquamente, qualquer sentimento sectarista nos comentários,
nas observações que o paciente faz à lei penal soviética.
A adotar-se o critério simplista da denúncia, ter-se-ia de chegar à seguinte
conclusão: se, ulteriormente, os acusados forem absolvidos, ou se os fatos que se lhes
imputam forem reconhecidos como não constituindo crime, ter-se-ia de fazer sentar
no banco dos réus o promotor que ofereceu a denúncia, ou o auditor que a recebeu,
porque prevaricaram, cedendo ao seu anticomunismo intelectual, do mesmo modo
que o paciente teria prevaricado por comunismo intelectual!
Há uma outra circunstância que é do nosso conhecimento: decretada a prisão
preventiva dos indiciados a respeito dos quais o paciente entendeu que não havia lu-
gar para tal medida, nas condições legais, um deles veio a este Supremo Tribunal pe-
dir habeas corpus e o obteve. Por quê? Porque faltava, nada mais, nada menos, que o
corpo de delito, a prova material do crime. Havia-se decretado a prisão preventiva do
indiciado sem a prova da existência mesma do crime. E outros habeas corpus foram
concedidos pelo Superior Tribunal Militar a vários dos indiciados arbitrariamente
presos, não obstante o parecer contrário do paciente.
Como quer que seja, porém, não podemos abstrair a prejudicial de falta de
elemento objetivo da prevaricação. Definindo este crime, diz o Código Penal Militar:
“Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra
expressa disposição de lei (...).” Onde a omissão ou prática indevida ou ilegal de ato
de ofício por parte do paciente? A lei processual militar lhe dava a faculdade, não só
de opinar contra a prisão preventiva, como de deixar de a requerer, por carência de
elementos suficientes, como de deixar de oferecer a denúncia por ausência de prova
ou maiores esclarecimentos quanto à autoria imputada ou por inexistência de crime.
Exerceu ele faculdade legal. Mesmo quanto àqueles em cujo favor entendeu não
existir crime, opinou no sentido de que estavam sujeitos a penas administrativas ou
disciplinares, que indicou. Como dizer, então, que o paciente agiu como parti pris,
com espírito prevenido, influenciado por sentimentos pessoais?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O Dr. procurador-geral concordou; depois, ofe-
receu denúncia.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É isso mesmo: o Dr. procurador-geral,
ele próprio, concordara de início com a atuação do paciente, mas, depois, pre-
mido pelo ambiente que se criou em torno do caso, decorrente de novo surto da

292
Ministro Nelson Hungria

campanha anticomunista e que se encontra no auge da efervescência, propensa a


ver em qualquer atitude, por mais inofensiva ou explicável, um perigo de mani-
festação de cor partidária, adotou outra maneira de proceder. Foi a compressão
do ambiente a causa da contramarcha. Passou a bastar a acusação de comunista
militante, por mais gratuita que seja, para que se imponha aos espíritos como
verdade provada e indiscutível. É o perigo dos apaixonamentos, dos ardores par-
tidários. Mas, evidentemente, a justiça tem de ficar acima dessas paixões, tem
de andar sobre elas com os pés enxutos, como Cristo sobre as ondas do mar de
Galileia.
Não vejo como o Supremo Tribunal Federal possa apoiar a injustiça de
fazer sentar no banco dos réus um inocente, um funcionário que agiu dentro do
cumprimento do seu dever e está sendo, por isso, criminalmente processado, su-
jeito ao vexame de responder perante o foro penal. Não é possível que se pactue
com isso, num país de civilização jurídica. Assim, não hesito em dar provimento
ao recurso a conceder o habeas corpus.

HABEAS CORPUS 32.468 — SP

Nulidade processual. Inexistência e dispensa de exame de corpo


de delito, entendido este como o conjunto de “todas as materiali-
dades, relativamente permanentes, sobre as quais ou mediante as
quais foi cometido o crime, como também qualquer outra coisa que
seja efeito imediato do crime ou de qualquer modo se refira a este,
de sorte a poder ser utilizado para a prova do mesmo” (Manzini).
Imprescindibilidade de exame pericial quando haja necessidade de
conhecimentos técnicos ou especializados.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Tenho para mim que o colendo
Tribunal de Alçada de São Paulo desatendeu, no caso vertente, a salutar advertência
de Jimenez de Adúa, no recente volume IV do seu notável Tratado de Derecho Penal
(p. 682): “Nunca será bastante aconsejable la prudencia a los jueces al decidir sobre
la responsabilidad de los médicos.” Partindo da mera possibilidade de sobrevivên-
cia da menor Sonia, se lhe fossem administrados tais ou quais meios de tratamento,
e prescindindo de perícia médica sobre dados cuja apreciação não podia deixar de
ser feita por médicos especializados, que viessem a juízo, para esclarecer, mediante
solene compromisso de exação e fidelidade, a questão técnica em debate, o dito
Tribunal admitiu a relação de concausalidade entre as arguidas ações e omissões dos

293
Memória Jurisprudencial

pacientes e a morte da referida Sonia. Não estou de acordo com o parecer do ilustre
Dr. procurador-geral do Estado de São Paulo, quando afirma que “os vestígios, a que
se refere a lei, são e só podem ser os encontrados naquilo que foi atingido pelo crime;
na própria pessoa da vítima, quando se trata de crime contra a pessoa”. Vale isto con-
fundir “corpo de delito” com “corpo da vítima” — o que, evidentemente, não é ad-
missível. O exame do corpo da vítima pode não passar de um “momento” ou fase do
exame pericial de corpo de delito. Corpo de delito, segundo a definição de Manzini
(Trattato di Direito Processuale Penale, III, p. 378), “são todas as materialidades re-
lativamente permanentes sobre as quais ou mediante as quais foi cometido o crime,
como também qualquer outra coisa que seja efeito imediato do crime ou que de qual-
quer modo se refira a ele, de sorte a poder ser utilizado para a prova do mesmo. O
exame de corpo de delito, como adverte Bento de Faria, com apoio em João Mendes
Júnior e Manzini, abrange até mesmo os objetos que se liguem a ele ainda que se
achem afastados do lugar e do tempo do delito. Tal exame, no caso de homicídio,
tende à verificação não só do evento letal, como da causa mortis imediata e de todo
o complexo de elementos causais que operaram no caso concreto. Conforme a noção
clássica de João Mendes Júnior, corpo de delito é o conjunto dos elementos sensíveis
do fato criminoso. De modo que os vestígios, de que fala o art. 158 do Código de
Processo Penal, não podem ser apenas, no caso de impactado homicídio, os encon-
trados no cadáver da vítima. Vestígios, ensina justamente Borges da Rosa (Processo
penal brasileiro, I, p. 451), “são sinais, dados materiais, resquícios perceptíveis pelos
sentidos, manifestações físicas que se ligam a um ato ou fato ocorrido ou cometido,
isto é, a infração penal”. Ora, as “fichas hospitalares”, que são a documentação, o
registro do tratamento a que foi submetida a menor Sonia, não podem deixar de ser
consideradas “vestígios” da ação ou omissão concausal atribuída aos pacientes no
evento letal, e, assim, deviam ser diretamente examinadas por técnicos.
O exame dessas fichas, ilustrado pelo que os franceses chamam comunication
du dossier (acesso dos peritos à leitura dos autos), não podia deixar de ser feita por
médicos especializados (desde que os há, e abalizados, na capital de São Paulo). A
perícia se impõe toda vez que haja necessidade de apreciação científica ou técnica
de questões em torno de certos fatos que podem influir na solução do caso criminal.
Consoante a lição de Navarro de Paiva (Provas no processo penal, p. 66), “o exame
pericial é o ato pelo qual o juiz procura conhecer, por meios apropriados, a existência
ou não existência de certos fatos, que podem influir na decisão de uma questão de
penalidade”. E entre tais fatos se encontra, primordialmente, a demonstração do vín-
culo causal entre a conduta do réu e o evento letal. O juiz pode valer-se de sua cultura
geral, mas onde há necessidade de conhecimentos especializados, não pode dispensar
a elucidação de peritos. Não pode ele usurpar função dos peritos. Está obrigado por
lei a determinar a perícia sempre que se tenha de proceder a uma indagação que
exija particular conhecimento de determinada ciência ou arte, alheia aos estu-
dos jurídicos. O mesmo Navarro de Paiva cita um aresto do Supremo Tribunal

294
Ministro Nelson Hungria

português, que pode ser invocado na espécie: “No caso de incerteza da verda-
deira causa da morte, a falta de corpo delito não pode ser suprida pelo corpo de
delito indireto e competente sumário, nem pelo júri, vista a incompetência deste
para o exame” (ob. cit., p. 61). Se os próprios médicos, com a sua ciência e ex-
periência, sentem, por vezes, dificuldade em dizer sobre a causalidade mediata
ou imediata da morte, é claro que leigos em medicina (testemunhas ou juízes de
fato ou de direito) não podem atribuir-se tal demonstração.
Quanto não foi possível ou resultou inútil a autópsia, por demasiadamente
tardia, como no caso concreto, o que há a fazer é o que indica Borettini (La peri-
zia nel processo penale, p. 226): devem ser os peritos interrogados “in rapporto
ai dati di fatto raccolti e alle informazioni attinte o avute dal magistrato”. É
precisamente o que cumpria se fizesse no caso em apreço, formulando-se a pe-
ritos médicos um questionário que poderia ser assim concebido: 1º Em face dos
dados coligidos e constantes dos autos, podem os peritos afirmar que houve im-
perícia dos réus? 2º Essa imperícia contribuiu para a morte da menor Sonia? 3ª
Se tivessem sido empregados outros recursos de tratamento, aconselhados pela
ciência médica, a dita menor teria sobrevivido?
Entendeu o acórdão do Tribunal de Alçada que houve corpo de delito
indireto. Mas como? Pelos depoimentos das testemunhas? Evidentemente, não;
porque pessoas leigas não poderiam dizer da relação de concausalidade entre a
ação ou omissão dos pacientes e a morte da menor Sonia. Pelos pareceres mé-
dicos que não foram trazidos a juízo? Também não, porque tais pareceres, que,
aliás, nada têm de positivo a respeito, só teriam valor se reproduzidos em juízo,
sob compromisso e sujeitos os seus autores à sanção do art. 342 do Código
Penal. Para evidenciar, data venia, o desacerto do acórdão condenatório, basta
que se atente para o seguinte: aos pareceres extrajudicialmente emitidos, cujos
silêncios foram preenchidos pelo próprio acórdão, numa dissertação teórica em
torno de critérios científicos, que não se sabe se seriam ou não aconselháveis
ou viáveis no caso vertente, foram contrapostos outros pareceres, também for-
necidos extraprocesso, por sumidades da medicinal-legal no Brasil, que procu-
ram destruir um a um dos argumentos expedidos no sentido da concausalidade
atribuída à conduta dos pacientes. E pergunta-se: com quem está a verdade, se
qualquer desses pareceres não tem valor de prova, por isso que formulados ex-
trajudicialmente, sem a garantia legal de sinceridade? Por outro lado, olvidou
o acórdão que ensinamentos da ciência médica não são de aplicação irrestrita
a todos os casos. Já se disse que há doentes, e não doenças. As condições pes-
soais de cada enfermo exigem, constantemente, diversidades de critérios de
tratamento. Daí, igualmente, a dificuldade de prognósticos, que o acórdão su-
pôs superada no caso dos autos, mesmo sem apoio nos pareceres exibidos pela
acusação. Tão somente porque determinados métodos ou critérios de tratamento

295
Memória Jurisprudencial

são aconselháveis in abstracto, julgou possível (atente-se bem: possível) que a


glomerulonefrite, frequentíssima nas pessoas gravemente atingidas por fogo e
quase sempre fatal, dada a absorção de toxinas ao nível da pele queimada, fosse
evitada ou conjurada no caso concreto, pela aplicação de tais ou quais métodos
ou critérios. E o que era possibilidade, passou, incoerentemente, a ser suficiente
certeza para a condenação dos pacientes. O acórdão é increpado, e parece que
com razão, de não ter sabido, sequer, interpretar as “fichas hospitalares”. É força
reconhecer que ele não pode prevalecer, tendo criado uma situação de perple-
xidade, que somente a perícia requerida pelos pacientes e ordenada por lei teria
podido e ainda poderá afastar. Tal perícia era imprescindível, como autêntica
perícia sobre o corpo de delito, e sua dispensa acarretou irremissível nulidade
do processo, a partir da inquirição das testemunhas, exclusive, na conformidade
do art. 564, III, letra b, do Código do Processo Penal.
Isto posto, concedo a ordem impetrada.

EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, ao proferir meu
voto como relator, procurei deixar bem acentuado o seguinte: no caso, o exame de
corpo de delito não podia limitar-se e não se limita a simples averiguação material
do evento “morte”. Compreende, necessariamente, a averiguação da concausalidade
atribuída à omissão, à imperícia, a erro técnico por parte dos médicos condenados.
Negar-se que essa relação lógica de concausalidade não faz parte integrante do corpo
de delito será, positivamente, negar a evidência.
Ninguém pode duvidar de que a prova desse nexo de concausalidade se
integra, se entrosa, indeclinavelmente, no exame, na prova do corpo de delito. E
procurei demonstrar que essa relação de causa e efeito, para ser afirmada, para ser
reconhecida, dependia de conhecimentos técnicos, de conhecimentos apuradamente
especializados, que não podiam ser substituídos pelo testemunho de pessoas
inteiramente bisonhas em assuntos médicos. Não se pode, portanto, admitir ou
reconhecer, no caso, “corpo de delito indireto” por meio de testemunhas leigas, sendo
de notar, aliás, que as testemunhas ouvidas nada disseram a respeito da questionada
concausalidade, mesmo porque não podiam dizer, não saberiam como dizer. É de
toda evidência que pessoas jejunas em medicina não podiam vir a juízo declarar que
a omissão de tal ou qual tratamento acarretou, positivamente, uma concausa, uma
condição cooperante para o subsequente evento letal. Nas minhas considerações,
cuidei de me abrigar à sombra dos que autorizadamente têm versado o assunto, pois
não me atribui autoridade alguma. Toda vez que se trata de tema controvertido ou
intranquilo, trato de me apadrinhar com autoridades de valor reconhecido, para emitir

296
Ministro Nelson Hungria

minha opinião. No caso vertente, chamei à colação autores nacionais e estrangeiros,


todos eles unívocos em afirmar que, quando a autópsia resulta inútil, devido ao seu
retardamento, os dados coligidos no processo, os elementos obtidos pelo juiz através
da instrução criminal têm que ser submetidos ao pronunciamento de peritos, a técnicos,
no caso a médicos, por isso mesmo que as testemunhas, pessoas leigas em matéria
médica, não podem dizer do complexo causal do evento letal. E cumpre insistir que,
no processo em questão, teve-se o bom senso de não inquirir as testemunhas sobre a
arguida concausalidade do erro de tratamento.
Há certidões, nestes autos, de quase todas as peças do processo; elas trazem
o essencial do processo ao conhecimento do Tribunal. Para sua leitura, de par com
a dos memoriais que me enviaram a defesa e a acusação, tive de consumir longo
tempo, embora entrecortado por outros imperiosos afazeres, para a vazão da pletora
de serviço de um ministro do Supremo Tribunal, e pude averiguar que, afinal de
contas, o que se considerou “corpo de delito indireto” foram três pareceres médicos
fornecidos extra-autos.
O acórdão somente busca apoio nesses pareceres dados extrajudicialmente
e que, na sua parcialidade, não resistem à critica de um leigo. Assim é que neles se
diz, por exemplo, que era de se aplicar, como recurso terapêutico, a enxertia. Sou
um leigo, como leigos são, em matéria médica, o ilustre professor Soares de Melo e
seus preclaros colegas signatários do acórdão; mas, mesmo assim, apesar da minha
laicidade, ouso afirmar que essa opinião é positivamente temerária.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Então para que o exame médico?
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Porque o exame médico, que
se impõe, há de ser feito por profissionais com garantia de seriedade, por isso que,
compromissados coram judice, ficarão sujeitos até a sanção penal, no caso de
falsidade. Ao contrário do que ocorre com os médicos que opinam extra-autos, o seu
laudo lhes poderá acarretar a própria responsabilidade penal, mas, como ia dizendo,
nos pareceres se assevera que era indicado o tratamento por enxertia. Ora, pergunto eu:
o corpo da pequenina enferma continha suficiente e adequado espaço para receber o
enxerto? O próprio colendo Tribunal a quo reconheceu a inanidade desse “palpite” dos
médicos, tanto assim que o excluiu de sua argumentação. Nem seria admissível que,
havendo dois métodos científicos de tratamento, a preferência por um deles (no caso,
o emprego do ácido tânico) importasse em indesculpável erro profissional, sujeitando
os seus aplicadores a pena criminal. Seria isto um absurdo, um desconchavo, um
despropósito. Diz ainda um dos pareceres, apoiado pelo acórdão, que não foi feita
a indispensável inoculação de plasma ou transfusão de sangue. Teria a menininha
enferma, transformada em uma ferida viva, veias próprias para receber transfusão de
sangue total ou de plasma? Ainda mais: afirmam os médicos, opinando à distância
297
Memória Jurisprudencial

e sem o manuseio dos autos, que, dada a inapetência da enferma, devia ter-lhe sido
aplicada a alimentação por meio de sondas gastroduodenais ou por via parenteral,
isto é, mediante clisteres alimentares. Será admissível que aquela pobre mártir, entre
dores, apuantes, ainda fosse submetida ao suplício de receber frequentemente pelo
esôfago uma sonda ou tomar clisteres alimentares? Os pareceres juntos aos autos são
tendenciosos, formulados por críticos de obra feita, por médicos que estejam, talvez,
servindo a rivalidade ou competições pessoais.
O Sr. Ministro Mario Guimarães: Vossa Excelência está fazendo uma acusação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Faço-a porque os aspectos do caso
o permitem. A lei exige que, para se dar valor ao parecer de técnicos não oficiais,
seja ele dado, mediante compromisso, coram judice. Se é fornecido fora dos autos,
inteiramente à revelia do juiz do processo, está sujeito a todas as suspeitas. Não há
que se atribuir valia aos pareceres extrajudiciais, quer aos desfavoráveis, quer aos
favoráveis aos pacientes, apesar de que os últimos são assinados por luminares da
medicina legal no Brasil, quais sejam, Flaminio Fávero e Almeida Junior; mas, para
mostrar o novelo de dúvidas com que até agora se apresenta a acusação, cumpre
acentuar que essas duas glórias autênticas da medicina brasileira afirmam que o
tratamento empregado pelos pacientes foi tão acertado que produziu o milagre, o
prodígio de sobrevida, por 101 dias, da desditosa enferma, tendo-se em vista que,
noventa casos em cem, as queimaduras graves ocasionam a fatal glomerulonefrite.
Pois bem, o acórdão não se limitou a fazer obra com unilaterais pareceres
extra-autos, sem o menor valor como prova judiciária. Entendeu ainda de lhes
encher as entrelinhas, e entrou a dissertar sobre matéria médica, como se fora um
pronunciamento ex cathedra.
Senhor Presidente, ninguém mais do que eu reconhece a grande sabedoria
jurídica do professor Soares de Melo, tão justamente salientada pelo Sr. ministro Mario
Guimarães; mas é evidente que a sua autoridade no campo do direito penal não pode
alongar-se ao terreno médico, para vir pontificar sobre temas da ciência hipocrática.
Fixemos um dos tópicos do acórdão condenatório. Ali se diz que, se tivesse sido dada
à enferma uma alimentação adequada, contendo tais ou quais elementos químicos
(que os pacientes sustentam que existiam em todos aqueles que eram ministrados,
segundo informam as testemunhas, como sejam hidratos de carbono, proteínas etc.,)
aquela possivelmente teria sobrevivido. Este advérbio possivelmente trai a incerteza,
a dúvida do Tribunal de Alçada quando condenou esses homens. A possibilidade é
menos que probabilidade, que é a frequência estatística superior a 50%. E como se
pode condenar alguém, quando, ao invés de certeza de culpa, há mera possibilidade?
E como se pode convir que uma alimentação rica em hidratos de carbono ou proteínas
seja preventivo ou remédio específico contra a glomerulonefrite?
298
Ministro Nelson Hungria

Ninguém pode aceitar que uma tal ou qual alimentação possa conjurar a nefrite
aguda ou que, como diz o acórdão, no caso concreto, se houvesse sido ministrada
uma alimentação adequada, possivelmente a enferma teria sobrevivido. Seria isso
uma “descoberta” alheia aos cultores da ciência médica. Estou argumentando, Senhor
Presidente, em torno de provas, com transposição da órbita do habeas corpus, para
demonstrar como a lei é sábia ao reclamar, para casos como este, o exame pericial com
as formalidades e condições que assegurem a sua fidelidade, e ao ferir de nulidade o
processo que não contenha um tal exame.
O que se apresenta, no caso, é o seguinte, em última análise: foram condenados
três médicos, por erro profissional, porque, se eles tivessem aplicado o tratamento “x”
em vez do tratamento “y”, a enferma teria sobrevivido. Ora, como se pode afirmar
isso sem a apreciação técnica dos elementos informativos que o processo contém
ou com fundamento em opinião de médicos formuladas in abstracto, contando com
a impunidade de pareceres extra-autos? Venham esses médicos a juízo e, então,
se tiverem coragem, que afirmem, individuado meticulosamente o caso, a mesma
coisa que afirmaram em pareceres elaborados, pecunia accepta, no recesso de seus
gabinetes. Que eles venham para dentro dos autos repetir, perante o juiz, sob a sanção
do art. 342 do Código Penal, o que disseram, e só então poderão ser cridos.
Advertiu o eminente Sr. ministro Mario Guimarães que, no caso, já houve
interposição de recurso extraordinário; mas isto nada importa: desde o momento que
se apresenta uma nulidade flagrante, ou seja, a ausência de corpo de delito indireto em
suprimento do inexistente ou deficiente corpo de delito direto, o habeas corpus tem
cabimento, independentemente de interposição de qualquer outro recurso, mesmo o
de apelação.
Afirmou o ilustre Sr. ministro Mario Guimarães que o acórdão se colocou
neutro entre as duas correntes de opiniões. Estranha neutralidade! Entre duas séries
de opiniões que divergiam, de um lado a de três médicos que podem ter nomeada
em São Paulo, mas que não são conhecidos no resto do Brasil, e de outro lado a de
Flaminio Fávero e Almeida Junior, com projeção em todo o país e até no estrangeiro,
o acórdão não se colocou em situação de dúvida ou de perplexidades e entrou de ler
nas próprias entrelinhas dos pareceres que preferiu, com franca incursão em seara
alheia.
Perdoe-me o Tribunal pela minha exaltação, exaltação a que me impele o
desejo de ver assegurado, no caso, o que entendo ser o interesse da justiça. Isso de
falar com veemência é, aliás, do meu jeito, do meu modo de ser. Enquanto falava
o eminente colega ministro Mario Guimarães, confesso que fiz tudo para manter
controlada a minha emotividade, e isso pelo grande respeito que dispenso a Sua
Excelência e ao acatamento que devo ao Tribunal. Pedi a todos os deuses que
299
Memória Jurisprudencial

me não deixassem exaltar. Mas as ideias que me foram vindo no raciocínio


de improviso, aquecidas do coração, que sempre me vêm aos gorgomilos,
conduziram-me ao acaloramento. Não sou um intolerante, por mais que pareça
tal, quando defendo minhas opiniões. Jamais fui um ultramontano. Defendo os
meus pontos de vista com ardor, mas sem o intuito de impô-los aos que pensam
de modo contrário. Defendo-os unguibus et rostris, com todas as energias do
meu espírito e do meu fôlego. Mas fico aí. A minha funda convicção de que
estou pugnando pela justiça do caso concreto é que provoca o meu ardor; mas,
findo o debate, ainda que não prevaleça o meu entendimento, ensarilho as armas
e não me fica o menor ressentimento, pois não me suponho o detentor exclusivo
da verdade.
Peço perdão ao Tribunal, que não deve ver na exaltação do meu voto se
não o meu amor pela justiça, o meu propósito de que a justiça e o direito sejam
atendidos no caso concreto, impedindo a continuidade de uma condenação que
talvez represente um grave erro judiciário, que ainda pode ser corrigido.
Senhor Presidente, era o que tinha a dizer, como relator, reiterando o
meu voto no sentido da concessão do habeas corpus.

HABEAS CORPUS 32.618 — SP

Habeas corpus; sua denegação. Constitucionalidade da Lei


1.802, de 1953. Inexistência de nulidades. O § 2º do art. 43 da re-
ferida lei somente diz com a “residência obrigatória”, não abran-
gendo a prisão preventiva, que continua disciplinada, no caso, pelo
Código de Processo Penal.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Nada tem de inconstitucional a
Lei 1.802, de 5 de janeiro de 1953, definidora dos crimes contra o Estado e a or-
dem política e social. Ao contrário, encontra ela evidente apoio no próprio capí-
tulo que a Constituição vigente consagra aos “direitos e garantias individuais”,
isto é, nos § 5º, in fine, § 12 e § 13 do art. 141. Não há liberdade de manifestação
do pensamento para o preconício de processos violentos e subversivos da ordem
político-social, nem liberdade de associação para fins ilícitos, ou para organiza-
ção ou funcionamento de partidos políticos ou agremiações cujo programa ou
ação contrarie o regime democrático instituído pela Carta de 1946.

300
Ministro Nelson Hungria

Os fatos imputados aos pacientes, segundo a denúncia contra eles ofe-


recida, se enquadram, inquestionavelmente, na incriminação da Lei l.802, não
havendo indagar, para a instauração da ação penal, sobre os elementos informa-
tivos de que se serviu o Ministério Público para atribuir aos pacientes a autoria
dos ditos fatos, tais como são descritos na denúncia.
O advento sucessivo de um termo processual para o excesso de prazo
ocorrido em relação ao termo anterior, conforme tem reiteradamente decidido
este Supremo Tribunal. Presentemente está finda a instrução criminal no pro-
cesso contra os pacientes, já tendo sido os autos conclusos ao juiz para sentença.
A prisão preventiva dos pacientes foi plenamente justificada no despacho
que a decretou, nos precisos termos dos arts. 311 e 313 do Código de Processo
Penal.
A única “brecha” favorável aos pacientes, e de que os impetrantes não se
lembraram, seria a aplicação do § 2º do art. 43 da Lei 1.802 à prisão preventiva,
conforme já tem admitido esta Suprema Corte, com a minha adesão. Mas detida
análise, porém, do texto legal, convenceu-me de que a extensão do dito pará-
grafo à prisão preventiva somente pôde resultar de uma inadvertência.
Para isto chamo a atenção dos Srs. ministros.
A medida a que se refere o parágrafo não é a prisão preventiva, mas a per-
manência, judicialmente ordenada, do indiciado “no local onde a sua presença
for necessária à elucidação dos fatos a apurar”, segundo permite o caput do art.
43. E isso se torna claro quando se verifica que o § 2º, ao falar em a medida,
está a indicar, indubitavelmente, a ordem de que cuida o § 1º, que assim dispõe:
“A ordem será dada por escrito, intimando-se por mandado o interessado e dei-
xando-se cópia do mesmo em seu poder” Que ordem é essa? Somente pode ser
a referente à permanência do indiciado no local onde seja necessária a sua pre-
sença, na forma do caput do artigo, pois, de outro modo, não se compreenderia
que dela fosse apenas intimado e dado cópia ao indiciado.
O § 2º é um complemento do § 1º.
Todos os parágrafos do art. 43, aliás, cuidavam exclusivamente de tal me-
dida, que é uma inovação processual, nada tendo a ver com a prisão preventiva,
que continua regulada pelo Código de Processo Penal. E tanto assim é que o §
5º declara que “o não cumprimento do disposto na ordem judicial de permanên-
cia justificará a decretação da prisão preventiva”, não subordinando a duração
desta ao prazo do § 2º.
Como a prisão preventiva é também uma medida, o § 2º parece, prima
facie, abrangê-la; mas a interpretação analítica do art. 43 e seus parágrafos evi-
dencia o contrário. A palavra medida, emprega-a o § 2º no singular, e se este

301
Memória Jurisprudencial

quisesse abranger tanto a prisão preventiva quanto a permanência, teria natu-


ralmente dito: “qualquer das medidas”. Usando a expressão no singular, está a
indicar, a toda evidência, tão somente, a de que cogita o parágrafo anterior, isto
é, a ordem de permanência.
Isto posto, denego a ordem.

HABEAS CORPUS 32.680 — AL


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, meu voto, no recurso
extraordinário criminal, foi no sentido do não conhecimento do recurso, dado
o âmbito muito estreito desse recurso. Já o mesmo não acontece no habeas
corpus, em que podemos ter maior amplitude na apreciação da matéria ques-
tionada, notadamente no que concerne à justa causa que legitima a coação. A
respeito da órbita do habeas corpus, a jurisprudência tem sido reiterada no sen-
tido de que os tribunais e juízes podem, em certos casos, entrar na apreciação da
prova. Assim, por exemplo, no caso de prisão preventiva, para cuja decretação
a lei exige “indícios suficientes”, indícios que possam realmente levar o julga-
dor à convicção da existência do crime e de quem seja o seu autor; não havendo
esses indícios, deve ser concedido o habeas corpus. Ora, a pronúncia, segundo
entendo, está no mesmo caso, embora represente uma decisão provisória, exige,
para ser decretada, que existam, no processo, indícios que levem a essa mesma
convicção ou, pelo menos, acarretem fundada suspeita de que o acusado é real-
mente o autor do crime, que se acha materialmente provado.
A lei processual exige que esses indícios sejam apontados motivada-
mente pelo juiz da pronúncia, a fim de que a superior instância aprecie o mé-
rito dessa motivação, pois o livre convencimento do juiz não é o puro arbítrio.
O livre convencimento — já eu o disse por mais de uma vez, e isto é pacífico
na doutrina e na jurisprudência — não é o arbítrio sem rei nem roque, não é o
convencimento à margem dos autos ou que se possa formar sem base alguma.
Em torno do caso vertente, ou melhor, na apreciação dos elementos coligi-
dos neste processo, já se pronunciou o ilustre Dr. procurador-geral da República,
quando nele se procurou envolver o ministro Silvestre Góis Monteiro, e a Sua
Excelência reconheceu que inexistia fundamento, sequer, para denúncia. Ora,
os mesmíssimos elementos cuja precariedade não autorizava a denúncia con-
tra o dito ministro é que serviram para a pronúncia do ora paciente. Teria ha-
vido mandato para o crime, numa ação concatenada entre o ex-governador de

302
Ministro Nelson Hungria

Alagoas, isto é, o dito ministro e os comandante e sub-comandante da Força


Policial do Estado, sendo que o último era, então, o paciente, tenente coronel
José Rodrigues de Melo. A mesmíssima prova considerada nenhuma, conside-
rada irremediavelmente escassa, para que pudesse justificar a simples denúncia,
e posto que o suposto mandato resultara de um só conluio, serviu para a pronún-
cia de dois dos restantes pseudomandantes.
A prova coligida no processo, se é que se lhe pode dar o nome de prova,
é tudo quanto há de mais vago, limitando-se ao “ouvir dizer”, ao “disse me
disse” de uma pequena cidade. Tudo quanto depõem as testemunhas é de oitiva
alheia ou concernente a fatos inexpressivos. Diz a pronúncia, por exemplo, que
o paciente foi visto numa feira livre e depois num hospital, a conversar com um
dos executores materiais do crime, seu amigo e protegido, Quid inde? Outra cir-
cunstância reputada indiciária é a de que o paciente era subcomandante da Força
Policial, com grande prestígio no seio da corporação, de modo que, praticamente,
tudo quanto lá se fazia era por ordem ou inspiração sua. Ora, o que está provado
é que o paciente, tendo recebido ordem para expedir dous ou três soldados com
o fim de resguardarem a sede de determinado jornal local, cumpriu essa ordem,
inexistindo a mais longínqua prova de que o paciente sabia que tais soldados
iriam praticar o crime. O seu prestígio no seio da Força Policial não induz, de
modo algum, a crer que ele tivesse ciência do que iria acontecer. O fato de ter
sido visto o paciente a conversar na via pública com um dos indigitados autores
materiais do crime, e após a execução deste, é até indício de seu alheamento ao
crime, pois, do contrário, teria tido o cuidado de preservar-se de suspeitas.
Exclusivamente por conjecturas foi o paciente pronunciado, ficando su-
jeito ao apaixonado julgamento do Tribunal do Júri, que é, no interior do País,
um instrumento passivo da política dominante.
Quem ler o processo, de ânimo isento, verifica que os fatos apontados
contra o paciente somente poderiam adquirir relevo por parte de espíritos sub-
conscientemente influenciados pela exaltação do ambiente local, impregnado
do desejo de represálias contra o ex-governador Silvestre Góis Monteiro e seus
auxiliares. Fora daí, perdem qualquer sentido. Não poderiam, sequer, servir de
base à simples denúncia, como muito bem entendeu o Dr. procurador-geral da
República.
O art. 408 do Código de Processo Penal assim dispõe: “Se o juiz se
convencer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor,
pronunciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento.” Ora, se esses indí-
cios inexistem, e não podendo o juiz balizar de indício aquilo que não é indí-
cio, aquilo que não passa de mera conjetura, não pode subsistir o despacho de
pronúncia. Indícios são vestígios materiais ou sensíveis que, logicamente inter-
pretados, ou apreciados segundo id quod saepuis fit, levam à certeza moral do
303
Memória Jurisprudencial

fato que se quer provar. O que existe nos autos não são indícios, mas simples
“palpites” sem qualquer fundamento objetivo.
Estou convencido de que, no caso, não houve a “justa causa” que tem de
legitimar a coação à liberdade individual.
Quando do recurso extraordinário perante a Primeira Turma, acentuei
que estava o paciente à mercê de um ambiente alvoroçado do desejo de vin-
gança. Toda aquela gente que viveu, segundo se percebe dos autos, perseguida
pelo ex-governador Silvestre Péricles Góis Monteiro, e que domina atualmente a
situação política em Maceió, reclama o paciente como “bode expiatório”. Já que
não pode vingar-se no inimigo máximo, no ministro Silvestre Góis Monteiro,
que está distante e acoberto de vindictas, quer desalterar o ódio naqueles que se
deixaram ficar na capital alagoana.
Disse e repito: a pronúncia do paciente é um traço do parcialismo que iria
informar o julgamento final pelo Júri, inspirado pela paixão, pelo ódio popular
de cujo influxo, muitas vezes, nem mesmo consegue isentar-se o subconsciente
dos juízes togados.
Dou meu voto em sentido idêntico ao do eminente ministro relator, con-
cedendo a ordem.

HABEAS CORPUS 32.883 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que
o processo penal não está subordinado ao prévio processo fiscal. Este somente
se instaura para efeitos de ordem administrativa. O processo penal, para ser ini-
ciado, pode prescindir até mesmo de inquérito policial, quanto mais de inquérito
administrativo-fiscal. O juízo penal é independente do que se apura ou se decide
na esfera administrativa.
Há, porém, que resolver uma questão: configurar-se-á realmente, no caso
vertente, o crime de estelionato? Estelionato é obter lucro ilícito, mediante fraude.
Será ilícito o lucro obtido pelos pacientes, mesmo aceitando-se a versão da de-
núncia? O lucro que obtinham, com a venda das balas, era o preço das mesmas,
naturalmente correspondente ao seu valor intrínseco mais o lucro mercantil.
Se, para fomentar essa venda, através de sugestiva propaganda do pro-
duto, a empresa prometia um prêmio, dependente de serem encontradas, dentro
dos pacotes de balas, certas “figurinhas” carimbadas e chamadas “figurinhas
304
Ministro Nelson Hungria

chaves”, mas que, realmente, não eram colocadas nos pacotes, não vejo nisso o
crime de estelionato, que pressupõe something for nothing e lesão patrimonial
de pessoas determinadas. Parece-me que o caso deveria ficar circunscrito à ór-
bita fiscal ou ao ilícito administrativo, isto é, de ofensa à lei reguladora da venda
de mercadorias com promessa de prêmios. Não se apresenta um enriquecimento
sem causa, nem é admissível estelionato in incertam personam. Poder-se-ia
alegar que, então, ocorreria na espécie o crime prescrito no art. 2º, IX, da Lei
1.521, de 1951, que é reprodução do art. 3º, III, do Decreto-Lei 869, de 1938, isto
é, “obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número
indeterminado de pessoas, mediante especulações ou processos fraudulentos.”
Não posso, entretanto, identificar ganhos ilícitos mediante fraude onde há um
correspectivo, que não se demonstra insuficiente.
O Sr. Ministro Hannemann Guimarães: A fraude resultava do erro em
que induzia os compradores das balas. Daí o lucro ilícito. As crianças ficavam
esperando.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Havia uma contraprestação, havia um do
ut des, isto é, o fornecimento de balas pelo seu justo preço.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Era uma contraprestação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se a empresa usou de ardil ou fraude para
desobrigar-se da promessa de recompensa, o que me parece esboçar-se é um ilí-
cito civil ou uma questão de direito privado, abstraída a questão de direito fiscal
ou administrativo. Não houve o enriquecimento sem causa, que é essencial no
estelionato.
O Sr. Ministro Hannemann Guimarães: Eles acenavam com uma sorte
que não era possível tirar.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: A propaganda tem por fim aumentar a
venda de qualquer mercadoria, visa a tornar mais procurado o produto, e se ela
contém falsidade, isto é, mentirosa promessa de prêmios, nem por isso haverá
ganho ilícito, desde que o produto valha o preço que por ele se deu. O dinheiro
recebido correspondia a um valor, que era o das balas fornecidas. A promessa
de prêmio acarretou maior venda, mas não lucros ilícitos.
O Sr. Ministro Barros Barreto: Seria ou não valor intrínseco, porque
qualquer de nós pode comprar um artigo por determinado preço e outro inferior
a ele pelo mesmo preço.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Essa é outra questão. Houve laudo pe-
ricial no sentido de que o valor das balas não correspondia ao preço justo?
Positivamente, é uma conjectura de Vossa Excelência a de que as balas não va-
liam o preço pedido.

305
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Dos elementos constantes dos autos, não
vejo referência ao valor intrínseco da mercadoria. Isso não foi objeto de cogita-
ções. Da tribuna é que o advogado, com habilidade que lhe é peculiar, lançou o
argumento.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Devemos admitir que uma mercadoria só
é vendável quando o preço corresponde ao seu atual valor intrínseco. Trata-se,
aliás, de um axioma de economia. Temos de admitir que o preço cobrado era
proporcionado ao valor da mercadoria, correspondendo à sua qualidade e
quantidade.
Senhor Presidente, não deparo no caso o crimen stellionatus, a fraude
patrimonial que incide sob sanção penal.
Assim, data venia do eminente Sr. ministro relator, concedo o habeas
corpus.

HABEAS CORPUS 32.928 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O argumento novo, formulado
pelo paciente, desacredita-se com a simples ponderação de que a Lei 1.802, de
1953, não cuida de crimes “em tempo de guerra”, não afetando, portanto, os
arts. 21 e 67 do Decreto-Lei 4.760, de 1942.
Razão integral, entretanto, assiste ao paciente, no que respeita à insub-
sistência de sua condenação, com o restabelecimento do regime constitucional.
Fui voto vencido no julgamento do anterior habeas corpus impetrado em
seu favor.
O princípio da ultra-atividade das leis excepcionais ou transitórias so-
mente diz com os fatos praticados durante a vigência destas. É o que acentua o
art. 3º do Código Penal e o que repete o art. 53 de próprio Decreto-Lei 4.766, in
verbis: “A lei para o tempo de guerra, embora terminado este, aplica-se ao fato
praticado durante sua vigência.”
Trata-se de um critério perfeitamente conciliável com a não ultra-ativi-
dade da lex gravior em matéria penal, posto que, com o retorno da lei normal,
não se opera, em relação ao fato incriminado ou mais severamente punido pela
lei excepcional ou transitória, uma mudança na consciência coletiva favorá-
vel ao dito fato, mas tão somente a cessação das passageiras circunstâncias

306
Ministro Nelson Hungria

materiais que exigiam a incriminação ou maior punição, circunstâncias a que


o fato continua inseparavelmente ligado. E, a não ser assim, estaria implantada
a mais chocante iniquidade: o réu cujo processo tivesse tido marcha célere, ter-
minando antes do retorno da lei normal, sofreria o rigor da lei excepcional ou
transitória, enquanto aquele que tivesse o processo retardado por qualquer mo-
tivo ou que tivesse praticado o fato nos últimos dias de exceção, estaria isento
desse rigor.
Importaria isso em fazer das leis excepcionais ou transitórias um “jogo
de disparate”.
Mas é preciso insistir e reinsistir neste ponto: a lei excepcional ou transi-
tória somente goza de ultratividade quando não lhe tenha sido atribuído efeito
retroativo, isto é, aplicabilidade a fatos praticados antes de sua vigência. Se esse
efeito retroativo só foi possível porque suspensa a garantia constitucional que
proíbe leis penais com aplicação ex post facto, é claro que a lei excepcional ou
transitória, quanto a essa retração, não poderá subsistir em a volta ao regime
constitucional. Nesse ponto, a lei excepcional ou transitória contém uma condi-
ção implícita e indeclinável: “enquanto durar a suspensão das garantias consti-
tucionais”, isto é, enquanto não voltar a imperar, como preceito constitucional,
o nullun crimen nulla poena sine praevia lege poenali.
De outro modo, estaria implantado o mais desmarcado arbítrio do Estado
contra o indivíduo.
Lembro-me que, no meu voto vencido, no julgamento do anterior habeas
corpus impetrado pelo paciente, formulei, ad terrorem, o seguinte exemplo:
suponha-se que durante o estado de emergência, consecutivo à Constituição
de 1937, o chefe do Governo, em represália a adversários que tivessem assi-
nado um manifesto de oposição, baixasse um decreto, com efeito retroativo,
incriminando o fato e cominando-lhe a pena de prisão perpétua, ou de trinta
anos de reclusão. Ninguém teria coragem de sustentar que a efetiva condenação
dos signatários do manifesto perduraria mesmo após a cessação do estado de
emergência ou do retorno ao regime constitucional. Se o decreto só teria sido
possível porque suspensa a Constituição, é toda evidência que, restabelecida a
Constituição, perderia qualquer eficácia.
Do contrário, seria admitir que pelo fato da suspensão da Constituição se
pudesse criar uma continua da situação contrária a esta mesmo depois do seu
restabelecimento, o que vale dizer que o Governo poderia suspender periodica-
mente a Lei Magna, para o exercício de atos ditatoriais, com efeitos irredutíveis
pelo retorno do regime constitucional.
Seria o mais completo desconchavo, isto é, a possibilidade prática de bur-
lar impunemente a Constituição.

307
Memória Jurisprudencial

O paciente, que se diz o único indivíduo que ainda está a sofrer o efeito retro-
ativo do Decreto-Lei 4.766, é uma vítima de desconchavo semelhante.
A continuidade da sua prisão é uma iniludível coação inconstitucional.
Concedo a ordem impetrada.
E ainda desejo mencionar que, pelo estudo que fiz do caso do paciente, verifi-
quei o seguinte: ele não merece o nome de traidor da Pátria, de modo algum.
O que ele fez foi o seguinte: no período do rompimento das relações diplomá-
ticas do Brasil com a Alemanha, quando ainda o Brasil não era inimigo declarado
da Alemanha, ele serviu à Alemanha, prestando-lhe informações acerca de navios
norte-americanos ancorados no Brasil.
Isso de modo nenhum pode ser qualificado como traição à Pátria.
Também é verdade — porque fato notório — que todos aqueles que ainda
estavam na Ilha Grande sofreram essa iniquidade, de uma condenação retroativa,
a perdurar mesmo após a volta do regime constitucional, todos já foram postos em
liberdade, até mesmo os estrangeiros.
Não é verdade que seja o paciente o único, no mundo, a sofrer pena dessa
natureza; aí estão, curtindo pena iníqua, as vítimas do Tribunal de Nuremberg, esse
atentado inominável.
Mas, no Brasil, é o paciente o único a sofrer esta injustiça sem nome, que
é contrária à nossa tradição jurídica e é contrária à multissecular regra da não
aplicabilidade de leis penais com efeito retroativo.
Assim, concedo a ordem impetrada.

EXPLICAÇÃO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, em seu bri-
lhante voto, o eminente Sr. ministro Abner de Vasconcelos não respondeu ao
argumento central do voto por mim formulado. Não contesto a ultra-atividade
das leis transitórias ou excepcionais, de modo algum. O que eu disse e repito
é que a ultra-atividade das leis excepcionais ou transitórias não significa que
elas conservem tal qualidade ainda nos pontos em que tenham sido aplicadas
retroativamente, desde que isto somente teria sido possível pelo fato de que
estava suspensa a Constituição, que expressamente vedava a retroatividade da
lei penal mais grave. Desde que se voltou ao regime constitucional, já não era
possível a continuidade do efeito retroativo. As leis excepcionais ou transitórias
imperam além do seu término de vigência, mas, no tocante aos fatos praticados
durante a sua vigência, pois não podem fazer marcha a ré, salvo quando e en-
quanto estiver suspensa a garantia constitucional em sentido contrário.

308
Ministro Nelson Hungria

As leis em questão sobrevivem ao término de sua vigência, de modo


que a lei ordinária, que volta a imperar, não pode cancelar os seus efeitos; mas,
desde que elas só foram possíveis porque suspensa a Lei Constitucional. O
retorno desta à sua vigência elimina a situação criada por elas, pois, de outro
modo, seria um recurso para permanente burla da Lei Máxima.
Esse argumento não foi respondido pelo eminente Sr. ministro Abner de
Vasconcelos, que se apegou ao art. 3º do Código Penal, que não pode ser inter-
pretado como preceito desvinculado da própria Constituição.
Não desconvencido do meu ponto de vista, mantenho meu voto, conce-
dendo a ordem.

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS 32.983 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, tenho sempre enten-
dido que o preceito do nosso Regimento Interno que permite o indeferimento
in limine do pedido de habeas corpus, quando repetição de anterior, não pode
prevalecer dentro dos termos amplos do dispositivo constitucional e dos próprios
dispositivos do Código de Processo Penal.
É sabido que as decisões de habeas corpus não fazem res judicata e, por
isso, o pedido pode ser reiterado.
Há outra razão, de ordem prática, para não se admitir o critério adotado
pelo nosso Regimento. É coisa sabida a frequente divergência de votos no seio
dos Tribunais, muitas vezes prevalecendo este ou aquele ponto de vista, segundo
esteja ou não presente tal ou qual juiz ou ministro. Ora, não se pode inibir o pa-
ciente de aproveitar um ensejo favorável ao êxito do que postula. Além disso, há
sempre a possibilidade de uma contramarcha, de um repúdio de voto anterior —
o que também não raramente ocorre. São ponderações muito justas que, certa
vez, foram feitas pelo ministro Costa Manso, quando ilustrava este Supremo
Tribunal Federal, e que eu tenho sempre endossado, para admitir a reiteração do
pedido de habeas corpus, ainda que com os mesmo fundamentos.
Fiel aos meus pronunciamentos anteriores, data venia, dou provimento ao
agravo, para conhecer do habeas corpus, sem entrar na apreciação do seu mérito.

309
Memória Jurisprudencial

HABEAS CORPUS 33.123 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, em matéria penal, a
coisa julgada é santa de muito pouca devoção.
Ainda que transitada em julgado uma sentença condenatória que emane
de processo nulo, cabe contra ela habeas corpus, independentemente de revisão.
No caso, entretanto, o que se alega é má apreciação da prova ou injustiça
da condenação, pois não estaria demonstrada a participação, mediante man-
dato, imputado ao paciente.
O remédio não poderá ser outro senão a revisão.
Estou de acordo com o Sr. ministro relator.

HABEAS CORPUS 33.135 — RS


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, estou de inteiro
acordo com o Sr. ministro relator. Não houve sentença condenatória na primeira
instância, de modo que não foi interrompida a prescrição. Somente em grau de
apelação, interposta pelo Ministério Público, é que houve condenação, imposta
ao paciente pena privativa da liberdade por quatro meses. A situação é perfei-
tamente idêntica à que teria ocorrido se essa condenação fosse proferida na pri-
meira instância e dela não tivesse recorrido o Ministério Público.
De acordo com o art. 110, parágrafo único, do Código Penal, tinha e tem
de ser decretada, na espécie, a prescrição da ação penal, relacionada à pena in
concreto. Também concedo a ordem.

HABEAS CORPUS 33.150 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, como este Tribunal
deve estar lembrado, fui contrário à ressalva que constou do acórdão concessivo
de anterior habeas corpus ao paciente e pelo qual foi declarada insubsistente a

310
Ministro Nelson Hungria

condenação deste, por efeito retroativo do Decreto-Lei 4.766, de 1942, desde que
o país voltara ao regime constitucional. Impugnei a ressalva por dois motivos.
Em primeiro lugar, o próprio Superior Tribunal Militar, reiteradamente,
de modo expresso, já reconheceu que os fatos imputados ao paciente não se
enquadram no art. 79 do Código Penal Militar de 1891, que pressupunha na
espécie o estado de guerra. Não era compreensível que o dito Tribunal, depois
de assim se pronunciar, pudesse voltar atrás e julgar de modo diverso, ou reexa-
minar a questão, para entender o paciente incurso no referido artigo da antiga
lei penal militar.
Em segundo lugar, é de toda evidência que o crime previsto no art. 79
II, do Código Penal Militar de 1891, não se apresenta no caso vertente. Na
definição do crime de que cogitava, exigia ele, como condição sine qua non,
a existência do estado de guerra. O que se incriminava, o que se punia era a
espionagem em favor do inimigo. Ora, na ocasião dos fatos atribuídos ao pa-
ciente, o Brasil não estava em estado de guerra com a Alemanha a cujo favor
e contra os Estados Unidos, não contra o Brasi1, teria sido exercida a espiona-
gem. É um absurdo dizer-se que o paciente é um traidor da Pátria, pois esta é o
Brasil, e não os Estados Unidos. Teria ele praticado uma leviandade, ou um ato
indecoroso, porque um oficial do Exército Brasileiro não pode fazer-se espião
em favor de um país estrangeiro contra outro. Talvez uma desculpa lhe tivesse
de ser reconhecida, porque o próprio governo brasileiro e figuras do alto co-
mando do Exército Nacional, pouco tempo antes do rompimento de relações
com a Alemanha de Hitler, se achavam em plenilúnio de mel com o nazismo.
Acontece, porém, Senhor Presidente, que a ressalva foi feita, e o Supremo
Tribunal ordenou ao Superior Tribunal Militar que reapreciasse o caso concreto
à luz do Código Penal Militar de 1891. “Não quero contribuir para a insubsis-
tência desse julgado, mesmo porque estou certo de que a Corte Militar manterá
seu anterior critério de decisão, adstrita, como está, aos mesmíssimos fatos que
foram objeto do antecedente julgamento. O que não posso admitir, entretanto,
é que se decrete, a esta altura, a prisão preventiva do paciente — medida que
não foi julgada necessária nem mesmo quando da instrução criminal. Houve
equívoco do Sr. ministro Abner de Vasconcelos, quando falou em decretação de
nova prisão preventiva. Nunca foi o paciente preso preventivamente. Nunca se
julgou de utilidade ou conveniência essa medida, quer antes, quer no curso do
sumário de culpa. Preso administrativamente, por ocasião do inquérito militar,
veio a ser posteriormente solto, e solto acompanhou todo o processo.
Somente tornou a ser preso para cumprir a pena que afinal lhe foi im-
posta. Pois bem; passados dez anos de execução da pena, que veio a ser con-
siderada uma iniquidade ou uma inconstitucionalidade, o paciente é posto em
liberdade, transformado numa ruína humana pelo regime de Caiena que se

311
Memória Jurisprudencial

aplica na Colônia da Ilha Grande, e ainda se quer prendê-lo preventivamente,


enquanto não se realiza o novo julgamento. Prisão preventiva somente pode ser
decretada antes ou durante a formação da culpa. Não é exato que o Código da
Justiça Militar dispõe o contrário. Semelhante severidade seria no caso, aliás,
uma como sangria em corpo de opilado. Poder-se-ia aqui repetir o que disse o
grande Rui, referindo-se a um processo celebre em que o acusado fora reduzido
a extrema desgraça; ainda se pretende exprimir agonias nessa infinita agonia!
A prisão preventiva do paciente seria um luxo de rigor e uma flagrante
ilegalidade. Ainda que tal medida, negando sua própria finalidade, fosse ca-
bível após o término da instrução criminal, seria, no caso, inteiramente des-
necessária: o paciente, ao fim do martírio de mais dez anos no ciclo dantesco
da relegação na Ilha Grande, foi posto em liberdade pelo Supremo Tribunal,
que reconheceu a inconstitucionalidade da permanência do efeito retroativo
da ominosa lei de exceção que lhe fora aplicada, e, durante quarenta dias após
sua libertação, não cuidou de se eximir ao novo julgamento e, longe de fugir
ou esconder-se, esteve em lugar certo e sabido, a clamar pela sua inocência e a
reclamar que, afinal, se lhe faça justiça.
Data venia do eminente Sr. ministro relator, que não encarou a questão
sob os aspectos com que venho de fixá-la, concedo a ordem para cassar a prisão
preventiva, na forma do voto do Sr. ministro Abner de Vasconcelos.

HABEAS CORPUS 33.440 — SP

Foro privilegiado em razão de função. A prerrogativa é con-


cedida em obséquio à função, a que é inerente, e não ao cidadão
que a exerce. Deixado definitivamente o cargo, por qualquer mo-
tivo, o seu ex-titular responderá no foro comum.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, quatro foram os ar-
gumentos formulados, pelo nobre advogado do paciente em apoio do pedido
de habeas corpus, o de que, no caso, não tendo precedido, a seu tempo, o
processo por crime de responsabilidade e tendente ao impeachment, não é le-
galmente possível o processo por crime comum; o de que um governador não
pode praticar peculato, porque não tem a posse dos bens do Estado; o de que é
incompetente o Tribunal de Justiça para conhecer originariamente do processo
instaurado contra o paciente, pois este, ao deixar o cargo de governador, perdeu
312
Ministro Nelson Hungria

o privilégio de foro especial, que é inerente a essa alta função e não sobrevive
ao definitivo afastamento, por qualquer motivo, do exercício dela; e o de que, de
qualquer modo, inexiste, na espécie, o crime de peculato.
O primeiro argumento é, de todo, improcedente. Se fato imputado a um
governador é, ao mesmo tempo, crime de responsabilidade e crime funcional
comum, há que preceder o processo pelo primeiro enquanto o acusado perma-
necer no cargo e, então, de duas, uma: ou o acusado é absolvido e não será pos-
sível o processo pelo crime funcional comum, ou será condenado, e não ficará
impedida a responsabilidade perante a Justiça comum, na conformidade do que
dispõe o art. 3º da Lei 1.079, de 1950. Pode ocorrer, no entanto, que o acusado,
intercorrentemente, deixe definitivamente o cargo de governador, e, tal caso,
segundo dispõe a citada lei, não será recebida a denúncia pelo crime de res-
ponsabilidade, de vez que a única sanção a este cominada é a perda do cargo,
como pena principal, e a inabilitação temporária para o exercício de função
pública, como pena acessória. Assim, já não mais havendo possibilidade para
o processo por crime de responsabilidade, fica inteiramente aberta a via para o
processo pelo crime funcional comum.
Quanto ao segundo argumento, não é menos improcedente. O governador
tem a posse dos bens patrimoniais do Estado como um administrador qualquer
tem a posse dos bens administrados. Ainda que não possa exercê-la diretamente
sobre todos esses bens, exerce-a indiretamente ou por intermédio de auxiliares
da administração pública, isto é, de funcionários que lhe são hierarquicamente
inferiores. Pela lógica do radical ponto de vista do ilustre advogado, um gover-
nador não poderia ser sujeito ativo de peculato nem mesmo quanto ao patrimô-
nio estatal sob sua imediata posse. Assim, poderia, impunemente, apropriar-se,
digamos da baixela de prata que integra os pertences do palácio governamental.
O absurdo da ilação está a evidenciar o desacerto da tese sustentada pelo pa-
trono do paciente.
Já inteiramente procedente parece-me, entretanto, o argumento sobre
já incompetência do Tribunal de Justiça, para processar originariamente o pa-
ciente, que há muito deixou, definitivamente, de ser governador do Estado de
São Paulo. O foro especial, de que cogita o art. 87 do Código de Processo Penal,
é uma “prerrogativa de função”, e, como tal, condicionada à continuidade do
exercício da função por parte do acusado. Trata-se de um obsequium concedido
ao governador como tal, e não como um cidadão. O art. 45 da Constituição do
Estado de São Paulo não diz, nem podia dizer outra coisa, sob pena de estar
inovando sobre matéria de processo penal, que é reservada pela Carta Magna
à competência da União. Desde que o titular do governo deixa definitivamente
o cargo, volta a ser um cidadão como outro qualquer, não podendo eximir-se
ao preceito constitucional de que todos são iguais perante a lei. Assim, Senhor

313
Memória Jurisprudencial

Presidente, data venia do eminente Sr. ministro relator, considero incompetente


o Tribunal da Justiça de São Paulo para conhecer, originariamente, do processo
contra o paciente. É verdade que esse colendo Tribunal tem insistido no ponto
de vista contrário ao que ora sustento. Tenho conhecimento de seu aresto em
tal sentido; mas conheço, igualmente, a crítica, cerrada e exaustiva, que lhe fez,
em um dos números da Revista de Direito Administrativo, o exímio jurista, que
é Romão Côrtes de Lacerda. São irrespondíveis os argumentos por este formu-
lados. Nem seria concebível que um privilégio concedido ou inerente à função
persistisse após o término do exercício desta. Não é admissível que o accesso-
rium sobreviva autonomamente após a extinção do principale. Seria isso tão
absurdo quanto admitir-se que uma sombra continue a existir por si mesma,
independentemente do corpo que a projetava.
Mas, Senhor Presidente, não concedo o habeas corpus apenas para anu-
lar ab initio o processo instaurado contra o paciente. Concedo-o para que ne-
nhum outro processo seja novamente contra ele intentado. E, aqui, vou entrar
na apreciação do último fundamento do presente pedido de habeas corpus, re-
petição, nessa parte, de outro que, recentemente, foi denegado por essa Suprema
Corte. A maioria dos Srs. ministros já firmou o critério, destoante de preceito do
nosso Regimento Interno, de que é admissível a repetição do pedido de habeas
corpus, ainda que pelos mesmos motivos, pois as decisões denegatórias desse
writ não fazem coisa julgada. Se a restrição não é feita pelo preceito constitu-
cional ou pelo Código de Processo Penal, não a pode fazer o nosso Regimento,
a pretexto de suprir omissão. E há uma razão de ordem prática que repele a
restrição: em torno de tal ou qual tese sobre que versa o habeas corpus, pode
haver tal discrepância de votos, que a ausência ocasional de um ministro pode
condicionar o êxito do que pleiteia o paciente, e a este não se pode negar a facul-
dade de aproveitar-se dessa oportunidade, para reiterar o seu pedido de habeas
corpus pelo mesmo motivo.
Tenho por mim, Senhor Presidente, que, realmente, não é possível iden-
tificar-se, na espécie, o crime de peculato ou outro qualquer. Dir-se-á que esta-
mos inibidos de apreciar provas no sumaríssimo do habeas corpus, mas tenho
a ponderar que, no caso, os arts. 516 e 559 do Código de Processo Penal deixam
claro que os elementos probantes que instruem a defesa do acusado podem ser
apreciados, desde logo, para que, no caso de demonstrarem a inexistência do
crime ou improcedência da ação, seja rejeitada ou arquivada a denúncia. A lei
permite essa análise liminar da prova para evitar que uma exercente ou ex-exer-
cente de função pública seja submetido aos vexames de um processo que, prima
facie, se apresenta imotivado ou injusto. Ora, se o juiz processante está adstrito
a esse exame inicial dos elementos de convicção e se, no caso concreto, deixou
de atender à ilação, que se impunha, da inexistência do crime imputado, a sua

314
Ministro Nelson Hungria

decisão pode ser cassada por meio do habeas corpus, do mesmo modo que pode
ser cassado por meio de um despacho de prisão preventiva não apoiado na prova
da existência do crime e em indícios suficientes da autoria. Ademais, nem quase
é preciso entrar no exame da prova para que se reconheça a improcedência da
acusação de peculato contra o paciente.
Não é exato que este, quando governador de São Paulo, tenha vendido
coisa pertencente ao Estado, locupletando-se com o preço da venda.
A compra e venda dos automóveis no valor de quase três milhões de cruzei-
ros, em nome do Estado, foi um ato nulo, absolutamente nulo, nulo ex vi legis. A
verba empenhável, no caso, não montava, sequer, a trezentos mil cruzeiros, e, se-
gundo expressamente dispõe uma lei do Estado de São Paulo, a despesa ordenada
sem correspondência com verba empenhável será atribuída à responsabilidade pes-
soal de quem a ordenou. É meridianamente claro que se despesa é relativa a uma
compra e venda, a transferência da responsabilidade para quem a ordenou importa,
por via de consequência, o desfazimento da operação por conta do Estado, que
não pode locupletar-se à custa alheia. Assim no caso vertente, invalida opere legis
a compra e venda dos automóveis, o devedor pelo preço passou a ser o paciente,
que, como governador, ordenara a operação. É verdade que o Banco do Estado de
São Paulo, cumprindo anterior determinação oficial, abrira um crédito em nome
do Estado e em favor de empresa vendedora, e pagou a esta integralmente. Mas,
nula a compra por parte do Estado, o que se tinha de fazer era o estorno da quantia
paga, do débito do Estado para o débito do paciente, que, aliás, possuía em depósito
no banco quantia muitas vezes maior que a do preço dos automóveis. Já havia sido
mesmo expedido pelo secretário-geral do Governo um ofício ao banco no sentido
de suspensão do crédito, mas, ao que parece, chegou atrasado. E o que é verdadei-
ramente estranho; esse ofício serviu como razão para ser rejeitada ou arquivada a
denúncia contra o secretário, e não serviu para que o mesmo ocorresse em relação
ao ex-governador, que necessariamente é que ordenara a suspensão do crédito,
sabendo-se que, no regime presidencialista, o secretário é, por assim dizer, um
servus a mandatus do chefe do Executivo, um mero chancelador do pensamento e
vontade deste, notadamente quando se trata do chamado secretário-geral, figura
eminentemente aderente ao governador. Não me posso conformar com essa dupli-
cidade de pesos e medidas. Um ex-diretor do banco deu seu testemunho no sentido
de que houve démarches para o estorno que se impunha, mas a alteração de escrita
não se fez e o banco, afinal, já fora do Governo o paciente, negou-se categorica-
mente a fazê-la, seguindo-se a consignação judicial da quantia devida.
Ora, é de todo inadmissível que, por injustificado capricho do banco em
negar-se a converter uma dívida formal do Estado em dívida real do paciente, se
considere vigente a compra dos automóveis em nome do Estado. Não é tolerável
que a grave acusação contra o paciente tenha como único apoio uma rubrica

315
Memória Jurisprudencial

de escrituração bancária que não corresponda à verdade material. Isso seria o


mesmo que estarmos vendo a verdade palpitante a um passo de distância e nos
determos, impossibilitados de alcançá-la, porque interfere um fio de linha, isto
é, a arbitrária omissão do estorno por parte do banco.
Nula, irremissível, ou insanavelmente nula a compra dos automóveis em
nome do Estado, por infração de lei expressa, como se pode dizer que os auto-
móveis continuaram fazendo parte do patrimônio do Estado? Onde e quando já
se ouviu dizer que, insubsistente a compra, a res vendita continue no domínio
do comprador? Vendendo os automóveis, o paciente não vendeu bens do Estado,
mas bens que passaram a ser propriedade sua, pois ele é que se tornara, na rea-
lidade, o devedor do banco pelo preço pago à empresa vendedora. Não houve,
nem pode haver prejuízo algum ao tesouro público de São Paulo. Não há falar-
-se, portanto, em peculato. Peculato sem prejuízo da Fazenda Pública é contras-
senso tão grande quanto dizer-se que pode haver fumaça sem fogo. Já se disse
que a consignação judicial sobreveio após a consumação do peculato e, assim,
tratando-se de peculato doloso, a reparação do dano não é causa extintiva de
punibilidade; mas onde está o peculato? Semelhante argumento parte de uma
premissa falsa, qual seja a da existência do peculato.
Em suma, Senhor Presidente: concedo o habeas corpus não só para anu-
lar ex radice o processo penal contra o paciente, mas também para que nenhum
outro processo se reproduza contra o paciente em torno dos fatos em questão.

HABEAS CORPUS 33.515 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também julgo proce-
dente o argumento relativo à competência, afeiçoando-me ao voto do eminente
Sr. ministro relator.
Também rejeito o argumento de irregularidade no processo, pois, como
bem demonstrou Sua Excelência, com o apoio do eminente Sr. ministro Afrânio
Costa, foram atendidas as determinações da lei processual penal, no tocante ao
aditamento da denúncia relativamente à imputação do crime de peculato. Por
último, como teve oportunidade de lembrar o eminente Sr. ministro relator, com
muita honra para mim, já emiti em livro a opinião de que a existência e puni-
bilidade do peculato independe de “tomada de contas”. Desde que averiguado
desfalque em caixa, o crime se apresenta objetivamente. Se o réu, por algum
fato excepcional, pode justificar o desfalque, será isso averiguado no curso do

316
Ministro Nelson Hungria

processo penal, ainda que o processo administrativo não haja reconhecido causa
justificativa. Por outro lado, as decisões do Tribunal de Contas não fazem caso
julgado em face do Poder Judiciário. Esse Tribunal pode aprovar ou desapro-
var as contas, e o juízo criminal entender que decidiu mal. Não há dependên-
cia entre um julgamento e outro. Daí, por certo, a razão por que este Supremo
Tribunal, abandonando uma velha e remansosa jurisprudência, veio a adotar, a
partir do acórdão por mim citado, e cuja menção acaba de ser feita pelo emi-
nente Sr. ministro relator, a opinião no sentido de que não há necessidade de
tomada de contas como condição de reconhecimento do peculato.
Não tenho dúvida em acompanhar o voto do eminente Sr. ministro rela-
tor, negando provimento ao recurso.

HABEAS CORPUS 33.780 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é preciso, antes de
tudo, acentuar o seguinte: esta Suprema Corte não anulou a condenação do pa-
ciente, de modo algum; o que este Tribunal decidiu foi fazer cessar a execução
da pena de prisão de uma certa data em diante. Entendeu este Tribunal que,
com o advento do regime constitucional, ou melhor, com a cassação do estado
de guerra, que só veio a ser decretada no governo Linhares, é que já não mais
podia subsistir a condenação, nessa parte, porque seria o mesmo que permitir a
continuidade de uma situação inteiramente incompatível com preceito constitu-
cional, qual seja de continuar a ser executada uma condenação fundada numa
lei com efeito retroativo.
A condenação do paciente pelo Superior Tribunal Militar, por força do
art. 21 do Decreto-Lei 4.766, de 1942, permaneceu de pé e valeu durante todo
o tempo em que perdurou o estado de guerra. Quando foi da decisão deste
Tribunal, reconhecendo isso mesmo, isto é, que não poderia persistir a exe-
cução da pena de reclusão, imposta ao paciente, houve uma advertência do
eminente Sr. ministro Rocha Lagôa, que teve o apoio da maioria do Tribunal,
embora com votos divergentes, entre os quais o meu, no sentido de devolver
ao Superior Tribunal Militar a averiguação de possível incidência do paciente
no Código Militar de 1891. Assim raciocinei como podemos mandar que o
Superior Tribunal Militar reveja o processo, a ver se nele encontra o crime pre-
visto no art. 79, II, do antigo Código Penal Militar, quando ele, na sua própria
decisão, já afastara a hipótese da existência de semelhante crime? Não somente

317
Memória Jurisprudencial

num anterior processo de revisão, que, afinal, acabou insubsistente, por uma
superveniente anulação integral do processo, mas também na própria decisão
condenatória, de que se tratava, repeliu ele essa hipótese, deixando de condenar
o paciente no citado art. 79, II, apesar de ter sido denunciado por violação dele.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa: Foi porque ele condenou como incurso nas
penas do Decreto-Lei 4.766; de modo que, afastada essa condenação, por se tra-
tar de aplicação de lei ex post facto, ficou de lado a primeira imputação.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O raciocínio de Vossa Excelência é
aparentemente lógico, mas há que acentuar o seguinte: a denúncia havia en-
quadrado o crime no art. 79, II, e o Tribunal, expressis verbis, afastou essa
acusação, argumentando que o fato tinha sido cometido antes da declaração do
estado de guerra e não era possível equiparar-se a ruptura das relações diplomá-
ticas com o estado de guerra.
Quando expandi o meu raciocínio, não podia, de modo algum, calcular
que o Superior Tribunal Militar contramarchasse, voltasse atrás, ferindo a res
judicata e incorrendo na grave inocência de vir a reconhecer equiparação entre
estado de guerra e rompimento de relações diplomáticas, quando isso mesmo já
ele havia repelido como inadmissível, pelo menos para efeitos penais.
E quais foram os motivos da contramarcha do Superior Tribunal Militar?
Não invocou ele texto algum de lei nacional, mas tão somente a opinião doutri-
nária de um outro autor, alienígena, como se doutrina estrangeira pudesse valer
como direito positivo interno de um país, como se a opinião de qualquer inter-
nacionalista, por mais acatado, pudesse servir de base para identificar crimes
por analogia.
Muito bem entrou o eminente Sr. ministro relator que a Constituição de
1937 era explícita, reiteradamente explícita, no sentido de que não podia haver
“estado de guerra” sem declaração formal. E aí está o vigente Código Penal
Militar que, no seu art. 13, com todas as letras, diz que só existe estado de
guerra depois da declaração formal ou quando já iniciada a mobilização e sub-
sequente reconhecimento desse estado de guerra.
Não vale dizer que já havia “sossego das hostilidades”. É vaga e incerta a
supressão “sossego das hostilidades”. O vocábulo “hostilidades” faz supor reci-
procidade de ataques ou de atos simultâneos ou sucessivos de agressão e reação,
e há o provérbio segundo o qual, “quando um não quer, dois não brigam”. Não
obstante atos de agressão da Alemanha, o Brasil entendeu que não devia decla-
rar guerra; que bastaria o rompimento das relações diplomáticas, pelo menos até
quando se averiguasse que o afundamento dos nossos navios havia sido realmente
praticado por submarinos alemães, e não por submarinos de outro país, que, inte-
ressado em que o Brasil entrasse na guerra, assim houvesse procedido para que a

318
Ministro Nelson Hungria

culpa recaísse na Alemanha. O Brasil entendeu que não devia, desde logo, preci-
pitadamente, declarar a guerra, e limitou-se à ruptura das relações diplomáticas.
O último acórdão do Superior Tribunal Militar abstraiu, fez tabula rasa da lei
vigente ao tempo em que o fato ocorreu, equiparando, para efeitos penais, simples
ruptura de relações diplomáticas a estado de guerra e desatendendo ao próprio
Decreto-Lei 4.766, de 1942, que, distinguindo entre estado de guerra e rompi-
mento das relações diplomáticas, dispunha: “Esta lei retroage à época da ruptura
das relações diplomáticas com os países do Eixo.” Era o próprio decreto de 1942
que reconhecia a diversidade entre estado de beligerância e simples descontinui-
dade de relações diplomáticas.
Há, ainda, a considerar o seguinte: quais os atos de espionagem que teria
praticado o paciente? O Superior Tribunal Militar faz ressaltar um fato novo,
um fato de que não se cogitara até então, para imputação dele, como crime, ao
paciente. Trata-se de um projeto, de um vago e remoto projeto de afundamento
do cruzador alemão “Winduck”, apreendido pelas autoridades brasileiras, e
cujos canhões, dizia-se, iriam servir contra a própria Alemanha. Se esse fato
fosse crime, ainda que como simples tentativa, estaria também enquadrado
no Decreto-Lei 4.766, que previa, no seu art. 49, § 2º, o crime de sabotagem.
E por que, então, não se cuidou de enquadrar o paciente também nesse artigo,
limitando-se o Superior Tribunal Militar a considerá-lo incurso apenas no art.
21 desse mesmo decreto? E como seria possível fazer regredir esse fato, já pra-
ticado no período de estado de guerra, ao período anterior, para afirmar que
se trata de ato de espionagem e enquadrá-lo no art. 94, 2, do Código Militar
de 1991? E onde já se ouviu dizer que um simples projeto, que não atinge a
fase executiva, constitui tentativa do crime colimado? Sentindo a fragilidade
dos seus argumentos, o Superior Tribunal Militar usou de mais um argumento
contra o paciente. Afirmou que ele, pelo menos, silenciara sobre a existência de
espiões no Brasil. Pela primeira vez, ouço dizer que o simples silêncio, que o
simples fato de não delatar crime, de que se tem conhecimento, importa em co-
participação nesse crime. Isso é novidade, que pode honrar o alto descortino do
Superior Tribunal Militar, mas que eu contesto, em nome de tudo quanto se tem
escrito no mundo civilizado em matéria de coparticipação criminosa.
Finalmente, entendo que este Supremo Tribunal não pode esquivar-se ao
exame de outra questão: a relativa à pena acessória, e isto para esclarecer mal
entendidos. Como acentuei de início, a condenação do paciente não foi anulada
de modo algum. Ao tempo em que ela foi proferida, e até o advento, até o re-
torno do regime constitucional, ela foi inteiramente válida e produziu todos os
seus efeitos. Por conseguinte, a pena acessória da perda do posto e da patente,
inerente à condenação do paciente por tempo superior a dois anos, tem de preva-
lecer. Não se declarou nula a condenação do paciente, nem insubsistente a pena

319
Memória Jurisprudencial

acessória. O que se fez foi declarar inconstitucional a continuidade da execução


da pena privativa de liberdade, a partir da cessação do estado de guerra.
Não tenho dúvida de que persiste, integralmente, a perda do posto e da
patente por parte do paciente.
Feita esta ressalva, e embora divergindo levemente, em um outro ponto,
do voto do eminente Sr. ministro relator, estou de acordo com as conclusões de
Sua Excelência, concedendo a ordem.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 33.827 — SP


VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, tenho para mim que
o caso vertente nada tem a ver com a Lei 1.079, de 1950, que definiu os crimes
de responsabilidade do presidente da República, governadores de Estado etc.,
e estabeleceu as normas processuais correspondentes. E isso pela razão singela
de que o crime imputado ao recorrido, crime funcional ou de responsabilidade,
não o teria ele praticado como governador, mas como prefeito da Capital de São
Paulo, cargo do qual há muito já se despediu.
O preceito aplicável na espécie, segundo penso, é o art. 88 da Constituição
Federal. Era imprescindível, realmente, para a ação penal, o prévio pronuncia-
mento da Assembleia Legislativa, pois o acusado é atualmente governador do
Estado de São Paulo. Somente no caso em que a Assembleia julgasse improce-
dente a acusação, estaria prejudicada ex radice a ação penal.
Ao receber a representação da municipalidade de São Paulo, o procurador-
-geral do Estado entendeu que nenhuma iniciativa lhe cabia no caso, enquanto
não se pronunciasse a Assembleia Legislativa. Não devia ter sido esta a sua
atitude. Competia-lhe provocar esse pronunciamento, ou promover perante o
Tribunal de Justiça, o arquivamento da representação, caso entendesse não haver
crime ou prova de imputada autoria. O mais acertado, na hipótese de existência
de crime e elementos de convicção da autoria, seria o oferecimento da denúncia
perante o Tribunal de Justiça, cabendo ao relator do feito, antes de qualquer outro
despacho, provocar a manifestação da Assembleia Legislativa. Esses os trâmites
regulares, que, entretanto, não foram seguidos.
O procurador-geral do Estado entendeu que não lhe cabia iniciativa
alguma e sumariamente determinou o arquivamento da representação, sem

320
Ministro Nelson Hungria

levá-la, sequer, para tal fim, ao conhecimento do Tribunal de Justiça. A signatá-


ria da representação não se conformou e bateu às portas do Tribunal de Justiça,
com outra representação, a que foi dado o nome de “queixa”, isto é, tomando a
iniciativa privada da ação penal.
O Sr. desembargador relator entendeu que se tratava de hipótese de art.
29 do Código de Processo, ao arrepio da interpretação que, no sentido de que
somente no caso de desídia do Ministério Público cabe a supletiva ação privada,
foi fixada desde a Conferência dos Desembargadores. Tal ação supletiva não
é jamais admissível na hipótese em que o Ministério Público declaradamente
deixa de oferecer a denúncia por motivo que repute legal.
No caso concreto, o Ministério Público cuidou de remeter a representa-
ção para seus próprios arquivos, entendendo que à sua iniciativa devia proceder
o pronunciamento da Assembleia Legislativa, a cujas portas devia bater, não
ele, Ministério Público, mas a própria interessada. Não estava certo, e, poste-
riormente, o Sr. desembargador relator não quis reivindicar para o Tribunal de
Justiça a decisão sobre o arquivamento e, embora admitisse em tese a inicia-
tiva privada, descartou-se, também, com a alegação de que devia anteceder,
provocado pela parte, e placet da Assembleia Legislativa. Outro desacerto. A
denúncia ou queixa só se apresenta perante a autoridade judicial criminal (juiz
singular ou tribunal), e esta, quando indeclinável a precedência de tal placet, é
quem deve dirigir-se à Assembleia.
No caso, aplicável, ao que me parece, o art. 88 da Constituição, que se
projeta no campo estadual, importando na obrigatoriedade, nos Estados, do
mesmo critério adotado no campo federal, cumpria ao Sr. desembargador re-
lator, já que admitiu, em tese, na espécie, aliás erradamente, a ação privada,
provocar a manifestação da Assembleia. Não o fez, e veio a ser apoiado pelo
Tribunal Pleno. Continuo a sustentar que o Tribunal paulista laborou em erro.
O Supremo Tribunal Federal já sabe como o Tribunal de Justiça de São
Paulo é suscetível às críticas formuladas às suas decisões. Não as permite, ainda
quando não ofensivas, nem mesmo aos juízes do mais alto Tribunal do país,
tendo chegado ao extremo de enviar um protesto coletivo a esta Corte contra
um voto em que eu me limitara a fazer crítica dentro de balizas justas, embora
cerradas, a um seu aresto.
Assim, é humildemente que peço licença ao Tribunal de Justiça de São
Paulo para dizer, no caso, que a ele, não à parte interessada, competia provo-
car a manifestação da Assembleia Legislativa. Todavia, como acentuaram os
eminentes colegas, não é isso que pleiteia a recorrente. O que esta pretende é
que não se aplique ao caso o art. 88 da Constituição, devendo o Tribunal a quo
prosseguir incondicionalmente na ação penal.

321
Memória Jurisprudencial

Há poucos dias, no julgamento de um habeas corpus e, a seguir, no de


um recurso extraordinário, tive oportunidade de profligar o expediente posto em
moda pelos competidores políticos, consistente em armar contra o adversário a
falsa acusação de peculato ou de outros crimes contra a administração pública.
Chamei a esse desleal processo de “borduna”, pois, criando para a vítima a situa-
ção de iminente prisão preventiva e expondo-a à maledicência pública, represente
um golpe sem piedade. Não se vacila para isso em deturpar fatos, sonegar do-
cumentos, produzir testemunhas falsas etc., de tal modo que o acusado, perse-
guido como lobo mau, vê-se na contigência até mesmo de buscar asilo em país
estrangeiro. Vejo que tal expediente, usado até agora por determinado partido
político, passou a ser empregado pelos do outro lado, onde também se aprendeu a
manejar a “borduna”.
O Sr. Ministro Ary Franco (Relator): Hoje, todos têm a bomba atômica...
O Sr. Ministro Nelson Hungria: É isso mesmo, é de desejar-se que o medo
recíproco termine a guerra... Repito, Senhor Presidente: ainda que fosse possí-
vel, no caso, a iniciativa privada, ao Tribunal a quo é que caberia provocar a
Assembleia Legislativa; mas isso não é pleiteado pela recorrente, e pour couse:
está ela ciente de que o recorrido dispõe de maioria na Assembleia, e a acusação
seria julgada, na certa, improcedente.
Não podendo julgar extra ou ultra petitum, também não conheço do
recurso.

HABEAS CORPUS 33.908 — DF


VOTO
(Sobre o adiamento)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, entendo que, para en-
trar no mérito do presente pedido de habeas corpus, ainda mesmo para julgá-lo
prejudicado, o Tribunal tem que vencer a preliminar relativa à questão de poder
ou não conhecer desse pedido, dada a superveniência do estado de sítio, isto é,
da Lei 2.561, de 25 de novembro último, que suspendeu, em casos como o de
que ora se trata, essa garantia constitucional.
Alega-se que o estado de sítio é inconstitucional, que não havia motivo
para ele ou que não se enquadra na casuística do art. 206 da Constituição; que a
Lei 2.561 não foi regularmente elaborada, porque omitida a sessão conjunta das
duas Câmaras do Congresso e, por último, que essa lei teria sido sancionada por
quem está, atualmente, ocupando indebitamente a presidência da República, de
322
Ministro Nelson Hungria

vez que inconstitucional o impedimento do Sr. João Café Filho, decretado pelo
Congresso.
Senhor Presidente, no seu voto, se tiver que proferi-lo hoje, vou entrar no
exame dessas questões, para resolvê-las.
Se tais questões são também objeto do mandado de segurança, evidente-
mente o meu voto importará num prejulgamento desta. Mas, agora, indago eu,
Senhor Presidente, a necessidade de impedir o prejulgamento do mandado de
segurança é tão premente ou indeclinável, que nos impeça, hoje, de decidir so-
bre o pedido de habeas corpus, que prefere a qualquer outro feito?
Entendo que não.
O habeas corpus está submetido à nossa decisão e temos que deferi-lo ou in-
deferi-lo, sem cuidar o que possa ocorrer dessa decisão relativamente a outros feitos.
Agora, Senhor Presidente, se o eminente ministro Ribeiro da Costa se
declara irredutível no sentido de que se deve adiar este julgamento, para que o
Supremo Tribunal tenha oportunidade de uma decisão simultânea, do habeas
corpus e do mandado de segurança, Sua Excelência tem o recurso a que já se
referiu antecipadamente, qual o de pedir vista dos autos. Que Sua Excelência
peça vista; mas não concordo com o adiamento.

HABEAS CORPUS 34.088 — RS


PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, com a leitura dos autos,
cheguei à mesma conclusão do eminente Sr. ministro relator. Improcedem as alega-
ções do impetrante. Inexistem ou não estão comprovadas por certidões as arguidas
nulidades.
O que a lei reconhece como nulidade processual é a negação de ensejo à de-
fesa, e não a desídia ou improficuidade do defensor. Por outro lado, não se pode aferir
do alegado laconismo do item do libelo ou do quesito sobre coautoria, quando não
foi junta certidão desse item ou desse quesito. Ao que parece, o impetrante entende
que não há coautoria com a simples presença ao lado do executor, ainda quando seja
expressão de solidariedade ou “causa comum” com ele, acoroçoando-o, animando-
-o, servindo-lhe de “força de reserva”. Tal entendimento, porém, é errôneo.

323
Memória Jurisprudencial

Finalmente, não há confundir-se o crime de quadrilha ou bando com a participa-


ção criminosa ou excluí-lo quando algum crime subsequente seja qualificado pelo
concurso de agentes. A quadrilha ou bando é crime per se stante, consistente no
associarem-se mais de três pessoas, não acidentalmente para a prática de um crime
determinado, mas estável ou permanentemente para a prática de crimes ainda não
previamente individuados. Tanto não se identifica com a participação criminosa que,
enquanto por ele respondem todos os associados, pelo crime efetivamente praticado,
dentro no plano genérico da associação, respondem tão somente os respectivos
agentes.
Se, para a prática do crime que atende ao programa de associação, não é ne-
cessário o concurso de todos os associados, podendo mesmo ser praticado por um
só deles, é claro que a reunião de todos ou de alguns para esse crime individuado é
circunstância que não se identifica com a anterior associação para delinquir.
Reconhecendo-se, portanto, concurso material entre o crime de bando ou
quadrilha e o subsequente crime qualificado pela pluralidade de agentes, não há o bis
in idem alegado pelo impetrante.
O crime qualificado pelo concurso de agentes não absorve ou exclui o crime
de bando ou quadrilha, pela singela razão de que não é necessária a precedência
deste para a prática daquele. A lei não reconhece, nem tinha que reconhecer, no caso,
um crime progressivo: uma coisa é o associar-se para delinquir mais ou menos de
modo geral e outra é o reunir-se, a seguir, para a prática de crime determinado, não
dependendo esta última ação, necessariamente, da primeira.
Denego a ordem, de acordo com o Sr. ministro relator.

HABEAS CORPUS 34.103 — SP


HABEAS CORPUS 34.114 — SP
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, meu voto, salvo algu-
mas considerações de ordem jurídica ou doutrinária, coincide plenamente com
os que o precederam.
Dada a multiplicidade das suscitadas questões de fato e de direito, e para
evitar que me perdesse em considerações ociosas, a que tantas vezes leva o im-
proviso, julguei de bom aviso trazer meu voto por escrito.
Senhor Presidente, não procedem as preliminares suscitadas pelo im-
petrante. A aprovação das contas de um bill de indenidade que supere até
mesmo erros de fato a que tenha sido, acaso, induzida a Assembleia e isente o
324
Ministro Nelson Hungria

governador de responder penalmente pela apropriação ou desvio de dinheiros


públicos que haja cometido.
Ainda mesmo que não tenha havido erro de fato, é bem de ver que a apro-
priação de contas não tem efeito anistiante.
Não a incluiu a lei penal entre as causas, gerais ou especiais, de extinção
de punibilidade. Também não me parece que tenha sido ilegal a composição do
Tribunal julgador.
O seu ilustre presidente, nas informações prestadas, demonstrou a per-
feita regularidade de convocação dos juízes de instância inferior. Nem há
falar-se na incompetência destes, na espécie, por não serem desembargadores
efetivos. Mesmo reconhecida, como foi, por esta Suprema Corte, pelo voto da
maioria, a incidência de foro especial, decorrente de prerrogativa de função,
não é exato que a lei processual, nas suas linhas ou entrelinhas, exija que esse
foro seja composto exclusivamente de desembargadores efetivos. O que ela
faz é atribuir o processo a julgamento do Tribunal de Justiça, e este não deixa
de ser porque entre os seus membros se encontrem juízes convocados para a
desembargatória.
Continuo a sustentar, Senhor Presidente, data venia, a tese que defendi,
com apoio de outros Srs. ministros, quando de anterior pedido de habeas corpus
em favor do mesmo paciente de agora: o Tribunal de Justiça de São Paulo é in-
competente para processar e julgar, originariamente, o Sr. Adhemar de Barros,
que, já tendo, de há muito, deixado o governo do Estado, passou a ser um cida-
dão como outro qualquer. O foro especial outorgado pelo Capítulo II, do Título
VI, Livro 1º, do Código de Processo Penal, é uma prerrogativa de função, como
diz explicitamente sua rubrica, e, assim, não é concessível ao cidadão que já
deixou a função pública, em cujo exercício teria cometido o crime. Não quero,
porém, insistir neste meu entendimento: embora ressalvando-o, curvo-me à de-
cisão deste Tribunal no caso concreto. A conclusão do meu voto, aliás, tornará
irrelevante, dentro do ponto de vista em que me coloco, qualquer preliminar
sobre nulidade do processo ou julgamento de que resultou a condenação do pa-
ciente por crime de peculato. Concedo o habeas corpus porque o fato imputado
ao paciente não constitui tal crime ou outro qualquer. Nenhum processo penal
podia ou poderá ser intentado contra ele. Ainda mais: a sua condenação vulne-
rou, de resto, a coisa julgada, como tratarei de demonstrar.
Senhor Presidente, o acórdão que condenou a paciente apresenta, data
venia, tantos pontos sem resistência, oferece o flanco a tantas críticas, que não
se sabe por onde começar. Há, porém, um ponto que fere mais intensamente a
minha sensibilidade de estudioso de direito penal: é aquele em que se afirma
que pode existir peculato consumado sem dano patrimonial efetivo. Apega-se o

325
Memória Jurisprudencial

acórdão, neste particular, a autoridade de Manzini e Nino Levi. Vejamos o mé-


rito da opinião do primeiro. Se o acórdão tivesse meditado sobre as razões do
ensinamento de Manzini, não se deixando render, sumariamente, ao magister
dixit, teria verificado a sua inteira improcedência. Quandoque bonus dormi-
tat Homerus. Invoca o insigne penalista italiano, para fundamentar sua tese,
os casos em que se reconhece a existência do peculato ainda quando o agente
haja prestado anterior caução ou seja por ele responsável, ex vi legis, um outro
funcionário, que vem a entrar com o dinheiro ou preço do objeto desfalcado
ou desviado. Ora, a que se destinam a caução ou o pagamento pelo outro fun-
cionário responsável? Precisamente a isto: indenização do dano patrimonial
praticado pelo agente. Dizer-se, portanto, que tais casos revelam possa existir
peculato consumado sem dano efetivo, é uma dedução superficial, em que se
confunde dano reparado com dano inexistente ab initio, como se a reparação
tivesse o mirífico efeito de fazer desacontecer o que já aconteceu , desmentindo
o axioma, válido até mesmo em face de Deus, de que factum infectum fieri ne-
quit. Passemos, agora, à opinião de Nino Levi. Encontramo-la, explícita, no seu
volume sobre Delitti contro la Amministrazione Pubblica (p. 208), integrante do
Trattato de Florian.
Logo após acentuar que é possível tentativa de peculato, cujo iter é fra-
cionável, conclui ele: “É evidente, porém, que quando não somente falte o dano
efetivo, senão também esteja excluído qualquer perigo de dano, nenhuma lesão
existirá ao interesse penalmente protegido.” Está claro, assim, que, ao reputar
suficiente o simples dano potencial, Nino Levi se refere ao peculato tentado, e
não ao consumado. Nem podia ser de outro modo. O peculato não é mais que
a apropriação indébita trasladada para o quadro dos crimes contra a adminis-
tração pública, porque praticada contra o patrimônio desta (interesse mais re-
levante que o do patrimônio privado) e por funcionário seu, com infidelidade
ao cargo público (cujo exato exercício afeta diretamente ao interesse do Estado
e, portanto, da coletividade). É ele incriminado separadamente da apropriação
indébita comum, para mais severo tratamento, não apenas porque seja uma vio-
lação do dever funcional, senão também, substancialmente, porque lesa o inte-
resse patrimonial do Estado. É com a apropriação do dinheiro ou coisa imóvel
pertencente ou sob a guarda do Estado que se realiza a violação do dever fun-
cional. Uma e outra são como corpo e alma, como esmeralda e cor verde, como
fel e amargor. Sem esses dois elementos, que se conjugam incindivelmente, não
pode haver o summatume opus do peculato. O momento consumativo é, aqui,
a apropriação sine jure do dinheiro ou coisa móvel, e nesse momento está ne-
cessariamente inserto o efetivo dano patrimonial, isto é, a retirada ou desvio
do dinheiro ou coisa móvel pertencente ou sob a guarda do Estado, que perde a
respectiva disponibilidade, servindo-se o agente da pecúnia ou do objeto como
se fosse o dono. Ainda no caso de simples desvio (como, por exemplo, retirar

326
Ministro Nelson Hungria

o dinheiro do Estado, para emprestar, transitoriamente, a outrem), não deixa


de haver efetivo dano patrimonial. Na própria modalidade da “malversação”,
em que o dinheiro ou coisa não pertence ao Estado, mas está sob sua guarda e
responsabilidade, a obrigação legal que decorre para o Estado, de restituir ao
proprietário o dinheiro ou valor da coisa, já é autêntico dano patrimonial. Não
tenho dúvida, portanto, em repetir o que já disse de outra feita: peculato con-
sumado sem dano efetivo é tão absurdo quanto dizer-se que pode haver fumaça
sem fogo, ou sombra sem corpo que a projete, ou telhado sem paredes ou esteios
de sustentação.
A certa altura, diz o acórdão, cotejando entre o “caso dos Chevrolets”, em
que o paciente foi absolvido, e o “caso dos caminhões”, de que ora se trata, que
não se apresenta, na espécie, “crime continuado”; mas, admitindo, ad argumen-
tandum, a hipótese contrária, disserta que, no crime continuado, o julgamento
sobre alguns de seus fragmentos não faz res judicata em relação aos demais. E
chama à colação autores italianos. Sabe-se que, para a solução do tema, há duas
principais correntes doutrinárias: uma adotada pelos autores alemães; nemine
discrepante, no sentido de excluir irrestritivamente a possibilidade de duas
ações penais por fatos do mesmo crime continuado; e outra, seguida pela maio-
ria dos autores italianos, que admite uma segunda ação penal, mas tão somente
no caso em que, numa primeira condenação, não tenha sido ainda aplicado o
máximo do acréscimo de pena em virtude da continuação. É de toda evidência,
assim, que, mesmo aceita a doutrina italiana, a segunda ação penal só é viável,
precipuamente, se da primeira resultou condenação. Se, ao invés desta, o que
houve foi absolvição por inexistência de crime, é da lógica idêntica a de dois
mais dois igual a quatro, que os fragmentos não julgados, dada sua homoge-
neidade com os já julgados, necessariamente não mais podem ser considerados
criminosos. São carneiros do mesmo rebanho, são contas do mesmo rosário.
No caso vertente, por conseguinte, admitido o crime continuado, se o paciente
foi absolvido no “caso dos Chevrolets”, por ausência de crime, como adverte o
próprio acórdão condenatório, não podia ser processado, e muito menos conde-
nado, no “caso dos caminhões”.
Realmente, porém, mesmo que houvesse crime na espécie, não seria
continuado, mas naturalmente único. Segundo a acusação, o paciente ter-se-ia
servido de dinheiro mutuado ao Estado de São Paulo, na importância de CR$
2.885.000,00, para adquirir 31 automóveis de passeio e 5 caminhões, depois de
irregularmente desfeita (ou a pretexto de ter sido desfeita) a compra dos mesmos
pelo próprio Estado, por intermédio da Secretaria do Governo, acontecendo que
revendeu os automóveis de passeio a terceiros, embolsando o preço obtido, e os
caminhões foram mandados para Força Pública estadual, tendo sido o respec-
tivo preço recebido pelo paciente por interpostas pessoas, não obstante já ante-
riormente pago pelo Estado.
327
Memória Jurisprudencial

Não há como desconhecer, assim, a unidade do fato, pouco importando


que tais ou quais veículos tenham sido revendidos a terceiros e tais ou quais
outros tenham sido enviados para o Departamento da Força Pública, de que
só ulteriormente veio o paciente a receber o pagamento do respectivo preço. A
diferença de ulterior destino dos veículos não poderia, de modo algum, quebrar
a unidade do imputado crime, qual seria o emprego, em proveito próprio, do di-
nheiro mutuado ao governo paulista pelo banco do Estado, para a aquisição de
todos os veículos em questão. A bipartição do processo contra o paciente, sepa-
rando-se o “caso dos Chevrolets” do “caso dos caminhões”, foi, inquestionavel-
mente, irregular. Não se tratava apenas de conexidade de fatos, mas de um fato
único. Solue, totus et unus. Não havia dois casos juridicamente separáveis, mas
tão somente este: a atribuída compra irregular dos 36 veículos com o dinheiro
mutuado ao Estado, substituído este pelo paciente, na qualidade de comprador.
Qual o resultado da bipartição de processos? Precisamente aquele que a lei pro-
cessual procura evitar: duas decisões sucessivas que gritam de surpresa ao se
encontrarem, acrescendo que a derradeira, para atingir seu ponto de chegada,
teve de reduzir a casos a coisa julgada representada pela primeira.
Respiguemos numa e noutra. O anterior julgamento absolutório reconhe-
ceu que, antes mesmo da entrega dos primeiros veículos (que foram justamente
os caminhões mandados para a Força Pública), já se assentara o desfazimento
da compra pela Secretaria do Governo, cujo titular, a mando de paciente, ofi-
ciara ao banco do Estado suspendendo o crédito a favor de empresa vendedora
(devendo notar-se que esse ofício, cujo original foi sonegado, mas de que ficou
uma cópia na Secretaria, afinal encontrada, serviu para excluir dos processos,
como coautor, o titular, de então, dessa Secretaria). Reconheceu o acórdão ab-
solutório que, na realidade, com inteira ciência do banco mutuante e da empresa
vendedora, o paciente é que passara a ser o comprador dos veículos, assumindo
a responsabilidade pela totalidade do débito escriturado em nome do Estado,
embora o banco, por escrúpulos formalísticos de contabilidade, condicionasse
o estorno a um ofício categórico da Secretaria do Governo, e não tivesse ocor-
rido tal condição, dado o atropelo em que se viu envolvido o paciente, no seu
último período de governo. Foi reconhecido, em face da prova testemunhal,
que o paciente fez démarches insistentes junto ao banco, no sentido do estorno,
tendo-se cuidado de providenciar a respeito na Secretaria do Estado, e, ainda
mais, que o próprio governador que sucedeu ao paciente, antes de sua dissidên-
cia com este, não ficou indiferente à solução do caso. Foi afirmado e reafirmado
que tanto se ajustara que o comprador dos veículos e único devedor do banco
passara a ser o paciente, que o Estado jamais se reconheceu devedor ao banco,
nada constando a respeito em sua escrituração. A figuração do débito em nome
do Estado passou a ser mera simulação, enquanto não se fizesse o estorno para
o nome do paciente. É o que diz, com todas as letras, o acórdão absolutório,

328
Ministro Nelson Hungria

que, em certa passagem, declara ser “inconcebível” a “subsistência parcial do


débito em nome da Secretaria (em relação aos veículos mandados para a Força
Pública) e a transferência do restante para a conta do réu”. O desfazimento da
compra pelo Estado, dada a falta de verba empenhável e não procedência de
concorrência pública, tinha de ser completo ou irrestrito, desde que o paciente,
cuja capacidade financeira jamais fora posta em dúvida, se tornara, segundo a
verdade substancial dos fatos, o único e exclusivo devedor ao banco pelo preço
total de todos os veículos, que ele veio a pagar, afinal, até o último centavo, me-
diante ação consignatória.
Pois bem; tudo isso, não obstante ter constituído res judicata, direta ou
indiretamente, foi negado pelo acórdão condenatório, que, para tal arrojo, se
apadrinha com Waline, cuja opinião sobrepõe à coisa julgada. Segundo Waline,
repetindo, aliás, a lição de todos os tratadistas franceses, no campo do direito
administrativo, os contratos celebrados além das forças orçamentárias, não são
nulos em face de terceiros de boa-fé. Mas a que título, pergunto eu, é invocado
esse ensinamento, se, no caso vertente, dos terceiros interessados, o banco as-
sentiu na responsabilidade assumida pelo paciente e a empresa vendedora já
havia recebido o preço dos veículos e foi a primeira a sugerir a fórmula para que
ficasse o paciente como comprador deles? A empresa vendedora jamais poderia
ser demandada pelo Estado, pois este, na realidade, assumida a responsabili-
dade do débito bancário pelo paciente, não veio a pagar coisa alguma; e o banco
não poderia acionar o Estado, porque, como assinala o acórdão absolutório, se-
ria vencido pela exceção do Estado, em vista da sua concordância em aceitar a
substitutiva responsabilidade do paciente pelo débito total. A citação de Waline,
ainda que ela fosse mais intangível que a coisa julgada, não teria aplicação al-
guma à espécie. Assim, nem mesmo possibilidade de dano teria ocorrido, para
que se pudesse caracterizar, objetivamente, pelo menos tentativa de peculato.
Ainda, porém, que o acórdão absolutório tivesse errado de fato e de jure,
não podia emendá-lo o acórdão condenatório.
Inteiramente irrelevante é a circunstância, a que o acórdão condenatório
empresta tanto vulto, de que os caminhões foram entregues à Força Pública. Tal
entrega foi feita, e admita-se mesmo que os veículos se tivessem incorporado,
ainda que momentaneamente, ao patrimônio desse departamento estadual.
Ocorreu, porém, a seguir, o desfazimento da compra, dada a sua nulidade por
duplo motivo legal: falta de verba empenhável e ausência de prévia concorrên-
cia. Se os caminhões continuaram na Força Pública, só poderia sê-lo a título de
posse, e não de propriedade.
O comprador passara a ser o paciente, que pelo preço não só dos
“Chevrolets” como dos caminhões, se tornou único responsável, assumido o
débito escriturado no banco em nome do Estado.
329
Memória Jurisprudencial

Quando o paciente recebeu o valor dos caminhões, por meio de um cheque


emitido pela firma Cassio Muniz, que, posteriormente, por simulação inocente ou
sem fraude contra terceiros, viera a figurar como vendedora dos caminhões em
questão à Força Pública, estava recebendo o que era seu. Não houve dois pagamen-
tos por parte da Força Pública, como pretende o acórdão condenatório, mas um só
pagamento (não houve um primeiro pagamento, mesmo porque a Força Pública, na
ocasião, não dispunha de verba empenhável como desta não dispunha a Secretaria
do Governo).
E o que é mais: a Força Pública veio a adquirir efetivamente os caminhões
pelo preço que eles valiam ao tempo em que lhe foram entregues, isto é, por um
preço muito inferior ao do tempo de compra válida. Ao invés do pre­juízo, a Força
Pública teve lucro. E fala-se em peculato!
Por último, Senhor Presidente, há o que, dada venia, chamarei o “golpe de
misericórdia” no acórdão condenatório: ainda que tivesse havido dano efetivo ou
potencial contra o Estado, faltaria um elemento primacial: o dolo de apropriação.
É o que foi irrefutavelmente demonstrado pelo acórdão absolutório, no “caso dos
Chevrolets”.
Se, como reconheceu tal acórdão, o paciente estava convencido de que a
venda ao Estado fora desfeita e de que passara ele a ser o devedor do banco, é claro
que lhe faltou o animus de se apropriar de dinheiro ou coisa do Estado. É certo que o
acórdão absolutório só se refere ao “caso dos Chevrolets”; mas, se o paciente passou
a ser comprador deste, passou igualmente a ser o comprador dos caminhões, desde
que não se responsabilizou apenas pelo dinheiro pago pelos “Chevrolets”, senão por
todo o débito no banco, inclusive o relativo ao preço dos caminhões. Desprezando
esse corolário que se impõe com lógica matemática, o acórdão condenatório culmi-
nou no seu desrespeito a res judicata. A ausência de dolo do paciente, no caso dos
caminhões, resulta de um silogismo que resiste a qualquer sofisma.
Ainda que a opinião de doutrinadores franceses seja infensa ao desfazimento
ou nulidade de compra ultra vives, e fosse aplicável ao caso, o paciente não estava
obrigado a conhecê-la. Foi seu próprio secretário de governo, um ilustre professor de
direito, que lhe informou da impossibilidade legal da compra pelo Estado e, portanto,
da nulidade desta. Se o paciente estava certo de que os veículos, automóveis de pas-
seio ou caminhões, haviam passado a sua propriedade, não há indagar se ele podia,
ou não, ter essa certeza, à vista da lição de autores alienígenas, que, ao que me consta,
não constitui direito positivo no Brasil.
Jamais poderia ter ele o animus sem o qual não existe o peculato, isto é, a in-
tenção, o propósito de se apropriar de coisa pertencente à Administração Pública ou
sob a guarda desta.

330
Ministro Nelson Hungria

Concedo a ordem, porque, como disse de início, não há crime algum no fato
imputado ao paciente, que, aliás, neste sentido, já tem a seu favor a res judicata.

HABEAS CORPUS 34.809 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O presente caso é mais um da série de imagi-
nários peculatos e supostos desregramentos administrativos maquinados, com maior
ou menor habilidade, contra figurões de proa de determinado partido político de
São Paulo, por parte de seus adversários, naturalmente para vexá-los e desacreditá-
-los, num verdadeiro steeple chase de competição desleal. No caso vertente, sobe
de ponto a sem-razão de processo penal, dado que mais do que em casos anteriores,
no meu entender, é manifesta a inconsistência da acusação, evidente a abstração
de indeclináveis preceitos legais. O colendo Tribunal de Justiça de São Paulo não
toma na devida conta os arts. 513 e 648, I, do Código de Processo Penal. Enquanto
o primeiro dispõe que, “nos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos,
cujo processo e julgamento competirão aos juízes de direito, a queixa ou a denúncia
será instruída com documentos ou justificação que façam presumir a existência do
delito”, o segundo preceitua que se considera ilegal a coação à liberdade de ir e vir
“quando não houver justa causa”.
Que é que ocorre, entretanto, no caso sub judice?
Segundo declaração que o corréu José de Barros Junior fizera quando da in-
vestigação pela comissão designada pela Câmara Municipal, mas que veio a repudiar
no ulterior inquérito policial, o paciente William Salem teria, como presidente da dita
Câmara, autorizado verbalmente o referido corréu, tesoureiro Barros Junior, a depo-
sitar dinheiros sob sua guarda em bancos particulares.
Quid inde? Não consta que haja alguma lei municipal proibindo tais depósitos;
mas, ainda mesmo que existisse a proibição e que aos depósitos se seguisse a apro-
priação dos dinheiros por parte do tesoureiro, qual o crime de Salem, que não era
responsável pela fidelidade de Barros Junior e posto que o seu único vínculo com o
fato teria sido a autorização do depósito, sem qualquer consilium fraudis com o dito
funcionário? A dizer-se que Salem, na espécie, é coautor do peculato, teríamos tam-
bém de admitir que, se ele tivesse autorizado Barros Junior a ausentar-se durante as
horas do expediente e o mesmo viesse a praticar, nesse meio tempo, uma infidelidade
conjugal, seria corresponsável do crime de adultério. Acresce que não se afirma, se-
quer, que os dinheiros depositados em bancos particulares, segundo autorização de
Salem, é que foram os desfalcados por Barros Junior, se é que, realmente, existe o
alcance de dois mil e tantos contos que se lhe atribui.
331
Memória Jurisprudencial

Outra acusação é a de que o paciente emprestou, sem o menor dis-


farce, a Barros Junior, para ajudá-lo a compor o desfalque, a quantia de Cr$
1.500.000,00, recebendo dele, como garantia, um cheque contra o Banco
Interamericano, onde o depósito de igual quantia, feito por Barros Junior, estava
“congelado”, em virtude de haver dito banco entrado em liquidação. Onde já se
ouviu dizer que é coautor do peculato aquele que empresta dinheiro ao réu de tal
crime, precisamente para reparar o prejuízo à Fazenda Pública?
Ainda outra acusação: o paciente teria ordenado o depósito de um mi-
lhão de cruzeiros no Banco Interestadual do Brasil, retirando-o, depois, e dele
se apropriando em seu proveito. Como acentuou o Dr. juiz processante, não há
disso a mais longínqua prova. Nem se explicou como podia ter sido retirado por
Salem o depósito feito por Barros Junior, posto que, no referido banco, jamais
teve Salem conta corrente (documento à fl. 14). Tal imputação não teve a con-
firmação de Barros Junior nem mesmo quando da investigação pela comissão
de vereadores, que, pelo que se lê nas entrelinhas dos autos, andou usando do
processo de “sugestões morais” para extorquir confissão a Barros Junior, que a
renegou, a pés juntos, quando do inquérito policial, tendo sido este, “por mais in-
crível que pareça”, menos inquisitorial que a “enquete” do Legislativo municipal.
Finalmente, há esta incoerência verdadeiramente inacreditável: o ve-
nerando Tribunal paulista manteve a rejeição da denúncia quanto aos irmãos
Chames, reconhecendo que, realmente, não haviam praticado atos de corrupção
ativa; mas recebeu a denúncia, mesmo pelo art. 317 do Código Penal, contra
Salem, que, segundo a denúncia, teria sido, juntamente com Barros Junior, cor-
rompido pelos irmãos Chames.
O despropósito ultrapassa todas as raias do tolerável: uma corrução pas-
siva consumada sem a correspondente corrução ativa.(!?)
O acórdão do Tribunal paulista, que não estava cuidando da denúncia
contra Barros Junior, diz, a certa altura, que “a estranha devolução da parcela
de Cr$ 8.340.000,00, de afogadilho, com o aparecimento sub-reptício de uma
guia de data anterior à lacração do cofre (pormenor consignado na denúncia)
representa gravíssimo indício contra o tesoureiro”. Mas indaga-se: que tem isso
a ver com a acusação a Salem?
A que título, ou por que impenetrável raciocínio, um indício gravíssimo
contra Barros Junior há de ter o mesmo caráter quanto a Salem?
Como disse de início, o egrégio Tribunal de São Paulo não leva em consi-
deração os arts. 513 e 648, I, do Código de Processo Penal. De outro modo, não
se compreenderia que recebesse uma denúncia através da qual, e dos elementos
que a instruem longe de se poder presumir a existência do crime, o que se depre-
ende é, ao contrário, a inexistência do fato criminoso, tendo mesmo ocorrido,

332
Ministro Nelson Hungria

posteriormente, o seguinte fato eloquentíssimo: o próprio órgão legislativo inte-


ressado no caso proclamou que foi irregular e imperfeita a investigação proce-
dida pela comissão de vereadores e que não merece crédito nem mesmo o laudo
contábil que foi então apresentado e que serviu de elemento básico à denúncia.
Nem mesmo a prova incontestável do desfalque ou peculato foi ainda produ-
zida, posto que a existente está sob séria suspeita de erro.
Não tenho dúvida, Senhor Presidente, em reconhecer a ilegalidade da
coação que está sofrendo o paciente e concedo, portanto, a ordem impetrada.

HABEAS CORPUS 35.315 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, nunca é demais acentuar
que o militar se encontra em situação diferente de qualquer outro cidadão. Está adstrito,
sistemática e rigorosamente, à disciplina, que é um leitmotiv entre as Forças Armadas.
Diz o impetrante que, no caso, trouxe a público o documento de que se trata,
cuja sigilosidade ignorava, porque isso era reclamado pela necessidade de uma defesa.
Ora, o simples fato de se tratar de um telegrama cifrado estava a indicar o seu caráter
sigiloso, cujo conteúdo não devia ser propagado. Não há dúvida que o embargante pra-
ticou uma falta disciplinar.
Por outro lado, Senhor Presidente, não houve preterição de formalidade, nem
disso se queixou o interessado: foi aberto inquérito, tendo sido ele ouvido e preenchidos
todos os requisitos legais.
Assim, mesmo que se reconhecesse ser excepcionalmente admissível habeas
corpus quando se trate de pena disciplinar, mesmo admitindo isso, o habeas corpus
não teria, no caso vertente, cabimento algum. Dele não conheço, mas, vencido na pre-
liminar, nego provimento ao recurso.

HABEAS CORPUS 35.742 — RJ


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, é preciso que se tenha
vivido em comarcas do interior, como eu, durante anos, para que se conheça o

333
Memória Jurisprudencial

drama que é a luta entre partidos políticos locais. Os rancores de caráter par-
tidário, dir-se-ia que são ali absorvidos com o leito materno, criando as mais
profundas dissenssões. É a situação dos clãs primitivos. Atacar um membro do
partido adverso é atacar todos os membros desse. Tal como numa colônia de
infusórios, tocar em um é tocar em todos.
Estou a ver o que se passa em Barra Mansa, com o homicídio do chefe
de um dos partidos locais, presidente do diretório municipal do PSD; a exaltada
revolta causada no meio dos seus correligionários, o ódio político-partidário
contra os indiciados autores do crime, o estuante sentimento de vingança por
parte dos amigos políticos da vítima.
O crime surgiu por questão de ordem partidária e assumiu, como não
podia deixar de assumir, a feição de afronta aos correligionários do morto, que
era chefe do partido majoritário de Barra Mansa. Tal é a animadversão contra os
réus, que o Dr. juiz da comarca teve de assegurar a incolumidade dos pacientes,
transferindo-os para o presídio de Niterói, para ali aguardarem o julgamento.
Pressentiu que a permanência deles em Barra Mansa seria um grave perigo à
sua vida, pois estariam sujeitos às represálias, aos atos de vindicta de seus in-
conformados adversários políticos.
Esse cunho político-partidário que assumiu o fato é refletido quer nos jor-
nais da terra, quer no noticiário publicado em jornais de Niterói e desta Capital.
Nos grandes centros urbanos, os ódios partidários se diluem, se dissol-
vem na caudal da vida citadina. Nos municípios do interior, não. Permanecem
chamejantes, intransigentes, incansáveis, a reclamar desafogos vingativos.
Quero invocar aqui um caso, do qual tem mais conhecimento do que eu o
eminente Sr. ministro Villas Boas, pois ocorreu na sua cidade natal — Rio Branco,
Estado de Minas Gerais. Foi lá assassinado um chefe político, também do partido
majoritário, em represália a uma bofetada que desferira contra o assassino. Inexistia
naquela época a medida salutar do desaforamento, e o criminoso teve de ser julgado
no distrito da culpa, vindo a ser condenado pelo júri, e não obstante haver fugido,
quando na sala secreta, um dos jurados, que assim deixara de participar do conselho
de sentença, nem os defensores, nem o promotor de justiça, como fiscal da lei, tive-
ram a coragem de apelar. Só mais tarde, quando um ilustre irmão da vítima foi eleito
presidente do Estado, é que, nobremente, resolveu indultar o condenado.
Isso revela a quanto pode levar o ódio partidário no interior, notadamente
no que concerne à sua influência sobre o júri, esse instrumento passivo da poli-
ticalha, do coronelismo do interior.
Senhor Presidente, depois da primeira fase do julgamento, recebi um me-
morial dos assistentes da acusação, que, naturalmente, também o distribuíram

334
Ministro Nelson Hungria

aos outros Srs. ministros, contendo várias páginas datilografadas, no qual se


revela o sobressalto de que estão possuídos, com a perspectiva de que seja desa-
forado o julgamento para a comarca vizinha de Resende.
É bem de ver que, se esses assistentes da acusação estivessem servindo real-
mente a um objetivo de justiça, pouco lhes importaria que os pacientes fossem julga-
dos em Barra Mansa ou em Resende, que é, ao que penso, a comarca mais próxima.
Esse memorial, que representa uma intromissão indevida, é um significa-
tivo atestado de que já se sabe, de antemão, aprioristicamente, que os pacientes,
se julgados em Barra Mansa, serão irremissivelmente condenados.
Senhor Presidente, trata-se de um caso típico de desaforamento.
Concedo o habeas corpus, acompanhando o voto do relator, Sr. ministro
Sampaio Costa.

HABEAS CORPUS 36.801 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, não está em causa, nem
está sob o nosso pronunciamento a questão de ser tratar no caso de transgressão
disciplinar.
O preceito constitucional, aliás, não pode ser entendido no seu puro ou ir-
restrito literalismo. Este Tribunal já decidiu, por mais de uma vez, que, mesmo em
se tratando de pena disciplinar privativa da liberdade, é possível o habeas corpus,
quando tenha sido aplicada por autoridade incompetente, ou quando a transgressão
ou a pena aplicada não é prevista em lei.
Tal como no direito penal comum, o direito penal disciplinar também é regido
pelo princípio de que não há infração ou pena sem lei que a preveja.
Mas não é esta a questão a ser resolvida. Trata-se, apenas, de saber se, dene-
gado o mandado de segurança e interposto o recurso ordinário, tem este, ou não,
efeito suspensivo.
Esta, tão somente esta, é a questão.
Senhor Presidente, não vejo na lei, quer nas suas linhas, quer nas suas en-
trelinhas, dispositivo algum segundo o qual o recurso ordinário, na espécie, não
tem efeito suspensivo. Levar o disco além da marca, levar o disco além da baliza,
segundo a expressão do eminente ministro relator, é o atribuir ao recurso ordinário

335
Memória Jurisprudencial

efeito suspensivo. Da decisão concessiva do mandado de segurança, sim, não tem


efeito suspensivo o recurso, pois este é o extraordinário, que, conforme o Código do
Processo Civil expressamente declara, não impede a execução.
Segundo princípio elementar de hermenêutica, segundo critério axiomático
em matéria de interpretação, inclusio unius, exclusio alterius, e, assim, é de se inferir
que o recurso ordinário tem efeito suspensivo. Ainda mais: silenciosa a lei quanto ao
efeito do recurso, a admissão do efeito suspensivo atende ao princípio de que favo-
rabilia amplianda. Tudo quanto é favorável deve ser ampliado, se a lei não contém
restrição expressa.
Afirmou o eminente Dr. procurador-geral que não é possível admitir-se no
caso efeito suspensivo quando tal efeito não ocorreria se se tratasse de recurso contra
decisão denegatória de habeas corpus, que seria, no caso, o remédio específico.
O raciocínio de Sua Excelência peca pela base: não se concede liminar no pe-
dido de habeas corpus, de modo que está afastado o argumento de Sua Excelência.
Se houvesse liminar no habeas corpus e fosse concedido, não seria revogada pela
decisão denegatória, desde que interposto recurso.
Diz mais, Sua Excelência, que nunca se ouviu dizer que uma medida liminar
não se revogasse, quando, afinal, se considere inexistente o direito em nome do qual
ou em cuja suposta pretensão se tivesse concedido a liminar.
Mas não é outra coisa o que sistematicamente acontece no âmbito processual.
A liminar persiste não obstante em contraste com a decisão final, se é interposto re-
curso. É o que ocorre, por exemplo, com a reintegração liminar de posse, o embargo
de obra nova, o depósito de menor enquanto se discute sobre sua guarda, etc.
É verdade que a decisão da Primeira Turma, aqui invocada pelo ilustre advo-
gado do paciente, no sentido do caráter suspensivo do recurso ordinário da decisão
denegatória de mandado de segurança, veio a ser revogada pelo Tribunal Pleno.
Mas, Senhor Presidente, tratava-se naquele caso de mero interesse patrimo-
nial. Na hipótese presente, o que está em jogo é o interesse da liberdade individual, é
o direito da locomoção, do mais sabido relevo.
Aquela situação que segundo a lei justifica a liminar, isto é, impedir, conjurar
a frustração do direito pela demora na sua tutela, continua a apresentar-se urgente,
desde que interposto o recurso da decisão final denegatória, notadamente quando
se trata de liberdade individual. Um dia de privação de liberdade jamais poderá ser
restituído.
O nobre advogado do paciente diz que só Deus pode reparar essa transitória
perda de liberdade. Nem Deus, porém, pode fazê-lo. É a única coisa que Deus não
pode fazer: tornar “desacontecido” aquilo que já aconteceu. Deus nos pode ferir de

336
Ministro Nelson Hungria

amnésia, para que esqueçamos o fato, como pode acrescer de um dia livre a vida do
prejudicado, mas não suprimir no passado o dia de privação de liberdade.
Indagar-se-á no caso vertente: como se pôde conhecer do mandado de segu-
rança se não estava em jogo a liberdade de locomoção, a liberdade física da pessoa?
Estamos diante de uma realidade anômala, mas iniludível. O mandado foi
conhecido pelo Tribunal Federal de Recursos, embora incabível; e o digno presidente
desse Tribunal deu efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão denegatória,
mas o Tribunal Pleno cassou esse despacho.
É possível que aos eminentes ministros do Tribunal Federal de Recursos não
tenha ocorrido a hipótese de que, reconhecida a faculdade do ministro da Guerra, de
punir disciplinarmente um oficial da reserva, tal punição poderá ser a privação de
liberdade do transgressor. Mas o fato é que o Tribunal Federal de Recursos conheceu
do mandado de segurança, achou que ele era cabível em tese, embora o negasse in
hypothesi.
Interposto o recurso ordinário, por que desconhecer-se que persiste a mesmís-
sima situação de quando se concedeu a liminar, isto é, a necessidade de se evitar a
prática de um ato que frustre o direito pleiteado?
O paciente, como é notório, pois todos os jornais noticiaram, foi punido com
prisão por dez dias; de modo que terá de cumprir integralmente essa punição, ainda
que fosse reconhecida ilegal, se tivermos de aguardar a decisão do recurso ordinário
que foi interposto do mandado de segurança denegado.
Mas, Senhor Presidente, é preciso insistir neste ponto: não existe na lei pro-
cessual dispositivo algum que diga, de modo categórico, que o recurso ordinário não
tem efeito suspensivo. Desafio a que me apontem. E, se a lei não declara, expressis
verbis, o efeito não suspensivo, não se pode admiti-lo, principalmente quando está
em causa a liberdade individual, que é o mais respeitável dos direitos.
Jamais apareceu aqui um caso tão singular como este, tão anômalo como
este: pode ter decorrido da denegação de um mandado de segurança a possível
consequência de privar alguém de sua liberdade. E para os casos anômalos o
remédio dever ser heroico. Ainda que a lei, de modo claro, expresso, categórico,
tivesse negado o efeito suspensivo ao recurso ordinário da decisão denegatória
do mandado de segurança, nós, do Supremo Tribunal Federal, mais do que os
juízes de qualquer outro tribunal, teríamos, por dever, de ajustar a lei aos casos
concretos, negando-nos a ser escravos submissos do texto da lei, para evitar,
num caso excepcional, intolerável gravame à liberdade individual.
O paciente teria sido um indisciplinado, teria usado de palavras rudemente
grosseiras, contundentemente injuriosas ao seu superior hierárquico, que é o Sr.
ministro da Guerra, pouco importando que o paciente se encontre atualmente na

337
Memória Jurisprudencial

reserva. Se levou consigo as prerrogativas do posto, levou também deveres, entre os


quais o da disciplina militar. Ubi commoda, ibi incommoda. Mas, repito, não é disso
que se trata no presente julgamento.
Senhor Presidente, não tenho dúvida em reconhecer, no caso, o acerto, a
justeza do despacho do ilustre presidente do Tribunal Federal de Recursos, cuja re-
quintada consciência jurídica tão bem conhecemos. O recurso, na espécie, não podia
deixar de ter efeito suspensivo. Concedo o habeas corpus
.

SEGUNDO HABEAS CORPUS 36.897 — DF

Habeas corpus; sua denegação. A competência do estagiário no


processo penal é definida por instrução do procurador-geral. Pode
ele formular alegações finais, desde que estas obtenham o “visto” do
chefe do Ministério Público, e não lhe é defesa a assistência ao réu no
curso da inquirição de testemunhas.

PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, peço vista dos autos.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: O art. 201 do Decreto-Lei 8.527, de 31-12-
1945 (Código de Organização Judiciária do Distrito Federal), dispõe que “incumbe
ao estagiário auxiliar os órgãos do Ministério Público e os advogados de ofício no
respectivo serviço, pela forma regulada em instruções do procurador-geral”. Ora,
pelas instruções dadas pelo Dr. procurador-geral do Distrito, as “alegações finais”,
no processo penal, podem ser formuladas e assinadas pelo estagiário, desde que,
como no caso vertente, tenham o “visto” de aprovação do defensor público, que, as-
sim, as faz suas. Por outro lado, não há proibição alguma quanto a assistência do réu
pelo estagiário durante a instrução criminal. Ainda mesmo que se queira equipará-
-lo ao solicitador, não há dizer que exista para ele tal proibição. O § 4º do art. 22 do
Regulamento da Ordem dos Advogados declara que
compete aos solicitadores (...) a assistência das causas em juízo, recebendo as
intimações para andamento dos feitos e assinando os termos de recurso e todas as
petições que não sejam iniciais, escritos que não sejam articulados nem arrazoados, e
praticando atos de cartório e de audiência que não sejam julgamento.

338
Ministro Nelson Hungria

Sem dúvida alguma, portanto, o estagiário pode funcionar na instrução cri-


minal, reperguntando testemunhas. Não deparo nulidade alguma no processo a que
respondeu o paciente. Data venia do eminente Sr. ministro relator, denego a ordem.

HABEAS CORPUS 36.908 — SP


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, também entendo que,
sendo o cheque emitido, isto é, entregue pelo emitente a outrem e, assim, posto em
circulação, o crime do art. 171, § 2º, VI, do Código Penal, na sua primeira modali-
dade se consuma; e, em se tratando da outra modalidade ulterior retirada ou bloqueio
da provisão, o momento consumativo é o dessa frustração do pagamento.
Ora, no caso, o emitente entregou a um banco, para depósito em sua conta,
três cheques, recebendo em correspondência três cheques visados, e ao serem aque-
les apresentados ao banco sacado, não havia fundos, pois os que existiam, ainda que
insuficientes, haviam sido, intercorrentemente, retirados pelo recorrente.
Afirma-se que teria sido suprida a falta de provisão, entregando-se numerário
suficiente a um gerente ou diretor do banco sacado; mas, sobre não comportar exame
de provas em torno de fatos e sumaríssimo do habeas corpus, teria isso ocorrido
após a apresentação dos cheques a pagamento, pois, de outro modo, não se explicaria
tivesse sido este recusado. Também denego o writ.

HABEAS CORPUS 37.399 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, como vem de ser acen-
tuado pelo eminente ministro Ary Franco, o Código da Justiça Militar é omisso a
respeito de incomunicabilidade de réus presos.
E será que o Código Disciplinar da Aeronáutica seja diploma supletivo do
Código da Justiça Militar? Irei demonstrar que não. Mas, admitamos, ad argumen-
tandum, que, realmente, o Código Disciplinar pudesse suprir a emissão do Código da
Justiça Militar. Que diz o Código Disciplinar? Que o indiciado poderá ser preso in-
comunicável até o primeiro interrogatório. É de toda evidência que o interrogatório a
que aí se faz referência não é aquele interrogatório que se realiza após o recebimento

339
Memória Jurisprudencial

da denúncia. Não. É a tomada de declarações do indiciado, que pode repetir-se tantas


vezes quantas forem necessárias. Tanto assim que a lei fala em primeiro interrogató-
rio, fazendo supor a eventualidade de um segundo, de um terceiro, etc.
Ora, é de toda evidência que o paciente, preso há mais de um mês, já foi ouvido
e, talvez, repetidamente.
Mas, Senhor Presidente, de modo algum o Código Disciplinar pode ser consi-
derado supletivo do Código da Justiça Militar, pois este, em artigo expresso, sob o nú-
mero 396, diz o seguinte: “Os casos omissos neste Código serão resolvidos de acordo
com o direito comum.”
A lei supletiva, na espécie, é, portanto, o Código de Processo Penal comum,
que autoriza a incomunicabilidade, mas não podendo durar esta além de três dias e
devendo ser sempre justificada em despacho nos autos.
Não há, pois, a menor dúvida de que a permanência da incomunicabilidade do
paciente é ilegal, traduzindo um abuso de poder.
Há ainda que ponderar o seguinte: que incomunicabilidade é essa que permite
a comunicação do paciente com sua esposa e a sua mãe? Não há incomunicabilidade
parcial. Se o paciente já pode ser visitado por pessoas de sua família, a proibição da
visita do seu advogado é um injustificável capricho, um puro arbítrio, tanto mais cen-
surável quanto esse advogado, após entendimento com o seu constituinte, poderá até
mesmo promover sua imediata liberação, se for o caso.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Vossa Excelência parece que não leu a
impetração. Eu a li quando do julgamento. Nele o ilustre advogado, a quem rendo as
homenagens do meu respeito e de minha velha amizade, afirma, com todas as letras,
ignorar onde se encontra o paciente. Se Sua Excelência desconhecia onde se encon-
trava esse paciente, é impossível afirmar-se que lhe teria sido recusada a possibilidade
de comunicar-se com o paciente. Tive o cuidado de ler a impetração e quando proferi
meu voto, que foi escrito, baseei-me no que consta da inicial.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Se Vossa Excelência ouvisse meu voto, não
teria necessidade de me dar esse aparte.
Concedo o habeas corpus para que o advogado do impetrante tenha conheci-
mento do paradeiro do paciente...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas Vossa Excelência acaba de reco-
nhecer que a esposa e a mãe do paciente o visitam.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Das próprias informações se verifica que foi
permitida a visita apenas à mãe e à esposa do paciente, e não do advogado, sendo
muito possível que aquelas tenham assumido compromisso de sigilo...
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Nesse particular é que Vossa Excelência
está equivocado. Vou ler o que diz o advogado na petição. Ele diz desconhecer o
340
Ministro Nelson Hungria

paradeiro do acusado; logo não podia ter sido negado a Sua Excelência a possibili-
dade de se aproximar do paciente.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Não pedi essa leitura. A negativa de comuni-
cação pode envolver a recusa em dar conhecimento do paradeiro do paciente. Como
quer que seja o Sr. ministro da Aeronáutica afirma categoricamente que o réu está
incomunicável.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Ao contrário, diz que está recebendo a
visita da mãe e da esposa.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Mas o paciente não pode se avistar com o seu
advogado. Estranha incomunicabilidade parcial. Permitir visitas da esposa e da mãe
do paciente e não permitir a de outras pessoas, entre as quais o seu advogado, é uma
arbitrariedade só compreensível em época de suspensão de garantias constitucionais.
O Sr. Ministro Rocha Lagôa (Relator): Mas o próprio advogado ignorava onde
se encontrava o paciente e ainda não tinha instrumento de mandato.
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, concedo a ordem para que
o advogado, informado do paradeiro do paciente, possa dele se aproximar, tenha ou
não instrumento de mandato.
Para promover a defesa do paciente, por meio de habeas corpus, não há neces-
sidade de instrumento de mandato.
É preciso não esquecer a lição de Rui Barbosa, no sentido de que o habeas
corpus é um remedium iuris que pode ser impetrado até mesmo contra a vontade do
paciente.

HABEAS CORPUS 37.522 — DF

A provocação de animosidade entre as classes armadas se


enquadra exclusivamente no art. 9º da Lei de Imprensa, quando
praticado por meio de imprensa.

VOTO
(Acréscimo)
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Senhor Presidente, ninguém mais
do que eu defende, dentro de indeclináveis limites, a liberdade de opinião. Nascido
nos flancos generosos das montanhas de Minas, bebi o leite de liberdade até escorrer
pelos cantos da boca. Mas não estamos aqui para dizer se a lei atende ou não atende,

341
Memória Jurisprudencial

extensivamente, às exigências da liberdade. Temos de cumprir a lei, desde que se


apresente na medida constitucional. No caso presente, afirma-se que os pacientes es-
tariam incursos, não na Lei de Segurança, mas na Lei de Imprensa, e se algum dos
fatos imputados não está previsto nesta última, não poderá ser considerado crime.
A tese é subversiva: ainda o mais grave dos crimes, quando praticado por meio da
imprensa, deixará de ser ilícito penal, se não está previsto na Lei de Imprensa. Em
anterior julgamento, alinhei toda uma série de crimes que, segundo semelhante tese,
passariam a fatos penalmente lícitos. Imagine-se a situação de desconforto e perigo
a que ficaria sujeita a sociedade brasileira, se o Supremo Tribunal viesse a sufragar
esse entendimento. Já acentuei, de outra feita, que todas as leis do mundo civilizado
que tratam especialmente dos crimes de imprensa, própria ou impropriamente tais, de
modo algum se orientam no sentido dessa estranha abolitio criminis. Formule-se o se-
guinte exemplo, para evidenciar o despropósito da tese em questão: um indivíduo, em
“a pedido” de um jornal, usando linguagem convencional, dá a seus comparsas certas
instruções que tornam possível um homicídio, que, a seguir, é por eles praticado. Pois
bem; ainda que se provasse que as instruções dadas foram condição sine qua non do
homicídio, o indivíduo que as forneceu não seria punível como partícipe, porque seu
auxílio foi prestado por meio de imprensa!
Por mais defensor que seja da liberdade de imprensa, jamais poderia concordar
com semelhante política criminal.
Estou em que, dos crimes imputados aos pacientes, não se enquadra na Lei
de Imprensa o de provocar animosidade entre as classes armadas. No art. 9º, letra a,
da Lei 2.083, de 1953, se inclui, sem dúvida, a propaganda para acender o ódio de
classes civis contra as classes militares. Quanto, porém, à provocação de animosidade
entre as próprias classes armadas, seria imprimir demasiado elastério ao referido art.
9º. Compreendo que, como favor libertatis, se admita que o preceito do art. 14 da
Lei de Segurança do Estado esteja, por outras palavras, também no art. 9º da Lei de
Imprensa. E quero fazer um apelo aos Srs. ministros, hoje em maioria, que discordam
do meu ponto de vista. Admitam que a propaganda no sentido de odienta rivalidade
entre as classes armadas, que pode levar até a guerra interna, esteja abrangida no re-
ferido dispositivo da Lei de Imprensa; mas não endossem a tese da impunidade a que
me referi. Não crie o Supremo Tribunal, repudiando seu anterior critério de decisão,
um precedente perigoso. Hoje seriam favorecidos jornalistas dignos, embora exces-
sivamente apaixonados; mas amanhã iriam beneficiar-se foliculários da pior espécie,
agentes da subimprensa, que, fracassados em anteriores profissões, vão acocorar-se
atrás de um prelo para todos os malefícios e torpezas.
Senhor Presidente, concedo o habeas corpus salvo quanto à imputação de pro-
paganda de ódio entre as classes armadas, pela qual terão os pacientes de responder
como incursos na Lei de Imprensa.

342
Ministro Nelson Hungria

HABEAS CORPUS 37.921 — SE


Habeas corpus; sua concessão. De regra, em habeas corpus,
não se reapreciam provas; mas uma coisa é reapreciar provas e
outra é reconhecer a imprestabilidade subjetiva de meios e órgãos
de prova. Confissão extorquida pela violência conforme reco-
nhece o próprio acórdão confirmatório da pronúncia.
Depoimentos prestados no inquérito policial e não reprodu-
zidos em juízo. Conjecturas que, sem base alguma, não podem ser
confundidas com indícios.
Aplicação do art. 580 do Código de Processo Penal.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Uma das condições precípuas
da confissão, para que tenha mérito de prova, é que seja prestada livremente,
sem coação, sem violência física ou moral. Assim, no caso vertente, a confissão
que teria prestado Euclides Timoteo de Lima, aliás, não tomada por termo, não
tem o mais mínimo valor probante.
A tortura inquisitorial a que o submeteram até a morte foi presenciada
pelos então secretário da Justiça e chefe de Polícia do Estado de Sergipe e pelo
deputado e advogado Seixas Doria, que, para cúmulo dos cúmulos, a apoiaram,
ou contra ela não protestaram ou procuraram até mesmo justificá-la, corum ju-
dice, e ainda vieram a juízo repetir a confissão que Euclides teria feito, conside-
rando-a convincente do mandato atribuído ao paciente. Jamais se viu tamanho
desplante e desenvoltura no desrespeito a elementares princípios constitucionais
e legais em proteção do indivíduo. E não somente Euclides foi espancado. O ou-
tro coacusado José Pereira dos Santos, também levado ao ermo da Estrada da
Cerâmica, na calada da noite, onde testemunhou o trucidamento de Euclides, foi
igualmente vítima, além da intimidação, de violência física para fazer as decla-
rações que prestou. Quem no-lo informa é Umberto Mandarino, irmão da acu-
sada Milena, a quem convenceram de acompanhar as autoridades até a Estrada
da Cerâmica. Diz ele a fl. 661 dos autos do processo:
Foi realmente nessa diligência policial que o suplicante ouviu José
Pereira dos Santos, depois de apanhar um pouco, dizer que não sabia de ne-
nhum mandante, ouvindo, a seguir, Euclides Timoteo de Lima, depois de muito
espancamento, insistir primeiro em que não sabia de mandante algum, em se-
guida declinar a nome de Carlos Alberto, depois de um médico e mais tarde o
do coronel Afonso. Chocado com a violência da cena, o suplicante e o deputado
Seixas Dória se afastaram por uns instantes, até o jipe que havia sido deixado na
estrada, e quando retornaram, encontraram Euclides Timoteo de Lima estirado
na areia, arquejando.

343
Memória Jurisprudencial

Praticado o bárbaro assassinato de Euclides, as autoridades obtiveram


o atestado de óbito com a menção de causa mortis patentemente falsa, pois,
como asseverou o Dr. Nilton Sales, ex-diretor do Gabinete Médico-Legal do
Rio de Janeiro e que foi a Sergipe proceder à autópsia no cadáver de Euclides, o
diagnóstico de “edema pulmonar agudo decorrente de miocardite crônica” não
podia ser obtido pelo simples exame externo; e, furtivamente, como confessa o
secretário Haribaldo Vieira, ou sigilosamente, como proferiu declarar o chefe
de Polícia, foi enterrado o cadáver como sendo o de Manoel dos Santos, sob
o incrível pretexto de não ficar prejudicada a apuração da verdade no ulterior
curso do processo. É verdadeiramente estranho que o testemunho de Umberto
Mandarino tenha sido invocado pelo Tribunal de Justiça de Sergipe como ele-
mento de prova, depois não só do que ele disse nos autos, como da informação
que prestou ao major Donato Ferreira Machado, incumbido pelo Conselho de
Segurança Nacional de apurar o caso vertente, na qual igualmente descreve o
brutal espancamento de que foi vítima Euclides Timoteo, espancamento que foi
reconhecido pelo próprio Tribunal de Justiça.
As declarações de Eunice Maria dos Santos, empregada do casal Firpo-
Milena, prestadas na polícia, relativamente a cenas amorosas entre o paciente
e Milena, foram igualmente extorquidas pela violência, como ela denuncia, na
sua linguagem pitoresca ao depor em juízo:
(...) apanhei bastante, faca puxaram para mim, para me furarem; disse-
ram que iam vingar a morte do Dr. Carlos Firpo em mim, botaram revólver na
minha boca... “responde nega safada”, “responde nega sem-vergonha”, “tu vai
para a penitenciária, te meto esta faca e te mexo todinha por dentro”... E me sen-
taram outro tapa na cara.

A mãe de Eunice depõe também revelando o estado deplorável de desali-


nho e maus-tratos com que sua filha voltou da inquirição na Estrada da Cerâmica,
tendo sido necessário interná-la no Hospital Santa Izabel, onde lhe foi ministrado
tratamento por penicilina.
Quanto às declarações da acusada Milena Mandarino Firpo, foram prestadas,
de certo ponto em diante, isto é, depois do desmaio que sofreu e da injeção que lhe
aplicaram, em manifesto estado de confusionismo mental ou perturbação psíquica,
pois, em gritante contradição com o que dissera antes, pôs-se a responder afirmativa-
mente todas as perguntas tendenciosas e sugestivamente formuladas pelo secretário
da Justiça. E já terminado o depoimento, fez questão que, num “em tempo”, fosse
declarado que “ela desde menina tem loucura pelo coronel Afonsinho”. Em juízo, po-
rém, desmentiu ela tudo quanto foi escrito após o seu desmaio, atribuindo ao secretá-
rio Haribaldo, a quem interpelou a respeito, o haver mandado escrever coisas que não
foram ditas. O desmaio sofrido pela acusada e a injeção que lhe ministraram (como
sendo de coramina) é confirmado pelo próprio secretário Haribaldo e pelo médico

344
Ministro Nelson Hungria

José Machado de Souza, chamado para socorrer Milena e que opinou no sentido de
se prosseguir no interrogatório, não obstante a prostração da acusada Milena.
De regra, em habeas corpus não se reapreciam provas; mas uma coisa é
reapreciar provas e outra é reconhecer a inadmissibilidade ou imprestabilidade
subjetiva de meios e órgãos de prova. É elementar que não podem valer como
prova confissões ou testemunhos extorquidos pela violência ou abusando de per-
turbação psíquica de acusados ou testemunhas.
Na sua quase totalidade, todos os elementos em que se arrimaram os acór-
dãos confirmatórios da pronúncia são declarações prestadas no inquérito policial,
que apenas servem para instrução do Ministério Público, e jamais para legitimar
uma sentença de pronúncia.
Um dos signatários desses acórdãos, o ilustre desembargador Luiz Magalhães,
alinha os indícios que haveria contra o paciente. Vejamos quais são: 1º Amores ilíci-
tos entre o paciente e a esposa da vítima. Ora, essa versão é baseada nas declarações
que a Polícia, sob espancamento, obteve da criada Eunice e da acusada Milena antes
de se refazer de uma lipotimia.
2º Repetidas viagens realizadas à cidade de Paulo Afonso, onde residiam
Euclides Timoteo e José Pereira dos Santos, tendo sido intermediário no ajuste deste
um tal Enoque Pessoa de Carvalho, conforme atestam José Pereira dos Santos, por
ouvir a Euclides, e Benedito Tavares da Silva, que teria visto em colóquio, dentro de
um avião, Enoque e o paciente. Ora, além de que o paciente tem sua família residindo
num distrito do próximo Município baiano de Paulo Afonso, onde constantemente ia
visitá-la, pilotando o seu avião, as declarações de José Pereira dos Santos e Benedito,
sobre tal ponto, foram prestadas na polícia, e não reproduzidas em juízo.
3º Declaração de Umberto Mandarino, ouvida por Walfrido Rezende e
Dr. José Machado de Souza, de que o paciente estava envolvido no crime. Já
se viu que Umberto apenas ouviu de Euclides Timoteo, quando barbaramente
espancado, que o paciente é que fora o mandante do crime.
4º Revelação feita por Walter Rezende no sentido de que o paciente, dois
dias antes do crime, estava bastante nervoso, como que sobressaltado, o que,
como indício de participação no crime, é tudo quanto há de mais ridiculamente
imponderável ou inócuo, ainda que se admita que a esse tempo já haviam che-
gado a Aracaju os indigitados executadores do homicídio do Dr. Firpo.
5º Informação de José Resendo dos Santos de ter ouvido Euclides
Timoteo declarar que fora mandado por Enoque a Aracaju para entender-se
com o paciente à rua Simão Dias n. 999, onde mora um irmão do paciente, que,
sendo capenga, teve o seu defeito notado por Euclides. Ora, José Resendo dos
Santos é agente de polícia, apontado precisamente como um dos autores do

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Memória Jurisprudencial

espancamento de Euclides, e depois do falecimento deste tudo podia ser-lhe


atribuído por quem estivesse interessado em manter a versão policial do homi-
cídio do Dr. Firpo, em contrário às primeiras versões de que se tratava de latro-
cínio ou de uma ação destinada a eliminar um competidor político, pois a vítima
estava sendo indigitada para futuro vice-governador do Estado.
6º Finalmente, a voz pública, para cujo prestígio se invoca Umberto Fiori,
talvez na sua “Psicologia Guidiziaria”, mas abstraindo-se que, no caso vertente,
a voz pública foi inspirada exclusivamente nos resultados do inquérito, procla-
mados até pelo rádio, e cuja fonte espúria a polícia tinha o cuidado de ocul-
tar, não vacilando, sequer, em enterrar às escondidas o cadáver do indigitado
Euclides Timoteo, para que se não soubesse dos processos que estavam sendo
utilizados para as anunciadas “confissões”.
Dispõe o art. 408 do Código do Processo Penal que “se o juiz se conven-
cer da existência do crime e de indícios de que o réu seja o seu autor, pronun-
ciá-lo-á, dando os motivos do seu convencimento”. Ora, indícios jamais foi o
chamamento do corréu por acusados que, levados para lugar ermo, na calada da
noite, são cruel ou mortalmente espancados (como foi reconhecido pelo próprio
acórdão confirmatório da pronúncia), para que digam o que a polícia quer que
eles digam; nem indícios jamais foram declarações prestadas por uma mulher
em confusão mental após um desmaio provocado pela aspereza inquisitorial de
um secretário de Estado transformado em Torquemada e presidente de inqué-
rito policial; nem depoimentos prestados nos desvãos de delegacia policial e não
reproduzidos em juízo; nem declarações de beleguins policiais apontados como
assassinos de um dos réus pseudoconfitentes.
Há nestes autos, Senhor Presidente e Senhores Ministros, uma palavra
serena e corajosa, que é um cerrado libelo contra tudo quanto se fez no processo
contra o paciente: a do austero e nobre desembargador Hunald Cardoso, e insigne
mestre de direito penal na Faculdade de Aracaju que foi vencido, proferindo longo
voto em que analisa e desacredita, irremediavelmente, a acusação contra o pa-
ciente e demais corréus, à exceção de José Pereira dos Santos. Vou proceder à sua
leitura, para que fique constando, como peça notável, que é, de um julgado desta
Suprema Corte:
“Hunald Cardoso, vencido, em parte, com a seguinte declaração de voto,
em vinte laudas datilografadas: Consoante ficou acentuado no relatório, o juiz da
instrução julgou, em parte, procedente a denúncia, para pronunciar os acusados
tenente-coronel da Aeronáutica Afonso Ferreira Lima, Enoque Pessoa de
Carvalho, Milena Mandarino Firpo e José Pereira dos Santos, vulgo Pereirinha,
incursos no art. 121, § 2º, n. 2, combinado com o art. 25 do Código Penal, como
autores materiais e intelectuais da morte do Dr. Carlos Firpo, sujeitando-os a jul-
gamento pelo Tribunal do Júri e impronunciou os dois outros acusados Nicola
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Ministro Nelson Hungria

Mandarino e Gilena Santana, decorrendo tal impronúncia, segundo declara a sen-


tença recorrida, da ausência de provas, relativamente a estes dois últimos indicia-
dos. Quanto a Euclides Timoteo de Lima, principal agente do crime, apontado, de
parceria com José Pereira dos Santos, como autores materiais do bárbaro homicí-
dio do Dr. Carlos Firpo, não foi ele denunciado, segundo refere o relatório de de-
cisão recorrida, em virtude de haver falecido, como se infere, di-lo o juiz a quo,
do atestado de óbito junto aos autos. Estamos, portanto, diante de um caso de co-
autoria, em que um dos acusados é incriminado como autor material do delito ou
mandatário e os demais corréus, como autores intelectuais dele ou mandantes,
excluído Euclides Timoteo de Lima, em razão da sua morte. Meu voto, neste re-
curso, como costumo fazer sempre, obedecerá aos árduos e imperiosos deveres do
ofício, uma vez, como o disse Rui Barbosa, em célebre petição de habeas corpus
ao Supremo Tribunal Federal, logo no começo da República, “o sacerdócio da
Justiça impõe ao juiz a missão da amparar a vítima da opressão tanto mais reco-
mendável à proteção da lei, quanto mais formidável o arbítrio, que o esmague,
quanto mais sensível for o vazio que a ignorância, a covardia de uns, o desalento
de outros e a letargia geral, abrirem em derredor dos perseguidos. “Não ignoro
que, dada a intensa publicidade que se fez, pelo rádio e pela imprensa, apontando
o tenente-coronel Afonso Ferreira Lima, Milena Mandarino Firpo, Nicola
Mandarino e Enoque Pessoa de Carvalho, como autores intelectuais do hediondo
relato de que fora vítima o Dr. Carlos Firpo, a opinião pública, influenciada pelas
informações policiais que lhe chegava ao conhecimento, por aqueles dois sugesti-
vos meios de divulgação, afinou-se em havê-los como tais e atribuir-lhes integral
e inarredável responsabilidade criminal no abominável e doloroso evento. Isto faz
recordar o que escreveu Rui Barbosa, numa de suas substanciosas Cartas da
Inglaterra, em relação ao Processo Dreyfus, ao acentuar que não era lícito entre
franceses pôr em dúvida o crime dessa vítima de um erro judiciário e quem quer
que deixasse transparecer, a seu respeito, a menor incerteza, ou denotasse o mais leve
sentimento de comiseração, seria encarado com o mesmo horror e o mesmo ódio que
o próprio traidor. Havia obrigação estrita e universal de teimar e bater pé em como
Dreyfus era o mais desprezível dos traidores. “Criminoso de que, esse criminoso?
Ninguém o sabia e, até hoje, ninguém, dentre o público, o sabe. Todavia, a existência
da traição, passou em julgado como fato indisputável. “Era o que sobre o rumoroso
caso escrevia, de Paris, um correspondente inglês, para o seu jornal em Londres, se-
gundo narra o doutor do regímen. Aqui, repetiu-se o mesmo fenômeno psicológico
no crime em tela, ante as reiteradas indiscrições espalhadas, através da imprensa e do
rádio. Até ameaças foram divulgadas em panfletos, no sentido de intimidar a Justiça
e fazê-la obedecer cegamente aos que desejavam ditar-lhe os pronunciamentos, to-
lhendo-lhe a liberdade e a independência. Para pronunciar-me na espécie, não pode-
rei, entretanto, abrir mão do sereno critério de magistrado, para substituí-lo pelas
predisposições do algoz. Terei, portanto, de fazer demorado e reflexivo exame do

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Memória Jurisprudencial

caso e da prova, no sentido de poder fixar na hipótese sujeita, até onde deve ir a re-
pressão. Inspirar-me-ei, sobretudo, no desempenho desse espinhoso dever de ofício,
nas edificantes palavras proferidas pelo nosso eminente antístite, o excelentíssimo e
reverendíssimo senhor Dr. José Vicente Távora, na Catedral diocesana, onde está,
entre nós, a fazer esplender a tribuna sacra, “na sublimação do trabalho docente, nos
lábios de Jesus Cristo, quando, ao recomendar sua obra redentora a seus discípulos,
os investiu na mais alta função educadora, dizendo-lhes — ite et docete”, advertindo
e conquistando almas, ao inculcar, em memorável, recente e oportuna prédica, sobre
A Justiça e os fariseus, este grande ensinamento: “Ninguém tem o direito de julgar,
senão recebeu de Deus, ou da autoridade humana, missão de tamanha importância e
responsabilidade”. Não julgueis, para não serdes julgados. Porque com a mesma me-
dida que julgardes os outros, sereis vós mesmos julgados”, disse Jesus Cristo. Mas,
se o homem vai sentenciar seu semelhante, por força da missão que recebeu, então,
veja que seu julgamento não seja mau, claudicante, injusto. Pois, se julgar sem auto-
ridade não é lícito, muito mais grave, muito mais tremendo — conclui sua excelência
reverendíssima — é o juiz ser injusto ou temerário, no seu veredicto”. Destarte, a
Justiça penal deve, antes de tudo, esclarecer-se e manter a própria serenidade, sem se
deixar influenciar por nenhuma paixão, seja ela qual for, ficando indiferente às ame-
aças, às calúnias, murmurejadas à sombra ou a descoberto, destinadas a enfraquecer-
-lhe o ânimo, na proclamação da verdade. É preciso, pois, estar atenta, para o que
doutrinou Rui Barbosa, em causa sob seu inigualável patrocínio, ao emitir estes con-
ceitos, como se estivesse a advogar neste processo: “Quando a título de investigações
policiais, sem mais fundamento que as suspeitas, cuja cor de ânimos prevenidos se
reflete sobre quanto os cerca, não há mais nada, não há mais nada, que se não faça
impunemente.” E se o juiz não levar em conta tudo isso a que me hei reportado, para
decidir em processo penal, de tão intensa repercussão, como o que está sendo subme-
tido ao nosso exame, é certo que falha ao cumprimento do seu dever e se incrimine
a si próprio, se, por considerações pessoais, fraqueza, medo, ou outro sentimento su-
balterno, considera criminosas e pessoas sem culpa, pelo receio de desagradar aos
que, obturados pela paixão e pelo ódio, se apresentam como falsos zelotas da Justiça,
quando não tem outro intuito, senão o de manejá-la, dominando-a, para o triunfo
integral de suas intolerâncias, ardis, e maquinações. No caso, por conseguinte, é pre-
ciso ter vigor de espírito, para julgar com calma, não se deixando levar, nem pela
exaltação de ânimos, nem pela nevrose de hostilidade contra alguns dos acusados.
Assim sendo, torna-se mister resistir, a todo o transe, à tendência a incriminar, so-
mente por conjecturas ou prevenções, não permitindo que sobrejuízes queiram
substituir-se aos verdadeiros juízes, ditando-lhes o aresto a proferir e transformando-
-os em feras togadas. Equivaleria, se assim se não acautelar a consciência de julga-
dor, a aceitar a temeridade das suposições, sem descer à verificação das provas de
culpabilidade, realmente dignas desse nome, existentes nos autos. E infringiria sem
remissão ao mandamento das Sagradas Escrituras, expressos nesta regra

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Ministro Nelson Hungria

de conduta: “Não seguirás a multidão para fazer o mal, nem, em juízo, adotarás a
opinião do maior número, desviando-te da verdade.” Acentuando isto, tenho, em
face dos elementos condensados no processo, nada obstante os defeitos e falhas que
apresenta, como cumpridamente demonstrada a responsabilidade moral e material
de Euclides Timoteo de Lima, e de José Pereira dos Santos, vulgo “Pereirinha”, na
qualidade de coautores diretos do assassínio do malogrado Dr. Carlos Firpo.
Provam-no os instrumentos do crime apreendidos em poder de ambos, a sua pre-
sença e fuga precipitada desta Capital, para Paulo Afonso, depois do delito, a con-
versa e atitudes suspeitas que fizeram o chaufeur que os conduzia, desconfiar de
ambos, levando essa desconfiança ao conhecimento do então deputado Euclides
Paes Mendonça, e posteriormente, a conselho daquele, ao do Excelentíssimo Sr. go-
vernador do Estado, bem como as declarações positivas de Euclides Timoteo de
Lima ao Dr. Augusto Azevedo, engenheiro da Chesf e testemunha acima de qual-
quer contradita, de que fora, pessoalmente, o autor da morte do Dr. Carlos Firpo,
havendo, como esclarecem os autos, entrado em entendimentos, para isso, com José
Pereira dos Santos. Quanto, porém, à participação dos demais indiciados no evento
criminoso, colhidos na denúncia e na pronúncia, como autores intelectuais do inqua-
lificável e selvagem atentado à vida do Dr. Carlos Firpo, não na tenho como proce-
dente, e muito menos provada, segundo passarei a demonstrar. É a convicção que me
resultou do demorado estudo dos autos, através dos seis volumes que os constituem.
Em primeiro lugar, salientarei, neste sentido, as inúmeras contradições e in-
certezas que se avolumam no processo, ao analisar-se, pormenorizadamente, a prova
da acusação, a partir das investigações policiais, até culminar no seu espraiamento,
por todo o sumário de culpa. Por aqueles, sobretudo, e também no curso da instrução,
apura-se que todo o edifício da acusação, a acusação inteira, de começo a fim, quanto
aos autores intelectuais ou indigitados mandantes do crime, assenta, exclusivamente,
nas pretensas confissões na Polícia, de Euclides Timoteo de Lima e Milena Mandarino
Firpo. Sofreu a desta última, formal contradita em juízo. Afirmou aí a acusada não
havê-la feito, sendo-lhe dada a assinar, no dia seguinte ao do seu interrogatório.
Corroboram-na, neste particular, outros depoimentos. No sumário, já não existia
Euclides Ti moteo de Lima, para que pudesse ser ouvido, a respeito da sua, porque já
se perfizera o ciclo do processo elimatório contra ele posto em prática, processo esse
gritante dentro dos autos, mas que o Ministério Público, nas duas instâncias, e o juiz
a quo, não quiseram ver, preferindo silenciar. Verifica-se, em verdade, dos autos que
a confissão atribuída à indiciada Milena Mandarino Firpo não obedeceu às cautelas
prescritas no Código de Processo Penal, pois, de acordo com o número V do seu art.
6º, não foi ela ouvida, no inquérito policial, como era imprescindível, com observân-
cia, no que lhe fosse aplicável, do disposto no Capítulo III, Título VII, do Livro I, não
tendo sido o respectivo termo assinado por duas testemunhas, que lhe tivessem assis-
tido à leitura. Quanto à forma, portanto, não tem valor jurídico algum, o que lhe re-
tira também qualquer validade intrínseca, relativamente ao respectivo conteúdo,

349
Memória Jurisprudencial

mormente quando as declarações dele constantes não foram confirmadas em juízo,


mas, impugnadas como inverídicas ou fraudulentas. Deve-se levar em conta ainda
que essa indiciada, ao ser inquirida pela autoridade policial, em um quarto de sua
residência, em lugar secreto e, portanto, sem testemunhas presenciais, teve um des-
maio, sendo interrompida a inquirição e lhe sido aplicada uma injeção de coramina,
sendo, pouco depois, reencetado o ato. Não se lhe deveria dar tempo a refazer-se e
ser, então, ouvida, na presença de testemunhas que pudessem, depois, atestar a vera-
cidade e a lisura do ato? Confronte-se essa pretendida confissão com o seu interroga-
tório em juízo, e ver-se-á como distam uma do outro, não havendo, no segundo, pela
firmeza de suas declarações, nada que possa incriminá-la, dando-a como partici-
pante da morte de seu marido e pai de suas inocentes filhas. Imprestável aquele ato,
como é, do ponto de vista formal, não contém, mesmo assim, nenhuma declaração
de que tivesse tomado parte, por qualquer modo, na resolução do crime. Nele, atri-
bui-se-lhe apenas, haver declarado nutrir uma grande paixão pelo tenente coronel
Afonso, mas, quando lhe foi lido, no dia seguinte ao em que fora interrogada, objetou
tratar-se de uma calúnia, declarando e repetindo “eu não disse isso” e transmitindo
esse pormenor a pessoas de suas relações, ouvidas no processo. Onde e quando, por
conseguinte, se encontra sua confissão como participante do crime, perante a autori-
dade policial? Veja-se o modo como a acusada a descreve: Disse ela, ao ser inquirida
em juízo, sobre o seu interrogatório na Polícia, o seguinte: “que alguns dias após o
assassinato de Carlos, o secretário da Segurança e o secretário da Justiça a encontra-
ram em estado de prostração e a submeteram a interrogatório e que as perguntas
eram feitas pelo secretário da Justiça; que às primeiras perguntas, apesar de muito
abatida, a acusada respondeu coerentemente; que o depoimento que a acusada pres-
tou não foi conduzido como este, mas com grandes insinuações e que, num certo
momento, a acusada desmaiou; que, após o desmaio, não mais respondeu às pergun-
tas e crê que as demais constantes dos autos foram feitas e respondidas por eles mes-
mos: que não tem noção de ter assinado coisa alguma, nessa ocasião; que, no dia
seguinte, cedo, foi que começou a sentir o braço doer, tendo noção de que havia des-
maiado e tomado injeção; que imediatamente disse que se chamasse o Dr. Haribaldo,
a quem solicitou ler seu depoimento, ficando surpresa, com a leitura, diante do que
viu, no referido depoimento e afirmou para o Dr. Haribaldo: “eu não disse isso”,
tendo ele insistido que ela havia dito; que nesse momento, reafirma a interrogada que
absolutamente, não disse isso”. Chega-se à conclusão, portanto, que não houve con-
fissão da indiciada nem na Polícia, nem em juízo, quanto a haver participado na
trama sinistra destinada a liquidar o seu marido. E em face das circunstâncias em que
ocorreu, nem mesmo se pode aceitar a declaração que se lhe atribui na primeira, isto
é, na Polícia, de ser louca de paixão pelo tenente coronel Afonso Ferreira Lima. Tudo
o que os autos deixam entrever, no que concerne às relações do tenente coronel
Afonso Ferreira Lima com a indiciada Milena Mandarino Firpo, apesar do persis-
tente e grande esforço em lhes imprimir caráter ilícito e reprovado, não passa de

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Ministro Nelson Hungria

relações de amizade e confiança mútuas, visto serem muito amigos o Dr. Carlos
Firpo e o tenente coronel Afonso, de longos anos, isto é, desde a infância, sendo cos-
tume de um hospedar-se em casa do outro, desde que se tornaram homens feitos e
constituíram família. Assinala-se que, em Aracaju, até seis depois do crime, nin-
guém jamais levantara a menor suspeita, quanto a possíveis relações amorosas entre
os dois indiciados. Se o fato fosse verdadeiro, ninguém o deixaria de conhecer, entre
nós, dada a pequenez do meio e a preferência que os assuntos pecaminosos desper-
tam, nas altas rodas sociais, onde fatos dessa natureza não deixam de ser divulgados
e comentados. Não se precisará, destarte, ir ao depoimento das testemunhas arrola-
das pela defesa para estabelecer o alto conceito moral que a indiciada Milena
Mandarino Firpo desfrutava em nosso meio, como esposa, mãe e filha exemplar,
imbuída dos mais puros sentimentos cristãos. Ninguém ignora o desvelo com que a
cerca e a assiste a sociedade católica desta Capital, desde que começou a galgar, no
transe que está vivendo, as escaleiras do mais atroz sofrimento. No seu seio, não há
uma só vez que não a considera isenta de culpa, na morte trágica e reprovável de seu
inditoso marido. Veja-se, por exemplo, o que disseram, a seu respeito, pessoas que,
no processo, lhes são contrárias, tais como o deputado Seixas Dória e o Dr. José
Machado de Souza, duas das principais testemunhas de acusação, extra e dentro dos
autos. O primeiro: “Perguntado qual o conceito em que o depoente tem Dona Milena
Mandarino Firpo? Respondeu que sempre teve o melhor conceito em torno da pessoa
de Dona Milena, como esposa, como mãe e como tudo mais.” Perguntando se, como
amigo íntimo da família Carlos Firpo, nunca notou entre Dona Milena Mandarino
Firpo e o coronel Afonso Ferreira Lima, qualquer manifestação de namoro?
Respondeu que não.” Passemos, agora, a sindicar da pretendida confissão de Euclides
Timoteo de Lima, na Polícia, invocando, para isso, o que se condensa nos autos sobre
a mesma, para saber em que consistiu, na sua crua realidade. Observar-se-á que a sua
inquirição na Polícia não foi reduzida a termo, dela só se sabendo através de informa-
ções de terceiros. Todavia, foi ele interrogado, em lugar ermo, à noite, às dez horas,
nas proximidades da Cerâmica, nas clamorosas condições com que os seguintes de-
poimentos a reproduzem e tudo definem, quanto ao método empregado, no sentido
de obtê-la. Sobre ela, disse, em juízo, o Sr. secretário da Justiça e Interior, ao depor:
“À noite procurou a Polícia, não negamos, criar um ambiente em que os criminosos
atemorizados, pudessem vir a confessar o crime. Foram eles levados para a Estrada
da Cerâmica e a essa diligência estiveram presentes dentre outras pessoas, a testemu-
nha e o secretário da Segurança, o deputado Seixas Dória e o Dr. Humberto
Mandarino, empenhados todos que estávamos, na descoberta da verdade sobre tão
monstruoso crime. Nós, da Polícia, que já estávamos de posse de quase toda a ver-
dade, com facilidade, somente diante daquela cena preparada, mas sem o emprego
de qualquer violência corporal obtivemos, depois de repetidas inquirições em que
Timoteo caía a toda hora em contradições, que este confessasse que o Carlos
Alberto a quem ele e Pereirinha se referiam era um coronel da Aeronáutica, de

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Memória Jurisprudencial

nome Afonso.” E, continuando, “nós que conhecíamos o coronel Afonso, que pri-
vávamos de sua amizade que o unia à família Mandarino e ao Dr. Carlos Firpo
sentimos uma repugnância diante da declaração, repugnância que contagiou a todos
os presentes, pois logo calculamos que Timoteo, de posse de documentos, inclusive
o da identificação profissional do coronel Afonso Ferreira, que este nos dizia haver
sido subtraído, há cinco meses passados, da residência do Dr. Carlos Firpo, onde es-
tava hospedado, não acreditamos e protestamos veementemente achando que era
mais uma saída de Timoteo, que não queria confessar a verdade. Foi, então, que dois
ou três policiais, não me recordo bem, que guardavam Timoteo, talvez pensando que
a revolta de todos nós terminava violência física, deram algumas pancadas em
Timoteo, sendo logo advertidos pelo secretário de Segurança, que energicamente
não consentiu que se procedesse daquela maneira. Sobre esse ponto crucial do pro-
cesso, há nos autos o depoimento das testemunhas Walter de Assis Ferreira Batista,
no qual se encontra o seguinte e pasmoso trecho: “Os dias que se seguiram, o Dr.
Humberto Mandarino constantemente ia para a Polícia e aos poucos foi se traumati-
zando, por continuamente assistir os interrogatórios, sendo que no dia seis de maio o
encontrei bastante chocado e desoladamente, falando por metáforas. Perguntei-lhe
que havia e respondeu que, em virtude dos excessos praticados para a obtenção de
depoimentos, ele vinha se sentindo mal com aquilo e sempre pedia aos seus amigos
mais íntimos como o Dr. José Machado de Souza, para acompanhá-lo, sendo que na
noite passada, não obstante o Dr. José Machado de Souza tê-lo acompanhado à
Polícia para assistir ao depoimento de Euclides Timoteo, juntamente com o deputado
Seixas Dória e outros amigos seus mais íntimos, o depoimento fora efetuado em lu-
gar ermo do caminho da Cerâmica, tendo o Dr. Machado de Souza se desencontrado
nesse dia; que assistira aos espancamentos de Euclides Timoteo, até ele sentar ou cair
no chão e, como acreditasse que o Sr. Euclides Timoteo nada mais pudesse falar, re-
tirou-se para o jeep, acompanhado do deputado Seixas Dória. Já no jeep, alguns mi-
nutos depois, enquanto falava sobre o caso, vieram chamá-lo, dizendo que o Sr.
Euclides Timoteo estava confessando. Lá assistiu ao Sr. Euclides Timoteo dizer que
tinha sido um médico. Continuaram a espancá-lo e ele, então, dissera que tinha sido
um Carlos Alberto. Continuou apanhando e disse que era um deputado Luchinho.
Apanhando mais, ainda, dissera que era o coronel Afonsinho. Ainda batendo-se no
Euclides Timoteo, ele haveria feito um gesto, cuja expressão não tinha sido obser-
vada ou compreendida. Perguntei ao Sr. Humberto Mandarino se estava convencido
do depoimento, e ele me respondeu que, naquelas condições, não lhe merecia muita
ou alguma fé. Perguntei se Euclides Timoteo, digo, perguntei ao Sr. Humberto
Mandarino se estava convencido do depoimento, ele me respondeu que, naquelas
condições, não lhe merecia muita ou alguma fé. Perguntei se Euclides Timoteo teria
morrido ou não, respondeu-me que não sabia informar, pois se retirara imediata-
mente com o deputado Seixas Dória. “Sobre o fato da confissão de Euclides Timoteo
na Polícia, assim depôs em juízo, o deputado Seixas Dória, corroborando os dois

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Ministro Nelson Hungria

outros depoimentos anteriores: “Perguntado se é exato haver a testemunha declarado


a pessoa desta capital que se retirara do local onde Timoteo estava confessando, por
não poder continuar a assistir cena tão dantesca? Respondeu que, para ser exato na
sua resposta, deve, preliminarmente, esclarecer o seguinte: que para quem assiste a
alguém sofrer qualquer pancada o grau de intensidade e violência passa a ter sentido
subjetivo, dependendo, é claro, lógico, intuitivo e racional, da sensibilidade pessoal
de quem assiste, da formação moral e religiosa de quem assiste ao ato. Uma pancada
em um homem ou algumas pancadas em um homem, para quem tem alta dose de
sensibilidade emocional e humana adquire proporções da maior intensidade e violên-
cia. O depoente jamais viu um homem apanhar embora justifique por incrível que
pareça, para um homem de formação cristã, o caso específico, em face mesmo da
consciência sergipana estar revoltada contra aqueles fatos... a Polícia tenha dado
umas pancadas maiores em Timoteo. Quer ressaltar, outrossim, que na oportunidade
que ele fizera a confissão, embora tivesse tomado uns trancos, estava em estado ab-
solutamente normal. Perguntado quantas pessoas batiam no momento, em Timoteo?
Respondeu que, na realidade, três pessoas procuravam arrancar a verdade de
Timoteo”. No depoimento do major Donato Ferreira Machado, que veio, até aqui,
como emissário especial do Conselho de Segurança Nacional investigar sobre a acu-
sação imputada ao tenente coronel Afonso Ferreira Lima, consta, a respeito da con-
fissão de Timoteo, a seguinte passagem: “Perguntado se a testemunha sabe que
Euclides Timoteo de Lima foi barbaramente espancado pela Polícia para dizer ter
sido o coronel Afonso o mandante do assassinato do Dr. Carlos Firpo, caso afirma-
tivo, qual a fonte desses conhecimentos: Respondeu em face de que eu pude verificar
em certos círculos, conforme anteriormente já frisei, a existência, digo, a admissão
da confissão de Euclides Timoteo de Lima haver sido conseguida sob tortura, procu-
rei por todos os meios ao meu alcance, ir ao encontro daquelas criaturas que, con-
forme consta dos autos, haviam presenciado a confissão de Timoteo contra o
coronel Afonso e não me foi difícil me deparar com o Dr. Humberto Mandarino,
cunhado da vítima, que em sua residência, relatou-me pormenorizadamente, de
como Euclides Timoteo de Lima acusar o coronel Afonso como autor intelec-
tual do crime, sob terríveis espancamentos, num ermo da praia de Atalaia, ja-
mais vira cena tão dantesca em que quatro homens, simultaneamente,
esbordoavam Euclides Timoteo de Lima e que após haver Euclides acusado
duas outras pessoas, um tal Carlos Alberto e um médico, pronunciara o nome
do coronel Afonso. Declarou-me que, daí por diante, não mais conseguiu, digo,
não mais pode continuar a assistir à cena, saindo do local, abraçado com o de-
putado Seixas Dória.” Antes dessas torturas, como está no depoimento do Sr.
secretário da Justiça, Euclides Timoteo de Lima só indicara, na Polícia, o nome
de Carlos Alberto, como mandante. Como doutrina Yves Guyet — “a Polícia
não tem mais direito de violentar um ladrão, ou um assassino que a melhor cria-
tura do mundo; porque, em primeiro lugar, esse assassino e esse ladrão, quando

353
Memória Jurisprudencial

nas mãos dela, se presumem inocentes e, em segundo, podem realmente sê-lo.”


Juridicamente, portanto, não houve alguma, por parte de Euclides Timoteo de
Lima, porque a que se lhe atribui, foi extorquida mediante tortura, obtida e ar-
rancada, segundo expressões de testemunhas presenciais dela. Como ensina
Mittermayer, no seu Tratado da Prova, em Matéria Criminal, p. 323: “A confis-
são deve ser o produto da livre vontade do acusado; é mister que ele tenha tido
a firme intenção de dizer o que é; que nem o temor, nem o constrangimento,
nem a astúcia, nem a inspiração estranha, pareçam ter-lhe ditado os termos. A
confissão não faz prova — acrescenta ele, quando foi provocada, por meio de
constrangimento — Se a confissão é posterior ao emprego dos meios de cons-
trangimento, é fora de dúvida — conclui —, peremptoriamente — que é nula.
Se se faz uso de meios de constrangimento ilegal, análogos à tortura, a confis-
são não pode, absolutamente, fazer fé, porque parece não ser senão a consequên-
cia dos meios de sugestão, enquanto durava o constrangimento.” Escrevendo, na
sua Lógica das Provas em Matéria Constitucional, digo, Criminal, p. 205, 206,
Malatesta, por sua vez, chama a atenção “para as formalidades a que se deve
atender para avaliação da confissão”, e, relativamente a essas formalidades, “diz
compreender-se como se deva ser mais escrupuloso em exigi-las e avaliá-las, pela
sua particular importância. Será, por isso, importante atender à natureza do inter-
rogatório, para a própria avaliação da confissão. Uma confissão, pondera ele, que
parece derivar de uma sugestão ilícita do inquirente, perderia todo o seu valor; e
terminantemente, conclui — a confissão deve ser espontânea, e não extorquida,
insidiosamente, ou por meio de violência”. Ora, não tendo sido livre e espontânea
a confissão de Euclides Timoteo de Lima, mas obtida e arrancada a pancadas, se-
gundo já foi exposto, que valor, na sua avaliação, intrínseca ou subjetiva, lhe pode
empestar o juiz? É, não há negar, inválida, pois, não satisfaz às condições intrín-
secas e formais exigidas pela lei. Verifica-se, além disso, dos autos que todas as
testemunhas ouvidas nas investigações policiais, à exceção do guarda José
Rosendo dos Santos, não confirmaram, em juízo, integralmente, as declarações
ali prestadas. Testemunha de memória fraca, sendo auxiliar da Polícia, não sabe
este depoente os dias em que ali esteve de serviço, por mais recentes que fossem.
Só sabe, sem pestanejar, que Euclides Timoteo confessou. Mas, como decidiu o
Tribunal de Justiça do Distrito Federal em acórdão de 31 de março de 1938, in-
serto na Revista de Direito, vol. 131, “não tem nenhum valor a confissão que é feita
na Polícia, perante agentes, como testemunhas, mormente se estas, ao deporem
em juízo, não a sabem relatar com precisão”. Confrontando-se, porém, passagens
do depoimento dessa testemunha sobre a ida de um dos sicários ao Hospital Santa
Isabel, em companhia ou por inspiração do tenente coronel Afonso, para conhecer
o Dr. Carlos Firpo, com as datas de viagem deste para o Rio e para Aracaju, ida
de trem a 21 de março e regresso a 13 de abril, sempre de trem, verificar-se-á
quanto ela é inverídica, pois constatar-se-á que dois dias antes o tenente coronel

354
Ministro Nelson Hungria

Afonso ir a Paulo Afonso, isto é, no dia 11 de abril não era possível encontrar o Dr.
Carlos Firpo naquele nosocômio, pois estava viajando e, portanto, ausente do Estado.
Assim sendo, nenhum crédito merece. A testemunha Eunice Maria dos Santos foi
também levada à Estrada da Cerâmica, à noite, e submetida a sevícia, tendo ficado
com sua genitora Maria da Conceição Santos e Gilena Santana, sob custódia de pes-
soas influentes e internadas no Hospital de Santa Isabel, para que não tivessem liber-
dade de movimentos e recebessem a orientação que lhes inculcava. Não é aceitável a
versão de que tenha havido, no avião, em Paulo Afonso, uma conferência, a portas
fechadas, do coronel Afonso com os autores materiais do delito, porque o avião mili-
tar que viajou para ali, não tem portas, só dando lugar a uma pessoa, em cada as-
sento, e ficando a segunda, atrás da primeira, separada desta por engrenagens, sendo
a aeronave toda envidraçada, podendo, assim, os ocupantes ser vistos de fora. Sendo
o coronel Afonso natural de Glória e tendo sua genitora lá residente, o fato de ir até
lá, como o fazia, sempre que vinha a Sergipe, não pode sequer constituir indício re-
moto de coautoria intelectual, no crime de que se trata. Diz-se, nos autos, que, nas
vésperas do crime, os autores materiais procuraram o tenente coronel Afonso, na
casa de seu irmão Dr. Afonso Ferreira dos Santos, sendo atendidos por este e infor-
mados de que ele não estava ali, no momento. Qual a razão, por que o Dr. Afonso
Ferreira dos Santos não foi chamado a depor, fazendo-se a acareação dele, como fa-
zia mister com os agentes materiais do crime? E por que razão, nas investigações
policiais, não se ouviu o tenente coronel Afonso, para confrontá-lo com os seus acu-
sadores? Em relação ainda à não participação do tenente coronel Afonso no delito
não se deve perder de vista o que declarou Euclides Timoteo ao deputado Seixas
Dória, quando interpelado por este, exprimindo-se por esta forma: “Só se o coronel
me enganava e não era mesmo o coronel Afonso.” Ora, depois de tanta confabulação
que se diz ter havido, entre Euclides Timoteo e o tenente coronel Afonso, como ex-
plicar essa dúvida do principal mandátario? Por ela, não se torna manifesto que
Euclides Timoteo não identificava o tenente coronel Afonso e tinha incerteza de ha-
ver ajustado qualquer coisa com ele? Por outro lado, a fé de ofício do tenente coronel
Afonso, valoroso oficial da Aeronáutica, repele a acusação que se lhe faz, com essa
fragilidade, não só pelo modo como foi extorquida a confissão de Timoteo, como
também pela inexistência de relações ilícitas, entre ele e a esposa do Dr. Carlos
Firpo. Há ainda a acrescentar que todos os que conhecem o tenente coronel Afonso
sabem-no capaz de fazer e de não mandar fazer. Segundo é corrente e moente, nesta
capital, tornando-se, assim, fato notório, Pereirinha tem dito a pessoas que com ele
têm conversado na penitenciária, não ter sido ele próprio que feriu o Dr. Carlos Firpo,
mas Euclides Timoteo, Tem esclarecido que o encontro dos mandatários com o man-
dante, numa das ruas desta capital, não ocorreu na data apontada no processo, mas
no dia do crime. Nesse dia, entretanto, o tenente coronel Afonso estava no Rio. Como
confabular com os sicários, pessoalmente, em Aracaju, nesta data? Muitos outros
fatos e circunstâncias que emergem do processo concorrem para infirmar e vulnerar

355
Memória Jurisprudencial

a acusação, com a feição que lhe foi dada, como sejam a substituição clandestina de
páginas do inquérito policial depois de haver dada entrada em juízo e ser enviado à
Polícia, para uma diligência; a carta afetuosa e quase paternal do delegado Nolasco à
mulher de Timoteo, enviando-lhe dinheiro; o atestado de óbito de Euclides Timoteo
contendo nome suposto; a declaração do médico que o firmou, dizendo haver-lhe
encontrado o cadáver na estrada; a realização de uma apressada audiência, em dia
feriado, para a inquirição de determinadas pessoas, sem prévia notificação e pre-
sença dos advogados dos acusados; a inexistência de uma só testemunha que afirme
ter sido Pereirinha o executor do golpe no Dr. Carlos Firpo, ficando reduzida, por-
tanto, à única e exclusiva informação desse acusado tudo o que consta a respeito nos
autos. O corte do fio telefônico, no momento do delito, na casa da vítima, só diz a
favor das pessoas de sua família que estavam dentro dela, pois, se não quisessem
chamada, para o exterior, ou vice-versa, bastaria que retirassem o fone do gancho ou
não fizessem ligação alguma, pedindo socorro. Ao contrário disso, há, nos autos,
provas robustas de que os pedidos de socorro, por parte daquelas pessoas, quando
despertadas, com a eclosão da tragédia, foram feitos a gritos de desespero e de afli-
ção e através do telefone do vizinho, ao acorrer este último em seu auxílio. O depoi-
mento do general Nelson de Oliveira Sampaio, concunhado da vítima, não pode ser
avaliado, senão com as devidas reservas, pois sendo sua esposa, parte no processo,
como assistente da acusação, não se pode negar-lhe qualidade, incorrendo, portanto,
em suspeita de parcialidade. Não residindo essa testemunha nesta capital, teatro dos
acontecimentos, mas no Rio, é muito compreensível tivesse aceito versão truncada
do crime, como lha transmitiram e se supôs, de início, ser exata quanto não era co-
nhecida a maneira como foram realizadas as investigações policiais. Ainda que não
estivessem exuberantemente provadas as torturas infligidas a Euclides Timoteo, para
arrancar-lhe a confissão, o lugar ermo, em que interrogado, a céu descoberto e a
altas horas da noite, bastariam, por si sós, irrefragavelmente, para retirar-lhe qual-
quer vislumbre de procedência. As indicações, por ele feitas, naquela ocasião, de
nomes de mandantes, não pode produzir efeitos, não sendo necessário obtemperar
que a referida confissão, além de não ter sido livre e espontânea, não obedeceu à
forma prescrita em lei. Não foi reduzida a termo; nem lida na presença de duas tes-
temunhas a quem, como confitente, deveria subscrevê-la. Cumpre acentuar que
sendo inaceitáveis as declarações de nomes de mandantes atribuídas a Euclides
Timoteo, em razão do modo por que foram extorquidas, não se apresentam persis-
tentes nem uniformes. Por elas, foram indicadas várias pessoas: Carlos Alberto, um
médico, Luchinho e Afonsinho e, por último, o tenente coronel Afonso Ferreira. O
depoimento do Sr. secretário da Justiça dá bem a medida como conseguiu a Polícia
incluir o nome do tenente coronel Afonso no rol das pessoas indicadas por Timoteo.
Em relação a José Pereira dos Santos, se bem que tenha como provada a sua partici-
pação, como um dos dois agentes materiais do delito, não aceito, a seu respeito, a
versão, esposada pela acusação, de que tenha sido ele, pessoalmente, o autor

356
Ministro Nelson Hungria

do intenso golpe desferido contra o Dr. Carlos Firpo. Estribo-me, para isso, em dois
motivos: sendo ele canhoto, e aparecendo, em uma das fotografias de reconstituição
do delito, efetuada pela Polícia, a empunhar a peixeira homicida, com a mão es-
querda, não daria, com esta, um golpe de extensão e profundidade, como o que foi
desferido contra o Dr. Carlos Firpo. Tudo indica que o referido golpe foi de autoria
pessoal de Euclides Timoteo. Além de magarefe profissional, vivendo da matança de
porcos e carneiros, ultimamente, era também profissional do crime. E o Dr. Augusto
Azevedo, testemunha de elevado conceito, depôs ter assistido Timoteo dizer que era
culpado de ter pessoalmente morto o médico. E o outro é o seguinte: na camisa que
vestia Euclides Timoteo, no momento do crime, foram encontrados, na parte interna
do punho da manga direita, uma ligeira mancha vermelha e alguns traços vermelhos,
em outros lugares dessa peça do seu vestuário. Apreendida pela Polícia essa camisa,
na sua residência, em Paulo Afonso, não foi remetida à Justiça, para ser submetida ao
necessário exame pericial. Desejando a defesa provar, por meio de nova reconstitui-
ção do crime, realizada perante a Justiça, não ter sido Pereirinha o autor do golpe, lhe
foi, entretanto, indeferida essa diligência. Em relação ainda a Pereirinha, nunca se
lhe permitiu falar a sós com o seu defensor, dando essa ilegal restrição lugar até a
uma reclamação da Secção da Ordem dos Advogados Brasileiros, neste Estado, con-
forme consta dos autos. Não considero indício suficiente, nem sequer remoto, contra
os acusados Nicola Mandarino, Milena Mandarino Firpo e Gilena Santana, o fato de
estarem dormindo à noite, no mesmo prédio em que dormia o Dr. Carlos Firpo, no
dia em que foi assassinado. Tratando-se de sogro, mulher e empregada da vítima,
eram, portanto, pessoas da família e da intimidade daquela. Nada há, por conse-
guinte, de estranhável que ali estivessem e o fato, por si só, nada demonstra contra
esses três indiciados, principalmente, quando se considere que sogro e mulher se
encontravam na melhor harmonia com a vítima, com a qual regressaram para o lar,
no dia do crime, de jeep, cerca de 23 horas da noite, recolhendo-se cada qual aos seus
aposentos e só sendo despertados pelo grito daquela, ao receber o golpe que lhe rou-
bou a vida. Do depoimento, na instrução, da testemunha Paulo Rosa Santos, jardi-
neiro da residência do Dr. Carlos Firpo, consta que “o Sr. secretário de Segurança lhe
perguntava se havia namoro entre o coronel Afonso e Dona Milena e o depoente di-
zia que não; perguntava se o coronel era amigo do Dr. Carlos e o depoente respondia
que eram muito amigos, até o dia da morte: perguntava se achava que a porta, tinha
sido aberta por dentro ou por fora e o depoente respondia que a porta fora aberta por
fora, mas que, no seu depoimento eles botaram por dentro, quando ele dissera que
fora por fora. Ora bem. Se é ponto importante, no caso, saber como foi aberta a porta,
por onde entrou o sicário na residência do Dr. Carlos Firpo, para perpetrar o delito, aí
está um esclarecimento preciso, fazendo luz sobre ele e que não pode ser desprezado.
Como, pois, atribuir a uma das três pessoas adultas que estavam dentro da casa, no
momento do crime, o desempenho desse concurso, quando não havia nenhum mo-
tivo de hostilidade entre elas e o Dr. Carlos Firpo? E, como, escolher-se, entre elas, a

357
Memória Jurisprudencial

que o teria prestado, como identificá-la como tendo sido a indiciada Milena
Mandarino Firpo, quando todas o negam? Somente, não duvida, por prestidigitação.
Assim, a má impressão que a primeira vista tenha produzido o caso dos autos,
quanto aos indigitados nele de autoria intelectual, ante a publicidade dirigida que se
fez, para atingir a determinado fim, invertendo e subvertendo os fatos, será apagada,
totalmente, quando se lhe faça atento, consciencioso e desapaixonado estudo, po-
dendo-se, depois, invocar a seu respeito, o conhecido provérbio inglês de que cem
coelhos não valem um cavalo, nem cem conjecturas constituem uma prova.
Incriminar a qualquer das pessoas que estavam, dentro de casa, no momento em que
se consumou o crime, sem qualquer prova que autorize a fazê-lo, é inteiramente ab-
surdo, porque como li alhures, “em todas as acusações graves e importantes, não é
pelas alegações do acusador, mas segundo o caráter do acusado que se deve apreciar
o que um homem intentou empreender ou executar; ninguém se transforma de um
salto; ninguém muda em um momento de conduta e de caráter.” A acusação, baseada
nessa tênue e desvaliosa circunstância, sem nenhum elemento que a supedite, a não
ser o conjectural, faz até lembrar o célebre caso Calas, que André Maurois assim
narra, na sua biografia de Voltaire e que, mutatis mutandis, oferece, sob certos aspec-
tos, muitas semelhanças com o que estamos apreciando: “Nos fins de março de 1762,
um viajante que vinha do Languedoc passa por Ferney e conta a Voltaire um caso
judicial que acabava de emocionar a cidade de Toulouse. Jean Calas, negociante pro-
testante muito conhecido nessa cidade, fora supliciado nas seguintes circunstâncias:
Um dos seus filhos, Marcos Antonio Calas, rapaz de genio sombrio havia muito
tempo, fora atacado de melancolia. Não podia prosseguir nos estudos e estava no seu
direito, porque era protestante. Ora, ele não desejava ser negociante como o pai. Suas
leituras eram Hamlet e as páginas de Sêneca, sobre o suicídio. Um dia, a 13 de outu-
bro de 1761, quando a família hospedava um dos seus amigos, ele se levanta da
mesa, antes dos outros e passa pela cozinha, onde lhe diz a criada: “O senhor
está muito perto do fogo”. “Ah! respondeu ele — estou queimado”. Depois
disso, vai para o armazém. Um pouco mais tarde, o amigo e hóspede deseja par-
tir. O segundo filho guia-o com luz através do armazém e descobre o seu irmão
enforcado na porta. Grita; o pai e a mãe correm para ver de que se tratava.
Corta-se a corda, chegam vizinhos e logo algum fanático insinua que Marco
Antonio fora assassinado pelos seus parentes; que ele queria ser católico; que
iria abjurar na manhã próxima e que é regra entre os protestantes um pai de fa-
mília preferir a morte de um filho à sua abjuração. A acusação parecia absurda.
Esse costume nunca existira entre os protestantes. Todas as testemunhas da
vida dos Calas descreviam a ternura e a indulgência do pai. Um dos seus filhos,
Luiz, convertera-se pouco antes sob a influência de uma criada católica; Calas
perdoara o filho e até conservara a criada. Enfim, como poderia um ancião en-
forcar um jovem vigoroso? Era preciso admitir a cumplicidade de toda a família
e do hóspede. Pode-se imaginar um pai, uma mãe e os irmãos, se reunirem para

358
Ministro Nelson Hungria

matar um dos seus? Além disso, nenhuma testemunha séria poderia provar que
a vítima pensasse em abjurar. Mas, o caso cai nas mãos de um magistrado apai-
xonado. Os devotos metem-se nele. Faz-se um solene serviço público para
Marco Antonio, numa igreja revestida de branco, no meio da qual se colocara
um esqueleto emprestado por um cirurgião. Esse esqueleto tinha numa das
mãos um papel: “Abjuração contra a heresia”; na outra, uma palma, símbolo do
seu martírio. O caso vai ao Parlamento de Toulon. Todos os Calas, presos, foram
interrogados, separadamente. Todos sustentaram a verdade do primeiro depoi-
mento. Por oito votos contra cinco, o pai foi condenado a morrer sobre a roda,
seu filho Pedro banido, os outros postos em liberdade. Julgamento tão estúpido
quanto cruel, porque ou toda família era cúmplice ou toda ela era inocente. O
velho Calas sofria esses horrores com uma constância admirável. Interrogado
sobre os seus cúmplices, não cessa de responder: Ah! Onde não há crime, pode
haver cúmplices?” Afinal, foi supliciado. Essa história impressiona muito
Voltaire. O crime atribuído aos Calas, parece-lhe inverossímil, mas mal podia
acreditar na maldade dos magistrados de Toulouse. Sabe que uma parte da fa-
mília fora refugiar-se perto de Ferney, em Genéve. Fê-la ir à sua casa e, depois
de os ter interrogado muitas vezes, não duvida de sua inocência. A partir desse
momento, e durante quatro anos, a reabilitação dos Calas torna-se a grande ta-
refa da sua vida. O parlamento de Paris avoca o processo e se conduz bem.
Cassa a sentença de Toulouse. Trinta anos depois, a Convenção Nacional de-
creta seja erguida por conta da República, no lugar onde o fanatismo fizera mor-
rer Calas, uma coluna de mármore, na qual seria gravada a seguinte inscrição:
“A Convenção Nacional ao Amor Paterno, à Natureza, a Calas, vítima do fana-
tismo”. Quanto aos indigitados autores intelectuais, tudo o que se alegou contra
eles, como se apura dos autos, não implica em ação, não atinge sua responsabi-
lidade, sua vontade, ou culpabilidade. Não há contra eles a demonstração de um
acordo de vontades – o concursus plurium ad idem delictum, e do processo não
sobressaem senão fatos isolados, sem relações e sem entrelaçamentos com o
crime que lhes imputa; não há contra eles um conjunto de fatos, um conjunto
cronológico que traduza um concerto de vontades, para dirigi-los a um fim, es-
tabelecendo uma correlação entre o delito e sua conduta. Tudo, em seu desfavor,
não sai do terreno das conjecturas. Em matéria de autoria intelectual, entre-
tanto, como decidiu o Tribunal de Justiça de Goiás, no Acórdão de 26 de março
de 1941, “não se pode aceitar qualquer gênero de prova afim de se haver a
mesma como apuradas; pelo contrário, é mister que semelhante prova seja
plena, isto é, completa cabal. “A meu ver, o mistério, quanto à autoria intelectual
do nefando assassinato do Dr. Carlos Firpo, continua indecifrado e a exigir so-
lução. Seu termo, porém, não pode ser a culpabilidade de inocentes, por mais
repulsivo e bárbaro que tenha sido aquele crime. No prefácio do tradutor fran-
cês do Tratado da Prova em Matéria Criminal, de Mittermayer, encontram-se

359
Memória Jurisprudencial

ensinamentos cuja aplicação se impõe neste instante, em face das graves irregu-
laridades verificadas neste processo, desde o seu início na Polícia, ao encerra-
mento da instrução em juízo, para mostrar como ele dista das regras de
verificação jurídica dos fatos, salvaguardas do próprio processo e das pessoas
nele indigitadas e que põem de manifesto que a justiça penal não pode degene-
rar em desforço ou vingança. Deixa ali assentado o referido tradutor o seguinte:
“O fim da lei penal é a repressão do delito, mas, antes de puni-lo, é mister veri-
ficar a sua existência; daí a necessidade da prova. Como fazer a prova? Como
procurar a Justiça os meios de uma apreciação certa do fato e da intenção qua-
lificadora do crime? Como dar, ao mesmo tempo, à ordem social lesada garan-
tias de uma infalível repressão, ao cidadão acusado as garantias devidas à
liberdade que a lei social promulga, ao homem, inocente talvez, as devidas à sua
segurança individual? Problemas imensos, cuja solução compreende a organi-
zação de todo processo penal! Com razão se disse que a lei, que fixa o modo e a
taxa da pena, é menos importante talvez do que a lei do processo que determina
as formas necessárias para assegurar a sua aplicação. Quando a prova é mani-
festa, a pena é sempre uma consequência necessária e, portanto, ganha com isto
a causa da Justiça. Quando, pelo contrário, a prova é mal ordenada, a sentença,
em lugar da verdade, pode decretar o erro, em lugar do culpado, condenar um
inocente; pode fazer nascer em todos os espíritos a desconfiança e neles destruir
o respeito à lei em seu princípio, que é a face sagrada da ordem pública.” Cabe,
pois, ao juiz de instrução, que tem a missão de investigar e fornecer os materiais
da prova, não se afastar dos aludidos ensinamentos, decorrendo daí, para todos
os espíritos sérios, a necessidade do exame de bases fundamentais da prova,
antes de qualquer pronunciamento, de acordo com a apreciação que a lei, a ló-
gica, e a sã experiência recomendam. A convicção íntima do juiz e a sã experi-
ência recomendam. A convicção íntima do juiz há de ser razoável, fundando-se
sobre graves motivos dos quais possa dar contas à sua própria consciência. E o
próprio Mittermayer doutrina, nesse pressuposto, à fl. 19 do seu supramencio-
nado Tratado, o seguinte: “Não é somente no final do processo, no momento em
que a sentença definitiva vai decidir se é verdadeira a acusação, se a culpabili-
dade existe, que o valor das provas produzidas se apresenta: é também no correr
e em cada uma fases do processo: o juiz formador da culpa, com efeito, deve
examinar se tal crime foi verossimilmente cometido, se tal ou tal pessoa é dele
culpado, e, conseguintemente, se deve proceder a tais ou tais diligências. Esta
questão se oferece ao juiz todas as vezes que examina: primeiro, se pode proce-
der contra uma determinada pessoa; segundo, se as presunções são bastante
graves, para autorizar uma prisão; terceiro, se estão cumpridas as condições que
autorizam a pronúncia. “Com estas ponderações, não quero dizer que todos
nesta cidade, não tenham ficado profundamente abalados, com o hediondo as-
sassinato do inditoso Dr. Carlos Firpo. Ao contrário, criou-se um clima psicológico

360
Ministro Nelson Hungria

de intensa prevenção contra os que, porventura, tenham participado de sua trai-


çoeira eliminação do seio dos vivos, altas horas da noite, quando repousavam no
seio da família, das fadigas de médico operoso e humanitário, dando margem a
que se aceitassem, sem maior ponderação e exame, quaisquer suspeitas de cul-
pabilidade na sua morte ou pretendendo-se aplicar à hipótese vertente o cálculo
de probabilidade. Mas este, como ensina Voltaire, na sua Politique et legislation
Essai sur les probabilités en fait de justice – 1792, invocado por Faberguettes,
na sua lógica Judiciária e Arte de Julgar, em nota inserta à p. 323/325: “é a ciên-
cia dos juízes, tão respeitável como a sua própria autoridade, pois que ela é o
fundamento das suas decisões. O juiz passa a vida a pesar probabilidades, a
calculá-las, a avaliar a sua força. No civil, tudo o que não está sujeito a uma lei
claramente enunciada, é sujeito ao cálculo das probabilidades. No criminal,
tudo o que não está provado evidentemente, também ao cálculo das probabili-
dades é sujeito, mas, com que diferença essencial: a vida e a morte, a honra de
uma família e a do seu opróbrio. Se se trata de explicar um testamento equívoco,
uma cláusula ambígua de um contrato de casamento, de interpretar uma lei obs-
cura sobre sucessões, sobre comércio, é absolutamente necessário que decidais,
e então a maior probabilidade vos dirige. Só se trata de dinheiro. Mas, já assim
não sucede, quando se trate de tirar a honra e a vida a um cidadão. Então, a
maior probabilidade não basta, porque: É que se um terreno é contestado entre
duas partes, é evidentemente necessário para o interesse público e para a justiça
particular, que uma das partes possua o terreno. Não é possível que ele a nin-
guém pertença. Mas, quando um homem é acusado de um delito, não é eviden-
temente necessário que, por via de maior probabilidade, seja entregue ao
verdugo. É possível que viva sem perturbar a harmonia do Estado. Pode bem ser
que vinte aparências em seu desabono sejam contrabalaçadas por uma só em
seu favor”. Somente diante do clima de repúdio e de revolta da opinião pública
em geral, se explica que as pessoas indigitadas de coautoria intelectual tenham
sido envolvidas no crime, sem o menor e mais leve resquício de culpabilidade,
urdindo-se lendas a mistificações que, como castelos de cartas, não resistem aos
mais leves sopros da verdade, quando se lhes examinam, na contradita que lhe
opõem expressivos e esclarecedores elementos contidos nos autos, sua absoluta
improcedência e a sua inelutável inconsistência. Se assim ocorre, não se poderá
condescender com o clamor da indignação geral, ante a enormidade do mons-
truoso crime, para sacrificar, cegamente, a inocentes, decaindo-se do uso da
razão, aceitando as demasias, as incongruências e os atentados às formas prote-
toras das garantias individuais que, em delírio, foram solertemente praticados
em todo decorrer do processo, a título de responsabilidades. Na conturbada at-
mosfera que empolgou a todos os espíritos, nesta capital, não foi, destarte difícil,
chegar a conclusões precipitadas e totalmente falsas, aceitar verdadeiros absurdos,
dando-se valor a atoardas duvidosas e imaginárias, sem pesá-las maduramente, sem

361
Memória Jurisprudencial

ir-lhes ao âmago, como se fazia mister. Entretanto, como adverte Gabba, “em todo e
qualquer processo, nunca se poderá considerar averiguada a criminalidade do acu-
sado, senão em virtude de um confronto entre a querela e a defesa, depois de aduzi-
das as provas de ambos” (Rettroativitá delle legge, v. 2º, p. 408: Rettroativitá in
materia penale, p. 189). No caso sub judice, o juiz a quo não fez esse indispensável
confronto e daí a sua sentença de pronúncia, quanto aos presumidos autores intelec-
tuais, ter caráter manifestamente unilateral. Não se fundamenta na prova contraditó-
ria produzida em juízo, mas em simples presunções. Como doutrina Malatesta, à fl.
195, da sua Lógica das Provas em Matéria Criminal, “A Justiça penal não atinge o
seu fim, ferindo um bode expiatório qualquer; é-lhe necessário o verdadeiro delin-
quente, para que a sua ação seja legítima”. E como o juiz é proposto no crime, tanto
para a convicção, como o juiz, digo, como para a defesa do réu, nego provimento aos
recursos interpostos pelo Ministério Público, assistente da acusação e José Pereira
dos Santos, vulgo Pereirinha e dou provimento aos recursos do tenente coronel
Afonso Ferreira Lima, Milene Mandarino Firpo e Enoque Pessoa de Carvalho, para,
reformando, em parte, a sentença recorrida, despronunciá-los da acusação que lhes
foi intentada, porque, de modo algum, concorreram para o crime. E mando que se
apure a responsabilidade dos implicados na eliminação de Euclides Timoteo de
Lima.”
À vista disso, Senhor Presidente, à vista de tudo isso, concedo o habeas cor-
pus, pois a pronúncia do paciente desatendeu, indubitavelmente, o dispositivo do art.
408 do Código do Processo Penal.

HABEAS CORPUS 37.928 — SP

Habeas corpus: sua concessão, quando o fato imputado não


constitui crime.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Diante o evidente propósito do Dr.
juiz da Comarca de Jales no sentido de sonegar a esta Corte o conhecimento dos au-
tos originais do processo contra o paciente, temos de julgar o caso, que está a pedir
solução urgente, em face das certidões que instruem a inicial. As informações presta-
das, aliás, como já salientei, não contestam os fatos referidos na inicial, confirmando
que ao paciente é imputado o fato de, como líder de um grupo de lavradores, haver
incitado estes a danificar a propriedade alheia e criado um clima de intranquilidade
na região. Não é a primeira vez que, por fato perfeitamente idêntico, o paciente é

362
Ministro Nelson Hungria

processado como infrator da Lei de Segurança, tendo obtido habeas corpus há cerca
de dois anos, dada a ausência de ilicitude penal. É positivamente abusar dos vocábu-
los dizer que, pelo fato de haver o paciente induzido os arrendatários de uma fazenda
a arrancar o capim “Colonião” que ali haviam plantado, quando ainda esperançosos
de ver prorrogado o seu contrato de arrendamento, praticou ele o crime de “incitar
diretamente e de ânimo deliberado as classes sociais à luta pela violência”. O latifun-
diário José Carvalho Diniz e um grupo de pequenos lavradores, interessados estes
na continuidade de um arrendamento que lhes asseguraria o proveito do esforço em-
pregado nas terras arrendadas, erigidas em “classes sociais”! Não pode haver maior
incompreensão de uma lei que, editada para segurança da ordem político-social, é
de todo inaplicável para a solução de uma pendenga entre arrendante e arrendatários
de terras, a resolver-se exclusivamente no j­u­­­í­­­­­­zo cível, por outro lado, como se pode
configurar no caso vertente invasão de estabelecimento agrícola com o objetivo de
impedir o trabalho e subverter a ordem político-social, quando o máximo que se po-
deria reconhecer seria esbulho possessório, exercício arbitrário das próprias razões
ou danificação de coisa sem violência à pessoa, não se apresentando, portanto, dado
o confinamento das partes a um limitado círculo de pessoas, crime algum ou, pelo
menos, crime de ação pública?
O paciente foi apenas sacrificado à prepotência e ao prestígio do proprietário
da Fazenda Mariana, na comarca de Jales.
Concedo a ordem para que seja ele imediatamente posto em liberdade, arqui-
vando-se o processo contra ele instaurado.

HABEAS CORPUS 38.186 — GB


Prescrição; deve ser declarada se entre o momento da última
causa interruptiva e a sentença condenatória, de que não apelou o
Ministério Público, decorreu tempo suficiente, tendo-se em vista a
pena concretizada.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): Não se apresenta, na espécie, a
torpeza bilateral que, na opinião de grande número de escritores de direito penal,
entre os quais me incluo, exclui o estelionato. Aquele que procurou um curandeiro,
na esperança de alívio para seus males, evidentemente não está visando a fim ilícito
ou imoral. Seu objetivo não é contribuir para o exercício do curandeirismo, mas
obter cura ou lenitivo para sua enfermidade. Notadamente os curandeiros espíritas
gozam de grande prestígio no seio de pessoas crédulas ou simplórias. Reconhecendo

363
Memória Jurisprudencial

o estelionato precisamente na exploração fraudulenta do sobrenatural, já assim


dissertei:
A crença em poderes sobrenaturais é frequentemente explorada pela fraude,
em detrimento da bolsa alheia. O sobrenatural representa uma verdadeira neces-
sidade espiritual para um sem número de indivíduos, que, muitas vezes, imbuídos
de uma fé ingênua e irrestrita, são levados a crer facilmente na influência de forças
metafísicas sobre as coisas terrenas, deixando-se atrair por aqueles que, sob pretexto
de manifestação de um culto ou de uma invocação religiosa, visam apenas a usurpar
o dinheiro alheio.
No caso vertente, quando os lesados entregavam valores aos pacientes para
recompensar o imaginário medicine man espirita, não estavam invertendo seu pa-
trimônio em fim contrário ao direito ou à moral, mas convictos de que iriam receber
o benefício de debelação de suas doenças. Argumenta o impetrante que não seriam
repetíveis os valores entregues. Não é exato. O que declara o art. 971 do Código Civil
é que “não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito,
imoral ou proibido por lei”. Seria um despropósito considerar-se fim ilícito, imoral ou
proibido por lei o procurar alguém refazer-se dos próprios males por meios que julga
eficientes, sem dano a outrem.
Denego a ordem.
VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): O Tribunal já conhece meu ponto
de vista nesta matéria de prescrição relacionada à pena concretizada na sentença
condenatória. Entendo que o Código vigente não alterou, nesse particular, o Decreto
4.780, de 1923. A prescrição se regula pela pena imposta, desde que não interposta
apelação pelo Ministério Público, impossibilitando uma reformatio in pejus; e deve
ser declarada se, entre o recebimento da denúncia e a própria sentença condenatória,
já decorreu tempo suficiente.
Concretizada a pena, com a qual concordou o Ministério Público, essa é a
pena que ab initio era justa. A pena, cominada in abstracto, a que se referia a de-
núncia, revelou-se, na espécie, demasiada. A pena adequada, a pena que realmente
devia ter sido solicitada pelo Ministério Público era a que veio a ser imposta pelo juiz.
Assim, a prescrição deve ser entendida como relacionada, desde princípio, à pena
aplicada in concreto. Era este o critério de decisão do Decreto 4.780, e não é crível
que, se o Código o tivesse alterado, não o mencionasse a “Exposição de Motivos”
do ministro Campos, limitando-se a dizer que, no tocante à prescrição, o Código se
limitava a aumentar os prazos prescricionais. Embora rejeitado pela maioria desta
Corte, esse meu entendimento tem sido acolhido por vários tribunais estaduais e
doutrinadores de indiscutível autoridade.
Concedo o habeas corpus, reconhecendo a extinção da punibilidade por
prescrição.

364
Ministro Nelson Hungria

HABEAS CORPUS 38.193 — GB


VOTO
(Preliminar)
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, rejeito a preliminar, que
não tem, no caso, fundamento.
Trata-se de ameaça de internação num estabelecimento de assistência a meno-
res que se transformou, na prática, numa fábrica de criminosos, onde não há ensino
secundário senão para a perversão moral. É isto o que se quer evitar a esse menor: o
constrangimento de internação num reformatório falido, que, ao invés de reabilitá-lo,
apenas o aviltará irremediavelmente.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 42.539 — DF


VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria: Senhor Presidente, reputo constitucional o
imposto de transação. Não vejo a arguida bitributação. O imposto de selo incide so-
bre o documento como meio probante, ou portador de “coação jurídica”, enquanto o
imposto de transação incide sobre o negócio substancial, representativo de circulação
de riquezas. Cotejados os dois impostos, verifica-se que diverso é o fato gerador.
Rejeito a arguição de inconstitucionalidade.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO CRIMINAL 46.523 — SP

Falta de intimação da expedição de precatória inquisitiva; é


nulidade que se considera sanada, desde que não arguida oppor-
tuno tempore.

VOTO
O Sr. Ministro Nelson Hungria (Relator): A omissão de intimação às par-
tes, da expedição de precatória inquisitória, é nulidade enquadrada no art. 564,
inciso IV, do Código de Processo Penal e, portanto, se considera sanada, na con-
formidade do art. 572, II, desde que não arguida no prazo do art. 500, ut art. 571,
n. II, do mesmo Código. Não há dizer que tal omissão não é sanável pelo silên-
cio das partes, porque infringe o princípio da contraditoriedade e da plenitude
da defesa consagrado no art. 141, § 25, da Constituição, pois a lei processual
365
Memória Jurisprudencial

oferece pleno ensejo às partes para arguirem a nulidade daí decorrente, e se


o ensejo não é aproveitado, entende-se, com toda razão, que houve renúncia a
decretação da nulidade, isto é, presume-se juris et de jure que as partes não se
julgaram prejudicadas.
Ofensa haveria, sim, ao referido princípio se não fosse proporcionada às
partes ocasião para postularem a nulidade.
Conheço do recurso pelo seu fundamento e lhe dou provimento.

366
Ministro Nelson Hungria

ÍNDICE NUMÉRICO

IF 20 Rel.: Min. Nelson Hungria 171


Den 118 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 172
AR 154 Rel. p/ o ac.: Min. Hahnemann Guimarães 174
Rp 164 Rel.: Min. Mario Guimarães 175
Rp 179 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 177
Rp 199 Rel.: Min. Luiz Gallotti 177
Rp 200 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 180
Rp 210 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 181
Rp 211 Rel.: Min. Nelson Hungria 183
Rp 212 Rel.: Min. Mario Guimarães 186
AR 215 Rel.: Min. Edgard Costa 186
Rp 243 Rel.: Min. Edgard Costa 187
Rp 248 Rel.: Min. Nelson Hungria 188
Rp 249 Rel.: Min. Nelson Hungria 189
AR 270 Rel.: Min. Mario Guimarães 190
Rp 406 Rel.: Min. Vilas Boas 191
Rp 414 Rel.: Min. Nelson Hungria 193
Rp 423 Rel. p/ o ac.: Min. Sampaio Costa 193
Rp 432 Rel.: Min. Ary Franco 194
RC 993 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 195
RC 1.024 Rel.: Min. Barros Barreto 196
RC 1.032-EI Rel. p/ o ac.: Min. Henrique D'Ávila 203
MS 1.277 Rel. p/ o ac.: Min. Abner de Vasconcelos 206
MS 1.277-embargos Rel.: Min. Afrânio Costa 209
ACr 1.448 Rel.: Min. Mario Guimarães 209

367
Memória Jurisprudencial

ACr 1.450 Rel.: Min. Barros Barreto 211


ACr 1.452 Rel. p/ o ac.: Min. Edgard Costa 213
ACr 1.455 Rel.: Min. Abner de Vasconcelos 214
ACr 1.456 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 214
ACr 1.462 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 215
ACr 1.479 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 216
ACr 1.486 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 216
ACr 1.496 Rel.: Min. Mario Guimarães 218
ACr 1.497 Rel.: Min. Nelson Hungria 218
ACr 1.498 Rel. p/ o ac.: Min. Orozimbo Nonato 219
ACr 1.504 Rel. p/ o ac.: Min. Abner de Vasconcelos 219
ACr 1.511 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 219
ACr 1.515 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 220
ACr 1.516 Rel.: Min. Nelson Hungria 222
ACr 1.530 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 223
CJ 1.908 Rel.: Min. Nelson Hungria 225
MS 1.959 Rel.: Min. Luiz Gallotti 226
CJ 2.046 Rel.: Min. Nelson Hungria 227
MS 2.089 Rel.: Min. Orozimbo Nonato 228
MS 2.655 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 229
MS 3.126 Rel.: Min. Sampaio Costa 234
MS 3.557 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 235
RvC 4.544 Rel.: Min. Afrânio Costa 239
ACi 7.496-embargos Rel.: Min. Edgard Costa 240
ACi 9.597 Rel.: Min. Nelson Hungria 240
RE 15.343 Rel.: Min. Nelson Hungria 241
RE 16.596 Rel.: Min. Nelson Hungria 247

368
Ministro Nelson Hungria

RE 16.847 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 248


RE 18.606 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 249
RE 18.998 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 250
RE 19.027 Rel.: Min. Barros Barreto 251
RE 19.285 Rel. p/ o ac.: Min. Barros Barreto 252
RE 19.285-embargos Rel.: Min. Afrânio Costa 252
RE 19.715 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 256
RE 20.256 Rel.: Min. Mario Guimarães 256
RE 21.046 Rel.: Min. Nelson Hungria 258
RE 21.198 Rel.: Min. Luiz Gallotti 260
RE 21.219 Rel.: Min. Luiz Gallotti 261
RE 22.542 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 263
RE 23.584 Rel.: Min. Nelson Hungria 264
RE 26.855 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 265
RE 27.209 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 266
RE 27.507 Rel.: Min. Nelson Hungria 266
RE 30.424 Rel.: Min. Ribeiro da Costa 269
HC 31.552 Rel.: Min. Rocha Lagôa 269
HC 31.623 Rel.: Min. Nelson Hungria 272
HC 31.635 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 273
HC 31.649 Rel.: Min. Abner de Vasconcelos 274
HC 31.653 Rel.: Min. Luiz Gallotti 276
HC 31.682 Rel.: Min. Lafayette de Andrada 278
RHC 31.799 Rel.: Min. Barros Barreto 280
HC 32.036 Rel.: Min. Nelson Hungria 280
HC 32.097 Rel.: Min. Mario Guimarães 283
HC 32.217 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 284

369
Memória Jurisprudencial

RHC 32.228 Rel.: Min. Lafayette de Andrada 285


HC 32.271 Rel.: Min. Luiz Gallotti 286
HC 32.331 Rel.: Min. Luiz Gallotti 287
HC 32.386 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 290
HC 32.468 Rel.: Min. Nelson Hungria 293
HC 32.618 Rel.: Min. Nelson Hungria 300
HC 32.680 Rel.: Min. Rocha Lagôa 302
HC 32.883 Rel.: Min. Afrânio Costa 304
HC 32.928 Rel. p/ o ac.: Min. Rocha Lagôa 306
HC 32.983-AgR Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 309
HC 33.123 Rel.: Min. Abner de Vasconcelos 310
HC 33.135 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 310
HC 33.150 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 310
HC 33.440 Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 312
HC 33.515 Rel.: Min. Luiz Gallotti 316
HC 33.780 Rel.: Min. Sampaio Costa 317
RE 33.827 Rel.: Min. Ary Franco 320
HC 33.908 Rel.: Min. Afrânio Costa 322
HC 34.088 Rel.: Min. Barros Barreto 323
HC 34.103 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 324
HC 34.114 Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 324
HC 34.809 Rel.: Min. Nelson Hungria 331
HC 35.315 Rel.: Min. Ary Franco 333
HC 35.742 Rel. p/ o ac.: Min. Afrânio Costa 333
HC 36.801 Rel.: Min. Candido Lôbo 335
HC 36.897 (segundo) Rel. p/ o ac.: Min. Nelson Hungria 338
HC 36.908 Rel.: Min. Luiz Gallotti 339

370
Ministro Nelson Hungria

HC 37.399 Rel. p/ o ac.: Min. Henrique D'Ávila 339


HC 37.522 Rel.: Min. Nelson Hungria 341
HC 37.921 Rel.: Min. Nelson Hungria 343
HC 37.928 Rel.: Min. Nelson Hungria 362
HC 38.186 Rel.: Min. Nelson Hungria 363
HC 38.193 Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira 365
RE 42.539 Rel.: Min. Barros Barreto 365
RE 46.523 (criminal) Rel.: Min. Hahnemann Guimarães 365

371
Este livro foi concluído
em 2 de abril de 2012.
Impressão
Coordenadoria de Serviços Gráficos
do Conselho da Justiça Federal

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