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Título original: Joshua, Judges, and Ruth for everyone, 1 and 2 Samuel for everyone, 1 and 2

Kings for everyone, 1 and 2 Chronicles for everyone e Ezra, Nehemiah, and Esther for everyone

Copyright © 2011 por John Goldingay

Edição original por Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky.

Todos os direitos reservados.

Copyright da tradução © Vida Melhor Editora S.A., 2022.

As citações bíblicas são traduções da versão do próprio autor, a menos que seja especificada

outra versão da Bíblia Sagrada.

Os pontos de vista desta obra são de responsabilidade de seus autores e colaboradores diretos,

não refletindo necessariamente a posição da Thomas Nelson Brasil, da HarperCollins Christian

Publishing ou de sua equipe editorial.

Publisher Samuel Coto

Editor André Lodos Tangerino

Tradutor José Fernando Cristofalo

Copidesque Josemar de Souza Pinto

Revisão Carlos Augusto Pires Dias

Diagramação Sonia Peticov

Capa Rafael Brum

Produção do e-book Ranna Studio

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

(Benitez Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil)

G571h

Goldingay, John

Históricos para todos: Josué, Juízes e Rute / John Goldingay; tradução José Fernando

Cristófalo. — 1.ed. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2022.

272 p.; 12 x 18 cm.

Tradução de Joshua, Judges, and Ruth for everyone, 1 and 2 Samuel for everyone, 1 and 2

Kings for everyone, 1 and 2 Chronicles for everyone e Ezra, Nehemiah, and Esther for

everyone.

ISBN 978-65-5689-397-6

1. Bíblia — Antigo Testamento. 2. Bíblia — Ensinamentos. 3. Bíblia. A.T. Josué — História e

interpretação. 4. Bíblia. A.T. Juízes — História e interpretação. 5. Bíblia. A.T. Rute —

História e interpretação. I. Cristófalo, José Fernando. II. Título.

11-2021/18 CDD: 221.6


Índice para catálogo sistemático:

1. Antigo Testamento: Bíblia: Interpretação e crítica 221.6

Aline Graziele Benitez — Bibliotecária — CRB-1/3129

Thomas Nelson Brasil é uma marca licenciada à Vida Melhor Editora LTDA.

Todos os direitos reservados. Vida Melhor Editora LTDA.

Rua da Quitanda, 86, sala 218 — Centro

Rio de Janeiro, RJ — CEP 20091-005

Tel.: (21) 3175-1030

www.thomasnelson.com.br
SUMÁRIO

JOSUÉ, JUÍZES E RUTE

Agradecimentos

Introdução

Mapas

Josué 1:1-18 • Apenas um rio para cruzar

Josué 2:1-24 • Enquanto isso, no bordel

Josué 3:1-17 • Sobre molhar os pés

Josué 4:1—5:1 • Olhando para a frente e para trás

Josué 5:2-15 • De que lado você está? Nenhum

Josué 6:1-21 • Soem as trombetas

Josué 6:22—7:15 • Quem são os verdadeiros cananeus?

Josué 7:16-26 • A cobiça pode matar

Josué 8:1-21 • A importância de um plano de jogo

Josué 8:22-35 • Está acabado mesmo quando ainda não terminou

Josué 9:1-21 • Como se deixar enganar

Josué 9:22—10:11 • Como engolir o seu orgulho

Josué 10:12-27 • Sem compromisso

Josué 10:28-43 • Bem-vindo ao oeste selvagem

Josué 11:1-15 • Bem-vindo ao norte selvagem

Josué 11:16—12:24 • Por que eles foram tão estúpidos?

Josué 13:1—14:15 • A terra que resta ser possuída é muito grande

Josué 15:1—17:11 • Vivendo como mulheres num mundo de

homens
Josué 17:12—19:51 • Raízes; ou: lar é onde a sua porção está

Josué 20:1—21:45 • Tudo se tornou verdade

Josué 22:1-34 • O universal e o local

Josué 23:1-16 • O perigo da fé dos outros povos

Josué 24:1-33 • “Vocês não podem servir a Yahweh.” “Sim,

podemos!”

Juízes 1:1-36 • A vida real é mais complicada

Juízes 2:1—3:4 • O poder do esquecimento

Juízes 3:5-31 • Salvadores improváveis

Juízes 4:1-24 • Três mulheres fortes e três homens fracos (I)

Juízes 5:1-31a • Três mulheres fortes e três homens fracos (II)

Juízes 5:31b—6:24 • Sobre a irrelevância do discernimento

espiritual

Juízes 6:25-40 • Como ser uma pessoa confusa

Juízes 7:1-25 • Como aumentar as chances contra si mesmo

Juízes 8:1-35 • Eu não sou o herói; Deus é

Juízes 9:1-57 • O homem que seria rei

Juízes 10:1—11:29 • Quando Deus acha difícil ser severo

Juízes 11:30—12:15 • O homem cuja promessa faz o sangue gelar

Juízes 13:1-25 • Entretendo anjos sem saber

Juízes 14:1—15:20 • Querida, resolvemos o enigma

Juízes 16:1-21 • Amor de verdade

Juízes 16:22-31 • Mas o cabelo de Sansão começou a crescer

novamente

Juízes 17:1-13 • Todos faziam o que era certo aos seus próprios

olhos

Juízes 18:1-31 • Dã desesperado


Juízes • A história atinge o seu ponto mais baixo (I)

Juízes 20:1-48 • A história atinge o seu ponto mais baixo (II)

Juízes 21:1-25 • Como não salvar a situação

Rute 1:1-9 • Como a vida de Noemi desmorona

Rute 1:10-19a • A escolha

Rute 1:19b—2:9 • Ela é moabita, pelo amor de Deus!

Rute 2:10-23 • O Deus das coincidências

Rute 3:1-18 • Como não deixar a iniciativa para o homem

Rute 4:1-10 • Como não se sobrecarregar com imóveis

Rute 4:11-22 • Como Davi ganhou um avô

Glossário

Sobre o autor

1 E 2 SAMUEL

Agradecimentos

Introdução

Mapas

1Samuel 1:1-8 • Como não demonstrar empatia I

1Samuel 1:9-11 • Hora amarga da oração

1Samuel 1:12-19a • Como não demonstrar empatia II

1Samuel 1:19b-24 • É necessário haver um milagre

1Samuel 1:25—2:10 • Sobre abrir mão de seu filho

1Samuel 2:11-36 • Quando os ministros são autoindulgentes

1Samuel 3:1—4:1a • Uma intimação, não um chamado

1Samuel 4:1B-22 • O esplendor se foi

1Samuel 5:1—7:1 • Não se brinca com a arca da aliança


1Samuel 7:2-14 • Até aqui Yahweh nos ajudou

1Samuel 7:15—8:20 • Indique-nos um rei

1Samuel 8:21—9:27 • Como Saul perdeu algumas jumentas e

encontrou mais do que imaginava barganhar

1Samuel 10:1-16 • Saul também está entre os profetas?

1Samuel 10:17—11:13 • Como não fugir da escolha

1Samuel 11:14—12:25 • Longe de mim pecar deixando de orar por

vocês

1Samuel 13:1-22 • Quando o rei precisa adotar uma ação decisiva

1Samuel 13:23—14:52 • A névoa da guerra

1Samuel 15:1-33 • Quando o rei não é firme o suficiente

1Samuel 15:34—16:23 • O bom espírito e o mau espírito de Yahweh

1Samuel 17:1-54 • Como reciclar o seu instinto assassino

1Samuel 17:55—18:16 • Como ser uma família real disfuncional

1Samuel 18:17—19:24 • Todos estão contra mim

1Samuel 20:1—21:15 • Amizade

1Samuel 22:1—23:29 • Davi em fuga

1Samuel 24:1—25:44 • Tolo por nome e por natureza

1Samuel 26:1—28:2 • Quem é capaz de colocar as mãos no ungido

de Yahweh e escapar ileso?

1Samuel 28:3—29:11 • O que você faz quando está desesperado?

1Samuel 30:1—31:13 • Último ato de lealdade a Saul

2Samuel 1:1—2:31 • Como os poderosos caem

2Samuel 3:1—4:12 • A luta pelo poder

2Samuel 5:1-25 • Como seguir as suas boas ideias, mas não se levar

muito a sério
2Samuel 6:1-23 • Pequenas coisas podem ter consequências

terríveis e prenunciar a tragédia

2Samuel 7:1-29 • Uma casa e uma família

2Samuel 8:1—10:19 • O ápice da conquista de Davi

2Samuel 11:1-27 • Mas Davi fez o que era desagradável aos olhos

de Yahweh

2Samuel 12:1-15a • O homem que aprendeu a ser um profeta

2Samuel 12:15b—13:14 • O preço que a família começa a pagar

2Samuel 13:15—14:24 • A dor de uma irmã e a contenda entre

irmãos

2Samuel 14:25—16:23 • O golpe de Absalão

2Samuel 17:1—19:40 • Conselho sábio tratado como tolo

2Samuel 19:41—21:22 • Cálculo de líder e amor de mãe

2Samuel 22:1-20 • O Deus da tempestade

2Samuel 22:21-51 • Tenho guardado os caminhos de Yahweh?

2Samuel 23:1-38 • As últimas palavras de Davi

2Samuel 24:1-16a • Prefiro cair nas mãos de Deus a cair nas mãos

dos homens

2Samuel 24:16b-25 • Não prestarei culto que não me custe nada

Glossário

Sobre o autor

1 E 2 REIS

Agradecimentos

Introdução

Mapas
1Reis 1:1-53 • Como manipular o velho homem para que as coisas

sejam feitas

1Reis 2:1-46 • Lidando com as consequências

1Reis 3:1-15 • O que você mais deseja?

1Reis 3:16—4:19 • Duas mães, um bebê

1Reis 4:20—5:18 • Todos debaixo de suas vinhas e figueiras

1Reis 6:1-38 • Templos e igrejas

1Reis 7:1—8:9 • Templos e palácios

1Reis 8:10-30 • Deus realmente habitará na terra?

1Reis 8:31-40 • Umas poucas coisas pelas quais você pode orar

1Reis 8:41-66 • Algumas mais

1Reis 9:1-28 • Desejos e escolhas

1Reis 10:1-29 • Que entre a rainha de Sabá

1Reis 11:1-43 • Esposas e adversários

1Reis 12:1-32 • A oportunidade de ser um líder servil

1Reis 12:33—13:32 • Profetas e quando ignorá-los

1Reis 13:33—14:20 • Quando o filho do rei apóstata fica doente

1Reis 14:21—15:24 • Enquanto isso, em Judá

1Reis 15:25—16:34 • Duas semanas, três Reis em Efraim

1Reis 17:1-24 • O pessoal e o político

1Reis 18:1-18 • Sobre dar a César e dar a Deus

1Reis 18:19-46 • Há momentos em que você deve escolher

1Reis 19:1-21 • O murmúrio de uma brisa suave

1Reis 20:1—21:7 • No mundo e também do mundo

1Reis 21:8-29 • A capital da corrupção

1Reis 22:1-23 • Quem instigará o rei Acabe?


1Reis 22:24—2Reis 1:1 • Você pode se disfarçar, mas não se

esconder

2Reis 1:2-18 • O Senhor das moscas

2Reis 2:1—3:3 • O manto e o poder de Elias

2Reis 3:4-27 • O sacrifício final

2Reis 4:1-44 • Um conto de duas mulheres

2Reis 5:1—6:7 • Uma doença de pele removida e imposta

2Reis 6:8-23 • Cavalos e carruagens de fogo ao redor de Eliseu

2Reis 6:24—7:20 • Atirem no mensageiro

2Reis 8:1-29 • Foi apenas uma coincidência

2Reis 9:1-37 • O homem que dirige como um louco

2Reis 10:1-35 • O grande sacrifício para Baal

2Reis 11:1-21 • Duas alianças incomuns

2Reis 12:1-21 • A vida apenas não é justa

2Reis 13:1—14:29 • O Deus que não consegue resistir à tentação de

ser misericordioso

2Reis 15:1—16:20 • Como não dar a César

2Reis 17:1-41 • A queda do reino do Norte

2Reis 18:1-37 • O pássaro na gaiola

2Reis 19:1-37 • O que fazer com uma carta ardilosa

2Reis 20:1-21 • Como ganhar e perder a simpatia de Deus

2Reis 21:1-26 • Como ser o bandido

2Reis 22:1—23:24 • Última chance para levar a Torá e os profetas a

sério

2Reis 23:25—24:16 • Como desfazer uma reforma

2Reis 24:17—25:30 • Este é o fim ou há esperança?


Glossário

Sobre o autor

1 E 2 CRÔNICAS

Agradecimentos

Introdução

Mapas

1Crônicas 1:1—2:8 • No princípio

1Crônicas 2:9—4:43 • A oração de Jabez

1Crônicas 5:1—6:81 • Outra interrupção bem-vinda

1Crônicas 7:1—9:44 • Até os nossos dias

1Crônicas 10:1-14 • O fim de Saul

1Crônicas 11:1-47 • Aqueles eram os dias

1Crônicas 12:1-40 • Um tempo para cautela e um tempo para

celebração

1Crônicas 13:1-14 • Você quer dançar?

1Crônicas 14:1-17 • Quando você precisa saber o que fazer

1Crônicas 15:1—16:3 • Tenha cuidado!

1Crônicas 16:4-43 • Cantem a Yahweh, toda a terra!

1Crônicas 17:1-27 • Quem constrói uma casa — de que tipo?

1Crônicas 18:1—20:8 • Guerras e rumores de guerras

1Crônicas 21:1-14 • Tentação e queda

1Crônicas 21:15—22:1 • Ofertas sem nenhum custo

1Crônicas 22:2—23:1 • O homem de paz para um tempo de paz e

um lugar de paz

1Crônicas 23:2—26:32 • Quem é quem


1Crônicas 27:1—28:21 • O Escolhido

1Crônicas 29:1-30 • Quem sou eu e quem é o meu povo?

2Crônicas 1:1-17 • O que você gostaria que eu lhe desse?

2Crônicas 2:1—3:17 • A casa de Deus

2Crônicas 4:1—5:14 • Quando você pode dizer que Deus está

presente

2Crônicas 6:1-21 • Uma nuvem espessa e uma casa majestosa

2Crônicas 6:22-42 • Eu sempre posso falar diretamente com Deus

2Crônicas 7:1-22 • “Se o meu povo”

2Crônicas 8:1—9:31 • Nunca houve nada assim

2Crônicas 10:1-19 • Como ganhar a lealdade do povo

2Crônicas 11:1-23 • Sobre falhar em aprender a lição

2Crônicas 12:1-16 • Vocês me abandonam; eu abandono vocês

2Crônicas 13:1-22 • Adorando no contexto da cultura

2Crônicas 14:1-15 • Descansamos em ti

2Crônicas 15:1-19 • Tomando a iniciativa na aliança

2Crônicas 16:1-14 • Os olhos de Deus estão percorrendo a terra

2Crônicas 17:1-19 • Uma missão de ensino

2Crônicas 18:1-11 • Às vezes, realmente, você decide

2Crônicas 18:12-27 • O espírito de engano

2Crônicas 18:28—19:11 • O poder do acaso

2Crônicas 20:1-13 • Como orar em uma crise política

2Crônicas 20:14-23 • Os dois estágios pelos quais vemos respostas

à oração

2Crônicas 20:24-37 • Alívio e ação de graças

2Crônicas 21:1—22:9 • Como ser realmente impopular


2Crônicas 22:10—23:21 • Duas mulheres fortes e duas alianças

2Crônicas 24:1-27 • Menino rei, jovem insistente, adulto apóstata

2Crônicas 25:1-28 • O que conta como conselho eficaz

2Crônicas 26:1—27:9 • Sobre a separação entre igreja e Estado à

moda do Antigo Testamento

2Crônicas 28:1-27 • O homem errado no momento errado

2Crônicas 29:1-36 • O novo Davi

2Crônicas 30:1—31:1 • Uma nação

2Crônicas 31:2-20 • Provisão para o ministério

2Crônicas 32:1-33 • A persistente tentação do superpoder

2Crônicas 33:1-25 • A possibilidade de arrependimento

2Crônicas 34:1-28 • Rei e profetisa

2Crônicas 34:29—35:27 • Um erro fatal

2Crônicas 36:1-23 • A terra completou os seus sábados

Glossário

Sobre o autor

ESDRAS, NEEMIAS E ESTER

Agradecimentos

Introdução

Mapas

Esdras 1:1-4 • Sobre não se acomodar como refugiado

Esdras 1:5-11 • Posses preciosas inesperadamente restauradas

Esdras 2:1-67 • Quem nós éramos

Esdras 2:68—3:5 • Adoração, Escritura, Evangelho

Esdras 3:6-13 • Gritos de alegria e o som do pranto


Esdras 4:1-6 • Desencorajamento

Esdras 4:7-23 • Os governantes não são uma ameaça às pessoas que

agem corretamente

Esdras 4:24—5:5 • Nova inspiração

Esdras 5:6-17 • A história toda

Esdras 6:1-15 • Às vezes, ficamos perplexos

Esdras 6:16-22 • Celebração jubilosa

Esdras 7:1-10 • Entra o sacerdote-teólogo

Esdras 7:11-28 • O que devemos dar e o que damos porque

queremos

Esdras 8:1-23 • Outro êxodo

Esdras 8:24-36 • A mão de Deus

Esdras 9:1-4 • A importância da separação

Esdras 9:5-15 • Como fazer a confissão do seu povo

Esdras 10:1-5 • Onde há compromisso, há esperança

Esdras 10:6-44 • Ação difícil

Neemias 1:1-4 • Um grupo de sobreviventes, atribulados e

miseráveis

Neemias 1:5-11A • Ousadia como servo de Deus

Neemias 1:11B—2:10 • Ousadia (e discrição) como servo do rei

Neemias 2:11—3:14 • Talentos não são requeridos

Neemias 3:15—4:6 • Que o escárnio deles recaia sobre eles

Neemias 4:7-23 • Espada e espátula, fé e esperança

Neemias 5:1-5 • O desafio moral da comunidade

Neemias 5:6-19 • Colocando o seu dinheiro onde o seu coração está

Neemias 6:1-19 • Não confie em ninguém


Neemias 7:1-73A • Trabalhando no contexto das promessas de

Deus

Neemias 7:73B—8:8 • O ensino desempacotado

Neemias 8:9-18 • Lamento ou celebração?

Neemias 9:1-19 • Como fazer a sua confissão

Neemias 9:20-37 • Escravos e servos

Neemias 9:38—10:29 • Parando de falar e começando a agir

Neemias 10:30-39 • Sobre ser específico

Neemias 11:1-36 • A cidade santa

Neemias 12:1-43 • Nossa conquista, capacitação de Deus

Neemias 12:44—13:14 • A frustração do pastor

Neemias 13:15-31 • Profanação e transgressão

Ester 1:1-22 • A mulher que não coopera

Ester 2:1-18 • A garota que paga um preço

Ester 2:19—3:11 • Amaleque redivivo

Ester 3:12—4:17 • A possibilidade de um milagre não miraculoso

Ester 5:1-14 • A garota que sabe como manipular o seu homem

Ester 6:1-11 • O homem que age certo

Ester 6:12—8:2 • O realismo sobre o império torna-se em farsa de

execução

Ester 8:3-17 • O direito à autodefesa

Ester 9:1-22 • O Dia da Caixinha

Ester 9:23—10:3 • Uma história verdadeira, uma lei que

permanecerá

Glossário

Sobre o autor
AGRADECIMENTOS

A tradução no início de cada capítulo (e em outras citações bíblicas) é

de minha autoria. Tentei me manter o mais próximo do texto hebraico

original do que, em geral, as traduções modernas, destinadas à leitura

na igreja, para que você possa ver, com mais precisão, o que o texto diz.

Embora prefira utilizar a linguagem inclusiva de gênero, deixei a

tradução com o uso universal do gênero masculino caso esse uso

inclusivo implicasse em dúvidas quanto ao texto estar no singular ou no

plural. Em outras palavras, a tradução, com frequência, usa “ele” onde

em meu próprio texto eu diria “eles” ou “ele ou ela”. A restrição de

espaço não me permite incluir todo o texto bíblico neste volume; assim,

quando não há espaço suficiente para o texto completo, faço alguns

comentários gerais sobre o material que fui obrigado a suprimir. Ao

final do livro, há um glossário dos termos-chave recorrentes no texto

(termos geográficos, históricos e teológicos, em sua maioria). Em cada

capítulo (exceto na introdução), a ocorrência inicial desses termos é

destacada em negrito.

As histórias que seguem a tradução, em geral, envolvem meus

amigos, assim como minha família. Todas elas ocorreram, de fato, mas

foram fortemente dissimuladas para preservar as pessoas envolvidas,

quando necessário. Por vezes, o disfarce utilizado foi tão eficiente que,

ao relê-las, levo um tempo para identificar as pessoas descritas. Nas

histórias, Ann, a minha esposa, aparece com frequência. Ela faleceu

enquanto eu escrevia este volume, após negociar com a esclerose

múltipla durante 43 anos. Compartilhar os cuidados e o

desenvolvimento de sua enfermidade e crescente limitação, ao longo

desses anos, influencia tudo o que escrevo, de maneiras facilmente

perceptíveis ao leitor, mas também de formas menos óbvias. Agradeço a


Deus por Ann e estou feliz por ela, mas não por mim, pois ela pode,

agora, descansar até o dia da ressurreição.

Sou grato a Matt Sousa por ler o manuscrito e me indicar o que

precisava corrigir ou esclarecer no texto. Igualmente, sou grato a Tom

Bennett por conferir a prova de impressão.


INTRODUÇÃO

No tocante a Jesus e aos autores do Novo Testamento, as Escrituras

hebraicas, que os cristãos denominam de Antigo Testamento, eram as

Escrituras. Ao fazer essa observação, lanço mão de alguns atalhos, já

que o Novo Testamento jamais apresenta uma lista dessas Escrituras,

mas o conjunto de textos aceito pelo povo judeu é o mais próximo que

podemos ir na identificação da coletânea de livros que Jesus e os

escritores neotestamentários tiveram à disposição. A igreja também

veio a aceitar alguns livros adicionais, os denominados “apócrifos” ou

“textos deuterocanônicos”, mas, com o intuito de atender aos

propósitos desta série, que busca expor “o Antigo Testamento para

todos”, restringimos a sua abrangência às Escrituras aceitas pela

comunidade judaica.

Elas não são “antigas” no sentido de antiquadas ou ultrapassadas; às

vezes, gosto de me referir a elas como o “Primeiro Testamento” em vez

de “Antigo Testamento”, para não deixar dúvidas. Quanto a Jesus e os

autores do Novo Testamento, as antigas Escrituras foram um recurso

vívido na compreensão de Deus e dos caminhos divinos no mundo e

conosco. Elas foram úteis “para o ensino, para a repreensão, para a

correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:16-17).

De fato, foram para todos, de modo que é estranho que os cristãos

pouco se dediquem à sua leitura. Meu objetivo, com esses volumes, é

auxiliar você a fazer isso.

Meu receio é que você leia a minha obra, não as Escrituras. Não faça

isso. Aprecio o fato de esta série incluir grande parte do texto bíblico,

mas não ignore a leitura da Palavra de Deus. No fim, essa é a parte que

realmente importa.
UM ESBOÇO DO ANTIGO TESTAMENTO

A comunidade judaica, em geral, refere-se a essas Escrituras como a

Torá, os Profetas e os Escritos. Embora o Antigo Testamento contenha

os mesmos livros, eles são apresentados em uma ordem diferente:

Gênesis a Reis: Uma história que abrange desde a criação do

mundo até o exílio dos judeus para a Babilônia.

Crônicas a Ester: Uma segunda versão dessa história, prosseguindo

até os anos posteriores ao exílio.

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos: Alguns

livros poéticos.

Isaías a Malaquias: O ensino de alguns profetas.

A seguir, há um esboço da história subjacente a esses livros (não

forneço datas para os eventos em Gênesis, o que envolve muito esforço

de adivinhação).

1200 a.C. Moisés, o êxodo, Josué

1100 a.C. Os “juízes”

1000 a.C. Saul, Davi

900 a.C. Salomão; a divisão da nação em dois reinos:

Efraim e Judá

800 a.C. Elias, Eliseu

700 a.C. Amós, Oseias, Isaías, Miqueias; Assíria, a

superpotência; a queda de Efraim

600 a.C. Jeremias, o rei Josias; Babilônia, a superpotência

500 a.C. Ezequiel; a queda de Judá; Pérsia, a

superpotência; judeus livres para retornar ao lar

400 a.C. Esdras, Neemias

300 a.C. Grécia, a superpotência

200 a.C. Síria e Egito, os poderes regionais puxando Judá


de uma forma ou de outra

100 a.C. Judá rebela-se contra o poder da Síria e obtém a

independência.

0 a.C. Roma, a superpotência

JOSUÉ

Josué assume a história a partir do término de Deuteronômio, no qual

os israelitas estavam posicionados às portas da terra que lhes fora

prometida; Moisés, o líder deles até ali, tinha morrido, e Josué o

sucedera como a pessoa designada por Deus para conduzir os israelitas

no acesso à terra. A primeira metade do livro de Josué relata como ele

logrou uma série de vitórias, mas também alguns reveses, e sem

completar muitos aspectos da tarefa. O livro enfatiza a conquista,

porém nas entrelinhas ele reconhece quanto os cananeus permaneceram

no controle da região. Descobertas arqueológicas ocasionais indicam

que alguém obteve uma grande vitória em alguma parte daquele

território, e Hazor constitui um exemplo magnífico (veja Josué 11), mas

elas, em geral, sugerem que a ascensão de Israel como povo e nação

dominante naquela área foi um processo gradual.

A segunda metade do livro descreve como Josué repartiu a terra

entre os doze clãs israelitas, novamente reconhecendo nas entrelinhas

que eles, em contrapartida, recebem uma missão em relação à real

tomada de posse da sua respectiva porção. Em suas derradeiras páginas,

o livro termina de uma forma similar à Torá, com o líder (agora Josué,

não Moisés) desafiando o povo de Israel a comprometer-se em aliança

com Deus para o futuro.

Muitas pessoas modernas não gostam da maneira como o livro

retrata a liderança de Josué, levando os israelitas a matarem muitos

cananeus, mas não há nenhuma indicação de que o Novo Testamento

compartilhe desse desconforto moderno. Ao contrário, o Novo

Testamento apresenta Josué como um grande herói (veja Hebreus 11) e


retrata a violenta desapropriação dos cananeus como parte do

cumprimento do propósito divino na salvação (veja Atos 7). Se, por um

lado, há certa contradição entre a instrução de amar os inimigos e

sermos pacificadores e a missão cumprida por Josué pela ordem de

Deus, do outro, essa contradição inexiste aos olhos do Novo

Testamento.

É preciso separar dois fatos ao consideramos o questionamento que

tudo isso suscita. O primeiro é que o Novo Testamento enxerga os

cananeus como debaixo do juízo de Deus por causa do proceder

maligno deles. A ideia de que Deus julga o povo por suas transgressões

percorre os dois Testamentos; Jesus é ainda mais duro quanto a isso ao

retratar Deus enviando pessoas não apenas para a primeira morte, mas

para o inferno, no qual há choro e ranger de dentes. No contexto da

modernidade, não nos preocupamos com essa ideia, mas precisamos

notar a sua proeminência no pensamento de Jesus Cristo.

O segundo fato é que o Antigo Testamento vê Deus usando os

israelitas como agentes de julgamento. Não sei ao certo por que não

gostamos dessa ideia, mas a preocupação que as pessoas,

frequentemente, expressam é que isso poderia se tornar uma

justificativa para entrar em guerra contra outro país. No entanto, Israel

mesmo jamais viu a comissão de Deus para desapropriar os cananeus

como um precedente para as suas relações com outros povos. Muito

menos o livro de Josué implica que a ação desse líder seria um padrão a

ser seguido por Israel no futuro. Tomar posse de Canaã e ser um meio

de trazer o juízo de Deus sobre os cananeus constituiu um evento único

na história inicial de Israel.

Não sabemos quem foi o autor do livro de Josué ou mesmo quando

ele foi escrito. Assim como ele retoma o relato a partir de

Deuteronômio, leva a Juízes, Samuel e Reis. O livro lembra uma

temporada de uma duradoura série de TV, cujos autores sabem que

estão deixando pontas soltas que precisarão ser amarradas antes de a

série terminar por completo. Gênesis a Reis, como um todo, conduz a


história de Israel para o exílio e, portanto, não poderia ser levado a uma

conclusão (pelo menos em uma versão remasterizada) antes desse

tempo, embora fosse possível haver uma edição anterior mais básica.

Nessa série especial, Deuteronômio define a agenda de Josué até Reis e

fornece aos leitores pistas para compreender o motivo de a história

seguir esse curso.

JUÍZES

O livro de Juízes abrange outra temporada nessa narrativa épica,

abordando Israel a partir da morte de Josué até a véspera da ascensão

de Saul ao trono de Israel como seu primeiro rei. O título deriva da

forma de liderança descrita pelo livro, embora o termo “juízes” não seja

de grande auxílio nessa relação. Embora a palavra para “julgar” possa

denotar o cumprimento de um papel na administração de justiça, essa

atividade constitui um subconjunto do exercício de autoridade ou

liderança, em um sentido mais amplo, e, assim, líderes ou governantes

seriam equivalentes mais claros, em nosso idioma, ao sentido do termo

em hebraico. Durante o período de Josué a Saul, Israel não possui

nenhum líder à frente de todo o povo da mesma forma que tinha com

Moisés e Josué e, depois, com Saul e Davi. Todavia, de tempos em

tempos, Deus levanta líderes para lidar com crises particulares em

determinadas regiões de Israel. Todos eles possuem capacidade de

liderança, mas, na maioria, detêm pouca sensibilidade moral ou

religiosa. O desenvolvimento linear da narrativa quase inexiste; em

geral, trata-se de uma sequência de histórias paralelas sobre

desobediência a Deus, castigo, misericórdia e restauração. O livro,

portanto, ilustra formas nas quais o relato de Deuteronômio sobre as

dinâmicas potenciais da história de Israel funciona na prática. Nesse

sentido, Deuteronômio providencia a estrutura para Juízes, assim como

para Josué.

Juízes é um dos livros mais desagradáveis na Escritura, pois é uma

desanimadora história de rebelião contra Deus e de violência entre os


seres humanos, sem contar de violência contra mulheres (e, às vezes, de

violência perpetrada por mulheres). O texto discorre, específica e

poderosamente, sobre um mundo caracterizado por essa violência. À

medida que se lê, o relato se torna ainda mais desalentador e, próximo

ao fim da leitura, você pode desejar não ter se dado a esse trabalho.

Contudo, ele é importante por uma razão, e talvez tenha sido esse o

motivo que levou Deus a querer um livro tão desagradável na Bíblia: ele

nos força a fazer as pazes com a realidade de como as coisas são no

mundo e, com frequência, na igreja. O livro resume o modo pelo qual a

Bíblia não é literatura escapista, nem simplesmente focada em mim e

em minha relação pessoal com Deus.

O grande dilema do livro é saber o que pode ser feito a respeito do

horror que ele mesmo analisa. Mais precisamente, o seu dilema é que a

liderança tanto pode ser o problema quanto a solução. Por um lado, ele

sabe que Deus deve ser o rei de Israel; assim, um herói como Gideão se

recusa a ser feito rei. Por outro lado, o crescente colapso moral e social

que se intensifica próximo ao fim de Juízes ocorre em um contexto no

qual as pessoas faziam “o que era certo aos seus próprios olhos” porque

“não havia rei em Israel”. Nesse aspecto, o livro prepara o caminho para

a introdução da monarquia, o que ocorre em 1Samuel.

RUTE

Rute é a história sobre como a vida de uma mulher desmorona em

decorrência da fome, do deslocamento forçado e da morte de seu

marido e de seus filhos e, então, de como ela é restaurada novamente

por meio do extraordinário amor de sua nora e de um parente distante.

Trata-se de uma espécie de nota paralela à história de Israel, a narrativa

em escala maior que percorre os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis.

Em outras palavras, na série original, Juízes leva direto a 1Samuel. Na

ordem dos livros da Bíblia judaica, a história de Rute aparece muito

mais tarde, na companhia de alguns outros livros mais breves, como

Ester e Cântico dos Cânticos. Essa sequência provavelmente sugere


que foi escrito tempos depois, na época posterior ao exílio, a exemplo

daqueles outros livros. Um aspecto de sua importância, que viria à tona

naquele contexto, é o relato que faz de uma mulher estrangeira

comprometendo-se com sua parente israelita e com o Deus de Israel.

Embora o texto não questione a ideia de que Israel precisa estar atento

quanto à influência dos estrangeiros e sua religião contrária a Deus, ele

lembra os israelitas de que o Deus deles deseja ser o Deus de todo o

mundo e que eles precisam estar abertos aos estrangeiros que queiram

unir-se a eles em sua adoração ao Deus de Israel.

A nossa Bíblia tradicional segue a ordem dos livros quando eles foram

traduzidos para o grego e posiciona Rute em um contexto diferente que

também faz sentido, mas de um modo distinto. As primeiras palavras do

livro de Rute nos contam que a história ocorre “na época dos juízes”.

(Precisamos nos lembrar sempre de que o tempo referido na narrativa

bíblica pode ser muito distante daquele no qual ela foi escrita.) Após o

crescente horror de Juízes, Rute oferece um retrato mais encorajador da

vida de Israel e suaviza um pouco o gosto ruim na boca deixado pelo

livro anterior. Igualmente, conecta-se perfeitamente ao que vem a

seguir, em 1 e 2Samuel, logrando isso de duas formas: esse quadro mais

alentador da vida israelita cotidiana (especialmente com respeito à vida

das mulheres) conduz à similar história de Ana, em 1Samuel 1 e 2, e

encerra-se com a revelação de que o filho que Rute carrega em seu

ventre é ninguém menos do que o avô do futuro rei Davi.


© Karla Bohmbach
© Karla Bohmbach
JOSUÉ

JOSUÉ 1:1-18
APENAS UM RIO PARA CRUZAR
1
Após a morte de Moisés, servo de Yahweh, disse Yahweh a Josué, filho de Num, assistente de

2
Moisés: “Moisés, meu servo, está morto. Suba, agora, atravesse esse Jordão, você e todo este

3
povo, à terra que estou dando para eles, para os israelitas. Todo lugar que pisar a planta de

4
seu pé, tenho dado a vocês, como declarei a Moisés. Desde o deserto e do Líbano aqui, ao

Grande Rio, o rio Eufrates, toda a terra dos hititas, ao Grande Mar, no oeste, será o seu

5
território. Ninguém se posicionará diante de você todos os dias de sua vida. Como eu estive

6
com Moisés, estarei com você. Não falharei com você nem o abandonarei. Seja forte, fique

firme, porque você capacitará este povo a possuir esta terra que prometi dar aos seus

7
ancestrais. Simplesmente seja forte, fique muito firme, tomando o cuidado de agir de acordo

com todo o ensinamento que Moisés, meu servo, lhe ordenou. Não se desvie disso para a

8
direita ou para a esquerda, de modo que possa ser bem-sucedido aonde quer que vá. Este

rolo de ensino não deve deixar a sua boca. Recite-o dia e noite para que tenha o cuidado de

agir de acordo com tudo o que está escrito nele, porque, então, fará a sua vida ir bem e será

9
bem-sucedido. Não lhe ordenei: ‘Seja forte, fique firme?’ Não entre em pânico, não tenha

medo, porque Yahweh, o seu Deus, estará com você aonde quer que vá.”

10 11
Assim, Josué ordenou aos oficiais do povo: “Passem pelo meio do acampamento e

ordenem ao povo: ‘Preparem provisões para vocês mesmos, porque em três dias vocês irão

atravessar o Jordão aqui, entrarão e tomarão posse da terra que Yahweh, o seu Deus, lhes está

12
dando para tomar posse.’” Aos rubenitas, gaditas e metade do clã de Manassés, Josué disse:

13
“Estejam atentos acerca do que Moisés, servo de Yahweh, ordenou a vocês: ‘Yahweh, o seu

14
Deus, está permitindo que vocês se estabeleçam e lhes está dando essa terra.’ As suas

esposas, os seus jovens e o seu rebanho podem permanecer na terra que Moisés lhes deu, do

outro lado do Jordão, mas vocês devem atravessar, organizados em companhias à frente de

15
seus irmãos, todos os guerreiros. Devem ajudá-los até Yahweh permitir que os seus irmãos

se assentem como vocês e eles também tomem posse da terra que Yahweh, o seu Deus, lhes

está dando. Então, vocês podem retornar à terra que devem possuir e tomar posse, a terra

16
que Moisés, servo de Yahweh, lhes deu do outro lado do Jordão, a leste.” Eles responderam

17
a Josué: “Tudo o que você nos ordenar, faremos, e para onde nos enviar, iremos. Assim

como ouvimos a Moisés, o ouviremos. Simplesmente, que Yahweh esteja com você assim

18
como esteve com Moisés. Qualquer pessoa que se rebelar contra o que você disser e não

der ouvidos às suas palavras, com respeito a tudo o que você lhe ordenar, deve ser morta.

Simplesmente, seja forte e fique firme.”


Enquanto escrevo, costumo ouvir música, pelo menos parcialmente.

Não presto muita atenção na letra, mas, ocasionalmente, algumas

palavras atraem a minha atenção. Certo dia, o título de uma canção de

Jimmy Cliff, Many Rivers to Cross [Muitos rios para atravessar], teve

esse efeito sobre mim e passei a escutar a letra mais atentamente. A

canção fala sobre a existência desses muitos rios para cruzar e que

apenas a força de vontade do cantor é que o mantém vivo. Talvez ele

sobreviva apenas por causa de seu orgulho. Ele diz: “A solidão não me

deixará sozinho” porque a pessoa que ele amava foi embora, toda sorte

de tentações o assalta e tudo o que lhe resta é procurar por meios de

atravessar os rios. A letra me levou às lágrimas porque descrevia a

minha vida na época. Agora, isso me faz refletir sobre uma aluna que

esta semana me fez um relato da sua vida. Ela enfrenta uma ou duas

questões de saúde que necessitam ser investigadas mais a fundo e

deveria estar finalizando a sua aplicação para um programa de

doutorado. Além disso, ela tem as demandas regulares de seu curso no

seminário e do emprego que torna possível pagar os custos escolares.

Decerto, ela tem diante de si muitos rios para atravessar.

Josué e Israel têm apenas um. Em termos literais, isso não

impressiona muito. Durante grande parte do ano, à medida que se

aproxima do mar Morto, o rio Jordão é raso e lamacento. Todavia,

simbolicamente, a sua travessia constitui um grande passo. Na outra

margem desse rio estão todos aqueles povos cananeus, cujo tamanho

assustou os espias israelitas, uma geração atrás (veja Números 13—14).

Do ponto de vista histórico, eles são povos, de fato, muito mais fortes e

sofisticados do que os israelitas. Dos doze clãs de Israel, dois clãs e meio

escolheram ficar na terra a leste do Jordão, onde Israel está acampado

no momento (“do outro lado do Jordão”, da perspectiva das pessoas que

contavam a história, mais tarde). Esses clãs consideraram que a terra

era muito boa e pediram para que pudessem se estabelecer lá. Pode-se

imaginar que os demais nove e meio clãs também estariam

questionando se haveria espaço suficiente para eles no lado leste. No


entanto, a verdadeira Terra Prometida situava-se no lado oeste do

Jordão. Há um rio a ser atravessado.

Deus mantém o foco em Josué, apesar de nos versículos 3 e 4

abordar todo o povo. Em seguida, no versículos 5 e 6 volta a atenção

novamente a Josué. De modo típico, Deus entrelaça promessas e

exortações. A promessa “estarei com você” soa rotineira, mas não deve

ser ignorada. É a promessa feita por Deus a Isaque (Gênesis 26:3) e

repetida a Moisés, ao anunciar a sua implausível comissão (Êxodo

3:12). É uma promessa que Deus reiterará a Israel, durante o exílio, e

repetirá a Maria, ao também lhe dar uma comissão implausível. Ainda, é

a promessa repetida por Jesus ao enviar os seus discípulos a fazer novos

seguidores em todo o mundo. Em nosso idioma contemporâneo, a

sentença “estarei com você” tende a sugerir que sentiremos que Deus

está conosco, porém na Bíblia ela sugere algo objetivo, não meramente

subjetivo. Significa que Deus irá garantir que tudo dê certo. Aqui, Deus

expressa as implicações da promessa. Josué terá êxito na tarefa que tem

diante de si. Isso é que o capacitará a ser forte e permanecer firme.

As exortações também estão relacionadas com essa possibilidade. A

chave para uma liderança vitoriosa é seguir estritamente o ensinamento

que Moisés transmitiu a ele. Poder-se-ia esperar que Deus lhe dissesse

para manter esse ensino na mente; na verdade, Deus diz a Josué para

guardar esse ensinamento em sua boca. Em outras palavras, ele deve

“recitá-lo”. A palavra usada por Deus denota meditação, mas não uma

meditação restrita apenas ao interior da mente de Josué. Quando as

crianças estão aprendendo a ler, em geral elas leem em voz alta; somente

mais tarde é que elas aprendem a ler em silêncio. Quando os judeus

leem as Escrituras, eles pronunciam as palavras. Essa prática pode

parecer menos sofisticada, porém significa que a leitura envolve não

apenas a mente, como também o corpo e, portanto, toda a pessoa. Isso

pode, então, aumentar a possibilidade de influenciar toda a vida de

quem assim lê. O fato de Josué manter o ensino de Moisés em seus

lábios não está relacionado com sua instrução ao povo. Antes, é o


fundamento de sua própria vida como discípulo de Moisés e de Deus.

Os Salmos principiam com uma bênção sobre a pessoa que recita o

ensinamento de Deus dessa forma, declarando que a vida dessa pessoa

será bem-sucedida (Salmos 1). Josué está sendo lembrado de que a

chave para o seu sucesso como líder é ele simplesmente ser um discípulo

comprometido. Por implicação, Deus igualmente coloca esse princípio

diante dos líderes posteriores que leem essa história. Um rei como

Josias, em cuja época um manuscrito como Deuteronômio é descoberto,

é desafiado a considerar seriamente essa mesma exortação como chave

para o exercício de seu reinado.

Os nove clãs e meio não podem evitar a travessia do rio, e os dois

clãs e meio restantes devem atravessar também, mesmo que, depois,

retornem para ocupar o território na margem leste do Jordão. Uma vez

que todo o povo esteja assentado na terra, nunca mais terá a unidade

que teve lá. A narrativa em Juízes ilustrará esse ponto; nenhum dos

eventos relatados por este livro envolverá todo o povo. A geografia, por

si só, exclui essa unidade. Contudo, Israel permanece um único povo, e

o momento de entrar na terra, situada à margem ocidental do Jordão, a

terra originariamente designada como a Terra Prometida, é o momento

em que essa unidade deva estar simbolizada. Uma parte do corpo não

pode ficar indiferente ao destino do todo. Individualmente, os clãs

israelitas não podem agir como se o destino dos demais clãs não seja do

interesse deles. Similarmente, as congregações cristãs individuais,

denominações ou igrejas nacionais, não podem se comportar como se o

destino das outras congregações, denominações ou da igreja, em

qualquer nação, não lhes diga respeito.

Embora a Terra Prometida situe-se no lado ocidental do Jordão,

Deus fala de suas dimensões como extensivas até o rio Eufrates, como

ocorreu no reinado de Salomão. O Antigo Testamento possui formas

diversas de descrever a extensão da Terra Prometida, expressas em

termos das variadas situações políticas, de diferentes contextos. Não se


trata de um conceito com fronteiras fixas. Isso pode auxiliar na reflexão

sobre as questões políticas atuais envolvendo o Oriente Médio.


JOSUÉ 2:1-24
ENQUANTO ISSO, NO BORDEL
1
De Acácias, Josué, filho de Num, enviou silenciosamente dois homens para investigar: “Vão

e examinem a terra e Jericó.” Eles foram e chegaram à casa de uma mulher que era prostituta,

2
chamada Raabe, e dormiram ali. O rei de Jericó foi avisado: “Ora, alguns homens vieram

3
aqui, esta noite, israelitas, para investigar a terra.” Então, o rei de Jericó enviou a Raabe:

“Apresente os homens que vieram a você, que vieram à sua casa, pois vieram investigar toda a

4
terra.” A mulher tinha tomado e escondido os dois homens. Então, ela disse: “Sim, os

5
homens vieram a mim. Eu não sabia de onde tinham vindo. O portão estava prestes a ser

fechado, já escuro, e os homens saíram. Não sei para onde eles foram. Persiga-os logo, porque

6
ainda podem alcançá-los.” Assim, embora ela os tivesse levado ao telhado e escondido entre

7
os talos de linho que estavam dispostos no telhado, os homens [do rei] os perseguiram na

estrada rumo ao Jordão, aos vaus, e o portão foi fechado depois que os homens que os

perseguiam saíram.

8 9
Antes de aqueles homens irem dormir, ela subiu até eles no telhado. Ela disse aos homens:

“Eu reconheço que Yahweh lhes deu a terra e que o terror de vocês tem caído sobre nós e que

10
todas as pessoas que vivem na terra têm se dissolvido de medo diante de vocês, porque

ouvimos como Yahweh secou as águas do mar de Juncos à frente de vocês quando saíram do

Egito e como vocês agiram com Seom e Ogue, os dois reis amorreus do outro lado do Jordão,

11
a quem devotaram. Quando ouvimos isso, a nossa resolução derreteu. Não resta espírito

em ninguém por causa de vocês, porque Yahweh, o seu Deus, é Deus em cima nos céus e

12
embaixo na terra. Então, agora, prometerão a mim, por Yahweh, porque mostrei

comprometimento com vocês, que também mostrarão comprometimento com a casa de meu

13
pai? Deem-me um sinal verdadeiro de que vocês deixarão o meu pai e a minha mãe

viverem, e meus irmãos e irmãs, e todos os que pertencem a eles, e que salvarão a vida deles

14
da morte.” Os homens disseram a ela: “A nossa vida em lugar da de vocês, se não contar

sobre a nossa atividade aqui. Quando Yahweh nos der a terra, mostraremos

comprometimento e fidelidade com você.”

15
Assim, pela janela, ela os desceu por uma corda, porque a sua casa ficava no muro da

16
fortificação e ela estava vivendo na fortificação. Ela lhes disse: “Vão para as montanhas,

para que os perseguidores não venham sobre vocês, e escondam-se lá por três dias, até que os

perseguidores retornem. Depois, podem seguir o seu caminho.”

[Nos versículos 17-24, os homens falam a Raabe para deixar uma corda vermelha em sua

janela, de modo que os israelitas saibam onde ela e sua família estão, quando eles vierem tomar

a cidade. Após se esconderem conforme ela disse, eles retornaram ao acampamento e

reportaram o terror do povo local, uma indicação de que Yahweh lhes deu a terra.]
Neste comentário, Josué 2 é o único capítulo para o qual não tentei

providenciar uma história de abertura, de acordo com o formato usual

da série O Antigo Testamento para todos. Como poderia eu competir

com a história real sobre a aventura desses dois bons rapazes judeus

naquele prostíbulo, em Jericó (a mesma dinâmica se aplica à narrativa,

em Gênesis 29, sobre Jacó acordando de manhã e descobrindo que

desposara a garota errada), resultante da missão que lhes fora confiada

por Josué?

O que, afinal, Josué pensa que está fazendo? Por que ele precisa

enviar uma dupla de espias para investigar as coisas em Jericó? É como

se o seu exército fosse atacar a cidade. Todavia, tudo o que Israel irá

fazer é empreender uma procissão religiosa, soar as suas trombetas de

chifre de carneiro e observar a queda dos muros da cidade. Será similar

ao evento do mar de Juncos. Então, qual o motivo do reconhecimento?

A questão recebe um ponto adicional pelo contraste com a anterior e

malfadada história envolvendo espias, presente em Números 13 e 14.

Naquela ocasião, a expedição fora ordenada por Deus, não por Moisés,

embora os motivos de Deus para essa comissão não sejam claros, e

pode-se até questionar se é uma espécie de teste; certamente, foi assim

que terminou. Além disso, o próprio Moisés, mais tarde, falou dessa

aventura como tendo sido ideia do povo (Deuteronômio 1:22). Desse

modo, a iniciativa de Josué levanta certo questionamento.

Jericó é um oásis deslumbrante em uma paisagem árida, cerca de

300 metros abaixo do nível do mar, excessivamente quente no verão,

mas agradável no inverno. Apesar de cercada por um deserto estéril,

Jericó em si possui água em abundância; apenas algumas páginas antes,

no Antigo Testamento, ela foi descrita como a Cidade das Palmeiras

(Deuteronômio 34:3). Aparentemente, era como uma cidade do Velho

Oeste norte-americano, com o saloon funcionando também como

hospedaria para os viajantes ocasionais que passavam por Jericó,

durante as suas viagens de norte ao sul, ao longo do vale do Jordão ou

ainda, na rota leste-oeste, entre Canaã e Moabe (Elimeleque e Noemi,


mais tarde, seguirão por essa rota, e Noemi retornará por ela com Rute),

onde as mulheres que administravam o local também atuavam como

cafetinas. As cidades cananeias, em geral, possuíam muros duplos, com

espaço para moradias entre eles. Raabe, evidentemente, vive nesse local.

Os rapazes não têm nenhuma opção, exceto permanecer ali, e o xerife

sabe onde procurar por estrangeiros na cidade.

Canaã compreende uma coleção de cidades-estado, cada qual com

seu respectivo “rei” (ou xerife ou prefeito, como preferir), e com o

controle da região ao redor dela. Tais cidades são independentes entre

si, porém na época de Josué estavam sob o controle do Egito.

Evidentemente, o xerife local sabe tudo sobre os israelitas posicionados

no outro lado do Jordão. O comentário de Raabe sobre a cidade estar

paralisada pela possibilidade de os israelitas cruzarem o rio a qualquer

momento pode ser exagerado, mas o xerife sabe que não deve ignorá-

los. Assim, ele possui delegados de olhos bem abertos para identificar

estrangeiros com aparência suspeita, um dos quais manterá uma

permanente vigilância defronte ao estabelecimento de Raabe. Ela

compartilha da avaliação da situação pelo xerife, mas reage a ela

distintamente.

A diferença pode refletir a relação de Raabe com a cidade. Diz-se

que os homens têm sentimentos ambíguos sobre mulheres que

disponibilizam os seus favores sexuais; eles tanto as utilizam quanto as

desaprovam. Fatores econômicos, em geral, levam as mulheres ao

comércio do sexo. Talvez Raabe fosse uma viúva. Obviamente, ela

possui uma família pela qual se preocupar, mas é possível que tenham

enfrentado tempos financeiros difíceis, e essa foi a maneira que ela

aprendeu de sobreviver sem depender deles. Uma mulher como Raabe

será uma figura marginal no seio da sociedade; parte dela, mas não, de

fato, pertencente a ela. Assim, talvez seja mais fácil a ela reagir

distintamente ao que as pessoas estão dizendo sobre os israelitas, do

mesmo modo que será possível a mulheres como Maria Madalena reagir

a Jesus de uma forma que a maioria dos pilares masculinos da sociedade


não é capaz. Como as parteiras em Êxodo 1 ou outras mulheres na

história de Israel, ela não se sente obrigada a contar às autoridades

masculinas a verdade, quando não há nenhuma veracidade na maneira

de eles próprios se comportarem.

Quando o rei ouve sobre um evento como a catástrofe ocorrida no

mar de Juncos, ou sobre o destino dos reis do outro lado do Jordão (veja

Deuteronômio 2—3), ele resolve duplicar os seus esforços para resistir

aos invasores. Raabe está aberta a fazer deduções diferentes. Raabe, a

cananeia, reage da mesma forma que Jetro, um homem midianita, ao

ouvir sobre o milagre no mar de Juncos (veja Êxodo 19). Inúmeros

outros homens e mulheres não israelitas acompanharam Israel, na saída

do Egito, unindo-se a eles em sua peregrinação ao Sinai e, então, rumo à

Terra Prometida; Jetro e Raabe fornecem a essas pessoas um nome e um

rosto. Eles nos lembram que, desde o princípio, Israel não é um povo

etnicamente exclusivo. Qualquer um preparado a reconhecer que

Yahweh está por trás de tudo isso é livre para unir-se ao povo de

Yahweh. Raabe lembra Rute na maneira pela qual os relacionamentos de

compromisso mútuo entre ela e esses membros de Israel são a sua rota

de reconhecimento de que Yahweh não é um mero deus tribal de Israel,

mas “é Deus acima nos céus e embaixo na terra”.

A Torá não tinha dado nenhuma indicação de que Yahweh faria

qualquer exceção em sua decisão de expulsar os cananeus da terra ou

que Israel deveria fazer exceções ao devotar os cananeus, mas os dois

homens assumiram como certo que não há motivo para expulsar ou

devotar qualquer um que se submeta a Yahweh. Tal como a declaração

de Jonas de que toda a cidade de Nínive deve ser destruída, sempre que

Deus acena com a destruição, a ameaça sempre pressupõe “a menos que

você se arrependa”. Raabe exemplifica a maneira sensível de reagir às

ameaças de punição por parte de Deus. Ao lado de Rute, ela aparecerá

na genealogia de Jesus em Mateus 1.


JOSUÉ 3:1-17
SOBRE MOLHAR OS PÉS
1
Josué começou cedo de manhã. Eles se moveram de Acácias e chegaram ao Jordão, ele e

2
todos os israelitas, mas pararam ali, antes de atravessarem. Após três dias, os oficiais

3
passaram pelo acampamento e ordenaram ao povo: “Quando vocês virem o baú da aliança

de Yahweh, o seu Deus, sendo carregado pelos sacerdotes levitas, vocês mesmos devem se

4
mover de seus lugares e o seguirem (no entanto, deve haver uma distância entre vocês e o

baú, cerca de 900 metros — não se aproximem dele), para que possam saber o caminho a

5
seguir, porque vocês não passaram por este caminho antes.” Josué disse ao povo:

6
“Santifiquem-se, porque amanhã Yahweh fará maravilhas em seu meio.” Josué disse aos

sacerdotes: “Levantem o baú da aliança e sigam à frente do povo.” Então, eles levantaram o

baú da aliança e foram à frente do povo.

7
Yahweh disse a Josué: “Neste dia começarei a tornar você grande aos olhos de todo o Israel

8
para que possam reconhecer que eu estou com você assim como estive com Moisés. Você

mesmo deve ordenar aos sacerdotes que carregam o baú da aliança: ‘Quando chegarem à

beira das águas do Jordão, fiquem no Jordão.’”

9
Josué disse aos israelitas: “Venham aqui e ouçam as palavras de Yahweh, o seu Deus.”

10
Josué disse: “Por isto vocês reconhecerão que o Deus vivo está no seu meio e que ele

despojará totalmente, diante de vocês, os cananeus, os hititas, os heveus, os ferezeus, os

11
girgaseus, os amorreus e os jebuseus. Ora, o baú da aliança do Senhor de toda a terra está

12
passando para o Jordão à frente de vocês. Então, agora, escolham doze homens dos clãs

13
israelitas, um homem para cada clã. Quando a planta dos pés dos sacerdotes carregando o

baú de Yahweh, Senhor de toda a terra, pousar nas águas do Jordão, a água do Jordão

14
quebrará rio acima e acumulará como um único monte.” Então, o povo moveu-se de suas

tendas para atravessar o Jordão, com os sacerdotes carregando o baú da aliança à frente do

15
povo. Quando as pessoas carregando o baú chegaram ao Jordão e os pés dos sacerdotes

carregando o baú mergulharam na beira da água (o Jordão transborda em ambas as margens

16
durante todo o período da colheita), a água no Jordão parou rio acima. Ela subiu como um

único monte, bem longe em Adã, uma cidade perto de Zaretã. Descendo para o mar da

Estepe (o mar Morto), ela diminui completamente.

17
Assim, o povo atravessou perto de Jericó. Os sacerdotes carregando o baú da aliança de

Yahweh ficaram firmes em solo seco, no meio do Jordão, enquanto todo o Israel atravessava

em solo seco, até que toda a nação tinha terminado de atravessar o Jordão.
Trata-se de uma bela imagem, “molhar os pés”. Penso que sua origem

reside nessa história. Em geral, não é possível alcançar, experimentar ou

aprender algo sem assumir um compromisso que parece arriscado. Seria

melhor ter uma prova de que tudo ficará bem antes de assumir o

compromisso, porém a vida não funciona assim. Caso ceda à ansiedade

de compromisso, viverá sem perigo, mas também sem vida. Desde a

primeira vez que vimos pessoas voando de asa-delta nos Alpes

franceses, a minha breve lista de coisas que gostaria de fazer antes de

morrer passou a incluir “voar de asa-delta”. Depois de algum tempo, na

companhia de um amigo, dirigi até o sopé das montanhas situadas a

nordeste de onde moro, a uma pista de pouso, onde deixamos o nosso

carro, para sermos conduzidos por uma trilha íngreme e estreita,

desprovida de proteção lateral, ao longo da encosta de uma montanha

até o seu topo achatado (lembro-me de haver pensado que seria mais

provável morrer com a van saindo da trilha do que voando de asa-

delta). Depois de amarrado atrás de um instrutor experiente, corremos

para a beira de um penhasco e saltamos. Para concretizar as suas

ambições, em algum ponto, é preciso mergulhar de cabeça.

Quando os israelitas saíram do Egito, o salmo 114 recorda, “o mar

olhou e fugiu, e o Jordão retrocedeu”. Ao ler esse salmo, pode-se inferir

que as travessias dos israelitas pelo mar de Juncos e pelo rio Jordão

foram dois eventos ocorridos quase simultaneamente. Na realidade,

foram separados por uma geração e, assim, ocorreram a duas gerações

diferentes do povo, mas eles estão ligados entre si. Constituem os

primeiros e os derradeiros passos de uma história, A travessia do mar de

Juncos sucedeu a saída do Egito; a travessia do Jordão antecedeu a

entrada em Canaã. A passagem pelo mar de Juncos conecta-se à ação de

Deus para colocar os egípcios em seu devido lugar; a passagem pelo

Jordão conecta-se à ação de Deus para fazer o mesmo com os cananeus.

Os egípcios perderam o direito de reter os israelitas pela atitude que

adotaram diante deles e de seu Deus. Os cananeus nada tinham feito

contra os israelitas, pelos menos não até o povo de Israel bater à porta
deles (veja as histórias em Números 20—21), e há uma percepção de que

eles não podem ser acusados por então tomarem a iniciativa. Os

cananeus e os israelitas não são inimigos naturais e não se mantêm em

inimizade. No entanto, os cananeus perderam o direito à manutenção de

seu território por causa da transgressão e da incredulidade da vida das

pessoas, da sua ordem social e da sua religião — adotando, por exemplo,

a prática de sacrificar os próprios filhos aos seus deuses (Gênesis 15:16;

Deuteronômio 9.4; 12:31). É chegado o momento do julgamento deles,

assim como ocorreu com os egípcios.

A lista das sete nações é bem tradicional. Cananeus é um termo

geral para os povos da região; os amorreus podem ter uma referência

similar, mas, aqui, provavelmente, a menção denota o povo situado na

margem leste do Jordão, a quem os israelitas já haviam derrotado. Os

hititas, incluídos na passagem, será o povo ao redor de Hebrom, citado

em conexão com Abraão. Os heveus desempenharão um importante

papel no capítulo 9. Os jebuseus constituem o povo que vive em

Jerusalém e são, por consequência, sobremodo relevantes à luz da futura

importância dessa cidade. Girgaseu é apenas um nome, assim como

ferezeus, embora etimologicamente o termo implique “aldeões”, de

maneira que pode não se referir a um grupo étnico, mas a um grupo

social.

Josué 3 nos conta essa história para mostrar como ela traça um

paralelo com a narrativa do mar de Juncos. Uma vez mais, Deus está

operando “maravilhas”. De novo, águas se levantam em uma “pilha” e as

pessoas atravessam em “solo seco”. Como a libertação no mar de Juncos

levou o povo a confiar em Moisés, assim esses prodígios engrandecerão

o novo líder aos olhos do povo. Josué 3 também nos relata essa história

para mostrar o emparelhamento com a história mais ampla do êxodo-

Sinai. Em preparação ao aparecimento de Deus no Sinai, os israelitas

passaram três dias santificando a si mesmos. As preparações, aqui, serão

similares àquelas do Sinai: os israelitas se manterão distantes de

qualquer coisa que os tornaria tabu e incapazes de se aproximar de


Deus (coisas como a morte ou transgressões morais e sexuais, porque

são estranhas ao próprio ser de Deus). Eles precisam permanecer santos

dessa maneira para testemunharem o agir de Deus. As instruções de

Deus no Sinai, com frequência, alertam sobre chegar perto demais da

presença real do assombroso e transcendente Deus, assim como os

súditos, apropriadamente, hesitam em se aproximar em demasia de um

rei. O povo deve permanecer por perto, no sentido de que devem estar

comprometidos a seguir com atenção, porém devem ter na mente que

estão na presença do Deus assombroso e transcendente. Ao mesmo

tempo, a história tem avançado, desde que estavam no mar de Juncos.

Agora, os israelitas possuem o baú da aliança para levar com eles.

Trata-se de um símbolo mais concreto do que a coluna de nuvem e de

fogo, que já não aparece mais.

A aparente referência aos israelitas atravessando no período da

colheita é confusa. Ela, naturalmente, faria alguém pensar no alto verão

ou no outono, mas o capítulo 5 localiza a travessia no tempo da Páscoa,

na primavera, o que faz mais sentido. É na primavera que o rio está em

sua cheia, após as chuvas de inverno; quanto mais próximo do verão,

mais raso o rio se torna. Talvez a referência tenha em mente o início da

longa temporada de colheita, que começa na Páscoa e segue até o

outono. A travessia é um evento momentâneo, mas, mesmo na Páscoa, o

rio seria transitável e atravessá-lo não demandaria um milagre. Como

na libertação do mar de Juncos (necessária apenas por causa da

estranha rota que Deus fez Israel tomar), o milagre do Jordão é uma

extravagância por parte de Deus. Similar ao milagre no mar de Juncos,

é uma expressão do poder e do compromisso de Yahweh, designado a

encorajar os israelitas diante de tudo o que virá a seguir. Como o

milagre do mar de Juncos, este também está aberto a ser “explicado”

como um evento natural (um fortuito terremoto rio acima), embora

isso tanto anule o ponto da história quanto torne a sua ocorrência

menos miraculosa, naquele preciso momento.


JOSUÉ 4:1—5:1
OLHANDO PARA A FRENTE E PARA TRÁS
1
Quando toda a nação tinha terminado de atravessar o Jordão, Yahweh disse a Josué:

2 3
“Pegue doze homens dentre o povo, um de cada clã, e lhes ordene: ‘Carreguem doze pedras

daqui, do meio do Jordão, do lugar no qual os pés dos sacerdotes ficaram firmes. Levem-nas

4
com vocês e as coloquem no lugar onde permanecerem para a noite.’” Assim, Josué

convocou doze homens a quem ele indicou dentre os israelitas, um homem de cada clã.

5
Josué lhes disse: “Atravessem à frente do baú de Yahweh, o seu Deus, ao meio do Jordão, e

levantem por si mesmos, cada homem, uma pedra em seu ombro, de acordo com o número

6
dos clãs israelitas, para que possam ser um sinal em seu meio. Quando os seus filhos, no

7
futuro, perguntarem: ‘O que são essas pedras para vocês?’, devem dizer a eles: ‘As águas do

Jordão retrocederam diante do baú da aliança de Yahweh; quando ele passou pelo Jordão, as

águas do Jordão retrocederam.’ Essas pedras serão um memorial para os israelitas em

8
perpetuidade.” Os israelitas fizeram como Josué ordenou. Eles carregaram doze pedras do

meio do Jordão, como Yahweh falou a Josué, de acordo com o número dos clãs israelitas, as

9
levaram com eles para o lugar no qual ficariam e as colocaram ali. As doze pedras que Josué

levantou (no meio do Jordão, no lugar onde os pés dos sacerdotes que carregavam o baú da

10
aliança tinham ficado) estão lá até hoje. Os sacerdotes que carregavam o baú

permaneceram no meio do Jordão até que tivesse terminado tudo o que Yahweh tinha

ordenado a Josué dizer ao povo, de acordo com tudo o que Moisés ordenara a Josué. O povo

11
atravessou rapidamente, e, quando todo o povo tinha terminado a travessia, o baú de

12
Yahweh e os sacerdotes atravessaram, diante do povo. Os rubenitas, gaditas e a metade do

clã de Manassés atravessaram organizados em companhias, à frente dos israelitas, como

13
Moisés lhes tinha falado. Cerca de quarenta mil homens, equipados para uma campanha,

14
atravessaram diante de Yahweh, às planícies de Jericó, para a batalha. Naquele dia, Yahweh

fez Josué grande aos olhos de todo o Israel. Eles o reverenciaram, assim como reverenciaram

Moisés, todos os dias de sua vida.

15 16
Yahweh disse a Josué: “Ordene aos sacerdotes que carregam o baú da declaração para

17 18
saírem do Jordão.” Então, Josué ordenou aos sacerdotes: “Saiam do Jordão”, e, quando

os sacerdotes que carregavam o baú da declaração de Yahweh saíram do meio do Jordão e a

planta dos pés dos sacerdotes se levantou do solo seco, as águas do Jordão retornaram ao seu

19
lugar e cobriram as margens como antes. Quando o povo saiu do Jordão, no décimo dia do

20
primeiro mês, eles acamparam em Gilgal, na fronteira leste de Jericó. Aquelas doze pedras

21
que eles tinham tirado do Jordão, Josué erigiu em Gilgal. Ele disse aos israelitas: “Quando

22
os seus filhos, no futuro, perguntarem aos seus pais: ‘O que são essas pedras?’, digam aos

23
seus filhos: ‘Em terra seca Israel atravessou o Jordão, aqui’, porque Yahweh, o seu Deus, fez

secar as águas do Jordão diante de vocês até vocês atravessarem, como Yahweh, o seu Deus,

24
fez ao mar de Juncos, secando-o diante de nós até atravessarmos, para que todos os povos
da terra possam reconhecer quão poderosa é a mão de Yahweh e para que vocês possam

reverenciar Yahweh, o seu Deus, todos os seus dias.”

CAPÍTULO 5

1
E, quando todos os reis amorreus, no lado oeste do Jordão, e todos os reis cananeus perto

do mar [Mediterrâneo] ouviram como Yahweh secou as águas do Jordão diante dos israelitas

até eles atravessarem, a resolução deles derreteu, e não havia mais espírito deixado neles por

causa dos israelitas.

Ontem, eu estava compartilhando com uma mulher que perdeu o pai no

mesmo mês em que perdi a minha esposa. Ela mencionou que a sua mãe

não estava preparada para olhar para a frente, para imaginar como seria

o futuro, mas conseguia somente olhar para trás, relembrar o que havia

sido, enquanto ela, como filha, estava interessada em olhar para a

frente, não para trás. “Estou do lado da sua mãe!”, eu disse, para sua

leve consternação. A conversa me ajudou a compreender a pergunta

que uma terapeuta amiga me havia feito sobre que coisas novas eu

imaginava poder fazer agora. Pareceu-me uma pergunta simplesmente

estranha. Eu estava mais interessado em olhar para o passado, em

alimentar lembranças, em recapturar o que passou (acabei de pendurar

na parede, próxima à minha escrivaninha, algumas fotos de Ann, antes

de sua enfermidade). Agora, percebo que, para algumas pessoas, essa era

uma pergunta natural, mas não para mim no momento. Ambos,

expectativa e lembrança são importantes. Pessoas como eu, propensas a

relembrar, devem ser apoiadas, mas também encorajadas a ter

expectativas; pessoas que são inclinadas a viver no futuro devem ser

apoiadas, mas, igualmente, encorajadas a relembrar o passado.

Pelo bem da geração que está entrando em Canaã, Josué está cheio

de expectativas com respeito ao que virá; pelo bem das futuras gerações,

a lembrança é enfatizada. Na história posterior de Israel, Gilgal é um

local de adoração importante. Com a perda de importância da antiga

cidade de Jericó, esse local, situado no extremo de seu território, pode


se tornar relevante para Israel como um local que celebra a sua chegada

a Canaã. Ali, Samuel lidera Israel na confirmação da indicação de Saul

como rei; por duas vezes, durante o tempo de Saul, este é um local de

sacrifício (1Samuel 11—15); ali, Elias e Eliseu mantiveram uma base

(2Reis 1—4); e Oseias e Amós citam Gilgal como lugar de sacrifício e

peregrinação. Pode-se imaginar o cenário de Josué sendo concretizado

enquanto famílias israelitas se reúnem ali para um festival e as crianças

apontando para as doze pedras e perguntando o que elas significam. E,

caso elas não o façam por estarem muito ocupadas brincando e nadando

no rio, de qualquer maneira, os seus pais lhes contarão quando se

assentarem para jantar.

A história, agora, torna explícito o paralelo entre as travessias do

Jordão e do mar de Juncos, bem como o evento maior do êxodo. À

semelhança da primeira travessia, no mar de Juncos, esta é designada a

demonstrar o poder de Yahweh para todo o mundo, e a descrição dos

reis amorreus e cananeus dissolvendo-se em medo confirma o relato de

Raabe sobre a disposição deles e indica que as palavras de Josué estão se

cumprindo. Por sua vez, esse reconhecimento de Yahweh por outros

povos tem como objetivo provocar uma submissão obediente por parte

de Israel que perdure por toda a vida. Da mesma forma que o evento do

mar de Juncos levou Israel a reverenciar Moisés, o episódio ocorrido no

Jordão levou o povo a reverenciar Josué. Assim com os israelitas

empreenderam a sua jornada do Egito ao mar de Juncos “organizados

em companhias”, igualmente os rubenitas, gaditas e metade do clã de

Manassés cruzaram o Jordão “organizados em companhias” (a

expressão aparece somente nesses dois contextos). Como os israelitas

cruzaram o mar de Juncos em “solo seco”, assim também eles

atravessaram o Jordão “em solo seco” (a maioria das ocorrências dessa

expressão aparece em uma dessas conexões). As águas do mar de Juncos

retornaram ao seu lugar usual assim que os israelitas atravessaram, fato

que se repetiu com as águas do Jordão. Ainda, os israelitas cruzaram o

rio e levantaram acampamento em Gilgal no dia que significava o início


da observância da Páscoa, com sua celebração mais ampla da saída do

Egito.

Israel não desenvolveu nenhuma tradição de peregrinação ao lugar

onde eles foram libertos no mar de Juncos (ou ao Sinai, cuja

localização, por consequência, tornou-se incerta). A longa distância

pode ser um dos motivos. Localizar as doze pedras em Gilgal e retratar a

travessia do Jordão como uma repetição do evento do mar de Juncos

significava que uma peregrinação a Gilgal poderia se tornar uma

lembrança tanto da libertação no mar de Juncos quanto da chegada do

povo em Canaã. É possível imaginar os sacerdotes reencenando e

revivendo o evento diante do povo. Talvez isso explique parte da

irregularidade e salto na narrativa — por exemplo, superficialmente o

relato parece falar das doze pedras erigidas no meio do rio, assim como

as doze pedras edificadas em Gilgal, embora o mais provável é que

ambas as citações façam referência ao mesmo conjunto. Trata-se de um

relato tanto de uma comemoração anual quanto do próprio evento.


JOSUÉ 5:2-15
DE QUE LADO VOCÊ ESTÁ? NENHUM
2
Naquele tempo, Yahweh disse a Josué: “Faça facas de pederneira e circuncide os israelitas

3
novamente, uma segunda vez.” Então, o próprio Josué fez facas de pederneira e circuncidou

4
os israelitas na colina dos Prepúcios. Essa é a razão pela qual Josué os circuncidou. Todo o

povo que saiu do Egito, os homens, todos (os homens no exército) tinham morrido no

5
deserto, a caminho, após saírem do Egito. Embora todo o povo que saiu tenha sido

circuncidado, eles não tinham circuncidado as pessoas nascidas no deserto, a caminho, após

6
saírem do Egito. Porque, durante quarenta anos, os israelitas tinham perambulado no

deserto até que toda a nação (os homens no exército que saíram do Egito) se foi, as pessoas

que não tinham ouvido a voz de Yahweh e a quem Yahweh tinha jurado não deixar ver a terra

7
que Yahweh prometeu aos seus ancestrais nos dar, uma terra que mana leite e mel. Mas ele

criou os seus filhos no lugar deles. São esses que Josué circuncidou, pois eram incircuncisos,

8
porque não tinham sido circuncidados no caminho. Quando terminaram de circuncidar

toda a nação, eles permaneceram onde estavam no acampamento até se recuperarem.

9
Yahweh disse a Josué: “Hoje, rolei para longe a vergonha dos egípcios sobre vocês.” Aquele

10
lugar tem sido chamado de Gilgal [“Rolante”] até este dia. Os israelitas acamparam em

11
Gilgal e observaram a Páscoa no décimo quarto dia, à tarde, nas planícies de Jericó. Eles

comeram o produto da terra no dia após a Páscoa, pão asmo e grão torrado, naquele mesmo

12
dia. O maná parou no dia seguinte após eles comerem o produto da terra. Não houve mais

maná para os israelitas, mas eles comeram, naquele ano, da produção de Canaã.

13
Quando Josué estava em Jericó, ele olhou para cima e viu um homem parado em frente

dele, com a espada desembainhada na mão. Josué foi a ele e disse: “Você é por nós ou por

14
nossos inimigos?” Ele disse: “Não, porque é como comandante do exército de Yahweh que

eu, agora, venho.” Josué caiu ao chão diante dele, prostrou-se e lhe disse: “O que, meu

15
senhor, irás dizer ao teu servo?” O comandante do exército de Yahweh disse a Josué: “Tire

os sapatos dos seus pés, porque o lugar onde você está é sagrado.” Josué assim o fez.

Nesta semana, discutimos o livro de Jó em sala de aula. Abandonei a

ideia de dar uma palestra já definida sobre o livro porque, ao lerem o

livro como tarefa preparatória, os alunos vieram para a aula repletos de

questões e assuntos que gostariam de discutir. Assim, achei por bem

adotar essa forma de agenda para a aula. Um dos estudantes mostrou-se

preocupado pelo fato de Jó, como indivíduo, parecer apenas um peão na


história, bem como pela tratativa de Deus com o mundo. Em nossa

cultura, isso parece ser obviamente errado, porque é o indivíduo que

importa, e concluímos que essa seja a perspectiva bíblica. Ironicamente,

alguém mencionou João 3:16, nessa conexão: “Porque Deus tanto amou

o mundo”, como se o apóstolo estivesse dizendo: “Porque Deus amou

cada indivíduo.” Na verdade, João escreve que Deus amou o kosmos, o

mundo como um todo, o mundo como um sistema. Claro que Deus ama

cada um de nós, como indivíduos, porém essa não é a única prioridade

divina. Na realidade, esse é um ponto que Deus, ocasionalmente,

expressa a Jó. Ele, como indivíduo, não é o centro do mundo. Existem

outros aspectos para a atividade de Deus no mundo do que assegurar

que Jó tenha uma vida confortável e inteligível.

O comandante do exército de Deus estabelece um ponto similar no

fascinante diálogo com Josué. A sua aparição diante de Josué fornece

outro paralelo com a história de Moisés, já que equivale à presença de

Deus na sarça ardente, embora, dessa vez, ela afirme uma autoridade

sobre Josué distinta daquela aplicada a Moisés. Além disso, embora

ficasse imediatamente evidente a Moisés que ele estava sendo

confrontado por algo extraordinário, não há nada claramente

sobrenatural na aparição do comandante. Ele é apenas um guerreiro.

Assim, ele está do lado de Israel ou dos adversários? Josué questiona. O

homem se recusa a aceitar essa formulação da questão. Josué precisa

considerar mais seriamente que ele e seu exército são parte de um

quadro maior.

Aquela parte final do capítulo leva diretamente à história da queda

de Jericó. A ordem de Deus para Moisés retirar as sandálias porque ele

está pisando em solo sagrado leva à declaração da intenção de libertar

Israel do Egito e à comissão de ir ao faraó dizer-lhe para deixar Israel ir.

O paralelo da ordem do comandante a Josué conduz à declaração de

Deus da intenção de entregar Jericó ao seu poder e à ordem para rodear

a cidade, com o objetivo de forçar a sua rendição a Israel.


O relato da circuncisão e da Páscoa conclui a transição do deserto

para a chegada do povo a Canaã. Existem, ainda, paralelos adicionais

em relação ao êxodo. No episódio anterior, os israelitas celebraram a

Páscoa antes de Deus, de fato, fazer algo para tirá-los do Egito; tratou-

se de uma encenação empreendida pela fé e como uma expressão da

convicção quanto ao que Deus estava prestes a realizar. Aqui, os

israelitas celebram a Páscoa no dia determinado e comem pão asmo,

segundo o padrão. Eles estão, portanto, comendo o produto da Terra

Prometida. A ação deles corrobora o fato de terem chegado à terra que

Deus lhes prometeu e de não mais precisarem da provisão especial

recebida no deserto. Todavia, trata-se de um ato de fé e esperança

ultrajante. Eles atravessaram o Jordão e entraram na terra, mas de

forma que pareceram apenas como alguns imigrantes mexicanos que se

arrastaram para cruzar a fronteira norte-americana. Os seus problemas

estão apenas no início. Os israelitas estão se comportando como se a

ocupação da terra estivesse concluída, quando, na realidade, ainda não

enfrentaram nenhum dos habitantes locais daquela região.

Talvez isso enfatize ainda mais a importância da circuncisão em

massa que precede a celebração da Páscoa. Não é possível celebrar a

Páscoa sem ser circuncidado, pois é o sinal do compromisso de Deus

com o povo, por meio de aliança, e o sinal do compromisso responsivo

do povo, em aliança. É surpreendente descobrir que ninguém foi

circuncidado desde a saída do povo do Egito. Nenhum deles havia

recebido o sinal da aliança! A passagem, talvez, implique que a falha em

circuncidar os filhos seja outra demonstração da transgressão da

geração do deserto. Assim, agora, é como se a circuncisão fosse

instituída uma segunda vez, e o recebimento desse sinal por parte deles

significa que os israelitas estão, definitivamente, restabelecidos como o

povo da aliança, a quem Deus está prestes a cumprir a segunda metade

daquele compromisso declarado no Egito. O estágio um os levou para

fora da terra onde serviram ao governo egípcio; o estágio dois os levará

à terra onde servirão a Deus. Talvez a “reprovação aos egípcios” tenha


ligação com isso. Eles olhavam o mundo como se Deus fosse incapaz de

levar Israel à sua nova terra ou simplesmente os tivesse abandonado, e

Moisés, mais de uma vez, imaginou os egípcios afirmando isso (por

exemplo, Deuteronômio 9:28). A chegada do povo à terra e o

restabelecimento do sinal da aliança removem a base para qualquer

suposição equivocada. Deus enfatiza esse ponto por meio de um jogo de

palavras característico. O nome Gilgal lembraria o povo de uma palavra

hebraica para “rolar para longe”, galal. A circuncisão em massa, em

Gilgal, é como se Deus houvesse rolado para longe qualquer sugestão de

ter abandonado o povo.

O repentino “nos dar”, no versículo 6, chama a atenção para o fato

de que ler Josué não significa meramente ler um pedaço de história

objetiva. Essa é uma história escrita para as pessoas ouvirem, pessoas

que se identificam com os israelitas envolvidos nos eventos. Para alguns

leitores israelitas, essa seria uma história de como Deus cumpriu as

promessas feitas a “nós” sobre “nos” dar a terra da qual desfrutamos.

Para outros leitores israelitas, seria a história sobre como Deus cumpriu

aquelas promessas com respeito à terra que “nós”, entretanto, não mais

desfrutamos porque fomos expulsos dela, assim como os cananeus o

foram, e pelos mesmos motivos. Todavia, talvez esse não seja o fim da

história. É possível que a misericórdia de Deus pelos filhos da geração

do deserto seja um padrão que pode ser repetido com relação à geração

do exílio...
JOSUÉ 6:1-21
SOEM AS TROMBETAS
1
Ora, Jericó estava fechada por dentro e por fora por causa dos israelitas. Ninguém estava

2
saindo e ninguém estava entrando. Mas Yahweh disse a Josué: “Veja, entreguei Jericó e seu

3
rei [e] seus homens de luta em suas mãos. Todos os guerreiros devem ir ao redor da cidade,

4
circulando a cidade uma vez. Devem fazer isso por seis dias, enquanto sete sacerdotes

carregam sete trombetas de chifre de carneiro à frente do baú. No sétimo dia, vocês devem ir

5
ao redor da cidade sete vezes, enquanto os sacerdotes soam as trombetas. Ao soar da

trombeta de chifre de carneiro, quando ouvirem o barulho da trombeta, toda a companhia

deve dar um grande grito, e o muro da cidade cairá e a companhia subirá, cada pessoa em

frente.”

6
Então, Josué, filho de Num, convocou os sacerdotes e lhes disse: “Carreguem o baú da

aliança enquanto sete sacerdotes carregam sete trombetas de chifre de carneiro à frente do

7
baú de Yahweh.” Ele disse à companhia: “Passem adiante, vão ao redor da cidade, enquanto

8
as pessoas equipadas para uma campanha passam adiante do baú de Yahweh.” Quando Josué

tinha falado ao povo, os sete sacerdotes carregando as sete trombetas de chifre de carneiro

passaram diante de Yahweh e sopraram as trombetas, com o baú da aliança de Yahweh os

9
seguindo, e as pessoas equipadas para uma campanha indo à frente dos sacerdotes que

sopravam as trombetas, e a retaguarda continuando a seguir o baú, com as trombetas soando.

10
Josué ordenou à companhia: “Vocês não gritarão, não farão ouvir a sua voz, nenhuma

11
palavra sairá de sua boca, até a hora que eu lhes disser: ‘Gritem!’, e vocês gritarão.” Assim,

ele fez o baú de Yahweh ir ao redor da cidade, circulando-a uma vez; então, eles vieram ao

12
acampamento e passaram a noite no acampamento. Josué levantou-se cedo, na manhã

13
seguinte, e os sacerdotes levaram o baú de Yahweh, enquanto os sete sacerdotes

carregando as sete trombetas de chifre de carneiro seguiam à frente do baú de Yahweh e

tocavam as trombetas, com as pessoas equipadas para uma campanha indo à frente deles e a

14
retaguarda continuando a seguir o baú de Yahweh, e com as trombetas soprando. Eles

foram ao redor da cidade uma vez, no segundo dia, e retornaram ao acampamento. Assim eles

fizeram por seis dias.

15
No sétimo dia, eles começaram cedo, ao amanhecer, e foram ao redor da cidade, de acordo

com essa rotina, sete vezes; somente naquele dia eles foram ao redor da cidade por sete vezes.

16
Na sétima vez, os sacerdotes soaram as trombetas, e Josué disse à companhia: “Gritem,

17
porque Yahweh lhes entregou a cidade. A cidade deve ser um objeto devotado a Yahweh,

ela e tudo nela, exceto Raabe, a prostituta, que deve permanecer viva, ela e todos com ela na

18
casa, porque ela escondeu os ajudantes que enviei. Somente vocês tenham cuidado quanto

àquilo que deve ser devotado para que não se tornem algo que deve ser devotado. Se

pegarem alguma coisa do que deve ser devotado, vocês tornarão o acampamento israelita em
19
algo que deve ser devotado. Trarão problemas sobre ele. Toda prata, todo ouro e os objetos

de bronze e de ferro são santos a Yahweh. Eles devem ir para o tesouro de Yahweh.”

20
Então, a companhia gritou quando eles soaram as trombetas. Ao ouvir o som da trombeta,

a companhia deu um grande grito, o muro caiu, e a companhia subiu à cidade, cada pessoa

21
em frente, e capturaram a cidade. Eles devotaram tudo na cidade, homem e mulher, jovem

e velho, boi, ovelha e jumento, a fio de espada.

Em Nova Orleans, durante uma reunião no fim de semana (eu tenho um

emprego muito difícil), conversei com Tom Wright, autor da série O

Novo Testamento para todos, e com a equipe dos editores. Na ocasião,

enfatizei que o aspecto mais exigente desse projeto é ter uma história

para iniciar cada capítulo. Então, alguém perguntou se eu seria capaz de

incluir uma referência a Nova Orleans. Cumprir essa tarefa foi deveras

fácil, porque também passei algum tempo ouvindo os trompetistas

locais. No Preservation Hall, acompanhei uma banda com uma

configuração do autêntico e tradicional jazz, com a linha de frente

composta de clarinete, trompete e trombone, antes de o saxofone ser

importado das bandas de dança. Ao ar livre, na Bourbon Street, havia

uma banda com uma característica antiga, uma tuba em lugar do baixo.

Essa música começou como música de marcha; não é possível marchar e

tocar baixo ao mesmo tempo.

Aqui está Josué com uma banda de marcha original, soprando

chifres literais (feitos de chifre de carneiro para fazer barulho, não tocar

uma melodia), não trompetes de metal (eles aparecem somente mais

tarde em Israel). “Joshua fit the battle of Jericho” [Josué lutou na batalha

de Jericó], diz a letra de uma canção que não ouvi uma dessas bandas

tocar, porém Josué não lutou. Não houve batalha em Jericó. Se houve

alguém que lutou em Jericó, assim como no mar de Juncos, não foram

os israelitas, mas Deus. Os israelitas simplesmente marcham, soam

trombetas e gritam bem alto. Embora haja, de fato, uma procissão por

uma banda marcial, o envolvimento essencial dos sacerdotes torna o ato

mais parecido com as procissões nos arredores das paróquias que as


igrejas, às vezes, promovem. A presença do baú da aliança significa a

presença de Deus. Quando os israelitas realizam a sua malfadada

tentativa de conquistar Canaã por sua própria força, houve uma ligação

entre o fracasso deles e o fato de não levarem o baú com eles (Números

14:44). No entanto, em uma ocasião posterior, eles o levaram em outra

malsucedida expedição, e isso não funcionou (1Samuel 4). Se o projeto

for de Deus, o baú como símbolo do relacionamento de aliança com

Deus será um sinal efetivo da presença divina.

Então, eles devotaram as coisas e o povo de Jericó. Devotar coisas

significa entregá-las a Deus. Isso, algumas vezes, implica entregá-las

para o serviço de Deus, mas em outras ocasiões implica a execução

delas, e ambos os significados se aplicam a essa narrativa. O saque de

Jericó deve ser guardado no tesouro do santuário; os viventes devem ser

executados. Na introdução, observamos como isso, usualmente, suscita

questionamentos por parte de cristãos e judeus no contexto da

modernidade e sugerimos algumas considerações a serem levadas em

conta nessa reflexão. Retornaremos a elas em conexão com Josué 10:22-

27.

Há outro assunto relacionado. Como outras cidades da

Antiguidade, Jericó engloba uma enorme colina formada pelas ruínas de

uma sequência de cidades acumuladas ao longo dos séculos, como as

camadas de um bolo. Cada vez que uma cidade é destruída por um

incêndio ou uma guerra, o seu povo cobre as ruínas e constrói

novamente sobre elas. Assim, descobrimos a história de uma cidade por

meio de escavações nessas camadas e buscando interpretar as suas

ruínas. Ao visitar Jericó, você permanece no topo das ruínas de um

monte e olha para baixo, em direção às áreas escavadas que são,

paradoxalmente, muito mais velhas que o lugar onde você está

posicionado.

Antes de ir à Nova Orleans, planejei introduzir esse capítulo com

uma história da visita que, certa feita, fiz a Jericó, onde a cidade

moderna foi edificada ao longo da cidade antiga. Com bom humor,


porém certa dose de seriedade, um guia turístico local garantiu ao seu

grupo que, se eles descessem à escavação e olhassem pelos muros ali,

seria possível encontrar a trombeta de Josué. Os muros para os quais ele

estava apontando eram, na realidade, alguns milhares de anos mais

antigos que os muros dos tempos de Josué. Não existem ruínas de Jericó

pertencentes à época de Josué. Parece não haver habitantes em Jericó

nesse período. Isso sugere que a história da conquista de Jericó por

Josué é apenas uma história, uma sugestão que tanto pode nos causar

ansiedade ou nos dar alívio. Não estou certo se é para tanto. Esse fato

não nos livra do gancho das questões sobre a moralidade da história.

Essa é a história que Deus se agradou em ter em seu livro, e é ela que as

pessoas leem; poucas leem os relatórios arqueológicos. Aparentemente,

Deus apreciou registrar a história com seu relato sobre como os

cananeus mereciam o juízo e como Deus utilizou Josué para exercer esse

juízo sobre eles.

Caso se trate de uma história mais ou menos fictícia, em algum

estágio os israelitas devem ter sabido. Então, porque eles a contaram?

Uma resposta plausível é que a narrativa simboliza vividamente o fato

de a terra ter sido entregue a Israel por Deus. Israel não obteve o

controle da terra por seus próprios esforços. Tudo o que eles fizeram foi

marchar em volta, soar as trombetas e gritar. E, por ser verdade que

Deus entregou a terra a Israel e ela não ter sido conquistada pelos

esforços israelitas, não importa muito quão factual seja a história vívida

e concreta que ilustra aquela verdade. Podemos, então,

reconhecidamente, questionar como ter certeza de que Deus entregou a

terra a Israel se não for com base na veracidade dessa história. Devemos

lembrar, então, que, mesmo que a queda de Jericó tenha ocorrido, de

fato isso ainda não constitui uma prova de que Deus deu a terra aos

israelitas. Isso envolve um passo de fé. Na realidade, aceitar que Deus

entregou Canaã a Israel constitui parte de um passo maior de fé

envolvido em seguir a história mais abrangente do Antigo e do Novo

Testamentos.
JOSUÉ 6:22—7:15
QUEM SÃO OS VERDADEIROS CANANEUS?
22
Mas, aos dois homens que tinham investigado a terra, Josué disse: “Vão à casa da

prostituta e tirem de lá a mulher e todos os que pertencem a ela, como lhe prometeram.”

23
Assim, os jovens que tinham feito a investigação foram e trouxeram Raabe, o pai e a mãe

dela, seus irmãos e todos os que lhe pertenciam. Eles trouxeram toda a sua família e os

24
colocaram fora do acampamento israelita. Então, queimaram a cidade e tudo nela, exceto a

prata, o ouro e os objetos de bronze e ferro, que colocaram no tesouro da casa de Yahweh,

25
mas Josué deixou Raabe, a prostituta, viver, com a casa de seu pai e todos o que lhe

pertenciam. Ela viveu no meio de Israel até este dia, porque escondeu os ajudantes de Josué

enviados para investigar Jericó.

26
Naquele tempo, Josué jurou: “Maldito diante de Yahweh seja o homem que se

comprometer a construir essa cidade de Jericó. Ao custo de seu primogênito, possa ele

27
fundar isso, e ao custo de seu mais novo possa ele colocar seus portões.” Yahweh estava

com Josué, e sua fama se espalhou por toda a terra.

CAPÍTULO 7

1
Mas os israelitas quebraram a fé com respeito a devotar as coisas quando Acã, filho de

Carmi, filho de Zabdi, filho de Zerá, do clã de Judá, pegou algumas das coisas que deviam ser

devotadas, e a ira de Yahweh se acendeu contra os israelitas.

2
Josué enviou homens de Jericó a Ai, que fica perto de Bete-Áven (a leste de Betel),

dizendo-lhes: “Subam e investiguem a terra.” Então, os homens subiram, investigaram Ai,

3
voltaram a Josué e lhe disseram: “Toda a companhia não deveria subir. Uns dois ou três mil

homens deveriam subir e derrubar Ai. Não deveria cansar toda a companhia ali, porque eles

4
são uma comunidade pequena.” Assim, uns três mil da companhia subiram, mas eles

5
fugiram diante dos homens de Ai. Os homens de Ai derrubaram cerca de 36 deles e os

perseguiram [desde] a frente do portão até as pedreiras e os derrubaram na encosta. A

6
resolução do povo derreteu e se tornou em água, e Josué rasgou as suas roupas e prostrou-se

com o rosto em terra, diante do baú de Yahweh até o anoitecer, ele e os anciãos israelitas, e

7
colocaram terra sobre a cabeça. Josué disse: “Ó Senhor Yahweh, por que trouxeste este

povo através do Jordão, afinal, a fim de nos entregar na mão dos amorreus para nos destruir?

8
Antes nos contentássemos em viver do outro lado do Jordão. Quanto a mim, Senhor, o que

9
devo dizer após Israel ter dado as costas diante de seus inimigos? Os cananeus e todos os

habitantes da terra ouvirão e se voltarão contra nós e cortarão o nosso nome da terra, e o que

farás quanto ao teu grande nome?”

10 11
Yahweh disse a Josué: “Levante-se. Por que você está prostrado aí? Israel errou. Sim, eles

violaram a minha aliança que lhes ordenei. Sim, pegaram algumas das coisas que deviam ser

devotadas. Sim, roubaram coisas. Sim, agiram enganosamente. Sim, colocaram as coisas em
12
seus sacos. Os israelitas não serão capazes de ficar em pé diante de seus inimigos. Eles

darão as costas diante de seus inimigos porque se tornaram em algo a ser devotado. Não

estarei com vocês novamente, a não ser que destruam de seu meio a coisa que deve ser

13
devotada. Levante-se, santifique o povo. Diga: ‘Santifiquem-se para amanhã, porque

Yahweh, o Deus de Israel, disse isso: “Há algo a ser devotado em seu meio, Israel. Vocês não

podem ficar em pé diante de seus inimigos até que tenham removido o que deve ser devotado

14
de seu meio.” De manhã, vocês devem se apresentar por seus clãs. O clã que Yahweh

escolher deve se apresentar por grupos de parentesco. O grupo de parentesco que Yahweh

escolher deve se apresentar por famílias. A família que Yahweh escolher deve se apresentar

15
homem por homem. Aquele que for apanhado na rede deve ser queimado no fogo, ele e

todos os que pertencem a ele, porque ele transgrediu a aliança de Yahweh e porque cometeu

uma afronta em Israel.’”

Tenho tentado confrontar Deus, mas isso não tem funcionado bem,

porque Deus é capaz de confrontar de volta (como Jó descobriu). Certa

feita, quando estava exasperado por causa da enfermidade de minha

esposa, eu disse a Deus: “Não confio em ti com relação a Ann”; e senti

Deus replicando: “Confiaria em você com relação a Ann caso você fosse

eu?” (a resposta, claro, foi “Não”). Em outra ocasião, eu disse a Deus:

“Não concordo muito com a maneira de lidares com a Ann”; e senti

Deus respondendo: “O modo de eu tratar Ann é entre ela e mim; não

respondo a você.” Foi uma resposta dura, decerto, mas estranhamente

útil. Ao falar com franqueza, é possível que receba uma resposta

igualmente franca, mas isso é melhor do que falar indiretamente e, por

conseguinte, não obter uma resposta que expresse o pensamento de

Deus e faça você pensar sobre as coisas de um modo diferente.

Josué conclui que não há problemas em confrontar Deus; ele

também descobre que Deus confronta de volta. O seu argumento

sobrepõe-se ao de Moisés, quando Deus ameaçou abandonar Israel; o

nome de Deus será desacreditado por essa ação. Todavia, Moisés sabia

que o povo de Israel estava errado. Em certo sentido, não se pode

acusar Josué por desconhecer isso, mas por simplesmente assumir que o

problema reside em Deus. Ou, talvez, seja assim que as coisas, com
frequência, funcionam numa relação. Posso, facilmente, presumir que

estou certo e que o erro está na outra pessoa, mas, quando expresso o

que penso, descubro que a outra pessoa possui uma perspectiva distinta

da situação, uma que me faz engolir as minhas próprias palavras. É

possível que, em teoria, pudesse ter refletido mais sobre isso e sido

menos confrontador, mas o mais importante é que o assunto seja

resolvido. Há momentos para o protesto e momentos para a autoanálise,

mas a pessoa pode descobrir que esse autoexame ocorre apenas quando

tratamos o conflito como um tempo para o protesto.

Em Josué 6 e 7, Raabe e Acã são justapostos, uma cananeia que não

se comporta como uma cananeia e um israelita que não age como um

israelita. Na verdade, Raabe é uma versão extrema de um cananeu, já

que ela incorpora a propensão à imoralidade sexual que os israelitas

associam com os cananeus, enquanto Acã vem do coração de Israel, do

clã do qual Davi procede. Israel sabia que a distinção entre Israel e

Canaã era étnica, mas também que isso era verdade apenas no plano

superficial. A Torá vê Israel como uma comunidade aberta. Pessoas

oriundas de outros grupos étnicos, comprometidas com o Deus de

Israel (convertidas, se preferir), tornavam-se membros efetivos de

Israel. Às vezes, ocorre de serem refugiados, imigrantes ou estrangeiros

residentes, que passam a viver em uma comunidade israelita e escolhem

unir-se a ela no sentido mais apropriado do que simplesmente

permanecer ali como forasteiro. Em outras, são pessoas como Jetro, o

sogro de Moisés, ou Raabe, que ouviram o que Deus fez por Israel e

sabem que devem responder a isso.

Desde antes dos tempos do Novo Testamento, o judaísmo tem sido,

com frequência, uma religião missionária e, por diversos motivos,

muitas pessoas têm se unido ao povo judeu. Muitos judeus, vivos hoje,

não são fisicamente descendentes de Jacó e de seus filhos. Isso não os

torna membros inferiores de Israel. A adoção torna você membro

genuíno de uma família. Reconhecidamente, as coisas parecem ser um

pouco diferentes com relação a Raabe. Da mesma forma que outras


pessoas na história do Antigo Testamento, como Rute, “a moabita”, e

Urias, “o hitita”, as pessoas sempre souberam o histórico étnico de

Raabe, e uma função de sua história é explicar como essa família

cananeia, em particular, veio a ser parte de Israel “até este dia”, o dia

das pessoas que contam a história. Essa narrativa relembrava o povo de

que, apesar de toda a conversa sobre destruir ou devotar os cananeus,

Deus nunca foi contra os cananeus em si. Sempre seria possível a eles

acreditarem em Yahweh e se comprometerem com a filiação a Israel.

Ao contrário, apenas o fato de ser fisicamente um israelita não o

eximia de ser devotado nesse sentido fatal. De todo modo, o

compromisso supera a etnia. Da mesma forma, Deus não lida com as

pessoas separadamente de suas famílias. Quão grande salvadora Raabe

foi! Por meio de seu envolvimento no comércio sexual, ela salvou a sua

família da pobreza ou da servidão e, então, salvou os espias israelitas.

Depois, salvou a sua família por se comprometer com Yahweh. Por outro

lado, Acã trouxe o tipo errado de devotação sobre a sua família pela

quebra da fé com Yahweh. Indivíduos podem se dissociar de suas

famílias; a esposa de Ló fez isso, assim como Rute. Todavia, a história

relembra às culturas individualistas que não somos apenas indivíduos

isolados. Ter fé e quebrar a fé tende a manter a família unida.


JOSUÉ 7:16-26
A COBIÇA PODE MATAR
16
Cedo, na manhã seguinte, Josué levou Israel a se apresentar por seus clãs, e o clã de Judá

17
foi escolhido. Ele fez o clã de Judá se apresentar e tomou o grupo de parentesco de Zerá.

18
Ele fez o grupo dos zeraítas se apresentarem, homem por homem, e Zabdi foi escolhido. Ele

fez a sua família se apresentar, homem por homem, e Acã, filho de Carmi, filho de Zabdi, filho

19
de Zerá, da tribo de Judá, foi escolhido. Josué disse a Acã: “Meu filho, você dará honra a

Yahweh, o Deus de Israel, e fará confissão a ele? Irá me contar o que você fez? Não esconda

20
isso de mim.” Acã replicou a Josué: “É verdade. Eu sou aquele que fez mal contra Yahweh,

21
o Deus de Israel. Isso foi o que eu fiz. Vi no espólio uma fina capa de Sinear, duzentos siclos

de prata e uma barra de ouro, pesando cinquenta siclos. Eu os cobicei e os tomei. Estão

22
enterrados no chão, dentro de minha tenda, com a prata por baixo.” Josué enviou

ajudantes, e eles correram à tenda, e ali estavam enterrados em sua tenda, com a prata por

23
baixo. Eles os pegaram de dentro da tenda, os levaram a Josué e a todos os israelitas,

24
colocando-os diante de Yahweh. Josué tomou Acã, filho de Zerá, a prata, a capa, a barra de

ouro, seus filhos, suas filhas, seu boi, seu jumento, seu rebanho, sua tenda, tudo o que ele

25
tinha, e, com todo o Israel, ele os levou ao vale do Problema. Josué disse: “Como você nos

trouxe problemas! Yahweh trará problema sobre você este dia.” Então, todo o Israel atirou

26
pedras nele. Eles os queimaram no fogo e os atingiram com pedras, levantando uma grande

pilha de pedras sobre eles até este dia. E Yahweh se afastou de sua ira ardente. Eis por que

aquele lugar tem sido chamado de vale do Problema até este dia.

Hoje, enquanto escrevo estas palavras, é a chamada Black Friday,

quando as lojas esperam transformar suas contas negativas em

positivas, à medida que o fim do ano se aproxima. As pessoas passarão a

noite em filas ou amargarão horas de loucura para comprar uma TV de

última geração por um preço promocional. No ano passado, um

funcionário do Walmart foi pisoteado até a morte quando as portas da

sua loja foram abertas. Sim, a cobiça pode matar ou, pelo menos, causar

ataques do coração ou tensões familiares. Quando eu tinha nove anos,

meus pais administravam uma pequena loja, e eu costumava roubar

dinheiro da caixa registradora. Certa ocasião, a minha mãe me flagrou e

me obrigou a confessar o delito ao meu pai. Fiz isso com contrição, mas
o que realmente sentia era remorso por ter sido descoberto e não parei

imediatamente; passei simplesmente a agir com mais cuidado e menos

frequência (na verdade, parei logo depois).

Como nós, O Antigo Testamento assume que os indivíduos são

responsáveis por sua própria vida e, especialmente, por suas

transgressões. Os pais não devem ser condenados à morte por causa dos

filhos, nem os filhos, por causa dos pais; uma pessoa deve ser

sentenciada à morte por sua própria transgressão (Deuteronômio

24:16). Esse princípio é subjacente a todas as leis do Antigo

Testamento, assim como a nossa legislação penal. Contudo, sabemos

que a vida é mais complexa que isso. Quando um tribunal sentencia

uma mãe ou um pai à prisão, ele impõe uma punição sobre os filhos

também, porque os seres humanos estão vinculados na teia da vida. Se

eu vivo como alguém que considera importante a aquisição de “coisas”,

isso terá um efeito negativo sobre os meus filhos de inúmeras formas. O

modo pelo qual somos feitos como seres humanos significa que os

pecados dos pais são visitados em seus filhos, embora (de acordo com os

cálculos de Deus nos Dez Mandamentos) eles não sejam tão

extensivamente visitados quanto as influências dos aspectos positivos

dos pais em seus filhos. A história de Acã mostra que o destino das

famílias está vinculado em conjunto.

Talvez a família de Acã tenha participado ou sido cúmplice em sua

apropriação indevida da pilhagem, porém a história não se preocupa em

esclarecer esse ponto; o seu foco reside em outro lugar. Se o que ocorreu

à família de Acã parecer injusto e desejarmos tirar Deus ou a Bíblia

desse enrosco, podemos questionar se Josué mostra algumas limitações

em seu modo de olhar as coisas. Ele o fez em sua suposição de que

deveria protestar pela derrota em Ai em lugar de considerar isso como

uma indicação de que o povo poderia estar em falta. Já observamos a

estranheza de ele enviar homens para o reconhecimento de Jericó, o que

os levou a acabar no prostíbulo. Em breve, leremos sobre Josué se

deixar enganar por não consultar Deus quanto ao avanço dos heveus.
Na narrativa de Raabe, o bem resulta dessa ação e, discutivelmente, isso

também aconteceu no episódio envolvendo os heveus. Aqui, da mesma

forma, Deus aceita a ação de Josué; isso leva ao aplacamento da ira

divina. O relacionamento de Deus conosco envolve nos aceitar como

somos em vez de insistir em não tomar nenhuma atitude até estarmos

absolutamente certos (o que significaria, portanto, esperar

eternamente). Assim, é possível que Deus não estivesse tão

entusiasmado com a forma pela qual Josué tratou a família de Acã.

Talvez a concessão de Deus para conosco esteja envolvida na

própria ideia de devotar os inimigos, que surge em Números 21 como

sendo uma ideia de Moisés, não de Deus, embora Deus tenha

concordado com ela, como ocorre aqui. Portanto, um significado para a

história de Acã é que a ideia de devotar coisas não é aplicada

unicamente a outros povos, por Israel, mas aplica-se aos próprios

israelitas. É o oposto do fato de que uma cananeia como Raabe e sua

família podem escapar de serem devotados e mortos. Israel consagrou

Jericó a Deus e deve entregá-la a Deus. Josué havia indicado que a

apropriação de qualquer objeto dessa cidade significaria que a

consagração e a exigência de devotação seriam contagiosas. Uma vez

mais, isso envolveu que Josué, pelo menos, colocasse o pingo nos “is”

quanto ao que Moisés diz em Deuteronômio, mas isso constitui um

forte desestímulo à pilhagem e, por conseguinte, à própria guerra, seja o

que for que a nação possa obter com ela. Você nada pode ganhar com a

guerra. O que pode obter para você mesmo pertence a Deus.

A ação de Josué também parece injusta ao próprio Acã. O Antigo

Testamento, usualmente, assume que uma pessoa, ao reconhecer a sua

transgressão e se arrepender, encontra perdão e tem a sua vida poupada,

embora isso nem sempre funcione. Não funcionou com Saul nem com

Davi; Deus, na verdade, poupa Davi da execução que seria aplicada

adequadamente por ele tramar a morte de Urias, mas Deus permite que

o seu bebê morra e que o resto da vida de Davi se desintegre. Aqui, o

contágio da devotação atinge Acã, sua família, seus animais e sua casa,
e, por essa razão, a confissão de Acã não o leva a ser perdoado e

poupado. É possível que, nos três casos, a confissão e o arrependimento

não sejam suficientemente sérios e, na atitude deles, haja mais remorso

do que arrependimento genuíno. Como de costume, prefiro pensar que

o mais importante é sentir gratidão por ser uma pessoa comum vivendo

em tempos comuns. Para líderes e pessoas que vivem em períodos

cruciais, as apostas são elevadas, e esse fato cativa Acã, assim como

capturará Saul e Davi. Contudo, o destino deles também nos lembra

que, mesmo para pessoas comuns vivendo em tempos triviais, há erros

cujas consequências não podem ser desfeitas. Um homem promíscuo

que contrai o vírus do HIV, infecta sua esposa e, então, converte-se não

fica, provavelmente, curado por causa da sua conversão, tampouco sua

esposa. Uma mulher que faz uso de drogas durante a gravidez e, então,

se arrepende pode ser que dê à luz um bebê com dependência química.

A terrível história de Acã incidentalmente nos fornece um retrato

de como as inter-relações funcionavam em Israel, quando o povo, como

um todo, era dividido em clãs (ou tribos como são, normalmente,

denominados), grupos de parentesco e famílias. Na realidade, a história

fala de seis níveis de relacionamento — Acã, Carmi, Zabdi, Zerá, Judá e

Israel, como um todo. Segundo Gênesis, Jacó/Israel era o pai de Judá,

sendo este o pai de Zerá. Zabdi é, aparentemente, o cabeça atual deste

grupo de parentesco. Talvez Carmi tenha morrido (já que ele é

mencionado apenas como o pai de Acã), e Acã é, portanto, o cabeça de

uma família dentro do grupo de parentesco, quiçá um homem de meia-

idade. A família é a menor unidade em Israel, encabeçada pelo membro

do sexo masculino mais velho. A família de Acã seria constituída de

seus filhos e suas noras, bem como, possivelmente, de alguns filhos e

filhas solteiros. Os filhos pertencentes aos seus filhos e noras também

fariam parte desse lar, embora nenhum seja citado em seu caso.

Portanto, é mais como uma família estendida no pensamento do

Ocidente. Os próprios irmãos de Acã, que também eram filhos de

Carmi, seriam cabeças de famílias similares dentro do grupo de


parentesco. Seria dentro dessa parentela, como um todo, que o cabeça

de uma família procuraria por esposas para seus filhos, e elas, então, se

uniriam a esse núcleo familiar. Em contrapartida, quando suas filhas se

casassem, elas é que se uniriam às famílias de seus respectivos maridos,

dentro do grupo de parentesco. O tamanho dessa família implicaria que

seus membros não moravam todos dentro da mesma casa física (ou

tenda, nesse estágio), e escavações em vilas israelitas revelam que as

casas eram situadas em aglomerados (o que significaria que as pessoas

de uma mesma família poderiam evitar umas às outras!).


JOSUÉ 8:1-21
A IMPORTÂNCIA DE UM PLANO DE JOGO
1
Yahweh disse a Josué: “Não tenha medo. Não desanime. Leve toda a força de luta com você.

Parta e suba a Ai. Veja, entreguei em sua mão o rei de Ai, a sua cidade, o seu povo e a sua

2
terra. Deve tratar Ai e seu rei como tratou Jericó e seu rei; apenas a sua pilhagem e seu gado

podem tratar como espólio para vocês mesmos. Prepare uma emboscada para a cidade, atrás

3
dela.” Então, Josué e toda a força de combate partiram em direção a Ai. Josué escolheu

4
trinta mil homens, lutadores fortes, e os enviou à noite. Ele lhes ordenou: “Veja, vocês irão

armar uma emboscada para a cidade, atrás da cidade. Não fiquem muito longe da cidade e

5
todos vocês fiquem em alerta. Eu e todo o povo, que está comigo, nos aproximaremos da

cidade, e, quando eles saírem para nos enfrentar como fizeram da primeira vez, fugiremos

6
diante deles. Eles virão atrás de nós até os termos atraído para longe da cidade, porque

dirão: ‘Eles estão fugindo diante de nós como fizeram da primeira vez.’ Quando fugirmos

7
diante deles, vocês mesmos sairão de sua emboscada e tomarão a cidade. Yahweh, o seu

8
Deus, a entregará em sua mão. Quando tiverem tomado a cidade, incendeiem-na. Devem

fazer conforme disse Yahweh. Vejam, eu lhes ordenei.”

9
Então, Josué os enviou, e eles foram para a emboscada e se estabeleceram entre Betel e Ai, a

10
oeste de Ai. Josué passou a noite no meio do povo. Cedo, de manhã, Josué reuniu a

11
companhia, e ele e todos os anciãos subiram à frente da companhia para Ai. Toda a força de

combate, que estava com ele, subiu. Eles se aproximaram e chegaram em frente da cidade e

12
acamparam ao norte de Ai. Havia um vale entre eles e Ai. Ele tomou cinco mil homens e os

13
colocou como uma emboscada entre Betel e Ai, a oeste da cidade. Assim, estabeleceram a

força de combate, como um todo, ao norte da cidade, e a emboscada a oeste da cidade, e

Josué foi, naquela noite, ao meio do vale.

14
Quando o rei de Ai viu isso, cedo, de manhã, os homens da cidade rapidamente saíram

para envolver Israel em batalha, ele e toda a sua companhia, no local definido, diante da

15
Estepe. Ele não sabia que havia uma emboscada para ele atrás da cidade. Josué e todo o

16
Israel se deixaram ser batidos diante deles e fugiram na direção do deserto. Toda a

companhia em Ai chamou uma à outra para persegui-los. Então, eles perseguiram Josué e

17
foram arrancados da cidade. Nenhum homem foi deixado em Ai ou em Betel que não tenha

18
ido atrás de Israel. Eles deixaram a cidade aberta e perseguiram Israel. Yahweh disse a

Josué: “Segure a lança em sua mão na direção de Ai, porque eu a entregarei em sua mão.”

19
Então, Josué segurou a lança em sua mão na direção da cidade, enquanto a emboscada

rapidamente saía de seu lugar. Eles correram quando ele estendeu a sua mão, entraram na

20
cidade e a tomaram. Rapidamente, incendiaram a cidade, e os homens de Ai se voltaram e

viram: eis que a fumaça da cidade subia aos céus e não havia como escapar, de um jeito ou de

21
outro, pois o povo que fugia para o deserto se transformou em perseguidores, quando
Josué e todo o Israel viram que a emboscada tinha tomado a cidade e que a fumaça estava

subindo da cidade. Então, eles se voltaram e derrotaram os homens de Ai.

Há três semanas, fui a um jogo de futebol americano pela primeira vez.

Igualmente, foi a minha primeira experiência de confraternizar no

estacionamento antes da partida, debaixo de um sol quente, burritos no

café da manhã, que, acompanhados de algumas mimosas, constituíram o

ponto alto do dia. Interessei-me em comparar o futebol americano com

o rúgbi, que costumava jogar na adolescência. Por exemplo, no rúgbi os

jogadores podem chutar para a frente, mas não passar com as mãos; no

futebol americano, a regra é oposta. O jogo é tão longo quanto o rúgbi

ou uma partida de futebol, embora dure, na realidade, três vezes mais,

porque para e recomeça continuamente. Nessas paradas e recomeços,

contaram-me, um papel-chave é desempenhado pelas jogadas

idealizadas pelo técnico e ensaiadas pela equipe. Há um pouco disso no

futebol também. No rúgbi, os chamados três-quartos (grosseiramente

equivalentes ao quarterback) podem parecer como se estivessem

correndo numa direção, mas, de repente, mudam para outra, num

movimento em diagonal. Contudo, os truques ou jogadas táticas são

muito mais importantes no futebol americano, assim como as

estratégias específicas para as diferentes partes do jogo em seu todo.

(Pergunto-me se este seria o motivo de os técnicos serem tão bem

remunerados.)

Em Jericó e em Ai, Deus entregou a Josué os planos de jogo, bem

diferentes entre si, para as duas cidades, embora ambos expressassem

que não seria pela força militar que Israel conquistaria Canaã. Em

Jericó, o exército israelita não desempenhou papel algum. Deus fez os

muros da cidade colapsarem. Em contraste, o plano para Ai não

envolveu a intervenção divina. Se você estivesse lá e as coisas

acontecessem como relatado na Bíblia, provavelmente você estaria se

perguntando como as muralhas de Jericó caíram e sentiria pesar pela


população daquela cidade. No caso de Ai, sentiria admiração pelo

estratagema de Josué e um pouco de pena de o povo ter sido tão

ingênuo. Algumas vezes, Deus age por meio de milagres e, em outras,

age por meios humanos.

Igualmente, se admiraria da energia dos israelitas. Ao entrarem na

terra pela travessia do Jordão, eles precisariam prosseguir, subindo ao

coração da cordilheira montanhosa de Canaã, via Ai e Betel, situada

nas imediações (a moderna estrada principal, que conecta Jericó a

Jerusalém, não era uma rota importante naqueles dias). Percorri aquela

estrada e não a recomendo a pessoas propensas ao nervosismo. Sobe-se

encostas íngremes, de trezentos metros abaixo do nível do mar até

quase mil metros acima. Então, caso estivesse com Josué, estaria

esperando lutar em uma batalha.

Como Deus revelou a Josué a ideia do estratagema que ele devia

implementar? Imagino Josué indo à tenda do encontro, como Moisés

fazia quando necessitava da orientação divina, embora, julgando com

base no início deste capítulo, não fosse lá o lugar onde Josué estava no

início do diálogo; pelo menos, não foi onde Deus começou a conversa. O

episódio com Acã tinha sido profundamente desencorajador. Por

consequência, o olhar de Josué para a expedição mostrou-se errado

quando ele enviou homens para um reconhecimento da região e, então,

usou cálculos militares comuns para definir como tomar a cidade (três

mil homens lograrão fazer o mesmo).

Deus sabe que Josué precisa de encorajamento. A história de Ai

mostra que, se você resolver as coisas com Deus, pode experimentar um

novo começo. Esse tema é recorrente ao longo de todo o Antigo

Testamento e percorre o Novo Testamento. A confecção do bezerro de

ouro por Israel no Sinai; os filhos de Arão oferecendo fogo estranho no

santuário; os israelitas em Cades, incapazes de acreditar que podem

entrar em Canaã (e, então, tentam fazer isso quando Deus os proíbe);

Judas traindo a Jesus; Pedro negando conhecê-lo; Ananias e Safira

sendo mortos por terem fraudado os seus votos... As coisas estão sempre
dando errado, porém Deus jamais permite que esse seja o fim da

história. Desse modo, Deus começa encorajando Josué a se levantar,

sacudir a poeira e dar a volta por cima, não por ele possuir recursos para

fazer isso, mas porque Deus ainda está comprometido com ele. Num

testemunho paradoxal desse ponto, não é um número calculado de

pessoas que sobe para tomar a cidade. Todo o povo está tomando posse

da terra, e todo o povo é envolvido naquela ação, com os anciãos, não os

comandantes militares, à frente da procissão. Na realidade, agora os

israelitas recebem permissão para ficar com a pilhagem. Quando Israel

compreende que é propriedade de Deus, é possível ser mais

condescendente.

Ali, na tenda do encontro, Deus ministra a Josué, e ali, na tenda,

Josué tem uma ideia. Ele não consegue acreditar que seja mera

coincidência o fato de a ideia surgir quando ele busca a orientação de

Deus sobre o que fazer agora. Ou, talvez, saiba que a ideia tenha vindo

de sua própria mente (ou, quiçá, de um de seus comandantes) e

consulta Deus sobre a ideia ser boa ou não por meio do Urim e do

Tumim (estes eram meios de consultar sobre algo a Deus, cuja resposta

divina poderia ser sim ou não) e, dessa vez, Deus respondeu de maneira

positiva.

Ainda mais claramente que no caso de Jericó, fica evidente que, nos

dias de Josué, ninguém vivia em Ai. O próprio nome revela o jogo: “Ai”

significa “ruína”. Ela tem sido uma ruína por mil anos nos dias de Josué.

O primeiro livro de Reis 16:34 confirma que Jericó ficou em ruínas

durante séculos após os dias de Josué, como esse líder disse que ficaria.

Assim, é possível imaginar os israelitas descendo a Gilgal para celebrar

a maneira pela qual Deus lhes entregou a terra, passando por essas

ruínas e fazendo delas o assunto de narrativas que expressavam, em

termos vívidos, o fato de Deus lhes haver dado a terra. Não há

evidências de como essas histórias vieram a existir, porém elas fazem

sentido pelos dados.


JOSUÉ 8:22-35
ESTÁ ACABADO MESMO QUANDO AINDA NÃO TERMINOU
22
Ora, estes [israelitas] saíram da cidade para envolvê-los e, em relação a Israel [o povo de

Ai] estava no meio, alguns [israelitas] de um lado e alguns do outro. Eles os derrubaram de

23
modo que não deixaram ninguém permanecer como sobrevivente ou fugitivo. O rei de Ai,

24
eles pegaram e o levaram vivo a Josué. Quando Israel tinha terminado de matar todos os

habitantes de Ai em campo aberto, no deserto onde os tinha perseguido, e todos eles tinham

caído a fio de espada quando terminaram, todo o Israel voltou a Ai e a derrubou a fio de

25
espada. Todos os que caíram naquele dia, homens e mulheres, foram dois mil, toda a

26
população de Ai. Josué não recuou a sua mão, com a qual segurava a sua lança, até ter

27
devotado todos os habitantes de Ai. Somente o gado e a pilhagem naquela cidade Israel

tomou como espólio para si mesmo, de acordo com a palavra que Yahweh ordenou a Josué.

28 29
Josué queimou Ai e a tornou uma ruína permanente, uma desolação até este dia. O rei de

Ai, ele o empalou em uma árvore até o anoitecer. Ao pôr do sol, Josué ordenou, e eles

desceram o seu corpo da árvore, o jogaram à entrada do portão da cidade e erigiram sobre ele

uma grande pilha de pedras, até este dia.

30 31
Então, Josué construiu um altar para Yahweh, o Deus de Israel, no monte Ebal, como

Moisés, o servo de Yahweh, ordenara aos israelitas, como está escrito no rolo do ensino de

Moisés — um altar de pedras inteiras sobre as quais ninguém tinha empunhado ferro.

32
Ofereceram sobre ele ofertas queimadas a Yahweh e sacrificaram ofertas de comunhão. Ele

escreveu ali, nas pedras, uma cópia do ensino de Moisés, que ele tinha escrito, na presença

33
dos israelitas. Todo o Israel, os anciãos, oficiais e juízes estavam em pé, de cada lado do

baú, diante dos sacerdotes levitas que carregavam o baú da aliança de Yahweh, estrangeiros e

nativos igualmente, metade deles defronte do monte Gerizim e metade deles defronte do

monte Ebal, conforme Moisés, servo de Yahweh, tinha ordenado de antemão, para abençoar

34
o povo de Israel. Depois disso, ele leu todas as palavras do ensino, a bênção e a maldição,

35
de acordo com tudo o que está escrito no rolo do ensino. Não houve uma palavra de tudo o

que Moisés ordenou que Josué não leu em frente da congregação de Israel, com as mulheres,

os jovens e os estrangeiros que estavam no meio deles.

Na reunião da semana passada, o meu grupo de estudo bíblico ficou

deprimido pela condição da igreja e do mundo, nem tanto por causa de

como as coisas estão, neste lugar, em particular, e neste tempo

específico, mas em razão da forma pela qual as coisas permanecem sendo

no mundo em geral, dois mil anos depois de Jesus. Os escândalos e as


falhas na igreja, bem como a contínua desobediência do mundo, tornam

tentador pensar que a vinda de Jesus quase não fez diferença. Para ser

sincero, eu é que estava com sentimentos lúgubres. Muitos dentre o

grupo de estudo bíblico são jovens, com menos de trinta anos, olhos

brilhantes e corpo atlético, e talvez eu necessite aprender com eles a

enxergar o copo meio cheio em vez de vê-lo meio vazio. Na verdade, não

tenho dúvidas de que a vinda de Jesus foi o evento crucial na história

do mundo, que assegura o cumprimento do propósito divino para a

humanidade, mesmo que esse cumprimento pareça tão distante.

No monte Gerizim e no monte Ebal, Josué faz uma presunção

similar. Caso fosse narrada um pouco mais tarde no livro, essa

celebração pareceria menos notável. Aqui, ela é extraordinária. Israel

atravessou o Jordão e subiu ao cume da montanha, porém isso é apenas

o começo. O que o povo de Siquém pensaria das ações dos israelitas

nesse momento? Quando Israel tiver ocupado muito mais da terra,

Deus observará, na velhice de Josué, que “ainda há muita terra para ser

conquistada” (Josué 13:1). No entanto, aqui Josué se comporta como se

a posse já tivesse sido concluída. Isso me faz recordar do jogo de futebol

americano que descrevi no capítulo sobre o plano de jogo de Josué:

muito antes de ser oficialmente encerrado, o jogo já terminou para o

time local, cujos torcedores já estavam deixando o estádio para evitar o

trânsito após o jogo. Talvez o advérbio “então”, no versículo 30, não

deveria ser tomado de modo tão literal e a cerimônia tenha ocorrido

“mais tarde”, quando a ocupação da terra estava mais avançada. O fato

de o livro posicionar o evento aqui é, portanto, ainda mais significativo

na sugestão de que as vitórias iniciais de Israel realmente garantiram o

cumprimento das intenções de Deus para eles.

A cerimônia, igualmente, coloca um desafio diante deles. Eles

receberam a posse da terra em cumprimento à palavra dada a eles por

Deus; assim, devem se comprometer a viver pela palavra de Deus que

lhes foi dada. Fazer uma cópia do ensino de Moisés simboliza o

compromisso deles em obedecer-lhe. Pelo fato de o baú da aliança


conter as tábuas de pedra gravadas com as exigências básicas da aliança,

o posicionamento nos dois lados do baú da aliança, durante a leitura das

bênçãos e maldições da aliança, intensifica o simbolismo desse

compromisso. A história enfatiza o envolvimento de todo o povo, mais

ainda do que havia enfatizado em conexão com as vitórias iniciais, em

Jericó e Ai. A cerimônia abrange tanto homens quanto mulheres, jovens

e idosos, israelitas nascidos nativos e estrangeiros que escolheram se

associar com Israel e fazer parte do povo de Yahweh. O sexo, a idade ou

o histórico étnico não fazem diferença. Todos são beneficiados por

aquilo que Deus fez; todos devem aceitar as obrigações consequentes.

Deuteronômio 27 registra a instrução de Moisés que Josué, aqui,

está cumprindo. Os dois montes estão situados em ambos os lados de

um amplo vale no qual está localizada a cidade de Siquém, a moderna

Nablus, no coração da região norte da Cisjordânia. É aqui que o livro de

Gênesis registra a chegada de Abraão em Canaã, onde Deus aparece a

ele pela primeira vez e promete entregar a terra à sua descendência.

Ainda, é o lugar no qual Abraão edifica um altar; ele, então, parte para

acampar entre Betel e Ai. Desse modo, Josué e os israelitas estão

repetindo a jornada de Abraão, na ordem necessariamente inversa, já

que eles vieram da direção contrária. Igualmente, eles estão repetindo a

ação de Abraão, com uma importância similar, ao edificarem um altar

que significa a presença de Deus nessa terra e a reivindicação de Yahweh

sobre ela. Para ambos, Abraão e Josué, a chegada inicial na terra e a

colocação de suas marcas num pequeno pedaço dela constituem uma

espécie de garantia de que a promessa de Deus será cumprida quanto ao

restante dela. Sim, o copo está meio cheio.

As ofertas queimadas e de comunhão são os dois tipos regulares de

sacrifício. A cada entardecer e amanhecer, o povo de Israel apresenta

ofertas queimadas no santuário, sugerindo a sua entrega pessoal e de

tudo o que possuem a Deus, a entrega do dia que passou e do dia que

está prestes a começar, bem como buscar a bênção divina para ele. As

ofertas de comunhão não seguem essa rotina, porque as pessoas


realizam esses sacrifícios quando têm algum motivo particular de

gratidão a Deus por algo recebido, por uma resposta de oração ou as

fazem como “ofertas voluntárias”, quando desejam, simplesmente,

expressar o seu amor por Deus. Aqui, as ofertas de comunhão dos

israelitas refletirão a apreciação do povo pela conclusão simbólica de

sua ocupação da terra, o cumprimento da promessa divina a eles.

Apesar da liberdade de ficar com a pilhagem de Ai, o fim do relato

da vitória sobre a cidade enfatiza, igualmente, a natureza completa da

obediência que Israel deve oferecer a Deus. Uma vez mais, Josué

desempenha um papel como o de Moisés (em Êxodo 17), quando

estende a sua mão e segura uma lança a fim de sugerir que está

direcionando as forças do céu; aquela é mais do que uma batalha

terrena. Israel atua como agente de Deus para trazer o juízo divino e

exerce o poder de Deus ao fazer isso. A execução do rei é um ato

judicial, realizado na maneira descrita por Deuteronômio 21:22-23. O

seu empalamento em direção aos céus demonstra que o julgamento foi

requerido. A remoção de seu corpo reconhece que mesmo a execução é

um ato terrível; uma interpretação judaica observa que até mesmo um

homem que merece ser executado é um homem feito à imagem divina.

Podemos, novamente, enfatizar que essa não é a maneira pela qual

Deus espera que Israel se relacione com as demais nações. Houve

aspectos especialmente terríveis na história inicial de Israel. Devemos

respirar aliviados pelo fato de Deus não agir em juízo conosco da

mesma forma que agiu no julgamento aos cananeus, porém também é

adequado ficarmos um pouco assustados pelo fato de as nações

modernas, das quais fazemos parte, merecerem receber juízo divino

igual, especialmente à luz do que Jesus falou quanto ao julgamento de

Deus sobre as nações quando houver a separação entre ovelhas e bodes.


JOSUÉ 9:1-21
COMO SE DEIXAR ENGANAR
1
Quando todos os reis do lado oeste do Jordão, nas montanhas, nas encostas e ao longo de

toda a costa do mar Mediterrâneo, até perto do Líbano (os hititas, os amorreus, os cananeus,

2
os ferezeus, os heveus e os jebuseus), ouviram, eles se reuniram para lutar contra Josué e

3
Israel, com um acordo. Mas os habitantes de Gibeom ouviram o que Josué tinha feito a

4
Jericó e Ai e, de sua parte, agiram com astúcia. Eles foram como enviados e tomaram sacos

5
desgastados para seus jumentos e odres velhos, rachados e remendados, com sapatos

remendados e gastos em seus pés, e roupas gastas sobre si mesmos; todo pão que tinham em

6
suas provisões estava seco e duro. Eles foram a Josué, no acampamento em Gilgal, e

disseram a ele e aos israelitas: “Viemos de uma terra muito distante; então, agora, façam um

tratado conosco.”

7
Os israelitas disseram aos heveus: “Talvez vocês venham a viver em nosso meio. Como

8
podemos selar um tratado com vocês?” Eles disseram a Josué: “Nós seremos seus servos.”

9
Josué lhes disse: “Quem são vocês? De onde vocês vêm?” Eles lhe disseram: “Os seus servos

vieram de uma terra muito distante por causa do nome de Yahweh, o seu Deus, porque

10
ouvimos o relato sobre ele, sobre tudo o que ele fez no Egito, e tudo o que fez aos dois reis

amorreus, do outro lado do Jordão, o rei Seom, de Hesbom, e o rei Ogue, de Basã, em

11
Asterote. Nossos anciãos e todos os habitantes de nossa terra nos disseram: ‘Levem

provisões com vocês para a jornada, vão ao encontro deles e lhes digam: “Seremos os seus

12
servos; então, agora, selem um tratado conosco.”’ Este é o nosso pão: nós o trouxemos

quente como nossa provisão de nossas casas, no dia em que saímos para vir a vocês, mas,

13
agora —, aqui, está seco e duro. Estes são os odres que enchemos novos — aqui, eles estão

rachados. Estas são as nossas roupas e os nossos sapatos: eles estão gastos pela jornada muito

longa.”

14 15
Então, os israelitas pegaram algumas de suas provisões e não consultaram Yahweh. Josué

fez paz com eles e selou um tratado com eles para deixá-los viver, e os líderes da comunidade

16
lhes deram o seu juramento. Três dias após selarem o tratado com eles, ouviram que eles

17
vieram de perto, que estavam vivendo entre eles. Assim, os israelitas partiram e chegaram

às cidades deles no terceiro dia. As suas cidades eram Gibeom, Quefira, Poços e Cidade da

18
Floresta. Os israelitas não as derrubaram porque os líderes da comunidade lhes tinham

dado o seu juramento por Yahweh, o Deus de Israel. Toda a comunidade reclamou dos

19
líderes, mas todos os líderes disseram à comunidade: “Nós mesmos lhes demos um

20
juramento por Yahweh, o Deus de Israel. Não podemos, agora, tocá-los. Faremos isso a eles.

Nós os deixaremos viver, e não haverá ira contra nós por causa do juramento que juramos a

21
eles.” Então, os líderes lhes disseram: “Eles viverão”, e eles se tornaram lenhadores e

carregadores de água para toda a comunidade, como os líderes lhes declararam.


Conheço pessoas que parecem consultar Deus sobre cada detalhe de sua

vida, desde o que comer no jantar até que cursos fazer no próximo

trimestre, em que faculdade estudar, onde comprar uma casa e com

quem se casar. Para ser honesto, eu mesmo consultei Deus sobre o

último, mas suspeito que, usualmente, Deus é propenso a responder:

“Não me pergunte; você é que terá que viver com ela.” Deus se interessa

passionalmente pelos detalhes da minha vida, assim como sou

passionalmente interessado por esses detalhes na vida de meus filhos,

porém isso não significa que quero tomar as decisões por eles. Pelo fato

de Deus ser um Pai amoroso, presumo que ele adote a mesma atitude.

Deus deseja que tomemos as decisões por nossa vida. No entanto, há

ocasiões nas quais pode ser sábio da parte dos filhos consultar o seu pai

ou a sua mãe (não me recordo de meus filhos fazendo isso, mas, ao lerem

isso, com toda a certeza me enviarão um e-mail, questionando: “E

quanto a x, y e z?”). Assim, torna-se um julgamento pessoal perceber

quando é a ocasião de consultar. (Claro que, às vezes, Deus nos oferece

um conselho não solicitado — pelo menos, Deus faz isso comigo; e estou

certo de que meus filhos dirão que faço o mesmo com eles. Mas isso é

outra história.)

“Bem, se deveríamos matar todos os cananeus, como é que todas

essas pessoas de Gibeom, da Cidade da Floresta e de Quefira trabalham

no templo?” As crianças podem fazer perguntas embaraçosas. “Ora,

aquele rapaz, Josué, ele foi um grande cara, mas... Ele sempre foi

corajoso. Sabe, poderíamos estar na Terra Prometida quase meio século

antes se Josué nos tivesse liderado. Ele foi uma das duas únicas pessoas

que espionaram a terra e reconheceram que seria possível a Deus nos

fazer tomar posse dela, mas os demais falaram mais alto [esse relato está

em Números 13—14]. Ele sempre foi assim. E ele era capaz de ser sábio

aos domingos, às terças e às quintas-feiras, porém não era tão esperto às

segundas, quartas e sextas-feiras. Era realmente comprometido com

Deus, mas, de alguma forma, às vezes, ele não parecia enxergar as


implicações desse compromisso. Isso é o que está por trás da presença

dos heveus (eles são um subconjunto dos cananeus) entre nós.”

De certa forma, é uma história engraçada. Se Josué foi muito

ingênuo, os heveus foram muito espertos. Dessa forma, a história tanto

é cômica quanto trágica, assim como alguns filmes e programas de TV.

Sim, Josué foi deveras estúpido, mas o Antigo Testamento vê isso como

uma falha moral e religiosa, não apenas como uma peculiaridade

possivelmente interessante. A sabedoria está vinculada à reverência a

Deus e à fidelidade a outras pessoas. Josué não agiu apenas de modo

impensado, mas sem perguntar o que Deus pensava a respeito. A

narrativa em Josué implica que esse tem sido um problema recorrente

em ocasiões anteriores, como no caso do reconhecimento de Jericó e da

primeira tentativa de conquistar Ai e a sua consequente presunção de

que a falha era de Deus, quando, na verdade, ele é que falhara. Trata-se

da primeira vez em que a história explicita o problema. Decerto, Josué

poderia ter percebido que havia algo suspeito na história contada pelos

heveus e ter perguntado a Deus o que fazer em vez de apenas provar o

pão dormido deles e acreditar no relato vago que apresentaram (os

heveus jamais falaram exatamente de onde supostamente vinham).

Josué sabe que consultar Deus é o tipo de coisa que Moisés costumava

fazer; ele era encarregado da tenda à qual Moisés ia para questionar

Deus. Ignorando essa possibilidade, ele sela a paz por meio de um

tratado. Essas são duas palavras poderosas. Paz ou bem-estar é uma das

palavras-chave na descrição do relacionamento de Israel com Deus.

Tratado é o termo que também se refere a uma aliança entre Deus e

Israel. Tais palavras não devem ser aplicadas a relacionamentos com

pessoas como os heveus (como Deuteronômio 7 e 20 deixam claro).

A história mostra o reconhecimento de que um líder deve ser

especialmente perceptivo sobre quando consultar Deus. Josué era o

pastor sênior que podia conduzir a equipe de liderança com ele e, então,

encontrar a congregação como um todo reclamando da mesma forma

que fizeram contra Moisés, com a diferença de que, dessa vez, eles o
fazem com razão, ainda que tenham participado do engodo. É uma

situação extremamente humilhante para Josué.


JOSUÉ 9:22—10:11
COMO ENGOLIR O SEU ORGULHO
22
Então, Josué os convocou e lhes falou: “Por que vocês nos enganaram, dizendo: ‘Vivemos

23
muito longe de vocês’, quando estão vivendo entre nós? Pois, agora, vocês são

amaldiçoados. Nenhum de vocês parará de ser um servo, lenhadores e carregadores de água

24
para a casa de meu Deus.” Eles replicaram a Josué: “Porque repetidamente contaram aos

seus servos que Yahweh, o seu Deus, tinha ordenado a Moisés, o seu servo, dar toda a terra e

destruir os habitantes da terra diante de vocês. Ficamos muito temerosos por nossa vida por

25
causa de vocês. Assim, fizemos essa coisa, e, agora, aqui estamos, em suas mãos. Faça

26
conosco conforme o que for bom e apropriado aos seus olhos.” Ele assim fez a eles: os

27
resgatou das mãos dos israelitas, e eles não os mataram. Naquele dia, Josué os fez

lenhadores e carregadores de água para a comunidade e para o altar de Yahweh até este dia,

no lugar que ele escolhesse.

CAPÍTULO 10

1
O rei Adoni-Zedeque, de Jerusalém, ouviu que Josué tinha tomado Ai e a devotado, fazendo

a Ai e ao seu rei o que fez a Jericó e ao seu rei, e que os habitantes de Gibeom tinham

2
chegado a termos de paz com Israel e estavam entre eles. Eles ficaram muito temerosos,

porque Gibeom era uma grande cidade, como uma das cidades reais, porque era maior do que

3
Ai, e todos os seus homens eram guerreiros. Assim, o rei Adoni-Zedeque, de Jerusalém,

enviou ao rei Hoão, de Hebrom, ao rei Piram, de Jarmute, ao rei Jafia, de Láquis, e ao rei

4
Debir, de Eglom, dizendo: “Venham a mim e me ajudem, e nós derrubaremos Gibeom,

5
porque ele chegou a termos de paz com Josué e os israelitas.” Então, os cinco reis amorreus,

o rei de Jerusalém, o rei de Hebrom, o rei de Jarmute, o rei de Láquis, o rei de Eglom e todos

6
os seus exércitos se reuniram, subiram, acamparam contra Gibeom e lutaram contra ela. O

povo de Gibeom enviou a Josué, no acampamento em Gilgal, dizendo: “Não retenha a sua

mão dos seus servos, suba rapidamente a nós, nos livre, nos ajude, porque todos os reis dos

7
amorreus, que vivem nas montanhas, uniram-se contra nós.” Então, Josué subiu de Gilgal

8
com toda sua força de combate, sua companhia e todos os homens de luta. Yahweh disse a

Josué: “Não tenha medo deles, porque eu os entreguei na sua mão. Nenhum deles ficará

9
contra você.” Josué veio sobre eles de surpresa; ele tinha marchado de Gilgal durante toda a

10
noite. Yahweh os lançou em confusão diante de Israel; ele os derrubou em uma grande

derrota em Gibeom, os perseguiu na direção da subida para Bete-Horom e os derrubou até

11
Azeca e Maquedá. Enquanto eles estavam fugindo de Israel, na descida de Bete-Horom,

Yahweh jogou grandes pedras dos céus, até Azeca. Morreram mais pelo granizo do que os

israelitas mataram com a espada.


Na igreja onde eu atuava como pastor assistente, dividia uma casa com

um homem mais velho, por nome Charles, que era uma espécie de

zelador. Não me lembro de que forma ele foi indicado, mas era comum

alguém conseguir esse tipo de emprego por meio de um processo

simples de contratação; não era exigido que a pessoa fosse membro ou

um frequentador de igreja. O mesmo era verdadeiro quanto aos

zeladores na igreja à qual pertencíamos antes de nossa mudança para os

Estados Unidos. Aparentemente, a teoria era de que eles não

precisavam de qualificações “espirituais” para esse tipo de trabalho. O

mesmo se aplicava ao organista de uma igreja que certa feita

frequentamos, o que era ainda mais surpreendente, porque o normal é

pensar que o envolvimento com a música na igreja seja algo “espiritual”.

Em todos esses casos, senti certo desconforto com a situação. Todavia,

em dois dos três casos, vi essas pessoas, com o passar do tempo, mais

preocupadas em se envolver mais na vida da igreja.

“Bem, mas você não explicou como aqueles heveus passaram a

trabalhar, diariamente, no santuário.” Assim como são hábeis em fazer

perguntas embaraçosas, as crianças também percebem quando nossas

respostas são incompletas. Todas as cinco cidades estão situadas num

raio de oito a quinze quilômetros na direção norte ou oeste de

Jerusalém. Nos tempos de Josué, isso não era de grande importância.

Não passa pela mente de ninguém (exceto, talvez, pela de Deus) que

Jerusalém alcançará grande importância política ou religiosa. Trata-se

apenas de uma obscura e pequena cidade nas montanhas, fora da

estrada principal. Se havia uma cidade destinada a se tornar a capital de

Israel (caso Israel viesse a precisar disso), essa cidade era Siquém, onde

realizaram a cerimônia de benção e maldição. Tudo mudará quando

Davi tiver a sua grande ideia, tornando Jerusalém na capital de Israel,

bem como em sede do santuário central, no qual o baú da aliança

permanecerá. O santuário necessitará de uma considerável equipe de

suporte, ainda mais quando o templo for construído no “lugar que

Yahweh escolher”. É aí que o povo local entra. A manutenção do


sistema sacrificial irá requerer grandes quantidades de madeira para

queimar os sacrifícios e água em abundância para os diversos aspectos

do ritual. O povo local passa a ser a força de trabalho.

Gênesis 9 descreve Noé invocando uma maldição sobre Canaã de

que ele sempre será o mais inferior dos servos de seus irmãos, e Josué

está atualizando essa maldição. Com frequência, as traduções se referem

a Canaã e/ou aos heveus como escravos, porém essa palavra fornece

uma impressão equivocada; eles são, simplesmente, uma força de

trabalho. Embora a história não comente se era correto Josué

amaldiçoar os heveus por tê-lo ludibriado (assim como Gênesis não

comenta se era certo Noé amaldiçoar Canaã por Cam, seu pai, fazê-lo de

bobo), não há sugestão de que ser servo significa ser maltratado ou

oprimido e, decerto, é preferível servir a ser morto.

Os heveus são como Raabe e sua família, que deveriam morrer como

parte do juízo de Deus sobre os povos cananeus em geral. Raabe soube

como reagir quando ouviu o que Yahweh estava fazendo com os

israelitas e se tornou parte da comunidade israelita, sem perder a

consciência de que etnicamente ela era estrangeira. O rei cananeu

reagiu, resistindo ao que Yahweh estava fazendo e tentando pôr fim ao

avanço dos israelitas; pagou com a própria vida por essa tentativa. Os

heveus se posicionaram em algum lugar no meio. Eles também tinham

sido informados sobre os feitos de Yahweh com os israelitas, porém não

reagiram com a retidão de Raabe nem com a hostilidade dos demais

reis. Por essa razão, terminaram exercendo um papel de apoio no

templo. Não somos informados se eles, a exemplo de Raabe, de Jetro, o

sogro midianita de Moisés, e de Rute, vieram a se identificar com o

compromisso de Israel com Yahweh, mas, pelo menos, tiveram a

oportunidade de fazê-lo.

Há outro aspecto nesse processo que as histórias de Jetro, Raabe,

Rute e dos heveus possuem em comum. Em cada caso, a possibilidade

de se tornarem comprometidos com Yahweh estava intrinsecamente

ligado aos seus relacionamentos com Israel ou com indivíduos


israelitas. Um amigo meu casou-se com uma pessoa agnóstica, mas que

se tornou cristã por meio do casamento. Outra amiga também se casou

com um rapaz agnóstico, mas, nesse caso, ele não mudou. É fácil

defender que os cristãos não se casem com agnósticos. Contudo, é típico

da parte de Deus não abandonar alguém simplesmente porque ele ou ela

falhou em manter as regras. De maneira nenhuma, o relacionamento

pessoal assegura que alguém irá se entregar a Deus. No entanto, isso

aumenta a possibilidade.

“Entenda filho, quando você promete algo, a sua palavra tem que ser

mantida, mesmo que o outro povo o tenha enganado, aproveitando-se

da sua ingenuidade. Deus é capaz de fazer isso resultar em algo bom.”

Josué teve de engolir o seu orgulho.


JOSUÉ 10:12-27
SEM COMPROMISSO
12
Então, Josué falou a Yahweh, no dia em que Yahweh entregou os amorreus diante de Israel,

13
e disse na presença de Israel: “Sol, pare em Gibeom, lua, no vale de Aijalom!” O sol parou,

a lua parou, até a nação obter reparação de seus inimigos (não é isso o que está escrito no

Rolo de Jasar?). O sol permaneceu no meio dos céus. Ele não se apressou em se pôr por todo

14
um dia. Não houve um dia igual a esse antes ou depois, quando Yahweh ouviu a voz de um

homem, porque Yahweh lutava por Israel.

15 16
Josué e todo o Israel com ele voltaram a Gilgal, e esses cinco reis fugiram e se

17
esconderam numa caverna em Maquedá. Josué foi informado: “Cinco reis foram

18
encontrados se escondendo numa caverna em Maquedá.” Então, Josué disse: “Rolem

grandes pedras para a boca da caverna e indiquem homens para manter guarda sobre eles.

19
Mas vocês, não parem, persigam os seus inimigos e os ataquem pela retaguarda. Não lhes

permitam chegar às suas cidades, porque Yahweh, o seu Deus, os entregou na sua mão.”

20
Quando Josué e os israelitas tinham terminado de derrubá-los, em uma derrota muito

grande até quase os exterminar, embora alguns sobreviventes tenham escapado e chegado às

21
suas cidades fortificadas, toda a companhia retornou em segurança ao acampamento, a

Josué, em Maquedá. Ninguém mais abriu a sua boca aos israelitas.

22
Josué disse: “Abram a boca da caverna e tragam esses cinco reis para fora da caverna até

23
mim.” Eles fizeram isso: trouxeram esses cinco reis para fora da caverna até ele: o rei de

24
Jerusalém, o rei de Hebrom, o rei de Jarmute, o rei de Láquis, o rei de Eglom. Quando

trouxeram esses reis a Josué, ele convocou todos os israelitas e disse aos oficiais do exército

que estavam com ele: “Venham à frente e coloquem os seus pés sobre os pescoços desses reis.”

25
Eles vieram à frente e colocaram os seus pés sobre o pescoço deles. Josué lhes disse: “Não

tenham medo. Não desanimem. Sejam fortes. Permaneçam firmes, porque Yahweh agirá

26
assim com todos os seus inimigos, com quem vocês estão lutando.” Depois disso, Josué os

derrubou. Ele os matou e os empalou em cinco árvores. Eles ficaram empalados nas árvores

27
até o anoitecer. Ao pôr do sol, Josué deu ordem, e eles os desceram das árvores e os

jogaram na caverna onde tinham se escondido, colocando grandes pedras na boca da

caverna, até o dia de hoje.

Seis meses atrás, um médico que realizava abortos em gestações

avançadas foi morto a tiros em uma igreja em Kansas. Em seu funeral,

pessoas de uma outra igreja de Kansas carregavam cartazes, declarando:

“Deus enviou o assassino.” Suas declarações afirmavam que o próprio


trabalho daquele médico era uma expressão da ira de Deus sobre uma

nação pecaminosa, mas que o assassino também era, então, uma

expressão adicional da ira divina. As suas proclamações envolvem olhar

para eventos atuais à luz de passagens do Antigo Testamento, como essa

história sobre Josué “exigindo reparação” dos cananeus pelas

transgressões deles.

Há um sentido no qual a maneira mais fácil de responder a tais

argumentos é simplesmente dizer que Josué estava errado, que ele

interpretou Deus de modo equivocado e que o Novo Testamento nos

mostra um caminho mais excelente. Isso pode nos fazer sentir melhor,

mas suscita outros problemas e, na verdade, não nos leva a lugar algum,

porque as pessoas que utilizam a Escritura dessa forma a enxergam

como a palavra inspirada e autoritativa de Deus, portanto não estão

abertas à alegação de que Josué estava simplesmente errado (e a esse

respeito concordo com elas). Tais pessoas podem corretamente

comentar que o Novo Testamento não mostra nenhuma indicação de

desconforto pela atitude de Josué. Na introdução, observei que Josué é

um dos grandes heróis do Novo Testamento (veja Hebreus 11).

Estêvão, prestes a ser martirizado e orar pelo perdão de seus assassinos,

da mesma maneira que Jesus orou, regozijou-se, no entanto, pela forma

em que os israelitas, sob a liderança de Josué, desapropriaram as nações

que Deus expulsou diante de seus ancestrais (veja Atos 7). Para nós,

pessoas modernas, há uma disjunção entre orar pelo perdão aos

inimigos e exaltar a história de Josué; para Estêvão, não havia.

O fato de sermos pessoas modernas, nesse caso, não significa que

pensamos mais claramente do que eles; muito pelo contrário. Eles

podiam ver algo que não podemos. Eles não saltaram do “Josué fez isso

como agente de Deus” para “portanto, Deus também envia pessoas para

fazer isso hoje”. Existe algo singular sobre o que Deus realizou por meio

de Josué. É notável como a narrativa aqui, de maneira pouco comum,

descreve os reis como amorreus. Esse foi o termo que Deus usou ao

explicar a Abraão que deveria haver um longo tempo antes de,


apropriadamente, entregar a terra aos seus descendentes; a maldade dos

amorreus ainda não justificava essa ação de Deus. Agora, sim. Todavia,

apenas uma vez Deus entregou a terra aos israelitas e usou a

transgressão dos ocupantes da terra para fazê-lo, bem como

comissionou Israel a ser o meio da reparação divina. Nunca mais, no

Antigo Testamento, Deus agiu dessa forma, e, ao que tudo indica,

Estêvão sabia disso. Não suponho que esse argumento seria capaz de

convencer as pessoas que carregavam o cartaz em Kansas, mas, pelo

menos, ele trabalha com a pressuposição delas de que a Bíblia é

inspirada e possui autoridade, bem como possui alguma coerência no

modo de olhar para ambos os Testamentos.

Na compreensão dessa história, poderemos obter algum auxílio do

conhecimento geográfico. O coração da região na qual Israel,

eventualmente, vivia era a cordilheira que segue por cerca de 1.600

quilômetros na direção norte-sul, com Jerusalém, Betel e Ai próximas

ao centro. Ela corresponde, aproximadamente, à área conhecida no

século XX e XXI como a Cisjordânia, se ignorarmos a região crucial no

centro, que segue de Telavive a Jerusalém. Na direção oeste, as

montanhas descem rumo ao Mediterrâneo; para o leste, elas decaem

mais abruptamente rumo ao mar Morto. Naquele momento, os israelitas

estão acampados em Gilgal, perto do Jordão. Eles fizeram sentir a sua

presença no topo da cordilheira de diferentes maneiras, em Ai e em

Siquém, a grande cidade, um pouco mais ao norte e ao sul, na

cordilheira, em relação a Gibeom e as cidades dos heveus. Os cinco reis,

contudo, vieram de regiões mais ao sul e a oeste. Jerusalém situa-se ao

sul de Gibeom. Hebrom fica um pouco distante, ao sul do cume,

dominando a sua metade sul, assim como Siquém domina a metade

norte. Jarmute, Láquis, Eglom, Azeca e Maquedá estão no oposto, no

lado ocidental da cordilheira, de Gilgal a Jericó, nas colinas mais baixas

entre a parte sul da cordilheira e o mar. Bete-Horom fica na rota que

desce de Gibeom em direção à costa. (Alguns desses lugares aparecem

no mapa localizado no início deste volume.)


Podemos imaginar esses reis mais como uma combinação de xerifes,

prefeitos (embora não eleitos) e pastores. Era razoável que o rei de

Jerusalém entrasse em pânico pelo fato de Josué ter estabelecido uma

posição entre os seus vizinhos imediatos, o povo em Gibeom e cidades

relacionadas, e os outros reis sabem que são os próximos na linha de

fogo. Eles podem reagir como os gibeonitas, como Raabe ou, então,

podem tentar lutar. Escolhem a última opção e pagam o preço por isso,

porque “Yahweh lutava por Israel”. Por ser uma narrativa de como

Deus entregou a terra a Israel, talvez devêssemos ler mais como um

épico inspirado do que como uma reportagem no noticiário local. Deus

pode falar por meio de ambos, porém devemos ser cuidadosos para não

influenciarmos a nossa leitura por nossas pendências como pessoas

modernas.

As mesmas questões são levantadas pelo relato da parada do

movimento solar (e a tempestade sobrenatural de granizo que a

precedeu). Sem dúvida alguma, Deus poderia ter alterado o

funcionamento do sistema solar a fim de facilitar a expedição de Josué,

mas não consigo ver isso como muito provável; sou mais propenso a

avaliar que tanto Josué quanto o narrador da história estão falando de

forma poética sobre a luz do dia, que pareceu durar muito mais do que o

normal (o Rolo de Jasar, sobre o qual nada sabemos além do que essa

passagem afirma, aparentemente era uma coletânea de canções

celebratórias). Uma vez mais, isso reflete as minhas pendências como

uma pessoa moderna. Em nenhum dos casos, a nossa presunção sobre

quão literalmente a história narra os fatos traz uma significativa

diferença ao ponto central da narrativa. No entanto, suspeito que, de

novo, a nossa leitura do texto exige um conjunto de presunções

diferente daquele que empregamos ao noticiário noturno ou a um livro

de história, um que seja mais apropriado à leitura de literatura

imaginativa ou assistir a filmes. Deus aprecia todas essas formas de

comunicação e expressão, inspirando exemplos de todos eles.


JOSUÉ 10:28-43
BEM-VINDO AO OESTE SELVAGEM
28
Naquele dia, Josué tomou Maquedá, a derrubou, a ela e a seu rei, a fio de espada. Ele os

devotou, com todas as pessoas ali. Ele não deixou nenhum sobrevivente. Então, ele lidou

29
com o rei de Maquedá como lidara com o rei de Jericó. Josué, e todo o Israel com ele,

30
passou de Maquedá a Libna e lutou contra ela. Yahweh a entregou também na mão de

Israel, ela e seu rei, e [Josué] a derrubou a fio de espada, com todas as pessoas ali. Ele não

deixou nenhum sobrevivente. Então, ele lidou com seu rei como lidara com o rei de Jericó.

31
Josué, e todo o Israel com ele, passou de Libna a Láquis, acampou contra ela e lutou contra

32
ela. Yahweh entregou Láquis na mão de Israel. [Josué] a tomou no segundo dia e a

33
derrubou a fio de espada, com todos ali, assim como tinha feito a Libna. Então, o rei

Horão, de Gezer, subiu para ajudar Láquis, e Josué o derrubou com seu povo até não deixar

34
nenhum sobrevivente para ele. Josué, e todo o Israel com ele, passou de Láquis a Eglom,

35
acampou contra ela e lutou contra ela. Naquele dia, eles a tomaram e a derrubaram a fio de

espada. Cada pessoa que estava lá, ele a devotou naquele dia, assim como tinha feito a

36
Láquis. Josué, e todo o Israel com ele, subiu de Eglom para Hebrom e lutou contra ela.

37
Eles a tomaram e a derrubaram a fio de espada, com seu rei e todas as suas cidades e cada

pessoa ali. Ele não deixou nenhum sobrevivente, assim como tinha feito a Eglom. Ele a

38
devotou e cada pessoa nela. Josué, e todo o Israel com ele, voltou a Debir e lutou contra

39
ela. Ele a tomou, a seu rei e a todas as suas cidades. Eles os derrubaram a fio da espada e

devotaram todos nela. Ele não deixou nenhum sobrevivente. Como tinha feito a Hebrom,

assim o fez a Debir e a seu rei, como tinha feito a Libna e a seu rei.

40
Assim, Josué derrubou toda a região: as montanhas, o Neguebe, as encostas e as vertentes,

com todos os seus reis. Ele não deixou nenhum sobrevivente. Qualquer coisa que respirasse,

41
ele a devotou, como Yahweh, o Deus de Israel, tinha ordenado. Josué os derrubou de

42
Cades-Barneia até Gaza, toda a região de Gósen, até Gibeom. Todos esses reis, e suas

terras, Josué tomou em um único golpe, porque Yahweh, o Deus de Israel, lutou por Israel.

43
Então, Josué, e todo o Israel com ele, retornou ao acampamento em Gilgal.

“Você está falando sério?”, alguém me perguntou, na quinta-feira,

enquanto eu estava em um clube de jazz falando sobre interpretação

bíblica e fiz uma afirmação que a outra pessoa considerou ultrajante

(creio que comentei a respeito dos desastrosos resultados de interpretar

a Bíblia à luz dos credos). “Tudo o que eu digo é sério, mesmo as coisas

engraçadas. Especialmente elas”, respondi. Todavia, com frequência,


posso exagerar um pouco. Tento me policiar para não repetir isso.

Chama-se hipérbole: uma figura de linguagem cujo exagero visa

enfatizar algo, tornar um ponto mais claro e vigoroso.

“Josué derrubou toda a região.” Essa sentença soa como se Josué

tivesse concluído a conquista de Canaã, embora o contexto esclareça,

de imediato, que “toda a região” não significa isso. A expressão significa

toda a região ao sul de Gibeom, aproximadamente a metade inferior do

coração da área montanhosa, o terço inferior da Terra Prometida, como

um todo (que inclui também a parte no extremo norte; o capítulo

seguinte chegará a ela). As cidades mencionadas no capítulo 10

praticamente cobrem os lugares-chave dessa parte do território.

O contexto mais amplo de Josué esclarecerá algo mais. Ele nos

contará, por exemplo, como Calebe capturou Debir em nome de Judá

(Josué 15:15-19), como Judá não conseguiu expulsar os jebuseus que

viviam em Jerusalém (Josué 15:63), como Efraim não expulsou os

cananeus que viviam em Gezer, embora, com o passar do tempo, eles

tenham se tornado uma força de trabalho como os gibeonitas (Josué

16:10), e como Judá atacou os cananeus que viviam em Hebrom (Juízes

1:10). Tudo isso é estranho porque Josué 10 dá a impressão de que não

havia mais sobreviventes em Debir, Gezer ou Hebrom; e falar de Josué

conquistando toda a região sul resulta em uma exceção significativa,

caso não inclua Jerusalém.

Do ponto de vista histórico, uma consideração que deve ser mantida

em mente é que, presumidamente, os infelizes habitantes dessas cidades

não esperaram de braços cruzados a chegada de Josué para matá-los.

Cidades sob ataque não fazem isso. Como o Antigo Testamento observa

em outras passagens, quando uma cidade é atacada, a sua população

corre para as montanhas. Eles fogem para longe do cerco e da batalha e

esperam pela saída dos agressores. Então, retornam para suas casas e

retomam sua vida após os invasores irem embora. Isso ajuda a explicar a

razão de algumas cidades e povos serem atacados, derrotados e

aniquilados em diversas ocasiões, como um monstro de um filme de


ficção científica que você imagina ter destruído, mas que possui um

misterioso poder de regeneração.

No entanto, a narrativa não atrai a atenção para esses fatos, mas

permite que a história simplificada e hiperbólica prevaleça. Por que

faria isso? A popularidade dos filmes de aventura ou de seu equivalente

mais recente, os video games, nos auxilia a ver alguns aspectos da

resposta. O entretenimento está presente; a história de Josué foi escrita

para as pessoas apreciarem, para fazê-las sorrir e exultar. No entanto, a

sua inclusão na Escritura sugere que Israel viu na narrativa mais do que

isso. No caso dos filmes de faroeste e ficção científica, como também dos

video games, outro fator preponderante é que eles, em geral, retratam a

vitória do bem sobre o mal. A história de Josué expressa a verdade de

que Deus está comprometido em acabar com o mal no mundo. O tipo de

mal que os israelitas viam nos cananeus, como a disposição de sacrificar

os seus filhos, não deve ter a permissão de Deus para continuar para

sempre. Pessoas malignas devem receber a devida retribuição.

Reconhecidamente, esse retrato estereotipa as pessoas. Os

tradicionais filmes de faroeste, em geral, retratam os nativos como

“selvagens e cruéis”, o que reforça a justificativa para retirar as suas

terras e criticar as suas tentativas de mantê-las; acusamos a vítima. Os

israelitas estereotipam os cananeus. Ao mesmo tempo, o Antigo

Testamento é muito feliz ao permitir que esse estereótipo seja

desconstruído. Assim, Raabe é retratada como a “nativa boa”, e Acã,

como o “caubói mau”, e, quando Israel adota práticas pagãs como o

sacrifício infantil, Deus dá aos israelitas o mesmo tratamento dado aos

cananeus. Em outras palavras, essas histórias funcionam como

advertências. Mais tarde, Israel não pode se dar ao luxo de

simplesmente se identificar com o Israel da época de Josué. A nação

precisa enxergar o destino dos cananeus como potencialmente o seu

próprio destino.

A maneira pela qual a história fala por si sugere que a hipérbole

possui, pelo menos, duas outras funções. Uma é glorificar a Deus pelo
cumprimento das promessas. Há um sentido real que não envolve

nenhum exagero. Todo o território, de fato, veio a pertencer a Israel. A

narrativa simplesmente comprime o processo por meio do qual isso

ocorreu. Houve séculos posteriores durante os quais Israel pôde olhar

com orgulho para essa terra que eles conquistaram dos cananeus, e a

história, então, traz à lembrança dos israelitas quem lhes entregou essa

terra. Quando eu tive a primeira entrevista com o diretor do meu

seminário, ao chegar como estudante munido de um bom diploma da

minha faculdade de graduação, uma das primeiras coisas que ele disse

foi: “Bem, e que tens tu que não tenhas recebido?” Ele estava citando

1Coríntios 4:7 (ARC); eis por que ainda me recordo disso. Israel precisa

se lembrar de que não tomou posse da terra por seu próprio esforço.

Deus a entregou.

Houve outros séculos (mais deles, na verdade) nos quais Israel

perdeu o controle sobre a maior parte da terra e permaneceu debaixo da

soberania de um império como o dos assírios ou de outros povos locais,

tais como os edomitas. Haveria, então, certa dose de pungência e

tristeza na lembrança de como, outrora, eles controlavam toda a terra.

Isso os faz lembrar também de que Deus a tomou precisamente porque

eles se tornaram muito parecidos com os cananeus. Todavia, Deus

entregaria a terra de volta a eles.


JOSUÉ 11:1-15
BEM-VINDO AO NORTE SELVAGEM
1
Quando o rei Jabim, de Hazor, ouviu, ele enviou ao rei Jobabe, de Madom, ao rei de

2
Sinrom, ao rei de Acsafe, e aos reis do norte, nas montanhas, na planície, ao sul de

3
Quinerete, nas encostas, Nafote-Dor, a oeste, aos cananeus, a leste e a oeste, aos amorreus,

aos hititas, aos ferezeus e aos jebuseus, nas montanhas, e aos heveus, ao pé do Hermom, na

4
terra de Mispá. Estes saíram, com todos os seus exércitos, uma numerosa companhia, como

5
a areia na praia em número, com muitos cavalos e carruagens. Todos esses reis reuniram

6
forças; eles vieram e acamparam junto às águas de Merom, para lutar contra Israel. Yahweh

disse a Josué: “Não tenha medo deles, porque amanhã, nesta mesma hora, eu os entregarei

mortos diante de Israel, todos eles. Você deve cortar os tendões dos cavalos deles e queimar

7
as suas carruagens.” Então, Josué e toda a sua força de combate vieram sobre eles, nas águas

8
de Merom, de surpresa. Caíram sobre eles, e Yahweh os entregou na mão de Israel. Eles os

derrubaram e os perseguiram até a grande Sidom e às águas de Misrefote, e até o vale de

9
Mispá, no leste, e os derrubaram. Ele não deixou nenhum sobrevivente. Josué lidou com

eles assim como Yahweh lhe disse: ele cortou o tendão dos cavalos e queimou as carruagens.

10
Josué, então, voltou e tomou Hazor e derrubou o seu rei à espada, porque Hazor, antes, era

11
o cabeça de todos esses reinos. Eles derrubaram a fio de espada cada pessoa ali, devotando-

as. Nada que respirava foi deixado. E ele incendiou Hazor.

12
Todas essas cidades reais, e seus reis, Josué tomou. Ele as derrubou a fio de espada, e as

13
devotou, como Moisés, servo de Yahweh, tinha ordenado. Contudo, todas as cidades que

14
estavam nos montes, Israel não queimou, exceto Hazor, que Josué queimou. Toda a

pilhagem nessas cidades e o gado, os israelitas tomaram como espólio para si mesmos. No

entanto, eles derrubaram todas as pessoas a fio de espada até as aniquilarem. Não deixaram

15
nada que respirasse. Como Yahweh ordenou a Moisés, seu servo, assim Moisés ordenou a

Josué, e Josué assim o fez. Ele não omitiu nada de tudo o que Yahweh tinha ordenado a

Moisés.

Ao dirigir na direção norte, do lago da Galileia, na estrada que leva a

Jerusalém, ou do Mediterrâneo, é possível pegar a bifurcação, à direita,

e cruzar Ponte das Filhas de Jacó, rumo a Damasco, ao longo da rota

que Abraão teria seguido quando foi a Canaã, na primeira vez, bem

como a rota em que Saulo estava quando ele foi derrubado por Jesus.

Alternativamente, pode-se seguir rumo ao norte, na direção de Cesareia


de Filipe e da fronteira libanesa (é desconcertante como as cronologias

e histórias se cruzam). Se optar pela última rota, poderá dirigir por uma

elevação que é, na verdade, o limite da grande cidade de Hazor, que

remonta a tempos anteriores à chegada dos israelitas. Estando nesse

entroncamento-chave, que domina as rotas que seguem em diferentes

direções, pode-se entender como ela se tornou o cabeça dos reinos da

região.

Tenho um DVD intitulado, Biblical Archaeology from the Ground

Down [Arqueologia bíblica do chão para baixo], que inclui sequências

da investigação arqueológica em Hazor e uma entrevista com Ammon

Ben-Tor, o arqueólogo líder, um professor franzino, bigodudo,

engraçado e cativante, da Universidade Hebraica de Jerusalém. A

cidade alta (o centro da cidade, se preferir) foi destruída e incinerada

em um grande incêndio, no século XIII a.C., época na qual os israelitas

estavam chegando a Canaã. “Então, quem incendiou a cidade?”,

questiona Ben-Tor, com um leve sorriso, que continua a especular.

Foram os próprios cananeus ou os egípcios? Por que qualquer um deles

destruiria e mutilaria, intencionalmente, as estátuas cananeias e

egípcias? Teriam sido os filisteus? Não existem evidências da presença

deles na região naquele período. Por que não assumir que foi Josué e os

israelitas, tal como a história diz? Ben-Tor ri do fato de essa sua

disposição de ver a atividade de Josué em Hazor o levar a ser chamado

de “ortodoxo” (uma espécie de equivalente judaico do termo

“fundamentalista”).

O relato da vitória de Josué em Hazor é outra história de caubói

divinamente inspirada, repleta de hipérbole, mas não uma história

apenas ficcional. A maneira natural de ler a evidência arqueológica

implica que os israelitas, de fato, conquistaram uma vitória espetacular

ali. Isso aponta para uma ironia. Observamos antes que Josué não

destruiu Jericó e Ai; na sua época, não havia cidades ali para destruir. A

história de Hazor é muito menos conhecida, mas, historicamente, é

muito mais plausível e um milagre bem mais impressionante. Hazor era,


de fato, “cabeça de todos esses reinos”, uma cidade enorme e, portanto,

hoje, um relato monumental.

Reconhecidamente, continua sendo aconselhável e sábio não vender

a própria alma à arqueologia. Ainda existem questões a serem

respondidas sobre a história de Hazor, e as teorias com respeito à sua

história podem mudar. Houve versões anteriores da arqueologia,

provando que “a Bíblia está certa” e que, hoje, foram derrubadas, o que,

em contrapartida, dá a impressão de que a arqueologia “prova que a

Bíblia está errada”. Outro colaborador daquele DVD aponta que, em

nenhum caso, a arqueologia é capaz de provar o elemento realmente

importante na história bíblica, ou seja, o que ela tem a dizer sobre Deus.

Nesse sentido, é a história bíblica que importa.

Há dois outros aspectos notáveis dessa história sobre os quais a

arqueologia silencia-se. Um é que Deus não disse a Josué para matar

todas as pessoas em Hazor, embora ele o tenha feito. Deus disse a Josué

para cortar o tendão dos cavalos e incendiar as carruagens — isto é,

destruir o equipamento militar, o equivalente aos tanques e aviões de

combate. Então, a terra pode ter um “descanso da guerra”. Isso

corrobora a ênfase em outras passagens (não menos importante na

história de Jericó) de que não é o poderio militar que define o resultado

das guerras. Se Deus está envolvido, tudo o que você pode precisar

fazer é soar as trombetas. Caso Deus não esteja envolvido, talvez nem

todos os cavalos e carruagens do mundo possam assegurar a sua vitória.

Como expresso em Isaías 31, quando Judá é tentado a confiar na aliança

com o Egito e tenta importar cavalos e carruagens de lá: “Mas os

egípcios são homens, não Deus; seus cavalos são carne, não espírito.”

O outro aspecto digno de nota é que a história segue enfatizando

que Israel era capaz de obter o controle da terra porque Josué obedecia

exatamente às ordens de Deus. Já comentamos que a história também

deixa claro que isso, igualmente, é um exagero. Na verdade, os

mocinhos em um filme de faroeste eram pessoas reais, com falhas, e a

Bíblia tem mais em comum com filmes noir, nos quais os mocinhos
sempre têm falhas. Todavia, em relação à posse da terra por Israel, a

história considera que a sua declaração sobre Josué é suficientemente

verdadeira e de crucial importância. Ela convida o povo de Israel a uma

combinação do Antigo Testamento, que envolve esperança e

obediência. A narrativa não é um convite a uma ação militar como a de

Josué; já observamos que o Antigo Testamento não fala sobre a

expectativa de que alguém, após os dias de Josué, mate os cananeus. A

obediência assume diferentes formas em diferentes contextos. O que

Deus disse a Moisés e o que este disse a Josué não é o que está sendo

dito em contextos posteriores. Contudo, o princípio de que você faz o

que Deus diz e, então, vive em esperança é o que permanece.

Perdoe-me, mas, se essa é uma história de caubói, por que ela está na

Bíblia? Por que ela é mais importante do que outras histórias de

caubóis? Uma das respostas é que ela faz parte de uma história maior,

que é a mais importante de todas. Como os britânicos e outras nações,

as pessoas nos Estados Unidos tendem a se considerar como povo

especial de Deus. Contudo, não são. Há um único povo especial, que é

Israel, o povo do qual Jesus nasceu. Essa história de caubói é especial

porque faz parte da história de Israel. Com efeito, o discurso/sermão de

Estêvão em Atos 7, bem como a lista de heróis em Hebreus 11,

enfatizam esse ponto. Josué constitui parte da história que conduz a

Jesus. Sem Josué, não há Jesus. Na verdade, Josué é o nome real de

Jesus (compare o modo pelo qual os judeus messiânicos o chamam de

Yeshua); “Jesus” é uma forma grega do nome. Ao contrário, na tradução

grega do livro de Josué, que muitas pessoas do Novo Testamento

usavam, o nome de Josué é Jesus.


JOSUÉ 11:16—12:24
POR QUE ELES FORAM TÃO ESTÚPIDOS?
16
Assim, Josué tomou toda essa terra: as montanhas, todo o Neguebe, toda a região de

17
Gósen, as encostas, a planície, a terra montanhosa de Israel e suas planícies, desde o monte

Halaque, que vai até Seir, até Baal-Gade, no vale do Líbano, abaixo do monte Hermom. Ele

18
capturou todos os seus reis, os derrubou e os matou. Por um longo período, Josué fez

19
guerra contra todos esses reis. Não houve cidade que fez paz com os israelitas, exceto os

20
heveus que viviam em Gibeom. Tudo isso eles tomaram em batalha, porque partiu de

Yahweh endurecer a resolução deles para entrar em batalha contra Israel, de modo que

[Josué] pudesse devotá-los sem haver nenhuma graça para eles, e que os aniquilasse, como

21
Yahweh ordenara a Moisés. Naquele tempo, Josué foi e cortou os enaquins das montanhas,

de Hebrom, de Debir, de Anabe, de todas as montanhas de Judá e de todas as montanhas de

22
Israel, com suas cidades. Josué os devotou. Nenhum enaquim foi deixado na terra dos

23
israelitas. Somente em Gaza, em Gate e em Asdode eles permaneceram. Assim, Josué

tomou toda a terra, como Yahweh falou a Moisés, e Josué a deu a Israel como sua própria,

como partilhas para os clãs; então, a terra teve descanso da guerra.

[Josué 12:1-24 fornece um resumo das áreas a leste do Jordão das quais Israel tomou posse, e

uma lista dos 31 reis das cidades, situadas a oeste do Jordão, derrotados pelos israelitas.]

Anteontem, jantei cedo, bebi uma taça ou duas de vinho, dispensei a

sobremesa e, então, mais tarde, bebi uma xícara de café. Esse padrão

funciona quando quero dormir bem, de modo que tento mantê-lo à

risca. Contudo, ontem à noite, comi tarde, e o garçom do restaurante

me disse que o suflê de chocolate estava muito bom; então, não resisti.

Não estava tão maravilhoso assim, mas posso ter chegado a essa opinião

por já estar muito satisfeito; eu já havia ignorado outra resolução ao

comer algumas das batatas fritas que acompanhavam o sanduíche.

Quando o garçom me falou sobre elas, poderia ter dito: “Suspenda as

batatas fritas”, porém fracassei totalmente. E não consegui dormir (em

breve, tirarei uma soneca). O garçom enfraqueceu a minha

determinação de comer frugalmente ou, ainda, pode ser que tenha

fortalecido a minha propensão a ser autoindulgente.


Deus endureceu o coração dos reis cananeus, relata a história de

Josué; essa é uma tradução mais literal. Traduzi a sentença como

“endureceu a resolução” porque, em nosso idioma, o coração é propenso

a sugerir especialmente emoções, enquanto no texto bíblico ele sugere o

ser interior, de modo geral, e, se ele possui um foco mais preciso, esse é o

da vontade. O coração sugere a formulação de atitudes e a tomada de

decisões. Como expressamos, esses reis tinham de “decidir” o que fazer

com relação aos israelitas. No evento em questão, eles agiram

estupidamente, como eu, em minhas pequenas ações. Em vez de

reconhecer as implicações do que já tinham ouvido sobre os israelitas,

como Raabe e os heveus, eles tentaram impedi-los.

Por que eles foram tão estúpidos? Nem sempre a Bíblia atribui a

estupidez das pessoas ao obscurecimento da mente delas por Deus,

embora, às vezes, faça isso. Deus discorre sobre isso em Isaías 6, e Jesus

usa as palavras de Deus ao explicar que a razão de falar em parábolas é

para confundir a compreensão das pessoas (Marcos 4). Igualmente,

Jesus assume, assim como essa história, que as pessoas podem alcançar

um ponto no qual não há mais graça para elas, apenas choro e ranger de

dentes. Em cada caso, fechar a mente das pessoas é um ato de juízo

divino, como ocorreu quando Deus endureceu o coração do faraó ou

aumentou a sua determinação. Em cada caso, as pessoas atingiram um

ponto a partir do qual Deus diz: “Basta!” e lida com elas ao encorajá-las

a continuar em sua estupidez moral. Considerando a maneira pela qual

o Antigo Testamento conta a história, o fato de Deus endurecer o

coração das pessoas não significa efetuar algum tipo de estranha

manipulação de suas sinapses, levando-as a fazer algo contra a própria

vontade, a agirem de modo que digam a si mesmas: “Não sei por que

estou fazendo isso; esse não sou eu.” Isso não significa que o faraó e os

reis cananeus eram boas pessoas que, de súbito, começaram a agir

malignamente. Eles escravizavam pessoas e matavam crianças. A ação

de Deus, se preferir, foi similar a entregar as pessoas aos seus próprios

instintos, como descrito em Romanos 1 e 2.


Nem por isso a história de Josué simplesmente implica que não haja

uma clara distinção entre Deus agir de modo deliberado e ele estar por

trás de tudo o que ocorre no mundo. De fato, em certo sentido, Deus é

totalmente soberano no mundo e, portanto, deve aceitar a

responsabilidade pelas coisas que acontecem, mesmo quando não

resultam da intervenção divina direta. Isso ignifica que, ao olhar para

eventos passados e ver, por exemplo, o modo pelo qual os cananeus

colocaram a corda em volta do próprio pescoço, em certo sentido essa

era a intenção de Deus, especialmente se você considerar que ele tinha

conhecimento disso antes mesmo de eles agirem.

Talvez essa forma de olhar para o funcionamento das coisas no

mundo faça sentido, mas não há sugestão de que ela esteja presente na

visão da história sobre os eventos. Ela não vê os cananeus agindo

malignamente, porém também não vê Deus alienado do que eles estão

fazendo. A minha suposição é que o envolvimento de Deus e a

responsabilidade humana atuam em conjunto, de um modo similar ao

relacionamento entre pais e filhos, entre professores e alunos, ou

senhores e servos; isso se encaixa com outros aspectos da relação de

Deus conosco. Como professor, eu coloco ideias diante de meus alunos,

incentivando-os a agir de certa maneira (por exemplo, se eles

entregarem seus trabalhos mais cedo, eu lhes darei um retorno para que

possam corrigi-los e submetê-los novamente, caso desejem). Contudo, a

decisão final é deles.

O meu quadro para compreender Deus e os cananeus envolve ver o

relacionamento como uma espécie de versão negativa desse processo.

Imagine que um de meus alunos esteja entregando as suas tarefas com

atraso, e eu acho que ele ou ela realmente deveria ser reprovado(a) (isso

ocorreu); ainda, suponha que alguém o(a) encoraje a ir a um concerto

de rock na noite de uma aula importante, o que também pode colocar a

sua aprovação em risco (isso também ocorreu). O endurecimento da

resolução dos cananeus, por parte de Deus, envolve mostrar-lhes ideias,

assim como um professor, e eles tomarem a decisão a seguir. Deus os


encorajou a reconhecer que valia a pena correr o risco de perder a

batalha para os israelitas. Eles concordaram em seguir esse

encorajamento, sem serem obrigados a isso. De fato, quando Isaías

revela ao povo que Deus está determinado a cegar a mente deles, creio

que ele esperava que eles recuperassem a razão para que essa

advertência não se concretizasse. Essa é a maneira regular de os

profetas operarem. Mesmo os estímulos que podem derrubar as pessoas

também são estímulos que podem impulsioná-las de um modo positivo.

Apenas mais tarde será possível saber que caminho as palavras de Deus,

proferidas pelo profeta, irão seguir — se elas levam ao abrandamento ou

ao endurecimento. Deus não logrou trazer os cananeus de volta ao bom

senso, e Deus está bem com isso, porque ele não vê problemas (isso não

quer dizer que seja um entusiasta) em trazer juízo sobre as pessoas, caso

elas não possam mais ser convertidas de seus caminhos.


JOSUÉ 13:1—14:15
A TERRA QUE RESTA SER POSSUÍDA É MUITO GRANDE
1
Ora, Josué estava velho, avançado em idade. Yahweh lhe disse: “Você mesmo se tornou

2
velho, avançado em anos, enquanto a terra que resta ser possuída é muito grande. Esta é a

3
terra que resta. Toda a região dos filisteus e toda [aquela] dos gesuritas, desde o Sior,

próximo ao Egito, até o território de Ecrom, ao norte, conta como pertencente aos cananeus

(os cinco senhores dos filisteus, o povo de Gaza, Asdode, Ascalom, Gate e Ecrom); os aveus,

4
ao sul; toda a terra cananeia, Meara, pertencente aos sidônios, até Afeque (até o território

5
amorreu); a terra dos gibleus e todo o Líbano, no leste, desde Baal-Gade, debaixo do monte

6
Hermom, até Lebo-Hamate; todos os habitantes das montanhas desde o Líbano até as

águas de Misrefote, todos os sidônios. Eu mesmo os desapropriarei diante dos israelitas.

7
Apenas distribua a terra por lote a Israel como sua própria, como lhe ordenei. Assim, agora,

distribua esta terra como sua própria aos nove clãs e à metade de Manassés.

[Os demais versículos do capítulo 13 registram a distribuição da terra, situada a leste do

Jordão, para Rúben, Gade e a outra metade de Manassés, embora o relato observe que Israel

não desapropriou os gesuritas e os maacatitas, que continuaram vivendo entre os israelitas, e

que nenhuma distribuição foi feita a Levi, porque a parte deles deveria vir das ofertas do povo.

O capítulo 14, então, introduz a distribuição, feita por Josué, da terra a oeste do Jordão para os

demais clãs.]

CAPÍTULO 14

6
Os judaítas vieram ver Josué, em Gilgal. Calebe, o filho de Jefoné, o quenezeu, lhe disse:

“Você mesmo sabe como Yahweh falou a Moisés, o homem de Deus, sobre você e eu, em

7
Cades-Barneia. Eu tinha quarenta anos quando Moisés, servo de Yahweh, enviou-me de

Cades-Barneia para investigar a terra, e eu lhe trouxe de volta um relato segundo como as

8
coisas estavam na minha mente. Meus irmãos, que subiram comigo, fizeram derreter a

9
resolução do povo, mas eu mesmo segui totalmente Yahweh, meu Deus. Naquele dia, Moisés

prometeu: ‘A terra na qual o seu pé pisou será uma possessão para você e seus descendentes,

10
em perpetuidade, porque você seguiu totalmente Yahweh, o meu Deus.’ Pois bem, agora,

Yahweh me manteve vivo, como ele declarou, por 45 anos, desde que Yahweh fez essa

declaração a Moisés, quando Israel estava indo pelo deserto. Assim, agora, aqui estou eu

11
hoje, com 85 anos de idade. Ainda estou tão forte hoje quanto estava quando Moisés me

enviou. Assim como a minha força era, então a minha força é agora, para a batalha e para sair

12
e entrar. Então, agora, dê-me essas montanhas que Yahweh falou naquele dia, porque você

ouviu, naquele dia, que os enaquins estão aqui, e grandes cidades fortificadas. Talvez Yahweh

13
seja comigo, e eu tomarei posse delas, como Yahweh falou.” Então, Josué o abençoou e deu

14
Hebrom a Calebe, o filho de Jefoné, como sua própria. Portanto, Hebrom veio a pertencer

a Calebe, filho de Jefoné, o quenezeu, como sua própria, até este dia, porque ele seguiu a
15
Yahweh, o Deus de Israel. ( O nome de Hebrom, anteriormente, era Cidade de Arba; ele foi

o grande homem entre os enaquins.) E a terra teve descanso da guerra.

No serviço fúnebre de minha esposa, na Inglaterra, no verão passado,

reencontrei uma de minhas primas, a quem não via por quase uma

década, e, nessa semana, recebi um cartão de Natal dela. Ela escreveu:

“Vários membros da família têm me perguntado se você irá retornar ao

Reino Unido para viver”, e expressei a esperança de todos nós

podermos nos ver mais frequentemente (o que acho, de fato, que

ocorrerá). “Estou jogando verde, não estou?”, ela concluiu. Então, em

alguns dos cartões natalinos que enviei, escrevi: “Muitas pessoas têm

perguntado se retornarei à Inglaterra. Diz-se que não devemos tomar

decisões desse tipo durante um ano após perder alguém; mas, de

qualquer forma, enquanto sentir que não perdi a vocação, a energia ou a

motivação, pelo tempo que os possuir, pretendo continuar ensinando e

indo a Malibu para o almoço, nos fins de semana.” Há muitas coisas que

ainda quero fazer nos Estados Unidos antes de minha aposentadoria.

Desse modo, eu me identifico um pouco com Calebe. Em termos

mais literais, 85 anos talvez signifiquem algo mais como acima dos

cinquenta, de maneira que ele era mais jovem que eu, mas, então, o

projeto que ele quer realizar envolve vigor físico; para terminar esta

série, O Antigo Testamento para todos, eu preciso continuar sentado a

essa escrivaninha em vez de cair sobre ela, mas pretendo seguir

pedalando a minha bicicleta até o seminário, quando não estiver

chovendo, na suposição de que preciso me manter fisicamente ativo,

além do sedentário ato de sentar.

Os alunos, algumas vezes, procuram-me para conversar sobre o que

eles planejam fazer com sua vida, sobre como estabelecer alvos e,

depois, alcançá-los. Então, sentem-se confusos quando eu lhes conto

que, de fato, jamais tive quaisquer objetivos na vida; estou onde estou

por completo acidente. Esse é o problema em ser britânico. Calebe é


mais parecido com alguém nascido nos Estados Unidos. Ele era desse

jeito quando tinha “quarenta” (vamos imaginá-lo literalmente perto dos

trinta anos, como alguns de meus alunos). Ele e Josué estavam entre os

jovens comissionados a investigar como a terra era. Os outros dez espias

eram como rapazes britânicos, isto é, pessimistas, que só enxergam os

problemas. Para eles, a conquista daquele território seria impossível; os

cananeus eram homens grandes. Calebe e Josué acreditavam no lema

“Sim, nós podemos!” Isso não era devido ao fato de eles possuírem genes

diferentes, embora fosse verdade no caso de Calebe (voltaremos a isso

mais tarde). Ele afirma: “eu mesmo segui totalmente Yahweh, meu

Deus”. Em hebraico, trata-se de uma expressão estranha. Mais

literalmente: “Eu me enchi de Yahweh, meu Deus.” No detalhado relato

de Números 13 e 14, Josué e Calebe declaram: “Se Yahweh se agradar de

nós, ele nos fará entrar nessa terra e a dará a nós [...]. Somente não

sejam rebeldes contra Yahweh [...]. Yahweh está conosco. Não tenham

medo deles!” Ele não quer ser presunçoso, mas sabe que Deus pode

tornar isso possível.

Deus prometeu que Calebe e Josué entrariam na Terra Prometida,

ao contrário do povo que não acreditou nessa possibilidade, e, agora,

Calebe quer descontar o seu cheque. Quando os espias fizeram o

reconhecimento da terra, uma geração atrás, eles tinham entrado a

partir do sul e, portanto, de Hebrom, e foi ali que eles viram os gigantes

que amedrontaram a maioria deles. Calebe sabe que Israel enfrentará o

mesmo desafio naquela região. Deseja que lhe seja dado o maior desafio

que há. Ele ainda não perdeu a sua vocação, energia ou sanidade. (Bem,

talvez o entusiasmo de Calebe por enfrentar os gigantes lance dúvidas

sobre a sua sanidade, mas é o lado britânico falando novamente.)

O seu pedido também ilustra como, de fato, no ocaso da vida de

Josué “a terra que resta ser possuída é muito grande”, apesar dos

comentários anteriores sobre como “Josué tomou toda a terra” (Josué

11:23). A princípio, esse grande líder fez isso logrando algumas vitórias

espetaculares em diferentes regiões de Canaã. No entanto, o pedido de


Calebe constitui apenas uma das observações no livro de Josué que

indicam quanto ainda resta a conquistar.


JOSUÉ 15:1—17:11
VIVENDO COMO MULHERES NUM MUNDO DE HOMENS

[Josué 15:1-12 especifica as fronteiras de Judá.]

CAPÍTULO 15

13
A Calebe, filho de Jefoné, [Josué] deu a cidade de Arba, o pai de Enaque (isto é, Hebrom)

14
como uma partilha no meio de Judá, de acordo com a palavra de Yahweh a Josué. Calebe

15
desapropriou de lá os três enaquins, Sesai, Aimã e Talmai, os descendentes de Enaque. De

lá, ele subiu contra os habitantes de Debir; anteriormente, o nome de Debir era Cidade do

16
Rolo. Calebe disse: “A quem quer que derrube a Cidade do Rolo e a tome, eu darei Acsa,

17
minha filha, por esposa.” Otoniel, o quenezeu, um parente de Calebe, a tomou, e ele lhe

18
entregou Acsa, sua filha, por esposa. Quando chegou, ela o pressionou a pedir ao pai dela

19
um pedaço de terra. Ela desceu de seu jumento, e Calebe lhe disse: “O que é isso?” Ela

disse: “Dê-me um presente, já que me deu terra no Neguebe, então dê-me fontes de água.”

Então, ele lhe deu as fontes superiores e inferiores.

[O capítulo prossegue, listando as cidades no território de Judá, mas, por fim, observa que os

judaítas não conseguiram expulsar os jebuseus de Jerusalém e que eles vivem com os judaítas

“até hoje”. Josué 16:1—17:2, então, descreve as distribuições de Efraim e, depois, começa a

descrever a partilha para a metade de Manassés que vive a oeste do Jordão.]

CAPÍTULO 17

3
Ora, Zelofeade, filho de Héfer, filho de Gileade, filho de Maquir, filho de Manassés, não

tinha filhos, mas apenas filhas. Estes eram os nomes das suas filhas: Maalá, Noa, Hogla, Milca

4
e Tirza. Elas foram ver o sacerdote Eleazar, Josué, filho de Num, e os líderes, dizendo: “O

próprio Yahweh ordenou a Moisés nos dar uma posse entre nossos parentes masculinos.”

Então, ele lhes deu uma posse entre os parentes masculinos do pai delas, de acordo com a

5
palavra de Yahweh. A parte de Manassés caiu a dez, além da terra de Gileade e Basã, do

6
outro lado do Jordão, porque as filhas de Manassés receberam uma posse entre seus filhos,

7
enquanto a terra de Gileade pertenceu aos demais descendentes de Manassés. A fronteira

de Manassés corre desde Aser até Micmetá, oposto a Siquém. A fronteira vai para a direita,

8
para os habitantes de En-Tapua ( a região de Tapua pertencia a Manassés, mas Tapua, na

9
fronteira de Manassés, pertencia aos efraimitas). A fronteira desce até o ribeiro de Caná. Ao

sul do ribeiro, estas cidades pertencem a Efraim, no meio das cidades de Manassés, com a

10
fronteira de Manassés ao norte do ribeiro e sua saída no mar. Ao sul, pertence a Efraim e,

ao norte, a Manassés, com o mar como sua fronteira. Alcança Aser, ao norte, e Issacar, a leste,

11
mas em Aser e Issacar, a Manassés pertencia Bete-Seã e suas dependências, Ibleã e suas

dependências, os habitantes de Dor e suas dependências, os habitantes de En-Dor e suas

dependências, os habitantes de Taanaque e suas dependências, e os habitantes de Megido e

suas dependências (a terceira é Nafote).


Certa feita, eu conversava com uma aluna que estava desapontada com

a sua denominação por causa da atitude em relação ao ministério de

mulheres. As mulheres haviam desempenhado um papel fundamental

no movimento que deu origem à denominação, porém os homens

assumiram o controle e não mais permitiram que as mulheres

ministrassem com a mesma liberdade e autoridade que elas possuíam no

início. Uma tristeza adicional era o fato de a aluna apreciar sobremodo

as distintas ênfases do movimento e da denominação; caso a

abandonasse totalmente, unindo-se a outra denominação, ela perderia o

contato com tais ênfases. As mulheres, na realidade, exerciam liderança

em sua denominação, mas eram obrigadas a fazê-lo de formas sutis para

evitar perturbações no modus vivendi, desenvolvido ali. É possível ver a

mesma história repetida na igreja primitiva, na qual as mulheres,

originariamente, detinham uma autoridade para ministrar que, mais

tarde, desapareceu. Constata-se o mesmo em Israel, na pessoa de

alguém como a irmã mais velha de Moisés. As mulheres são obrigadas a

desenvolver estratégias para viver em um mundo dominado por homens

e não submergir.

Acsa assim procedeu. O seu pai a tratou como um prêmio para o

homem que dominasse Debir ou Quiriate-Sefer, a “Cidade do Rolo”

(talvez fosse onde os registros eram mantidos). Isso pode parecer

escandaloso no Ocidente moderno, embora possa expressar apenas uma

versão extrema de algumas atitudes em relação ao casamento presentes

na maioria das culturas humanas. No Ocidente atual, consideramos que

o casamento é, essencialmente, um relacionamento pessoal no qual as

pessoas encontram a sua alma gêmea e que a decisão sobre quem

desposar é de ordem pessoal e intransferível. Contudo, essa é

meramente apenas uma de nossas presunções culturais. Elas não

parecem gerar uma sociedade caracterizada por casamentos ou famílias


estáveis e há evidências que sugiram que outras conjecturas culturais

sejam capazes de funcionar também.

Pode ser que Acsa tenha tido a oportunidade de olhar para o marido

que seu pai propôs e dito: “De jeito nenhum!”; certamente, outros

relatos do Antigo Testamento implicam que uma mulher poderia fazer

isso. O que aprendemos sobre Acsa, decerto, torna isso plausível. Ela

não parece ser alguém de fácil manipulação. Quando vai morar com

Otoniel, ela arquiteta um plano com ele para convencer Calebe a lhes

dar um pedaço (a mais) de terra; sabemos, do capítulo 14, que Calebe

não é covarde, mesmo com 85 anos, e, ao que parece, a filha herdou os

genes do pai. Quando ela volta para casa e desce de seu jumento com

um semblante determinado, Calebe pode ver que há problemas à vista.

Parece que a história foi resumida; primeiro, ela discorre sobre a terra,

que talvez fosse o dote que Acsa leva consigo ao casamento, mas que,

legalmente, permanece com ela. A narrativa, então, pressupõe essa

doação de terra e levanta a questão sobre a água. Debir é uma terra

situada no sul de Hebrom, onde o próprio Calebe tinha a sua porção,

sendo, portanto, muito árida. É uma região que está se tornando

desértica. Acsa manipula os homens de sua vida para lhe assegurar um

acordo melhor que o inicialmente proposto por eles. Ela age como uma

astuta mulher de negócios, como Abigail e a mulher em Provérbios 31.

Acsa, seu pai e seu marido são todos quenezeus, povo que remonta a

sua ancestralidade a Quenaz, um descendente de Esaú (veja Gênesis

36). Esaú foi o homem preterido por Deus, que, em seu lugar, escolheu

Jacó (Israel). Deus agrupou os quenezeus com povos como os hititas e

os cananeus, cuja terra seria entregue aos descendentes de Abraão

(Gênesis 15:19). Por ironia, o nome de Calebe é similar a uma palavra

hebraica para “cão”, celeb. Não se deve dar coisas sagradas ou o

alimento dos filhos aos cães gentios, afirma Jesus (Mateus 7:6; 15:26).

Todavia, mesmo os cães podem comer das migalhas que caem debaixo

da mesa. Calebe era o melhor cão fiel, e ele comeu mais do que apenas

migalhas. Como Josué, esse homem que não nascera israelita, teve total
confiança de que Yahweh podia dar a terra ao povo. Da mesma forma

que Raabe contrasta com Acã, Calebe se contrapõe a praticamente

todos os israelitas. Novamente, ele lembra a Israel que nascer um

israelita não significa nada, exceto se for comprometido com Yahweh, e

que, ao contrário, o fato de não nascer um israelita, não exclui a pessoa

de se tornar israelita por adoção.

As filhas de Zelofeade enfrentaram Moisés de frente, em um

contexto comunitário, do mesmo modo que Acsa confrontou o seu pai

em um contexto familiar; talvez soubessem que Moisés veria o fantasma

de sua irmã mais velha olhando sobre os ombros delas. Agora, elas

confrontam Eleazar. Números 27 relata como o pai delas tinha morrido

sem gerar filhos, o que significava, pelas regras vigentes, que a sua terra

seria distribuída aos seus irmãos. “Isso não é justo”, elas proclamaram.

Deus e Moisés viram que elas tinham razão e estabeleceram uma regra

nova: as filhas tinham prioridade sobre os irmãos do pai, em situações

similares. No dia seguinte, os homens vieram e disseram: “Bem, essa

nova regra irá prejudicar a distribuição de toda a terra, caso elas

herdem a terra e se casem com membros de outros clãs.” Isso resultou

em um adendo à regra: as filhas podem se casar com quem quiserem,

desde que ele seja de seu próprio clã (o que, provavelmente, ocorreria

de qualquer forma, pela inexistência de um serviço de namoro on-line

que lhes permitisse entrar em contato com os rapazes de um clã

distante). Ainda assim, foi uma grande vitória, mas significou certa

concessão ao sistema. As filhas, então, não se recolheram às suas tendas

e passaram a tricotar, satisfeitas com a vitória moral obtida (não que

haja algo errado com o ato de tricotar; minha feminista favorita é uma

exímia praticante dessa arte). Elas vão e batem à porta de Eleazar (ele

participou da negociação original) para dizer: “E então, onde está a

nossa terra?”
JOSUÉ 17:12—19:51
RAÍZES; OU: LAR É ONDE A SUA PORÇÃO ESTÁ
12
Os manassitas não conseguiram tomar posse dessas cidades; os cananeus estavam

13
determinados a permanecer na região. Quando os israelitas se fortaleceram, eles colocaram

os cananeus em trabalho forçado, mas, na realidade, não os expulsaram.

14
Os josefitas falaram a Josué: “Por que nos deu como posse um lote, uma alocação, quando

15
somos um grande povo que Yahweh tem abençoado tanto?” Josué lhes disse: “Se vocês são

um grande povo, subam para a floresta e limpem ali, na terra dos ferezeus e dos refains, se as

16
montanhas de Efraim são muito estreitas para vocês.” Os josefitas disseram: “As

montanhas não são suficientes para nós, e há carruagens de ferro entre todos os cananeus que

17
vivem na área da planície, em Bete-Seã e suas dependências, e na planície de Jezreel.” Mas

Josué disse à casa de José, a Efraim e a Manassés: “Vocês são um grande povo. Vocês têm

18
grande força. Não terão apenas um lote, porque as montanhas serão suas, elas são floresta,

mas vocês a clarearão, e seus limites mais distantes serão de vocês, porque desapropriarão os

cananeus, apesar de eles terem carruagens de ferro e serem fortes.”

CAPÍTULO 18

1
Toda a comunidade israelita reuniu-se em Siló e montou a tenda do encontro ali. Embora a

2
terra fosse subjugada diante deles, ainda restavam sete clãs entre os israelitas que não

3
tinham recebido a sua posse. Josué disse aos israelitas: “Por quanto tempo vocês irão se

mostrar negligentes quanto a tomar posse da terra que Yahweh, o Deus de seus ancestrais,

4
lhes deu? Providenciem três homens de cada clã, e eu os enviarei a percorrer a terra e a

5
mapeá-la com vistas à posse deles. Então, eles devem vir a mim, e a dividirei em sete

partilhas. Judá deve permanecer em seu território, ao sul, e a casa de José deve permanecer

6
em seu território, ao norte. Vocês devem mapear o território em sete partes e trazê-lo a mim

7
aqui, para que eu possa lançar sortes por vocês diante de Yahweh, o nosso Deus. Porque não

há partilha para os levitas em seu meio, porque o sacerdócio de Yahweh é a possessão deles, e

Gade, Rúben e a metade de Manassés receberam a posse deles do outro lado do Jordão, a

leste, que Moisés, o servo de Yahweh lhes deu.”

[Os demais versículos dos capítulos 18 e 19 relatam a implementação desse plano e registram as

áreas a ser ocupadas pelos sete clãs que restam, Benjamim, Simeão, Zebulom, Issacar, Aser,

Naftali e Dã.]

Enquanto aguardava o início da apresentação de jazz, na noite passada,

eu lia um livro sobre os capítulos de abertura do evangelho de Mateus

(enquanto outras ocupavam-se com seus celulares). O livro observava


como a lista de nomes que ocupa a maior parte do capítulo 1 é uma

narrativa compacta; ela resume toda a história do Antigo Testamento,

de Abraão até Davi, deste até o exílio e do exílio até o nascimento de

Jesus, para transmitir como a história de Israel conduz à história de

Jesus, e como a história do Filho de Deus resulta da história do povo

israelita. Há outras maneiras de ler a história de Israel; crer em Jesus é o

que faz você ler dessa forma. Todavia, não há outras formas de

compreender a história de Jesus. É preciso ler a história subjacente a

ele. Certa feita, conheci uma pessoa que chegou à fé em Cristo por meio

da leitura dos capítulos iniciais de Mateus. A maioria dos cristãos

acharia isso peculiar; em geral, pulamos essa parte, ignorando a

importância crucial desses versículos para compreendê-lo. A pessoa em

questão era judia. Para os gentios, trata-se apenas de uma lista de

nomes, mas esses versículos lhe permitiram ver que Jesus podia ser o

Messias dela.

O Antigo Testamento incorpora inúmeras listas contendo nomes

que, desse modo, revelam às pessoas quem elas são ao recordá-las de sua

história. A característica distinta de Josué 13—19 é que essa passagem é

dominada por listas de lugares. Qual o motivo de serem incluídas no

texto bíblico? Que impacto teriam nas pessoas que as lessem?

Uma função que as listas executam é revestir de carne os ossos da

declaração de que Deus cumpriu a promessa de dar a terra a Israel. A

verdade, em geral, repousa nos detalhes. Ele não entregou meramente o

território de Canaã a Israel, mas também deu Ofra, Ziclague, Suném,

Afeque e todos os outros lugares listados nos capítulos 18 e 19, bem

como em outras passagens desta seção do livro. Deus pode ser visto nos

pormenores. Eles tornam as promessas divinas em realidade concreta,

especialmente em contextos nos quais eles não parecem a verdade.

Independentemente da época na qual o livro de Josué foi escrito, é

improvável que isso tenha ocorrido no período em que Israel ocupava

toda a terra que Josué, aqui, distribui entre os clãs. Como o próprio

relato observa, nos dias de Josué eles ainda não tinham, de fato,
ocupado toda a terra. Os dois clãs descendentes de José protestam pelo

fato de as alocações serem somente linhas teóricas em um mapa. Apesar

das narrativas com respeito às grandes vitórias sobre os cananeus, as

linhas no mapa ignoram a realidade da continuidade do poder cananeu.

Durante os dias de Davi é que o mapa passou a ser mais do que uma

teoria, mas, três séculos depois desse período, esses mesmos clãs de José

foram subjugados pelos assírios, e, passados mais um século ou dois, foi

a vez de os judaítas perderem o controle do território para os

babilônios. O relato da distribuição da terra, executada por Josué,

desafia os seus leitores a crer que Deus ainda pretende dar a terra a eles

e que ele assim o fará. Deus realizou isso em parte, ao trazer de volta os

judaítas do exílio, e o fez ainda mais espetacularmente pela maneira em

que o povo judeu obteve o controle de toda a terra durante o período do

Segundo Templo, após o exílio, ainda que, então, tenham caído sob o

domínio romano.

Os detalhes também significam que os clãs individuais, os grupos de

parentesco e as famílias podem se encontrar nessas alocações. À

semelhança dos cristãos, a leitura dessas seções de Josué, por parte dos

judeus, não é muito frequente durante os serviços religiosos, mas eles

usam algumas delas. Assim, pode-se imaginar os filhos cutucando os

pais quando a lição menciona Sucote, Quedemote ou mar da Galileia,

pois é a região onde eles vivem. Eles fazem parte da história sobre a

entrega da terra a Israel por Deus. Cada família vive onde vive porque

as promessas divinas foram cumpridas.

Existem outros contextos mais complexos nos quais pode-se

imaginar essas listas sendo importantes. Suponha que dois clãs e,

portanto, duas famílias distintas, entrem em litígio por causa da posse

de uma área específica. As listas de limites permitem que os clãs

resolvam as disputas. Então, a história quanto aos dois clãs de José

ilustra como isso os desafia. Aquela narrativa pressupõe que eles tinham

três tipos de terra dentro de sua partilha e que eles não seriam os únicos

clãs sobre os quais isso era verdadeiro. As principais áreas nas quais os
israelitas originariamente se instalaram eram montanhosas, embora

suficientemente capazes de abrigar uma população de fazendeiros. Elas

eram praticamente desabitadas, nos tempos de Josué, de modo que seria

plenamente viável aos clãs se instalarem ali. Investigações

arqueológicas indicam que muitos novos assentamentos e vilarejos

ocorreram nesse período (isso não prova que eram israelitas, mas se

encaixa perfeitamente ao relato bíblico). Contudo, as regiões mais

valiosas da terra estavam nos vales e planícies, nos quais, naturalmente,

as cidades dos cananeus foram construídas; os clãs de José alegam a

necessidade de realizar algumas desapropriações, a despeito da lista de

vitórias que a história nos revela. A terceira área á a região montanhosa

que está coberta de florestas. Então, vão e cortem as árvores, diz Josué,

que está preparado para ser curto e grosso. O encontro entre Josué e os

dois clãs reflete, ainda, outro aspecto da intrincada história sobre a

posse de Canaã por parte de Israel. Com certeza, houve a provisão

divina, mas nem tudo foi milagroso. A narrativa envolveu fatores

circunstanciais, a consideração de fatores humanos e a necessidade de

muito esforço físico.


JOSUÉ 20:1—21:45
TUDO SE TORNOU VERDADE
1 2
Yahweh falou a Josué: “Diga aos israelitas: ‘Providenciem para vocês as cidades de asilo

3
sobre as quais falei a vocês por meio de Moisés, para um homicida, que atinja uma pessoa

4
por acidente, fugir para lá. Elas serão um asilo para vocês do restaurador de sangue. [O

homicida] fugirá para uma dessas cidades, se apresentará à entrada do portão da cidade e

exporá o seu caso aos anciãos da cidade. Eles o admitirão à cidade, lhe darão um lugar, e ele

5
viverá com eles. Se o restaurador de sangue persegui-lo, eles não renderão o homicida ao

seu poder, porque ele atingiu o seu próximo sem perceber e não era seu inimigo nos dias

6
anteriores. Ele viverá naquela cidade até se apresentar diante da cidade para uma decisão e

até a morte do sumo sacerdote que estiver ali naqueles dias. Então, o homicida pode retornar

7
e ir à sua cidade e à sua casa, para a cidade da qual fugiu.’” Assim, eles santificaram Quedes,

na Galileia, nas montanhas de Naftali e Siquém, nas montanhas de Efraim, e a Cidade de

8
Arba (isto é, Hebrom), nas montanhas de Judá. No outro lado do Jordão, a leste de Jericó,

eles providenciaram Bezer, no deserto, no planalto, do clã de Rúben, Ramote, em Gileade, do

9
clã de Gade, e Golã, em Basã, do clã de Manassés. Estas foram as cidades designadas a

todos os israelitas e os estrangeiros residentes no meio deles para fugirem, qualquer um que

atingisse uma pessoa por acidente, e ele não morresse pela mão do restaurador de sangue até

se apresentar diante da comunidade.

CAPÍTULO 21

1
Os cabeças das famílias dos levitas vieram ver Eleazar, o sacerdote, Josué, filho de Num, e os

2
cabeças das famílias dos clãs israelitas. Eles lhes falaram em Siló, na terra de Canaã: “O

próprio Yahweh ordenou, por meio de Moisés, nos dar cidades para viver, com seus pastos

3
para nosso gado.” Assim, os israelitas deram aos levitas parte de seus lotes, de acordo com a

palavra de Yahweh.

[A seguir, há uma lista das cidades espalhadas por toda a terra que foram dadas aos levitas.]

43
Yahweh deu a Israel toda a terra que ele prometeu dar aos seus ancestrais. Eles tomaram

44
posse dela e viveram ali. Yahweh lhes deu descanso de todos os lados, de acordo com tudo

o que prometeu aos seus ancestrais. Nenhum homem de todos os seus inimigos permaneceu

45
diante deles; Yahweh entregou todos os seus inimigos na mão deles. Nenhuma palavra caiu,

de todas as boas palavras que Yahweh tinha falado à casa de Israel. Tudo aconteceu.

Há pouco menos de três semanas, recebi um desses e-mails padrão de

uma aluna: ela não se julgava capaz de terminar o seu trabalho no prazo

determinado. Só que não era um e-mail padrão. Ela havia sido


diagnosticada com um tumor cerebral e iria passar por uma cirurgia um

dia antes do término desse prazo. Eu a incentivei o revelar o seu caso na

última aula, e oramos por ela. Cinco dias atrás, ela passou pela cirurgia,

e os médicos não encontraram um tumor, mas um abscesso. Ela sente

uma dor intensa e necessitará de tempo para uma recuperação

completa, mas logrará isso. Antes da cirurgia, sua mãe comentou que

havia muitas pessoas orando para que o tumor não avançasse, mas creio

que no fundo do coração ela sabia que a vida não funciona assim,

provavelmente não para a maioria das pessoas diagnosticadas com

tumores. No entanto, aproveitamos uma ocasião em que o tumor acaba

não prevalecendo e consideramos isso como uma pista para a verdadeira

natureza da realidade e da vida, uma indicação do rumo que a vida está

realmente tomando e de como ela acabará. Teologicamente, o fato de

Jesus haver ressuscitado dentre os mortos é mais relevante do que o

fato de ninguém mais ter feito isso.

O derradeiro parágrafo em Josué 21 indica que o Antigo Testamento

enxerga as coisas de forma análoga. Ele deixa claro que os israelitas não

estão, de modo nenhum, com a posse total de Canaã. Igualmente, revela

uma sequência de histórias sobre as vitórias conquistadas pelos

israelitas, assumindo-as como indicações mais importantes da

verdadeira situação da ocupação da terra por Israel do que o mero fato

de ainda haver muita área a ser ocupada. Do mesmo modo que

friamente reconhece esse fato, ele aloca a terra desocupada.

Pode-se fazer uma analogia com a maneira de os profetas falarem.

Eles dizem: “Deus restaurou Jerusalém”, quando, na realidade, a cidade

ainda está em ruínas (e, quanto a isso, afirmam: “O fim chegou para o

meu povo Israel”, quando tudo vai bem, obrigado). Pelo fato de Deus

haver determinado esses eventos, na verdade eles estão em ação,

embora ainda não estejam, de fato, ocorrendo. Deus determinou dar a

Israel toda a terra e proporcionou uma amostra daquela realidade nas

vitórias obtidas por Israel, de modo que é possível falar que Deus

entregou toda a terra como se isso fosse real. Em pouco tempo, isso se
concretizará (como, de fato, ocorreu). A fé propicia substância às coisas

que literalmente ainda são esperanças (Hebreus 11). Contudo, isso não

ocorre porque você está iludido, mas porque você tem algumas

primícias do cumprimento e pode, portanto, confiar no cumprimento

total de Deus.

As cidades de asilo constituíam a maneira de Israel assegurar que

alguém não fosse tratado como um assassino quando ele ou ela não

merecesse. Em princípio, em Israel, quando alguém cometia um delito,

ou quando havia um conflito na comunidade, o assunto era tratado

localmente. A família e os anciãos da vila eram elementos-chave nesse

processo, e não havia policiais profissionais, nem advogados, cadeias ou

multas. Com respeito ao assassinato, a família da vítima tinha o direito

de buscar a execução do assassino; essa responsabilidade cabia a alguém

na família da vítima, designado como “restaurador de sangue”. Pode

ser que, no caso de assassinato, como ocorre com outras ofensas em

geral, a preocupação não era tanto com relação à punição, mas com

alguma forma de compensação — por exemplo, quem assumiria a

responsabilidade por uma família se alguém assassinasse o cabeça dessa

família? Todavia, pode-se imaginar que o sangue derramado clamar do

solo signifique, às vezes, que a família da vítima almeje simplesmente

“justiça”, o que ocorre, especialmente, em razão do luto e da raiva após

uma morte violenta. Um perigo, então, é que a pessoa errada seja

executada, como ocorre nas sociedades modernas que praticam a pena

capital. O objetivo principal das cidades de asilo era evitar essa

ocorrência. Uma pessoa que, acidentalmente, matasse outra poderia

buscar refúgio em uma dessas cidades, para que houvesse tempo de os

sentimentos exaltados se acalmarem e para a devida investigação do

crime por parte da comunidade. As regras na Torá sobre essa

possibilidade estão em Números 35. Talvez a questão quanto à citação

da morte do sumo sacerdote é que, de certa forma, isso compensa a

morte ocorrida, que permanecia como uma mancha sobre a

comunidade, ainda que tenha sido acidental.


Não foi distribuída aos levitas nenhuma porção de terra porque os

dízimos do povo e outras ofertas eram para a provisão deles, mas, ainda

assim, eles precisavam de lugares onde viver e apascentar os seus

rebanhos, de modo que lhes foram alocadas cidades e terra ao redor

delas como pastagens para seus animais. Embora o Antigo Testamento

enfatize mais o papel dos levitas como assistentes ministeriais no

santuário central, o santuário não necessitaria de todo o clã de modo

permanente, e seria estranho eles viverem espalhados por todo o

território se o trabalho deles era totalmente concentrado no santuário

O capítulo, talvez, pressupõe dois ou três outros papéis ocasionalmente

mencionados pelo Antigo Testamento. A função oficial dos levitas,

como prescrito na Torá, também envolvia o ensino a toda a

comunidade, o que, portanto, seria uma justificativa lógica para eles

viverem espalhados por toda a terra. Na verdade, havia santuários

distribuídos por todo o território, e os levitas, então, ficaram

responsáveis pelo ministério nesses santuários. As cidades de asilo

também eram cidades levitas, implicando que eles desempenhavam um

papel em relação às tratativas de asilo; os levitas eram o que Israel tinha

de mais próximo a advogados e polícia. Eles atuavam em nome do

governo central a fim de manter alguma supervisão sobre o modo com

que a vida era administrada, as decisões eram tomadas e a justiça era

exercida.
JOSUÉ 22:1-34
O UNIVERSAL E O LOCAL

[Os versículos 1-8 relatam o envio dos clãs, por parte de Josué, que irão viver a leste do Jordão.]

9
Assim, os rubenitas, os gaditas e a metade do clã de Manassés deixaram os israelitas em

Siló, na terra de Canaã, e retornaram para a terra de Gileade, para a terra de sua posse, que

10
tinham adquirido pela palavra de Yahweh, por meio de Moisés, e chegaram à região do

Jordão, na terra de Canaã. Os rubenitas, os gaditas e a metade do clã de Manassés

11
construíram um altar ali, no Jordão, um altar grande em aparência. Os israelitas ouviram:

“Ora, os rubenitas, os gaditas e a metade do clã de Manassés construíram um altar perto de

Canaã, na região do Jordão, do outro lado dos israelitas.”

12
Então, os israelitas ouviram, e toda a comunidade dos israelitas se reuniu em Siló para sair

13
à guerra contra eles. Os israelitas enviaram Fineias, o sacerdote, filho de Eleazar, aos

14
rubenitas, aos gaditas e à metade do clã de Manassés, na terra de Gileade, e dez líderes

com ele, um líder para cada casa ancestral (por todos os clãs de Israel). Cada um era o cabeça

15
de uma casa ancestral nas divisões de Israel. Eles chegaram aos rubenitas, aos gaditas e à

16
metade do clã de Manassés, na terra de Gileade, e lhes falaram: “Toda a comunidade de

Israel disse isso: ‘O que é essa quebra de fé que vocês cometeram contra o Deus de Israel ao

se afastarem, hoje, de Yahweh, construindo vocês mesmos um altar, rebelando-se, hoje,

17
contra Yahweh? A transgressão em Peor foi uma pequena coisa para nós, da qual não nos

18
purificamos até este dia, e que trouxe uma epidemia sobre a comunidade de Yahweh, e

vocês mesmos se afastam, hoje, de Yahweh? Caso se rebelem contra Yahweh, amanhã ele

19
estará irado contra toda a comunidade de Israel. No entanto, se a terra de sua posse for

tabu, atravessem para a terra de posse de Yahweh, onde está a habitação de Yahweh, e

mantenham terra entre nós. Não se rebelem contra Yahweh nem se rebelem contra nós ao

20
construírem vocês mesmos outro altar que não o altar de Yahweh, o nosso Deus. Quando

Acã, filho de Zerá, quebrou a fé em relação a “devotar”, a ira não veio sobre toda a

comunidade? Ele não foi o único que pereceu por sua transgressão.’”

21
Os rubenitas, os gaditas e a metade do clã de Manassés falaram aos líderes das divisões de

22
Israel: “O Deus dos deuses, Yahweh, o Deus dos deuses, Yahweh, ele sabe, e Israel — eles

23
saberão: se foi em rebelião ou em quebra de fé contra Yahweh, não nos poupem hoje, [se

foi] para construir por nós mesmos um altar para nos afastar de Yahweh. Ou, se foi para

oferecer uma oferta queimada ou uma oferta de cereal sobre ele, ou para sacrificar ofertas de

24
comunhão sobre ele, Yahweh — que ele possa exigir isso de nós. Na verdade, o fizemos por

causa de nossa ansiedade sobre isso. Dissemos: ‘Amanhã, os seus filhos podem dizer aos

25
nossos filhos: “O que vocês e Yahweh, o Deus de Israel, têm em comum? Yahweh fez do

Jordão uma fronteira entre nós e vocês, rubenitas e gaditas. Vocês não têm partilha em

26
Yahweh.’” Os seus filhos impediriam os nossos filhos de reverenciar Yahweh. Então,
dissemos: ‘Vamos agir por nós mesmos pela construção de um altar, não para oferta queimada

27
ou sacrifício, mas será uma testemunha entre nós e vocês e as gerações vindouras.’”

[Os versículos de encerramento relatam como a delegação deu-se por satisfeita e relatou isso

aos demais clãs.]

Assim como inúmeras denominações, a Igreja Anglicana/Episcopal, à

qual pertenço, está em grande confusão porque diferentes partes do

mundo, bem como diferentes grupos nessas mesmas partes do planeta,

defendem visões conflitantes com respeito à real natureza da fé e do

discipulado cristão. Os conflitos se concentram em casamentos

homoafetivos, mas também envolvem outros temas, como o ministério

de mulheres, além de questões subjacentes a esses assuntos, entre elas a

autoridade da Escritura, a autoridade da tradição da igreja, a forma de

nos relacionarmos com a cultura a que pertencemos, e como é possível

esperar que diferentes partes da igreja cheguem a decisões

compartilhadas sobre tais temas. Essas pessoas não parecem falar a

verdade em amor. Admito que alguns de meus colegas podem até rir da

minha afirmação, porque, às vezes, eles ficam chocados ou ofendidos

pelo modo direto e agressivo de me expressar quando estamos

discutindo algum assunto.

Uma característica intrigante da história dos clãs orientais e o altar

por eles construído é a forma direta, agressiva e rude de Josué falar. Na

Bíblia, a polidez não é uma virtude (no domingo passado, em nossa

igreja, a leitura do Evangelho mostrou João Batista chamando as

pessoas de “raça de víboras”). Na verdade, aqui em Josué 22, não é uma

questão de falar, mas de agir. Os clãs ocidentais ouviram que os clãs

orientais tinham edificado um altar e se reúnem para a guerra. Como

assim? Felizmente, Josué mesclou preparativos para a guerra com

diplomacia; embora os clãs do lado ocidental do Jordão iniciassem

manobras para forçar os clãs do lado oriental à correção, Josué enviou o

sumo sacerdote e alguns outros líderes para ler o ato de motim aos clãs
orientais e lhes fazer uma proposta que não poderiam recusar. Uma vez

mais, trata-se do oeste selvagem, e funcionou.

A minha atribulada denominação é a Comunhão Anglicana, uma

comunidade mundial. Partes distintas dessa comunhão sentiram que

deveriam agir de formas que acabaram prejudicando a unidade, pois

consideraram que a fé cristã deveria ser expressada no contexto deles,

ou para proteger a integridade da fé cristã ou da denominação como um

todo. No caso de Israel, também há uma tensão entre o todo e as partes.

Quando os clãs orientais acompanharam os seus irmãos e irmãs na

invasão a Canaã, para que eles também tivessem um lugar no qual

viver, Josué os envia de volta para estabelecerem assentamentos no lado

leste do Jordão, conforme desejassem, com a bênção de Deus e uma

parte da pilhagem coletada por todo o povo. O lar deles, na realidade,

não fica muito distante do santuário central, nem mesmo longe dos clãs

ocidentais. No entanto, do ponto de vista psicológico e mesmo

teológico, pode constituir um longo caminho, num território que,

estritamente, não pertence à terra originariamente prometida. Ainda

assim, Deus estava disposto a atender aos desejos dos clãs, quando

aquela área caiu no colo de Israel, por causa da estupidez de seus

habitantes e porque esses clãs perceberam a excelência daquela terra. A

questão é como eles podem expressar a sua unidade com os demais clãs

e, ao mesmo tempo, sentir-se em casa onde estão.

O povo judeu sempre viveu com essa questão. Em menor ou maior

grau, a maioria dos clãs viveria esse dilema, já que muitos estavam

situados a alguma distância do santuário central. Nos tempos

primordiais do Antigo Testamento, a comunidade judaica, no Egito,

construiu um santuário junto ao Nilo; há correspondência entre eles e a

comunidade de Jerusalém que reflete a tensão entre eles manterem uma

expressão de fé em seu próprio contexto e ter uma fé e observância

comuns com a comunidade de Jerusalém.

Quando os clãs orientais edificaram para si um altar próximo ao

Jordão, Josué entrou em parafuso porque isso pareceu uma declaração


unilateral de independência dos clãs ocidentais. Foi equivalente a

dividir Cristo ou o corpo de Cristo (Paulo fala em termos similares

sobre a divisão numa congregação individual em 1Coríntios 1:10-13;

12:12-14). O propósito de Deus para Israel dependia da unidade deles

como povo. Possuir um santuário central e um lugar centralizado para

os sacrifícios era um símbolo e uma expressão dessa unidade. Portanto,

Josué utiliza termos realmente sérios para descrever a ação dos clãs

orientais. Eles tinham quebrado a fé, se afastado de Yahweh, se

rebelado contra ele, cometido transgressão, colocado em perigo o

relacionamento deles com Deus, bem como a relação de todo o povo. É

um pecado tão ruim quanto aquele cometido em Bete-Peor ou a ação de

Acã.

Você deve pensar que Josué está por cima. Ironicamente (os clãs

orientais protestam), o objetivo do altar que eles construíram era

honrar a importância do altar central como lugar de sacrifício, não para

negá-lo. Eles não iriam fazer sacrifícios no altar que edificaram. De

certa forma, era como uma foto do altar “apropriado”, algo que os

lembrasse do altar central, uma espécie de “testemunha” dele, e uma

prova ainda maior para os clãs ocidentais de que os clãs orientais

mantinham o altar central em mente. Assim, a disputa foi resolvida, e

todos puderam viver felizes para sempre


JOSUÉ 23:1-16
O PERIGO DA FÉ DOS OUTROS POVOS
1
Muito tempo mais tarde, depois de Yahweh ter dado a Israel descanso de todos os seus

2
inimigos em derredor, e quando Josué estava velho, avançado em anos, Josué convocou

3
todo o Israel, seus anciãos, seus líderes, seus juízes e seus oficiais, e lhes disse: “Estou velho,

avançado em anos. Vocês viram tudo o que Yahweh, o seu Deus, fez a todas essas nações por

4
conta de vocês, porque Yahweh, o seu Deus, é aquele que lutou por vocês. Vejam, distribuí

entre vocês essas nações remanescentes como uma posse para os seus clãs, desde o Jordão

5
(sim, todas as nações que eu cortei) até o mar Mediterrâneo, no oeste. Yahweh, o seu Deus,

os empurrará de volta por causa de vocês e os desapropriará diante de vocês para que possam

6
tomar posse da sua terra, como Yahweh lhes declarou. Vocês devem ser muito firmes quanto

ao cuidado de fazer tudo o que está escrito no rolo de ensino de Moisés, sem se desviar dele,

7
para a direita ou para a esquerda, e sem ir entre essas nações (essas que permanecem com

vocês), invocando ou jurando pelo nome dos deuses deles, servindo-lhes ou curvando-se a

8
eles. Em vez disso, devem apegar-se a Yahweh, o seu Deus, como têm feito até este dia.

9
“Yahweh desapropriou grandes e poderosas nações diante de vocês. Nenhum homem

10
permaneceu contra vocês até este dia. Um homem de vocês persegue mil, porque Yahweh,

11
o seu Deus, luta por vocês, como lhes declarou. Devem ter grande cuidado por vocês para

12
dedicarem-se a Yahweh, o seu Deus, porque, se vocês se voltarem e se apegarem ao que

restar dessas nações (essas que permanecem com vocês) e se casarem com elas e tiverem sexo

13
com elas e elas, com vocês, reconheçam claramente que Yahweh, o seu Deus, não

continuará a desapropriar essas nações diante de vocês. Elas se tornarão uma armadilha para

vocês e um laço, um chicote em seus lados e espinhos em seus olhos, até vocês desaparecerem

desse solo bom que Yahweh, o seu Deus, lhes deu.

14
“Então, estou seguindo agora o caminho de toda a terra. Vocês devem reconhecer de toda

a sua alma e de todo o seu ser que nada tem falhado de todas as coisas boas que Yahweh, o seu

15
Deus, lhes declarou. Tudo se cumpriu para vocês. Nenhuma das palavras falhou. Assim

como cada boa palavra que Yahweh, o seu Deus, lhes falou, cumpriu-se para vocês, também

Yahweh fará cada palavra ruim se cumprir para vocês até os eliminar desse solo bom que

16
Yahweh, o seu Deus, lhes deu. Quando vocês violarem a aliança de Yahweh, o seu Deus, que

ele lhes ordenou, servirem a outros deuses e se curvarem diante deles, a ira de Yahweh

queimará contra vocês, e vocês desaparecerão rapidamente dessa boa terra que ele lhes deu.”

Em consequência do Onze de Setembro, o Departamento de Estado dos

Estados Unidos patrocinou visitas de estudiosos muçulmanos de fora


do país a universidades e seminários norte-americanos, como parte dos

esforços para fomentar uma compreensão mútua entre os mundos

“islâmico” e “cristão”. Durante uma das visitas, um curioso efeito sobre

mim foi descobrir que os muçulmanos estrangeiros e eu, como cristão

estrangeiro, tínhamos uma convicção em comum: que, nos Estados

Unidos, a religião e o Estado estão muito mais entrelaçados (onde são

constitucionalmente separados) do que na Europa (mesmo em países

onde eles são ligados, pela Constituição). Essa observação gerou uma

profusão de protestos por parte de membros dos EUA de relevante

discussão. Não muito tempo depois desse evento, participei de um

simpósio sobre bancos muçulmanos em nossa cidade; os bancos

muçulmanos operam de uma forma que procura trabalhar dentro dos

termos do Alcorão, que proíbe o empréstimo a juros; os judeus e

cristãos, usualmente, ignoram a lei equivalente presente no Antigo

Testamento.

Esse envolvimento com pessoas de outras crenças pode, portanto,

ser uma experiência iluminadora. Ele contrasta frontalmente com a

atitude em relação a pessoas de outros credos recomendada por Josué,

de modo que esse livro tem importantes reflexões a nos oferecer. Na

prática, os israelitas aprenderam com pessoas de crenças diferentes

tanto no sentido positivo quanto no negativo. Confrontar a fé de povos

como os cananeus e os babilônios ajudou os israelitas a articular a real

natureza da fé em Yahweh. Isso também os levou ao erro.

Conscientemente, eles, algumas vezes, serviram a outros deuses, não a

Yahweh, mas isso é de fácil constatação. Todavia, de modo mais sutil,

eles passaram a atribuir a Yahweh características de um deus cananeu

que conflitava com a verdadeira natureza de Deus.

Ambas as maneiras de se deixar influenciar pelos cananeus

repousam no histórico da advertência dada por Josué quanto a evitar o

contato com esses povos. As pessoas que escreveram e leram o livro de

Josué não falavam apenas teoricamente ou regidos por um preconceito

étnico e religioso obtuso e infundado. Eram pessoas que conheciam a


forma pela qual Israel se deixou afastar e que tinham pago o preço por

essa atitude (em breve leremos sobre isso no livro de Juízes). Os

cananeus eram um povo mais sofisticado e avançado tecnológica,

política, religiosa e teologicamente que os israelitas. A principal razão

de suas vitórias sobre os cananeus foi o fato de Deus agir de modo

extraordinário, não por suas próprias capacidades. Os israelitas

precisavam considerar quão fácil era ser influenciado por pessoas mais

sofisticadas. Como expressado por Josué, tais pessoas se tornam em

ardil e laço, ambos no sentido de os levarem ao desvio e de lhes

causarem problemas e dor.

Os casamentos mistos com os cananeus seriam uma forma infalível

de atrair confusão. Ainda que um(a) israelita desposasse um cananeu ou

uma cananeia e fosse capaz de manter a sua fidelidade a Yahweh, a vida

de sua família seria afetada pelo compromisso do marido ou da esposa

em servir a outros deuses. Isso mudaria a forma de lidar com os

problemas, a maneira de orar, bem como o modo de compreender os

compromissos religiosos. Decerto, comprometeria o ensino dos filhos

quanto ao que Deus havia feito por Israel e sobre as suas implicações.

Todavia, o livro de Josué deixa claro que, se um cananeu decide se

comprometer com Yahweh, como Raabe, tudo muda; nesse caso, então,

não há problema algum no casamento misto. Josué está falando sobre o

cananeu comum, que se mantém fiel ao seu compromisso original. O

princípio aqui não é étnico, mas religioso. No entanto, ao mesmo tempo,

é mais difícil manter esses dois princípios separados em sociedades

tradicionais do que ocorre no secularizado Ocidente.

O princípio diz respeito a “apegar-se” a Yahweh. Josué usa o verbo

que aparece em Gênesis 2, quanto a um homem apegar-se, unir-se ou

aderir à sua esposa, em relação a Yahweh, para advertir quanto ao

casamento misto. O verbo não faz referência apenas ao ato sexual em si,

mas à forma pela qual o casamento significa um compromisso de toda a

pessoa e a formação de uma família. Isso reorienta toda a vida da pessoa,

assim como apegar-se a outro deus.


Expressando de outra maneira, trata-se de aliança. O Antigo

Testamento não fala diretamente sobre o matrimônio como uma

aliança, embora o retrato que faz do compromisso envolvido num

casamento implique uma compreensão similar. A união matrimonial

envolve estabelecer um compromisso mútuo diante de Deus. Como isso

é possível quando um cônjuge faz esse compromisso diante do

verdadeiro Deus e o outro cônjuge o faz diante de uma divindade cuja

natureza é equivocada, que é muito menos do que a pessoa crê? Outro

ponto sobre a aliança emerge aqui. Idealmente, no casamento ocidental,

a aliança envolve duas pessoas em igualdade de condições, porém não é

da essência da aliança que as duas partes estejam em termos iguais.

Assim, a compreensão ocidental de casamento não fornece uma boa

analogia para a relação entre nós e Deus, pois esta é uma relação

desigual. Deus é a parte superior. Como expressado por Josué, a aliança

é algo que Deus “ordenou”. A essência da aliança não é mutualidade,

mas um compromisso solene do qual não se pode sair sem trair a si

mesmo.

Uma vez mais, Josué carrega nas tintas quanto à extensão do

cumprimento das promessas de Deus, mas os leitores saberiam que ele

apenas antecipa o que Deus providenciará e que, no devido tempo, se

cumprirá. Deus cumpriu as promessas, de modo que os leitores

precisam ser cautelosos sobre o modo pelo qual as advertências divinas

se cumprem, como, de fato, se cumpriram.


JOSUÉ 24:1-33
“VOCÊS NÃO PODEM SERVIR A YAHWEH.” “SIM, PODEMOS!”
1
Josué reuniu todos os clãs de Israel, em Siquém e convocou os anciãos, os líderes, os juízes e

os oficiais de Israel, e eles se apresentaram diante de Deus.

[Josué relembra a história deles, de como Deus tirou Abraão da Mesopotâmia, lidou com os

egípcios, conduziu Israel pelo deserto e expulsou os cananeus.]

14
[Josué disse:] “Assim, agora, reverenciem a Yahweh e o sirvam total e verdadeiramente.

Joguem fora os deuses que os seus ancestrais serviam além do Rio [Eufrates] e no Egito e

15
sirvam a Yahweh. Se for ruim aos seus olhos servir a Yahweh, escolham vocês mesmos, hoje,

a quem servirão, se os deuses que os seus ancestrais serviram além do Rio ou os deuses dos

16
amorreus, em cuja terra vocês estão vivendo. Eu e minha casa serviremos a Yahweh.” O

17
povo replicou: “Longe de nós abandonar Yahweh para servir a outros deuses, porque

Yahweh, o nosso Deus, é aquele que nos trouxe, a nós e a nossos pais, do Egito, de uma casa

de servos, e que fez, diante de nossos olhos, esses grandes sinais, e cuidou de nós durante

18
todo o caminho que percorremos e entre todos os povos no meio dos quais passamos; e

Yahweh expulsou diante de nós todos os povos (os amorreus) que viviam na terra. Nós

também serviremos a Yahweh, porque ele é o nosso Deus.”

19
Mas Josué disse ao povo: “Vocês não podem servir a Yahweh, porque ele é um Deus santo.

20
É um Deus apaixonado. Ele não carregará as suas rebeliões e os seus malfeitos. Se

abandonarem a Yahweh e servirem a deuses estranhos, ele se voltará e trará problemas sobre

21
vocês e lhes dará um fim, após ser bom com vocês.” O povo disse a Josué: “Não, Yahweh é

22
aquele a quem serviremos.” Josué disse ao povo: “Vocês são testemunhas contra vocês

mesmos de que escolheram a Yahweh, para servir-lhe.” Eles disseram: “Somos testemunhas.”

23
Então, agora, joguem fora os deuses estranhos que estão entre vocês e direcionem o seu

24
espírito a Yahweh, o Deus de Israel.” O povo disse a Josué: “Serviremos a Yahweh, o nosso

Deus. À sua voz, ouviremos.”

25
Naquele dia, Josué selou uma aliança para o povo e estabeleceu para eles uma lei oficial em

26
Siquém. Josué escreveu essas coisas em um rolo do ensino de Deus. Ele pegou uma grande

27
pedra e a colocou ali, debaixo do carvalho que estava no santuário de Yahweh. Josué disse a

todo o povo: “Ora, esta pedra será uma testemunha contra nós, porque ouviu todas as

palavras que Yahweh nos falou. Será uma testemunha contra nós para que vocês não ajam

28
enganosamente para com o nosso Deus.” E Josué despediu o povo às suas posses.

[O livro termina com o registro da morte de Josué e de Eleazar, o sacerdote, e também o enterro

dos ossos de Josué em Siquém.]


Com frequência, incentivo os meus alunos a falarem se apreciam o Deus

do Antigo Testamento e, em geral, ouço uma de três respostas. Há os

que não hesitam em revelar que apreciam, expressando comentários

sobre o amor, a misericórdia e a fidelidade de Deus, os quais, de fato, a

história ilustra, mas, ao mesmo tempo, parecem evitar os aspectos mais

severos revelados pelo Antigo Testamento. Então, há aqueles que se

sentem profundamente perturbados pelas citações à ira de Deus e

propensos a contrastar o Deus da ira, do Antigo Testamento, com o

Deus de amor, do Novo Testamento, como se o Deus neotestamentário

não fosse irascível. Por fim, há os alunos que tentam manter unidos os

dois conjuntos de dados. (Há também pessoas que evitam a pergunta,

dizendo que amam a Deus, o que é um ponto muito diferente.)

A terceira posição é, certamente, aquela que Josué aprovaria. Ele

falou deveras sobre a confiabilidade de Deus em cumprir as promessas:

na verdade, ele exagerou quanto à extensão do cumprimento das

promessas a seu tempo. Aqui, a sua fala é dura, em mais de um sentido.

Primeiro, Deus é “santo”. Essa é a única vez, no livro de Josué, que

Deus é assim descrito. Nas outras vezes, o termo “santo” é usado em

relação ao solo onde Josué está pisando e quanto ao espólio encontrado

pelo povo em Jericó, o que ajuda a mostrar como a descrição de algo ou

alguém como santo, no Antigo Testamento, não constitui uma

referência à moralidade ou justiça, mas sobre ser diferente, especial e

extraordinário. O Antigo Testamento reconhece que Deus é justo e

assim por diante; apenas não utiliza a palavra “santo” nessa conexão.

Lembrar ao povo que Deus é santo significa lembrar que não se brinca

com Deus. Quando se sabe que Deus é amoroso, fiel e misericordioso,

como os israelitas sabiam, também é necessário lembrar esse outro fato

sobre Deus. Josué sublinha esse ponto acrescentando que Deus é

apaixonado. A palavra, às vezes, é traduzida por ciumento, o que

constitui um aspecto da paixão, mas a palavra hebraica possui esse

sentido mais amplo. Deus sente as coisas com extrema intensidade. Essa

é outra razão para não se brincar com ele, especialmente se você


pertence ao povo de Deus. Para Deus, é difícil dar de ombros à nossa

infidelidade. Dificilmente, em tais circunstâncias, Deus “carrega” as

nossas rebeliões. Pode parecer uma declaração estranha, porque

carregar as nossas rebeliões e transgressões era parte da autodescrição

de Deus no Sinai, em Êxodo 34. Deus age assim, mas os pais podem

chegar a um limite com seus filhos (adultos), assim como professores

podem atingir um limite com seus alunos (adultos), quando devem

dizer “Basta!”. Com Deus isso também acontece. Josué precisa levar o

povo a reconhecer essas dinâmicas da relação com Deus.

Paradoxalmente, há um sentido no qual é mais seguro não estabelecer

compromisso nenhum com Deus. Ao fazer o compromisso, os riscos são

maiores em caso de descumprimento. Desse modo, Josué fala

duramente sobre as pessoas, assim como sobre Deus. A sua referência a

lançar fora os deuses estranhos constitui uma surpresa. Certamente, já

ouvimos sobre os israelitas possuírem deuses estranhos algum tempo

atrás, não? No próprio contexto de Josué, isso pode levar a uma

implicação interessante. O cenário é Siquém, onde Israel erigiu o altar e

assumiu o compromisso no capítulo 8. O fato estranho é que os

israelitas não lutaram contra o povo de Siquém nem atacaram a cidade.

Então, se ligarmos um ou dois pontos, em um quadro mais amplo, talvez

seja essa a ocasião na qual esse povo firmou o seu compromisso com

Yahweh, toda a comunidade fazendo o que Raabe fez. Isso explicaria a

severidade do argumento de Josué e a necessidade de lançarem fora os

demais deuses. Ainda, estaria de acordo com outras indicações de que a

formação de Israel como povo estabelecido e unido em Canaã não era

somente uma questão de matar ou expulsar os habitantes locais.

Historicamente, essa questão surgirá provavelmente, muito tempo

depois dos dias de Josué. A história estará projetando eventos, assim

como na descrição de que todas as promessas de Deus já foram

cumpridas. Nos séculos posteriores, haverá uma contínua necessidade

de as pessoas que se veem como pertencentes a Israel verdadeiramente

reconhecerem o que esse pertencimento implica. Uma das implicações


de unir-se com Israel dessa forma é que a história israelita passa a ser a

sua própria história. Caso eu me torne um cidadão norte-americano,

descobrirei que estava no lado vitorioso da Guerra Revolucionária em

vez de estar no lado perdedor, que é onde estou no presente momento.

(Reconhecidamente, o povo britânico não pensa muito sobre isso. Eu

mesmo quase não tinha consciência de que, outrora, os Estados Unidos

fizeram parte do Império Britânico e que os perdemos, até vir morar em

solo norte-americano e descobrir quão importante é essa história.)

Das centenas de milhares de pessoas que pertenciam a Israel, nos

dias de Davi ou de Josué, talvez apenas um pequeno número delas fosse

descendente direto de israelitas que viveram no Egito e peregrinaram

no deserto até chegarem à Terra Prometida, assim como um pequeno

contingente de pessoas, nos Estados Unidos, descende de pessoas que

contribuíram para o nascimento da nação. Todavia, um contingente

muito maior de pessoas era formado por aquelas que tinham sido

adotadas em uma nova família. Elas eram como os demais membros da

família que haviam nascido nela. A história das pessoas que saíram do

Egito passou a ser a sua própria história, e elas tiveram de viver com as

implicações disso, tornando-se parte integrante do povo do êxodo e da

aliança.
JUÍZES

JUÍZES 1:1-36
A VIDA REAL É MAIS COMPLICADA
1
Após a morte de Josué, os israelitas perguntaram a Yahweh: “Quem subirá primeiro por nós

2
contra Canaã, para batalhar com eles?” Yahweh disse: “Judá deve subir. Sim. Eu dei a terra à

3
sua mão.” Judá disse a Simeão, seu irmão: “Suba comigo ao território que eu devo possuir

em Canaã e também irei com você ao território que você deve possuir.” Assim, Simeão foi

4
com eles. Judá subiu, e Yahweh entregou os cananeus e os ferezeus na sua mão. Eles os

5
derrubaram em Bezeque, dez mil deles. Em Bezeque, encontraram Adoni-Bezeque,

6
batalharam contra ele e derrubaram os cananeus e os ferezeus. Adoni-Bezeque fugiu, mas

eles o perseguiram e o capturaram. Eles cortaram os seus polegares das mãos e dos pés.

7
Adoni-Bezeque disse: “Setenta reis com polegares das mãos e dos pés cortados costumavam

recolher migalhas debaixo da minha mesa. Assim como eu fiz, Deus me retribuiu.” Eles o

8
levaram a Jerusalém, e ele morreu ali. Os judaítas batalharam contra Jerusalém, a tomaram,

9
a derrubaram ao fio da espada e incendiaram a cidade. Depois disso, os judaítas desceram e

batalharam contra os cananeus que viviam nas montanhas, no Neguebe e nas planícies.

[O capítulo prossegue reprisando vitórias em Hebrom e outros lugares.]

22 23
A casa de José também subiu contra Betel, Yahweh estando com eles. A casa de José

24
enviou espias para investigar Betel (anteriormente o nome da cidade era Luz). Os espias

viram um homem saindo da cidade e lhe disseram: “Você nos mostrará o caminho até a

25
cidade e manteremos o compromisso com você.” Ele lhes mostrou o caminho e eles

26
atacaram a cidade ao fio da espada, mas o homem e toda a sua família eles deixaram ir. O

homem foi para a terra dos hititas e construiu uma cidade e a chamou de Luz (que é o seu

27
nome até este dia). Mas Manassés não desapropriou Bete-Seã e suas dependências,

Taanaque e suas dependências, os habitantes de Dor e suas dependências, os habitantes de

Ibleã e suas dependências, ou os habitantes de Megido e suas dependências. Os cananeus

28
estavam determinados a permanecer nessa terra. Quando Israel se tornou forte, eles

colocaram os cananeus sob trabalho conscrito. Eles não os desapropriaram por completo.

29
Nem Efraim desapropriou os cananeus que viviam em Gezer. Os cananeus viveram no

meio deles em Gezer.

[O capítulo ainda descreve como Zebulom, Aser e Naftali também não expulsaram os

habitantes em suas regiões, e como os amorreus forçaram Dã para fora da área desse clã e

mantiveram a posse de parte do território.]


Esta semana, Barack Obama tomou aquela que pode ser a mais fatídica

das decisões de sua jovem presidência, ao enviar um contingente

adicional de trinta mil soldados para o Afeganistão. Ao ler este

comentário, provavelmente, você já saberá se essa decisão produziu os

resultados desejados. Por não ser o presidente, pude me dar ao luxo de

não ter de chegar a nenhuma conclusão sobre esse ser o movimento

certo, enquanto muitos especialistas podem se dar ao requinte de

pontificar sobre como pode ter sido o movimento errado. Em 1947,

Winston Churchill descreveu a democracia como “a pior forma de

governo, com exceção das demais formas que têm sido tentadas”, e a

ação de Obama pode ser a menos ruim. De algumas formas, isso colide

com os ideais que as pessoas lhe atribuíram, ao votarem em sua

campanha (e esse ato fica ligado ao seu nome), mas, quando é você que

está sentado na Casa Branca, é preciso tanto ter ideais quanto ser

pragmático. Nessa mesma semana, Benjamin Netanyahu, o primeiro-

ministro israelense, igualmente surpreendeu as pessoas ao declarar-se a

favor do acordo de estabelecimento de dois estados no Oriente Médio e

do congelamento de assentamentos. Isso também pode ser entendido

como a descoberta, pelo líder, de que o cargo impõe a necessidade de ser

pragmático. Na realidade, o noticiário de hoje descreveu o presidente

Obama “obtendo o que era possível” em algumas de suas prioridades

principais de governo (o sistema de saúde e a mudança climática), “pelo

menos por enquanto”, porque ele ainda não desistiu de seus ideais.

Com Deus também isso ocorre. A narrativa de Josué pode dar a

impressão de que os israelitas ocuparam Canaã por meio de uma

guerra-relâmpago que os colocou no controle de todo o território e

expulsou todos os cananeus de uma vez, mas temos visto nas

entrelinhas do livro de Josué inúmeros reconhecimentos de que a

realidade se revelou bem mais complexa. Assim, o início do livro de

Juízes (que parece mais uma nota de rodapé para Josué) escancara esse

fato, repetindo alguns parágrafos do livro precedente.


Entre outras coisas, Juízes 1 indica que a ocupação de Canaã pelos

israelitas foi, na verdade, muito fragmentada. Judá e Simeão ganharam

esse pedaço de terra; os clãs de José (“a casa de José”), outra porção.

Isso revela um processo deveras humano. Deus realmente queria que os

clãs cortassem os polegares de Adoni-Bezeque? Bem, talvez o próprio

Adoni-Bezeque tenha considerado esse ato cruel muito melhor do que

ser morto e reconheceu a justiça poética inserida nessa ação

(possivelmente a questão quanto a esse ato ser tomada por ele e, depois

contra ele, para impedi-los de entrar em guerra novamente). Os

israelitas visavam a algum lucro ao transformar os cananeus em mão-

de-obra conscrita ou recrutada (isso não implica “trabalho forçado”),

enquanto a Torá instruiu sobre devotá-los ou, pelo menos, expulsá-los

da terra? Repetindo, é possível que os cananeus imaginassem ser

afortunados pelo fato de os israelitas não interpretarem o livro de

Deuteronômio tão literalmente (e talvez a leitura deles fosse correta).

O capítulo indica que o processo pelo qual Israel obteve o controle de

Canaã era uma via de mão dupla. Judá capturou Jerusalém e matou

todos os habitantes. Contudo, mais tarde, descobrimos que a cidade

ainda é ocupada pelos poucos jebuseus que, provavelmente,

esconderam-se na ocasião anterior e retornaram em segurança às suas

casas quando Judá deixou a cidade. Somente nos dias de Davi é que a

cidade se tornou israelita. Assim, o capítulo indica que o processo

refletia aspectos práticos. Houve coisas que os israelitas não lograram

realizar por causa da maior sofisticação tecnológica dos cananeus. O clã

de Dã jamais conseguiu ocupar aquela área.

Deus estava envolvido em um processo humano não distinto

daquele por meio do qual qualquer povo assume o controle sobre o

território de outro povo; na realidade, Amós 9 comenta sobre a forma

pela qual Deus esteve envolvido na conquista da terra em Canaã pelos

filisteus (!), assim como esteve envolvido na conquista da terra pelos

israelitas. Há um lado problemático nessa verdade. Podemos preferir

pensar no envolvimento de Deus neste mundo de um modo totalmente


amoroso e pacífico, uma vez que o objetivo divino supremo é

presumidamente estabelecer a paz. Talvez o problema é que, se Deus

insistisse nisso, o resultado seria não estar envolvido no mundo ou

somente por meios sobrenaturais. Deus suja as próprias mãos por estar

envolvido na bagunça do mundo.

Ontem mesmo, uma amiga estava descrevendo a confusa divisão

que ocorrera em sua igreja. Os diáconos tinham destituído o pastor; ele,

então, iniciou uma nova congregação na mesma rua, e metade dos

membros e líderes da antiga congregação decidiu se unir a ele. Minha

amiga nutria suspeitas de que os diáconos agiram errado com o pastor,

embora a ação subsequente do pastor também levantasse algumas

questões. Ela estava em dúvida se deveria sair ou prosseguir em seu

ministério com os jovens da igreja atual. Perguntei-lhe se achava que

Deus também havia deixado a sua igreja. O meu palpite é que Deus não

faz isso com frequência. Se Deus estivesse envolvido com a igreja

apenas quando a igreja agisse certo e da maneira correta, o

envolvimento divino jamais ocorreria.


JUÍZES 2:1—3:4
O PODER DO ESQUECIMENTO
1
O ajudante de Yahweh subiu de Gilgal a Pranteadores e disse: “Eu tirei vocês do Egito e os

trouxe à terra que prometi aos seus ancestrais. Eu disse: ‘Jamais anularei a minha aliança

2
com vocês. Vocês mesmos não selarão aliança com os habitantes desta terra. Vocês

derrubarão os altares deles.’ Não obedeceram à minha voz: o que é que vocês fizeram?

3
Assim, eu também disse: ‘Não os desapropriarei de diante de vocês. Eles serão adversários

4
de vocês. Os deuses deles serão uma armadilha para vocês.’” Quando o ajudante de Yahweh

5
falou estas palavras a todos os israelitas, o povo levantou a sua voz e pranteou. Por isso, eles

chamaram aquele lugar Pranteadores, mas sacrificaram ali para Yahweh.

6
Quando Josué despediu o povo, os israelitas foram cada um para sua própria parte tomar

7
posse da terra. O povo serviu a Yahweh todos os dias de Josué e todos os dias dos anciãos

que viveram depois de Josué, que tinham visto toda a grande obra que Yahweh fez por Israel.

8 9
Josué, filho de Num e servo de Yahweh, morreu como um homem de 110 anos. Eles o

enterraram em seu próprio território, em Timnate-Heres, nas montanhas de Efraim, ao norte

10
do monte Gaás. Toda aquela geração também se reuniu ao seus ancestrais, e outra geração

11
veio depois deles que não conhecia Yahweh ou a obra que ele tinha feito por Israel. Os

12
israelitas fizeram o que era inaceitável aos olhos de Yahweh. Eles serviram aos Mestres e

abandonaram Yahweh, o Deus de seus ancestrais, que os tirou do Egito. Seguiram a outros

deuses dentre os deuses dos povos ao redor deles e se curvaram a eles, levantando a ira de

13 14
Yahweh. Quando eles abandonaram Yahweh e seguiram o Mestre e a Astarote, a ira de

Yahweh se acendeu contra Israel, e ele os entregou nas mãos de pessoas que os saquearam.

Ele os rendeu às mãos dos seus inimigos em derredor. Eles não conseguiram mais resistir aos

15
seus inimigos. Para onde quer que fossem, a mão de Yahweh estava contra eles para lhes

trazer problemas, como Yahweh tinha dito e como Yahweh lhes tinha jurado. Foi muito difícil

16
para eles. Mas Yahweh levantou líderes, e eles os libertaram das mãos de seus saqueadores.

[Juízes 2:17—3:4 traz mais informações sobre como isso se tornou um padrão na vida de Israel e

a ligação com o fato de Yahweh não expulsar os cananeus, que serviram para testar o

compromisso de Israel a Yahweh.]

Ontem, à noite, fui até Los Angeles para assistir à primeira performance

da versão musical de A cor púrpura, uma fabulosa mescla de música,

dança e drama, dando cores vivas à dura realidade experimentada por

inúmeras mulheres (não apenas na comunidade afro-americana), mas

culminando com uma nota de encorajamento e esperança. Próximo ao


fim, como no romance, Celi ora: “Querido Deus, queridas estrelas,

querido céu, queridas pessoas, querido tudo, querido Deus.” Essas

palavras me fizeram recordar alguns comentários de Ross Douthat, no

New York Times (20 de dezembro de 2009), ao descrever o filme Avatar,

grande sucesso na época, do diretor James Cameron, como “a longa

apologia de Cameron ao panteísmo — uma fé que iguala Deus à

natureza e conclama a humanidade a uma comunhão religiosa com o

mundo natural.” O artigo descreve essa fé como religião da escolha de

Hollywood, incorporada em muitos outros filmes porque é uma fé que

os norte-americanos (tanto cristãos quanto de outras crenças) amam.

Isso ajuda a trazer Deus mais próximo da experiência humana e evitar a

interferência divina de maneiras que podemos considerar indesejadas.

Há sobreposições entre a religião dos cananeus e essa fé e, portanto,

elas também existem entre a atração da religião cananeia, exercida

sobre os israelitas, e a atração que a fé na natureza exerce sobre as

pessoas inseridas no contexto da cultura ocidental. O Antigo

Testamento, com frequência, faz referência às divindades cananeias

chamando-as de Baal, porém Baal é uma palavra comum para Senhor

ou Mestre, de modo que as referencio como Mestres. O texto de Juízes

também cita Astarote; existem inúmeras formas de grafar essa palavra, e

esta pode ser uma forma israelita injuriosa, pois mescla as consoantes

do nome, similarmente ao modo pelo qual os cananeus e outros povos

do Oriente Médio usariam as vogais de uma palavra hebraica para

“vergonha”. Pode ser mera coincidência, mas o efeito é que a simples

menção dessa divindade sugere algo vergonhoso. Astarote, Astarte ou

Ishtar (variações do mesmo nome) era uma deusa particular, mas,

similarmente ao termo para Mestre, o nome passou a ser usado como

um termo genérico, nesse caso em referência a uma deusa. Assim, os

Mestres e Astarote denotam, em geral, tanto deuses quanto deusas dos

povos cananeus.

Os deuses e deusas dos cananeus estavam envolvidos em eventos

políticos e guerras, assim como agiam no mundo natural e no cosmos.


Eles estavam por trás dos ciclos do dia e da noite, da chuva e do sol, do

inverno e do verão, da semeadura e da colheita, bem como da vida e da

morte. É possível que isso tenha motivado a atração dos israelitas. Na

experiência de Israel, conforme reportado por Êxodo e Josué, Yahweh

foca mais os eventos políticos e as guerras, objetivando retirar o povo

do Egito e conduzi-lo até Canaã, em detrimento do seu envolvimento

no mundo natural e no cosmos. Agora que os israelitas estão em Canaã,

eles necessitam de uma divindade que saiba tanto fazer prosperar as

colheitas quanto operar para a ocorrência de coisas no campo político.

Além disso, à medida que as gerações passam, eles desejam ser capazes

de manter contato com familiares falecidos e poder aprender com eles.

Os cananeus sabiam como fazer suas colheitas prosperar, da mesma

forma que sabiam como manter contato com familiares mortos; ou,

como eles diziam, os seus deuses detinham esse conhecimento. Pode-se

ver o motivo de eles serem tão atraentes aos israelitas. A natureza

vívida e disfuncional da vida familiar dos deuses e deusas dos cananeus,

com suas lutas, sexo e bebedeiras, a procriação, bem como a morte e o

retorno à vida, pode também ter intrigado os israelitas, ainda que

professassem se sentir chocados com essa realidade.

O envolvimento com os deuses cananeus caracteriza a vida de Israel

por muitos séculos, desde quando os israelitas passaram a existir em

Canaã até o período após o exílio. O intervalo de tempo abordado pelo

livro de Juízes é retratado como uma série de histórias envolvendo

apostasia, castigo divino, misericórdia divina e restauração. Com

variações, a sequência é repetitiva. Parte de sua lógica é sugerida pelas

expressões “o que era inaceitável” e “problema”, que representam a

mesma palavra hebraica. O povo faz o que é mau; portanto, Deus faz

coisas más acontecerem ao povo. Juízes retratará esses eventos como

envolvendo “Israel”, embora, agora, Israel esteja espalhado pelo

território de Canaã. Mais literalmente, esses eventos envolvem clãs

individuais ou combinações de clãs em diferentes regiões da terra. A


misericórdia de Deus é expressa no surgimento de um líder para

libertar o povo.

Caso você se sinta um pouco confuso pela ordem dos eventos ao

término de Josué e no início de Juízes, este é um bom sinal, pois indica

que você está prestando atenção. O fim do livro de Josué relata a morte

desse grande líder, e Juízes principia-se com uma referência à sua morte,

mas alguns dos eventos relatados em Juízes 1 já foram descritos no livro

de Josué como ocorridos durante a vida desse líder. Ainda, no início de

Juízes 2, ele é citado vivo novamente, e sua morte, descrita mais

adiante. Esse tipo de irregularidade é suficientemente comum na Bíblia;

trata-se de uma indicação de que os escritores bíblicos eram menos

precisos do que eu sou quando estou dando notas aos meus alunos e que

Deus levou isso em conta ao incluir o material em seu livro. Se você

quiser organizar as coisas em sua mente, imagine que o livro de Josué

antecipa alguns fatos que ocorreram após os dias de Josué porque

representavam o cumprimento do projeto que ele iniciou. As palavras

inaugurais de Juízes indicam que o livro versa basicamente sobre o que

ocorreu “após a morte de Josué”, e a missão do ajudante de Yahweh

resume um aspecto-chave de como as coisas se desenrolaram ao longo

das décadas e séculos subsequentes. Entretanto, o capítulo 2 inclui uma

breve recapitulação para iniciar os detalhes da história principal depois

da morte de Josué e, posteriormente, fornece um resumo mais

detalhado de como as coisas passaram a ser. O restante do livro

apresentará aquela série de ilustrações sobre o padrão estabelecido ao

longo da história de Israel, de Josué até Saul.


JUÍZES 3:5-31
SALVADORES IMPROVÁVEIS
5
Quando os israelitas se estabeleceram entre os cananeus, os hititas, os amorreus, os

6
ferezeus, os heveus e os jebuseus, eles tomaram as filhas deles como esposas para si mesmos,

7
deram as suas filhas aos filhos deles e serviram aos seus deuses. Assim, os israelitas fizeram o

que era inaceitável aos olhos de Yahweh. Eles tiraram Yahweh, o seu Deus, da mente e

8
serviram aos Mestres e às Aserás. A ira de Yahweh se acendeu contra Israel, e ele os

entregou nas mãos de Cuchã-Risataim, o rei de Arã Naaraim. Os israelitas serviram a Cuchã-

9
Risataim por oito anos. Mas os israelitas clamaram a Yahweh, e Yahweh levantou Otoniel, o

quenezeu, que era o irmão mais novo de Calebe, como um libertador para os israelitas, para

10
que ele os libertasse. O espírito de Yahweh veio sobre Otoniel, e ele liderou Israel. Ele saiu

à batalha, e Yahweh entregou Cuchã-Risataim, rei de Arã, em suas mãos. Sua mão foi forte

11
sobre Cuchã-Risataim, e a terra ficou quieta durante quarenta anos.

12
Quando Otoniel, o quenezeu, morreu, os israelitas, novamente, fizeram o que era

inaceitável aos olhos de Yahweh. Yahweh deu a Eglom, rei de Moabe, poder sobre Israel

13
porque eles fizeram o que era inaceitável aos olhos de Yahweh. Ele conseguiu que os

amonitas e os amalequitas se unissem a ele e, então, veio e derrubou Israel, tomando posse da

14
Cidade das Palmeiras. Os israelitas serviram a Eglom, o rei de Moabe, durante dezoito

15
anos. Os israelitas clamaram a Yahweh, e Yahweh levantou um libertador para eles, Eúde,

filho de Gera, um homem restrito no uso de sua mão direita, um benjamita. Os israelitas

16
enviaram tributo por sua mão a Eglom, o rei de Moabe. Eúde fez para si uma espada de

dois gumes, de 45 centímetros de comprimento. Ele a prendeu sob o seu casaco, em seu lado

17
direito, e apresentou o tributo a Eglom, o rei de Moabe. Ora, Eglom era um homem muito

18
gordo. Quando [Eúde] tinha terminado de apresentar o tributo, ele despediu as pessoas

19
que tinham carregado o tributo, mas ele mesmo retornou das pedras esculpidas perto de

Gilgal e disse: “Tenho uma mensagem secreta para ti, Majestade.” O rei disse: “Silêncio”, e

20
todas as pessoas que o estavam assistindo saíram de sua presença. Quando Eúde veio

diante dele, ele estava sentado no fresco aposento superior que tinha, sozinho. Eúde disse:

21
“Tenho uma palavra de Deus para ti”, e [Eglom] levantou-se de seu assento. Eúde

estendeu a sua mão esquerda, pegou a espada de seu lado direito e a mergulhou direto nele.

[O restante do capítulo descreve como Eúde escapa e lidera os efraimitas na reversão do

domínio de Moabe sobre Efraim, relatando brevemente como Sangar, filho de Anate, matou

seiscentos filisteus e, portanto, também “libertou Israel”.]

Meu pai trabalhava como assistente de máquinas em uma gráfica, e

minha mãe era costureira. Fui o primeiro membro de minha família


estendida a permanecer na escola após os catorze anos. Tenho mais de

trinta primos; apenas um deles foi para a faculdade. Não sou o tipo de

pessoa que termina como professor de Antigo Testamento em um dos

maiores seminários do mundo. Assim, sei por experiência que Deus não

é limitado pela formação social das pessoas, pelo sotaque ou histórico

familiar delas.

As narrativas sobre os libertadores e líderes de Israel refletem esse

fato. Após esboçar o princípio ou padrão que percorre essas histórias,

Juízes, agora, inicia uma série de exemplos concretos que expressam

esse padrão.

Primeiro, Deus não está restrito à lei do mais velho. Mesmo no

mundo moderno, o filho mais velho ascende ao trono do falecido

monarca. No relato em questão, o irmão mais velho de Otoniel era

Calebe, a quem os capítulos de Josué 14 e 15 concederam grande

importância. Contudo, isso não impediu Deus de usar o irmão mais

novo de Calebe ou foi capaz de intimidá-lo como agente de Deus, assim

como não provocou nenhuma hesitação por parte dos israelitas no

reconhecimento da liderança de Otoniel. Sua emergência é a resposta

divina ao clamor do povo, ainda que os israelitas estejam pagando o

preço pela transgressão que cometeram. Como resultado da

desobediência, eles estão sob o domínio de algum povo do noroeste de

Israel, na área hoje ocupada pela Síria. A natureza extraordinária da

proeza de Otoniel constitui uma indicação de que o espírito poderoso e

dinâmico de Deus está em ação. (Aqui, Aserás, provavelmente, é apenas

uma forma alternativa para Astarote, em 2:13, em referência a deusas,

em geral, tal como Mestres refere-se a deuses.)

Segundo, Deus não é limitado pela capacitação. Havia certas formas

de serviço nas quais Deus não permitia a participação de alguém com

alguma deficiência; as regras em Levítico exigem que um sacerdote seja

uma pessoa “completa”. Embora houvesse certo simbolismo sobre

integridade nisso, isso não significava que Deus não estava preparado

para utilizar alguém que fosse deficiente. Também havia certo


simbolismo nisso. Eúde não podia usar a mão direita. Portanto, o fato

de ele ser um benjamita constitui uma ironia, porque Benjamim

significa “filho da mão direita”. Ele nem mesmo poderia viver de acordo

com o nome de seu próprio clã. Ainda que seja possível que a descrição

signifique simplesmente que ele fosse canhoto, a forma da expressão

sugere uma inaptidão. Todavia, a sua incapacidade de usar a mão direita

é justamente o que torna Eúde o meio divino de libertar Israel. Mais do

que qualquer outro capítulo de Juízes (ou, talvez, qualquer outro

capítulo bíblico), a história de Eúde contraria as nossas presunções

sobre como um livro santo deveria ser; a narrativa torna-se muito mais

escatológica nos versículos que sucedem os que traduzimos acima.

Pode-se imaginar como os adolescentes israelitas adoravam ouvi-la.

Deus usa um homem incapacitado e uma história macabra sobre esse

mesmo homem.

Terceiro, Deus não é limitado pelo etnocentrismo; Deus faz de

Sangar, filho de Anate, um libertador de Israel. O nome Sangar não é

israelita: Anate é o nome de uma divindade dos cananeus, de modo que

não é tão despropositado inferir que Sangar era um cananeu. Os

desafortunados cananeus estavam sendo pressionados a oeste pelos

filisteus, e Sangar, evidentemente, obteve uma vitória sobre alguns

deles. Ora, os filisteus se tornaram rivais e opressores de Israel, e, assim,

qualquer vitória sobre os filisteus poderia ser vista como um meio

divino de libertação para Israel. Portanto, supostamente sem se dar

conta disso, Sangar tornou-se um agente de Deus a esse respeito.

Embora Yahweh proibisse os israelitas de algumas formas de

envolvimento com os cananeus (especialmente de casamentos mistos

entre eles) pelo potencial risco ao relacionamento deles com Yahweh,

isso não impedia Yahweh de usar os cananeus em benefício de Israel.

Cada um desses três incidentes envolve Israel, assim como será o

caso com relação aos demais incidentes que Juízes descreverá, porém os

relatos individuais também indicam que isso não significa o

envolvimento direto de todo o povo de Israel. Cada um dos povos


opressores faz fronteira ou invade Israel em um lado particular, e, assim

sendo, cada um dos atos de libertação envolve apenas alguns clãs, não

todos os doze. Falar desses incidentes como envolvendo todo o Israel

constitui um lembrete de que os clãs pertencem uns aos outros. Quando

um clã sofre, todos sofrem; quando um peca, todo o povo é afetado;

quando Deus liberta um dos clãs, isso é importante para os demais clãs.

Igualmente, as narrativas esquematizam a cronologia da história. As

afirmações recorrentes de que o povo logrou paz ou foi oprimido

“durante quarenta anos” (nunca trinta ou cinquenta) é um sinal

característico; significa que a paz ou a opressão perdurou por um longo

tempo, por eras, por toda uma geração, em lugar de apenas um ano ou

dois. Essas convenções narrativas também explicam como o acréscimo

de todos os números no livro produz uma figura total que não se

encaixa entre Josué e Saul, se assumirmos que esses números seguem

uns aos outros segundo uma ordem estritamente cronológica. Os

períodos de opressão podem ser sobrepostos caso tenham afetado

diretamente diferentes regiões do território.

A nossa inclinação moderna é explicar os eventos históricos

envolvendo nações e a igreja em termos de causa e efeito empíricos e

naturais. Vemos o efeito dos fatores econômicos e sociais na maneira

pela qual a história se desenrola. Instintivamente, não consideramos

Deus na abordagem do quadro. Da mesma forma, o Antigo Testamento,

de tempos em tempos, mostra ter ciência de que a história funciona em

termos de causa e efeito, refletindo as ambições e necessidades das

nações e dos indivíduos, mas não restringe a si mesmo a esse nível de

explicação. Embora não ofereça uma explicação teológica ou lógica de

cada evento, ele o faz com respeito a alguns. Portanto, um livro como

Juízes nos convida a olhar para a história dessa outra perspectiva. Nem

sempre seremos capazes de ver um significado religioso, teológico ou

ético pelo que ocorre nos eventos, mas, algumas vezes, isso é possível.
JUÍZES 4:1-24
TRÊS MULHERES FORTES E TRÊS HOMENS FRACOS (I)
1
Os israelitas continuaram a fazer o que era inaceitável aos olhos de Yahweh, depois da

2
morte de Eúde. Yahweh os entregou nas mãos de Jabim, o rei cananeu que reinava em

3
Hazor. O comandante de seu exército era Sísera; ele vivia em Harosete-das-nações. Os

israelitas clamaram a Yahweh porque [Sísera] tinha novecentas carruagens de ferro e tinha

4
subjugado Israel pela força por vinte anos. Ora, Abelha, uma mulher que era profetisa, a

5
esposa de Tochas, estava liderando Israel naquela época. Ela se sentava sob a palmeira da

Abelha, entre Ramá e Betel, nas montanhas de Efraim, e os israelitas subiam a ela para uma

decisão.

6
Ela enviou e convocou Relâmpago, filho de Abinoão, de Quedes, em Naftali, e lhe disse:

“Yahweh, o Deus de Israel, definitivamente ordenou: ‘Vá, rumo ao monte Tabor e leve com

7
você dez mil homens de Naftali e Zebulom. Eu levarei Sísera, o comandante do exército de

Jabim, até você, ao ribeiro Quisom, com suas carruagens e suas forças, e os entregarei em

8
suas mãos.’” Relâmpago disse a ela: “Se você for comigo, eu irei, mas, se não for comigo, não

9
irei.” Ela disse: “Eu certamente irei com você, apenas a glória não será sua na rota em que

está indo, porque nas mãos de uma mulher é que Deus entregará Sísera.” Assim, Abelha

10
levantou-se e foi com Relâmpago a Quedes, e Relâmpago enviou convocações a Zebulom e

Naftali, em Quedes. Dez mil homens subiram atrás dele, e Abelha foi com ele.

11
Ora, Héber, o queneu, tinha se separado de Caim, dos descendentes de Hobabe, sogro de

12
Moisés, e armou a sua tenda junto ao carvalho de Zaanim, próximo a Quedes. Sísera foi

13
informado: “Relâmpago, filho de Abinoão, subiu ao monte Tabor”, e Sísera enviou uma

convocação a todas as suas carruagens (novecentas carruagens de ferro) e a toda a

14
companhia que estava com ele, de Harosete-das-nações ao ribeiro de Quisom. Abelha disse

a Relâmpago: “Vá, porque este é o dia que Yahweh entregou Sísera em suas mãos. Yahweh,

definitivamente, saiu à sua frente.” Então, Relâmpago desceu do monte Tabor, com os dez

15
mil homens seguindo-o, e Yahweh lançou Sísera, as suas carruagens e todo o seu exército

em uma confusão ao fio da espada diante de Relâmpago. Sísera desceu de sua carruagem e

16
fugiu a pé, enquanto Relâmpago perseguiu as carruagens e o exército até Harosete-das-

nações. Todo o exército de Sísera caiu à espada. Não sobrou ninguém.

[O capítulo, então, relata como Sísera se refugia com Héber, mas Jael, esposa de Héber, o

mata.]

Os homens podem ter sentimentos mistos com respeito a mulheres

fortes, embora, para mim, mulheres duronas não sejam tão


preocupantes quanto homens durões. Antes de minha esposa sofrer com

sua enfermidade, ela era perfeitamente capaz de se posicionar contra

mim; em minha mente, ainda posso ouvi-la dizer: “John!”, com um tom

de reprimenda. Gostaria que ela ainda fosse capaz de me repreender.

Ela, em geral, estava certa ou, pelo menos, do lado do bom senso. Certa

ocasião, no seminário em que eu era diretor, uma de minhas colegas veio

me ver, durante uma crise financeira, determinada a me fazer encarar a

necessidade de tomar uma decisão difícil: explicar para certa pessoa que

o cargo dela teria que deixar de existir, portanto, teria de despedi-la. No

íntimo, eu sabia que essa decisão era necessária, porém não conseguia

tomá-la. Para uma mulher, a desvantagem de ser firme e corajosa é

assustar e afastar os homens; conheço uma ou duas mulheres solteiras

cuja tenacidade teve esse efeito sobre maridos em potencial.

Os costumes que envolvem o casamento, em uma sociedade

tradicional, tornam ainda mais difícil para uma mulher forte

permanecer solteira; o seu pai ainda deve lhe arrumar um marido. Pode

haver certa dose de ironia no modo pelo qual Juízes alude ao

casamento, no caso de Abelha. Em hebraico, o seu nome é Deborah, mas

esse é o termo hebraico para uma abelha e, de fato, havia um ferrão em

suas palavras. A ironia reside na descrição do texto sobre ela ser “a

esposa de Tochas”. Tradicionalmente, as traduções apresentam essa

palavra, Lappidoth, como o nome de seu marido, mas trata-se de um

nome estranho porque parece uma palavra feminina, sugerindo que

Abelha era uma “mulher inflamada”, o que, na verdade, era, em vez de

seu marido. É possível que não houvesse muito espaço para outra

pessoa poderosa naquele casamento. Pode ser que Abelha precisasse de

alguém para cuidar da casa enquanto ela estivesse desempenhando o

seu papel de profetisa e líder. Ela é a primeira profeta(isa) desde a

época de Miriã e Moisés.

Apesar de o ministério institucional no Antigo Testamento

(notadamente envolvendo o sacerdócio) pertencer aos homens, quando

Deus deseja quebrar a tradição institucional regular, a profecia é uma


ferramenta utilizada para isso, e, às vezes, as pessoas por meio das quais

Deus fala são mulheres. Assim, Abelha pode ser o quarto exemplo de

um salvador improvável (seguindo os três do capítulo 3), de Deus

operando contra as expectativas e categorias humanas. Talvez a ordem

aqui sugira que isso ocorreu por ela ser uma profetisa e capaz de liderar,

bem como ser uma pessoa a quem os israelitas procuravam para tomar

decisões (a palavra para decisão está relacionada à palavra para liderar).

É como se as pessoas viessem de longas distâncias, porque o seu

“escritório” situava-se no meio do território, enquanto Hazor localiza-

se no extremo norte, e a batalha ocorre entre esses dois locais, na

planície entre a principal cadeia de montanhas e as montanhas de

Gileade.

Jael também era uma mulher forte, um pouco na linha de Eúde.

Igualmente, o seu marido pouco é citado na história, e esse fato talvez

contribua para a morte de Sísera. O comandante tinha motivos para

pensar que estaria em segurança no acampamento de Héber porque

havia uma aliança entre Héber e o chefe de Sísera, porém Héber e Jael

eram parentes de Moisés. Na ausência de Héber, Jael não se sentiu

obrigada a priorizar a política em detrimento da família e ela sabe como

usar a sua feminilidade sobre Sísera. Ela recebe o exaurido guerreiro em

sua tenda, o alimenta, o cobre para dormir e, então, crava uma estaca de

tenda em seu crânio. O resultado é que a glória pela vitória de Israel

recai sobre uma mulher, não sobre Relâmpago. Novamente, há certa

ironia quanto ao nome Barak. Embora o significado desse nome seja

Relâmpago, Barak não faz jus ao próprio nome. Ele perde a glória em

dois sentidos, já que ela, primeiramente, recai sobre Abelha e, depois,

sobre Jael.

A terceira mulher forte é a mãe de Sísera, sobre quem ouviremos

falar em Juízes 5.

Caso esteja lendo Josué e Juízes de forma sequencial, você ficará

surpreso ao descobrir Jabim, o rei de Hazor, aparecendo aqui, uma vez

que Josué já havia matado esse rei, aniquilado os habitantes e queimado


a cidade (veja Josué 11). Há duas formas de relacionar os dois capítulos.

Na leitura de Josué, observamos que o relato da história nessa passagem

é compactado e que ela antecipa a conclusão do controle israelita sobre

Canaã, o que ocorreu apenas após os dias de Josué. Pode-se, então, ver

as narrativas em Juízes como parte da continuação desse processo.

Assim, o Israel de Josué, de fato, conquistou Hazor e matou Jabim, o

seu rei, mas o fez somente depois da morte de Josué. Caso isso pareça

implausível, é possível relacionar Juízes 4 com outro aspecto da história

de Josué, que também pode ser lida como implicando que havia

inúmeras cidades dos cananeus que Josué atacou e tomou, mas que os

israelitas, na época, não tentaram assumir o controle. Assim, habitantes

de cidades como Hazor, que haviam fugido em vez de esperar a chegada

de Josué para aniquilá-los, podem ter retornado subsequentemente para

reocupar a cidade. Além disso, não seria surpresa caso um rei posterior

tivesse o mesmo nome de um rei precedente.

Na introdução e no comentário sobre Josué 10:22-27, consideramos

que os leitores ocidentais mais impressionáveis se sentem perturbados

pela violência de pessoas como Abelha e Jael, mas, aparentemente, Deus

não sente o mesmo. Na passagem em questão, ambos fazem parte da

forma pela qual “Deus subjugou o rei Jabim, de Canaã, diante dos

israelitas” (Juízes 4:23). O Novo Testamento inclui esse evento entre as

conquistas do povo que agiu pela fé ao subjugar reinados, tornando-se

poderosos em batalha e derrotando exércitos estrangeiros, embora, por

meio de uma ironia reversa, o nome de Relâmpago [Barak] seja citado

(Hebreus 11:32-34).
JUÍZES 5:1-31A
TRÊS MULHERES FORTES E TRÊS HOMENS FRACOS (II)
1
Abelha e Relâmpago, o filho de Abinoão, cantaram naquele dia:

2
“Nos líderes que assumem a liderança em Israel, no povo que se oferece livremente: louvem

Yahweh!

3
Ouçam, reis! Deem ouvidos, soberanos!

Eu mesmo cantarei a Yahweh, farei música para

o Deus de Israel.

4
Yahweh, quando saíste de Seir, quando marchaste

desde a região de Edom,

a terra estremeceu, sim, os céus se derramaram,

5
sim, as nuvens derramaram água, as montanhas tremeram,

diante de Yahweh, aquele do Sinai, diante de Yahweh, o Deus de Israel.”

[Os versículos 6-18 descrevem a crise e a pressão nas quais Israel estava vivendo até que

Abelha como “uma mãe em Israel” motivou os israelitas a agir. Os versículos celebram a forma

em que os diferentes clãs se uniram, embora observem que alguns hesitaram.]

19
“Reis vieram e lutaram, reis de Canaã lutaram,

Em Taanaque, junto às águas do Megido; não tomaram nenhuma pilhagem de prata.

20
Desde os céus as estrelas lutaram, desde os seus cursos elas lutaram com Sísera.

21
O ribeiro Quisom os levou embora, o ribeiro apressado, o ribeiro Quisom.

(Siga com força, minha alma!)

22
Então, os cascos dos cavalos bateram, com o galope, o galope de seus poderosos.

23
‘Amaldiçoem Meroz’, disse o ajudante de Yahweh, ‘amaldiçoem totalmente os seus

habitantes,

porque eles não vieram quando Yahweh estava ajudando, quando Yahweh estava

ajudando contra os guerreiros.’

24
A mais bendita das mulheres seja Jael, esposa de Héber, o queneu, a mais bendita das

mulheres em tendas.

25
Ele pediu por água, e ela lhe deu leite; numa tigela nobre, ela apresentou coalhada.

26
Ela estendeu a mão à estaca da tenda, a sua mão direita, à marreta do trabalhador.

Ela martelou Sísera, esmagou a sua cabeça, despedaçou e perfurou a sua têmpora.

27
Aos seus pés, ele se curvou, caiu e se deitou; aos seus pés, ele se curvou, ele caiu.

Onde ele se curvou, ali ele caiu, destruído.

28
Pela janela a mãe de Sísera perscrutava, olhava pela treliça:
‘Por que a sua carruagem demora tanto a vir, por que o barulho de suas carruagens se

atrasa?’

29
As mais sábias de suas damas lhe respondem; na verdade, ela respondia a si mesma:

30
‘Eles devem ter encontrado e dividido o espólio, uma mulher, duas mulheres, para cada

homem.

Espólio de tecido tingido para Sísera, espólio de tecido tingido bordado, dois tecidos

bordados para os pescoços como espólio.’

31a
Assim, que todos os teus inimigos pereçam, Yahweh, mas que teus amigos possam ser

como o sol subindo em força.”

Certo domingo, cantamos o hino “Fonte és tu de toda bênção”, cuja

segunda estrofe assim começa: “Cá meu Ebenézer ergo.” Perguntei se

alguém sabia qual era a referência bíblica, e poucos conheciam. (A

resposta está em 1Samuel 7.) Claro que eu sabia disso, mas, num

domingo mais recente, cantamos “The Battle Hymn of the Republic” [O

hino de batalha da república], cuja letra inclui sentenças como: “Na

beleza dos lírios, Cristo nasceu do outro lado do mar”, e dediquei um

longo tempo a pesquisar o que isso significava, ou em reter na mente as

combinações de imagens que a letra incorpora. Essa é a natureza da

poesia. Ela utiliza imagens que enlevam o poeta e/ou que repercutirão

nos leitores do poema, envolvendo-as em um conjunto denso que requer

uma vagarosa leitura. O tremendo poder com o qual fala em seu próprio

contexto torna difícil ao poema ter o mesmo impacto em outro

contexto.

No poema de Abelha, há muitos aspectos de difícil interpretação,

especialmente na seção intermediária, que resumi acima, o que, em

parte, reflete o simples fato de ser um poema. Pode ser que alguns

aspectos dele tenham intrigado alguns leitores israelitas, levando-os a

um árduo esforço para sua compreensão. Reconhecidamente, os desafios

que ele apresenta ao leitor são distintos daqueles oferecidos por outros

poemas do Antigo Testamento, seja nos Profetas, seja nos Salmos. Isso

pode refletir o fato de ser um poema muito antigo ou de ter sido


deliberadamente escrito em um estilo anacrônico. De todo modo, para

um israelita seria um pouco similar a ler Shakespeare, em nosso caso.

Todavia, não é mera coincidência que, como profetisa, Abelha fale em

forma de poesia, como Miriã e a maioria dos profetas posteriores. A

profecia precisa usar palavras humanas para expressar a profunda

verdade divina, e a poesia é uma forma natural de expressar verdades

profundas.

O poema de Abelha traça um paralelo com Salmos e os Profetas

posteriores, no sentido de que abrange sentenças curtas, dividindo-as

em duas (ou três) partes correspondentes umas às outras ou

contrastantes entre si de algum modo. Igualmente, ele usa uma forma

que é característica de poemas mais antigos, na qual a segunda metade

de uma linha repete, parcialmente, a primeira, antes de acrescentar algo

novo, quase como um blues. O motivo pode ser o mesmo, caso os

poemas fossem, às vezes, compostos oralmente; a repetição permite ao

poeta tempo para compor as próximas palavras.

Como grande parte da exaltação em Salmos, o poema de louvor é

endereçado a seres humanos (especialmente aos reis deste mundo) a

quem o poeta desafia a unirem-se no reconhecimento da grandeza de

Deus, expressa nos eventos celebrados pelo poema. Ele sabe que, em

certo sentido, a habitação “natural” de Deus está no sul de Canaã, no

Sinai, ou melhor, que o Sinai é um portal entre a terra e o céu, de modo

que essa é a direção da qual Deus vem para agir em Israel, viajando pelo

território edomita.

A linguagem sobre o estremecimento da terra e o derramamento de

chuva do céu pode indicar que a vitória de Israel envolveu a obstrução

das carruagens inimigas pela chuva. A batalha ocorre na planície entre

as montanhas de Efraim e da Galileia, próximo às grandes cidades

cananeias de Megido e Taanaque. O ribeiro ou canal Quisom corre ali;

normalmente, é apenas um riacho, mas poderia se tornar como uma

torrente após uma chuva repentina. Por outro lado, a conversa sobre as
estrelas lutando nos adverte de não sermos tão prosaicos na

interpretação das imagens poéticas.

O poema também presta um testemunho distinto sobre a

importância das ações dos seres humanos. Essa vitória não foi similar

aos êxitos do mar Vermelho ou de Jericó, quando o povo apenas assistiu

ao agir divino. Paradoxalmente, apesar do fato de a situação parecer

desesperadora e de não haver nada que os israelitas poderiam fazer

quanto à sua opressão, Abelha os convocou a entrarem em ação, porque

Deus iria lhes dar uma vitória impossível. Embora Deus assim tenha

feito, a vitória dependeu do voluntariado dos clãs e da operação de

Deus por meio deles e com eles, a fim de alcançar algo extraordinário e

sobrenatural. Portanto, o poema é mordaz com os clãs que hesitaram.

Acima de tudo, ele elogia a conquista de Jael na aniquilação do general

inimigo. É assim que os inimigos de Deus merecem ser tratados,

observa Abelha, por fim.

Desconhecemos o motivo de Meroz aparecer em uma crítica

singular, mas, de todo modo, a maldição sobre essa cidade está presente

para oferecer um contraste à bênção sobre Jael. Nem mesmo sabemos se

o povo de Meroz era israelita, mas, certamente Jael descendia dos

queneus, não sendo, portanto, israelita. O contraste entre Jael e as

pessoas que hesitaram em responder ao chamado de Abelha traça um

paralelo com Raabe, a cananeia responsiva, e Acã, o israelita

transgressor, presentes no livro de Josué. Repetindo, ser israelita não é

garantia de bênção, e ser um estrangeiro não exclui a pessoa da bênção

ou de ser um servo de Deus.

As linhas de encerramento do poema oferecem um contraste

adicional. Em sua cidade natal, está a mãe de Sísera, evidentemente

uma pessoa importante, em seu pleno direito e aos cuidados de seu

próprio corpo de servos. Eles ansiosamente aguardam pelo retorno do

general vitorioso, imaginando seus homens estuprando as mulheres

pertencentes às suas vítimas e pilhando os seus bens, trazendo


excelentes espólios para as suas mulheres, de volta para casa. O destino

delas é o desapontamento.
JUÍZES 5:31B—6:24
SOBRE A IRRELEVÂNCIA DO DISCERNIMENTO ESPIRITUAL

31b
Assim, a terra ficou quieta durante quarenta anos,

CAPÍTULO 6

1
mas os israelitas fizeram o que era inaceitável aos olhos de Yahweh. Então, ele os entregou

2
nas mãos de Midiã durante sete anos, e a mão de Midiã foi forte sobre Israel durante sete

anos. Por causa de Midiã, os israelitas fizeram para si refúgios nas montanhas, em cavernas e

3
fortalezas. Quando Israel semeava, Midiã, Amaleque e os orientais vinham. Eles vinham

4
contra Israel, acampavam contra eles e destruíam a produção da terra até chegar em Gaza.

5
Eles não deixavam nada vivo em Israel, nem ovelhas, nem bois, nem jumentos, porque eles e

o gado deles subiam com suas tendas, vinham como um enxame de gafanhotos, em

quantidade; não havia como contá-los ou a seus camelos. Assim, eles vinham à terra para

6
destruí-la. Israel se tornou muito debilitado por causa de Midiã, e os israelitas clamaram a

7 8
Yahweh. Quando os israelitas clamaram a Yahweh por causa de Midiã, Yahweh enviou

alguém como um profeta aos israelitas. Ele lhes disse: “Yahweh, o Deus de Israel, assim disse:

9
‘Eu sou aquele que os tirou do Egito, para fora da casa de servos, que os resgatou da mão do

Egito e da mão de todos os seus opressores; eu os expulsei de diante de vocês e lhes dei a

10
terra deles . Eu lhes disse: “Eu sou Yahweh, o seu Deus. Vocês não reverenciarão os deuses

dos amorreus em cuja terra estão vivendo.” Mas vocês não escutaram a minha voz.’”

11
Então, o ajudante de Yahweh veio e sentou-se debaixo do terebinto, em Ofra, pertencente

a Joás, o abiezrita. Gideão, seu filho, estava batendo trigo no lagar para mantê-lo a salvo de

12
Midiã. O ajudante de Yahweh apareceu a ele e lhe disse: “Yahweh está com você, poderoso

13
guerreiro.” Gideão lhe disse: “Perdoa-me, meu senhor: se Yahweh está conosco, por que

tudo isso nos tem ocorrido? Onde estão todas as maravilhas que os nossos ancestrais nos

relataram, dizendo: ‘Yahweh realmente nos trouxe do Egito’? Yahweh, agora, nos abandonou

14
e nos entregou nas mãos de Midiã.” Yahweh se voltou para ele e disse: “Vá nessa sua força e

15
liberte Israel da mão de Midiã. Eu realmente o enviei.” Ele lhe disse: “Perdoa-me, meu

senhor: como posso libertar Israel? Porque o meu grupo de parentesco é o mais fraco em

16
Manassés e sou o mais jovem na casa de meu pai.” Yahweh lhe disse: “Mas eu estarei com

17
você, e você derrubará Midiã como se eles fossem um só homem.” Ele lhe disse: “Se

encontrei favor aos teus olhos, dar-me-ás um sinal de que és tu que estás falando comigo?

18
Não sairás daqui até que eu venha e traga a minha oferta e a coloque diante de ti?” Ele

disse: “Ficarei até você voltar.”

[Nos versículos 19-24, Gideão apresenta um cabrito, pão asmo e caldo em uma pedra,

enquanto o ajudante divino faz subir fogo da rocha que consome as ofertas.]
Há pouco, conversei com um casal a quem não via por um ano ou dois,

colocando em dia as novidades sobre nossos filhos, seus casamentos e

respectivas famílias. Esse outro casal possui muitas filhas. A mais nova

delas tinha quase trinta anos, ainda solteira, e andava triste e

preocupada com isso. Para piorar, ela havia se comprometido a ir e

trabalhar em um campo de refugiados por um período de três anos, no

qual parecia improvável conhecer alguém. Sua mãe a incentivou a

elaborar uma lista contendo as qualidades que esperava encontrar no

homem de seus sonhos, apresentá-la diante de Deus e pedir ao Senhor

que levasse tal homem a ela ou vice-versa. Parece-me, pessoalmente, um

conselho sobremodo perigoso, embora eu ainda seja a favor de pedir

coisas impossíveis a Deus, com a condição de reconhecer que Deus não

garante o cumprimento de todas as nossas orações. No entanto, aquela

filha fez a sua lista e, contra todas as probabilidades, um colega

americano veio trabalhar no mesmo acampamento... Bem, creio que

você é capaz de adivinhar o fim da história. Ela enviou um e-mail à sua

mãe, confirmando que ele atendia perfeitamente a todos os itens da

lista; a data de casamento está marcada para breve, e, sem dúvida

alguma, eles viverão felizes para sempre. Que rolem os créditos e que a

audiência enxugue as lágrimas antes de deixar o cinema, desejosos de

que isso seja a mais pura verdade para o casal.

Gideão era talvez um rapaz como a maioria de nós. A princípio,

decerto, ele hesitaria em elaborar a sua lista. Lá está ele, malhando o

trigo no interior do lagar de sua família. Isso deve ter provocado o riso

da audiência israelita posterior. Todo mundo sabe que o trigo deve ser

malhado num lugar amplo e aberto, de preferência no topo de uma

colina, de modo que se possa lançar o trigo batido para o alto e deixar

que o próprio vento leve embora a palha, permitindo colher uma boa

pilha do mais puro trigo. Em contraste, um lagar é uma pequena

estrutura, construída em algum lugar coberto, na qual seja possível

amassar as uvas e deixar que o suco puro flua para as vasilhas de coleta.

Esmagar o trigo em um lagar?


Essa imagem mostra quão oprimidos e humilhados os próprios

israelitas se sentem, e há um motivo perfeitamente bom, um que

normalmente percorre o livro de Juízes. Em lugar de ser capaz de se

espalhar e ocupar toda a terra, desde a sua base original, no coração

montanhoso de Canaã, os israelitas foram forçados a retornar às

montanhas, escondendo-se dos grupos de ataque dos povos situados a

leste e ao sul da terra, que habitavam tendas temporárias, tal como

faziam os ancestrais israelitas. Caso estivesse escondido no alto de uma

montanha e olhasse para baixo, as suas tendas escuras pareciam como

uma nuvem de gafanhotos ocupando todo o campo e consumindo tudo

como se, de fato, fossem gafanhotos. Como de costume, seria possível

explicar essa situação em termos econômicos e políticos; os midianitas

estavam se comportando da mesma forma que os israelitas agiram

quando tiveram a chance, a exemplo (digamos) dos conquistadores nas

Américas, expulsando os povos nativos. No entanto, Juízes sabe que, na

situação em questão, existe outro nível de explicação. Tudo isso ocorreu

porque (em sua fórmula costumeira) os israelitas se comportaram de

modo ofensivo a Yahweh.

É como se os israelitas não percebessem isso, nem mesmo Gideão.

Eles clamam a Deus da mesma maneira que clamaram no Egito, quando

não mereciam a condição servil na qual se encontravam. De sua parte,

Deus lhes responde da forma direta, aparentemente sem apresentar

qualquer simpatia, indicando o motivo de eles merecerem a confusão

em que estavam. Isso ilustra o modo livre e direto pelo qual Israel e

Deus podem falar um ao outro. Nenhuma palavra precisa ser omitida de

ambos os lados. Pode-se esperar, então, que Deus aguarde por uma

demonstração de arrependimento antes de fazer algo, mas isso sugeriria

que o relacionamento entre Deus e Israel é apenas contratual. Apesar

de os israelitas merecerem a situação na qual estão e não expressarem

arrependimento, Deus inicia o processo por meio do qual eles serão

libertos de seus opressores. O padrão revelado no Êxodo é, portanto,

repetido aqui. Deus aparece a Gideão tal como apareceu a Moisés, para
recrutá-lo com respeito a essa libertação. Em resposta, Gideão

demonstrou a mesma falta de entusiasmo e visão exibida por Moisés,

mas isso não faz a menor diferença.

O ajudante divino saúda Gideão no lagar em que ele trabalha,

olhando por cima do ombro a cada cinco minutos a fim de evitar

qualquer aparição surpresa dos midianitas: “Yahweh está com você,

poderoso guerreiro!” A audiência ri em silêncio, novamente. Gideão

também parece pesaroso. Evidentemente, ele nada sabe sobre qualquer

mensagem profética em que Deus tenha dito: “vocês realmente

merecem a dificuldade na qual estão”. Como de costume, Deus não

responde à pergunta que Gideão lhe faz sobre o “por que”, mesmo

indicando a razão, mas aborda a questão por trás da indagação de

Gideão. Na verdade, o israelita não quer uma resposta com relação a

teodiceia, mas deseja ver alguma ação. A boa notícia é que ele está

prestes a vê-la. Todavia, a má notícia é que ele constitui o meio pelo

qual a libertação de Deus será colocada em prática. Em certo nível, a

sua resposta cética é plenamente razoável. Ele não demonstrou possuir

maior capacidade de liderança que qualquer outro membro de sua

obscura família. Como no caso de Moisés, Deus decide usar alguém que

é falho, desprovido de qualquer potencial evidente e sem discernimento

religioso, porque o uso de uma pessoa por parte de Deus independe das

qualidades de liderança ou da capacidade espiritual dessa pessoa. Deus

define Gideão como um grande guerreiro não porque ele possui um

potencial ainda não percebido pelos outros, mas simplesmente porque

essa é a maneira pela qual Deus intenciona usá-lo.

O pedido de Gideão por um sinal constitui uma indicação adicional

de que lhe falta o discernimento espiritual. Não obstante, mesmo esse

fato não leva Deus a abandoná-lo e usar alguém com maior potencial

(talvez não haja ninguém). Deus apenas lhe concede o sinal solicitado.

Só então Gideão percebe que, de fato, está dialogando com o ajudante

de Yahweh e, portanto, com Deus, o que, por si só, é um fato assustador,

porém Deus o reassegura de que não há nada que temer. “Shalom a


você”, Deus diz. “Está tudo bem.” E Gideão edifica um altar ali,

chamando-o de “Yahweh shalom”, Yahweh é paz; “Deus torna as coisas

boas.”
JUÍZES 6:25-40
COMO SER UMA PESSOA CONFUSA
25
Naquela noite, Yahweh lhe disse: “Pegue um novilho pertencente ao seu pai e um segundo

touro de sete anos. Derrube o altar do Mestre pertencente ao seu pai, corte a coluna sagrada

26
ao lado dele e construa um altar para Yahweh, o seu Deus, no topo desse refúgio, na ordem

adequada. Pegue o segundo touro e o sacrifique como uma oferta queimada com a madeira

27
da coluna sagrada que você cortou.” Assim, Gideão obteve dez homens dentre os seus

servos e fez como Yahweh lhe tinha dito, mas, como ele teve medo de fazer isso de dia, por

causa da casa de seu pai e dos homens da cidade, o fez à noite.

28
Cedo, na manhã seguinte, os homens da cidade se levantaram: ali, o altar do Mestre estava

demolido, a coluna sagrada ao lado do altar estava cortada e o segundo touro estava

29
sacrificado no altar que tinha sido construído. Uma pessoa disse a outra: “Quem fez isso?”

30
Eles inquiriram, investigaram e disseram: “Gideão, filho de Joás, fez isso.” Os homens da

cidade disseram a Joás: “Traga o seu filho para fora: ele deve morrer, porque demoliu o altar

31
do Mestre e cortou a coluna sagrada ao lado dele.” Mas Joás disse a todos aqueles que se

levantaram contra ele: “Vocês defendem o Mestre ou o libertam? A pessoa que defendê-lo

deve ser morta pela manhã. Se ele é um deus, deveria defender a si mesmo porque [Gideão]

32
demoliu o seu altar.” Naquele dia, eles o chamaram de “O Mestre Contende”, dizendo: “O

Mestre deve defender a si mesmo contra ele, porque ele demoliu o seu altar.”

33
Quando todo o Midiã, Amaleque e os orientais se reuniram, atravessaram e acamparam na

34
planície de Jezreel, o espírito de Yahweh vestiu-se em Gideão. Ele soou a trombeta, e os

35
abiezritas permitiram-se ser convocados para segui-lo. Quando ele enviou ajudantes a

todo o Manassés, eles também permitiram-se ser convocados para segui-lo, e, quando enviou

36
ajudantes a Aser, Zebulom e Naftali, eles subiram para encontrar [os manassitas]. Gideão

37
disse a Deus: “Se irás realmente libertar Israel por minha mão, como disseste, eis que

colocarei um velo de lã na eira. Se houver orvalho apenas na lã, mas todo o chão estiver seco,

38
reconhecerei que libertarás Israel pela minha mão, como disseste.” Assim aconteceu. Cedo,

na manhã seguinte, ele se levantou, espremeu o velo e torceu o orvalho da lã, uma tigela

39
cheia de água. Gideão disse a Deus: “Que a tua ira não se acenda contra mim se eu falar

apenas mais uma vez. Que eu possa testar com o velo apenas mais uma vez. Que apenas o

40
velo esteja seco, mas em todo o chão possa haver orvalho.” Deus fez assim naquela noite.

Apenas o velo estava seco, mas no chão havia orvalho.

Nesta semana, perguntei a um grupo de estudantes quais impressões

sobre oração o histórico cristão deles lhes havia transmitido. Um dos


temas recorrentes foi quanto à necessidade de ter certa cautela ao falar

com Deus. Não se deve reclamar a Deus, questioná-lo ou pedir coisas

que ele não nos tenha encorajado a pedir. Ora, admito que, quando peço

algo a Deus, algumas vezes ele não me concede o que peço. Quando eu o

questiono, Deus, às vezes, responde: “Cale-se.” Todavia, pelo menos,

isso sugere que o relacionamento é real, envolvendo dar e receber. É

como a relação entre pais e filhos; eu não gostaria que meus filhos

hesitassem quanto a me questionar e me pedir coisas por temerem a

minha reação. Isso é similar ao relacionamento entre um professor e

seus alunos; embora alguns peçam por um prazo maior para a entrega de

seus trabalhos e são atendidos enquanto outros fazem o mesmo pedido e

recebem uma resposta negativa, os que não fazem pedido algum,

certamente, não receberão resposta nenhuma.

Gideão pede e recebe. Mas, primeiro, nos é revelado um quadro

mais específico da desobediência que caracteriza o povo, na região de

Gideão. Cada uma dessas histórias, em Juízes, está relacionada a uma

área geográfica específica; assim, não devemos presumir que a

transgressão reportada envolvia diretamente o povo como um todo,

nem a punição subsequente. Gideão pertence à parte de Manassés que

se estabeleceu a oeste do Jordão, e seu lar não dista muito de Siquém.

Ali, a cidade de Gideão, no coração de Israel (na realidade, apenas um

vilarejo), é devotada ao culto do Mestre. Portanto, o santuário naquela

vila é dedicado a ele e complementado por uma espécie de coluna

sagrada erigida ao lado do altar, regularmente encontrada em um

santuário cananeu. A palavra para uma coluna sagrada é, na verdade,

asherah, que aparece em Juízes 3:7 como o nome de uma deusa;

provavelmente, a ideia é que a coluna constitui uma imagem esculpida

em madeira que representa a deusa que permanece ao lado do deus,

como um objeto de adoração.

Gideão é desafiado a destruir esses objetos de culto e substituí-los

por elementos “apropriados” a pessoas comprometidas com Yahweh.

Ele continua agindo de forma um tanto confusa, pois faz exatamente o


que Yahweh o instrui, porém demonstra o seu receio ao agir à noite,

quando ninguém está olhando, ainda que Yahweh pareça querer uma

ação aberta e pública: o novo altar deve ser edificado no topo do

“refúgio”, o lugar no qual as pessoas se escondem dos midianitas. Será

uma demonstração pública do destronamento do Mestre e do

reconhecimento a Yahweh. No evento em questão, tentar ser discreto

não impede Gideão de ser descoberto, assim como Moisés, quando

matou um homem em segredo, porém foi identificado. O seu temor é

justificável, pois toda a sua família, bem como toda a sua comunidade,

dedica-se ao culto do Mestre.

Isso inclui Joás, o pai de Gideão, que desempenha um papel

especialmente intrigante nesse drama. O nome que Joás recebeu de seus

pais (um nome como Josué ou Jônatas) indica que os avós de Gideão

eram comprometidos com Yahweh, mas a narrativa refere-se

eventualmente ao fato de o outro nome de Gideão ser Jerubaal, ou seja,

“O Mestre Contende”. Quando os nomes próprios fazem referência a

Deus, regularmente esse Deus é o Deus ao qual as pessoas estão

comprometidas. A essa altura, é difícil imaginar Gideão recebendo um

nome que faça referência ao Mestre, logo após tê-lo desafiado. O

comentário do povo de que o nome significa “O Mestre Contende” foca

um novo sentido que eles, agora, veem em seu nome (como ocorre com

o nome do lugar Gilgal, em Josué 5). Se os pais de Gideão lhe dessem o

nome Jerubaal, isso implicaria o compromisso deles com o Mestre. Não

obstante, Joás, agora, passa para o lado dos mocinhos da história. É

natural que um pai queira proteger o próprio filho, mas, de algum modo,

a ação do filho leva Joás a abandonar o seu compromisso com o Mestre

e desafiar a vila a fazer o mesmo.

A seguir, surge uma nova crise política no seio daquela comunidade

e no âmbito mais amplo do clã de Manassés quando são invadidos

novamente pelos midianitas. Dessa vez, o espírito de Deus “vestiu-se

em Gideão”. Algumas traduções expressam o espírito de Deus vindo

sobre Gideão, como se o espírito fosse similar a vestes, mas as vestes são
Gideão. Não é possível ver o espírito; o que pode ser visto é Gideão

agindo como alguém que possui um novo poder e uma nova dinâmica

em seu interior, transformando uma pessoa temerosa de enfrentar a sua

vila em alguém que conquistará Midiã, Amaleque e os orientais. No

entanto, o Gideão natural e real permanece vivo e bem, sendo esse

Gideão que pede a Deus por outro sinal do envolvimento divino com

ele. Dessa vez, será um sinal de que o seu sentimento de estar sendo

possuído por Deus e de começar a fazer coisas que jamais sonharia em

fazer não é apenas fruto de sua imaginação. Na verdade, quando Deus

confirma esse sinal e Gideão percebe que o evento não era tão

miraculoso assim, ele solicita um terceiro sinal, e Deus (com um suspiro

ou um sorriso?) o confirma também.

Gideão sabe que não precisamos temer pedir coisas ultrajantes a

Deus, pedir por coisas que não deveríamos necessitar. Por todos os

meios, seja reverente a Deus: Gideão nos faz lembrar da oração de

Abraão por Sodoma, em Gênesis 18. De modo algum, presuma que

Deus irá garantir o seu pedido ultrajante. Não há garantias de que Deus

o fará, mas é possível que o faça. Portanto, vergonha é não pedir. A ação

de Gideão também aponta para outra presunção do Antigo Testamento.

Em sua atitude de dúvida, o que realmente importa não é se você está

duvidando ou crendo em Deus, mas se está duvidando ou crendo no

Deus real. Não há problemas no fato de Gideão estar duvidando de

Yahweh: o importante é ele estar duvidando de Yahweh, não do Mestre.

Mesmo em sua dúvida, ele está se voltando para Yahweh, não para o

Mestre.
JUÍZES 7:1-25
COMO AUMENTAR AS CHANCES CONTRA SI MESMO
1
Cedo, no dia seguinte, O Mestre Contende (isto é, Gideão) e toda a companhia com ele

acampou acima da fonte de Harode; o acampamento midianita ficava ao norte dele, na colina

2
do Professor, na planície. Yahweh disse a Gideão: “A companhia com você é muito grande

para eu dar Midiã nas mãos deles, para que Israel não tome a glória para si, dizendo: ‘Minha

3
mão me libertou.’ Agora, proclame aos ouvidos da companhia: ‘Qualquer um que estiver

com medo e tremendo deve voltar e voar do monte Gileade.’” Vinte e dois mil da companhia

4
retornaram; dez mil permaneceram. Yahweh disse a Gideão: “A companhia ainda é grande.

Faça-os descer até a água, e eu irei peneirá-los para você ali. Quando eu lhe disser: ‘Este irá

com você’, ele irá com você. Todo aquele acerca de quem eu lhe disser: ‘Este não irá com

você’, ele não irá com você.”

5
Assim, ele levou a companhia a descer até a água. Yahweh disse a Gideão: “Todo aquele que

beber da água com sua língua como fazem os cachorros, você deve separar, e [igualmente]

6
todo aquele que se ajoelhar para beber.” O número de pessoas que lamberam a água,

levando-a com as mãos à boca, foi de trezentos. Todo o resto da companhia ajoelhou-se para

7
beber água. Yahweh disse a Gideão: “Por meio dos trezentos homens, eu libertarei vocês e

entregarei Midiã em suas mãos. Todo [o resto da] companhia deve ir, cada um, para seu

8
próprio lugar.” Assim, eles tomaram as provisões da companhia em suas mãos, e as suas

trombetas, e todo [outro] israelita ele mandou embora, cada um para sua tenda, mas

manteve os trezentos homens. O acampamento midianita ficava abaixo dele, na planície.

9
Naquela noite, Yahweh lhe disse: “Levante-se, desça para atacar o acampamento, porque eu

10
o entreguei nas suas mãos. Se estiver com medo de descer [para atacar], desça você mesmo

11
ao acampamento com Pura, o seu rapaz, e ouça o que eles dizem, e, depois, as suas mãos

serão fortes o suficiente para descer contra o acampamento.” Assim, ele mesmo desceu com

Pura, o seu rapaz, até a beira de onde os homens organizados em companhia estavam no

12
acampamento. Ora, Midiã, Amaleque e os orientais estavam deitados na planície como um

enxame de gafanhotos em quantidade, e não havia como contar os seus camelos, como o mar

13
na praia, pela quantidade. Gideão veio, e ali um homem estava contando um sonho ao seu

vizinho. Ele disse: “Eu tive um sonho. Eis que um pão de cevada estava rolando contra o

acampamento midianita. Ele chegou a uma tenda, a atingiu, e ela caiu. Ele rolou sobre ela, e

14
a tenda caiu.” O seu vizinho respondeu: “Não pode ser nada, exceto a espada de Gideão, o

filho de Joás, o israelita. Deus entregou Midiã e todo o acampamento nas mãos dele.”

[Nos versículos 15-25, Gideão dá aos seus trezentos homens as trombetas que pegaram com os

demais guerreiros, bem como um jarro e uma tocha. No meio da noite, eles cercaram o

acampamento midianita, soaram as trombetas, quebraram os jarros e agitaram as tochas, o que

fez o exército midianita entrar em pânico. Eles fugiram em direção às suas casas, além do

Jordão, ou lutaram manualmente contra qualquer um, o que significa contra os seus próprios

companheiros midianitas, pois os israelitas permaneceram fora do acampamento. Os 22 mil


restantes se uniram a eles em perseguição aos fugitivos, acompanhados por alguns efraimitas

que capturaram e mataram os generais midianitas.]

Há duas semanas, um homem tentou explodir um avião, na rota de

Amsterdã a Detroit, e, na semana passada, quando voltei de Londres

para Los Angeles, depois do Natal, o embarque demorou cerca de duas

horas em lugar da meia hora usual, em razão dos cuidados de segurança

adicionais que foram implementados. Os poderes dos Estados Unidos e

da Europa estão envolvidos em uma batalha contra forças centralizadas

no Afeganistão e no Paquistão, mas que estão espalhadas em todo o

mundo. Isso exige o investimento de grande quantidade de recursos, na

tentativa de vencer essa luta. Parece não haver escolha, apenas seguir

fazendo isso, mesmo que falhemos e a tentativa nos leve à falência. Ao

mesmo tempo, declinamos de intervir militarmente em alguns outros

contextos, tais como o Sudão, não porque a questão moral seja muito

distinta, mas por reconhecermos o limite do que realisticamente somos

capazes de alcançar. Os cristãos discutem sobre quanto as guerras são

justas, porém as decisões para ir à guerra são tomadas com base em sua

praticidade (embora esse seja um dos critérios de decisão sobre se a

guerra é justa).

O modo de Deus decidir lutar ou não e como lutar as batalhas é

muito diferente. Não se pode acusar Gideão de considerar esse ataque

insano. Visto que esse homem não vê problemas em dizer a Deus o que

pensa, surpreende o fato de ele não fazer isso. A batalha ocorre no lado

sul da fértil planície central que divide a principal cadeia de montanhas,

na qual Gideão vive, das montanhas da Galileia e, portanto, não

distante do local no qual Abelha e Relâmpago lutaram as suas batalhas.

A fonte junto à qual Gideão acampa procede daquelas montanhas, de

modo que o seu acampamento está situado nas encostas, enquanto o

acampamento midianita encontra-se na planície principal.


Permitir a retirada da batalha dos homens temerosos de lutar

corrobora as regras de guerra estabelecidas em Deuteronômio 20.

Pessoalmente, a minha reação seria sair correndo dali, como fizeram os

22 mil. A própria imagem de Deus é que eles devem voar para bem

longe (essa palavra hebraica particular para voar é usada apenas aqui,

mas é relacionada a uma palavra que denota um pequeno pássaro). O

procedimento para reduzir o contingente de dez mil homens a trezentos

parece envolver a distinção entre aqueles que simplesmente se agacham

para, então, coletar água com as mãos, da mesma forma que um

cachorro usa a sua língua, daqueles que se ajoelham diretamente no

chão para fazer o mesmo. Trata-se de uma distinção arbitrária, apenas

um modo de dividir as pessoas em dois grupos, a fim de que o grupo

maior seja enviado para casa, em que pese a disposição deles de ir à luta.

Deus antecipa que não se pode culpar Gideão caso, agora, a

confiança que lhe foi dada pelo sinal desapareça. Desse modo, Deus lhe

oferece outro sinal. A exemplo de nós, as sociedades tradicionais, tais

como Israel, sabem que os sonhos podem ser relevantes, porém eles

posicionam essa relevância distintamente. Os sonhos podem ser um

meio de Deus revelar algo que irá acontecer e, talvez, seja o caso desse

sonho. Ou pode ser que o sonho seja mais como um dos nossos,

revelando apenas que o midianita está muito assustado.

Presumidamente, ele nada sabe sobre o absurdo ocorrido nas colinas,

quando praticamente todo o exército israelita foi enviado de volta para

casa e, portanto, não tem ciência do contraste entre o pequeno número

de homens que Gideão possui agora e o tamanho de seu próprio

exército, ao qual a narrativa, novamente, chama a atenção. De todo

modo, o sonho constitui um encorajamento a Gideão.

Muitas narrativas anteriores, no Antigo Testamento, retratam Deus

dando a vitória a Israel de uma entre duas maneiras. Em certas ocasiões,

Deus simplesmente derrota o inimigo, e os israelitas apenas observam,

como ocorreu no mar de Juncos e em Jericó. Em outras, há uma batalha

regular com um resultado surpreendente, a exemplo do que aconteceu


quando Abelha e Baraque conquistaram Jabim. O fato de Deus reduzir

o exército de Gideão a trezentos homens, obviamente, significa que será

necessário algo miraculoso para eles lograrem derrotar o enorme

contingente midianita, mas Deus envolve os israelitas no resultado

final. Todavia, eles não carregam armas, somente os meios de realizar

um truque ingênuo. Eles gritam: “A espada por Yahweh e por Gideão”,

mas as únicas espadas literais empregadas na batalha são aquelas

utilizadas pelos midianitas uns contra os outros.

Mais tarde, Jesus irá transformar alguns peixes e pães em alimento

para milhares de pessoas; ele poderia ter feito isso do zero. Às vezes,

Deus opera por meios humanos comuns, mas não há nenhum milagre

envolvido; outras vezes, Deus age sem usar meios humanos e, ainda,

pode realizar um milagre que faça uso de meios humanos. Além disso,

há ocasiões nas quais Deus instrui as pessoas sobre o que fazer e, em

outras, Deus deixa para elas descobrirem isso. Não há indicação aqui de

que Deus conta a Gideão o que ele deve fazer com as trombetas, jarros e

tochas, bem como não há indícios de que o seu estratagema não conte

com a aprovação divina. Ele desenvolve o plano por si mesmo,

revelando ser menos ignorante do que poderíamos concluir de relatos

anteriores de sua história.


JUÍZES 8:1-35
EU NÃO SOU O HERÓI; DEUS É

[Os versículos 1-21 relatam aspectos adicionais quanto às consequências da batalha. Primeiro,

os efraimitas expressam a sua insatisfação por não terem sido convocados para lutar na

batalha principal, mas Gideão consegue acalmá-los. Ele mesmo persegue os dois reis midianitas

e, eventualmente, os captura, matando-os. Durante o caminho, o povo de Sucote e Peniel lhe

recusa dar provisão, dos quais ele pede reparação em seu retorno ao lar.]

22
Os homens de Israel disseram a Gideão: “Governe sobre nós, você, seu filho e seu neto

23
também, porque nos libertou das mãos de Midiã.” Gideão lhes disse: “Eu mesmo não

governarei sobre vocês, e meu filho não governará sobre vocês. Yahweh é aquele que

24
governará sobre vocês.” Mas Gideão lhes disse: “Farei um pedido a vocês. Cada homem,

dê-me o brinco que foi o seu saque” (porque [o inimigo] tinha brincos de ouro, porque eram

25
ismaelitas). Eles disseram: “Nós certamente os daremos.” Estenderam um casaco e ali, cada

26
homem, jogaram o brinco que era o seu saque. O peso dos brincos de ouro que ele pediu

chegou a 1.700 [siclos], sem contar os crescentes, pingentes e mantos púrpura sobre os reis

27
midianitas, e à parte dos colares no pescoço de seus camelos. Gideão transformou isso em

um éfode e o colocou em sua cidade, em Ofra. Todo o Israel agiu imoralmente ao ir lá atrás

disso. Ele se tornou uma armadilha para Gideão e a sua casa.

28
Assim, Midiã sujeitou-se diante dos israelitas e não levantou novamente a sua cabeça. A

29
terra ficou quieta durante quarenta anos no tempo de Gideão. O Mestre Contende, filho

30
de Joás, saiu e retornou para casa. Gideão teve setenta filhos que gerou de seu próprio

31
corpo, porque tinha muitas esposas. Sua esposa secundária, em Siquém, lhe gerou um filho;

32
ele o chamou de Abimeleque. Gideão, filho de Joás, morreu em boa velhice, e foi enterrado

na tumba de Joás, seu pai, em Ofra dos abiezritas.

33
Quando Gideão morreu, os israelitas novamente agiram imoralmente ao seguir os Mestres

34
e tornaram o Mestre da Aliança em um deus para si mesmos. Os israelitas não estavam

atentos a Yahweh, o Deus deles, que os resgatou da mão de seus inimigos ao redor deles.

35
Não mantiveram o compromisso com a casa de O Mestre Contende/Gideão, de acordo

com todo o bem que ele tinha feito em Israel.

Uma das memórias mais ternas que tenho da infância de meus filhos é

de ler histórias bíblicas para eles na hora de dormir, histórias que

haviam sido reescritas e ilustradas para crianças. Hoje, transferi todos

esses livros para o filho que tem os seus próprios rebentos. A minha obra
favorita era uma versão da história de Gideão, transformada em poesia.

Tratava-se de uma poesia pobre, com certeza, porém ela terminava com

uma teologia profunda. Meus filhos esperavam por essa sentença e

sabiam recitá-la de cor. Gideão se recusa a ser um soberano permanente

e explica:

Embora pareça estranho,

Eu não sou o herói;

O herói é DEUS.

Quando Gideão faz essa declaração, a narrativa chega ao seu ápice.

Ele sabe que ter um governante humano não se encaixa com a ideia de

Deus ser o soberano de Israel. Nem os israelitas e, tampouco, Gideão

falam a respeito de ele ser “rei”; a ideia de possuir um rei surgirá apenas

em conexão com a sequência da história de Abimeleque, no próximo

capítulo. Ninguém está sugerindo comprometer a ideia de Deus ser o rei

de Israel; Gideão pode ser alguém que governe em nome do verdadeiro

rei. Isso poderia tornar a ideia ainda mais tentadora. Portanto, a

negativa de Gideão é impressionante. Ele sabe que Deus é o herói, e a

sua insistência nesse fato faz dele um herói. Faz sentido que ele, no

devido tempo, se aposente, morra em boa velhice e seja reunido aos seus

na tumba familiar. É dessa maneira que a história de um herói deve

terminar.

Outros aspectos da história comprometem aquela recusa e nos

deixam com uma impressão totalmente ambígua de um Gideão confuso.

Em maior destaque, há todas aquelas viúvas e os setenta filhos. É uma

característica própria do estilo de vida de um rei. O Antigo Testamento

reconhece esse fato e não expressa uma desaprovação explícita, mas

retrata a tendência do problema decorrente e, assim, deixa a conclusão

óbvia para as pessoas. Sem dúvida, possuir muitas esposas tem a ver

com sexo, mas também tem muito a ver com prestígio, pela quantidade

de filhos (nem tanto pela quantidade de filhas!). É o que pessoas como


Davi e Salomão fazem. Muitas das outras esposas de Gideão podem ter

sido esposas secundárias; o motivo da menção a Abimeleque e a sua

mãe se tornará mais claro no próximo capítulo.

Então, há o éfode. Usualmente, um éfode é uma espécie de

vestimenta sacerdotal, porém o uso, em sua confecção, de mais de vinte

quilos de ouro sugere algo muito mais substancial. Portanto, aqui o

termo talvez implique uma estátua vestida com o éfode, o que

justificaria o fato de o éfode se tornar um objeto que atraiu a adoração

do povo. Mais literalmente, isso os levou a agir de modo imoral;

textualmente, a palavra é uma referência à imoralidade sexual, que é

uma imagem usada com frequência pelo Antigo Testamento ao falar da

infidelidade das pessoas com respeito a Yahweh.

O que Gideão tinha na cabeça? Uma vez mais, a história não o acusa

abertamente pelo desvio de Israel após a sua morte (o “Mestre da

Aliança” era a maneira comunitária de o povo pensar sobre o Mestre,

talvez com o objetivo de assegurar, de algum modo, um relacionamento

de aliança). Explicitamente, isso chama a atenção para o fato de eles

falharem em manter o compromisso com o próprio Gideão em resposta

a tudo o que ele tinha realizado para eles. Não obstante, esse “agir

imoralmente” dos israelitas constitui um exemplo do padrão que

perpassa todo o livro de Juízes, embora somente aqui o texto resuma a

ação deles usando a expressão “agir imoralmente” para descrever o

desvio do povo; trata-se da mesma palavra usada quanto ao povo “agir

imoralmente” em relação ao éfode. Isso convida os leitores a ver uma

ligação. Sim, Gideão tem alguma responsabilidade quanto aos

acontecimentos relatados.

A ambiguidade que percorre a história de Gideão é resumida pela

ambivalência de seus nomes. É comum que os personagens do Antigo

Testamento tenham mais de um nome. Nesse caso (como ocorre em

outras passagens), os nomes são usados de forma irregular, sugerindo

que algumas versões utilizaram um nome enquanto outras usaram outro

nome; por fim, essas versões foram combinadas sem que os compiladores
de Juízes sentissem a necessidade de corrigi-las. O resultado suscita a

questão quanto a ele ser, de fato, Gideão ou O Mestre Contende.

Alternativamente, também levanta a questão sobre qual o significado

de Jerubaal (veja o comentário de Juízes 6:25-40) ser o mais relevante?

Trata-se de uma questão dupla sobre quem ele realmente pensava que

era e sobre qual foi o seu efeito duradouro sobre Israel.

No início do capítulo, a reclamação dos efraimitas chama a atenção

para um aspecto da dinâmica das histórias. Gideão é de Manassés, cujo

território domina a parte norte das principais montanhas. A batalha

ocorre na extremidade norte de seu território, na qual ele se encontra

com Zebulom, estando Aser e Naftali logo além. Como de costume,

embora seja possível associar essa crise e essa batalha a “Israel”, apenas

alguns clãs são envolvidos. A queixa de Efraim (clã vizinho de

Manassés, ao sul) é baseada no conceito mais amplo de Israel; eles

deveriam ter sido envolvidos na batalha, ainda que fossem menos

afetados pela crise. (Talvez também tenham imaginado obter uma maior

parte da pilhagem!) A subsequente recusa de Sucote e Peniel em

fornecer provisões a Gideão quando ele estava em perseguição aos reis

midianitas sugere o outro lado da moeda para o ressentimento dos

efraimitas. Quando alguns dos clãs expressaram o desejo de ocupar o

território a leste do rio Jordão, Josué temeu que eles não estariam,

verdadeiramente, comprometidos com o destino dos demais clãs (veja

Josué 1). Aqui, os temores de Josué são concretizados. Pode ser que

tivessem na mente preocupações práticas opostas àquelas dos

efraimitas. Do lado ocidental do Jordão, eles vivem muito mais

próximos de povos como os midianitas. Por uma razão ou outra, eles

não sentem, com relação a Gideão, um compromisso que reflita um

senso de pertencimento a um povo.


JUÍZES 9:1-57
O HOMEM QUE SERIA REI
1
Abimeleque, filho de Jerubaal, foi aos irmãos de sua mãe, em Siquém, e falou a eles e a toda

2
a parentela na casa paternal de sua mãe: “Vocês dirão aos ouvidos de todos os notáveis em

Siquém: ‘O que é melhor para vocês, setenta homens governando sobre vocês, todos filhos de

Jerubaal, ou um homem governando sobre vocês? Tenham em mente que eu sou a sua

3
própria carne e sangue.’” Os irmãos de sua mãe disseram todas essas coisas sobre ele aos

ouvidos de todos os notáveis de Siquém. Eles estavam dispostos a seguir Abimeleque,

4
porque (eles disseram): “Ele é nosso irmão.” Deram-lhe setenta [siclos] de prata da casa do

Mestre da Aliança, e, com esses, Abimeleque contratou homens inúteis e selvagens, e eles o

5
seguiram. Ele foi à casa de seu pai, em Ofra, e matou os seus irmãos, os filhos de Jerubaal,

setenta homens, sobre uma pedra. Mas Jotão, filho mais novo de Jerubaal, sobreviveu porque

6
se escondeu. Todos os notáveis de Siquém e todas [as pessoas] da Casa Fortificada se

reuniram. Eles foram e coroaram Abimeleque rei, junto ao carvalho na coluna de Siquém.

7
As pessoas contaram a Jotão, e ele foi e subiu ao topo do monte Gerizim. Ele ergueu a sua

8
voz e os chamou: “Ouçam-me, notáveis de Siquém, para que Deus possa ouvi-los. As

árvores, certa feita, foram ungir um rei sobre si mesmas. Disseram à oliveira: ‘Reine sobre

9
nós.’ A oliveira lhes disse: ‘Esgotaria eu o meu produto, por quem as pessoas honram a Deus

10
e aos seres humanos, para poder ir e acenar acima das árvores?’ Então, as árvores disseram

11
à figueira: ‘Venha e reine sobre nós.’ A figueira lhes disse: ‘Esgotaria eu a minha doçura, o

12
meu bom fruto, para poder ir e acenar acima das árvores?’ Então, as árvores disseram à

13
videira: ‘Venha e reine sobre nós.’ A videira lhes disse: ‘Esgotaria eu o meu vinho novo, que

14
faz Deus e os seres humanos regozijarem, para poder ir e acenar acima das árvores?’ Então,

15
todas as árvores disseram ao espinheiro: “Venha e reine sobre nós.” O espinheiro disse às

árvores: ‘Se vocês irão realmente ungir-me como rei sobre vocês, venham, abriguem-se à

minha sombra. Caso contrário, que o fogo saia do espinheiro e consuma os cedros do

Líbano.’”

[Nos versículos 16-57, Jotão prossegue na interpretação de sua parábola e, então, foge. Após

algum tempo, surge um conflito entre Abimeleque e os siquemitas que resulta no massacre do

povo por Abimeleque. Mais tarde, ele sitia outra cidade, Tebes, e ali morre quando uma mulher

atira uma pedra de moinho em sua cabeça.]

No comentário sobre Josué 20, citei uma jovem em minha classe que,

aparentemente, tinha um tumor cerebral. Por meio de um e-mail,

algumas semanas atrás, ela falou sobre as maneiras pelas quais Deus
estava falando com ela por meio das aulas que frequentou, durante o

verão e o outono, sobre estar pensando em casamento e acerca dos

misteriosos sintomas que teve. Lamentações, Daniel e outros livros

estavam falando ao coração dela de formas que eu jamais poderia

imaginar ou planejar. Há algumas noites, ela e seu marido vieram jantar

em minha casa, após quatro semanas casados, e pudemos conversar mais

sobre a riqueza daquele estudo do Antigo Testamento. Por dez anos,

estive à frente de um seminário, mas, passado esse tempo, desejei voltar

a ser um professor comum. Inúmeras vezes, pensei que o meu ensino

não fazia a menor diferença em meus alunos. Todavia, há momentos em

que o Senhor envia alguém para me corrigir e lembrar que o estudo que

incentivo as pessoas a fazer pode ser de grande valia.

Em tais dias, eu concordo com Jotão. Estar à frente do seminário era

a posição certa durante aqueles dez anos, porém ensinar é muito mais

válido do que administrar. É possível ter havido toda sorte de

considerações que levaram à proposta de Abimeleque e à sua aceitação.

Talvez ele se ressentisse do preconceito por ser filho de uma esposa

secundária e da condição daqueles a quem Gideão tratava como seus

“verdadeiros” filhos. A estranha referência à casa paternal de sua mãe

pode parecer natural no Ocidente moderno, mas parece bem anormal

numa sociedade tradicional. Pode ser que Abimeleque apenas

apreciasse a ideia de ser o “grande homem” da região; ou, talvez, ser um

filho secundário de Gideão fosse um grande negócio em Siquém, apesar

de não desfrutar do mesmo status, caso fosse para Ofra. Ou, ainda, os

siquemitas é que se ressentiam de estar sob o governo daqueles filhos

em Ofra.

O que os siquemitas possuíam em comum com os outros israelitas é

que eles estavam comprometidos com o Mestre da Aliança, que foi

citado ao fim da história de Gideão. Há uma dolorosa ironia com

relação a adorar o Mestre sob este nome, em Siquém. Josué 24 relata

como os israelitas se reuniram em Siquém e estabeleceram uma aliança

com Yahweh e como Josué fez uma aliança por eles que solenemente
celebra aquele compromisso. No entanto, Juízes 2 observa que o padrão

de vida relatado pelo livro é um que envolve a transgressão dessa

aliança por parte de Israel. Expressando em termos concretos, em

Siquém (de todos os lugares), o Mestre se tornou a figura de aliança na

vida deles. O povo de Siquém transformou o Mestre da Aliança em

patrocinador de sua trama para massacrar a família de Gideão. (Talvez a

“pedra” citada fosse, na verdade, um altar, como que uma espécie de

sacrifício ao Mestre; em Juízes 13, o pai de Sansão oferece um sacrifício

sobre uma rocha.)

Jotão, então, declama a sua provocadora parábola do mesmo local,

próximo a Siquém, no qual metade dos clãs tinha declarado a bênção de

Yahweh, quando os israelitas inicialmente chegaram à terra (veja Josué

8:33; trata-se da única outra conexão na qual o monte Gerizim é citado

no Antigo Testamento). Contudo, as suas palavras terminaram com

uma maldição, não com uma bênção. Ninguém que possua um trabalho

que valha a pena deseja ser um líder; e todo aquele que deseja ser um

líder constitui um grande perigo às pessoas que ele (ou ela) lidera. Isso

ocorre (Jotão prossegue implicando), especialmente, quando esse líder

demonstra ser alguém capaz de agir com a crueldade exibida por

Abimeleque e quando as pessoas se associam a essa perversidade. À luz

do que Gideão tinha feito por Israel, eles não poderiam chamar isso de

agir em boa-fé, poderiam? Como a ação deles não produz efeitos

negativos sobre o líder e o povo? Jotão ora para que isso aconteça. O

restante da narrativa mostra quão certo Jotão está e antecipa o que, em

geral, ocorre em Israel, na igreja e na sociedade.

Deus responde à oração de Jotão e envia um “espírito maligno”

entre Abimeleque e os “notáveis” de Siquém, os cidadãos que lideram

aquela cidade, os chefes das famílias (as pessoas da Casa da

Fortificação, aparentemente, constituem outro grupo). Eles, então,

“quebram a fé” em Abimeleque. Falar em Deus enviando um espírito

maligno poderia soar como se Deus interviesse para fazer acontecer

algo que jamais teria ocorrido naturalmente. Todavia, já dei a entender


que não seria surpresa se uma aliança, baseada na ambição e na

violência, fosse quebrada. O modo de a história enfatizar esse ponto é

que, por essa quebra de fé, a violência feita aos setenta filhos de Gideão

“veio”, como se ela estivesse aguardando para, no devido tempo, surgir

e concluir o seu trabalho. Em outras palavras, o sangue deles estava

“colocado” sobre Abimeleque e os siquemitas. Existe uma espécie de

processo natural pelo qual atos terríveis acarretam consequências

igualmente terríveis às pessoas que os cometem. Assim, o Antigo

Testamento pode descrever coisas envolvendo processos comuns de

causa e efeito, mas também algo no qual Deus está envolvido. O relato

sobre a aluna cujo tumor cerebral desapareceu pode fornecer uma

ilustração positiva disso; os médicos não fazem ideia do que aconteceu,

mas, caso algum dia possam explicar o desaparecimento do tumor em

termos médicos, decerto isso não nos impedirá de pensar que Deus fez

algo miraculoso na vida dela.

Enquanto Abimeleque está fora da cidade, os notáveis de Siquém

preparam-se por meio de um festival religioso na cidade e planejam um

golpe de Estado, porém o prefeito (presumidamente indicado por

Abimeleque) o informa do ocorrido. Ele retorna com seu exército

particular e conduz um massacre na cidade. Na sequência, Abimeleque

ataca uma cidade próxima, chamada Tebes (talvez tenham participado

da rebelião), cujos cidadãos buscaram refúgio na torre que, em geral, a

cidade constrói precisamente para esse propósito. Isso não intimida

Abimeleque; os siquemitas tinham feito o mesmo, e ele, simplesmente,

incendiou a torre. Contudo, antes de repetir esse ato, uma mulher lança

uma pedra de moinho em sua cabeça, partindo o seu crânio. Ele pede ao

seu escudeiro para matá-lo, pois não quer que as pessoas digam que ele

foi morto por uma mulher. No entanto, a história sobrevive para nos

contar que foi mais ou menos isso o que lhe sucedeu, assim como a

Sísera.
JUÍZES 10:1—11:29
QUANDO DEUS ACHA DIFÍCIL SER SEVERO

[Juízes 10 começa com breves relatos sobre dois outros libertadores, chamados Tolá e Jair.

Então, reporta como, uma vez mais, Israel se entregou ao serviço a outros deuses, o que leva

Deus a entregá-los ao domínio dos filisteus, a oeste, bem como aos amonitas, a leste.]

10
Então, os israelitas clamaram a Yahweh: “Fizemos o que era errado contra ti, pois

11
abandonamos o nosso Deus e servimos aos Mestres.” Yahweh disse aos israelitas: “Sim, dos

12
egípcios, dos amorreus, dos amonitas, dos filisteus — e dos sidônios, de Amaleque e de

13
Maom, eles os oprimiram, vocês clamaram a mim e eu os libertei das mãos deles. Mas

vocês me abandonaram e serviram a outros deuses. Por isso, não os libertarei novamente.

14
Vão e clamem aos deuses que vocês escolheram. Eles devem libertá-los em seu tempo de

15
angústia.” Os israelitas disseram a Yahweh: “Fizemos o que era errado. Tu mesmo trata-nos

16
segundo o que parecer bom aos teus olhos. Somente resgata-nos neste dia.” Eles

removeram os deuses estrangeiros do seu meio e serviram a Yahweh, e seu coração foi

subjugado pela miséria de Israel.

17
Os amonitas convocaram-se e acamparam em Gileade, e os israelitas se reuniram e

18
acamparam em Mispá. Os oficiais de Gileade disseram uns aos outros: Quem será o homem

que primeiro lutará com os amonitas? Ele será o cabeça sobre todo o povo que vive em

Gileade.”

CAPÍTULO 11

1
Ora, Jefté, o gileadita, era um poderoso guerreiro, mas ele era filho de uma mulher imoral.

2
Gileade gerou Jefté, mas a esposa de Gileade lhe tinha gerado filhos, e, quando os filhos de

sua esposa cresceram, eles expulsaram Jefté e lhe disseram: “Você não terá partilha na casa de

3
nosso pai, porque você é filho de outra mulher.” Então, Jefté fugiu de seus irmãos e viveu

em Boa Terra. Homens desonrosos se reuniram ao redor de Jefté e saíram [lutando] com ele.

[Os versículos 4-28 relatam como, à luz da reputação de Jefté, os gileaditas o convidam para

retornar e liderá-los contra os amonitas, que alegam que os israelitas tomaram deles a região

ocupada por Gileade; Jefté nega esse fato.]

29
O espírito de Yahweh veio sobre Jefté, e ele atravessou Gileade e Manassés, atravessou

para Mispá, em Gileade, e de Mispá, em Gileade, atravessou aos amonitas.

Em minhas orações diárias (bem, quase diárias, para ser honesto), oro

tanto pela nação quanto pela igreja em nosso país. Faço isso a despeito

do histórico de que as nações prosperam, triunfam e, então, declinam e


sucumbem, e de que o mesmo ocorre às igrejas. Venho de um continente

no qual a igreja, outrora florescente, agora é quase inexistente. Vivo

num país no qual a igreja, outrora pujante, agora está em franco

declínio e pode estar a caminho do mesmo destino. Se fosse Deus,

poderia, na verdade, estar tentado a deixar a igreja perecer. Não

obstante, em contextos nos quais Deus anunciou a intenção de derrubar

um povo, o Antigo Testamento coloca diante de nós exemplos de

pessoas pregando e também orando contra as probabilidades e de Deus

mudando a sua intenção de derrubar o povo. Isso molda a minha forma

de orar pela nação e pela igreja. Peço a Deus para resistir à tentação de

decidir que “Basta!”, e nos derrube. Um de meus encorajamentos para

fazer isso é que Deus tem dificuldades em ser severo. Não é difícil

persuadir Deus a dar mais uma chance às pessoas.

Uma vez mais, os israelitas abandonam Yahweh e cultuam outras

divindades. E, de novo, eles pagam por isso no campo político. A

exemplo de situações anteriores, eles clamam a Deus. Nessa ocasião,

porém, pela primeira vez, Deus diz: “Basta para mim!” O problema é

que Deus não é firme o suficiente para sustentar essa posição e, talvez,

os israelitas já suspeitem disso. Quando Deus diz: “Chegamos ao fim.

Não irei resgatá-los novamente”, poder-se-ia esperar que os israelitas

dissessem: “Está bem. Não adianta recorrer a ele, então.” Na verdade,

eles se voltam a Deus apesar de ouvirem a intenção divina de deixá-los

cozinhar no próprio caldo. Talvez, de fato, eles suspeitem que falte a

Deus a força de caráter para cumprir a sua intenção. Ou, é possível que

eles recorram a Deus porque sabem que é a coisa certa a fazer, mesmo

que isso não os leve a lugar algum.

Um contexto no qual é válido ler essas histórias é aquele dos

judaítas no exílio, no fim do relato que percorre Juízes, Samuel e Reis.

Eventualmente, o fato de Deus permitir a queda de Jerusalém nas mãos

da Babilônia, constitui a derradeira expressão de Deus dizendo: “Está

acabado.” No entanto, naquele contexto, a história em Reis e as orações

em Lamentações representam as pessoas se lançando a Deus e dizendo:


“Sim, temos agido de modo terrivelmente errado. Não temos nenhuma

queixa contra ti. Tudo o que podemos fazer é nos lançar em tua

misericórdia.” Então, tudo o que eles podem fazer é esperar. Essas

histórias em Juízes podem ser um encorajamento para aqueles exilados.

Talvez, Deus não seja capaz de manter a sua dura posição...

Assim ocorreu no relato em questão. O coração de Deus é

sobrepujado pela miséria de Israel. Literalmente, a alma, ou a pessoa, ou

o espírito de Deus “oprime-se” diante da miséria deles. Usualmente, a

palavra implica ser ineficaz, débil ou impaciente. Pode sugerir a

inexistência de recursos interiores para suportar por mais tempo. Deus

não possui os recursos interiores para suportar o sofrimento de Israel

por mais tempo, ainda que eles sejam merecedores disso. Deus não

consegue resistir à tentação de agir em favor deles. Reconhecidamente,

a maneira pela qual as coisas ocorrem as fazem parecer menos

maravilhosas do que se poderia esperar. Pode ser que isso, novamente,

mostre a forma de Deus operar com os potenciais humanos em uma

situação.

Como outras crises em Juízes, essa afeta determinada região do

território, bem como apenas alguns clãs. Nesse caso, a área afetada é

Gileade, situada a leste do Jordão, na qual vivem Rúben, Gade e metade

do clã de Manassés. Assim, trata-se de uma região extremamente

vulnerável a povos como os amonitas, que vivem ao sul.

O homem a quem os clãs recorrem é uma pessoa complicada, com

um histórico similar ao de Abimeleque. As traduções o descrevem como

o filho de uma prostituta, mas as palavras exigem apenas que ele seja

filho de uma mulher que desafia os códigos sociais da sociedade. Desse

modo, ele pode ser simplesmente um rapaz nascido do romance entre

seu pai (que também é chamado de Gileade) e uma garota solteira no

vilarejo. De todo modo, ele possui uma condição não diferente da de

Abimeleque. O seu pai assumiu a paternidade dele, mas todos sabem

que ele é um filho ilegítimo e, quando os demais filhos de Gileade se

tornam adultos, eles o expulsam. Talvez a experiência e a exclusão o


tenham levado às suas realizações, assim como ocorreu com

Abimeleque, tornando-o um guerreiro notável, motivando os gileaditas

a chamarem Jefté de volta para liderá-los contra os amonitas.

“Boa Terra” é um lugar distante e ao nordeste de Gileade; o nome

marcante sugere que ele vive bem, mas os homens com os quais ele se

envolve sugerem o oposto. Isso começa a ilustrar a ambiguidade de

Jefté, que emerge em sua negociação inicial com os amonitas, ao levá-lo

a lhes dar uma longa lição sobre as relações entre Israel e os povos

situados a leste do rio Jordão, em grande parte como elas são

recontadas na Torá. Os amonitas acusavam os gileaditas de terem se

apropriado indevidamente da terra deles; Jefté argumenta que eles não

fizeram tal coisa. Eles estabeleceram o objetivo de tentar evitar a

invasão de qualquer território a leste do Jordão. Todavia, lograram

dominar a terra pertencente aos amorreus (não Edom, Moabe ou

Amom), como resultado da insistência dos amorreus em atacar os

israelitas. Mas, de qualquer forma (ele prossegue), e quanto ao estatuto

das limitações? Todos esses fatos ocorreram trezentos anos atrás.

Quando os amonitas não se mostram convencidos, o espírito de

Deus vem sobre Jefté, como, certa feita, viera sobre Gideão (embora

não sobre Abimeleque). Ele é inspirado a atravessar a área a leste do

Jordão (provavelmente para reunir forças), enquanto se prepara para

enfrentar os amonitas, a exemplo de Elias competindo com o rei Acabe,

de volta a Samaria, quando a mão de Deus estava sobre ele (1Reis 18).

Então, vem o momento mais fatídico em sua história. Depois de

Abimeleque, podemos considerar que o livro de Juízes não pode

alcançar pontos mais baixos. Não poderíamos estar mais equivocados.


JUÍZES 11:30—12:15
O HOMEM CUJA PROMESSA FAZ O SANGUE GELAR
30
Jefté fez uma promessa a Yahweh: “Se realmente entregares os amonitas nas minhas mãos,

31
quem quer que saia pela porta da minha casa para me encontrar, quando eu retornar em

32
paz, oferecerei como uma oferta queimada.” Jefté atravessou os amonitas para batalhar

33
contra eles, e Yahweh os entregou nas suas mãos. Ele os derrubou desde Aroer até quando

se chega a Minite, vinte cidades, até mesmo a Abel-Qeramim, uma derrota muito grande.

Assim, os amonitas se sujeitaram diante dos israelitas.

34
Jefté chegou à sua casa, em Mispá, e sua filha estava saindo ao seu encontro com um

tamborim e dançando. Essa mesma garota era a sua única filha. Ele não tinha nenhum filho

35
ou filha à parte dela. Quando ele a viu, rasgou as suas roupas e disse: “Oh, não, minha filha,

você me abateu, me abateu, você mesma se tornou aquela que me trouxe calamidade. Eu

36
mesmo abri a minha boca a Yahweh. Não sou capaz de voltar atrás [sobre isso].” Ela lhe

disse: “Pai, você abriu a sua boca a Yahweh. Faça comigo conforme o que saiu de sua boca,

37
agora que Yahweh lhe trouxe grande reparação dos seus inimigos, os amonitas.” Mas ela

disse ao seu pai: “Que essa coisa seja feita para mim. Deixe-me sozinha por dois meses para

que possa andar, descer as montanhas e chorar pela minha virgindade, eu e minhas amigas.”

38
Ele disse: “Vá”, e a deixou ir por dois meses. Ela e suas amigas foram e choraram pela sua

39
virgindade nas montanhas. Ao fim de dois meses, ela voltou ao seu pai. Ela não tinha

40
dormido com um homem. Isso se tornou uma regra em Israel: cada ano, as garotas

israelitas saíam para celebrar a filha de Jefté, o gileadita, durante quatro dias no ano.

[O capítulo 12 relata a queixa dos efraimitas pelo fato de Jefté não os ter envolvido na batalha

com Amom, o que levou a uma luta entre os dois grupos e a morte de 42 mil efraimitas; a

história, incidentalmente, nos revela a origem da palavra “sibolete”. A narrativa também

fornece um breve relato sobre outros três libertadores, Ibsã, Elom e Abdom.]

Recentemente, o noticiário trouxe a história de um homem que estava

dando ré em seu carro e, acidentalmente, atropelou o próprio filho, que

estava brincando ali. Outra história relatou como certa mãe, que

aparentemente estivera bebendo e consumindo drogas, dirigiu na

contramão, em uma autoestrada, resultando na colisão com outro

veículo e, por consequência, em sua morte, na de seus filhos e na de

outras crianças que estavam viajando com ela. Alguns meses antes,

durante o verão, foi veiculada a história de um homem que deixou a


filha dentro do carro, num dia muito quente; a criança faleceu. O

sangue de qualquer pai ou mãe congela ao ouvir histórias similares

porque nos colocamos no lugar desses pais e sabemos que poderia

acontecer conosco. Apenas um breve ato, aparentemente de desatenção,

pode resultar em uma tragédia com a qual a pessoa convive pelo resto

de seus dias.

Uma característica extraordinária da história sobre Jefté e sua filha

é que ela se abstém, resolutamente, de nos dizer o que pensar sobre o

ocorrido. A narrativa não oferece expressões de aprovação ou

reprovação quanto ao que aconteceu. Isso não é incomum nas histórias

do Antigo Testamento, ou mesmo nas parábolas contadas por Jesus. O

resultado é que as pessoas chegam a conclusões muito distintas sobre o

significado da história (ou da parábola). Todavia, abster-se de expressar

julgamentos tem as suas vantagens. Embora a Bíblia, algumas vezes,

opere em nós revelando exatamente o que devemos pensar e fazer,

outras vezes ela trabalha em nosso íntimo permitindo que reflitamos

sobre o texto à luz do que diz em outras passagens. Isso pode levar a um

resultado mais poderoso.

Há algumas questões para as quais a narrativa não dá nenhuma

resposta. A promessa de Jefté foi resultante da vinda do espírito de

Deus sobre ele? Quem ou o que ele imaginou que sairia da casa ao seu

encontro? A promessa de Jefté teve algum efeito que levou Deus a lhe

dar a vitória? Por que o nome de sua filha não é mencionado? Não é

monstruoso que ele acuse a filha pelo que acontece e a veja como

trazendo calamidade sobre ele? Por que ela não resiste à implementação

da promessa de seu pai? Pelo que ela está chorando, quando chora por

sua virgindade? Por que Deus não interveio, a exemplo do que fez

quando Abraão estava prestes a sacrificar Isaque?

Algumas dessas perguntas são irrespondíveis. Aqui está como eu

esperaria que um israelita respondesse a algumas delas, à luz do resto do

Antigo Testamento. É impossível imaginar que Deus intencionou o

sacrifício da filha de Jefté, pois isso contradiz a própria Torá. Presume-


se que Jefté tivesse ciência disso; é irônico que, um pouco antes, ele

demonstrasse um íntimo conhecimento da história contada pela Torá

sobre como os israelitas assumiram o controle do território a leste do

Jordão. Se Israel estivesse funcionando apropriadamente, sua filha, sua

mãe e outros na comunidade também saberiam que o sacrifício humano

contraria a Torá. Todavia, obviamente, todos estão seguindo as

presunções de outros povos que sacrificam os seus filhos. O Antigo

Testamento, em geral, mostra que as promessas a Deus tendem a sair

pela culatra. Além disso, se Jefté tivesse mais familiaridade com o Deus

da Torá, decerto saberia que é possível renegociar uma promessa

insensata com ele. Deus não interveio pelo mesmo motivo que ele,

usualmente, não intervém quando (por exemplo) os pais abusam ou

matam os seus filhos; Deus permite que nós, como seres humanos,

exerçamos a nossa responsabilidade e não recorre, com frequência, a

intervenções.

À luz da maneira pela qual a história em Juízes se desenvolve, há

sentido em ver essa história como um aspecto da constante degeneração

da vida de Israel que, no devido tempo, resultará no julgamento final de

que o povo estava fazendo o que era certo aos seus próprios olhos

(Juízes 21:25). É uma degeneração que afeta, especialmente, a posição

das mulheres em Israel; a história em questão é doentia, e os relatos

subsequentes são, pelo menos, tão doentios quanto ou mesmo piores.

Embora os leitores modernos possam ficar chocados pelo fato de o

Antigo Testamento apresentar histórias como essa, na realidade parte

de sua grandeza é devida a isso. Ele não é um livro que nos forneça uma

forma de escapar da realidade deste mundo, mas uma obra que esfrega

em nosso nariz a realidade como ela é. A ausência de juízos morais

explícitos (“Jefté fez o que era mal aos olhos do Senhor”) foca a nossa

atenção na própria história e no horror de suas implicações no tocante à

estupidez de Jefté e o sofrimento de uma garota. Isso pode ter a

capacidade de fazer diferença em nossa vida com respeito a homens

assim e à nossa preocupação com as suas vítimas.


Além do mais, a narrativa concede grande proeminência ao lamento

da filha de Jefté junto às suas amigas e a maneira pela qual os israelitas

estabeleceram uma prática de celebrar a memória dela. Isso oferece

escopo para outras jovens mulheres se unirem, permanecerem juntas e

refletirem sobre a sua situação de uma forma consciente, em meio a um

mundo no qual os homens abusam de mulheres, como Jefté fez, e no

modo em que elas lidam com as realidades de sua posição no mundo.

Uma amiga, recentemente, esteve em um retiro de mulheres. Isso me

leva a refletir: “Por que é necessário haver um retiro de mulheres?” Eu

não quero ter um retiro de homens. Sobre o que elas estão falando lá

para não desejarem a minha presença? (Aparentemente, alguns homens

apreciam, de fato, estar em um retiro só para eles: acabei de ser

convidado a palestrar em um deles.) Sem dúvida, existem inúmeros

motivos, mas a facilidade com que nós, homens, nos silenciamos, diante

de tantos “sacrifícios” de mulheres, é uma das respostas à questão.


JUÍZES 13:1-25
ENTRETENDO ANJOS SEM SABER
1
Os israelitas, novamente, fizeram o que era inaceitável aos olhos de Yahweh, e Yahweh os

2
entregou nas mãos dos filisteus durante quarenta anos. Havia certo homem de Zorá, da

3
parentela de Dã, cujo nome era Manoá. Sua esposa era estéril; ela não tinha gerado filhos. O

ajudante de Yahweh apareceu à mulher e lhe disse: “Você é estéril, não gerou filhos, mas você

4
ficará grávida e dará à luz um filho. Então, agora, tenha cuidado, não beba vinho ou licor,

5
nem coma qualquer coisa tabu, porque você ficará grávida e dará à luz um filho, e nenhuma

navalha deve passar pela cabeça dele, porque o menino será uma pessoa dedicada a Deus

desde o ventre, e ele começará a libertar Israel das mãos dos filisteus.”

[Os versículos 6-14 descrevem como a mulher conta o episódio ao seu marido, que ora para que

o ajudante possa aparecer novamente; ele o faz, repetindo a mensagem.]

15
Manoá disse ao ajudante de Yahweh: “Podemos detê-lo e preparar um cabrito diante de

16
ti?” O ajudante de Yahweh disse a Manoá: “Se você me deter, não comerei a sua comida,

mas, se preparar uma oferta queimada, que você a ofereça a Yahweh” (porque Manoá não

17
percebeu que ele era o ajudante de Yahweh). Manoá disse ao ajudante de Yahweh: “Qual é

18
o teu nome? Quando as tuas palavras se cumprirem, honraremos a ti.” O ajudante de

Yahweh lhe disse: “Por que você pergunta o meu nome quando ele é impressionante?”

19
Manoá pegou o cabrito, a oferta de cereal e os ofereceu sobre uma rocha a Yahweh, e ele fez

20
algo incrível enquanto Manoá e sua esposa estavam olhando. Quando a chama subiu do

altar até os céus, o ajudante de Yahweh subiu na chama do altar enquanto Manoá e sua

21
mulher estavam olhando. Eles prostraram com o rosto em terra. O anjo de Yahweh não

apareceu novamente a Manoá e à sua esposa.

22
Manoá percebeu que tinha sido o ajudante de Yahweh. Manoá disse à sua esposa: “Nós

23
morreremos, nós morreremos, porque vimos Deus!” Sua esposa lhe disse: “Se Yahweh

quisesse nos matar, ele não teria recebido a oferta queimada e a oferta de cereal de nossa mão

e não nos teria deixado ver todas essas coisas ou apenas agora nos contaria uma coisa como

essa.”

24
A mulher deu à luz um filho e o chamou de Sansão. O menino cresceu, e Yahweh o

25
abençoou. O espírito de Yahweh começou a impeli-lo no acampamento de Dã, entre Zorá e

Estaol.

Amigos meus acabaram de engravidar. Não estou acostumado a usar

esse verbo na primeira pessoa do plural; quando era mais jovem, apenas

a mulher engravidava, mas, nos tempos atuais, é uma operação


conjunta. Existe certa pertinência nisso, pois o evento requer a

participação de duas pessoas. Quando um casal não pode engravidar, o

problema pode estar na mulher, mas também pode estar no homem, e,

presumidamente, os israelitas compreendiam isso. Se uma mulher não

conseguisse engravidar, o seu marido tomava uma segunda esposa, na

esperança de que ela pudesse lhe trazer melhor sorte. Mas, então, a

segunda esposa também não conseguia conceber, e, assim, presume-se

que eles somavam dois mais dois, ainda que não tocassem nesse assunto.

Esse casal amigo passou por toda sorte de testes, e concluiu-se que o

problema residia na mulher. Então, os médicos a fizeram passar por

tratamentos estranhos, cujos detalhes nem mesmo desejo saber, e,

agora, ela está grávida de quatro meses. Eles formam um casal adorável,

e ela é uma pessoa muito amorosa. Sem dúvida, será uma mãe

maravilhosa. Assim, por inúmeros motivos sinto-me empolgado, mas,

decerto, a minha empolgação nem chega perto do entusiasmo e da

expectativa daquele casal e de seus pais.

A esposa de Manoá também será uma mãe maravilhosa. Igualmente,

ela muito esperou e tentou, experimentando um desapontamento a cada

mês, mas, agora, ela terá o seu bebê. Teria sido ela a lhe dar o nome, que

faria as pessoas pensarem em raio de sol (de modo mais literal, o seu

nome é shimshon, e a palavra hebraica para sol é shemesh). Alguns

podem pensar no deus-Sol, porém dificilmente sua mãe pensaria nisso.

Conheço outra mulher que esperou um longo tempo para engravidar.

Quando o bebê nasceu, ela afirmou que o sol brilhou nos olhos de seu

filho. Suspeito que a atitude da mãe de Sansão foi similar a essa.

Mais importante, ela será uma mãe maravilhosa por seu grande

discernimento espiritual. Se, no caso de Jefté, ele não recebeu suficiente

ensinamento sobre Yahweh e os caminhos divinos para saber como se

relacionar com Yahweh e mesmo com sua filha (e se ela, por

consequência, também não recebeu ensino suficiente nesse tema), não

há o menor perigo de isso ocorrer de novo e aquele menino não

aprender o suficiente com sua mãe. Por outro lado, o marido dela
precisa aprender uma coisa ou duas. O ajudante de Yahweh sabia o que

estava fazendo ao aparecer à esposa em lugar de aparecer ao marido.

Estranhamente, a história equilibra-se na tensão entre a visão

divina, quanto a marido e esposa possuírem igual posição em relação a

Deus, à sociedade e mutuamente, e a realidade patriarcal no mundo, por

meio da qual os homens contam mais do que as mulheres. A narrativa

jamais revela o nome da esposa, mas nomeia o marido; ela obtém o seu

significado na sociedade com base no filho gerado por ela e o homem

com o qual está casada (embora seja exagerado afirmar que isso

expressa uma compreensão de propriedade quanto ao casamento). Ela

também se diferencia do marido na maneira em que lida com o

aparecimento do ajudante divino a ela. Talvez ela esteja naturalmente

presa ao modo de pensamento patriarcal. Certamente, Manoá pensa

dessa forma. O ajudante conta à sua esposa como eles devem tratar o

bebê, mas isso não basta para Manoá. Pode ele acreditar que ela

entendeu direito? Ele quer ouvir por si mesmo.

Evidentemente, Deus não está preso a esse modo de pensar, porque,

na verdade, o ajudante aparece a ela. Claro que é ela que irá ter a

criança e, usualmente, a mãe em potencial costuma ser o recipiente de

tais revelações na Bíblia. Todavia, quando Manoá pede a Deus para

enviar o ajudante uma vez mais, a fim de lhe contar diretamente o que

fora dito à sua esposa, o ajudante aparece uma segunda vez diante dela,

mas, então, se dispõe a esperar enquanto ela vai chamar o marido.

Nem o homem nem a sua esposa devem ser acusados por não

perceberem que estavam diante de uma figura sobrenatural. Um

ajudante ou um “anjo” não ostenta asas ou uma auréola sobre a cabeça.

Nas histórias do Antigo Testamento, o ajudante ou anjo aparece como

um ser humano. Somente quando algo extraordinário acontece é que as

pessoas percebem que ele é mais do que aparenta ser. Por outro lado,

quando o extraordinário ocorre, novamente a esposa de Manoá mostra

que é uma pessoa com discernimento espiritual, ou apenas dotada de

bom senso.
A palavra para alguém “dedicado” a Deus é nazir. Números 6

estabelece algumas regras para pessoas que queiram dedicar-se

especialmente a Deus por um período de tempo; não é dito para qual

propósito elas desejam fazer isso. A história de Sansão é distinta porque

implica que o seu voto nazireu será para toda a vida. O voto envolve a

abstinência de álcool e de deixar o cabelo crescer; a importância dessa

última regra não é óbvia, mas sabemos que, na cultura ocidental, não

cortar os cabelos ou raspá-los pode ser uma declaração cultural

significativa. Também significa ser inflexível quanto ao tipo de tabus em

relação à comida que pessoas como sacerdotes eram obrigadas a

observar para não comprometer o seu ministério sacerdotal.

Um famoso versículo em Provérbios promete: “Instrua a criança

segundo os objetivos que você tem para ela, e mesmo com o passar dos

anos não se desviará deles” (Provérbios 22:6, NVI). Como outras

promessas no livro de Provérbios, esta funciona quase sempre, mas nem

sempre. Aliás, vocês podem ser os melhores pais do mundo, mas isso não

garante no que o seu filho se tornará. O relato que iremos ler sobre

Sansão deve ter sido doloroso para seus pais. Antes disso, o presente

capítulo chega a um belo encerramento com a descrição do menino

crescendo debaixo da bênção divina e o espírito de Deus começando a

movê-lo ao encontro de sua vocação. O versículo de abertura do

capítulo nos leva a pensar que isso significa o início de uma ação para

libertar o seu povo dos filisteus. Ele o faz, mas não da maneira que

imaginamos.
JUÍZES 14:1—15:20
QUERIDA, RESOLVEMOS O ENIGMA
1 2
Sansão desceu a Timna e viu uma mulher em Timna entre as mulheres filisteias. Ele subiu

e disse ao seu pai e à sua mãe: “Vi uma mulher em Timna entre as mulheres filisteias; assim,

3
agora, consiga-a para mim como esposa.” O seu pai e a sua mãe lhe disseram: “Não há uma

mulher entre as mulheres de sua parentela ou entre todo o meu povo, para você ir e

conseguir uma esposa dos filisteus incircuncisos?” Sansão disse ao seu pai: “Consiga aquela

4
mulher para mim, porque ela é a certa aos meus olhos.” Seu pai e sua mãe não reconheceram

que isso provinha de Yahweh porque ele estava buscando uma oportunidade dos filisteus

5
(naquela época, os filisteus estavam governando sobre Israel). Sansão, seu pai e sua mãe

desceram a Timna e chegaram às vinhas de Timna. Lá, um jovem leão começou a rugir ao

6
encontrá-lo. O espírito de Yahweh apoderou-se dele, e ele o rasgou como alguém que rasga

um cabrito; não havia nada em suas mãos. Ele não contou a seu pai e à sua mãe o que tinha

feito.

7 8
Então, ele desceu e falou com a mulher. Ela era certa aos olhos de Sansão. Ele voltou,

algum tempo depois, para buscá-la e virou-se para ver os restos do leão. Havia um enxame de

9
abelhas na carcaça do leão e mel. Ele colheu o mel com as mãos e continuou comendo. Ele

foi ao seu pai e à sua mãe e lhes deu algum, e eles o comeram. Ele não lhes contou que tinha

10
colhido o mel da carcaça do leão. Então, o seu pai desceu à mulher, e Sansão fez um

11
banquete ali, porque isso era o que os jovens costumavam fazer. Quando eles o viram, eles

conseguiram trinta companheiros, e eles estavam com ele.

[Na passagem de 14:12-18, Sansão desafia os companheiros a decifrar um enigma; o lado

perdedor daria trinta vestes ao lado vencedor. O enigma dizia respeito ao incidente com o leão:

“Do que come saiu algo para comer: de um forte saiu doçura.” A noiva de Sansão o persuadiu a

lhe revelar a resposta ao enigma e, por sua vez, ela a contou aos demais rapazes, de modo que

eles venceram o desafio. Sansão ficou enfurecido.]

19
O espírito de Yahweh apoderou-se dele, e ele desceu a Ascalom e derrubou trinta de seus

homens. Ele pegou o que foi arrancado deles e deu as vestes para os homens que tinham

20
decifrado o enigma. Sua ira se acendeu, e ele foi para a casa de seu pai, e a esposa de Sansão

veio a pertencer ao seu companheiro, que tinha sido seu padrinho.

[O texto de 15:1-20 relata que, mais tarde, Sansão descobre que não pode mais reivindicar a

sua noiva e ele se vinga dos filisteus ao incendiar a colheita deles. Eles respondem matando a

garota e o pai dela; Sansão, portanto, mata mais alguns deles. Os filisteus invadem Judá

procurando por ele; os judaítas o entregam aos filisteus, mas ele consegue se livrar e matar

outros mil.]
Em nosso casamento, apenas coisas triviais deram errado.

Reconhecidamente, para Ann e para mim, não havia muito o que fazer.

A certa altura, seu pai disse que não compareceria; isso mostrava o grau

de sua desaprovação por mim. Como Sansão, eu possuía cabelos longos

(ser um teólogo também significava ser bom com enigmas, mas não em

enfrentar leões). Todavia, com seu jeito mais cativante, Ann lhe disse

quanto ela gostaria de ser levada ao altar por seu pai (leia-se: eu ainda

irei me casar, estando você presente ou não), e ele cedeu. O ministro

esqueceu o nome do meio de Ann, o que foi vergonhoso porque os seus

pais queriam muito que ele fosse incluído (creio que era o nome da avó

dela). Por fim, provoquei a nossa primeira briga conjugal ao prender o

casaco de seu belo traje de despedida na porta do carro em minha ânsia

de escapar das possíveis pegadinhas de meus amigos (os britânicos são

pródigos em trotes aos noivos, na mesma proporção que os norte-

americanos não são).

Os problemas enfrentados por Sansão e sua noiva precisavam ser

mais críticos dos que Ann e eu enfrentamos, mas Sansão não consegue

fazer as coisas pela metade e não tem a capacidade de apenas dar de

ombros. O seu nome do meio é excesso. Depois da natureza cativante

da história sobre o seu nascimento, seu histórico, a breve declaração

sobre a crescente experiência da bênção de Deus em sua vida e o efeito

do espírito de Deus sobre ele, chega a ser um choque quando o relato

avança no tempo e descreve o período que, presumidamente,

corresponde ao fim da adolescência de Sansão (em sociedades

tradicionais, as pessoas se casavam muito cedo, de modo que é difícil

imaginá-lo como um adulto pleno e ainda solteiro. Ainda, Sansão age

como um adolescente, cheio de energia, mas dotado de pouca

sabedoria).

Politicamente, o cenário é similar àquele da história de Jefté,

embora os protagonistas sejam outros. A história de Jefté dizia respeito

aos clãs situados a leste, para os quais Amom era o problema. Para Dã,

no lado ocidental, o problema eram os filisteus. Enquanto povos como


Amom, Moabe e Edom são todos relacionados com Israel e os conflitos

entre eles são discussões familiares, os filisteus são estrangeiros. Eles

nem mesmo praticam a circuncisão, como qualquer povo civilizado (a

circuncisão era um rito ao qual Deus dava uma importância especial em

Israel, mas não é um rito exclusivamente israelita, embora a sua

aplicação na infância, não na puberdade, fosse um traço incomum). Eles

são da Europa, pelo amor de Deus. Eles e outros grupos, oriundos do

outro lado do Mediterrâneo, conhecidos coletivamente como os “Povos

do Mar”, estavam causando problemas em grande parte do Oriente

Médio. Além disso, estavam entre aqueles que ganhavam terreno em

Canaã, vindos do lado ocidental, no tempo em que Israel estava se

tornando uma força a ser reconhecida nas montanhas (por esse motivo,

com frequência, a narrativa fala em “descer” à Filístia e “subir” ao

território israelita). Os desafortunados danitas estavam, então, sob a

pressão desse povo mais sofisticado. Juízes, no entanto, não enxerga isso

como uma questão de má sorte, mas como outro exemplo do uso comum

que Deus faz de eventos políticos para disciplinar o povo inclinado a

reverenciar outras divindades.

Sansão é a pessoa que Deus planeja usar para libertar Israel do

domínio filisteu. Assim, a primeira coisa que ele faz é decidir se casar

com uma garota filisteia. Nas sociedades tradicionais, os casamentos são

usualmente “arranjados”, mas isso não significa que os arranjos são

definidos pelos pais sem a devida consulta aos jovens envolvidos. Ainda,

outros relatos do Antigo Testamento deixam claro que a iniciativa pode

partir do casal. O ponto é que a sociedade reconhece a importância dos

casamentos e seu efeito sobre toda a comunidade; não se trata apenas de

um arranjo particular entre duas pessoas. Dessa forma, não há nada de

estranho no fato de Sansão enamorar-se de uma garota e pedir aos seus

pais para começarem as tratativas desse arranjo conjugal. O problema

reside no lugar em que ele a escolhe. Novamente, não é mera

coincidência que ela seja uma filisteia. Outros filisteus, incluindo alguns

da cidade filisteia de Gate, recebem uma honrosa menção na história do


Antigo Testamento, mas a pressuposição, então, é de que eles vieram a

conhecer Yahweh, o Deus de Israel. A difamação aos filisteus, em geral,

pelo fato de eles serem “incircuncisos” está relacionada a isso. Um

homem não pode participar da aliança se ele for incircuncidado.

Paradoxalmente, isso é algo mais no qual Deus está envolvido. Dizer

que a fantasia de Sansão com relação a essa jovem filisteia veio de Deus

não significa que isso ocorreu contra a vontade de Sansão. No

comentário sobre Juízes 3, observamos como o Antigo Testamento

aprecia ver muitos níveis de explicações nos eventos. Aqui, igualmente,

há dois níveis de importância em razão do que acontece. Sansão faz o

que deseja fazer; Deus está usando essa sua característica. Deus objetiva

dar um fim à dominação dos filisteus sobre o clã de Dã e tenciona

utilizar Sansão para lograr esse fim. Deus não insiste em ter pessoas

honradas como agentes na realização de seus planos; como já

observamos, isso poderia significar uma espera eterna. Deus utiliza

pessoas com todas as suas deficiências humanas. Desse modo, quando o

espírito de Deus vem sobre alguém, a sua preocupação é realizar algo

poderoso, não imediatamente fazer algo moral, embora um evento como

o leão sendo dilacerado por Sansão constitua parte do propósito moral

de Deus na derrubada dos filisteus. O mesmo é verdadeiro quanto ao

seu notável feito contra os filisteus em Ascalom. Pode-se dizer que

Sansão agiu de modo errado, mas isso também contribuiu para a

implementação da intenção divina com respeito aos filisteus.

Não obstante, o comportamento de Sansão segue um padrão que

nega a sua vocação. Esse é um tema subjacente à sua história. A

investigação sobre a carcaça do leão indica isso, pois ser dedicado a

Deus significa evitar o contato com coisas mortas; Sansão ignora esse

princípio. Aqui também, entretanto, Deus apenas faz esse ato contribuir

para o cumprimento de seu propósito. Deus usará Sansão quer ele faça a

coisa certa quer não.


JUÍZES 16:1-21
AMOR DE VERDADE
1 2
Sansão foi a Gaza, viu lá uma prostituta e dormiu com ela. Os gazitas foram informados:

“Sansão veio aqui.” Eles se reuniram em redor e esperaram por ele durante toda a noite junto

à porta da cidade. Ficaram imóveis por toda a noite, dizendo: “Quando a manhã vier, nós o

3
mataremos.” Sansão ficou na cama até a meia-noite, levantou-se, agarrou a porta da cidade

e os dois batentes, arrancou-os com a tranca, colocou-os sobre seus ombros e os levou ao

topo da montanha defronte de Hebrom.

4 5
Depois disso, ele amou uma mulher no vale de Soreque, chamada Dalila. Os governantes

dos filisteus subiram a ela e lhe disseram: “Cative-o e veja onde está a sua grande força e

como podemos superá-lo e amarrá-lo, para subjugá-lo. Cada um de nós lhe dará 1.100

6
[siclos] de prata.” Então, Dalila disse a Sansão: “Contar-me-á onde está a sua grande força e

como você pode ser amarrado de modo que seja subjugado?”

[Nos versículos 7-14, Sansão primeiramente dá a ela três respostas falsas.]

15
Então, ela lhe disse: “Como pode dizer que me ama se a sua alma não está comigo? Nessas

16
três vezes, você me enganou e não me contou onde está a sua grande força.” Por ela o

pressionar com suas palavras, durante todo o tempo, suplicando-lhe, e seu espírito ficar

17
morto de cansaço, ele contou a ela tudo em sua alma. Ele lhe disse: “Nenhuma navalha

passou em minha cabeça, porque fui dedicado a Deus desde o ventre de minha mãe. Se o meu

cabelo fosse cortado, minha força me deixaria e eu ficaria fraco. Eu seria como qualquer

18
homem.” Dalila viu que ele lhe tinha contado tudo e enviou uma convocação aos

governantes dos filisteus, dizendo: “Subam mais uma vez, porque ele me contou tudo.” Os

19
governantes dos filisteus subiram até ela e trouxeram o dinheiro com eles. Ela o fez dormir

em seu colo, chamou um homem e o fez cortar as sete tranças na cabeça dele e começou a

20
afligi-lo; sua força o deixou. Ela disse: “Os filisteus estão sobre você, Sansão!” Ele

despertou de seu sono e disse: “Eu sairei como das outras vezes e me livrarei.” Ele não

21
percebeu que Yahweh o havia deixado. Os filisteus o agarraram e arrancaram os seus olhos.

Eles o levaram a Gaza e o amarraram em algemas de bronze, e ele se tornou alguém que moía

grãos na prisão.

Após o incidente de algumas semanas atrás, quando um homem a bordo

de um avião com destino a Detroit tentou explodir a si mesmo e o avião

como um ato de terrorismo contra os Estados Unidos e o mundo

ocidental, em geral emergiu um extraordinário pedaço do histórico

referente àquele evento. Algumas semanas antes, o pai desse homem


(um respeitado líder em seu país) havia contatado a embaixada dos

Estados Unidos e as agências de segurança em seu país para falar sobre

as “extremadas visões religiosas” de seu filho e o temor de que ele

estivesse “planejando algo”. Um repórter comentou: “Quase senti pena

daquele pobre pai.” Minha reação foi: “Quase?” O que o pai deve ter

sentido quanto ao curso que a vida de seu filho tinha tomado? O que

sentiu a sua mãe? E como eles se sentiram quando a notícia sobre o

frustrado ato de seu filho, que poderia resultar numa terrível

calamidade, começou a ser veiculada?

De uma perspectiva feminina, toda a história de Sansão torna a sua

leitura sombria. Primeiro, havia a mulher que o gerou, que conhecia a

visão de Deus para a vida de seu filho, que se compromete com Deus e

com seu filho, mas que, então, é obrigada a vê-lo tornar a sua própria

vida numa grande confusão, mesmo que, inconscientemente, seja esse o

meio de Deus colocar em prática a sua vontade. Decerto, era evidente

para sua mãe que ele nunca estava feliz, e posso imaginar o sofrimento

dela, dia e noite, por causa do destino de seu filho.

Segundo, havia a esposa. Já observei que não há suposição de que

ela se tornou comprometida com Sansão contra a sua vontade e que ele,

evidentemente, era um rapaz de boa aparência a quem muitas garotas

considerariam um grande partido. Contudo, a história não diz nada

disso. Ela, simplesmente, é uma vítima das circunstâncias e dos fatos.

Sansão é que a vê, pede a ajuda de seus pais para consegui-la, fala com

ela e vai para tomá-la. Os compatriotas dela, então, a ameaçam para

descobrir a resposta do enigma, o que, para ela, significa a perda de

Sansão e o seu casamento com outro homem. Sansão não recebe

permissão para vê-la, o que leva a outro conflito que resulta em sua

morte. Ela é até uma vítima de Deus, pois Deus busca uma forma de

causar problemas aos filisteus.

Terceiro, há a prostituta. Como notamos, no comentário sobre

Raabe, em Josué 2, o que normalmente leva mulheres ao comércio

sexual são circunstâncias que tornam a venda do próprio corpo para


satisfazer os desejos sexuais dos homens o seu único meio de

sobrevivência. Ainda, é razoável considerar que isso foi o que tornou

essa mulher disponível a Sansão.

O nome de nenhuma dessas mulheres é revelado, exceto o de Dalila.

Pelo menos Sansão está apaixonado por ela. E quanto a ela? Está

apaixonada por Sansão? O texto não nos revela. A perspectiva dela é,

novamente, irrelevante. O que importa é o papel que ela é forçada a

desempenhar; ela também é uma vítima de seus compatriotas, e, como

resultado, Sansão se torna uma vítima dela e deles. O seu cabelo é o

último símbolo de sua promessa para ser alguém dedicado a Deus. O

incidente envolvendo o leão e o mel significou trair a proibição de tocar

em algo tabu; o grande banquete, no capítulo 14, certamente significou

trair a proibição quanto ao consumo de álcool; o seu relacionamento

com uma mulher filisteia significa a perda de seus longos cabelos, o

símbolo permanente e visível de sua dedicação.

Com certa ironia, Sansão termina como a quinta mulher na história,

porque ele passa a moer grãos. Não há nada humilhante ou desabonador

no ato de moer grãos em si; era uma tarefa como arar ou semear, sempre

necessária em Israel. Na verdade, era uma atividade sobremodo

honrada. Contudo, Israel tinha formas convencionais de dividir as

tarefas entre os membros da família: os homens aravam enquanto as

mulheres moíam os grãos. Não há muito o que os captores de um

homem cego podem forçá-lo a fazer. O que podem obrigá-lo a fazer é o

trabalho de uma mulher.

Em mais de uma ocasião, ele realizou algo extraordinário e parecia

que podia fazer isso apenas por possuir um físico ímpar; por ser uma

espécie de Rambo. Contudo, em três episódios ele fez algo

extraordinário porque “o espírito de Yahweh apoderou-se dele”, e

parece justo considerar que a vaga declaração anterior sobre o espírito

de Yahweh começar a impeli-lo (13:25) implica que todas as suas

notáveis conquistas refletiram aquela dinâmica. Assim, ele não era afinal

um brutamontes? Ele foi um rapaz franzino que fez coisas


extraordinárias? Pode ser que sim, mas estou mais inclinado a concluir

que as suas capacidades “naturais” e o estímulo sobrenatural de Deus

operaram em conjunto. De todo modo, abrir mão do símbolo de seu

comprometimento com Deus significava perder o envolvimento de

Deus com ele.


JUÍZES 16:22-31
MAS O CABELO DE SANSÃO COMEÇOU A CRESCER

NOVAMENTE
22 23
O cabelo de Sansão começou a crescer tão logo tinha sido cortado. Ora, os governantes

dos filisteus se reuniram para a oferenda de um grande sacrifício a Dagom, o deus deles, e

para festividades. Eles disseram: “O nosso deus nos entregou o nosso inimigo, Sansão, em

24
nossas mãos.” Quando o povo o viu, louvou o seu deus, porque (disseram): “O nosso deus

nos entregou o nosso inimigo em nossas mãos, aquele que devastou a nossa terra e

25
multiplicou os nossos mortos.” Segundo o que era bom em seu pensamento, disseram:

“Tragam Sansão. Ele deve nos entreter.” Assim, chamaram Sansão da prisão, e ele os

divertiu.

26
Eles o colocaram entre as colunas, e Sansão disse ao rapaz que o estava segurando pela

mão: “Solte-me e deixe-me sentir os pilares dos quais a casa depende para que me possa

27
apoiar neles.” A casa estava cheia de homens e mulheres. Todos os governantes dos

filisteus estavam lá, e na cobertura estavam cerca de três mil homens e mulheres olhando

28
Sansão os divertir. Sansão clamou a Yahweh: “Meu Senhor Yahweh, estarás atento a mim?

Dar-me-ás força apenas desta vez, Deus, para que possa obter reparação dos filisteus, uma

29
reparação por meus dois olhos?” Sansão agarrou os dois pilares do meio, dos quais a casa

dependia, e se apoiou neles, um com sua mão direita e o outro com sua mão esquerda.

30
Sansão disse: “Eu mesmo posso morrer com os filisteus” e empurrou com toda a sua força.

A casa caiu sobre os governantes e sobre todas as pessoas nela. As pessoas a quem ele causou

31
a morte, ao morrer, foram mais do que as que ele causou a morte enquanto viveu. Seus

irmãos e todos os da casa de seu pai desceram, o levantaram, o levaram para cima e o

enterraram entre Zorá e Estaol, no túmulo de Manoá, o seu pai. Ele liderou Israel durante

quarenta anos.

Na primeira vez em que fui a Israel, participei de uma empolgante

escavação arqueológica. Ao lado de um clube de tênis, na grandiosa e

moderna cidade de Telavive, no Mediterrâneo, no qual as pessoas

começavam a jogar às seis horas da manhã, pois a temperatura estaria

muito elevada depois do meio-dia, está Tel Qasile. Como a tel de Jericó,

mas em menor escala, o tel é uma colina artificial acidentalmente

formada pelas ruínas de uma sucessão de cidades, construídas em cima

da anterior (portanto, o nome Tel Aviv, “Colina da Primavera”, sugere


uma combinação entre o antigo e o novo). Como em Jericó, procuramos

descobrir a história da cidade por meio de escavações (com espátula,

não escavadeiras pesadas), explorando as camadas da colina como se

fossem camadas de um bolo, mapeando cuidadosamente onde

encontramos algo, além de lama. Também começamos essa operação às

seis da manhã, pois a temperatura elevada impede as escavações após o

meio-dia. Telavive está situada numa área originariamente alocada ao

clã de Dã; esse é o nome da companhia de ônibus local. Nos dias de

Sansão, portanto, fazia parte da região ocupada pelos filisteus, e Tel

Qasile era uma cidade filisteia. Uma das grandes descobertas do ano, da

qual participei ali, foi a descoberta de seu santuário. Não era um edifício

grande ou impressionante, mas um detalhe característico e empolgante

de sua construção, revelado pela descoberta, foram os dois pilares

centrais que sustentavam o teto do local (os pilares em si teriam sido

feitos de madeira e apodrecidos com o tempo; mas o que realmente

descobrimos foram as suas bases de pedra). Um homem grande poderia

ficar em pé e apoiar-se neles. Caso fosse capaz de derrubá-los,

provocaria a queda do templo. Assim, posicionei-me no ponto central

desse santuário e imaginei o clímax da história de Sansão.

Ler as histórias exóticas, lendárias e ousadas sobre Sansão nos faz

pensar se elas, de fato, ocorreram. Não creio que haja algum meio de

decidir se realmente ocorreram. Por um lado, presumo que Deus não

teria nenhuma dificuldade em capacitar Sansão a empreender essas

façanhas. Por outro, elas são contadas mais como histórias do Velho

Oeste do que como história sóbria, e bem sei que Deus aprecia histórias

ficcionais tanto quanto as factuais. Minha suposição de trabalho a esse

respeito aplica-se a grande parte das narrativas do Antigo Testamento.

De um lado, essas histórias são lidas como se fossem, na verdade,

destinadas a entreter, assim como a instruir. Elas parecem lendárias. De

outro, quando as pessoas contam histórias desse tipo, penso que o mais

provável é que elas tenham como base eventos que realmente

ocorreram, com pessoas que, de fato, realizaram coisas extraordinárias,


do que sejam apenas meras peças de ficção. São mais como histórias

sobre Robin Hood ou Jane Calamidade do que estudos históricos sobre

Abraham Lincoln ou a rainha Vitória; isto é, elas não constituem

simplesmente história real e concreta. Igualmente, são mais como

histórias sobre Robin Hood e Jane Calamidade do que sobre Rambo ou

Lois Lane; ou seja, elas não constituem apenas ficção ou imaginação.

Estar no santuário filisteu em Tel Qasile encorajou-me a fazer essa

avaliação. Lá estava exatamente o tipo de característica arquitetônica

que tornaria possível a alguém como Sansão provocar a queda de toda a

casa (esta é a origem daquela sentença?). Trata-se de um modo de

construção característico dos filisteus; os israelitas não construíam

santuários assim. Isso fornece evidência circunstancial suficiente para

mostrar que a narrativa reflete um evento real. No entanto, o tamanho

do santuário em questão não o credencia a abrigar toda a população de

Gaza em seu interior ou na cobertura (o que, certamente, levaria a

estrutura ao colapso, bem antes de Sansão tentar derrubar os seus

pilares).

Desse modo, imagine que por trás das histórias existe um rapaz que,

de fato, realizou alguns feitos extraordinários, se meteu em confusões e

enfrentou os filisteus, bem como há uma mãe e algumas mulheres que

foram vítimas dos meios patriarcais da cultura na qual elas viviam.

Todavia, não há meios de obter os “fatos reais” por trás desses relatos.

Não há nenhum problema nisso, pois o que os seus autores,

aparentemente, almejavam era que tivéssemos histórias dotadas de

valor como entretenimento e interesse humano, que fossem do agrado

de Deus como parte da Bíblia, que a comunidade judaica, responsável

pela formação do texto bíblico utilizasse, bem como a igreja cristã,

reafirmando a decisão da comunidade judaica. O entusiasmo e a

tristeza, presentes nessas histórias, nos convidam à reflexão de como as

mulheres (e homens) podem ser vítimas das expectativas e suposições

culturais, além de nos levarem a considerar como nós, em nossos


diferentes contextos, podemos estar sofrendo os efeitos das mesmas

forças.

O cabelo de Sansão começou a crescer novamente. O fato em si

nada significaria, mas a narrativa mostra que há uma ligação entre o

físico e o espiritual e que o crescimento do cabelo de Sansão poderia ser

compreendido como um sinal de que seu voto como uma pessoa

dedicada a Deus não terminou. Isso não implica, necessariamente, que

Sansão tenha logrado o seu ato de modo totalmente espiritual. Já

sabemos que o uso de Sansão por parte de Deus não depende disso.

Talvez mais significante seja a maneira pela qual os filisteus deram

crédito ao poder de Dagom, o deus deles, pela entrega de Sansão

(Dagom é o equivalente filisteu ao Mestre, Baal). Yahweh, às vezes,

tem dificuldades em ser tolerante quando é ignorado dessa forma e

quando vê um servo como Sansão ser tratado daquele modo. O fato de

Sansão merecer aquela situação não está nem aqui nem lá; ele ainda é

um servo de Yahweh, portanto Yahweh é humilhado por meio da

humilhação imposta a Sansão.

Pode ser que Sansão tenha logrado mover os pilares um centímetro

ou dois. No santuário de Dagom, Sansão está orando a Yahweh. Você

pode pensar que não foi uma oração, mas Deus nem sempre está

preocupado com o formato de nossas orações. Juízes nem mesmo diz

que Deus respondeu à oração de Sansão; é possível questionar se ele não

conseguiu derrubar o santuário com sua própria força. Contudo, eu

consideraria que o comentário da história sobre quantos filisteus ele

eliminou à custa de sua própria vida sugere que Sansão, em seu último

suspiro, estava cumprindo a sua vocação de libertar Israel dos filisteus.

Sua história chega a um final pacífico, do tipo que qualquer um no

Antigo Testamento almeja. Sua família resgata o seu corpo e o

transporta de volta para sua casa, de volta ao território israelita, à sua

própria cidade, na qual o túmulo de sua família está, para uni-lo ao seu

pai e ao restante de sua família, ali sepultados, para descansar em paz.


O seu nome é citado apenas uma vez mais na Escritura, na lista dos

heróis da fé, em Hebreus 11, no qual o escritor lamenta não dispor de

mais tempo para falar de pessoas como Davi e Samuel — e Sansão (sem

esquecer de Gideão, Baraque e Jefté). Isso sempre me entusiasmou, pois

se há espaço para Sansão na lista de heróis da fé no Novo Testamento,

decerto há espaço para mim.


JUÍZES 17:1-13
TODOS FAZIAM O QUE ERA CERTO AOS SEUS PRÓPRIOS

OLHOS
1 2
Havia um homem das montanhas de Efraim, cujo nome era Mica. Ele disse à sua mãe: “Os

1.100 [siclos] de prata que lhe foram tomados e que você jurou e também o disse aos meus

ouvidos: bem, a prata está comigo. Eu sou aquele que a tomou.” Sua mãe disse: “Que meu

3
filho seja abençoado por Yahweh.” Ele devolveu os 1.100 [siclos] de prata à sua mãe, e sua

mãe disse: “Eu definitivamente consagro a prata a Yahweh de minha mão ao meu filho, para

4
fazer uma estátua e uma imagem fundida. Assim, agora, eu a devolvo a você.” Mas ele

devolveu a prata à sua mãe, e ela tomou duzentos [siclos] de prata e a deu a um ferreiro. Ele

5
fez uma estátua e uma imagem fundida, e ficaram na casa de Mica. O homem Mica tinha

uma casa de Deus e tinha feito um éfode e efígies. Ele instalou um de seus filhos, que se

6
tornou um sacerdote para ele. Naqueles dias, não havia rei em Israel. Todos faziam o que era

certo aos seus próprios olhos.

7
Havia um jovem, de Belém, em Judá, do clã de Judá. Ele era um levita e tinha residido ali,

8
mas o homem saiu da cidade de Belém para residir onde pudesse encontrar [um lugar] e

chegou à terra montanhosa de Efraim, até a casa de Mica, enquanto fazia o seu caminho.

9
Mica lhe disse: “De onde você vem?” O levita lhe disse: “Sou de Belém, em Judá, mas estou

10
viajando a fim de residir onde eu possa encontrar [um lugar].” Mica lhe disse: “Fique

comigo. Você será um pai e um sacerdote para mim. Dar-lhe-ei dez [siclos] de prata por ano,

11
um jogo de roupas e comida.” Assim, o levita ficou. O levita concordou em ficar com o

12
homem; o jovem rapaz se tornou como um de seus filhos. Assim, Mica instalou o levita, e o

13
jovem rapaz se tornou um sacerdote para ele. Ele ficou na casa de Mica. Mica disse: “Agora

sei que Yahweh será bom comigo, porque o levita se tornou um sacerdote para mim.”

Sou um sacerdote episcopal/anglicano, mas, na verdade, não creio em

sacerdócio. Uma das primeiras coisas que Deus me indicou, no Sinai, foi

que todo o povo de Deus é um sacerdote (veja Êxodo 19), e o Novo

Testamento reafirma esse princípio (1Pedro 2). Deus não quer que um

grupo restrito de pessoas reivindique o controle ao acesso a ele. O

problema é que esse arranjo não funciona. Dentro da igreja que fora

designada para ser um sacerdócio, as congregações já estavam saindo

dos trilhos desde os tempos do Novo Testamento e necessitavam de

alguém que exercesse alguma autoridade para recolocá-las nos trilhos.


Logo, depois do período neotestamentário, a igreja estava inventando o

“episcopado monárquico”, a ideia de que um único “bispo” (como um

pastor sênior ou reitor) possuísse uma posição-chave de liderança na

congregação. A dificuldade nesse conceito é que ele apenas muda o

problema de posição. E se o pastor sênior sair dos trilhos, como, em

geral, ocorre?

Os cinco capítulos derradeiros de Juízes são crescentemente

problemáticos; é grande a tentação de evitá-los e ir diretamente à

história mais hollywoodiana de Rute. Eles esfregam em nosso nariz a

realidade de como as coisas são entre o povo de Deus e no mundo. Por

quatro vezes, citam que, naqueles dias, não havia rei em Israel, e no

início e no fim acrescentam que todos (por conseguinte) estavam

fazendo o que era certo aos seus próprios olhos. Israel necessita de um

rei para frear o colapso da religião, da moralidade e da ordem social em

Israel. Não obstante, trata-se apenas de um lado da atitude de Juízes em

relação aos reis. O livro observou como um rapaz confuso como Gideão,

num dia positivo, recusa-se a ser rei, e somente um tolo irresponsável

como Abimeleque deseja ser. A história posterior dos reis deixará claro

que eles constituem tanto uma bênção quanto uma maldição, a exemplo

dos pastores. O livro de Juízes transmite uma mensagem confusa sobre

reis. Isso não é uma fraqueza. Não há respostas para a questão que ele

suscita, pois o reinado é apenas ambíguo.

Na presente narrativa, Mica, sua mãe e o levita são um pouco

confusos, como Gideão. Primeiro, há o fato de Mica ter roubado toda

aquela riqueza de sua mãe. Ao que parece, o seu pai está morto e, talvez,

Mica seja o filho mais velho e, portanto, o cabeça da família e

responsável pelos bens, de modo que isso facilitaria a sua ação. Pode ser

que tenha racionalizado: “É melhor garantir que a minha mãe não faça

algo tolo com aquela prata, como fazer uma imagem ou algo similar.”

Sua mãe o assustou e o fez confessar por meio de uma maldição. Teria

essa maldição sido similar às maldições de Paulo? Isso foi uma

expressão de fé? Levou Mica a recobrar o bom senso e se arrepender?


Ou a maldição da mãe foi uma expressão de crença supersticiosa no

poder das palavras, algo que nada teve a ver com Deus? A resposta de

Mica foi a reação calculada de alguém que sabe ser tolice insistir no

erro? Será que ele compartilha da questionável crença de sua mãe no

poder de uma maldição? O que devemos fazer com sua oração posterior

para que Yahweh abençoe o seu filho?

A mãe de Mica deseja dar os 1.100 siclos de prata a Deus, assim

como os israelitas entregaram a sua prata a fim de construir a rica

habitação de Deus no deserto, segundo a descrição em Êxodo 25—31.

Contudo, na realidade, ela deseja investir essa prata na confecção de

uma imagem ou duas (é difícil saber, com certeza, se a mãe está falando

sobre uma imagem recoberta de prata ou duas imagens separadas e

também a razão de o investimento mudar de 1.100 para duzentos

siclos). Talvez a sua promessa quanto a fazer isso estivesse ligada à sua

maldição (“Senhor, se fizeres a prata voltar para mim, farei uma imagem

com ela” — ou “com parte dela”). Ela não é alguém que cultua outros

deuses, a exemplo de alguns dignos de menção. Ela e o seu marido

tinham dado ao filho o nome de “Mica”, que significa “Quem é como

Yahweh?” Todavia, cultuar Yahweh por meio de uma imagem não é

melhor do que cultuar vários deuses. Isso implica pensar em Yahweh da

mesma forma que os demais povos pensam a respeito de seus deuses e,

com efeito, significa transformar Yahweh em outro deus.

É igualmente surpreendente que Mica tenha um santuário em sua

casa, embora haja certa lógica nisso. O santuário israelita será

localizado em um ponto central entre os clãs, mas, por definição, será

distante de onde a maioria do povo está. Talvez o povo possa fazer

peregrinações periódicas até lá, como diz a Torá. No entanto, como os

israelitas se relacionarão com Deus durante os demais dias do ano? Não

parece ser inerentemente questionável possuir um santuário no vilarejo

ou mesmo nas dependências de uma propriedade. A “casa” de Mica ou

“propriedade” será o lar de uma grande família estendida, como é o caso

na história de Gideão; ela envolveria, na realidade, uma série de


“residências” menores. Além disso, faz sentido que os levitas sejam

espalhados pelo país, assim como os santuários. Os levitas são peritos

em assuntos relativos a Deus, ao culto e a como Deus espera que o povo

viva. A expectativa de Mica quanto a Deus ser bom para com ele por ter

um levita vivendo em sua casa não está muito distante do alvo; ele

estaria em melhor posição para constatar que a vida daquela família é

vivida segundo as expectativas divinas. No entanto, torna-se evidente

que o levita não compactua das presunções de Mica e de sua mãe

quanto a imagens e afins.

A Torá deixa claro que os levitas estão em uma posição de

vulnerabilidade. Eles não possuem terras e, portanto, não podem

produzir o seu próprio alimento, de modo que são dependentes da

provisão de outras pessoas (a exemplo dos órfãos e das viúvas, aos quais

a Torá os associa). Ainda, dependem de um posto permanente em algum

lugar. A palavra para “residir” é usada na Torá para designar um

forasteiro residente, qualquer estrangeiro ou mesmo qualquer israelita

que, por algum motivo, não está vivendo em sua própria terra. Eles

constituem grupos que compartilham a mesma posição vulnerável, e a

utilização do termo sublinha a vulnerabilidade das circunstâncias de

um levita. Aquele rapaz deve ter imaginado que tirou a sorte grande

quando Mica lhe ofereceu uma posição permanente, guarida e salário.

Há um sentido no qual ele será um pai para a família, pois dará a ela

uma orientação paternal (é mera coincidência que o pai verdadeiro de

Mica esteja morto?). Em outro sentido, Mica é seu pai, pois irá tratá-lo

como um membro da família por meio de sua provisão a ele e por não o

considerar como um empregado.

Isso é o que origina o problema de supervisão, de pessoas agindo

como lhes parece apropriado e natural; Mica e sua mãe estão fazendo

isso, e tudo está bem. À imagem ou imagens, Mica acrescenta um éfode

(talvez um manto para a imagem), que foi a forma de Gideão trazer

problemas a Israel (Juízes 8). Ainda, ele adiciona “efígies”. Uma teoria

plausível sobre elas é que eram imagens de membros da família já


falecidos, um pouco como as nossas fotografias de família, a quem os

familiares vivos consultavam, na suposição de que eles pudessem

revelar coisas (por exemplo, sobre o futuro) que os seus parentes vivos

não soubessem. Este é mais um exemplo das práticas que outros povos

seguiam, mas que eram proibidas aos israelitas, não porque não

funcionassem, mas porque Israel estava numa posição de

relacionamento direto com Deus e devia ficar satisfeito apenas com a

revelação divina.
JUÍZES 18:1-31
DÃ DESESPERADO
1
Naqueles dias, não havia rei em Israel. Naqueles dias, o clã de Dã estava buscando uma

possessão na qual pudessem viver, porque até aquele dia não lhes tinha caído nenhuma

2
possessão entre os clãs de Israel. Os danitas enviaram cinco homens de seu grupo de

parentesco, homens capazes, de Zorá e de Estaol, para investigar a terra e explorá-la. Então,

lhes disseram: “Vão e explorem a terra.” Eles chegaram às montanhas de Efraim, até a casa de

3
Mica, e passaram a noite ali. Quando estavam próximos à casa de Mica e reconheceram a

fala do jovem levita, eles foram para lá e lhe disseram: “O que você está fazendo neste lugar?

4
Para o que você está aqui?” Ele lhes disse: “Mica fez isso e aquilo para mim. Ele me

5
contratou e me tornei sacerdote para ele.” Eles lhe disseram: “Você inquirirá Deus por nós

6
para podermos saber se a jornada na qual estamos indo será bem-sucedida?” O sacerdote

lhes disse: “Vão; sigam bem. A jornada na qual estão indo está sob os olhos de Yahweh.”

[Os versículos 7-16 relatam como os homens encontraram um lugar plausível para ficar. Então,

retornaram às suas casas em busca do reforço de seiscentos homens e, uma vez mais, chegaram

à casa de Mica.]

17
Os cinco homens que foram investigar a terra subiram e, quando chegaram lá, tomaram a

estátua, o éfode, as efígies e a imagem fundida. O sacerdote ficou posicionado no portão de

18
entrada, assim como os seiscentos homens equipados com armas de guerra. Quando esses

homens chegaram à casa de Mica e tomaram a estátua, o éfode, as efígies e a imagem fundida,

19
o sacerdote lhes disse: “O que estão fazendo?” Eles lhe disseram: “Quieto. Segure a sua

língua. Venha conosco e seja um pai e um sacerdote para nós. É melhor para você ser um

sacerdote para a casa de um homem ou ser um sacerdote para um clã, um grupo de

parentesco em Israel?”

[Os versículos 20-29 descrevem como, após saírem, Mica os persegue; eles indicam que há mais

homens deles do que os de Mica. Assim, continuam rumo ao norte, eliminam o desavisado e

vulnerável povo de Laís, reconstroem a cidade e se instalam lá.]

30
Os danitas erigiram a estátua para si mesmos, e Jônatas, filho de Gérson, filho de Moisés, e

31
seus filhos foram sacerdotes para o clã de Dã até o tempo do exílio da terra. Estabeleceram

para si mesmos a estátua que Mica tinha feito, durante todo o tempo que a casa de Deus

esteve em Siló.

Quando estávamos no meio do processo sobre vir para a Califórnia a

fim de lecionar aqui, uma de minhas alunas do seminário, na Inglaterra,

sentiu Deus lhe dizer, certo dia, na capela: “Diga ao John: ‘Juízes 18:6.’”
“Não sei o que esse versículo diz”, ela replicou. “Não se preocupe”, Deus

disse. “Apenas diga ao John: ‘Juízes 18:6.’” Foi o que ela fez. “Essa é a

história sobre o levita e a sua concubina, não é?”, lhe perguntei. Na

verdade, essa história está em Juízes 19. Ambos abrimos o texto de

Juízes 18 e vimos o versículo que aparece na tradução acima. Ele soou

como uma maravilhosa confirmação de que eu poderia assumir o risco

de trazer a minha debilitada esposa para esse cenário novo sem saber ao

certo como uma série de aspectos da vida iria funcionar. Ainda tenho

comigo o pequeno pedaço de papel no qual a aluna escreveu a referência

bíblica.

A reafirmação dada a mim por Deus, por meio daquele texto, na

verdade nada tem a ver com o significado inerente à passagem da Bíblia.

Deus aprecia fazer isso com textos, e quem sou eu para discutir? Em seu

contexto original, o texto é um elemento de outra história ambígua, ou

melhor, da continuação da narrativa ambígua, iniciada no capítulo 17.

A exemplo de muitas histórias do Antigo Testamento, você obterá algo

ao lê-la do fim para o começo. Um aspecto de sua relevância para o

Israel posterior é que ela explica como os danitas vieram a se instalar no

extremo norte de Israel. Em nosso comentário sobre a história de

Sansão, observamos que a terra alocada a Dã ficava a sudoeste, na área

da moderna Telavive, não muito distante de Belém (talvez por essa

razão tenham reconhecido o sotaque do levita). Mas esse era o

território que os mais sofisticados filisteus tinham vindo ocupar. Os

danitas jamais conseguiram se instalar ali.

Em consequência dessas dinâmicas é que Dã veio a ocupar o

extremo norte de Israel. Quando o Antigo Testamento discorre sobre as

dimensões da Terra Prometida, ele vê o território estendendo-se “de Dã

a Berseba.” Ainda hoje, Dã fica bem na fronteira de Israel, Líbano e

algum território pertencente à Síria, ocupado por Israel em 1967.

Portanto, do alto da colina de Dã é possível ver três países, em meio a

uma vegetação exuberante, pois a região é irrigada por magníficas

correntes de água, que emergem do monte Hermon, visível a nordeste.


À medida que se caminha pela colina, encontram-se várias trincheiras

cavadas pelos soldados israelenses que defendiam a região nos anos

anteriores à guerra de 1967. Foi a natureza destrutiva dessas trincheiras

que estimulou a investigação arqueológica daquele tel. Avraham Biran,

arqueólogo israelense, pesquisou a colina por cerca de trinta anos. Ele

explicou que, quando as pessoas lhe perguntavam quando iria parar de

escavar, ele respondia com uma antiga história judaica sobre um jovem

que lutava desesperadamente com um urso. Seus amigos gritavam para

que ele deixasse o urso ir. Ele responde: “Eu quero, mas é o urso que não

me deixa ir.” Não surpreende o fato desse impressionante urso não

deixar Biran ir.

Além de ser um relevante ponto geográfico e político, Dã era de uma

enorme importância religiosa. Geograficamente, era comparado a

Berseba, mas, no âmbito religioso, sua comparação era com Betel.

Como a narrativa do Antigo Testamento relata, quando a nação de

Israel foi dividida, após o período de Salomão, e o Reino do Norte,

Efraim, separou-se do templo de Jerusalém, em Judá, o rei Jeroboão

estabeleceu dois santuários, um em Betel, no sul de Efraim, e outro em

Dã, ao norte, e colocou imagens ali. No mais íntimo de seu coração,

Biran diz, ele mantinha a esperança de poder encontrar o “bezerro de

ouro” que foi erigido em Dã.

A história termina com uma referência ao povo indo para o exílio,

quando a Assíria pôs fim à independência política de Efraim e

transportou muitos de seu povo. Posteriormente, os israelitas, ao

ouvirem essa narrativa, se identificariam com ela. Pode-se imaginar os

ouvintes dizendo: “Bem, considerando a origem da cidade de Dã, não

surpreende o que aconteceu a ela.” As pessoas podem ter simpatia pelos

danitas por eles não lograrem ficar na área que lhes fora alocada, mas

francamente! O fato de o Antigo Testamento, usualmente, não ser

condescendente com os antigos habitantes de Canaã sublinha a

simpatia que a presente narrativa demonstra pelo pobre e desavisado

povo de Laís. Ali estavam eles, tocando sua vida em paz, cuidando
apenas de seus próprios interesses e — bomba — eles são,

repentinamente, atacados pelo desesperado povo de Dã, que, durante o

caminho, tinha simplesmente roubado os elementos necessários para

estabelecer um santuário e persuadido um sacerdote com uma oferta

irrecusável.

Então, ao fim do relato, é revelado que o sacerdote sem nome, que

cuida das imagens na casa de Mica e, então, em Dã, é, na verdade, um

descendente de Moisés, o qual, provavelmente, deve ter se revirado no

túmulo. (Em horror e descrença, o texto hebraico tradicional da Bíblia

muda o nome do ancestral de Gérson, de Moisés para Manassés,

diferenciados apenas por uma única letra no idioma hebraico, porém a

referência original a Moisés é preservada em algumas versões da

história. Ainda, havia um sentido no qual Gérson tinha sido um filho de

Manassés — o rei Manassés que, mais tarde, levará Judá à apostasia.)

“Vão; sigam bem”, Gérson lhes havia dito, e eles seguiram. “A

jornada na qual estão indo está sob os olhos de Yahweh”, ele continuou.

Em certo sentido, sem dúvida, ele está certo, mas Yahweh realmente se

alegrou com o que eles fizeram e como o fizeram? “Deus entregou a

terra em nossas mãos”, relataram os cinco espias quando retornaram a

Zorá e Estaol. Em certo sentido, sem dúvida, eles estavam certos, mas

Deus realmente se alegrou com o que eles fizeram e como o fizeram? No

entanto, uma vez mais, Deus é cúmplice dos resultados da ação deles,

com sua violência gratuita. Novamente, tudo isso mostra a espécie de

coisas que acontecem quando não existe rei em Israel (versículo 1).
JUÍZES 19:1-30
A HISTÓRIA ATINGE O SEU PONTO MAIS BAIXO (I)
1
Naqueles dias, quando não havia rei em Israel, certo levita que residia nas partes remotas

das montanhas de Efraim casou-se com uma mulher como uma esposa secundária para si, de

2
Belém, em Judá, mas a sua esposa lhe foi infiel e fugiu dele para a casa de seu pai, em Belém,

3
de Judá. Ela estava lá por quatro meses completos. Então, seu marido partiu e foi atrás dela

para convencê-la e fazê-la voltar. Seu rapaz e um par de jumentos estavam com ele. Ela o

deixou entrar na casa de seu pai, e, quando o pai da garota o viu, ficou contente em encontrá-

4
lo. Seu sogro, o pai da garota, prevaleceu sobre ele, e ele permaneceu com o sogro por três

dias. Eles comeram, beberam e passaram a noite ali.

[Os versículos 5-22a relatam como, eventualmente, eles partem para casa de tarde, no quinto

dia, e alcançam Gibeá ao anoitecer, onde um homem lhes oferece um lugar para dormir à

noite.]

22b
Então, os homens da cidade, homens inúteis, cercaram a casa, batendo na porta. Disseram

ao homem que era o dono da casa, um homem velho: “Traga o homem que veio à sua casa

23
para que possamos ter sexo com ele.” O homem que era o dono da casa saiu a eles e lhes

disse: “Não, irmãos, não façam esse mal, depois de este homem vir à minha casa. Não

24
cometam esse ultraje. Aqui está a minha filha adolescente e a esposa dele. Deixem-me

trazê-las para fora até vocês. Usem-nas. Façam a elas o que lhes parecer bom aos olhos. Mas a

25
este homem vocês não farão esta coisa que é um ultraje.” Mas os homens não o ouviram.

Então, [o levita] agarrou a sua esposa e a fez sair para fora até eles. Eles tiveram sexo com ela

26
e abusaram dela durante toda a noite até a manhã, deixando-a ir ao amanhecer. Assim, a

mulher voltou pela manhã e caiu à entrada da casa do homem na qual o seu marido estava,

27
ficando ali até o dia amanhecer. Quando o seu senhor se levantou de manhã, ele abriu a

porta da casa e saiu para prosseguir viagem. Ali estava a mulher que era a sua esposa

28
secundária, caída à entrada da casa, com as mãos na soleira. Ele lhe disse: “Levante-se;

vamos.” Não houve resposta, e, então, ele a colocou sobre o jumento. O homem partiu e foi

29
para o seu lugar. Quando chegou à sua casa, ele pegou uma faca, segurou a sua esposa e a

cortou, membro por membro, em doze partes e as enviou por todo o território de Israel.

30
Todos que viram isso disseram: “Coisa assim não tem acontecido ou não tem sido vista

desde que os israelitas saíram do Egito até este dia. Apliquem-se a isto. Aconselhem-se.

Falem.”

No momento em que escrevo, um dos candidatos ao Oscar é o filme

Preciosa — uma história de esperança, que conta a história de uma


adolescente cuja vida é caracterizada pelo abuso sistemático no

contexto familiar, incluindo estupro e incesto por parte de seu pai, bem

como abuso físico e emocional por sua mãe irascível. Trata-se de um

filme que obriga as pessoas a encarar verdades hediondas sobre como a

vida de algumas pessoas pode ser. Apesar de ser produzido em

Hollywood, não pode ser considerado um filme hollywoodiano, em

termos de gênero. Embora contenha vislumbres de esperança, o filme

trata mais de sobrevivência do que de triunfo. A película não desfaz a

natureza horripilante de sua narrativa ao mostrar a vitória apoteótica

de Preciosa contra todas as circunstâncias adversas de sua história e de

sua experiência. Nesse sentido, não é um filme para fazer o espectador se

“sentir bem”, portanto os analistas comentaram que não deve ter

grandes resultados de bilheteria ou mesmo na corrida ao Oscar (embora

tenha ganhado uma estatueta). Não vamos ao cinema para ter a

realidade esfregada em nossa cara. Isso ocorre do lado de fora do

cinema. Vamos para escapar da realidade.

Recorremos à Bíblia pelas mesmas razões e, por conseguinte, não

apreciamos o tipo de história contada em Juízes 19. Ontem, li um livro

de memórias sobre uma mulher cuja mãe havia sido brutalmente morta

durante a sua infância. A mulher, eventualmente, descobriu o que

realmente tinha acontecido à sua mãe. “A verdade, não importa quão

horrenda seja, era necessária”, ela testemunhou. Ela tinha de saber a

verdade sobre a sua mãe porque isso era parte da verdade sobre si

mesma.

Por que precisamos saber a verdade sobre a mulher do levita, cujo

nome nem é revelado? Alguns motivos são de ordem prática. A história

começa com aquele mantra: “Não havia rei em Israel.” Essa repetida

expressão implica que era necessário haver alguma autoridade

governamental para diminuir a prevalência do caos moral e social

descrito pela história. Deveria haver, pelo menos, duas formas de isso

ocorrer. Primeira, os reis eram responsáveis por conhecer a Torá e por

assegurar que o povo também a conhecesse. O Antigo Testamento os


descreve enviando equipes de ensino por todo o país para garantir que o

povo conheça a Torá. Outra responsabilidade dos reis é garantir

proteção aos mais vulneráveis, apoio aos mais fracos, libertação dos

oprimidos das mãos de seus opressores, bem como a destruição dos que

oprimem (veja Salmos 72). É uma visão de governo magnífica, pois

apresenta como responsabilidades primárias o ensino e a proteção.

No contexto social do antigo Israel, entretanto, há pouco espaço

para um “grande governo”. As comunidades locais são necessariamente

muito mais autossuficientes e autorresponsáveis do que no Ocidente

urbanizado. Assim, a história mostra um espelho às cidades e vilas,

desafiando-as a ver o potencial que possuem para a espécie de abuso que

a narrativa descreve. Além disso, alerta os indivíduos e famílias sobre

como as comunidades podem desenvolver uma personalidade

corporativa demoníaca. Os indivíduos e as famílias precisam estar

cientes disso.

A história lembra os homens da capacidade que possuem de agir da

maneira descrita por ela. Após o que aconteceu, o sogro do levita, o seu

anfitrião e o próprio levita estavam em posição de dizer: “Se apenas não

tivesse agido da maneira que agi. Se somente tivesse percebido o que

estava por vir.” É possível que, de qualquer modo, o seu pai não

estivesse disposto a recebê-la de volta; era incomum (para não dizer

socialmente inaceitável) ter filhas solteiras morando na casa dos pais,

quanto mais o retorno de uma filha rebelde. O levita, certamente,

estaria menos disposto a permanecer para apenas mais uma bebida. A

mulher era a sua esposa secundária. Será que desejava voltar por

possuir uma esposa de “primeira classe” ressentida por não receber a

devida assistência? A palavra utilizada para descrevê-lo nos versículos

26 e 27 é relevante. Quando se refere a “sua esposa” ou a “seu marido”, o

Antigo Testamento, normalmente, utiliza as palavras comuns para “sua

mulher” e “seu homem” (“Bess, agora você é minha mulher”). Isso

poderia sugerir um compromisso mútuo, igualitário. Os termos

hebraicos que denotam, especificamente, marido e esposa, descrevem


literalmente o marido como amo, senhor ou proprietário e a esposa

como alguém que é possuído. O Antigo Testamento, raramente, usa

esses termos, porém uma dessas raras ocasiões aparece nos versículos 26

e 27. É a mesma palavra usada para descrever a relação do levita com

“seu rapaz”, isto é, o seu servo.

A história também serve de alerta às mulheres sobre a capacidade de

os homens se comportarem como aqueles homens. O Antigo

Testamento propicia às mulheres modelos e exemplos de mulheres que

não estavam dispostas a viver segundo as suposições patriarcais da

sociedade na qual viviam; Josué e Juízes nos revelam algumas delas (as

filhas de Zelofeade, Acsa, Débora e Jael). Talvez a disposição da esposa

do levita em sair de casa, revelada no começo da história (essa é a

“infidelidade” à qual a história se refere), indica que ela era uma mulher

desse tipo; talvez ser a esposa secundária daquele levita fosse pior do

que morar na casa dos pais ou retornar para lá. Decerto, seria aumentar

o sofrimento dessa mulher caso culpássemos a vítima pelo que lhe

ocorre, mas seria ultrapassar o limite apenas um pouco, caso ela

inspirasse outras mulheres a se recusarem a ser expulsas de casa.

É possível obter tudo isso com histórias como Preciosa. Nesse

sentido, não precisamos que a Bíblia nos conte histórias assim. O que a

Bíblia acrescenta ao que podemos aprender com os filmes e com a nossa

própria experiência? O que ela acrescenta deriva de outro aspecto do

significado de seu mantra. O episódio em questão é parte de uma

história maior, e mesmo o livro de Juízes não está sozinho. Ele é parte

de uma história que remonta a Gênesis e segue adiante, em Samuel e

Reis. É, portanto, parte da abrangente história da criação do mundo por

parte de Deus e de seu envolvimento com o povo de Israel, um

envolvimento cujo compromisso é alcançar o propósito divino de

abençoar o mundo. Se deixarmos Deus de fora, não temos como saber se

o horror da história de Preciosa ou da esposa do levita é a verdade final.

A humanidade é deixada aos seus próprios dispositivos para garantir

que não seja assim; e quem pode dizer se estaremos à altura desse
desafio? Todavia, Juízes considera Deus e sabe que a história dessa

mulher não foi e não será o fim da história humana, da história de Israel

ou da história das mulheres.


JUÍZES 20:1-48
A HISTÓRIA ATINGE O SEU PONTO MAIS BAIXO (II)
1
Todos os israelitas saíram, e a comunidade se reuniu como uma só pessoa, de Dã a Berseba e

2
de Gileade, diante de Yahweh, em Mispá. Os líderes de todo o povo, todos os clãs de Israel,

apresentaram-se como a assembleia da companhia de Deus, quatrocentos mil homens a pé,

3
carregando a espada. Os benjamitas ouviram que os israelitas tinham subido a Mispá. Os

israelitas disseram: “Expliquem como essa coisa maligna aconteceu.”

[Os versículos 4-7 relatam como o levita responde e desafia os israelitas a fazer algo sobre isso.]

8
Toda a companhia se levantou como um só homem, dizendo: “Nenhum de nós irá à sua

9
tenda ou retornará para casa. Isso é o que nós, agora, faremos a Gibeá, contra ela, por

10
sorteio. Nós separaremos dez homens por cem, de todos os clãs de Israel, cem por mil, mil

por dez mil, para conseguir provisões para a companhia em [sua] tomada de ação, indo a

11
Gibeá, em Benjamim, de acordo com todo o ultraje que cometeu em Israel.” Assim, todos

12
os israelitas se reuniram contra a cidade, unidos como um só homem. Os clãs israelitas

enviaram homens a todos os clãs de Benjamim, dizendo: “O que é essa coisa maligna que

13
aconteceu entre vocês? Agora, nos entreguem os homens inúteis em Gibeá. Nós os

mataremos e consumiremos o mal de Israel.” Mas os benjamitas não ouviram as palavras de

seus irmãos israelitas.

[Os versículos 14-34a descrevem como Benjamim e os outros clãs se preparam para a batalha.

Os israelitas procuram a orientação de Deus para a luta, mas sofrem uma derrota. Então, são

derrotados novamente. Na terceira tentativa, parece que sofrerão outra derrota, mas os

israelitas armam uma emboscada para os benjamitas.]

34b 35
Eles não perceberam que a desgraça estava caindo sobre eles quando Yahweh dominou

os benjamitas diante de Israel. Naquele dia, os israelitas mataram 25.100 homens em

36a
Benjamim, todos os homens que carregavam uma espada. Os benjamitas viram que foram

dominados.

[Os versículos 36b-48 relatam como os israelitas perseguiram o resto das forças benjamitas e

matam todos os homens, com exceção de seiscentos, que conseguiram escapar, e também matam

os benjamitas não combatentes e destroem as suas cidades.]

De alguns anos para cá, tem havido uma tensão contínua entre a Rússia

e a Geórgia. Às vezes, o conflito parece aberto a ser caracterizado por

certa comicidade; a Rússia baniu a importação de vinho georgiano

alegando que a sua produção não cumpria os padrões adequados,


enquanto os georgianos responderam que os russos nada sabiam sobre

vinho. Todavia, em certas ocasiões, a tensão ameaçou entrar no

confronto militar, e isso, então, de modo interessante, causou

consternação entre os cristãos ortodoxos presentes nos dois países,

porque abriu a possibilidade de eles serem forçados a lutar uns contra os

outros, o que jamais esteve em perspectiva. Os cristãos no resto do

mundo, claro, não têm sido, usualmente, obrigados a lutar uns com os

outros; a sua cidadania nacional possui prioridade sobre a sua unicidade

em Cristo. Uma “Proposta Modesta para a Paz”, elaborada pelo Comitê

Central Menonita, sugeria que os cristãos do mundo concordassem em

não matar uns aos outros. Um acordo assim teria reduzido, de modo

substancial, a mortandade em guerras no século XX. A nossa unidade

no corpo de Cristo, de fato, torna impossível que nos matemos uns aos

outros?

Igualmente, parece impossível imaginar os clãs israelitas guerreando

uns contra os outros, porém é isso o que eles acabam fazendo. Se a

história sobre o levita e sua esposa é excessivamente perturbadora, de

algumas maneiras, a narrativa sobre o que ocorre a seguir é

perturbadora de outras formas. O mantra sobre as consequências de não

haver rei continua pairando sobre o próximo capítulo.

A história ilustra quão facilmente uma coisa leva a outra. Devem os

israelitas simplesmente ignorar o horror daquilo que os homens de

Gibeá fizeram à esposa do levita? Devem enviar representantes a Gibeá

para protestar? Se esses enviados tivessem sorte, seriam apenas

humilhados, como ocorreu aos mensageiros enviados por Davi a Amom

(veja 2Samuel 10); o mais provável é que misteriosamente jamais

retornassem. Desse modo, os israelitas agem com uma cenoura e uma

vara. O exército exige que os benjamitas entreguem os homens que

causaram a morte da mulher. Caso se recusem a entregá-los, serão

associados com aqueles atos e compartilharão da culpa deles. Mas um

ato maligno perpetrado contra uma única pessoa passa, agora, a ser

motivo de uma guerra civil total. Os homens de Gibeá, como Acã, no


início do livro de Josué, agiram como os cananeus, cujo

comportamento é condenado pela Torá e, portanto, são merecedores de

perderem a sua terra. Eles merecem ser tratados como os cananeus,

como Acã foi tratado. Isso é exatamente o que ocorre. Mas e quanto à

maneira com que a Torá limita a punição a olho por olho e vida por

vida? Trata-se de uma expressão poética, como a fala de Jesus sobre

cortar a própria mão caso ela cometa ofensas, mas ela levanta a questão

sobre qual o limite da punição a ser imposta pelos israelitas.

Quando os benjamitas se recusam a entregar os culpados,

certamente Deus irá apoiar os demais clãs na imposição da justiça sobre

eles. Decerto, é isso o que Deus está fazendo; quando eles vão ao

santuário pedir a orientação divina sobre como empreender a batalha,

Deus lhes responde. Então, o que Deus está fazendo por meio de sua

orientação, já que o resultado não foi o esperado pelos israelitas? Será

que não seguiram a orientação de Deus com suficiente precisão? Caso

esse fosse o problema, o normal seria Deus lhes indicar o erro quando

eles protestam e/ou que a narrativa fornecesse alguma explicação.

Em lugar disso, quando os israelitas se apresentam para prantear a

derrota diante de Deus e pedir o auxílio divino novamente, por que

Deus, uma vez mais, lhes oferece uma orientação que os levará a nova

derrota? Seria porque eles fizeram a pergunta errada ao pressupor que

deveriam guerrear contra Benjamim? E/ou a guerra civil e a orientação

enganosa faziam parte do julgamento de Deus sobre o povo como um

todo, que não tinham motivos para agir daquela maneira e não eram

melhores do que os benjamitas? Seria como Jesus agindo para tornar as

pessoas moral e espiritualmente cegas como um ato de juízo contra elas

(Marcos 4)? A história não oferece respostas a tais perguntas. Ela, pelo

menos, nos fornece o estranho conforto de retratar Israel vivendo os

mesmos enigmas com os quais vivemos quando, às vezes, fazemos de

tudo para descobrir a vontade de Deus e cumpri-la, mas, então, tudo dá

errado. Ou, ainda, quando não poupamos esforços para conhecer a

vontade de Deus a fim de cumpri-la e, então, descobrimos que Deus tem


uma agenda diferente. No entanto, como ocorre com a história da

esposa do levita, precisamos, uma vez mais, nos lembrar de que este não

é o fim da história sobre o trabalho de Deus para cumprir um propósito

em Israel e no mundo.
JUÍZES 21:1-25
COMO NÃO SALVAR A SITUAÇÃO
1
Ora, os israelitas tinham jurado em Mispá: “Nenhum de nós dará sua filha a um benjamita

2
como esposa.” O povo foi a Betel e assentou-se ali, diante de Deus, até a noite. Eles

3
elevaram as suas vozes e choraram copiosa e amargamente. Eles disseram: “Por que Yahweh,

4
Deus de Israel, isso ocorreu em Israel, que um clã esteja faltando hoje em Israel? No dia

seguinte, o povo se levantou cedo, construiu um altar ali e sacrificou ofertas queimadas e

5
ofertas de comunhão. Os israelitas disseram: “Quem, de todos os clãs de Israel, não veio a

Yahweh na assembleia? (porque havia tido um grande juramento com respeito a quem não

viesse a Yahweh, em Mispá). “Definitivamente, ele será morto.”

[Os versículos 6-17 reportam como eles identificam que o povo de Jabes-Gileade não tinha

comparecido à assembleia e, por conseguinte, vão e matam todos, com exceção das mulheres

virgens, para entregá-las aos benjamitas e, assim, preservar esse clã; mas não há mulheres

suficientes para os sobreviventes benjamitas.]

18
“Não podemos lhes dar nenhuma de nossas filhas como esposas”, porque os israelitas

19
tinham jurado: “Maldita seja a pessoa que der uma esposa a Benjamim.” Eles disseram:

“Bem, há um festival anual de Yahweh, em Siló” (ao norte de Betel, a leste da estrada que vai

20
de Betel a Siquém, e ao sul de Lebona). Eles instruíram os benjamitas: “Vão e fiquem à

21
espera nas vinhas e olhem. Então, quando as garotas de Siló saírem para se unir às danças,

saiam das vinhas, e cada um de vocês capture uma esposa para si das garotas de Siló e partam

22
para Benjamim. Quando os pais ou irmãos delas vierem argumentar conosco, nós lhes

diremos: ‘Sejam graciosos com eles, porque não conseguimos [para] cada homem a sua

esposa durante a batalha, [e] porque vocês mesmos não as deram a eles na época, quando

23
seriam culpados.” Os benjamitas assim fizeram e carregaram esposas, de acordo com o

número deles, das dançarinas a quem roubaram. Então, saíram e retornaram às suas posses,

24
construíram cidades e se assentaram nelas. Os israelitas saíram de lá, naquele tempo, cada

um para o seu clã e para o seu grupo de parentesco. Eles saíram de lá, cada pessoa, à sua

possessão.

25
Naqueles dias, não havia rei em Israel. Cada pessoa fazia o que era certo aos seus próprios

olhos.

Conta a história que, em 1941, na véspera da entrada dos Estados

Unidos na guerra de 1939-1945, dois jovens adolescentes, operadores

de rádio amador, que tinham se alistado na Guarda Nacional dos

Estados Unidos, foram convocados ao Exército e treinados em “cifrar”


mensagens para tentar evitar que fossem compreendidas pelo inimigo,

caso interceptadas. Isso envolvia utilizar grupos randômicos de cinco

letras, os quais, por diversão, os jovens soldados transformavam em

acrônimos. Certo dia, as letras formaram SNAFU, que

instantaneamente se tornou “Situation normal, all fouled up” [Situação

normal, tudo ferrado] (exceto que a penúltima palavra não era, na

verdade, “fouled”, mas um palavrão iniciado com a letra f). A sigla se

tornou uma descrição padrão da situação militar antes e depois de Pearl

Harbor. Na guerra, é comum as coisas não saírem conforme o predito

pelas áreas de inteligência, e não é possível antever as implicações das

ações implementadas.

É uma descrição justa da situação em Israel após a batalha, cujo

relato é apresentado no capítulo 20. É como se os israelitas fossem

estúpidos e não tivessem antevisto as óbvias implicações de sua belicosa

ação, ao praticamente eliminar o clã benjamita: Israel terá um clã a

menos (claro!). Muito menos, pensaram na clara consequência de seu

voto em Mispá: de que não seriam capazes de redimir a situação

permitindo que as suas filhas fossem dadas em casamento aos

benjamitas sobreviventes. Novamente (a exemplo da história de Jefté),

o Antigo Testamento ilustra como os votos podem meter a pessoa em

confusão. Com uma obtusidade absurda, os israelitas perguntam a Deus

por que as coisas deram tão errado, a ponto de eliminar um clã de Israel.

Existem duas respostas possíveis e ambas podem ser verossímeis:

porque eles foram muito estúpidos (claro!) e porque Deus está trazendo

juízo sobre eles. Decerto, quando os israelitas perguntam a Deus “Por

quê?”, usualmente não é um pedido de informação, mas uma súplica

implícita para Deus fazer algo a respeito (o motivo apresentado na

história de Gideão).

Desse modo, eles vão ao santuário e lá ficam sentados diante de

Deus durante todo o dia, elevam suas vozes a Deus e pranteiam,

questionam, edificam um altar e oferecem sacrifícios adequados como

expressão de sua busca e de seu compromisso. No entanto, o texto não


revela se Deus estava ouvindo e se concordou em agir para libertá-los

da confusão em que se meteram, o tipo de declaração que aparece em

outras narrativas de Juízes. Na história em questão, Deus está ausente.

Na realidade, Deus tem estado ausente nessa história por um longo

tempo. A última ocasião na qual Deus é o sujeito de um verbo foi na

parte inicial da saga de Sansão, mas ele desapareceu depois do capítulo

15. Inúmeras pessoas conversaram com Deus e avaliaram que ele lhes

respondia, contudo a história não afirma que Deus estava, de fato,

envolvido nos eventos ou que tenha dito alguma coisa. A assustadora

exceção à última declaração é o modo de Deus falar no capítulo 20, no

qual, em duas ou três ocasiões, Deus fornece direção, mas o resultado

não é o esperado pelos israelitas. É como se Deus tivesse se afastado de

Israel e falasse mais como um ato de julgamento do que de graça.

O Novo Testamento adverte as igrejas sobre cometer os mesmos

erros cometidos por Israel, e esses capítulos derradeiros do livro de

Juízes mostram exemplos aterradores dos equívocos que podemos

cometer à medida que consultamos Deus, mas, então, agimos à nossa

própria maneira. É pouco provável que esses israelitas tenham

percebido as dinâmicas de sua experiência. Muito menos que tenham

esperado por uma resposta às suas indagações, seja qual for o que

pretendessem ouvir como resposta. Eles, simplesmente, seguiram

tentando solucionar o problema por si mesmos. Ainda bem que não

fazemos isso, não é mesmo? Como resultado, exatamente quando

pensamos que a história não poderia piorar, em seu retrato sobre o

modo pelo qual os homens tratam uns aos outros e, especialmente,

tratam as mulheres, ela apresenta uma derradeira tentativa. A narrativa

chama a nossa atenção para outro voto de aparência duvidosa, que leva

os homens a assassinar todos os habitantes de Jabes-Gileade, com

exceção das jovens virgens. Então, há o sequestro de esposas dentre as

dançarinas que celebram um festival em honra a Deus.

Em nossa reação ao que ocorre com as garotas de Jabes e de Siló,

precisamos considerar certas diferenças culturais. Na cultura ocidental,


trata-se de um artigo de fé ter o direito de escolher o nosso próprio

cônjuge; olhamos com horror para o conceito de casamentos arranjados.

No entanto, o testemunho de nossa cultura é que mesmo essa liberdade

de escolha não funciona muito bem; metade dos matrimônios acaba em

divórcio, embora ainda apreciemos tomar as nossas próprias decisões.

Em nosso comentário sobre a história de Sansão, observamos que o

costume de casamentos arranjados não significa que os jovens

envolvidos não tenham a prerrogativa da recusa, e o testemunho de

pessoas de sociedades tradicionais é que eles funcionam muito bem. Por

tudo o que sabemos, as garotas de Jabes e de Siló podem ter vivido

felizes para sempre. Todavia, a maneira pela qual chegaram lá foi, de

fato, terrível.

“Naqueles dias, não havia rei em Israel. Cada pessoa fazia o que era

certo aos seus próprios olhos.” Este é o fim de um livro, mas não é o fim

da história mais ampla.


RUTE

RUTE 1:1-9
COMO A VIDA DE NOEMI DESMORONA
1
Na época dos líderes, houve fome na terra, e um homem saiu de Belém, em Judá, para

2
residir em terra moabita, ele, sua esposa e seus dois filhos. O nome do homem era

Elimeleque, o nome de sua esposa era Noemi, e os nomes de seus filhos eram Malom e

3
Quiliom, efrateus de Belém, em Judá. Elimeleque, marido de Noemi, morreu, e ela foi

4
deixada com seus dois filhos. Eles tomaram para si esposas moabitas; o nome de uma era

5
Orfa, e o da outra, Rute. Mas os dois homens, Malom e Quiliom, também morreram, e a

6
mulher foi deixada sem o seu marido e os seus dois filhos. Então, essa mulher e as suas duas

noras partiram da terra moabita porque tinham ouvido, na terra moabita, que Yahweh tinha

7
prestado atenção ao seu povo, dando-lhes pão. Ela deixou o lugar no qual estava, suas duas

8
noras com ela, e seguiram na estrada para retornar a Judá. Mas Noemi disse às suas duas

noras: “Cada uma de vocês vá e retorne à casa de sua mãe. Que Yahweh mantenha o

compromisso com vocês, assim como vocês mantiveram o compromisso com os homens

9
mortos e comigo. Que Yahweh conceda que cada uma de vocês encontre um lugar

estabelecido na casa de seu marido.” Ela as abraçou, e elas elevaram as suas vozes e

choraram.

Certo domingo, na igreja à qual pertencia na Inglaterra, essa história

era a passagem do Antigo Testamento escolhida no dia que eu deveria

pregar. Meu instinto padrão é sempre olhar para a passagem do Antigo

Testamento como aquela a ser pregada (alguém tem que fazer isso), mas

naquela ocasião, ao ler a história, minha reação imediata foi pensar que

não havia como esse relato sobre mulheres do campo falar à nossa

congregação urbana. Então, compreendi que a diferença era apenas

superficial. As questões de vida com as quais a história lida eram as

mesmas impostas em nosso cenário urbano. Os dois contextos envolvem

pessoas às voltas com experiências similares, como enfrentar mudanças

em razão do desemprego, migrar para um país estrangeiro em busca de

melhores condições de vida, a perda do cônjuge, o lidar com a viuvez, a


submissão a um casamento transcultural e inter-religioso e o constante

questionamento quanto a que cultura pertencer.

Rute inicia-se onde Juízes termina: ainda estamos no tempo dos

líderes. O livro começa relatando as coisas indo de mal a pior; mas,

enquanto Juízes fala sobre a piora da situação por influência de Deus,

quando os próprios israelitas agem errado, aqui não há sugestão de que

a fome seja um ato de julgamento divino. É apenas uma daquelas coisas

que podem ocorrer naturalmente, como as ondas de fome, citadas em

Gênesis, que afetaram as famílias de Abraão e Sara, Isaque e Rebeca,

bem como de Jacó e suas esposas. Num bom ano, deve haver uma boa

colheita em Israel, porém num ano ruim pode haver escassez de chuva

no período errado ou uma nuvem de gafanhotos. A terra está sempre a

um passo da fome. O que Elimeleque deve fazer? A sua própria

produção não é suficiente para alimentar a sua família e, decerto, a fome

atinge os demais produtores da área, de modo que eles não podem

simplesmente resolver entre si (os efrateus seriam um dos grupos de

parentesco dentro do clã de Judá, o grupo que vivia na região de

Belém). De algum modo, ele precisa prover para a sua família.

Aparentemente, outros fazendeiros em Belém apenas nutrem a

esperança de conseguir sobreviver de alguma forma. Talvez tenham

conseguido armazenar grãos nos anos de boas colheitas e podem, agora,

usar o excedente durante os anos magros, mas obviamente Elimeleque

não logrou fazer isso. Ele ouve que a situação está melhor em Moabe.

De Belém, ele pode olhar na direção das terras situadas a leste, do outro

lado do profundo vale do Jordão, com o mar Morto ao fundo, e ver as

montanhas de Moabe despontando no horizonte. A história sobre Eúde

e Eglom, em Juízes 3, mostra que Moabe não morre de amores por

Israel e vice-versa. Desse modo, seria humilhante e até mesmo perigoso

mudar para lá, mas é preciso alimentar a sua família. Ele não ficará

sentado em Belém, renovando as esperanças, como outros efrateus que

conhece. Então, eles fazem a mudança.


Será que a morte de Elimeleque foi causada por um coração partido,

por um sentimento de fracasso como provedor e chefe de família? A

narrativa não nos revela a causa, em parte porque é o relato da vida de

uma mulher. Elimeleque é citado na história apenas por ser o marido de

Noemi. Por seu turno, ela observa os filhos tomarem mulheres moabitas

como esposas. A escolha dos filhos ameaça partir o seu coração e impor

a ela um sentimento de fracasso e vergonha como mãe? O que há de

positivo no fato de jovens israelitas desposarem mulheres moabitas?

Todos conhecemos a respeito das mulheres moabitas. Relembre a

origem delas (veja Gênesis 19:30-38). Agora, pense no modo pelo qual

os homens israelitas foram atraídos por elas e terminaram servindo a

outros deuses (veja Números 25). E, então, o que ocorre quando os dois

jovens filhos de Noemi morrem? (O relato não nos fornece uma noção

de tempo, mas, evidentemente, Rute ainda não possui filhos, é jovem e

elegível, quando ela e Noemi retornam a Belém. Desse modo, imagino

Noemi com cerca de quarenta anos de idade, seus filhos com cerca de

vinte e o casamento delas com pouca duração.) Trata-se do juízo

divino? É possível imaginar esse questionamento remoendo a mente

dos futuros ouvintes dessa história.

A história de Noemi faz lembrar a história de Jó. A vida dela é

devastada por um golpe atrás do outro. Ela tinha se casado com

expectativas elevadas quanto a ela e Elimeleque trabalharem no campo

e formar uma família. Todavia, ela é privada de sua fazenda, de sua

família estendida, de sua terra natal, de seu marido e de seus filhos.

Além de tudo isso, é deixada sozinha, numa terra estranha, com duas

noras estrangeiras.

Então, ela ouve que a onda de fome passou. Pela primeira vez, a

narrativa cita Deus, mas, durante todo o relato, ela será reticente

quanto a essa menção. A história traça um paralelo com a forma pela

qual experimentamos a nossa vida, reconhecendo a importância das

coincidências e das iniciativas humanas visíveis e crendo no

envolvimento de Deus nos bastidores. Contudo, usualmente, não há


indicação de como Deus está agindo. O narrador não sabe como ou

mesmo se Deus está envolvido na relação de eventos negativos com os

quais a história principia — a fome, a mudança, os casamentos, as

mortes. Mas o narrador sabe como a fome chegou ao fim; Deus “tinha

prestado atenção ao seu povo.” A versão Revista e Corrigida Fiel fala

sobre Deus “visitando” o seu povo. Esse é, na verdade, um verbo

preocupante, pois, com frequência, as “visitas” de Deus são como as

visitas feitas pela Máfia, ou seja, elas significam um julgamento. É mais

seguro quando Deus não nos visita ou presta atenção em nós, porém

essa visita é diferente. Deus decidiu se envolver com Israel, dando-lhe

pão. A chuva havia chegado, fazendo crescer o grão e levando a uma boa

colheita. A fome estava superada. Belém está, de novo, vivendo à altura

de seu nome (isto é, “casa do pão”; a região em torno de Belém é grande

produtora agrícola).

Portanto, Noemi pode voltar para sua casa, e, na realidade, não

existe alternativa: afinal, o que uma viúva e suas duas noras podem

fazer? Tudo o que lhe resta é retornar a Belém, onde a fazenda

abandonada ainda está, com uma mão na frente e outra atrás, tão

humilhada e triste em seu retorno quanto em sua partida, constituindo

um prato cheio para os mexericos das demais mulheres: “Para você ver;

eles pensaram que estavam sendo muito inteligentes ao decidir ir para

Moabe a fim de escapar da fome e, agora, veja onde isso os levou.”

As duas jovens mulheres que retornaram com Noemi a Belém —

“retorno” para Noemi, mas as noras jamais tinham estado na terra de

seus maridos. Afinal, as três constituem uma família, ainda que uma

família incomum, agora que os homens tinham morrido.

Paradoxalmente, as duas noras, que pareciam ser o símbolo de tudo o

que tinha dado errado, são, na verdade, as duas pessoas capazes de

ajudar Noemi em sua cura. No entanto, às vezes, quando a tribulação

atinge alguém, é possível que essa pessoa tenha receio de confiar em

algo positivo existente em sua vida. Caso tivesse perdido a sua fazenda,

a sua terra natal, a sua família estendida, o seu marido e os seus filhos,
decerto, pensaria que há uma maldição sobre você. Se permanecer

ligado a essas duas garotas estrangeiras, também não as perderá? É

melhor agir antes da maldição. As noras possuem alternativas que ela

própria não tem. Ambas possuem famílias moabitas às quais podem

retornar. Noemi se refere a elas como “a casa de sua mãe”. Trata-se de

uma das inúmeras formas por meio das quais a história encoraja os

leitores a resistir aos estereótipos patriarcais que, em geral, prevalecem

nas culturas. Não são apenas os homens que estão à frente dos destinos

da família. Noemi era “a esposa de Elimeleque”, porém ele também era

“o marido de Noemi”; se ele a “possuía”, ela também o “possuía”.

Qual é o tom de sua voz, e o que está ocorrendo no íntimo de seu

coração, quando ela expressa a esperança de que Deus possa cuidar das

noras e que cada uma delas encontre outro marido? Em geral, é uma

tarefa difícil tentar “ler” Noemi. Ela soará profundamente deprimida e

desiludida com Deus quando está tentando persuadir as duas noras a

permanecer em Moabe e quando ela mesma retorna para Belém. Em

certo nível, ela, de fato, é verdadeira no que diz, mas quanto espera que

as suas esperanças se cumpram? Não podemos acusá-la de nada, caso a

sua resposta seja negativa.


RUTE 1:10-19A
A ESCOLHA
10 11
Elas lhe disseram: “Não, porque retornaremos ao seu povo com você.” Noemi disse:

“Retornem, minhas filhas, por que deveriam ir comigo? Por acaso ainda tenho filhos dentro

12
de mim que poderiam se tornar seus maridos? Retornem, minhas filhas; vão, porque

também estou muito velha para pertencer a um homem. Se eu dissesse que há esperança para

13
mim, se realmente pertencesse a um homem esta noite e, de fato, desse à luz filhos, vocês

esperariam, então, por eles, até que fossem adultos e se manteriam afastadas de pertencer a

um homem? Não, minhas filhas, porque as coisas são muito mais difíceis para mim do que

14
para vocês, porque a mão de Yahweh se estendeu contra mim.” Elas levantaram as suas

15
vozes e choraram novamente, e Orfa abraçou a sua sogra, mas Rute se agarrou a ela. Então,

ela disse: “Ora, a sua cunhada está retornando para o seu povo e os seus deuses. Volte com a

16
sua cunhada” Rute disse: “Não me pressione a deixar-te e retornar com ela, porque aonde

quer que fores, irei, e onde quer que te hospedares, também me hospedarei. O teu povo será o

17
meu povo, e o teu Deus será o meu Deus. Onde quer que morras, morrerei, e ali serei

sepultada. Assim, que Yahweh faça comigo, e ainda mais, caso [mesmo] a morte me separe de

18
ti.” Quando [Noemi] viu que ela estava determinada a ir com ela, Noemi parou de lhe falar,

19a
e as duas seguiram até chegar a Belém.

Quando a esclerose múltipla da minha esposa foi primeiramente

diagnosticada, escrevi para informar ao seu pastor, que também havia

sido o meu mentor. Lembro-me de ter lido a sua resposta. Ele nos

contou como, naquela manhã, ocorreu de estar estudando a história

sobre Jesus transformar a água em vinho, presente em João 2, que inclui

o surpreendente comentário do responsável pelo casamento de que o

noivo havia reservado o melhor vinho para o final. “Deus sempre faz

isso”, nosso pastor comentou; de alguma forma, isso seria verdade para

nós. À medida que a enfermidade afetava Ann de modo crescente a cada

ano, com frequência eu refletia sobre essas palavras e perguntava-me o

que poderiam significar. Claro que são verdadeiras, no sentido de que

Ann se levantará para uma nova vida no dia da ressurreição, mas há

algo mais por trás delas do que isso? Que esperança poderíamos nutrir?
Tais palavras se tornaram reais, no sentido de que Deus nos propiciou

uma estranha, porém boa, vida a dois, e, por eu ter de lidar com aquela

experiência, Deus me transformou numa pessoa menos questionável do

que seria, caso não tivesse passado por ela. Poderia haver algo mais

além disso? Agora que Ann está morta, sei que a resposta é “não”.

O que a esperança significa? Noemi perdeu a dela, e não podemos

acusá-la. Isso também significa que ela não considera com a devida

seriedade a expressão de suas noras em relação a ela. Em certo sentido,

as suas noras estão lhe oferecendo esperança, mas ela não consegue

reconhecer dessa forma. O efeito do luto torna impossível ao enlutado

imaginar que ainda haverá algum futuro para ele. A maneira pela qual a

pessoa sempre imaginou o futuro envolvia outras pessoas — no caso de

Noemi, envolvia a presença de três outras pessoas, seu marido e seus

dois filhos. No seio de uma sociedade tradicional, uma esposa sabe que é

possível perder o marido com vinte, trinta ou quarenta anos, ou que um

de seus filhos possa morrer antes da mãe. Todavia, perder todos eles,

marido e filhos, é um cenário muito pior do que o imaginável. Rute e

Orfa estão oferecendo a Noemi outro olhar para o futuro; as três

formarão uma família permanente. Será, claro, um tipo incomum de

família, mas ainda assim será uma família, e que tem esperança.

Contudo, Noemi não consegue enxergar isso. Para ela e para as suas

noras, Noemi só consegue vislumbrar uma forma de família, e não há

nada que a faça ter aquele núcleo familiar novamente. As duas garotas

deveriam recomeçar e fazer isso longe dela.

Noemi diz: “As coisas são muito mais difíceis para mim do que para

vocês, porque a mão de Yahweh se estendeu contra mim.” O Antigo

Testamento fala, com frequência, sobre a mão de Deus ser estendida

para agir. Não muito distante do lugar no qual Noemi e suas noras estão

naquele momento, a mão de Deus havia se estendido para conduzir o

povo na travessia do Jordão, conforme a história relatada em Josué.

Todavia, a mão divina também havia sido estendida nos relatos

apresentados em Juízes, quando ela se voltou contra Israel. Pelo que ela
e nós sabemos, Noemi e Jó possuem algo em comum, pois ambos nada

fizeram para merecer o mesmo tipo de tratamento que Deus dispensou

aos infiéis israelitas, em Juízes, mas é dessa maneira que Noemi tem sido

tratada. Quando foram tratados daquela forma, os israelitas puderam se

arrepender, receber o perdão de Deus e ser restaurados. Quando não há

razão para a sua vida colapsar, não há nada que você possa fazer, exceto

protestar. Jó e o livro de Salmos exibem maneiras pelas quais é possível

oferecer tal protesto, mas Noemi não atingiu o ponto no qual é capaz de

elevar a sua voz em protesto diante de Deus. Ela até fala muito sobre

Deus, ao expressar os seus desejos com relação às suas noras e a sua

compreensão quanto ao que lhe tem ocorrido, mas não consegue falar a

Deus sobre isso.

Agora, Orfa e Rute têm duas escolhas diante de si. Elas podem

retornar à casa materna, como instou Noemi, ou podem insistir em

acompanhar a sogra. Orfa concorda em seguir a primeira opção. (A

propósito, talvez você já tenha ouvido sobre alguém com o nome de

Oprah; conta-se que o seu nome originariamente deveria ser Orpah, em

homenagem ao nome da nora de Noemi, como grafado na Bíblia no

idioma inglês, mas, dada a pronúncia errada das pessoas, os pais

desistiram do nome original e o mudaram para Oprah.) Isso não

significa que Orfa tenha feito uma má escolha e que seja, de algum

modo, inferior a Rute. Ela simplesmente deu prioridade ao seu próprio

povo, conforme sugerido por Noemi. Ela respeitou a maneira pela qual

os valores de uma família tradicional funcionavam. Ela é um pouco

como Naamã, o general sírio, que foi até Israel para ser purificado de sua

doença de pele e reconhece Yahweh, mas, então, é obrigado a retornar

para a sua casa, na Síria, ou como os três sábios que chegam para

conhecer o menino Jesus, porém voltam para as suas casas, no Oriente,

de onde tinham vindo. Reconhecidamente, Noemi fala de modo

ambíguo quanto ao que isso significará para Orfa. “Que Yahweh

mantenha o compromisso com vocês”, ela tinha dito. “Que Yahweh

conceda que cada uma de vocês encontre um lugar estabelecido na casa


de seu marido.” Agora, para Rute, Noemi diz: “A sua cunhada está

retornando para o seu povo e para os seus deuses.”

Se Noemi está confusa, Rute parece bem lúcida, com uma

determinação extraordinária. Ela não irá desistir de seguir com Noemi,

para o povo e o Deus de sua sogra, “até que a morte nos separe” —

exceto que, na verdade, ela afirma que nem mesmo a morte as separará.

A morte não separa os membros de uma família; pois são sepultados ao

lado de outros familiares, na tumba da família, de modo que a morte

significa, na realidade, unir-se aos ancestrais (tal como expressado pelo

Antigo Testamento). Rute transmite um compromisso radical à

membresia na família de Noemi. Na realidade, os intérpretes judaicos

têm considerado o termo “compromisso” como palavra-chave no livro

de Rute. A própria Noemi usou a palavra ao expressar o desejo de

Yahweh manter o compromisso com Orfa e Rute, assim como elas

haviam mantido o compromisso com seus maridos e com ela. Rute não

faz uso desse termo aqui, mas as suas palavras a Noemi indicam que está

declarando um compromisso dessa espécie: ela não é obrigada a fazer

isso, mas é o que deseja fazer.

É impossível adivinhar os motivos pelos quais Rute assume esse

compromisso. A própria Noemi a está mandando embora. O povo de

Noemi olha com superioridade para o povo de Rute. O Deus de Noemi é

aquele que parece ter abandonado as três mulheres à própria sorte. Não

obstante, é a esse Deus que Rute apela em seu juramento de fidelidade a

Noemi. Como Raabe e Acã confundem a diferença entre cananeus e

israelitas no livro de Josué, Rute e Noemi confundem a distinção entre

moabitas e israelitas. Noemi fala como moabita, enquanto Rute fala

como israelita. Caso fosse a cena de um filme, Noemi poderia, agora,

irromper em lágrimas por ter sido subjugada pelo compromisso de

Rute. Mas nem tanto. Ela apenas desiste e para de tentar persuadir

Rute. “Que seja”, podemos imaginá-la dizendo.

Rute não aparece na lista de heróis da fé em Hebreus, como Raabe,

Sansão e Abraão, mas figura, na verdade, como heroína da fé na relação


dos ancestrais de Jesus em Mateus 1. Como Abraão, Rute se apresenta

disposta a deixar a sua terra natal e seguir rumo a Canaã, quando ainda

não tem como saber que lá Yahweh cuidará dela. Sua fé será justificada.
RUTE 1:19B—2:9
ELA É MOABITA, PELO AMOR DE DEUS!

19b
Quando chegaram a Belém, toda a cidade se alvoroçou por causa delas, dizendo: “Esta é

20
Noemi?” Ela lhes disse: “Não me chamem Noemi [Agradável], mas Mara [Amarga], porque

21
Shadday tem sido muito duro comigo. Eu era cheia quando parti. Yahweh trouxe-me de

volta vazia. Por que me chamar de Noemi, quando Yahweh tem me afligido, quando Yahweh

tem me tratado tão mal?”

22
Assim, Noemi retornou da terra moabita com a sua nora Rute, a moabita. Elas chegaram a

Belém no início da colheita da cevada.

CAPÍTULO 2

1
Ora, Noemi tinha um parente de seu marido, um homem rico e poderoso, da parentela de

2
Elimeleque, cujo nome era Boaz. Rute, a moabita, disse a Noemi: “Posso ir aos campos e

colher entre as espigas de grãos atrás de alguém em cujos olhos eu encontre favor?” Ela lhe

3
disse: “Vá, minha filha.” Então, ela foi. Ela veio e colheu nos campos atrás dos ceifeiros, e o

acaso a levou à porção dos campos pertencentes a Boaz, que era da parentela de Elimeleque.

4
E, ali, Boaz estava vindo de Belém. Ele disse aos ceifeiros: “Yahweh esteja com vocês”, e eles

5
lhe disseram: “Yahweh te abençoe.” Boaz disse ao seu rapaz, que estava a cargo dos ceifeiros:

6
“A quem pertence aquela garota?” O rapaz que estava a cargo dos ceifeiros disse: “Ela é uma

7
garota moabita que retornou com Noemi da terra moabita. Ela disse: ‘Posso colher e reunir

entre os feixes, atrás dos ceifeiros?’ Ela veio e ficou desde a manhã até agora; ela parou na

8
casa por um pouco.” Boaz disse a Rute: “Ouça bem, minha filha. Não vá colher em outro

9
campo. Não, você não passará daqui. Fique aqui com as minhas garotas com os seus olhos

sobre o campo que está sendo ceifado. Siga-os. Ordenei aos rapazes para não tocarem em

você. Quando estiver com sede, vá aos vasos e beba do que os rapazes tirarem.”

Acabei de ler a história de um homem chamado Maxo, que morreu

durante o terremoto no Haiti, algumas semanas atrás, quando a casa na

qual estava desmoronou sobre ele. Seu primo, morador de Nova York, o

chamou de incansável, e sua história mostrou como ele era mesmo

incansável em benefício de outras pessoas. No último telefonema que

recebera de Maxo, três dias antes do terremoto, seu primo soube que ele

estava tentando levantar fundos para reconstruir uma escola na vila em

que morava, nas montanhas. Antes disso, ele tentou levantar dinheiro
para a compra de um caixão para um vizinho que tinha morrido. Em

2004, Maxo levou o seu idoso pai, um pastor, a Miami em busca de

tratamento médico, mas eles foram detidos, e seu pai morreu ali. No

momento do terremoto, a sua casa estava cheia de gente, como as

crianças das quais ele cuidava após a escola e os pais que foram falar

sobre o trabalho escolar de seus filhos. As pessoas que se importavam

com Maxo cavaram os escombros durante dias, na esperança de

encontrá-lo com vida, mas, no fim, encontraram somente o seu corpo já

inerte.

Maxo era um homem que sabia o significado de compromisso. O

relato não utiliza essa palavra a respeito de Boaz, porém ele também é

assim. Boaz não é um homem que precisa forçar as coisas, em seu

próprio benefício ou de outras pessoas. Ele é um grande sujeito.

Paradoxalmente, há a suspeita pelo fato de ele ser uma pessoa

importante na vila. A história em Josué relata como a terra deveria ser

distribuída entre os clãs e as famílias. Supostamente, não deveria haver

grandes latifundiários (os profetas irão falar contra isso), assim como

não deveriam existir os chamados “garotos” ou empregados de outras

pessoas. Talvez Boaz tenha se saído bem com a onda de fome. Pode ser

que fosse um fazendeiro melhor que os outros ou que tenha logrado

economizar dinheiro quando a colheita não foi boa, o que resultou no

controle das terras de outros fazendeiros menos eficientes, cuidadosos

ou bafejados pela sorte. O que a sua história, então, mostra é que o

poder e os recursos são coisas que podem ser usadas de um modo

egoísta ou de uma forma que expresse compromisso pelo próximo. Há

uma pista disso no cumprimento inicial entre ele e os seus

trabalhadores. Talvez a bênção mútua fosse apenas um cumprimento

convencional, mas creio que tenha sido mencionada na história como

uma indicação do relacionamento de Boaz com Deus e de sua boa

relação com os seus empregados.

Sua pergunta sobre a quem aquela garota pertence parece mais

ambígua. Poderia ser uma pergunta típica de um rapaz; ele gosta


daquela garota desconhecida e deseja saber se ela é comprometida.

Todavia, talvez essa seja uma forma ocidental demais de ver a cena. A

história retrata Boaz como um homem honrado que jamais pensaria

nesses termos. De todo modo, isso levanta a questão sobre a situação

conjugal de Boaz. Seria muito improvável que um membro sênior da

comunidade, como Boaz, fosse solteiro. A família, decerto, lhe teria

arranjado uma esposa adequada. O mais provável é que um homem

proeminente como Boaz estivesse interessado em ter uma esposa extra,

porque esse é um sinal de posição social. Contudo, essa ideia não nos

parece muito romântica e, assim, outra possibilidade é que ele seja

viúvo. Ao nos falar sobre Elimeleque, Malom e Quiliom, a história já

nos recordou de que, numa sociedade tradicional, muitas pessoas

morrem quando ainda são jovens, e o perigo envolvido no parto torna

essa possibilidade ainda mais verdadeira para as mulheres.

O pano de fundo da história é o tipo de preocupação que a Torá

demonstra por pessoas necessitadas, ou seja, viúvas como Noemi e

Rute. Em nossa cultura, assumimos que tudo deve ser feito com a

máxima eficiência econômica. Quando as condições financeiras se

tornam difíceis, as empresas dispensam os empregados, e eles precisam

se defender sozinhos. O que mais as empresas podem fazer? Se falharem

nessa tomada de ação, as próprias empresas irão afundar. A necessidade

de tomar essa atitude está embutida no sistema. Ele produz crescimento

e conquista, mas também sofrimento. O sistema, em uma sociedade

tradicional, possui vantagens e desvantagens opostas. Um aspecto é que

os ceifeiros que estão colhendo os grãos não tentam fazer isso de

maneira muito eficiente. Eles deixam algo para trás, visando abastecer

as pessoas que não pertençam a famílias regulares e que, portanto, não

possuam campos nos quais possam cultivar, não dispondo, desse modo,

de meios para assegurar alimento suficiente para sua subsistência e a

dos seus.

O contraste entre Noemi e Rute, que emergiu quando elas estavam

em Moabe, persiste agora que estão em Belém. Rute é uma pessoa


dotada de energia e iniciativa, visando fazer algo para assegurar que elas

tenham com que se alimentar. Noemi está muito desanimada e não tem

a menor intenção de encobrir a sua amargura pelo modo com que a vida

a tem tratado — ou, melhor, por como Deus a tem tratado. Uma vez

mais, ela fala como Jó, que também descreve o tratamento de Deus a ele

como severo e duro. Outra similaridade com Jó é a transição feita por

Noemi aqui, ao se referir a Deus como Shadday. As traduções, em geral,

apresentam o termo “Todo-poderoso” como tradução equivalente. Não

sabemos o que a palavra Shadday significa, mas o termo “Todo-

poderoso” transmite algo da noção correta. Shadday é um nome que, às

vezes, surge em Gênesis e constitui o nome que um não israelita, como

Jó ou Balaão, utilizaria. Yahweh é o nome israelita especial para Deus;

ele sugere o envolvimento de Deus com o povo de Israel. Shadday

sugere o poder e a transcendência de Deus; é um pouco menos pessoal

que Yahweh. Assim, é sugestivo que Noemi utilize esse nome.

No livro de Jó, somos informados quanto aos bastidores da história;

sabemos o que há por trás de seu sofrimento, embora Jó não o soubesse.

No caso do livro de Rute, não há informações sobre os bastidores. Deus

apenas permite que a vida de Noemi desmorone, e ela não tem receio de

dizer isso. Os Salmos irão sugerir que não há problemas em falar da

forma pela qual ela se expressa, embora também possam sugerir que é

uma vergonha ela não estar falando a Deus, mas apenas sobre Deus. Um

aluno lembrou que, certa feita, eu afirmei em sala de aula: “Não

reclamem a outras pessoas. Tenham certeza de reclamarem a Deus. Ele é

grande o suficiente e pode lidar com isso.” Espero mesmo ter dito isso,

pois é verdade.

O fato de Noemi ter dito que Deus a trouxe de volta a Belém vazia

é, igualmente, algo insultuoso a Rute, mas a sua nora parece relevar

isso. Uma vez mais, o contraste entre as duas mulheres é evidenciado. A

história segue sublinhando que Rute é de Moabe, portanto uma

moabita; esta passagem repete a ênfase, notadamente quando o rapaz

responde à pergunta de Boaz: “Ela é uma garota moabita que retornou


com Noemi da terra moabita.” É como se a história destacasse: “VOCÊ

ENTENDEU? ELA É UMA MOABITA!” Na realidade, era muito fácil

aos israelitas olharem os moabitas com desdém. Esse sentimento seria

especialmente comum nos dias de Esdras e Neemias, quando Judá era

apenas uma pequena e fragilizada colônia da Pérsia e corria o risco de

ser dominado por povos vizinhos como Moabe. Pessoas como Esdras e

Neemias sabem que os israelitas devem evitar casamentos mistos com

os moabitas, pois essa união poderia colocar em risco o compromisso

familiar a Yahweh. A história de Rute lembra as pessoas de que essa

preocupação religiosa não deve se tornar um preconceito étnico.

Etnicamente, Rute é moabita, mas, como Raabe, ela se comprometeu

com Yahweh.
RUTE 2:10-23
O DEUS DAS COINCIDÊNCIAS
10
Ela se prostrou, curvando-se com o rosto em terra, e lhe disse: “Por que achei favor a seus

11
olhos, ao prestar atenção em mim quando sou uma estrangeira?” Boaz lhe respondeu:

“Tenho sido informado sobre tudo o que você tem feito por sua sogra, após a morte de seu

marido. Você deixou o seu pai, a sua mãe, a terra de seu nascimento e veio a um povo que não

12
conhecia antes. Que Yahweh recompense os seus feitos. Que lhe seja rica a recompensa de

13
Yahweh, o Deus de Israel, sob cujas bainhas veio buscar refúgio.” Ela disse: “Que eu ache

favor aos seus olhos, senhor, porque confortou e encorajou a sua serva, embora eu não seja

uma de suas servas.”

14
Boaz lhe disse na hora da refeição: “Venha aqui, coma alguma comida e mergulhe o seu

pedaço no vinagre.” Então, ela se sentou ao lado dos ceifeiros, ele lhe passou os grãos

15
tostados, e ela comeu, ficou satisfeita e ainda teve algumas sobras. Quando ela se levantou

para colher, Boaz ordenou aos seus rapazes: “Ela pode colher entre os feixes; não a reprimam.

16
Na verdade, podem retirar um pouco para ela dos feixes também, e deixem-na colher. Não

17
a repreendam.” Ela colheu nos campos até a noite e debulhou o que tinha colhido. Chegou

18
a um efa de cevada. Ela a pegou e foi para a cidade, e sua sogra viu o que ela tinha colhido.

[Rute] tirou e lhe deu o que havia sobrado de quando ela ficou satisfeita.

19
Sua sogra lhe disse: “Onde você colheu hoje? Onde você trabalhou? Abençoado seja o

homem que prestou atenção em você.” Ela contou à sua sogra com quem tinha trabalhado e

20
disse: “O nome do homem com o qual trabalhei hoje é Boaz.” Noemi disse à sua nora: “Seja

ele abençoado por Yahweh, que não abandona o seu compromisso com os vivos e com os

mortos.” Noemi lhe disse: “O homem é nosso parente. Ele é um de nossos resgatadores

21
próximos.” Rute, a moabita, disse: “Ele também me disse: ‘Fique perto dos meus rapazes

22
até que eles tenham terminado toda a minha colheita.’” Noemi disse a Rute, sua nora:

“Minha filha, será bom se você sair com as garotas dele e os homens não se aproximem de

23
você em outro campo.” Assim, ela ficou perto das garotas de Boaz, enquanto colheu até

que a colheita de cevada e de trigo tinham acabado, mas viveu com a sua sogra.

Certo dia, com treze anos de idade, enquanto caminhava para a escola,

encontrei uma professora da escola dominical que eu costumava

frequentar, mas que havia abandonado, dois anos atrás, para ir para

outra igreja. Ela me contou que a minha antiga igreja estava começando

uma nova comunidade de jovens e me perguntou se eu não gostaria de


ir. Então, aceitei o convite, e isso mudou a minha vida, especialmente

porque o ministro era um teólogo muito hábil, e adquiri o seu

entusiasmo e interesse pela teologia. É possível que não estivesse

escrevendo a série O Antigo Testamento para todos caso esse encontro

acidental não tivesse ocorrido. Então, sete anos mais tarde, participei

de uma conferência de estudantes cristãos e, em certo desjejum,

casualmente sentei-me ao lado de uma jovem e comecei a conversar

com ela. Terminamos casados por quarenta anos. Foi o encontro que

mais influenciou a minha vida e ocorreu por mera casualidade.

A história de Rute nos alerta quanto ao papel da coincidência ou do

acaso no desenrolar dos acontecimentos ao comentar que o acaso a

tinha levado a colher na parte dos campos que pertenciam a um parente

de seu sogro. A implicação dessa coincidência é agora tornada explícita.

Noemi e Rute tinham orado para que esta fosse levada ao campo certo,

mas “aconteceu” de Rute ir ao melhor campo possível. Não foi apenas

por ter sido muito bem tratada e ter colhido uma significativa

quantidade de grãos, embora isso, de fato, tenha ocorrido. A quantidade

colhida por ela é quase o limite de peso da bagagem por pessoa

permitido pelas companhias aéreas e, por conseguinte, entre outras

qualidades, Rute mostrou que não era fraca. Além disso, havia ainda as

“sobras” da significativa quantidade que ela consumira no almoço.

É o suficiente para transformar Noemi. Ela pode orar e louvar

novamente. Isso mostra que, no fim das contas, Deus não desistiu do

compromisso com elas. Eis aquela palavra de novo. Isso se aplica não

somente às relações dentro de sua família e entre Boaz e elas, mas ao

relacionamento de Deus com elas. Isso é expresso no fato de Boaz ser

um de seus “resgatadores próximos”, o que o torna também num

potencial “guardião”, “redentor” ou restaurador delas.

Todas essas formas de traduzir a palavra hebraica transmitem algo

que o termo denota. Refere-se a uma pessoa fora de sua família imediata

— da sua “casa”, segundo a forma de falar do Antigo Testamento. No

livro de Rute, a casa agora compreende apenas Noemi e Rute. Dentro


de sua família estendida (por exemplo, entre os irmãos de Elimeleque),

haverá pessoas que são relativamente próximas a você por nascimento.

Quando a dificuldade surge, caso tenha sorte, pode haver dentre elas

alguém que seja o cabeça de outra casa e que esteja em melhores

condições financeiras que você, alguém que tenha se saído melhor como

fazendeiro ou cuja família esteja com melhor saúde que a sua, quando os

seus familiares são atingidos por doenças ou acidentes que coloquem em

perigo a capacidade de subsistência de sua família. Tal pessoa tem a

obrigação moral e social de ajudar você e a sua casa, de uma forma ou de

outra — por exemplo, evitando que você abra mão da administração de

sua fazenda e/ou que seus filhos se tornem servos contratados, por

tempo determinado, de outro fazendeiro. (Ironicamente, “ajudar” as

pessoas contratando os filhos delas como servos é, talvez, o processo que

tem beneficiado Boaz.) Essa pessoa é um resgatador próximo ou

parente íntimo, um potencial guardião de sua liberdade, bem como um

redentor capaz de usar parte de seus recursos para livrá-lo dos

problemas. O bom homem que se tem importado tanto com Rute é

alguém nessa posição em relação a Noemi e a Rute.

Na realidade (Noemi diz), ele é uma pessoa nessa posição em relação

aos mortos — Elimeleque, Malom e Quiliom, aqueles com os quais está

diretamente relacionado —, assim como em relação aos vivos, isto é,

Rute e Noemi. Lembre-se de que o modo esperado de o sistema

funcionar era que a terra de Israel fosse distribuída entre os clãs e

famílias, portanto às mãos do cabeça masculino da família, responsável

pela fazenda. Para manter o sistema e evitar que a terra caísse no

domínio de grandes latifundiários, a terra tinha que permanecer sob o

controle da família (no caso em questão) de Elimeleque e, então, de

Malom e Quiliom. Havia exceções; a história das filhas de Zelofeade

(veja Josué 17) estabeleceu que um homem sem filhos poderia passar a

terra da família para as suas filhas. Contudo, Elimeleque e Noemi não

tiveram filhas. Ao que parece, Elimeleque e Noemi foram obrigados a

passar a sua terra a alguém em virtude do fracasso da colheita e da onda


de fome com a qual a história começou. Assim, eles não têm a quem

reclamar a terra de volta, nem meios de fazê-lo.

Da mesma forma que Noemi usa essa relevante expressão para

descrever a posição de Boaz em relação à família delas, Boaz utiliza uma

significativa expressão ao explicar a sua generosidade a Rute. “Por que

você se importa com uma estrangeira como eu?”, ela pergunta. Rute

espera ser tratada da mesma forma que tratamos os estrangeiros na Grã-

Bretanha ou nos Estados Unidos. No entanto, a Torá estabelece

expectativas sobre como os israelitas devem tratar estrangeiros

necessitados que chegam a Israel em busca de refúgio, quando os

israelitas estão em melhor situação que os refugiados. O modo pelo qual

Boaz expressa isso é falar da vinda de Rute em busca de refúgio com

Yahweh, sob as bainhas de Yahweh. O termo hebraico para as “bainhas”

de um manto é também a palavra para “asas” de um pássaro (que são

como suas bainhas), como a lembrar pintinhos se escondendo sob as

penas da sua mãe, bem como crianças se protegendo debaixo da saia da

mãe. As traduções, em geral, consideram que Boaz se refira a “asas”, mas

no capítulo seguinte Rute devolve as palavras dele e, ali, ela usa a

palavra que significa “bainhas”.

Como Rute, Boaz assume uma ligação entre o relacionamento com

Israel e com Deus. Uma estrangeira residente em Israel não é alguém

que simplesmente aceita asilo e aproveita ao máximo a generosidade

israelita; é alguém que se une à comunidade e que compartilha do

relacionamento com Deus. Se tudo o que você deseja é refúgio e apoio

prático, continuará sendo apenas mais um estrangeiro que trabalha ali;

você não se torna um membro associado da comunidade. Essa jamais foi

a intenção de Rute. Ela afirmou a Noemi: “O teu povo será o meu povo,

e o teu Deus será o meu Deus.” Boaz ouviu sobre como ela se

comprometeu com Noemi e sabe que ela buscou refúgio tanto debaixo

da “bainha” de Deus quanto de Israel. Isso é o que os israelitas fazem;

eles oram: “Esconde-me à sombra das tuas asas/bainhas” (Salmos 17:8;

a expressão é recorrente em Salmos).


RUTE 3:1-18
COMO NÃO DEIXAR A INICIATIVA PARA O HOMEM
1
Noemi, sua sogra, lhe disse: “Minha filha, devo realmente buscar um lar para você onde as

2
coisas lhe possam ser boas. Assim, agora, Boaz é, de fato, o nosso parente próximo. Você tem

3
estado com as garotas dele. Eis que ele está limpando a cevada na eira esta noite. Banhe-se,

maquie-se, vista a sua melhor roupa e desça até a eira. Não se faça conhecida ao homem até

4
que ele tenha terminado de comer e de beber. Quando ele se deitar, observe o lugar no qual

5
ele se deita. Vá, descubra os pés dele e deite-se. Ele dirá a você o que fazer.” Ela lhe disse:

“Tudo o que você me diz, farei.”

6 7
Ela desceu à eira e agiu de acordo com tudo o que a sua sogra lhe tinha dito. Boaz comeu e

bebeu, e seu espírito estava bom. Ele foi se deitar à beira da pilha. Ela se aproximou

8
silenciosamente, descobriu os pés dele e se deitou. No meio da noite, o homem acordou

9
assustado e se virou: ali, uma mulher estava dormindo a seus pés! Ele disse: “Quem é você?”

Ela disse: “Sou sua serva, Rute. Estenda a sua bainha sobre a sua serva, porque o senhor é um

10
resgatador próximo.” Ele disse: “Que seja abençoada por Yahweh, minha filha. Você fez o

seu último ato de compromisso melhor do que o seu primeiro, ao não ir atrás dos homens

11
jovens, sejam pobres ou ricos. Então, agora, minha filha, não tema, tudo o que diz farei por

você, porque todos os anciãos de meu povo reconhecem que você é uma mulher de valor.

12
Mas, agora, porque é verdade que sou um resgatador próximo, porém há também um

13
resgatador mais próximo que eu, passe a noite, e de manhã, se ele agir como um resgatador,

muito bem, que ele aja como um resgatador. Mas, se ele não quiser agir como resgatador, eu

mesmo agirei como resgatador, tão certo como Deus vive. Deite-se até de manhã.”

14
Assim, ela deitou aos pés dele até de manhã, mas levantou-se antes que qualquer pessoa

pudesse reconhecer o seu vizinho. Ele disse [para si mesmo]: “Não deve ser conhecido que a

15
mulher veio à eira”, mas ele disse: “Traga o xale que você está usando e segure-o.” Ela o

16
segurou, e ele pesou seis [medidas] de cevada e as pôs sobre ela. Ele foi para a cidade, e ela

foi para sua sogra. [Noemi] disse: “Como foi para você, minha filha?” Ela lhe contou tudo o

17
que o homem tinha feito a ela e disse: “Ele me deu essas seis [medidas] de cevada, porque

18
disse: ‘Não vá para a sua sogra de mãos vazias.’” [Noemi] disse: “Fique aqui, minha filha,

até saber como o assunto termina, porque o homem não descansará até lidar com o assunto

hoje.”

Certa ocasião, conversei com um rapaz que havia namorado uma pessoa

por um longo tempo, mas, então, ela o abandonou e partiu o seu

coração. Por um período, ele se manteve afastado de novos


relacionamentos. Ele já havia saído com inúmeras amigas, algumas

delas mútuas, que conheciam a sua história, e ambos os lados sabiam

que aqueles encontros não eram românticos. Então, o seu coração

recuperou-se, e ele se sentiu pronto a recomeçar. Havia mais de uma

mulher com a qual ele podia se imaginar namorando, mas sentir-se

pronto não é o mesmo que ter coragem de propor: “O que você acha de

transformar este relacionamento “amigável” em algo mais?” Assim, ele

me disse: “Não é justo que a iniciativa tenha sempre de ser do homem.”

Parece que, nesse contexto, quase sempre aderimos a relacionamentos

de gênero estereotipados. Muitos homens e mulheres esperam que a

iniciativa parta do homem, e, na maioria dos casos, é o homem que

propõe. Conheço mulheres que desejariam que fosse o oposto, mas elas

raramente quebram essa tradição.

Tais convenções seriam muito mais fortes numa sociedade

tradicional como a de Israel, mas Noemi e Rute decidem não se deixar

limitar por elas. Evidentemente, há mais de uma pessoa no grupo de

parentesco de Noemi que poderia estar fazendo algo para assegurar o

futuro dela e de Rute, bem como o futuro da terra que ainda esteja no

nome de Elimeleque, Malom e Quiliom. Considerando que nenhum

deles está tomando alguma medida prática, Noemi decide iniciar algo. É

igualmente notório que ela percorreu um longo caminho na justificada

escuridão com a qual retornou a Belém; ela recuperou a sua fibra. Suas

palavras também sugerem que ela também mudou em sua atitude com

respeito a Rute. Pouco tempo atrás, ela estava dando de ombros à tola

insistência da nora em acompanhá-la a Belém e falando sobre Deus tê-

la feito voltar de mãos vazias, implicando, portanto, que Rute nada

significava. De algum modo, o encontro “casual” de Rute com Boaz e a

generosidade dele acionaram um interruptor no espírito de Noemi. Isso

resultou em sua preocupação por encontrar um “lar” para Rute, mais

literalmente um lugar de descanso. Em outras palavras, ela não fala

sobre o destino da terra pertencente à família ou de sua própria

segurança, mas sobre o próprio destino e a segurança de Rute. Pode-se


dizer que Noemi está começando a ser uma pessoa de compromisso,

como Rute e Boaz.

Os campos nos quais as plantações crescem ficam fora da “cidade”

(que apenas era o que chamaríamos de um vilarejo, com talvez uma

centena de pessoas pertencentes a dois ou três grupos de parentesco

distintos). Poderiam ficar a uma ou duas horas de caminhada, dado ser

esse o principal meio de transporte, e, na época da colheita, as pessoas,

às vezes, preferiam ficar acampadas nos campos. Isso também

possibilitava que elas mantivessem os olhos sobre a sua cevada e evitava

que os ladrões de outras vilas a roubassem; eis a razão de Boaz dormir

próximo à sua pilha de cevada, arma na mão, por assim dizer.

Claro que o plano de Noemi resulta da presunção de não haver

costume pelo qual ela e Rute possam ir à procura de Boaz na mercearia

da vila e questionar sobre um namoro, porém o plano e a execução de

Rute parecem arriscados. Há inúmeras ambiguidades sobre a maneira

pela qual a história é contada que refletem a dubiedade do que Rute

devia fazer. Arrumar-se como Rute se arrumou poderia significar vestir-

se de uma forma parecida com uma noiva no dia do casamento, mas

poderia também significar vestir-se de forma sedutora. Descobrir os pés

de alguém poderia significar apenas o que a expressão diz, porém

“descobrir a nudez de alguém” é um eufemismo para ter relações sexuais

com ela, e “pés” pode ser um eufemismo para genitais. Se um homem

acorda no meio da noite e encontra uma mulher deitada perto dele,

dificilmente ele poderá ser acusado de pensar que ela esteja se

oferecendo a ele, embora seja sábio de sua parte lembrar que aceitar a

oferta pode significar ter que se casar com ela. Expressando de outra

forma, dormir com uma mulher não comprometida pode implicar o

compromisso de desposá-la. Pelo que sabemos, não há, em Israel, um

serviço de casamentos ou cartório de registro. Tais coisas pertencem a

culturas móveis e organizadas. Portanto, mesmo se Rute estiver se

oferecendo a Boaz sexualmente, pode parecer, por este ato, que ela está

propondo algo mais sério, não apenas se insinuando. Simplesmente,


oferecer a Boaz uma noite de sexo seria prejudicial ao futuro dela com

qualquer outro homem. E, pelo que conhecemos de Rute e de Boaz,

seria improvável que qualquer um deles estivesse interessado somente

em passar a noite com alguém.

Na realidade, Rute deixa claro que ela está propondo casamento.

Ela toma a iniciativa não apenas de abordá-lo, mas de falar sobre

casamento. Boaz, mais cedo, falou sobre ela buscar proteção sob a

bainha de Yahweh. Aqui, Rute está indicando que a vida humana

também funciona com base em nossa busca por proteção debaixo da

bainha de outro ser humano. Isso é o que o casamento envolve. Não

obstante, a referência de Rute ao fato de Boaz ser o seu resgatador

reflete a maneira pela qual a obrigação particular de aceitar uma pessoa

sob as asas de sua proteção se aplica a um homem como Boaz, dada a

sua posição na comunidade. Rute está apelando a Boaz para que ele se

torne o seu protetor, por sua posição como resgatador próximo.

Todavia, arrumar-se para parecer atraente, como alguém que vai a um

encontro romântico, mostra que ela não está somente apelando ao senso

moral e obrigação social de Boaz. Rute deseja ser alguém por quem

Boaz sinta atração, que exceda a sua obrigação. Esta é outra indicação

de como os costumes conjugais, diferentes daqueles do Ocidente

urbanizado, não excluem a atração física e o amor sexual.

Qualquer comédia romântica decente, contudo, necessita incluir

ameaças à união do casal principal, caso contrário o filme terminará

rapidamente. Aqui, o elemento da trama para manter o suspense é a

existência de outro resgatador que possui as mesmas obrigações morais

e sociais que Boaz e tem prioridade para assumir Noemi, Rute e a terra

da família. O presente de seis medidas de cevada é outro sinal da honra

e da generosidade de Boaz. Contudo, mais relevantemente, logo ao

romper do dia, ele parte para a cidade visando iniciar o processo que irá

decidir com quem Rute ficará. Noemi tem convicção de que Boaz é um

homem em quem se pode confiar para agir quando a ação é necessária.

As mulheres podem fazer o possível para contornar as presunções


patriarcais da cultura, mas elas também precisam trabalhar dentro

delas. Aguarde pelas fortes emoções dos próximos capítulos.


RUTE 4:1-10
COMO NÃO SE SOBRECARREGAR COM IMÓVEIS
1
Assim, Boaz subiu ao portão e ali se sentou. E, então, o resgatador de que Boaz tinha falado

2
estava passando. [Boaz] disse: “Venha e sente-se aqui, fulano.” Ele veio e sentou-se. [Boaz]

conseguiu dez homens dentre os líderes da cidade e disse: “Sentem-se aqui”, e eles sentaram-

3
se. Ele disse ao resgatador: “A partilha na terra que pertence ao nosso irmão Elimeleque:

4
Noemi, que voltou da terra moabita, a está dispondo. Eu disse [a mim mesmo]: ‘Devo

informá-lo e dizer: “Você pode adquiri-la na presença das pessoas que estão assentadas aqui,

na presença dos anciãos de meu povo. Se você irá agir como resgatador, o faça. Se não, diga-

me, para que eu possa saber, porque não há ninguém para agir como resgatador senão você e,

5
depois de você, eu.”’ Ele disse: “Eu agirei como resgatador.” Boaz disse: “Quando você

adquirir a terra da mão de Noemi e de Rute, a moabita, terá de adquirir também a esposa do

6
homem morto, para estabelecer o nome do homem morto sobre a sua propriedade.” O

resgatador disse: “Não posso agir como resgatador por mim mesmo ou arriscarei a minha

própria posse. Aja você como resgatador por si mesmo com respeito à minha posição de

resgatador, porque não posso agir como resgatador.”

7
Ora, anteriormente em Israel, em relação a agir como resgatador e com transferências, para

estabelecer qualquer assunto, um homem tirava o seu sapato e o dava ao seu colega. Este era

8
o processo de atestação em Israel. Assim, o resgatador disse a Boaz: “Você pode adquiri-la”,

9
e tirou o seu sapato. Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: “Vocês são testemunhas hoje de

que eu adquiri da mão de Noemi tudo o que pertence a Elimeleque e tudo o que pertence a

10
Quiliom e Malom. Também adquiri Rute, a moabita, esposa de Malom, como esposa para

mim, para estabelecer o nome do homem morto sobre a sua propriedade, de modo que o

nome do homem morto não seja cortado dentre os seus irmãos e do portão de seu lugar.

Vocês são testemunhas hoje.”

O fim da primeira década do século XXI testemunhou o colapso nos

preços imobiliários nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha e em outros

lugares, além do aumento no número de pessoas “despejadas” dos

imóveis que “possuíam”, por não conseguirem pagar as respectivas

hipotecas; tais pessoas também souberam que o valor total a ser pago

por elas passou a ser muito mais elevado do que o valor real de suas

casas. A princípio, essa crise envolveu principalmente pessoas que não

conseguiram honrar seus pagamentos, em alguns casos pela perda dos


seus empregos. Nesta semana, os jornais veicularam reportagens sobre o

aumento de casos nos quais pessoas simplesmente abandonaram as suas

casas, mesmo tendo condições financeiras de fazer os pagamentos e

estar em dia com as prestações. É que, estrategicamente, não fazia mais

sentido permanecer na casa. Um homem, em Miami Beach, havia

acertado a compra de um pequeno apartamento por 215 mil dólares,

mas soube que, agora, apartamentos similares estão sendo vendidos por

90 mil dólares. Seria melhor ele abandonar o apartamento e alugar uma

casa mais ampla na praia. Assim, ele se vê diante de um dilema ético:

por ele ter assumido um compromisso, certamente deveria mantê-lo.

O dilema do resgatador é similar a esse, e a história faz bem em

mantê-lo anônimo; isso o livra e à sua família da vergonha. Ele é tratado

apenas como “fulano”. A história mostra o modo pelo qual as decisões

são tomadas numa vila situada em uma sociedade tradicional; não

existe uma classe profissional de advogados; tudo é resolvido pelos

anciãos reunidos na praça próxima ao portão da cidade. Os anciãos

serão os membros mais idosos das respectivas famílias na vila (no

capítulo anterior, a expressão “todos os anciãos de meu povo” seria,

mais literalmente, “todo o portão de meu povo”). Junto ao portão da

cidade, Boaz consegue abordar o outro resgatador; talvez devamos

considerar outra “coincidência” encorajadora aqui, pois “aconteceu” de

o homem passar por ali e facilitar a missão de Boaz, abreviando o

período de espera de Noemi e de Rute e a nossa ansiedade quanto a

tudo ocorrer da forma esperada. Ele, então, reúne um número suficiente

de anciãos que estavam, casualmente, nas imediações. Talvez a

implicação disso seja que, no começo do dia, seria uma boa hora para

reunir as pessoas enquanto elas estavam a caminho dos campos para

retomar a colheita, isto é, caso elas não estivessem dormindo junto às

plantações, como Boaz.

Pela primeira vez, a história faz referência explícita a uma porção de

terra pertencente a Elimeleque, à sua “partilha” — ou seja, a sua

alocação dentro da terra pertencente ao seu clã. Não é esclarecido o que


aconteceu à terra desde que Elimeleque e sua família saíram de Judá

para morar em Moabe alguns anos atrás, embora seja possível supor que

ele a tenha cedido como garantia ou arrendado a alguém que lhe tenha

feito um empréstimo durante a onda de fome. Aparentemente, a terra,

então, permanece numa espécie de limbo: o seu destino a longo prazo

ainda não foi decidido, mas alguém que quisesse ter a posse da terra em

uma base mais permanente teria que “redimi-la” — isto é, pagar a dívida

deixada por Elimeleque. Enquanto isso não acontece, Noemi, a esposa

de Elimeleque, aparentemente, é presumida como a proprietária legal,

embora não haja, na Torá, referência a viúvas nessa posição

Trata-se de um importante princípio da lei e da tradição israelita,

presente também na lei e na tradição de outras sociedades tradicionais,

que a terra não pode ser comprada e vendida (embora esse princípio

venha a ser ignorado, futuramente, quando a sociedade se torna mais

desenvolvida. Por essa razão, vemos o ataque dos Profetas ao modo de

as pessoas ignorarem esse princípio e se transformar em grandes

latifundiários). A terra pertence a Deus e pela vontade divina é

colocada sob a mordomia de famílias capazes de cultivá-la e de usar o

que cultivam. Portanto, Noemi não estará exatamente “vendendo” a sua

terra, e ninguém a estará “comprando”, como algumas traduções

expressam esse processo. Muito menos Rute será comprada ou vendida;

em Israel, as esposas não são consideradas propriedades que podem ser

comercializadas. Noemi não possui recursos para pagar o empréstimo

sobre a terra e, assim, redimi-la. Dessa forma, ela está se

comprometendo a renunciar a esse direito em favor de outra pessoa, que

obterá, então, o controle sobre ela e decidirá como cultivá-la e o que

fazer com a sua produção.

Nesse caso, há uma complicação. Assim como outras sociedades

tradicionais, Israel possuía um procedimento para lidar com uma

situação que envolvesse a morte de um homem sem que ele gerasse um

filho para herdar o controle da terra pertencente à família. O processo

envolvia o casamento do irmão do falecido com a sua viúva, na


esperança de que essa união gerasse um filho que, do ponto de vista

legal, contasse como filho do falecido e, portanto, fosse o seu herdeiro.

O que acontece em Rute é uma variação desse procedimento, descrito

em Gênesis 38 e Deuteronômio 25:5-10. O que há de comum entre os

casos é a existência de uma viúva sem filhos. (A princípio, pode-se

imaginar que a esposa do homem morto seja Noemi, mas presume-se

que ela não irá mais ter filhos. Além disso, a situação é ainda mais

complexa pelo fato de Elimeleque ter tido um filho, cuja esposa é Rute.)

Para o resgatador anônimo, o problema é que, ao redimir a terra,

desposar Rute e gerar um filho que, eventualmente, herdará a terra, irá

significar uma grande despesa, sem um ganho de longo prazo. Como as

pessoas que tem condições de pagar a hipoteca com a qual se

comprometeram, mas que têm ciência de que perderão dinheiro ao fazer

isso, aquele homem enfrenta um dilema. Ele não corre o risco de deixar

de ganhar dinheiro rápido, mas arrisca-se a pôr em perigo a posse segura

de sua própria terra, ameaçando, por conseguinte, a posição da família

que ele já possui. Ele tem diante de si um conflito de responsabilidades

e escolhe dar prioridade à responsabilidade que já tem. Talvez essa

decisão não seja passível de críticas, tanto quanto a decisão de Orfa em

retornar para a sua casa materna. Ambas eram decisões subjetivas e

difíceis. De todo modo, suspiramos aliviados, pois desejamos que essa

comédia romântica tenha o desfecho projetado por nós.

A regra sobre o casamento do cunhado em Deuteronômio 25

também envolve a retirada de um sapato, porém, nesse caso, é a viúva

que remove os sapatos do cunhado e cospe em seu rosto, porque a

cerimônia inclui envergonhar o homem que se recusa a cumprir a sua

obrigação. No caso de Rute, a situação não parece envolver vergonha

pela renúncia. O “fulano” não é cunhado de Noemi nem de Rute. Nos

dois exemplos, a cerimônia simboliza a renúncia pública e formal de um

homem quanto aos seus direitos ou deveres e a devida “transferência”

deles a outra pessoa, embora a razão pela qual essa cerimônia particular

deveria ser feita seja desconhecida.


RUTE 4:11-22
COMO DAVI GANHOU UM AVÔ
11
Todo o povo no portão e os anciãos disseram: “Somos testemunhas. Que Yahweh faça a

mulher que está vindo para a sua casa como Raquel e Lia que, juntas, construíram a casa de

12
Israel. Vá bem em Efrata; tenha um nome em Belém! Que a sua casa seja como a casa de

Perez, que Tamar deu à luz Judá, por meio da descendência que Yahweh lhe der por meio

13
desta garota.” Assim, Boaz tomou Rute, e ela se tornou a sua esposa. Ele dormiu com ela, e

14
Yahweh a capacitou a ficar grávida. Ela deu à luz um filho, e as mulheres disseram a Noemi:

“Yahweh seja louvado, pois não deixou você sem um resgatador hoje. Que seu nome seja

15
reconhecido em Israel! Por você, ele será aquele que renova a sua vida e sustenta a sua

velhice, porque a sua nora, que se importou com você, deu-lhe à luz, ela, que tem sido melhor

16
para você do que sete filhos.” Noemi tomou a criança, a colocou em seus braços e se tornou

17
a sua enfermeira. As vizinhas o nomearam, dizendo: “Um filho nasceu a Noemi”; elas o

nomearam Obede. Ele foi pai de Jessé, pai de Davi.

18 19
Esta é a história da família de Perez. Perez gerou Hezrom. Hezrom gerou Rão. Rão

20 21
gerou Aminadabe. Aminadabe gerou Naassom. Naassom gerou Salmá. Salmá gerou

22
Boaz. Boaz gerou Obede. Obede gerou Jessé. E Jessé gerou Davi.

Ontem, eu conversava com uma amiga que por longo tempo se

interessou em pesquisar a história de sua família. Ela me contou como

descobrira que ambos os seus pais tinham se divorciado duas vezes

antes de se casarem um com o outro. Uma amiga dela havia descoberto

que seus próprios pais haviam se divorciado e, então, se casado

novamente. Isso me lembrou de outro amigo que descobriu que seu pai

deve ter sido concebido quando os avós ainda não eram casados. É

possível idealizarmos impressões sobre nossos pais e avós, desde os

tempos de sua meia-idade e velhice, mas pode ocorrer de a vida

pregressa deles ter sido muito mais complexa ou colorida do que a nossa

idealização. Investigar a história familiar é uma atividade bem

arriscada. Pode ser que a família respeitável que você sempre imaginou

seja diferente da realidade que venha a descobrir.


Por outro lado, é possível que você descubra que a sua família é tão

respeitável quanto as gerações anteriores. A genealogia de Davi

alimenta a genealogia de Jesus em Mateus 1. As pessoas menosprezaram

a honra da mãe de Jesus, que engravidou antes de estar casada, mas a

genealogia de Jesus mostra que Deus, há muito tempo, tem trabalhado

por meio de mulheres que foram vítimas do preconceito ou de mulheres

que não contavam com a aprovação de pessoas respeitáveis. Tamar está

presente na genealogia de Cristo (veja a história dela em Gênesis 38).

Raabe está lá (veja a sua história em Josué 2). Bate-Seba está lá (veja a

sua história em 2Samuel 11). E Rute também está lá. Jesus possui uma

ancestral moabita.

A história de Rute, Noemi e Boaz também termina como uma

história sobre Davi. Caso fosse filho de um dos inúmeros casamentos de

Davi, incluindo os adúlteros e assassinos, você poderia se sentir

encorajado ao descobrir que seu pai tinha a história de Judá, de Tamar,

de Perez e também de Rute em sua ancestralidade. Generalizando, você

pode bem ser um israelita inclinado a idolatrar e idealizar Davi, mas o

encerramento do livro de Rute lhe dará algo a refletir. Isso serve de

alerta quanto a santificar Davi. Igualmente, o faria pensar duas vezes

sobre a sua atitude preconceituosa contra pessoas como os moabitas.

Dificilmente será tão preconceituoso quanto poderia ser ao saber que a

avó de Davi era de Moabe.

A comunidade de Belém, o povo da cidade na qual Davi irá nascer,

assim como Jesus, são pessoas que oram para que Rute contribua para a

edificação da casa de Israel, como um todo, que seja equivalente à

contribuição de Raquel e Lia! (Eles terão em mente os doze clãs e,

portanto, todos os que pertençam a Israel, porque os filhos nascidos de

Zilpa e Bila, servas que Raquel e Lia encorajaram Jacó a tratar como

esposas secundárias quando elas próprias não podiam engravidar,

também serão considerados como de Raquel e de Lia.) Igualmente,

oraram para que Rute fizesse uma contribuição comparável àquela da

descendência da incestuosa união entre Judá e Tamar, que resultou na


origem do próprio povo de Belém como parte do clã de Judá. E Deus

respondeu às suas orações.

Não sei se os israelitas também sorriram ao ouvir as últimas palavras

das mulheres de Belém. Lembro-me de haver refletido, quando nos

casamos, que aquele evento, na realidade, não era nosso; ele pertencia

aos pais dos noivos. Afinal, eles é que estavam pagando. (Hoje, tudo é

um pouco diferente.) Mais tarde, descobri que, quando o primeiro filho

do casal nasce, esse é outro evento que não pertence aos pais da criança.

“Um filho nasceu a Noemi.” No entanto, esse comentário complementa

um importante tema na história como um todo. Pode-se argumentar

que o título desse livro deveria ser Noemi em vez de Rute. Afinal, o

parágrafo inicial do livro relata a tragédia quádrupla de sua família (o

exílio e a morte do marido e de seus dois filhos). O restante do livro,

então, narra a história de como a sua vida é reconstruída pelo

compromisso de uma nora e de um resgatador. Todavia, muito tempo

antes, Noemi já havia feito a melhor declaração teológica, a melhor

declaração de fé, no livro: Deus “não abandona o seu compromisso com

os vivos e com os mortos” (2:20). Esse comentário de Noemi reflete que

essa é a mais pura verdade.

Podemos colocar a questão de outra forma. Uma das contribuições

do livro de Rute ao Antigo Testamento é a sua ilustração concreta, na

pessoa de Boaz, do que significa ser um restaurador, um resgatador, um

guardião, um redentor. A importância desse retrato reside não apenas

em como Israel assume a figura do resgatador e a ação dele como uma

imagem para Deus e para a ação restauradora de Deus. A vocação do

resgatador era aceitar uma obrigação de cuidar dos membros de sua

família a fim de expressar a disposição de gastar suas energias e seus

recursos para possibilitar a reconstrução da vida deles quando fosse

necessário. Isso foi o que Deus fez por Israel, tratando os israelitas como

membros da família, não questionando sobre se eles merecem estar na

condição em que se encontram e gastando energia e recursos para a

reconstrução da vida deles quando fosse preciso. A imagem emerge,


com mais frequência, em Isaías 40—55, no contexto do exílio, quando

Israel necessita de restauração. O livro de Rute não descreve, de modo

explícito, Deus como o resgatador, ou guardião, ou restaurador, ou

redentor de Noemi, mas, por trás da ação de Boaz no cumprimento

desse papel, Deus está.

O encerramento do livro aponta para a sua significância teológica,

ao ligar a história de Rute à de Davi. (Os nomes Salmá e Salmom,

presentes em sucessivos versículos, são variantes do mesmo nome.) Até

o parágrafo derradeiro, você poderia pensar que estava meramente

lendo uma breve narrativa sobre a vida trivial de pessoas comuns e o

envolvimento de Deus nela. Contudo, é típico das histórias bíblicas

sobre indivíduos comuns mostrar como eles estão relacionados com o

propósito mais amplo e longevo de Deus. Trata-se, na verdade, de um

relato sobre o envolvimento de Deus na história de Israel como um

todo, a história que chega a um clímax com Jesus Cristo (como indica a

genealogia de Mateus). Ela encoraja os leitores a ponderar sobre como

o envolvimento de Deus em seu viver diário está relacionado com um

propósito muito maior; os encoraja a elevar os olhos em direção a um

horizonte mais amplo. Igualmente, constitui um dos recorrentes

lembretes, presentes no Antigo Testamento, de que Deus preocupa-se

com todo o mundo; a preocupação de Deus com Israel está interligada a

essa preocupação mundial. Reconhecidamente, isso ocorre de forma

paradoxal. O interesse divino por Israel não é apenas em prol dos

israelitas, mas também dos moabitas; e, assim, o próprio povo de Moabe

contribui para o cumprimento do propósito de Deus.


GLOSSÁRIO

Ajudante. Um agente sobrenatural por meio do qual Deus pode

aparecer e operar no mundo. As traduções, em geral, referem-se a

eles como “anjos”, mas essa designação tende a sugerir figuras

etéreas dotadas de asas, ostentando vestes brancas e translúcidas.

Os ajudantes são figuras semelhantes aos humanos; por essa razão, é

possível agir com hospitalidade sem perceber quem são (Hebreus

13:2). Ainda, eles não possuem asas; por isso, necessitam de uma

rampa ou escadaria entre o céu e a terra (Gênesis 28). Eles surgem

com a intenção de agir ou falar em nome de Deus e, assim,

representá-lo plenamente, falando como se fossem Deus (Juízes 6).

Eles, portanto, trazem a realidade da presença, da ação e da voz de

Deus, sem trazer aquela presença real que aniquilaria os meros

mortais ou danificaria a sua audição. Isso pode ser uma garantia

quando Israel é rebelde e a presença de Deus pode representar, de

fato, uma ameaça (Êxodo 32―33), mas eles mesmos podem ser

meios de implementar o castigo, assim como a bênção de Deus

(Êxodo 12).

Aliança. Contratos e tratados presumem um sistema jurídico de

resolver disputas e ministrar justiça, que pode ser usado no caso da

quebra de compromisso por uma das partes envolvidas. Em

contraste, num relacionamento que não funciona em uma estrutura

legal, a pessoa que falha em manter o compromisso assumido não

pode ser levada a uma corte por essa falha. Assim, uma aliança

envolve algum procedimento formal que confirme a seriedade do

compromisso solene que as partes assumem uma com a outra.

Quanto às alianças estabelecidas entre Deus e a humanidade, a

ênfase em Gênesis reside no compromisso de Deus com os seres


humanos, em particular com Abraão. Com base no fato de Deus ter

começado a cumprir aquele compromisso da aliança, o restante da

Torá também coloca alguma ênfase no compromisso responsivo de

Israel, no Sinai e em Moabe, na fronteira da terra prometida.

Altar. Uma estrutura para oferta de sacrifício (o termo vem da palavra

para sacrifício), feita de terra ou pedra. Um altar pode ser

relativamente pequeno, como uma mesa, e o ofertante deve ficar

diante dele. Ou pode ser mais alto e maior, como uma plataforma, e

o ofertante tem de subir nele. O altar sacrificial deve ser distinguido

daquele altar muito menor, dentro do santuário, sobre o qual

queimava-se incenso para que a sua fumaça aromática ascendesse a

Deus.

Amorreus. O termo é usado de inúmeras maneiras. Pode denotar um

dos grupos étnicos originais em Canaã, especialmente a leste do

Jordão. Também pode ser usado como referência ao povo daquele

território como um todo. Fora do Antigo Testamento, a palavra se

refere a um povo que vive em uma área muito mais extensa da

Mesopotâmia. Portanto, “amorreus” é uma palavra semelhante a

“América”, uma referência comum aos Estados Unidos, mas que

pode denotar uma área muito mais ampla do continente do qual os

Estados Unidos fazem parte.

Apócrifos. O conteúdo principal do Antigo Testamento cristão é o

mesmo das Escrituras judaicas, embora estas sejam dispostas em

uma ordem diferente, como a Torá, os Profetas e os Escritos. Seus

limites precisos, como Escritura, vieram a ser aceitos em algum

período nos anos anteriores ou posteriores a Cristo. Por séculos, as

igrejas cristãs, em sua maioria, utilizaram uma coleção mais ampla

de textos judaicos, incluindo livros como Macabeus e Eclesiástico,

que, para os judeus, não faziam parte da Bíblia. Esses outros livros

passaram a ser chamados “apócrifos”, os livros que estavam


“ocultos” ― o que veio a implicar “espúrios”. Agora, com frequência,

são conhecidos como “livros deuterocanônicos”, um termo mais

complexo, porém menos pejorativo. Isso simplesmente indica que

esses livros detêm menos autoridade que a Torá, os Profetas e os

Escritos. A lista exata deles varia entre as diferentes igrejas.

Assíria, assírios. A primeira grande superpotência do Oriente Médio,

os assírios expandiram o seu império rumo ao Ocidente, até a Síria-

Palestina, no século VIII a.C., no tempo de Amós e Isaías. Primeiro,

eles anexaram Efraim ao seu império; então, quando Efraim

persistiu tentando retomar a sua independência, os assírios

invadiram Efraim e, em 722 a.C., destruíram a sua capital, Samaria,

levando cativo grande parte de seu povo e substituindo-os por

pessoas oriundas de outras partes do seu império. Invadiram

também Judá e devastaram uma extensa área do país, mas não

tomaram Jerusalém. Profetas como Amós e Isaías descrevem o modo

pelo qual Deus estava, portanto, usando a Assíria como um meio de

disciplinar Israel.

Babilônia, babilônios. Um poder menor no contexto da história

primitiva de Israel, no tempo de Jeremias, os babilônios assumiram

a posição de superpotência da Assíria, mantendo-a por quase um

século, até ser conquistada pela Pérsia. Profetas como Jeremias

descrevem como Deus estava usando os babilônios como um meio

de disciplinar Judá. Eles tomaram Jerusalém em 587 a.C. e

transportaram muitos dentre o povo. Suas histórias sobre a criação,

os códigos legais e os textos mais filosóficos nos ajudam a

compreender aspectos de escritos equivalentes presentes no Antigo

Testamento, embora sua religião astrológica também constitua o

cenário para polêmicos aspectos nos Profetas.

Baú. O “baú da aliança” é uma caixa com pouco mais de um metro de

comprimento e cerca de setenta centímetros de altura e de largura.


A Almeida Corrigida Fiel, bem como outras versões, em geral, fazem

referência a uma “arca”, mas a palavra significa uma caixa, embora

seja apenas usada ocasionalmente para expressar baús usados para

outros fins. É denominado de baú da aliança porque contém as

tábuas de pedra inscritas com os dez mandamentos, expectativas-

chave que Deus estabeleceu em relação à aliança do Sinai. É

mantido, regularmente, no santuário, mas há um sentido no qual o

baú simboliza a presença de Deus (considerando que Israel não

possui imagens para representar isso). Dado esse simbolismo, os

israelitas, algumas vezes, carregam o baú com eles. Às vezes,

também é denominado de “baú da declaração”, com o mesmo

significado: as tábuas “declaram” as expectativas da aliança de Deus.

Canaã, cananeus. Como designação bíblica da terra de Israel como um

todo, e referência a todos os povos autóctones daquele território,

“cananeus” não constitui, portanto, o nome de um grupo étnico em

particular, mas um termo genérico para todos os povos nativos da

região. Veja também amorreus.

Chorar, clamar. Ao descrever a reação dos israelitas quando eles estão

sob a opressão dos inimigos, Juízes utiliza a mesma palavra que o

Antigo Testamento usa para descrever o sangue de Abel clamando a

Deus, o clamor do povo de Sodoma debaixo da opressão dos

perversos, o grito dos israelitas no Egito, bem como o clamoroso

lamento das pessoas injustamente tratadas dentro de Israel nos

últimos séculos. O termo denota um choro urgente que pressiona

Deus por libertação, um grito que Deus ouve, mesmo quando as

pessoas merecem a experiência pela qual estão passando.

Compromisso. O termo corresponde à palavra hebraica hesed, que as

traduções expressam de diferentes maneiras: amor inabalável,

benignidade ou bondade. Trata-se do equivalente, no Antigo

Testamento, à palavra para amor no Novo Testamento, isto é, agapē.


O Antigo Testamento utiliza a palavra “compromisso” em referência

a um ato extraordinário por meio do qual uma pessoa se dedica a

alguém, mais num ato de generosidade, lealdade ou graça, quando

não há um relacionamento prévio entre as partes, de modo que

alguém estabelece um compromisso que não está obrigado a firmar.

Portanto, em Josué 2, Raabe apropriadamente fala de sua proteção

aos espias israelitas como um ato de compromisso. Pode também

referir-se a um ato extraordinário similar que ocorre quando há uma

relação prévia, na qual uma das partes decepciona a outra e, assim,

não tem o direito de esperar qualquer fidelidade da outra parte.

Caso a parte que foi ofendida continue sendo fiel, trata-se de uma

demonstração desse compromisso. Em resposta a Raabe, os espias

israelitas declaram que irão se relacionar com ela dessa maneira.

Devotar, devoção. Devotar algo a Deus significa entregar a Deus de

modo irrevogável. As traduções usam verbos como “aniquilar” ou

“destruir” e, em geral, essa é a implicação correta, porém isso não

expressa o ponto distintivo do ato. É possível devotar uma terra, ou

um animal como um jumento e pessoas (com efeito, Ana irá devotar

Samuel); o jumento ou o ser humano, então, pertence a Deus e está

comprometido a servi-lo. Na verdade, os israelitas devotaram

muitos cananeus ao serviço de Deus dessa maneira; eles se

tornaram pessoas que cortavam madeira e retiravam água para o

altar, para as ofertas e os rituais do santuário. Devotar pessoas a

Deus, matando-as como uma espécie de sacrifício, era uma prática

conhecida de outros povos, que Israel adota por sua própria

iniciativa, mas que Deus valida. Israel sabe que é assim que a guerra

funciona em seu mundo e passa a operar da mesma forma, com a

concordância divina.

Efraim, efraimitas. Após os reinados de Davi e Salomão, a nação de

Israel foi dividida. A maioria dos doze clãs israelitas estabeleceu um

Estado independente ao norte, separado de Judá e Jerusalém, bem


como da linhagem de Davi. Por ser o maior dos dois Estados,

politicamente manteve o nome de Israel, o que é confuso porque

Israel ainda é o nome do povo que pertence a Deus. Portanto, o

nome “Israel” pode ser usado em ambas as conexões. O Estado do

norte, contudo, é referido pelo nome de Efraim, por ser este o seu

clã dominante. Assim, uso esse termo como referência ao Estado

independente ao norte, na tentativa de minimizar a confusão.

espírito. A palavra hebraica para espírito é a mesma para fôlego e para

vento, e o Antigo Testamento, às vezes, sugere uma ligação entre

eles. Espírito sugere um poder dinâmico; o espírito de Deus sugere o

poder dinâmico de Deus. O vento, em sua força e capacidade para

derrubar árvores poderosas, constitui uma incorporação do

poderoso espírito de Deus. O fôlego é essencial à vida; quando não

há fôlego, inexiste vida. E a vida provém de Deus, de modo que o

fôlego de um ser humano, e mesmo o de um animal, é extensão do

fôlego divino. O livro de Juízes relata uma série de conquistas

militares e políticas extraordinárias por meio de inúmeros líderes

que resultam da vinda do Espírito de Deus sobre eles, capacitando-

os a realizar coisas que parecem humanamente impossíveis.

Esposa secundária. As traduções usam a palavra “concubina” para

descrever mulheres como a mãe de Abimeleque e a esposa do levita,

mas o termo usado em relação a elas não sugere que não sejam

adequadamente casadas. Ser uma esposa secundária indica possuir

uma posição diferente das outras esposas. Talvez implique que seus

filhos tenham direitos limitados ou mesmo nenhum direito sobre a

herança do pai. É possível a um homem rico ou poderoso ter

inúmeras esposas com plenos direitos e muitas esposas secundárias,

ou mesmo apenas uma de cada. Pode ter apenas a esposa principal

ou apenas a esposa secundária.


Exílio. No final do século VII a.C., a Babilônia se tornou o maior poder

no mundo de Judá, mas Judá estava determinado a se rebelar contra

a sua autoridade. Como parte de uma campanha vitoriosa para obter

a submissão de Judá, em 597 a.C. e 587 a.C. os babilônios

transportaram muitos israelitas de Jerusalém para a Babilônia,

particularmente pessoas em posições de liderança, como membros

da família real e da corte, sacerdotes e profetas. Essas pessoas foram,

portanto, compelidas a viver na Babilônia durante os cinquenta

anos seguintes ou mais. Pelo mesmo período, as pessoas deixadas em

Judá também viviam sob a autoridade dos babilônios. Assim, não

estavam fisicamente no exílio, mas também viveram em exílio por

um período de tempo.

Filístia, filisteus. Os filisteus eram um povo oriundo do outro lado do

Mediterrâneo para se estabelecer em Canaã, na mesma época do

estabelecimento dos israelitas na região, de maneira que os dois

povos formaram um movimento acidental de pressão sobre os

habitantes já presentes naquele território, bem como se tornaram

rivais mútuos pelo controle da área.

Grécia, gregos. Em 336 a.C., forças gregas, sob o comando de

Alexandre, o Grande, assumiram o controle do Império Persa,

porém após a morte de Alexandre, em 333 a.C., o seu império foi

dividido. A maior extensão, ao norte e a leste da Palestina, foi

governada por Seleuco, um de seus generais, e seus sucessores. Judá

ficou sob o controle grego por grande parte dos dois séculos

seguintes, embora estivesse situado na fronteira sudoeste desse

império e, às vezes, caísse sob o controle do Império Ptolomaico, no

Egito, governado por sucessores de outro dos generais de

Alexandre.

Israel. Originariamente, Israel era o novo nome dado por Deus a Jacó,

neto de Abraão. Seus doze filhos foram, então, os patriarcas dos doze
clãs que formam o povo de Israel. No tempo de Saul, Davi e

Salomão, esses doze clãs passaram a ser uma entidade política.

Assim, Israel significava tanto o povo de Deus quanto uma nação ou

Estado, como as demais nações e Estados. Após Salomão, esse

Estado foi dividido em dois Estados distintos, Efraim e Judá. Pelo

fato de Efraim ser maior, manteve como referência o nome de Israel.

Desse modo, se alguém estiver pensando em Israel como povo de

Deus, Judá está incluído. Caso pense em Israel politicamente, Judá

não faz parte. Uma vez que Efraim não existe mais, então, para

todos os efeitos, Judá é Israel, como o povo de Deus.

Judá, judaítas. Um dos doze filhos de Jacó e, portanto, o clã que traça a

sua ancestralidade até ele e que se tornou dominante no sul do

território, após o reinado de Salomão. Mais tarde, como província

ou colônia persa, Judá ficou conhecido como Jeúde.

libertar, libertador, libertação. Traduções modernas do Antigo

Testamento, com frequência, usam as palavras “salvar”, “salvador” e

“salvação”, mas elas transmitem uma impressão equivocada. No

contexto cristão, elas usualmente se referem ao nosso

relacionamento pessoal com Deus e ao deleite do céu. O Antigo

Testamento, de fato, fala sobre a nossa relação com Deus, porém não

utiliza esse grupo de palavras nessa conexão. Antes, elas fazem

referência à intervenção prática de Deus para tirar Israel ou um

indivíduo de algum tipo de dificuldade, como, por exemplo,

acusações falsas por membros da comunidade ou a invasão de

inimigos.

Líder. O livro de Juízes é assim denominado por causa dos líderes cujas

histórias são relatadas nele. O termo tradicional é “juiz”, de modo

que são pessoas que também dão nome ao período de tempo entre

Josué e Saul, o “Período dos Juízes”. Todavia, esses “juízes”,

usualmente, não atuavam na resolução de casos legais, portanto


“líderes” transmite melhor a ideia concernente ao papel deles. Eles

são pessoas sem uma posição oficial, como os reis posteriores, mas

que surgem e tomam a iniciativa de trazer libertação aos clãs das

dificuldades nas quais eles estão envolvidos. Veja a introdução ao

livro de Juízes, no começo desse comentário.

Mar de Juncos. O “mar” no qual Deus finalmente libertou os israelitas

das mãos egípcias pode ser um dos braços ao norte do que

denominamos mar Vermelho, em ambos os lados do Sinai, ou pode

ser uma área de lagos pantanosos dentro do Sinai. Significa,

literalmente, “mar de juncos” (o nome que aparece em Êxodo 2,

quando Miriã deixa Moisés entre os juncos, à margem do Nilo).

Mestre, mestres. Baal é um termo hebraico comum para designar um

mestre, senhor ou proprietário, mas também é utilizado para

descrever um deus cananeu. É, portanto, similar ao termo para

Senhor, usado para descrever Yahweh. Na verdade, “Mestre” pode

ser um nome adequado, como “Senhor”. Para deixar essa distinção

clara, em geral, o Antigo Testamento usa Mestre para um deus

estrangeiro e Senhor para o verdadeiro Deus, Yahweh. A exemplo de

outros povos antigos, os cananeus cultuavam inúmeros deuses e,

nesse sentido, o Mestre era apenas um deles, embora fosse um dos

mais proeminentes. Além disso, um título como “o Mestre de Peor”

sugere que o Mestre era crido como manifesto e conhecido de

diferentes maneiras em lugares distintos. O Antigo Testamento

também usa o plural, Mestres, como referência aos deuses cananeus,

em geral.

Paz. A palavra shalom pode sugerir paz após um conflito, mas, com

frequência, indica uma ideia mais rica, ou seja, da plenitude de vida.

A Almeida Corrigida Fiel, às vezes, a traduz por “bem-estar”, e as

traduções modernas usam palavras como “segurança” e


“prosperidade”. De qualquer modo, a palavra sugere que tudo está

indo bem para você.

Pérsia, persas. A terceira superpotência do Oriente Médio. Sob a

liderança de Ciro, o Grande, eles assumiram o controle do Império

Babilônico em 539 a.C. Isaías 40―55 vê a mão de Deus levantando

Ciro como um instrumento para restaurar Judá após o exílio. Judá e

os povos vizinhos, como Samaria, Amom e Asdode, eram províncias

ou colônias persas. Os persas permaneceram por dois séculos no

poder, até serem derrotados pela Grécia.

Restaurar, restaurador. Um restaurador é uma pessoa em posição de

agir em nome de alguém dentro de sua família estendida, que está

em necessidade, a fim de restaurar a situação à qual esse familiar

deveria estar. A palavra é sobreposta com expressões como

“parente” “próximo”, “guardião” e “redentor”. “Parente próximo”

indica o contexto familiar que o “restaurador” pressupõe.

“Guardião” indica que o restaurador está na posição de responsável

pela proteção e defesa da pessoa. “Redentor” indica a posse de

recursos que o restaurador está preparado a despender em prol da

pessoa a ser redimida. O Antigo Testamento usa o termo como

referência ao relacionamento de Deus com Israel, bem como à ação

de um ser humano em relação a outro, para implicar que Israel

pertence à família de Deus e que Deus age em seu benefício da

mesma maneira que um restaurador faz.

Torá. A palavra hebraica para os cinco primeiros livros da Bíblia. Eles,

em geral, são referidos como a “Lei”, mas esse termo propicia uma

impressão equivocada. No próprio livro de Gênesis, não há nada

como “lei”, bem como Êxodo e Deuteronômio não são livros

“jurídicos”. A palavra torah, em si, significa “ensino”, o que fornece

uma impressão mais correta da natureza da Torá. Com frequência, a

Torá nos fornece mais de um relato do mesmo evento (como a


comissão de Deus a Moisés), de modo que, quando a igreja

primitiva preservou o ensinamento de Jesus e contou a sua história

de diferentes maneiras, em diferentes contextos e de acordo com o

discernimento dos diferentes escritores do Evangelho, ela estava

seguindo o precedente pelo qual Israel contava as suas histórias

mais de uma vez, em diferentes contextos. Embora Reis e Crônicas

mantenham versões separadas, como ocorre com os Evangelhos, na

Torá as versões foram combinadas.

Yahweh. Na maioria das traduções bíblicas, a palavra “Senhor” aparece

em letras maiúsculas ou em versalete, como ocorre, às vezes, com a

palavra “Deus”. Na realidade, ambas representam o nome de Deus,

Yahweh. Nos tempos do Antigo Testamento, os israelitas deixaram

de usar o nome Yahweh e começaram a usar “o Senhor”. Há duas

razões possíveis. Os israelitas queriam que outros povos

reconhecessem que Yahweh era o único e verdadeiro Deus, mas esse

nome de pronúncia estranha poderia dar a impressão de que Yahweh

fosse apenas o deus tribal de Israel. Um termo como “o Senhor” era

mais facilmente reconhecível. Além disso, eles não queriam incorrer

na quebra da advertência presente nos Dez Mandamentos sobre

usar o nome de Yahweh em vão. Traduções em outros idiomas,

então, seguiram o exemplo e substituíram o nome de Yahweh por “o

Senhor”. O lado negativo é que isso obscurece o fato de Deus querer

ser conhecido por esse nome. Por essa razão, o texto utiliza Yahweh,

com frequência, não algum outro nome (assim chamado) deus ou

senhor. Essa prática dá a impressão de que Deus é muito mais

“senhoril” e patriarcal do que ele o é na realidade. (A forma “Jeová”

não é uma palavra real, mas uma mescla das consoantes de Yahweh e

das vogais da palavra Adonai [Senhor, em hebraico], com o intuito

de lembrar às pessoas que na leitura da Escritura elas deveriam

dizer “o Senhor”, não o nome real.)


SOBRE O AUTOR

John Goldingay é pastor, erudito e tradutor do Antigo Testamento. Ele

é professor emérito David Allan Hubbard de Antigo Testamento no

prestigiado Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia. É um

dos acadêmicos de Antigo Testamento mais respeitados do mundo com

diversos livros e comentários bíblicos publicados. O autor possui o livro

Teologia bíblica publicado pela Thomas Nelson Brasil.


AGRADECIMENTOS

A tradução no início de cada capítulo (e em outras citações bíblicas) é

de minha autoria. Tentei me manter o mais próximo do texto hebraico

original do que, em geral, as traduções modernas, destinadas à leitura

na igreja, para que você possa ver, com mais precisão, o que o texto diz.

Embora prefira utilizar a linguagem inclusiva de gênero, deixei a

tradução com o uso universal do gênero masculino caso esse uso

inclusivo implicasse em dúvidas quanto ao texto estar no singular ou no

plural. Em outras palavras, a tradução, com frequência, usa “ele” onde

em meu próprio texto eu diria “eles” ou “ele ou ela”. A restrição de

espaço não me permite incluir todo o texto bíblico neste volume; assim,

quando não há espaço suficiente para o texto completo, faço alguns

comentários gerais sobre o material que fui obrigado a suprimir. Ao

final do livro, há um glossário dos termos-chave recorrentes no texto

(termos geográficos, históricos e teológicos, em sua maioria). Em cada

capítulo (exceto na introdução), a ocorrência inicial desses termos é

destacada em negrito.

As histórias que seguem a tradução, em geral, envolvem meus

amigos, assim como minha família. Todas elas ocorreram, de fato, mas

foram fortemente dissimuladas para preservar as pessoas envolvidas,

quando necessário. Por vezes, o disfarce utilizado foi tão eficiente que,

ao relê-las, levo um tempo para identificar as pessoas descritas. Nas

histórias, Ann, a minha esposa, aparece com frequência. Ela faleceu

enquanto eu escrevia este volume, após negociar com a esclerose

múltipla durante 43 anos. Compartilhar os cuidados e o

desenvolvimento de sua enfermidade e crescente limitação, ao longo

desses anos, influencia tudo o que escrevo, de maneiras facilmente

perceptíveis ao leitor, mas também de formas menos óbvias. Agradeço a


Deus por Ann e estou feliz por ela, mas não por mim, pois ela pode,

agora, descansar até o dia da ressurreição.

Sou grato a Matt Sousa por ler o manuscrito e me indicar o que

precisava corrigir ou esclarecer no texto. Igualmente, sou grato a Tom

Bennett por conferir a prova de impressão.


INTRODUÇÃO

No tocante a Jesus e aos autores do Novo Testamento, as Escrituras

hebraicas, que os cristãos denominam de Antigo Testamento, eram as

Escrituras. Ao fazer essa observação, lanço mão de alguns atalhos, já

que o Novo Testamento jamais apresenta uma lista dessas Escrituras,

mas o conjunto de textos aceito pelo povo judeu é o mais próximo que

podemos ir na identificação da coletânea de livros que Jesus e os

escritores neotestamentários tiveram à disposição. A igreja também

veio a aceitar alguns livros adicionais, os denominados “apócrifos” ou

“textos deuterocanônicos”, mas, com o intuito de atender aos

propósitos desta série, que busca expor “o Antigo Testamento para

todos”, restringimos a sua abrangência às Escrituras aceitas pela

comunidade judaica.

Elas não são “antigas” no sentido de antiquadas ou ultrapassadas; às

vezes, gosto de me referir a elas como o “Primeiro Testamento” em vez

de “Antigo Testamento”, para não deixar dúvidas. Quanto a Jesus e os

autores do Novo Testamento, as antigas Escrituras foram um recurso

vívido na compreensão de Deus e dos caminhos divinos no mundo e

conosco. Elas foram úteis “para o ensino, para a repreensão, para a

correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:16-17).

De fato, foram para todos, de modo que é estranho que os cristãos

pouco se dediquem à sua leitura. Meu objetivo, com esses volumes, é

auxiliar você a fazer isso.

Meu receio é que você leia a minha obra, não as Escrituras. Não faça

isso. Aprecio o fato de esta série incluir grande parte do texto bíblico,

mas não ignore a leitura da Palavra de Deus. No fim, essa é a parte que

realmente importa.
UM ESBOÇO DO ANTIGO TESTAMENTO

A comunidade judaica, em geral, refere-se a essas Escrituras como a

Torá, os Profetas e os Escritos. Embora o Antigo Testamento contenha

os mesmos livros, eles são apresentados em uma ordem diferente:

Gênesis a Reis: Uma história que abrange desde a criação do

mundo até o exílio dos judeus para a Babilônia.

Crônicas a Ester: Uma segunda versão dessa história, prosseguindo

até os anos posteriores ao exílio.

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos: Alguns

livros poéticos.

Isaías a Malaquias: O ensino de alguns profetas.

A seguir, há um esboço da história subjacente a esses livros (não

forneço datas para os eventos em Gênesis, o que envolve muito esforço

de adivinhação).

1200 a.C. Moisés, o êxodo, Josué

1100 a.C. Os “juízes”

1000 a.C. Saul, Davi

900 a.C. Salomão; a divisão da nação em dois reinos:

Efraim e Judá

800 a.C. Elias, Eliseu

700 a.C. Amós, Oseias, Isaías, Miqueias; Assíria, a

superpotência; a queda de Efraim

600 a.C. Jeremias, o rei Josias; Babilônia, a superpotência

500 a.C. Ezequiel; a queda de Judá; Pérsia, a

superpotência; judeus livres para retornar ao lar

400 a.C. Esdras, Neemias

300 a.C. Grécia, a superpotência

200 a.C. Síria e Egito, os poderes regionais puxando Judá


de uma forma ou de outra

100 a.C. Judá rebela-se contra o poder da Síria e obtém a

independência.

0 a.C. Roma, a superpotência

PRIMEIRO E SEGUNDO SAMUEL

Ambos os livros fazem, portanto, parte da extensa narrativa que

abrange desde Gênesis até 1 e 2Reis, e eles levam essa narrativa ao seu

segundo grande clímax. O primeiro grande clímax dessa história está na

saída dos israelitas do Egito, o período do povo no Sinai e a chegada

deles a Canaã. O segundo clímax inclui o reino de Davi, durante o qual

Israel se tornou não apenas um povo livre, mas uma nação próspera,

logrando uma posição importante no cenário internacional de sua

região. Entre esses dois ápices encontramos o cada vez mais sombrio

relato do livro de Juízes, que se encerra com algumas histórias

horripilantes, expressando como as coisas são quando as pessoas fazem

o que é certo aos seus próprios olhos, por não haver rei em Israel (como

o próprio texto de Juízes afirma). Juízes, portanto, aplaina o caminho

para a história de como Israel passa a ter reis. O idílico relato do livro

de Rute, igualmente, prepara o caminho num outro sentido. Além de

fornecer um bem-vindo contraste aos fatos registrados em Juízes, trata-

se da história sobre a família de Davi, pois Rute é a bisavó do futuro rei

de Israel. Por conseguinte, ter reis que possam exercer alguma liderança

moral possibilita ao povo dar as costas ao caos social e moral do período

de Juízes. Assim, 1 e 2Samuel não apresentam histórias que rivalizam

em horror com aquelas reportadas no livro de Juízes. Contudo, a

narrativa deles não descontrói a impressão anterior, pois, à sua própria

maneira, as histórias reportadas sobre os dois primeiros reis, Saul e

Davi, também os retratam como indivíduos que faziam o que era certo

aos seus próprios olhos. Estar assentado no trono torna mais fácil agir

desse modo. Pode-se dizer que 1 e 2Samuel contêm histórias sobre


homens agindo dolosamente. Saul e Davi não são os únicos personagens

desses livros a fazer isso, mas ambos tomam a iniciativa.

A história sobre o reinado de Saul está em 1Samuel, enquanto

2Samuel registra o reinado de Davi. Os capítulos iniciais de 1Samuel

relatam o pano de fundo da ascensão de Saul ao trono, no qual o profeta

Samuel desempenha um papel de extrema relevância (razão pela qual

dá nome aos dois livros). Os capítulos centrais reportam como Saul

alcançou a posição de rei, obteve uma ou duas grandes conquistas, mas,

então, começou a ver tudo desmoronar. Logo, Deus ungiu Davi como o

sucessor de Saul e os derradeiros capítulos de 1Samuel registram o

crescente e contínuo conflito entre Saul e Davi, no qual o primeiro

tenta garantir o seu trono, e o segundo, a sua vida.

Segundo Samuel segue um enredo similar. Os capítulos inaugurais

relatam como Davi se torna rei, enquanto os centrais falam de seus

grandes feitos e do compromisso de aliança estabelecido por Deus com

ele. Todavia, eles também revelam como as coisas, em breve, começam a

ruir. Os capítulos finais do livro reportam os conflitos dentro da própria

família de Davi e nos deixam em suspense quanto ao que ocorrerá a

seguir. Como outros “livros”, de Gênesis a 2Reis, a narrativa como um

todo não chega a uma conclusão, porém termina com um gancho, que

leva o leitor a abrir a página no livro de 1Reis para descobrir a

sequência.

Como parte da grande narrativa que abrange Gênesis a 2Reis, esses

dois livros, claro, devem ter sido escritos após o último evento

registrado por eles, ou seja, a queda de Jerusalém e o translado de

muitos habitantes de Judá para a Babilônia, no século VI a.C. Não

possuímos nenhuma evidência inequívoca indicando se foram escritos

durante esse evento ou mais tarde, no período persa. O fato é que eles

incorporam antigas tradições e dificilmente, na época, foram escritos do

zero. Assim, a versão que foi incorporada à Escritura pode ser um tipo

de segunda edição da narrativa originariamente escrita décadas antes,

porém há teorias acadêmicas sobre essa mudança. Na realidade, não há


evidências suficientes para definir quando os livros foram, de fato,

escritos, mas isso não impede que apreciemos a história que eles

contêm, nem que deixemos de ver o que Deus queria que Israel

aprendesse com eles.

Desde então, o povo de Judá não teve reis próprios até obter a

independência, no século II a.C. No contexto das décadas e séculos após

a queda de Jerusalém, outros textos do Antigo Testamento sugerem que

o povo poderia estar equivocado quanto à ideia de ter reis. Por um lado,

1 e 2Samuel reportam a forma pela qual Deus esteve envolvido na

indicação deles, bem como relatam Deus estabelecendo compromissos

de aliança inequívocos com Davi e seus sucessores. Do outro, os livros

contam como possuir reis humanos também compromete a ideia de

Deus ser o rei de Israel, e de como esses reis são pessoas caracterizadas,

no mínimo, tanto pela obstinação humana quanto pela submissão às

expectativas de Deus em relação a nós, como seres humanos e como

líderes. No contexto do exílio e posteriormente, esses livros encorajam

Israel a esperar que Deus ainda irá cumprir o compromisso de aliança

feito a Davi e também advertem os israelitas (e qualquer um que ocupe

o trono em cumprimento da promessa) a reconhecer que os reis sempre

terão pés de barro.


© Karla Bohmbach
© Karla Bohmbach
1SAMUEL

1SAMUEL 1:1-8
COMO NÃO DEMONSTRAR EMPATIA I
1
Havia certo homem de Ramataim, dos zufitas, das montanhas de Efraim, chamado Elcana,

2
filho de Toú, filho de Zufe, um efraimita. Ele tinha duas esposas. O nome de uma era Ana; o

3
nome da outra era Penina. Penina tinha filhos, mas Ana não tinha filhos. Esse homem

costumava subir de sua cidade, ano após ano, para curvar-se e oferecer sacrifício a Yahweh

dos Exércitos, em Siló. Hofni e Fineias, os dois filhos de Eli, eram sacerdotes de Yahweh ali.

4
No dia em que Elcana sacrificava, ele dava porções a Penina, sua esposa, e a todos os filhos e

5
filhas dela, mas a Ana ele dava uma porção dupla porque a amava, embora Yahweh tivesse

6
cerrado o seu ventre. A sua rival a provocava grandemente para irritá-la, porque Yahweh

7
tinha cerrado o seu ventre. Assim ela fazia, ano após ano. Sempre que subia à casa de

8
Yahweh, ela provocava [Ana] e, por isso, esta chorava e não comia. Elcana, seu marido, lhe

dizia: “Ana, por que você chora, por que não come, por que o seu espírito está triste? Não sou

melhor para você do que dez filhos?”

Raramente elevo a minha voz quando leio um e-mail, mas fiz isso

algumas semanas atrás, quando recebi a mensagem de uma amiga que

retornou a um país asiático, há dois ou três anos. Por longo tempo, ela e

o marido ansiavam ter filhos, mas ela não conseguia engravidar. Então,

aquele casal concluiu que isso jamais ocorreria. Isso parecia um

contrassenso, pois ela é uma das pessoas mais amorosas e compassivas

que conheço; era possível imaginar que grande mãe ela seria. Em

contrapartida, conheço outros casais adoráveis que, por diferentes

motivos, não desejam ter filhos, mas que (suspeito eu) se tornariam

ótimos pais caso isso ocorresse. Todavia, eles se sentem completos

mesmo sem possuir filhos. O primeiro casal, ao contrário, queria muito

engravidar. Eles tentaram ter um cachorro, pois os animais de

estimação podem ser uma forma de atenuar um pouco a falta de um

cônjuge ou de um bebê, quando isso parece quase impossível. Então,


recebi o e-mail informando que ela estava grávida de dois meses! Assim,

a minha reação foi gritar. Agora, ela está no quarto ou quinto mês de

gravidez, o que indica que tudo irá correr bem.

O caso de Ana era similar ao desse casal, mais do que aos outros dois

casais que não tinham grandes anseios por filhos. O desejo profundo por

filhos é, com frequência, algo cultural. Numa sociedade tradicional, a

feminilidade de uma mulher parece estar ligada à sua capacidade de

procriação; a ausência de filhos a torna incompleta como mulher. No

Ocidente, entretanto, a incapacidade de conceber filhos também pode

afetar profundamente uma mulher; isso corresponde apenas a um

aspecto do modo pelo qual a feminilidade foi criada e à psicologia

feminina (uso “feminilidade” para evitar dar a impressão de que toda

mulher deveria ter filhos).

Provavelmente, isso também era, de fato, importante para Elcana.

Em certo sentido, isso era relevante porque ele e Ana precisavam ter

filhos para ajudá-lo na administração do negócio familiar. Além disso, a

quem ele iria transferir a terra da família caso não tivessem filhos?

Contudo, essa situação não é necessariamente uma questão apenas

prática. Conheço homens que se sentem incompletos por não terem

filhos, quer isso seja decorrente da infertilidade deles, quer da esposa.

Muito plausivelmente, a lógica por trás do fato de Elcana ter duas

esposas envolve tanto o desejo quanto a necessidade de ter filhos, como

foi o caso em que a estéril Sara encorajou Abraão a tomar Hagar como

uma segunda esposa (veja Gênesis 16). A esperança de Elcana é que

Penina possa lhe dar filhos, e, de fato, ela pode. Na verdade, ela parece

tê-los tão facilmente quanto é capaz de fazer o almoço. A cada ano,

quando a família vai a Siló para o festival, parece que há mais um bebê

pelo qual agradecer a Deus. Então, o que parecia uma solução acaba se

tornando também um problema. A situação, novamente, traça um

paralelo com a narrativa envolvendo Abraão, Sara e Hagar. Em teoria,

encorajar Abraão a desposar Hagar parecia uma boa ideia, mas Sara se

sentiu diferente quando Hagar, na prática, engravidou. Da mesma


forma, na teoria, tomar Penina como segunda esposa pareceu uma boa

ideia para Elcana, mas não para Ana, quando Penina começou a ter um

filho atrás do outro. Na vida real, Hagar passou a ser uma contínua

provocação a Sara, tal como Penina se tornou uma provocação

constante a Ana. Talvez ela pouco fizesse, de modo deliberado, para

provocar Ana. Nos casos de Hagar e Penina, a própria gravidez seria

suficientemente provocativa.

Desse modo, Elcana descobre-se vivendo em meio a uma

permanente tensão familiar, além da profunda depressão na alma da

mulher a quem primeiro e mais ele amou. O pobre homem faz o melhor

que pode para lidar com a situação, mas nós, homens, não temos a

menor capacidade de compreender as mulheres. “Não sou melhor para

você do que dez filhos?” Sinceramente, Elcana, de modo nenhum. Não

tente aplicar um pequeno curativo em uma ferida enorme. Encoraje-a a

falar um pouco mais sobre isso.

A ordem dos livros na Bíblia hebraica é distinta da ordem

encontrada em nossa Bíblia. No caso da Bíblia hebraica, 1Samuel vem

diretamente após o livro de Juízes (Rute aparece mais adiante). Então,

isso sugere ler essa história como o início da fase da história de Israel

subsequente a Juízes. Ao terminarmos de ler o livro de Juízes, ficamos

com um gosto desagradável em nossa boca. As histórias tornam-se cada

vez mais perturbadoras à medida que as pessoas são mais propensas a

fazer “o que era certo aos seus próprios olhos”, isto é, o que não é certo

aos olhos de qualquer pessoa normal. Primeiro Samuel inicia-se

contando-nos sobre determinada família, a exemplo de inúmeras

narrativas em Juízes, e a história da família em questão começa com

sofrimento e angústia, apesar de ser um relato com um final feliz e que

nos encoraja a prosseguir na leitura em vez de desejar interrompê-la.

Em particular, o santuário em Siló era o local das últimas histórias

desagradáveis em Juízes, embora, aqui, Siló seja o lugar no qual Ana

obterá resposta às suas orações. Reconhecidamente, tudo indica que

Eli, Hofni e Fineias deixam muito a desejar como sacerdotes, mas, o


nascimento do filho de Ana também significará que Deus está no

controle. Siló está situada ao sul das montanhas de Efraim e, dessa

forma, numa posição relativamente central aos clãs que vivem na

principal cadeia montanhosa de Judá e Efraim. No capítulo 2,

aprenderemos que, na época, o baú da aliança ficava em Siló — parece

que, de tempos em tempos, o baú da aliança era mudado de lugar, por

motivos que desconhecemos. A sua presença ali tornaria Siló o local

natural para um dos festivais de peregrinação que Israel realizava a cada

ano.

A Torá expressa que todo o Israel comparecia diante de Deus três

vezes ao ano para tais festivais, mas, para a maioria das famílias, não

seria muito prático abandonar o trabalho em suas propriedades, por

duas ou três semanas, a fim de fazer a jornada até o santuário central

daquela maneira. O hábito de Elcana envolve algo mais prático.

Ramataim (Arimateia, no Novo Testamento, cidade da qual procedia o

homem que providenciou uma tumba para Jesus) situava-se nas

planícies, não muito distante de Siló; mais adiante, no capítulo 2, a

locação da casa daquela família é chamada de “Ramá”, o que sugere que

Ramataim seja outro nome para Ramá, ainda mais próxima de Siló,

apenas um dia de jornada rumo ao sul. Assim, uma vez por ano, Elcana

levava a sua família para lá. Provavelmente, esse evento era o festival de

peregrinação do outono, o período mais propício para deixar a fazenda,

porque a colheita já estava concluída e o trabalho para a colheita do

próximo ano ainda não havia começado. Dessa forma, as pessoas iam ao

festival para dar graças pela produção do ano que passou (felizmente) e

buscar a bênção de Deus para o ano seguinte. Além disso, eles estariam

recordando a maneira pela qual Yahweh dos Exércitos os havia

libertado do Egito e levado para uma terra que era deles. Ainda, as

famílias viviam em tendas, durante o período do festival (não havia

hotéis), revivendo as condições daquela jornada do Egito até Canaã; eis

o motivo do nome do festival ser Sucot (tendas, cabanas ou

“tabernáculos”).
Os sacrifícios aos quais o relato se refere são os sacrifícios de

comunhão, não ofertas queimadas (que eram integralmente oferecidas a

Deus), nem sacrifícios destinados a lidar com ofensas. Quando se

apresentava uma oferta de comunhão, parte dela era dedicada a Deus

(ou seja, ela era queimada, como ocorre com a oferta queimada, em sua

totalidade), mas o restante era compartilhado pelas pessoas que faziam

a oferta. Assim, era como um churrasco do qual Deus e a família

ofertante compartilhavam. Um dos sacerdotes lidaria com a parte

técnica do sacrifício, incluindo a aspersão do sangue do animal sobre o

altar e a queima das partes que seriam dedicadas a Deus. Elcana, como

o chefe da família ofertante, distribuía os cortes a todos os membros da

família, assegurando que todos recebessem sua justa porção. A exceção

a essa regra era o fato de Elcana dar uma porção dobrada a Ana, como

sinal de seu amor por ela e para compensar o fato de ela não possuir

filhos. Talvez isso funcionasse com alguém que goste muito de bifes, mas

esse não é o caso de Ana.

Consideraremos a ideia de Deus cerrar o ventre ao abordarmos os

versículos 20-28.
1SAMUEL 1:9-11
HORA AMARGA DA ORAÇÃO
9
Após terem comido e bebido em Siló, Ana se levantou. Eli, o sacerdote, estava sentado,

10
junto à porta do palácio de Yahweh. [Ana] estava amargurada em espírito. Ela fez um

11
pedido a Yahweh e pranteou profusamente, mas fez uma promessa. Ela disse: “Yahweh dos

Exércitos, se olhares realmente para a aflição de tua serva, se atentares para mim e não

tirares a tua serva da mente, mas deres à tua serva um descendente masculino, eu o

entregarei a Yahweh por todos os anos de sua vida. Nenhuma navalha virá sobre a sua

cabeça.”

No fim dos anos 1970, um antigo colega, Lew Smedes, escreveu um

livro de memórias chamado My God and I [Meu Deus e eu], que

remonta à sua infância, em Michigan, nos idos de 1920 a 1930. A família

tinha imigrado da Holanda, e o pai de Lew faleceu quando ele ainda era

muito pequeno, deixando a sua mãe com quatro filhos. Contaram-lhe

que, quando os agentes funerários carregaram o corpo de seu pai para

fora da casa, sua mãe gemeu em frísio, sua língua nativa, Deus é “zoo

zuur” [tão amargo]. Subsequentemente, ele conta que um hino chamado

Ó doce, grata oração jamais foi doce em seu lar. Ele sempre chorava

quando a família se reunia para orar. O encontro com Deus também

parecia uma tristeza para sua mãe, fosse no lar ou nos encontros de

oração da igreja. Ele não conseguia compreender as orações que a mãe

fazia no idioma que ela trouxera da Europa, mas era capaz de

reconhecer os soluços, as lágrimas e os suspiros. (Muitos anos mais

tarde, Lew perguntou à sua mãe por que ela jamais se casara

novamente. A mãe explicou que, embora se sentisse tão cansada e

sozinha, temia que outro marido não cuidaria dos seus filhos tão bem

quanto ela. Ele comenta que, então, compreendeu quão profundamente

ele mesmo encontrou o amor de seu Pai celestial oculto no amor de sua

mãe terrena.)
De igual modo, a hora da oração para Ana foi, a princípio, amarga,

mas, no devido tempo, tornou-se doce. Presumidamente, Ana orava

quando estava em sua casa, na vila, como outros israelitas faziam, mas

as ocasiões nas quais a família ia a Siló seria um tempo natural para

orações especiais. Já vimos como o festival anual destinava-se a ser um

evento de grande júbilo e celebração, quando o povo se regozijava pela

colheita que Deus lhes proporcionara e também comemorava o fato de

Deus lhes ter libertado e dado um lugar naquela terra. Contudo, para

Ana, tais festividades se tornaram ocasiões nas quais a sua infertilidade

era sempre realçada. Esse fato exercia uma pressão adicional sobre sua

agenda com Deus. Além disso, o santuário, que, afinal, é o foco do

festival, constitui a habitação terrena de Deus, similar à morada de

Deus nos céus. Trata-se do palácio de Deus; o hebraico não possui uma

palavra para “templo”, mas usa tanto um termo para “casa” quanto para

“palácio”, porque o templo é o equivalente ao lar de um ser humano e,

em particular, equivalente ao palácio de um rei. É um portal; um lugar

de contato, de intercâmbio e de movimento entre este mundo e o céu;

um lugar do qual as orações e louvores podem naturalmente alcançar os

céus e por meio do qual as mensagens celestiais podem chegar à terra.

Portanto, nesse lugar a oração é especialmente possível; e, para Ana, a

dor associada a essa celebração anual torna o santuário o local em que a

oração também é necessária.

O festival, igualmente, é uma ocasião para se comer e beber, e

sabemos que essas atividades podem sair do controle. Assim, um dos

motivos pelos quais Eli estaria sentado à porta do santuário seria para

evitar a entrada de pessoas em estado de embriaguez. Sempre foi parte

da responsabilidade dos funcionários do santuário agir como porteiros,

para assegurar que nada ou ninguém impuro tenha acesso ao santuário e

o contamine. Pode-se imaginar quão cansativa essa tarefa podia se

tornar, e tenho a impressão de que Eli se sentirá extremamente

contente quando todos esses peregrinos retornarem às suas casas e ele

voltar à sua rotina.


Ana adentra o santuário com seu espírito amargurado. Em outras

palavras, ela está em um estado similar ao de Noemi, descrito apenas

algumas páginas antes, em nossa Bíblia. Deus permitiu que Noemi

passasse por uma série de experiências difíceis que ela descreve como

“amargas”. Similarmente, Deus permite que a sorte de Ana seja tão

difícil quanto a de Noemi, e o narrador da história sabe que a amargura

envolveu a própria alma dela. Pode-se imaginar que esse sentimento a

tornaria hesitante quanto à oração. Talvez Ana sentisse que não tivesse

nenhum pedido a fazer ao Deus que havia cerrado o seu ventre. Ou é

possível que ela sentisse que precisava se recompor antes de orar.

Felizmente, o seu desespero sobrepuja tais instintos. Há um livro,

intitulado Oração: o segredo de abrir o coração, de Ole Hallesby

[Curitiba, PR, Editora Esperança, 1ª edição, 2019] que fala sobre como

podemos considerar a dúvida, a ira ou a amargura como obstáculos à

oração, quando, na realidade, esses sentimentos são o nosso caminho a

ela — eles constituem as coisas sobre as quais nos achegamos a Deus

para falar. Instintivamente, Ana sabia que devia ser assim.

Ela se apresenta diante de Deus com um “apelo”. Como em nosso

idioma, o termo hebraico possui um pano de fundo legal. Num discurso

coloquial, esse termo pode sugerir entrar com uma petição em um

tribunal quando você é tratado de maneira imprópria e deseja que o

tribunal tome alguma atitude a respeito. Essa é a natureza da oração

por si mesmo (ou por alguém mais). Você está presumindo o direito de

ir à corte celestial e instar (demandar é quase a palavra) para que ela aja

em seu benefício. Eis o que Ana está fazendo, pois possui meios de

apoiar a sua petição. Ela dirige a palavra a Yahweh dos Exércitos, o

Deus que o povo veio cultuar no festival; o título implica que a

soberania e o poder que eles reconhecem naquela ocasião é importante

não apenas no contexto de grandiosos eventos políticos e militares, mas

no âmbito das necessidades de pessoas comuns. Se Deus é Yahweh dos

Exércitos, então esse poder deveria ser aplicado na vida dela. Ana chora
copiosamente. Isso seria uma expressão de sofrimento, mas também

outra forma de atrair a atenção divina.

Ana suplica a Deus que olhe para ela. No momento, revistas

coloridas estão veiculando uma série de corajosos anúncios que

retratam crianças com fenda palatina e condições similares. Como é

possível resistir quando você olha para uma criança adorável, que é

portadora de uma enfermidade tão infeliz, e sabe que pode suprir a

necessidade dela preenchendo um cheque? Ao olhar para Ana e as

dinâmicas de sua família, como Deus pode resistir e não intervir na vida

dela? Ana especialmente roga a Deus para estar atento a ela e não a

esquecer. As palavras hebraicas são, usualmente, traduzidas por lembrar

e esquecer, mas elas significam algo mais deliberado do que esses verbos

normalmente sugerem. Na oração, com frequência, as pessoas pedem a

Deus para não apenas olhar, como também pensar, deliberadamente, na

convicção de que aplicar a mente em algo leva a ação, enquanto tirar da

mente leva a uma inação contínua.

Ana apela para sua condição de serva. Pode parecer estranho referir-

se à condição servil como uma condição positiva, mas é dessa forma que

o Antigo Testamento a enxerga, especialmente em conexão com a

oração. O relacionamento entre um servo e o seu senhor é de

mutualidade. O servo está comprometido com o seu senhor e, em

contrapartida, o seu senhor, com o servo. Ana diz: “Eu sou sua serva.

Por favor, irás agir em relação a mim como um senhor deve agir?”

Além disso, ela faz uma promessa. As regras na Torá, o conselho em

Eclesiastes, bem como algumas histórias do Antigo Testamento

chamam a atenção das pessoas para o perigo de fazer promessas,

especialmente quando Deus é o objeto delas. Todavia, Ana aceita o

risco. Em seu caso, é um voto particularmente caro. Na prática, Ana

está prometendo que Samuel se tornará um “nazireu”, uma pessoa

devotada a Deus, cuja dedicação é expressa em deixar os cabelos

crescerem de forma incomum. O que você faz com o seu cabelo é uma

declaração em muitas culturas; foi assim com George Washington, John


Adams e Thomas Jefferson e, não muito tempo atrás, com os hippies,

nos anos 1960. Os demais elementos nesse compromisso estão descritos

em Números 6; a abstinência de bebidas alcoólicas e a ausência de

contato com qualquer coisa “tabu” ou impura, da mesma forma que os

sacerdotes. A descrição de um nazireu, em Números 6, relaciona-se a

alguém que faz um voto temporário desse tipo; o compromisso que Ana

deseja fazer para seu filho será para toda a vida dele. Presume-se que ele

teria o direito de renegociar o voto caso desejasse fazê-lo; no Antigo

Testamento, os pais não podem impor condições aos seus filhos. No que

tange a Ana, ela está disposta a entregar o filho que tanto deseja a Deus.

Esse elemento na história sugere outra ligação com a parte posterior

de Juízes, que dá muito espaço ao relato de outra mãe infértil a quem

Deus permite ter um filho e que será devotado a ele (veja Juízes 13—

16). Naquela história, Deus é quem decide pela dedicação da criança,

enquanto aqui, em 1Samuel, a ideia é de Ana. Por outro lado, Sansão

não é muito bom no cumprimento da vocação que lhe foi imposta, o que

sugere outro motivo pelo qual esse voto é arriscado. Em contraste, o

filho de Ana cumprirá fielmente a vocação a ele destinada.

A promessa de Ana funciona.


1SAMUEL 1:12-19A
COMO NÃO DEMONSTRAR EMPATIA II
12
Enquanto ela apresentava a sua súplica diante de Yahweh, Eli estava observando a boca de

13
Ana e, por ela estar falando em seu coração (os seus lábios apenas tremiam, e sua voz não

14
era audível), Eli pensou que ela estivesse bêbada. Eli lhe disse: “Por quanto tempo você

15
agirá como uma embriagada? Mantenha o vinho distante de você.” Ana replicou: “Não,

senhor, sou uma mulher de espírito duro e não bebi vinho ou licor. Eu estava me derramando

16
diante de Yahweh. Não tome a sua serva como uma mulher indigna, pois foi por causa de

17
minha grande irritação e provocação que tenho falado todo este tempo.” Eli replicou: “Vá

18
em paz. O Deus de Israel: ele concederá o pedido que você lhe fez.” Ela disse: “Que a tua

serva encontre favor em teus olhos.” A mulher seguiu o seu caminho e comeu, e seu

19a
semblante não estava mais [amargo]. Eles levantaram cedo de manhã, curvaram-se diante

de Yahweh e retornaram à sua casa, em Ramá.

Pouco tempo atrás, uma mulher me procurou para conversar sobre as

formas de abuso de seu marido sobre ela. Isso envolvia algum abuso

físico, ocorrido uma ou duas vezes, mas o histórico não o descrevia

como um indivíduo inerentemente violento ou um ébrio. O problema

residia mais em sua atitude negativa, crítica e desdenhosa em relação a

ela. O amor que ele, outrora, demostrava por ela parecia ter

desaparecido por completo. Então, ela veio me consultar sobre o que

deveria fazer. A dificuldade com respeito ao aconselhamento pastoral

era que eu tinha em minha mente algumas das coisas que o Novo

Testamento diz sobre a submissão das esposas ao marido e sobre

estarem dispostas a sofrer como Jesus sofreu. Por consequência, cometi

dois erros em minha tratativa pastoral com ela. Falhei em considerar as

diferenças entre a provável situação pressuposta por aquelas exortações

do Novo Testamento e falhei, de fato, em apreciar as dinâmicas e a dor

da situação daquela mulher. (Felizmente, ela foi extraordinariamente

paciente comigo em vez de me desprezar como outro homem abusivo,


de modo que aprendi muito com aquele encontro, ainda que ela não

tenha se beneficiado em nada com ele.)

É preciso ter um pouco de compreensão com Eli. Sem dúvida, o

festival lhe proporcionava inúmeras ocasiões nas quais ele precisava

exercer alguma disciplina, especialmente quando as pessoas se excediam

na celebração. Outras partes do Antigo Testamento indicam que Israel

sabia abusar do álcool, não apenas em festivais (Isaías 5.11-12 é um

exemplo). Esse fato não fez o Antigo Testamento defender a

abstinência, não mais do que o Novo Testamento, mas o fez advertir

quanto aos perigos do consumo excessivo de bebidas alcoólicas. Eli

simplesmente conclui que Ana está em estado de embriaguez. Ele vê

alguém murmurando e estremecendo, mas proferindo palavras sem

coerência: assim, ele pensa que sabe qual é o problema de Ana e não

precisa perguntar. Para Eli, acessar o próprio lugar no qual Deus está,

naquele estado, caracteriza Ana, obviamente, como uma “mulher sem

valor”. Trata-se de uma expressão assustadora. A palavra para “sem

valor” ou “indigno” é belial, que foi um termo, mais tarde, usado em

relação ao diabo. No Antigo Testamento, o termo não tinha esse

significado, mas pode-se imaginar porque, com o tempo, passou a

sugerir isso. Ele implica um grau acentuado de impiedade, constituindo

o tipo de palavra que o Antigo Testamento utiliza para descrever

pessoas que levam outras a adorar deuses dos demais povos, que não

emprestam aos necessitados ou que desejam estuprar um convidado.

Irônica e dolorosamente, 1Samuel, em breve, usará essa palavra para

retratar os próprios filhos de Eli.

Como a mulher a quem descrevi, Ana é mais respeitosa com Eli do

que ele talvez merecesse. Sua autodescrição como dura de espírito é

surpreendente; as traduções, usualmente, concluem que isso significa

que ela está profundamente angustiada, mas não é isso o que a

expressão normalmente quer dizer. A despeito de sua tristeza por causa

da infertilidade, Ana já se apresentou como uma mulher forte. Sua

amargura está ligada a isso; o fato de sentir amargura não significa que
Ana seja uma pessoa a quem se possa menosprezar. Ela tem se

apresentado diante do Deus que cerrou o seu ventre com mais coragem

do que, em geral, ouvimos ser apropriado mostrar diante dele. É a sua

tenacidade, em vez da fraqueza de espírito, que a tem feito se derramar

diante de Deus.

Ana enfatiza o mesmo ponto em diferentes palavras, quando se

descreve indo à oração em consequência de sua irritabilidade e da

provocação da qual tem sido alvo. Ela está sob constante provocação

por parte de Penina (esteja Penina consciente disso ou não). Ana

também está sob a provocação da parte de Deus, que lhe cerrou o

ventre? Eis por que está irritadiça. Uma vez mais, as traduções, em

geral, a descrevem como angustiada, mas a palavra hebraica usualmente

significa irritadiça, no sentido de estar ofendida e irada. O seu estado

emocional ilustra como o sentimento de ira ou de irritação não são

obstáculos para a oração. Isso não impossibilita a oração; a torna

possível e necessária, dando ao que ora energia e persistência (“todo

este tempo”). Isso significa que você não apenas segue os movimentos

da oração, mas prossegue perguntando até obter uma resposta.

Eli, em desespero, tenta reagrupar e relembrar as instruções que lhe

foram dadas no seminário sobre como lidar com mulheres perturbadas e

iradas e, por fim, consegue agir de modo apropriado. Diversas histórias,

no Antigo Testamento, ilustram a dinâmica da oração nessa conexão, e

o caso em questão é um exemplo. Como a palavra “súplica” sugere,

quando o Antigo Testamento se refere à oração, o texto não tem em

mente algo como meditação ou reflexão, uma prática designada a nos

mudar. A oração é mais parecida com o relacionamento de uma criança

com o seu pai ou a sua mãe. Quando um filho é ferido ou se sente

assustado, ele vai atrás de seus pais para que eles façam algo a respeito,

e (felizmente) eles asseguram à criança que farão. Eli sabe que o seu

trabalho como pastor, naquele contexto, é transmitir a resposta de Deus

à oração de Ana. No Antigo Testamento, as respostas de Deus às

orações nem sempre são positivas, tal como ocorre com a resposta dos
pais aos pedidos de seus filhos. Haverá ocasiões em que a reação inicial

de Eli, na qual ele admoesta Ana, será a certa. Agora, ele vê que a

situação não é essa e que requer trazer a verdadeira resposta de Deus.

Não sabemos como ele percebeu qual era a resposta a ser dada, que

se revelou correta por meio do que vem a seguir. O motivo de ser a

resposta certa também emergirá no devido tempo: embora nem toda

mulher infértil que se lance a Deus, da maneira que Ana está fazendo,

obtenha essa resposta, a intenção divina aqui é fazer algo especial para

ela, que esteja relacionado ao cumprimento do propósito supremo de

Deus com respeito a Israel (e para mim e você). Ana é afortunada por

ser alguém cuja necessidade será atendida como parte do cumprimento

daquele propósito divino.

A resposta correta, da parte de Eli, começa com: “Vá em paz.” Ora,

paz de coração é algo que Ana não possui no momento. Ela está

destroçada por sua infertilidade e os efeitos disso no relacionamento

com sua família e demais membros da comunidade. Contudo, uma

declaração sobre paz, no Antigo Testamento, normalmente não está

relacionada a paz de coração. Tipicamente, o Antigo Testamento lida

com as mesmas ideias que a fé cristã, mas, com frequência, utiliza

palavras diferentes. Quando quer desejar paz a alguém no nosso

sentido, o texto traz algo como: “Não tenha medo.” As palavras de Eli

sobre paz abrigam implicações de maior alcance. Paz denota bem-estar,

plenitude de vida. Para alguém na posição de Ana, é impossível

imaginar bem-estar e plenitude de vida sem a ideia implicar sua

maternidade. A bênção de Eli pressupõe que Deus irá atender à sua

oração, não simplesmente fazê-la se sentir melhor quanto a não ser mãe.

Além disso, pode ser significativo que a expressão de Eli seja mais

literalmente: “Vá em paz.” Naquele momento, as coisas não estão indo

bem em sua vida, mas estão destinadas a mudar.

A continuação das palavras de Eli torna isso explícito: “O Deus de

Israel: ele concederá o pedido que você lhe fez.” O sacerdote enfatiza

quem é o Deus sobre quem ele e Ana estão falando. Ela havia abordado
Deus como “Yahweh dos Exércitos”. Embora o segundo termo aponte

para o poder divino, o primeiro indica ser aquele Deus revelado pelo

nome a Israel. Eli usa aquele fato sobre Yahweh, que é “o Deus de

Israel”. Isso significa que Deus está comprometido com uma israelita

como Ana. O título terá ainda mais significado à luz do que

descobriremos sobre a importância para Israel do filho que ela irá gerar.

As traduções, normalmente, trazem essa sentença na condicional, como:

“Vá em paz, e que o Deus de Israel lhe conceda o que você pediu”

(NVI). Em outras palavras, Eli pode ser entendido tanto fazendo uma

declaração sobre o que irá, de fato, acontecer, quanto sobre o que

precisa ocorrer. Caso este último entendimento seja o correto,

deveríamos inferir que Eli está apenas dizendo: “Espero que Deus

responda à sua oração.” Isso seria um anticlímax e não faria o menor

sentido, após ter encorajado Ana a ir em paz ou à paz. Em seu desejo ele

está se identificando com o que percebe da intenção de Deus.

A reação de Ana às palavras de Eli também sugere que ela as

entendeu como a confirmação do que Deus irá, de fato, fazer: ela segue o

seu caminho e se alimenta com um semblante que não mais está

abatido. Em certo sentido, a situação não mudou em nada, desde o

momento em que Ana decidiu ir ao santuário. Ela não está mais grávida

do que antes; todavia, agora ela sabe que irá engravidar. A sua

experiência e a sua reação refletem a compreensão das respostas à

oração presente em Salmos. Pode-se chamá-las de “resposta-de-oração

fase um” e de “resposta-de-oração fase dois”. A fase um corresponde a

Deus dizendo: “Sim. Eu ouvi e farei isso”; a fase dois é Deus tornando

em realidade. O simples fato de receber a resposta da fase um

transforma Ana.
1SAMUEL 1:19B-24
É NECESSÁRIO HAVER UM MILAGRE
19b 20
Elcana dormiu com Ana, sua mulher, e Yahweh estava atento a ela. No fim do ano, Ana

tinha engravidado e deu à luz um filho. Ela lhe deu o nome de Samuel [e disse], porque “eu o

21
pedi a Yahweh”. Elcana, o marido, e toda a sua casa subiram para oferecer o sacrifício anual

22
e [para cumprir] a sua promessa, mas Ana não subiu. “Porque” [ela disse ao seu marido],

“quando o menino for desmamado, eu o levarei. Nós veremos a face de Yahweh, e ele ficará lá

23
permanentemente.” Elcana, seu marido, lhe disse: “Faça o que parecer bom aos seus olhos;

fique até que você o tenha desmamado. Que Deus apenas cumpra a sua palavra.” Então, a

24
esposa ficou e cuidou de seu filho até tê-lo desmamado e subiu com ele, quando o tinha

desmamado, com um touro de três anos de idade, uma medida de farinha e um odre de vinho.

Ela o levou à casa de Yahweh, em Siló, quando ele era um menino.

Em Josué, Juízes e Rute para todos, mencionei uma de minhas alunas que

passou o último ano dedicando-se aos preparativos de seu casamento,

mas que também desenvolveu dores de cabeça cada vez mais intensas.

Cerca de um mês antes de seu casamento, ela fez uma ressonância

magnética que sugeriu um tumor cerebral. Os médicos queriam operá-

la o mais breve possível, embora o resultado da operação não fosse

garantido; ela poderia sair da cirurgia com alguma incapacidade. Sua

família e seus amigos encorajaram o casal a levar o casamento adiante,

oraram por ela incessantemente e ajudaram os noivos na realização da

cerimônia de núpcias, que ocorreu em apenas uma semana. Enquanto

ela era levada para a cirurgia, sua mãe comentou: “Muitas pessoas estão

orando por ela; esse tumor não tem a menor chance.” Foi um

comentário inspirador, mas claro que o curso da vida não funciona

desse jeito. Não obstante, quando os cirurgiões abriram o cérebro da sua

filha, eles não encontraram nenhum tumor, apenas um abscesso

disforme. Então, eles o removeram, suturaram a incisão e começaram a

coçar a própria cabeça (nesse meio-tempo, ela parou de sofrer com as

enxaquecas). Teria sido um milagre? Uma infecção incomum? Alguma


espécie de vírus que ela contraiu quando fez mergulho na África? A

teoria seguinte foi de que a anomalia seria resultante de um pequeno

orifício em seu coração que ela tinha desde a mais tenra infância, mas,

na época, os médicos concluíram que isso não acarretava nenhuma

disfunção cardíaca. Como pensar sobre a relação entre a maneira pela

qual compreendemos as coisas do ponto de vista médico e a forma em

que compreendemos o envolvimento de Deus quando algo

extraordinário acontece?

Já observamos quão sugestivo é que o livro de 1Samuel venha após

Juízes, na Bíblia hebraica, mas a ordenação dos livros em nossas Bíblias

segue a ordem estabelecida pela tradução grega do Antigo Testamento.

Nesse caso, é sugestivo que 1Samuel siga o livro de Rute e, portanto,

que a história de Ana siga diretamente a história de Rute. As duas são

mulheres cuja experiência de casamento, inicialmente, lhes trazem dor.

Rute sofre a perda de seu marido, e Ana sofre com sua incapacidade de

gerar filhos. Ambas são, então, mulheres que encontram cura e

restauração.

A diferença reside no fato de que, no caso de Rute, tanto a perda

quanto a salvação ocorrem sem a intervenção divina; pelo menos, a

narrativa nada diz sobre Deus ter matado o primeiro marido dela, nem

afirma que Deus lhe providenciou um novo marido. Noemi, na verdade,

afirma as duas coisas e, em certo nível, Deus é mesmo responsável por

ambos os eventos, pois, no fim das contas, ele é responsável por tudo o

que ocorre. Contudo, a forma pela qual o Antigo Testamento fala sugere

a presunção de que Deus carrega mais responsabilidade direta por

alguns eventos do que por outros. Algumas ocorrências resultam da

iniciativa de Deus, em lugar de apenas permitir que aconteçam.

Em contraste, 1Samuel afirma que Deus cerrou o ventre de Ana e,

agora, estabelece uma conexão entre a sua capacidade de gerar um filho

e o fato de Deus estar atento a ela em consequência do modo pelo qual

ela lhe fez a petição (consideramos a ideia de Deus estar atento em

nosso comentário sobre 1Samuel 1:9-11). Meu palpite é que, se você


fosse capaz de olhar empiricamente (cientificamente) para o que

ocorreu às duas mulheres, dificilmente encontraria uma diferença entre

as suas experiências. Caso dispusesse dos registros médicos de Ana,

descobriria que a sua incapacidade de conceber tinha alguma causa

fisiológica ou anatômica e que a sua eventual gravidez era uma grande

surpresa para os médicos. Eles, então, diriam que, algumas vezes,

“milagres” (expressão pela qual querem dizer “eventos inexplicáveis”)

acontecem, do mesmo modo que poderiam ter dito sobre o caso daquela

minha aluna.

Na Escritura, há alguns eventos que requerem explicação em termos

de intervenção divina. Mesmo que tivéssemos toda a evidência

científica no mundo, ainda seríamos incapazes de explicar a criação do

mundo ou a ressurreição de Jesus (não somente a sua ressurreição, mas

a sua transformação num tipo de vida renovada). Todavia, as Escrituras

reconhecem que, na maior parte do tempo, a vida ocorre sem a

intervenção divina e que Deus opera por meio de processos de causa e

efeito. Assim, a história de Rute não fala de intervenções, embora isso

implique a presunção de que Deus realizou algo especial por meio de

uma série de eventos comuns, coincidências, atos de compromisso

humano e a retenção do compromisso humano relacionado. A narrativa

de Ana atribui a sua infertilidade a Deus e, então, igualmente, atribui a

sua gravidez a ele.

Bem, Elcana foi envolvido também. Presume-se que Ana lhe contou

o diálogo entre ela e Eli; as trocas posteriores entre Ana e Elcana

sugerem que ela o fez. Nem mesmo consigo imaginar como foi quando

eles tiveram relações sexuais nas semanas seguintes. A escala de tempo

é, reconhecidamente, um pouco incerta. O relato faz referência ao fim

do ano. Considerando que o festival mencionado é o que ocorre no

outono, ao término do período agrícola, o fim do ano significará um ano

após a visita em Siló. A maneira óbvia de compreender a história, então,

sugere que ela ocorreu um ano antes de Ana ficar grávida. Novamente,

como teria sido viver por um ano com aquelas palavras de Eli, viver
todos aqueles meses com a resposta-de-oração fase um, mas não ver a

fase dois? Uma forma menos evidente de entender a história é avaliar

que Samuel, de fato, nasceu um ano depois, embora isso faça pouca

diferença. Ana ainda precisa aguardar meses até obter alguma evidência

de que a fase dois está em curso.

Quando a fase dois é confirmada, ela dá ao filho o nome de Samuel e

o associa ao fato de tê-lo pedido a Deus. Agora, é quase uma regra em

vez de uma exceção, que os comentários sobre os nomes das pessoas, no

Antigo Testamento, não têm relação com o que teríamos pensado sobre

o significado real do nome (p. ex., Abraão, na realidade, não significa

“pai de muitas nações”, como Gênesis 17 pode levar a pensar). Os

comentários que o Antigo Testamento oferece, em geral, sugerem

ligações possíveis, caso haja certo exercício de imaginação. Na

realidade, não sabemos qual o possível significado do nome Samuel para

alguém em Israel, embora a última sílaba o faça pensar numa possível

relação com Deus, porque el é um termo hebraico para Deus. No

entanto, o significado real do nome Samuel permanece incerto. O que é

evidente é que não significa “pedido a Deus”. Se houvesse um nome

cujo significado é “pedido” ou “solicitado”, esse nome seria Saul; eis,

exatamente, o que Saul significa. Talvez os israelitas percebessem isso,

ao ouvirem a narrativa, e é possível também que fizessem uma conexão

com o fato de o ministério de Samuel, mais tarde, incluir a designação

de Saul como primeiro rei de Israel, o processo que abre a possibilidade

de mudar das atrocidades que caracterizaram as histórias em Juízes,

quando “não havia rei em Israel”. Em suma, a oração de Ana é aquela

cuja resposta resulta em Saul.

Provavelmente, o ano no qual Elcana subiu para o festival e Ana

permaneceu em casa seja um outro ano posterior, quando Samuel já

tinha um ano de idade. No Ocidente moderno, ele já teria idade

suficiente para ser desmamado, mas, nas sociedades tradicionais, o

desmame ocorre bem mais tarde. Desse modo, o ano no qual Ana leva

Samuel ao festival será quando ele não mais é um bebê, mas um menino.
Não sabemos que promessa Elcana estava cumprindo no festival

daquele ano, mas a ideia de prometer dar algo a Deus na forma de um

sacrifício e, então, cumpri-lo é familiar. Constitui um dos motivos

clássicos na instrução em Levítico 7 para a apresentação de uma “oferta

de comunhão”, citada nos versículos iniciais de 1Samuel. Em outras

palavras, talvez a implicação seja de que, a cada ano, Elcana também

fazia petições a Deus, pelas quais prometia expressar graças dessa

maneira concreta e dispendiosa, caso fosse atendido, o que ocorria

todos os anos. Não seria surpresa se a infertilidade de Ana e o conflito

que isso gerava em sua própria casa fossem objeto de sua oração.

Portanto, em sua ida ao primeiro festival após o nascimento de Samuel,

Elcana tinha um motivo especial de júbilo e gratidão.

A Torá fala dos festivais como ocasiões para o povo “apresentar-se

diante” de Deus, mas Ana usa uma expressão mais ousada; são eventos

aos quais o povo comparece para “ver a face de Deus” (é o mesmo verbo

hebraico, mas uma forma diferente dele). Decerto, ela não esperava ver

Deus fisicamente; Ana é uma mulher sábia o suficiente para saber que

Deus não é corporal e visível. Portanto, a sua ideia de ver Deus não

difere muito da maneira pela qual os cristãos pensam quando falam em

ver Deus com os olhos do coração, como, às vezes, expressamos. Ana

sabe que realmente encontramos Deus, quando vamos à sua casa.


1SAMUEL 1:25—2:10
SOBRE ABRIR MÃO DE SEU FILHO
25 26
[Ana] abateu o touro e levou o menino a Eli. Ela disse: “Com licença, senhor, tão certo

quanto vives, eu sou a mulher que esteve aqui contigo, para fazer o meu apelo a Yahweh.

27 28
Foi por este menino que eu roguei, e Yahweh deu-me o que eu lhe pedi. Por isso, eu

mesma, em troca, entrego-o a Yahweh; por todos os dias que viver, ele será dedicado a

Yahweh.”

Ele curvou-se ali, diante de Yahweh,

CAPÍTULO 2

1
e Ana orou:

“Meu espírito exulta em Yahweh, minha força se eleva em Yahweh.

Minha boca se abre amplamente diante de meus inimigos, porque me regozijo em tua

libertação.

2
Não há ninguém santo como Yahweh, porque não há ninguém além de ti; não há rochedo

como o nosso Deus.

3
Não mais expresse um discurso altivo, um discurso elevado, [nem] o discurso desenfreado

deve sair de sua boca.

Porque Yahweh é um Deus que conhece; por ele, as ações são pesadas.

4
Os arcos dos guerreiros são quebrados, mas pessoas que estavam caindo revestem-se de

força.

5
Pessoas que estavam fartas, empregam-se para obter pão, mas os famintos param [de ser

famintos].

A mulher infértil dá à luz sete, mas a mulher com muitos filhos é abandonada.

6
Yahweh é aquele que mata e que traz à vida, envia ao Sheol e traz de volta.

7
Yahweh é aquele que torna pobre e torna rico, derruba e também levanta.

8
Ele é aquele que levanta o pobre da sujeira, levanta o necessitado da pilha de lixo

e os faz sentar com as pessoas importantes, colocando-os em assentos de honra.

Porque os pilares da terra pertencem a Yahweh; ele estabeleceu o mundo sobre eles.

9
Ele guarda os pés das pessoas comprometidas com ele, mas os incrédulos permanecem em

silêncio na escuridão.

Porque não é pela força que uma pessoa prevalece;

10
Yahweh despedaçará os seus oponentes.

Trovejará contra eles nas nuvens; Yahweh exercerá autoridade sobre os confins da terra.

Ele dará força a seu rei e elevará o chifre de seu ungido.”


Enquanto escrevo, dois aniversários foram completados recentemente.

Cerca de trinta anos atrás, em 1979, o xá do Irã foi destituído e o

aiatolá Khomeini retornou do exílio para se tornar o “Líder” iraniano,

uma posição mais poderosa que a de presidente. Alguns meses mais

tarde, Nelson Mandela foi libertado da prisão, na África do Sul,

iniciando a sua jornada para se tornar o presidente daquele país. O

retorno do aiatolá Khomeini ao Irã para assumir a sua posição sob a

nova Constituição do Irã foi saudada, tanto por cristãos quanto por

muçulmanos, como um evento de libertação para o povo iraniano. A

revista Time o nomeou como o homem do ano. Trinta anos depois, a

atitude dos ocidentais é muito diferente daquela, na época, adotada

pelo Ocidente. A libertação de Nelson Mandela, da mesma forma,

parecia um acontecimento profundamente auspicioso para o povo sul-

africano, e ainda é, apesar dos problemas que essa nação ainda enfrenta.

“Yahweh derruba e também levanta.” Até que ponto isso é

verdadeiro? Deus levantou Khomeini e Mandela? Tal como no

contexto familiar, em relação a cerrar e abrir ventres, no âmbito da vida

política há um sentido no qual Deus é responsável por tudo o que

acontece. Todavia, a Bíblia, com frequência, também atribui

responsabilidade a Deus por eventos específicos, sugerindo um

envolvimento mais direto. Deus toma a iniciativa em vez de

simplesmente permitir o curso natural dos fatos, e/ou há eventos que

contribuem para o contínuo propósito divino, enquanto outros eventos

não possuem essa carga de importância.

No contexto da história de Ana, uma primeira questão é por que o

seu cântico de louvor, em razão do nascimento de seu filho, abre esse

assunto para nós. Não é surpresa o fato de ela ter algum louvor a

oferecer à luz do que Deus tem feito em sua vida, ao longo dos três ou

quatro anos anteriores. Um dos significados de seu ato de louvor é que

isso traz um desfecho adequado à interação entre ela e Deus no tocante

à sua infertilidade. Quando você tem uma necessidade ou atravessa uma

crise, a forma pela qual a vida com Deus funciona é o que (a) você leva
a Deus e lhe suplica para fazer algo a respeito; você espera que (b) Deus

firme um compromisso com você em relação ao seu pedido na forma que

denominei como “resposta-de-oração fase um”; à qual (c) você responde

com confiança e louvor; e, então, (d) Deus age, sob a forma que chamei

de “resposta-de-oração fase dois”. Essa sequência não alcança uma

conclusão e um encerramento até que (e) você retorne a Deus para dar

graças e o faça publicamente a fim de que outras pessoas possam unir-se

a você em seu louvor e fortaleçam a própria confiança em Deus e o

compromisso com ele. Esse é um aspecto relevante da ida de Ana ao

santuário.

Portanto, a sua visita envolve o seu agradecimento e louvor pessoal.

O que Deus fez por ela possibilita que Ana reafirme: “Não há ninguém

além de ti.” Todavia, o amplo escopo de seu louvor não é endereçado

diretamente a Deus. Ela fala sobre Deus na terceira pessoa, e, assim, é

dirigido a outras pessoas (no devido tempo, a pessoas, como nós, que

leem a sua história). Em sua natureza, como endereçada a Deus, é ação

de graças, mas em sua natureza, ao falar sobre Deus, é um testemunho.

A gratidão pelo que Deus fez não é completa até que a pessoa

beneficiada conte às demais sobre o que ele fez. As palavras iniciais de

Ana a Eli, portanto, assumem naturalmente a forma de palavras sobre

Deus, não palavras a ele, mantendo a forma característica de ação de

graças/testemunho: elas contam a sua história. “Eu sou a mulher que

esteve aqui contigo, para fazer o meu apelo a Yahweh. Foi por este

menino que eu roguei, e Yahweh deu-me o que eu lhe pedi.” Assim, ao

receber uma resposta de oração, você deve recontar o que Deus lhe fez.

Igualmente, você aponta as implicações disso. Reconhece que não é

apenas um evento isolado qualquer sem nada a dizer sobre o caráter

divino e a maneira de ele agir. Admite ser uma indicação e confirmação

sobre o caráter de Deus e o seu modo de agir. Eis por que o seu

testemunho é tão importante para o relacionamento das demais pessoas

com Deus. De forma paradoxal, é especialmente relevante às pessoas


com as quais Deus não tem agido da maneira em que ele agiu com você.

Ana encoraja outras mulheres estéreis a ir e suplicar a ação de Deus.

O mais surpreendente na ação de graças/testemunho de Ana é o seu

poema de louvor não apresentar nenhuma relação óbvia ou indireta

com a sua experiência com Deus, quando ele abriu o seu ventre. Seria

um exagero até mesmo fazer uma ligação com o verso inicial sobre

inimigos (ela não foi exatamente libertada de Penina) ou com a linha

poética sobre a mulher infértil que teve sete filhos (embora Ana gere

cinco mais). O seu louvor relaciona-se ao âmbito político, não pessoal,

bem como ao seu povo, em vez de apenas consigo mesma.

A lógica por trás disso é que, embora seja importante para a sua

mãe, o nascimento de Samuel possui um significado muito mais

abrangente. Ele se tornará uma figura relevante na história israelita,

tendo conexões com a libertação de Israel da opressão imposta pelos

filisteus e, então, na unção do rei que Deus pretende usar nesse mesmo

propósito (1Samuel 7; 9). O olhar do cântico de Ana está nesses

eventos ainda futuros. Na realidade, a canção cita esses eventos como

bênção ocorrida, porque Samuel já nasceu. Eles confirmam que Yahweh

é o único que realmente merece ser chamado de “Deus”, o Rochedo, o

Criador, o Guardião, o único com poder sobre todo o mundo.

Em suma, o cântico de Ana constitui também uma profecia, como a

canção de Miriã, em Êxodo 15, que antecipa a entrada de Israel em

Canaã. A característica profética se torna mais explícita na última

linha. Levantar o chifre, a exemplo de um animal como o touro faz, é

uma imagem de extremo poder. Deus elevará o chifre de seu ungido. No

contexto de sua história, não sabemos a quem Ana está se referindo,

mas, alguns capítulos adiante, quando Samuel houver, de fato, ungido

Saul, conheceremos a sua identidade. Ao sabermos sobre Davi, o ungido

seguinte, e suas conquistas ainda maiores que as de seu antecessor,

compreenderemos quão distante a profecia de Ana alcança o futuro.

Quando Ana fala de sua libertação dos inimigos, está falando dos

inimigos que ela compartilha com seu povo. Tais inimigos deveriam ser
sábios o bastante para deixar a autoexaltação, como se fossem capazes

de manter o domínio sobre o seu povo; eles não são. A pressão

econômica que eles exercem sobre Israel chegará ao fim. O seu povo

florescerá; seus inimigos declinarão.

Se Ana tivesse a mínima noção de que o nascimento de seu filho

abrigava tamanha importância para Israel, isso tornaria o sacrifício que

ela fez, em Siló, mais plausível. Esse sacrifício não envolveu apenas o

abate de um touro (um bem valioso para uma família), mas a entrega de

seu próprio filho. Podemos refletir sobre como ela conseguiu fazer isso,

mas Ana sabe que o atendimento de sua necessidade não é algo apenas

individual, mas inserido num propósito muito maior. Assim, ela pode

confiar o filho aos cuidados de Eli e ao santuário — ou melhor, a Deus.

O fato de Samuel curvar-se a Deus é um sinal de aceitação por sua

vocação.

Na história que se desenrola em 1Samuel, Yahweh será, de fato,

aquele que derruba e levanta rei. Infelizmente, no longo prazo (como foi

o caso da ascensão de Khomeini e de Mandela), a importância de reis,

como Saul e Davi, será mais ambígua. O que irá transparecer é que há

uma interação entre a iniciativa divina e a resposta humana. É

plenamente possível arruinar as iniciativas que Deus põe em

movimento. Felizmente, Deus não desiste e pensa em outra iniciativa.


1SAMUEL 2:11-36
QUANDO OS MINISTROS SÃO AUTOINDULGENTES
11
Então, Elcana foi para casa, em Ramá. O menino ficou ministrando a Yahweh, na presença

12
de Eli, o sacerdote. Mas os filhos de Eli eram homens indignos; eles não reconheciam

13
Yahweh. A prática dos sacerdotes com o povo era tal que, quando cada pessoa oferecia um

sacrifício, o rapaz dos sacerdotes vinha, quando a carne estava cozinhando, com um garfo de

14
três pontas em sua mão. Ele o espetava na panela, na chaleira, no caldeirão ou pote; tudo o

que o garfo trazia, o sacerdote tomava para si. Eis como eles agiam com todo o Israel que ia

15
até lá, em Siló. Além disso, antes de transformarem a gordura em fumaça, o rapaz dos

sacerdotes vinha e dizia para a pessoa que fazia o sacrifício: “Dê [a mim] carne para o

16
sacerdote assar; ele não aceitará carne cozida de você, somente crua.” Se a pessoa lhe

dissesse: “Eles realmente devem transformar a gordura em fumaça agora e, então, pode pegar

17
para si o que quiser”, ele dizia: “Não, dê agora, ou irei tomá-la à força.” A transgressão dos

rapazes na presença de Yahweh era muito grande, porque essas pessoas tratavam a oferta de

Yahweh com desprezo.

18
Ora, Samuel estava ministrando na presença de Yahweh, um garoto cingido num éfode de

19
linho. Sua mãe lhe fazia um pequeno manto e o levava todos os anos, quando subia com

20
seu marido para oferecer o sacrifício anual. Eli abençoava Elcana e sua esposa, dizendo:

“Que Yahweh lhe dê descendência dessa mulher no lugar daquele por quem ela pediu a

21
Yahweh”, e eles voltavam para casa. Porque Yahweh atentou para Ana, ela ficou grávida e

teve três filhos e duas filhas, mas o menino Samuel crescia na presença de Yahweh.

22
Ora, Eli estava muito velho. Ele ouviu sobre tudo o que seus filhos estavam fazendo a todo

o Israel e sobre como eles estavam dormindo com as mulheres que serviam à entrada da

23
Tenda do Encontro. Ele lhes disse: “Por que vocês fazem coisas como essas sobre as quais

24
ouvi, coisas perversas, de todas essas pessoas? Não, meus filhos, porque o relato que ouço

25
das pessoas de Yahweh espalhando não é bom. Se alguém fizer algo errado contra outra

pessoa, Deus pode implorar por ele, mas, se alguém fizer algo errado contra Deus, quem

entrará com uma petição por ele?” Eles, porém, não escutaram a voz do pai porque Yahweh

26
queria matá-los. Mas o menino Samuel estava vivendo e crescendo e dando uma boa

27
impressão a ambos, a Deus e ao povo. Um homem de Deus foi até Eli e lhe disse: [...]

30
“Portanto (o oráculo de Yahweh, Deus de Israel), eu disse que a sua casa e a casa de seu pai

seguiriam [como sacerdotes] diante de mim para sempre, mas agora (oráculo de Yahweh)

longe esteja isso de mim, porque a quem me honra eu honrarei, mas quem me despreza será

34
desprezado [...] Isto lhe será por sinal, que virá sobre os seus dois filhos, Hofni e Fineias: no

35
mesmo dia, os dois morrerão. Mas eu levantarei para mim mesmo um sacerdote fidedigno.

Ele agirá de acordo com a minha mente e o meu espírito. Edificarei uma casa confiável para

36
ele. Ele seguirá diante de meu ungido para sempre. Todo aquele que restar da sua família
virá curvar-se a ele, por um pagamento em prata e um pedaço de pão, e dirá: “Indicar-me-ás

para uma das tarefas sacerdotais para que eu tenha comida para comer?”

A Quaresma teve início. De antemão, durante o jantar, os membros de

nosso grupo de estudo bíblico estavam se perguntando qual das

disciplinas quaresmais eles poderiam assumir. Argumentei que a

disciplina seria mais bem compreendida como uma questão de fazer

algo positivo em vez de apenas desistir de fazer algo. Então, na Quarta-

feira de Cinzas, participei de um simpósio no seminário sobre

“Psicologia do, com e para o pobre”, que desafiou a todos nós quanto ao

nosso compromisso com os pobres e, portanto, sugeriu ângulos sobre

como a disciplina poderia envolver um compromisso positivo. Até onde

eu sei, o fato de esse simpósio ter sido realizado numa Quarta-feira de

Cinzas foi mera coincidência, apesar de ser das boas. Pastores e um

professor, que também é pastor, precisaram se perguntar até que ponto

o nosso ministério é autoindulgente. Creio que a maioria dos pastores é

mais bem remunerada do que muitos membros de suas congregações,

vive em casas melhores e possui um plano de saúde mais abrangente.

Isso, em conjunto com o relato dos filhos de Eli, levou a uma

reflexão muito pouco confortável. A exemplo de reis e políticos, os

ministros sempre constituíram uma bênção mesclada em Israel, como

eles têm sido na igreja. Como no caso dos reis, uma das causas é a nossa

propensão à autoindulgência, potencializada por estarmos numa

posição que nos permite ceder a ela. No caso dos filhos de Eli, não há

nenhum indício de que eles levaram o povo a cultuar falsos deuses, mas

ambos estavam envolvidos naquilo que Paulo chamará de “fazer do

nosso ventre o nosso deus” (Filipenses 3:19). Assim, então, eles não

reconheciam Yahweh. Com certa ironia, a história chama os filhos de

Eli de “indignos”; esta foi a descrição aplicada a Ana pelo pai deles,

quando Eli pensou que ela estivesse embriagada no festival.


Uma das causas da tentação era o fato de os sacerdotes receberem

uma partilha dos sacrifícios como parte do suporte deles.

Diferentemente de outros povos, eles não podiam entregar-se ao

trabalho em uma fazenda a fim de obter sustento para si mesmos e suas

respectivas famílias, mas uma das maneiras pelas quais Deus e a

comunidade lhes forneciam provisão era a permissão de

compartilharem de alguns dos sacrifícios. Em Levítico, há regras que

prescrevem o que deve ser feito com os sacrifícios (o livro de Levítico,

propriamente dito, ainda não existia no tempo de Eli, mas deveria haver

alguma versão prévia de tais leis). Havia partes que eram destinadas

diretamente a Deus e, portanto, queimadas e transformadas em fumaça,

como este relato menciona, e havia partes que iam para os sacerdotes.

No caso dos sacrifícios de comunhão, o tipo trazido por Elcana e sua

família quando subiam a Siló, havia partes que eram compartilhadas

pelas pessoas ofertantes, de maneira que essas eram ocasiões de

confraternização e congraçamento entre as pessoas e Deus. Os

sacerdotes de Siló ignoravam todas essas convenções. Tudo o que

desejavam era assegurar uma boa refeição para si mesmos, e a função

dos seus “rapazes” (seus assistentes) era a de concretizar esse objetivo.

Dessa maneira, eles tratavam a oferta de Yahweh com desdém.

Mais adiante, aprendemos que isso não era tudo. Diz-se que há três

questões espirituais com as quais os homens, particularmente os

pastores, precisam lidar: dinheiro, sexo e poder. Os pastores são mais

propensos a se complicar nessas áreas do que as pessoas comuns,

colhendo consequências mais desastrosas para si mesmos e para outras

pessoas. Em uma sociedade tradicional, como a de Israel, não há a

questão do dinheiro, mas existem as coisas nas quais gostaríamos de

gastá-lo, com as quais podemos cair na autoindulgência, de modo que o

comportamento dos filhos de Eli em relação aos sacrifícios já ilustra que

eles têm problemas com o primeiro e o terceiro elementos dessa tríade

profana de dinheiro, sexo e poder. A alusão ao envolvimento deles com

as mulheres que serviam no santuário, então, confirma o envolvimento


deles com o segundo elemento e, novamente, com o terceiro, em razão

da diferença de poder entre os sacerdotes e aquelas mulheres. (Não

sabemos a forma de serviço delas, mas havia muitas tarefas práticas a

serem realizadas no santuário em conexão com as ofertas.)

Existem outros aspectos assustadores na história. Um deles é a

impressão ambígua de Eli. Ele é uma pessoa dividida. Já vimos que ele

mostrou saber lidar, como também não lidar, com uma mulher como

Ana no santuário. O mesmo ocorreu em relação aos seus filhos. É

possível que ele e a esposa os tenham educado da melhor forma possível,

quando eram garotos, mas Eli é incapaz de fazer algo com eles, agora

que são adultos. O argumento de Eli é profundo: se você agir errado

contra outra pessoa, Deus pode mediar para você, mas quem irá intervir

por você, caso peque contra Deus? Infelizmente, eles já foram longe

demais para escutar o pai.

Isso conecta-se a outro aspecto inquietante da história. Qual é a

relação entre o compromisso divino e a obrigação humana? Deus havia

dito que a linhagem de Eli sempre seria de sacerdotes. Não há essa

promessa específica no Antigo Testamento, mas a ligação de alguns

pontos soltos nas genealogias do Antigo Testamento sugere que a

linhagem de Eli retrocedia a Arão, e a Torá, de fato, afirma que Deus

designou os descendentes de Arão como a linha sacerdotal perpétua. As

instruções em Êxodo 28—29 sobre a ordenação dos primeiros

sacerdotes esclarecem o ponto; no entanto, dois dos filhos de Arão

morrem precocemente por agirem de modo errado (Levítico 10). A

promessa sobre o sacerdócio perpétuo assegura que Deus não mudará a

sua mente quanto a essa questão, mas isso não significa que a nossa

resposta humana em relação à promessa de Deus seja irrelevante. A

linhagem de Eli irá seguir da mesma maneira que a dos dois filhos mais

velhos de Arão. Além disso, tal como muitas passagens do Antigo e do

Novo Testamentos pressupõem, há circunstâncias nas quais Deus

desiste de pessoas e determina que não há alternativa para o

julgamento. A alguém que se arrepende, Deus jamais diz: “Eu não o


perdoarei”, mas, algumas vezes (sempre?), o arrependimento parece ser

um dom que Deus tem a oferecer às pessoas, e ele pode decidir não mais

oferecer esse dom e deixar as pessoas receberem as consequências de

seus atos. Eli será substituído por um sacerdote “fidedigno”, porém mais

fidedigno como profeta do que como sacerdote, e, no devido tempo, esse

sacerdote fiel será Zadoque, o sacerdote sênior nos dias de Davi. (A

história do sacerdócio de Israel é impossível de rastrear, e uma das

relevâncias dessa história pode bem ser o fato de ela refletir as

rivalidades quanto ao sacerdócio e explicar por que uma linhagem se

perde e outra avança.)

Este é o contexto ao qual Samuel é levado! Ana tinha

conhecimento? Quais as chances de ele ser educado e crescer de forma

adequada, como um “rapaz” atuando entre outros “rapazes” implicados

nos abusos perpetrados pelos filhos de Eli? Felizmente, Samuel está

crescendo “na presença de Yahweh”, bem como “na presença de Eli”.


1SAMUEL 3:1—4:1A
UMA INTIMAÇÃO, NÃO UM CHAMADO
1
Assim, o menino Samuel ministrava a Yahweh na presença de Eli, e a palavra de Yahweh era

2
rara naquela época; não havia visão se espalhando. Um dia, Eli estava deitado em seu lugar.

3
Seus olhos tinham começado a falhar; ele não conseguia enxergar. A lâmpada de Deus ainda

não havia se apagado. Samuel estava deitado no palácio de Yahweh, no qual o baú de Yahweh

4 5
estava. Yahweh chamou Samuel. Ele disse: “Estou aqui”, e correu até Eli e disse: “Estou

aqui, porque me chamaste.” [Eli] disse: “Eu não o chamei. Volte e deite-se.” Então, ele foi e

6
se deitou. Yahweh chamou novamente: “Samuel”, e Samuel levantou-se, foi até Eli e disse:

“Estou aqui, porque me chamaste.” Ele disse: “Eu não chamei você, filho; volte e deite-se.”

7
Ora, Samuel ainda não reconhecia Yahweh. A palavra de Yahweh ainda não tinha se

8
manifestado a ele. Yahweh, uma vez mais, chamou Samuel, uma terceira vez, e ele levantou-

se, foi até Eli e disse: “Estou aqui, porque me chamaste”, e Eli percebeu que Yahweh estava

9
chamando o menino. Então, Eli disse a Samuel: “Vá e deite-se, mas, se ele chamar você,

diga: ‘Fala, Yahweh, porque o teu servo está ouvindo.’” Assim, Samuel foi e se deitou em seu

lugar.

10
Yahweh veio e permaneceu ali, e chamou como das outras vezes: “Samuel, Samuel.” Samuel

11
disse: “Fala, porque o teu servo está ouvindo.” Yahweh disse a Samuel: “Realizarei algo em

12
Israel que fará tinir os ouvidos de todo aquele que ouvir isso. Naquele dia, confirmarei a

13
Eli tudo o que falei com respeito à casa dele, do começo ao fim, quando eu lhe disse que

julgaria a sua casa para sempre, pela transgressão da qual ele soube, de que seus filhos

14
estavam desdenhando de Deus, e ele não os fez parar. Portanto, juro com respeito à casa de

Eli: a transgressão da casa de Eli jamais encontrará expiação por sacrifício ou por oferta” [...]

15
Samuel deitou ali até de manhã e abriu as portas da casa de Yahweh. Samuel estava com

16
medo de contar a Eli a visão, mas Eli chamou Samuel e disse: “Samuel, meu filho.” Ele

17
disse: “Estou aqui.” Ele disse: “O que foi a coisa que ele lhe falou? Não esconda nada de

mim. Que Deus faça isso com você, e que ele faça mais, se você esconder de mim algo de tudo

18
o que ele lhe disse.” Então, Samuel lhe contou tudo e não escondeu nada dele. [Eli] disse:

“Ele é Yahweh. Ele fará o que for bom aos seus olhos.”

19
Samuel cresceu. Yahweh estava com ele e não permitiu que nenhuma de suas palavras

20
caísse por terra. Todo o Israel, de Dã a Berseba, reconheceu que Samuel era digno de

21
confiança como profeta pertencente a Yahweh. Yahweh, novamente, apareceu em Siló, por

meio de revelar-se a Samuel com a palavra de Yahweh,

CAPÍTULO 4

1a
e a palavra de Samuel veio a todo o Israel.
Uma de minhas amigas está passando pelo “processo de discernimento”,

pelo qual a Igreja Episcopal busca decidir se ela é chamada para

ordenação ao ministério. Esse processo envolve reuniões com um grupo

de pessoas da sua igreja local, com oficiais diocesanos e também com o

bispo. Inicialmente, o sacerdote em sua própria paróquia é o guardião

do processo. Caso você não tenha o apoio dele, não será capaz nem de

iniciá-lo. Na outra ponta do processo, o aspirante pode ser convidado a

comparecer a uma conferência de candidatura e, no fim, o bispo que

ordena você é que tem poder do sim ou do não. Na Grã-Bretanha,

temos um processo bem diferente desse, porém com o mesmo objetivo.

Em ambos os contextos, tenho amigos que passaram por esse processo e

se convenceram de que o sacerdote, bispo ou alguma outra pessoa era

como Eli. Deus estava chamando Samuel, mas Eli precisou de três

tentativas para reconhecer o que estava acontecendo.

Há maneiras pelas quais o padrão do “chamado” de Samuel, de fato,

reaparece quando pessoas são chamadas para um ministério

reconhecido na igreja, embora as diferenças sejam tão marcantes que

elas parecem mais significativas que as similaridades. Para começar, o

chamado é algo que se aplica a profetas em vez de a sacerdotes. Em

Israel, a pessoa não precisa de um chamado para se tornar um sacerdote.

Isso decorre da família à qual você pertence. Pode-se dizer que Samuel

é mais como um diácono do que um sacerdote pelo fato de ter um

ministério prático no santuário; ele podia exercer aquele ministério sem

pertencer à família certa, mas também não precisaria de uma vocação.

Voluntários podiam ser aceitos.

Então, algo estranho ocorreu ao longo dos anos no tocante ao modo

pelo qual falamos em termos de chamado e vocação em conexão com o

ministério. Falar com os alunos quase sempre me leva a refletir que

pensamos no ministério como algo que nos capacita a encontrar

realização, pois nos possibilita expressar os dons que recebemos de

Deus. O discernimento, portanto, começa quando buscamos perceber

quais são os nossos dons e como podemos expressá-los. Não há nenhum


traço desse pensamento no Antigo Testamento ou mesmo no Novo

Testamento. Samuel não é chamado porque este será o meio de ele

encontrar realização (nem Paulo). Considerando que as conotações da

palavra “chamado” mudaram, seria melhor utilizarmos a palavra

“intimação” em lugar de “chamado” para descrever o que ocorreu a

Samuel ou a Paulo. Samuel compreende a ideia quando, no meio da

noite, reconhece que o seu chefe o intimou a fazer algo e se apresenta ao

serviço; ele apenas não percebe quem é o chefe. (Paulo capta a ideia

quando Jesus o agarra pelo pescoço e anuncia a intenção de lhe revelar

o que ele irá fazer.) Penso não haver nada errado com o fato de as

pessoas usarem seus dons para servir a Deus (espero também estar

fazendo isso). Apenas que isso nada tem a ver com chamado.

Provavelmente, Samuel está, agora, um pouco mais velho, embora

ainda possa ser descrito como um “menino”. Da mesma forma que em

1Samuel 1:9, o santuário é citado como o palácio de Yahweh; é o lugar

no qual o grande Rei se digna de residir. Samuel dorme no santuário

como uma espécie de guarda, até que a luz que queima ali, durante toda

a noite, se apague ao amanhecer, embora a ideia de a luz ainda não ter se

apagado talvez também tenha um significado simbólico; em Israel e no

santuário, a luz é bem tênue. Da mesma forma, a visão falha de Eli não é

algo que diga respeito apenas ao aspecto físico, mas também ao seu

discernimento moral e religioso. Ele, evidentemente, dorme em algum

lugar próximo. A presença do baú da aliança enfatiza a importância

desse santuário como o lugar que representa a relação de aliança entre

Deus e Israel, embora essa primeira referência ao baú também chame a

atenção para a escuridão que está prestes a cair no próximo capítulo,

quando o baú deixar Siló, para nunca mais retornar.

A intimação de Samuel constitui, mais ou menos, o começo da

história dos profetas em Israel. Há uma pré-história; o Antigo

Testamento cita inúmeras pessoas como profetas ou que profetizam,

mas, antes de Samuel: “a palavra de Yahweh era rara naquela época; não

havia visão se espalhando.” As expressões são um pouco estranhas, mas


elas deixam claro que a profecia era algo ocasional. Regularmente, não

se ouvia dizer que alguém havia tido uma visão profética. Isso está para

mudar por causa de uma outra mudança que é iminente, ou seja, a

instituição de um governo central em Israel. A profecia será necessária

em associação com isso.

Especialmente, Deus ainda não falara nenhuma palavra profética a

Samuel e, assim, este, até então, não tinha “reconhecido” Yahweh.

Assumidamente, essa expressão causa um frio na espinha, considerando

o modo com que ela foi usada em 2.12 em relação aos filhos de Eli. No

entanto, Samuel crescia na presença de Deus (2:21), o que sugere que

ele crescia com um conhecimento de Deus e em compromisso com ele,

mas Deus ainda não lhe havia falado de maneira audível como, agora,

ocorre. Desse modo, uma divertida cena se desenrola. Talvez Eli não

deva ser tão responsabilizado quanto Samuel por falhar em perceber o

que está acontecendo, embora o relato possa sugerir que o experiente

profeta deveria ter sido mais perspicaz. Essa falha, uma vez mais, sugere

que os problemas de Eli residem em seu discernimento espiritual tanto

quanto em sua visão física. Nesse ínterim, Deus aguarda pacientemente

pela compreensão de Eli. Quando isso ocorre, pelo menos, Eli sabe

como uma pessoa deve responder, após perceber que Deus é quem está

intimando.

Da mesma forma que enfatiza a soberania divina em lugar da

realização humana, ser intimado ou convocado por Deus fornece o

devido incentivo para o cumprimento de uma tarefa desagradável. O

nosso instinto, ao lermos 1Samuel 3, é o de interromper a leitura após o

versículo 10: “Fala, porque o teu servo está ouvindo”, da mesma forma

que a nossa reação é parar de ler Isaías 6 depois de: “Eis-me aqui. Envia-

me!” Nos dois capítulos citados, é útil identificar o processo pelo qual o

chamado de Deus ocorre, mas preferimos não nos identificar com o

conteúdo dele. Samuel não é estúpido quando permanece acordado

durante toda a noite após Deus aparecer a ele. O pobre Eli tentou

colocar um freio em seus filhos, ao menos recentemente, mas decerto


não se esforçou ou não usou de nenhuma ação firme o suficiente para ser

levado a sério. Haveria coisas que poderiam desviar a ira divina, tais

como os filhos mudarem os seus caminhos ou Eli discipliná-los, mas o

Antigo Testamento sabe que, na ausência de uma mudança de

comportamento, os sacrifícios e ofertas nada podem alterar. Eli pode

submeter-se à declaração de Deus com coragem, e ele o faz, um pouco

como Acã, em Josué 7, mas é muito tarde para mudar a transgressão que

torna a ação de Deus imperativa.

Assim, Deus transforma o menino Samuel, de auxiliar no santuário,

em alguém que será utilizado como canal por Deus para falar a todo o

Israel. Não há nada da parte de Samuel que faz isso acontecer. O Senhor

apenas decide que este é o servo que ele pretende usar nessa função.
1SAMUEL 4:1B-22
O ESPLENDOR SE FOI
1b
Israel foi ao encontro dos filisteus em batalha e acamparam em Pedra de Ajuda, enquanto

2
os filisteus acamparam em Afeque. Os filisteus formaram linhas de batalha para enfrentar

Israel, e a batalha se espalhou, mas Israel foi derrotado diante dos filisteus. Eles abateram

3
cerca de quatro mil homens em suas linhas no campo. A companhia voltou ao

acampamento, e os anciãos israelitas disseram: “Por que Yahweh nos derrotou hoje, diante

dos filisteus? Vamos pegar o baú da aliança de Yahweh, de Siló, para nós mesmos, de modo

4
que ele venha em nosso meio e nos liberte das mãos de nossos inimigos.” Então, a

companhia foi e carregou de lá o baú da aliança de Yahweh dos Exércitos que Está Assentado

[Entronizado] entre os Querubins. Os dois filhos de Eli, Hofni e Fineias, estavam com o baú

5
ali. Quando o baú da aliança de Yahweh chegou ao acampamento, todo o Israel gritou bem

6
alto, e a terra estremeceu. Os filisteus ouviram o som dos gritos e disseram: “O que é esse

som de um grande grito no acampamento dos hebreus?” Quando eles souberam que o baú de

7
Yahweh tinha chegado ao acampamento, os filisteus ficaram com medo, porque disseram:

“Deus chegou ao acampamento.” Eles disseram: “Ai de nós! Quem nos resgatará, porque nada

8
igual a isso nos aconteceu antes? Ai de nós! Quem nos resgatará das mãos desses poderosos

deuses? Esses são os deuses que derrubaram os egípcios com todo tipo de golpes no deserto.

9
Sejam fortes, sejam homens, filisteus, ou vocês servirão os hebreus como eles os serviram.

10
Sejam homens! Lutem!” Então, os filisteus lutaram, e os israelitas foram derrotados e

fugiram, cada um deles, para as suas tendas. O massacre foi muito grande. Dos israelitas,

11
trinta mil soldados de infantaria caíram. O baú de Deus foi tomado, e os filhos de Eli,

Hofni e Fineias, morreram.

12
Um benjamita correu das linhas e chegou a Siló naquele dia. Suas roupas estavam

13
rasgadas, e havia terra em sua cabeça. Quando ele chegou — Eli estava sentado em uma

cadeira junto à estrada, observando, porque o seu espírito estava ansioso pelo baú de Deus.

14
Quando o homem chegou para contar as novidades na cidade, toda a cidade chorou. Eli

ouviu o som do choro e disse: “O que é este som de tumulto?” O homem se apressou para vir

18
e contar a Eli [...] Quando ele mencionou o baú de Deus, [Eli] caiu para trás de seu

assento, ao lado do portão. Seu pescoço quebrou, e ele morreu, porque o homem era velho e

19
pesado (ele tinha liderado Israel durante quarenta anos). Sua nora, esposa de Fineias,

estava grávida e prestes a dar à luz. Quando ouviu o relato de que o baú de Deus fora

tomado e que Hofni e Fineias, seu marido, haviam sido mortos, ela curvou-se e deu à luz,

20
porque as dores de parto lhe sobrevieram. Enquanto ela morria, as mulheres que cuidavam

dela disseram: “Não tenha medo, porque você teve um menino”, mas ela não respondeu. Ela

21
não prestou atenção. Mas ela chamou o menino de “Onde-está-o-esplendor”, dizendo: “O

esplendor foi para o exílio de Israel”, em conexão com a captura do baú de Deus, e com o seu

22
sogro e o seu marido. Ela disse: “O esplendor foi para o exílio de Israel, porque o baú de

Deus foi tomado.”


No sermão que proferiu ontem, o nosso reitor (de modo levemente

apologético) nos contou que havia assistido a uma série de TV sobre

um rapaz psicopata, que fora adotado por um agente da polícia. O

padrasto do garoto deu-lhe um “código”: não mate pessoas inocentes;

tenha plena certeza de possuir evidências da culpa da pessoa; prepare-se

cuidadosamente; não seja pego. Nosso reitor seguiu nos contando uma

história sobre a irmã dele, que é diretora de uma escola em Watts, Los

Angeles, em cuja área urbana os conflitos raciais, de 1965, ocorreram. A

diretora tinha entrevistado um aluno que vendia entorpecentes na

escola. Ele também possuía um “código”: não seja apanhado; jamais

revele a identidade de sua fonte; não tema uma pessoa como a sua

diretora mais do que teme os seus fornecedores.

Os israelitas perceberam que precisavam de um código. Não

permitam que outras pessoas controlem o seu destino; certifiquem-se de

que Deus está com vocês quando estiverem lutando; portanto, levem o

baú da aliança com vocês à batalha, porque ele representa a presença

de Deus. Infelizmente, os filisteus também tinham um código, e o

código deles funciona bem melhor. Mantenham o controle dos povos

em derredor; não desanimem quando os seus oponentes estão animados;

quando o Deus deles estiver com eles, lutem mais forte.

O aspecto irônico da história reside nas teologias com os quais

ambos os lados operam. É difícil decidir qual das teologias é mais

mesclada. Os israelitas estão plenamente convictos de que Deus deseja

que eles sejam livres do controle filisteu e que, provavelmente, Deus

espera que eles lutem pela independência. No entanto, essas narrativas

em 1Samuel são continuações das histórias em Juízes. Quando o texto

diz que Eli tinha “liderado” Israel por quarenta anos, ele usa um verbo

que descreve o exercício de autoridade pelos juízes, que eram os

“líderes” de Israel no decurso desse período. Essas histórias indicam que


a libertação de Israel do domínio dos demais povos ocorre porque Deus

está envolvido na ascensão de líderes, capacitados por ele com a energia

dinâmica para liderar. Em 1Samuel 4, não há essa conversa sobre Deus

levantar líderes. Agora, a presença de um profeta em Israel para mediar

as instruções de Deus ao povo enfatiza esse fato. Por presumirem que

podem declarar guerra sempre que a ideia lhes parecer boa, os israelitas

necessitarão de um profeta como representante do envolvimento e da

intervenção de Deus na vida deles.

De maneira ainda mais óbvia, a reação de Israel diante de seu

primeiro revés contrasta com a reação deles em Josué 7, por ocasião da

derrota de Ai. Eles começam fazendo a pergunta certa (“Por que Deus

permitiu que isso acontecesse?”), mas a questão é, na realidade,

retórica. Então, Yahweh dos Exércitos entronizado entre os querubins

estará no meio deles. Para esses israelitas, o baú se tornou o equivalente

à imagem de um deus. Uma imagem não é idêntica ao deus que ela

representa, mas uma reprodução por meio da qual o deus condescende

em ter uma aparência concreta entre o povo. O exército presume que,

igualmente, o baú garante a presença e o poder de Deus no meio deles.

Como Deus, então, não daria a vitória ao exército?

A teologia dos filisteus é mais irônica. Como os israelitas, eles acham

que a presença do baú no acampamento significa trazer a divindade

para lá. Além disso, a história os retrata como bem informados sobre a

pessoa e os atos do Deus de Israel, a exemplo do povo de Jericó e de

Gibeom, quando os israelitas atravessaram o Jordão e lograram as suas

primeiras vitórias. No entanto, a reação dos filisteus é endurecer ainda

mais a batalha. E essa determinação prevalece! Isso ocorre, claro,

porque Yahweh está mais preocupado com os equívocos dos israelitas

do que com os enganos dos filisteus. Embora os israelitas possam pensar

que Yahweh não ousaria deixá-los ser derrotados com o baú da aliança

presente no meio deles, na realidade Yahweh está preparado para correr

o risco de cair em descrédito, ou melhor, permitir que Israel seja


derrotado evita ser “crido” como um tipo de divindade distinto do que

Yahweh realmente é.

Quando o mensageiro benjamita se aproximou de Siló (ele teria

corrido quase trinta quilômetros), o seu semblante já era

suficientemente claro para revelar às pessoas que ele era portador de

notícias terríveis; a sua aparência já era de uma pessoa enlutada por

algum terrível evento. A fraqueza dos olhos de Eli significa que ele não

pode ver isso, mas, de qualquer modo, a estrada junto à qual ele está

assentado, aparentemente, não é aquela de fora da cidade, que leva as

pessoas até o portão de entrada, mas talvez seja o caminho que leva ao

santuário. A princípio, ele ouve o choro das pessoas; então, o

mensageiro o alcança e lhe conta sobre a derrota, sobre a morte dos seus

filhos e o destino do baú da aliança. Foram essas notícias que o fizeram

cair para trás e morrer.

As notícias também afetam a sua nora, levando-a a entrar em

trabalho de parto. Teria sido a perda do baú da aliança a causa de seus

problemas de saúde? Lembre-se, o seu marido a traía com as mulheres

que serviam no santuário, o que, provavelmente, era de seu

conhecimento. Na verdade, segundo o seu sogro, no capítulo 2, toda a

cidade sabia disso. Então, imagine as fofocas em torno de sua avançada

gravidez... Estaria ela procurando sair de uma vida que se tornara

insuportável? Talvez dar à luz um filho pouco significava para ela. No

entanto, a sua morte lhe deu a oportunidade de marcar a importância

do dia em que o bebê nasceu e talvez indicar que o terror do dia era, de

fato, o destino do baú da aliança, não a morte de seu marido. O

significado exato do nome que ela deu ao seu filho, Icabode, não é claro,

mas seus comentários tornam as suas implicações suficientemente

claras. O baú da aliança realmente representava a gloriosa presença de

Yahweh no santuário, no meio de Israel. As pessoas comuns não podiam

ver o baú da aliança ou os querubins, mas elas sabiam que eles estavam

lá, bem como sabiam que eles representavam a presença invisível do

glorioso Deus de Israel. A perda do baú da aliança sugere a partida do


Deus da aliança. É como se Deus tivesse ido para o exílio. Seria um

termo revelador para os leitores dessa história durante o exílio. Aquele

evento constituiu a ocasião do exílio de Israel de sua terra. Constituiu

também a ocasião na qual Deus abandonou o templo em Jerusalém,

quando Deus retirou-se para um exílio voluntário. Essa história é uma

espécie de antecipação daquela posterior.


1SAMUEL 5:1—7:1
NÃO SE BRINCA COM A ARCA DA ALIANÇA
1
Quando os filisteus tomaram o baú de Deus, eles o levaram de Pedra de Ajuda para Asdode.

2
Os filisteus tomaram o baú de Deus e o levaram à casa de Dagom e o colocaram junto a

3
Dagom. Os asdoditas se levantaram cedo no dia seguinte, e, ali, Dagom estava deitado, com

o rosto voltado para o chão, em frente do baú de Yahweh. Então, eles pegaram Dagom e o

4
colocaram de volta em seu lugar. Eles se levantaram cedo na manhã seguinte, e, ali, Dagom

estava deitado, com o rosto voltado para o chão, com a cabeça e ambas as mãos cortadas,

5
sobre a soleira. Somente [o corpo de] Dagom permaneceu nele. Eis por que os sacerdotes de

Dagom e todo o povo que vai à casa de Dagom não pisam na soleira de Dagom, em Asdode.

6
A mão de Yahweh foi pesada sobre os asdoditas. Ele os devastou e os atingiu com

6 1 2
hemorroidas [...] : O baú de Yahweh estava no território filisteu por sete meses. Os filisteus

convocaram os sacerdotes e adivinhos e disseram: “O que devemos fazer com o baú de

3
Yahweh? Digam-nos o que devemos enviar com o baú do Deus de Israel ao seu lugar.” Eles

disseram: “Se irão devolver o baú do Deus de Israel, não o devolvam sozinho. Enviem uma

oferta de restituição de volta com ele. Então, vocês encontrarão cura. Ele fará a si mesmo

4
reconhecido por vocês; sua mão certamente se afastará de vocês.” Eles disseram: “Que

oferta de restituição devemos enviar de volta com ele?” Eles disseram: “Cinco hemorroidas

de ouro e cinco ratos de ouro, o número de governantes filisteus, porque a mesma epidemia

5
veio sobre todos eles — aos seus governantes também. Vocês devem fazer modelos das

hemorroidas e dos ratos que têm devastado a sua nação e dar honra ao Deus de Israel. Talvez

ele alivie a sua mão de sobre vocês, seus deuses e sua nação.”

[Os versículos 6-18, relatam como eles instam os filisteus a não seguir o exemplo dos egípcios,

em sua resistência a Yahweh. Os filisteus enviam devidamente esses modelos com o baú em uma

carroça puxada por vacas, que foram diretamente para Bete-Semes.]

19
Mas [Yahweh] atingiu os homens de Bete-Semes porque eles olharam no baú de Yahweh.

Ele atingiu setenta homens (cinquenta mil homens) entre o povo. O povo lamentou porque

20
Yahweh tinha atingido as pessoas com tão pesado golpe. Os homens de Bete-Semes

disseram: “Quem pode ficar de pé diante de Yahweh, este Deus santo? A quem ele pode subir

21
de nós?” Então, eles mandaram enviados aos habitantes de Quiriate-Jearim para dizer: “Os

filisteus devolveram o baú de Yahweh. Desçam; levem-na para cima com vocês.”

CAPÍTULO 7

1
Os homens de Quiriate-Jearim foram, tomaram o baú de Yahweh e o levaram para a casa de

Abinadabe, na colina. Eles consagraram Eleazar, seu filho, para cuidar do baú de Yahweh.
Quando meus filhos eram pequenos, eu costumava ler as histórias da

Bíblia para eles e, às vezes, eles me perguntavam: “Isso aconteceu de

verdade?” Pelo que me lembro, eles não perguntavam isso quanto aos

grandes eventos como a travessia dos israelitas pelo mar de Juncos (ou

a ressurreição de Jesus), mas sobre histórias como essa, e acho que eles

tinham seus motivos. As histórias sobre o mar de Juncos ou a

ressurreição envolvem eventos muito mais maravilhosos — mesmo

miraculosos —, contudo elas são contadas de uma forma muito prática.

Pode-se acreditar nelas ou não, mas é difícil não chegar à conclusão de

que as pessoas que as contavam realmente criam que elas aconteceram.

As aventuras do baú da aliança são reportadas de um modo

diferente. A narrativa é mais como uma história em quadrinhos ou

como uma das parábolas de Jesus. São maiores que a vida em seu modo

de ser. Seguem uma fórmula; a mesma situação ocorre em Asdode, então

em Gate e depois em Ecrom (são, na realidade, cinco cidades filisteias

atingidas, daí o motivo da repetida referência a cinco governantes;

todavia, em geral, encontramos três pessoas ou grupos de pessoas em

uma parábola ou anedota). O relato possui um toque de humor, tal

como um desenho animado ou uma parábola; ele faz troça do povo de

Asdode, levantando bem cedo, a cada manhã, para ir ao templo de

Dagom orar e encontrá-lo caído, humilhado. Essa comicidade é juvenil

e escatológica: Deus envia julgamento sobre os filisteus causando-lhes

bolhas em uma região muito desconfortável de sua anatomia, e os

especialistas religiosos filisteus os encorajam a estabelecer a paz com

Deus mediante o envio de imagens de hemorroidas e ratos de ouro.

Como assim?

As parábolas de Jesus, então, possuem uma forma de incomodar os

ouvintes, depois de atrair a atenção deles e fazê-los rir, de modo que eles

terminam com um sorriso nervoso no canto da boca. Quando o baú da

aliança volta ao território israelita, em Bete-Semes (a cidade israelita

mais próxima aos filisteus), os israelitas não o tratam (e, portanto, não

tratam Deus) de modo mais reverente ou sábio do que os filisteus e são


submetidos a uma punição mais séria. (Os números constituem um

enigma, pois setenta é seguido por cinquenta mil, mas, talvez, a última

referência esteja lá para fazer uma comparação com a história que

leremos mais adiante, em 2Samuel 24, quando esse número de pessoas é

morto como um ato de disciplina sobre todo o povo.) Os filisteus

descobrem, na prática, que a posse do baú constitui um grande

problema e, então, de maneira apressada e inútil, mudam o baú de

cidade em cidade. Os israelitas fazem o mesmo.

Pode-se argumentar que os israelitas demonstraram menos

discernimento do que os próprios filisteus. Na realidade, até mesmo as

vacas que puxam a carroça mostram mais sensatez que os homens de

Bete-Semes. Os líderes espirituais dos filisteus, que querem se livrar do

baú, pelo menos, reconhecem ser uma grande estupidez mexer com

Yahweh porque (como os homens que lutaram na batalha do capítulo

4) eles sabem como Yahweh lidou com os egípcios. Uma vez mais, isso

faz parte do desenho animado ou da parábola. É possível que os filisteus

não conhecessem, na verdade, a história do êxodo. O ponto a ser

enfatizado aqui é que os israelitas falharam em considerar o que ocorre

então.

Os filisteus, no mínimo, reconhecem que precisam enviar uma oferta

que represente alguma restituição pela maneira desdenhosa com que

trataram Deus. Ao ofender alguém, você tenta compensar isso de algum

modo, a fim de demonstrar que o seu arrependimento não é da boca

para fora. A Torá estabelece práticas mediante as quais o ofensor pode

fazer isso em relação a Deus com uma oferta de restituição

(tradicionalmente traduzida em nosso idioma por “oferta pela culpa”).

Os filisteus usam o termo que aparece na Torá nessa conexão. Há sinais

de arrependimento ali. O povo de Bete-Semes reage com palavras

muito apropriadas: “Quem pode ficar de pé diante de Yahweh, este Deus

santo?” Eles usam a palavra “santo”, da maneira correta, como

apresentada no Antigo Testamento; ela sugere a assombrosa

transcendência de Deus, o que significa que devemos levar Deus muito


a sério. Eles descobriram, na prática, o que é declarado pelo Novo

Testamento: “Deus é fogo consumidor” (Hebreus 12:29). Contudo,

embora suas palavras sejam apropriadas, eles não sabem ir além com a

sua conscientização. Tudo o que desejam é se livrar do baú.

Desconhecemos o motivo de eles escolherem Quiriate-Jearim.

Trata-se de uma cidade situada nas montanhas (eis por que o povo de lá

devia descer até Bete-Semes e levar o baú para cima, à cidade deles), a

meio caminho de Jerusalém e perto da moderna rodovia, quando esta

começa a se aproximar de Jerusalém. O baú está, portanto, mais

próximo do coração de Israel do que de suas fronteiras. Será que o povo

de Bete-Semes pensou que os habitantes de Quiriate-Jearim eram

lentos de entendimento a ponto de estarem dispostos a abrigar esse

perigoso objeto em seu meio? Se isso ocorreu, a piada é sobre eles. O

povo desta cidade sabe como cuidar do baú com mais reverência,

embora leremos em 2Samuel 6 (que retoma a história do baú), que há

problemas adicionais decorrentes do cuidado solene com o baú.


1SAMUEL 7:2-14
ATÉ AQUI YAHWEH NOS AJUDOU
2
Desde o dia em que o baú foi colocado em Quiriate-Jearim, passou-se um longo tempo,

3
vinte anos. Então, todo o povo de Israel lamentava diante de Yahweh, e Samuel disse a toda

a casa de Israel: “Se vocês estão retornando a Yahweh com toda a sua alma, removam os

deuses estrangeiros e imagens de Astarote de seu meio e dirijam a sua alma a Yahweh. Sirvam

4
a ele somente. Ele resgatará vocês das mãos dos filisteus.” Assim, os israelitas removeram os

5
Mestres e as Astarotes e serviram apenas a Yahweh. Samuel disse: “Reúnam todo o Israel em

6
Mispá, e eu suplicarei a Yahweh em seu favor.” Eles se reuniram em Mispá, tiraram água e a

derramaram diante de Yahweh. Eles jejuaram naquele dia e disseram ali: “Nós agimos errado

contra Yahweh.”

7
Então, Samuel liderou os israelitas em Mispá, e os filisteus ouviram que os israelitas tinham

se reunido em Mispá. Os governantes dos filisteus subiram contra Israel, e os israelitas

8
ouviram e ficaram com medo dos filisteus. Os israelitas disseram a Samuel: “Não seja surdo

a nós por não clamar a Yahweh, o nosso Deus, para que ele nos liberte das mãos dos filisteus.”

9
Então, Samuel pegou um cordeiro ainda não desmamado e o sacrificou como oferta

queimada a Yahweh. Samuel clamou a Yahweh em favor de Israel, e Yahweh lhe respondeu.

10
Enquanto Samuel estava sacrificando a oferta queimada, os filisteus se aproximavam para

a batalha contra Israel, mas Yahweh trovejou com grande voz naquele dia contra os filisteus,

11
lançou-os em grande confusão, e eles foram derrotados diante de Israel. Os homens de

Israel saíram de Mispá e perseguiram os filisteus, derrubando-os até abaixo de Bete-Car.

12
Samuel pegou uma pedra e a colocou entre Mispá e Sem e a nomeou de Pedra de Ajuda;

13
ele disse: “Até aqui Yahweh nos ajudou.” Os filisteus submeteram-se e não mais entraram

no território israelita. A mão de Yahweh esteve contra os filisteus todos os dias de Samuel.

14
As cidades que os filisteus tinham tomado de Israel retornaram a Israel, desde Ecrom até

Gate; Israel resgatou todas [as cidades] do território das mãos dos filisteus, e houve paz

entre Israel e os amorreus.

O termo “ajuda” pode ter uma variedade de conotações. Certa ocasião,

uma das rodas da cadeira de rodas de minha esposa se soltou, quando

estávamos a caminho da igreja. Enquanto eu estava abaixado, tentando

recolocar a roda com Ann sentada na cadeira, um motorista parou e me

“ajudou” a recolocar a roda. O seu gesto de me dar uma mão foi de

grande auxílio e, talvez, tenha evitado que chegássemos atrasados à


igreja. Mas, se ele não tivesse parado para me ajudar, decerto, com mais

tempo, eu conseguiria recolocar a roda; pelo menos, consegui sozinho

das outras vezes. No entanto, duas pessoas lograriam fazer esse conserto

de maneira mais fácil e rápida. Por outro lado, nas ocasiões em que Ann

teve pneumonia e não conseguia respirar direito, fui obrigado a levá-la

ao Atendimento de Urgência. Em tais situações, a nossa necessidade

por ajuda era muito diferente; era uma questão de vida ou morte, e sem

a ajuda médica profissional eu estaria totalmente impotente.

O Antigo Testamento pode usar a palavra para “ajuda” nesses dois

contextos, mas, quando o texto fala sobre a ajuda de Deus, a segunda

conotação é a mais frequente. Então, “ajuda” não difere muito de

libertação. É algo que Deus faz quando você não consegue ajudar a

você mesmo. Quando Samuel dá o nome de “Pedra de Ajuda” ao lugar

no qual Deus livra Israel dos filisteus, eis o tipo de ajuda ao qual ele

está se referindo. Antes da calamitosa derrota, retratada no capítulo 4,

o exército israelita mantinha a sua base em Pedra de Ajuda; talvez essa

Pedra de Ajuda seja o mesmo lugar ou mesmo um lugar distinto com o

mesmo nome, mas, seja como for, esse fato chama a atenção para a

diferença entre os dois eventos. No capítulo 4, há certa ironia quanto ao

nome daquele lugar. Caso se trate do mesmo lugar, é possível que

sempre tenha tido esse nome, mas Samuel está agora chamando a

atenção para um novo significado que esse nome possui desde então.

Esse é, com frequência, o caso com os nomes do Antigo Testamento. De

qualquer forma, anteriormente aquele não era um lugar no qual Israel

experimentou a ajuda divina, seja quando eles não a buscaram, seja

quando pensaram que podiam manipulá-la.

Pedra de Ajuda, agora, está de acordo com o seu nome. Não é mera

coincidência que isso ocorra após Israel ter avançado em seu

relacionamento com Deus, embora o povo, aparentemente, tenha

necessitado de algum tempo. Obviamente, a devolução do baú da

aliança por parte dos filisteus não significa uma resolução das tensões

entre eles e os israelitas. Os filisteus ainda mantêm o controle sobre


considerável área do território na planície costeira, considerada parte

da “Terra Prometida”. Por isso, Israel “lamenta” diante de Deus; o povo

sofre com essa posição.

Agora, Samuel regularmente mostra-se capaz de agir como um líder

firme. Uma mera demonstração de pranto não leva a lugar nenhum com

ele. Esqueça as lágrimas; e quanto à sua posição em relação a Yahweh,

aos Mestres e Astarotes?

A palavra hebraica para Mestre é baal, um termo hebraico comum

para um mestre, senhor ou proprietário de terras, mas também usada

para descrever um deus cananeu. A sua utilização é, portanto, paralela

ao uso de Senhor para descrever Yahweh. Assim, a exemplo de Senhor,

com efeito, Mestre pode ser um nome próprio. O Antigo Testamento, em

geral, usa Mestre como referência a um deus cananeu e Senhor para o

verdadeiro Deus, Yahweh, a fim de sublinhar a diferença. Como outros

povos antigos, os cananeus cultuavam inúmeros deuses e, estritamente

falando, o Mestre era apenas um deles (embora fosse um dos mais

proeminentes), mas aqui, como em outras passagens do Antigo

Testamento, a narrativa usa o plural Mestres, como menção aos deuses

cananeus em geral. De modo similar, Astarote ou Astarte era uma deusa

específica, mas o nome veio a ser usado no plural como um termo geral

para uma deusa. Portanto, os Mestres e as Astarotes denotam

divindades cananeias, masculinas e femininas, como um todo.

(Provavelmente, Astarote não é a pronúncia real do nome, mas uma

versão adaptada que combina as consoantes do nome original e as

vogais de boshet, uma palavra hebraica para “vergonha”. Assim, isso

sugere que o culto a essas divindades é algo extremamente vergonhoso.

Iremos encontrar outros nomes, como Is-bosete e Mefibosete, que são

obviamente nomes adaptados.)

É possível que a abertura da história dê a entender que a derrota,

reportada no capítulo 4, tenha levado os israelitas a abandonar Yahweh,

com o intuito de servir a outros deuses e ver se a vida deles seria

melhor. Caso seja verdade, passados alguns anos, isso não aconteceu.
Eles, agora, estão “lamentando diante de Yahweh”, mas não a ponto de

abrir mão de recorrer aos outros deuses. Samuel os desafia a fazer isso.

Dessa forma, inicialmente, eles removem esses deuses estrangeiros e,

então, se reúnem com Samuel para ele clamar e suplicar a Yahweh em

favor deles. Primeiro, deve haver uma ação que indique a “dedicação”

ou “rededicação” a Yahweh; segundo, deve haver a expressão de tristeza

no contexto de adoração, em palavras e formas simbólicas. Todos esses

são aspectos de arrependimento. O ritual de derramamento de água não

é mencionado em nenhum outro lugar do Antigo Testamento, mas

poderia sugerir naturalmente uma forma de buscar purificação.

Corretamente, os filisteus percebem que o ajuntamento dos

israelitas dessa forma representa um problema, mas (como os próprios

israelitas no capítulo 4) eles não tiram as conclusões certas. Em vez de

motivá-los a se retirarem, isso os faz atacar. Os israelitas, por seu turno,

entram em pânico, não acreditando na promessa de Samuel quanto ao

livramento de Deus. Felizmente, isso não faz Deus desistir e ir embora,

e os israelitas novamente recorrem a Samuel, diferentemente do que

fizeram em relação a Eli, no capítulo 4. Uma implicação e consequência

disso é que Samuel cresce rapidamente. Ele começou como um zelador

do santuário e, então, Deus o tornou um profeta. Nesse capítulo, ele

passa a ser alguém “liderando” Israel ou exercendo autoridade, o termo

que descrevia os “juízes”, que foi também usado em relação a Eli. Da

mesma forma, Samuel atua aqui como um sacerdote. Embora a sua

adoção efetiva por Eli possa significar a sua inclusão na linhagem

sacerdotal, as demais características singulares de histórias similares a

essa sugerem que as regras na Torá ainda não estavam em vigência nos

dias de Samuel. Além disso, ele ora em favor do povo, o que ele podia

fazer tanto como profeta quanto como sacerdote. A sua oferta queimada

acompanha a sua oração, de modo que o comprometimento do povo

com Deus não é, novamente, apenas uma questão de palavras. O Antigo

Testamento, a exemplo do derramamento de água, também não faz

referência em outras passagens à oferta de um cordeiro ainda não


desmamado (outra indicação de que as regras, nos dias de Samuel, eram

diferentes daquelas estabelecidas na Torá). A resposta de Deus à sua

oração não vem em palavras, mas em ação, por meio de um trovão que

leva os filisteus à confusão, de modo que os israelitas não precisam lutar

contra eles, mas apenas afastá-los para longe. Não poderia haver um

contraste mais agudo com o relato do capítulo 4. Sim, Deus “ajuda” os

israelitas no segundo sentido.

No hino Ebenézer [Fonte és tu de toda bênção], declaramos: “Cá meu

‘Ebenézer’ ergo.” Ebenezer é a palavra hebraica para Pedra de Ajuda. O

hino expressa uma percepção de não pertencimento a este mundo e um

olhar futuro para o céu. No contexto dessa linha, o cântico expressa a

convicção de que Deus, até aqui, tem estado conosco em nossa vida,

para nos levar aonde estamos, e, certamente, não nos abandonará até

que, de fato, alcancemos a nossa morada celestial. Para os israelitas, a

batalha significou que Deus tinha sido uma ajuda extraordinária e

decisiva, “tanto quanto é para nós”, no sentido de possibilitar que eles

alcançassem o seu destino como povo. Os israelitas ainda não tinham

percorrido todo o caminho, mas estavam bem nele, e experimentar a

ação poderosa de Deus em ocasiões como aquela tinha a capacidade de

encorajá-los e fortalecê-los quanto à convicção de que Deus os levaria

àquele destino. Durante a narrativa que abrangerá a história de Saul até

os primeiros anos de Davi, Deus agirá assim.


1SAMUEL 7:15—8:20
INDIQUE-NOS UM REI
15 16
Samuel exerceu autoridade em Israel todos os dias de sua vida. A cada ano, ele ia e

viajava a Betel, Gilgal e Mispá, e exercia autoridade sobre Israel em todos esses lugares;

17
então, ele retornava a Ramá porque ali era a sua casa. Lá, ele exerceu autoridade em Israel

e construiu um altar para Yahweh.

CAPÍTULO 8

1
Quando Samuel ficou velho, ele fez de seus filhos as pessoas que exerciam autoridade em

2
Israel. O nome de seu filho mais velho era Joel, e o nome de seu segundo filho era Abias; eles

3
eram autoridades em Berseba. Mas seus filhos não andaram em seus caminhos, buscaram

4
lucro e aceitaram presentes, subvertendo o exercício de autoridade. Então, todos os anciãos

5
de Israel se reuniram e foram a Samuel, em Ramá, e lhe disseram: “Bem, você está idoso, e

seus filhos não têm andado em seus caminhos. Agora, indique-nos um rei para exercer

6
autoridade como todas as outras nações.” A situação ficou desagradável aos olhos de

Samuel quando eles disseram: “Dá-nos um rei para exercer autoridade sobre nós”, e Samuel

7
orou a Yahweh. Yahweh disse a Samuel: “Ouça a voz do povo em tudo o que dizem a você,

porque não é a você que eles rejeitaram, porque é a mim que eles rejeitaram como rei sobre

8
eles. De acordo com todos os atos que praticaram, desde o dia em que eu os tirei do Egito

até este dia, eles me abandonaram e serviram outros deuses; assim eles também estão fazendo

9
com você. Então, agora, ouça a voz deles. Mas testifique solenemente contra eles e diga-lhes

sobre a autoridade do rei que reinará sobre eles.”

10 11
Samuel falou todas as palavras de Yahweh ao povo que lhe estava pedindo um rei. Ele

disse: “Esta será a autoridade do rei que reinará sobre vocês. Ele tomará os seus filhos e os

12
tornará em cocheiros e cavaleiros para si. Eles correrão à frente de sua carruagem. Ele os

fará comandantes de milhares e de cinquenta. Eles ararão a terra dele, farão a sua colheita.

13
Eles farão o seu equipamento de batalha e o equipamento de seu carro de guerra. As suas

14
filhas, ele tomará como perfumistas, cozinheiras e padeiras. Os seus melhores campos,

15
vinhas e olivais, ele tomará e dará aos seus servos. Das suas sementes e das suas vinhas ele

16
tomará o dízimo e dará aos seus comandantes e servos. Os seus servos e as suas servas, os

17
seus melhores jovens e jumentos, ele tomará e fará a sua força de trabalho. Dos seus

18
rebanhos, ele tomará o dízimo, e vocês mesmos se tornarão seus servos. Vocês clamarão,

naquele dia, por causa do rei que escolheram para vocês mesmos, mas Yahweh não

responderá a vocês naquele dia.”

[Os versículos 19 e 20 descrevem como o povo ainda insistiu em ter um rei para reinar sobre eles

e lutar suas batalhas.]


Quase todos os dias, a televisão e os noticiários reportam o custo dos

impostos que as pessoas comuns pagam ao governo. Algumas vezes, o

custo reside em despesas inevitáveis. Aos representantes devem ser

pagos salários e custeios de despesas, bem como necessitam de

instalações para as reuniões, e, talvez, esses locais de encontro precisam

ser razoavelmente notáveis para que o Estado e o governo central não

pareçam inexpressivos. Uma tarefa fundamental do governo é manter a

independência do país e, para isso, ele precisa manter uma força armada.

O desejo de atrair pessoas competentes ao governo significa pagar

salários mais elevados do que os praticados no mercado de trabalho

privado. Além disso, despesas legítimas transformam-se em excessos e

luxos questionáveis que, por seu turno, levam a fraudes na prestação de

contas. O problema não é apenas de ordem financeira. Enquanto

escrevo, a mídia está repleta de notícias sobre o envolvimento de um

assessor do governo em um crime sexual, bem como sobre o governador

cruzar a linha na tentativa de protegê-lo. É difícil enfrentar a realidade

de que esses episódios não constituem casos isolados. Eles são

endêmicos e inerentes ao funcionamento da política.

Eis o ponto de Samuel em sua advertência sobre o modo pelo qual o

rei exercerá a sua liderança ou autoridade. O problema é decorrente da

autoridade concedida a uma pessoa, seja em uma monarquia, seja em

uma democracia. Infelizmente, tais problemas não são evitados pela

instituição de um governo central. Quando “não havia rei em Israel” e

“as pessoas faziam o que era certo aos seus próprios olhos”, Israel

experimentou o caos social e moral. A dolorosa abertura de 1Samuel 8

sublinha essa questão ao relatar que, como Eli, Samuel não tinha

logrado manter os próprios filhos em seu caminho.

O trajeto no qual Samuel viajava para exercer autoridade cobria

apenas uma pequena região, situada no centro do território. Não

sabemos o que a sua atividade envolvia. Talvez fosse principalmente

judicial e Samuel atuasse como um juiz de apelações, decidindo casos

difíceis; e/ou, possivelmente, ele ensinava pessoas em uma cidade,


especialmente os anciãos. A construção de um altar em sua cidade natal

sugere a sua permanência na tradição de Abraão, Moisés e Josué. A

atividade de seus filhos, em Berseba, os coloca longe do trajeto

costumeiro do pai, isto é, na cidade situada no extremo sul de Israel, de

modo que, talvez, essa fosse a função deles antes de assumirem mais

responsabilidades em razão da velhice do pai.

A transgressão dos filhos de Samuel antecipa um problema bem

conhecido no mundo moderno. Grupos ou indivíduos podem

influenciar decisões por meio de presentes ou benefícios: “Por que não

desfruta de duas semanas em meu condomínio no Havaí; ninguém mais

está usando.” É fácil justificar a aceitação de tais benesses. O político é

mais bem remunerado que a maioria dos trabalhadores, mas

possivelmente recebe menos do que receberia no setor privado. Samuel

conseguiu resistir a essa tentação, mas seus filhos não. Eles não

passaram pela experiência de acordar com o chamado de Deus, à noite,

em sua formação como profetas.

Outra estranha característica da vida política do mundo atual é

considerarmos que uma mudança de governo melhorará a situação do

país, trazendo mais liberdade, justiça ou oportunidades de trabalho.

Portanto, as nossas esperanças estão fadadas ao constante

desapontamento, mas, apesar disso, concluímos que outra mudança de

governante fará toda a diferença e, assim, seguimos indefinidamente. Na

prática, Samuel expressa que ser governado por reis em vez de líderes

como seus filhos não fará nenhuma diferença. Em grande parte, a sua

realista argumentação quanto ao que significará ter uma forma de

governo central, fixo e estável não implica que esse governo será

caracterizado por uma prática grosseiramente abusiva. Reis e

presidentes necessitam ter um corpo de funcionários, e estes devem ser

pagos. As pessoas, às vezes, parecem pensar que os governos possuem

fontes de recursos mágicas e misteriosas, o que não é verdade. “Não há

ninguém, além de você, para pagar a conta.”


Antes de chegar a esse ponto, Samuel é convidado a olhar para a

situação de maneira teológica, não apenas pragmática. A história não

nos conta a razão pela qual o pedido do povo desagrada a Samuel. É

possível que as palavras subsequentes de Deus sugiram que Samuel

sente-se rejeitado por eles. Embora não seja uma reação infundada de

sua parte, numa análise mais profunda, o povo está rejeitando a Deus

como rei. Certa feita, o povo de Gideão propôs que ele deveria

“governar” sobre eles (eles usam a palavra “governar” em lugar de

“reinar como rei”, de modo que a ideia deles, então, era menos radical

do que a ideia do povo no tempo de Samuel), mas Gideão declarou: “Eu

mesmo não governarei sobre vocês, e meu filho não governará sobre

vocês. Yahweh é aquele que governará sobre vocês.”

Quando os israelitas, agora, declaram que desejam ter um rei e,

assim, implicitamente, rejeitam o próprio Deus como rei, o esperado

seria Deus dizer a Samuel: “Então, não atenda ao pedido deles. Diga-

lhes que eu pretendo reinar sobre eles.” No entanto, um dos aspectos

mais assustadores da forma pela qual Deus governa o mundo é, às vezes,

nos dar exatamente o que pedimos. Expressando da forma que Paulo

escreveu em Romanos 1, Deus nos entrega aos desejos do nosso

coração, a uma mente degradada. Portanto, como um ato de juízo, Deus

diz: “Está bem, dê-lhes o que eles pedem.” O pedido dos israelitas não é

uma aberração estranha, pois está de acordo com a maneira com que

eles têm agido em relação a Deus desde a saída do Egito. Portanto, este

é o momento em que Deus diz: “Basta. É a gota d’água. Chega de sofrer.

Estou fora!”

No entanto, sempre que Deus fala assim, isso não significa que é a

sua última palavra. Depois de expressar isso é que Deus instrui Samuel

a alertar os israelitas quanto às consequências de ter um governo

central e de clamar como resultado. Porque nada termina antes de

acabar. Talvez o povo caia em si e retire o pedido. Só que não!

Ao reafirmar o seu desejo, os israelitas o expressam novamente. Eles

querem um rei que vá à frente deles e lute as suas batalhas. Em certo


sentido, isso apenas reafirma o que significa possuir um rei. Uma teoria

sobre a própria ideia de governo central é a de que a sua missão

indispensável e singular consiste em defender a existência e a liberdade

da nação, a sua integridade e as suas fronteiras em relação a quaisquer

nações que as coloquem em risco. A experiência dos israelitas quanto ao

reinado de Deus no tocante a essa missão é misturada. Em algumas

ocasiões, Deus concede ao povo vitórias extraordinárias; em outras,

Deus permite que eles experimentem fragorosas derrotas. Em uma

história como a de 1Samuel 4, claro, Deus tinha bons motivos para

permitir isso, mas como eles podem funcionar como povo quando estão

sujeitos aos caprichos de Deus em relação ao que acontece entre eles e

seus inimigos? Os israelitas desejam a liberdade para salvaguardar o

próprio destino. Está certo, responde Deus.


1SAMUEL 8:21—9:27
COMO SAUL PERDEU ALGUMAS JUMENTAS E ENCONTROU

MAIS DO QUE IMAGINAVA BARGANHAR


21
Quando Samuel ouviu todas as palavras do povo, ele as recontou aos ouvidos de Yahweh.

22
Yahweh disse a Samuel: “Ouça a voz deles. Faça um rei para eles.” Samuel disse aos

israelitas: “Cada um de vocês, vá para a sua cidade.”

CAPÍTULO 9

1
Havia um homem de Benjamim, cujo nome era Quis, filho de Abiel, filho de Zeror, filho de

2
Becorate, filho de Afia, um benjamita, um homem de conteúdo. Ele tinha um filho chamado

Saul, um homem refinado e de boa aparência. Não havia ninguém mais belo que ele entre os

3
israelitas; de seus ombros para cima, ele era o mais alto dentre todos do povo. As jumentas

pertencentes a Quis, pai de Saul, extraviaram-se, e Quis disse a Saul, seu filho: “Leve um dos

rapazes com você e saia para procurar as jumentas.”

[Nos versículos 4 e 5, eles passam algum tempo à procura das jumentas, e Saul está propenso a

desistir.]

6
Mas [o rapaz] lhe disse: “Ora, há um homem de Deus na cidade. O homem é honrado. Tudo

o que ele diz verdadeiramente acontece. Vamos lá, agora. Talvez ele nos diga sobre a jornada

que devemos seguir.”

[Nos versículos 7-10, Saul argumenta que não possui nada para dar ao homem, mas o rapaz

tem um quarto de siclo.]

11
Quando eles estão subindo em direção à cidade, encontram algumas garotas indo buscar

12
água e lhes disseram: “O vidente está aqui?” Elas lhes replicaram: “Ele está. Ali, adiante de

vocês. Apressem-se, pois ele veio hoje à cidade porque o povo tem um sacrifício hoje no lugar

15
alto.” [...] Ora, Yahweh tinha aberto os ouvidos de Samuel um dia antes de Saul chegar,

16
dizendo: “A esta hora, amanhã, eu enviarei a você um homem da terra de Benjamim. Você

deve ungi-lo governante sobre o meu povo, Israel, e ele libertará o meu povo das mãos dos

17
filisteus, porque tenho visto o meu povo, porque o seu clamor chegou a mim.” Quando

Samuel viu Saul, Yahweh lhe declarou: “Ali está o homem de quem lhe falei. Este homem

deve controlar o meu povo.”

[Nos versículos 18-21, Samuel revela a Saul que as jumentas estão a salvo, mas que ele tem

algo mais a lhe contar.]

22
Samuel pegou Saul e seu rapaz, levou-os até o salão e lhes deu um lugar de honra entre os

24b
convidados (eles somavam trinta pessoas). [...] Então, Saul comeu com Samuel naquele

25
dia, e, quando eles desceram do lugar alto para a cidade, ele falou com Saul no telhado.

26
Cedo, de manhã, ao romper do dia, Samuel chamou Saul no telhado: “Levante-se, e eu o

27
despedirei.” Saul levantou-se, e os dois, ele e Samuel, foram para fora. Enquanto eles
desciam aos limites da cidade, Samuel disse a Saul: “Diga ao rapaz para passar adiante de

nós” (e ele assim o fez), “mas você pare aqui, agora, e eu o deixarei ouvir a palavra de Deus”.

Certo amigo começa o seu ministério na igreja amanhã, quinze anos

depois de sentir, pela primeira vez, que talvez tivesse sido chamado ao

ministério. Claro que ele tem estado envolvido no ministério de

diferentes maneiras, no decurso desses quinze anos, mas, agora, ele foi

oficialmente designado a uma igreja (e irá receber um salário!). Na noite

passada, estávamos comparando nossas anotações sobre chamados ao

ministério e encontramos sobreposições, bem como distinções. No caso

de ambos, a história remonta ao meio de nossa juventude, tempo no

qual, pela primeira vez, olhamos para a nossa fé cristã com seriedade.

Ele refletira sobre o ministério, na época, porque, de alguma forma,

pensava ser este o único modo de viver seriamente a vida cristã. Com o

passar do tempo, ele veio a perceber que havia um sentido no qual esse

pensamento era, de fato, verdadeiro, mas que também havia um sentido

no qual era falso. Somente mais tarde é que um pastor lhe sugeriu que

seus dons talvez indicassem que o seu chamado ao ministério era mais

no sentido técnico. Quanto a mim, embora o meu interesse pela

teologia tenha sido despertado ainda na adolescência, de algum modo

eu sabia que um chamado ao ministério era uma questão diferente e que

eu não tinha esse chamado. Todavia, em meu subconsciente,

provavelmente eu buscava algo — não jumentas extraviadas, mas uma

ideia sobre o que fazer da minha vida. Um dia, fui surpreendido pela

chuva e busquei abrigo à entrada de uma casa e, do nada (ou da chuva),

repentinamente, me veio uma convicção: Deus me quer no ministério.

Saul estava à procura de jumentas, e esta era uma tarefa sobremodo

importante, porque as jumentas cumpriam o papel dos atuais

caminhões, numa sociedade tradicional (justo nesta semana, li um

artigo sobre o modo pelo qual as mulas transportam cargas para as

forças norte-americanas no Afeganistão, pois as montanhas


impossibilitam o uso de caminhões). A fazenda não poderia funcionar

sem os seus animais. O desenrolar da história em relação a Saul implica

que ele possui um futuro estrelado como gerente do negócio familiar,

como marido de uma linda esposa e um honrado membro da

comunidade local. Ele não necessita ir atrás de uma vocação, mas

apenas de jumentas. No entanto, percebemos no próprio chamado ou

intimação de Samuel que, quando Deus emite uma convocação, não é

para o bem da pessoa; é para o bem do propósito que Deus está

perseguindo. Além do mais, há algo assustador no pano de fundo da

vocação de Saul. Ele está prestes a ser intimado a realizar um trabalho

que Deus não quer fazer. Esse fato irá pairar ao longo de toda a história

de Saul.

Reconhecidamente, inserida no retrato de Saul como o filho bem-

apessoado de um pai ilustre, há uma pista de que ele não é muito rápido

de raciocínio, o que também sugere um motivo que se repetirá em sua

história. Ao não conseguir encontrar as jumentas perdidas, Saul deseja

desistir e voltar para casa; é o seu rapaz que indica haver um homem de

Deus vivendo em uma cidade próxima (que era, talvez, a própria cidade

natal de Samuel, Ramá). Quando Saul informa que não tem nada para

dar ao homem de Deus, novamente é o seu rapaz que mostra o seu

cartão de crédito. No Antigo Testamento, a expressão “homem de Deus”

possui diferentes implicações das existentes no linguajar cristão, que

sugere que um “homem de Deus” é caracterizado por uma

espiritualidade profunda. No Antigo Testamento, um homem de Deus é

alguém com poderes misteriosos e capacidades incomuns. No capítulo

em questão, ele é um “vidente”, alguém que pode ver coisas invisíveis às

demais pessoas, e um “profeta”, uma pessoa capaz de ouvir coisas

inaudíveis às demais. Ele não se preocupa apenas com grandes questões

e assuntos religiosos, mas com o cotidiano da vida das pessoas, como,

por exemplo, a perda de animais. O rapaz sabe que um profeta ou um

sacerdote pode ajudá-los naquela busca. Todavia, a exemplo de

qualquer outro ministro servindo em tempo integral, o homem de Deus,


profeta ou vidente precisa de suporte financeiro a fim de conseguir

manter o foco nesse ministério. Samuel não está envolvido em cuidar

dos negócios de sua família em Ramá. Desse modo, ao necessitar de seus

serviços, a pessoa lhes deve dar algo de valor.

De antemão, a coincidência e a iniciativa humana já entraram na

história, como é comum em inúmeras outras narrativas do Antigo

Testamento. Apenas ocorreu de Saul e o rapaz estarem próximos a uma

cidade na qual Samuel vive e pode ser encontrado com frequência; por

acaso, naquele dia, Samuel se encontra na cidade; no caminho, do nada,

eles encontram algumas garotas que sabem onde o “vidente” pode ser

encontrado; afortunadamente, há um evento no santuário prestes a

começar; quando eles entram na cidade, “trombam” com Samuel, e

justamente é a ele que Saul e o rapaz perguntam pelo vidente. O Antigo

Testamento não afirma que Deus orquestra os acontecimentos para

fazer tais coisas acontecerem, mas retrata Deus como sendo capaz de

fazer a coincidência e a iniciativa humana servirem ao propósito divino.

A forma pela qual a história retrata isso está evidenciada em sua

referência à iniciativa real adotada por Deus. O texto não afirma que

Deus é o responsável por todas essas coincidências; o que ele revela é

que Deus havia falado com Samuel no dia anterior, demonstrando como

essas felizes contingências servem ao propósito divino.

O “lugar alto” refere-se ao santuário na cidade, localizado em seu

ponto natural mais elevado e/ou feito mais alto por meio de uma

plataforma. O Antigo Testamento, mais tarde, reprovará esses lugares

altos, por eles serem associados ao culto a outros deuses, ou mesmo ao

culto a Yahweh, porém igualando-o aos deuses nativos do território.

Todavia, é claro que a adoração adequada a Yahweh podia ser oferecida

nesses lugares altos. No episódio em questão, parece que o evento no

santuário é relativo a um sacrifício de comunhão para um dos grupos de

parentesco na cidade (ao que tudo indica, as garotas não estão

envolvidas, o que implica que elas pertencem a um grupo familiar

distinto). Pode ser que um bebê tenha nascido e eles estejam se


reunindo para celebrar e dar graças a Deus por esse nascimento. Seja

como for, a família jamais descobre que há um evento paralelo

ocorrendo que não tem relação com o motivo daquela cerimônia; o

cenário é similar àquele do casamento em Caná, quando Jesus

transforma a água em vinho. Samuel convida dois estranhos à

celebração e os trata como convidados de honra. Pode-se imaginar as

pessoas daquela família, mais tarde, comentando: “O homem que se

tornou rei não lembra aquele rapaz que apareceu, do nada, em nossa

festa?” Na verdade, a refeição se torna algo como um banquete secreto

de coroação. Provavelmente, Saul e seu servo estão um pouco perplexos

ao serem arrastados ao evento e, depois, ao passarem a noite na casa de

Samuel. Eles foram tranquilizados com respeito às jumentas, mas

também foram informados de que Samuel tinha algo mais a discutir

com eles. O aposento de hóspedes estaria localizado no telhado plano.

As palavras, ditas por Deus a Samuel, indicam outro aspecto dos

sentimentos divinos com relação ao desejo do povo por um rei. Elas

refletem a ambiguidade implícita sobre ter reis. O povo clamou de

modo similar ao que fez no Egito e no período dos “juízes”, e o clamor

deles subiu até Deus, como ocorrera antes. Todavia, Deus não pode se

envolver em uma conversa sobre indicar um “rei” para que ele “reine”.

Em lugar disso, Deus fala sobre um “governante” que irá “controlar” o

povo. Trata-se da única passagem a descrever o rei como alguém

designado a “controlar” ou “restringir” o povo israelita, embora seja

possível constatar que eles, de fato, necessitem de controle ou limites.


1SAMUEL 10:1-16
SAUL TAMBÉM ESTÁ ENTRE OS PROFETAS?
1
Saul pegou um frasco de óleo e o derramou sobre a cabeça [de Saul], o abraçou e disse:

2
“Yahweh, realmente, ungiu você como governante sobre o seu próprio povo. Quando você

me deixar hoje, encontrará dois homens junto ao túmulo de Raquel, no território de

Benjamim, em Zelza. Eles lhe dirão: ‘As jumentas que você foi procurar apareceram. Agora, o

seu pai desistiu de falar sobre as jumentas e está ansioso por você, dizendo: “O que devo fazer

3
quanto ao meu filho?”’ Você passará adiante de lá e irá ao carvalho em Tabor. Três homens o

encontrarão lá, subindo a Deus em Betel, um deles carregando três cabritos, o outro

4
carregando três pães e o terceiro carregando um odre de vinho. Eles lhe perguntarão se

5
você está bem e lhe darão dois pães. Você deve aceitá-los da mão deles. Depois disso, você

irá à Colina de Deus, na qual está o posto avançado filisteu. Quando chegar à cidade, você

encontrará um grupo de profetas descendo do lugar alto, com banjos, tamborins, flautas e

6
instrumentos de corda à frente deles. Eles estarão profetizando. O espírito de Yahweh virá

7
sobre você, e você profetizará com eles; você se tornará outro homem. Quando esses sinais

surgirem para você, faça o que suas mãos encontrarem para fazer, porque Deus estará com

8
você. Deve descer adiante de mim para Gilgal. Ali, estarei descendo até você para oferecer

ofertas queimadas e sacrificar ofertas de comunhão. Você deve esperar sete dias até que eu vá

9
ao seu encontro e o faça conhecer o que deve fazer.” Enquanto ele se virava para deixar

Samuel, Deus mudou o espírito [de Saul]. Todos esses sinais aconteceram naquele dia [...]

11b
As pessoas disseram umas às outras: “O que é isso que aconteceu ao filho de Quis? Saul

12
também está entre os profetas?” Uma pessoa de lá respondeu: “E quem é o pai deles?”

13
Portanto, isso se tornou um ditado: “Saul também está entre os profetas?” Quando ele

acabou de profetizar, ele foi ao lugar alto.

14
O tio de Saul disse a ele e ao rapaz: “Aonde vocês foram?” Ele respondeu: “Procurar as

15
jumentas. Quando vimos que elas não estavam lá, fomos a Samuel.” O tio de Saul disse:

16
“Diga-me o que lhe disse.” Saul disse ao seu tio: “Ele simplesmente nos disse que as

jumentas tinham aparecido.” Quanto à questão do reinado, ele não lhe disse o que Samuel

falou.

Em grande parte da história da igreja, as visões, profecias e curas

milagrosas têm sido eventos incomuns nas principais igrejas, mas,

durante o tempo em que eu ensinava na Inglaterra, elas se tornaram

mais frequentes novamente, de forma que costumávamos ter orações

pela cura, na capela do seminário. Certa ocasião, eu estava orando por


um dos estudantes, que fazia parte de meu grupo de cuidado pastoral, e

a imagem de um garoto andando no shopping ao lado de seu pai,

repentinamente, surgiu em minha mente. Pensei comigo mesmo: “Se eu

fosse alguém capaz de ter visões ou de ver imagens, aquela seria uma das

manifestações. Todavia, como eu não sou esse tipo de pessoa,

obviamente essa imagem não tem esse significado.” Apesar disso,

incorporei a imagem à minha oração e, após a reunião, aquele estudante

veio falar comigo, muito entusiasmado, porque aquela imagem tinha

sido de grande auxílio para ele; aquilo havia lhe trazido alguma cura

emocional. Ali, percebi que me tornara alguém que passou pela

experiência de ter visões ou imagens. De certa maneira, tornei-me uma

pessoa diferente.

Para mim e para Saul, uma experiência desse naipe vem, não para

nos propiciar uma vivência espiritual, mas por causa de algo que Deus

quer fazer por outra pessoa. No dia anterior ao encontro com Saul, Deus

havia instruído Samuel a ungi-lo como governante sobre Israel. No

Antigo Testamento, a unção é um rito que envolve derramar azeite

sobre a cabeça de alguém ou sobre um objeto, quando a pessoa ou o

objeto é dedicado a Deus ou comissionado a uma nova função. Na

maioria das vezes, no Antigo Testamento, a unção é feita aos sacerdotes,

mas, aqui, ela é feita sobre a pessoa designada como rei, e o termo “o

ungido” passa a ser uma referência frequente ao rei. Ainda, pelo fato de

a unção poder ser aplicada a outras pessoas, o significado daquele rito

não seria imediatamente compreendido; eis por que Samuel deixa claro

que Saul é ungido como “governante”. A exemplo de outras

observâncias, como o batismo e o casamento, tanto ações simbólicas

quanto palavras desempenham um papel. A ação física é necessária

porque somos pessoas físicas, enquanto as palavras são indispensáveis

porque, sem elas, a ação seria opaca em significado.

Deus, graciosamente, concede a Saul não apenas o ato cerimonial,

mas também alguns outros “sinais”. Ele encontrará algumas pessoas que

irão lhe informar que as jumentas extraviadas foram encontradas, bem


como outras pessoas que lhe darão pão (Saul e o rapaz precisarão de

algum alimento para a jornada de volta ao lar). O cumprimento dessas

profecias seria impressionante por si só. O terceiro sinal é ainda mais

revelador. Ele ocorrerá perto do local no qual há um posto avançado

filisteu. (A propósito, essa nota revela um dos motivos do desejo do

povo de encontrar libertação dos filisteus; aqui, no coração da região

montanhosa, há um destacamento militar do inimigo.) Ali, Saul

encontrará um grupo de profetas retornando de um santuário local, um

pouco como Samuel no capítulo anterior. Talvez eles tenham ido até lá

para alguma celebração da comunidade, a exemplo daquela que Saul foi

obrigado a participar. Se for verdade, provavelmente eles tocaram

instrumentos e profetizaram na celebração e prosseguiram enquanto

voltavam para suas casas. A celebração deles não ficou restrita à ocasião

da adoração.

O retrato que temos de profetas é constituído pelos relatos sobre

indivíduos como Isaías e Jeremias, mas o Antigo Testamento faz

referência a diversos outros tipos de profetas. Se esses profetas eram da

categoria de pessoas capazes de transmitir a palavra de Deus ao povo,

como Samuel, não era o que estavam fazendo na ocasião. Profetizar,

nesse caso, é mais como falar em línguas (eu também achei que era

incapaz de falar em línguas, mas, no devido tempo, descobri que,

algumas vezes, consegui). É possível que a menção aos instrumentos

musicais seja algo similar a “cantar no Espírito”, como, às vezes, ocorre

em igrejas atuais, quando as pessoas cantam juntas de uma forma

improvisada e espontânea. Ou, talvez, a referência à música reflita a

maneira pela qual o uso dessa arte pode tornar as pessoas acessíveis à

influência sobrenatural.

As traduções modernas, às vezes, usam expressões como “falando em

êxtase” em vez de “profetizando”, o que deixa claro que eles não estão

profetizando no sentido clássico que conhecemos, embora a

desvantagem seja a de insinuar que eles estão fora de controle, o que

não é o caso, pelo menos, quando alguém fala em línguas. Isso, de fato,
envolve o espírito de Deus “vindo” sobre eles. Ocorre algo

extraordinário que demanda uma explicação sobrenatural. Não se trata

de simples expressão fonética humana. Pode haver algo contagiante a

esse respeito. Saul, na realidade, captura o espírito deles e é

transformado em outro homem, uma pessoa diferente do que era e que

nunca imaginou vir a ser. Deus muda o seu espírito — mais literalmente,

o seu coração, sua pessoa interior. Todos podem ver que Saul está se

comportando de uma forma que contradiz o que pensavam dele antes. A

pergunta “Saul também está entre os profetas?”, evidentemente,

tornou-se um ditado familiar, e essa história é um cenário no qual uma

questão é apropriada: isso se repetirá em algum outro cenário, em

1Samuel 19. Quanto à outra questão: “E quem é o pai deles?”, ela é mais

obscura. Talvez tenha ligação com o modo pelo qual um grupo de

profetas pode ser chamado, “os filhos dos profetas”, o que pode sugerir

que o líder deles pode ser visto como o “pai”. Por seu turno, esse

questionamento pode insinuar que Saul está sendo visto como um

profeta por excelência e que o ditado expresse ainda mais espanto, pois,

dentre todas as pessoas, aconteceu com Saul.

O objetivo da experiência é dar a Saul evidências de que Deus está

com ele, não apenas para que ele possa ser grato por ela. Ainda, a

experiência será útil porque há coisas que Saul se descobrirá fazendo ou

sendo desafiado a realizar que poderão levá-lo a pensar: “Eu não sou

capaz de fazer isso.” Na verdade, ele já havia dito a Samuel: “Sou apenas

um membro do menor dentre os doze clãs” (isso era a mais pura

verdade) “e sou membro do menor grupo de parentesco dentro de

Benjamim” (não nos é possível verificar se Saul falou isso por falsa

modéstia). A concessão dessa experiência é para evitar alegações desse

tipo. “Deus estará (está) com você” é uma promessa clássica, presente

no Antigo Testamento, que Deus dá às pessoas ao lhes revelar alguns

prospectos ou tarefas impossíveis. O que você é não faz diferença. O

fato de Deus estar com você (evidenciado pela experiência de Saul) é o

que importa.
Enquanto isso, Saul deve aguardar por Samuel em Gilgal, lá

embaixo no vale do Jordão, portanto no extremo leste, o mais longe

possível do centro de poder filisteu, localizado no Mediterrâneo, a

oeste. Lá, Samuel cumprirá o seu papel sacerdotal de orar pelo exército,

de fazer as ofertas que acompanham essas orações e mediar as

instruções de Deus sobre a batalha, antes de Saul cumprir o seu papel

real de liderar o exército em combate. Essa divisão de responsabilidades

é importante, mas a sua manutenção por parte de Saul e dos futuros reis

será complicada.
1SAMUEL 10:17—11:13
COMO NÃO FUGIR DA ESCOLHA
17 18
Samuel chamou o povo diante de Yahweh, em Mispá. Ele disse aos israelitas: “Yahweh, o

Deus de Israel, assim disse: ‘Eu tirei Israel do Egito e resgatei vocês das mãos dos egípcios e

19
de todos os reinos que os oprimiram, mas, hoje, vocês rejeitaram o seu Deus, que era um

libertador para vocês de todos os seus problemas e pressões. Vocês disseram: ‘Não. Deves

estabelecer um rei sobre nós.’ Então, agora, tomem a sua posição diante de Yahweh por seus

20
clãs e grupos.” Samuel apresentou todos os clãs israelitas, e o clã de Benjamim emergiu [na

21
tirada de sortes]. Ele apresentou o clã de Benjamim, por seus grupos de parentesco, e o

grupo de Matri emergiu. Então, Saul, filho de Quis, emergiu, e eles procuraram por ele, mas

22
não o encontraram. Eles perguntaram novamente a Yahweh: “Alguém mais veio aqui?”

23
Yahweh disse: “Ali, ele está se escondendo entre as coisas.” Eles correram e o tiraram dali, e

ele tomou a sua posição no meio do povo. Ele era mais alto do que todas as pessoas, de seu

24
ombro para cima. Samuel disse a todo o povo: “Vocês veem aquele que Yahweh escolheu,

que não há ninguém como ele entre todo o povo?” Todas as pessoas gritaram e disseram:

25
“Vida longa ao rei.” Samuel descreveu ao povo a autoridade da monarquia, escreveu-a em

um rolo e a depositou diante de Yahweh, e Samuel enviou todo o povo, cada um à sua casa.

26
Saul também foi para sua casa, em Gibeá, e a força de combate, cujo espírito Deus tinha

27
tocado, foi com ele. Quando alguns homens inúteis disseram: “Como este homem pode nos

libertar?”, o desprezaram e não lhe trouxeram um presente, ele ficou em silêncio.

CAPÍTULO 11

1
Naás, o amonita, subiu e acampou contra Jabes-Gileade. Todos os homens de Jabes

2
disseram a Naás: “Sele uma aliança conosco, e nós o serviremos.” Naás, o amonita, lhes

disse: “Nessa base eu farei uma aliança com vocês, na condição de arrancar o olho direito de

3
cada um de vocês; farei disso uma desgraça para todo o Israel.” Os anciãos de Jabes lhe

disseram: “Deixe-nos em paz por sete dias e enviaremos mensageiros a todo o território de

4
Israel. Se não houver ninguém para nos libertar, nós sairemos a você.” Os mensageiros

chegaram a Gibeá de Saul e reportaram essas coisas aos ouvidos do povo, e todo o povo

5
elevou a sua voz e chorou. Então, Saul estava chegando do campo aberto, atrás dos bois.

Saul disse: “O que há de errado com o povo, para que eles chorem?” Eles lhe contaram as

6
palavras dos homens de Jabes. O espírito de Deus irrompeu sobre Saul quando ele ouviu

7
essas palavras, e sua ira se acendeu. Ele pegou uma parelha de bois, os cortou e os enviou a

todo o território de Israel pela mão dos mensageiros, dizendo: “Se houver alguém de vocês

que não seguir Saul e Samuel, assim será feito aos seus bois.” O temor de Yahweh caiu sobre o

povo, e eles vieram como uma pessoa.

[Nos versículos 8-11, Saul derrota os amonitas e, assim, resgata a população de Jabes.]
12
O povo disse a Samuel: “Quem foi que disse: ‘Saul deve reinar sobre nós?’ Entregue-nos as

13
pessoas, e nós as mataremos.” Mas Saul disse: “Ninguém deve ser morto neste dia, porque,

hoje, Yahweh trouxe libertação em Israel.”

Algumas vezes, questionam-me por que sou tão envolvido com o Antigo

Testamento; para essa pergunta tenho inúmeras respostas. Posso citar

dois grandes professores do Antigo Testamento que tive, na

universidade e outro no seminário, ou referir-me ao fato de ter

aprendido grego antes de começar a estudar teologia e, assim, poder

focar mais o hebraico do que a maioria dos outros estudantes. Posso

discorrer sobre a forma pela qual o Antigo Testamento continua falando

do envolvimento de Deus na vida como ela é. Tudo isso é verdadeiro.

Similarmente, às vezes perguntam-me o que me levou a vir lecionar nos

Estados Unidos e, também nesse caso, tenho várias respostas. É

possível que eu fale sobre uma reunião com um antigo presidente do

Seminário Fuller, ou sobre o deão da escola de teologia que insistia em

me enviar e-mails, e essa foi a única forma de me livrar dele. Posso

responder que almejava sair da administração de seminário e voltar à

sala de aulas como um professor comum. Tudo isso também é verdade.

Por consequência, pode ser difícil para alguém reunir essas histórias e

ter um quadro real de como essas coisas ocorreram.

Trata-se de uma tarefa complexa reunir a história exata sobre como

Saul se tornou rei. Teria sido porque Samuel o ungiu? Foi porque o

povo lançou sortes até chegar nele? Foi porque ele executou aquela

heroica ação de resgatar os homens de Jabes-Gileade? Quando Deus

inspirou a composição de 1Samuel, as pessoas que ele utilizou como

compiladores, aparentemente, realizaram essa tarefa colocando

inúmeras histórias de ponta a ponta; nem Deus nem eles estavam muito

preocupados com a conexão das histórias em termos narrativos. Eles

acreditavam que todas as histórias relatam algo significativo quanto ao

processo pelo qual Saul se tornou rei e, portanto, não estavam


preocupados pela falta de um continuísta que assegurasse o encaixe

perfeito entre as histórias.

Já observei que o relato das jumentas e a unção deixam claro o

entrelaçamento da ação divina, da iniciativa humana e a coincidência.

A narrativa retrata Saul como possuindo características físicas

apropriadas a um rei (como Davi) e a reticência adequada quando

alguém é escolhido por Deus (como Moisés e Gideão), embora também

um pouco de lentidão de raciocínio. Esse relato, igualmente, descreve a

capacidade de Deus em torná-lo uma nova pessoa.

A narrativa sobre a reunião em Mispá reafirma que a própria ideia

de possuir um rei é algo para o qual Deus olha com desfavor; isso

prenuncia problemas para Saul no cumprimento de seu papel. Ele se

revelará como um candidato inapto a um trabalho que Deus não deseja

que seja feito. Todavia, uma vez mais, a história enfatiza o envolvimento

de Deus na escolha de Saul, indicada pela prática de lançar sortes.

Embora a ideia de ter um rei tenha sido demandada pelo povo, ele não

deve ser eleito democraticamente porque ele mesmo é um instrumento

do governo de Deus, não o meio pelo qual o povo pode cumprir os seus

próprios anseios. O fato de Samuel estabelecer como a monarquia deve

funcionar segue esse conceito. Por outro lado, Saul é reconhecido

democraticamente. A aprovação de Deus é ainda mais evidenciada

quando ele é apoiado por uma força de combate potencialmente

impressionante, formada por homens tocados pelo espírito de Deus, ao

passo que aqueles que questionam a sua indicação ao trono são citados

como homens inúteis. A narrativa, uma vez mais, observa como Saul

possui a hesitação adequada a alguém que Deus irá usar. Deus não

acredita em pessoas que se voluntariam a fazer algo tanto quanto

acredita em eleições democráticas. Saul não é uma pessoa ambiciosa.

(Claro que essa expressão reticente parece estranha à luz do que

aconteceu entre ele e Samuel, na primeira narrativa; mas esse é um

exemplo de que não devemos buscar um encaixe perfeito entre as


histórias.) Tampouco ele é uma pessoa que reage negativamente contra

as pessoas que não estão impressionadas com ele.

A transição à terceira história é, novamente, irregular e também

intrigante, caso tenhamos expectativas modernas quanto a uma

narrativa lógica. Se Saul foi designado rei, o que ele está fazendo

tocando o rebanho?! Como em outras passagens, o relato sobre Jabes-

Gileade tanto é paralelo aos anteriores quanto está em uma sequência

linear com eles. Trata-se de outra descrição de como ele demonstrou ser

a pessoa certa para o trono. A princípio, ela incidentalmente revela

como os israelitas estão sendo pressionados em mais de uma frente. No

lado ocidental, eles estão sob a pressão dos filisteus, cujo centro de

poder situa-se na planície costeira, mas que possui um destacamento

militar nas montanhas, indicando que também estão logrando avanços

naquela região. Pode-se concluir que, nessa batalha pelo controle de

Canaã, os filisteus estão em franca vantagem. Além disso, no lado

oriental, os cananeus estão exercendo a sua própria pressão. Gileade é a

área imediatamente a leste do Jordão. Ela foi estabelecida por dois clãs

israelitas e meio, que gostaram daquele território e pediram para se

assentarem ali, após lutarem com os demais clãs durante a ocupação da

maior parte da terra prometida. O problema a leste do Jordão era o

mesmo a oeste. Os povos vizinhos aos israelitas a leste estavam

interessados em expandir o próprio domínio pela ocupação do antigo

território dos amorreus, agora ocupado por Israel. Eles tinham o hábito

de buscar a confirmação do controle por meio de uma aliança que

ninguém desejava assinar.

Novamente, Deus demonstra o seu soberano envolvimento no

processo pelo qual Saul se torna rei. Como na primeira história, o

espírito de Deus irrompe sobre ele, fazendo-o agir de um modo que ele

naturalmente não agiria. Comum a essas narrativas é o retrato de Saul

como alguém que, por natureza, não toma iniciativas. Ele aprecia

sentar-se na última fileira e permanecer em silêncio. Então, Deus se

apodera dele em vez de usar um homem que se lança impulsivamente à


ação. Deus inspira uma ira monumental em seu íntimo; uma reação

adequada em relação ao que os amonitas propuseram fazer aos homens

de Jabes. A ira, nesse episódio, é fruto do Espírito, porque ela energiza

um homem pacato, transformando-o em alguém que executa a ação

necessária à situação. O desmembramento dos bois constitui um ato

simbólico, sugerindo: “Isso é o que Deus fará a vocês caso não se

apresentem e se unam para fazer o que precisa ser feito.” O

envolvimento de Deus aparece não apenas por inspirar a ira em Saul,

mas por inspirar temor ou pânico nas pessoas que recebem essas partes

intimidadoras e, então, na concretização da “libertação em Israel”, por

meio da ação de Saul.

A forma magnânima de Saul responder ao pedido do povo para

linchar os homens que questionaram a sua adequação como rei, uma vez

mais, o caracteriza como alguém cheio do espírito de Deus.


1SAMUEL 11:14—12:25
LONGE DE MIM PECAR DEIXANDO DE ORAR POR VOCÊS
14 15
Samuel disse ao povo: “Venham, vocês devem ir a Gilgal e renovar o reinado ali.” Assim,

todo o povo foi a Gilgal e, ali, fez Saul rei diante de Yahweh, em Gilgal. Eles ofereceram

sacrifícios de comunhão diante de Yahweh. Ali, Saul e todo o Israel tiveram uma grande

celebração.

CAPÍTULO 12

1
Samuel disse a todo o Israel: “Bem, eu ouvi a sua voz com respeito a tudo o que disseram a

2
mim e fiz um rei reinar sobre vocês. Então, agora, eis o seu rei andando diante de vocês. Eu

mesmo estou velho e grisalho, embora meus filhos estejam com vocês. Eu mesmo tenho

3
andado diante de vocês, desde a minha juventude até este dia. Aqui estou. Testifiquem

contra mim na presença de Yahweh e de seu ungido. De quem tomei boi? De quem tomei

jumenta? A quem defraudei? A quem oprimi? Das mãos de quem tomei resgate para fechar

4
meus olhos a alguém? Eu retornarei a vocês.” Eles disseram: “Você não nos defraudou, não

5
nos oprimiu, nem tomou nada de ninguém.” Ele lhes disse: “Yahweh é testemunha contra

vocês, e seu ungido é testemunha contra vocês, neste dia, de que não encontraram nada em

minha mão.” Eles disseram: “Ele é testemunha.”

[Nos versículos 6-15, Samuel recorda ao povo a história dos atos de Deus ao longo dos anos e,

então, a insistência deles em ter um rei, bem como os desafia a reverenciarem Yahweh.]

16
“Agora, então, tomem a sua posição e vejam esta grande coisa que Yahweh irá fazer diante

17
de seus olhos. Hoje é a colheita do trigo, não é? Eu chamarei Yahweh, e ele dará trovão e

chuva. Vocês reconhecerão e verão que cometeram um grande erro aos olhos de Yahweh ao

18
pedirem um rei para vocês mesmos.” Samuel chamou Yahweh, e Yahweh deu trovão e chuva

19
naquele dia. Todo o povo ficou com muito medo de Yahweh e Samuel. Todo o povo disse a

Samuel: “Implore em nome de teus servos a Yahweh, o teu Deus, para que não morramos,

porque acrescemos a todas as nossas ofensas o erro de pedirmos por um rei para nós

20
mesmos.” Samuel disse ao povo: “Não tenham medo. Vocês mesmos cometeram todo esse

erro. Não obstante, não se desviem de seguir Yahweh. Sirvam Yahweh com todo o seu

21
coração. Não se desviem, porque [isso seria] ir atrás de algo vazio, coisas que não têm uso e

22
não podem resgatar, porque são vazias. Porque Yahweh não abandonará o seu povo, por

causa de seu grande nome, pois Yahweh se comprometeu a fazer de vocês o seu povo.

23
Quanto a mim, longe de pecar contra Yahweh por falhar em orar por vocês, os ensinarei no

24
caminho que é bom e direito. No entanto, reverenciem e sirvam a Yahweh sinceramente de

25
todo o coração, porque podem ver as grandes coisas que ele tem feito por vocês. Mas, se

agirem erroneamente, ambos, vocês e o seu rei, serão eliminados.”


O dia da cerimônia fúnebre de minha esposa também foi o dia em que

recebi as provas de página para um projeto literário. Alguém que estava

lendo aquelas páginas, ao saber que Ann havia falecido, após viver

muitos anos com esclerose múltipla, pensou consigo mesmo se ela não

tinha se comprometido a permanecer comigo até a conclusão daquele

projeto e, agora, se sentia livre para proferir o seu Nunc Dimittis: “Agora,

Senhor, podes despedir em paz a tua serva.” Houve quatro ou cinco

ocasiões nas quais Ann contraiu pneumonia, e eu temi por sua vida, mas

ela se recusou a ir. Dessa vez, ela foi. Outro amigo comentou, em linhas

gerais, a maneira pela qual pessoas gravemente enfermas e incapazes de

falar (mesmo em face da morte), como era o caso de Ann, pareciam ter a

capacidade (em cumplicidade com Deus) de determinar que “agora não

é a hora”, como se ainda houvesse um trabalho a ser concluído, que

justificasse a sua permanência.

O Antigo Testamento conta a história de pessoas, como Moisés,

Josué e, agora, Samuel, a fim de mostrar que isso, de fato, acontece.

Reconhecidamente, o modo pelo qual a história de Samuel é contada,

nessa conexão, é um tanto paradoxal. Lá atrás, no capítulo 8, ele já era

velho; agora, ele está idoso e grisalho, mas seguirá, por mais algum

tempo, exercendo um papel vital na história; a sua morte será reportada

apenas no capítulo 25. Pode ser que isso sublinhe o ponto; ele está velho

e, em certo sentido, o seu trabalho está concluído. Todavia, há muito

mais a ser feito, e Samuel não poderá ir antes de concluí-lo (na verdade,

mesmo indo, ele não conseguirá descansar, o que veremos a partir do

capítulo 28).

Quando Paulo, similarmente, se aproxima do fim de sua vida, somos

convidados a vê-lo olhando para trás, alegando ter combatido o bom

combate e vivido uma vida caracterizada pela paciência, pelo amor e

pela perseverança (2Timóteo 4). Da mesma forma, Samuel olha para o

espelho retrovisor e afirma ter se comportado com total integridade.

Muitos sacerdotes, profetas e pastores não poderiam fazer tal alegação.

Samuel é um indivíduo duro e incisivo, que se tornará mais irritadiço


em vez de mais descontraído à medida que envelhece, mas ele pode

olhar nos olhos da comunidade e submeter-se ao escrutínio. Sua dureza

é expressa em mais uma condenação da rebeldia presente na insistência

dos israelitas por um rei. A reprovação recorrente segue em paralelo aos

seguidos relatos sobre a maneira pela qual Saul se tornou rei e, uma vez

mais, reflete o modo pelo qual o livro foi reunido. Os versículos de

abertura dessa seção, novamente, ilustram como o livro, de modo geral,

não está muito preocupado com a continuidade; o relato quanto ao

espírito de Deus inspirar Saul a libertar o povo de Jabes é encerrado

com as pessoas proclamando Saul rei, o que considerávamos já ter

ocorrido em uma ou duas ocasiões anteriores. Os compiladores do livro

não queriam deixar de fora nenhuma boa história. O lado positivo dos

solavancos do livro é que cada um dos relatos individuais sobre como

Saul se tornou rei podem ser lidos por conta própria (é possível

harmonizá-los ao enfatizar que esse é um momento em que o povo

reconfirmou o reinado de Saul).

Teria sido uma vergonha abandonar esse relato específico da

condenação de Samuel ao desejo dos israelitas por um rei, em razão do

rumo que isso dá à história. A história retrata o povo reconhecendo ter

agido erroneamente e pedindo a Samuel que ore em favor deles. A

importância desse pedido é o reconhecimento de que a oração pelo povo

é parte da função do profeta ou do sacerdote. Pode-se ver uma

equivalência com a maneira pela qual Paulo enfatiza o seu compromisso

de orar pelas congregações às quais ele tem alguma responsabilidade

(não tenho certeza da medida que os pastores reconhecem a oração por

seu povo como função integrante de seu ministério). Com frequência,

imaginamos os profetas como agentes que transmitem a Palavra de

Deus às pessoas, bem como vemos os sacerdotes como pessoas que

apresentam as ofertas do povo diante de Deus. Todavia, os profetas

estão envolvidos em uma mediação de mão dupla; ser um profeta

significa participar das reuniões do gabinete celestial, e isso envolve a

responsabilidade de representar o seu povo nessas reuniões, bem como a


responsabilidade de transmitir às pessoas as decisões tomadas. Da

mesma forma, os sacerdotes estão envolvidos em uma mediação de duas

vias. Como a história de Ana e de Eli mostra, eles trazem a Palavra de

Deus ao povo e igualmente apresentam as ofertas a Deus. Todavia, ao

apresentarem as ofertas do povo, os sacerdotes também levam as

orações e os louvores dos ofertantes, exteriormente expressos por meio

de suas ofertas.

Claro que a narrativa sobre Ana e Eli também revela que as pessoas

sabiam que não necessitavam da mediação do sacerdote para orar;

qualquer um pode orar diretamente a Deus. Contudo, as cartas de

Paulo, mais de uma vez, enfatizam a importância de orarmos uns pelos

outros, o que aumenta o número de participantes nas discussões do

gabinete celestial sobre o que deveria acontecer. Certas pessoas, em

algumas situações, sentem-se hesitantes em falar por si mesmas e

necessitam que outros orem em seu favor. Essa é uma dessas ocasiões. O

povo reconhece o erro cometido e, justificadamente, hesita em olhar

para Deus ou para os demais integrantes do gabinete. Os israelitas se

sentirão melhor caso Samuel ore por eles.

Esse pode ser particularmente o caso, considerando o conteúdo do

que eles querem que seja dito. Se os israelitas reconhecessem que

agiram erroneamente, então, agora, deveriam estar dizendo: “Bem,

então, o melhor a fazer é voltarmos atrás nessa ideia de ter um rei. Foi

ótimo Saul ter expulsado os amonitas, mas, agora, vamos fazer que ele

abdique de sua coroa.” Tal atitude parece ser necessária caso eles, de

fato, tenham se arrependido de sua rebeldia. A história, na verdade, está

falando sobre arrependimento, embora não use essa palavra. Em outras

passagens, há duas palavras hebraicas que são traduzidas por

“arrepender-se”, uma com o significado de “estar triste”, e a outra com o

sentido de “voltar” ou “dar meia-volta”. A primeira é uma palavra que

expressa sentimento; a outra expressa ação. De modo característico, os

profetas estão interessados no segundo exemplo de arrependimento,

mas, no episódio em questão, o povo está oferecendo apenas o primeiro


tipo (como, em geral, fazemos). Eles querem apenas evitar a punição

decorrente do pedido que, agora, reconhecem como errado. O mais

extraordinário é que Samuel resigna-se a essa forma de arrependimento.

Os profetas (e Deus), em geral, têm que se contentar com o que logram

obter. Na verdade, em certas situações, é muito tarde para voltar atrás.

Pode ser que sejamos incapazes de reverter o efeito das nossas ações, e

nós e Deus temos que nos resignar com nossas desculpas e pedidos por

misericórdia. Evidentemente, o povo supõe já ser demasiado tarde para

desfazer a introdução de uma monarquia. O que eles podem fazer é

comprometer-se a seguir o caminho de Deus em seu modo de viver, o

que inerentemente constitui uma constante tensão. Samuel sabe que, na

realidade, é possível assumir tal compromisso de modo sincero e real e

que Deus, então, estará com eles, ainda que os israelitas andem de uma

forma não desejada por Deus. Ele sabe quão extraordinariamente

misericordiosa é a graça de Deus, por vir ao nosso encontro onde

estamos, mesmo quando deveríamos estar em outro lugar, e quão

afortunados somos pelo fato de a própria reputação de Deus estar

vinculada a nós.
1SAMUEL 13:1-22
QUANDO O REI PRECISA ADOTAR UMA AÇÃO DECISIVA

[O primeiro versículo do capítulo parece designado a dar uma cronologia para o reinado de

Saul, mas os dados estão incompletos.]

2
Saul escolheu para si três mil homens de Israel; dois mil ficaram com ele em Micmás e nas

montanhas de Betel, e mil ficaram com Jônatas, em Gibeá de Benjamim. O resto da

3
companhia, ele enviou, cada um deles, às suas tendas. Então, Jônatas derrubou o posto

avançado dos filisteus em Geba, e os filisteus ouviram. Quando Saul soou a trombeta em

4
todo o país, dizendo: “Os hebreus devem ouvir!”, e todo o Israel ouviu que “Saul tinha

derrubado o destacamento filisteu e, agora, Israel se tornara intolerável aos filisteus”, o povo

5
se deixou convocar atrás de Saul, em Gilgal, enquanto os filisteus se reuniram para batalhar

contra Israel: trinta mil carruagens, seis mil cavaleiros e uma companhia como a areia da

6
praia em número. Eles subiram e acamparam em Micmás, a leste de Bete-Áven. Quando os

homens de Israel viram que a situação era difícil para eles e a companhia estava muito

pressionada, a companhia se escondeu em cavernas, matas, rochas, poços e cisternas;

7
enquanto os hebreus atravessavam o Jordão para a terra de Gade e Gileade, Saul ainda

estava em Gilgal, e toda a companhia sob o seu comando ficou aterrorizada.

8
Ele esperou sete dias pelo tempo indicado que Samuel [estabeleceu], mas Samuel não foi a

9
Gilgal, e a companhia começou a se dispersar dele. Então, Saul disse: “Tragam-me a oferta

10
queimada e as ofertas de comunhão”, e ele ofereceu a oferta queimada. Quando ele

terminou de oferecer a oferta queimada, Samuel chegou. Saul saiu para encontrá-lo, para

11
cumprimentá-lo. Samuel disse: “O que você fez?” Saul disse: “Eu vi que a companhia

estava se dispersando de mim e tu não tinhas chegado no tempo indicado em dias, e os

12
filisteus estavam se reunindo em Micmás. Eu disse: ‘Os filisteus, agora, descerão a mim em

Gilgal, e eu ainda não roguei o favor de Yahweh.’ Assim, forcei-me a oferecer a oferta

13
queimada.” Samuel disse a Saul: “Você foi estúpido. Não observou o mandamento de

Yahweh, o seu Deus, que ele lhe ordenou. Porque Yahweh teria agora estabelecido o seu reino

14
sobre Israel em perpetuidade, mas, agora, o seu reinado não permanecerá. Yahweh buscou

para si um homem pelo qual decidiu. Yahweh o declarou para ser governante sobre o seu

15
povo, porque você não observou o que Yahweh lhe ordenou.” E Samuel saiu e subiu de

Gilgal a Gibeá, em Benjamim.

Saul reuniu a companhia daqueles que estavam presentes com ele, cerca de seiscentos

16
homens. Saul, Jônatas, seu filho, e a companhia que estava presente com eles ficaram em

17
Geba, em Benjamim, e os filisteus ficaram acampados em Micmás. Um grupo de ataque

saiu do acampamento filisteu em três colunas. Uma coluna rumou para a estrada de Ofra, na

18
direção da região de Sual. Outra coluna foi na direção da estrada de Bete-Horom. A outra

coluna seguiu para a estrada fronteiriça, com vista para o vale das Hienas, em direção ao

deserto.
[Os versículos 19-22 relatam que, na época, os israelitas não possuíam ferramentas de ferro

(eles eram obrigados a descer ao território filisteu para obter implementos afiados), e apenas

Saul e Jônatas tinham armas de ferro.]

No decorrer de meu casamento, apenas em duas ocasiões ousei levar a

minha esposa para assistir a um filme de faroeste, apesar de saber que

ela odiava esse gênero. O primeiro foi Butch Cassidy e Sundance Kid.

Enquanto percorríamos o trajeto entre o estacionamento e o cinema,

numa noite muito escura (ainda me lembro que o chão estava úmido,

depois da chuva), ela me perguntou que tipo de filme era, e lhe contei

que se tratava de um faroeste. Ann parou no meio do caminho e disse:

“Eu não vou ver um filme de bangue-bangue.” “Acho que é um tipo

diferente de faroeste”, respondi na defensiva. No fim, esse acabou sendo

um de seus filmes prediletos. O segundo foi Os imperdoáveis, um filme

que desconstruiu ainda mais o gênero. Uma das formas de ambos os

filmes fazerem essa desconstrução era retratar as pessoas possuindo

menos controle sobre as decisões tomadas do que gostaríamos de

acreditar possuir. É bom pensar que estamos no controle de nossa vida e

que somos livres para tomar decisões, embora realisticamente as nossas

decisões sejam, com frequência, limitadas. Algumas vezes, elas são

limitadas por decisões passadas; em outras, as limitações são causadas

por outras pessoas.

Eis o que ocorreu com Saul. O movimento entre as histórias nesses

capítulos é, uma vez mais, intrigante, até percebermos que a narrativa

não está tentando dar um relato linear da vida de Saul. Aqui, passamos

quase diretamente da confirmação de Saul como rei para a rejeição de

seu reinado e, do mesmo modo que há mais de uma narrativa sobre a

sua indicação ao trono, há mais de um relato de sua rejeição como rei. O

que, de fato, importa sobre Saul é que ele era o predecessor de Davi, de

modo que o foco da história de Saul é relatar como ele perdeu a sua

posição de rei, e o primeiro anúncio de sua rejeição vem logo no início


do relato sobre o seu reinado. Essa forma de contar a história, portanto,

é comparável à maneira pela qual Lucas reporta a história de Jesus, ao

revelar a sua rejeição, em Nazaré, logo no início do relato sobre o seu

ministério, ao passo que os demais Evangelhos relatam esse episódio

muito mais tarde. Lucas reconhece que nos ajudará a ler a história

corretamente se, logo no início, ele nos contar para onde o relato está

indo. A disposição da história de Saul possui o mesmo efeito.

É possível que você se solidarize com a posição na qual Saul é

colocado. Jônatas executa uma ação que provoca os filisteus a uma

confrontação mais séria com Israel e, no fim, conduz a uma grande

vitória para Israel. O centro de poder dos filisteus situa-se na região

ocidental, na planície costeira. Em resposta ao ataque de Jônatas, eles

avançam o seu exército na direção do leste, rumo ao topo da cadeia

montanhosa na qual o centro de poder dos israelitas está, e onde a

história, inicialmente, posiciona as forças israelitas sob o comando de

Saul e Jônatas. Saul reúne o seu exército no outro lado da cordilheira,

em Gilgal, junto ao rio Jordão. Compreensivelmente, os israelitas, na

maioria, estão em estado de pânico sob a ameaça da enorme força

filisteia e, por conseguinte, começam a fugir em todas as direções. Saul,

como o comandante, precisa realizar alguma ação de impacto. O que ele

deve fazer? Esperar que os filisteus desçam das montanhas para atacá-

los e não buscar o auxílio de Deus? Tomar a iniciativa e ir à batalha sem

buscar o socorro divino? Buscar a ajuda de Deus como se ele fosse um

sacerdote que pudesse liderar na apresentação das ofertas e do

holocausto? Ou aguardar a chegada de Samuel e correr o risco de seu

exército se evadir até não restar ninguém mais e ser morto? O que você

ou eu faríamos caso estivéssemos na posição de Saul?

Não existe um curso de ação ideal. Saul toma a decisão que ele

considera necessária, dadas as circunstâncias; afinal, Samuel falou sobre

aguardar sete dias, prazo que Saul respeitou. Então, ele se vê em apuros

por isso. Por fim, ele deveria ter esperado mais tempo, mas qual é,

exatamente, a ordem divina a que ele desobedeceu? Samuel considera a


sua demora como um teste de obediência, embora isso pareça severo

demais; ele não disse o que Saul devia fazer após sete dias decorridos.

Talvez esse também seja um teste de confiança; inúmeras histórias em

Juízes e nos livros de Samuel registram Deus resgatando pessoas, apesar

das situações desesperadoras nas quais elas mesmas se meteram, bem

como dando a vitória a Israel quando seus contingentes se tornaram

muito reduzidos.

Assim, portanto, a monarquia de Saul é rejeitada. Essa rejeição não

significa que, nesse estágio, ele será destronado como rei. O ponto de

Samuel é que, embora numa monarquia a sucessão seja, usualmente,

hereditária, com o filho do rei morto ascendendo ao trono vago, no caso

de Saul, Deus não permitirá que isso ocorra. Aparentemente, é muito

tarde para dar um passo atrás na ideia de ter uma monarquia em Israel,

mas Saul não será sucedido por seu filho como de praxe. Outro israelita

irá sucedê-lo. (Há uma ironia aqui, pois Jônatas, o filho de Saul, parece

ser um candidato ideal, exceto, talvez, por ele ser muito bom e não estar

interessado no poder.)

Deus escolherá para si um homem de seu agrado. As traduções,

convencionalmente, trazem “um homem segundo o seu coração”, o que

é totalmente preciso, mas propenso a iludir os leitores. A expressão

original soa de forma que sugere alguém que possui um caráter do

agrado de Deus, até mesmo alguém cujo coração corresponde ao

coração de Deus. Na realidade, é necessário apenas significar alguém

que possui o coração de Deus, alguém da escolha de Deus. Saul, na

verdade, tinha sido essa pessoa; Deus havia decidido por ele, mas, agora,

a sua escolha recairá sobre outro homem. Esse israelita segundo o

coração de Deus é, claro, Davi e, de fato, ele será alguém que manterá

um compromisso inabalável com Yahweh em vez de com outros deuses,

ao contrário de muitos de seus sucessores; mas, dificilmente, ele será

“um homem segundo o coração de Deus” no sentido de alguém que, em

outros aspectos, vive o tipo de vida que Deus busca ou que tenha um

coração como o de Deus.


1SAMUEL 13:23—14:52
A NÉVOA DA GUERRA
23
Então, o posto avançado filisteu foi para o desfiladeiro de Micmás.

CAPÍTULO 14

1
Naquele dia, Jônatas, filho de Saul, tinha dito ao rapaz que era o seu escudeiro: “Venha,

6b
vamos atravessar para o posto avançado do outro lado [...] Talvez Yahweh aja em nosso

favor, porque Yahweh não tem dificuldades em libertar com muitos ou com poucos” [...]

8
Jônatas disse: “Bem, nós iremos atravessar na direção dos homens e deixaremos que eles nos

9
vejam. Se nos disserem: ‘Fiquem até chegarmos a vocês’, ficaremos onde estamos e não

10
subiremos a eles. Mas se eles disserem: ‘Subam até nós’, subiremos, porque Yahweh os

12
entregará em nossas mãos. Isso será um sinal para nós [...]” Então, os homens do posto

avançado afirmaram para Jônatas e seu escudeiro: “Venham até nós e lhes ensinaremos algo”,

e Jônatas disse ao seu escudeiro: “Venha atrás de mim, porque Yahweh os entregou nas mãos

13
de Israel.” Jônatas subiu com suas mãos e pés, tendo o seu escudeiro atrás dele, e eles

18
caíram diante de Jônatas [...] Saul disse a Aías: “Traga o baú de Deus aqui” (porque,

19
naquele tempo, o baú de Deus estava com os israelitas). Mas, enquanto Saul falava ao

sacerdote, o tumulto no acampamento filisteu prosseguia e aumentava, de modo que Saul

20
disse ao sacerdote: “Retire a sua mão”, e Saul e toda a companhia com eles convocaram-se

23
e foram à batalha [...] Assim, Yahweh libertou Israel naquele dia.

24
Quando a luta passou para além de Bete-Áven, os homens israelitas foram muito

pressionados naquele dia. Saul tinha colocado um juramento sobre a companhia: “Maldito o

homem que comer antes da noite, quando eu tiver obtido reparação de meus inimigos”, e

27
toda a companhia não provou comida [...] Mas Jônatas não tinha ouvido o seu pai fazer a

companhia jurar. Ele colocou a ponta de sua haste dentro de um favo de mel e a pôs de volta

na boca, e seus olhos brilharam [...]

31
Eles derrubaram os filisteus naquele dia, desde Micmás até Aijalom, e a companhia estava

32
muito fraca. Então, a companhia se lançou sobre os despojos e pegaram ovelhas, gado e

33
bezerros e os mataram no chão. A companhia comeu com o sangue. Saul foi informado:

“Veja, a companhia está fazendo o que é errado em relação a Yahweh ao comer com o sangue.”

34
Ele disse: “Vocês agiram infielmente. Rolem uma grande pedra para mim agora.” Saul

disse: “Espalhem-se entre a companhia e lhes digam: ‘Tragam-me todo o seu boi ou sua

ovelha e os matem aqui e, então, comam [...]’”

37
Saul perguntou a Deus: “Devo descer atrás dos filisteus? Tu os entregarás nas mãos de

Israel?” Mas ele não lhe respondeu.

[Nos versículos 38-43, uma investigação adicional revela que a razão do silêncio de Deus é a

desobediência de Jônatas ao juramento de Saul.]


44
Saul disse: “Que Deus faça isso e mais [a mim] se você, de fato, não morrer hoje, Jônatas.”

45
Mas a companhia disse a Saul: “Deve Jônatas morrer quando ele trouxe esta grande

libertação a Israel? Certamente, não. Tão certo quanto Yahweh vive, nenhum cabelo de sua

cabeça deve cair ao chão, porque ele trouxe este dia com Deus.” Assim, a companhia redimiu

Jônatas. Ele não morreu.

[Os versículos 46-52 sumarizam o relato sobre as vitórias de Saul e sua família.]

Recentemente, assisti a um filme britânico chamado Conversa truncada,

cujo título original é In the Loop, que é uma sátira política, ao estilo do

grupo Monty Python, sobre como a invasão ao Iraque ocorreu. Era um

relato cínico e ficcional de como as implicações da inteligência do

Oriente Médio foram distorcidas para justificar uma invasão que

algumas pessoas do governo estavam determinadas a fazer, de qualquer

jeito. Isso me lembrou da expressão “a névoa da guerra”, que resume

uma questão abordada por Carl von Clausewitz, soldado e pensador

militar prussiano. Ele observou os problemas causados pela grande

incerteza de todos os dados em uma guerra. Cada ação a ser tomada

deve ser planejada na penumbra. Além disso, essa penumbra, com

frequência, possui o efeito de uma névoa ou luz do luar. Esse ambiente

concede às coisas dimensões exageradas e aparências antinaturais. A

névoa da guerra tornou-se o título de outro filme, sobre Robert

McNamara, secretário de Defesa dos Estados Unidos durante a Guerra

do Vietnã, que analisava onze erros cometidos pelos Estados Unidos

nesse conflito.

Saul marcha em meio a uma névoa, enquanto luta com os filisteus.

A história começa com base no mesmo ponto do capítulo anterior, com

a vitória de Jônatas sobre o destacamento filisteu posicionado nas

montanhas, cuja presença sugere as aspirações filisteias quanto ao

controle sobre a região central de Israel, e relata o que acontece de um

ângulo distinto. A narrativa fornece outra perspectiva sobre o motivo

que tornava a queda da monarquia de Saul inevitável, suscitando a

dúvida sobre Deus ter escolhido o homem errado para ocupar o trono, a
não ser que ele desejasse que a monarquia não funcionasse.

Paradoxalmente, ela começa a mostrar como, em sua natureza, Jônatas

parece ser um candidato muito mais promissor à liderança. Saul era

capaz de tomar uma iniciativa espetacularmente corajosa, quando o

espírito de Deus irrompia nele, mas não era capaz de fazer isso

naturalmente. Em contraste, essa capacidade estava nos genes de

Jônatas.

O fato de Jônatas não passar pela experiência do espírito de Deus

irromper nele não significa que Deus não estivesse com ele ou que

Jônatas não estivesse acessível a Deus. Embora Jônatas não espere pela

instrução divina antes de partir para a ação, ele sabe que pode haver

uma diferença entre uma ideia meramente impulsiva e um estratagema

que Deus abençoará. Eis o motivo de sua expressão “talvez”. Não se

pode considerar como garantido que Deus irá abençoar os seus

esquemas impulsivos. Além disso, a névoa da guerra significa que, por si

só, você é incapaz de discernir a diferença entre um grande estratagema

e um esquema tresloucado. A realidade da névoa da guerra constitui

apenas uma parte do pano de fundo para a sua magnificente consciência

de que Deus não tem nenhuma dificuldade de conceder libertação a

Israel por meio de um grande exército ou pela ação de apenas dois

rapazes. O relato sobre Gideão em Juízes 6—7 mostra essa realidade.

Coisas estranhas acontecem durante uma guerra e, às vezes, é possível

ver Deus por trás delas.

Assim, Jônatas estabelece a possibilidade de Deus lhe dar um sinal,

como o próprio Gideão fez. A abordagem de Jônatas pode ser

semelhante a tirar a sorte no cara ou coroa e confiar em Deus pelo

resultado, embora a maneira pela qual ele define a questão pode não ser

aleatória. Uma unidade armada que está preparada para ir à batalha

parece mais propensa à coragem do que uma que simplesmente vigia em

seu posto, confiando na proteção de sua posição segura.

Com base no início do capítulo 13, sabemos que Saul e Jônatas estão

em duas bases separadas com grupos de homens distintos e, portanto,


Saul, certamente, não deve ser acusado por não ter ciência das ações de

Jônatas. Quando ele ouve sobre a comoção no outro lado do vale, seu

primeiro instinto foi o de consultar Deus sobre o que está ocorrendo e

quanto ao que ele deve fazer. Ele tem ao seu lado um sacerdote

chamado Aías, cujo avô, Fineias, tinha sido morto na catástrofe relatada

no capítulo 4, e Aías veste o éfode. Essa é uma demonstração da

consciência de Saul de que, quando se está lutando as batalhas de Deus,

é preciso ter os servos de Deus ao seu lado para poder verificar se você

está adotando a ação de acordo com a direção de Deus. Em certo

sentido, Saul sabe, bem como Jônatas, que não se pode lutar como se a

guerra fosse uma empreitada meramente secular. Desse modo, Saul

pede para Aías consultar Deus, mas, antes de aguardar pelo término

desse processo, ele conclui que não pode esperar mais. Novamente, Saul

precisa executar uma ação decisiva. O capítulo relata a mesma história

já ocorrida em Gilgal, no capítulo anterior. A implicação negativa sobre

Saul é clara, apesar de sua ação não ter impedido Deus de conceder a

vitória aos israelitas. Raramente podemos presumir Deus ou saber

quando a misericórdia triunfará sobre o que merecemos.

Infelizmente, Saul dá outro passo em falso que compromete a

extensão do triunfo. No Antigo Testamento, as promessas designadas a

motivar Deus a nos dar vitórias são propensas ao ricochete; aqui, a ação

de Saul nos faz lembrar da história de Jefté, em Juízes 11. Primeiro, o

juramento de Saul tenta suas tropas a se empanturrarem quando os

soldados, por fim, têm a chance de comer após ficarem extremamente

famintos. Como um ato de respeito a Deus, não se deve comer a carne

do animal com o sangue, mas drená-lo antes do consumo, porque o

sangue representa vida; quando o sangue se esvai, a vida se esvai. Os

homens estão famintos demais para se lembrarem de tais sutilezas. Saul,

pelo menos, adota uma ação apropriada em relação a isso, improvisando

um altar para que eles possam matar os animais de modo adequado

como uma forma de sacrifício antes de satisfazerem a própria fome.


Então, Jônatas, inadvertidamente, infringe a promessa de Saul ao

saciar a sua fome e encontrar algum refrigério (“seus olhos brilharam”).

Por causa desse evento, as relações entre Saul e seus homens são

revertidas. Enquanto Saul pensa como Jefté (promessa é promessa), até

mesmo os soldados comuns de Saul sabem que Deus não é legalista e

que é possível argumentar com Deus se as circunstâncias tornam

possível renegociar a promessa. Alguma espécie de oferta pode ser feita

a Deus a fim de substituir a vida que foi prometida. Assim, a vida de

Jônatas é preservada, mas a vitória deixa de ser tão extensa quanto

poderia ter sido.


1SAMUEL 15:1-33
QUANDO O REI NÃO É FIRME O SUFICIENTE
1
Samuel disse a Saul: “Eu fui aquele a quem Yahweh enviou para ungi-lo como rei sobre o seu

2
povo, sobre Israel. Então, agora, escute as palavras que Yahweh tem a dizer. Assim disse

Yahweh: ‘Estou atento ao que Amaleque fez a Israel quando [Amaleque] colocou [a si

3
mesmo] contra eles no caminho, quando estavam saindo do Egito. Agora, vá e derrote

Amaleque e devote tudo o que ele tem. Você não o poupará. Mate homens e mulheres, jovens

4
e bebês, bois e ovelhas, camelos e jumentos.’” Saul convocou a companhia e os reuniu em

5
Telaim, uma infantaria de duzentos mil, e dez mil homens de Judá. Saul foi à cidade de

6
Amaleque e ficou à espera no ribeiro. Saul disse aos queneus: “Vão embora, saiam do meio

dos amalequitas, para que eu não pegue vocês junto com eles, dado que vocês mostraram

compromisso com todos os israelitas quando eles subiram do Egito.” Então, os queneus

7
saíram do meio de Amaleque. Saul derrotou Amaleque, desde Havilá até chegar em Sur, que

8
fica próximo ao Egito. Ele capturou Agague, o rei de Amaleque, vivo, mas devotou toda a

9
companhia ao fio da espada. Saul e a companhia pouparam Agague e o melhor das ovelhas,

do gado e os filhotes e os cordeiros, tudo o que era bom. Eles não estavam dispostos a

devotá-los. Mas tudo o que era desprezado e enfraquecido eles devotaram.

10 11
A palavra de Yahweh veio a Samuel: “Arrependo-me de ter feito Saul reinar como rei,

porque ele deixou de me seguir e não cumpriu as minhas palavras.” Samuel ficou

12
envergonhado e clamou a Yahweh durante toda a noite. Na manhã seguinte, Samuel

levantou cedo para encontrar Saul. Samuel foi informado: “Saul foi ao Carmelo. Ali, ele

edificou um monumento para si mesmo. Ele saiu, seguiu adiante e desceu a Gilgal.”

13
Quando Samuel chegou a Saul, Saul lhe disse: “Abençoado seja você por Yahweh! Eu

14
cumpri a ordem de Yahweh.” Então, Samuel disse: “Bem, o que é este som de ovelha em

15
meus ouvidos, e o som de gado que eu ouço?” Saul disse: “Eles foram trazidos dos

amalequitas, porque a companhia poupou o melhor das ovelhas e do gado para sacrificar a

16
Yahweh, o teu Deus. O resto, nós devotamos.” Samuel disse a Saul: “Pare. Eu lhe contarei o

17
que Yahweh me disse na noite passada.” [Saul] lhe disse: “Fala.” Samuel disse: “Embora

fosse pequeno aos seus olhos, você realmente é o cabeça dos clãs israelitas. Yahweh o ungiu

18
como rei sobre Israel e Yahweh o enviou em uma jornada e lhe disse: ‘Vá e devote os

malfeitores, os amalequitas. Batalhe contra eles até que os tenha eliminado totalmente.’

19
Por que você não ouviu a voz de Yahweh, mas lançou-se sobre os despojos e fez o que era

22
errado aos olhos de Yahweh? [...] São as ofertas queimadas e sacrifícios tão agradáveis a

Yahweh quanto ouvir a voz de Yahweh? Veja, a obediência é melhor que o sacrifício, prestar

23
atenção [é melhor] do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião [é tão ruim quanto] a

iniquidade da adivinhação; arrogância [é tão ruim quanto] a transgressão das efígies.”

[Os versículos 24-33 recontam como Samuel prossegue advertindo Saul, levando-o a admitir o

seu erro, e que, por fim, Samuel mata Agague.]


Segundo o noticiário, as bases norte-americanas na baía de

Guantánamo, em Cuba, na primeira década do século XXI, estavam

envolvidas na tortura de pessoas suspeitas de atos terroristas. As

práticas envolviam manter as vítimas em posições inadequadas por

longos períodos, espancamentos, sujeição à degradação e assédio sexual,

queimaduras com pontas de cigarro ou cortes com arame farpado ou

vidro, bem como a imposição de sons elevados e temperaturas altas por

muitas horas. Uma técnica característica, usada em Guantánamo, era a

do afogamento, na qual a pessoa era deitada de costas com a sua cabeça

para trás, e água era derramada sobre o rosto dela de forma consistente

e regular, para simular a sensação de afogamento, podendo levar a

danos cerebrais ou ao óbito. Existe certa discussão sobre isso contar

como tortura, que também é o caso com a privação de sono, impedindo

que as pessoas consigam dormir por dias a fio. Esse procedimento foi

descrito por alguém que o experimentou como cansar o espírito até a

morte.

Os amalequitas seriam bons em tortura. Segundo Gênesis,

Amaleque era descendente de Abraão e Sara, de Isaque e Rebeca, de

maneira que os amalequitas eram parentes distantes dos israelitas, mas

Êxodo 17 relata como eles atacaram o povo de Israel durante a sua

jornada do Egito rumo ao Sinai. Deuteronômio 25 acrescenta que os

israelitas se encontravam em condições precárias, completamente

exaustos, e que os amalequitas atacaram a comitiva israelita vindo por

trás, atingindo primeiramente as pessoas que tinham mais dificuldade

de acompanhar o ritmo dos demais. Os amalequitas, portanto,

tornaram-se um símbolo para pessoas desprovidas de instinto humano

ou de reverência a Deus e constituem o único povo que os israelitas

esperam eliminar, fora do contexto da conquista de Canaã. Talvez o

significado simbólico deles esteja ligado ao modo pelo qual eles insistem
em reaparecer no Antigo Testamento, após serem eliminados, como os

monstros em filmes de ficção científica. O último descendente de

Agague, no Antigo Testamento, é o persa Hamã, que almeja usar o

poder do grande império da época para aniquilar o povo judeu. Os

amalequitas representam a oposição ao propósito divino de trazer

redenção ao mundo e se destacam por sua inescrupulosa violência

contra pessoas indefesas. Ainda, a história desse povo demonstra o

implacável compromisso de Deus em punir o tipo de perversidade que

os amalequitas incorporam. Metaforicamente, Adolf Hitler tem sido

descrito como um descendente de Agague, e o presidente de Israel já se

referiu a 1Samuel 15, ao negar apoio aos pedidos de clemência em favor

do criminoso nazista Adolf Eichmann.

O problema com Saul é não considerar com a devida seriedade o seu

compromisso com Deus. Ele devia “devotar” os amalequitas e tudo o

que pertencesse a eles. Em outras palavras, ele tinha que entregá-los

totalmente a Deus pela destruição completa deles. Essa prática significa

a ausência do motivo de fazer guerra apenas pelo possível ganho; ele é

zero. Saul falha em devotar tudo e ainda racionaliza a sua ação, mas

Samuel a vê como mera desculpa. Expressando de outra forma, Saul não

assumiu com a responsabilidade necessária o fato de ser o “ungido” de

Yahweh. Ele tinha sido escolhido e designado por Deus para cumprir a

vontade divina, para agir como representante de Deus. No mundo, há

coisas que acendem tanto a ira de Deus que ele considera essencial agir

contra elas; assim são as ações dos amalequitas. Elas são um símbolo da

resistência humana contra Deus, contra os propósitos divinos e da

desumanidade contra outros seres humanos. Como ungido de Deus,

Saul é o instrumento da ação divina contra eles.

Agimos bem em nos preocuparmos com a ideia de que Deus teria

ordenado a Saul matar todo o povo. Reconhecidamente, o fato de, com

exceção da história em Josué, essa ser a única ocasião em que Deus

requer tal ação significa que não podemos generalizá-la. Todavia, em

outro sentido, é importante fazer generalizações com base nela. O relato


afirma a implacável oposição de Deus aos maus-tratos a pessoas fracas e

indefesas por parte dos poderosos, bem como a intenção de Deus em

derrubar pessoas que agem dessa maneira. A história fornece um

exemplo após outro sobre a queda de impérios considerados imbatíveis,

e as Escrituras nos convidam a ver a atividade divina nos bastidores de

suas derrocadas.

Portanto, estamos certos em ficar assustados com essa narrativa. Ela

nos adverte quanto ao que Deus pode decidir fazer conosco, na medida

em que agirmos como amalequitas. A questão a ser refletida por nós é se

a nossa vida, como nação, é caracterizada por maus-tratos a pessoas

impotentes em vez do compromisso com o bem-estar delas. É difícil aos

norte-americanos aceitar a responsabilidade pelo que, como nação, eles

fazem na baía de Guantánamo. Contudo, eles elegem os governantes

que autorizam o uso desse tipo de força, de cuja proteção desfrutamos.

Não podemos nos evadir da responsabilidade pelo que acontece, e a

história reconhece esse dilema. Saul sabe que Deus deseja punir

somente o povo verdadeiramente responsável por aquela atrocidade,

perpetrada durante o êxodo. Os queneus constituíam outro grupo,

dentre a família abrâmica mais abrangente, que viviam na região entre o

Egito e Canaã, mas que agora estavam entre os amalequitas. Eles

tinham demonstrado um compromisso com Israel que contrastara com

a crueldade dos amalequitas. Assim, Saul lhes dá a oportunidade de

escaparem. Se desejamos escapar do juízo divino sobre a nação na qual

vivemos, deveríamos ser sábios o suficiente para descobrir uma maneira

de nos dissociarmos do estilo de vida similar ao dos amalequitas.

A relutância de Saul em fazer o que Deus diz leva ao

“arrependimento” de Deus por tê-lo feito rei, e, à luz do que tem

emergido sobre o caráter de Saul, Deus tem uma mudança de planos.

Com frequência, o Antigo Testamento menciona Deus mudando de

planos ou de ideia. Isso, portanto, reflete a natureza real do

relacionamento de Deus conosco. Ele não simplesmente decide as

coisas à frente do tempo, mas as implementa, independentemente do


que acontece. A forma de Deus se relacionar conosco interage com as

nossas decisões e a nossa vida. A indisposição de Saul em obedecer ao

que Deus disse sobre Amaleque é tão grave quanto ele estar envolvido

em adivinhações por meio de efígies.

Em contraste, ao fim dessa história, Samuel adverte Saul de que

Deus não mudará de ideia ou de planos quanto à sua decisão de não

permitir que Saul, depois de tudo, continue como rei. Essa declaração

nos mostra que Deus, de fato, interage conosco, mas também que ele

não é inconstante ou arbitrário. Não precisamos ter medo de uma

mudança de ideia ou de planos por parte de Deus, como se isso pairasse

como uma ameaça, enquanto seguimos no caminho de Deus. Na

realidade, a maioria das menções quanto a Deus mudar de ideia ou de

planos refere-se a Deus desistir de causar mal a alguém. Se Saul,

verdadeiramente, tivesse se voltado para Deus, mesmo ele poderia ter

sido restaurado.
1SAMUEL 15:34—16:23
O BOM ESPÍRITO E O MAU ESPÍRITO DE YAHWEH
34 35
Samuel foi a Ramá, e Saul subiu à sua casa, em Gibeá de Saul. Samuel não viu Saul

novamente até o dia de sua morte, porque Samuel lamentou por Saul, pois Yahweh tinha se

arrependido de ter feito Saul rei sobre Israel.

CAPÍTULO 16

1
Mas Yahweh disse a Samuel: “Por quanto tempo você irá lamentar por Saul, quando eu

mesmo já o rejeitei como rei sobre Israel? Encha um chifre com óleo e vá: eu o enviarei a

2
Jessé, em Belém, porque vi um rei para mim entre os filhos dele.” Samuel disse: “Como

posso ir? Quando Saul ouvir, ele me matará.” Yahweh disse: “Se você levar uma novilha, pode

3
dizer: ‘É para o sacrifício a Yahweh que eu vim’, e convide Jessé para o sacrifício. Eu mesmo

4
farei você saber o que deve fazer. Você ungirá para mim aquele que eu lhe disser.” Samuel

fez como Yahweh falou. Quando ele chegou a Belém, os anciãos da cidade ficaram alarmados

5
por encontrá-lo e disseram: “A sua vinda significa que as coisas estão bem?” Ele disse: “As

coisas estão bem. Para sacrificar a Yahweh é que eu vim. Santifiquem-se e venham comigo ao

6
sacrifício.” Ele santificou Jessé e seus filhos e os convidou para o sacrifício. Quando eles

7
chegaram, ele viu Eliabe e disse: “Certamente, o ungido de Yahweh está diante dele!” Mas

Yahweh disse a Samuel: “Não dê atenção à sua aparência ou a quão alto ele é, pois eu o

rejeitei, porque não é o que um ser humano vê, pois um ser humano vê o que é visível, mas

Yahweh vê a pessoa interior.”

[Nos versículos 8-10, Yahweh prossegue rejeitando mais seis filhos de Jessé.]

11
Samuel disse a Jessé: “Esses são todos os seus rapazes?” Ele disse: “Ainda falta o mais novo.

Agora, ele está cuidando do rebanho.” Samuel disse a Jessé: “Mande buscá-lo, porque não

12
nos sentaremos até que ele venha.” Então, ele enviou, e o trouxeram. Ele estava bronzeado,

era formoso em aparência e bem-apessoado. Yahweh disse: “Prossiga, unja-o, porque é este.”

13
Samuel pegou o chifre de óleo e o ungiu em meio aos seus irmãos. O espírito de Yahweh

irrompeu sobre Davi daquele dia em diante. Samuel partiu e foi para Ramá.

14
Ora, o espírito de Yahweh tinha deixado Saul, e um espírito mau de Yahweh o tinha

15
assaltado. Os servos de Saul lhe disseram: “Bem, agora, um espírito mau de Deus está te

16
assaltando. Nosso Senhor pode querer dizer que os teus servos, que estão diante de ti,

deveriam procurar alguém que saiba tocar um instrumento de corda. Quando o espírito mau

17
de Deus estivesse sobre você, ele tocaria, e isso seria bom para ti.” Saul disse aos seus

18
servos: “Procurem alguém que toque bem para mim e tragam-no para mim.” Um dos

servos declarou: “Certo. Eu tenho visto um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar. Ele é

um rapaz forte e um lutador, mas habilidoso em palavras e de boa aparência, e Yahweh está

21
com ele.” [...] Então, Davi foi a Saul e apresentou-se a ele, e [Saul] gostou muito dele, e ele

23
se tornou um escudeiro para ele [...] Quando o espírito de Deus vinha a Saul, Davi pegava
o seu instrumento e tocava, e havia alívio para Saul. Isso lhe era bom. O espírito mau o

deixava.

Recentemente, li um perfil de Clint Eastwood; foi esse perfil que me fez

pensar em seu filme Os imperdoáveis em meu comentário sobre 1Samuel

13. Nesse, bem como em outros filmes, ele trabalha tanto como ator

quanto como diretor, mas começou a carreira apenas atuando, e, até ler

esse perfil, eu ainda não havia percebido que ele era um verdadeiro galã.

Qualquer um, ao conhecê-lo na juventude, o consideraria apenas como

um rapaz de boa aparência, um californiano bronzeado que apreciava

mulheres, carros e música. No entanto, como ator, ele se tornou uma

espécie de herói mítico, uma figura redentora como John Wayne, e,

então, como diretor, passou a explorar a ambiguidade da violência que

ele mesmo, outrora, incorporara, a retratar as perdas, a vulnerabilidade,

a culpa e a autodestruição, além de encarar como as nossas decisões,

atitudes e experiências passadas nos modelam de uma forma que não

conseguimos escapar. Ter boa aparência e, ao mesmo tempo, ser

ponderado não são características incompatíveis.

Essa presunção encontra-se subjacente à ambiguidade com a qual

1Samuel fala sobre boas aparências. Saul era o mais belo e o mais alto

rapaz de sua cidade, o que o torna querido pela comunidade. Embora

Deus, dificilmente, o tenha escolhido por sua aparência, parece que

Deus ficou satisfeito por ser capaz de escolher um homem que tivesse o

porte para o papel. Deus aprecia as coisas belas. Não obstante, em que

pese uma boa aparência poder, obviamente, tornar-se muito importante,

tanto para quem a possui quanto para as demais pessoas, a história de

Saul, na verdade, implica que ele tem as qualificações exteriores para o

trono, mas não as qualidades interiores.

Pode-se esperar, então, que Deus decida ignorar a aparência em sua

próxima escolha, e a narrativa de como Samuel identifica Davi como o

substituto de Deus para o trono de Saul, a princípio, dá a impressão de


que é exatamente isso o que acontecerá. Existem certas notas de humor

na história, tais como a disposição de Deus em ser cúmplice de Samuel

em sua economia quanto ao verdadeiro motivo de sua visita a Belém,

bem como o pânico entre os anciãos da cidade que sabem que a visita de

um profeta, em geral, significa más notícias. Eles literalmente

perguntam: “Tu vens em paz?” Quando Samuel é apresentado ao filho

mais velho de Jessé, ele é instruído a não dar atenção à sua beleza ou à

sua elevada altura, porque Deus olha para o interior da pessoa. Nós,

então, conhecemos o filho mais novo de Jessé e esperamos que ele seja

feio e franzino, mas ele também tem a pele bronzeada por passar muito

tempo no campo, além de ser bem-apessoado. A narrativa de sua

apresentação a Saul acrescenta detalhes à sua descrição. Ele é forte e

belo, um lutador e também hábil com as palavras e a música.

Nada é informado sobre a sua pessoa interior, que apenas Deus

consegue ver. Davi manifestará falhas de caráter, no mínimo, tão graves

quanto às de Saul, mas ele possui uma grande força que se manifestará

quando a história subsequente olhar para ele e o comparar com os seus

sucessores. Tais sucessores, frequentemente, falharam em dar a Yahweh

o compromisso exclusivo que Yahweh buscava. Em que pese todas as

suas falhas, pelo menos, Davi jamais olhou para outras divindades.

Havia algo que Deus podia ver nele.

A narrativa não é explícita sobre como devemos relacionar o que

Deus podia ver à forma de ele lidar com Davi. A história de sua

designação chega ao fim com o espírito de Deus irrompendo sobre ele.

Parece uma declaração normatizada, pois é a expressão já usada em

relação a Sansão e Saul, e, após o espírito de Deus irromper sobre eles,

ambos realizaram atos incomuns, como despedaçar um leão com as

próprias mãos, matar trinta homens, falar em línguas e resgatar uma

cidade sitiada por um exército estrangeiro. Após o espírito de Deus vir

sobre Davi ele faz..., rigorosamente nada. Na verdade, 1 e 2Samuel

jamais falarão sobre as atividades do espírito de Deus sobre Davi. Sem

dúvida, o espírito de Deus estava envolvido com ele, e esse comentário


em sua unção diz muito, mas Deus trabalhará muito mais por meio do

que ele, naturalmente, podia fazer. Talvez a conversa do espírito de

Deus vindo sobre ele, em sua vida, é outra maneira de expressar o que

um dos servos de Saul comentou, ao dizer: “Yahweh está com ele.” É a

mesma sentença usada por Gênesis em relação a José, quando seguiu o

comentário afirmando que, como resultado, “ele era um rapaz de sorte”

(na tradução de William Tyndale, do séc. XVI). José era um rapaz belo

que descobriu que a sua aparência podia trazer-lhe problemas, mas que

Deus estava com ele e, assim, contra as probabilidades, ele foi bem-

sucedido, não porque Deus seguiu fazendo milagres em sua vida, mas

porque as circunstâncias funcionaram dessa maneira. Eis como as coisas

são quando Deus está com você; pode acontecer de você tropeçar nos

próprios pés. Com Davi isso ocorrerá algumas vezes.

Davi será, portanto, a antítese do pobre Saul. O primeiro rei

cometeu os seus erros, deu o passo com o pé errado, agiu de modo

estúpido, falhou em ouvir com a devida atenção ao que Deus lhe disse e,

até o fim de 1Samuel, Saul seguirá agindo assim, tropeçando em cada

pequeno pedregulho em vez de firmar os pés no chão. Assim, a história

se justapõe ao espírito de Deus irrompendo nele, informando que o

espírito divino o abandonou, e, para piorar, um espírito maligno, da

parte de Deus, passou a atacá-lo. Precisamos ser cuidadosos quanto ao

que lemos nessa declaração. Os Evangelhos falam sobre espíritos

malignos atormentando pessoas, e as traduções de 1Samuel utilizam

expressões similares com respeito a Saul. Todavia, o Antigo Testamento

não fala sobre espíritos malignos da mesma forma que os Evangelhos

fazem, o que levanta questões quanto a qual ideia sobre espíritos

malignos é intencionada aqui. Além disso, a palavra hebraica, nesse

relato, está mais para o termo “mau” do que para “maligno” ou

“perverso”. Embora o termo possa sugerir algo moralmente mau, pode

igualmente insinuar que a experiência da pessoa é ruim, algo que lhe

traga problemas ou sofrimento.


Se pensarmos em Deus enviando a Saul um espírito mau, mesmo um

temperamento mau, provavelmente chegaremos à ideia correta. É

exatamente um espírito ou temperamento ruim que o aflige ao longo

dos capítulos seguintes. Em complemento à musicoterapia ministrada

por Davi, seria aconselhável que outro terapeuta pudesse ajudá-lo a

compreender como esse espírito mau é uma reação natural ao modo de

vida adotado por ele. Contudo, Saul não parece ser o tipo de pessoa

capaz de desenvolver esse discernimento interior para encarar a sua

infeliz realidade. Ler que Deus está envolvido no envio desse espírito

mau sobre Saul sugere uma consciência de que esse processo natural é a

maneira divina de adverti-lo e discipliná-lo. Isso não exclui a

possibilidade de haver mudanças em Saul. A questão é como ele lida

com a sua experiência. A história que se desenrola, a seguir, sugerirá que

lhe falta a capacidade ou a disposição para mudanças. Nem Saul nem

Davi são pessoas que crescem em sua consciência humana à medida que

ficam mais velhos, ao contrário do perfil que li sobre Clint Eastwood.

Pode ser que a tentação exercida pelo poder é o que faz a diferença. O

problema de Saul e Davi era o fato de ambos serem reis. “Todo o poder

corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente.”


1SAMUEL 17:1-54
COMO RECICLAR O SEU INSTINTO ASSASSINO
1
Os filisteus reuniram as suas forças para a batalha. Eles se reuniram em Socó, pertencente a

2
Judá, e acamparam entre Socó e Azeca, em Efes-Damim. Saul e os israelitas se reuniram e

3
acamparam no vale de Elá e traçaram a sua linha de batalha para encontrar os filisteus. Os

filisteus estavam posicionados em uma montanha, e Israel estava posicionado em outra

4
montanha, com a ravina entre eles. Um representante saiu das forças filisteias; seu nome era

8
Golias, de Gate. Sua altura era de quase três metros [...] Ele se levantou e chamou as fileiras

de Israel, dizendo-lhes: “Por que vocês deveriam sair e se alinhar para a batalha? Eu sou,

realmente, o filisteu, e vocês são servos de Saul. Escolham vocês mesmos alguém para descer

9
contra mim. Se ele puder batalhar comigo e me derrotar, nos tornaremos os seus servos. Se

eu conseguir superá-lo e derrotá-lo, vocês se tornarão os nossos servos e nos servirão.”

[Nos versículos 10-25, Golias proclama o seu desafio durante quarenta dias, mas nenhum

israelita se voluntaria para enfrentá-lo. Certa ocasião, Davi chega com provisões para os seus

irmãos mais velhos.]

26
Davi disse aos homens posicionados ao seu lado: “O que será feito ao homem que derrotar

aquele filisteu e remover a reprovação sobre Israel? Pois quem é esse filisteu incircunciso

31
para repreender as fileiras do Deus vivo?” [...] As coisas ditas por Davi foram ouvidas e

32
informadas a Saul, e ele o mandou chamar. Davi disse a Saul: “O coração de uma pessoa

33
não deveria falhar por ele. O teu servo irá e lutará com esse filisteu.” Saul disse a Davi:

“Você não pode ir a esse filisteu e lutar com ele, porque você é um rapaz e ele, um guerreiro

34
desde a sua meninice.” Davi disse a Saul: “Teu servo tem pastoreado as ovelhas de seu pai.

35
Quando um leão ou um urso vem e leva uma ovelha do rebanho, eu saio atrás dele, o

golpeio e resgato [a ovelha] de sua boca. Se ele se levanta contra mim, eu o agarro pela

barba, o derrubo e o mato.

36
A ambos, leão e urso, o teu servo derrubou. Esse filisteu incircunciso será como um deles,

37
porque ele repreendeu as fileiras do Deus vivo.” Davi disse: “Yahweh, que me resgatou da

mão do leão e do urso, me resgatará das mãos desse filisteu.”

[Nos versículos 38-44, Saul leva Davi a colocar a sua armadura, mas ela é muito grande. Davi

avança sobre Golias com o seu cajado, cinco pedras, que escolheu no riacho, e sua funda.]

45
Davi disse ao filisteu: “Você vem a mim com espada, lança e dardo, mas eu vou contra você

em nome de Yahweh dos Exércitos, Deus das fileiras de Israel, a quem você repreendeu.

46
Neste dia, Yahweh entregará você nas minhas mãos, e eu o derrubarei e cortarei a sua

cabeça.”

[Os versículos 47-54 relatam como Davi derruba Golias com uma pedra de sua atiradeira e

corta a cabeça do gigante. Os filisteus correm, e os israelitas saem em perseguição.]


Era um fim de semana da cerimônia de entrega do Oscar (eu fui a um

grande concerto de jazz, a dois quarteirões de distância, embora

estivesse um pouco atrasado por causa do fechamento das ruas em

Hollywood), e, contra todas as apostas, Guerra ao terror bateu Avatar

(que arrecadou cerca de cinquenta vezes mais). A imprensa

especializada questionou: Como Davi derrotou Golias? Na noite

passada, a Faculdade Merrimack disputou uma partida de hóquei

contra a Universidade de Boston (dessa vez, fui a um concerto de jazz a

quase cinco mil quilômetros de distância), e o técnico da Merrimack

disse que era como Davi jogando contra Golias (Davi conseguiu anotar

um gol precocemente, mas, no final, acabou perdendo). Outro repórter

comentou que quase todos os filmes sobre esportes adotam a trajetória

de Davi-contra-Golias, mas, então, ela é aplicada ao campo político,

como o das próximas eleições britânicas. Ontem, na Flórida, um

candidato ao Senado concordou que a sua campanha poderia fazer as

pessoas pensarem em Davi contra Golias e lembrou que Davi saiu

vencedor. No Reino Unido, a história tecnológica mais popular da

semana foi a “batalha de Davi contra Golias entre Microsoft e i4i” (não

estou bem certo sobre o que isso significa, mas suspeito que deveria ser

Golias contra Davi, para a metáfora funcionar). Ao viajar pelo vale do

Silício, na semana passada, outro repórter nos revela que ouviu a

história de Davi contra Golias repetidas vezes.

Claramente, temos uma poderosa linha narrativa aqui, de modo que

vale a pena observar o que a versão original tem a nos dizer. Primeiro,

os filisteus possuem uma ideia realmente sensata sobre como fazer uma

guerra. Em sociedades tradicionais, a guerra é, em geral, empreendida

por toda a comunidade (homens adultos), como é o caso nos conflitos

envolvendo as sociedades modernas, ou seja, na guerra de 1939-1945,

para citar um exemplo. Contrastando com isso, a teoria do “apenas-

guerra” mantém uma distinção entre combatentes e civis, enquanto um

conflito como o do Iraque tenha envolvido um exército profissional. Os

filisteus trabalhavam com a ideia de que o conflito deveria ser decidido


pelo embate direto entre um representante de cada lado. O lado cujo

combatente vencesse seria, então, o macho alfa e, por conseguinte,

estaria no controle; o lado cujo combatente fosse o perdedor obedeceria

às ordens do lado vencedor. Seria ainda mais sensato caso a decisão

fosse tomada com base, digamos, em uma partida de xadrez ou de

futebol, ou mesmo uma competição de tricô. Claro que os filisteus estão

convencidos de que não há como eles perderem (Golias tem quase três

metros de altura), e, talvez, não seja uma surpresa o fato de, ao verem o

seu campeão perder, eles se esqueçam da regra sensata que propuseram.

O que aborrece Davi é a reprovação que Golias traz sobre Israel. Em

certo sentido, esse não é um argumento válido. Não obstante, quando

uma equipe perde uma partida ou um exército perde uma batalha, isso é

vergonhoso. O time derrotado volta rastejando para casa, e tudo o que

os jogadores desejam é se esconderem de vergonha. Isso é ilógico,

porém real. Davi está preocupado com a honra de Israel. Por outro

lado, há mais elementos em sua preocupação do que apenas isso. Ele se

preocupa pelo fato de Golias estar trazendo desonra e vergonha sobre o

exército do Deus vivo. Quando uma igreja faz algo vergonhoso (apenas

como suposição!), isso resulta em descrédito sobre Deus. Quando Israel

treme de medo diante dos filisteus e de seu campeão, isso traz

descrédito sobre Deus. Esse é um preço que Deus paga por associar-se

com um povo. Davi tem consciência disso e está passionalmente

preocupado em fazer algo a respeito.

Davi mantém a confiança em si mesmo e em Deus, vendo as duas

como entretecidas uma à outra. Ele não é apenas um jovem pastor sem

experiência em combates. Ele enfrentou leões e ursos e sobreviveu para

contar a história. Essas batalhas já demonstraram a ele que o resultado

de uma luta pode ser definido não pelo tamanho e pela força, mas pela

coragem e inteligência. Em contrapartida, Davi também sabe que

poderia não ter escapado com vida caso Deus não estivesse com ele.

Embora Davi desconheça como esses dois elementos interagem, ele

sabe que isso, de fato, ocorre. Sem coragem e astúcia, ele morre. Sem o
envolvimento de Deus, ele morre. Davi contou com ambos e necessitará

deles novamente. Talvez seja igualmente significativo que em sua

argumentação com Saul a sua experiência de sucesso em batalhas tenha

sido a primeira palavra, mas a sua convicção de que Deus irá resgatá-lo

foi a última.

A base para essa confiança é que Deus é Yahweh dos Exércitos.

Davi sabe que Deus, verdadeiramente, possui todo o poder nos céus e

na terra, bem como sabe que Deus está sempre preparado para usá-lo.

Deus não é apenas soberano na vida pessoal e religiosa das pessoas, mas

também na vida militar e política do mundo. Deus detém o poder e está

preparado para usá-lo, mas, de modo característico, Deus usa esse poder

em benefício de pessoas como Davi, não como Golias, que dificilmente

precisam dele (em teoria). O que Deus se compraz em fazer é contrariar

todas as probabilidades. Quando Deus age (como Ana expressou, no

início de 1Samuel), os arcos dos guerreiros se quebram, e as pessoas que

estavam caindo são restauradas, porque não é pela força que uma pessoa

prevalece. A história de Davi representa boas notícias para pessoas

humildes e fracas.

De certa maneira, todo o caráter de Davi emerge nessa história.

Sugeri, anteriormente, que ser “um homem segundo o coração de Deus”

não precisava significar o que pensamos que significa: a expressão

simplesmente indica que Davi era alguém escolhido por Deus. Todavia,

podemos ver por que Davi se tornaria “um homem segundo o coração

de Deus”, nesse outro sentido. Davi manifesta um compromisso e uma

confiança em Yahweh raramente vistos antes no Antigo Testamento.

Trata-se de uma vergonha que (como no caso de Saul) os primeiros

momentos de Davi também sejam os seus melhores.


1SAMUEL 17:55—18:16
COMO SER UMA FAMÍLIA REAL DISFUNCIONAL
55
Quando Saul viu Davi sair ao encontro do filisteu, ele disse a Abner, o comandante do

exército: “De quem esse rapaz é filho, Abner?” Abner disse: “Por tua vida, majestade, eu não

56 57
sei.” O rei Saul disse: “Pergunte de quem esse jovem rapaz é filho.” Quando Davi

retornou de derrubar o filisteu, Abner o pegou e o levou diante de Saul, com a cabeça do

58
filisteu em sua mão. Saul lhe disse: “De quem você é filho, meu rapaz?” Davi disse: “Filho

de teu servo Jessé, o belemita.”

CAPÍTULO 18

1
Quando ele tinha terminado de falar a Saul, o próprio Jônatas se tornou muito ligado a

2
Davi. Jônatas se tornou tão leal a ele quanto a si mesmo. Saul tomou [Davi] naquele dia e

3
não o deixou voltar à casa de seu pai. Jônatas e Davi selaram uma aliança porque [Jônatas]

4
era tão leal a ele quanto a si mesmo. Jônatas tirou o casaco que vestia e o deu a Davi, e a sua

túnica, com sua espada, seu arco e seu cinturão.

5
Em todas [as missões] às quais Saul o mandou, [Davi] foi bem-sucedido, e Saul o

estabeleceu sobre os homens de guerra. Isso foi bom aos olhos de toda a companhia e

6
também aos olhos dos servos de Saul. Quando os homens vieram [para casa] e Davi voltou

de derrotar o filisteu, as mulheres vieram de todas as cidades em Israel para cantar e dançar

quando eles se encontraram com o rei Saul, com tamborins, com festividades e com

7
instrumentos de corda. As mulheres proclamavam, enquanto tocavam, e diziam: “Saul

8
derrubou os seus milhares; Davi seus dez milhares.” Mas isso muito irritou Saul; essa coisa

foi ruim aos seus olhos. Ele disse: “Eles deram a Davi dez milhares e a mim deram milhares.

9 10
Agora, a realeza será apenas dele.” Saul ficou observando Davi daquele dia em diante. No

dia seguinte, um espírito mau da parte de Deus irrompeu sobre Saul, e ele profetizou dentro

da casa enquanto Davi estava tocando, como fazia a cada dia. Havia uma lança na mão de

11
Saul. Saul jogou a lança. Ele disse: “Prenderei Davi à parede.” Mas Davi escapou dele duas

12
vezes. Saul estava com medo de Davi porque Yahweh estava com ele e tinha se afastado de

13
Saul. Saul retirou-o de sua presença e o fez cabeça de mil, de modo que ele saiu e se

14
apresentou diante da companhia. Davi teve sucesso em todas as suas empreitadas; Yahweh

15
estava com ele. Saul viu que ele era muito bem-sucedido e ficou aterrorizado por causa

16
dele, mas todo o Israel e Judá eram leais a Davi, porque ele saía e se apresentava diante

deles.

A rainha Elizabeth II declarou o ano de 1992 o seu annus horribilis, ou

seja, o “ano terrível” dela. Trata-se de uma adaptação da expressão


annus mirabilis, o “ano miraculoso”, expressão engendrada pelo poeta

John Dryden, para descrever 1666, o ano em que a marinha inglesa

derrotou a marinha holandesa (minhas desculpas aos leitores

holandeses) e quando a cidade de Londres escapou de uma devastação

muito maior por ocasião do grande incêndio que atingiu essa capital

(Dryden ignorou a Peste Negra de 1665-1666, mas talvez ele

considerasse as pragas como eventos naturais e inevitáveis, do mesmo

modo que consideramos as perdas de vidas em acidentes de trânsito

todos os anos). Para a rainha, 1992 foi o ano no qual o Castelo de

Windsor pegou fogo e os casamentos de dois de seus filhos terminaram.

Saul havia experimentado o seu annus mirabilis; na verdade, ele

havia tido dois deles. O primeiro foi quando resgatou os homens de

Jabes-Gileade; o segundo, o ano em que Davi matou Golias e, assim,

colocou os filisteus para correr. Ele, agora, estava em seu annus

horribilis; na realidade, até o fim de seus dias Saul viverá anos dessa

categoria.

Seus problemas, como rei e como pai, estão entrelaçados. Pode ser

que sempre estiveram; isso, certamente, também será tema na vida de

Davi. Primeiro, há o seu filho, que se tornou o melhor amigo de Davi,

ao mesmo tempo que Saul passa a ver Davi como seu principal inimigo,

e por motivos sobrepostos. Saul não está totalmente errado em sua

visão de Davi. Na realidade, Davi é a pessoa que o substituirá como rei.

Deveria ser Jônatas, como seu filho presumivelmente sabe, mas este não

se importa com o trono. Saul não precisou ser um líder e tentou evitar

isso, mas, uma vez que ele foi alçado a essa posição de poder, tornou-se

apegado a ela. Isso define quem ele é. Talvez Jônatas tenha

testemunhado isso e não queira seguir pelo mesmo caminho. Já

observamos que seu ataque sobre o destacamento filisteu, no capítulo

14, sugere que ele possui um instinto de liderança mais natural que o

seu próprio pai; Jônatas não precisa que o espírito de Deus venha sobre

ele para fazê-lo tomar uma iniciativa ousada. Ele é, na verdade, como

Davi, o matador de leões e ursos; ao que tudo indica, foi isso que levou à
grande amizade entre Jônatas a Davi. Ambos eram modelos de heróis

masculinos. Jônatas conseguia se ver em Davi. Não se pode

simplesmente afirmar que eles eram homens de personalidade do tipo A

(um dos motivos é que toda essa teoria é, provavelmente, um mito). De

todo modo, é Saul quem parece ter personalidade do tipo A. Falta a

Jônatas a necessidade interior de ser um líder. Ele teria sido um rei

muito melhor que Saul ou Davi, mas não se importa com o reinado, e o

sistema de Israel (como o nosso) significa ter como líderes pessoas que

desejam liderar, o que é uma ideia realmente má.

Jônatas e Davi possuem características sobrepostas, embora não

idênticas. Além de não sentir a necessidade de estar em posição de

liderança, Jônatas sabia como ser amigo de alguém. Ele conhece a

respeito de relacionamentos pessoais. Ao contrário, Davi não tem noção

sobre esse tema. Essa é a chave para a compreensão de sua história. Há

um sentido no qual essa amizade é um tanto unilateral, na qual apenas

Jônatas está comprometido com Davi. Ao discorrer sobre a lealdade de

Jônatas, a narrativa utiliza a palavra hebraica que sugere amor, mas essa

tradução pode ser enganosa, e eu, portanto, evitei isso. Um motivo é

que as palavras hebraicas para amor e ódio sugerem, pelo menos, uma

lealdade política e moral tanto quanto emocional (como quando Jesus

diz aos seus discípulos que eles devem odiar os seus pais). Os

documentos políticos do Oriente Médio falam sobre subordinados

amando os poderes superiores. Assim, Jônatas está expressando um

compromisso político, bem como pessoal a Davi. Com efeito, ele está

rendendo a Davi a posição de sucessor potencial de Saul. O mesmo

ponto emerge da maneira pela qual os dois jovens rapazes selam uma

aliança, porque o termo hebreu para aliança é também uma palavra

para tratado, um compromisso político. O relacionamento entre eles

apresenta um pouco de cada área.

Jônatas não é o único que se sente cativado por Davi. Para início de

conversa, todas as mulheres de Israel têm esse sentimento. Você teria

que ser um grande homem para lidar com o entusiasmo delas por um de
seus oficiais, e Saul não é esse homem. Com certa ironia, dessa vez a

história fala sobre um espírito ruim da parte de Deus “irrompendo” em

Saul; é a mesma palavra usada no relato do espírito de Deus vir sobre

ele, quando Samuel o ungiu, bem como quando ele foi inspirado a

resgatar os homens de Jabes-Gileade, e quando Samuel ungiu Davi. Isso

até mesmo o levou a “profetizar”, como ocorreu no episódio inicial. O

comportamento de Saul deixa claro que algo sobrenatural está

acontecendo. Nada mudou desde quando ele foi ungido, mas, ao mesmo

tempo, tudo mudou. Havia uma percepção de que tinha sido um

espírito ruim que veio sobre ele, inspirando-o a lutar contra os

amonitas. Era um mau espírito no que tangia a eles, um espírito que

suscitava energia e significou problemas para eles. Agora, é um espírito

ruim no sentido de que ele desperta energia e traz ameaças contra Davi,

mas este tem uma vida encantada. Poder-se-ia afirmar que Deus

protegia Davi, mas a história apenas diz que Davi escapou de Saul. Ele

sabe cuidar de si mesmo. Por outro lado, quando Saul envia Davi em

missões arriscadas na esperança de que ele seja morto, ele é bem-

sucedido (Davi “sai” e também “retorna” à frente da unidade militar), e

isso ocorre porque “Yahweh está com ele”. De fato, é possível dizer que

ele sabia cuidar de si mesmo, mas, em relação a isso, a narrativa nos

lembra de que há duas maneiras de olhar para o que acontece. A

coragem e a astúcia humanas estão envolvidas, e as coisas não teriam o

resultado que tiveram sem elas. Da mesma forma, a proteção divina está

envolvida, e o resultado não seria o mesmo sem ela.

Pode ser que você tenha ficado confuso sobre o motivo de Saul

precisar perguntar ao seu comandante quem é Davi, quando já fomos

informados de que Davi tinha sido aceito como cantor, compositor e

músico residente na corte algum tempo atrás. Essa é outra indicação da

maneira pela qual a narrativa sobre Saul e Davi foram compiladas de

uma série de histórias independentes e sobrepostas, que foram reunidas

para nos dar um retrato composto de Saul e Davi, sem que as histórias

tivessem por objetivo fornecer um relato linear e organizado. O fato de


2Samuel 21:19 atribuir a morte de Golias a um homem chamado Elanã

corrobora essa compilação sobreposta. Existem inúmeras explicações

para essa aparente contradição, mas a que me parece mais plausível é

que o processo é similar àquele pelo qual as histórias são vinculadas a

figuras conhecidas como Robin Hood, à maneira de os vitrais

glorificarem os heróis bíblicos. Uma figura heroica como Robin Hood

era uma pessoa de carne e osso que realizou atos espetaculares, de modo

que contar histórias sobre ele que historicamente diziam respeito a

outra pessoa não é exatamente errado. As histórias nos capacitam a

compreender a real importância da pessoa. Igualmente, caso Davi não

tivesse, de fato, matado Golias, vincular essa história a Davi preenche a

sua imagem a fim de nos transmitir a verdadeira impressão de sua

significância. Se for isso mesmo o que aconteceu, eis por que as histórias

não formam um quebra-cabeça de encaixe perfeito. Caso você considere

inconcebível que Deus tenha agido dessa maneira para trazer as

Escrituras à existência, sinta-se livre para adotar uma das outras

explicações (que Elanã é outro nome para Davi; inúmeros personagens

da Bíblia têm mais de um nome). Seja como for, precisamos ler cada

história por si só, sem nos preocupar em demasia com as questões de

continuidade que elas suscitam.


1SAMUEL 18:17—19:24
TODOS ESTÃO CONTRA MIM
17
Saul disse a Davi: “Aqui está Merabe, a minha filha mais velha. Eu a darei por esposa a

19
você [...]” Então, na hora de dar Merabe, a filha de Saul, a Davi, ela foi dada a Adriel, o

20
meolatita. Mas Mical, a filha de Saul, amava Davi. Saul foi informado, e isso foi agradável

21
aos seus olhos. Saul disse: “Darei Mical a ele, e ela lhe será uma armadilha, de modo que a

25
mão dos filisteus possa ser contra ele [...]” Saul disse: “Diga isto a Davi: ‘O rei não deseja

um presente de casamento, exceto o prepúcio de cem filisteus, para obter reparação dos

27
inimigos do rei [...]’” Davi partiu, e ele e seus homens foram e derrubaram duzentos

filisteus. Davi trouxe os prepúcios deles, e eles contaram o seu número completo ao rei para

28
que ele pudesse se tornar o genro do rei, e Saul lhe deu Mical, sua filha, como esposa. Saul

29
viu e reconheceu que Yahweh estava com Davi e que Mical, a filha de Saul, era leal a ele, e

Saul teve mais medo de Davi [...]

CAPÍTULO 19

1
Saul falou a Jônatas, seu filho, e a todos os seus servos para matar Davi, mas Jônatas, filho

2 4
de Saul, favorecia a Davi; assim, Jônatas contou a Davi [...] Jônatas falou bem de Davi a

6
Saul, seu pai [...], e Saul ouviu a voz de Jônatas. Saul jurou: “Como Yahweh vive, ele não

9 11
será morto [...]” Então, um espírito mau de Yahweh veio sobre Saul [...] Saul enviou

ajudantes à casa de Davi para manter vigilância sobre ele de manhã, mas Mical, sua esposa,

12
falou a Davi: “Se você não correr por sua vida esta noite, será morto amanhã.” Mical

13
deixou Davi descer pela janela. Ele foi, desceu e fugiu. Mical pegou as efígies e as colocou

14
na cama e pôs uma colcha de pelo de cabra em sua cabeça e cobriu com roupas. Quando

15
Saul enviou os ajudantes para levar Davi, ela disse: “Ele está doente”, mas Saul enviou os

16
ajudantes para ver Davi: “Tragam-no para mim sobre a cama, para matá-lo.” Então, os

ajudantes foram, e ali estavam as efígies na cama e a colcha de pelo de cabra em sua cabeça.

17
Saul disse a Mical: “Por que você me enganou assim e ajudou meu inimigo de modo que

ele escapasse?” Mical disse a Saul: “Ele mesmo me disse: ‘Ajude-me a fugir. Por que deveria

eu matá-la?’”

18 20
Quando Davi fugiu e escapou, ele foi a Samuel, em Ramá [...] Saul enviou ajudantes para

prender Davi. Eles viram um grupo de profetas profetizando, com Samuel de pé, presidindo

sobre eles. O espírito de Deus veio sobre os ajudantes de Saul, e eles também profetizaram.

21
Saul foi informado, de maneira que enviou mais ajudantes, mas também eles profetizaram.

Saul, novamente, enviou o terceiro grupo de ajudantes, e eles também profetizaram.

22 23
Assim, ele também foi a Ramá [...] e sobre ele também o espírito de Deus veio, de

24
maneira que ele caminhou e profetizou até que chegou a Naiote, em Ramá. Então, ele

também rasgou as suas roupas e profetizou na frente de Samuel. Ele caiu nu todo aquele dia

e toda aquela noite. Eis por que eles disseram: “Está Saul também entre os profetas?”
Ontem à noite, assisti a um filme jordaniano, indicado ao Oscar,

intitulado Capitão Abu Raed, cuja figura central é um faxineiro do

Aeroporto de Amã (na mesma rua de Jabes-Gileade, na verdade). Em

determinado momento da trama, ele conhece uma mulher chamada

Nour, que é piloto de avião. Nour é uma mulher bem-sucedida, na casa

dos trinta anos, mas ela tem que enfrentar as periódicas tentativas de

seu próspero pai em casá-la com pretendentes implausíveis. Agora,

muitas pessoas que tiveram seus casamentos arranjados comentam

sobre como esse sistema funciona bem. O autor indiano Farahad Zama

descreve como ele conheceu a sua esposa por somente 45 minutos

durante um chá; eles se apaixonaram depois do casamento. Entretanto,

ele teve a oportunidade de dizer não, com base naquele encontro de 45

minutos, que é o que Nour, no filme jordaniano, faz em menos tempo. O

problema é que, quanto mais importante o seu pai se torna, tanto mais

provável é que os encontros que ele planeja visem a benefícios políticos

e, assim, encontram mais resistência por parte dela. Embora isso não

explique totalmente os problemas da família real britânica, que

observamos no capítulo anterior, decerto contribui para eles.

Evidentemente, esse também é um problema para as filhas de Saul.

Primeiro, há Merabe; ficamos com a impressão de que ela não tinha

nenhum direito a opinar sobre (a) Davi ou (b) Adriel. Embora a

mudança de ideia de Saul possa simplesmente ser atribuída à sua

inconstância, o desenrolar da história talvez implique que Davi não

tinha condições de oferecer um dote de casamento apropriado que o

habilitasse a se casar com Merabe. Algumas traduções referem-se a isso

como o preço pela noiva, mas a expressão é enganosa, pois passa a noção

de que o noivo pode comprar a sua noiva do pai dela e, portanto, que a

esposa passa a ser propriedade do marido — exceto no sentido de que

ela é “sua esposa” e que ele é “seu marido”. Em vez disso, a troca de
presentes em um casamento (o presente de casamento e o dote da

mulher) constitui parte da convenção social pela qual um casamento é

selado pela entrega de bens, como ocorre na cultura ocidental. Também

é um reconhecimento de que, para o homem, o casamento significa a

obtenção de algo dotado de grande valor econômico.

Quando Saul ouve que Mical é apaixonada por Davi (como a

maioria das mulheres em Israel), ele tem um interesse pessoal em ajudar

Davi a solucionar o seu embaraço financeiro, porque vislumbra nisso

um meio de tirar Davi de seu caminho. A narrativa incorpora inúmeras

notas de humor, a maioria às custas de Saul, e a primeira é uma nota de

humor grosseiro, muito comum no texto bíblico. Os israelitas caçoavam

dos filisteus, considerando-os europeus incultos, por não praticarem a

circuncisão como povos civilizados (a circuncisão masculina era uma

prática regular entre os povos do Oriente Médio, embora esse rito, na

maioria deles, fosse praticado apenas na puberdade, além de receber um

significado distinto em Israel por sua ligação com a aliança). Assim, que

Davi circuncide alguns desses homens selvagens. Claro que eles não se

submeterão a isso de modo voluntário: “Com licença, você se importaria

se eu apenas circuncidasse uma centena de vocês? Preciso dos

prepúcios.” “Você terá que nos matar antes.” A lógica por trás do pedido

de Saul é que isso servirá de lição aos filisteus e constituirá um meio de

perseguir a sua missão de afirmar a soberania israelita sobre a terra que

eles consideram como sua, embora ele também tenha uma outra

motivação. Saul só tem a ganhar: ele espera que Davi falhe, mas, se por

acaso ele vencer, isso também será muito útil ao seu reinado. Davi,

claro, logra êxito total nessa missão e dobra o número por precaução, e

a narrativa nos convida a imaginar Davi contando os prepúcios um por

um. Tudo isso para ganhar uma esposa. Quem é esse homem? Um

homem que deseja ser rei!

Saul não é capaz de enxergar um palmo além de seu nariz. Isso

também é verdadeiro em relação ao campo religioso. Ele pode ver que

Deus está com Davi, e a sua reação é temer ainda mais Davi. Saul está
certo em considerar Davi uma séria ameaça a ele. Pode-se pensar que

qualquer um que tenha um pingo de bom senso veria que é inútil tentar

lutar contra Deus, mas essa consciência apenas faz Saul intensificar os

seus esforços. Então, ele falha em ver as implicações adicionais do fato

de Mical, sua filha, amar Davi. Já comentamos uma ambiguidade

quanto à palavra “amor”. Ela sugere compromisso e lealdade, bem como

sentimentos. Os sentimentos de Mical por Davi podem ser usados por

Saul em seu objetivo de ver Davi morto: ela quer se casar com ele, mas,

com um pouco de sorte, Davi será morto em sua tentativa de cumprir a

condição imposta por Saul. Isso não ocorre. Mas o amor de Mical

também significa que ela está comprometida com Davi (amor é o

mesmo termo hebraico que eu traduzi por leal em 18:28). A exemplo do

amor/lealdade de Jônatas a Davi, o amor/lealdade de Mical ao seu

esposo tem implicações práticas e políticas. O casamento significa

deixar pai e mãe e se unir ao seu cônjuge. Apaixonar-se por Davi

significa passar para o lado dele contra Saul e, portanto, ela enganará e

mentirá a fim de salvar Davi da morte certa. Permitir que Mical se

casasse com Davi foi a ação que Saul adotou por imaginar que isso lhe

daria uma oportunidade de se livrar de Davi. Contudo, isso contribuiu

para mantê-lo vivo. Pobre Saul! A ironia reside na história sobre as

efígies. Isso levanta a questão sobre como a esposa de Davi está de

posse dessas efígies, e a menção incidental a elas chama a atenção para

algo que as descobertas arqueológicas já deixam claro; que a vida

religiosa cotidiana, em Israel, era muito diferente daquela prescrita pela

Torá.

Claro que Jônatas não tem utilidade para seu pai em relação ao seu

plano de se livrar de Davi. Jônatas “favorece a Davi” em vez de a Saul;

essa é outra forma de descrever a sua lealdade. A expressão é a mesma

que Saul instruiu seus cortesãos a usarem ao falar a Davi de sua própria

atitude para com ele, o que o levou a lhe oferecer Merabe. A ironia é

que ele não queria, de fato, afirmar isso, embora, na verdade, seja a

atitude de seu próprio filho em relação a Davi, levando-o a revelar os


planos do pai a Davi, bem como a dissuadir Saul de suas intenções. Isso

funciona apenas por um curto período de tempo, porque Saul tem um

problema maior do que ter o seu filho e a sua filha, além de sua própria

estupidez, contra ele: Deus está contra ele. A nota final de humor e de

ironia da parte de Deus reside no relato de como, uma vez mais, Saul

acaba profetizando. Outrora, lá no começo, isso havia sido um sinal de

que Deus estava realmente com Saul. Agora, é um sinal de que Deus,

realmente, o abandonou. (Talvez o fato de esse encontro ser uma

expressão de julgamento seja a razão de Samuel estar preparado para

agir distintamente do que havia dito em 15:35.) Mesmo assim, Saul

ainda não verá sentido e retornará.


1SAMUEL 20:1—21:15
AMIZADE

[A passagem de 1Samuel 20:1-13a relata como Davi pede a Jônatas para investigar se Saul, o

pai dele, prosseguirá em sua tentativa de matá-lo, e Jônatas concorda em fazer isso.]

13b
“Se parecer bom ao meu pai [fazer] o mal a você, eu lhe revelarei e o enviarei, e você irá

14
em segurança, e que Yahweh esteja com você, assim como estava com meu pai. Enquanto

eu viver, não deixe de manter o compromisso de Yahweh comigo. Nem quando eu morrer

15
você deve cortar o seu compromisso com a minha família, jamais, mesmo quando Yahweh

16
cortar os inimigos de Davi, cada um, da face da terra. Jônatas fez aliança com a família de

17
Davi. Yahweh irá exigir isso das mãos dos inimigos de Davi.” Então, Jônatas, novamente,

jurou a Davi por sua lealdade a ele, porque ele era tão leal a ele quanto consigo mesmo [...]:

23
“A palavra que falamos, você e eu: eis que Yahweh está entre você e mim para sempre.”

24 25
Davi se escondeu no campo. Era lua nova, e o rei sentou-se para o jantar, para comer. O

rei sentou-se em seu lugar de costume, junto à parede. Jônatas sentou-se em frente, e Abner

26
sentou-se ao lado de Saul, mas o lugar de Davi ficou vazio. Saul não fez nenhum

comentário naquele dia porque disse [consigo mesmo]: “Algo aconteceu para ele não estar

27
puro [...]” Então, no dia depois da lua nova, o segundo dia, o lugar de Davi ficou vazio, de

modo que Saul disse a Jônatas, seu filho: “Por que o filho de Jessé não veio jantar ontem ou

28
hoje?” Jônatas respondeu a Saul: “Davi perguntou-me urgentemente [se ele poderia ir] a

29
Belém. Ele disse: ‘Permita-me ir, porque nós temos um sacrifício da família na cidade, e

meu irmão ordenou-me a isso. Então, agora, se encontrei favor aos seus olhos, posso ir e ver

30
os meus irmãos?’ Eis por que ele não veio à mesa do rei.” A ira de Saul se acendeu contra

Jônatas, e ele lhe disse: “Filho de uma mulher rebelde e perversa! Eu sei muito bem que você

está escolhendo o filho de Jessé, para a sua vergonha e a vergonha da nudez da sua mãe!

31
Porque todos os dias que o filho de Jessé viver na terra, você e o seu reinado não estarão

seguros. Então, agora, envie e pegue-o para mim, porque ele está destinado a morrer.”

[Jônatas protesta, Saul joga a sua lança contra Jônatas, que sai furioso e vai contar a Davi.]

41b
[Davi] prostrou-se com o rosto em terra e curvou-se três vezes, e eles se abraçaram e

42
choraram um com o outro, até Davi [chorou] muito. Jônatas disse a Davi: “Vá em

segurança, porque nós dois juramos no nome de Yahweh: ‘Yahweh esteja entre você e mim, e

43
entre a sua descendência e a minha, para sempre.’” Então, Davi partiu e foi. Enquanto

Jônatas foi para a cidade.

CAPÍTULO 21

1 7
Davi foi a Nobe, ao sacerdote Aimeleque [...] Mas um dos servos de Saul estava lá naquele

dia, retido diante de Yahweh. Seu nome era Doegue, o edomita, chefe dos pastores de Saul.

[Os versículos 8-15 relatam como, mesmo não levando armas, Davi conseguiu a espada de

Golias com Aimeleque, bem como provisões, e segue até Gate, cidade na qual ele consegue
refúgio com o rei Aquis.]

Conheço uma mulher, hoje com mais de oitenta anos, que viveu durante

quarenta ou cinquenta anos com uma amiga. Elas tinham empregos

separados, mas no restante do tempo eram inseparáveis, sempre unidas,

seja na igreja, seja na vida social, além de passarem as férias juntas.

Alguns anos atrás, a amiga sofreu um derrame, e a minha conhecida

decidiu aposentar-se precocemente para poder cuidar dela e fazer de

tudo para continuarem vivendo juntas pelo tempo que fosse possível, o

que incluía viagens nas quais não faltava aventura. Após a morte da

amiga, ela experimentou um luto sombrio, o mesmo tipo de luto vivido

por alguém que perde o seu cônjuge. Havia entre elas uma relação

caracterizada pelo compromisso mútuo que poderia muito bem ser

chamado de pactual. Eu costumava ponderar que seria muito mais

difícil, hoje em dia, para duas mulheres ou dois homens firmarem esse

tipo de compromisso mútuo, considerando os círculos cristãos

conservadores a que pertençam, por causa da grande suspeita que isso

geraria de tratar-se, na verdade, de um relacionamento ou casamento

entre pessoas do mesmo sexo e, decerto, ficariam horrorizados com a

ideia. No Ocidente moderno, há uma grande confusão quanto aos

relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo que a própria ideia de

amizade entre homens ou entre mulheres está ameaçada.

Isso afeta a maneira pela qual as pessoas enxergam a relação entre

Davi e Jônatas. Tanto pessoas heterossexuais quanto homossexuais já se

perguntaram se a relação entre eles seria fisicamente homossexual.

Claro que a história jamais declara: “A propósito, eles não eram gays.” O

ambiente para descrever o relacionamento entre eles é de amizade e

compromisso mútuo, embora essa mutualidade não significasse que a

relação tivesse o mesmo peso para os dois. A energia do relacionamento

vem de Jônatas. Ele “ama” Davi, é leal a ele, mais do que a seu pai, e se

preocupa com Davi tanto quanto se preocupa consigo mesmo. Jônatas


se apega a Davi, e o seu cuidado e lealdade é que levam ao

estabelecimento de uma aliança entre eles.

No Ocidente, em anos recentes, passamos a presumir que o cônjuge

de uma pessoa é também o(a) seu(sua) melhor amigo(a). Isso foi

realidade entre minha esposa e mim, mas é uma presunção

idiossincrática. Não há indicação na Bíblia de que o matrimônio deva

funcionar assim, e isso também exerce uma pressão extra sobre um

relacionamento que já precisa suprir todas as outras demandas. Uma

relação de amizade e compromisso mútuo com outra pessoa do mesmo

sexo evita parte dessa complicação. Talvez isso seja possível na relação

de amizade e compromisso mútuo com uma pessoa do sexo oposto,

embora, nesse caso, exista o risco de ficar sexualmente enredado. Então,

claro, se uma das pessoas envolvidas, ou ambas, for alguém cuja atração

é por pessoas do mesmo sexo, esse fato remodela todas essas

considerações.

As pressuposições da história sobre o jantar de Saul são de que o

início do mês é uma ocasião especial a ser celebrada diante de Deus,

com um jantar especial na presença de Deus. Mas, então, inúmeras

coisas, como ter relações sexuais ou contato com um cadáver, podem

tornar a pessoa impura para estar na presença de Deus, porque o sexo e

a morte são estranhos ao próprio caráter divino. Tais considerações

podiam ser razão suficiente para faltar ao primeiro dia da celebração,

mas tais tabus não perduram por muito tempo, e, assim, seria razoável

que Saul esperasse pela presença de Davi no segundo dia. Sua ausência

desperta a suspeita no rei de que algo estranho está ocorrendo.

Considerações relacionadas emergem da história sobre a visita

emergencial de Davi a Aimeleque, na qual ele precisa assegurar ao

sacerdote que seus homens não tiveram relações sexuais recentes, antes

de o sacerdote se dispor a permitir que eles comessem das provisões do

santuário. Ainda assim, a sua disposição de ajudar foi irregular. Em

Marcos 2, Jesus recorda essa história como um exemplo de como o

Antigo Testamento não é legalista em sua maneira de tratar a Torá, de


modo que, similarmente, não há necessidade de ser legalista com

respeito ao sábado. O ponto sobre a nota com respeito a Doegue

emergirá no próximo capítulo.

Como de costume, ao ler essa história, vale a pena questionar por

que alguém a teria escrito e qual função ela desempenha. A narrativa

em questão, como um todo, pertence pelo menos ao tempo em que Davi

já tinha se tornado rei, e sua função é a de assegurar aos seus leitores

que o processo por meio do qual Davi ascendeu ao trono foi totalmente

honroso. Afinal, Jônatas é a pessoa que deveria suceder o seu pai como

rei. Por que isso não ocorreu? Em certo nível, a resposta é que Deus

determinou que não, mas as pessoas sabiam que Davi era capaz de agir

como um agente político muito sagaz, pelo menos até ele perder a sua

verve no meio de seu reinado. Teria ele manobrado Jônatas a abrir mão

de seu “direito” como sucessor de Saul? Não, a história afirma, pois

Jônatas estimava tanto Davi (como os demais, exceto Saul) que ele

desistiu de sua legítima posição. Quer ele tivesse ciência disso quer não,

teologicamente falando, o fato é que Jônatas estava feliz em seguir a

intenção de Deus de colocar Davi no trono. “Que Yahweh esteja com

você, assim como estava com meu pai”, ele afirma. Vale a pena ponderar

sobre as duas metades dessa sentença. A primeira é um desejo de que

Deus faça Davi prosperar e avançar, independentemente se Jônatas

perder. Na segunda metade, a característica dolorosa é o tempo verbal

no passado. Deus costumava estar com Saul, e as coisas corriam bem

para ele. Agora, Deus não mais está com ele, e as coisas não correm bem.

A narrativa também reconhece expectativas que se aplicariam a

Davi como rei. Ele deve manter o compromisso com Jônatas não apenas

durante a sua vida, mas após a sua morte. Os dois possuem idades

similares, e não é de esperar que Jônatas vá morrer antes de Davi, mas,

na realidade, isso ocorrerá. Então, o que acontecerá à família de

Jônatas? Apesar de toda a popularidade de Davi em seus próprios

círculos, haverá muitas pessoas ainda leais a Saul que presumirão que

alguém da sua família deve sucedê-lo. Tais considerações significam


que, após um golpe, um novo governante é tentado a eliminar todos os

potenciais rivais ao trono, e isso inclui os filhos de Jônatas. Os capítulos

de 2Samuel 9 e 21 contarão como Davi honra as suas promessas a

Jônatas, providenciando o devido cuidado a Mefibosete, filho de

Jônatas, que tinha uma deficiência física nos pés, e organizando o

sepultamento de Jônatas.
1SAMUEL 22:1—23:29
DAVI EM FUGA
1
Davi saiu dali e fugiu para uma caverna em Adulão. Seus irmãos e todos da casa de seu pai

2
ouviram e desceram, ali, até ele. Todos os que estavam em apuros ou que tinham um credor

ou que estavam descontentes em espírito reuniram-se a ele, e ele se tornou o líder deles.

3
Havia cerca de quatrocentos homens com ele. Davi foi de lá até Mispá, em Moabe, e disse

ao rei de Moabe: “Que meu pai e a minha mãe possam sair para estar contigo até que eu saiba

4
o que Deus fará para mim.” Assim, ele os conduziu até a presença do rei de Moabe, e eles

5
permaneceram todo o tempo em que Davi ficou na fortaleza. Mas Gade, o profeta, disse a

Davi: “Você não deve permanecer na fortaleza. Vá para Judá.” Então, Davi foi, e chegou à

floresta de Herete.

6
Saul ouviu que Davi e os homens com ele tinham sido descobertos. Saul estava sentado

debaixo da tamargueira, em Gibeá, na altura, com a sua lança na mão e todos os seus servos

7
junto a ele. Saul disse aos seus servos que estavam com ele: “Ouçam, benjamitas. A todos

vocês o filho de Jessé dará campos e vinhas? Ele fará todos vocês comandantes de milhares

8
ou comandantes de centenas? Porque todos vocês têm conspirado contra mim. Não há

ninguém que me informa quando o meu filho faz aliança com o filho de Jessé. Não há nenhum

de vocês que se preocupa comigo ou que me informa quando meu filho transformou meu

9
servo em alguém que está à minha espreita, neste mesmo dia.” Doegue, o edomita, que

estava com os servos de Saul, declarou: “Eu vi o filho de Jessé ir a Nobe, a Aimeleque, filho

10
de Aitube. [Aimeleque] inquiriu Yahweh por ele, e lhe deu provisões, e lhe deu a espada de

11
Golias, o filisteu.” Então, o rei mandou convocar Aimeleque, filho de Aitube, o sacerdote, e

12
toda a família de seu pai, os sacerdotes em Nobe. Todos eles foram ao rei. Saul disse:

13
“Ouça, filho de Aitube.” Ele disse: “Aqui estou, meu senhor.” Saul lhe disse: “Por que você

e o filho de Jessé conspiraram contra mim, ao lhe dar comida e uma espada, e inquirir Deus

por ele, para que ele possa se levantar e ficar à espreita por mim, neste mesmo dia?”

14
Aimeleque respondeu ao rei: “Mas quem dentre todos os teus servos é tão confiável quanto

17
Davi, o genro do rei, comandante de teus guarda-costas, e honrado em tua casa?” [...] Mas

o rei disse aos corredores que estavam com ele: “Virem-se e matem os sacerdotes de Yahweh,

porque a mão deles também está com Davi. Eles sabiam que ele estava fugindo e não me

informaram.” Mas os servos do rei não estavam dispostos a levantar as mãos para atingir os

18
sacerdotes de Yahweh, de modo que o rei disse a Doegue: “Vire-se você e atinja os

sacerdotes.” Doegue, o edomita, virou-se e foi o único que atingiu os sacerdotes e os matou

19
naquele dia, oitenta e cinco homens que vestiam o éfode de linho. Ele atingiu Nobe, os

sacerdotes da cidade, ao fio da espada — homens e mulheres, crianças e bebês, bois, jumentos

e ovelhas, ao fio da espada.

[Os textos de 22:20—23:29 relatam como Abiatar, o filho de Aimeleque, escapa e vai a Davi,

que entende que o massacre aconteceu por sua causa. Davi ataca os filisteus que estão
invadindo a cidade judaíta de Queila e escapa de uma tentativa de Saul de capturá-lo ali, bem

como escapa de tentativas subsequentes, no deserto de Zife.]

Num dia desses, um estudante estava discutindo os seus planos futuros

comigo. Ele acreditava que Deus estava lhe dizendo para permanecer

no seminário por mais um ano e fazer cursos adicionais a fim de

melhorar as suas chances de conseguir um programa de doutorado.

Ainda, que ele deveria se candidatar ao nosso estudo para doutorado,

abandonar o seu emprego atual e conseguir outro de meio período para

poder focar mais o seu estudo. Balancei a cabeça positivamente, mas

por dentro eu revirei os olhos. O que dá às pessoas a impressão de que

Deus as orienta nessas questões? A Bíblia não afirma isso. Se eu lhes

fizer essa pergunta, como às vezes faço, elas respondem que, certamente,

Deus é um Pai amoroso que está interessado nos detalhes da nossa vida.

De minha parte, respondo afirmando que o nosso Pai é, de fato,

passionalmente interessado nos detalhes de nossa vida, como eu mesmo

sou passionalmente interessado nos detalhes da vida de meus filhos.

Mas o meu interesse não significa que quero dar aos meus filhos a

última palavra nas decisões deles. Eu desejo que eles vivam como

adultos, com as consequências de suas decisões; eles é que precisam

tomar decisões. Justamente por Deus ser um pai amoroso, ele deseja que

vivamos como adultos e, geralmente, nos permite tomar as nossas

próprias decisões. Há exceções: ocasionalmente, acreditei que Deus

estava me dando orientações desse tipo, e por tudo o que eu conheço,

aquele estudante está certo em pensar que Deus estava lhe dando uma

orientação sobre os detalhes da sua vida (que é outro motivo para eu

revirar os olhos em minha cabeça).

A história sobre a fuga de Davi, que resumi ao fim da tradução da

Escritura acima, mostra como pode haver exceções a essa regra. Davi

ouve que os irritantes filisteus estão invadindo Queila e pilhando a sua

colheita. Queila ficava na região fronteiriça, entre o território israelita e


o filisteu, nos limites entre as montanhas e a planície que se estende na

direção do interior, desde o Mediterrâneo; hoje em dia, Queila está,

portanto, situada na fronteira da Cisjordânia com Israel. Assim, a

cidade judaíta está numa posição vulnerável. Agora, o único sacerdote

que escapou do massacre em Nobe tinha levado o éfode com ele.

Aimeleque e Abiatar eram descendentes de Eli, o sacerdote em Siló

(veja caps. 1—4); se eles estavam baseados em Nobe (não distante de

Siló) e o éfode estava lá, evidentemente Nobe havia substituído Siló

como o santuário principal da região. Outras passagens do Antigo

Testamento referem-se à destruição do santuário em Siló, de modo que

isso pode ter ocorrido durante o conflito entre israelitas e filisteus,

embora 1Samuel não nos diga como isso aconteceu.

O fato de Abiatar levar o éfode com ele significa que Davi pode

consultar Deus sobre se deve atacar os filisteus que estão saqueando

Queila, e a resposta divina é positiva. Os seus homens ponderam que

essa é uma proposta perigosa, e Davi consulta Deus novamente. Deus

confirma que tudo irá bem. Eles vencem; presumivelmente, o povo de

Queila está grato, e, assim, Davi e seus homens permanecem ali por um

tempo, satisfeitos por estarem num ambiente amigável no qual podem

desfrutar de comida e banho. Saul é informado sobre isso e comenta:

“Deus o entregou nas minhas mãos”, porque uma cidade com portões e

outros tipos de trancas é fácil de sitiar, mas seus pronunciamentos sobre

o que Deus pretende fazer surgem simplesmente de seus próprios

cálculos. Davi ouve que Saul planeja ir até lá e, uma vez mais, consulta

Deus sobre se Saul irá de fato (“sim”) e se isso levará pânico ao povo de

Queila a ponto de eles o entregarem (“sim”), de modo que ele foge dali.

Desse modo, algumas vezes, Deus guia as pessoas quanto aos

detalhes do que elas devem fazer. Como Deus decide quando agir

assim? A história sugere duas reflexões. Uma é que há algo especial em

relação a Davi. Ele é um homem segundo o coração de Deus — isto é, o

homem escolhido por Deus. Ele possui um lugar distinto no propósito

divino como a pessoa que Deus intenciona usar como rei, o que é
deveras importante para você e para mim, pois o que Deus está fazendo

em Israel está vinculado ao cumprimento do plano de Deus para você e

para mim. É nessa conexão que Deus lida com Davi de maneiras que

podem não ser aplicáveis a mim ou a você. Podemos ser tentados ao

ciúme ou ao ressentimento; por que Deus não me usa e, assim, se

relaciona comigo como se relacionava com Davi? Pode ser um ato de

sabedoria nos contentarmos com as coisas do jeito que elas são, porque

(a exemplo de Saul) ter um lugar no propósito de Deus é uma bênção

mista. Davi não é um homem feliz e se tornará ainda mais infeliz. Estou

contente por não ser Davi. O encorajamento nessa história é que, se

Deus precisar mesmo guiá-lo(a) para assegurar que você cumpra o seu

papel no propósito divino, ele o fará.

A outra reflexão é que mesmo Davi não questionava Deus sobre o

que fazer a cada cinco minutos. Usualmente, ele toma as próprias

decisões, admite a responsabilidade por seu próprio destino (e o destino

de seus homens). Após escapar de Queila, ele corre para as colinas, uma

vez mais sem a garantia de banhos ou comida ou segurança. Davi está

sob a proteção de Deus, mas não há qualquer referência a uma

orientação sobrenatural nesse trecho da narrativa. Davi apenas utiliza o

seu discernimento humano. No entanto, isso acarreta outros problemas,

como o massacre em Nobe comprova. Davi sabe que essa tragédia

ocorreu em consequência de sua ação. Tomamos as decisões, mas, às

vezes, não conseguimos enxergar as consequências.

Dois outros fatos ocorrem em favor de Davi. Um deles é a visita de

Jônatas, que foi uma atitude arriscada por parte de alguém cujo pai

tentou acertá-lo com uma lança por tomar o partido de Davi. Jônatas

“fortalece a sua mão por Yahweh”, reafirmando que tudo correrá bem

para Davi, que Deus irá protegê-lo e que ele acabará no trono. O outro

é que, quando Saul continuou procurando Davi, “Deus não entregou

Davi em suas mãos” — ao contrário do que o rei imaginou. A certa

altura, Davi e seus homens seguem ao longo de um lado da montanha,

enquanto Saul e seus homens seguem no lado oposto, na iminência de


fechar o cerco sobre Davi, mas mensageiros chegam a Saul para

informar-lhe sobre outro ataque dos filisteus, e ele é obrigado a

suspender a busca. Davi pode não ter manipulado a amizade e a

lealdade de Jônatas ou uma invasão dos filisteus no momento certo, mas

esses eventos “fortuitos” nos quais Deus não estava diretamente

envolvido operam em favor de Davi, e podemos imaginar que Deus está

feliz por eles.


1SAMUEL 24:1—25:44
TOLO POR NOME E POR NATUREZA

[1Samuel 24:1—25:1 descreve como Davi recusa uma oportunidade de matar Saul e, então,

anuncia a morte de Samuel.]

2
Havia um homem em Maom cujo negócio ficava em Carmelo. O homem era muito

abastado; ele tinha rebanhos de três mil ovelhas e de mil cabras. Ele estava tosquiando os

3
seus rebanhos em Carmelo. O nome do homem era Nabal; o nome de sua esposa era Abigail.

A mulher era inteligente e bonita. O homem era duro e um malfeitor. Ele era um calebita.

[Nos versículos 4-9, Davi envia alguns de seus homens a Nabal, presumindo que ele poderia

oferecer algum dinheiro em troca de proteção.]

10
Mas Nabal respondeu aos servos de Davi: “Quem é Davi, quem é esse filho de Jessé? Hoje,

11
há muitos servos fugindo de seus senhores. Devo pegar o meu pão, a minha água e a carne

que eu abati para os meus tosquiadores e dá-los a homens que não sei de onde são?”

[Nos versículos 12-17, em resposta a Nabal, Davi reúne um pelotão, e alguém conta a Abigail o

que está acontecendo.]

18
Abigail apressou-se a pegar duzentos pães, dois odres de vinho, cinco ovelhas preparadas,

cinco medidas de grãos torrados, cem bolos de uvas-passas e duzentos bolos de figos

19
prensados, colocou-os sobre jumentos e disse aos seus rapazes: “Vão à minha frente. Eu irei

23
atrás de vocês.” Ela não contou a Nabal, o seu marido [...] Quando Abigail viu Davi, ela

apressou-se em descer do jumento e prostrou-se com o rosto em terra diante de Davi,

24
curvando-se ao chão. Quando ela caiu aos seus pés, ela disse: “A transgressão é toda minha,

25
meu senhor. Que a tua serva lhe possa falar. Ouça as palavras de tua serva. Meu senhor,

por favor, não deves dar atenção a esse homem inútil, a Nabal, porque ele é o mesmo que o

28
seu nome. ‘Estúpido’ é seu nome, e a estupidez o segue [...] Tolere a presunção de tua serva,

porque definitivamente Yahweh fará para o meu senhor uma casa duradoura, pois o meu

senhor está lutando as batalhas de Yahweh, e o erro não será encontrado em ti, enquanto

29
viveres. Quando alguém se levantar para te persegui-lo e tirar a tua vida, a vida de meu

senhor estará atada ao feixe dos vivos com Yahweh, o teu Deus, mas a vida dos teus inimigos

32
ele irá arremessar [como se estivesse] no meio do buraco de uma funda [...]” Davi disse a

Abigail: “Yahweh, o Deus de Israel, seja louvado, que a enviou neste dia para me encontrar.

33
Bendito seja o seu bom julgamento e bendita seja você, que me impediu neste dia de

derramar sangue e de alcançar libertação para mim mesmo por minhas próprias mãos [...]”

36
Quando Abigail foi a Nabal, ele estava dando um banquete em sua casa, um banquete

como aquele de um rei. Assim, Nabal estava de bom humor e muito embriagado, e ela não lhe

37
disse nada pequeno ou grande até o amanhecer. De manhã, quando o [efeito do] vinho

tinha deixado Nabal, sua esposa lhe contou essas coisas, e seu coração desfaleceu dentro dele.

38
Ele se tornou como uma pedra. Cerca de dez dias mais tarde, Yahweh feriu Nabal, e ele

morreu.
[Os versículos 39-44 relatam como Davi se casa com Abigail; ele também havia desposado

Ainoã, mas Saul havia entregue Mical a outro homem.]

Creio que, algumas vezes, você já se perguntou por que determinada

mulher acabou se casando com certo homem, mas, no fim das contas,

chegou à conclusão de que o casal formava um bom par. Meu escritório

situa-se entre o de um colega e o de uma colega casados entre si.

Costumo brincar que a minha função é mantê-los separados durante o

expediente. Eles se conheceram quando ainda estudantes do seminário,

saíram juntos para fazer pós-graduação em outro lugar e, então,

retornaram ao seminário para lecionar. Eles são pessoas incríveis,

individualmente e como casal. No entanto, não sei o que os pais deles

pensaram sobre o seu casamento. Quando os pais de minha esposa

descobriram quem eu era, eles não pensaram que formávamos um par

perfeito; ela iria se formar em medicina, e eu seria um mero pastor.

Quando meus pais descobriram com quem a minha irmã desejava se

casar, eles também não viram neles um casal de futuro. Depois de dois

ou três anos de casamento, o meu cunhado abandonou a minha irmã

(grávida).

Parece que Nabal era um bom partido em termos financeiros, mas

isso era tudo. Seu nome já diz tudo. Nabal é uma das palavras hebraicas

com o significado de tolo. Quando o Antigo Testamento fala sobre tolos

e tolice, ele não se refere meramente a baixo aproveitamento em testes

de aptidão escolar. A tolice reside em se recusar a viver no mundo real,

falhar em enxergar a realidade, realidade essa que inclui Deus e as

expectativas divinas sobre a humanidade. Nabal era um tolo no nome e

um tolo por natureza. Reconhecidamente, existem inúmeras palavras

hebraicas que poderiam estar por trás do nome Nabal: uma delas é o

termo para um instrumento de cordas. Imagino que não era Nabal =

tolo o que seus pais tinham em mente quando deram um nome ao filho;

talvez o seu pai fosse um bom musicista, e o casal esperasse que ele
também fosse. Todavia, o nome provou ser curiosamente adequado, por

causa desse seu outro significado. Em certo sentido, Nabal devia ser um

homem sagaz, caso contrário ele não teria logrado tanto êxito como

criador de ovelhas, mas talvez também fosse inescrupuloso. A vida

israelita não era designada a funcionar de modo que algumas pessoas se

tornassem grandes latifundiários ou grandes fazendeiros e controlassem

o destino de famílias mais simples, mas, de um jeito ou de outro, Nabal

tinha logrado romper as restrições da Torá. Talvez esse fato esteja

conectado com o comentário sobre ele ser um calebita. Calebe é um

herói no contexto da história do Antigo Testamento, mas ele não era

um israelita de nascença. Desse modo, não é adequado presumir que ele

seguia a Torá. Considerando a descrição de Nabal como duro, malfeitor

e moralmente estúpido, pode haver alguma outra implicação na sua

descrição como um calebita, porque o nome Calebe é também similar a

um termo hebraico para um cão.

Abigail tinha outro tipo de inteligência. Ela sabia lidar com um fora

da lei como Davi e compreendia que não se deve criar confusão com

alguém como Davi, que está preparado para adotar medidas

desesperadas e cruéis a fim de que ele e a sua gangue possam sobreviver

à margem da lei. Além disso, ela possui o discernimento religioso que

falta ao seu marido. Se eles pertencem às margens de Israel, então ela se

une a pessoas como Raabe e Calebe, que não eram israelitas, mas que

reconheceram à ação de Yahweh e se submeteram a ele mais claramente

que alguns israelitas passíveis de menção (como Saul).

Assim, Davi e Abigail formam um par maravilhoso, para não dizer

potencialmente inflamado, pois ambos são bonitos, perspicazes, atentos

ao que Deus está fazendo e capacitados a ver o que é do interesse deles e

ir atrás disso. Não há qualquer sugestão de uma união de amor; Davi

jamais disse amar uma mulher, e o capítulo é encerrado com a menção a

outros casamentos de Davi. Para ele, não havia ligação entre amor e

casamento, e, muito menos, há qualquer sugestão de que Abigail

acreditasse nisso. Embora sejamos informados de que Mical era


apaixonada por Davi (mas, então, ela o perdeu), não há nenhuma

informação de que Abigail amou Davi mais do que amava Nabal (mas,

então, ela conseguiu agarrá-lo ou, pelo menos, parte dele). Ela pode ver

agora como os eventos em Israel estão se desenvolvendo; pode ver que

Deus está envolvido e, assim, mantém o olhar naquilo que é de seu

interesse.

Ao longo de toda essa narrativa sobre a perspicácia, a análise e a

estupidez humana, Deus está, novamente, em ação, operando para

cumprir a intenção de manter Davi em segurança, a fim de que, no

devido tempo, ele suba ao trono. Podemos ver esse processo no que

ocorre a Nabal. A história declara que Deus feriu Nabal, levando-o à

morte; isso leva à reflexão do motivo pelo qual Deus não fez o mesmo a

Saul, o que possibilitaria que a história fosse diretamente ao ponto. No

entanto, a história também implica que uma eventual autópsia não

revelaria nada estranho em relação à morte de Nabal. Ele trabalhava

duro, comia e bebia muito (outra daquelas palavras que o seu nome

poderia lembrar refere-se a um odre ou vasilha de couro de vinho, que

também aparece no relato). Por fim, ele passou por um grande susto, e

todos esses fatores combinados minaram o seu coração. Deus usou

aquela sucessão de fatos e eventos tanto quanto usou a astúcia de

Abigail. Somando-se a isso, Davi é capaz de indicar com certa

insensibilidade que Deus, portanto, se livrou de alguém que o insultou

(!), bem como o impediu de sujar as próprias mãos de sangue por um

ato de vingança. A Escritura transmite a impressão de que Deus, às

vezes, intervém e faz coisas que fariam o legista se questionar quanto ao

motivo daquela morte; contudo, uma vez mais, vemos como Deus,

igualmente, opera por meio de processos, decisões e oportunidades

comuns aos seres humanos.


1SAMUEL 26:1—28:2
QUEM É CAPAZ DE COLOCAR AS MÃOS NO UNGIDO DE

YAHWEH E ESCAPAR ILESO?


[A passagem de 1Samuel 26:1-5 relata como os zifeus revelam a Saul o esconderijo de Davi, de

modo que Saul prossegue em sua perseguição a Davi.]

6
Davi falou e disse a Aimeleque, o hitita, e a Abisai, filho de Zeruia, irmão de Joabe: “Quem

7
descerá comigo a Saul, no acampamento?” Abisai disse: “Eu irei com você.” Assim, Davi e

Abisai chegaram à companhia de noite. Saul estava dormindo, dentro do acampamento, com

sua lança fincada na terra, junto à sua cabeça, e Abner e a companhia deitados ao redor dele.

8
Abisai disse a Davi: “Hoje, Deus entregou o seu inimigo em suas mãos. Agora, deixe-me

atingi-lo com a lança, de um só golpe, até o chão. Eu não [precisarei] fazer isso duas vezes.”

9
Davi disse a Abisai: “Não o destrua, porque quem pode estender a mão contra o ungido de

10
Yahweh e permanecer inocente?” Davi disse: “Assim como Yahweh vive, não, Yahweh o

11
atingirá, ou o seu dia chegará e ele morrerá, ou ele descerá à batalha e perecerá. Yahweh me

proíba de estender a mão contra o ungido de Yahweh. Mas, agora, pegue a lança junto à sua

12
cabeça e o jarro de água, e vamos embora daqui.” Assim, Davi apanhou a lança e o jarro de

água, que estavam junto à cabeça de Saul, e eles se retiraram, sem que ninguém os visse,

soubesse ou despertasse, pois todos eles estavam adormecidos, porque um coma da parte de

13
Yahweh tinha caído sobre eles. Davi atravessou para o outro lado e ficou no topo da

14
montanha, a distância; o espaço entre eles era grande. Davi chamou pela companhia e por

Abner, filho de Ner: “Você não irá responder, Abner?” Abner respondeu: “Quem é você que

15
está chamando o rei?” Davi disse a Abner: “Você não é um homem? Quem é como você em

Israel? Porque você não manteve vigilância sobre o seu senhor, o rei? Porque um da

16
companhia veio para destruir o seu senhor, o rei. Isso que você fez não é bom. Como

Yahweh vive, vocês [todos] merecem morrer porque não mantiveram vigilância sobre o seu

senhor, o ungido de Yahweh. Vejam agora. Onde está a lança do rei e o jarro de água que

17
estavam junto à sua cabeça?” Saul reconheceu a voz de Davi e disse: “Esta é a sua voz, meu

18
filho Davi?” Davi disse: “[É] a minha voz, meu senhor rei.” [Davi] disse: “Por que o meu

21
senhor está perseguindo o seu servo? [...]” Saul disse: “Eu tenho agido errado. Volte, meu

filho Davi, porque eu não lhe farei mal de novo, por conta do fato de que a minha vida foi

valiosa aos seus olhos neste dia. Sim, tenho sido estúpido e cometido muitos erros grandes

25b 27:1
[...]” Mas Davi continuou o seu caminho, e Saul retornou para casa. Davi disse a si

mesmo: “Agora, eu serei algum dia varrido pela mão de Saul. Não há nenhum bom [curso]

para mim, exceto fazer uma fuga final para a terra dos filisteus.”

[O texto de 1Samuel 27:1b—28:2 descreve como Davi leva a sua companhia e as suas esposas

para Gate e se torna um vassalo do rei Aquis, reivindicando, então, viver ali em troca de atacar

os seus compatriotas israelitas, embora, na realidade, ele atacasse outros povos, como os

amalequitas, mas não deixando sobreviventes para não ser denunciado.]


No fim de semana passada, o Congresso dos Estados Unidos aprovou

um projeto de lei designado a reformar o sistema de saúde do país. Na

época em que você estiver lendo estas linhas, decerto saberá mais sobre

como tudo isso transcorreu. Pode ser que você não aprove a decisão do

Congresso, mas isso não afetará nenhum aspecto do processo. Tanto

democratas quanto republicanos reconheceram que os primeiros

estavam arriscando o seu futuro político ao submeterem esse plano ao

Congresso, por causa da enorme resistência da população em todo o

país. Ambos os partidos sabem que o eleitorado pode fazer os

democratas pagarem um elevado preço nas eleições de meio de

mandato, a serem realizadas daqui a alguns meses. O presidente sabe

que isso pode lhe custar o segundo mandato. Assim sendo, por que eles

assumiram esse risco? Porque estavam convencidos de que esse é o

melhor caminho para a nação. Eles colocaram os seus destinos e

interesses pessoais, bem como os seus empregos, em segundo plano,

atrás da ação correta a realizar.

Aqui, Davi age assim pela segunda vez. O primeiro relato desse tipo

apareceu no capítulo 24 e se trata de uma leitura cativante;

determinado a capturar Davi, Saul vai ao interior de uma caverna para

fazer suas necessidades. Ocorre que essa caverna é a mesma na qual

Davi e seus homens estão escondidos. Eles, portanto, têm uma grande

oportunidade de matar Saul, mas Davi decide apenas cortar um pedaço

do manto de Saul enquanto ele, claro, está ocupado. O que Davi e Saul,

então, dizem um ao outro é muito similar ao diálogo entre eles nesse

segundo episódio. É tentador inferir que esse seja outro exemplo em

1Samuel que inclui duas versões da mesma história. Seja como for, a

inclusão das duas histórias mostra a importância das questões que elas

levantam.
Paradoxalmente, apesar da certeza de que Deus abandonou Saul, ele

ainda está no trono. Ele ainda é o ungido de Deus e, portanto, ainda é

caracterizado como servo de Deus. Ainda persiste um sentido no qual

Deus está identificado com ele. O ponto é enfatizado nessa versão da

história pela crítica que Davi faz aos homens de Saul que falharam em

garantir a proteção ao rei. Ele não os acusou por falharem em verificar a

caverna antes de Saul ir ao interior dela (embora os agentes do

presidente dos Estados Unidos, certamente, passassem um pente fino

nela). Ele os acusa de estarem dormindo quando alguns deles deveriam

estar mantendo vigilância sobre o rei. Não importa que eles estejam sob

o efeito de um coma, induzido por Deus (é o mesmo termo usado em

Gênesis 2, quando Deus faz Adão cair em um sono profundo antes de

tirar uma de suas costelas).

A história, portanto, chama a atenção para a ambiguidade em nossa

atitude quanto aos governantes que parecem ter perdido a aprovação de

Deus e a nossa lealdade. Outros relatos do Antigo Testamento

pressupõem que há situações nas quais a rebelião está certa, e Deus

comissiona um golpe de Estado. Tais narrativas sublinham quanto um

evento desses é horrível. Pode-se inferir outro motivo pelo qual Davi

deveria estar contente por ser a história contada duas vezes. Não será

de seu interesse encorajar a ideia de que as pessoas são livres para

assassinar o rei sempre que se convencerem de que Deus o abandonou.

Mais tarde, quando ele está prestes a ascender ao trono, como sucessor

de Saul, e também quando ele já é, de fato, rei, haverá apoiadores de

Saul obviamente contrários a Davi. Já observamos que esse é um tema

subjacente ao relato do compromisso mútuo entre Jônatas e Davi e o

apoio contínuo de Davi à família de Jônatas (veja 1Samuel 21). Os

apoiadores de Saul poderiam facilmente acusar Davi de sempre ter sido

desleal a Saul e tramar a sua ascensão ao trono. O fato de Davi poupar a

vida de Saul em, pelo menos, duas oportunidades seria outro

fundamento sobre o qual Davi e seus apoiadores poderiam confrontar a


sugestão de que ele estivesse, de alguma forma, envolvido na morte do

primeiro rei.

Isso também chama a atenção para a tensão existente entre a nossa

liberdade ou responsabilidade de agir e a nossa liberdade ou

responsabilidade de permitir a ação de Deus. Davi sabe que a intenção

de Deus é remover Saul, mas ele não conclui que pode ser o meio pelo

qual a vontade divina será implementada, mesmo quando Abisai

expressa a tentadora sugestão de que Deus entregou Saul nas mãos de

Davi (o equivalente ao comentário de Saul de que Deus entregou Davi

nas suas mãos). Teria sido tão mais simples para Davi solucionar todos

os seus problemas e ainda manter as suas mãos limpas (porque a ação

seria de Abisai). Não, exclama Davi, Nabal fornece o exemplo a ser

lembrado por nós. Talvez Deus o atinja, ou pode ser que ele morra de

causas naturais ou, ainda, Saul pode ser morto em batalha (como, de

fato, acontece). Deixemos que a vontade de Deus seja cumprida por

meio de uma dessas formas. Esse não é o papel de Davi.

Muito menos o papel de Davi é ser ingênuo. Como Jesus expressará

no futuro, ele precisa ser prudente como as serpentes e simples como as

pombas. Quando Saul afirma que vê a verdade nas palavras de Davi e

fala com remorso sobre a sua perseguição a ele, Davi não se permite

enganar, pois já ouviu tudo isso antes. Após esse diálogo, quando Saul

retorna à sua casa, Davi não segue com ele, mas adentra ainda mais no

território filisteu e se torna um vassalo do rei de uma das cidades

filisteias. Para Davi e seus homens, isso significa comportar-se cada vez

mais como uma gangue de proscritos, jogando um lado contra o outro e

não mais se preocupando com a distinção entre verdade e mentira. A

narrativa não tece comentários sobre os acertos e erros de tudo isso. O

texto não dá nenhuma pista sobre se devemos desaprovar a ação de

Davi ou não. Pode ser que simplesmente devamos aceitar que, algumas

vezes, isso é compreensível. Ou, talvez, a história presuma que a

obrigação quanto à verdade dentro do povo de Deus (mesmo entre os


inimigos dentro do povo de Deus) é diferente da obrigação em relação a

pessoas cujo objetivo é destruir o povo de Deus.


1SAMUEL 28:3—29:11
O QUE VOCÊ FAZ QUANDO ESTÁ DESESPERADO?
3
Ora, Samuel tinha morrido, e todo o Israel lamentou por ele e o enterrou em Ramá, a sua

4
cidade; e Saul removera os espíritos e fantasmas do país. Os filisteus se reuniram e foram a

5
Suném e acamparam; Saul reuniu todo o Israel e acampou em Gilboa. Saul viu as forças

6
filisteias e teve medo; seu coração estremeceu violentamente. Saul inquiriu Yahweh, mas

7
Yahweh não respondeu, seja por sonhos, seja pelo Urim, seja pelos profetas. Então, Saul

disse aos seus servos: “Procurem para mim uma mulher que saiba sobre espíritos para que eu

possa ir e consultar por meio dela.” Os seus servos lhe disseram: “Ora, há uma mulher que

8
sabe sobre espíritos em En-Dor.” Assim, Saul disfarçou-se, vestiu roupas diferentes e foi, ele

e dois homens com ele, e chegaram à mulher à noite. Ele disse: “Você adivinhará por meio de

9
um espírito para mim e trará para mim aquele que eu lhe falar.” A mulher lhe disse: “Ora,

você sabe o que Saul fez, que ele cortou espíritos e fantasmas do país. Por que você está

10
colocando uma armadilha para a minha vida, para me matar?” Saul jurou a ela por Yahweh:

“Tão certo quanto Yahweh vive, [a punição pela] transgressão não virá sobre você por causa

11
desse assunto.” Então, a mulher disse: “Quem eu devo fazer subir para você?” Ele disse:

12
“Samuel. Traga-o a mim.” Quando a mulher viu Samuel, ela gritou em alta voz. A mulher

13
disse a Saul: “Por que me enganaste? Tu és Saul.” O rei lhe disse: “Não tenha medo. Mas o

14
que você vê?” A mulher disse a Saul: “É um ser divino que vejo subindo da terra.” Ele lhe

disse: “Como ele é?” Ela disse: “Um homem velho está subindo. Ele está vestindo um

manto.” Saul reconheceu que era Samuel. Ele curvou-se com o rosto em terra, prostrando-se.

15
Samuel disse a Saul: “Por que você me perturbou e me trouxe para cima?” Saul disse: “As

coisas estão difíceis para mim. Os filisteus estão lutando comigo. Deus se afastou de mim. Ele

não me responde mais, seja por meio dos profetas, seja por sonhos. Eu o chamei para me

16
capacitar a saber o que devo fazer.” Samuel disse: “Então, por que você me pergunta

17
quando Yahweh se afastou de você e se tornou seu inimigo? Yahweh lhe fez o que declarou

18
por mim. Yahweh rasgou o reinado de suas mãos e o deu ao seu rapaz, a Davi, quando você

não ouviu a voz de Yahweh e não executou a sua ira sobre Amaleque. Eis por que Yahweh lhe

19
fez isso neste dia. Yahweh também dará Israel com você nas mãos dos filisteus. Amanhã

você e seus filhos estarão comigo. Yahweh também dará as forças israelitas nas mãos dos

filisteus.”

[A passagem de 1Samuel 28:20—29:11 relata como Saul é tomado pelo medo e como a mulher e

os seus servos insistem para ele comer antes de retornar. Nesse meio-tempo, os filisteus insistem

que Davi não receba permissão para se unir a eles na batalha contra Israel, pois não confiam

em sua lealdade.]
No próximo domingo, completará nove meses desde o falecimento de

minha esposa. Penso constantemente nela e sonho com ela, algumas

vezes em sua cadeira de rodas, na qual permaneceu por anos, mas, em

outras, a vejo plena e apta a viver uma vida normal, como outrora. Eu a

retrato agora adormecida numa espécie de cubículo no interior de um

dormitório. Suponho que essa imagem venha da promessa de que

haverá muitos aposentos para as pessoas na casa do Pai de Jesus (João

14:2). Eu não gostaria de pensar nessas coisas como quartos separados;

aprecio mais imaginar anjos caminhando ao redor de um dormitório

amplo, com olhos atentos sobre cada um. Eu sei que ela está “com

Jesus”, cuja presença preenche o dormitório. Seria também bíblico

descrevê-la no seio de Abraão, embora esse local estivesse um pouco

lotado, para não dizer que seria um pouco bizarro. Eu oro por ela, para

que Deus continue mantendo o seu olhar sobre ela, enquanto Ann

aguarda pelo dia da ressurreição. Jamais tive a impressão de que ela

tenha aparecido para mim, como afirmam algumas pessoas enlutadas, e

não passa pela minha cabeça tentar entrar em contato com ela, o que me

torna, como a maioria dos ocidentais, um pouco estranho. As culturas,

na maioria, creem ser possível fazer contato com familiares já falecidos,

e um dos motivos a incentivar essa prática é a possibilidade de os

mortos terem acesso a alguma informação à qual o acesso dos vivos é

vedado.

A última suposição encontra-se subjacente a essa narrativa. Os

espíritos ou fantasmas aos quais o texto se refere são os espíritos de

pessoas já falecidas. Em quase todas as culturas têm existido

especialistas em fazer contato com os espíritos. Sem dúvida alguma,

alguns deles eram charlatães, mas o Antigo Testamento não afirma que

fazer contato dessa maneira seja impossível; simplesmente diz que essa

prática é proibida aos israelitas, porque eles possuem outros meios de

descobrir a vontade e os planos de Deus, mas os instintos comuns do

povo de Deus, usualmente, triunfam sobre o que a Bíblia diz. As efígies

que Mical, a filha de Saul e esposa de Davi, possuía (veja 1Samuel 19)
seriam usadas para fazer contato com familiares mortos. A declaração

mais marcante na presente história é que Saul baniu todos os espíritos e

fantasmas — isto é, baniu os espíritas e médiuns considerados capazes

de fazer contato com eles. Trata-se de uma expressão notável de

compromisso com Yahweh, embora, obviamente, não suficiente para

compensar as demais falhas em cumprir exatamente o que Yahweh diz.

A Torá, de fato, declara que os espíritas e médiuns devem ser mortos, e

a mulher teme que a prática de seu ofício possa custar a sua vida, em

que pese haver na Torá muitas ofensas a serem punidas com a morte

que, na prática, parecem não significar isso literalmente.

É a véspera do último grande confronto entre Saul e os filisteus, e o

rei precisa da orientação divina, mas ele não a consegue por meio de

sonhos, pelo Urim e Tumim ou pelos profetas, que são os meios que

Israel deve usar no lugar dos fantasmas e dos espíritos. Por conseguinte,

Saul é forçado a buscar orientação pelos meios que ele mesmo havia

proibido. Ele promete que, se alguém deve ser punido por quebrar o

édito do rei (!), se “a transgressão vier” sobre alguém, a punição não

virá sobre ela, por ser a pessoa que fez o contato, mas sobre ele, que a

persuadiu a fazê-lo. Quando Samuel aparece, algo faz a médium

perceber quem Saul realmente é. Ela chama Samuel de “um ser divino”;

essa é a mesma palavra, normalmente traduzida por Deus, deus ou

deuses, mas pode tratar-se de uma referência a qualquer ser não terreno.

Essa ambiguidade, em geral, não é complexa, já que, com base no

contexto, é fácil ver a que tipo de ser o texto se refere. Talvez o uso

dessa palavra sugira que a aparência de Samuel fosse mais

impressionante do que a de um espírito comum. Pode ser que haja algo

sobre a sua aparência que o caracterize como um profeta. Ainda, é

possível que a mulher não imaginasse que alguém tão importante

quanto Samuel pudesse aparecer a uma pessoa tão insignificante como

ela; isso lhe permitiu compreender quem Saul era. A principal função de

um profeta era guiar o rei. Se Samuel estava preparado para ter o seu

sono interrompido, isso sugeria que o visitante era alguém importante,


embora Samuel tenha evidenciado o seu desagrado pela interrupção de

seu sono. Ele também é tão duro morto quanto o era em vida,

especialmente com Saul.

Toda vez que um profeta revela ao povo que um destino terrível os

aguarda, eles têm uma oportunidade de voltar atrás, e, quando eles

assim agem, a ira de Deus é abrandada (Jeremias 18 constitui a grande

expressão desse princípio, e Jonas 3 é a grande ilustração), mas, na

maioria dos casos, eles já foram longe demais, e a palavra profética

apenas antecipa o que realmente irá acontecer. Saul foi muito longe e ali

permaneceu por um longo tempo. Enquanto lemos a sua história,

frequentemente sentimos vontade de gritar: “Não faça isso”; “Volte”;

“Deixe Davi ficar com esse trono estúpido”. Mas ele não consegue

ouvir; nós não o alcançamos; Deus não o alcança. Não sei se devo dizer,

de modo mais trágico, que Deus não queria alcançá-lo. Certamente,

Deus o queria fora do caminho. Além disso, os filisteus estão prestes a

tirá-lo do caminho e (ironicamente) abrir o caminho para outro líder

que os derrotará.

Saul desaba aterrorizado. Ele não se alimentou durante todo o dia e

toda a noite, e, numa comovente cena de encerramento da história, a

mulher e os seus servos o convencem a permitir que ela lhe prepare a

derradeira refeição de sua vida, após a qual ele retorna com suas tropas

ao encontro de seu destino.

Saul tinha ido ver a mulher quando os dois exércitos estavam

reunidos na grande planície central de Israel. Essa é outra daquelas

áreas fronteiriças entre as regiões sob o controle dos israelitas e dos

filisteus. Uma vez mais, Israel controla a região montanhosa, o que, no

caso, é a parte norte da moderna Cisjordânia; os filisteus controlam a

própria planície, com suas grandes cidades. No capítulo 29, a narrativa

remonta ao momento no qual os filisteus tinham reunido as suas forças

antes de marcharem rumo à planície central. Os filisteus se reuniram em

Afeque, a sudoeste, em outro ponto fronteiriço entre a Cisjordânia e a

planície, não muito distante do local no qual filisteus e israelitas já


tinham lutado antes. Davi conseguiu ludibriar Aquis, rei de uma das

cidades filisteias, fazendo-o acreditar que ele tinha passado para o lado

filisteu, mas os reis de outras cidades filisteias não eram tão crédulos

assim. Como qualquer outro agente duplo competente, Davi mantém

uma face ousada e olha Aquis nos olhos, protestando sua lealdade,

embora talvez Aquis não seja perspicaz o suficiente para perceber a

ambiguidade em seu protesto. Davi diz: “Quero ir e lutar contra os

inimigos de meu senhor e rei.” A sua intenção é convencer Aquis de que

ele está falando dele. Mas será que Davi, na verdade, não estava falando

de Saul? A sua intenção é mudar de lado no meio da batalha? Na

verdade, essa questão nem será levantada.


1SAMUEL 30:1—31:13
ÚLTIMO ATO DE LEALDADE A SAUL

[O capítulo 30 relata como Davi, após ser dispensado pelos filisteus, descobre que os

amalequitas tinham atacado a sua base, em Ziclague, e capturado as mulheres e as crianças.

Então, ele sai para resgatá-los.]

CAPÍTULO 31

1
Quando os filisteus lutaram com Israel, os israelitas fugiram dos filisteus e caíram mortos

2
no monte Gilboa, e os filisteus alcançaram Saul e seus filhos. Os filisteus atingiram os filhos

3
de Saul, Jônatas, Abinadabe e Malquisua. A batalha foi dura contra Saul, e os arqueiros o

4
localizaram. Ele foi gravemente ferido pelos arqueiros. Saul disse ao seu escudeiro:

“Desembainhe sua espada e me atravesse com ela, para que esses homens incircuncisos não

venham, me atravessem e me atormentem.” Mas o seu escudeiro não estava disposto por

5
estar com muito medo, de maneira que Saul tomou a sua espada e caiu sobre ela. Quando o

escudeiro viu que Saul estava morto, ele também caiu sobre a sua espada e morreu com ele.

6
Assim, Saul morreu, e seus três filhos, e seu escudeiro, bem como todos os seus homens,

7
todos eles naquele dia. Quando os israelitas do outro lado da planície e do outro lado do

Jordão viram que os israelitas tinham fugido e que Saul e seus três filhos estavam mortos,

8
eles abandonaram as suas cidades e fugiram, e os filisteus vieram e se assentaram nelas. No

dia seguinte, os filisteus foram para saquear os mortos e encontraram Saul e seus três filhos

9
caídos no monte Gilboa. Eles cortaram a sua cabeça e despojaram as suas armas, enviando-

10
as por toda a terra dos filisteus para levar as novas à casa de seus ídolos e ao povo. Eles

colocaram as suas armas na casa das Astarotes. Eles amarraram o seu corpo no muro de

11
Bete-Seã, mas, quando os habitantes de Jabes-Gileade ouviram sobre isso (o que os

12
filisteus tinham feito a Saul), partiram, todo homem apto, viajaram durante toda a noite e

tiraram o corpo de Saul e os corpos de seus filhos dos muros de Bete-Seã. Eles chegaram a

13
Jabes-Gileade e os queimaram ali, pegaram os seus ossos e os enterraram debaixo da

tamargueira em Jabes, e jejuaram sete dias.

Na primeira vez que fui à Califórnia, ocasionalmente os estudantes me

questionavam sobre quanto tempo iria ficar lá, imaginando que fosse

apenas um período sabático. A princípio, eu respondia: “Quero morrer

aqui”, querendo apenas expressar “Estou aqui de modo permanente”,

mas essa resposta os chocava, fazendo-os até mesmo dar um passo para

trás. Eu tinha mencionado a morte. Não se conversa sobre a morte na


Califórnia, onde as pessoas gostam de pensar que seja algo voluntário.

Ao contrário, a Bíblia gosta de abordar esse tema. Os derradeiros

momentos de Jacó, José, Moisés, Josué, Eli ou Davi (sem nos

esquecermos de Jesus ou Estêvão) são importantes para qualquer um.

Eles podem ser relevantes ocasiões de ensino para toda a comunidade.

Antes de abordar a morte de Saul, a narrativa nos conta o que Davi

estava fazendo quando foi impedido de participar da batalha entre os

israelitas e os filisteus. Ziclague situava-se no Neguebe, na região de

Berseba e de Gate, outra área fronteiriça entre os territórios

controlados por filisteus e israelitas. Ela ficava distante o suficiente de

Gate para Davi fugir de lá e executar ataques sobre povos como os

amalequitas, sem que seu chefe, Aquis, o rei da cidade de Gate, lograsse

descobrir o que realmente ocorria quando Davi dizia que estava

atacando cidades israelitas vizinhas. Infelizmente, a cidade ficava muito

próxima dos amalequitas, permitindo que eles retribuíssem o ataque.

Quando retorna de sua entrevista de emprego com Aquis, Davi

descobre que os amalequitas tinham incendiado a cidade de Ziclague,

embora não tivessem matado todos os seus habitantes, como Davi

certamente teria feito, mas os capturou. Os homens de Davi não ficaram

satisfeitos com ele por permitir que isso ocorresse. Davi ainda conta

com o apoio de Abiatar e, portanto, pede que o sacerdote lhe traga o

éfode para consultar Deus sobre se ele deve perseguir os amalequitas

com a certeza do êxito. É difícil imaginá-lo não tentando o resgate, mas,

de qualquer modo, Deus dá o sinal verde. Essa é outra demonstração de

que Deus está com ele, não com Saul. No trajeto, eles encontram um

escravo doente a quem os amalequitas abandonaram, mas que é capaz

de conduzi-los na direção certa. Assim, uma vez mais, as circunstâncias

operam por meio de combinação de comprometimento, “sorte” e

orientação divina. Alguns homens de Davi, aparentemente, estão

desgastados demais para prosseguir, mas, mesmo assim, Davi insiste em

compartilhar os despojos com eles, após ganharem a batalha. Uma vez

mais, isso mostra que Davi é um homem que procura fazer a coisa certa.
Igualmente, ele distribui o saque entre outras cidades judaítas, o que,

de novo, mostra a sua perspicácia, porque essa atitude renderá

dividendos quando o dia da eleição chegar.

Não estou bem certo de que a morte de Saul é um desses momentos

de ensino, como alguns outros, exceto quando considerada num sentido

mais amplo. É o último ato de uma tragédia. A história não lida com a

questão sobre se o suicídio de Saul, em si, constitui um pecado. A Bíblia

não lida com esse tema em nenhum dos suicídios que relata. O seu foco

permanece no caminho que levou a trágica história de Saul a um

epílogo igualmente trágico. Isso não significa que o suicídio seja

correto, mas nos aponta uma direção diferente de reflexão.

Agora, usamos a palavra “tragédia”, num sentido bem mais amplo,

como referência a qualquer evento terrível que cause grande perda ou

sofrimento, porém tecnicamente a palavra se refere à história de alguém

importante, que vai do prestígio e das conquistas para a perda de tudo,

em geral como resultado de uma falha de caráter. Há, portanto, certa

lógica ou inevitabilidade acerca de uma tragédia, mas pode existir

também uma percepção de que a pessoa é vítima de considerações ou

fatores externos a ele ou ela. Desse modo, as tragédias são narrativas

assustadoras. Elas nos lembram de maneiras pelas quais podemos ser

nossos piores inimigos e de outras por meio das quais somos

responsáveis por nosso destino, embora não tenhamos pleno controle

sobre ele.

A história de Saul é desse tipo. Ele foi escolhido para realizar um

trabalho que, na realidade, Deus não queria. Saul sabia que não possuía

as competências necessárias e nem mesmo queria aquele trabalho, mas

ele não conseguiu fugir dele. Deus lhe mostrou que podia capacitá-lo,

mas Saul não retribuiu a Deus com o nível de obediência que Deus

buscava, e Deus não abriu exceções para ele nesse sentido. Saul não era

um homem segundo o coração de Deus, a exemplo do que Davi seria —

não no sentido de que Davi é notadamente mais santo do que Saul, mas

no sentido de que Davi é o homem no lugar certo e na hora certa, ao


passo que Saul não é esse homem. Deus precisava enfatizar um ponto

por meio de Saul; ao fazer isso, Deus fará concessões a Davi jamais

permitidas ao primeiro rei. Todavia, Saul não tem do que reclamar; as

suas falhas de caráter foram claras o suficiente e, assim, a sua tragédia

decorre delas.

Pode-se imaginar que tudo isso significa que Deus não é justo, e essa

é uma conclusão razoável a ser extraída desse relato. Deus não está

muito preocupado com justiça. Muito mais tarde, haverá outro Saul

[Saulo] a quem Deus aparece, miraculosamente, para abalar a sua

oposição a Jesus e transformá-lo num de seus mais poderosos

pregadores. Isso não foi justo. Saulo não merecia isso. Houve outros

opositores de Jesus que não tiveram esse encontro milagroso que Saulo

teve para convertê-los. Nas histórias sobre Saul e Saulo, Deus está

trabalhando num quadro muito maior e ambos são tratados da forma

que foram por causa desse grande quadro. Isso nada tem a ver com a

salvação eterna deles: a probabilidade de você encontrar Saul no dia da

ressurreição é a mesma de encontrar Davi ali. Isso está conectado ao

papel que eles desempenham no propósito de Deus e nada tem a ver

com a felicidade pessoal ou o senso de realização deles. Quando

chegamos ao fim da história de Davi, não iremos concluir exatamente:

“Davi foi muito afortunado por viver a vida que viveu.” A vida dele

também terminará em confusão. A resposta mais apropriada de nossa

parte é a gratidão pelo fato de escaparmos, quase todos nós, de ser

lançados a papéis importantes no grande quadro de Deus.

Todavia, outra forma apropriada de resposta é uma forma estranha

de gratidão. Em nossa vida, é provável que experimentemos as nossas

próprias injustiças. O fato de Ann, a minha esposa, viver com esclerose

múltipla por 43 anos e passar os últimos doze anos de sua vida presa a

uma cadeira de rodas não resultou de uma falha de caráter, e isso não foi

justo para ela; e também não foi divertido para mim. Todavia, Deus

teceu essa experiência naquele grande quadro divino ao dar a Ann um

ministério junto a outras pessoas que só foi possível por causa de sua
enfermidade. Usualmente, não conseguimos enxergar o que faz as coisas

acontecerem em nossa vida, da mesma forma que podemos ver na vida

de Saul. Podemos saber que Deus é capaz de tecê-las em seu grande

quadro.

Apreciamos quando os filmes a que assistimos terminam com, pelo

menos, uma tênue nota de esperança em vez de uma persistente

desolação, e é isso o que a história de Saul, tanto quanto a de Sansão,

fazem. No cume da enorme colina em Bete-Seã, na qual sucessivas

cidades foram construídas umas sobre as outras, muito tempo atrás,

havia uma velha árvore nua e retorcida. Eu costumava imaginá-la como

a árvore na qual o corpo de Saul foi pendurado. Ali, o seu corpo inerte

acabaria como alimento para os abutres e como algo que traria

impureza sobre a terra, de acordo com a Torá. Contudo, os homens de

Jabes-Gileade não deixaram isso acontecer. Portanto, ao fim da história

de Saul, eles nos lembram de seu momento mais sublime, a narrativa

presente no capítulo 11, ressaltando quanto muitos israelitas amavam e

apreciavam Saul. O ato de queimar os corpos de Saul e de seus três

filhos significa que os filisteus não poderiam mais vir e abusar deles

novamente. Num estranho sentido, Saul e seus filhos estão livres para

descansar sob uma tamargueira. Há somente três tamargueiras na

Bíblia; aquela plantada por Abraão em Berseba (Gênesis 21); aquela

sob a qual o próprio Saul se assenta, em Gibeá (1Samuel 22); e, por fim,

a tamargueira debaixo da qual ele é sepultado. Todas são árvores

frondosas com lindas flores.


2SAMUEL

2SAMUEL 1:1—2:31
COMO OS PODEROSOS CAEM
1
Após a morte de Saul, e quando Davi tinha voltado de derrotar os amalequitas e

2
permanecido em Ziclague por dois dias, no terceiro dia um homem veio do acampamento de

Saul. Suas roupas estavam rasgadas, e havia terra sobre a sua cabeça. Quando ele veio a

3
Davi, caiu ao chão e curvou-se. Davi lhe disse: “De onde você estava vindo?” Ele lhe disse:

“Eu escapei do acampamento israelita.” Davi lhe disse: “O que aconteceu? Vamos, me

conte.”

[Nos versículos 4-16, o homem descreve o que aconteceu, mas diz que ele matou Saul a pedido

do rei e entrega a Davi a coroa e a braçadeira de Saul. Davi ordena que ele seja morto por ferir

o ungido de Yahweh.]

17 18
Davi cantou esta elegia sobre Saul e Jônatas, seu filho, e disse que os judaítas deveriam

ser ensinados:

“O Arco” (escrito no Livro de Jasar)

19
A gazela, Israel, está morta em suas alturas.

20
Como caíram os guerreiros; não conte isso em Gate,

Não anuncie as novidades nas ruas de Ascalom,

Para que as filhas dos filisteus não comemorem,

Para que as filhas dos incircuncisos não exultem.

21
Montes de Gilboa, que não haja orvalho,

Nem chuva sobre vocês, nem campos de ofertas,

Porque ali o escudo dos guerreiros foi manchado,

O escudo de Saul, não mais esfregado com óleo.

22
Do sangue dos mortos, da gordura dos guerreiros,

O arco de Jônatas não recuou,

A espada de Saul não retornou vazia.

23
Saul e Jônatas, amados e aprazíveis,

Em sua vida e em sua morte eles não foram separados.

Eles eram mais ágeis do que águias, mais fortes do que leões.

24
Filhas de Israel, pranteiem por Saul,

Que as vestia de escarlate e adornos,

Que colocou ornamentos de ouro em suas vestes.

25
Como caíram os guerreiros no meio da batalha —
26
Jônatas, morto em suas alturas, é difícil para mim por sua causa.

Meu irmão Jônatas, você era muito agradável para mim.

O seu amor era maravilhoso para mim, mais do que o amor de mulheres.

27
Como caíram os guerreiros e as armas de batalha pereceram!

[O capítulo 2 relata como Davi estabeleceu residência em Hebrom e ali foi ungido como rei

pelos judaítas. Ele agradece aos homens de Jabes-Gileade por sepultarem Saul. Abner,

comandante do exército de Saul, levou Is-Bosete, filho de Saul, para ser coroado como rei sobre

Efraim. Durante um confronto entre as forças de Abner e as forças de Davi, Abner mata Asael,

um dos principais homens de Davi.]

Anteontem foi o Dia da Educação e da Participação, nos Estados

Unidos, um dia estabelecido em honra ao rabino Menachem Mendel

Schneerson, falecido em 1994. Durante a sua vida, alguns de seus

seguidores acreditavam que ele era o messias, crença que alguns ainda

sustentam após a sua morte. Neste ano, como nos anteriores, no dia em

que seu nome é celebrado, um anúncio estampado em um jornal

conclama as pessoas a aceitarem a sua realeza como messias. Isso inclui

a explicação de que “um rei judeu não pode autodeclarar-se rei; ele pode

apenas se tornar rei mediante a aceitação do povo”. Seria essa aceitação

que levaria à sua ressurreição e retorno como messias. Na mídia social,

alguém comentou: “Reis judeus não precisam do apoio do povo para

serem declarados reis: basta um pouco de azeite, um riacho e um

profeta.”

A história de Davi, como um todo, oferece algum suporte a ambas as

compreensões de como alguém se torna rei de Israel. Ela envolve tanto

a unção de Deus quanto a aceitação do povo. Muito tempo antes, Deus

já havia enviado Samuel para ungir Davi como aquele que devia

substituir Saul no trono. Na prática, todavia, Davi torna-se rei na vida

de Israel somente quando o povo o aceita. Isso se revelará um processo

humano e político confuso, conflituoso e gradual. Politicamente, a

posição de Davi sobrepõe-se à de um líder oposicionista que busca

derrubar o governo vigente. Segundo a perspectiva governamental e,


agora, dos apoiadores de Saul, Davi é um terrorista. Por sua base ser em

Judá, de onde ele vem, é para lá que ele vai a fim de obter a sua primeira

unção humana. Trata-se de um movimento astuto, humanamente

falando, mas pelo qual Davi também consultou Deus. Ele não se

apressou em mostrar a sua mão ou o seu rosto na região de domínio de

Saul, mais ao norte, e a narrativa do capítulo 2 quanto ao embate entre

as forças leais a Saul e as forças leais a Davi demonstra a sabedoria em

sua cautela.

Um tema subjacente à parte final de 1Samuel é o respeito e a

lealdade de Davi pelo rei. Ele submeteu-se a Saul de todas as maneiras,

exceto em relação ao seu assassinato. Davi cometeu atos que podiam ser

enquadrados como terrorismo, mas ele jamais os cometeu contra o seu

próprio povo. Nesse quesito, a história retrata Davi como o “mocinho”,

embora possamos apenas adivinhar a quem ela busca convencer. Pode

ser aos apoiadores de Saul quando a sucessão ainda é uma questão

aberta, ou após ela ser formalmente definida. Pode ser a descontentes

tardios, propensos a assassinar Davi ou mesmo um rei posterior, a quem

Davi é apresentado como um exemplo. Esse tema prossegue no início de

2Samuel. A repetição da narrativa sobre a morte de Saul reflete a

maneira pela qual 1Samuel segue em 2Samuel. Como frequentemente

ocorre de Gênesis a Reis, é como se o primeiro livro representasse a

temporada inicial de uma série de TV, com a segunda temporada sendo

retomada a partir do segundo livro, porém com uma mudança de foco.

A história da morte de Saul, ao fim de 1Samuel, encerra o relato sobre o

reinado de Saul. Todavia, esse mesmo relato da morte de Saul, em

2Samuel, abre a narrativa sobre o reinado de Davi. Ainda, essa

sequência é feita de modo que mantenha o retrato de Davi como o

“mocinho” da história.

A sua abertura contém mais do que uma ironia. Enquanto Saul

estava sendo derrotado pelos filisteus, após falhar em obter orientação

da parte de Deus, exceto pelo uso de meios não ortodoxos que em nada

o beneficiaram, Davi, com a orientação de Deus, estava derrotando os


amalequitas. Então, ocorre de o mensageiro que traz as novidades a

Davi ser — um amalequita! Esse fato provoca algumas questões.

Considerando a hostilidade de Deus em relação a Amaleque, como Saul

veio a ter amalequitas em seu exército? Ainda, dado que o próprio Saul

aniquilou os amalequitas (veja 1Samuel 15), como há amalequitas em

seu exército e como restaram amalequitas suficientes para capturar

Ziclague (1Samuel 30)? Trata-se de outra indicação de que não

devemos ser excessivamente literais na compreensão das afirmações do

Antigo Testamento sobre a destruição dos povos. A história em

2Samuel 1 oferece uma informação que pode, parcialmente, responder a

algumas dessas questões, porque o mensageiro amalequita explica a

Davi que ele é filho de um residente estrangeiro. Ora, ele já mentira a

Davi sobre ter matado Saul na suposição de que Davi ficaria contente

ao ouvir esse relato e, portanto, quem sabe dizer se ele também não

estaria mentindo sobre a sua posição. Mas, não obstante, a mentira é

deveras interessante. Ela pressupõe que a política imigratória de Israel

era a de portas abertas. Qualquer um podia se unir a Israel, mesmo um

amalequita. Tudo o que ele precisa fazer é se tornar um “verdadeiro”

israelita, isto é, ele deve viver pela Torá. Ainda (como Davi assume), ele

deve honrar o rei e, com sua falsa confissão, o amalequita provou ter

falhado nisso.

Sua história relata como Davi veio a possuir a coroa e a braçadeira

de Saul, algo que os simpatizantes de Saul poderiam achar suspeito, A

integridade da relação de Davi com Saul e Jônatas, o filho a quem Saul

tinha designado como seu sucessor, encontra uma mostra adicional no

cântico de lamento de Davi por eles. A gazela, em sua agilidade,

velocidade e graça, representa Saul ou Jônatas, ou mesmo ambos. O

termo hebraico para gazela é o mesmo para significar beleza,

graciosidade ou honra, de modo que os israelitas poderiam

compreender de qualquer forma, mas eles apreciavam usar imagens de

animais para retratar pessoas; eis o motivo de o poema, mais adiante,

citar a águia e o leão. No passado, Saul e Jônatas haviam sido guerreiros


eficientes, mas, agora, a morte deles é sumarizada no retrato do escudo

de Saul manchado de sangue em vez de polido e pronto para o uso. A

elegia incita o lamento da própria natureza. Davi reconhece que o

compromisso de Jônatas com ele envolvia uma questão de vida e de

morte.
2SAMUEL 3:1—4:12
A LUTA PELO PODER
1
A guerra entre a casa de Saul e a casa de Davi prolongou-se por muito tempo, mas Davi

2
estava ficando cada vez mais forte, e a casa de Saul, cada vez mais fraca. Filhos nasceram a

3
Davi em Hebrom. Seu primogênito foi Amnom, de Ainoã, a jezreelita. Seu segundo filho foi

Quileabe, de Abigail, a esposa de Nabal, o carmelita. O terceiro foi Absalão, o filho de Maaca,

4
filha de Talmai, rei de Gesur. O quarto foi Adonias, o filho de Hagite. O quinto foi Sefatias,

5
o filho de Abital. O sexto foi Itreão, de Eglá, esposa de Davi. Estes nasceram a Davi em

Hebrom.

6
À medida que a guerra continuava entre a casa de Davi e a casa de Saul, Abner estava

7
ganhando força na casa de Saul. Saul tinha uma esposa secundária cujo nome era Rispa,

filha de Aiá. [Is-Bosete] disse a Abner: “Por que você dormiu com a esposa de meu pai?”

8 12
Abner ficou muito irritado com as palavras de Is-Bosete [...] Então, Abner enviou

ajudantes a Davi em seu próprio nome, dizendo: “A quem a terra pertencerá?” [e] dizendo:

“Você deveria selar a sua aliança comigo. Assim, a minha mão estará contigo para tornar

13
todo o Israel para ti.” [Davi] disse: “Bom. Eu mesmo selarei uma aliança com você. Apenas

lhe peço uma coisa. Você não verá o meu rosto, a menos que traga de antemão a Mical, filha

14
de Saul, quando vier ver o meu rosto.” E Davi enviou ajudantes a Is-Bosete, filho de Saul,

dizendo: “Dê-me Mical, a minha esposa, a quem eu desposei por cem prepúcios de filisteus.”

15 16
Assim, Is-Bosete mandou e a tomou de seu marido, Paltiel, filho de Laís. O seu marido

foi com ela, chorando enquanto a seguia até Baurim, mas Abner lhe disse: “Vá, volte”, e ele

voltou [...]

23b
Eles disseram a Joabe: “Abner, filho de Ner, veio ao rei, e ele o mandou embora; ele foi em

24
paz”. Joabe foi ao rei e disse: “O que fizeste? Ora, Abner veio a ti. Por que o mandaste

25
embora? Ele foi imediatamente. Conheces Abner, filho de Ner, que ele veio para enganar-

26
te, e que ele está vindo e indo e sabe tudo o que estás fazendo.” Joabe saiu de estar com

Davi e enviou ajudantes atrás de Abner, e eles o trouxeram de volta, desde a cisterna de Sirá.

27
Davi não sabia. Quando Abner voltou a Hebrom, Joabe o chamou à parte, dentro do

portão, para falar com ele em particular, mas ali o esfaqueou no estômago. Ele morreu pelo

sangue do irmão [de Joabe].

[Os demais versículos dos capítulos 3 e 4 relatam como Davi repreendeu Joabe e fez que Abner

fosse lamentado e enterrado. Dois dos comandantes do exército de Saul, então, matam Is-

Bosete e levam a sua cabeça até Davi; Davi ordena que eles sejam também mortos e enterra a

cabeça de Is-Bosete na sepultura de Abner.]


Um de meus colegas mantém um grupo de estudo bíblico em sua

residência para homens que ele conheceu por meio de uma organização

que busca fornecer acomodação a pessoas desabrigadas em nossa

cidade; tipicamente, são indivíduos com passagens pela prisão e/ou que

lutam contra o alcoolismo ou outros vícios. A adesão ao estudo bíblico

cresce com a divulgação boca a boca. Os homens estavam lendo o

evangelho de João e, por algum motivo, começaram a ler 2Samuel.

Então, alguns se interessaram quando leram as histórias sobre a gangue

de Abner lutando contra a gangue de Joabe, bem como com Joabe

matando Abner por este ter matado Asael, o irmão de Joabe. Enquanto

liam essas histórias, os seus olhos expressavam espanto. Se Deus

poderia estar envolvido com a espécie de pessoas retratadas em

2Samuel, talvez ele pudesse se envolver com esses homens também, que

agiram de modo comparável aos israelitas.

As narrativas são, de fato, de tirar o fôlego e mostram como a

política funciona. Na semana passada mesmo, a Grã-Bretanha expulsou

um diplomata israelense por seu país utilizar passaportes britânicos

falsos em conjunto com o assassinato de um líder palestino; é mera

coincidência que essa notícia envolva o moderno Estado de Israel e as

manchetes da próxima semana possam envolver alguma ação por parte

da Grã-Bretanha, Palestina ou dos Estados Unidos. Ambos, o Antigo e

Novo Testamento, retratam, de modo consistente, Deus operando por

meio de atos políticos imorais. Eles não implicam que Deus está

envolvido em cada assassinato ou ato de traição, bem como não nos

fornecem nenhuma base para identificar, em cada circunstância, se

Deus está envolvido nos bastidores do ato, embora, às vezes, uma

palavra profética ou de reflexão, após o evento, possa sugerir uma

resposta. Eis o que ocorre nessa passagem da Bíblia. Era da vontade de

Deus que Davi ascendesse ao trono? Deus concebeu alguma forma

limpa para que isso ocorresse? Não, Deus não concebeu.

Como, em geral, acontece, há aqui dois conjuntos de convicções

sobre como abordar uma questão política e, portanto, dois lados


envolvidos em um conflito de ordem política. Decerto, ambos os lados

acreditam estar certos e podem estar focados apenas em perseguir os

seus próprios interesses. Igualmente, os dois lados estão preparados

para lançar mão de meios violentos a fim de alcançar o que acreditam

ser o correto a fazer ou para perseguir os seus interesses pessoais. Abner

colocou o filho de Saul no trono de Efraim e quer que ele também seja o

rei de Judá, mas suspeita-se que ele pretenda colocar um rei marionete,

de modo que se manipulem os fios. A narrativa nos revela que Is-Bosete

tinha medo de Abner. (Primeiro Crônicas 8 e 9 apresentam o nome de

Is-Bosete como Esbaal, que será a versão “genuína”. Esse nome significa

algo como “O Mestre está lá” ou “O Mestre dá”. Pelo fato de baal ser

um termo hebraico comum com o significado de “mestre”, poderia ser o

caso de baal ser uma palavra referente a Yahweh como “o Mestre”, à

semelhança de “o Senhor”. Todavia, convencionou-se usar o termo baal

somente em referência ao deus a quem os cananeus chamavam de “o

Mestre”. Com o estabelecimento dessa convenção, o nome Esbaal

poderia parecer escandaloso: um rei israelita com um nome

supostamente em homenagem a um deus cananeu. Desse modo, o nome

foi alterado para Is-Bosete, que significa “homem de vergonha”.)

Os indivíduos podem pagar com a própria vida pela violência na

qual eles mesmos se envolvem. Eles, igualmente, podem sofrer por isso

de outras maneiras. O capítulo 2 relata como Joabe, que, na realidade,

tinha uma posição equivalente à de Abner, em Judá, testemunhou

Abner matando Asael, o seu irmãozinho, por este supor que poderia

capturar Abner. As mulheres na história também sofrem. Talvez Abner

e Rispa, a esposa secundária de Saul, se amassem, contudo o mais

provável é que fosse uma relação apenas sexual, desprovida de amor,

imposta a uma mulher por alguém com poder. Com certa plausibilidade,

Is-Bosete, provavelmente, presume que o sexo com uma das esposas do

rei anterior tem o objetivo de afirmar que, de fato, há sentido na

percepção de que Abner está tomando o lugar de Saul. O que Rispa

pensa de tudo isso não é do interesse de nenhum dos lados. A reação de


Is-Bosete, aparentemente, força Abner em outra direção. Ele pode ser

uma pessoa obstinada quanto aos seus próprios interesses. Nós, claro,

sabemos no que esse conflito resultará; sabemos que Davi vencerá, mas,

quando se está no meio do embate, não há como saber. Uma pessoa

calculista e sagaz como Abner não iria apoiar o filho de Saul, a não ser

que tivesse motivos para estimar que as chances de vencer eram boas.

Todavia, o capítulo 3 começa observando que no duradouro conflito

sobre quem será o próximo rei de Israel os apoiadores de Davi é que

estão vencendo. Abner sabe para qual lado o vento está soprando e,

assim, ele muda de partido. A princípio, parece uma boa ideia, mas ela o

leva a perder a vida, ainda que tenha feito todo o possível para evitar

matar o irmão de Joabe (“Pare de me perseguir! Não quero matá-lo

[...]”).

Mical segue em sua vida de joguete político, passando de um

homem ao outro. Sua irmã esteve prestes a se casar com Davi, mas,

então, Saul mudou de ideia. Mical havia se apaixonado por Davi e

parecia ter vencido a disputa com a irmã, mas isso ocorreu apenas

porque Saul, seu pai, pensou que aquela seria uma boa oportunidade de

obter a morte de Davi. Quando esse plano falhou, seu pai, uma vez mais,

rompeu o acordo e a entregou como esposa a Paltiel. É provável que

isso tenha ocorrido porque o casamento com Davi, tecnicamente, ainda

não havia sido oficializado. Ela era apenas uma “prometida”, um

compromisso um pouco mais sério que o noivado no Ocidente, mas um

passo antes de um casamento real (sua posição era similar à de Maria,

quando ela engravidou e José pensou em divorciar-se dela para protegê-

la, não apenas romper o compromisso). Agora, Mical deve voltar para

Davi: sabemos o que Paltiel sentiu, mas não sabemos nada sobre o

sentimento de Mical.

Como Abner, Is-Bosete também pode ver para que lado o vento está

soprando e, assim, coopera com a demanda de Davi por Mical. Abner,

como todo bom negociador político, não está apenas mudando de lado

pessoalmente; ele sabe que pode prometer a Davi o apoio da liderança


em Benjamim que atualmente apoia Is-Bosete. O problema é que ser

um negociante político tem as suas desvantagens; Joabe pode, de modo

plausível, alegar que Abner não é merecedor de confiança e, assim,

fundamentar a realização de seu desejo pessoal de matá-lo como

reparação pela morte de Asael, seu irmão. Por seu turno, Is-Bosete sabe

que, se perder, a sua vida estará em grande perigo, mas a demonstração

de não desejar ficar no caminho de Davi não é suficiente para evitar a

sua morte.

Como nos capítulos anteriores, essas histórias são contadas para

manter a imagem de Davi como o “mocinho”. As mortes de pessoas

como Abner e Is-Bosete são extremamente convenientes a Davi, mas

ele pode alegar não ter nenhum envolvimento naquelas mortes e de

ainda ter honrado as vítimas e/ou de ter trazido justiça aos seus

assassinos. Ele é o homem segundo o coração de Deus, o homem

divinamente escolhido. Deus faz as coisas cooperarem para o bem de

Davi por meio dos atos equivocados das pessoas que o rodeiam.
2SAMUEL 5:1-25
COMO SEGUIR AS SUAS BOAS IDEIAS, MAS NÃO SE LEVAR

MUITO A SÉRIO
1
Todos os clãs de Israel foram a Davi, em Hebrom, e disseram: “Aqui estamos nós; somos a

2
sua carne e o seu sangue. Antes de agora, quando Saul era rei sobre nós, eras tu aquele quem

liderava Israel para fora e trazia Israel para dentro. Yahweh te disse: ‘Você é aquele que

3
pastoreará o meu povo, Israel. Você é aquele que governará sobre Israel.’” Então, todos os

anciãos de Israel foram ao rei, em Hebrom, e o rei Davi selou uma aliança com eles em

4
Hebrom, diante de Yahweh, e eles ungiram Davi como rei sobre Israel. Davi tinha trinta

5
anos quando se tornou rei; ele reinou como rei por quarenta anos: em Hebrom, ele reinou

como rei sobre Judá por sete anos e seis meses, e, em Jerusalém, ele reinou como rei por

6
trinta e três anos sobre todo o Israel e Judá. O rei e seus homens foram a Jerusalém contra

os jebuseus, que estavam vivendo na região. Davi foi informado: “Você não entrará aqui. Na

verdade, os cegos e os inválidos poderiam repeli-lo, dizendo [a si mesmos]: ‘Davi não irá

7 8
entrar aqui.’” Mas Davi capturou a fortaleza de Sião; é a cidade de Davi. Davi disse

10
naquele dia: “Qualquer um que atacar os jebuseus alcançará o canal [...].” Davi continuou

11
ficando mais poderoso; Yahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele. Hirão, o rei de Tiro,

enviou ajudantes a Davi com madeira de cedro, carpinteiros e pedreiros. Eles construíram

12
uma casa para Davi. Davi reconheceu que Yahweh o tinha estabelecido como rei sobre

13
Israel e que ele tinha exaltado o seu reinado para o bem de seu povo, Israel. Davi tomou

mais esposas secundárias e esposas de Jerusalém após ele vir de Hebrom, e mais filhos e filhas

nasceram a ele.

[Os versículos 14-21 listam os nomes dos filhos de Davi e, então, descrevem uma vitória sobre os

filisteus.]

22 23
Os filisteus, no entanto, subiram novamente e se espalharam no vale de Refaim. Davi

inquiriu Yahweh, mas ele disse: “Você não deve subir; dê a volta por trás deles e vá até eles

24
em frente das árvores de baca. Quando você ouvir o som de marcha nas copas das árvores

de baca, então aja, porque Yahweh terá saído adiante de você para atacar as forças filisteias.”

25
Davi fez como Yahweh ordenou e derrotou os filisteus desde Geba até quando você chega a

Gezer.

Estou chegando ao fim de meu quadragésimo ano como professor. No

domingo à noite, um dia antes de um novo trimestre começar, uma

amiga me fez uma pergunta que, sem ser a sua intenção, me afetou. Após

ter tido tantos “reinícios” de trimestre, ela me perguntou se eu tenho


maneiras particulares de orar ou coisas pelas quais espero ao me

encontrar com um novo grupo de alunos. Isso me afetou porque eu

ainda não havia orado sobre o assunto e não possuía nenhuma

expectativa especial da parte de Deus. Mas senti-me muito pior

quando, num sábado à noite, outro amigo me perguntou sobre o sermão

que iria pregar no dia seguinte, e fui obrigado a confessar que ainda não

sabia sobre o que pregar. Todavia, tudo ocorreu bem no sermão (pelo

menos, uma ou duas pessoas expressaram apreciação); e a aula foi bem

melhor, em minha avaliação, do que as aulas do trimestre anterior (que

tinha sido o pano de fundo da pergunta feita). Tudo isso não prova coisa

alguma; talvez Deus estivesse falando por meio do sermão e operando

nas aulas pelo bem do seminário e dos alunos, enquanto revirava os

olhos para a minha irresponsabilidade. Ou pode ser que tudo corra bem

para mim porque, em geral, consigo fazer as coisas com rapidez (como

estou fazendo agora, ao escrever esta série do Antigo Testamento para

todos e, assim, deixo essa decisão para você) ou por deixar tudo para o

último minuto e confiar na minha personalidade para me safar do

sufoco.

Davi operava das duas maneiras, às vezes buscando a Deus e, em

outras ocasiões, fazendo o que lhe parecia uma boa ideia e sendo grato,

posteriormente, pelo envolvimento de Deus. Ele chegou ao trono sem

tentar; os seus rivais e adversários caíram à beira do caminho. Agora,

uma vez mais, a unção humana complementa a unção divina. Davi já

era rei sobre Judá por sete anos, desde a morte de Saul, sendo Is-Bosete

rei sobre os clãs do norte, “Israel” (i.e., Efraim). Então, ele também é

ungido rei sobre aqueles clãs do norte. O curso dos eventos aponta para

a fragilidade da unidade entre os clãs e prenuncia o caminho que eles

trilharão em relação a dois reinos, após Salomão.

O estabelecimento de Jerusalém como a capital da nação unificada

tem relação com essa fragilidade. Como ocorre no caso de Davi tornar-

se rei, é difícil imaginarmos uma situação na qual Jerusalém não seja a

capital. Na época, a ideia de Jerusalém ser a capital da nação era tão


revolucionária quanto a ideia de Canberra ser a capital da Austrália

como um compromisso entre Sydney e Melbourne. Mais tarde,

Jerusalém será descrita como a cidade escolhida por Deus, mas aqui ela

ainda é apenas a cidade que Davi escolheu. Talvez Davi tenha buscado

a orientação divina para essa decisão, mas a narrativa não transmite

essa impressão. Algumas vezes, Deus toma a iniciativa quanto a uma

escolha e a ação humana vem a seguir, em concordância com a decisão

divina, como aconteceu com a ascensão de Davi ao trono; em outras,

um ser humano toma a iniciativa da escolha e Deus a acompanha.

(Claro que, às vezes, os seres humanos resistem à escolha de Deus,

como inicialmente ocorreu com os clãs do norte em relação a Davi; e,

em outras, Deus resiste à escolha humana, conforme ocorreu, a

princípio, com o desejo de Davi pela construção de um templo.)

Hebrom é a cidade-chave na região sul do território controlado por

Davi, enquanto Gibeá constitui a base de Saul. Jerusalém é apenas uma

obscura vila jebusita entre esses dois locais, logo após a cadeia de

montanhas, mas isso significa que ela está em território neutro. Além

disso, o fato de os jebuseus ainda controlarem a região reflete a

realidade de que ela também está numa localização de boa defesa, ao fim

de sua pequena colina, com encostas íngremes em três direções,

tornando a sua captura uma tarefa árdua. Esse é, de certo modo, o

ponto quanto ao comentário sobre os cegos e inválidos. Não é preciso

nem de guerreiros habilidosos para defender a cidade.

A ideia de Davi sobre o canal era a chave para provar que os

jebuseus estavam errados. A construção de uma cidade envolve um

dilema. A localização desejável é no topo de uma colina, a fim de tornar

a sua defesa mais fácil; mas não há suprimento de água no topo de uma

colina. Portanto, os jebuseus tinham que confiar no suprimento de água

em algum ponto na parte inferior da colina, a fonte de Giom, cuja água

flui para o posterior “tanque de Siloé”. Então, os jebuseus precisam

descobrir uma forma de proteger esse suprimento de água quando a

cidade estiver sob ataque. Havia uma teoria romântica sobre os homens
de Davi escalando um poço que levava a água da fonte para a cidade e,

assim, surpreendendo os confiantes jebuseus. Todavia, o comentário de

Davi significa que seus homens assumiram o controle da própria área da

fonte, cortando o suprimento de água e esperando pela rendição forçada

da cidade.

Desse modo, a cidade dos jebuseus se tornou “a cidade de Davi” (em

relação a Judá e Efraim, ela permanece neutra; como Washington, ela

não pertence a nenhum dos clãs ou estados). Tudo isso ocorre porque

Yahweh (Deus) dos Exércitos estava com Davi, mas também porque o

rei era um político sagaz, assim como um guerreiro hábil. Não obstante,

a forma em que os eventos acontecem permite a Davi reconhecer que

Deus estava por trás dos eventos. Ele poderia vangloriar-se pelo grande

homem que era, poderia passar a acreditar em sua própria publicidade

ou crer no que as pessoas diziam sobre ele (“Saul derrubou os seus

milhares; Davi, seus dez milhares”). Eis o que ocorre a líderes bem-

sucedidos. Mas a história nos revela que ele é exceção. Davi viu que

Deus o havia exaltado para o bem de Israel. A expressão “líderes servos”

não é especialmente bíblica (a Bíblia é mais propensa a ver líderes como

servos de Deus do que servos de seus povos). Todavia, ao mesmo tempo,

a ideia é bíblica. O que importa é o povo, não o líder. O líder importa

apenas pelo bem do povo.

Em conflito com essa percepção de Davi está a sua predileção por

acumular esposas e filhos. Em sociedades tradicionais, essas são marcas

de um líder, de modo que Davi está se comportando como tal. A

narrativa não faz nenhum comentário abertamente crítico, mas os

eventos se desenrolarão de maneira que sugiram que a atitude de Davi

com relação às mulheres e filhos é a causa de sua derrocada.

A ação de Davi, ao seguir a sua própria iniciativa em relação a

Jerusalém e ao casamento, contrasta com suas atitudes na guerra,

eventos nos quais ele é mais inclinado a consultar Deus. Isso é irônico

porque a ideia de Deus estar envolvido na guerra é motivo de embaraço

às pessoas modernas; talvez se considerássemos a ideia de consultar


Deus mais seriamente, as guerras seriam menos frequentes em nossa

vida. Os filisteus percebem que precisam colocar Davi em seu devido

lugar antes que ele se torne poderoso demais e, assim, marcham em

direção a Jerusalém e acampam no vale de Refaim, a sudoeste da cidade.

Davi não apenas consulta Deus sobre se deve atacar os filisteus; na

segunda ocasião, Deus lhe transmite instruções precisas para a batalha.

Considerando como o éfode funcionava, imagino que Davi tenha feito

sugestões e descoberto se Deus respondia sim ou não. Deus também lhe

faz promessas. Não sabemos que espécie as árvores de baca eram, mas o

farfalhar que Davi ouvirá na copa delas será o som de exércitos

celestiais que também estarão envolvidos no conflito. De fato, é

Yahweh, o Deus dos Exércitos, quem vai com Davi.


2SAMUEL 6:1-23
PEQUENAS COISAS PODEM TER CONSEQUÊNCIAS TERRÍVEIS E

PRENUNCIAR A TRAGÉDIA
1 2
Davi reuniu, novamente, todos os soldados de elite em Israel, trinta mil deles. Davi partiu

e foi, ele e toda a companhia com ele, a Mestres de Judá para trazer de lá o baú de Deus,

sobre o qual o nome é proclamado (o nome de Yahweh dos Exércitos Que Está Assentado

3
[Entronizado] sobre os Querubins). Eles colocaram o baú sobre uma carroça nova e o

carregaram da casa de Abinadabe, na colina, com Uzá e Aiô, os filhos de Abinadabe, guiando

4
a carroça nova. Eles a transportaram da casa de Abinadabe, na colina, com o baú de Deus e

5
Aiô indo à frente do baú, e Davi e toda a casa de Israel celebrando diante de Yahweh com

toda a madeira de cipreste [instrumentos], guitarras, banjos, tamborins, chocalhos e

6
címbalos. Quando eles chegaram à eira de Nacom, Uzá esticou a mão para o baú e o segurou

7
porque os bois o tinham deixado deslizar. A ira de Yahweh se acendeu contra Uzá, e Deus o

8
atingiu ali por causa de seu grave erro. Ele morreu ali, ao lado do baú de Deus. Davi se

inflamou porque Yahweh tinha irrompido contra Uzá (aquele lugar é chamado de

9
“Destruição de Uzá” até este dia), mas Davi teve medo de Yahweh naquele dia e disse:

10
“Como pode o baú de Yahweh vir a mim?” Davi não estava disposto a direcionar o baú de

Yahweh para ele, na cidade de Davi. Então, Davi o desviou para a casa de Obede-Edom, o

geteu.

11
O baú de Yahweh permaneceu na casa de Obede-Edom, o geteu, por três meses, e Yahweh

12
abençoou Obede-Edom e toda a sua casa. O rei Davi foi informado: “Yahweh tem

abençoado a casa de Obede-Edom e tudo o que pertence a ele por causa do baú de Deus.”

Então, Davi foi e trouxe o baú de Deus da casa de Obede-Edom para a Casa de Davi com

13
festividades. Quando as pessoas que carregavam o baú de Yahweh davam seis passos, ele

14
sacrificava um touro e um bezerro cevado. Davi ficou dançando diante de Yahweh com

15
todas as suas forças, e Davi estava vestido com um éfode de linho enquanto ele e toda a

16
casa de Israel levavam o baú de Yahweh com um grito e um sopro no chifre, mas, quando o

baú de Yahweh chegou à Cidade de Davi, Mical, a filha de Saul, estava olhando pela janela.

Quando viu o rei Davi pulando e dançando diante de Yahweh, o desprezou por dentro. [...]

21
Davi disse a Mical: “Foi diante de Yahweh, que me escolheu, em vez de seu pai e toda a sua

casa, para me apontar governante sobre o povo de Yahweh, sobre Israel. Eu celebrarei diante

22
de Yahweh e menosprezarei a mim mesmo ainda mais que isso e serei humilde aos meus

23
próprios olhos, mas, com as servas das quais você falou, com elas eu encontrarei honra.” A

Mical, filha de Saul, nenhum filho nasceu até o dia de sua morte.
Escrevo estas palavras durante a Semana Santa. Em meu grupo de

estudo bíblico, nesta semana, alguém estava expressando o seu

desconforto pela maneira com que falamos sobre Deus enviar o seu

Filho para ser crucificado. Deus é alguma espécie de masoquista? A

pessoa em questão é capelão hospitalar e, com frequência, expressa a sua

agonia pelas experiências sombrias que afligem as pessoas a quem ele

ministra, bem como as suas famílias. Por que Deus não impede que tais

circunstâncias aconteçam? Por que Deus ainda concorre para que elas

aconteçam, como no caso de Jesus? No estudo bíblico, sempre voltamos

a essa questão. Esse jovem rapaz sabe que uma das coisas que iremos

falar, durante esses debates, é que o problema do bem é, certamente,

muito maior do que o problema do mal. Enquanto escrevo, vejo os raios

de sol brilhando lá fora e ouço minhas músicas favoritas, ao mesmo

tempo que luto com palavras hebraicas obscuras (de fato, alimento

paixões estranhas) e aguardo com expectativa a chegada, mais tarde, de

meu filho, minha nora e meus netos, que estão vindo para ficar comigo.

Todavia, também sinto alguma tristeza pelo fato de que a minha esposa,

falecida nove meses atrás, não estará entre nós para celebrar a Páscoa

conosco. Por que deveria haver tantas coisas boas na vida e, ao mesmo

tempo, tantas coisas más? Quem há de responder?

De modos diversos, Davi e Obede-Edom são os recipientes da

bênção de Deus, e Uzá e Mical têm a sua vida tirada ou prejudicada. No

entanto, nenhum deles merece isso mais do que a maioria das outras

pessoas. Davi é o escolhido de Deus, ele mesmo indica, mas Davi não é

uma pessoa tão santa assim (na verdade, talvez enfatizar ser o escolhido

de Deus, por si só, seja um sinal da ausência de santidade). A realidade

de sua humanidade se expressa com grande clareza nessa história. Os

capítulos 4 e 5 de 1Samuel relatam como o baú da aliança permaneceu,

por um tempo, em Quiriate-Jearim, no caminho entre o território

filisteu e o coração de Israel, nas montanhas. “Mestres de Judá” é,

aparentemente, outro termo para o mesmo lugar, embora seja uma

designação mais preocupante, considerando a conotação da palavra


Mestre, isto é, baal (veja o comentário em 3:1—4:12), o que pode

explicar o motivo de o nome ter sido mudado. Em contraste, a narrativa

enfatiza que “o nome” está vinculado ao baú da aliança; o nome é

Yahweh dos Exércitos Que Está Assentado [Entronizado] sobre os

Querubins. O relato não revela porque Davi decidiu levar o baú da

aliança para Jerusalém, mas parece coerente imaginar que seus motivos

eram mesclados. Ele, de fato, está honrando Yahweh, mas, ao mesmo

tempo, também está fazendo um movimento político sagaz, isto é, uma

forma de elevar a condição de Jerusalém perante o olhar do povo de

Israel como um todo, além de encorajar os israelitas ao

comprometimento com aquela cidade como o centro religioso e político

da nação. Ao chegarem à cidade, Davi distribui alimento para todos, o

que, decerto, não causou nenhum dano ao entusiasmo deles pelo

evento. Não obstante, a celebração e a festividade com as quais Davi,

pessoalmente, lidera todo o povo expressam um sincero compromisso

de sua parte com Yahweh. Quando o acidente ocorre, Deus se ira, e Davi

também, mas este, igualmente, demonstra temor. Deus é uma pessoa

real, com emoções reais, assim como Davi, e eles expressam uma gama

sobreposta de emoções. Quando a jornada do baú chega ao fim, a oferta

de sacrifício tanto pode ser uma expressão de agradecimento quanto de

súplica.

Obede-Edom simplesmente está no lugar certo e na hora certa para

ser o recipiente da bênção divina. Reconheço que, a princípio, aquele

não parecia ser o lugar certo na hora certa. Depois da calamidade

ocorrida a Uzá, Obede-Edom parece ser suficientemente azarado para

morar do outro lado da rua e ter sua casa requisitada pelo rei. Creio que

seu coração desfaleceu, mas ele não pôde recusar, dizendo: “Obrigado,

mas dispenso a honra!” Ainda mais por ser um geteu, um homem de

Gate e, portanto, um filisteu, pelo amor de Deus! Seja qual for o motivo

que o levou a morar em Quiriate-Jearim, ele sabe que pode perder o seu

visto de residência. Assim, não há alternativa, exceto dizer: “Sim, Sua

Majestade”, com um sentimento de mau presságio; e, então, ele acaba


sendo abençoado (a sua esposa, aparentemente estéril, engravida, as

suas colheitas abundam...).

Por outro lado, o desafortunado Uzá comete um erro plenamente

compreensível, com a melhor das intenções, e perde a sua vida por isso.

A história lembra a Israel, uma vez mais, que é preciso ter cuidado na

relação com o baú da aliança. Decerto, Israel conclui que Uzá deveria

pensar melhor antes de agarrar o baú, mas talvez ninguém o tenha

instruído a ter esse cuidado, ou, ainda, ele agiu de modo instintivo, na

intenção de evitar a desonra do baú, não de o tratar com irreverência.

Então, ao fim do relato, vemos Mical, que tem sido um joguete político

entre seu pai e seus dois maridos e que, agora, foi separada daquele que

se importava com ela para estar ao lado de alguém que não conhece o

significado de amor. Ela deixa que os seus sentimentos por Davi

extravasem e colhe o que planta. Então, o narrador nos conta que ela

não teve filhos. Ele não liga diretamente os pontinhos, mas isso sugere a

angústia que caracterizou a sua vida.

Logo será a Sexta-feira da Paixão. Para um britânico como eu, é

estranho que os norte-americanos passem semanas assegurando a si

mesmos que Cristo ressuscitou. Pergunto-me se evitamos os

pensamentos sobre a experiência de abandono, aflição, injustiça e

execução de Jesus porque não queremos pensar em realidades que

cruzam a experiência humana. Isso é sábio? A Bíblia é resoluta quanto à

necessidade de enfrentá-las.
2SAMUEL 7:1-29
UMA CASA E UMA FAMÍLIA
1
Quando o rei tinha se estabelecido em sua casa, após Yahweh lhe ter dado descanso de todos

2
os seus inimigos ao redor, o rei disse ao profeta Natã: “Considere isto: eu estou morando em

3
uma casa de cedro, mas o baú de Deus está vivendo em uma tenda.” Natã disse ao rei: “Vá e

4
faze tudo o que tiveres em mente, porque Yahweh está contigo.” Mas, naquela noite, uma

5
palavra de Yahweh veio a Natã: “Vá e diga ao meu servo Davi: ‘Yahweh disse isto: “Você irá

6
construir uma casa para eu morar nela? Porque não tenho morado em uma casa desde o dia

em que eu tirei os israelitas do Egito até este dia. Eu tenho andado em uma tenda como uma

7
habitação. Em todos os lugares pelos quais passei com os israelitas falei alguma palavra com

um dos líderes de clã israelita a quem apontei para pastorear o meu povo, Israel, dizendo:

8
‘Por que não me construiu uma casa de cedro?’?”’ Agora, pois, você deve dizer ao meu servo

Davi: ‘Yahweh dos Exércitos disse isto: “Eu tirei você do pasto, de seguir o rebanho, para ser

9
governante sobre o meu povo, Israel, e estive com você em todos os lugares que você foi, e

eliminei todos os seus inimigos diante de você. Tornarei o seu nome grande, como o nome de

10
grandes homens sobre a terra. Estabelecerei um lugar para o meu povo, Israel, e os

plantarei. Eles habitarão lá e não mais tremerão. Povos indignos não os afligirão novamente,

11
como no início, desde o dia em que indiquei líderes sobre meu povo, Israel. Darei a você

descanso de todos os seus inimigos. Yahweh, aqui, lhe anuncia que fará uma casa para você.

12
Quando os seus dias estiverem completos e você se deitar com os seus ancestrais, eu

levantarei a sua descendência depois de você, que sairá de dentro de você, e estabelecerei o

13
reinado dele. Ele construirá uma casa para o meu nome, e eu estabelecerei o seu trono real

14
em perpetuidade. Eu mesmo serei um pai para ele, e ele será um filho para mim. Quando

ele agir errado, eu o disciplinarei por meio do clube dos seres humanos, com o golpe de mãos

15
humanas, mas o meu compromisso não removerei dele como removi de Saul, a quem eu

16
removi antes de você. A sua casa e o seu reinado estarão seguros em perpetuidade diante

de você. O seu trono estará seguro em perpetuidade.”’”

[Os versículos 17-29 registram a resposta de assombro, louvor e súplica de Davi para que tudo

ocorra como Deus lhe falou.]

Um de meus colegas gosta de lembrar às pessoas que Jesus jamais falou

sobre nós estabelecermos o reino de Deus, ampliá-lo, edificá-lo ou

estendê-lo. Nos Evangelhos, as únicas atitudes que devemos tomar em

relação ao reino de Deus é aguardar por ele, vê-lo, entrar nele, buscá-lo,

recebê-lo, herdá-lo e declarar a sua vinda. Em outras palavras, de modo


nenhum temos um relacionamento ativo com ele. Na cultura norte-

americana, esse é um ponto impopular a enfatizar, porque as pessoas

gostam de sentir que podem fazer a diferença. Elas desejam realizar

algo. Gosto de observar os alunos se agitarem em suas cadeiras,

descontentes, quando eu repito a perspectiva de meu colega. Não

apreciamos o fato de o evangelho ser sobre o que Deus fez por nós, não

sobre o que fazemos por Deus. (Sim, eu sei, temos responsabilidades e

somos desafiados a servir a Deus, ao mundo, e assim por diante, mas não

compreenderemos o nosso papel — e evitaremos desilusões —, a não ser

que enxerguemos o ponto sobre o caminho do qual Jesus fala.)

Assim, Davi é o nosso santo padroeiro. Estranhamente (mas, como

nós) Davi começou como aquele que Deus simplesmente selecionou.

Ele não se tornou o ungido de Deus por algo que havia feito. Na

realidade, por um longo tempo, ele mostrou ser bom em não buscar o

cumprimento do propósito divino e ficar aguardando Deus fazer as

coisas acontecerem. Agora, ele agarra a história pelos chifres. Ele toma

a decisão sobre mudar a capital do país e mudar o baú da aliança para

lá. A seguir, almeja construir uma habitação adequada para ele. Davi

sente-se embaraçado pelo fato de viver numa casa adequada, na

realidade esplendidamente apropriada, confortavelmente aparelhada

com madeira de cedro do Líbano, presenteada pelo rei de Tiro

(2Samuel 5:11). O santuário de Deus sempre foi móvel, como a tenda

de um beduíno. Na peregrinação rumo à Terra Prometida, a tenda

acompanhou o progresso de Israel e tem sido mudada de um lugar para

outro desde que Israel chegou em Canaã. Contudo, agora, a tenda pode

e, certamente, deve dar lugar a uma habitação adequada, não é mesmo?

“Claro”, aquiesce o profeta Natã. Perdão, mas quem é você? Ainda

não ouvimos falar sobre você. De onde vem? Natã não é o primeiro

profeta a ser mencionado aconselhando Davi; um profeta chamado

Gade já fez isso (veja 1Samuel 22:5). Os profetas mais conhecidos, tais

como Elias, Isaías e Jeremias, são muito independentes dos reis com os

quais eles estão envolvidos, e este é o principal motivo da existência


deles. Eles estão ali para resistirem ao rei. Como outras sociedades do

Oriente Médio, contudo, Israel também tinha profetas que pertenciam

à corte do rei, à disposição para oferecer orientação ao soberano,

quando necessário. O problema é que, quando você está na lista de

pagamentos, fica difícil morder a mão que o alimenta, especialmente

quando ela pode não apenas mordê-lo de volta, mas decretar a sua

execução. Então, você é sugado pela instituição. Eis por que é

praticamente impossível a um pastor ser também um profeta (meus

estudantes me odeiam também por eu falar isso). Os pastores, portanto,

precisam cultivar profetas que se posicionarão contra eles, caso

necessário, e, da mesma forma, os reis. Acabei de ouvir uma palestra de

abertura, apresentada por um de meus colegas, na qual ele comenta a

importância de ver as pessoas que discordam de você como uma bênção

em vez de um estorvo ou uma ameaça. São essas pessoas que o ajudarão

a entender onde você está errando. Assim, veremos que Natã

desenvolveu essa capacidade, mas, em sua primeira aparição, ele apenas

agiu como alguém que diz amém ao rei. Ele usa o nome de Deus em vão,

assegurando a Davi que Deus está com ele, sem antes verificar se é

mesmo assim.

Então, naquela noite, Deus vem ter uma conversinha com Natã.

Será que Natã teve alguma percepção desagradável de ter sido

apressado em sua resposta positiva a Davi? Estaria ele sem sono,

revirando-se na cama? “Bem, me perdoe Natã, mas você sabe que essa

casa é para minha habitação. Então, você não acha que eu deveria ser

consultado sobre isso? Na verdade, eu não ligo muito para casas. Gosto

de estar em movimento, como bem sabe.” O problema de Deus conosco

é que gostamos de limitá-lo, de mantê-lo sob controle. Não queremos

Deus à solta, mas é assim que Deus gosta de estar.

Outro problema com Deus é aquele com o qual iniciamos. Davi está

ficando muito à vontade na tomada de decisões e ações por Deus. Ele

deseja construir uma habitação para Deus; mas Deus se opõe a essa

declaração com o anúncio de sua intenção de construir uma casa para


Davi. A palavra hebraica para casa, beth (como em Bethlehem [Belém]

ou Bethel [Betel]), significa tanto uma casa feita de tijolos ou pedra

quanto uma casa feita de pessoas, uma família, e Deus usa esse

significado duplo em contrapartida ao plano de Davi. Quando Deus

restabelece quem detém a soberania nessa relação, ao iniciar a

construção de uma casa para Davi no sentido de que seu filho o

sucederá no trono, ao contrário do que ocorreu com Saul, então esse

filho poderá cumprir o plano de Davi e edificar uma casa a Deus que, na

realidade, ele mesmo não deseja.

Desse modo, quando Deus concorda com a edificação de um templo,

o significado é similar à concordância divina quanto a Israel ter reis.

Deus, na realidade, não deseja isso, mas permitirá que tenhamos o nosso

caminho. Em ambos os casos, na verdade, ele vai além de uma

concordância relutante. O próprio compromisso com a monarquia que

Deus estabelece neste capítulo mostra quão longe ele irá conosco em

relação a algo que ele mesmo não quer. E isso é positivo, porque o

padrão que atravessa 1 e 2Samuel reaparece na igreja. O Novo

Testamento não deixa muito espaço para a posição de pastor sênior ou

de instalações da igreja (nossos equivalentes ao rei e ao templo), mas a

igreja logo os cria e, uma vez mais, Deus dá de ombros e coopera.

“Eu mesmo serei um pai para ele, e ele será um filho para mim.”

Deus não fala, de modo explícito, em termos de um relacionamento de

aliança com Davi e seus sucessores, embora Davi, eventualmente,

venha a fazê-lo (veja 2Samuel 23). Em vez disso, Deus discorre em

termos de adotar o sucessor de Davi em uma relação de pai para filho.

Certa amiga costumava comentar sobre a diferença entre a maternidade

e o casamento. Você pode deixar de ser esposa (e ela o fez), mas jamais

deixará de ser mãe. Não importa o que meus filhos façam, ela dizia,

jamais deixarei de ser a mãe deles. Deus, aqui, contempla a

possibilidade de castigar seu filho e lançará mão de uma série de

disciplinas sobre Davi e seus sucessores ao longo dos próximos

quatrocentos anos. Todavia, quando você adota alguém como seu filho,
Deus pressupõe, ele se torna um filho real, como se tivesse sido gerado

por você. Você não pode desfiliar um filho da mesma forma que se

divorcia de seu cônjuge. Em nossa cultura, há ocasiões nas quais tanto

mães de nascimento quanto pais adotivos fazem isso; contudo, Deus

nem pode imaginar-se fazendo isso. Foi isso o que manteve a existência

de Israel, quando parecia que Deus tinha, de fato, rejeitado os

sucessores de Davi, considerando-se que, desde o ano 587 a.C., nenhum

rei da linha sucessória de Davi assentou-se no trono de Jerusalém

novamente. Isso manteve Israel na expectativa, como também em

oração. Algumas vezes, Deus encorajou esse comportamento com a

possibilidade de que um rei davídico, de fato, voltasse a reinar um dia

(veja Jeremias 23). Em outras, Deus encorajou Israel a se ver como o

povo davídico e ver o compromisso de Deus cumprido no

relacionamento que todo o povo tinha com Deus (veja Isaías 55). Deus

não retrocederá em seu compromisso, exceto para torná-lo em algo

melhor.
2SAMUEL 8:1—10:19
O ÁPICE DA CONQUISTA DE DAVI

[Segundo Samuel 8:1-14a registra as vitórias de Davi sobre os filisteus, os moabitas, os

edomitas, os arameus e o rei de Zobá, bem como a dedicação dos despojos de batalha a Deus.]

14b 15
Assim, Yahweh livrava Davi aonde quer que ele fosse. Davi reinou como rei sobre todo

9:1
o Israel e exerceu autoridade de acordo com o que é certo para todo o seu povo [...] Davi

disse: “Ainda resta alguém da casa de Saul para que eu possa mostrar compromisso com ele

2
pelo bem de Jônatas?” Havia um servo pertencente à casa de Saul, chamado Ziba, e eles o

3b
convocaram a Davi [...] Ziba disse ao rei: “Há ainda um filho de Jônatas; ele é aleijado em

4
ambos os pés.” O rei lhe disse: “Onde ele está?” Ziba disse ao rei: “Bem, ele está na casa de

5
Maquir, filho de Amiel, de Lo-Debar”. O rei Davi mandou buscá-lo da casa de Maquir, filho

6
de Amiel, em Lo-Debar. Quando Mefibosete, filho de Jônatas, filho de Saul, foi a Davi, ele

se prostrou, curvando-se com o rosto em terra. Davi disse: “Mefibosete.” Ele disse: “Aqui está

7
o teu servo.” Davi lhe disse: “Não tenha medo porque eu, definitivamente, manterei o

compromisso com você por causa de seu pai, Jônatas. Devolverei a você toda a terra de Saul,

seu avô, e você comerá sempre à minha mesa.”

[Os versículos 8-13, relatam como Davi confia a supervisão da terra de Saul a Ziba e sua

família, em nome de Mefibosete e sua família. O capítulo 10, então, repete o relato de um

conflito entre Israel e os amonitas, para o qual os amonitas também atraíram os arameus.

Primeiro Joabe, comandante militar de Davi, e, então, o próprio Davi marcha contra os

arameus, e os amonitas recuam.]

Comecei a ler a história social da Grã-Bretanha, desde o fim da guerra

de 1939-1945. Ela, portanto, principia-se com a celebração da vitória

das forças aliadas sobre a Alemanha nazista, personalizada como o

triunfo de Winston Churchill sobre Adolf Hitler (hoje alguém

relembrava aquele conflito novamente por causa do jogo entre a

Alemanha e a Inglaterra, na Copa do Mundo de futebol da África do

Sul). A vitória na guerra sobre a Alemanha nazista foi o auge de

Churchill. No entanto, na eleição parlamentar ocorrida logo após a

guerra, o povo britânico abandonou Churchill e elegeu Clement Attlee

como primeiro-ministro. Pode-se dizer que isso ilustra como o orgulho

precede a queda, desde que se diga isso no sentido do Antigo


Testamento, onde o orgulho não é uma atitude tão pecaminosa quanto o

fato de estar numa posição de majestade e honra. Mesmo se não

estiverem pecaminosamente apegados ao seu prestígio e às suas

conquistas, as pessoas em tais posições, com frequência, caem por causa

delas.

Nesses capítulos de 2Samuel, Davi alcança o apogeu de suas

realizações, mas ele está prestes a cair. Os capítulos constituem o clímax

de sua história no que tange às suas conquistas políticas, econômicas,

militares e religiosas. Em 1Samuel, um fator-chave no anseio do povo

por uma monarquia foi a pressão dos filisteus, já que israelitas e filisteus

estavam competindo pelo controle de Canaã. Davi levou aquele conflito

a uma conclusão favorável a Israel. Os filisteus não deixaram de existir,

mas se tornaram um povo menor da costa do Mediterrâneo e, assim,

deixaram de lado as grandes ambições e não constituem mais uma

ameaça a Israel. Davi, igualmente, demonstra a povos como os

moabitas, os amonitas, os edomitas, do sudeste e leste, bem como aos

ainda mais poderosos arameus, a nordeste, que ele é alguém com quem

eles não devem mexer. Na realidade, Davi se torna soberano sobre um

pequeno império, a única vez em que Israel exerceu um papel imperial

em lugar de ser uma colônia sob a soberania de um outro império

qualquer. É possível ver isso como uma amostra do cumprimento do

propósito divino de ser senhor sobre toda a terra por intermédio da

agenda do rei de Israel.

Os capítulos também constituem um clímax de outra maneira. Eles

falam de Davi exercer autoridade de acordo com o que é certo para

todo o povo. Trata-se de uma expressão de duas palavras cuja tradução

sucinta é impossível em nosso idioma. As traduções bíblicas apresentam

expressões como “correto e imparcial” ou “direito e justiça”. A primeira

palavra é um termo para autoridade, liderança ou poder de tomar

decisões. O problema é que (como Samuel alertou os israelitas quando

eles pediram por um rei em 1Samuel 8) os reis e outros líderes

costumam exercer autoridade para cobrar um alto preço de seu povo.


Assim, Deuteronômio e os Profetas, usualmente, vinculam essa palavra

a outra que denota fazer a coisa certa para o povo em vez de beneficiar-

se dele ou ser uma carga ou opressão sobre ele: em geral, traduzo essa

expressão por fidelidade. Nos Profetas, uma crítica padrão aos reis é

que eles falham em exercer autoridade com fidelidade, segundo o que é

certo para o povo. Isso pode ocorrer pelo exercício de justiça nos

tribunais; pode ocorrer na imposição de impostos. Afirmar que Davi

exerceu autoridade para fazer o certo ao seu povo é um grande tributo a

ele. Esse comentário ocupa um espaço diminuto na história, mas sua

importância não está de acordo com a sua brevidade. Se formos críticos,

podemos dizer que se trata de um exagero; alguém paga pela construção

de seu palácio e financia todas aquelas guerras. Se, com efeito, o preço é

pago pelos habitantes de Moabe, Edom e, assim por diante, isso não

melhora o cenário. Mesmo se o comentário doura a pílula mais do que

Davi merecia, ele ainda estabelece o padrão para os seus sucessores,

especialmente se eles desejarem ser os beneficiários dos compromissos

paternais de Deus descritos em 2Samuel 7. O salmo 72 expressa com

mais detalhes o que envolve o compromisso do rei quanto a exercer

autoridade segundo o que é certo para o povo, bem como associa essa

característica com o fato de Davi ser reconhecido pelos demais povos

como ele era.

Pode-se dizer que Davi agiu em relação a Mefibosete de uma forma

que envolveu o exercício de autoridade de acordo com o que é certo

para as pessoas com quem ele tem alguma obrigação de aliança. O triste

relato de como Mefibosete ficou deficiente está em 2Samuel 4. Parece

que ele ficou sobremodo assustado ao ser convocado por Davi, e tinha

bons motivos para isso. Já observamos que, após um golpe, o novo

regime pode pensar ser um ato de sabedoria eliminar todas as pessoas

associadas ao regime deposto. De modo típico, a ação de Davi alcança o

mesmo fim, enquanto faz a coisa certa pelo compromisso que Jônatas

demonstrou por ele. O seu gesto podia angariar a aprovação relutante

daqueles que ainda apoiavam a casa de Saul e nutriam a esperança de


ainda ver alguém de sua família como rei. Isso igualmente significa

manter Mefibosete sob sua supervisão e assegurar que ele não esteja

interessado em cooperar com alguém que planeje reinstalar a casa de

Saul no trono. Haverá algumas notas de rodapé com relação à história

de Ziba e Mefibosete em 2Samuel 16, 19 e 21.

Infelizmente, este é, de fato, o ponto alto da história de Davi. A

majestade precede a queda. Daqui em diante, é só ladeira abaixo.


2SAMUEL 11:1-27
MAS DAVI FEZ O QUE ERA DESAGRADÁVEL AOS OLHOS DE

YAHWEH
1
Na virada do ano, tempo no qual os reis saem [para a batalha], Davi enviou Joabe e seus

servos com ele, e todo o Israel, e eles devastaram os amonitas e sitiaram Rabá, enquanto

2
Davi permaneceu em Jerusalém. Certa noite, Davi levantou-se de sua cama e caminhou

sobre o telhado do palácio, e do telhado viu uma mulher se banhando. A mulher era muito

3
bonita. Então, Davi mandou inquirirem sobre a mulher. Ele foi informado: “É Bate-Seba,

4
filha de Eliã, esposa de Urias, o hitita.” Davi enviou ajudantes, eles a tomaram, e ela veio a

ele. Ele dormiu com ela enquanto ela estava se santificando de seu tabu, e ela voltou para

5 6
casa. A mulher engravidou e mandou avisar a Davi: “Estou grávida.” Davi mandou a

7
Joabe: “Envie Urias, o hitita, a mim.” Joabe enviou Urias a Davi. Quando Urias chegou a

ele, Davi lhe perguntou sobre quão bem as coisas estavam com Joabe, com a companhia e

8
com a batalha. Então, Davi disse a Urias: “Desça a sua casa e banhe os seus pés.” Quando

9
Urias saiu do palácio, um presente o acompanhou. Mas Urias dormiu na porta do palácio

14
com todos [os outros] servos de seu senhor. Ele não desceu a sua casa. [...] De manhã, Davi

15
escreveu uma mensagem a Joabe e a enviou por meio de Urias. Ele escreveu na mensagem:

“Coloque Urias na vanguarda da batalha mais feroz e retire-se dele para que ele possa ser

17
atingido e morra.” [...] Os homens da cidade saíram e lutaram com Joabe, e, da companhia,

18
alguns homens de Davi caíram. Urias, o hitita, também morreu. Joabe mandou avisar Davi

25
sobre todos os detalhes da batalha [...] Davi disse ao ajudante: “Diga isto a Joabe: ‘Esta

coisa não deve ser errada aos seus olhos, porque a espada consome de um jeito ou de outro.

26
Reforce a sua luta contra a cidade e a destrua.’ Portanto, encoraje-o.” Quando a esposa de

27
Urias ouviu que o seu marido, Urias, estava morto, ela lamentou por seu senhor. Quando o

[tempo de] luto tinha passado, Davi mandou buscá-la para sua casa. Ela se tornou a sua

esposa e lhe deu um filho. Mas a coisa que Davi tinha feito era errada aos olhos de Yahweh.

Hoje, o noticiário informa que um ex-governador, obrigado a renunciar

ao cargo por causa de um escândalo sexual, alguns anos atrás, está agora

tentando reabilitar-se aos olhos do público eleitor. Como governador,

uma de suas forças era considerar todas as coisas possíveis. Assim, ele

ignorou a sabedoria convencional que diz: “Isso você não pode fazer.”

Em relação ao seu envolvimento no escândalo sexual, um repórter lhe

perguntou se não teria havido uma voz em seu interior, dizendo: “Você
não pode fazer isso”, e ele concordou que, aparentemente, não houve.

Em outras palavras, ele também pareceu ignorar aquela sabedoria

convencional em sua vida privada, imaginando que poderia sair impune.

Desconheço estatísticas sugerindo que os líderes sejam mais propensos

a transgressões na área sexual do que outras pessoas, ou que os pastores

são mais inclinados a isso do que os leigos, mas também não parecem

menos inclinados, e há, pelo menos, uma ou duas maneiras nas quais

isso parece perturbador. Gostaria de pensar em nossos líderes como

pessoas íntegras, em parte porque queremos que eles liderem com

integridade, e não está claro se é possível não serem íntegros em sua

vida pessoal, mas manterem a integridade em seu papel público. Além

disso, os riscos assumidos por nossos líderes em sua vida sexual parecem

estúpidos e, se eles agem com estupidez nessa área, como podemos

esperar que ajam com sabedoria em seus cargos públicos? A impressão

que isso passa é que eles acreditam poder escapar dos malfeitos

exatamente pela posição que ocupam, quando deveria ser o contrário.

Talvez Davi falhe por esse conjunto de presunções e revele essas

falhas. É possível que tudo comece pelo fato de ele estar em seu palácio,

ocioso o suficiente para tirar uma soneca da tarde, enquanto o seu

exército está no campo de batalha. É uma época na qual os reis saem à

batalha e “todo” o Israel tem feito isso, exceto Davi. Situada a leste do

Jordão, Rabá, a capital amonita (a moderna Amã, capital da Jordânia)

está em uma localização equivalente à de Jerusalém, como a capital

israelita a oeste do Jordão. O exército de Davi está ali para impor a

autoridade israelita sobre a cidade e a região como parte integrante do

Império Davídico. Para ser justo, no capítulo anterior, Davi estava

deixando Joabe ser o comandante-chefe efetivo, de maneira que pode

não ser um despropósito ele permanecer um comandante-chefe a

distância, como o presidente dos Estados Unidos. Todavia, isso seria um

argumento mais contundente se Davi estivesse no palácio focado no

exercício de autoridade para fazer o que é certo para o seu povo, isto é, o

compromisso que abordamos em relação ao capítulo 8. Davi não está


fazendo nada disso e, no capítulo 12, ele só mostrará disposição em ir a

Rabá pela queda da cidade para receber os créditos em detrimento de

Joabe, o homem que faz o trabalho sujo.

Não se pode necessariamente culpar Davi por avistar Bate-Seba se

banhando, nem ela por banhar-se. Ao que tudo indica, ela estava

cumprindo o banho exigido pela Torá ao fim de seu período menstrual,

e o telhado é, normalmente, o lugar ao qual as pessoas vão quando

desejam ter privacidade. É possível que a única residência, cujo telhado

ficava acima do dela, fosse o palácio, situado na parte mais elevada da

cidade; somente o santuário ficava posicionado acima do palácio.

Embora isso simbolizasse a posição elevada do rei em relação ao seu

povo, também sugeria a sua responsabilidade. Isso sugere que, literal e

metaforicamente, o rei pode manter um olho sobre a cidade. De lá, ele

pode ver o que está acontecendo e, portanto, exercer, de fato,

autoridade para assegurar que a justiça prevaleça na cidade. Todavia, os

seus instintos o levam para outra direção. Embora a história jamais diga

que Davi ama alguém, a quantidade de filhos gerados por ele indica que

ele mantém relações sexuais com várias esposas, mas (como um homem

normal) isso não o impede de se sentir atraído por outra mulher. Num

dia desses, certo amigo contou-me sobre um bilionário que, ao ser

perguntado sobre quanto dinheiro era suficiente, respondeu dizendo

que é “sempre menos do que você já tem”. O mesmo é verdadeiro com

respeito ao sexo.

Davi e seus agentes são o sujeito de uma série de verbos

intimidantes para Bate-Seba — ele viu, ele mandou, ele inquiriu, ele

enviou, ele tomou, ele dormiu com. Ele é, então, o sujeito do verbo que,

em geral, alegra uma mulher, mas, às vezes, a amedronta: ela engravida.

Se isso ocorresse no Ocidente moderno, Davi estaria negociando que

ela fizesse um aborto, e em sociedades tradicionais há maneiras de fazer

isso, embora isso seja tanto perigoso para a mulher quanto improvável

de ter êxito. Todavia, seja como for, a falha do Antigo Testamento em

mencionar o aborto e a falha da Torá em não proibir essa prática


sugerem que o aborto não estava no escopo do pensamento dos

israelitas, mesmo quando a gravidez não era bem-vinda. O primeiro

pensamento de Davi é induzir Urias a dormir com Bate-Seba, para que

ela possa dizer que o filho é de seu marido, mas Urias não coopera com o

plano de Davi.

É horrível como um ato leva a outro. Ao olhar para a cidade, de seu

telhado, Davi não podia imaginar que a visão de uma mulher se

banhando levaria a um assassinato e, mesmo se tivesse imaginado essa

possibilidade, decerto, o mais provável seria ele se apressar em desviar o

olhar, mas uma coisa leva a outra. Ele consegue a morte de Urias. Ao

descobrir que Bate-Seba era casada com alguém etnicamente hitita

(provavelmente não um hitita recém-chegado da Turquia, mas alguém

da tribo que vivia na região de Hebrom, no tempo de Abraão), um

estrangeiro, é que Davi decidiu trazê-la até ele. Esse fato facilitou a

decisão? Afinal de contas, ela é casada com um hitita. Será que a mesma

consideração facilitou a decisão sobre o seu assassinato? Afinal, ele é

apenas um hitita. Não obstante, ele é evidentemente um adorador de

Yahweh (seu nome significa “Yahweh é minha luz”). Na verdade,

quando Urias declinou de ir e dormir com a sua mulher, talvez ele

estivesse se sentindo sujo demais, mas o que ele realmente disse foi que

não poderia ir para casa daquele jeito quando os demais soldados

estavam todos envolvidos numa guerra. É exatamente esse tipo de

pensamento que deveria estar na cabeça de Davi.

Em vez disso, Davi está agora pensando em assassinato. Ele usa a

própria vítima como o mensageiro que leva as instruções que decretam

a sua morte. No confronto seguinte, alguns soldados da tropa de Israel

são mortos, e Joabe garante que Urias esteja entre eles. A narrativa não

diz claramente que as mortes são resultantes da necessidade de matar

Urias, embora essa necessidade pareça ter ditado a estratégia de

combate de Joabe. O comandante teme que Davi possa pensar que ele

tenha assumido riscos tolos na execução do plano, mas ele sabe que o rei

não se importará com o sacrifício daqueles soldados, desde que Urias


esteja entre eles. A resposta de Davi é tão cínica quanto as instruções de

Joabe ao seu ajudante sobre como dar as notícias a Davi.

Problema solucionado. Bate-Seba pode cumprir o luto apropriado

por seu marido; então, Davi pode mandar buscá-la em definitivo. Uma

vez mais, ela é o objeto de verbos; em nenhum versículo há qualquer

sugestão de que ela tenha algo a dizer sobre o que acontece. Afinal, ele é

o rei, e não se diz não ao rei (ou ao professor, pastor, governador ou

presidente), com respeito a uma noite apenas ou a uma proposta de

casamento.

“Mas, a coisa que Davi tinha feito era errada aos olhos de Yahweh.”
2SAMUEL 12:1-15A
O HOMEM QUE APRENDEU A SER UM PROFETA
1
Então, Yahweh enviou Natã a Davi. Ele foi a ele e lhe disse: “Havia dois homens em certa

2 3
cidade, um rico e um pobre. O homem rico tinha rebanhos e manadas muito grandes. O

homem pobre nada tinha, exceto uma pequena cordeira que ele tinha adquirido. Ele a tinha

criado, e ela havia crescido com ele e seus filhos, todos juntos. Ela costumava comer da

4
porção dele, beber de seu copo e dormir em seus braços. Era como uma filha para ele. Um

homem em jornada foi ao homem rico, mas ele poupou de tirar algo de seus próprios

rebanhos e manadas para fazer o jantar ao viajante que tinha ido a ele; antes, tomou a

5
cordeira do homem pobre e fez o jantar para o homem que tinha ido a ele.” A ira de Davi se

acendeu contra o homem. Ele disse a Natã: “Tão certo como Yahweh vive, o homem que fez

6
isso deve morrer. Ele deve pagar quatro vezes mais pela cordeira por ter feito esta coisa e

7
visto que ele não [o] poupou.” Natã disse a Davi: “Você é o homem. Yahweh, o Deus de

Israel, disse isto: ‘Eu mesmo o indiquei como rei sobre Israel. Eu mesmo o resgatei da mão de

8
Saul. Eu lhe dei a casa de seu senhor e as esposas dele em seus braços. Eu lhe dei a casa de

Israel e de Judá. Se isso fosse [muito] pouco, eu lhe teria acrescentado tanto quanto

9
novamente. Por que você desprezou a palavra de Yahweh ao fazer o que é errado aos meus

olhos? Urias, o hitita, você derrubou com a espada, e a esposa dele você tomou como sua

10
esposa. A ele você matou com a espada dos amonitas. Assim, agora, a espada jamais se

afastará de sua casa, porque você me desprezou e tomou a esposa de Urias para ser a sua

11
esposa.’ Yahweh disse isso: ‘Então, eu irei levantar dificuldades para você de sua casa.

Tomarei as suas esposas diante de seus olhos e as darei a alguém mais. Ele dormirá com as

12
suas esposas em plena luz do dia. Porque você mesmo agiu em segredo, mas eu farei esta

coisa diante de todo o Israel e em plena luz do dia.’”

13
Davi disse a Natã: “Agi erroneamente contra Yahweh.” Natã disse a Davi: “Sim. Mas

14
Yahweh removeu a sua transgressão. Você não morrerá. No entanto, porque você mostrou

total desprezo aos [inimigos de] Yahweh por meio desse ato, sim, a criança nascida a você,

15a
definitivamente, morrerá.” E Natã voltou para casa.

Certo feita, um pastor veio conversar comigo por se envolver num caso

extraconjugal, apesar de ter “saído impune”. Ele acreditava que a sua

esposa jamais percebera a sua traição, mas sabia que havia agido de um

modo ao mesmo tempo errado e estúpido e que precisava conversar

sobre o ocorrido para evitar cair na mesma encrenca novamente. O que

me impactou em seu relato foi a maneira gradual como as coisas


evoluíram. A mulher o havia procurado em busca de aconselhamento

porque sentia uma grande tristeza a permear a sua vida. Ela era

atraente, e logo ficou evidente que seu casamento era infeliz. De sua

parte, o pastor enfrentava problemas em seu próprio relacionamento

conjugal. Tudo isso já seria suficiente para fazer soar todos os alarmes

possíveis e, de certo modo, isso ocorreu — pelo menos, ele envolveu

uma de suas colegas para assisti-lo naquele aconselhamento. Depois de

algum tempo, todos chegaram à conclusão de que haviam feito tudo o

que podiam, mas a mulher pediu para ir vê-lo ainda uma última vez,

apenas para um café. Bem, o encontro terminou com um abraço de

despedida, que passou a um beijo e...

Uma coisa leva a outra. Eis como ocorrera com Davi. Todavia, ele

não foi ver o seu pastor e, por seu turno, o seu pastor teria motivos para

hesitar ir vê-lo. Os profetas que tomam sobre si a responsabilidade de

confrontar reis colocam em risco a própria vida e, às vezes, isso

realmente acontece. A primeira característica marcante nesse relato é,

portanto, o contraste entre o profeta Natã, do capítulo 7, e ele mesmo,

no capítulo 12. Lá, ele era um homem que dizia amém a Davi. Aqui, ele

confronta o rei. Divirto-me ao imaginar Natã tendo a mesma reação

que, mais tarde, Ananias terá ao ser instruído a ver Saulo de Tarso (veja

Atos 9), que (parafraseando grosseiramente) resume-se a dizer:

“Senhor, perdeste o juízo?” Então, Deus entrega a Natã essa parábola

ou o profeta sonha com ela, que se torna o meio de atravessar as

barreiras de defesa de Davi.

Davi não pode reclamar quando o seu próprio comentário sobre

como o homem rico deveria ser punido antecipa o que ocorrerá a ele

mesmo. Parece haver um contrassenso (morte e uma restituição quatro

vezes maior?), mas isso corresponde às implicações da Torá. O homem

deveria morrer, Davi diz: portanto, ele pagará quatro vezes mais por sua

maldade. Observamos, com respeito ao relato de Saul com a médium de

En-Dor, que muitas das regras da Torá prescrevem a pena de morte por

uma ofensa (incluindo homicídio ou adultério; Davi é culpado de


ambos), mas que, na prática, Israel não cobra essa penalidade. Afirmar

que a pessoa culpada deveria morrer expressa a seriedade da ofensa, mas

a não execução da pena prevista; talvez seja um reconhecimento de que

a execução cria mais problemas do que soluciona. Ainda, a referência a

uma restituição aproxima-se mais do que realmente ocorria nesses

casos.

Fora da parábola, a punição que Deus anuncia é, portanto, não a

execução, como seria o esperado, mas uma calamidade que emerge

dentro da própria família de Davi. Deus concorrerá para a

concretização dessa calamidade, mas não haverá nenhuma ação

sobrenatural para sua ocorrência. Pode-se dizer que ela será uma

consequência natural do próprio comportamento de Davi; certamente,

a punição será de acordo com o crime. Davi permitiu que a violência e a

imoralidade sexual corressem soltas em sua casa e na casa de Urias; mas,

quando você deixa essas feras à solta, talvez não consiga mais prendê-

las de volta às suas respectivas celas.

Ambos, Davi e Deus, agem e falam de formas chocantemente

misteriosas nesse relato. O primeiro enigma é articulado na pergunta de

Deus a Davi. Davi possui muito. Por que cargas d’água ele fez o que

fez? A segunda questão é suscitada por sua reação a Natã: “Agi

erroneamente contra Yahweh.” Por sermos leitores ocidentais, com toda

a nossa ênfase quanto a emoções, imaginamos que Davi deveria dizer

quão profundamente triste ele está e nos perguntamos se esse

reconhecimento é suficiente. Contudo, quando figuras públicas,

flagradas em alguma transgressão, vão a público para apertos de mão e

confraternização, nos contorcemos internamente. Segundo o modo de

pensar de um israelita, igualmente, a confissão primariamente significa

encarar e reconhecer os fatos. É impossível afirmar o que está se

passando no íntimo de Davi, mas o reconhecimento simples e claro

contrasta com a impressão de aflição que, em breve, será expressa por

sua reação à enfermidade do filho.


Da mesma forma, é difícil saber o que fazer com a reação de Deus;

Deus “removeu” a transgressão de Davi. O que isso significa? Deus o

perdoou, e, se assim foi, em que sentido? Deus não cancelou a sentença

declarada por Natã, e, nos capítulos seguintes, o que foi dito pelo

profeta, de fato, acontece. Talvez isso não seja de todo surpreendente.

Na cultura ocidental, quando o culpado por um crime se arrepende, em

geral isso não o livra de pagar a sua pena. No caso em questão, Deus

impõe uma punição extra: o bebê de Bate-Seba e Davi irá morrer.

Natã declara que Davi desprezou a palavra de Deus. Há dois

sentidos nos quais isso ocorre. Davi desprezou a palavra que aparece

nos Dez Mandamentos, nos quais Deus proíbe atos como adultério e

assassinato. Embora os líderes de qualquer sociedade imaginem poder

fazer o que bem entendem, em Israel a Torá impõe restrições específicas

em torno do rei. Davi ignorou essas restrições. Contudo, a narrativa

enfatiza outro tipo de palavra, isto é, a palavra da promessa de Deus a

ele proferida na mensagem anterior de Natã a Davi. A palavra de Deus

veio a Natã, e Davi instou Deus a estabelecer a palavra falada a ele

(2Samuel 7:4,25). A referência aqui à palavra de Deus faz Davi recordar

as grandes coisas que Deus lhe tem feito, as quais ocorreram em

cumprimento daquela promessa, bem como as grandiosas coisas

adicionais que Deus planeja para ele, as quais foram designadas ao

pleno cumprimento daquela promessa. Davi desprezou aquela palavra,

aquela promessa. Pode-se imaginar que ele a colocou em risco, mas essa

mesma palavra de promessa não permite a Deus nenhuma forma de

escape, deixando de cumpri-la na vida de Davi. Deus pode castigar

Davi, mas não pode abandoná-lo.

Por outro lado, esse fato sugere a possibilidade de a remoção da

transgressão de Davi por Deus significar a recusa de permitir que isso

seja um obstáculo ao cumprimento do propósito de Deus para Israel por

meio de Davi, ainda que essa transgressão acarrete outras

consequências terríveis. Igualmente, isso suscita a possibilidade de que

a remoção da transgressão por Deus não seja uma resposta à condição


de Davi. Não faz a menor diferença se aquela confissão expressava uma

tristeza real ou apenas remorso e arrependimento por ter sido

descoberto. A recusa de Deus em levar Davi à morte ou de abandoná-lo

emerge do próprio Deus, de sua graça e de seu compromisso. Deus não

exerce misericórdia sobre nós porque a merecemos, mas porque é da

natureza divina.

Existe, ainda, um motivo paradoxal e estranho para Davi não ser

simplesmente eliminado. Ele demonstrou total desprezo pelos inimigos

de Yahweh. Coloquei a expressão sobre os inimigos entre colchetes

porque isso pode ter sido uma adição tardia ao texto — você verá que as

traduções modernas a deixam de fora. Contudo, ela é parte do texto e

sugere uma reflexão. O trabalho de Davi era governar sobre os inimigos

de Yahweh e ser o meio pelo qual eles chegariam ao conhecimento de

Yahweh. Sua ação o tem retratado como alguém a quem os inimigos de

Yahweh poderiam, com razão, desprezar. Como ele pode, agora, ser esse

meio pelo qual os inimigos reconhecerão Yahweh? Por seus atos, Davi

tem solapado o cumprimento de sua vocação.


2SAMUEL 12:15B—13:14
O PREÇO QUE A FAMÍLIA COMEÇA A PAGAR
15b 16
Yahweh atinge a criança que a esposa de Urias gerou a Davi. Quando ele adoece, Davi

17
busca a Deus pelo garoto. Davi jejuou, veio e passou a noite deitado no chão. Os anciãos

em sua casa vieram sobre ele para fazê-lo levantar-se do chão, mas ele não estava disposto e

18
não se alimentou com eles. No sétimo dia, a criança morreu. Os servos de Davi ficaram

com medo de lhe contar que a criança tinha morrido, porque [eles disseram]: “Ora, quando a

criança estava viva, falamos com ele e ele não ouviu a nossa voz. Como podemos lhe dizer: ‘A

19
criança está morta?’ Ele pode fazer algo ruim.” Davi viu que os seus servos estavam

sussurrando uns com os outros e percebeu que a criança estava morta. Davi disse aos seus

20
servos: “A criança está morta?” Eles disseram: “Está morta.” Davi levantou-se do chão,

banhou-se, passou os óleos em si e trocou suas roupas. Ele foi à casa de Yahweh e prostrou-se.

21
Então, ele foi para sua casa e pediu que lhe providenciassem comida e comeu. Seus servos

lhe disseram: “O que é isso que fizeste? Quando a criança ainda estava viva, jejuaste e

22
pranteaste. Agora que a criança está morta, te levantas e comes.” Ele disse: “Enquanto a

criança ainda estava viva, eu jejuei e pranteei porque disse: ‘Quem sabe? Yahweh pode ser

23
gracioso comigo. A criança pode viver.’ Mas, agora que ela está morta, por que eu deveria

jejuar? Sou capaz de trazê-la de volta? Eu irei a ela, mas ela não voltará para mim.”

24
Davi confortou Bate-Seba, sua esposa, e teve sexo com ela. Ele dormiu com ela, e ela teve

25
um filho, e o chamaram de Salomão. Porque Yahweh se importou com ele, ele enviou por

meio do profeta Natã e o chamou de “Amado pelo Senhor”, por causa de Yahweh.

[Os versículos 26-31 relatam como Davi participou da captura de Rabá, encerrando a história

iniciada no capítulo anterior.]

CAPÍTULO 13

1
Isso ocorreu subsequentemente. Absalão, filho de Davi, tinha uma bela irmã, chamada

2
Tamar, e Amnom, o filho de Davi, a amava. Isso era tão estressante para Amnom que ele

ficou doente por causa de Tamar, sua irmã, porque ela era uma garota jovem, mas parecia

3
impossível aos olhos de Amnom fazer algo sobre ela. Mas Amnom tinha um amigo,

5
chamado Jonadabe, filho de Simeia, irmão de Davi, um homem muito esperto. [...] Jonadabe

lhe disse: “Deite-se em sua cama e aja como doente. O seu pai virá vê-lo, e você pode dizer a

8
ele: ‘Que Tamar, minha irmã, possa vir e me dar algo para comer [...].’” Assim, Tamar foi à

casa de Amnom, seu irmão; ele estava deitado. Ela pegou massa, amassou, fez panquecas na

9
frente dele e as cozinhou. Mas, quando ela pegou a panela e as colocou na frente dele, ele se

recusou a comê-las. Amnom disse: “Mande todos saírem para mim”, e todos saíram de sua

10
presença. Então, Amnom disse a Tamar: “Traga a comida ao meu quarto para que eu possa

11
comer de sua mão [...].” Quando ela ofereceu a ele para comer, ele a segurou e lhe disse:

12
“Venha para a cama comigo, irmã.” Ela lhe disse: “Não, irmão. Não me violente, porque tal
13
coisa não é feita em Israel. Não faça essa estupidez. E quanto a mim? Para onde eu levaria

a minha desgraça? E você será apenas um dos homens estúpidos de Israel. Assim, agora, por

14
que não vai falar com o rei, pois ele não recusaria dar você a mim.” Mas ele não ouviu a voz

dela. Ele a segurou, a violentou e deitou-se com ela.

Durante um concerto na noite passada, uma das cantoras estava nos

contando a história por trás de uma canção sobre o seu avô. Ele era

franco-canadense, falava principalmente francês e tinha morrido

quando ela ainda era criança. Compreensivelmente, ela sentia que

jamais o conhecera realmente e, com frequência, olhava para uma

fotografia tirada nos anos 1920, durante o casamento dele com a sua

avó. Naquela foto, ela imagina ver um olhar travesso no olho do avô e

nos olhos da avó, uma expressão que diz: “No que eu fui me meter?” A

canção imagina o que seu avô estava pensando naquele dia, mas é

apenas imaginação; ela não tem como saber se o decifrou corretamente.

Na história bíblica, continuo sem saber se o mais difícil é decifrar

Davi ou Deus. O que Deus está fazendo, atingindo essa pobre criança?

Como muitas pessoas, sinto-me horrorizado com a ideia de alguém

abortar uma criança apenas por não desejar um filho ou filha naquele

momento, sem esquecer que há pessoas capazes de matar crianças. A

ação de Deus não toma conhecimento de qualquer ideia sobre esse bebê

ter o direito individual à vida. A existência de uma criança está sempre

vinculada, na teia da vida, aos seus pais; sabemos como os pecados dos

pais são visitados em seus filhos. Nessa narrativa, os sentimentos de sua

mãe são totalmente ignorados. A morte da criança é apenas uma

declaração do julgamento divino sobre o pai do bebê. Uma vez mais,

isso reflete o fato de os riscos serem elevados quando se nasce no seio de

uma família por meio da qual o propósito divino está em andamento.

Podemos dar outro suspiro de alívio por sermos apenas pessoas comuns

e, talvez, por Deus não se relacionar conosco como ele se relacionava

com Davi e com as pessoas próximas a ele.


Que a ação de Deus é um juízo sobre Davi reflete-se na maneira de a

história seguir descrevendo a reação de Davi à enfermidade do menino

(novamente, não há qualquer menção à reação da sua esposa, mãe do

bebê). Como Deus pode ser tão duro de coração a ponto de não

responder ao jejum e às orações de Davi? “Com dificuldade”, creio ser a

resposta. (Como Deus será capaz de permanecer assentado no céu,

vendo Jesus ser executado?) Com frequência, o Antigo Testamento

retrata Deus demonstrando a sua misericórdia sobre pessoas que não a

merecem. Na verdade, essa história constitui um exemplo; Davi merece

morrer por causa de seus atos, e o fato de continuar vivo (e seguindo no

trono como rei) advém da graça divina. Por que Deus, simplesmente,

não deixou Davi morrer e a criança viver? Talvez Deus já tenha

descartado essa opção pelo compromisso expresso em 2Samuel 7.

Portanto, Deus está entre tratar Davi segundo ele merece e permitir

que ele saia ileso de sua transgressão.

Igualmente, é um mistério o motivo pelo qual Davi estaria tão

contrariado pela doença do menino. Ele já possui muitos filhos e não

tem demonstrado sinal de consideração por nenhum deles na história

até aqui. Além disso, a concepção dessa criança foi (afinal) um acidente

com consequências desastrosas. Os serviçais de Davi consideram a

profundidade da sua preocupação como desconcertante e, então,

compreensivelmente, também consideram confusa a sua reação após a

morte do filho. Há uma estranha e implacável lógica quanto a isso. Está

certo, acabou. Ele vai ao santuário para prostrar-se diante de Deus em

reconhecimento à soberania divina sobre responder ou não às nossas

orações e, depois, retoma a sua vida normal. Ele se unirá ao menino no

Sheol, mas o menino jamais se unirá a ele, novamente, na terra.

Espero que Davi não tenha imaginado que poderia confortar Bate-

Seba levando-a para a cama, embora a narrativa possa sugerir essa

presunção ou, pelo menos, indicar que a concepção de outra criança

pode compensar a perda de outra. Só que não. Todavia, uma vez mais, a

história preocupa-se mais com o propósito maior de Deus do que com


os sentimentos de Davi ou de Bate-Seba. A concepção de Bate-Seba é

um sinal de que Deus não abandonou Davi e a sua linhagem. A essa

altura, Davi e Bate-Seba não sabem, mas os leitores futuros da história

têm ciência de que o novo filho que ela concebe é aquele que irá suceder

a Davi no trono e no qual aquelas promessas em 2Samuel 7 serão

cumpridas (embora ele mesmo se envolva numa confusão que é, de

certo modo, tão ruim quanto a de seu pai). O amor de Deus por essa

criança não se relaciona apenas a ela como indivíduo, mas ao fato de ser

o filho que, no devido tempo, irá suceder Davi. O nome que o menino

recebe não é uma correção do nome que lhe foi dado por Bate-Seba ou

uma troca pelo nome com que ele será, de fato, conhecido; é mais como

os nomes que aparecem em Isaías, ou seja, “Maravilhoso Deus é o

Poderoso Deus; o Pai Eterno é um Príncipe da Paz” (Isaías 9:6), que

não é exatamente um nome no sentido em que as outras pessoas falam

normalmente de alguém. O novo nome é uma espécie de nome de

cortesia.

Essa história parece ser ainda mais impactante quando a

relacionamos com o salmo 51, cujo título convida os leitores a fazerem

uma conexão com esses eventos. Se Davi orou da maneira que o salmo

51 descreve, parece que Deus não atendeu à sua oração. Talvez Deus

tenha até considerado a oração excelente, mas não exatamente aquela

que Davi queria, de fato, expressar. Ou pode ser que, de certa maneira,

era o tipo de oração que Davi deveria ter feito. Ainda, pode ter sido

uma oração excelente a princípio, mas não uma que se harmonizasse

com os lábios de Davi. Afinal, se Davi disse a Deus: “Contra ti, só

contra ti, pequei” (Salmos 51:4), parece que ele ainda tem uma coisa ou

duas para aprender sobre o que tinha feito.

A história de Tamar surge na sequência para mostrar que Davi não

pecou meramente contra Deus, Urias, Bate-Seba, contra a criança que

morreu, contra as tropas israelitas em Rabá ou mesmo contra Israel

como um todo. Ele pecou contra Tamar, a sua filha (e, por conexão,

contra Amnom, seu filho), porque o perfil de pessoa que ele era se
manifesta no comportamento que aparece em sua família e traz o juízo

divino à sua casa como um julgamento sobre o próprio Davi. A

narrativa pressupõe que os filhos adultos de Davi tenham as suas

próprias casas, e o estupro de Tamar por Amnom não envolve incesto

no sentido estrito, já que eles têm mães diferentes. Tamar pode,

portanto, cogitar a possibilidade de Davi concordar com o casamento

dela com Amnom, embora, naquele momento, ela possa estar apenas

tentando impedir o estupro.


2SAMUEL 13:15—14:24
A DOR DE UMA IRMÃ E A CONTENDA ENTRE IRMÃOS
15
Amnom, então, sente uma grande repulsa por [Tamar], e essa aversão que ele sente por ela

16
era muito maior que o amor que sentia por ela. Amnom lhe disse: “Levante-se; vá.” Ela lhe

disse: “Não! Este erro de me mandar embora é maior do que o outro que você fez a mim.”

17
Mas ele não a ouviu. Ele chamou o rapaz que o atendia e disse: “Vocês podem mandar esta

18
mulher embora, tirá-la de minha presença e trancar a porta depois de ela sair?” Ela tinha

um vestido de mangas compridas, porque as filhas mais novas do rei costumavam trajar tais

19
vestes. Tamar colocou terra sobre a sua cabeça, rasgou o vestido de mangas cumpridas que

vestia, colocou a mão sobre a cabeça e se pôs a caminho, chorando enquanto ia.

20
Absalão, seu irmão, lhe disse: “Irmã, foi Amnom, seu irmão, que estava com você? Agora,

irmã, acalme-se. Ele é seu irmão. Não entregue a sua mente a esta coisa.” Então, Tamar

21
permaneceu uma mulher desolada na casa de Absalão, seu irmão. O próprio rei Davi ouviu

22
sobre tudo isso e ficou muito irritado. Absalão não falou nada com Amnom, nem bem nem

mal, porque Absalão se recusou a ter qualquer coisa com Amnom pelo fato de ele ter

23
violentado Tamar, a sua irmã. Dois anos mais tarde, os tosquiadores de ovelhas de Absalão

estavam em Mestre-de-Hazor, que fica próximo a Efraim, e Absalão convidou todos os filhos

28
do rei [...] Absalão ordenou aos seus rapazes: “Observem quando Amnom estiver de bom

humor por causa do vinho, e eu lhes direi: ‘Derrubem Amnom, matem-no, não tenham medo.

29
Afinal, eu mesmo sou aquele que lhes dá a ordem. Sejam resolutos. Sejam fortes.’” Os

37
rapazes de Absalão fizeram a Amnom como Absalão ordenou [...] Absalão fugiu e foi para

38
Talmai, filho de Amiúde, rei de Gesur, e [Davi] chorou por seu filho o tempo todo. Quando

39
Absalão fugiu e foi a Gesur, ele ficou lá por três anos, mas o rei Davi parou de sair [para

lutar] contra Absalão porque ele tinha superado Amnom, que estava morto.

CAPÍTULO 14

1 2
Joabe, filho de Zeruia, reconheceu que a mente de Davi estava em Absalão. Joabe mandou

a Tecoa e buscou uma mulher astuta de lá. Ele lhe disse: “Você agirá como alguém enlutada e

vestirá roupas de luto? Não coloque óleos, seja como uma mulher que tem pranteado

3
durante um longo tempo por alguém que morreu. Vá ao rei e fale a ele desta maneira”

4
(Joabe colocou as palavras na boca dela). Então, a mulher de Tecoa foi ao rei, prostrou-se

5
com o rosto em terra, curvando-se e disse: “Ajuda-me, Majestade!” O rei lhe disse: “Qual é a

6
sua necessidade?” Ela disse: “Na verdade, sou viúva; meu marido morreu. O teu servo teve

dois filhos. Os dois brigaram nos campos, e não houve ninguém para separá-los. Um deles

7
atingiu o outro e o matou. E, agora, toda a parentela se levantou contra a tua serva,

dizendo: ‘Dê-nos aquele que matou o seu irmão, e nós o mataremos pela vida de seu irmão a

quem ele matou. Nós eliminaremos o herdeiro também.’ Assim, eles apagarão a última brasa

que me resta e não darão ao meu marido um nome ou remanescente sobre a face da terra.”

8
O rei disse à mulher: “Vá para casa, e eu darei uma ordem a seu respeito.”
[Nos versículos 9-24, a mulher explica que, na realidade, estava falando sobre a atitude de

Davi em relação a Absalão, e o rei concorda em trazer Absalão do exílio, embora ele deva ir

direto para a sua casa e não comparecer à presença do rei.]

Certa vez, conheci alguém que havia sido vítima de abuso sistemático

por parte de um membro de sua própria família, quando ela era jovem.

Ela nunca me contou os detalhes do que aconteceu e, para ser honesto,

jamais quis que ela o fizesse, mas eu sabia que, vinte anos mais tarde, ela

ainda lidava com questões advindas dessa experiência. O que me faz

pensar sobre ela, agora, é a maneira de ela falar sobre a pressão dos

demais familiares para manter silêncio sobre o ocorrido, quando ela se

tornou adulta e quis revelar o abuso, em parte por estar preocupada

com outras pessoas que pudessem ser vítimas do mesmo abusador. De

maneira similar, Dennis Potter, o dramaturgo da televisão britânica,

abusado sexualmente por seu tio, que vivia com sua família, disse sobre

como ele não podia falar sobre esse assunto porque achava que, ao fazê-

lo, jogaria uma bomba sobre tudo aquilo que o fazia sentir-se seguro.

Deve ser difícil imaginar a dor e a vergonha de Tamar. Para esse fim,

o melhor a fazer é retornar mais de uma vez à leitura de sua história e

manter os ouvidos bem abertos às suas palavras. Em muitas culturas, o

simples fato de tornar público que uma garota já teve uma experiência

sexual antes do casamento tem o potencial de trazer sobre ela grande

vergonha. Ela se torna um bem usado. As chances de seus pais lhe

arranjarem um marido diminuem muito — eis por que a Torá exige que

o próprio homem se disponha a se casar com ela, se ela assim desejar,

especialmente no caso de estupro. Expressando de outra maneira,

nessas culturas, ter relações sexuais equivale, praticamente, a consumar

um casamento. Relacionado a isso está o fato de Amnom falar em

mandá-la embora e ela protestar contra esta ação; “mandar embora” é

também um verbo que denota “divórcio”. Ela é expulsa da casa que, por

direito, deveria ser agora sua, e a porta é trancada após ela sair. Ao levar
alimento para o irmão doente, ela é envolvida num pesadelo: forçada ao

sexo contra a vontade, repudiada e envergonhada. Sua vida foi

arruinada. Colocar terra ou cinza sobre a cabeça, chorar em voz alta,

segurar a cabeça entre as mãos e rasgar as roupas são sinais regulares de

luto: um ponto sobre esse comportamento é que a pessoa não se importa

com o que vão pensar. Manter uma boa aparência seria uma contradição

a como as coisas estão. Ela estava vestida como uma princesa

adolescente se vestiria; não sabemos, ao certo, o significado da

expressão traduzida por “de mangas compridas” (é a mesma palavra

usada para descrever a túnica do sonho de José), mas, evidentemente, é

um modo de se trajar que marca a sua posição na família ou na

comunidade. Rasgar esse traje é especialmente revelador.

O seu pai fica contrariado com o ocorrido, mas NÃO FAZ NADA A

RESPEITO. Uma vez mais, o mistério enigmático do caráter de Davi

vem à tona. Em contextos militares e políticos, ele pode ser decisivo,

mas em questões familiares ele é desconcertante e inexplicavelmente

omisso. A tradução do texto, no grego antigo, acrescenta que o

problema de Davi é o fato de Amnom ser o seu primogênito, o que é

uma reflexão plausível, embora isso torne a inação de Davi ainda mais

grave. Trata-se do filho que deve ser o sucessor, e seu comportamento é

similar ao de seu pai, no passado: “Eu sou o rei atual/futuro e posso

fazer o que quiser.” Talvez o fato de Amnom ser o filho mais velho seja o

motivo da estranha omissão de Davi. Ele se vê em Amnom.

A reação de Absalão é, a princípio, enigmática de uma outra

maneira. Ele é um daqueles que aconselha a irmã a guardar silêncio

sobre o ocorrido. A roupa suja da família não deve ser lavada em

público, especialmente o linho da família real. Todavia, é como se aquele

evento corroesse Absalão por dentro. A cada novo dia, no desjejum, ele

encontra a irmã, a quem convidou para morar em sua casa, com os olhos

escuros de tanto chorar, suas roupas de princesa jamais restauradas, não

tendo, aparentemente, outra escolha senão o desapego pela própria

vida. Com o passar do tempo, ele desenvolve um plano que envolve


convidar seu pai e seus irmãos à celebração que, em geral, ocorre por

ocasião da tosquia das ovelhas. Davi sente algo no ar; na realidade, os

seus serviçais dizem que Absalão está tramando o assassinato de

Amnom desde o estupro. Os capítulos posteriores nos contarão sobre a

tentativa de Absalão de tomar o trono de seu pai, e pode ser que o seu

plano em relação a Amnom também contemple suas intenções futuras

em direção ao trono. Davi declina de ir à celebração de Absalão e não

dá permissão a Absalão para convidar Amnom (o aparente herdeiro do

trono), mas Absalão o faz de qualquer modo, e, de sua parte, Amnom

falha em suspeitar do convite.

É possível que Amnom tenha vivido por dois anos com a carga de

seu ato e, no subconsciente, esteja disposto a enfrentar o seu destino.

Todavia, com respeito a todos esses assuntos o texto mantém silêncio.

Ele pouco revela sobre os sentimentos e motivação dos envolvidos, mas

deixa a reflexão para nós. O texto faz o mesmo em não tecer nenhum

juízo moral sobre os acontecimentos, não por desconsiderar que a

história descreva eventos moralmente horríveis, mas por presumir que

podemos compreender a natureza do que eles são. Em ambas as

conexões (o psicológico e o moral), deixar as coisas sem ser ditas nos

leva a fazer julgamentos e, portanto, nos envolve de uma forma que não

seríamos pessoalmente envolvidos caso o texto explicitasse todas as

respostas.

Parece que Absalão está certo em avaliar que a sua vida, agora, está

em perigo e, sabiamente, ele foge, buscando refúgio junto a Talmai, seu

avô materno. Davi, então, fica paralisado em sua relação com Absalão.

Essa paralisia leva Joabe a adotar uma ação decisiva, embora esse ato

contribua para que Absalão possa organizar o seu golpe subsequente e

com a maneira pela qual o juízo divino prevalece em todos esses

eventos. Uma vez mais, Davi é a vítima ou o beneficiário de uma

parábola. A história contada pela mulher é totalmente funcional, assim

como a parábola de Natã. De novo, ela penetra na pele de Davi. Para os

propósitos da história, Davi tem apenas dois filhos, Amnom e Absalão, e


os demais são ignorados. Um matou o outro, e a aceitação de Davi

quanto ao autoexílio de Absalão significa que o filho está morto para ele

e Israel. Ele concorda que, se é capaz de perdoar o fictício filho assassino

da mulher, deveria restaurar o seu próprio e real filho assassino, embora

o faça de maneira parcial. Isso parece razoável, mas pode abrigar outro

aspecto de bastidor para os futuros problemas que surgirão.


2SAMUEL 14:25—16:23
O GOLPE DE ABSALÃO
25
Comparado com Absalão, não havia ninguém em todo o Israel a ser tão admirado pela

beleza. Desde a planta de seu pé até a coroa de sua cabeça, não havia nenhum defeito nele.

26
Quando ele raspava a sua cabeça (ao fim de cada ano ele raspava, porque era muito pesada

para ele, de modo que a raspava), ele pesava o cabelo em sua cabeça, duzentos siclos pelo

27
peso real. Havia nascido a Absalão três filhos e uma filha, chamada Tamar; ela se tornou

28
uma linda mulher. Absalão morou em Jerusalém por dois anos, mas não foi à presença do

29
rei. Então, Absalão chamou Joabe para mandá-lo ao rei, mas [Joabe] não foi até ele.

[Nos versículos 30-32, Absalão manda incendiar o campo de cevada de Joabe para persuadi-

lo.]

33
Então, Joabe foi ao rei [...] e ele convocou Absalão. Ele foi ao rei e se curvou diante dele,

com o rosto em terra, e o rei abraçou Absalão.

CAPÍTULO 15

1
Algum tempo depois, Absalão preparou para si uma carruagem, cavalos e cinquenta homens

2
que corriam à sua frente. Absalão se levantava cedo e ficava ao lado da estrada para o

portão. Quando alguém tinha um caso a levar ao rei para uma decisão, Absalão o chamava:

“De que cidade você vem?”, e a pessoa dizia: “O teu servo vem de um dos clãs israelitas”,

3
Absalão lhe dizia: “Veja, as suas declarações são boas e honestas, mas não há ninguém para

4
ouvir você em nome do rei.” Absalão dizia: “Se apenas alguém me fizesse uma autoridade no

país para que qualquer um com um caso para decisão pudesse vir a mim, eu asseguraria os

5
seus direitos.” Quando alguém se aproximava para curvar-se diante dele, ele estendia a

6
mão, o segurava e o abraçava. Absalão agia dessa maneira com todo o Israel que vinha ao rei

para uma decisão. Assim, Absalão roubou o coração dos israelitas.

[Segundo Samuel 15:7—16:23 relata como Absalão consegue fazer-se rei em Hebrom. Davi

foge com sua família, acompanhado de algumas tropas leais a ele. Ele deixa para trás dez

esposas secundárias para cuidarem do palácio, Zadoque e Abiatar, os sacerdotes, com o baú da

aliança, e um aliado chamado Husai, para fingir ser leal a Absalão. Igualmente, Mefibosete

permanece em Jerusalém, imaginando que o conflito possa fazê-lo ganhar o trono de Saul, de

modo que Davi entrega a sua propriedade a Ziba, criado de Mefibosete. Outro apoiador de

Saul, Simei, lança insultos a Davi enquanto ele passa, mas Davi impede que ele seja morto.

Enquanto isso, Absalão chega em Jerusalém, vindo de Hebrom.]

Quando eu era um pastor assistente, uma figura política proeminente

na Igreja da Inglaterra veio discursar numa conferência em nossa igreja;


ele falou sobre as políticas pelas quais estava trabalhando na Igreja da

Inglaterra. Ficou evidente que aquele homem era um habilidoso

operador político; ele conhecia o caminho das pedras. Durante o seu

discurso, meu reitor sussurrou no meu ouvido: “É muito bom que esse

homem seja cristão, pois ele seria um trapaceiro caso não fosse.” De

fato, é difícil ser alguém devotado a Deus e, ao mesmo tempo, hábil em

fazer as coisas acontecerem. É mais fácil ser alguém dedicado a Deus

sem ter essa habilidade de negociador, ou ser um cristão que parece tão

implacável quanto as demais pessoas do mundo.

Em que pese o fato de as falhas morais de Davi serem realmente

graves, ele se torna um padrão para avaliação de reis, como vemos em

comentários sobre se o rei fez ou não “o que o Senhor, seu Deus,

aprova”, como “Davi, seu predecessor” (2Reis 16:2). Observamos que

essa avaliação favorável se torna mais compreensível quando

consideramos a base das críticas desses futuros reis. Eles são propensos

a tolerar, ou mesmo incentivar, a espécie de adoração que Yahweh

reprova totalmente (no caso em questão, sacrificar um filho a Yahweh),

ou a adoração a outros deuses. Apesar de todas as falhas de Davi e de

toda a sua ignorância sobre o seu modo de relacionar-se com Yahweh e

sua maneira de viver a vida, ele é inflexível em seu compromisso com

Yahweh. Esse fato acompanha a história do golpe de Absalão. Em certo

nível, a amotinação de seu filho advém do juízo de Deus sobre Davi por

matar Urias e apossar-se de Bate-Seba, mas, em outro nível, isso resulta

da própria incompetência de Davi como pai. Igualmente, a sua reação

diante do golpe contrasta com a determinação de suas reações em

outros contextos políticos. Isso aprofunda o mistério sobre quem Davi

é. Deve haver um ponto positivo sobre contar a história de modo que

sugira que Davi perdeu a sua verve. Ela traça um paralelo com outra

vertente nos estágios anteriores da história davídica. Ele confia em

Deus e deixa o resultado dos eventos nas mãos divinas.

Com certa ironia, Absalão é, agora, o operador político astuto. Ele é

feito à imagem de seu pai por ser fisicamente atraente. Outra


característica herdada do pai é a facilidade com que ele consegue a

adesão das pessoas. A astúcia por meio da qual ele eliminou Amnom

reaparece em sua audaciosa estratégia para obter a atenção de Joabe.

Absalão estava em débito com Joabe por este manipular Davi a permitir

que o filho voltasse do exílio, mas ele deixa claro a Joabe que isso não o

torna um subordinado. Joabe deveria ter levado Absalão mais a sério.

Assim, Absalão consegue voltar à vida pública em Jerusalém e, então,

após um discreto intervalo, ele constrói uma base de poder na cidade e

rouba “o coração dos israelitas” — isto é, converte o compromisso do

povo a ele em vez de a Davi. Ao lograr isso, ele implica que Davi perdeu

a sua força de outra maneira. Absalão oferece ao povo fazer aquilo que

Davi costumava fazer, objetivando que as decisões fossem tomadas

segundo o que era direito e justo (2Samuel 8.15). Dificilmente, Absalão

poderia fazer tal oferta caso Davi ainda estivesse cumprindo esse

aspecto das responsabilidades de um rei.

Absalão também logra obter a cooperação de Aitofel, conselheiro de

seu pai, a quem a narrativa descreve oferecendo o tipo de conselho que

era tão confiável quanto um oráculo feito por um profeta.

(Ironicamente, o nome Aitofel parece significar “Irmão da Insensatez”;

presumidamente, trata-se de uma forma derivada de seu nome real, que

pode ter sido algo como Aipelete, “Irmão da Libertação”, ou, ainda,

Aibaal, “Irmão do Mestre” — o que soaria como uma homenagem a

Baal.) Ele inventa uma história para explicar a necessidade de visitar

Hebrom e cumprir uma promessa que havia feito quando estava no

exílio, caso Deus tornasse possível o seu retorno (uma história que

envolve tomar o nome de Deus em vão). Ele aproveita essa visita e, com

renovada audácia, coroa a si mesmo em Hebrom, como Davi havia sido.

Mesmo quando foge, Davi demonstra a sua confiança em Deus. É

como se ele pudesse se dar ao luxo de não lutar, pois Deus é a base de

sua posição. Quando Zadoque, o sacerdote, traz o baú da aliança para

acompanhar o rei, Davi o envia de volta, dizendo: “Leve a arca de Deus

de volta para a cidade. Se o Senhor mostrar benevolência a mim, ele me


trará de volta e me deixará ver a arca e o lugar onde ela deve

permanecer. Mas, se ele disser que já não sou do seu agrado, aqui estou!

Faça ele comigo o que for de sua vontade” (2Samuel 15:25-26). Além

disso, enviar Zadoque de volta a Jerusalém também resultará em ter um

aliado útil lá. Ao ouvir que Aitofel está entre os conspiradores, a reação

de Davi foi orar: “Ó Senhor, transforma em loucura os conselhos de

Aitofel.” Quando Simei grita insultos a ele e um de seus soldados deseja

cortar a cabeça de Simei, a reação de Davi é sugerir que Deus enviara

Simei com seus insultos e que, se Deus assim desejasse, ele é que deveria

recompensar Simei por seus insultos, não Davi.

O capítulo termina com Absalão buscando o conselho de Aitofel

sobre o próximo passo a ser dado por ele. Aitofel o aconselha a ter

relações sexuais com as esposas secundárias de seu pai, o que seria uma

maneira de reivindicá-las e de enfatizar o fato de ele ter assumido o

trono como rei. Absalão segue o conselho no terraço do palácio,

cumprindo ainda mais a declaração que Deus tinha feito sobre os

problemas que afligiriam Davi por ele haver matado Urias e se apossado

de Bate-Seba. Na verdade, o próprio comportamento e as palavras de

Davi, quando ele abandona a cidade, sugerem uma atitude de

penitência. Uma vez mais, o que as mulheres pensam sobre os eventos é

irrelevante.
2SAMUEL 17:1—19:40
CONSELHO SÁBIO TRATADO COMO TOLO
1
Aitofel disse a Absalão: “Eu deveria escolher doze mil homens e partir para perseguir Davi

2
esta noite para chegar sobre ele quando ele estiver desgastado e fraco. Irei fazê-lo entrar em

3
pânico, e toda a companhia com ele fugirá. Eu matarei apenas o rei e trarei toda a

companhia de volta para ti. Quando todos retornarem [exceto] o homem a quem persegues,

4
todo o povo estará em paz.” As palavras pareceram sólidas aos olhos de Absalão e de todos

5
os anciãos israelitas, mas Absalão disse: “Convocarão Husai, o arquita, para também

6
podermos ouvir o que ele diz?” Então, Husai veio até Absalão, e Absalão lhe disse: “Isto é o

7
que Aitofel falou. Devemos agir de acordo com o que ele diz? Se não, fale você.” Husai disse

8
a Absalão: “O conselho que Aitofel deu desta vez não é bom.” Husai disse: “Sabes que teu

pai e seus homens são guerreiros. Eles possuem um espírito feroz como uma ursa selvagem

que perdeu os seus filhotes. E teu pai é um homem de guerra: ele não passará a noite com a

9
companhia. Sim, ele já está, agora, escondido em um dos poços ou em algum [outro] lugar.

E, quando alguns dos homens [de Absalão] caírem cedo, alguém que ouvir dirá: ‘O desastre

10
veio sobre a companhia que segue Absalão!’ Aquela pessoa, mesmo se for um homem forte

cujo espírito é como o espírito de um leão, desmaiará totalmente, porque todo o Israel sabe

11
que teu pai é um guerreiro, assim como são os homens fortes com ele. Portanto, eu

aconselho que todo o Israel, desde Dã até Berseba (como a areia da praia em números) se

12
reúnam para unir-se a ti, e tu, pessoalmente, indo no meio. Então, viremos contra ele, em

algum lugar, onde ele possa ser encontrado e desceremos sobre ele como o orvalho cai sobre

14
a terra. Nada será deixado dele e de todos os homens com ele, nem mesmo um” [...] Absalão

e todos os homens israelitas com ele disseram: “O conselho de Husai, o arquita, é melhor do

que o conselho de Aitofel.” Yahweh tinha ordenado a frustração do bom conselho de Aitofel

23
para que Yahweh pudesse trazer problemas sobre Absalão [...] Quando Aitofel viu que o

seu conselho não foi seguido, ele selou o seu jumento e foi para casa, para a sua cidade. Ele

deu ordens com relação a sua casa e enforcou-se. Ele morreu e foi sepultado no túmulo de

seu pai.

[Os capítulos 17, 18 e 19 também relatam como Husai envia informações a Davi sobre o plano

de Absalão, o que dá a Davi tempo para atravessar o Jordão. A companhia de Davi derrota a

de Absalão lá, e, contrariando as ordens de Davi, os soldados matam Absalão. Quando Davi é

subjugado pelo sofrimento, Joabe adverte o rei por não se importar com a dedicação de seus

homens por ele. O povo, como um todo, concorda em pedir a Davi para retornar a Jerusalém

como rei.]
Durante os anos 1990, houve uma crise política no Estado de Israel

quanto ao bom nome do rei Davi. O ministro das Relações Exteriores

foi acusado de difamar Davi num debate parlamentar, e suas palavras

incitaram três moções de desconfiança contra o governo de coalizão.

Embora o partido governante tenha conseguido atravessar essa crise

particular, ficou temeroso de que o incidente viesse a ter efeitos sobre a

eleição geral que se aproximava, uma vez que o episódio poderia unir

toda a comunidade religiosa contra o partido. O presidente da coalizão

conclamou o ministro a fazer um pedido público de desculpas, mas ele

não se mostrou disposto a isso, embora tenha dito que sua intenção não

era difamar a imagem do rei Davi por comentários que havia feito sobre

o relacionamento do rei com Bate-Seba. Suas palavras reais foram:

“Nem tudo o que o rei Davi fez, seja no chão, seja nos telhados, é

aceitável a um judeu ou algo que eu aprecie.”

Já comentamos que Davi apresenta um caráter consistentemente

misterioso e enigmático. Há muitas facetas sobre ele e muitos lados de o

Antigo Testamento retratá-lo. Portanto, é possível ser seletivo nessa

avaliação; na realidade, é quase inevitável. Ele pode ser retratado como

um grande herói, como um grande homem de Deus, como um

maquiavélico articulador, como um hábil líder e guerreiro, ou como

incompetente e hesitante. De certo modo, os dilemas e as escolhas que

as pessoas fazem enquanto leem a história de Davi traçam um paralelo

às escolhas e dilemas que seus súditos e seus serviçais tiveram que fazer.

Talvez Absalão traduza isso. Embora ele possa ter sido movido

puramente pelo egoísmo e pela ambição, ainda há alguns atenuantes

para a sua ação, especialmente pela omissão de Davi em relação a

Amnom e Tamar, bem como por sua (possível) negligência em assegurar

que a autoridade fosse exercida de um modo justo para o povo.

Igualmente, Aitofel simboliza isso. Talvez ele também não veja nenhum

futuro para Davi, o hesitante, e tenha uma percepção de afronta pela

falha de Davi em governar apropriadamente. Se for assim, parece que,

no entanto, eles fizeram a escolha errada por motivos que eles podem ou
não ter sido capazes de considerar. A estratégia de Aitofel era correta; é

imperativo perseguir e matar Davi agora, antes de ele ter a chance de se

reagrupar e se reabastecer. A estratégia de Absalão em também ouvir o

conselho de Husai era, de igual modo, acertada; quanto mais conselhos

você tiver, tanto mais provável será tomar uma boa decisão. O conselho

de Husai era plausível o suficiente para enganar Absalão. O problema

de Aitofel e Absalão era o fato de Deus não estar do lado deles. Deus

tinha assumido um compromisso com Davi do qual ele não poderia

recuar, mesmo Davi sendo um pai hesitante e incompetente, um rei

sedutor e assassino. Sem dúvida, a aceitação do conselho de Husai pode

ser explicado por sua plausibilidade; não é preciso imaginar que Deus

tenha manipulado Absalão para aceitá-lo (embora em outros contextos

Deus esteja preparado para agir assim). Parecia um conselho robusto,

mas, na realidade, não era. O seu sucesso também está ligado ao

compromisso de Deus com Davi. Deus não estava dificultando a vida de

Absalão por ele ser uma pessoa perversa, mas por ele tentar eliminar o

homem que Deus havia colocado no trono; ou pode-se dizer que essa

era exatamente a sua perversidade. Por que Aitofel cometeu suicídio?

Pelo sentimento de fracasso em levar a efeito o que precisava

acontecer? Por ele saber que seus dias estavam contados quando Davi

retornasse? Ou porque ele compreendeu que estivera resistindo a

Deus?

A demora na ação de Absalão permitiu a Davi cruzar o Jordão,

conseguir suprimentos de seus aliados ali e organizar as suas tropas. Ele

cede à pressão de suas tropas para não participar da batalha e

permanecer a salvo em Maanaim, onde, na prática, ele estabelece um

governo no exílio. Quando as tropas saem para a batalha, a sua última

ordem é para que eles sejam condescendentes com Absalão, seu filho.

Todos estão cientes disso. As tropas de Davi enfrentam as muito mais

numerosas forças israelitas em meio à floresta de Efraim, o que os

beneficia muito mais do que se fosse em campo aberto. Segundo a

narrativa, “naquele dia, a floresta matou mais que a espada”. Com certa
ironia, a magnífica cabeleira de Absalão fica presa entre os galhos de

uma árvore sob a qual ele passava enquanto cavalgava. Sua mula

prossegue, e Absalão busca refúgio na copa da árvore, mas alguns dos

homens de Davi o veem ali e contam a Joabe, o comandante deles.

Apesar das ordens de Davi, Joabe e alguns de seus homens matam

Absalão. Isso acarreta o fim da batalha; o exército de Absalão foge.

Joabe envia mensageiros para contar a Davi as boas-novas, mas ele se

desespera ao ouvir que Absalão está morto; “Ah, meu filho Absalão!

Meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera ter morrido em seu lugar!

Ah, Absalão, meu filho, meu filho!”

O pragmático Joabe adverte Davi de que o seu abatimento pela

morte do filho ameaça, uma vez mais, solapar o apoio de seus homens, já

que eles se sentem envergonhados pela vitória em vez de estarem

orgulhosos dela. Ele se preocupa com os seus inimigos (o que parece

bom), mas age com inimizade em relação às pessoas que se importam

com ele (o que é, na melhor das hipóteses, pouco sábio). O

comportamento de Davi passa a ideia de que ele estaria contente caso

Absalão estivesse vivo e seus próprios apoiadores estivessem todos

mortos. Um líder não pode permitir que considerações familiares

dominem a sua vida. Assim, Davi se recompõe e recebe as suas tropas, e

o povo, como um todo, relembra os motivos pelos quais, outrora, era

feliz por ter Davi como rei. Dessa forma, Davi consegue encorajar as

pessoas a dar as boas-vindas ao seu retorno. Ele resiste a qualquer

tentação ou pressão para vingar-se das pessoas que o rejeitaram, mas

recompensa as pessoas que o apoiaram.


2SAMUEL 19:41—21:22
CÁLCULO DE LÍDER E AMOR DE MÃE

[Segundo Samuel 19:41—20:26 relata conflitos adicionais entre os clãs do norte e Judá sobre o

reassentamento de Davi e descreve uma outra rebelião contra Davi, liderada por um homem

chamado Seba, à qual Davi também coloca um fim.]

CAPÍTULO 21

1
Nos dias de Davi, houve fome por três anos, ano após ano. Então, Davi buscou uma

audiência com Yahweh, e Yahweh disse: “É em conexão com Saul e a casa manchada de

2
sangue, porque ele matou os gibeonitas.” Assim, o rei convocou os gibeonitas e lhes falou.

(Os gibeonitas não eram israelitas, mas, sim, parte do que foi deixado dos amorreus, e os

israelitas tinham feito um juramento a eles, mas Saul tinha tentado eliminá-los em seu zelo

3
pelos israelitas e por Judá.) Então, Davi disse aos gibeonitas: “O que devo fazer por vocês?

4
Como devo fazer expiação, para que vocês possam abençoar o próprio povo de Yahweh?” Os

gibeonitas lhe disseram: “Não temos [direito a] prata ou ouro com Saul e sua casa e não

temos [direito a] determinar um homem à morte em Israel.” Assim, ele disse: “Seja o que for

5
que me disserem, eu farei a vocês.” Eles disseram ao rei: “O homem que acabou conosco e

pensou que poderíamos ser exterminados para que não mantivéssemos um lugar em qualquer

6
território israelita; sete dos homens dentre os seus filhos devem ser dados a nós, e nós os

empalaremos diante de Yahweh em Gibeá de Saul, o escolhido de Yahweh.” O rei disse: “Eu

10
mesmo os entregarei [...]” Então, Rispa, filha de Aiá, pegou um pano de saco e o estendeu

para si sobre uma rocha desde o início da colheita até a água ser derramada sobre eles dos

céus. Ela não deixou que as aves dos céus descessem sobre eles, de dia, ou as feras selvagens,

de noite.

[A passagem de 2Samuel 21:11-22 relata como Davi, então, providencia um enterro

apropriado aos restos mortais dos homens, bem como aos de Saul e de Jônatas, após o que Deus

respondeu à oração pela nação. Ainda, reporta inúmeras batalhas efetuadas contra os

filisteus.]

Sem dúvida, nos preocupamos com o que acontece aos corpos de nossos

entes queridos. Minha esposa e eu, muito tempo atrás, concordamos

que seríamos cremados e, então, teríamos as nossas cinzas espalhadas no

vale onde passamos a primeira noite de nossa lua de mel. Agora que ela

faleceu, esse será um lugar que associarei, de modo especial, a ela, o qual

sempre visitarei e no qual sempre pensarei nela. Fico feliz em saber que,
quando eu morrer, os meus filhos espalharão as minhas cinzas no mesmo

vale para que estejamos unidos novamente. Admito que, durante alguns

meses após a morte de minha esposa, às vezes me aborreci por permitir

que ela fosse cremada, mesmo sabendo que a cremação apenas acelera o

processo de decomposição que ocorre naturalmente quando enterramos

alguém. Além disso, não sei como conciliar a dissolução de seu corpo e a

dispersão de suas cinzas com o fato de que, em algum outro sentido,

como pessoa ela não está naquele vale, mas adormecida, aguardando o

dia da ressurreição, quando Deus nos recriará. Tampouco sei como

Deus realizará essa ressurreição. O que sei é que será necessário haver

algum relacionamento entre o corpo que temos e o corpos ressurreto

que iremos adquirir (caso contrário, ele não será o nosso corpo). Desse

modo, o que acontece com o nosso corpo importa.

A história de Rispa reflete esse fato, embora ela nada saiba sobre

ressurreição; será uma surpresa para ela, seus filhos e os outros homens

que Davi condenou à morte. Uma vez mais, a ação de Davi faz as nossas

sobrancelhas levantarem. O Antigo Testamento reconhece que

dificuldades como uma safra ruim (a exemplo de desastres pessoais ou

enfermidades), em geral, são consideradas “coisas que acontecem”, mas

que também podem ser a punição divina por alguma transgressão. Seja

como for, isso significa que devemos buscar a Deus e, ao fazermos isso,

devemos perguntar se a calamidade é por alguma transgressão ou

malfeito. No caso em questão, quando a fome perdurou ano após ano é

que Davi percebeu a necessidade de fazer essa pergunta. “Buscar uma

audiência com Yahweh” (lit., “buscar a face de Yahweh”) implica ir à

tenda do encontro, como Moisés costumava fazer, embora fazer isso

também não exclua questionar o seu corpo de serviçais (incluindo os

profetas) sobre possíveis explicações para as dificuldades e/ou utilizar o

Urim e o Tumim.

De um modo ou de outro, descobre-se que Israel havia falhado em

manter o compromisso assumido com os gibeonitas. Como a própria

narrativa observa, os gibeonitas não eram israelitas. Eles haviam


enganado Josué quanto à identidade deles e o tinham manipulado para

obter de Josué uma aliança com eles (veja Josué 9). Na ocasião, Josué

explicitamente tinha reconhecido que a ira divina cairia sobre Israel

caso eles falhassem em manter o juramento feito. Evidentemente, Saul

quebrou a aliança, tentando eliminar os gibeonitas, e, claro, não há

estatuto de limitações aplicável a essa transgressão. A exemplo de

pessoas nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha que ainda precisam

aceitar alguma responsabilidade pelas ações de seus ancestrais em

relação aos afro-americanos ou aos nativos das colônias britânicas,

igualmente a geração de Davi tem de aceitar alguma responsabilidade

pelas ações de seus antepassados. Então, o rei pergunta aos gibeonitas o

que ele deve fazer para acertar as relações entre eles. A Torá inclui

regras para responder a questões desse tipo, relativas a transgressões

pessoais. Imagine, por exemplo, uma pessoa que destruiu a plantação de

outra; ela teria que fazer uma compensação por seu ato. Num caso mais

grave, caso um homem matasse o cabeça de outra família, ele teria que

assumir alguma responsabilidade pela família da sua vítima.

Ironicamente, embora Josué tenha declarado que os gibeonitas

estavam amaldiçoados a serem servos dos israelitas como resultado do

fraudulento teatro que fizeram, agora eles é que trazem uma maldição

sobre Israel; pode ser que eles tenham feito isso de modo deliberado.

Davi, portanto, deseja agradá-los para que eles abençoem Israel em vez

de amaldiçoá-lo — para que façam orações positivas, não negativas,

pelos israelitas. A réplica dos gibeonitas é enigmática. Pode ser que eles,

abertamente, reconheçam não possuir direitos legais naquela situação,

ou é possível que estejam sendo apenas polidos, como os hititas com os

quais Abraão foi obrigado a negociar em Gênesis 23. Seja como for, eles

estão devolvendo a bola para a corte de Davi. Que espécie de oferta ele

deseja fazer? O rei devolve a questão para eles. A resposta deles, então,

provoca um arrepio na espinha.

No entanto, a resposta pode muito bem ter beneficiado Davi. Pode-

se até mesmo questionar se essa versão abreviada da negociação omite


alguma proposta de Davi que segue a mesma linha. A morte de sete

pessoas mais, dentre os descendentes de Saul, decerto significa a

eliminação de sete potenciais rivais ao trono. Segundo Samuel 20

encerra as inúmeras tentativas de remover Davi do trono, e os capítulos

derradeiros do livro constituem uma série de apêndices à história. Não é

preciso supor que esses relatos estão em ordem cronológica, pois eles

fariam sentido no contexto dos anos iniciais do reinado de Davi,

quando ainda era necessário consolidar a sua posição contra possíveis

rivais. Essa ação o ajuda a lograr isso. Talvez os próprios gibeonitas

tenham concebido os termos que lhes agradariam, e Davi aproveitou a

chance para agir em benefício próprio. Ele, então, não se preocupou

muito em verificar o que a Torá dizia a respeito desse pedido dos

gibeonitas (resposta: não se importou mesmo, porque a Torá não

acredita em pessoas sendo punidas pelas transgressões de outras,

especialmente quanto a crianças sofrendo punições pelos erros

cometidos por seus pais).

O Antigo Testamente menciona somente uma esposa de Saul, isto é,

Ainoã, e uma esposa secundária, Rispa. Um preço que ela pagou

anteriormente por ter se casado com Saul foi a investida sexual de

Abner (2Samuel 3:7). O preço que ela, agora, paga é a morte de seus

filhos, com outros cinco netos de Saul. O Antigo Testamento, em geral,

aceita o fato de que, após a morte, as pessoas se unem aos seus

ancestrais. Ser sepultado no túmulo de sua família adicionou um

posfácio ao suicídio de Aitofel, de maneira que amenize a tragédia que

foi a sua vida e a sua morte. Todavia, se os abutres e os coiotes se

alimentarem de seu corpo, não haverá quase nada a ser enterrado; o

preço que você paga ao morrer é aumentado pelo preço pago após.

Rispa não permite que isso aconteça, e sua ação, talvez, tenha

sensibilizado a consciência de Davi, que, então, vê a necessidade de

providenciar um sepultamento apropriado não somente para os sete

mortos, mas também aos corpos de Saul e Jônatas. Essa ação também

lhe traria uma associação positiva com a família de Saul,


desencorajando a mensagem de que ele era uma traidor de Saul que não

deveria ser aceito como o sucessor do rei morto. Ao mesmo tempo, era

um gesto de reverência adequado. Foi após esse ato reverente (não após

a execução) que Deus respondeu às orações pelo término da onda de

fome. Quem pode dizer quais eram as intenções de Davi? A

ambiguidade da história, uma vez mais, atua para nos lembrar de

sermos realistas quanto à natureza difusa de nossos próprios motivos e,

em especial, quanto à mescla de interesses que afeta as pessoas em

posições de liderança.
2SAMUEL 22:1–20
O DEUS DA TEMPESTADE
1
Davi falou as palavras de seu cântico a Yahweh no dia em que Yahweh o resgatou das mãos

de todos os seus inimigos e das mãos de Saul.

2 3
“Yahweh, meu rochedo, minha fortaleza, meu resgatador, Deus que é a minha rocha na qual

me refugio!

Meu escudo, o chifre que me liberta; meu baluarte, meu refúgio, meu libertador: tu me

livras da violência.

4
Clamo a Yahweh, aquele que deve ser louvado, e de meus inimigos encontro libertação.

5
Pois ondas de morte me subjugaram, torrentes de destruição me tragaram,

6
As cordas do Sheol me envolveram, os ardis da morte me confrontaram.

7
Em minha vulnerabilidade, clamei a Yahweh, ao meu Deus eu clamei.

Ele ouviu a minha voz de seu palácio, meu grito de socorro em seus ouvidos.

8
Então, a terra tremeu e balançou, as fundações dos céus estremeceram, eles tremeram

porque ele estava furioso.

9
Fumaça subiu de suas narinas, e fogo consumidor, de sua boca; brasas brilharam dela.

10
Ele espalhou os céus e desceu, com nuvem de tempestade sob seus pés.

11
Ele montou em um querubim e voou e apareceu sobre as asas do vento.

12
Ele fez da escuridão ao redor dele a sua tela — uma massa de água, nuvens de névoa.

13
Do brilho diante dele, brasas ardentes flamejaram.

14
Yahweh trovejou dos céus, o Altíssimo soltou a sua voz.

15
Ele atirou flechas e as espalhou, [atirou] relâmpagos e retumbou.

16
Os canais do mar se tornaram visíveis, as fundações do mundo ficaram à vista.

17
Ele mandou do alto e me segurou, tirou-me de águas poderosas.

18
Ele me resgatou do meu inimigo, do forte, de meus adversários, porque eles eram muito

poderosos para mim.

19
Eles me confrontaram no dia da minha calamidade, mas Yahweh tornou-se o meu amparo.

20
Ele me trouxe a um lugar amplo; ele me resgatou porque se agradou de mim.”

A conhecida canção diz: “Nunca chove no sul da Califórnia”, mas ela

prossegue comentando como ninguém alerta você sobre quanto, às


vezes, chove. Eu mesmo jamais precisei usar galochas na Grã-Bretanha,

onde, em geral, temos somente chuvas leves, embora sejam mais

frequentes. Em Los Angeles, certa feita, fui surpreendido por um

aguaceiro durante três minutos e fiquei tão molhado quanto se tivesse

entrado no chuveiro sem tirar a roupa. Todavia, nenhuma chuva

britânica é comparável a uma tempestade que enfrentamos, certa

ocasião, dirigindo numa estrada no sul da França. Em pleno dia, o céu

ficou tão escuro quanto a noite, exceto nos momentos em que sucessões

de relâmpagos iluminavam o céu por alguns instantes. A chuva caía

como uma cachoeira, e a terra estremecia.

Esse “cântico” davídico pressupõe que o compositor conhecia

tempestades assim. O fato de Davi ter “falado” a canção não significa

que ele mesmo a tenha composto; como os presidentes, presume-se que

os reis não escrevam os seus próprios discursos ou canções. Não

obstante, evidentemente, Davi e/ou o autor de 2Samuel

imaginou/imaginaram que era um cântico apropriado aos lábios do rei.

Pode-se constatar isso pelas palavras iniciais do cântico. Há uma

sequência de imagens para glorificar a Deus como o grande protetor.

Essa é a maneira pela qual Deus provou ser Deus para Davi naqueles

anos de fuga da fúria de Saul. Deus foi um rochedo no qual ele pode

subir, um escudo atrás do qual Davi pode se proteger, um refúgio no

qual se esconder. Deus foi um chifre — isto é, Deus agiu com a força e a

agressividade de um touro com seus chifres. Deus poderia, portanto,

afastar qualquer um que atacasse Davi com violência, tal como Saul

fizera inúmeras vezes. Nessas ocasiões, parecia como se a morte

estivesse prestes a envolvê-lo, como se o Sheol estivesse pronto a tragá-

lo antes do tempo. Aquelas foram as circunstâncias nas quais Davi

resistiu a qualquer tentação de agir com violência contra o seu rei. Ele

confiou na proteção de Deus, e foi protegido. Em meio a essas

circunstâncias, em lugar de reagir, Davi clamou ao seu Rei.

Ao se tornar rei em Jerusalém, Davi passou a viver num palácio na

parte mais elevada da cidade. Em nosso comentário sobre a história de


Bate-Seba, observamos que essa posição permitia ao rei manter-se

vigilante quanto aos eventos que ocorriam na cidade abaixo. Esse fato

fornece a Israel uma forma de visualizar o relacionamento de Deus com

o mundo. Deus vive em um palácio celestial do qual é possível olhar

para baixo e observar o que acontece aqui (decerto, alguns israelitas

compreendiam tratar-se de uma metáfora, enquanto outros eram mais

literais quanto a essa imagem). Além disso, um cidadão pode ir ao

palácio e pedir ao rei para verificar e intervir quando outro cidadão está

agindo de modo injusto; qualquer ser humano pode, igualmente, apelar

ao Rei celestial para fazer prevalecer a justiça.

Como é quando o Rei celestial age? As realidades da terra, dos céus

e do espaço entre eles, uma vez mais, fornecem um modo de retratar o

que acontece. A tempestade que experimentei nos Alpes propicia ao

compositor uma forma de retratar Deus vindo dos céus e agindo com

efeito na terra. Deus vem sobre uma carruagem que é carregada por

querubins e impulsionada pelo vento. As nuvens de tempestade

formam o cenário que protege a humanidade de ver Deus e, portanto,

de ficar cega. Os trovões são o rugir de Yahweh. Os relâmpagos são as

flechas ardentes atiradas por Deus. Até mesmo os mares são divididos

de modo que os reservatórios de água ocultos sejam expostos.

A importância desse resultado aparece em algumas das linhas que

precedem e seguem a canção. Davi vive em constante perigo de morte,

em situações nas quais ele encarava a morte de frente. É como se a

morte ou o Sheol tivesse cordas com as quais pudesse capturá-lo, como

um caçador aprisiona um animal selvagem, ou como se a morte ou o

Sheol fosse uma inundação de águas com força suficiente para tragá-lo,

ou como se ele já estivesse morto e enterrado na terra. Em situações

assim, Deus desce para nos resgatar do caçador inimigo ou divide o mar

para alcançar essas inundações, ou vai até o reino debaixo deste mundo

terreno para onde a morte quase nos leva. O fato de esse cântico parecer

uma versão levemente diferente do salmo 18, com uma ligação nessa
narrativa, indica que ele é designado a ser usado por pessoas como nós,

em nossa oração e adoração; não somente para Davi.

A implicação da linguagem usada no cântico não é de que a ação

divina envolva, de fato, uma ruidosa tempestade — pelo menos, quando

o Antigo Testamento retrata Deus agindo no mundo, não tem por

hábito referir-se a tempestades. O cântico é uma obra de poesia; a

tempestade propicia uma forma de descrever os dramáticos resultados

da ação divina no mundo. A sobreposição entre o literal e o metafórico

aparece no versículo 18, quando a letra fala de um inimigo forte (que

soa como a personificação da Morte), mas, então, faz referência aos

adversários poderosos (no plural). Os ataques do inimigo vêm na forma

dos ataques desses adversários; os ataques deles sãos os meios pelos

quais a Morte busca tragar alguém antes do tempo. A chegada de Deus

e a ação divina contra a Morte para trazer libertação assumem a forma

de um miraculoso livramento das mãos desses adversários que a pessoa

sob ataque experimenta. Antes disso ocorrer, a pessoa estava sob

restrição (a palavra hebraica para vulnerabilidade sugere estar

confinado em um lugar apertado); quando isso acontece, ele ou ela é

levado(a) a um lugar de liberdade, a um “lugar amplo.”


2SAMUEL 22:21-51
TENHO GUARDADO OS CAMINHOS DE YAHWEH?
21
“Ele me pagou de acordo com a minha fidelidade; de acordo com a pureza de minhas mãos,

ele me recompensou.

22
Pois guardei os caminhos de Yahweh e não fui infiel ao meu Deus.

23
Pois todas as suas regras estão diante de mim; suas leis — eu não me afastei delas.

24
Eu fui uma pessoa de integridade para com ele e me guardei da transgressão que pudesse

ter feito.

25
Então, Yahweh me recompensou de acordo com a minha fidelidade, de acordo com a minha

pureza diante de seus olhos.

26
À pessoa comprometida te mostras comprometido, ao guerreiro de integridade mostras

integridade.

27
Ao puro tu mostras pureza, mas ao desonesto te mostras refratário.

28
Aos humildes libertas, mas desvias teus olhos das pessoas importantes.

29
Porque tu, Yahweh, és a minha lâmpada; é Yahweh quem ilumina minhas trevas.

30
Porque contigo posso avançar contra uma barricada, com meu Deus posso escalar um

muro.

31
Deus: teu caminho tem integridade, a palavra de Yahweh é provada; ele é um escudo a

todos os que buscam refúgio nele.

32
Pois quem é Deus à parte de Yahweh, quem é um rochedo à parte de nosso Deus?

33
Deus é a minha fortaleza, [minha] força; ele liberou aquele que estava de pé em seu

caminho.

34
Ele é quem faz as minhas pernas como as da corça, capacita-me a permanecer nas alturas.

35
Ele é quem treina as minhas mãos para a batalha; meus braços podem dobrar um arco de

bronze.

36
Tu me dás o teu escudo que liberta; a tua resposta me fez grande.

37
Tu me deste espaço sob os meus passos; meus tornozelos não desistiram.

38
Persegui meus inimigos e os aniquilei; não retornei até que tivesse acabado com eles.

39
Eu os consumi, os despedacei, eles não puderam se levantar; caíram debaixo de meus pés.

40
Tu me cingiste com força para a batalha; colocaste meus adversários debaixo de mim.

41
Tu fizeste meus inimigos fugirem de mim, meus oponentes; e os eliminaste.

42
Eles buscaram, mas não havia libertador, [olharam] para Yahweh, mas ele não respondeu.
43
Eu os golpeei como o pó da terra; como a poeira nas ruas, eu os esmaguei, os venci.

44
Tu me resgataste dos conflitos do meu povo; preservaste-me como cabeça das nações, um

povo que não reconheci me serve.

45
Estrangeiros se encolhem diante de mim; ao ouvirem com seus ouvidos, eles me atendem.

46
Estrangeiros murcham; eles saem tremendo de suas fortalezas.

47
Yahweh vive! Louvado seja o meu rochedo! Deus, o rochedo, minha libertação, deve ser

exaltado.

48
Deus, que me dá reparação, sujeita povos debaixo de mim,

49
Que me resgata de meus inimigos, exalta-me acima de meus adversários, salva-me dos

homens violentos.

50
Portanto, eu te confessarei, Yahweh, entre as nações e farei música ao teu nome.

51
Uma torre trazendo libertação ao seu rei, mostrando compromisso ao seu ungido, a Davi e

sua semente, para sempre.”

Ontem à noite, eu estava conversando com um de meus alunos que

serviu nas forças norte-americanas no Iraque, numa operação

antiterrorismo. A exemplo de muitos soldados, ele voltou para casa

traumatizado e, por consequência, tentou conversar sobre seus traumas

durante longo tempo. Há uma resiliência nele que é um de seus pontos

fortes, mas que, ao mesmo tempo, manifesta-se como uma inadequação

em seus relacionamentos e como certa incoerência em seu modo de

articular as coisas. Embora eu não conheça como ele era antes de

participar dessas missões, não consigo evitar a percepção de que ele

voltou com feridas em seu espírito, apesar da ausência de ferimentos em

seu corpo. Sinto-me especialmente impactado pelo fato de ele não ser o

único aluno que deixou de ser soldado para ser um pacifista. Às vezes,

parece que o mundo cristão é dividido entre os que são entusiasmados

pela guerra e os que são pacifistas absolutos; talvez a natureza dos

conflitos modernos tenha tornado mais difícil manter uma posição

intermediária entre esses dois extremos.

A nossa consciência dos traumas causados pela guerra aos militares

que dela participam nos faz questionar como Davi foi afetado por sua
vida de guerreiro. Ler as entrelinhas de sua história como um todo nos

faz refletir se essa experiência militar não influencia, de alguma forma, o

enigma da pessoa que ele é. Não obstante, o mais estranho sobre esse

salmo é que ele não leva a nenhuma reflexão sobre essa questão. O fato

de haver pessoas que passam de combatentes comprometidos a

pacifistas resolutos reflete a ambiguidade (para dizer o mínimo) do

envolvimento num conflito militar. O cântico não reconhece essa

ambiguidade.

A passagem anterior (2Samuel 22:1-20) terminou com uma

declaração de que Deus deu a vitória a Davi porque “agradou-se” dele.

O que levou Deus a agradar-se de Davi? Não é possível explicar por que

Deus escolhe alguém e, talvez, também não seja possível explicar por

que Deus se regozija com alguém. Esse sentimento é fruto da fidelidade,

do compromisso, da integridade, da pureza das mãos, de trilhar nos

caminhos de Deus, de viver pelos preceitos de Deus e de evitar a

infidelidade e a desobediência.

Tais alegações têm a capacidade de preocupar os leitores cristãos

como uma questão de princípios porque soam como autojustificação. No

entanto, tanto o Antigo quanto o Novo Testamentos expressam a

convicção de que há algo estranho caso pessoas supostamente

comprometidas com Deus não possam fazer alegações dessa espécie (no

Novo Testamento, veja, p. ex., 2Timóteo 3:10—4:9). Tais afirmações não

significam ausência de pecado; apenas implicam que a vida daquela

pessoa é orientada em uma direção, não em outra.

Assim, a princípio, um cântico não deve ser considerado estranho

por contemplar tais alegações. O estranho é elas serem oriundas dos

lábios de Davi. Existem inúmeras considerações que emergiram

anteriormente na história de Davi que podem estar por trás delas. Já

observamos que as recorrentes declarações do Antigo Testamento sobre

a fidelidade de Davi fazem sentido caso as relacionemos ao seu

compromisso com Yahweh, em vez de a outros deuses, e a formas de

adoração aprovadas por Yahweh, em lugar das proibidas por ele, tais
como a adoração por meio de imagens ou de sacrifício humano (embora

o cap. 21 possa ter prejudicado essa alegação). Nos lábios de Davi, esse

cântico constitui um grande reconhecimento por parte de um

incrivelmente bem-sucedido guerreiro e rei de sua dependência de

Deus e de este Deus ser o motivo por trás de seu sucesso, embora ele

mesmo seja aquele que avança, escala, persegue e despedaça.

Outra consideração é sugerida pela ambivalência quanto ao

preâmbulo do cântico, que fala sobre a sua libertação das mãos de Saul.

Seria surpreendente que Davi, ao fim de sua vida, ainda estivesse se

regozijando nesse livramento em particular, em detrimento de outros

que ocorreram após este. Todavia, já observamos que os capítulos

derradeiros de 2Samuel constituem uma série de notas de rodapé à

história principal e que o capítulo 21 relaciona-se a eventos ocorridos

no tempo de Saul. Assim, é possível que esse cântico diga respeito à

primeira parte da história davídica. O início de seu reinado, quando a

sua libertação de Saul ainda era recente, teria sido um período mais

plausível a Davi para alegar a sua fidelidade a Deus, num espectro mais

amplo, do que fazer essa alegação ao fim de seu reinado. O

posicionamento do cântico aqui, portanto, nos lembra, uma vez mais, da

ambiguidade que caracterizou a vida de Davi. Ele era, outrora, uma

pessoa íntegra, mas não permaneceu como tal.

Há uma terceira consideração relacionada. Teria o próprio Davi sido

capaz de refletir sobre a sua vida? Será que alguma vez ele refletiu sobre

a sua ambiguidade? Será que alguma vez ele pensou sobre a tensão

entre a sua lealdade e a sua confiança em Deus e o seu fracasso como

marido e pai, bem como sobre como isso afetou outras pessoas e até

mesmo o exercício de seu poder? Não somos capazes de responder a

essas perguntas com respeito a Davi; trata-se de um assunto entre ele e

Deus. Tudo o que podemos fazer é responder às perguntas a nosso

respeito.

Os seus inimigos, Davi diz, buscaram por um libertador e não

encontraram nenhum. Eles buscaram em Deus, mas Deus não lhes


respondeu. O próprio Davi conhece essa experiência; Deus não

respondeu quando ele orou por seu filho enfermo. Talvez haja uma

forma de olhar para Deus que o leva a responder e outra que o leva a

nos ignorar. Contudo, temos que ser cautelosos para não pensar que

devemos manter a nossa mente em torno do fundamento no qual Deus,

algumas vezes, responde e, em outras, não. Quando Jó buscou a Deus,

não havia nada nele que impedisse Deus de lhe responder (exceto,

paradoxalmente, o fato de ele ser uma pessoa plenamente

comprometida com Deus, e, com a permissão divina, esse

comprometimento estava sob teste). Uma vez mais, a escolha de alguém

por Deus, a sua demonstração de graça ou o seu silêncio podem refletir

algo sobre o propósito maior de Deus, não algo presente ou ausente nas

pessoas e comunidades envolvidas.


2SAMUEL 23:1-38
AS ÚLTIMAS PALAVRAS DE DAVI
1
Estas são as últimas palavras de Davi.

“Uma declaração de Davi, filho de Jessé, uma declaração do homem exaltado pelo

Altíssimo,

O ungido do Deus de Jacó, do deleite das composições de Israel.

2
O espírito de Yahweh falou por meu intermédio, sua mensagem estava em minha língua.

3
O Deus de Israel disse, o Rochedo de Israel falou a mim:

‘Quando aquele que governa sobre o povo é fiel, quando ele governa em reverência a

Yahweh,

4
Ele é como a luz da manhã quando o sol se levanta, uma manhã sem nuvens;

Por causa da claridade, por causa da chuva, há crescimento da terra.’

5
Não está a minha casa estável com Deus, porque ele fez uma aliança permanente para mim,

estabelecida em todos os aspectos e garantida?

Não trará ele à realização toda a minha libertação e todo o meu desejo?

6
Mas os perversos são como cardos, lançados fora, todos eles, porque as pessoas não os

pegam nas mãos.

7
A pessoa que os toca se equipa com ferro ou com a madeira de uma lança, e eles são

totalmente queimados onde caem.”

[O restante do capítulo prossegue fornecendo uma lista com os nomes dos guerreiros de Davi e

algumas de suas realizações.]

Mesmo considerando a forma de a chuva cair, viver no sul da

Califórnia, é claro, deixa você mal acostumado. Meu filho e sua família

vieram da Inglaterra e acabaram de passar uma semana conosco. Eles

acharam graça quando me desculpei por não estar fazendo muito calor.

Na realidade, este mês tem chovido muito. Ontem à noite, um amigo

comentou: “Sei que você deve ficar satisfeito quando chove, mas quero

deixar bem claro: ‘Chega de chuva!’” Ao mesmo tempo, no dia seguinte

à chuva, o ar está sempre mais limpo, com a névoa totalmente dissipada

e as montanhas parecendo puras. Na primavera, então, nos

maravilhamos com o verde das montanhas e as flores silvestres. Não se


pode ter as duas coisas. (Bem, seria ótimo se Deus fizesse chover apenas

durante a noite. Na verdade, acabei de ler que na Costa Rica o sol brilha

durante toda a manhã e, então, a chuva vem depois do almoço, e o sol

brilha novamente, durante a tarde. Todavia, o fato de isso não ocorrer

em toda a parte mostra — como Deus indica em Jó 38 e 39 — que o

mundo não é organizado apenas para o nosso benefício.)

As “últimas palavras” de Davi reconhecem a importância tanto do

sol quanto da chuva. Desconhecemos em que sentido estas são as suas

derradeiras palavras; o que elas oferecem é um outro olhar para a sua

significância. O poema no capítulo 22 era similar a um salmo. Este

poema é mais distinto, sendo chamado de declaração, o que,

usualmente, denota uma mensagem de Deus e, assim, sugere algo como

uma profecia, embora não seja sobre o futuro. O ponto é confirmado por

Davi, pela descrição de que é uma mensagem que está em sua língua,

porque o espírito de Deus estava falando por meio dele. Para o caso de

não entendermos o ponto, Davi acrescenta ser algo dito por Deus, que

ele falou. Desse modo, a mensagem é caraterizada como sendo algo que

Davi e/ou Deus julga realmente importante.

Inicialmente, o poema é uma declaração geral e objetiva. Não é

sobre alguém em particular; simplesmente declara como a liderança

deve funcionar, com um governante sendo fiel e governando em

reverência a Deus. No Antigo Testamento, essas são duas ideias-chave.

Novamente, há certa ambiguidade ou potencial ironia no uso da palavra

“fiel”. Davi poderia alegar ter sido fiel a Deus pelo fato de não ter

servido a outros deuses ou de não ter encorajado formas de adoração

não aprovadas por Deus. Nesse sentido, fidelidade e reverência não são

tão distintas entre si. As traduções, com frequência, apresentam “temor

de Deus” em vez de “reverência a Deus”, mas isso é enganoso. Embora

existam contextos nos quais seja apropriado ter medo de Deus (p. ex.,

quando você faz algo seriamente errado ou quando Deus se manifesta

de modo assombroso e poderoso), o mais usual é as palavras hebraicas

denotarem uma atitude positiva de adoração e obediência.


Na poesia hebraica, é comum ter as duas metades de uma mesma

linha expressando coisas similares com palavras diferentes. Isso,

igualmente, significa que acompanhar uma referência à fidelidade com

uma menção à reverência a Deus poderia implicar apenas que a

fidelidade caracteriza a relação de Davi com Deus. No entanto, as

alusões do Antigo Testamento à fidelidade, normalmente, aplicam-se

também às relações entre seres humanos, não apenas a Deus. Essa

preocupação perde prioridade na vida pessoal de Davi e em sua

liderança com o passar dos anos. Então, é possível que o comentário

sobre fidelidade tenha que operar dentro de uma compreensão estreita

do significado dessa palavra (Davi poderia alegar ter vivido dessa

maneira em relação a Deus, mas não em relação às outras pessoas). Ou

pode ser que o comentário seja aplicável apenas aos anos iniciais de seu

reinado. Ainda, é possível, de modo mais solene, que a definição

genérica do poema sobre a liderança condene Davi, aparentemente, sem

que ele reconheça isso. Ele sabe que a liderança envolve fidelidade; mas

não encarou o fato de haver falhado em relação a isso. Além disso, caso

devêssemos considerar que a fidelidade se aplica aos relacionamentos

humanos tanto quanto ao relacionamento com Deus, a falha quanto à

fidelidade suscita a questão se Davi pode realmente alegar ter vivido em

reverência a Deus, porque isso também implica cumprir o que Deus diz

sobre o nosso relacionamento com as demais pessoas; e Davi não tem

vivido de acordo com isso.

Imagine um líder que realmente cumpra a visão de Deus ao

governar em fidelidade e reverência a Deus. Eis quando entra em cena a

imagem do sol e da chuva. Na natureza, o crescimento depende de

ambos, do sol e da chuva. As referências hebraicas quanto à claridade e

a chuva são, na verdade, um tanto obscuras, mas não há dúvida de que

Davi se refere a ambos, tão certo quanto o crescimento na natureza

depende da chuva e do sol. No sul da Califórnia (como em Israel),

podemos ter certeza quanto à presença constante do sol e teríamos que

nos preocupar com a ausência de chuva caso não captássemos água do


norte do estado. Na Grã-Bretanha, podemos contar com a chuva, mas

nos preocupamos com a ausência de sol. Uma colheita decente necessita

de ambos. Quando você os tem, sol e chuva, então tudo floresce. De

forma paralela (e Davi sabe disso), quando há uma liderança que

prioriza a fidelidade e a reverência a Deus, então a sociedade floresce.

Acabei de responder a um e-mail de uma aluna sobre um artigo que

ela precisa escrever. Ela pretende considerar os reinados de Saul, Davi e

Salomão à luz do que Ezequiel afirma sobre bons e maus “pastores” —

isto é, reis; e ela quer, então, refletir sobre esse tema com base em como

pensamos em liderança na igreja, considerando o que diz o Novo

Testamento. Na verdade, considerei ser essa uma grande ideia, mas lhe

disse que, ao refletir sobre as implicações do Antigo Testamento, hoje

ela não deveria restringir-se a pensar sobre liderança na igreja. Saul,

Davi e Salomão eram reis, e a imagem dos pastores no Antigo

Testamento é uma imagem para reis. Assim, a significância de seu

estudo está relacionada à nossa compreensão e à nossa visão quanto aos

governantes e políticos, tanto quanto às lideranças na igreja. Isso é

verdadeiro quanto à visão de Davi aqui, quer ele tenha cumprido essa

visão quer não.

Davi prossegue sendo ambíguo ao falar da estabilidade de sua casa.

Ele está alegando que ele e a sua família têm sido estáveis em sua

maneira de se relacionar com Deus? Esse não é o retrato que a narrativa

transmite ao leitor. Ou Davi quer dizer que eles são estáveis no sentido

de que Deus os guardará seguros no trono? Isso não deve ser

considerado garantido, como os capítulos anteriores bem mostram.

Assim, é significativo que Davi vincule a estabilidade de sua casa à

aliança que Deus estabeleceu com ele. Considerando que Davi e a sua

casa não são muito estáveis em sua fidelidade e reverência a Deus, é

justo imaginar que essa aliança é mais como a aliança de Deus com Noé

e com Abraão do que como a aliança no Sinai ou a de Deuteronômio.

Ou seja, trata-se de um compromisso que apenas Deus decide assumir;

não é uma resposta de Deus a qualquer merecimento de Davi, assim


como as alianças com Noé após o dilúvio e a aliança com Abraão não

foram fundamentadas no merecimento deles. As promessas de Deus a

Davi em 2Samuel 7 deixam isso explícito. Deus exaltou Davi e o ungiu.

Davi se tornou a pessoa sobre a qual Israel amava contar histórias e

entoar canções. Deus abriu mão da opção de ser livre para desistir do

compromisso com Davi. A aliança de compromisso de Deus com Davi é

aquela à qual seus sucessores e seu povo, como um todo, sempre

poderão apelar. Sim, a sua casa será estável. Deus os manterá no trono.

A ambiguidade e a ironia continuam nas duas últimas linhas do

poema. O sol e a chuva fazem coisas boas crescerem; também

contribuem para o crescimento de cardos, e estes não são apenas

inúteis, mas também nocivos. Jamais esquecerei a nossa primeira

viagem a Israel, quando eu e meus filhos pequenos ficamos com as mãos

cheias de espinhos de cactos que jamais tínhamos visto. Assim, você não

deve tocá-los com as mãos nuas, Davi adverte, mas usar alguma

ferramenta para reuni-los e queimá-los (as partes espinhosas, pelo

menos). Eis o que ocorre a pessoas que manifestam perversidade e

irreverência em lugar de fidelidade e reverência a Deus. O fato de a

aliança de Deus com Davi ser uma iniciativa da vontade divina, não das

ações e atitudes de Davi, não significa que o comportamento e as

decisões de Davi não importam. O compromisso de aliança de Deus

demanda uma resposta. Não se pode confiar na graça divina sem dar a

devida importância à reação da parte humana.


2SAMUEL 24:1-16A
PREFIRO CAIR NAS MÃOS DE DEUS A CAIR NAS MÃOS DOS

HOMENS
1
A ira de Yahweh se acendeu contra Israel novamente, e ele incitou Davi contra eles,

2
dizendo: “Vá e conte Israel e Judá.” Então, o rei disse a Joabe, o comandante do exército

com ele: “Vá por todos os clãs israelitas, de Dã a Berseba, e avalie a companhia, para que eu

3
possa saber os números da companhia.” Joabe disse ao rei: “Que Yahweh, o teu Deus, de

fato, acrescente à tua companhia cem vezes mais, comparado com o que eles são agora,

4
enquanto os olhos de meu senhor veem, mas por que meu senhor, o rei, deseja isso?” Mas a

palavra do rei foi firme com Joabe e com os oficiais do exército. Assim, Joabe e os oficiais do

5
exército deixaram a presença do rei para avaliar a companhia, Israel. Eles atravessaram o

Jordão e acamparam em Aroer, à direita da cidade, que fica no meio do canal de Gade, e

6
[prosseguiram] para Jazar. Eles chegaram a Gileade, à terra de Tatim-Hodsi, a Dã-Jaã e ao

7
redor de Sidom. Eles chegaram à fortaleza de Tiro e a todas as cidades dos heveus e dos

8
cananeus e seguiram para o Neguebe de Judá (Berseba). Eles foram por todo o território e,

9
ao fim de nove meses e vinte dias, chegaram a Jerusalém. Joabe deu ao rei os números da

avaliação da companhia: Israel chegou a oitocentos mil soldados empunhando a espada, e os

homens de Judá chegaram a quinhentos mil.

10
A consciência de Davi o atacou após ele ter contado a companhia. Davi disse a Yahweh:

“Agi muito erroneamente naquilo que fiz. Mas agora, Yahweh, removas a transgressão de teu

11
servo, porque fui muito estúpido.” Quando Davi se levantou de manhã, a palavra de

12
Yahweh veio ao profeta Gade, o vidente de Davi: “Vá e fale a Davi: ‘Yahweh disse isto:

13
Estou oferecendo três coisas a você. Escolha uma delas, e eu a farei a você.’” Então, Gade

foi a Davi e lhe falou. Ele lhe disse: “São sete anos de fome a virem sobre você na terra, ou

você deve passar três meses em fuga de seus inimigos enquanto eles o perseguem, ou deve

haver três dias de epidemia em sua terra? Agora, reconheça e veja que resposta eu devo dar

14
àquele que me enviou.” Davi disse a Gade: “Estou muito vulnerável. Deixe-nos cair nas

mãos de Yahweh, porque a sua compaixão é grande. Eu não cairei nas mãos humanas.”

15
Então, o Senhor enviou uma epidemia sobre Israel, desde aquela manhã até o tempo

16a
estabelecido, e ali morreram da companhia, de Dã até Berseba, setenta mil homens. O

ajudante estendeu a sua mão sobre Jerusalém para destruí-la, mas Yahweh se arrependeu da

calamidade e disse ao ajudante que estava destruindo a companhia: “Isso é o bastante!

Agora, abaixe a sua mão!”

Por uma feliz coincidência, este mês é de recenseamento nos Estados

Unidos. Há muita propaganda governamental incentivando a


população a não esquecer de preencher os formulários; mesmo nos

anúncios, durante os serviços na igreja, essa exortação é repetida, e o

governo contrata centenas de pessoas para ir a um terço das casas dos

norte-americanos que não devolvem os seus formulários. “Não podemos

avançar até você enviar as suas respostas”, adverte o lema da campanha.

Esse recenseamento será usado para decidir quantos assentos um estado

terá na Câmara dos Representantes. Ele fornecerá uma base para

decidir sobre despesas quanto a serviços e infraestrutura. Há pessoas

que se opõem ao recenseamento porque o considerarem uma invasão de

privacidade e pela suspeita de intervenção governamental na vida dos

cidadãos.

O censo de Davi e a desaprovação divina tiveram um pano de fundo

distinto. Em si mesmo, não havia nada errado em realizá-lo. Deus

determinou um recenseamento após os israelitas saírem do Egito e

ainda outro quando eles estavam prestes a entrar em Canaã (veja

Números 1 e 26). Em parte, isso visava atender necessidades similares a

um censo moderno. A terra devia ser distribuída de um modo

apropriado entre os clãs de Israel, e, claro, seus respectivos números

eram importantes nesse aspecto; esse foi o motivo pelo qual os levitas

não foram incluídos no levantamento, já que a eles nenhuma porção de

terra seria distribuída. O recenseamento de Davi, agora, tem uma

motivação distinta. Quando ele ordena Joabe a realizar o censo,

algumas traduções expressam que ele está pedindo o levantamento de

toda a população. No entanto, há inúmeras histórias em 1 e 2Samuel

nas quais a palavra hebraica para “povo”, na verdade, implica exército

— nesses casos, tenho usado a palavra “companhia” porque ela é tanto

uma palavra cotidiana quanto um termo militar. Aqui, o recenseamento

é realizado pelos militares, e a contagem de seus resultados refere-se à

quantidade de homens empunhando uma espada em Efraim e em Judá.

Na realidade, Davi está avaliando o tamanho de seu poderio militar.

É aí que reside, pelo menos, parte do problema. A implicação de que

o tamanho do exército é de fundamental importância para a


sobrevivência e o florescimento da nação. Pode-se alegar em sua defesa

que Davi está apenas sendo um líder responsável e pensando na

estratégia militar, mas histórias como a de Gideão, em Juízes 7,

lembram a Israel que, quando Deus está envolvido, o tamanho do

exército não é o fator crucial — ou nem sequer um fator a ser levado em

conta — na execução do propósito de Deus. Davi se esqueceu de uma

consideração crucial para todo líder do povo de Deus.

A execução da decisão de Davi revela outro aspecto do problema.

Os oficiais do exército vão por todo o país, com a narrativa descrevendo

os limites da área recenseada por eles. O censo começa com o território

israelita do outro lado do Jordão, o que é suficientemente justo, e,

então, segue nas direções norte e oeste, mas antes de seguir o caminho

sul, rumo ao Neguebe, direciona-se à Fenícia, na região do Líbano

moderno, uma área ocupada por heveus e cananeus. Politicamente, eles

fazem parte do pequeno império controlado por Davi, mas não há algo

questionável no fato de eles serem contados como parte de Israel e

incluídos nas forças militares israelitas? Paradoxalmente, até mesmo

Joabe e outros oficiais do exército reconhecem que o censo de Davi é

uma ideia discutível, embora não digam porque estão desconfortáveis

em realizá-lo. Talvez eles compartilhem do incômodo sobre o censo que

é percebido em outras sociedades tradicionais. Recensear dá azar, e as

pessoas ou animais que são recenseados podem morrer, em parte porque

isso pode ser considerado uma expressão de orgulho ou de

encorajamento a esse sentimento.

A história começa com uma declaração surpreendente quanto ao

motivo pelo qual Davi decide ordenar o censo. Embora, com o passar do

tempo, pareça que Deus está irado com Davi por ele ordenar o censo, a

narrativa começa nos revelando que Deus está irado antes mesmo do

recenseamento. A própria ideia do censo veio de Deus como uma

expressão da sua ira. O motivo da ira divina não nos é revelado, talvez

porque seja irrelevante para a história, já que o importante é o que vem

em seguida. É possível que o narrador simplesmente desconheça a


origem da ira; pode ser que a única explicação para Davi ter decidido

empreender essa ação reprovável foi o fato de Deus estar zangado com

ele. Falar que Deus incitou Davi a fazer aquilo não significa que o rei

foi, de algum modo, forçado por Deus. A linguagem traça um paralelo

com outras passagens nas quais Deus endurece o coração das pessoas ou

aumenta a determinação delas. A experiência é similar a ocasiões nas

quais alguém nos sugere uma ideia e a aceitamos livremente, mas

depois, em retrospectiva, reconhecemos ter sido uma má ideia desde o

início. A história sabe que, de certo modo, Deus está por trás de tudo o

que acontece, especialmente tudo o que envolve um servo de Deus

como Davi, cujas ações são sobremodo importantes para o povo.

O resultado da ação de Davi nos faz recordar a história de Davi,

Bate-Seba e Urias. Um lado solene desse fato é como isso confirma a

nossa percepção de que nada corre bem para Davi após aquela série de

eventos. Novamente, Davi faz a coisa errada e, de novo, ele percebe o

erro quando já é tarde. Uma vez mais, Deus envia a Davi um de seus

próprios profetas, embora nessa ocasião não seja para levar Davi a

compreender o erro (ao que parece, Davi, de algum modo, já chegou

sozinho a essa conclusão), mas para definir o que acontece a seguir.

Davi repete palavras anteriores: “Agi muito erroneamente”, embora

aqui ele enfatize o reconhecimento do erro mais do que na história de

Bate-Seba e Urias. E, uma vez mais, a sua ação leva a terríveis

implicações para outras pessoas, que pagam o preço por seu erro, como

em geral ocorre quando erramos (especialmente quando os líderes

erram).

A percepção de Davi em sua resposta nos surpreende; o homem é

uma desconcertante combinação de estupidez e lucidez. “É melhor cair

nas mãos de Yahweh do que em mãos humanas”, ele afirma, “porque

sabemos que Yahweh é compassivo”. O juízo que vem a seguir comprova

o seu ponto. Reconhecidamente, o povo paga um preço terrível. O

relato recorda a história do êxodo, na qual o destruidor de Deus exerce

julgamento sobre o povo do Egito. Então, a situação inverte-se aqui,


pois o anjo destruidor está exercendo juízo sobre os próprios israelitas.

Como Deus pode destruir Israel da mesma maneira que destruiu os

cananeus, ele também pode tratar Israel como tratou o Egito. Israel não

pode confiar em sua posição de privilégio. Todavia, no último instante,

Deus não pode permitir que Jerusalém seja destruída. Para as pessoas

que leem essa história mais tarde, essa é uma declaração pungente. Bem

mais tarde, Deus reunirá a determinação e a resolução para permitir a

destruição de Jerusalém. Nesse meio-tempo, o relato encoraja as pessoas

a recordarem que Yahweh é o Deus compassivo. Mesmo quando

erramos, sempre é válido suplicar a Deus que não aplique a punição que

merecemos. Talvez possamos ver essa verdade nas nações, que

continuam a existir, apesar do que nós merecemos.


2SAMUEL 24:16B-25
NÃO PRESTAREI CULTO QUE NÃO ME CUSTE NADA

16b 17
Então, o ajudante de Yahweh estava perto da eira de Araúna, o jebuseu. Davi disse a

Yahweh quando ele viu o ajudante matando a companhia — ele disse: “Ora, fui eu que agi

erroneamente. Sou aquele que se extraviou. Essas ovelhas, o que elas fizeram? A tua mão

18
deveria ser contra mim e contra a casa de meu pai.” Gade foi a Davi naquele dia e lhe disse:

19
“Vá, levante um altar para Yahweh na eira de Araúna, o jebuseu.” Assim, Davi foi de acordo

20
com a palavra de Gade, como Yahweh ordenara. Araúna olhou para baixo e viu o rei e seus

servos vindo em sua direção. Araúna saiu e curvou-se diante do rei, com o rosto em terra.

21
Araúna disse: “Por que o meu senhor, o rei, veio ao seu servo?” Davi disse: “Para adquirir a

sua eira, construir um altar para Yahweh, para que a epidemia possa recuar do povo.”

22
Araúna disse a Davi: “Pode tomá-la, meu senhor, e oferecer o que for bom aos teus olhos.

Veja os bois para a oferta queimada e os debulhadores e o equipamento dos bois para lenha.

23
Tudo isso Araúna dá ao rei, Majestade.” Araúna disse ao rei: “Que o Senhor, o teu Deus, o

24
aceite.” O rei disse a Araúna: “Não, porque eu, definitivamente, os comprarei de você por

um preço. Não oferecerei a Yahweh, meu Deus, ofertas queimadas que não me custem nada.”

25
Então, Davi adquiriu a eira e os bois por cinquenta siclos de prata. Davi construiu um

altar ali para Yahweh e ofereceu ofertas queimadas e sacrifícios de comunhão, e Yahweh

respondeu às intercessões pela nação. A epidemia recuou de Israel.

Ao sairmos de um concerto ontem à noite, um de meus amigos

comentou que ele sempre sai com renovada energia de ouvir música ao

vivo. Também sou assim. Isso me fez recordar como me senti após um

louvor dinâmico, animado e fantástico na outra semana. Todos

cantávamos com grande entusiasmo, batendo palmas ritmadamente.

(Na verdade, eu não batia palmas no ritmo, pois isso é um desafio para

mim, mas, pelo menos, fazia barulho com as mãos com grande alegria;

meus pés são ritmados.) O grupo de louvor (especialmente o

guitarrista) estava em excelente forma. As três cantoras nos

encorajavam com fervor. Saí do culto com minhas forças renovadas,

assim como ocorrera após o concerto de música. Então, para o benefício

de quem eu estava adorando?


Segundo Samuel nos surpreende seguidamente e nos faz levantar as

sobrancelhas até o fim, quando o ato pecaminoso de Davi resulta no

terrível julgamento que leva o rei a edificar um altar em torno do qual

Salomão construirá o templo. Talvez parte do motivo pelo qual a

história em 2Samuel 24 seja um pouco intrigante (p. ex., ao não revelar

a razão da ira de Deus) relaciona-se ao fato de que o seu real interesse é

como esse evento conduz à edificação desse altar, de suma importância

para todas as gerações futuras de israelitas. Eles também devem achar

intrigante e um pouco preocupante que o grande rei Davi não tenha, ele

mesmo, construído o templo, e a história mostra alguma preocupação

em deixar claro que Davi está por trás de sua construção. A narrativa

em 2Samuel 7 esclarece isso de uma forma; a história atual esclarece de

outra. (Por seu turno, 1Crônicas reconta a história davídica com maior

ênfase no papel de Davi quanto à preparação da construção do templo e

também oferece uma visão alternativa do pano de fundo quanto à

decisão de Davi pelo censo. Primeiro Crônicas 21 atribui essa decisão a

um “adversário”, não diretamente a Deus. Algumas traduções

apresentam “Satanás” em lugar de “um adversário”, o que é um pouco

enganoso; Crônicas tem em mente um dos subordinados de Deus no

céu, por meio do qual Deus, às vezes, opera. Contudo, isso oferece uma

visão das intrigantes questões levantadas pelo início dessa narrativa

que, aparentemente, perturbou os israelitas, assim como nos perturba.)

Os fazendeiros posicionam a eira da família ou da comunidade em

locais elevados, nos quais o vento possa separar o grão quando o

fazendeiro os lança para o alto, após esmagá-los. A palha é mais leve e,

assim, o vento a carrega para longe, mas o próprio grão é mais pesado e,

portanto, cai de volta ao chão. A cidade de Jerusalém, ao tempo de

Davi, situava-se numa posição segura, ao fim de uma pequena

cordilheira, enquanto a eira de Araúna ficava numa posição mais

elevada, no cume acima da cidade, e o destruidor sobrenatural está ali.

Davi havia conquistado a cidade dos jebuseus, mas, evidentemente, não

havia exterminado todos os seus ocupantes anteriores. Araúna, o


jebuseu, pelo menos, reconhecia Yahweh, a exemplo de outros

estrangeiros, como Urias, o hitita.

A importância do relato em conexão com a história sobre a

construção do templo pode também explicar os sobressaltos com que

ela é contada. Parece que mais de uma versão está combinada em

2Samuel 24, e é difícil ter clareza sobre a sequência dos eventos. A

princípio, ficamos com a impressão de que o altar foi construído sobre a

terra de Araúna para comemorar o fato de o ajudante sobrenatural

estar ali quando a epidemia cessou, mas a maneira pela qual a narrativa

se desenrola sugere que a construção do altar e a oferta de sacrifícios,

enquanto o ajudante estava ali, foram, na verdade, o que levaram à

interrupção da epidemia. Assim, o relato sobre Deus limitando os

efeitos da epidemia (v. 16a) resume os resultados da história que, então,

se desenrola (v. 16b-25).

Com a ousadia típica de seu relacionamento com Yahweh, Davi

desafia Deus sobre a epidemia, a exemplo do desafio de Moisés a Deus

pela punição divina sobre o povo no Sinai, após Arão ter feito o bezerro

de ouro. Como nós, Davi sente-se ofendido pelo fato de o povo ter de

sofrer pela transgressão que ele, Davi, cometeu. O rei também não

reconhece como uma liderança má pode acarretar problemas terríveis

aos liderados, enquanto uma boa liderança traz grande bênção sobre

eles. Como Moisés, ele busca uma identificação com seu povo e não

deseja que ele mesmo (e seus sucessores) seja excluído da punição,

embora, ao contrário de Moisés, Davi tenha que aceitar a culpa pelo

que acontece ao povo. Similarmente a Moisés, ele mostra que a ousadia

na oração pode produzir grandes resultados, mesmo quando estamos

errados.

Ele já havia comentado sobre a compaixão divina, e é essa

compaixão que limita o preço cobrado pela epidemia. Deus não deseja

aceitar a oferta de Davi e, depois, puni-lo, a ele e a seus sucessores. Em

vez disso, Gade, o profeta de Davi, o aconselha sobre como obter a

compaixão de Deus. Ele deve construir um altar no local em que o


ajudante está, ao que tudo indica no meio de sua missão de provocar

uma epidemia durante três dias, conforme dito por Gade. Sempre que

um ajudante divino surge no Antigo Testamento, ele o faz

representando Deus e, praticamente, mediando a própria presença de

Deus. A construção do altar em honra a Deus, portanto, corresponde ao

modo pelo qual outras figuras do Antigo Testamento, como, por

exemplo, Gideão, edificam um altar quando um ajudante divino aparece

a elas. Edificar um altar também é algo que as pessoas fazem quando há

uma crise e elas precisam clamar a Deus, como Saul fez em 1Samuel 14.

Embora, em tais circunstâncias seja possível simplesmente, orar, a

construção de um altar e a oferta de sacrifícios reforçam a oração. Na

verdade, isso significa que a adoração custa algo ao suplicante. Não são

apenas palavras. Desse modo, as ofertas queimadas e a oração, com

frequência, complementam-se.

As ofertas sempre custam ao ofertante. Isso é especialmente

evidenciado nas ofertas feitas por Davi, porque elas envolvem o

holocausto de um animal inteiro para que suba em forma de fumaça a

Deus, por completo. Davi também oferece sacrifícios de comunhão, dos

quais Deus e os ofertantes compartilham — isto é, parte é consumida

em fumaça e parte os ofertantes consomem como uma ceia de

comunhão com Deus. Assim, mesmo essas ofertas têm um custo. Nessa

ocasião, Davi também paga uma boa quantia pela terra na qual o altar é

construído. Em sua negociação com Davi, Araúna pode estar sendo

sincero quando fala em simplesmente doar a terra para esse propósito,

ou está apenas sendo educado. Em outras palavras, ele pode estar

esperando que Davi lhe faça uma oferta (a conversa lembra a

negociação de Abraão com os hititas sobre um lugar para sepultar Sara,

relatada em Gênesis 23). Seja como for, isso dá a Davi a oportunidade

de declarar que ele não deseja realizar essa ação sem custo algum.

Com a resposta divina à oração de Davi e o término da epidemia, o

livro de 2Samuel é concluído. Não é o fim da história. A derradeira cena

na vida de Davi aparece em 1Reis. Como de costume, esses livros


narrativos param em vez de terminar. Assim, seremos obrigados a

continuar lendo.
GLOSSÁRIO

Ajudante. Um agente sobrenatural por meio do qual Deus pode

aparecer e operar no mundo. As traduções, em geral, referem-se a

eles como “anjos”, mas essa designação tende a sugerir figuras

etéreas dotadas de asas, ostentando vestes brancas e translúcidas.

Os ajudantes são figuras semelhantes aos humanos; por essa razão, é

possível agir com hospitalidade sem perceber quem são (Hebreus

13:2). Ainda, eles não possuem asas; por isso, necessitam de uma

rampa ou escadaria entre o céu e a terra (Gênesis 28). Eles surgem

com a intenção de agir ou falar em nome de Deus e, assim,

representá-lo plenamente, falando como se fossem Deus (Juízes 6).

Eles, portanto, trazem a realidade da presença, da ação e da voz de

Deus, sem trazer aquela presença real que aniquilaria os meros

mortais ou danificaria a sua audição. Isso pode ser uma garantia

quando Israel é rebelde, e a presença de Deus pode representar, de

fato, uma ameaça (Êxodo 32―33), mas eles mesmos podem ser

meios de implementar o castigo, assim como a bênção de Deus

(Êxodo 12; 2Samuel 24).

Aliança. A palavra hebraica berit abrange alianças, tratados e

contratos, mas todas essas são formas pelas quais as pessoas

estabelecem um compromisso formal sobre algo, mas tenho

utilizado o termo “aliança” para expressar todas as três. Onde há um

sistema legal para o qual as pessoas podem apelar, os contratos

pressupõem um sistema para resolver disputas e ministrar justiça

que pode ser utilizado se uma das partes não cumpre com os seus

compromissos. Em contraste, um relacionamento de aliança não

pressupõe uma estrutura legal executável dessa espécie, mas a

aliança envolve algum procedimento formal que confirme a


seriedade do compromisso solene que as partes assumem uma com a

outra. Desse modo, o Antigo Testamento frequentemente fala sobre

selar uma aliança; literalmente, cortá-la (o pano de fundo reside no

tipo de procedimento formal descrito em Gênesis 15 e Jeremias

34:18-20, embora esse tipo de procedimento dificilmente viesse a ser

exigido toda vez que alguém assumisse um compromisso de aliança).

Às vezes, as pessoas selam alianças para outras pessoas e, às vezes,

com outras pessoas. A primeira implica algo mais unilateral; a outra,

envolve algo mais mútuo.

Altar. Uma estrutura para oferta de sacrifício (o termo vem da palavra

para sacrifício), feita de terra ou pedra. Um altar pode ser

relativamente pequeno, como uma mesa, e o ofertante deve ficar

diante dele. Ou pode ser mais alto e maior, como uma plataforma, e

o ofertante tem de subir nele.

Apócrifos. O conteúdo do principal Antigo Testamento cristão é o

mesmo das Escrituras judaicas, embora estas sejam dispostas em

uma ordem diferente, como a Torá, os Profetas e os Escritos. Seus

limites precisos, como Escritura, vieram a ser aceitos em algum

período nos anos anteriores ou posteriores a Cristo. Não sabemos

exatamente quando ou como. Por séculos, as igrejas cristãs, em sua

maioria, utilizaram uma coleção mais ampla de textos judaicos,

incluindo livros como Macabeus e Eclesiástico, que, para os judeus,

não faziam parte da Bíblia. Esses outros livros passaram a ser

chamados “apócrifos”, os livros que estavam “ocultos” ― que veio a

implicar “espúrios”. Agora, com frequência, são conhecidos como

“livros deuterocanônicos”, um termo mais complexo, porém menos

pejorativo. Isso indica simplesmente que esses livros detêm menos

autoridade que a Torá, os Profetas e os Escritos. A lista exata deles

varia entre as diferentes igrejas.


Assíria, assírios. A primeira grande superpotência do Oriente Médio,

os assírios expandiram o seu império rumo ao Ocidente, até a Síria-

Palestina, no século VIII a.C., no tempo de Amós e Isaías. Primeiro,

eles anexaram Efraim ao seu império; então, quando Efraim

persistiu tentando retomar a sua independência, os assírios

invadiram Efraim e, em 722 a.C., destruíram a sua capital, Samaria,

levando cativo grande parte de seu povo e substituindo-os por

pessoas oriundas de outras partes do seu império. Invadiram

também Judá e devastaram uma extensa área do país, mas não

tomaram Jerusalém. Profetas como Amós e Isaías descrevem o modo

pelo qual Deus estava, portanto, usando a Assíria como um meio de

disciplinar Israel.

Autoridade. Indivíduos como Eli, Samuel, os filhos de Samuel e os reis

“exerciam autoridade” sobre Israel e para Israel. A palavra hebraica

para alguém que exerce tal autoridade, shopet, é tradicionalmente

traduzida por “juiz”, mas essa liderança é mais ampla que isso. No

livro chamado Juízes, esses líderes são pessoas que não possuem

posição oficial como os reis posteriores, mas que se levantam e

tomam a iniciativa de trazer libertação ao povo do problema no

qual ele se meteu. É função do rei exercer autoridade de acordo com

a fidelidade a Deus e ao povo.

Babilônia, babilônios. Um poder menor no contexto da história

primitiva de Israel, ao tempo de Jeremias, os babilônios assumiram a

posição de superpotência da Assíria, mantendo-a por quase um

século, até ser conquistada pela Pérsia. Profetas como Jeremias

descrevem como Deus estava usando os babilônios como um meio

de disciplinar Judá. Eles tomaram Jerusalém em 587 a.C. e

transportaram muitos dentre o povo. Suas histórias sobre a criação,

os códigos legais e os textos mais filosóficos nos ajudam a

compreender aspectos de escritos equivalentes presentes no Antigo


Testamento, embora sua religião astrológica também constitua o

cenário para polêmicos aspectos nos Profetas.

Baú. O “baú da aliança” é uma caixa com pouco mais de um metro de

comprimento e cerca de setenta centímetros de altura e de largura.

A versão Almeida Corrigida e Fiel, bem como outras versões, em

geral fazem referência a uma “arca”, mas a palavra significa uma

caixa, embora seja apenas usada ocasionalmente para expressar baús

usados para outros fins. É denominado de baú da aliança porque

contém as tábuas de pedra inscritas com os Dez Mandamentos,

expectativas-chave que Deus estabeleceu em relação à aliança do

Sinai. É mantido, regularmente, no santuário, mas há um sentido no

qual o baú simboliza a presença de Deus (considerando que Israel

não possui imagens para representar isso). Dado esse simbolismo, os

israelitas, algumas vezes, carregam o baú com eles. Às vezes,

também é denominado de “baú da declaração”, com o mesmo

significado: as tábuas “declaram” as expectativas da aliança de Deus.

Canaã, cananeus. Como designação bíblica da terra de Israel como um

todo, e referência a todos os povos autóctones daquele território,

“cananeus” não constitui, portanto, o nome de um grupo étnico em

particular, mas um termo genérico para todos os povos nativos da

região.

Chorar, clamar. Ao descrever a reação dos israelitas quando eles são

derrotados pelos inimigos, 1 e 2Samuel utilizam a mesma palavra

que o Antigo Testamento usa para descrever o sangue de Abel

clamando a Deus, o clamor do povo de Sodoma debaixo da opressão

dos perversos, o grito dos israelitas no Egito. O termo denota um

choro urgente que pressiona Deus por libertação, um grito que

Deus ouve, mesmo quando as pessoas merecem a experiência pela

qual estão passando.


Compromisso. O termo corresponde à palavra hebraica hesed, que as

traduções expressam de modos distintos: amor inabalável,

benignidade ou bondade. Trata-se do equivalente, no Antigo

Testamento, à palavra para amor no Novo Testamento, isto é, agapē.

O Antigo Testamento utiliza a palavra “compromisso” em referência

a um ato extraordinário por meio do qual uma pessoa se dedica a

alguém, num ato de generosidade, lealdade ou graça, quando não há

um relacionamento prévio entre as partes, de modo que alguém

estabelece um compromisso que não está obrigado a firmar. Essa é a

natureza do compromisso de Jônatas em relação a Davi (1Samuel

20). Pode também referir-se a um ato extraordinário similar que

ocorre quando há uma relação prévia, na qual uma das partes

decepciona a outra e, assim, não tem o direito de esperar qualquer

fidelidade da outra parte. Caso a parte que foi ofendida continue

sendo fiel, trata-se de uma demonstração desse compromisso. Deus

promete esse tipo de compromisso a Davi (2Samuel 7).

Devotar, devoção. Devotar algo a Deus significa entregar a Deus de

modo irrevogável. As traduções usam verbos como “aniquilar” ou

“destruir”, e, em geral, essa é a implicação correta, porém isso não

expressa o ponto distintivo do ato. É possível devotar uma terra ou

um animal, como um jumento, e, com efeito, Ana irá devotar

Samuel; o jumento ou o ser humano, então, pertence a Deus e está

comprometido a servi-lo. Na verdade, os israelitas devotaram

muitos cananeus ao serviço de Deus nesse contexto; eles se

tornaram pessoas que cortavam madeira e retiravam água para o

altar, para as ofertas e os rituais do santuário. Devotar pessoas a

Deus, matando-as como uma espécie de sacrifício, era uma prática

conhecida de outros povos, que Israel adota por sua própria

iniciativa, mas que Deus valida. Israel sabe que é assim que a guerra

funciona em seu mundo e passa a operar da mesma forma, com a

concordância divina.
Efígies. A palavra hebraica para efígies é teraphim. Primeiro Samuel

15:23 pressupõe uma ligação entre o teraphim e a adivinhação, que

envolve técnicas (como as da astrologia) na tentativa de descobrir

coisas sobre o futuro, para tomarmos decisões sensatas ou nos

prevenir de problemas que possam surgir. Uma forma de

adivinhação envolve a consulta aos mortos. As efígies seriam

imagens de membros da família já falecidos (como fotografias de

família), às quais as pessoas buscariam consultar na presunção de

que pudessem conhecer hoje coisas que seus parentes, ainda vivos,

desconhecem. Israel não deveria se envolver nesses procedimentos,

pois o esperado seria eles confiarem mais diretamente na orientação

de Deus.

Éfode. Em algumas passagens, o Antigo Testamento implica que um

éfode seja uma espécie de manto usado pelo sacerdote, mas em

outros trechos essa vestimenta incorporava, pelo menos, algo que

continha o Urim e o Tumim.

Efraim, efraimitas. Após a morte de Saul, os clãs israelitas se dividiram

em dois grupos por um período e, então, essa divisão se tornou

permanente depois da morte de Salomão. Politicamente, o maior

dos dois grupos, abrangendo os clãs do norte e do leste, manteve o

nome de Israel, enquanto o grupo menor, concentrado na região sul,

passou a ser chamado de Judá. Isso é confuso porque Israel ainda é o

nome do povo que pertence a Deus. Portanto, o nome Israel pode

ser usado em ambas as conexões. O Estado do norte, contudo, pode

também ser referido pelo nome de Efraim, por ser um de seus clãs

principais. Assim, uso esse termo como referência aos clãs do norte,

no período de Davi e no contexto posterior, na tentativa de

minimizar a confusão.

espírito. A palavra hebraica para espírito é a mesma para fôlego e para

vento, e o Antigo Testamento, às vezes, sugere uma ligação entre


eles. Espírito sugere um poder dinâmico; o espírito de Deus sugere o

poder dinâmico de Deus. O vento, em sua força e capacidade para

derrubar árvores poderosas, constitui uma incorporação do

poderoso espírito de Deus. O fôlego é essencial à vida; quando não

há fôlego, inexiste vida. E a vida provém de Deus, de modo que o

fôlego de um ser humano, e mesmo o de um animal, é extensão do

fôlego divino. O espírito de Deus veio sobre Saul, assim como veio

sobre as pessoas no livro de Juízes, capacitando-os a realizar coisas

que parecem humanamente impossíveis.

Esposa secundária. As traduções usam a palavra “concubina” para

descrever mulheres como Rispa e algumas das esposas de Davi, mas

o termo hebraico usado em relação a elas não sugere que não sejam

apropriadamente casadas. Ser uma esposa secundária indica possuir

uma posição diferente das outras esposas. Talvez implique que seus

filhos tenham direitos limitados ou mesmo nenhum direito sobre a

herança do pai. É possível a um homem rico ou poderoso ter

inúmeras esposas com plenos direitos e muitas esposas secundárias,

ou mesmo apenas uma de cada. Pode, ainda, ter apenas a esposa

principal ou somente a esposa secundária.

Exílio. No final do século VII a.C., a Babilônia se tornou o maior poder

no mundo de Judá, mas os judaítas estavam determinados a se

rebelar contra a sua autoridade. Então, como parte de uma

campanha vitoriosa para obter a submissão de Judá, em 597 a.C. e

587 a.C. os babilônios levaram muitos israelitas de Jerusalém para a

Babilônia, particularmente pessoas em posições de liderança, como

membros da família real e da corte, sacerdotes e profetas. Essas

pessoas foram, portanto, compelidas a viver na Babilônia durante os

cinquenta anos seguintes ou mais. Pelo mesmo período, as pessoas

deixadas em Judá também viviam sob a autoridade dos babilônios.

Assim, não estavam fisicamente no exílio, mas também viveram em

exílio por um período de tempo.


Fidelidade, fiel. Nas Bíblias do idioma inglês, as palavras hebraicas

sedaqah ou sedeq são, usualmente, traduzidas por righteousness, e

nas Bíblias em português, normalmente por “justiça” ou “retidão”,

mas isso denota uma tendência particular quanto ao que podemos

exprimir com esse termo. Elas sugerem fazer a coisa certa em relação

à pessoa com quem alguém está se relacionando, aos membros de

uma comunidade e a Deus. Portanto, a palavra “fidelidade”, ou

mesmo “salvação”, está mais próxima do sentido original do que

“justiça” ou “retidão”. No hebraico mais contemporâneo, sedaqah

pode referir-se a dar esmolas. Isso sugere algo próximo a

generosidade ou graça.

Filístia, filisteus. Os filisteus eram um povo oriundo do outro lado do

Mediterrâneo para se estabelecer em Canaã, na mesma época do

estabelecimento dos israelitas na região, de maneira que os dois

povos formaram um movimento acidental de pressão sobre os

habitantes já presentes naquele território, bem como se tornaram

rivais mútuos pelo controle da área.

Grécia. Em 336 a.C., forças gregas, sob o comando de Alexandre, o

Grande, assumiram o controle do Império Persa, porém após a

morte de Alexandre, em 333 a.C., o seu império foi dividido. A

maior extensão, ao norte e a leste da Palestina, foi governada por

Seleuco, um de seus generais, e seus sucessores. Judá ficou sob o

controle grego por grande parte dos dois séculos seguintes, embora

estivesse situado na fronteira sudoeste desse império e, às vezes,

caísse sob o controle do Império Ptolomaico, no Egito, governado

por sucessores de outro dos generais de Alexandre.

Israel. Originariamente, Israel era o novo nome dado por Deus a Jacó,

neto de Abraão. Seus doze filhos foram, então, os patriarcas dos doze

clãs que formam o povo de Israel. No tempo de Saul, Davi e

Salomão, esses doze clãs passaram a ser uma entidade política.


Assim, Israel significava tanto o povo de Deus quanto uma nação ou

Estado, como as demais nações e Estados. Após Salomão, esse

Estado foi dividido em dois Estados distintos, Efraim e Judá. Pelo

fato de Efraim ser maior, manteve como referência o nome de Israel.

Desse modo, se alguém estiver pensando em Israel como povo de

Deus, Judá está incluído. Caso pense em Israel politicamente, Judá

não faz parte. Uma vez que Efraim não existe mais, então, para

todos os efeitos, Judá é Israel, como o povo de Deus.

Judá, judaítas. Um dos doze filhos de Jacó e, portanto, o clã que traça a

sua ancestralidade até ele e que se tornou dominante no sul dos dois

Estados, após o reinado de Salomão. Mais tarde, como província ou

colônia persa, Judá ficou conhecido como Jeúde.

Libertar, libertador, libertação. Traduções modernas do Antigo

Testamento, com frequência, usam as palavras “salvar”, “salvador” e

“salvação”, mas elas transmitem uma impressão equivocada. No

contexto cristão, elas usualmente se referem ao nosso

relacionamento pessoal com Deus e ao deleite do céu. O Antigo

Testamento, de fato, fala sobre a nossa relação pessoal com Deus,

porém não utiliza esse grupo de palavras nessa conexão. Antes,

referem-se à intervenção prática de Deus para tirar Israel ou um

indivíduo de algum tipo de dificuldade, como, por exemplo,

acusações falsas por membros da comunidade ou a invasão de

inimigos.

Paz. A palavra shalom pode sugerir paz após um conflito, mas, com

frequência, indica uma ideia mais rica, ou seja, da plenitude de vida.

A versão Almeida Corrigida e Fiel, às vezes, a traduz por “bem-

estar”, e as traduções modernas usam palavras como “segurança” e

“prosperidade”. De qualquer modo, a palavra sugere que tudo está

indo bem para você.


Querubins. Não se trata de figuras angelicais infantis (como a palavra

pode sugerir em seu uso moderno), mas incríveis criaturas aladas

que transportam Yahweh, assentado em um trono acima delas. Havia

estatuetas dessas criaturas no templo, mantendo guarda sobre o baú

da aliança; portanto, eles indicam a presença de Yahweh ali,

invisivelmente entronizado acima deles.

Sheol. Um dos nomes hebraicos para o lugar ao qual vamos quando

morremos; é também referido como o “Poço”. No Novo Testamento,

é chamado de “Hades”. Não se trata de um lugar de punição ou

sofrimento, mas simplesmente de um local de descanso para todos,

uma espécie de análogo não físico para a sepultura, como lugar de

repouso para o nosso corpo.

Texto. Há um aspecto estranho no estudo de 1 e 2Samuel; apreciar

esses livros demanda uma compreensão de um quadro mais

abrangente. O texto básico em hebraico do Antigo Testamento, que

está por trás das inúmeras traduções da Bíblia, remonta a um grupo

de eruditos judeus chamados massoretas. Eles é que realizaram o

trabalho no milênio iniciado no tempo do Novo Testamento. O

nome deriva de um termo hebraico para “tradição”, e eles

assumiram a responsabilidade de preservar a tradição daquilo que o

texto do Antigo Testamento dizia e de como ele deveria ser lido.

Apesar de todo o cuidado e comprometimento do trabalho deles,

não seria surpresa se, por uma razão ou outra, eles, às vezes,

preservassem não a tradição original, mas uma forma do texto que

havia sido levemente alterada ao longo do tempo. Uma indicação

disso é que, ocasionalmente, o leitor encontra algumas

excentricidades no texto que o fazem pensar: “Isso está realmente

certo?” Por motivos que desconhecemos, 1 e 2Samuel levantam essa

questão com certa frequência. Por exemplo, no texto massorético de

1Samuel 1:24 Ana pega três touros para o sacrifício em Siló, o que

parece exagerado, mas no versículo seguinte ela sacrifica apenas um.


Entre os rolos de Qumran, manuscritos encontrados no mar Morto

na metade do século XX, há um documento desses dois livros que

relata Ana usando apenas um touro, o que faz mais sentido. Essa

versão do Antigo Testamento aparece numa tradução do texto

hebraico para o grego, conhecida por Septuaginta, realizada,

aproximadamente, na mesma época em que os manuscritos de

Qumran estavam sendo copiados; da mesma forma, isso, às vezes, faz

mais sentido. Pode ser que os manuscritos de Qumran e os textos

gregos tenham “corrigido” a versão original porque (como nós) eles

também acharam que não fazia sentido. Ainda, é possível que eles

tivessem em mãos a versão original. Há inúmeros exemplos, em 1 e

2Samuel, de diferenças desse gênero entre o texto hebraico dos

massoretas e os manuscritos de Qumran e/ou os textos gregos. Em

geral, sigo o texto massorético, mas, ocasionalmente, dou

preferência aos documentos de Qumran ou ao texto grego.

Torá. A palavra hebraica para os cinco primeiros livros da Bíblia. Eles,

em geral, são referidos como a “Lei”, mas esse termo propicia uma

impressão equivocada. No próprio livro de Gênesis, não há nada

como “lei”, bem como Êxodo e Deuteronômio não são livros

“jurídicos”. A palavra torah, em si, significa “ensino”, o que fornece

uma impressão mais correta da natureza da Torá. Com frequência, a

Torá nos fornece mais de um relato do mesmo evento (como a

comissão de Deus a Moisés), a exemplo de Samuel-Reis e Crônicas

que nos fornecem duas versões da história de Israel, desde Saul até o

exílio, mas, embora o Antigo Testamento mantenha essas duas

versões posteriores separadas (tal como ocorrerá com as quatro

versões da história de Jesus nos Evangelhos), na Torá as versões

foram combinadas.

Urim e Tumim. O Antigo Testamento jamais descreve a natureza deles,

mas eles constituíram, de algum modo, meios de Deus guiar Israel.

Ao que parece, eles eram algo como duas pedras que tinham marcas
em cada lado, significando sim e não. Portanto, era possível fazer

perguntas a Deus e, caso as pedras indicassem dois “sins” ou dois

“nãos”, a resposta de Deus era clara. Se as posições das pedras

indicassem, ao mesmo tempo, sim e não, isso significava que Deus

não estava respondendo.

Yahweh. Na maioria das traduções bíblicas, a palavra “Senhor” aparece

em letras maiúsculas ou em versalete, como ocorre, às vezes, com a

palavra “Deus”. Na realidade, ambas representam o nome de Deus,

Yahweh. Nos tempos do Antigo Testamento, os israelitas deixaram

de usar o nome Yahweh e começaram a usar “o Senhor”. Há duas

razões possíveis. Os israelitas queriam que outros povos

reconhecessem que Yahweh era o único e verdadeiro Deus, mas esse

nome de pronúncia estranha poderia dar a impressão de que Yahweh

fosse apenas o deus tribal de Israel. Um termo como “o Senhor” era

mais facilmente reconhecível. Além disso, eles não queriam incorrer

na quebra da advertência presente nos Dez Mandamentos sobre

usar o nome de Yahweh em vão. Traduções em outros idiomas,

então, seguiram o exemplo e substituíram o nome de Yahweh por “o

Senhor”. O lado negativo é que isso obscurece o fato de Deus querer

ser conhecido por esse nome (veja Êxodo 3). Por essa razão, o texto

utiliza Yahweh, com frequência, não algum outro nome (assim

chamado) deus ou senhor. Essa prática dá a impressão de que Deus

é muito mais “senhoril” e patriarcal do que ele o é na realidade. (A

forma “Jeová” não é uma palavra real, mas uma mescla das

consoantes de Yahweh e das vogais da palavra Adonai [Senhor, em

hebraico], com o intuito de lembrar às pessoas que na leitura da

Escritura elas deveriam dizer “o Senhor”, não o nome real.)

Yahweh dos Exércitos. Esse título para Deus, em geral, no texto

bíblico é traduzido por “Senhor dos Exércitos”, todavia é uma

expressão mais intrigante do que ela implica. O termo para Senhor

é, na realidade, o nome de Deus, Yahweh, e a palavra para


“Exércitos” é a palavra hebraica regular para as forças militares; é a

palavra que aparece na traseira de qualquer caminhão militar

israelense. Assim, mais literalmente, a expressão significa “Yahweh

[dos] Exércitos”, que é apenas tão estranho em hebraico quanto

“Goldingay dos Exércitos” seria. Todavia, em termos gerais, a

implicação da expressão é decerto clara: ela sugere que Yahweh é a

personificação do ou o controlador de todo o poderio de guerra,

quer no céu quer na terra.


SOBRE O AUTOR

John Goldingay é pastor, erudito e tradutor do Antigo Testamento. Ele

é professor emérito David Allan Hubbard de Antigo Testamento no

prestigiado Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia. É um

dos acadêmicos de Antigo Testamento mais respeitados do mundo com

diversos livros e comentários bíblicos publicados. O autor possui o livro

Teologia bíblica publicado pela Thomas Nelson Brasil.


AGRADECIMENTOS

A tradução no início de cada capítulo (e em outras citações bíblicas) é

de minha autoria. Tentei me manter o mais próximo do texto hebraico

original do que, em geral, as traduções modernas, destinadas à leitura

na igreja, para que você possa ver, com mais precisão, o que o texto diz.

Embora prefira utilizar a linguagem inclusiva de gênero, deixei a

tradução com o uso universal do gênero masculino caso esse uso

inclusivo implicasse em dúvidas quanto ao texto estar no singular ou no

plural. Em outras palavras, a tradução, com frequência, usa “ele” onde

em meu próprio texto eu diria “eles” ou “ele ou ela”. A restrição de

espaço não me permite incluir todo o texto bíblico neste volume; assim,

quando não há espaço suficiente para o texto completo, faço alguns

comentários gerais sobre o material que fui obrigado a suprimir. Ao

final do livro, há um glossário dos termos-chave recorrentes no texto

(termos geográficos, históricos e teológicos, em sua maioria). Em cada

capítulo (exceto na introdução), a ocorrência inicial desses termos é

destacada em negrito.

As histórias que seguem a tradução, em geral, envolvem meus

amigos, assim como minha família. Todas elas ocorreram, de fato, mas

foram fortemente dissimuladas para preservar as pessoas envolvidas,

quando necessário. Por vezes, o disfarce utilizado foi tão eficiente que,

ao relê-las, levo um tempo para identificar as pessoas descritas. Nas

histórias, Ann, a minha esposa, aparece com frequência. Ela faleceu

enquanto eu escrevia este volume, após negociar com a esclerose

múltipla durante 43 anos. Compartilhar os cuidados e o

desenvolvimento de sua enfermidade e crescente limitação, ao longo

desses anos, influencia tudo o que escrevo, de maneiras facilmente

perceptíveis ao leitor, mas também de formas menos óbvias. Agradeço a


Deus por Ann e estou feliz por ela, mas não por mim, pois ela pode,

agora, descansar até o dia da ressurreição.

Sou grato a Matt Sousa por ler o manuscrito e me indicar o que

precisava corrigir ou esclarecer no texto. Igualmente, sou grato a Tom

Bennett por conferir a prova de impressão.


INTRODUÇÃO

No tocante a Jesus e aos autores do Novo Testamento, as Escrituras

hebraicas, que os cristãos denominam de Antigo Testamento, eram as

Escrituras. Ao fazer essa observação, lanço mão de alguns atalhos, já

que o Novo Testamento jamais apresenta uma lista dessas Escrituras,

mas o conjunto de textos aceito pelo povo judeu é o mais próximo que

podemos ir na identificação da coletânea de livros que Jesus e os

escritores neotestamentários tiveram à disposição. A igreja também

veio a aceitar alguns livros adicionais, os denominados “apócrifos” ou

“textos deuterocanônicos”, mas, com o intuito de atender aos

propósitos desta série, que busca expor “o Antigo Testamento para

todos”, restringimos a sua abrangência às Escrituras aceitas pela

comunidade judaica.

Elas não são “antigas” no sentido de antiquadas ou ultrapassadas; às

vezes, gosto de me referir a elas como o “Primeiro Testamento” em vez

de “Antigo Testamento”, para não deixar dúvidas. Quanto a Jesus e os

autores do Novo Testamento, as antigas Escrituras foram um recurso

vívido na compreensão de Deus e dos caminhos divinos no mundo e

conosco. Elas foram úteis “para o ensino, para a repreensão, para a

correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:16-17).

De fato, foram para todos, de modo que é estranho que os cristãos

pouco se dediquem à sua leitura. Meu objetivo, com esses volumes, é

auxiliar você a fazer isso.

Meu receio é que você leia a minha obra, não as Escrituras. Não faça

isso. Aprecio o fato de esta série incluir grande parte do texto bíblico,

mas não ignore a leitura da Palavra de Deus. No fim, essa é a parte que

realmente importa.
UM ESBOÇO DO ANTIGO TESTAMENTO

A comunidade judaica, em geral, refere-se a essas Escrituras como a

Torá, os Profetas e os Escritos. Embora o Antigo Testamento contenha

os mesmos livros, eles são apresentados em uma ordem diferente:

Gênesis a Reis: Uma história que abrange desde a criação do

mundo até o exílio dos judeus para a Babilônia.

Crônicas a Ester: Uma segunda versão dessa história, prosseguindo

até os anos posteriores ao exílio.

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos: Alguns

livros poéticos.

Isaías a Malaquias: O ensino de alguns profetas.

A seguir, há um esboço da história subjacente a esses livros (não

forneço datas para os eventos em Gênesis, o que envolve muito esforço

de adivinhação).

1200 a.C. Moisés, o êxodo, Josué

1100 a.C. Os “juízes”

1000 a.C. Saul, Davi

900 a.C. Salomão; a divisão da nação em dois reinos:

Efraim e Judá

800 a.C. Elias, Eliseu

700 a.C. Amós, Oseias, Isaías, Miqueias; Assíria, a

superpotência; a queda de Efraim

600 a.C. Jeremias, o rei Josias; Babilônia, a superpotência

500 a.C. Ezequiel; a queda de Judá; Pérsia, a

superpotência; judeus livres para retornar ao lar

400 a.C. Esdras, Neemias

300 a.C. Grécia, a superpotência

200 a.C. Síria e Egito, os poderes regionais puxando Judá


de uma forma ou de outra

100 a.C. Judá rebela-se contra o poder da Síria e obtém a

independência.

0 a.C. Roma, a superpotência

PRIMEIRO E SEGUNDO REIS

Como o próprio nome sugere, 1 e 2Reis contam a história de Israel no

período da monarquia, iniciando com a ascensão de Salomão e seguindo

a narrativa até o término dos reinados, com o exílio. Os primeiros onze

capítulos de 1Reis cobrem o reinado de Salomão. Após a sua morte, por

volta de 970 a.C., a nação dividiu-se em dois Estados. A maioria dos

doze clãs abandonou a sua ligação com a linhagem davídica e com

Jerusalém e estabeleceu a sua própria monarquia ao norte. Pelo fato de

formarem o maior Estado, eles herdaram o nome “Israel”, o que pode ser

confuso, pois esse também é o nome do povo como um todo. Contudo, o

Estado do norte também pode ser referido pelo nome de “Efraim”, por

este ser um de seus principais clãs e, assim, uso esse termo na tentativa

de minimizar a confusão. A outra nação ou reino abrange Judá, algumas

vezes com Simeão e/ou Benjamim também. A história das duas nações

ocupa de 1Reis 12 até 2Reis 17, com suas histórias sendo contadas de

modo intercalado, reinado por reinado, até que os assírios invadem

Efraim e colocam um ponto final à existência da nação do norte, em 722

a.C. Portanto, de 2Reis 18 até o capítulo 25, há apenas a história da

nação de Judá para ser contada; a vida de Judá, como nação, é

interrompida em 587 a.C., com a invasão dos babilônios.

Embora nenhum dos livros que precedem 1 e 2Reis apresente um

fim apropriado (isto é, eles são interrompidos em vez de concluídos e

sempre incitam o leitor a abrir no livro seguinte), 2Reis apresenta uma

conclusão no sentido de que não há mais o que contar dessa história

específica. Quando o leitor chega à página final de 2Reis, descobre-se

retornando ao início de toda a história novamente, em 1 e2Crônicas,


que retomam a narrativa a partir de Adão. (Na ordem da Bíblia

hebraica, o efeito é o mesmo, pois o leitor vira na página final de 2Reis e

descobre-se na profecia de Isaías.) Isso não significa dizer que a história

chega ao fim. Não é o que acontece. Afinal, os livros terminam com

ambos os reinos derrotados e seus líderes levados ao exílio, deixando em

aberto o que o futuro possa reservar.

Faz sentido concluir que os livros atingiram a sua forma final nas

décadas subsequentes à queda de Jerusalém, em 587 a.C. Eles fazem

menção a um evento posterior, isto é, à liberação da detenção do rei

judaíta na Babilônia. Ele ainda está em exílio, mas talvez a sua liberação

seja um sinal de que Deus ainda não terminou com a linhagem de Davi.

A questão é: Que posição Israel assumirá em relação a Deus agora e que

posição Deus assumirá em relação a Israel?

Os livros de 1 e 2Reis contam a história da vida de Israel desde

Salomão até o exílio de forma a reconhecer como ambos os reinos

falharam na fidelidade a Yahweh, o Deus deles. Algumas vezes, eles

serviram a outros deuses; outras vezes, serviram a Yahweh, mas de

formas abominadas por Yahweh (notadamente, pelo sacrifício de

crianças a Deus). Eles convidam os leitores a reconhecer a veracidade

dos relatos — não meramente no sentido de que os fatos históricos

narrados são verdadeiros, mas no sentido de aceitarem a

responsabilidade pelas transgressões ao longo das gerações. Na

realidade, a história é uma espécie de confissão; ela admite: “Sim, esta é

a maneira em que vivemos como povo.” A única possibilidade de futuro

para eles é, portanto, encarar os fatos e reconhecê-los diante de Deus.

Não há como desfazer tais fatos ou compelir Deus a perdoá-los e

conceder-lhes um recomeço. Tudo o que eles podem fazer é lançarem-se

à misericórdia divina.

Embora os livros pressuponham um contexto no exílio, eles

dificilmente foram escritos do zero naquele período. Os israelitas

reuniram materiais de registros mais antigos, de histórias contadas pelo

povo e julgamentos teológicos por parte dos autores. Às vezes, ao ler a


história, tem-se a impressão de que o julgamento do exílio ainda não

ocorreu, e isso pode indicar que a primeira edição dos livros tenha sido

produzida antes da queda de Jerusalém diante dos babilônios, talvez no

tempo do rei Josias (veja 2Reis 22—23). Naquele estágio, o futuro ainda

estava aberto; se o povo realmente retornasse aos caminhos de Yahweh

(como Josias os incitava a retornar), então o desastre poderia ser

evitado. Assim, a primeira edição foi atualizada após o exílio ter, de fato,

ocorrido.

No pensamento judaico, 1 e 2Reis (com Josué, Juízes e Samuel)

formam os “Profetas Anteriores”. Esse título pode ter inúmeras

implicações. Os livros nos contam sobre profetas tais como Elias,

Eliseu, Jonas e Isaías. Eles nos fornecem o pano de fundo histórico ao

ministério de outros profetas, como Oseias, Amós, Miqueias, Jeremias,

Habacuque, Naum, Sofonias e Ezequiel. Eles, igualmente, são uma

espécie de história profética, pois não são meramente um relato de

alguns eventos ocorridos na história e tampouco uma coletânea de boas

histórias, mas uma narrativa que propicia ao leitor a perspectiva de

Deus sobre a história, desde Salomão até o exílio.


© Karla Bohmbach
© Karla Bohmbach
1REIS

1REIS 1:1-53
COMO MANIPULAR O VELHO HOMEM PARA QUE AS COISAS

SEJAM FEITAS
1
O rei Davi estava velho, avançado em anos. Eles o cobriram em roupas de cama, mas ele

2
não se aquecia. Seus servos lhe disseram: “Eles irão procurar uma jovem garota para o meu

senhor, o rei, e ela permanecerá [na assistência] diante do rei e será a sua cuidadora. Ela pode

3
se deitar em seus braços, e meu senhor, o rei, se aquecerá.” Então, procuraram por uma

jovem bela, em todo o território de Israel, e encontraram Abisague, a sunamita, e a levaram

4
ao rei. A garota era muito bonita. Ela se tornou a cuidadora do rei e ministrava a ele, mas o

5
rei não teve sexo com ela. Ora, Adonias, filho de Hagite, colocou-se à frente, dizendo: “Eu

serei o rei.” Ele preparou para si mesmo carruagem, cavalos e cinquenta homens correndo

6
adiante dele. Seu pai jamais o contrariou, dizendo: “Por que você agiu assim?” Além disso,

ele era muito bonito, e [sua mãe] lhe deu à luz [como o próximo filho de Davi] depois de

7
Absalão. Ele trocou palavras com Joabe, filho de Zeruia, e com Abiatar, o sacerdote. Eles

8
apoiaram Adonias, mas Zadoque, o sacerdote, Benaia, filho de Joiada, o profeta Natã, Simei,

9
Reí e os guerreiros de Davi não ficaram com Adonias. Adonias sacrificou ovelhas, bois e

animais cevados junto à pedra de Zoelete, próximo a En-Rogel, e convidou todos os seus

10
irmãos, os filhos do rei, e todos os homens de Judá, os servidores do rei, mas não convidou

11
o profeta Natã, os guerreiros e Salomão, seu irmão. Natã disse a Bate-Seba, mãe de

Salomão: “Você deve ter ouvido que Adonias, filho de Hagite, tornou-se rei sem o

12
reconhecimento de nosso senhor Davi. Agora, vá (permita-me dar um conselho) e salve a

13
sua vida e a vida de Salomão, seu filho. Vá ao rei Davi e lhe diga: ‘Meu senhor, o rei,

certamente juraste à tua serva: “Salomão, seu filho — ele se tornará rei depois de mim. Ele é o

14
que se assentará em meu trono.” Então, por que Adonias tornou-se rei?’ Ora, enquanto

você ainda estiver falando ali ao rei, eu mesmo irei após você e confirmarei as suas palavras.”

[Os versículos 15-49 relatam como eles implementaram esse plano e fizeram Davi ordenar que

Salomão fosse ungido rei.]

50
Adonias, então, ficou com medo de Salomão. Ele saiu e foi agarrar-se às pontas do altar.

51
Salomão foi informado: “Ora, Adonias está com medo do rei Salomão. Ele se agarrou às

pontas do altar, dizendo: ‘O rei Salomão deve jurar a mim, neste mesmo dia, que não matará

52
este seu servo com a espada.’” Salomão disse: “Se ele se tornar um homem de valor, nem

um fio de cabelo sobre a sua cabeça cairá ao chão, mas, se um erro aparecer nele, ele

53
morrerá.” O rei Salomão ordenou, e eles o desceram do altar. Ele veio e se curvou perante

o rei Salomão, e o rei lhe disse: “Vá para casa.”


Tenho alguns amigos no Quirguistão, onde, algumas semanas atrás,

houve protestos contra o presidente e o governo, promovidos pelo

partido de oposição e seus apoiadores, citando a corrupção

governamental generalizada e o aumento excessivo de preços dos

serviços públicos. Meus amigos consideraram sábio permanecer em casa

durante as manifestações que se seguiram; houve muitos mortos. De

modo progressivo, os manifestantes assumiram o controle sobre os

quartéis de segurança e a sede da televisão estatal; o presidente e sua

família deixaram o país, e a oposição anterior estabeleceu um novo

governo. Na Grã-Bretanha, houve escândalos no ano passado por causa

de questões similares, e, decerto, esses fatores afetarão o voto das

pessoas na eleição a ser realizada amanhã. A corrupção política está,

igualmente, presente nos Estados Unidos. Todavia, pelo menos nos dois

contextos, os cidadãos dispõem de um sistema de mudança de governo

que atua num intervalo pequeno de anos e, dessa forma, constitui uma

ferramenta para “punir” os políticos. Embora o sistema de

administração não seja imune a abusos e possa haver controvérsias

quanto à validade dos resultados eleitorais, nenhuma dessas nações tem

sido palco de golpes políticos ultimamente.

Pode-se dizer que Israel era mais parecido com o Quirguistão. A

promessa de Deus a Davi, em 2Samuel, estabeleceu o princípio da

sucessão dinástica. Deus está comprometido com a casa de Davi. Na

monarquia britânica, o primogênito do rei é o próximo a ascender ao

trono real e, ao que parece, Adonias presume que essa regra deveria ser

aplicada. De seus irmãos mais velhos, mencionados em 2Samuel 3,

sabemos que Amnom e Absalão estão mortos e, por implicação,

Quileabe também morreu. Embora Adonias seja o próximo da lista,

Deus não estabeleceu que o descendente mais velho de um rei deveria

sucedê-lo (ou mesmo que deveria ser um descendente homem em vez de

uma filha). Ainda, no Antigo Testamento, Deus frequentemente mostra

uma inclinação para desafiar a regra regular pela qual o filho mais velho

é o herdeiro principal; por exemplo, Deus preferiu Jacó em detrimento


de Esaú. Desse modo, não há presunção prévia com respeito a quem

deve suceder o rei.

Igualmente, Davi não adotou nenhuma ação com relação à sua

sucessão. Trata-se de um aspecto do processo pelo qual o rei se torna

cada vez mais irresponsável e débil à medida que os anos passam. O

ponto é enfatizado pelo patético relato sobre a sua velhice, com o qual o

livro de 1Reis começa. Parece melancólico, para dizer o mínimo, que um

rei como Davi, com inúmeras esposas principais e esposas secundárias,

não consiga ao menos uma para o manter aquecido e que os seus

serviçais concluam que Davi necessita de uma garota adolescente para

cuidar dele. O texto não esclarece se os servos presumem que ela será

outra esposa secundária para Davi, de maneira que a informação de que

ele não teve relações sexuais com ela pode ser considerada outro sinal

de sua senilidade.

Adonias e seus apoiadores poderiam argumentar que, nessas

circunstâncias, alguém precisa adotar uma ação decisiva em vez de

largar a nação à mercê desse vácuo de liderança. Portanto, como o filho

mais velho de Davi, Adonias é a pessoa certa para adotar essa posição,

mas ele percorre o mesmo caminho de Absalão, acumulando as

armadilhas externas da realeza. Ele possui a mesma aparência formosa

de Davi e Absalão, e os líderes devem ser modelos de beleza. F. D.

Roosevelt, em sua cadeira de rodas, jamais poderia ter chegado à

presidência, caso tivesse sido mais óbvio à população que ele teria de

fazer uso permanente da cadeira de rodas. Segundo Samuel retratou

como Davi falhou com seus filhos ao não exercer qualquer disciplina em

relação a eles, mas esse ponto é, aqui, expresso mais explicitamente: ele

jamais contrariou Adonias quanto ao comportamento do filho. Davi era

capaz de confrontar seus inimigos, mas não seus filhos (a exemplo dos

comentários sobre esse assunto, presentes em outras passagens do

Antigo Testamento, tais observações quanto à disciplina,

provavelmente, dizem respeito a eles como filhos, à medida que crescem

e se tornam adultos, não a crianças pequenas).


A liderança de Israel está totalmente dividida sobre quem deve

suceder a Davi. Adonias obtém o apoio de um dos principais oficiais do

exército davídico e um dos sacerdotes seniores. O outro sacerdote

sênior, bem como outras figuras militares, além do profeta Natã, todos

apoiam Salomão. Adonias promove um banquete para o qual ele

convida os demais filhos de Davi e seu corpo de servidores, mas

sugestivamente não convida Salomão e seus apoiadores. (Caso pareça

estranho haver, aparentemente, dois sacerdotes principais, a explicação

pode estar relacionada ao fato de Jerusalém ter se tornado o santuário

central de Israel, após Davi capturar a cidade dos jebuseus (veja

2Samuel 5—6). Salmos 110 discorre sobre o próprio Davi como um

sacerdote da ordem de Melquisedeque, que aparece em Gênesis 14. Em

outras palavras, ele herda a posição de sacerdote e rei em Jerusalém,

segundo o acordo na época em que os jebuseus ali viviam. Conectando

alguns pontos, tudo indica que Abiatar pertence à linhagem sacerdotal

por nascimento, enquanto Zadoque é um antigo sacerdote jebuseu que é

aceito na linhagem sacerdotal de Israel.

O relato de Natã quanto a Adonias ter se declarado rei atribui ao

banquete uma relevância mais concreta do que a simples informação

sobre o evento. Certamente, Adonias estava planejando assumir o

trono, mas o profeta toma atalhos na descrição do significado do

evento. O texto não esclarece por que Natã apoia Salomão, embora a

explicação possa estar ligada à história de seu nascimento, em 2Samuel

12:24-25. Deus havia permitido a morte do primeiro filho de Davi com

Bate-Seba e enviara Natã para revelar a Davi que o segundo filho dele

com Bate-Seba seria alguém amado pelo Senhor. Nessas narrativas, a

palavra para “amor”, com frequência, significa ser comprometido e leal

ao ser amado. Portanto, Natã pode ter ligado algumas pontas soltas e

concluído que o plano de Deus era que Salomão fosse rei. A disposição

de chegar a essa conclusão e atribuir ao banquete um significado maior

do que o evento realmente tinha justificaria o plano que o profeta

apresenta a Bate-Seba. Seria algo natural a ela nutrir esperanças de que


o filho viesse a ser rei, não apenas por motivos inerentes à maternidade.

A transição de Saul a Davi ilustrava como os rivais pretendentes ao

trono, e aqueles que os apoiam, em ambos os lados, colocam-se em uma

posição sobremodo perigosa durante o processo de transição e mesmo

após. Caso Adonias lograsse ascender ao trono, tanto Salomão quanto

Bate-Seba correriam risco de morte. Desse modo, ela, de bom grado,

estaria disposta a “refrescar a memória” do debilitado rei Davi quanto à

promessa que (até onde sabemos) ele jamais tinha feito. Adonias, por

seu turno, reconhecerá que o seu pescoço corre perigo quando Davi, por

fim, toma a decisão que deveria ter tomado muito tempo atrás.

Logo após eu redigir aquela linha de abertura sobre meus amigos no

Quirguistão, um deles me enviou um e-mail para contar que estivera

ouvindo a gravação de uma de minhas aulas no iTunes. Alguém havia

me perguntado por que Deus usa todas essas pessoas pecaminosas nos

livros de Samuel e de Reis, ao que respondi: “Bem, na realidade, ele não

tem muita margem de escolha, não é mesmo?” Meu amigo me disse que

riu muito ao ouvir a minha resposta enquanto dirigia o carro. Deus

opera por meio das manipulações e falhas das pessoas, de seus temores e

conspirações. Isso não significa, necessariamente, que sairemos impunes

desses atos.
1REIS 2:1-46
LIDANDO COM AS CONSEQUÊNCIAS
1
À medida que se aproximava o dia em que Davi morreria, o rei ordenou a Salomão, seu

2 3
filho: “Devo seguir o caminho de toda a terra. Seja forte. Seja um homem. Guarde os

encargos de Yahweh, o seu Deus, andando em seus caminhos, obedecendo às suas leis, aos

seus mandamentos, às suas regras e às suas declarações, como escrito no ensino de Moisés,

4
para que você possa ter sucesso em tudo o que fizer e aonde quer que vá, para que Yahweh

estabeleça a palavra que ele me falou: ‘Se os seus descendentes guardarem seus caminhos ao

andarem diante de mim em verdade, de toda a mente e de todo o espírito, nunca cessará de

5
haver um homem para você no trono de Israel.’ Além disso, você mesmo sabe o que Joabe,

filho de Zeruia, me fez, o que ele fez aos dois comandantes dos exércitos de Israel, Abner,

filho de Ner, e Amasa, filho de Jéter — ele os matou e derramou o sangue de guerra quando

havia paz, e colocou sangue de guerra no cinto em torno de sua cintura e nos calçados de

6
seus pés. Aja de acordo com a sua sabedoria e não deixe que os cabelos brancos dele desçam

7
ao Sheol em paz. Mas, aos filhos de Barzilai, o gileadita, mostre-lhes compromisso para que

eles estejam entre as pessoas que comem à sua mesa, porque estiveram próximos a mim

8
quando eu fugi de Absalão, seu irmão. Agora, Simei, filho de Gera, o benjamita de Baurim,

está com você. Ele proferiu terríveis depreciações a mim, na época em que eu estava indo a

Maanaim, mas, quando ele desceu para me encontrar no Jordão, jurei-lhe por Yahweh: ‘Eu

9
não o matarei pela espada.’ Assim, agora, não o trate como inocente, porque você é um

homem sábio e saberá como agir em relação a ele e permitirá que seus cabelos brancos

desçam ao Sheol em sangue.”

10 11
Então, Davi dormiu com seus ancestrais e foi sepultado na cidade de Davi. O tempo que

Davi reinou sobre Israel foram quarenta anos. Em Hebrom, ele reinou por sete anos; em

12
Jerusalém, ele reinou por trinta e três anos. Então, Salomão assentou-se no trono de Davi,

seu pai, e seu governo foi firmemente estabelecido.

[Os versículos 13-46 relatam como Salomão ordenou a morte de Adonias quando este procurou

Bate-Seba para pedir se podia se casar com Abisague; ele também dispensa Abiatar do

sacerdócio; ordena a morte de Joabe, mesmo ele estando agarrado às pontas do altar, no

santuário, e, por fim, manda matar Simei quando ele quebra os termos de sua liberdade

condicional.]

Quando eu era aluno de graduação, costumeiramente eu passava pelo

Memorial dos Mártires, onde Hugh Latimer, Nicholas Ridley e Thomas

Cranmer foram queimados na estaca, em Oxford, nos anos 1555 e 1556,


surpreendidos em meio ao conflito entre diferentes grupos cristãos. Há

muitas histórias que relatam o martírio de cristãos por pagãos; mas as

narrativas sobre cristãos sendo mortos por outros cristãos são ainda

mais perturbadoras. Somos felizes por viver numa época em que

defender ideias contrárias não custa a nossa vida, como era rotina

alguns séculos atrás, mas, mesmo em nossos dias, assumir partido por

um dos lados ainda envolve riscos. Ao longo do ano passado, dois

conhecidos meus perderem o emprego porque disseram coisas sobre a

Bíblia que colidiam com as posições teológicas defendidas pelos

seminários para os quais eles trabalhavam. Advogar visões políticas

consideradas erradas e apoiar candidatos perdedores em uma eleição,

decerto, não colocarão a sua vida em perigo na Grã-Bretanha ou nos

Estados Unidos, mas esse risco pode ser uma realidade em outras partes

do planeta.

Assim era em Israel, quando Davi ascendeu ao trono e quando

Salomão o sucedeu. Na verdade, parte da violência é resultante de

eventos associados à ascensão de Davi. Joabe é um claro exemplo. Davi

tinha uma irmã mais velha, chamada Zeruia, que teve três filhos: Abisai,

Joabe e Asael. Joabe logrou chegar à posição de comandante do exército

de Davi, embora a sua história o mostre como alguém que tinha ideias

próprias sobre os fatos. No decorrer do conflito envolvendo a sucessão

de Saul, Joabe assassinou Abner, o comandante das forças de Saul, que,

por seu turno, havia matado Asael, o irmão de Joabe, durante esse

conflito. Ainda, Joabe matou Absalão, contrariando ordens expressas de

Davi, e confrontou o rei quanto às consequências de sua preocupação

com a morte de Absalão. Com as tentativas de Davi para remediar as

feridas latentes na nação, após a conspiração de Absalão, Joabe perdeu a

posição de comando para Amasa, outro dos sobrinhos de Davi que

havia apoiado Absalão, mas também ele foi morto por Joabe. Por fim,

Joabe posicionou-se ao lado de Adonias.

Caso você esteja confuso(a), não se preocupe, há bons motivos para

isso. De qualquer forma, Joabe tem inúmeros fatores contra si. Abiatar,
o sacerdote, possui apenas um fator contrário, seu apoio a Adonias, mas

essa posição é motivo suficiente para sua aposentadoria precoce do

sacerdócio e, assim, simplifica a nova organização no santuário; dois

sacerdotes seniores é um exagero. A exigência para que Salomão aja

contra Simei pode parecer uma pequena maldade. A ação de Adonias ao

buscar permissão para se casar com a atraente cuidadora de Davi

parece, no mínimo, uma atitude pouco sábia. Ele não pode reclamar

pelo fato de Salomão associar o seu pedido à ação de Absalão, que

dormiu com as esposas secundárias de Davi. Isso equivale a anunciar

que Adonias ainda aspira ao trono de Davi.

Desse modo, a sucessão dos fatos decorre da estupidez das pessoas

que cercam Salomão, mas também resultam da própria sabedoria do rei

— pelo menos, Davi incentiva o filho a usar a sua sabedoria ao lidar com

as pessoas mencionadas por ele. Salomão precisa ser alguém que reage

às ações das pessoas em derredor de modo reflexivo, fazendo os eventos

trabalharem a seu favor, que aproveite as oportunidades, que faça as

coisas acontecerem e que saiba como lograr isso. Ao agir assim, ele

obtém o feliz resultado de eliminar todas as ameaças potenciais ao seu

trono. Sim, o trono de Salomão foi firmemente estabelecido. Além disso,

tudo isso ocorreu sem que o rei precisasse manchar as suas mãos de

sangue. Outras pessoas realizaram o seu trabalho sujo. A exemplo de

Davi, seu pai, ele é o “mocinho”.

Como Deus está envolvido em todos esses eventos? É possível que o

propósito providencial de Deus esteja em ação, mas o silêncio da

narrativa quanto a esse ponto é ensurdecedor. Isso é ainda mais

verdadeiro quando o narrador relata muitas declarações de outras

pessoas sobre Deus. O próprio Davi apela para a sabedoria de Salomão;

ele não incentiva o filho a fazer o que Deus diz. Adonias comenta que a

ascensão de Salomão ao trono é algo que Deus fez acontecer, mas ele é

sincero ao afirmar isso? Salomão faz um juramento solene diante de

Deus de que fará Adonias ser executado e pede a Deus que o puna caso

ele falhe nessa missão; o que Deus pensa ao ouvir esse juramento?
Salomão afirma que matar Joabe quando ele está diante do altar será o

meio de Deus cobrar o pagamento pelo sangue que ele derramou; qual a

opinião de Deus sobre isso? Ele também ora para que a paz de Deus

possa repousar sobre os sucessores de Davi para todo o sempre. Deus

responde afirmativamente? Quando Simei quebra a sua liberdade

condicional para perseguir dois servos que fugiram para Gate, e

Salomão afirma que a sua execução será o pagamento exigido por Deus

pelas transgressões dele (a saber, o seu insulto a Davi), o rei está certo?

O mais próximo que o narrador chega de associar Deus a tudo o que

acontece é comentar que a dispensa de Abiatar do sacerdócio, por

Salomão, era para cumprir a advertência de Deus quanto aos

descendentes de Eli perderem a posição como sacerdotes (1Samuel 3).

Existe um contraste entre o corpo principal desse capítulo, com seu

relato dos lembretes de Davi quanto à ação que necessita ser adotada e

a ação que, de fato, é realizada, e as palavras de abertura do capítulo (e

o retrato anterior de Davi em sua debilidade). A instrução de abertura

de Davi a Salomão evoca as instruções de Moisés a Israel pouco antes

de sua morte (Deuteronômio 31); as cobranças de Deus a Josué,

quando ele se torna líder (Josué 1); e a própria cobrança de Josué aos

israelitas antes de sua morte (Josué 23—24). Uma vez mais, nesse

momento crucial de transição para o povo e para o próprio líder, ele

recebe uma comissão de ser forte e confiante, uma exortação a guardar o

ensino de Moisés e uma promessa de que Deus será fiel e que ele será

bem-sucedido. As quatro cobranças, na realidade, resumem temas que

percorrem o relato, desde Deuteronômio até 2Reis, e fornecem chaves

para a compreensão da história como um todo. Nesse contexto, a

expressão “o ensino de Moisés” é uma referência particular a

Deuteronômio, que apresenta a chave para compreender a história que

se desenrola ao longo dos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis; daí a

história poder ser chamada de “história deuteronômica”, uma narrativa

que mostra como o ensino de Deuteronômio funciona por si só.


Havia outro encargo do qual Salomão era herdeiro, isto é, o

compromisso expresso por Deus a Davi em 2Samuel 7. Isso coloca mais

ênfase sobre as promessas de Deus a Davi e ao(s) seu(s) sucessor(es) do

que sobre o desafio de Deus à obediência; não há menção ao ensino de

Moisés. Ali, embora permita o castigo ao sucessor de Davi, mas não a

sua expulsão, Deus declarou que a casa de Davi e a monarquia

existiriam eternamente. Aqui, Davi observa que essa continuidade

dependerá de seu sucessor “caminhar diante de Deus em verdade”. Os

líderes e o povo, de alguma forma, devem se apegar a ambas as maneiras

de enxergar como Deus se relaciona conosco. Ele é absolutamente

comprometido conosco, como os pais com os seus filhos. Quando os

filhos os desafiam, os pais não os rejeitam. Não obstante, a capacidade

de resposta dos filhos é indispensável à continuidade do

relacionamento. Os filhos não podem achar que a relação prosseguirá

satisfatoriamente caso desprezem as expectativas de seus pais; isso

coloca em risco o relacionamento. Os pais e seus filhos vivem na

permanente tensão entre esses dois fatos (o mesmo ocorre entre os

cônjuges, mas a ênfase ocidental sobre a natureza igualitária do

relacionamento conjugal torna o casamento uma imagem menos

adequada para a compreensão de nosso relacionamento com Deus). Eis

como a relação entre Deus e os reis ou entre Deus e Israel será.


1REIS 3:1-15
O QUE VOCÊ MAIS DESEJA?
1
Salomão fez uma aliança de casamento com o faraó, rei do Egito; ele se casou com a filha do

faraó e a trouxe para a cidade de Davi até terminar a construção de sua casa, da casa de

2
Yahweh e dos muros ao redor de Jerusalém. Embora o povo, contudo, estivesse sacrificando

nos lugares altos porque a casa para o nome de Yahweh ainda não estava construída naquele

3
tempo, Salomão foi leal a Yahweh ao caminhar pelas leis de Davi, seu pai. Todavia, dado que

4
ele estava sacrificando e queimando incenso nos lugares altos, o rei foi a Gibeom para

sacrificar ali, por ser o lugar alto maior. Salomão apresentou mil ofertas queimadas naquele

5
altar. Em Gibeom, Yahweh apareceu a Salomão, em um sonho, à noite. Deus disse: “Peça

6
pelo que eu deveria lhe dar.” Salomão disse: “Mostraste grande compromisso com teu servo

Davi, meu pai, pois ele andou diante de ti em verdade e fidelidade, e em retidão de mente

contigo. Tu mantiveste esse grande compromisso por ele e lhe deste um filho assentado em

7
seu trono neste mesmo dia. Mas, agora, Yahweh, meu Deus, tu mesmo fizeste o teu servo rei

em lugar de Davi, meu pai, quando sou um pequeno rapaz que não sabe como sair e retornar

8
[para fazer as coisas]. O teu servo está no meio deste povo que escolheste, um grande povo

9
que não pode ser numerado ou contado por causa de seu tamanho. Assim, deves dar ao teu

servo uma mente ouvinte para exercer autoridade e para que teu povo possa discernir entre

10
o bem e o mal, pois quem pode exercer autoridade a este teu grande povo?” A coisa foi boa

11
aos olhos do Senhor, por Salomão haver pedido isso. Deus lhe disse: “Porque você pediu

isso e não pediu uma vida longa nem riqueza, nem pediu a morte de seus inimigos, mas

12
discernimento ao ouvir julgamento, certo, agirei de acordo com as suas palavras. Está bem,

estou dando a você uma mente sábia e discernente de modo que nunca houve antes, nem

13
haverá depois alguém como você. Também lhe darei o que você não me pediu, tanto

riqueza quanto honra em toda a sua vida, de forma que não haverá ninguém como você entre

14
os reis. Se você andar em meus caminhos, guardando as minhas leis e os meus

15
mandamentos, como Davi, seu pai, andou, lhe darei uma vida longa.” Salomão acordou.

Certo: um sonho. Ele foi a Jerusalém e colocou-se diante do baú da aliança do Senhor e

apresentou ofertas inteiras e sacrificou ofertas de comunhão e deu um banquete a todos os

seus servidores.

De tempos em tempos, eu costumava perguntar a uma amiga: “O que

você gostaria de fazer?” Em geral, a pergunta era relacionada a

concertos de música; eu listava as possibilidades, e, normalmente, ela

deixava a decisão final para mim. Todavia, na semana passada ela


protestou, dizendo que agia assim por não ter conhecimento suficiente

para uma tomada de decisão. Ela me disse: “Seria como se eu lhe

contasse algo sobre o Antigo Testamento.” Compreendi o que ela quis

dizer, mas a sua hesitação me privou do prazer de fazermos algo que ela

desejava. Certa feita, ouvi um pregador declarar que a pergunta de

Jesus a Bartimeu em Marcos 10:51, “O que você quer que eu lhe faça?”,

é a mais desafiadora que se pode fazer a uma pessoa. Bartimeu poderia,

de modo razoável, ter pedido algum trocado (afinal, era o motivo de ele

estar ali, ao lado da estrada, como um pedinte, nos Estados Unidos,

estrategicamente posicionado nos faróis de trânsito, onde os carros são

obrigados a parar), mas ele ousa pedir por sua visão, obtendo não

apenas essa dádiva da cura, mas o presente de seguir a Jesus. Apenas

alguns versículos antes, Jesus havia feito essa mesma pergunta a dois de

seus discípulos, e eles pediram para se assentarem à direita e à esquerda

de Jesus, em sua glória. Os discípulos podem ter menos discernimento

que novos convertidos.

A mesma pergunta é feita a Salomão: “O que você quer que eu lhe

faça?”, e o que ele responde constitui um verdadeiro modelo de resposta

no sentido de ser a resposta certa, considerando a posição em que ele

está; a resposta certa para pessoas em outras circunstâncias (como

Bartimeu) pode ser diferente.

No entanto, o relato da aparição de Deus a Salomão e o seu pedido

surge em meio a um contexto que agrega certa ironia. A primeira

informação que nos é dada sobre Salomão, uma vez que ele está seguro

em seu trono, é que ele se casou com a filha do faraó para estabelecer

uma aliança com o rei do Egito. Há inúmeros motivos para considerar

essa declaração problemática. Na cultura ocidental, com a nossa visão

romântica sobre o casamento, podemos nos ofender ao saber que o

casamento pode servir a objetivos políticos, embora duvidemos que

haja evidências de que os casamentos sujeitos a fins políticos sejam

menos felizes que os matrimônios estáveis subordinados ao romantismo.

No cenário do Antigo Testamento, haveria mais preocupação caso


Salomão estivesse sendo obrigado a alianças políticas para assegurar a

estabilidade e a segurança da nação; a julgar pelos Profetas, confiar em

alianças políticas mais do que confiar em Deus será o principal

problema, ao longo do período coberto por 1 e 2Reis. Nesses livros, a

questão crucial será a adoração a deuses de outros povos, ou o culto a

Yahweh usando práticas de outros povos (por exemplo, utilizando

imagens ou sacrificando crianças). Trazer esposas estrangeiras para

viver na cidade de Davi significará possibilitar o culto de seus deuses

ali, próximo ao próprio santuário de Yahweh. Ainda, esse

desenvolvimento também encoraja um processo pelo qual a própria

adoração dos israelitas será influenciada por essa prática de culto

estrangeira.

Os versículos subsequentes indicam que não há um problema

imediato, mas dão a entender que será um transtorno no devido tempo.

O povo estava sacrificando nos lugares altos, o que seria problemático

nos anos posteriores, mas que seria aceitável caso significasse o culto

adequado a Yahweh, o que era feito pelo próprio Salomão. Apesar de

Jerusalém já ter possuído o seu próprio santuário, antes dos dias de

Davi, e de este ter levado o baú da aliança para lá, e já haver uma

espécie de santuário ali, aparentemente o santuário em Gibeom, logo na

estrada, impressionava mais e, portanto, era o preferido para um evento

importante. (Imagina-se que ficava situado em uma vila, atualmente

chamada Nebi Samwil, isto é, “Profeta Samuel”, que é visível de

Jerusalém.)

É como se esse ato de adoração, com seu gigantesco sacrifício

(embora a contagem possa ser exagerada), fosse uma ocasião especial

pelo início do reinado de Salomão; daí a aparição de Deus ao rei com

aquela pergunta. Os termos da resposta de Salomão são, por si sós,

reveladores. Ele está preocupado com o fato de que seu trabalho é

exercer autoridade sobre o povo. Trata-se da responsabilidade que

Davi aceitou quando ele estava no auge de suas conquistas (2Samuel

8:15), antes de tudo desmoronar. Não existe separação de poderes em


Israel, de maneira que isso significa exercer responsabilidade política,

militar e judicial. Em todas essas conexões, Salomão sabe que necessita

ser capaz de discernir entre o bem e o mal.

É possível que você se surpreenda pela ousadia de Salomão em pedir

isso, porque lá, no início, Deus havia instruído aos primeiros seres

humanos que evitassem a árvore do conhecimento do bem e do mal.

Parece que a questão, lá no princípio, não significava que Deus era

contra as pessoas possuírem esse conhecimento, mas que Deus desejava

definir os termos pelos quais as pessoas tinham acesso a ele. O problema

foi a indisposição dos primeiros seres humanos em permitir que Deus

fosse soberano a respeito disso; em outras passagens, o Antigo

Testamento reconhece que esse discernimento é necessário e adequado

aos seres humanos, especialmente os reis. No sonho em questão,

Salomão reconhece a necessidade de ter uma “mente ouvinte”. Adão e

Eva tinham “ouvido” a voz da serpente; Salomão sabe que precisa estar

atento ao que Deus diz, mas também sabe que necessita do auxílio

divino para fazer isso, pois esse não é o instinto natural dos humanos.

(Talvez Salomão também saiba que precisa ter ouvidos abertos ao povo

sob seu governo e em relação ao qual deve tomar decisões e ter

discernimento.)

As palavras de Salomão, portanto, esclarecem o que ele e Deus

querem expressar com sabedoria. A chave para a sabedoria ou o

discernimento reside em possuir uma mente ouvinte, em submeter o

próprio pensamento ao modo de pensar divino. O modo pelo qual os

“livros de Sabedoria”, no Antigo Testamento, tais como Provérbios e Jó,

expressam isso é que a reverência a Deus é o princípio da sabedoria, e

que a reverência a Deus, no Antigo Testamento, significa ouvi-lo e fazer

o que ele diz, significa prestar atenção à Torá e fazer o que ela diz. Não é

por mera coincidência que Salomão tenha se tornado o santo padroeiro

da sabedoria, no Antigo Testamento. A comparação do retrato de

Salomão, nesse capítulo, com o retrato nos capítulos inaugurais de

1Reis, bem como com aquele retratado por alguns capítulos posteriores,
sugere que a descrição, aqui, é idealizada. Assim, isso apresenta às

pessoas (especialmente aos reis posteriores) uma visão do que um rei

deve ser. Se eles desejam governar bem, devem ser como Salomão em

sua atitude com respeito ao conhecimento do bem e do mal, não como

Adão e Eva.

Portanto, Salomão despertou e percebeu que tudo não passara de

um sonho. Na cultura do Ocidente, isso seria “apenas mais um sonho”.

Caso fôssemos questionados sobre o seu significado, decerto

responderíamos em termos dos desejos e temores do subconsciente de

Salomão. As culturas tradicionais reconhecem nos sonhos um meio de

Deus nos falar. Afirmar que foi um sonho é abrir a possibilidade de ter

sido uma revelação divina, como sugeriu a abertura da história.


1REIS 3:16—4:19
DUAS MÃES, UM BEBÊ
16 17
Posteriormente, duas prostitutas foram ao rei e compareceram diante dele. Uma das

mulheres disse: “Por favor, meu senhor, esta mulher e eu vivemos na mesma casa. Eu tive um

18
bebê com ela na casa. No terceiro dia, após ter tido o bebê, esta mulher também teve um

filho. Nós estávamos juntas. Não havia ninguém de fora da casa conosco, somente nós duas

19 20
na casa. O filho desta mulher morreu, durante a noite, porque ela se deitou sobre ele, e

ela levantou-se no meio da noite e pegou o meu filho, que estava ao meu lado, enquanto a tua

serva dormia, e colocou o meu filho em seus braços e o filho dela, morto, em meus braços.

21
Então, levantei-me de manhã para cuidar de meu filho, e eis que estava morto. Mas eu

22
olhei bem para ele, de manhã, e vi — ele não era o filho ao qual eu dera à luz.” A outra

mulher disse: “Não, o que vive é meu filho, e o que está morto é o seu filho”, enquanto a

primeira mulher ficava dizendo: “Não, o que está morto é o seu filho, e o que está vivo é o

23
meu filho.” Enquanto elas falavam diante do rei, ele disse: “Uma mulher está dizendo:

‘Este é meu filho, o vivo, e o morto é o seu’, enquanto a outra está dizendo: ‘Não, o morto é o

24
seu, e o vivo é o meu.’” Assim, o rei disse: “Tragam-me uma espada.” Eles trouxeram uma

25
espada diante do rei. O rei disse: “Corte o bebê vivo em dois e dê metade a uma e metade a

26
outra.” Então, a mulher cujo filho estava vivo disse ao rei (porque a sua compaixão cresceu

por seu filho) — ela disse: “Por favor, meu senhor, dê a ela o bebê vivo. Não o mate”,

27
enquanto a outra dizia: “Não será meu nem seu — corte-o em dois.” O rei respondeu: “Dê o

28
bebê vivo a ela. Na realidade, não o mate. Ela é a mãe dele.” Quando todo o Israel ouviu o

veredicto do rei, ficou maravilhado diante do rei, porque viu que havia sabedoria divina nele

para exercer autoridade.

CAPÍTULO 4

1 2
O rei Salomão era rei sobre todo o Israel, e estes eram os seus oficiais: Azarias, filho de

3
Zadoque (o sacerdote), Eliorefe e Aías, filhos de Sisa (secretários), Josafá, filho de Ailude

4
(o registrador), Benaia, filho de Joiada (comandante do exército), Zadoque e Abiatar

5
(sacerdotes), Azarias, filho de Natã (responsável pelos prefeitos), Zabude, filho de Natã

6
(sacerdote e conselheiro do rei), Aisar (responsável pela casa) e Adonirão, filho de Abda

7
(responsável pelo trabalho recrutado). Salomão tinha doze prefeitos sobre todo o Israel;

eles forneciam provisões ao rei e à sua casa (uma vez por mês, a provisão seria incumbência

de cada um deles).

[Os versículos 8-19 fornecem os nomes desses prefeitos e suas respectivas regiões.]
Ontem comemorou-se o Dia das Mães, e eu li, no jornal, a história de

duas mães com um bebê. Sua mãe biológica havia engravidado

enquanto era apenas uma estudante, e ela havia decidido que não queria

ficar com a criança, mas que não realizaria um aborto. Embora ela e o

pai do bebê houvessem se separado, antes disso eles já tinham decidido

dar o filho em adoção para um casal que não podia gerar filhos. Quando

a criança nasceu, todos os instintos maternais afloraram, e a mãe não

conseguia imaginar como poderia abrir mão do filho e continuar

vivendo, mas cumpriu a palavra. Entretanto, trata-se de uma “adoção

aberta”, isto é, as duas mães permanecem em contato e, de tempos em

tempos, a mãe pode ver a criança que gerou. Algumas vezes, quando ela

o tem nos braços, todo o seu corpo estremece.

Não consigo imaginar como essa experiência de maternidade é,

muito menos a experiência vivida por aquelas duas mães, no relato de

1Reis 3. Por serem prostitutas, aquela gravidez teria ocorrido por puro

acidente ou seria algo desejado? O que elas pensavam em fazer quando

os seus filhos nascessem? Teriam combinado ajudar uma à outra,

revezando-se no cuidado aos filhos, dentro da casa que compartilhavam,

e para continuarem em seu ganha-pão? Em um contexto ocidental,

poderiam ter se submetido a abortos ou não ter muito entusiasmo

quanto ao futuro e até medo pelas complicações que a maternidade

poderia lhes trazer? Quando os bebês nasceram, descobriram que

tinham sentimentos diferentes em relação aos seus filhos? Quão

profunda era a dor no coração da mãe que perdeu o seu bebê enquanto

dormia? E quão intenso era o medo da mãe que corria o risco de perder

o seu filho ou de vê-lo ser assassinado? Não obstante, os seus instintos

maternos determinaram a sua salvação e a de seu filho. A palavra em

hebraico para “compaixão” é, na realidade, o plural da palavra para

“ventre”. Assim, compaixão é o sentimento que uma mãe tem pelo filho

de seu ventre. A genuína compaixão materna salvou o seu bebê.

Como inúmeras outras grandes reflexões, a solução de Salomão para

aquele impasse tornou-se óbvia assim que o rei a enunciou, sem


esconder o toque de genialidade. Trata-se de uma expressão de

sabedoria, pois ela é proferida dentro do exercício de sua autoridade

para a comunidade. A tarefa do rei é assegurar que as decisões sejam

tomadas de modo adequado ao povo. Sua vocação não deve focar-se em

economia ou nas relações internacionais, mas em garantir que o certo

prevaleça.

Podemos nos sentir um pouco confusos pela história retratar duas

prostitutas e que o texto não faça nenhum comentário quanto às

questões que o ofício delas suscita, assim como não há nenhuma

observação sobre o plano fraudulento da mulher que perdeu o seu bebê.

O Antigo Testamento, em geral, não sente nenhuma compulsão a exibir

a obviedade de pontos morais; ele presume que os próprios leitores

sejam capazes de fazer isso (embora a dinâmica extra nesse relato resida

no foco sobre Salomão e a sua sabedoria). Quase sempre as mulheres

são levadas ao comércio sexual por pressões de ordem econômica, e,

provavelmente, as duas mães são mulheres que, por algum motivo, não

possuem família e, portanto, nenhum outro meio de subsistência. É

possível que elas estejam numa situação similar à de Noemi, Rute e Orfa

e sejam viúvas, mas (ao contrário daquelas três) não vão ou não podem

voltar às suas famílias ou localidades de origem. Elas sabem que há

homens que pagarão por sexo, e, por mais desagradável que seja servi-

los, pelo menos isso garantirá o sustento e a sobrevivência delas. Dada a

inexistência dos métodos anticoncepcionais modernos, não constitui

nenhuma surpresa que acabem engravidando. A questão perturbadora

levantada pela história diz respeito à forma pela qual a sociedade

israelita tem se desenvolvido. Como em muitas sociedades tradicionais,

especialmente com o crescimento da urbanização, ou como ocorre em

muitas sociedades ocidentais contemporâneas, o exercício de

autoridade por parte de Davi ou de Salomão não tem produzido uma

sociedade saudável.

A ambiguidade da liderança de Salomão reaparece no relato de sua

organização de governo. À medida que Israel se desenvolve em um


Estado cada vez mais complexo, a sua organização é outro sinal do

discernimento e habilidade do rei. A exemplo de Davi, ele possui

pessoas responsáveis pelo culto, pelos assuntos militares, pela

administração, pelo trabalho e pela provisão das necessidades de seu

palácio. Na realidade, a lista dos ofícios e de seus respectivos

responsáveis sobrepõe-se substancialmente à lista do reino de Davi, em

2Samuel 20. No que tange a Davi e Salomão, a lista suscita algumas

questões. Quando os israelitas primeiro consideraram a ideia de

possuírem um rei, Samuel os instou a pensarem no que isso lhes

custaria, pois o rei demandaria os serviços de seu povo para conduzir os

seus carros de guerra, arar os seus campos e cozinhar em seu palácio.

Além disso, decerto, o rei introduziria um sistema de coleta de impostos

para pagar o seu corpo de servidores na corte (veja 1Samuel 8). De

certa forma, as suas advertências se tornaram realidade nos dias de Saul

e, de maneira mais significativa, durante o reinado de Davi. Todavia, o

reinado de Salomão incorpora o alerta de Samuel de modo ainda mais

notável. O departamento de Adonirão é, particularmente, preocupante.

A palavra original para trabalho conscrito ou recrutado é, com

frequência, traduzida por “trabalho forçado”, e isso pode ser enganoso.

Não há motivos para presumir que estamos falando sobre homens com

chicotes oprimindo trabalhadores em correntes. Parte desse trabalho

recrutado poderia envolver o equivalente na Antiguidade a sentar-se

em frente a uma tela de computador. O ponto é que estamos três

estágios distantes da visão do Antigo Testamento quanto ao trabalho.

Idealmente, o trabalho não envolve uma relação de empregador e

empregado, de vender a sua mão de obra. O trabalho constitui um

negócio familiar; a família trabalha unida a fim de produzir tudo o que

ela necessita para subsistir. Se uma família enfrenta dificuldades para

fazer frente às suas despesas por causa da baixa produção de sua terra,

por um motivo ou outro, então seus membros podem ser obrigados a

trabalhar temporariamente como servos na propriedade de outra

família até que consigam se reerguer financeiramente. Repetindo, isso


não envolve necessariamente a venda de sua mão de obra, embora isso

possa ocorrer, caso, por algum motivo, você se torne um diarista, um

empregado. Todavia, o Antigo Testamento considera essa relação

empregatícia uma exceção. O quarto estágio é quando a pessoa é

forçada a fazer isso, queira ela ou não. Essa era a posição dos israelitas

no Egito (da qual Deus os havia libertado!) e a posição imposta pelos

israelitas a alguns cananeus (embora, para estes, fosse preferível às

demais opções de morte ou de vida errante). Primeiro Reis deixa claro

que Salomão sente-se livre tanto para escolher israelitas quanto para

determinar o trabalho que eles devem fazer.


1REIS 4:20—5:18
TODOS DEBAIXO DE SUAS VINHAS E FIGUEIRAS
20
Judá e Israel eram tão numerosos quanto a areia do mar, comendo, bebendo e desfrutando

21
a si mesmos. Salomão governava sobre todos os reinos, desde o Rio [Eufrates] até o

território dos filisteus e a fronteira do Egito, trazendo contribuições e servindo Salomão

25
todos os dias de sua vida. [...] Judá e Israel viveram em segurança, cada qual debaixo de

29
sua videira e de sua figueira, desde Dã até Berseba, todos os dias de Salomão. [...] Deus

deu a Salomão sabedoria e discernimento em grande medida e amplitude de mente como a

30
areia à beira-mar. A sabedoria de Salomão era maior que a sabedoria de todos os

31
quedemitas e toda a sabedoria dos egípcios. Ele era mais sábio que qualquer outro, mais

que Etã, o ezraíta, Hemã, Calcol e Darda, os filhos de Maol. Seu nome se espalhou por todas

32 33
as nações. Ele falou três mil provérbios, e suas canções chegaram a mil e cinco. Ele falou

sobre as árvores, desde o cedro, no Líbano, ao hissopo que cresce sobre um muro. Ele falou

34
sobre animais, pássaros, coisas que se movem e peixes. Eles vinham de todos os povos para

ouvir a sabedoria de Salomão, de todos os reis da terra que tinham ouvido de sua sabedoria.

CAPÍTULO 5

1
Hirão, rei de Tiro, enviou sua comitiva a Salomão, porque ouvira que eles o tinham ungido

2
como rei em lugar de seu pai, e Hirão sempre tinha sido leal a Davi. Então, Salomão

mandou dizer a Hirão: “Tu mesmo sabes de Davi, meu pai, que ele não foi capaz de construir

6
uma casa para o nome de Yahweh, seu Deus, por causa da guerra que o cercava. [...] Assim,

agora, ordena pessoas para cortar cedros para mim do Líbano. Meus servidores estarão com

os teus, e os salários deles eu os darei a ti de acordo com o que disseres, porque tu mesmo

7
sabes que não há ninguém entre nós que saiba sobre cortar toras como os sidônios.” Quando

Hirão ouviu as palavras de Salomão, ele ficou muito contente. Ele disse: “Yahweh seja

8
adorado hoje, pois deu a Davi um filho sábio sobre o seu grande povo.” Hirão mandou dizer

a Salomão: “Ouvi a mensagem que me enviaste. Farei tudo o que queres por meio de toras de

9
cedros e de ciprestes. Os meus servidores as levarão para o Líbano, até o mar. Eu serei

aquele que as tornarei em balsas pelo mar até o lugar que especificares a mim e as dividirei

ali. Tu serás aquele que as pegará e farás o que eu quero, fornecendo comida para a minha

13
casa.” [...] O rei Salomão recrutou mão de obra de todo o Israel; os recrutados chegaram a

14
trinta mil homens. Ele os enviou ao Líbano em grupos de dez mil por mês, em turnos. Eles

ficavam um mês no Líbano e dois meses em casa. Adonirão era o responsável pelo trabalho

15
recrutado. Salomão tinha setenta mil carregadores e oitenta mil cortadores de pedra nas

16
montanhas, sem contar os diretores dos prefeitos de Salomão que eram responsáveis pelo

17
trabalho, três mil e trezentos, supervisionando o trabalho feito pela companhia. O rei lhes

ordenou que transportassem pedras grandes, de excelente qualidade, para alicerçar a casa

18
com pedras lavradas. Os construtores de Salomão, os construtores de Hirão e os homens

de Biblos moldaram e prepararam as toras e as pedras para construir a casa.


Algumas semanas atrás, meu filho e sua família vieram me visitar, e

passamos bons períodos na parte externa da casa, assentados à sombra,

saboreando pão e queijo e bebendo vinho, enquanto as crianças

brincavam na piscina. A erupção de um vulcão na Islândia levou à

suspensão de voos para a Europa e confinou os meus visitantes à

Califórnia por cinco dias a mais que o previsto, o que não os incomodou

muito e nos proporcionou refeições inesperadas, relaxantes e não

programadas como aquela. Essas experiências me lembraram dos

momentos que desfrutamos em família, quase trinta anos atrás, quando

meus filhos eram as crianças, minha esposa e eu éramos os pais e minha

mãe e minha sogra eram as avós. Assentávamos à sombra de uma árvore

no jardim de uma casa rural (como dizem os franceses) ou chalé (como

denominam os britânicos) ou uma cabana (como nos Estados Unidos),

comíamos pão e queijo e saboreávamos um bom vinho, embora não

houvesse uma piscina para divertir as crianças. Para mim, é como ter

uma visão do paraíso na terra, ou, pelo menos, um retrato de tempos

antigos: sentar-se debaixo de sua videira ou figueira, comer, beber e

desfrutar desses momentos.

Não obstante, há algo enigmático nessa história de Judá e Israel sob

o governo de Salomão. Pode-se dizer que isso completa a natureza

enigmática de toda a história envolvendo os três reis que governaram

Israel antes de a nação se dividir em dois reinos. No relato de Saul, a

forma de Deus lidar com Saul constitui o mistério. Na história de Davi,

o mistério reside no próprio rei. Por fim, na história de Salomão, Israel é

o mistério, embora o narrador seja um tanto misterioso também.

Por um lado, há esse retrato idílico de um grande povo relaxando

sob a sombra de suas videiras e figueiras. Um de seus significados é que,

nos dias de Salomão, as promessas de Deus a Abraão e a Israel foram

maravilhosamente cumpridas. Israel é, de fato, tão numeroso quanto a


areia da praia (veja Gênesis 22:17). O reino de Salomão se estende

desde o Eufrates até o Egito (veja Gênesis 15:18). Isso não significa,

exatamente, que aquela vasta área a nordeste, que cobre grande parte

da moderna Síria e do Iraque, seja parte de Israel (ainda há “reinos”

separados ali), mas que Israel conseguiu dominar parte de um império

naquela direção, controlando o destino e a economia de toda aquela

região.

Então, há a sabedoria de Salomão. Certamente, ele precisa ser um

homem astuto para administrar e controlar aquele pequeno império. No

Oriente Médio, o tipo de sabedoria da qual a narrativa discorre (grande

parte da sabedoria encontrada em Provérbios) era um complemento

indispensável a tamanha liderança política e econômica, e os povos em

derredor possuíam escolas da corte para treinar pessoas na área

administrativa. Seria quase imperativo que a sabedoria de Salomão

excedesse o discernimento daqueles outros povos para que seu extenso

governo fosse efetivo como era. Nada conhecemos sobre os quedemitas

ou sobre os demais povos sábios mencionados. O que sabemos é que

sociedades como a dos egípcios produziram coletâneas de reflexão

comparáveis a Provérbios. Caso perguntassem como Israel era superior,

então poder-se-ia responder que era em sua forma mais sistemática de

entrelaçar a preocupação com a justiça ao interesse de Deus em seu

bom funcionamento. Presume-se que a contribuição feita por Salomão

não resida tanto na composição de provérbios (os presidentes não

escrevem os seus próprios discursos), mas na promoção e no apoio a tal

esforço.

Uma aplicação da sabedoria de Salomão, portanto, consiste em

conceber um sistema por meio do qual os povos súditos, nas áreas

controladas por Salomão, pagassem impostos (para usar termos

contemporâneos em lugar de “trazer contribuições”). A passagem de

1Reis 4:22-28 descreve as quantidades de provisões requeridas pela

administração de Salomão, tais como cem ovelhas e bodes por dia. O

rei, os conselheiros e servidores públicos vivem bem às custas de povos


estrangeiros, embora o mesmo seja verdadeiro em relação às pessoas

comuns. Será que os israelitas que desfrutavam da sombra de suas

videiras e figueiras pensavam no preço pago por esses outros povos para

custear a sua agradável vida? Quando me acomodo à sombra com

minha garrafa de vinho de dois dólares (meus prazeres são baratos), não

me detenho a pensar no vasto exército de trabalhadores imigrantes nas

vinhas, cuja mão de obra barata me permite desfrutar desse vinho. Na

realidade, jamais refleti sobre isso antes de escrever estas linhas.

O preço era pago não apenas por esses povos economicamente

subordinados. Os próprios israelitas pagavam impostos. Cada um dos

doze prefeitos designados por Salomão era responsável por levantar

proventos suficientes da área sob seu controle a fim de assegurar a

provisão mensal para o rei e sua casa. A história acrescenta que o rei

possuía milhares e milhares de carros de guerra e cavalos e que aqueles

impostos é que custeavam a manutenção deles. Será que os israelitas,

assentados à sombra de suas videiras e figueiras, pensavam no preço que

pagavam pela sua segurança mais do que, normalmente, fazemos? Ou

apenas davam de ombros quando lembravam disso? Será que

questionavam a participação estrangeira nisso? Quando Deuteronômio

17 define algumas regras para os reis, o texto inclui que eles não devem

acumular cavalos, nem riquezas. O capítulo também declara que eles

não devem ter muitas esposas, o que é um sinal de posição social (de

modo que ambos, Davi e Salomão, estão em apuros). No tempo de

Salomão, o livro de Deuteronômio ainda não havia sido escrito, e,

talvez, essa proibição indique que os teólogos de Israel devem ter

refletido sobre o estilo de liderança de Salomão e concluíram que nele

havia algo não adequado a um israelita.

Os planos de Salomão para a construção do templo contêm mais

ambiguidades. Deus tinha aprovado o plano de Davi para a edificação

de um templo, embora com certa relutância. Agora, Salomão está em

posição de fazê-lo e capacitado a obter vantagem do relacionamento

mutuamente benéfico com Hirão, como rei do império vizinho, a


nordeste; na realidade, era do interesse de Hirão manter relações

amistosas com o rei de Israel. Uma vez mais, isso envolve um elevado

preço aos dois povos, de Hirão e de Salomão, que não tiveram escolha, a

não ser providenciar a mão de obra para o trabalho e, assim,

negligenciar suas próprias fazendas, que mal atendiam às suas próprias

necessidades. Talvez estivessem contentes com a empreitada. Quando

olho para um magnífico edifício como a Catedral de Lincoln ou de

Durham, questiono-me quanto ao custo para as pessoas comuns,

envolvido na sua construção. Talvez elas tenham pago de bom grado

por estarem contribuindo para algo belo em honra a Deus.


1REIS 6:1-38
TEMPLOS E IGREJAS
1
No quadringentésimo octogésimo ano em relação à saída dos israelitas do Egito, no quarto

ano do mês de zive (isto é, o segundo mês) em relação ao reinado de Salomão sobre Israel,

2
ele construiu a casa para Yahweh. A casa que o rei Salomão construiu para Yahweh tinha

3
sessenta côvados de comprimento, vinte côvados de largura e trinta côvados de altura. O

pórtico em frente do salão da casa tinha vinte côvados de comprimento (no sentido da

4
largura da casa), dez côvados de largura (em relação à frente da casa). Ele fez janelas de

5
treliça estreitas para a casa. Contra as paredes da casa (as paredes da casa rodeavam o salão

e o santuário interno), ele construiu um pavimento inferior em redor e fez aposentos laterais.

7
[...] Quando a casa foi construída, foram usadas somente pedras lavradas na pedreira.

Martelo, cinzel ou qualquer outra ferramenta de ferro não se fizeram ouvir na casa enquanto

11 12
ela estava sendo construída. [...] A palavra de Yahweh veio a Salomão: “Esta casa que

você está construindo: se você andar por minhas leis e agir por minhas regras e guardar os

meus mandamentos, caminhando por eles, eu confirmarei com você a palavra que falei a

13
Davi, seu pai. Habitarei no meio dos israelitas e não abandonarei o meu povo, Israel.”

14 16
Assim, Salomão construiu a casa e a terminou. [...] Ele construiu vinte côvados dos lados

da casa com tábuas de cipreste, do chão às paredes — construiu dentro da casa uma sala

19
interna, para ele, o Lugar Santíssimo. [...] Portanto, ele preparou uma sala interna no meio

22
da casa, no lado de dentro, para colocar ali o baú da aliança de Yahweh. [...] A casa toda ele

cobriu de ouro, até que toda a casa estivesse completa, e todo o altar pertencente ao

23
aposento interno ele cobriu de ouro. Na sala interna, ele fez dois querubins de madeira de

37
oliveira, com dez côvados de altura. [...] No quarto ano, a fundação da casa de Yahweh foi

38
colocada, no mês de zive, e no décimo primeiro ano, no mês de bul (isto é, o oitavo mês), a

casa estava completa em relação a todas as suas instruções e decisões. Assim, ele a construiu

ao longo de sete anos.

O prédio da pequena igreja na qual eu adoro a cada domingo abriga

apenas cinquenta ou sessenta pessoas, mas ela possui três divisões. A

congregação se assenta no salão principal da igreja; há um pequeno

degrau que leva aos bancos do coral; por fim, há um outro pequeno

degrau e uma grade separando a área onde o altar ou o púlpito está.

Essa não é a única forma tradicional de construir uma igreja; algumas

possuem um plano mais amplo. Todavia, é o padrão seguido pela


maioria das igrejas maiores na Inglaterra, com as quais estou

familiarizado e nas quais fui pastor. Lembro-me de uma senhora idosa,

numa dessas igrejas, que pensava que seu lugar era no corpo principal

da igreja e que, certamente, não ousava ir além daquele segundo degrau,

na área cercada pelo gradil. Era como se aquele fosse um lugar sagrado

demais para ela. Pode-se dizer que aquela senhora reagia de acordo com

a mensagem que a arquitetura da igreja lhe transmitia.

Trata-se de uma mensagem que remonta ao templo construído por

Salomão. O corpo principal da igreja, onde a congregação se reúne, é

equivalente ao pátio do templo, no qual os israelitas se reuniam. Os

bancos do coral equivalem à primeira parte da estrutura de pedra, o

salão, também referido como o Lugar Santo, com um pórtico. Somente

os sacerdotes entram nesse local. A área, na qual está a mesa sagrada,

equivale ao aposento interno, o Lugar Santíssimo ou Santo dos Santos.

O formato básico corresponde ao de muitos santuários e palácios reais

cananeus. Em parte, isso ocorre por seguir a lógica de qualquer casa ou,

nesse caso, de um palácio. Há uma área pública na qual as pessoas são

recebidas na presença do rei, o equivalente a um pátio ou salão amplo;

há o aposento no qual o rei se encontra com sua equipe de servidores; e,

por fim, há os aposentos privativos do rei. Ainda que sejam os reis os

responsáveis pela construção do templo, eles não possuem mais direitos

lá do que as pessoas comuns do povo. A disposição do templo, portanto,

mantém o rei em seu devido lugar. Não se trata de uma capela real.

A exemplo da ideia de haver um templo, os planos para a sua

construção não vieram de Deus. Tipicamente, Deus aquiesce ao que

parece natural ao povo que deseja se relacionar com ele. O projeto do

templo, portanto, é comparável aos projetos de muitos templos

cananeus. É uma construção de dimensões reduzidas. Um côvado

corresponde a meia jarda ou pouco menos de meio metro, de maneira

que o seu tamanho não difere muito da nossa pequena igreja com

capacidade para cinquenta ou sessenta pessoas. Isso não representa

qualquer problema para nós, pois é o tamanho normal de nossa


congregação. Isso seria, de fato, um problema para o templo em

Jerusalém, até perceber que o templo não era destinado a ser um local

para acomodar toda a congregação de adoradores. O prédio do templo

não era um local de encontro para toda a comunidade, mas uma casa

para Deus. Às vezes, parece incorreto usarmos a palavra “igreja” para

denotar tanto um edifício quanto um grupo de pessoas, mas há certa

adequação em fazer isso. O prédio físico da igreja é um local de reunião

para o corpo de membros da igreja. No Antigo Testamento, o prédio do

templo não constitui um local no qual a congregação se reúne para

adorar e cultuar. Pode-se dizer que é uma espécie de santuário, embora

o Antigo Testamento não use essa palavra ou similares para descrever

esse local; nem mesmo o chama de templo. Quando a palavra “templo”

aparece nas traduções, ela expressa tanto a palavra comum hebraica

para uma casa ou aquela para um palácio, o termo que seria usado em

relação a uma residência real magnífica. O templo é uma casa para

Deus, um palácio para o Rei divino. É uma casa por ser uma habitação.

É um palácio porque é revestido de cedro, decorado com esculturas e

recoberto de ouro (pode-se presumir algum exagero aqui). Aquela

mesma palavra para “palácio” é igualmente usada para o “salão”

principal do edifício.

Em torno do salão principal do templo, há aposentos laterais que

seriam utilizados para armazenamento, preparação, e assim por diante.

Na parte externa ao templo, há uma grande área aberta, que compensa

as dimensões reduzidas do templo em si. As narrativas no Antigo

Testamento e nos Evangelhos descrevem quão grandes multidões se

reuniam na área do templo. Como resultado de sua ampliação por

Herodes, o Grande, na época do Novo Testamento, ele era tão amplo

quanto um campo de futebol, como é hoje. Só não era tão amplo na

época do Antigo Testamento, mas, ainda assim, grande o suficiente para

abrigar qualquer assembleia imaginável. Pelo fato de o clima em

Jerusalém ser mais parecido com o clima do sul da Califórnia do que o

da Grã-Bretanha, no período do ano em que a dedicação do templo


ocorreu, ou seja, entre setembro e outubro, era possível planejar

eventos sem a preocupação quanto à chuva, embora fosse possível ser

surpreendido por ela, caso uma grande reunião ocorresse em janeiro

(veja a história de Esdras 10).

No relato sobre a construção do templo, há três outras observações

dignas de nota. Uma é relativa à data, isto é, quatrocentos e oitenta

anos após o êxodo. Isso soa como uma data simbólica. Uma geração

corresponde a quarenta anos; o período total equivale, portanto, a doze

gerações; e o valor é aproximadamente aquele obtido pela contagem das

datas no Antigo Testamento desde o tempo de Moisés até Salomão,

embora, historicamente, aquelas datas se sobreponham. Desse modo,

não se trata de uma data que se possa tomar como referência ao escrever

nosso tipo de história (não se pode concluir com base na data de

Salomão, cerca de 960 a.C., que o êxodo ocorreu por volta de 1440

a.C.). É similar ao relato da genealogia de Jesus, no início de Mateus,

que nos revela catorze gerações, de Abraão a Davi, catorze gerações de

Davi ao exílio, e mais catorze, do exílio até Jesus. Você pode comparar

aquele relato com as listas de gerações no Antigo Testamento que

Mateus estava usando e ver que a versão dele funciona apenas porque

ele é seletivo quanto ao que inclui, a fim de elaborar uma narrativa que

simbolize a forma cuidadosa pela qual a soberania de Deus opera na

história. A datação, em 1Reis, é similar. Do mesmo modo que estabelece

uma conexão com o êxodo, a narrativa também pode fazer uma ligação

com a destruição do templo e/ou a sua restauração, o que ocorreu cerca

de quatrocentos e oitenta anos mais tarde. Dessa forma, a estruturação

de Mateus da história de Israel é muito semelhante àquela adotada em

1Reis, na qual ambos enfatizam o mesmo ponto, ou seja, que a soberania

de Deus estava em ação nos eventos presentes no relato.

O segundo comentário diz respeito ao silêncio. De modo geral, o

Antigo Testamento mostra-se muito mais interessado no som do que no

silêncio. O som torna possível louvar a Deus e orar, e o som da parte de

Deus é uma indicação de que ele está agindo em resposta à oração e de


uma forma que merece louvor. Portanto, é notável quando,

ocasionalmente, o Antigo Testamento recomenda o silêncio como uma

expressão de admiração, respeito e antecipação (compare Sofonias 1:7;

Habacuque 2:20; Zacarias 2:13).

O terceiro comentário é quanto ao lembrete sobre os termos da

habitação de Deus entre os israelitas. Isso parece levantar questões

metafísicas; como pode o Deus criador viver em uma pequena casa

construída por mãos humanas? Ao considerar aquela questão, Deus

está mais interessado em algumas considerações morais ou relacionais.

Deus não vê problemas em habitar no meio dos israelitas, desde que eles

vivam da forma esperada por Deus. Isso é simbolizado pela presença do

baú da aliança na sala interna, o Lugar Santíssimo.


1REIS 7:1—8:9
TEMPLOS E PALÁCIOS
1 2
A sua casa, ele a construiu ao longo de treze anos, e completou toda a sua casa. Ele

construiu a casa da Floresta do Líbano, com cem côvados de comprimento, cinquenta

côvados de largura e trinta côvados de altura, [com] quatro fileiras de colunas de cedro e

7
vigas de cedro sobre as colunas. [...] Ele fez o pórtico para o trono onde iria emitir

8
julgamento [o Pórtico do Julgamento]. Ele foi revestido de cedro, do chão até o teto. A casa

onde vivia, [no] pátio dentro do pórtico, foi feita da mesma maneira. Ele fez também uma

21
casa para a filha do faraó, com quem Salomão se casou, como este pórtico. [...] Ele levantou

as colunas no pórtico do salão. Levantou a coluna direita e a chamou “Ele estabelece” e

22
levantou a coluna esquerda e a chamou “Nele está a força”. No topo das colunas estava a

23
obra de lírios. Assim, a manufatura das colunas foi completada. Ele fez o Mar, fundido, dez

côvados de borda a borda, circular em toda a volta, cinco côvados de altura; uma linha de

51
trinta côvados dava toda a volta. [...] Quando todo o trabalho que Salomão fizera para a

casa de Yahweh estava terminado, Salomão trouxe todas as coisas sagradas de Davi, seu pai.

Ele colocou a prata, o ouro e os utensílios na tesouraria da casa de Yahweh.

CAPÍTULO 8

1
Então, Salomão reuniu os anciãos de Israel, todos os cabeças dos clãs e os líderes ancestrais

dos israelitas, diante do rei Salomão, em Jerusalém, para trazer o baú da aliança de Yahweh

6
da Cidade de Davi (isto é, Sião). [...] Os sacerdotes levaram o baú da aliança de Yahweh

para o seu lugar, na sala interna da casa, o Lugar Santíssimo, debaixo das asas dos querubins,

7
porque os querubins estendem suas asas em direção ao lugar do baú, e os querubins cobrem

8
o baú e suas varas do alto. As varas se estendiam tanto que as extremidades das varas eram

visíveis do Lugar Santo, em frente à sala interna, mas não eram visíveis do lado de fora. Elas

9
estão lá até este dia. Não havia nada no interior do baú, exceto as duas tábuas de pedra que

Moisés colocara ali em Horebe, quando Yahweh selou [a aliança] com os israelitas, quando

eles deixaram o Egito.

Joe, que está reformando o meu banheiro, acabou de chegar ao meu

apartamento. Na realidade, não havia nada errado em meu banheiro que

demandasse uma reforma, pelo menos não mais do que era necessário na

cozinha, quando a reformei no outono, mas, em geral, as reformas não se

justificam pela necessidade. Alguns anos atrás, meu filho olhou um

pouco contrariado em direção ao meu banheiro e virou os olhos daquele


jeito que as crianças normalmente fazem quando censuram os pais. Ele

comentou que eu necessitava fazer algo a respeito do banheiro para

manter o valor da propriedade (bem, não acho que ele estivesse apenas

preocupado em preservar o valor da herança). Lembrei-me agora que,

enquanto crescia, eu achava um pouco patético meus pais ainda usarem

a mobília e os utensílios de cozinha que compraram quando se casaram;

agora, percebo-me fazendo a mesma coisa. Como definir o nível de

atualização, conforto e luxo adequados quando muitas pessoas no

mundo não dispõem nem mesmo de um banheiro? Questões similares,

mas menos pessoais, surgem à mente. No contexto de um enorme déficit

financeiro estatal, nesta semana o nosso governador propôs um

orçamento que corta o auxílio aos mais carentes, bem como diminui os

gastos com os centros de saúde das comunidades mais pobres. Como

equilibramos essas necessidades com os gastos em edifícios imponentes

ou projetos simbólicos?

Intrigantemente entremeado com a história sobre a construção do

templo é o breve relato de que Salomão investiu treze anos na

construção de sua própria residência real; e demorou sete anos para

concluir a casa de Deus. Será isso um sinal de que a casa de Deus tinha

prioridade, de que ele focou o trabalho a ser feito e o fez, ou que deu

mais atenção à sua casa? O palácio de Salomão é muito maior que a casa

de Deus. E quanto aos demais edifícios estatais impressionantes que ele

também construiu? A Casa da Floresta do Líbano é, aparentemente,

assim chamada pelos seus muitos pilares de cedro daquele país, de

maneira a dar-lhe um aspecto de floresta; era um salão para ser usado

em ocasiões oficiais de Estado. E o que dizer da residência de sua esposa

egípcia? Alguém pode lembrar, uma vez mais, que esses projetos são

financiados pelos cidadãos comuns. Igualmente importantes são, pelo

menos, as questões levantadas pela forma contígua com que o templo, o

palácio real e os prédios oficiais foram construídos. Isso dá margem à

positiva possibilidade de a fé celebrada no templo ser levada a sério pelo

rei e incorporada à maneira de as áreas política e econômica


funcionarem. Todavia, também sugere a possibilidade de a fé celebrada

no templo se tornar subordinada ao poder do rei e à sua visão quanto às

demandas políticas econômicas governamentais. Assim, com o passar

do tempo, não haverá apenas uma rainha estrangeira vivendo nas

proximidades do templo e santuários a deuses estrangeiros ali

instalados, mas também santuários a outros deuses dentro do complexo

do templo porque a política assim exige.

Com a referência ao salão, retornamos ao relato do templo em si. Na

área externa, há dois pilares especialmente imponentes. Eles não fazem

parte da estrutura, nem têm função de sustentação, mas parecem

simbolizar o que seus nomes indicam, ou seja, o fato de Deus

estabelecer o mundo por sua força; portanto, é seguro. Caso alguém

pensasse que o seu mundo parecia inseguro, ao olhar para o templo seria

lembrado de um aspecto das boas-novas relativas ao Deus cujo nome

habitava ali.

Ao olhar em torno dos dois pilares, a pessoa veria “o Mar”, um

enorme tanque (cinco metros de diâmetro, dois metros e meio de altura

e cerca de quinze metros de circunferência) A sua imponência era

intensificada pelo fato de o tanque ser sustentado por doze touros feitos

de bronze. Associadas ao tanque, havia dez pias de bronze. O

fornecimento de água para encher o Mar representava um enorme

desafio logístico; o templo está situado no topo de uma colina, e o

suprimento de água, próximo ao pé da colina. Portanto, é possível que

as bacias cumprissem uma função em relação a isso. Alternativamente,

elas podem ter sido usadas para transportar a água do tanque a pontos

da corte onde isso era necessário. De um ponto de vista prático,

presume-se que a função do Mar era fornecer água para os muitos atos

de purificação requeridos pela adoração no templo. Êxodo 30 é muito

específico quanto ao fato de o reservatório para o tabernáculo no

deserto, equivalente ao Mar no templo fixo, ser apenas para os

sacerdotes purificarem suas mãos e seus pés a fim de cumprirem as suas


obrigações sacerdotais. Todavia, a água também seria necessária para

outros ritos de lavagem em conexão com os sacrifícios.

Não obstante, a altura do Mar dificultaria o uso nesse contexto, e o

estranho nome do tanque também poderia sugerir um significado

simbólico, não menos importante que o significado de ser sustentado

por aqueles pilares. Para os povos do Oriente Médio, com frequência, o

mar era a personificação de um poder dinâmico e ameaçador; o mar

podia engolir a terra se assim desejasse. Desse modo, havia histórias

sobre a criação que envolviam a obtenção de controle sobre o mar. Esse

Mar constituía um lembrete visual da afirmação sobre os pilares, de que

o mundo é estabelecido pela força de Deus. Embora o Antigo

Testamento, às vezes, fale da criação nesses termos, ele também relata a

vitória de Deus sobre o mar de Juncos, uma vitória que confirmou o

poder de Deus sobre tudo o que ameaçava subjugar Israel. Assim, o

tanque continha o mar em mais de um sentido. Ele armazenava uma

vasta quantidade de água, o que igualmente sugeria que o mar estava

sob controle.

O Mar era situado no pátio, junto ao altar principal no qual os

animais eram queimados e oferecidos a Deus, de modo que as pessoas

podiam participar da apresentação das ofertas. No interior do salão, ao

qual as pessoas não tinham acesso, ficava o altar no qual os sacerdotes

queimavam incenso, a mesa com os “pães da Presença”, que

simbolizavam as ofertas de grãos das pessoas e/ou a provisão divina

para o povo, além das dez lâmpadas.

Ao fundo do salão, ficava a sala interna, o Lugar Santíssimo, no qual

o sacerdote acessava uma vez ao ano pela necessidade de purificá-lo. No

interior, havia dois querubins revestidos de ouro, figuras imaginárias

que transportavam o trono de Deus pelos céus e pela terra. Eles,

portanto, indicavam a presença do Deus invisível, entronizado acima

deles. Por seu turno, eles permaneciam sobre o baú da aliança e o

protegiam, constituindo o único artefato no interior daquele aposento.

A sua presença ali sublinha questões quanto à relação de aliança que


remonta ao Sinai e a forma pela qual Israel se tornou um Estado como

outro qualquer. Estará o Estado disposto a moldar a sua vida de acordo

com o que está gravado nas duas tábuas de pedra (os Dez

Mandamentos)? Resposta: na verdade, não.


1REIS 8:10-30
DEUS REALMENTE HABITARÁ NA TERRA?
10
Quando os sacerdotes saíram do santuário (a nuvem estava enchendo a casa de Yahweh

11
e os sacerdotes não foram capazes de permanecer ali e ministrar por causa da nuvem, pois

12
o esplendor de Yahweh enchia a casa de Yahweh), então Salomão disse: “Yahweh disse que

13
iria habitar na nuvem de tempestade. Eu, de fato, construí uma casa imponente para ti, um

14
lugar para viveres eternamente.” O rei virou o seu rosto e abençoou toda a congregação de

15
Israel enquanto toda a congregação de Israel estava em pé. Ele disse: “Yahweh seja

adorado, o Deus de Israel que falou por sua própria boca com Davi, meu pai, e por sua mão o

16
cumpriu: ‘Desde o dia em que trouxe o meu povo, Israel, do Egito, não escolhi uma cidade

de todos os clãs de Israel para edificar uma casa ao meu nome ali, mas escolhi Davi para estar

17
sobre meu povo, Israel.’ Estava na mente de Davi, meu pai, construir uma casa para o

18
nome de Yahweh, o Deus de Israel, mas Yahweh disse a Davi, meu pai: ‘Porque você teve

em sua mente construir uma casa para o meu nome, fez bem quando isso estava em sua

19
mente. No entanto, você mesmo não construirá a casa. Em vez disso, o seu filho, que saiu

20
de seus lombos, ele construirá a casa para o meu nome.’ Yahweh estabeleceu a sua palavra,

a qual falou. Eu ascendi ao lugar de Davi, meu pai. Assentei-me no trono de Israel, conforme

21
Yahweh falou, e construí a casa para o nome de Yahweh, o Deus de Israel. Estabeleci um

lugar ali para o baú no qual a aliança de Yahweh está, a qual ele selou com nossos ancestrais

22
quando os tirou do Egito.” Salomão postou-se diante do altar de Yahweh na presença de

23
toda a congregação de Israel, estendeu as palmas das mãos em direção aos céus e disse:

“Yahweh, Deus de Israel, não há Deus como tu nos céus acima e na terra embaixo, que

guardas o compromisso de aliança com teus servos que andam diante de ti com toda a sua

27
mente. [...] No entanto, Deus realmente viverá na terra? Os céus, os altos céus, não te

28
contêm, muito menos esta casa que construí. Mas volta teu rosto ao apelo e à oração de

teu servo por graça, Yahweh, meu Deus, ouvindo o lamento e a súplica que teu servo faz hoje

29
diante de ti, de modo que teus olhos estejam abertos e voltados para esta casa, noite e dia,

em direção ao lugar sobre o qual disseste: ‘Meu nome estará ali’, para que ouças o apelo que o

30
teu servo faz voltado para este lugar. Quando ouvires a oração por graça deste teu servo e

de teu povo, Israel, que eles fazem voltados para este lugar, e quando ouvires no lugar onde

tu te assentas, nos céus, ouve e perdoa.”

Cerca de uma ou duas horas atrás, eu não estava sentado à minha

escrivaninha, como estou agora, mas em minha cadeira reclinável, na

qual começo o meu dia, saboreando meu café, lendo a Bíblia para o meu

próprio benefício e orando pelas pessoas. Nesses momentos, eu, às vezes,


imagino Deus sentado no sofá do outro lado daquele aposento; foi o que

fiz, hoje de manhã, para me lembrar de que Deus estava comigo. Trata-

se de um exercício de minha imaginação, mas a presença é uma

realidade. Ontem, na igreja, enquanto entoava hinos ou declarava o

credo ou distribuía às pessoas o pão e o vinho, não senti que deveria

convocar essa realidade; ela estava inserida no que eu estava fazendo

(“Pois onde se reunirem dois ou três em meu nome, ali eu estou no meio

deles”, disse Jesus, em Mateus 18:20). Enquanto o meu café fervia nesta

manhã, eu preparava a massa para o pão que assarei mais tarde, e Deus

estava lá também, pelo menos fazendo a massa crescer (acabei de

verificar isso). Eu não pensei na presença de Deus, então, mas isso não

impede de ela ser uma realidade. Aqui, em minha mesa de trabalho, é

melhor que Deus esteja presente também, caso contrário o que estou

escrevendo não lhe será de grande utilidade. Obviamente, penso em

Deus, embora mais como uma terceira pessoa do que quando estou em

minha cadeira reclinável. Não costumo falar com muita frequência com

Deus, exceto para agradecer quando algo bom acontece.

Em outras palavras, o que significa Deus estar presente conosco

pode variar muito. Primeiramente, isso varia da parte de Deus. Há uma

grande diferença entre Deus estar presente com as pessoas quando elas

estão enfermas; Deus está lá para confortá-las ou para operar a melhora

delas. Igualmente, há variações de nossa parte; necessitamos distinguir

nosso senso subjetivo da presença divina da realidade objetiva dessa

presença. Somos propensos a falar como se a “presença de Deus”

significasse apenas “o nosso sentido da presença de Deus”. Na verdade,

a presença divina pode ser real mesmo quando não a sentimos, e

podemos sentir que Deus está presente quando, na realidade, Deus não

apareceu ou já se retirou.

A oração de Salomão lida com parte do mistério e do paradoxo

envolvido em pensar sobre a presença de Deus conosco. Ela principia-se

com algo que é apresentado como realidade objetiva: uma nuvem que

encheu a casa. A nuvem é um símbolo comum e útil da presença de


Deus, pois, além de sinalizar que Deus está presente (no interior, acima

ou atrás da nuvem), ela também é um meio prático de proteger as

pessoas do efeito esmagador, cegante e eletrizante de estar na presença

de Deus (em Los Angeles, às vezes, há uma névoa que, similarmente,

nos protege e possibilita olharmos para o sol enquanto ele se põe). As

palavras para nuvem e nuvem de tempestade são as mesmas que podem

ser usadas para nuvens comuns, porém o mais frequente é serem uma

referência à classe de nuvem que tanto sinaliza quanto esconde a

presença de Deus. O idioma hebraico possui outras palavras mais

assiduamente usadas para uma nuvem comum.

Êxodo e Deuteronômio discorrem sobre uma coluna de nuvem que

acompanha o povo em sua jornada para fora do Egito, sobre Deus estar

em uma nuvem de tempestade (isto é, uma nuvem ainda mais espessa e

impressionante) no Sinai, falando ao povo lá do alto, e, por fim, sobre

uma nuvem que cobre a habitação que Deus instruiu os israelitas a

construírem para ele. Aquela mesma nuvem normal ou de tempestade

está presente no templo, para significar que a presença de Deus

continuará a acompanhar o povo. Não sei quão literalmente a história

deseja que consideremos essa imagem. Talvez devamos imaginar os

sacerdotes se retirando do templo por saberem que Deus estava indo

ocupá-lo, de tal modo que falar da nuvem seja uma metáfora. No

entanto, devemos compreender essa linguagem e que, certamente, Deus

tornou-se presente ali. Doravante, Israel poderia ter a certeza de ir ao

pátio do templo para ali oferecer os seus sacrifícios e saber que o faziam

diante do Deus que estava presente no santuário.

Falar do templo como um lugar no qual Deus vive poderia sugerir

que os israelitas tinham ideias muito simplórias sobre Deus. No

entanto, o próprio Salomão, mais tarde, explicita a sua consciência de

que a ideia de Deus habitando em uma casa terrena é tola. Muito menos

os israelitas inocentemente pensavam que Deus vivia no céu, como se

fosse possível encontrar Deus caso lançássemos um foguete alto o

suficiente — ou, caso assim pensassem, estariam ignorando o que as suas


próprias Escrituras lhes diziam. Mesmo o céu, em toda a sua totalidade,

não poderia abrigar Deus, Salomão comenta. Eis por que a ideia de

construir uma habitação para Deus é tola.

Então, por que Salomão está construindo uma? Ele fala sobre

construir uma casa em honra ao nome de Deus. Trata-se de uma forma

frequente de o Antigo Testamento tentar enquadrar o círculo pela

afirmação de que Deus estava realmente presente no meio de Israel,

embora reconhecendo ser esta uma noção ingênua. O nome de uma

pessoa representa a pessoa. Quando os que me conhecem dizem “John

Goldingay”, isso evoca uma impressão de quem eu sou; lembra-lhe de

minhas características e de minha natureza. É quase como se eu

estivesse presente ali. Quando os cristãos sussurram ou gritam “Jesus”,

isso lhes traz a realidade de sua presença. Isso é especialmente

verdadeiro em relação ao nome de Deus, Yahweh, e ao nome de Jesus,

porque o nome expressa algo da natureza da pessoa. Jesus significa

“salvador”. O nome de Yahweh sugere “o Deus que estará lá com você”

(veja Êxodo 3:11-15). O templo será o lugar no qual Israel proclama o

nome de Yahweh e clama por ele. Israel conhecerá que a proclamação

desse nome significa que, em todos os sentidos, o grande Deus dos céus

e da terra pode estar em um edifício construído por mãos humanas, que

o grande Deus está, de fato, ali, que recebe o louvor e as ofertas ali, bem

como ouve as suas orações e responde a elas ali.

Segue sendo uma resposta que suscita questões. Em seu ato de

louvor, Salomão observa que, após tirar os israelitas do Egito, Deus

jamais escolheu uma cidade na qual Israel poderia construir uma casa

para o nome de Deus. Ao ler isso, ficamos na expectativa de a sentença

prosseguir: “mas, agora, Deus escolheu uma cidade”, Jerusalém, mas ele

jamais faz tal declaração. Em vez disso, ele faz menção da escolha de

Davi por Deus. Talvez ele esteja sendo sábio, porque a escolha de

Jerusalém é creditada a Davi, não a Deus. Este escolheu Davi e,

evidentemente, estava de acordo com a escolha dessa cidade por Davi,

da mesma forma que concordou com a ideia de Davi quanto à


construção de um templo. A cidade, portanto, passou a ser escolha de

Deus, e trechos subsequentes da história de Israel citarão Jerusalém

como a cidade escolhida por Deus. Todavia, as próprias palavras de

Salomão preservam a ambiguidade de todo o projeto de edificação do

templo. Originariamente, Deus não escolheu nem a cidade nem o

templo.
1REIS 8:31-40
UMAS POUCAS COISAS PELAS QUAIS VOCÊ PODE ORAR
31
Quando uma pessoa errar com seu próximo e [o próximo] fizer um juramento contra ela,

32
para ela jurar, e o juramento vier diante do teu altar nesta casa, ouve dos céus e age. Julga

os teus servos, declarando a pessoa culpada como culpada, trazendo sua conduta sobre sua

cabeça, e declarando a pessoa inocente como inocente, dando-lhe de acordo com a sua

inocência.

33
Quando Israel, o teu povo, sofrer uma derrota diante de um inimigo porque erraram

contigo, mas se voltarem para ti e confessarem o teu nome e implorarem e pedirem por tua

34
graça nesta casa, ouve dos céus e perdoa a transgressão de Israel, teu povo, e o restaure à

terra que deste aos seus ancestrais.

35
Quando os céus se fecharem e não houver chuva porque erraram contigo, mas eles

suplicarem voltados para este lugar, confessarem o teu nome e abandonarem os seus delitos

36
porque os afligiste, ouve dos céus e perdoa a transgressão de teus servos, de Israel, teu

povo. Ensina-lhes o caminho bom no qual eles devem andar e envia chuva sobre a terra que

deste ao teu povo para possuir.

37
Quando a fome ocorrer na terra, quando a epidemia acontecer, ferrugem, mofo,

gafanhotos, lagartas; quando os inimigos os cercarem na terra, em seus assentamentos;

38
qualquer súplica, qualquer oração por graça que houver de qualquer pessoa de todo o teu

povo, Israel, que reconhecer, cada um, o problema de seu próprio espírito e estender as mãos

39
em direção à tua casa, ouve dos céus, o lugar onde vives. Perdoa e age; dê à pessoa de

acordo com todos os seus caminhos, pois conheces o seu espírito (porque somente tu

40
conheces o espírito de todos os seres humanos), para que eles possam te reverenciar todos

os dias em que viverem na face da terra que deste aos nossos ancestrais.

Acabei de conversar, por telefone, com a reitora da igreja na qual irei

pregar no próximo domingo. Será Pentecoste, e, assim, pensei que

estivessem me chamando por desejarem um pregador convidado para

aquele festival, mas, aparentemente, ela se esqueceu de me informar que

a igreja também estava celebrando o centésimo aniversário, desde que

deixaram de ser uma missão e passaram a ser, oficialmente, uma

paróquia (ocasião na qual eles prescindiram do apoio financeiro da

diocese, tornando-se capazes de subsistir com sua própria arrecadação).


Em certo sentido, ela deseja agora que a igreja deixe de ser apenas uma

igreja e atue como uma missão — isto é, que passe a ter um olhar

missionário para o mundo exterior. Esse alvo (ela me contou) será o

tema das orações da igreja neste domingo. Decerto, é um grande tema

para qualquer celebração de aniversário de uma igreja e dificilmente

uma oração a que Deus não responda.

Essa é a minha dica para voltar à oração de Salomão. Sobre o que

você pode orar e ter a certeza da resposta de Deus?

Pode-se orar para que Deus assegure que a justiça seja feita e que os

conflitos se resolvam de modo justo. A primeira oração relaciona-se a

uma situação na qual uma pessoa reivindica ter sido prejudicada por

outra (talvez a sua plantação de trigo tenha sido consumida pelo fogo, e

ela acredita que a outra é que provocou o incêndio), e não há

testemunhas que ajudem a decidir sobre quem está em seu direito. Uma

das pessoas pode lançar um juramento sobre a outra — isto é, obrigá-la

a jurar que não cometeu mal algum. Superficialmente, isso lembra o

juramento convencional requerido pelos tribunais do Ocidente, mas

Salomão assume o envolvimento de Deus com mais seriedade. O templo

passa a ser o local onde o juramento é feito, ou seja, diante de Deus,

para enfatizar ainda mais o seu sentido. Obviamente, isso representa

uma pressão psicológica sobre as pessoas envolvidas, mas Salomão

pressupõe algo ainda maior. Ele pede a Deus que está nos céus para

prestar atenção ao juramento que é expresso na divina habitação sobre

a terra, pressupondo que Deus, então, agirá. A resposta virá, não na

forma de uma voz dos céus ou de uma convicção da parte de um

sacerdote ou de uma visão perspicaz vinda do rei (como ocorreu no caso

das duas mulheres e um bebê), mas na maneira pela qual Deus traz

dificuldades à pessoa culpada e bênção à pessoa inocente.

Inúmeras orações dizem respeito a tribulações que atingem o povo

de Deus. Talvez seja uma experiência de derrota, a ausência de chuva,

uma situação de pobreza e fome ou uma epidemia. Como é típico no

Antigo Testamento, Salomão não presume que todo revés ou


dificuldade seja consequência de pecado ou transgressão, mas considera

que isso é verdadeiro em alguns casos. Portanto, quando as pessoas

passam por essas experiências, é apropriado questionar se a dificuldade

não é proveniente de uma disciplina divina e evitar concluir, de

imediato, que “coisas assim acontecem”. A oração de Salomão parte da

premissa de que Deus está envolvido no mundo e que não é um

senhorio ausente. Pode ser que a experiência os faça encarar atitudes e

ações contrárias a Deus (talvez estejam orando a outros deuses, fazendo

imagens de Deus, associando o nome de Deus a coisas que não têm

nenhuma relação com ele ou, ainda, ignorando o descanso sabático —

apenas para citar os quatro primeiros mandamentos). Uma vez que

essas pessoas se desviaram de Deus, a tarefa delas é, então, retornarem a

ele — o significado literal do verbo que é, normalmente, traduzido por

“arrepender”. Caso não estejam reconhecendo que Yahweh é Deus, a

missão delas é “confessar” o nome de Deus novamente. Somente então

tais pessoas podem “suplicar” a Deus. Trata-se de uma palavra comum

para oração, implicando que comparecemos diante do juiz e imploramos

por nosso caso. Claro que, como transgressores, não temos direito

algum; não podemos pedir por justiça. Tudo o que podemos fazer é

suplicar por misericórdia. Isso está implícito na expressão “pedir por

graça” que acompanha o verbo “suplicar”, porque falar em termos de

“graça” também pressupõe que não temos direito a nada, mas sabemos

que Deus é gracioso.

Então, as pessoas que oram diante do templo terreno podem ter a

esperança de que Deus ouvirá no templo celestial e aguardar pelo

possível “indulto” de Deus. Embora o “perdão” seja algo que pessoas

iguais concedem uma à outra, o “indulto” é concedido por um rei ou

presidente a um indivíduo. O uso dessa palavra não apenas constitui

um reconhecimento de que não temos direito a nada e que não estamos

apresentando nenhuma desculpa. Ela reconhece o poder diferencial

entre nós e Deus, além de admitir o dever, por parte de quem está no

poder, de não prejudicar os padrões de justiça ou dar a impressão de que


é possível escapar impune dos delitos ou mesmo insinuar que os erros

não trazem consequências. Apesar de reconhecer tudo isso, ainda há

esperança quanto ao perdão. As pessoas podem também esperar pela

restauração de sua terra. Em certo sentido, Deus “removeu” a

transgressão de Davi (embora o texto não diga que Deus o perdoou ou

o anistiou), mas não restaurou as coisas ao modo como elas eram antes.

Salomão convida as pessoas a acreditarem que Deus restaura e também

perdoa.

A oração com relação ao que podemos chamar de desastres naturais

faz uma mudança inesperada para falar sobre como esses eventos afetam

os indivíduos. Algumas vezes, trata-se apenas de uma família que sofre

com a falta de alimentos ou somente uma pessoa que experimenta uma

enfermidade. Como os salmos, a oração de Salomão mantém um

equilíbrio entre o coletivo e o individual. Às vezes, os salmos

constituem orações para serem feitas pela comunidade, quando ela

enfrenta problemas e vai ao templo apresentar as suas adversidades

diante de Deus. Outras vezes, os salmos são individuais, quando ele ou

ela sofre com tribulações; quando isso ocorre, a pessoa busca a Deus

(talvez com membros da família) para apresentar o seu problema a

Deus. Israel sabia que Deus envolvia-se tanto na vida comunitária

quanto na vida individual. Salomão cita como Deus sabe que o

problema está relacionado ao espírito (lit., ao “coração”) da pessoa, o

que possui inúmeras implicações. Deus pode revelar como os nossos

problemas afetam o nosso espírito e, igualmente, revelar se há algo

errado com a nossa atitude em relação a ele ou a qualquer outra pessoa

que esteja por trás das dificuldades que nos afligem. O fato de Deus

conhecer o nosso espírito ou coração constitui tanto notícias boas

quanto solenes.

Ambos, o lado bom e o solene, estão ligados ao fato de o objetivo e o

resultado do envolvimento divino na resposta às orações serem a

reverência a Deus durante todos os seus dias. Embora seja enganoso

pensar que isso leve a um temor negativo de Deus, tanto o Antigo


quanto o Novo Testamentos assumem que a reverência a Deus

reconhece a seriedade do fato de ele ser Deus e nós não sermos nada,

bem como reforçam que esse reconhecimento afeta as nossas atitudes e,

por consequência, a nossa vida. A reverência a Deus resulta em cumprir

o que ele diz. Igualmente, relaciona-se ao fato de Deus poder

esquadrinhar o nosso espírito. Deus não está limitado ao que

verbalizamos ou fazemos. Não obstante, a oração de Salomão implica

outro aspecto da dinâmica pela qual somos conduzidos à reverência e à

obediência. Deus sonda o que há em nosso coração, no sentido de que

ele conhece as pressões e as dores com as quais vivemos; e, mesmo

quando Deus vê o pecado em nosso íntimo, ele é que perdoa. Isso

poderia nos levar a considerar o perdão divino como garantido, mas a

oração de Salomão expressa a crença em uma dinâmica diferente; que a

apreciação pelo amor e a graça de Deus resulta nessa reverência.


1REIS 8:41-66
ALGUMAS MAIS
41
“Ainda, ao estrangeiro que não pertence a Israel, o teu povo, que vem de uma terra distante

42
por causa do teu nome ( porque eles ouvirão acerca do teu grande nome e da tua mão

43
poderosa e do teu braço estendido) e vier suplicar voltado para esta casa, ouve dos céus, o

lugar onde vives, e age de acordo com tudo o que o estrangeiro clamar a ti, para que todos os

povos da terra possam reconhecer o teu nome, para que te reverenciem como Israel, o teu

povo, e reconheçam que o teu nome é proclamado nesta casa que eu construí.

44
Quando o teu povo sair à batalha contra os seus inimigos, por onde quer que os envies, e

eles suplicarem a Deus na direção da cidade que escolheste e da casa que construí para o teu

45
nome, ouve dos céus a sua súplica e a sua oração por graça e exercita autoridade por eles.

46
Quando eles errarem contigo (porque não há ser humano que não erre) e estiveres irado

com eles e os entregar diante de um inimigo e seus captores os levarem cativos à terra do

47
inimigo, distante ou perto, e eles voltarem o seu espírito na terra na qual se tornaram

49
cativos e buscarem e orarem por tua graça na terra de seus captores [...] ouve dos céus, o

50
lugar onde vives, a sua súplica e a sua oração por graça, exercite autoridade por eles e

perdoa o teu povo que errou contigo, por todos os atos de rebelião que eles cometeram

contra ti, e lhes dê compaixão diante de seus captores para que possam ter compaixão por

51
eles, porque eles são teu povo, a tua posse, que tiraste do Egito, do interior da fornalha de

52
ferro. Que teus olhos estejam abertos à oração por graça de teus servos e à oração por graça

53
de Israel, o teu povo, e que os ouça toda vez que eles clamarem a ti, porque tu os separaste

para ti mesmo como uma posse, dentre todos os povos da terra, como declaraste por meio de

Moisés, teu servo, quanto tiraste nossos ancestrais do Egito, Senhor Yahweh.”

54
Quando Salomão terminou de fazer a Yahweh toda esta súplica e oração por graça, ele

55
levantou-se de diante do altar, de ajoelhar-se com suas mãos estendidas aos céus, e, de pé,

abençoou toda a congregação de Israel:

56
“Yahweh seja louvado, pois deu um lugar de descanso a Israel, o seu povo, de acordo com

tudo o que falou. Nem uma única palavra falhou de toda a sua boa declaração que fez por

57
meio de Moisés, seu servo. Que Yahweh, nosso Deus, esteja conosco como esteve com

58
nossos ancestrais e que ele não nos abandone, pela inclinação de nosso espírito a ele, de

modo que caminhemos em todos os seus caminhos e guardemos os seus mandamentos, leis e

59
regras que ele ordenou aos nossos ancestrais. Que essas minhas palavras de súplica diante

de Yahweh estejam próximas a Yahweh, o nosso Deus, dia e noite, para que ele exerça

autoridade por seu servo e por Israel, o seu povo, de acordo com a necessidade de cada dia,

60 61
para que todos os povos da terra reconheçam que Yahweh é Deus; não há outro. E que o

seu espírito seja sincero com Yahweh, o seu Deus, para andar em suas leis e guardar os seus

mandamentos, neste mesmo dia.”


62 63
O rei e todo o Israel com ele ficaram oferecendo sacrifícios diante de Yahweh. Salomão

ofereceu sacrifícios de comunhão, os quais ele ofereceu a Yahweh: vinte e dois mil bois e

cento e vinte mil ovelhas. Assim, o rei e todos os israelitas dedicaram a casa de Yahweh.

64
Naquele dia, o rei consagrou a parte central do pátio que ficava na frente da casa de

Yahweh, porque ali ele apresentou a oferta queimada, a oferta de cereal e as partes gordas dos

sacrifícios de comunhão, porque o altar de bronze diante de Yahweh era pequeno demais para

comportar a oferta queimada, a oferta de cereal e as partes gordas dos sacrifícios de

65
comunhão. Assim, naquela época, Salomão e todo o Israel com ele guardaram o festival

(uma grande congregação, desde Lebo-Hamate até o ribeiro do Egito) diante de Yahweh, o

66
nosso Deus, durante sete dias, então sete dias mais, por catorze dias. No oitavo dia, ele

deixou o povo ir, e eles louvaram o rei. Eles foram às suas tendas, celebrando e em grande

espírito, por causa de todo o bem que Yahweh tinha feito a Davi, o seu servo, e a Israel, o seu

povo.

Ainda consigo me imaginar sentado na escola dominical, como um

garotinho de nove ou dez anos, e também sou capaz de ouvir a voz do

austero superintendente da escola dominical nos exortando a abaixar a

cabeça, juntar as mãos e fechar os olhos para orar. Suspeito que ainda

consigo lembrar de tudo isso por estar, na época, em apuros com algum

aspecto dessas instruções ou, talvez, porque estivesse falando com outro

amigo enquanto essas instruções eram transmitidas, e, por conseguinte,

meti-me em encrenca. Isso, por si só, comprova que as instruções eram

mais do que necessárias.

O encerramento da oração de Salomão indica que a sua atitude era

muito distinta, com a sua própria racionalidade. Orar envolve deitar-se

totalmente no chão. Às vezes, o Antigo Testamento fala de lamber a

poeira, significando que aquele que ora deve estar com o rosto rente ao

chão, como se estivesse tentando comer o pó da terra. Essa é a atitude

adequada na presença de um rei, a quem a pessoa está pedindo favores;

essa é, portanto, uma atitude reveladora de alguém que é o próprio rei.

Todavia, isso não implica ficar prostrado o tempo todo, porque,

aparentemente, o texto também permite estender as mãos a Deus nos

céus, com as palmas abertas, pois, por estarem vazias, elas demonstram

a sua necessidade pela provisão divina. Isso, igualmente, seria uma


atitude a ser adotada por um suplicante diante de um rei. Após curvar-

se, denotando reverência, o suplicante também olharia para o rei e, em

oração, os seus olhos estariam abertos em apelo a Deus, como um servo

que olha para o seu senhor (Salmos 123).

A oração de Salomão envolve alguns pedidos ousados, de maneira

que a dramaticidade de sua atitude é apropriada. Suas primeiras

petições incluem duas relativas à experiência de ser derrotado por

inimigos, e, num instante, ele aborda um pedido relacionado ao próprio

povo de Israel enfrentando os inimigos. Ele, então, cita a experiência de

ser levado ao cativeiro pelos inimigos. Portanto, seria fácil ver a oração

como um todo com um foco exclusivista, ou seja, não direcionada a

ninguém fora de Israel. Todavia, o Antigo Testamento não pode ser

assim por mais de umas poucas páginas por vez. O texto reconhece que

Yahweh é o Deus de todo o mundo, não apenas de Israel. Desse modo, o

quarto pedido de Salomão, aquele que ocupa o centro de sua oração,

principia-se com a suposição de que estrangeiros virão à casa construída

por Salomão, por eles terem ouvido sobre Yahweh. Ele pede para tratar

esses estrangeiros da mesma forma que os israelitas, para que o mundo

como um todo possa vir a reverenciar Yahweh do mesmo modo que os

israelitas. A sua bênção de encerramento expressa o anseio mais amplo

de que todas as nações venham a reconhecer Yahweh.

A oração de Salomão termina com o que parece ser, no contexto,

outro ato implausível e inicialmente desagradável, de imaginação. Aqui,

estamos no ponto alto de toda a história do Antigo Testamento, e

Salomão começa falando sobre o povo agir errado em sua relação com

Deus e desagradá-lo o suficiente para Deus permitir que eles sejam

levados para o exílio. Como assim?

Esse é um daqueles pontos na narrativa em que é útil lembrar que a

história como um todo é contada não apenas como um relato parcial,

mas como uma mensagem para algumas pessoas; e as pessoas às quais a

história é contada são exatamente aquelas que passaram pela

experiência do exílio. Os livros de Reis contam a história até o exílio e,


portanto, eles a contam a pessoas em meio ao exílio. Claro que, pelas

circunstâncias, é um tempo no qual elas poderiam facilmente se sentir

deprimidas. A história convida essas pessoas a encararem alguns fatos,

mas também a ouvirem algumas boas-novas. A má notícia é que elas

estão naquela situação em consequência de confiarem em seu próprio

discernimento político e religioso em vez de confiarem em Yahweh e

responderem a ele. A boa notícia é que a história não precisa terminar

assim. Elas podem retornar a Deus e pedir por graça.

Repetindo, é importante que essa palavra de oração parta do

pressuposto de que não temos direitos ou reivindicações a Deus em

situações como as vividas pelos exilados. Na realidade (afirma a

oração), vamos encarar o fato de que não existe ser humano capaz de

evitar o erro. Às vezes, o Antigo Testamento retrata Deus como

surpreso pela transgressão de Israel; sim, Deus se entristece com isso e

não é o que ele esperava. Em contextos como aqueles, é um tanto

realista sobre nós, como povo de Deus (o texto não está falando sobre

as pessoas em geral, apesar de essa verdade também se aplicar nessa

conexão). Contudo, isso não é o fim do mundo. Deus é gracioso, de

modo que Israel pode apelar ao próprio caráter divino e pedir que ele

exerça autoridade em seu nome, que aja de modo decisivo por eles,

ainda que não tenham direito algum de pedir tal ação. Israel pode pedir

por perdão mesmo não tendo esse direito (mas, então, ninguém tem

esse direito). Ou, com uma ousadia ainda maior, Israel pode apelar aos

próprios interesses e compromissos de Deus. Deus está inserido em uma

associação com os israelitas e os constituiu em uma posse pessoal,

tirando-os do Egito. Como Moisés, Salomão argumenta que

dificilmente Deus desistirá agora de trabalhar neles.

Um elemento concreto nessa oração é para que seus captores

demonstrem compaixão por eles. Pode parecer mais um daqueles

pedidos particularmente implausíveis. No entanto, é divertido

descobrir Daniel 1:9 reportando que Deus fez exatamente isso por

Daniel, quando ele foi levado cativo para a Babilônia; bem como ler em
Neemias 1:11 que Neemias também orou por benevolência na Pérsia e

que isso, igualmente, se cumpriu para ele.


1REIS 9:1-28
DESEJOS E ESCOLHAS
1
Quando Salomão terminou de construir a casa de Yahweh e a casa do rei e cada fantasia que

2
ele desejou realizar, Yahweh apareceu a Salomão uma segunda vez, como lhe tinha aparecido

3
em Gibeom. Yahweh lhe disse: “Ouvi a sua súplica e a sua oração por graça que você fez

diante de mim. Consagrei esta casa que você construiu ao colocar o meu nome ali para

4
sempre. Meus olhos e a minha mente estarão sempre ali. Quanto a você: se você andar

diante de mim como Davi, o seu pai, andou, com toda a sua mente e com toda a sua retidão,

agindo de acordo com tudo o que eu lhe ordenei, você guardará as minhas leis e as minhas

5
regras, e eu estabelecerei o seu trono real sobre Israel para sempre, como falei a Davi, o seu

6
pai, dizendo: ‘Nunca cessará de haver um homem para você no trono de Israel.’ Se você e

todos os seus descendentes deixarem de me seguir e não guardarem os meus mandamentos,

as minhas leis, que coloquei diante de vocês, e irem e servirem outros deuses e se curvarem

7
perante eles, cortarei Israel da face da terra que lhes dei, e a casa que eu consagrei ao meu

nome lançarei para longe de minha presença. Israel se tornará objeto de escárnio e de insulto

8
entre todos os povos. Essa casa será uma ruína. Qualquer um que passar por ela ficará

9
chocado, assobiará e dirá: ‘Por que Yahweh agiu assim com esta terra e esta casa?’ e a

resposta será: ‘Porque eles abandonaram Yahweh, o seu Deus, que tirou os seus ancestrais do

Egito, e se apegaram a outros deuses, curvaram-se perante eles e os serviram. Eis por que

Yahweh trouxe sobre eles todo esse problema.’”

10
Ao fim dos vinte anos, durante os quais Salomão construiu as duas casas, a casa de Yahweh

11
e a casa do rei, uma vez que Hirão, rei de Tiro, tinha auxiliado Salomão com madeira de

cedro e de cipreste e com ouro, tudo o que ele desejou, o rei Salomão, então, deu a Hirão

12
vinte cidades na Galileia. Hirão veio de Tiro para ver as cidades que Salomão lhe dera,

13
mas elas não foram substanciais aos seus olhos, e ele disse: “O que são essas cidades que tu

14
me deste?” Ele as chamou de Cabul, como elas têm sido chamadas até este dia. (Hirão

tinha enviado ao rei cento e vinte talentos de ouro.)

15
Este é o relato da força conscrita que o rei Salomão levantou para construir a casa de

Yahweh e a sua própria casa, o Milo, o muro de Jerusalém, e Hazor, Megido e Gezer,

16
quando o faraó, rei do Egito, tinha subido e capturado Gezer, incendiando-a e matando os

cananeus que viviam na cidade, dando-a como um dote à sua filha, esposa de Salomão.

17 18
Assim, Salomão construiu Gezer, Bete-Horom Baixa, Baalate e Tamar, no deserto, no

19
interior da terra, bem como todas as cidades-armazéns que Salomão possuía, as cidades

para as carruagens e as cidades de cavalaria e as fantasias que Salomão desejava construir em

20
Jerusalém, no Líbano e em todas as terras que ele governava. Todos os que sobreviveram

dos amorreus, dos hititas, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus, aqueles que não tinham

21
nascido dos israelitas ( seus descendentes que sobreviveram na terra, a quem os israelitas

não foram capazes de “devotar”), Salomão levantou como força servil conscrita, como é até
22
este dia. Dos israelitas, Salomão não fez ninguém de servo, porque eles eram soldados, seus

servidores, seus comandantes, seus oficiais, seus comandantes de carruagens e sua cavalaria.

[Os versículos 23-28 acrescentam alguns detalhes, incluindo a construção da frota de Salomão,

em Elate.]

Em meu comentário sobre 1Reis 7, mencionei a reforma que Joe está

realizando em meu banheiro. Ontem ele terminou o serviço. Os

acessórios parecem ter sido projetados no século XXI em vez de em

séculos anteriores; os armários enferrujados foram removidos, as portas

fecham adequadamente, o ralo da pia funciona à perfeição; o ventilador

trabalha em silêncio, não de modo ensurdecedor, e, por fim, a minha

banheira está imaculadamente branca em vez de manchada, como

outrora. Agora, só preciso comprar um trilho novo para a cortina do

chuveiro e um tapete de banho. Sou capaz de ir à porta do banheiro,

olhar para dentro e me sentir um pouco como Deus, em Gênesis 1, e

dizer: “Ficou bom.” Joe fez o mesmo, com mais propriedade ainda que

eu, de se sentir como o Criador. Todavia, como a pessoa que usará o

banheiro diariamente, esse encantamento logo me deixará. É como

comprar uma roupa nova; depois de algum tempo, você necessita de

outra dose de novidade. Nossos desejos jamais são totalmente

satisfeitos de maneira a dispensar mais desejos.

Salomão, agora, realizou todas as fantasias nas quais colocou o seu

desejo. A palavra “fantasia” aparece na Escritura, pela primeira vez,

para descrever a fantasia de Siquém por Diná (Gênesis 34); ela pode ser

usada para coisas que Deus imagina também, de modo que não é uma

palavra que não pode ser redimida, mas, ainda assim, é um termo

preocupante. A narrativa a usa, novamente, em conexão com alguns

outros projetos de construção fora de Jerusalém que envolveram

transformar os cananeus em força de trabalho conscrito. Já observamos

em nosso comentário sobre 1Reis 4 que “trabalho conscrito” não

significa “trabalho forçado”, no sentido de homens acorrentados sob a


supervisão de capatazes com chicote nas mãos, mas, de qualquer modo,

igualmente é uma expressão preocupante. Ela é acompanhada pela

palavra “desejo”, outro termo que pode ser usado para Deus, mas que

preocupa (foi a palavra que Joabe, general de Davi, utilizou em

2Samuel 24 com relação à intenção de Davi de realizar um censo). Mais

tarde, no Antigo Testamento, o livro de Eclesiastes usará Salomão como

seu garoto-propaganda na discussão sobre o vazio das coisas que as

pessoas presumem que farão a vida valer a pena. Ele é o homem que

poderia realizar todas as suas fantasias e todos os seus desejos; mas o

que isso fez com o seu relacionamento com Deus e com as demais

pessoas, não levando-o a lugar nenhum? Não é por mero acaso que o

livro de Eclesiastes imagina Salomão refletindo sobre as suas

realizações, como arquiteto e construtor, e concluindo: “Tudo é inútil, é

correr atrás do vento!”

Portanto, aquele versículo de abertura começa a levantar tais

questões em nossa mente, mas ele não apresenta respostas. Em vez

disso, o texto segue com o relato de uma espécie de sermão que Deus

prega a Salomão, desafiando-o quanto ao seu compromisso com Deus.

Ele necessita ter seu pai, Davi, como modelo a seguir. Essa pode parecer

uma ideia surpreendente. Decerto, Salomão sabe da confusão na qual

Davi se meteu na segunda metade de seu reinado. Todavia, houve algo

crucial que Davi manteve inalterado; ele sempre se manteve fiel a

Yahweh, não a outros deuses. Essa será uma conexão na qual a história

explicita que Salomão se desviou. Esse será o seu equivalente ao caso de

Davi-Bate-Seba-Urias.

Refiro-me à mensagem de Deus como uma espécie de sermão na

presunção de que seja uma contribuição por parte dos compiladores do

livro de Reis; isso nos conta o tipo de desafio que eles acreditam que

esteja diante de alguém como Salomão, na condição em que ele está, e a

espécie de desafio enfrentado pelos líderes e pelas pessoas em suas

respectivas vidas. Não imagino que corresponda a qualquer coisa que

Deus tenha realmente dito a Salomão, mas presumo que Deus ficou
satisfeito com o fato de os compiladores expressarem o desafio dessa

maneira. É algo que Deus tipicamente poderia ter dito, a espécie de

desafio que Salomão enfrentou, bem como foi enfrentado pelas pessoas

de seus dias. (Caso você não creia que Deus poderia ter agido dessa

maneira, na inspiração da Escritura, então lembre-se de que, a exemplo

de outros elementos neste comentário, trata-se apenas de uma

observação acadêmica e, claro, você pode discordar dela.)

Por sua vez, o sermão dá lugar a alguns comentários pitorescos

sobre a relação entre Salomão e Hirão, o rei de Tiro, o outro grande

jogador no Levante, nesse período, e com respeito às relações de

Salomão com os povos nativos de Canaã. Assim, o que Salomão está

fazendo ao abrir mão de cidades na terra prometida, pelo amor de

Deus? Também pode ser surpreendente descobrir que há inúmeros

desses povos nativos com os quais lidar, considerando que Josué deveria

ter devotado todos eles, mas a leitura nas entrelinhas do livro de Josué

deixa claro que ele não fez isso, e o mesmo ocorre no presente capítulo.

No curto prazo, os israelitas tiveram que coexistir com os cananeus, que

eram maiores que eles próprios. Com o passar do tempo, a relação de

poder mudou e os israelitas, agora, são grandes o suficiente para fazer os

cananeus trabalharem para eles. Isso está certo? Ainda que nos

sintamos felizes por eles não terem aniquilado os cananeus, não há algo

fora de lugar nesse retrato?

Primeiro Reis deixa essa questão para nós elaborarmos. Algumas

vezes, a história do Antigo Testamento fornece uma avaliação explícita

das ações perpetradas pelas pessoas e a vida que elas vivem; por

exemplo, após Davi obter a morte de Urias, o texto comenta que a ação

de Davi desagradou a Deus (veja 2Samuel 12:1). Em outras, o relato

deixa a reflexão para o leitor; o presente capítulo é um exemplo. O

motivo prático é a forma pela qual um livro como 1Reis foi composto, à

medida que os seus autores ou compiladores reuniam o material

coletado de inúmeras fontes, tais como os registros estatais, as histórias

contadas pela população e o material interpretativo que criaram.


Surpreendentemente, pode-se pensar que eles tiveram pouco esforço

para transformar o material num todo organizado e, aparentemente,

Deus ficou feliz com isso porque significa que nós, leitores, é que temos

de trabalhar na compreensão do significado que Deus quer transmitir

com a história que os livros nos apresentam. É possível que Deus esteja

considerando o fato de aprendermos mais eficientemente dessa forma

do que se, simplesmente, recebêssemos todas as respostas prontas.

Talvez não consigamos ser necessariamente claros quanto aos

julgamentos que deveriam ser proferidos sobre Salomão, mas isso tem

pouca importância; essas questões são entre Deus e Salomão. Somos as

pessoas cujo julgamento devemos considerar à luz de sua história.


1REIS 10:1-29
QUE ENTRE A RAINHA DE SABÁ
1
Ora, a rainha de Sabá ouviu relatos sobre Salomão em conexão com o nome de Yahweh, e

2
ela veio testá-lo com questões difíceis. Ela foi a Jerusalém com bens muito substanciosos,

camelos carregando especiarias, muito ouro e pedras preciosas. Quando chegou a Salomão,

3
ela lhe relatou tudo o que estava em sua mente, e Salomão lhe falou sobre todos os assuntos

levantados por ela. Não houve nenhum assunto oculto do rei sobre o qual ele não lhe falou.

4
Quando a rainha de Sabá viu toda a sabedoria de Salomão, a casa que ele tinha construído,

5
a comida sobre a sua mesa, as acomodações de seus servidores, a apresentação de seus

ministros e suas vestes, suas bebidas e as ofertas queimadas que ele costumava fazer na casa

6
de Yahweh, não havia mais fôlego nela. Ela disse ao rei: “O relato que ouvi em meu país

7
sobre as tuas realizações e a tua sabedoria era verdadeiro, mas eu não acreditei nos relatos

até vir e ver com meus olhos. Agora, não me tinham contado a metade disso. Tens mais

8
sabedoria e bens que o relatório que ouvi. Que boa sorte do teu povo! Que boa sorte de teus

9
servidores, que permanecem continuamente diante de ti, ouvindo a tua sabedoria! Que

Yahweh, o teu Deus, seja adorado, aquele que se agradou de ti, colocando-te no trono de

Israel, pelo amor de Yahweh por Israel em perpetuidade. Ele te fez rei para exercer

autoridade de acordo com o que é certo.”

[Os versículos 10-22 relatam os presentes que a rainha trouxe a Salomão, bem como os que ele

deu a ela. O texto segue discriminando a renda de Salomão em termos de ouro e descrevendo

como ele fez escudos de ouro, um trono revestido de ouro puro e taças.]

23 24
O rei Salomão excedia todos os reis da terra em riqueza e sabedoria. Toda a terra

buscava audiência com Salomão para ouvir a sabedoria que Deus havia colocado em sua

25
mente, e cada qual trazia o seu presente: objetos de ouro e de prata, mantos, armas e

26
especiarias, cavalos e mulas, a quantia especificada devida a cada ano. Salomão reuniu

carruagens e cavalaria. Ele tinha mil e quatrocentas carruagens e doze mil cavalos. Ele os

27
colocava em cidades para as carruagens e com o rei em Jerusalém. O rei tornou a prata [tão

comum] quanto pedras em Jerusalém, e os cedros [tão comuns] quanto os sicômoros nas

28
encostas. Os cavalos de Salomão eram importados do Egito e de Keve; os mercadores do

29
rei os traziam de Keve por um [certo] preço. Quando uma carruagem vinha, ela era

importada do Egito por seiscentos [siclos] de prata, um cavalo por cento e cinquenta, e,

portanto, eles seriam exportados por meio dos [mercadores] a todos os reis hititas e arameus.

O noticiário de ontem falou sobre uma das regras inquebráveis do

capitalismo: sejam quais forem as regulações colocadas em vigência para


controlar o capitalismo, as pessoas descobrirão um meio de burlá-las.

Interessantemente, um de seus exemplos era a proibição, no Antigo

Testamento, do empréstimo a juros, que a igreja por muito tempo

incentivou. Na Idade Média, os comerciantes descobriram uma forma

de contornar essa proibição, negociando para que o empréstimo fosse

restituído em uma moeda diferente daquela com a qual o empréstimo

fora feito. Na década que levou à grande recessão em meio à qual estou

escrevendo estas linhas, os financistas descobriram a sua própria forma

de contornar as regulações vigentes (que é um dos motivos pelos quais

entramos nessa ciranda confusa), e podemos estar certos de que,

quando os governantes introduzirem novos controles no rescaldo de

uma recessão, eles os burlarão novamente. Em certo sentido, não

existem regras de economia; em outro, essa é uma delas.

Pelo fato de Salomão ser um governante como outros, ele trabalha

pelas mesmas regras que os demais. Evidentemente, Sabá junta-se a

Tiro e a Israel como um dos grandes poderes comerciais daquela época.

Tiro localiza-se na costa do mar Mediterrâneo, tendo Beirute ao norte,

possuindo um grande porto. Assim, coloca-se em uma posição de

liderança no controle do comércio marítimo para o Ocidente e do

negócio madeireiro libanês. Sabá era tradicionalmente identificado com

a Etiópia, o que, pelo menos, fornece a perspectiva geográfica correta;

trata-se de outro poder marítimo ao sul, próximo ao mar Vermelho, de

onde consegue comercializar ouro, prata e especiarias entre a Ásia e a

África, nas direções leste e sul, respectivamente, bem como com os

países ao norte. Desse modo, os monarcas de Tiro e Sabá são cuidadosos

em manter boas relações mútuas, seladas por “presentes”

impressionantes. À semelhança de presentes pessoais dados no Natal e

em casamentos, esses presentes são simbólicos e também substanciais,

são consequências das relações e as expressam (ai de você se errar na

troca de presentes). A passagem não sugere uma relação amorosa entre

o rei de Israel e a rainha de Sabá; de ambos os lados, as conversações


mostram cifrões, não flechas de cupidos flutuando sobre a cabeça dos

monarcas.

Em certo sentido, constitui um mistério como Salomão pertence a

esse grupo. Jerusalém está situada no topo de uma região montanhosa,

não ao lado de uma rota comercial importante (considere a localização

do aeroporto de Israel), e também não possui recursos naturais. Na

realidade, não seria surpresa caso todo o retrato de Salomão e de seu

império incluísse certo exagero. Quando Barack Obama decidiu ser

candidato à presidência dos Estados Unidos, todos consideraram não

haver qualquer possibilidade de a sua candidatura ser bem-sucedida,

mas ele foi eleito por ter sabedoria, discernimento e perspicácia. Pode-

se suspeitar que qualquer império construído por Salomão resultasse do

exercício de um atributo enfatizado por sua história — sabedoria,

discernimento ou perspicácia. Quer saber como construir um império?

A resposta para questões econômicas complexas? Como desenvolver

relações comerciais mutuamente vantajosas? Como organizar a sua casa

de maneira a ter um sofisticado sistema de arrecadação de impostos e

bases militares organizadas? Salomão é o seu homem.

Ao ser eleito presidente, tornou-se claro a Barack Obama que,

apesar de todo o seu compromisso com uma nova política, ele precisava

ser capaz de reconhecer as regras da antiga política. Não ficamos com a

impressão de que Salomão sentia alguma tensão pela política que

empregava em sua casa, Israel, e a política vigente na casa de outras

nações. Ao fim de seus elogios, a rainha de Sabá comenta que Deus

havia colocado Salomão no trono para exercer autoridade de acordo

com o que é certo. Segundo Samuel 8 comenta que Davi, seu pai,

exerceu autoridade dessa forma, mas 1Reis jamais tece esse comentário

sobre Salomão. Comentamos anteriormente que Eclesiastes adota

Salomão como garoto-propaganda ao retratar o homem que possui tudo

e que, por isso mesmo, está em posição de testificar sobre o absoluto

vazio e a falta de sentido de todas as coisas. Salmos 72 adota Salomão

como modelo em sua oração para que Deus torne o rei comprometido
em exercer autoridade dessa maneira (e promete que ele, então,

receberá o reconhecimento de outros monarcas, como ocorre com

Salomão nesse texto), mas, então, apresenta uma grande ironia. Essa

não é uma oração que Deus conferiu a Salomão, como foi o caso com a

maioria dos reis.

Uma vez mais, o julgamento da história não é declarado ou está nas

entrelinhas; com o comentário sobre a maneira de exercer autoridade,

recordamos a proibição explícita da Torá quanto à importação de

cavalos do Egito (Keve, na Turquia, ao norte, seria, na realidade, o

principal local do qual os cavalos eram importados; as carruagens é que

seriam provenientes do Egito). E, novamente, há uma grande diferença

entre inúmeros elementos na história. O capítulo 9 apresentou uma

mensagem de Deus a Salomão, uma anedota, bem como uma lista de

conquistas e de povos, e características similares aparecem aqui. Ao

observar as diferenças entre esses relatos, não quero apenas enfatizar

que há uma diferença no ensino das diferentes partes, mas que existe

uma distinção na espécie de texto que eles são. É um pouco como a

diferença entre novos itens, entrevistas com indivíduos e trechos de

opinião na televisão. Todos eles podem ser verdadeiros, mas ainda são

diferentes na espécie de declaração que fazem e no processo que os gera.

Antes de se tornarem parte do mesmo programa de televisão, eles

tiveram origens e posições distintas.

Em nosso comentário sobre a oração de Salomão, observamos que,

em geral, é útil ter em mente que a primeira audiência dos livros de

Reis, na forma como os temos hoje, viviam no período do exílio, quando

os livros foram reunidos. Eles não foram escritos do nada, naquela

época. Na verdade, caso tivessem sido, eles deveriam fluir melhor do

que fluem. Eles foram reunidos um pouco como um noticiário da TV,

uma revista ou um documentário, com a mescla de inúmeros tipos de

material de arquivo e um comentário contemporâneo. Quando as

pessoas no mundo antigo escreviam história, elas ficavam satisfeitas por

poderem combinar materiais de origens variadas dessa forma, e não


estavam dispostas a sacrificar material útil de arquivo ou narrativas

contadas durante longa data na comunidade com expressões de sua

própria perspectiva, às vezes colocadas na boca dos personagens

principais. Quando Deus inspirou os escritores da história israelita, ele

os inspirou a escrever um grande exemplo do tipo de história que a

cultura deles abrigava. Então, ela seria comunicada como a palavra de

Deus às pessoas para as quais foi escrita.


1REIS 11:1-43
ESPOSAS E ADVERSÁRIOS
1
Ora, o rei Salomão amou muitas mulheres estrangeiras (e a filha do faraó), moabitas,

2
amonitas, edomitas, fenícias e hititas, das nações sobre as quais Yahweh tinha dito aos

israelitas: “Vocês não terão sexo com elas, e elas não terão sexo com vocês, pois voltarão o

3
seu espírito para seguir os deuses delas.” A elas, Salomão apegou-se em amor. Ele teve

setecentas consortes e trezentas esposas secundárias, e as suas esposas desviaram o seu

4
espírito. Na velhice de Salomão, suas esposas desviaram o seu espírito para outros deuses. O

seu espírito não era um com Yahweh, o seu Deus, como o espírito de Davi, o seu pai.

5
Salomão seguiu Astarote, a deusa dos fenícios, e Milcom, a abominação dos amonitas.

6
Salomão fez o que era desagradável aos olhos de Yahweh e não seguiu Yahweh

7
completamente, como Davi, o seu pai. Naquele tempo, Salomão construiu um lugar alto

para Camos, a abominação de Moabe, sobre um monte, de frente para Jerusalém, e para

8
Moloque, a abominação dos amonitas. Ele fez assim para todas as suas esposas estrangeiras

9
que queimavam incenso e sacrificavam aos seus deuses. Yahweh irou-se com Salomão

porque o seu espírito se desviara de Yahweh, o Deus de Israel, que lhe aparecera duas vezes

10
e lhe havia ordenado sobre esse assunto, para não seguir outros deuses. Ele não observou o

11
que Yahweh ordenara. Yahweh disse a Salomão: “Por esta ser a sua atitude e não haver

observado a minha aliança e as minhas leis, que ordenei a você, arrancarei o reinado

12
imediatamente de você e o darei ao seu servo. No entanto, em seus dias não farei isso, por

13
amor a Davi, o meu servo; da mão de seu filho eu o arrancarei. Todavia, não arrancarei

todo o reinado; darei um clã a seu filho, por amor a Davi, o meu servo, e pelo bem de

Jerusalém, que eu escolhi.”

14
Yahweh levantou um adversário para Salomão, Hadade, o edomita; ele era da família real

23
edomita. [...] E Deus levantou para ele, como um adversário, Rezom, filho de Eliada, que

26
tinha fugido de seu senhor, Hadadezer, rei de Zobá. [...] Ora, Jeroboão, filho de Nebate, um

efraimita de Zeredá, cujo nome da mãe era Zerua (ela era uma viúva), um servo de Salomão,

27
levantou a mão contra o rei. Essa foi a maneira pela qual ele levantou a mão contra o rei.

Quando Salomão construiu o Milo, ele fechou a abertura na cidade de Davi, o seu pai.

28
Esse Jeroboão era um homem capaz, e Salomão viu o trabalho que o jovem rapaz estava

29
fazendo, e o indicou sobre todo o trabalho conscrito na casa de José. Naquele tempo, ele

saiu de Jerusalém, e Aías, o profeta de Siló, encontrou-o na estrada. [Jeroboão] estava

30
vestindo um casaco novo. Os dois estavam sozinhos em campo aberto. Aías agarrou o

31
casaco novo que [Jeroboão] vestia e o rasgou em doze pedaços. Ele disse a Jeroboão:

“Pegue para você doze pedaços, porque Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: ‘Bem, arrancarei

36
o reinado da mão de Salomão e darei dez clãs a você. [...] Ao seu filho, darei um clã, para

que Davi, o meu servo, tenha controle permanentemente diante de mim, em Jerusalém [...].’”

40
Salomão procurou matar Jeroboão, mas Jeroboão partiu e fugiu para o Egito, para Sisaque,
43b
rei do Egito, e ficou no Egito até a morte de Salomão. [...] Então, Roboão, o seu filho,

reinou como rei em lugar dele.

Quando a minha irmã foi abandonada pelo marido, logo após o

nascimento do filho deles, ela voltou a viver com nossos pais por um

tempo, enquanto buscava colocar a sua vida nos eixos novamente.

Ocorre que, eventualmente, ela conheceu um bom rapaz (também

chamado John, como seu filho, só para complicar um pouco as reuniões

familiares). O único senão é que ele não frequentava nenhuma igreja.

Ora, fomos criados na igreja e nos comprometido a viver segundo a

exortação de Paulo em 2Coríntios 6 a não nos colocarmos em jugo

desigual com os descrentes. É como colocar uma mula e um touro para

puxar uma carroça; a parelha não funcionará direito. Desse modo,

algumas sobrancelhas se levantaram por esse relacionamento, incluindo

a minha, embora tivesse em mente o fato de que o primeiro marido de

minha irmã tinha crescido na mesma igreja que nós e, portanto, esse

jugo, supostamente igual, também não funcionou muito bem. Seja como

for, os dois se casaram (se não me engano, fui até padrinho). John veio

conhecer Cristo, e eles viveram felizes por trinta ou quarenta anos.

Minha irmã e eu estamos conspirando para que John cuide de nós em

nossa velhice (ele é mais jovem que nós); assim, espero que ele não leia

este livro antes disso.

O raciocínio nessa regra aprendida em nossa adolescência sobrepõe-

se ao raciocínio em 1Reis, embora aqui somem-se algumas outras

considerações, tornando a desobediência a essa regra algo problemático.

À primeira vista, uma regra proibindo desposar alguém que não seja

israelita soa como um preconceito étnico, e, sem dúvida, no antigo

Oriente Médio, a norma era casar-se dentro de seu grupo étnico, como

é o caso na sociedade ocidental. Ao mesmo tempo, há muitos exemplos

de pessoas que não seguiram essa regra, tais como Rute, a moabita, e

Urias, o hitita, a exemplo do que também ocorre no Ocidente, e


ninguém em Israel parece se importar com isso. A consideração crucial,

em Israel, não é de ordem étnica, mas religiosa. O texto explicita que

Rute comprometeu-se com Yahweh e deixa implícito que Urias tenha

feito o mesmo (seu nome significa “Yahweh é minha luz”). Durante um

período posterior, no qual Esdras instrui os homens israelitas a

romperem o casamento com mulheres estrangeiras, os motivos foram

religiosos, não étnicos, e são considerações igualmente religiosas que

tornam questionáveis os casamentos de Salomão.

Há um segundo fator que, normalmente, influencia as considerações

sobre com quem nos casamos. Na cultura do Ocidente, assumimos,

simplesmente, que as pessoas se casam movidas pelo amor que as une e

nada mais. Logicamente, então, quando o amor acaba, os casais se

divorciam. Embora as Escrituras, ocasionalmente, permitam uma

ligação entre amor e matrimônio, notadamente em Cântico dos

Cânticos, o texto bíblico reconhece que o casamento é sobre muitas

outras coisas, além do amor. Uma delas é que o matrimônio estabelece

um vínculo entre famílias ou grupos maiores. Salomão se casa com

todas essas mulheres para consolidar relacionamentos com os povos dos

quais elas são provenientes. E é possível pensar que esse seja um motivo

esplêndido para se casar. Imaginar que meu casamento pode significar o

fim das guerras entre, digamos, o meu povo e os moabitas, ou os

amonitas, ou os edomitas... Todavia, não há motivos pelos quais tais

uniões não poderiam desenvolver um relacionamento romântico; isso

ocorre em casamentos arranjados.

Não que haja muitas chances de isso acontecer no caso de Salomão,

diante do grande número de esposas envolvidas. Há uma grande ironia

na ligação do nome de Salomão ao Cântico dos Cânticos, uma vez que

ele foi sábio o suficiente para incentivar e dar o seu nome a eles, como

expressões de sabedoria, mas, dificilmente, ele teve qualquer pista

pessoal sobre o tipo de relacionamento do qual o livro discorre. Na

verdade, Salomão “as amava” e até mesmo “apegou-se em amor por

elas”, mas esse sentimento não tem nada a ver com o que, em nossa
cultura, expressaríamos por amor. Ele firmou um compromisso com elas

e o cumpriu. Os relacionamentos eram polígamos, mas não envolviam

adultério. As relações sexuais com inúmeras esposas e esposas

secundárias inseriam-se em uma estrutura social e moral.

Reconhecidamente, é difícil imaginá-lo tendo sexo com todas as mil

esposas, pelo menos não com frequência. Isso também demonstra que o

casamento não se restringe somente ao sexo, como, em geral, os casais

comentam (talvez com certo pesar).

Infelizmente, parte do compromisso incluía possibilitar que elas

adorassem os seus próprios deuses, o que significava erigir lugares para

tal adoração no campo de visão do santuário central para o culto a

Yahweh, a casa que Salomão construíra para Yahweh. Isso, por si só, já

constituía uma abominação. Talvez fosse parte do acordo que ele, às

vezes, participasse da adoração a esses deuses com as esposas, como

parte da estratégia de consolidação das relações com os povos por elas

representados. Contudo, não era um comportamento que Yahweh

poderia ignorar. Assim, enquanto 1Reis, em sua maior parte, deixa o

julgamento com respeito às práticas políticas e sociais de Salomão a

cargo de seus leitores, ele não deixa margem de avaliação quanto às suas

políticas religiosas. Essas práticas são fundamentais ao relato sobre os

motivos que levaram ao exílio, e Salomão é considerado responsável

pelos primeiros e enormes saltos rumo ao desastre (ainda que a sua

oração, no capítulo 8, abra a possibilidade de voltar para Deus quando

isso ocorre). Astarote e Moloque parecem retrabalhos deliberados dos

nomes da deusa Astarte e do deus Milcom ou Malique (a palavra para

“rei”), combinando as suas consoantes com as vogais da palavra

hebraica para “vergonha”. Milcom, Camos e Moloque são mais

explicitamente identificados como abominações. Eles eram, de fato,

abomináveis quando cultuados por estrangeiros (as pessoas

sacrificavam crianças a Milcom), mas ainda mais abomináveis quando

israelitas davam as costas a Yahweh para adorá-los.


Como Davi, Salomão é, possivelmente, um personagem muito pior

que Saul, mas, repetindo, Deus está preso a compromissos dos quais é

impossível retroceder e, por isso, deve cumpri-los. Embora as

dificuldades tenham começado para Salomão ainda enquanto ele vivia,

e sua política matrimonial se mostrado pouco eficiente, o pecado do pai

será visitado de uma forma mais abrangente sobre o filho (embora,

como é de praxe, isso ocorra apenas porque o filho também seja

merecedor).
1REIS 12:1-32
A OPORTUNIDADE DE SER UM LÍDER SERVIL
1 2
Roboão foi a Siquém, porque todo o Israel foi a Siquém para coroá-lo rei. Quando

Jeroboão, filho de Nebate, ouviu isso, enquanto ainda estava no Egito, para onde tinha

3
fugido do rei Salomão (Jeroboão tinha se estabelecido no Egito), eles mandaram convocá-

4
lo. Ele foi até Roboão com toda a assembleia de Israel e declarou a Roboão: “ Teu pai fez

nosso jugo pesado. Alivia, agora, a dura servidão de teu pai e o jugo pesado que ele colocou

5
sobre nós, e te serviremos.” Ele lhes disse: “Vão embora por três dias; então, voltem a mim.”

6
Assim, o povo foi embora. O rei Roboão tomou conselho com os anciãos que estiveram

presentes na assistência a Salomão, seu pai, enquanto ele estava vivo: “Como vocês me

7
aconselham a dar uma resposta a essa companhia?” Eles lhe declararam: “Se hoje fores um

servo a este povo, responder e lhes falar coisas boas, eles serão teus servos todos os teus

10
dias.” [...] Mas os jovens, que tinham crescido com ele, lhe declararam [...]: “Fale a eles

dessa maneira: ‘Meu dedo mindinho é mais grosso que a cintura de meu pai; eu mesmo

11
acrescentarei ao seu jugo. Então, agora, se meu pai os açoitou com chicotes, eu mesmo os

15
açoitarei com escorpiões [...].’” O rei não ouviu a companhia [de anciãos] porque era uma

reviravolta da parte de Yahweh para cumprir a palavra que Yahweh tinha falado por meio de

16
Aías, o silonita, a Jeroboão, filho de Nebate. Quando todo o Israel viu que o rei não os

tinha escutado, o povo respondeu ao rei: “Que participação nós temos com Davi? Não temos

parte nenhuma com o filho de Jessé. Às suas tendas, Israel. Agora, olhe para a sua própria

17
casa, Davi.” E Israel foi para as suas tendas, enquanto os israelitas que viviam nas cidades

19
em Judá — Roboão reinou sobre eles. [...] Assim, Israel rebelou-se contra a casa de Davi,

20
como tem feito até este dia. Quando todo o Israel ouviu que Jeroboão tinha retornado, eles

mandaram convocá-lo para a assembleia e o fizeram rei sobre todo o Israel. Ninguém seguiu a

casa de Davi, exceto o clã de Judá.

[Os versículos 21-24 relatam como Roboão fez planos para atacar os clãs rebeldes, mas Deus

envia um profeta para avisá-los de não fazer isso.]

25
Jeroboão construiu Siquém nas montanhas de Efraim e viveu ali; ele saiu de lá e construiu

26 27
Penuel. Jeroboão disse a si mesmo: “O reinado, agora, retornará para a casa de Davi; se

este povo subir para oferecer sacrifícios na casa de Yahweh, em Jerusalém, o espírito desse

28
povo voltará ao seu senhor, a Roboão, rei de Judá.” Então, o rei tomou conselho e fez dois

bezerros de ouro, e disse ao [povo]: “É demasiado para vocês subirem a Jerusalém. Israel,

29
estes são os seus deuses que tiraram vocês do Egito. ” Ele colocou um em Betel e o outro

30
em Dã, e essa coisa se tornou uma ofensa.

[os versículos 30b-32 reportam como Jeroboão também estabeleceu o restante de um sistema de

culto alternativo, incluindo um sacerdócio e um festival de outono. ]


Uma de minhas colegas de faculdade foi convidada para ser a diretora

da capela no seminário e ela amou relatar como precisou ir e falar com o

reitor do seminário sobre o seu papel, e as primeiras palavras dele

foram: “Como posso servi-la?” Quando o meu reitor tratou da

substituição do quadro de avisos na área externa da igreja, junto aos

nomes dos ministros ele não colocou títulos, como “reitor”, mas “servo”.

Ambas são grandes ideias e jamais devem ser esquecidas pelos líderes.

Vivemos numa cultura excessivamente preocupada com a natureza da

liderança, e um dos lugares-comuns que usamos para nos salvaguardar

da toxidade desse interesse é falar em termos de “liderança servil”.

Alegar que apenas queremos servir às pessoas pode constituir outra

desculpa para o exercício de poder sobre elas, mas não precisa ser assim.

As Escrituras, normalmente, falam mais sobre líderes como servos

de Deus do que como servos das pessoas que eles lideram, mas a história

de Roboão fornece um exemplo formidável dessa segunda fala, embora,

no fim, ela seja triste. Trata-se de uma ideia que surge do nada. Não

temos visto evidências de que Saul, Davi ou Salomão estavam

preocupados em servir ao povo, e temos visto que Salomão estava

ocupado demais na construção de prédios imponentes e na coleta do

dinheiro necessário para financiar essas obras. Não havia tempo para

preocupações comuns com o povo.

O início de um novo reinado (ou a inauguração de uma nova

administração ou a instituição de um novo parlamento) é uma ocasião

na qual as pessoas no poder devem ganhar a confiança de seu povo. No

Oriente Médio, houve um tempo no qual era frequente os reis emitirem

editais oficializando as políticas sociais com as quais eles estavam

comprometidos. Em Israel, o princípio da dinastia estava estabelecido

(isto é, o rei deveria ser um descendente de Davi), mas essa regra não

significa que o rei tem de ser filho do último monarca ou mesmo que

deveria ser o filho mais velho. Salomão não era o filho mais velho de

Davi ainda vivo, e, nos anos posteriores, nem sempre as sucessões reais
funcionaram dessa maneira. Assim, Roboão não poderia considerar a

sua posição totalmente assegurada.

Sua ida a Siquém liga-se ao fato de que a união entre o norte e o sul,

em Israel, sempre foi frágil. Davi havia sido aceito no sul muito antes de

ser aceito como rei pelos israelitas do norte. Salomão havia se mostrado

propenso a explorar mais os recursos do norte. Roboão poderia, talvez,

imaginar que seu reinado no sul não corria riscos e que precisaria se

esforçar mais para ganhar a confiança do norte. É sempre tentador aos

que estão na liderança confiar no poder e tentar alcançar os objetivos

pela força, pensar que precisam mostrar quem é que manda. No entanto,

na presente situação, de um ângulo puramente pragmático, apresentar-

se como servo do povo era uma boa ideia. Como é possível explicar a

falta de visão de Roboão? Posso ver Deus nos bastidores, diz o narrador

da história. A estupidez de Roboão concorrerá para o cumprimento do

plano de Deus. A situação traça um paralelo com aquela do Egito, na

qual a atitude do faraó em relação a Moisés foi de teimosia, quando o

próprio faraó escolheu a obstinação e quando Deus o encorajou a ser

inflexível. É possível olhar para o que ocorre de ângulos distintos e ver

tanto a realidade da liberdade humana de decidir quanto a soberania

divina e o cumprimento da vontade de Deus. Pode-se ver Deus

operando de modo intervencionista, como também usando as decisões

que as pessoas tomam por si mesmas. Assim, quando necessário, Deus

envia um profeta para manter Roboão no curso desejado por Deus, caso

ele mostre alguma propensão a agir de modo contrário aos planos

divinos.

A ação de Jeroboão também faz lembrar uma das histórias da saída

do Egito. Quando o livro de Êxodo foi escrito e passou a relatar a

história do bezerro de ouro feito por Arão, parece que a intenção do

autor era provocar o leitor a ver o paralelo com a ação de Jeroboão.

Naquela ocasião, o povo como um todo sentiu a necessidade de ter algo

visível que representasse a presença de Deus em seu meio e levaram

Arão a confeccionar o bezerro para cumprir essa função. Os israelitas


não estavam, necessariamente, dando as costas para Yahweh, mas

sentiam falta de algo que sugerisse a presença dele. Jeroboão sente a

mesma necessidade e usa exatamente as mesmas palavras, proferidas

pelos lábios de Arão: “Israel, estes são os seus deuses [ou o seu Deus]

que tiraram vocês do Egito.” A diferença é que o motivo de Jeroboão é

de ordem política. Ele percebe que seu Estado, provavelmente, jamais

terá um sentido próprio de independência caso o seu povo tenha sempre

que peregrinar até Jerusalém para algum festival, e a adição de algumas

imagens do gênero, concebidas por ele, compensará a novidade de seus

santuários face ao esplêndido templo de Salomão (em grande parte,

construído com mão de obra e recursos efraimitas). Há dois problemas

aqui: o primeiro, ele compartilha com os israelitas da época de Arão.

Mesmo que ele e Arão descrevam as suas imagens como sendo de

Yahweh, a visão de Yahweh é que uma imagem é algo tão silencioso e

estático que não pode, na verdade, representá-lo (que fala e está sempre

em ação). Com efeito, ela está fadada a ser uma imagem de um deus

diferente. Esse é um motivo pelo qual “essa coisa se tornou uma ofensa”.

O outro problema, ele compartilha com Davi e Salomão. No reinado de

todos esses reis, a religião se tornou servil ao Estado, atuando para

fortalecer a posição governamental. Há muito a ser dito sobre a

separação entre igreja e Estado; não para proteger o Estado, mas para

proteger a igreja.

A construção de Siquém faz sentido, pois é o lugar mais óbvio para

ser a capital, num entroncamento de estradas entre o norte e o sul, leste

e oeste, bem como o lugar ao qual Roboão tinha ido para ser coroado

em Efraim. Nablus, no centro da região norte da Cisjordânia atual, fica

nas proximidades. Penuel está a leste do Jordão, de modo que a

construção dessa cidade por ele também é coerente, porque lhe dá um

grande centro naquela região.


1REIS 12:33—13:32
PROFETAS E QUANDO IGNORÁ-LOS
33
No décimo quinto dia do oitavo mês, [Jeroboão] subiu ao altar que ele tinha feito em

Betel, o qual ele concebeu em sua própria mente, e realizou o festival para os israelitas. Mas,

13:1
quando ele subiu ao altar para queimar uma oferta, um homem de Deus veio de Judá,

pela palavra de Yahweh, a Betel, quando Jeroboão estava em pé no altar para queimar uma

2
oferta. Ele clamou contra o altar pela palavra de Yahweh: “Altar, altar, Yahweh disse isto:

‘Ora, um filho está para nascer na casa de Davi, por nome Josias. Ele sacrificará sobre você os

sacerdotes dos lugares altos que queimam ofertas sobre você. As pessoas queimarão ossos

3
humanos sobre você.’” Naquele dia, ele deu um sinal: “Este é o sinal que Yahweh falou: ‘Ora,

4
este altar se dividirá, e a cinza sobre ele se derramará.’” Quando o rei ouviu a mensagem do

homem de Deus, que ele clamou contra o altar em Betel, Jeroboão estendeu a mão sobre o

altar, dizendo: “Agarrem-no!”, mas a sua mão, que ele estendeu contra o homem, enrugou, e

5
ele não a pôde recolher, enquanto o altar se dividia e a cinza do altar se derramava, de

6
acordo com o sinal que o homem de Deus deu, pela palavra de Yahweh. O rei falou e disse ao

homem de Deus: “Implore o favor de Yahweh, o seu Deus, e suplique por mim, para que eu

possa recolher a minha mão.” O homem de Deus implorou o favor de Yahweh, e a mão do rei

7
recolheu e voltou a ser como antes. O rei falou ao homem de Deus: “Venha comigo à minha

8
casa e coma algo, e eu lhe darei um presente.” O homem de Deus disse ao rei: “Ainda que me

desse metade de sua casa, eu não iria com você; não comerei pão nem beberei água neste

9
lugar, porque assim fui ordenado pela palavra de Yahweh [...].”

11 14
Mas um antigo profeta estava vivendo em Betel. [...] Ele foi atrás do homem de Deus e o

15
encontrou debaixo de um terebinto. [...] Ele lhe disse: “Venha comigo à minha casa, e eu

18
lhe darei comida [...].” [O profeta] lhe disse: “Eu também sou um profeta, como você, e um

ajudante me falou pela palavra de Yahweh, dizendo: ‘Traga-o de volta com você à sua casa,

para que ele possa comer algo e beber um pouco de água.’” Ele estava mentindo ao homem.

20
[...] Enquanto estavam sentados à mesa, a palavra de Deus veio ao profeta que o tinha

21
trazido de volta, e ele clamou ao homem de Deus, que tinha vindo de Judá: “Yahweh disse

isto: ‘Porque você se rebelou contra a palavra de Yahweh e não observou o mandamento que

22b
Yahweh, o seu Deus, lhe deu, [...] o seu cadáver não virá para o túmulo de seus ancestrais

24 28
[...].’” Quando ele foi, um leão o encontrou na estrada e o matou. [...] [O profeta] foi e

encontrou o seu cadáver jogado na estrada, com o jumento e o leão ao lado do corpo. O leão

29
não tinha comido o cadáver, nem maltratado o jumento. O profeta levantou o corpo do

homem de Deus, o deitou sobre o jumento e o levou de volta. Assim, o corpo chegou à cidade

30
do antigo profeta para ser lamentado e enterrado. Ele colocou o corpo em seu próprio

31
túmulo, e eles lamentaram por ele: “Ah, meu irmão!” Após enterrá-lo, ele disse aos seus

filhos: “Quando eu morrer, enterrem-me no túmulo onde o homem de Deus está enterrado;

32
coloquem os meus ossos sobre os seus ossos, porque o que ele declarou pela palavra de
Yahweh, contra o altar em Betel e contra todas as casas [de Deus] pertencentes aos lugares

altos nas cidades de Samaria, definitivamente se tornará realidade.”

Ao olhar para trás, relembrando a liderança dos inúmeros chefes que já

tive (com exceção do atual, caso ele venha a ler isto), e reflito sobre o

meu próprio período como chefe, consigo ver várias formas pelas quais a

comprovada habilidade e a orientação divina desempenharam um papel

importante na atuação deles e posso reconhecer maneiras pelas quais a

liderança deles foi bem-sucedida ou não. Certo chefe provou o seu valor

em determinado contexto, mas não se saiu tão bem no nosso; outro,

provou a sua valia tanto no exercício de um cargo de menor

responsabilidade quanto no mais elevado. Ainda outro liderou bem

num cargo inferior, mas mostrou não estar à altura de um cargo mais

alto. Em todos os casos, os selecionadores buscaram a orientação de

Deus, mas, às vezes, as promoções foram equivocadas. Deus não estava

envolvido no processo? A voz de Deus não recebeu a devida atenção? A

ação de Deus foi limitada pelo talento disponível?

Os profetas são, de fato, cansativos, e o destino deles é serem

ignorados. Na história de Israel, eles começam a mostrar independência

com relação à monarquia. Para Saul e Davi, eles são figuras ambíguas,

pois iniciam o processo por meio do qual Saul e Davi se tornam reis e os

confrontam por não estarem cumprindo o papel que lhes cabe. Eles

possuem a mesma função em relação a Jeroboão. Foi um profeta que

começou o processo pelo qual Jeroboão tornou-se rei, embora seja

possível presumir que isso ocorreria de qualquer maneira. Ao contrário

de Saul e Davi, antes da designação por Aías, Jeroboão já havia

mostrado do que é feita a verdadeira liderança, bem como a espécie de

pessoa que pode ter aspirações ao reinado ou que é selecionável a esse

posto por seu povo. A tentativa de assassiná-lo, por parte de Salomão,

demonstra que ele era visto como um rival em potencial. Assim, às

vezes, Deus escolhe alguém sem nenhuma habilidade de liderança e o


transforma em um líder, como aconteceu com Saul e com os líderes

anteriores; Deus não precisa usar pessoas dotadas de competências na

arte de liderar, porque não depende delas. Há circunstâncias nas quais

Deus usa alguém jovem demais, que ainda não teve a chance de mostrar

capacidade de liderança, e aguarda para ver no que isso vai dar, como

ocorreu com Davi. Os resultados são, então, ambíguos. Algumas vezes,

Deus permite que a obstinação e a conspiração do ser humano sigam o

seu curso natural, como no caso de Salomão. Os resultados, então, são

igualmente ambíguos, embora com um perfil distinto.

Outras vezes, Deus explora a capacidade humana existente, como

acontece com Jeroboão. É notável como a história não tece nenhum

comentário sobre se Deus desejava Roboão como rei, a exemplo de

Salomão, embora ambos tenham a qualificação ausente em Jeroboão,

qual seja, os dois eram descendentes de Davi. Talvez seja tudo o que

eles necessitam; para Deus, tanto faz qual dos descendentes de Davi

esteja assentado no trono. Para haver um rei que não fosse descendente

de Davi, seria necessário haver uma palavra profética paralela àquela

que designou Salomão e, então, Davi. Não obstante, o motivo para

recontar a palavra profética lá atrás, no capítulo 11 (e aquela em 12:21-

24), não estava relacionado à necessidade de Efraim, mas à necessidade

dos leitores. Isso nos mostra que o ocorrido em Efraim é o cumprimento

da palavra de juízo de Deus à luz do reinado de Salomão. No tocante à

redução da opressão em Efraim, o reinado de Jeroboão constitui um

avanço em relação ao que Salomão fez e ao que Roboão planejava.

Todavia, em termos do relacionamento com Deus, por ironia, o reinado

de Jeroboão dificilmente pode ser considerado melhor que o de

Salomão.

Portanto, um homem de Deus confronta Jeroboão com uma

profecia, pois foi uma profecia que iniciou o seu reinado. Bem, não estou

certo sobre quão literalmente podemos considerar o relato do que

ocorreu em Betel. Não tenho dúvidas de que Deus poderia ter agido

conforme descrito, mas a revelação do nome do rei que, no devido


tempo, matará os profetas que ministram naquele santuário (o que

ocorrerá três séculos mais tarde) parece particularmente estranha à luz

da maneira usual de o Antigo Testamento descrever a ação de Deus.

Todavia, como ocorre, na maioria das vezes, o significado da história

não é muito afetado por concluirmos certo ou não quanto a ser mais um

pedaço da história ou apenas “mais uma história”. Ela declara que

Jeroboão pode ser o meio pelo qual o juízo de Deus é exercido sobre a

linhagem de Davi, além de ele ser passível do julgamento divino pela

maneira com que sujeitou a religião ao interesse político e em sua

política religiosa ter ignorado a verdade sobre quem Deus é.

Os acontecimentos envolvendo os dois profetas anônimos, mais

adiante na narrativa, suscitam questões similares sobre a sua

veracidade. Ambos os profetas são figuras ambíguas, tal como aqueles

reis. Pode-se imaginar que um profeta de Betel seja um personagem

suspeito. Que posição ele tem adotado em relação a Jeroboão e seus

atos? Ele tem apoiado o regime ou, pelo menos, é conivente com suas

políticas? Será este o motivo pelo qual Deus envia um profeta de Judá

(não havendo ninguém em Efraim para ser usado)? Se for assim, a

história implica que, pelo menos, ele aprende uma coisa ou duas com

tudo o que acontece. Um contraste também emerge da consideração do

próprio profeta judaíta. Ele arrisca a sua vida para confrontar Jeroboão

e, não obstante, a perde por relaxar e não duvidar o suficiente de

alguém que diz possuir uma palavra de Deus, afirmando que um

ajudante lhe apareceu. Seria inapropriado deduzir que sempre

deveríamos confiar naquilo que imaginamos ter recebido de Deus em

vez daquilo que alguém diz ser uma palavra de Deus (um dos

significados de expressar algo em uma história é descrever uma

ocorrência sem implicar que isso acontece com regularidade). Na

verdade, quase sempre, será o oposto. Mas a credulidade não compensa.


1REIS 13:33—14:20
QUANDO O FILHO DO REI APÓSTATA FICA DOENTE
33
Após esse ato, Jeroboão não saiu de seu caminho errado, mas, novamente, constituiu

sacerdotes para os lugares altos de todas as partes do povo. Qualquer um que desejasse, ele

34
indicava para se tornar sacerdote dos lugares altos. Por esse ato, a casa de Jeroboão

14:1
tornou-se uma ofensa, para a sua ruína e destruição da face da terra. Naquela época,

2
Abias, filho de Jeroboão, ficou doente. Jeroboão disse à sua esposa: “Você irá partir,

disfarçar-se para que o povo não reconheça que é a esposa de Jeroboão, e vá a Siló. Ora, o

3
profeta Aías está lá. Foi ele que declarou sobre mim que eu seria o rei sobre este povo. Leve

dez pães em suas mãos, alguns biscoitos e um pote de mel, e vá até ele. Ele irá lhe contar o

4
que acontecerá ao menino.” A esposa de Jeroboão assim fez. Ela partiu e foi a Siló, e chegou

à casa de Aías. Aías não podia ver, porque seus olhos tinham ido embora, por causa de sua

5
velhice, mas Yahweh tinha dito a Aías: “A esposa de Jeroboão está vindo para inquirir algo

de você em relação ao filho dela, porque ele está doente. Você deve falar tais e tais coisas a

6
ela. Mas ela estará fingindo ser uma estranha.” Então, quando Aías ouviu o som dos pés dela

enquanto ela atravessava a porta, ele disse: “Entre, esposa de Jeroboão. Por que cargas

d’água você está fingindo ser uma estranha? Eu fui enviado a você com uma mensagem dura.

7
Vá e diga a Jeroboão: ‘Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: “Porque eu o elevei do meio do

8
povo e o fiz governador sobre o meu povo, Israel, e rasguei o reinado da casa de Davi e o dei

a você, mas você não tem sido como Davi, o meu servo, que guardou os meus mandamentos e

9
me seguiu com todo o seu espírito, fazendo somente o que era reto aos meus olhos, você tem

sido mais errado em suas ações que todos os que eram antes de você. Você foi e fez outros

10
deuses e imagens para você mesmo, para me provocar. Deu-me as costas. Agora, portanto,

trarei aflição à casa de Jeroboão. Irei cortar de Jeroboão aqueles que urinam contra a parede

(preso ou livre) em Israel. Queimarei até o fim a casa de Jeroboão como se queima esterco.

11
A pessoa que pertencer a Jeroboão e morrer na cidade, os cães a devorarão; a pessoa que

12
morrer em campo aberto, as aves a comerão. Porque Yahweh falou.’” Então, você, parta e

13
volte para casa. Quando colocar o pé na cidade, o menino morrerá. Todo o Israel irá

pranteá-lo e enterrá-lo, pois somente ele, dos que pertencem a Jeroboão, chegará à sepultura,

porque nele algo bom foi encontrado em relação a Yahweh, o Deus de Israel, na casa de

14
Jeroboão. Yahweh levantará para si um rei sobre Israel, que cortará a casa de Jeroboão.

15
Este é o dia. Agora mesmo. Yahweh derrubará Israel como um junco que balança na água,

desarraigará Israel desta boa terra que ele deu aos seus ancestrais e os espalhará para além do

Rio [Eufrates], porque eles fizeram colunas a Aserá que provocam Yahweh.”

[Os versículos 16-20 relatam como a esposa de Jeroboão leva a mensagem para casa; a criança

morre e, no devido tempo, Jeroboão também falece, tendo como sucessor Nadabe, o seu filho.]
Na noite passada, uma amiga expressou toda a sua contrariedade com

relação ao sermão em sua igreja, proferido alguns domingos atrás. O

pregador estava falando sobre a cura por Jesus do homem paralítico,

que estivera deitado junto ao tanque de Siloé durante trinta e oito anos.

O pregador sugeriu que o homem ficara todo esse tempo ali por pura

conveniência, dando a entender que ele não tinha assumido a

responsabilidade por sua cura. Minha amiga se irritou porque alguém

muito próximo a ela sofre de uma doença crônica e ela sabe que uma

pessoa enferma não pode, necessariamente, decidir melhorar. Como um

homem cuja esposa lutou contra uma enfermidade por quarenta e três

anos, endosso as palavras de minha amiga. O que faz um pregador dizer

algo tão estúpido? Parte da resposta (eu e ela refletimos) é que há algo

amedrontador sobre ficar doente ou ter alguém enfermo próximo a nós.

Isso nos faz sentir totalmente impotentes. Não estamos mais no

controle, e isso é importante para nós. Os anúncios farmacêuticos tiram

proveito desse sentimento quando nos encorajam a assumir o controle

sobre a nossa asma ou artrite e até mesmo sobre o nosso câncer.

No seio de uma sociedade tradicional como Israel, a perspectiva de

estar no controle é muito menor. Recentemente, meu filho foi

diagnosticado com diabetes, mas com uma dieta controlada e injeções

ele consegue ter uma vida normal. Um século atrás, sua enfermidade o

teria matado. Ao constatarem que o filho está enfermo e que ele não

apresenta sinais de melhoras, o que Jeroboão e sua esposa podem fazer?

Quando os filhos adoecem, o rei e a rainha não são melhores do que as

pessoas comuns (na verdade, descobriremos que são piores). Tudo o que

eles podem fazer é buscar a Deus. De modo suficientemente lógico, eles

fazem isso indo atrás do profeta de Siloé, que havia transmitido a

mensagem original sobre Jeroboão estar destinado a ser rei. O problema

é que eles sabem, por meio do profeta que foi a Betel, do desagrado de

Deus quanto ao comportamento deles. Movidos por certa inocência,

eles tentam contornar esse problema pelo bem do seu filho. A mãe de

Abias deve levar consigo uma oferta, o que seria natural — os profetas
vivem das ofertas do povo, como os pastores. Saul tinha ciência de que

devia levar um presente a Samuel, quando foi procurá-lo a respeito de

seus jumentos perdidos. O casal presumirá não apenas que Aías seja

capaz de lhes dar um prognóstico com relação ao seu filho, mas que

também possa lhes revelar como podem prevenir qualquer ameaça à

vida do menino — por exemplo, qual oferta eles devem fazer a Deus. Por

outro lado, no entanto, é como se eles tivessem ideias primitivas sobre

os profetas — os profetas podem ser capazes de prever o futuro, mas não

de ver o que está acontecendo no presente. Eles descobrem que estão

totalmente enganados.

O texto não explicita se o casal refletiu sobre a possibilidade de a

enfermidade ser, de alguma forma, uma mensagem para eles, embora

seja provável que tivessem consciência dessa questão. Quando coisas

ruins acontecem na vida das pessoas, elas costumam perguntar a si

mesmas: “Por que isso aconteceu comigo?” Além disso, as Escrituras

reconhecem que, às vezes, a enfermidade resulta de um mau

procedimento (veja 1Coríntios 11:27-32), de modo que a pergunta faz

sentido. Aías sabe quão profunda, abrangente e desastrosa é a resposta à

questão daquele casal. O fato de Aías ser o meio pelo qual Deus

designou Jeroboão governante de Efraim, como parte do juízo divino

sobre Salomão, não significa que ele é obrigado a apoiar Jeroboão. Deus

é o único com quem ele é comprometido, e a mensagem divina a

Jeroboão, agora, é a mesma dada a Salomão. Pode parecer

surpreendente que Jeroboão seja visto como um pecador pior que

qualquer um antes dele, mas ele institucionalizou a adoração a deuses

estranhos em Efraim. Além disso, nem Deus nem o profeta conseguem

vê-lo como alguém que, verdadeiramente, cultua Yahweh. As pessoas

podem pensar que estão adorando a Deus, mas o culto que prestam é

tão estranho a quem Deus é que, decerto, a adoração não chega a ele.

Para piorar a situação, Jeroboão levantou colunas a Aserá, ou seja,

objetos que eram usados no culto a deusas dos cananeus com aquele

nome. No devido tempo, a sua liderança resultará em desastre para o


seu povo. (Quero apresentar minhas desculpas pelo termo grosseiro que

o profeta usa para descrever os homens no versículo 10; por algum

tempo, considerei utilizar uma expressão mais leve aqui, como as

traduções bíblicas, em geral, o fazem, mas decidi deixar o texto como ele

realmente é.)

O Antigo Testamento é mais pragmático que o pensamento

ocidental quanto ao destino dos filhos estar vinculado aos seus pais. O

texto bíblico enfatiza que os tribunais dos homens não devem permitir

que os filhos sejam punidos pelos pecados de seus pais, mas reconhece

que Deus não criou a humanidade de uma forma que esses destinos

pudessem ser facilmente separados. Sabemos que enviar uma mãe ou

um pai à prisão também é uma punição aos seus filhos, mas seguimos

fazendo isso, e Deus age de maneira equivalente. Se Jeroboão deve ser

punido por seus atos, o entrelaçamento do destino dos filhos com o de

seus pais significa que os filhos de Jeroboão também serão punidos. O

inverso também é verdadeiro. A melhor maneira de punir os pais é

atingindo os seus filhos. Assim, quando Deus deseja punir Davi por seu

adultério e assassinato, Deus provoca a morte de seu filho (2Samuel

12). Similarmente, quando Deus quer punir Jeroboão, ele leva o seu

filho à morte. Reconhecidamente, há uma característica distinta em

uma história como essa que a torna menos ameaçadora para as pessoas

comuns. O problema para as respectivas famílias de Davi e de Jeroboão

é o fato de eles serem reis. Uma breve consideração das famílias reais do

mundo moderno mostra o preço que os filhos reais pagam por sua

posição. O futuro de Israel está, agora, vinculado ao futuro de seus reis

e, portanto, aos filhos dos reis, e há um preço a ser pago por eles serem

quem são.

A história implica que a morte do menino provavelmente ocorreria

de qualquer forma. Deus não precisa intervir para que isso aconteça,

mas apenas não intervir para curá-lo. A ação real de Deus é dar aos seus

pais um novo significado para sua morte. Todavia, o Antigo Testamento

é, de fato, pragmático em não sentir a necessidade de proteger Deus da


responsabilidade pela morte do menino. O lado positivo disso é que a

sua morte não é meramente fortuita, aleatória e incompreensível; muito

menos, a história conclui que ela é inevitável. Com frequência, o ponto

sobre a profecia é que ela não precisa se cumprir. Caso alguém se

arrependa em resposta a uma palavra profética, aquela previsão não

precisa, necessariamente, se tornar realidade. No entanto, não há sinais

de arrependimento no relato em questão. O menino, aparentemente,

apresenta-se em menor necessidade de arrependimento do que alguns

que podemos citar, e a narrativa acrescenta uma nota final de pesar. Há

uma percepção de que a criança é, na realidade, afortunada. O destino

dos que seguirão vivos será pior.


1REIS 14:21—15:24
ENQUANTO ISSO, EM JUDÁ
21
Ora, Roboão, filho de Salomão, tinha se tornado rei em Judá. Roboão tinha quarenta e um

anos quando se tornou rei, e ele reinou dezessete anos em Jerusalém, a cidade que Yahweh

havia escolhido para colocar o seu nome, dentre todos os clãs de Israel. O nome de sua mãe

22
era Naamá, uma amonita. Judá fez o que era desagradável aos olhos de Yahweh e despertou

nele paixões mais fortes do que qualquer coisa que seus ancestrais fizeram pelo modo com

23
que eles falharam. Eles também construíram para si lugares altos, colunas e asherim em

24
cada colina e debaixo de cada árvore florescente, e havia também hieródulos na terra. [Os

judaítas] agiram segundo todas as práticas abomináveis das nações que Yahweh desapropriou

diante dos israelitas.

25 26
No quinto ano do reinado de Roboão, Sisaque, rei do Egito, subiu contra Jerusalém. Ele

levou os tesouros da casa de Yahweh e os tesouros da casa do rei; ele levou tudo. Levou os

27
escudos de ouro que Salomão tinha feito, por isso o rei Roboão fez escudos de bronze em

lugar daqueles e os submeteu ao controle dos comandantes que estavam sobre a guarda do

28
portão da casa do rei. Sempre que o rei ia à casa de Yahweh, os guardas os carregavam e,

então, os traziam de volta à câmara da guarda.

[A passagem de 1Reis 14:29—15:8 resume o reinado de Roboão e os três anos do reinado de

Abias, o seu filho.]

15:9
No vigésimo ano de Jeroboão, rei de Israel, Asa começou a reinar como rei em Judá.

10 11
Ele reinou quarenta e um anos. O nome de sua mãe era Maaca, filha de Absalão. Asa fez

12
o que era certo aos olhos de Yahweh, como seu ancestral Davi. Ele expulsou os hieródulos

13
da terra e removeu todos os ídolos que seu pai tinha feito. Em adição, ele removeu Maaca,

a sua avó, da posição de rainha-mãe, porque ela tinha feito uma monstruosidade para Aserá.

14
Asa cortou a monstruosidade e a queimou no vale do Cedrom. Ele não removeu os lugares

altos. Todavia, o espírito de Asa esteve totalmente comprometido com Yahweh por todos os

15
seus dias. Ele levou para a casa de Yahweh as coisas que o seu pai tinha consagrado e as

coisas que ele mesmo tinha consagrado, prata, ouro e utensílios.

16 17
Houve guerra entre Asa e Baasa, rei de Israel, durante todos os seus dias. Baasa, rei de

Israel, subiu contra Judá e construiu Ramá, para não permitir que qualquer um pertencente

18
a Asa, rei de Judá, saísse ou entrasse. Então, Asa reuniu toda a prata e todo o ouro que

restava nos tesouros da casa de Yahweh e nos tesouros da casa do rei e os colocou na mão de

seus servidores, e o rei os enviou a Ben-Hadade, filho de Tabriom, filho de Heziom, de Aram,

19
que vivia em Damasco, dizendo: “[Que haja] uma aliança entre mim e ti [como] entre meu

pai e o teu pai. Ora, enviei a ti um presente de prata e de ouro. Vá e quebres a tua aliança

com Baasa, rei de Israel, para que ele possa se afastar de mim.”

[Os versículos 20-24 sumarizam o restante de seu reinado.]


Há algumas semanas, um aluno me indagou, com certa ansiedade, se

havia evidências de que qualquer um dos eventos, presentes no Antigo

Testamento, tinha, de fato, ocorrido. Havia algum registro dos povos

vizinhos sobre a existência de pessoas como Abraão, Moisés, Josué ou

Davi? Não tive escolha, exceto lhe dizer que a resposta para a segunda

pergunta era: “Não.” Pessoalmente, não creio que isso seja muito

preocupante, pelo menos não mais inquietante do que os registros

romanos não citarem a execução de alguém chamado Jesus de Nazaré.

Israel tinha um povo subdesenvolvido, que não possuía meios de deixar

registros sobre si mesmo senão muito mais tarde. Ainda, era um povo

pequeno e desimportante demais para que os grandes poderes da época

se referissem a ele.

A expedição de Sisaque, durante o reinado de Roboão, é, na

verdade, o primeiro evento na história israelita que podemos,

definitivamente, correlacionar com registros externos. Igualmente, isso

possibilita ser mais concreto quanto a datas de eventos em Israel com

relação ao sistema de datação ocidental. A invasão ocorreu por volta de

926 a.C. Sisaque é a versão hebraica equivalente a Shoshenk, em

egípcio. Lemos, anteriormente, que Jeroboão buscou refúgio com ele,

quando estava fugindo de Salomão para salvar a sua vida. No contexto

da contínua hostilidade entre Judá e Efraim, Shoshenk pode ter

invadido Judá em apoio a Jeroboão, que poderia ser seu vassalo, mas

também é possível que o rei do Egito visasse ampliar o próprio império

e obter mais recursos. Shoshenk erigiu uma inscrição no muro do

templo de Karnak, no Egito, no qual ele faz um relato dos muitos

lugares em Canaã sobre os quais ele afirmou a sua autoridade nessa

ocasião, do mesmo modo que ergueu um monumento em Megido,

Israel, que ainda resiste ao tempo.


O relato sobre Shoshenk e a aliança entre Asa e Ben-Hadade nos

introduzem à maneira pela qual a história de Efraim e de Judá, pelos

séculos subsequentes, estará entrelaçada à história dos povos vizinhos.

Aqui estão as duas divisões do povo de Deus tentando encontrar um

modo de viver no mundo. As questões que isso suscita são ilustradas

pela forma com que Asa tenta estabelecer uma aliança com Ben-

Hadade. Embora a palavra hebraica para “aliança” seja a mesma palavra

para tratado ou contrato, há algo intrigante no fato de o povo que está

em aliança com Deus ser obrigado a fazer alianças com outros povos

para garantir a própria sobrevivência. Todavia, a narrativa pressupõe

um cenário ainda mais estranho com respeito ao relacionamento entre

Jeroboão e Shoshenk, e entre Asa e Ben-Hadade: as duas divisões do

povo de Deus estão em permanente estado de conflito uma com a outra.

As sementes plantadas por Salomão e regadas por Roboão estão

produzindo frutos amargos. Expressando de outra maneira, a religião

nativa da terra (a religião dos cananeus) prosseguiu sendo um fator

dominante tanto na vida de Judá quanto na de Efraim. A referência aos

“hieródulos” enfatiza esse mesmo ponto. O termo, literalmente, significa

uma pessoa sagrada, mas, em passagens similares a essa, a palavra

denota uma pessoa envolvida em observâncias religiosas que o Antigo

Testamento enxerga como idólatra. Em outros contextos, isso implica

que eles são imorais, e as traduções utilizam expressões como

“prostitutos cultuais”, mas, na verdade, não sabemos exatamente o que

o termo significa. Eles podem ser simplesmente pessoas que atuavam

como ministros de outras divindades que não Yahweh, de modo que o

envolvimento dos israelitas implicava infidelidade a Yahweh e, portanto,

algo análogo à imoralidade sexual.

Ao longo dos demais capítulos dos livros de Reis, a história será

estruturada pelos reinados dos reis, e, além de descrever incidentes

particulares, a narrativa tecerá comentários, de forma geral e

sistemática, sobre as políticas religiosas que caracterizam cada reino.

Pelo fato de o Antigo Testamento não possuir um sistema de datação


absoluta, a maneira de o texto expressar a cronologia é pela inter-

relação das datas relativas aos reis dos dois reinos, embora a tradução

dessa informação para o nosso sistema de datas seja complicada, e há

relatos variados de como essa cronologia funciona. Um dos motivos é

que, embora um rei ainda estivesse em pleno vigor de sua vida, ele podia

designar o seu sucessor como corregente, visando assegurar que a

sucessão ocorresse de modo suave. Os anos de reinado de um rei,

portanto, poderiam se sobrepor aos anos de seu predecessor.

Os julgamentos do Antigo Testamento são uniformemente

negativos com respeito aos reis de Efraim pelo fato de a própria

existência da nação depender do estabelecimento de uma forma de

culto não ortodoxa para seu povo. Desse modo, aquela produção de

frutos amargos evidencia-se também nos assuntos religiosos. O mesmo

ocorria em Judá, pois a política religiosa de Roboão e Abias não parecia

tão distinta daquela adotada por Jeroboão. O fato de Roboão ser o filho

de uma das esposas estrangeiras de Salomão não é, provavelmente, uma

mera coincidência. Ao mesmo tempo, a menção de que Maaca, esposa

de Roboão, erigiu uma “monstruosidade” (alguma espécie de auxílio ao

culto que os narradores enxergavam como totalmente incompatível

com a verdadeira fé em Yahweh) demonstra que ter uma mãe com

sangue puramente israelita não é garantia de vantagem. O escândalo do

reinado de Roboão é enfatizado por Jerusalém ser o lugar escolhido por

Yahweh para colocar o seu nome. Há uma implicação de que os eventos

em Judá eram, na realidade, ainda mais escandalosos do que aqueles

realizados pelos habitantes de Efraim.

Os juízos sobre os reis de Judá são mais complexos do que aqueles

sobre os reis de Efraim. Um fator complicador aqui é que, nos tempos

posteriores, tornou-se habitual ver os lugares altos como

inerentemente não ortodoxos, mas, na época de um rei fiel como Asa,

eles poderiam ser locais nos quais um culto apropriado era oferecido a

Yahweh. A fidelidade de Asa a Yahweh contrasta com a infidelidade de

Roboão, o seu avô, e de Abias, o seu pai, que o precedeu e,


aparentemente, morreu jovem. As coisas que Asa levou ao templo

podem ser espólios obtidos em batalhas e dedicados a Deus em

reconhecimento de que Deus possibilitou a vitória. Sua necessidade de

depor a sua avó do cargo de rainha-mãe reflete o poder que era

conferido àquela posição.


1REIS 15:25—16:34
DUAS SEMANAS, TRÊS REIS EM EFRAIM
25
Nadabe, filho de Jeroboão, havia se tornado rei sobre Israel no segundo ano de Asa, rei de

26
Judá, e ele reinou sobre Israel durante dois anos. Ele fez o que era desagradável aos olhos

de Yahweh e andou no caminho de seu pai, nas ofensas que ele levou Israel a cometer.

27
Baasa, filho de Abias, da casa de Issacar, conspirou contra ele, e Baasa o eliminou em

29
Gibetom dos filisteus; Nadabe e todo o Israel estavam sitiando Gibetom. [...] Quando se

tornou rei, ele eliminou toda a casa de Jeroboão; ele não deixou nenhuma alma pertencente a

Jeroboão sobreviver até tê-la destruído, de acordo com a palavra de Yahweh que ele falou por

meio de seu servo Aías, o silonita. [...]

CAPÍTULO 16

1 2
A palavra de Yahweh veio a Jeú, filho de Hanani, contra Baasa: “Porque eu o elevei do pó e

o fiz governador sobre Israel, o meu povo, mas você andou no caminho de Jeroboão e levou

3
Israel, o meu povo, a me ofender e me provocar com suas ofensas, agora irei acabar com

4
Baasa e a sua casa e farei a sua casa como a casa de Jeroboão, filho de Nebate. A pessoa que

pertencer a Baasa e que morrer na cidade, os cães comerão, e a pessoa que pertencer a ele e

morrer em campo aberto, as aves dos céus comerão [...].”

8
No vigésimo sexto ano de Asa, rei de Judá, Elá, filho de Baasa, tornou-se rei sobre Israel, em

9
Tirza, por dois anos. Zinri, o seu servo, comandante de metade das suas carruagens,

conspirou contra ele; ele estava em Tirza, embriagando-se na casa de Arsa, que estava sobre a

10 12
casa, em Tirza. Zinri entrou, o feriu e o matou. [...] Zinri destruiu toda a casa de Baasa,

de acordo com a palavra de Yahweh que ele falou a Baasa por meio de Jeú, o profeta. [...]

15
No vigésimo sétimo ano de Asa, rei de Judá, Zinri reinou por sete dias, em Tirza, quando a

16
companhia estava acampada em Gibetom dos filisteus. A companhia acampada ouviu:

“Zinri conspirou e, além disso, matou o rei”, e todo o Israel fez Onri, o comandante do

17
exército, rei sobre Israel naquele dia, no acampamento. Onri e todo o Israel com ele

18
subiram de Gibetom e sitiaram Tirza. Quando Zinri viu que a cidade estava tomada, ele foi

até a cidadela, na casa do rei, e incendiou a casa do rei com fogo sobre si mesmo. Assim, ele

21
morreu. [...] Então, o povo de Israel dividiu-se em dois. Metade do povo seguiu Tibni, filho

22
de Ginate, fazendo-o rei, e metade seguiu Onri. Mas a companhia que seguiu Onri era

mais forte que a companhia que seguiu Tibni, filho de Ginate; Tibni morreu, e Onri se

24
tornou rei. [...] Ele adquiriu, de Sêmer, a montanha de Samaria por dois talentos de prata e

construiu sobre a montanha, chamando a cidade que construiu pelo nome de Sêmer, o

27
proprietário da montanha: “Samaria [...].” O resto dos atos de Onri, que ele fez, e o poder

29
que ele mostrou estão, de fato, escritos nos anais dos reis de Israel. [...] Acabe, filho de

Onri, tornou-se rei sobre Israel no trigésimo oitavo ano de Asa, rei de Judá. Acabe, filho de

33b
Onri, reinou sobre Israel, em Samaria, por vinte e dois anos. [...] Acabe fez mais para

provocar Yahweh, o Deus de Israel, do que todos os reis de Israel que vieram antes dele.
34
Em sua época, Hiel, o betelita, reconstruiu Jericó. À custa de Abirão, o seu primogênito,

ele a iniciou, e à custa de Segube, o seu filho mais novo, ele estabeleceu os seus portões, de

acordo com a palavra de Yahweh que ele falou por meio de Josué, filho de Num.

Ontem, como de costume, iniciamos a nossa reunião da faculdade

compartilhando alguns tópicos para oração e, então, coube a mim

tentar fazer uma oração que cobrisse todos eles. O compartilhamento

incluiu a saúde debilitada de alguém, a perda de emprego por outra

pessoa, o doutorado obtido pela filha de alguém mais, os cargos que

estávamos tentando preencher, o conflito entre israelenses e palestinos

que acabara de eclodir novamente (um dos presentes estava de malas

prontas para viajar a Israel), a tensão entre as Coreias (um dos

presentes era coreano) e, talvez, outros assuntos dos quais, no

momento, não consigo recordar. Em minha oração, agradeci a Deus por

ser o Deus de todos esses aspectos que envolvem a nossa vida e as

nossas preocupações.

As histórias presentes nos livros de Reis refletem essa ampla gama

de envolvimentos e interesses de Deus e, particularmente, chamam a

nossa atenção para a sua atuação em assuntos políticos, embora os

livros, em geral, deixem em aberto a natureza daquele envolvimento.

Eles são, portanto, preocupantes, embora também sejam estranhamente

encorajadores: por, aparentemente, nem sempre exibirem ciência sobre

como Deus está envolvido, eles também mostram que estão na mesma

posição que nós.

Após nos contar sobre Jeroboão como rei de Efraim, os relatos

concentram-se nos seus contemporâneos em Judá: Roboão, Abias e Asa.

Agora, eles recuam, levemente, ao sucessor de Jeroboão, Nadabe, que

ascendeu ao trono no início do reinado de Asa, e, então, prossegue

cobrindo Baasa, Elá, Zinri, Onri e Acabe. Na verdade, a narrativa irá

focar os eventos de Efraim por um longo tempo, particularmente no

reinado de Acabe. Em parte, isso se deve ao foco sobre o trabalho dos


profetas em Efraim, notadamente Elias e Eliseu. Isso também ocorre

pelo fato de a história de Efraim ser mais tumultuada, como mostra o

recente relato sobre os cinco reis, e bem maior que a história da

pequena Judá. Outro fator é por Efraim ser uma peça mais importante

no tabuleiro internacional, em razão, parcialmente, da sua localização

geográfica, pois Judá está em uma região mais montanhosa e mais

isolada que Efraim.

Não obstante, uma vez mais, a história não é muito acessível no que

tange ao envolvimento de Deus em tudo isso, embora, talvez, isso nos

convide a tirar as nossas próprias conclusões sobre a sequência de

conspirações e golpes em Efraim. Uma das implicações da história é que

o reino de Judá poderia ser considerado afortunado por ter a dinastia de

Davi firmemente estabelecida em Jerusalém; apesar de haver conflitos

sobre qual dos descendentes de Davi deveria reinar, até o fim da

história do reino de Judá não há muita perspectiva de alguém

desconhecido substituir um descendente davídico. Em Efraim, todavia,

as dinastias mudavam. Nadabe reina dois anos até ser assassinado por

Baasa, que adota medidas para tornar o seu trono seguro, matando

todos da família de Nadabe. Mas o seu filho é assassinado depois de dois

anos, embora o assassino fique no trono apenas por uma semana, sendo

sucedido por Onri, após mais alguns conflitos internos. Onri, então,

obtém apenas meia dúzia de versículos na história, empregados, na

maioria, para expressar os costumeiros juízos gerais sobre ele ser uma

pessoa má. Isso se refere à sua considerável realização de fundar

Samaria como a nova capital de Efraim; a cidade, com o tempo,

emprestará o seu nome a toda a área de “Samaria”. Além disso, expressa

o poder que ele exercia. A história utiliza essa expressão em relação a

outros reis, mas, no caso de Onri, há um significado especial em seu uso.

Os anais da Assíria, com frequência, fazem referência a Onri. Os

registros dos moabitas relatam como ele os oprimiu por um longo

período. Politicamente, ele foi uma figura sobremodo importante no

desenvolvimento de Efraim. Contudo, 2Reis não está muito interessado


em tudo isso. Caso o leitor queira saber mais, o texto diz, ele deve

procurar nos registros oficiais. (Historiadores dariam o braço direito

para poderem fazer isso; infelizmente, os registros desse tipo se

perderam há milênios.)

No tocante a 1Reis, a questão-chave continua sendo quão fiéis os

reis são em relação a Yahweh. Por implicação, a origem e a fundação

apóstata da existência de Efraim não dão margem à mera coincidência

por sua história ser tão caótica. Às vezes, o livro observa quão

concretamente isso ocorre. O extermínio da família de Jeroboão por

parte de Baasa cumpre a mensagem do juízo de Deus, transmitida à

esposa de Jeroboão. Por seu turno, Deus dá a outro profeta, Jeú, uma

mensagem de juízo com respeito à casa de Baasa, embora isso não

ocorra em razão de sua violência (há outras passagens no Antigo

Testamento que sugerem a desaprovação a essa violência, apesar de ela

ser um meio de o próprio Deus exercer juízo). Ainda, esse julgamento

não recai diretamente sobre Baasa, que administra o reino por vinte e

quatro anos, mas sobre o seu filho. Normalmente, não se pode prever

como as advertências ou as promessas de Deus encontrarão

cumprimento. Em geral, isso ocorre por intermédio da interação entre

as políticas que Deus deseja implementar e as realidades políticas. Deus

não intervém com frequência para fazer coisas acontecerem que, caso

contrário, não ocorreriam, humanamente falando, mas usa os potenciais

humanos de compromisso, ambição, fidelidade e maldade. Por outro

lado, a consistência do envolvimento divino é sugerida pelas palavras

que Deus dá a Jeú sobre os cães e as aves. Com certa ironia, Deus repete

a mensagem dada a Roboão em 1Reis 14:11. Baasa foi o meio pelo qual

aquela mensagem se cumpriu, mas, agora, a sua própria casa verá a

mesma mensagem ser cumprida em sua vida.

O reinado de Acabe, filho de Onri, será o cenário para o restante do

livro de 1Reis. O fato de ele representar uma nova queda na história de

Efraim está implícito na nota sobre Hiel, o que sugere que ele sacrificou
os próprios filhos como uma espécie de oração promulgada para o

sucesso de sua aventura arquitetônica.


1REIS 17:1-24
O PESSOAL E O POLÍTICO
1
Elias, o tesbita, dos assentados em Gileade, disse a Acabe: “Tão certo como Yahweh, o Deus

de Israel, vive, diante de quem estou [em assistência], durante esses anos não haverá orvalho

2 3
ou chuva, exceto pela palavra da minha boca.” A palavra de Yahweh veio a ele: “Saia daqui.

4
Vire para o leste e se esconda no riacho Querite, que fica defronte ao Jordão. Você beberá

5
do riacho, e eu ordenei aos corvos que o alimentem lá.” Ele foi e agiu de acordo com a

6
palavra de Yahweh. [...] Corvos lhe traziam pão e carne de manhã e pão e carne à tarde, e ele

7 8
bebia do riacho. Após algum tempo, o riacho secou porque não havia chuva na terra. A

9
palavra de Yahweh veio a ele: “Levante, vá a Sarepta, que pertence a Sidom, e viva lá. Ora,

10
ordenei a uma mulher lá, que é viúva, para alimentá-lo.” Ele se levantou e foi a Sarepta,

chegou ao portão da cidade, e ali uma mulher que era viúva estava recolhendo madeira. Ele a

chamou: “Poderia me conseguir um pouco de água em uma vasilha para eu beber?”

11
Quando ela foi pegá-la, ele a chamou: “Poderia me conseguir um pedaço de pão em sua

12
mão?” Ela disse: “Tão certo como Yahweh, o teu Deus, vive, eu não tenho nada assado,

somente um punhado de farinha em um jarro e um pouco de óleo em um pote. Assim, aqui

estou eu recolhendo alguns pedaços de madeira para poder ir e preparar algo para mim e

13
para o meu filho, para comermos e depois morrermos.” Elias lhe disse: “Não tenha medo.

Vá e aja de acordo com a sua palavra, apenas me faça um pequeno pão lá e o traga para mim

14
e, depois, faça algum para você e o seu filho. Porque Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: ‘O

jarro de farinha não se esgotará, e o pote de óleo não falhará, até o dia em que Yahweh der

15
chuva sobre a face da terra.’” Ela foi e agiu de acordo com a palavra de Elias, e ela e a sua

casa comeram por algum tempo. [...]

17
Depois disso, o filho da senhora da casa ficou doente. A sua enfermidade se tornou muito

18
séria, até que nenhuma respiração permanecesse nele. Ela disse a Elias: “O que há entre

mim e ti, homem de Deus? Vieste a mim para chamar-me a atenção para a minha

19
transgressão e fazer o meu filho morrer.” Ele lhe disse: “Dê-me o seu filho.” Ele o tomou

20
dos braços dela, deitou-o sobre a sua cama e clamou a Yahweh, dizendo: “Yahweh, meu

Deus, estás realmente trazendo aflição sobre a mulher com quem estou residindo, fazendo

21
que seu filho morresse?” Ele se deitou sobre o menino por três vezes e clamou a Yahweh:

22
“Yahweh, meu Deus, que a respiração deste menino retorne ao seu corpo!” Yahweh ouviu a

23
voz de Elias, e a respiração do menino retornou ao seu corpo, e ele voltou a viver. Elias

pegou o menino, levou-o do aposento superior da casa para baixo e o entregou à sua mãe.

24
Elias disse: “Veja, o seu filho está vivo.” A mulher disse a Elias: “Agora eu reconheço que tu

és um homem de Deus. A palavra de Yahweh em tua boca é verdadeira.”


Acabei de deletar um e-mail de uma aluna em cuja vida vi algo como

um milagre alguns meses atrás. Ela havia sido diagnosticada com um

tumor cerebral, e uma cirurgia de emergência foi imediatamente

marcada para tentar removê-lo. Os cirurgiões não tinham plena certeza

de que a remoção seria suficiente para curá-la, embora a sua mãe tenha

afirmado na véspera da operação: “Há tantas pessoas orando sobre esse

tumor que ele não tem a menor chance.” Isso parecia, claro, palavras

lançadas ao vento, pois a oração não funciona assim. No entanto,

quando os cirurgiões a operaram, não encontraram nem sinal do tumor

e ainda estão coçando a cabeça, na tentativa de achar uma explicação.

Isso não prova que um milagre aconteceu; os médicos ainda estão

presumindo que há uma explicação “natural” para o caso dela. Todavia,

é sobremodo difícil para nós, que estivemos envolvidos, acreditar que o

“desaparecimento” foi mero acaso.

Igualmente, é impossível provar que um milagre ocorreu ao filho da

viúva; talvez o “milagre” esteja na coincidência temporal entre a ação

de Elias e a recuperação espontânea do menino e o retorno de seu fôlego

de vida. Não está claro se o menino estava à beira da morte ou se ele

havia, de fato, morrido; no caso de ser a segunda hipótese, é melhor

chamar o evento de ressuscitação do que de ressurreição, porque ele

não foi elevado a um novo tipo de vida, a exemplo do que ocorrerá com

Jesus, futuramente. Seja como for, você não encontrará a mãe do

menino considerando a possibilidade de a recuperação de seu filho ter

sido uma coincidência, do mesmo modo que a mãe de minha aluna não

considera. Além disso, é uma história com elementos tipicamente

humanos, pois ela não envolve anjos ou raios caindo do céu, nem mesmo

corvos, mas farinha e óleo que, milagrosamente, nunca acabam. É fácil

retratar isso acontecendo e imaginar as emoções humanas que a história

descreve.

Como é típico do Antigo Testamento, o pessoal e o político se

entrelaçam na história. O seu pano de fundo reside nos eventos

presentes nos versículos finais do capítulo anterior. A exemplo de


Salomão, Acabe encoraja relacionamentos políticos com Tiro, o grande

poder situado a nordeste, por meio de seu casamento com Jezabel, uma

das filhas do rei. Isso o obriga a facilitar a prática da fé de sua esposa,

com a construção de um altar ao Mestre e um Aserá, na nova capital

que o seu pai havia construído. À luz das práticas políticas e religiosas

do rei Acabe é que Elias declara que haverá um período de seca. Se não

há chuva, nada cresce no campo, as pessoas não têm o que comer e

morrem de inanição. Ainda, há certa lógica quanto a um profeta

israelita declarar que haverá uma catástrofe que se expressará por meio

dessa forma particular. Embora haja situações nas quais a ação prática

mais importante que Yahweh pode realizar por Israel seja proteger e

libertar a nação de seus inimigos (o êxodo e o mar de Juncos ilustram

isso); no curso regular da vida, contudo, quando a situação política está

mais estável, a ação mais importante que Yahweh pode fazer por Israel é

assegurar que a nação receba chuva em quantidade necessária. A

questão é: Israel pode confiar que Yahweh irá fazer isso? Povos como os

cananeus locais e seus parentes a nordeste, os fenícios, de onde veio

Jezabel, acreditavam que o Mestre era o deus que iria garantir a chuva.

Ao facilitar o culto ao Mestre em Samaria, por essa ser a fé de sua

esposa, o rei Acabe passava a impressão de esse ser o caso. Ainda, outras

passagens bíblicas deixam claro que muitos (a maioria?) israelitas

estavam, por via das dúvidas, preparados para proteger as suas apostas

orando tanto ao Mestre quanto a Yahweh.

Portanto, Elias, como um servo de Yahweh, declara que não haverá

chuva ou orvalho (durante os meses de verão, o orvalho é crucial para a

colheita), exceto quando ele assim disser. Essa repentina declaração é

notável de inúmeras maneiras. Do nada, Elias aparece na história, como

um raio. Na verdade, essa espécie de profecia é ímpar, e o poder que ele

assume é sem precedentes. O texto nada revela de seu histórico, exceto

que vem do outro lado do Jordão. Quem Elias é como pessoa não

importa, mas, sim, que ele é um homem de Deus, alguém divinamente

usado. Nada conhecemos de seu chamado, muito menos a narrativa


descreve Deus lhe dizendo que haverá um período de seca; ele é que

declara isso. Elias é quase como os ajudantes divinos sobrenaturais que

falam como se fossem uma espécie de encarnação de Deus. Na realidade,

no encerramento do relato, a viúva declara não que agora ela sabe que

Yahweh é Deus, mas que Elias é um homem de Deus, que

verdadeiramente expressa uma palavra confiável do próprio Deus.

Reconhecer Elias é reconhecer Yahweh.

Durante a seca, Deus irá prover Elias por meio de um riacho

isolado, junto ao qual ele viverá e com o auxílio de algumas aves

necrófagas. Todavia, um pequeno córrego (um curso d’água, que

atravessa um vale ou uma ravina e pode se tornar cheio e caudaloso na

estação de chuvas) pode secar temporariamente no verão e, certamente,

durante uma seca. Decerto, Deus poderia ter providenciado água para

Elias de modo especial, mas, em vez disso, Deus o faz sair do sudeste de

Efraim e o envia ao extremo nordeste, para além de Efraim, até o

território de Jezabel e de seu pai. Se você acreditasse em deuses

territoriais, então, com certeza aquele seria o território dominado pelo

Mestre. Desse modo, o fato de Elias ser o meio de levar a provisão de

Yahweh a uma pessoa carente é também levar o conflito ao território

inimigo e demonstrar que Yahweh é o verdadeiro Deus, tanto em Efraim

quanto na Fenícia. A provisão da viúva ao profeta sugere um

reconhecimento de que ele é alguém que representa Yahweh e que isso

tem importância.

A necessidade de trazer o filho da viúva de volta à vida possibilitaria

expressar esse ponto. Os cananeus e os israelitas também eram

propensos a presumir que o Mestre era o senhor da vida e da morte,

aquele que decidia quanto ao nascimento de crianças e sobre quem iria

morrer ou viver. Ali, em pleno território do Mestre, Elias demonstra

que Yahweh é quem detém esse poder. Não obstante, a história não

enfatiza esse ponto e, no episódio em questão, foca o pessoal, não o

político ou o religioso. Lá está uma mulher que se dedica a um servo de

Deus e permite que um forasteiro, com seu Deus estranho, ocupe o seu
quarto de hóspedes por ele necessitar de um lugar onde viver. Em seu

coração, há dor e o instinto usual de pensar que Deus a está punindo

quando tribulações entram em sua vida. Deus, realmente, fará o seu

filho morrer? Na realidade, a resposta é sim, como, em geral, ocorrerá,

mas, dessa vez, Deus não age assim, o que encoraja os israelitas a

permanecerem abertos à possibilidade de o Deus que opera milagres

dessa espécie operar um milagre para eles também.


1REIS 18:1-18
SOBRE DAR A CÉSAR E DAR A DEUS
1
Após um longo período, a palavra de Yahweh veio a Elias, no segundo ano: “Vá e apresente-

2
se a Acabe, e eu darei chuva sobre a face da terra.” Assim, Elias foi apresentar-se a Acabe.

3
Ora, a fome era severa em Samaria, e Acabe tinha convocado Obadias, que estava sobre a

4
sua casa. (Obadias era alguém que reverenciava a Yahweh profundamente. Quando Jezabel

eliminou os profetas de Yahweh, Obadias reuniu cem profetas e os escondeu, cinquenta

5
pessoas em cada caverna, e lhes providenciou comida e água.) Acabe disse a Obadias: “Vá

pelo país, a todas as nascentes de água e a todos os riachos. Talvez encontremos grama para

6
podermos manter os cavalos e as mulas vivos e não ficarmos sem animais.” Dividiram a

terra entre eles para a percorrer. Acabe seguiu o seu próprio caminho; Obadias seguiu o seu

7
próprio caminho. Obadias estava em seu caminho e, ali, Elias o encontrou. [Obadias] o

8
reconheceu, prostrou-se com o rosto em terra e disse: “És tu mesmo, meu senhor Elias?” Ele

9
lhe disse: “Sou eu. Vá e diga ao seu senhor: ‘Elias está aqui.’” Ele disse: “O que eu fiz de

10
errado para que entregues o teu servo ao poder de Acabe, para matá-lo? Tão certo como

Yahweh, o teu Deus, vive, não há nação ou reino aonde meu senhor não tenha enviado para

te procurar. Quando dizem: ‘Ele não está aqui’, ele faz a nação ou o reino jurar que não

11
conseguem te encontrar. Agora, estás dizendo: ‘Vá e diga ao seu senhor: “Elias está aqui”’,

12
e, quando eu te deixar, o espírito de Yahweh te carregará para algum lugar que eu não

conheço, e, quando eu for e contar a Acabe e ele não te encontrar, ele me matará. Teu servo

13
tem reverenciado a Yahweh desde a sua juventude. Meu senhor, certamente, foi informado

sobre o que fiz quando Jezabel matou os profetas de Yahweh e escondi uma centena de

14
profetas de Yahweh, cinquenta em cada caverna, e lhes forneci pão e água. Agora, estás

15
dizendo: ‘Vá e diga ao seu senhor: “Elias está aqui”’, e ele me matará.” Elias disse: “Tão

certo como Yahweh dos Exércitos vive, diante de quem estou [em assistência], eu aparecerei

16
diante dele hoje.” Então, Obadias foi ao encontro de Acabe e lhe disse, e Acabe foi se

17
encontrar com Elias. Quando viu Elias, Acabe lhe disse: “É você mesmo, perturbador de

18
Israel?” Ele disse: “Eu não tenho perturbado Israel. Antes, você e a casa do seu pai têm, ao

abandonar os mandamentos de Yahweh e seguir os Mestres.”

Dois amigos meus trabalham em um país do Oriente Médio no qual é

ilegal procurar as pessoas com o objetivo de levá-las a crer em Cristo. A

posição deles é segura, pois ambos trabalham na igreja expatriada,

localizada na capital, e é permitido que eles ministrem a cristãos ali.

Igualmente, os cristãos têm permissão de adorar a Cristo na igreja.


Bem, os ocidentais têm a proteção da lei, embora três cristãos locais

tenham sido mortos por estarem pregando e/ou supostamente falando

sobre Cristo a outras pessoas. De certo modo, espera-se que a alegação

seja verdadeira. No entanto, os meus amigos seriam expulsos caso

fossem flagrados abordando pessoas locais para convertê-las a Cristo.

De alguma forma, eles precisam “dar a César o que é de César e a Deus

o que é de Deus” e, ao fazer isso, ser “prudentes como as serpentes e

simples como as pombas” (veja Mateus 10:16; 22:21).

Elias e Obadias precisam agir assim, e eles exemplificam duas

maneiras de lidar com essa obrigação, pois ambos buscam provocar uma

mudança radical em Efraim. Não é o caso de apenas um desses

caminhos ser o correto; ambos podem ser eficazes, e aquele que você

adotar pode refletir a sua própria personalidade, como também a sua

vocação e a sua avaliação tática da situação. Elias (como a história está

prestes a revelar) é um homem que não faz concessões, que não cede a

temores ou pressões e que não faz prisioneiros. Obadias é, similarmente,

um servo leal e comprometido com Yahweh dos Exércitos. Seu nome,

na realidade, significa “aquele que serve Yahweh” (há um livro

profético associado a um Obadias, mas a autoria parece ser de outro

profeta com o mesmo nome, que viveu mais tarde). No entanto, ele

tenta ser um servo de Yahweh que trabalha mediante as estruturas e as

realidades políticas. Elias, por seu turno, simplesmente declara que o

julgamento de Deus está próximo e que abandonou Acabe. A julgar por

seu comportamento no presente relato, Elias não foi embora por estar

preocupado com a própria segurança. Ele está mais que pronto para

confrontar Acabe; ele era um homem de Deus, alguém que medita na

palavra e na ação de Deus, e que abandonou Acabe. Isso significava o

abandono do próprio Deus. O motivo de o rei Acabe tentar caçar Elias

está relacionado a esse fato. Paradoxalmente, Acabe tanto reconhece

quanto não reconhece o poder sobrenatural que Elias possui, isto é, o

poder de parar a chuva. O rei não se submete a Elias e a seu Deus, mas

também deseja impedir Elias de exercer aquele poder.


Em contraste, Obadias permaneceu em Samaria, trabalhando numa

posição de grande responsabilidade como administrador do palácio e,

ao mesmo tempo, tentando ser alguém que “reverencia a Yahweh”,

alguém que pode chamar Elias de seu “senhor”, embora também chame

Acabe de seu “senhor”. Em certo sentido, trata-se de um

posicionamento menos complexo; por outro, é mais complicado. É como

se ele fosse uma espécie de agente duplo. Obadias é membro da corte do

rei Acabe e obtém o seu salário desse cargo; ainda, ele está envolvido na

tentativa de mitigar os efeitos da seca sobre Acabe e a sua

administração — a seca causada pelo Deus a quem ele reverencia.

(Quando a história fala sobre Acabe e Obadias seguirem o próprio

caminho naquela missão, isso significa que eles estão separados um do

outro; cada qual estará acompanhado de seu próprio grupo de

colaboradores.) Contudo, Obadias esconde e protege uma centena de

profetas quando o rei tenta capturá-los, o que requer certas habilidades

organizacionais, além de certa bravura. Isso também abre uma janela

para um cenário que, de outra forma, passaria despercebido. Existem

centenas de profetas em Efraim, embora Jezabel tenha mandado matar

muitos deles. Esses são, talvez, profetas que ofereciam conselhos e

traziam a palavra de Deus a pessoas do povo, em situações rotineiras de

sua vida, algo similar ao próprio Elias em seu relacionamento com a

viúva de Sarepta. Descobriremos mais sobre eles por meio das histórias

que envolvem Elias.

É o segundo ano — presumidamente, o segundo ano de seca. Yahweh

e Elias oferecem evidências de que Yahweh é Deus e de que Elias é o

profeta de Yahweh pela declaração de que não haveria chuva. E não tem

havido chuva. Mas, caso você estivesse buscando um motivo para não

dar ouvidos a Elias, poderia dizer que era apenas uma coincidência.

Então, agora, Deus diz o oposto. Quando a palavra de Elias, uma vez

mais, se cumprir, a evidência será ainda mais difícil de refutar. Em

outras palavras, o motivo pelo qual a chuva voltará a cair não é porque

Deus pensa que já basta de seca ou pela compaixão divina pelo povo
(embora, sem dúvida, ele seja um Deus compassivo). A história é sobre

mostrar quem Deus é aqui. Há um toque de humor para nós, mas,

decerto, não para Obadias, pois, em relação a isso, Elias quer que

Obadias arrisque-se a estragar o seu disfarce. Existe, aqui, uma reflexão

incidental sobre a maneira de a profecia funcionar. Em nosso próprio

tempo, às vezes, surgem pessoas fazendo pronunciamentos sobre

desastres ocorridos, declarando ser aquele um ato de juízo divino por

causa dos pecados naquela sociedade — caracteristicamente, as

transgressões “favoritas” daquelas pessoas. O juízo de Elias é mais

impressionante. Ele não diz, após a vinda de uma prolongada seca, que a

tragédia era um ato de julgamento divino. Ele declara que haverá uma

seca, e ela vem. Uma das razões é por ele não estar meramente prevendo

a seca, mas a comissionando. Ele faz a seca acontecer. Isso é o que ele

pode fazer como um homem de Deus. Eis por que, de fato, o rei Acabe

precisa silenciá-lo.

Há outra peça do cenário que está por trás da história. Com

frequência, retratamos o Israel dos dias de Elias, simplesmente, como

uma nação que descendia do Israel dos dias de Moisés, permitindo

“conversões” de alguns estrangeiros como Raabe e Rute e, talvez, a

submissão de alguns povos como os gibeonitas, que enganaram Josué e

dele receberam vistos de cidadania. Na verdade, não é preciso ler nas

entrelinhas da história bíblica, de Josué até Reis, para ver que o povo

que chegou em Canaã, vindo de fora, assimilou milhares e milhares de

pessoas que já estavam lá. O problema é que a assimilação facilmente

tomou outro rumo. Ao longo da história, a fé nativa de Canaã ameaça

sobrepujar a fé de Moisés, e investigações arqueológicas confirmam esse

fato com base nas evidências desenterradas da religião que era

praticada em Israel. Para a maioria dos israelitas, a exortação de um

profeta como Elias para eles adorarem apenas Yahweh se assemelharia a

uma verdadeira revolução religiosa.

Os revolucionários são perturbadores e encrenqueiros, e é assim que

o rei Acabe considera Elias, mas, claro, o profeta vê o rei exatamente da


mesma forma.
1REIS 18:19-46
HÁ MOMENTOS EM QUE VOCÊ DEVE ESCOLHER
19
“Agora, mande reunir todo o Israel diante de mim no monte Carmelo, com os quatrocentos

e cinquenta profetas do Mestre e os quatrocentos profetas de Aserá que comem à mesa de

20
Jezabel.” Então, Acabe convocou todos os israelitas e reuniu os profetas ao monte

21
Carmelo. Elias aproximou-se de todo o povo e disse: “Por quanto tempo vocês irão hesitar

entre duas posições? Se Yahweh é Deus, sigam-no. Se é o Mestre, sigam-no.” Mas o povo não

22
lhe respondeu palavra nenhuma. Elias disse ao povo: “Eu sou o único profeta de Yahweh

23
que resta. Os profetas do Mestre somam quatrocentos e cinquenta. Assim, dois touros

devem ser dados a nós. Eles podem escolher um touro para si, dividi-lo e colocá-lo sobre a

madeira, mas não fazer um fogo. Eu prepararei o outro touro e o colocarei sobre a madeira,

24
mas não farei um fogo. Vocês invocarão o nome de seu deus; eu invocarei o nome de

Yahweh. O Deus que responder por meio do fogo, esse é Deus.” Todo o povo respondeu: “O

25
que você diz é bom.” Elias disse aos profetas do Mestre: “Escolham um touro para vocês e

o preparem primeiro, porque há muitos de vocês. Clamem em nome de seu deus, mas não

26
façam um fogo.” Eles pegaram o touro que lhes foi dado, o prepararam e clamaram pelo

nome do Mestre, de manhã até o meio-dia, dizendo: “Mestre, responde-nos”, mas não houve

27
som, nenhuma resposta. Eles pulavam sobre o altar que tinha sido feito. Ao meio-dia, Elias

zombou deles: “Clamem mais alto, porque ele é um deus, porque ele está falando, ou fora, ou

28
em uma jornada, ou, talvez, adormecido, e ele acordará.” Assim, eles chamaram em voz alta

e açoitaram-se, de acordo com seu costume, com espadas e lanças, até o sangue fluir sobre

29
eles. Após passar o meio-dia, eles profetizaram até [o tempo para] apresentar a oferta [da

tarde], mas não houve nenhum som, nenhuma resposta, ninguém prestando atenção.

30
Então, Elias disse a todo o povo: “Aproximem-se de mim.” Todo o povo aproximou-se dele,

31
e ele reparou o altar demolido de Yahweh. Elias apanhou doze pedras, de acordo com o

número dos doze clãs dos filhos de Jacó (a quem a palavra de Yahweh tinha vindo: “Israel

32
será o seu nome”). Ele construiu, com as pedras, um altar ao nome de Yahweh e fez uma

33
vala, como um receptáculo para dois seás de sementes, em volta do altar. Ele depositou a

34
madeira, cortou o touro e o colocou sobre a madeira. Ele disse: “Encham quatro potes com

36
água e a derramem sobre a oferta queimada e sobre a madeira [...].” Na hora de apresentar

a oferta [da tarde], o profeta Elias aproximou-se e disse: “Yahweh, Deus de Abraão, Isaque e

Israel, que hoje seja reconhecido que tu és Deus em Israel, que sou teu servo e que por tua

37
palavra tenho feito todas estas coisas. Responde-me, Yahweh, responde-me, para que esse

povo possa reconhecer que tu, Yahweh, és Deus, e que fazes o espírito deles retornar para ti.”

38
Fogo de Yahweh caiu e consumiu a oferta queimada, a madeira, as pedras, o chão e lambeu

39
a água na vala. Todo o povo viu, prostrou-se com o rosto em terra e disse: “Yahweh, ele é

40
Deus. Yahweh, ele é Deus.” Elias lhes disse: “Prendam os profetas do Mestre. Nenhum

deles pode escapar.” Eles os prenderam, e Elias os fez descer ao riacho de Quisom e lá os
41
matou. Elias disse a Acabe: “Suba, coma e beba, porque o som estrondoso é chuva [...].”

46
A mão de Yahweh veio sobre Elias. Ele atou as suas roupas e correu à frente de Acabe até

chegar a Jezreel.

O pontapé inicial da Copa do Mundo de futebol está prestes a ser dado

na África do Sul, e acabei de receber uma carta sobre esse evento, de um

amigo que está no Líbano. O Líbano não está entre os países

classificados para disputar a Copa do Mundo, de modo que os libaneses

escolhem times estrangeiros para os quais torcer e, então, hasteiam as

respectivas bandeiras em seus automóveis. Esse meu amigo é norte-

americano, e os Estados Unidos também não se classificaram para a

Copa, mas a sua esposa é coreana de nascimento, e, assim, ficou fácil

decidirem por qual país torcer. Eles compraram uma grande bandeira

da Coreia para exibir no carro deles. Agora, enquanto isso acontece,

também estou lendo um livro sobre o Oriente Médio, intitulado The

Media Relations Department of Hizbollah Wishes You a Happy Birthday

[O departamento de relações com a mídia do Hezbollah deseja a você

um feliz aniversário]. Esse livro também relata escolhas que o povo do

Líbano é obrigado a fazer, e, em certo sentido, essas escolhas parecem

fáceis — ou melhor, as pessoas podem pensar que não têm muita escolha

no tocante a qual comunidade pertencer ou quais ordens acatar. No

entanto, as consequências das suas escolhas podem representar uma

questão de vida ou morte. Em algumas situações, a decisão sobre qual

religião seguir pode não cobrar um elevado preço, particularmente em

um contexto ocidental, no qual a religião é um assunto da vida privada.

A decisão dos efraimitas, em 1Reis 19, era complexa, mais parecida

com a dos libaneses atuais. (Ironicamente, o Líbano era a região de

origem de Jezabel.) Na verdade, para os efraimitas constituía uma

questão de vida ou morte. O início da história em questão parece deixar

claro qual decisão eles precisam tomar. Elias declarou que um período

de seca viria sobre o território porque o povo havia se afastado de


Yahweh, não é mesmo? A nação sofre com uma seca, não sofre? Não é

preciso ser um gênio para entender. No entanto, quando se está no meio

da situação, as decisões parecem ser mais complicadas. Isso é verdadeiro

para os envolvidos; pode parecer óbvio aos de fora o que eu deveria

fazer em determinadas circunstâncias, mas isso não é tão evidente para

mim. O mesmo pode ser aplicado às comunidades. Quando os Estados

Unidos agonizavam por causa de seu sistema de saúde, a espécie de

reforma necessária, em termos gerais, parecia óbvia ao resto do mundo,

mas não ao povo norte-americano. É preciso estar inserido no

pensamento de alguém para entender por que algo que tão cristalino e

transparente a alguns parece um vidro embaçado para outros. Elias está

encorajando Israel a confiar somente em Yahweh em prol de sua saúde,

sua agricultura e sua segurança. Isso é contraintuitivo e contracultural.

Além do mais, existem todos aqueles outros profetas e seus

respectivos ministérios, aos quais o povo está acostumado. A história

ainda abre outra janela para uma realidade que passaria despercebida.

Além das centenas de profetas de Yahweh, Efraim possui quatrocentos e

cinquenta profetas que ministram em nome do Mestre e quase a mesma

quantidade que ministra em nome de Aserá. Todos eles contam com

patrocínio e apoio real; eles comem à mesa de Jezabel. É fácil pensar que

os profetas, por definição, sejam servos de Yahweh, mas o Antigo

Testamento reconhece que a profecia é um fenômeno que Israel

compartilha com outros povos e com os devotos de outras religiões.

Quando era necessário saber como alguma enfermidade poderia eclodir,

o que fazer a respeito dela, ou o que teria acontecido a um animal que

desapareceu, ou, ainda, por quanto tempo mais uma seca iria durar,

havia centenas de pessoas com dons proféticos que poderiam ser

capazes de descobrir o que o Mestre ou Aserá tinha a revelar sobre tal

questão.

Assim, os efraimitas tinham duas opções. Eles podiam recorrer a

Yahweh ou ao Mestre e Aserá. Elias exige que eles decidam. Trata-se de

um exercício de adivinhação definir por que a competição ocorreu no


monte Carmelo, a longa cordilheira que corre do sudeste a noroeste, do

coração de Efraim até o Mediterrâneo. Talvez por ser uma região

fronteiriça entre Efraim e a Fenícia, a terra de Jezabel. Relacionado a

essa possibilidade está o fato de Elias ter edificado um altar de Yahweh

ali, o que sugere que, outrora, havia um altar e que ele fora destruído —

possivelmente quando o culto fenício passou a dominar aquela região.

Em certo sentido, Elias facilita a decisão ao povo. Com um deleite

escatológico, ele demonstra que os profetas do Mestre não conseguem

cumprir o seu desafio, mas ele sim. No verão, o Mestre parecia morrer;

quando as chuvas voltavam, no outono, era um sinal de que ele voltara

à vida. A automutilação dos profetas, então, é uma identificação com a

morte do Mestre e busca trazê-lo de volta à vida. Pode-se recordar a

sarcástica descrição dos deuses babilônios como necessitados do

transporte de seus devotos; eu achei que Deus é que carregava você,

Isaías 46 comenta.

Eu preferiria que Elias não tivesse matado todos aqueles profetas.

Talvez Deus sinta o mesmo. A narrativa não diz que Deus instruiu Elias

a fazer isso, nem expressa uma opinião direta sobre a sua ação.

Igualmente, preferiria que Jesus não falasse sobre pessoas indo para o

inferno, que seus doze alunos iriam julgar os doze clãs israelitas, que

Jerusalém iria cair novamente, nem que ela tivesse caído no ano 70 d.C.

No juízo, os Doze agirão como representantes de Cristo e,

implicitamente, é como representante de Deus que Elias executa os

profetas, da mesma forma que representava Deus quando declarou que

haveria uma seca e, então, quando afirmou que a chuva cairia. Ele age

como um “homem de Deus”, com poder e autoridade atemorizantes.

(Ele precisaria de algum poder estranho para executar os quatrocentos

profetas.) Não era uma ação que os profetas normalmente faziam, assim

como não era usual da parte de Deus. Essa foi uma ocasião

extraordinária, a exemplo do massacre dos cananeus, em Josué, ou dos

efraimitas, quando Samaria caiu, ou ainda dos judaítas, com a queda de

Jerusalém, da qual leremos adiante, nesse livro.


Há ocasiões em que Deus diz “Basta” e adota uma ação radical. O

relato em questão configura uma dessas ocasiões. Como as advertências

de Jesus sobre o inferno, a história objetiva nos causar horror e nos faz

encarar as possíveis consequências da escolha errada sobre seguir ou

não o verdadeiro Deus, que se revelou a nós.

O encerramento da história mostra Elias continuando a manifestar

o poder sobrenatural de um homem de Deus. Ele sabe que a chuva está

vindo e corre de volta a Jezreel mais rápido do que o rei Acabe é capaz.
1REIS 19:1-21
O MURMÚRIO DE UMA BRISA SUAVE
1
Quando Acabe disse a Jezabel tudo sobre o que Elias tinha feito e tudo sobre a maneira pela

2
qual ele tinha matado todos os profetas à espada, Jezabel enviou um ajudante a Elias,

dizendo: “Que os deuses façam assim e eles façam mais se a esta hora, amanhã, eu não fizer

3
com a sua vida o que fez com a deles.” Ele ficou com medo, levantou-se e saiu para salvar

4
sua vida. Em Berseba, que pertence a Judá, ele deixou o seu rapaz e entrou no deserto, em

uma jornada de um dia. Ele chegou, sentou-se debaixo de uma giesta e pediu por sua vida,

para que pudesse morrer. Ele disse: “É demasiado. Tire a minha vida agora, Yahweh, porque

5
não sou melhor que os meus ancestrais.” Ele se deitou e dormiu debaixo de uma giesta. E ali

6
um ajudante ficou tocando nele e dizendo: “Levante-se e coma.” Ele olhou, e eis, junto à sua

cabeça, um pão assado sobre brasas e um pote de água. Ele comeu, bebeu e deitou-se

7
novamente. O ajudante de Yahweh voltou uma segunda vez, o tocou e disse: “Levante-se e

8
coma, porque a jornada é demasiada para você.” Ele se levantou, comeu, bebeu e seguiu, na

força daquela comida, quarenta dias e quarenta noites, até chegar à montanha de Deus,

Horebe.

9
Ele chegou a uma caverna e passou a noite ali. Então, a palavra de Yahweh veio a ele. Ele lhe

10
disse: “O que você está fazendo aqui, Elias?” Ele disse: “Tenho sido muito dedicado a

Yahweh, o Deus dos Exércitos, porque os israelitas abandonaram a tua aliança. O teu altar,

eles demoliram; os teus profetas, eles mataram à espada. Sou o único que restou, e eles estão

11
procurando tirar a minha vida.” Ele disse: “Sai e fique na montanha diante de Yahweh.” E,

então, um vento grande e forte estava passando, dividindo as montanhas e quebrando os

rochedos diante de Yahweh (Yahweh não estava no vento). Depois do vento, um terremoto

12
(Yahweh não estava no terremoto); depois do terremoto, um fogo (Yahweh não estava no

13
fogo); e, depois do fogo, o murmúrio de uma brisa suave. Quando Elias ouviu isso, ele

envolveu o rosto em sua capa, saiu e parou à entrada da caverna. E, ali, uma voz veio a ele e

14
disse: “O que você está fazendo aqui, Elias?” Ele disse: “Tenho sido muito dedicado a

Yahweh, o Deus dos Exércitos, porque os israelitas abandonaram a tua aliança. O teu altar,

eles demoliram; os teus profetas, eles mataram à espada. Sou o único que restou, e eles estão

15
procurando tirar a minha vida.” Yahweh lhe disse: “Vá, retorne pelo caminho em que você

veio, para o deserto de Damasco. Quando você chegar lá, unja Hazael como rei de Aram.

16
Unja também Jeú, filho de Ninsi, como rei sobre Israel e unja Eliseu, filho de Safate, de

17
Abel-Meolá, como profeta em seu lugar. A pessoa que escapar da espada de Hazael, Jeú a

18
matará. A pessoa que escapar da espada de Jeú, Eliseu a matará. Mas deixei em Israel sete

mil, todos os joelhos que não se curvaram ao Mestre e toda boca que não o beijou.”

19
Então, ele saiu de lá e encontrou Eliseu, filho de Safate. Ele estava arando com doze

parelhas [de bois] adiante dele; ele estava com a décima segunda. Elias foi até ele e jogou a

20
sua capa sobre ele. [Eliseu] abandonou os animais, correu atrás de Elias e disse: “Eu apenas
irei beijar o meu pai e a minha mãe e te seguirei”, mas ele lhe disse: “Volte, porque o que eu

21
fiz a você?” Ele voltou atrás de segui-lo, pegou a sua parelha de bois e os matou. Com o

equipamento dos bois [como lenha] ele os cozinhou [como] a carne e a deu ao povo, e eles

comeram. Então, ele se levantou, seguiu Elias e ministrou a ele.

Tenho a propensão de pensar que nada do que faço na tentativa de

cumprir a minha vocação alcança alguma coisa. Minha vocação é ajudar

pessoas a compreender o Antigo Testamento e deixá-lo moldar o seu

pensamento e a sua vida. Sou passionalmente comprometido com essa

missão e quero prosseguir buscando cumpri-la em vez de me aposentar

e passar mais tempo andando de bicicleta pelo calçadão, mas sinto-me

inclinado a pensar que sou um total fracasso. Isso não se deve à minha

incompetência, mas porque as probabilidades de as pessoas ignorarem o

Antigo Testamento são altas, especialmente em nossa cultura ao longo

das últimas décadas. Nada do que eu faço, como escrever todos esses

comentários ou ter quatrocentos ou quinhentos alunos em minhas aulas

todos os anos, consegue fazer uma diferença significativa. Isso suscita a

questão do por que sigo em busca de cumprir essa vocação e creio que a

resposta está inserida na própria indagação. É a minha vocação.

Assim sendo, em minha microscópica posição, identifico-me com

Elias quando ele chega à conclusão de que a sua obra como profeta é um

fracasso absoluto; e a maneira de Deus lidar comigo sobrepõe-se à forma

de Deus falar com Elias. De tempos em tempos, Deus leva algum

graduando a me enviar um e-mail, descrevendo como ele ou ela está

dirigindo um grupo de estudo bíblico em, digamos, Salmos, à luz da

forma pela qual os estudamos em sala de aula e como isso tem

revolucionado a oração dos membros do grupo. Elias está inclinado a

ver as coisas mais sombrias do que elas são e pensar que é o único

profeta (ou a única pessoa?) que resta leal a Yahweh. Será por ele saber

confrontar um homem como o rei Acabe, mas não uma mulher como

Jezabel?
Seja como for, ele foge para salvar a sua vida. A jornada até Berseba,

a fronteira efetiva de Judá ao sul, duraria alguns dias. Será que o seu

jovem assistente chegou ao seu limite lá? Este não parece ser o caso de

Elias, mas ele sabe para onde está indo? Ou está seguindo sem direção?

Após outro dia, ele se detém para respirar pela primeira vez e fala com

Deus também pela primeira vez. Para seu desespero, Deus não lhe

responde, exceto para lhe providenciar alimentação. Em algum

momento, Elias começa a viajar pelo deserto por algumas semanas, até

chegar ao lugar no qual, muito tempo atrás, Deus havia aparecido a

Moisés. Essa é a única ocasião, no texto bíblico, na qual alguém faz essa

peregrinação. A intenção de Deus é lidar com Elias ali e, para isso,

providencia o sustento do profeta. Em quase todas as teorias sobre a

localização do monte Sinai ou monte Horebe (ambos os nomes são

usados no Antigo Testamento), não seriam necessários quarenta dias

literais para chegar lá, mas esse número possui um significado

simbólico, pois foi o tempo que Moisés passou no monte Sinai.

Ali, Deus aparece a Elias e, gentilmente, lhe indica que ele não é a

única pessoa leal que resta. Talvez não tão gentilmente assim. A

maneira pela qual Deus fala a Elias envolve vento, terremoto, fogo e,

por fim, um suave murmúrio de brisa. A Revista e Corrigia Fiel

apresenta “uma voz calma e baixa”, todavia a expressão é mais elusiva

do que essa tradução implica. A história não afirma que Deus está nesse

murmúrio suave, embora comente que ele não está no vento, no

terremoto e no fogo. O ponto da história em relação a isso é evitar que

identifiquemos Deus com o terremoto, o vento e o fogo, como o leitor

seria tentado a fazer. O Antigo e o Novo Testamentos seguirão

afirmando que Deus é o Deus do terremoto, do vento e do fogo, e, para

Elias, eles reafirmam o poder e a força de seu Deus, que ele corre o risco

de esquecer (igualmente, o Antigo e o Novo Testamentos não mais

retratarão Deus falando por meio do murmúrio de uma brisa suave).

Elias recupera a certeza de que Deus ainda é o mesmo Deus que

apareceu a Moisés e aos israelitas no Sinai.


Após estabelecer esse fato, Deus tem uma tripla comissão a Elias.

Uma delas é que ele deve ungir um novo rei em Efraim em substituição

a Acabe. Isso não surpreende, pois Acabe, claramente, testou a

longanimidade divina ao máximo, e Deus irá repetir um padrão ao qual

já estamos familiarizados. Deus havia comissionado um profeta para

revelar a Jeroboão que ele colocaria um fim na autoridade de Roboão

em Efraim, tinha contado à esposa de Jeroboão que pretendia terminar

o governo da casa de Jeroboão ali, e igualmente designou um profeta

para dizer a Baasa que ele também seria substituído. Agora, Deus

instrui a unção do primeiro rei de outra linhagem.

Acompanhando essa unção, no entanto, há duas outras unções

surpreendentes. A primeira é sobre um novo rei em Aram, a região

situada a nordeste, aproximadamente equivalente à moderna Síria. Esse

ato de Elias significa que Yahweh não é meramente um deus local, com

poder apenas em Israel. Yahweh é Deus em escala internacional. Essa é

uma convicção que será central no ensino dos profetas posteriores. A

maneira pela qual a história se desenvolve está relacionada com o que

Deus está fazendo em Israel. A má notícia, no contexto em questão, é

que Aram será o maior perturbador de Israel por um século ou dois.

Além disso, Elias deve ungir Eliseu como o seu sucessor. Isso é

igualmente estranho, pois os profetas não são ungidos. A unção é uma

cerimônia pela qual a comunidade separa um sacerdote ou um rei e o

designa como detentor de autoridade dada por Deus. Apenas aqui e em

Isaías 61 há menção a um profeta sendo ungido. É como se Deus falasse

metaforicamente, pois, na realidade, Elias jamais unge alguém. Ele, de

fato, designa Eliseu como seu sucessor e, assim, dá início a uma cadeia

de eventos mediante a qual Hazael se torna rei de Aram e Jeú ascende

ao trono de Efraim; Eliseu é que comissiona Hazael, do mesmo modo

que ele mesmo comissiona outros profetas a ungir Jeú.


1REIS 20:1—21:7
NO MUNDO E TAMBÉM DO MUNDO
1
Ora, Ben-Hadade, o rei de Aram, reuniu todo o seu exército; trinta e dois reis estavam com

2
ele, com seus cavalos e suas carruagens. Ele subiu, sitiou Samaria e guerreou contra ela. Ele

3
enviou ajudantes à cidade de Acabe, o rei de Israel, e lhe disse: “Ben-Hadade disse isto: ‘A

4
sua prata e o seu ouro são meus; as suas adoráveis esposas e filhos são meus.’” O rei de Israel

replicou: “De acordo com a tua palavra, meu senhor e rei, eu e tudo o que tenho somos teus

13
[...].” Mas certo profeta aproximou-se de Acabe, rei de Israel, e disse: “Yahweh disse isto:

‘Vê essa grande força? Ora, eu a estou dando em suas mãos hoje, e você reconhecerá que eu

15
sou Yahweh [...].’” Então, ele mobilizou os jovens dos oficiais provinciais (eles eram

duzentos e trinta e dois) e, depois deles, mobilizou toda a companhia, todos os israelitas

16
(sete mil), e eles saíram ao meio-dia. Ben-Hadade estava se embriagando nas tendas, ele e

20b
os trinta e dois reis que o apoiavam. [...] Os arameus fugiram, e os israelitas os

22
perseguiram. Ben-Hadade, rei de Aram, escapou a cavalo, assim como a cavalaria. [...] Mas

o profeta aproximou-se do rei de Israel e lhe disse: “Vá, fortaleça-se, descubra e veja o que

você deve fazer, porque na virada do ano o rei de Aram irá subir novamente contra você.”

[Os versículos 23-43 relatam como Acabe obtém outra vitória contra Aram, apesar de todos os

prognósticos desfavoráveis, mas um profeta o condena por estabelecer um tratado de paz com

Ben-Hadade.]

CAPÍTULO 21

1
Algum tempo depois, Nabote, o jezreelita, tinha uma vinha em Jezreel, próxima ao palácio

2
de Acabe, rei de Samaria. Acabe falou a Nabote: “Dê-me a sua vinha para que ela possa ser a

minha horta, porque ela está ao lado da minha casa. Em seu lugar, lhe darei uma vinha

3
melhor; [ou] se for bom aos seus olhos, eu lhe darei o preço em prata.” Mas Nabote disse a

4
Acabe: “Yahweh me proíba de lhe dar a posse de meus ancestrais.” Acabe chegou em casa

ressentido e irado por causa da palavra que Nabote tinha lhe falado. [...] Ele se deitou em sua

7
cama, virou o rosto e não comeu nada. [...] Jezabel, sua esposa, lhe disse: “Você deve exercer

o seu reinado sobre Israel agora. Levante-se e coma algo. Anime-se. Eu mesmo lhe darei a

vinha de Nabote, o jezreelita.”

Estou me preparando para a força-tarefa que se reunirá na próxima

semana para discutir o uso da Bíblia na Comunhão Anglicana mundial.

O encontro será complicado porque incluímos membros da Igreja

Episcopal nos Estados Unidos, bem como pessoas que a deixaram e


formaram uma Igreja Anglicana alternativa em solo norte-americano. A

última inclui inúmeras paróquias próximas à minha residência, e esse

desenvolvimento tem levado a julgamentos em tribunais extremamente

dispendiosos para decidir se os edifícios da igreja pertencem à Igreja

Episcopal ou se as paróquias que deixaram a instituição podem ficar

com as instalações que usavam. Bem, é muito fácil aceitar que divisões e

dissensões estejam ocorrendo na igreja; tem sido assim desde os

primórdios da história eclesiástica, mas parece algo estranho quando

cristãos levam outros às barras dos tribunais para resolver essa questão

(como Paulo observa em 1Coríntios 6). Como devemos viver no mundo

como povo de Deus?

O pobre rei Acabe não tem a menor ideia quanto a essa questão. Na

verdade, ele parece desinformado e ponto final. Ele é uma figura trágica,

como o capitão do romance Moby Dick, que carrega o mesmo nome do

rei. No caso do israelita, ele é rei porque o seu pai era rei; essa era a

única qualificação que ele precisava apresentar. O problema é que a sua

monarquia não é nominal, a exemplo das modernas monarquias

europeias. Ele exerce um poder real e tem de tomar decisões reais. Por

ele ser rei em Israel, espera-se que ele tome tais decisões à luz da

realidade do relacionamento de Deus com Israel, mas ele também deve

tomá-las à luz do fato de que ele e o seu povo vivem no mundo material

e visível, ao lado de outros reis e povos e entrelaçado com eles. Espera-

se que ele viva no mundo, mas não pertença ao mundo. Todavia, esse é

um desafio sobremodo elevado.

Ainda mais quando se tratava de uma guerra. Sabemos, do capítulo

19, que os dias de Ben-Hadade estão contados, e, quando ele aparece no

início do capítulo 20, a nossa reação é esperar que a história nos conte

como a declaração de Deus sobre ele se cumpre, isto é, como ele perde o

trono e a vida. Se é assim que as coisas devem supostamente funcionar,

Acabe evita que elas assim ocorram. Igualmente, sabemos que os dias do

rei Acabe também estão contados e poderíamos, da mesma forma (ou

alternativamente), esperar que o ataque de Ben-Hadade contra


Samaria fosse o meio pelo qual Deus castigaria Efraim pela apostasia à

qual Acabe levou o povo. A surpreendente e boa notícia para o rei

efraimita é que isso não acontece. Ben-Hadade vem de Aram na

companhia de um grupo de reis que representam o seu império (em

nossos termos, eles seriam como os prefeitos das cidades) e insiste na

rendição de Acabe. O rei de Efraim não se importa em abrir mão de sua

prata e de seu ouro, nem mesmo de suas melhores esposas e filhos (!),

mas, então, Ben-Hadade faz mais exigências. Acabe queixa-se disso ao

seu povo, e este o encoraja a permanecer firme. Ele o faz

esplendidamente com um desafio, indicando que gabar-se da vitória

quando se está cingindo a espada à cintura é uma coisa, mas gabar-se

quando se está soltando a espada da cintura (isto é, quando a batalha

está ganha) é outra. Um profeta transmite a Acabe a promessa de Deus

quanto a entregar o exército de Ben-Hadade em suas mãos e lhe revela

o plano para a vitória que Acabe implementa.

O profeta retorna e adverte o rei Acabe de não relaxar, mas ficar

preparado para outro ataque. Dessa vez, Ben-Hadade comete o erro de

caluniar Yahweh: “Eles nos venceram porque lutamos nas montanhas,

no território do deus deles.” Como de costume, faltava aos israelitas o

equipamento militar sofisticado de seus oponentes, mas, em território

montanhoso, essa sofisticação bélica não fazia tanta diferença. Ben-

Hadade considera isso como um fato de importância teológica. Yahweh

não será capaz de vencer assim na planície. Portanto, é para território

plano que ele atrai os efraimitas na próxima vez. Um homem de Deus

assegura a Acabe que Yahweh, obviamente, terá de mostrar a Ben-

Hadade que ele está equivocado. Os israelitas obtêm uma vitória

avassaladora, mas, então, Acabe se comporta de uma forma que nós

aprovaríamos, mas que Deus desaprova. Generoso na vitória, Acabe

declina de matar Ben-Hadade e ainda estabelece uma aliança com ele.

Isso faz soar alguns alarmes. Em outra ocasião, Asa, o rei judaíta, fez

uma aliança ou um tratado com Ben-Hadade (veja o capítulo 15).

Provavelmente, trata-se de outro Ben-Hadade; o nome é mais um título


do que um nome pessoal, mas as questões são as mesmas. O que Efraim

está fazendo, como um povo que supostamente pertence a Yahweh, o

Deus de Israel, ao estabelecer uma aliança com um rei de Aram?

“Porque você libertou o homem que eu pretendia que fosse ‘devotado’,

a sua vida se tornará uma substituta da vida dele, e o seu povo, do povo

dele.” Acabe está se comportando de uma forma politicamente precisa e

civilizada, mas isso significa seguir o modo de vida do mundo, estar no

mundo e também ser do mundo. Portanto, devidamente repreendido,

ele volta para o seu palácio, ressentido e irado. Afinal, ele estava apenas

fazendo o seu melhor, na maneira mais sábia possível.

Em breve, ele terá mais motivos para alimentar o seu ressentimento

e a sua ira. Sem comparação com os padrões ocidentais, Israel possui

uma visão revolucionária no tocante à propriedade. A terra pertence a

Deus; afinal, ele a fez, a criou. Os seres humanos não podem possuir a

terra; eles não podem comprá-la nem vendê-la. Como o proprietário da

terra, Deus está sempre disposto a permitir que as pessoas façam uso

dela. Na verdade, Deus está desejoso de fazer isso; ele criou a

humanidade para servir à terra. Deus faz isso em macroescala, alocando

o território a diferentes nações. No caso de Israel, Deus, então, faz essa

alocação em uma escala menor, ao demandar que Israel distribua a terra

entre os doze clãs por sorteio — esse é um meio de deixar Deus tomar as

decisões. A seguir, é legado aos clãs individuais distribuir a terra entre

os seus grupos de parentesco e famílias. Pode-se ver que esse sistema de

distribuição funciona bem quando as pessoas estão espalhadas pelo

território sem possuir um poder central, mas, assim que esse governo

centralizado é instituído e as cidades são estabelecidas, as coisas se

tornam mais complexas. Quando o governo necessita de terras, ele

precisa reivindicar o “domínio eminente” (nos Estados Unidos), ou

fazer uma “compra compulsória” (na Grã-Bretanha), ao mesmo tempo

que dá aos donos uma compensação apropriada pela perda de sua terra

para o bem da nação como um todo. Acabe faz essa suposição. O

problema é que Nabote é da velha guarda. A vinha que seria


conveniente ao rei adquirir tem pertencido à família de Nabote por

gerações, e uma outra vinha, igualmente boa e produtiva, não seria a

mesma coisa. Duas cosmovisões estão em franco confronto. Uma vez

mais, Acabe quer viver no mundo alicerçado nas presunções que,

regularmente, ele obtém do próprio mundo. Como pode ele gerir uma

administração eficiente se não é capaz de fazer decisões estratégicas

nem mesmo em relação à propriedade que ladeia o palácio? Ele não sabe

como lidar com o comportamento de Nabote, mas, felizmente, ele tem

uma esposa que sabe muito bem o que fazer.


1REIS 21:8-29
A CAPITAL DA CORRUPÇÃO
8
[Jezabel] escreveu documentos em nome de Acabe, lacrou-os com o selo dele e os enviou

9
aos anciãos e aos cidadãos que viviam na cidade com Nabote. Ela escreveu nos documentos:

10
“Convoquem um jejum e ponham Nabote sentado à frente do povo e dois homens inúteis

sentados na frente dele. Eles devem testificar contra ele: ‘Você insultou a Deus e ao rei.’

11
Então, levem-no para fora e o apedrejem até a morte.” Os homens da cidade, os anciãos e

14
cidadãos que viviam em sua cidade fizeram como Jezabel lhe ordenou. [...] Eles enviaram a

15
Jezabel: “Nabote foi apedrejado até a morte.” Quando Jezabel ouviu que Nabote tinha sido

apedrejado até a morte, disse a Acabe: “Levante-se, tome posse da vinha de Nabote, o

jezreelita, que ele lhe recusou dar por prata, porque Nabote não está vivo. Ele está morto

17 18
[...].” Mas a palavra de Yahweh veio a Elias, o tesbita: “Levante-se, desça para encontrar-

se com Acabe, rei de Israel, que está em Samaria. Ele está na vinha de Nabote, à qual desceu

19
para dela tomar posse. Diga-lhe: ‘Yahweh disse isto: “Você assassinou e, então, tomou

posse?”’ Diga-lhe: ‘Yahweh disse isto: “No lugar onde os cães lamberam o sangue de Nabote,

20
eles lamberão também o seu sangue.”’” Acabe disse a Elias: “Você me encontrou, meu

inimigo?” Ele disse: “Eu o encontrei, porque você se vendeu para fazer o que é errado aos

21
olhos de Yahweh. ‘Agora, eu irei trazer aflição sobre você. Irei consumi-lo e cortarei de

22
Acabe aqueles que urinam contra a parede (preso ou livre) em Israel. Farei a sua casa

como a casa de Jeroboão, filho de Nebate, e a casa de Baasa, filho de Aías, pela provocação

23
que você ofereceu. Você fez Israel pecar.’ Yahweh também falou sobre Jezabel: ‘Os cães

24
comerão Jezabel junto à muralha de Jezreel. A pessoa que pertencer a Acabe e que morrer

na cidade, os cães comerão; a pessoa que morrer em campo aberto, as aves dos céus comerão

27
[...].’” Quando Acabe ouviu essas palavras, ele rasgou as suas roupas, colocou pano de saco

28
sobre o seu corpo e jejuou. Ele dormiu sobre panos de saco e ficou em silêncio. A palavra

29
de Yahweh veio a Elias, o tesbita: “Você viu que Acabe curvou-se diante de mim? Porque

ele se curvou diante de mim, eu não trarei a aflição em seus dias. Nos dias de seu filho, eu

trarei a aflição sobre a sua casa.”

Sentado no banco do metrô, a caminho de casa, ontem à noite, ouvi, por

acaso, uma conversa entre dois jovens sobre os candidatos em nossa

próxima eleição governatorial. Um deles lamentava o fato de o único

motivo de as pessoas entrarem na política é para ganhar dinheiro e que

os políticos desperdiçam grande parte de seu tempo enganando a nós,

pessoas comuns, por meio de impostos para levantar recursos que serão
gastos em projetos prestigiosos, mas que pouco beneficiam a população

em geral. Isso fez-me lembrar de um ou dois artigos que proclamaram

esta ou aquela cidade como a capital da corrupção dos Estados Unidos.

A corrupção, com frequência, envolve políticos e a manipulação das

eleições, mas o objetivo principal é o dinheiro.

Pela narrativa, não fica claro se Acabe mudou a capital para Jezreel,

e ele ainda é descrito como: “Acabe, rei de Israel, que está em Samaria”,

mas, evidentemente, ele possui um palácio em Jezreel, no vale fértil e

amplo, situado no centro de Efraim. Seja ela a capital oficial ou não,

agora Jezreel recebe o título de capital da corrupção daquela nação. A

reação quase infantil de Acabe pela recusa de Nabote em lhe vender a

sua vinha sugere que ele seja uma figura sobremodo patética, cuja falta

de noção contrasta com a capacidade de sua esposa em fazer as coisas

acontecerem. Talvez não seja mera coincidência que Elias não tenha

expressado temor algum por Acabe, mas tenha fugido para salvar a sua

vida quando Jezabel declarou a intenção de tratá-lo da mesma forma

que ele tratou os profetas do Mestre. De fato, pode ser fácil a um

homem saber lidar com outro homem poderoso, mas não é tão simples

assim lidar com uma mulher poderosa. Além disso, por ser fenícia,

Jezabel considera como certas algumas crenças sobre o relacionamento

entre religião e política que contrastam com aquelas cridas pelos

israelitas, bem como com outras crenças muito comuns nas demais

culturas. A exemplo de muitos britânicos e norte-americanos, a rainha

presumia haver uma relação íntima entre o seu compromisso religioso e

a sua identidade nacional ou política. A ideia de distinguir

compromisso com César e compromisso com Deus parecia estranha. O

Mestre designava o governo da nação ao rei; este servia ao Mestre, ou

(no caso de Acabe) a Yahweh — para a rainha não fazia diferença

chamar Deus de “o Mestre” ou “Yahweh”. Seja como for, a insistência de

Nabote em manter a posse de sua propriedade quando o rei precisava

dela representava uma resistência ao fundamento religioso e político

que sustentava a nação. Ao mesmo tempo, Jezabel obviamente


reconhecia a tensão entre a sua religião e as suas premissas políticas e

aquelas reconhecidas pela sociedade de seu marido. Esse é o motivo

pelo qual ela precisa descobrir uma forma de colocar Nabote em seu

devido lugar para que tudo funcione segundo as suas premissas.

Os anciãos seriam os cabeças das famílias residentes na cidade; os

cidadãos incluíam os demais homens adultos nessas famílias, com

exceção de servos, empregados e estrangeiros residentes. Essas pessoas,

provavelmente, deveriam ser mais comprometidas com o modo israelita

de ver aquelas relações do que com o modo fenício de Jezabel, e a

história não esclarece se ela confidenciou a eles que as suas testemunhas

eram mentirosas. Todavia, o significado aparente da história é que ela,

de fato, podia confiar neles e que ela precisava apenas que eles

conspirassem para convocar um falso tribunal. Desse modo, ela apela ao

compromisso nominal da comunidade, mas sabe que nenhum líder da

cidade confirma realmente esse comprometimento. Ela apenas precisa

contratar duas pessoas que testemunhem em seu benefício (duas

testemunhas porque essa é a exigência de Deuteronômio 17:6). Claro

que isso não é difícil em uma cidade que deseja ser a capital da

corrupção da nação. Parte da inteligência maligna da ação de Jezabel é

que o rei pode legitimamente tomar posse de uma propriedade

pertencente a um homem executado por blasfêmia, de maneira que essa

é a acusação que precisa ser feita contra Nabote. A sua ação significa

que ele não é mais considerado parte de Israel e que a sua terra pode ser

confiscada. Como consequência colateral, a sua família perderá a

propriedade e será jogada nas ruas.

O problema é que Efraim não é uma nação comum. Ela é parte de

Israel como povo de Deus, parte do povo de Yahweh, um povo especial a

Deus. Ele não envia profetas a capitais da corrupção na Grã-Bretanha

ou nos Estados Unidos porque elas não ocupam um lugar especial no

propósito de Deus (embora, claro, Deus espere que a igreja opere

profeticamente). Portanto, Deus envia um profeta ao rei Acabe.


Uma característica do juízo anunciado por Deus é a existência de

uma espécie de justiça poética nele. O sangue de Acabe será derramado

exatamente no local onde o sangue de Nabote foi derramado. O ponto

sobre o julgamento divino é restaurar a situação quando as coisas saem

dos eixos, para restabelecer o equilíbrio, e o juízo em questão cumprirá

isso de uma forma visível, para que todos sejam reassegurados de que

Deus age para corrigir as coisas. Uma segunda característica é que há

uma consistência quanto ao juízo divino; ele não é arbitrário. Há um

padrão quanto à liderança de Jeroboão, Baasa e Acabe e haverá,

igualmente, um padrão no julgamento sobre eles. Esse ponto é

enfatizado pelo uso recorrente de palavras presentes nas declarações de

juízo anteriores — na maneira pela qual os males são descritos e nas

referências a cães necrófagos comendo os corpos de pessoas sobre as

quais o juízo de Deus veio.

Novamente, o rei Acabe exibe a sua fraqueza, embora, dessa vez, essa

demonstração atue em seu benefício. Jezabel é uma mulher que controla

a sua mente. Ela sabe a quem serve, e Acabe pode ser puxado para um

lado ou para o outro; Elias o puxa para o lado de Yahweh. O profeta não

o encoraja a arrepender-se e não indica, de forma alguma, que há meios

de o rei escapar do julgamento divino que Elias mesmo declara ser

iminente. Todavia, a história pressupõe algo fundamental sobre como a

profecia funciona. Quando Deus declara que algo está prestes a ocorrer,

isso não significa, necessariamente, que irá ocorrer; tudo depende da

reação das pessoas ao que Deus diz. Em certo sentido, as palavras de

Elias levaram o rei Acabe a cair em si, e isso propicia a Deus um motivo

para exercer misericórdia, que sempre conta com a preferência divina.

Deus pode continuar a ser longânimo.

O arrependimento de Acabe não apaga as atitudes e práticas

toleradas e incentivadas por ele e por seus predecessores em Efraim.

Elas permanecerão, e o juízo, no devido tempo, recairá sobre a casa do

rei Acabe (leremos sobre isso em 2Reis 9). A implicação não é que o

filho será punido pelas transgressões do pai, independentemente da


posição do filho. Caso o filho se arrependa, então a profecia pode ser

rescindida novamente. Mas os atos dos pais tendem a modelar e

influenciar os seus filhos, e é nesse sentido que os pecados dos pais são

visitados em seus filhos.


1REIS 22:1-23
QUEM INSTIGARÁ O REI ACABE?
1 2
Eles permaneceram durante três anos sem guerras entre Aram e Israel. No terceiro ano,

3
Josafá, o rei de Judá, desceu ao rei de Israel. O rei de Israel tinha dito aos seus servidores:

“Vocês sabem que Ramote-Gileade pertence a nós, mas estamos nos detendo de retirá-la da

4
mão do rei de Aram?” Ele disse a Josafá: “Irás comigo batalhar em Ramote-Gileade? [...]”

5 6
Josafá disse ao rei de Israel: “Inquire, hoje, a palavra de Deus.” Então, o rei de Israel reuniu

os seus profetas, cerca de quatrocentos indivíduos, e lhes disse: “Devo subir a Ramote-

Gileade para batalhar ou desistir?” Eles disseram: “Sobe, e Yahweh a entregará nas mãos do

7
rei.” Mas Josafá disse: “Há algum outro profeta de Yahweh aqui para que eu possa inquiri-

8
lo?” O rei de Israel disse a Josafá: “Há um outro homem para inquirir de Yahweh, mas eu o

repudiei porque ele não profetizou o bem para mim, mas aflição — Micaías, filho de Inlá.”

9
Josafá disse: “Não diga isso, Vossa Majestade.” Então, o rei de Israel chamou um oficial e

10
disse: “Apresse Micaías, filho de Inlá, para vir aqui.” O rei de Israel e Josafá, rei de Judá,

estavam sentados, cada um em seu trono, vestidos em seus mantos, no espaço aberto à porta

11
de entrada de Samaria, e todos os profetas estavam profetizando diante deles. Zedequias,

filho de Quenaaná, fez para si chifres de ferro e disse: “Yahweh disse isto: ‘Com estes, irás

12
chifrar Aram até exterminá-los.’” Todos os profetas estavam profetizando dessa maneira,

dizendo: “Sobe a Ramote-Gileade e terás sucesso. Yahweh a entregará nas mãos do rei”,

13
enquanto o ajudante que foi convocar Micaías lhe falou: “Ora, como uma só boca, as

palavras dos profetas são boas para o rei. A sua palavra deveria ser como a palavra de um

14
deles. Fale algo bom.” Micaías disse: “Tão certo como Yahweh vive, o que Yahweh me

15
disser, isso é o que irei falar.” Quando ele chegou ao rei, o rei lhe disse: “Micaías, devo

subir a Ramote-Gileade para batalhar ou desistir?” Ele lhe disse: “Sobe e terás sucesso.

16
Yahweh a entregará nas mãos do rei.” O rei lhe disse: “Quantas vezes eu irei fazer você

17
jurar que não falará a mim, exceto a verdade, em nome de Yahweh?” Então, ele disse: “Vi

todo o Israel espalhado pelas montanhas como ovelhas que não têm pastor. Yahweh disse.

‘Essas pessoas não têm senhor. Elas deveriam voltar para casa, cada uma delas, em

18
segurança.’” O rei de Israel disse a Josafá: “Eu não lhe disse: ‘Ele não profetizará nada bom

19
para mim, mas somente problemas?’” Micaías [disse]: “Portanto, ouça a palavra do Senhor.

Vi Yahweh assentado em seu trono, com todo o exército nos céus estando ao lado dele, à sua

20
direita e à sua esquerda. Yahweh disse: ‘Quem instigará Acabe para que ele suba e caia em

21
Ramote-Gileade?’ Um dizia ‘dessa maneira’, e outro dizia ‘dessa maneira’. Então, um

espírito veio à frente, ficou diante de Yahweh e disse: ‘Eu sou aquele que irá instigá-lo.’

22
Yahweh lhe disse: ‘Como?’ Ele disse: ‘Irei e serei um espírito enganador na boca de todos os

seus profetas.’ [Yahweh] disse: ‘Você deve instigar. Sim, você será capaz. Vá e faça isso.’

23
Então, agora, Yahweh colocou um espírito enganador na boca de todos esses profetas,

quando Yahweh decretou aflição para você.”


Recentemente, comecei a assistir novamente a série de televisão The

West Wing [Nos bastidores do poder] desde o início e, na noite passada,

vi alguns episódios sobre a oferta de emprego pela administração

democrata da Casa Branca a uma advogada republicana convicta que

acabara de colocar no bolso um membro da equipe presidencial durante

um debate. O presidente insistiu na contratação dela porque desejava

ter as pessoas mais competentes em sua equipe e que também fossem

capazes de discordar. Inicialmente, os demais assessores acham que ele

está louco, mas, depois, conseguem enxergar o ponto.

Acabe encontra-se enredado no mesmo dilema. Nessa história, Elias

desaparece momentaneamente. A coragem de Micaías e o fato de ele

ser, evidentemente, uma figura conhecida da corte efraimita mostram,

uma vez mais, como Elias estava sendo muito pessimista quando

afirmou ser o único profeta que restara imbuído de um compromisso

real com Yahweh e, por consequência, o único disposto a confrontar o

rei. Na verdade, por algum tempo, Acabe também parece desaparecer;

somente quando Micaías relata o que Yahweh revelou é que o nome de

Acabe é citado. Tudo isso pode indicar que a história, outrora, já foi

contada isoladamente, separada da coletânea de narrativas sobre Elias e

Acabe, e, assim, abre uma janela para a espécie de processo de

recontagem e preservação de histórias que está por trás de um livro

como 1Reis. Por estar entrelaçada com outras narrativas, o efeito de

citar Josafá, não o rei Acabe, é para insinuar que Acabe não é muito

importante, como se o narrador da história nem se lembrasse de seu

nome. Isso contraria a forma pela qual os noticiários atuais mostrariam

esse relato, pois o rei Acabe é uma figura política bem mais proeminente

que Josafá, mas, obviamente, o rei efraimita necessita do auxílio judaíta,

caso queira satisfazer as suas ambições militares e políticas. Gileade é

uma área situada a leste do rio Jordão, no Estado moderno da Jordânia.


Alguns clãs israelitas pediram para se assentarem ali, mas, em termos

geográficos, a região é separada da área a oeste do rio Jordão e, por

conseguinte, pode-se entender o motivo lógico de os arameus verem

aquela região como mais pertencente a eles.

Apesar de ser menos importante em termos políticos, Josafá é mais

consciente quanto ao processo de ir à guerra. Primeiro, deve-se

perguntar a Deus se aquela guerra, em particular, deve ser

empreendida. (Muitos cristãos ocidentais consideram estranha a noção

de Deus estar envolvido em qualquer guerra, mas essa percepção advém

de nossa cultura moderna, não da Bíblia.) Na realidade, Acabe também

conhece as regras para sair à batalha; de fato, qualquer sociedade

tradicional considera ser sábio consultar Deus sobre tal ação. Assim, o

rei Acabe consulta os profetas.

Evidentemente, Jezabel não eliminou todos os profetas de Efraim.

Aqueles não eram profetas que reconheciam o Mestre, mas os que

reconheciam Yahweh. Eles se comportam como outros profetas sobre os

quais lemos no Antigo Testamento. “Profetizando” significa algo como

falar em línguas, da mesma forma que faziam os profetas que Saul

encontrou e que constituiu um sinal de que Deus realmente o estava

constituindo rei (veja 1Samuel 10). O sinal dado por Zedequias é uma

espécie de sinal que Jeremias ou Ezequiel darão. O seu nome indica que

ele é adorador de Yahweh, como o nome de Micaías também indica (em

ambos os nomes, a última sílaba é uma forma do nome de “Yahweh”). No

entanto, as atividades desse profeta mostram como é plenamente

possível a uma pessoa pensar que está servindo a Deus e manifestando

dons espirituais, mas, na verdade, ela está apenas iludida e não é melhor

do que os profetas que servem ao Mestre.

Por outro lado, um rei como Acabe necessitava, pelo menos, passar

pelo processo de consulta a Deus, o que significava reunir os

conselheiros à sua volta para falarem em nome de Deus o que o rei

gostaria de ouvir. Talvez, a coisa mais impressionante sobre Josafá seja

ele reconhecer essa dinâmica e desejar ouvir as vozes destoantes.


A princípio, a descrição de Micaías quanto ao processo de tomada

de decisão no céu é similar a tantos outros que aparecem em outras

passagens da Escritura. Deus está assentado na Casa Branca celestial,

cercado pelo gabinete presidencial e inúmeros assessores que, juntos,

decidem a ação a ser realizada na terra e sobre quem será o responsável

por sua realização.

Quão destoante é a voz de Micaías! Do mesmo modo que a ideia

quanto a Deus ter uma opinião sobre as guerras que deveríamos

empreender, a compreensão de Micaías sobre a maneira de Deus operar

no mundo escandaliza os cristãos ocidentais, embora, uma vez mais,

esteja de acordo com o que a Escritura diz em outras passagens. Da

mesma forma que Deus pode trazer juízo sobre pessoas que rejeitam a

verdade, operando para que lhes seja ainda mais difícil compreender a

verdade (veja Marcos 4:12 e Isaías 6:9-10), Deus pode também trazer

julgamento pelo envio de uma mensagem que não seja verdadeira. Deus

usa pessoas que não estão realmente comprometidas a transmitir a sua

palavra para trazer juízo sobre aqueles que, na verdade, não querem

ouvir a palavra de Deus. Inicialmente, Micaías age como se pertencesse

à mesma classe dos demais profetas. Trata-se do primeiro teste para ver

se Acabe deseja, de fato, ouvir o que Deus tem a dizer. Deus prossegue

em sua busca de chegar até ele, por sua misericórdia, ao minar o

processo de trazer juízo e explicar essa dinâmica ao rei Acabe. Isso o

coloca na mesma posição em que ele estava ao término do capítulo

anterior. Acabe pode, uma vez mais, despir-se de seus trajes reais e

vestir-se em panos de saco, jejuar e “ficar em silêncio”; e pode desistir

de seus planos de guerra. Pode-se dizer que a justaposição dessas duas

histórias visa apresentar alternativas diante de um líder. Você deseja ser

o rei Acabe do capítulo 21 ou do capítulo 22?


1REIS 22:24— 2REIS 1:1
VOCÊ PODE SE DISFARÇAR, MAS NÃO SE ESCONDER
24
Zedequias, o filho de Quenaaná, foi à frente, atingiu Micaías no rosto e disse: “Como foi

25
que o espírito de Yahweh passou de mim para falar com você?” Micaías disse: “Bem, você

26
irá ver, naquele dia em que for a uma sala mais interna para se esconder.” O rei de Israel

27
disse: “Levem Micaías de volta a Amom, o governador da cidade, e a Joás, o filho do rei, e

digam: ‘O rei disse isso: “Ponham esse homem na prisão. Devem lhe dar comida e água de

28
escravo até eu chegar [em casa] em segurança.”’” Micaías disse: “Se você, realmente, voltar

em segurança, Yahweh não falou por mim.” (Ele disse: “Ouçam todos vocês.”)

29 30
Então, o rei de Israel e Josafá, rei de Judá, subiram a Ramote-Gileade. O rei de Israel

disse a Josafá: “Colocarei um disfarce e irei à batalha, mas tu vestirás as tuas vestes reais.”

31
Assim, o rei de Israel disfarçou-se e foi à batalha. Ora, o rei de Aram tinha ordenado aos

seus trinta e dois comandantes de carruagens: “Não batalhem com ninguém, pequeno ou

32
grande, exceto com o rei de Israel.” Quando os comandantes de carruagens viram Josafá,

eles disseram: “Sim, ele é o rei de Israel” e se viraram para batalhar contra ele. Josafá gritou,

33
e, quando os comandantes das carruagens viram que ele não era o rei de Israel, deixaram

34
de segui-lo. Mas um homem puxou o seu arco inocentemente e atingiu o rei de Israel entre

as juntas da armadura. [O rei] disse ao condutor: “Dê a volta, tire-me do exército, porque

35
estou ferido.” A batalha prosseguiu naquele dia, enquanto o rei era mantido em pé na sua

carruagem enfrentando Aram. Ele morreu ao entardecer. O sangue escorreu da ferida até a

36
base da carruagem. Um grito passou pelo acampamento ao pôr do sol: “Cada homem para

37
a sua cidade, cada homem para a sua terra.” Assim, o rei morreu e foi levado a Samaria, e

38
eles sepultaram o rei em Samaria. Eles lavaram a carroça junto ao açude de Samaria, e os

cães lamberam o seu sangue onde as prostitutas se lavavam, de acordo com a palavra que

Yahweh tinha dito.

2REIS
[A passagem de 1Reis 22:39—2Reis 1:1 sumariza o reinado de Acabe e, então, retrocede para

relatar como Josafá veio a ser rei de Judá e para resumir o seu reino, na maioria, em termos

positivos. Então, por fim, reconta como Acazias, o filho de Acabe, o sucedeu.]

Certo amigo, recentemente, interessou-se por uma mulher, também de

meu círculo de conhecimento, e a convidou para almoçar na semana

passada, munido, mentalmente, de uma lista com perguntas que ele

julgava necessário fazer à sua possível futura esposa. Impressionado por


sua aparência e inteligência, ele não se mostrou propenso a prestar

atenção à minha observação de ela ser, por natureza, monumentalmente

crítica. Com isso, não quero expressar que ela seria crítica com alguém

que amasse, mas é crítica com as demais pessoas em geral, e eu mesmo

considero isso desgastante. Quando eles se encontraram para almoçar,

no entanto, ela estava um pouco enferma (ela estava com faringite ou

algo similar) e não parecia tão atraente como de costume. Isso não a

impediu de expressar o seu lado crítico (e também a sua vivacidade),

porém impediu o meu amigo de ser arrebatado por sua aparência e

inteligência. Isso o levou a perceber que não seria sábio, de sua parte,

tentar desenvolver aquele relacionamento. Foi apenas uma coincidência

o fato de ela estar enferma, e isso ter permitido ao meu amigo chegar

àquela conclusão, embora (sabiamente) ele não estivesse preparado

para afirmar que Deus é que tinha provocado a faringite, para o seu

benefício. (E, pelo que conheço dela, decerto ela acharia a lista de

perguntas dele um tanto questionável e/ou simplesmente não se

interessaria por ele; mas eu conheço apenas o lado dele da história.)

O Antigo Testamento inclui inúmeras histórias do papel

desempenhado pela coincidência quando coisas positivas, do mesmo

modo que negativas, acontecem às pessoas, em cumprimento ao

desígnio de Deus. As histórias de Rute e de Ester incluem muitos

exemplos. Talvez não seja coincidência o fato de essas narrativas

relatarem ações de pessoas comuns, da mesma forma que a história

desse arqueiro anônimo que, por acaso, atinge o rei Acabe. Não é

preciso ser alguém muito importante para realizar algo realmente

importante. Isso não ocorre porque você está tentando “fazer diferença”

no mundo, mas apenas realizando o seu trabalho. Talvez aquele arqueiro

nem mesmo saiba que foi a sua flecha que atingiu o rei. Ele atira

“inocentemente”. Essa é uma palavra estranha para ser usada nesse

contexto. A inocência, normalmente, sugere integridade e solidez e,

assim, quase sugere que o arqueiro não estava tentando matar ninguém.

Certamente, ele não objetivava matar o rei Acabe ou não tentava ser o
meio pelo qual Deus cumpriria sua palavra. Todavia, foi esse o seu

papel.

Embora a declaração do juízo de Deus sobre Acabe, no capítulo

anterior, proferisse a sua morte iminente, o fato de ele se voltar para

Deus e a palavra de misericórdia divina poderiam dar a impressão de

que o rei teria uma vida longa e que morreria em seu leito (embora não

tenha explicitado essa promessa). Todavia, parece que esse

arrependimento foi superficial e breve. O compromisso de Deus com a

sua misericórdia é, então, sobrepujado, do mesmo modo que a

declaração anterior de juízo havia sido vencida. O relacionamento de

Deus com as pessoas é sempre dinâmico. Deus não possui um plano

preordenado para evoluir, e o seu propósito é desenvolvido em diálogo

com as reações das pessoas. Igualmente, é colocado em prática por meio

de atos como a ação randômica do arqueiro anônimo que atinge o rei

Acabe por acidente. Presumidamente, Josafá não percebe que Acabe o

está usando como alvo para os arqueiros arameus, ou pode ser que

Josafá (que é retratado como alguém que reverencia a Deus) saiba que

não há nada a temer.

Deus enviara Elias com aquele aviso sobre os cães lamberem o

sangue de Acabe, e foi exatamente isso o que aconteceu, o que

demonstra o envolvimento da soberania divina nos eventos, mas o

Antigo Testamento não retrata Deus preordenando ou planejando os

detalhes dos acontecimentos, tais como o tiro do arqueiro naquela

direção específica. Antes, os atos humanos intencionais e as

coincidências “acidentalmente” contribuem para o cumprimento da

palavra divina.

Da mesma forma que Elias, Micaías quase pagou com a sua vida por

transmitir a palavra de Deus. Ingenuamente, o rei Acabe presume que

silenciar o homem que declara a palavra de Deus evitará que ela se

cumpra. Ele não podia estar mais errado. De forma igualmente ingênua,

Acabe presume que disfarçar-se diante de seus inimigos humanos

impediria que a palavra divina se cumprisse. Uma vez mais, ele estava
equivocado. A flecha do arqueiro estabeleceu o cumprimento tanto da

palavra de Deus, proferida por Elias, quanto da palavra expressa por

Micaías.
2REIS 1:2-18
O SENHOR DAS MOSCAS
2
Acazias caiu da sacada de seu andar superior, em Samaria, e ficou doente. Ele enviou

ajudantes, dizendo-lhes: “Vão e inquiram o Mestre Zebube, o deus de Ecrom, se viverei após

3
esse dano.” Mas o ajudante de Yahweh falou a Elias, o tesbita: “Parta e vá encontrar os

ajudantes do rei de Samaria e lhes fale: ‘É pela falta de um Deus em Israel que vocês estão

4
indo inquirir o Mestre Zebube, o deus de Ecrom? Assim, portanto, Yahweh disse isto: “Da

5
cama na qual você subiu, não descerá mais, porque realmente irá morrer.”’” Elias foi, e os

6
ajudantes retornaram a [Acazias]. Ele lhes disse: “Por que vocês retornaram?” Eles lhe

disseram: “Houve um homem que veio nos encontrar. Ele nos disse: ‘Vão, retornem ao rei

que os enviou e lhe digam: “Yahweh disse isto: ‘É pela falta de um Deus em Israel que vocês

estão indo inquirir o Mestre Zebube, o deus de Ecrom? Portanto, da cama na qual você

7
subiu, não descerá mais, porque realmente irá morrer.’”’” Ele lhes falou: “Como era o

8
homem que veio se encontrar com vocês e lhes falar essas palavras?” Eles lhe disseram: “Um

homem com muitos pelos e um cinto de couro na cintura.” Ele disse: “Era Elias, o tesbita.”

9
Ele lhe enviou um capitão de cinquenta e seus cinquenta homens, e este subia até ele. Ele

estava assentado no topo de uma montanha. Ele lhe falou: “Homem de Deus, o próprio rei

10
falou: desça.” Elias replicou ao capitão de cinquenta: “Se sou um homem de Deus, que fogo

desça dos céus e consuma você e os seus cinquenta homens.” Fogo desceu dos céus e o

11
consumiu e aos seus cinquenta homens. [O rei], novamente, lhe enviou outro capitão de

12b
cinquenta e seus cinquenta homens. [...] Fogo sobrenatural desceu dos céus e o consumiu

13
e aos seus cinquenta homens. Ele, novamente, enviou um capitão de cinquenta e seus

cinquenta homens. O terceiro capitão de cinquenta subiu, chegou e caiu de joelhos diante de

Elias e lhe pediu por graça. Ele lhe falou: “Homem de Deus, que a minha vida e a vida desses

14
cinquenta servos teus sejam valiosas aos teus olhos! Sim, fogo desceu dos céus e consumiu

os dois primeiros capitães de cinquenta e seus cinquenta homens. Mas, agora, que a minha

15
vida seja valiosa aos teus olhos.” O ajudante de Yahweh falou a Elias: “Desça com ele. Não

16
tenha medo dele.” Assim, ele se levantou e desceu com ele ao rei. Ele lhe falou: “Yahweh

disse isto: ‘Porque você enviou ajudantes para inquirir o Mestre Zebube, o deus de Ecrom (é

pela falta de um Deus em Israel para inquirir de sua palavra?), portanto, da cama na qual

17
subiu, você não descerá, porque realmente irá morrer.’” E ele morreu de acordo com a

palavra de Yahweh que Elias falou. Jorão [seu irmão] tornou-se rei no lugar dele, porque ele

18
não tinha filho. O resto dos atos de Acazias estão, de fato, escritos nos anais dos reis de

Israel.
Há compreensões mais positivas e menos positivas da natureza humana.

O termo Zebube significa mosca, de modo que o título “Mestre Zebube”

ou “Senhor Zebube” significaria “Senhor Mosca” ou “Senhor da

Mosca”. Ora, Senhor das moscas é o título de um romance da metade do

século XX, escrito por William Golding. A obra começa à maneira da

série televisiva Lost, isto é, com um acidente aéreo em uma ilha remota,

tendo como sobreviventes apenas alguns garotos pré-adolescentes. Eles

buscam descobrir uma forma de viverem juntos, mas a história

incorpora uma compreensão um tanto sombria de como aquela

tentativa tende a acabar; a convivência dos garotos é marcada por

muito conflito. Os Evangelhos também utilizam um título que soa

similar, Belzebu, como referência a Satanás; em hebraico, “Mestre

Zebube” significaria algo como “Mestre Exaltado”. É um título

plausível para um deus cananeu.

O Antigo Testamento, às vezes, expressa sua desaprovação por

deuses estrangeiros ao distorcer levemente os seus nomes, e Mestre

Zebube, “Senhor da Mosca”, pode ser um exemplo. Em outras palavras,

Acazias, de fato, busca conselho e socorro em um deus que ele chamou

de “Mestre Exaltado”, mas o deliberado erro ortográfico israelita de seu

nome o deprecia como “Mestre Mosca”. No entanto, Mestre Mosca

pode ser um nome real, que poderia, então, indicar a razão pela qual

Acazias buscou conselho nele. Cair da janela de um andar superior não

necessariamente levaria ao risco de vida, mas se uma lesão resultante

dessa queda infeccionasse, isso deixaria a vítima em grandes apuros. O

Senhor das Moscas, então, seria um deus com capacidade para lidar

com doenças transmitidas pelas moscas, similares à septicemia. O

recurso de Acazias a esse deus (um deus que vive numa cidade filisteia

como Ecrom, pelo amor de Deus) seria o mesmo que recorrer a deuses

cananeus, supostamente capazes de trazer abundantes colheitas, algo

que o Antigo Testamento condena em outras passagens. Quer esse deus

seja o Mestre da Mosca ou o Mestre Exaltado, Elias indica que usar tal

recurso implica que não há Deus em Israel ao qual recorrer quando a


enfermidade vem. Isso expressa que Yahweh não tem utilidade no plano

terreno. É uma declaração radicalmente apóstata feita pelo líder de um

povo que está supostamente comprometido com Yahweh. Os riscos

nessa história são elevados.

Esse fato não nos impede de sentir aversão ao modo pelo qual a

história, então, se desenrola, com desafortunados militares perdendo a

vida por seguirem as ordens do rei. Aqui, não significa que Elias os mata

diretamente, como ele fez com os profetas de Baal, em 1Reis 18. Fogo

do céu os matou. A implicação é de que Deus conspira com a convicção

de Elias quanto aos militares merecerem morrer. Como o próprio

Acazias, os soldados não estão meramente impondo-se contra outro ser

humano, mas impondo-se contra Deus. O ponto está implícito na

referência que eles fazem a Elias como homem de Deus. Se os soldados

reconhecem que ele representa Deus, então deveriam comportar-se de

acordo. Ser um homem de Deus, alguém que representa Deus, é

mostrado pelo fato de ser capaz de chamar um poder sobrenatural.

Podemos ser propensos a imaginar que isso não é um fato; que,

talvez, seja “apenas uma história”. A maneira ordenada pela qual a

história é contada pode sugerir que esse seja o caso — há um primeiro

destacamento militar, então um segundo e, depois, um terceiro que

reage diante de Elias muito distintamente. Todavia, se você tem

objeções quanto ao conteúdo da narrativa, isso é tão contestável quanto

ser “apenas uma história”, caso seja, realmente, um fato. Isso ainda

levanta a questão da razão pela qual Deus quis incluir essa história em

seu livro e o que devemos aprender com ela. Jesus, certa feita, recusou a

sugestão de seus discípulos para que eles fizessem descer fogo do céu

sobre pessoas que o rejeitaram (Lucas 9:52-56), mas, em outras

passagens, Jesus fala muito sobre pessoas consumidas pelo fogo (por

exemplo, em Mateus 25:41). Como outros relatos do Antigo

Testamento, esse de Elias é menos assustador do que a forma pela qual

Jesus revela a pessoas, como esses soldados, que elas queimarão no

inferno. Isso nos assegura que o verdadeiro Deus vencerá e que a


verdade divina triunfará. Além disso, nos adverte de levar o Deus real a

sério e que não podemos nos esconder atrás do fato de que apenas

estamos cumprindo ordens dadas por algum mestre terreno.

As traduções bíblicas, em geral, distinguem entre “anjos” de Deus e

“mensageiros” do rei, mas a palavra hebraica para ajudante é a mesma

em ambos os casos, e a presente história aponta para a implicação desse

fato. Há um rei terreno com seu ajudante ou ajudantes e um Rei

celestial com seu ajudante ou ajudantes. É tentador para o rei terreno e

seus ajudantes (e outros servos do rei) pensar que o rei terreno é aquele

que detém poder e autoridade determinantes. Mas não é assim. O Rei

celestial e seus ajudantes (sobrenaturais e terrenos) são mais valiosos.


2REIS 2:1—3:3
O MANTO E O PODER DE ELIAS
1
Quando Yahweh levou Elias aos céus em um redemoinho, Elias tinha vindo com Eliseu de

2
Gilgal. Elias disse a Eliseu: “Você deveria ficar aqui, porque Yahweh me enviou a Betel.”

Elias disse: “Tão certo quanto Yahweh vive e tu mesmo vives, definitivamente, não te

3
deixarei.” Então, eles desceram a Betel. Os discípulos dos profetas em Betel saíram a Eliseu

e lhe disseram: “Você reconhece que Yahweh irá tirar o seu senhor de você hoje?” Ele disse:

4
“Sim, eu mesmo reconheço isso. Fiquem em silêncio.” Então, Elias lhe disse: “Eliseu, você

deve ficar aqui, porque Yahweh me enviou a Jericó.” Ele disse: “Tão certo quanto Yahweh

vive e tu mesmo vives, definitivamente, não te deixarei.” Assim, eles foram a Jericó. [...]

6
Então, Elias lhe disse: “Você deve ficar aqui, porque Yahweh me enviou ao Jordão.” Ele

disse: “Tão certo quanto Yahweh vive e tu mesmo vives, definitivamente, não te deixarei.”

8
Assim, os dois foram. [...] Elias pegou o seu manto, enrolou-o e atingiu a água. Ela dividiu-

9
se em ambas as direções, e os dois atravessaram em terra seca. Enquanto atravessavam,

Elias disse a Eliseu: “Peça-me qualquer coisa que deva fazer a você antes que eu seja tirado

10
de você.” Eliseu disse: “Poderia uma partilha dupla de teu espírito vir sobre mim.” Ele

disse: “Você pediu por algo difícil. Se me vir ser tirado de você, então isso acontecerá a você.

11
Se não, isso não acontecerá.” Eles continuaram a andar e a falar, e ali surgiu uma

carruagem de fogo e cavalos de fogo. Eles separaram os dois, e Elias subiu em um

14
redemoinho aos céus. [...] [Eliseu] apanhou o manto de Elias, que havia caído dele, atingiu

a água e disse: “Onde está Yahweh, o Deus de Elias? Sim, ele?” Quando ele atingiu a água,

15
ela se dividiu em ambas as direções, e Eliseu atravessou. Os discípulos dos profetas em

Jericó, a uma distância dele, o viram e disseram: “O espírito de Elias se assentou em Eliseu!”

Eles foram encontrá-lo e curvaram-se ao chão diante dele.

[Os versículos 16-18 relatam como os discípulos dos profetas procuraram por Elias, mas não o

encontraram.]

19
O povo da cidade disse a Eliseu: “Ora, a posição da cidade é boa, como meu senhor vê, mas

20
a água é ruim e a região torna as pessoas sem filhos.” Ele disse: “Peguem-me uma tigela

21
nova e coloquem sal nela.” Eles a pegaram para ele, e ele saiu à nascente de água e jogou sal

ali. Ele disse: “Yahweh disse: ‘Estou curando essa água. A morte e a ausência de filhos não

22
mais virão de lá.’” A água está saudável até hoje, de acordo com a palavra de Eliseu, que ele

falou.

23
De lá, ele subiu a Betel. Enquanto estava subindo a estrada, alguns meninos pequenos

24
saíram da cidade e zombaram dele. Eles disseram: “Suba, careca, suba careca!” Ele se virou,

os viu e os derrubou em nome de Yahweh, e dois ursos saíram da floresta e feriram quarenta e

25
dois dos meninos. Ele saiu de lá para o monte Carmelo e, dali, voltou a Samaria.

[Segundo Reis 3:1-3 recapitula como Jorão se tornou rei de Efraim.]


Certa ocasião, tive que trocar um pneu furado perto do mar Morto.

Levantei o carro com o macaco e, no processo de trocar o pneu, ou

desapertar ou apertar as porcas da roda, deitei no chão arenoso, mas

duro. Era verão, e estava muito quente; quando me levantei, uma

grande camada de pele desgrudou das minhas costas (sem doer ou

deixar danos duradouros). É estranho lá embaixo, quase quatrocentos

metros abaixo do nível do mar. As pessoas que vão a Israel são, em

geral, aconselhadas a levar uma edição do jornal local para que possam

ser fotografadas flutuando no mar Morto e lendo o jornal; então, a foto

delas sai publicada na próxima edição. Isso realmente pode ser feito. Os

rios do vale do Jordão desaguam no mar Morto, mas é uma via sem

saída; as águas desses rios deixam o mar Morto somente pelo processo

de evaporação. Os minerais na água, tão benéficos aos seres humanos

em pequenas quantidades, permanecem ali, tornando a água imprópria

para o consumo e tão densa que as pessoas não afundam, possibilitando

que tais fotos sejam tiradas.

Esse é o cenário da primeira de uma série de histórias sobre Eliseu

realizando pequenos milagres, alguns relativos à vida dos discípulos

dos profetas. A maioria delas impacta leitores ocidentais por serem

triviais (como a purificação da água), ou questionáveis (como a

maldição sobre os meninos). Assim, elas merecem a nossa atenção

porque nos levam a modos de pensamento distintos daqueles que

naturalmente vêm à nossa mente. Será assim, quer estejamos quer não

propensos a pensar que as histórias realmente ocorreram. Eu mesmo

não sei o que pensar sobre essa questão. Por um lado, estou inclinado a

pensar que não há fumaça sem fogo. Acho difícil acreditar que haveria

tantos relatos dessa espécie sobre Elias e Eliseu, caso eles jamais

fizessem algo que levantasse as sobrancelhas das pessoas. Por outro,

temos observado a natureza ordenada de algumas dessas histórias; a


natureza tripla do relato quanto à derradeira visita às comunidades

proféticas constitui outro exemplo. Além disso, há um aspecto

folclórico ou de conto de fadas em algumas delas. Desse modo, talvez,

os autores da Escritura tenham escolhido esses motivos para transmitir

algo da importância de Elias e de Eliseu. Se for assim, trata-se de uma

forma de expressar quão importantes esses profetas realmente eram.

Em hebraico, “mar Morto” é o “mar de Sal”, e pode-se imaginar que

todo o suprimento de água nas vizinhanças de Jericó era afetado pelo

conteúdo mineral daquele lençol freático. Todavia, a razão de Jericó

existir e ser uma cidade próspera é (ainda hoje) o miraculoso fato de a

área também possuir um suprimento de água doce pura. No contexto

ocidental, podemos considerar o fornecimento de água como garantido,

mas a maioria das comunidades humanas não é capaz de assegurar isso,

e possuir ou não um bom suprimento de água é uma questão de vida ou

morte. (Não está claro se o termo que traduzi por “sem filhos” significa

que as mulheres tinham dificuldades de concepção ou sofriam abortos,

ou mesmo se a terra era improdutiva.) Como a vacinação com uma

pequena dose de algo como o bacilo da tuberculose pode imunizar as

pessoas contra essa enfermidade, da mesma forma o sal removeu a

salinidade da nascente de Jericó (não porque a física natural opere

dessa forma; trata-se de uma transformação extraordinária). Além de

ser um sinal do cuidado de Deus em relação às necessidades cotidianas

de seu povo, a purificação das águas por parte de Eliseu também sinaliza

que ele é um profeta da linhagem de Moisés.

Mais explicitamente, Eliseu é um profeta da linhagem de Elias.

Embora Deus tenha dito a Elias para ungir Eliseu, o profeta jamais fez

isso, talvez porque reconhecesse que Deus havia falado de forma

metafórica. Todavia, agora Elias unge metaforicamente Eliseu ao lhe

perguntar o que pode fazer por ele. (É uma pergunta prospectiva,

lembrando a pergunta feita por Deus a Salomão em 1Reis 3.)

Reconhecidamente, é quase como se Elias estivesse tentando evitar

designar Eliseu como seu sucessor, como se estivesse procurando afastá-


lo ou se livrar dele; mas, se for assim, Eliseu passou nesse teste. Os

profetas, normalmente, não têm a oportunidade de se voluntariar

(Isaías é a outra grande exceção); é uma comissão confiada ao

indivíduo. A dupla partilha do legado de alguém é a quota designada ao

primogênito, em reconhecimento ao fato de que sobre ele repousa o

futuro e o bem-estar da família, e pelo cumprimento de sua

responsabilidade para com pessoas vulneráveis deixadas de fora disso,

como viúvas, órfãos e imigrantes. Com efeito, Eliseu está pedindo para

ter os recursos que possibilitem que ele seja o sucessor de Elias. O

profeta sabe que não pode decidir que Eliseu receberá o que pediu

(apesar da comissão de ungi-lo); trata-se da deliberação de Deus. A

narrativa, portanto, aponta para outro aspecto da relação entre a

tomada de decisão divina e o voluntariado humano quanto a alguém se

tornar um profeta. A divisão das águas por Elias mostra que ele é

alguém da linhagem de Moisés; então, o fato de Eliseu ser capaz de fazer

o mesmo mostra que ele é o próximo nessa linhagem. (É outro milagre

desnecessário. É possível vadear, ou seja, atravessar o rio a pé. Rute e

Noemi o fizeram, mas isso estabelece um ponto.)

O desparecimento de Elias, igualmente, traça um paralelo ao sumiço

de Moisés em Deuteronômio 34, embora Moisés tenha, de fato,

morrido. Assim, o ocorrido é mais parecido com o desaparecimento de

Enoque em Gênesis 5. Na tradição judaica, portanto, Elias une-se aos

outros dois como pessoas que podem ser capazes de nos transmitir

revelações sobre Deus; há inúmeros livros “reveladores” associados a

esses nomes, embora os textos tenham sido escritos muitos séculos após

os seus dias. Esse também será um motivo pelo qual é possível Moisés e

Elias aparecerem a Jesus (veja Marcos 9). Nenhum deles morreu ou foi

sepultado de maneira regular, e ambos podem ser imaginados como

tendo subido para compartilhar da vida dos céus com outros seres

celestiais como os ajudantes enviados por meio daquela carruagem de

fogo para buscar Elias. (Assim, não há uma grande ligação com a ideia

de ressurreição.)
O relato sobre os meninos e os ursos sublinha ainda mais a

importância de Eliseu como servo de Deus. A referência à sua calvície,

provavelmente, é a um corte de cabelo como o de um monge. Embora

sugira um contraste notável com a suposição, em outras passagens, de

que pessoas devotadas ao serviço de Deus deveriam deixar crescer os

cabelos, isso se encaixa na presunção culturalmente difundida de que

seja qual for o seu cabelo, muito longo ou muito curto, isso pode

representar uma declaração. Assim, os meninos estão zombando de

alguém que todos podiam reconhecer como um servo de Deus; ao lhe

ordenarem a “subir”, estão, na realidade, dizendo para ele deixar a

cidade, ir embora. Uma vez mais, embora Jesus, sem sombra de dúvida,

tenha proibido seus discípulos de agir como Eliseu, do mesmo modo

que os proibiu de agir como Elias, suas palavras mostram que a

impunidade das pessoas que o menosprezam é temporária. No fim, elas

pagarão com a própria vida.


2REIS 3:4-27
O SACRIFÍCIO FINAL
4
Ora, Messa, rei de Moabe, era um criador de ovelhas. Ele costumava pagar ao rei de Israel

5
cem mil cordeiros e a lã de cem mil carneiros. Quando Acabe morreu, o rei de Moabe

6
rebelou-se contra o rei de Israel. Naquele tempo, o rei Jorão deixou Samaria, mobilizou

7
todo o Israel e mandou dizer a Josafá, rei de Judá: “Dado que o rei de Moabe se rebelou

8
contra mim, irás comigo a Moabe para batalhar?” Ele disse: “Subirei [...]. Por qual rota

9
devemos subir?” [Jorão] disse: “A rota pelo deserto de Edom.” Então, o rei de Israel, o rei de

Judá e o rei de Edom foram e marcharam por uma rota de sete dias. Mas não havia água para

10
o exército ou para os animais que os seguiam. O rei de Israel disse: “Oh, não! Yahweh

11
convocou esses três reis a fim de os entregar nas mãos de Moabe!” Mas Josafá disse: “Não

há aqui um profeta de Yahweh a quem possamos inquirir de Yahweh?” Um dos servidores do

rei de Israel replicou: “Eliseu, o filho de Safate, que derramou água nas mãos de Elias, está

12
aqui.” Josafá disse: “A palavra de Yahweh está com ele.” Então, o rei de Israel, Josafá e o rei

13
de Edom desceram até ele. Eliseu disse ao rei de Israel: “O que eu e você temos em

comum? Vá aos profetas de seu pai e aos profetas de sua mãe.” O rei de Israel lhe disse: “Não,

14
porque Yahweh convocou esses três reis para os entregar nas mãos de Moabe.” [Eliseu]

disse: “Tão certo quanto Yahweh dos Exércitos vive, diante de quem permaneço [em

assistência], não fosse eu respeitoso para com Josafá, rei de Judá, não olharia para você nem

15
o veria. Mas, agora, tragam-me um músico.” Quando o músico tocou, a mão de Yahweh

16
veio sobre ele, e ele disse: “Yahweh disse: ‘Este vale irá produzir cisternas e cisternas.’

17
Porque Yahweh disse: ‘Vocês não verão vento, não verão chuva, mas aquele vale se encherá

18
com água. Ambos, vocês e seu gado e seus animais beberão.’ Isso é uma coisa pequena aos

20
olhos de Yahweh. Ele entregará Moabe em suas mãos [...]”. Assim, de manhã, na hora de

fazer a oferta, ali, a água estava vindo da direção de Edom. A área encheu-se de água.

21
Quando todos os moabitas ouviram que os reis tinham subido para batalhar com eles,

todos os que podiam amarrar um cinto para cima [em idade] deixaram-se ser convocados e

22
permaneceram na fronteira. Quando eles se levantaram cedo, de manhã, o sol estava

23
brilhando sobre a água e, a distância, os moabitas viram a água vermelha como sangue e

disseram: “Isso é sangue! Os reis, na verdade, levantaram a espada uns contra os outros.

24
Cada homem derrubou o seu vizinho. Agora, vamos à pilhagem, Moabe!” Então, eles foram

26
ao acampamento israelita, mas os israelitas se levantaram e atacaram os moabitas. [...] O

27
rei de Moabe viu que a batalha era muito dura para ele [...] e pegou o seu filho mais velho,

que devia reinar como rei em seu lugar, e o sacrificou como oferta queimada sobre o muro.

Uma grande ira veio sobre Israel, e eles partiram de lá e voltaram para a terra.
O autor de uma carta, no jornal de hoje, após as consequências da

demissão, pelo presidente dos Estados Unidos, de seu comandante das

forças no Afeganistão, questiona se “devemos continuar a sacrificar os

nossos bravos homens e mulheres” lá. É provável que, quando estiver

lendo isso, já saberemos se os Estados Unidos e seus aliados podem

pensar em termos de sucesso no Afeganistão; então, o “sacrifício” pode

parecer ter valido a pena. A imagem de sacrifício é reveladora nessa

conexão. No comentário sobre Gênesis 22, em Gênesis para todos,

observei como o quase sacrifício de Isaque, por parte de Abraão,

propiciou ao poeta Wilfred Owen uma imagem que comparava e

contrastava com o sacrifício real de nossos valentes homens (nem

tantas mulheres, então), na Primeira Grande Guerra, e o mesmo

ocorreu no contexto do Vietnã, por Leonard Cohen.

Sacrificar filhos e filhas é tanto o mais incompreensível quanto o

mais compreensível dos atos. É inimaginável porque os filhos, para os

pais, são a coisa mais preciosa do mundo. Isso ocorre por causa de

nossos sentimentos humanos naturais por eles e porque representam o

futuro da família e do povo. Se os filhos se forem, quem cuidará da

fazenda (e de você) quando envelhecer e após a sua morte? No entanto,

exatamente a importância e o valor insubstituíveis deles em seu coração

é que os tornam o sacrifício mais significativo que você poderia fazer.

Paradoxalmente, o sacrifício que põe em risco o seu futuro é o mesmo

que você espera que o salvaguarde. Assim, cananeus, israelitas e

moabitas, como modernos ocidentais, estavam dispostos a fazer esse

sacrifício. (As regras na Torá instruíam os israelitas a não fazerem isso, e

a história sobre Abraão e Isaque os lembraria de que Deus havia,

previamente, considerado a possibilidade de pedir esse sacrifício, mas

que, então, não o exigiu. Não obstante, o material nos Profetas mostra

que eles não prestaram atenção nisso, e as descobertas arqueológicas

confirmam que não.)

Era um ato desesperado e somente seria realizado durante uma

grande crise, como a situação envolvendo Moabe. Efraim continua a ser


um poder regional, e Moabe (do outro lado do mar Morto, visto de

Judá) precisa pagar impostos a Efraim pelo “privilégio” de viver

debaixo de sua proteção. O rei moabita é um criador de ovelhas, no

sentido de ele governar um país cuja economia foca essa atividade.

Talvez ele pague seus impostos na forma de lã, ou, no caso dos

cordeiros, com os próprios animais; o texto não deixa claro o que Efraim

fazia com toda aquela lã, que resultaria em toda a lã de um ou dois

animais a cada pessoa por ano. É possível que Efraim usasse a lã em

negociações comerciais com outros povos. Primeiro Reis 12 já forneceu

uma vívida ilustração de como a morte de um rei e a ascensão de outro é

um momento perigoso para qualquer regime, e não surpreende o fato de

Messa escolher esse momento para declarar independência de Efraim.

Igualmente, o novo rei sabe que precisa afirmar a sua autoridade de um

modo decisivo, embora a tentativa de Jorão em fazer isso fracasse (como

Roboão, em 1Reis 12).

As forças combinadas de Efraim e Judá, unem-se àquelas de Edom,

situado ao sul de Moabe e a sudeste do mar Morto; evidentemente,

Efraim também está em uma posição de inclinar-se sobre Edom. Eles

marcham para baixo, no lado ocidental do mar Morto, e contornam a

parte sul dele. Em sua maior parte, a região é extremamente inóspita,

como já implicado na história de Eliseu e a nascente de água, em 2Reis

2, e parece que os reis não pensaram bem na logística de sua expedição.

Os reis efraimita e judaíta, então, exemplificam duas maneiras de

responder a tal situação — culpar Deus por seus erros sem falar com ele,

ou perguntar a Deus o que está acontecendo e o que fazer. Como o

menino que aconselhou Saul, em 1Samuel 9, e a menina que irá

aconselhar Naamã, em 2Reis 5, um dos servidores de Jorão teve mais

percepção sobre recursos espirituais que o seu chefe. Eliseu permanece,

então, tão inabalável por seu rei quanto ele o será por Naamã, mas é

persuadido a buscar a palavra de Yahweh. Novamente, como Saul, ele é

ajudado nessa conexão por alguma música. Com frequência, a música

possui a capacidade de tornar as pessoas abertas a realidades


transcendentes de uma forma que a reflexão silenciosa ou a oração não

conseguem. Na Bíblia, se você quiser buscar Deus, pode fazê-lo com o

auxílio de barulho ou música, não do silêncio.

Assim, Eliseu traz a palavra de Deus aos reis. Ela promete a água da

qual necessitam e que chega em abundância. Além disso, promete uma

vitória conclusiva, e, inicialmente, o miraculoso suprimento de água

também promete ser o meio de concretizar uma vitória maravilhosa.

Esse é, então, o momento em que Messa oferece o seu sacrifício. Uma

situação desesperada requer medidas igualmente desesperadas, e, como

o rei, ele é aquele que deve tomá-las. E elas funcionam.

Como assim? O que é essa ira que vem sobre Israel? É a ira de

Yahweh? É a ira de Camos, o deus moabita? É simplesmente ira — uma

maneira de descrever como a vitória é transformada em catástrofe? O

sacrifício funciona para galvanizar os moabitas? Funciona pela

paralisação dos israelitas? Parece que os narradores da história não

sabem nem pretendem explicar o que não conhecem. Embora a reflexão

espiritual ou teológica, às vezes, torne possível saber coisas, nem sempre

é assim. Há ocorrências estranhas na vida que não conseguimos

explicar, e temos de conviver com elas com base nos indícios que Deus

nos revelou sobre o grande quadro e que podemos compreender. É

encorajador que as Escrituras não finjam saber tudo; então, é mais fácil

confiar nelas quando elas acham que realmente sabem das coisas.

Extraordinariamente, há uma inscrição comemorativa sobre uma

laje de pedra, erigida pelo próprio Messa, que pode conter o seu relato

sobre esse evento, mas, sem referir-se ao sacrifício de seu filho (embora

também possa ser um relato sobre algum outro conflito entre Efraim e

Moabe). A inscrição, chamada de “Pedra Moabita” ou “Estela de

Mesa”, está agora no Louvre, em Paris. Messa também faz menção ao

domínio israelita sobre Moabe e a determinação do novo rei de estender

esse domínio. Ele agradece a Camos por libertá-lo, “pois Israel [isto é,

Efraim] pereceu para sempre”. Sua hipérbole segue o padrão

encontrado em outras passagens do Antigo Testamento que, algumas


vezes, declara que Israel aniquilou um povo e, então, refere-se a eles

mais adiante, para mostrar que não devemos considerar aquela

linguagem de modo tão literal.


2REIS 4:1-44
UM CONTO DE DUAS MULHERES
1
Ora, certa mulher entre as esposas dos discípulos dos profetas lamentou a Eliseu: “Teu

servo, meu marido, está morto, e tu mesmo sabes que o teu servo era alguém que

reverenciava Yahweh, e um credor está vindo para tomar meus dois filhos para si como

2
servos.” Eliseu lhe disse: “O que devo fazer por você? Diga-me o que você tem em sua

3
casa?” Ela disse: “Tua serva não tem nada em casa, exceto um jarro de óleo.” Ele disse: “Vá e

peça por recipientes para você aos de fora, de todos os seus vizinhos, recipientes vazios. Não

4
pegue poucos. Entre, feche a porta atrás de você e de seus filhos e derrame [óleo] no interior

5
de todos esses recipientes. Remova [cada] um cheio.” Ela saiu de diante dele e fechou a

porta atrás dela e de seus filhos. As pessoas trouxeram [recipientes] para ela, e ela ficou

6
derramando. Quando os recipientes estavam cheios, ela disse ao seu filho: “Traga-me outro

7
recipiente”, mas ele lhe disse: “Não há outro recipiente”; e o óleo parou. Ela foi e contou ao

homem de Deus. Ele disse: “Vá, venda o óleo e pague a sua dívida, e vocês e seus filhos

podem viver do que sobrar.”

8
Certo dia, Eliseu viajou a Suném. Uma mulher importante estava lá, e ela o pressionou a

9
comer, e, sempre que viajava, ele parava lá para comer. Então, ela disse ao seu marido: “Ora,

10
reconheço que é um santo homem de Deus que viaja a nós todo o tempo. Vamos fazer para

ele um pequeno quarto murado no telhado e colocar uma cama para ele ali, e uma mesa, uma

11
cadeira e uma lâmpada. Quando ele vier a nós, pode parar ali.” Um dia, ele chegou ali e

12
parou no quarto, no telhado, e deitou ali, e disse a Geazi, o seu rapaz: “Chame essa mulher

16
sunamita.” [...] Ele disse: “Nessa época, no próximo ano, você estará segurando um filho.”

17
Ela disse: “Não, meu senhor, homem de Deus, não enganes a tua serva.” Mas a mulher

concebeu e teve um filho naquela época, no ano seguinte, como Eliseu lhe declarou.

18 19
A criança cresceu, mas, um dia, ele saiu ao seu pai, aos ceifeiros, e disse ao seu pai:

20
“Minha cabeça, minha cabeça!” Este disse a um rapaz: “Leve-o para a mãe dele.” Ele o

levou e o entregou à sua mãe, e ele ficou sentado no colo dela até o meio-dia, e morreu. [...]

25 28
Ela partiu e foi ao homem de Deus, no monte Carmelo. [...] Ela disse: “Pedi por um filho

32
ao meu senhor? Não disse: ‘Não me encoraje’?” [...] Eliseu chegou à casa, e lá estava o

33
menino morto, deitado em sua cama. Ele entrou e fechou a porta atrás dos dois e implorou

34
a Yahweh. Ele subiu e deitou-se sobre o menino, colocou a sua boca sobre a boca dele, seus

olhos sobre os olhos dele, suas mãos sobre as mãos dele. Enquanto se debruçava sobre ele, a

35
carne do menino se aquecia. Ele retornou, foi na casa aqui e ali, então subiu e se debruçou

36
sobre ele, e o menino espirrou sete vezes. Então, o menino abriu os olhos. [Eliseu] chamou

Geazi e disse: “Chame a mulher sunamita.” Ele a chamou, e ela veio até ele. Ele disse: “Pegue

o seu filho.”

[Os versículos 37-44 concluem essa história e relatam mais duas histórias de maravilhas

realizadas por Eliseu.]


Entre meus amigos, há inúmeros casais jovens que desejam ter filhos,

mas isso não ocorre. Eles, então, submetem-se a exames médicos

variados e a tratamentos diversos. Certo casal optou pela fertilização in

vitro e a transferência embrionária, mas o processo nunca foi bem-

sucedido, e acho que o casal, agora, aceitou a ideia de jamais ter filhos.

No caso de outro casal, um médico decidiu que a esposa necessitava de

determinado tratamento e a encorajou a pensar que isso poderia

resolver o problema. Imagino, então, que tenha sido difícil viver com

aquele encorajamento. A mulher não sabe se deve acreditar no médico

(e se, talvez, ela não acreditar, o tratamento não dará certo?). A pessoa

não deseja que o encorajamento seja algo que leve a uma decepção pior

do que a frustração que ela já sente. Então, no ano passado, essa mulher

engravidou, e a pergunta que não queria calar é se, dessa vez, a gravidez

não terminaria num aborto (refleti sobre isso, mas não ousei perguntar

ao casal se essa possibilidade passava pela mente deles). Todavia, duas

semanas atrás o bebê deles nasceu!

É possível que a mulher sunamita experimentasse um

desencorajamento mais profundo que a minha primeira amiga, quando

fez as transferências embrionárias sem sucesso, ou que a minha segunda

amiga teria experimentado caso ela jamais concebesse ou mesmo

abortasse. É como se essa mulher de Suném tivesse feito as pazes com a

ideia de não poder ter filhos e, então, aplicasse a sua energia em outras

direções, como oferecer hospitalidade a um profeta andarilho. A

exemplo de muitas narrativas do Antigo Testamento, essa história

mostra como as mulheres podem ser pessoas de iniciativa e ação — elas

não estão restritas a fazer o que seu marido diz. Suném é uma vila

situada na fértil planície central de Efraim, não distante de Jezreel,

portanto abaixo do monte Carmelo, no qual Eliseu possui a sua base.

Como de costume, a história assume que o andar térreo de uma casa


compreende os aposentos regulares da família e que o telhado é um

lugar para privacidade ou para fazer algo especial. É a apreciação de

Eliseu pelo cuidado da mulher por ele que o leva a encorajá-la a

perguntar o que ele pode fazer por ela. A sunamita responde que já

possui tudo de que necessita, e é Geazi que indica que ela não tem filho

e que seu marido é idoso. A implicação não é de que ela seja incapaz de

ter filhos, mas de que, cedo ou tarde, ela será deixada por conta própria.

Quem, então, cuidará dela?

Não há “Portanto, assim diz o Senhor” e nenhuma oração na

resposta de Eliseu. Ele é um homem de Deus; é assim que a mulher o

chama. Isso implica que ele possui poder sobrenatural. Agora, é

plenamente possível acreditar que alguém tem poder sobrenatural ou

mesmo reconhecer que Deus tem poder para curar e dar uma nova vida,

mas não ser capaz de imaginar que esse poder será exercido em favor

dela. É algo que só acontece com outras pessoas, não comigo, pensamos.

E, quase sempre, estamos certos. A maioria dos casais sem filhos não

tem a experiência que o casal de meu exemplo teve. Contudo, de algum

modo, o fato de alguns casais terem essa experiência bem-sucedida pode

ser um encorajamento para a maioria que não tem.

O fato de a mulher ter um período difícil para acreditar no que

Eliseu diz não constitui nenhum obstáculo para que isso se realize; o

que Deus faz não é, necessariamente, dependente da nossa fé. No

entanto, o cumprimento da promessa de Eliseu é apenas metade dessa

história. Talvez o menino sofra os efeitos da insolação, por estar fora, no

campo, no calor do período de colheita. Novamente, a sua mãe é aquela

que exerce a iniciativa, ignorando as objeções do marido por sua pressa

em ir à base de Eliseu no monte Carmelo. “E se ele não estiver lá?”

Todavia, ele está lá e fica surpreso não pelo ocorrido ao menino, mas

porque “Yahweh escondeu isso de [mim] e não [me] contou”. Apenas

por ser um homem de Deus com percepção e poder sobrenaturais, isso

não significa que você pode ver e fazer tudo. Eliseu tenta enviar Geazi

para ver o que pode ser feito pelo menino, mas a mulher não se deixa
convencer por essa ação, de modo que Eliseu também vai. O processo

pelo qual o menino é ressuscitado, uma vez mais, pressupõe que a

própria pessoa de Eliseu contém um poder misterioso. A vida pode fluir

dele para o menino. As histórias sobre Jesus usando saliva e barro para

curar um homem cego e de precisar repetir a ação em um caso (Marcos

8; João 9) traçam um paralelo a essas narrativas sobre Eliseu. A última

história no capítulo 4 relata Eliseu alimentando miraculosamente cem

pessoas com um número relativamente pequeno de pães; portanto, isso,

igualmente, acabará por mostrar como Jesus exerce um ministério como

o de Eliseu. Não se pode produzir generalizações com base nas histórias

sobre o modo de operar curas; mas, simplesmente, sentir-se perplexo e

esperançoso diante do que Deus, algumas vezes, faz.

A história sobre a viúva de um dos discípulos dos profetas ilustra

certas dinâmicas sobrepostas. Jesus expressa que havia muitas viúvas

em Israel nos dias de Elias (Lucas 4:25), e a situação não tinha mudado

na própria época de Jesus. Não há segurança social ou benefícios para as

viúvas; a família estendida e os vizinhos é que devem ajudar a viúva

quando ela estiver em dificuldades, mas a pressuposição do relato em

questão é de que toda a comunidade enfrenta problemas. A viúva não

está necessariamente a salvo de tais problemas pelo fato de o seu marido

ser uma pessoa devotada a Deus e envolvida no ministério.

Obviamente, a mulher (ou o marido dela, antes de morrer) tinham

obtido um empréstimo, na esperança de que a situação melhorasse;

talvez contassem com uma colheita abundante o suficiente para eles

pagarem o empréstimo. Isso não ocorreu. O efeito colateral do

empréstimo seria, então, que o pagamento seria feito com o trabalho

dos filhos. Isso não significava que eles seriam escravos, e, se o sistema

funcionasse de acordo com a Torá, eles estariam livres após algum

tempo, mas o arranjo não seria muito divertido para a mãe, muito

menos para os filhos.

Por não termos experiências miraculosas como essas envolvendo as

duas mulheres, é tentador que as consideremos “apenas histórias”, e não


há maneira de estabelecer se são apenas isso ou não. Talvez isso faça

pouca diferença. Caso relatem eventos reais, a ocorrência de tais coisas

a nós são improváveis. Seja como for, as histórias estão presentes na

Escritura para nos convidar a refletir sobre a capacidade de Deus de

realizar coisas extraordinárias e também de estarmos abertos a ser

agentes de Deus em alcançar, de algum modo, mulheres que não podem

ter filhos ou que perderam filhos ou maridos.


2REIS 5:1—6:7
UMA DOENÇA DE PELE REMOVIDA E IMPOSTA
1
Ora, Naamã, comandante do exército do rei de Aram, era alguém importante para o seu

senhor e altamente considerado, pois, por meio dele, Yahweh tinha dado libertação a Aram,

2
mas o homem era um poderoso guerreiro com uma desordem de pele. Os arameus tinham

saído em ataque e capturaram de Israel uma pequena garota, que servia à esposa de Naamã.

3
Ela disse à sua senhora: “Se apenas o meu senhor estivesse na presença do profeta em

4
Samaria. Então, ele removeria essa desordem dele.” [Naamã] foi e falou ao seu senhor: “A

5
menina de Israel disse isso e aquilo”, e o rei de Aram disse: “Saia e vá, e eu mandarei uma

carta ao rei de israel.” Então, ele foi, levou consigo dez talentos de prata, seis mil siclos de

6
ouro e dez peças de roupas, e levou a carta ao rei de Israel: “Quando esta carta chegar a ti:

bem, enviei o meu servo, Naamã, a ti para que possas remover a desordem de pele dele.”

7
Quando o rei de Israel leu a carta, ele rasgou as suas roupas e disse: “Sou Deus, para matar

ou fazer viver, para este homem enviar alguém para que eu o cure da desordem de pele?

Porque, certamente, você pode reconhecer e ver que ele está buscando uma disputa comigo.”

8
Quando Eliseu, o homem de Deus, ouviu que o rei de Israel tinha rasgado as suas roupas,

mandou dizer ao rei: “Por que rasgaste tuas roupas? Ele deveria vir a mim, para poder

reconhecer que há um profeta em Israel.”

9 10
Naamã chegou com seus cavalos e carruagens e parou à porta da casa de Eliseu. Eliseu

enviou um ajudante para dizer: “Vá e lave-se sete vezes no Jordão, e a sua pele voltará para

11
você e estará limpa.” Naamã ficou furioso e foi embora. Ele disse: “Bem, eu disse a mim

mesmo: ‘Ele definitivamente sairá, ficará em pé, clamará em nome de Yahweh, seu Deus,

12
acenará com sua mão no lugar e removerá a doença. Não são Abana e Farfar, os rios em

Damasco, melhores que toda a água em Israel? Não poderia me lavar nelas e ser limpo?’”

13
Assim, ele se virou e saiu com raiva. Mas seus servidores vieram à frente e lhe falaram. Eles

disseram: “Pai, tivesse o profeta falado a ti uma grande coisa, tu não farias? Quanto mais

14
quando ele te disse: ‘Lave-se e seja limpo’?” Assim, ele desceu e mergulhou sete vezes no

Jordão, de acordo com a palavra do homem de Deus, e sua pele voltou como a de um menino,

15
e estava limpa. Ele retornou ao homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, chegou e ficou

diante dele, e disse: “Está certo, reconheço que não há Deus em toda a terra, exceto em

16
Israel. Assim, agora, aceite um presente do teu servo.” Ele disse: “Tão certo quanto Yahweh

vive, diante de quem permaneço [em assistência], não aceitarei.” [Naamã] o pressionou, mas

17
ele recusou. Naamã disse: “Não poderá, então, ser dado ao teu servo duas mulas carregadas

com terra, pois o teu servo não mais fará oferta queimada ou sacrifício a qualquer outro deus,

18
exceto a Yahweh? Com relação a esse assunto, que Yahweh perdoe o teu servo: quando o

meu senhor vai à casa de Rimom, para curvar-se ali, ele se apoia em meu braço, de modo que

eu também tenho que me curvar ali, na casa de Rimom — quando eu me curvar na casa de

19a
Rimom, que Yahweh perdoe o teu servo nessa questão.” Ele lhe disse: “Vá e fique bem.”
[A passagem de 2Reis 5:19b—6:7 relata como Geazi mente a Naamã, dizendo que Eliseu

mudou de ideia sobre o presente e, por isso, Eliseu declara que a doença de pele virá sobre

Geazi. Então, fala sobre outro dos milagres “triviais” de Eliseu.]

Ontem foi o quarto domingo do mês e, como de costume, não tivemos

um sermão “apropriado”; o reitor sentou-se numa cadeira e convidou a

congregação a nos contar o que eles ouviram Deus nos dizer fora das

leituras da Escritura (trata-se de uma igreja pequena e, assim, ao

contrário de igrejas maiores, isso é praticável). A filosofia dessa prática

é a consciência de que pessoas comuns tendem a mostrar tanta

percepção espiritual quanto reitores e professores de teologia (procuro

manter-me em silêncio durante o período de compartilhar, embora não

tenha logrado fazer isso ontem). Uma ou duas pessoas que, com

frequência, se manifestam nessas discussões também enviam, de tempos

em tempos, e-mails encorajadores e reflexivos entre a congregação.

A história de Naamã ilustra como pessoas comuns, às vezes, veem

coisas que os líderes não conseguem ver. As traduções,

tradicionalmente, citam o problema de Naamã como lepra, mas essa

palavra tem sofrido mudanças em seu significado ao longo dos séculos e,

agora, ela é equivocada. A palavra hebraica não denota uma

deformidade que faz os membros da pessoa definharem, mas uma

doença de pele. Embora não significasse que as pessoas afetadas deviam

evitar o contato com outras, elas tinham que ser cautelosas quanto a

isso. Enquanto estivesse com essa doença de pele, ela não podia ir ao

santuário oferecer sacrifícios, e qualquer um que tivesse um contato

próximo com ela poderia “pegar” o tabu vinculado ao doente. Assim,

alguém que desejasse ir ao santuário deveria ter cautela e evitar essa

proximidade com pessoas enfermas (por isso, Lucas 17 fala sobre

algumas pessoas com essa doença de pele que mantiveram certa

distância de Jesus). Uma teoria plausível sobre o motivo de uma doença

de pele poder ser vista assim é que ela dava uma aparência degenerativa
ao corpo do enfermo, similar à decomposição após a morte (veja a

história sobre a enfermidade de Miriã em Números 12). Portanto, a

doença evocava a morte, que é incompatível com estar diante de Deus.

A pessoa não podia ir à presença de Deus quando a sua aparência era de

morte.

Nada podia ser feito com relação a essa doença de pele, apenas

esperar que sumisse. Ocorre que essa pobre menina, prisioneira de

guerra, conhece alguém capaz de fazer algo a respeito. Seria plenamente

perdoável caso essa menina pensasse consigo: “Esse general arameu

merece essa doença, ainda mais pelo que fez a nós, israelitas, e a mim,

em particular”; mas, em vez disso, ela conta à sua senhora sobre o

profeta que poderia remover a enfermidade.

O rei de Aram mostra alguma sabedoria ao se mostrar disposto a

acreditar na menina, embora o preço a ser pago presumido por ele

sugere ter havido algumas experiências ruins com o sistema de saúde

arameu (mas, na realidade, o problema é descrito como uma desordem,

em lugar de uma doença; a narrativa fala constantemente em “remover”

a desordem e sobre “limpeza” em vez de cura, de modo que essa não é

uma história de cura). O rei efraimita tem menos desculpas por sua

reação insensata. Pode-se, talvez, compreender a atitude de Naamã em

relação a Eliseu, que nem mesmo se dispõe a ir à porta para ver o grande

general, mas apenas envia um de seus ajudantes com algumas instruções

aparentemente estúpidas. Afinal, Naamã sabe como o exercício de

talentos espirituais deve funcionar, e não é por um banho num córrego

lamacento. Uma vez mais, são pessoas comuns, membros de sua

comitiva, que demonstram ter percepção espiritual. Eles percebem que

uma das características dos dons espirituais é que jamais pode-se prever

como eles funcionarão. Não há regras, pois Deus não opera por meio de

regras.

Embora não haja regras, pode haver uma justificativa, apenas vista

posteriormente. Com frequência, nos intriga (ou mesmo nos agonia) o

motivo pelo qual Deus cura algumas pessoas, não outras. Aqui, Naamã
obtém a purificação quando há inúmeras pessoas com essa desordem em

Israel, resignadas a viver com ela. Naamã obtém a purificação porque

Deus deseja demonstrar que há um profeta em Israel, que Deus está

falando e agindo ali. Há algo significativo a respeito do Jordão, ainda

que não seja mais notável que os rios em Damasco; ele está localizado

na terra na qual o Deus de Israel está, especialmente, em ação.

Naamã obtém a ação divina e, assim, passa a compartilhar a

sabedoria de pessoas comuns como a menina e o seu próprio servidor,

ambos anônimos. Embora o relato do Antigo Testamento foque,

principalmente, a ação de Deus com Israel, de tempos em tempos o

texto lembra aos seus leitores que o trabalho de Deus com Israel tem

como alvo maior todas as nações da terra, e essa história constitui um

exemplo. Naamã passa a reconhecer que não há Deus em toda a terra,

exceto em Israel. Todavia, dificilmente ele pode permanecer em Canaã

como um residente estrangeiro, a exemplo de Rute, a moabita, ou de

Urias, o hitita. Há um emprego esperando por ele em sua terra natal.

Ele nos faz recordar dos sábios do Oriente Médio que viajaram para ver

Jesus e adorá-lo e, então, tiveram que voltar para sua nação. Como

Naamã pode fazer isso? Ele foi à terra santa, na qual Yahweh está

especialmente ativo e, assim, leva de volta consigo solo israelita

suficiente sobre o qual possa, diariamente, ir e oferecer suas orações e

sacrifícios. Seria como se ele voltasse à terra santa e, quando tivesse que

aparentar adoração ao deus dos arameus, em seu coração estaria

adorando Yahweh. Há muçulmanos, hoje, que fazem isso, em lugar de

segregarem-se de suas comunidades e arriscarem a sua vida.

Em Lucas 4, Jesus sugere um significado distinto na purificação de

Naamã por Eliseu em vez de o profeta favorecer um israelita com a

mesma desordem que o arameu; é uma espécie de juízo sobre o próprio

Israel. Se esta é uma nota de advertência nessa história, outra nota é o

relato sobre Geazi. Pode-se dizer que ele está sendo apenas prático, pois

parece ser o ajudante sênior de Eliseu e, talvez, seja sua

responsabilidade cuidar das finanças domésticas. Todavia, a sua ação


confunde a mensagem que emerge da ação do homem de Deus e do

Deus que está por trás dele, pagando um terrível preço por isso.
2REIS 6:8-23
CAVALOS E CARRUAGENS DE FOGO AO REDOR DE ELISEU
8
Quando o rei de Aram estava travando uma guerra contra Israel, ele tomou conselho com

9
seus assessores, dizendo: “Meu acampamento estará em tal lugar”, mas o homem de Deus

mandava dizer ao rei de Israel: “Cuidado para não passar por este lugar, porque os arameus

10
estão descendo para lá.” Assim, o rei de Israel enviava ao lugar do qual o homem de Deus

11
lhe tinha falado e advertido e tomava cuidado ali, mais de uma ou duas vezes. A mente do

rei de Aram ficou agitada quanto a essa questão. Ele convocou seus assessores e lhes disse:

12
“Vocês devem me dizer quem de nós está do lado do rei de Israel!” Um de seus assessores

disse: “Não, meu rei e senhor, porque Eliseu, o profeta em Israel, é quem conta ao rei de

13
Israel as coisas que tu falas em teu quarto.” Ele disse: “Vá e veja onde ele está. Mandarei

buscá-lo.”

14
Eles lhe disseram: “Ele está lá em Dotã.” Ele enviou cavalos e carruagens para lá e uma

15
força poderosa. Eles chegaram à noite e cercaram a cidade. O assistente do homem de

Deus levantou-se de manhã e saiu: ali, a força estava cercando a cidade, com cavalos e

16
carruagens. Seu rapaz lhe disse: “Oh, não, meu senhor, o que faremos?” Ele disse: “Não

17
tenha medo, porque há mais conosco do que com eles.” Eliseu suplicou: “Yahweh, abre os

olhos dele para que veja.” Yahweh abriu os olhos do rapaz, e ele viu: e ali, as montanhas ao

18
redor de Eliseu estavam cheias de cavalos e carruagens de fogo. [Os arameus] desceram

contra ele, e Eliseu pediu a Yahweh: “Atinge essa nação com um clarão.” Ele os atingiu com

19
um clarão de acordo com a palavra de Eliseu. Eliseu lhes disse: “Este não é o caminho nem

esta é a cidade. Sigam-me, e os levarei ao homem que vocês estão procurando”, e ele os levou

20
a Samaria. Quando eles chegaram a Samaria, Eliseu disse: “Yahweh, abre os olhos dessas

pessoas para que possam ver.” Yahweh abriu os olhos deles, e eles viram; eles estavam dentro

21
de Samaria. Quando os viu, o rei de Samaria disse: “Devo matá-los, pai, devo matá-los?”

22
Ele disse: “Você não os matará. Irá matá-los como pessoas que você capturou com sua

espada e seu arco? Coloque comida e água diante deles para que possam comer e beber e ir

23
para o senhor deles.” Ele lhes preparou um grande banquete, e eles comeram e beberam.

Então, ele os despediu, e eles foram ao seu senhor, e os invasores arameus não mais

invadiram Israel.

Ao longo dos recentes anos, a minha forma de orar tem sido moldada

pela consciência dos profetas de que, quando oramos, participamos dos

debates no gabinete celestial de Deus. Histórias como aquela de

Micaías, em 1Reis 22, ilustram como Deus não fica sentado sozinho no
céu tomando decisões, da mesma forma que não toma todas as ações

necessárias no mundo sem utilizar outros agentes. Deus preside um

gabinete e toma decisões à luz de seus debates. Os profetas não escutam

apenas; eles tomam parte, e isso é o que fazemos em oração. Eis por que

orar é importante; como em qualquer reunião, se algumas pessoas não

participam, então isso influencia o curso do debate e as decisões que são

feitas. Mesmo apenas citar um nome em oração, como faço, com

frequência lembra o corpo de tomada de decisões para não esquecê-las.

O céu é um lugar muito mais complexo do que, em geral, imaginamos, e

o que acontece na terra relaciona-se ao que acontece no céu.

Vinculado a esse fato está o modo pelo qual Eliseu, às vezes, tem

ciência dos planos militares dos arameus; talvez porque seu acesso às

reuniões do gabinete signifique poder ouvir os representantes celestiais

de nações como Aram, relatando seus eventos e planos. Esse

conhecimento resulta na frustração do rei arameu, para a nossa

diversão, mas não para ele. As entidades que participam dos debates do

gabinete não são apenas as que tomam decisões, mas as forças que agem,

como 1Reis 22 também sugere (não que suas ações sempre estejam de

acordo com a vontade do presidente do gabinete, a julgar por algumas

passagens do Antigo Testamento e pela nossa própria experiência). Não

há separação entre as áreas judiciais ou legislativas da executiva. Eliseu

sabe que é assim e precisa que seu assistente compreenda isso para que

não entre em pânico. Que chance um profeta e seus ajudantes têm

contra o exército arameu? Resposta: chances enormes quando se

percebe as dinâmicas reais do que ocorre na terra. Existe todo um outro

domínio de realidade e de atividade que o assistente precisa levar em

conta. O que se vê (com olhos naturais) não é a única pista à disposição.

Portanto, o acesso de Eliseu ao gabinete e ao seu presidente

significa poder pedir por ação na terra e ver as coisas acontecerem. Nem

sempre funciona. Na história sobre a mulher sunamita, ele mesmo foi

surpreendido pelo fato de Deus não lhe revelar sobre a morte do

menino. Algumas vezes, os profetas pedem coisas (argumentam por elas


no gabinete) e perdem o debate; pelo menos, Jeremias pode testificar

dessa experiência. Nem sempre é possível fazer prevalecer o seu ponto

no debate (isto é, nem sempre as suas orações são respondidas), mas, às

vezes, a resposta vem. Nessa ocasião, Eliseu a recebe, e isso o capacita a

impor outra experiência frustrante sobre os arameus de uma forma que

achamos divertida, mas eles não.

Igualmente, esse é um grande exemplo de como agir como um

pacificador. Eliseu, algumas vezes, traz julgamento sobre o povo,

embora isso seja mais frequente em Israel do que sobre estrangeiros. A

exemplo de Elias (e Jesus), o profeta está mais interessado em trazer

juízo sobre as pessoas de Deus do que sobre outros povos. Somos sábios

ao nos ressentir da forma pela qual os profetas trazem tal julgamento:

eles são uma ameaça a nós. Do mesmo modo que ele mostra

misericórdia pelo arameu Naamã, ele também demostra misericórdia

pelo exército de Aram. Não sejamos apenas suaves, ele diz, com efeito.

Deixemos Deus mostrar algum poder sobre eles — não “cegá-los” (uma

palavra que as traduções modernas utilizam), mas “ofuscá-los”,

temporariamente. Mostremos que eles abocanharam mais do que

conseguem mastigar. Então, exibiremos magnanimidade na vitória e

lhes daremos uma festa. A seguir, vamos mandá-los para casa sãos e

salvos. Imagine a história contada por eles ao voltarem para casa! Não

causa surpresa que tenham interrompido as hostilidades por um tempo,

embora a narrativa seguinte indique que os arameus precisavam repetir

o curso de aprendizado.

Você pode pensar que o modelo sobre como a oração funciona e

emerge de uma história como essa e de relatos da experiência de

profetas é um tanto antropomórfico. Pode pensar o mesmo sobre o

modelo deles para uma compreensão da inter-relação entre a atividade

de forças celestiais e terrenas. Tudo bem; conceba outro modelo, mas

assegure-se de considerar as realidades que a história pressupõe. O que

vemos na terra não é tudo o que existe na realidade, e a oração não é

designada para nos mudar, mas alterar o que acontece. Até


concebermos outro modelo que represente essas realidades, seria sábio

de nossa parte não abandonarmos o modelo de Eliseu como se não fosse

sofisticado o suficiente.
2REIS 6:24—7:20
ATIREM NO MENSAGEIRO
24
Depois disso, Ben-Hadade, rei de Aram, mobilizou todo o seu exército e subiu e sitiou

25
Samaria. Houve uma grande fome em Samaria. Assim, eles a sitiaram até que uma cabeça

de jumento passasse a valer oitenta siclos [de prata], e um quarto de litro de esterco de

26
pomba valesse cinco siclos [de prata]. O rei de Israel estava passando pelo muro quando

28b
uma mulher gritou para ele [...]: “Essa mulher me disse: ‘Desista do seu filho, e nós o

29
comeremos hoje, e comeremos o meu filho amanhã’, e cozinhamos o meu filho e o

comemos. No dia seguinte, eu disse a ela: ‘Desista de seu filho, e nós o comeremos’, mas ela

30
escondeu o seu filho.” Quando o rei ouviu as palavras da mulher, ele rasgou as suas roupas,

e, enquanto ele passava pelo muro, as pessoas viram: ali, por baixo da roupa, pano de saco

31
sobre a sua carne. Ele disse: “Isso e mais possa Deus fazer a mim se a cabeça de Eliseu, filho

32
de Safate, permanecer hoje sobre ele.” Eliseu estava sentado em casa, e os anciãos estavam

33b
sentados com ele. [O rei] tinha enviado um homem adiante dele. [...] Ele disse: “Ora, esse

problema é de Yahweh. Por que deveria esperar mais por Yahweh?”

CAPÍTULO 7

1
Eliseu disse: “Ouçam a palavra de Yahweh. Yahweh disse isto: ‘A esta hora, amanhã, uma

medida de farinha [valerá] um siclo, duas medidas de cevada por um siclo, no portão de

2
Samaria.” O oficial, em cujo braço o rei se apoiava, replicou ao homem de Deus: “Se Yahweh

fizesse janelas nos céus, poderia isso acontecer?” [Eliseu] disse: “Ora, você irá ver isso com os

seus próprios olhos, mas não comerá disso.”

3
Havia quatro homens com desordem de pele no portão da cidade. Eles disseram uns aos

4
outros: “Por que estamos sentados aqui até morrermos? Se dissermos: ‘Vamos entrar na

cidade’, há fome na cidade e morreremos lá, e, se sentarmos aqui, morreremos. Vamos nos

render ao acampamento arameu. Se nos deixarem viver, viveremos. Se nos matarem,

5
morreremos.” Então, eles partiram ao anoitecer para o acampamento arameu, mas chegaram

6
na borda do acampamento arameu, e ali não havia ninguém. O Senhor tinha feito o exército

ouvir o som de carruagens, o som de cavalos, o som de um imenso exército. Eles disseram

uns aos outros: “Ora, o rei de Israel contratou contra nós os reis dos hititas e os reis do

7
Egito”, e tinham partido e fugido ao anoitecer. Eles deixaram as suas tendas, cavalos e

8
jumentos, o acampamento como estava, e fugiram por sua vida. Então, esses homens com

desordem de pele chegaram à borda do acampamento, entraram em uma tenda, comeram e

9
beberam, carregaram prata, ouro e roupas de lá, e saíram e os enterraram. [...] Mas eles

disseram uns aos outros: “Não estamos agindo certo. Este dia é um dia de boas notícias.

Estamos mantendo silêncio. Esperaremos até a luz da manhã, então a [nossa] desobediência

irá nos descobrir. Vamos voltar e contar à casa do rei [...].”


16
Então, o povo saiu e saqueou o acampamento arameu, e uma medida de farinha [valeu] um

17
siclo, e duas medidas de cevada por um siclo, de acordo com a palavra de Yahweh. A cargo

do portão, o rei tinha indicado o oficial em cujo braço ele se apoiara, e as pessoas o

pisotearam no portão, e ele morreu, conforme o homem de Deus tinha falado.

[Os versículos 17b-20 resumem essa nota de encerramento da história.]

De vez em quando, medito sobre o motivo de tantos cristãos hoje se

preocuparem com a guerra mais do que os cristãos das épocas passadas.

Não é simplesmente por estarem seguindo Jesus — pelo menos, a

maioria das gerações anteriores de cristãos não pensava dessa maneira,

e muitos judeus, agnósticos e ateus compartilham da atitude moderna.

Será uma reação quanto à natureza do armamento moderno, que faz

coisas terríveis às pessoas? Pelo fato de os modernos meios de

comunicação tornarem impossível ficarmos alheios ao que ocorre no

campo de batalha? Por que os combatentes retornam da guerra

terrivelmente feridos no corpo e no espírito em vez de morrerem em

campo, de tal modo que o custo da guerra permanece visível em sua

vida subsequente? Segundo algumas estimativas, vinte por cento dos

combatentes no Iraque e no Afeganistão desenvolverão transtorno de

estresse pós-traumático, tal como um entorpecimento emocional. A

pessoa não tem qualquer sentimento, positivo ou negativo — nem

alegria ou amor, nem ódio ou hostilidade.

Essa narrativa sobre o cerco a Samaria me leva a pensar que o efeito

da guerra não é tão diferente dos seus efeitos no século XX. Mulheres

estão comendo os seus bebês. Se isso não requer um desapego

emocional, não sei mais o que demanda. Essa não é a única passagem no

Antigo Testamento que relata essa desesperada atitude. O sítio a uma

cidade era uma tática característica dos conflitos militares no mundo

antigo e de execução simples. O inimigo posicionava-se fora dos limites

de uma cidade (talvez a capital do povo adversário, como no relato em

questão) e interrompia as linhas de suprimento daquela cidade. A


comida destinada à população sitiada torna-se sua, enquanto você

permanece acampado até que a fome force a rendição da cidade ou a

fraqueza torne os seus habitantes uma presa fácil. Ninguém,

normalmente, comeria um guisado de cabeça de jumento, mas situações

desesperadas geram ações desesperadas. (Presumo que o esterco de

pomba fosse um combustível para cozinhar, todavia pode ser uma

expressão para alguma espécie de sementes ou cascas pouco apetitosas.)

Nesse ínterim, as pessoas experimentam uma ruptura moral.

Imagino que não devamos pensar que as mulheres mataram os seus

bebês simplesmente para os comerem, embora eu talvez esteja sendo um

pouco melindroso. No entanto, sob as circunstâncias de um cerco, os

bebês são muito mais vulneráveis que os adultos, parcialmente porque a

amamentação de sua mãe seria interrompida pela falta de nutrição e, em

consequência, os bebês simplesmente morriam. Sob tais condições, às

vezes, o canibalismo surge. Mas quão desesperadora é a situação para

que mães sejam capazes de comer o corpo de seus bebês? Essa história

pressupõe que é responsabilidade do rei resolver as disputas entre as

pessoas da comunidade, que elas têm o direito de pedir ao rei que as

resgate da injustiça e da opressão e restabeleça a ordem pela instalação

da justiça e da liberdade. A mulher está questionando se o rei irá

cumprir com a sua responsabilidade para decidir um caso de suposta

fraude ou dolo. Ela perdeu qualquer noção da monstruosidade da sua

ação de comer os bebês.

Por seu turno, o protesto dela leva o rei a revelar o seu próprio

senso de desesperança diante de Deus e o seu ressentimento em relação

a Eliseu. O rei está ressentido por Eliseu lhe ter requerido a libertação

dos arameus, permitindo que, agora, eles estejam novamente em

posição de causar tamanho sofrimento a Efraim? Está culpando Eliseu,

como agente de Deus, por trazer juízo sobre Efraim? Será o cerco um

cumprimento da palavra de Eliseu? O profeta está falhando em usar o

poder inerente a ele como homem de Deus? Está falhando em

interceder a Deus pelo término do cerco? Que esperança o rei pode ter
quanto ao futuro? Açoitar o profeta é uma forma de açoitar o Deus que

está trazendo tão terrível aflição sobre a cidade. Igualmente, é uma

recusa a assumir qualquer responsabilidade, como se a ação de Deus

tivesse algo a ver com a maneira pela qual o rei tem liderado o seu povo.

Há algum contraste entre a forma pela qual o rei envia um ajudante

hostil e o fato de os anciãos, os membros mais importantes da

comunidade, estarem sentados com Eliseu, aparentemente buscando, de

algum modo, descobrir o que Deus irá fazer, em vez de apenas ceder ao

desespero, como o rei e seu ajudante.

Considerando que, anteriormente, Deus fechou os olhos dos

arameus e abriu os olhos do assistente de Eliseu, agora Deus abre os

olhos dos arameus para que vejam o que o assistente viu, no episódio

anterior, embora, de modo irônico, eles presumam que as carruagens e

os cavalos pertencem a outros exércitos terrenos, não aos exércitos

celestiais. Ao contrário de Naamã, mas a exemplo dos homens em Lucas

17, aqueles homens com desordem de pele estavam isolados de suas

famílias. Não está bem claro por que eles estão segregados; não há nada

no Antigo Testamento que exija isso, e eles mesmos consideraram voltar

à cidade caso quisessem, mas naquelas circunstâncias isso não seja

sábio, pois também não há comida lá. Talvez estejam sob uma

quarentena temporária, como Miriã; ou a comunidade tenha concluído

que a doença deles fosse resultante de pecado, como Miriã. É possível,

ainda, que colocá-los sob quarentena fosse uma das maneiras de a

comunidade evitar qualquer coisa que pudesse desagradar a Deus e,

assim, abrir a possibilidade de Deus agir em benefício deles. É, então,

perfeito que os que estão sob quarentena sejam aqueles que descobrem

o que Deus fez. Por outro lado, o homem que não acredita que Deus irá

agir em benefício da cidade perde a chance de compartilhar dos

resultados dessa ação divina.


2REIS 8:1-29
FOI APENAS UMA COINCIDÊNCIA
1
Eliseu falou à mulher cujo filho ele trouxe à vida, dizendo: “Parta e vá, você e a sua casa, e

permaneça em algum lugar ou outro, porque Yahweh convocou uma fome e, de fato, virá

2
sobre a terra por sete anos.” A mulher partiu e agiu de acordo com a palavra do homem de

3
Deus. Ela foi, ela e a sua casa, e permaneceu na Filístia por sete anos. Ao fim dos sete anos, a

4
mulher retornou da terra dos filisteus e foi apelar ao rei sobre a sua casa e suas terras. O rei

estava falando com Geazi, o rapaz do homem de Deus, dizendo: “Diga-me todas as grandes

5
coisas que Eliseu tem feito.” Ele estava contando ao rei como ele havia trazido o morto à

vida, quando a mulher cujo filho ele havia trazido à vida chegou para apelar ao rei sobre sua

casa e suas terras. Geazi disse: “Meu rei e senhor, esta é a mulher e este é o seu filho a quem

6
Eliseu trouxe à vida.” O rei perguntou à mulher, e ela lhe contou, e o rei designou um oficial

para ela, dizendo: “Devolva tudo o que pertencer a ela e toda a renda de suas terras, desde o

dia em que ela deixou o país até agora.”

7
Eliseu foi a Damasco, quando Ben-Hadade, o rei de Aram, estava doente. Ele foi informado:

8
“O homem de Deus veio aqui.” O rei disse a Hazael: “Leve um presente com você e vá ao

encontro do homem de Deus e inquira de Yahweh por ele: ‘Recuperar-me-ei dessa doença?’”

9
Hazael foi ao encontro dele e levou um presente com ele, todas as coisas boas de Damasco,

quarenta camelos carregados. Ele foi e apresentou-se diante dele e disse: “Teu filho, Ben-

10
Hadade, rei de Aram, enviou-me a ti, dizendo: ‘Recuperar-me-ei dessa doença?’” Eliseu lhe

disse: “Vá, diga-lhe: ‘Definitivamente, te recuperarás.’ Mas Yahweh me mostrou que ele,

11
definitivamente, morrerá.” Ele manteve a sua face congelada até que [Hazael] ficasse

12
embaraçado, e o homem de Deus chorou. Hazael disse: “Por que estás chorando, meu

senhor?” Ele disse: “Porque eu sei o mal que você fará aos israelitas. As suas fortalezas, você

incendiará. Os seus jovens, você matará com a espada. Os seus pequenos, você irá rasgar em

13
pedaços. As suas mulheres grávidas, você abrirá.” Hazael disse: “O que é teu servo, um cão,

para que ele possa fazer esse poderoso feito?” Eliseu disse: “Yahweh me mostrou você como

14
rei sobre Aram.” Ele deixou Eliseu e foi ao seu senhor, e ele lhe disse: “O que Eliseu disse a

15
você?” Ele disse: “Ele me disse: ‘Definitivamente, te recuperarás.’” Mas, no dia seguinte,

ele pegou um pano, mergulhou-o na água e o estendeu sobre sua face, e ele morreu. Assim,

Hazael reinou em seu lugar.

[Os versículos 16-29 resumem os reinados de Jeorão/Jorão e Acazias, em Judá, durante os

reinados de Jorão/Jeorão, em Efraim. Ambas as nações, portanto, tiveram um rei cujo nome

podia ser escrito de duas maneiras. (Para esclarecer, irei referir-me ao rei judaíta como Jeorão,

e ao rei efraimita como Jorão.)]


Ontem, recebi a visita de uma aluna de outro campus de nosso

seminário que desejava conversar sobre pós-graduação. A visita surgiu

do fato de ela estar incluída na lista do seminário dos alunos

anglicanos/episcopais, uma lista que obtive por almejar convidá-los

para uma reunião. Na realidade, não percebi que a lista incluía

estudantes de todos os nossos campi e, assim, recebi notas intrigantes

de pessoas em lugares como Seattle, questionando o motivo de convidá-

las a jantar em Pasadena e se eu iria pagar o bilhete aéreo. Caso tivesse

percebido a natureza da lista, jamais teria convidado essa aluna, que

mora a duas horas de carro. Seja como for, eu a convidei, e ela veio, e

isso conduziu a outras conversações que, talvez, a auxiliem em suas

ambições. Tudo não passou de uma coincidência.

A coincidência desempenha um grande papel na história da mulher

sunamita. Foi por acaso que ela conheceu Eliseu, pois ocorreu de ele

atravessar o caminho dela, embora não foi por coincidência que ela

sugeriu ao marido apoiar o profeta, nem que fosse capaz de ter um filho

e, então, que pedisse a intervenção de Eliseu quando a criança morreu

(2Reis 4). Foi aquela consequência anterior que, por fim, resultou no

alerta para refugiar-se em outro lugar durante os anos de fome.

A história é alusiva ao pano de fundo. Talvez a fome seja “apenas

uma daquelas coisas” como algumas ondas de fome, relatadas em

Gênesis (um profeta podia ainda falar sobre isso como algo trazido por

Deus); mas, talvez, esse seja um ato de castigo sobre Efraim por sua

falta de fé, como, por implicação, tem sido o caso das fomes anteriores,

citadas em relação a Elias e Eliseu. A mulher, então, recebe um alerta

por ser uma das poucas pessoas que dá atenção a Eliseu. Ao que tudo

indica, seu marido está morto e, assim, ela é o cabeça efetivo da família

(seu marido já era idoso quando o menino nasceu). Desse modo, ela está

numa posição similar à de Noemi, na história de Rute. Buscar refúgio

em outro país é o que Elimeleque e Noemi foram obrigados a fazer;

estamos familiarizados com o modo pelo qual isso ocorre em nosso

próprio mundo, quando a pobreza e a falta de trabalho forçam pessoas a


se mudarem de regiões das Américas, da Ásia, da Europa Oriental e da

África para os Estados Unidos e Europa Ocidental. As duas mulheres

passam a ser responsáveis pelo destino da família e por sua terra. O

relato fornece outra ilustração da forma natural com que uma mulher

pode exercer essa responsabilidade. No sentido formal, ela apenas faria

isso se o seu marido estivesse morto, mas as histórias do Antigo

Testamento mostram que não havia suposição de que uma mulher não

pudesse exercer responsabilidades por sua família, sua terra e seu

destino. Para a sunamita, obviamente, a mudança colocou em perigo a

propriedade da família muito mais seriamente do que no caso de Noemi,

talvez apenas porque antigas convenções estavam se desintegrando,

como mostra a história de Acabe e a vinha de Nabote.

Algumas das incertezas sobre a narrativa resultam do fato de todo

esse episódio servir de cenário para uma nova coincidência. A sunamita

e sua família retornam ao país, e ela precisa apelar ao rei pela

restauração de sua terra, que, evidente e naturalmente, foi entregue aos

cuidados de outra pessoa. Como no caso da história anterior, a

responsabilidade do rei inclui um compromisso de cuidar para que a

sociedade funcione de uma forma adequada e justa, de acordo com os

princípios estabelecidos por Deus a esse respeito, e as pessoas detêm o

direito de apelar ao rei quando seus vizinhos não estão agindo em

conformidade e quando as disputas não podem ser resolvidas entre eles.

Ela vai à presença do rei no exato momento em que o assistente de

Eliseu está contando ao rei o que o profeta fez por ela. Ao lerem essa

história, será que os israelitas questionavam sobre o que tinha

acontecido à desordem de pele que Eliseu havia imposto sobre Geazi e

que devia afligi-lo e aos seus descendentes para sempre (2Reis 5)?

Concluíam que isso não impediu Geazi de seguir tendo uma vida

normal? Ou concluíam que ele tinha se arrependido e encontrado

restauração?

Por seu turno, o pano de fundo da segunda história reside bem

antes, no relato sobre a instrução de Deus a Elias para o profeta realizar


três unções (1Reis 19). Elias jamais realizou uma unção literal, embora

tenha passado o seu manto a Eliseu, e este, agora, talvez estivesse

efetivamente comissionando Hazael; logo adiante, ele efetuará a unção

literal de Jeú. Obviamente, Hazael é um oficial na corte real de

Damasco. O texto não esclarece o motivo de Eliseu ir a Damasco, mas

sua reputação o precedia, e Ben-Hadade envia Hazael para consultá-lo.

A exemplo de outras figuras internacionais no Antigo Testamento,

como seu compatriota Naamã, ele reconhece que o poder de Yahweh e o

poder e a percepção de seu profeta não estão restritos a Israel, portanto

ele fornece um contraponto à história com a qual 2Reis inicia, sobre um

efraimita que envia representantes para consultar um deus estrangeiro

quando ele adoece. O poder e o discernimento de Yahweh são exercidos

onde ele desejar.

Elias simplesmente disse a Hazael para mentir ao seu senhor? A

história em 2Reis já ilustrou a disposição de Deus de enviar palavras de

engano a alguém, como um ato de juízo. Todavia, talvez a mensagem de

Eliseu contenha uma ambiguidade mais sutil e, ao mesmo tempo,

arrepiante; ela reflete a misteriosa interação entre a vontade divina e a

consciência, por um lado, e as probabilidades, as iniciativas e as

responsabilidades humanas, por outro, além da misteriosa tensão entre

a disposição divina de punir e a dor divina por fazer isso. Não, a

enfermidade do rei não é fatal, de modo que, num sentido, ele irá se

recuperar. No entanto, ele não se recuperará porque algo mais intervirá.

Será que Hazael não possui ambições de ser rei? O sucesso subsequente

de seu reinado de quarenta anos, talvez, torna isso pouco provável.

Deus pretende que Hazael mate Ben-Hadade? A história não declara

isso, embora deixe claro que Deus e Eliseu sabem que Hazael deseja

matá-lo e não, exatamente, o proíbem de fazê-lo. É possível que o

interesse deles resida em outro lugar, com a dificuldade que sobrevirá a

Efraim como resultado do reinado de Hazael, motivo pelo qual Eliseu

chora; eis por que essa história é contada. Ele reconhece que esse será o
meio de Deus castigar Efraim pela falta de fé? Ou o seu choro destina-

se a demover Hazael de suas intenções como assassino e rei?


2REIS 9:1-37
O HOMEM QUE DIRIGE COMO UM LOUCO
1
Ora, Eliseu, o profeta, convocou um dos discípulos dos profetas e lhe disse: “Amarre as suas

2
roupas, pegue este frasco de óleo e vá a Ramote-Gileade. Quando chegar lá, procure por

Jeú, filho de Josafá, filho de Ninsi. Quando você chegar, tire-o do meio de seus companheiros

3
e leve-o para uma sala interior. Pegue o frasco de óleo, derrame-o sobre a sua cabeça e diga:

‘Yahweh disse isto: “Eu o unjo rei sobre Israel.”’ Então, abra a porta e fuja. Não se demore.”

4 5
Então, o rapaz foi (o rapaz do profeta) a Ramote-Gileade. Quando ele chegou ali, os

comandantes do exército estavam sentados juntos. Ele disse: “Eu tenho uma palavra para ti,

6
comandante.” Jeú disse: “Para qual de nós?” Ele disse: “Para ti, comandante.” [Jeú]

levantou-se e entrou na casa, e [o rapaz] derramou óleo sobre a sua cabeça e lhe disse:

7
“Yahweh, o Deus de Israel, disse: ‘Eu o unjo rei sobre o povo de Yahweh, sobre Israel. Você

deve eliminar a casa de Acabe, seu senhor, e eu tomarei reparação de Jezabel pelo sangue de

meus servos, os profetas, e o sangue de todos os servos de Yahweh [...].’”

16
Jeú subiu em sua carruagem e foi a Jezreel, porque Jorão estava ali, na cama [doente].

17
Acazias, o rei de Judá, tinha descido para ver Jorão. A sentinela estava de pé na torre, em

20b
Jezreel e viu o grupo de Jeú chegando. Ela disse: “Vejo um grupo [...]. A condução é como

21
a condução de Jeú, filho de Ninsi, porque ele dirige loucamente.” Jorão disse: “Preparem-

na!”, e eles prepararam a sua carruagem, e Jorão, rei de Israel, saiu, com Acazias, rei de Judá,

cada um em sua carruagem. Saíram ao encontro de Jeú e o encontraram na terra de Nabote,

22
o jezreelita. Quando Jorão viu Jeú, ele disse: “As coisas estão bem, Jeú?” Ele disse: “O que

pode estar bem durante as imoralidades de sua mãe, Jezabel, e suas muitas formas de

23
adivinhação?” Jorão deu meia-volta e fugiu, dizendo a Acazias: “Traição, Acazias!”,

24
enquanto Jeú pegou o arco em sua mão e atingiu Jorão entre os ombros. A flecha

atravessou o seu coração, e ele caiu em sua carruagem. [...]

30
Jeú chegou a Jezreel. Quando Jezabel ouviu, ela colocou máscara sobre os seus olhos,

31
arrumou o seu cabelo e olhou pela janela. Quando Jeú atravessou o portão, ela disse: “As

32
coisas estão bem, Zinri, assassino do seu senhor?” Ele levantou seu rosto para a janela e

33
disse: “Quem está comigo? Quem?” Dois ou três oficiais olharam para ele. Ele disse:

“Joguem-na para baixo!” Eles a jogaram, e o seu sangue respingou sobre o muro e os cavalos,

34
e eles a pisotearam. Ele entrou, comeu, bebeu e disse: “Cuide dessa mulher amaldiçoada e

35
enterre-a, porque ela é filha de um rei.” Assim, eles foram enterrá-la, mas não conseguiram

36
encontrar nada dela, somente o crânio, os pés e as palmas das mãos. Ele retornaram e lhe

contaram, e ele disse: “É a palavra de Yahweh que ele falou por meio de seu servo Elias, o

37
tesbita: ‘Na terra de Jezreel, os cães comerão a carne de Jezabel. A carcaça de Jezabel será

como esterco sobre a superfície dos campos na terra de Jezreel, para que as pessoas não sejam

capazes de dizer: “Essa é Jezabel.”’”


Meus pais amavam tanto a atriz de cinema Bette Davis que deram o

nome dela à minha irmã. Eles se casaram em 1938, no ano em que a atriz

ganhou um Oscar por seu papel principal no filme Jezebel. Como

“Jezebel”, ela é Julie Marsden, uma sulista bela, poderosa, orgulhosa,

sensual e amorosa, às vésperas da Guerra Civil, em Nova Orleans. (Não

irei pensar o que tudo isso implica sobre a minha mãe ou o meu pai.)

Essa não é de forma alguma a única maneira na qual a história

transformou Jezabel em uma figura de fantasia sexual. A cultura

popular fez o mesmo uma década e pouco mais tarde, na canção de

Frankie Laine, Jezebel, e canções de sucesso mais recentes usaram o

mesmo tema. Jezabel é a tentadora, a sedutora, a enganadora.

Esse não é o quadro do Antigo Testamento sobre Jezabel. Na

posição de rainha, ela era uma mulher que sabia usar seu poder para

apoiar o seu homem, e era uma devota séria do Mestre, que também

sabia como usar o poder dela nessa conexão. Ela havia usado a sua

posição ajudando Acabe a tomar a terra que, logicamente, pertencia ao

palácio e para que a religião de sua terra natal, a Fenícia, fosse

devidamente reconhecida em Efraim. Décadas se passaram, e ela é,

agora, a rainha-mãe. A viúva do rei anterior, que era, portanto, a mãe do

rei atual, continuava sendo uma figura importante no Oriente Médio, e

Jezabel crescera como uma personagem poderosa e assertiva na corte.

Jeú sabe que o termo correto para o seu encorajamento à adoração do

Mestre em Efraim é “imoralidades”. O ponto sobre essa expressão não é

haver um elemento sexual em suas atividades. Ocorre que as práticas da

religião fenícia podem ser consideradas corretas na Fenícia (ou não; isso

depende de quais são essas práticas), mas, com certeza, não são certas

em Israel. Elas envolvem uma infidelidade a Yahweh, equivalente à

traição de um marido ou de uma esposa.

Elias havia causado a morte de quatrocentos profetas, embora a

narrativa não diga, na verdade, o que Deus pensou de sua ação. Deus

lhe tinha dito para ungir Jeú, mas ele não o fez, tampouco Eliseu. Assim,

Eliseu comissiona um dos discípulos dos profetas para realizar a


unção. Talvez fosse para manter a discrição que Eliseu não fez isso

pessoalmente e que, pela mesma razão, o jovem profeta ungiu Jeú em

um lugar privado, embora isso siga o mesmo padrão do evento em que

Samuel unge Saul. Mais adiante, o capítulo deixa claro o motivo pelo

qual Jeú está do outro lado do Jordão, em Ramote-Gileade, uma

importante cidade da fronteira entre Efraim e Aram. O exército estava

lá para defendê-la contra os arameus, mas o rei havia se ferido e

retornado a Jezreel para se recuperar. Não fica explícito que Jeú é o

comandante-chefe na ausência do rei, mas se ele é, tecnicamente, um

dos oficiais seniores, a palavra do profeta, imediatamente, o torna em

muito mais.

O jovem profeta anônimo fala muito mais do que Eliseu comissiona,

embora o que ele diga reafirme palavras anteriores de Deus, e é

improvável que devemos concluir que ele foi além de sua comissão. Há

dois elementos no juízo imposto por Deus. Jeú deve eliminar o governo

da linhagem de Acabe. O fato de Acazias também ser descendente de

Onri podia dar a Jeú uma justificativa para lançar-se à morte do rei

judaíta quando este tenta fugir, sem sucesso. A mensagem de Deus

refere-se, especificamente, a Acabe, o pai do rei atual, Jorão, a cujo

reinado Jeú irá, de fato, pôr fim. A comissão divina não cita o próprio

pai de Acabe, Onri, cuja linhagem Jeú irá, igualmente, eliminar. Onri

não conta tanto para 1 e 2Reis. Acabe foi o verdadeiro responsável pela

degeneração religiosa em Efraim. É cada traço dele que precisa ser

eliminado. Quando o rei pergunta a Jeú se as coisas estão bem, isso

significa, mais literalmente: “Há paz?” Pode-se imaginar que ele esteja

interessado no que está acontecendo em Ramote-Gileade, na esperança

de que seja esse o motivo de Jeú ter corrido até Jezreel. No entanto, não

pode mais haver paz ou bem-estar para a casa de Acabe.

O outro elemento no juízo é que cada traço de Jezabel também deve

ser eliminado. Nas palavras do profeta, a base para o julgamento dela

não é a adoração a falsos deuses, encorajada por Acabe como resultado

da chegada da rainha, mas o assassinato dos devotos de Yahweh que ela


mesma incentivou. Com justiça poética, a morte de seu filho ocorre no

próprio terreno do qual ela ajudou o rei a tomar posse, ao tramar a

morte de seu legítimo proprietário. Nas palavras de Jeú a Jorão, a

menção ao compromisso religioso de Jezabel encontra lugar naquela

alusão às suas “imoralidades”.

Em certo sentido, Jeú encontra o seu par em Jezabel. Como seu

filho, ela pergunta a Jeú se as coisas estão bem (“Há paz?”), mas ela o

faz com evidente ironia ou cálculo. Ela sabe que o jogo terminou e que a

resposta de Jeú a Jorão se aplica também a ela. Jezabel insiste em

referir-se a ele como Zinri, que é, na verdade, o nome do precursor de

Jeú e modelo de oficial do exército, que havia assassinado o seu rei e

assumido o trono. Zinri reinou por apenas uma semana e, então,

suicidou-se, sendo substituído pelo próprio sogro de Jezabel, Onri. Com

efeito, ela estava insinuando que aqueles que vivem pela espada morrem

pela espada, embora, no caso de Jeú, ela estivesse errada. O golpe de Jeú

resultará no estabelecimento de sua própria linhagem em Efraim, que

permanecerá no poder por quase um século, a última dinastia

importante antes da queda de Efraim diante dos assírios.

Ao contrário da impressão dada pela forma com que Jezabel se

tornou uma figura da fantasia sexual, ao arrumar-se quando soube da

aproximação de Jeú, a rainha-mãe não tem a intenção de seduzi-lo, mas

ir ao encontro de sua morte com a dignidade exigida por sua posição

como “filha de um rei”. Contudo, se Jeú tem qualquer intenção sincera

de facilitar esse desejo final, ele age tardiamente, e é frustrado; o

resultado de sua demora é o cumprimento da própria palavra de Deus.


2REIS 10:1-35
O GRANDE SACRIFÍCIO PARA BAAL
1
Ora, Acabe tinha setenta descendentes em Samaria. Jeú escreveu cartas e as enviou a

Samaria, aos oficiais em Jezreel, aos anciãos e aos guardiães de Acabe, dizendo: “Logo,

3
quando essa carta alcançar vocês [...], vejam quem é o melhor e mais íntegro dos

descendentes de seu senhor, coloquem-no no trono de seu pai e lutem pela casa de seu

4 5b
senhor.” Mas eles ficaram muito, muito temerosos e disseram [...]: “Somos teus servos.

Qualquer coisa que disseres, faremos. Não faremos ninguém rei. Faze o que for bom aos teus

6
olhos.” Então, ele lhes escreveu uma segunda carta: “Se vocês estão do meu lado e irão

ouvir a minha voz, peguem as cabeças dos homens (os descendentes de seu senhor) e

venham até mim amanhã, a esta hora, em Jezreel.” Os descendentes do rei, setenta deles,

7
estavam com as pessoas importantes da cidade, que os criavam. Quando a carta chegou até

eles, pegaram os descendentes do rei e mataram todos os setenta. Eles colocaram suas

8
cabeças em cestos e as enviaram a ele, em Jezreel. Um ajudante veio e lhe disse: “Eles

trouxeram as cabeças dos descendentes do rei.” Ele disse: “Coloquem-nas em duas pilhas

9
junto ao portão da cidade até de manhã.” Pela manhã, ele saiu, apresentou-se a todo o povo

e disse: “Vocês estão certos. Sim. Eu mesmo conspirei contra o meu senhor e o matei, mas

10
quem derrubou todos esses? Reconheçam como não cairá por terra nada da palavra de

Yahweh, que Yahweh falou com respeito à casa de Acabe, já que Yahweh fez o que ele falou por

11
meio de seu servo Elias.” Jeú eliminou todos os que permaneciam da casa de Acabe em

Jezreel, e todas as suas pessoas importantes, seus amigos e seus sacerdotes, até não permitir

17
nenhum sobrevivente remanescente a ele. [...] Ele chegou a Samaria e matou todas as

pessoas que restavam de Acabe em Samaria até tê-las eliminado, de acordo com a palavra de

Yahweh que ele falou a Elias.

18
Jeú, então, reuniu todo o povo e lhes disse: “Enquanto Acabe pouco serviu ao Mestre, Jeú

19
servirá a ele muito mais. Assim, agora, convoquem todos os profetas do Mestre, todos os

seus servos e todos os seus sacerdotes. Ninguém deve faltar, porque tenho um grande

25
sacrifício para o Mestre. Nenhum que faltar viverá.” [...] Mas, quando acabou de fazer a

oferta queimada, Jeú disse aos batedores e aos oficiais: “Venham e os matem. Ninguém deve

escapar.” Os batedores e oficiais os mataram à espada, os deixaram e foram à cidade da casa

26 27
do Mestre. Eles levaram para fora as colunas da casa do Mestre e as queimaram. Eles

demoliram as colunas do Mestre e demoliram a casa do Mestre e transformaram [o local] em

28 29
latrina, como é até este dia. Jeú eliminou o Mestre de Israel; no entanto, Jeú não se

desviou das ofensas de Jeroboão, o filho de Nebate, com as quais ele causou a ofensa de Israel

30
(os bezerros de ouro em Betel e Dã). Mas Yahweh disse a Jeú: “Porque você agiu bem,

fazendo o que era certo aos meus olhos (de acordo com tudo o que estava em minha mente,

você agiu em relação à casa de Acabe), os seus filhos até a quarta [geração] se assentarão no

trono de Israel.”
[Os versículos 31-35 encerram e resumem o relato sobre o reinado de Jeú.]

Em minha cidade natal, Birmingham, na Inglaterra, anualmente, no dia

30 de agosto, a Igreja Católica Romana lembra o martírio de uma

mulher chamada Margaret Ward. No reinado de Elizabeth I, quando a

prática da fé católica romana era contrária à lei inglesa, um padre

católico, chamado William Watson, estava encarcerado em Londres.

Margaret Ward o ajudou a escapar, mas foi descoberta, torturada e, por

fim, enforcada em 1588, nesse dia (muitas outras dioceses marcam a

ocasião em uma data diferente, por motivos que desconheço). Houve,

claro, execuções análogas de protestantes durante as décadas nas quais

a prática da fé protestante era proibida por lei. Em Massachusetts, um

século depois, dezenove mulheres e cinco homens foram enforcados

após serem considerados culpados por bruxaria. Ao longo da história

cristã, tem sido prática recorrente a execução de cristãos uns pelos

outros com base na contravenção grave da fé cristã considerada

apropriada.

Elias e Jeú teriam sido mais compreensivos com tais ações do que a

maioria dos cristãos de hoje. Certamente, ninguém se surpreende por

Jeú ser um homem que pode ser tão violento quanto Elias, naquele

banho de sangue em Samaria; não se alcança tão elevado posto militar

sendo susceptível, e a forma de Jeú dirigir a sua carruagem também

sugere a espécie de energia agressiva que ele possuía. Inicialmente, a

história não comenta o que Deus pensa de sua ação, mas não temos que

considerar a consciência divina para concluirmos que Deus poderia,

decerto, imaginar que qualquer golpe instigado por Jeú seria algo

sangrento, e no devido tempo o capítulo explicita a aprovação de Deus

quanto aos atos praticados por ele contra a casa de Acabe.

Na verdade, os golpes sem derramamento de sangue são raros, por

motivos que podem ser defensáveis em mais de um terreno. A história

de Israel já considera como certo que um novo governante deve ser


sábio para descartar qualquer pessoa identificada com o antigo regime;

podemos ver essa dinâmica subjacente à história de Davi. No entanto,

além disso, a história de Jeú, como a de Elias, vê o juízo de Deus sendo

realizado por meio desses eventos. Obviamente, as ações de Acabe,

Jorão e Jezabel não podem ser toleradas, mas elas não podem ser

meramente interrompidas. O ponto sobre a ação contra eles não é o de

efetuar uma vingança pessoal e, talvez, nem mesmo o de deter alguém

mais de cometer os mesmos erros, mas de eliminar um mal e declarar

juízo sobre ele.

A ação inicial de Jeú, após os assassínios em Jezreel, a cidade-chave

no vale central, é de enviar uma mensagem a Samaria, nas montanhas, a

capital da nação. Na prática, ele desafia a corte do rei a decidir em qual

lado eles estão. Caso sejam leais a Jorão e à linhagem de seu pai, Acabe,

eles devem coroar alguém dessa linhagem como sucessor de Jorão. Não

é preciso considerar o número “setenta” muito literalmente; entre

outros, Gideão também é descrito como tendo setenta “filhos” (em

ambos os casos, eles podem ser filhos, mas também podem incluir

netos). Isso indica que há muitos para se escolher dentre os

descendentes de Acabe, pelos quais os guardiães têm alguma

responsabilidade (esse é o sentido no qual eles são descritos como

“guardiães de Acabe”). O desafio de Jeú é um pouco similar ao de

Golias: “Escolham o seu campeão, e nós lutaremos.”

A narrativa prossegue com um humor macabro. Primeiro, os

guardiães, anciãos e oficiais de Samaria precisam ter tanta coragem

quanto os israelitas tiveram ao aceitarem o desafio de Golias, e a única

pessoa nessa história com coragem davídica é o próprio Jeú. Então, Jeú

lhes envia uma segunda carta, com uma deliciosa ambiguidade presente

na palavra hebraica para “cabeças”; isso também ocorre na tradução.

“Tragam as cabeças para mim”, ele diz. Ele está se referindo aos homens

que são os líderes da comunidade (“os cabeças”) ou às cabeças que estão

sobre os ombros desses homens, no momento? A liderança em Samaria

adota o sentido que significa a morte dos descendentes de Acabe,


benéfica a Jeú, da mesma forma que a morte de inúmeras pessoas, certa

feita, beneficiou Davi.

O humor macabro de Jeú prossegue quando ele convoca um grande

festival em honra ao Mestre, no qual um grande sacrifício deve ser

oferecido. Ele toma os cuidados para que apenas adoradores do Mestre,

ninguém mais, estejam presentes, e que todos os que são adoradores do

Mestre estejam lá; então, Jeú os transforma no próprio sacrifício.

O Antigo Testamento é ambíguo sobre a pena de morte; ele é mais

propenso a ameaçar do que implementar, na prática, a ameaça. O texto

assume a mesma atitude quanto à ação de uma pessoa como Jeú. Ele age

por comissão e aprovação divinas, embora também implique que a ação

não é incompatível com o homem Jeú. Além disso, um século mais

tarde, Deus revela ao profeta Oseias o nome de seu segundo filho,

Jezreel, porque ele “em breve cuidará da casa de Jeú pelo derramamento

de sangue em Jezreel, e porá fim à monarquia da casa de Israel” (Oseias

1:4). A história de Jeú exemplifica um motivo recorrente no Antigo

Testamento. Deus se torna tão profundamente envolvido nos eventos

que encoraja pessoas a fazer coisas e, assim, alcançar as suas próprias

ambições, pela morte e destruição de outras pessoas, quando Deus sabe

que tais são, de fato, merecedoras desse juízo. Todavia, o Antigo

Testamento não insinua que os agentes de morte e destruição não sejam

responsáveis por seus erros e que não estão sujeitos à punição por isso.

O motivo reaparece no Novo Testamento: tais dinâmicas estão

presentes na execução de Jesus.

O aspecto escabroso da história é que não podemos presumir que o

mero fato de Deus nos usar (ou usar outras pessoas) como meios de sua

ação no mundo revele algo sobre a correção moral de nossas ações (ou

das ações de outras pessoas). Jeú enfatiza que suas ações são os meios

pelos quais a palavra de Deus é cumprida, mas isso não significa que ele

esteja fora do gancho moral.


2REIS 11:1-21
DUAS ALIANÇAS INCOMUNS
1
Quando Atalia, a mãe de Acazias, viu que seu filho estava morto, levantou-se e eliminou

2
toda a descendência real, mas Jeoseba, filha do rei Jeorão, irmã de Acazias, tomou Joás, o

filho de Acazias, e o escondeu dentre os filhos do rei que seriam assassinados, ele e sua ama,

3
em um quarto. Assim, elas o esconderam de Atalia, e ele não foi morto. Ele ficou com ela, na

4
casa de Yahweh, escondido por seis anos, enquanto Atalia estava reinando sobre o país. No

sétimo ano, Joiada mandou chamar os centuriões sobre os cários e sobre os batedores e os

trouxe a ele na casa de Yahweh. Ele selou uma aliança com eles e os fez declararem um

5
juramento na casa de Yahweh. Depois lhes mostrou o filho do rei. Ele lhes ordenou: “Isso é o

que vocês devem fazer. Um terço de vocês vem no sábado e mantém guarda sobre a casa do

6
rei. Um terço fica no portão Sur. Um terço fica no portão atrás dos batedores. Vocês devem

8
manter guarda sobre esta casa. [...] Devem cercar o rei por todos os lados, cada homem com

suas armas na mão. Qualquer um que se aproximar das fileiras deve ser morto. Estejam com

12
o rei quando ele sair e quando ele entrar [...].” Então, ele trouxe o filho do rei para fora,

colocou o diadema e a declaração sobre ele, proclamando-o rei, e o ungiu. Eles aplaudiram e

13
disseram: “Vida longa ao rei.” Atalia ouviu o som dos batedores [e] do povo e foi ao povo

14
na casa de Yahweh. Ela viu, ali, o rei em pé, junto à coluna, de acordo com o costume. Os

oficiais e suas trombetas estavam junto ao rei, e todo o povo do país estava se regozijando e

15
tocando trombetas. Atalia rasgou as suas roupas e gritou: “Traição, traição!” Mas Joiada, o

sacerdote, ordenou aos centuriões que estavam designados sobre o exército e lhes disse:

17
“Levem-na para fora [...].” Joiada selou uma aliança entre Yahweh, o rei e o povo, para

18
serem o povo de Yahweh, e entre o rei e o povo. Todo o povo do país foi à casa do Mestre e

20
a derrubou. [...] Todo o povo do país regozijou-se, enquanto a cidade ficou quieta. Atalia

21
foi morta à espada por eles na casa do rei. Joás tinha sete anos de idade quando se tornou

rei.

A noção de aliança tem sido muito importante na história dos Estados

Unidos e no desenvolvimento da democracia americana como uma

forma de compreender as relações na comunidade humana.

Etimologicamente, a palavra “aliança” inclui a ideia de pessoas “se

unindo” para concordar sobre algo; uma aliança é um acordo, mas o

acordo diz respeito não apenas a alguns fatos, mas à maneira de as

pessoas viverem juntas. Quando os colonizadores, em New Plymouth,


formularam o Pacto Mayflower, em 1620, eles estabeleceram uma

aliança uns com os outros em prol da “melhor ordem e preservação” da

comunidade deles sob Deus. Idealmente, viver sob um relacionamento

de aliança implica que a nação constitui um grupo de pessoas que aceita

responsabilidade mútua sob Deus. Não muito tempo depois do Pacto

Mayflower, Thomas Hobbes e John Locke, na Europa, também

desenvolviam uma forma secular de aliança com base no pensamento

político que, igualmente, veio a influenciar o pensamento norte-

americano. Assim, surgiram as constituições, que são alianças sem

serem religiosas.

O pensamento de aliança, tão importante na história das colônias

norte-americanas, via-se como uma continuação do exemplo da aliança

estabelecida por Joiada. As convergências e diferenças são dignas de

nota.

A essência do pensamento pactual é o estabelecimento de um

compromisso quando não há uma autoridade externa capaz de impô-lo

a você e nenhuma lei que lhe possa aplicar sanções caso você quebre os

termos desse compromisso. Na falta dessas possibilidades, você assume

um compromisso deliberado e sério, bem como solenemente jura a sua

aceitação dessa obrigação. Descumprir o compromisso significa

desapontar a si mesmo, ficar aquém de seus próprios padrões, falhar

consigo mesmo. No relato em questão, a primeira aliança é uma

obrigação solene que Joiada extrai dos grupos de guardas do palácio

quando ele lhes confidencia o golpe que está prestes a tentar.

A subsequente e mais ampla aliança de Joiada era distinta por

envolver Deus, o rei, o povo e, por implicação, abranger as três partes

em todas as combinações possíveis. Trata-se de uma aliança entre Deus

e o rei, portanto pressupõe algo para o qual o desenvolvimento da

democracia pactual norte-americana virou as costas. Judá tem vivido

com as consequências da influência da casa de Onri. Paradoxalmente,

apesar do assassinato de Acazias por Jeú, a casa de Onri vive em Judá

de uma forma que não ocorre em Efraim. No reino efraimita, Jeú cuidou
para que toda a casa fosse eliminada. Em Judá, os eventos ocorreram de

modo contrário.

Compreender todo o cenário demanda alguma recapitulação. O pai

de Acazias e rei predecessor de Judá era Jeorão, que se casou com uma

mulher da família real efraimita chamada Atalia. A ligação de alguns

pontos sugere que ela era filha de Acabe e de Jezabel, mas quer fosse

filha quer não, era irmã de alma de Jezabel. Em outras palavras, ela

partilhava os compromissos religiosos de Jezabel, sua determinação e

energia, sua capacidade de controlar o marido quanto ao que julgava

certo e sua crueldade. Embora as atitudes em relação a Yahweh, em

Judá, jamais tenham saído do controle com a mesma intensidade que

em Efraim, Atalia estabeleceu um novo nível inferior. O seu marido

morreu na meia-idade, e o filho deles, Acazias, assumiu o trono, com

Atalia como a poderosa rainha-mãe. O assassinato de seu filho por Jeú a

levou à decisão de eliminar os demais membros (homens) da família

real, seguindo a fórmula consagrada pelo tempo. Isso possibilita que ela

mesma governe como rainha, a única a reinar em Jerusalém nos tempos

do Primeiro Templo.

Infelizmente para ela, o seu expurgo não foi tão completo quanto

imaginava. Uma das filhas de seu marido, com outra esposa, garantiu

que um dos netos de Atalia, ainda bebê, sobrevivesse. Essa mulher,

evidentemente, conspira com Joiada, “o sacerdote”, para assegurar a

sobrevivência do menino — que seria, mais tarde, chamado de sumo

sacerdote. Havia, evidentemente, certa tensão entre os dois grupos em

Jerusalém. Havia pessoas identificadas com Atalia e simpatizantes da

adoração ao Mestre, das quais se podia esperar resistência ao golpe e

uma tentativa de matar o jovem príncipe quando ele fosse revelado.

Igualmente, existiam pessoas apegadas ao compromisso com Yahweh.

Elas incluíam Jeoseba e Joiada, além dos cários e dos batedores, grupos

de guardas palacianos.

Eles esperam até o menino completar sete anos de idade e, então,

preparam o seu próprio golpe. Embora Joás viesse a ser, obviamente, um


rei marionete até crescer, a aliança precisa envolvê-lo. A aliança de

Deus com a linhagem de Davi investe promessas nele; ela também

impõe expectativas sobre ele. Ele precisa manter o compromisso de ser

“um homem segundo o coração de Deus” no sentido de ser alguém

comprometido com Yahweh. O diadema e a “declaração” que são

colocados sobre o menino expressam os dois lados desse compromisso;

na Torá, a “declaração” é o documento que detalha os termos da aliança

com o povo como um todo e que é colocada no baú da aliança.

A aliança, igualmente, envolve o relacionamento entre o rei e o

povo. Salmos 72 descreve a natureza dessa expectativa mútua. O rei

tem a responsabilidade de cuidar para que a vida da comunidade seja

exercida com base no compartilhamento dos que têm com os que não

têm, em vez de os primeiros se aproveitarem dos segundos. O povo, por

seu turno, tem a responsabilidade de reconhecer a autoridade do rei.

Além disso, a aliança envolve o relacionamento entre o povo e Deus.

A existência da monarquia não exime o povo do compromisso quanto à

sua relação com Deus. O rei não fica entre eles, do mesmo modo que os

sacerdotes também não. “O povo do país” parece ser uma referência às

pessoas comuns que o sacerdote espera, com sucesso, que fiquem do

lado certo naquele conflito.


2REIS 12:1-21
A VIDA APENAS NÃO É JUSTA
1
Joás tornou-se rei no sétimo ano de Jeú, e ele foi rei por quarenta anos em Jerusalém. O

2
nome de sua mãe era Zíbia, de Berseba. Joás fez o que era certo aos olhos de Yahweh todos

3
os seus dias, como Joiada, o sacerdote, o ensinou. Eles apenas não removeram os lugares

altos; as pessoas ainda estavam sacrificando e queimando incenso nos lugares altos.

4
Joás disse aos sacerdotes: “Toda a prata das ofertas santas que são trazidas à casa de Yahweh

5
[...] os sacerdotes devem receber para si mesmos, cada qual de seu assessor, e eles mesmos

6
devem reparar os danos na casa, onde quer que o dano seja encontrado.” Mas, no vigésimo

7
terceiro ano do rei Joás, os sacerdotes não tinham reparado os danos na casa. Assim, o rei

Joás chamou o sacerdote Joiada e os [outros] sacerdotes e lhes disse: “Por que vocês não

estão reparando os danos na casa? Então, agora, não recebam a prata de seus assessores, mas

8
deem-na para os danos na casa.” Os sacerdotes concordaram em não receber dinheiro do

9
povo e não reparar os danos da casa. Joiada, o sacerdote, pegou um baú e fez um furo em sua

tampa. Ele o colocou junto ao altar, à direita quando uma pessoa entrava na casa de Yahweh.

10
Quando viam que a quantidade de prata no baú era grande, o escriba real subia com o

11
sumo sacerdote e pegavam e contavam a prata encontrada na casa de Yahweh. Eles

colocavam a prata que tinha sido quantificada nas mãos dos trabalhadores designados para a

casa de Yahweh. Eles a davam aos carpinteiros e construtores que estavam trabalhando na

12
casa de Yahweh, e aos pedreiros e cortadores de pedra, e para obter madeira e pedra

lavrada para reparar os danos na casa de Yahweh, e para qualquer coisa relacionada à casa de

15
Yahweh. [...] Eles não mantinham uma prestação de contas dos homens em cujas mãos

entregavam a prata para dar aos trabalhadores, porque estavam agindo honestamente. [...]

17
Naquele tempo, Hazael, rei de Aram, subiu e batalhou contra Gate e a capturou. Quando

18
Hazael virou a sua face para subir a Jerusalém, Joás, rei de Judá, pegou todas as coisas

sagradas que Josafá, Jeorão e Acazias, seus antecessores como reis de Judá, tinham

consagrado, e suas próprias coisas santas, e todo o ouro que pode ser encontrado nos

tesouros da casa de Yahweh e na casa do rei, e os enviou a Hazael, rei de Aram, e ele foi

embora de Jerusalém.

19
Os demais atos de Joás, tudo o que ele fez, estão, de fato, escritos nos anais dos reis de

20
Judá. Seus servidores levantaram-se, formaram uma conspiração e mataram Joás em Bete-

21
Milo, que desce para Sila. Jozabade, filho de Simeate, e Jeozabade, filho de Somer, de seus

servidores, o mataram. Após morrer, ele foi enterrado com seus ancestrais, na cidade de

Davi, e Amazias, seu filho, reinou em seu lugar.


O homem que teria sido o meu chefe, em meu emprego atual, David

Hubbard, entrevistou-me pela primeira vez durante um almoço, num

hotel de Londres, em 1981. Ele era um dos mais criativos e inovadores

líderes do ensino teológico nos Estados Unidos e transformou um

seminário importante, mas convencional, de porte médio, no maior e

mais complexo seminário em todo o mundo. Curiosamente, como eu,

ele tinha uma esposa com deficiência e também era professor de Antigo

Testamento. Quatro anos antes de, efetivamente, eu começar a

trabalhar no corpo docente do seminário, ele se aposentou e, dois anos

mais tarde, morreu, com uma idade inferior à minha agora, uma idade

na qual imaginávamos que ele ainda teria uma década ou duas à sua

frente, seja para ficar sentado na praia de Santa Bárbara com sua esposa,

seja para fazer muitas coisas no campo da educação teológica ou no

ensino do Antigo Testamento.

Trata-se de uma história suficientemente comum. É a história de

Joás (exceto pelo fato de David Hubbard não ter sido vítima de um

complô do corpo docente). Primeiro e Segundo Reis estão, com

frequência, interessados em mostrar como tanto reis quanto pessoas

obtêm o que merecem nesta vida; como Deus disse, certa feita, ao

profeta Eli, em 1Samuel 2:30: “Porque a quem me honra eu honrarei,

mas quem me despreza será desprezado.” E, em grande parte do tempo,

os dois livros podem fornecer evidências de que isso ocorre. Quando

2Crônicas reconta essas histórias, de modo característico, o texto

estabelece o ponto de tentar explicar as aparentes exceções. É difícil

manter junto a generalização (“as coisas geralmente funcionam bem”) e

a realidade das exceções (“com frequência, elas não funcionam”).

Igualmente, é tentador fingir que inexistem exceções (assim, quando as

coisas dão errado para as pessoas, deve ser porque elas pecaram) ou

abandonar a generalização e questionar-se por que a vida, na verdade,

funciona de uma forma totalmente aleatória (então, temos “o problema

do sofrimento”). Primeiro e Segundo Reis nos convidam a uma posição


menos confortável de crer tanto na generalização quanto na realidade

das exceções.

Joás era apenas um menino quando foi colocado no trono por Joiada

e seus associados, e isso torna natural citar a forma pela qual Joiada

teria continuado a agir como mentor do jovem rei enquanto ele crescia.

(Seu nome também pode ser grafado Jeoás, mas também há um rei

efraimita com as duas grafias, de modo que manterei Joás para o rei

judaíta e Jeoás para o rei efraimita.) Nem Jeoacaz nem Joás viram

qualquer necessidade de fazer algo quanto aos lugares altos. Além

disso, a história também levanta uma ponta do véu que encobre

algumas questões complexas sobre o templo e o sacerdócio, e sobre a

relação da monarquia e o templo, sem, todavia, resolvê-las. O templo

caíra em ruínas ao longo de alguns anos? Joiada tinha negligenciado

outros aspectos de suas responsabilidades? Ou a necessidade de reparos

estava ligada à adoração do Mestre, encorajada por Atalia? Em lugar de

responder a essas perguntas, a narrativa concentra-se em elogiar o rei

por assumir a responsabilidade de tomar devida ação.

Sua presunção é de que as ofertas trazidas pelo povo deveriam ser

suficientes para financiar as reformas necessárias. Embora, às vezes, os

ofertantes trouxessem ofertas em espécie que seriam sacrificadas na

prática, quando as pessoas vinham de longas distâncias, em geral, era

mais simples levar equivalentes em valores, ou mesmo podiam vender

seus animais no templo, convertendo suas ofertas em dinheiro — daí as

menções, nos Evangelhos, a cambistas no templo. Os assessores, então,

são pessoas que realizam os cálculos relevantes e, assim, facilitam o

processo pelo qual o dinheiro entra no cofre dos sacerdotes (embora

“dinheiro” seja um termo enganoso, já que o dinheiro ainda não estava

em uso em Judá, de modo que a narrativa cita a “prata”). Desse modo,

os sacerdotes podem usar a prata que recebem dos assessores para pagar

os homens que trabalham na reparação do templo.

O problema é que eles falham em realizar o serviço. A história não

diz por quanto tempo eles prevaricaram, nem afirma que eles estavam
desviando o dinheiro para suas próprias contas bancárias. Repetindo, o

foco do relato reside na ação de Joás, o que inverte ainda mais a relação

entre palácio e templo, e entre Joás e seu mentor — que estaria, àquela

altura, ficando velho. Sua nova organização tira a coleta do dinheiro e a

sua distribuição das mãos dos sacerdotes e as coloca sob o controle de

alguém do palácio. Talvez isso implique que pastores sábios devem focar

o pastoreio e deixar a administração para pessoas que entendem do

assunto. Somente a transferência da prata para um baú envolve os

sacerdotes — especificamente, os sacerdotes que guardavam a entrada

do templo. Esses eram os sacerdotes que impediam a entrada de pessoas

que pudessem contaminar o templo; por exemplo, eles instruíam as

pessoas portadoras de desordens de pele (a exemplo do que

encontramos em algumas dessas histórias) se elas deveriam permanecer

fora do santuário durante algum tempo.

Portanto, que rapaz excelente e sábio era Joás! Então, tudo cai por

terra. Primeiro, Hazael (ungido de Yahweh! — veja 1Reis 19; 2Reis 8)

decide estender a sua esfera de influência, talvez por interesses

comerciais, e, assim, ameaçar Judá e Jerusalém. Isso leva Joás a comprar

a retirada de Hazael, rompendo o compromisso com o templo que o

capítulo tem focado, embora a narrativa não diga, exatamente, que ele

agiu de maneira errada ao fazer isso. E, por fim, ele perde a vida por

meio de uma conspiração de seu próprio grupo de servidores, que

historicamente pode estar relacionada à maneira pela qual as relações

entre palácio e templo se tornaram mais complexas com o passar dos

anos (essa é a implicação da versão de Crônicas sobre essa história).


2REIS 13:1—14:29
O DEUS QUE NÃO CONSEGUE RESISTIR À TENTAÇÃO DE SER

MISERICORDIOSO
1
No vigésimo terceiro ano de Joás, filho de Acazias, rei de Judá, Jeoacaz, filho de Jeú, tornou-

2
se rei sobre Israel, em Samaria, por dezessete anos. Ele fez o que era desagradável aos olhos

de Yahweh e seguiu a ofensa de Jeroboão, filho de Nebate, que ele levou Israel a cometer. Ele

3
não se desviou disso. Assim, a ira de Yahweh se acendeu contra Israel, e ele os entregou nas

4
mãos de Hazael, rei de Aram, e de Ben-Hadade, filho de Hazael, continuamente. Jeoacaz

suplicou o favor de Yahweh, e Yahweh o ouviu, porque ele viu a aflição de Israel, porque o rei

5
de Aram os afligia. Yahweh deu a Israel um libertador, e eles saíram de debaixo das mãos de

6
Aram, e os israelitas viveram em suas tendas como tinham vivido anteriormente. Mas eles

não se desviaram das ofensas que a casa de Jeroboão levou Israel a cometer. Eles andaram

8
nelas, e mais, Aserá permaneceu de pé em Samaria. [...] Os demais atos de Jeoacaz, tudo o

9
que ele fez e seu poder estão, de fato, escritos nos anais dos reis de Israel. Jeoacaz dormiu

com seus ancestrais e foi enterrado em Samaria. Jeoás, seu filho, tornou-se rei em seu lugar.

10
No trigésimo sétimo ano de Joás, rei de Judá, Jeoás, filho de Jeoacaz, se tornou rei de

11
Israel, em Samaria, por dezesseis anos. Ele fez o que era desagradável aos olhos de Yahweh.

Não se desviou de todas as ofensas de Jeroboão, filho de Nebate, que ele levou Israel a

cometer. Ele andou nelas. [...]

14
Ora, Eliseu estava doente com a enfermidade da qual morreu, e Jeoás, o rei de Israel,

desceu até ele. Chorou sobre ele e disse: “Pai, pai, as carruagens de Israel e a sua cavalaria!”

15 16
Eliseu lhe disse: “Pegue um arco e flechas.” Ele pegou para si um arco e flechas. [Eliseu]

disse ao rei de Israel: “Coloque a sua mão no arco.” Ele colocou a sua mão no arco. Eliseu pôs

17
as mãos sobre as mãos do rei e disse: “Abra as janelas que dão para o leste.” Ele as abriu, e

Eliseu disse: “Atire!” Ele atirou, e Eliseu disse: “A flecha da libertação de Yahweh! Uma flecha

da libertação contra Aram! Você derrubará Aram em Afeque, de modo a terminar isso!”

18
Então, ele disse: “Pegue as flechas”, e ele as pegou. Ele disse ao rei de Israel: “Golpeie o

19
chão.” Ele golpeou o chão três vezes e, então, parou. O homem de Deus ficou nervoso com

ele e disse: “Você deveria ter golpeado o chão cinco ou seis vezes! Então, teria derrubado

Aram, de modo a terminar isso, mas, agora, você derrubará Arão [somente] três vezes.”

20
Eliseu morreu e foi sepultado. Ora, agressores de Moabe invadiam o país na virada do ano,

21
e, certa vez, as pessoas estavam enterrando alguém e, ali, viram os invasores. Então, eles

jogaram o homem no túmulo de Eliseu, e, quando o homem tocou os ossos de Eliseu, ele

voltou à vida e ficou em pé!

22 23
Embora Hazael, rei de Aram, afligisse Israel todos os dias de Jeoacaz, Yahweh foi

gracioso com eles e teve compaixão deles. Ele voltou o seu rosto para eles pelo bem de sua

aliança com Abraão, Isaque e Jacó. Ele não estava disposto a aniquilá-los, e não os lançou de

25
diante de seu rosto até agora. [...] Jeoás, filho de Jeoacaz, tomou de volta, das mãos de Ben-
Hadade, filho de Hazael, as cidades que ele tinha tomado de Jeoacaz, seu pai, em guerra. Por

três vezes, Jeoás o derrubou e recuperou cidades israelitas.

[O capítulo 14 resume os reinados de Amazias, em Judá, e de Jeroboão, em Efraim.]

Ontem, na igreja, a pessoa que estava fazendo a primeira leitura das

Escrituras, dos Profetas, ao subir ao púlpito, revelou: “Não queria,

realmente, ler esta passagem.” Após a leitura, nosso reitor disse que

lutara contra isso durante toda a semana. Ele iria pregar sobre a leitura

dos Evangelhos, mas convidou a congregação a compartilhar os

pensamentos e reações que tiveram em relação à primeira passagem. Ela

veio de Amós 7 e incluía uma vívida advertência quanto ao juízo da ira

de Deus sobre o sacerdote que havia dito a Amós para que este calasse a

boca e não mais profetizasse. Como lidamos com tais passagens? Claro

que alguém indicou (na verdade, fui eu) que Jesus, em suas

advertências, é tão vívido e direto quanto Amós. Assim, como nos

relacionamos com esse Deus e com esse Jesus?

Essas histórias em 1 e 2Reis suscitam a mesma questão, pois

continuam descrevendo a maneira pela qual Deus fica irado com Israel

e age contra o povo por causa da desobediência. Segundo Reis 13 nos

encoraja a levantar a cabeça e ver que o abandono de Deus jamais se

revela completo ou final. Há uma consistência sobre a vida de Efraim.

Pode-se dizer que a nação foi concebida no pecado, o pecado de

Jeroboão, filho de Nebate (1Reis 12). Reis como Jeoacaz e Jeoás ainda

trilham os caminhos de Jeroboão e estão pagando o devido preço sob a

forma das invasões de Hazael — o rei arameu cuja unção Deus tinha

comissionado, exatamente, com esse propósito. No entanto, Jeoacaz

suplica a Deus por misericórdia, e Deus responde mandando-lhes um

libertador (não sabemos quem foi ele), a exemplo do que ocorria no

livro de Juízes. Os israelitas estão livres para voltar às suas casas

(“tendas” é uma expressão arcaica para suas casas; apenas uns poucos

pastores viviam, literalmente, em tendas).


Não há menção à ação de Deus como sendo uma resposta ao

arrependimento de Jeoacaz e à desistência do culto aos Mestres e a

Aserá. O motivo de Deus exercer misericórdia é “porque ele viu a

aflição de Israel, porque o rei de Aram os afligia”. A aflição vista por

Deus era uma aflição que ele mesmo havia comissionado, mas Deus não

pôde resistir à súplica de Jeoacaz para colocar um fim nela.

Literalmente, Jeoacaz “suavizou o rosto de Yahweh”. Deus estava

focado em endurecer o rosto contra Efraim; Jeoacaz logrou direcionar o

foco de Yahweh para o que o povo estava atravessando e, assim, suavizar

o seu rosto endurecido. Talvez seja possível inferir o que Deus estava

pensando; que ao mostrar sua misericórdia aos israelitas, eles poderiam

se arrepender, se desviar dos Mestres e voltar a ele. Contudo, isso não

aconteceu.

A parte de encerramento do capítulo expressa, mais

detalhadamente, o que está ocorrendo no coração de Deus e esboça

algumas ideias-chave do Antigo Testamento sobre Deus. A ação divina

é uma expressão da graça de Deus. É a primeira referência à graça

divina desde a oração de Salomão na dedicação do templo (1Reis 8—9),

mas a graça subjaz em toda a história. A ação de Deus também é

expressão de sua compaixão. É a primeira menção a compaixão de Deus

em 1 e 2Reis, mas sabemos sobre compaixão pelo sentimento maternal

por seu filho, exibido por uma das mães em 1Reis 3. Terceiro, a ação de

Deus resulta do compromisso com a aliança de Deus, especialmente,

com os ancestrais de Israel. O problema com aquele compromisso era

não haver condições concretas atreladas a ele, de maneira que Deus não

pode deixar de ser fiel àquela aliança e suas promessas simplesmente por

Israel não cumprir a sua parte do pacto. A aliança, nesse caso, não era

um pacto.

Tudo isso significava que Deus não estava disposto (pode-se dizer

que Deus não era capaz) de aniquilar os israelitas ou lançá-los fora “até

agora”. Quando será esse “agora”? Profetas como Elias e Eliseu, além de

reis como Jeoacaz e Jeoás, viveram no século IX a.C.; Hazael morreu


por volta de 806 a.C. Todavia, para o autor desses livros, o “agora” é

muito mais tarde. Os assírios tiraram Efraim do cenário, praticamente,

um século depois, em 722 a.C., mas o período coberto por esses livros

abrange a melhor parte de outros dois séculos posteriores. Não há

menção sobre a nação de Efraim para ver. Essa passagem, portanto,

expressa uma notável e ousada declaração de fé. Os únicos efraimitas

que se pode ver são algumas pessoas que se refugiaram em Judá, quando

a nação de Efraim caiu, e outras que, agora, têm imigrantes assírios

vivendo no meio delas, muitas das quais se esqueceram do que significa

pertencer a Efraim — mas, Deus não se esqueceu. Elas ainda estão

diante de seu rosto. Alguns séculos mais, e a área de Efraim será parte

de Israel novamente. Jesus veio de lá. Costumo repassar essas dinâmicas

da experiência de Efraim quando me sinto desalentado pelo quase

desaparecimento da igreja na Europa.

As histórias de encerramento sobre Eliseu fazem as pessoas

modernas coçarem a cabeça e sentir certo desconforto, embora elas

sejam mais inteligíveis aos que vivem em sociedades tradicionais. As

histórias não se encaixam no modo de as pessoas modernas enxergarem

o mundo. Podemos ver suas presunções como preocupantemente

próximas à magia, e/ou podemos meramente dizer que não acreditamos

nelas. Assim, como de costume, necessitamos perguntar os motivos

pelos quais Deus está disposto a ter tais relatos em seu livro. Uma

implicação da primeira história emerge do que Jeoás diz a Eliseu em seu

leito de morte: “Pai, pai, as carruagens de Israel e a sua cavalaria!” (São

palavras que o próprio Eliseu usou quando Elias foi trasladado por

Deus: veja 2Reis 2.) É tentador pensar que o servo por meio de quem

Deus opera seja crucial para sua segurança e sucesso. Eliseu quer que

Jeoás veja o outro lado da moeda e que assuma a responsabilidade,

debaixo de Deus, por tomar posse do poder divino, mas Jeoás obtém um

sucesso apenas parcial ao fazer isso. A segunda história sugere um ponto

inverso; Eliseu não para de operar coisas apenas porque está morto.

Ainda há vida nele.


2REIS 15:1—16:20
COMO NÃO DAR A CÉSAR

[O capítulo 15 resume o reinado de Azarias (Uzias) e Jotão, em Judá, e de Zacarias, Salum,

Menaém, Pecaías e Peca, em Efraim. Entre outras coisas, a tumultuada história da monarquia

efraimita, nesse período, significa o cumprimento da advertência de Deus a Jeú quanto ao

destino de sua linhagem.]

CAPÍTULO 16

1
No décimo sétimo ano de Peca, filho de Remalias, Acaz, filho de Jotão, tornou-se rei de

2
Judá. Acaz tinha vinte anos de idade quando se tornou rei e reinou dezesseis anos em

Jerusalém. Ele não fez o que era direito aos olhos de Yahweh, seu Deus, como Davi, seu

3
ancestral. Andou no caminho dos reis de Israel. Ainda, ele passou o seu filho pelo fogo, de

acordo com as práticas abomináveis das nações que Yahweh desapropriou diante dos

4
israelitas, e sacrificou e queimou incenso nos lugares altos, nas colinas e debaixo de cada

5
árvore florescente. Então, Rezim, rei de Aram, e Peca, o filho de Remalias, rei de Israel,

subiram a Jerusalém para batalhar. Eles sitiaram Acaz, mas não conseguiram prevalecer.

6
Naquele tempo, Rezim, rei de Aram, recuperou Elate para Aram. Ele expulsou os judaítas

de Elate, e os edomitas vieram a Elate e vivem ali até este dia.

7
Acaz enviou ajudantes a Tiglate-Pileser, rei da Assíria, dizendo: “Sou teu servo e teu filho.

Sobe e liberta-me das mãos do rei de Aram e das mãos do rei de Israel, que estão se

8
levantando contra mim.” Acaz pegou o ouro e a prata encontrados na casa de Yahweh e nos

9
tesouros do rei e os enviou ao rei da Assíria como um presente, e o rei da Assíria o ouviu. O

10
rei da Assíria subiu a Damasco, a capturou, a deportou para Quir e matou Rezim. O rei

Acaz foi ao encontro de Tiglate-Pileser, o rei da Assíria, em Damasco, e viu o altar em

Damasco. O rei Acaz enviou a Urias, o sacerdote, um retrato do altar e a planta dele, para

11
toda a sua construção, e Urias, o sacerdote, construiu o altar. De acordo com tudo o que o

rei Acaz tinha enviado de Damasco, assim Urias, o sacerdote, fez, antes de o rei Acaz chegar

12
de Damasco. Quando o rei chegou de Damasco e viu o altar, moveu-se em direção ao altar,

13
subiu nele, ofereceu sua oferta queimada e sua oferta de cereal, derramou a sua libação e

14
aspergiu o sangue de suas ofertas de comunhão sobre o altar. O altar de bronze que estava

diante de Yahweh, ele o moveu da frente da casa (entre o [novo] altar e a casa de Yahweh) e o

15a
colocou junto ao lado do [novo] altar, ao norte. O rei Acaz ordenou a Urias, o sacerdote:

“Ofereça a oferta queimada da manhã e a oferta de cereal da tarde, a oferta queimada do rei e

a sua oferta de cereal, a oferta queimada de todo o povo do país, sua oferta de cereal e suas

libações, no grande [novo] altar. Todo o sangue da oferta queimada e todo o sangue do

sacrifício você deve aspergir sobre ele.”

[Os versículos 15b-20 encerram o reinado de Acaz.]


Uma recente graduanda de nosso seminário estava me contando, na

sexta-feira, que o corpo docente do seminário estava dividido entre

pessoas que evitam dizer coisas com as quais os alunos discordariam e

aquelas que não se importam em dizê-las. O problema (segundo ela) em

se dizer coisas com as quais os alunos discordariam é isso resultar em

avaliações baixas dos estudantes, o que, por sua vez, pode impedir o

professor de obter estabilidade. Desse modo, a segunda categoria de

professores tende a incluir aqueles que já possuem a desejada

estabilidade. Ora, se essa graduanda estiver certa, a lógica do professor

está cheia de furos; os alunos possuem diversas visões, de maneira que,

independentemente do que o professor afirme, decerto ele obterá a

discordância de alguns deles. Sou daqueles que faz questão de dizer as

coisas, e não é por esse motivo que recebo avaliações negativas (a não

ser que os alunos estejam ocultando os motivos reais). Além disso, nas

reuniões sobre estabilidade, jamais ouvi tais considerações sendo

levadas em conta. Todavia, claro que as coisas que dizemos e fazemos

são influenciadas por nossas suposições sobre as visões das pessoas com

poder sobre nós (por exemplo, nossos alunos, ou nossa congregação, no

caso de sermos pastores).

Esse é o problema de Acaz, ou um deles. Ele é desafortunado por

viver num período no qual o horizonte político de Israel se expande

exponencialmente. Ao longo de todo o Antigo Testamento, até aqui, o

único grande poder com o qual Israel tem que se preocupar é o Egito,

mas nos séculos recentes os problemas decorrem de seus vizinhos

imediatos, como Moabe, Edom e Amom, a leste, bem como Filístia,

Fenícia e Aram, a oeste, noroeste e nordeste. Agora, os assírios têm

desenvolvido um império na Mesopotâmia e na região norte do Iraque

moderno, além de estender a sua esfera de influência e afirmação de

controle rumo ao oeste, em prol do potencial de comércio que existe

naquela direção (“É a economia, estúpido”). Geograficamente, isso

significa que as ambições assírias afetam mais diretamente Aram e

Efraim, não apenas por sua posição nas rotas de comércio, embora elas
também afetem Judá. O apelo de Acaz ao rei assírio, com base em ser

seu servo e filho, pressupõe que Judá aceita ser vassalo da Assíria;

fundamentado nessa oferta é que Judá pode apelar pelo auxílio da

Assíria.

O capítulo 15 relata como o reino de Menaém, em Efraim, recebe a

primeira invasão de Tiglate-Pileser por volta de 740 a.C. (no capítulo

15, o nome do rei da Assíria é citado como Pul). Seus próprios registros

mencionam o tributo que ele recebeu de Menaém, levantado com a

aplicação de impostos sobre as pessoas comuns. A história sugere que

esse foi o preço pago por Menaém pelo apoio assírio — talvez contra

inimigos internos, ou contra aqueles outros inimigos locais. Tiglate,

então, invadiu Efraim uma década depois, no tempo do rei Peca,

ocupou grande área do norte de Efraim, incluindo a Galileia (que era a

chave para controlar as rotas de comércio), e deportou muitos de seus

habitantes. Do livro de Isaías, também aprendemos como esses

desenvolvimentos começaram a afetar Judá durante o reinado de Peca.

Efraim e Aram se tornaram aliados, em vez de inimigos, motivados pelo

desejo de resistir à Assíria; assim, eles forçam Judá a apoiá-los nesse

objetivo. Mas a reação de Judá foi apelar diretamente à Assíria por

suporte contra Efraim e Aram.

Esses eventos sugerem outra faceta sobre a complexidade do desafio

envolvido em ser o povo de Deus em meio ao mundo real. Aqui, uma

incorporação política do povo de Deus (Efraim) está se aliando a outra

nação (Aram) com o objetivo de resistir ao avanço de uma

superpotência; então, ao se unir com esse aliado, passa a ameaçar a

outra incorporação do povo de Deus (Judá) e a invadir o seu território.

Então, essa segunda incorporação do povo de Deus apela pelo apoio da

superpotência contra o seu próprio irmão e ainda é responsável pelo

fato de a superpotência empreender a sua primeira invasão a Efraim.

Além do mais, isso, de modo inevitável, leva o seu rei a fazer várias

concessões à superpotência. Reconhecidamente, Acaz dificilmente pode

lançar toda a culpa nessa pressão. Segundo Reis descreve Acaz como
envolvido no mesmo tipo de culto tradicional que caracteriza o próprio

reino de Efraim, além de acrescentar o costume cananeu de sacrificar

uma criança como demonstração de compromisso com Deus, à qual

Deus deve responder positivamente. A história pode também implicar

que o envolvimento do rei na oferta dos primeiros sacrifícios sobre o seu

novo altar levante questões adicionais. É um rei, tal qual Jeroboão, que

sobe pessoalmente ao altar para oferecer sacrifício; quando Davi e

Salomão “oferecem sacrifícios”, a história pode assumir que, na verdade,

eram os sacerdotes que realizavam o ritual sacrificial real em nome do

rei. É pouco provável que todas as ações questionáveis de Acaz possam

ser atribuídas à pressão assíria.

Acaz precisou enviar um incentivo financeiro para motivar os

assírios a protegerem Judá contra Efraim e Aram. Ele também

demonstrou sua subserviência ao introduzir no templo um altar que

seguia o modelo daquele encontrado em Damasco, a capital dos

arameus, agora sob o controle da Assíria. O Antigo Testamento não

sugere que, toda vez que um altar é construído, ele deve seguir a

prescrição de Deus, da mesma forma que não precisamos quando

construímos uma igreja. Todavia, é uma questão ímpar quando,

deliberadamente, um altar é projetado para obter a aprovação da

superpotência, tornando-se uma forma de dar a César o que é de Deus.

Segundo Reis expressa a sua crítica implícita de uma forma distinta de

Isaías, mas a complementa. O ponto de Isaías a Acaz é que o desafio e a

segurança de Judá residem na confiança em Yahweh, mas, para Acaz,

isso não aparentava ser uma forma prática de viver no mundo.

O encerramento do relato sobre o novo altar fornece um resumo útil

da rodada de adoração do templo, praticada em determinado período na

história de Israel. As ofertas ao amanhecer dão graças pelo descanso da

noite e dedicam o dia a Deus. As ofertas ao entardecer dão graças pelo

dia e buscam a proteção divina para a noite que se aproxima. Da mesma

forma que as ofertas queimadas e as libações de vinho (que sobem

totalmente a Deus), há as ofertas de cereal e os “sacrifícios” — que são


os sacrifícios de comunhão, os quais as pessoas e Deus compartilham, já

que parte é queimada e parte é consumida como uma refeição festiva do

povo na presença de Deus. Em certo nível, a adoração é bastante

ortodoxa, mas ela foi submetida às demandas da situação política.


2REIS 17:1-41
A QUEDA DO REINO DO NORTE
1
No décimo segundo ano de Acaz, rei de Judá, Oseias, filho de Elá, tornou-se rei sobre Israel,

2
em Samaria, por nove anos. Ele fez o que era desagradável aos olhos de Yahweh, mas não

3
como os reis de Israel que estavam antes dele. Salmaneser, o rei da Assíria, subiu contra ele,

4
e Oseias tornou-se seu servo e lhe enviou uma oferta. Mas o rei da Assíria descobriu traição

5
em Oseias. [...] O rei da Assíria subiu contra todo o país. Ele subiu a Samaria e a sitiou por

6
três anos. No terceiro ano de Oseias, o rei da Assíria tomou Samaria. Ele transportou Israel

7
para a Assíria e os estabeleceu em Hala e Habor, o rio Gozã e as cidades da Média. Isso

aconteceu porque os israelitas tinham ofendido Yahweh, o Deus deles, que os havia tirado do

8
Egito. Tinham reverenciado outros deuses e vivido pelas leis das nações que Yahweh tinha

13
desapropriado de diante dos israelitas. [...] Yahweh tinha testificado contra Israel (e Judá)

por meio de todo profeta, de todo vidente, dizendo: “Afastem-se de seus caminhos errados,

guardem os meus mandamentos e leis, de acordo com todo o ensino que eu ordenei aos seus

14
ancestrais e enviei a vocês por meio de meus servos, os profetas.” Mas eles não ouviram,

endureceram o pescoço, como os ancestrais deles que não confiaram em Yahweh, o Deus

15
deles. Eles rejeitaram suas leis, sua aliança que ele selou com os ancestrais deles, e suas

declarações com as quais ele os acusou. Eles foram atrás do vazio e se tornaram vazios,

[foram] atrás das nações ao redor deles, quando Yahweh lhes tinha ordenado para não agirem

19
como elas. [...] Judá também não guardou os mandamentos de Yahweh, o Deus deles, mas

23b
andou pelas leis de Israel, que ele tinha praticado. [...] Assim, Israel foi tirado de seu solo

e levado para a Assíria, até este dia.

24
O rei da Assíria trouxe pessoas da Babilônia, de Cuta, de Ava, de Hamate e de Sefarvaim e

as assentou nas cidades de Samaria no lugar dos israelitas. Eles tomaram posse de Samaria e

25
se estabeleceram em suas cidades. Quando eles primeiro se assentaram lá, não

reverenciavam Yahweh, e Yahweh enviou leões entre eles, e eles se tornaram matadores no

27
meio deles. [...] Então, o rei da Assíria ordenou: “Envie para lá um dos sacerdotes que você

exilou de lá. Eles devem ir e se estabelecer lá e lhes ensinarem os requisitos do Deus da

29
terra.” [...] Mas as diferentes nações fizeram o seu próprio deus, cada uma delas, e os

33
colocaram na casa dos lugares altos, que o povo de Samaria tinha feito. [...] Eles

reverenciavam Yahweh, mas serviam aos seus próprios deuses, de acordo com os requisitos

34
das nações das quais eles tinham sido exilados. Até hoje eles estão agindo de acordo com

os requisitos anteriores. Eles não estão reverenciando Yahweh e não estão agindo de acordo

com as leis e os requisitos, colocados sobre eles, e o ensino e o mandamento que Yahweh deu

41b
aos descendentes de Jacó, a quem foi dado o nome de Israel. [...] Os filhos e netos deles

estão agindo como seus ancestrais fizeram, até este dia.


Suponho que as pessoas devem pensar que sou o típico sujeito

“certinho” e elas não estão exatamente erradas, mas há histórias em

meu passado que me constrangem, das quais elas nada sabem nem

ficarão sabendo agora por mim. Essas lembranças ainda me trazem

vergonha, mas trata-se de um sentimento de vergonha que não é

desmoralizante; já fiz um acordo de paz com as minhas ações e busco

perdão por elas. O significado positivo da vergonha é que ela segue me

inibindo de agir da mesma forma novamente. Também conheço

histórias sobre confusões nas quais outras pessoas se envolveram e que

são similares às minhas. Todavia, em certos casos, as consequências têm

sido mais avassaladoras que no meu caso, mas essas histórias também

são importantes para mim; elas reforçam a motivação de evitar reincidir

nessas confusões.

Tais dinâmicas operam num nível corporativo, nesse relato sobre a

devastadora queda de Efraim, que encerrou a sua existência como

nação. Uma vez mais, precisamos lembrar que essas narrativas não são

meros relatos jornalísticos ou registros em diários. São mais como

memórias sobre as quais pode-se refletir, com algum distanciamento,

sobre a significância da experiência deles. Ou melhor, elas são como

aquela espécie de memória por meio da qual alguém reflete sobre a vida

e a experiência de algum membro de sua família (e alguém com quem o

escritor tenha tido uma relação bem tempestuosa). Primeiro e Segundo

Reis constituem uma reflexão posterior de Judá sobre a vida de Efraim,

seu irmão, reflexão que visa não apenas compreender a história de

Efraim, para seu próprio bem, mas descobrir o que Judá precisa

aprender em prol de sua própria vida.

Um contexto possível para a primeira edição dessas memórias é o

século imediatamente seguinte. Embora Samaria tenha caído em 722

a.C., Judá continuou existindo como nação até 587 a.C. Assim, por mais

de um século depois da queda, a história de Efraim permanece como

uma advertência a Judá, que precisa aprender com o destino de sua


nação irmã. É necessário ler a história de Efraim à luz de onde ela

terminou e da avaliação teológica e religiosa que esse capítulo oferece.

Contudo, isso não ocorreu assim: “Judá, também, não guardou os

mandamentos de Yahweh, o Deus deles, mas andaram pelas leis de

Israel, que ele tinha praticado.” O próximo contexto para uma edição

dessas memórias abrange as décadas que seguem à consequente queda

de Judá, em 587 a.C., o período no qual o relato 1 e 2Reis irá terminar.

Um contexto adicional no qual podemos imaginar a história sendo

lida, e talvez um contexto para outra edição, é a vida de Judá, mais

tarde, naquele mesmo século. Sob o domínio da Assíria e da Babilônia,

Efraim e Judá passam por experiências análogas. Religiosamente, eles

resistiram à autoridade de Yahweh e, politicamente, resistiram à

soberania da superpotência; e ambas as resistências levaram à mesma

consequência. Deus levantou a Assíria e, depois, a Babilônia, como

meios de punir as duas nações, e uma das formas de fazer isso foi pelo

transporte de parte de seus habitantes. Nos dois casos, uma leitura

superficial da história poderia sugerir que toda a população tenha sido

transportada, mas, em ambos, isso parece uma simplificação exagerada.

Todavia, os assírios, provavelmente, transportaram mais de Efraim do

que os babilônios exilaram de Judá; os assírios também assentaram

pessoas de outros povos em Efraim (o que os babilônios não fizeram).

Havia uma movimentação mais frequente das pessoas no Império

Assírio. O Antigo Testamento não registra o retorno de efraimitas; eles

se tornaram as “dez tribos perdidas de Israel”.

Portanto, em certo sentido, a população de Efraim tornou-se

miscigenada. Houve pessoas em Efraim que conseguiram fugir do exílio

(o Antigo Testamento fala sobre alguns efraimitas indo para Judá, e,

para alguns deles, isso pode ter sido temporário. Além disso, a forma

pela qual as coisas, em geral, funcionam sugeriria que outros

conseguiram refúgio temporário em lugares como Moabe e Amom).

Segundo Reis descreve uma classe diferente de mistura: a nova


população combinou a adesão a Yahweh com a adesão aos deuses que

trouxeram com eles de sua terra natal.

Essa mescla é, então, o pano de fundo para as relações entre Judá e

Samaria, como descrito em Esdras e Neemias, em cuja época a

superpotência passou a ser a Pérsia. Então, “Samaria” passa a ser o

nome da área que, outrora, era Efraim. Ambos, Judá e Samaria, são

províncias do Império Persa. A liderança em Samaria quer compartilhar

da vida religiosa de Judá e Jerusalém, mas a liderança judaíta tem receio

de que o alegado interesse dos samaritanos esteja muito entremeado

com o interesse político em controlar Judá.

Essas memórias fornecem aos judaítas certa justificativa religiosa

para resistir. Em suas relações com Samaria, eles precisam recordar as

origens da comunidade ali e a natureza mesclada de seu compromisso

religioso. Igualmente, em sua própria vida, o povo judaíta ainda sofre a

influência da religião tradicional dos povos vizinhos. Não precisaria

muito para que qualquer sincretismo da religião dos samaritanos

afetasse o povo de Judá. Eles também precisavam aprender com essas

memórias. “O passado nunca está morto. Nem sequer é passado”,

escreveu William Faulkner, em seu romance/drama Réquiem por uma

freira [Lisboa: Nova Veja, 2013].

Há duas bases para a crítica das memórias de Efraim e Judá, nesse

capítulo, e por sua advertência implícita à comunidade posterior. O

texto fala muito sobre leis, requisitos, mandamentos e ensino, e, aqui,

ele terá em mente a espécie de expectativas expressas na Torá e,

provavelmente, em Deuteronômio. Há inúmeras ligações entre

Deuteronômio e os livros seguintes (Josué, Juízes, Samuel, Reis);

Deuteronômio esboça como Israel devia viver na terra prometida, e a

história registrada nos livros seguintes detalha como eles falharam em

fazer isso. A segunda base é o ensino dos profetas. Primeiro e Segundo

Reis relatam profetas como Elias e Micaías, mas, durante os anos

derradeiros da vida de Efraim, Amós e Oseias é que atuam em Samaria,

advertindo sobre a catástrofe que paira sobre a nação, mas os profetas


receberam a mesma atenção dispensada à Torá, ou seja, nenhuma. Uma

vez mais, a geração posterior, para a qual esses livros são escritos,

precisa aprender essa lição e passar a considerar com mais seriedade a

Torá e os Profetas.
2REIS 18:1-37
O PÁSSARO NA GAIOLA
1
No terceiro ano de Oseias, filho de Elá, rei de Israel, Ezequias, filho de Acaz, começou a

2
reinar como rei de Judá. Ele tinha vinte e cinco anos de idade quando se tornou rei e reinou

3
vinte e nove anos em Jerusalém. O nome de sua mãe era Abia, filha de Zacarias. Ele fez o

que era certo aos olhos de Yahweh, de acordo com tudo o que Davi, seu ancestral, tinha feito.

4
Ele foi aquele que removeu os lugares altos, quebrou as colunas, cortou a Aserá e

despedaçou a serpente de bronze que Moisés havia feito, porque até aquele tempo os

5
israelitas estavam fazendo ofertas a ela (era chamada “O Bronze”). Era em Yahweh, o Deus

de Israel, que ele confiava. Depois dele, não houve ninguém como ele entre todos os reis de

6
Judá ou antes dele. Ele se apegou a Yahweh. Ele não deixou de segui-lo, mas guardou os

7
mandamentos que Yahweh tinha decretado a Moisés. Yahweh estava com ele. Aonde quer

8
que ele fosse, era bem-sucedido. Mas ele se rebelou contra o rei da Assíria e não o serviu, e

ele mesmo derrotou os filisteus, até Gaza e suas fronteiras, desde a torre das sentinelas até a

cidade fortificada. [...]

13
No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaqueribe, rei da Assíria, subiu contra todas as

14
cidades fortificadas de Judá e as tomou. Ezequias, rei de Judá, enviou mensagem ao rei da

Assíria, em Láquis, dizendo: “Eu te ofendi. Afasta-te de mim. O que colocares sobre mim, eu

o suportarei.” O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e

15
trezentos e trinta talentos de ouro. Ezequias lhe deu toda a prata encontrada na casa de

Yahweh e nos tesouros da casa do rei. [...]

17
O rei da Assíria enviou o Tartã, o Rabe-sares e o Rabsaqué, de Láquis, ao rei Ezequias, em

18b
Jerusalém, com uma grande força. [...] Eliaquim, filho de Hilquias, o encarregado da casa,

19
Sebna, o escriba, e Joá, filho de Asafe, o cronista, saíram até eles. O Rabsaqué lhes disse:

“Vocês deveriam dizer a Ezequias: ‘O grande rei, o rei da Assíria, disse isto: “Que confiança é

20
essa na qual você se sustém? Você diz [a você mesmo]: ‘Apenas as palavras dos lábios de

alguém são estratégia e força para a batalha.’ Agora, em quem você confia para ter se

21
rebelado contra mim? Certo. Você agora está confiando no suporte desse caniço quebrado,

no Egito. Quando alguém se apoia nele, ele perfura a palma da mão dele. Eis o que o faraó, o

22
rei do Egito, é para todas as pessoas que confiam nele. Mas, se você disser para mim:

‘Confiamos em Yahweh, nosso Deus’, não é ele aquele cujos lugares altos e altares Ezequias

25
removeu? [...] É agora, sem Yahweh, que eu subi a este lugar para destruí-lo? Foi Yahweh

32b
que me disse: ‘Suba a esse país e o destrua.’ [...] E não escutem Ezequias quando ele

enganar vocês, dizendo: ‘Yahweh nos resgatará.’ Os deuses das nações, qualquer uma delas,

37
resgataram o seu país da mão do rei da Assíria?”’” [...] Então, eles foram [...] a Ezequias,

com suas roupas rasgadas, e lhe contaram as palavras do Rabsaqué.


Quando meus filhos ainda eram bebês, costumávamos praticar

exercícios de confiança com eles, embora não esteja certo se tínhamos

certeza [nós ou eles] de que era isso o que fazíamos. Eles saltavam, de

um lugar elevado, como um muro, sabendo que o pai ou a mãe deles os

apanharia. Crianças pequenas (caso tenham motivos para pensar que

seus pais são confiáveis), provavelmente fazem isso com facilidade. Ao

crescerem, descobrem que nem todo mundo é confiável e podem hesitar

em saltar. Minha esposa, como psiquiatra, costumava fazer as pessoas

praticarem exercícios formais de confiança, que envolvem levar o

paciente a se deixar cair de costas e ser amparado pelos braços de

alguém, posicionado atrás dele. Ao fazer isso, há um momento a partir

do qual se atinge um ponto sem retorno. A pessoa, ao se permitir cair

além daquele ponto, perde a capacidade de interromper a queda. O

paciente estabelece um compromisso e fica na total dependência da

pessoa designada a ampará-la. É preciso confiar naquela pessoa.

Essa é a posição de Judá, bem como a posição de Ezequias como seu

líder. A princípio, tem-se a impressão de que Ezequias é,

inequivocamente, um grande homem, mas, então, o retrato se torna um

pouco mais nebuloso. Talvez, seja adequado ele ser descrito como

alguém cuja grande retidão é comparável a Davi, porque este foi, na

verdade, uma pessoa um pouco ambígua. As pessoas que leem a Bíblia

estão divididas entre as que acham ser útil ter histórias de grandes

heróis, que podem ser uma inspiração, e de heróis falhos, que podem ser

um encorajamento, e a Escritura atende ambas as necessidades na

forma de descrever os seus heróis. Assim, Ezequias é mais radical em

seu compromisso com Yahweh do que qualquer outro rei judaíta até

então. Ele é o primeiro rei a fechar os lugares altos e, igualmente, a

destruir as colunas (associados ao estilo de adoração dos cananeus), e a

Aserá. Você pode ler sobre a origem da serpente de bronze em Números

21; isso começou como um meio sacramental de Deus curar pessoas,

mas, acabou se tornando algo similar a um ídolo para o povo.


Além de agir sabiamente nos assuntos religiosos, Ezequias,

inicialmente, também foi bem-sucedido nas áreas militar e política.

Suas campanhas contra os filisteus foram, provavelmente, parte de sua

preparação para se insurgir contra a Assíria, mas sua rebelião contra a

superpotência foi desastrosa. A ação provocou a reação do rei assírio, no

ataque a Judá, em 701 a.C. Senaqueribe registrou o próprio relato sobre

a invasão em uma inscrição, na capital, Nínive. Ele fala sobre o cerco e a

conquista de quarenta e seis cidades fortificadas de Ezequias (as quais

ele, ironicamente, cedeu aos filisteus) e a obtenção de enormes

quantidades de despojos. Quanto a Ezequias, ele o aprisionou em

Jerusalém, “como um pássaro engaiolado”. Considero a passagem de

2Reis 18:13-16 como um resumo do evento; o que vem a seguir, então,

fornece os detalhes. Contudo, embora seja fácil, em princípio, relacionar

essa história aos registros assírios, é difícil separar o que é “história

pura” de uma narrativa designada a trazer uma mensagem sobre

confiança em Deus.

Não está claro se Ezequias não deveria ter se rebelado contra a

Assíria, nem os seus sucessores contra a Babilônia. O que fica

evidenciado é que a rebelião resultou na grande questão espiritual,

religiosa e política que Ezequias teve de enfrentar, bem como na

qualidade que o tornou um herói: “Era em Yahweh, o Deus de Israel,

que ele confiava.” Nesse capítulo, eu traduzi a palavra como “confiar”

embora em outros lugares ela seja traduzida por “acreditar ou crer”. Nos

livros de Reis os dois verbos aparecem, pela primeira vez, no capítulo

anterior; Efraim não confiou em Deus. Elas aparecem pela segunda vez

na abertura do elogio a Ezequias que acabei de citar, e prossegue por

todo o confronto entre os assírios e os judaítas que domina o capítulo.

Senaqueribe está sitiando Láquis, a maior cidade judaíta depois de

Jerusalém. Láquis fica abaixo da cadeia de montanhas na qual Jerusalém

está localizada, no sopé ocidental da cordilheira, mais perto das rotas de

comércio e daquelas cidades filisteias, guardando a rota que leva às

montanhas. Como sua inscrição indica, o rei assírio logrou êxito na


conquista da cidade (na verdade, ele erigiu um marco comemorativo

dessa conquista particular em seu palácio, na cidade de Nínive).

Enquanto faz isso, Senaqueribe envia alguns de seus oficiais para

informar a Ezequias que as garras assírias estão apertando. Jerusalém é

o único obstáculo que falta ser retirado para a completa subjugação de

Judá. Seria sábio render-se agora. O rei assírio sabe que Jerusalém será

o seu maior desafio, por sua localização nas montanhas, com uma boa

posição de defesa. Ele poupará para si muitos problemas se puder obter

a rendição de Ezequias, e o rei de Judá escapará de maior sofrimento

caso desafie Senaqueribe a empreender um cerco que, provavelmente,

seria longo.

No argumento dos oficiais, a palavra “acreditar” ou “confiar”

desempenha um papel-chave. A questão “No que você está confiando?”

é reveladora. Isaías 30 e 31 deixa claro que Judá está depositando a sua

confiança no Egito como um aliado, ao se rebelar contra a Assíria. Isaías

indica considerações teológicas que fazem dessa política uma estupidez;

os assírios apontam para considerações políticas. Os judaítas estão se

comportando como se confiassem nas palavras dos egípcios e que,

portanto, eles seriam a chave para uma vitória militar. Não é assim. Sem

perceberem, o que os assírios proferem é uma palavra profética aos

judaítas.

Suponha que os judaítas estejam fazendo o que sabemos que eles

devem fazer e estejam confiando em Deus. O argumento dos assírios

mostra-se, então, muito perspicaz. E quanto ao fato de Ezequias ter

destruído inúmeros santuários de Deus em Judá (isto é, os lugares

altos)? Isso significa que ele ainda pode confiar em Deus? O próximo

argumento assírio é ainda mais sagaz. Foi o próprio Deus quem enviou

os assírios naquela expedição. Eles são agentes de Deus. É como se os

oficiais tivessem lido Isaías, porque, em seu livro, o profeta diz

exatamente isso. A Assíria é o bastão empunhado por Deus para trazer

castigo sobre Judá (Isaías 10).


Até aqui, eles não cometeram um único erro, mas, então, cometem

um erro calamitoso. Mesmo se Deus quisesse resgatar Judá das mãos de

Senaqueribe, seria ele capaz de fazê-lo? Os deuses de quaisquer outros

povos conseguiram resgatá-los da Assíria? Trata-se de um erro terrível,

pois revela que Senaqueribe fala em Deus apenas como um meio de

manipular as pessoas. Ele, na verdade, não acredita que Deus esteja

ativo no mundo de uma forma que possa afetá-lo. Bem, pelo menos, ele

não acredita que Yahweh, o Deus de Israel, seja capaz disso.

Os líderes judaítas retornam ao seu rei horrorizados com a blasfêmia

de Senaqueribe, mas, na realidade, a blasfêmia representa boas notícias.

Yahweh, decerto, não logrará resistir à tentação de colocar Senaqueribe

em seu devido lugar.


2REIS 19:1-37
O QUE FAZER COM UMA CARTA ARDILOSA
1
Quando o rei Ezequias ouviu isso, ele rasgou as suas roupas e cobriu-se de pano de saco. Ele

2
foi à casa de Yahweh e enviou Eliaquim, que era o encarregado da casa, Sebna, o escriba, e os

3
sacerdotes seniores, vestindo pano de saco, ao profeta Isaías, filho de Amoz. Eles lhe

disseram: “Ezequias disse isto: ‘Este é um dia de angústia, repreensão e desgraça, porque [é

como se] filhos estivessem prestes a nascer, mas não há força suficiente para dar à luz.

4
Talvez Yahweh, o teu Deus, ouça todas as palavras do Rabsaqué, a quem o seu senhor, o rei

da Assíria, enviou para insultar o Deus vivo, e o repreenda pelas palavras que Yahweh, o teu

Deus, ouviu, e irás levantar uma súplica pelos remanescentes que podem ser encontrados.’”

5 6
Então, os oficiais do rei Ezequias chegaram a Isaías, e Isaías lhes disse: “Yahweh disse: ‘Não

tenha medo das palavras que você ouviu, com as quais os rapazes do rei da Assíria

7
blasfemaram de mim. Ora, estou colocando um espírito nele, ele ouvirá um relatório e

8
voltará para o seu país, e eu o farei cair pela espada em seu país.’” O Rabsaqué retornou e

encontrou o rei da Assíria em batalha contra Libna (porque [o Rabsaqué] tinha ouvido que

9
ele se movera de Láquis). Então, ele ouviu sobre Tiraca, o rei do Sudão: “Ora, ele saiu para

10
batalhar contra ti.” Assim, ele enviou ajudantes a Ezequias, dizendo: “Vocês devem dizer

isso a Ezequias, rei de Judá: ‘O seu Deus, em quem você está confiando, não deveria enganá-

11
lo, dizendo: “Jerusalém não será entregue nas mãos do rei da Assíria.” Ora, você ouviu o

que os reis da Assíria têm feito a todos os países, devotando-os, e você será resgatado [...]?’”

14
Ezequias pegou a carta das mãos dos ajudantes e a leu, e subiu à casa de Yahweh. Ezequias

15
a estendeu diante de Yahweh. Ezequias suplicou diante de Yahweh e disse: “Yahweh, Deus

de Israel, que se assenta [entronizado] sobre os querubins: Tu és Deus, tu somente, sobre

16
todos os reinos da terra. Tu fizeste os céus e a terra. Yahweh, inclina teus ouvidos e ouve.

Yahweh, abre teus olhos e vê. Ouve as palavras de Senaqueribe que ele enviou para insultar o

17
Deus vivo. Yahweh, os reis da Assíria realmente colocaram à espada as nações e seus

19
territórios. [...] Mas, agora, Yahweh, nosso Deus, livra-nos de sua mão, para que todos os

20
reinos da terra possam reconhecer que tu, Yahweh, és Deus, tu somente.” Então, Isaías,

filho de Amoz, enviou a Ezequias, dizendo: “Yahweh, o Deus de Israel, disse: ‘Ouvi a súplica

que você fez a mim acerca de Senaqueribe, o rei da Assíria.’”

[Os versículos 21-37 detalham a palavra de juízo de Deus com respeito ao rei da Assíria e o seu

cumprimento.]

Na Inglaterra, eu costumava ser o diretor de um seminário; esse cargo é

um cruzamento entre ser presidente e reitor, nos Estados Unidos. De


segunda a sexta-feira, meu assistente abria a correspondência, mas, aos

sábados, essa tarefa era minha e, portanto, eu era a primeira pessoa a ver

as cartas mais complicadas. Entre elas, poderia haver uma contando que

os bispos estavam reduzindo o número de pessoas a serem admitidas no

ano seguinte. Ou que a universidade à qual somos filiados poderia

mudar as regras que regem os cursos de uma forma que seria difícil

implementar no seminário. Talvez um reitor local estivesse reclamando

do comportamento de um dos alunos em sua paróquia. (Ou mesmo um

estranho seminário na Califórnia poderia estar me oferecendo um

emprego.) Nessas ocasiões, então, eu ficava satisfeito em fazer o que

Ezequias fez nessa história. Não creio que eu, literalmente, tenha me

levantado, em meu escritório, e mostrado uma dessas cartas difíceis a

Deus, exclamando: “Olha isso!” Mas em minha imaginação era isso o

que eu fazia.

O início de 2Reis 19 relata como Ezequias fez isso metaforicamente.

Na primeira vez em que as forças da Assíria subiram as montanhas,

desde Láquis, seus líderes tinham permanecido em frente das muralhas

de Jerusalém, enquanto a sitiavam, e declararam como seria impossível

para Deus preservar a cidade. Em certo sentido, não há nada novo aqui

que levasse Ezequias a rasgar as suas roupas e vestir pano de saco. A

cidade permanece sob cerco por um tempo, embora a determinação

expressa pelos oficiais, evidentemente, ameace forçar Ezequias ainda

mais. O remanescente de Judá lembra os restos de uma refeição, reflete

Ezequias; Senaqueribe assumiu o controle e/ou destruiu grande parte

do país. No contexto ocidental, se uma mulher está prestes a dar à luz,

mas, por alguma razão, não consegue fazê-lo, o obstetra rapidamente

opta por fazer uma cesariana. Em uma sociedade tradicional, a mulher e

a criança morrem. Esse é o destino que ameaça Jerusalém, como

Ezequias enxerga.

Ezequias não está devastado apenas por essa perspectiva sombria,

mas pelo desprezo do rei assírio por Deus. Quando alguém blasfema

contra Deus e você está por perto, é quase como se você precisasse ter
cuidado para não ser pego no fogo cruzado ou pela explosão prestes a

ocorrer. Será sábio de sua parte deixar bem claro que você não tem

qualquer associação com a blasfêmia.

Além de ir ao templo para se apresentar diante de Deus, Ezequias

envia seus oficiais para descobrir a reação de Isaías quanto ao ocorrido.

É, de fato, estranho que 2Reis não faça mais menção a profetas como

Isaías, Miqueias, Oseias e Amós (não confundir com o pai de Isaías,

Amoz), que estavam em plena atividade naquele período, nem

mencione profetas posteriores, como Jeremias; talvez porque esses

profetas tenham os seus próprios livros. Uma razão para incluir esses

relatos sobre Isaías é que eles também são relatos sobre Ezequias, um

dos grandes heróis de 2Reis, mas Isaías é integral a eles. Aqui, a

mensagem inicial do profeta aos oficiais de Ezequias esboça a mensagem

que Isaías dá, em maior extensão, na parte final do capítulo.

Trata-se de um toque sutil referir-se aos oficiais do rei assírio como

seus “rapazes”; é provável que seja um termo mais técnico do que o

termo traduzido expressa, mas, seja como for, isso sublinha a

insignificância deles. Deus não tem nada a temer em relação a eles e,

portanto, Judá, também nada tem a temer. O ponto está implícito de

outra forma, no modo pelo qual Isaías introduz a sua mensagem, usando

a expressão: “Yahweh, o Deus de Israel, disse isto” (nas traduções

tradicionais, lemos: “Assim diz o Senhor”). Uma história como essa

reflete o pano de fundo dessa sentença. Quando o oficial chefe do rei da

Assíria entregou o seu ultimato aos ajudantes de Ezequias, ele o

introduziu, dizendo: “O grande rei, o rei da Assíria, disse isto [...].” Essa

era a forma padrão de um ajudante introduzir a mensagem de seu rei.

Ele está transmitindo algo que o rei lhe disse antes de ele partir para

entregar a mensagem.

Os profetas que usam essa forma de expressão também estão

transmitindo mensagens que um rei lhes formulou antes de eles

partirem para entregá-la; e esse Rei é muito mais impressionante que o

autointitulado “Grande rei” da Assíria. Deus está em posição de


simplesmente mandar o assim chamado “Grande rei” de volta para casa.

A declaração de Deus poderia ser cumprida pelo rei ouvir um relato

verdadeiro quanto a problemas em sua casa ou por ouvir rumores falsos

nesses termos; o espírito poderia ser, portanto, um espírito de engano,

de medo fundamentado ou irracional. Com frequência, não é possível

saber como será o cumprimento de uma profecia até ela acontecer. O

que, na verdade, ocorre é que o rei ouve um relato verídico sobre

problemas vindos do sul e, então, mais tarde, ele retorna para casa e é

assassinado. Para Ezequias, o avanço daquele exército do sul foi

comparável à chegada da cavalaria ao topo da colina na hora certa, pois

a atenção do rei da Assíria sobre Jerusalém é desviada. Embora, a

princípio, seja fácil relacionar os eventos em 2Reis 18 e 19 com os

registros assírios, torna-se mais difícil encaixá-los na história do Egito.

Todavia, o pano de fundo da menção do capítulo a Tiraca é que a

dinastia do Sudão, de fato, governou o Egito em alguns períodos de sua

história, de modo que as ações de um general sudanês são as ações do

Egito. Há, aqui, uma importante ironia. Tanto Isaías quanto os políticos

assírios advertiram Ezequias de não confiar no Egito; não obstante, no

fim, é o Egito que Deus usa para livrar Jerusalém da pressão assíria.

Uma vez mais, isso mostra como a profecia não é designada a ser uma

espécie de previsão literal de como os eventos se desenrolarão. O

cumprimento de uma profecia é, em geral, surpreendente.

A reação do rei da Assíria a esse evento é que leva Ezequias a

apresentar a carta no templo, como a provocar Deus, e dizer: “Dê uma

olhada nisso então!” Esse é um grande modelo para oração. É assim que

Ezequias realmente se dirige a Deus, reafirmando verdades sobre

Yahweh ser o Senhor de todo o mundo (incluindo o Império Assírio),

instando Deus a olhar, ouvir e libertar, deixando para Deus exatamente

o que fazer, e encerrando com o lembrete de que libertar Judá da Assíria

poderia contribuir para que todo o mundo reconhecesse Yahweh.


2REIS 20:1-21
COMO GANHAR E PERDER A SIMPATIA DE DEUS
1
Naqueles dias, Ezequias ficou mortalmente enfermo. O profeta Isaías, filho de Amoz, foi até

ele e lhe disse: “Yahweh disse isto: ‘Coloque a sua casa em ordem, porque você irá morrer, não

2 3
se recuperará.’” Ele virou o rosto para a parede e suplicou a Yahweh: “Oh, Yahweh, lembra-

te de como andei diante de ti em verdade, fui íntegro em espírito e fiz o que é agradável aos

4
teus olhos.” Ezequias chorou e chorou. Isaías ainda não tinha deixado o pátio intermediário

5
quando a palavra de Yahweh veio a ele: “Volte e diga a Ezequias, o governante do meu povo:

‘Yahweh, o Deus de Davi, o seu ancestral, disse: “Ouvi a sua súplica. Vi as suas lágrimas.

6
Agora, irei curar você. No terceiro dia, você subirá à casa de Yahweh. Acrescentarei quinze

anos à sua vida e resgatarei você e esta cidade das mãos do rei da Assíria. Protegerei esta

7
cidade para o meu bem e o bem de Davi, meu servo.”’” Isaías disse: “Peguem uma pasta de

figos.” Eles pegaram e a colocaram sobre a inflamação, e ele se recuperou.

8
Ezequias tinha dito a Isaías: “Qual é o sinal de que Yahweh me curará e de que subirei à casa

9
de Yahweh no terceiro dia?” Isaías disse: “Este será o sinal de Yahweh para você de que

Yahweh fará a coisa que ele declarou. Deve a sombra avançar dez degraus ou recuar dez

10
degraus? Ezequias disse: “É fácil para a sombra avançar dez degraus, não recuar dez

11
degraus.” Então, o profeta Isaías clamou a Yahweh, e ele fez a sombra recuar dez degraus

sobre os degraus que havia descido, na escadaria de Acaz.

12
Naquele tempo, Merodaque-Baladã, filho de Baladã, o rei da Babilônia, enviou uma carta

13
e um presente a Ezequias porque ele tinha ouvido que Ezequias estava enfermo. Ezequias

ouviu sobre eles e lhes mostrou tudo em sua tesouraria: a prata, o ouro, as especiarias e o

excelente azeite, sua casa de equipamentos e tudo o que podia ser encontrado em seus

armazéns. Não houve nada que Ezequias não lhes mostrou em sua casa e em todo o seu reino.

14
O profeta Isaías foi ao rei Ezequias e lhe disse: “O que esses homens disseram? De onde

15
eles vieram?” Ezequias disse: “De um país distante, Babilônia.” [Isaías] disse: “O que eles

viram em sua casa?” Ezequias disse: “Eles viram tudo em minha casa. Não houve nada que eu

16
não lhes tenha mostrado em meus armazéns.” Isaías disse a Ezequias: “Ouça a palavra de

17
Yahweh. ‘Agora, dias virão nos quais tudo em sua casa e tudo o que seus ancestrais

armazenaram até este dia será transportado para a Babilônia. Nem uma única coisa

18
permanecerá’, Yahweh disse. ‘Alguns de seus filhos, que sairão de você, dos quais você será

19
pai, serão levados e serão eunucos no palácio do rei da Babilônia.’” Ezequias disse a Isaías:

“A palavra que Yahweh falou é boa.” Ele disse: “Não é assim, se é para haver bem-estar e

20
estabilidade em meus dias?” Os demais atos de Ezequias, todo o seu poder, e como ele fez o

açude e o canal e trouxe água para a cidade, estão, de fato, escritos nos anais dos reis de Judá.

21
Ezequias dormiu com seus pais, e Manassés, seu filho, reinou em seu lugar.
Ann, minha esposa, teve esclerose múltipla durante quarenta e dois

anos, até falecer, um ano atrás. Nós e outras pessoas oramos por sua

cura em inúmeras ocasiões, de diversas formas, apoiados por um

numeroso contingente de figuras notáveis no mundo da oração para

cura. Ela jamais ficou curada. No entanto, Deus não ignorou todas essas

orações, mas deu a Ann um ministério que ela exerceu durante o tempo

que teve de viver em sua crescente incapacidade. Além disso, Deus

moldou outro homem em mim, por ter de conviver com isso. Algumas

vezes, as pessoas afirmam que a oração é designada para nos mudar, não

para mudar Deus, e essa é uma meia verdade perigosa. A oração é

designada para mudar o coração de Deus, mas é parte de um

relacionamento, e não é possível predizer, antes do tempo, como as

interações nessa relação irão funcionar.

Ezequias provou que a oração pode, sim, mudar Deus. É típico que

um profeta como Isaías afirme o que irá acontecer como se isso fosse

imutável, mas a maneira pela qual as histórias, então, se desenrolam,

indicam que não é bem assim. Isso pode constituir más notícias, pois

quando Deus lhe deseja fazer algo bom, mas você não responde com

confiança e comprometimento, essa resposta pode mudar a mente de

Deus (pode não mudar — a esse respeito, também os relacionamentos

com Deus, como qualquer outra relação, não são previsíveis). A boa

notícia é que, quando Deus lhe diz que coisas ruins irão lhe acontecer, a

sua resposta pode mudar a mente de Deus. A história de Ezequias

mostra que, ao sermos ameaçados por coisas ruins, isso pode não ter

relação com merecimento. Ezequias é acometido por uma enfermidade

que parece decretar o fim de sua vida, mas o relato não afirma que isso

era uma punição por seu pecado. Na verdade, o modo pelo qual a sua

história é contada até aqui torna Ezequias uma espécie de herói

espiritual. A conexão de alguns pontos sugere que ele deve ter por volta

de quarenta anos, e essa não é uma idade ruim em uma sociedade

tradicional; assim, ele não podia reclamar por ser acometido de uma

doença fatal. É apenas uma daquelas coisas que acontecem na vida.


Todavia, ele pode apelar para a sua vida de compromisso com Yahweh, e

suplicar por sua cura. Ao que parece, isso é algo que Deus leva em conta

ao responder à sua oração, embora o texto explicite que são as suas

lágrimas que movem Deus.

É claro que muitas pessoas comprometidas não têm a mesma

experiência (a história de Josias, seu bisneto, ilustrará esse ponto). Aqui

também o relacionamento de Deus conosco não é previsível. Isso não

significa que ele seja aleatório. Deus pode levar em conta outras coisas,

não nossas necessidades e desejos (como bem mostra a história de Jó).

Significa que sempre é válido comportar-se como uma criança em

relação ao seu pai e recusar-se a aceitar, muito facilmente, um não como

resposta. A narrativa também é notável ao mostrar como Isaías (a

exemplo de Eliseu) mescla a expressão da palavra de Deus com o uso de

medicina tradicional. O “tratamento” de banhar-se no rio Jordão

quando se tem uma doença de pele dificilmente seria eficaz no combate

a uma enfermidade potencialmente fatal, mas Deus parece gostar de

usar meios físicos como uma forma sacramental.

Na realidade, a referência a ir à casa de Deus sugere ligações com

relatos como os de Naamã e do próprio bisavô de Ezequias, Uzias, que

foi atingido por uma doença de pele como punição de Deus. Caso

Ezequias tivesse alguma doença de pele, ele não poderia ir ao templo, e

a promessa de liberdade rápida para fazer isso seria significante. Isso

pode explicar o foco sobre esse aspecto de sua cura ao pedir por um

sinal. A natureza do sinal não é clara. Não há necessidade de inferir que

Deus mudou os movimentos reais dos planetas, embora, claro, Deus

seja capaz disso. Para o sinal funcionar, apenas algumas mudanças

incomuns no processo para que a sombra recuasse seriam suficientes

para dar a Ezequias o sinal escolhido.

O fato de Ezequias ser uma pessoa mais ambígua do que está

implícito em algumas declarações sobre ele, incluindo a sua

autodescrição a Deus, talvez sublinhe o significado da referência a Deus

ter sido movido por suas lágrimas, não por sua autodefesa. A
ambiguidade é enfatizada pela derradeira história que nos é contada

sobre ele. Nos dias de Ezequias, a Assíria está no auge de seu poder.

Possivelmente, ninguém imaginava que o declínio daquele império

estivesse tão próximo, mas, quando você é a superpotência, todos o

odeiam e desejam ver a sua queda ou, ainda melhor, almejam ocupar o

seu lugar. Ficará evidente que a Babilônia será a superpotência da vez.

A referência adicional à doença de Ezequias sugere que a abertura,

“Naquele tempo”, não significa que o rei babilônio tenha enviado uma

comitiva a Judá após a recuperação de Ezequias; a visita a precedeu.

Contudo, a comitiva não veio apenas para uma visita cordial, mas é um

sinal da crescente afirmação da Babilônia, embora o contexto particular

possa ser uma revolta recente da Babilônia contra o poder da Assíria ao

buscar o apoio de Judá. O fato de Ezequias mostrar todos os seus

recursos à comitiva babilônica é uma mostra de que ele está disposto a

ser envolvido em tal aliança.

Isaías sabe algo que Ezequias desconhece. Talvez um político astuto

pudesse perceber para onde o vento estava soprando, mas as

superpotências, em geral, mostram uma grande capacidade de

reinvenção, e a Assíria poderia ser mais um exemplo. A ciência de Isaías

de que isso não acontecerá exibe uma reflexão profética em vez de uma

sagacidade política. “Ouça a palavra de Yahweh”, ele diz. Sim, a

Babilônia irá dominar os reinos de poder no Oriente Médio e

substituirá a Assíria como a potência na Mesopotâmia que controla o

destino de Judá. Pode parecer, então, que Ezequias está cavalgando o

cavalo certo, ao se aliar com a Babilônia. Contudo, Yahweh capacita

Isaías a ver além da ascensão da Babilônia. Assim que ela assumir o

poder, a sua relação com Judá será muito diferente daquela que busca

agora. O Império Babilônio é que será responsável pelo término da vida

de Judá como nação, a exemplo da Assíria, que levou Efraim à extinção.

Os babilônios transportarão a liderança judaíta ao exílio, da mesma

forma que a Assíria fez com os efraimitas. E, caso você seja a

superpotência, será mais seguro ter eunucos cuidando de sua casa; esse
será o destino de alguns dos descendentes de Ezequias. Não fica claro

quão cínica a resposta de Ezequias é. Talvez esteja adequadamente

grato pela calamidade não ocorrer por enquanto.

A nota de encerramento relata o seu trabalho vital na proteção do

abastecimento de água de Jerusalém durante os tempos de cerco (veja

2Crônicas 32).
2REIS 21:1-26
COMO SER O BANDIDO
1
Manassés tinha doze anos de idade quando se tornou rei, e ele reinou cinquenta e cinco

2
anos em Jerusalém. O nome de sua mãe era Meu prazer está nela. Ele fez o que era

desagradável aos olhos de Yahweh, de acordo com as práticas abomináveis das nações que

3
Yahweh desapropriou diante dos israelitas. Ele reconstruiu os lugares altos que Ezequias,

seu pai, tinha destruído, estabeleceu altares para o Mestre e fez uma Aserá, como Acabe, rei

5
de Israel, tinha feito. [...] Ele construiu altares para todo o exército celestial nos dois pátios

6
na casa de Yahweh. Ele fez o seu filho passar pelo fogo e praticou adivinhação e o estudo de

9
presságios. [...] Manassés levou [Israel] a se desviar para fazer pior do que as nações que

10
Yahweh aniquilou diante dos israelitas. Yahweh falou por meio de seus servos e profetas:

11
“Porque Manassés, rei de Judá, fez essas coisas abomináveis (ele fez um mal maior do que

os amorreus fizeram antes dele) e também fez Judá ofender com seus pedaços [de madeira],

12
portanto, Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: ‘Agora, estou trazendo tal dificuldade sobre

13
Jerusalém e Judá que os ouvidos de todos os que o ouvirem irão zumbir. Sobre Jerusalém,

esticarei a linha de medir de Samaria e a escala da casa de Acabe. Limparei Jerusalém como

14
quem limpa um prato e a virarei de bruços. Abandonarei os remanescentes de minha

propriedade e os entregarei nas mãos de seus inimigos. Eles serão despojados e saqueados

15
por todos os seus inimigos, porque fizeram o que é desagradável aos meus olhos e me

16a
provocaram desde o dia em que os tirei do Egito até este dia.’” De fato, Manassés

derramou tanto sangue inocente até encher Jerusalém de um extremo ao outro.

[Os versículos 16b-22 relatam como Amom, filho de Manassés, sucedeu o pai e deu

continuidade às suas políticas.]

23 24
Os servidores de Amom conspiraram contra ele e mataram o rei em sua casa, mas o povo

26
do país matou todos os que tinham conspirado contra o rei Amom. [...] Ele foi enterrado

em seu túmulo, no jardim de Uzá, e Josias, seu filho, tornou-se rei em seu lugar.

Às vezes, eu gostaria de saber o que irá acontecer no futuro, embora, ao

pensar nisso, não tenha certeza se é uma boa ideia. Quando minha

esposa foi diagnosticada com esclerose múltipla, se eu soubesse como a

doença progrediria ao longo de quatro décadas, não sei se conseguiria

lidar com esse conhecimento. Não obstante, à medida que as décadas

passavam, consegui lidar. Em dias recentes, li um ou dois relatórios

sobre a detecção precoce do mal de Alzheimer. Será que eu gostaria de


saber que desenvolverei a doença, considerando que não há tratamento

disponível e que nada posso fazer a respeito? Creio que não! Todavia,

possuímos um instinto natural de querer saber o que o futuro nos

reserva e, em certas circunstâncias, esse conhecimento pode ser útil,

pois podemos fazer algo a respeito e evitar o problema. Assim,

investimos uma enorme quantidade de recursos em pesquisa nas

ciências física, econômica, e assim por diante, na esperança de que esse

conhecimento possa aumentar a nossa sensação de controle.

Esse instinto é o pano de fundo para o recurso da adivinhação e

outras formas de estudar presságios, uma característica recorrente da

vida de Israel. Isso será uma preocupação extra, caso você seja o rei (o

responsável por uma família, um pastor ou um presidente de

seminário), porque o rei não tem que pensar apenas em seu próprio

destino, mas no de todo o povo pelo qual é responsável. Muitas das

histórias em 1 e 2Reis mostram como, algumas vezes, é possível as

pessoas descobrirem o que irá acontecer e, então, adotar a ação

apropriada; é Yahweh quem torna isso possível, e são pessoas como os

profetas que intermedeiam esse conhecimento. Todavia, não é possível

ter certeza de que Yahweh irá lhe contar o que você quer saber, de modo

que o controle, na realidade, não é seu. Segundo Reis retrata Manassés

como uma versão extrema de um homem que deseja o conhecimento

(esse é o foco da maneira pela qual ele encoraja a adoração nos lugares

altos e o culto ao Mestre e a Aserá); a narrativa despreza as imagens de

Manassés, descrevendo-as como “pedaços [de madeira]” (ou, talvez, de

excremento).

Uma característica distinta de sua adoração é o envolvimento na

adoração ao exército celestial, os planetas e as estrelas. Trata-se de uma

crença amplamente difundida de que os movimentos de planetas e de

estrelas podem revelar acontecimentos futuros; daí a popularidade da

astrologia na cultura ocidental. Manassés também recorre a várias

formas de adivinhação, que podem incluir a observação de órgãos

internos de animais. Descobrir o futuro podia envolver o contato com


familiares mortos, a exemplo de Saul (1Samuel 28), imaginando que,

agora, eles tenham acesso a um conhecimento ainda vedado aos vivos.

O sacrifício de crianças estaria relacionado a fazer contato com a morte.

Tudo isso está em franco conflito com a maneira pela qual a Torá

instruía Israel sobre a relação com Deus.

Apesar de seu envolvimento, Manassés reina por cinquenta e cinco

anos, de modo que há certa ironia no fato de ele se tornar o modelo de

como não se comportar como rei de Judá. Reconhecidamente, esse

tempo de reinado inclui um período durante o qual ele reinou com

Ezequias, seu pai, possivelmente pela enfermidade deste (veja os

comentários em 1Reis 15), mas, mesmo desconsiderando esse período,

tratou-se de um longo reinado, digno de um exemplo de fidelidade.

Uma vez mais, 1 e 2Reis não reivindicam total efetividade por suas

generalizações sobre como o compromisso leva à bênção e a

transgressão leva à maldição.

O nome de sua mãe era Hefzibá, isto é, “Meu prazer está nela”.

Pode-se, igualmente, entender Hefzibá como “Minha delícia”, um título

que Deus, mais tarde, confere a Jerusalém, em Isaías 62:4. O nome que

ela dá ao filho significa “Aquele que [me] faz esquecer” (talvez o filho a

fez esquecer da dor do parto ou de alguma perda, como a morte de um

filho anterior). Esses nomes contêm muitas ironias. A mais sombria é

que a sua forma de exercer liderança significa que Jerusalém deixa de

ser a cidade na qual Deus se deleita. A menção aos amorreus é

reveladora nesse sentido. Lá atrás, Deus havia dito a Abraão que a

descendência do patriarca não poderia entrar na terra da promessa até

que a desobediência dos amorreus estivesse completa (Gênesis 15:16).

A desobediência de Judá está, agora, completa, do mesmo modo que a

desobediência dos amorreus se tornou completa. Na realidade, Judá

superou os amorreus, o que é uma acusação e tanto, e Judá está prestes

a perder a terra, a exemplo do que ocorreu aos amorreus. Judá já havia

sofrido uma redução drástica, mas Deus irá lançar fora até mesmo o

pouco que restou. Não há esperança na ideia de “remanescentes” que é,


aqui, expressa. (Claro que, como de costume, Deus não conseguirá ser

tão determinado assim.)

Pode haver considerações políticas e/ou religiosas por trás do

assassinato de Amom por seus oficiais e da eliminação dos assassinos

pelo “povo do país” e a instalação de seu sucessor (por exemplo, podem

ser pessoas que ficaram ao lado da Assíria, e/ou pessoas que tomaram o

partido do Egito e/ou, ainda, pessoas que defendiam a independência

de Judá), mas a história não está interessada nesses fatores. Por

implicação, a narrativa vê a vontade de Deus sendo trabalhada na

morte de Amom e na ascensão de Josias. Existem eventos cuja

interpretação é complexa, mas há eventos que não precisam de

nenhuma interpretação.
2REIS 22:1—23:24
ÚLTIMA CHANCE PARA LEVAR A TORÁ E OS PROFETAS A

SÉRIO
1
Josias tinha oito anos de idade quando se tornou rei, e ele reinou trinta e um anos em

2
Jerusalém. O nome de sua mãe era Jedida, filha de Adaías, de Bozcate. Ele fez o que era

certo aos olhos de Yahweh. Ele andou em todo o caminho de Davi, seu ancestral. Ele não se

3
desviou para a direita nem para a esquerda. No décimo oitavo ano do rei Josias, o rei enviou

4
Safã, filho de Azalias, filho de Mesulão, à casa de Yahweh, dizendo: “Vá a Hilquias, o sumo

sacerdote, para que ele possa pesar a prata que foi trazida à casa de Yahweh, que os guardas

5
da entrada coletaram do povo. Eles deverão entregá-la nas mãos dos trabalhadores

8
designados à casa de Yahweh [...].” Hilquias, o sumo sacerdote, disse a Safã, o escriba:

“Encontrei um Rolo de Ensino na casa de Yahweh.” Hilquias deu o rolo a Safã, e ele o leu. [...]

11 12
Quando o rei ouviu as palavras no Rolo de Ensino, ele rasgou as suas roupas. O rei

ordenou a Hilquias, o sacerdote, a Aicam, filho de Safã, a Acbor, filho de Micaías, a Safã, o

13
escriba, e a Asaías, o servidor do rei: “Vão, inquiram Yahweh por mim, pelo povo e por todo

o Judá sobre as palavras desse rolo que foi encontrado, pois grande é a ira de Yahweh que se

acendeu contra nós, porque nossos ancestrais não ouviram as palavras desse rolo, para

14
agirem de acordo com tudo o que está escrito a nosso respeito.” Então, Hilquias, o

sacerdote, foi, com Aicam, Acbor, Safã e Asaías, até Hulda, a profetisa, a esposa de Salum,

filho de Ticvá, filho de Harás, guardador das vestimentas. Ela vivia em Jerusalém, no Mixná

15
[Bairro]. Eles lhe falaram, e ela lhes disse: “Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: ‘Digam ao

16
homem que os enviou a mim: “Yahweh disse isto: ‘Agora, irei trazer aflição sobre este lugar

19
e sobre os seus habitantes, todas as palavras do rolo que o rei de Judá leu. [...] [Mas]

porque a sua mente abrandou e você se curvou diante de Yahweh quando ouviu o que eu

tinha falado contra este lugar e seus habitantes (tornando-se em desolação e opróbrio), por

ter rasgado as suas roupas e chorado diante de mim, eu também, de minha parte, ouvi’

20
(declaração de Yahweh). ‘Portanto, agora, eu reunirei você aos seus ancestrais, e você será

reunido ao seu grande túmulo quando as coisas estiverem bem. Os seus olhos não verão toda

a aflição que irei trazer sobre este lugar.’”’” Eles levaram a mensagem de volta ao rei.

CAPÍTULO 23

1 2
O rei mandou reunir a ele todos os anciãos de Judá e de Jerusalém, e o rei subiu à casa de

Yahweh. Todos em Judá e todos os habitantes de Jerusalém estavam com ele, do mesmo

modo que estavam os sacerdotes e os profetas, todo o povo, jovens e velhos. Ele leu, na

audiência deles, todas as palavras no rolo da aliança que tinha sido encontrado na casa de

3
Yahweh. O rei ficou junto à coluna e selou a aliança diante de Yahweh, para seguir Yahweh e

guardar os seus mandamentos, as suas declarações e leis, de toda a sua mente e alma,

confirmando as palavras dessa aliança que estavam escritas naquele rolo. Todo o povo se

4a
comprometeu com a aliança. O rei ordenou a Hilquias, o sumo sacerdote, aos sacerdotes da
segunda ordem e aos que guardam a entrada para retirarem do palácio de Yahweh todos os

utensílios feitos para o Mestre e para Aserá, e para todo o exército celestial, e queimá-los.

[Os versículos 4b-24 detalham a destruição por Josias de todas as formas impróprias de

adoração em Jerusalém, em Betel e em outras partes, em Efraim, além de sua proclamação de

uma grande celebração da Páscoa.]

O cargo de diretor de seminário ocupou dez anos intermediários de meu

período como professor. Jamais senti algum desejo de estar naquela

posição, mas, quando ficou claro que era a coisa certa por algum tempo,

percebi que isso me deu a oportunidade de impulsionar o seminário em

direções que considerava importantes (embora “empurrar” seja

diferente de “levar” ou “conduzir”, já que estes sugerem certa

cooperação ou, pelo menos, pouca resistência. No meu caso, tive que

ganhar a disposição do seminário para ir na direção apontada por mim,

em lugar de forçá-los a ir aonde eles não queriam ir). Por exemplo, é

fácil para a vida acadêmica de um seminário e sua vida de adoração e

oração viverem em compartimentos separados. Eu quis encorajar o

desenvolvimento de uma maior unidade. Como professor, poderia agir,

argumentar e ser exemplo para esse fim, mas ser o diretor me

proporcionou mais poder para influenciar.

Josias encontra-se nessa posição, já que Manassés, o seu avô,

alcançara fins negativos. Na realidade, a reforma de Josias envolve,

principalmente, desfazer as inovações radicais de seu avô; Manassés, à

sua maneira, também tinha sido uma espécie de reformador. Ele

reafirmou a religião tradicional da terra, aquela que, talvez, a maioria

dos israelitas havia praticado por séculos. Como reformador, Josias

tinha que ser um grande inovador. Isso envolveu eliminar os lugares

altos, que tinham feito parte da religião israelita ao longo da história de

Israel naquele território. Durante alguns períodos, eles foram lugares de

adoração a Yahweh; em outros, foram usados para adorar outros deuses.

O mesmo se aplica ao templo de Jerusalém; mas caso fosse um rei que


quisesse assegurar que Israel adorasse Yahweh, e o adorasse da forma

correta, usaria a sua posição para garantir que isso ocorresse no templo

de Jerusalém. Seria praticamente impossível controlar o que ocorria em

outros santuários, espalhados pelo país. Assim, Josias fecha todos eles.

A história é mais específica quanto à natureza inovadora da celebração

da Páscoa que ele proclama, distinta de qualquer outra já celebrada no

país, por concentrar-se em Jerusalém. Quando Israel estava

prosperando, seria impraticável dizer que o povo poderia adorar a Deus

somente no santuário, pois muitos israelitas viviam a centenas de

quilômetros de distância. Ao tempo do rei Josias, Israel estava reduzido

apenas a Judá, e mesmo este reino sofrera uma grande redução; desse

modo, demandar que as pessoas fossem a Jerusalém, pelo menos para os

festivais, tornou-se uma possibilidade mais viável.

O rolo da Torá que tanto assustou quanto inspirou Josias parece ser

alguma forma de Deuteronômio; pelo menos, ao compararmos o que

Josias fez com o conteúdo de várias partes da Torá, obtemos mais

correspondências com o livro de Deuteronômio. A Torá não é somente

uma parte do ensino dado a Israel antes de o povo chegar a Canaã; ela

reúne inúmeras versões das instruções de Deus a Israel, já que foram

transmitidas por meio de pessoas como sacerdotes e profetas ao longo

dos séculos, em contextos distintos. Desse modo, podemos aprender um

pouco sobre a origem e o cenário das variadas versões daquele ensino

comparando-as com a narrativa contínua da história de Israel. A peça

fundamental para compreender esse processo tem sido o modo pelo qual

a grande reforma de Josias parece ser o momento em que Deuteronômio

passa a ser uma força vivente na vida de Israel. Não sabemos por quanto

tempo o rolo ficou acumulando poeira num canto do templo, se foi por

um ano, uma década ou um século, mas é nesse período que ele se torna

vivo.

Não foi simplesmente a descoberta do rolo que estimulou o

movimento reformista; a descoberta ocorreu como resultado do

trabalho no templo que Josias já havia iniciado. Talvez a união da


política com a fé tenha sido feliz para Josias, ao contrário do que

ocorreu com Manassés. Embora fosse difícil para Manassés resistir à

pressão da Assíria e, assim, tentador adequar a sua prática religiosa à

pressão política, a Assíria, agora, está em declínio, de modo que uma

ação de Josias podia implicar fazer a coisa certa diante de Yahweh e, ao

mesmo tempo, afirmar a independência de Judá. Ainda assim,

comissionar o trabalho no templo traz a Josias mais do que ele almejava

(exceto, claro, se ele mesmo tivesse operado para que o rolo estivesse

escondido atrás do “sistema de ar condicionado”). Além de conter

abundantes instruções sobre lealdade a Yahweh e sobre como isso deve

funcionar, o livro de Deuteronômio incorpora advertências de arrepiar

os cabelos acerca do que irá acontecer a Israel em consequência de fazer

o tipo de coisas que a comunidade está fazendo nos dias de Josias. Como

primeira providência, Josias consulta um profeta sobre que ações tomar

(isso pode parecer um pouco estranho, pois Deuteronômio contém

implicações muito claras). O modo casual com que a narrativa se refere

a Hulda indica que a atividade de profetisas era algo normal. Ela possui

ligações com o templo e, caso estivesse envolvida com o ministério no

templo, isso explicaria o fato de Hilquias ir falar com ela em vez de

consultar alguém mais conhecido por nós, como Jeremias.

A combinação da leitura de Deuteronômio com a consulta à

profetisa estimula o estabelecimento de uma aliança; Deuteronômio é o

grande livro da aliança dentro da Torá. Estritamente falando, o capítulo

registra o restabelecimento da aliança, tal como a aliança com os

ancestrais de Israel já tinha sido refeita no Sinai e nas planícies de

Moabe (o evento registrado no próprio livro de Deuteronômio) e na

terra de Canaã, quando Israel lá chegou. Um pouco similar à aliança

incomum em 2Reis 11, ela envolve Deus, o rei e o povo. Normalmente,

Deus toma a iniciativa no estabelecimento da aliança, mas, em um

contexto como aquele, Josias sabe que eles precisam tomar uma ação. O

rei sabe que é necessário assumir esse compromisso e também que o

povo precisa tomar parte. O seu privilégio e responsabilidade, como


líder, é incorporar uma resposta adequada a Deus em sua própria vida e,

então, usar a sua influência sobre as pessoas para que estas, por seu

turno, respondam a Deus.


2REIS 23:25—24:16
COMO DESFAZER UMA REFORMA
25
Não houve nenhum rei antes [de Josias] que se voltou para Yahweh com toda a sua mente,

alma e força, de acordo com todo o ensino de Moisés, e, depois dele, nenhum surgiu como

26
ele. No entanto, Yahweh não se desviou do grande furor com o qual a sua ira se acendeu

contra Judá por causa de todos os atos provocativos com os quais Manassés o tinha

27
provocado. Assim, Yahweh disse: “Eu também removerei Judá de diante de minha face,

como removi Israel. Rejeitarei esta cidade que escolhi, Jerusalém, e a casa da qual disse:

‘Meu nome estará ali.’”

28
Os demais atos de Josias e tudo o que ele fez estão, de fato, escritos nos anais dos reis de

29
Judá. Em seus dias, o faraó Neco, rei do Egito, subiu contra o rei da Assíria pelo rio

30
Eufrates. O rei Josias foi abordá-lo, mas [Neco] o matou em Megido, quando ele o viu. Os

seus oficiais o transportaram morto, de Megido, e o levaram a Jerusalém, e o enterraram em

seu túmulo. O povo do país tomou Jeoacaz, filho de Josias, o ungiu e o fez rei em lugar de seu

pai.

[Os versículos 31-37 relatam como Neco substitui Jeoacaz por Jeoaquim, seu irmão; os dois reis

são mais parecidos com seus antigos ancestrais do que com o pai deles.]

CAPÍTULO 24

1
Em seus dias, Nabucodonosor, rei da Babilônia, subiu, e Jeoaquim se tornou seu servo por

2
três anos; então, voltou atrás e se rebelou contra ele. Yahweh enviou contra ele invasores

caldeus, arameus, moabitas e amonitas. Ele os enviou contra Judá para o destruir, de acordo

3
com a palavra de Yahweh que ele tinha falado por meio de seus servos, os profetas. Com

efeito, foi pelo comando de Yahweh que isso aconteceu a Judá, para removê-los de diante de

4
sua face, por causa das ofensas de Manassés, de acordo com tudo o que ele tinha feito e

também o sangue inocente que ele tinha derramado. Ele encheu Jerusalém com sangue

5
inocente, e Yahweh não estava disposto a perdoar. Os demais atos de Jeoaquim e tudo o que

6
ele fez estão, de fato, escritos nos anais dos reis de Judá. Jeoaquim dormiu com seus

8
ancestrais, e Joaquim, seu filho, tornou-se rei em seu lugar. [...] Joaquim tinha dezoito anos

quando se tornou rei; ele reinou três meses em Jerusalém. O nome de sua mãe era Neusta,

9
filha de Elnatã, de Jerusalém. Ele fez o que era desagradável aos olhos de Yahweh, de acordo

10
com tudo o que seu pai fez. Naquele tempo, os subordinados de Nabucodonosor, rei da

11
Babilônia, subiram a Jerusalém, e a cidade ficou sob cerco. Nabucodonosor, rei da

12
Babilônia, chegou à cidade, enquanto seus subordinados a estavam sitiando, e Joaquim, rei

de Judá, saiu até o rei da Babilônia, ele, sua mãe, seus servidores, seus comandantes e seus

oficiais.

[Os versículos 13-16 descrevem como Nabucodonosor levou o rei e o restante da liderança

judaíta ao exílio na Babilônia, transportando também os valores do templo.]


Em minha primeira visita aos Estados Unidos, fui para dar uma série de

palestras em um seminário. O pessoal do seminário deve ter apreciado

as minhas palestras, pois, então, se mostraram interessados em me

oferecer um emprego, mas, naquele momento, eu não estava disposto a

fazer tamanha mudança. Todavia, tudo correu bem, porque, alguns anos

mais tarde, houve um golpe naquele seminário, e o presidente foi

despedido. Os objetivos e princípios nos quais ele havia trabalhado

foram abandonados. Ao renunciar ao cargo de diretor do seminário e

mudar para os Estados Unidos, senti-me grato e feliz por poder indicar

a minha sucessora, pois sabia que ela compartilhava da minha visão.

A experiência de Josias foi similar àquela do presidente do

seminário dos Estados Unidos. É estranho, de fato, porque o seu

sucessor imediato foi o seu próprio filho, como foi o próximo rei de

Judá. Mas, então, a política prosseguiu em constante mudança. Na

verdade, os próprios fatores que, a princípio, facilitaram a reforma de

Josias estiveram, eventualmente, envolvidos em sua morte. Em 611

a.C., os babilônios conquistaram a capital da Assíria e decretaram a

sentença de morte do Império Assírio, embora isso não tenha

estabelecido o que ocorreria a seguir. Um enfraquecido Império Assírio

continuou a existir, e os egípcios estavam interessados em tentar

garantir que a Babilônia não substituísse, simplesmente, a Assíria como

senhor sobre o Egito. Ao que parece, o faraó Neco partiu para intervir

nos eventos que se desenrolavam na região nordeste, e Josias, por seu

turno, tentou intervir na expedição de Neco, embora não fique claro

qual era o seu plano. Seja como for, o plano desmoronou, e Josias perdeu

a sua vida (a batalha ocorreu em Megido, na passagem entre o

Mediterrâneo e a planície central de Israel, o lugar que dá origem ao

nome Armagedom, isto é, “monte Megido”). Segundo Crônicas 35

deixa claro que isso envolveu um ato de desobediência a Deus. Hulda


tinha prometido que Josias morreria em paz. Talvez ele tenha perdido a

promessa por sua desobediência. Ou pode ser que tenha sido afortunado

por não ver o conflito entre Babilônia e Judá e a consequente queda de

Judá.

O breve reinado de três meses de Jeoacaz, seu filho, é suficiente para

desagradar a Deus; isso pode ser meramente um resumo convencional

ou uma indicação de que ele manteve a posição antagônica ao Egito,

adotada por seu pai. Por outro lado, pode ser o primeiro sinal de que o

“povo do país”, que o colocou no trono, fosse menos afetado pelo

engajamento religioso de Josias do que se poderia imaginar. Embora

2Reis não seja específico quanto ao povo servir a outros deuses nesses

últimos anos do Estado judaíta, Jeremias e Ezequiel o são.

Jeoacaz, certamente, desagrada aos egípcios, que o substituem por

seu irmão, a quem eles, talvez, considerem controlar melhor;

provavelmente, os egípcios estão certos. Assim, dificilmente pode-se

culpar Jeoaquim por submeter-se à autoridade da Babilônia, quando o

rei Nabucodonosor bate à porta de Judá (com um aríete). Na realidade,

três anos depois, ele se rebela contra a Babilônia. Nessa época, o Egito

é, de qualquer forma, uma força exaurida, e apenas três ou quatro

séculos depois é que os egípcios se interessarão por Judá novamente.

Jeoaquim, por seu turno, é sucedido por Joaquim, seu filho, que,

igualmente, desagrada tanto a Deus quanto aos babilônios, sendo

deposto pelo poder imperial após três meses no trono e substituído por

um dos filhos de Josias.

Segundo Reis sabe que as pessoas que devem pagar pela

transgressão são as que transgridem. Não obstante, histórias como a de

Jeroboão e Abias (1Reis 13) são um reconhecimento de que nem

sempre a vida funciona assim, como bem sabemos. O que se aplica à

família, também se aplica à nação. Um artigo que li, algum tempo atrás,

observava como, nos vinte anos seguintes à Segunda Guerra Mundial,

os Estados Unidos conheceram um grande progresso, pois toda a nação

tinha empregos adequados, alimentação, habitação, educação,


assistência médica e segurança social, mas as políticas subsequentes (e a

Guerra do Vietnã) diminuíram ou reverteram grande parte desse

desenvolvimento. As pessoas que vivem hoje, portanto, estão pagando o

preço por decisões tomadas há uma ou duas gerações. Na história de

Judá, o término da vida da nação (sobre a qual leremos em 2Reis 25)

pode parecer um enigma, após a magnífica reforma de Josias. A

disparidade entre o entusiasmo da história por Josias e os magros

resultados de longo prazo, obtidos por sua ação, tem sido um fator

importante na formação das teorias de que houve, pelo menos, duas

edições de 2Reis, a primeira ao tempo de Josias, e a segunda após a

queda de Jerusalém.

Em reflexão, humana ou sociologicamente falando, a falha de Josias

não surpreende tanto. É preciso muito para se mudar uma cultura,

particularmente num contexto em que essa mudança ocorre muito

lentamente. A Inglaterra, no século XVI, esteve envolvida, inúmeras

vezes, entre uma reforma protestante e uma contrarreforma católica;

seja qual for a sua identificação religiosa, é possível constatar que uma

mudança permanente demora a acontecer.

Segundo Reis coloca o ponto teologicamente. Em relação a isso,

igualmente, há limites quanto ao que a reforma de Josias poderia

alcançar. Existe uma percepção de que o arrependimento muda todas as

coisas; ele restaura a relação entre o povo e Deus. No entanto, existem

limitações quanto ao sentido de que tudo é zerado. Um assassino que se

arrepende não é, então, perdoado por seu crime e liberto da prisão. Isso

diminuiria a ofensa. Tanto teológica quanto socialmente, o

arrependimento ao qual Josias leva o povo, simplesmente, não zera os

registros. É significativo que 2Reis não fale da indisposição de Deus em

perdoar, mas da relutância de Deus em absolver. Quando perdoo

alguém, eu “carrego” o mal que a pessoa me fez (a palavra hebraica,

normalmente, traduzida por “perdoar” é o termo comum para

“carregar”). Quando falamos sobre absolvição, discorremos sobre a

remissão do mal que foi feito a outra pessoa, não a ela própria, sobre
alguém ignorar padrões objetivos de certo e errado. Manassés havia

inundado Jerusalém com sangue inocente que ainda está clamando do

solo. Talvez a sua ação ainda não possa ser absolvida.


2REIS 24:17—25:30
ESTE É O FIM OU HÁ ESPERANÇA?
17
O rei da Babilônia fez Matanias, tio de [Joaquim], rei em seu lugar, e mudou o seu nome

18
para Zedequias. Zedequias tinha vinte e um anos quando se tornou rei. Ele reinou onze

19
anos em Jerusalém. O nome de sua mãe era Hamutal. Ele fez o que era desagradável aos

20
olhos de Yahweh, de acordo com tudo o que Jeoaquim tinha feito, por isso a ira de Yahweh

estava contra Jerusalém e Judá até ele os lançar para longe de sua presença.

Ora, Zedequias se rebelou contra o rei da Babilônia.

CAPÍTULO 25

1
No nono ano do reinado [de Zedequias], no décimo dia do décimo mês, Nabucodonosor, o

rei da Babilônia, veio contra Jerusalém, ele e todas as suas forças. Ele acampou contra ela e

2
construiu obras de cerco ao redor dela. A cidade ficou sob cerco até o décimo primeiro ano

3
do rei Zedequias. No nono dia do mês, a fome tinha se tornado insuportável na cidade. Não

4
havia comida para as pessoas no país. A cidade abriu, e todos os homens do exército

[saíram], de noite, pelo portão entre o muro duplo, junto ao jardim do rei, enquanto os

caldeus estavam todos ao redor da cidade. Então, [o rei] foi pela estrada para a campina,

5
mas as forças da Caldeia perseguiram o rei e o alcançaram nas planícies de Jericó, quando

6
todas as suas forças se dispersaram dele. Eles capturaram o rei e o levaram ao rei da

7
Babilônia, em Ribla, e pronunciaram uma decisão sobre ele. Aos filhos de Zedequias, eles

massacraram diante de seus olhos, os olhos de Zedequias foram arrancados, e ele foi

aprisionado com algemas de bronze e levado para a Babilônia.

8
No sétimo dia do quinto mês (era o décimo nono ano de Nabucodonosor, rei da Babilônia),

9
Nebuzaradã, o chefe dos guardas, servo do rei da Babilônia, chegou a Jerusalém e incendiou

a casa de Yahweh, a casa do rei e todas as casas em Jerusalém. Cada casa de uma pessoa

10
importante, ele incendiou. Os muros ao redor de Jerusalém, todas as forças dos caldeus os

11
derrubaram. O restante do povo que foi deixado na cidade e as pessoas que tinham se

submetido ao rei da Babilônia (o restante da população), Nebuzaradã, o chefe dos guardas,

12
levou ao exílio, mas o chefe dos guardas deixou algumas das pessoas pobres no país como

vinicultores e fazendeiros.

[Os versículos 13-26 descrevem como os babilônios destruíram coisas no templo para levar os

materiais de valor à Babilônia, e como eles indicaram um homem, chamado Gedalias, como

governador, e este, então, foi morto por rebeldes.]

27
No trigésimo sétimo ano do exílio de Joaquim, rei de Judá, no vigésimo sétimo dia do

décimo segundo mês, Evil-Merodaque, rei da Babilônia, no ano em que se tornou rei, liberou

28
Joaquim da prisão. Falou positivamente com ele e lhe deu um assento acima do assento

29
dos reis que estavam com ele na Babilônia. Ele trocou as suas roupas de prisão e comeu
30
com ele, regularmente, por toda a sua vida. Sua provisão lhe foi dada como uma provisão

regular do rei, uma quantidade para cada dia, por toda a sua vida.

Na manhã do dia 11 de setembro de 2001, eu estava sentado em meu

quintal, quando um de meus vizinhos passou e me contou que um avião

acabara de atingir uma das Torres Gêmeas, em Nova York. Fui para

dentro e assisti, paralisado por algum tempo (ainda de pé), enquanto a

televisão repetia a cena, várias vezes, incluindo o momento em que

outro avião voou em direção à segunda torre. Minha sensação de horror

hipnótico, distante quase cinco mil quilômetros, em nada se comparava

ao horror das pessoas em Nova York ou Nova Jersey que, como

testemunhas oculares, descreviam o ocorrido, algumas delas sabendo

que seus entes queridos estavam nos edifícios atingidos.

Pode-se sentir um horror similar ao ler o último capítulo de 2Reis.

Paradoxalmente, isso vem pela narrativa extremamente prática da

história, como se o narrador ainda estivesse em estado de choque pelo

que testemunhou. O relato nada nos revela sobre os horrores do longo

cerco, mas conhecemos algo de suas implicações, pelo que lemos em

2Reis 6 (o livro de Lamentações nos conta que as mulheres também

comeram os seus bebês, nessa ocasião). Pode-se suspeitar, como de

costume, que a liderança tenta salvar a própria pele, mas fracassa nesse

intento. Novamente, de modo prático, o narrador descreve como os

babilônios matam os dois filhos do rei (que está com pouco mais de

trinta anos) e como essa é a última visão captada por seus olhos, pois,

então, os babilônios o cegam, talvez queimando os seus olhos com metal

quente. No tocante a eles, Zedequias é um traidor e deve pagar por sua

traição para mostrar ao povo o destino reservado aos traidores. Ainda,

ele deve ser incapacitado para tornar improvável que seja colocado no

trono novamente; nem os seus filhos. O capítulo prossegue detalhando

o que sucedeu às colunas de bronze no templo, ao equipamento usado

nos sacrifícios e ao trabalho decorativo no edifício, tudo o que tornava a


casa de Deus bela e funcional para a adoração. O texto relata como

parece não haver fim para a estupidez da comunidade. Os babilônios

instalam uma forma de governo local sobre o que foi deixado no país,

após a sua devastação e o transporte de sua liderança ao exílio, mas

alguns judaítas matam os governantes por serem colaboradores.

Todavia, então, eles percebem que eliminaram qualquer prospecto de

futuro no país em si mesmos e fogem para salvar a própria vida.

Tudo isso permanece sob as solenes palavras que iniciam esse

derradeiro capítulo: “a ira de Yahweh estava contra Jerusalém e Judá

até ele os lançar para longe de sua presença”. É possível que essas

palavras até mesmo influenciem as palavras que vêm logo a seguir: “Ora,

Zedequias se rebelou contra o rei da Babilônia”, implicando que a

própria rebelião que Zedequias empreendeu, movido pelo que ele

pensou serem bons motivos políticos, na realidade era uma

consequência da decisão de Deus de trazer juízo sobre a cidade. A nota

sobre a ira de Deus é, na verdade, a última sentença do capítulo 24. O

relato da rebelião, do cerco e de suas consequências não contém

nenhuma menção a Deus. A narrativa se desenrola como uma série de

decisões humanas, tomadas por pessoas como Zedequias,

Nabucodonosor, Nebuzaradã e os assassinos de Gedalias. Deus está

ausente da história, tendo se afastado da cidade. Não obstante, por trás

daquelas cenas, a vontade de Deus está sendo implementada.

Se o capítulo terminasse com a fuga dos assassinos de Gedalias, isso

faria a audiência deixar o cinema de forma silenciosa e sombria.

Reconhecidamente, há um sentido no qual isso seria uma ação

enganosa. O Antigo Testamento sabe que, quando se trai Deus (esqueça

a Babilônia), tudo o que pode ser feito é apelar à misericórdia de Deus.

Os cristãos, com frequência, pensam que os israelitas acreditavam que

acertavam as contas com Deus por meio de sacrifícios; é possível que

houvesse israelitas com essa crença, mas não é isso o que a Torá lhes

dizia. Os sacrifícios podem lidar com tabus como desordens de pele

como as que consideramos em 1 e 2Reis, mas eles não podem lidar com
a desobediência moral ou religiosa deliberada. Ao cair em si quanto a

tais transgressões, tudo o que você pode fazer é suplicar pela

misericórdia divina. Um modo de olhar para 1 e 2Reis é vê-los como um

relato da história de Israel que convida as pessoas a reconhecer a

verdade dos livros e, ao fazer isso, lançarem-se àquela misericórdia.

Paradoxalmente, então, se o livro de 2Reis termina em desesperança ou

em esperança, depende da reação das pessoas quanto a ele. Caso

afirmem a sua verdade, elas não garantem a esperança, mas abrem a sua

possibilidade.

O derradeiro parágrafo do livro insinua a esperança de uma forma

diferente. Você se lembra de Joaquim, o predecessor de Zedequias,

como rei? Apesar de ser o sobrinho de Zedequias, ele era apenas três

anos mais novo que o seu tio. Os babilônios tinham levado Joaquim

para a Babilônia, dez anos antes da queda de Jerusalém, de modo que,

durante algum tempo, houve dois reis de Judá exilados na Babilônia.

Avance um quarto de século depois da queda final de Jerusalém, para

562 a.C. Não sabemos se Zedequias ainda está vivo, mas

Nabucodonosor está morto. Quando um presidente dos Estados Unidos

deixa o cargo, às vezes ele concede indulto a pessoas por seus malfeitos.

Os reis do Oriente Médio faziam o mesmo quando chegavam ao poder;

era uma forma de mostrar que a administração era nova e quais seriam

as suas prioridades e princípios. Assim, Evil-Merodaque concede o

perdão a Joaquim e lhe dá uma posição de honra na corte babilônia.

Segundo Reis prossegue em seu silêncio quanto a Deus estar nos

bastidores desse evento. Era um ato político do novo rei babilônio;

todavia, talvez, apenas talvez, fosse um sinal de esperança. Por diversas

vezes, 1 e 2Reis mencionaram a maneira pela qual Deus reservou o

domínio de Jerusalém para Davi. Por ter feito a promessa a Davi nesses

termos, Deus a mantém. Poderia essa promessa ainda ter vida em si? É

possível que essa nova condição de Joaquim seja um sinal de que ainda

há vida.
O autor de 2Reis não sabe o que acontecerá a seguir. Esse é o fim da

colossal história que percorre Gênesis até 2Reis. Ao fim de cada livro,

até aqui, o leitor pôde virar a página e ver o que ocorre a seguir, mas, ao

virar a última página do livro de 2Reis, isso não acontece. Não estamos

simplesmente no fim de uma temporada dessa série; este é o fim de toda

a série. A elevação de Joaquim, por si só, poderia não levar a lugar

nenhum, mas a esperança que isso poderia sugerir era real. Há um

sentido no qual o livro de Esdras dá seguimento ao relato de 2Reis e

mostra como Deus permaneceu fiel.


GLOSSÁRIO

Ajudante. Um agente sobrenatural por meio do qual Deus pode

aparecer e operar no mundo. As traduções, em geral, referem-se a

eles como “anjos”, mas essa designação tende a sugerir figuras

etéreas dotadas de asas, ostentando vestes brancas e translúcidas.

Os ajudantes são figuras semelhantes aos humanos; por essa razão, é

possível agir com hospitalidade sem perceber quem são (Hebreus

13:2). Ainda, eles não possuem asas; por isso, necessitam de uma

rampa ou escadaria entre o céu e a terra (Gênesis 28). Eles surgem

com a intenção de agir ou falar em nome de Deus e, assim,

representá-lo plenamente, falando como se fossem Deus (Juízes 6).

Eles, portanto, trazem a realidade da presença, da ação e da voz de

Deus, sem trazer aquela presença real que aniquilaria os meros

mortais ou danificaria a sua audição. Isso pode ser uma garantia

quando Israel é rebelde, e a presença de Deus pode representar, de

fato, uma ameaça (Êxodo 32―33), mas eles mesmos podem ser

meios de implementar o castigo, da mesma forma que a bênção de

Deus (Êxodo 12; 2Samuel 24).

Aliança. A palavra hebraica berit abrange alianças, tratados e

contratos, mas todas essas são formas pelas quais as pessoas

estabelecem um compromisso formal sobre algo, mas tenho

utilizado o termo “aliança” para expressar todas as três. Onde há um

sistema legal ao qual as pessoas podem apelar, os contratos

pressupõem um sistema para resolver disputas e ministrar justiça

que pode ser utilizado se uma das partes não cumpre com os seus

compromissos. Em contraste, um relacionamento de aliança não

pressupõe uma estrutura legal executável dessa espécie, mas a

aliança envolve algum procedimento formal que confirme a


seriedade do compromisso solene que as partes assumem uma com a

outra. Desse modo, o Antigo Testamento frequentemente fala sobre

selar uma aliança; literalmente, cortá-la (o pano de fundo reside no

tipo de procedimento formal descrito em Gênesis 15 e Jeremias

34:18-20, embora esse tipo de procedimento dificilmente viesse a ser

exigido toda vez que alguém assumisse um compromisso de aliança).

Às vezes, as pessoas selam alianças para outras pessoas e, às vezes,

com outras pessoas. A primeira implica algo mais unilateral; a outra

envolve algo mais mútuo.

Altar. Uma estrutura para oferta de sacrifício (o termo vem da palavra

para sacrifício), feita de terra ou pedra. Um altar pode ser

relativamente pequeno, como uma mesa, e o ofertante deve ficar

diante dele. Ou pode ser mais alto e maior, como uma plataforma, e

o ofertante tem de subir nele. A palavra também pode ser uma

referência a um estande menor, sobre o qual queimava-se incenso

em associação com o culto.

Amorreus. O termo é usado de várias maneiras. Pode denotar um dos

grupos étnicos originais em Canaã, especialmente a leste do Jordão,

e também ser usado como referência ao povo daquele território

como um todo. Na verdade, fora do Antigo Testamento, “amorreus”

se refere a um povo que vive em uma área muito mais extensa da

Mesopotâmia. Portanto, “amorreus” é uma palavra semelhante a

“América”, uma referência comum aos Estados Unidos, mas que

pode denotar uma área muito mais ampla do continente do qual os

Estados Unidos fazem parte.

Aram, arameus. Em certos contextos, os arameus são um povo

espalhado por uma área mais ampla do Oriente Médio, e o aramaico

é um idioma internacional largamente usado que, com o passar do

tempo, substituiu o hebraico como a língua dos judaítas. No

entanto, num sentido mais estrito, em 1 e 2Reis, Aram é o país


situado a nordeste de Israel, que compreendia, aproximadamente, a

região da moderna Síria. Como a própria Síria, era uma nação muito

maior do que Israel.

Aserá. A palavra é usada para significar tanto o nome de uma

divindade quanto o nome de um acessório para adoração (os dois

significados aparecem em 1Reis 14—15). Na religião cananeia e em

outros lugares, Aserá era uma deusa particular, mas o nome passou a

ser usado no plural como um termo geral para uma deusa. Como um

termo para um acessório de culto, denota algo que pode ser

“erigido”, “plantado” e “queimado”, o que sugere uma coluna ou

pilar similar a uma árvore que representava e sugeria a presença da

divindade.

Assíria, assírios. A primeira grande superpotência do Oriente Médio,

os assírios expandiram o seu império rumo ao Ocidente, até a Síria-

Palestina, no século VIII a.C., no tempo de Amós e Isaías, e

anexaram Efraim ao seu império. Quando Efraim persistiu tentando

retomar a sua independência, os assírios invadiram Efraim e, em 722

a.C., destruíram a sua capital, Samaria, levando cativo grande parte

de seu povo e substituindo-os por pessoas oriundas de outras partes

do seu império. Invadiram também Judá e devastaram uma extensa

área do país, mas não tomaram Jerusalém. Profetas como Amós e

Isaías descrevem o modo pelo qual Deus estava, portanto, usando a

Assíria como um meio de disciplinar Israel.

Autoridade. Indivíduos como Eli, Samuel, os filhos de Samuel e os reis

“exerciam autoridade” sobre Israel e para Israel. A palavra hebraica

para alguém que exerce tal autoridade, shopet, é tradicionalmente

traduzida por “juiz”, mas essa liderança é mais ampla que isso. No

livro chamado Juízes, esses líderes são pessoas que não possuem

posição oficial como os reis posteriores, mas que se levantam e

tomam a iniciativa de trazer libertação ao povo do problema no qual


ele se meteu. É função do rei exercer autoridade de acordo com a

fidelidade a Deus e ao povo.

Babilônia, babilônios. Um poder menor no contexto da história

primitiva de Israel, ao tempo de Jeremias, os babilônios assumiram a

posição de superpotência da Assíria, mantendo-a por quase um

século, até ser conquistada pela Pérsia. Profetas como Jeremias

descrevem como Deus estava usando os babilônios como um meio

de disciplinar Judá. Eles tomaram Jerusalém em 587 a.C. e

transportaram muitos dentre o povo. Suas histórias sobre a criação,

os códigos legais e os textos mais filosóficos nos ajudam a

compreender aspectos de escritos equivalentes presentes no Antigo

Testamento, embora sua religião astrológica também constitua o

cenário para polêmicos aspectos nos Profetas.

Baú. O “baú da aliança” é uma caixa com pouco mais de um metro de

comprimento e cerca de setenta centímetros de altura e de largura.

A Revista e Corrigia Fiel, bem como outras versões, faz referência a

uma “arca”, mas a palavra significa uma caixa, embora seja apenas

usada ocasionalmente para expressar baús usados para outros fins. É

chamado de baú da aliança porque contém as tábuas de pedra

inscritas com os Dez Mandamentos, expectativas-chave que Deus

estabeleceu em relação à aliança do Sinai. É mantido, regularmente,

no santuário, mas há um sentido no qual o baú simboliza a presença

de Deus (considerando que Israel não possui imagens para

representar isso). Dado esse simbolismo, os israelitas, algumas

vezes, carregam o baú com eles. Às vezes, também é denominado de

“baú da declaração”, com o mesmo significado: as tábuas “declaram”

as expectativas da aliança de Deus.

Canaã, cananeus. Como designação bíblica da terra de Israel como um

todo, e referência a todos os povos autóctones daquele território,

“cananeus” não constitui, portanto, o nome de um grupo étnico em


particular, mas um termo genérico para todos os povos nativos da

região. Veja também Amorreus.

Devotar, devoção. Devotar algo a Deus significa entregar a Deus de

modo irrevogável. As traduções usam verbos como “aniquilar” ou

“destruir”, e, em geral, essa é a implicação correta, porém isso não

expressa o ponto distintivo do ato. É possível devotar uma terra ou

um animal, como um jumento, e, com efeito, Ana irá devotar

Samuel; o jumento ou o ser humano, então, pertence a Deus e está

comprometido a servi-lo. Na verdade, os israelitas devotaram

muitos cananeus ao serviço de Deus nesse contexto; eles se

tornaram pessoas que cortavam madeira e retiravam água para o

altar, para as ofertas e os rituais do santuário. Devotar pessoas a

Deus, matando-as como uma espécie de sacrifício, era uma prática

conhecida de outros povos, que Israel adota por sua própria

iniciativa, mas que Deus valida. Israel sabe que é assim que a guerra

funciona em seu mundo e passa a operar da mesma forma, com a

concordância divina.

Discípulos dos profetas. Literalmente, esses são os “filhos dos

profetas”. Primeiro e Segundo Reis mencionam comunidades desses

profetas em vários lugares de Efraim, ao tempo de Elias e Eliseu.

Eles viviam juntos e, aparentemente, disponibilizavam os seus

serviços a todos os que necessitavam da orientação de Deus sobre

algum assunto. Eram dependentes de doações do povo e buscavam a

ajuda das pessoas nesse sentido; as histórias indicam que isso os

tornava vulneráveis à pobreza.

Efraim, efraimitas. Após a morte de Saul, os clãs israelitas se dividiram

em dois grupos por um período. Politicamente, o maior dos dois

grupos, abrangendo os clãs do norte e do leste, manteve o nome de

Israel, enquanto o grupo menor, concentrado na região sul, passou a

ser chamado de Judá. Isso é confuso porque Israel ainda é o nome


do povo que pertence a Deus. Portanto, o nome Israel pode ser

usado em ambas as conexões. Após os reinados de Davi e de

Salomão, a nação de Israel se dividiu nesses dois reinos mais

permanentemente, e, uma vez mais, o grupo de clãs do norte

manteve o nome de Israel. O Estado do norte, contudo, pode

também ser referido pelo nome de Efraim, por ser um de seus clãs

principais. Assim, uso esse termo como referência aos clãs do norte,

no período de Davi e no contexto posterior, na tentativa de

minimizar a confusão.

Esposa secundária. As traduções usam a palavra “concubina” para

descrever mulheres como algumas das esposas de Davi, mas o termo

hebraico usado em relação a elas não sugere que não sejam

apropriadamente casadas. Ser uma esposa secundária indica possuir

uma posição diferente das outras esposas. Talvez implique que seus

filhos tenham direitos limitados ou mesmo nenhum direito sobre a

herança do pai. É possível a um homem rico ou poderoso ter

inúmeras esposas com plenos direitos e muitas esposas secundárias,

ou mesmo apenas uma de cada. Pode, ainda, ter apenas a esposa

principal ou somente a esposa secundária.

Exílio. No final do século VII a.C., a Babilônia se tornou o maior poder

no mundo de Judá, mas os judaítas estavam determinados a se

rebelar contra a sua autoridade. Então, como parte de uma

campanha vitoriosa para obter a submissão de Judá, em 597 a.C. e

587 a.C. os babilônios transportaram muitos israelitas de Jerusalém

para a Babilônia, particularmente pessoas em posições de liderança,

como membros da família real e da corte, sacerdotes e profetas.

Essas pessoas foram, portanto, compelidas a viver na Babilônia

durante os cinquenta anos seguintes ou mais. Pelo mesmo período,

as pessoas deixadas em Judá também viviam sob a autoridade dos

babilônios. Assim, não estavam fisicamente no exílio, mas também

viveram em exílio por um período de tempo.


Fenícia, fenícios. A Fenícia constitui a área na costa do Mediterrâneo,

a nordeste de Israel, com centro na área do Líbano moderno, mas

incluindo parte da Síria atual e parte de Israel, antigo e moderno.

Não era tanto um Estado, mas uma coleção de cidades-estado, entre

as quais Tiro e Sidom. Embora essas cidades-estado pudessem estar

em guerra umas com as outras, elas tinham ciência de uma etnia e

religião comuns, que também compartilhavam (juntamente com seu

idioma) com os cananeus. Em outras palavras, os fenícios eram

cananeus que viviam mais ao norte de Canaã. Como sua

característica principal, os fenícios eram grandes comerciantes.

Filístia, filisteus. Os filisteus eram um povo oriundo do outro lado do

Mediterrâneo para se estabelecer em Canaã, na mesma época do

estabelecimento dos israelitas na região, de maneira que os dois

povos formaram um movimento acidental de pressão sobre os

habitantes já presentes naquele território, bem como se tornaram

rivais mútuos pelo controle da área.

Grécia. Em 336 a.C., forças gregas, sob o comando de Alexandre, o

Grande, assumiram o controle do Império Persa, porém após a

morte de Alexandre, em 333 a.C., o seu império foi dividido. A

maior extensão, ao norte e a leste da Palestina, foi governada por

Seleuco, um de seus generais, e seus sucessores. Judá ficou sob o

controle grego por grande parte dos dois séculos seguintes, embora

estivesse situado na fronteira sudoeste desse império e, às vezes,

caísse sob o controle do Império Ptolomaico, no Egito, governado

por sucessores de outro dos generais de Alexandre.

Homem de Deus. O uso comum da expressão “homem de Deus” (ou

“mulher de Deus”) sugere alguém com uma profunda vida de oração

e de compromisso moral elevado. A expressão hebraica equivalente

possui um significado distinto. Ela sugere alguém com um poder e

percepção extraordinários, bem como assustadores. Um homem de


Deus sabe de coisas que, talvez, você não gostaria que ele soubesse,

além de poder fazer coisas que, talvez, você não gostaria que ele

fizesse, embora ele saiba e faça coisas que são boas-novas. Ele sabe e

faz essas coisas não por causa de sua profunda espiritualidade

(embora possa ser uma pessoa profundamente espiritual), mas

porque Deus toma conta dele e lhe dá a capacidade de saber e fazê-

las, apenas porque Deus assim decide. Ele é um homem que

representa Deus num sentido muito forte. Deus o torna seu

representante no mundo, e ele demonstra essa posição pelas

capacidades extraordinárias que exerce.

Israel. Originariamente, Israel era o novo nome dado por Deus a Jacó,

neto de Abraão. Seus doze filhos foram, então, os patriarcas dos doze

clãs que formam o povo de Israel. No tempo de Saul, Davi e

Salomão, esses doze clãs passaram a ser uma entidade política.

Assim, Israel significava tanto o povo de Deus quanto uma nação ou

Estado, como as demais nações e Estados. Após Salomão, esse

Estado foi dividido em dois Estados distintos, Efraim e Judá. Pelo

fato de Efraim ser maior, manteve como referência o nome de Israel.

Desse modo, se alguém estiver pensando em Israel como povo de

Deus, Judá está incluído. Caso pense em Israel politicamente, Judá

não faz parte. Uma vez que Efraim não existe mais, então, para

todos os efeitos, Judá é Israel, assim como é o povo de Deus.

Judá, judaítas. Um dos doze filhos de Jacó e, portanto, o clã que traça a

sua ancestralidade até ele e que se tornou dominante no sul dos dois

Estados, após o reinado de Salomão. Mais tarde, como província ou

colônia persa, Judá ficou conhecido como Jeúde.

Lugar alto. A religião tradicional nas vilas e cidades de Canaã ocorria

em torno de um local de adoração no ponto mais alto da vila,

possivelmente elevado por uma plataforma. Ali, membros da

comunidade podiam levar as suas ofertas e orar, por exemplo, em


relação ao nascimento de filhos e a colheita. Quando a população da

vila ou da cidade se tornava israelita, esperava-se uma mudança na

natureza de seu culto, de modo que Yahweh passasse a ser adorado

ali, mas, na prática, continuava a ser usado de acordo com as

tradições do passado. Quer ainda envolvesse o culto a outras

divindades que não Yahweh, quer práticas de adoração dos

cananeus, tais como o uso de imagens, quer o sacrifício de crianças,

as pessoas viam a si mesmas adorando a Yahweh. Alguns reis, fiéis a

Yahweh, permitiram que os lugares altos continuassem a funcionar

sem danos ao seu compromisso com Yahweh, mas, à luz do abuso

desses locais e da crescente convicção de que os lugares altos

deveriam ser simplesmente abolidos, 1 e 2Reis sentem-se ambíguos

quanto a eles e manifestam algum desconforto sobre o modo pelo

qual alguns reis fiéis permitiram que continuassem em uso.

Mestre. Baal é um termo hebraico comum para designar um mestre,

senhor ou proprietário, mas também é utilizado para descrever um

deus cananeu. É, portanto, similar ao termo para Senhor, usado para

descrever Yahweh. Na verdade, “Mestre” pode ser um nome

adequado, como “Senhor”, como é tratado nas traduções quando

transcrevem a palavra como Baal. Para deixar essa distinção clara,

em geral o Antigo Testamento usa Mestre para um deus estrangeiro

e Senhor para o verdadeiro Deus, Yahweh. A exemplo de outros

povos antigos, os cananeus cultuavam inúmeros deuses e, nesse

sentido, o Mestre era apenas um deles, embora fosse um dos mais

proeminentes. O Antigo Testamento também usa o plural, Mestres

(Baals), como referência aos deuses cananeus em geral.

Pano de saco. O pano de saco não sugere algo desconfortável, mas

refere-se a um pano de qualidade inferior com o qual as roupas de

pessoas comuns eram feitas. Ele contrastava com as vestes

impressionantes e luxuosas com as quais as pessoas importantes

apareciam em público.
Paz. A palavra shalom pode sugerir paz após um conflito, mas, com

frequência, indica uma ideia mais rica, ou seja, da plenitude de vida.

A King James Version, às vezes, a traduz por “bem-estar”, e as

traduções modernas usam palavras como “segurança” e

“prosperidade”. De qualquer modo, a palavra sugere que tudo está

indo bem para você.

Pérsia, persas. A terceira superpotência do Oriente Médio, depois da

Assíria e da Babilônia. Sob a liderança de Ciro, o Grande, eles

assumiram o controle do Império Babilônico em 539 a.C. Isaías

40―55 vê a mão de Deus levantando Ciro como um instrumento

para restaurar Judá após o exílio. Judá e os povos vizinhos, como

Samaria, Amom e Asdode, eram províncias ou colônias persas. Os

persas permaneceram por dois séculos no poder, até serem

derrotados pela Grécia.

Querubins. Não se trata de figuras angelicais infantis (como a palavra

pode sugerir em seu uso moderno), mas incríveis criaturas aladas

que transportam Yahweh, assentado em um trono acima delas.

Havia estatuetas dessas criaturas no templo, mantendo guarda

sobre o baú da aliança; portanto, eles indicam a presença de Yahweh

ali, invisivelmente entronizado acima deles.

Sheol. Um dos nomes hebraicos para o lugar ao qual vamos quando

morremos; é também referido como o “Poço”. No Novo Testamento,

é chamado de “Hades”. Não se trata de um lugar de punição ou

sofrimento, mas simplesmente de um local de descanso para todos,

uma espécie de análogo não físico para a sepultura, como lugar de

repouso para o nosso corpo.

Torá. A palavra hebraica para os cinco primeiros livros da Bíblia. Eles,

em geral, são referidos como a “Lei”, mas esse termo propicia uma

impressão equivocada. No próprio livro de Gênesis, não há nada

como “lei”, bem como Êxodo e Deuteronômio não são livros


“jurídicos”. A palavra torah, em si, significa “ensino”, o que fornece

uma impressão mais correta da natureza da Torá. Com frequência, a

Torá nos fornece mais de um relato do mesmo evento (como a

comissão de Deus a Moisés). Desse modo, quando a igreja primitiva

contou a história de Jesus de diferentes maneiras, em contextos

distintos e de acordo com as percepções dos diferentes autores dos

Evangelhos, ela estava apenas seguindo o precedente pelo qual

Israel contou suas histórias mais de uma vez, em diferentes

contextos. Embora Samuel-Reis e Crônicas mantenham as versões

separadas, tal como ocorreria com os Evangelhos, na Torá as versões

foram combinadas.

Yahweh. Na maioria das traduções bíblicas, a palavra “Senhor” aparece

em letras maiúsculas ou em versalete, como ocorre, às vezes, com a

palavra “Deus”. Na realidade, ambas representam o nome de Deus,

Yahweh. Nos tempos do Antigo Testamento, os israelitas deixaram

de usar o nome Yahweh e começaram a usar “o Senhor”. Há dois

motivos possíveis. Os israelitas queriam que outros povos

reconhecessem que Yahweh era o único e verdadeiro Deus, mas esse

nome de pronúncia estranha poderia dar a impressão de que Yahweh

fosse apenas o deus tribal de Israel. Um termo como “o Senhor” era

mais facilmente reconhecível. Além disso, eles não queriam incorrer

na quebra da advertência presente nos Dez Mandamentos sobre

usar o nome de Yahweh em vão. Traduções em outros idiomas,

então, seguiram o exemplo e substituíram o nome de Yahweh por “o

Senhor”. O lado negativo é que isso obscurece o fato de Deus querer

ser conhecido por esse nome. Por essa razão, o texto utiliza Yahweh,

com frequência, não algum outro nome (assim chamado) deus ou

senhor. Essa prática dá a impressão de Deus ser muito mais

“senhoril” e patriarcal do que ele o é na realidade. (A forma “Jeová”

não é uma palavra real, mas uma mescla das consoantes de Yahweh e

das vogais da palavra Adonai [Senhor, em hebraico], com o intuito


de lembrar às pessoas que na leitura da Escritura elas deveriam

dizer “o Senhor”, não o nome real.)

Yahweh dos Exércitos. Esse título para Deus, em geral, no texto

bíblico é traduzido por “Senhor dos Exércitos”, todavia é uma

expressão mais intrigante do que ela implica. O termo para Senhor

é, na realidade, o nome de Deus, Yahweh, e a palavra para

“Exércitos” é a palavra hebraica regular para as forças militares; é a

palavra que aparece na traseira de qualquer caminhão militar

israelense. Assim, mais literalmente, a expressão significa “Yahweh

[dos] Exércitos”, que é apenas tão estranho em hebraico quanto

“Goldingay dos Exércitos” seria. Todavia, em termos gerais, a

implicação da expressão é decerto clara: ela sugere que Yahweh é a

personificação do ou o controlador de todo o poderio de guerra,

quer no céu, quer na terra.


SOBRE O AUTOR

John Goldingay é pastor, erudito e tradutor do Antigo Testamento. Ele

é professor emérito David Allan Hubbard de Antigo Testamento no

prestigiado Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia. É um

dos acadêmicos de Antigo Testamento mais respeitados do mundo com

diversos livros e comentários bíblicos publicados. O autor possui o livro

Teologia bíblica publicado pela Thomas Nelson Brasil.


AGRADECIMENTOS

A tradução no início de cada capítulo (e em outras citações bíblicas) é

de minha autoria. Tentei me manter o mais próximo do texto hebraico

original do que, em geral, as traduções modernas, destinadas à leitura

na igreja, para que você possa ver, com mais precisão, o que o texto diz.

Embora prefira utilizar a linguagem inclusiva de gênero, deixei a

tradução com o uso universal do gênero masculino caso esse uso

inclusivo implicasse em dúvidas quanto ao texto estar no singular ou no

plural. Em outras palavras, a tradução, com frequência, usa “ele” onde

em meu próprio texto eu diria “eles” ou “ele ou ela”. A restrição de

espaço não me permite incluir todo o texto bíblico neste volume; assim,

quando não há espaço suficiente para o texto completo, faço alguns

comentários gerais sobre o material que fui obrigado a suprimir. Ao

final do livro, há um glossário dos termos-chave recorrentes no texto

(termos geográficos, históricos e teológicos, em sua maioria). Em cada

capítulo (exceto na introdução), a ocorrência inicial desses termos é

destacada em negrito.

As histórias que seguem a tradução, em geral, envolvem meus

amigos, assim como minha família. Todas elas de fato ocorreram, mas

foram fortemente dissimuladas para preservar as pessoas envolvidas,

quando necessário. Por vezes, o disfarce utilizado foi tão eficiente que,

ao relê-las, levo um tempo para identificar as pessoas descritas. Nas

histórias, Ann, a minha esposa, aparece com frequência. Ela faleceu

enquanto eu escrevia este volume, após negociar com a esclerose

múltipla durante 43 anos. Compartilhar os cuidados e o

desenvolvimento de sua enfermidade e crescente limitação, ao longo

desses anos, influencia tudo o que escrevo, de maneiras facilmente

perceptíveis ao leitor, mas também de formas menos óbvias. Agradeço a


Deus por Ann e estou feliz por ela, mas não por mim, pois ela pode,

agora, descansar até o dia da ressurreição.

Sou grato a Matt Sousa por ler o manuscrito e me indicar o que

precisava corrigir ou esclarecer no texto. Igualmente, sou grato a Tom

Bennett por conferir a prova de impressão.


INTRODUÇÃO

No tocante a Jesus e aos autores do Novo Testamento, as Escrituras

hebraicas, que os cristãos denominam de Antigo Testamento, eram as

Escrituras. Ao fazer essa observação, lanço mão de alguns atalhos, já

que o Novo Testamento jamais apresenta uma lista dessas Escrituras,

mas o conjunto de textos aceito pelo povo judeu é o mais próximo que

podemos ir na identificação da coletânea de livros que Jesus e os

escritores neotestamentários tiveram à disposição. A igreja também

veio a aceitar alguns livros adicionais, os denominados “apócrifos” ou

“textos deuterocanônicos”, mas, com o intuito de atender aos

propósitos desta série, que busca expor “o Antigo Testamento para

todos”, restringimos a sua abrangência às Escrituras aceitas pela

comunidade judaica.

Elas não são “antigas” no sentido de antiquadas ou ultrapassadas; às

vezes, gosto de me referir a elas como o “Primeiro Testamento” em vez

de “Antigo Testamento”, para não deixar dúvidas. Quanto a Jesus e os

autores do Novo Testamento, as antigas Escrituras foram um recurso

vívido na compreensão de Deus e dos caminhos divinos no mundo e

conosco. Elas foram úteis “para o ensino, para a repreensão, para a

correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:16-17).

De fato, foram para todos, de modo que é estranho que os cristãos

pouco se dediquem à sua leitura. Meu objetivo, com esses volumes, é

auxiliar você a fazer isso.

Meu receio é que você leia a minha obra, não as Escrituras. Não faça

isso. Aprecio o fato de esta série incluir grande parte do texto bíblico,

mas não ignore a leitura da Palavra de Deus. No fim, essa é a parte que

realmente importa.
UM ESBOÇO DO ANTIGO TESTAMENTO

A comunidade judaica, em geral, refere-se a essas Escrituras como a

Torá, os Profetas e os Escritos. Embora o Antigo Testamento contenha

os mesmos livros, eles são apresentados em uma ordem diferente:

Gênesis a Reis: Uma história que abrange desde a criação do

mundo até o exílio dos judeus para a Babilônia.

Crônicas a Ester: Uma segunda versão dessa história, prosseguindo

até os anos posteriores ao exílio.

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos: Alguns

livros poéticos.

Isaías a Malaquias: O ensino de alguns profetas.

A seguir, há um esboço da história subjacente a esses livros (não

forneço datas para os eventos em Gênesis, o que envolve muito esforço

de adivinhação).

1200 a.C. Moisés, o êxodo, Josué

1100 a.C. Os “juízes”

1000 a.C. Saul, Davi

900 a.C. Salomão; a divisão da nação em dois reinos:

Efraim e Judá

800 a.C. Elias, Eliseu

700 a.C. Amós, Oseias, Isaías, Miqueias; Assíria, a

superpotência; a queda de Efraim

600 a.C. Jeremias, o rei Josias; Babilônia, a superpotência

500 a.C. Ezequiel; a queda de Judá; Pérsia, a

superpotência; judeus livres para retornar ao lar

400 a.C. Esdras, Neemias

300 a.C. Grécia, a superpotência

200 a.C. Síria e Egito, os poderes regionais puxando Judá


de uma forma ou de outra

100 a.C. Judá rebela-se contra o poder da Síria e obtém a

independência.

0 a.C. Roma, a superpotência

PRIMEIRO E SEGUNDO CRÔNICAS

No conteúdo do Antigo Testamento, então, o livro de Crônicas é uma

alternativa e uma versão mais curta da história que ocupa de Gênesis a

Reis. O início acontece no mesmo lugar, com Adão; conta a história da

humanidade como um todo e, então, toda a história de Israel até o

exílio; e termina no mesmo lugar, com um evento que anuncia o fato de

que Deus ainda não terminou com Israel ou abandonou o seu povo. A

cobertura de toda essa história, num espaço correspondente a um sexto

do espaço utilizado no relato de Gênesis a Reis, obviamente envolve ser

muito mais seletivo, especialmente quando os livros de Crônicas

incluem material que não aparece nos textos de Gênesis a Reis. Por

outro lado, com frequência, a narrativa de Crônicas mantém uma

correspondência muito próxima ao relato de Samuel-Reis, de maneira

que ou Crônicas começou a partir de Samuel-Reis, retrabalhando o

texto, ou ambas as versões usaram um relato anterior da história que

não mais sobrevive.

Seja como for, por que deveria haver duas versões? Um paralelo

dentro da Bíblia é a existência de quatro versões do Evangelho, e um

fator por trás da existência delas é que a história de Jesus precisava ser

contada em diferentes maneiras para públicos distintos. Era necessário

que as implicações atuassem de modos diferentes. As implicações

precisavam operar de formas distintas. Algo similar é verdadeiro no

tocante a Crônicas em comparação com o texto de Gênesis a Reis. Essa

versão anterior termina com o povo de Judá ainda no exílio babilônico,

e Reis coloca considerável ênfase sobre a responsabilidade de Israel pela

dupla catástrofe relatada pelo livro — primeiro, a queda de Efraim e,


então, a queda de Judá. Crônicas concorda totalmente quanto à

responsabilidade pelo exílio, mas finaliza com a referência à ascensão

dos persas, que derrotam a Babilônia e comissionam os judaítas a

voltarem para casa e reconstruírem o templo que os babilônios tinham

destruído. Jeremias havia advertido que o exílio duraria algum tempo,

mas também prometera que chegaria o momento de ele terminar. Com a

ascensão da Pérsia, esse momento chegou.

As pessoas para as quais o livro de Crônicas foi escrito não eram,

portanto, as mesmas pessoas que precisavam encarar a responsabilidade

pelo colapso de sua nação. Eram pessoas que não precisavam cair em

armadilhas similares às que seus ancestrais tinham caído, mas,

igualmente, necessitavam ver a grandeza do que Deus fizera a eles e

responder com uma vida de confiança e obediência a Deus.

Há, pelo menos, três formas pelas quais podemos ver a natureza da

mensagem que os livros da Bíblia estavam transmitindo ao seu público-

alvo. No presente caso, essas três abordagens se autoalimentam. Uma

delas é simplesmente ler os livros e procurar pelas coisas que eles

enfatizam. Uma segunda abordagem é compará-los com outros livros

relacionados — nesse caso, com os livros de Gênesis a Reis. Uma

terceira, é considerá-los contra o cenário de seu contexto histórico ou

social. Essas três formas de estudo nos revelam, por exemplo, que o

texto de Crônicas avança à velocidade da luz de Adão a Davi; o relato

não faz nenhuma referência às promessas feitas aos ancestrais de Israel,

ou ao êxodo, ao Sinai, ou mesmo à jornada até a terra prometida. Davi é

a pessoa que importa. Além disso, Crônicas foca Davi sob um ângulo

particular, ou seja, a sua importância em fazer os arranjos para a

construção do templo e para a adoração naquele local.

Tudo isso é coerente com o que aprendemos dos livros de Esdras e

Neemias quanto à situação da comunidade de Judá em seus dias —

Crônicas deve ter sido escrito poucas décadas após a época de Neemias,

mas a situação permanecia a mesma. Foi um tempo no qual os judaítas

eram, de fato, livres para retornar do exílio, mas a maioria adotou a


mesma visão que os judeus que vivem em Nova York ou Londres nos

dias atuais; eles estavam felizes em seu lar adotivo e não desejavam sair

para viver em Jerusalém. Assim, a comunidade em Judá era muito

pequena e insignificante, ocupando uma área não maior que um

condado na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos. Uma das relevâncias

do foco de Crônicas sobre Davi e o templo é lembrar a comunidade do

incrível privilégio de ser chamada a adorar Yahweh nessa casa, cuja

construção foi comissionada por Davi. Esse Deus é, de fato, “o Deus dos

céus” (até mesmo o imperador persa o chamou assim, no parágrafo de

encerramento dos livros), mas ele é adorado aqui.

Ao lermos além da história de Davi, descobrimos que Crônicas

praticamente omite a história de Efraim. O texto concorda com 1 e

2Reis que Efraim desligou-se de Yahweh ao separar-se da linhagem de

Davi e da adoração no templo em Jerusalém; assim sendo, o texto adota

a atitude radical de simplesmente ignorar Efraim, pois não pertence à

história do povo de Deus. Esdras e Neemias, uma vez mais, desvendam

algo dos bastidores. Em seus dias, havia um povo vivendo na região de

Efraim, a província persa, coirmã, agora chamada de Samaria, que

deseja se associar a Judá e diz que cultua Yahweh. Quem pode dizer se

eles possuem um genuíno compromisso religioso com Yahweh ou se é

apenas um estratagema para ampliarem o controle político da região?

Esdras e Neemias suspeitam da última opção. Crônicas regozija-se na

ideia do povo de Efraim vindo a ter um compromisso real com Deus em

Jerusalém (e por gentios chegarem ao conhecimento de Yahweh), mas é

necessário que seja um compromisso genuíno. Crônicas não encoraja os

judaítas a se deixarem enganar.

Na relação da própria comunidade com Deus, a história sugere que

ela é desafiada a não cometer o mesmo erro que seus predecessores

antes do exílio. Crônicas enfatiza o ponto ao prometer que uma

comunidade fiel a Deus descobre que, em retorno, Deus é fiel. Primeiro

e Segundo Reis contam muitas histórias que deixam um ponto de


interrogação quanto à sua veracidade. Crônicas busca fornecer

evidências de que elas realmente são verdadeiras.


© Karla Bohmbach
© Karla Bohmbach
© Westminster John Knox Press
1CRÔNICAS

1CRÔNICAS 1:1—2:8
NO PRINCÍPIO
1 2 3 4
Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Jarede, Enoque, Matusalém, Lameque, Noé, Sem,

5 6
Cam e Jafé. Os filhos de Jafé: Gômer, Magogue, Madai, Javã, Tubal, Meseque e Tirás. Os

7
filhos de Gômer: Asquenaz, Rifate e Togarma. Os filhos de Javã: Elisá, Tarsis, os quititas e

os rodanitas.

8 9
Os filhos de Cam: Cuxe, Egito, Pute e Canaã. Os filhos de Cuxe: Sebá, Havilá, Sabtá,

10
Raamá e Sabtecá. Os filhos de Raamá: Sabá e Dedã. Cuxe gerou Ninrode; ele foi o primeiro

11
a ser um guerreiro na terra. Egito gerou os luditas, os anamitas, os leabitas, os naftuítas,

12 13
os patrusitas, os casluítas (dos quais se originaram os filisteus) e os caftoritas. Canaã

14 15
gerou Sidom, seu primogênito, e Hete, os jebuseus, os amorreus, os girgaseus, os heveus,

16
os arqueus, os sineus, os arvadeus, os zemareus e os hamateus.

17
Os filhos de Sem: Elão, Assur, Arfaxade, Lude e Arã, Uz, Hul, Géter e Meseque.

18 19
Arfaxade gerou Salá, e Salá gerou Héber. A Héber nasceram dois filhos: o nome de um

era Divisão [Pelegue] (porque em seus dias a terra foi dividida), enquanto o nome de seu

20 21
irmão era Joctã. Joctã gerou Almodá, Salefe, Hazarmavé, Jerá, Adorão, Uzal, Dicla,

22 23
Ebal, Abimael, Sabá, Ofir, Havilá e Jobabe. Todos esses foram filhos de Joctã.

24 25 26 27
Sem, Arfaxade, Salá, Héber, Divisão, Reú, Serugue, Naor, Terá e Abrão — isto é,

28 34b
Abraão. Os filhos de Abraão: Isaque e Ismael. [...] Os filhos de Isaque: Esaú e Israel [...].

CAPÍTULO 2

1 2
Estes foram os filhos de Israel: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar, Zebulom, Dã, José,

3
Benjamim, Naftali, Gade e Aser. Os filhos de Judá: Er, Onã e Selá; os três lhe foram gerados

por Bate-Suá, a cananeia. Er, o primogênito de Judá, foi desagradável aos olhos de Yahweh, e

4
[Yahweh] o matou. Uma vez que Tamar, sua nora, gerou a ele Perez e Zerá, os filhos de Judá

5 6
foram cinco ao todo. Os filhos de Perez: Hezrom e Hamul. Os filhos de Zerá: Zinri, Etã,

7
Hemã, Calcol e Darda, cinco ao todo. Os filhos de Carmi: Desgraça [Acã], o perturbador de

8
Israel, que transgrediu sobre algo devotado. O filho de Etã: Azarias.

Sinto um peso na consciência pelo reduzido número de pessoas que

menciono nos agradecimentos dos volumes do Antigo Testamento para

todos, pois percebo que outros autores agradecem a toda uma série de
pessoas nos prefácios de seus livros. Não posso me esquecer de incluir,

no último volume, uma abrangente lista de pessoas a quem estou em

grande dívida. Tenho notado algo similar quanto aos filmes. Quando

assisto a um filme antigo, um dos fatos que me intrigam é a brevidade

dos créditos; hoje em dia, os créditos são tão longos que eles ainda

rodam muito tempo depois de o último espectador sair do cinema. De

igual sorte, nas capas de CDs, os artistas, rotineiramente, agradecem a

todos os que conheceram desde os tempos de colégio. Em livros e capas

e encartes de CDs, pelo menos, as listas constituem um fenômeno muito

comovente. Eles reconhecem que, embora o nome de uma só pessoa

apareça na capa, ela vive e trabalha no contexto de uma comunidade.

Não se deve compreender essa pessoa como um indivíduo isolado.

Algo análogo é parte da importância das listas de nomes com as

quais o livro de Crônicas principia-se. Os livros irão contar a história de

Israel, desde Davi até o exílio, com o objetivo de transmitir uma

mensagem ao povo que vive em Judá após o exílio. A exemplo de

Gênesis, 1Crônicas começa exibindo essa história na maior tela

possível. Os vitrais de uma igreja definem a vida de uma congregação na

vida das pessoas de Deus ao longo dos milênios. Eles retratam algumas

pessoas que são citadas nas listas de Crônicas, além de pessoas de

épocas posteriores, como Maria, Jesus, Pedro, Paulo, Lídia, Inácio,

Mônica e Agostinho. A lista traz à mente da congregação o que ela deve

a essas pessoas; reconhece a inspiração delas.

Quando a congregação é formada por um pequeno grupo

enclausurado, em meio a um mundo indiferente ou hostil, as figuras

convidam os membros a elevar a cabeça e se lembrarem do corpo

importante ao qual pertencem. As listas em Crônicas cumprem essa

função em relação à pequena comunidade judaíta sitiada, após o exílio.

Elas, na verdade, apresentam uma visão da sua própria relevância que

evoca a fé; traçam a sua ancestralidade não apenas aos tempos de

colégio, mas ao próprio princípio do mundo. A primeira metade do

capítulo 1 abrange uma lista de nomes que também aparecem em


Gênesis 1—11, para resumir a história da criação até o momento em que

Deus inicia o processo que leva à existência de Israel. Ela abrange

indivíduos, povos e lugares; e a palavra “filho” engloba tanto os filhos

diretos quanto os seus descendentes.

Há inúmeros pontos nos quais alguém que tenta ler toda a Bíblia

pode ficar preso ou, pelo menos, questionar: “O que é isso?” Os nove

capítulos de nomes que abrem 1Crônicas é um desses trechos nos quais

essa pergunta é mais recorrente. Ainda assim, as listas ocupam um sexto

do livro; obviamente, os autores davam grande importância a elas, de

modo que é válido tentar entrar no modo de pensar deles. O que os

judaítas pós-exílio poderiam inferir dessa primeira lista? Eles poderiam

concluir: “Somos parte de uma história que começou há muito tempo.

Não somos insignificantes, mas integrantes de um processo que remonta

à própria criação da humanidade.” Podem até mesmo deduzir: “O

propósito de Deus para todo o mundo está por trás de ainda existirmos.

Deus planeja fazer algo conosco que irá cumprir o propósito original da

criação do mundo. Existimos para o bem do mundo, mesmo que, no

momento, o mundo nos considere como nada.” Eles, provavelmente, se

sentiam oprimidos pelo poder das superpotências da época, que no

período do Segundo Templo eram o Império Medo-Persa e, depois, a

Grécia. Qual é a natureza da soberania de Deus em relação aos impérios

da época? Antes de completar o versículo 5, 1Crônicas menciona a

Média [Madai] e a Grécia [Javã]. Eles fazem parte do desenrolar da

história que ocorre dentro do alcance de Deus.

O capítulo 1 prossegue até Abraão, Isaque e Jacó/Israel, a pré-

história da própria história de Judá. A inclusão desses nomes convida a

comunidade a relembrar a linhagem da promessa da qual eles fazem

parte e são herdeiros. Lembra a intenção de Deus de abençoar o mundo

todo por meio dessa linhagem. Uma vez mais, a maioria dos nomes vem

de Gênesis. As listas seguem para mencionar outros povos que vivem ao

redor dos judaítas, especialmente os edomitas, descendentes de Esaú,

irmão de Israel. Nos dias dos primeiros leitores, os edomitas haviam


assumido o controle sobre grande parte do próprio território de Judá. O

livro de Crônicas lembra os seus leitores de não se deixarem

impressionar por esses seus parentes, nem os menosprezarem. Em certo

sentido, eles também fazem parte da história de Deus. Na verdade, o

desenrolar dessas listas em 1Crônicas seria mais direto se partisse de

Abraão, Isaque, Jacó e seus filhos. O relato torna-se mais complexo pela

inclusão dos descendentes de Hagar, por meio de Ismael, e de Quetura,

e, então, pelo material sobre os descendentes de Esaú e de Seir (que é

intimamente associado com Edom) e os reis edomitas. No entanto, sem

essa inclusão, a abordagem seria simplificada ao extremo, encorajando

os leitores a focar exclusivamente a linhagem que passa por Abraão,

Isaque, Jacó, Judá e Davi. Para os leitores originais de Crônicas, era

importante manter em mente que a história deles estava entretecida

com a história de Ismael, o filho de Abraão, do qual os povos árabes se

originaram, do mesmo modo que o povo judeu remonta a Isaque. Os

povos árabes são parte da história de Deus.

No capítulo 2, 1Crônicas, novamente, estreita o seu foco, a exemplo

de Gênesis. Ao listar primeiramente os nomes dos filhos de Israel, o

texto mantém o foco sobre os descendentes de Judá, o quarto filho.

Gênesis 34 e 35 fornecem algumas dicas sobre o motivo de os três

primeiros filhos perderem a posição privilegiada, embora Gênesis 38

também narre uma história que poderia fornecer um bom motivo para

Judá também perder seus privilégios. O livro de Crônicas é discreto em

suas alusões a essa história, mas lembra os seus leitores (na maioria,

judaítas) que também há esqueletos no armário de Judá. O capítulo,

portanto, mostra que, como de costume, não se pode explicar o que

Deus faz simplesmente com base em mérito, e seria melhor que os

judaítas não pensassem que sim. A história de Acã (Desgraça) é narrada

em Josué 7, e a sentença sobre ele introduz um dos termos-chave de

Crônicas para caracterizar a importância da desobediência de Israel. É

como transgredir ou invadir a propriedade, os direitos, o espaço pessoal

ou o interior da geladeira de alguém de uma forma que vai além do que


lhe é permitido. Havia coisas que Israel deveria devotar a Deus, e Acã

pensou que poderia sair ileso ao separar um pouco para si.


1CRÔNICAS 2:9—4:43
A ORAÇÃO DE JABEZ
9
Os filhos de Hezrom, que lhe nasceram: Jerameel, Rão e Quelubai [...].

CAPÍTULO 3

1
Estes foram os filhos de Davi que lhe nasceram em Hebrom: Amnon, o primogênito, por

2
Ainoã, a jezreelita; Daniel, o segundo, por Abigail, a carmelita; Absalão, o terceiro, o filho

3
de Maaca, filha de Talmai, rei de Gesur; Adonias, o quarto, o filho de Hagite; Sefatias, o

4
quinto, por Abital; Itreão, o sexto, por sua esposa Eglá. Seis lhe nasceram em Hebrom. Ele

5
reinou ali sete anos e seis meses e, em Jerusalém, reinou trinta e três anos. Estes lhe

nasceram em Jerusalém: Simeia, Sobabe, Natã e Salomão, quatro por Bate-Seba, filha de

6 7 8
Amiel; Ibar, Elisua, Elpalete, Nogá, Nefegue, Jafia, Elisama, Eliada, Elifelete; nove.

9
Todos foram filhos de Davi, além dos filhos de esposas secundárias, e Tamar era a irmã deles.

10 11
O filho de Salomão: Roboão; Abias, seu filho; Asa, seu filho; Josafá, seu filho; Jeorão, seu

12
filho. Acazias, seu filho; Joás, seu filho; Amazias, seu filho; Azarias, seu filho, Jotão, seu

13 14
filho; Acaz, seu filho; Ezequias, seu filho; Manassés, seu filho; Amom, seu filho; Josias, seu

15
filho. Os filhos de Josias: Joanã, o primogênito; Jeoaquim, o segundo; Zedequias, o terceiro;

16
Salum, o quarto. Os filhos de Jeoaquim: seu filho Joaquim [Jeconias]; seu filho Zedequias.

17 18
E os filhos do cativo Joaquim: Sealtiel, seu filho, Malquirão, Pedaías, Senazar, Jecamias,

19
Hosama e Nedabias. Os filhos de Pedaías: Zorobabel e Simei. Os filhos de Zorobabel:

Mesulão, Hananias e Selomite, a irmã deles. [...]

CAPÍTULO 4

1 2
Os filhos de Judá: Perez, Hezrom, Carmi, Hur e Sobal. Reaías, filho de Sobal, gerou a

3
Jaate. Jaate gerou a Aumai e Laade. Estes foram as famílias dos zoratitas. O pai de Etã,

4
estes: Jezreel, Isma e Idbás; Hazelelponi, o nome da irmã deles. Penuel foi o pai de Gedor.

Ézer foi o pai de Husá. Estes foram os filhos de Hur, o primogênito de Efrate, o pai de Belém.

5 6
Asur, o pai de Tecoa, teve duas esposas, Helá e Naará. Naará gerou a ele Auzã, Héfer,

7
Temeni e Haastari. Estes foram os filhos de Naará. Os filhos de Helá: Zerete, Zoar e Etnã.

8 9
Coz gerou a Anube e a Zobeba, e as famílias de Aarel, filho de Harum. Jabez foi mais

honrado que os seus irmãos. Sua mãe o tinha chamado Jabez, “porque eu o gerei em

10
sofrimento”. Jabez clamou ao Deus de Israel: “Oh! Abençoa-me e aumenta o meu

território. Que a tua mão esteja comigo e me guarde dos problemas para que eu não sofra.”

Deus realizou o que ele pediu. [...]

24
Os filhos de Simeão: Nemuel, Jamim, Jaribe, Zerá e Saul.

[Os versículos 25-43 do capítulo 4 apresentam a lista de descendentes de Simeão.]


Outro dia, eu conversava com uma mulher, que dirige uma agência de

adoção, sobre os direitos dos filhos adotivos quanto a rastrear os seus

pais biológicos (e, por conseguinte, os direitos dos pais biológicos em

rastrear os filhos que entregaram para adoção). A maioria dos Estados

norte-americanos não reconhece tais direitos, embora alguns tenham

procedimentos pelos quais os pais e seus descendentes podem fazer

contato, caso ambas as partes assim desejarem. Logo após essa conversa,

abordei o mesmo assunto com uma amiga que havia sido adotada, e ela

desabafou sobre a dificuldade de descobrir quem eram seus pais

biológicos. Nem toda pessoa adotada deseja saber isso, embora muitas

sintam que conhecer a identidade dos pais constitui um importante

aspecto do autoconhecimento.

As pessoas e lugares listados em 1Crônicas 2 e conectadas a Judá, na

maioria, não são mencionados em nenhuma outra passagem do Antigo

Testamento; as pessoas citadas em outras passagens não são israelitas

por nascimento. Com efeito, são aquelas adotadas por Judá. Pode-se, às

vezes, ter a impressão de que Israel é, por sua natureza essencial, um

povo fundamentado etnicamente, mas, de tempos em tempos, o Antigo

Testamento deixa claro que essa é uma simplificação excessiva. Por um

lado, é possível perder a membresia na família de Israel por infidelidade

a Yahweh. O israelita pode ser “cortado”, como expressa, com

frequência, a Torá. Por outro, se você pertencer a um outro povo, mas

vier a se identificar com Israel e seu Deus, pode ser aceito por adoção

no seio da família de Israel. A exemplo de crianças adotadas, em

qualquer contexto, você e os demais membros da família original podem

ter consciência, pelo tempo que for, de que você não nasceu dentro da

família, mas isso não altera o fato de você, agora, pertencer a ela, como

se realmente tivesse nascido nela. Israel tinha que equilibrar a

importância de não se deixar contaminar pelo povo que não reconhecia

plenamente Yahweh ou quem Israel era, com a importância de

permanecer aberto aos estrangeiros que genuinamente reconheciam

Yahweh e Israel. O contexto no qual os leitores de Crônicas viviam


tornava esse equilíbrio uma necessidade imperiosa. Seria fácil para

Israel ser engolido pelos povos vizinhos. Por outro lado, Crônicas

lembra que os israelitas não devem se fechar a grupos que reconhecerão

Israel e Yahweh.

Primeiro Crônicas 4, apresenta uma lista de membros-chave de

inúmeros clãs ao longo dos séculos. O texto, novamente, principia-se

com Judá, o clã ao qual pertencia a vasta maioria da comunidade para a

qual Crônicas foi escrito. O termo “judeu” origina-se da palavra para

“judaíta” e não se aplica aos israelitas do período do Primeiro Templo.

Quando Israel, praticamente, fica restrito a Judá é que “judeu” passa a

ser um termo apropriado aos israelitas, pois, dos israelitas que haviam

sido deixados, a maioria era judaíta. Simeão, aqui, segue em Judá

porque ele sempre viveu à sombra de Judá. Sua existência separada era

apenas nominal. Josué 19 (que apresenta a informação sobre Simeão)

observa como, na verdade, Simeão foi absorvido por Judá.

A predominância de judaítas entre os leitores de Crônicas não é o

único motivo para o protagonismo de Judá nesses capítulos. Judá

importa porque Davi era um judaíta; daí a transição do capítulo 2 para

o capítulo 3. Quando 1Crônicas relata a história real de Israel, a partir

do capítulo 10, Davi está onde ela começará. Isso reflete a permanente

importância de Davi, mesmo no período do domínio persa, ou do

Segundo Templo ou pós-exílico, quando o livro de Crônicas foi escrito.

Após listar os filhos de Davi, 1Crônicas prossegue enunciando os reis

que governaram até a queda de Jerusalém. Depois disso, nenhum rei

ocupou o trono de Judá durante quatro séculos. No entanto, a lista de

descendentes davídicos não termina ali, mas continua com os nomes

dos descendentes de Davi que viveram no meio da comunidade do

Segundo Templo, pessoas como Zorobabel. Por descender de Davi, ele

poderia ser rei caso Judá tivesse um rei. A lista lembra aos leitores que a

linhagem de Davi não morreu e reafirma a sua contínua importância.

Por que isso pode ser importante? Deus havia prometido que, no

devido tempo, ele colocaria no trono em Jerusalém um descendente de


Davi, que cumpriria tudo o que um rei deveria ser e que reinaria em

fidelidade sobre o povo. Outra possibilidade seria as pessoas em Judá

simplesmente esperarem que um rei davídico “convencional” pudesse

reinar novamente. Crônicas não indica se compartilha uma dessas

esperanças. Para Crônicas, a importância explícita de Davi reside no

que ele fez no passado. Foi ele quem fez todos os arranjos para a vida de

culto em Jerusalém. As pessoas que podiam remontar a história de sua

família a Davi teriam motivos para se orgulharem dessa ligação.

O nome de Jabez possui as mesmas letras de uma palavra hebraica

para sofrimento, embora as letras apareçam em uma ordem diferente.

Muitos comentários do Antigo Testamento sobre nomes fazem

declarações não sobre a origem deles, mas sobre algo que eles podem

trazer à lembrança. Aparentemente, a mãe de Jabez passou por uma

experiência difícil durante o parto de seu filho, e seu nome podia fazê-la

recordar esse sofrimento, além de, igualmente, lembrá-lo disso

(especialmente quando ele, de tempos em tempos, se mete nos apuros

próprios da juventude: “Você tem sido um sofrimento para mim desde

que nasceu!”). Então, o foco de suas orações é para que Deus mantenha

os problemas longe dele e ele não sofra como a sua mãe. Ele, igualmente,

apresenta a sua petição de modo positivo, pedindo pela bênção de Deus

(o que implica prosperar tendo uma grande família), um bom pedaço de

terra (muitos clãs não foram capazes de ocupar a terra que lhes foi

alocada no mapa) e pedindo que, em relação a isso, Deus estivesse com

ele (e o ajudasse a derrotar os rivais pela terra). Deus atendeu à sua

oração, e seu sucesso fez as pessoas o honrarem. Essa é a espécie de

história que poderia inspirar as pessoas na comunidade após o exílio,

quando enfrentassem dificuldades e sofrimento, a reconhecer que

precisavam ser frutíferas para prosperar como povo e ansiassem ser

capazes de ocupar a terra que deveria ser delas.

A beleza e a desvantagem de histórias como a de Jabez é que elas

oferecem um retrato vívido do que Deus pode fazer e do que ele tem

feito, mas não oferecem nenhum sinal de que fará o mesmo por outras
pessoas. Isso não implica nenhuma promessa de que Deus nos

responderá da mesma forma que respondeu a Jabez, caso oremos como

ele. Mas o relato pode nos inspirar a assumir riscos em nossa oração. Se

pedirmos, podemos obter o que pedimos ou não; a oração não é um

caixa automático de banco. Todavia, se não pedirmos, não podemos

reclamar por não receber.


1CRÔNICAS 5:1—6:81
OUTRA INTERRUPÇÃO BEM-VINDA
1
Os filhos de Rúben, o primogênito de Israel (porque ele foi o primeiro a nascer, mas,

quando ele desonrou o leito conjugal de seu pai, a sua primogenitura foi dada aos filhos de

2
José, filho de Israel, e ele não foi alistado em relação ao direito de primogenitura, porque

Judá era o mais forte entre os seus irmãos e um governante veio dele, mas o direito de

3
primogenitura pertencia a José) — os filhos de Rúben, o primogênito de Israel: Enoque,

4
Palu, Hezrom e Carmi. Os filhos de Joel: Semaías, seu filho, Gogue, seu filho, Simei, seu

5 6
filho, Mica, seu filho; Reaías, seu filho, Baal, seu filho, e Beera, seu filho, a quem Tiglate-

7
Pileser, o rei da Assíria, exilou; ele era um líder dos rubenitas. Seus parentes, por suas

8
famílias, na lista segundo as histórias de suas famílias: Jeiel, o cabeça, e Zacarias; Belá, filho

9
de Azaz, filho de Sema e filho de Joel. Eles viviam em Aroer, até Nebo e Baal-Meom, e

viviam a leste, até chegar ao deserto, deste lado do rio Eufrates, porque o seu gado tinha se

10
tornado grande em Gileade. Nos dias de Saul, eles batalharam com os hagarenos, que

caíram por suas mãos. Assim, eles viviam em suas tendas por toda a face da terra a leste de

Gileade.

11 12
Os filhos de Gade viviam em frente a eles, em Basã, até Salcá: Joel, o cabeça, Safã, o

18
segundo, e Janai e Safate, em Basã [...]. Os filhos de Rúben, os gaditas e a metade do clã de

Manassés: exército carregando escudo e espada, manejando o arco e treinados em guerra,

19
quarenta e quatro mil e setecentos e sessenta guerreiros. Eles batalharam contra os

20
hagarenos, Jetur, Nafis e Nodabe e encontraram socorro contra eles. Os hagarenos e todo o

povo que estava com eles foram entregues nas mãos deles, porque clamaram a Deus na

21
batalha, e ele se deixou ser invocado por eles porque confiaram nele. Eles capturaram o

gado, cinquenta mil camelos, duzentas e cinquenta mil ovelhas, dois mil jumentos e cem mil

22
pessoas, porque muitos caíram mortos, pois a batalha era de Deus. Viveram no lugar deles

até o exílio. [...]

CAPÍTULO 6

16 31
Os filhos de Levi: Gérson, Coate e Merari. [...] Estes a quem Davi designou sobre o

32
canto na casa de Yahweh, desde o tempo em que o baú foi assentado serviram na frente da

habitação, a Tenda do Encontro, com cânticos, até Salomão construir a casa de Yahweh em

48
Jerusalém. Atendiam ao seu serviço de acordo com a instrução dada a eles. [...] Aos seus

49
irmãos levitas foi dado todo o serviço na habitação, a casa de Deus, enquanto Arão e seus

descendentes ofereciam sacrifício sobre o altar de oferta queimada e o altar do incenso, em

conexão com todo o trabalho no lugar santíssimo e em fazer expiação por Israel, de acordo

com tudo o que Moisés, servo de Deus, ordenou.

[Os versículos 50-81, do capítulo 6, listam as famílias sacerdotais e as cidades nas quais elas

deviam viver.]
Na cerimônia de formatura anual de nosso seminário, graduamos

centenas de pessoas, e a procissão pelo palco pode se tornar um pouco

tediosa. Por quatro ou cinco vezes, a leitura dos nomes é interrompida,

e um dos graduandos vai ao microfone para nos contar o que ele ou ela

irá fazer com aquele diploma — de que forma ele ou ela espera servir a

Deus. Tais momentos constituem os pontos máximos da cerimônia. Por

alguns minutos, meus colegas deixam de lado os seus celulares, e os

alunos param a sua comemoração para ouvir a história de cada pessoa.

A oração de Jabez é uma de uma série de vinhetas em Crônicas

equivalentes às listas de “graduandos”, e a história sobre os clãs

situados a leste do Jordão, Rúben, Gade e Manassés oriental, é outra. A

localização desses clãs os leva a recorrente tensão com as várias tribos

daquele lado do Jordão. A presente história relata uma ocasião na qual

eles estavam em grande desvantagem numérica. Aqui, a exemplo de

outras passagens em Crônicas, os números não são históricos; existem

diversas maneiras de explicar por que isso ocorre. Aqui, a relevância das

estatísticas reside na disparidade entre os números dos israelitas e de

seus inimigos. Há pouco menos de quarenta e cinco mil israelitas, mas

eles capturam um número duas vezes maior de adversários, e isso sem

contar as muitas baixas entre seus inimigos. Trata-se, portanto, de uma

vitória extraordinária.

O que pode explicar isso? Ela não pode ser simplesmente atribuída

à esperteza e bravura dos israelitas, embora, em outras passagens, o

Antigo Testamento faça menção a essas características do povo

israelita. Eles “clamaram” a Deus, relata Crônicas. É a expressão, com

frequência, usada por israelitas e outros quando estão oprimidos e não

há ninguém mais a quem possam recorrer. Eles “confiaram” em Deus (a

comunidade que ouve a história em Crônicas está na mesma condição

de necessidade). E, como resultado, o exército “encontra socorro”. Por


“socorro” (especialmente quando a palavra é aplicada a Deus), o Antigo

Testamento, de modo característico, refere-se não meramente a algum

suporte extra que reforce o que você pode fazer por si mesmo, mas a

uma intervenção decisiva que alcance algo que você mesmo não poderia

esperar alcançar.

Isso, portanto, conecta-se com a ideia de ser liberto e de pessoas

sendo “entregues” nas mãos dos israelitas, o que é reforçado com a ideia

de que “a batalha era de Deus”. Nessa ocasião, a história não quer dizer

que a batalha foi ideia de Deus (embora, em outras passagens, a

narrativa não contrarie essa noção). Na realidade, isso implica o oposto.

Rúben, Gade e Manassés envolveram-se em uma batalha e descobriram

que deram um passo maior que a perna, levando-os a clamar a Deus, e

este “se deixou ser invocado”. Talvez não deveriam ter se lançado a essa

tola aventura ou deveriam ter orado antes. Seja como for, Deus não

respondeu à súplica deles dando de ombros e dizendo: “Vocês mesmos

se meteram nessa enrascada; agora, terão que sair sozinhos dela.” Deus é

mais como um pai que vem para resgatar os seus filhos, mesmo quando

eles não deveriam fazer o que os levou ao problema. Deus respondeu ao

clamor dos israelitas, e eles venceram, contra todas as probabilidades,

porque Deus se envolveu.

As referências à atividade divina, aqui, contrastam com o capítulo

como um todo, que faz raras menções a Deus. Sem dúvida, os autores de

1Crônicas 1—9 concluíram que Deus estava envolvido em toda a

história subjacente a essas listas, mas eles também sabiam que eventos e

inter-relações, geralmente, se desenrolam de uma forma muito natural.

O propósito de Deus é, majoritariamente, desenvolvido por trás das

cortinas, mediante processos comuns de causa e efeito, por meio da ação

e da inação humanas, do acaso e da coincidência. É possível que tenha

sido assim nessa batalha; todavia, houve algo extraordinário no tocante

ao resultado. Essa vinheta, igualmente, não implica que qualquer um

pode clamar, a exemplo daqueles clãs, e saber que Deus responderá, mas
esse relato pode nos inspirar a clamar e ver se Deus responde, pois, às

vezes, isso acontece.

Crônicas não recua na consciência de que há doze clãs israelitas e,

assim, o capítulo 5 retorna à abordagem dos doze clãs. Primeiro, ele lida

com Rúben, Gade e a metade do clã de Manassés, os grupos que se

assentaram a leste do Jordão. Antes de chegar aos clãs “regulares”,

estabelecidos a oeste do Jordão, o capítulo 6 lida com Levi, o clã

responsável pelo culto e que, portanto, recebe tratamento proeminente

e amplo. A exemplo dos reis, os sacerdotes seniores são listados até o

exílio, o que ajuda a estabelecer a continuidade do culto de Jerusalém

ao longo dos séculos. Além de listar os sacerdotes, o capítulo enumera

um outro grupo de levitas igualmente importante, os músicos, porque a

música é relevante para a adoração. A designação ao ministério de

louvor com base na membresia familiar da pessoa contrasta com a

presunção comum moderna de que esse ministério deve ser exercido

com base nos dons da pessoa. Com o nosso sistema, a música pode ser

exercida para o benefício dos músicos; há menos perigo de isso ocorrer

no sistema de Israel. O sistema israelita é possível porque o louvor do

Antigo Testamento repousava no ritmo mais do que na melodia; os

instrumentos citados pelo Antigo Testamento são, na maioria, de

percussão. Havia, portanto, menos perigo de a performance dos músicos

se tornar um fim em si mesma (embora, agora que penso nisso, tenha

ouvido um baterista tocar toda uma composição solo, no sábado

passado, em um clube de jazz). Existe mais chance de a performance se

tornar um auxílio para a participação da congregação do que um

substituto dela. Embora não haja dúvidas de que os levitas eram

ritmicamente desafiados, isso seria irrelevante caso não tivessem um

ouvido musical.
1CRÔNICAS 7:1—9:44
ATÉ OS NOSSOS DIAS
1 6
Os filhos de Issacar: Tolá, Puá, Jasube e Sinrom, quatro. [...] Os filhos de Benjamim: Belá,

13
Bequer e Jediael, três. [...] Os filhos de Naftali: Jaziel, Guni, Jezer e Salum, os descendentes

14
de Bila. Os filhos de Manassés: Asriel, a quem sua esposa secundária arameia deu à luz; ela

20
deu à luz Maquir, pai de Gileade. [...] Os filhos de Efraim: Sutela, Berede, seu filho, Taate,

21
seu filho, Eleada, seu filho, Taate, seu filho, Zabade, seu filho, Sutela, seu filho, e Ézer e

Eleade. Os homens de Gate, que nasceram no país, os mataram, porque [Ézer e Eleade]

22
desceram para tomar o gado deles. Efraim, o pai deles, pranteou por muitos dias, e seus

23
parentes vieram para confortá-lo. Ele teve sexo com sua esposa, e ela ficou grávida e teve

30
um filho. Ele o chamou Berias porque houve problemas em sua casa. [...] Os filhos de Aser:

Imna, Isvá, Isvi e Berias; a irmã deles era Sera. [...]

CAPÍTULO 8

1 2
Benjamim gerou Belá, seu primogênito, Asbel, o segundo, Aará, o terceiro, Noá, o quarto, e

29
Rafa, o quinto. [...] O pai de Gibeom viveu em Gibeom. O nome de sua esposa era Maaca.

30 31
Seu filho primogênito foi Abdom; então, Zur, Quis, Baal, Nadabe, Gedor, Aiô e Zequer.

32
Miclote gerou Simeia. Eles também viviam defronte aos seus parentes, em Jerusalém.

33
Ner gerou Quis, Quis gerou Saul, e Saul gerou Jônatas, Malquisua, Abinadabe e Esbaal.

34
O filho de Jônatas foi Meribe-Baal. Meribe-Baal gerou Mica. [...]

CAPÍTULO 9

1
Todo o Israel foi alistado: ali, eles foram escritos nos anais dos reis de Israel. Mas Judá foi

levado ao exílio para a Babilônia por causa de sua transgressão.

2
As primeiras pessoas que foram assentadas em suas propriedades, em suas cidades, foram

3
israelitas, sacerdotes, levitas e assistentes. Alguns judaítas, benjamitas, efraimitas e

manassitas se estabeleceram em Jerusalém.

[Nos versículos 4-44, mais listas são apresentadas, incluindo as relativas aos levitas, aos

guardas das portas, aos cantores e a outros assistentes do templo, além de uma versão adicional

da linhagem de Saul.]

Certo dia de abril, sentei-me no metrô de Londres, e passei a ler a carta

de um ministro que havia sido um mentor para mim e, igualmente,

atuado como pastor na igreja de minha namorada. Ela ou eu tínhamos

escrito a ele para lhe contar que ela acabara de ser diagnosticada com
esclerose múltipla. Em sua resposta, ele nos contou que, na manhã em

que recebeu a notícia, ocorreu de ele estar lendo a história, em João 2,

sobre a transformação de água em vinho, por Jesus, que chega a um

clímax com o comentário sobre o noivo ter deixado o melhor vinho por

último. Deus, certamente, faz isso por nós, escreveu o ministro em sua

carta. Durante quarenta e três anos, ponderei sobre como isso poderia

ser verdade e tentei viver dentro da esperança que isso representava,

enquanto, com o passar do tempo, minha esposa, Ann, crescentemente

perdia a sua mobilidade, memória e fala, até falecer no ano passado.

(Talvez estar livre para descansar até o dia da ressurreição seja o bom

vinho para ela; e, mais recentemente, conheci alguém e a pedi em

casamento; agora, estou propenso a pensar que isso seja o bom vinho

tardio para mim.)

Minha experiência foi meu equivalente individual à experiência do

povo de Deus, que está implícita nessas listas em 1Crônicas. As pessoas

às quais o livro de Crônicas foi escrito não podem ver o cumprimento

das promessas de Deus em sua experiência, e demanda um pouco de

bravura listar os descendentes de Judá, em particular de Davi, e os

descendentes de Levi, nos capítulos 3—6, mas, pelo menos, a

comunidade do Segundo Templo é uma comunidade judaíta com

descendentes de Davi em seu meio (mesmo que não estejam no trono) e

com descendentes de Levi ministrando em Jerusalém. É preciso muita

coragem para listar os descendentes de Simeão, Rúben, Gade, Issacar,

Benjamim, Naftali, Efraim e Aser. O capítulo 9 nos conta que havia

alguns benjamitas, efraimitas e manassitas entre as pessoas que se

estabeleceram em Jerusalém após o exílio, mas não eram muitos, e

1Crônicas não faz nenhuma afirmação sobre a presença de membros de

outros clãs.

O início do capítulo 9 nos coloca na trilha de outra relevância

dessas listas de nomes. Os assírios haviam colocado um ponto final na

vida nacional de Efraim, em 722 a.C., e os babilônios tinham feito o

mesmo com Judá em 587 a.C. A comunidade do Segundo Templo queria


ver-se em continuidade com aquelas comunidades anteriores que,

idealmente, constituíram a nação de Israel. Os israelitas pós-exílicos

precisavam fazer isso pelo bem de sua própria autocompreensão.

Igualmente, necessitavam estabelecer, para sua própria satisfação, que

eles eram a continuação legítima e apropriada daquela nação, não

qualquer outro povo. Talvez também desejassem ou precisassem afirmar

esse fato por motivos políticos quanto ao relacionamento deles com o

povo na província vizinha, chamada Samaria, que também se viam

como herdeiros da comunidade do Primeiro Templo. A grande maioria

dos nomes, presentes nessas listas, é de pessoas que viveram muito

tempo antes do exílio; a comunidade do Segundo Templo pode

reivindicar ser os seus descendentes e, portanto, reafirmarem-se e

declararem diante de outros povos que ela é uma continuidade da

comunidade anterior.

Ao se ler uma lista como a dos descendentes de Levi ou de Davi, é

preciso começar do fim. A lista estabelece a importância da pessoa que

vem por último. Na lista dos descendentes davídicos, que vem antes, a

comunidade está familiarizada com pessoas como Zorobabel (sabemos

disso porque ele é mencionado no livro de Esdras). Podemos concluir

que a comunidade também estava familiarizada com os contemporâneos

de Zorobabel e com os seus descendentes, tais como Mesulão e

Hananias. Inúmeras pessoas na comunidade estariam, de fato,

aguardando o dia (talvez em breve!) no qual um filho de Davi reinaria

sobre Jerusalém novamente. Para aquela comunidade, era importante

saber quem poderia ocupar o trono com legitimidade teológica e, da

mesma forma, era relevante para esse povo estabelecer que eles é que

tinham essa posição.

Igualmente, a comunidade conhece sacerdotes como Jesua [Josué],

contemporâneo de Zorobabel; os dois são citados juntos no relato sobre

o estabelecimento da comunidade, em Esdras 1—6, e Zacarias 3 sugere

que havia pessoas que achavam que Jesua (por ser contaminado pelo

exílio) não deveria ser indicado sumo sacerdote na comunidade do


Segundo Templo. Contudo, Jesua é filho de Jozadaque ou Jeozadaque

(duas versões do mesmo nome); e Jeozadaque é o sacerdote cujo nome

aparece ao fim da lista de sacerdotes que vêm de Levi, passando por

Arão e chegando a nomes famosos como os de Zadoque e Hilquias, até o

exílio. Com base nisso, pelo menos, Jesua pode ser um sacerdote; na

realidade, ele representa uma ponte entre as comunidades do Primeiro

Templo e do Segundo Templo.

As listas em Crônicas, às vezes, combinam o que alguém chamaria

de implicações horizontais com as verticais. Um exemplo em larga

escala é a lista dos filhos de Jacó, que são os ancestrais dos doze clãs de

Israel. A questão horizontal é como esses clãs se relacionam entre si.

Judá surge primeiro nas listas por, pelos menos, dois motivos

relacionados. Davi pertence a Judá, fato que, em certo sentido, torna

Judá o clã principal. Todavia, Judá não era o mais velho dos irmãos, de

modo que a lista incorpora uma nota explicando por que Rúben,

efetivamente, perdeu a sua posição como primogênito. Igualmente,

observamos que Simeão e Levi eram mais velhos que Judá e que

Gênesis 34 apresenta uma resposta à questão sobre o motivo de eles

perderem essa posição de mais velhos, embora o livro de Crônicas não

faça menção a isso. Na realidade, apenas fala de passagem sobre Simeão

(4:24-43), pois é tudo o que precisa fazer, já que todos sabem que, na

prática, Simeão foi absorvido por Judá muito tempo atrás. E, no

capítulo 9, o texto reconhece a significativa posição de Levi como o clã

responsável por cuidar do templo e de seu culto (veja também o

capítulo 6). O livro, então, pode lidar com os demais clãs e tratá-los

como subordinados a Judá (veja 5:1-26; 7:1—8:40; Dã e Zebulom não

aparecem).

Dentre os relatos de Levi, há outro elemento horizontal, pois as suas

listas explicam a inter-relação das subunidades levitas e, portanto, as

suas respectivas responsabilidades. Ao lado dos músicos estão os

guardas das portas. Um grupo assim é tão importante quanto um corpo

de músicos, pois ele é vital para que nada inapropriado adentre o


santuário. A Torá explicita os motivos: os guardas das portas auxiliam

os adoradores a confirmar se a oferta que eles estão trazendo ao

santuário é apropriada (por exemplo, se pertence à categoria correta, se

está em condições adequadas, se está de acordo com a oferta que a

pessoa precisa apresentar). Eles também ajudarão as pessoas a

confirmar se elas mesmas estão em condições de acessar o interior do

santuário (por exemplo, certificando-se de que elas não estão em

alguma condição tabu e de que não precisam passar antes por um ritual

de purificação).
1CRÔNICAS 10:1-14
O FIM DE SAUL
1
Ora, os filisteus batalharam contra Israel. Os homens de Israel fugiram diante dos filisteus,

2
mas caíram no monte Gilboa, e os filisteus perseguiram Saul e seus filhos. Os filisteus

3
mataram Jônatas, Abinadabe e Malquisua, filhos de Saul. A batalha foi pesada contra Saul,

4
e os arqueiros o encontraram com uma flecha. Quando ele foi ferido pelos arqueiros, Saul

disse ao seu escudeiro: “Desembainhe sua espada e me atravesse com ela, para que esses

homens incircuncisos não venham e me atravessem.” Mas o seu escudeiro não conseguiu,

5
porque sentiu uma grande reverência. Então, Saul tomou a espada e caiu sobre ela. Quando

6
seu escudeiro viu que Saul estava morto, ele também caiu sobre a espada e morreu. Assim,

7
Saul morreu, e seus três filhos e toda a sua casa morreram, todos juntos. Quando os homens

de Israel no vale [do Jordão] viram que o povo tinha fugido e Saul e seus filhos estavam

mortos, eles abandonaram as suas cidades e fugiram, e os filisteus vieram e viveram nelas.

8
No dia seguinte, os filisteus foram despojar os mortos. Eles encontraram Saul e seus filhos

9
caídos no monte Gilboa, o despojaram, pegaram a sua cabeça e a sua armadura e as

enviaram por toda a terra dos filisteus para proclamar as boas-novas aos seus ídolos e ao seu

10
povo. Eles colocaram a sua armadura na casa do deus deles e fixaram o seu crânio na casa

11
de Dagom. Quando toda a Jabes-Gileade ouviu o que os filisteus tinham feito a Saul,

12
eles partiram, todo homem apto, e pegaram os corpos de Saul e de seus filhos e os levaram

a Jabes. Eles enterraram os seus ossos debaixo do terebinto em Jabes e jejuaram por sete dias.

13
Saul morreu por causa da transgressão que tinha cometido contra Yahweh com respeito à

palavra de Yahweh, que ele não guardou, e também ao contatar um espírito para fazer

14
consulta em vez de consultar Yahweh. Por isso, ele o entregou à morte e entregou o

reinado a Davi, filho de Jessé.

De tempos em tempos, nos meses seguintes à morte de minha esposa, no

ano passado, eu me deitava na cama sentindo um pouco de horror por

havê-la cremado. Há muito havíamos concordado com isso, e o mesmo

fora instruído aos nossos filhos com relação a mim, para que as minhas

cinzas fossem reunidas às dela, em um lugar da Inglaterra que tinha um

grande significado para nós, mas, no silêncio das minhas noites de

insônia, ter feito isso me parecia algo terrível. Eu lembrava a mim

mesmo que a cremação apenas acelera o processo por meio do qual o

corpo se degenera e se torna um com a terra ao redor dele; mas, ainda


assim, me sentia desconfortável pelo ato. Afinal, nosso corpo, na

realidade, somos nós. Ele não é apenas a carcaça descartável da pessoa

real. Quando fomos feitos à imagem de Deus, toda a pessoa foi criada

para representar Deus. E, no dia da ressurreição, será toda a pessoa que

receberá de Deus uma nova espécie de vida transfigurada.

Assim, a desfiguração do corpo de Saul era a derradeira punição que

os filisteus poderiam impor a ele. Ao contrário, dar aos seus restos

mortais um sepultamento decente era o último favor que o povo de

Jabes-Gileade lhe poderia fazer em retorno ao grande favor que Saul

lhes fizera, no início de seu reinado. O relato da ação deles é um começo

um pouco estranho para a presente narrativa em Crônicas, uma vez que

principia-se no meio dos fatos, ou melhor, no fim deles (para Saul).

Grande parte do material em Crônicas é extraído de Samuel-Reis, do

mesmo modo que grande parte de Mateus e Lucas é baseada em

Marcos. Todavia, nos dias iniciais do movimento cristão, não sabemos

até que ponto podemos imaginar as diferentes congregações de cristãos

tendo uma cópia de Marcos, ou mesmo de Mateus ou Lucas. Em

contraste, seria viável esperar que a comunidade em Jerusalém, para

quem o livro de Crônicas foi escrito, conhecesse a história contada em

Samuel-Reis. Desse modo, é possível que os autores tenham levado isso

em conta e almejaram contar uma nova versão dela, para um novo dia e

um contexto diferente (como os autores de Mateus e Lucas), mas,

provavelmente, assumindo que as pessoas ainda se lembrassem da

versão original.

Naquela versão original, o conflito entre filisteus e israelitas

constituía um elemento característico do relato sobre o reinado de Saul,

visto que os dois povos lutavam para tomar o controle do território de

seus habitantes originais, os cananeus. Essa batalha ocorre no rico vale

que divide a região entre oeste e leste, separando as montanhas de

Efraim e de Judá (a moderna Cisjordânia) das montanhas da Galileia.

Em geral, os israelitas tinham o controle das áreas montanhosas,

enquanto os filisteus dominavam a planície, ali e na região costeira. A


batalha acontece onde a planície e as montanhas se encontram. A

derrota e consequente morte de Saul ameaça colocar os filisteus no

controle também das montanhas, além do domínio que já exercem na

planície, portanto de todo aquele território.

A versão de 1Samuel quanto a essa história concentra-se nos erros

cometidos por Saul: não erros de cunho militar, mas morais e religiosos.

Primeiro Crônicas resume os erros em termos de ele ter cometido

transgressão por falhar em guardar a palavra de Yahweh; ela começou

com sua oferta de sacrifício, quando deveria esperar por Samuel, ainda

que o profeta não tenha vindo quando disse que viria (1Samuel 13).

Seus erros de julgamento chegaram a um extremo quando o rei buscou

orientação de uma médium (1Samuel 28), embora, naquela ocasião

(pelo menos), fosse injusto criticá-lo por não consultar a Deus; foi o

silêncio de Deus que o levou àquela ação. O relato de seu sepultamento

faz os seus leitores se lembrarem de dias mais felizes de seu reinado —

na verdade, seu único dia irrestritamente feliz — quando fez ao povo de

Jabes-Gileade um favor jamais esquecido por eles (1Samuel 11).

Portanto, eles desejam que Saul descanse em paz.

Era fácil ver por que as listas em 1Crônicas 1—9 davam

proeminência a Judá: a personificação de “Israel” após o exílio é,

simplesmente, “Judá”, e Davi é oriundo desse clã. Era menos óbvio por

que Benjamim deveria ter a proeminência que tem nos capítulos 7 e 8.

Um dos motivos pode ser o fato de Benjamim ser um adjunto de Judá,

como Simeão. Benjamim era um pequeno clã, com uma pequena parcela

da terra, imediatamente ao norte de Jerusalém, e, no período do

Segundo Templo, a região fazia parte da província persa de Judá.

Somando-se a isso, contudo, embora Davi tenha vindo de Judá, Saul era

oriundo de Benjamim; e, agora, ao passar a contar a história de Israel, o

livro de Crônicas começa com Saul.

Crônicas poderia ter iniciado a sua narrativa principal com o

capítulo 11; a impressão de começar o relato no meio da história seria

menor. A sentença derradeira do capítulo 10 explica o motivo de sua


inclusão. Além disso, o parágrafo de encerramento como um todo

adverte os leitores de não esquecerem a lição da história de Saul. Eles

são o povo de Davi, mas não podem considerar essa ligação como

assegurada, nem mesmo os descendentes de Davi naqueles dias. Deus

não irá rejeitar definitivamente a linhagem davídica ou o seu povo, mas

a transgressão ainda pode ter consequências terríveis, como o livro de

Crônicas continuará a mostrar. Talvez também haja uma pista de que o

povo em Benjamim ainda se lembrasse de Saul como o representante

deles e questionasse se o colapso da monarquia davídica poderia

significar uma nova chance para a linhagem de Saul. Crônicas implica

que a resposta é não.


1CRÔNICAS 11:1-47
AQUELES ERAM OS DIAS
1
Todo o Israel se reuniu a Davi em Hebrom, dizendo: “Ora, somos a tua carne e o teu sangue.

2
Algum tempo antes de agora, mesmo quando Saul era rei, tu estavas liderando Israel e

trazendo Israel para casa. Yahweh, teu Deus, te disse: ‘Você é aquele que pastoreará Israel, o

3
meu povo. Você será o governante sobre Israel, o meu povo.’” Assim, todos os anciãos de

Israel foram ao rei em Hebrom, e Davi selou uma aliança com eles em Hebrom, diante de

Yahweh. Eles ungiram Davi rei sobre Israel, de acordo com a palavra de Yahweh por meio de

4
Samuel. Então, Davi e todo o Israel foram a Jerusalém — isto é, Jebus; os jebuseus estavam

5
lá como habitantes da terra. Os habitantes de Jebus disseram a Davi: “Você não entrará

6
aqui”, mas Davi capturou a fortaleza de Sião — isto é, a cidade de Davi. Davi disse:

“Qualquer um que ferir os jebuseus primeiro será chefe e comandante.” Joabe, filho de

7
Zeruia, subiu primeiro e se tornou chefe. Davi viveu na fortaleza; portanto, ela foi chamada

8
de “cidade de Davi”. Ele construiu toda a cidade ao redor, desde o Milo, em toda a volta,

9
enquanto Joabe trazia vida ao restante da cidade. Davi continuou a crescer; Yahweh dos

Exércitos estava com ele.

10
Estes foram os chefes dos guerreiros de Davi, as pessoas que confirmaram a sua força com

ele, em seu reino, junto com todo o Israel, ao torná-lo rei, de acordo com a palavra de Yahweh

11
com relação a Israel. Esta é a lista dos guerreiros de Davi. Jasobeão, filho de Hacmoni, era

o chefe dos oficiais; foi ele que empunhou a sua espada contra trezentos; ele os matou de uma

12 13
só vez. Depois dele, Eleazar, filho de Dodô, o aoíta; ele era um dos três guerreiros e

estava com Davi em Pas-Damim, quando os filisteus se reuniram ali para a batalha. Era um

14
lote de terra cheio de cevada. A companhia tinha fugido diante dos filisteus, mas eles

mantiveram uma posição no meio do lote e a sustentaram, matando os filisteus. Yahweh lhes

15
deu uma grande libertação. Três dos trinta chefes desceram a Davi no penhasco, na

16
caverna de Adulão. As forças filisteias estavam acampadas no vale de Refaim. Davi estava,

17
então, na fortaleza; uma guarnição filisteia estava, então, em Belém. Davi teve um desejo.

Ele disse: “Se apenas alguém pudesse me dar de beber da cisterna de Belém, junto ao

18
portão!” Então, os três atravessaram o acampamento dos filisteus, retiraram água da

cisterna de Belém, que ficava junto ao portão, a carregaram e a levaram até Davi. Davi não a

19
bebeu. Ele a derramou diante de Yahweh e disse: “Deus me livre de fazer isso. Posso eu

beber o sangue desses homens à custa da vida deles?” — porque eles a tinham trazido à custa

22
da própria vida, ele não a bebeu. Isso foi o que esses três guerreiros fizeram. [...] Benaia,

filho de Joiada, era um soldado capaz, poderoso em feitos, de Cabzeel. Ele matou dois líderes

moabitas. Ele desceu e matou um leão, no meio de uma cisterna, em um dia de neve.

23
Matou um homem egípcio, um homem enorme, com dois metros e treze centímetros de

altura. Em sua mão, o egípcio tinha uma lança como a lançadeira de um tecelão. [Benaia]

desceu a ele com um cajado, arrancou a lança da mão do egípcio e o matou com sua própria

lança.
[Os versículos 24-47 listam outros guerreiros.]

Na semana passada, a seção de viagens do New York Times estampava

uma grande foto do “salão de jantar gótico com quase o comprimento

de um campo de futebol”, da minha faculdade de graduação. Então,

retransmiti a informação para alguns amigos com uma nota sobre

aquele ser o lugar no qual eu costumava tomar o meu desjejum, almoçar

e jantar. Ah, aqueles eram os dias. Hoje, como cereal em minha

escrivaninha, enquanto escrevo a série Antigo Testamento para todos, e

almoço um sanduíche na cozinha (mas janto decentemente). Por ironia,

aquele salão gótico é somente uma imitação do estilo gótico, pois tem

por volta de um século, se tanto, e foi construído com a convicção de

que “aqueles eram os dias”, há quase um milênio, a era das grandes

catedrais na Europa. Em um sentido mais geral, os anos durante os

quais fui apenas um aluno “eram os dias”, quando as faculdades não

tinham que admitir turistas americanos durante o verão a fim de fechar

as finanças no azul.

Para Crônicas, a expressão “aqueles eram os dias” denotaria o

período de Davi. Agora, não há mais Davi, como também não há

Jasobeão, Eleazar ou Benaia, e, ao recontar a narrativa de Samuel-Reis,

o livro de Crônicas pode ter sido tentado a omitir essas histórias, do

mesmo modo que omitiu muitas outras. Qual seria o efeito delas sobre

os leitores? Quando Hebreus 11 apresenta as histórias de grandes

heróis do Antigo Testamento, ele o faz na presunção de que elas podem

servir de inspiração. Embora as coisas feitas por Abraão, Sara, Moisés e

Miriã não sejam o que os leitores de Hebreus terão de fazer, esses

leitores podem ser inspirados pela atitude de confiança e fidelidade

demonstrada por esses heróis ao enfrentar os desafios impostos a eles

próprios e, assim, encorajados a encarar seus diferentes desafios com a

mesma confiança e fidelidade. Desse modo, é possível que Jasobeão,

Eleazar e Benaia possam, similarmente, inspirar os leitores de Crônicas.


Podem também encorajá-los a não concluírem que os grandes dias estão

terminados, incentivando-os a manterem expectativas.

Algo similar é verdadeiro quanto ao modo pelo qual Crônicas

descreve a ascensão de Davi ao trono. É fácil concluir que, desde o

começo, era inevitável que Davi ascendesse ao trono sobre Israel, só

que não. Normalmente, os reis são sucedidos por alguém de sua própria

família, e muitos teriam presumido que alguém da família de Saul

deveria sucedê-lo, não algum emergente sulista, cujo comportamento

torna-se suspeito ao viver entre os filisteus e se identificar com eles por

mais tempo que as pessoas possam se lembrar. Segundo Samuel

descreve como foram os clãs sulistas que, primeiramente, reconheceram

Davi (em Hebrom, a cidade-chave ao sul); somente mais tarde é que os

clãs do norte o reconhecem como rei. Crônicas encurta esse processo

para enfatizar uma implicação para os seus dias. Quando o livro de

Crônicas foi escrito, havia pessoas do sul (de Judá) que não estavam

interessadas em se associar a pessoas do norte. A exemplo das listas nos

capítulos 1—9, a ênfase sobre todo o Israel lembra aos leitores que o

povo de Deus abrange os doze clãs, não apenas três. Assim, devem dar

as boas-vindas aos demais clãs quando estes desejarem se unir a eles.

Igualmente, é notável que as listas nos versículos 26-47 incluam um

amonita, um hitita e um moabita. Uma vez mais, o livro de Crônicas

adverte os seus leitores de que eles não devem ser exclusivistas étnicos.

Em contrapartida, todavia, os clãs do norte precisam se dispor a

seguir o exemplo de seus antepassados no reconhecimento a Davi e a

Jerusalém. Em algum ponto, no período do Segundo Templo, o povo do

norte construiu um templo no cume do monte Gerizim, acima de

Siquém. Não constituía necessariamente um erro construir outros

lugares de adoração; Jerusalém ficava distante da maioria do povo. No

entanto, não se pode permitir que o templo de Gerizim rivalize com o

templo de Jerusalém. Afirmar “somos a tua carne e o teu sangue” (lit.,

“somos tua carne e teus ossos”) é o mesmo que expressar “queremos ser

uma família com você”. O fato de Jerusalém se tornar uma cidade


judaíta pareceria história antiga agora (já era história antiga na época),

mas, no início, era uma das cidades que os israelitas não conseguiram

dominar e ainda estava nas mãos dos jebuseus nos dias de Davi. Os

jebuseus tinham um bom motivo para considerar a cidade

inexpugnável. A cidade está localizada na parte final de um pequeno

cume em forma de polegar, com encostas íngremes em praticamente

toda a sua volta. No entanto, Joabe descobriu uma forma de capturar a

cidade em nome de Davi (2Samuel 5 fornece um relato de como isso foi

possível, embora a interpretação da história seja um pouco complexa).

Sua posição segura, então, tornou-se um recurso para Israel, mas, em

adição, permitia ter uma capital em território neutro que, talvez, todos

os clãs reconhecessem.

A referência aos guerreiros de Davi é o início de uma narrativa

sobre os diferentes aspectos da história subjacente ao reinado de Davi

sobre todo o Israel (o capítulo 13 irá retomar a linha da história

principal). Alguns elementos relacionam-se com o tempo em que Saul

estava vivo e Davi achava-se em fuga; outros, aos anos iniciais de seu

reinado, antes de ele conquistar Jerusalém e quando ainda não podia

enfrentar os filisteus. A água da cisterna de Belém não tinha um gosto

especial, mas o desejo de Davi simboliza o ressentimento pelo fato de os

filisteus controlarem a cidade natal de Davi. Por outro lado, as cisternas

são vitais para o armazenamento de água durante a estação de pouca

chuva; esse é o motivo de não se desejar que um leão faça morada em

sua cisterna; atacar um leão num dia de neve podia exigir coragem e

agilidade incomuns. Esse relato quanto a uma série de atos heroicos

talvez encoraje os leitores em relação aos seus pequenos (ou grandes)

atos de heroísmo. Pelo menos, tão significativo quanto é o modo pelo

qual Crônicas insiste em enfatizar o envolvimento de Deus. Ele é que

havia dito que Davi deveria ser o pastor e governante sobre Israel. Deus

é que havia designado Davi e dito a Samuel para ungi-lo; a unção do

povo é uma resposta à unção divina. Yahweh dos Exércitos estava com

Davi, e este seguiu avançando. Deus é que operou aquela grande


libertação das mãos dos filisteus quando tudo parecia perdido. Nada foi

alcançado sem o compromisso humano. Nada foi alcançado sem o

compromisso divino.
1CRÔNICAS 12:1-40
UM TEMPO PARA CAUTELA E UM TEMPO PARA CELEBRAÇÃO
1
Estes são os homens que foram a Davi em Ziclague, quando ele ainda estava escondido por

causa de Saul, filho de Quis. Eles estavam entre os guerreiros que o apoiavam na guerra,

2
empunhavam o arco, destros e canhotos, com pedras e com flechas do arco, dentre os

16
parentes de Saul, de Benjamim. [...] Alguns benjamitas e judaítas foram a Davi, na

17
fortaleza. Davi saiu diante deles e lhes declarou: “Se vocês vieram a mim com intenção

pacífica, para me apoiar, minha atitude será uma com vocês, mas, se [vieram] para me trair e

entregar-me aos meus inimigos quando não há violência em minhas mãos, que o Deus de

18
nossos ancestrais veja e puna.” Então, o espírito colocou sobre Amasai, chefe dos trinta:

“Por ti, Davi, e contigo, filho de Jessé, [haverá] paz; paz para você e paz para a pessoa que o

apoiar, porque o teu Deus o tem apoiado.” Assim, Davi os aceitou e os colocou como cabeça

19
de seu bando. Alguns de Manassés submeteram-se a Davi quando ele foi com os filisteus

para a batalha contra Saul, mas não deram suporte aos [filisteus] porque os governantes

filisteus, em conselho, o desconsideraram, dizendo: “Ele se submeterá a Saul, o senhor dele —

20
à custa de nossas cabeças.” Quando ele foi a Ziclague, os manassitas se submeteram a ele,

Adna, Jozabade, Jediael, Micael, Jozabade, Eliú e Ziletai, os chefes das famílias de Manassés.

21
Essas pessoas apoiaram Davi contra o grupo [inimigo] porque todos eram guerreiros

22
hábeis. Eram oficiais do exército. Assim, dia após dia, pessoas vinham a Davi para apoiá-lo

38
até o exército ficar grande, como o exército de Deus. [...] Todos esses homens de luta,

formando uma linha de batalha com uma atitude comprometida, foram a Hebrom para

39
tornar Davi rei sobre todo o Israel. Eles ficaram ali com Davi por três dias, comendo e

40
bebendo, porque os seus parentes lhes tinham provido. Pessoas que estavam próximas a

eles, até de lugares distantes como Issacar, Zebulom e Naftali, também levaram comida sobre

jumentos, camelos, mulas e bois, provisões de farinha, porções de figos e de passas, vinho e

óleo, e gado e ovelhas em abundância, porque havia celebração em Israel.

Quando minhas classes de verão terminarem, em três semanas, entrarei

em férias, mas tenho que retornar em 16 de setembro, porque esse é o

dia do retiro do corpo docente, e temos que estar presentes nesse

evento. Não tenho certeza sobre o que pode acontecer caso eu não

apareça; apenas sei que terei que escrever ao diretor se achar que tenho

motivos para não comparecer (se falhar em fazer isso, não receberei

salário em setembro?). Tudo o que sei é que permanecer na praia não


será aceito como desculpa. O mesmo ocorre quanto à data de início.

Mas, quer esteja animado quer não em relação ao que faremos quando lá

estivermos, sinto-me bem em ir, porque sei que essas reuniões,

envolvendo a presença de todos, são necessárias. Em nosso corpo

docente, há setenta ou oitenta (nem mesmo sei o número exato), e

ainda temos inúmeros campi regionais espalhados pela Costa Oeste e no

Colorado, Arizona e Texas. Assim, precisamos de meios para consolidar

a nossa unidade, celebrar, orar e conversar em conjunto.

Aqui, o texto de Crônicas, uma vez mais, enfatiza a unidade de todo

o Israel em seu reconhecimento a Davi, e o faz de diversas formas.

Inicialmente, a narrativa retorna ao reinado de Saul, quando Davi

estava fugindo do rei, que queria matá-lo. A princípio, Davi esconde-se

em Ziclague e, então, em uma “fortaleza” que pode ser uma referência à

mesma caverna de Adulão, citada no capítulo anterior. Ambos são

lugares nos quais Davi tenta se manter longe do caminho de Saul.

Então, ele é relatado em conluio com os filisteus. Nos dois contextos,

ninguém sabe em quem confiar, quem são os agentes duplos e quem

pode estar prestes a traí-los. Os filisteus podem confiar em Davi e em

seus aliados? Na realidade, não, e eles sabem que precisam ser

cautelosos, embora a história em 1Samuel nos conte como Davi logrou

ludibriá-los. Pode Davi confiar nas pessoas que pertencem ao clã de

Saul? Na verdade, sim, embora ele saiba que toda cautela é pouca.

Todavia, o capítulo menciona todas as doze tribos como apoiadoras de

Davi. E esse apoio não significa e-mails ou declarações no parlamento,

mas pessoas e comida. Mais de uma vez, o capítulo cita o apoio de

Benjamim, o próprio clã de Saul, e, especialmente, da cidade natal do

rei.

Davi é uma pessoa inescrutável, e o capítulo atrai a nossa atenção

para um dos aspectos de seu caráter que é difícil de entender. Calcula-se

que o Antigo Testamento atribua a ele, antes e durante o seu reinado, a

contagem de cento e quarenta mil corpos; esse é o número de pessoas

mortas pessoalmente por ele ou sob a sua responsabilidade. Não


obstante, aqui, Davi nega a violência ao falar com os benjamitas e

judaítas que foram até ele, na fortaleza. Se eles o traíssem em favor de

seus inimigos quando ele não lhes fizera nenhum mal (isto é, a Saul e

aos seus apoiadores), então que Deus visse e punisse. Davi é destinado a

assentar-se no trono e, em mais de uma ocasião, ele tem a chance de

eliminar o homem que está ocupando o trono, mas declinou dessas

oportunidades e, agora, pode reivindicar isso a seu favor. Já vimos que

Saul morre por suas próprias mãos. Além disso, mesmo se for traído, ele

não levantará a mão contra os seus traidores, pois Deus é quem fará isso

por ele. Se você fosse o potencial traidor, o lembrete de que Deus

poderia, então, agir contra você seria muito mais dissuasivo do que se o

próprio Davi ameaçasse vingança. Parece que a violência contra pessoas

que se tornam inimigas de Deus e de Israel é uma coisa; a violência no

seio do povo de Deus é outra. O Deus de Davi é o mesmo Deus de Saul,

“O Deus de nossos ancestrais”. Ele e Saul pertencem à mesma família.

Como eles e seus apoiadores poderiam lutar e matar entre si? Sua

atitude é, portanto, muito distinta da adotada pelos cristãos, pois, ao

longo dos séculos, sempre estamos dispostos a lutar e matar uns aos

outros.

Talvez seja significativo que Deus envie uma mensagem de

encorajamento a Davi logo após essa expressão de compromisso com a

não violência dentro do povo de Deus. É igualmente notável que a

mensagem venha por meio de um dos líderes dos guerreiros de Davi,

alguém que tinha a sua própria parcela de mortandade. O Antigo

Testamento, em geral, discorre sobre “o espírito de Deus” vindo a

alguém, mas, ocasionalmente, refere-se a Deus enviando “um espírito”,

o que soa muito parecido com Deus enviar um ajudante. Todavia, o

espírito, então, “coloca sobre” alguém, da mesma forma que você veste

roupas (esse é o significado usual da palavra hebraica). A pessoa torna-

se o meio pelo qual o espírito encontra uma expressão externa. Isso

transmite a errônea impressão de a pessoa ser “possuída” pelo espírito;

esse processo não significa ser possuído e levado a fazer algo que você
não quer fazer. Em vez disso, a imagem reconhece que, ocasionalmente,

as pessoas dirão coisas que não planejavam dizer e expressarão de modo

inconsciente coisas muito mais instigantes do que jamais tentaram

expressar. Essa experiência faz a pessoa perguntar: “De onde veio isso?”

e leva outras pessoas a concluírem que veio de Deus. A exemplo de

muitas declarações proféticas, as palavras de Amasai são breves,

poéticas, enérgicas e enigmáticas (a minha tradução acrescenta umas

poucas palavras entre colchetes para facilitar um pouco mais a sua

compreensão). Deus não tende a falar em prosa; a poesia expressa

melhor a profundidade, e o vigor leva as pessoas à reflexão; as palavras,

então, têm mais chance de acertar o alvo. As traduções modernas

pressupõem que Amasai está dizendo a Davi: “Nós somos teus; nós

estamos contigo”, e talvez estejam certas; no entanto, mais diretamente,

Amasai parece estar prometendo a Davi que Deus estará com ele. Há

paz para ele e também para as pessoas que o apoiam (ao contrário das

que o traem), pessoas que, assim, se identificam com o próprio suporte

de Deus a Davi. Ele precisa equilibrar sabedoria ou autoproteção com o

compromisso de fazer o que é certo; Deus promete que o risco e o

compromisso serão honrados.

O apoio que as pessoas dão a Davi durante a sua fuga chega à sua

conclusão lógica quando pessoas de todos os clãs se reúnem para

declará-lo rei. Embora os guerreiros que lutaram ao lado de Davi

estejam no centro da história, a narrativa da celebração deixa claro, de

outras formas, como ela envolve todo o povo. Os guerreiros apoiaram

Davi como membros de suas respectivas famílias e respectivos clãs, e

essas famílias e esses clãs se unem para subscrever o custo da

celebração. Em particular, grandes quantidades de comida são

providenciadas pelos clãs do norte, que, apesar de distantes

geograficamente, em outro sentido estavam “próximos a eles”. Depois

do início, nossos alunos costumam promover muitas festas sociais e, ao

final do retiro do corpo docente, irei me reunir com meus colegas de

Estudo Bíblico para uma taça ou duas de vinho, em um restaurante


local. Por sermos corpo e espírito, a celebração física e a celebração

espiritual caminham juntas.


1CRÔNICAS 13:1-14
VOCÊ QUER DANÇAR?
1 2
Davi consultou os oficiais de milhares e de centenas, cada líder. Davi disse a toda a

assembleia de Israel: “Se isso lhes parece bom e [vem] de Yahweh, nosso Deus, enviemos

depressa mensagem aos nossos parentes que permanecem em todas as terras de Israel e, com

3
eles, os sacerdotes e levitas em suas cidades de pastagens, para que eles se reúnam a nós e

4
tragam o baú de Deus até nós, porque não inquirimos dele nos dias de Saul.” Toda a

assembleia de Israel disse para fazer isso, porque era a coisa certa aos olhos de todo o povo.

5
Então, Davi reuniu todo o Israel, desde Sior, no Egito, a Lebo-Hamate, para trazer o baú de

6
Yahweh da Cidade de Florestas. Davi e todo o Israel subiram a Mestres (para a Cidade de

Florestas, em Judá), para trazer de lá o baú pertencente a Deus, Yahweh que Está Assentado

7
entre os Querubins, que é chamado pelo nome. Eles transportaram o baú de Deus sobre

8
uma carroça nova da casa de Abinadabe, com Uzá e Aiô guiando a carroça, e Davi e todo o

Israel iam dançando com toda a força diante de Deus, com cânticos, harpas, alaúdes,

9
tamborins, címbalos e trombetas. Mas, quando eles chegaram à eira de Quidom, Uzá

10
estendeu o braço para segurar o baú de Deus, porque os bois haviam tropeçado. A ira de

Yahweh se inflamou contra Uzá, e ele o feriu porque estendera a mão à arca. Ele morreu ali,

11
diante de Yahweh. Davi se inflamou porque Yahweh irrompera contra Uzá. Ele chamou

12
àquele lugar “Destruição de Uzá”, como é até este dia. Davi teve medo de Deus naquele

13
dia, dizendo: “Como posso levar o baú de Deus para mim?” Por isso, Davi não moveu o

baú até ele (para a cidade de Davi), mas o redirecionou para a casa de Obede-Edom, o geteu.

14
O baú de Deus viveu ali, com a família de Obede-Edom, em sua casa, por três meses, e

Yahweh abençoou a casa de Obede-Edom e tudo o que ele possuía.

Eu fui criado em uma igreja na qual dançar era pecaminoso, do mesmo

modo que ir a cinemas e a pubs (felizmente, ou não, o pastor não sabia o

que acontecia entre os garotos e garotas adolescentes quando estavam

fora do alcance de sua visão, embora — também felizmente — o que

acontecia era bem inofensivo segundo os padrões do século XXI). Por

consequência, ainda não me sinto à vontade em pubs (do mesmo modo

que uma pessoa comum na Grã-Bretanha não se sente à vontade na

igreja), e não sei dançar bem, embora tenha ido a algumas aulas de

dança, ao longo do último ano, e o que me falta em elegância eu

compenso em energia (o que, de fato, é uma verdade em minha vida


como um todo). É uma vergonha sermos desencorajados a dançar,

porque a dança é outra das formas (como comer e beber) em que o

Antigo Testamento reconhece que o físico e o espiritual caminham

juntos. Embora não haja base bíblica para ter uma pessoa ou um grupo

de pessoas dançando na frente da igreja, com a congregação assistindo,

há considerável fundamentação bíblica para ter toda a congregação

dançando.

Davi sabe que é assim (e, ao fim do capítulo 15, leremos sobre o

desprezo de Mica, sua esposa, por ele compensar em energia o que lhe

faltava em elegância). Como não dançar quando se está empenhado em

algo tão celebrável quanto trazer de volta o baú de Yahweh do exílio?

Algumas gerações antes (1Samuel nos relata), o baú fora levado a uma

batalha contra os filisteus, capturado e devolvido aos israelitas quando

os filisteus viram que a mão do Senhor pesava contra eles. Por seu

turno, os israelitas, ao verem que a mão de Deus também pesava sobre

eles, entregaram o baú aos habitantes de Bete-Semes e, depois, o

deixaram na Cidade de Florestas [Quiriate-Jearim], entre Jerusalém e

Bete-Semes. Outro nome para a área é Mestres ou Baalá, o que sugere

que a Cidade de Florestas, a exemplo de Bete-Semes, seja uma cidade

de fronteira, cuja mente pode estar dividida entre ser cananeia ou

israelita. O baú havia sido despachado para lá como uma batata quente.

Por outro lado, parece que havia israelitas na cidade que cuidaram dele.

Há bons motivos políticos e religiosos para Davi transportar o baú

até Jerusalém. A nova capital da nação não possui tradição israelita;

assim, instalar o baú da aliança ali associará Jerusalém à aliança entre

Deus e Israel, além de transformar a cidade no santuário central da

nação. O baú da aliança, afinal, pertencia ao santuário no qual o

invisível Yahweh habitava. Ao contrário dos deuses cananeus ou

filisteus, Yahweh não possuía nenhuma imagem para representá-lo e

assegurar ao povo que a divindade por eles cultuada estava no meio

deles. Israel sabia que Deus não poderia ser representado; pelo menos, o

seu povo deveria reconhecer que era assim, embora, com frequência, o
instinto de ter uma representação visível de Deus superasse essa

consciência. Todavia, em teoria, os israelitas sabiam que, simplesmente,

não é possível representá-lo. O santuário continha algumas

representações visíveis dos querubins, em cujos ombros se assentava o

trono do invisível Yahweh. Os querubins ficavam localizados dentro do

santuário, para que as pessoas não os vissem, mas elas sabiam que eles

estavam lá, e os querubins podiam lembrar o povo da real presença de

Deus entronizado acima deles. Outra maneira de garantir que Deus

estava realmente presente no santuário era falar em termos de o nome

de Yahweh estar associado ao baú.

Uma vez mais, o livro de Crônicas enfatiza como toda a nação está

envolvida no projeto de levar o baú. É, na verdade, para ser um foco

religioso a todo o povo. A princípio, tudo transcorre maravilhosamente

bem. Então, novamente, o baú da aliança prova-se muito perigoso de se

lidar, e Uzá perde a sua vida ao tentar protegê-lo. Estamos

familiarizados com situações nas quais as pessoas podem estar fazendo o

melhor para servir a Deus e, então, experimentam algum desastre que

coloca um fim no serviço delas, e nos perguntamos por que essas coisas

acontecem. Igualmente, conhecemos situações nas quais as pessoas não

estão fazendo o melhor no serviço a Deus e também experimentam

algum desastre. Não gostamos nem de pensar em tais eventos como atos

de Deus; nem mesmo como algo que Deus permite. O Antigo e o Novo

Testamentos são menos susceptíveis, talvez porque tenham consciência

de que esses eventos não são excepcionais; ambos podem conviver com

alguns atos estranhos da parte de Deus, pois, ao mesmo tempo, outros

atos generosos e misericordiosos são muito mais característicos de

Deus.

As Escrituras também possuem outro tipo estranho de confiança em

relacionar Deus a tais eventos. Duas expressões são recorrentes de

formas notáveis nessa história. Uma é que Deus se “inflama” contra Uzá

depois que Davi se “inflama” ao providenciar o transporte do baú a

Jerusalém. A outra é que a ira de Deus é respondida pela ira de Davi.


Pode parecer estranho que Davi escape ileso de irar-se contra Deus,

enquanto Uzá não tenha escapado por tentar proteger o baú de Deus.

Os cristãos mostram-se propensos a pensar que temos de ter cuidado

com as nossas palavras a Deus e nossos sentimentos em relação a ele.

Davi sabe que não há problemas em ser espontâneo em relação a Deus

tanto com sua ira quanto com sua dança. Ao mesmo tempo, de algum

modo, Davi está agora temeroso de Deus, o que parece uma reação

racional. Pelo menos, é o que presumimos com base na menção da

história ao medo de Davi. Mas pode ser que Davi esteja sentindo mais

reverência por Deus, não medo dele. O hebraico usa a mesma palavra

para denotar um medo positivo (temor ou reverência) e um medo

negativo (estar com medo ou assustado); no entanto, em relação a

Deus, normalmente a palavra possui conotação positiva. Quando

Crônicas, mais tarde, retoma a história de Davi e do baú, implica que

Davi, agora, está mais cauteloso quanto ao processo de transporte e,

assim, aprendeu, de fato, a ser mais reverente a Deus.

Pode-se imaginar o coração de Obede-Edom, o geteu, afundando

em suas botas e pegando a pena para deixar sua última vontade e

testamento ao saber que o baú está chegando a ele. Como geteu, alguém

de Gate, presumidamente Obede-Edom é um filisteu e deve pensar que

o ato de Davi é, de algum modo, cínico (“Vamos arriscar a vida de

filisteus em vez da vida de israelitas!”). Na realidade, ele experimenta

uma bênção extraordinária. Talvez a implicação seja de que, no próximo

ano, suas colheitas serão mais abundantes do que as de qualquer outra

pessoa na região. Não se pode duvidar de Deus; nem imaginar o que ele

fará a seguir.
1CRÔNICAS 14:1-17
QUANDO VOCÊ PRECISA SABER O QUE FAZER
1
Hirão, rei de Tiro, enviou ajudantes a Davi, com toras de cedro, pedreiros e carpinteiros,

2
para construir-lhe uma casa, e Davi reconheceu que Yahweh o havia estabelecido como rei

3
sobre Israel, porque o seu reinado fora elevado para o bem de Israel, o seu povo. Davi

tomou mais esposas em Jerusalém e gerou mais filhos e filhas. [...]

8
Quando os filisteus ouviram que Davi havia sido ungido rei sobre todo o Israel, todos os

9
filisteus subiram para buscá-lo. Quando Davi ouviu, ele saiu ao encontro deles. Ora, os

10
filisteus tinham vindo e atacado o vale de Refaim. Davi perguntou a Deus: “Devo subir

contra os filisteus? Tu os entregarás nas minhas mãos?” Yahweh lhe disse: “Suba. Eu os

11
entregarei nas suas mãos.” Então, [o exército de Davi] subiu para Senhor-do-rompimento,

e Davi os derrotou. Davi disse: “Deus irrompeu através dos inimigos por minha mão como

12
águas irrompem.” Eis por que chamaram aquele lugar de Senhor-do-rompimento. [Os

filisteus] abandonaram os seus deuses ali, e Davi disse que eles deviam ser queimados no

fogo.

13 14
Os filisteus, novamente, atacaram o vale. Davi, novamente, perguntou a Deus, mas Deus

lhe disse: “Você não deve segui-los. Vá ao redor deles, e cheguem até eles vindo da direção

15
das amoreiras. Quando você ouvir o som de marcha no topo das amoreiras, então você

16
deve sair à batalha, porque Deus terá ido à sua frente para ferir a força filisteia.” Davi fez

17
como Yahweh ordenou, e eles derrotaram a força filisteia, desde Gibeom até Gezer. A

reputação de Davi espalhou-se por todas as nações; Yahweh colocou medo por ele em todas

as nações.

Na semana passada, jantei com três pessoas com idades na casa dos

trinta anos. Um deles era um rapaz que não sabia ao certo o que fazer

com sua vida, de modo que ele orou e sentiu Deus lhe dizendo que ele

deveria fazer um doutorado. Ele foi aceito para um prestigiado

programa e havia completado o seu primeiro ano com sucesso. Havia

também uma jovem mulher que questionara o que fazer ao concluir o

seu programa no seminário. Ela também orou sobre o assunto e creu

que Deus lhe havia dito para se unir a algumas pessoas e edificar uma

igreja do zero, em determinada cidade. Mas os planos não deram certo,

de maneira que ela orou mais e, agora, acredita que Deus está lhe
dizendo para estudar e obter um doutorado. O terceiro era um homem

que havia orado de modo similar e, igualmente, crera que Deus lhe disse

para ir atrás de um doutorado, mas nunca conseguiu conciliar

compromissos e tempo para seguir esse plano e sente que está apenas

desperdiçando tempo em sua vida.

Quando comparamos a natureza imprevisível de nossa experiência

ao buscarmos a orientação de Deus, podemos invejar a experiência de

Davi quanto a isso, pelo menos como relatada nesse capítulo. Na

realidade, estas constituem as primeiras referências à busca de Davi

pela orientação divina, em Crônicas. Até onde sabemos, até aqui, ele fez

tudo por achar ser uma boa ideia. Às vezes, as ideias funcionam bem; em

outras, nos deixam em apuros; mas a história não parece pensar que ele

deveria pedir a orientação de Deus sobre tudo o que faz. Todavia,

sugere que, pelo menos, ele pode pedir orientação e obter respostas.

Uma forma padrão, descrita pelo Antigo Testamento, por meio da

qual um líder obtém orientação é o Urim e o Tumim. Eles eram algo

como duas pedras com inscrições “Sim” e “Não” sobre elas. Se o líder

obtivesse dois “sins” ou dois “nãos”, a resposta era óbvia; se obtivesse

um de cada, Deus não estava respondendo. Algumas narrativas do

Antigo Testamento registram Deus se recusando a responder, como na

experiência de Saul ao final de sua vida. O uso desse meio de buscar a

orientação divina significaria fazer uma pergunta que pudesse ser

respondida com um “sim” ou um “não”. Davi poderia ter feito isso em

relação às estratégias citadas pela história. Muitas pessoas modernas

sentem-se desconfortáveis com a ideia de Deus orientando Davi para ir

à guerra, mas, por viver em um país que vai à guerra com certa

frequência, aprecio a ideia de o comandante-chefe consultar Deus antes

de declarar guerra e também a ideia de Deus se dispor ao envolvimento

nas guerras que são deflagradas em vez de deixá-las acontecer sem

nenhuma estrutura ética ou religiosa.

Os filisteus sabem que Davi é um líder capaz e reconhecem que a

derrota imposta a Saul pode não definir a questão sobre o controle de


Canaã. Há uma notável ligação entre a maneira pela qual Davi fala em

irromper ou agir depressa para obter o apoio dos israelitas ao projeto de

levar o baú da aliança para Jerusalém, a forma com que Deus

“irrompeu” sobre Uzá e, então, o fato de os filisteus avançarem para um

lugar chamado Senhor-do-rompimento [Baal-Perazim]. Ser nomeado

por Mestre ou Senhor sugere ser este um nome tradicional; aquele

nome, agora, passa a ter um novo significado, pois se torna um lugar no

qual Deus irrompeu novamente, dessa vez a favor de Israel. Há uma

enorme quantidade de energia fluindo quando Davi está por perto. Isso

me faz lembrar da mítica expressão chinesa “Que você não viva em

tempos interessantes”. Decerto, os tempos de Davi eram bem

interessantes.

Claro que há algo especial no tocante às guerras nas quais Davi

participa, isto é, o propósito divino de restauração do mundo está em

ação por meio de seu povo. A mesma consideração subjaz à maneira pela

qual Davi pode obter orientação divina, quando eu e você não podemos.

Isso também é sugerido pelo sinal dado por Deus, que lembra a Davi

que essas guerras são travadas não apenas na superfície, mas nos céus

(não sabemos exatamente o que essas árvores eram, apesar da

tradicional tradução por “amoreiras”). Davi obtém vitórias contra as

expectativas porque o exército celestial faz a balança das probabilidades

pender para Israel. As vitórias até mesmo angariam para ele o respeito

de alguém como Hirão, rei de Tiro (o próximo grande poder a noroeste

de Israel). Obtidas apenas com o auxílio sobrenatural, elas também

significam que Davi deve sempre ter em mente que a sua liderança é

bem-sucedida e mantida em elevada consideração pelo bem de seu

povo, não para seu próprio bem. Ter a ajuda de Hirão na construção de

um palácio não desencoraja aquele processo. Existe uma igreja perto de

minha residência que tem experimentado um crescimento monumental

nos últimos anos. Um artigo de jornal a respeito disso, recentemente,

observou que o pastor ainda vive na mesma casa, desde que assumiu a

igreja. Além disso, construir um palácio não é a única maneira de um rei


seguir naturalmente o que outros reis fazem. Acumular esposas e filhos

é outra. Isso mostra que você é um grande homem.


1CRÔNICAS 15:1—16:3
TENHA CUIDADO!
1
Quando havia feito casas para si mesmo na cidade de Davi, [Davi] preparou um lugar para

2
o baú de Deus e armou uma tenda para ele. Então, Davi disse que ninguém deveria carregar

o baú, exceto os levitas, porque Yahweh os escolhera para carregar o baú e ministrar a ele

3
para sempre. Davi reuniu todo o Israel em Jerusalém para levar o baú de Yahweh ao seu

4 11
lugar, que lhe havia preparado. Davi reuniu os aronitas e os levitas. [...] Davi convocou

Zadoque e Abiatar, os sacerdotes, e Uriel, Asaías, Joel, Semaías, Eliel e Aminadabe, os

12
levitas. Ele lhes disse: “Vocês são os cabeças ancestrais dos levitas. Santifiquem-se, vocês e

13
seus irmãos, e tragam o baú [ao lugar] que preparei para ele. Por vocês não estarem [lá], na

primeira vez, Yahweh, nosso Deus, irrompeu sobre nós, porque não o inquirimos de acordo

14
com a regra.” Então, os sacerdotes e os levitas santificaram-se para levar o baú de Yahweh,

15
o Deus de Israel. Os levitas carregaram o baú de Deus como Moisés tinha ordenado, de

16
acordo com a palavra de Yahweh, sobre seus ombros, com varas sobre eles. Davi disse aos

oficiais dos levitas para acomodar os seus irmãos, os cantores, com instrumentos musicais,

25
harpas, alaúdes e címbalos, fazendo-se ouvir ao elevar suas vozes em celebração. [...] Assim,

Davi, os anciãos de Israel e os oficiais de milhares foram para levar o baú da aliança de

26
Yahweh da casa de Obede-Edom com celebração, enquanto Deus suportava os levitas que

carregavam o baú da aliança de Yahweh, e eles sacrificavam sete touros e sete carneiros. [...]

29
Mas, quando o baú da aliança de Yahweh chegou à cidade de Davi, Mical, filha de Saul,

olhou pela janela e viu o rei Davi pulando e se divertindo, e o desprezou por dentro.

CAPÍTULO 16

1
Eles trouxeram o baú de Deus e o colocaram no interior da tenda que Davi havia armado

para ele e apresentaram ofertas queimadas e sacrifícios de comunhão diante de Deus.

2
Quando Davi terminou de apresentar as ofertas queimadas e os sacrifícios de comunhão, ele

3
abençoou o povo em nome de Yahweh e deu a cada pessoa em Israel, homens e mulheres, um

pedaço de pão, um punhado de tâmaras e de passas.

Em uma dessas noites, ao sair sem pernas da pista de dança, após pular

vigorosamente para cima e para baixo, errei a minha cadeira, ou melhor,

não consegui me sentar nela; em vez disso, eu a atropelei e caí ao chão

com ela. Odeio quando as pessoas, então, dizem para eu ter cuidado.

Certamente, é necessário ter cuidado, mas elas precisam dizer isso, pelo

menos, vinte segundos antes. Não obstante, elas podem estar, em teoria,
expressando um ponto útil para o futuro, se apenas aprendermos a lição

(provavelmente, eu não).

Há um duplo sentido pelo qual o transporte do baú da aliança por

Davi suscita a questão sobre ele ter aprendido a lição ou não. Na

história, isso ocorre porque Davi reconhece que é necessário garantir

que a sua segunda tentativa de mover o baú da aliança para Jerusalém

não saia pela culatra, como na primeira tentativa. A Torá, com

frequência, lembra Israel de que é preciso ter cautela quanto à forma de

se aproximar de Deus, para não ser eletrocutado. O Novo Testamento

cita Deuteronômio, ao lembrar o povo sobre o mesmo ponto: “Nosso

Deus é fogo consumidor” (Hebreus 12:29). Assim, Deus possui formas

de prover a comunidade com equivalentes às vestes de segurança que

usamos quando estamos próximos a uma máquina de raios X. Os levitas

constituem a veste providenciada por Deus (os aronitas são um

subgrupo dos levitas, o povo com a responsabilidade especial de

oferecer sacrifícios). Dessa vez, Davi certifica-se de que eles cuidem do

baú. Ainda, é necessário que eles se santifiquem; na realidade, pode-se

dizer que eles mesmos precisam colocar vestes de proteção. A

santificação envolve afastar-se, por algum tempo, de qualquer coisa que

esteja em tensão com o que Deus é. A Torá, desse modo, tipicamente

afirma para evitar qualquer contato com a morte (por exemplo, ao

sepultar alguém) e abster-se de sexo — ou, caso necessário, passar por

um ritual de purificação a fim de remover da pessoa a marca dessas

coisas. Deus nada tem a ver com morte ou sexo, de forma que, se você

precisa ir à presença de Deus, então, por algum tempo, deve evitar a

ambos.

Na outra versão dessa história, em 2Samuel 6 (lembre-se que

Crônicas é uma versão atualizada e posterior, como Mateus em relação

a Marcos), não há menção aos levitas no tocante a Davi assegurar-se de

ter o devido cuidado com o baú, na segunda tentativa. De fato, a

narrativa do Antigo Testamento, em geral, não fala sobre os levitas com

a mesma frequência que Crônicas. De alguma forma, somente mais


tarde, na história de Israel, é que eles se tornaram realmente

importantes. Estamos familiarizados com a maneira pela qual os teatros,

às vezes, encenam Shakespeare com trajes modernos, talvez música

contemporânea, instrumentos atuais e armas de nosso tempo. Isso nos

ajuda a ver como a peça interage com o nosso próprio mundo; a sua

importância não se restringe ao século XVI. Algumas vezes, o Antigo

Testamento faz o mesmo. Esse relato concede aos levitas o papel que

eles teriam na época do autor e de seus leitores. Aí é que reside o

segundo sentido pelo qual a história convida as pessoas a aprenderem a

lição com base no desastroso resultado da primeira tentativa de

transportar o baú. Isso retrata que Davi aprendeu a lição e também

convida os leitores a fazer o mesmo.

A nota triste da narrativa é a observação quanto a Mical. O

lembrete de seu histórico familiar sugere que a história é mais sobre

política do que sobre os sentimentos pessoais da filha de Saul; o seu

casamento com Davi foi um arranjo político, não um caso de amor.

Trata-se de um lembrete de que, apesar de todo o esforço de Davi em

ganhar o apoio de todo o Israel, havia pessoas que continuariam a

acreditar que um descendente de Saul é que deveria estar no trono.


1CRÔNICAS 16:4-43
CANTEM A YAHWEH, TODA A TERRA!
4
[Davi] colocou alguns dos levitas diante do baú de Yahweh como ministros, para clamar,

7
para testificar e louvar a Yahweh, o Deus de Israel. [...] Então, naquele dia, pela primeira

vez, Davi colocou o testemunho a Yahweh a cargo de Asafe e seus irmãos.

8
Testifiquem a Yahweh, clamem em seu nome, tornem os seus feitos conhecidos entre os

povos.

9
Cantem para ele, lhe façam músicas, falem de todas as suas maravilhas.

10
Louvem no seu santo nome; o coração dos que consultam Yahweh deve celebrar.

11
Olhem para Yahweh e sua força; consultem sua face continuamente.

12
Estejam atentos às maravilhas que ele fez, seus sinais e as ordenanças de seus lábios,

13
descendência de Israel, seu servo, descendentes de Jacó, seus escolhidos.

14
Ele é Yahweh, nosso Deus; suas ordenanças estão em toda a terra.

15
Estejam atentos à sua aliança para sempre, a palavra que ele ordenou para mil

gerações,

16
a qual ele selou com Abraão, seu juramento a Isaque,

17
estabelecida para Jacó como um decreto, para Israel como uma aliança eterna,

18
dizendo: “A vocês darei a terra de Canaã como uma alocação e como sua possessão.”

19
Quando vocês eram poucos em número, um grupo pequeno, e temporários nela,

20
indo de uma nação a outra, de um reino a outro povo,

21
ele não deixou ninguém os oprimir, mas reprovou reis por causa deles:

22
“Não toquem em meus ungidos, não façam mal aos meus profetas [...].”

28
Famílias da terra, deem a Yahweh, deem a Yahweh esplendor e força.

29
Deem a Yahweh o esplendor devido ao seu nome, tragam um presente e venham

diante dele, curvem-se a Yahweh em [sua] santa majestade.

30
Tremam diante dele, toda a terra; sim, o mundo permanecerá firme, não se abalará.

31
Os céus devem celebrar, a terra regozijar e dizer entre as nações: “Yahweh reina.”

32
O mar deve rugir e tudo o que o enche; o campo aberto exulte e tudo o que nele há.

33
Então, todas as árvores na floresta devem ressoar diante de Yahweh, porque ele está

vindo tomar decisões para a terra.

34
Testifiquem a Yahweh, porque ele é bom, porque o seu compromisso dura para sempre.

35
Digam: “Liberte-nos, Deus da nossa libertação, nos reúna e nos resgate das nações,

para testificarmos de seu santo nome, para gloriarmos em seu louvor [...].”

43
Todo o povo partiu, cada um para a sua casa, e Davi retornou para abençoar a sua família.
Em nosso culto, no domingo, observamos um tempo mais longo do que

o normal, com pessoas dando graças por coisas que lhes aconteceram

durante a semana e falando sobre coisas pelas quais elas gostariam que

todos orassem. Uma delas recebeu boas notícias sobre um tratamento

médico, e outra celebrava o seu aniversário de 92 anos. O presidente

também aniversariara, de modo que oramos por ele, e, igualmente,

oramos por uma mulher que está para dar à luz em algumas semanas,

além de mulheres no corredor da morte. Tudo isso resultou em um culto

mais equilibrado do que, em geral, temos, unindo o nosso louvor por

quem Deus é e pelo que a morte de Jesus por nós significa, com a nossa

leitura de três ou quatro passagens bíblicas e a exposição do reitor sobre

uma delas.

Incidentalmente, reproduzimos uma das presunções de Crônicas

sobre a natureza da adoração, embora, talvez, nem todas elas, e,

provavelmente, tivemos um ou dois pontos fortes de nossa própria

parte (não há menção, nessa narrativa, quanto à leitura bíblica mesmo

porque a Escritura ainda não existia). Crônicas principia-se usando três

palavras para descrever a adoração liderada pelos levitas que, mais ou

menos, correspondem aos demais aspectos do culto cristão que acabei

de mencionar. “Clamar a Deus” pelo menos inclui a oração no sentido

de pedir a Deus pelas nossas próprias necessidades e pelas de outras

pessoas. “Testificar” envolve falar sobre o que Deus tem feito por você,

para encorajar outras pessoas a glorificar a Deus — assim, pode-se

facilmente traduzir essa palavra por “dar graças”. A implicação de

“louvor” é nos expressarmos de forma desinibida, talvez um entusiasmo

sem palavras por quem Deus é e o que ele tem feito pelo mundo.

Algo desses aspectos da adoração é representado na canção de

louvor a seguir, que, na realidade, mescla partes de três salmos

presentes no livro de Salmos. Primeiro, esse assim chamado ato de

louvor não é endereçado a Deus, mas é, em sua totalidade, uma

exortação à congregação para dar louvor e fazer isso contando ao

mundo sobre as grandiosas coisas que Deus tem feito. Embora Israel
soubesse que Deus realizou atos extraordinários que beneficiaram

exclusivamente esse povo, isso não significa que Deus preocupa-se

apenas com Israel. Sua vocação era a de proclamar ao mundo o que

Deus fez, para que o mundo viesse a reconhecê-lo. Como isso seria feito,

o salmo não indica. O que fica evidente é que o salmo apresenta diante

dos leitores de Crônicas uma ampla visão em relação aos vizinhos da

comunidade (com os quais ela, em geral, convivia em constante

hostilidade), e em relação à superpotência da qual era apenas uma

colônia. O que também está claro é que esse reconhecimento de Deus

pelas nações ocorrerá, pelo menos, tanto pelo amor de Deus quanto por

eles. Eles “darão a Yahweh o esplendor devido ao seu nome” e trarão

presentes para ele. É tentador para as nações querer desfrutar de seu

próprio esplendor e de seus recursos, mas esse é o caminho para a perda

e a desgraça.

Segundo, Israel precisa manter a lembrança desses atos; nesse

sentido, o povo necessita de algo equivalente à leitura das Escrituras.

Tamanha atenção ao que Deus fez objetiva encorajar a permanente

busca por orientação e socorro em Deus. Nos dias de Crônicas, Israel é

um povo para o qual a ideia de ser um grande povo, ocupando uma

vasta nação, constitui um monumental contraste com a sua situação

atual. É necessário manter vivas na lembrança as promessas de Deus

feitas aos seus ancestrais, que foram expressas não somente a uma

geração, mas a mil gerações. A relevância do salmo para os leitores

apresenta-se na maneira pela qual ele fala de “vocês” sendo poucos em

número e apenas de passagem no país. Mais literalmente, aquela era a

situação dos ancestrais dos leitores, mas os leitores são convidados a se

identificarem com eles, de maneira a serem encorajados a manter a

expectativa de ver as promessas de Deus cumpridas também para eles —

como ocorreu à medida que o período do Segundo Templo avançou.

Seus ancestrais foram liderados por pessoas que, metaforicamente,

foram ungidas como reis ou sacerdotes e, em alguns casos, profetas


literais, aos quais Deus protegeu. Os leitores são liderados por

sacerdotes e profetas ungidos, e Deus os protegerá.

Terceiro, o louvor a Deus não está restrito à criação humana. Os

céus e a terra, o mar, os campos e as florestas também são incentivados a

dar o seu louvor público a Deus. O louvor não é meramente algo

presente no coração das pessoas, mas algo expresso física e

exteriormente. Assim, a criação é totalmente equipada para dar glórias

a Deus. Quando o mar ruge ou os ramos das árvores balançam, eles

estão ressoando e batendo palmas, expressando o seu reconhecimento

de Deus e convidando o mundo todo a se unir a esse louvor.

O salmo termina com uma oração realista, correspondente às

circunstâncias dos leitores. Nos dias de Davi, o povo não precisava orar

por libertação; eles eram o macho alfa. No período do Segundo Templo,

eles podem fazer isso confiadamente à luz do que a história deles, desde

os dias de Abraão até os dias de Davi, lhes revela. O círculo de

testemunho, louvor, oração e testemunho, então, estará completo, uma

vez mais. Eles terão o seu próprio testemunho a dar.


1CRÔNICAS 17:1-27
QUEM CONSTRÓI UMA CASA — DE QUE TIPO?
1
Então, quando Davi estava vivendo em sua casa, Davi disse a Natã, o profeta: “Aqui estou

eu, vivendo em uma casa de cedro, enquanto o baú da aliança de Yahweh está sob os panos de

2
uma tenda.” Natã disse a Davi: “Faze o que tiveres em mente, porque Deus está contigo.”

3 4
Naquela noite, a palavra de Deus veio a Natã: “Vá e diga a Davi, meu servo: ‘Não é você

5
que irá construir uma casa para eu viver nela, porque eu não tenho vivido em uma casa

desde o dia em que tirei Israel até este dia. Tenho estado de tenda em tenda e de habitação

6
[em habitação]. Por onde andei em todo o Israel, falei alguma palavra para um dos líderes

de Israel, a quem ordenei pastorear o meu povo, dizendo: “Por que você não me construiu

7
uma casa de cedro?”’ Agora, pois, você deve falar a Davi, o meu servo: ‘Yahweh dos

Exércitos disse isto: “Eu sou aquele que o tirou das pastagens, de seguir o rebanho, para ser o

8
governante sobre Israel, o meu povo. Tenho estado com você por onde quer que vá.

Eliminei todos os seus inimigos diante de você. Tornarei o seu nome grande como o nome de

9
pessoas importantes na terra. Providenciarei um lugar para o meu povo e os plantarei. Eles

habitarão lá e não mais tremerão. Povos inúteis não os importunarão mais, como fizeram no

10
princípio e desde os dias nos quais ordenei líderes sobre Israel, o meu povo. Subjugarei

11
todos os seus inimigos. E lhe digo que Yahweh irá edificar uma casa para você. Quando os

seus dias estiverem cumpridos para você ir com os seus ancestrais, levantarei a sua

12
descendência depois de você, que será um de seus filhos, e estabelecerei o seu reinado. Ele

é o que irá construir uma casa para mim. Estabelecerei o seu trono em perpetuidade.

13
Tornar-me-ei um pai para ele, e ele se tornará um filho para mim. Não retirarei o meu

14
compromisso com ele como retirei daquele que estava antes de você. Eu o instalarei em

minha casa e em meu reinado, em perpetuidade. O seu trono se tornará estabelecido em

perpetuidade.”’”

15
De acordo com todas essas palavras e de acordo com toda essa visão, assim Natã falou a

16
Davi. O rei Davi foi e sentou-se diante de Yahweh e disse: “Quem sou eu, Yahweh Deus, e

17
quem é a minha casa, para que me trouxesses aqui? Mas isso foi pequeno aos teus olhos,

23
Deus. Tu falaste sobre a casa de teu servo no futuro [...]. Agora, Yahweh, a palavra que

falaste sobre o teu servo e sobre a sua casa — que isso seja confiável em perpetuidade. Age

24
conforme falaste. Que isso permaneça firme para que teu nome seja grande em

perpetuidade e [as pessoas] digam: ‘Yahweh dos Exércitos, Deus de Israel, é Deus para

25
Israel’, e que a casa de Davi, teu servo, permaneça firme diante de ti. Pois tu, meu Deus,

abriste o ouvido de teu servo sobre lhe construir uma casa; portanto, teu servo encontrou

26
[coragem] para suplicar diante de ti. Ora, Yahweh, tu és Deus. Tu falaste essa boa [palavra]

27
sobre o teu servo. Agora, quiseste abençoar a casa de teu servo para que esteja diante de ti

em perpetuidade, porque tu, Yahweh, abençoaste, ela é abençoada em perpetuidade.”


Estou ansioso para almoçar com dois casais conhecidos meus. Os

homens são euro-americanos (um deles, de descendência britânica, e o

outro, germânica). Ambas as esposas nasceram na Coreia. Após a

graduação, um casal viveu por dois anos em Istambul e, mais

recentemente, dois anos em Beirute. O outro casal mora em Hong

Kong, mas está envolvido no ministério de um ou dois outros países

asiáticos. Talvez a capacidade de mudar constantemente seja um

instinto distintamente americano e coreano, pois o mero pensamento de

todas essas mudanças já me deixa exausto. Na Inglaterra, vivi na mesma

cidade durante vinte e sete anos (em três casas, distantes menos de um

quilômetro entre si) e, agora, vivo na mesma casa, perto de Los Angeles,

por treze anos (costumava dizer que quero morrer aqui, mas parei de

falar isso porque mencionar a morte assusta as pessoas).

Não seria surpreendente caso Davi almejasse se estabelecer. Ele

havia passado alguns anos em fuga, vivendo uma espécie de vida digna

do Oeste selvagem, sob perseguição constante de um destacamento,

sentindo-se impedido de atirar no xerife quando teve a chance. Na

realidade, ele viverá a maior parte do restante de seus dias na casa que

ele acabara de construir. Talvez esteja perdendo o ritmo; ele lutará em

mais algumas poucas batalhas, todavia se tornará propenso a ficar no

palácio e enviar Joabe para liderar as suas batalhas (isso o levou a se

envolver em confusão com Bate-Seba, mas essa é uma história que o

livro de Crônicas não relata). Ele igualmente deseja que Deus se

estabeleça; pelo menos, essa é a visão de Deus sobre sua ideia de lhe

construir uma habitação. Outra consideração na mente de Davi é o

sentimento de culpa por ter a sua própria e esplêndida casa, enquanto o

baú da aliança, que representa a presença de Deus, ainda está debaixo

de uma tenda.

Pobre Natã, preso entre Davi e Deus. Quando o rei faz uma

sugestão, a sua tendência é dizer: “Sim, Vossa Majestade! Boa ideia,

Vossa Realeza!” Afinal, ele é o seu empregador e, portanto, a pessoa que

possibilita que você e a sua família se alimentem e que, não


imerecidamente, possui a reputação de matar pessoas. Desse modo,

você acaba usando o nome de Deus em vão. Então, no meio da noite,

Deus o acorda para lhe dizer que a pessoa que supostamente irá viver na

casa a ser construída deveria ser consultada sobre se a casa deve, de

fato, ser edificada. Mas Natã aprende a ouvir a voz de Deus tão bem

quanto a de Davi (como a história sobre Davi, Bate-Seba e Urias

também mostra).

Existem inúmeras coisas sobre Deus que me intrigam, e uma delas é

gostar de viver sob uma tenda, embora isso se deva, em parte, ao fato de

chover intensamente na Inglaterra. Nesse mês, meu filho e sua família

irão acampar e, se a barraca deles inundar, não será a primeira vez. Além

do mais, em Jerusalém, as temperaturas, durante o inverno, são

extremamente baixas. Deus aprecia viver sob uma tenda precisamente

por não querer se assentar. Deus gosta de estar em movimento, de fazer

coisas novas, ir a lugares inéditos, ser conhecido por novas pessoas e

fazer reivindicações sobre áreas novas. Ele não quer ficar num lugar só.

Deus tem outro problema com relação à proposta de Davi para lhe

construir uma casa. Isso reverte o relacionamento entre Deus e Davi.

Deus tem sido aquele que assume a responsabilidade pelas grandes

iniciativas na história de Israel. Expressando em termos teológicos, por

trás dos acontecimentos está a graça divina. Davi coloca-se em risco ao

tentar assumir a iniciativa no relacionamento e, portanto, de torná-lo

dependente do que ele e Israel fazem em vez do que Deus faz — de obras

em lugar da graça, usando as palavras de Paulo. Deus deseja que a

relação ainda seja fundamentada na sua promessa e, portanto, na

confiança de Davi e de Israel no compromisso de Deus, em Deus ir ao

encontro deles, não o contrário.

Todavia, Deus irá viver em uma casa, caso Davi esteja muito

interessado nisso. Um aspecto paradoxal, encorajador e, ao mesmo

tempo, assustador da graciosidade de Deus é não insistir em

implementar as suas próprias ideias, mas se amoldar às nossas. Se

convém a Israel que haja um local fixo no qual o povo possa sempre
encontrar Deus em casa, então Deus concordará com essa ideia. No

entanto, Deus está mais interessado na família de Davi do que em sua

casa — o hebraico, lindamente, usa a mesma palavra para ambas as

realidades. Para os ouvintes da história, tanto a casa quanto a família de

Davi são importantes. A casa que Salomão construirá é a casa que eles

veem reconstruída, o lugar no qual eles ainda podem encontrar Deus,

mesmo que o baú da aliança não mais esteja lá (decerto, o baú foi

destruído quando o próprio templo foi colocado abaixo, e não há

referências a ele após o exílio). Além disso, para os israelitas é

importante que a promessa sobre a casa seja mantida “em

perpetuidade”. O cumprimento da promessa não ocorre nos dias deles;

há descendentes de Davi no meio deles, mas não no trono. A lembrança

da promessa divina e da oração de Davi para Deus manter a promessa

os convida a se unirem à oração davídica. O lembrete de que ambos, a

casa e o reinado, são de Deus, uma vez mais, coloca o rei humano em seu

devido lugar, mas também declara que Deus tem o máximo interesse em

cumprir a sua promessa.


1CRÔNICAS 18:1—20:8
GUERRAS E RUMORES DE GUERRAS
1
Mais tarde, Davi derrotou os filisteus e os subjugou; Davi tomou Gate e suas cidades-filhas

2
das mãos dos filisteus. Ele derrotou Moabe; os moabitas tornaram-se servos, trazendo

3 13
impostos. Davi derrotou Hadadezer, rei de Zobá-Hamate. [...] Ele colocou guarnições em

Edom; todo o Edom se tornou seu servo. Yahweh libertou Davi por onde quer que ele ia.

14
Davi reinou sobre todo o Israel e exercia autoridade de uma forma fiel para todo o povo.

15
Joabe, filho de Zeruia, era sobre o exército; Josafá, filho de Ailude, era registrador;

16
Zadoque, filho de Aitube, e Abimeleque, filho de Abiatar, eram sacerdotes; Sausa era

17
escriba; Benaia, filho de Joiada, era sobre os queretitas e os peletitas; e os filhos de Davi

eram os principais em conexão com a operação do rei.

CAPÍTULO 19

1 2
Mais tarde, Naás, o rei dos amonitas, morreu. Seu filho tornou-se rei em seu lugar. Davi

disse: “Guardarei o compromisso com Hanum, filho de Naás, pois o seu pai manteve o

compromisso comigo.” Assim, Davi enviou ajudantes para consolá-lo sobre o seu pai. Mas,

3
quando a comitiva de Davi chegou à terra dos amonitas, a Hanum, para consolá-lo, os

oficiais dos amonitas disseram a Hanum: “Aos teus olhos, Davi está honrando o teu pai

porque enviou pessoas para consolar-te? Certamente, para explorar, para derrotar, para

espionar o país é que a sua comitiva veio a ti.”

[Este capítulo, então, relata como Hanum humilha os ajudantes, o que provoca um conflito

entre os amonitas e Davi; Hanum contrata a ajuda dos arameus, mas Davi derrota as forças

reunidas.]

CAPÍTULO 20

1
Na virada do ano, a época em que os reis saem [à batalha], Joabe liderou a força armada,

devastou o país dos amonitas, foi e sitiou Rabá, enquanto Davi permanecia em Jerusalém.

4
Joabe derrotou Rabá e a arruinou. [...] No devido tempo, a guerra eclodiu em Gezer, contra

os filisteus. Então, Sibecai, o husatita, matou Sipai, um dos descendentes de Refaim. Assim,

5
eles foram subjugados. Mas houve novamente guerra contra os filisteus. Elanã, filho de Jair,

matou Lami, irmão de Golias, o geteu; a haste de sua lança era como uma lançadeira de

6
tecelão. Houve, uma vez mais, guerra em Gate. Havia um homem enorme com vinte e

8
quatro dedos ao todo, seis em cada [em suas mãos e pés] [...]. Estes eram descendentes de

Rafa, em Gate. Eles caíram pela mão de Davi e de seus servos.

No transcurso de um animado debate, durante uma aula de Antigo

Testamento, duas semanas atrás, um de meus alunos acusou os demais


colegas de transformarem a não violência em um ídolo. Compreendi o

que ele quis expressar. Nos dias atuais, muitos cristãos, judeus,

muçulmanos, ateus e agnósticos não suportam mais as guerras, anseiam

por um mundo livre delas e desejam comprometer-se para que isso

ocorra. No entanto, os conflitos armados tornam-se cada vez mais

prevalentes no mundo — na realidade, esse fato subjaz em nosso anseio

pelo fim das guerras. Vivemos em meio à realidade que Jesus denominou

como “guerras e rumores de guerras”, que ele profetizou recrudescer até

o fim.

A posição do Antigo Testamento sobre essa realidade é contrária à

posição adotada por muitos alunos; daí o motivo do intenso debate. O

Antigo Testamento não enxerga a guerra como um problema. Diante da

intrigante questão quanto ao motivo de o filho de Davi, não ele próprio,

ter construído o templo, o livro de Crônicas irá se prender,

implicitamente, a algo simbolizado pelo nome de Salomão, cujo

significado lembrava o povo sobre paz. A conexão particular que isso

fará é que Davi tem sangue em suas mãos — grandes quantidades, aliás,

como essas histórias mostram. Contudo, a questão não diz respeito

tanto à violência envolvida no derramamento de sangue. Todo sangue

mancha. A Torá indica que uma pessoa que tenha estado em contato

com a morte (por exemplo, no sepultamento de um membro da família)

não pode entrar na presença de Deus porque isso coloca, frente a frente,

duas realidades incompatíveis (morte e Deus). Não obstante, Deus

envolve Davi no derramamento de sangue e lhe dá suas vitórias. Se, em

algum sentido, Davi quer se acomodar, é igualmente verdadeiro que ele

está pronto a se levantar e ir, novamente, quando necessário, contra os

filisteus como rivais dos israelitas ao território que Israel considera

como intrinsecamente seu, ou para ampliar a sua área de influência

sobre os seus vizinhos (em parte para impedir de ser engolido por eles).

Os lucros também serão úteis quando chegar o momento de construir o

templo, e o livro de Crônicas considera não haver nada de errado com


isso. Trata-se do mundo de Deus, e é perfeitamente lícito que esses

outros povos contribuam para a edificação da casa de Deus.

Com frequência, retrato o envolvimento de Deus no mundo em

termos de ele lidar com a realidade tanto ao pé da montanha quanto no

cume dela. Seja no cume do monte Sinai ou no monte em que Jesus

prega o seu famoso sermão, Deus pode formular e expressar uma visão

de como o mundo e a vida humana devem ser. Todavia, Deus também

conhece a realidade ao pé do monte, no qual os israelitas estão

moldando um bezerro de ouro, do mesmo modo que (citando um monte

diferente, aquele no qual Jesus transfigurou-se) os discípulos mostram-

se incompetentes. Aqui, do local onde estou assentado, penso nisso em

termos da realidade do cume do monte Wilson, que está a mais de mil e

quinhentos metros de altura acima de mim, com seu observatório, sua

antena de televisão e a realidade da vida distante de Deus da bacia de

Los Angeles, para a qual imagino Deus olhando daquele ponto

estratégico. Deus está comprometido em lidar com a realidade tanto ao

pé do monte quanto em seu cume.

O Antigo Testamento retrata Deus realizando isso com entusiasmo,

não com desânimo. Lutero encorajou Melâncton a “pecar ousadamente”

(embora ele acrescente: “mas confia e se alegre mais ousadamente ainda

em Cristo” e a “orar ousadamente”). Dificilmente, é possível aplicar essa

expressão a Deus, mas os relatos, como os que lemos em Crônicas,

implicam um equivalente divino. Esquadrinhando com dor e ira como

as coisas são, do alto do monte, Deus não fica apenas sentado, torcendo

as mãos, mas envolve-se com energia no mundo bélico, ao pé do monte,

e opera ali com vistas ao cumprimento do propósito idealizado no cume.

Eis como as coisas são no Antigo Testamento. Isso se aplica aos nossos

dias? Posso apenas supor, pois sou um mero teólogo, não um profeta.

Todavia, não ficaria surpreso se (por exemplo) a confusão na qual o

mundo ocidental se meteu nos anos iniciais do terceiro milênio (guerras

e rumores de guerras, colapso e rumores de colapso financeiro) refletisse

a avaliação de Deus no tocante ao nosso militarismo e à nossa cobiça.


A complexidade do caráter e da vida de Davi, uma vez mais,

corresponde à de Deus. Ele não é, simplesmente, um guerreiro que

aprecia ir para cima de qualquer nação ao seu alcance e que deseja

apenas ser o macho alfa. Considerando suas campanhas contra Moabe e

Edom, o esperado seria ele também querer subjugar Amom, e, no

devido tempo, ele o faz. Moabe, Amom, Edom e Israel, todos pertencem

à mesma família (muito) estendida; em Gênesis 19, as origens de Moabe

e Amom são reveladas em um desagradável relato. No entanto, a

narrativa sobre a derrota de Amom começa com a descrição da

tentativa de Davi de viver em um relacionamento de mútuo

compromisso com os amonitas. Certamente há cálculos políticos

envolvidos, mas isso não significa que o desejo de expressar simpatia a

Hanum pelo falecimento de seu pai seja uma farsa e que, na verdade,

Davi visava ao seu reino. Por outro lado, não se pode culpar Hanum por

nutrir algumas suspeitas. As nações ficam em posição vulnerável

quando há troca de governantes, e Davi angariou uma reputação de

desejar construir um império. Sua complexidade vem à tona de outra

forma, também vista na vida de presidentes, pastores e professores de

Antigo Testamento. Ele não está acima de outras pessoas no direito de

construir uma boa casa para si. Mas também ganha a reputação de

exercer autoridade de forma fiel ao seu povo. Trata-se da expressão que,

em geral, é traduzida por “justiça e retidão”, e é considerada como o

equivalente no Antigo Testamento ao termo “justiça social”, mas sugere

um aspecto distinto da ideia de justiça social. Talvez o povo possa

perdoar Davi por seu luxuoso palácio se ele exercer autoridade de uma

forma fiel. Não sei se isso é aplicável a professores de Antigo

Testamento.
1CRÔNICAS 21:1-14
TENTAÇÃO E QUEDA
1 2
Um adversário levantou-se contra Israel e tentou Davi a numerar Israel. Davi disse a

Joabe e aos comandantes do exército: “Vão e contem Israel, de Berseba até Dã, e tragam a

3
contagem deles para mim, de modo que eu a conheça.” Joabe disse: “Que Yahweh acrescente

ao seu povo cem vezes mais do que eles são. Certamente, meu senhor e rei, todos eles serão

súditos do meu senhor. Por que, meu senhor, procuras isso? Por que isso deveria ser uma

4
ofensa para Israel?” Mas, quando a palavra do rei prevaleceu sobre Joabe, Joabe partiu e foi

5
a todo o Israel e retornou a Jerusalém. Joabe deu a Davi a contagem sobre a reunião do

povo. Todo o Israel era um milhão e cem mil homens empunhando a espada; Judá era

6
quatrocentos e setenta mil homens empunhando a espada. Levi e Benjamim, ele não contou

7
entre eles porque a coisa que ele teve de fazer para o rei foi abominável a Joabe; e isso foi

errado aos olhos de Yahweh, e ele feriu Israel.

8
Davi disse a Deus: “Ofendi grandemente por ter feito isso. Mas, agora, por favor, faze

9
desaparecer a transgressão de teus servos, porque fui muito tolo.” Deus falou a Gade, o

10
vidente de Davi: “Vá e fale a Davi: ‘Yahweh disse isto: “Estou estendendo três coisas a

11
você. Escolha uma delas para você, e eu farei isso.”’” Gade foi a Davi e lhe disse: “Yahweh

12
disse isto: ‘Escolha para você três anos de fome, ou três meses sendo varrido diante de seus

adversários e ao alcance da espada de seus inimigos, ou três dias de espada de Yahweh e

epidemia no país e o ajudante de Yahweh causando destruição em todo o território de Israel.’

13
Então, agora, veja qual resposta devo levar de volta àquele que me enviou.” Davi disse a

Gade: “É muito duro para mim. Que eu caia nas mãos de Yahweh, porque a sua compaixão é

14
muito grande. Nas mãos humanas não cairei.” Assim, Yahweh enviou uma epidemia sobre

Israel. Setenta mil pessoas de Israel caíram.

Após me meter em uma confusão moral com uma mulher, alguns anos

atrás (não foi bem um adultério, mas chegou mais perto disso do que

deveria), consultei-me com um terapeuta para falar sobre o ocorrido.

Após ter discutido sobre a maneira pela qual eu me relacionei com

mulheres no passado, ele sugeriu que eu tinha um leve caso de vício em

sexo, o que foi muito assustador e humilhante. O profissional

acrescentou que, apesar do arrependimento que eu sentia então, ele

achava que, se eu fosse tentado, poderia cair novamente, o que me

assustou ainda mais, porém me ajudou a considerar a questão com mais


seriedade. Pelo que sei, não houve tentativas para me fazer cair (se

houve, não foram bem-sucedidas). Todavia, se houvesse, teria sido um

teste ou tentação? Pode-se considerar ambas as perspectivas. Teria sido

um teste para me dar a oportunidade de provar a mim mesmo, mas

também teria sido uma tentação para me puxar para baixo. (A “ameaça”

foi claramente designada a edificar a minha determinação, não para me

derrubar.)

Não há dúvidas de que o adversário quer derrubar Davi. Na maioria

das traduções, ele é citado como Satanás, mas isso é enganoso. A

palavra satanás é um termo hebraico comum para um adversário; não é

um nome. Pode se referir desde a um adversário na guerra até a um

adversário jurídico; o último significado funciona melhor quando o

Antigo Testamento usa o termo em relação a uma figura sobrenatural.

Constitui parte da consciência do Antigo Testamento de que, à

semelhança de um rei, haja um gabinete sobrenatural, presidido por

Deus, cujos integrantes participam nas decisões tomadas no céu e,

então, na implementação delas. São as figuras, em geral, citadas como

ajudantes. Entre eles, o trabalho do adversário é garantir que as

pessoas não escapem impunes de coisas das quais não deveriam escapar

ou que tenham sucesso em fingir ser mais honradas do que realmente

são. Nesse sentido, ele não está agindo contra, mas a favor de Deus.

Talvez Deus tenha ciência de uma propensão para ser mais

misericordioso com as pessoas do que, às vezes, possa ser apropriado; o

adversário lembra Deus quando é necessário ser mais severo.

Igualmente, o adversário assegura que questões difíceis e incômodas

sejam feitas quanto ao pensamento interior e à motivação da pessoa.

Embora o adversário possa se empolgar com o seu trabalho e apreciar

fazer a pessoa tropeçar, basicamente esse é um trabalho que precisa ser

feito.

Portanto, o adversário testa ou tenta Davi, apresenta uma ideia

diante dele para ver se ele a adota e, assim, revelar um aspecto de quem

ele realmente é. Pode-se enxergar isso como um teste designado a lhe


dar uma chance de se justificar e crescer ou como uma tentação para o

derrubar. Sua experiência é correspondente àquela de Jesus, quando o

Filho de Deus foi levado pelo Espírito Santo ao deserto para ser

testado, tentado pelo Diabo (Mateus 4). O Espírito Santo está

envolvido naquele episódio; trata-se de um teste divino. O Diabo

também está envolvido, de maneira que é uma tentação demoníaca.

Quando 2Samuel 24 relata essa história sobre Davi, o texto fala sobre

“Deus incitar” Davi a realizar o censo. Por que ele deveria fazê-lo? As

sociedades tradicionais na África moderna sabem que essa contagem

pode ser algo perigoso a se fazer, não apenas por sugerir que você acha

que pode controlar o seu futuro e/ou que está confiando em seus

próprios recursos. A reação de Joabe aponta exatamente nessa direção.

Deus é aquele que cuidará do futuro do povo. Avaliar os recursos que

tornarão isso possível é parar de confiar em Deus. É particularmente

irônico que o homem ao reconhecer isso seja o comandante-chefe do

exército de Davi. Os comandantes militares são comissionados a

realizar a contagem, e a forma pela qual o resultado é relatado mostra

que o recenseamento é designado a conhecer os recursos militares da

nação: os comandantes incluem na contagem apenas aqueles que

empunham uma espada. No entanto, a história no Antigo Testamento

tem demonstrado que o tamanho do exército israelita não é o fator

determinante para decidir quem vence a batalha.

Joabe, igualmente, sabe que as decisões de um líder não afetam

somente esse líder, mas todo o povo sob sua liderança. Em qualquer

contexto (nação, cidade ou congregação), os membros pagam um preço

terrível quando o líder age erroneamente, do mesmo modo que são

grandemente abençoados quando o líder age com sabedoria. A ação de

Davi significará que Israel, como povo, agiu mal. É óbvio como isso

ocorre em uma sociedade democrática; compartilhamos a

responsabilidade com os líderes eleitos por nós, mesmo que

desaprovemos as suas ações. Igualmente, é verdadeiro em sociedades


não democráticas (na realidade, os israelitas, como um todo, se uniram

para indicar Davi como rei sobre eles).

Davi desviou-se radicalmente em seu pensamento, e as

consequências para o seu povo são devastadoras. A forma por meio da

qual Crônicas conta a história pode ser confusa; o relato não segue uma

ordem cronológica direta. Em particular, a menção a Deus ferir Israel,

no fim do versículo 7, constitui um resumo do que segue; os versículos

8-14, então, detalham o resumo apresentado no versículo 7. Em mais de

uma forma, a história constitui uma reflexão sobre como Deus lida com

a nossa transgressão humana. Davi se arrepende e pede para Deus fazer

a sua transgressão desaparecer. Ele não pede a Deus para “perdoar” ou

“absolver” — ele não está preocupado com as implicações disso para o

seu relacionamento pessoal com Deus; Davi está preocupado com as

consequências que virão.

Deus responde por meio de Gade, que, obviamente, é alguém em

uma posição similar à de Natã. Este é chamado de profeta, enquanto

Gade é chamado de vidente, mas Deus trabalha com eles de maneira

similar. “Profeta” chama mais a atenção para as palavras de alguém;

“vidente” enfatiza mais a capacidade de “ver” o que a pessoas normais

não conseguem. Gade é “o vidente de Davi”, o que implica que, a

exemplo de Natã, ele está na lista de pagamento do rei, mas isso não o

impede de transmitir uma mensagem dura ao seu empregador. Ele não

simplesmente reassegura Davi quanto à misericórdia de Deus. Ações

têm consequências, e mostrar arrependimento e buscar perdão podem

não alterar esse fato. Talvez a ação de Davi pudesse ter resultado na

rejeição de Deus por ele e por seu povo; então, na realidade, a escolha

oferecida a Davi representa um gesto de misericórdia da parte de Deus,

ou uma espécie de compromisso sobre levar realmente a sério tanto a

transgressão de Davi quanto a sua misericórdia. Pode ser que o mesmo

seja implicado pelo fato de que, embora Davi suplique a Deus para fazer

a sua transgressão desaparecer, Deus não lhe responda diretamente,

mas por meio de Gade. Essa é uma misericórdia em mais de uma via: se
alguém traz a palavra de Deus a mim, serei menos propenso a pensar

que seja apenas fruto de minha imaginação. Todavia, talvez falar por

meio de Gade denote que Deus não deseja falar com Davi naquele

momento. Isso também faz parte do aspecto disciplinar do lidar de

Deus com Davi.


1CRÔNICAS 21:15—22:1
OFERTAS SEM NENHUM CUSTO
15
Então, Deus enviou um ajudante a Jerusalém para destruí-la, mas, quando ele a estava

destruindo, Deus viu e cedeu quanto ao desastre, e disse ao ajudante destruidor: “Isso já

basta. Agora, retenha a sua mão.” O ajudante de Yahweh estava junto à eira de Ornã, o

16
jebuseu. Davi elevou os olhos e viu o ajudante de Yahweh entre o céu e a terra com a

espada empunhada em sua mão, estendida sobre Jerusalém. Davi e os anciãos cobriram-se de

17
pano de saco e caíram com o rosto voltado para o chão. Davi disse a Deus: “Não sou aquele

que disse para numerar o povo? Sou aquele que cometeu ofensa e, definitivamente, errou.

Essas pessoas são o rebanho. O que elas fizeram? Yahweh, meu Deus, a tua mão deve cair

sobre mim e sobre a minha casa ancestral, não como um flagelo sobre este povo.”

18
Ora, o ajudante de Yahweh havia dito a Gade para falar a Davi que ele deveria subir para

19
erigir um altar a Yahweh na eira de Ornã, o jebuseu. Davi subiu de acordo com a palavra de

20
Gade, que ele falara em nome de Yahweh. Ornã virou-se e viu o ajudante (os seus quatro

21
filhos com ele estavam escondidos; Ornã estava debulhando trigo). Davi foi a Ornã e,

quando Ornã olhou e viu Davi, ele saiu da eira e curvou-se diante de Davi, com o rosto

22
voltado ao chão. Davi disse a Ornã: “Dê-me o local da eira para que eu possa construir ali

um altar a Yahweh. Dê-me a preço cheio para que o flagelo possa cessar do meio do meu

23
povo.” Ornã disse a Davi: “Toma-o para ti. Meu senhor, o rei, faze o que for bom aos teus

olhos. Veja, eis que dou os bois como as ofertas queimadas, as tábuas do debulhador como a

24
madeira e o trigo para a oferta de cereal. Tudo isso eu, aqui, dou.” Mas o rei Davi disse a

Ornã: “Não, porque, definitivamente, adquirirei isso pelo preço cheio, porque não elevarei a

25
Yahweh o que pertence a você. Não sacrificarei uma oferta queimada sem custo.” Assim,

26
Davi deu a Ornã seiscentos siclos de ouro pelo lugar. Davi construiu ali um altar para

Yahweh e sacrificou ofertas queimadas e ofertas de comunhão. Ele invocou Yahweh, e ele

27
respondeu com fogo dos céus sobre o altar de ofertas queimadas. Yahweh falou ao ajudante,

e ele retornou a sua espada à bainha.

28
Então, nesse tempo, quando Davi viu que Yahweh lhe havia respondido na eira de Ornã, o

29
jebuseu, ele sacrificou ali. Naquela época, a habitação de Yahweh, que Moisés fizera no

30
deserto, e o altar para a oferta queimada estavam no lugar alto, em Gibeom. Davi havia

sido incapaz de ir diante dele para inquirir Yahweh, pois estava aterrorizado por causa da

espada do ajudante de Yahweh.

CAPÍTULO 22

1
Davi disse: “Esta [deve ser] a casa de Yahweh Deus. Este [deve ser] o altar para a oferta

queimada para Israel.”


Próximo ao término de um concerto, na última sexta-feira, aconteceu

algo que sempre me parece estranho: a cantora nos agradeceu por irmos

ouvir a música. E sempre tenho desejo de gritar, em resposta:

“Desculpe-me; você é que está nos fazendo um favor. Nós é que

devemos agradecer-lhe. Não estamos aqui para lhe fazer um favor.”

(Reconheço que o favor pode ser mútuo. Em Los Angeles, os músicos

podem passar a semana enfiados no interior de um estúdio tocando para

os outros ou gravando trilhas sonoras e jamais desfrutam do estímulo e

da satisfação de tocar diante de uma plateia, de modo que damos tanto

quanto recebemos. E, claro, normalmente pagamos pelo ingresso.) Na

sexta-feira, as minhas expectativas foram mais do que atendidas pelo

estímulo e o entretenimento que ela e sua banda nos proporcionaram. O

problema é que pode haver certa similaridade entre a nossa motivação

para ir a uma igreja e o nosso critério de avaliá-la. Vamos para ouvir,

para sermos entretidos e para aquecer o nosso coração, com a esperança

de que retornaremos para casa cantando. Vamos para o nosso próprio

bem.

Eu, portanto, amo e sou desafiado pela insistência de Davi em não

oferecer adoração que não lhe custe nada. Com frequência, é

complicado ver como Davi poderia ser considerado um homem segundo

o coração de Deus, mas, ao lado das coisas estúpidas e perversas que ele

faz, há declarações notáveis de compromisso, além de expressões de fé e

de confiança em Deus. Uma delas está em sua resposta à terrível escolha

de punição entre as três opções apresentadas por Deus a ele (quão

californiano é da parte de Deus lhe dar uma escolha!). Ele deve escolher

entre fome, derrota ou punição divina direta? “Prefiro cair nas mãos de

Deus, porque a sua compaixão é muito grande”, diz Davi. O castigo

para o qual ele se voluntaria envolve a ação de um anjo de destruição, a

exemplo da ação de tal figura contra o Egito. Naquela ocasião, Israel

escapou ileso, mas o princípio que perpassa o Antigo Testamento é que,

quando Israel se comporta como o Egito (ou Canaã ou Babilônia), ele

deve ser tratado de modo semelhante. A declaração sobre a compaixão


divina parece ser desmentida pelo fato de Deus insistir em puni-lo e ao

povo, mesmo Davi admitindo o seu erro. No entanto, Davi ainda crê

nisso e aposta o seu próprio destino, e o do povo, nisso.

Em sua oração a Deus para cessar a destruição, há outra expressão

de fé similar. (Creio que a narrativa continua a se desenrolar aos

solavancos e que a oração seja o pano de fundo para a indulgência de

Yahweh.) Davi, aparentemente, havia aceitado o direito de Deus de

exigir um castigo e de punir o povo como um todo pela associação com

ele. A presença da comunidade vestindo pano de saco sugere que eles

também aceitaram isso (pano de saco não denota algo desconfortável;

antes, se refere ao pano humilde do qual as roupas de pessoas comuns

são feitas, contrastando com as vestes luxuosas e finas com as quais

pessoas importantes aparecem em público). Mas, agora, Davi questiona

essa presunção. A transgressão era dele, não do povo. Os israelitas são

apenas o rebanho (Quem é o pastor? Deus ou Davi?). A exemplo de

Moisés e outras figuras do Antigo Testamento, Davi, portanto, faz Deus

“ceder”, ter uma mudança de mente quanto à duração da punição.

Pessoas modernas, com frequência, se incomodam com a ideia de Deus

mudar o seu pensamento por esta ideia comprometer a perfeição de

Deus. O Antigo Testamento considera que o fato de Deus mudar o

pensamento quanto a tratar as pessoas com severidade seja um aspecto

da perfeição divina. Sempre é válido suplicar a Deus para que ele mude

a sua mente, em especial no tocante a um castigo, pois pode funcionar.

A história traz uma contribuição adicional à análise do livro quanto aos

princípios que norteiam a relação de Deus com Israel. Embora líder e

povo estejam entretecidos, eles podem ser distinguidos. Deus precisa

lidar com ambos os fatos e, talvez, prosseguir tomando decisões sobre

qual fato priorizar. A própria necessidade de Deus lidar com princípios

em tensão, uns com os outros, é uma das considerações que torna

possível suplicar a Deus para priorizar um princípio distinto.

Não surpreende que essa cena aconteça em uma eira, embora possa

constituir uma surpresa o fato de esse local pertencer a um jebuseu. A


eira deve estar localizada em um lugar aberto e elevado, para

possibilitar que o produtor lance os seus grãos ao alto e o vento

carregue para longe a palha, separando-a do grão bom. Assim, a eira de

Ornã ocupa algum terreno elevado, acima da cidade de Jerusalém

(localizada na extremidade de uma cordilheira, com o formato de um

polegar, fácil de defender em quase toda a sua volta), na qual Davi vive.

Assim, trata-se de um local lógico e estratégico para o ajudante tomar

posição e, de lá, observar a cidade. Embora Davi tenha conquistado a

cidade, que costumava ser conhecida como Jebus, evidentemente ele

não aniquilou ou expulsou os jebuseus, e a história não sugere que ele

falhou ao não fazer isso, ou não cumpriu o que a Torá dizia. Talvez

sugira que Ornã e outros jebuseus vieram a se comprometer com

Yahweh, a exemplo de Raabe (Josué 2). Na realidade, pode-se dizer que

Ornã fez uma declaração e tanto quando Davi se aproximou dele e falou

sobre uma mudança de uso para a eira, embora seja necessário abrir

espaço para a possibilidade de que (1) ele estivesse muito assustado ao

ver a ação do ajudante, (2) estivesse muito assustado pelo contexto da

visita do rei, (3) ao dizer: “Sirva-se do local, dos animais, dos

equipamentos e de algum trigo”, talvez estivesse apenas sendo educado;

na verdade, ele está dizendo: “Faça-me uma oferta” (a história é

contada de maneira similar ao relato sobre a compra de um terreno para

fazer um sepulcro familiar por parte de Abraão, em Gênesis 23).

Certamente, Davi insiste, e esse ato o leva a expressar o seu

reconhecimento de que a adoração que não tem custo algum nada vale.

Na realidade, ele paga muito mais do que no relato de 2Samuel, o que

serve para enfatizar a importância dessa compra e o seu significado.

Caso você fosse uma criança israelita que ouvisse essa história pela

primeira vez, nesse momento uma luz se acenderia em sua mente. “Ah!

Davi constrói um altar naquela parte da colina que fica acima do

palácio! Mas é lá que o templo está! Essa história é sobre como o templo

veio a ser construído ali!” A última parte da história reflete como se

esperava que o templo fosse construído em Gibeom, cidade na qual a


habitação do deserto estava, embora Davi tivesse preparado o caminho

para transferir o baú da aliança para Jerusalém. A resposta de Deus à

oferta de Davi, ao enviar fogo do céu, confirma a aceitação, por Deus,

desse local como um lugar no qual as ofertas, doravante, podiam ser

feitas. Caso você fosse um israelita adulto, então, cada vez que ouvisse a

história, poderia se sentir impactado por outro motivo. A iniciativa do

adversário sai pela culatra tão espetacularmente que, embora a

tentativa de atingir Davi lograsse êxito, o resultado final não é um ato

de punição contra Davi ou o povo, mas a designação de Deus quanto ao

lugar no qual ele virá habitar, de modo permanente, e, assim, estará

sempre acessível a Israel. A traição de José por parte de seus irmãos

visava causar-lhe danos, mas Deus tinha planos de alcançar algo bom

com aquele ato (Gênesis 50). Pode-se aplicar o mesmo princípio a essa

história.
1CRÔNICAS 22:2—23:1
O HOMEM DE PAZ PARA UM TEMPO DE PAZ E UM LUGAR DE

PAZ
2
Davi disse para reunir os estrangeiros residentes em Israel, e ele os indicou como pedreiros

3
para extrair e preparar pedras lavradas para edificar a casa de Deus. Davi providenciou

ferro em grandes quantidades para fazer os pregos e dobradiças para as portas, bronze em

4
grandes quantidades, além do que se podia pesar, e toras de cedro além do que se podia

contar (porque os sidônios e os tírios trouxeram toras de cedro em grandes quantidades a

5
Davi). Davi disse [a si mesmo]: “Salomão, meu filho, é jovem e verde, e a casa a ser

construída para Yahweh deve ser feita extremamente grande, para que seja objeto de renome

7
e glória em todos os países. Devo lhe providenciar [...].” Davi disse a Salomão, seu filho: “Eu

8
mesmo tinha em mente construir uma casa para o nome de Yahweh, o meu Deus, mas, a

palavra de Yahweh veio a mim: ‘Você derramou sangue em grandes quantidades e travou

grandes batalhas. Você não construirá uma casa para o meu nome, porque derramou muito

9
sangue na terra diante de mim. Agora, um filho lhe nasceu. Ele será um homem de descanso.

Eu lhe darei descanso de todos os seus inimigos de todos os lados, porque o seu nome será

10
Salomão [Pacífico], e eu darei paz e tranquilidade sobre Israel em seus dias. Ele será aquele

que construirá uma casa para o meu nome. Ele se tornará um filho para mim, e eu me

tornarei um pai para ele. Estabelecerei o trono de seu reino sobre Israel em perpetuidade.’

11
Agora, meu filho, que Yahweh esteja com você, e você terá sucesso e construirá a casa de

12
Yahweh, o seu Deus, como ele falou a seu respeito. Que Deus apenas lhe dê prudência e

discernimento, e que ele o coloque no comando sobre Israel, para que você obedeça ao

13
ensino de Yahweh, o seu Deus. Então, será bem-sucedido, se você atentar para cumprir as

leis e decretos que Yahweh ordenou a Moisés para Israel. Seja forte e corajoso. Não tenha

14
medo ou receio. Assim, com muita contenção, providenciei para a casa de Deus cem mil

talentos de ouro e um milhão de talentos de prata, e bronze e ferro além do que se pode pesar

(porque era em grandes quantidades). Providenciei toras e pedras, mas você pode

15
acrescentar a elas. Com você, estão trabalhadores em grande número (pedreiros, artífices

16
em pedra e madeira e toda classe de especialistas em todo o trabalho), ouro, prata, bronze

e ferro, além do que se pode contar. Comece e faça o trabalho. Que Yahweh esteja com você.”

17
Davi ordenou a todos os oficiais em Israel que apoiassem Salomão, seu filho.

18
“Certamente, Yahweh, o seu Deus, está com vocês [todos]. Não tem ele lhes dado descanso

de todos os lados, porque ele tem entregue todos os habitantes dessa terra em minhas mãos,

19
e a terra está em sujeição diante de Yahweh e diante de seu povo? Agora, entreguem a sua

mente e o seu coração para inquirirem de Yahweh, o seu Deus, e comecem a construir o

santuário de Yahweh, o seu Deus, para trazer o baú da aliança de Yahweh e os utensílios

santos à casa que será construída para o nome de Yahweh.

CAPÍTULO 23
1
Quando Davi ficou velho e cheio de anos, ele fez de Salomão, seu filho, rei sobre Israel.

Na semana passada, alguém me perguntou o que eu esperava alcançar

em minhas aulas. O que contaria como sucesso? Refleti por alguns

instantes e respondi que, considerando que meus alunos cheguem ao

curso de Antigo Testamento presumindo que o seu texto não tenha

nada a dizer (que frequentar as aulas seja apenas uma obrigação

requerida pelo programa deles), sucesso seria eles terminarem as aulas,

exclamando: “Nossa! O Antigo Testamento é muito mais interessante,

esclarecedor e significativo do que pensei!” Como professor, creio que

isso indica o que quero deixar como meu legado (para um britânico, a

ideia de legado não vem naturalmente, embora, como toda ideia norte-

americana, ela tenha o poder de permear o resto do mundo). Meu

legado seria que, ao longo dos anos, a pessoas deixassem as minhas aulas

estimuladas quanto ao Antigo Testamento. (Como ser humano, o

sucesso poderia significar meus filhos serem homens de bem.)

Considerando o modo pelo qual o livro de Crônicas conta a história

de Davi, o legado que interessa é a construção do templo. Esse é o viés

ao qual Crônicas chega à história de Davi, porque nos dias de seus

leitores o templo é deveras importante (muitos outros aspectos da vida

são extremamente difíceis). O templo é, portanto, a coisa mais

relevante sobre Davi. (A versão dessa história, presente em 2Samuel,

sugere que, em vez disso, ele deveria ser um pouco mais interessado na

formação de seus filhos como homens de bem.) A ironia é que ele

mesmo não logra completar a tarefa da construção. Nesse aspecto, ele

lembra outros líderes da Bíblia. Abraão e Sara não entraram na posse da

terra de Canaã. Moisés, Miriã e Arão morreram antes de alcançar a

terra prometida. Josué morre antes de a ocupação da terra ser

completada. Jesus deixa aos seus discípulos a missão de discipular o

mundo. As pessoas não concluem o que esperavam deixar como legado,

mas deixam a conclusão para outras pessoas. A história bíblica,


portanto, subverte o nosso foco em deixar um legado, em realizar coisas

que farão o mundo se lembrar de nós.

O motivo dado por Davi para justificar a sua incapacidade de

completar o seu projeto de legado pode parecer intrigante. O fator

incapacitante é que ele tem sangue em suas mãos. Se Davi estivesse se

referindo ao sangue de Urias (veja 2Samuel 11), poderíamos pensar que

isso faria sentido, mas essa história não está presente em Crônicas. O

sangue é aquele derramado pelo vasto número de pessoas mortas por

ele em batalha. O que intriga é o fato de a maior parte desse sangue ter

sido derramado em batalhas em nome de Deus, conflitos para os quais

Davi buscou a orientação de Deus. Observamos em relação a 1Crônicas

18—20 que Davi, portanto, teve de pecar fortemente. Caso você precise

fazer algo que, idealmente, não deveria fazer, não há sentido em não se

esforçar para isso. É como se Deus, por princípio, não fosse muito

entusiasmado pela guerra, mas, na prática, teve de se tornar um

entusiasta dela. Davi era um entusiasta da guerra em princípio e na

prática, mas isso não significava que ele tinha sangue em suas mãos. Ele

não era culpado por esse fato. Isso não prejudicou o seu relacionamento

com Deus, ao contrário do caso envolvendo Bate-Seba e Urias. Não

significava que havia algo simbolicamente inapropriado que o impedisse

de ser o construtor do templo. O templo devia ser o lugar no qual Deus

viria morar e precisava representar o que ele realmente era e parte da

própria essência divina que é vida. Existe uma antítese mais

fundamental ainda entre Deus e o sangue do que a antítese entre Deus

e a morte violenta (seja por homicídio ou guerra). Yahweh é o Deus

vivo. A quantidade de mortes com as quais Davi está envolvido o torna

inadequado como construtor da casa destinada a um Deus assim.

Salomão, entretanto, é um homem de paz. Seu nome já diz isso. Paz

é shalom; seu nome é Shlomoh. Não existe apenas uma diferença entre os

papéis e vocações dos dois líderes, mas uma distinção entre os períodos

da vida do povo que eles representam. O fato de Davi e os israelitas

viverem em meio a guerras e conflitos não era por culpa de Davi ou do


próprio povo, mas significava que eles não viviam em uma época de

cumprimento do propósito de Deus — um tempo de descanso, paz e

tranquilidade. A intenção divina era levar Israel a Canaã por meio da

guerra, mas, então, deixá-lo viver ali no descanso de Deus. Davi encerra

o primeiro estágio; Salomão leva o seu povo ao segundo. Há um tempo

de guerra e um tempo de paz, diz Eclesiastes 3; este é o momento em

que o primeiro dá lugar ao segundo.

Davi não pode edificar o templo, mas se aproxima disso o máximo

que pode. Ele organiza a força de trabalho, concede um lugar a

estrangeiros residentes, não apenas a israelitas. Nos dias dos leitores de

Crônicas, os israelitas, às vezes, eram tentados a ser hostis aos

estrangeiros; o livro, então, lembra os seus leitores de que Davi

permitiu a participação de estrangeiros na construção. Como

estrangeiros residentes, eles seriam pessoas que passaram a crer em

Yahweh como seu Deus, como os prosélitos do Novo Testamento. Davi

também providenciou os materiais básicos para a construção. Aqui, ele

aceita as contribuições de povos estrangeiros, uma expressão da forma

pela qual as nações devem reconhecer Yahweh, à semelhança do que foi

previsto no salmo do capítulo 16. As quantidades de ouro e prata são

exageradas, como muitas das estatísticas em Crônicas. O livro aprecia

uma hipérbole.

No Oriente Médio, era prática comum um rei compartilhar o trono

com seu irmão, durante o seu próprio reinado; isso poderia contribuir

para uma sucessão suave quando o rei morresse. Os capítulos 1 e 2 de

1Reis revelam quanto Davi foi procrastinador quanto a esse

procedimento, provando a conveniência de agir para tornar a sucessão a

mais suave possível.


1CRÔNICAS 23:2—26:32
QUEM É QUEM
2 3
Davi reuniu todos os oficiais de Israel, e os sacerdotes e levitas. Os levitas, de trinta anos

4
para cima, foram contados; a contagem deles foi de trinta e oito mil. Destes, vinte e quatro

mil ficaram a cargo do trabalho da casa de Yahweh; seis mil administradores e autoridades;

5
quatro mil guardas das portas; e quatro mil louvando Yahweh [Davi disse]: “com

6
instrumentos que eu fiz para louvar.” Davi os dividiu em grupos. Os filhos de Levi: Gérson,

7 12
Coate e Merari. Os gersonitas: Ladã e Simei. [...] Os filhos de Coate: Anrão, Isar, Hebrom

13
e Uziel — quatro. Os filhos de Anrão: Arão e Moisés. Arão foi colocado à parte para ser

consagrado como algo muito santo, ele e seus descendentes, em perpetuidade, para queimar

incenso diante de Yahweh, para servi-lo e para abençoar em seu nome, em perpetuidade. [...]

24
Estes são os descendentes de Levi por sua casa ancestral — os chefes ancestrais conforme

foram arrolados pela lista de nomes, pela contagem de cabeças, as pessoas que executavam o

28
serviço da casa de Yahweh, de vinte anos para cima. [...] Porque a designação deles era

[estar] ao lado dos descendentes de Arão para o serviço da casa de Yahweh, sobre os pátios e

a câmara e sobre a pureza de tudo o que era santo, e o trabalho de servir a casa de Deus.

29
Eram encarregados do pão consagrado, da farinha para a oferta de cereal, do pão asmo, de

30
assar os pães e misturar a massa, e de todos os pesos e medidas, em relação a se

apresentarem a cada manhã para darem graças e louvarem a Yahweh (e, similarmente, às

31
tardes), e em relação a apresentar as ofertas queimadas a Yahweh aos sábados, luas novas e

estabelecer festivais pelo número [apropriado], de acordo com os decretos para eles,

32
regularmente, diante de Yahweh, para que eles vigiassem a Tenda do Encontro, sobre o que

era santo, e sobre os descendentes de Arão, seus parentes, para o serviço da casa de Yahweh.

[O capítulo 24 apresenta uma lista dos vários grupos familiares dentre os descendentes de Arão

e o modo pelo qual eles devem ser listados e, então, os grupos de outros levitas.]

CAPÍTULO 25

1
Davi e os oficiais do exército separaram para o serviço os filhos de Asafe, de Hemã e de

2
Jedutum, que profetizavam com harpas, alaúdes e tamborins. [...] Os filhos de Asafe: Zacur,

José, Netanias e Asarela, filhos de Asafe sob a responsabilidade de Asafe; ele profetizava sob a

3
supervisão do rei. Jedutum — os filhos de Jedutum: Gedalias, Zeri, Jesaías, Hasabias,

Matitias, seis, sob a responsabilidade de Jedutum, o pai deles. Ele profetizava com o alaúde

5 6
para dar graças e louvar a Yahweh. [...] Deus deu a Hemã catorze filhos e três filhas; todos

esses estavam sob a responsabilidade de seu pai nos cânticos na casa de Yahweh.

[O restante do capítulo 25 e o capítulo 26 fornecem listas adicionais dos músicos e suas

posições, dos guardas das portas e daqueles que cuidavam do tesouro e de outros aspectos da

administração real.]
Por e-mail, um de meus filhos me perguntou se eu estava bem (é

deveras precioso sentir o cuidado de nossos filhos), e respondi com o

resumo de um dia normal: no momento, isso inclui sentar-me junto à

piscina e escrever o volume atual do Antigo Testamento para todos. Eu

esperava que essa resposta o tranquilizasse. Ontem, ele replicou

esboçando o seu dia rotineiro, que não incluía sentar-se junto a uma

piscina, embora de seu apartamento, na Inglaterra, seja possível

contemplar a foz de um rio, e ele e a sua esposa podem sair para uma

caminhada pela praia, caso assim desejem. Isso me deu uma noção mais

clara de como ele passa o seu tempo como engenheiro civil e o que esse

trabalho envolve. Em geral, é difícil imaginar como as pessoas usam o

tempo realizando um trabalho que é diferente do nosso. (Claro que é

difícil contabilizar como o seu tempo está sendo aplicado quando se

trabalha por conta própria.)

Esses capítulos em Crônicas suplementam o livro de Levítico no

tocante a nos ajudar a ver como os ministros do templo usavam o tempo

deles e quais eram os seus diferentes papéis. Todos eles pertencem ao clã

de Levi, e todos os homens levitas são ministros no templo (embora eu

me pergunte se eles podiam fugir caso quisessem). A liderança na

adoração que Deus demandava deles não requeria treinamento

teológico ou talentos especiais. Ao amanhecer e ao anoitecer, havia

sacrifícios a serem oferecidos e cânticos de louvor a serem entoados,

para que o dia começasse e terminasse com adoração e oração

expressados de forma externa e musical. Embora, certamente, houvesse

israelitas residentes em Jerusalém que, às vezes, apareciam para

acompanhar esses serviços, não havia a exigência de comparecimento

de público para que eles fossem realizados. O foco deles não estava

sobre a congregação. Embora houvesse alguns sacrifícios extras aos

sábados, mesmo essas ocasiões não constituíam adoração

congregacional, mas um dia de descanso. Os sacerdotes e levitas

ofereciam o louvor e a adoração como representantes de todo o povo. Se

pessoas comuns fossem antes ou depois dos serviços, isso poderia estar
relacionado a necessidades pessoais que elas queriam levar a Deus;

então, elas podiam permanecer para oferecer o seu próprio louvor e

oração, bem como seus próprios sacrifícios.

A oferta de sacrifícios era um assunto complexo, daí o motivo de um

grande número de pessoas solicitar o “serviço da casa de Yahweh”.

Havia a morte e o desmembramento de animais, a queima de algumas

partes e o cozimento de outras, procedimentos em relação ao sangue

dos animais, de maneira que havia papéis designados a cada tarefa.

Havia um subgrupo de Levi, os descendentes de Arão, que eram os

sacerdotes, aqueles com a responsabilidade especial de assegurar o lado

técnico das ofertas, tais como as ações quanto ao sangue, e para a

queima de incenso e bênçãos. Além disso, inúmeras outras tarefas

práticas eram executadas pelos demais grupos de levitas. E, ainda, havia

os cânticos, que o livro de Crônicas enfatiza de modo especial.

Os turnos para esses trabalhos dividem os ministros em vinte e

quatro grupos, o que provavelmente implica que cada grupo estava em

serviço por duas semanas a cada ano lunar. No restante do tempo, os

ministros viviam em suas casas, o que, na maioria dos casos, significava

viver a alguma distância de Jerusalém nas “cidades levíticas” que são

descritas na Torá. Apesar de não possuírem propriedades e dependerem

do suporte da comunidade como um todo, eles tinham uma

participação nas pastagens ao redor das cidades, o que, obviamente,

denota que os levitas possuíam algumas ovelhas ou cabras, que

forneciam leite e carne para ocasiões especiais. Por serem dependentes

de pessoas para sua subsistência, por meio de dízimos e ofertas, os

levitas podiam sofrer em tempos de escassez (Neemias 13 fala disso), e

um motivo para essas listas seria lembrar ao povo a importância do

trabalho dos levitas. Esse trabalho incluía o ensino, e podemos inferir

que eles tinham o papel de ensino em sua cidade natal e também que,

quando os lugares altos estavam em funcionamento, eles podiam estar

envolvidos no ministério ali. É possível, igualmente, supor que eles

executavam funções como “administradores e autoridades”, em suas


respectivas cidades de origem (2Crônicas 19 nos revela um pouco mais

sobre esse aspecto do trabalho dos levitas).

O papel dos músicos envolve as ofertas de ações de graças e de

louvor, como era de esperar; os nomes de Asafe, Hemã e Jedutum são

recorrentes nos cabeçalhos de Salmos, aparentemente indicando quais

dos grupos de adoração possuíam diferentes salmos em seus repertórios.

A função também envolvia a profecia. O Antigo Testamento, com

frequência, considera que a elaboração do louvor requer que o espírito

de Deus venha sobre as pessoas para que elas possam expressar, de

formas apropriadamente reflexivas, o significado do que Deus tem feito.

O louvor de Moisés e Miriã (ambos profetas) em Êxodo 15 é um

exemplo; assim também é o louvor de Ana em 1Samuel 2. Ainda, o livro

de Crônicas, mais tarde, descreve um levita, chamado Jaaziel

transmitindo uma mensagem à semelhança de um profeta (2Crônicas

20). O modo pelo qual a Escritura relata pessoas profetizando sob a

responsabilidade de alguém que está acima delas sugere a presunção de

que é possível confiar no trabalho de Deus por meio de pessoas

designadas por nascença como músicos e profetas. Igualmente, denota

ser necessário alguém manter um olho em suas profecias para assegurar

que permaneçam nos trilhos, sem desvios.

A variação de idade quanto ao início do serviço levítico (trinta, no

versículo 3, e vinte, no versículo 24) pode significar que esses limites de

idade distintos se apliquem a tarefas levíticas diferentes, ou pode

indicar uma diferença quanto ao que ocorreu em períodos distintos —

trata-se, então, do exemplo de uma série de divergências nessas listas

que refletem a maneira pela qual o livro foi compilado de diversas fontes

de diferentes contextos. Outro exemplo dessas desarmonias é o relato

de que Jedutum teve seis filhos, mas o texto, então, apresenta apenas

cinco nomes. Os autores de Crônicas, evidentemente, não estavam

muito preocupados com essas minúcias — a exemplo dos autores da

Torá, em cujo texto o mesmo ocorre. Eles sabiam que quaisquer que

fossem as disposições em seus dias, elas eram resultantes das


implicações das ações de Davi, de forma que podiam atribuí-las a ele —

do mesmo modo que a Torá atribui leis de séculos diferentes a Moisés,

porque todas elas eram resultantes da fé mosaica em contextos

distintos.

Ao (quase) concluir com uma coleção de listas das pessoas

envolvidas nas diversas formas de serviço e ministério, 1Crônicas

termina mais ou menos como começou (já consideramos algo do

significado de incluir todos aqueles nomes ao abordarmos aqueles

capítulos anteriores).
1CRÔNICAS 27:1—28:21
O ESCOLHIDO
1
Os israelitas, por suas listas, os cabeças ancestrais, os oficiais de milhares e de centenas e

seus administradores, que ministravam ao rei em toda a matéria com respeito às divisões que

entravam e saíam, mês a mês, todos os meses do ano: cada divisão era de vinte e quatro mil.

25
[...] Sobre os depósitos do rei: Azmavete, filho de Adiel. Sobre os depósitos no interior (em

26
cidades, vilarejos e torres): Jônatas, filho de Uzias. Sobre os trabalhadores no interior (no

27
serviço da terra): Ezri, filho de Quelube. Sobre as vinhas: Simei, o ramatita. Sobre o que

28
estava nas vinhas para os depósitos de vinho: Zabdi, o sifmita. Sobre as oliveiras e as

figueiras bravas nas encostas: Baal-Hanã, o gederita. Sobre os depósitos de azeite: Joás.

29
Sobre o gado pastando em Sarom: Sitrai, o saronita. Sobre o gado nos vales: Safate, filho

30
de Adlai. Sobre os camelos: Obil, o ismaelita. Sobre as jumentas: Jedias, o meronotita.

31
Sobre os rebanhos: Jaziz, o hagareno. Todos esses eram oficiais sobre a propriedade

32
pertencente ao rei Davi. Jônatas, tio de Davi, era um conselheiro; ele era um homem de

33
discernimento e um escriba. Jeiel, filho de Hacmoni, estava com os filhos do rei. Aitofel era

34
um conselheiro do rei. Husai, o arquita, era amigo do rei. Depois de Aitofel, vieram Joiada,

filho de Benaia, e Abiatar. Joabe era o comandante do exército do rei.

CAPÍTULO 28

1 2
Davi reuniu todos os oficiais de Israel [...] em Jerusalém. O rei Davi colocou-se em pé e

4
disse: [...] “Yahweh, o Deus de Israel, me escolheu dentre toda a casa de meu pai para ser rei

sobre Israel em perpetuidade, porque ele escolheu Judá como governante, e da casa de Judá,

da casa de meu pai e dos filhos de meu pai, ele teve prazer em me fazer rei sobre todo o Israel.

5
E de todos os meus filhos (porque Yahweh me deu muitos filhos), ele escolheu Salomão,

6
meu filho, para sentar-se no trono do reino de Yahweh sobre Israel. Ele me disse: ‘Salomão, o

seu filho — ele construirá a minha casa e os meus pátios, porque eu o escolhi para ser um filho

7
para mim, e serei um pai para ele. Estabelecerei o seu reino em perpetuidade, se ele for firme

8
em executar os meus mandamentos e os meus decretos, neste mesmo dia.’ Por isso, agora,

diante dos olhos de todo o Israel, da congregação de Yahweh e dos ouvidos do nosso Deus:

Guardem e inquiram de todos os mandamentos de Yahweh, nosso Deus, para que vocês

9
possam possuir essa boa terra e legá-la aos seus filhos depois de vocês, em perpetuidade. E

você, Salomão, meu filho: Reconheça o Deus de seu pai e o sirva com uma mente íntegra e

um espírito entusiasmado, porque Yahweh sonda todas as mentes e tem percepção sobre cada

inclinação nos pensamentos [das pessoas]. Se você o inquirir, ele estará disponível a você,

10
mas, se o abandonar, ele o abandonará para sempre. Veja, agora, que Yahweh o escolheu

11
para construir uma casa para o santuário. Seja forte, aja!” Davi deu a Salomão, seu filho, o

19
plano [...]. “Tudo isso, escrito pela mão de Yahweh sobre mim, ele me capacitou a

compreender — todos os trabalhos envolvidos no plano.”

[Os versículos 20-21 constituem um resumo de encerramento.]


Certa amiga, recentemente, não conseguiu um emprego no ministério

para o qual ela pensava ser a candidata ideal. Deus falhou em tornar

claro esse fato ao comitê selecionador? Eles não oraram pela orientação

divina? Eu mesmo integro um comitê de pesquisa relacionado à escolha

de um novo membro do corpo docente, e um dos candidatos me disse

que essa designação faz sentido em termos da vontade de Deus para

esse momento de sua vida e de sua família. Nas reuniões do comitê,

oramos para sermos conduzidos à pessoa escolhida por Deus, mas,

então, simplesmente, focamos em ler as inscrições e referências e

analisarmos as nossas considerações sobre as pessoas que entrevistamos.

O processo será similar ao utilizado por um grupo de descrentes. Em

que sentido se aplica a ideia da escolha de Deus? Um famoso jogador de

basquete norte-americano possui uma tatuagem nas costas com os

dizeres: “Chosen 1” [Escolhido]. Um livro sobre outro grande atleta dos

Estado Unidos, um golfista, é intitulado, The Chosen One [O

escolhido]; o seu pai o designou assim. Os dois homens experimentaram

ou trouxeram sobre si mesmos uma queda moral da graça que levou a

alguns comentários compreensivelmente sarcásticos; ser o escolhido é

uma bênção mista.

Davi discorre longamente sobre o tema da escolha, em 1Crônicas

28. De Israel, Deus escolheu Judá; dentre Judá, Deus escolheu a família

de Jessé; dessa família, Deus escolheu Davi; entre os filhos de Davi,

Deus escolheu Salomão. Por trás da escolha de Judá, claro, estava a

escolha de Deus por Israel; por trás dessa escolha, estava a escolha de

Abraão; por trás da escolha de Abraão (pode-se dizer), estava a escolha

de Deus pelo mundo. A escolha de Abraão por Deus não foi um meio de

excluir as demais pessoas, mas de incluí-las. Uma pista de que essa ideia

permaneceu viva em Israel é a inclusão de um ismaelita e um hagareno

entre o secretariado-chave de Davi. Ismael era o filho de Abraão por


meio do qual a promessa da aliança de Deus não se cumpriu, e Crônicas

também cita os hagarenos como estrangeiros com os quais os clãs

israelitas travaram batalhas. Suas respectivas funções em relação aos

camelos e rebanhos se enquadram em seus históricos mais parecidos

com beduínos do que com fazendeiros ou moradores de cidades.

Israel foi desafiado a viver em meio à tensão de a escolha tanto ser

um privilégio quanto uma vocação. Não era, na realidade, uma tensão,

porque os demais povos deveriam ver o que significava ser o

privilegiado povo de Yahweh e, assim, serem atraídos a buscar a mesma

bênção para si mesmos. Deus não esperava que os israelitas saíssem a

pregar ao mundo; seria visível o suficiente para as pessoas verem. Isso

significava que Israel recebera os privilégios para cumprir um papel. O

mesmo era verdadeiro com respeito às escolhas de Deus por Judá, Jessé,

Davi e Salomão. Todos eles foram escolhidos para cumprir um papel,

não para desfrutarem da condição de escolhidos; a eleição deles não está

relacionada com a salvação eterna. O problema é que ser o escolhido

coloca uma pressão avassaladora sobre a pessoa. Ela passa a acreditar

que havia algum mérito nela para ser escolhida; Deus deixa claro a

Israel que não é assim. Ou o indivíduo passa a aproveitar os benefícios

de ser o escolhido, ou pensa que pode se livrar de qualquer coisa

justamente por ser o escolhido.

Assim, por que Deus escolhe algumas pessoas, não outras? Talvez

seja simplesmente uma expressão da maneira com que Deus fez a

humanidade. Aprendemos e recebemos de outras pessoas; ensinamos e

damos a outras pessoas. Não somos autossuficientes como indivíduos ou

como comunidades. Além disso, quando há um trabalho a ser feito,

como, por exemplo, a construção de um templo, é mais eficiente ter

alguém escolhido para ser o encarregado. Para os ouvintes dessa

história, a atividade de Deus na escolha lhes oferece algumas

reafirmações importantes. Judá constitui um triste retrato do que foi

outrora, e um precário peão no tabuleiro das províncias do Império

Persa, de nenhum modo comparável à província de Samaria, ao norte,


que reivindicava ser tão fiel a Yahweh quanto Judá. Davi recorda a Judá

que ele é o clã escolhido por Deus; os judaítas podem ter confiança no

compromisso de Deus com eles. Igualmente, Davi os lembra de que

Deus o escolheu “em perpetuidade”; quando não há um rei davídico, as

pessoas deveriam se lembrar dessa escolha de Deus por ele. Davi

enfatiza que Deus escolheu Salomão como o construtor do templo; em

seus dias, os ouvintes adoravam em uma versão reconstruída daquele

mesmo templo. A consciência da escolha de Deus pode ser perigosa para

os objetos dessa escolha, especialmente quando são pessoas no poder,

mas isso pode ser edificante para aqueles que são beneficiários indiretos

da escolha divina, principalmente quando há pouco a encorajá-los.

Algo similar emerge do relato sobre a passagem, de Davi a Salomão,

dos planos para a construção do templo que lhe foram dados por Deus.

Ele fala sobre essa entrega dos planos por Deus em termos

sobrenaturais: Davi os recebeu por meio da mão de Deus sobre ele.

Trata-se de uma típica expressão a ser usada em relação a um profeta,

tal como Ezequiel, a quem Deus toma e transporta (em espírito) da

Babilônia a Jerusalém, para que ele possa ver o que está ocorrendo lá e,

então, reportar aos judaítas no exílio babilônico. Davi quer dizer que os

planos para o templo foram uma revelação sobrenatural daquela forma?

A julgar por outros aspectos de sua história, Davi teria usado o seu

discernimento, bem como o de sua equipe administrativa, na

formulação dos planos, mas, então, está preparado para confiar em Deus

de que os planos foram feitos conforme os desejos divinos. Uma vez

mais, suas palavras oferecem aos leitores de Crônicas a confirmação de

que esse templo, no qual eles cultuam, de fato é um lugar com o qual

Deus se identifica.

A lista de administradores de Davi abre uma janela sobre a

organização necessariamente complexa de seu reinado; isso garantiria a

capacidade de coletar os impostos para o bom funcionamento do

governo. Por outro lado, se você vivesse ao tempo de Davi em vez de

nos dias dos leitores de Crônicas, isso poderia fazer você pensar em
outra desvantagem da ideia de escolha. Por Davi ser o escolhido, ele

ganhou a posse de todas aquelas ovelhas e de todo aquele gado, das

vinhas e oliveiras, e assim por diante, o que garantia o sustento dele e

das pessoas que viviam em seu palácio e trabalhavam na administração

em Jerusalém. Por seu turno, isso significa que tudo isso não era para o

sustento das pessoas comuns. Talvez as pessoas do povo conseguissem

ver que ganhavam mais do que perdiam nessa situação, mas a regra

usual é que a administração possui uma vida melhor do que as pessoas

comuns a quem ela, supostamente, serve.


1CRÔNICAS 29:1-30
QUEM SOU EU E QUEM É O MEU POVO?
1
O rei Davi disse a toda a assembleia: “Salomão, meu filho, apenas — Deus o escolheu, um

homem jovem e verde, embora o trabalho seja grande, porque o castelo não é para um ser

2
humano, mas para Yahweh Deus. Com toda a minha energia, providenciei para a casa de

meu Deus: ouro para as coisas de ouro, prata para as de prata, bronze para as de bronze, ferro

para as de ferro, madeira para as de madeira, pedra ônix e pedra de engaste, pedra de

antimônio e pedra colorida, toda sorte de pedras preciosas e pedra de alabastro, em grandes

5b 6
quantidades. [...] Quem irá doar voluntariamente, dedicar-se hoje a Yahweh?” Os líderes

ancestrais, os líderes dos clãs de Israel, os oficiais de milhares e de centenas, e os líderes a

9
cargo do trabalho do rei doaram voluntariamente. [...] O povo celebrou a sua oferta

voluntária porque foi com uma mente simples que eles entregaram voluntariamente a

Yahweh. O rei Davi também celebrou com alegria.

10
Davi adorou Yahweh na presença de toda a assembleia. Davi disse: “Tu deves ser adorado,

11
Yahweh, Deus de Israel, nosso pai, de eternidade a eternidade. Teus, Yahweh, são a

grandeza, a força, a glória, a honra e a majestade, porque tudo o que há nos céus e na terra é

12
teu, Yahweh — a soberania e a preeminência em relação a tudo, como cabeça. Riqueza e

esplendor vêm de ti. Tu governas sobre tudo. Em tuas mãos estão a força e o poder. Em tuas

13
mãos está fazer alguém grande e forte. Então, agora, Deus, damos-te graças e louvamos o

14
teu esplêndido nome. Mas quem sou eu e quem é o meu povo para termos a capacidade de

doar voluntariamente dessa maneira, porque tudo vem de ti e é das tuas mãos que damos a ti.

15
Pois somos estrangeiros residentes diante de ti, transientes como todos os nossos

16
ancestrais. Nossos dias na terra são como uma sombra e sem esperança. Yahweh, nosso

Deus, toda essa grande quantidade que providenciamos para construir uma casa para ti, para

17
o teu santo nome, vem das tuas mãos. Tudo é teu. Deus meu, reconheço que testas a mente

e que a integridade é o que tu aprovas. Eu mesmo, com integridade de mente,

voluntariamente, dei todas essas coisas, e, agora, o teu povo apresentou-se aqui — eu os vejo,

18
alegre e voluntariamente, doando a ti. Yahweh, Deus de Abraão, Isaque e Israel, nossos

ancestrais, guarda isso para sempre como a inclinação dos pensamentos na mente de teu

19
povo e firma a mente deles em relação a ti. A Salomão, meu filho, dê uma mente simples

para guardar os teus mandamentos, as tuas declarações e as tuas leis, cumprir todos eles e

construir o castelo para o qual providenciei.”

20
Davi disse a toda a assembleia: “Adorem a Yahweh, o seu Deus.” Toda a assembleia adorou

21
Yahweh, o Deus de seus ancestrais. Eles se curvaram e se ajoelharam diante de Yahweh, e o

rei ofereceu sacrifícios e fez ofertas queimadas a Yahweh, no dia seguinte.

[Os versículos 21b-30 encerram o relato sobre a celebração, o reconhecimento de Salomão e a

morte de Davi.]
Quase todos os domingos, permaneço à frente da igreja, enquanto nos

preparamos para a Comunhão; os encarregados trazem os pratos de

ofertório; e, de frente para a congregação, eu declaro a Deus: “Todas as

coisas vêm de ti, Senhor”, e a congregação responde: “E de ti mesmo é

que te damos.” As palavras expressam a nossa consciência de que, ao

darmos a Deus, simplesmente devolvemos parte do que dele recebemos.

O Antigo Testamento vê isso como uma forma de reconhecer a fonte de

tudo o que temos. De um modo estranho, dar uma proporção adequada

a Deus libera o resto para o nosso deleite. Duvido que a nossa

congregação conheça a origem dessas palavras; muitas das orações em

nosso culto refletem as palavras da Escritura, mas, em geral, elas fazem

parte de um todo que algum liturgista construiu no século XVI ou no

século XX. Todavia, no exemplo em questão, elas são extraídas

diretamente de uma oração de Davi.

Em nossa igreja, a maioria não pensaria nas ofertas que fazemos aos

domingos como “ofertas de livre-arbítrio” (a antiga tradução para

“dádivas voluntárias”) porque elas envolvem o cumprimento de uma

promessa que fizemos no começo do ano. As ofertas de livre-arbítrio são

doações adicionais que fazemos de tempos em tempos por algum motivo

especial. Israel tinha obrigações anuais em termos de dízimos e assim

por diante; as ofertas para a construção do templo são ofertas de livre-

arbítrio, no sentido de não serem abrangidas pelas expectativas

estabelecidas na Torá. Eis o motivo pelo qual Davi precisa do apoio

voluntário do povo e deve estar aberto a revelar as suas contas pessoais

para demonstrar que não está pedindo algo que ele mesmo não está

preparado para fazer. Davi está ofertando de suas próprias posses como

rei, das quais ninguém pode obrigá-lo a abrir mão. Não obstante, ele

sabe que mesmo as suas posses reais provêm de Deus, de modo que não

pode alegar o direito de mantê-las. Além disso, Davi reconhece que as

ofertas que não expressam uma atitude interior de entrega pessoal a

Deus erra o alvo. A pessoa, na totalidade de seu ser, precisa estar

envolvida na oferta. (O templo é, normalmente, citado como uma casa


ou um palácio. Aqui, ele é mencionado como um castelo, que — a

exemplo de um palácio — é uma casa especialmente impressionante,

mas também é uma fortaleza; a sua excelência é apropriada àquele que

irá viver ali.)

As palavras de adoração, expressas por Davi, são dignas de ouvir

novamente, como se fôssemos os leitores originais de Crônicas.

Descrever Yahweh como detentor de todo o poder, esplendor e

majestade, então, convida a réplica: “Bem, por que, então, não vemos

isso? Por que Yahweh não mostra algo dessa soberania? Por que os

poderes estrangeiros continuam a governar sobre nós?” A história

convida a comunidade judaíta, dos dias de Esdras e Neemias, ou

posterior, a seguir crendo na grandeza do Deus deles e, de fato,

apresentar essa réplica diante de Deus, à maneira de Salmos. Se

reconhecermos a grandeza e a soberania de Deus, podemos desafiar

Deus a exercê-la.

Ao mesmo tempo, há uma espécie de humildade na oração de Davi

que, novamente, repercute nos leitores de Crônicas. Entre eles, havia

estrangeiros residentes de outras nações ou de outros clãs de Israel que

sempre tiveram a consciência de estarem lá pela graça da comunidade

judaíta e sabiam que jamais seriam membros plenos dela. Mesmo se

pedissem para assumir empregos que esperavam torná-los

indispensáveis, a exemplo de Obil, o ismaelita, e Jaziz, o hagareno, no

capítulo 27, ou John Goldingay, o britânico, ainda assim eles seriam

sempre estrangeiros. Eles não tinham os mesmos direitos que os

judaítas, como possuir o seu próprio pedaço de terra, e eram

dependentes da boa vontade de seus anfitriões. Davi usa isso como um

retrato da própria posição dos judaítas em relação a Deus e/ou um

retrato da posição de toda a humanidade em relação ao Criador. Tudo o

que possuímos pertence a Deus, o que temos é pela permissão dele. Os

judaítas estavam em uma posse segura de sua terra, ao contrário de

Abraão, Isaque e Jacó, que eram simples moradores temporários em

uma terra que pertencia a outros. No entanto, há um sentido no qual


eles não podem mais considerar a sua posição na terra como garantida, à

semelhança de seus ancestrais. A terra pertencia a Deus. Isso não lhes

dava base alguma para considerar a sua posição assegurada, embora, por

outro lado, isso também lhes desse uma segurança maior. Eles apenas

tinham que se lembrar disso e adotar um tipo correto de humildade em

relação a Deus que é capaz de protestar, mas que o faz como um sinal de

dependência.

Davi expressa a questão de maneira ainda mais enfática, ao

descrever nossos dias neste mundo como uma espécie de sombra e

desprovidos de esperança. Uma sombra é algo efêmero e insubstancial.

A palavra hebraica para “mundo” é a mesma para “terra”; e isso, pelo

menos, nos leva a pensar nessas palavras como uma extensão do

comentário sobre ser estrangeiro residente e transitório em relação à

terra de Canaã. Nos dias de Crônicas, os judaítas já tinham sido

expulsos de lá uma vez e poderiam perder a terra novamente. Eles

estavam sem esperança no sentido de não poderem fazer nada para

assegurar a terra; de não poderem presumir que o futuro será melhor do

que o presente. Trata-se de uma extraordinária declaração de fé

declarar isso para si mesmo e para Deus.

Alternativamente, as palavras de Davi, talvez refiram-se ao sentido

no qual qualquer vida humana é como uma sombra, sem esperança.

Mesmo uma vida longa encontra o seu fim e, depois disso, o ser humano

se reúne aos seus ancestrais no túmulo ou no Sheol (que não é um lugar

de punição ou sofrimento, mas apenas um lugar de descanso para todos,

uma espécie de análogo não físico ao túmulo, como o lugar de repouso

para os nossos corpos). É algo que o Antigo Testamento aceita como o

fim lógico de uma vida plena. Mais à frente, o capítulo relata que Davi

“morreu em boa velhice, pleno de satisfação com dias, riqueza e honra”.

No entanto, o fato de a morte ser certa, de tempos em tempos, lança

uma sombra sobre a vida. É excelente que Davi e outros israelitas

tenham uma grande surpresa a caminho quando Jesus despertar,


temporariamente, as pessoas no Sheol para lhes dizer que haverá uma

surpresa ainda maior no dia da ressurreição.


2CRÔNICAS

2CRÔNICAS 1:1-17
O QUE VOCÊ GOSTARIA QUE EU LHE DESSE?
1
Salomão, filho de Davi, afirmou a sua força sobre o seu reino; Yahweh, seu Deus, estava com

ele e o tornou extremamente grande.

2
Salomão falou a todo o Israel (os oficiais sobre milhares e sobre centenas, as autoridades e

3
todos os líderes de todo o Israel, os chefes ancestrais), e Salomão e toda a assembleia com

ele foram ao lugar alto, em Gibeom, porque a Tenda do Encontro de Deus, que Moisés, servo

4
de Yahweh, fez no deserto, estava lá (embora Davi tenha levado o baú de Deus de Quiriate-

Jearim quando providenciou isso, porque ele armara uma tenda para o baú em Jerusalém).

5
Como o altar de bronze, que Bezalel, filho de Uri, tinha feito, estava lá, em frente da

6
habitação de Yahweh, Salomão e a assembleia o consultaram. Ali, Salomão subiu ao altar de

bronze diante de Yahweh, que estava na Tenda do Encontro, e fez mil ofertas queimadas

7
sobre ele. Naquela noite, Deus apareceu a Salomão e lhe disse: “Peça o que devo lhe dar.”

8
Salomão disse a Deus: “Tu mostras grande compromisso com Davi, meu pai, e me fizeste rei

9
em seu lugar. Agora, Yahweh Deus, que a tua palavra com Davi, meu pai, seja confirmada,

10
porque fizeste-me rei sobre um povo tão numeroso quanto o pó da terra. Agora, dá-me

discernimento e conhecimento, para que eu possa sair e entrar diante deste povo. Pois quem

11
pode exercer autoridade sobre este teu grande povo?” Deus disse a Salomão: “Porque isso

estava em sua mente, e você não pediu riqueza, possessões e honra, nem a vida de seus

oponentes, ou mesmo vida longa você pediu, mas pediu discernimento e conhecimento para

12
poder exercer autoridade para o meu povo, sobre quem lhe fiz rei, discernimento e

conhecimento lhe são dados, e riqueza, possessões e honra eu lhe darei, tais que não

pertenceram aos reis que foram antes de você nem pertencerão àqueles depois de você.”

13
Salomão foi do lugar alto em Gibeom, de diante da Tenda do Encontro, para Jerusalém e

14
reinou sobre Israel. Salomão acumulou carruagens e corcéis, e teve mil e quatrocentas

carruagens e doze mil corcéis. Ele os colocou em cidades para carruagens e com o rei em

15
Jerusalém. O rei fez prata e ouro como pedras em Jerusalém, em grandes quantidades, e fez

16
cedros como amoreiras nos sopés das montanhas. Os cavalos de Salomão eram trazidos do

17
Egito e da Cilícia. Os comerciantes do rei os adquiriam na Cilícia ao preço [regular]; uma

carruagem era trazida e transportada do Egito por seiscentos [siclos] de prata, e um cavalo

por cento e cinquenta, e, portanto, eles eram transportados por meio [dos mercadores] a

todos os reis dos hititas e os reis de Aram.


Nos últimos dez anos de sua vida, Ann, minha esposa, ficou

incapacitada de falar ou de expressar, por outro meio, o que ela queria;

era o aspecto mais triste de sua enfermidade. Desse modo, eu precisava

adivinhar o que ela desejava com base no que conhecia dela e, então,

tinha de acreditar em minhas suposições; eu brinco que ela passará os

primeiros dez anos no céu me contando o que eu fiz de errado em seus

últimos dez anos de vida aqui, e que isso será um elemento importante

de nossa conversa. Não me surpreenderia caso ela também sentisse uma

privação por não ser capaz de me perguntar o que eu desejava e, então,

ser capaz de ver se poderia atender ao meu pedido. Isso contrastava

sobremodo com uma característica dos primeiros anos de nosso

casamento e de nossa vida familiar, quando o nosso caçula, ainda

garotinho, ficava tão ansioso para nos dizer (digamos) em agosto o que

ele queria ganhar no Natal que introduzimos uma regra de que esse

assunto não seria tratado antes de 17 de novembro, uma data, claro,

escolhida aleatoriamente.

“O que você gostaria que eu lhe desse?”, Deus pergunta a Salomão.

Essa é a mais difícil de todas as questões, como as palavras

subsequentes de Deus irão indicar. A exemplo de Davi, Salomão é uma

figura enigmática. Provavelmente, o momento mais sublime da história

de seu pai é quando ele se entrega ao exercício da autoridade a fim de

expressar fidelidade ao seu povo (1Crônicas 18). Aquele

comprometimento cumpre a visão do Antigo Testamento no tocante a

como um rei deve ser. Salomão sabe que a sua obrigação é exercer

autoridade de um modo fiel e, portanto, sua resposta à indagação de

Deus é pedir o que ele necessita para fazer isso. Reconhecidamente, ele

não faz menção à fidelidade; seu foco reside em discernimento e

conhecimento. No pensamento ocidental, essa sagacidade política

estaria totalmente divorciada da fidelidade ao povo daquela pessoa. No

pensamento do Antigo Testamento, não era possível mostrar genuíno

discernimento e conhecimento sem também manifestar fidelidade.

Assim, não surpreende o fato de que, no capítulo 9, a rainha de Sabá


venha a elogiar Salomão por exercer autoridade de uma forma

genuinamente fiel ao seu povo e por possuir um discernimento

extraordinário. São dois lados de uma mesma moeda.

A questão, então, é se há alguma tensão entre a preocupação quanto

ao discernimento no exercício de autoridade e, implicitamente, quanto

à fidelidade, e o acúmulo de carruagens e cavalos, a ponto de construir

cidades para abrigá-los, a promoção do esplendor e do luxo urbanos,

além do desenvolvimento de um excelente processo no comércio de

cavalos. Quando Deuteronômio 17 estabelece normas para a indicação

de um rei, caso o povo desejasse um, o texto explicitamente exclui a

importação de cavalos do Egito. Trata-se de um sinal de confiança nos

recursos humanos e está fadado a fracassar, Isaías 31 declara. Os

profetas, igualmente, criticam a maneira pela qual esses

desenvolvimentos, por fim, são estabelecidos à custa de pessoas comuns

do povo, conforme a advertência de Samuel aos israelitas, quando eles

pedem um rei, pela primeira vez. Não obstante, Crônicas não expressa

nenhum desconforto com isso, e as pessoas comuns, com frequência, se

divertem com o esplendor de uma inauguração ou coroação que custa

mais do que o PIB de alguns países do Terceiro Mundo. Talvez a

audiência de Crônicas, séculos mais tarde, pensasse em quão grandiosos

aqueles dias eram.

O pano de fundo da história é que Jerusalém ainda não é o principal

centro de adoração de Israel; apenas após a construção do templo é que

passará a ser. Jerusalém é o centro administrativo de Davi sem tradição

israelita. Davi deu um passo à frente no processo de tornar a cidade de

Jerusalém no centro de Israel ao transferir o baú da aliança para lá,

instalando uma tenda para ele e preparando o local para receber as

ofertas a serem feitas ali. Todavia, a habitação “real” de Deus é a Tenda

do Encontro que remonta aos dias no deserto. Por sua natureza

itinerante, ela tem estado em diversos lugares, mas, agora, está em

Gibeom, ao norte de Jerusalém (a localização provável é uma vila

chamada Nebi Sanwil, “Profeta Samuel”, que pode ser vista da moderna
cidade de Jerusalém). Tecnicamente, Gibeom é um lugar alto, o que

sugere ser um santuário cananeu conquistado por Israel e dedicado a

Yahweh. Trata-se do local tradicional e legítimo para a adoração

nacional “oficial” a ser oferecida. Salomão e a liderança israelita,

aparentemente, lá comparecem para um culto que marca a ascensão de

Salomão; daí ser o momento em que Deus faz a Salomão a difícil e

crucial pergunta: “Então, o que você gostaria de me pedir?”


2CRÔNICAS 2:1—3:17
A CASA DE DEUS
1
Salomão disse para construir uma casa para o nome de Yahweh e uma casa para si mesmo

3
como rei. [...] Salomão enviou mensagem a Hirão, o rei de Tiro, dizendo: “Como fizeste para

4
Davi, meu pai, quando lhe enviaste cedros para ele construir uma casa na qual viver, agora

eu irei construir uma casa para o nome de Yahweh, meu Deus, para consagrar a ele, para

queimar incenso aromático diante dele, e o regular pão da proposição e as ofertas queimadas

da manhã e da tarde para sábados, luas novas e ocasiões indicadas para Yahweh, nosso Deus.

5
Isso é [estabelecido] sobre Israel em perpetuidade. A casa que irei construir será grande,

6
porque o nosso Deus é maior que todos os deuses. Mas quem possui a capacidade de lhe

construir uma casa, porque os céus, mesmo os mais altos céus, não podem contê-lo? Então,

quem sou eu para lhe construir uma casa, a não ser para queimar incenso diante dele [...]?”

11
Hirão, o rei de Tiro, disse, em uma mensagem escrita que enviou a Salomão: “Na dedicação

12
de Yahweh ao seu povo, ele o fez rei sobre eles.” Hirão disse: “Yahweh deve ser adorado, o

Deus de Israel que fez os céus e a terra, que deu a Davi um filho sábio, que tem compreensão

e discernimento, que irá construir uma casa para Yahweh e uma casa para si mesmo como rei.

13
Então, agora, estou enviando um homem perspicaz que tem discernimento, Hurão-Abi

16
[...]. Nós mesmos cortaremos árvores do Líbano de acordo com a tua necessidade, e as

3:1
levaremos a ti como balsas até Jope, para que possas levá-las a Jerusalém.” [...] Então,

Salomão começou a construir a casa de Yahweh em Jerusalém, no monte Moriá, no qual

[Yahweh] apareceu a Davi, seu pai, no local que Davi tinha estabelecido, na eira de Ornã, o

2
jebuseu. Ele começou a construir no segundo dia do segundo mês, no quarto ano de seu

reinado.

[O capítulo 3 prossegue descrevendo as dimensões do templo, seu revestimento e decoração, os

querubins, o santuário interno e as cortinas.]

O local em Jerusalém, que os muçulmanos chamam de Haram-al-sharif

(Santuário Nobre) e os judeus chamam de Monte do Templo, é uma

enorme plataforma superficial, com as dimensões de um campo de

futebol (ali, os jovens palestinos jogam futebol). Na extremidade sul, há

uma mesquita e, além dela, a escadaria monumental que, nos dias de

Jesus, interligava a plataforma às áreas comercial e residencial da

cidade. No centro, está localizado o “Domo da Rocha”, construído ali

porque uma das tradições ou histórias sobre Maomé relata como ele
ascendeu ao céu daquele lugar. No interior, se desce para o que parece

ser o topo rochoso de um monte. De fato, é o que parece, porque reflete

a topografia original da área, agora obscurecida por causa da vasta

plataforma construída ao redor dela por Herodes, o Grande. O templo

estava situado muito próximo desse pico rochoso. A elevação em si é o

monte Moriá. Assim, pode-se estar, simultaneamente, no lugar no qual

Abraão quase sacrificou Isaque e no local de construção do templo.

O segundo capítulo de 2Crônicas é que estabelece essa conexão.

Com base no texto de 1Crônicas 21, sabemos que o ajudante de

Yahweh instruiu Davi a construir um altar na eira de Ornã, acima da

área residencial de Jerusalém, e que Davi, então, designou aquele ponto

como o local para um santuário central para toda a nação. De súbito,

passa a ser um lugar com outro conjunto de ressonâncias. O local no

qual Deus provou Abraão é, igualmente, o lugar no qual Deus castigou

Davi. O ponto no qual Abraão fez uma oferta é o lugar no qual Israel,

doravante, faz as suas ofertas. Posicionar-se ali é ser impactado pelas

camadas de significado que estão vinculadas àquela área.

Quando Davi transferiu o baú da aliança para Jerusalém, 1Crônicas

13 observou que o baú foi chamado pelo nome de Yahweh porque o

nome sugere a pessoa. O Antigo Testamento estabelece esse ponto, de

modo mais sistemático, em relação ao templo, que é a casa para o nome

de Yahweh. No templo, as pessoas irão proclamar o nome de Yahweh e

expressarão isso em orações, e esse processo testemunhará a realidade e

a presença de Deus que, todavia, é grandiosa demais para ser abrangida

por um edifício. Salomão também enfatiza esse ponto ao assegurar que

não está construindo, na verdade, uma morada para Deus, apenas um

local para a oferta de sacrifícios. O templo é construído mais pela

necessidade de haver um local para adoração em Israel do que por Deus

necessitar de uma habitação.

Embora o santuário apresente uma decoração impressionante, com

madeira de cipreste, ouro e pedras preciosas, suas dimensões são

modestas, vinte e sete metros de comprimento e nove de largura, bem


menores do que uma igreja de tamanho médio, mas seu propósito não

era o de abrigar toda a população, que se reunia no pátio. O clima da

região significa que (como os californianos) os jerusalemitas podem

presumir que o clima permanecerá agradável e que o lugar natural para

reuniões é em áreas exteriores, e eles estarão certos em noventa por

cento do tempo (Esdras 10 descreve uma ocasião em dezembro na qual

eles são apanhados pela chuva do lado de fora). A sua divisão tripla

(santuário interno, santuário externo e pátio) tem sido imitada por

muitas igrejas. Em geral, as igrejas possuem degraus para demarcar as

divisões. No ponto mais oriental e elevado, localiza-se a pequena área na

qual a mesa da ceia está. Equivalente ao santuário externo, há a área

maior ocupada pelo coro e pelos ministros. A área principal do templo, a

nave, na qual a congregação permanece, corresponde ao pátio. No

templo, dois terços de seu comprimento correspondem ao santuário

externo, no qual os sacerdotes queimam incenso. Fora dele, há duas

colunas com as inscrições “Ele estabelece” e “Nele está a força”, que

seriam um claro lembrete cada vez que se olhasse para o santuário. O

pátio é o lugar no qual uma pessoa naturalmente dá as boas-vindas aos

amigos; o santuário externo é como a sala de estar da família; enquanto

o santuário interior é equivalente aos aposentos privados da pessoa. A

existência do Lugar Santíssimo assegura aos israelitas que Deus está

realmente presente no meio deles e também confirma que eles estão

protegidos do poder de milhares de volts ou da visão cegante que o

contato direto com a presença de Deus acarretaria.

O reconhecimento de Salomão e de Deus, por parte de Hirão, tanto

pode ser uma hipérbole educada do rei de Tiro quanto uma hipérbole da

parte de Crônicas. Isso não significa que Hirão, de fato, tenha se

tornado um adorador de Yahweh. Seja como for, o relato do que ele diz

objetiva encorajar as pessoas que ouvem a história a reconhecer o que

Hirão expressa e considerar o seu reconhecimento como antecipação da

confissão que, um dia, todas as nações expressarão, por mais implausível

que isso parecesse no contexto político dos ouvintes, na época.


Aparentemente, trata-se de uma coincidência que o nome de Hurão-

Abi lembre o nome do rei. O transporte da madeira destinada ao

templo, do Líbano para Jerusalém, é um projeto de tirar o fôlego. Isso

envolveria transformar as toras de madeira em balsas, fazendo-as flutuar

pelo Mediterrâneo, por centenas de quilômetros, até o rio Jarcom, ao

norte de Telavive, e, então, arrastá-las rio acima o mais distante

possível. Essa seria a parte mais fácil. Após essa primeira fase, elas

teriam de ser puxadas por animais até Jerusalém, cerca de novecentos

metros acima.

Considerando que Davi já construíra um palácio em Jerusalém, você

pode estar se perguntando se Salomão realmente precisa de outro. Mas,

então, lembramos que reis, presidentes e astros do cinema e da música

(incluindo os cristãos), normalmente, sentem a necessidade de

possuírem várias residências. A exemplo de ter várias esposas, trata-se

de uma expressão de importância. Dentre os muitos fãs, poucos

parecem se importar com isso.


2CRÔNICAS 4:1—5:14
QUANDO VOCÊ PODE DIZER QUE DEUS ESTÁ PRESENTE

[O capítulo 4 descreve as características do pátio (o altar do sacrifício, o tanque monumental,

as pias e o equipamento necessário ao sacrifício ali) e o santuário externo (o altar do incenso,

as mesas dos pães da Presença, o candelabro e o equipamento necessário ali).]

CAPÍTULO 5

1
Quando todo o trabalho que Salomão fez para a casa de Yahweh estava completo, Salomão

trouxe para dentro as coisas que Davi, seu pai, havia consagrado: a prata, o ouro e todos os

2
acessórios ele colocou nos tesouros da casa de Deus. Então, Salomão reuniu os anciãos de

Israel (todos os cabeças dos clãs e os chefes ancestrais dos israelitas) em Jerusalém, para

3
trazer o baú da aliança de Yahweh da cidade de Davi (isto é, Sião). Todos em Israel

4
reuniram-se diante do rei para a festa (isto é, o sétimo mês). Quando todos os anciãos de

5
Israel haviam chegado, os levitas pegaram o baú. Eles trouxeram o baú e a Tenda do

Encontro e todos os acessórios que estavam na tenda. Os sacerdotes, os levitas, os

6
trouxeram, enquanto o rei Salomão e toda a comunidade de Israel que havia se reunido com

ele defronte do baú sacrificavam tantas ovelhas e bois que não puderam ser registrados ou

7
contados por causa das grandes quantidades. Os sacerdotes trouxeram o baú da aliança de

Yahweh ao seu lugar, na sala interna da casa, o Lugar Santíssimo, sob as asas dos querubins.

8
Os querubins estendiam suas asas sobre o lugar do baú; os querubins cobriam o baú e suas

9
varas de cima. As varas estendidas e as extremidades das varas [saindo] do baú eram

visíveis da parte da frente da sala interna, mas não eram visíveis de fora dela. Vieram para

10
ficar lá até este dia. Não havia nada no baú, exceto as duas tábuas que Moisés colocara

[ali], em Horebe, quando Yahweh selou [a aliança] com os israelitas, ao saírem do Egito.

11
Quando o sacerdote saiu do santuário (porque todos os sacerdotes que estavam presentes

12
haviam se santificado, sem guardar as divisões), os levitas cantores, todos eles, Asafe,

Hemã e Jedutum, e seus filhos e parentes, vestidos de linho, com tamborins, harpas e

alaúdes, ficaram em pé a leste do altar, e com eles estavam cento e vinte sacerdotes soando

13
trombetas. Como um, os trompetistas e os cantores fizeram um som para ser ouvido em

louvor e ação de graças a Yahweh. Quando eles elevaram um som com trombetas, tamborins

e instrumentos musicais, e louvaram Yahweh “porque ele é bom, porque o seu compromisso é

14
para sempre”, a casa de Yahweh encheu-se com uma nuvem. Os sacerdotes não puderam

continuar ministrando diante da nuvem porque o esplendor de Yahweh encheu a casa de

Deus.

Houve um punhado de vezes nas quais quase senti uma percepção

tangível da presença de Deus na adoração. Uma delas foi na noite final


de um acampamento, quando ainda era um jovem assistente do reitor

(em termos britânicos, na última noite de um evento de jovens, quando

ainda era um pároco auxiliar), após o culto de encerramento no qual

parecia que um grande número de adolescentes firmara um

compromisso com Cristo pela primeira vez ou renovara o compromisso

que podia significar abrir mão de padrões de comportamento e atitudes

que os restringiam como pessoas e como cristãos. Houve ocasiões, em

nossa capela do seminário, nas quais pessoas se derramaram em dor ou

louvor, ou quando Deus tinha falado, ou quando pessoas haviam orado

por cura e Deus respondera. Falando metaforicamente, pode-se dizer

que o lugar de adoração foi tomado por uma nuvem que sugeria a

presença de Deus, e que os adoradores foram levados a cair de joelhos e

reduzidos ao silêncio ou capazes apenas de dizer: “Afasta-te de mim,

Senhor, porque sou um homem pecador.”

Talvez os israelitas nos dias de Salomão tenham, de fato, visto uma

nuvem literal enchendo o santuário como um sinal da realidade da

presença de Deus; ou pode ser que eles já tivessem passado por

experiências similares às que acabei de descrever e tenham falado

metaforicamente em termos da aparição de uma nuvem. Ainda, talvez

isso não faça muita diferença, especialmente para pessoas que vivem em

épocas posteriores, a exemplo dos leitores de Crônicas, porque (como

nós) eles não tinham vivenciado experiências assim; pelo menos, eles

não descrevem nenhuma ocorrência similar por ocasião da reconstrução

do templo (veja Esdras 6). Se tais experiências ocorreram, elas

pertenciam ao passado. Todavia, é suficiente que Deus tenha vindo

habitar no templo e que também habitasse no tempo dos leitores, ainda

que não seja de maneira perceptível.

Na ocasião, o baú da aliança estava sendo levado para o templo

recém-construído, ao santuário interno. Antes de recontar esse

movimento, Crônicas completa a descrição das características do

santuário externo e do pátio. No santuário externo, há o altar do

incenso; existem as mesas nas quais doze pães são colocados todos os
dias; em outra religião, esses poderiam ser os pães deixados para a

divindade (e, certamente, os israelitas, com frequência, pensaram neles

dessa maneira), mas, no contexto da fé do Antigo Testamento, eles

sugerem a maneira pela qual Deus provê pão para o povo. O candelabro

estaria lá por motivos práticos, mas também poderia sugerir a forma

pela qual a luz de Deus brilha sobre o povo. O elemento mais

importante do pátio seria o altar sacrificial, totalmente acessível,

permitindo a todos levarem suas ofertas a Deus. Igualmente

impressionante é o “mar” de metal fundido, cuja importância o Antigo

Testamento jamais explica, e os doze lavatórios ou pias que teriam um

papel em relação à purificação das pessoas e dos animais sacrificiais.

O baú da aliança havia permanecido na “cidade de Davi”, a área que

pertencera aos jebuseus, mais abaixo do pequeno cume e abaixo do

templo, localizado na parte mais elevada do cume (embora seja um

ponto mais baixo que os picos em derredor, como o monte das

Oliveiras). “Sião” é outro nome para essa cidade (não para parte dela,

como é o caso agora). O sétimo mês significa setembro/outubro

(contando da Páscoa, na primavera), a ocasião da Festa do Sucote (dos

Tabernáculos, das Tendas ou Cabanas), quando Israel celebra tanto a

memória do êxodo quanto (como esperado) o sucesso da colheita

recém-terminada. Embora haja dois outros grandes festivais no ano

(Páscoa/ Pães Asmos e Pentecoste), Sucote é o maior deles e, portanto,

a época natural para uma grande celebração. Além do baú da aliança,

eles trazem a Tenda do Encontro, que, aparentemente, já havia sido

transferida de Gibeom (onde estava no capítulo 1). Crônicas enfatiza o

ponto sobre o papel cumprido pelos levitas, o que previne haver a

repetição da calamidade reportada em 1Crônicas 13.

Protegida por uma cortina, aquela extremidade correspondente a

um terço do templo é o santuário interno, no qual o baú da aliança é

colocado, com os querubins sobre o baú, e sugerindo a presença do

invisível Deus acima deles. O baú da aliança é, ao mesmo tempo,

inexpressivo e muito importante. Faltava-lhe a imponência de uma


grande imagem divina, a exemplo das divindades de outros povos.

Paradoxalmente, à sua própria maneira, isso sublinha a grandiosidade

de Yahweh, que não é a espécie de divindade que pode ser representada

por uma imagem estática, obra de mãos humanas. Literalmente falando,

o santuário interno era mais ou menos vazio, mas os querubins,

posicionados sobre o baú, sugeriam os seres celestiais que carregavam o

trono de Yahweh, que se elevava muito acima deles e do próprio

santuário. Quão impressionante, então, era esse Deus!

O propósito prático cumprido pelo baú chamava a atenção para a

sua importância. Não havia nada mais no santuário interior além do

baú, e nada no interior do baú, exceto as duas tábuas de pedra.

Contudo, quão relevantes eram aquelas tábuas de pedra! Nelas estava

inscrita a base do relacionamento de Israel com Deus, o lembrete do

que Deus havia feito por eles (“Eu sou Yahweh, o seu Deus, que os tirou

do Egito”) e os fundamentos do que Deus esperava deles (nenhum

outro deus, nenhuma imagem de Deus, nenhum uso errado do nome de

Deus, a observância do sábado, e assim por diante). Essas expectativas

fundamentais não eram tão exigentes, mas elas eram inegociáveis. Se o

povo de Israel não as tivesse tratado como negociáveis, os leitores de

Crônicas não estariam naquela situação precária. Caso desejassem

evitar o caminho trilhado por Salomão e a nação, nos séculos seguintes,

eles precisavam se lembrar do significado delas.

É intrigante que o livro de Crônicas fale do baú como presente no

santuário “até o dia de hoje”, porque não há referências ao baú após o

exílio, e, certamente, fora destruído por ocasião da destruição do

templo em 587 a.C., muito tempo antes da composição de Crônicas.

Talvez Crônicas tenha copiado essa expressão de um registro dessa

celebração, escrito quando o templo de Salomão ainda estava em pé. É

possível que implique um reconhecimento de que, mesmo que o baú e as

tábuas não mais existam fisicamente, o que eles representam ainda

perdura.
Pode-se dizer que o refrão, repetido pelos músicos, “Ele é bom, o seu

compromisso é para sempre”, constituía uma reafirmação dos aspectos

fundamentais da parte de Deus no relacionamento. “Ele é bom” pode

soar ameno demais, mas implica que Deus é generoso, gentil,

benevolente e amoroso. “Seu compromisso” implica que a sua

fidelidade não cessa, mesmo quando a nossa própria termina.


2CRÔNICAS 6:1-21
UMA NUVEM ESPESSA E UMA CASA MAJESTOSA
1 2
Então, Salomão disse: “Yahweh disse que habitaria em uma nuvem de tempestade, mas

3
construí para ti um templo imponente, um lugar para habitares para todo o sempre.” O rei

virou o rosto em derredor e abençoou toda a congregação de Israel, quando toda a

4
congregação de Israel estava em pé. Ele disse: “Yahweh seja adorado, o Deus de Israel, que

falou com Davi, meu pai, por sua própria boca, e por suas próprias mãos o cumpriu, dizendo:

5
‘Desde o dia em que tirei o meu povo do Egito, eu não escolhi uma cidade dentre todos os

clãs de Israel para construir uma casa para o meu nome estar ali, e não escolhi ninguém para

6
ser governante sobre Israel, o meu povo. Mas escolhi Jerusalém para o meu nome estar ali, e

7
escolhi Davi para estar sobre Israel, o meu povo.’ Estava na mente de Davi, meu pai,

8
construir uma casa para o nome de Yahweh, o Deus de Israel, mas Yahweh disse a Davi, meu

pai: ‘Quanto ao que estava em sua mente construir uma casa para o meu nome, você fez bem

9
no que estava em sua mente. No entanto, você mesmo não construirá a casa, mas o seu filho,

10
que sairá de você, ele é aquele que construirá a casa para o meu nome.’ Yahweh confirmou a

palavra que ele falou. Eu ascendi ao lugar de Davi, meu pai, e me sentei no trono de Israel,

11
como Yahweh declarou. Construí a casa para o nome de Yahweh, o Deus de Israel. Coloquei

ali o baú no qual a aliança de Yahweh está, a qual ele selou com os israelitas.”

12
Ele colocou-se em frente do altar de Yahweh, diante de toda a congregação de Israel, e

13
estendeu as suas mãos (porque Salomão havia feito uma plataforma de bronze e a colocado

no meio do pátio, sendo o seu comprimento e a sua largura de dois metros e vinte e cinco

centímetros, e sua altura de um metro e trinta e cinco centímetros; assim, ele ficou em pé

sobre ela, e ajoelhou-se diante de toda a congregação de Israel, e estendeu as mãos aos céus).

14
Ele disse: “Yahweh, Deus de Israel, não há Deus como tu nos céus ou sobre a terra,

guardando aliança e compromisso com seus servos, que andam diante dele com todo o seu

15
ser interior, que cumpriste com teu servo Davi, meu pai, o que lhe falaste. Com tua própria

16
boca falaste, e por tua própria mão o cumpriste, neste mesmo dia. Agora, Yahweh, Deus de

Israel, cumpra com o teu servo, com Davi, meu pai, o que falaste a ele: ‘Nem lhe faltará uma

pessoa diante de mim, assentado no trono de Israel, se apenas os seus descendentes

guardarem o caminho deles, ao andarem segundo o meu ensinamento, como você tem

17
andado diante de mim.’ Então, agora, Yahweh, Deus de Israel, que a tua palavra seja

18
confiável, a que falaste a Davi, o teu servo. No entanto, Deus realmente habitará com a

humanidade na terra? Ora, os céus, mesmo os mais altos céus, não podem contê-lo, muito

19
menos esta casa que construí. Mas atende ao apelo do teu servo e à sua oração por graça,

Yahweh, meu Deus. Ouve o clamor e a súplica que o teu servo expressa diante de ti.

20
Estejam os teus olhos abertos para esta casa, dia e noite, para o lugar do qual disseste que

nele porias o teu nome, ouvindo o pedido que o teu servo expressa em direção a este lugar.

21
Que ouças as orações por graça de teu servo e de Israel, o teu povo, que eles expressam em
direção a este lugar. Que tu mesmo ouças do lugar no qual habitas, dos céus, e, quando

ouvires, que perdoes.”

Ontem, permanecemos em pé na igreja por um tempo muito longo.

Regularmente, nos colocamos em pé enquanto oramos pelas

necessidades do mundo e da igreja, e, então, ficamos em pé enquanto

membros da congregação compartilham ações de graças ou orações de

cunho pessoal. Ainda, ficamos em pé ao orarmos pelos aniversariantes e,

ontem, continuamos em pé por longo tempo por causa do falecimento,

nesta semana, do irmão de um membro de nossa congregação, que

partiu em boa velhice. Ele havia sido padrinho no casamento de outro

membro e também era amigo do grande herói de Pasadena, Jackie

Robinson, o primeiro afro-americano a jogar na liga principal de

beisebol, no século XX. Permanecemos em pé, enquanto tudo isso era

recontado, e fiquei ali pensando: “Será que já não podemos sentar?”

O instinto de permanecer em pé é correto. Na vida comum, ficamos

em pé em sinal de respeito e, assim, essa é a atitude natural para orar.

Reunidos diante de Yahweh, ao término da construção do templo, a

congregação se levanta. Salomão permanece em pé, enquanto lidera os

israelitas em adoração. Ele está em pé, novamente, quando os lidera em

oração. Brevemente, ele se prostra diante de Deus, como um suplicante

diante de um rei do Oriente Médio, à maneira em que os muçulmanos

oram. A única atitude aparentemente inapropriada à oração é aquela,

em geral, adotada pelos cristãos: sentado. E o estilo episcopal de

ajoelhar-se com o apoio para a mão de um banco à frente do orador não

conta como ajoelhar-se no sentido bíblico (algumas traduções

apresentam as medidas da plataforma na qual Salomão fala ao povo em

côvados, cuja unidade corresponde a pouco menos de meio metro).

Há um aspecto adicional quanto à linguagem corporal da oração

que Salomão ilustra: ele estende as mãos aos céus em outro gesto de

apelo; seus braços e suas mãos abrem-se para receber de Deus. Em


conexão com a linguagem corporal, temos as descrições de oração que o

capítulo oferece. A oração envolve “súplica”. Estamos na posição de

pessoas que se lançam à misericórdia de um rei que possui poder para

agir em benefício delas. Nossas súplicas são “orações por graça” — isto é,

a palavra para tais súplicas é vinculada à palavra para graça e sugere

que não estamos reivindicando qualquer direito em relação a Deus, mas

apelando para o amor dele. A oração prossegue para falar em termos de

perdão. Uma vez mais, essa palavra implica o reconhecimento de que

estamos nos lançando à misericórdia do rei, que detém o direito de

emitir um perdão, e denota um reconhecimento adicional de que a

graça nos é estendida de forma espetacular, quando recebemos

misericórdia e obtemos o perdão por nossas rebeliões. Nossas súplicas

são “clamores” ou brados: a palavra sugere um barulho elevado (seu uso

é mais frequente com relação ao louvor) e, portanto, expressa a

urgência com a qual oramos.

O envolvimento do corpo humano na oração é complementado pela

ênfase no corpo de Deus. Claro que o Antigo Testamento sabe que Deus

não possui, realmente, um corpo, mas isso não impede as pessoas de

falar como se Deus tivesse elementos corporais, porque essa linguagem

enfatiza a realidade de Deus como um ser pessoal — não uma pessoa

humana, mas uma pessoa. Deus nos fala com a sua própria boca, isto é,

as palavras realmente vêm de Deus em pessoa. Ele age a nosso favor

com suas próprias mãos: em outras palavras, seus atos são, de fato, atos

divinos; Deus não fica num lugar remoto sem nenhum envolvimento

conosco; ele não é uma teoria, um princípio ou uma ideia, mas uma

pessoa que age e que fala.

Salomão sabe que essa linguagem antropomórfica não oferece uma

descrição literal de Deus. Nenhuma descrição literal é possível. Ele

construiu uma casa para Deus, mas sabe que fazê-lo é, na verdade, uma

ideia insensata. O único lugar onde é possível retratar Deus vivendo é

em uma nuvem de tempestade, algo espesso e denso que protege a

humanidade de ver Deus e de ser cego pelo brilho deslumbrante de


Deus. Não importa quão grande ele imaginava o cosmos; ainda seria

insuficiente para conter Deus. Trata-se de uma declaração

extraordinária dos lábios de Salomão; especialmente hoje que sabemos

mais detalhes sobre quão incompreensivelmente grande é o cosmos. E

Deus é o seu Criador. Claro que Deus não pode ser contido nele. No

entanto, Salomão ousou construir uma casa para Deus habitar nela —

ou melhor, para o nome de Deus habitá-la. E ele ainda ousa pedir a

Deus que preste atenção às orações feitas pelas pessoas ali e às orações

que são feitas em direção àquela morada.

Por que elas orariam em direção a ela? Se você estivesse no pátio,

defronte do edifício, oraria em direção a ele, sabendo que essa

construção à sua frente é, realmente, o lugar no qual Deus habita. Mas,

então, a maioria dos israelitas não vive em Jerusalém; no máximo, uma

vez ao ano, se tivessem sorte, eles iam a Jerusalém e se posicionavam

naquele pátio (o salmo 84 se regozija nessa experiência). Todavia, em

outras épocas do ano, em qualquer mês, semana, dia e em qualquer hora,

eles podiam virar-se em direção a Jerusalém e orar voltados para aquela

habitação. (Novamente, podemos imaginar os muçulmanos se

prostrando e orando em direção a Meca; Maomé, originariamente,

orava em direção a Jerusalém.) Imagine-se, cronologicamente, à frente

dos dias de Salomão, quando os israelitas estão no exílio, na Babilônia,

no Egito ou em algum outro lugar, e essa oração suscita a empolgante

possibilidade de você poder orar pela misericórdia de Deus, mesmo

quando ele o lançou para fora do pátio, da cidade e do país. Avance mais

um pouco no tempo e imagine-se vivendo em uma comunidade que

jamais viveu em Jerusalém e jamais viverá ou mesmo visitará essa

cidade, uma comunidade para a qual o exílio se tornou em dispersão.

Apesar de poder ir a Jerusalém, você está estabelecido em (digamos)

Susã e jamais fará essa viagem, mesmo sabendo, em algum sentido, que

essa Jerusalém que você jamais visitou é o lar. Como Daniel, você

também pode ir à janela de seu quarto e orar na direção dessa casa na

qual Deus vive e ouve a oração (veja Daniel 6).


2CRÔNICAS 6:22-42
EU SEMPRE POSSO FALAR DIRETAMENTE COM DEUS
22
“Se alguém cometer uma ofensa contra o seu próximo e [o próximo] exigir que ele faça um

23
juramento, e o juramento for feito diante do teu altar nesta casa, que tu mesmo ouças dos

céus e aja e julgue para teus servos, retribuindo à pessoa errada ao fazer cair sobre a sua

cabeça o resultado de sua conduta e justificando a pessoa certa dando-lhe de acordo com a

26
sua conduta correta. [...] Quando os céus se fecharem, e não houver chuva porque [os

israelitas] cometeram uma ofensa contra ti e suplicarem em direção a este lugar, e

27
confessarem o teu nome, e se afastarem de sua ofensa por tê-los humilhado, que tu ouças

nos céus e perdoes as ofensas de teus servos, de Israel, o teu povo, quando os direcionares ao

bom caminho no qual eles devem andar, e deres chuva sobre a tua terra, que deste ao teu

28
povo como uma possessão. Quando houver fome na terra, quando houver epidemia,

ferrugem, mofo, gafanhotos ou lagartas, quando os seus inimigos os sitiarem na região de

29
seus assentamentos (qualquer doença ou qualquer enfermidade): qualquer súplica,

qualquer oração por graça que qualquer pessoa faça ou que todo o teu povo, Israel, faça, que

reconheça, cada pessoa, a sua doença ou a sua enfermidade e que estenda as suas mãos para

30
esta casa, que tu mesmo ouças dos céus, do lugar onde habitas, perdoes e dês à pessoa de

acordo com os seus caminhos (porque conheces o seu ser interior, pois somente tu conheces

31
o ser interior da pessoa), para que eles reverenciem a ti, andando em teus caminhos todos

os dias em que viverem sobre a face da terra que deste aos nossos ancestrais.

32
Ainda, quanto ao estrangeiro que não é de Israel, o teu povo, que vem de uma terra

distante por causa de teu grandioso nome, da tua mão forte e de teu braço estendido, e venha

33
e suplique em direção a esta casa, que ouças dos céus, do lugar onde habitas, e ajas de

acordo com tudo o que o estrangeiro pedir a ti, para que todos os povos da terra reconheçam

o teu nome e reverenciem a ti, como Israel, o teu povo, e reconheçam que o teu nome está

36
ligado a esta casa que construí. [...] Quando cometerem uma ofensa contra ti (pois não há

ser humano que não ofenda) e ficares irado com eles e os entregares diante de um inimigo, e

37
seus captores os carregarem cativos para uma terra distante ou próxima, e levarem [isso]

ao seu ser interior, na terra na qual são cativos, e retornarem e orarem a ti por graça na terra

38
de seu cativeiro, dizendo: “Pecamos e fomos rebeldes e sem fé”, e se voltarem para ti com

todo o seu ser interior, com toda a sua alma, na terra do seu cativeiro, para o qual as pessoas

os levaram cativos, e suplicarem na direção da sua terra, que deste aos seus ancestrais, da

39
cidade que escolheste e da casa que construí para o teu nome — dos céus, do lugar onde

habitas, que ouças a súplica deles, as suas orações por graça, e ajas decisivamente para eles, e

perdoes o teu povo que pecou contra ti.

40
“Agora, meu Deus, que os teus olhos estejam abertos e teus ouvidos atentos ao apelo

41
oferecido em conexão a este lugar. Assim, agora, Yahweh Deus, sobe para a tua residência,

tu e o teu poderoso baú. Que os teus sacerdotes, Yahweh Deus, se vistam de libertação. Que
42
o teu comprometido povo celebre coisas boas. Yahweh Deus, não vires o rosto aos teus

ungidos. Atenta para o grande compromisso que Davi, o teu servo, teve.”

Ontem foi domingo, e as passagens bíblicas lidas no culto iluminaram

muitos pontos sobre a oração — sobre o fato de que as lágrimas, com

frequência, acompanham a oração (Jeremias 9), que não há um censor

às orações (salmo 79) e sobre a liberdade que temos de orar por outras

pessoas e, especialmente, por aquelas em posição de autoridade, com

base na existência de um único mediador entre nós e Deus, o próprio

Jesus Cristo (1Timóteo 2). Após o primeiro de nossos dois serviços

dominicais, um membro da congregação me contou uma história que

lhe pedi para compartilhar quando preguei, novamente, no segundo

culto. Ele havia sido recrutado para servir na Marinha dos Estados

Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, e estava para ser enviado

ao Havaí, a Pearl Harbor. Desde muito jovem, ele soube que podia ter

acesso imediato e direto a Deus; que ele sempre poderia levar as suas

necessidades a Deus e que sempre teve consciência de que Deus ouvia

as suas orações. Contudo, pouco tempo antes de ser enviado ao Havaí,

um pastor tentou convencê-lo de que ele não podia ir direto a Deus

daquela maneira. Ele devia ir por intermédio dos santos. Com o tempo,

ele passou pelo processo de convencimento do pastor, mas não

acreditou nas palavras dele. E, durante todo o tempo em que esteve nas

perigosas viagens de submarino, ele continuou falando diretamente

com Deus, consciente de ter esse acesso por causa do único mediador.

Salomão não conhecia nada sobre Jesus, mas sabia que ele e outros

israelitas tinham o mesmo acesso direto (pode se dizer que eles tinham

esse acesso com base no fato da vinda de Jesus para ser o mediador e

que essa mediação de Cristo operava tanto de forma retroativa quanto

futura). Os motivos de oração não eram apenas as grandes questões

nacionais; qualquer mãe com um filho doente ou qualquer fazendeiro

preocupado com pragas que podiam dizimar suas colheitas podia ir e


falar com Yahweh sobre esses assuntos. O fato de não poderem ir até o

templo por morarem distantes não fazia nenhuma diferença. Eles ainda

podiam orar na direção do local no qual Deus estava presente.

Ainda, não eram somente israelitas que podiam orar a Yahweh no

templo. Estrangeiros podiam fazer isso também. Salomão até imagina

pessoas peregrinando a Israel imbuídas apenas desse propósito. Alguns

adoradores estrangeiros podiam ser diplomatas ou representantes de

outras nações que haviam visitado Jerusalém. Há certa ironia aqui,

considerando a frequência com que Salomão importou esposas

estrangeiras para Jerusalém. Seria bom imaginá-las indo orar a Yahweh

em vez de introduzir outros objetos de adoração na cidade. Não

obstante, outros estrangeiros em Jerusalém podiam ser pessoas comuns

como Urias, o hitita, que migrara, talvez, por causa de dificuldades em

sua terra natal. Seja qual for o motivo, eles eram livres para ir e clamar a

Yahweh sempre que necessitassem de socorro ou proteção. Israel,

portanto, deveria ser receptivo aos imigrantes e encorajá-los a crer no

grande significado do seu Deus. Yahweh não é apenas um deus menor

confinado a um pequeno povo, mas um Deus grandioso a quem todas as

nações devem reconhecer.

A oração de Salomão deixa claro que o pecado não anula a liberdade

de orar, do mesmo modo que pertencer a um diferente grupo étnico

também não. Claro que é necessário fazer algo com suas ofensas, embora

o que você deva fazer seja simples, a exemplo de quando um ser humano

ofende outro. É preciso parar com o erro que está sendo cometido e

pedir perdão.

Deus também está preocupado quanto a conflitos dentro da

comunidade. O que você faz quando alguém acredita que um vizinho o

prejudicou (por exemplo, colocou fogo em sua plantação de trigo) e o

vizinho negar ter feito isso? Faça o acusado jurar diante de Deus que

não fez nada e orar para que o juízo divino venha sobre ele, caso esteja

mentindo. Salomão pede a Deus para responder a tais orações. O


vizinho acusado teria de ser muito presunçoso para orar pedindo pelo

juízo divino, sabendo que estava, de fato, mentindo.

De algumas formas, as linhas finais dessa oração, conforme

registrada em Crônicas, são de grande importância. Como grande parte

de Crônicas, a oração é descrita quase da mesma forma que em 1Reis,

mas ao final há um desvio. Nenhuma das versões pretende representar o

que Salomão realmente disse, um milênio antes. Elas estão formulando

a espécie de oração apropriada naquele contexto, para expressar a

relevância do momento às futuras gerações de ouvintes e leitores dessa

história. Em 1Reis 8, as linhas finais fazem referência a Moisés e ao

êxodo; aqui, em Crônicas, elas mencionam Davi, o baú da aliança e os

sacerdotes ungidos. Isso está de acordo com o início do livro de

Crônicas, que principia com Davi e o templo em vez de com Moisés e o

êxodo. A ideia dos sacerdotes vestindo-se de libertação recebe um

pouco de luz pelo retrato do povo comprometido de Yahweh

celebrando as boas coisas: isto é, a oração pede que os sacerdotes e o

povo, como um todo (como pessoas comprometidas com Yahweh)

possam desfrutar dessa experiência da bondade e da libertação de Deus

e apareçam para adorar trajadas de modo adequado à celebração.

Pode haver uma espécie de significado político na diferença da

oração entre Crônicas e Reis. Após a divisão de Judá e Efraim, o último

ainda podia se ver como parte do povo de Moisés, parte do povo do

êxodo, mas havia se desligado de Davi e do templo. A menção de

Crônicas ao último em lugar do primeiro afirma a posição distinta de

Judá. Seria, igualmente, relevante sob a perspectiva da moral de Judá,

pois lembra os judaítas da privilegiada posição que ocupam por serem

capazes de orar ao Deus que habita no templo e orar com base no

compromisso feito a Davi por Yahweh e/ou no comprometimento com

Yahweh demonstrado por Davi.


2CRÔNICAS 7:1-22
“SE O MEU POVO”
1
Quando Salomão terminou a súplica, fogo desceu dos céus e consumiu a oferta queimada e

2
os sacrifícios, e o esplendor de Yahweh encheu a casa, os sacerdotes não foram capazes de

3
entrar na casa de Yahweh porque o esplendor de Yahweh enchera a casa de Yahweh. Quando

todos os israelitas viram o fogo e o esplendor de Yahweh descendo sobre a casa, eles caíram

com o rosto em terra, sobre o pavimento. Eles se prostraram, testificando a Yahweh, “porque

4
ele é bom, porque o seu compromisso dura para sempre”. Quando o rei e todo o povo

5
ofereceram um sacrifício diante de Yahweh, o rei Salomão sacrificou vinte e dois mil bois e

6
cento e vinte mil ovelhas, e o rei e todo o povo dedicaram a casa de Deus, enquanto os

sacerdotes tomavam as suas posições, bem como os levitas com instrumentos para cantar a

Yahweh, os quais o rei Salomão fizera para testificar a Yahweh, “porque ele é bom, porque o

11
seu compromisso dura para sempre” [...]. Assim, Salomão completou a casa de Yahweh e a

casa do rei, e tudo o que havia vindo à mente de Salomão para fazer na casa de Yahweh e em

sua própria casa ele teve êxito em fazer.

12
Yahweh apareceu a Salomão de noite e lhe disse: “Ouvi a sua súplica e escolhi este lugar

13
para mim mesmo como uma casa de sacrifício. Se eu fechar os céus e não houver chuva, ou

14
se ordenar que o gafanhoto consuma a terra ou envie uma epidemia contra o meu povo, e o

meu povo, que é chamado pelo meu nome, cair, suplicar, buscar a minha face e se afastar de

seus caminhos errados, eu mesmo ouvirei dos céus e perdoarei as suas ofensas, e curarei a sua

15
terra. Meus olhos estarão, agora, abertos e meus ouvidos atentos à súplica que for feita

16
neste lugar. Assim, agora, escolhi e consagrei esta casa para o meu nome estar ali para

17
sempre. Meus olhos e minha mente estarão lá para sempre. Você mesmo, se andar diante

de mim como Davi, seu pai, andou, e agir de acordo com tudo o que lhe ordenei, e guardar as

18
minhas leis e decretos, estabelecerei o seu trono real como selei [uma aliança] com Davi,

19
seu pai, dizendo: ‘Não faltará a você alguém sentado [no trono] em Israel.’ Mas, se vocês

[todos] se afastarem e abandonarem as minhas leis e mandamentos que estabeleci diante de

20
vocês, e irem e servirem outros deuses e se prostrarem diante deles, eu os desarraigarei de

minha terra que lhes dei, e esta casa que consagrei para o meu nome lançarei fora de diante

21
de minha face e farei disso um ditado, um lema, entre todos os povos. Esta casa, que era

imponente — todos os que passam por ela ficarão chocados e dirão: ‘Por que Yahweh agiu

22
daquela maneira contra este país e esta casa?’ E o povo dirá: ‘Porque eles abandonaram

Yahweh, o Deus de seus ancestrais, que os tirou do Egito, e se apegaram a outros deuses e se

prostraram a eles e os serviram. Portanto, ele trouxe sobre eles toda essa aflição.’”
Ouvi dizer que os musicais de Carol e Jimmy Owens revolucionaram a

música de louvor nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, no século

XX, e me lembro do impacto sobre o nosso seminário da primeira

música deles, Come Together, ainda que, agora, considere o country rock

deles suave demais. O segundo musical deles tomou emprestado o

título de 2Crônicas 7:14, “Se o meu povo”; esta sentença e as palavras

seguintes se tornaram temas frequentes nas orações nacionais matinais

nos Estados Unidos. A prática de recorrer a essa promessa de Yahweh

suscita a questão se é legítimo aos Estados Unidos, à Grã-Bretanha ou a

qualquer outra nação tomar posse das promessas dirigidas a Israel como

“meu povo”. No passado, os dois países foram encorajados à arrogância

e autoindulgência de reivindicarem ser o povo especial de Deus.

Um ponto de partida na reflexão sobre essa questão seria a

declaração ao fim de Isaías 19, quanto ao propósito supremo de

abençoar o Egito e a Assíria, do mesmo modo que Israel, dizendo:

“Bendito seja o Egito, meu povo, a Assíria, obra de minhas mãos, e

Israel, minha herança” — em particular, a Israel, mas aplicar a bênção a

outras nações está de acordo com o modo pelo qual Gênesis liga a

bênção original de Deus a Abraão com o desejo divino de abençoar

todas as nações. O chamado de Abraão, por Deus, visava a ser um meio

de incluir outras nações, não de excluí-las. Em Isaías, a aplicação dessas

três expressões nominais à Assíria e ao Egito é uma forma duplamente

radical de trabalhar as implicações daquele ponto. Do mesmo modo que

cita aquelas palavras que podem soar exclusivas, o texto as aplica a dois

dos opressores arquétipos de Israel. Se a Assíria e o Egito podem ser

chamados de povo de Deus, qualquer outro país pode ser assim

chamado, mesmo os Estados Unidos e a Grã-Bretanha.

Caso os povos queiram reivindicar a promessa em 2Crônicas 7, tudo

o que eles têm de fazer é cumprir as mesmas condições de Israel.

Primeiro, devem se ajoelhar, adotar a mesma atitude de um escravo ou

de um suplicante diante de um rei, dispostos a se humilharem e se

curvarem diante do seu soberano. Então, devem “suplicar”. O soberano


está na posição de um juiz, e os suplicantes buscam levar o juiz a agir em

favor deles. Aqui, há certa dose de ilógica. Normalmente, as pessoas

pleiteiam ao juiz com base no fato de serem inocentes. Nesse contexto,

as pessoas que suplicam são culpadas e estão reconhecendo esse fato.

Estão em apuros por causa do erro que cometeram, não pelo mal que

lhes foi feito. Eles não pedem por justiça, mas por perdão, a classe de

perdão que somente um rei pode assegurar, o perdão que ignora o

merecimento deles à execução pelo que fizeram.

Eles podem fazer tal apelo apenas se reconhecerem a sua

transgressão e virarem as costas para ela. A palavra para “virar” é, em

geral, traduzida por “arrepender”. Em outras palavras, o

arrependimento não é, normalmente, uma questão de sentir tristeza,

mas de mudar o que se fez. Talvez a expectativa de as pessoas buscarem

a face de Yahweh esteja vinculada a esse fato. Uma vez mais, a tradução

regular para “buscar a minha face” talvez não deixe o ponto

suficientemente claro. A ideia é de buscar em Yahweh coisas que

somente ele pode dar — por exemplo, uma boa colheita ou

discernimento quanto ao futuro. Quando a face de Yahweh sorri, essas

coisas procedem da face. Deus logo observará o corolário, de que as

pessoas não devem buscar a face de outros deuses. Na realidade,

Salomão irá encorajá-las a fazer isso. Ele também é propenso a

considerar a presunção ocidental, de que buscamos tais coisas por

assumir a responsabilidade pelo nosso próprio destino. Se qualquer país

que cumprir as condições estabelecidas por Yahweh pode ter o

cumprimento da promessa de Yahweh, isso sugere uma agenda para que

a igreja cumpra essas obrigações por si mesma e ore para que a nação

esteja aberta a também agir assim.

O relato sobre as ofertas de Salomão deixa claro, uma vez mais, que

não devemos considerar a história de Crônicas de modo tão literal.

Calculou-se que, se os sacerdotes fizessem sacrifícios nessa escala, eles

precisariam oferecer vinte animais por minuto, durante os doze dias do

festival. As quantidades são um modo hiperbólico de transmitir a


grandiosidade e a importância dessa ocasião festiva. A descrição do fogo

de Deus descendo do céu também será uma forma simbólica de

expressar esse mesmo ponto e de transmitir a realidade da aprovação de

Deus do templo como um local no qual a adoração pode ser oferecida e

no qual Deus estará presente.

O registro do evento traz perfeitamente à tona a realidade da

grandeza e do amor de Deus. Por um lado, Yahweh é alguém tão

dinâmico e cheio de energia que manter certa distância é um ato sábio.

Do outro, “ele é bom, e seu compromisso dura para sempre”. A

bondade de Deus sugere gentileza e generosidade, e seu compromisso

denota uma fidelidade que irá além do que alguém possa esperar. Deus

não é somente amoroso, mas também poderoso, de modo que não

podemos expressar uma falsa familiaridade. Deus não é apenas

poderoso, mas também amoroso, de modo que podemos relaxar e ter

confiança. Essa declaração sobre a bondade e o compromisso de Deus é

recorrente em Crônicas e em Salmos. Trata-se de uma consciência

básica sobre Deus que alimenta a relação de Israel com Deus.

Essa declaração sobre Deus é expressa pelas descrições concretas e

pessoais do envolvimento de Deus com o povo. É como se Deus tivesse

uma face que está no templo, cujo sorriso é visível e evoca uma dádiva

generosa; como se Deus tivesse olhos que estão sempre abertos ao povo,

ouvidos sempre atentos para ouvir. Na verdade, é como se aqueles olhos

estivessem realmente presentes no templo, como se a mente dele

estivesse lá, observando o que está acontecendo. De forma mais literal,

Deus tem um nome, que é conhecido por Israel, e pronunciá-lo traz a

realidade de sua presença.


2CRÔNICAS 8:1—9:31
NUNCA HOUVE NADA ASSIM
1
Ao término dos vinte anos durante os quais Salomão construiu a casa de Yahweh e a sua

2
própria casa (e as cidades que Hirão deu a Salomão — Salomão as construiu e levou os

3 4
israelitas para morarem lá), Salomão foi a Hamate-Zobá e a subjugou. Ele construiu

5
Tadmor, no deserto, e todas as cidades-armazéns que construiu em Hamate. Construiu

Bete-Horom Alta e Bete-Horom Baixa como cidades fortificadas [com] muros, portões e

6
uma barra, e Baalate e as cidades-armazéns que pertenciam a Salomão, e todas as cidades

para carruagens e corcéis, todos os desejos que Salomão teve para construir em Jerusalém,

7
no Líbano e em todos os países que governou. Todo o povo que permaneceu dos hititas, dos

amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus (eles não eram israelitas de nascimento),

8
de seus descendentes que permaneceram depois deles no país, aos quais os israelitas não

9
haviam eliminado — Salomão os designou como trabalho conscrito até este dia. Dos

israelitas, aos quais Salomão não fez servos para o seu trabalho, porque eles eram soldados,

10
oficiais comandantes e oficiais sobre suas carruagens e corcéis, estes foram os oficiais sobre

os representantes do rei Salomão, duzentos e cinquenta [deles] que governavam sobre o

11
povo. Salomão levou a filha do faraó da cidade de Davi para a casa que construiu para ela,

porque (ele disse): “Minha esposa não viverá na casa de Davi, rei de Israel, porque aqueles

[lugares] nos quais o baú de Yahweh esteve são santos.”

[Os versículos 12-18 descrevem os procedimentos da adoração estabelecidos por Salomão à luz

das prescrições de Moisés e de Davi e sua expedição a Ofir em busca de ouro.]

CAPÍTULO 9

1
A rainha de Sabá ouviu um relatório sobre Salomão e foi a Jerusalém para testar Salomão

com questões, acompanhada de um séquito muito grande, com camelos carregando

especiarias, ouro em grande quantidade e pedras preciosas. Ela foi a Salomão e falou com ele

2
sobre tudo o que estava em sua mente. Salomão lhe falou sobre todas as coisas que ela disse.

5
Nada era obscuro a Salomão, que ele não dissesse a ela. [...] Ela disse ao rei: “É verdade o

6
que ouvi em meu país quanto às tuas ações e ao teu discernimento. Não acreditei nas

palavras deles até vir e meus olhos verem, e eis que nem a metade da extensão de teu

7
discernimento me foi contada. Tu ultrapassas o relatório que ouvi. A boa sorte de teus

homens, a boa sorte de teus assistentes, que permanecem continuamente diante de ti e

8
ouvem o teu discernimento! Que Yahweh, o teu Deus, seja adorado, aquele que favoreceu a

ti ao colocar-te em seu trono como rei para Yahweh, o teu Deus. Do amor de teu Deus por

Israel e de estabelecê-los para sempre, ele te fez rei sobre eles para exercer autoridade da

22
maneira correta.” [...] O rei Salomão excedeu todos os reis da terra em riqueza e

23
discernimento. Todos os reis da terra buscavam audiência com Salomão para ouvir o seu

24
discernimento, o qual Deus colocou em sua mente. Cada um deles trazia o seu presente,

objetos de ouro e de prata, roupas, armas, cavalos e mulas, a quantidade devida a cada ano.
30 31
[...] Salomão reinou sobre todo o Israel, em Jerusalém, quarenta anos. Salomão dormiu

com seus ancestrais, e eles o enterraram na cidade de Davi, seu pai. Roboão, seu filho,

tornou-se rei em seu lugar.

Logo após concluir essa tradução, dirigi de Los Angeles até o condado

de Orange. O contraste sempre me impacta. Cruzar o limite do condado

é semelhante a atravessar a fronteira de um país a outro. Do lado de Los

Angeles, as autoestradas são estreitas e mal conservadas; as casas e

edifícios comerciais são pequenos e precários. No condado de Orange,

ao contrário, tudo é novo, grande e impressionante, transbordando

riqueza. Essa constatação suscita sentimentos mistos em mim. Odeio

isso por sua extravagância e sua cínica intensificação do abismo entre

ricos e pobres. Mas também aprecio passear por shoppings luxuosos ou

comer em restaurantes espaçosos (ou ostentar o meu sotaque britânico

para obter um melhor atendimento, mesmo desgostando de mim mesmo

por fazer isso).

Não vejo nenhum indício de que Salomão ou o autor de Crônicas

sentissem qualquer ambiguidade similar, mas há indicações de que

alguns israelitas sim. Eclesiastes usa Salomão como seu modelo para

uma reflexão sobre aquela ambiguidade. Primeiro Reis é explícito sobre

como Salomão age erroneamente, especialmente no campo religioso,

como resultado da implementação de políticas segundo o exemplo dos

reis de outras nações. Crônicas, simplesmente, se gloria nas conquistas

de Israel durante o reinado de Salomão. Pode-se compreender porque

os seus leitores também fariam isso em seu contexto histórico após o

exílio. É possível dizer que a pequena Judá está mais para as degradadas

áreas dos arredores de Los Angeles que olham para o condado vizinho

de Orange em busca de inspiração ou como muitos habitantes de países

do Terceiro Mundo que sentem fascínio e atração pela riqueza dos

Estados Unidos ou dos países europeus. No caso do Judá pós-exílico, as

pessoas podem olhar para o passado, para os dias nos quais a sua nação
desfrutava do tipo de riqueza e de reputação que Israel teve durante o

reinado de Salomão. Era outra forma de cumprir o compromisso divino

de abençoar Abraão para que o resto do mundo orasse visando receber a

mesma espécie de bênção. Constituía um modo de cumprimento do

propósito divino que o rei de Israel governasse todo o mundo em nome

de Deus. Como a rainha de Sabá expressou, Salomão é rei “para

Yahweh, o teu Deus”. Portanto, trata-se de uma espécie de promessa de

que o propósito de Deus para Israel será cumprido. As pessoas que

vivem em dias nos quais a bênção está distante e a ideia de Israel

governar o mundo é totalmente insensata, podem ser encorajadas a

acreditar que isso é possível. Não são possibilidades ao alcance delas

(como tentar transformar Los Angeles no condado de Orange), mas

plenamente ao alcance de Deus.

Considerando isso, o fato de Crônicas omitir o lado transgressor de

Salomão faz todo o sentido, a exemplo de ocultar como a vida de Davi

se desenrolou. Pessoalmente, aprecio que as histórias contenham certa

ambiguidade; ler sobre os erros e equívocos cometidos por uma pessoa e

ver como Deus ainda permanece em ação constitui uma forma

paradoxal de esperança. No entanto, reconheço ser minoria no tocante a

isso. Muitas pessoas preferem que as histórias enfatizem o triunfo do

bem sobre o mal e sublinhem a ligação entre fidelidade e bênção,

transgressão e maldição. Pode-se dizer que gostam de imaginar a

concretização final do bom e justo propósito de Deus na história.

Retratar os fatos dessa maneira concorre para que essas pessoas

acreditem no cumprimento final daquele propósito. Crônicas alimenta a

imaginação de pessoas assim.

O livro de Crônicas incorpora algumas notas laterais que

reconhecem a necessidade de a integridade moral e religiosa ser parte

do retrato da bênção. As notas mostram Salomão não recrutando

israelitas para o serviço real. (Ele recruta membros de povos que viviam

em Canaã antes da chegada de Israel, mas como a Torá os concebia

como expulsos da terra ou mortos por causa de suas próprias


transgressões, esses cananeus deviam se sentir muito satisfeitos com sua

sorte.) Elas apresentam Salomão abrigando sua esposa egípcia num

local muito próximo da santidade da cidade de Davi e do templo.

Relatam a rainha de Sabá reconhecendo que Salomão exerce

autoridade de forma justa, que é uma expectativa-chave para um rei.

Essa expectativa é considerada mais adiante, no salmo 72, cuja autoria é

do próprio Salomão.

A versão dessa história em Crônicas seria enganosa caso a retratasse

no contexto dos dias de Salomão ou no contexto em que Reis foi

escrito. Pode também ser enganosa quando lida na realidade de uma

próspera igreja do Ocidente; mas constitui uma mensagem para a igreja

nos arredores de Los Angeles, ou no Sudão ou Haiti. Ela conta o que

Deus fez e, portanto, encoraja essas igrejas a crerem no que Deus pode

fazer.
2CRÔNICAS 10:1-19
COMO GANHAR A LEALDADE DO POVO
1 2
Roboão foi a Siquém, porque todo o Israel havia ido a Siquém para torná-lo rei. Quando

Jeroboão, filho de Nebate, ouviu isso (ele estava no Egito, para onde fugira do rei Salomão),

3
Jeroboão voltou do Egito. Eles mandaram convocá-lo, e Jeroboão e todo o Israel foram e

4
falaram a Roboão: “Teu pai fez o nosso jugo pesado. Então, agora, alivia o serviço opressivo

5
e o jugo pesado de teu pai, que ele colocou sobre nós, e te serviremos.” Ele lhes disse: “Em

6
três dias mais, retornem a mim.” Assim, o povo saiu, e o rei Roboão tomou conselho com os

anciãos que estiveram presentes [em assistência] diante de Salomão, seu pai, quando ele

7
estava vivo: “Como me aconselham a retornar com uma resposta para esse povo?” Eles lhe

declararam: “Se fores bom com esse povo, agradá-los e lhes falares palavras gentis, eles serão

8
teus servos para sempre.” Mas ele abandonou o conselho que os anciãos lhe deram. Ele

tomou conselho com os jovens que cresceram com ele, que estavam presentes [em

9
assistência] diante dele. Ele lhes disse: “O que vocês aconselham, para que eu possa retornar

com uma mensagem a esse povo que falou comigo, dizendo: ‘Alivia o jugo que o teu pai

10
colocou sobre nós’?” Os jovens que haviam crescido com ele lhe falaram: “Deves dizer isso

ao povo que falou contigo [...]: ‘Meu dedo mínimo é mais grosso do que a cintura de meu pai.

11
Então, agora, meu pai impôs um jugo pesado sobre vocês, mas eu acrescentarei ao seu jugo.

12
Meu pai os disciplinou com chicotes, mas eu [farei isso] com escorpiões.’” Jeroboão e todo

13
o povo foram a Roboão no terceiro dia [...] e o rei lhes respondeu asperamente. Assim, o rei

15
Roboão abandonou o conselho dos anciãos [...]. O rei não escutou o povo, porque essa

virada nos acontecimentos vinha de Deus para que Yahweh confirmasse a palavra que havia

16
falado por meio de Aías, o silonita, a Jeroboão, filho de Nebate. Quando todo o Israel [viu]

que o rei não os havia escutado, o povo retornou [com uma resposta] ao rei: “Que partilha

temos com Davi? Não temos parte com o filho de Jessé. Todos às suas tendas, Israel. Agora,

17
cuide da sua própria casa, Davi.” Então, todo o Israel se foi às suas próprias tendas, mas os

19
israelitas que viviam nas cidades de Judá — Roboão reinou sobre eles [...]. Israel se rebelou

contra a casa de Davi até este dia.

Ontem, uma mulher jovem me contou uma adorável história sobre

como ela e o seu amado se apaixonaram um pelo outro. Todavia, o mais

importante para ela (aos seus olhos) é que Deus havia realizado isso.

Era da vontade de Deus. Ela não quis dizer meramente que Deus os

havia instruído a se apaixonarem ou que ele tenha interferido nas

circunstâncias em que eles se conheceram. Ela queria expressar que


Deus os havia feito se apaixonarem. Na realidade, ela foi mais

inequívoca do que isso. Simplesmente, disse que Deus tinha feito isso

acontecer. Um dos motivos para ela falar nesses termos é que ambos

haviam sido magoados em relacionamentos anteriores e não estavam à

busca de oportunidades para se apaixonar novamente, mas Deus os

tinha feito se apaixonarem. Essa era a única explicação para aquele

improvável acontecimento.

A estupidez de Roboão é a versão negativa de uma ocorrência

impossível. Ao ler a história, o leitor sente vontade de sacudi-lo e dizer:

“VOCÊ NÃO VÊ QUE OS ANCIÃOS ESTÃO CERTOS? É TÃO

ÓBVIO!” Você conhece pessoas que fizeram coisas estúpidas e se

pergunta: “Como elas puderam fazer isso?” Não presumimos que Deus

esteja por trás daquele ato, no mesmo sentido que em todos. Claro que,

em certo sentido, Deus está por trás de tudo o que acontece: Deus fez o

mundo funcionar assim. Contudo, há certas coisas que resultam de um

ato divino de intervenção, a exemplo do evento no mar de Juncos, em

Êxodo 14, ou na ressurreição de Jesus. Existem, contudo, outros

eventos que não demandam uma intervenção divina espetacular dessa

natureza, mas que desempenham um papel-chave no cumprimento do

propósito de Deus para implicar um envolvimento mais específico da

parte de Deus do que apenas fazer o mundo funcionar do jeito que

funciona. E, então, há os eventos nos quais isso não apenas é verdadeiro,

como também cumprem uma intenção anunciada por Deus à frente do

tempo. Esse é o caso da estupidez de Roboão.

Crônicas omite grande parte do pano de fundo desse relato por seu

compromisso de dar a descrição de Salomão com base no que já

abordamos em nosso comentário de 2Crônicas 8 e 9, uma descrição

centrada nas formas pelas quais Salomão pode ser visto como uma

personificação do propósito de Deus para Israel. Primeiro Reis fornece

esse cenário, pois a sua perspectiva sobre Salomão é diferente. Jeroboão

tinha uma posição destacada em Jerusalém como membro da corte de

Salomão, mas se rebelara contra o rei — presumidamente ao desafiar o


seu cargo real, a exemplo do que Absalão fizera a Davi. Em certo

sentido, não haveria nada a se estranhar em relação a isso; não existe

um padrão estabelecido pelo qual um rei deve reinar até a sua morte, e

golpes periódicos são equivalentes ao sistema adotado nos Estados

Unidos e na Grã-Bretanha de substituir o governo periodicamente. Na

ocasião em questão, Deus havia encorajado Jeroboão ao enviar um

profeta para lhe prometer que ele se tornaria rei sobre a maioria dos clãs

israelitas. A intenção de Deus era dividir a soberania de Salomão por

ele ter encorajado o culto a outras divindades em Jerusalém e por seus

casamentos com mulheres dos povos vizinhos visando a fins

diplomáticos. Jeroboão era um efraimita, e Aías, o profeta de Siló,

também era um efraimita no sentido mais amplo. Politicamente, pode-

se imaginar que os movimentos deles estivessem relacionados à

crescente tensão entre Judá e os demais clãs. Além disso, a referência ao

tratamento opressivo dado a Efraim por parte de Salomão sugere que as

dinâmicas da vida política em Israel seguiam um padrão recorrente: a

capital e seus arredores vivem muito bem, mas as províncias sofrem.

A palavra de Deus não se cumpriu durante a vida de Salomão; o rei

era, claro, um homem de profundo discernimento, de maneira que não

surpreende o fato de ele lograr derrotar a tentativa de golpe. Desse

modo, Jeroboão foi obrigado a fugir para preservar a sua vida. Outro

aspecto da maneira pela qual a palavra divina se cumpre é que as ações

humanas podem frustrar o propósito de Deus, mas apenas durante

algum tempo. A ida de Roboão a Siquém, em Efraim, para ser

reconhecido ali, encorajaria os clãs do norte a se associarem com ele,

mas a resposta de Roboão às demandas deles demonstra que lhe falta a

sabedoria de Salomão, seu pai, e Deus pode usar essa constatação para

cumprir, enfim, aquela palavra profética. Os clãs efraimitas, a grande

maioria do povo, como um todo, não quer nenhuma relação com Davi.

Não há sentido em tentar negociar com o sucessor de Davi e de

Salomão. “Estamos indo para casa”, dizem (“tendas” é uma expressão

arcaica para “lares”). Pode-se ter simpatia por eles. Os efraimitas estão
se desligando da promessa de Deus feita a Davi, mas quem pode

condená-los?
2CRÔNICAS 11:1-23
SOBRE FALHAR EM APRENDER A LIÇÃO
1
Roboão chegou a Jerusalém e reuniu a casa de Judá e de Benjamim, cento e oitenta mil

2
homens de combate escolhidos, para lutar com Israel e restaurar a soberania a Roboão, mas

3
a palavra de Yahweh veio a Semaías, o homem de Deus: “Diga a Roboão, filho de Salomão,

4
rei de Judá, e a todo o Israel em Judá e em Benjamim: ‘Yahweh disse isto: “Não subam e

lutem contra os seus parentes. Retornem às suas casas, cada um de vocês, porque essa coisa

veio por meio de mim.”’” Eles ouviram as palavras de Yahweh e voltaram da marcha contra

Jeroboão.

5 6
Roboão viveu em Jerusalém, mas construiu cidades como fortalezas em Judá. Ele

7 8 9
construiu Belém, Etã, Tecoa, Bete-Zur, Socó, Adulão, Gate, Maressa, Zife, Adoraim,

10
Láquis, Azeca, Zorá, Aijalom e Hebrom, que estão em Judá, como cidades fortificadas.

11
Ele reforçou as fortalezas e colocou governantes nelas, e armazéns para comida, azeite e

12
vinho, e, em cada uma, cidade por cidade, escudos e lanças. Ele as fortaleceu grandemente.

13
Portanto, Judá e Benjamim foram suas. Os sacerdotes e os levitas em todo o Israel

14
tomaram posição com ele, de todo o seu território, porque os levitas abandonaram as suas

pastagens e suas posses e foram a Judá e a Jerusalém, porque Jeroboão e seus filhos os

15
rejeitaram para servirem como sacerdotes a Yahweh. Ele indicou sacerdotes para si mesmo,

16
para os lugares altos, para os bodes e bezerros que fez. Seguindo a eles, de todos os clãs de

Israel, as pessoas dispostas em sua mente a buscar Yahweh, o Deus de Israel, foram a

17
Jerusalém para sacrificar a Yahweh, o Deus de seus ancestrais. Eles fortaleceram o reinado

de Judá e apoiaram Roboão por três anos, porque andaram no caminho de Davi e Salomão

por três anos.

18
Roboão casou-se com Maalate, filha de Jeremote, filho de Davi, e de Abiail, filha de Eliabe,

19 20
filho de Jessé. Ela lhe gerou filhos, Jeús, Semarias e Zaão. Depois dela, ele tomou Maaca,

21
filha de Absalão. Ela lhe gerou Abias, Atai, Ziza e Selomite. Roboão amou Maaca, filha de

Absalão, mais do que a todas as suas outras esposas e esposas secundárias (porque ele teve

dezoito esposas e sessenta esposas secundárias, e gerou vinte e oito filhos e sessenta filhas).

22
Como chefe, Roboão nomeou Abias, filho de Maaca, governante entre seus irmãos, para

23
torná-lo rei. Ele agiu com sabedoria e dispersou todos os seus filhos por todas as áreas de

Judá e de Benjamim, por todas as cidades fortificadas, e lhes deu provisões em abundância.

Ele procurou muitas esposas.

Seja como cidadão britânico, seja como residente permanente nos

Estados Unidos, sou considerado um mau cidadão, no sentido de que


sempre vivi de acordo com a minha renda. Fazer isso sempre foi algo

natural em mim. Talvez estivesse seguindo a cartilha de meus pais, que

jamais tiveram muito dinheiro e evitavam contrair dívidas. Na estranha

atmosfera econômica do início do século XX, as nações precisavam

entrar em dívidas e incentivar os seus cidadãos a fazer o mesmo.

Contudo, afetadas pelo colapso financeiro ocorrido ao término da

primeira década desse século, as pessoas se tornaram mais hesitantes no

tocante a dividas. Elas aprenderam a lição de entrarem em apuros por

gastarem mais do que ganhavam. É fácil não querer aprender a lição ou

se esquecer do aprendizado.

Roboão se recusou a aprender a lição. Poder-se-ia imaginar que ele

cairia em si pela calamitosa fragmentação da nação, que significou o

quase desaparecimento do reino sobre o qual ele pessoalmente

governava, além da saída da maioria dos clãs de Israel do

relacionamento com a cidade e com a linhagem real, escolhidas por

Deus, e a promessa associada a isso. Entretanto, não há nenhum indício

de que isso o tenha levado a cair em si. Primeiro, ele planeja tentar

reaver o controle sobre os clãs do norte. Parece mais uma operação

suicida. Considere o cenário: Judá compreende dois clãs, enquanto

Efraim é constituído por dez. Embora Roboão possua muitas tropas,

Efraim teria muito mais. (Os números, uma vez mais, envolvem

hipérbole; os números literais seriam um décimo ou menos do que os

valores citados.)

Em outras ocasiões, Judá irá vencer, a despeito das reduzidas

chances, por causa, claro, da intervenção de Deus. Todavia, a palavra de

Yahweh a Roboão revelou que “essa coisa veio por meio de mim”. Deus

está por trás da separação dos clãs do norte. Isso não torna impossível

resistir ao desígnio divino; vimos, com frequência, que é possível

evadir-se dos planos de Deus. No entanto, naquela ocasião, Judá

realmente precisaria do apoio especial de Deus para vencer, e esse

suporte era improvável. Reconhecidamente, não se pode adivinhar a

ação de Deus. Algumas vezes, Deus vira os olhos, suspira e nos dá apoio,
mesmo quando estamos agindo contra a vontade divina. Todavia, nem

mesmo Roboão é estúpido o bastante para agir na presunção de que é

assim que as coisas devem ser.

Deus também indica um segundo motivo pelo qual Roboão não

deveria agir contra Jeroboão: “Não subam e lutem contra os seus

parentes.” Em outros contextos, o termo para “parentes” significa, mais

precisamente, “irmãos”. Espera-se que os israelitas considerem uns aos

outros membros de uma mesma família. Irmãos não lutam entre si. Bem,

claro que sim, a começar por Caim e Abel, mas há algo especialmente

apavorante quanto a familiares se matando mutuamente. Desse modo, o

fato de serem membros da mesma família é um motivo para Judá não

atacar Efraim. Não se trata de um princípio absoluto; em eventos

futuros, Deus estará envolvido quando os dois subgrupos da família

lutarem entre si. Contudo, é um princípio a ser observado pela igreja,

na qual pertencer a uma família raramente impediu cristãos de

nacionalidades distintas de se matarem mutuamente.

Em vez de refletir sobre o que precisa ser aprendido com a

ocorrência, dar um passo atrás e encarar a estupidez da ação que o levou

àquela situação problemática, Roboão, simplesmente, busca lidar com

as suas novas e reduzidas circunstâncias e evitar que a confusão piore.

Uma forma de isso ocorrer é Jeroboão ser capaz de assumir o controle

sobre os dois clãs mantidos sob o domínio de Roboão. Assim, o rei de

Judá realiza uma fortificação de suas cidades para que possa sobreviver.

Outro modo de a situação piorar é o Egito, seu vizinho ao sul, aumentar

o interesse por Judá, como irá acontecer no próximo capítulo. Nesse

episódio, ficará patente a inutilidade de todo o trabalho de fortificação

empreendido por Roboão.

Enquanto isso, Jeroboão também fracassa em aprender a lição do

que ocorreu ou se esquece dela. Sabemos, de 1Reis e de pistas em

Crônicas, que Salomão estava em falta com Deus por facilitar formas de

adoração em Jerusalém rejeitadas por Deus. Assim, o que leva Jeroboão

a promover formas de culto igualmente rejeitadas por Deus? Os


bezerros constituem os objetos de adoração que Israel fizera no Sinai

(Êxodo 32). Jeroboão, provavelmente, não pensava neles como

alternativas a Yahweh, e sim como representações dele, mas a distinção

seria sutil demais para a percepção da maioria dos efraimitas. Os bodes

podiam ser imagens adicionais para serem compreendidas como

auxiliares ao culto de Yahweh, ou podiam indicar a adoração de bodes

demoníacos.

Os únicos que aprenderam algo daquela situação foram as pessoas

que acompanharam os sacerdotes e levitas e mudaram de Efraim para

Judá. Crônicas considera que os próprios sacerdotes e levitas tiveram

pouca opção. O estabelecimento, por parte de Jeroboão, de sua própria

organização de culto, os alijou do mercado de trabalho. A mudança dos

levitas a Judá pode ser parte do pano de fundo para a ênfase da Torá

sobre mostrar hospitalidade e generosidade em relação aos levitas; ao se

mudarem para o sul, eles deixaram o lar e seu meio de subsistência

regular. A situação deles era totalmente distinta de qualquer pessoa

leiga que os acompanhou. Esta simplesmente sabia que não podia viver

naquela nação apóstata, pelo menos não como membros plenos. Para

adorar, tinha de ir a Jerusalém. Para os leitores de Crônicas, esse

elemento da história enfatiza que as pessoas na província do norte ainda

precisam expressar aquele compromisso. A exemplo dos levitas, a

mudança de efraimitas comuns para o sul significaria abandonar suas

propriedades em Efraim, o que, por seu turno, também pode ser parte

da ênfase da Torá sobre a hospitalidade e generosidade quanto aos

estrangeiros residentes — em outras palavras, não era apenas o

estrangeiro que podia residir em Judá sem a sua própria terra e, assim,

incapaz de assegurar a própria subsistência.

O acúmulo de esposas e filhos é outra maneira de Roboão se

comportar como se nada tivesse acontecido e, assim, imitar a prática de

reis em sociedades tradicionais; esse é um meio de ostentar a sua

importância. Por outro lado, ele age com astúcia ao fazer bom uso de
seus muitos filhos e por assegurar que a questão quanto ao seu sucessor

fosse claramente definida durante o decurso de sua vida.


2CRÔNICAS 12:1-16
VOCÊS ME ABANDONAM; EU ABANDONO VOCÊS
1
Quando Roboão havia estabelecido a sua autoridade real e estava forte, ele abandonou o

2
ensino de Yahweh, ele e todo o Israel com ele. No quinto ano do rei Roboão, Sisaque, rei do

3
Egito, subiu a Jerusalém, porque eles transgrediram contra Yahweh, com mil e duzentas

carruagens e uma cavalaria de sessenta mil; não havia como contar a companhia que veio

4
com ele do Egito (líbios, suquitas e sudaneses). Ele capturou as cidades fortificadas

5
pertencentes a Judá e chegou até Jerusalém. O profeta Semaías foi a Roboão e aos oficiais

de Judá, que haviam se reunido em Jerusalém por causa de Sisaque, e lhes disse: “Yahweh

disse isto: ‘Vocês mesmos me abandonaram, então eu mesmo os abandonei nas mãos de

6 7
Sisaque.’” Os oficiais israelitas e o rei se curvaram e disseram: “Yahweh está certo.” Quando

Yahweh viu que eles haviam se curvado, a palavra de Yahweh veio a Semaías: “Eles se

curvaram. Não os destruirei, mas lhes darei uma breve sobrevivência. Minha ira não se

8
derramará sobre Jerusalém por meio de Sisaque. Mas serão servos dele e reconhecerão [a

9
diferença entre] o meu serviço e o serviço dos reinos da terra.” Sisaque, rei do Egito, subiu

contra Jerusalém e tomou os tesouros da casa de Yahweh e os tesouros da casa do rei. Ele

10
tomou tudo. Assim, tomou os escudos de ouro que Salomão havia feito, e o rei Roboão fez

escudos de bronze em lugar deles e os colocou a cargo dos oficiais sobre os batedores que

11
guardavam o portão da casa do rei. Cada vez que o rei ia à casa de Yahweh, os batedores

vinham e os carregavam, e, em seguida, os levavam de volta para a câmara dos batedores.

12
Assim, quando ele se curvou, a ira de Yahweh se afastou dele e não o destruiu

13
completamente, e em Judá também houve coisas boas. O rei Roboão afirmou a sua força

em Jerusalém e reinou, desde que tinha quarenta e um anos, quando se tornou rei, e reinou

dezessete anos em Jerusalém, a cidade que Yahweh escolheu para ali colocar o seu nome

14
dentre todos os clãs de Israel. O nome de sua mãe era Naamá, a amonita. Ele fez o que era

15
errado, porque não colocou a sua mente para olhar para Yahweh. Os atos de Roboão,

iniciais e tardios, estão certamente escritos nos anais de Semaías e de Ido, o vidente, para o

16
registro de genealogias. Houve batalhas constantes entre Roboão e Jeroboão. Roboão

dormiu com seus ancestrais e foi enterrado na cidade de Davi, e Abias, seu filho, reinou em

seu lugar.

No último sábado, estávamos tentando descobrir como dar uma partida

assistida no carro do meu amigo; ele estava estudando os manuais de

seu carro e do meu, a fim de tentar fazer isso sem nos explodir (fomos

bem-sucedidos na tentativa). “Por que descrevem isso como se fosse


simples?”, ele protestou, considerando suas instruções e diagramas de

difícil compreensão. “Porque isso os faz sentir bem”, repliquei. “E usam

figuras porque acham, erroneamente, que uma imagem vale por mil

palavras (além disso, não exige a tradução para outros idiomas). E

também porque não se colocam na posição de uma pessoa que,

realmente, não sabe fazer isso.” A primeira explicação tem, na realidade,

certa reflexão teológica. Alguns de nós apreciam a nossa teologia por ela

reconhecer que muitas coisas sobre Deus e os seres humanos são

misteriosas e muito complexas e por descobrirem que essa teologia os

alimenta por ser realista. Outros apreciam a nossa teologia por ela ser

clara e cristalina, preto no branco, e por descobrirem que essa classe de

teologia é que os alimenta e “os faz sentir bem”.

A versão da história de Israel em Reis ministra mais a pessoas do

primeiro grupo; a versão em Crônicas ministra mais a pessoas do

segundo grupo. Ao passo que o livro de Reis está disposto a deixar

inexplicados alguns aspectos da atividade de Deus em relação a Israel,

Crônicas gosta de assegurar aos seus leitores que as coisas funcionam de

forma justa. O capítulo anterior nos relata que o povo de Roboão

trilhou o caminho correto durante três anos. Então (o texto esclarece),

eles falharam em seguir nessa trilha, e o início do presente capítulo

explicita esse fato. Assim, não é por mera coincidência que Roboão, no

quinto ano de seu reinado, testemunha uma calamidade adicional.

Observamos que a fortificação de suas cidades, provavelmente,

considerou os inimigos ao sul (Egito) do mesmo modo que os

adversários ao norte (Efraim). No entanto, as fortificações não serão de

grande valia caso os judaítas falhem em trilhar o caminho de Yahweh.

O faraó Shoshenk I, que reinou no Egito de 945 a.C. até 924 a.C.,

deixou uma inscrição no templo de Karnak, no Egito, na qual ele lista

cidades em Judá, Efraim e em outros lugares que foram dominadas por

ele. Supondo que seja essa a invasão realizada pelo faraó a quem o

Antigo Testamento chama de Sisaque, esse é o primeiro evento na

história do Oriente Médio cuja referência tanto é encontrada no Antigo


Testamento quanto fora dele, o que também nos permite atribuir datas

absolutas a alguns eventos desse período citados no Antigo Testamento.

A divisão entre Efraim e Judá facilitou a retomada pelo Egito do

controle sobre ambas as regiões.

Assim, enquanto 1Reis 14 simplesmente justapõe um relato da

infidelidade de Roboão e da invasão de Sisaque, deixando que o leitor

extraia suas próprias conclusões, Crônicas explicita que a invasão

acontece por causa da transgressão de Judá contra Yahweh. Falhar em

olhar para Yahweh; a expressão que surge, mais tarde, na passagem,

reafirma o ponto. Espera-se que Judá faça de Yahweh o seu recurso; ele é

o único a quem o povo deve recorrer por suas necessidades econômicas

e políticas, mas eles recorrem a outros e, portanto, falham em

reconhecer o direito de Yahweh em ser tratado como provedor deles.

“Abandonar” Yahweh possui implicações similares, mas usar essa palavra

torna possível sublinhar a ruptura mútua de relacionamento que ocorre

no tempo de Roboão. Judá abandona Yahweh; Yahweh abandona Judá.

Como de costume, Yahweh precisa encontrar um meio-termo entre

trazer um castigo adequado sobre o povo e manter a existência de Judá,

em atenção ao seu compromisso com eles e ao propósito a ser alcançado

por meio deles. Fatores geográficos significam que, em mais de uma

ocasião, isso funciona por meio da capacidade do invasor de subjugar a

maioria das cidades judaítas, exceto Jerusalém, por sua localização

elevada na cadeia montanhosa judaíta e sua posição segura em relação

ao terreno que a circunda. Assim, ao que parece, Sisaque chega até

Jerusalém, mas não a domina; não é isso o que ocorre nas áreas

sobreviventes das cidades que ele conquistou. No caso de Jerusalém, ele

se deixou comprar pela rendição de seus valores. O lado triste do

evento é a perda crescente da magnificência do templo, resumido pela

substituição por Roboão dos escudos cerimoniais de ouro, que foram

capturados, por outros de bronze. A ira de Yahweh não é derramada

sobre Jerusalém a ponto de a cidade ser destruída, como ocorrerá

futuramente. Judá sobrevive, mas é uma “simples sobrevivência”, pois


estará sob o controle egípcio. Não obstante, o futuro não será de todo

ruim; ainda haverá coisas boas na vida de Judá. Pode-se imaginar as

pessoas ouvindo as histórias em Crônicas e apreciando o modo pelo

qual elas são contadas, visando a capacitá-las a ver as analogias com sua

própria posição sob o controle do Império Persa. Elas experimentam o

preço continuamente pago por causa da infidelidade de Judá a Yahweh,

mas isso não significa a inexistência de coisas boas na vida delas.

O abandono por parte de Yahweh jamais é total e nunca precisará

ser permanente. Os ouvintes de Crônicas são convidados a aprender

com a descrição da reação de Roboão e da liderança do país ao ouvirem

as palavras de um profeta que os desafiou a prestarem atenção nas

implicações do que ocorreu. Um terceiro e importante verbo é

recorrente: “curvar”. As traduções, em geral, trazem “humilham-se”, e

essa será a implicação, mas a palavra denota uma ação física. Isso indica

que a auto-humilhação não deve ser apenas uma questão do que se

passa (alegadamente) no coração das pessoas. Somos formados por

corpo e mente, e a auto-humilhação necessita ser expressa

externamente para que a personifiquemos para nós, para outras pessoas

e para Deus. A ação deve vir acompanhada por palavras: “Yahweh está

certo” ou “Yahweh é fiel”. Trata-se de um princípio padrão de que

pessoas culpadas devem reconhecer sua culpa. Reconhecem, em outras

palavras que: “Sim, eu transgredi; sim, o castigo que cai sobre mim é

merecido. Não posso reclamar.” É com base nisso que a comunidade,

após o exílio, também pode esperar por algumas “coisas boas”.


2CRÔNICAS 13:1-22
ADORANDO NO CONTEXTO DA CULTURA
1 2
No décimo oitavo ano do rei Jeroboão, Abias tornou-se rei sobre Judá. Ele reinou três anos

em Jerusalém. O nome de sua mãe era Micaías, filha de Uriel, de Gibeá. Houve guerra entre

3
Abias e Jeroboão, e Abias comprometeu-se à guerra com uma força de guerreiros,

quatrocentos mil homens escolhidos, enquanto Jeroboão se envolveu na guerra contra ele

4
com oitocentos mil homens escolhidos, guerreiros capazes. Abias pôs-se em pé no monte

5
Zemaraim, nas montanhas de Efraim, e disse: “Ouçam-me, Jeroboão e todo o Israel. Vocês

realmente deveriam reconhecer que Yahweh, o Deus de Israel, deu para sempre o reinado

6
sobre Israel a Davi, a ele e aos seus filhos, por uma aliança de sal. Jeroboão, filho de Nebate,

um servo de Salomão, filho de Davi, levantou-se e se rebelou contra o seu senhor.

7
Reuniram-se ao redor dele homens inúteis e insignificantes, e eles se opuseram a Roboão,

filho de Salomão, quando Roboão ainda era jovem e verde, e ele não impôs a sua força contra

8
eles. Agora, vocês estão dizendo que irão impor a sua força contra o reinado de Yahweh nas

mãos dos filhos de Davi. Embora vocês sejam uma grande multidão e tenham com vocês os

9
bezerros de ouro que Jeroboão lhes fez como deuses, não expulsaram os sacerdotes de

Yahweh, os filhos de Arão e os levitas, e fizeram sacerdotes para si mesmos, como os povos de

outros países — qualquer um que vem para ser consagrado, com um touro do rebanho e sete

10
carneiros, torna-se um sacerdote para aqueles que não são deuses? Para nós, Yahweh é o

nosso Deus. Não o abandonamos. Os sacerdotes que ministram a Yahweh são os

11
descendentes de Arão, com os levitas no serviço, queimando ofertas inteiras a Yahweh cada

manhã e cada tarde, com incenso aromático e o pão da proposição sobre a mesa pura, e o

candelabro de ouro e as lâmpadas queimando cada tarde, porque estamos guardando a

12
ordem de Yahweh, o nosso Deus, mas vocês o abandonaram. Eis que Deus está conosco, à

frente [de nós], e seus sacerdotes com trombetas ressoantes para soar contra vocês.

Israelitas, não lutem com Yahweh, o Deus de seus ancestrais, porque vocês não terão

sucesso.”

13
Ora, Jeroboão havia enviado uma emboscada ao redor para vir por trás deles. Assim, [os

14
israelitas] estavam em frente de Judá, e a emboscada [deles] estava por trás. Judá se virou,

e eis que para eles a batalha estava em frente e atrás. Eles clamaram a Yahweh, com os

15
sacerdotes soprando as suas trombetas, e os homens de Judá gritaram. Quando os homens

16
de Judá gritaram, Deus derrubou Jeroboão e todo o Israel diante de Abias e de Judá. Os

17
israelitas fugiram diante de Judá. Deus os entregou nas mãos deles. Abias e sua companhia

os mataram em uma derrota severa. Ali, caíram mortos quinhentos mil de Israel, homens

18
escolhidos. Assim, os israelitas se curvaram naquela vez, mas os judaítas se mostraram

19
fortes porque confiaram em Yahweh, o Deus de seus ancestrais. Abias perseguiu Jeroboão e

capturou algumas cidades dele, Betel e suas dependências, Jesana e suas dependências, e

20
Efrom e suas dependências. Jeroboão não ganhou poder novamente nos dias de Abias, e

21
Yahweh o feriu, e ele morreu, mas Abias afirmou a sua força. Ele desposou catorze esposas
22
para si mesmo e gerou vinte e dois filhos e dezesseis filhas. O resto dos atos de Abias, o que

ele fez e o que disse, está escrito no comentário do profeta Ido.

Ao longo dos últimos meses, visitei inúmeras diferentes igrejas e, após

essas visitas, em geral, retornei à minha igreja com um sentimento de

alívio e apreciação por ela (reconheço que os visitantes de nossa igreja,

igualmente, podem voltar para suas igrejas com o mesmo sentimento de

alívio e apreciação por elas). Caso haja um motivo para essa reação,

creio que a adoração da igreja reflete mais da cultura do que o faz do

evangelho e da Escritura. Um dos sinais formais desse fato é, com

frequência, a pouca quantidade de passagens bíblicas que é lida nos

cultos. Por outro lado, em uma das igrejas que visitei, na qual grandes

porções da Escritura eram lidas, o pastor incentivou-me a me divertir

no culto e, no meio dele, me perguntou se eu estava me divertindo, o

que foi uma pergunta tipicamente californiana, mas que não tem muita

relação com a adoração cristã. Portanto, a leitura de grandes porções da

Escritura pode não significar que o culto deixe de ser simplesmente uma

reprodução do que as pessoas pensam e fazem fora da igreja. O que as

pessoas pensam e fazem não é transformado pelo evangelho.

Pode-se dizer que o problema perene da adoração israelita é que ela

meramente segue a cultura. Como Abias expressa, os efraimitas têm

seguido o comportamento de outros povos. Em Efraim, qualquer um

pode ser levado a participar da liderança da adoração, voluntariar-se e

se tornar um sacerdote. Jeroboão confeccionou bezerros de ouro para

auxiliar a adoração das pessoas. Todavia, isso ignora o fato de que Deus

é aquele que decide o que conta como adoração apropriada. A tensão

aqui reside na escolha de Deus pela linhagem de Arão. O ministério não

é realizado com base em quem se sente vocacionado, ou que gostaria de

trabalhar nesse ministério ou pensa que tem os dons necessários. Ele é

fundamentado nas iniciativas de Deus.


O ponto é expresso em uma espécie de sermão, pregado por Abias ao

inimigo, antes da batalha. Pode parecer um contexto implausível para

um sermão; é prática comum no registro histórico tradicional o autor

colocar nos lábios da pessoa a lição que precisa ser extraída do evento

retratado ou o significado vinculado a ele. Portanto, o material que

aparece na forma de um sermão está lá para auxiliar o ouvinte ou leitor

da história a compreender as questões envolvidas. Os leitores/ouvintes

são pessoas que vivem sob a contínua realidade de relações tensas entre

Jeúde e Samaria, os equivalentes posteriores de Judá e Efraim. O

sermão enfatiza quais são as questões em jogo. As pessoas em

Efraim/Samaria precisam assumir a responsabilidade por terem se

desviado da linhagem de Davi, a quem Deus escolheu para reinar sobre

Israel. Talvez a ideia por trás da expressão “aliança de sal” é que o sal

preserva e, portanto, sugere permanência; mas essa é apenas uma

conjectura.

Roboão havia sido instruído a não ir e lutar contra outros membros

da família de Israel; mas seu filho faz isso. O local da batalha, em

Efraim, sugere que Abias tomou a iniciativa da batalha, pois levou o

conflito ao território efraimita. Não há indícios de que ele tenha

iniciado essa ação por instrução divina, mas Deus é envolvido ao lhe

garantir a vitória sobre os outros membros de sua família e a morte de

quinhentos mil deles. Não há dúvidas de que, como de costume, os

números são hiperbólicos, mas pode-se retirar alguns zeros e, ainda

assim, considerá-los perturbadores. Igualmente, como sempre, as duas

histórias ilustram como as ações de Deus podem manifestar alguma

inconsistência. É errado Jeroboão ser atacado por ser membro da

família de Abias; é certo Jeroboão ser atacado porque Deus precisa

puni-lo por sua transgressão. Embora os princípios sobre os quais Deus

age sejam consistentes, a aplicação deles pode variar. Esse é um dos

motivos pelos quais não se pode generalizar como Deus irá agir com

base em sua ação em um episódio específico. Parte da genialidade de


uma história é que ela descreve algo que Deus fez, mas não estabelece

que seja algo que Deus sempre fará.

A batalha em si ilustra o princípio de que o resultado de um evento

não é decidido pelos números ou por inteligência e planejamento. O

foco de Abias em proferir o seu sermão permite ao astuto Jeroboão

tempo para implementar um estratagema que possibilitará atacar o

exército de Abias, já em menor número, pela frente e por trás. Mas os

judaítas estão em posição de usar a clássica ação do Antigo Testamento

de clamar a Yahweh, a exemplo do que fizeram os israelitas no Egito. Os

seus sacerdotes, prontos para soar as suas trombetas, do mesmo modo

que os sacerdotes em Jericó, enquanto o restante do exército pode

gritar a plenos pulmões. Sem dúvida, essas ações produzem um efeito

psicológico, como o grito de guerra da equipe de rúgbi da Nova

Zelândia antes da partida, mas funcionam apenas porque proclamam a

chegada e o envolvimento de outro Rei, além de Jeroboão ou Abias; a

ação desse Rei Guerreiro é que define que a batalha tenha um resultado

distinto daquele gerado por considerações lógicas. A diferença reside no

fato de Judá confiar em Deus, mas essa confiança ou fé não é algo que

faz diferença independentemente do fato de Deus ser confiável e,

portanto, digno de fé. Deus é quem traz a vitória, não a fé.

Crônicas possui uma forma organizada de manter juntas tanto suas

histórias individuais quanto sua narrativa contínua por sua maneira de

usar palavras distintas. Novamente, a história fala sobre “abandonar”

Deus e, portanto, de descobrir-se abandonado. Uma vez mais, discorre

sobre “curvar”; os judaítas curvaram-se diante de Yahweh com

resultados positivos quando Sisaque os invadiu, e agora os efraimitas se

curvam em derrota, sem nenhum resultado positivo. Outrora, Roboão

era muito jovem para mostrar a sua força; agora, Efraim mostra-se forte,

mas é superado porque Judá, em geral, e Abias, em particular, mostram-

se fortes.
2CRÔNICAS 14:1-15
DESCANSAMOS EM TI
1
Abias dormiu com seus ancestrais, e eles o sepultaram na cidade de Davi, e Asa, seu filho,

2
tornou-se rei em seu lugar. Em sua época, o país ficou quieto por dez anos. Asa fez o que era

3
bom e correto aos olhos de Yahweh, o seu Deus. Livrou-se dos altares estrangeiros e dos

4
lugares altos, quebrou as colunas e cortou as aserás. Ele disse a Judá que deviam olhar para

5
Yahweh, o Deus de seus ancestrais, e implementar o ensino e o mandamento. De todas as

cidades em Judá, ele se livrou dos lugares altos e dos altares de incenso. O reino ficou quieto

6
com ele, e construiu as cidades fortificadas em Judá porque o país estava quieto e não havia

7
guerra feita contra ele durante aqueles anos, porque Yahweh lhe deu descanso. Ele disse a

Judá: “Construiremos essas cidades e as cercaremos com um muro e torres, portões e barras,

enquanto o país está conosco, porque temos olhado para Yahweh, o nosso Deus. Temos

olhado para [ele], e ele nos tem dado descanso de todos os lados.” Assim, eles construíram

com sucesso.

8
Asa tinha uma força de trezentos mil homens de Judá, carregando escudo e lança, e de

Benjamim, duzentos e oitenta mil homens, carregando o escudo pequeno e puxando o arco.

9
Todos estes eram guerreiros capazes. Zerá, o sudanês, saiu contra eles com uma força de um

10
milhão de soldados e trezentas carruagens e chegou até Maressa. Asa saiu ao encontro dele

11
e envolveu-se na batalha no vale de Zefatá, próximo a Maressa. Asa clamou a Yahweh, o

seu Deus: “Yahweh, não há ninguém comparável a ti para ajudar [em um conflito] entre os

numerosos e os impotentes. Ajuda-nos, Yahweh, nosso Deus, porque descansamos em ti, e em

teu nome viemos contra esta horda. Tu és Yahweh, o nosso Deus. Um mortal não deve

12
prevalecer sobre ti.” Yahweh derrotou os sudaneses diante de Asa e de Judá, e os sudaneses

13
fugiram. Asa e a companhia com ele os perseguiram até Gerar. Muitos dos sudaneses

caíram, e não houve recuperação para eles, porque foram destruídos diante de Yahweh e o seu

14
exército. Eles tomaram muito espólio. Destruíram todas as cidades ao redor de Gerar, pois

o assombro por Yahweh estava sobre elas. Eles saquearam todas as cidades porque havia

15
muitos despojos nelas. Também derrubaram as tendas dos [homens] do gado e capturaram

ovelhas em grande quantidade e camelos e, então, retornaram a Jerusalém.

Lembro-me, vividamente, quando ainda era um adolescente, de ter

assistido a uma série de slides (não me perguntem o que eram slides,

caros jovens, mas suponho que possam ser descritos como o avô do

moderno PowerPoint), que contava a história de cinco jovens norte-

americanos que tinham viajado ao Equador, dois ou três anos antes,


para levar a mensagem de Cristo a um povo chamado Huaorani,

conhecido pela violência entre os seus clãs e contra forasteiros. Antes

de deixar o seu acampamento para fazer contato com os huaoranis, os

cinco jovens cantaram um hino que começa com as palavras de Asa:

“Descansamos em ti, nosso escudo e nosso defensor. [...] Descansamos

em ti e em teu nome vamos.” Eles, então, foram mortos pelo povo que

esperavam alcançar. Em minha cabeça, ainda consigo ouvir a trilha

sonora que acompanhou a exposição, que incluía esse mesmo hino e o

poema sinfônico de Sibelius, Finlandia, cujo próprio poder reflete a sua

origem como parte da afirmação da identidade da Finlândia e da

determinação em relação ao pré-revolucionário Império Russo. Quando

vimos os slides, não creio que a história já havia chegado a uma

conclusão, com alguns dos assassinos daqueles jovens aceitando a

Cristo. Isso só foi contado em um filme mais recente, intitulado End of

the Spear [O fim da lança].

Quando saímos para a ação, a exemplo de Asa ou dos cinco

missionários, não sabemos como a história terminará para nós ou como

a história na qual estamos envolvidos desempenhará o seu papel no

enredo da história maior de Deus. A história judaico/cristã está

recheada de relatos que terminam com martírios, não necessariamente

seguidos pela conversão dos assassinos desses mártires. Portanto,

narrativas similares a essas de Asa cumprem a importante função de

reafirmar que elas refletem melhor a verdade sobre o modo pelo qual o

universo, em última análise, funciona.

Há uma tensão relacionada à história. Não muito tempo depois de

Crônicas ter sido escrito, Neemias reconstruiu as muralhas de

Jerusalém, ainda que o profeta Zacarias tivesse declarado que Jerusalém

não precisava de muros porque Deus protegeria a cidade. Aqui, de

modo similar, Crônicas fala sobre Deus dar descanso ao povo, um

período sem guerras, embora também relate que Asa aproveitou esse

tempo de paz para fortificar as cidades judaítas e, assim, melhor

protegê-las em caso de uma invasão. Houve realismo nessa decisão. Há


um tempo de lutar e um tempo de se viver em paz (Eclesiastes 3) —

tempos nos quais os conflitos ocorrem e tempos nos quais eles cessam

—, e não temos nenhum controle sobre eles. Asa desfruta de um tempo

de paz como uma dádiva de Deus, mas não se ilude quanto a um futuro

sem guerras. Sua presunção é justificada pela invasão que vem a seguir.

Uma vez mais, pode-se dizer que a capacidade de Yahweh de fazer cair

assombro sobre os inimigos implicaria a conclusão lógica de que não

havia necessidade de Judá manter um exército de prontidão. (Se os

números quanto ao exército judaíta devam ser considerados de modo

literal, então eles são referências ao total da população masculina; trata-

se de um “exército de cidadãos”, não de um contingente militar

profissional.) No entanto, o texto de Crônicas não faz essa inferência. A

confiança em Deus não é incompatível com o uso útil dos recursos,

embora a busca por assegurar os recursos possa fazer a pessoa deixar de

confiar em Deus. Em relação a isso, o salmo 127 estabelece um ponto-

chave: “Se não é o Senhor que vigia a cidade, será inútil a sentinela

montar guarda” (v. 1). Mas isso não quer dizer que a sentinela deve

deixar o seu posto.

Em conjunto com a sua afirmação de confiança na proteção e no

apoio de Yahweh, há o próprio compromisso de Asa em andar no

caminho de Yahweh. Tanto Reis quanto o livro de Crônicas possuem

formas padrão de expressar o que isso envolvia. Os livros, às vezes,

expressam isso de formas distintas, pois eles visam a públicos distintos.

Assim, o texto de Crônicas diz que Asa aboliu os lugares altos (Reis

não) porque, em sua forma de contar a história, esse ato indica

fidelidade a Yahweh; os lugares altos estavam associados com a religião

tradicional da região (“religião cananeia”) e, desse modo, a abolição

deles significa tornar mais difícil para Israel buscar a bênção e o socorro

de deuses estrangeiros. Isso está relacionado com se livrar de “altares

estrangeiros”, locais de sacrifícios e, portanto, de orações associadas

com povos estrangeiros e sua respectiva religião. Como os postes-ídolos

sugerindo a presença de uma divindade, as colunas sagradas e aserás


teriam a mesma associação. Destruí-las significaria levar Judá a olhar

somente para Yahweh no tocante às suas necessidades.

Crônicas considera que havia uma ligação entre o compromisso de

Asa com Yahweh e o fato de ele desfrutar de um período de paz, embora

esse vínculo não seja explícito. Por outro lado, o livro simplesmente

reporta o ataque perpetrado por Zerá sem sugerir que ele veio como um

ato de punição da parte de Deus. Embora Crônicas claramente expresse

que há uma relação entre fidelidade e bênção, entre infidelidade e

problemas, ele mesmo reconhece que esse vínculo não é absoluto. Há

problemas pelos quais Asa não pode ser acusado; eles, então, se tornam

testes para a confiança do povo em Yahweh e fornecem uma

oportunidade para a própria fidelidade e o poder de Yahweh serem

provados.
2CRÔNICAS 15:1-19
TOMANDO A INICIATIVA NA ALIANÇA
1 2
Azarias, filho de Odede — o espírito de Deus veio sobre ele, e ele saiu diante de Asa e lhe

disse: “Ouçam-me, Asa e todo o povo de Judá e de Benjamim. Yahweh está com vocês quando

vocês estão com ele. Se olharem para ele, ele estará disponível a vocês, mas, se o

3
abandonarem, ele os abandonará. Por um longo período, Israel não teve o verdadeiro Deus,

4
nenhum sacerdote de ensino e nenhum ensino, mas voltaram-se para Yahweh, o Deus de

5
Israel, em sua angústia, e olharam para ele, e ele se fez disponível a eles. Naqueles tempos,

não havia paz para a pessoa que saía e que entrava [isto é, para o viajante], porque havia

6
muito tumulto entre todos os habitantes dos países. Nações eram esmagadas umas pelas

outras, cidades umas pelas outras, porque Deus as estava perseguindo com toda espécie de

7
aflições. Mas, vocês, sejam fortes. Não deixem cair as suas mãos, porque haverá recompensa

8
para o seu trabalho.” Quando Asa ouviu essas palavras, a profecia de Odede, o profeta, ele

afirmou a sua força e removeu as abominações de toda a terra de Judá e de Benjamim, bem

como das cidades que capturou das montanhas de Efraim. Ele restaurou o altar de Yahweh

9
que estava em frente do pórtico de Yahweh. Reuniu todo o Judá e Benjamim e as pessoas

que estavam residindo como estrangeiras com eles de Efraim, de Manassés e de Simeão,

porque israelitas em grande número tinham vindo a ele quando viram que Yahweh, o seu

10
Deus, estava com ele. Eles se reuniram em Jerusalém no terceiro mês do décimo quinto

11
ano do reinado de Asa. Sacrificaram a Yahweh, naquele dia, da pilhagem que haviam

12
trazido, setecentos bois e sete mil ovelhas e entraram em uma aliança para olhar para

13
Yahweh, o Deus de seus ancestrais, com toda a sua mente e com toda a sua alma. Qualquer

um que não olhasse para Yahweh, o Deus de Israel, seria morto, fosse pequeno, fosse grande,

14
homem ou mulher. Fizeram um juramento a Yahweh em alta voz, com um grito, com

15
trombetas e com buzinas. Todo o Judá celebrou o juramento porque eles o fizeram com

toda a sua mente e olharam para ele com toda a sua vontade, e ele se fez disponível a eles.

Yahweh lhes deu descanso de todos os lados.

16
Ele também removeu Maaca, mãe do rei Asa, como rainha-mãe, porque ela tinha feito uma

monstruosidade para Aserá. Asa cortou a sua monstruosidade, tornou-a em pó e a queimou

17
no ribeiro do Cedrom. Embora não tivessem removido os lugares altos de Israel, o espírito

18
de Asa foi sincero durante toda a sua vida. Ele levou à casa de Deus todas as coisas

19
consagradas por seu pai e por ele — prata, ouro e acessórios. Não aconteceram mais guerras

até o trigésimo quinto ano do reinado de Asa.

Estou lendo um romance que conta a história de um casamento sob a

perspectiva do marido, após a morte de sua esposa. Ele relata em


capítulos alternados como o casal se conheceu e o relacionamento deles

se desenvolveu, e como a esposa, mais tarde, sofreu e morreu vítima de

um câncer. É preciso entender que a história é contada de maneira

entrelaçada; caso contrário, o romance pode parecer confuso. Ao

entremear o relato dos primeiros anos do relacionamento com a

narrativa dos derradeiros e angustiantes anos, o autor fornece um alívio

constante da tristeza da enfermidade e da morte. Todavia, considerando

mais profundamente, esse artifício significa que o leitor jamais olha para

a parte inicial da história fora do contexto da última parte, e vice-versa.

Igualmente, a Bíblia nem sempre conta as suas histórias em ordem

cronológica. Às vezes, um autor combina diferentes versões de uma

mesma história ou utiliza uma versão existente e também concebe uma

nova para inserir ao lado dela. Como no caso do romance que estou

lendo, o significado das histórias bíblicas pode, algumas vezes, emergir

melhor se forem contadas em uma ordem que não a cronológica. A

história de Asa pode ser um exemplo, pois o capítulo 15, uma vez mais,

fala sobre a reforma dos santuários em Judá, realizada por Asa, já

relatada no capítulo anterior. Não somos informados de que a corrupção

cresceu desde aquela reforma; talvez a profecia de Azarias forneça o

cenário para a mesma reforma.

Crônicas aprecia contar histórias sobre a intervenção do espírito de

Deus na vida de seu povo. Os relatos apontam para uma outra realidade

que a congregação da época do autor conheceria (Ageu e Zacarias

cumpriram o seu ministério no início do período do Segundo Templo)

e/ou é convidada a olhar. Do povo de Deus espera-se que dê ouvidos ao

equivalente da Escritura (a Torá) e que também ouça a voz daquele que

transmite a palavra divina da forma mais imediata e alinhada com a

Escritura — caso contrário, dificilmente pode ser uma profecia genuína.

Azarias fala em termos que se encaixam na própria linguagem de

Crônicas. O profeta fala de “olhar para Yahweh” como o único que

fornece proteção, e ainda lança mão do uso duplo do verbo “abandonar”

por parte de Crônicas. Esses paralelos sugerem que Crônicas está


formulando o conteúdo da profecia atribuída a Azarias. O profeta,

contudo, possui a sua própria voz. O seu relato do passado revê a

situação entre os dias de Josué e de Saul e, portanto, traça um paralelo

com a descrição do livro de Juízes. Naquela época, Israel, com

frequência, abandonou Deus e o ensino que remontava ao êxodo e a

Moisés, e, por sua vez, Deus abandonou Israel e lhe permitiu viver sem

ele. Azarias descreve o caos social que caracterizou aqueles dias. Era

muito perigoso viajar. As cidades e as nações estavam em constante

conflito entre si. Então, após um período, o povo voltou-se para Deus, e

ele os restaurou. Uma expressão recorrente nessa história é a ideia de

que Deus se faz “disponível” ao povo. O verbo, em geral, significa

“descobrir”; assim, a ideia é que Deus se deixa descobrir pelas pessoas.

Então, quando nos afastamos de Deus e olhamos em outras direções,

visando atender as nossas necessidades, Deus fica propenso a se

esconder de nós. Contudo, quando o buscamos em nossa angústia, Deus

não resiste à tentação de se deixar descobrir por nós. Deus, portanto,

não se esconde. Se os leitores de Crônicas pudessem enxergar a si

mesmos experimentando uma aflição análoga, eles seriam convidados a

buscar Deus.

O desafio de Israel é aprender a lição com base no padrão recorrente

ao longo daqueles anos. O desafio de Asa é levar Israel a fazer isso. Eis

como a profecia de Azarias pode ser a história subjacente às reformas de

Asa, descritas pelo capítulo 14. O relato sobre as reformas, no capítulo

seguinte, acrescenta que Asa capturou algumas cidades de Efraim —

elas seriam cidades fronteiriças. Talvez sejam as cidades às quais

2Crônicas 13 se referiu. A captura delas ocorreu um pouco antes do

reinado de Asa, mas Asa pode ter se envolvido no conflito descrito pelo

capítulo, ou pode ser que elas tenham sido perdidas e recuperadas

durante o reinado do próprio Asa.

Para os leitores de Crônicas, haveria uma relevância particular

quanto ao relato de um líder judaíta exercendo autoridade religiosa

sobre uma área que costumava ser efraimita e que correspondia à região
da província persa de Samaria nos dias dos leitores. Isso descortina

diante deles uma visão do que eles ainda poderiam esperar no futuro. A

menção às pessoas do norte indo a Jerusalém, junto aos judaítas e

benjamitas, é o outro lado do mesmo ponto. Esse relato convida a

comunidade a ter uma visão quanto a inúmeros samaritanos vindo a

reconhecer Yahweh, de acordo com a correta fé israelita. Embora seja

necessário que os leitores tenham consciência de que Efraim/Samaria

precisa passar por uma reforma religiosa, pois a sua adoração a Yahweh

foi corrompida pela influência da religião tradicional (“cananeia”) ou

assíria, eles não devem ceder a uma atitude de rejeição ou hostilidade

em relação aos samaritanos de sua época. Caso os samaritanos

expressem desejo de unir-se à adoração a Yahweh, este se alegrará em

recebê-los, e a comunidade judaíta também deve agir assim.

As pessoas expressam o seu compromisso por meio de uma aliança.

Crônicas traz muitas narrativas sobre alianças, mas essa é a primeira na

qual Israel toma a iniciativa no estabelecimento de uma. A aliança é

feita entre as pessoas, umas com as outras, a exemplo da aliança em

1Crônicas 11, mas também é uma aliança de compromisso pela

fidelidade a Yahweh. Estritamente, devemos considerá-la como uma

reafirmação da relação de aliança regular entre Israel e Deus. A

implicação aqui é que, caso Israel coloque em risco o seu compromisso

com aquela aliança, a relação de aliança também estará em perigo. Israel

precisa renovar o compromisso para que a relação de aliança permaneça

firme. A declaração de que pessoas desleais a Yahweh devem ser mortas

não é uma afirmação legal — pelo menos, não é a forma pela qual o

Antigo Testamento trata esse tema. Israel não executa pessoas que

falham em buscar o Deus de Israel (caso fosse verdade, não restaria

quase ninguém!). Antes, essa declaração é uma afirmação sobre a

seriedade das questões que são suscitadas quando pessoas recorrem a

recursos outros que não Yahweh.

O parágrafo de encerramento sugere a profundidade dos problemas

decorrentes da infidelidade judaíta a Yahweh. A própria mãe de Asa está


envolvida, ao se aproveitar de sua posição influente como a rainha-mãe

(em geral, uma posição muito importante em uma corte do Oriente

Médio) para introduzir formas de adoração que são abomináveis a

qualquer um comprometido com a fé israelita apropriada. O pai de Asa

morreu após reinar apenas três anos e, assim, provavelmente, em sua

juventude. Por seu turno, isso sugere que Asa era ainda muito jovem

quando ascendeu ao trono, o que abriria a possibilidade de sua mãe

permanecer no poder sobre a nação até Asa afirmar-se como rei.


2CRÔNICAS 16:1-14
OS OLHOS DE DEUS ESTÃO PERCORRENDO A TERRA
1
No trigésimo sexto ano do reinado de Asa, Baasa, rei de Israel, subiu contra Judá e

construiu Ramá para não permitir que alguém, pertencente ao rei Asa, de Judá, saísse ou

2
entrasse. Asa trouxe a prata e o ouro dos tesouros da casa de Yahweh e da casa do rei, e

3
enviou a Ben-Hadade, o rei de Aram, que vivia em Damasco, dizendo: “[Que haja] uma

aliança entre mim e ti, como houve entre meu pai e o teu pai. Agora, estou te enviando prata

e ouro; vá e cancela a tua aliança com Baasa, rei de Israel, para que ele se retire de mim.”

4
Ben-Hadade ouviu ao rei Asa e enviou os oficiais do exército que tinha contra as cidades de

5
Israel. Ele derrotou Ijom, Dã, Abel-Maim e todas as cidades-armazéns em Naftali. Quando

6
Baasa ouviu, ele deixou a construção de Ramá e parou o trabalho nela. O rei Asa, por seu

turno, reuniu todo o Judá, e eles carregaram as pedras de Ramá e as toras, com as quais

7
Baasa havia construído, e com elas construíram Geba e Mispá. Mas, naquela época, Hanani,

o vidente, foi a Asa, o rei de Judá, e lhe disse: “Por você confiar no rei de Aram e não confiar

em Yahweh, o seu Deus, por causa disso o exército do rei de Aram escapou de suas mãos.

8
Por acaso, não eram os udaneses e os líbios um exército poderoso, com carruagens e corcéis

em número muito grande, e, quando você confiou em Yahweh, ele não os entregou em suas

9
mãos? Pois os olhos de Yahweh percorrem toda a terra, para afirmar a sua força em nome

daqueles cujo espírito é sincero em relação a Yahweh. Você tem sido estúpido em relação a

10
isso. Pois, de agora em diante, haverá guerras para você.” Asa ficou indignado com o

vidente e o colocou no tronco porque ficou furioso com ele por essa causa, e Asa oprimiu

algumas das pessoas naquela ocasião.

11
Eis que os atos de Asa, iniciais ou tardios, estão escritos nos anais dos reis de Judá e de

12
Israel. No trigésimo nono ano de seu reinado, Asa teve uma doença em seus pés, até que a

doença ficou muito séria e, além disso, em sua doença ele não consultou Yahweh, mas os

13
médicos. Asa dormiu com seus ancestrais. Ele morreu no quadragésimo primeiro ano de

14
seu reinado, e eles o sepultaram na tumba que ele havia cortado para si mesmo, na cidade

de Davi. Eles o colocaram em seu lugar de descanso, o qual estava cheio com especiarias e

perfumes feitos por meio de trabalho de mistura, e lhe fizeram um fogo muito grande.

Alguns anos atrás, também sofri com uma enfermidade em meus pés e

fui consultar o meu médico. Tratava-se de uma simples dor em meu

dedão, mas ele me disse que eu estava com gota, o que foi um pouco

preocupante, pois pensei que a gota era uma doença associada com

álcool em excesso. Então, para piorar, descobri que isso também é


tradicionalmente relacionado com indulgência sexual. Mas o médico

assegurou que eu não precisava me preocupar com o meu estilo de vida,

prescrevendo-me algumas pílulas que logo solucionaram o problema.

Quando a enfermidade voltou a dar sinais, meses depois, tomei as

pílulas e, uma vez mais, os sintomas desapareceram. Eu não orei a

respeito; nem questionei se havia alguma mensagem por trás da

enfermidade, como, por exemplo, se tinha dado um passo errado em

relação a Deus ou trilhara o caminho inadequado (talvez em relação a

vinho ou sexo).

À luz da história de Asa, na próxima vez pretendo fazer isso. A

Escritura, em princípio, não é hostil aos médicos, embora,

ocasionalmente, expresse certo desconforto quanto a eles; com

facilidade espantosa, podem custar rios de dinheiro sem que sejam

capazes de fazer muita coisa por você. Nada tem mudado, então, ao

longo de dois ou três milênios. A questão levantada pelo recurso aos

médicos é se achamos que podemos ignorar Deus e assumirmos o

controle de nossa vida, independentemente dele, além de fechar os

olhos às questões religiosas que uma enfermidade pode suscitar. Tanto o

Antigo quanto o Novo Testamentos deixam claro que as doenças, às

vezes, abrigam questões dessa natureza. Os cristãos de Corinto

experimentaram fraqueza, doença e morte, as quais eram sinais do

julgamento de Deus sobre a congregação por causa da atitude deles em

relação ao corpo de Cristo. Mas eles não pensaram em questionar o

significado disso (veja 1Coríntios 11:29-31). Segundo Crônicas relata

inúmeras maneiras pelas quais Asa agiu erroneamente nos derradeiros

anos de seu longo reinado e, então, justapõe o comentário sobre a sua

enfermidade nos pés (não há meios disponíveis para descobrir qual seria

essa doença). Novamente, isso abre a questão sobre haver uma ligação

direta entre os passos errados de Asa e a aflição surgida em seus pés; não

há certeza, mas, pelo menos, a dúvida prevalece. O próprio Asa, porém,

falha em fazê-lo. Ele, simplesmente, consulta um médico.


O problema é a versão individual da questão sobre política que

Crônicas também suscita em relação a história de Asa. Esse aspecto

político da questão vem à tona novamente aqui. Crônicas não nos diz o

que Baasa estava objetivando ao isolar Judá, embora esse movimento

seja, obviamente, parte do conflito contínuo entre os dois reinos. A

história não sugere que a confrontação de Baasa seja resultado da

transgressão de Asa, de modo que parece ser uma espécie de teste.

Como Asa irá reagir? Nesse conflito político, a sua reação também é a

de ignorar Deus e, independentemente dele, tentar controlar o destino

do seu povo. Ele toma para si a responsabilidade pelo destino político

dos judaítas, como rei deles. Sua ação traça um paralelo com a ação de

Acaz, criticada por Isaías pelo mesmo motivo (veja Isaías 7).

Sua ação particular levanta questões. Para comprar apoio político,

Asa lança mão não apenas dos recursos de seu próprio palácio, mas dos

recursos do templo, que seriam ofertas dedicadas a Deus. Embora a

palavra para aliança seja também um termo regular para expressar um

tratado político, há algo sugestivo quanto ao uso dessa palavra apenas

no capítulo anterior, em conexão com a relação da nação com Deus e,

especialmente, em conexão com o seu compromisso de olhar para Deus.

Agora, Asa está olhando para outros lugares por causa de suas

necessidades políticas, do mesmo modo que fez com respeito à sua

necessidade física pessoal (o verbo “olhar” também aparece no capítulo

15 nessa conexão), e está se apropriando de bens que pertencem a Deus.

Além disso, a ação de Asa envolve subornar Ben-Hadade, rei de Aram,

para que ele anule a aliança com Efraim.

As ironias são muitas. O povo de Israel como um todo (Judá e

Efraim) supostamente constitui o povo da aliança do único Deus, mas

um deles está em uma relação de aliança com a Síria, enquanto o outro

rei israelita quer se apossar dessa posição nesse tratado. Para esse fim, o

rei judaíta oferece suborno ao rei sírio para que este abandone o

compromisso de aliança que solenemente selou com o rei de Efraim.

Portanto, um rei israelita leva o rei sírio a atacar o outro rei israelita
sem que este o provoque e, simplesmente, devaste algumas cidades

israelitas. Como tática, a ação funciona. Baasa estava concentrado em

seus territórios ao sul, fronteiriços a Judá. Ele, agora, é obrigado a

mudar o foco para as suas regiões localizadas a nordeste, que fazem

fronteira com a Síria, e, assim, retirar-se de sua ação no sul. Na verdade,

isso possibilita que Asa lance ataques à fortificação efraimita em Ramá,

situada ao norte de Jerusalém, e possa reciclar a matéria-prima usada

por Baasa na construção de suas próprias fortificações do lado judaíta

da fronteira entre Efraim e Judá.

Então, Hanani, o vidente, surge do nada. Em geral, “videntes” são

pessoas presentes na folha de pagamento do rei, mas, se Hanani era um

desses, ele aprendeu (como Natã e Gade) a manter certo grau de

independência do rei. Uma razão-chave para a existência de profetas e

de videntes (não podemos distingui-los com clareza) é dizer coisas que

contrariem o que as pessoas estão pensando ou poderiam naturalmente

pensar. Azarias já fizera isso com Asa, e, agora, Hanani. Asa deu ouvidos

a Azarias, mas não a Hanani, talvez porque a profecia de Azarias lhe

conviesse; em certas ocasiões, a reforma religiosa caminha muito bem ao

lado das aspirações políticas do rei. Todavia, a resistência de Asa às

palavras de Hanani está em sintonia com a forma pela qual o velho Asa

dá as costas para o compromisso assumido pelo jovem Asa. Ele não é o

único rei do qual isso é verdade. Embora as pessoas, às vezes, possam se

tornar mais comprometidas com Deus à medida que envelhecem, outras

vezes podem se apegar à posição de liderança e ao poder e prestígio que

ela traz e serem levadas a atitudes e estilos de vida que traem o que elas,

outrora, eram.

Hanani possui uma excelente sentença para descrever a consciência

de Deus quanto ao que está acontecendo na vida das pessoas: os olhos

de Deus percorrem, ou vão de um lado ao outro, por toda a terra. Essa

expressão veio dos lábios de um profeta não muito tempo antes de o

livro de Crônicas ser escrito (veja Zacarias 4:10). Podemos considerar

isso como uma ameaça a Asa (“Cada movimento que fizer, estarei
observando você”), mas o contexto deixa claro que, na realidade, se

trata de uma reafirmação e de uma promessa. Deus possui amplos meios

de conhecer tudo sobre as ameaças e dificuldades enfrentadas por Asa.

O rei pode depositar sua confiança em Deus; o problema é que ele não o

faz.

Para as pessoas e, talvez, para Deus, as falhas de Asa em seus

derradeiros anos de vida não significam que as conquistas de seus anos

iniciais sejam esquecidas. O povo lhe dá um sepultamento cuja

descrição não encontra paralelo entre os reis.


2CRÔNICAS 17:1-19
UMA MISSÃO DE ENSINO
1 2
Josafá, seu filho, reinou em seu lugar e afirmou o seu poder sobre Israel. Ele colocou uma

força em todas as cidades fortificadas de Judá e pôs guarnições no território de Judá e nas

3
cidades de Efraim que Asa, seu pai, havia capturado. Yahweh esteve com Josafá porque ele

4
andou nos caminhos iniciais de Davi, o seu ancestral, e não olhou para os Mestres, mas

olhou para o Deus de seu ancestral e andou por seus mandamentos, não de acordo com a

5
prática de Israel. Yahweh estabeleceu o reinado em sua mão e todo o Judá trouxe ofertas a

6
Josafá, de maneira que teve riqueza e esplendor em grandes quantidades. Sua mente se

orgulhava nos caminhos de Yahweh, e ele, novamente, removeu os lugares altos e as aserás de

7
Judá. No terceiro ano de seu reinado, ele enviou seus oficiais Bene-Hail, Obadias, Zacarias,

8
Natanael e Micaías para oferecerem instrução nas cidades de Judá, e com eles os levitas

Semaías, Netanias, Zebadias, Asael, Semiramote, Jônatas, Adonias, Tobias e Tobe-Adonias,

9
os levitas, e com eles Elisama e Jeorão, os sacerdotes. Assim, eles ofereceram instrução em

Judá, tendo com eles o rolo do ensino de Yahweh. Foram a todas as cidades de Judá e

10
ofereceram instrução ao povo. O temor de Yahweh estava sobre todos os reinos das terras

11
ao redor de Judá, e eles não entraram em guerra com Josafá. Alguns filisteus levaram

ofertas a Josafá e prata como um presente; os árabes, também levaram a ele rebanhos: sete

12
mil e setecentos carneiros e sete mil e setecentos bodes. Josafá foi se tornando cada vez

13
maior. Ele construiu fortalezas e cidades-armazéns em Judá; ele tinha muito trabalho nas

14
cidades de Judá, e soldados, guerreiros capazes, em Jerusalém. A lista desses, por casa

ancestral, foi: por Judá, como oficiais de milhares, Adna, o oficial, e com ele trezentos mil

15 16
guerreiros capazes; depois dele, Joanã, o oficial, e com ele duzentos e oitenta mil; depois

dele, Amasias, filho de Zicri, que se voluntariou a Yahweh, e com ele duzentos mil guerreiros

17
capazes; de Benjamim, Eliada, um guerreiro hábil, e com ele duzentos mil homens

18
empunhando arco e escudo pequeno; depois dele, Jeozabade, e com ele cento e oitenta mil

19
homens armados para a guerra. Essas eram as pessoas que serviam o rei, além das pessoas

que o rei colocou nas cidades fortificadas em todo o Judá.

Quando vim à Califórnia pela primeira vez, as pessoas me pediam para

comparar os alunos daqui com os meus alunos na Inglaterra. Como

resposta padrão, eu dizia que eles não eram muito diferentes, apenas

que os alunos norte-americanos escreviam melhor em inglês. Isso

surpreendia as pessoas, pois contrastava com a autopercepção delas e a

noção mítica que tinham da Grã-Bretanha. Mais recentemente, para


minha preocupação, conscientizei-me de outra distinção. As igrejas de

origem de meus alunos parecem não ler a Bíblia com frequência no

culto; nem muitos membros leem a Bíblia por conta própria. A

familiaridade que possuem da Escritura é de segunda mão, recebida por

meio das aulas de Escola Dominical e dos sermões, cujo ensino filtra e

reinterpreta a Bíblia mediante as crenças atuais de pregadores e

professores. Igualmente, eu costumava dizer que um dos meus prazeres

como professor era mandar os alunos lerem a Bíblia e observar a

interrogação estampada no rosto deles quando voltavam, além de certa

frustração por descobrirem que o que aprenderam sobre a Bíblia não era

verdade. Mas, agora, tornei-me mais preocupado pelo que isso sugere

sobre aquele ensino.

O aspecto singular da história de Josafá, em Crônicas, é que ele faz

algo sobre a questão equivalente em Judá. Agir para assegurar que as

pessoas sejam instruídas no ensino de Yahweh está de acordo com a

visão de reinado, delineada em Deuteronômio 17. A princípio, ele, uma

vez mais, remove os lugares altos e as aserás de Judá — uma nota no

mínimo estranha, pois o seu pai havia feito a mesma coisa, dois

capítulos atrás. Isso reflete como os padrões de adoração e de

pensamento que as pessoas extraem da cultura estão profundamente

enraizados. Em todo o mundo, nas sociedades tradicionais e nas

ocidentais, tais presunções sobre Deus e sobre como nos relacionamos

com ele estão entretecidas com as diferentes suposições expressas na

história do envolvimento de Deus com Israel e com Jesus.

Josafá procura alterar essa dinâmica ao introduzir um ensino

construtivo, além da ação destrutiva de demolição dos lugares altos e

das aserás, objetivando desencorajar o povo a olhar para os Mestres.

Reconhecidamente, isso irá funcionar apenas se a missão de ensino

envolver pessoas genuinamente conhecedoras do “ensino de Yahweh”,

não somente da interpretação das equipes de ensino. A possibilidade de

que isso tenha, de fato, ocorrido é reforçada pelo relato mais concreto

sobre o ensino dos levitas, em Neemias 8. Ali, Esdras desempenha o


papel de sacerdote, inicialmente lendo do próprio “rolo de ensino”.

Então, os levitas, aparentemente trabalhando com grupos de pessoas,

como seria esperado, considerando o tamanho da multidão e a ausência

de microfones, combinam a leitura do rolo com explicações sobre o

significado. A história de Josafá é designada a, quando lida, encorajar as

pessoas a verem o padrão por ela descrito incorporado no próprio

padrão de vida delas. A palavra para ensino é torah; convencionalmente,

ela é traduzida por lei, mas isso não transmite a ideia correta. O texto

original de Neemias 8 menciona o rolo do “ensino” de Moisés, algo

similar ao que teremos na própria Torá. Nos dias de Josafá, não havia

nada tão complexo quanto aquele pergaminho, embora seja possível

pensar que esse rolo contivesse material que, mais adiante, seria

incluído no rolo final do ensino de Moisés. Ainda, seria razoável esperar

que esse pergaminho de ensino transmitisse ao povo a história do

envolvimento de Deus com eles, além de estabelecer as expectativas

divinas em relação a eles. Na realidade, é a história que possui potencial

para remover os lugares altos e as aserás da mente das pessoas e da vida

delas. No entanto, ao que tudo indica, isso não acontece na realidade;

no capítulo 20, descobriremos que Josafá, por fim, não logrou mais

sucesso nessa empreitada que o seu pai.

Dada a importância dessa ação, designada a ensinar o conteúdo do

rolo de ensino ao povo, não surpreende que a história de Josafá o

apresente como um grande herói e o associe, de formas estereotipadas, a

conquistas que caracterizam um grande rei. Ele afirma a sua autoridade

sobre o país como um todo (Israel pode significar Efraim ou pode

significar Judá como a personificação do povo de Deus), constrói

cidades fortificadas, assegura a existência de um grande exército de

cidadãos, angaria o reconhecimento dos povos vizinhos e descobre que

eles possuem um temor de Yahweh que os impede de atacar o seu povo.


2CRÔNICAS 18:1-11
ÀS VEZES, REALMENTE, VOCÊ DECIDE
1
Assim, Josafá tinha riqueza e esplendor em grandes quantidades. Ele fez uma aliança de

2
casamento com Acabe e, após alguns anos, desceu a Samaria para [ver] Acabe. Acabe

sacrificou ovelhas e bois em grandes quantidades, para ele e para a companhia que estava

com ele, e o persuadiu a subir contra Ramote-Gileade.

3
Então, Acabe, rei de Israel, disse a Josafá, rei de Judá: “Subirás comigo a Ramote-Gileade?”

Ele lhe disse: “Serei um contigo, minha companhia uma com a tua, unindo-se a ti na

4 5
batalha.” Mas Josafá disse ao rei de Israel: “Inquira a palavra de Yahweh hoje.” Então, o rei

de Israel reuniu os profetas, quatrocentos indivíduos, e lhes disse: “Devemos subir a

Ramote-Gileade para a batalha, ou desistir?” Eles disseram: “Sobe. Deus a entregará nas

6
mãos do rei.” Mas Josafá disse: “Não há outro profeta de Yahweh aqui ao qual possamos

7
inquirir?” O rei de Israel disse a Josafá: “Há outra pessoa para inquirir de Yahweh, mas eu o

repudio porque ele não profetiza boas coisas para mim, mas sempre problemas. Ele é Micaías,

8
filho de Inlá.” Josafá disse: “O rei não deveria dizer isso.” Então, o rei de Israel chamou um

oficial e disse: “Apresse Micaías, filho de Inlá, para vir [aqui].”

9
Enquanto o rei de Israel e Josafá, o rei de Judá, estavam sentados cada um em seu trono,

vestidos em seu manto, na eira, na entrada do portão de Samaria, com todos os profetas

10
profetizando à frente deles, Zedequias, filho de Quenaaná, fez para si chifres de ferro e

11
disse: “Yahweh disse isto: ‘Com estes, ferirás Aram até os destruir.’” Todos os outros

profetas estavam profetizando da mesma maneira, dizendo: “Sobe a Ramote-Gileade e

triunfa! Yahweh a entregará nas mãos do rei.”

Recordo-me de ter discutido com um colega de quarto sobre poder ou

não fazer algo. Muito provavelmente, era sobre namorar uma garota

quando eu já estava saindo com outra. Em determinado momento, o

meu colega disse: “Encare os fatos, você já tomou uma decisão; apenas

não quer assumir isso” (adivinhe em qual direção ele quis dizer que eu

havia decidido). Ele não quis dizer que eu o estava enganando ao tentar

discutir essa questão com ele, mas que estava enganando a mim mesmo

ou, pelo menos, escondendo-me do fato de, subconscientemente, já

haver tomado a minha decisão. Ele estava certo. Prosseguimos

refletindo sobre quão frequentemente isso acontece. Em nosso íntimo, a


decisão está tomada, mas leva um tempo para que aceitemos e

enfrentemos a natureza dela.

Acabe tomou a decisão de atacar Ramote-Gileade. Gileade é parte

de uma ampla área a leste do Jordão, na qual dois clãs israelitas e a

metade de outro se estabeleceram. Desse modo, é uma cidade situada

em uma região que Israel considera como parte de seu território.

Contudo, Gileade faz fronteira com a região de Aram, ao norte

(atualmente, o Estado ao norte é a Síria, e Gileade está no reino da

Jordânia), de maneira que não é totalmente irracional que Aram visse

aquela região como naturalmente pertencente ao território arameu. Ao

que tudo indica, Aram havia capturado a cidade, e Acabe, então,

conclui que é tempo de recuperá-la. Às vezes, Aram e Efraim selam um

acordo de cooperação contra Judá; outras vezes, é Judá que faz um

acordo com Aram contra Efraim. Naquele período, no entanto, Judá e

Efraim cooperam mutuamente contra Aram. Pode-se imaginar que essa

situação seja, teologicamente, mais adequada, embora não haja

evidências de que os protagonistas estejam pensando nesses termos,

nem o autor de Crônicas. No que tange a Crônicas, Efraim retirou-se,

por assim dizer, da membresia de Israel como povo de Deus, embora

ainda ostente o nome político de Israel. Portanto, por implicação, ao

estabelecer uma aliança de casamento com Acabe, Josafá semeia

problemas para si. O ponto se tornará mais explícito no capítulo 19.

Para nós, a subordinação de uma relação de matrimônio a interesses

políticos é, em si, questionável. Para a Bíblia, o problema reside na

sedimentação de um relacionamento com uma entidade da qual se

deveria manter uma distância segura. Deuteronômio 7:3 adverte

quanto a essa matéria: uma das últimas exortações de Josué a Israel a

esse respeito (Josué 23:12); foi um dos primeiros prenúncios da queda

de Salomão (1Reis 3:1); e, ainda mais significativo, foi uma prática pela

qual Esdras criticou os judaítas em uma época próxima à dos leitores de

Crônicas (Esdras 9:14). A distinção no ponto de Crônicas é que Efraim


é tratado como uma dessas entidades estrangeiras e inadequadas com as

quais os casamentos mistos são criticados.

A aliança estabelecida por meio do matrimônio obriga as duas

partes a apoiarem-se mutuamente e, portanto, permite a Acabe insistir

no apoio de Josafá na campanha de reconquista de Ramote-Gileade. De

maneira esperada, os dois reis reconhecem que os israelitas devem

consultar Yahweh antes de iniciar a ação militar. Todavia, não se deve

generalizar o princípio. Grandes líderes como Moisés, Josué e Davi,

algumas vezes, consultaram Yahweh antes de uma batalha, mas, em

outras, não, e a consulta a Yahweh não é um dos princípios para uma

guerra justa, estabelecidos em Deuteronômio 20. No entanto, pode-se

ver como essa seria uma atitude sábia e esperada de um rei que gozasse

de boa reputação, que andasse nos caminhos de Yahweh. E, quando

alguém sugere consultar Deus antes de qualquer ação, é difícil resistir a

essa sugestão sem passar a impressão de insensibilidade espiritual. O

problema é que o rei Acabe já tomou a sua decisão. Sua consulta aos

profetas não é realizada com uma mente aberta. E, por isso, os profetas

sabem qual deve ser a resposta certa à pergunta do rei.

A exemplo de Davi e Salomão, Acabe possui em sua corte profetas

para lhe dar orientação, embora a quantidade de quatrocentos,

claramente excessiva para essa atividade, abra a possibilidade de eles

também estarem envolvidos no ministério aos cidadãos comuns, à

semelhança de Samuel. Como de costume, integrar a folha de

pagamento do rei tende a significar que os profetas dizem apenas o que

o seu patrão deseja ouvir, mas isso não implica transmitir profecias que

eles sabem ser falsas. Eles são profetas de Yahweh, não do Mestre, e,

provavelmente, são sinceros em prometer ao rei Acabe que ele pode

realizar, com êxito, o seu plano de recapturar uma parte da terra de

Israel que foi anexada por um poder estrangeiro.

A profecia expressa por Zedequias dá suporte a essa presunção. Os

reis estão sentados em um lugar da cidade no qual é fácil promover uma

reunião pública. A eira deveria ser uma área aberta, utilizada para a
debulha durante o outono, mas disponível em outras oportunidades

para reuniões comunitárias. Há, igualmente, algumas evidências de que

cerimônias religiosas eram ali realizadas. A ação simbólica de Zedequias

é um daqueles atos que um profeta como Jeremias realizaria. Ele

personifica a ação “real” que ocorrerá quando Acabe sair em sua missão;

portanto, isso a confirma e inicia sua implementação. Trata-se de um

ato como o batismo, a ceia ou o lava-pés — não apenas uma encenação

ou ilustração, mas um prenúncio efetivo do próprio evento. Pelo menos,

esse é o caso quando Deus está nos bastidores da ação.

Seria totalmente plausível prometer que Israel recuperaria parte da

terra que lhe foi dada por Deus, exceto pelo fato de que essa promessa

ao rei Acabe ignora a dinâmica dessa relação com Deus. Crônicas omite

as narrativas em Reis que especificam a transgressão de Acabe; a sua

identificação com Efraim e a sua contínua rebelião contra Jerusalém e

Davi é o que basta para colocar em perigo a sua posição em relação a

Yahweh. Um profeta decente deveria saber disso e reconhecer a

improbabilidade de Yahweh prometer a vitória a Acabe, quando uma

interpretação mais plausível para a tomada do território pelos arameus

é que isso constitui uma forma de castigo para a vida transgressora e

rebelde de Efraim.

Além disso, o rei Acabe sabe que há um profeta que conhece tudo

isso e que está pronto a sair e dizer o que for preciso. Evidentemente,

Micaías já tem feito isso por um longo tempo. A palavra para “repudiar”

é normalmente traduzida por “odiar”, e, sem dúvida, Acabe odiava

Micaías, mas, a exemplo de amor, o verbo odiar, em geral, denota tanto

a atitude quanto a ação que a personifica, não meramente uma emoção

(uma das palavras hebraicas para “inimigo” origina-se desse verbo).

Acabe odeia, rejeita e se opõe a Micaías por causa da mensagem que

esse profeta está sempre proclamando. No entanto, há algo em Micaías

do qual ele não pode escapar. O rei Acabe já tomou a sua decisão, mas

ele também tem uma incômoda sensação de que tomou a decisão errada.
2CRÔNICAS 18:12-27
O ESPÍRITO DE ENGANO
12
O ajudante que foi convocar Micaías lhe disse: “Ora, como uma só boca, as palavras dos

profetas são boas para o rei. A tua palavra deveria ser como a deles. Fale algo bom.”

13
Micaías disse: “Tão certo como Yahweh vive, o que meu Deus disser a mim, isso eu falarei.”

14
Então, ele foi ao rei, e o rei lhe disse: “Miqueias, devemos ir para a batalha contra Ramote-

15
Gileade, ou desistir? Ele disse: “Suba e triunfe! Eles serão entregues nas suas mãos.” O rei

lhe disse: “Quantas vezes terei de fazer você jurar que não me falará nada, além da verdade

16
em nome de Yahweh?” Ele disse: “Vi todo o Israel espalhado nas montanhas como ovelhas

que não têm pastor. Yahweh disse: ‘Estes não têm mestres. Eles deveriam voltar para sua

17
casa, cada um, em paz.’” O rei de Israel disse a Josafá: “Não lhe disse: ‘Ele não profetizará o

18
bem para mim, somente problema’?” [Micaías] disse: “Portanto, ouçam a palavra de

Yahweh. Vi Yahweh assentado em seu trono, com todo o exército dos céus posicionado à sua

19
direita e à sua esquerda. Yahweh disse: ‘Quem irá atrair Acabe, rei de Israel, para que ele

possa subir, mas cair em Ramote-Gileade?’ Eles falaram, e um dizia isso e outro dizia aquilo,

20
e um espírito saiu e se colocou diante de Yahweh e disse: ‘Eu o atrairei.’ Yahweh lhe disse:

21
‘Como?’ Ele disse: ‘Sairei e me tornarei um espírito enganador na boca de todos os

profetas.’ [Yahweh] disse: ‘Você o atrairá e também será bem-sucedido. Vá e faça isso.’

22
Então, agora, eis que Yahweh colocou um espírito mentiroso na boca desses profetas,

23
quando Yahweh decretou problemas para você.” Zedequias, filho de Quenaaná, saiu e

golpeou Micaías na mandíbula, e disse: “Por qual caminho o espírito de Yahweh passou de

24
mim para falar com você?” Micaías disse: “Eis que você irá ver, naquele dia, quando for ao

25
aposento mais interno para se esconder.” O rei de Israel disse: “Tomem Micaías e o

26
devolvam a Amom, o governador da cidade, e a Joás, o filho do rei, e digam: ‘O rei disse

isto: “Ponham este homem na prisão. Devem dar-lhe comida e água de escravo até que eu

27
volte em paz.”’” Micaías disse: “Se você realmente voltar em paz, Yahweh não falou por

meu intermédio.” (E ele disse: “Ouçam, todos os povos.”)

Na próxima quarta-feira, irei falar em uma faculdade denominacional e,

estranhamente, eles me pediram para abordar um dos temas teológicos

que caracterizam a própria denominação. Ocasionalmente, vou aos

cultos em igrejas dessa denominação, mas o problema é que essa minha

experiência me faz pensar que a denominação deixou de levar a sério as

suas próprias ênfases características. E, claro, não tenho certeza se devo

dizer isso. Seria muito agressivo de minha parte, um gesto inadequado a


um palestrante convidado? Infelizmente, a leitura dessa história me faz

refletir que o exemplo de Micaías significa que devo confrontá-los.

É bem possível que eles se sintam ofendidos, mas espero não receber

o mesmo destino de Micaías. Ser um profeta é uma vocação difícil, em

inúmeros sentidos. Para começar, provavelmente, ela envolve discordar

do que a maioria está dizendo. Daí o motivo de Deus enviar profetas;

não é preciso enviá-los para confirmar o que as pessoas já pensam. Para

Micaías, as coisas são mais complicadas porque ele precisa discordar da

palavra de quatrocentos outros profetas, não apenas da palavra

(digamos) de alguns professores de teologia ou pastores dos quais pode-

se esperar que estejam fora do contato com Deus. Micaías precisa

confiar em sua convicção de que está certo e os demais estão errados.

Certas pessoas acham fácil discordar de todas as outras; outras

consideram isso difícil. Não há meios de definir a qual grupo Micaías

pertencia, embora na cultura tradicional possa ser, em geral, mais difícil

ficar fora do grupo do que na cultura ocidental. Seja como for, esse não

é o fundamento sobre o qual um verdadeiro profeta decide discordar ou

não de outros profetas. O fator determinante é a posição ética e

religiosa da pessoa à qual o profeta é chamado a ministrar. Qualquer um

dotado de discernimento religioso e ético é capaz de olhar para Acabe e

ver que não há como Deus lhe enviar profetas para transmitir uma

mensagem positiva, uma mensagem sobre paz.

Os profetas precisam confiar em sua convicção de que Deus está

falando com eles e de falar apenas o que Deus os impelir a falar. Quando

há dúvidas sobre se a mensagem recebida, de fato, vem de Deus, uma

questão-chave é como isso se encaixa no que os profetas conhecem

sobre Deus. Todavia, a sua justificativa virá apenas quando os eventos

se encaixarem ou não em suas palavras. O retorno seguro do rei Acabe

da batalha provaria a inveracidade da mensagem de Micaías. A profecia

não envolve a mera interpretação de um evento após a sua ocorrência,

mas declará-lo antes que ocorra, de modo que possa, subsequentemente,

dizer: “Você viu? Eu disse o que iria acontecer e a razão para isso; agora
que vê o cumprimento, você deveria acreditar na justificativa que lhe

dei.”

Em adição, ser profeta é uma atividade difícil porque pode ser

perigosa. Assim, Acabe envia Micaías “de volta” ao governador da

cidade para ser mantido em custódia; aparentemente, ele já está em

custódia, e a maneira com que é enviado de volta sugere que suas

condições na prisão irão ficar ainda piores.

Apesar disso, Acabe está dividido. Ele falou como se já tivesse

tomado uma decisão quanto ao que irá fazer e tem a palavra de

quatrocentos profetas a seu favor. Todavia, quando Micaías transmite a

mesma palavra dos quatrocentos profetas, o rei sabe que ele não quer

dizer isso e deseja saber o que Micaías realmente pensa — ainda que não

tenha a menor intenção de considerá-la.

Israel é semelhante a um rebanho sem pastor. “Pastor” é uma

imagem padrão do Oriente Médio para um rei. O pastor tem autoridade

sobre as suas ovelhas e é responsável pelo cuidado delas; o rei está em

uma posição similar. A profecia pode ser lida tanto como um insulto em

relação ao presente quanto como uma advertência para o futuro. Trata-

se de um insulto porque implica que o pastor de Efraim é totalmente

incapaz, de maneira que, na prática, as “ovelhas” não têm pastor. É uma

advertência porque aponta para a morte do assim chamado pastor. Não

há boas notícias para o rei Acabe. Ele não voltará para casa em paz, mas

derrotado.

Assim, por que os quatrocentos profetas afirmam o contrário? A

resposta fornece outro exemplo em que a Bíblia vira o nosso

pensamento de cabeça para baixo. Não é por estarem fora do controle

de Deus que os profetas usam o livre-arbítrio para elaborar a sua

própria mensagem, como o moderno pensamento pode nos fazer

presumir. Bem, eles estão usando o seu livre-arbítrio humano, mas, ao

fazerem isso, atuam como agentes de Deus. Do mesmo modo que Isaías

e Jesus falam sobre Deus fechar a mente das pessoas como um ato de

juízo (Isaías 6; Marcos 4), igualmente Micaías fala sobre Deus


incentivar Acabe a empreender essa missão tola por ser este um ato de

juízo sobre ele. Para tal, Deus utiliza um membro de seu gabinete

celestial para inspirar os profetas a dizerem a Acabe que ele irá triunfar,

quando, na verdade, ele fracassará. A Escritura considera que, onde as

pessoas não são verdadeiras, ninguém lhes deve a verdade (a mentira

das parteiras egípcias ao faraó constitui um exemplo). Acabe perdeu o

direito à verdade de Deus por sua mentira em seu relacionamento com

ele. Isso não deixa o rei fora do gancho; Deus lhe envia Micaías com a

verdade, de maneira que Acabe precisa decidir a quem vai dar ouvidos.

Muito menos, retira os quatrocentos profetas da equação. Ninguém é

obrigado a aceitar o engano; eles podem resistir. Chegará o tempo em

que Zedequias irá ver (é seu trabalho, como vidente, mas ele não está

vendo direito, no momento). Isso ocorrerá quando a calamidade cair e

ele estiver desesperado para se esconder dela. Claro que advertências ao

rei Acabe e a Zedequias não são finais. Nunca é tarde até que seja tarde

demais. Está aberto a Acabe e a Ezequias darem meia-volta agora. A

parte final do último versículo vem de Miqueias 1:2; talvez tenha

relação com o fato de Acabe chamar Micaías de “Miqueias” no versículo

14. Isso sugere a consciência de que Micaías é, ao lado de Miqueias e

outros, um verdadeiro profeta de Yahweh.


2CRÔNICAS 18:28—19:11
O PODER DO ACASO
28 29
O rei de Israel subiu a Ramote-Gileade, com Josafá, rei de Judá. O rei de Israel disse a

Josafá: “[Eu] me disfarçarei e irei à batalha, mas tu usarás as tuas vestes.” Assim, o rei de

30
Israel disfarçou-se e foi à batalha. Ora, o rei de Aram havia ordenado aos seus oficiais das

carruagens: “Não lutem contra ninguém, pequeno ou grande, exceto apenas contra o rei de

31
Israel.” Quando os oficiais das carruagens viram Josafá e disseram: “Esse é o rei de Israel”,

eles se viraram para batalhar contra ele, mas Josafá clamou, e Yahweh o socorreu. Deus os

32
atraiu para longe dele; quando os oficiais das carruagens viram que não era o rei de Israel,

33
eles deixaram de segui-lo. Mas um homem puxou o seu arco, inocentemente, e atingiu o rei

de Israel entre as articulações e a armadura. Ele disse ao condutor de sua carruagem: “Dê

34
meia-volta; tire-me do exército, porque estou ferido.” A batalha cresceu naquele dia. O rei

de Israel se manteve em pé na carruagem, de frente para Aram até a noite, mas morreu perto

da hora do pôr do sol.

CAPÍTULO 19

1 2
Josafá, rei de Judá, voltou a Jerusalém, para sua casa, em paz, mas Jeú, o vidente, filho de

Hanani, saiu para encontrá-lo. Ele disse ao rei Josafá: “Deve-se ajudar os infiéis; deveria você

3
favorecer as pessoas que repudiam Yahweh? Por isso, há ira sobre você de Yahweh. Contudo,

boas coisas estão presentes com você, pois você eliminou as aserás da terra e dispôs a sua

mente a olhar para Deus.”

4
Josafá viveu em Jerusalém, mas saiu novamente entre o povo, de Berseba às montanhas de

5
Efraim, e os trouxe de volta a Yahweh, o Deus de seus ancestrais. Ele estabeleceu

autoridades para tomar decisões no país, em todas as cidades fortificadas em Judá, cidade

6
por cidade. Ele disse às autoridades: “Vejam bem o que estão fazendo, porque não é para

seres humanos que vocês tomam decisões autoritativas, mas para Yahweh, que está com

7
vocês quando anunciam uma decisão. Agora, pois, o temor de Yahweh deve estar sobre

vocês. Tomem cuidado ao agirem, porque com Yahweh, o nosso Deus, não há corrupção ou

8
favoritismo ou aceitação de suborno.” (Também em Jerusalém, Josafá estabeleceu alguns

dos levitas e sacerdotes, e alguns dos cabeças ancestrais de Israel para o exercício da

9
autoridade de Yahweh e para as disputas.) Eles retornaram a Jerusalém, e ele lhes ordenou:

“Vocês devem agir assim: com reverência por Yahweh, com constância e com uma mente

10
íntegra. Toda disputa que chegar até vocês de seus parentes que vivem em suas cidades,

com respeito a homicídio, uma regra, leis e decisões, vocês devem adverti-los para que não

ofendam Yahweh e a ira venha sobre vocês e sobre seus parentes. Assim farão e não

11
ofenderão. Ora, Amarias, o sumo sacerdote, está sobre vocês em toda a matéria relativa a

Yahweh, e Zebadias, filho de Ismael, é o governante da casa de Judá em toda a matéria

relativa ao rei. Os oficiais levitas também estão diante de vocês. Sejam firmes quando agirem.

Yahweh esteja com a boa pessoa.”


Algumas semanas atrás, uma amiga teve os quatro pneus de seu carro

cortados. O carro era alugado (e o seguro tinha uma franquia elevada).

Então, ela entrou em uma disputa com a locadora do carro sobre quem

iria pagar pelos pneus danificados. O caráter longo da disputa a levou a

ficar sem carro por muitas semanas. Como resultado, ela precisou

explicar a um rapaz com quem trabalhava que não poderia manter um

compromisso de trabalho e, em seu e-mail explicativo, ocorreu de ela

incluir algumas informações de ordem pessoal sobre as circunstâncias

que estava vivenciando. Por sua vez, o rapaz respondeu também com

uma ou duas palavras pessoais — bem, acho que sabem para onde isso

está caminhando. Ambos acham que encontraram o parceiro ideal e

dizem que é uma bênção monumental de Deus — e será, de fato, se tudo

correr bem. Todavia, de certa forma, tudo isso resultou do furo

acidental de alguns pneus.

Não consegui pensar em um exemplo de uma coincidência “ruim”

que correspondesse à coincidência “ruim” que vitimou Acabe, mas o

princípio é o mesmo. Você pode temer que a sua vida não está indo para

lugar nenhum, ou pode se esforçar para estar no controle dela, mas

algum acaso pode virar as suas expectativas e cálculos de cabeça para

baixo. Acabe permanece dividido quanto à natureza da soberania de

Yahweh em sua vida. Em certo sentido, ele sabe que Micaías lhe contou

a verdade sobre as intenções de Yahweh, embora acredite que possa

frustrar essas intenções ao se disfarçar durante a batalha. Será que

cinicamente o rei pensa que, para alcançar essas intenções, pode

sacrificar Josafá ao fazê-lo ir à batalha em seus trajes reais enquanto ele

se disfarça como um israelita comum? Se for assim, não seria Josafá

muito ingênuo ao concordar com isso? Ou Josafá age imprudentemente

por confiar que Deus o manterá a salvo, como um trapezista sem rede de

proteção, pois sabe que não tem nada a temer? Ou os dois reis supõem
que os arameus seriam capazes de distinguir as vestes de um rei judaíta

dos trajes de um rei efraimita, o que, de fato, ocorre?

Independentemente da resposta, o ponto sobre esse elemento da

história é que, seja qual for o plano que você adote, se Deus decidir

trazer aflição, você vivenciará tempos difíceis tentando frustrá-lo (e,

como a minha amiga, se Deus decidir trazer-lhe bênção, você

experimentará o mesmo ao tentar frustrar os planos divinos). Alguém

pode fazer algo aleatório e sem intenção, como atirar uma flecha a esmo

ou danificar alguns pneus, e esse ato pode ser o meio misterioso pelo

qual o propósito de Deus será colocado em ação. Uso “pode” porque

parte do caráter de uma história é contar algo que já ocorreu e,

portanto, sobre algo que pode ocorrer, sem implicar que sempre ocorre.

A Bíblia deixa claro que é possível frustrar Deus no curto prazo, que

nem sempre ele traz aflição sobre a pessoa que a merece, que nem

sempre ele protege o inocente, mas Deus assim age com frequência

suficiente para considerarmos isso como uma regra de vida vigente e

não cedermos à ideia de que não há justiça ou graça fortuita a nos

cativar.

Josafá logrou uma afortunada fuga durante a batalha. Para sua

felicidade, os arameus reconheceram que ele não era o rei que

procuravam matar, ninguém atirou uma flecha a esmo que pudesse

atingi-lo e Deus não o viu como merecedor de perder a vida, apesar de

ter unido forças com alguém como Acabe. O lado positivo de Josafá

encontra ainda mais expressão ao introduzir certas estruturas

governamentais na vida de Judá. Crônicas observou que Davi exerceu

autoridade de uma forma fiel sobre Israel e como a rainha de Sabá

demonstrou entusiasmo por Salomão fazer o mesmo (1Crônicas 18;

2Crônicas 9). No entanto, é muito mais fácil fazer isso na capital; o rei

não pode pessoalmente garantir o exercício fiel de autoridade em todo o

território. Então, Josafá adota algumas providências para garantir a

governança adequada sobre toda a nação.


A exortação que faz aos seus indicados mostra que o foco de seu

trabalho reside na solução de disputas e conflitos nas comunidades.

Tradicionalmente, era função dos anciãos se reunirem junto ao portão

da cidade para resolver questões conflituosas entre indivíduos ou

famílias. Não está claro por que Josafá considera que esse sistema

precisa de mudanças, embora seja possível pensar em alguns motivos. A

imposição de alguma autoridade que não seja localmente estabelecida

pode contribuir para a objetividade e reduzir a possibilidade de as

decisões serem tomadas com base na maior influência de certas famílias

sobre outras. O desenvolvimento urbano da nação pode significar que o

antigo sistema, que operava bem em pequenas vilas, não era tão

eficiente em cidades maiores. A esfera de trabalho das autoridades não

incluía apenas questões cotidianas da vida (tais como roubos e

homicídios, citados explicitamente na passagem), mas também questões

da vida religiosa (pode-se imaginar que isso cobriu outras questões

suscitadas pela Torá, como a atividade dos profetas ou a prática de

adivinhação), diferenciadas por Crônicas como matérias concernentes a

Yahweh e matérias concernentes ao rei.


2CRÔNICAS 20:1-13
COMO ORAR EM UMA CRISE POLÍTICA
1
No devido tempo, os moabitas e os amonitas, e com eles alguns meunitas, vieram à batalha

2
contra Josafá. Pessoas vieram e contaram a Josafá: “Uma grande horda está vindo contra ti

do outro lado do mar [Morto], de Edom. Eis que estão em Hazazom-Tamar (isto é, En-

3
Gedi).” Josafá teve medo e entregou-se a olhar para Yahweh, e proclamou um jejum para

4
todo o Judá. Judá reuniu-se para buscar o socorro de Yahweh; de todas as cidades em Judá

5
vieram pessoas para buscar o socorro de Yahweh. Josafá levantou-se na congregação de Judá

6
e de Jerusalém, na casa de Yahweh, em frente do pátio novo. Ele disse: “Yahweh, Deus de

nossos ancestrais: tu és, de fato, o Deus nos céus e dominas entre todos os reinos das nações.

7
Em tuas mãos estão o poder e a força. Não há ninguém que resista a ti. Foste tu, de fato,

quem desapropriou os habitantes desta terra diante de Israel, o teu povo, e a deu à

8
descendência de Abraão, o teu amigo, para sempre. Eles viveram nela e construíram um

9
santuário nela para o teu nome, dizendo: ‘Se algum problema vier sobre nós (a espada de

julgamento, epidemia ou fome), nos apresentaremos diante desta casa e clamaremos a ti em

10
nossa aflição, e tu ouvirás e nos livrarás. Mas, agora, há o povo de Amom, Moabe e do

monte Seir, aos quais não deixaste que os israelitas invadissem quando eles vieram do Egito

11
(antes [os israelitas] se afastaram deles e não os eliminaram), eis que eles estão nos

12
retribuindo vindo para nos expulsar da posse que nos deste. Nosso Deus, com certeza

agirás decisivamente contra eles, porque não há poder em nós diante dessa grande horda que

13
está vindo contra nós.’” Todo o Judá estava em pé, diante de Yahweh, também os seus

jovens, suas esposas e seus filhos.

Dois amigos meus estão prestes a voar para um país no qual um grupo

étnico minoritário está vivendo sob a pressão governamental. Eles

viajam, de tempos em tempos, para manter contato com o povo e obter

informações sobre a situação deles e transmiti-las por meio de

gravações em filme e áudio a órgãos como o Departamento de Defesa

dos Estados Unidos, cuja política é procurar pressionar o governo desse

país na adoção de políticas mais igualitárias. Eles também objetivam

tornar a difícil condição desse grupo mais conhecida e estabelecer laços

entre eles e grupos em escolas e igrejas no Ocidente. A ação desses meus

amigos é extremamente perigosa; certa ocasião, eles se viram em meio a


um golpe e não sabiam, ao certo, se sairiam de lá com vida. Cada vez

que deixam os Estados Unidos, eles sabem que há certa possibilidade de

nunca mais retornarem.

Josafá tem bons motivos para sentir medo. Os moabitas e os

amonitas, dois povos que vivem no outro lado do mar Morto,

constituem uma formidável combinação, mesmo sem contar os

meunitas. O último é um povo da mesma área e pouco se conhece sobre

eles, mas o capítulo, mais tarde, dá a entender que eles vivem na região

do monte Seir, o que, por sua vez, implica uma ligação com os edomitas.

Não sabemos porque todos esses povos decidiram invadir Judá naquela

oportunidade; talvez desejassem somente expandir seus territórios. Eles

partiram da extremidade inferior do mar Morto e, agora, estão no meio

do caminho, subindo a oeste do mar Morto, no lado judaíta. Estão no

oásis de En-Gedi, preparando-se para um ataque real sobre Josafá.

Como o rei de Judá deve lidar com o seu justificado medo? Diz uma

conhecida canção: “Sempre que sinto medo, me ponho em pé e assobio

uma melodia alegre para ninguém perceber que estou com medo.” Pode

ser algo importante que as pessoas do povo não percebam que seus

líderes estão em estado de pânico, mas, igualmente, os líderes precisam

lidar, de forma objetiva, com os motivos daquele medo.

Pode ser que Josafá realmente evite revelar o seu temor ao povo e o

guarde para si mesmo. Ele pode agir assim porque sabe o que fazer com

o sentimento. Ele “olha” para Yahweh. A exemplo de outras passagens,

o verbo é normalmente traduzido por “buscar Yahweh”, mas isso pode

não transmitir a impressão correta. O ponto é que Josafá sabe quem

pode lidar com a crise que gera um medo racional nele. Além disso, ele

envolve as pessoas com sua confiança em relação à crise, embora o faça

com o fim de levar o povo a olhar para Yahweh com ele. Todo o povo

jejua. Você deixa de comer quando algo o impede de se alimentar ou

quando tem algo mais importante para fazer do que comer — isso

demonstra a sua seriedade quanto a um compromisso. Josafá leva todo o


Judá a expressar quão sérios eles estão com respeito a buscar a

intervenção de Deus naquela crise.

Em adição, Josafá os lidera em oração. Embora o Antigo Testamento

faça distinção entre os líderes do povo, tais como reis, sacerdotes e

profetas, e reconheça a importância de dividir os poderes para que todo

o poder não fique concentrado em uma só pessoa, ele não libera (por

exemplo) os reis da responsabilidade de liderar o povo em sua relação

com Deus.

Um aspecto-chave por meio do qual a oração de Josafá exemplifica a

maneira de o Antigo Testamento encorajar as pessoas a orarem em meio

a uma crise reside em seu foco sobre quem Deus é, ou seja, como aquele

que detém todo o poder na esfera da política internacional e que

mantém uma longa relação com o povo que está orando. Pode haver

três significados com respeito a essas declarações sobre Deus. Uma é

que elas são registradas para o benefício de pessoas como nós, leitores

de Crônicas — mais diretamente, aos que viviam no período do

Segundo Templo, que não conseguiam ver evidências do poder ou do

compromisso de Deus e que necessitavam de reforço em sua fé. Outro

significado é que as declarações constituem uma expressão de fé pelas

pessoas que estão orando; ambos indicam o compromisso delas e o

reforçam. De modo objetivo, elas se dirigem a Deus; lembram quem ele

é. Como aquele que é todo-poderoso e que mantém um longo

relacionamento com Israel, Deus deve ouvir a oração do povo e lhes

responder.

A oração prossegue descrevendo a necessidade do povo para

relacioná-la àquelas declarações sobre Deus e sobre a relação dele com

Israel. O toque irônico da situação é que os invasores são parentes de

Israel, outros membros da família de Abraão. Por isso, Israel evitou

entrar em conflito com eles, quando estavam a caminho de Canaã, mas,

agora, esses mesmos povos estão invadindo Israel. Novamente, há um

significado para os primeiros leitores de Crônicas, porque esses povos

foram aqueles que cercavam e ameaçavam a pequena nação de Judá,


naquele contexto posterior. À luz de sua necessidade e relativa fraqueza,

a única coisa que o povo de Judá, nos dias de Josafá, pode fazer é se

lançar a Deus e ao seu poder.


2CRÔNICAS 20:14-23
OS DOIS ESTÁGIOS PELOS QUAIS VEMOS RESPOSTAS À

ORAÇÃO
14
Então, Jaaziel, filho de Zacarias, filho de Benaia, filho de Jeiel, filho de Matanias, o levita,

um dos descendentes de Asafe — o espírito de Yahweh veio sobre ele no meio da

15
congregação, e ele disse: “Prestem atenção, todo o Judá e os habitantes de Jerusalém e o

rei Josafá. Yahweh disse isto a vocês: ‘Não tenham medo, não fiquem ansiosos diante dessa

16
grande horda, porque a batalha não é de vocês, mas de Deus. Amanhã, desçam contra eles.

Eis que estarão vindo pela subida de Ziz, de maneira que os encontrarão ao fim do vale,

17
defronte do deserto de Jeruel. Vocês não devem batalhar nessa ocasião. Assumam a sua

posição, permaneçam firmes e vejam a libertação de Yahweh a vocês, Judá e Jerusalém. Não

tenham medo; não fiquem ansiosos. Amanhã, saiam para enfrentá-los. Yahweh estará com

18
vocês.’” Josafá se curvou, com o rosto em terra, e todo o Judá e os habitantes de Jerusalém

19
caíram diante de Yahweh, para prostrarem-se diante de Yahweh. Então, levitas dos coatitas

e dos coreítas se levantaram para louvar Yahweh, o Deus de Israel, com grande voz.

20
Eles se levantaram bem cedo, de manhã, e saíram para o deserto de Tecoa. Quando saíram,

Josafá se levantou e disse: “Ouçam-me, Judá e habitantes de Jerusalém. Fiquem firmes na fé

em Yahweh, o seu Deus, e vocês ficarão firmes. Fiquem firmes na fé em seus profetas, e vocês

21
terão sucesso.” Ele tomou conselho com o povo e colocou pessoas cantando para Yahweh e

louvando a santa majestade, enquanto saíam à frente da companhia armada, dizendo:

22
“Confessem Yahweh, porque o seu compromisso é para sempre.” Na hora em que eles

começaram a ressoar e a louvar, Yahweh colocou emboscadas contra os homens de Amom, de

23
Moabe e do monte Seir que estavam vindo a Judá, e eles colapsaram. Os homens de Amom

e de Moabe se levantaram contra os habitantes do monte Seir para devotá-los e aniquilá-los,

e, quando eles exterminaram os habitantes de Seir, cada um ajudou a destruir o seu

companheiro.

Uma mulher que conheço, certa feita, sofreu uma grande convulsão, em

associação com algumas outras questões médicas. Seu marido acordou

de madrugada e percebeu que a esposa estava convulsionando

incontrolavelmente. Ele chamou o serviço de emergência; os médicos

lhe deram uma injeção que a acalmaram e a transportaram ao hospital.

Lá, ela foi examinada por um neurologista que disse ao marido para ele

não se preocupar: em poucas semanas, ela estaria de volta ao normal.


Nos dias seguintes, ela permaneceu deitada no leito hospitalar, calma,

porém incapaz de controlar os membros. O marido achou difícil crer

que a previsão do médico se cumpriria, mas isso, de fato, ocorreu. No

devido tempo, o casal retornou ao hospital para uma consulta de

acompanhamento, e o marido revelou ao médico que não acreditara na

previsão positiva dele. O neurologista comentou que até ele achou

difícil acreditar nisso, mas era o que os livros de medicina diziam e ele

precisava crer neles.

Houve dois estágios na experiência daquele homem durante a

convalescença da esposa: as palavras ditas pelo médico (das quais ele

mesmo não tinha total certeza) e, então, a recuperação da esposa

testemunhada pelo marido. No Antigo Testamento, as respostas às

orações operam de modo análogo, isto é, em dois estágios. Primeiro, há

uma resposta em palavras; então, uma resposta em ação. No estágio

inicial dessa história, uma vez mais, o espírito de Yahweh vem sobre

alguém. O conhecimento sobre a reação de Deus a uma oração não é

algo que surge naturalmente; é necessário haver o envolvimento do

próprio Deus. Às vezes, a imagem do Antigo Testamento para esse

envolvimento é a de que Deus admite uma pessoa ao gabinete celestial,

no qual decisões são tomadas sobre eventos futuros; em espírito, alguém

ouve os debates no gabinete celestial e, portanto, está em posição de

revelar essas decisões às pessoas. Em outras ocasiões, a imagem do

Antigo Testamento é a de Deus enviar alguém do gabinete com a

informação. Aqui, o próprio espírito de Yahweh é que vem sobre alguém,

um levita; não há regras quanto à pessoa por meio da qual Deus fala.

Em parte, a sua mensagem simplesmente devolve a Josafá o

conteúdo do que ele mesmo dissera a Deus. Josafá sabe que não pode

derrotar aquela força invasora, mas sabe que Deus pode fazer isso; a

questão é se Deus intervirá. Deveria Josafá presumir que Deus agiria

em favor deles? A vida nem sempre funciona da maneira esperada por

nós, e a mensagem de Jaaziel não parece ser uma admoestação, dando a

entender que Josafá deveria ter certeza da intervenção divina. Ao


contrário, ele implica que aquela, de fato, é uma ocasião na qual Deus

intervirá e, por isso mesmo, o medo pode dar lugar à confiança. Quando

o Antigo Testamento fala sobre paz, raramente ele se refere à paz de

mente, se é que o faz; paz é algo que faz diferença na vida real das

pessoas, não apenas aos seus sentimentos internos. A sua maneira de

estabelecer o ponto sobre as emoções íntimas é dizer: “Não tenha medo;

não fique ansioso.” É a espécie de imperativo que é mais uma promessa

do que uma ordem: “Você não precisará ter medo ou ficar ansioso.”

Considerando que Deus pretende lidar com o exército invasor, teria

sido possível apenas mandar os judaítas de volta às suas casas com a

garantia: “Esqueçam-se deles; eu estou nisso.” Em vez disso, Deus os

instrui a se posicionarem como se fossem lutar, mesmo deixando claro

que eles não fariam isso. A coalizão estará em sua subida, do mar Morto

às montanhas de Judá. Os judaítas devem tomar posição diante dos

invasores como se preparados para a batalha e, então, apenas olhar.

Ainda é apenas o primeiro estágio da resposta, mas, decerto, já

merece uma reação de louvor. O louvor não espera até a ocorrência do

segundo estágio, quando Judá desfruta da resposta de Deus. Judá já

sabe que Deus respondeu, pois ele falou, e isso define tudo. O povo

permanece em pé diante de Deus em oração; agora, eles se prostram em

auto-humilhação diante da maravilhosa resposta divina.

O próprio Josafá já percorreu um longo caminho. No início do

capítulo, ele estava com muito medo, e com razão. Agora, quando o

povo parte para confrontar as forças de coalizão, o rei pode falar com a

confiança que Jaaziel revelou ser possível. Por três vezes, Josafá usa a

expressão “permaneçam firmes”, usando duas conjugações distintas do

verbo para enfatizar o seu ponto. Se as pessoas permanecerem firmes em

sua fé em Deus, elas serão capazes de se manterem firmes e com a cabeça

erguida em relação aos seus agressores. Ao elaborar as palavras de

Josafá, Crônicas utiliza as palavras de uma exortação similar, proferida

ao rei Acaz, em Isaías 7:9, sob circunstâncias análogas. Há um contraste

edificante com aquela história. Quando Isaías expressou a exortação, o


rei Acaz não pôde aceitá-la; aqui, quando Jaaziel exorta Josafá, o rei não

somente a aceita, mas transmite a mensagem profética ao seu povo. A

repetição das palavras de Isaías também implica a presunção de que as

palavras do profeta não eram apenas válidas para aquela ocasião, mas

expressavam um princípio no qual o povo de Deus pode regularmente

confiar. Na realidade, o ponto é estabelecido pela exortação de Josafá

sobre permanecer firme na fé nos profetas de Yahweh — não apenas em

Jaaziel, mas profetas como Isaías, cujas palavras do passado (também

sob a perspectiva de Crônicas) são designadas a ser um recurso para a

comunidade que vivia séculos depois dos próprios profetas. Mesmo

quando as promessas proféticas não se cumprem, isso não é motivo para

abandoná-las, mas para se apegar ainda mais a elas, na convicção de

que, de alguma forma, no longo prazo, elas ainda provarão que são

verdadeiras. Repetindo, isso será um importante desafio e

encorajamento para os ouvintes de Crônicas, pessoas cuja experiência

não corresponde à experiência dos personagens dessa história.

A narrativa prossegue de uma forma que parece fora do comum. As

pessoas adoram Yahweh no santuário, enquanto perguntam como lidar

com a crise; então, ao marcharem para confrontar os seus invasores, elas

são lideradas por um coro entoando canções, louvando e testificando o

compromisso permanente de Yahweh, uma nota recorrente em

Crônicas. Uma vez mais, a comunidade que ouve a leitura de Crônicas,

em voz alta, pode ser tentada a questionar se aquele compromisso ainda

permanece. A história os desafia a crer que sim. Enquanto expressam a

sua implausível confissão é que Yahweh lida com os seus adversários.

Aparentemente, de alguma forma, Deus lida diretamente com o

exército de Amom, de Moabe e de Seir. Isso contrasta com a maneira

que, em outras ocasiões, Deus envolve os israelitas na batalha. Há certa

ironia ou adequação quanto ao modo divino de lidar com esse povo em

particular, pelo fato já antecipado por Josafá em suas palavras iniciais.

Israel havia evitado lutar contra esses membros da família abraâmica

durante a sua peregrinação a Canaã, mesmo quando assumiram uma


posição hostil em relação a Israel. Novamente, há uma possível

implicação adicional para os ouvintes/leitores da história em Crônicas.

Esses povos ocupam um lugar de destaque entre aqueles que seguem

sendo uma ameaça a Judá. Em algumas de suas narrativas, o livro de

Crônicas descreve Israel lutando suas próprias batalhas; assim, não

podemos simplesmente inferir que Crônicas espere que Judá assuma

uma posição pacifista. Mas, de modo implícito, a história também

proíbe Judá de meramente assumir que deva ser responsável por sua

sobrevivência. Igualmente, suscita a questão sobre se deveria estar

lutando contra membros da família e a possibilidade de que Deus pode

cuidar de seu destino.


2CRÔNICAS 20:24-37
ALÍVIO E AÇÃO DE GRAÇAS
24
Quando Judá chegou ao local apropriado no deserto e olhou na direção da horda — eis que

25
havia cadáveres caídos ao chão. Ninguém escapara. Josafá foi com sua companhia coletar

os despojos, e encontraram entre eles, em grandes quantidades, tanto bens quanto cadáveres,

e utensílios valiosos. Eles pegaram espólios para si mesmos até não poderem carregar mais.

26
Coletaram despojos por três dias porque havia muito. No quarto dia, eles se reuniram no

vale de Bênção, porque ali adoraram Yahweh — eis por que o lugar é chamado vale de Bênção

27
até este dia. Todos de Judá e de Jerusalém retornaram com Josafá à frente deles, voltando

para Jerusalém com celebração, porque Yahweh lhes tinha possibilitado celebrar sobre os

28
seus inimigos. Chegaram a Jerusalém com alaúdes, harpas e trombetas, à casa de Yahweh.

29
O temor de Deus veio sobre todos os reinos nas terras quando ouviram que Yahweh

30
batalhara com os inimigos de Israel, enquanto o reino de Josafá ficou quieto; seu Deus lhe

deu descanso por todos os lados.

31
Josafá reinou sobre Judá como um homem de trinta e cinco anos quando se tornou rei. Ele

32
reinou vinte e cinco anos em Jerusalém. O nome de sua mãe era Azuba, filha de Sili. Ele

andou no caminho de Asa, seu pai, e não se desviou dele, fazendo o que era certo aos olhos de

33
Yahweh. Todavia, os lugares altos não cessaram. O povo não firmou a sua mente no Deus

34
de seus ancestrais. O restante dos atos de Josafá, iniciais e tardios, está escrito nos anais de

35
Jeú, filho de Hanani, que foram incluídos no livro dos reis de Israel. Mas, depois de algum

36
tempo, Josafá, rei de Judá, aliou-se a Acazias, rei de Israel; ele era infiel no que fazia. Aliou-

se a ele na construção de navios para ir a Társis; eles fizeram os navios em Eziom-Geber.

37
Eliezer, filho de Dodava, de Maressa, profetizou contra Josafá: “Por haver se aliado a

Acazias, Yahweh está esmagando o seu trabalho.” E os navios se quebraram e ficaram

incapazes de ir a Társis.

Ontem, como de costume, durante o culto em nossa igreja, o nosso

reitor perguntou aos membros da congregação se alguém tinha algum

agradecimento a Deus. Em geral, há uma pessoa que se levanta e

declara a sua gratidão pelo fato de ter acordado naquela manhã, e todos

concordamos com ela. Durante a semana, um membro da igreja havia

removido e limpado todas as lâmpadas da igreja, que estava muito mais

iluminada que na semana anterior, e demos graças pela renovada beleza

do local de culto. Outra pessoa estivera ausente por duas semanas em


razão de uma queda, e ela deu entusiásticas graças por sua recuperação

e pelo fato de a sua queda não ter tido consequências mais graves. Ela

havia perdido o anúncio de um noivado na congregação, de maneira que

também estava cheia de louvor pelo que Deus fizera a esse casal.

Todavia, alguns cultos de outras igrejas, dos quais participo, apenas

incluem o louvor geral e o sermão. Embora haja outros serviços que

envolvam oração pela igreja, pelo mundo e as pessoas em necessidade,

além do louvor, é comum as ações de graças não serem incluídas.

A história de Josafá ilustra características-chave de adoração. As

partes precedentes do capítulo mostram como a adoração envolve o

louvor pelo que Deus é. Ainda, abrange a oração para Deus intervir nas

situações das quais estamos cientes da necessidade; inclui ouvir a

resposta de Deus à nossa oração. Então, envolve dar graças pelo que

Deus faz ao implementar compromissos estabelecidos por ele. Lucas 17

nos conta a história de dez homens com uma doença de pele que são

purificados por Jesus, mas apenas um deles retorna para dar graças a

Deus pela cura. Josafá e seu povo não cometem o mesmo erro dos

outros nove. Na realidade, eles ilustram como é apropriado louvar duas

vezes (ou três, se incluirmos o louvor do primeiro estágio, que oferecem

quando Jaaziel lhes diz que Deus ouvira a oração deles). A primeira vez

é quando você experimenta o ato de libertação de Deus — eles

experimentam Deus agindo no mundo e, de imediato, dão graças, no

lugar que, consequentemente, se torna conhecido como vale de Bênção

(ou o lugar cujo nome ganha uma nova relevância naquele dia). A

segunda vez é quando você retorna ao seu lugar de adoração regular e

age como os membros de nossa congregação ontem. A história de

Josafá, igualmente, ilustra como a relação com Deus não envolve apenas

indivíduos. Deus se relaciona e lida com congregações, comunidades,

cidades, denominações e nações, do mesmo modo que pecado, oração,

respostas e ações de graças são temas para congregações, comunidades,

cidades, denominações e nações.


Josafá e seu povo têm muitos motivos de gratidão a Deus. Pode ser

difícil a uma nação do Ocidente imaginar como é vivenciar a libertação

experimentada por Judá. Podemos pensar em um país como as Filipinas

ou a Índia livres do controle dos Estados Unidos ou da Grã-Bretanha.

Ou podemos imaginar como seria para o povo de Darfur escapar da

opressão em seu próprio país. É possível, então, imaginar a sensação de

assombro dos judaítas ao serem libertos da ameaça oferecida pela união

dos três povos vizinhos e pelos bens desses povos que, de repente,

passaram às mãos dos judaítas sem eles participarem na batalha. Pode-

se, novamente, imaginar o encorajamento que esse relato significaria

para as pessoas de Judá que viviam cerca de cinco séculos mais tarde,

ameaçadas pelos descendentes desses mesmos povos.

A libertação de Judá não é o único ponto da história. O objetivo da

ação de graças é dar glória a Deus, mas também encorajar outras

pessoas a confiar em Yahweh e honrá-lo, e esse motivo também aparece

nessa narrativa. As nações, em geral, são tomadas de temor pelo que

Yahweh fez. O Antigo Testamento, regularmente, expressa esse temor

em termos de as nações reconhecerem Yahweh. Crônicas não segue essa

fórmula e, na realidade, cita a reação como ela é. A segurança do povo

de Deus e o reconhecimento de Deus por outros povos caminham

juntos.

Seria desejável que esse fosse o fim da história, mas o livro de

Crônicas, com extrema frequência, reconhece que a vida real é um

pouco mais complexa. Ficamos até com a impressão de que o ato de

adoração, oração, confiança e ação de graças constitui uma exceção, em

vez de uma regra, na vida do povo, nos dias de Josafá. Crônicas também

faz um relato ambíguo do próprio Josafá. No início, ele fez uma aliança

de casamento com o rei Acabe; agora, ele sela uma aliança com o filho

dele. Se a frota foi construída em Eziom-Geber, no mar Vermelho

(próximo à moderna Elate), presumidamente os navios seriam do tipo

que poderiam navegar a Társis (isto é, navios oceânicos), em vez

daqueles realmente destinados a ir para lá, uma vez que as locações


plausíveis do lugar outrora chamado Társis estejam no Mediterrâneo.

Não está claro se o adjetivo “infiel” é referente a Josafá ou a Acazias,

mas Crônicas o veria como apropriado a ambos. A aliança inicial quase

custou a vida de Josafá; essa segunda aliança lhe custou a frota. Uma

vez mais, há uma lição implícita aos leitores de Crônicas. Judá não

possui acordos comerciais com o povo de Samaria, pois os samaritanos

são tratados como equivalentes a Efraim, nos dias de Josafá.


2CRÔNICAS 21:1—22:9
COMO SER REALMENTE IMPOPULAR
1
Josafá dormiu com os seus ancestrais e foi sepultado com seus ancestrais na cidade de Davi,

2
e Jeorão, o seu filho, reinou em seu lugar. Ele teve irmãos, filhos de Josafá: Azarias, Jeiel,

3
Zacarias, Micael e Sefatias. Todos esses foram filhos de Josafá, rei de Israel. Seu pai lhes deu

muitos presentes de prata e de ouro e coisas finas, além de cidades fortificadas em Judá, mas

4
o reinado o deu a Jeorão, porque ele era o primogênito. Quando Jeorão subiu ao poder

sobre o reino de seu pai, ele afirmou a sua força e assassinou todos os seus irmãos com a

5
espada e também alguns oficiais de Israel. Jeorão tinha trinta e dois anos quando se tornou

6
rei e reinou oito anos em Jerusalém. Ele andou no caminho dos reis de Israel, como a casa

de Acabe havia agido, porque tinha a filha de Acabe como sua esposa. Ele fez o que era

7
errado aos olhos de Yahweh, mas Yahweh não estava disposto a destruir a casa de Davi, pelo

bem da aliança que selara com Davi, e por haver dito que daria a ele e aos seus descendentes

8
uma hegemonia para sempre. Durante o seu tempo, Edom se rebelou contra o controle de

9
Judá e fez alguém rei sobre eles. Jeorão partiu com os seus oficiais e todas as suas carruagens

com ele. Levantou-se à noite e atacou os edomitas, que o cercavam, e os oficiais das

10
carruagens (mas Edom tem se rebelado contra o controle de Judá até este dia). Então,

Libna rebelou-se contra o seu controle, naquele tempo, porque ele havia abandonado

11
Yahweh, o Deus de seus ancestrais. Também fez lugares altos nas montanhas de Judá e

desviou os habitantes de Judá e de Jerusalém.

12
Uma carta do profeta Elias chegou ao rei, dizendo: “Yahweh, o Deus de Davi, o seu

ancestral, disse isto: ‘Uma vez que você não tem andado nos caminhos de Josafá, o seu pai, e

13
nos caminhos de Asa, rei de Judá, mas no caminho dos reis de Israel, e desviado Judá e os

habitantes de Jerusalém, como a casa de Acabe os desviou, e também assassinado os seus

14
irmãos, a casa de seu pai, homens que eram melhores do que você, eis que Yahweh irá

infligir um grande golpe sobre o seu povo, os seus filhos, as suas esposas e todas as suas

15
propriedades, e a você mesmo, com uma grande enfermidade, uma enfermidade das

entranhas, até que as suas entranhas saiam por causa da enfermidade, após algum tempo.’”

16
Yahweh despertou o espírito dos filisteus e dos árabes, que estavam perto dos sudaneses,

17
contra Jeorão. Eles subiram contra Judá, o invadiram e capturaram todas as propriedades

que puderam ser encontradas na casa do rei, e todos os seus filhos e suas esposas. Nenhum

18
filho lhe foi deixado, exceto Jeoacaz, o mais novo de seus filhos. Depois de tudo isso,

19
Yahweh o infligiu em suas entranhas com uma enfermidade sem cura. Após algum tempo,

ao fim de dois anos, suas entranhas saíram para fora por causa de sua enfermidade, e ele

morreu por causa da desagradável enfermidade. Seu povo não fez uma fogueira para ele

20
como a fogueira de seus ancestrais. Ele tinha trinta e dois anos quando se tornou rei e

reinou oito anos em Jerusalém, mas viveu sem que o povo tivesse prazer [nele]. Ele foi

sepultado na cidade de Davi, mas não na tumba dos reis.


CAPÍTULO 22

1
Os habitantes de Jerusalém fizeram Acazias, o seu filho mais novo, rei no lugar dele.

[Os versículos 2-9 relatam como Acazias — uma variante de Jeoacaz — prossegue com as

políticas de seu pai e é morto por Jeú, durante um golpe em Efraim.]

Estamos no dia seguinte às eleições de meio de mandato e na semana

em que os meus alunos têm de entregar os seus papéis de meio período.

Em meu comentário sobre um capítulo anterior em Crônicas, fiz

menção aos meus alunos me perguntarem como eles diferiam dos meus

alunos do seminário na Inglaterra. Uma diferença adicional que me

ocorre é que os alunos nos Estados Unidos se preocupam com a

liderança e com o que a Bíblia ensina sobre esse tema. De minha parte,

tento persuadi-los de que a Bíblia não está tão interessada nesse

assunto como eles. Uma forma melhor de expressar isso seria dizer que a

Bíblia está interessada no tema de um modo diferente. Os alunos

desejam obter dicas de como podem ser bons líderes; a Bíblia está mais

interessada em nos levar a ver quão frequentemente os líderes são

corruptos e levam os seus liderados ao desvio. Isso era parte do cenário

das eleições de meio de mandato (um ex-líder majoritário no Congresso

passou o dia em um tribunal em virtude de uma acusação sobre lavagem

de dinheiro), mas isso afeta a igreja do mesmo modo que o restante da

sociedade. A reação apropriada não é apenas buscar dicas sobre como

liderar melhor, mas levar a sério o fato de que não iremos lograr isso e,

assim, (por exemplo) ter salvaguardas e procedimentos para nos

protegermos contra essa inevitabilidade.

Jeorão ilustra esse ponto. Primeiro, ele é cruel. Pode-se imaginar o

seu raciocínio; a nação necessita de uma liderança clara; seu pai agiu

com generosidade em relação aos seus irmãos. Embora o compromisso

de Deus com Davi coloque limites sobre quem pode ser rei, ele não

especifica, por exemplo, que o filho mais velho deve suceder o pai. Josafá

pode ter desejado que isso ocorresse, mas quem pode dizer o que irá
ocorrer caso um dos irmãos de Jeorão fique um pouco mais ambicioso?

Pelo bem da estabilidade política, é no interesse de todos que eles são

eliminados, a exemplo daqueles que não apoiam Jeorão.

Em segundo lugar, ele busca fortalecer a estabilidade externa de

Judá por meio de outra aliança de casamento com Efraim, sob o reinado

de Acabe, este mesmo casado com Jezabel em termos similares. (O

capítulo é um exemplo clássico da utilização confusa do termo “Israel”.

Josafá é descrito como rei de Israel no sentido de rei do genuíno povo

de Deus: Judá como oposto a Efraim. Mas, quando Acabe é descrito

como rei de Israel, o sentido é de líder do povo que ostenta esse nome

como sua identidade política: Efraim como oposto a Judá.) Mesmo se a

esposa de Jeorão não fosse a filha de Jezabel, a sua origem seria de uma

casa que se tornou influenciada pela religião tradicional de Canaã, a

qual o rei Acabe encorajou por meio de seu matrimônio com Jezabel.

Essa influência, agora, se estende a Judá.

Uma das consequências do foco de Crônicas sobre Judá é que

profetas como Elias e Eliseu, que operavam em Efraim, não aparecem

nessa versão da história. Todavia, aqui, Elias desempenha um papel de

protagonista. Seu envolvimento em Judá é equivalente a um profeta

judaíta, como Amós, ir a Efraim confrontar o regime efraimita. Elias

possui uma forma distinta de estabelecer o ponto de Jeorão desviar

Judá. O verbo que o profeta usa sugere promiscuidade sexual. Judá

deve a Yahweh o tipo de fidelidade que uma esposa deve ao seu marido,

mas, em vez de encorajar essa fidelidade, Jeorão incentivou a

infidelidade. Considerando que Jeorão é homem e marido, a exemplo,

decerto, da maioria da liderança judaíta, essa é uma metáfora poderosa.

Esses maridos ficariam enfurecidos com a simples ideia de que alguém

estivesse tentando seduzir a sua esposa. Elias acusa Jeorão de fazer

exatamente isso em relação a Deus. O comentário adicional do profeta

quanto aos irmãos assassinados por Jeorão serem homens melhores do

que ele próprio pode não expressar muita coisa, mas, talvez, implique

que eles não levariam o povo judaíta a se desviar de Deus. A expressão


levemente enigmática sobre o povo não ter prazer nele talvez denote

que ele nunca angariou o amor de seu povo.

Felizmente, Judá tem a seu favor a graça e o compromisso de Deus

em manter as suas promessas. Na versão do compromisso de Deus, que

aparece em 2Samuel 7, Deus havia assumido o compromisso de

assegurar que a casa de Davi governaria permanentemente em

Jerusalém (a versão em 1Crônicas 17 é menos específica, mas a história

de Jeorão pressupõe essa promessa). Aquele compromisso não falava de

nenhum castigo em caso de erro por parte do rei davídico. Repetindo, o

compromisso se referia diretamente ao próprio filho de Davi, mas seria

racional assumir que essa possibilidade se aplicava também aos seus

sucessores, ao longo do compromisso. Desse modo, a despeito de uma

libertação, Jeorão experimenta rebeliões contínuas da parte de Edom

(experiência essa que contrasta com a de seu pai), revolta por parte de

Libna (tecnicamente, parte de Judá, mas situada na fronteira com a

Filístia e, aparentemente, na prática, uma cidade filisteia) e ataques dos

filisteus e dos árabes, no extremo sul. O próprio Jeorão perde a sua vida

de forma desagradável.
2CRÔNICAS 22:10—23:21
DUAS MULHERES FORTES E DUAS ALIANÇAS
10
Quando Atalia, mãe de Acazias, viu que seu filho estava morto, ela determinou a

11
destruição de toda a descendência real da casa de Judá. Mas Jeosabeate, a filha do rei,

pegou Joás, filho de Acazias, dentre os filhos do rei que estavam sendo mortos, e pôs, ele e

sua ama, em um quarto. Assim, Jeosabeate, filha do rei Jeorão, esposa do sacerdote Joiada, o

12
escondeu (porque ela era irmã de Acazias) de Atalia, e ele não foi morto. Ele ficou com eles

na casa de Deus, escondido, por seis anos; Atalia ficou reinando sobre o país.

CAPÍTULO 23

1
No sétimo ano, Joiada afirmou a sua força e levou os oficiais de centenas, Azarias, filho de

Jeroão, Ismael, filho de Joanã, Azarias, filho de Obede, Maaseias, filho de Adaías, e Elisafate,

2
filho de Zicri, a uma aliança com ele. Eles foram a todo o Judá e reuniram os levitas de todas

3
as cidades de Judá e os cabeças ancestrais de Israel. Eles foram a Jerusalém, e toda a

assembleia selou uma aliança na casa de Deus com o rei. [Joiada] lhes disse: “Ora, o filho do

4
rei deve ser o rei, como Yahweh falou acerca dos descendentes de Davi. Isso é o que vocês

devem fazer. Um terço de vocês, sacerdotes e levitas que virão no sábado, serão os guardas

5
dos portões na vigília, um terço estará na casa do rei, e um terço no Porão do Alicerce. Todo

6
o povo estará nos pátios da casa de Yahweh. Ninguém deverá entrar na casa de Yahweh,

exceto os sacerdotes e os levitas de serviço. Eles podem entrar porque estarão santificados,

7
mas todo o povo deve cumprir o preceito de Yahweh. Os levitas devem rodear o rei por

todos os lados, cada um com suas armas em mãos. Qualquer um que entrar na casa deve ser

11
morto. Devem estar com o rei quando ele entrar e sair [...].” Então, trouxeram para fora o

filho do rei, colocaram sobre ele a coroa e a declaração e o fizeram rei. Joiada e seus filhos o

ungiram e disseram: “Vida longa ao rei!”

12
Atalia ouviu o som do povo correndo e aclamando o rei e foi ao povo na casa de Yahweh.

13
Ela olhou, e eis que o rei estava em pé, junto à coluna, na entrada, e os oficiais com suas

trombetas ao lado do rei, e todo o povo do país celebrando e tocando as trombetas, e os

cantores com instrumentos musicais, que os ensinavam a dar louvor. Atalia rasgou suas

14
roupas e disse: “Conspiração, conspiração!” Joiada, o sacerdote, chamou os oficiais de

centenas que foram designados sobre o exército e lhes disse: “Levem-na para fora do recinto.

Qualquer um que for atrás dela deve ser morto à espada” (porque o sacerdote disse: “Não a

15
matem na casa de Yahweh”). Eles puseram as mãos nela e a levaram para a entrada da porta

dos Cavalos, para a casa do rei, e a mataram ali.

16
Joiada selou uma aliança entre ele, todo o povo e o rei para que eles fossem o povo de

17
Yahweh. Todo o povo foi à casa do Mestre e a derrubaram. Seus altares e imagens, eles

18
quebraram, e a Matã, o sacerdote do Mestre, eles mataram em frente dos altares. Joiada

colocou a supervisão da casa de Yahweh nas mãos dos sacerdotes levitas, a quem Davi havia

designado sobre a casa de Yahweh para apresentar ofertas queimadas a Yahweh, de acordo
com o que está escrito no ensino de Moisés, com celebração e cânticos, pela ordem de Davi.

19
Ele colocou guardas nos portões da casa de Yahweh, para que ninguém que, de alguma

21
forma, fosse tabu pudesse entrar. [...] Todo o povo do país celebrou, e a cidade ficou quieta,

quando eles colocaram Atalia à espada.

Em minha igreja, no mês de novembro, estabelecemos o nosso

compromisso de ofertas para o ano seguinte; na Grã-Bretanha, nos

referimos a esse empenho como uma aliança. Um dia desses, certa

amiga estava me contando sobre o compromisso de aliança que eles

realizavam em sua igreja, a cada mês de novembro. Além de envolver as

ofertas, a ocasião propicia uma revisão abrangente da vida e do

envolvimento de cada um na igreja, o que pode ser algo realmente caro.

Como exemplo, ela mencionou a forma pela qual os homens se

comprometem a estudar a Bíblia na segunda-feira à noite, quando

qualquer outro homem está tradicionalmente comprometido a assistir

aos eventos esportivos. Em termos financeiros, essa decisão não é cara,

mas, em certo sentido, extremamente onerosa. Essa amiga está prestes a

assumir um dos compromissos de aliança mais valiosos; em breve, ela irá

se casar. Essencial para a ideia de aliança é que uma das partes não pode

ser levada a um tribunal por falhar em manter uma aliança, do mesmo

modo que ocorre quando um contrato é rompido. Reconhecidamente,

essa distinção é mais clara em outras línguas do que no hebraico, que

usa a mesma palavra para aliança, contrato e tratado. A utilização da

palavra “aliança” implica que é a espécie de compromisso no qual nos

colocamos por inteiro. Quando eu descumpro uma aliança, não estou

meramente sendo infiel a alguém, mas decepciono a mim mesmo.

A maioria das alianças na Bíblia envolve Deus e a sua iniciativa. Na

presente narrativa, Joiada toma a inciativa em conexão com três

alianças. As primeiras duas envolvem certa dose de coragem. Sempre

que iniciar um golpe ou uma revolução, estará pondo a sua vida em

jogo. O desenrolar da história deixa claro que Joiada pode contar com
algum apoio, mas também que o resultado não é uma barbada; a

comunidade está dividida. Há os que apoiam a linhagem assumida por

Jeorão, Acazias e Atalia, isto é, pessoas que apoiam a ideia de haver um

templo para o Mestre em Jerusalém, do mesmo modo que um templo de

Yahweh, enquanto há outros que não se importam em matar a família

real para assegurar a estabilidade e a ordem das coisas na cidade e no

país. Por fim, há os que sofrem com a infidelidade da comunidade, mas

quantos eles são? Pode Joiada ter certeza de que há suficiente número

de pessoas que sofrem para seu plano dar certo? O relato sugere que ele

fez a lição de casa e está certo de que há apoio suficiente. Todavia, ele

não saberá realmente até que tome a iniciativa e arrisque a própria vida.

Joiada o faz, e seus cálculos se mostram corretos. Então, ele precisa

assumir a liderança em relação a uma terceira aliança, uma que

explicitamente envolve Deus. Pode-se dizer que é uma resposta ao

compromisso de aliança que Deus estabeleceu com Israel, muito tempo

atrás, uma reafirmação da resposta de Israel no Sinai, mas em

circunstâncias que seria necessário reconhecer a incerteza quanto à

validade do compromisso de Deus, considerando a rebelião do povo. Os

israelitas teriam que reafirmar essa aliança na esperança de que Deus a

aceitasse. Joiada lidera o povo a fazer isso, o que envolve uma coragem

menos óbvia — na verdade, duas formas de bravura adicionais. Há certa

dose de coragem e algum risco presentes na atitude de alcançar Deus,

do mesmo modo que existe alguma bravura envolvida no ato de

encorajar Judá a assumir esse compromisso de aliança. Joiada não

poderia ser acusado caso sentisse o mesmo que Josué quando este disse

aos israelitas que eles não podiam servir a Deus. Eles não entendiam a

seriedade desse compromisso. Todavia, Joiada assume o risco adicional

de levá-los a estabelecer o seu compromisso de aliança. A palavra

“declaração” é outro termo relativo à aliança; a declaração será um

documento que declara os termos da aliança entre Deus, o rei e o povo,

o qual deixará patente, por exemplo, as políticas religiosas com as quais

o rei está comprometido. Essas políticas envolverão um compromisso


com Yahweh e o governo à luz do ensino de Moisés e dos procedimentos

de Davi para o templo, não a política seguida pelos predecessores de

Joás. Claro que serão necessários alguns anos para que esse rei de

apenas sete anos de idade esteja, realmente, em posição de implementar

uma política de governo, seja ela qual for.

Joiada não teria necessidade de mostrar a sua diversificada bravura

a não ser pelos atos de uma mulher, do mesmo modo que não teria

oportunidade de fazê-lo a não ser pela iniciativa de outra mulher. Atalia

é uma daquelas rainhas-mãe dotadas de grande poder político e ela

aproveita a sua posição para introduzir as práticas religiosas com as

quais está comprometida. Ironicamente, a chave para a frustração de

seus esforços é o compromisso de outra mulher — na verdade, de duas

outras mulheres. Além de ser a esposa de Joiada, Jeosabeate é,

aparentemente, a filha de Jeorão, não com Atalia, mas com uma de suas

demais esposas. Não seria surpresa caso houvesse tensão entre a rainha-

mãe e a princesa, e tanto os fatores familiares quanto os religiosos

teriam influenciado na disposição de Jeosabeate de resgatar o seu

sobrinho do extermínio promovido por Atalia. Ela também estaria

arriscando a sua vida ao fazer isso, do mesmo modo que a ama que

cuidou dele.
2CRÔNICAS 24:1-27
MENINO REI, JOVEM INSISTENTE, ADULTO APÓSTATA
1
Joás tinha sete anos de idade e ele reinou quarenta anos em Jerusalém. O nome de sua mãe

2
era Zíbia, de Berseba. Joás fez o que era certo aos olhos de Yahweh todos os anos do

4
sacerdote Joiada. [...] No devido tempo, veio à mente de Joás renovar a casa de Yahweh.

5
Ele reuniu os sacerdotes e levitas e lhes disse: “Saiam às cidades de Judá e coletem prata de

todo o Israel para reparar a casa de Deus, ano após ano. Vocês devem agir rapidamente nessa

6
matéria.” Mas os levitas não agiram rapidamente. Por isso, o rei convocou Joiada, o cabeça,

e lhe disse: “Por que você não exigiu dos levitas que trouxessem de Judá e de Jerusalém o

imposto de Moisés, servo de Yahweh, e da congregação de Israel, para a tenda da

8
declaração?” [...] Então, o rei disse que eles deveriam fazer um baú e colocá-lo à entrada da

9
casa de Yahweh, do lado de fora, e eles fizeram proclamação em Judá e Jerusalém para trazer

10
a Yahweh o imposto que Moisés, servo de Yahweh, impôs a todo o Israel no deserto. Todos

os oficiais e todo o povo ficaram contentes em trazê-lo, e eles o jogaram no baú até enchê-lo.

12
[...] O rei e Joiada o entregavam às pessoas que faziam o trabalho, o serviço da casa de

Yahweh. Contrataram pedreiros e artífices para renovar a casa de Yahweh e também artífices

13
em ferro e em bronze para reparar a casa de Yahweh. As pessoas que faziam o trabalho eram

diligentes, e o trabalho de restauração progrediu em suas mãos. Eles estabeleceram a casa de

14b
Deus de acordo com o seu desenho e a reforçaram. [...] Apresentaram ofertas queimadas

15
na casa de Yahweh regularmente, todos os dias de Joiada. Joiada ficou velho e pleno de

16
anos, e morreu, um homem de cento e trinta anos quando morreu. Eles o sepultaram na

cidade de Davi, com os reis, porque ele havia feito o que era bom em Israel, para Deus e para

a casa de Deus.

17
Mas, depois da morte de Joiada, os oficiais de Judá vieram e se curvaram diante do rei.

18
Então, o rei os ouviu, e eles abandonaram a casa de Yahweh, o Deus dos seus ancestrais, e

serviram às aserás e aos ídolos, e a ira veio sobre Judá e Jerusalém por causa dessa ofensa

19
deles. Yahweh enviou profetas entre eles para fazê-los voltar a Yahweh. [Os profetas]

20
testificaram contra eles, mas eles não deram atenção. O espírito de Deus revestiu Zacarias,

o filho de Joiada, o sacerdote, e ele se levantou acima do povo e lhes disse: “Deus disse isto:

‘Por que vocês estão transgredindo os mandamentos de Yahweh? Vocês não prosperarão.

21
Porque abandonaram Yahweh, ele os abandonou.’” Conspiraram contra ele e atiraram

22
pedras nele, por ordem do rei, no pátio da casa de Yahweh. Assim, o rei Joás não se lembrou

do compromisso que Joiada, o pai [de Zacarias], lhe havia mostrado e matou o seu filho.

Enquanto morria, ele disse: “Que Yahweh veja e retribua.”

23
Na virada do ano, o exército arameu subiu contra ele. Eles foram a Judá e Jerusalém e

eliminaram todos os oficiais do povo. Enviaram todos os despojos ao rei de Damasco,

24
porque o exército arameu havia ido com poucos homens, mas Yahweh entregou em suas

mãos um exército muito grande porque haviam abandonado Yahweh, o Deus dos seus
25
ancestrais. Assim, eles tomaram ação decisiva contra Joás, e, quando eles o deixaram

(porque o abandonaram com muitas feridas), seus oficiais conspiraram contra ele por causa

do sangue derramado dos filhos de Joiada, o sacerdote, e o mataram em seu leito. Assim, ele

morreu, e eles o sepultaram na cidade de Davi, mas não nos túmulos dos reis. [...]

27b
Amazias, seu filho, reinou em seu lugar.

Na aula de ontem à noite, discutimos o salmo 139, que termina com um

apelo para Deus matar os assassinos e declara um compromisso de odiar

quem odeia Deus. Alguns alunos ficaram incomodados com a ideia de

pedir a Deus para agir contra os nossos inimigos; eles não perceberam

que o salmo não fala de Deus tratar nossos inimigos como seus; antes,

estabelece o compromisso de tratar os inimigos de Deus como nossos.

Em outras palavras, nos dissociamos deles no sentido de que

repudiamos totalmente os seus caminhos. Como expressou Agostinho,

embora sejamos chamados a amar os nossos inimigos, não somos

chamados a amar os inimigos de Deus.

As derradeiras palavras de Zacarias suscitam questões similares.

Mais literalmente, ele pede: “Que Yahweh veja e busque” ou “veja e

exija”. Suas palavras contrastam com aquelas proferidas pelo

martirizado Estêvão, em Atos 7; submetido à mesma classe de morte,

Estêvão pede a Deus que não impute os pecados de seu linchamento aos

seus executores. Contudo, parece que Deus não vê problemas na oração

de Zacarias e responde a ela por meio do exército arameu. Claro que

eles invadiram impelidos por seus próprios motivos. No Antigo

Testamento, é comum que as pessoas usadas como meios de executar o

juízo divino não tenham ciência de que é isso o que estão fazendo. Em

outras ocasiões, Crônicas fala de Deus levantar um inimigo contra

Israel; no presente relato, ele simplesmente reporta que os arameus

invadiram. Não havia nada misterioso em relação a esse fato. O ponto é

estabelecido de outra forma com a menção da ira vindo sobre Judá.

Seria possível imaginar que fosse a ira de Deus, mas, nessa ocasião,
Crônicas se refere a isso apenas como ira. Forças trazendo bênção e

desastre são incorporadas ao modo de a história funcionar. É como se o

próprio cosmos, ou as forças da história, estivesse irado com o modo

pelo qual Judá e Jerusalém traíram o seu compromisso com Yahweh.

João Batista, Jesus e Paulo falam de modo similar sobre a ira (não

apenas sobre a ira de Deus) vindo sobre as pessoas.

Não há nada misterioso com respeito à invasão dos arameus. As

nações atacam umas às outras dessa forma. No entanto, houve algo

misterioso em relação à escala da conquista dos arameus. O aspecto

solene dado ao evento contraria o modo pelo qual as coisas deveriam

funcionar. Em outras situações, o envolvimento de Deus levou Judá a

obter vitórias contrariando todas as probabilidades. Nessa ocasião

específica, levou Judá a experimentar uma derrota contra todos os

prognósticos. A forma pela qual a narrativa utiliza o verbo “abandonar”

é significativo nessa conexão. Joás e Judá abandonaram a casa de

Yahweh e, por abandonarem Yahweh, este os abandona. Então, os

arameus abandonam Joás com muitos ferimentos. Esse modo de falar

denota os vínculos “naturais” entre os atos e os seus resultados.

Aparentemente, Jesus não vê problemas na oração de Zacarias. Em

Lucas 11:45-52, ele declara “ais” sobre os teólogos e éticos de seus dias

que tratam os profetas do mesmo modo que os seus ancestrais tratavam

as pessoas, de Abel a Zacarias, e que seriam responsabilizadas por

aquele derramamento de sangue. Parece que, para Jesus, o juízo de Deus

nos dias de Joás foi insuficiente; deve haver mais juízo. Embora Jesus,

mais tarde, antecipando-se à oração de Estêvão, pede que o seu próprio

linchamento seja perdoado, ele também concorda com Zacarias que os

inimigos de Deus devam ser punidos.

O relacionamento entre Joiada, o sacerdote e pai de Zacarias, e Joás,

o rei judaíta, ao que tudo indica, tinha altos e baixos. Joás estava

assentado no trono apenas porque Joiada o colocara ali; ele era um rei

marionete nas mãos de Joiada. No entanto, Joás obtém crédito por

tomar a iniciativa na restauração do templo, após a negligência e o


abuso da casa de Yahweh no período de Acazias e de Atalia, e a história

implica a cumplicidade de Joiada, como sacerdote, nesse descaso. Por

outro lado, sugere que Joiada foi uma força em favor de Deus durante

toda a sua vida. Após a sua morte, o povo não encontrou dificuldades

em persuadir Joás a reverter a sua posição anterior e encorajar o culto

às aserás e a outras divindades. Em oposição a isso é que Zacarias

apresenta-se como genuíno filho de seu pai e paga o preço por isso,

como, em geral, ocorre aos profetas. Ele morre pedindo a Deus para não

permitir que aquela traição a ele prevaleça. Ambos os Testamentos

falam que a ira é uma das formas pelas quais a oração de Zacarias será

respondida. Deus não abandona o mundo à mercê das forças de

apostasia.
2CRÔNICAS 25:1-28
O QUE CONTA COMO CONSELHO EFICAZ
1
Amazias se tornou rei como um homem de vinte e cinco anos e reinou vinte e nove anos em

2
Jerusalém. O nome de sua mãe era Jeoadã, de Jerusalém. Ele fez o que era certo aos olhos de

3
Yahweh, mas não de toda a mente. Quando o seu reinado estava forte, ele matou os oficiais

4
que haviam matado o seu pai, o rei, mas não matou seus filhos, porque agiu de acordo com o

que estava escrito no ensino do rolo de Moisés, no qual Yahweh ordenou: “Os pais não devem

morrer por causa dos filhos, e os filhos não devem morrer por causa dos pais, porque os

indivíduos devem morrer por sua própria transgressão.”

5
Amazias reuniu Judá e os posicionou pelas casas ancestrais debaixo dos oficiais de milhares

e dos oficiais de centenas, todo o Judá e Benjamim. Ele os convocou da idade de vinte anos

para cima e encontrou trezentos mil homens escolhidos, capazes de sair em serviço militar,

6
empunhando lança e escudo. De Israel, ele contratou cem mil guerreiros por cem talentos

7
de prata. Mas um homem de Deus foi até ele e lhe disse: “Ó rei, o exército de Israel não

8
deve ir com você, porque Yahweh não está com Israel (todos os efraimitas). Antes, vá você e

faça isso, seja forte em batalha, [ou] Deus fará você cair diante do inimigo. Pois há poder em

Yahweh para ajudar e para fazer as pessoas caírem.” [...]

14
Depois de Amazias voltar de matar os edomitas, ele trouxe os deuses dos homens de Seir,

15
os estabeleceu como seus deuses, curvou-se diante deles e queimou incenso a eles. A ira de

Yahweh se acendeu contra Amazias, e ele lhe enviou um profeta. Ele lhe disse: “Por que você

olhou para os deuses desse povo, que não conseguiram resgatar o povo deles de suas mãos?”

16
Quando ele lhe falou, [Amazias] lhe disse: “Nós o fizemos conselheiro do rei? Pare! Você

será morto.” O profeta parou e disse: “Reconheço que Deus me aconselhou que você seja

eliminado, porque você fez isso e não ouviu o meu conselho.”

17
Amazias, rei de Judá, tomou conselho e enviou a Jeoás, filho de Jeoacaz, filho de Jeú, rei de

18
Israel: “Venha, vamos enfrentar um ao outro.” Jeoás, rei de Israel, enviou a Amazias, rei de

19
Judá [...]: “Tu dizes: ‘Ora, eu eliminei Edom’, e tua mente o incitou a se comportar

imponentemente. Fique em casa agora. Por que criar problemas? Tu mesmo cairás, e Judá

20
contigo.” Mas Amazias não ouviu, porque isso era de Deus, para os entregar nas [suas]

21
mãos, porque buscou socorro dos deuses de Edom. Então, Jeoás, rei de Israel, subiu, e ele e

22
Amazias, rei de Judá, enfrentaram-se em Bete-Semes, em Judá. Judá colapsou diante de

27
Israel, e todos eles fugiram para suas tendas. [...] Desde o momento em que Amazias se

desviou de seguir Yahweh, eles formaram uma conspiração contra ele, em Jerusalém. Ele

28
fugiu para Láquis, mas eles o perseguiram até Láquis e o mataram ali. Eles o carregaram

em cavalos e o sepultaram com seus ancestrais na cidade de Judá.


Hoje estou escrevendo na casa de um amigo e da casa vizinha posso

ouvir uma mãe gritando e duas crianças discutindo. A visão de meu

amigo é que os pais daquelas crianças possuem uma relação passivo-

agressiva, que envolve muita gritaria entre eles; um dos filhos tenta

fazer as coisas certas ao ser muito complacente, enquanto o outro filho

expressa uma reação mais enérgica àquela dinâmica familiar. “Às vezes,

sinto vontade de sair e abraçar a todos”, revelou o meu amigo. “Todos

eles precisam se sentir amados.” Atrás da casa deles, há outra na qual

um adolescente mora com os seus pais. Certa noite, ele não aguentava

mais a discussão dos pais. Então, quando eles saíram, o filho os trancou

do lado de fora. Quando os pais retornaram, às duas da manhã, o filho

disse que eles não iriam entrar até concordarem em fazer algo para

melhorar o casamento deles. A altercação que se seguiu precisou da

intervenção policial depois de algum tempo. No seminário em que

ensino, metade dos alunos é oriunda de famílias com históricos

disfuncionais; todavia, não concordamos com a tese de que os aspectos

severos do histórico familiar forneçam às pessoas uma desculpa para a

vida que elas escolhem.

O Antigo Testamento reconhece que os pecados dos pais, de fato,

visitam os filhos, embora seja notável que essa história principie

estabelecendo o ponto contrário. Embora a vida funcione dessa maneira

porque somos unidos em famílias, isso não significa que as pessoas sejam

punidas por se desviarem dos caminhos trilhados por seus pais, e a Torá

deixa claro que a lei não deve funcionar dessa forma.

A parte principal da narrativa sobre Amazias segue explorando a

questão sobre no que Judá deposita a sua confiança, e isso leva a duas

tentações recorrentes de Judá. Uma é assumir que o fator decisivo nas

relações com os demais povos é o tamanho do exército e que não

importa muito de onde as tropas venham. Por um lado, Amazias

necessita aprender a mesma lição que seu pai recebeu — o fator decisivo

no destino do povo de Deus não é a extensão de seus recursos. Por

outro, é necessário, igualmente, que ele aprenda a mesma lição que seu
avô aprendeu — que Judá não deve ter negócios com ou se utilizar dos

recursos de Efraim. Uma vez mais, pode-se ver as implicações para as

pessoas que ouvem esses relatos em Crônicas. A diminuta e sitiada

comunidade judaíta não deve assumir qualquer aliança com o

equivalente de Efraim, isto é, o povo de Samaria em seus dias, para que

sobrevivam e prosperem. Judá precisa apenas confiar em Deus. Trata-se

de uma mensagem irremediavelmente impraticável, embora o livro de

Crônicas reconheça a sua importância-chave.

A outra tentação é confiar em recursos religiosos estrangeiros. Com

efeito, Crônicas se diverte com Amazias. Francamente, ter consciência

de derrotar Edom com o auxílio de Yahweh e, então, passar a buscar o

socorro dos deuses de Edom! Compreensivelmente, Yahweh está

descontente, mas, como de costume, envia um profeta para confrontar o

rei e explicitar esse ponto óbvio e ver se é possível mudar a posição de

Amazias. De novo, as implicações são expressas por meio de uma

palavra-chave: dessa vez, conselho. Embora os líderes sejam propensos a

pensar que os profetas são bons apenas se apoiarem a posição deles, eles

não se importam com os profetas que os criticam. Eles presumem que o

povo de Deus deve ter uma liderança coerente e que não pode haver

vozes desonestas questionando aspectos-chave de política. Contudo,

ninguém nomeou aquele profeta como conselheiro integrante da equipe

de liderança, responsável por tomar decisões em nome da comunidade.

O rei não reconhece que o profeta é capaz de aconselhar por meio de seu

acesso a um grupo decisório distinto, que se reúne nos gabinetes

celestiais.

O rei pode ameaçar o profeta, e suas ameaças podem ser reais, mas

ele deve reconhecer que o profeta possui uma relevância em relação ao

destino da nação e que não pode ser ignorado. O rei pode fazer o profeta

se calar, mas isso representa uma ação perigosa, pois está silenciando

alguém que traz notícias do que Deus aconselhou (isto é, decidiu). Em

vez de dar a devida atenção, o rei, com exacerbada estupidez, consulta

seus conselheiros terrenos e desafia Efraim a uma confrontação franca.


O relato sobre a batalha em Bete-Semes, situada a sudoeste de Judá,

bem distante do próprio território de Efraim, pode dar dicas sobre o

pano de fundo. Talvez o rei de Efraim desejasse expandir os interesses

de seu povo nas rotas comerciais em direção ao Mediterrâneo e ao

Egito, e o rei de Judá viu a necessidade de resistir a esse movimento.

Ele está resistindo ao conselho ou à decisão de Yahweh, embora,

paradoxalmente, também esteja cumprindo o propósito de Deus (“isso

era de Deus”). Esse se tornou o meio pelo qual Amazias traz desgraça

sobre a sua própria cabeça.


2CRÔNICAS 26:1—27:9
SOBRE A SEPARAÇÃO ENTRE IGREJA E ESTADO À MODA DO

ANTIGO TESTAMENTO
1
Todo o povo de Judá tomou Uzias (ele tinha dezesseis anos de idade) e o fez rei no lugar de

2
Amazias, seu pai. Ele foi aquele que construiu Elate e a restituiu a Judá, após o rei dormir

3
com seus ancestrais. Uzias, dezesseis anos quando se tornou rei, reinou cinquenta e dois

4
anos em Jerusalém. O nome de sua mãe era Jecolias, de Jerusalém. Ele fez o que era certo

5
aos olhos de Yahweh, de acordo com tudo o que Amazias, seu pai, fez. Buscou o socorro de

6
Deus no tempo de Zacarias, que o instruiu na reverência a Deus. Ele saiu à luta com os

filisteus e derrubou a muralha de Gate, a muralha de Jabne e a muralha de Asdode e

7
construiu cidades em Asdode. Deus o ajudou contra os filisteus, os árabes que viviam em

16
Gur-Baal e contra os meunitas. [...] Mas, quando se tornou forte, sua atitude se tornou

superior, até ele agir destrutivamente e transgredir contra Yahweh, o seu Deus; ele foi ao

17
palácio de Yahweh para queimar incenso sobre o altar do incenso. O sacerdote Azarias o

18
seguiu; com ele, seguiram oitenta sacerdotes capazes de Yahweh. Levantaram-se contra o

rei Uzias e lhe disseram: “Não cabe a você, Uzias, queimar incenso a Yahweh, pois os

sacerdotes, os aronitas, que foram consagrados, é que devem queimar incenso. Deixe o

19
santuário, porque você transgrediu. Não haverá honra para você de Yahweh Deus.” Uzias

(com o incensário em sua mão) ficou furioso. Quando ele ficou furioso com os sacerdotes,

uma condição de pele surgiu em sua testa, diante dos sacerdotes na casa de Yahweh, junto ao

20
altar do incenso. Azarias, o sumo sacerdote, e todos os sacerdotes olharam para ele: eis que

ele tinha uma condição de pele em sua testa. Eles o apressaram a sair dali, e ele mesmo se

21
apressou em sair, porque Yahweh o havia atingido. O rei Uzias sofreu aquela condição de

pele até o dia de sua morte. Ele permaneceu em uma casa à parte, como uma pessoa com uma

condição de pele, pois fora cortado da casa de Yahweh; Jotão, seu filho, ficou sobre a casa do

23
rei, exercendo autoridade sobre o povo do país. [...] Uzias dormiu com seus ancestrais, mas

eles o sepultaram com seus ancestrais no campo de enterro pertencente aos reis porque (eles

disseram): “Ele tinha uma condição de pele.” Jotão, seu filho, tornou-se rei em seu lugar. [...]

CAPÍTULO 27

2
Ele fez o que era certo aos olhos de Yahweh, de acordo com tudo o que Uzias, seu pai, tinha

feito, embora ele não tenha entrado no palácio de Yahweh. O povo, todavia, agiu

8
destrutivamente. [...] Ele tinha vinte e cinco anos de idade quando se tornou rei e reinou

9
dezesseis anos em Jerusalém. Jotão dormiu com os seus ancestrais, e eles o sepultaram na

cidade de Davi, e Acaz, seu filho, tornou-se rei em seu lugar.


Desenvolvi algumas manchas em minha pele, o que fez meus amigos

insistirem para eu consultar um dermatologista e descartar a

possibilidade de ser um câncer. Elas parecem como distintivos de honra

para alguém que foi adotado pela Califórnia, mas esses amigos não

entendem essas deformidades da mesma forma. Elas são, claro, algo

potencialmente sério do ponto de vista médico. Apesar de não gostar do

olhar de alguns deles, nenhum irá sugerir que devo me afastar da igreja

por causa dessas manchas em minha pele.

Na Israel do Antigo Testamento, a situação poderia ser diferente.

Havia condições de pele que poderiam levar uma pessoa a permanecer

longe do santuário. Essa condição de pele é, tradicionalmente, citada

como lepra, mas o termo é enganoso, porque, em geral, denota uma

doença de pele que pode consumir as mãos e os pés de uma pessoa

enferma. A preocupação do Antigo Testamento com condições de pele

não é, na verdade, por uma questão de saúde: O Antigo e o Novo

Testamentos falam mais sobre “purificação” do que sobre “cura”, em

conexão com essa espécie de aflição. O problema parece residir no fato

de essa condição levar à deterioração da camada externa do corpo, à

semelhança do processo que ocorre quando a pessoa morre. Quando

Miriã é acometida por essa doença, Arão protesta para que ela não se

torne como alguém que morreu, como um natimorto ou cuja carne está

parcialmente comida.

Ser afligido dessa forma, então, é parecer meio-morto. Isso suscita

problemas em conexão com a adoração. Quando as pessoas vão adorar

no santuário, elas vão a um lugar no qual Deus prometeu estar, especial

e regularmente, presente. Pode-se ter a certeza de encontrar Deus ali.

Claro que Deus está em todos os lugares; na história sobre Miriã, as

pessoas não estão no santuário, mas isso não impede Moisés de orar a

Deus para se aproximar e curar a sua irmã, bem como não impede Deus

de responder. Nesse relato, igualmente, o fato de Uzias não poder ir ao

santuário não significa que ele jamais estará na presença de Deus.


Não obstante, existe um significado especial vinculado ao santuário

por este ser o lugar no qual Deus prometeu se encontrar com o povo. O

problema suscitado por isso é a crucial importância de que Yahweh é

um “um Deus vivo”. Os deuses cananeus podiam morrer; Yahweh não.

Existe uma contradição entre Yahweh e a morte. As pessoas que

tivessem tido alguma espécie de contato com a morte (por exemplo, ao

precisar sepultar um membro da família) não poderiam, portanto,

entrar na presença de Deus. Deveria haver um tempo para a dissolução

do odor da morte, ou elas deveriam fazer uma oferta para neutralizar

esse odor. Caso a pessoa fosse acometida de uma enfermidade de pele

que a fizesse parecer morta, então ela deveria se manter afastada do

santuário; caso contrário, seria necessária a retirada de Yahweh do local

para não comprometer a afirmativa-chave sobre o tipo de pessoa que

Deus é. Essa saída significaria um desastre não apenas para a pessoa

afligida, mas para toda a comunidade. Desse modo, um dos papéis dos

levitas como guardas das portas era o de impedir o acesso ao santuário

de pessoas inadequadas à presença de Deus.

A pessoa afligida pela condição de pele não precisava evitar

qualquer contato humano, mas, quando outras pessoas estivessem

prestes a ir ao santuário oferecer um sacrifício, era necessário que

evitassem o contato com a pessoa enferma para não “contraírem” o seu

tabu, e, por sua vez, a pessoa enferma deveria aceitar sua parcela de

responsabilidade para evitar que isso ocorresse. Eis por que um grupo

de homens com essa doença de pele permanece a distância quando fala

com Jesus (Lucas 17:12). Os riscos são ainda mais elevados quando a

pessoa com a doença de pele é o próprio rei, especialmente porque, em

diversas ocasiões especiais, ele desempenha um papel na adoração do

santuário. Assim, na prática, Uzias é obrigado a abdicar.

Constitucionalmente, isso não provoca uma crise, pois era prática

comum entre os reis apontar o seu sucessor como corregente, em parte

para assegurar que uma eventual sucessão ocorresse de maneira suave.

Assim, Jotão simplesmente assume como rei muito antes do esperado, e


Uzias é mantido em isolamento parcial num local, aparentemente ainda

em Jerusalém, mas no qual ele não representa um risco contínuo de

comprometer a relação da comunidade com Deus e o acesso a ele.

Existe certa justiça poética quanto às consequências de sua ação.

Ele agiu como dando a entender que possuía uma visão exaltada de seu

papel na adoração. Outros reis do Oriente Médio, com frequência,

desempenhavam um papel mais significativo no culto do que os reis

israelitas. Em Israel, o reinado e o sacerdócio eram separados. Não era o

mesmo que uma separação entre igreja e Estado, mas envolvia um

princípio relacionado. O rei era responsável pela condução dos negócios

de Estado, enquanto os sacerdotes eram responsáveis pela condução do

santuário. Uzias tinha liderado o país de modo triunfante, o que o levou

a pensar que poderia assumir um papel-chave também no santuário,

mas isso envolveu transgressão. Talvez o povo fosse conivente com

isso, pois gosta de heróis. Todavia, os sacerdotes não agem

coniventemente, talvez preocupados em salvaguardar a própria posição,

mas o desenrolar da história indica que Deus também não. Uzias tem a

chance de parar, mas, então, se recusa a ouvir os sacerdotes e é atingido

por aquele golpe terrível.


2CRÔNICAS 28:1-27
O HOMEM ERRADO NO MOMENTO ERRADO
1
Vinte anos de idade tinha Acaz quando se tornou rei, e reinou dezesseis anos em Jerusalém.

2
Ele não fez o que era certo aos olhos de Yahweh, como Davi, o seu ancestral, mas seguiu os

3
caminhos dos reis de Israel. Ele até mesmo fez imagens fundidas para os Mestres. Queimou

incenso no vale de Ben-Hinom e queimou seus filhos no fogo, de acordo com as práticas

4
abomináveis das nações que Yahweh havia desapropriado diante dos israelitas. Ele

sacrificou e queimou incenso nos lugares altos e nas colinas e sob toda árvore florescente.

5
Por isso, Yahweh, o seu Deus, o entregou nas mãos do rei de Aram, e eles o derrotaram,

capturaram um grande grupo seu e os levaram para Damasco. Também o entregou nas mãos

6
do rei de Israel; ele o derrubou em grande derrota. Peca, o filho de Remalias, matou cento e

vinte mil em Judá num único dia, todos homens capazes, porque eles haviam abandonado

8
Yahweh, o Deus de seus ancestrais. [...] Os israelitas tomaram cativos duzentos mil de seus

parentes, mulheres, meninos e meninas, e também pegaram uma grande quantidade de

despojos deles e levaram os despojos para Samaria.

9
Havia ali um profeta de Yahweh chamado Obede. Ele foi à frente do exército quando este

chegou a Samaria e lhes disse: “Ora, por causa da fúria de Yahweh, o Deus de seus ancestrais,

com Judá, ele os entregou em suas mãos, e vocês os mataram com um furor que chegou aos

10
céus. Assim, agora, estão dizendo [para si mesmos] que irão subjugar pessoas de Judá e de

Jerusalém como seus servos e servas, enquanto vocês mesmos — com vocês há somente

11
ofensas contra Yahweh, o seu Deus. Então, agora, me escutem. Devolvam os cativos que

vocês tomaram de seus parentes, porque a ira ardente de Yahweh estará sobre vocês.” [...]

14
Então, a companhia armada abandonou os cativos e os despojos diante dos oficiais e de

toda a congregação. [...]

16 19
Naquele tempo, o rei Acaz enviou aos reis da Assíria um pedido de ajuda [...] porque

Yahweh humilhara Judá por causa de Acaz, rei de Israel, pois ele havia deixado Judá solto e

20
havia transgredido contra Yahweh. Tiglate-Pileser, o rei da Assíria, saiu contra ele e lhe

21
trouxe problemas; ele não o apoiou, porque Acaz tomou parte das propriedades da casa de

Yahweh, da casa do rei e dos oficiais e a deu ao rei da Assíria, mas isso não lhe valeu de nada.

22 23
Em seu templo de aflição, o rei Acaz cometeu mais transgressão contra Yahweh, e

sacrificou aos deuses de Damasco que o tinham derrotado; ele disse: “Porque os deuses do rei

de Aram os ajudaram, sacrificarei a eles para que me ajudem.” Mas eles se tornaram a causa

27
da sua queda e de todo o Israel. [...] Acaz dormiu com os seus ancestrais, e eles o

sepultaram na cidade, em Jerusalém, pois não o levaram aos túmulos dos reis de Israel.

Ezequias, seu filho, reinou em seu lugar.


Pobre Barack Obama, que foi eleito presidente dos Estados Unidos em

parte por causa das fantasias sobre o seu potencial para ser um messias,

o que é um fardo demasiado pesado. Então, a sua eleição coincidiu com

uma grande recessão que não apenas tornou mais difícil cumprir as

expectativas messiânicas das pessoas, mas também pôs em seu colo um

problema adicional monumental que um mero presidente não poderia

resolver. E isso sem citar nada sobre o Afeganistão. Ou Israel e a

Palestina.

Pobre Acaz, que não foi eleito, mas precisou assumir o trono, porque

seu pai era o rei, mas não estava pronto para isso. No entanto, de certo

modo (como o Antigo Testamento vê isso), não foi o caso, nem aqui,

nem lá. Para ser um líder eficiente, não são necessárias habilidades de

liderança. Tudo que você precisa é da capacidade de seguir Yahweh. Em

vez da famosa placa sobre a mesa do presidente Truman, com os dizeres:

“The buck stops here” [A responsabilidade para aqui], você precisa de

uma placa com a sentença: “O temor do Senhor é o princípio da

sabedoria”, uma declaração recorrente no Antigo Testamento. Talvez

haja um sentido no qual Acaz fosse dotado da capacidade de liderança;

ele adota uma série de iniciativas que podem parecer sábias.

Infelizmente, lhe falta aquela consciência sobre a decisiva importância

do temor a Yahweh.

Ele teve a infelicidade de subir ao trono quando a primeira grande

superpotência do Oriente Médio aumentou o seu interesse por Israel,

embora seja possível argumentar que Acaz poderia ter ficado fora dos

problemas caso mantivesse a sua cabeça baixa. Os assírios estavam

interessados em Efraim e em Aram (Síria), pois lá estavam as rotas

comerciais, ligando a Mesopotâmia ao Mediterrâneo e ao Egito,

enquanto Judá, ao sul, ficava fora dessas rotas de comércio.

Infelizmente para Acaz, Efraim e Aram precisaram formar uma coalizão

para resistir ao avanço da Assíria, e ambos pediram a Judá para se unir a

eles. Sabiamente, Acaz resistiu; imprudentemente, ao fazer isso, buscou

o apoio da própria Assíria, usando recursos do templo e do palácio para


tal, e, assim, deixou-se tragar por aquele tumulto político internacional

que ganhava corpo. Repetindo, o nome Israel é usado de forma confusa

na história, embora não seja tão difícil entender o que está ocorrendo

quando se tem ciência dos diferentes significados desse nome. No

versículo 2, o termo é referente à nação original, que, com o passar do

tempo, dividiu-se em Efraim e Judá. Nos versículos 3-8, a menção é a

Efraim, que herdou esse nome como sua designação política regular

(Peca é seu rei, e Samaria, a sua capital). Nos versículos 16-27, o termo

é relativo a Judá, com base no verdadeiro Israel remanescente, pois

Efraim havia abandonado Jerusalém e Davi.

Em contrapartida, pode-se dizer que o problema de Acaz foi, na

verdade, ter ignorado o primeiro princípio da sabedoria como aplicável

a ele. Isaías 7 firma o ponto claramente, ao falar de Acaz como “da casa

de Davi”. Ciente de que Efraim e Aram planejam atacar Jerusalém e

destronar Acaz, o rei está fora do palácio, inspecionando as defesas da

cidade como se tudo dependesse dele e de suas ações. Ele se esqueceu

do compromisso de Yahweh com a casa de Davi e com a cidade de

Jerusalém.

Esse não é o seu único problema. A história não sugere que ele teria

lidado melhor com a sua responsabilidade caso não tivesse que

enfrentar essa pressão sem precedentes. Isso começa com seu

comprometimento mais sério com a religião estimulada por Atalia, em

uma escala maior do que a da própria rainha-mãe. Ele é o primeiro rei

do qual é dito ter oferecido os próprios filhos em sacrifício. Talvez esse

ato tenha ocorrido no contexto da crise citada aqui, pois nesses

momentos é que tais sacrifícios eram feitos, quando se dava ao deus o

bem mais precioso para ter a oração respondida. Oferecer sacrifícios no

vale de Ben-Hinom (o lugar que, mais tarde, dará origem à palavra

Gehenna como um termo para inferno) sugere que ele estava buscando

sabedoria e conselho dos parentes já falecidos, talvez o seu pai ou o seu

avô, pessoas que, exatamente por estarem mortas, poderiam ter acesso a

informações e discernimento não acessíveis aos vivos. Uma vez mais, ele
ignora os recursos que Yahweh deu a Israel. O rei acrescenta à sua lista

de atos tresloucados a busca pelo auxílio dos deuses arameus — afinal,

eles nem mesmo foram capazes de mostrar força para salvar o povo de

Aram.

Novamente, o livro de Crônicas vê Yahweh utilizando outras nações

como meios de punição, mas também considerando outros princípios.

Efraim é usado para punir Judá. No entanto, Efraim e Judá são

membros da mesma família; eles são parentes entre si (a palavra

também significa “irmãos”). Como Efraim pode transformar os judaítas

em servos? As traduções, em geral, utilizam “escravos”, mas esse termo

é equivocado, pois a condição deles não seria similar àquela dos

escravos africanos. Todavia, os efraimitas não pretendem que esses

“servos” tenham a chance de retomar a sua liberdade após seis anos de

servidão, conforme a prescrição da Torá em relação aos servos. A

liberdade deles terá um fim, mas Yahweh não permitirá que isso

aconteça, ainda que Judá mereça isso.

O maior preço por uma má liderança é pago pelo povo que esse líder

é responsável. O pagamento é feito de diversas maneiras: milhares de

homens pagam com a sua vida; milhares de mulheres e crianças quase

pagam com a sua liberdade. (Nos dois casos, os números apresentados

em Crônicas envolvem alguma hipérbole.) Em dado momento,

Crônicas comenta que Acaz havia “deixado Judá solto”, isto é, ele

abandonou qualquer restrição sobre os seus próprios instintos com

respeito à adoração e permitiu que Judá fizesse o mesmo. A implicação é

que um rei possui a responsabilidade não apenas por garantir que a

reverência a Yahweh governe a sua própria vida, mas também que

governe a vida do seu povo. Ele não pode controlar o que eles fazem na

privacidade de suas casas, mas pode controlar o funcionamento da

adoração pública e, talvez, então, influenciar o que ocorre no interior

dos lares e dos corações. A influência de Acaz opera na direção

contrária.
2CRÔNICAS 29:1-36
O NOVO DAVI
1
Ezequias tornou-se rei com a idade de vinte e cinco anos e reinou vinte e nove anos em

2
Jerusalém, O nome de sua mãe era Abia, filha de Zacarias. Ele fez o que era certo aos olhos

3
de Yahweh, de acordo com tudo o que Davi, seu ancestral, fez. No primeiro ano de seu

4
reinado, no primeiro mês, ele abriu as portas da casa de Yahweh e as reparou. Trouxe os

5
sacerdotes e levitas e os reuniu na praça oriental. Ele lhes disse: “Escutem-me, levitas.

Santifiquem-se agora e santifiquem a casa de Yahweh, o Deus dos seus ancestrais. Retirem a

10
contaminação do lugar santo. [...] Está agora em minha mente selar uma aliança com

11
Yahweh, o Deus de Israel, para que o ardor de sua ira possa se desviar de nós. Meus filhos,

não sejam negligentes agora, pois vocês são os escolhidos de Yahweh para permanecer diante

dele, para ministrar a ele, para serem as pessoas que ministram e queimam incenso para ele.”

16
[...] Assim, os sacerdotes entraram na casa de Yahweh para purificá-la, retiraram toda a

poluição que encontraram no palácio de Yahweh e a levaram ao pátio da casa de Yahweh. Os

18
levitas a receberam e a levaram para fora, ao ribeiro do Cedrom. [...] Então, eles foram ao

rei Ezequias e disseram: “Purificamos toda a casa de Yahweh, o altar de oferta queimada e

19
todos os utensílios, e a mesa da proposição [de pão] e todos os seus utensílios. Todos os

utensílios que o rei Acaz rejeitou quando era rei, quando ele transgrediu, nós preparamos e

santificamos. Eis que eles estão em frente do altar de Yahweh.”

20
O rei Ezequias levantou-se bem cedo, de manhã, reuniu os oficiais da cidade e subiu à casa

21
de Yahweh. Trouxeram sete touros, sete carneiros, sete cordeiros e sete bodes como uma

26
oferta de purificação pelo reino, pelo santuário e por Judá. [...] Os levitas ficaram em pé

27
com instrumentos de Davi, e os sacerdotes com trombetas, e Ezequias disse para

apresentarem as ofertas queimadas sobre o altar. No instante em que a oferta queimada

começou, o cântico de Yahweh e as trombetas começaram, junto com os instrumentos de

28 31
Davi, rei de Israel, e toda a congregação se curvou [...]. Ezequias respondeu: “Vocês,

agora, se dedicaram a Yahweh. Aproximem-se, tragam sacrifícios e ofertas de gratidão à casa

de Yahweh.” A congregação trouxe sacrifícios e ofertas de gratidão, e todos os que estavam

34
entusiasmados de mente [trouxeram] uma oferta queimada. [...] Como os sacerdotes eram

poucos e não conseguiram retirar a pele de todas as ofertas queimadas, os seus irmãos, os

36
levitas, os reforçaram até o término do trabalho. [...] Assim, Ezequias e todo o povo

celebraram sobre o que Deus havia realizado pelo povo, porque a coisa veio rapidamente.

Os norte-americanos amam heróis; já os britânicos são mais cínicos. Os

primeiros amam histórias sobre um grande golfista que chegou ao topo

de seu esporte após emergir de um cenário muito humilde, ou relatos


sobre um ciclista da classe mundial que venceu a batalha contra o

câncer e instituiu uma fundação para unir, inspirar e fortalecer pessoas

afetadas por essa doença. Histórias assim podem inspirar outras pessoas

a crer que podem chegar ao topo e superar enormes obstáculos. As

notícias sobre o golfista ter sido flagrado em um caso de adultério ou de

que o ciclista foi acusado de usar drogas proibidas para aumentar o seu

desempenho esportivo perturbam os telespectadores nos Estados

Unidos. Na Grã-Bretanha, isso faz as pessoas dizerem: “Como era de

esperar.” Talvez esse seja o motivo de os norte-americanos realizarem

mais do que os desencantados britânicos.

Crônicas foi escrito para atender a expectativas como as dos norte-

americanos. Em comparação com a história de Samuel-Reis, o seu

relato sobre Ezequias traça um paralelo com o relato que faz sobre Davi,

ao mostrá-lo como um herói mais qualificado do que a história presente

em Samuel-Reis. Na realidade, em sua retidão, ele é somente

comparável a Davi na introdução ao seu reino. A exemplo de Davi,

Ezequias é alguém focado na adoração do templo. Ele não precisa

iniciar a sua construção, como o próprio Davi, ou mesmo a sua

restauração, como Joás, mas precisa purificá-lo depois do reinado de seu

pai, que foi retratado em cores mais escuras para intensificar o contraste

com o reinado de seu filho. Observamos que a contaminação entrava no

templo quando alguém tinha acesso a ele após ter estado, de algum

modo, em contato com a morte. Quanto mais contaminação haveria

após o templo ter sido utilizado na adoração aos Mestres?

Naturalmente, as ofertas de purificação são requeridas em conexão

com essa limpeza para remover os efeitos posteriores da presença no

templo de meios de culto aos Mestres. No entanto, a adoração não para

ali, mas prossegue com as ofertas queimadas, que eram presentes puros

a Yahweh (as pessoas não consumiam nada dessas ofertas), presentes

que expressavam o compromisso renovado da pessoa e, implicitamente,

buscavam a bênção de Yahweh. Esses atos eram, naturalmente,

acompanhados de cânticos e músicas (pode-se imaginar que os textos


viessem de Salmos) e pela prostração corporal que expressava, de outra

maneira, a renovada submissão da pessoa a Yahweh em vez de aos

Mestres. Ezequias encoraja o povo a levar “sacrifícios e ofertas de

gratidão”, a espécie de sacrifícios que eram compartilhadas pelo

ofertante e Deus. Parte desses sacrifícios era queimada ou doada ao

sacerdote, e parte era consumida pelo ofertante. Constituíam, portanto,

expressões de comunhão entre Deus e o povo, ocasiões nas quais Deus e

as pessoas comiam juntos. Havia inúmeros motivos pelos quais a pessoa

podia apresentar um sacrifício de comunhão; para expressar gratidão

por algo feito à pessoa por Deus (por exemplo, cura de alguma

enfermidade ou um parto bem-sucedido). Aqui, o foco estará na

gratidão pelo que Deus fez ao povo, na inspiração da purificação do

templo e por se dispor a habitar ali, bem como por tudo o que foi

alcançado tão rapidamente (como a última linha do capítulo expressa).

Outro motivo para a oferta de um sacrifício de comunhão era apenas

pela pessoa desejar assim — que era, tradicionalmente, chamada de

oferta voluntária. No presente relato, igualmente, o entusiasmo do povo

é sugerido pela referência à disposição das pessoas em fazer ofertas

queimadas para suplementar as “oficiais”.

Não muito tempo depois de o livro de Crônicas ser escrito, o templo

será contaminado por Antíoco Epifânio, o governante grego, que

introduzirá ritos pagãos nele. Quando o povo judeu se livrar de

Epifânio, eles precisarão purificar e dedicar novamente o templo; o

festival de Hanucá celebra essa rededicação (hanukkah significa

dedicação). A purificação e a rededicação do templo, ordenada por

Ezequias, antecipa o que ocorre após o domínio de Antíoco Epifânio,

embora essa necessidade sublinhe um aspecto terrível da contaminação

do templo. A contaminação no século II a.C. ocorrerá como resultado

de uma ação pagã; já essa contaminação foi resultante da ação judaíta.

O ato de selar uma aliança lança mão de outro motivo presente nas

histórias anteriores sobre Asa e Joiada. Uma vez mais, a aliança

caracteriza uma forma pela qual o povo de Deus pode estabelecer um


compromisso com Deus, após um tempo de descumprimento desse

compromisso.

Crônicas estabelece um ponto ao observar como o rei, os sacerdotes,

os levitas e o povo, todos eles, desempenham os seus respectivos papéis.

O rei pode tomar iniciativas e tem a responsabilidade de assegurar que

o santuário opere com base na Torá, mas ele não pode, na prática,

assumir a liderança da adoração; os sacerdotes e os levitas lideram. Ao

mesmo tempo, a história mostra como o Antigo Testamento não é

legalista com relação a essas questões. Aqui, por causa da necessidade, a

ação que é vista como exclusiva dos sacerdotes também é realizada

pelos levitas; em Levítico, a mesma ação pode ser praticada pelas

mesmas pessoas que trazem os sacrifícios.


2CRÔNICAS 30:1—31:1
UMA NAÇÃO
1
Ezequias enviou mensagem a todo o Israel e Judá e também escreveu cartas a Efraim e

Manassés para irem à casa de Yahweh, em Jerusalém, e realizarem a Páscoa para Yahweh, o

2
Deus e Israel. O rei tomou conselho, ele e seus oficiais e toda a congregação em Jerusalém,

3
sobre realizar a Páscoa no segundo mês, pois não foram capazes de fazê-lo a tempo, porque

os sacerdotes não tinham se santificado suficientemente e o povo não havia se reunido em

5
Jerusalém. [...] Então, eles tomaram a decisão de emitir uma proclamação em todo o Israel,

de Berseba até Dã, sobre ir para realizar a Páscoa a Yahweh, Deus de Israel, em Jerusalém,

6
porque eles não haviam feito isso em grande número, como está escrito. Os batedores

partiram com as cartas da mão do rei e dos seus oficiais, por todo o Israel e Judá, de acordo

com a ordem do rei: “Israelitas, voltem para Yahweh, o Deus de Abraão, Isaque e Israel, e ele

7
voltará aos sobreviventes que são deixados a vocês das mãos dos reis assírios. Não sejam

como os seus pais e os seus irmãos, que transgrediram contra Yahweh, o Deus dos seus

8
ancestrais, e ele os tornou em uma desolação, conforme vocês veem. Não endureçam a sua

cerviz como os seus ancestrais. Estendam as mãos a Yahweh, venham ao seu santuário que ele

consagrou para sempre, sirvam a Yahweh, o seu Deus, para que a sua ira ardente se desvie de

9
vocês. Se vocês voltarem para Yahweh, os seus irmãos e os seus filhos acharão compaixão em

seus captores e retornarão a este país, porque Yahweh, o seu Deus, é gracioso e compassivo e

não desviará o seu rosto de vocês caso se voltarem para ele.”

10
Os batedores passaram de cidade em cidade no país de Efraim e Manassés, e até Zebulom,

11
mas eles riram deles e os ridicularizaram. No entanto, pessoas de Aser, de Manassés e de

17
Zebulom submeteram-se e foram a Jerusalém. [...] Porque muitos da congregação não se

haviam consagrado, os levitas ficaram a cargo da matança dos animais da Páscoa por todos

18
os que não estavam puros, para consagrá-los a Yahweh, pois muitos do povo (muitos

dentre o grupo de Efraim e Manassés, Issacar e Zebulom) não haviam se purificado, porque

comeram a Páscoa em desacordo com o que está escrito, pois Ezequias havia suplicado por

19
eles: “Que o bom Yahweh expie em favor de todos os que colocam a sua mente a inquirir de

Deus, Yahweh, o Deus de seus ancestrais, mas não de acordo com a purificação do santuário.”

20 21
Yahweh ouviu Ezequias e curou o povo. Os israelitas que estavam presentes em

25
Jerusalém fizeram o festival dos pães asmos por sete dias com grande celebração. [...] Toda

a congregação de Judá, os sacerdotes e os levitas, toda a congregação que veio de Israel, e os

26
estrangeiros residentes que vieram de Israel e viviam em Judá, celebraram. Assim, houve

grande celebração em Jerusalém, pois desde os dias de Salomão, filho de Davi, o rei de Israel,

27
não havia sido assim em Jerusalém. Os sacerdotes levitas levantaram-se e abençoaram o

povo, e a voz deles foi ouvida. A súplica deles chegou à sua santa habitação, aos céus.

CAPÍTULO 31
1
Quando haviam completado tudo isso, todo o Israel que estava presente partiu para as

cidades de Judá e quebrou as colunas, cortou as aserás e derrubou os lugares altos e os

altares de todo o Judá e de Benjamim, e em Efraim e Manassés, até completarem isso. Então,

todos os israelitas retornaram, cada qual para a sua propriedade, para a sua cidade.

Hoje em dia, não sei se me descrevo como anglicano ou episcopal. Sou

anglicano por ter sido ordenado na Igreja da Inglaterra, integrante da

Comunhão Anglicana. Todavia, ministro dentro da Igreja Episcopal,

nos Estados Unidos, que, agora, possui uma relação um tanto ambígua

com a Comunhão Anglicana, por causa da controvérsia envolvendo

relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. Ainda, há algumas

congregações nos Estados Unidos (algumas situadas a pouca distância

de minha residência, com alguns de meus amigos ou colegas entre o rol

de membros) que se retiraram da Igreja Episcopal e se consideram

anglicanas em vez de episcopais. A Igreja Episcopal apreciaria que essas

igrejas dissidentes reconhecessem o erro de seus caminhos e

retornassem; por sua vez, esses anglicanos gostariam que a Igreja

Episcopal fizesse o mesmo.

A história de Ezequias e sua Páscoa pressupõe alguns paralelos na

situação de Israel, no sentido mais amplo desse nome. Ezequias

ascendeu ao trono logo após a destruição de Samaria pelos assírios e a

extinção de Efraim como nação. Embora os judaítas, decerto,

acreditassem que o destino dos efraimitas era merecido, seria bom que

eles também sofressem pela catástrofe que subjugou os seus parentes,

que eram colegas israelitas. Eles experimentaram algo das

consequências daquele evento, pois refugiados do norte começaram a

chegar em Judá. Repetindo, não há dúvidas de que eles sentiam certa

simpatia, especialmente pelos que reconheciam o erro de Efraim por ter

dado as costas à linhagem de Davi e a Jerusalém e, portanto, a Yahweh.

Contudo, os judaítas também nutriam certo ressentimento pelo fato de

eles serem obrigados a ajudá-los de alguma forma. Ao contrário, embora


esses refugiados sintam gratidão por Judá lhes providenciar um lugar de

refúgio e, claro, experimentarem uma estranha alegria por deixarem um

país que sabiam ter abandonado os caminhos de Yahweh, outros

sentirão mágoa pelo ar de superioridade dos judaítas e pela necessidade

de buscarem a caridade deles, conscientes de que os profetas judaítas

eram tão depreciativos em relação a Judá quanto o eram acerca de

Efraim.

Por sua vez, há alguns paralelos com a situação em Judá e Samaria

na época em que Crônicas foi escrito. Novamente, há tensão entre eles,

com acusações de superioridade e aspirações de domínio. Naquele

contexto, o relato da ação de Ezequias nega a Samaria o direito de

reivindicar que a sua prática religiosa é tão boa quanto a de Judá. A

narrativa também nega a Judá o direito de reivindicar que eles podem

meramente ignorar Samaria como um povo que Yahweh, por fim,

expulsou. Uma vez mais, o uso do nome Israel é revelador. A princípio,

a história fala de “Judá e Israel”; Israel denota o povo do norte, ou seja,

Efraim, nos dias de Ezequias, e Samaria, nos dias de Crônicas. (Para

confundir ainda mais, Crônicas segue referindo-se a Efraim no sentido

mais estreito, como apenas um dos clãs do norte, junto de Manassés e,

mais tarde na história, de Zebulom, Issacar e Aser, no extremo norte,

sugerindo pessoas de todo o reino do norte.)

Então, a história fala dos mensageiros de Ezequias viajando por

todo o Israel, de Berseba até Dã: Israel significa Canaã como um todo,

tanto Judá quanto Efraim. Aos olhos de Deus, Efraim (ou Samaria)

ainda é parte de Israel. O rei davídico e seu povo têm uma

responsabilidade em relação a isso. A maioria de seu povo talvez

despreze a ideia de que eles deveriam voltar seu rosto na direção de

Jerusalém, a exemplo do que as pessoas faziam séculos atrás. Alguns

deles conhecem a história de seu povo o suficiente para caírem em si e

reconhecer a correção dessa ideia.

A ocasião especial para o convite é uma celebração da Páscoa e da

festa associada dos pães asmos, quando os israelitas relembram a falta


de tempo para fazer o pão com fermento quando deixaram o Egito.

Também são celebrações que marcam a transição do ano velho para o

novo. Existe certa ambiguidade na maneira de o Antigo Testamento

falar sobre a celebração da Páscoa. Por sua natureza, é uma festa a ser

celebrada no lar; no entanto, a sua ligação com os pães asmos torna essa

uma das três ocasiões nas quais a Torá fala de todo o Israel peregrinar

até um santuário central. A história da Páscoa de Ezequias reflete essa

ambiguidade ao observar que o rei chamou pessoas de todo o país a

Jerusalém, embora também comente que era a primeira vez na vida das

pessoas que teria sido celebrada dessa forma. Na verdade, é a primeira

vez num período de duzentos anos. Ezequias é um segundo Salomão, do

mesmo modo que também é um segundo Davi.

Com respeito às mudanças por meio das quais as observâncias de

Israel funcionaram ao longo dos séculos, a história comenta a presunção

de que Israel não deve ser legalista quanto ao processo pelo qual as

coisas são feitas. A Torá permitia que a celebração da Páscoa fosse

realizada no mês “errado”, quando as circunstâncias assim exigiam, e a

comunidade sabe que pode assumir uma flexibilidade similar. A

permissão, em Números 9, relaciona-se às pessoas que se tornavam

impuras (tabu) por participarem de algum enterro, por exemplo, e

Ezequias providencia outra permissão para beneficiar as pessoas

incapacitadas de obter purificação de um tabu assim. Sob tais

circunstâncias, pode-se orar a Deus para expiar outra pessoa. O que

importa é que as pessoas tenham a mente voltada para Yahweh.

Normalmente, o nosso trabalho, como seres humanos, é oferecer

expiação por nossas deficiências. Com ousadia metafórica, Ezequias ora

para que Yahweh em pessoa faça a expiação.

O capítulo é encerrado com um comentário ainda mais ousado sobre

oração. Os levitas abençoam o povo, o que faz parte de sua função, mas

abençoar realmente significa orar para que Deus abençoe. A ousadia do

comentário reside na descrição de que a oração deles alcançou a


habitação santa de Yahweh. Ela não parou no teto do templo terreno,

mas abriu caminho para o templo celestial de Deus.


2CRÔNICAS 31:2-20
PROVISÃO PARA O MINISTÉRIO
2
Ezequias estabeleceu as divisões dos sacerdotes e dos levitas, de acordo com as suas

divisões, cada qual de acordo com o seu serviço (com respeito aos sacerdotes e aos levitas),

para a oferta queimada e as ofertas de comunhão, para ministrar e dar graças e louvor nos

3
portões dos pátios de Yahweh; e a parcela do rei, de sua propriedade, para as ofertas

queimadas — para a oferta queimada da manhã e da tarde e as ofertas queimadas para os

sábados, início dos meses e ocasiões estabelecidas, conforme está escrito no ensino de

4
Yahweh. Ele disse ao povo, aqueles que viviam em Jerusalém, para dar a parcela dos

5
sacerdotes e dos levitas, para que eles pudessem se dedicar ao ensino de Yahweh. Quando a

palavra se espalhou, os israelitas trouxeram grandes quantidades das primícias dos grãos, do

vinho, do azeite, do mel e de toda a produção dos campos. Eles trouxeram o dízimo de tudo

8
em grandes quantidades. [...] Ezequias e os oficiais chegaram e viram as pilhas e louvaram

10
Yahweh e Israel, o seu povo. [...] Azarias, o sumo sacerdote, da casa de Zadoque, lhe disse:

“Desde que eles começaram a trazer a oferta à casa de Yahweh, temos comido e possuído em

abundância e deixado grandes quantidades, pois Yahweh tem abençoado o seu povo, e esta

11
pilha permanece.” Ezequias disse para prepararem depósitos na casa de Yahweh, e eles os

12
prepararam, e, fielmente, trouxeram para dentro a oferta, o dízimo e as coisas sagradas. O

controlador sobre tudo era Conanias, o levita; Simei, seu irmão, era o segundo no comando.

[Os versículos 13-19 detalham as pessoas designadas a administrar os vários aspectos do

compartilhamento das ofertas aos sacerdotes e aos levitas e suas respectivas famílias.]

20
Ezequias agiu dessa maneira em todo o Judá. Ele fez o que era bom, certo e fiel diante de

Yahweh, o seu Deus. Em todo o trabalho que ele começou no serviço da casa de Deus, na lei e

nos mandamentos, ao buscar o seu Deus de toda a sua alma, ele agiu e prosperou.

Os noticiários de hoje abordam a recessão pela qual estamos passando

enquanto escrevo estas páginas e como ela obriga que menos mães

possam ficar em casa com seus filhos e que mais filhos sejam obrigados a

viver com seus avós. Na semana passada, a notícia era que uma

conhecida megaigreja, pela qual eu sempre passava de carro, possui uma

dívida de 55 milhões de dólares e tem buscado uma saída contra a

falência. Em nossa própria igreja, nos últimos meses, o tesoureiro nos

tem advertido, por diversas vezes, sobre cumprirmos as nossas

promessas financeiras em dia; é a primeira vez que ele faz isso em anos.
Em meu seminário, um número crescente de alunos está descobrindo

que as igrejas estão suprimindo os postos remunerados; há apenas

funções não remuneradas de estágio. E os alunos, com frequência,

questionam sobre como os pastores falam aos membros que eles

deveriam dar todo o dízimo, não menos que isso, à igreja.

A vida para as pessoas que ouviam as histórias em Crônicas não era

muito diferente. A pregação de Ageu discorre sobre como as pessoas

semeiam muito, mas colhem pouco. O livro de Neemias descreve o seu

modo de lidar com a crise financeira de seu povo, gerada pelos impostos

imperiais. A pregação de Malaquias conclama o povo a não falhar mais

quanto a trazer os dízimos e as ofertas ao templo. Uma vez mais, a

narrativa de Crônicas aborda a situação desse povo, e o faz de uma

forma desafiadora. É justo esperar que as pessoas tragam dízimos e

ofertas quando eles mal conseguem manter corpo e alma juntos?

Malaquias responderia que a lógica da fé trabalha na direção contrária.

Não se deve verificar se há o suficiente para viver e, então, decidir o que

é possível dar. Primeiro, deve-se comprometer a dar e, então, a pessoa

verifica que tem o suficiente para viver. Como Jesus expressou, você

busca primeiro o reino de Deus e, então, obtém as demais coisas, como

alimento e roupas. Em Israel, isso significava que as pessoas levavam a

Deus os primeiros frutos de sua safra. Elas traziam a Deus os primeiros

frutos sem saber se a sua colheita seria abundante ou não.

Há um espaço potencial para os pastores oprimirem os seus

rebanhos ao falarem sobre esse tema, numa tentativa de assegurar que

as ofertas da congregação cubram o seu salário. Crônicas oferece uma

ou duas salvaguardas contra esse perigo. Antes de instar o povo a trazer

os dízimos e ofertas que iriam para os sacerdotes e levitas,

possibilitando que eles pudessem cumprir o seu ministério e, portanto,

se dedicassem ao ensino da Torá, Ezequias comissiona a parcela do rei.

A referência à dedicação ao ensino da Torá expressa que, além das

atribuições com relação à adoração no templo, eles também

desempenhavam um papel de ensino.


Crônicas fala da ação de Ezequias como de acordo com o que a Torá

requeria, mas isso não significa que a Torá impõe obrigações ao

soberano; os reis, praticamente, não são mencionados na Torá. Ela

simplesmente estabelece quais deveriam ser as ofertas e quais os papéis

desempenhados pelos sacerdotes e levitas. Ezequias está reintroduzindo

a ordem de ministério adequada no templo após a desordem dos dias de

Acaz e, assim, agindo como um segundo Davi ou Salomão, os reis que

estabeleceram a ordem original do templo. Crônicas apenas indica que

o rei arca com grande parte do custo. No entanto, repetindo, Ezequias

está seguindo os exemplos de Davi e de Salomão. Antes dos dias desses

reis, quando Israel sugeriu que o povo deveria ter um rei, Samuel,

claramente, alertou o povo de que eles pagariam um preço por isso:

custos governamentais. O governo de Ezequias terá um preço, mas, pelo

menos, ele está preparado para pagar a parcela que lhe cabe; algo similar

é verdadeiro quanto a Neemias. Pode-se questionar se os líderes

modernos na igreja e no governo estão, realmente, compartilhando a

dor de seu povo.

A segunda salvaguarda é que Crônicas sugere que as pessoas, na

realidade, estão indo bem. Elas estavam em condição de levar ofertas

em grandes quantidades, desde a primavera até o outono. A exortação

do rei demandava o autossacrifício, mas não do tipo opressor, e as

pessoas responderam com entusiasmo, a exemplo do que Paulo irá pedir

em 2Coríntios 8 e 9. Parece que, originariamente, Ezequias fez a

proclamação ao povo em Jerusalém, mas, quando essa palavra se

espalhou, pessoas de todo o país não pararam de levar as suas ofertas.

Aqui, igualmente, a retórica da história reaparece em 2Coríntios 8 e 9,

quando Paulo exalta a generosidade dos macedônios com o objetivo de

incentivar os coríntios.
2CRÔNICAS 32:1-33
A PERSISTENTE TENTAÇÃO DO SUPERPODER
1
Após esses atos fiéis, Senaqueribe, rei da Assíria, veio e invadiu Judá. Ele acampou contra as

2
cidades fortificadas e pensou em invadi-las para si. Quando Ezequias viu que Senaqueribe

3
veio e que seu rosto [estava determinado] a uma batalha contra Jerusalém, ele tomou

conselho com os seus oficiais e guerreiros sobre bloquear a água nas fontes fora da cidade, e

4
eles o apoiaram. Uma grande companhia foi reunida e bloqueou todas as fontes e o riacho

que fluía no meio da terra, dizendo: “Os reis assírios não devem vir e encontrar água

5
abundante.” Ele afirmou a sua força, construiu todo o muro que fora rompido e levantou

torres sobre ele e outro muro do lado de fora dele. Ele fortaleceu o terraço da cidade de Davi

6
e fez armamentos em grandes quantidades e escudos e colocou oficiais de batalha sobre o

7
povo. Ele os reuniu na praça, junto ao portão da cidade, e falou para encorajá-los: “Sejam

fortes e corajosos. Não tenham medo nem desanimem por causa do rei da Assíria e de toda a

8
horda com ele, porque conosco está um maior do que ele. Com ele está uma força feita de

carne, mas conosco está Yahweh, o nosso Deus, para nos ajudar e lutar as nossas batalhas.” O

povo se inspirou nas palavras de Ezequias, rei de Judá.

9
Subsequentemente, Senaqueribe, rei da Assíria, enviou seus oficiais a Jerusalém (ele estava

em Láquis, seu comando com ele) a Ezequias, rei de Judá, e a todo o Judá que estava em

10
Jerusalém, dizendo: “Senaqueribe, rei da Assíria, disse isto: ‘No que você está confiando,

11
para que vivam em uma trincheira em Jerusalém? Ezequias não está iludindo vocês ao

entregá-los à morte por fome e sede, ao dizer: “Yahweh, o nosso Deus, nos resgatará das mãos

12
do rei da Assíria”? Não removeu ele, Ezequias, os seus lugares altos e altares e disse a Judá

e a Jerusalém: “Diante de um só altar vocês devem se curvar e queimar incenso sobre ele”?

13
Vocês não reconhecem o que eu e os meus ancestrais fizemos a todos os povos dos países?

14
[...] Quem dentre todos os deuses dessas nações que meus ancestrais devotaram foi capaz

de resgatar o seu povo de minhas mãos para que o seu Deus seja capaz de resgatá-los?

15
Portanto, Ezequias não deve, agora, enganá-los ou iludi-los desse jeito. Não coloquem a fé

20
nele [...].’” O rei Ezequias e o profeta Isaías, filho de Amoz, suplicaram sobre isso e

21
clamaram aos céus, e Yahweh enviou um ajudante, e ele aniquilou todo guerreiro capaz,

governante e oficial no exército do rei da Assíria, e este retornou envergonhado para o seu

país. Ele entrou na casa de seu deus, e, ali, alguns descendentes de seu próprio corpo o

mataram à espada. [...]

24
Naqueles dias, Ezequias ficou mortalmente enfermo, mas ele suplicou a Yahweh, e

25
[Yahweh] lhe falhou e lhe deu um sinal, mas Ezequias não retribuiu de acordo com o

benefício concedido a ele, porque a sua atitude se tornou superior, e a ira estava vindo sobre

26
ele e sobre Judá e Jerusalém. Mas Ezequias submeteu-se, quando a sua atitude e a dos

habitantes de Jerusalém havia se tornado superior, e a ira de Yahweh não veio sobre eles no

30
tempo de Ezequias. [...] Ele, Ezequias, bloqueou a fonte superior de água de Giom e a
33
direcionou para a parte oeste da cidade de Davi. [...] Ezequias dormiu com os seus

ancestrais, e eles o sepultaram na colina com os túmulos dos descendentes de Davi, e todo o

Judá e os habitantes de Jerusalém lhe deram honra quando ele morreu. Manassés, seu filho,

reinou em seu lugar.

Da rua principal no bairro de Silwan, em Jerusalém Oriental, onde a

Jerusalém original se ergue acima do moderno bairro, desce uma trilha

que, inesperadamente, leva a uma caverna fechada e a um túnel no qual

a água flui. O túnel transporta a água de uma fonte por cerca de

seiscentos metros, até o tanque de Siloé (Silwan e Siloé são variantes

do mesmo nome), no qual Jesus mandou um homem se lavar como parte

da cura de sua cegueira de nascença. É possível andar pelo túnel,

embora seja um pouco assustador. Em certa parte do túnel havia uma

inscrição em hebraico antigo, registrando algo do processo pelo qual o

túnel fora construído (a inscrição, hoje em dia, está em um museu de

Istambul).

O túnel parece ser a construção empreendida por Ezequias em

conexão com a invasão de Senaqueribe. Os eventos registrados nesse

capítulo são descritos mais extensamente em 2Reis 18—20, embora o

livro de Crônicas revele um pouco mais sobre o projeto envolvendo o

suprimento de água. Nos bastidores da história há um problema comum

às pessoas que habitam um território como o de Israel. Para defender-se

de ataques, o melhor local para construir uma cidade é no topo de uma

colina. Jerusalém, segue, mais ou menos, essa regra; o local original da

cidade ocupa uma elevação nas montanhas de Judá, fácil de defender

pelo fato de três laterais de terreno serem muito íngremes e, portanto,

deixando aos seus habitantes apenas um lado com o qual se preocupar.

Todavia, a água não flui no topo de uma colina e, como outras cidades,

ela é muito vulnerável a cercos; um exército invasor precisa apenas

controlar o abastecimento de água e aguardar até que os habitantes da

cidade esgotem a água que conseguiram estocar. Desse modo, as


cidades, em geral, tentam ocultar e proteger o seu sistema de

suprimento de água, e é exatamente isso o que Ezequias objetiva com

seu túnel. Ele bloqueia a fonte e distribui a água por meio de um túnel,

para que chegue dentro da cidade. Além disso, ele reforça as defesas da

cidade e aumenta o seu armamento.

No entanto, a exemplo do rei Asa (2Crônicas 14), ele está ciente da

verdade expressa no salmo 127. Deus espera que assumamos a

responsabilidade por nossa própria situação e necessidades; contudo, se

Yahweh não vigiar a cidade, em vão vigiará a sentinela, por mais

diligente que seja em sua função. O encorajamento que o rei faz ao povo

não é, portanto, baseado em seu poderoso sistema de defesa, mas

fundamentado no fato de que Yahweh protegerá a cidade. O conflito

entre a Assíria e Judá não é apenas entre dois reis, mas entre as

divindades que apoiam os dois povos. Os conflitos internacionais não

envolvem somente fatores econômicos e políticos, mas forças

sobrenaturais. É tentador para ambos os lados assumir que os recursos

materiais seja o fator decisivo na definição de quem irá ganhar e quem

irá perder. Todavia, no contexto de uma crise similar, Isaías expressa o

mesmo ponto que Ezequias aqui: “Os egípcios são mortais, não Deus;

seus cavalos são carne, não espírito” (Isaías 31:3).

Não se pode acusar Ezequias, caso ele perca a fé nessa verdade.

Senaqueribe conquistou quase todo o país. Em uma inscrição em

Nínive, a sua capital, Senaqueribe registrou o próprio relato sobre a sua

invasão de Judá. Ele fala sobre sitiar e conquistar quarenta e seis

cidades fortificadas de Ezequias, além de tomar grandes quantidades de

despojos e de trancar o próprio Ezequias em Jerusalém “como um

pássaro na gaiola”. Decerto, é apenas uma questão de tempo até que o

pássaro abra a gaiola e deixe o gato entrar.

Nesse meio-tempo, Senaqueribe mantém o seu quartel-general na

segunda maior cidade judaíta, ao pé da cadeia montanhosa, da qual

envia uma mensagem a Jerusalém, cuja finalidade era dividir a

comunidade e levar o povo da cidade a renegar o seu rei. Ele apresenta


alguns argumentos engenhosos. Sabemos, de capítulos anteriores em

Crônicas, que o povo comum de Judá não era muito disposto a confinar

a sua adoração a Jerusalém ou restringir a sua fidelidade apenas a

Yahweh, e a mensagem do rei da Assíria poderia se valer desse fato.

Ezequias está em dificuldades por causa de suas reformas religiosas?

Senaqueribe, então, aperta o parafuso teológico. A Assíria tem se

mostrado mais poderosa do que os deuses de inúmeras cidades. Não será

Yahweh apenas mais um deles?

O problema em ser governante de uma superpotência é achar que

você é Deus. No início da história de Israel, Yahweh mostrou ao faraó do

Egito que ele era o poder governante na história do Egito, não o faraó.

O êxodo não diz respeito a um conflito entre Yahweh e os deuses

egípcios (que raramente aparecem na narrativa), mas entre Yahweh e o

poder político do Egito, que pensa ter um poder divino. O embate é

repetido na história de Senaqueribe e Ezequias, pois o rei da Assíria

pensa que é Deus. Yahweh, às vezes, dá de ombros diante de tal

pretensão, mas, no presente caso, Yahweh age. De modo significativo,

Yahweh intervém porque Ezequias e Isaías clamam para que isso ocorra.

Ezequias é um grande herói em Crônicas, comparável a Davi e a

Salomão, mas, como esses reis, Ezequias não é infalível. Ele atravessa

um período de crença em sua própria publicidade, durante o qual se

esquece do fato de que, na verdade, Yahweh é que lhe permitiu escapar

de Senaqueribe. Torna-se quase impossível aos líderes não começarem a

agir fundamentados em uma falsa confiança em si mesmos. Todavia, é

possível que vejam o erro cometido.


2CRÔNICAS 33:1-25
A POSSIBILIDADE DE ARREPENDIMENTO
1
Manassés tinha doze anos de idade quando se tornou rei e reinou cinquenta e cinco anos em

2
Jerusalém. Ele fez o que era errado aos olhos de Yahweh, de acordo com as práticas

3
abomináveis das nações que Yahweh havia desapropriado diante dos israelitas. Ele

reconstruiu os lugares altos que Ezequias, seu pai, havia derrubado, estabeleceu altares para

4
os Mestres e fez aserás, e curvou-se a todo o exército celestial e os serviu. Construiu altares

na casa de Yahweh, da qual Yahweh dissera: “Em Jerusalém, o meu nome estará para sempre”,

5 6
e construiu altares para todo o exército celestial nos dois pátios da casa de Yahweh. Ele

mesmo fez os seus filhos passarem pelo fogo, no vale de Ben-Hinom, e praticou adivinhação e

9
o estudo de presságios e agouros. [...] Manassés levou Judá e Jerusalém e os habitantes de

Jerusalém ao desvio na prática do mal, mais do que as nações que Yahweh varrera diante dos

10 11
israelitas. Yahweh falou a Manassés e ao seu povo, mas não lhe deram atenção, de

maneira que Yahweh trouxe contra eles os oficiais do exército que pertencia ao rei da Assíria.

Eles levaram Manassés cativo em ganchos, o confinaram com algemas de bronze e o levaram

12
à Babilônia. Mas, quando estava em aflição, ele rogou a Yahweh, o seu Deus, e submeteu-se

13
profundamente diante do Deus de seus ancestrais. Suplicou-lhe, e [Deus] permitiu ser

rogado por ele, ouviu a sua oração por graça e permitiu que ele voltasse a Jerusalém e ao seu

14
reino. Assim, Manassés reconheceu que Yahweh era Deus. Subsequentemente, ele

construiu o muro externo da cidade de Davi, a oeste de Giom, no vale, até chegar na porta

do Peixe, em torno de Ofel; ele o fez muito alto. Colocou oficiais capazes em todas as cidades

15
fortificadas em Judá. Removeu os deuses estrangeiros, a imagem da casa de Yahweh, todos

os altares que havia construído na montanha da casa de Yahweh e em Jerusalém e os lançou

16
fora da cidade. Construiu o altar de Yahweh, sacrificou sobre ele ofertas de comunhão e de

17
gratidão e disse a Judá para servir Yahweh, o Deus de Israel. No entanto, o povo ainda

20
continuou sacrificando nos lugares altos, embora a Yahweh, o Deus deles [...]. Manassés

dormiu com os seus ancestrais e foi sepultado em sua casa, e Amom, o seu filho, reinou em

seu lugar.

21 22
Amom tinha vinte e um anos quando se tornou rei e reinou dois anos em Jerusalém. Ele

24
fez o que era errado aos olhos de Yahweh, como Manassés, o seu pai, havia feito. [...] Seus

25
oficiais conspiraram contra ele e o mataram em sua casa, mas o povo do país matou aqueles

que haviam conspirado contra o rei Amom. O povo do país fez Josias, o seu filho, rei em seu

lugar.

Certa mulher que conheço estudou diversas religiões com alguma

profundidade e constatou alguns aspectos de cada uma delas que


aprova e considera útil, embora tenha descoberto outros que parecem

beirar a pura superstição, como beijar a tromba da cabeça de elefante do

deus Ganesha. Por milhares de anos, as pessoas que beijaram a tromba

provaram-se prósperas, e a minha conhecida faz o mesmo com a sua

estátua de Ganesha, na esperança de que possa obter o mesmo

resultado; constitui um meio de salvaguardar as suas apostas. Ela

também pratica meditação taoísta com uma propensão budista, porque

lhe faz bem. O resultado dessa combinação de práticas é a criação de

uma religião própria, individual; o único deus ao qual ela responde é a si

mesma.

A exemplo de muitos israelitas, Manassés ampliou as suas apostas,

sacrificando a Yahweh, adorando os Mestres e estabelecendo aserás,

prostrando-se diante do exército celestial (Ganesha é, com frequência,

referido como o senhor das hostes), praticando adivinhação como um

meio de descobrir o que irá acontecer e, portanto, ser capaz de cumprir

as suas obrigações reais. Ele cercou bem as suas apostas. Infelizmente,

nada disso funciona, pois, na verdade, Yahweh é Deus e está acima de

qualquer preocupação com o fato de Israel tratá-lo apenas como mais

uma de uma série de possibilidades ou mais uma de várias formas

igualmente válidas de expressar a religião.

Assim, Manassés termina na Babilônia. Em sua época, a Babilônia

era parte do Império Assírio, mas há duas possíveis implicações nessa

referência à Babilônia. Da perspectiva israelita, as sucessivas

superpotências orientais são, mais ou menos, equivalentes, e isso pode

resultar na menção de uma em lugar da outra, de modo que, aqui,

Crônicas pode estar se referindo, mais textualmente, à Assíria. O ponto

presente na menção a Babilônia seria, então, que o exílio de Manassés

prenuncia o exílio babilônico literal dos judaítas, cerca de meio século

depois dos dias de Manassés, um evento cuja culpa outras partes do

Antigo Testamento tendem a lançar sobre Manassés, por ele ter

estabelecido padrões religiosos em Judá que, na prática, jamais puderam

ser desfeitos. Ainda assim, há boas notícias nessa analogia entre


Manassés e o Judá posterior. Na Babilônia, Manassés se arrependeu, e

Yahweh o restaurou. Talvez Judá, no exílio, também pudesse encontrar

restauração caso se arrependesse.

O outro significado possível da referência à Babilônia está

conectado à questão sobre como encaixamos a história do exílio, do

arrependimento e da restauração de Manassés na história do Oriente

Médio. Não existem referências externas a esses eventos, embora haja

mais de um cenário no qual eles podem se encaixar, e um deles,

particularmente plausível, envolve a Babilônia. Na metade do reinado

de Manassés, o rei da Babilônia, que era irmão do rei da Assíria, se

rebelou contra a autoridade de seu irmão e encorajou outras partes do

império a se unirem a ele na rebelião. É plenamente plausível que

Manassés tenha sido atraído a esse distúrbio, a exemplo de reis como

Acaz e Ezequias, e, então, pago por isso.

O que interessa a Crônicas é que essa história possa ser explorada

para apoiar uma de suas preocupações teológicas mais importantes.

Deus realmente está envolvido na vida do povo de Deus e de seu líder e,

assim, pode-se esperar punição pelos malfeitos e também misericórdia

pelo arrependimento. Para os ouvintes da narrativa de Crônicas, era

tentador acreditar que eles seriam as vítimas desse passado; os pecados

dos pais estavam sendo visitados nos filhos, e eles não estariam

exatamente errados nessa visão. Uma geração paga o preço pelos

pecados das gerações anteriores, da mesma forma que se beneficia da

sabedoria e da bondade das gerações anteriores. Todavia, isso não

remove a responsabilidade da geração posterior de prestar atenção em

sua própria relação com Deus, como se a sua fidelidade e

arrependimento não fizessem nenhuma diferença. Cada geração

apresenta-se diante de Deus plenamente capacitada a oferecer

arrependimento e a buscar perdão. Se isso foi válido a Manassés, então

é válido para qualquer um.

Ao que tudo indica, seja qual for o arrependimento oferecido por

Manassés, sua duração foi curta. Certamente, não durou até o reinado
de seu filho. O retrato de Crônicas sobre Manassés pode ser comparado

com o uso que o livro faz de hipérboles em outras passagens ou com o

modo pelo qual Hebreus 11 fornece um relato seletivo dos heróis da fé

presentes no Antigo Testamento com o objetivo de usá-los para

sustentar o ponto que se deseja enfatizar. O seu intuito não é fornecer

um relato histórico equilibrado, mas uma história que impulsionará os

seus ouvintes na direção certa.


2CRÔNICAS 34:1-28
REI E PROFETISA
1
Josias tinha oito anos de idade quando se tornou rei e reinou trinta e um anos em

2
Jerusalém. Ele fez o que era certo aos olhos de Yahweh e andou nos caminhos de Davi, o seu

3
ancestral, e não se desviou nem para a direita nem para a esquerda. No oitavo ano de seu

reinado, quando ainda era um jovem, ele começou a inquirir do Deus de Davi, o seu

ancestral, e no décimo segundo ano começou a purificar Judá e Jerusalém dos lugares altos,

5
das aserás, das esculturas e das estátuas. [...] Ele queimou os ossos dos sacerdotes em seus

6
altares. Assim, ele purificou Judá e Jerusalém, e nas cidades de Manassés, Efraim e Simeão e

7
até Naftali, e em todas as suas ruínas ao redor, ele derrubou os altares e as aserás, reduziu a

pó as esculturas e cortou os altares de incenso em todo o território de Israel, retornando a

8
Jerusalém. No décimo oitavo ano de seu reinado, para purificar o país e a casa, ele enviou

Safã, filho de Azalias, e Maaseias, o prefeito da cidade, e Joá, filho de Joacaz, o registrador,

9
para reparar a casa de Yahweh, o seu Deus. Eles foram a Hilquias, o sumo sacerdote, e lhe

deram a prata que havia sido trazida à casa de Deus, que os levitas, os guardas da soleira,

haviam coletado de Manassés e de Efraim, de todo o remanescente de Israel e de todo o

14
Judá, Benjamim e dos habitantes de Jerusalém. [...] Quando eles estavam retirando a prata

que havia sido levada à casa de Yahweh, Hilquias, o sacerdote, encontrou um rolo do ensino

19
de Yahweh pela mão de Moisés. [...] Quando o rei ouviu as palavras do rolo, ele rasgou as

20
suas roupas. O rei ordenou a Hilquias, a Aicam, filho de Safã, a Abdom, filho de Mica, a

21
Safã, o teólogo, e a Asaías, o servo do rei: “Vão, inquiram a Yahweh por mim e pelo

remanescente em Israel e em Judá com respeito às palavras no rolo que foi encontrado, pois

grande é a ira de Yahweh derramada sobre nós porque os nossos ancestrais não guardaram a

22
palavra de Yahweh, nem agiram de acordo com tudo o que está escrito neste rolo.” Hilquias

e aqueles que o rei [também havia enviado] foram a Hulda, a profetisa, esposa de Salum,

filho de Tocate, filho de Harás, responsável pelo guarda-roupa (ela vivia em Jerusalém, no

23
Segundo Quarteirão) e falaram com ela dessa maneira. Ela lhes disse: “Yahweh, o Deus de

24
Israel, disse isto: ‘Digam ao homem que os enviou a mim: “Yahweh disse isto: ‘Eis que irei

trazer aflição sobre este lugar e sobre os seus habitantes, todas as maldições escritas no rolo

25
que eles leram diante do rei de Judá, porque eles me abandonaram e queimaram incenso a

outros deuses, para me irritar com todas as obras de suas mãos, de modo que a minha ira será

26
derramada sobre este lugar e não sairá.’”’ Mas ao rei de Judá que os enviou para inquirir a

Yahweh vocês devem dizer: ‘Yahweh, o Deus de Israel, disse isto: “Quanto às palavras que

27
você ouviu: uma vez que a sua atitude foi flexível e você foi submisso diante de Deus

quando ouviu suas palavras com respeito a este lugar e aos seus habitantes, e se submeteu

diante de mim, rasgou as suas roupas e chorou diante de mim, eu mesmo, de fato, ouvi

28
(declaração de Yahweh). Agora, irei levar você aos seus ancestrais, e você será levado ao

seu túmulo, enquanto as coisas estão bem. Os seus olhos não verão toda a aflição que irei

trazer sobre este lugar e sobre os seus habitantes.”’” Eles levaram a mensagem de volta ao rei.
Certo Dia das Mães, eu mal conseguia suportar o pensamento de ir à

igreja à qual pertencia então, porque sabia que o foco estaria sobre essa

festividade cultural, não sobre a fé cristã. Desse modo, decidi ir a uma

igreja na qual imaginei que o foco seria outro. Na verdade, o culto foi

até menos cristão do que o daquela igreja que estava evitando. Houve

quatro testemunhos sobre a maternidade e nenhuma leitura bíblica. O

abandono da Escritura no culto das igrejas que, em teoria, enfatizam a

sua autoridade constitui um dos desenvolvimentos que significam que

a igreja nos Estados Unidos se tornará tão morta quanto a igreja na

Europa, em uma geração. Por causa dessa situação, com frequência

sinto que os alunos consideram que a minha principal tarefa como

professor é tranquilizá-los de que a Bíblia não diz nada que seja

diferente do que eles já acreditam. Josias deveria se tornar o nosso santo

padroeiro. A Escritura teve a oportunidade de olhá-lo no rosto, e ele

soube como responder a esse olhar. Obviamente, o seu coração já estava

no lugar certo, o que também é verdadeiro no caso das igrejas que

acabei de citar. Seja qual for o efeito efêmero de qualquer

arrependimento e reforma por parte de Manassés, não houve um

impacto duradouro sobre a vida de Judá, e Amom, o seu filho e sucessor,

prosseguiu em seus caminhos característicos. Podemos apenas supor os

motivos políticos e religiosos dos assassinos de Amom e dos assassinos

destes (embora não viesse a surpreender se um dos dois grupos fosse

constituído de pessoas prejudicadas pelas políticas religiosas de

Amom), mas o resultado final da ação deles, obviamente, não alterou a

situação religiosa em Judá. Assim, Josias nasceu num contexto de

infidelidade em Judá. Não obstante, a versão de sua história,

apresentada por Crônicas, nos revela que Josias já estava buscando

Yahweh em sua adolescência, o que, possivelmente, indica que pessoas

de um daqueles grupos de assassinos, ou alguém mais em Jerusalém,


havia colocado aquele garoto debaixo de suas asas e lhe ensinado a

verdadeira fé de Judá. Parece que Josias podia confiar em Hilquias, o

sumo sacerdote, como alguém comprometido com a correta adoração

no templo. Ao completar vinte anos de idade, Josias iniciou uma

reforma similar à empreendida por Ezequias, o seu bisavô. A exemplo de

Ezequias, Josias não restringiu a sua atividade a Judá, mas se aventurou

ao antigo reino do norte, baseado no princípio de que Efraim também

era parte de Israel e, portanto, parte do reino pelo qual o rei que

governa no trono de Davi deveria se interessar. E, como Ezequias, ele

descobriu que havia pessoas no antigo reino do norte que desejavam se

associar com o templo em Jerusalém e com a sua manutenção. Uma vez

mais, os ouvintes e leitores de Crônicas são encorajados a ter uma visão

de pessoas do reino do norte se unindo a Judá dessa forma.

É fácil presumir que o culto a Yahweh fosse o padrão regular em

Israel e que adorar uma ampla gama de divindades seria uma aberração

ocasional. A necessidade dessa reforma enfatiza como o culto de um

grande número de divindades era o padrão comum em Judá e a

adoração a Yahweh é que constituía uma aberração ocasional, o que é

reforçado pelas descobertas arqueológicas.

O rolo de ensino descoberto durante a restauração do templo era,

presumidamente, alguma porção do que, com o tempo, se tornou a Torá

(o Ensino). Toda a Torá seria muita leitura para ser lida de uma só vez, e

o rolo tem sido, regularmente, presumido como uma forma do que

chamamos de Deuteronômio, embora o livro de Levítico também

expresse o ponto, claramente, assinalado nesse rolo — que o desastre

virá sobre Israel pela grande infidelidade a Yahweh. Talvez a versão

original de um ou de outro desses livros tenha sido forçada para um

lado nos dias sombrios de Manassés ou escrita pela primeira vez, então,

de forma que o desafio de Yahweh e as expectativas sobre Judá não

fossem perdidos. Seja como for, o texto, agora, vem à luz.

Portanto, mais do que 2Reis 22, a versão de Crônicas da história de

Josias evidencia que não foi a descoberta do rolo que levou Josias a
iniciar a sua reforma, embora tenha dado impulso e direção. Sua

declaração de que a ira de Deus já havia sido derramada sobre o povo

pode ser referente a diversas calamidades que atingiram Judá no século

anterior, ou pode referir-se a uma calamidade que Josias reconhece

pairar sobre Judá, da qual Hulda, a profetisa, continua a falar. De todo

modo, Josias assume a presunção bíblica usual de que uma advertência

quanto a um juízo decretado por Yahweh não significa que o juízo é

inevitável. O arrependimento sempre abre a possibilidade de Yahweh

ceder. Hulda expressa esse ponto de maneira explícita. O envio de

representantes do rei a Hulda demonstra, sem margem de erro, a

atividade de profetisas em Judá.

Seria esperado que Josias fizesse alguma referência a Jeremias, que

estava em atividade em sua época. Todavia, ele não era de Jerusalém,

muito menos um membro do governo, ao passo que Hulda vivia em

Jerusalém e era casada com um membro do grupo de funcionários do

templo. Se ainda tivéssemos dúvidas, poderíamos imaginar que Josias

esperasse um contato mais fácil com Hulda do que com Jeremias; se for

esse o caso, suas expetativas foram desapontadas. Hulda disse

exatamente o que Jeremias teria dito.


2CRÔNICAS 34:29—35:27
UM ERRO FATAL
29 30
O rei convocou e reuniu todos os anciãos de Judá e de Jerusalém, subiu à casa de

Yahweh, com todos de Judá, os habitantes de Jerusalém, os sacerdotes, os levitas e todo o

povo, jovens e velhos, e leu todas as palavras do rolo da aliança encontrado na casa de

31
Yahweh para eles ouvirem. O rei tomou o seu lugar e selou uma aliança diante de Yahweh,

33b
para seguir Yahweh e guardar os seus mandamentos, suas declarações e leis. [...] Em todos

os seus dias, ele não deixou de seguir Yahweh, o Deus dos seus ancestrais.

CAPÍTULO 35

1
Josias fez a Páscoa para Yahweh em Jerusalém; eles abateram o sacrifício da Páscoa no

2
décimo quarto dia do primeiro mês. Ele estabeleceu os sacerdotes em seus turnos e os

3 6
fortaleceu para o serviço da casa de Yahweh. Ele disse aos levitas [...]: “Abatam o sacrifício

da Páscoa; santifiquem-se e o preparem para os seus parentes, agindo de acordo com a

16
palavra de Yahweh por meio de Moisés [...].” Todo o serviço de Yahweh foi preparado

naquele dia, na realização da Páscoa e na apresentação das ofertas queimadas sobre o altar de

17
Yahweh, de acordo com a ordem do rei Josias. Os israelitas que estavam presentes

18
celebraram a Páscoa naquela vez e a festa dos pães asmos por sete dias. A Páscoa não era

realizada daquela maneira em Israel desde os dias do profeta Samuel. Nenhum dos reis de

Israel havia realizado uma Páscoa como aquela feita por Josias, com os sacerdotes, os levitas,

19
todo o Judá e Israel presentes, e os habitantes de Jerusalém. Essa Páscoa foi realizada no

décimo oitavo ano do reinado de Josias.

20
Após tudo isso, quando Josias havia colocado a casa em ordem, Neco, rei do Egito, subiu

21
para batalhar em Carquemis, no Eufrates. Josias saiu para se encontrar com ele, mas Neco

enviou ajudantes a ele, dizendo: “O que há entre você e mim, rei de Judá? Hoje, não estou

contra você, mas contra a casa que está batalhando comigo. Deus me disse para me apressar.

22
Afasta-te de Deus, que está comigo, para que ele não te destrua.” Mas Josias não desviou o

seu rosto dele, antes disfarçou-se para batalhar com ele. Ele não ouviu as palavras de Neco,

23
vindas da boca de Deus, mas foi à batalha na planície de Megido, e os arqueiros atingiram

o rei Josias. O rei disse aos seus oficiais: “Tirem-me daqui, porque estou gravemente ferido.”

24
Seus oficiais o tiraram da carruagem, o colocaram na carruagem do segundo em comando e

o levaram a Jerusalém, mas ele morreu. Ele foi sepultado nos túmulos dos seus ancestrais, e

25
todo o Judá e Jerusalém prantearam por Josias. Jeremias lamentou sobre Josias, e todos os

cantores (homens e mulheres) contam sobre Josias em seus lamentos até este dia. Eles os

26
tornaram um estatuto em Israel. Eis que eles estão escritos nos lamentos. O restante dos

feitos de Josias e seus atos de compromisso de acordo com o que está escrito no ensino de

27
Yahweh, os seus feitos, iniciais e tardios, estão escritos no rolo dos reis de Israel e de Judá.
Esta tarde, enquanto dirigia na estrada, repentinamente vi surgir do

outro lado um grande congestionamento, em consequência de um

acidente. Um carro grande estava estacionado na parte superior de uma

barreira de concreto, no canteiro da pista. Ao ver aquelas

circunstâncias, o meu primeiro pensamento foi: “Que bom que não

estou indo naquela direção; espero que a pista esteja limpa quando eu

retornar mais tarde.” Meu segundo pensamento foi: “Como isso poderia

facilmente ter acontecido comigo!” Um erro de minha parte ou de outro

motorista e estou morto. (Meu terceiro pensamento foi de orar pelas

pessoas envolvidas, o que, no mundo ideal, deveria ter sido o primeiro.)

Com frequência, o mesmo pensamento vem à minha mente enquanto

vou de bicicleta ao meu trabalho; um erro meu ou de um motorista

falando ao celular e estou morto.

Josias cometeu um erro, e isso lhe custou a vida. Sua morte

estabelece um clamoroso contraste com a maneira pela qual ele levou

Judá a estabelecer o compromisso de viver em uma fiel aliança com

Yahweh, em conformidade com o rolo encontrado no templo. Sim,

Josias sabia como ouvir a Escritura; sabia que aquela era uma matéria

corporativa; todo o povo de Deus precisava ouvi-la, não somente os

indivíduos. O rei também sabia que era uma questão de compromisso e

de obediência, não apenas de descobrir histórias de encorajamento.

A sua celebração da Páscoa conecta-se com o comentário de que o

povo permaneceu fiel a Yahweh durante toda a sua vida. Para os

ouvintes de Crônicas, a celebração desse evento em Jerusalém é mais

viável agora, pois Judá está reduzido. Mas é, igualmente, aconselhável,

porque um líder e sacerdotes fiéis podem acompanhar os festivais se eles

ocorrerem em Jerusalém de uma forma que não seria possível caso

fossem realizados em outros locais. A Páscoa patrocinada por Josias foi,

ao que tudo indica, um evento ainda mais notável que a Páscoa de

Ezequias, talvez porque Josias deu um papel mais proeminente aos

levitas, ou porque um contingente ainda maior de Efraim, bem como de

todo o Judá, participou da celebração.


O contexto do desastroso erro de Josias envolve os derradeiros anos

do Império Assírio. A exemplo do relato da parte inicial de seu reinado,

a versão de Crônicas sobre a sua morte acrescenta à versão de 2Reis 23

a revelação de que Josias ignora a exortação de Neco para não interferir

na expedição egípcia. A compreensão tradicional dos eventos é de que

Neco estava em uma jornada para apoiar os assírios, que resistiam à

tentativa dos babilônios para assumir o controle sobre a Mesopotâmia,

e que, por seu turno, Josias estava agindo em apoio à tentativa

babilônica. Megido é uma importante cidade efraimita, na extremidade

da planície central de Israel, acessível por uma passagem pelas

montanhas que era uma rota regular entre o Egito e a Mesopotâmia (o

nome Armagedom deriva do termo hebraico para monte Megido).

A exemplo da mensagem enviada por Senaqueribe a Ezequias, a

mensagem de Neco contém algumas ironias. Seria totalmente plausível

que ele reivindicasse estar fazendo a vontade de Deus; as nações em

conflito, rotineiramente, alegam isso. Era verdade que ele não tinha

nenhuma desavença com Josias. Contudo, se Neco estava marchando

para apoiar a Assíria, é difícil considerar como verdadeiro que ele

estivesse, de fato, do lado de Deus, uma vez que Deus estava usando a

Babilônia para derrubar o Império Assírio. Quando Crônicas declara

que Neco falou uma palavra da parte de Deus à qual Josias, tolamente,

ignorou, talvez isso sugira que Josias não deveria ter se envolvido em

apoio à Babilônia. Ele deveria ter se mantido fora daquela briga.

Ao falhar em ficar distante do conflito, ele perdeu a promessa que

Hulda lhe havia feito, de que ele seria levado à sepultura em shalom.

Isso deveria significar que Josias morreria em paz; mas não foi assim.

Sua história, então, ilustra como as promessas de Deus a nós não

passam por cima de nossas ações. No tocante a isso, elas são como as

promessas de qualquer um: se alguém me promete pagar um jantar e eu

falho em ir, perco a promessa. Em outro sentido, a promessa de Hulda

cumpriu-se. Josias poderia, facilmente, ter vivido vinte anos mais e,

portanto, teria visto o colapso da independência judaíta e a destruição


de Jerusalém. Assim, ele foi poupado dessa experiência e morreu

quando tudo estava bem em Jerusalém.

Os lamentos de Jeremias não foram preservados, embora o retrato

de Jeremias lamentando possa ter encorajado a ideia de que ele compôs

os lamentos presentes no livro de Lamentações.


2CRÔNICAS 36:1-23
A TERRA COMPLETOU OS SEUS SÁBADOS
1
O povo do país tomou Jeoacaz, filho de Josias, e o fez rei no lugar de seu pai, em Jerusalém.

2
Jeoacaz tinha vinte e três anos de idade quando se tornou rei e reinou três meses em

3
Jerusalém, mas o rei do Egito o removeu em Jerusalém e multou o país em cem talentos de

4
prata e um talento de ouro. O rei do Egito tornou Eliaquim, irmão [de Jeoacaz], rei sobre

Judá e Jerusalém, e mudou o seu nome para Jeoaquim, e Neco tomou Jeoacaz, seu irmão, e o

5
levou para o Egito. Jeoaquim tinha vinte e cinco anos de idade quando se tornou rei e

reinou onze anos em Jerusalém. Ele fez o que era errado aos olhos de Yahweh, o seu Deus.

6
Nabucodonosor, rei da Babilônia, subiu contra ele e o confinou com algemas de bronze para

8b 9
transportá-lo à Babilônia. [...] Joaquim, seu filho, tornou-se rei em seu lugar. Joaquim

tinha dezoito anos de idade quando se tornou rei e reinou três meses e dez dias em

10
Jerusalém. Ele fez o que era errado aos olhos de Yahweh. Na virada do ano, o rei

Nabucodonosor mandou trazê-lo à Babilônia com os valiosos acessórios da casa de Yahweh.

11
Ele fez Zedequias, parente de [Joaquim], rei sobre Judá e Jerusalém. Zedequias tinha vinte

12
e um anos de idade quando se tornou rei e reinou onze anos em Jerusalém. Ele fez o que

era errado aos olhos de Yahweh, o seu Deus, e não se submeteu diante de Jeremias, o profeta,

13
[que falava] da boca de Yahweh. Além disso, ele se rebelou contra Nabucodonosor, que o

fez fazer um juramento em nome de Deus. Ele enrijeceu a sua cerviz e endureceu a sua

14
atitude para não se voltar para Yahweh, o Deus de Israel. Ainda, todos os oficiais dos

sacerdotes e o povo cometeram muitos atos de transgressão, de acordo com as práticas

abomináveis das nações, e poluíram a casa de Yahweh, que ele havia consagrado em

Jerusalém.

15
Yahweh, o Deus de seus ancestrais, lhes falou por meio de seus ajudantes, enviando-os

persistentemente, porque ele tinha compaixão por seu povo e pelo lugar de sua habitação.

16
Mas eles zombaram dos ajudantes de Deus, desprezaram as suas palavras e ridicularizaram

os seus profetas, até que a ira de Yahweh se levantou contra o seu povo, e não houve remédio.

17
Assim, ele trouxe o rei dos caldeus contra eles. Eles mataram os seus jovens à espada na

casa santa deles. Não teve compaixão de rapazes ou de moças, de adultos e de velhos. Ele

18
entregou tudo nas mãos de [Nabucodonosor]. Todos os acessórios da casa de Yahweh e os

19
tesouros do rei e de seus oficiais — ele levou tudo para a Babilônia. Eles queimaram a casa

de Deus e derrubaram os muros de Jerusalém. Queimaram todas as suas mansões com fogo e

20
destruíram todos os seus objetos valiosos. Ele exilou para a Babilônia o povo que

sobreviveu à espada, e eles se tornaram servos seus e de seus filhos até a vinda do reinado

21
persa, para cumprir a palavra de Yahweh pela boca de Jeremias, até o país satisfazer os seus

22
sábados. Todo o tempo de sua desolação ele descansou, para completar setenta anos. Mas,

no primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, [...] Yahweh levantou o espírito de Ciro, rei da Pérsia,

e ele fez circular uma proclamação em todo o seu reino, e também por escrito, dizendo:
23
“Yahweh, o Deus dos céus, deu-me todos os reinos da terra, e ele mesmo indicou-me para

lhe construir uma casa em Jerusalém, em Judá. Qualquer um de vocês, de todo o seu povo:

que Yahweh, o seu Deus, esteja com ele. Ele deve subir.”

Algumas vezes, quando olhamos para trás, pode parecer óbvio que as

coisas tivessem se desenvolvido daquela maneira, mas, enquanto elas

ocorriam, não parecia tão evidente. Agora, é possível ver,

cristalinamente, que a Grã-Bretanha jamais poderia manter o seu

domínio imperialista e que os vários povos aos quais sujeitava iriam

insistir em sua independência. Como podemos, hoje, imaginar a Índia

ou o Paquistão governados pela Grã-Bretanha? Hoje em dia, torna-se

evidente que os afro-americanos devem ter os seus direitos civis

assegurados. Como é possível, nos dias atuais, imaginar que eles podiam

apenas comer em certos restaurantes e pernoitar apenas em

determinados hotéis? É evidente, hoje, que os palestinos devem ter o

seu próprio Estado. Como pensar, em nossos dias, que devem

permanecer como um povo que passivamente aceite o seu lugar em

“territórios ocupados”?

Hoje em dia, pode-se ver que a história de Judá tinha de terminar

com a queda de Jerusalém em 587 a.C., mas não era tão evidente assim

nos dias de Josias, ou mesmo nos de Jeoacaz, Eliaquim ou Zedequias,

seus filhos, ou, ainda, nos dias de Joaquim, filho de Eliaquim. Pelo

menos, não teria sido tão óbvio a esses sucessivos reis. Há um sentido

no qual isso era evidente a alguns dos profetas que, todavia, estavam

lutando para dar à história um final diferente — a exemplo de Jeremias,

citado por Crônicas. Entretanto, quando refletimos sobre o modo pelo

qual a história se desenvolveu ao longo dos séculos, vemos que a reação

de Judá em relação a esses profetas estava de acordo com a reação que

os profetas de Yahweh receberam durante todo esse tempo.

Crônicas os chama de ajudantes de Deus. É a única vez que essa

palavra é usada para descrever profetas; o termo, mais regularmente,


denota os auxiliares de um rei humano ou os auxiliares sobrenaturais do

Rei celestial. Isso chama a atenção para o assustador fato de os profetas

serem mais do que meros mensageiros (e mensageiras), mas são pessoas

por meio das quais as decisões de Deus são colocadas em prática.

Podem ser instrumentos de bênção, mas, de modo mais frequente, são

meios de as advertências de Deus tanto serem anunciadas quanto

implementadas (quando não acatadas). Crônicas usa uma expressão

vívida para descrever Deus enviando esses ajudantes. No lugar da

expressão “enviando-os persistentemente”, a versão Almeida Revista e

Atualizada (ARA) da Bíblia traz “começando de madrugada”. Yahweh é

como um presidente que levanta às cinco da manhã para se reunir com a

sua equipe e enviá-los com as tarefas que precisam ser realizadas. Eis

como Yahweh está enviando mensagens a Judá para que o povo possa

encontrar misericórdia e escapar do juízo. O modo pelo qual Crônicas

estabelece esse ponto ilustra o padrão de o Antigo Testamento retratar

Deus: pode-se dizer que Deus está desesperadamente ansioso para

mostrar misericórdia ao seu povo, mas tudo é em vão. Próximo ao fim

da história, três dos quatro últimos reis de Judá são depostos pelos

egípcios ou pelos babilônios, pois estes dois poderes almejam obter o

controle da área na qual Judá vive. (Caldeus, na prática, significa o

mesmo que babilônios — os caldeus eram um povo que veio para

governar a Babilônia.) Cada um desses reis angaria a desaprovação dos

poderes imperiais ou de Deus, ou de ambos. Deus segue adiando o

momento em que o machado deve cair, mas, eventualmente, precisa

fazê-lo.

Crônicas utiliza duas imagens vívidas adicionais para descrever o

efeito sobre o próprio país. A terra de Israel deveria ficar sem cultivo e,

portanto, descansar, a cada sete anos, e Levítico 26 usa isso como uma

metáfora: se a terra não tiver a chance de descansar da transgressão de

Israel, Deus, no devido tempo, removerá os seus habitantes para que o

descanso da terra ocorra. Crônicas combina essa imagem com a de

Jeremias, que disse que o exílio deles duraria setenta anos, o que
equivaleria a quatrocentos e noventa anos válidos para anos sabáticos.

Os números não implicam um cálculo preciso, podendo significar

setenta em vez de sessenta e nove, ou quatrocentos e noventa em

oposição a quatrocentos e oitenta e nove. Quatrocentos e noventa anos

cobre a história da presença de Israel na terra. Setenta anos é um

período suficientemente longo para forçar o povo a encarar os fatos e

sossegarem, não para pensarem que poderão ir para casa em um ano ou

dois. (Mas é possível fazer o período de punição durar setenta anos,

com certa precisão, contando, por exemplo, do exílio do rei Joaquim, em

597 a.C., até o término da reconstrução do templo, em 516 a.C.)

De fato, setenta anos é um período muito longo, mas, pelo menos,

ele terá um fim. E o fim chega. Uma vez mais, considerando os últimos

anos de Judá ou o início do exílio, seria impossível imaginar o término

do poder babilônico sobre Judá, do mesmo modo que a maioria dos

habitantes do subcontinente indiano acharia impossível conceber a

queda do Império Britânico. Todavia, a Babilônia caiu diante de Ciro

em 539 a.C. Em certo nível, esse evento é apenas mais um episódio na

história dos impérios mundiais que imaginam durar para sempre, sem

sucesso. Em outro nível, ele ocorre porque Deus está comprometido em

cumprir a declaração feita por meio de Jeremias de que o exílio duraria

setenta anos — um tempo sobremodo longo, mas não eterno. A ascensão

de Ciro foi obra de Deus. O rei da Pérsia estava fazendo o que queria e

podia fazer, como o grande líder que era, mas também estava cumprindo

os propósitos de Deus sem perceber ou ter a intenção. Se ele atribuiu o

seu sucesso a Yahweh, quando falou aos judaítas, decerto atribuiu a

outros deuses, quando falou com outros povos. Com certa ironia, ao

citar Yahweh, Ciro falou mais verdadeiramente do que podia imaginar.

Crônicas é um clássico filme de Hollywood, pois conta uma história

sombria, mas o seu final capacita Judá a deixar o cinema encorajado

pelo fato de Deus não ter exterminado o seu povo.


GLOSSÁRIO

Ajudante. Um agente sobrenatural por meio do qual Deus pode

aparecer e operar no mundo. As traduções, em geral, referem-se a

eles como “anjos”, mas essa designação tende a sugerir figuras

etéreas dotadas de asas, ostentando vestes brancas e translúcidas.

Os ajudantes são figuras semelhantes aos humanos; por essa razão, é

possível agir com hospitalidade sem perceber quem são (Hebreus

13:2). Ainda, eles não possuem asas; por isso, necessitam de uma

rampa ou escadaria entre o céu e a terra (Gênesis 28). Eles surgem

com a intenção de agir ou falar em nome de Deus e, assim,

representá-lo plenamente, falando como se fossem Deus (Juízes 6).

Eles, portanto, trazem a realidade da presença, da ação e da voz de

Deus, sem trazer aquela presença real que aniquilaria os meros

mortais ou danificaria a sua audição. Isso pode ser uma garantia

quando Israel é rebelde, e a presença de Deus pode representar, de

fato, uma ameaça (Êxodo 32―33), mas eles mesmos podem ser

meios de implementar o castigo, da mesma forma que a bênção de

Deus (1Crônicas 21).

Aliança. A palavra hebraica berit abrange alianças, tratados e

contratos, mas todas essas são formas pelas quais as pessoas

estabelecem um compromisso formal sobre algo, mas tenho

utilizado o termo “aliança” para expressar todas as três. Onde há um

sistema legal ao qual as pessoas podem apelar, os contratos

pressupõem um sistema para resolver disputas e ministrar justiça

que pode ser utilizado caso uma das partes não cumpra com os seus

compromissos. Em contraste, um relacionamento de aliança não

pressupõe uma estrutura legal executável dessa espécie, mas a

aliança envolve algum procedimento formal que confirme a


seriedade do compromisso solene que as partes assumem uma com a

outra. Desse modo, o Antigo Testamento frequentemente fala sobre

selar uma aliança; literalmente, cortá-la (o pano de fundo reside no

tipo de procedimento formal descrito em Gênesis 15 e Jeremias

34:18-20, embora esse tipo de procedimento dificilmente fosse

exigido toda vez que alguém assumia um compromisso de aliança).

Às vezes, as pessoas selam alianças para outras pessoas e, às vezes,

com outras pessoas. A primeira implica algo mais unilateral; a outra

envolve algo mais mútuo.

altar. A palavra normalmente se refere a uma estrutura para oferta de

sacrifício (o termo vem da palavra para sacrifício), feita de terra ou

pedra. Um altar pode ser relativamente pequeno, como uma mesa, e

o ofertante deve ficar diante dele. Ou pode ser mais alto e maior,

como uma plataforma, e o ofertante tem de subir nele. A palavra

também pode ser uma referência a um estande menor, sobre o qual

queimava-se incenso em associação com o culto.

Aram, arameus. Em certos contextos, os arameus são um povo

espalhado por uma área mais ampla do Oriente Médio, e o aramaico

é um idioma internacional largamente usado que, com o passar do

tempo, substituiu o hebraico como a língua dos judaítas. No

entanto, num sentido mais estrito, Aram é o país situado a nordeste

de Israel, que compreendia, aproximadamente, a região da moderna

Síria. Como a própria Síria, era uma nação muito maior do que

Israel.

Aserá, aserá. A palavra é usada para significar tanto o nome de uma

divindade quanto o nome de um acessório para adoração. Na

religião cananeia e em outros lugares, Aserá era uma deusa

particular, mas o nome passou a ser usado no plural como um termo

geral para uma deusa. Em adição, como um termo para um acessório

de culto, denota algo que pode ser “erigido”, “plantado” e


“queimado”, o que sugere uma coluna ou pilar similar a uma árvore

que representava e sugeria a presença da divindade. Desse modo,

transliterei a palavra como aserá, com a inicial minúscula.

Assíria, assírios. A primeira grande superpotência do Oriente Médio,

os assírios expandiram o seu império rumo ao Ocidente, até a Síria-

Palestina, no século VIII a.C., no tempo de Amós e Isaías, e

anexaram Efraim ao seu império. Quando Efraim persistiu tentando

retomar a sua independência, os assírios invadiram Efraim e, em 722

a.C., destruíram a sua capital, Samaria, levando cativo grande parte

de seu povo e substituindo-os por pessoas oriundas de outras partes

do seu império. Invadiram também Judá e devastaram uma extensa

área do país, mas não tomaram Jerusalém. Profetas como Amós e

Isaías descrevem o modo pelo qual Deus estava, portanto, usando a

Assíria como um meio de disciplinar Israel.

Autoridade. Indivíduos como Eli, Samuel, os filhos de Samuel e os reis

“exerciam autoridade” sobre Israel e para Israel. A palavra hebraica

para alguém que exerce tal autoridade, shopet, é tradicionalmente

traduzida por “juiz”, mas essa liderança é mais ampla que isso. No

livro chamado Juízes, esses líderes são pessoas que não possuem

posição oficial como os reis posteriores, mas que se levantam e

tomam a iniciativa de trazer libertação ao povo do problema no

qual ele se meteu. É função do rei exercer autoridade de acordo com

a fidelidade a Deus e ao povo.

Babilônia, babilônios. Um poder menor no contexto da história

primitiva de Israel, ao tempo de Jeremias, os babilônios assumiram a

posição de superpotência da Assíria, mantendo-a por quase um

século, até ser conquistada pela Pérsia. Profetas como Jeremias

descrevem como Deus estava usando os babilônios como um meio

de disciplinar Judá. Eles tomaram Jerusalém em 587 a.C. e

transportaram muitos dentre o povo. Suas histórias sobre a criação,


os códigos legais e os textos mais filosóficos nos ajudam a

compreender aspectos de escritos equivalentes presentes no Antigo

Testamento, embora sua religião astrológica também constitua o

cenário para polêmicos aspectos nos Profetas.

Baú. O baú da aliança é uma caixa com pouco mais de um metro de

comprimento e cerca de setenta centímetros de altura e de largura.

A versão Almeida Corrigida e Fiel, bem como outras versões, faz

referência a uma “arca”, mas a palavra significa uma caixa, embora

seja apenas usada ocasionalmente para expressar baús usados para

outros fins. É chamado de baú da aliança porque contém as tábuas

de pedra inscritas com os Dez Mandamentos, expectativas-chave

que Deus estabeleceu em relação à aliança do Sinai. É mantido,

regularmente, no santuário, mas há um sentido no qual o baú

simboliza a presença de Deus (considerando que Israel não possui

imagens para representar isso). Dado esse simbolismo, os israelitas,

algumas vezes, carregam o baú com eles. Às vezes, também é

denominado de “baú da declaração”, com o mesmo significado: as

tábuas “declaram” as expectativas da aliança de Deus.

Compromisso, comprometido. O termo corresponde às palavras

hebraicas hesed e hasid, que as traduções expressam de modos

distintos: amor inabalável, benignidade, bondade ou fidelidade.

Trata-se do equivalente, no Antigo Testamento, à palavra para amor

no Novo Testamento, isto é, agapē. O Antigo Testamento utiliza a

palavra “compromisso” em referência a um ato extraordinário por

meio do qual uma pessoa se dedica a alguém, numa atitude de

generosidade, lealdade ou graça, quando não há um relacionamento

prévio entre as partes e, portanto, nenhum motivo para isso. Desse

modo, em Josué 2, Raabe fala, apropriadamente, de sua proteção aos

espias israelitas como um ato de compromisso. Pode também

referir-se a um ato extraordinário similar que ocorre quando há uma

relação prévia, na qual uma das partes decepciona a outra e, assim,


não tem o direito de esperar qualquer fidelidade da outra parte.

Caso a parte ofendida continue sendo fiel, trata-se de uma

demonstração desse compromisso. Em resposta a Raabe, os espias

israelitas declaram que irão se relacionar com ela dessa maneira.

Efraim, efraimitas. Inicialmente, Efraim é o nome de um dos filhos de

José e, então, o nome do clã que remonta a sua origem a ele. Após o

reino de Salomão, a nação de Israel se dividiu em duas. A nação do

norte era a maior das duas e manteve o nome Israel como a sua

designação política, o que é confuso porque Israel também é o nome

do povo como um todo, que pertence a Deus. Assim, o nome Israel

pode ser usado nas duas conexões. Para confundir ainda mais, o

livro de Crônicas é, especialmente, propenso a continuar usando o

nome Israel em referência ao povo de Deus e, portanto, ao próprio

Judá, para sublinhar o fato de Judá ser a real expressão do povo de

Deus. O Estado do norte, contudo, pode também ser referido pelo

nome de Efraim, por ser um de seus clãs principais. Assim, uso esse

termo como referência ao reino do norte, na tentativa de minimizar

a confusão.

Esposa secundária. As traduções usam a palavra “concubina” para

descrever mulheres como algumas das esposas de Davi, mas o termo

hebraico usado em relação a elas não sugere que não sejam

apropriadamente casadas. Ser uma esposa secundária indica possuir

uma posição diferente das outras esposas. Talvez implique que seus

filhos tenham direitos limitados ou mesmo nenhum direito sobre a

herança do pai. É possível a um homem rico ou poderoso ter

inúmeras esposas com plenos direitos e muitas esposas secundárias,

ou mesmo apenas uma de cada. Pode, ainda, ter apenas a esposa

principal ou somente a esposa secundária.

Exílio. No final do século VII a.C., a Babilônia se tornou o maior poder

no mundo de Judá, mas os judaítas estavam determinados a se


rebelar contra a sua autoridade. Então, como parte de uma

campanha vitoriosa para obter a submissão de Judá, em 597 a.C. e

587 a.C. os babilônios transportaram muitos israelitas de Jerusalém

para a Babilônia, particularmente pessoas em posições de liderança,

como membros da família real e da corte, sacerdotes e profetas.

Essas pessoas foram, portanto, compelidas a viver na Babilônia

durante os cinquenta anos seguintes ou mais. Pelo mesmo período,

as pessoas deixadas em Judá também estavam sob a autoridade dos

babilônios. Assim, não estavam fisicamente no exílio, mas também

viveram em exílio por um período de tempo.

Fidelidade, fiel. Nas Bíblias do idioma inglês, as palavras hebraicas

sedaqah ou sedeq são, usualmente, traduzidas por righteousness, e

nas Bíblias em português, normalmente por “justiça” ou “retidão”,

mas isso denota uma tendência particular quanto ao que podemos

exprimir com esse termo. Elas sugerem fazer a coisa certa em relação

à pessoa com quem alguém está se relacionando, aos membros de

uma comunidade e a Deus. Portanto, a palavra “fidelidade”, ou

mesmo “salvação”, está mais próxima do sentido original do que

“justiça” ou “retidão”. No hebraico mais contemporâneo, sedaqah

pode referir-se a dar esmolas. Isso sugere algo próximo a

generosidade ou graça.

Grécia. Em 336 a.C., forças gregas, sob o comando de Alexandre, o

Grande, assumiram o controle do Império Persa, porém após a

morte de Alexandre, em 333 a.C., o seu império foi dividido. A

maior extensão, ao norte e a leste da Palestina, foi governada por

Seleuco, um de seus generais, e seus sucessores. Judá ficou sob o

controle grego por grande parte dos dois séculos seguintes, embora

estivesse situado na fronteira sudoeste desse império e, às vezes,

caísse sob o controle do Império Ptolomaico, no Egito, governado

por sucessores de outro dos generais de Alexandre.


Israel. Originariamente, Israel era o novo nome dado por Deus a Jacó,

neto de Abraão. Seus doze filhos foram, então, os patriarcas dos doze

clãs que formam o povo de Israel. No tempo de Saul, Davi e

Salomão, esses doze clãs passaram a ser uma entidade política.

Assim, Israel significava tanto o povo de Deus quanto uma nação ou

Estado, como as demais nações e Estados. Após Salomão, esse

Estado dividiu-se em dois Estados distintos, Efraim e Judá. Pelo

fato de Efraim ser maior, manteve como referência o nome de Israel.

Desse modo, se alguém estiver pensando em Israel como povo de

Deus, Judá está incluído. Caso pense em Israel politicamente, Judá

não faz parte. Uma vez que Efraim não existe mais, então, para

todos os efeitos, Judá é Israel, do mesmo modo que é o povo de

Deus.

Judá, judaítas. Um dos doze filhos de Jacó e, portanto, o clã que traça a

sua ancestralidade até ele e que se tornou dominante no sul dos dois

Estados, após o reinado de Salomão. Mais tarde, como província ou

colônia persa, Judá ficou conhecido como Jeúde.

Libertar, libertador, libertação. Traduções modernas do Antigo

Testamento, com frequência, usam as palavras “salvar”, “salvador” e

“salvação”, mas elas transmitem uma impressão equivocada. No

contexto cristão, elas normalmente se referem ao nosso

relacionamento pessoal com Deus e ao deleite do céu. O Antigo

Testamento, de fato, fala sobre a nossa relação com Deus, porém não

utiliza esse grupo de palavras nessa conexão. Antes, elas fazem

referência à intervenção prática de Deus para tirar Israel ou um

indivíduo de alguma dificuldade, como, por exemplo, acusações

falsas por membros da comunidade ou a invasão de inimigos.

Lugar alto. A religião tradicional nas vilas e cidades de Canaã ocorria

em torno de um local de adoração no ponto mais alto da vila,

possivelmente elevado por uma plataforma. Ali, membros da


comunidade podiam levar as suas ofertas e orar, por exemplo, em

relação ao nascimento de filhos e a colheita. Quando a população da

vila ou da cidade se tornava israelita, esperava-se uma mudança na

natureza de seu culto, de modo que Yahweh passasse a ser adorado

ali, mas, na prática, continuava a ser usado de acordo com as

tradições do passado. Quer ainda envolvesse o culto a outras

divindades que não Yahweh, quer práticas de adoração dos

cananeus, tais como o uso de imagens, quer o sacrifício de crianças,

as pessoas viam a si mesmas adorando a Yahweh. Alguns reis, fiéis a

Yahweh, permitiram que os lugares altos continuassem a funcionar

sem danos ao seu compromisso com Yahweh, mas, à luz do abuso

desses locais e da crescente convicção de que os lugares altos

deveriam ser simplesmente abolidos, 1 e 2Reis sentem-se ambíguos

quanto a eles e manifestam algum desconforto sobre o modo pelo

qual alguns reis fiéis permitiram que continuassem em uso. Veja, por

exemplo, 2Reis 12:1-3.

Mestre, Mestres. Baal é um termo hebraico comum para designar um

mestre, senhor ou proprietário, mas também é utilizado para

descrever um deus cananeu. É, portanto, similar ao termo para

Senhor, usado para descrever Yahweh. Na verdade, “Mestre” pode

ser um nome adequado, como “Senhor”, como é tratado nas

traduções quando transcrevem a palavra como Baal. Para deixar

essa distinção clara, em geral o Antigo Testamento usa Mestre para

um deus estrangeiro e Senhor para o verdadeiro Deus, Yahweh. A

exemplo de outros povos antigos, os cananeus cultuavam inúmeros

deuses e, nesse sentido, o Mestre era apenas um deles, embora fosse

um dos mais proeminentes. O Antigo Testamento também usa o

plural, Mestres (Baals), como referência aos deuses cananeus em

geral.

Nome. O nome de alguém representa a pessoa. O Antigo Testamento

fala do templo como um lugar no qual o nome de Deus habita.


Trata-se de uma das maneiras de lidar com o paradoxo envolvido em

falar do templo como um local da habitação de Deus. Isso reconhece

a ausência de sentido: como pode um edifício conter o Deus que não

pode ser contido pelos céus, não importa quão amplo ele seja? Não

obstante, Israel sabe que Deus, em algum sentido, habita no templo.

Os israelitas sabem que podem falar com Deus ali; eles têm

consciência de que podem falar com Deus em qualquer lugar, mas há

uma garantia especial desse fato no templo. O povo de Israel sabe

que pode apresentar ofertas lá e que Deus irá recebê-las (supondo

que sejam feitas de boa-fé). Uma forma de tentar explicar o

inexplicável ao abordar a presença de Deus no templo é, portanto,

falar do nome de Deus como presente ali, porque o nome representa

a pessoa. Proferir o nome de alguém, como você sabe, traz a

realidade daquela pessoa; é quase como se ela estivesse ali. Ao dizer

o nome de alguém, há um sentido no qual você a evoca. Quando as

pessoas murmuram “Jesus, Jesus”, em suas orações, isso traz a

realidade da presença do Filho de Deus. Igualmente, quando Israel

proclamava o nome de Yahweh, em adoração, isso trazia a realidade

da presença de Deus.

Número, números. O relato de Crônicas quanto aos números de

pessoas envolvidas em batalhas sugere valores muito elevados,

considerando as populações dos países nos tempos do Antigo

Testamento. Há inúmeras maneiras de explicar esse fato. É possível

que as palavras que indicam os números tenham sido mudadas,

acidentalmente, a exemplo de algumas outras palavras no texto, que

foram modificadas por acidente. Os números podem ter sido

deliberadamente inflados para garantir a hipérbole; grandes

números transmitem uma impressão da magnitude do evento.

Ainda, possivelmente, as palavras mudaram de significado. A

palavra para “milhar” pode também significar “família” e, assim, é

possível que algumas passagens com referência a famílias tenham


sido consideradas com referência à unidade de milhar. Diferentes

explicações podem se aplicar a passagens distintas.

Paz. A palavra shalom pode sugerir paz após um conflito, mas, com

frequência, indica uma ideia mais rica, ou seja, da plenitude de vida.

A a versão Almeida Corrigida e Fiel, às vezes, a traduz por “bem-

estar”, e as traduções modernas usam palavras como “segurança” e

“prosperidade”. De qualquer modo, a palavra sugere que tudo está

indo bem para você.

Pérsia, persas. A terceira superpotência do Oriente Médio. Sob a

liderança de Ciro, o Grande, eles assumiram o controle do Império

Babilônico em 539 a.C. Isaías 40―55 vê a mão de Deus levantando

Ciro como um instrumento para restaurar Judá após o exílio. Judá e

os povos vizinhos, como Samaria, Amom e Asdode, eram províncias

ou colônias persas. Os persas permaneceram por dois séculos no

poder, até serem derrotados pela Grécia.

Querubins. Não se trata de figuras angelicais infantis (como a palavra

pode sugerir em seu uso moderno), mas a incríveis criaturas aladas

que transportam Yahweh, assentado em um trono acima delas.

Havia estatuetas dessas criaturas no templo, mantendo guarda

sobre o baú da aliança; portanto, eles indicam a presença de Yahweh

ali, invisivelmente entronizado acima deles.

Segundo Templo. O primeiro templo foi construído por Salomão e,

portanto o Período do Primeiro Templo corresponde ao intervalo de

tempo entre os dias de seu reinado e o exílio. O segundo templo foi

aquele reconstruído por Zorobabel e Josué, após o exílio, mas que foi

sobremodo expandido por Herodes. Desse modo, o Período do

Segundo Templo corresponde ao intervalo de tempo que se inicia

com a sua restauração, após o exílio, e termina com a sua destruição,

no ano 70 d.C.
Torá. A palavra hebraica para os cinco primeiros livros da Bíblia. Eles,

em geral, são referidos como a “Lei”, mas esse termo propicia uma

impressão equivocada. No próprio livro de Gênesis, não há nada

como “lei”, bem como Êxodo e Deuteronômio não são livros

“jurídicos”. A palavra torah, em si, significa “ensino”, o que fornece

uma impressão mais correta da natureza da Torá. Com frequência, a

Torá nos fornece mais de um relato do mesmo evento (como a

comissão de Deus a Moisés). Desse modo, quando a igreja primitiva

contou a história de Jesus de diferentes maneiras, em contextos

distintos e de acordo com as percepções dos diferentes autores dos

Evangelhos, ela estava apenas seguindo o precedente pelo qual

Israel contou suas histórias mais de uma vez, em diferentes

contextos. Embora Samuel-Reis e Crônicas mantenham as versões

separadas, tal como ocorreria com os Evangelhos, na Torá as versões

foram combinadas.

Transgressão. Um dos termos característicos de Crônicas para

descrever pecado ou desobediência. Ele sugere a ideia de que, por

diversas formas, as pessoas devem respeitar os direitos dos outros.

Assim, os cônjuges devem fidelidade um ao outro, pois isso é um

direito de cada um deles, de modo que a infidelidade envolve falhar

em respeitar esse direito. A infidelidade a Yahweh, pelo culto a

outros deuses, possui implicações similares; esse ato significa

desrespeitar o direito de Yahweh à obediência e à confiança.

Apossar-se de despojos de guerra significa desrespeitar o direito de

Deus a eles (1Crônicas 2:7). O fato de um rei agir como se fosse um

sacerdote envolve uma falha similar (2Crônicas 26:16).

Yahweh. Na maioria das traduções bíblicas, a palavra “Senhor” aparece

em letras maiúsculas ou em versalete, como ocorre, às vezes, com a

palavra “Deus”. Na realidade, ambas representam o nome de Deus,

Yahweh. Nos tempos do Antigo Testamento, os israelitas deixaram

de usar o nome Yahweh e começaram a usar “o Senhor”. Há dois


motivos possíveis. Os israelitas queriam que outros povos

reconhecessem que Yahweh era o único e verdadeiro Deus, mas esse

nome de pronúncia estranha poderia dar a impressão de que Yahweh

fosse apenas o deus tribal de Israel. Um termo como “o Senhor” era

mais facilmente reconhecível. Além disso, eles não queriam incorrer

na quebra da advertência presente nos Dez Mandamentos sobre

usar o nome de Yahweh em vão. Traduções em outros idiomas,

então, seguiram o exemplo e substituíram o nome de Yahweh por “o

Senhor”. O lado negativo é que isso obscurece o fato de Deus querer

ser conhecido por esse nome. Por essa razão, o texto utiliza Yahweh,

com frequência, não algum outro nome (assim chamado) deus ou

senhor. Essa prática dá a impressão de Deus ser muito mais

“senhoril” e patriarcal do que ele o é na realidade. (A forma “Jeová”

não é uma palavra real, mas uma mescla das consoantes de Yahweh e

das vogais da palavra Adonai [Senhor, em hebraico], com o intuito

de lembrar às pessoas que na leitura da Escritura elas deveriam

dizer “o Senhor”, não o nome real.)

Yahweh dos Exércitos. Esse título para Deus, em geral, no texto

bíblico é traduzido por “Senhor dos Exércitos”, todavia é uma

expressão mais intrigante do que ela implica. O termo para Senhor

é, na realidade, o nome de Deus, Yahweh, e a palavra para

“Exércitos” é a palavra hebraica regular para as forças militares; é a

palavra que aparece na traseira de qualquer caminhão militar

israelense. Assim, mais literalmente, a expressão significa “Yahweh

[dos] Exércitos”, que é apenas tão estranho em hebraico quanto

“Goldingay dos Exércitos” seria. Todavia, em termos gerais, a

implicação da expressão é decerto clara: ela sugere que Yahweh é a

personificação do ou o controlador de todo o poderio de guerra,

quer no céu, quer na terra.


SOBRE O AUTOR

John Goldingay é pastor, erudito e tradutor do Antigo Testamento. Ele

é professor emérito David Allan Hubbard de Antigo Testamento no

prestigiado Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia. É um

dos acadêmicos de Antigo Testamento mais respeitados do mundo com

diversos livros e comentários bíblicos publicados. O autor possui o livro

Teologia bíblica publicado pela Thomas Nelson Brasil.


AGRADECIMENTOS

A tradução no início de cada capítulo (e em outras citações bíblicas) é

de minha autoria. Tentei me manter o mais próximo do texto hebraico

original do que, em geral, as traduções modernas, destinadas à leitura

na igreja, para que você possa ver, com mais precisão, o que o texto diz.

Embora prefira utilizar a linguagem inclusiva de gênero, deixei a

tradução com o uso universal do gênero masculino caso esse uso

inclusivo implicasse em dúvidas quanto ao texto estar no singular ou no

plural. Em outras palavras, a tradução, com frequência, usa “ele” onde

em meu próprio texto eu diria “eles” ou “ele ou ela”. A restrição de

espaço não me permite incluir todo o texto bíblico neste volume; assim,

quando não há espaço suficiente para o texto completo, faço alguns

comentários gerais sobre o material que fui obrigado a suprimir. Ao

final do livro, há um glossário dos termos-chave recorrentes no texto

(termos geográficos, históricos e teológicos, em sua maioria). Em cada

capítulo (exceto na introdução), a ocorrência inicial desses termos é

destacada em negrito.

As histórias que seguem a tradução, em geral, envolvem meus

amigos, assim como minha família. Todas elas ocorreram, de fato, mas

foram fortemente dissimuladas para preservar as pessoas envolvidas,

quando necessário. Por vezes, o disfarce utilizado foi tão eficiente que,

ao relê-las, levo um tempo para identificar as pessoas descritas. Nas

histórias, Ann, a minha esposa, aparece com frequência. Ela faleceu

enquanto eu escrevia este volume, após negociar com a esclerose

múltipla durante 43 anos. Compartilhar os cuidados e o

desenvolvimento de sua enfermidade e crescente limitação, ao longo

desses anos, influencia tudo o que escrevo, de maneiras facilmente

perceptíveis ao leitor, mas também de formas menos óbvias. Agradeço a


Deus por Ann e estou feliz por ela, mas não por mim, pois ela pode,

agora, descansar até o dia da ressurreição.

Sou grato a Matt Sousa por ler o manuscrito e me indicar o que

precisava corrigir ou esclarecer no texto. Igualmente, sou grato a Tom

Bennett por conferir a prova de impressão.


INTRODUÇÃO

No tocante a Jesus e aos autores do Novo Testamento, as Escrituras

hebraicas, que os cristãos denominam de Antigo Testamento, eram as

Escrituras. Ao fazer essa observação, lanço mão de alguns atalhos, já

que o Novo Testamento jamais apresenta uma lista dessas Escrituras,

mas o conjunto de textos aceito pelo povo judeu é o mais próximo que

podemos ir na identificação da coletânea de livros que Jesus e os

escritores neotestamentários tiveram à disposição. A igreja também

veio a aceitar alguns livros adicionais, os denominados “apócrifos” ou

“textos deuterocanônicos”, mas, com o intuito de atender aos

propósitos desta série, que busca expor “o Antigo Testamento para

todos”, restringimos a sua abrangência às Escrituras aceitas pela

comunidade judaica.

Elas não são “antigas” no sentido de antiquadas ou ultrapassadas; às

vezes, gosto de me referir a elas como o “Primeiro Testamento” em vez

de “Antigo Testamento”, para não deixar dúvidas. Quanto a Jesus e os

autores do Novo Testamento, as antigas Escrituras foram um recurso

vívido na compreensão de Deus e dos caminhos divinos no mundo e

conosco. Elas foram úteis “para o ensino, para a repreensão, para a

correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja

apto e plenamente preparado para toda boa obra” (2Timóteo 3:16-17).

De fato, foram para todos, de modo que é estranho que os cristãos

pouco se dediquem à sua leitura. Meu objetivo, com esses volumes, é

auxiliar você a fazer isso.

Meu receio é que você leia a minha obra, não as Escrituras. Não faça

isso. Aprecio o fato de esta série incluir grande parte do texto bíblico,

mas não ignore a leitura da Palavra de Deus. No fim, essa é a parte que

realmente importa.
UM ESBOÇO DO ANTIGO TESTAMENTO

A comunidade judaica, em geral, refere-se a essas Escrituras como a

Torá, os Profetas e os Escritos. Embora o Antigo Testamento contenha

os mesmos livros, eles são apresentados em uma ordem diferente:

Gênesis a Reis: Uma história que abrange desde a criação do

mundo até o exílio dos judeus para a Babilônia.

Crônicas a Ester: Uma segunda versão dessa história, prosseguindo

até os anos posteriores ao exílio.

Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos: Alguns

livros poéticos.

Isaías a Malaquias: O ensino de alguns profetas.

A seguir, há um esboço da história subjacente a esses livros (não

forneço datas para os eventos em Gênesis, o que envolve muito esforço

de adivinhação).

1200 a.C. Moisés, o êxodo, Josué

1100 a.C. Os “juízes”

1000 a.C. Saul, Davi

900 a.C. Salomão; a divisão da nação em dois reinos:

Efraim e Judá

800 a.C. Elias, Eliseu

700 a.C. Amós, Oseias, Isaías, Miqueias; Assíria, a

superpotência; a queda de Efraim

600 a.C. Jeremias, o rei Josias; Babilônia, a superpotência

500 a.C. Ezequiel; a queda de Judá; Pérsia, a

superpotência; judeus livres para retornar ao lar

400 a.C. Esdras, Neemias

300 a.C. Grécia, a superpotência

200 a.C. Síria e Egito, os poderes regionais puxando Judá


de uma forma ou de outra

100 a.C. Judá rebela-se contra o poder da Síria e obtém a

independência.

0 a.C. Roma, a superpotência

ESDRAS E NEEMIAS

Nos manuscritos hebraicos do Antigo Testamento, Esdras e Neemias

formam um único livro, e há lógica em tratá-los juntos. Eles relatam o

desdobramento de uma história, e o próprio Esdras aparece ao lado de

Neemias, em Neemias 8 e 12. Juntos, eles apresentam o único relato do

Antigo Testamento sobre a história da comunidade judaíta centralizada

em Jerusalém, quando a cidade ainda fazia parte do Império Persa. No

entanto, torna-se conveniente dividir os livros em quatro seções.

Esdras 1—6 (a partir de 539 a.C.). A história principia-se com a

transição de poder no Oriente Médio, da Babilônia para a Pérsia, no

ano 539 a.C. Cinquenta ou sessenta anos antes, os babilônios haviam

conquistado Jerusalém, devastado o templo ali e transportado muitos

judaítas dessa cidade para a Babilônia. Os seis capítulos iniciais de

Esdras relatam como os persas, então, encorajam os judaítas a

retornarem para casa e como, contra a oposição dos povos vizinhos, eles

reconstroem o templo. Portanto, o período que agora se inicia é

normalmente mencionado como o período do Segundo Templo.

Embora Esdras seja, com frequência, considerado o grande herói do

retorno do exílio, na realidade somente no século seguinte é que ele

realizou a jornada de volta, da Babilônia para Jerusalém (regularmente,

faço os estudantes repetirem depois de mim: “Esdras não teve nada a

ver com o retorno do exílio”). Os heróis da volta do exílio são Sesbazar

e Zorobabel, como governadores (em um sentido informal ou formal);

Jesua (ou Josué), como o sumo sacerdote (um Josué distinto daquele do

livro de Josué, que viveu cerca de setecentos anos antes); e Ageu e

Zacarias, como profetas. Além disso, é fácil ficar com a impressão de que
os babilônios transportaram toda a população, no começo do século VI

a.C. (de maneira que a terra de Judá permaneceria desocupada durante

o período do exílio), e que, então, toda a população tenha retornado,

próximo ao fim desse século. Na realidade, o Antigo Testamento deixa

claro que os invasores babilônicos transportaram apenas alguns

milhares de judaítas — na maioria, pessoas da elite, tais como membros

da família real e da administração, sacerdotes e profetas — e que

somente algumas dessas pessoas retornaram quando receberam

permissão para isso. Afinal, decorrido quase meio século de exílio,

grande parte da comunidade judaíta residente na Babilônia nasceu lá e

não tinha mais interesse em “retornar” para a terra de seus pais, tanto

quanto os judeus que vivem em Los Angeles ou Nova York não desejam

fazer isso hoje.

Esdras 7—10 (a partir de 458 a.C.). Assim, o avô de Esdras pode ter

nascido mais ou menos na época em que o retorno do exílio ocorreu,

mas a sua família não acompanhou, então, os que retornaram. Inúmeros

reis persas se sucederam no trono antes de Esdras nascer, na Babilônia.

No reinado do rei Artaxerxes, segundo os capítulos 7—10, Esdras faz a

jornada rumo a Jerusalém em 458 a.C., oitenta anos após o retorno do

primeiro grupo que conduziu a reconstrução do templo. Ele leva

consigo uma cópia da Torá de Moisés e encontra a comunidade judaíta

vivendo em desacordo com essa lei, pela liberalidade em se casarem com

pessoas dos povos vizinhos, que não eram comprometidas com o Deus

de Israel. Por consequência, ele leva os judaítas a um ato de

arrependimento em relação a essa prática.

Neemias 1—7 (a partir de 445 a.C.). Treze anos após a jornada de

Esdras, no centro do Império Persa, em Susã, outro judaíta leal está

servindo na corte imperial e ouve sobre o triste e lamentável estado da

comunidade em Judá. Assim, Neemias decide fazer algo a respeito das

defesas em ruínas da cidade. Ao chegar a Jerusalém, ele também adota

ações para lidar com os problemas sociais e econômicos da comunidade,

resultantes de colheitas pobres e das exigências dos impostos imperiais.


Neemias 8—13. Na derradeira parte dos dois livros, Esdras e

Neemias aparecem juntos em Jerusalém, ensinando a Torá, liderando a

comunidade em uma ação de avivamento de sua aliança de

compromisso com Yahweh, adotando medidas para edificar a população

de Jerusalém, além de outras ações em relação aos homens que

desposaram mulheres de outras comunidades, não comprometidas com

Yahweh.

Os livros fornecem datas tanto para Esdras quanto para Neemias,

em termos do reinado do rei Artaxerxes, e é mais fácil concluir que as

datas são referentes ao mesmo rei, ou seja, Artaxerxes I. Todavia, houve

inúmeros reis com esse nome, o que torna possível que Esdras tenha

vivido no tempo de Artaxerxes II, não Artaxerxes I.

A exemplo de outros livros narrativos do Antigo Testamento, não

há certeza quanto à autoria dos livros. Os títulos não implicam que eles

sejam os autores; ambos são citados na terceira pessoa, embora o livro

de Neemias, adicionalmente, incorpore orações e outros materiais nos

quais Neemias fala na primeira pessoa. Os dois livros, igualmente,

incluem listas de pessoas do período do Segundo Templo, tais como

aqueles que fizeram a jornada da Babilônia a Jerusalém, e citações de

documentos, ou seja, decretos imperiais concernentes a assuntos da

comunidade. Portanto, é como se alguém no período seguinte ao de

Esdras e Neemias tivesse compilado o livro, juntando-os e adicionando

tais materiais e compondo relatos de incidentes que ocorreram durante

um século ou mais, a partir de 539 a.C., com o fim de fornecer à

comunidade um relato de sua renovação ao longo daquele século.

Essa renovação foi constituída por muitas facetas, que incluem a

reconstrução do templo e a restauração de sua adoração, a

implementação de expectativas presentes na Torá, referentes à

comunidade manter a sua identidade singular como o povo de Deus, ao

contrário de outros grupos étnicos, a reconstrução das defesas da

cidade e a constituição de uma população apropriada, bem como ações

para assegurar que o povo judaíta fosse caracterizado pelo apoio mútuo
e pela generosidade em vez de cada família viver para si. No entanto, os

livros não apresentam um fim triunfante nem atingem um fechamento;

no último capítulo, Neemias está implementando reformas adicionais

designadas a alcançar os mesmos objetivos que Esdras visava quando

primeiramente chegou em Jerusalém. Os livros, portanto, forneceriam

aos leitores tanto uma razão para louvar a Deus pelo que havia sido

alcançado durante o século coberto por eles quanto lembretes sobre as

questões às quais eles deveriam continuar dando atenção.

Nas versões tradicionais da Bíblia, Esdras e Neemias aparecem logo

após Crônicas, e, na verdade, os versículos iniciais de Esdras repetem os

versículos de encerramento de Crônicas. A preocupação com o templo,

em Esdras 1—6, corresponde à agenda de Crônicas, as listas de

membros da comunidade, de sacerdotes e levitas, e assim por diante.

Por outro lado, os dois livros possuem preocupações que não são

abordadas em Crônicas, tais como a ênfase em manter o povo de Deus

puro em relação a povos que reconheciam outras divindades e a ênfase

no apoio mútuo dentro da comunidade. Isso sugere que não deveríamos

ver os livros meramente como continuações de Crônicas. A bem da

verdade, na Bíblia hebraica, Esdras-Neemias precede o livro de

Crônicas, e isso reforça a ideia de que Esdras e Neemias,

originariamente, não seguiam Crônicas; se tanto, seguiam 1 e 2Reis.

Isso significa que o texto de Crônicas foi escrito mais tarde, como um

relato posterior sobre algo anterior a Esdras-Neemias.

ESTER

As Bíblias tradicionais, então, apresentam o livro de Ester logo após os

livros de Esdras e Neemias, novamente com certa lógica, pois pertence

ao mesmo período da história. O livro diz respeito a um incidente

particular, durante o período de domínio persa sobre o Oriente Médio,

quando o imperador é um rei que tanto o livro de Ester quanto o livro

de Esdras citam como sendo Assuero. Normalmente, considera-se que

Assuero seja o nome hebraico do rei conhecido como Xerxes I, que


reinou de 486 a 465 a.C. Desse modo, os eventos relatados em Ester

situam-se, temporalmente, entre os eventos presentes em Esdras 1—6 e

aqueles envolvendo Esdras e Neemias. Uma grande distinção em Ester

é que o livro fala sobre o povo que permaneceu em Susã, não sobre os

judaítas que se uniram à comunidade em Jerusalém. Por consequência,

elas não são, exatamente, pessoas que estão, naquele momento, no

exílio, porque (pelo menos em teoria) nada as impede de deixarem Susã

e seguirem para Jerusalém. São judeus que vivem na dispersão em vez

de no exílio, como a maioria da comunidade judaica tem vivido desde

então. O livro, portanto, lida com as questões que afligem o povo e,

especialmente, aborda a pressão para abandonar compromissos

singularmente judeus, com a perseguição que pode resultar da recusa

em ceder a essa pressão. O livro relata o extraordinário livramento do

extermínio, experimentado pela comunidade judaica, como resultado

da ousadia de uma jovem judia.

A exemplo de Esdras-Neemias, Ester aparece em um contexto

diferente nas Bíblias tradicionais em relação à sua posição na Bíblia

judaica. Nesta, o livro integra um dos Cinco Rolos que podem parecer

uma coletânea aleatória de livros, mas possuem um elemento comum,

que é o fato de a comunidade judaica conectá-los a cada um de seus

cinco festivais anuais, ocasião na qual aquele livro é especialmente lido.

Cântico dos Cânticos: Pessach ou Páscoa (março/abril)

Rute: Shavuot ou Pentecoste (maio/junho)

Lamentações: Tisha B’av, aniversário da queda de Jerusalém

(julho/agosto)

Eclesiastes: Sucote ou Tabernáculos (setembro/outubro)

Ester: Purim (fevereiro/março)

Apenas Ester explicita a sua ligação com um festival. O nome Purim

(significando sortes) deriva da referência a lançar sortes, em Ester 9:24.

A exemplo de Esdras-Neemias, desconhecemos a autoria do livro ou


mesmo quando ele foi escrito, embora o autor, claramente, possuísse

grande familiaridade com muitos aspectos da vida durante o Império

Persa.

Embora Esdras e Neemias sejam, basicamente, lidos como livros

históricos, a evidência no caso de Ester é mais ambígua. Há diversas

indicações de que a história é apresentada em tons épicos; por exemplo,

a forca destinada à execução de Mardoqueu era tão alta quanto um

prédio de seis andares. Além disso, não há referências, fora do Antigo

Testamento, a uma rainha chamada Vasti. Tais considerações sugerem

que Ester é uma história breve divinamente inspirada. Parece-me

provável que seja baseada em algo que realmente ocorreu do que uma

narrativa totalmente inventada. O relato ilustra certas verdades sobre

Deus, sobre a preservação do povo judeu, sobre a pecaminosidade e a

estupidez humana, e sobre o papel da coincidência e da coragem,

verdades incontestáveis, seja um relato histórico, seja um conto. Dessa

forma, a questão quanto a história ser mais factual ou mais ficcional não

afeta a sua mensagem, da mesma forma que as parábolas de Jesus (na

maioria, constituídas de contos em vez de relatos históricos, e com

frequência apresentam características de fábula).


© Karla Bohmbach
© Karla Bohmbach
© Westminster John Knox Press
ESDRAS

ESDRAS 1:1-4
SOBRE NÃO SE ACOMODAR COMO REFUGIADO
1
No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, cumprindo a palavra de Yahweh pela boca de

Jeremias, Yahweh despertou o espírito de Ciro, rei da Pérsia, para que ele emitisse uma

2
proclamação em todo o seu reino e também em um documento: “Ciro, rei da Pérsia, disse

isto: ‘Yahweh, o Deus dos céus, deu-me todos os reinos da terra, e ele mesmo indicou-me para

3
lhe construir uma casa em Jerusalém, em Judá. Qualquer um entre vocês, de todo o seu

povo: que o seu Deus esteja com ele para que possa subir a Jerusalém, em Judá, e construir a

4
casa de Yahweh, o Deus de Israel, o Deus em Jerusalém. Qualquer um que permanecer, de

todos os lugares nos quais ele for um residente — o povo de seu lugar deve lhe prover com

prata, ouro, bens e rebanhos, além de uma oferta voluntária para a casa de Deus, em

Jerusalém.’”

A filha e o genro da minha esposa acabaram de retornar de uma visita

aos campos no Chade Oriental, ocupados com 175 mil refugiados

vindos da região de Darfur, no oeste do Sudão. Estão ali concentrados

para que a voz dos refugiados de Darfur seja ouvida no Ocidente. Eles

levam computadores e câmeras com os quais podem transmitir via

satélite fotos de sua vida naqueles campos, e os jovens darfuri podem

trocar mensagens de texto com jovens nos Estados Unidos. Todavia,

uma das tragédias desses campos é que, ano após ano, eles se tornam,

cada vez mais, cidadãos permanentes, a exemplo do que tem ocorrido

nos campos de refugiados na Palestina. As pessoas buscam os campos no

Chade para, primeiramente, fugir da ameaça de genocídio, pensando e

esperando que a permanência deles ali seja apenas por alguns meses,

mas os anos passam, e eles se veem ainda vivendo ali. As crianças e os

adolescentes darfuri já não se lembram mais como era a vida nas suas

vilas de origem, sem falar nas crianças mais novas, nascidas nos campos

e que não têm memória ou ligação com o lar original de sua família.
A comunidade judaíta, na Babilônia, passou por uma experiência

análoga; esse é o motivo do compromisso vigorosamente expresso no

salmo 137 para jamais se esquecer de Jerusalém, e a autodeclarada

maldição caso isso ocorresse. A fim de punir Jerusalém por sua rebelião

contra a Babilônia, em 597 a.C., o rei babilônio transportou muitos

habitantes de Jerusalém para o exílio — líderes tais como a pessoa que,

então, era o rei, Joaquim, membros de sua administração, sacerdotes e

profetas. O povo deixado para trás, em Jerusalém, no ano de 597 a.C., os

que escaparam da deportação, tinham bons motivos (ou pensavam ter)

para suspirar de alívio, para celebrarem a sua aparente boa sorte e para

assumirem que o pior da opressão babilônica havia passado. Eles

tinham uma base teológica para essa presunção; eles sabiam que Deus

era comprometido com Jerusalém, com o templo e com a linhagem dos

reis davídicos. Não havia como Deus abandoná-los em definitivo. Com

certeza, os exilados logo retornariam para casa; os próprios exilados

podiam pensar o mesmo.

No entanto, eles precisavam enxergar que estavam errados. Jeremias

29 relata como, algum tempo após a deportação, em 597 a.C., o profeta

escreve aos deportados para contradizer essa ideia e lhes dizer para se

estabelecerem, pois não voltariam para casa tão cedo. Assim, eles foram

instruídos a construir casas para nelas viverem, plantar jardins e

subsistir de sua produção, casar e iniciar famílias, identificarem-se com

as cidades babilônicas nas quais estivessem instalados e orarem por elas

(decerto, esses deportados não estavam em campos de refugiados) e não

acreditarem nos profetas que propagassem um breve retorno a Judá.

Jeremias sabe que o estado de rebelião dos judaítas levados à Babilônia,

e dos judaítas que escaparam da deportação (não apenas a rebelião

contra os babilônios, mas contra Deus), significa que Deus ainda não

terminou de discipliná-los. Todavia, as pessoas que acreditavam que

Deus não as tinha abandonado definitivamente estavam certas.

Jeremias reafirma a promessa de que, após um período de setenta anos,

Deus irá promover o retorno dos deportados à sua terra natal. Mas a
intenção de Deus é que, durante esse tempo, os judaítas vivam bem, não

mal. Ele tem planos de lhes dar esperança e um futuro. Jeremias 51,

então, fala de Deus “despertando o espírito dos reis dos medos” para

trazer reparação sobre a Babilônia pela subsequente destruição do

templo, em 587 a.C.

Uma das maneiras de Deus cumprir o compromisso com a fidelidade

e com a justiça é deixar a justiça seguir o seu caminho no curto prazo,

mas permitir que a fidelidade siga o seu curso no longo prazo. A

proclamação de Ciro evidencia que Jeremias estava certo. No entanto, a

partir de 597 a.C., isso ocorreria apenas no longo prazo. Quando

Jeremias disse que o exílio babilônico duraria setenta anos, o ponto

principal não é que deveria durar setenta em vez de sessenta e nove ou

setenta e um, mas que duraria mais do que uma geração. Na realidade,

praticamente ninguém que havia deixado Jerusalém em 597 a.C. estaria

vivo para retornar, após esse período. Os filhos e os netos dessas pessoas

é que seriam capazes de “retornar”, judaítas que jamais haviam visto

Jerusalém e que conheciam apenas as pessoas de sua família na

Babilônia; sem dúvida, esse é o motivo principal de poucos se

interessarem em migrar para aquela terra distante e desconhecida. A

proclamação de Ciro, permitindo que eles possam, agora, ir para

Jerusalém, reconhece esse fato. Por um lado, ela expressa o desejo de

que Deus possa ajudar as pessoas dispostas a fazer essa corajosa

mudança. Por outro, estabelece a expectativa de que aqueles que

preferirem permanecer na Babilônia, por amor a Deus, devem oferecer

apoio financeiro para aqueles decididos a voltar.

Em 587 a.C., há outra rebelião contra a Babilônia — que resulta na

destruição do templo e da cidade — e outro grupo de deportados.

Durante décadas, nada de muito importante ocorreu para mudar a

situação, mas, então, na década de 550 a.C., as coisas começaram a

mudar. A Pérsia, até então, fazia parte do Império Medo, mas o rei

persa Ciro liderou uma rebelião e reverteu a situação, passando a ser o

macho alfa em sua região. Ele determinou estender amplamente a


autoridade medo-persa pela Ásia Ocidental até a Turquia. Ciro, então,

moveu-se para o sul, a fim de anexar ao seu próprio império o já

enfraquecido Império Babilônico, de tal sorte que os judaítas no exílio

da Babilônia e os remanescentes em Judá ficassem sob o seu domínio.

Profecias em Isaías 40—47 haviam antecipado essa ocorrência; Yahweh,

o Deus de Israel, estava agindo nos bastidores desses eventos político-

militares. Eles se tornariam os meios pelos quais Yahweh iria restaurar

Israel. Pode-se dizer que as declarações em Isaías 40—47 colocam os

pingos nos “is” e cruzam os “tês” da promessa de Jeremias, em sua carta

e em suas outras profecias.

São aquelas promessas em Jeremias que o livro de Esdras vê Ciro

cumprindo ao encorajar os judaítas a deixarem a Babilônia e

retornarem à sua terra natal para reconstruírem o templo destruído

pelos invasores babilônicos. O Deus de Israel é que despertou o espírito

de Ciro. Agora, a sua deliberada intenção de expandir o seu império

dificilmente foi uma resposta a qualquer despertar do Deus dos

judaítas. É possível imaginá-lo indagando: “O Deus de quem?” Ciro

criou o seu império movido pelos mesmos motivos egocêntricos da

Grécia, de Roma, da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. No entanto,

sem Ciro perceber, havia uma iniciativa divina por trás de sua ação. É

sempre válido questionar se há algum mover divino por trás das ações

dos poderes políticos, mesmo que eles não tenham consciência disso.

Claro que Ciro está preparado para fazer um reconhecimento

político, marcado por certo cinismo, da divindade cultuada por seus

subordinados. Ele afirma que Yahweh, o Deus dos céus, deu-lhe poder

sobre todo o mundo conhecido da época e o encarregou de construir o

templo em Jerusalém. Ele ficaria feliz em ser conhecido politicamente

como o imperador que tornou possível aos judaítas fazer as ofertas ali,

mesmo não sendo, de fato, comprometido com Yahweh. Em um

documento chamado Cilindro de Ciro (por causa de seu formato

cilíndrico), ele se declara adorador de Marduque — o deus babilônico —

pois reafirma o apoio dessa divindade em sua conquista da Babilônia. A


ironia é que Yahweh é realmente o Deus dos céus, o Senhor de todo o

cosmos. Na verdade, foi Yahweh quem deu poder a Ciro. Apesar de não

ter ciência disso, Ciro foi, na prática, um agente de Yahweh, ao

possibilitar a volta dos judaítas a Jerusalém e a reconstrução do templo.

Ontem, aleatoriamente, recebi um e-mail e, então, uma ligação

telefônica de um homem que desejava saber como eu entendia alguns

versículos no Antigo Testamento, que ele considerava serem referências

ao estabelecimento do Estado de Israel em 1948. Muitos cristãos têm

presumido que o material nas profecias de pessoas como Jeremias

refere-se a eventos em nossos dias. Essa presunção não está exatamente

errada no sentido de que essas profecias também expressam algo sobre o

propósito eterno de Deus e, assim, nos capacitam a enxergar algo sobre

como o propósito divino está sendo executado — ou não está — nos dias

de hoje. Todavia (como tentei explicar ao meu interlocutor, sem

sucesso), há certo equívoco na ideia de que um profeta como Jeremias

estaria falando diretamente sobre eventos específicos do século XX.

Isso torna as visões ou profecias do profeta sem significado imediato aos

destinatários a quem elas foram dadas. Na Escritura, Deus fala às

pessoas onde elas estão. Nosso privilégio, então, é poder repercutir essas

palavras a fim de ver como Deus pode estar falando a nós, exatamente

onde estamos, enquanto questionamos quais as possíveis implicações

das palavras do profeta a nós.

A abertura do livro de Esdras pressupõe que os profetas falem às

pessoas onde elas estão e que as capacitem a ver o que Deus está

fazendo com elas. Os profetas discorrem sobre o futuro, mas esse futuro

afeta as pessoas a quem as promessas e as advertências são endereçadas,

ou afeta os seus filhos e netos, e expressa, portanto, como Deus é fiel

com eles. Não obstante, talvez a abertura de Esdras nos forneça uma

base para orar pelos refugiados de Darfur e da Palestina, assim como

outros povos esquecidos. Deus pode estar envolvido no mundo político,

inspirando países como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos a


implementarem políticas que, de fato, beneficiem povos necessitados

com os quais Deus se preocupa.


ESDRAS 1:5-11
POSSES PRECIOSAS INESPERADAMENTE RESTAURADAS
5
Então, os cabeças ancestrais de Judá e de Benjamim, os sacerdotes e levitas, todos cujo

espírito Deus despertou, decidiram subir para construir a casa de Yahweh, em Jerusalém.

6
Todos os seus vizinhos os apoiaram com objetos de prata, de ouro, bens e rebanhos, e com

7
coisas variadas exclusivamente para as ofertas voluntárias. Ciro, o rei da Pérsia, tirou os

objetos da casa de Yahweh que Nabucodonosor havia trazido de Jerusalém e colocado na casa

8
de seu deus. Quando Ciro, o rei da Pérsia, os trouxe para o controle de Mitredate, o

9
tesoureiro, ele os contou e entregou a Sesbazar, o líder judaíta. Esta é a contagem: trinta

10
tigelas de ouro, mil tigelas de prata, vinte e nove facas, trinta pratos de ouro, quatrocentas

11
e dez tigelas duplas de prata e mil outros objetos. Todos os objetos de ouro e prata

somaram cinco mil e quatrocentos. Todos eles, Sesbazar levou quando os exilados foram

levados da Babilônia para Jerusalém.

Conheço uma mulher que, numa ocasião, fugiu de um casamento que se

tornara abusivo, temendo mais pela segurança da filha do que pela

própria. Após um incidente que a convenceu de que era inseguro

permanecer um segundo a mais, certa tarde ela colocou a filha no carro

e, simplesmente, foi embora, apenas com a roupa do corpo, dirigindo-se

para um destino no qual ela imaginou que jamais seria encontrada pelo

marido. Ela estava certa quanto ao perigo e a ação a ser tomada; no

entanto, um dos aspectos mais dolorosos dessa fuga apressada foi ser

obrigada a deixar para trás, praticamente, todas as coisas que a

lembravam de sua própria juventude e da infância da filha. Ela não tem

quase lembranças ou fotografias daqueles anos.

A julgar pela maneira de o Antigo Testamento contar essa história,

um dos aspectos mais agonizantes da queda de Jerusalém, diante dos

babilônios, em 587 a.C., foi a destruição de grande parte dos sagrados e

preciosos acessórios do templo e a apropriação pelo rei da Babilônia do

que ele não destruiu. No relato sobre a queda e a destruição da cidade

em 2Reis 25, pode-se sentir a dor nas linhas que detalham as vasilhas, as
pás, as panelas e os incensários que foram apreendidos. Para os que

foram deixados para trás em Judá, o templo nada mais era do que uma

ruína profanada e vazia. Paradoxalmente, o fato de os itens apreendidos

e não destruídos acompanharem os exilados para a Babilônia piorou a

situação, porque Nabucodonosor fez o que os vitoriosos, normalmente,

fazem com os despojos. Ele os depositou no templo de seu próprio deus,

e, assim, se tornaram coisas dedicadas a Marduque, permanecendo ali

como um lembrete afrontoso da plausível reivindicação dos babilônios

de que Marduque derrotara Yahweh. Claro que um profeta como

Jeremias sabia que isso não ocorrera e que, na verdade, a destruição foi

resultante da própria ação de Deus em abandonar a cidade, o templo e

seus acessórios, por causa da rebelião de Judá; mas um babilônio riria

diante dessa interpretação teológica, e sabemos, pelo livro de Jeremias,

que inúmeros judaítas não estavam convencidos disso.

No entanto, não intencionalmente, ao armazenar esses acessórios no

templo dedicado ao seu deus, Nabucodonosor os manteve a salvo e

impediu que terminassem em um mercado qualquer de antiguidades na

Babilônia e, por fim, no Museu Britânico. Ciro está em posição de

removê-los e confiá-los ao tesoureiro do templo para que sejam

entregues ao homem que irá liderar os judaítas no retorno a Jerusalém

e, assim, devolvidos novamente ao culto de Yahweh no templo.

Repetindo, Ciro fará isso por seus próprios motivos, como parte de sua

estratégia de encorajar os judaítas a permanecerem subservientes ao

império; mas, de novo, podemos ver a inspiração de Yahweh por trás de

sua ação. Os acessórios constituirão um dos marcos do fato de que o

assim chamado Segundo Templo poderá dar continuidade ao serviço

do Primeiro Templo. O povo de Deus em Judá repetirá o culto que os

seus ancestrais ofereciam; a história dessas pessoas se funde com a

história de Salomão, Davi e Moisés.

O homem a quem os elementos são confiados, Sesbazar, é citado

apenas em Esdras 1 e 5, e nada mais sabemos sobre ele, além do que é

relatado ali. Seu nome é babilônico, mas era muito comum aos judaítas
terem nomes babilônicos (Daniel e seus amigos são exemplos dessa

troca de nomes), e ele é identificado como um judaíta. Adiante, ele é

citado como governador de Judá, o que poderia implicar que a sua

responsabilidade envolvia não apenas garantir que os acessórios, de

fato, encontrassem o caminho de volta ao templo em vez de sumirem

misteriosamente no transporte até Jerusalém. Isso sugeria que ele tinha

algum compromisso com as autoridades persas para cuidar dos

interesses do império em Judá. Não obstante, ele logo desaparece de

cena, e Esdras 3 atribuirá o início da reconstrução do templo a

Zorobabel, que também, mais tarde, é descrito como governador. Dessa

forma, seja qual for a posição exata de Sesbazar, parece que, por um

motivo ou outro, o seu trabalho ficou restrito ao começo da restauração

da comunidade em Jerusalém.

O envolvimento direto de Deus, nesse episódio da história, é

expresso nos mesmos termos que foram utilizados no versículo

inaugural do livro. Do mesmo modo que despertou o espírito de Ciro,

Deus também despertou o espírito dos judaítas, tornando-os dispostos

a fazer a jornada de volta com o objetivo de reconstruir o templo. Já

observamos antes que não constitui surpresa o fato de Deus precisar

realizar esse despertamento. Os judaítas na Babilônia não eram como as

pessoas em campos de refugiados, desejosas de retornar à terra natal.

Com fidelidade, eles seguiram o encorajamento de Jeremias e

construíram para si casas e constituíram famílias. Portanto, é de esperar

que muitos não tenham nenhum anseio de deixar a Babilônia, mas o

fato de muitos estarem dispostos a sair, seguindo o encorajamento feito

pela incrível comissão de Ciro, os faz pensar: “Deus deve estar

envolvido no despertar de corações nessa direção.” Por outro lado, a

narrativa enfatiza como até mesmo o povo que não se dispôs a sair

apoiou financeiramente os que assim decidiram. A palavra para “oferta

voluntária” é o termo, às vezes, traduzido por “dádivas especiais”. Na

Torá, há certas ofertas cuja apresentação é obrigatória, por parte de

Israel, tais como os sacrifícios comunitários, realizados todos os dias, de


manhã e à tarde, e os sacrifícios feitos individualmente quanto à

purificação ou em cumprimento a um voto. Existem outras ofertas

feitas sem um motivo específico, além de expressar devoção a Deus, e as

referências em Esdras 1 a essas ofertas voluntárias pressupõem que a

reconstrução do templo irá necessitar de generosas ofertas voluntárias

como essas.

O Antigo Testamento fala, regularmente, sobre “subir” a Jerusalém

porque a cidade está situada a mil metros acima do nível do mar; assim,

de qualquer direção, é preciso subir para chegar lá. Os objetos do

templo, igualmente, foram “levados” para a cidade. Mesmo em nossos

dias, os judeus dizem que alguém precisa aliyah (fazer uma subida)

quando fala de realizar uma mudança para morar em Israel; o grupo

liderado por Sesbazar é o primeiro aliyah.

Ao que parece, não apenas judaítas apoiaram financeiramente os que

fizeram a jornada. Ciro, aparentemente, referiu-se apenas a uma

expectativa de que os judaítas decididos a permanecer na Babilônia

apoiariam os seus compatriotas de maneiras práticas. Nesse evento, esse

apoio veio dos vizinhos dos judaítas em geral. Embora a referência,

agora, a esses apoiadores como vizinhos talvez não signifique nada,

relembra a história do êxodo. A mudança da Babilônia para Judá é uma

repetição do movimento do êxodo, e, quando os israelitas deixaram o

Egito, Yahweh fez os egípcios agirem favoravelmente em relação a eles e

lhes darem objetos de prata e de ouro para levarem com eles, o que

facilitou a estada prolongada no deserto. Os vizinhos babilônicos dos

judaítas, a exemplo do próprio Ciro, estão, igualmente, fazendo a sua

contribuição para o culto a Yahweh.

A vida em Judá, durante o domínio persa, era, em geral, muito dura,

o que tentaria as pessoas a se perguntarem se Yahweh realmente estava

presente e ativo na comunidade. A história inicial da comunidade do

Segundo Templo enfatiza o envolvimento de Yahweh e indica que ele

está agindo, novamente, da mesma forma que agiu ao tirar Israel do

Egito e conduzi-lo à terra prometida, em primeiro lugar. Portanto, o


que Yahweh fez, ao levar o povo de volta a Jerusalém para reconstruir o

templo, não deve ser desvalorizado por seus descendentes.


ESDRAS 2:1-67
QUEM NÓS ÉRAMOS
1
Estas são as pessoas da província, que subiram dentre os cativos no exílio, aos quais

Nabucodonosor, o rei da Babilônia, exilou para a Babilônia e que retornaram para Jerusalém

2
e Judá, cada qual para a sua cidade, que vieram com Zorobabel, Jesua, Neemias, Seraías,

Reelaías, Mardoqueu, Bilsã, Mispar, Bigvai, Reum e Baaná. O número dos homens

3 4
pertencentes ao povo israelita: os descendentes de Parós, 2.172; os descendentes de

5 6
Sefatias, 372; os descendentes de Ara, 775; os descendentes de Paate-Moabe (por meio dos

7 8
descendentes de Jesua e Joabe), 2.812; os descendentes de Elão, 1.254; os descendentes de

9 10 11
Zatu, 945; os descendentes de Zacai, 760; os descendentes de Bani, 642; os

12 13
descendentes de Bebai, 623; os descendentes de Azgade, 1.222; os descendentes de

14 15 16
Adonicão, 666; os descendentes de Bigvai, 2.056; os descendentes de Adim, 454; os

17 18
descendentes de Ater (por meio de Ezequias), 98; os descendentes de Besai, 323; os

19 20
descendentes de Jora, 112; os descendentes de Hasum, 223; os descendentes de Gibar,

21 22 23
95; os descendentes de Belém, 123; o povo de Netofate, 56; o povo de Anatote, 128;

24 25
os descendentes de Azmavete, 42; os descendentes de Quiriate-Jearim (Quefira e

26 27 28
Beerote), 743; os descendentes de Ramá e Geba, 621; o povo de Micmás, 122; o povo

29 30 31
de Betel e Ai, 223; os descendentes de Nebo, 52; os descendentes de Magbis, 156; os

32 33
descendentes do outro Elão, 1.254; os descendentes de Harim, 320; os descendentes de

34 35
Lode, Hadide e Ono, 725; os descendentes de Jericó, 345; os descendentes de Senaá,

3.630.

36 37
Os sacerdotes: os descendentes de Jedaías (por meio da casa de Jesua), 973; os

38 39
descendentes de Imer, 1.052; os descendentes de Pasur, 1.247; os descendentes de

40
Harim, 1.017. Os levitas: os descendentes de Jesua e de Cadmiel (por meio dos

41 42
descendentes de Hodavias), 74. Os cantores: os descendentes de Asafe, 128. Os

descendentes dos porteiros: os descendentes de Salum, os descendentes de Ater, os

descendentes de Talmom, os descendentes de Acube, os descendentes de Hatita, os

43
descendentes de Sobai, ao todo 139. Os assistentes: os descendentes de Zia, os

44
descendentes de Hasufa, os descendentes de Tabaote, os descendentes de Queros, os

45
descendentes de Sia, os descendentes de Padom, os descendentes de Lebana, os

46
descendentes de Hagaba, os descendentes de Acube, os descendentes de Hagabe, os

47
descendentes de Sanlai, os descendentes de Hanã, os descendentes de Gidel, os

48
descendentes de Gaar, os descendentes de Reaías, os descendentes de Rezim, os

49
descendentes de Necoda, os descendentes de Gazão, os descendentes de Uzá, os

50
descendentes de Paseia, os descendentes de Besai, os descendentes de Asná, os

51
descendentes de Meunim, os descendentes de Nefusim, os descendentes de Baquebuque,

52
os descendentes de Hacufa, os descendentes de Harur, os descendentes de Baslute, os

53
descendentes de Meída, os descendentes de Harsa, os descendentes de Barcos, os
54
descendentes de Sísera, os descendentes de Tamá, os descendentes de Nesias, os

55
descendentes de Hatifa. Os descendentes dos servos de Salomão: os descendentes de

56
Sotai, os descendentes de Soferete, os descendentes de Peruda, os descendentes de Jaala,

57
os descendentes de Darcom, os descendentes de Gidel, os descendentes de Sefatias, os

descendentes de Hatil, os descendentes de Poquerete-Hazebaim, os descendentes de Ami.

58
Todos os assistentes e os descendentes dos servos de Salomão, 392.

59
Estas são as pessoas que subiram de Tel-Melá, Tel-Harsa, Querube, Adã e Imer, mas que

60
não foram capazes de mostrar a sua casa ancestral e a sua origem, se eles eram de Israel: os

61
descendentes de Delaías, os descendentes de Tobias, os descendentes de Necoba, 652. Dos

descendentes dos sacerdotes, os descendentes de Habaías, os descendentes de Hacoz, os

descendentes de Barzilai (que tinha desposado uma mulher dentre as filhas de Barzilai, o

62
gileadita, e era chamado pelo seu nome) — eles procuraram por seus registros entre as

pessoas inscritas, mas não puderam ser encontrados e foram desqualificados do sacerdócio.

63
Assim, o administrador lhes contou que eles não poderiam comer das coisas mais sagradas

até que surgisse um sacerdote para o Urim e o Tumim.

64 65
Toda a assembleia reunida foi de 42.360, além de seus servos e servas; estes somaram

66 67
7.337, e eles tinham 200 cantores e cantoras. Seus cavalos, 736; suas mulas, 245; seus

camelos, 435; seus jumentos 6.720.

Quando decidimos nos casar em dezembro passado, ingenuamente

presumi que isso implicava uma lua de mel em algum cenário tropical

como Bali, mas acabei passando a lua de mel na Escócia, numa época

em que as temperaturas raramente ficam acima de zero. Minha noiva

sabia que seus ancestrais haviam deixado a Escócia e migrado para a

América no século XVII e desejava conhecer a área da qual eles saíram.

Não se engane, vivenciamos uma grande experiência, e, para isso, muito

contribuiu ver a reação dela a essa oportunidade de se conectar com o

seu passado. Isso capacitou-me a ter uma compreensão maior do que

sempre me pareceu uma preocupação típica dos norte-americanos em

traçar os seus ancestrais e se conectar com os seus locais de origem. Eu

reconhecia não ter o mesmo ímpeto em investir esforços na pesquisa do

meu histórico familiar e percebi que isso se devia por considerá-lo algo

assegurado; eu conhecia as minhas origens, pois nasci em uma cidade na

qual a minha família vivera por muitas gerações.


Os judaítas para os quais Esdras e Neemias são escritos estão em

uma posição paralela tanto à minha quanto à de minha esposa. Paralela

à minha, no sentido de que eles estão vivendo no país onde as suas

famílias têm vivido grande parte de um milênio. Todavia, também estão

em uma posição similar à de minha esposa, na medida em que, mais

recentemente, suas famílias foram expulsas do país de origem (a

exemplo dos ancestrais de minha esposa, expulsos da Escócia pela

rebelião contra os invasores ingleses) e, subsequentemente, foram

obrigados a disputar o seu lugar no país com outros povos.

A esse respeito, registros semelhantes aos encontrados em Esdras 2

cumprem inúmeras funções. Primeira, eles preservam uma lista de

pessoas que saíram da Babilônia e foram para Judá a partir de 537 a.C.

A lista reaparecerá, apresentada de uma forma diferente, em Neemias 7,

e a sua reaparição ali é uma indicação de que constitui mais do que um

simples registro de pessoas que voltaram a Jerusalém e Judá no próprio

ano 537 a.C. Já observamos que esse movimento, iniciado então,

prosseguiu no decorrer de algumas décadas, até mesmo séculos. Na

verdade, nomes presentes nessa lista, como Neemias, Seraías e

Mardoqueu, são citados em outras passagens de Esdras, Neemias e

Ester, embora possa ser apenas uma coincidência, já que os nomes

podem não ser referentes à mesma pessoa. A lista é composta e

complexa; por exemplo, ela deixa de listar as pessoas por suas famílias

de origem e passa a discriminá-las por cidades, e o total, no versículo

64, pode não estar relacionado aos números apresentados antes.

De outras passagens do Antigo Testamento, sabemos que havia uma

compreensível tensão entre as pessoas que foram levadas para o exílio e

aquelas que foram capazes de permanecer em Canaã. Qual dos grupos

realmente representa o futuro da comunidade? Expressando em termos

de uma imagem que aparece em Jeremias 24, os exilados eram os figos

ruins e intragáveis, e os que foram poupados da experiência do exílio

eram os figos bons? Pode-se ver como as pessoas podiam enxergar

aquela situação dessa forma. No entanto, Jeremias vira essa imagem de


cabeça para baixo e vê os exilados como os figos bons, e as pessoas

deixadas para trás, em 597 a.C., como os figos ruins. Quando as pessoas

voltaram do exílio, deveriam elas ser vistas como genuinamente

judaítas? Essa lista estabelece quem possui uma reivindicação de

pertencer à comunidade, no sentido de descenderem de uma família

judaíta adequada e/ou por seu histórico geográfico. Deus escolheu um

povo que era caracterizado por ser uma família e por sua associação com

determinado território, além de ser um povo que conhecia Yahweh. A

associação da comunidade com uma família e com um território

evidencia que a fidelidade de Deus ao propósito e à promessa originais

ainda estava sendo cumprida. O exílio não significou o fracasso da

promessa divina, pois a capacidade de os exilados mostrarem que

pertencem a essa família e a esse território comprova que eles possuem

uma participação nesse propósito e são uma personificação da fidelidade

de Deus.

Outra preocupação importante da comunidade seria garantir que a

supervisão do templo estivesse em mãos de pessoas designadas por

Deus, e, quanto a isso, é significativo que a lista inclua sacerdotes e

outros levitas. Os músicos, porteiros, assistentes e descendentes dos

serviçais de Salomão, todos eles, são considerados levitas, em um

sentido mais amplo, pois todos teriam um papel de apoio em relação ao

templo. Talvez o próprio fato de eles terem sido preservados durante o

exílio era uma evidência de que a mão de Deus estava em ação a fim de

afiançar que eles estivessem disponíveis para o necessário ministério

após o exílio. Os assistentes e os descendentes dos servos de Salomão

seriam pessoas não israelitas por nascimento e, portanto, eles prestam

um testemunho do outro lado da moeda, já que foram convidados a

integrar a comunidade, apesar de sua etnia. A comunidade não era

fechada em si mesma, possibilitando que pessoas fossem adotadas no

seio da família de Israel.

As referências aos sacerdotes, levitas, músicos, porteiros e

assistentes irão se repetir em Esdras e Neemias. Elas nos lembram como


o templo era um local agitado, ativo e animado, diferente de uma igreja,

vazia e pouco utilizada, exceto por uma hora ou duas por semana. Todos

os dias, havia os sacrifícios regulares; durante o dia, as pessoas

ofereciam os seus próprios sacrifícios e buscavam oração e conselho. Em

adição, havia profetas e outros professores instruindo as pessoas. O

templo era uma comunidade viva.


ESDRAS 2:68—3:5
ADORAÇÃO, ESCRITURA, EVANGELHO
68
Alguns dos cabeças ancestrais, quando chegaram à casa de Yahweh, em Jerusalém, fizeram

69
uma oferta voluntária à casa de Yahweh, para colocá-la em seu lugar. De acordo com os

seus recursos, eles deram para a tesouraria da obra sessenta e uma mil dracmas de ouro,

70
cinco mil minas de prata e cem túnicas sacerdotais. Os sacerdotes, os levitas, alguns dentre

o povo, os cantores, os porteiros e os assistentes estabeleceram-se em suas cidades, e todo o

Israel em suas cidades.

CAPÍTULO 3

1
Quando chegou o sétimo mês, com os israelitas em suas cidades, o povo se reuniu como

2
uma só pessoa em Jerusalém. Jesua, o filho de Jozadaque, e seus irmãos sacerdotes, e

Zorobabel, o filho de Sealtiel, e seus irmãos, começaram a construir o altar do Deus de Israel,

para apresentar ofertas queimadas sobre ele, como está escrito no ensino de Moisés, o

3
homem de Deus. Eles edificaram o altar em seu lugar, porque tinham medo dos povos dos

países vizinhos, e ofereceram ofertas queimadas sobre ele a Yahweh, as ofertas queimadas da

4
manhã e da tarde. Realizaram o festival de Sucote, como está escrito, e a oferta queimada,

dia após dia, conforme o número [adequado], a quantidade para cada dia, de acordo com a

5
regra, e, depois, a oferta queimada regular e [aquelas] para as luas novas e para todas as

ocasiões estabelecidas por Yahweh que foram feitas sagradas, e para qualquer um que fizesse

uma oferta voluntária a Yahweh.

Hoje um grupo de pastores me perguntou por que considero o Antigo

Testamento importante, e lhes dei uma de minhas respostas-padrão.

Tenho a impressão de que, no sul da Califórnia, muitas igrejas, que em

teoria depositam considerável ênfase na Escritura e no evangelho,

tenham, de fato, perdido o contato com ambos, e assimilado a cultura

do mundo que as rodeia. Em sua preocupação de alcançar os de fora,

tais igrejas absorveram a mensagem externa visando chamar a atenção

dessas pessoas, e, pela busca de tornar a adoração atraente a elas,

abriram mão da leitura bíblica durante os cultos por isso ser,

obviamente, enfadonho. Penso que um dos motivos a possibilitar esse

desenvolvimento é que, cinquenta anos atrás, a cultura norte-americana


era muito mais próxima da estrutura sugerida pela Escritura do que

atualmente, mas essa mudança foi muito gradual. Somos como a rã,

colocada em uma panela de água fria, que então é lenta e gradualmente

aquecida, de maneira que a rã jamais percebe que será fervida até a

morte.

Os judaítas que fizeram a mudança para Jerusalém, saindo da

Babilônia, não caíram nesse erro. Talvez estivessem submetidos a uma

tentação menor pelo fato de a cultura babilônica ser mais claramente

contrária ao evangelho expresso em suas Escrituras (muitos daqueles

judaítas que não fizeram a mudança estavam contentes em assimilar a

vida no exílio). É possível ver indicações disso em sua atitude quanto

ao seu culto, às suas Escrituras e ao seu evangelho.

Primeiro, eles sabiam que a adoração era um meio pelo qual nos

entregamos a Deus. O relato menciona dois tipos de ofertas: as

queimadas e as voluntárias. O que elas têm em comum é que o ofertante

nada recebe ao oferecê-las. Há outros sacrifícios nos quais os ofertantes

compartilham da oferta, o que nos lembra que não há nada errado com a

adoração ser algo do qual desfrutamos e nos beneficiamos. Uma oferta

queimada, no entanto, é o que seu nome implica: com essa forma regular

de sacrifício, todo o animal sobe em fumaça a Deus. Israel apresenta

essas ofertas ao amanhecer e ao entardecer, todos os dias. O ofertante

abre mão do animal em sua totalidade. Igualmente, a oferta voluntária

é, simplesmente, algo que você entrega a Deus, um presente único.

Nessa ocasião, então, a oferta voluntária está relacionada à necessidade

de prover os recursos para a reconstrução do templo. Para nós, hoje, é

fácil pensar que a adoração tem como propósito nos beneficiar e que o

critério de avaliação é se nos sentimos bem ou não ao sairmos da igreja.

Em Israel, a adoração era oferecida em prol de Deus, não em razão dos

adoradores.

Segundo, as formas de adoração eram determinadas pelo que estava

escrito no ensino de Moisés. Desconhecemos que forma do ensino

mosaico, a Torá, teria sido seguida nesse ponto da história de Israel. No


século seguinte, Esdras virá da Babilônia trazendo com ele “a Lei de

Moisés” (veja Esdras 7, ARA). Pelo que sabemos, o conteúdo desse

ensino havia sido desenvolvido no decorrer dos séculos, desde os dias

de Moisés até os dias de Esdras (e talvez mais tarde). À medida que

surgiam novas situações, o Espírito Santo guiava pessoas, como

profetas, sacerdotes e teólogos, a consultar o que Moisés diria caso ele

estivesse aqui e agora. Eles indicariam as implicações da fé do êxodo

para os contextos em mutação nos quais as pessoas necessitavam de

instrução. Seja qual for a forma do ensino considerada na época de

Zorobabel e Jesua, eles sabiam que era preciso encorajar o povo a adorar

não apenas à luz de como eles se sentiam, mas à luz dessa orientação.

Terceiro, essa necessidade é sublinhada pela forma em que a sua

adoração os recorda de sua própria história, da história sobre o que

Deus havia feito por eles. O maior festival anual de adoração em Israel é

o Sucote. O termo é referente aos abrigos ou tendas, termo que é

tradicionalmente traduzido por “tabernáculos” ou “cabanas”. A Torá

relata como os israelitas tiveram de viver em tais abrigos ou tendas ao

deixarem o Egito. A encenação daquela experiência faz os israelitas

perpetuarem como Deus os resgatou do Egito; os faz lembrar de sua

própria história.

Esses abrigos possuem outro significado. O Sucote ocorre no

outono, em setembro ou outubro, e é o grande festival da colheita de

Israel. As pessoas vivem em cabanas para que possam manter uma

vigilância sobre as suas colheitas durante a ceifa, para garantir que não

sejam roubadas pelos malfeitores das vilas próximas, e/ou para que,

assim, elas não precisem gastar horas de viagem até os seus campos,

todos os dias. Os abrigos, portanto, parecem ter começado como um

dispositivo prático para a vida diária; o dispositivo prático, então, foi

explorado como lembrete e vinculado à jornada no deserto, após a saída

do Egito. Israel mostra como crer no evangelho não significa abandonar

a sua cultura; mas significa atrelar a cultura ao evangelho e não fundir o

evangelho com a cultura. Algo similar seria verdadeiro quanto às outras


“ocasiões estabelecidas por Yahweh que foram feitas sagradas”, ou seja,

a Páscoa ou Festival dos Pães Asmos, na primavera, e o Pentecoste, em

maio ou junho. Todas essas observâncias estão relacionadas ao ciclo

agrícola; todas celebram aspectos da história do evangelho de Israel.

Zorobabel e Jesua personificam a liderança conjunta da comunidade

do Segundo Templo. Pode-se dizer que eles representam tanto uma

distinção quanto uma relação entre a igreja e o Estado, mas que não são

semelhantes à distinção ou relacionamento entre igreja e Estado na

Europa ou nos Estados Unidos. Zorobabel, como filho de Sealtiel, é o

neto do rei Joaquim, o rei exilado para a Babilônia em 597 a.C., e

portanto membro da linhagem de Davi. Caso houvesse, agora, um rei

em Israel, esse direito seria dele. Jesua, igualmente, pertence à linhagem

de Arão, de maneira que ele pode atuar conforme o que, mais tarde,

seria denominado o sumo sacerdote. Pode parecer que ele estivesse

contaminado pelo exílio, mas Deus declara a intenção de confirmar a

sua posição sacerdotal (veja Zacarias 3). Como líder davídico,

Zorobabel está mais envolvido com as questões de Estado, enquanto

Jesua, por sua linhagem sacerdotal, ligada a Arão, envolve-se mais com

as questões religiosas, mas isso não implica que aqueles sejam domínios

separados. Em Israel, as questões de Estado são aquelas nas quais Deus

está envolvido e que devem ser conduzidas de acordo com o ensino de

Moisés. Em contrapartida, o restabelecimento da adoração é um

assunto com o qual o governador davídico aqui está envolvido, a

exemplo de Davi, que, certa feita, envolveu-se na preparação para a

construção do templo.

Os invasores babilônicos haviam incendiado o templo em 587 a.C.,

mas eles não o demoliram, como fizeram com as muralhas da cidade.

Ainda seria possível realizar algumas formas de culto ali, mesmo

durante o exílio, tais como a oração pelo perdão e a misericórdia de

Deus, que está expressa no livro de Lamentações. Portanto, embora o

templo necessitasse de uma restauração substancial, a comunidade pôde

construir um novo altar nele antes de iniciar a sua reconstrução. Essa


ação possibilitou restaurar a rotina regular de adoração, ao amanhecer e

ao entardecer, assim como a celebração do Sucote. As ofertas queimadas

que formavam o coração dessa rotina regular personificavam a entrega

da comunidade a Deus, reconhecendo Yahweh como Deus, buscando a

bênção divina para um novo dia, e a proteção divina para a noite. As

ofertas realizadas no início de cada mês teriam um significado similar

em relação ao novo mês em questão.

A história é mais explícita quanto a outro tipo de proteção da qual a

comunidade sente falta no contexto de seu “medo dos povos dos países

vizinhos”, um temor que poderia ter inibido a restauração da adoração

do templo em vez de encorajá-los a isso. De inúmeras formas, a chegada

dos judaítas, vindos da Babilônia, perturbou o status quo na região.

Considerando que o número real de pessoas levadas ao exílio babilônico

foi relativamente pequeno, alguém estaria ocupando e cultivando a

terra ao redor de Jerusalém; alguém estaria fazendo aquelas orações no

templo. Politicamente, os babilônios e, então, os persas, possuíam uma

estrutura governamental para a região, na qual Judá era,

aparentemente, governado de Samaria, no antigo reino do Norte. Judá

também era circundado por entidades como Amom e Moabe, cujo olho

parecia crescer sobre Jerusalém. A comunidade, portanto, não estava

sendo paranoica ao temer por seu futuro político. Essa necessidade da

proteção de Deus forneceu um motivo prático para o estabelecimento

de uma estrutura adequada de adoração e os meios de se apegarem a

Deus.
ESDRAS 3:6-13
GRITOS DE ALEGRIA E O SOM DO PRANTO
6
A partir do primeiro dia do sétimo mês, eles começaram a oferecer ofertas queimadas a

7
Yahweh, embora o palácio de Yahweh ainda não tivesse sido iniciado. Eles deram dinheiro

aos pedreiros e artesãos, e comida, bebida e azeite para os sidônios e os de Tiro, para

trazerem as toras de cedro do Líbano, pelo mar, a Jope, de acordo com a autorização dada a

8
eles por Ciro, o rei da Pérsia. No segundo ano de sua chegada à casa de Deus, em Jerusalém,

no segundo mês, Zorobabel, filho de Sealtiel, e Jesua, filho de Jozadaque, e o restante de suas

famílias (os sacerdotes, os levitas e todo o povo que tinha vindo do cativeiro a Jerusalém)

começaram e colocaram no lugar os levitas com idade de vinte anos para cima para

9
supervisionar o trabalho na casa de Yahweh. Então, Jesua, seus filhos e seus irmãos, e

Cadmiel e seus filhos (descendentes de Judá) aceitaram a designação conjunta para

supervisionar o povo que fazia o trabalho na casa de Deus, [com] os filhos de Henadade, seus

10
filhos e seus irmãos, os levitas. Quando os construtores começaram o palácio de Yahweh, os

sacerdotes em suas vestimentas com trombetas e os levitas, os descendentes de Asafe, com

címbalos foram colocados no lugar para louvar a Yahweh, de acordo com as direções de Davi,

11
rei de Israel. Eles cantaram, de modo responsivo, em louvor e ações de graças a Yahweh:

“Porque ele é bom, porque o seu compromisso com Israel dura para sempre”, e todo o povo

elevou um grande grito em louvor a Yahweh, porque a casa de Yahweh havia sido iniciada.

12
Muitos dos sacerdotes, levitas, cabeças ancestrais e os homens velhos, que tinham visto o

primeiro templo, pranteavam em voz alta ao verem o início dessa casa, enquanto muitos

13
estavam elevando a voz em um grito de celebração. O povo não conseguia distinguir o

grito celebratório do som do pranto, porque as pessoas estavam gritando bem alto. O som

era audível a grande distância.

Para minha grande alegria, um amigo meu, recentemente, ficou noivo

após permanecer sozinho durante dezenove anos. Ele está radiante de

felicidade; jamais o vi tão alegre. Não obstante, algo estranho ocorre

sempre que ele fala sobre o assunto; isso também o faz chorar, embora

ele tenha dificuldades em explicar por que isso acontece. É possível que

esteja relacionado com ser capaz de crer que algo assim grandioso tenha

ocorrido; talvez ele tema que seja bom demais para ser verdade e espere

acordar de manhã apenas para descobrir que tudo não passou de um

sonho. Ou, ainda, descobrir que a sua noiva chegou à conclusão de que
tudo é um grande equívoco. Pessoalmente, suspeito de outro fator: ele

jamais encarou a dor associada com a sua solidão e, de um modo

estranho, a perspectiva de a sua solidão terminar lhe permitiu ver

quanto ela era sofrida.

O início da restauração do templo gerou uma reação mista similar,

de celebração e de pranto, na comunidade judaíta. Os pranteadores

eram pessoas que haviam visto o primeiro templo em toda a sua glória,

o que significa que eles deveriam ter mais de sessenta anos. Não somos

informados do motivo de eles estarem chorando, enquanto outros

celebravam. Talvez tenham chorado porque somente eles poderiam

recordar a terrível destruição do templo (e, no íntimo, indagado se isso

poderia ocorrer de novo). Embora possam ter se sentido deprimidos por

não esperarem que o templo reconstruído seria tão glorioso como

outrora, tudo indica que a comunidade estava exultante com o seu

templo restaurado. Pode ser que tenham ficado impactados pela

magnitude da tarefa que impuseram a si mesmos. Meu palpite é de que

suas lágrimas eram uma expressão paradoxal da alegria que sentiam

pelo início do trabalho de restauração e, ao mesmo tempo, expressão de

descrença jubilosa por estarem vivendo aquele momento. Tanto o grito

quanto o choro, portanto, tinham o mesmo significado.

A base do louvor comunitário é que Yahweh é bom e que o seu

compromisso dura para sempre. As pessoas podem ter se perguntado se

Yahweh, alguma vez antes, já havia abandonado um compromisso feito a

eles. Na verdade, todos sabiam que não poderiam reclamar se isso

realmente tivesse ocorrido, pois haviam perdido qualquer direito de

esperar que Yahweh mantivesse o seu compromisso. No entanto, Yahweh

é cativo da palavra “compromisso”. O termo hebraico denota uma classe

de fidelidade que permanece mesmo se a outra parte não é merecedora

de recebê-la. A despeito da infidelidade do povo que culminou no exílio,

o compromisso de Yahweh continuava sendo a esperança deles. O fato

de, após meio século, ainda haver a possibilidade de restaurar o templo

era um sinal de que a esperança permanecia viva. Paradoxalmente, o


louvor deles era por algo que eles mesmos estavam fazendo; pelo fato de

eles iniciarem a restauração do templo é que estão louvando a bondade

e o compromisso de Deus. Os judaítas sabem que não seriam capazes de

fazer isso se não fosse a fidelidade de Deus. Nesse contexto, louvor e

ação de graças são plenamente apropriados. O louvor, estritamente,

sugere o reconhecimento das grandes e permanentes verdades sobre

Deus, tais como a sua bondade e o seu compromisso. A ação de graças

relaciona-se a algo novo realizado por Deus na vida de um indivíduo ou

de uma comunidade, e essa comunidade, certamente, tem motivos para

agradecer e testificar.

A palavra “templo” sugere um edifício com propósitos

exclusivamente religiosos. O Antigo Testamento possui termos com

essa conotação, como um cujo significado é “santuário”, mas esse não é

o termo regularmente usado com referência ao templo. Em vez disso, o

Antigo Testamento apresenta palavras mais cotidianas que denotam

uma casa ou palácio, ambos presentes na passagem em questão. O

templo é a casa ou o palácio de Yahweh. A primeira palavra (casa)

vincula o termo à habitação na qual pessoas comuns vivem; a segunda

(palácio) lembra os leitores de que é uma moradia adequada a um rei. O

templo não é um santuário, um lugar que celebra algo ocorrido no

passado ou uma pessoa que já morreu, mas um lugar onde alguém

habita. Claro que os israelitas sabem que Deus não vive, realmente, no

templo; Salmos explicita a consciência deles de que Deus realmente

vive nos céus e que o verdadeiro palácio de Deus está localizado lá.

(Claro que eles também sabem que essa afirmação é metafórica; 1Reis 8

apresenta a oração de Salomão na dedicação original do templo e

evidencia a consciência de que Deus não poderia ser contido dentro do

universo, quanto mais numa edificação terrena. Os céus dentro do

cosmos representam outro domínio no qual Deus vive, existente mesmo

antes de o cosmos existir.) Contudo, o templo físico é um equivalente,

uma personificação ou um avatar, na terra, do palácio celestial de Deus.

Isso significa que há um lugar na terra no qual pode-se estar na presença


de Deus, em um sentido especial (os israelitas também sabem que há

outro sentido no qual Deus é onipresente, de modo que podemos orar a

Deus e conhecer a proteção divina em qualquer lugar). Quer a pessoa

sentisse quer não que Deus estava no templo, ela sabia que Deus estava

lá, porque ele prometeu; essas promessas foram expressas a Davi e a

Salomão (2Samuel 7; 1Reis 8). Os israelitas podiam apresentar suas

ofertas ali com a certeza de serem aceitas, podiam levar as suas orações

com a convicção de que seriam ouvidas.

Embora a história fale no início da obra no templo, observamos que

isso não significa começar a construção do zero. A adoração regular já

estava sendo oferecida no que restara do antigo templo de Salomão. O

principal material necessário à restauração era madeira, que seria usada

para substituir o telhado e revestir internamente o edifício, que havia

sido queimado em 587 a.C. (embora o incêndio também tivesse causado

a ruína ou derretimento de parte de suas paredes constituídas de

rochas). A exemplo do que ocorreu nos dias de Salomão, a madeira é

transportada do Líbano por meio de um árduo processo de toras

flutuantes, pelo Mediterrâneo, e então carregada até Jerusalém. O

registro imperial, sobre o qual falará o capítulo 6, implica que uma

subvenção de Ciro para cobrir os custos desse dispendioso projeto

corroborou a sua mera permissão para realizar o trabalho.

O capítulo já esclareceu que os arranjos para a adoração seguiram o

ensino de Moisés. Agora, ele acrescenta que os judaítas também

seguiram as instruções de Davi. Há dois motivos para essa segunda

ênfase. A exemplo da referência ao ensino de Moisés, ela estabelece a

continuidade da adoração do Primeiro Templo no Segundo Templo. As

pessoas sabem que Deus está envolvido com Israel no longo prazo; toda

a história israelita é parte da história de Deus. Ao garantirem a

operação à luz das instruções de Davi, além daquelas constantes no

ensino de Moisés, os israelitas estão desempenhando o seu papel para

assegurar a permanência na história divina. O outro motivo é que

alguns povos vizinhos também reivindicam ser parte dessa história, mas
não está claro se isso é verdade. Em termos específicos, os habitantes da

província de Samaria são, ou reivindicam ser, os descendentes do antigo

reino de Efraim, mas esse reino deu as costas ao rei Davi. Se retornarem

a Davi, eles podem fazer parte da história; caso contrário, estão por

conta própria. Judá precisa assegurar o cumprimento do critério de

fidelidade às instruções de Davi, assim como ao ensino de Moisés.


ESDRAS 4:1-6
DESENCORAJAMENTO
1
Os adversários de Judá e de Benjamim ouviram que os exilados estavam construindo um

2
palácio para Yahweh, o Deus de Israel. Eles abordaram Zorobabel e os cabeças ancestrais e

lhes disseram: “Construiremos com vocês porque buscamos o seu Deus como vocês fazem e

temos sacrificado a ele desde os dias de Esar-Hadom, o rei da Assíria, que nos trouxe aqui.”

3
Zorobabel, Jesua e o restante dos cabeças ancestrais de Israel lhes disseram: “Não é para

vocês e nós construirmos uma casa para o nosso Deus, porque apenas nós iremos construí-la

4
para Yahweh, o Deus de Israel, como o rei Ciro, o rei da Pérsia, nos ordenou.” Então, o povo

do país passou a enfraquecer os esforços do povo de Judá e fazê-los temer a reconstrução.

5
Eles subornaram tomadores de decisão a fim de frustrar a decisão [dos judaítas] durante

6
todos os dias de Ciro, rei da Pérsia, e até o reino de Dario, rei da Pérsia. E, no reinado de

Xerxes, no início de seu reinado, eles escreveram uma acusação contra os habitantes de Judá

e de Jerusalém.

Durante o Natal, consegui visitar o seminário no qual estudei para o

ministério. Ele foi fundado nos anos 1930, como resultado de uma

divisão de outro seminário da Igreja da Inglaterra, distante cerca de um

quilômetro e meio; o motivo foi em relação a um corpo docente dever

ou não ser obrigado a afirmar uma base particular de fé. Não havia

grande discordância entre as duas instituições sobre a substância da fé

cristã, apenas quanto a quais pessoas tinham de subscrever. Os edifícios

também ficavam a pouca distância de um seminário batista e de outro

metodista. Em meus anos de estudante, partilhamos algumas palestras

com o outro seminário da Igreja da Inglaterra, embora não tivéssemos

nada a ver com as demais instituições. Mais recentemente, as duas

instituições da Igreja da Inglaterra se fundiram, e a entidade resultante

passou a compartilhar cursos com os seminários batista e metodista.

Quão cuidadosas as instituições e denominações precisam ser ao

cooperarem umas com as outras? Quando elas devem se manter

afastadas e quando podem trabalhar juntas?


O povo que abordou a liderança judaíta visando a se unir a eles na

construção do templo reivindica ser um com eles na fé, mas a sua

origem os torna suspeitos. Já observamos que a província de Samaria

está situada na região do antigo reino de Efraim, que havia se separado

de Jerusalém e da linhagem davídica após Roboão, filho de Salomão,

não ter dado o devido tratamento ao relacionamento entre eles. A

divisão, desse modo, foi plenamente compreensível. Igualmente,

constituiu um cumprimento da intenção divina de trazer alguma

punição à linhagem de Davi pela política religiosa de Salomão; como

um subproduto do casamento com mulheres de outros países visando

encorajar relações diplomáticas, Salomão introduziu o culto a outras

divindades em Jerusalém. Mas, então, como resultado da divisão,

Efraim desenvolveu o seu próprio sistema religioso, que também

continha elementos estranhos à fé israelita apropriada. Segundo Reis 17

relata como Efraim, a seu tempo, pagou por sua inovação quando

Yahweh permitiu que o reino fosse subjugado pela superpotência da

vez, a Assíria.

Os assírios, então, transportaram muitos dos efraimitas e os

substituíram por pessoas oriundas de outras regiões de seu império. Os

samaritanos, aqui, referem-se a esse translado como ocorrido no tempo

de um imperador assírio chamado Esar-Hadom, que vivera algumas

décadas após os eventos relatados em 2Reis 17. Esse capítulo confirma a

reivindicação de que os dominadores assírios estabeleceram arranjos

para que os imigrantes aprendessem o culto a Yahweh, mas a narrativa

igualmente menciona que eles continuaram a adorar os deuses que

trouxeram de suas terras de origem, e esse é um padrão plausível. Pode-

se comparar o padrão comum pelo qual as pessoas que tinham se

convertido à fé em Cristo também prosseguiram na prática da sua fé

tradicional.

Tais considerações dariam aos judaítas uma base para hesitar em

aceitar prontamente a oferta de auxílio por parte dos samaritanos;

embora uma resposta menos suspeita seria ver a abordagem deles como
um cumprimento do anseio de Deus pelo retorno de Efraim ao

relacionamento com Jerusalém e com a linhagem de Davi. Talvez

fatores políticos e econômicos igualmente desempenhassem um papel

relevante, tanto para os judaítas quando para os samaritanos. Os

judaítas desejariam ser independentes e, por isso, evitariam tomar ações

que levassem a uma posterior subordinação aos samaritanos; estes, por

seu turno, estariam interessados em encorajar esse desenvolvimento. Os

judaítas também poderiam estar interessados em olhar para trás e ver a

reconstrução como obra exclusiva deles e que foram obedientes à

declaração de Ciro. Sempre é útil poder reivindicar obediência a uma

autoridade superior.

Os desenvolvimentos ao longo de alguns séculos posteriores

lançaram uma irônica luz sobre esse intercâmbio. Não muito tempo

após esses eventos, os samaritanos edificaram um templo próprio no

monte Gerizim, com vistas para Siquém; eles argumentavam que esse

templo, não o de Jerusalém, era o lugar designado por Deus que fora

mencionado em Deuteronômio. O que conhecemos da religião dos

samaritanos sugere que ela era, pelo menos, mais conservadora, em vez

de mais sincretista, do que a dos judeus; da mesma forma que os

saduceus, os samaritanos aceitavam somente a Torá, em detrimento dos

demais livros do Antigo Testamento. No decorrer dos séculos, a tensão

entre judeus e samaritanos recrudesceu, conforme indicado pelos textos

do Novo Testamento, embora, na época, os judeus é que eram a força

dominante na região (sob Roma, posteriormente).

Nesse ínterim, assumir uma linha dura tornou-se um movimento

oneroso aos judaítas. Foi provavelmente por causa dessa rejeição que os

samaritanos se tornaram adversários e operaram contra as tentativas

dos judaítas de edificarem a comunidade deles, não apenas tentando

obter ordens imperiais que os favorecessem, ao longo dos cinquenta

anos seguintes, envolvendo os reinados de Ciro (559-529 a.C.),

Cambises (529-522 a.C), Esmérdis (522 a.C.), Dario, o Grande (521-

486 a.C.), e Xerxes ou Assuero (485-465 a.C.). Todavia, a referência à


atividade “do povo do país” poderia, naturalmente, indicar não apenas

os samaritanos, mas outras pessoas vivendo em Judá que não foram

levadas para o exílio. Já fomos informados de que os construtores do

templo tinham medo deles.

Seja como for, parece que a obra de Deus, em geral, enfrenta

opositores. Às vezes, isso ocorre por nossa falha; outras vezes, não.

Certas pessoas somente querem se opor a algo porque lhes faz bem; é

como se houvesse algo intencionalmente perverso em seus desejos. A

narrativa adverte os seus leitores de não se deixarem surpreender

quando isso ocorrer, nem se sentirem desencorajados porque (como a

continuação da história irá mostrar) a oposição pode não ter a última

palavra.
ESDRAS 4:7-23
OS GOVERNANTES NÃO SÃO UMA AMEAÇA ÀS PESSOAS QUE

AGEM CORRETAMENTE
7
Então, nos dias de Artaxerxes, Bislão, Mitredate, Tabeel e o restante de seus associados

escreveram a Artaxerxes, rei da Pérsia. A carta foi escrita em aramaico e traduzida.

8
Aramaico: Reum, o administrador, e Sinsai, o secretário, escreveram uma carta sobre

9
Jerusalém ao rei Artaxerxes, como segue: “Reum, o administrador, e Sinsai, o secretário, e o

restante de seus associados, as autoridades e os oficiais de Tarpel, da Pérsia, de Ereque, da

10
Babilônia, de Susã (isto é, os elamitas), e o restante dos povos que o grande e glorioso

Assurbanípal exilou e estabeleceu na cidade de Samaria, e o restante de além-rio (assim,

11
agora, esta é uma cópia da carta que eles enviaram), ao rei Artaxerxes. Seus servos,

12
homens de além-rio: então, agora, seja conhecido ao rei que os judaítas que subiram até

nós, da tua parte, chegaram a Jerusalém. Eles estão reconstruindo a cidade rebelde e

13
perversa. Eles completaram os muros e repararam as fundações. Agora, seja conhecido ao

rei que, se essa cidade for reconstruída e seus muros completados, eles não mais pagarão

14
tributos, taxas ou pedágios, de modo que os interesses do rei sofrerão prejuízo. Agora, já

que compartilhamos o sal do palácio e não nos parece certo ver a desonra do rei, portanto,

15
enviamos e tornamos isso conhecido ao rei para que pesquise nos registros de eventos de

seus predecessores e saiba que essa cidade é uma cidade rebelde, prejudicial aos reis e às

províncias. As pessoas têm feito motins nela desde antigamente. Por causa disso, a cidade foi

16
destruída. Tornamos conhecido ao rei que, se essa cidade for reconstruída e seus muros

forem completados, como resultado disso não lhe sobrará nada além-rio.”

17
O rei enviou a palavra: “A Reum, o administrador, a Sinsai, o secretário, e ao restante de

seus associados que vivem em Samaria, e ao restante de além-rio, saudações. Então, agora,

18 19
a carta que vocês me enviaram foi explicada e lida diante de mim. Uma ordem foi dada

por mim, e eles pesquisaram e descobriram que essa cidade do passado tem se levantado

20
contra reis. Rebelião e motim foram feitos nela. Houve poderosos reis sobre Jerusalém, e

eles exerceram autoridade sobre todo o além-rio. Tributos, taxas e pedágios foram pagos a

21
eles. Agora, faça uma ordem para parar esses homens. Aquela cidade não será reconstruída

22
até a ordem ser dada por mim. Tenham cuidado para não agirem de forma negligente nesse

23
assunto. Por que o dano deve crescer e prejudicar os reis?” Quando a cópia da carta do rei

Artaxerxes foi lida diante de Reum, Sinsai, o secretário, e seus associados, eles foram com

pressa a Jerusalém, aos judaítas, e os interromperam à força.

Escrevo em meio a um referendo no Sudão que pode resultar na divisão

do país em dois. A exemplo de muitos outros Estados africanos, o Sudão


é (assim indicam os comentaristas) uma construção artificial, derivada

do envolvimento de poderes europeus na África, embora seja a única

dentre essas construções artificiais que está à beira de uma dissolução

em entidades que correspondem mais à constituição étnica e religiosa

de seus habitantes. Algumas décadas atrás, não me sentia culpado,

como britânico, pelo passado imperialista de minha pátria, mas, agora,

tenho esse sentimento, do mesmo modo que muitos norte-americanos

se sentem culpados pela relação quase imperialista dos Estados Unidos

com grande parte do Terceiro Mundo. Ao mesmo tempo, os norte-

americanos podem, com correção, sentir orgulho pela situação

econômica e política do país ser objeto da aspiração e da inveja por

parte das nações do mundo, enquanto muitos aspectos do envolvimento

imperial britânico na África e na Ásia trouxeram benefícios e

absorveram recursos.

As relações entre os persas e as diferentes regiões de seu império

tinham algumas ambiguidades similares. De uma perspectiva judaíta,

os persas podiam ser benfeitores (como Ciro foi) ou limitadores da

renovação da comunidade (como Artaxerxes é, aqui, mas não em outras

passagens). Embora o governo de Artaxerxes cobre o preço da região na

forma de taxas, não lemos a respeito de guerras durante o período persa,

como era comum nos séculos anteriores; as tensões entre os povos ao

redor de Judá persistiam entre os reinos dos reis observados em nosso

comentário sobre Esdras 4:1-6, e no reino de Artaxerxes (465-424 a.C.),

mas, pelo menos, eles recorriam às autoridades imperiais para uma

solução.

O livro de Esdras, no capítulo 4, abandona brevemente a ordem

cronológica, ao pesquisar a maneira pela qual essas tensões se

expressavam entre os reinos de Ciro e de Artaxerxes. Em outras

palavras, se você quiser ler a história em Esdras-Neemias, na ordem

cronológica, deve ler os versículos 5 e 6 depois de Esdras 6, e ler os

versículos 7-23 após Esdras 10. Os versículos 7-23 não mencionam a

reconstrução do templo (o que, por outro lado, é o foco principal de


Esdras 1—6); trata-se de história antiga na época dos eventos a que se

referem.

Primeiro, há uma carta de Bislão e companhia (v. 7), cujo conteúdo

não nos é revelado; tampouco conhecemos algo sobre as pessoas que a

escreveram além do que é informado ali. O aramaico era o idioma

diplomático internacional no período do Segundo Templo; igualmente,

esse idioma se tornou a língua cotidiana do povo judeu. Trata-se de uma

língua irmã do hebraico, e uma pessoa que soubesse uma língua

compreenderia razoavelmente a outra.

Na introdução da outra iniciativa (v. 8-23), a segunda ocorrência do

termo “aramaico” significa que, a partir desse ponto, o próprio livro de

Esdras passa a ser escrito em aramaico. Grande parte do Antigo

Testamento é escrito em hebraico; nesse livro, o hebraico é retomado a

partir de Esdras 6:19, porém há outro trecho em aramaico no capítulo 7.

Daniel é outro livro do Antigo Testamento que mescla os dois idiomas

dessa forma. A exemplo de Daniel, a transição ocorre em um ponto

lógico, quando o livro reporta as palavras de pessoas que não falam o

hebraico, embora, da mesma forma que ocorre em Daniel, não haja

lógica na continuidade do aramaico mesmo quando aqueles

estrangeiros não mais estão falando.

Repetindo, nada sabemos sobre as pessoas que são mencionadas em

relação à carta, pessoas envolvidas na administração do Império Persa

na província de além-rio, ou seja, a região a oeste do Eufrates (além do

rio Eufrates para quem vive na Pérsia). A tarefa dessas pessoas é

salvaguardar os interesses do rei na região oeste de seu império para

assegurar que os impostos sejam pagos a ele e para garantir a

manutenção da ordem. Os autores descrevem a si mesmos como

compartilhadores do sal do palácio, uma figura de linguagem que parece

sugerir um compromisso mútuo, embora não saibamos o motivo de

possuir essa conotação (o Antigo Testamento, similarmente, refere-se

em outras passagens a uma aliança de sal). Isso significa que Reum e

companhia estão solenemente ligados em lealdade ao rei persa.


A outra referência a Samaria estreita a ligação com a parte anterior

do capítulo. O motivo de reunir esses relatos sobre a forma de os povos

causarem problemas aos judaítas é que as histórias têm um ponto em

comum; isto é, o fato de o povo causador de dificuldades ser o povo de

Samaria. Os judaítas são mais próximos dos samaritanos que de outros

povos, como os amonitas ou moabitas, mas, de uma forma estranha, às

vezes o nosso relacionamento com pessoas mais próximas pode ser mais

frágil do que com as mais distantes. Isso, certamente, se aplica ao campo

da fé. Os anglicanos podem muito bem ser mais contundentes com

outros anglicanos do que com presbiterianos; estes, por seu turno,

podem ser mais agudos com outros presbiterianos do que com batistas;

e estes podem ser mais enérgicos com outros batistas do que com

anglicanos. Assim é a tensão entre os judaítas e seus vizinhos, os

samaritanos, que dizem cultuar o mesmo Deus que os judaítas, mas cujo

compromisso com esse Deus parece questionável aos olhos dos judaítas.

Observamos que, para ambos os lados (como é o caso que envolve

disputas entre cristãos), as questões sobre independência, poder e

economia estão entrelaçadas com as questões que envolvem a fé.

À primeira vista, a carta de Reum e companhia parece um pouco

autocontraditória, ao declarar que os judaítas haviam concluído o muro

da cidade e estabelecido as fundações para outra reconstrução e, então,

falar como se a conclusão do muro e a reconstrução da cidade

estivessem incompletas. Caso tenham exagerado na descrição dos

muros já restaurados, então a carta deles deve datar de antes do tempo

de Neemias e pertencer a algum período na primeira metade do reinado

de Artaxerxes. A comissão de Artaxerxes a Neemias, ocorrida em 445

a.C., constituirá, então, a condição “até a ordem ser dada por mim”,

presente na resposta do rei a Reum e companhia. Todavia, talvez Reum

e companhia queiram expressar que o perigo para Artaxerxes reside na

conclusão da reconstrução da cidade pelos judaítas, além da restauração

dos muros; nesse caso, a data da carta deve ser posterior ao trabalho de

Neemias.
A carta pode ser uma transcrição direta daquela que eles enviaram,

mas há algumas ironias no texto que podem sugerir que ela tenha sido

adaptada para se adequar ao contexto de Esdras. Seja como for, os

escritores, obviamente, estão corretos em enfatizar a rebelião de

Jerusalém, que foi a causa do cerco feito pelos babilônios em 597 e 587

a.C, enquanto Artaxerxes é um tanto generoso em seus comentários

sobre o poder passado de Jerusalém. Há certa ironia na maneira pela

qual os pecados dos pais são, uma vez mais, visitados nos filhos: as

rebeliões passadas de Jerusalém fornecem ao imperador um motivo para

não lhes permitir muita liberdade no presente. Os judaítas podem se

ressentir da ação de Reum e companhia e lamentar a decisão de

Artaxerxes, mas em um sentido que não podem reclamar. Por outro

lado, transpirará que, no fim, eles lograrão reconstruir os muros e a

cidade. Embora Deus permita que os pecados dos pais sejam visitados

em seus filhos, isso não determina o fim da história.


ESDRAS 4:24—5:5
NOVA INSPIRAÇÃO
24
Assim, o trabalho parou na casa de Deus, em Jerusalém. Ele parou até o segundo ano do

reinado de Dario, rei da Pérsia,

CAPÍTULO 5

1
quando os profetas Ageu e Zacarias, filho de Ido, profetizaram aos judaítas em Judá e

2
Jerusalém em nome do Deus de Israel, que estava sobre eles. Então, Zorobabel, filho de

Sealtiel, e Jesua, filho de Jozadaque, começaram a reconstruir a casa de Deus em Jerusalém, e

3
os profetas de Deus estavam com eles, apoiando-os. Nesse tempo, Tatenai, o governador de

além-rio, Setar-Bozenai e seus associados foram até eles e lhes disseram: “Quem lhes deu

4
ordem para reconstruir essa casa e completar este muro?” Então, eles lhes disseram: “Quais

5
são os nomes dos homens que estão construindo esse edifício?” Mas o olho de Deus estava

sobre os anciãos judaítas, e eles não os pararam enquanto um relato não fosse enviado a

Dario e, então, uma carta não voltasse sobre isso.

Eu não estaria escrevendo esta série O Antigo Testamento para todos não

fosse por um desenvolvimento político na Grã-Bretanha, após a

Segunda Guerra Mundial. Na minha cidade natal, o conselho

municipal, então controlado por socialistas, decidiu trabalhar por

oportunidades iguais para crianças da classe trabalhadora e compraram

vagas na principal escola privada da cidade que seriam destinadas a

elas; essa ação resultou no ingresso de muitos desses alunos em Oxford

e Cambridge todos os anos. Eu recebi uma dessas vagas. Ninguém em

minha família havia sequer permanecido na escola depois dos catorze

anos, muito menos entrado na faculdade. Eis como aprendi latim, grego

e, depois, o idioma hebraico, já na universidade. Caso eu tivesse nascido

alguns anos antes ou mais tarde (quando outra mudança de governo

levou ao término do programa), isso jamais teria acontecido. (Ou, o

leitor pode especular, Deus teria me tornado um teólogo de alguma

outra forma.) Claro que eu tive que fazer a minha parte com a

oportunidade que me foi dada.


Os judaítas na Babilônia tiveram a oportunidade de mudar da sua

cidade natal para reconstruir o templo em Jerusalém por causa de um

desenvolvimento político, trazido por Deus em cumprimento a uma

profecia de Jeremias: a ascensão dos persas no Oriente Médio. No

entanto, os judaítas precisavam aproveitar bem aquela oportunidade,

mas interromperam o trabalho no templo por causa de um movimento

político — a oposição de outros povos da região —, embora a

responsabilidade de ceder às pressões fosse dos judaítas. Quinze anos

mais tarde, a ascensão de Dario, o Grande, ao trono da Pérsia propicia

um contexto mais favorável para a retomada da reconstrução.

A forma pela qual os capítulos 4 e 5 estão divididos tende a

confundir a lógica do livro nesse ponto. O trecho principal do capítulo

4 revisitou os altos e baixos na relação de Judá e Samaria ao longo de

meio século ou mais e como isso afetou as tentativas de reconstrução da

cidade de Jerusalém, além de seu templo. O último versículo do

capítulo 4, então, retoma a história sobre a restauração do templo. Foi

ainda durante o reinado de Ciro que o projeto de restauração foi

iniciado e, então, interrompido. Ciro foi sucedido por Cambises, o seu

filho, que morreu, após sete anos, em circunstâncias misteriosas. A

identidade de Esmérdis, o seu sucessor, também é envolta em mistério,

mas sabe-se que ele foi assassinado e sucedido por um de seus

executores, que se tornou conhecido como Dario, o Grande. Tratou-se,

portanto, de um período de desordem no Império Persa que permitiu a

povos como os judaítas certa margem para fazer o que desejassem, no

conhecimento de que, se mantivessem um comportamento discreto, os

persas estariam ocupados demais para se preocuparem com eles.

Dessa forma, a situação política deu aos judaítas essa oportunidade,

mas não teria havido a retomada do trabalho no templo, caso não

tivessem aproveitado essa abertura. O fator-chave para a ação deles,

então, foi a insistência de dois profetas, cujas palavras reais aparecem

em outras passagens do Antigo Testamento, nos livros intitulados com

os seus nomes. Há um aspecto complementar interessante quanto às


suas mensagens. Ageu é mais disciplinador, enquanto Zacarias é mais

incentivador. Existe uma ambiguidade positiva sobre a profecia que os

dois profetas transmitem aos judaítas, porque aquela palavra, com

frequência, significa “contra”, pois a tarefa regular dos profetas é

confrontar o seu povo (mesmo quando eles trazem boas-novas, porque,

normalmente, fazem isso quando o povo não acredita mais que pode

haver boas novas). Os dois profetas pregam tanto “para” quanto

“contra”; as pessoas têm de decidir como ouvirão o que eles dizem. E

ambos, a vara (disciplina) e a cenoura (incentivo), eram meios usados

pelos profetas para apoiar o povo na reconstrução do templo.

O livro de Ageu revela que há mais do que uma ação política por

trás da negligência em relação ao trabalho no templo. A situação

econômica é severa; as pessoas têm sido capazes de restaurar as suas

próprias casas, mas adiam constantemente a ação na casa de Deus, e

isso sugere algo errado em suas prioridades. Certa vez, um profeta

precisou dizer a Davi que Deus não estava entusiasmado por seu desejo

de edificar um templo; agora, um profeta precisa advertir o povo de que

eles estão em apuros com Deus por não desejarem fazer isso. Por outro

lado, a julgar pelo espaço ocupado pelas visões de Zacarias em seu livro,

talvez também seja importante que Deus invista mais tempo no

encorajamento aos judaítas sobre o projeto de reconstrução do templo

do que no uso da vara por meio das exortações de Ageu. “Vocês podem

fazer isso” é a mensagem divina por intermédio de Zacarias — não por

possuírem uma capacidade natural, mas “pelo meu espírito” (Zacarias

4:6). O livro de Esdras estabelece um ponto similar, porém de outra

forma: “no nome do Deus de Israel, que estava sobre eles”. Não está

claro se isso se aplica apenas aos dois profetas ou ao povo, como um

todo, mas o efeito é o mesmo. O nome de Deus estar sobre você significa

que você pertence a ele. Isso lhe impõe uma obrigação; igualmente,

implica a certeza de proteção e de provisão. Quando Tatenai e

companhia perguntam pelos nomes dos construtores, isso reflete como,

no que se refere a eles, a reconstrução é um projeto humano. O autor do


livro sabe que o que importa é o fato de o nome de Deus estar sobre o

trabalho; assim, é um projeto divino.

Não obstante, uma vez mais, nada é direto. Novamente, não fica

claro que a política irá trabalhar a favor da comunidade. Um registro

babilônico cita Tatenai como governador da província de além-rio

(oeste do Eufrates) nos dias de Dario. (Em Esdras 6, o próprio Tatenai

irá se referir a alguém mais, provavelmente Zorobabel, como o

governador dos judaítas, mas essa referência denota um nível de

autoridade inferior; o governador de Jerusalém está subordinado a um

governador com maior autoridade, tal como Tatenai, do mesmo modo

que Tatenai estava subordinado a uma autoridade superior.) Isso

significa que Tatenai não era uma pessoa local, como Reum, e que ele

não representa os interesses de Samaria sobre e contra os de Judá. Sua

indagação sobre o que os judaítas estão fazendo está aberta a descobrir

que não há nenhuma ilegalidade quanto à obra. Assim, a providência

divina segue fazendo a política favorecer os judaítas, pois eles recebem

permissão para prosseguirem com o trabalho de reconstrução durante a

investigação.

Não apenas o nome de Deus estava sobre eles; o olho de Deus

também (v. 5). Zacarias 4:10 fala sobre os olhos de Deus sondarem toda

a terra. Deus mantém o olhar sobre tudo, como dizem, não num sentido

ameaçador, mas num sentido de reafirmação e de conforto. Tatenai e

companhia são responsáveis, diante do governador, por manterem um

olho sobre os eventos em Judá e, na passagem em questão, estão apenas

cumprindo o seu dever. Alguém mais, todavia, mantém o olho sobre

Judá.
ESDRAS 5:6-17
A HISTÓRIA TODA
6
Uma cópia da carta que Tatenai, governador de além-rio, e Setar-Bozenai e seus associados,

7
os oficiais de além rio, enviaram ao rei Dario. Eles enviaram uma mensagem a ele, e nela

8
estava escrito o seguinte: “Ao rei Dario, todos os bons votos. Seja conhecido ao rei que

fomos à província de Judá, à casa do grande Deus. Ela está sendo construída com pedra

lavrada, e madeira está sendo usada nas paredes. Essa obra está sendo feita diligentemente e

9
está progredindo nas mãos deles. Então, perguntamos a esses anciãos, como segue.

Dissemos-lhes: ‘Quem lhes deu ordem para reconstruir esta casa e completar este muro?’

10
Também perguntamos os seus nomes para torná-los conhecidos a ti, para que pudéssemos

11
escrever o nome dos homens que estavam à frente deles. Eles nos responderam desta

forma: ‘Somos servos do Deus dos céus e da terra. Estamos reconstruindo a casa que foi

construída muitos anos antes dessa, quando um grande rei de Israel a construiu e a

12
completou. Mas, porque nossos ancestrais irritaram o Deus dos céus, ele os entregou nas

mãos de Nabucodonosor, o caldeu, rei da Babilônia. Ele destruiu esta casa e exilou o povo na

13
Babilônia. Contudo, no primeiro ano de Ciro, rei da Babilônia, o rei Ciro deu uma ordem

14
para reconstruir esta casa de Deus. Os utensílios da casa de Deus, ouro e prata, os quais

Nabucodonosor retirou do palácio em Jerusalém e levou para o palácio na Babilônia, o rei

Ciro também retirou do palácio da Babilônia e os entregou a alguém chamado Sesbazar, a

15
quem ele designou governador’. Ele lhe disse: ‘Toma estes utensílios, vá e os deposite no

16
palácio em Jerusalém. A casa de Deus deve ser reconstruída em seu lugar.’ Esse Sesbazar,

então, veio. Ele deu início à reconstrução da casa de Deus, em Jerusalém, e a partir de então,

17
até agora, ela tem sido reconstruída, mas não está terminada. Agora, se for do agrado do

rei, deve ser feita uma pesquisa na tesouraria do rei, na Babilônia, para ver se uma ordem foi

dada pelo rei Ciro para a reconstrução desta casa de Deus, em Jerusalém. E que o rei nos

envie a sua decisão sobre isso.”

Certo amigo meu, viúvo, conheceu uma mulher que vivia sozinha há

muitos anos e se apaixonou por ela. Sei, por experiência, que existem

aspectos complexos no romance quando você está na meia-idade ou é

mais velho (p. ex., em vez de buscar a aprovação dos pais, é preciso

obter a aprovação dos filhos). Ele me contou que, no caso deles, ambos

sabiam que o aspecto mais intrincado do desenvolvimento daquela

relação era a necessidade de um contar ao outro toda a história de sua


respectiva vida. O dilema é que havia aspectos na vida de cada um pelos

quais eles sentiam uma profunda culpa. Meu amigo teve um caso

extraconjugal que acredita não ter chegado ao conhecimento de sua

esposa, mas outras pessoas sabiam, de modo que ele não tinha certeza se

a verdade veio à tona; seja como for, agora ele sabia que essa nova

relação precisava estar fundamentada na verdade e na transparência.

Seu novo amor havia se envolvido com drogas anos antes e fizera coisas

das quais se envergonhava muito, portanto ela não estava certa se o

meu amigo ainda estaria interessado nela após conhecer toda a sua

história. No entanto, ela sabia que precisava contar. (No fim, tudo

acabou bem.)

Em Esdras e Neemias, os judaítas são corajosos em contar toda a

sua história uns aos outros, a Deus, a nós, que lemos o livro, e, nesse

caso, às autoridades persas. Uma vez mais, reconhecidamente, faz

sentido presumir que os versículos 7-17 não apresentam a transcrição

literal de uma carta enviada pelas autoridades provinciais ao imperador.

O ensino teológico, presente na carta, não parece a classe de coisas que

estariam em uma carta de um governador provincial ao seu superior. A

carta expressa o que os judaítas precisavam reconhecer para si mesmos,

na época, e o que os leitores judaítas do livro também deviam

reconhecer. Todavia, isso não faz diferença quanto ao significado da

carta; na verdade, dá mais ênfase às suas afirmações de fé e à sua

disposição de contar toda a história.

O trecho vergonhoso do relato é que a necessidade de reconstruir o

templo resultou da ira que os judaítas provocaram em Deus. Isso

corrobora a declaração colocada nos lábios de Reum e companhia, em

Esdras 4; isto é, que Jerusalém era uma cidade rebelde e perversa. O

livro de Esdras jamais permite que os seus leitores evitem os fatos sobre

a sua própria história. Eles sabem que não poderiam reclamar caso Deus

os lançasse fora ou se as autoridades persas os proibissem de fazer o que

desejavam para a glória de Deus. Não há desculpa, pois ofenderam tanto

Deus quanto as autoridades imperiais. E, se eles ainda possuem


capacidade de realizar algo, isso se deve à graça de Deus e das

autoridades. Contar toda a história requer uma classe estranha de

confiança em Deus, a certeza de que ele já conhece toda a história e que

não há tanto a necessidade quanto a possibilidade de omitir algo dele; e,

se Deus já sabe de tudo, que perigo há em outras pessoas a conhecerem?

Além de indicar que eles revelaram toda a história sobre si mesmos,

a carta a Dario indica que eles contaram toda a história sobre Deus, “o

grande Deus”, “do Deus dos céus e da terra”. A segunda expressão

explica a primeira. Os livros de Esdras e Neemias são mais reticentes

quanto ao uso do nome de Deus, Yahweh, do que os livros anteriores,

pelo menos quando falam a estrangeiros ou descrevem a fala dos

estrangeiros. Os dois livros são mais propensos a usar descrições de

Deus como as citadas aqui, para mostrar que o Deus deles não é uma

simples divindade provincial, que não pode ser comparado a uma

divindade superior como o deus da Babilônia ou da Pérsia. Os judaítas

afirmam a destemida reivindicação de que o Deus desse insignificante

povo provincial é, na realidade, o grande Deus, o Deus dos céus e da

terra, o Deus cuja vontade é feita nos céus (não há outros deuses que

rivalizam com a sua autoridade celestial), e que, portanto, também é

cumprida na terra (não há imperadores humanos capazes de frustrar a

sua vontade aqui). Eles são ousados o suficiente para colocar essas

declarações nos lábios de seus superiores provinciais e, assim, transmiti-

las ao próprio imperador.

A história implica que a afirmação de Yahweh como o Deus dos céus

e da terra é comprovada pelo extraordinário fato de o grande Ciro

emitir esse decreto e devolver os utensílios do templo. A mão de Deus

pode operar de maneiras inimagináveis.


ESDRAS 6:1-15
ÀS VEZES, FICAMOS PERPLEXOS
1
Então, uma ordem foi dada pelo rei Dario, e eles pesquisaram no prédio de documentos no

2
qual os tesouros eram mantidos na Babilônia, mas um rolo foi encontrado na fortaleza de

3
Ecbatana, na província da Média. Nele estava escrito o seguinte: “Memorando. No primeiro

ano do rei Ciro, o rei Ciro emitiu uma ordem: ‘A casa de Deus, em Jerusalém. A casa deve ser

reconstruída, um lugar no qual as pessoas oferecerão sacrifícios, com suas fundações

firmadas, sua altura de sessenta côvados [trinta jardas ou metros], sua largura de sessenta

4
côvados, três carreiras de pedras lavradas e uma carreira de madeira nova. O custo será

5
pago pela casa do rei. Igualmente, os utensílios da casa de Deus, ouro e prata, os quais

Nabucodonosor retirou do palácio em Jerusalém e levou para a Babilônia, devem ser

devolvidos, e [cada um] deve ir para o palácio em Jerusalém, para o seu lugar. Vocês devem

depositá-los na casa de Deus.’”

6
“Agora, Tatenai, governador de além-rio; Setar-Bozenai e seus associados, oficiais da

7
província de além-rio, se afastem de lá. Deixem o trabalho nessa casa de Deus em paz. O

governador dos judaítas e os anciãos dos judaítas devem reconstruir essa casa de Deus em

8
seu lugar, e uma ordem é dada por mim sobre o que vocês devem fazer com esses anciãos dos

judaítas para reconstruírem essa casa de Deus. O custo deve ser pago integralmente a esses

homens com os recursos do rei, dos tributos de além-rio, para que [eles] não parem.

9
Qualquer que seja a necessidade — novilhos, carneiros e cordeiros para as ofertas

queimadas ao Deus dos céus, trigo, sal, vinho e azeite, de acordo com a palavra dos

10
sacerdotes em Jerusalém —, que lhe seja provida, dia a dia, sem falhar, para que eles

apresentem sacrifícios agradáveis ao Deus dos céus e orem pela vida do rei e de seus filhos.

11
E uma ordem é dada por mim para que, qualquer um que desafie essa mensagem, um

pedaço de madeira seja removido de sua casa e ele seja levantado e espancado sobre ela, e sua

12
casa seja confiscada por isso. E que Deus, que estabeleceu o seu nome ali, derrube qualquer

rei ou povo que estenda a sua mão para desafiar [isso], para danificar essa casa de Deus em

Jerusalém. Eu, Dario, emiti este decreto. Ele deve ser posto em prática integralmente.”

13
Então, em concordância com o que o rei Dario enviou, Tatenai, governador de além-rio,

14
Setar-Bozenai e seus associados colocaram isso em prática plenamente. Os anciãos dos

judaítas construíram e fizeram progressos por meio da profecia de Ageu, o profeta, e de

Zacarias, filho de Ido. Assim, eles reconstruíram e terminaram pela ordem do Deus de Israel

15
e pela ordem de Ciro, Dario e Artaxerxes, rei da Pérsia. Essa casa foi completada no

terceiro dia do mês de adar; isso ocorreu no sexto ano do reinado do rei Dario.
Caso você seja um cristão que vive no Líbano, Iraque, Israel, Egito ou

Irã, é possível que tema por seu futuro. Você sabe que é considerado um

cidadão de segunda classe; nesses países, inúmeras pessoas perdem a

vida pelo simples fato de serem cristãs. Se for um cristão na Jordânia,

provavelmente viverá mais relaxado. Embora a população cristã do país

seja proporcionalmente menor do que era cinquenta anos atrás, a

comunidade cristã permanece sendo uma parcela aceitável do

contingente nacional. Aparentemente, a figura-chave a encorajar a

continuidade desse estado de coisas é o próprio rei da Jordânia,

Abdullah II. Ainda que os cristãos vivam sob a lei islâmica, a exemplo

dos demais, naquele país essa lei é administrada de uma forma que os

cristãos podem conviver. Há uma espécie de complemento à ideia de

que devemos dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

Igualmente, é dever de César entregar a Deus o que é de Deus. Quando

os governantes provam ser pessoas que não são uma ameaça àqueles que

agem com correção, mas que usam de severidade contra os que agem

mal, eles estão cumprindo o seu dever diante de Deus, estejam cientes

disso ou não; e, mesmo se agirem em prol de seus próprios interesses,

estão cumprindo a sua vocação. Quando o Novo Testamento conclama

as congregações a intercederem pelos reis e por aqueles revestidos de

autoridade para que sejamos capacitados a viver de modo santo e

pacífico, também somos incentivados a orar para que os governantes

cumpram a vocação deles.

Dario faz isso, do mesmo modo que Tatenai e seus colegas. Judá é,

com efeito, uma colônia persa, e outras passagens de Esdras-Neemias

deixam claro que os judaítas, a exemplo de qualquer povo colonial,

preferiam ter a sua liberdade em vez de serem governados pelos persas.

Mas Paulo comenta, em Romanos 13, sobre as possibilidades benéficas

do governo imperial provar a sua verdade aos judaítas. Em Jerusalém e

outros lugares, como é o caso no Ocidente, as comunidades cristãs, com

frequência, não se envolvem umas com as outras, e há um equivalente

na história de Esdras 1—6, na tensão entre as comunidades que


reconhecem Yahweh em Jerusalém e em Samaria. No entanto, não

existe uma tensão real entre a comunidade de Jerusalém e as

autoridades persas. Tatenai, como governador de toda a província do

oeste do Eufrates, está fazendo o seu trabalho ao investigar o que está

ocorrendo em Jerusalém e reportar a Dario; ele não tenta interromper a

obra enquanto envia o seu relatório e aguarda a resposta. Não seria

surpresa caso isso fizesse os judaítas redobrarem os seus esforços para

avançar ainda mais na obra.

Por seu turno, Dario atesta a verdade sobre a alegação dos judaítas

quanto à autorização de Ciro e o apoio ao trabalho no templo

(repetindo, a palavra “palácio” refere-se à habitação real de Deus na

terra), e não apenas confirma isso, mas aumenta o nível de apoio

imperial para a obra. Os judaítas devem ter esfregado os olhos em

descrença ao receberem a resposta do rei. Além de não parar a obra, o

imperador pagará os custos da reconstrução. No relato sobre o decreto

de Ciro, no início de Esdras, não há referência ao pagamento do

imperador pelos custos da obra; ou seja, a decisão de Dario constitui

boas-novas para a comunidade judaíta, que imaginou ter de levantar os

próprios recursos (a crítica à procrastinação deles, em Ageu 1, pode ser

coerente com essa possibilidade)? Afinal, precisamos ser realistas, não?

Será que, convenientemente, os administradores coloniais se

esqueceram desse pormenor no edito de Ciro? Não há problema no fato

de a administração transmitir uma decisão sobre alguma nova política,

mas o que a comissão de planejamento tem a dizer sobre a origem dos

recursos necessários? Dario sabe que é preciso ter uma resposta a essa

questão e a fornece. Seria normal esperar de Tatenai que ele assegurasse

que os impostos pagos pelas colônias chegassem à administração

imperial; além de não interromper a obra, agora ele é instruído a

reciclar as taxas imperiais para a obra de reconstrução. Sim, os judaítas

devem estar esfregando os olhos sem acreditar. Como poderiam

imaginar que Deus operaria algo tão estupendo? Ninguém gosta de


pagar impostos, mas e quando é possível vê-los retornando a você dessa

forma?

A inovação adicional de Dario é para que uma subvenção imperial

complementar cubra o custo dos animais e outras exigências para as

ofertas no templo. Os olhos dos judaítas arregalam-se ainda mais de

espanto. A justificativa para a ação de Dario, na verdade, nos ajuda a

deduzir, pelo menos em parte, a lógica no edito original de Ciro. Os

sacrifícios são, entre outras coisas, acompanhados por oração, e Dario

sabe que precisa de toda oração que puder obter. Vale a pena apoiar

pessoas que orarão por ele. Pode haver menos sabedoria nas ameaças

que ele faz às pessoas que tentam frustrar as suas intenções, ou, talvez,

hoje pensemos dessa forma por sermos fracos e/ou estarmos em negação

pela maneira com que somos protegidos das ameaças de violência por

parte de quem deveria nos proteger, ou seja, a polícia. Quando você

detém autoridade, como um presidente ou rei, é preciso viver no mundo

real.

Assim, a obra de reconstrução do templo é concluída pela ordem de

Deus e pela ordem das autoridades imperiais. A história dos judaítas

ilustra como não é preciso haver conflitos entre essas duas ordens.

Agora, Esdras 4 já nos antecipou outra história sobre um período

posterior, quando as coisas não funcionaram dessa maneira. Nesse caso,

uma ordem imperial interrompeu a obra de reconstrução da cidade.

Nesses contextos posteriores, havia pessoas em Judá que precisavam

enxergar a possibilidade de a ordem divina e a ordem imperial

trabalharem juntas em vez de atuarem em direções opostas, uma visão

que lhes desse esperança e instruísse a oração deles, uma fé que

estivesse além da imaginação humana. As comunidades cristãs em

muitos países ao redor do mundo necessitam da mesma visão, a fim de

receberem esperança e instrução para a oração, e seus companheiros de

fé precisam dessa visão enquanto oram em favor deles, por aquilo que

sabemos ser impossível.


ESDRAS 6:16-22
CELEBRAÇÃO JUBILOSA
16
Os israelitas, os sacerdotes, os levitas e o restante dos exilados realizaram a dedicação da

17
casa de Deus com celebração. Para a dedicação dessa casa de Deus, apresentaram cem

touros, duzentos carneiros, quatrocentos cordeiros e doze bodes, como oferta de purificação

18
por todo o Israel, de acordo com o número de clãs de Israel. Eles estabeleceram os

sacerdotes em suas divisões e os levitas em seus grupos para o serviço de Deus em Jerusalém,

19
de acordo com o que está escrito no livro de Moisés. Os exilados realizaram a Páscoa no

20
décimo quarto dia do primeiro mês, porque os sacerdotes tinham purificado a si mesmos, e

os levitas estavam totalmente puros, todos eles. Eles sacrificaram a Páscoa [a oferta] por

21
todos os exilados, por seus sacerdotes irmãos e por si mesmos. Os israelitas que tinham

retornado do exílio, e todos os que tinham se separado da corrupção da nação na terra para

22
unirem-se a eles na busca a Yahweh, o Deus de Israel, comeram. Realizaram o Festival dos

Pães Asmos durante sete dias com celebração, porque Yahweh os fez celebrar quando ele

inclinou a mente do rei da Assíria em favor deles, para apoiá-los no trabalho da casa de Deus,

o Deus de Israel.

O casal ao qual me referi em meus comentários sobre Esdras 5:6-17 diz,

com frequência, que não consegue acreditar na experiência maravilhosa

que lhe aconteceu. O homem jamais imaginou encontrar um novo amor,

anos após o falecimento de sua esposa. A mulher expressa a sua

admiração com mais intensidade ainda, por ela viver por sua conta

durante vários anos e saber que, estatisticamente, a probabilidade de

encontrar alguém era mínima. Pelo menos, era significativo o fato de ter

saído com homens, de tempos em tempos, sem jamais imaginar ter um

compromisso mais sério com um deles. E, então, aconteceu, quando ela

não estava à procura de ninguém. Ela conheceu esse homem e logo

soube que desejaria passar o resto de sua vida ao lado dele; e,

miraculosamente, ele sentiu o mesmo sobre ela. A realização do

impossível por parte de Deus mostrou que ela havia se acomodado a

uma vida que parecia boa o suficiente (particularmente, à luz de seus

erros do passado), mas tristemente inadequada para a visão que Deus


tinha para ela. A celebração em seus corações, de seus amigos e de suas

famílias era um deleite compartilhado por todos.

A dedicação do templo suscitou sentimentos desse naipe na

comunidade judaíta. O salmo 90 pode nos ajudar a compartilhar deles.

O texto diz que o povo fora consumido pela ira de Deus e que essa ira,

como mostrou a carta de Tatenai em Esdras 5, era reconhecida por eles.

Os judaítas sabiam ser merecedores daquela ira divina e, assim, viveram

debaixo dela com dificuldades e tristeza por setenta anos ou, talvez,

oitenta anos, o salmo especula.

Os exilados que retornaram sabem, agora, que o exílio chegou ao fim

e eles voltaram. O tempo da ira acabou. O salmo 30, por sua vez,

estabelece esse ponto. O subtítulo do salmo sugere que ele foi usado

para a dedicação do templo, embora o próprio salmista se expresse

como um indivíduo que, certa feita, sentiu-se seguro como recipiente do

favor de Deus e, então, viu sua vida colapsar e parecer ter descido às

profundezas do reino da morte. Deus, no entanto, não o deixou lá. Isso

provou que a ira de Deus dura apenas um momento, mas o seu favor

dura a vida toda (não nos parece assim quando estamos sob a ira divina,

mas a experiência da libertação de Deus coloca a experiência da

tribulação na perspectiva correta). O pranto pode durar uma noite, mas

o júbilo vem pela manhã. Deus não permitiu que os inimigos do

salmista se regozijassem sobre ele, mas transformou o seu pranto em

dança, removeu os trajes de lamento que ele vestia e colocou nele vestes

de alegria.

Esse seria o testemunho da comunidade que retornou do exílio,

perplexa, uma vez mais, diante da maravilha operada por Deus que

possibilitou a reconstrução do templo. Houve celebração, certamente,

ainda que esse novo ato de dedicação tenha sido menos esplêndido que

o original, descrito em 1Reis 8. A quantidade de animais sacrificados

pode parecer grandiosa, mas o relato da primeira dedicação menciona

22 mil bois e 120 mil ovelhas. Além disso, não há menção aqui a uma

nuvem que representa o esplendor de Deus encher o templo, como


ocorreu na história anterior. Todavia, não há nenhuma indicação de que

a comunidade está desapontada pelo evento que celebra ou sente que

essa segunda dedicação seja menos importante que a primeira. A

comunidade está, na verdade, perplexa pela graça de Deus. Em que pese

não haver nuvem, a história implica que as pessoas sabiam que Deus

estava presente ali para ser adorado e buscado por eles. Ciro é o

herdeiro do antigo Império Assírio que, outrora, foi o agente da ira

divina, de modo que, agora, é como se Deus estivesse usando os assírios

como meio de exercer a sua misericórdia.

Outra característica distinta desse festival de dedicação é que ele

envolve uma oferta de purificação, que não foi mencionada em relação à

primeira dedicação. As pessoas que celebram estão contaminadas

porque elas ou os seus ancestrais se envolveram no culto a outras

divindades, razão pela qual foram levadas ao exílio. Estão impuras

porque têm vivido lado a lado com estrangeiros que adoram outros

deuses ou porque elas mesmas os cultuaram. Ao entrarem no santuário,

essa comunidade corria o risco de contaminar, de corromper, o templo,

impossibilitando a presença de Deus ali. Assim, a comunidade precisa

de purificação. A possibilidade de apresentarem ofertas para efetivar

essa purificação é outra demonstração do favor e da bondade de Deus,

que deseja, uma vez mais, vir e habitar no meio de seu povo. Essa

purificação requer a graça e a misericórdia de Deus, que provê os meios

de limpeza; isso também demanda a recepção e a submissão das pessoas

que realizam a oferta.

Toda a comunidade se uniu na celebração, e a narrativa enfatiza que,

em algum sentido, isso significou todo o Israel. Por sua purificação,

doze bodes foram oferecidos, o número que corresponde aos clãs

israelitas (prefiro o termo “clãs” em vez de “tribos” porque o primeiro

reflete o fato de todos eles pertencerem a uma mesma família). Trata-se

de uma expressão particularmente concreta da convicção e da

reivindicação de que essa comunidade representa todo o Israel. Esdras

4 descreveu, de modo mais realista, o povo envolvido na reconstrução


como “Judá e Benjamim”, os clãs que pertenciam ao antigo reino do Sul.

No entanto, há entre eles algumas pessoas oriundas dos clãs do norte,

que migraram para o sul por diferentes motivos, de modo que não é

incorreto considerar a comunidade judaíta como representante dos

doze clãs, além de ser teologicamente relevante. A comunidade em

torno do templo realmente representa a fidelidade de Deus a Israel na

sua totalidade. A questão segue sendo importante para a comunidade

judaica no século XXI, cuja descendência física remonta à comunidade

de pessoas que viveu em Judá após o exílio, ou a pessoas que

constituíram a dispersão original.

O trabalho de reconstrução foi concluído no início do mês de adar, o

último mês do ano. Convenientemente, isso significa que a dedicação do

templo logo levou à celebração da Páscoa, algumas semanas mais tarde.

A Páscoa é celebrada no início do ano, conforme essa forma de contar,

seguida pelo Festival dos Pães Asmos. Os dois eventos celebram o

êxodo do Egito; o Festival dos Pães Asmos (pão feito sem fermento),

igualmente, marca o início da colheita de cevada. A comunidade

reunida para a celebração dos dois festivais incluía todos os que tinham

“se separado da corrupção da nação na terra”, além daqueles que

haviam retornado do exílio.

Quem são esses indivíduos? Eles incluem os que não são israelitas

por nascimento — os quais, mais tarde, seriam chamados de prosélitos.

A Torá explicita que estrangeiros podem participar da celebração da

Páscoa caso eles estejam dispostos a se unir a Israel, o que envolve a

circuncisão dos homens. Esses estrangeiros incluirão os que vieram de

fora para residir em Judá por causa de alguma crise em sua terra natal

que os obrigou a migrarem dessa forma. Igualmente, incluem pessoas

que vivem no território de Efraim, samaritanos que professam o culto a

Yahweh (que, agora, são aceitos na adoração do templo de uma forma

que não foram quando quiseram participar da reconstrução) e

estrangeiros residentes de descendência israelita que originariamente

vieram daquela região. Ainda, o comentário oferece outro indício do


reconhecimento da presença de um importante grupo de judaítas que

não foi levado ao exílio.

Até aqui, o livro indicou que os construtores do templo estavam

com medo “dos povos dos países vizinhos” e que o “povo do país” estava

enfraquecendo os esforços para a reconstrução do templo, pelo menos

subornando as autoridades para interromperem a obra. Isso também

sugere que os construtores do templo podem ter feito uma vara para as

suas próprias costas por sua posição intransigente em relação a esses

outros judaítas. O princípio teológico por trás dessa atitude era evitar a

contaminação do templo, algo crucial; assim, eles estavam preocupados

com o risco representado pela presença desses judaítas, do mesmo modo

que os estrangeiros. Mas a narrativa sobre a reconstrução do templo

indica que eles reconheceram a necessidade de correr esse risco em seus

relacionamentos com essas pessoas, enquanto consideravam a

possibilidade de outros judaítas, além de forasteiros e pessoas do norte,

participar das celebrações. A questão-chave é se conseguirão evitar que

essas pessoas levem contaminação ao santuário, pois isso significaria um

grande desastre.

A abertura da comunidade em relação a esses outros judaítas

desconstrói qualquer antítese aguçada sobre quem constitui o

verdadeiro povo de Deus. Sejam exilados ou pessoas que jamais foram

ao exílio, a questão é se estarão abertos à purificação. Você pode vir do

grupo que julga ser o correto, mas isso não lhe trará benefício algum se

estiver em estado de impureza. Inversamente, as outras pessoas podem

vir do grupo que você julga ser errado, mas elas se tornam aceitáveis a

Deus caso se submetam à purificação de Deus. Os participantes da

Páscoa podiam incluir exilados, pessoas que não foram levadas ao exílio,

samaritanos ou estrangeiros; a única questão era: são pessoas

comprometidas em fazer de Yahweh o único a quem elas “buscam” — o

único a quem consultam por direção e por respostas às suas orações — e

elas se submeteram à purificação de qualquer impureza que as

afetassem?
ESDRAS 7:1-10
ENTRA O SACERDOTE-TEÓLOGO
1
Após essas coisas, no reinado de Artaxerxes, rei da Pérsia, Esdras, filho de Seraías, filho de

2 3
Azarias, filho de Hilquias, filho de Salum, filho de Zadoque, filho de Aitube, filho de

4
Amarias, filho de Azarias, filho de Meraiote, filho de Zeraías, filho de Uzi, filho de Buqui,

5 6
filho de Abisua, filho de Fineias, filho de Eleazar, filho de Arão, o sumo sacerdote — aquele

Esdras que subiu da Babilônia. Ele era um estudioso especialista no ensino de Moisés, o qual

Yahweh, o Deus de Israel, tinha dado. O rei lhe concedeu todos os seus pedidos, de acordo

7
com a mão de Yahweh, seu Deus, sobre ele. Assim, alguns israelitas, alguns sacerdotes,

levitas, cantores, porteiros e assistentes subiram para Jerusalém, no sétimo ano do rei

Artaxerxes.

8 9
Ele chegou em Jerusalém no quinto mês (esse era o sétimo ano do rei), porque o início da

jornada, na Babilônia, ocorreu no primeiro dia do primeiro mês, e ele chegou a Jerusalém no

10
primeiro dia do quinto mês, de acordo com a boa mão de seu Deus sobre ele, porque

Esdras havia dedicado sua mente a estudar o ensino de Yahweh e a observar e ensinar o

estatuto e a regra em Israel.

Ontem, conversei com um arquiteto sobre a construção de igrejas, e

discutimos sobre uma das questões básicas que envolvem esse tipo de

projeto. Duas atividades centrais em uma igreja são a celebração da ceia

do Senhor, ou santa comunhão, e o batismo, além da leitura e a

exposição da Escritura na pregação. Ambas, celebração e exposição, são

cruciais, mas é difícil expressá-las no projeto de um espaço para

adoração. Trata-se de uma questão importante, pois a concepção do

espaço tanto expressa quanto encoraja uma compreensão particular de

fé na congregação. Muitas igrejas antigas são longas e estreitas,

enquanto inúmeras igrejas modernas são similares a auditórios

destinados a concertos, e isso constitui uma indicação reveladora de

uma compreensão de fé no tocante à natureza da igreja e da adoração.

Um dos pontos fortes de Esdras é que ele tanto é um sacerdote

quanto um professor. O relato da reconstrução do templo tem

enfatizado a atividade dos sacerdotes na liderança de sua adoração; os


sacerdotes desempenhavam um papel-chave na realização dos

sacrifícios, e, no desenrolar da descrição do papel de Esdras, esse

aspecto da adoração assumirá uma posição de destaque. A abertura de

sua história sublinha suas credenciais sacerdotais. Ele pertence a uma

linhagem que remonta a Arão, por meio de uma série de sacerdotes

seniores. Isso pode ser importante, já que, presumidamente, ele foi

obrigado a negociar ou a abrir o seu caminho junto ao sacerdote sênior

e outros sacerdotes que já estavam cumprindo o seu ministério no

templo. Todavia, os sacerdotes também tinham um papel no ensino da

Torá, e Esdras também é um erudito ou teólogo, um perito na Torá e um

sucessor tanto de Moisés quanto de Arão.

Os textos apócrifos ou deuterocanônicos contêm inúmeras outras

obras que carregam o nome de Esdras. Um deles, comprovadamente

escrito após os dias de Jesus, conta uma história sobre uma visão de

Esdras. Na visão, a Torá é queimada, provavelmente durante a

destruição de Jerusalém, em 70 d.C., mas Deus dita a Torá e o restante

das Escrituras (mais setenta outros livros) a Esdras, que utiliza cinco

escribas para escrevê-los. É “apenas um conto”, mas a ideia é plausível,

pois, em seus próprios dias, Esdras esteve associado com o processo pelo

qual a Torá, em sua forma final, veio a existir, e, sendo assim, a sua

missão a Jerusalém constitui o meio pelo qual esta versão final da Torá

veio a ser implementada lá.

Seja qual for o processo pelo qual chegou à sua forma atual, a Torá é

claramente descrita tanto como o ensino de Moisés quanto como o

ensino de Yahweh. Por um lado, é o ensino transmitido por meio de um

agente humano, escrito em linguagem humana. Historicamente,

desenvolveu-se durante séculos, desde os tempos de Moisés, passou

pela história de Efraim e de Judá, e pelo exílio, durante o qual podemos

imaginar pessoas como os sacerdotes tentando evitar a todo custo que o

exílio babilônico não significasse a perda das tradições daquele povo,

mas que também não permanecessem fossilizadas. O exílio ocorreu

porque Judá não guardou o ensino de Moisés, esquecendo-se,


intencionalmente, de suas exigências-chave; os judaítas não cultuaram

apenas Yahweh, não repudiaram a adoração por meio de imagens, não

evitaram vincular o nome de Yahweh a coisas alheias a ele.

Indivíduos como Esdras sabiam que não poderia haver futuro, a não

ser que eles se comprometessem a viver conforme o ensino de Moisés.

Embora não pudessem ter certeza de que Yahweh ainda desejaria ter

algo a ver com eles novamente, os judaítas estavam certos de que nem

haveria essa esperança caso não houvesse esse compromisso. Tudo o que

podiam fazer era lançar-se à misericórdia de Deus. O compromisso de

viver pelo ensino de Moisés, no futuro, era um sinal de que eles,

genuinamente, depositavam as suas esperanças na misericórdia divina.

Isso significava reafirmar as suas tradições, mas também descobrir como

suas tradições precisavam ser reformuladas, a fim de haver alguma

fundamentação em uma situação inusitada. Nessa visão muito posterior,

na qual a Torá é queimada e perdida, Esdras ora pedindo a Deus que lhe

envie o Espírito Santo para ele ser o meio de restaurar a Torá a Israel.

Na Babilônia, o Espírito Santo esteve ativo ao inspirar os judaítas a

preservar a Torá e a perceber como ela precisava ser reformulada com

vistas ao futuro.

Em outras palavras, além de ser o ensino de Moisés (de Esdras e de

tantos outros cujos nomes desconhecemos), a Torá que Esdras traz é o

ensino de Yahweh, a dádiva graciosa pela qual Deus possibilita à

comunidade os meios de ela mostrar que, dessa vez, está realmente

comprometida com Deus. E, de fato, isso é confirmado. Após os dias de

Esdras, os judaítas se tornaram um povo que cultuava somente Yahweh,

que abdicou da confecção e do uso de imagens, que era cuidadoso com o

uso do nome de Yahweh e que guardava o sábado. No Novo Testamento,

não há qualquer menção aos judeus falhando em guardar essas

expectativas básicas do ensino de Moisés. Esdras tem sido descrito

como o pai do judaísmo, e, nesse sentido, essa designação é apropriada.

Um dos elogios mais justos que se pode fazer a ele é dizer que se

entregou ao estudo, à observância e ao ensino da Torá. Esdras não foi


uma pessoa que estudou apenas por apreciar estudar; o seu estudo o

motivou a ensinar. No entanto, ele não foi alguém que estudava e

ensinava, mas que, ao fim de seu dia de trabalho, enrolava o seu

manuscrito e se esquecia de seu ensino. Ao contrário, Esdras foi alguém

que vivia de acordo com o que lia e ensinava. Ele observava a Torá.

O relato sobre a missão de Esdras principia-se nos informando que

ela teve início “após essas coisas”; isto é, depois da reconstrução do

templo. Pode-se facilmente imaginar que isso ocorreu um ano ou dois

após os eventos do capítulo 6. Além do fato de Esdras ter vindo da

Babilônia, essa presunção pode contribuir para a ideia de que ele teve

algo a ver com o retorno dos judaítas do exílio. Todavia, não foi assim. A

reconstrução do templo foi concluída em 516 a.C., mas Artaxerxes

ascendeu ao trono da Pérsia em 465 a.C., de modo que a data correta

do início da missão de Esdras é 458 a.C. (sugere-se, às vezes, que esse

Artaxerxes, em cujo reinado Esdras viveu, na realidade era Artaxerxes

II, o que torna a data de Esdras 398 a.C., cerca de meio século depois).

“Após essas coisas”, a aparentemente inofensiva introdução do capítulo

obscurece o fato de que o relato avança mais de meio século. Há uma

continuidade narrativa: Esdras 1—6 diz respeito à restauração do

templo, enquanto Esdras 7—10 discorre sobre a restauração da

comunidade. Todavia, Esdras viveu cerca de um século após a queda de

Jerusalém e o transporte dos judaítas para o exílio na Babilônia. A mera

reconstrução do templo não significava a reconstrução da comunidade.

Claro que a edificação da comunidade está em constante

desenvolvimento, jamais é concluída; cada geração e cada século

precisam enfrentar novos desafios, como veremos na história de Esdras.

Pode-se também questionar o motivo pelo qual a família de Esdras não

aproveitou as oportunidades anteriores de retorno a Jerusalém. Eles

não viviam no exílio, mas na dispersão. O próprio Esdras se tornou

insatisfeito com aquela vida. Evidentemente, ele foi tomado de paixão

pela Torá e pelo objetivo de vê-la adequadamente implementada em


Jerusalém. Mas, repita comigo, “Esdras não teve nada a ver com o

retorno do exílio”.
ESDRAS 7:11-28
O QUE DEVEMOS DAR E O QUE DAMOS PORQUE QUEREMOS
11
Esta é uma cópia da carta que o rei Artaxerxes deu a Esdras, o sacerdote e erudito, letrado

12
nos assuntos sobre os mandamentos e estatutos de Yahweh para Israel: “Artaxerxes, rei dos

13
reis, a Esdras, sacerdote e erudito na lei do Deus dos céus (e assim por diante). Eis que

uma ordem foi dada por mim para que qualquer um em meu reino, do povo de Israel e de

seus sacerdotes e levitas, que voluntariamente se oferecer para ir a Jerusalém com você,

14
possa ir. Porque você é enviado pelo rei e por seus sete conselheiros a inquirir sobre Judá e

15
Jerusalém nos termos da lei de seu Deus, que está em suas mãos, e para levar prata e ouro

que o rei e seus conselheiros entregaram como oferta voluntária para o Deus de Israel, cuja

16
habitação está em Jerusalém, e qualquer prata e ouro que você encontrar em toda a

província da Babilônia, com a oferta voluntária do povo e dos sacerdotes que eles oferecem

17
voluntariamente para a casa do Deus deles em Jerusalém. Portanto, com esse dinheiro,

adquira criteriosamente novilhos, carneiros e cordeiros, e suas ofertas de grãos e ofertas

18
derramadas, e os apresente sobre o altar na casa do seu Deus em Jerusalém. E o que

parecer bom a você e aos seus irmãos fazer com o restante da prata e do ouro, de acordo com

19
a vontade de seu Deus, pode fazer. Os utensílios confiados a você para o serviço da casa do

20
seu Deus, entregue totalmente a Deus em Jerusalém. O restante das necessidades da casa

21
do seu Deus, que cabe a você prover, confie à tesouraria do rei. Eu, rei Artaxerxes — por

mim uma ordem é dada a todos os tesoureiros em além-rio, que qualquer coisa que Esdras, o

22
sacerdote e erudito na lei do Deus dos céus, lhes pedir seja integralmente atendido, até

cem talentos de prata, cem medidas de trigo, cem medidas de vinho, cem medidas de azeite e

23
sal sem limite prescrito. Qualquer coisa que seja pela ordem do Deus dos céus deve ser

plenamente provida para a casa do Deus dos céus, para que a ira não venha sobre o reino do

24
rei e dos seus filhos. E, a vocês, fazemos saber que a todos os sacerdotes, levitas, músicos,

porteiros, assistentes e trabalhadores nesta casa de Deus não é permitido impor tributos,

25
impostos e pedágios sobre eles. E você, Esdras, de acordo com a sabedoria do seu Deus,

que você possui, designe autoridades e juízes que que julguem todas as pessoas em além-rio,

todos os que conhecem as leis do seu Deus, e torne-as conhecidas aos que não as conhecem.

26
Qualquer um que não observar a lei do seu Deus e a lei do rei, o julgamento será feito a ele

plenamente, seja pela morte, pelo banimento, pelo confisco de bens ou pela prisão.”

27
Yahweh, o Deus de nossos ancestrais, seja adorado, pois colocou na mente do rei desta

28
forma para glorificar a casa de Yahweh em Jerusalém e estendeu o compromisso a mim

diante do rei, de seus conselheiros e de todos os poderosos oficiais do rei. Eu mesmo tomei

coragem de acordo com a mão de Yahweh sobre mim e reuni os líderes de Israel para subir

comigo.
Estou escrevendo no mês de janeiro e preciso arrumar tempo para

trabalhar em minha declaração de renda. Uma das consequências disso

é que saberei quanto paguei ao leão no ano passado e saberei se ainda

“devo” algum valor. Minha suposição, ano após ano, é que eu deveria

dar o dízimo — um décimo — do que ganho à minha igreja e a outras

causas cristãs e filantrópicas. Isso é apenas o que eu devo fazer de

acordo com as expectativas que Deus tem para comigo. Isso é o que

“devo”; somente quando vou além do dízimo é que entro na esfera da

escolha, na qual eu “escolho” dar. Essa é a diferença entre as obrigações

e o que as traduções tradicionais mencionam como “ofertas

voluntárias”.

Trata-se de uma distinção que já encontramos em Esdras 1 e que

reaparece aqui, na carta que expressa a comissão de Artaxerxes a Esdras

(trata-se de outra passagem escrita em aramaico, a exemplo de parte do

capítulo 4, pois é o idioma natural a ser utilizado pelo imperador).

Artaxerxes reconhece que há ofertas prescritas por Yahweh para o

templo em Jerusalém, mas ele faz contribuições além das que seriam

necessárias para elas. Isso inclui os utensílios mencionados por ele, que

não devem ser os mesmos retirados do templo em Jerusalém, no século

anterior (os quais Ciro devolveu), mas novos. Ele antecipa que os

judaítas em seu império também desejarão dar ofertas que não estão

obrigados a dar.

O princípio da voluntariedade é expresso tanto na vida das pessoas

quanto em suas ofertas. As pessoas não eram obrigadas a migrar para

Jerusalém; era possível ser leal a Yahweh na Babilônia ou em Susã, em

Londres ou em Los Angeles. Qualquer um que migra para Jerusalém

está entregando a sua vida, o seu futuro, como oferta voluntária. Essas

pessoas sabiam o que conhecemos pela leitura de Esdras e de Neemias,

isto é, que as condições em Judá eram difíceis de inúmeras maneiras.

Em nossos próprios dias, muitos judeus que “subiram” para a sua antiga

terra natal, durante o século passado, conhecem esse fato. Esdras e seus

contemporâneos descobrem-se tomados por uma paixão pelo templo,


pelo florescimento da comunidade ao redor e pela personificação da

Torá na vida dos judaítas

A exemplo de Ciro e Dario, Artaxerxes sabe que necessita de todas

as orações e do auxílio divino que puder obter como imperador; assim,

ele almeja assegurar tudo o que for possível para não fechar as portas

para tais bênçãos. Sem dúvida, ele adotou uma posição similar diante

das divindades de outros povos a ele subordinados, do mesmo modo

que o fez em relação ao Deus de Israel, e, repetindo Ciro, tendemos a

suspeitar que o rei era cínico em sua atitude e/ou que o seu receio da ira

divina refletia uma fé equivocada. Ainda que seja plausível, o problema

pode residir em nossas presunções, pois não há meios de saber quão

cínica era a sua atitude. Sua prática, porém, suscita a questão se

entregamos como ele entregou.

Os termos de sua carta indicam, com mais clareza que outros

documentos, que a sua política era tentar garantir a estabilidade e a

ordem em seu império, encorajando a implementação de uma colônia

como Judá, de um conjunto de leis que os judaítas poderiam reconhecer

como seu. Considerando a história das relações cristãs-islâmicas na

Jordânia, às quais me referi nos comentários sobre Esdras 6, deparei

com um fato interessante e levemente perturbador. Embora o rei

Abdullah II, além de igualmente encorajar as boas relações entre as

comunidades religiosas em seu país, tenha logrado êxito no uso de seu

poder real para implementar consideráveis progressos sociais,

educacionais, políticos e econômicos, os poderes do Ocidente o

pressionam para que ele introduza avanços democráticos no sentido de

dar maior poder a um governo eleito. O problema é que ele teria menos

poder para encorajar esses desenvolvimentos positivos.

Subsequentemente, a mídia noticiou a deposição do presidente da

Tunísia e perguntou se o problema no mundo árabe é que, outrora,

havia líderes dinâmicos, que apesar de autocratas e às vezes brutais,

davam esperanças ao povo, os quais hoje não mais existem. Pode ser que

a solução não seja uma democracia no estilo ocidental (que também se


ressente de dinamismo e, atualmente, falha em dar esperança à

população), mas uma autocracia melhor. O Oriente Médio, nos tempos

do Antigo Testamento, era autocrático; às vezes, também era iluminado.

Caso Artaxerxes esteja tão preocupado com a estabilidade de seu

império e com a promoção de seus próprios interesses quanto está em

honrar a Deus, então esse fato intensifica a natureza surpreendente da

forma em que Deus opera por meio dele. O ponto é refletido nas

palavras de louvor de Esdras, acrescentadas à carta. Uma vez mais, elas

fazem referência à mão de Deus sobre Esdras, expressão que aparece

duas vezes na introdução de sua missão, no início do capítulo 7. A

missão envolve uma extraordinária união do propósito imperial com o

propósito divino. A introdução à missão fala de Artaxerxes assegurar

cada pedido de Esdras, de modo que ou a ideia da missão veio de Esdras

com a concordância do rei ou a ideia foi de Artaxerxes e Esdras disse:

“Claro, mas vou precisar de alguns itens...” Seja como for, a mão de

Deus estava envolvida na concordância de Artaxerxes quanto à

natureza da missão. Como, frequentemente, ocorre, parecia impossível

explicar os espantosos eventos envolvidos na comissão do rei sem vê-los

como uma expressão do compromisso de Deus com Esdras.

Neste capítulo de Esdras e nos subsequentes, há certo

entrelaçamento entre as palavras colocadas nos lábios de Esdras e

aquelas que falam dele na terceira pessoa, o que sugere que o autor do

livro, como um todo, seja alguém que tenha incorporado material com

memórias de Esdras, além de outros, integrando-os ao livro.


ESDRAS 8:1-23
OUTRO ÊXODO
1
Estes são os cabeças ancestrais e o registro das pessoas que subiram comigo da Babilônia,

2
no reinado do rei Artaxerxes. Dos descendentes de Fineias, Gérson. Dos descendentes de

3
Itamar, Daniel. Dos descendentes de Davi, Hatus, dos descendentes de Secanias. Dos

descendentes de Parós, Zacarias, e com ele foram registrados os do sexo masculino, cento e

4
cinquenta. Dos descendentes de Paate-Moabe, Elioenai, filho de Zeraías, e com ele

5
duzentos do sexo masculino. Dos descendentes de Secanias, o filho de Jaaziel, e com ele

6
trezentos do sexo masculino. Dos descendentes de Adim, Ebede, filho de Jônatas, e com ele

7
cinquenta do sexo masculino. Dos descendentes de Elão, Jesaías, filho de Atalias, e com ele

8
setenta do sexo masculino. Dos descendentes de Sefatias, Zebadias, filho de Micael, e com

9
ele oitenta do sexo masculino. Dos descendentes de Joabe, Obadias, filho de Jeiel, e com ele

10
duzentos e dezoito do sexo masculino. Dos descendentes de Selomite, o filho de Josifias, e

11
com ele cento e sessenta do sexo masculino. Dos descendentes de Bebai, Zacarias, filho de

12
Bebai, e com ele vinte e oito homens. Dos descendentes de Azgade, Joanã, filho de Hacatã,

13
e com ele cento e dez do sexo masculino. Dos descendentes de Adonicão, os últimos, esses

14
são os seus nomes: Elifelete, Jeiel e Semaías, e com eles sessenta do sexo masculino. Dos

descendentes de Bigvai, Utai e Zabude, e com eles setenta do sexo masculino.

15
Então, eu os reuni junto ao rio que chega a Aava e acampamos ali por três dias. Olhei o

16
povo e os sacerdotes, mas não encontrei nenhum levita ali. Assim, convoquei Eliézer, Ariel,

Semaías, Elnatã, Jaribe, Elnatã, Natã, Zacarias e Mesulão como cabeças, e Joiaribe e Elnatã

17
como professores, e os enviei a Ido, o cabeça, em Casífia, o lugar [de adoração], e coloquei

palavras em sua boca para falar a Ido e a seu irmão, os atendentes de Casífia, o lugar [de

18
adoração], para nos trazer ministros para a casa do nosso Deus. De acordo com a boa mão

do nosso Deus sobre nós, eles nos trouxeram um homem de percepção, dos descendentes de

19
Mali, filho de Levi, filho de Israel, Serebias e seus filhos e parentes, vinte pessoas, e

Hasabias, e com ele Jesaías, dos descendentes de Merari, seus parentes e seus filhos, vinte

20
pessoas, e dos assistentes que Davi e os oficiais tinham dado para o serviço dos levitas,

duzentos e vinte servos; todos eles foram registrados pelo nome.

21
Convoquei um jejum ali, junto ao rio Aava, para que nos humilhássemos diante do nosso

Deus e buscássemos dele uma jornada segura para nós, nossos pequenos e todas as nossas

22
posses, porque fiquei embaraçado em pedir ao rei uma força e cavalaria para nos ajudar

contra os inimigos na jornada, pois havia dito ao rei: “A mão do nosso Deus está sobre todos

os que o buscam para o bem, mas a sua força e a sua ira estão sobre todos os que o

23
abandonam.” Portanto, jejuamos e inquirimos de Deus sobre isso, e ele se deixou

interpelar por nós.


Ontem, na igreja, o sermão assumiu a forma de uma discussão

congregacional do evangelho para o dia, que foi sobre o chamado de

Jesus aos seus primeiros discípulos. Karen fez o comentário inicial sobre

quão prontamente os pescadores responderam. Kathleen falou sobre a

necessidade de mantermos as nossas redes bem remendadas se

quisermos pescar algo, e o comentário de Anthony foi sobre a relevância

que ele podia ver nisso para a sua própria vida. Mais tarde, durante o

culto, quando compartilhamos motivos de oração e de louvor, Julian

nos contou como o Espírito Santo orientou o seu passo a passo sobre o

que fazer quando acordou, semanas atrás, ciente de que havia algo

errado com o seu coração; Gail pediu orações por seu marido que

passara por um procedimento cirúrgico naquela semana, e oramos por

Jamie, que estava sofrendo com dores em seu nervo ciático. Então,

durante os anúncios, ouvimos que uma cruz, feita por Eardley, havia

sido aprovada para ser usada em um novo centro de tratamento, aberto

a pouca distância da nossa igreja. Após a publicação deste volume, um

ou dois membros da congregação, provavelmente, o lerão e encontrarão,

nesta página, os seus nomes e os nomes de suas irmãs e de seus irmãos

na fé.

Imagino algo similar ocorrendo com as pessoas em Judá ao lerem as

listas de nomes presentes em Esdras. “Esse sou eu! Esse é o meu pai!

Esse é o meu avô!” Além disso, a lista chama a atenção para as grandes

reuniões familiares que ocorreriam em Jerusalém, porque a lista de

cabeças ancestrais é (não surpreendentemente) muito similar à lista

de Esdras 2. Aquele capítulo contém uma lista de pessoas que migraram

para Judá durante um século ou mais; a lista do capítulo 8, com

números muito mais modestos, oferece um retrato instantâneo das

pessoas que fizeram essa mudança com Esdras. Ainda que você não

tivesse parentesco com nenhuma dessas pessoas, a lista vividamente

transmite o fato de que a missão de Esdras envolve pessoas reais.

(Apenas os homens são citados, porque naquele contexto social eles,

normalmente, eram os chefes de família.) Considerando que, de modo


algum, essa ocasião significou que a totalidade de judaítas havia feito

essa mudança, a missão de Esdras levou essas pessoas a deixarem

membros de sua família estendida na Babilônia. Todavia, também

significou que eles se uniram a outros familiares em Judá.

Um dos motivos da necessidade de haver levitas na jornada é que a

Torá retrata como uma das funções dos levitas o transporte de objetos

sagrados, tais como os utensílios para uso nos serviços do templo,

doados por Artaxerxes. No entanto, isso aponta para outro significado

da presença dos levitas. No século anterior, antes de a conquista do

Império Babilônico pelos persas possibilitar o retorno do primeiro

grupo de exilados, da Babilônia para Judá, as promessas de Deus a eles,

em Isaías 40—55, previam que o êxodo futuro da Babilônia seria similar

ao êxodo original de Israel, do Egito para Canaã. A jornada dos

primeiros exilados que saíram da Babilônia, descrita no início do livro

de Esdras, seria uma espécie de repetição do êxodo (que pode ser visto

sendo concluído com a construção do templo nos dias de Salomão).

Agora, a própria jornada de Esdras, pouco menos de um século depois, é

outra repetição do êxodo, designado a liderar as ofertas no templo. Uma

das implicações dessa compreensão é que o novo êxodo não foi um

movimento único, ocorrido uma vez e concluído, de modo que seria

muito ruim perder essa chance. Na verdade, cada geração tem a

oportunidade de decidir que, embora seus pais, avós e bisavós tenham

decidido permanecer na Babilônia, eles mesmos poderiam fazer a

mudança.

Entretanto, uma reconstituição adequada do êxodo precisa

envolver Israel como um todo, e isso significa que precisa haver alguns

levitas, porque eles possuem um lugar proeminente na história do

êxodo original. Não sabemos por que nenhum levita se voluntariou,

originariamente, para se unir à comitiva de Esdras. Um dos motivos

pode ser o fato de que um pequeno número de levitas não sacerdotais

(levitas não pertencentes à linhagem de Arão) tenha sido exilado; eles

não eram tão importantes quanto os sacerdotes. E/ou, talvez, o fato de


haver poucos deles significava que eles possuíam empregos satisfatórios

em Casífia, caso esse fosse realmente um lugar de adoração, como

concluí na tradução acima (a sua localização é indeterminada). Para

eles, então, haveria mais sacrifícios envolvidos ao mudarem para Judá.

Ao que parece, a reunião junto ao rio Aava tinha tanto uma função

religiosa quanto prática. O “rio” é um dos canais que distribuem as

águas do rio Eufrates ao redor da Babilônia, os “rios da Babilônia”

junto aos quais os judaítas costumavam se reunir e lamentar o exílio

(salmo 137). No contexto da atitude singular da administração persa,

eles têm um motivo muito mais encorajador para aquela reunião.

Religiosamente, eles precisam buscar a proteção e o auxílio de Deus

para aquela viagem. Eles reforçaram a sua oração impondo sobre si

mesmos uma “humilhação”, sob a forma de um jejum. O ponto sobre o

jejum não é a autodisciplina; ele é designado a reforçar a oração deles

por proteção e auxílio, para mostrar sinceridade diante de Deus. O

Antigo e o Novo Testamentos parecem muito tranquilos quanto à ideia

de reforçar a oração dessa forma, com o intuito de chamar a atenção de

Deus. Deixar de comer mostra quão sérios somos nesse pedido a Deus.

Curiosamente, Esdras está ainda mais motivado a invocar Deus por

causa de outro testemunho que deu sobre a sua confiança em Deus e no

compromisso divino de não “abandoná-lo”. Ele, agora, percebe quanto a

sua ousadia pode ter sido precipitada, imprudente, estúpida ou

presunçosa, ao declarar o que Deus estava fazendo por ele

(especialmente em público, diante de um rei) e, então, ser deixado

vulnerável diante dos inimigos quando o rei poderia ter providenciado

alguma proteção, particularmente se o rei fosse movido por Deus a fazer

isso. No livro de Neemias, descobriremos que Neemias não comete esse

erro, pois é um indivíduo sistematicamente prático. Todavia, parece que

a estratégia envergonhada de Esdras e o seu jejum são eficazes. Deus “se

deixa interpelar” e assegura ao povo que suas orações foram ouvidas.

Agora, eles precisam apenas esperar para ver como as coisas realmente
funcionam no cumprimento da reafirmação divina, para ver se, de fato,

concluirão a jornada em segurança.


ESDRAS 8:24-36
A MÃO DE DEUS
24 25
Separei doze dos oficiais sacerdotais, Serebias, Hasabias e dez dos seus irmãos, e pesei

diante deles a prata, o ouro e os utensílios, a contribuição para a casa do nosso Deus que o

26
rei, seus conselheiros e seus oficiais, e todo o Israel, que estava presente, levantaram. Pesei

e entreguei nas mãos deles a prata, seiscentos e cinquenta talentos; os utensílios de prata,

27
cem talentos; o ouro, cem talentos; as tigelas de ouro, vinte, no valor de mil dáricos; e dois

28
utensílios de um bom e reluzente bronze, tão precioso quanto o ouro. Eu lhes disse: “Vocês

são sagrados para Yahweh, e os utensílios são sagrados, e a prata e o ouro são uma oferta

29
voluntária a Yahweh, o Deus dos nossos ancestrais. Sejam diligentes e cuidem deles até os

pesarem diante dos oficiais dos sacerdotes e levitas, e dos oficiais ancestrais de Israel, em

30
Jerusalém, nas câmaras da casa de Deus.” Então, os sacerdotes e os levitas receberam a

prata, o ouro e os utensílios que foram pesados e os levaram a Jerusalém, para a casa do nosso

31
Deus. Partimos do rio Aava no décimo segundo dia do primeiro mês e fomos para

Jerusalém. A mão do nosso Deus esteve sobre nós, e ele nos salvou das mãos de inimigos e de

32 33
emboscadas durante a jornada. Chegamos a Jerusalém, permanecemos ali três dias, e, no

quarto dia, a prata, o ouro e os utensílios foram pesados na casa do nosso Deus e entregues

nas mãos de Meremote, filho de Urias, o sacerdote, e com ele Eleazar, filho de Fineias, e com

34
eles os levitas Jozabade, filho de Jesua, e Noadias, filho de Binui, por quantidade ou por

35
peso com respeito a tudo. Todo o peso foi registrado naquela mesma hora. Os exilados que

vieram do cativeiro apresentaram ofertas queimadas ao Deus de Israel, doze touros por todo

o Israel, noventa e seis carneiros, setenta e sete cordeiros e doze bodes, como uma oferta de

36
purificação. Tudo foi uma oferta queimada a Yahweh. Eles entregaram os decretos do rei

aos sátrapas do rei e aos governadores de além-rio, e eles apoiaram o povo e a casa de Deus.

Há outro aspecto no modo de Esdras falar que me faz lembrar do casal

que mencionei em meu comentário sobre os capítulos 5 e 6; aqueles que,

inesperadamente, haviam se apaixonado quando nenhum deles era mais

tão jovem como outrora. Ambos não criam que aquele fato

extraordinário fosse apenas algo corriqueiro, mas consideravam um

milagre. Eles poderiam facilmente ter se desencontrado; não houve um

milagre visível, nem raios e trovões no céu. Mas parece maravilhoso

demais para ser visto como uma mera ocorrência casual. Eles não falam
disso como algo realizado pela própria mão de Deus, mas poderiam fazê-

lo.

Essa é a expressão de Esdras. Variantes dela surgiram seis vezes. Foi

a mão de Deus: que levou o rei a concordar com tudo o que Esdras

solicitou; o motivo de Esdras expressar a Artaxerxes a sua convicção de

que a comitiva chegaria a Jerusalém em segurança; que providenciou

alguns levitas para completar a comitiva; que os protegeu durante a

jornada; que levou a jornada a bom termo. O uso dessa expressão

particular implica um paradoxo. Quando a mão de alguém está sobre

você, você sente, não há como se enganar ou não perceber. No entanto,

a maneira de Esdras usar essa expressão sugere algo que não é

perceptível ou visível no sentido físico. Há uma espécie de intuição

religiosa que sente e vê a mão de Deus, embora não seja apenas um

sentimento ou uma fé cega, porque, Esdras poderia dizer, se você crê na

realidade de Deus em tudo, a explicação mais racional do que aconteceu

é atribuir o fato às mãos invisíveis de Deus.

Portanto, Esdras fala como um homem de fé. Talvez ele tenha sido

pouco prático ao impossibilitar a oferta da proteção imperial para a

viagem. Todavia, ele é muito prático na maneira de assegurar que a

carga extremamente valiosa da comitiva alcançasse o seu destino. Não

seria surpresa se todo aquele ouro e toda aquela prata sumissem

durante a jornada de quase 1.300 quilômetros e que membros

inescrupulosos de sua própria comitiva fossem os responsáveis pelo

desaparecimento dessa carga; daí o lembrete de que a carga é sagrada,

motivo pelo qual ela é confiada aos sacerdotes. Roubá-la seria um ato de

sacrilégio, e todos estão bem cientes de que isso seria extremamente

perigoso.

Pode-se imaginar que a chegada segura da comitiva levaria à

apresentação de ofertas no templo, não apenas porque isso fora

comissionado por Artaxerxes. As ofertas são, na maioria, múltiplos de

doze, o que, uma vez mais, sugere a ideia de que eles representam todo o

Israel com seus doze clãs. As ofertas queimadas, dadas integralmente a


Deus, são uma expressão de louvor. As ofertas de purificação

constituem um reconhecimento de que o povo que sempre viveu longe

de Jerusalém contém um acúmulo de contaminação. Vivendo na

Babilônia, eles não poderiam ter se purificado da contaminação em

razão do envolvimento de sua comunidade com deuses estrangeiros, um

dos motivos pelos quais suas famílias foram, anteriormente, exiladas.

Terão acumulado a contaminação regular que resulta do contato com a

morte e outras experiências que não poderiam evitar e não podem levar

essa contaminação para o interior do santuário. Seria um grande alívio

saber que isso poderia ser resolvido e que eles poderiam participar do

culto regular no templo.


ESDRAS 9:1-4
A IMPORTÂNCIA DA SEPARAÇÃO
1
Quando essas coisas foram concluídas, os oficiais se aproximaram e me disseram: “O povo

de Israel, os sacerdotes e os levitas não se separaram dos povos dos países, [mas agiram] de

acordo com as práticas abomináveis dos cananeus, dos hititas, dos ferezeus, dos jebuseus, dos

2
amonitas, dos moabitas, dos egípcios e dos amorreus, porque eles tomaram algumas filhas

deles para si mesmos e para seus filhos, e a semente sagrada foi misturada com os povos dos

3
países, e a mão dos oficiais e supervisores tem sido a primeira a transgredir.” Quando ouvi

essa coisa, rasguei as minhas vestes e o meu manto, puxei os cabelos da minha cabeça e da

4
minha barba e sentei-me chocado. Todos os que tinham temor pelas palavras do Deus de

Israel reuniram-se a mim por causa da transgressão dos exilados. Permaneci sentado, em

choque, até a oferta da tarde.

Anos atrás, choquei os membros do nosso grupo de estudo bíblico, ao

dizer que não conseguia entender como cristãos podiam visitar Las

Vegas. Novamente, os choquei, mais tarde, ao expressar uma observação

similar sobre um deles que pretendia celebrar o seu trigésimo

aniversário viajando pela trilha do uísque, no Kentucky. Isso é, em

parte, algo cultural; as pessoas, nos Estados Unidos, parecem capazes de

aceitar Las Vegas pelo que ela é e não se preocupar muito se, entre

outras características, ela for abusiva e autoindulgente, e isso se aplica a

muitos cristãos. Claro que a cultura britânica, da qual venho, também é

exploradora e autoindulgente, à sua própria maneira, e os cristãos

também não questionam as coisas. Poucos de nós são afetados por

qualquer coisa que poderia ser chamada de obtusidade puritana.

O povo israelita foi chamado para ser diferente das culturas

vizinhas, mas Israel raramente logrou viver de acordo com o seu

chamado, embora os ministérios de Esdras e Neemias tenham, talvez,

significado um ponto de virada nessa questão. Quando Deuteronômio

discorre sobre as práticas abomináveis dos povos vizinhos a Israel, ele se

refere a práticas como a confecção de imagens idólatras, a adoração a


outros deuses, ao sacrifício de um filho ou de uma filha, à prática de

adivinhação e à consulta aos mortos. A história que vem depois de

Deuteronômio, em Reis e Crônicas, observa, de tempos em tempos, que

essas são as práticas toleradas pelos líderes de Israel e por seu povo, o

que os levou a serem expulsos daquela terra, da mesma forma que os

seus antecessores. Esdras fornece uma lista padrão desses povos — os

cananeus, os hititas, os ferezeus, os jebuseus e os amorreus. O processo

pelo qual esses povos desapareceram foi, na verdade, lento e gradual, e

assim, por séculos, a sua forma de culto constituiu uma tentação para os

israelitas. Entretanto, nos dias de Esdras não há mais cananeus, hititas,

ferezeus, jebuseus e amorreus em Judá. Esse pode ser um dos motivos

de a passagem incluir os amonitas, os moabitas e os egípcios, citados em

outras passagens de Deuteronômio e também presentes nos dias de

Esdras; Amom e Moabe são províncias do Império Persa, a exemplo de

Judá. Todavia, o ponto geral sobre a menção a esses povos é a presunção

de que a Torá definiu um princípio sobre as relações com outros povos,

princípio esse aplicável aos relacionamentos com os povos existentes ao

tempo de Esdras e Neemias.

Os livros de Esdras e de Neemias não explicam por que os judaítas

se casaram com pessoas de outras comunidades. O pano de fundo pode

ser análogo àquele aplicado à comunidade judaica dos dias atuais, do

mesmo modo que a outros grupos étnicos no Ocidente. O exílio

significou a saída de grande parte da liderança e das pessoas das classes

mais nobres de Jerusalém e de Judá, e o vácuo resultante foi sendo

ocupado, nas décadas posteriores, por muitas pessoas com iniciativa e

recursos oriundas das regiões vizinhas que, então, se tornaram aquelas

com poder e prestígio em Judá. Para os judaítas, casar-se com pessoas

dessas famílias significaria dar um passo à frente na vida e também mais

segurança. Essas dinâmicas afetavam tanto judaítas não levados para o

exílio quanto aqueles que retornaram da Babilônia para Judá.

A Torá não proíbe o casamento com não israelitas, e famosas figuras,

como José e Moisés, casaram-se com pessoas fora da comunidade.


Embora a história enfatize a identidade moabita de Rute, isso não

sugere haver algo controverso em relação ao casamento com nenhum de

seus maridos israelitas. A base para a inadequação do casamento misto

não é étnica. Esdras 9 deixa claro que o casamento misto em si não é o

problema, mas a adesão religiosa dos casais envolvidos. É aqui que Rute

estabelece o padrão; ela chega ao conhecimento de Yahweh. Em

contraste, os casamentos reportados em Esdras são aqueles que

envolvem uma concessão quanto ao compromisso religioso. Mesmo que

o marido continue a reconhecer Yahweh, a esposa pode seguir na prática

de sua própria religião. Embora a Torá associe as “práticas abomináveis”

listadas acima aos povos cananeus e seus contemporâneos, elas também

estão presentes entre outros povos; tais práticas são comuns na

observância religiosa tradicional no Oriente Médio e em outros lugares.

Portanto, não seria surpresa se essas práticas ainda fossem observadas

nos dias de Esdras, independentemente da identidade étnica exata do

povo envolvido.

O problema quanto à mistura da semente sagrada com os povos dos

países vizinhos, por meio dos casamentos, é que a família é uma

unidade. Se um dos cônjuges cultua outros deuses ou pratica a

adivinhação (ou quer entregar um dos filhos em sacrifício), isso afeta

todo aquele lar. Mesmo que um dos cônjuges seja leal a Yahweh e

cumpra as exigências da Torá, tais práticas contaminam toda a família.

Não há como evitar o comprometimento da identidade da família

israelita. Isso envolve uma transgressão, uma falha em relação aos

direitos de Yahweh sobre Israel.

Por esse motivo, a ação sobre os casamentos mistos é o primeiro

retrato da atividade de Esdras que o livro apresenta e, na verdade, a

questão sobre a qual o restante do livro se concentra. A história de

Esdras, no capítulo 7, principia-se com “após essas coisas”, sem indicar

que sessenta anos haviam se passado, e algo similar pode ter ocorrido

com a abertura do capítulo 9, “quando essas coisas foram concluídas”.

Talvez não seja correto assumir que a história em Esdras e Neemias seja
contada em ordem cronológica. Às vezes, a narrativa bíblica nos relata

coisas em ordem de importância em vez de em ordem cronológica.

Apenas em Neemias 8 é que lemos sobre Esdras, o professor, dando

algum ensino, mas não seria surpresa se o relato em Esdras 9 fosse uma

resposta a uma atividade de ensino na qual ele já estava engajado. As

pessoas envolvidas são descritas como Israel, incluindo os sacerdotes e

os levitas, o que implica que não estão restritas a determinado grupo

dentro da comunidade. Esdras, mais tarde, se refere às pessoas como os

exilados. Caso isso tenha ocorrido algum tempo após a chegada da

comitiva de Esdras, essa referência pode incluir alguns dentre os que

chegaram com ele e também pessoas que fizeram a jornada da Babilônia

para Judá ao longo do século anterior. Não seria surpresa, igualmente,

se incluísse descendentes dos judaítas que jamais foram exilados, mas

que se identificavam com a comunidade que passou a ser liderada por

aqueles que retornaram do exílio. Tais pessoas podem ter se acostumado

a uma relação mais relaxada com os povos vizinhos e até aos casamentos

mistos. Assim, o foco nessa ação, imediatamente após o relato sobre a

chegada de Esdras, reflete a sua importância. Trata-se de uma questão

de vida ou morte para a comunidade. O propósito de Deus para que

Israel seja luz para o mundo, de abençoar o mundo por meio de Israel,

depende da continuidade da existência da comunidade israelita com o

seu testemunho sobre quem o verdadeiro Deus é e sobre como as

pessoas podem se relacionar com ele. Se Israel deixar de existir, o

propósito fracassa. Há um bom motivo para Esdras entrar em estado de

choque. As expressões físicas de seu horror, ao ouvir sobre a

transgressão, são reações de alguém que está lamentando e sofrendo,

como alguém enlutado.


ESDRAS 9:5-15
COMO FAZER A CONFISSÃO DO SEU POVO
5
Na oferta da tarde, saí de minha aflição e com minhas vestes e o manto rasgados, caí de

6
joelhos e estendi as mãos para Yahweh, meu Deus, e disse: “Meu Deus, estou por demais

embaraçado e envergonhado para levantar o meu rosto diante de ti, meu Deus, porque

nossos atos rebeldes se elevaram acima de nossa cabeça, e a nossa ofensa é grande e se

7
estende aos céus. Desde os dias de nossos ancestrais até este dia, a nossa ofensa tem sido

grande, e em nossos atos rebeldes nós, nossos reis, nossos sacerdotes temos sido entregues

nas mãos dos reis dos países, com espada, cativeiro, pilhagem e vergonha de rosto, até este

8
dia. Mas, agora, por um breve tempo, tem havido graça de Yahweh, nosso Deus, que nos

deixou um grupo de sobreviventes e nos deu uma posição em seu santo lugar. Nosso Deus

9
tem iluminado os nossos olhos e nos dado uma pequena vida em nossa servidão. Porque

somos servos, mas, em nossa escravidão, o nosso Deus não nos abandonou; antes, estendeu o

compromisso a nós diante dos reis da Pérsia. Ele nos tem dado vida, levantado a casa do

nosso Deus, colocado no lugar as suas ruínas e nos dado uma cerca em Judá e em Jerusalém.

10
Mas, agora, o que podemos dizer, nosso Deus, depois disso? Porque abandonamos os teus

11
mandamentos que decretaste pelas mãos de teus servos, os profetas, dizendo: ‘O país no

qual vocês estão entrando para tomar posse é um país contaminado pela contaminação dos

povos dos países por meio de suas práticas abomináveis com as quais eles o têm enchido, de

12
uma extremidade a outra, com a sua impureza. Por isso, agora, não deem as suas filhas aos

filhos deles, não tomem as filhas deles para os seus filhos, nem busquem o bem-estar ou o

benefício deles jamais, para que vocês possam ser fortes, comerem do melhor da terra e

13
capacitarem os seus filhos a possuí-la para sempre.’ Depois de tudo o que veio sobre nós

por causa de nossos atos perversos e das nossas grandes transgressões, quando tu, nosso

Deus, contiveste [a tua punição] aquém da nossa desobediência e nos deste um grupo de

14
sobreviventes como esse, iremos novamente quebrar os teus mandamentos e nos dar em

casamento a povos caracterizados por essas práticas abomináveis? Não ficarias irado conosco

15
e nos eliminarias sem poupar ninguém e sem deixar um grupo de sobreviventes? Yahweh,

Deus de Israel, tu és justo, porque somos deixados como um grupo de sobreviventes neste

dia. Aqui estamos diante de ti com as nossas ofensas, porque não podemos estar na tua

presença por conta delas.”

Certo dia de agosto, quando eu ainda era aluno do seminário, estava

dirigindo para casa com um amigo, após almoçar com o reitor de uma

paróquia em Londres. “Ele é um grande sujeito”, observei, “por isso é

uma pena ele ser tão ríspido”, ao comentar sobre um diálogo entre ele e
a sua empregada antes de sairmos. “Mas você é exatamente assim”, meu

amigo replicou. “Não sou, não!”, protestei. “Sim, você é”, ele insistiu,

lembrando uma discussão recente na qual eu estivera envolvido

(significativamente, não consigo lembrar o motivo). Sem perceber, eu

estava ilustrando como vemos as nossas próprias faltas em outra pessoa.

Portanto, quando vemos uma falha em alguém mais, devemos nos

perguntar se também podemos vê-la em nós. Diz-se sobre um professor

judeu, na Ucrânia, chamado Zusya, que ele sentia os pecados das

pessoas que encontrava como se fossem seus e culpava-se por eles.

Talvez ele tenha aprendido essa lição; ou, talvez, o fato de sentir os

pecados de outras pessoas como seus próprios significasse que ele se

identificava com elas, independentemente de ser caracterizado pelos

mesmos pecados.

Quando Esdras ora, ele busca a misericórdia de Deus por “nossos

atos rebeldes”. Talvez ele tenha ciência de que pode ser tentado a agir

da mesma forma que os seus companheiros judaítas; contudo, mais

provavelmente, ele está se identificando com o povo que se submeteu a

esses casamentos mistos. Uma indicação é que ele não está apenas se

identificando pessoalmente com a desobediência deles, mas

identificando a comunidade como um todo com esse ato. A ação de uma

minoria afeta o todo. Uma semana atrás, um jovem, que estava

mentalmente perturbado, começou a atirar em um evento político e

matou nove pessoas. O episódio gerou constrangimento e comoção

nacional, levando as pessoas a se questionarem: “O que há de errado

conosco?” Ainda, gerou um sentimento de vergonha nos familiares

daquele jovem. Temos consciência de que não podemos simplesmente

alegar: “Não temos nada com isso; foi apenas o ato isolado de um

perturbado mental.” Estamos conectados uns aos outros como famílias,

comunidades e nações. A mancha e a culpa daquela ocorrência se

espalham do indivíduo para a família, para a comunidade e para a

nação.
Esdras sabe que a mancha e a culpa dos casamentos mistos afetam

Judá como um todo e ora à luz desse fato. O evento da oferta da tarde é

o tempo natural para orar; a oração acompanha o sacrifício, e este

acompanha a oração, de maneira que a palavra e a ação caminham

juntas. A cada dia, os sacerdotes oferecem sacrifícios ao amanhecer e ao

entardecer. A manhã é a hora em que as pessoas podem dedicar o novo

dia a Deus e buscar a bênção divina sobre ele; o anoitecer é o momento

em que as pessoas podem olhar para trás em agradecimento e contrição.

Nesse dia, em particular, o foco da contrição deles é algo muito sério.

Recordar a nossa história como povo de Deus, regularmente,

desenvolve a consciência de quem somos. A oração de Esdras nos

lembra de que uma das formas de olhar essa história é vê-la como uma

ilustração de quão frequentemente erramos, e que esse é o olhar que as

pessoas necessitam naquele momento, quando se reúnem para fazer suas

orações da tarde.

A posição usual para a oração, na Escritura, é apresentar-se diante

de Deus como nos apresentamos diante de um rei, com as mãos

estendidas em apelo, embora diante de Deus ou de um rei se possa,

igualmente, ajoelhar-se, num sinal de auto-humilhação, para enfatizar a

condição e a necessidade do pedido. Esdras se mantém em uma posição

de auto-humilhação diante de Deus durante o dia. Ele, agora, coloca-se

de joelhos, mas adota aquela segunda posição de oração, estendendo as

mãos a Deus. Como acontece quando a comunidade oferece sacrifícios,

a oração é, portanto, não apenas uma questão de sentimentos e de

palavras, mas envolve toda a pessoa.

O elemento grave sobre a contaminação da comunidade é que ela é

consistente com a vida das pessoas ao longo dos séculos.

Reconhecidamente, a história de Israel durante os séculos anteriores

não sugere que a população comum tenha se envolvido muito em

casamentos mistos, ao contrário dos reis, especialmente Salomão, por

interesses diplomáticos. No entanto, o povo de Deus sempre é muito

hábil em descobrir novas formas de cair em confusão moral, e é isso o


que emerge no contexto de Esdras. Assim, naquele contexto, o

casamento misto era uma expressão particular de transgressão (que leva

ao desvio do caminho certo, aquele que levará ao destino almejado) e

uma forma de ofensa (em não dar a Deus o que lhe é devido). O povo

falhara em aprender com o que havia ocorrido ao longo de sua história.

A rebeldia e a ofensa dos seus ancestrais resultaram no exílio, e a

própria submissão do povo ao domínio imperial continua até “este dia”.

O comentário de Esdras sobre a continuidade dessa sujeição indica

que a sua disposição de trabalhar com as possibilidades oferecidas pela

flexibilidade do imperador da Pérsia não significa que ele simplesmente

aceita a condição colonial de Judá. Não obstante, ele reconhece que a

situação não está tão ruim quanto um século atrás. O povo continua

sendo o receptor final da bênção de Deus. O retorno dos judaítas da

Babilônia para Judá, possibilitado por Deus, era algo que eles não

mereciam. As profecias em Isaías 40—55 explicitam que os exilados não

aprenderam nada com a queda de Jerusalém ou mesmo com o exílio. A

liberdade para retornar e reconstruir o templo resultou, única e

exclusivamente, da graça divina. Daí o motivo pelo qual os judaítas não

desapareceram da história do mesmo modo que outros povos (isto é, os

ferezeus, os hititas, os jebuseus...).

Eis por que eles ainda têm uma posição em Jerusalém.

Paradoxalmente, a vida de um morador de tenda lhes fornece uma

metáfora para retratar a sua capacidade de se restabelecerem na cidade.

Eles são como as pessoas que foram capazes de cravar firmemente as

estacas de sua tenda no solo e, assim, garantir a estabilidade da tenda.

Utilizando outra metáfora, a graça de Deus é o motivo pelo qual eles

são semelhantes a pessoas que foram enfraquecidas pela falta de comida

e de água, mas foram revigoradas, e agora os seus olhos brilham. Eis por

que há vida neles, apesar de a sua posição social ainda ser de servos do

Império Persa, pessoas sem direitos políticos ou independência. Daí o

motivo de Jerusalém e Judá estarem cercados por uma cerca metafórica,

a exemplo de uma vinha (uma imagem comum para o povo de Israel),


que garantirá a proteção deles contra animais selvagens, isto é, dos

ataques dos povos vizinhos.

É essa expressão da graça de Deus que torna a transgressão da

comunidade escandalosa e inexplicável. Eles sabiam que uma base para

Deus lhes dar a terra era a transgressão dos habitantes locais; Deus não

expulsou os cananeus simplesmente porque eles estavam no caminho.

Mas, agora, os judaítas é que estão trazendo para o coração da

comunidade a mesma transgressão. O que eles tinham na cabeça? A

obrigação colocada sobre eles incluía que não deveriam buscar o bem-

estar ou o benefício dos cananeus. Existem contextos nos quais o povo

de Deus deve radicalmente dissociar-se dos malfeitores, a exemplo da

igreja em Corinto, que não deveria ter nenhuma associação com os que

se diziam cristãos, mas eram imorais sexualmente, entregando-os a

Satanás (1Coríntios 5).

Esdras associa as instruções sobre esse assunto aos profetas, o que é

um pouco estranho, pois, na realidade, elas não provêm dos Profetas,

mas da Torá, de passagens como Deuteronômio 7. Todavia, isso nos faz

lembrar que há um sentido no qual as instruções em Deuteronômio são

proféticas. Elas vêm por meio de Moisés, que é chamado profeta, e

traçam um paralelo aos desafios de profetas como Oseias. Ainda,

historicamente, havia uma interação entre a Torá, em geral,

Deuteronômio, em particular, e as ênfases desses profetas. A Torá os

influenciou, e eles influenciaram as formulações que aparecem na Torá.

A oração é encerrada com um paradoxo. Esdras ora na posição de

representante de um povo que está diante de Deus com suas ofensas,

mas que, ao mesmo tempo, reconhece que não pode estar na presença de

Deus por causa delas. Sua oração, portanto, envolve ousadia e

hesitação. Esdras sabe que Deus está certo e não possui fundamento

nenhum para apelar pela misericórdia de Deus, e ele não o faz; apenas se

ajoelha e expressa o seu apelo sem palavras.


ESDRAS 10:1-5
ONDE HÁ COMPROMISSO, HÁ ESPERANÇA
1
Enquanto Esdras está suplicando e confessando, chorando e se prostrando diante da casa

de Deus, uma grande congregação de Israel — homens, mulheres e crianças — reuniu-se a ele

2
porque o povo estava chorando profusamente. Secanias, filho de Jeiel, dos descendentes de

Elão, respondeu a Esdras: “Transgredimos contra o nosso Deus e permitimos que mulheres

estrangeiras dos povos da região viessem viver conosco. Mas, agora, há esperança para Israel,

3
apesar disso. Então, agora, selemos uma aliança com o nosso Deus para mandar embora

todas as mulheres e aqueles nascidos delas, pela decisão do meu senhor e daqueles que estão

em temor pelo mandamento do nosso Deus. Isso deveria ser feito de acordo com o ensino.

4
Estabeleça isso, porque essa matéria repousa sobre você, e estamos com você. Tome

5
coragem e aja.” Esdras assim definiu e fez os sacerdotes, os levitas e todo o Israel jurarem

agir de acordo com essas palavras, e eles juraram.

Estudantes se apaixonarem enquanto estão no seminário é uma

ocorrência bem comum e, normalmente, isso é motivo de regozijo. O

problema no caso em questão é que envolvia duas alunas, o que

significava que o amor entre elas precisava ser mantido em segredo do

seminário, cujos “padrões comunitários” exigem o compromisso de

restringir a atividade sexual a um casamento heterossexual. Embora

desejassem se casar, na época o casamento entre pessoas do mesmo sexo

ainda não tinha se tornado uma realidade, mas elas estabeleceram um

compromisso uma com a outra e passaram a usar alianças (não no dedo

habitual), que simbolizavam esse compromisso. O relacionamento

também levantou questões sobre a vocação delas, porque uma havia

sentido o chamado de Deus ao ministério, mas, a exemplo do seminário,

a denominação também exigia a restrição da atividade sexual a uma

união heterossexual. Desse modo, por um período elas mantiveram

relações sexuais, mas, com o passar do tempo, sentiram que a natureza

secreta da união resultava na falta de integridade em relação à sua

denominação, além de problemas caso o relacionamento delas se


tornasse conhecido. Assim, a um grande custo pessoal, desistiram de

qualquer expressão sexual em seu relacionamento, que se tornou

celibatário.

Em nossa cultura, existem algumas sobreposições entre as questões

levantadas pelos relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e

aquelas suscitadas pelo casamento com mulheres estrangeiras na

comunidade judaíta nos dias de Esdras. A história do relacionamento

entre as minhas duas amigas despertará sentimentos fortes nas pessoas

em, pelo menos, duas direções distintas. Algumas se indignarão pelo

fato de essa relação de amor ter sido frustrada pelas regras do seminário

e da denominação (uma igreja próxima à minha casa exibe um cartaz

declarando: “Nós cremos na igualdade no casamento”). Outras se

indignarão pelo engano deliberado do casal, comportando-se como se

afirmassem a posição da denominação quando, na realidade, não fazem

isso, minando-a secretamente. (Caso queira saber, solidarizo-me com a

posição adotada por elas após algum tempo. Reconheço que a Escritura

não aponta para a aceitação de uniões entre pessoas do mesmo sexo,

mas compreendo a posição de pessoas que sentem atração pelo mesmo

sexo e que precisam lidar com todas as questões que isso envolve.)

Igualmente, sentimentos intensos são despertados pelos casamentos

descritos em Esdras 9 e pela ação proposta por Secanias e aceita por

Esdras. No contexto da nossa cultura ocidental, podemos nos

escandalizar pela proposta de Secanias e, assim, precisamos ver a lógica

por trás dela, sugerida pelo capítulo 9. Aceitar essas uniões conjugais

coloca em risco a própria existência de Israel, já reduzido a um pequeno

remanescente. Além disso, no contexto ocidental, o foco do casamento é

o amor entre duas pessoas, porém essa ênfase é uma singularidade da

cultura do Ocidente. Em grande parte dos contextos culturais, o

casamento envolve inúmeras outras questões (como a solidificação das

relações entre diferentes comunidades, ou a provisão de um contexto

no qual os filhos possam crescer ou garantir o cuidado às mulheres); a

ênfase predominante em um relacionamento pessoal é uma distinção


cultural nossa. Sim, gosto dela também; mas ainda continua sendo uma

singularidade nossa. Não há nenhum motivo específico que leve a

pensar que esses judaítas e suas respectivas esposas amonitas ou

moabitas se casaram com base no amor, não no fortalecimento das

relações entre as comunidades ou para possibilitar que homens solteiros

achassem uma esposa e iniciassem uma família que ajudaria no cuidado

da propriedade familiar.

Uma indicação do fato que o amor não seria o motivo principal para

os casamentos é a menção na oração de Esdras: “Por isso, agora, não

deem as suas filhas aos filhos deles, não tomem as filhas deles para os

seus filhos...” O casamento é uma questão familiar e comunitária, não

algo que ocorre simplesmente porque duas pessoas se conhecem e se

apaixonam. A implicação não é que jovens são obrigados a se casar

contra a vontade; os relatos do Antigo Testamento sobre os casamentos,

tipicamente, retratam um processo no qual o casal tem o direito de se

pronunciar de uma forma ou de outra. No entanto, as dinâmicas do

processo são muito distintas das ocidentais. Além disso, a estranha

referência de Esdras sobre não buscarem o bem-estar ou o benefício dos

povos vizinhos é sugestivamente justaposto a essa descrição do

processo pelo qual os casamentos ocorrem. As uniões conjugais

destinam-se a trazer bem-estar e prosperidade para um lado, para o

outro ou para ambos. Em outras palavras, os cônjuges têm uma lógica

econômica. Bem, agora estamos num terreno que os ocidentais podem

reconhecer, pois o desenvolvimento econômico pode ser considerado o

nosso bem supremo! Os judaítas são proibidos de olhar para a vida sob

essa ótica.

A maneira pela qual os sentimentos intensos operam na outra

direção em Judá também significa que a história nada diz sobre o que

ocorre às esposas que receberam o divórcio e aos seus filhos. Essa

omissão não implica que foram simplesmente abandonados no deserto

para sobreviverem por conta própria (a julgar pelos relatos sobre

Noemi, Rute e Orfa, elas retornariam às suas famílias de nascença). Isso


simplesmente reflete o fato de que o que acontece a elas e aos seus filhos

não é a questão central da história. Reconhecidamente, mesmo se as

bases para as uniões fossem as considerações práticas que acabamos de

descrever, os casamentos poderiam muito bem ter se desenvolvido em

vínculos amorosos e devotados, a exemplo do que, regularmente, ocorre

com os casamentos arranjados; e, pelo menos, em alguns casos, a

separação causaria sofrimento aos membros dessas famílias. Esse fato

nos lembra que fazer a coisa errada pode levar a consequências terríveis

no longo prazo, mesmo se nos arrependermos da ação. Na verdade,

acertar as coisas é que causa problemas. O fato de Davi ter se

arrependido de sua ação com Bate-Seba e Urias (2Samuel 12) não

significa que a sua vida voltou a ser como era antes. Seu filho morreu, e

sua história sugere que o seu relacionamento com Deus e com sua

família, a partir de então, jamais foi o mesmo. Sempre há um preço a ser

pago pela transgressão, e, frequentemente, outras pessoas, não os

transgressores, é que o pagam.

Devemos, talvez, presumir que as pessoas não apenas perceberam

que Esdras estava orando e confessando daquela maneira, mas também

perceberam o conteúdo do que ele disse. Certamente, esperava-se que

os ouvintes e leitores deste livro, nas décadas posteriores, aprendessem

com o conteúdo de sua oração, assim como espera-se que aprendamos

com as orações que Paulo faz por suas congregações e relata a elas em

suas cartas. Já observamos que Esdras não faz nenhum pedido a Deus

para perdoar o povo por seus atos. A sua oração ilustra algo sobre a

natureza da “confissão”. Embora a confissão de pecados, na Escritura,

seja uma expressão de tristeza, ela não envolve ir a Deus para expressar

como estamos tristes, pelo menos não da mesma forma que é para os

cristãos modernos. Similarmente, a confissão de fé não envolvia ir a

Deus para expressar gratidão na mesma medida que é para nós. A

confissão envolve fazer um relato efetivo do erro que cometemos ou dos

grandes feitos de Deus.


Mas, então, a oração pode implicar que não podemos insistir em

suplicar a Deus para perdoar a comunidade por suas ações quando ela

mesma nada fez a respeito do malfeito. Por implicação, talvez seja

possível pedir a Deus que não deixe a sua ira cair sobre a comunidade

como ela merece e, por meio disso, encerrar a questão. A proposta de

Secanias é que abre a possibilidade de a ação de Deus ser antecipada,

em vez de ser meramente adiada, ou a possibilidade de uma oração

como a de Esdras solicitar perdão (há inúmeros homens chamados

Secanias em Esdras-Neemias, e não temos certeza se este Secanias pode

estar identificado com um dos outros). Secanias sabe que com Deus

nunca termina até que acabe. “Há esperança para Israel apesar disso”, se

a comunidade agir. Ela precisa assumir um novo compromisso com

Deus, selar uma aliança especial com Deus sobre esse assunto, uma

espécie de cláusula adicional ou adendo à conhecida aliança do povo

com Deus, reafirmando um aspecto daquele tratado. A própria Torá não

lida com a questão sobre o que as pessoas deveriam fazer caso

ignorassem a expectativa de não contrair matrimônio com pessoas que

cultuam outros deuses, de modo que a proposta para que os homens se

separassem de suas respectivas esposas estrangeiras não emerge

diretamente da Torá. No entanto, está de acordo com a Torá no sentido

de buscar restaurar o status quo previsto por ela.


ESDRAS 10:6-44
AÇÃO DIFÍCIL
6
Esdras levantou-se de seu lugar diante da casa de Deus e foi para a câmara de Joanã, filho

de Eliasibe. Enquanto esteve ali, ele não comeu comida e não bebeu água, porque estava

7
lamentando a transgressão dos exilados. Eles emitiram uma proclamação em Judá e em

8
Jerusalém a todo o povo do exílio: que eles deveriam se reunir em Jerusalém. Qualquer um

que não viesse em três dias, de acordo com a decisão dos oficiais e dos anciãos, toda a sua

9
propriedade seria devotada, e ele seria separado da congregação dos exilados. Assim, todos

os homens de Judá e de Benjamim se reuniram em Jerusalém em três dias; era o nono mês, o

vigésimo dia. Todo o povo assentou-se na praça diante da casa de Deus, tremendo por causa

10
da matéria e por causa das chuvas. Esdras, o sacerdote, levantou-se e lhes disse: “Vocês

transgrediram. Trouxeram mulheres estrangeiras para suas casas, aumentando as ofensas de

11
Israel. Mas, agora, confessem a Yahweh, o Deus de seus ancestrais, e façam a vontade dele.

12
Separem-se dos povos do território e das mulheres estrangeiras.” Toda a congregação

respondeu em alta voz: “Sim, [está imposto] a nós agir de acordo com a sua palavra.

13
Entretanto, a companhia é grande e o tempo é de chuvas. Não temos o vigor para

permanecermos do lado de fora, e o trabalho não é para um dia ou dois porque nos tornamos

14
muitos na rebelião sobre essa matéria. Nossos oficiais deveriam representar toda a

congregação, e qualquer um em nossas cidades que trouxe uma mulher estrangeira para a sua

casa deveria vir em tempos determinados, e com ele os anciãos de cada cidade e suas

autoridades, até afastarmos de nós a ira ardente do nosso Deus por causa dessa matéria.”

15
Apenas Jônatas, filho de Asael, e Jaseias, filho de Ticvá, posicionaram-se contra isso;

16
Mesulão e Sabetai, o levita, os apoiaram. Assim, o povo do exílio agiu dessa maneira;

Esdras, o sacerdote, [e] os homens que eram os cabeças ancestrais, para cada família

ancestral, e todos eles pelo nome, separaram-se e assentaram-se no primeiro dia do décimo

17
mês, para investigarem a matéria. Eles terminaram com todos os homens que tinham

trazido mulheres estrangeiras para casa no primeiro dia do primeiro mês.

18
Foram encontrados entre os filhos dos sacerdotes que trouxeram mulheres estrangeiras

para casa: Jesua, filho de Jozadaque, e seus irmãos, Maaseias, Eliézer, Jaribe e Gedalias.

19
Eles apertaram as mãos [em garantia] para mandarem embora suas esposas e ofereceram

20
uma oferta de restituição, um carneiro do rebanho, pela ofensa deles. Dos filhos de Imer,

21 22
Hanani e Zebadias. Dos filhos de Harim, Maaseias, Elias, Semaías, Jeiel e Uzias. Dos

23
filhos de Pasur, Elioenai, Maaseias, Ismael, Natanael, Jozabade e Eleasa. Dos levitas,

24
Jozabade, Simei, Quelaías (isto é, Quelita), Petaías, Judá e Eliézer. Dos cantores, Eliasibe.

25
Dos porteiros, Salum, Telém e Uri. Dos israelitas: dos filhos de Parós, Ramias, Jezias,

26
Malquias, Miamim, Eleazar, Malquias e Benaia. Dos filhos de Elão, Matanias, Zacarias,

27
Jeiel, Abdi, Jeremote e Elias. Dos filhos de Zatu, Elioenai, Eliasibe, Matanias, Jeremote,

28 29
Zabade e Aziza. Dos filhos de Bebai, Joanã, Hananias, Zabai e Atlai. Dos filhos de Bani,
30
Mesulão, Maluque, Adaías, Jasube, Seal e Jeremote. Dos filhos de Paate-Moabe, Adna,

31
Quelal, Benaia, Maaseias, Matanias, Bezalel, Binui e Manassés. Dos filhos de Harim,

32 33
Eliézer, Issias, Malquias, Semaías, Simeão, Benjamim, Maluque e Semarias. Dos filhos

34
de Hasum, Matenai, Matatá, Zabade, Elifelete, Jeremai, Manassés e Simei. Dos filhos de

35 36
Bani, Maadai, Anrão, Uel, Benaia, Bedias, Queluí, Vanias, Meremote, Eliasibe,

37 38 39 40
Matanias, Matenai, Jaasai, Bani, Binui, Simei, Selemias, Natã, Adaías, Macnadbai,

41 42 43
Sasai, Sarai, Azareel, Selemias, Semarias, Salum, Amarias, José. Dos filhos de Nebo,

44
Jeiel, Matitias, Zabade, Zebina, Jadai, Joel e Benaia. Todos estes tinham tomado esposas

estrangeiras, e havia algumas delas que eram mulheres que tinham gerado filhos.

Certo feriado prolongado, quando eu ainda era garoto, fomos em uma

viagem de família para a casa de uma tia que morava no litoral. Quando

estávamos próximos do nosso destino, meu pai ficou irritado por ser

obrigado a dirigir, por algum tempo, atrás de um caminhão lento e

decidiu fazer uma ultrapassagem quando a estrada parecia livre, apesar

da linha dupla contínua entre as faixas sinalizando “não ultrapasse”, que

estava lá por um bom motivo. A estrada estava prestes a dar um

mergulho, o que impediu o meu pai de ver que, na verdade, a pista não

estava livre. Como resultado, colidimos com um carro que vinha na

direção contrária. Ninguém ficou ferido, mas meu pai foi levado ao

tribunal, pagou uma multa, e a infração foi devidamente registrada em

sua habilitação. Após certo tempo, é permitido retirar esse registro da

habilitação. Alguns anos mais tarde, perguntei ao meu pai por que ele

não solicitara a remoção. Ele respondeu que queria deixar a lembrança

do erro que havia cometido, talvez como um lembrete para mim

também.

Pergunto-me por que Esdras inclui a lista dos homens que se

submeteram a casamentos mistos? Imediatamente após o evento, a

publicação da lista, certamente, provocaria um sentimento de vergonha

entre os homens presentes nela, embora eles pudessem olhar para a lista

com o mesmo sentimento que meu pai olhava para o registro da

infração em sua habilitação. Estar entre os transgressores, mas manter


segredo sobre isso e viver em constante preocupação de que alguém

mais descubra, ou jamais falar a respeito, mesmo que seja do

conhecimento de outros, pode ser uma carga ainda mais pesada do que

o sentimento de vergonha de alguém que, pelo menos, fez algo a

respeito. A confissão diante de outras pessoas e, claro, diante de Deus,

resulta em uma espécie de alívio.

Portanto, o fato de o capítulo listar homens que fizeram a coisa

certa pode até lhes dar um sentimento de honra. Eles erraram, mas

corrigiram o erro. O motivo de incluir a lista no livro talvez tenha sido

o de fazer uma declaração mais ampla diante de Deus. Trata-se de uma

demonstração de seriedade em relação aos casamentos mistos que, de

fato, prejudicavam o compromisso com Yahweh. A nota quase cômica

sobre as dificuldades de permanecer por causa da chuva sublinha o

ponto. O final do nono mês, quando o ano começa com a Páscoa,

implicaria dezembro, o período das primeiras chuvas de inverno.

Esdras, aparentemente, vai para a câmara de Joanã, filho de Eliasibe,

com o objetivo de redigir a proclamação que vem a seguir. Nos dias de

Neemias, havia um sacerdote sênior chamado Joanã, que era neto de um

homem chamado Eliasibe, mas, se a missão de Esdras ocorre ao tempo

de Artaxerxes I, é provável que este seja outro Joanã. “Devotar” a

propriedade de alguém significaria que ela seria dedicada a Deus e

incluída entre os ativos do templo. A sanção final, mencionada na

proclamação, significa que um homem casado com alguém de outra

comunidade teria que fazer uma escolha sobre a qual das comunidades

ele pertence. Ele pode ser um amonita ou um moabita, se assim desejar,

e servir às divindades amonitas ou moabitas, ou pode ser um judaíta e

servir a Yahweh. Ele não pode tentar combinar lealdades e deve escolher

a quem deseja servir.

A resposta de Esdras à assembleia explicita o ponto que emerge de

sua oração e da proposta de Secanias. Quando as coisas dão errado, o

arrependimento exigido necessita envolver a confissão (a contribuição

de Esdras) e um retorno ao cumprimento da vontade de Deus (a ação


que resulta da proposta de Secanias). Todavia, há um terceiro elemento

na resposta. Em adição, os sacerdotes oferecem uma oferta de

restituição. Talvez a história presuma que eles apresentaram a oferta em

benefício de todos os homens envolvidos, ou pode ser que a condição

sacerdotal deles torna a sua culpa especial. Seja como for, a natureza de

uma oferta de restituição é oferecer algo que simbolicamente compense

o mal cometido. A oferta reforça o fato de as pessoas estarem trocando a

sua fidelidade.

Esdras 9 e 10 compartilham uma característica presente em

inúmeras outras histórias bíblicas: não comentar sobre a correção ou o

erro do que está sendo relatado. No caso em questão, o texto não diz

que Esdras fez a coisa certa, embora a sua atitude geral em relação a

Esdras implique, fortemente, que o sacerdote-erudito agiu com

correção. Com frequência, a Bíblia fala de pessoas realizando atos que

ela não aprovaria, embora não faça isso de modo explícito. Assim,

podemos indagar se o livro deixa uma abertura para questionarmos se a

ação de Esdras se encaixa no restante da Escritura. Talvez não haja uma

ação ideal a ser tomada por Esdras; romper os casamentos foi, de fato,

uma ação terrível, mas, por outo lado, aceitar simplesmente aquela

prática poderia colocar em risco o futuro da comunidade. Poderia

significar o desaparecimento da comunidade judaica, a exemplo do que

ocorreu com os amonitas e moabitas, e, consequentemente, a

inexistência da igreja cristã. Seria uma atitude sábia pensarmos duas

vezes antes de assumirmos, como leitores ocidentais, que podemos ver o

certo e o errado com mais clareza do que Esdras.


NEEMIAS

NEEMIAS 1:1-4
UM GRUPO DE SOBREVIVENTES, ATRIBULADOS E MISERÁVEIS
1
Os atos de Neemias, filho de Hacalias. No mês de quisleu, no vigésimo ano, quando eu

2
estava na fortaleza de Susã, Hanani, um dos meus irmãos, veio, ele e alguns homens de

Judá, e lhes perguntei sobre os judaítas, o grupo de sobreviventes que restou do exílio, e

3
sobre Jerusalém. Eles me disseram: “O povo que restou do exílio, está em grande

dificuldade e desgraça lá na província. O muro de Jerusalém está destruído, e os seus portões

4
foram queimados.” Quando ouvi essas coisas, sentei-me, e chorei e lamentei por dias. Fiquei

jejuando e suplicando diante do Deus dos céus.

Uma semana após nos mudarmos para a Califórnia, a princesa Diana

faleceu em um acidente de carro. Ao longo das semanas seguintes,

acompanhei perplexo os relatos na mídia sobre a reação nacional na

Grã-Bretanha. Em menor escala, esse sentimento de perplexidade

ressurge, de tempos em tempos, enquanto acompanho ou leio sobre os

acontecimentos que envolvem o meu país de origem e o que os

britânicos (supostamente) estão pensando. Isso ocorreu esta semana, ao

assistir ao filme O discurso do rei e ler os relatos do noticiário com

respeito às reações causadas por ele na Grã-Bretanha. As pessoas, com

frequência, me questionam sobre algum aspecto da vida britânica, e

tenho de lembrar a mim e a elas que catorze anos se passaram desde que

me mudei para os Estados Unidos. Agora, tenho apenas um pouco mais

de conhecimento sobre a Grã-Bretanha do que qualquer outra pessoa

que vive aqui e confia nas informações da mídia para compreender o que

está ocorrendo do outro lado do Atlântico. Com certa vergonha,

percebo que, hoje, oro mais regularmente pelos Estados Unidos e pela

igreja aqui do que pela Grã-Bretanha e a igreja britânica (mudarei isso

amanhã mesmo).
Neemias, aparentemente, nada sabia sobre como estava a situação

em Judá. Susã era uma das capitais mais importantes do Império Persa,

localizada a oeste da própria Pérsia e, portanto, não muito distante da

Babilônia. A maneira mais óbvia de ler a história é considerar que o rei

ainda é Artaxerxes I e que o ano é o vigésimo de seu reinado (445 a.C.).

A data é, portanto, um século após Ciro primeiramente encorajar os

judaítas a saírem da Babilônia para Judá, com o objetivo de reconstruir

o templo, e metade do período de domínio do Império Persa, derrubado

por Alexandre, nos anos 330 a.C. Treze anos haviam se passado após a

missão de Esdras, mas há quem defenda que um ou os dois, na verdade,

pertenceram ao reinado posterior de Artaxerxes II. No capítulo 8,

descobriremos que Esdras ainda está em Jerusalém, embora também

descobriremos, no capítulo 13, que Neemias fez, pelo menos, uma

viagem de volta a Susã, e talvez Esdras tenha feito algo similar.

A forma com que as notícias chegaram por meio dos irmãos de

Neemias e de alguns outros judaítas indica a possibilidade de haver

movimentação entre Jerusalém e a capital persa, embora possa insinuar

que (a exemplo de Esdras e Neemias), Hanani e comitiva estivessem

envolvidos na administração imperial e na supervisão de Judá; eles não

foram para Judá apenas para visitar a família ou gozar férias. A

descrição da comunidade como “o grupo de sobreviventes que restou do

exílio” poderia incluir tanto aqueles que haviam retornado do exílio na

Babilônia quanto os que não foram levados para a capital babilônica,

mas que tinham sobrevivido ao exílio em Judá mesmo e que se

identificaram com a comunidade liderada pelas pessoas regressas da

Babilônia, ao longo do século anterior. Todavia, a expressão indica que

a comunidade ainda é pequena e vive precariamente; é apenas um grupo

de sobreviventes. A questão é sublinhada pela descrição adicional de

que eles estão em “grande dificuldade e desgraça”. Já sabemos, do livro

de Esdras, sobre as tensões entre Judá e as demais comunidades locais

(as subprovíncias persas vizinhas são: Samaria, Asdode, Edom, Moabe e

Amom), e pode-se imaginar que a complexidade dessas relações


intensificaria o sentimento de vergonha dos judaítas pelas condições

precárias nas quais viviam.

O problema era mais sério do que uma sensação de constrangedora

humilhação, à qual as pessoas poderiam apenas dar de ombros. Uma

cidade necessita de muros e portões para sua proteção; até mesmo Susã

é uma cidade fortificada. No século XXI, os muros impressionantes de

Jerusalém, com seus portões, constituem apenas uma atração turística,

mas no século V a.C. podiam potencialmente ser uma questão de vida

ou morte. Em Jerusalém, os muros estavam em ruínas, e os portões

queimados. Embora seja possível que Hanani esteja simplesmente

reportando que a cidade ainda está na mesma condição desde a sua

destruição pelos babilônios, o efeito devastador desse relatório sobre

Neemias pode sugerir que algum outro desastre tenha ocorrido mais

recentemente, e somente naquela ocasião é que a notícia chegou a Susã;

Hanani não está apenas se referindo a uma situação prolongada de

dificuldades e de desgraça. Não há outros registros desse evento, mas

estaria de acordo com os relatos sobre as conturbadas relações na

região, e não seria surpresa caso os judaítas fossem mais eficazes na

reconstrução do templo e na solução dos casamentos mistos do que no

combate a um cerco pelos inimigos.


NEEMIAS 1:5-11A
OUSADIA COMO SERVO DE DEUS
5
Eu disse: “Ó Yahweh, Deus dos céus, Deus grande e assombroso, que guarda a aliança e o

6
compromisso com os que se dedicam a ele e guardam os seus mandamentos! Por favor, que

os teus ouvidos se tornem atentos e os teus olhos estejam abertos para ouvir a súplica do teu

servo, que estou fazendo hoje diante de ti, dia e noite, por teus servos, os israelitas, fazendo

confissão quanto às falhas dos israelitas das quais somos culpados em relação a ti. Eu e meus

7
ancestrais falhamos. Agimos muito danosamente em relação a ti. Não guardamos os

8
mandamentos, os estatutos e a regras que ordenaste a Moisés, teu servo. Lembra-te da

palavra que ordenaste a Moisés, teu servo: ‘Se vocês, povo, forem infiéis, eu os espalharei

9
entre os povos, mas, se vocês se voltarem para mim e guardarem os meus mandamentos e os

cumprirem, mesmo se o povo disperso estiver na extremidade dos céus, de lá eu os reunirei e

10
os trarei para o lugar que escolhi para o meu nome habitar.’ E eles são os teus servos e o

11a
teu povo que redimiste por teu grande poder e tua forte mão. Ó meu Senhor! Por favor,

que os teus ouvidos se tornem atentos à súplica deste teu servo e à súplica dos teus servos

que desejam reverenciar o teu nome. Capacita o teu servo a ter sucesso hoje e lhe dê

compaixão diante deste homem.”

Ontem, na igreja, estávamos discutindo sobre as “Bem-aventuranças”

de Jesus, ou as bênçãos no Sermão do Monte, até chegarmos a uma

discussão amistosa sobre o que temos de fazer como discípulos de Jesus

ou, antes, sobre as implicações do fato de essas bem-aventuranças não

focarem o que temos de fazer; antes, elas são endereçadas a pessoas que

não podem fazer muito, que são pobres de espírito, pranteadores,

humildes, famintos ou perseguidos. Alguém comentou sobre como as

mulheres no Sudão que são estupradas ainda se regozijam em Deus,

enquanto outra lembrou que muitos haitianos, mesmo após o

terremoto, ainda estavam se regozijando em Deus. Mais adiante, uma

mulher da congregação revelou que a discussão possibilitou a ela virar

uma página em seu relacionamento com Deus. Ela é passionalmente

comprometida em trabalhar para o triunfo da justiça e, igualmente,

zanga-se com Deus por não tornar este mundo mais justo; ela
compreendeu que não precisava carregar toda essa carga sobre os

ombros e também perder de vista o que Deus está realizando.

A oração de Neemias levanta algumas questões relacionadas. Ele ora

como alguém que está comprometido com sua oração, e o faz com um

senso de urgência para que Deus entre em ação da maneira que apenas

ele é capaz; além disso, reconhece a falha do povo em favor do qual ora.

Sua reação ao ouvir as notícias sobre Jerusalém nos faz lembrar a reação

de Esdras ao ser informado sobre os casamentos mistos, embora

expressa em termos distintos. Neemias se senta (em choque, a exemplo

de Esdras?), pranteia e lamenta como uma pessoa enlutada pela morte

de alguém. O salmo 137 expressa o compromisso dos judaítas exilados

na Babilônia de jamais se esquecerem de Jerusalém; o judaíta Neemias,

em Susã, aceita o mesmo compromisso e reage às informações sobre a

situação em Jerusalém como se fosse a morte de um ente querido. Por

outro lado, o seu jejum compara-se à ação de Esdras e de sua comitiva

quando se preparavam para a jornada até Jerusalém, e sua súplica

assemelha-se à atitude de Esdras ao ouvir sobre os casamentos mistos.

A oração de Neemias começa com as duas formas de confissão que já

observamos em relação à oração de Esdras. Primeiro, há confissão sobre

quem Deus é; trata-se de uma característica comum da oração na

Bíblia. É o fundamento de tudo o que vem a seguir. Oramos porque

Deus é o Deus que nos convidou a orar a ele pelo nome, o nome

Yahweh, o Deus que não é simplesmente alguém em um relacionamento

pessoal conosco, mas o Senhor todo-poderoso (o Deus dos céus).

Invertendo os pontos, esse Deus é grande e assombroso, mas também é

o Deus que guarda a aliança e o compromisso, confiável por ser fiel a

palavras e ações. O espinho na carne que Neemias sabe que precisa

reconhecer é que somente podemos apelar a essas qualidades divinas se

formos pessoas dedicadas a Deus (o verbo é tradicionalmente traduzido

por “amor”, mas isso significa uma lealdade abnegada, não apenas uma

emoção) e que guardam os seus mandamentos. A exemplo do ser

humano, é possível que Deus guarde a aliança e o compromisso mesmo


se a outra parte no relacionamento não agir assim. Todavia, seríamos

tolos caso presumíssemos isso, do mesmo modo que um marido infiel à

sua esposa presume que tudo ficará bem se ele apenas expressar o seu

arrependimento.

Esse espinho na carne é um qualificativo sério para Neemias. Ele

sabe que o seu povo não tem sido fiel à sua posição no relacionamento.

Uma vez mais, a exemplo de Esdras em sua oração, Neemias sabe que

precisa reconhecer a história transgressora de Israel ao longo dos

séculos. Caso a destruição dos muros e portões de Jerusalém seja um

fato recente, então isso constitui um abalo secundário dos eventos de

587 a.C. e, portanto, do castigo que esses eventos incorporaram. Em

outras palavras, embora as ações daquela geração possam ter levado aos

seus problemas atuais, não há sugestão ou indicação de que é assim. Do

mesmo modo que ele sabe que precisa se identificar com as

transgressões de seu povo para fazer confissão delas, também sabe que a

geração atual precisa se identificar com as transgressões dos seus

antepassados e confessá-las. Não há indícios de que os pecados de uma

geração não sejam visitados na próxima.

Portanto, Neemias sabe que necessita reconhecer as falhas de seu

povo; essa é a palavra no original, regularmente traduzida por

“pecados”, mas “falhas” é o seu significado básico. Neemias age

seriamente em relação a essa falha; ele a usa em três ocasiões, fazendo

confissão “quanto às falhas dos israelitas das quais somos culpados em

relação a ti. Eu e meus ancestrais falhamos”. Pode-se dizer que é lugar-

comum, mas, se for assim, a referência subsequente a “dano” é bem

menos clichê. Essa palavra é também repetida para sublinhar o ponto —

mais textualmente, “com dano nós agimos danosamente”. É a palavra

utilizada por Esdras para se referir a danificar o templo. É como se o

povo estivesse buscando prejudicar Deus ou os interesses divinos

quando falharam em cumprir o que Deus disse, como se almejassem

atacar Deus.
No entanto, Neemias igualmente sabe que a mesma Torá que

advertiu quanto às consequências da falha deliberada, também

prometeu que o castigo não significaria o fim. De certa forma, Deus é,

na verdade, semelhante a uma esposa cujo marido pode ter a esperança

de que ela o receberá de volta, caso houver transformação real em sua

vida. Além disso, a exemplo de Moisés, Neemias pode apelar para o fato

de que abandonar Israel contraria os interesses de Deus porque isso

significa, em primeiro lugar, desperdiçar todo o esforço divino para

redimir Israel do Egito.

Há, ainda, uma base adicional para a sua oração, embora ela envolva

um paradoxo. Do mesmo modo que Esdras, Neemias se identifica com o

seu povo em sua transgressão. Ele sabe que não podemos alegar que a

falha da nossa nação ou da igreja pertence a elas, não a nós; somos parte

de nossa nação e de nossa igreja e estamos implicados tanto no futuro

da nação quanto no da igreja. Todavia, Neemias segue apelando para o

fato de que ele é um servo de Deus. Ele aplica a expressão “servos de

Deus” ao seu povo, o mesmo que falhou e causou danos, mas,

evidentemente, essa é uma espécie de descrição honorária; o

comportamento deles não era fiel e servil. No entanto, quando Neemias

se autodenomina servo de Deus, ele quer expressar que está

genuinamente comprometido com o seu Senhor. O ponto é explicitado

por referir-se a servos que reverenciam o nome de Deus — em outras

palavras, pessoas que sabem quem Deus é e que se comportam de

acordo com esse conhecimento. Reverenciar a Deus envolve fazer o que

ele diz. Além da falha duradoura por parte dos servos de Deus, Neemias

quer que Deus perceba o compromisso de servos como ele e Hanani e

considere mais o segundo fato do que o primeiro. Em favor deles, ele

está preparado para dizer: “Estou disposto a fazer qualquer coisa que me

pedires para compensar a ofensa que causamos a ti — apenas diga-me o

que é.” Neemias, portanto, coloca-se em uma posição de servo

incondicional de seu senhor.


Nas circunstâncias particulares em que se encontra, ele sabe que a

primeira coisa que necessita é que o rei Artaxerxes sinta alguma

compaixão por ele. Essa não é uma virtude real regular, embora haja a

possibilidade de o seu relacionamento particular com o rei poder levá-lo

a se preocupar com algo que preocupa Neemias, caso contrário ele

jamais se importaria com a precária condição de uma cidade obscura na

extremidade de seu império.

Neemias sabe como apelar a Deus para obter o que, passionalmente,

deseja para o seu próprio povo.


NEEMIAS 1:11B—2:10
OUSADIA (E DISCRIÇÃO) COMO SERVO DO REI

1:11b
Ora, eu mesmo era o copeiro do rei.

CAPÍTULO 2

1
Então, no mês de nisã, no vigésimo ano do rei Artaxerxes, quando o vinho estava diante

2
dele, peguei o vinho e o servi ao rei. Eu jamais estivera perturbado na frente dele, de

maneira que o rei me disse: “Por que a sua face está perturbada? Você não está doente. Isso

3
pode ser apenas perturbação de mente.” Fiquei com muito medo, mas disse ao rei: “Vida

longa ao rei! Por que a minha face não estaria perturbada quando a cidade que é o lugar de

sepultamento de meus ancestrais está devastada e os seus portões foram consumidos pelo

4 5
fogo?” O rei me disse: “O que você está pedindo?” Supliquei ao Deus dos céus e disse ao

rei: “Se for do agrado do rei e se o teu servo parecer agradável diante de ti, que me envies

para Judá, para a cidade que é o lugar de sepultamento de meus ancestrais, para que eu possa

6
reconstruí-la.” O rei me disse, com a consorte assentada ao seu lado: “Quanto tempo

demorará a sua jornada? Quando você voltará?” Isso pareceu agradável diante do rei, ele me

7
enviou, e eu lhe dei uma data. Disse ao rei: “Se for agradável ao rei, que me sejam dadas

8
cartas aos governadores de além-rio para que me deixem passar até chegar a Judá e uma

carta a Asafe, guardião do parque do rei, para que ele possa me dar madeira para cobrir os

portões da fortaleza que pertence a casa, para o muro da cidade e para a casa à qual devo ir.”

9
O rei as deu a mim de acordo com a boa mão de meu Deus sobre mim. Fui aos governadores

de além-rio e lhes entreguei as cartas do rei; o rei enviou comigo oficiais do exército e

10
cavalaria. Mas, quando Sambalate, o horonita, e Tobias, o servo amonita, ouviram, muito

os desagradou que alguém tivesse vindo inquirir sobre a boa sorte dos israelitas.

Amigos meus fazem “orações-flecha” por coisas como uma vaga de

estacionamento. Na origem, essa expressão refere-se a uma oração como

a que segue: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de

mim, um pecador” — a espécie de oração que pode ser feita a qualquer

momento do dia como parte do “orai sem cessar”, mas pode também

denotar uma oração breve mais específica expressada em meio a alguma

necessidade prática. Com frequência, agradeço a Deus por uma vaga de

estacionamento conveniente e por outras bênçãos triviais, embora

tenha dificuldades em fornecer a base teológica para essa ação; Deus


interveio para fazer aquele motorista sair da vaga ou o seu movimento

estava inserido no plano de Deus para o mundo desde o princípio? Às

vezes, digo a Deus: “Seria ótimo se [...] (por exemplo, eu encontrasse

uma vaga rapidamente, pois estou atrasado para a reunião).” Todavia,

falta-me a convicção ou a fundamentação teológica para, de fato, orar

por algo que, na verdade, é apenas uma questão de conveniência.

Não estou certo se Neemias me consideraria um homem sem fé. Ele

é um homem prático, com os pés no chão e realista; parte de sua reação

às notícias sobre Jerusalém é, obviamente, a de se comprometer a tentar

fazer algo a respeito. Mas, entretecido com esse aspecto de suas

características pessoais, a história o retrata como um homem que ora.

Eu não ficaria surpreso se ele orasse com seus olhos na direção de

Jerusalém, durante os sacrifícios da manhã e da tarde, a exemplo de

Daniel (e Esdras, suspeito eu). Sabemos que orar foi a sua primeira

reação após ouvir as más notícias sobre a cidade de seus ancestrais.

O encerramento da sua oração indica que Neemias tem consciência

de que necessita se tornar o agente de alguma ação com respeito à sua

preocupação por Jerusalém. Mas, com base nisso, não deveríamos

concluir que sempre devemos ser as pessoas a resolver as questões pelas

quais oramos. É fácil a oração se tornar um meio indireto de nos

exortarmos a assumir a responsabilidade por algo. Embora seja possível

usar a oração como uma forma de escapar da ação, na cultura ocidental,

pelo menos, temos a propensão de considerar que tudo depende de nós,

e a nossa oração passa a ser uma mera formalidade. A palavra para

oração que Neemias usa é suplicar ou apelar. É uma palavra

regularmente ouvida em um tribunal, que seria usada por uma pessoa

implorando por justiça ou misericórdia em uma situação em que não

pode fazer nada.

Logo após a súplica, com a qual responde às notícias sobre

Jerusalém, é que ele faz uma oração-flecha no curso de sua conversa

com o rei. Neemias vivia em Susã como um importante membro do

grupo de serviçais do rei. Exercendo a função de copeiro, ele era


responsável pela adega de vinhos; igualmente, teria a responsabilidade

de provar o vinho do rei para assegurar que a bebida não estava

envenenada. Esse ofício poderia significar que era próximo ao rei, como

companhia e confidente, e o desenvolvimento dos eventos indica que

ele, de fato, estava em uma posição de fazer uso dessa condição. Ele não

está precisando achar uma vaga de estacionamento; antes, sabe que esse

é o momento no qual deve agir em relação ao seu compromisso de

tentar fazer algo a respeito das notícias vindas de Jerusalém. Ele sabe

que as chances de se ausentar do trabalho são reduzidas por ser o braço

direito do rei nos assuntos domésticos. Sabe que, de qualquer forma,

necessita da autorização e do apoio imperial para fazer algo em relação à

situação de Jerusalém. Todavia, ele também sabe que, na função de

copeiro, o seu pedido está muito além de sua faixa salarial. Pode-se

dizer que ele está pedindo por uma inversão de papéis. Em vez de ele

fazer o que o rei pede, quer que o rei faça o que ele está solicitando. A

concessão de seu pedido irá requerer algo próximo a um milagre.

Talvez a sua oração anterior, pedindo compaixão, esteja relacionada

com o temor que ele, agora, expressa. Normalmente, presume-se que o

temor de Neemias resulte de uma regra de etiqueta que exige que os

serviçais do rei sempre estejam sorridentes e alegres; ao executar o seu

serviço, o servo deve deixar as questões pessoais do lado de fora. As

histórias em Daniel e Ester mostram quão voláteis os reis podem ser.

A reação do rei ao ver o olhar abatido no rosto de seu copeiro pode

sugerir compaixão em vez de afronta, mas Neemias também sabe que,

provavelmente, terá uma única oportunidade de obter a aprovação do

rei para o plano que está desenvolvendo em sua mente. Uma vez mais,

ele mostra que é um homem tanto de ação quanto de oração. Neemias

revela diretamente o motivo de seu abatimento, e a ênfase quanto ao

fato de Jerusalém ser o local no qual os seus ancestrais estão sepultados

seria algo premeditado para sensibilizar o rei no contexto de uma

cultura na qual o local de sepultamento de familiares era merecedor de


grande respeito. Nesse estágio, Neemias nada menciona sobre os muros

da cidade.

Quando Artaxerxes responde positivamente à sua explanação é que

Neemias expressa a sua oração-flecha. Artaxerxes diz: “Está certo! O

que você quer que eu faça?”, ou, talvez, “O que você quer fazer?”. Isso

significa que o rei evita punir Neemias por sua aparência triste. Mas

será que a consideração e a compaixão do rei por ele chegarão ao ponto

de autorizá-lo a ir para Jerusalém e fazer algo pela situação ali? A

compaixão real por Neemias se estenderá à cidade? Esse é o tema de sua

oração-flecha. Não está claro o motivo de a presença da rainha ser

mencionada. Talvez o fato de os dois homens terem companhia torne

mais difícil para o rei atender ao pedido de Neemias, para não parecer

fraco diante de sua consorte; ou, talvez, isso explique em parte o motivo

de Artaxerxes estar benevolente naquele, aparentemente, jantar

privado, em lugar de uma ocasião de Estado, quando uma mulher não

estaria presente. Se for assim, trata-se de um daqueles fatos incidentais

que contribuíram para a oração de Neemias receber uma resposta

favorável.

Neemias prossegue em sua praticidade; ele necessita de recursos. A

exemplo do que ocorreu na reconstrução do templo, ele será capaz de

reutilizar as pedras das ruínas do muro, mas precisará de madeira para

suas torres, portões e para a proteção do templo e a fortificação ao norte

do monte do templo que guardava o acesso a ele. A referência à própria

casa de Neemias sugere ser a residência de sua família, que precisará ser

reconstruída da mesma forma que grande parte da cidade. O nome

judeu do guardião imperial do parque florestal do rei indica que a sua

localidade está na área de Judá, e faria sentido Neemias usar a madeira

local em lugar de transportá-la de Susã (a palavra para “jardim” é o

termo persa pardes, do qual deriva a palavra “paraíso” — embora a

palavra não seja usada com esse sentido no Antigo Testamento).

Neemias, igualmente, precisa ser capaz de provar a sua autorização

para realizar o trabalho quando encontrar os administradores de


Artaxerxes responsáveis pela supervisão da província. A sabedoria do

pedido logo emerge na menção à irritação de Sambalate, o horonita, e

de Tobias, o amonita, sobre os quais ainda ouviremos muito mais. A

descrição de Sambalate como o horonita é intrigante, embora possa

sugerir que ele, na verdade, fosse um judaíta de Bete-Horom, a oeste de

Jerusalém. Mais relevante ainda é o fato de um documento judaico do

Egito mencioná-lo como um governador de Samaria, o que se encaixa

em comentários posteriores em Neemias. A designação de Tobias como

um servo amonita pode sugerir que ele era um dos subordinados de

Sambalate, talvez responsável por Jerusalém, caso essa cidade fosse

governada de Samaria. Se essa realmente fosse a posição dos dois

homens, isso explicaria o motivo de eles estarem irritados ao ouvirem

sobre a interferência de Neemias nas questões concernentes a

Jerusalém.
NEEMIAS 2:11—3:14
TALENTOS NÃO SÃO REQUERIDOS
11 12
Após chegar a Jerusalém e estar lá por três dias, saí à noite, eu e alguns poucos homens.

Não contei a ninguém o que meu Deus havia colocado em minha mente fazer por Jerusalém,

13
e não havia nenhum animal comigo, exceto o animal no qual cavalgava. Passei pela porta

do Vale, à noite, na direção da fonte do Dragão e da porta do Monturo. Examinei os muros

de Jerusalém que haviam sido violados e seus portões que haviam sido consumidos pelo fogo.

14
Passei à porta da Fonte e ao tanque do rei, mas não havia espaço para o animal debaixo de

15
mim passar. Assim, subi o vale, à noite, examinei o muro e, então, retornei e atravessei o

16
portão do Vale. Portanto, retornei, e os supervisores não sabiam aonde eu havia ido ou o

que estava fazendo; ainda não havia contado aos judaítas, aos sacerdotes, aos supervisores e

ao restante dos responsáveis pelo trabalho.

17
Então, disse-lhes: “Vejam o problema no qual estamos, pois Jerusalém está devastada e

seus portões foram consumidos pelo fogo. Venham, vamos reconstruir o muro de Jerusalém e

18
não mais estaremos em desgraça.” Contei-lhes sobre a mão do meu Deus, que fora boa

sobre mim, e também das palavras que o rei me havia dito, e eles disseram: “Vamos começar e

19
reconstruir.” Assim, eles fortaleceram as suas mãos para a boa obra. Mas quando

Sambalate, o horonita, Tobias, o amonita, e Gesém, o árabe, ouviram, eles zombaram de nós e

nos desprezaram. Eles disseram: “O que é isso que vocês estão fazendo? Estão se rebelando

20
contra o rei?” Retornei-lhes uma mensagem e lhes disse: “O Deus dos céus — ele nos

capacitará a ter sucesso. Nós, os seus servos, começaremos e construiremos. Para vocês, não

haverá parte, direitos ou honra em Jerusalém.”

CAPÍTULO 3

1
Então, Eliasibe, o sumo sacerdote, e seus irmãos sacerdotes foram e reconstruíram a porta

das Ovelhas. Eles a consagraram e colocaram suas portas no lugar. Depois, construíram o

2
muro até a torre dos Cem, que consagraram, e até a torre de Hananeel. Próximos a ele, os

3
homens de Jericó construíram. Próximo a ele, Zacur, filho de Inri, construiu. Os filhos de

Hassenaá construíram a porta do Peixe, a cobriram e colocaram no lugar suas portas,

4
ferrolhos e barras. Próximo a eles, Meremote, filho de Urias, filho de Hacoz, reparou.

Próximo a eles, Mesulão, filho de Berequias, filho de Mesezabel, reparou. Próximo a eles,

5
Zadoque, filho de Baaná, reparou. Próximo a eles, os tecoítas repararam, mas os seus nobres

6
não dobraram o pescoço ao serviço do seu senhor. A porta Jesana, Joiada, filho de Paseia, e

Mesulão, filho de Besodias, repararam; eles a cobriram e colocaram no lugar suas portas,

7
ferrolhos e trancas. Próximo a eles, Melatias, o gibeonita, e Jadom, o meronotita, repararam

8
(homens de Gibeom e Mispá sob o domínio do governador de além rio). Próximo a eles,

Uziel, filho de Haraías, (ourives) reparou. Próximo a ele, Hananias, dos perfumistas,

9
reparou, mas deixaram de fora Jerusalém até o muro Largo. Próximo a eles, Refaías, filho de

10
Hur, oficial sobre metade do distrito de Jerusalém, reparou. Próximo a eles, Jedaías, filho
de Harumafe, reparou em frente da sua casa. Próximo a ele, Hatus, filho de Hasabneias,

11
reparou. Uma segunda seção, Malquias, filho de Harim, e Hassube, filho de Paate-Moabe,

12
repararam, bem como a torre dos Fornos. Próximo a ele, Salum, filho de Haloês, oficial

13
sobre metade do distrito de Jerusalém, reparou, ele e suas filhas. A porta do Vale, Hanum e

os habitantes de Zanoa repararam. Eles a construíram e colocaram no lugar suas portas,

14
ferrolhos e trancas, e mil côvados da muralha até a porta do Monturo. A porta do

Monturo, Malquias, filho de Recabe, oficial sobre metade do distrito de Bete-Haquerém,

reparou; ele a construiu e colocou no lugar suas portas, ferrolhos e trancas.

Nesta semana, uma tira de quadrinhos do New Yorker retratava um

caubói solitário cujo cavalo carrega adesivos de para-choque em seu

dorso traseiro, com mensagens, por exemplo: “Como está a minha

cavalgada”, fornecendo um número de telefone para a resposta; “Eu dou

passagem a cactos”; e “Minha filha é estudante de honra no rancho de

meu amigo”. Enquanto os quadrinhos me fizeram imaginar

mentalmente Neemias montado em seu cavalo, o último adesivo me fez

pensar. Isso me lembrou da convicção de que cada criança é especial;

parece uma ideia contraintuitiva; rouba o significado do termo

“especial”, ainda que alguém afirme a sua preocupação em declarar que

toda criança importa. Por seu turno, isso me fez pensar na palavra de

Paulo em 1Coríntios 12 sobre os diferentes dons presentes no corpo de

Cristo, com base na qual as pessoas, às vezes, concluem que todos

possuem o seu dom. Creio que essa conclusão desvaloriza o significado

da ideia de dons. Não é necessário possuir um dom para ser um membro

importante do corpo.

Na reconstrução dos muros de Jerusalém, ninguém possui um

talento especial. Ou melhor, muitas pessoas tinham dons especiais, mas

os seus dons eram irrelevantes para o projeto (nos termos de

1Coríntios, é mais importante que as pessoas sejam exemplos vivos de

dedicação em relação às necessidades do próximo do que exerçam os

seus talentos). Havia um ourives e um perfumista envolvidos, mas seus

dons eram totalmente irrelevantes para a obra. Havia sacerdotes, mas o


seu trabalho regular no serviço de Deus era, igualmente, secundário

para aquele projeto, e eles não usaram a sua vocação como desculpa

para não se envolverem na reconstrução dos muros. Igualmente, havia

administradores ou supervisores, mas eles não usaram a sua função

como motivo para evitar usar espátulas. Havia pessoas de Jericó e

Tecoa, que não usaram o fato de serem habitantes de outras cidades

como uma desculpa para se esquivar do trabalho (embora,

aparentemente, algumas pessoas importantes de Tecoa tenham achado

coisas mais prioritárias para fazer) e pessoas de Gibeom e Mispá (que

não usaram o fato de serem moradores dessas províncias e, portanto, de

estarem sob a autoridade do governador de Samaria, ou por ser

inapropriado a eles estarem associados ao esforço de reconstrução).

Havia tanto mulheres quanto homens, ainda que essa laboriosa

atividade pudesse ser considerada como trabalho de homem.

Não sabemos o suficiente sobre a extensão e a planta de Jerusalém,

ou a localização de seus diferentes portões, para ter certeza da rota

seguida por Neemias ou do curso do trabalho de reconstrução, embora

esteja claro que os nomes são citados no sentido anti-horário em torno

da cidade. Neemias faz a sua pesquisa durante a noite, provavelmente

porque pretende definir as dimensões do projeto antes de começar a

envolver as pessoas em sua realização. Ele sai pela porta do Vale, a

oeste, e segue na direção sul, para a porta do Monturo, e então vira

rumo ao norte e sobe em direção à região leste da cidade, retornando à

porta inicial. Naquele lado da cidade, as elevações são, em geral, muito

íngremes, o que explica o fato de Neemias não poder seguir no dorso de

seu animal durante todo o percurso, fazendo-o parcialmente a pé. Da

mesma forma, a complexidade geral da parte sul do muro pode explicar

o motivo de essa área ser a única, de fato, investigada por Neemias; a

parte norte seria menos problemática.

Quando o trabalho de reconstrução é iniciado, naturalmente um

número suficiente de sacerdotes aceita a responsabilidade pelo trecho

do muro próximo ao templo; a porta das Ovelhas fica no canto nordeste,


e seu nome, provavelmente, deriva do fato de ser o caminho pelo qual as

ovelhas, destinadas ao sacrifício no templo, entravam na cidade.

Embora, no devido tempo, todo o muro viesse a ser dedicado, seria

natural que os sacerdotes desejassem consagrar imediatamente a seção

do muro próxima ao templo, por sua importância para o santuário ou

por ser relevante haver uma referência extra ao fato de eles terem

consagrado essa parte do muro. As torres são, talvez, parte da fortaleza

que pertencia ao templo, sobre as quais Neemias mencionou a

Artaxerxes. A narrativa da reconstrução move-se na direção oeste e,

então, segue para o sul, para a porta na qual Neemias começou e para a

porta do Monturo, no extremo sul. O relato cobre uma área muito mais

ampla do que aquela investigada por Neemias, mas a referência ao

abandono de parte da cidade sugere que o muro de Neemias abrange

uma área menor do que aquela existente antes do exílio.

Imagino ser possível dizer que o próprio Neemias possuía um dom

especial como o líder daquele projeto, embora a Bíblia dificilmente fale

da liderança como um dom espiritual. Antes, a Bíblia fala em termos de

servos de Deus em vez de líderes do povo. Na verdade, “servo de Deus”

foi a expressão de Neemias sobre si mesmo no capítulo 1. Sua profissão

também o envolvia agindo como um servo do rei, e, agora, ele precisará

servir ao seu projeto e às pessoas envolvidas nele. No entanto,

fundamentais para servir nesse projeto são as qualidades associadas com

liderança: iniciativa de chegar em Jerusalém, obter os recursos,

investigar o muro, estabelecer a natureza do trabalho a ser feito e

inspirar a liderança da cidade no envolvimento com o projeto.

Mais de uma vez, a história sugere que Neemias não se sente

intimidado pela oposição tanto quanto pela magnitude da tarefa. Como

parece ocorrer sempre, tão logo as pessoas começam a fazer a obra de

Deus, surgem adversários contra elas; o padrão perpassa Esdras e

Neemias. Além de Sambalate e Tobias, da região norte de Jerusalém,

agora há referência a Gesém, o árabe, que também é citado fora do

Antigo Testamento e parece ter sido um governante na região sul de


Judá. Talvez esse envolvimento explique a relutância da liderança em

Tecoa (no extremo sul de Judá) em se envolver no projeto de Neemias.

A resposta de Neemias aos oponentes expressa a grandeza de sua

confiança no contexto do escárnio deles. Seus adversários estão certos

quanto à reconstrução de Neemias ameaçar os interesses deles sobre o

controle de Judá. Ele declara que aqueles opositores não terão parte,

direitos ou honra em Jerusalém. Tudo isso pertence a Deus, que o

reivindicou ao colocar o seu nome ali, um sinal de afirmação de

propriedade. Neemias está afirmando que os seus adversários serão

desapontados e não terão autoridade ali. Judá pode permanecer sob o

controle da Pérsia, mas será independente das demais subprovíncias da

região.
NEEMIAS 3:15—4:6
QUE O ESCÁRNIO DELES RECAIA SOBRE ELES
15
A porta da Fonte, Salum, filho de Col-Hozé, o oficial sobre o distrito de Mispá, a reparou;

ele a construiu, cobriu e colocou no lugar as suas portas, ferrolhos e trancas, e [reparou] o

muro do tanque de Siloé, pertencente ao jardim do rei, até os degraus que descem da cidade

16
de Davi. Depois dele, Neemias, filho de Azbuque, oficial sobre metade do distrito de Bete-

Zur, reparou até em frente dos túmulos de Davi e o tanque artificial e a casa dos guerreiros.

17
Depois dele, os levitas repararam: Reum, filho de Bani. Próximo a ele, Hasabias, oficial

18
sobre metade do distrito de Queila, reparou para o seu distrito. Depois dele, os seus irmãos

19
repararam: Bavai, filho de Henadade, oficial sobre metade do distrito de Queila. Próximo a

ele, Ézer, filho de Jesua, oficial sobre Mispá, reparou uma segunda seção, em frente da subida

20
para o contraforte das armas. Depois dele, Baruque, filho de Zabai, com extremo zelo; ele

reparou uma segunda seção, do contraforte até a entrada da casa de Eliasibe, o sumo

21
sacerdote. Depois dele, Meremote, filho de Urias, filho de Hacoz, reparou uma segunda

22
seção, da entrada da casa de Eliasibe até o fim da casa de Eliasibe. Depois dele, os

23
sacerdotes, os homens da área em derredor, repararam. Depois deles, Benjamim e Hassube

repararam em frente da casa deles. Depois deles, Azarias, filho de Maaseias, filho de Ananias,

24
reparou próximo a sua casa. Depois dele, Binui, filho de Henadade, reparou uma segunda

25
seção, desde a casa de Azarias até o contraforte e a esquina. Palal, filho de Uzai: desde em

frente do contraforte e a torre que sai da casa do rei, a torre superior que pertence ao pátio

26
da guarda. Depois dele, Pedaías, filho de Parós (os assistentes que viviam em Ofel, desde a

27
frente da porta das Águas para o leste e a torre que sobressai). Depois dele, os tecoítas

repararam uma segunda seção, desde a frente da grande torre que sobressai até o muro de

28
Ofel. Acima da porta dos Cavalos, os sacerdotes repararam, cada um em frente da sua casa.

29
Depois deles, Zadoque, filho de Imer, reparou em frente da sua casa. Depois dele, Semaías,

30
filho de Secanias, guardião da porta Oriental, reparou. Depois dele, Hananias, filho de

Selemias, e Hanum, sexto filho de Zalafe, repararam uma segunda seção. Depois deles,

31
Mesulão, filho de Berequias, reparou em frente da sua moradia. Depois dele, Malquias, dos

ourives, reparou até a casa dos assistentes e dos comerciantes, em frente da porta da

32
Inspeção, até o aposento superior na esquina. Entre o aposento superior na esquina até a

porta das Ovelhas, os ourives e os comerciantes repararam.

CAPÍTULO 4

1
Quando Sambalate ouviu que nós estávamos reconstruindo o muro, isso o enfureceu. Ele

2
ficou muito irritado, mas zombou dos judaítas e disse diante de seus irmãos e do exército

samaritano: “O que aqueles frágeis judaítas estão fazendo? Deixarão isso para si mesmos?

Sacrificarão? Terminarão hoje? Trarão à vida as pedras dos montes de entulho, quando estão

3
queimadas?” Tobias, o amonita, estava ao seu lado, e disse: “Seja o que for que estejam

construindo, se uma raposa subisse ali, ela romperia o muro de pedra deles.”
4
“Ouve, nosso Deus, porque nos tornamos um objeto de abuso. Que a desgraça deles se volte

5
contra as suas próprias cabeças. Torne-os em espólios em uma terra de cativeiro. Não cubra

as suas transgressões ou ofensas de diante de ti. Isso não deve ser apagado porque eles foram

6
ofensivos diante dos construtores.” E reconstruímos o muro, e todo o muro se fechou até

estar pela metade. A mente das pessoas estava em fazer isso.

Certa ocasião, estávamos indo para um concerto na universidade da

Califórnia, e meu amigo apontou para um edifício e disse: “Eu construí

aquele prédio” (quando ele era estudante de engenharia). Minha esposa

disse, enquanto olhávamos a foto de um museu de arte, num livro à

mesa de café: “Eu construí isso” (quando era gerente de projetos). O

meu pai, certo dia, trouxe um livro para casa, quando eu ainda era um

menino, e disse: “Eu imprimi esse livro” (ele era um operador de

impressora). Um de meus filhos, recentemente, se formou em

engenharia: espero vê-lo, um dia, apontando para um programa de

gerenciamento de inundações e dizer: “Eu desenvolvi esse programa.”

Meu cunhado é instalador de carpetes; em sua casa, ao olhar para o

carpete, logo penso: “Foi o John (ele também é John) que o instalou.”

Quando alguém admira o meu suéter, posso dizer: “A minha sogra o

tricotou.” Após a reforma da minha cozinha, gosto de dizer: “O Joe fez

isso.” Quando me sento no pátio do meu outro filho, penso: “Isso é obra

do Steven.” A minha enteada se casou, perto de alguns apartamentos

com vista para a praia, porque: “O meu avô os construiu.”

A lista de pessoas envolvidas na reconstrução do muro de Jerusalém

assemelha-se às demais listas em Esdras-Neemias, mas suspeito que essa

teve uma relevância maior para os leitores e seus filhos e netos. Seria

motivo de orgulho ver os nomes de pais, mães, avôs e avós presentes

naquela lista. As gerações posteriores saberiam que a segurança delas e

o orgulho da sua cidade se deviam, em grande parte, às pessoas listadas

ali. O registro segue movendo-se ao redor da cidade no sentido anti-

horário, até o lado leste, com suas encostas íngremes. Isso conduz a
história próximo à fonte de Giom e ao túnel de Ezequias, que transporta

as águas da fonte até o tanque de Siloé. Ela abre caminho passando pelo

palácio e seus arredores, retornando à esquina nordeste e à área do

templo, na qual começou. A quantidade de detalhes sobre a sua rota

pode sugerir que esse seja um novo muro, que não segue o curso do

muro antigo, em ruínas, e há evidências arqueológicas de que o muro

reconstruído seguia acima da encosta íngreme e, portanto, de

construção mais fácil do que o anterior, como parte da aceitação de

Neemias em circundar uma área menor do que a cidade tivera outrora.

Novamente, administradores proeminentes de regiões externas a

Jerusalém se envolveram com o trabalho. Ainda, inúmeros

trabalhadores participaram da reconstrução de um segundo trecho do

muro, além do primeiro.

A lista parece resumir os resultados finais da obra; o comentário

sobre Sambalate, então, nos leva de volta a uma etapa anterior no

processo, quando esse oponente se irrita com o que está acontecendo e

passa a desdenhar da obra. A sua contrariedade reflete a consciência de

que o sucesso do esforço de reconstrução, de fato, trará maior segurança

e independência à cidade, além do incremento moral de seus habitantes

e dos judaítas, em geral, que estão envolvidos na obra. O seu escárnio

visa, de imediato, reafirmar o seu próprio povo, mas a oração de

Neemias indica que os construtores tinham ciência disso e também

reflete o desejo de Sambalate de interromper a reconstrução; zombar

dos esforços daquelas pessoas pode ter esse efeito. Ele suscita dúvidas

sobre a capacidade dos judaítas para concluir esse ambicioso projeto

por conta própria (“deixando isso para si mesmos”). Quanto tempo a

reconstrução irá demandar? Mais de um dia ou dois! Será possível

transformar aquele entulho novamente em um muro? Pedras

queimadas não podem ser, simplesmente, reassentadas. Será que os

judaítas conseguirão alcançar o ponto no qual possam oferecer ações de

graças ou sacrifícios de dedicação pela conclusão da obra? No que diz

respeito ao sacrifício, já conhecemos a resposta, porque no início da


lista dos trabalhadores há uma referência à consagração da primeira

seção restaurada do muro. Ou, talvez, a questão de Sambalate seja

relativa aos sacrifícios que acompanham as orações, o que significa que

ele está questionando se os trabalhadores verão uma resposta às suas

petições. Caso seja isso, trata-se de uma indagação perigosa, pois

constitui um desafio para que Deus mostre que as orações, de fato, são

respondidas.

A oração pelo juízo divino em resposta ao escárnio de Sambalate e

Tobias traça um paralelo com as orações em Salmos e no Novo

Testamento. Certamente, foi com o livro de Salmos que Neemias

aprendeu a orar. Os judeus e cristãos modernos sentir-se-iam mais

confortáveis se as pessoas na Bíblia não orassem assim, mas a própria

Bíblia indica que não há nada de errado em fazer isso. Os que assim

pensam tendem a ser pessoas que não estão vivendo em meio a uma

crise como a que Neemias e sua comunidade estavam experimentando.

Uma das relevâncias dessas orações é que elas estão nos lábios de

pessoas que oram pelo julgamento de seus inimigos em vez de agir

contra eles. Nenhum grupo de extermínio saiu de Jerusalém em direção

a Samaria para atingir Sambalate. As orações são uma expressão de

confiança em Deus, de que ele trará juízo, além de expressar o desejo de

que a honra de Deus seja vingada.

Embora o registro da oração levante questionamentos por parte dos

leitores modernos, outra questão que surge é por que esse relato da

oração aparece no livro. Talvez um dos pontos seja o de neutralizar o

resultado intencionado pelas palavras de Sambalate e de Tobias, ou seja,

o de destruir o moral dos construtores. A oração, então, tem como

objetivo parcial encorajar os construtores, lembrando-lhes que

Sambalate e Tobias são pessoas que não possuem a mesma base de

esperança que eles. A inclusão do relato sobre a oração no livro poderia

ter função similar para os seus futuros leitores. Todavia, embora

Apocalipse 6 registre a aceitação de Deus por uma oração dessa espécie,

Neemias 4 não revela o que Deus pensou sobre ela, ainda que a presença
desse registro na Bíblia signifique a desonra final para Sambalate, ao

passo que Neemias e seu povo terminem sendo honrados.

Se a oração, a exemplo do escárnio, teve como objetivo ser ouvida

pelos construtores e por Deus, mas, ao contrário do escárnio, também

objetivava encorajá-los, esse objetivo foi aparentemente alcançado.

Além disso, os descendentes desses construtores e futuros leitores do

livro serão testemunhas dos fatos: “Meus pais, avós e bisavós, os meus

ancestrais, construíram esse muro. Sou a evidência de que a palavra e a

reivindicação de Deus sobre este lugar vivem.”


NEEMIAS 4:7-23
ESPADA E ESPÁTULA, FÉ E ESPERANÇA
7
Quando Sambalate, Tobias, os árabes, os amonitas e os asdoditas ouviram que a restauração

havia chegado aos muros de Jerusalém e que as partes violadas começavam a ser fechadas,

8
isso os irritou, e todos eles planejaram juntos ir à luta contra Jerusalém e causar confusão

9
nela. Suplicamos ao nosso Deus e colocamos no lugar uma vigilância sobre [os

10
trabalhadores], de dia e de noite, por causa deles. Mas Judá disse:

“A força do carregador tem falhado, e há tanto entulho. Nós mesmos não somos capazes

de reconstruir o muro.”

11
E os nossos adversários disseram: “Antes de eles perceberem ou virem, iremos chegar entre

12
eles e os mataremos, e pararemos o trabalho.” Quando os judaítas que viviam perto deles

13
vieram, eles nos disseram, dez vezes, de todos os lugares: “Voltem para nós.” Então, eu os

posicionei nas partes mais baixas do lugar, atrás do muro, nos pontos expostos — posicionei o

14
povo por famílias com suas espadas, lanças e arcos. Olhei, levantei-me e disse aos cabeças,

aos supervisores e ao restante do povo: “Não tenham medo deles. Lembrem-se do Senhor,

aquele que é grande e assombroso, que luta por seus irmãos, seus filhos e filhas, suas esposas e

15
seus lares.” Quando os nossos inimigos ouviram que isso tinha se tornado conhecido por

nós e que Deus havia frustrado a decisão deles, voltamos ao muro, todos nós, cada qual ao

16
seu trabalho. Mas, daquele dia em diante, metade dos meus rapazes fazia o trabalho e

metade portava espadas, escudos, arcos e armadura, com os oficiais por trás de toda a casa de

17
Judá, que construía o muro. Os carregadores de cestas transportando coisas: cada um

18
realizava o trabalho com uma das mãos e com a outra segurava a arma. Os construtores,

cada qual estava cingido com sua espada ao seu lado, mas construindo. A pessoa que soava o

19
chifre ficava próximo de mim. Eu disse aos cabeças, aos supervisores e ao restante do povo:

“Há muito trabalho, e isso está espalhado, e estamos divididos no muro, distantes uns dos

20
outros. No lugar onde ouvirem o som do chifre, reúnam-se ali a nós. Nosso Deus — ele

21
lutará por nós.” Assim, fazíamos o trabalho com metade portando lanças, desde a chegada

22
do amanhecer até as estrelas aparecerem. Além disso, naquela ocasião, eu disse ao povo:

“Cada homem e seu rapaz devem se alojar dentro de Jerusalém, e eles serão um guarda para

23
nós de noite e trabalho de dia.” Eu, meus irmãos, meus rapazes e os homens na guarda

atrás de mim não tirávamos as nossas roupas. Cada pessoa — a sua arma permanecia em sua

mão.

Quando os meus alunos leem a parte do Antigo Testamento que inclui

Neemias, com frequência eles desejam escrever artigos sobre liderança.

Pensando bem, seja qual for o texto do Antigo Testamento que estejam
estudando, isso sempre os leva a escrever sobre o tema. Meu coração

naufraga quando eles pedem para escrever sobre liderança, embora não

espere que eles entendam o motivo disso. A nossa cultura é

profundamente preocupada com liderança e, assim, as pessoas

presumem que essa também seja a preocupação da Bíblia, porque

esperamos que ela foque questões que nos preocupam. Parte do motivo

pelo qual a Bíblia não demonstra muito interesse nesse tema é que seu

interesse reside mais no que Deus tem feito para consertar o mundo. Se

preferir, a Bíblia está interessada na liderança de Deus, não na nossa.

Não há dúvidas quanto a Neemias ser, a exemplo de Esdras, um grande

líder; o ponto que tento esclarecer aos meus alunos é que não há

indícios de que a sua história esteja presente na Escritura para que ele

sirva como um modelo de liderança para, digamos, os pastores. A

história de Neemias é parte da história de Deus. O erro não está em

buscarmos modelos de liderança em sua história, mas em nosso foco de

buscar na Bíblia respostas às nossas questões em vez de nos

concentrarmos na agenda bíblica.

Contudo, sim, ele é um grande líder, e isso só ocorre por ele ser um

grande servo de Deus e, por conseguinte, um servo do projeto e do povo

de Deus, os construtores. Neemias lida com uma situação na qual o seu

próprio povo corre o risco de desistir, e os seus oponentes parecem

próximos de lograr êxito na tentativa de frustrar os seus planos. O

desafio que ele impõe a si mesmo e aos seus compatriotas é

monumental. Sambalate não estava exagerando quando chamou a

atenção para as dimensões da tarefa de transformar ruínas queimadas

em um muro novamente. Os judaítas concordam sobre a quantidade de

entulho e já estão cansados de tanto transportá-los; eles querem

desistir. Suas palavras são prosaicas, mas eles as expressam como linhas

de uma poesia, estruturada de forma similar à estrutura de uma oração

de lamento e protesto, com três palavras na primeira parte de cada

linha, mas apenas duas na segunda metade; a linha expressa

perplexidade da mesma maneira com que a vida os deixa perplexos. O


pedido para voltar a nós parece como a súplica das pessoas que moram

distantes de Jerusalém e, portanto, mais perto do território daqueles

outros povos. Observamos na lista das pessoas envolvidas na

reconstrução que muitos vieram de fora de Jerusalém, de cidades como

Jericó, Tecoa, Queila e Bete-Zur, todas elas mais próximas da fronteira

com esses vizinhos hostis que a própria cidade de Jerusalém. Os seus

habitantes estão assustados com o fato de seus homens os terem

abandonado nessa situação perigosa.

Além do mais, os oponentes de Neemias lançam mão de truques

sujos para assegurar que a tarefa não seja concluída. Se eles chegassem

com armas em punho, seria apenas um blefe? Eles tinham mesmo a

intenção de ir à luta ou, simplesmente, estavam tentando amedrontar os

judaítas e fazê-los desistir? Seriam Sambalate e os seus associados os

responsáveis pela destruição do muro, que fora reportada a Neemias em

Susã? Pelo relato da história, as pessoas contrárias ao projeto

continuam crescendo em número. Primeiramente, eram apenas

Sambalate e Tobias, o seu aliado. Então, surge Gesém, o misterioso

árabe. Agora, unem-se os amonitas e os asdoditas. A situação política

faz do envolvimento deles uma manobra esperada. Dentro da província

persa de além-rio, na região oeste do Eufrates, a subprovíncia de Judá

está cercada pelas subprovíncias de Samaria, ao norte, Asdode, a oeste,

Edom ou Idumeia, ao sul (a área sobre a qual Gesém exercia influência),

e Amom, a nordeste (Moabe fica a leste, mas o mar Morto está

localizado entre Judá e Moabe e, assim, não há uma fronteira comum

entre eles). Portanto, todos os seus vizinhos estão, agora, envolvidos na

pressão sobre Judá; todos possuem interesse em diminuir a confiança e

autossuficiência dos favoritos de Artaxerxes.

Desse modo, Neemias adota três ações, além de não desistir.

Primeiro, ele ora, o que não surpreende, pois essa foi a sua primeira

reação quando as más notícias chegaram aos seus ouvidos, em Susã. Ao

se ver diante de uma crise, a oração é a sua reação instintiva.


Segundo, Neemias estabelece uma vigilância e equipa os

trabalhadores com armas, além das ferramentas. Alguns mantêm a

guarda, enquanto outros prosseguem no trabalho de reconstrução, ou,

ainda, alguns trabalhadores seguem reparando o muro com armas na

mão. Neemias mantém ao seu lado um homem que pode soar o alarme

para alertar os trabalhadores de qualquer ataque iminente e reuni-los

para empreender uma defesa coletiva em vez de mantê-los espalhados

em pequenos grupos ao longo da rota do muro, como eles estavam.

Terceiro, ele faz algo em relação à moral do povo. Neemias reúne o

povo como um todo, por suas famílias, em um local aberto — talvez a

referência sobre ser um local exposto significa uma expressão de força e

de frieza diante de qualquer representante dos vizinhos hostis que

estiver na cidade. O povo se reúne com suas armas, e Neemias lhes fala

da mesma forma que Josué ou Gideão teriam falado. Ele os encoraja a

não terem medo, não por estarem bem armados ou por superestimarem

os inimigos, mas por causa de quem o Deus deles é.

“Nosso Deus — ele lutará por nós.” No entanto, isso não significa

que eles ficarão de braços cruzados, assistindo à batalha. A presença de

suas armas indica que Neemias não vê nenhum conflito entre confiança

e ação, entre fé e luta. Por outro lado, ele não oferece nenhum sinal de

uma ação agressiva em relação aos aliados. Não haverá nenhum ataque

preventivo. Neemias está apenas expressando que os judaítas não

esperarão deitados para serem pisoteados. Eles não atacarão, mas, com

certeza, se defenderão. A demonstração de compromisso com a tarefa de

reconstrução, apesar das ameaças, é suficiente para fazer os inimigos

recuarem e motiva os judaítas a retomarem o trabalho e concluí-lo,

levando-os a terem os seus nomes registrados e mantidos vivos neste

livro, um testemunho da fé deles que vive até hoje, para nós.


NEEMIAS 5:1-5
O DESAFIO MORAL DA COMUNIDADE
1
Houve um grande clamor por parte do povo e de suas esposas em relação aos seus irmãos

2
judaítas. Havia alguns dizendo: “Com nossos filhos e filhas — somos muitos. Precisamos

3
obter grãos para comer e viver.” Havia outros dizendo: “Nossos campos, nossas vinhas,

4
nossos lares — nós os estamos penhorando para conseguir grãos durante a fome.” E havia

alguns dizendo: “Temos emprestado dinheiro para o imposto do rei sobre os nossos campos e

5
vinhas. Ora, somos da mesma carne que os nossos irmãos, os nossos filhos são como se

fossem deles, mas eis que estamos sujeitando os nossos filhos e as nossas filhas à servidão.

Algumas de nossas filhas têm sido sujeitadas. Não há poder em nossas mãos enquanto nossos

campos e vinhas pertencerem a outras pessoas.”

Duas ou três semanas atrás, compramos um sofá novo e conseguimos

um desconto de dez por cento porque aceitamos o cartão de crédito

oferecido pela loja e lançamos o valor da compra nele. Esta semana, a

fatura do cartão de crédito chegou, com a oferta habitual de fazer o

pagamento mínimo, mas, agora, com a informação obrigatória sobre

quanto pagaríamos ao longo de dois anos caso pagássemos o mínimo

permitido. A resposta é cerca de vinte por cento a mais. Eis como

funciona um cartão de crédito. Agora, se você comprasse os volumes

anteriores desta série, O Antigo Testamento para todos, a sua ação me

possibilitaria pagar o valor total da fatura, o que devo fazer antes que

me esqueça (perdoe-me um instante, enquanto faço o pagamento). Por

outro lado, tenho uma amiga que perdeu o emprego e precisou usar o

cartão de crédito para comprar comida. Ela não teve alternativa, exceto

pagar os vinte por cento a mais de juros pelo dinheiro gasto em

alimentação. Na cultura ocidental, emprestar dinheiro é uma forma de

ganhar dinheiro, e as pessoas que pagam o preço são exatamente

aquelas que não podem arcar com esses custos.

No Antigo Testamento, o empréstimo é uma forma de mostrar

compaixão aos mais necessitados, não um meio de ganhar dinheiro. A


Torá proíbe cobrar juros sobre os empréstimos a indivíduos. A usura

não envolve fazer empréstimos com cláusulas particularmente injustas;

significa qualquer cobrança de juros sobre um empréstimo. A Torá,

portanto, salvaguarda a posição de alguém que assume o risco de fazer

um empréstimo ao pressupor a prática da servidão temporária do

endividado; isto é, uma pessoa que enfrenta dificuldades econômicas e

não consegue prover para sua família pode aceitar um empréstimo de

suprimentos de outra pessoa e comprometer membros de sua família ou

ela própria ao trabalho da pessoa que lhe fez o empréstimo, por seis

anos, pagando o empréstimo por meio do trabalho. (Seria do interesse

de todos que os filhos fossem os primeiros a trabalhar dessa maneira,

para que o cabeça da família pudesse continuar trabalhando na

propriedade da família, visando à sua recuperação econômica; mas filhos

não significa, necessariamente, crianças — com a mesma facilidade,

significa adolescentes e jovens adultos.) A preocupação da Torá é

assegurar que a prática da servidão seja regulada de uma forma

adequada. As traduções, em geral, referem-se a pessoas que trabalham

sob esse regime como escravos, mas essa palavra é equivocada — servos

é uma tradução melhor. Esses servos não são uma propriedade da

pessoa para as quais trabalham, e o senhor deles não pode maltratá-los.

A exemplo de nossas regras sobre o crédito, as regras na Torá visam

proteger os necessitados, embora elas sejam mais generosas que as leis

das modernas nações cristãs.

A sequência de eventos em Neemias sugere que as dificuldades

econômicas que afetam o povo em Judá estão relacionadas com o

programa de reconstrução do muro. De modo irônico, parece que

algumas esposas e filhos de judaítas que não precisaram se divorciar

estavam experimentando, pelo menos, um tempo tão difícil quanto as

esposas e filhos dos judaítas que se divorciaram. Obviamente, os

homens empenhados na reconstrução do muro não podem trabalhar em

suas propriedades, mas o fato de os protestos virem de esposas tanto

quanto de seus maridos reflete algumas presunções quanto à base sobre


a qual a vida israelita funcionava, pelo menos em teoria. Cada família

recebeu um pedaço de terra para cultivar, e essa era uma operação

conjunta na qual o papel de maridos e respectivas esposas era

complementar, a fim de assegurar o funcionamento capaz da família. No

entanto, o egoísmo humano, regularmente, manifesta uma

engenhosidade monumental em contornar salvaguardas impostas para

restringir a ganância e proteger os necessitados, da mesma forma que

nos desviamos da implementação de nossas próprias regras sobre o

crédito e outras questões econômicas. De fato, diz-se haver dezenas de

milhares de garotas trazidas aos Estados Unidos, a cada ano, com a

promessa de poderem estudar em troca de trabalhos servis, mas que

acabam trabalhando em regime similar à escravidão. Igualmente, os

Profetas deixam claro como o tipo de sistema apresentado na Torá não

estava em funcionamento séculos antes de Neemias. Pessoas que se

saíram bem financeiramente eram capazes de expulsar fazendeiros

menos afortunados, astutos, competentes e trabalhadores de suas terras,

de maneira que estes terminavam como trabalhadores nas fazendas de

outras pessoas ou mudavam-se para a área urbana. Caso abrissem um

negócio ali, podiam lograr êxito, mas sempre estariam vulneráveis às

oscilações econômicas ou de outras áreas.

O primeiro grupo de manifestantes parece ser formado por pessoas

assim, moradores de Jerusalém que precisam alimentar as suas famílias,

mas são impedidos de fazer isso por estarem trabalhando na

reconstrução do muro — sua força de trabalho incluía pessoas de

diferentes ofícios, como perfumistas, ourives e comerciantes. Assim, não

conseguiam ganhar dinheiro para comprar trigo e assar pão, algo básico

para a família. Essas pessoas são as primeiras a cujo clamor o capítulo se

refere. A própria palavra usada expressa gravidade extrema; é o termo

usado em relação ao grito emitido pelo sangue de Abel derramado no

solo, quando ele foi morto por seu irmão; a mesma palavra utilizada

para descrever o lamento dos israelitas oprimidos no Egito. É assim que

os hierosolimitas estão tratando uns aos outros.


O segundo grupo abrange pessoas que ainda possuem a sua terra,

talvez nas imediações de Jerusalém ou, ainda, em uma das localidades

mais distantes, mencionadas na lista de trabalhadores, entre elas Tecoa

e Gibeom. Para participar da reconstrução do muro, eles teriam

abandonado o trabalho em suas propriedades e acrescentam um fator a

mais para consideração: a ocorrência de colheitas pobres e, portanto, de

uma onda de fome. A fome como um desastre natural não é mencionada

em Esdras-Neemias, embora haja referências a colheitas escassas em

Ageu, Malaquias e Joel, o suficiente para indicar que essa ocorrência era

constante. Contudo, o ponto levantado por esse grupo pode, uma vez

mais, ser o fato de serem obrigados a abandonar o trabalho em suas

fazendas, o que levou a colheitas aquém do que ocorreria com o cultivo

e o cuidado contínuos da lavoura e insuficientes para alimentar as

famílias e providenciar sementes para o futuro plantio. Desse modo,

eles precisaram tomar emprestado de famílias em melhores condições e,

assim, correm o risco de seguir a mesma experiência já referida pelos

profetas, isto é, de perder a sua propriedade de forma permanente caso

não sejam capazes de sanar as suas dívidas.

O terceiro grupo aponta para um fardo diferente. A globalização é

um ônus sobre pessoas comuns. Ser parte do Império Persa pode trazer

benefícios para este grupo, em troca do pagamento de taxas imperiais,

embora eles não consigam enxergá-lo. Essa obrigação também exerce

pressão sobre o meio de vida deles. Portanto, uma vez mais, se eles estão

apenas vivendo para garantir a própria subsistência, produzindo o

mínimo para sobreviverem, a obrigação de entregar vinte por cento aos

cofres imperiais a fim de manter o estilo de vida ao qual o imperador e

sua corte estão acostumados os força a entrarem em dívidas. O seu

lamento, então, não é de que eles precisam arrendar as suas

propriedades para outra família, mas de que são forçados a vender o

trabalho de seus familiares a outras famílias. Na cultura do Ocidente,

consideramos como garantido a venda de nossa mão de obra — o

trabalho significa ser empregado por alguém. No entanto, o ideal do


Antigo Testamento é que as pessoas trabalhem para si mesmas no

contexto da família. Vender o próprio trabalho é algo estranho no

pensamento do Antigo Testamento, mesmo que seja por alguns anos

para pagar as dívidas da família; isso rompe a ligação familiar.

Os que protestam indicam o fato de todos, num contexto mais

amplo, pertencerem à mesma família daqueles aos quais eles entregam,

temporariamente, os seus filhos. Nesse contexto mais amplo, essas

pessoas são “os nossos irmãos”. A visão que a Torá estabelece diante do

povo é que Israel é a família em larga escala. Você não cobra juros sobre

os empréstimos dentro da família, cobra? Esse grupo de manifestantes

também se refere a essas pessoas como “da mesma carne” e observa que

“nossos filhos são como se fossem deles”. A implicação é que, por trás do

vínculo familiar, está a ligação humana. Pode-se dizer que a

humanidade como um todo é a família em larga escala. Como seres

humanos podem cobrar juros de outro ser humano em necessidade?

(Em outras palavras, o argumento do Antigo Testamento pode não

discorrer sobre o que chamaríamos de juros comerciais, incluindo

aquele oferecido pela loja a mim e à minha esposa; mas versa sobre usar

o infortúnio ou o autossacrifício de outra pessoa como um meio de

ganhar dinheiro.)

Um grande projeto, a exemplo da reconstrução do templo ou dos

muros da cidade, afeta a economia de toda a região pela necessidade de

levantar recursos para viabilizá-lo. Expressando em termos teológicos,

isso exige sacrifícios por parte da comunidade. No entanto, é possível

haver pessoas dispostas e preparadas para fazer sacrifícios em prol de

Deus e da comunidade, enquanto outras estão propensas a ver o projeto

como um meio de obter lucros para si mesmos em vez de um sacrifício.


NEEMIAS 5:6-19
COLOCANDO O SEU DINHEIRO ONDE O SEU CORAÇÃO ESTÁ
6 7
Fiquei muito irritado quando ouvi o clamor deles e essas palavras. Quando o meu

pensamento me aconselhou, contendi com os cabeças e os supervisores e lhes disse: “Vocês

estão emprestando com usura, cada qual contra o seu irmão?” E levantei uma grande

8
assembleia sobre eles. Disse-lhes: “Resgatamos os nossos irmãos judaítas que foram

vendidos aos gentios, tanto quanto estava em nós. Vocês realmente irão vender os seus

irmãos para que eles possam ser vendidos a nós?” Eles ficaram em silêncio. Não conseguiram

9
encontrar palavras. Eu disse: “O que vocês estão fazendo não é bom. Vocês não andarão em

10
reverência a Deus para evitar a desgraça diante dos gentios, nossos inimigos? Na verdade,

eu, meus irmãos e meus rapazes lhes estamos emprestando prata e grãos. Vamos acabar com

11
essa usura. Deem de volta os seus campos, suas vinhas, suas oliveiras e seus lares, e a

porcentagem sobre a prata, os grãos, o vinho e o azeite que vocês lhes estão emprestando.”

12
Eles disseram: “Daremos de volta e não buscaremos mais nada deles. Agiremos, portanto,

como você está dizendo.” Então, convoquei os sacerdotes e fiz [o povo] jurar para agirem de

13
acordo com esta palavra. Também sacudi o meu bolso e disse: “Que Deus assim sacuda

qualquer homem que não cumprir esta palavra de sua casa e de sua propriedade. Que ele se

torne sacudido assim e esvaziado.” Toda a assembleia disse: “Amém” e louvou a Yahweh, e o

14
povo agiu de acordo com esta palavra. Além disso, desde o dia em que fui comissionado

para ser governador na nação de Judá, do vigésimo até o trigésimo segundo ano do rei

15
Artaxerxes, doze anos, eu e os meus irmãos não comemos a comida do governador. Os

governadores anteriores, que estavam antes de mim, colocaram um fardo sobre o povo, e pela

comida e vinho para um [dia] tomavam deles quarenta siclos de prata. Além disso, os seus

16
rapazes dominavam sobre o povo. Eu não fiz assim, por reverência a Deus. E mais, apoiei o

trabalho sobre este muro; não adquiri terra, e todos os meus rapazes foram reunidos ali para

17
o trabalho. Os judaítas e supervisores, cento e cinquenta no total, e as pessoas que vinham

18
a nós das nações que estavam ao nosso redor, estavam à minha mesa. O que era preparado

para cada dia: um boi, seis ovelhas escolhidas e aves, eram preparados por mim, e, num

intervalo de dez dias, todos os tipos de vinhos em quantidades. Mas, com isso, eu não

19
busquei a comida do governador, porque o serviço era pesado sobre este povo. Lembra-te

de tudo o que fiz para este povo, meu Deus, para o bem, por mim.

Recentemente, li uma história sobre uma adolescente de Atlanta que

viu uma Mercedes coupê preta de um lado da rua e um desabrigado

pedindo por comida no outro. Ela comentou com o seu pai que, se o

motorista tivesse um carro mais barato, o outro homem poderia ter uma
refeição. A sua mãe perguntou-lhe: “O que você quer fazer então?

Vender a nossa casa?” Algum tempo depois, eles fizeram exatamente

isso, usaram metade dos rendimentos na aquisição de uma casa menor e

doaram a outra metade para apoiar um projeto que patrocina ações em

saúde, pequenos financiamentos, alimentação e outros programas, em

benefício de quarenta vilarejos em Gana. O relato prossegue falando

sobre a bênção que essa atitude lhes trouxe. Havia um sentimento real

de que eles estavam melhor, como família, em uma casa menor,

contrariando o conceito anterior dos pais daquela garota. Agora a união

entre eles era maior, pois a casa menor propiciava um ambiente familiar

mais amigável, embora não tenha sido esse benefício o fator motivador

que os levou a realizar aquela ação.

Não sabemos a extensão dos sacrifícios feitos por Neemias. A

implicação de sua reivindicação é que ele estava bem de vida o

suficiente para trabalhar sem recompensa ou apoio financeiro. No doar,

atribui-se tanta importância ao que se deixou quanto ao que se doou;

muitas pessoas podem dar substancialmente e ainda possuir mais do

que o suficiente. O ponto de Neemias é que ninguém terá qualquer

oportunidade de sugerir que ele realizou o seu trabalho motivado pelo

que poderia lucrar com ele. Muitos na liderança cristã podem dizer que

ganham mais do que se estivessem trabalhando em um emprego secular,

e creio ser um deles, embora eles, como eu, poderiam também afirmar

que obtêm mais satisfação do trabalho cristão que realizam. Então, a

questão da motivação não é solucionada apenas pela análise de contas

bancárias e de bens materiais que tais pessoas possuem.

Neemias não sugere que realiza o seu trabalho para se beneficiar; na

realidade, a sua história, até aqui, sugere o contrário. No entanto, esse

fato não significa que ele se opõe a obter benefícios dele; na verdade, ele

pede a Deus que assim seja. A exemplo de sua oração pedindo

julgamento sobre os seus opositores, ele não sugere que precisamos

censurar as nossas orações. Não sentir a necessidade de fazê-lo

novamente tem o efeito de libertá-lo da obrigação de agir em seu


próprio benefício. Ele ora pelo julgamento de seus inimigos e, portanto,

não busca, ele mesmo, exercer juízo sobre eles; Neemias e seus inimigos

sabiam que deixar a punição para Deus pode ser mais ameaçador do que

se o julgamento estivesse nas mãos de Neemias ou do restante da

comunidade humana. Ele também ora para promover o bem com o seu

compromisso com a comunidade e, portanto, não busca agir para

garantir a sua prosperidade. Neemias é livre para usar os seus recursos

em benefício de outras pessoas porque é livre para orar dessa forma.

Deus é o seu verdadeiro empregador.

O ponto mais específico sobre esse aspecto da história de Neemias é

a sua relevância em relação à posição das outras pessoas que estão bem

de vida. Como de costume, Neemias se inflama pelo que ouve;

regularmente, ele é uma pessoa cujas emoções sempre estão à flor da

pele e que mostra como isso pode ser frutífero na geração de ações. Há

algo de errado com você caso não se sinta perturbado ao ouvir más

notícias sobre o povo de Deus e compelido a orar e a fazer algo a

respeito; ou não considera uma afronta quando inimigos ameaçam

causar mais problemas para seus irmãos e irmãs e não desafia Deus a

agir em benefício deles ou adota uma ação que lhes possibilite uma

defesa. Algo não está certo se você não se indigna quando pessoas de

Deus agem como descrito nesse capítulo e não se sente compelido a

confrontá-las com firmeza. Neemias, a exemplo de Saul, mostra como a

ira pode ser um fruto do Espírito, uma capacidade usada por Deus para

que o certo prevaleça. Reconhecidamente, é válido observar que, nessa

ocasião, ele pensa antes de falar; Neemias permite que o seu pensamento

o aconselhe (aproveitando essa levemente estranha, mas sugestiva

formulação). Após ele ouvir os protestos e sentir a ira crescendo em seu

íntimo, é quase possível ouvi-lo dizer: “Acalme-se, Neemias, pense nessa

questão um pouco antes de abrir essa sua boca grande.” Então, ele

confronta a liderança e convoca uma reunião da comunidade, pois,

afinal de contas, trata-se de uma questão comunitária.


Aqueles que estão exercendo pressão econômica sobre o povo como

um meio de obter lucro são “os cabeças e os supervisores”. Os dois

grupos irão se sobrepor. O primeiro grupo compreende os chefes das

famílias, que estão usando a situação para melhorar a sua condição

familiar às custas de outras famílias, por meio das condições impostas

aos empréstimos que eles concedem. O segundo, abrange pessoas que

exercem alguma responsabilidade administrativa na cidade e que,

portanto, estão em posição de fazer o mesmo pelo modo de operarem a

lei. Como bem sabemos, com base em nosso próprio mundo, os mais

ricos e aqueles dotados de poder estão sempre em posição de obter

vantagem sobre os necessitados e os impotentes. Assim, o abismo entre

os ricos e os pobres se amplia a cada década. E podemos não enxergar

que estamos agindo dessa maneira. Os cabeças e supervisores estavam

envolvidos naquele projeto de reconstrução da comunidade.

Aparentemente, eles não tinham percebido que estavam exaurindo a

comunidade nesse outro aspecto da vida dos judaítas.

Neemias precisa posicionar-se para mostrar que não está se valendo

do fato de pertencer a uma família com recursos financeiros ou de sua

autoridade. Ele e seus associados estão emprestando prata e grãos ao

povo (isto é, dinheiro), e — ele sugere — não estão cobrando juros;

outras pessoas precisam fazer o mesmo. (Ou, talvez, queira dizer que ele

e seus associados estão cobrando juros — embora presumivelmente não

com os nefastos resultados descritos nos protestos, caso contrário mais

precisaria ser dito —, mas que eles também cessarão essa cobrança.) A

presença de pessoas à mesa de Neemias exemplifica como a união

comunitária pode tornar possível alcançar o grande sacrifício envolvido

na reconstrução, sem, contudo, levar a comunidade à servidão. Os

adversários da comunidade, então, têm menos vulnerabilidades a

explorar.

Em um dos conjuntos de regras da Torá que lida com a pobreza e a

servidão por dívidas, Levítico 25 aborda a possibilidade de os israelitas

tomarem emprestado de estrangeiros e terminarem como servos deles e


estabelece a expectativa de que os membros de sua família mais ampla

possam redimi-los da servidão. Neemias indica que a comunidade tem

agido assim, quando necessário. Mas não é consistente com a prática

comunitária que um judaíta seja colocado em uma posição servil por

outro e que isso faz a comunidade parecer insensata aos olhos daqueles

dos quais as pessoas foram compradas de volta. A referência “aos

gentios, nossos inimigos” dificilmente significará que todos os gentios

devem ser vistos como inimigos, mas terá em mente as pessoas citadas

em outras passagens do livro como “nossos inimigos”, isto é, Sambalate,

Tobias, Gesém e outros representantes dos povos vizinhos.

Levítico 25 também torna a maneira pela qual as pessoas lidam com

a pobreza do seu próximo como um aspecto do viver reverente a Deus, e

Neemias faz o mesmo. Não se pode separar a política econômica da

maneira com que Deus espera que nos tratemos mutuamente


NEEMIAS 6:1-19
NÃO CONFIE EM NINGUÉM
1
Quando foi reportado a Sambalate, Tobias, Gesém, o árabe, e ao restante dos nossos

inimigos, que havíamos reconstruído o muro e que nenhuma brecha mais permanecia nele

2
(embora, até aquela época, eu não houvesse colocado as portas nos seus lugares), Sambalate

e Gesém enviaram mensagem a mim, dizendo: “Venha, vamos nos encontrar em Quefirim, no

3
vale de Ono.” Mas esses homens estavam tentando me fazer o mal, por isso enviei-lhes

ajudantes, dizendo: “Estou realizando um grande projeto. Não posso descer. Por que o

4
projeto deveria cessar enquanto eu o deixo e desço até vocês?” Sambalate enviou-me de

acordo com essa mensagem quatro vezes, e lhe enviei de volta, de acordo com essa

5
mensagem. Sambalate enviou o seu rapaz a mim, de acordo com essa mensagem, uma quinta

6
vez, mas com uma carta aberta em sua mão. Nela, estava escrito: “É reportado entre as

nações (e Gesimo diz) — você e os judaítas estão planejando se rebelar. Eis por que estão

7
reconstruindo o muro. Você será o rei deles, de acordo com essas palavras, e você também

colocou no lugar profetas para proclamar em Jerusalém sobre você, que ‘há um rei em Judá’.

Isso, agora, será reportado ao rei, de acordo com essas coisas. Portanto, venha e vamos nos

8
encontrar, agora.” Enviei-lhe mensagem, dizendo: “Nada, conforme essas coisas que você

9
está dizendo, aconteceu, porque você as está inventando de sua própria mente”, porque

todos eles estavam nos intimidando, dizendo [para si mesmos]: “As mãos deles cessarão do

projeto, e ele não será realizado.” Assim, agora, fortalece as minhas mãos.

10
Eu mesmo fui à casa de Semaías, filho de Meetabel, quando ele estava restrito. [Semaías]

disse:

“Vamos nos encontrar na casa de Deus, dentro do palácio [de Deus],

Vamos fechar as portas do palácio, porque eles estão vindo para matá-lo.

De noite, eles estão vindo para matá-lo.”

11
Eu disse: “Uma pessoa como eu fugirá? E quem, como eu, pode entrar no palácio e viver?

12
Eu não irei.” Percebi que Deus não o tinha enviado, pois ele falou a profecia sobre mim

13
porque Sambalate e Tobias o tinham contratado. Para esse fim, ele foi contratado — para

que eu ficasse com medo e agisse e, portanto, cometesse uma ofensa, e eles teriam um motivo

14
com o qual me infamar. Meu Deus, lembra-te de Tobias e de Sambalate, de acordo com

esses atos deles, e também de Noadia, a profetisa, e do restante dos profetas que estão me

intimidando.

15
Mas o muro foi terminado no vigésimo quinto dia de elul, depois de cinquenta e dois dias.

16
Quando todos os nossos inimigos ouviram, todas as nações ao nosso redor ficaram com

medo e caíram grandemente aos seus próprios olhos. Reconheceram que essa obra havia sido

17
feita por Deus. Também, naqueles dias, os cabeças dos judaítas estavam enviando muitas

18
cartas a Tobias, e cartas de Tobias estavam vindo até eles, pois muitas pessoas em Judá

estavam sob juramento a ele, porque ele era genro de Secanias, filho de Ara, e Joanã, seu
19
filho, havia se casado com a filha de Mesulão, filho de Berequias. Além disso, eles estavam

falando diante de mim sobre as boas obras dele e estavam transmitindo as minhas palavras a

ele, quando Tobias enviou cartas para me intimidar.

Na semana passada, não consegui acessar os meus e-mails. Concluiu-se

que o problema era algo com a memória cache, um componente no

computador que armazena dados; sua operação destinava-se a garantir a

segurança de meus e-mails, mas, na verdade, o seu problema era excesso

de zelo. Ao longo da mesma semana, tentei usar a nova página virtual

do meu médico para agendar uma consulta, o que envolvia registrar e

dar uma série de informações obscuras, tais como a cidade natal de

minha mãe, além de definir uma senha suficientemente “forte”, tudo isso

com o objetivo de garantir a segurança dos meus dados médicos.

Todavia, mesmo após fazer tudo isso, não logrei o desejado acesso ao

sistema, o que me obrigou a fazer uma antiquada ligação telefônica,

depois do fim de semana. Há alguém que realmente queira ler os meus

e-mails ou ver a minha ficha médica? Qual a importância disso?

Caso eu fosse Neemias, teria que me preocupar com essa questão.

Ele precisa ser astuto. O vale de Ono está no meio do percurso entre

Jerusalém e Samaria; portanto, é um lugar plausível para um encontro

entre Sambalate e Neemias, mas também fica cerca de trinta

quilômetros ao norte de Jerusalém, o que demandaria alguns dias de

ausência para Neemias — caso voltasse. O mais provável é que ele

desaparecesse misteriosamente, um infortúnio que poderia, então, ser

atribuído a bandidos ou aos beduínos, a exemplo dos sequestradores de

José. A viagem por um país aberto sempre será cheia de percalços e

perigos.

A trama subsequente de Sambalate é ainda mais sutil e perigosa (o

Gesimo, citado por ele, é o mesmo Gesém, que aparece em outras

passagens, apenas uma derivação do mesmo nome). Todos sabem que

povos como os judaítas preferiam ser independentes a estar sob o


controle persa, ou, pelo menos, ter um governante nominal próprio, que

tivesse autoridade local, ainda que fosse obrigado a aceitar a política

externa persa e garantir que os impostos fossem pagos. Os aliados de

Sambalate, em Jerusalém, tinham conhecimento sobre alguns líderes

judaítas, como Zorobabel, descendente da linhagem real judaíta, que

havia sido governador em Jerusalém, e, portanto, sabiam que os

habitantes da cidade mantinham os descendentes de Zorobabel no

radar (uma lista aparece em 1Crônicas 3). Decerto, os hierosolimitas

esperavam, novamente, ver um governante davídico no trono de

Jerusalém. A promessa de Deus a Davi implicava que isso ocorreria.

Tudo bem, mas Neemias não nasceu da linhagem davídica, pelo que

sabemos, embora o seu comportamento pudesse lembrar o de um rei, ao

proclamar que as dívidas deveriam ser canceladas. Na verdade, talvez o

pertencimento à linhagem davídica seja apenas secundário na promessa

de Deus, não necessitando de uma leitura tão literal; três séculos mais

tarde, a linhagem de governantes em Jerusalém era de sacerdotes em

vez de descendentes de Davi. Tudo o que eles precisavam para designar

Neemias como rei era de uma palavra profética, a exemplo das que

chegaram a Samuel, instruindo-o a ungir Saul e, então, o próprio Davi,

uma palavra declarasse que Deus estaria, agora, ungindo Neemias.

Na realidade, a profecia está funcionando ao contrário, para

desacreditar Neemias. O motivo de Sambalate e seus colaboradores, em

Jerusalém, conseguirem imaginar como Neemias pode manobrar o seu

acesso ao trono com a ajuda de um profeta é o que os leva a planejar a

desonra de Neemias com o auxílio de alguns profetas, caso ele não caísse

na armadilha de empreender uma viagem ao vale de Ono. Apesar de as

palavras de Semaías serem bem plausíveis em conteúdo, elas são

proferidas em ritmo de poesia, como a reclamação de Judá, no capítulo

4. No Antigo Testamento, o ritmo de verso é apropriado para palavras

que pretensamente vêm de Deus, já que é apropriado a palavras

dirigidas a Deus. Isso propicia um verniz de plausibilidade à

reivindicação implícita de Semaías de que a intenção de Deus está por


trás de seu convite. Ele precisa dessa camada de veracidade, pois

Semaías está propondo que Neemias ignore a regra da Torá que permite

apenas aos sacerdotes o acesso ao interior da casa ou do palácio de

Deus, o templo. Pessoas leigas poderiam ir aos pátios do templo para a

adoração e para a oferta de sacrifícios, mas não ao interior do santuário

em si. Acessar aquele local é arriscar ser mortalmente atingido em vez

de se proteger contra um atentado. Semaías é o agente de Sambalate (a

causa de ele estar “restrito”, isto é, incapacitado de ir ao templo, pode

ser alguma contaminação temporária que cessaria ao anoitecer).

Com base no relato presente nos capítulos inaugurais de Neemias,

poderíamos imaginar que as pessoas, em geral, cooperavam

entusiasticamente com Neemias no projeto de reconstrução, embora

haja inúmeros indícios de que a situação real não era bem essa. Embora

a lista de participantes, no capítulo 3, possa impressionar, ela promove

uma reflexão sobre quem não é ali mencionado. E quanto a pessoas de

outras profissões, além dos perfumistas, ourives e comerciantes? E as

pessoas de outras cidades, além de Tecoa, Bete-Zur e uma ou duas

mais? Tecoa foi a única cidade na qual os nobres não viram nenhum

motivo que colocasse em perigo os negócios da cidade pela alocação de

recursos destinados à reconstrução em Jerusalém? Os protestos do

povo sobre a situação econômica indicam insatisfação com o projeto, e a

ação exigida dos mais abastados não ajudará a posição de Neemias junto

a eles.

Os parágrafos derradeiros do capítulo 6 explicitam mais a oposição

enfrentada por Neemias na cidade. Não era simplesmente um problema

relacionado aos inimigos em outras subprovíncias. Há oposição e

intrigas também no círculo interno. Caso Neemias tivesse um sistema

de mensagem eletrônica ou uma página virtual, certamente ela teria

sido violada. Ele precisa ser astuto como uma cobra e, ao mesmo tempo,

inofensivo como uma pomba. Ele é essa espécie de homem, o que

contribui para o seu sucesso. A reconstrução é concluída apenas porque

“a obra havia sido feita por Deus”. Mas a declaração, em seu contexto,
descontrói. A reconstrução é concluída somente porque o trabalho foi

feito por Neemias, que é alguém muito perspicaz. Os construtores,

decerto, não poderiam lograr êxito sem Deus, mas o muro também não

seria reconstruído sem Neemias. Ele consegue discernir quais vozes

provêm de Deus e quais pessoas estão trabalhando contra Deus, mesmo

quando elas parecem razoáveis e/ou preocupadas com o seu bem-estar.

Ainda, Neemias é capaz de discernir sobre convites politicamente

tentadores para encontros que poderiam atenuar a possibilidade de

piora da situação ou ajudar a encontrar um meio-termo, mas que, na

verdade, significam, na melhor das hipóteses, apenas distração e, na

pior, a sabotagem de todo o projeto.


NEEMIAS 7:1-73A
TRABALHANDO NO CONTEXTO DAS PROMESSAS DE DEUS
1
Quando o muro foi reconstruído e coloquei as portas no lugar, eles designaram os porteiros,

2
os cantores e os levitas. Comissionei Hanani, o meu irmão, e Hananias, o oficial na

fortaleza, sobre Jerusalém, porque ele era verdadeiramente um homem de confiança e que

3
reverenciava a Deus mais do que a maioria. Eu lhes disse: “os portões de Jerusalém não

devem ser abertos enquanto o sol estiver quente; enquanto aqueles homens estiverem

posicionados [em serviço], devem fechar as portas e protegê-las. E coloquem no lugar os

habitantes de Jerusalém como vigias, cada homem no seu posto ou em frente da sua casa.”

4
Ora, a cidade era ampla em comprimento e largura, mas o corpo de pessoas dentro dela era

5
pequeno, e não havia casas construídas. O meu Deus colocou em minha mente reunir os

cabeças, os supervisores e o povo para registro. Descobri o documento com o rol dos que

subiram primeiro e encontrei escrito nele:

6
Estas são as pessoas da província que subiram dentre os cativos no exílio, aos quais

Nabucodonosor, o rei da Babilônia, exilou e que retornaram a Jerusalém e Judá, cada qual

7
para a sua cidade, que vieram com Zorobabel, Jesua, Neemias, Azarias, Raamias, Naamani,

Mardoqueu, Bilsã, Misperete, Bigvai, Reum e Baaná. Os números dos homens pertencentes

8 9 10
ao povo israelita: Os descendentes de Parós, 2.172; os descendentes de Sefatias, 372; os

11
descendentes de Ara, 652; os descendentes de Paate-Moabe (por meio dos descendentes

12 13
de Jesua e de Joabe), 2.818; os descendentes de Elão, 1.254; os descendentes de Zatu,

14 15 16
845; os descendentes de Zacai, 760; os descendentes de Binui, 648; os descendentes de

17 18 19
Bebai, 628; os descendentes de Azgade, 2.322; os descendentes de Adonicão, 667; os

20 21
descendentes de Bigvai, 2.067; os descendentes de Adim, 655; os descendentes de Ater

22 23
(por meio de Ezequias), 98; os descendentes de Hasum, 328; os descendentes de Besai,

24 25 26
324; os descendentes de Harife, 112; os descendentes de Gibeom, 95; o povo de Belém

27 28 29
e de Netofate, 188; o povo de Anatote, 128; o povo de Bete-Azmavete, 42; o povo de

30 31
Quiriate-Jearim (Quefira e Beerote), 743; o povo de Ramá e de Geba, 621; o povo de

32 33 34
Micmás, 122; o povo de Betel e de Ai, 123; o povo do outro Nebo, 52; o povo do outro

35 36 37
Elão, 1.254; os descendentes de Harim, 320; os descendentes de Jericó, 345; os

38
descendentes de Lode, de Hadide e de Ono, 721; os descendentes de Senaá, 3.930.

39 40
Os sacerdotes: os descendentes de Jedaías (por meio da casa de Jesua), 973; os

41 42
descendentes de Imer, 1.052; os descendentes de Pasur, 1.247; os descendentes de

43
Harim, 1.017. Os levitas: os descendentes de Jesua (por meio de Cadmiel, por meio dos

44 45
descendentes de Hodeva), 74. Os cantores: os descendentes de Asafe, 148. Os porteiros:

os descendentes de Salum, os descendentes de Ater, os descendentes de Talmom, os

descendentes de Acube, os descendentes de Hatita e os descendentes de Sobai, no total, 138.

46
Os assistentes: os descendentes de Zia, os descendentes de Hasufa, os descendentes de

47
Tabaote, os descendentes de Queros, os descendentes de Sia, os descendentes de Padom,
48 49
os descendentes de Lebana, os descendentes de Hagaba, os descendentes de Salmai, os

50
descendentes de Hanã, os descendentes de Gidel, os descendentes de Gaar, os

51
descendentes de Reaías, os descendentes de Rezim, os descendentes de Necoda os

52
descendentes de Gazão, os descendentes de Uzá, os descendentes de Paseia, os

53
descendentes de Besai, os descendentes de Meunim, os descendentes de Nefusim, os

54
descendentes de Baquebuque, os descendentes de Hacufa, os descendentes de Harur, os

55
descendentes de Bazlite, os descendentes de Meída, os descendentes de Harsa, os

56
descendentes de Barcos, os descendentes de Sísera, os descendentes de Tamá, os

57
descendentes de Nesias e os descendentes de Hatifa. Os descendentes dos servos de

Salomão: os descendentes de Sotai, os descendentes de Soferete, os descendentes de Perida,

58 59
os descendentes de Jaala, os descendentes de Darcom, os descendentes de Gidel, os

descendentes de Sefatias, os descendentes de Hatil, os descendentes de Poquerete-

60
Hazebaim e os descendentes de Amom. Todos os assistentes e os descendentes dos servos

de Salomão, 392.

61
Estas são as pessoas que subiram de Tel-Melá, Tel-Harsa, Querube, Adom e Imer, mas que

62
não foram capazes de mostrar a sua casa ancestral e a sua origem, se elas eram de Israel: os

63
descendentes de Delaías, os descendentes de Tobias, os descendentes de Necoda, 642. Dos

sacerdotes: os descendentes de Habaías, os descendentes de Hacoz, os descendentes de

Barzilai (que tinha desposado uma mulher dentre as filhas de Barzilai, o gileadita, e era

64
chamado pelo seu nome). Esses procuraram por seus registros entre as pessoas inscritas,

65
mas eles não foram encontrados, e elas foram desqualificadas do sacerdócio. Assim, o

administrador lhes disse que eles não poderiam comer das coisas mais sagradas até que

surgisse um sacerdote para o Urim e o Tumim.

66 67
Toda a assembleia reunida foi de 42.360, além de seus servos e servas; estes somaram

68
7.337, e eles tinham 245 cantores e cantoras. Seus cavalos, 736; suas mulas, 245;

69 70
camelos, 435; jumentos 6.720. Alguns dos cabeças ancestrais deram para o trabalho. O

administrador deu à tesouraria da obra ouro, mil dracmas; bacias, 50; mantos dos sacerdotes,

71
530. Alguns dos cabeças ancestrais deram à tesouraria da obra ouro, vinte mil dracmas; e

72
prata, duas mil e duzentas minas. O que o restante do povo deu: ouro, vinte mil dracmas;

73a
prata, duas mil minas; e mantos dos sacerdotes, 67. Os sacerdotes, os levitas, os porteiros,

os cantores, alguns do povo, os assistentes e todo o Israel estabeleceram-se em suas cidades.

Durante um jantar social, discutíamos sobre a diferença que fazia ser

casado. Uma das esposas disse que apreciava ter um protetor (ela não é

uma mulher à moda antiga em outras áreas). Ela hesitava em estacionar

em ruas escuras. Certa noite, ao ouvir barulhos estranhos no

apartamento, ela ficou com medo de que fosse um ladrão. Receava que
as sombras noturnas pudessem indicar a presença de algum monstro.

Preocupava-se com o pagamento do aluguel. Agora, nenhuma dessas

coisas a preocupa ou a amedronta, pois se sente protegida. Não

obstante, como eu, ela ora as devoções matutinas episcopais que

envolvem pedir: “Pai, tu nos trouxeste ao início de um novo dia:

preserva-nos com teu imenso poder, para não cairmos no pecado, e não

permitas que a adversidade nos vença.” À noite, nessas devoções,

pedimos a Deus que “visite este lugar e afaste dele todas as armadilhas

do inimigo”, e que “nos preserve em paz”. Qual a relação entre a

proteção divina e a humana — ou medo, sensibilidade, paranoia ou

planejamento estratégico?

Vimos que uma das maneiras de a história de Neemias suscitar essas

questões é falar sobre a reconstrução do muro como tendo sido

realizada por Deus. Sua história também faz isso ao entrelaçar

referências à oração e à ação. A comunidade e o próprio Neemias

necessitam de proteção contra os seus adversários. Ele não presume que

o dom de certas pessoas seja a ação, enquanto de outras a oração; ele

assume a responsabilidade por ambas. Neemias não discute a inter-

relação entre a ação e a oração, nem fornece qualquer indicação de que

ponderou sobre ela. Instintivamente, ele apenas se entrega a ambas. O

modo ininterrupto pelo qual ele se move entre reportar os fatos que têm

ocorrido e o que ele tem feito, bem como reportar as suas orações, pode

até sugerir que ele não distingue a oração da ação, conforme os

ocidentais fazem. É improvável que ele fizesse essa distinção porque,

para os israelitas (a exemplo de muitos judeus modernos), a oração, tal

como a leitura da Escritura, é algo que se faz em voz alta. Ela não ocorre

apenas dentro de nossa mente.

O relato sobre Neemias, igualmente, levanta a questão quanto ao

relacionamento entre a proteção divina e a humana, ao oferecer um

contraste com algumas palavras de Zacarias, que aparecem lá atrás, em

Esdras 5. Zacarias 2 relata a visão de um homem empenhado em medir

o tamanho de Jerusalém. Um dos ajudantes sobrenaturais de Deus


aparece e declara que Jerusalém será uma cidade aberta, sem muros,

como um vilarejo, e que haverá muitas pessoas e rebanhos nela. Yahweh

será um muro de fogo em torno dela e será o esplendor em seu interior.

O que Neemias está fazendo ao reconstruir o muro de pedras de

Jerusalém se o próprio Deus prometeu ser o seu muro de fogo? No

entanto, o Antigo Testamento insinua que Neemias estava, de fato,

fazendo a coisa certa. Caso Neemias tivesse ciência da profecia de

Zacarias, talvez tenha considerado que a promessa da proteção de Deus

não significa a anulação da responsabilidade pela autoproteção. (O

ponto sobre manter as portas fechadas quando o sol está quente é não

deixar a cidade vulnerável quando todos estão tendo uma sesta.)

A afirmação de que não havia casas construídas não significa que a

cidade estava totalmente sem desenvolvimento; a história menciona

pessoas reconstruindo o trecho do muro nas proximidades de suas

casas. Antes, a implicação é de que muitas outras casas ainda não

haviam sido reparadas, após a devastação da calamidade mais recente

e/ou da destruição ocorrida no século anterior, e permaneciam

desocupadas. Pode ser que os seus donos fossem pessoas levadas para o

exílio e que não retornaram. O ponto de partida de Neemias, ao

recrutar as famílias para morarem na cidade, é a existência de um

registro de pessoas vindas da Babilônia, que é uma variante daquela

lista apresentada em Esdras 2. O número total é igual ao informado

naquela relação anterior, mas há muitas diferenças de detalhes,

principalmente, talvez, porque elementos como nomes e dados podem,

fácil e acidentalmente, serem alterados quando um manuscrito é

copiado.
NEEMIAS 7:73B—8:8
O ENSINO DESEMPACOTADO
73b
Quando o sétimo mês chegou, com os israelitas em suas cidades,

CAPÍTULO 8

1
todo o povo se reuniu como uma só pessoa na praça, em frente da porta das Águas, e

disseram a Esdras, o erudito, que ele devia trazer o pergaminho do ensino de Moisés que

2
Yahweh ordenara a Israel. Esdras, o sacerdote, trouxe o pergaminho em frente da

congregação (homens, mulheres e todos os que podiam compreender quando escutavam) no

3
primeiro dia do sétimo mês. Ele o leu de frente para a praça, em frente da porta das Águas,

desde o amanhecer até o meio-dia, diante dos homens, das mulheres e do povo que podia

compreender, enquanto os ouvidos de todo o povo estavam direcionados para o pergaminho

4
de ensino. Esdras, o erudito, permaneceu sobre uma torre de madeira que eles fizeram para

esse propósito. Ali, ao lado dele, estavam Matitias, Sema, Anaías, Urias, Hilquias e Maaseias,

à sua direita, e, à sua esquerda, Pedaías, Misael, Malquias, Hasum, Hasbadana, Zacarias e

5
Mesulão. Esdras abriu o pergaminho diante dos olhos de todo o povo, porque ele estava

6
acima de todo o povo; e, quando ele o abriu, todo o povo se levantou. Esdras adorou a

Yahweh, o grande Deus, e todo o povo respondeu “Amém! Amém!”, com suas mãos

7
levantadas; então, curvaram-se e prostraram-se a Yahweh, com o rosto em terra. Jesua, Bani,

Serebias, Jamim, Acube, Sabetai, Hodias, Maaseias, Quelita, Azarias, Jozabade, Hanã e

Pelaías, os levitas, ajudaram todo o povo a compreender o ensino, com o povo em seus

8
lugares. Assim, leram do pergaminho do ensino de Deus, explicando e dando percepção,

para que compreendessem a leitura.

Algumas semanas atrás, uma participante normalmente moderada e

calma de nosso grupo de estudo bíblico irritou-se quando discutíamos a

história sobre os últimos dias de Davi, em 1Reis. Essa passagem

descreve a incapacidade mostrada naqueles dias quanto a uma agenda

positiva para a sua sucessão e relata a maneira pela qual ele encorajou

Salomão a matar inúmeras pessoas contra as quais Davi nutria algum

rancor, enquanto, ao mesmo tempo, o exortava a viver em obediência a

Deus. Ela ficou indignada por ter sido levada a reverenciar Davi como

um homem segundo o coração de Deus e porque a ambiguidade de seu

caráter havia sido omitida dela. Isso ocorreu porque ela pertencia a uma
igreja que prestava muita atenção ao ensino e pregação da Bíblia às

pessoas, mas que empacotava o ensino bíblico, e o fazia seletivamente. A

igreja não lia a Bíblia com seus membros, mas lhes contava o que a

Bíblia dizia (exceto pelo fato de não ser bem assim; transmitiam o que

achavam que a Bíblia dizia ou, ainda, o que a Bíblia deveria dizer).

Como uma igreja que honrava a Reforma, a terrível ironia é cair no

mesmo erro combatido pela Reforma nas igrejas de seu tempo.

Comentei que por ela estar, agora, prestes a atuar no ministério de

ensino na igreja, deveria evitar incorrer na mesma prática.

Apreciaria pensar que a abordagem de ensino de Esdras pode evitar

esse erro. O início do sétimo mês marca a passagem para o ano novo.

Isso parecerá estranho, mas reflete o fato de que uma das formas de

contar os meses envolvia iniciar a partir da Páscoa, na primavera, de

acordo com Êxodo 12, que instruiu os israelitas a tratarem esse evento

como o início dos meses, pois assinalava o princípio da vida deles como

povo liberto por Deus. Essa forma de contagem dos meses foi

considerada em Esdras 6. Todavia, outra maneira de contar o ano

envolvia começar em setembro/outubro, com o término do ano agrícola

e o início do novo ano agrícola. Nesse sentido, o ano novo principia-se

no sétimo mês.

Deuteronômio 31, na realidade, prescreve uma leitura “desse

ensino” (presumidamente o próprio Deuteronômio) no Sucote, a cada

sete anos. Seria um lembrete a Israel dos termos de seu relacionamento

de aliança com Yahweh — do que Yahweh lhes havia feito e da resposta

esperada por Yahweh, a qual a Torá, como um todo, e Deuteronômio, em

particular, expõem. Em termos gerais, essa reunião no sétimo mês se

encaixa nessa estrutura, embora o capítulo não esclareça se este foi um

evento único, associado com o fato de Esdras trazer da Babilônia o seu

pergaminho da Torá, ou se foi um evento único posterior, ou, ainda, se

era um evento setenário, a exemplo daquele estabelecido em

Deuteronômio, ou mesmo um evento anual.


Tampouco temos clareza sobre a natureza do pergaminho lido por

Esdras. O capítulo, mais adiante, nos conta que Esdras leu o

pergaminho a cada manhã, durante uma semana, o que poderia ser

tempo suficiente para ler o livro de Deuteronômio na íntegra, e essa

leitura ser intercalada com o ensino em pequenos grupos pelos levitas.

A leitura de toda a Torá, e o devido ensino em grupos menores,

demandaria semanas. Talvez seja relevante que Esdras leia do

pergaminho (lit., no pergaminho). Devemos imaginá-lo lendo

seletivamente. Não sabemos o significado daqueles treze homens ao

lado dele, mas, evidentemente, eles o apoiavam ou emprestavam

autoridade à leitura, de algum modo, e evitavam que o povo tivesse a

impressão de haver algo singularmente autoritativo sobre o próprio

Esdras.

Ele, pelo menos, leu a própria Torá e permitiu que os levitas

instruíssem um contingente menor de israelitas, naqueles que foram os

primeiros pequenos grupos de estudo bíblico na Bíblia. É preciso

lembrar que as famílias não dispunham de um exemplar da Bíblia em

suas casas, muito menos inúmeras versões em diferentes traduções. Isso

corrobora o fato de que o evento de ensino ocorreu não porque Esdras

convocou o povo, mas porque eles o convocaram. Os israelitas queriam

ouvir a leitura da Torá. “Os ouvidos de todo o povo estavam

direcionados para o pergaminho de ensino.” Talvez outra implicação é a

de que o povo estaria mais acostumado a aprender pelo ouvir do que

pela leitura (silenciosa) que os ocidentais modernos e, portanto,

retinham mais na memória o que ouviam do que nós. Eles são capazes

de ouvir a leitura de alguns capítulos por parte de Esdras e, então, de

acompanhar o ensino e os esclarecimentos dos levitas sobre as

implicações dos capítulos lidos por Esdras. No entanto, após ouvirem a

leitura de Esdras, os israelitas podiam também fazer perguntas afiadas

caso os levitas não saíssem do “pacote” tradicional. Vale a pena lembrar

que o motivo de os levitas serem os professores não é o fato de o povo os

identificar com o dom do ensino. Eles são professores porque pertencem


ao clã de Levi. Os membros de outros clãs que estavam ouvindo o

ensino deles poderiam incluir pessoas que eram intelectualmente mais

competentes que os seus professores (a exemplo de certo professor de

seminário cujos alunos são mais sagazes que ele).

Todo o povo está concentrado em ouvir a leitura da Torá e

participar do pequeno grupo. Como o Antigo Testamento enfatiza, de

tempos em tempos, notadamente no livro de Deuteronômio, as

mulheres e os homens fazem parte do povo de Deus que tem o privilégio

e a responsabilidade de participar da adoração de Israel, de conhecer o

que a Torá diz e de garantir que isso seja implementado na vida familiar.

Deuteronômio, igualmente, sublinha que este não é um privilégio e uma

responsabilidade apenas dos pais e da geração mais idosa no seio da

família, mas também de seus filhos e filhas. Neemias 8 discorre sobre

esse ponto em termos de ser este um privilégio e uma responsabilidade

de todos com idade suficiente para entender. (O texto não revela quais

as condições para o cuidado daqueles jovens demais para cair nessa

categoria! Mas pode-se presumir que a comunidade seguia a prática de

outros povos tradicionais pelos quais os bebês eram deixados aos

cuidados de crianças que eram apenas um pouco mais velhas, e que

todas elas estavam não muito distantes do local onde os pais estavam

reunidos.)

Os grupos de ensino não eram divididos por sexo ou idade.

Aprender é uma atividade familiar, parcialmente porque a

implementação do que as pessoas aprendem é no contexto da família.

Além desse fato, o aprendizado é uma tarefa de toda a comunidade. A

exemplo da reunião para construir o altar (Esdras 3), os israelitas se

reuniram como uma só pessoa para ouvir a Torá. Eles eram um em

adoração e no ouvir a Torá.


NEEMIAS 8:9-18
LAMENTO OU CELEBRAÇÃO?
9
Neemias (ele era o administrador), Esdras, o sacerdote erudito e os levitas que estavam

ajudando o povo a compreender disseram a todo o povo: “Este dia é santo a Yahweh, o seu

Deus. Não lamentem nem chorem”, porque todo o povo estava chorando enquanto ouviam

10
as palavras do ensino. Ele lhes disse: “Vão, comam alimentos ricos, bebam bebidas doces e

mandem ajuda aos que não prepararam nada, porque este dia é santo ao nosso Deus. Não

11
fiquem tristes, porque a sua força está em alegrarem-se em Yahweh.” Os levitas estavam

silenciando todo o povo, dizendo: “Acalmem-se porque este dia é santo. Não fiquem tristes.”

12
Então, todo o povo foi comer, beber e mandar ajudas e fazer grande celebração porque

13
entendiam as coisas que lhes eram explicadas. No segundo dia, os cabeças ancestrais de

todo o povo, os sacerdotes e os levitas se reuniram a Esdras, o erudito, para estudar as

14
palavras do ensino. Eles encontraram escrito no ensino que Yahweh havia ordenado por

15
meio de Moisés que os israelitas deveriam viver em tendas no festival no sétimo mês e que

deveriam fazer ouvir e anunciar em todas as cidades e em Jerusalém: “Saiam às montanhas e

tragam ramos de oliveiras, de pinheiros, de murtas, de palmeiras e de outras árvores

16
frondosas para fazer as tendas, como está escrito.” Então, o povo saiu e os trouxe, e fizeram

tendas para si, cada pessoa em seu terraço ou nos pátios da casa de Deus ou na praça junto à

17
porta das Águas ou na praça junto à porta de Efraim. Toda a congregação de pessoas que

tinham voltado do cativeiro fez tendas e viveu nelas, porque os israelitas não haviam feito

isso desde os dias de Josué, filho de Num, até aquele dia, e houve uma grande celebração.

18
Assim, [Esdras] leu do pergaminho do ensino de Deus, dia após dia, desde o primeiro dia

até o último, e eles fizeram o festival por sete dias, e no oitavo dia houve uma assembleia, de

acordo com a regra.

Nos comentários sobre o primeiro capítulo de Neemias, citei a nossa

discussão congregacional sobre o evangelho do dia, que foi sobre o

início do Sermão do Monte, ou seja, as “Bem-aventuranças” de Jesus,

em Mateus 5. Por algum tempo, falamos sobre as expectativas que Jesus

tem em relação a nós como receptores potenciais de suas bênçãos, mas,

eventualmente, vimos que o fato estranho sobre as suas promessas era

relativo aos que nada faziam. Essas pessoas eram simplesmente pobres

de espírito, infelizes, mansos, e assim por diante. Percebemos que, na

verdade, não gostávamos dessa ideia. Preferíamos nos concentrar nas


passagens que nos diziam o que fazer, não sermos instruídos de que a

bênção de Jesus vem a pessoas que não podem fazer. O aspecto dessa

ocasião, que me vem à mente agora, é o fato de a pessoa que leu o

Evangelho ter dito: “Este é o evangelho de Jesus Cristo”, e depois disso

respondemos: “Louvado sejas, ó Cristo”, mas a discussão subsequente

indicou que não queríamos expressar realmente isso.

Há um paralelo interessante na reação das pessoas à leitura da Torá

por parte de Esdras. Enquanto abria o rolo, Esdras adorava a Deus, e o

povo respondia: “Amém! Amém!”, com as mãos elevadas, e, então, todos

se curvaram em submissão a Deus. Mas parece que, ao ouvirem o que a

Torá tinha a dizer, eles mostraram bem menos entusiasmo e precisaram

ser alertados a pararem de lamentar e chorar, a começarem a ver que a

força deles estava na alegria em Deus e que necessitavam desfrutar de

uma refeição celebratória juntos. O que está acontecendo?

Caso Esdras estivesse fazendo uma leitura transversal do material

da Torá, isso explicaria tanto a reação do povo quanto a sua

advertência. Os relatos sobre os casamentos mistos dentro da

comunidade e dos mais abastados obtendo lucro dos menos afortunados

são conflitantes com o ensino da Torá. A sua leitura conscientizou o

povo de outras maneiras pelas quais a comunidade desobedecia à Torá.

Talvez os israelitas desconhecessem o que a Torá ensinava sobre essas

matérias, pois ela havia sido amplamente ignorada no período até o

exílio; daí eles terem sido exilados. Esdras chegou a Jerusalém para

incentivar a comunidade a viver pela Torá, e a implicação é que, no

tocante a eles, o pergaminho disse coisas das quais os israelitas nunca

tinham ouvido. Contudo, eles não alegaram a ignorância como

desculpa; pelo contrário, a consciência do contraste entre as

expectativas da Torá e a natureza da vida que eles seguiam foi,

presumidamente, o motivo do pranto e do lamento deles. No calendário

de adoração em Levítico 23, o Dia da Expiação ocorre no décimo dia do

sétimo mês, logo após essa semana de leitura e de ensino da Torá. Não

há menção desse dia ser observado em conexão com os eventos de


Neemias 8, embora isso possa ser explicado simplesmente pelo fato de o

Antigo Testamento descrevê-lo como uma observância que demanda

somente a atividade dos sacerdotes; o povo não tem participação direta

nele. Contudo, pode-se ver como esse tema se adequaria à resposta de

aflição da comunidade por sua desobediência.

Pode-se esperar, então, que Esdras se agrade da reação do povo, mas

isso não ocorre. A sua reação liga-se a outro aspecto da natureza da

Torá. Nela, as expetativas de Deus sobre o povo são estabelecidas no

contexto de uma descrição do que Deus fez por eles na criação, nas

promessas feitas aos ancestrais de Israel, no êxodo do Egito, na aparição

ao povo no Sinai e na liderança dos israelitas durante a travessia do

deserto até a fronteira da terra prometida. Isso coaduna com esse

aspecto da Torá que comissiona festivais de júbilo em virtude desses

atos da graça divina, como a Páscoa, o Sucote ou Tabernáculos. Caso

não sejamos lembrados de nos regozijar em tais eventos, a nossa

propensão é esquecer a alegria e os próprios eventos.

Paradoxalmente, podemos pensar, Esdras indica aos israelitas que

não há sentido em ficarem tristes porque é um dia santo, consagrado a

Deus. Podemos considerar que a santidade do dia demande uma atitude

solene e que o lamento por causa dos pecados se adequaria. O

pensamento de Esdras é antagônico a isso. A santidade do dia resulta de

ele ser um lembrete do que Deus tem feito pelo povo, o que o torna

motivo de júbilo. A santidade de Deus reside em ele ser um Deus de

graça e de misericórdia, o que conduz à celebração. Assim, eles

deveriam sair, comer e beber, após um dia intenso ouvindo a leitura da

Torá. O comer e o beber serão a espécie de refeição de comunhão

celebratória associada com uma ocasião como a Páscoa e com a oferta

de sacrifícios de ações de graças, quando o povo que se reúne para a

adoração conjunta também partilha da parte do sacrifício que a Torá

lhes determina. Novamente, isso está de acordo com o ensino da Torá

quando diz que, ao celebrarem, os israelitas não devem apenas retornar

às suas casas e esquecer as outras pessoas, mas refletirem sobre se há


pessoas que eles precisam convidar para celebrarem com eles, a exemplo

das famílias nos Estados Unidos que não tratam o Dia de Ação de

Graças como uma mera reunião familiar, mas se perguntam quem são os

necessitados e solitários que podem convidar. Aqueles que não têm

nada preparado podem estar nessa condição por sua própria

ineficiência, mas isso não é motivo para excluí-los de um evento que

celebra a generosidade de Deus.

Nesse mesmo sétimo mês é que o povo judeu celebra o Sucote, e, no

transcorrer da leitura, não surpreendentemente, o povo descobre a

prescrição da Torá quanto a essa celebração. Na realidade, existem

inúmeras passagens na Torá que descrevem o Sucote, mas apenas uma,

em Levítico 23, estabelece uma ligação com a ideia de que os israelitas

deveriam viver temporariamente em tendas, a exemplo de suas

moradias na jornada do Egito até Canaã. Talvez seja este o ponto sobre

o comentário de que o festival não tinha sido celebrado dessa forma

antes (Esdras 3 registra uma celebração). Esse é o momento no qual o

Sucote é vinculado à saída do povo do Egito, promovida por Deus. Por

seu turno, essa ligação se adequaria perfeitamente à referência ao

retorno do povo do cativeiro. Esse novo êxodo foi, por si só, uma

reencenação do primeiro.

Na origem, entretanto, o Sucote era um festival da colheita, e as

tendas eram um auxílio prático ao processo de coleta, como já

observado em nosso comentário sobre Esdras 3. Todavia, quer o povo

pensasse na colheita quer no êxodo, o Sucote era uma ocasião de júbilo

pelo que Deus lhes havia concedido. Imagine que você não precise viver

em tendas ou cabanas, porque, por exemplo, vive na cidade e trabalhe

como ourives ou comerciante, ou mesmo seja um sacerdote do templo.

Então, você ainda precisa deixar-se envolver no júbilo pelas dádivas de

Deus envolvidas no Sucote. Desse modo, você confecciona a sua

própria tenda no terraço ou no pátio de sua casa, ou, ainda, em um local

público. Na verdade, talvez devamos presumir que a comunidade como

um todo participou da leitura e do ensino da Torá somente no primeiro


dia; pois eles tiveram que retornar às suas casas para a refeição festiva

ou, talvez, para retomar a colheita. As pessoas que viviam na cidade é

que realmente poderiam participar no Sucote alternativo, substituto. É

possível que outras pessoas tenham retornado para a celebração

comunitária final, no oitavo dia.

A reação da nossa congregação às bem-aventuranças de Jesus

refletiu o nosso instinto de estabelecer uma dependência entre a nossa

relação com Deus e o que fazemos. Não apreciamos a ideia de que Deus

nos abençoa apenas por sermos pobres em espírito. O instinto dos

judaítas era similar, pois consideravam que o relacionamento deles com

Deus dependia do que faziam, pelo modo de viver prescrito pela Torá.

Seria cômico não fosse o pensamento perigosamente equivocado de

alguns cristãos que, com frequência, imaginam ser esta a visão judaica

regular. Esdras e o Antigo Testamento sabem que a nossa relação com

Deus depende, primeiramente, da generosidade divina, Claro que o

viver de acordo com a Torá é vital como resposta a essa generosidade.

Todavia, se invertermos a relação entre a generosidade de Deus e a

nossa obediência, estaremos em apuros.


NEEMIAS 9:1-19
COMO FAZER A SUA CONFISSÃO
1
No vigésimo quarto dia desse mês, os israelitas se reuniram com jejum, panos de saco e terra

2
sobre eles. A descendência de Israel separou-se de todos os estrangeiros, colocou-se em pé e

3
confessou as suas ofensas e os atos obstinados de seus ancestrais. Eles levantaram-se em

seus lugares e leram do pergaminho do ensino de Yahweh, o Deus deles, por um quarto do

dia, e, por um quarto, eles confessaram e se prostraram diante de Yahweh, o Deus deles.

4
Sobre a escadaria dos levitas, Jesua e Bani, Cadmiel, Sebanias, Buni, Serebias, Bani e

5
Quenani se levantaram e clamaram em voz alta a Yahweh, o Deus deles. Os levitas Jesua,

Cadmiel, Bani, Hasabneias, Serebias, Hodias, Sebanias e Petaías disseram: “Levantem-se,

louvem a Yahweh, o seu Deus, de eternidade em eternidade: ‘Que o povo louve o teu glorioso

6
nome, que é exaltado acima de toda a adoração e de todo o louvor. Tu és Yahweh, tu

somente. Fizeste os céus, os mais altos céus, e todo o teu exército, a terra e tudo o que há

sobre ela, os mares e tudo o que há neles. Tu destes vida a todos eles, e o exército nos céus

7
prostra-se perante ti. Tu és Yahweh, o Deus que escolheu Abrão e o tirou de Ur dos caldeus,

8
e tornou o seu nome Abraão. Descobriste que a mente dele era verdadeira diante de ti e

selaste uma aliança com ele para dar a terra dos cananeus, dos hititas, dos amorreus, dos

ferezeus, dos jebuseus e dos girgaseus — para dar à descendência dele. Estabeleceste as tuas

9
palavras porque és fiel. Viste a aflição dos nossos ancestrais no Egito e ouviste o clamor

10
deles no mar Vermelho. Fizeste sinais e maravilhas contra o faraó, todos os seus oficiais e

todas as pessoas de seu país porque reconheceste que eles agiram arrogantemente contra

11
eles, e fizeste um nome para ti mesmo até este dia. Dividiste o mar à frente deles, e eles

passaram em meio ao mar sobre terra seca, mas lançaste os seus perseguidores nas

12
profundezas, como uma pedra em águas poderosas. Com uma nuvem os conduziste de dia e

13
com uma coluna de fogo de noite, para iluminar o caminho que eles deviam seguir. Sobre o

monte Sinai desceste e falaste com eles dos céus. Deste-lhes regras justas e ensinos

14
verdadeiros, estatutos e mandamentos bons. Teu sábado santo tornaste conhecido a eles, e

ordenaste a eles mandamentos, estatutos e ensinamentos por meio de Moisés, teu servo.

15
Pão dos céus deste-lhes para a fome deles, e fizeste água sair de uma rocha para a sede

deles. Disseste-lhes para ir e tomar posse da terra pela qual levantaste a tua mão [para jurar]

16
lhes dar. Mas eles — nossos ancestrais — agiram arrogantemente, endureceram sua cerviz e

17
não ouviram os seus mandamentos. Eles se recusaram a ouvir e não atentaram às tuas

maravilhas, que fizeste a eles. Endureceram sua cerviz e indicaram um líder de modo a

voltarem para sua servidão, em sua rebeldia. Mas tu és um Deus perdoador, gracioso e

18
compassivo, temperante, grande em compromisso, e não os abandonaste. Mesmo quando

fizeram para si mesmos uma figura de um bezerro e disseram: “Este é o nosso Deus que nos

19
tirou do Egito.” Eles cometeram grandes atos de desprezo. Mas tu, em tua grande

compaixão, não os abandonaste no deserto. A coluna de nuvem não removeste deles de dia,

nem a coluna de fogo de noite, para lhes iluminar o caminho no qual deviam seguir.’”
Em nossa igreja, a cada domingo, proferimos um credo no qual

“confessamos a nossa fé” em quem Deus é como Pai, Filho e Espírito

Santo, embora o credo seja dominado por sua seção central, na qual

proclamamos os fatos básicos da história de Jesus — que ele é o Filho de

Deus, nasceu como um ser humano, foi crucificado, ressuscitou dentre

os mortos e retornará como juiz. Prosseguimos confessando as nossas

ofensas a Deus e uns aos outros. Ambas são formas de confissão —

publicamente, nós reconhecemos o que Deus fez e reconhecemos os

nossos atos. Contudo, em nossa adoração, as duas confissões não estão

conectadas; entre elas, oramos pelo mundo, pela igreja e uns pelos

outros, e, salvo exceções, os nossos pecados estão mais relacionados

com essas outras orações. A dinâmica da confissão liderada pelos levitas

possui algumas dinâmicas sobrepostas. Ela, igualmente, incorpora

alguma declaração sobre quem Deus é: somente Yahweh é Deus (o

“exército” celestial é relativo às estrelas e planetas, que outros povos

podem ver como deuses, entidades com poder de decisão sobre o que

ocorre no mundo). Mas isso foca o que Deus tem feito por nós, melhor

do que o credo cristão faz. A fé do Antigo Testamento é um evangelho,

uma mensagem de boas-novas com respeito ao que Deus fez; na

confissão dos levitas, essas declarações surgem antes das afirmações

atemporais sobre Deus e são mais fundamentais do que elas. A fé cristã

é um evangelho de maneira similar, uma declaração adicional do que

Deus fez, uma continuação da mesma mensagem de boas-novas. Ao

relatório já existente nos tempos de Jesus, ele acrescenta notícias mais

recentes, levando a história a um clímax e lançando uma luz mais

intensa sobre as novas anteriores. Portanto, é estranho que os credos

cristãos ignorem os estágios anteriores da história da qual as boas-

novas sobre Jesus são uma continuação. A igreja cristã tornou o Antigo

Testamento no Volume 1 de suas Escrituras, reconhecendo que é


possível compreender Jesus apenas se a história do Filho de Deus for

vista à luz da história da criação e do envolvimento de Deus com Israel;

no entanto, os credos negligenciam esse fato.

A dupla confissão dos levitas, então, também estabelece uma ligação

entre o que Deus fez e o que povo fez, o vínculo ausente na liturgia

cristã. A confissão deles quanto aos atos de Deus não é apenas uma

declaração sobre fatos objetivos, mas uma história à luz do que eles

veem em sua própria vida. Eles perguntam: “Que tipo de resposta temos

dado para o que Deus tem feito por nós?” De modo contrário, quando

confessam as suas próprias transgressões, eles o fazem em termos do

modo com que têm respondido ao que Deus fez. (Há, igualmente, um

ponto inverso, que é a possibilidade de contarmos a nossa história com

seus elementos vergonhosos quando ela é inserida no contexto dos atos

de Deus para a nossa restauração, fazendo a confissão glorificar mais a

Deus do que nos envergonhar.) Um equivalente cristão seria enquadrar

a nossa compreensão e a nossa confissão do pecado à luz da ação de

Deus na vinda de Jesus como ser humano, em sua entrega voluntária à

crucificação, em sua ressurreição dentre os mortos e em sua futura

vinda. Uma característica adicional da confissão dos levitas, que a torna

distinta da nossa prática regular, é que (a exemplo da oração em Esdras

9) ela assume que a presente geração necessita expressar a sua

identificação com as transgressões das gerações anteriores por estar

ligada a elas de todas as maneiras possíveis.

Quando o início de Neemias 9 menciona “esse mês”, considera-se

que seja referente ao mesmo mês, no mesmo ano, que a celebração

descrita no capítulo anterior, mas não está claro por que essa leitura

adicional da Torá e a confissão de pecados vêm após a celebração.

Tampouco está claro qual o significado de aludir ao vigésimo quarto dia

do mês, embora, com frequência, a tangibilidade das datas na Escritura

tenha o efeito de tornarem a cena e os eventos parecerem

verdadeiramente reais. O registro dos nomes das pessoas possui o

mesmo efeito, mostrando que são pessoas reais. A referência à reunião


separada dos estrangeiros sugere uma ligação com o tipo de ação

envolvida em relação aos casamentos mistos, reportada em Esdras 9 e

10; essa comparação, pelo menos, nos lembra que o motivo da separação

não é étnico, mas religioso. Claro que havia estrangeiros na

comunidade, como sempre ocorre, mas poderiam ser pessoas como

Rute, que tinham declarado o compromisso com Yahweh, o Deus de

Israel.

A disposição dos capítulos sugere que, embora haja situações nas

quais o povo de Deus adequadamente deva priorizar a celebração e não

lamentar por seus pecados (Neemias 8), essa tristeza tem um lugar

próprio na vida do povo de Deus como uma reação à leitura da

Escritura. Desse modo, deve haver um equilíbrio na vida do povo de

Deus entre a celebração e a lamentação. A tristeza pelo pecado, como

expressa aqui, é algo característico na vida de Judá, no período do

Segundo Templo; Esdras 10 constitui uma ilustração anterior. Em

outras passagens do Antigo Testamento, o “clamor” é uma expressão de

dor pelo que outras pessoas nos têm feito. Aqui, trata-se de uma

expressão de dor pelo que nós mesmos temos feito.

Como de costume, o Antigo Testamento nos exemplifica o modo

natural pelo qual uma resposta a Deus não somente envolve

sentimentos íntimos e palavras verbalizadas. Pelo fato de sermos

pessoas corporais que se relacionam com outros seres corporais, nos

expressamos corporalmente. (Na noite passada, fui a um grande

concerto e procurei na internet uma camiseta para comemorar o evento;

hoje, estou usando uma camiseta em comemoração a um grande

concerto a que assisti alguns anos atrás.) Desse modo, a tristeza pelo

pecado é expressa por meio do jejum (quando sofremos por algo, o

nosso apetite desaparece). Ainda, esse sentimento é expresso pelo uso

de roupas básicas (a questão quanto ao pano de saco não é que ele seja

desconfortável, mas o fato de ser uma roupa comum de trabalho braçal

ou do dia a dia, pois, quando estamos sofrendo, não nos importamos

com a roupa que estamos vestindo). A tristeza é expressa por meio de


uma aparência descuidada (quando sofremos, não nos preocupamos em

fazer a barba ou tomar banho); ela é expressa por meio da prostração

diante de Deus (quando estamos cheios de entusiasmo ou de vergonha,

expressamos esse sentimento por meio de nosso comportamento). A

contrição, então, também é expressa pelo permanecer em pé, porque,

quando a nossa confissão é feita, Deus assume e perdoa, e não devemos

chafurdar em autopiedade por causa de nossas fraquezas, nem nos

deitarmos na terra como vermes, para sempre.


NEEMIAS 9:20-37
ESCRAVOS E SERVOS
20
“‘Deste-lhes o teu bom espírito para instruí-los e não retiveste o teu maná da boca deles, e

21
deste-lhes água para a sede. Quarenta anos os sustentaste no deserto, no qual nada lhes

22
faltou, as suas roupas não se gastaram e seus pés não incharam. Deste-lhes reinos e povos,

e os alocaste como uma fronteira; portanto, eles tomaram posse da terra de Seom, que era a

23
terra do rei de Hesbom, e a terra de Ogue, rei de Basã. Tornaste os seus descendentes tão

numerosos quanto as estrelas nos céus e os trouxeste à terra da qual falaste aos seus

24
ancestrais para entrarem e possuírem. Os descendentes deles vieram e tomaram posse da

terra. Subjugaste diante deles os cananeus, os habitantes da terra, e os entregaste nas mãos

deles, tanto os seus reis quanto os povos da terra, para fazerem com eles de acordo com a

25
vontade deles. Eles tomaram cidades fortificadas e terra rica, e tomaram posse de casas

cheias de todas as coisas boas; cisternas escavadas, vinhas, olivais e árvores frutíferas em

quantidades. Eles comeram, ficaram cheios, fortaleceram-se e deleitaram-se em tua grande

bondade.

26
Mas eles te desafiaram e se rebelaram contra ti, dando as costas ao teu ensino. Eles

mataram os teus profetas que testificavam contra eles para fazê-los que se voltassem para ti,

27
e cometeram grandes atos de desprezo. Tu os entregaste nas mãos de seus adversários, e

eles os oprimiram. Em seu tempo de aflição, eles clamaram a ti, e dos céus tu mesmo os

ouviste. De acordo com a tua grande compaixão, deste-lhes libertadores que os libertaram

28
das mãos de seus adversários. Mas, quando havia alívio para eles, novamente faziam o que

era desagradável à tua vista, e os abandonavas nas mãos de seus inimigos. Eles os

subjugavam, de modo que novamente eles clamavam a ti, e dos céus tu mesmo os ouvias. Tu

29
os resgatavas, de acordo com a tua grande compaixão, vez após vez. Testificaste contra eles

para fazê-los voltar para o teu ensino, mas eles mesmos agiram arrogantemente e não deram

ouvidos aos teus mandamentos e ofenderam as tuas regras, as quais uma pessoa deveria

cumprir e viver por elas. Eles ofereceram um ombro obstinado, endureceram a sua cerviz e

30
não deram ouvidos. Estendeste-lhes [compromisso] por muitos anos e testificaste contra

eles por teu espírito, por meio dos teus profetas, mas eles não prestaram atenção, de modo

31
que os entregaste nas mãos dos povos das terras. Mas, em tua grande compaixão, não

fizeste um fim deles e não os abandonaste, porque tu és um Deus gracioso e compassivo.

32
Portanto, agora, nosso grande Deus, poderoso e assombroso, que guarda a aliança e o

compromisso, que todo o sofrimento que caiu sobre nós, nossos reis, nossos oficiais, nossos

sacerdotes, nossos profetas, nossos ancestrais e sobre todo o teu povo, desde os dias dos reis

33
assírios até hoje, não pareça pequeno. Tu estás certo sobre tudo o que caiu sobre nós,

34
porque agiste fielmente, mas nós fomos infiéis. Nossos reis, nossos oficiais, nossos

sacerdotes e os nossos ancestrais não guardaram o teu ensino e não prestaram atenção aos

35
teus mandamentos e às tuas declarações que testificaste contra eles. Apesar do reinado
deles e da tua grande bondade que lhes deste, e a terra ampla e rica que puseste diante deles,

36
não serviram a ti nem se desviaram dos caminhos deles. Eis que hoje somos servos. A terra

que deste aos nossos ancestrais para comer de seu fruto e de sua bondade, eis que somos

37
servos nela. A grande produção dela pertence aos reis que colocaste sobre nós por causa de

nossas ofensas. Eles governam sobre os nossos corpos e os nossos animais de acordo com a

vontade deles. Estamos em grande angústia.’”

Na Grã-Bretanha, durante um Natal, fiquei surpreso com o modo

confiante e tranquilo pelo qual algumas pessoas do subcontinente

indiano e do Caribe administravam uma filial do meu banco britânico,

como se fosse a coisa mais natural do mundo. Na noite passada, jantei

com uma indo-americana, uma antiga aluna que também era a esposa de

um músico de jazz britânico que tocava naquele restaurante. Ela

migrara aos Estados Unidos com pouco mais de vinte anos, décadas

atrás, e, durante a nossa conversa, ficou evidente como ela se sentia em

casa nesse país. No entanto, para muitas pessoas do Caribe e do

subcontinente indiano, a vida, pelo menos na Grã-Bretanha, é mais

parecida com a de cidadãos de segunda classe; em sua própria geração

(ou a de seus pais), os seus países fazaim parte do Império Britânico. A

Grã-Bretanha havia construído a sua posição no mundo às custas das

gerações anteriores desses povos.

Nos dias de Neemias, Judá é uma colônia do Império Persa. Como a

oração dos levitas implica, a nação tem sido colônia de algum grande

império (Assíria, Babilônia, Pérsia) por séculos; ao longo dos próximos

anos, os dominadores irão mudar (Grécia, Roma), mas a sua condição

não mudará. “Somos servos”, eles dizem. Semelhante ao ocorrido no

capítulo 5, as traduções, em geral, usam a palavra para “escravos”, que é

equivocada. Vimos que os persas não são muito opressivos; não tratam

os judaítas como posses que podem tratar como bem desejarem. Pelo

contrário, os persas são capazes de agir para encorajar a restauração da

comunidade; as duas comunidades humanas possuem um desejo

profundamente arraigado de tocarem as suas próprias vidas. As


histórias da criação, no Antigo Testamento, nada expressam sobre Deus

ter a intenção de que alguns seres humanos dominem sobre outros e,

certamente, silenciam a respeito de nações dominarem outras. O

exercício de um governo veio como resultado da desobediência

humana. Agora, é inevitável, mas constitui, ainda, uma expressão da

desobediência humana das nações, quando elas tentam exercer controle

umas sobre as outras — e quando elas justificam essa ação com base na

alegação de que visam trazer benefício às nações controladas.

Embora os persas, de fato, apoiem a restauração de Judá, os levitas

possuem mais ciência do quanto eles tomam de Judá em termos de

impostos. Não é preciso ser muito cínico para concluir que o apoio persa

tem como objetivo encorajar a subserviência e o pagamento obediente

dos impostos. Deus deu a terra de Israel para que eles pudessem comer

de seu fruto, mas a sua produção, na realidade, pertence aos reis persas.

Servos são pessoas que não têm escolha, exceto passar grande tempo

trabalhando nas terras de seus proprietários em troca de proteção. Judá

estava em uma posição similar, pois grande parte do trabalho dos

judaítas não os beneficiava, mas somente aos senhores imperiais —

como o relato em Neemias já mostrou.

O paralelo entre a relação de Judá com a Assíria, a Babilônia e a

Pérsia e a relação do subcontinente indiano ou o Caribe com a Grã-

Bretanha se desfaz quando os levitas reconhecem que a posição servil

de Judá é decorrente da ação de Deus para colocar esses reis sobre Judá

“por causa de suas ofensas”. A oração dos levitas dá seguimento à

confissão dupla que foi iniciada nos versículos dos capítulos anteriores.

Trata-se de uma confissão dos bondosos atos de Deus e uma confissão

do comportamento transgressor por meio do qual Israel respondeu a

Deus. Uma oração nesse modelo tem sido chamada de “um ato de

louvor pela justiça do julgamento de Deus”. Ela declara: “Esta é a

maneira pela qual tu nos tens tratado, e não podemos reclamar.” Como

os levitas expressaram, Deus está certo em relação ao que sobreveio ao

povo, porque Deus tem agido fielmente, enquanto eles têm sido infiéis.
Os levitas estão fazendo a oração de confissão porque a liderança da

adoração é função deles. O livro de Salmos inclui muitas orações de

protesto pela forma com que Deus tem tratado o povo quando eles

mesmos não conseguem ver nenhuma justificativa para isso; em outras

ocasiões, os levitas estavam envolvidos nessas orações de protesto em

nome da comunidade, das famílias ou de indivíduos. No entanto, os

levitas, evidentemente, compreendem a necessidade de exercer

discernimento sobre se a calamidade vinda sobre o povo era algo que

eles deviam aceitar como um ato de castigo justificado ou algo pelo qual

deviam protestar.

Não obstante, talvez isso exponha a antítese muito abruptamente,

pois é típico das orações de confissão, no Antigo Testamento, não

assumir que devemos simplesmente aceitar o juízo divino até que Deus

decida colocar um fim nele. Isso seria esquecer o que Deus é e,

igualmente, deixar de pedir a Deus que se lembre de quem ele é. Os

estágios anteriores na história sobre a graça de Deus e a desobediência

de Israel têm mostrado que Yahweh é “um Deus perdoador, gracioso e

compassivo, temperante, grande em compromisso”. Os levitas,

portanto, lembram Deus dos aspectos do caráter divino aos quais Deus

atraiu a atenção no início da história de Israel no Sinai (veja Êxodo 34).

Esses aspectos do caráter divino constituíram a causa básica pela qual

Israel continuou a existir ao longo do Antigo Testamento e o motivo

pelo qual a vinda e a morte de Jesus foram um final lógico dessa

história. Eles são os motivos básicos pelos quais Deus permanece

comprometido com o povo judeu e com a igreja.

Eles significam que, mesmo quando você reconhece ser merecedor

das tribulações que surgem em sua vida, ainda é possível suplicar a

Deus para colocar um fim na aflição. Mesmo então, Deus pode

responder: “Acho que fará bem a você cozinhar um pouco mais em seu

próprio caldo.” Todavia, os levitas sabem que sempre vale a pena pedir,

pois sabem que Yahweh é um Pai amoroso. Eles não usam essa palavra,

mas ela resume a natureza de Deus como Israel o conhece, como um Pai
pronto a castigar, mas que enfrenta dificuldades para dizer que ainda

não é o bastante.
NEEMIAS 9:38—10:29
PARANDO DE FALAR E COMEÇANDO A AGIR
38
“De acordo com tudo isso, estamos confirmando um compromisso e o colocamos por

escrito, e no documento selado estão [os nomes dos] nossos oficiais, nossos levitas e nossos

10:1
sacerdotes.” Assim, nos documentos selados estão Neemias, filho de Hacalias, o

2 3 4
administrador, e Zedequias, Seraías, Azarias, Jeremias, Pasur, Amarias, Malquias, Hatus,

5 6 7
Sebanias, Maluque, Harim, Meremote, Obadias, Daniel, Ginetom, Baruque, Mesulão,

8 9
Abias, Miamim, Maazias, Bilgai e Semaías: esses eram os sacerdotes. Os levitas: Jesua,

10
filho de Azanias, Binui, dos filhos de Henadade, e Cadmiel. Seus irmãos: Sebanias, Hodias,

11 12 13
Quelita, Pelaías, Hanã, Mica, Reobe, Hasabias, Zacur, Serebias, Sebanias, Hodias,

14 15
Bani e Beninu. Os cabeças do povo: Parós, Paate-Moabe, Elão, Zatu, Bani, Buni,

16 17 18
Azgade, Bebai, Adonias, Bigvai, Adim, Ater, Ezequias, Azur, Hodias, Hasum, Besai,

19 20 21
Harife, Anatote, Nebai, Magpias, Mesulão, Hezir, Mesezabel, Zadoque, Jadua,

22 23 24 25
Pelatias, Hanã, Anaías, Oseias, Hananias, Hassube, Haloês, Pílea, Sobeque, Reum,

26 27 28
Hasabna, Maaseias, Aías, Hanã, Anã, Maluque, Harim e Baaná. “O restante do povo,

os sacerdotes, os levitas, os porteiros, os cantores, os assistentes e todos os que se separaram

dos povos das nações para o ensino de Deus, suas esposas, seus filhos e suas filhas, todos os

29
que sabem compreender, estão se unindo firmemente aos seus irmãos, seus nobres, e estão

entrando em uma maldição e em um juramento para andarem pelo ensino de Deus que ele

deu por meio de Moisés, servo de Deus, e guardarem e cumprirem todos os mandamentos de

Yahweh, o nosso Deus, e as suas regras e estatutos.”

Uma amiga minha, durante certo período, viveu na região noroeste do

Pacífico, na qual os amigos de sua filha, na maioria, eram judeus. Ela

não tinha ideia do que ocorreria quando todos aqueles jovens fizessem

treze anos, mas descobriu que deveria ter previsto cerca de um milhão

de dólares no orçamento do Bat Mitzvah ou Bar Mitzvah e seus

respectivos presentes porque todos os seus amigos tiveram celebrações

elaboradas, com recepções mais caras que casamentos. Todavia, o

aspecto mais notável daqueles eventos eram as leituras da Torá o dia

todo, na sinagoga, que precedia a recepção e dominava as celebrações.

Minha amiga comentou que foi então que percebeu a importância do

texto da Torá para a comunidade judaica, que eles mantinham “vivo”


pelo aprendizado do idioma hebraico por cada nova geração e pela

leitura em voz alta.

Os livros de Esdras e Neemias ilustram quão importante a leitura

em voz alta da Torá se tornou na comunidade do Segundo Templo, e de

igual importância era a resposta congregacional à leitura. Tornar-se Bat

ou Bar Mitzvah significa concordar em ser uma filha ou um filho do

mandamento. De nada valeria se aqueles jovens judeus assumissem

verbalmente um compromisso durante a cerimônia e não colocassem em

prática o juramento feito. O mesmo se aplicava à comunidade do

Segundo Templo. A resposta dela deveria envolver o compromisso em

seu viver. No presente contexto, em Neemias, a implicação é a de que o

apelo inflamado dos levitas para que Deus olhasse as precárias

circunstâncias nas quais eles viviam pode levar a algum lugar somente

se a confissão for acompanhada de arrependimento no sentido de uma

transformação nos caminhos trilhados pelo povo. Se eles não desejarem

ser mais servos (no caso, dos persas), devem estar preparados para

serem servos (de Deus).

Eles já indicaram ser essa a intenção deles ao se reunirem como um

povo separado dos estrangeiros. A súplica deles após a confissão

explicita que essa separação não possui motivação étnica ou política; é

uma separação “para o ensino de Deus”, para a Torá. Por implicação,

essa expressão cobriria a distinção dos moabitas e dos asdoditas que não

reconheciam Yahweh, e também dos samaritanos, que conheciam

Yahweh, mas cujo compromisso era questionado pela comunidade

judaíta. No comentário sobre Esdras 4, observamos que os samaritanos,

em épocas mais recentes, eram mais rígidos em sua adesão à Torá do que

os próprios judaítas, no sentido de que eles aceitavam somente a Torá

como Escritura, desconsiderando os Profetas e os Escritos (veja a

Introdução para obter explicação adicional sobre esses termos). Mas, se

a comunidade, nos dias de Neemias, estivesse usando a questão da

adesão à Torá como desculpa para preconceitos étnicos ou práticas


políticas, então a sua declaração sobre a Torá mostra que ela reconhece

a base adequada para a separação.

O povo indica que está preparado para acompanhar a confissão com

arrependimento ao colocar o seu compromisso por escrito. A oração dos

levitas identificou Deus como aquele que estabeleceu a aliança com

Abraão e que a sustenta; com efeito, o povo, agora, dá a sua resposta de

aliança a Deus. Eles “a confirmam” com o estranho uso de um verbo que

significa “cortar”, uma forma comum de expressar a confirmação de uma

aliança (veja no glossário, aliança). Não obstante, eles não usam a

palavra regular “aliança”, como Secanias usou em Esdras 10. Em vez

disso, usam outra palavra que significa uma promessa ou um

compromisso genuíno, relacionada a palavras presentes na oração dos

levitas que descreviam Deus agindo fielmente e Abrão como sendo

verdadeiro. A não utilização da palavra “aliança” preserva o caráter

distinto do compromisso que Deus estabelece com eles, o qual não está

condicionado por eles nem depende da resposta deles, mas resulta da

graça de Deus (tal como a oração enfatizou). Todavia, o uso dessa nova

palavra como “promessa” significa que eles reconhecem que não estão a

salvo de apuros pela singularidade do compromisso de Deus com eles.

Os judaítas estão dizendo que serão como Deus e como Abraão. O

compromisso assumido por eles é sublinhado pela menção de uma

maldição e de um juramento. O juramento é uma promessa solene feita

em nome de Deus; a maldição é uma oração por aflições que virão sobre

eles caso falhem em manter a promessa solenemente feita.

Uma vez mais, toda a comunidade está envolvida. Eles estão “se

unindo firmemente” uns aos outros no estabelecimento daquela

promessa. No entanto, isso também envolve a participação de cada um

— homens e mulheres —, não apenas os cabeças das famílias, mas todos

os membros da família com idade suficiente para compreender o que

está acontecendo. Judá relaciona-se com Deus como uma entidade

corporativa, mas também como uma coleção de indivíduos. Os líderes

políticos, administrativos e religiosos em Judá são, na maioria, homens,


porém o relacionamento com Deus pertence a todos. A lista de nomes

aponta para outro sentido no qual isso é verdadeiro. Os nomes são

conhecidos de outras passagens de Esdras e de Neemias e formam um

cruzamento ilustrativo dos nomes presentes nos dois livros, em que

alguns são nomes de famílias, não de indivíduos. A relação, portanto,

estabelece ligações entre indivíduos tanto horizontal (os membros

atuais das famílias) quanto verticalmente (os membros das famílias por

gerações). Sim, toda a comunidade assume esse compromisso.


NEEMIAS 10:30-39
SOBRE SER ESPECÍFICO
30
“[Estamos confirmando uma promessa] de que não daremos as nossas filhas aos povos da

31
terra nem tomaremos as suas filhas para os nossos filhos. Os povos da terra que trazem as

suas mercadorias ou qualquer grão no dia do sábado para vender, não os tomaremos deles no

sábado ou num dia santo. Renunciaremos ao sétimo ano e à usura em cada assinatura.

32
Impomos sobre nós mesmos mandamentos para darmos um terço de um siclo por ano para

33
o serviço da casa de nosso Deus, para o pão consagrado, para a oferta regular de grãos e

para a oferta queimada regular, sábados, luas novas, para ocasiões indicadas, ofertas santas e

ofertas de purificação, para expiação por Israel e para todo o trabalho da casa de nosso Deus.

34
Lançamos sortes para a oferta de madeira (os sacerdotes, os levitas e o povo) para trazê-la

à casa do nosso Deus pelas casas ancestrais, em tempos determinados, ano após ano, para

35
queimar sobre o altar de Yahweh, o nosso Deus, como está escrito no ensino. [Assumimos]

trazer os primeiros frutos de nossa terra e de cada fruto de cada árvore, ano após ano, para a

36
casa de Yahweh, e o primogênito de nossos filhos e de nossos animais, como está escrito no

ensino, e trazer o primogênito de nosso gado e de nossos rebanhos para a casa de nosso Deus,

37
para os sacerdotes que ministram na casa de nosso Deus. Traremos a nossa primeira massa,

as nossas contribuições e do fruto de cada árvore, vinho e azeite, para os sacerdotes, para as

câmaras de armazenamento na casa de nosso Deus, e o dízimo de nossa terra para os levitas;

38
os levitas são aqueles que coletam os dízimos em todas as cidades nas quais servimos. O

sacerdote, o filho de Arão, deve estar com os levitas quando os levitas estiverem coletando os

dízimos, e os levitas devem trazer um dízimo dos dízimos à casa de nosso Deus, para as

39
câmaras de armazenamento da tesouraria, porque os israelitas e os levitas devem trazer

para as câmaras de armazenamento a contribuição de grãos, de vinho e de azeite. Os

utensílios pertencentes ao santuário, os sacerdotes que ministram, os porteiros e os cantores

estão lá. Não abandonaremos a casa de nosso Deus.”

Estive ausente da nossa reunião congregacional, ocorrida três semanas

atrás, por estar doente, e embora esse não seja um motivo válido para

adoecer, pelo menos serviu de consolação, pois não posso afirmar ser um

entusiasta das reuniões congregacionais. Peço perdão aos meus colegas

da St. Barnabas e sei que a falta de entusiasmo é falha minha e que

deveria ficar contente por ir à reunião. É uma ocasião na qual revisamos

o que fizemos ao longo do ano que passou e discutimos prioridades e

objetivos para o ano seguinte. Algumas das prioridades e alvos são


espirituais — referem-se ao modo com que buscamos identificar qual é a

visão de Deus para nossa congregação e quais as maneiras pelas quais

podemos alcançar a nossa comunidade. Algumas questões são de ordem

prática. Precisamos concordar sobre um orçamento e determinar como

iremos financiar o ministério durante o próximo ano, além de fazer algo

para consertar o vazamento no telhado da igreja. Algumas prioridades

residem na interface entre o espiritual e o prático — em qual dessas

categorias você coloca um plano de servir um jantar aos desabrigados,

uma vez por mês?

Algo similar é verdadeiro em relação à promessa feita pelos judaítas,

e isso explica a natureza aparentemente aleatória das áreas cobertas por

ela. O problema quanto aos casamentos mistos com outras

comunidades não comprometidas com a Torá é próprio do período do

Segundo Templo. Embora reis, como Salomão, estivessem envolvidos

nessas uniões por motivos políticos, pelo que sabemos essa não era uma

prática usual entre as pessoas comuns do povo. Portanto, a comunidade

estabelece um compromisso específico em relação ao casamento. O

problema da observância do sábado possui um pano de fundo similar; se

você vive em meio a uma comunidade israelita ou judaica, sofrerá pouca

pressão para ignorar o sábado ou outros dias santos; contudo, num

contexto mais pluralista, a tentação aumenta. Assim, a comunidade

estabelece um compromisso específico nessa área. Sabemos, de Neemias

5 e de outras passagens, sobre as pressões econômicas presentes na

comunidade. Essas pressões aumentavam a tentação de ignorar a regra

da Torá sobre não cobrar juros sobre empréstimos pessoais e também de

não observar as regras da Torá concernentes a deixar a terra ter o seu

descanso sabático a cada sete anos. Desse modo, a comunidade faz um

compromisso nessa área.

As mesmas pressões econômicas tornariam tentador deixar de

apoiar o serviço do templo, mas grande parte do juramento diz respeito

a essa obrigação. Antes do exílio, esse apoio ao trabalho do templo

funcionava mais continuamente porque o rei exercia essa


responsabilidade. Na realidade, ainda eram as pessoas comuns do povo

que pagavam a conta, mas os administradores do rei é que coletavam os

impostos que, então, custeavam o serviço no templo. A abolição da

monarquia judaíta não significou o fim da taxação, do mesmo modo que

o término do domínio da monarquia britânica sobre as colônias

americanas (este último evento foi o contexto da observação feita por

Benjamin Franklin de que “neste mundo nada pode ser considerado

certo, exceto a morte e os impostos”). As pessoas, agora, pagam

impostos ao governo imperial em lugar da monarquia judaíta. Vimos

que o governo imperial financiou projetos especiais em Jerusalém e,

talvez, tenha providenciado subvenções regulares adicionais, mas,

evidentemente, a comunidade local era responsável pela maior parte

dos custos do templo. Então, agora, a comunidade optou por

comprometer-se a atender a essas necessidades em vez de não ter

escolha, como antes, o que, em termos da relação com Deus, seria um

passo adiante. A última linha da promessa diz tudo: “Não

abandonaremos a casa de nosso Deus.” Foi uma decisão baseada em

grande reflexão por parte do povo. Compromissos de todas as espécies

(projetos de construção, relações pessoais, casar, ter filhos, participar da

igreja, seguir o chamado de Deus), todos parecem mais custosos do que

pensamos quando nos comprometemos. O compromisso da comunidade

em relação ao templo cobrará um preço contínuo.

Algumas vezes, a promessa faz referências ao envolvimento com

atividades que estão de acordo com o que está escrito na Torá. Ao

mesmo tempo, isso ilustra a maneira pela qual cada geração precisa

descobrir como aplicar a Torá em novos contextos. A Torá nada diz

sobre o que fazer quando comerciantes estrangeiros oferecem as suas

mercadorias no sábado. O descanso do sábado não é obrigatório aos

estrangeiros, e para um judaíta a proibição do sábado está relacionada

ao trabalho, não a compras; assim, um judaíta comprar produtos no

sábado não constitui uma transgressão do mandamento para guardar

esse dia. Não obstante, um pouco de reflexão gerou a intuição de que há


algo de errado com aquela conclusão, e a promessa reconhece que é

preciso ir além da letra da lei a fim de alcançar o espírito do que Deus

está pedindo a Israel. Expressando teologicamente, a comunidade

judaíta sabe que a leitura da Escritura precisa ser feita à luz da

percepção oferecida pelo espírito de Deus, cujo trabalho está por trás da

existência da Escritura. Nosso modo de viver precisa estar de acordo

com a Escritura, mas também necessita refletir o contexto no qual

vivemos. Esse viver significa não se sentir livre para deixar imperativos

da Escritura de lado por eles serem contextuais, mas ver como eles se

aplicam em nosso contexto. Não existe um método infalível de fazer

isso, pois requer intuição ou discernimento espiritual, algo exercitado

pelo conjunto da comunidade, a fim de se proteger contra os nossos

pontos cegos individuais e, então, nos oferecer apoio enquanto pagamos

o preço pelo nosso comprometimento com o que percebemos como

expectativa de Deus.

Igualmente, as comunidades cristãs no Ocidente talvez precisem

refletir sobre as promessas que devem fazer para o próximo ano,

ponderando à luz da Torá e dos demais livros da Escritura,

questionando onde estão os verdadeiros desafios das Escrituras para

elas. Os seus membros, da mesma forma, necessitam fazer essa reflexão.

Enquanto os Estados Unidos usam o termo inglês pledge (promessa)

para descrever o compromisso que fazemos em conexão com o dar, o

inglês britânico usa o termo covenant (aliança), porém uma igreja

californiana que conheço espera que os seus membros redijam e assinem

uma aliança com respeito ao que farão, individualmente, no próximo

ano, quando eles buscam identificar os desafios concretos que as

Escrituras lhes mostram e, igualmente, buscam crescer em fé, esperança

e amor.

Descobriremos que muitas das áreas cobertas por essa promessa são

abordadas em Neemias 13. Isso pode sugerir que as pessoas

simplesmente não cumpriram a promessa ou logo descobriram outras

maneiras de evitar as expectativas divinas. No entanto, já observamos


que há certa desigualdade com respeito a Neemias 8—10 e a sua relação

com esse contexto; mais provavelmente, esses três capítulos resumem a

dinâmica de eventos nos dias de Esdras e Neemias como um todo.

Talvez um dos aspectos dessa dinâmica seja que o compromisso da

comunidade aos elementos em uma promessa dessa classe pode

neutralizar o efeito divisionista da ruptura dentro da comunidade,

ameaçada pela consciência do elevado custo imposto às famílias pelo

projeto de reconstrução, indicado em Neemias 5.


NEEMIAS 11:1-36
A CIDADE SANTA
1
Os oficiais do povo se estabeleceram em Jerusalém, mas o restante do povo lançou sortes

para trazer uma, de cada dez pessoas, para se estabelecer em Jerusalém, a cidade santa,

2
enquanto nove décimos estavam nas cidades. O povo abençoou todos os indivíduos que se

3
voluntariaram para se estabelecer em Jerusalém. Estes são os cabeças das províncias que se

estabeleceram em Jerusalém, enquanto nas cidades de Judá eles se estabeleceram, cada

indivíduo em sua propriedade, nas suas cidades: Israel, sacerdotes, levitas, assistentes e os

4
descendentes dos servos de Salomão, e alguns dos judaítas e benjamitas se estabeleceram

em Jerusalém. Dos judaítas: Ataías, filho de Uzias, filho de Zacarias, filho de Amarias, filho

5
de Sefatias, filho de Maalaleel, dos descendentes de Perez, e Maaseias, filho de Baruque,

filho de Col-Hozé, filho de Hazaías, filho de Adaías, filho de Joiaribe, filho de Zacarias, filho

6
do silonita. Todos os descendentes de Perez que se estabeleceram em Jerusalém: 468

7
homens capazes. Estes são os benjamitas: Salu, filho de Mesulão, filho de Joede, filho de

8
Pedaías, filho de Colaías, filho de Maaseias, filho de Itiel, filho de Jesaías, e, depois dele,

9
Gabai e Salai: 928. Joel, filho de Zicri, era supervisor sobre eles, e Judá, filho de Hassenua,

10
era o segundo em comando sobre a cidade. Dos sacerdotes: Jedaías, filho de Joiaribe,

11
Jaquim, Seraías, filho de Hilquias, filho de Mesulão, filho de Zadoque, filho de Meraiote,

12
filho de Aitube, governante da casa de Deus, e seus irmãos, responsáveis pelo serviço na

casa: 822; e Adaías, filho de Jeroão, filho de Pelaías, filho de Anzi, filho de Zacarias, filho de

13
Pasur, filho de Malquias, e seus irmãos, os cabeças ancestrais: 242; e Amassai, filho de

14
Azareel, filho de Azai, filho de Mesilemote, filho de Imer, e seus irmãos, guerreiros capazes:

15
128. Zabdiel, filho de Gedolim, era supervisor sobre eles. Dos levitas: Semaías, filho de

16
Hassube, filho de Azricão, filho de Hasabias, filho de Buni, e Sabetai e Jozabade, dos

17
cabeças dos levitas sobre o serviço externo para a casa de Deus, Matanias, filho de Mica,

filho de Zabdi, filho de Asafe, o cabeça (o começo das ações de graças para a oração),

Baquebuquias, um de seus irmãos, segundo em comando, e Abda, filho de Samua, filho de

18 19
Galal, filho de Jedutum. Todos os levitas na cidade santa: 284. Os porteiros: Acube,

20
Talmom e seus irmãos que vigiavam nos portões: 172. O restante de Israel, os sacerdotes,

21
os levitas em todas as cidades de Judá, cada um se estabeleceu em sua propriedade. Os

22
assistentes se estabeleceram em Ofel; Zia e Gispa estavam sobre os assistentes. O

supervisor dos levitas em Jerusalém era Uzi, filho de Bani, filho de Hasabias, filho de

Matanias, filho de Mica, dos cantores descendentes de Asafe, para governar sobre o serviço

23
da casa de Deus, porque havia um mandado do rei a respeito deles, ou seja, uma promessa

24
concernente aos cantores, uma exigência de cada dia. Petaías, filho de Mesezabel, dos

descendentes de Zerá, filho de Judá, era o braço direito do rei com relação a todas as

25
matérias relativas ao povo. Com respeito às vilas, com seus campos: alguns dos judaítas se

estabeleceram em Quiriate-Arba e suas dependências, Dibom e suas dependências, e

26 27
Jecabzeel e suas vilas. Jesua, Moladá, Bete-Pelete, Hazar-Sual, Berseba e suas
28 29
dependências, Ziclague, Meconá e suas dependências, En-Rimom, Zorá, Jarmute,

30
Zanoa, Adulão e suas vilas, Láquis e seus campos, e Azeca e suas dependências. Assim, eles

31
acamparam desde Berseba até o vale de Hinom. Os benjamitas: de Geba, Micmás e Aia, e

32 33 34
Betel e suas dependências, Anatote, Nobe, Ananias, Hazor, Ramá, Gitaim, Hadide,

35 36
Zeboim, Nebalate, Lode, Ono, Ge-Harasim. Alguns dos levitas que foram alocados para

Judá pertenciam a Benjamim.

A primeira vez que fui a Jerusalém, dirigi pela rodovia a partir do lado

oeste, como faz a maioria dos visitantes. A subida de quase mil metros

em direção às montanhas é impressionante, embora, quando alcançamos

o topo da região, a posição não forneça uma visão inspiradora da cidade

moderna; você poderia estar em qualquer lugar. Não obstante, meu

coração acelerou; aquela era Jerusalém, a cidade santa. A abordagem a

partir da região leste, do outro lado do rio Jordão, abaixo do nível do

mar, possui uma elevação de cerca de mil e duzentos metros, mais

espetacular por atravessar o deserto e passar pela Pousada do Bom

Samaritano, até que os telhados de uma antiga cidade aparecem ao

longo do horizonte. É Jerusalém, a cidade santa (embora, a exemplo de

outras perspectivas, dilacerada, hoje em dia, pelo muro que divide Israel

da região da Cisjordânia). Saindo da região sul, próximo a Belém, pode-

se ter, a partir de uma praça, uma visão panorâmica da cidade antiga,

com o Domo da Rocha brilhando sob a luz do sol. Partindo da região

norte, segue-se a estrada ao longo da crista do cume, no caminho pelo

qual Isaías imaginou os assírios chegando e Tito liderou a exército

romano em 70 d.C. Além disso, eventualmente, pode-se obter, do alto

do monte Scopus, uma versão oposta daquela visão panorâmica anterior

da cidade santa, com o brilho do Domo da Rocha sob os raios solares

(ou coberto de neve, como ocorreu da última vez que avistei Jerusalém

desse ângulo). Trata-se de Jerusalém, a cidade santa.

A expressão “a cidade santa”, no original, aparece duas vezes em

Neemias 11; há apenas mais três ocorrências dela em todo o Antigo

Testamento: duas vezes em Isaías e uma vez em Daniel. Jerusalém é a


cidade santa porque o lugar santo, o templo, está ali situado; a

santidade do templo flui sobre a cidade. Jerusalém é identificada com o

Deus santo de uma forma distintiva. Em certo sentido, então, não há

muita diferença entre descrever Jerusalém como a cidade santa ou a

cidade escolhida, a expressão mais comum. “Escolhida” é o termo que

Neemias usou em sua oração, ao ouvir o relato sobre a devastação da

cidade (Neemias 1), e ele faz a conexão com o fato de ser o lugar no qual

o templo está, o local no qual Yahweh fez habitar o seu nome.

Jerusalém como a cidade santa, então, está ligada à consciência, em

Esdras e Neemias, da necessidade de preservar a santidade da cidade,

assegurada por Deus. Essa necessidade aplica-se ao povo, ao templo e à

própria cidade.

Nesse capítulo, a implicação de Jerusalém ser a cidade santa é que

ela necessita ser habitada por pessoas de uma classe especial, isto é, de

uma população de judaítas. Haverá a constatação prática de que a

cidade estará vulnerável aos ataques dos hostis povos vizinhos; uma

população pulsante e viva é tão importante quanto os muros de

proteção, nessa conexão. No entanto, a consideração mais profunda é a

de que pareceria inapropriado para a cidade santa ser uma cidade

fantasma poderosamente protegida. Não era isso o que Deus tinha em

mente ao prometer que, após o exílio, a cidade seria transformada. No

comentário sobre o projeto de reconstrução do muro, concebido por

Neemias, e a conversa inicial sobre o repovoamento da cidade,

observamos a promessa de Deus, em Zacarias 2, de que Jerusalém

estava destinada a ser (pelo menos, figurativamente falando), uma

cidade aberta, sem muros, como um vilarejo, e que haveria muitas

pessoas e rebanhos nela. Na verdade, Neemias 7 descreveu a cidade

como ampla e espaçosa, mas ainda carente de habitantes em número

suficiente. Caso a liderança judaíta tenha conhecimento sobre a

profecia de Zacarias, eles, uma vez mais, concluem que, quando Deus

faz uma promessa, não devemos, necessariamente, sentar e cruzar os

braços, esperando a ação miraculosa divina. Ao contrário, a promessa


nos encoraja a agir por sabermos que estamos envolvidos em uma

empreitada que está de acordo com o propósito de Deus e que,

portanto, ele poderá fazer a ação prosperar. Somos como o menino que

entregou os seus pães e peixes a Jesus.

Descrever Jerusalém como a cidade santa constitui um incentivo

para que as pessoas decidam morar nela, mesmo que estejam

acostumadas a viver por anos, digamos, em Ziclague ou Láquis. Existe,

de fato, certa ambiguidade sobre o fundamento no qual determinou-se

quem se mudaria para Jerusalém. Se essa decisão foi tomada por meio

de sorteio, quem são as pessoas elogiadas por se voluntariarem? Elas

deram um passo à frente ou foram empurradas? São elogiadas porque

aceitaram, voluntariamente, a escolha delas por meio do sorteio? Ou,

talvez, houve alguns que se voluntariaram, e isso diminuiu o número

dos que foram selecionados. A lista dos que fizeram o sacrifício

envolvido na mudança para Jerusalém (seja por pressão, seja por

decisão própria) ainda lhes presta honra como pessoas de fé, amor,

orgulho e dedicação em sua relação com a cidade. Pode ser ainda mais

significativo que voluntariado seja um termo possível de ser usado com

respeito a pessoas que se oferecem para tomar parte em uma batalha

iminente, e, de modo similar, aqueles que decidem morar em Jerusalém

também podem se envolver na defesa da cidade.

No Novo Testamento, o livro de Apocalipse utiliza, algumas vezes, a

expressão “cidade santa” para designar a nova Jerusalém. Isso pode

levar a pensar que a Jerusalém física deixa de ser a cidade santa após a

vinda de Jesus, embora, décadas depois da morte e da ressurreição de

Cristo, Apocalipse 11 e Mateus 4 e 27 também se refiram ao local físico

como a cidade santa. A natureza humana possui uma consciência

interna de Jerusalém ser um local santo, um lugar material no qual

podemos ter a certeza de encontrar Deus. Isso é parte do plano de Deus

de nos fazer criaturas físicas. Ao providenciar esse local físico, Deus

satisfaz aquela necessidade humana dada por ele mesmo. Todavia, há

um motivo específico adicional pelo qual Jerusalém, em particular,


permanece sendo a cidade santa. Não causa surpresa que os judeus, na

celebração da Páscoa, digam: “No ano que vem, em Jerusalém!” Como

um cristão que vive no Antigo Testamento, achei assombrosamente

fascinante chegar a Jerusalém, partindo de qualquer direção, mas não

surpreende o fato de qualquer cristão achar Jerusalém especialmente

inspiradora. Essa cidade tornou-se parte do envolvimento de Deus com

Israel, e esse envolvimento prosseguiu com o nascimento, a morte e a

ressurreição de Jesus nela, bem como a forma pela qual Jerusalém é o

lugar do qual a mensagem sobre Jesus alcançou o mundo. Nem Roma,

Canterbury ou Genebra, mas, apenas Jerusalém, é a cidade santa.


NEEMIAS 12:1-43
NOSSA CONQUISTA, CAPACITAÇÃO DE DEUS
1
Estes foram os sacerdotes e os levitas que subiram com Zorobabel, filho de Sealtiel, e Jesua:

2 3 4
Seraías, Jeremias, Esdras, Amarias, Maluque, Hatus, Secanias, Reum, Meremote, Ido,

5 6 7
Ginetom, Abias, Miamim, Maadias, Bilga, Semaías, Joiaribe, Jedaías, Salu, Amoque,

Hilquias e Jedaías. Estes foram os cabeças dos sacerdotes e seus irmãos nos dias de Jesua.

8
Os levitas: Jesua, Binui, Cadmiel, Serebias, Judá e Matanias, sobre as ações de graças, ele e

9 10
seus irmãos, com Baquebuquias e Uni, seus irmãos, opostos a eles para os deveres. Jesua

11
foi o pai de Joiaquim, Joiaquim de Eliasibe, Eliasibe de Joiada, Joiada de Jônatas, Jônatas

12
de Jadua. Nos dias de Joiaquim, os sacerdotes que eram cabeças ancestrais foram: por

13 14
Seraías, Meraías; por Jeremias, Hananias; por Esdras, Mesulão; por Amarias, Joanã; por

15 16
Maluqui, Jônatas; por Sebanias, José; por Harim, Adna; por Meremote, Helcai; por Ido,

17 18
Zacarias; por Ginetom, Mesulão; por Abias, Zicri; por Miniamim e Moadias, Piltai; por

19 20
Bilga, Samua; por Semaías, Jônatas; por Joiaribe, Matenai; por Jedaías, Uzi; por Salai,

21 22
Calai; por Amoque, Héber; por Hilquias, Hasabias; por Jedaías, Natanael. Os levitas, nos

dias de Eliasibe, Joiada, Joanã e Jadua, foram registrados como cabeças ancestrais, também

23
os sacerdotes, no reinado de Dario, o persa. Os levitas, os cabeças ancestrais, foram

24
registrados nos anais até os dias de Joanã, filho de Eliasibe. Os cabeças dos levitas:

Hasabias, Serebias, Jesua, filho de Cadmiel, e seus irmãos opostos a eles na oração, e nas

ações de graças, pelo mandamento de Davi, o homem de Deus, dever correspondente a

25
dever; Matanias, Baquebuquias, Obadias, Mesulão, Talmom e Acube, mantendo a vigia

26
como porteiros nos depósitos junto aos portões. Estes foram nos dias de Joiaquim, filho de

Jesua, filho de Jozadaque, e nos dias de Neemias, o governador, e de Esdras, o sacerdote

erudito.

27
Na dedicação do muro de Jerusalém, eles buscaram os levitas de todos os seus lugares para

trazê-los a Jerusalém a fim de realizarem a celebração de dedicação com ações de graças e

28
com cânticos, címbalos, harpas e liras. Os cantores se reuniram tanto da área ao redor de

29
Jerusalém quanto das vilas dos netofatitas, de Bete-Gilgal e da região ao redor de Geba e

de Azmavete, porque os cantores construíram vilas para si mesmos em torno de Jerusalém.

30 31
Os sacerdotes e levitas se purificaram e purificaram o povo, os portões e o muro. Fiz os

oficiais de Judá subirem ao muro e coloquei no lugar dois grandes [coros] de ações de graças.

32
Eles foram, um para a direita em direção à porta do Monturo, Hosaías e metade dos

33 34
oficiais de Judá foram atrás deles, como fizeram Azarias, Esdras e Mesulão, Judá,

35
Benjamim, Semaías, Jeremias, alguns dos sacerdotes com trombetas, Zacarias, filho de

Jônatas, filho de Semaías, filho de Matanias, filho de Micaías, filho de Zacur, filho de Asafe,

36
seus irmãos Semaías e Azareel, Milalai, Gilalai, Maai, Natanael, Judá e Hanani, com os

instrumentos musicais de Davi, o homem de Deus, com Esdras, o erudito, à frente deles.

37
Acima da porta da Fonte, eles subiram diretamente à frente os degraus para a cidade de
38
Davi, pela subida para o muro, sobre a casa de Davi, até a porta das Águas, a leste. O

segundo coro de ações de graças foi na direção oposta, comigo atrás deles, e metade do povo,

39
sobre o muro, passando pela torre dos Fornos até o muro Largo, e acima da porta de

Efraim, da porta de Jesana, da porta do Peixe, da torre de Hananeel, da torre dos Cem, da

40
porta das Ovelhas, e paramos na porta da Guarda. Os dois [coros] de ações de graças

41
pararam junto à casa de Deus, assim como fiz e metade dos supervisores comigo, e os

sacerdotes Eliaquim, Maaseias, Miniamim, Micaías, Elioenai, Zacarias e Hananias, com

42
trombetas, e Maaseias, Semaías, Eleazar, Uzi, Joanã, Malquias, Elão e Ézer. Os cantores

43
fizeram proclamação, com Jezraías como o supervisor. Eles ofereceram grandes sacrifícios

naquele dia e celebraram, porque Deus os capacitou para celebrarem grandemente. As

mulheres e as crianças também celebraram. A celebração em Jerusalém foi ouvida até de

longe.

Ao partir de qualquer uma das quatro direções, as quais descrevi em

meu comentário sobre Neemias 11, para chegar a Jerusalém, cedo ou

tarde, o viajante é impactado pela visão dos muros medievais da

“Cidade Antiga”, embora o impacto seja maior se a pessoa chegar da

direção leste, após a longa subida desde o rio Jordão, porque há bem

menos desenvolvimento moderno da cidade em seu lado oriental. A

formação de muros se agiganta diante do viajante à medida que ele se

aproxima da cidade. Ao apresentar a cidade às pessoas, costumo levá-las

a uma caminhada em torno dos muros porque isso lhes proporciona

uma perspectiva sobre a cidade como um lugar pulsante e cheio de vida.

No eixo norte-sul, os muros medievais estão distantes algumas centenas

de metros ao norte dos muros dos templos bíblicos, e no lado ocidental

eles cobrem uma área maior que o muro de Neemias. Não obstante, seja

qual for a época, é fácil imaginar a sensação de segurança que o muro

dava aos habitantes da cidade, quando não existiam canhões, bombas

ou mísseis (embora os atacantes fossem capazes de escalá-los para

tomar a cidade, como ocorreu inúmeras vezes).

Assim sendo, é fácil imaginar o júbilo pela conclusão daquela obra.

Os muros também são dedicados; durante a reconstrução, os sacerdotes

haviam consagrado as suas respectivas seções. Em geral, dedicam-se


altares ou templos (veja Esdras 6), embora o verbo também possa ser

usado em relação a filhos ou a uma casa, mas, nesse caso, o termo

significa algo como “iniciação”. Pode-se dizer que a cerimônia sobre os

muros é a iniciação deles, o momento em que eles entram em uso, no

sentido prático. No entanto, as ações de graças, os sacrifícios e a

purificação traçam um paralelo com a cerimônia praticada quando um

templo era inaugurado. A cerimônia envolve mais do que acontece

quando um casal passa a viver em sua casa ou quando eles educam um

filho. Talvez haja uma ligação com a designação incomum de Jerusalém

como a cidade santa no capítulo anterior. Os muros delimitam a sua

santidade e, portanto, cumprem uma função a serviço de sua santidade.

As pessoas podiam congratular-se mutuamente por aquela

conquista. Foram atraídas à visão de Neemias, executaram o trabalho,

sacrificaram as suas atividades regulares, colocando em risco a própria

subsistência, e se dispuseram a lutar contra os adversários, caso

necessário. No entanto, a cerimônia de dedicação é marcada por ações

de graças, lideradas pelos levitas em sua capacidade como adoradores,

envolvendo o recrutamento de levitas de uma grande área para formar

coros suficientemente grandiosos para aquela importante ocasião. Dois

coros de ações de graças seguem em procissão pela cidade, sobre o

muro, partindo da porta do Vale, na parte oeste, e, então, seguindo em

direções opostas até se encontrarem novamente na parte leste, junto ao

templo. Ali, oferecem sacrifícios de gratidão da classe que Deus e o

povo compartilham enquanto se regozijam por aquilo que Deus fez. A

exemplo da narrativa sobre a conclusão da obra, no capítulo 6, o relato

da dedicação pressupõe a união entre o esforço humano e a capacitação

divina. Quando tentamos fazer algo e logramos êxito, podemos ter uma

percepção de que não deveríamos apenas sentir satisfação pelo nosso

feito, mas também sermos gratos a Deus. Você pode trabalhar com

afinco na construção e na vigilância de uma propriedade, mas não

alcançará sucesso, a não ser que Deus esteja envolvido (veja salmo

127). Os projetos podem dar errado, apesar dos seus melhores esforços.
O mesmo era verdadeiro com relação à construção de muros. Se as

pessoas não fazem nada, os muros não serão construídos; se Deus não

fizer nada, os muros também podem não ser construídos. Portanto, há

motivos de sobra para os judaítas serem gratos. Deus os capacitou a

celebrarem no sentido de que Deus é que lhes proporcionou o motivo

de celebração.

A dedicação, igualmente, envolve a purificação dos levitas que

lideram a adoração e do povo que a oferece, bem como dos próprios

portões e muros. A cerimônia de dedicação envolve a aproximação das

pessoas a Deus, de modo que é necessário garantir que elas não sejam

afetadas pela contaminação. Além disso, ao exigir a purificação, a

cerimônia traça um paralelo com a dedicação do templo em Esdras 6. A

comunidade encontra-se contaminada pelo culto a outras divindades,

motivo pelo qual veio o juízo que levou à queda da cidade, à destruição

de seus muros e, ainda, por serem obrigados a conviver com

estrangeiros que adoravam outros deuses, além do próprio

envolvimento delas com aquele culto. Para completar, a comunidade

acumula contaminação por causa dos casamentos mistos com pessoas

que não viviam de acordo com os preceitos da Torá e cultuavam outras

divindades. O povo não podia alegar que vivia de modo distinto da

comunidade existente antes do exílio. Por tudo isso, a capacitação

divina, permitindo a reconstrução dos muros, é outra prova da graça e

da misericórdia de Deus. Portanto, Deus providencia isso por meio da

eliminação dessa contaminação, mesmo sendo a parte ofendida, e lhes

fornece os meios de recomeçarem o relacionamento.

Nas listas com os nomes dos sacerdotes e dos levitas, as funções

exercidas em posições opostas umas às outras, ou em posições

correspondentes, insinuam uma ligação com o modo pelo qual a

adoração de Israel envolve o canto antifônico; um coro canta a primeira

metade de um verso, enquanto o outro responde com a segunda metade,

para corresponder ao paralelismo nos versos. As listas principiam com

pessoas que vieram da Babilônia, cerca de um século antes, e, portanto,


indicam a continuidade entre a geração atual e a anterior. Na realidade,

elas servem para nos mostrar a construção e a sua dedicação como a

conclusão da história iniciada em Esdras 1—6, o término da restauração

da comunidade e da cidade após o exílio. O único Jadua do qual temos

conhecimento era um sumo sacerdote que viveu um século depois,

quando o Império Persa caiu diante de Alexandre. Sendo assim, caso

este Jadua seja a mesma pessoa, a lista abrange um século após os dias

de Neemias, da mesma forma que recua um século dessa época, o que

demonstra a permanente continuidade da vida judaíta.


NEEMIAS 12:44—13:14
A FRUSTRAÇÃO DO PASTOR
44
Naquele dia, eles apontaram pessoas sobre as câmaras de armazenagem para as

contribuições, os primeiros frutos e os dízimos, para coletarem neles (com respeito aos

campos pertencentes às cidades) as porções especificadas pelo ensino para os sacerdotes e os

levitas, porque o júbilo de Judá estava sobre os sacerdotes e os levitas que permaneciam em

45
serviço [diante de Deus] e mantinham o dever de seu Deus e o dever da pureza, e os

cantores e os porteiros, de acordo com o mandamento de Davi e de Salomão, seu filho

46
(porque nos dias de Davi e de Asafe de antigamente, havia cabeças dos cantores e dos

47
cânticos de louvor e das ações de graças a Deus). Nos dias de Zorobabel e de Neemias,

todo o Israel dava as porções dos cantores e dos porteiros, a quantidade para cada dia, e

consagravam [as contribuições] para os levitas, enquanto os levitas consagravam [as

contribuições] para os aronitas.

CAPÍTULO 13

1
Naquele dia, houve uma leitura do pergaminho de Moisés aos ouvidos do povo, e foi

descoberto escrito nele que um amonita ou um moabita não deveria ir à congregação de

2
Deus, em perpetuidade, porque eles não foram ao encontro dos israelitas com pão e água,

mas contrataram Balaão para os amaldiçoar — embora o nosso Deus tenha transformado a

3
maldição em bênção. Quando eles ouviram o ensino, separaram toda a multidão misturada

4
de Israel. Antes disso, Eliasibe, o sacerdote, tinha sido colocado sobre uma câmara na casa

5
do nosso Deus; ele era próximo a Tobias e havia preparado para ele uma grande câmara na

qual, anteriormente, eles colocavam a oferta de grãos, o incenso, os acessórios, o dízimo dos

grãos, do vinho e do azeite que fora ordenado aos levitas, aos cantores e aos porteiros, e a

6
contribuição para os sacerdotes. Durante todo esse tempo, eu não estava em Jerusalém

porque no trigésimo segundo ano do reinado de Artaxerxes, rei da Babilônia, eu fui ao rei.

7
Após um período de tempo, pedi permissão ao rei e voltei para Jerusalém. Aprendi sobre o

8
erro que Eliasibe fizera ao preparar uma câmara para Tobias nos pátios da casa de Deus. Isso

foi muito desagradável para mim. Joguei todos os acessórios da casa de Tobias fora da câmara

9
e disse que eles deveriam purificar a câmara, e coloquei de volta ali os acessórios da casa de

Deus, a oferta de grãos e o incenso.

10
Soube que as porções para os levitas não haviam sido dadas, de modo que os levitas e os

cantores que eram responsáveis pelo trabalho fugiram cada qual para o seu campo.

11
Argumentei com os supervisores e disse: “Por que a casa de Deus foi abandonada?” Reuni

12
[os levitas] e os coloquei no lugar de seus postos, e todo o Judá trouxe o dízimo dos grãos,

13
do vinho e do azeite aos depósitos. Indiquei como porteiros sobre os depósitos Selemias, o

sacerdote, Zadoque, o erudito, e Pedaías, dos levitas, e como braço direito deles Hanã, filho

de Zacur, filho de Matanias, porque eram considerados confiáveis, e deixei a cargo deles

fazerem as alocações para os seus irmãos.


14
Lembra-te de mim, meu Deus, por isso. Não apagues os meus atos de compromisso, que

realizei para a casa de Deus e para os seus deveres.

Na noite passada, falei a um grupo de pastores sobre o que os

desencorajava em relação ao ministério deles. O mais frequente,

pareceu-me, foi o fato de eles terem uma visão para empreender algo,

mas não conseguirem vender a visão para a sua congregação. Um

exemplo trivial, de certa forma, foi uma tentativa isolada de um pastor

arrecadar dinheiro para comprar sacos de dormir para doze pessoas

desabrigadas durante a onda de frio que houve no mês passado. Ele

acabou comprando os sacos de dormir do próprio bolso. Um exemplo

maior foi o de um pastor que havia testemunhado o crescimento de sua

congregação de algumas centenas de membros para mais de um milhar;

no entanto, ele temia ter encorajado o crescimento de um clube social

religioso. Sua proposta para que eles remodelassem o estilo de vida a

fim de alcançarem a imensa população hispânica da cidade causou

substancial redução no tamanho da congregação. Reconhecidamente,

os pastores podem ser insensíveis quanto ao modo de compartilharem

suas visões e, talvez, necessitem prestar mais atenção, permitindo que a

visão surja da própria congregação.

Posso imaginar Neemias puxando os cabelos como pastor. Ele

acredita que conseguiu fazer a comunidade embarcar em suas reformas,

mas é só dar as costas a ela e as coisas parecem retornar ao lugar em que

estavam anteriormente. Uma das áreas nas quais isso está ocorrendo é a

necessidade de arranjos práticos para o sustento das pessoas que

ministram no templo. O problema não é simplesmente o de persuadir as

pessoas a contribuírem. Na verdade, talvez essa seja a área na qual o

problema começa. Em nosso mundo, pode haver uma onda de

generosidade pública na forma de ajuda humanitária às vítimas de um

desastre natural, mas como fazer chegar os donativos aos necessitados

(e sem haver desvios por pessoas interessadas em lucrar com a


generosidade)? Aqui, igualmente, a comunidade está engajada, de

forma comovente, no apoio material ao ministério no templo, e a tarefa

administrativa é ainda mais desafiadora pelo fato de as doações não

serem em dinheiro (imagine a quantidade de grãos, frutas secas e assim

por diante). Contudo, a comunidade adota medidas práticas para a

estocagem dos dízimos e de outras contribuições, para que sejam

adequadamente distribuídas entre os sacerdotes, levitas, cantores e

porteiros, que são responsáveis pela oferta dos sacrifícios das pessoas,

por outros aspectos da liderança na adoração e por assegurar que o

santuário permaneça puro, instruindo o povo com respeito a possíveis

causas de contaminação e de impureza, e maneiras de lidar com elas,

mantendo-as seguras.

Até aqui, tudo bem, porém Neemias está ausente, servindo ao

imperador que o havia comissionado (não sabemos se este era um

procedimento rotineiro). Um profeta chamado Eliasibe (que pode ou

não ser o sumo sacerdote de mesmo nome) friamente providenciou

dependências na área do templo para ninguém menos do que Tobias, o

amonita, que parece ser o homem de Sambalate em Jerusalém e,

portanto, alguém contrário à obra de reconstrução do muro,

empreendida por Neemias na cidade. Era óbvio e certo que o templo

não deveria ser profanado por uma ação como essa. Talvez a atitude de

Eliasibe seja outra indicação de que nem todos em Jerusalém apoiavam

a obra de Neemias, ainda que se mantivessem quietos quanto às suas

opiniões pessoais quando ele estava por perto. Ou, talvez, Eliasibe se

sentiu incapaz de resistir à pressão exercida por Tobias. As

dependências deveriam ser usadas para a estocagem das provisões que

deveriam ser distribuídas a todos os que ministravam no templo. Pode

ser que a ocupação das dependências por Tobias tenha provocado uma

ruptura na estratégia de distribuição, ou, ainda, que o entusiasmo das

pessoas quanto ao suporte do ministério tenha diminuído e os depósitos

não eram mais necessários para a devida estocagem das ofertas.


A inclusão da passagem sobre a proibição de moabitas e amonitas na

congregação, certamente, está relacionada ao fato de o sacerdote haver

acomodado um amonita nas instalações do templo. A relevante

passagem da Torá aparece em Deuteronômio 23. Nem aquela regra ou o

apelo de Neemias a esse respeito sugerem que um amonita ou moabita

não possa se tornar um adorador de Yahweh e se unir à congregação

nesse sentido. A história de Rute, pelo menos, pressupõe que um

moabita possa vir a ser um adorador de Yahweh, e a comunidade que

aceitou a presença de Rute em suas Escrituras seguiu a mesma

suposição. Igualmente, havia um amonita e um moabita entre as tropas

de Davi. Por outro lado, um moabita ou um amonita como Tobias que

vive em Jerusalém, mas deseja manter a sua fidelidade ao seu deus

tradicional e à cultura de seu povo, não pode ser um membro pleno da

comunidade. Aquela regra se aplica a todos os estrangeiros, embora

houvesse um motivo particular para a antipatia aos amonitas e aos

moabitas, pela posição que eles adotaram em relação a Israel, durante a

jornada dos israelitas rumo a Canaã.

Neemias precisa resolver tudo isso ao retornar para Jerusalém,

obrigando Tobias a achar outro lugar para as suas coisas e assegurando

que os levitas recebessem o suporte que os capacitava a cumprir o seu

ministério, designando-os de volta às posições adequadas para a devida

superintendência dos dízimos. Essa seria uma tarefa mais direcionada

aos levitas e outros ministros do templo do que aos sacerdotes, porque

estes recebiam uma parcela dos sacrifícios do povo e não dependiam dos

dízimos e de outras ofertas. Contanto que as pessoas continuassem a

trazer os seus sacrifícios, eles e seus familiares não morreriam de fome.

Para todos os ministros do templo, entretanto, a entrega dos dízimos e

das ofertas constituía uma questão de vida ou morte.


NEEMIAS 13:15-31
PROFANAÇÃO E TRANSGRESSÃO
15
Naqueles dias, vi pessoas em Judá pisando em lagares no sábado e trazendo grãos e os

empilhando sobre jumentos, bem como vinho, uvas, figos e toda sorte de carga, e trazendo-os

16
a Jerusalém no dia de sábado. Testifiquei no dia em que venderam as provisões e quando os

tírios que se estabeleceram ali estavam trazendo peixe e toda sorte de mercadorias e

17
vendendo no sábado diante de Judá e em Jerusalém, e contendi com os nobres de Judá. Eu

lhes disse: “O que é essa coisa errada que vocês estão fazendo, profanando o dia de sábado?

18
Os nossos ancestrais não agiram assim, e o nosso Deus trouxe todo este problema sobre

nós e sobre esta cidade? Vocês estão aumentando a ira contra Israel pela profanação do

19
sábado.” Quando os portões de Jerusalém ficaram escuros, antes do sábado, disse que os

portões deveriam ser fechados e que não deveriam ser abertos até depois do sábado.

Coloquei no lugar alguns de meus rapazes nos portões para que nenhuma carga viesse no dia

20
de sábado. Os comerciantes e o povo que vendiam toda sorte de mercadorias passaram a

21
noite fora de Jerusalém, uma ou duas vezes, mas eu testifiquei a eles, dizendo: “Por que

vocês estão passando a noite do outro lado do muro? Se fizerem isso de novo, colocarei as

22
mãos sobre vocês.” Depois desse tempo, eles não mais vieram no sábado. Disse aos levitas

que eles deveriam se purificar e montarem guarda nos portões para consagrar o dia de

sábado. Lembra-te de mim por isso também, meu Deus, e poupa-me de acordo com a

grandeza de teu compromisso.

23
Naqueles dias, também vi que os judaítas estavam trazendo para suas casas mulheres

24
asdoditas, amonitas e moabitas. Metade de seus filhos estava falando asdodita, e nenhum

deles sabia como falar judaíta, mas [falavam] de acordo com a língua de um povo ou de

25
outro. Contendi com eles e os desprezei, atingi alguns deles, lhes arranquei os cabelos e

jurei por Deus: “Se vocês derem as suas filhas aos filhos deles, ou se tomarem as filhas deles

26
para os seus filhos ou para si mesmos [...]. Não foi nessas coisas que Salomão, o rei de

Israel, ofendeu? Entre as muitas nações, não havia um rei como ele. Ele era cuidado por

Deus, e Deus o tornou rei sobre todo o Israel. Mulheres estrangeiras o levaram a ofender.

27
Devemos ouvi-los cometendo esse grande mal, transgredindo contra Deus ao levarem

28
mulheres estrangeiras para casa?” Um dos filhos de Joiada, filho de Eliasibe, o sumo

29
sacerdote, era genro de Sambalate, o horonita. Eu o expulsei para longe de mim. Lembra-

te com respeito a eles, meu Deus, porque eles contaminaram o sacerdócio, a aliança do

sacerdócio e dos levitas.

30
Eu os purifiquei de tudo o que era estrangeiro e os coloquei no lugar dos deveres para os

31
sacerdotes e os levitas, cada qual em seu trabalho, e para a oferta de madeira em tempos

designados e para os primeiros frutos.

Meu Deus, lembra-te de mim, para o meu bem.


Certo fim de semana, em dezembro, minha esposa atual e eu voamos

para Londres, para um primeiro encontro com os meus filhos e suas

famílias, além de um culto de ações de graças por um casamento, na

Igreja Americana, naquela cidade. A ocasião demandou novas roupas

para todos e, no dia do serviço religioso, meu filho mais velho estava

passando a ferro o vestido novo de sua filha quando percebeu que havia

queimado uma grande área na parte da frente. A família correu para a

Rua Oxford, o principal centro comercial de roupas de Londres, a fim

de comprar outro vestido, sabendo que as lojas abriam depois das 11

horas da manhã. Tudo deveria ficar bem; todos chegariam a tempo para

o almoço de casamento, ao meio-dia, exceto pelo fato de a loja em

questão, na verdade, abrir ao público às 11 horas, para escolher as

mercadorias, mas só poderia vendê-las após o meio-dia, pois essa é a lei

que regulamenta o comércio aos domingos na Inglaterra. Assim, eles

chegaram ao almoço uma hora atrasados; mas, ainda assim, foram bons

momentos passados juntos. As regras sobre o comércio aos domingos

haviam mudado daquelas em vigência na minha época de garoto, mas

também eliminaram regras estranhas. Meus pais possuíam uma pequena

loja e, aos domingos, eles podiam vender produtos frescos (digamos,

peras), mas não produtos enlatados (digamos, uma lata de ervilhas), o

que era suficientemente razoável, pois o primeiro produto é perecível,

enquanto o segundo não. Mas, em qual dessas categorias as peras

congeladas eram classificadas? Provavelmente, na segunda categoria.

Errado! Eles também podiam vender peras congeladas. As regras

constituíam uma tentativa de compromisso para permitir a abertura das

lojas aos domingos, mas, ainda assim, oferecer alguma proteção para a

vida familiar, o comparecimento às igrejas e preservar os direitos dos

trabalhadores comerciais.

A primeira e a última dessas considerações estão, provavelmente,

nas entrelinhas do quarto mandamento, especialmente na versão em

Deuteronômio 5. Toda a família cessa o trabalho aos sábados, e o cabeça

da família deve assegurar que os servos e os animais também participem


desse descanso. A segunda das três considerações (que as pessoas

estejam livres para ir à igreja) não se aplica ao dia de sábado, que não é,

especialmente, um dia de adoração, ainda que seja possível considerar o

sábado como um dia natural para as famílias estarem envolvidas no

estudo da Torá, da maneira descrita por Deuteronômio. Todavia, uma

consideração relativa é aplicável. Nos Dez Mandamentos, o sábado é o

último dos mandamentos referentes ao relacionamento com Deus e

conduz aos mandamentos que cobrem as relações com outras pessoas. O

sábado é um dia que as pessoas devem tratar como santo; pertence a

Deus, pois foi reivindicado por Deus e é solo sagrado. Eles devem se

manter afastados.

Neemias tem ciência disso e, portanto, está preocupado com a

“profanação” do sábado. As pessoas estão tratando esse dia como um dia

comum em vez de considerá-lo um dia que Deus santificou e possui uma

reivindicação especial sobre ele. Existe um paralelo com a santidade do

santuário e das ofertas. O povo deve tratá-los como santos, usando-os

da forma prescrita por Deus.

Nos comentários sobre Neemias 10, observamos que a questão de

comprar e vender no dia de sábado é algo novo em relação aos Dez

Mandamentos. A maneira pela qual o quarto mandamento é expresso

reflete o fato de a maioria dos israelitas viver em pequenas vilas e ter

como ocupação principal a agricultura. Portanto, a tentação de tratar o

sábado como um dia comum se materializa no impulso de executar as

tarefas na fazenda também nesse dia. Talvez as plantações estejam

maduras e prontas para a colheita imediata (a ordenha de vacas pode

ser uma questão diferente, pois não seria apropriado deixar de retirar o

leite das vacas nesse dia). As pessoas podem se dar ao luxo de tirar um

dia de descanso nessas circunstâncias?

Em Jerusalém, as dinâmicas da vida eram distintas. Certas pessoas

estariam envolvidas no manejo de suas propriedades fora da cidade,

porém muitas outras estariam ocupadas com afazeres na própria cidade,

tais como comércio, diplomacia, trabalhos manuais, administração e o


trabalho no templo. Na cidade, a tentação de tratar o sábado como um

dia comum, portanto, assume a diferente forma de envolvimento em

compra e venda. O fato de os comerciantes serem estrangeiros enfatiza

outro significado do sábado, que ganha importância ainda maior no

período do Segundo Templo, quando os judaítas convivem ao lado de

pessoas de outras comunidades. O descanso sabático torna-se uma

característica da singularidade de Israel. Todos concordam com a

maioria dos Dez Mandamentos; mas parar de trabalhar um dia por

semana? Isso é estranho. De modo que essa observância se tornou uma

característica diferencial do compromisso de aliança de Israel com

Deus. A designação dos levitas para salvaguardar o dia de sábado e a

expectativa de que eles purificarão a si mesmos para executar a tarefa

refletem o sentido de que essa é uma matéria que afeta a própria

santidade de Israel. Se nós, cristãos ocidentais, não sentimos a

necessidade de guardar o sábado, precisamos nos questionar se os

princípios do sábado estão incorporados em nossa vida (resposta

provável: não). Na verdade, a observância do sábado ainda pode ser

uma forma de incorporarmos e testemunharmos a realidade de Deus.

O último parágrafo do livro, uma vez mais, aborda uma questão

sobre a qual já lemos mais de uma vez em Esdras-Neemias. Aqui,

Neemias não está apenas arrancando os próprios cabelos, como um

pastor, mas arrancando os cabelos daqueles que ele está confrontando.

A expressão “arrancar” pode dar uma impressão equivocada; talvez ele

simplesmente tenha “puxado” o cabelo deles, talvez da barba. O ponto

dessa ação é ela ser um gesto de vergonha.

Com a lista de ações variadas desse capítulo de encerramento,

Esdras-Neemias chega a um fim intrigante e anticlimático, embora isso

o torne semelhante a outros livros da Bíblia, como Jonas e o Evangelho

de Marcos. O efeito em Neemias é o de estabelecer uma tensão entre a

ação decisiva de Esdras e de Neemias, confirmada pela comunidade

judaíta, e a necessidade de eles continuarem lidando com situações com

as quais já lidaram antes. Trata-se de uma característica da vida não


solucionarmos os problemas em definitivo. Todavia, esse não é um

motivo para deixarmos de agir, mas de não nos deixarmos abater

quando descobrimos que as soluções que considerávamos definitivas

não são tão definitivas assim. Precisamos nos recuperar da decepção e

entrarmos em ação novamente.

Naquele contexto, as três orações para que Deus se lembre ganham

um significado particular. É impossível para Neemias saber se o seu

trabalho tem sido válido ou mesmo se terá um efeito futuro. Talvez as

suas reformas venham todas a dar frutos. A oração sugere alguma

ansiedade sobre se Deus estará atento quanto a ele e quanto à grave

natureza das ações praticadas por outras pessoas. Há um limite em

relação ao que os nossos melhores esforços podem realizar, e não

podemos saber, com efeito, até onde eles chegarão. Neemias sente-se

livre para expressar essa ansiedade a Deus e, então, entregar os

desdobramentos a Deus.
ESTER

ESTER 1:1-22
A MULHER QUE NÃO COOPERA
1
Nos dias de Xerxes (era o Xerxes que reinou desde a Índia até o Sudão, sobre cento e vinte

2
e sete províncias), naqueles dias, quando o rei Xerxes se sentava no trono real, na fortaleza

3
de Susã, no terceiro ano de seu reinado, ele deu um banquete para todos os seus oficiais e

serviçais. Os oficiais do exército da Pérsia e da Média, os nobres e os oficiais das províncias

4
estavam diante dele, enquanto ele exibia as riquezas de sua glória real e a honra de seu

5
grande esplendor por muitos dias — cento e oitenta dias. Ao término desses dias, o rei deu

um banquete para todas as pessoas que estavam na fortaleza de Susã, elevados e humildes,

6
durante sete dias, no pátio do jardim do palácio, do rei, com tecidos branco e púrpura, linho

fino, presos com faixas de linho branco e lã púrpura, argolas de prata e pilares de alabastro,

sofás de ouro e de prata, sobre um pavimento de pórfiro, de alabastro, de mármore e mosaico,

7
as bebidas oferecidas em vasos de ouro (vasos diferentes uns dos outros) e muito vinho real,

8
de acordo com a liberalidade do rei, consumido de acordo com a regra “Não há restrição”,

porque fora assim que o rei estabelecera com cada mordomo em sua casa, para agirem de

9
acordo com os desejos de cada indivíduo. Em adição, a rainha Vasti deu um banquete às

mulheres, na casa real do rei Xerxes.

10
No sétimo dia, quando o rei estava de bom humor por causa do vinho, ele disse a Meumã,

Bizta, Harbona, Bigtá, Abagta, Zetar e Carcas, os sete eunucos que serviam na presença do

11
rei Xerxes, para trazerem a rainha Vasti diante do rei, com sua coroa real, para mostrar às

12
pessoas e aos oficiais a sua beleza, pois ela era adorável em aparência. Mas a rainha Vasti

recusou-se a ir pela palavra do rei por meio dos eunucos. O rei ficou muito zangado. Sua

13
fúria se acendeu nele. O rei disse aos especialistas que conheciam os tempos (porque essa

era a prática do rei em relação a todos aqueles que conheciam a lei e o julgamento;

14
próximos a ele estavam Carserna, Setar, Adamata, Társis, Meres, Marsena e Memucã, os

sete oficiais da Pérsia e da Média que tinham acesso à presença do rei e se sentavam no

15
primeiro lugar do reino): “De acordo com a lei, o que deve ser feito à rainha Vasti por ela

16
não ter obedecido à palavra do rei Xerxes por meio dos eunucos?” Memucã disse, na

presença do rei e dos oficias: “Não é contra o rei somente que a rainha Vasti agiu errado, mas

17
contra todos os oficiais e todas as pessoas em todas as províncias do rei Xerxes. Porque a

ação da rainha será conhecida a todas as mulheres para fazê-las desprezar o seu marido aos

seus olhos, quando elas disserem: ‘O rei Xerxes disse à rainha Vasti para se apresentar diante

18
dele, e ela não foi.’ Nesse dia, as damas da Pérsia e da Média que ouvirem sobre a ação da

19
rainha dirão isso a todos os oficiais do rei, com suficiente desprezo e provocação. Se

parecer bem à Sua Majestade, uma palavra real deve ser emitida pelo rei, e deve ser escrita

nas leis da Média e da Pérsia, e não prescrever, que Vasti não deve mais se apresentar diante
20
do rei Xerxes. O rei deve dar a sua posição real a outra mulher que seja melhor que ela. A

proclamação do rei, que ele fizer, será ouvida em todo o seu reino (porque ele é grande), e

21
todas as mulheres darão louvor ao seu marido, tanto o grande quanto o pequeno.” A coisa

foi agradável aos olhos do rei e dos oficiais, e o rei agiu de acordo com a palavra de Memucã.

22
Ele enviou documentos a todas as províncias do rei, província por província, de acordo

com a sua escrita, povo por povo, de acordo com a sua língua, para que todo homem fosse

governante em sua casa, falando de acordo com a língua de seu próprio povo.

“Fique ao lado de seu homem”, cantou Tammy Winette, mesmo se ele

fizer coisas que você não consiga compreender e que sejam difíceis de

perdoar. De tempos em tempos, algum governador, senador, prefeito ou

pastor é exposto por ter um caso extraconjugal ou por ter se encontrado

com uma prostituta, e a exposição é acompanhada por cenas

lacrimejantes na TV, quando o homem flagrado expressa quanto está

arrependido e como pretende focar na reparação dos relacionamentos

familiares, tendo ao lado a sua esposa com semblante grave, mas

apoiando-o. E nos perguntamos como as coisas terrenas podem ser

reparadas. Todavia, então, ocasionalmente, ouvimos que uma mulher

que pode (ou não) ter ficado ao lado do marido nessas comoventes

entrevistas de arrependimento não está, de fato, ao lado de seu homem,

ao afirmar: “Estou fora!” Essa era a premissa de toda uma série da TV,

intitulada The Good Wife [A boa esposa].

Vasti alcançou esse ponto de ruptura. Claro que não conhecemos os

fatos precedentes da convocação do rei para esse banquete. Ela já havia

sido exibida dessa forma antes? Seu marido possui um harém; então,

não devemos supor um relacionamento pessoal exclusivo e amoroso

entre o rei e a sua rainha, modelado nos ideais do matrimônio ocidental.

Talvez fosse natural que o rei exibisse uma ou duas de suas dançarinas

dessa maneira; mas e a rainha? Um dos motivos pelos quais o rei

patrocina uma festa de seis meses (o significado etimológico da palavra

para “banquete”) é manter os seus oficiais e servidores (masculinos)

leais e aplicados. Exibir a rainha para eles é outro meio de alcançar esse
propósito. Algumas suposições adicionais sobre o casamento emergem à

medida que o capítulo avança. É dever de uma esposa obedecer ao seu

marido. Isso, obviamente, se aplica à esposa de um rei, e, assim, todos os

homens na corte persa concluem que seja aplicável a todas as esposas.

Um casal israelita pode rir disso. Não há nada no Antigo

Testamento que afirme que as esposas devem obedecer ao marido, e

histórias como as de Abraão e Sara ou de Isaque e Rebeca não

transmitem a impressão de que as esposas do Antigo Testamento

recebiam ordens dessa forma. Os termos usados pelos persas em relação

aos maridos e esposas são reveladores nesse sentido. Eles, textualmente,

sugerem que o homem é o “senhor” ou “proprietário” e que as mulheres

são as “dominadas” ou “possuídas”. A expressão “marido dela” significa

“o homem dela”. Há um sentido no qual um casal casado possui um ao

outro, mas esse senso de propriedade é mútuo. O homem apoia a sua

mulher, e a mulher apoia o seu homem. Eis como tudo começou na

criação. Claro que as coisas, então, deram errado, e a desobediência

humana a Deus conduziu ao exercício de autoridade dos maridos sobre

as esposas. Muitos dos preceitos na Torá aceitam esse modelo de

relação, mas as histórias sobre casamentos no Antigo Testamento

também mostram que o ideal da criação sobreviveu.

Pelo menos, era assim entre as pessoas comuns do povo. Quando a

pessoa se torna um rei, como Davi ou Salomão, esse ideal sai de cena. O

mesmo acontecia na corte persa, e os homens ali entram em pânico só

de pensar no que ocorrerá caso a autoridade masculina for questionada.

A abertura da história lança uma luz mais intensa sobre a natureza

patética da reação deles diante do posicionamento de Vasti. Essa é a

corte real da Pérsia, que governa todas aquelas províncias! Esse é um

rei que pode patrocinar uma festa com duração de seis meses! Esse é um

banquete que se desenvolve em meio a um cenário de parques

esplêndidos, decorados com os mais espetaculares ornamentos, no qual,

claro, pode-se beber sem limites! (Deveríamos admitir alguma

hipérbole ao longo do livro de Ester; assim, os detalhes não devem ser


considerados de modo literal.) Contudo, o rei que pode controlar tudo

isso não possui controle sobre a própria esposa?! Os homens sabem que

as mulheres possuem poder sexual, de maneira que eles (nós) temem

esse poder e tentam controlá-lo, mas, em geral, essa tentativa é em vão.

E o dilema do rei resulta em uma monumental e exagerada reação, pois

todos os recursos do afamado sistema legal persa são utilizados para

lidar com a sua crise doméstica. O problema é que um homem e um

sistema que geram uma grande confusão com uma simples crise

doméstica não parecem confiáveis caso necessitem lidar com questões

mais sérias. Não surpreenderá que, mais tarde, o rei experimente a crise

que formará o foco do livro.

Confrontadas por uma ação sexista como essa de Xerxes, as

mulheres têm à sua disposição inúmeras reações. Uma delas é aceitá-la e

atender à expectativa de Xerxes. Outra é aceitá-la formalmente (talvez

deixando os homens pensarem que estão no controle), mas explorar o

seu poder sexual para obter o que almejam. Outra forma é trabalhar

com o sexismo, mas subvertê-lo em formas mais sutis; isso é o que Ester

irá fazer. Outra alternativa é simplesmente dizer “Não!”, opção

escolhida por Vasti. Em teoria, pode-se retratá-las como opções, como

se a mulher pudesse escolher que mulher ser, mas não tenho certeza de

que essa seja a dinâmica em curso. Duvido que Vasti tenha tantas

opções. Ela faz o que tem de fazer para permanecer fiel a si mesma e

conseguir se olhar no espelho, ainda que o preço a pagar seja ser deposta

de sua posição como rainha e esposa.

Xerxes reinou sobre a Pérsia de 485 a 465 a.C. Assim,

cronologicamente essa narrativa se encaixa entre a mudança dos

judaítas para a reconstrução do templo, na época de Ciro e de Dario

(Esdras 1—6), e as missões de Esdras e de Neemias, no período de

Artaxerxes (Esdras 7—Neemias 13). Muitas traduções utilizam uma

transliteração mais literal do nome hebreu como Assuero, que constitui

a versão hebraica para o nome persa. Xerxes é a versão grega do nome

persa.
ESTER 2:1-18
A GAROTA QUE PAGA UM PREÇO
1
Depois disso, quando a fúria do rei Xerxes tinha diminuído, ele atentou para Vasti, para o

2
que ela havia feito e para o que havia sido determinado contra ela. Os rapazes do rei que o

3
serviam disseram: “Jovens garotas de bela aparência deveriam ser procuradas. O rei deveria

indicar representantes em cada província de seu reino para que pudessem reunir todas as

garotas jovens e de bela aparência na fortaleza de Susã, na casa das mulheres sob o controle

4
de Hegai, o eunuco do rei, o guardião das mulheres, e lhes fossem dados cosméticos. A

garota que fosse agradável aos olhos do rei deveria reinar em lugar de Vasti.” A coisa foi

agradável aos olhos do rei, e ele assim o fez.

5
Ora, havia um judaíta na fortaleza de Susã, chamado Mardoqueu, filho de Jair, filho de

6
Simei, filho de Quis, um benjamita, que havia sido exilado de Jerusalém com o grupo que

tinha sido exilado com Jeconias, rei de Judá, que Nabucodonosor, rei da Babilônia, levara

7
para o exílio. [Mardoqueu] estava cuidando de Hadassa (isto é, Ester), filha de seu tio, por

ela não ter pai nem mãe. A garota possuía uma figura adorável e era bela em aparência.

Quando o seu pai e a sua mãe morreram, Mardoqueu tomou-a como sua filha.

8
Quando a palavra e o decreto do rei se tornaram conhecidos e muitas garotas foram

reunidas na fortaleza de Susã, sob o controle de Hegai, Ester foi levada à casa do rei, ao

9
controle de Hegai, o guardião das mulheres. A garota foi agradável aos seus olhos, e ela

ganhou comprometimento diante dele. Ele se apressou a lhe dar os cosméticos e a permissão

para comida. Designou-lhe as sete garotas que haviam sido escolhidas da casa do rei e

10
transferiu-a, junto com as suas garotas, para a melhor parte da casa das mulheres. Ester

não revelou o seu povo ou a sua família, porque Mardoqueu havia ordenado que ela não o

11
revelasse. Dia após dia, Mardoqueu costumava caminhar em frente do pátio da casa das

mulheres para saber sobre o bem-estar de Ester e o que estava acontecendo a ela.

12
Quando a vez de cada garota chegava para comparecer diante do rei Xerxes, ao fim do

tratamento de doze meses, de acordo com o decreto para as mulheres (pois, então, esses eram

os dias para cumprir o tratamento delas: seis meses com óleo de mirra e seis meses com

13
perfumes e cosméticos para mulheres), a garota ia até o rei: tudo o que ela quisesse lhe era

14
dado para levar consigo da casa das mulheres para a casa do rei. À noite, ela ia e, de manhã,

voltava para a segunda casa das mulheres, sob o controle der Saasgaz, o eunuco do rei,

guardião das esposas secundárias. Ela não ia novamente até o rei, a não ser que o rei a

15
quisesse e a mandasse convocar pelo nome. Quando chegou a vez de Ester, filha de Abiail

(tio de Mardoqueu, que a tinha tomado como sua filha), comparecer diante do rei, ela não

pediu nada, exceto o que Hegai, o eunuco do rei, o guardião das mulheres, disse. Ester

encontrava favor aos olhos de todos os que a viam.

16
Ester foi levada ao rei Xerxes, em sua casa real, no décimo mês (isto é, o mês de tebete), no

17
sétimo ano de seu reinado. O rei gostou mais de Ester do que de todas as outras mulheres.
Ela encontrou favor e comprometimento dele mais que todas as outras jovens, e ele colocou

18
a coroa real sobre a cabeça dela e a tornou a sua rainha em lugar de Vasti. O rei deu um

grande banquete para todos os seus oficiais e seus serviçais: “o Banquete de Ester”. Ele fez

uma remissão dos impostos para as províncias e deu presentes de acordo com o poder do rei.

Escrevo logo após o Super Bowl e tenho lido que, seja o que for que

aconteça, o evento é um ímã para a exploração sexual. O procurador-

geral do Texas classificou o Super Bowl como um dos maiores eventos

de tráfico humano nos Estados Unidos. Segundo noticiários, a

administração de George W. Bush estabeleceu quarenta e duas forças-

tarefa para investigar o problema da exploração sexual nos Estados

Unidos; exploração sexual significa o envolvimento sexual forçado de

pessoas (normalmente, mulheres, em especial jovens). Embora pareça

haver aqui um consenso geral de que a exploração sexual constitui uma

questão grave, a exemplo de outras partes do mundo ocidental,

envolvendo tanto o abuso de norte-americanos quanto do tráfico por

meio das fronteiras, as forças-tarefa parecem incapazes de avançar na

tratativa desse problema.

De tempos em tempos, exibo aos meus alunos uma divertida e

inteligente versão animada da história de Ester e os faço refletir sobre

quão fiel e eficientemente essa versão animada comunica o significado

da história bíblica. De inúmeras maneiras, a recontagem dessa história

precisa adaptá-la às necessidades das crianças e assume o risco de

enfraquecê-la, embora fique claro que Ester não tem nenhuma opção,

exceto a de submeter-se ao concurso de beleza organizado pelos asseclas

de Xerxes. Claro que este não é um concurso de beleza comum, que

inclui um harém no qual garotas jovens são preparadas para uma noite

de sexo involuntário e, então, levadas a outro harém. Os dois haréns

estão, naturalmente, a cargo de eunucos, homens que, de uma forma ou

de outra, tornaram-se incapazes da atividade sexual ou, pelo menos, de

gerarem filhos. Eles podem ter se voluntariado para essa mutilação a fim
de obter funções na administração, embora isso possa significar que as

jovens não são as únicas a serem submetidas à opressão sexual. (Hege e

Hegai são variações do mesmo nome para um dos eunucos.)

Embora seja possível achar cômico o capítulo de abertura de Ester

com seu relato sobre o estupidamente patético e autoindulgente rei e

sua corte, devemos nos lembrar de que o cenário dessa autoindulgência

é o sofrimento do povo comum, a espécie de sofrimento testemunhada

por Neemias 5. Se o governo em Susã não vivesse de modo tão

opulento, os habitantes de Jerusalém, cujos impostos financiavam essa

indulgência, não estariam na servidão. A mesma questão surge nesse

capítulo. O concurso de beleza do rei é patético e risível, mas suas

vítimas são inúmeras garotas adolescentes que têm a sua primeira

experiência sexual na cama desse homem mais velho e, então, são

despejadas em seu harém pós-coito, como mulheres na condição de

esposas secundárias que, todavia, nunca mais serão vistas.

Agora, muitas mulheres israelitas, talvez a maioria, foram

submetidas a casamentos arranjados, a exemplo do que pode ocorrer na

maioria das culturas. O casamento arranjado não significa privar o

rapaz e a garota do direito de escolherem com quem desejam se casar,

como evidenciado em inúmeras histórias do Antigo Testamento;

significa que eles não são os únicos envolvidos no processo de tomada

de decisão. Sem dúvida, isso também significa que, se o amor faz parte

da história, esse amor pode se desenvolver tanto após o casamento

quanto antes dele. Assim, muitas garotas israelitas podem passar a sua

noite de núpcias esperando e orando que o sexo as leve ao amor. Talvez

as garotas no harém de Xerxes acalentassem essa esperança, mas,

estatisticamente, as suas chances eram remotíssimas.

O modo pelo qual a história de Ester começa é o modo em que a

narrativa pretende seguir. Primeiro, há o escandaloso banquete e,

depois, o abuso sexual. A seguir, virá o dantesco plano de aniquilação do

povo judaíta e, eventualmente, o terrível assassinato de cerca de

setenta e cinco mil persas. O relato não fornece nenhuma pista


explícita se a intenção é horrorizar o leitor; mas é como grande parte da

Escritura, no sentido de que a narrativa deixa a conclusão a cargo do

leitor. A Escritura apresenta as suas histórias no contexto de ensino,

sugerindo a estrutura moral com a qual a história deve ser lida, mesmo

quando o relato fornece um conteúdo concreto para generalizações

morais e teológicas. Dificilmente, a expectativa da Escritura como um

todo é de que uma história como a de Ester divirta o leitor. Todavia, ao

mesmo tempo, a história é contada com o fim de entreter e divertir.

Talvez isso ocorra, em parte, porque a presença de humor atenue o

horror e torne possível ler a história; caso contrário, seríamos incapazes

de lê-la. Expressando de outra forma, com frequência o humor é

alicerçado na ira, de tal modo que o humor proporciona à ira um meio

de expressão.

Existe outro aspecto no tocante à praticidade realista que impera ao

longo de todo o livro. A autoindulgência grosseira pela qual outras

pessoas pagam o preço, a opressão e o abuso sexual, o antissemitismo e a

mortandade são fatos do mundo no qual vivemos. Uma das grandes

características da Bíblia é que ela encara esses fatos. Ela não lida,

meramente, com questões de cunho espiritual, mas, com as coisas como

elas são em nosso mundo. A Escritura nos convida a encarar a realidade

presente na vida de jovens adolescentes nos Estados Unidos, na Europa

e nos demais recantos deste mundo. Então, mais escandalosamente, ela

nos convida a assumir que Deus está envolvido com este mundo,

mesmo com a sua pecaminosidade. O rei persa está prestes a definir o

extermínio do povo judeu, e o meio pelo qual Deus irá evitar o

cumprimento dessa intenção envolve o abuso sexual de Ester, uma

adolescente. Ela paga um preço, e todo o seu povo vive. Pode parecer

perturbador que Deus esteja pronto a usar tais meios para derrotar o

Maligno. Seria ainda mais perturbador caso tais horrores ocorressem e

não tivessem significado algum. Igualmente, é por causa de

considerações como essa que a história não foca a ofensa moral ou a


transgressão religiosa (sexo e posterior casamento com um estrangeiro)

pela qual Ester é tragada. As questões são maiores que essas.


ESTER 2:19—3:11
AMALEQUE REDIVIVO
19
Quando as jovens garotas foram reunidas pela segunda vez, Mardoqueu estava assentado

20
junto ao portão do rei. Ester não tinha revelado a sua família ou o seu povo, como

Mardoqueu lhe tinha ordenado; Ester fez como Mardoqueu dissera, a exemplo de quando ela

21
estava sendo criada com ele. Naquele tempo, quando Mardoqueu estava assentado junto

ao portão do rei, Bigtã e Teres, dois dos eunucos do rei que guardavam a entrada, ficaram

22
com raiva e procuraram colocar a mão sobre o rei Xerxes. A coisa tornou-se conhecida a

23
Mardoqueu. Ele a revelou à rainha Ester, e Ester disse ao rei, em nome de Mardoqueu. A

coisa foi investigada e descoberta [ser assim], e os dois foram pendurados em uma forca. Isso

foi escrito nos anais na presença do rei.

CAPÍTULO 3

1
Depois disso, o rei Xerxes promoveu Hamã, filho de Hamedata, o agagita. Ele o elevou e o

2
colocou em um assento superior a todos os oficiais que tinham estado com ele. Todos os

serviçais do rei, junto ao portão do rei, ajoelhavam-se e prostravam-se diante de Hamã,

porque o rei havia ordenado isso com respeito a ele. Mas Mardoqueu não se ajoelhava nem se

3
prostrava. Os serviçais do rei, junto ao portão do rei, disseram a Mardoqueu: “Por que você

4
está transgredindo a ordem do rei?” Mas, quando eles lhe diziam isso, dia após dia, ele não

os escutava. Eles contaram a Hamã, para ver se as palavras de Mardoqueu prevaleceriam,

5
porque ele lhes havia dito que era um judaíta. Quando Hamã viu que Mardoqueu não

6
estava se ajoelhando ou se prostrando diante dele, Hamã encheu-se de furor, mas aos seus

próprios olhos ele desprezava pôr as mãos apenas em Mardoqueu, porque eles lhe revelaram

o povo de Mardoqueu, e Hamã buscou destruir todos os judaítas, o povo de Mardoqueu, em

todo o reino de Xerxes.

7
No primeiro mês (isto é, o mês de nisã), no décimo segundo ano de Xerxes, o pur (isto é, a

sorte) foi lançado diante de Hamã com respeito a cada dia e a cada mês: o décimo segundo

8
(isto é, o mês de adar). Hamã disse ao rei Xerxes: “Existe um único povo, espalhado, mas

mantido separado entre os povos em todas as províncias em seu reino, e suas leis são

diferentes das leis dos outros povos. Eles não guardam as leis do rei, e não é apropriado ao rei

9
deixá-los em paz. Se parecer bem à Sua Majestade, que seja decretada a destruição deles, e

pagarei dez mil talentos de prata nas mãos daqueles responsáveis pela obra para trazerem ao

10
tesouro do rei.” O rei removeu o seu anel de sua mão e o deu a Hamã, filho de Hamedata, o

11
agagita, o adversário dos judaítas. O rei disse a Hamã: “A prata é dada a você, e assim

também o povo, para fazer com ele o que parecer bom aos seus olhos.”
As últimas semanas têm sido “dias de fúria” nos países do Oriente

Médio, a derrubada de mais de um governo e um sentimento de que

essa agitação possa resultar numa maior vulnerabilidade para o Estado

de Israel. Coincidentemente, na sexta-feira passada, os Estados Unidos

vetaram uma resolução do Conselho das Nações Unidas, condenando

Israel pela continuidade da instalação de assentamentos na Cisjordânia,

e, no sábado, os palestinos convocaram um “dia de fúria” ali, para a

próxima sexta-feira. Nesta segunda-feira, de manhã, recebi um e-mail

pedindo por orações, enviado por uma sociedade cristã simpatizante da

causa de Israel. O comunicado solicitava oração pela proteção de Israel

nesse contexto e fazia referência à promessa em Zacarias 2, sobre Deus

ser um muro de fogo ao redor de Jerusalém, a promessa que

consideramos em nosso comentário sobre a reconstrução do muro por

Neemias. Independentemente do que se pense sobre os erros e acertos

do conflito entre Israel e Palestina, o senso de que o povo judeu, em

geral, tem sido vulnerável a esquemas de aniquilação não emerge da

paranoia judaica. O plano de Hamã assinala o seu início.

A referência de abertura quanto a uma segunda reunião de garotas

parece referir-se ao ajuntamento do próximo grupo de vítimas

potenciais de Xerxes. Isso nos lembra, uma vez mais, do significado

contínuo do modo pelo qual os homens buscam mulheres (ou garotas)

atraentes para reforçar a sua própria posição (“Para ver como sou

importante, basta ver como a minha assistente é deslumbrante!”). E o

que se deve pensar das garotas em Susã que não atendem aos mesmos

requisitos de formosura? A beleza cria uma espécie de preconceito que

difere daquele étnico (todos gostariam de ser belos, mas nem todos

gostariam de pertencer a este ou àquele grupo étnico), mas se assemelha

a ele de certas maneiras (todos desejam ser valorizados pelo que são,

não por sua identidade étnica ou aparência). Em Susã, as garotas

bonitas são vulneráveis por causa de sua beleza, e os judaítas são

vulneráveis por sua etnia.


O portão de uma cidade é um local regular de reuniões; em uma

cidade israelita, é lá que os anciãos se reúnem. O fato de Mardoqueu

estar junto ao portão, literal e/ou metaforicamente, sugere que ele está

envolvido na administração da cidade e no serviço ao rei, a exemplo de

Neemias e de Daniel e seus amigos, na Babilônia. Os judaítas têm

percorrido um longo caminho desde o exílio, praticamente um século

antes; a exemplo das famílias de Esdras e de Neemias, a família de

Mardoqueu não aproveitou a chance de “voltar” para Jerusalém. Eles

estão bem em Susã. No entanto, eles sabem que estão em

vulnerabilidade, não apenas por serem estrangeiros, mas,

principalmente, por serem judeus. Ainda assim, Mardoqueu sabe como

utilizar a sua posição, como tirar vantagem de sua capacidade de “usar”

Ester, que está à mercê da direção de homens, para o bem ou para o mal,

embora ganhe certa autodeterminação ou independência de ação à

medida que a história se desenrola. Ainda, ele sabe como usar a

informação que cruza o seu caminho.

As palavras “judaíta”, “judeu”, “Judeia” e “judaico” remontam ao

termo hebraico Yehudi. Em outras palavras, yehudim pode ser um termo

étnico, referente aos membros do clã de Judá (que pode se tornar, com

efeito, uma sinédoque para o próprio Israel como povo), sigam ou não a

religião judaica. Ou pode ser um termo religioso, em referência a

pessoas comprometidas com a religião e a vida judaicas, sejam ou não

etnicamente judeus. Dentro do Antigo Testamento, Ester assinala

quando o termo yehudim passa a ter implicações religiosas. Em Susã, ser

um yehudim pode sugerir o modo distintivo pelo qual as pessoas vivem,

da mesma forma que o grupo étnico ao qual elas pertencem.

Hamã fica escandalizado não pelo fato de Mardoqueu pertencer a

um grupo étnico diferente, mas por pertencer a um grupo étnico que se

mantém separado dos demais povos e que possui leis distintas das leis

dos outros povos. Os seres humanos, com frequência, sentem-se

ameaçados por aqueles que são diferentes. A alimentação é uma das

áreas nas quais esse desconforto se manifesta; muitos britânicos sentem-


se desconfortáveis pelo fato de alguns povos comerem caracóis, rãs ou

carne de cavalo. A generalização de Hamã, talvez, pressupõe esse

instinto, mas sabemos algo que Xerxes desconhece. A insatisfação real

de Hamã é pelo fato de Mardoqueu não se curvar perante ele, nem

reconhecer a sua posição de macho alfa na administração real. Mas,

corretamente, ele reconhece que isso não é uma mera questão pessoal

entre ele e Mardoqueu, pois este está apenas agindo como um judeu. A

natureza questionável desse comportamento diferenciado é que torna

os judaítas vulneráveis, e isso é o que jaz por trás da ordem de

Mardoqueu a Ester quanto a manter a sua identidade em segredo. O

sorteio por parte de Hamã é designado a descobrir qual o dia favorável

para abordar Xerxes sobre o plano de destruir a comunidade judaica ou

para, na realidade, implementar o seu plano. Ironicamente, transpirará

que esse sorteio é totalmente incerto. O fato de o festival que celebra o

fracasso desse plano ser, futuramente, chamado de purim, isto é,

“sortes”, reflete a realidade de que as decisões quanto a essas questões

são tomadas em lugares jamais imaginados por Hamã.

Igualmente, de modo irônico, não existe nada na Torá que proibisse

Mardoqueu de se curvar diante de Hamã. A prostração diante de um

superior é mencionada nos dois Testamentos, sem insinuar que seja um

tratamento dedicado a uma divindade. Dessa forma, a exigência do rei

para que as pessoas se curvassem diante de Hamã não era estranha, e a

surpresa dos colegas de Mardoqueu por sua aparente perversidade era

plenamente natural. O restante do retrato de Mardoqueu torna

improvável concluir que ele colocou todos em risco apenas por uma

questão de orgulho humano. O mais provável é que o motivo de sua

recusa resida na clara identificação de Hamã como um agagita. Agague

foi o rei amalequita cujo livramento da execução custou a Saul a sua

posição como servo de Deus e como rei escolhido de Israel, embora os

amalequitas, como grupo, constituíssem a síntese de um povo irracional

e desumanamente hostil a Israel (veja 1Samuel 15). Como um persa,

Hamã não é um amalequita ou descendente de Agague, na plena


acepção da palavra, embora um de seus antepassados tivesse um nome

suficientemente parecido com o de Agague para sugerir a ligação.

Espiritualmente, podemos assim dizer, Hamã era um agagita. A forma

pela qual a história se desenrola mostra que a designação era pertinente.

Seja o que for que estivesse na mente de Mardoqueu quando ele

declinou de se curvar diante de Hamã, os eventos mostrarão que a

designação de Hamã como um amalequita era apropriada. Ainda, pela

maneira com que Amaleque tratou Israel no passado, Mardoqueu sabia

que um israelita não deveria se curvar diante de um amalequita.

Há israelenses que veem os palestinos como a incorporação

contemporânea dos amalequitas, tal como existem árabes que gostariam

de ver Israel riscado do mapa. Da mesma forma, há grupos de ódio em

países como os Estados Unidos que gostariam de eliminar os judeus da

face da terra.
ESTER 3:12—4:17
A POSSIBILIDADE DE UM MILAGRE NÃO MIRACULOSO
12
Assim, os escribas do rei foram convocados no primeiro mês, no décimo terceiro dia dele, e

um decreto foi emitido de acordo com tudo o que Hamã havia ordenado aos sátrapas do rei,

aos governadores sobre cada província e aos oficiais de cada povo, província por província,

de acordo com a sua escrita, e pessoa por pessoa, de acordo com a sua língua, escrito no nome

13
do rei Xerxes e selado com o anel do rei. Os documentos foram enviados por meio de

mensageiros a todas as províncias do rei, com ordens para destruir, matar e eliminar todos os

judaítas, dos mais novos aos mais velhos, pequenos e mulheres, em um dia, no décimo

terceiro dia do décimo segundo mês (isto é, adar), e para saquear suas [propriedades] como

14
espólio. Uma cópia do documento deveria ser estabelecida como lei em cada província

individual, mostrada a todas as pessoas para que elas estivessem prontas para aquele dia.

15
Os mensageiros partiram, pela palavra do rei, e a lei foi publicada na fortaleza de Susã.

Enquanto o rei e Hamã assentavam-se para um banquete, a cidade de Susã ficou perplexa.

CAPÍTULO 4

1
Quando Mardoqueu ficou sabendo de tudo o que tinha acontecido, ele rasgou as suas

roupas e vestiu-se de pano de saco e de cinzas. Ele saiu em meio à cidade e chorou com voz

2
elevada e amarga. Ele foi até a frente do portão do rei o mais que pôde, porque as pessoas

3
não poderiam ir ao portão do rei em pano de saco. Em cada província individual, cada lugar

no qual a palavra do rei e a sua lei chegaram, houve grande pranto por parte dos judaítas,

4
jejum, choro e lamento; panos de saco e cinzas foram colocados sobre muitas pessoas. As

garotas de Ester e os seus eunucos vieram e lhe contaram, e a rainha tremeu. Ela enviou a

Mardoqueu roupas para que ele tirasse o pano de saco sobre si, mas ele não as aceitou.

5
Então, Ester convocou Hatá, um dos eunucos do rei que ele havia colocado no lugar diante

dela, e o encarregou de ir a Mardoqueu para saber do que [se tratava] e por que isso [estava

6 7
acontecendo]. Hatá foi até Mardoqueu na praça da cidade, em frente do portão do rei, e

Mardoqueu lhe contou tudo o que tinha acontecido e sobre os detalhes da prata que Hamã

8
disse que pagaria aos tesouros do rei em relação aos judaítas, para eliminá-los. [Mardoqueu]

deu [a Hatá] uma cópia do documento contendo a lei que havia sido entregue em Susã para

a destruição deles a fim de mostrar a Ester e informá-la, encarregando-a de ir ao rei, buscar o

9
favor dele e inquiri-lo com respeito ao povo de Ester. Hatá foi e contou a Ester as palavras

10 11
de Mardoqueu, mas Ester disse a Hatá e o encarregou de [dizer] a Mardoqueu: “Todos

os serviçais do rei e o povo das províncias do rei sabem que existe apenas uma lei para

qualquer homem ou mulher que vai ao rei no pátio interno sem que tenha sido convocado, a

execução, a não ser que o rei lhe estenda o cetro de ouro, e ele viva; e eu não fui convocada

12
para ir ao rei nesses trinta dias.” Quando eles contaram a Mardoqueu as palavras de Ester,

13
Mardoqueu disse para levar uma palavra de volta a Ester: “Não imagine dentro de você

14
que, de todos os judaítas, você escapará na casa do rei, porque se você, de fato, ficar em
silêncio dessa vez, alívio e livramento surgirão para os judaítas de outro lugar, mas você e a

casa de seu pai perecerão. Será que não foi para esta hora que você alcançou a posição real?”

15 16
Ester disse para levar uma palavra de volta a Mardoqueu: “Vá, reúna todos os judaítas a

serem encontrados em Susã e jejuem por mim. Não comam nem bebam durante três dias,

noite e dia. Eu também jejuarei, e as minhas garotas, e dessa forma irei ao rei, o que não está

17
de acordo com a lei. Se eu perecer, perecerei.” Mardoqueu saiu e fez de acordo com tudo o

que Ester o encarregou.

Cerca de um mês atrás, senti vertigens durante muitos dias e passei dois

dias no hospital, sendo submetido a testes para assegurar que não tinha

um câncer no cérebro ou não estava tendo um derrame. Todos os testes

foram negativos; então, qual a origem das tonturas? Os protocolos do

sistema de seguro-saúde indicavam que, para tentar resolver o enigma,

eu deveria consultar outro neurologista, um jovem médico sem a mesma

reputação do neurologista do hospital. Após cinco minutos, ele

identificou o problema. Alguns cristais no interior dos meus ouvidos

haviam saído do alinhamento correto, e com apenas uma simples

manobra o problema foi corrigido, manobra essa que a minha esposa e

eu poderíamos usar, caso a vertigem retornasse. O doutor reconheceu o

problema porque ele e a sua mãe já haviam sofrido do mesmo mal.

Ainda, o fato de que, usando a manobra, ele poderia tanto me deixar

tonto quanto resolver a vertigem, conforme desejasse, mostrou que ele

não estava apenas projetando o próprio problema em mim. Minha

esposa e eu saímos do seu consultório maravilhados por aquele ato

milagroso realizado por Deus; embora tenha ocorrido nos bastidores um

milagre não miraculoso, um milagre de momento certo e de

coincidência.

O livro de Ester discorre sobre esse tipo de milagre, mas jamais cita

Deus, Israel ou a aliança, nem mesmo a oração, do mesmo modo que

não menciona o motivo de Mardoqueu não se curvar diante de Hamã.

Pode-se comparar e contrastar o episódio com a história de José, em

Gênesis, com a história da libertação de Israel do Egito, em Êxodo, ou


mesmo com a história de Daniel e seus amigos, na Babilônia. A história

de José ilustra a forma pela qual Deus pode agir por meio da tomada de

decisão humana, do assumir a responsabilidade e das coincidências,

ainda que, no fim, José explicite o ponto aos seus irmãos, em Gênesis 50:

“Enquanto vocês intencionavam o mal a mim, Deus intencionou isso

para o bem, a fim de agir hoje para manter vivo um povo numeroso.” O

livro de Ester deixa a matéria desarticulada. A história do êxodo de

Israel segue ilustrando como Deus opera espetacularmente para

resgatar o seu povo e trazer julgamento sobre os opressores e sobre as

pessoas que se colocam contra ele; contudo, no êxodo, Deus age

miraculosamente; sem um ato especial de Deus, não haveria a travessia

dos israelitas e o julgamento dos egípcios no mar Vermelho. Em Ester,

Deus opera para o mesmo objetivo, mas sem o milagre. Daniel 3 é claro

ao falar sobre a capacidade de Deus de libertar os três jovens da

fornalha ardente, na Babilônia. Aqui, similarmente, Mardoqueu declara

que o alívio e o livramento para os judeus em Susã emergirão de outro

lugar, mas ele não diz qual será a fonte. Sua declaração é um pouco

estranha. Ele mesmo já demonstrou a capacidade de usar a informação

que chegou aos seus ouvidos, de usar os potenciais de sua posição, de

sua relação familiar com Ester e de sua posição junto ao portão do rei,

mas a narrativa não faz nenhuma menção quanto à direção de Deus

sobre ele, nesse episódio. Ele age de acordo com o que deve e pode fazer.

Mardoqueu rasga as suas roupas, veste-se de pano de saco e cinzas, e

chora amarga e intensamente, o que faz parecer que, ao adotar tais

ações, ele, agora, sabe que haverá um livramento.

A história considera como certo que Deus é que será a fonte do

livramento para os judeus, que essa libertação da lei é certa, pois Deus

está comprometido com o povo judeu, que a certeza de Mardoqueu

resulta de ele ter orado e ouvido a resposta de Deus, e de que o jejum

solicitado por Ester aos seus compatriotas acompanha a oração. Na

realidade, tem sido sugerido que o fato de o livro não explicitar

nenhuma dessas suposições as enfatiza ainda mais. Igualmente, a


narrativa considera como certo que ser yehudim é tanto um

compromisso religioso quanto uma identidade étnica, mas também não

deixa isso claro (e, portanto, continuo utilizando a expressão “judaítas”

em lugar de “judeus”).

No entanto, a recusa em referir-se a Deus estabelece um ponto

importante. A nossa experiência humana característica quanto ao

extraordinário envolvimento de Deus em nossa vida é mais esperada na

história de Ester do que na história do êxodo, como terá sido o caso

para os judeus em Susã. O livramento de Deus ocorre porque seres

humanos aceitam a responsabilidade de usar a posição que ocupam.

Eles agem em fé e com coragem, a exemplo do compromisso assumido

por Ester. Eles assumem o risco de agir, embora saibam, que o risco é

genuíno; os três amigos de Daniel sabem que Deus pode resgatá-los

(embora também saibam que não podem esperar a concordância do rei),

mas eles não sabem se Deus agirá assim ou não. A aceitação da nossa

responsabilidade não garante que experimentaremos um livramento.

Paradoxalmente, Mardoqueu vai mais além, nessa conexão, do que

os três amigos de Daniel, apesar de Ester, com a sua hesitação,

manifestar mais realismo quanto à situação. Mardoqueu, claro, nada

tem a perder. Por não ter revelado a sua identidade judia, Ester pode

escapar com vida, caso mantenha a sua cabeça baixa, embora

Mardoqueu procure desviar essa tentação da mente dela. De fato,

talvez o motivo de ela estar na posição que está seja o de desempenhar

um papel crucial para que outros escapem da ameaça às suas vidas. Uma

vez mais, não há nenhuma referência de que Deus a tenha levado àquela

posição junto ao rei. Isso está pressuposto, mas não declarado, pois

ilustra a maneira pela qual, com frequência, as coisas funcionam sem

que seja possível ver a mão divina. Igualmente, transpirará que a

sobrevivência do povo judeu depende da decisão, da coragem e da

astúcia de uma bela judia e de seu guardião.

A hesitação e o medo de Ester tornam a sua fé e a sua coragem ainda

mais notáveis e mais reais para nós. Ela não é uma super-heroína,
dotada de poderes especiais, mas uma jovem abusada, alçada a uma

posição terrível por ser o que é, uma judia formosa. Ser bela não

significa possuir vantagens especiais incontestáveis; com frequência, a

beleza expõe a pessoa a uma posição trágica (Marilyn Monroe, princesa

Diana), mesmo quando as pessoas atribuem a elas uma super-

humanidade. Elas são apenas velas ao vento. Ester ilustra a forma pela

qual a coragem e a fé não são incompatíveis com o medo e a hesitação;

de fato, elas surgem por conta própria, no contexto do medo e da

hesitação. Se não houver nenhuma das anteriores, quem necessita de fé

e de coragem?

Há uma diferença de reações dos que estão na cidade de Susã

daqueles que estão na fortaleza. A exemplo de outras cidades antigas, a

fortaleza ou cidadela é uma instalação dentro da cidade, uma elevação

sobre a qual o palácio do rei é construído e que, portanto, abriga o seu

centro administrativo, além de ser um local que conta com um nível de

proteção adicional, caso a própria cidade seja tomada pelos invasores.

(Assim, seria possível para Mardoqueu ir à cidade em trajes informais e

com uma aparência desgrenhada, mas não junto ao portão do rei, na

fortaleza.) A cidadela está diretamente implicada no edito de Hamã. As

pessoas comuns encontram-se perplexas pelo destino determinado à

família judaica, que mora ao lado. Pode haver distinção entre as

políticas duras que um governo está preparado para adotar e a maneira

pela qual os valores humanos prevalecem entre pessoas comuns, a

exemplo dos habitantes de Susã. Na verdade, mesmo os outros membros

da corte do rei estão mais curiosos do que hostis em relação a como

Mardoqueu irá se livrar da recusa em se curvar diante de Hamã por ser

um judaíta (não está claro se a base de sua recusa é pelo fato de ele ser

um estrangeiro ou porque a sua religião o proíbe). Existe um contraste

ainda maior entre a perplexidade do povo e a frieza com que Xerxes e

Hamã sentam-se à mesa para comer e beber, após um bom dia de

trabalho.
ESTER 5:1-14
A GAROTA QUE SABE COMO MANIPULAR O SEU HOMEM
1
No terceiro dia, Ester vestiu-se de trajes reais e permaneceu no pátio interno da casa do rei,

de frente para o palácio do rei, enquanto o rei estava assentado em seu trono real, na casa

2
real, de frente para a entrada da casa. Quando o rei viu a rainha Ester em pé no pátio, ela

encontrou favor aos seus olhos e o rei estendeu a Ester o cetro de ouro em sua mão. Ester se

3
aproximou e tocou a cabeça do cetro. O rei lhe disse: “O que você tem [em sua mente],

4
rainha Ester? Qual é o seu pedido? Até metade do reino lhe será dado.” Ester disse: “Se for

5
do agrado do rei, que o rei e Hamã possam vir hoje ao banquete que Ester preparou.” O rei

disse: “Apressem Hamã para fazer o que Ester diz.” Então, o rei e Hamã foram ao banquete

6
que Ester havia feito. O rei disse a Ester no banquete de vinho: “Qual é a sua petição? Você

7
será atendida. Qual é o seu pedido? Até metade do reino, isso será feito.” Ester replicou: “A

8
minha petição, o meu pedido: Se encontrei favor aos olhos do rei e se for do agrado do rei

atender à minha petição, a conceder o meu pedido, que o rei e Hamã possam vir ao banquete

9
que lhes prepararei, e amanhã agirei de acordo com a palavra do rei.” Hamã saiu naquele dia

regozijando-se e alegre em seu coração, mas, quando viu Mardoqueu junto ao portão do rei e

que ele não se levantou nem tremeu por causa dele, Hamã se encheu de raiva contra

10
Mardoqueu. Mas Hamã controlou-se e foi para sua casa. Ele foi e reuniu os seus amigos e

11
Zeres, a sua esposa. Hamã recontou a eles o esplendor de sua riqueza, o número de seus

filhos e tudo sobre como o rei o havia promovido e elevado acima dos oficiais e dos serviçais

12
do rei. E Hamã disse: “Na verdade, a rainha Ester não trouxe ninguém para o banquete

com o rei, que ela fez, com exceção de mim. Amanhã também sou convocado por ela com o

13
rei. Mas tudo isso não é o mesmo para mim toda vez que vejo Mardoqueu, o judaíta,

14
sentado junto ao portão do rei.” Zeres, sua esposa, lhe disse, com todos os seus amigos:

“Uma forca deve ser feita, de cinquenta côvados de altura, e de manhã diga ao rei que eles

deveriam enforcar Mardoqueu ali, e vá feliz com o rei ao banquete.” As palavras pareceram

boas a Hamã, e ele fez a forca.

Ao descrever a possibilidade de um milagre não miraculoso, falei da

minha própria experiência, da parte de um cristão gentio. Conheço um

erudito judeu que descreveu a sua interação com Ester em termos

muito distintos, porque a história discorre sobre o seu próprio povo.

Posso imaginar o livro como ilustrações por meio das quais Deus pode

mostrar fidelidade a mim e espera fidelidade da minha parte, todavia a

minha interação com o livro não é tão direta quanto a desse escritor
judeu. Os cristãos, igualmente, podem ver o livro como ilustrações de

como Deus pode mostrar fidelidade a cristãos, individualmente, e a

igrejas sob perseguição, e as formas pelas quais eles são chamados à

fidelidade. Todavia, a nossa capacidade de apreciar a história dessa

maneira emerge do nosso relacionamento com um judeu que descendia

dos judeus da época de Ester e de sermos adotados pelo seu povo.

Há, então, uma terrível ironia no fato de os massacres do final do

século XIX e início do século XX, bem como o Holocausto na metade

desse século, terem sido cometidos por cristãos e de que esses eventos

constituíram os episódios climáticos na história do antissemitismo

cristão ao longo dos séculos. A localização geográfica do Holocausto, na

Europa Ocidental, a sua proximidade temporal com as pessoas que

viveram e vivem nos séculos XX e XXI e, acima de tudo, a sua natureza

como uma tentativa final de eliminar o povo judeu dão ao livro de Ester

um novo significado nesses séculos. Não estou sugerindo alguma

mudança no significado do livro; ele emerge do que o seu autor escreveu

para a comunidade à qual ele (ou ela) pertencia. No entanto, o que ele

veio significar para pessoas em outros contextos mudou. Talvez uma

forma melhor de expressar isso é observar que nós, agora, temos um

acesso extremamente fácil ao próprio significado do livro como uma

tentativa de realmente eliminar o povo judeu. Reconhecidamente, há

inúmeras posições cristãs em relação a esse livro. Além de vê-lo como

fonte de modelos para ilustrar a maneira pela qual a relação deles com

Deus operava, os cristãos têm visto o livro de Ester como indigno de

um lugar na Escritura. Um grande estudioso do Antigo Testamento

declarou que um pregador cristão jamais deveria desenvolver o seu

texto com base em Ester. Contudo, ele fez essa declaração antes que as

questões trazidas à tona pelo Holocausto para a fé cristã e a fé judaica

fossem percebidas.

Quando Hamã se tornou a primeira pessoa da qual temos

conhecimento a sonhar com uma solução final para o problema judeu, o

seu sonho foi frustrado porque um homem judeu encorajou uma garota
judia a considerar seriamente a sua solidariedade para com o seu povo e

a sua posição especial, com a responsabilidade e o potencial que essa

posição lhe proporcionava. Então, Adolf Hitler falou explicitamente de

seu sonho de que deveria haver uma “solução final para o problema

judeu”. Em seu discurso no Reichstag, em 30 de janeiro de 1939, ele

declarou: “No curso da minha vida, tenho sido, com muita frequência,

um profeta e, normalmente, tenho sido ridicularizado por isso. Durante

o tempo de minha luta pelo poder, a raça judaica foi, em primeira

instância, a única que recebeu as minhas profecias com risos quando

disse que, um dia, eu assumiria a liderança do Estado, e com isso de

toda a nação, e que, então, entre outras coisas, eu resolveria o problema

judeu. O riso deles foi estrondoso, mas eu acho que, agora, eles não rirão

por muito tempo.”

Onde Hamã fracassou, Hitler quase logrou êxito. Embora não se

possa atribuir a esse quase sucesso à presença de alguém, como a rainha

Ester no círculo de Hitler, que falhou em agir como ela agiu, a

mensagem do livro inclui um desafio aos seus descendentes para

estarem preparados a ter a mesma solidariedade com o seu povo e a

mesma disposição de correr o risco no uso da responsabilidade e do

potencial que a sua especial posição outorgava a Ester. Isso também

inclui um desafio aos gentios que se preocupam com os descendentes de

Ester e que, em certo sentido, identificam-se com o seu povo, pois foram

enxertados nessa oliveira (conforme expressado em Romanos 11).

Houve, na realidade, “gentios justos” na Europa que agiram para salvar

judeus, alguns dos quais pagaram o preço dessa ação com a própria vida.

Os judeus não têm motivos para presumir que o antissemitismo morreu

com Hitler, e os gentios que se preocupam com o povo judeu precisam

estar prontos a seguir o exemplo de Ester em vez do exemplo de Hamã.

O fato de Ester ter obtido o favor de Xerxes tornou a sua iniciativa

menos perigosa do que seria para algumas pessoas, mas ela não estava

errada quando disse a Mardoqueu sobre o risco envolvido em sua

abordagem inesperada ao rei, dadas as convenções do protocolo


imperial. Não havia como ela ter certeza de que a sua aproximação seria

aceita pelo rei por meio do cetro de ouro em vez de gerar ofensa e a

ordem para a sua execução. A petição de Ester não visa apenas a que

Xerxes e Hamã compareçam ao jantar. Ao fazer o convite, a rainha está

cumprindo os padrões adequados da amabilidade do Oriente Médio, em

lugar de ir, direta e apressadamente, a uma lista de pedidos. “Vamos

jantar primeiro, e podemos falar sobre isso mais tarde.” (Xerxes está

fazendo algo similar ao oferecer a Ester metade de seu reino; ela seria

sábia ao não considerar aquela proposta de modo literal.) Ao mesmo

tempo, agir dessa forma e, então, repetir a estratégia no dia seguinte

encoraja o desenvolvimento de uma relação com o rei que, certamente,

no devido tempo, tornará impossível ele resistir ao pedido real dela. De

fato, as palavras de Ester ao fazer o segundo convite convidam o rei a

reconhecer esse fato. Com efeito, ela está dizendo: “Se lhe agradar vir

jantar comigo novamente, amanhã, então, revelarei o meu pedido, e

você o concederá, não?” E, ao aceitar o segundo convite, o rei expressa

um compromisso ainda mais explícito de atendê-la.

Talvez Xerxes reconheça esse fato e se sinta bem com isso por estar

um pouco obcecado por Ester. Pode ser que o pobre Hamã perceba isso

também, mas não faz ideia das implicações com relação a ele.

Ironicamente, o seu prazer é arruinado apenas pela experiência de ver

Mardoqueu ignorar a sua importância; Hamã não percebe que há um

problema muito maior em seu horizonte. Em vez disso, ele foca em

tentar restaurar o seu orgulho ferido ao relembrar a si mesmo e aos seus

amigos e familiares sobre quantos motivos ele tem para se orgulhar; mas

eles também não suspeitam de nada.

Assim, naquela noite, antes de ir para a cama, Hamã manda fazer

uma forca (ou um poste para a exposição de um corpo após a execução;

literalmente, o termo é para uma “árvore”). Cinquenta côvados

significam trinta metros, isto é, a altura de um prédio de cinco ou seis

andares, uma forca e tanto, o que indica a determinação de Hamã de

envergonhar Mardoqueu e se vingar do desprezo do judaíta por ele, seja


esta ou não a intenção real de Hamã, e seja esta ou não outra indicação

de que o livro de Ester se delicia com hipérboles.


ESTER 6:1-11
O HOMEM QUE AGE CERTO
1
Naquela noite, o sono do rei fugiu, e ele disse para trazer o livro dos registros (os anais), e

2
eles foram lidos diante do rei. Foi descoberto que Mardoqueu havia reportado sobre Bigtã e

Teres, dois dos eunucos do rei entre os guardas da entrada, que tramavam colocar as mãos

3
sobre o rei Xerxes. O rei disse: “Que honra ou promoção houve para Mardoqueu por conta

4
disso?” Os rapazes do rei, seus assistentes, disseram: “Nada foi feito com ele.” O rei disse:

“Quem está no pátio?” Ora, Hamã havia chegado ao pátio externo da casa do rei para dizer

5
ao rei para pendurar Mardoqueu na forca que ele lhe havia preparado. O rapaz do rei lhe

6
disse: “Ali — Hamã está no pátio.” O rei disse: “Ele deve entrar.” Hamã entrou, e o rei lhe

disse: “O que se deve fazer a um homem a quem o rei deseja honrar?” Hamã disse a si mesmo:

7
“A quem mais o rei desejaria honrar senão a mim?” Assim, Hamã disse ao rei: “Ao homem

8
que o rei deseja honrar, ordena que tragam vestes reais que o rei costuma usar e um cavalo

9
sobre o qual o rei cavalga, que lhe seja colocada na cabeça uma coroa real, e que as vestes e

o cavalo fiquem a cargo dos nobres oficiais do rei. Eles devem vestir o homem a quem o rei

quer honrar, conduzi-lo sobre o cavalo pela praça da cidade e proclamar diante dele: “Isso é o

10
que é feito ao homem a quem o rei deseja honrar!” O rei disse a Hamã: “Depressa — pegue

as vestes e o cavalo, conforme você falou, e assim faça a Mardoqueu, o judaíta, que se assenta

junto ao portão do rei. Nenhuma palavra de tudo o que você falou deve ser omitida.”

11
Então, Hamã pegou as vestes e o cavalo, vestiu Mardoqueu, fê-lo cavalgar pela praça da

cidade e proclamou diante dele: “Isso é o que é feito ao homem a quem o rei deseja honrar.”

Reconheço que não há muita ligação entre Mardoqueu e Eric Cantona,

a estrela do futebol francês, que jogou no Manchester United, mas eu

estava pensando nessa ligação, em minha cama, na noite passada, ao

assistir ao filme À procura de Eric [Looking for Eric]. A história é sobre

um torcedor do Manchester, chamado Eric Bishop, cuja vida caminha a

passos largos em direção à calamidade. Cantona aparece a ele e o ajuda

a encontrar um caminho que o leva para longe da confusão em que ele

se encontra. Cantona fala sobre a maneira pela qual parte de sua

inspiração em uma partida de futebol era “fazer algo pelos torcedores”,

fazer algo mágico acontecer para eles, ao conseguir marcar um gol

incrível. O modo pelo qual o futebol, além de outros esportes de massa,


funciona é a intensa identificação dos torcedores com o time, que os

leva a compartilhar as conquistas da equipe; pode-se ver isso em ação

quando Cantona marca um gol e levanta os braços em direção à

multidão na arquibancada, que vibra ruidosamente com ele. Bishop

pergunta a Cantona sobre seu melhor momento, esperando que ele cite

algum gol espetacular, mas Cantona identifica como seu melhor

momento um passe para gol, dado a um companheiro. A aparente

ligação com Mardoqueu é que parte do pano de fundo para as

conquistas e a fama de Cantona (como ele mesmo afirma) é, portanto,

não o seu desejo de servir a si próprio, mas a sua preocupação com as

outras pessoas.

De volta ao capítulo 2, lemos uma história sobre Mardoqueu, cujo

significado, então, não estava claro. Havia uma conspiração contra a

vida do rei, e, como membro leal da administração real, Mardoqueu

garantiu que o plano chegasse ao conhecimento de Xerxes, ao revelá-lo

a Ester. Caso tivesse feito isso em benefício próprio, sua intenção

fracassou; o incidente foi registrado e esquecido. Colocando Aretha

Franklin ao lado de Eric Cantona e Mardoqueu, o benjamita: “Se você

quiser uma mulher correta todos os dias, você tem de ser um homem

correto todas as noites.” No entanto, claro, isso nem sempre funciona,

como não funcionou para Mardoqueu. Na realidade, a sua fiel ação (a

sua segunda — a primeira foi adotar Ester como filha) logo foi

acompanhada pelo desastroso edito real.

Então, certa noite, o rei não conseguia dormir. A julgar pelo que

ocorre a seguir, o problema não era o fato de ele não adormecer, mas o

fato de ter acordado muito cedo e não conseguir voltar a dormir; a

imagem de seu sono fugindo corrobora essa ideia. De modo

compreensível, Xerxes imagina que um pouco de leitura dos arquivos

reais poderia solucionar a ausência de sono, mas, na verdade, como

resultado da leitura, o rei é lembrado da ação de Mardoqueu e descobre

que ele jamais foi recompensado de modo apropriado. A insônia do rei,

portanto, torna-se um ponto de virada crucial na história. Quanto ao


destino do povo judeu no contexto do Império Persa, tudo depende de

uma noite de insônia do rei. Essa é a coincidência fundamental.

As pessoas, às vezes, falam sobre Deus orquestrando os eventos nos

bastidores de nossa vida, mas essa imagem é um pouco enganosa. Um

maestro decide o que acontece e faz a orquestra tocar em conjunto, de

acordo com a partitura à sua frente. Certamente, a Bíblia pode retratar

Deus fazendo isso; o início de Esdras retrata Deus agindo assim,

possibilitando aos judaítas mudarem para Jerusalém a fim de

reconstruírem o templo. Entretanto, não é assim que a Escritura vê o

envolvimento de Deus em todos os eventos. Embora haja algum sentido

no qual Deus é soberano em todos os eventos, às vezes o seu retrato é

mais de um Deus fazendo algo criativo com ações humanas

independentes e com os eventos após eles ocorrerem. A construção

original do templo foi claramente declarada como uma ideia de Davi,

não de Deus, que não a via com entusiasmo, embora Deus tenha feito

algo criativo com ela. Pode-se denominar isso como uma “conciliação

de fatos”, não uma orquestração. A característica distinta da narrativa

de Ester é que a omissão de qualquer menção a Deus significa um

exagero, mesmo falando em termos de conciliação. Tudo o que temos

são coincidências fortuitas e pessoas assumindo sua responsabilidade de

forma corajosa. Podemos inferir que o livro assume o envolvimento de

Deus em aproveitar o potencial de Mardoqueu para agir corretamente e

a insônia de Xerxes, mas o ponto que o livro abertamente transmite é

que devemos presumir essa verdade ou inferi-la. Por experiência, tudo o

que vemos é uma coincidência.

Hamã se vê enredado por uma coincidência adicional, dessa vez

entremeada com ironia. Casualmente, ele aparece nesse instante,

presumidamente logo após a noite (durante a qual o rei não conseguia

dormir) dar lugar ao dia. Como membro sênior da corte do rei,

naturalmente ele é a pessoa adequada para aconselhar sobre como

honrar alguém. Hamã não apenas interpreta mal a pergunta, mas a

transforma em uma questão cujas implicações se revelam exatamente


contrárias ao que ele desejaria e totalmente opostas aos planos sobre

Mardoqueu que ele tinha em mente, quando foi até o rei. Na realidade,

Hamã termina elevando Mardoqueu, mas não no sentido desejado por

ele.
ESTER 6:12—8:2
O REALISMO SOBRE O IMPÉRIO TORNA-SE EM FARSA DE

EXECUÇÃO
12
Mardoqueu voltou ao portão do rei, mas Hamã apressou-se à sua casa, lamentando e com a

13
cabeça coberta. Hamã contou a Zeres, sua esposa, e a todos os seus amigos tudo o que lhe

ocorrera. Seus conselheiros e Zeres, sua esposa, lhe disseram: “Se Mardoqueu, diante de

quem você começou a cair, for de origem judaíta, você não irá superá-lo, porque certamente

14
cairá diante dele.” Enquanto eles ainda estavam falando com ele, os eunucos do rei

7:1
chegaram e apressaram Hamã para levá-lo ao banquete que Ester havia feito. Quando o

2
rei e Hamã chegaram para beber com a rainha Ester, o rei disse a Ester, novamente, no

segundo dia, no banquete de vinho: “Qual é a sua petição, rainha Ester? Ela será concedida a

3
você. Qual é o seu pedido? Até metade do reino, isso será feito.” A rainha Ester replicou:

“Se encontrei favor aos teus olhos, Majestade, e se te parecer bem, que a minha vida seja

4
dada a mim como minha petição, e meu povo como o meu pedido, porque eu e meu povo

fomos vendidos para sermos destruídos, mortos e eliminados. Tivéssemos sido vendidos

como servos ou servas, eu teria mantido silêncio, porque a aflição não seria digna da

5
perturbação do rei.” O rei Xerxes disse — ele disse à rainha Ester: “Quem é esse? Onde está

6
esse homem que está tão cheio de si para agir assim?” Ester disse: “O homem da aflição e o

inimigo é Hamã, esse homem perverso.” Enquanto Hamã entrava em pânico diante do rei e

7
da rainha, o rei levantou-se, em sua fúria, do banquete de vinho, e foi para o jardim do

palácio, e Hamã permaneceu para suplicar por sua vida à rainha Ester, porque ele viu que o

8
problema para ele era certo da parte do rei. Quando o rei voltou do jardim do palácio ao

salão do banquete de vinho, Hamã estava inclinado sobre o sofá no qual Ester estava. O rei

disse: “Ele também violará a rainha, comigo na casa?” Quando as palavras saíram da boca do

9
rei, elas cobriram o rosto de Hamã. Harbona, um dos eunucos que serviam o rei, disse: “Em

adição, eis que a forca que Hamã fez para Mardoqueu, que falou para o benefício do rei, está

junto à casa de Hamã, com cinquenta côvados de altura.” O rei disse: “Enforquem-no nela.”

10
Assim, penduraram Hamã na forca que ele havia construído para Mardoqueu, e a fúria do

rei diminuiu.

CAPÍTULO 8

1
Naquele dia, o rei Xerxes deu a casa de Hamã à rainha Ester, o adversário dos judaítas.

2
Mardoqueu apresentou-se diante do rei porque Ester revelou o que ele era para ela. O rei

retirou o seu anel, que havia removido de Hamã, e o entregou a Mardoqueu, e Ester colocou

Mardoqueu sobre a casa de Hamã.


No fim do filme À procura de Eric, Cantona incentiva Bishop a adotar

ações contra a situação que ameaça eclodir uma calamidade final. O

filho de Bishop tinha sido forçado a esconder a arma de um barão das

drogas local em sua própria casa. Caso os policiais descobrissem o

esconderijo da arma, isso resultaria em cinco anos de prisão. Então,

Bishop reuniu três ônibus repletos de torcedores do Manchester

United, vestindo máscaras com o rosto de Cantona, para enfrentarem o

barão das drogas em sua própria casa. Como certo crítico afirmou, o

realismo social tornou-se uma farsa de vingança. Assim, há alguma

similaridade entre os dois Erics e Xerxes. (Outro crítico ficou

perturbado pelo fato de o filme ver os justiceiros vigilantes como um

meio de resolver um problema que deveria ser um assunto da alçada

policial.)

Ironicamente, Hamã descreveu como conselheiros (mais

textualmente, “homens sábios” ou “especialistas”) os mesmos amigos

que o haviam encorajado ao ataque, os quais, agora, expressam uma

extraordinária percepção quanto ao perigo de entrar em conflito com os

judeus. Isso é uma prévia da paranoia de Hitler, mas uma versão

particularmente perigosa de uma paranoia que, com frequência,

manifesta-se no mundo gentio. Contudo, a sabedoria dos conselheiros

não os leva a responder como Hitler e outros, que atacaram o povo

judeu. Ao contrário, involuntariamente, concordam com a declaração

anterior de Mardoqueu a Ester, de que o livramento para os judeus

emergirá de um lugar ou de outro. A própria declaração deles sobre o

perigo para Hamã nos parece estranha, pois logo vemos que eles estão

absolutamente certos. O que pode explicar essa percepção correta

deles? É o fato de os judeus serem o povo de Deus. Por causa do

compromisso de Deus é que um adversário como Hamã é derrotado

diante deles. Ainda assim, uma vez mais, a narrativa não declara a

realidade. A história conta que Frederico, o Grande, rei prussiano do

século XVIII, pediu a um membro de sua corte uma prova cabal da

existência de Deus. (Trata-se de uma daquelas histórias contadas por


inúmeras pessoas; o questionador, em geral, é Frederico, mas a

identidade do interlocutor varia.) A resposta foi: “A existência dos

judeus.” A sobrevivência desse povo, contra todas as probabilidades,

não pode ser explicada, exceto com base no envolvimento de Deus com

eles. Caso este fosse o livro de Daniel, ele ou seus amigos explicitariam

às autoridades babilônicas que é o Deus de Israel que está por trás da

sobrevivência e do sucesso dos judaítas na Babilônia. O livro de Ester

evita a inclusão dessa explicação e a deixa nas entrelinhas, convidando-

nos a, simplesmente, nos maravilharmos com o empírico fato da

sobrevivência judaica. Além disso, o livro convida os seus leitores

judeus a levarem essa reivindicação a sério. O povo judeu sobreviverá

de maneira certa e misteriosa. Eles podem viver com coragem e

esperança, mesmo quando a situação parecer mortal.

A presença do absurdo na história é intensificada pela percepção do

rei de que Hamã está tentando violentar a rainha, quando ele, na

verdade, está tentando convencê-la a ficar do seu lado. A cobertura do

rosto é somente mencionada aqui, mas no capítulo anterior, do mesmo

modo que em outras passagens, o fato de Hamã cobrir a sua cabeça era

um sinal de aflição e/ou vergonha. Desse modo, talvez o uso dessa

expressão aqui indique que as pessoas, de algum modo, cobriram o rosto

de Hamã com as marcas de desespero e de vergonha, antecipando a sua

morte.

Devemos sentir pena dele? A história sugere que não. A execução de

um aspirante a executor é correta? O relato também não apresenta essa

questão. De volta a Gênesis, Deus declarou que as pessoas que

derramassem sangue descobririam o seu próprio sangue sendo

derramado. Pode ser que Deus estivesse declarando que cabia às

autoridades humanas executarem os assassinos, mas Deus pode

facilmente estar declarando algo similar por meio das palavras que

Jesus, mais tarde, proferirá, de que aquele que matar pela espada será

morto pela espada. Isso faz parte do modus operandi da vida, e, embora

sem determinar que deva ser assim, Deus parece admitir que assim seja.
Portanto, o homem que preparou a forca para um enforcamento

injustificado descobre-se pendurado em sua própria forca. É típico do

Antigo Testamento, com frequência, olhar para tais eventos com base

na perspectiva da vítima. Ele não pergunta o que você deveria fazer

caso estivesse no lugar de Xerxes. Ele faculta aos seus leitores serem

encorajados pelo fato de que a justiça é feita a todos os Hamãs deste

mundo e de que isso acontece por meio de uma garota abusada com

remotas opções culturais, usando o poder que a cultura lhe propiciou.

A justiça poética, a ironia e a reparação prosseguem, quando

Mardoqueu se torna o cabeça da casa de Hamã, no lugar do adversário,

em vez de Hamã e sua descendência se apossarem dos bens de

Mardoqueu e de seus compatriotas, após matar as suas famílias.


ESTER 8:3-17
O DIREITO À AUTODEFESA
3
Ester, uma vez mais, falou diante do rei, prostrou-se diante de seus pés e chorou. Ela buscou

o favor dele a fim de remover o mal de Hamã, o agagita, o plano que ele elaborou contra os

4
judaítas. O rei estendeu a Ester o cetro de ouro, e Ester levantou-se e colocou-se diante do

5
rei. Ela disse: “Se for do agrado do rei, se eu encontrar favor diante dele, se parecer

apropriado diante do rei e se eu for agradável aos seus olhos, que seja escrito para reverter os

documentos, o plano de Hamã, filho de Hamedata, o agagita, que ele escreveu para eliminar

6
os judaítas que estão em todas as províncias do rei, pois como posso ver o mal que virá

7
sobre o meu povo? Como posso ver a destruição da minha família?” O rei Xerxes disse à

rainha Ester e a Mardoqueu, o judaíta: “Eis que dei a Ester a casa de Hamã, e eles o

8
penduraram na forca porque ele colocou as suas mãos sobre os judaítas. Vocês mesmos —

escrevam conforme parecer agradável aos seus olhos com respeito aos judaítas, em nome do

rei, e o selem com o anel do rei” (porque um documento que foi escrito em nome do rei e

selado com o anel do rei não pode ser revertido).

9
Então, eles convocaram os escribas do rei, naquela hora, no terceiro mês (isto é, o mês de

sivã), no vigésimo terceiro dia dele, e uma carta foi escrita de acordo com tudo o que

Mardoqueu ordenou aos judaítas e aos sátrapas, aos governadores e aos oficiais das

províncias, desde a Índia até o Sudão, cento e vinte e sete províncias, província por

província, de acordo com a sua escrita, e povo por povo, de acordo com a sua língua, e aos

10
judaítas, de acordo com a sua escrita e a sua língua. Ele escreveu em nome do rei Xerxes,

selou-o com o selo do rei e enviou os documentos pelas mãos de mensageiros em cavalos,

11
cavalgando corcéis das estrebarias reais, descendentes de cavalos de corrida, que o rei deu

[permissão] aos judaítas, em cada cidade individual, para se reunirem e se levantarem por

eles, para destruir, matar e eliminar toda a força de um povo ou província que os ataquem,

12
pequenos e mulheres, e para saquearem as suas [propriedades] como espólio, em um dia,

em todas as províncias do rei Xerxes, no décimo terceiro dia do décimo segundo mês (isto é,

13
o mês de adar). Uma cópia do documento foi entregue como lei em cada província

individual, mostrada a todas as pessoas, para que os judaítas estivessem prontos, naquele dia,

14
para obterem reparação de seus inimigos. Os mensageiros, montando corcéis das

estrebarias do rei, partiram apressadamente, impelidos pela palavra do rei, e a lei foi

promulgada na fortaleza de Susã.

15
Mardoqueu saiu da presença do rei em trajes reais, em azul e branco, um grande diadema

de ouro, e um manto de linho branco e lã púrpura, e a cidade de Susã gritou e celebrou.

16 17
Para os judaítas, houve luz e celebração, rejúbilo e honra. Em cada província individual,

em cada lugar no qual a palavra do rei e a sua lei chegaram, houve celebração e regozijo para

os judaítas, um banquete e um tempo bom. Muitos dos povos do país professaram ser

judaítas, porque o temor dos judaítas havia caído sobre eles.


O filme da noite passada foi outra obra britânica, que combina

comentário social e humor, Caindo no mundo [Cemetery Junction] (sim,

pode presumir que assistimos a uma quantidade razoável de filmes, a

cada semana, antes de dormir), e incorpora uma série de lutas na qual

os punhos são a principal arma. Se alguém lhe dá um soco, você golpeia

de volta? Provavelmente não, especialmente se for uma perseguição;

você oferece a outra face. E se um grupo étnico atacar outro grupo

étnico? Alguns judeus, hoje, podem se perguntar se os judeus poderiam

ter oferecido a outra face um pouco menos durante a Segunda Guerra

Mundial. E se alguém atacar a sua família?

Há um sentido no qual a nova lei persa de Mardoqueu e de Ester

reverte a lei de Hamã e um sentido no qual isso não ocorre. Ela não dá

aos judeus autorização para atacar outros grupos étnicos. Nesse

aspecto, a lei corresponde à posição presente em todo o Antigo

Testamento. Há uma ou duas ocasiões especiais nas quais Deus

comissiona os israelitas a agirem contra outros povos por causa da

iniquidade deles, mas Deus não tem por hábito comissionar o seu povo

a atacar outro povo apenas por serem inimigos. Mais frequentemente,

Deus lhes diz para se submeterem à autoridade do império dominante

do dia, até chegar a hora em que Deus decide fazer algo a respeito.

Existem ocasiões nas quais poderes estrangeiros agem contra os

israelitas como agentes da disciplina de Deus; eles, certamente,

precisam então se submeter. Hamã e seu edito constituem uma questão

diferente.

Agora, pela primeira vez desde o capítulo 3, Hamã é descrito como

um agagita, e pode não surpreender o fato de essa designação ser o sinal

que levou ao comissionamento dos judaítas para empreenderem a

eliminação do povo de Hamã, em conformidade com uma daquelas

raras comissões para tomar a iniciativa contra a iniquidade, presente em


1Samuel 15. De fato, o novo edito simplesmente lhes dá o direito de se

defenderem. Daniel 6 explicita que um rei persa pode, às vezes, se ver

restringido por seus próprios editos. Ao emitir um edito por meio de um

padrão especialmente formal, ele sacrifica o direito de mudá-lo mais

tarde; daí a expressão “a lei dos medos e dos persas”. Embora isso possa

constituir um toque de humor às custas dos persas que, de modo

deliberado, interpretem erroneamente a lei persa em questão (os

subservientes fazem piadas às custas das autoridades que os controlam),

a história de Ester pode pressupor o mesmo entendimento. O rei não

pode alterar o edito elaborado por Hamã; o que pode ser feito é

autorizar outro edito que reverta o efeito do primeiro, embora isso não

possa ser feito formalmente. Apesar de o novo edito estabelecer o ponto

de usar a mesma linguagem do edito de Hamã, ele não é, em conteúdo,

uma imagem espelhada do primeiro. Ele não autoriza os judaítas a

atacarem membros de outras etnias, mas concede o direito à autodefesa,

e isso, portanto, implicitamente age como um obstáculo ao ataque dos

outros povos. Eles não podem atacar impunemente.

Quando o edito de Hamã foi promulgado, toda a cidade ficou

perplexa; agora, ela está aliviada. Naquela ocasião, Mardoqueu vestiu-se

de pano de saco e cinzas, e agora está vestido de honra; os judeus,

igualmente, prantearam, e agora celebram; Mardoqueu temeu que a

rainha Ester decidisse continuar escondendo a sua identidade judaíta, e

agora as pessoas desejam compartilhar essa identidade. Todos podem se

unir ao povo de Israel por meio de assumir o compromisso com Yahweh

e com a Torá, desde o princípio da história de Israel, mas eles não se

tornam exatamente israelitas; Rute (por exemplo) ainda é chamada de

moabita, mesmo após ela ter assumido esse compromisso. Apenas aqui é

que o Antigo Testamento se refere a pessoas se tornando ou professando

ser judeu/judaíta. Reconhecidamente, há certa ambiguidade sobre o

significado dessa expressão. As pessoas desejam se tornar judaítas por

agora os respeitarem? São como Rute? Ou pretendem ser judaítas por

estarem com medo deles? Essa ambiguidade alinha-se com a maneira


pela qual a história, quase obstinadamente, se recusa a mencionar Deus,

Israel, aliança, oração e fé. Todavia, para os judaítas/judeus na Pérsia,

não importa se o motivo é medo ou respeito.


ESTER 9:1-22
O DIA DA CAIXINHA
1
Então, no décimo segundo mês (isto é, o mês de adar), no décimo terceiro dia, quando a

palavra do rei e a sua lei deveriam ser promulgadas, no dia em que os inimigos dos judaítas

esperavam estar no poder sobre eles, aconteceu o contrário: os judaítas é que estavam no

2
poder sobre as pessoas que os repudiavam. Os judaítas em suas cidades, em todas as

províncias do rei Xerxes, se reuniram para lançar mão sobre as pessoas que buscavam o mal

deles, e ninguém lhes resistiu, porque o medo dos judaítas havia caído sobre todos os povos,

3
e todos os oficiais provinciais do rei, sátrapas, governadores e pessoas responsáveis pelos

serviços, estavam elevando os judaítas, porque o medo de Mardoqueu tinha caído sobre eles,

4
porque Mardoqueu era importante na casa do rei. Assim, a sua reputação espalhou-se por

todas as províncias, porque o homem Mardoqueu tornava-se cada vez mais importante.

5
Desse modo, os judaítas atingiram todos os seus adversários com o fio da espada, com

matança e eliminação, e agiram de acordo com os seus desejos em relação aos que os

6 7
repudiavam. Na fortaleza de Susã, os judaítas mataram e eliminaram quinhentas pessoas, e

8 9
Parsandata, Dalfom, Aspata, Porata, Adalia, Aridata, Farmasta, Arisai, Aridai e Vaisata,

10
os dez filhos de Hamã, filho de Hamedata, o adversário dos judaítas. Eles mataram, mas

11
não colocaram a mão sobre o despojo. Naquele dia, o número de pessoas mortas na

12
fortaleza de Susã foi relatado ao rei, e o rei disse à rainha Ester: “Na fortaleza de Susã, os

judaítas mataram e eliminaram quinhentas pessoas e os filhos de Hamã. No resto das

províncias do rei, o que fizeram? Mas qual é a sua petição? Ela será atendida. O que mais

13
pede? E será feito.” Ester disse: “Se for do agrado do rei, que seja permitido aos judaítas

em Susã, também amanhã, agir de acordo com a lei de hoje, e que eles possam pendurar os

14
dez filhos de Hamã na forca.” O rei disse que isso devia ser feito, e uma lei foi promulgada

15
em Susã, e eles penduraram os dez filhos de Hamã. Os judaítas em Susã se reuniram

novamente, no décimo quarto dia do mês de adar, e mataram trezentas pessoas em Susã, mas

não colocaram a mão sobre o despojo.

16
O restante dos judaítas, nas províncias do rei, se reuniram e se levantaram por suas vidas e

obtiveram alívio de seus inimigos. Eles mataram setenta e cinco mil pessoas, mas não

17
colocaram a mão sobre o despojo, no décimo terceiro dia do mês de adar. Eles descansaram

18
no décimo quarto dia e fizeram dele um dia de banquete e de celebração, enquanto os

judaítas em Susã se reuniram no décimo terceiro e no décimo quarto dia e descansaram no

19
décimo quinto dia e fizeram dele um dia de banquete e de celebração. Por isso, os judaítas

que vivem nas cidades rurais fazem do décimo quarto dia do mês de adar um dia de banquete

e de celebração, um tempo bom, de enviar porções de comida uns aos outros.

20
Mardoqueu escreveu essas coisas e enviou documentos a todos os judaítas, em todas as

21
províncias do rei Xerxes, próximas e distantes, estabelecendo sobre eles que guardassem

22
anualmente o décimo quarto dia e o décimo quinto dias do mês de adar, como os dias em
que os judaítas obtiveram alívio para si mesmos de seus inimigos e o mês em que a tristeza

tornou-se em celebração, e o pranto em um tempo bom, e para fazer deles dias de banquete e

de celebração, e de enviar porções de Deus uns aos outros, e presentes aos pobres.

Quando os norte-americanos me perguntam sobre o significado do Dia

da Caixinha [Boxing Day], o dia seguinte ao Natal, e um feriado público

na Grã-Bretanha, eles são propensos a imaginar que seja um dia para

lutas de boxe. Na verdade, é um dia para dar e receber caixas ou

presentes. Hoje em dia, o Natal é uma ocasião na qual as famílias e

amigos trocam presentes, em uma base largamente transacional que

significa que, na prática, presenteamos a nós mesmos. É realmente

patético. A explicação para o Dia da Caixinha que mais aprecio é a de

que seja uma referência à ocasião na qual as caixas destinadas a

donativos aos pobres, nas igrejas, eram abertas e o seu conteúdo era

distribuído. Nesse aspecto, gosto da lenda sobre o rei Venceslau, um

duque da Boêmia, do século X, apresentada em um conto poético de

Natal. Na Festa de Estêvão (o dia seguinte ao Natal é o dia de Santo

Estêvão), sob um frio congelante, Venceslau sai e dá carne, vinho e

combustível para fazer fogo a um homem pobre, incorporando,

portanto, o ideal de um bom rei. Assim, no dia de Santo Estêvão, o dia

em que o rei agiu com bondade, de acordo com a história, tornou-se o

dia de abertura das caixas destinadas aos pobres e de assistências às

pessoas necessitadas.

A celebração do livramento dos judeus combina o ideal, antigo e

moderno, do Dia da Caixinha. Trata-se de uma ocasião de celebração e

de dar presentes, e isso beneficia tanto a família quanto os necessitados.

Poder-se-ia imaginar que a comemoração do livramento do povo

judaíta seria apenas uma ocasião para autoindulgência, mas não é assim.

Certamente, é possível imaginar que seja uma ocasião de louvor e de

gratidão a Deus, a exemplo do evento comemorativo da reconstrução

dos muros de Jerusalém para a proteção da comunidade judaíta. Mas,


mesmo no fim, o livro de Ester, resolutamente, evita qualquer referência

a Deus, e, ao lado do jejum, o auxílio aos pobres torna-se outra

expressão do reconhecimento e da gratidão pelas bênçãos recebidas.

A ênfase sobre dar uns aos outros e aos pobres sugere que os pobres

não são, necessariamente, membros da comunidade judaica. Isso

coaduna com a informação de que os judaítas abrem mão de saquear os

bens das pessoas que os atacam. A história, uma vez mais, deixa claro

que, de maneiras importantes, a permissão de Xerxes propicia aos

judaítas o reverso do objetivo do edito de Hamã. A mesma linguagem é

recorrente: eles receberam permissão para destruir, matar e eliminar

pessoas. No entanto, também é uma permissão mais restrita,

aparentemente porque o edito foi esboçado por Mardoqueu, não por

Hamã ou Xerxes. Observamos que a eles é permitido o direito à

autodefesa — permissão para se levantarem e resistirem —, não para

atacaram outros povos sem serem atacados primeiro. O parágrafo

inicial na seção, então, resume os eventos, e o restante dela fornece os

detalhes para explicar as diferenças na forma pela qual o livramento foi

celebrado nas diferentes partes da comunidade.

O que é, então, surpreendente, é o número de pessoas que os atacam

quando sabem que a comunidade judaica não irá se render facilmente.

Os atacantes não serão capazes de resistir à comunidade judaica — seja

para superá-la, seja para permanecerem firmes quando forem atacados

de volta. Parece que algumas pessoas não conseguem se controlar

quando se trata de ócio racial. Sentem-se tão ameaçadas, temerosas ou

arrogantes assim, ou não sabem quem são se não têm alguém com quem

lutar? Os cristãos modernos são propensos a se chocarem pelo massacre

promovido pelos judaítas, apesar (ou por causa) do fato de a vida

moderna ser tão violenta; a diferença é que podemos delegar a outras

pessoas (a polícia ou o exército) a incumbência de agir com violência

por nós, sem nos envolvermos diretamente, embora apreciemos assistir

a isso na televisão.
Uma abordagem judaica à história considera como motivo desses

elevados números a estupidez das pessoas que atacam os judeus. No

entanto, em outras passagens, o livro é amigável em relação às pessoas

comuns da Pérsia, contrárias a líderes como Xerxes e Hamã, que são os

tolos no livro. Não seria surpresa se os filhos de Hamã fossem tão

estúpidos quanto ele e quisessem obter reparação pela execução do pai.

O texto deixa claro que o fato de serem pendurados na forca é apenas

uma exposição pública de seus corpos como um ato de vergonha, uma

prática comum em regiões do mundo antigo. O objetivo é desencorajar

pessoas propensas à violência.

Outra abordagem judaica vê o ato do massacre por parte dos judeus

como a suprema ironia do livro. Isso lembra os leitores judeus de que

eles não são mais amantes da paz e gentis do que os outros. Essa

compreensão, certamente, concorda com a natureza do livro como um

todo, com sua apreciação pelo humor e pela ironia, e isso às próprias

custas seria uma motivação judaica plausível. Claro que o problema

com a ironia é que, com frequência, as pessoas falham em entendê-la

(como qualquer britânico lecionando nos Estados Unidos sabe), e a

falha das pessoas em perceber essa ironia presente no livro de Ester, ao

longo dos milênios, pode impossibilitar essa compreensão.

Deve-se, talvez, não considerar os números de maneira tão literal.

Embora comparados com os números no livro de Crônicas, do mesmo

período, eles são relativamente pequenos. Em Crônicas, mesmo o Sudão

é capaz de reunir um exército de um milhão. Quando comparado com

os grandiosos números de Crônicas, setenta e cinco mil pessoas em todo

o Império Persa são um contingente pequeno. Se a intenção do número

de mortes é sugerir contenção, isso coadunaria com a implicação similar

da nota sobre não tomar posse dos despojos. Os judaítas não estavam

matando para obter lucro. Todavia, à luz da maneira pela qual o livro de

Ester prossegue fazendo comentários teológicos nas entrelinhas em vez

de abertamente, talvez o mais provável é que os números estejam ali

para sublinhar as dimensões do livramento que o povo judeu


experimentou. Mesmo setenta e cinco mil atacantes não conseguiram

sobrepujá-los.
ESTER 9:23—10:3
UMA HISTÓRIA VERDADEIRA, UMA LEI QUE PERMANECERÁ
9:23
Assim, os judaítas aceitaram o que haviam começado a fazer e o que Mardoqueu lhes

24
escrevera, porque Hamã, filho de Hamedata, o agagita, o adversário de todos os judaítas,

planejara eliminar os judaítas e havia lançado o pur (isto é, a sorte) para esmagá-los e

25
eliminá-los. Mas, quando [Ester] foi diante do rei, ele disse com um documento que o

plano maligno [de Hamã], que ele havia elaborado contra os judaítas, deveria ser revertido

26
contra a sua própria cabeça, e penduraram, ele e seus filhos, na forca. Por isso, esses dias

foram chamados Purim, derivado da palavra pur. Por causa de tudo o que estava escrito

27
nessa carta, o que eles haviam visto e o que tinha acontecido, os judaítas estabeleceram e

aceitaram para si, para os seus descendentes e para todos os que se uniram a eles, que não se

deixasse de comemorar anualmente esses dois dias, de acordo com o documento sobre eles e

28
o tempo deles. Esses dias seriam comemorados e observados em cada geração, geração por

geração, família por família, província por província, cidade por cidade. Esses dias de Purim

não devem desaparecer entre os judaítas, e a sua comemoração não deve cessar em sua

29
descendência. A rainha Ester, filha de Abiail, e Mardoqueu, o judaíta, escreveram com

30
toda a força para estabelecer essa segunda carta sobre o Purim. Documentos foram

enviados a todos os judaítas, nas cento e vinte e sete províncias do reino de Xerxes, palavras

31
sobre bem-estar e veracidade, para estabelecer esses dias de Purim, a seu tempo, conforme

Mardoqueu, o judaíta, e a rainha Ester estabeleceram para eles, como haviam estabelecido

32
para si mesmos e para a sua descendência, declarações sobre jejuns e o lamento deles. A

palavra de Ester estabeleceu essas declarações sobre o Purim, e isso foi escrito em um

documento.

CAPÍTULO 10

1 2
O rei Xerxes impôs o trabalho recrutado no país e em costas distantes. Todos os seus

grandiosos e poderosos atos, e os detalhes da importância de Mardoqueu, que o rei lhe

3
conferiu, estão, de fato, escritos nos anais dos reis da Média e da Pérsia, porque

Mardoqueu, o judaíta, era o segundo, depois do rei Xerxes, importante para os judaítas e

admirado por seus muitos irmãos, buscando o bem de seu povo e falando de bem-estar para

toda a sua descendência.

Um erudito judeu, que escreveu um livro acadêmico sobre Ester,

também descreveu a sua interação pessoal com essa história; referi-me

ao seu relato em meu comentário sobre o capítulo 5 de Ester. Por mais

que se considere a narrativa de Ester como um relato histórico, ele


comenta, ao ouvirmos a sua leitura na sinagoga, durante o Purim,

sabemos que é, de fato, uma história verídica. Ao ler a história, o leitor

revive a sua verdade e a sua realidade. O leitor não necessita de muita

imaginação para sentir a ansiedade que tomou conta dos judeus na

Pérsia quando eles souberam da ameaça de Hamã à vida deles e se unir

ao júbilo de seu livramento. “Exceto”, ele diz, “que não devo pensar

‘deles’, mas ‘meu’.” Ele, então, faz referência aos massacres no sul da

Rússia, perpetrados no início do século XX, à matança de cem mil

judeus na Ucrânia, entre 1919 e 1920, e, então, ao extermínio de um

terço dos judeus no mundo, orquestrado por Hitler, por meio do qual o

objetivo de Hamã quase foi alcançado. A naturalidade com que ele se

identifica com os judeus do livro de Ester é facilitada por sua percepção

de haver escapado por um triz. O seu avô deixou a cena dos massacres

pouco antes de eles ocorrerem, e, por uma feliz circunstância, ele nasceu

fora do alcance do poder nazista. (Veja Fox, Michael V., Character and

Ideology in the Book of Esther [Caráter e ideologia no livro de Ester]:

Eerdmans, 2001.)

A experiência judaica moderna do Purim cumpre a prescrição de

Mardoqueu e de Ester quanto à sua observância. As instruções para a

celebração podem parecer complexas; elas são destinadas tanto a

mostrar como as regulações oficiais para o Purim constituem uma

formalização de uma celebração que o povo já havia iniciado quanto

para explicar o raciocínio para a forma distinta pela qual o festival é

observado em diferentes regiões do mundo judaico.

Denominar o festival como Purim, “Sorteio” ou “Sortes”, pode

lembrar às pessoas que os sorteios que decidem o que ocorre no mundo

não são feitos onde Hamã imaginava. Esse lembrete às custas de Hamã

é complementado por outro, dessa vez às custas de Xerxes. Já

observamos que a lei dos medos e persas era, supostamente, irrevogável,

e Memucã havia sugerido a Xerxes promulgar essa espécie de lei, “que

não desaparece”, com respeito à proibição para que a rainha Vasti nunca

mais comparecesse diante do rei. A mesma expressão é, agora, usada


com relação à observância do Purim; com efeito, para enfatizar esse

ponto, aqui, ele é mencionado em duas ocasiões. E, ao contrário das leis

medo-persas, a regra para a observância do Purim, na realidade, não

desapareceu. Hitler tentou proibir a observância do Purim (com certa

inconsistência, o festival também serviu de cenário para ataques

nazistas e a consequente morte de judeus), mas o Reich eterno também

foi superado pela observância do Purim.

Em outro contraste, Mardoqueu e Ester são capazes de escrever um

documento usando palavras que significam bem-estar (shalom) e

veracidade. O documento ditado por Hamã falava de morte e

destruição e levava ao jejum e ao lamento. Agora, Mardoqueu pode

ditar palavras que sugerem prospectos muito diferentes e que

possibilitam uma mudança do jejum para o louvor pelas dádivas do

bem-estar e da veracidade. O ponto sobre o derradeiro relato sobre a

grandeza de Xerxes é sublinhar a importância de Mardoqueu como o

segundo em comando. A exemplo da história de Daniel, não apenas os

líderes judaítas escapam da ameaça de morte por causa de seu

compromisso como judaítas, mas também provam que é possível

triunfar na administração imperial e estender esse benefício aos demais

membros da comunidade.

É, portanto, apropriado que os judeus celebrem o Purim com

satisfação e humor. A história é lida na sinagoga com assobios, batidas e

balançar de chocalhos a cada menção do nome de Hamã. Algumas

formas de celebração envolvem vestir fantasias, usar máscaras,

dramatizações cômicas, marionetes e a queima de uma efígie de Hamã, a

exemplo da “celebração” britânica de Guy Fawkes. Entretanto, as

instruções deixam claro que a observância não é baseada em etnia. Ela é

também para as pessoas que decidiram se unir à comunidade. Embora o

texto não esclareça se as pessoas que “professaram ser judaítas” estavam

genuinamente se associando à comunidade, as pessoas que “se unem a

eles” são sérias em sua identificação com a celebração. Passagens como


Isaías 56 usam o verbo “unir” para descrever estrangeiros que

escolheram servir a Yahweh.

A presença do livro de Ester nas Escrituras cristãs corresponde à

ênfase de Paulo, em Romanos 9—11, sobre o compromisso eterno de

Deus com o povo judeu e sobre a importância desse compromisso com

os cristãos. Nos dias de Paulo, poderia parecer que Deus havia

abandonado o povo judeu; eles falharam em reconhecer o Messias deles.

Subsequentemente, os cristãos, com frequência, inferiram que os judeus

tinham sido substituídos pela igreja no propósito de Deus. Paulo afirma

que essa é uma desastrosa e equivocada visão que os cristãos deveriam

evitar, porque, se Deus pudesse abandonar os judeus e não tratar o

compromisso com eles como uma aliança eterna, então Deus poderia

fazer o mesmo com a igreja. Em vez disso (Paulo diz), a igreja é um

corpo de pessoas enxertadas na árvore judaica — isso não significa o

plantio de uma segunda árvore. A igreja é um parasita sobre Israel, e,

quando lemos a história do livramento do povo judeu nos dias de Ester,

cristãos gentios, apropriadamente, suspirarão aliviados, como fazem os

nossos irmãos e irmãs judeus.


GLOSSÁRIO

Aliança. A palavra hebraica berit abrange alianças, tratados e

contratos, mas todas essas são formas pelas quais as pessoas

estabelecem um compromisso formal sobre algo. Tenho, porém,

utilizado o termo “aliança” para expressar todas as três. Onde há um

sistema legal ao qual as pessoas podem apelar, os contratos

pressupõem um sistema para resolver disputas e ministrar justiça

que pode ser utilizado caso uma das partes não cumpra com os seus

compromissos. Em contraste, um relacionamento de aliança não

pressupõe uma estrutura legal executável dessa espécie, mas a

aliança envolve algum procedimento formal que confirme a

seriedade do compromisso solene que as partes assumem uma com a

outra. Desse modo, o Antigo Testamento frequentemente fala sobre

selar uma aliança; textualmente, cortá-la (o pano de fundo reside no

tipo de procedimento formal descrito em Gênesis 15 e Jeremias

34:18-20, embora esse tipo de procedimento dificilmente fosse

exigido toda vez que alguém assumia um compromisso de aliança).

Às vezes, as pessoas selam alianças para outras pessoas e, às vezes,

com outras pessoas. A primeira implica algo mais unilateral; a outra

envolve algo mais recíproco.

Altar. A palavra normalmente se refere a uma estrutura para oferta de

sacrifício (o termo vem da palavra para sacrifício), feita de terra ou

pedra. Um altar pode ser relativamente pequeno, como uma mesa, e

o ofertante deve ficar diante dele. Ou pode ser mais alto e maior,

como uma plataforma, e o ofertante tem de subir nele. A palavra

também pode ser uma referência a um estande menor, sobre o qual

queimava-se incenso em associação com o culto.


Assíria, assírios. A primeira grande superpotência do Oriente Médio,

os assírios expandiram o seu império rumo ao Ocidente, até a Síria-

Palestina, no século VIII a.C., no tempo de Amós e Isaías, e

anexaram Efraim ao seu império. Quando Efraim persistiu tentando

retomar a sua independência, os assírios invadiram Efraim e, em 722

a.C., destruíram a sua capital, Samaria, levando cativo grande parte

de seu povo e substituindo-os por pessoas oriundas de outras partes

do seu império. Invadiram também Judá e devastaram uma extensa

área do país, mas não tomaram Jerusalém. Profetas como Amós e

Isaías descrevem o modo pelo qual Deus estava, portanto, usando a

Assíria como um meio de disciplinar Israel.

Assistentes. São os nethinim, pessoas que desempenhavam uma função

de apoio no templo. Etimologicamente, o nome implica pessoas que

eram “dadas”, dedicadas, ao serviço de Deus ou dadas aos sacerdotes

e levitas como seus assistentes no cumprimento de tarefas

domésticas. Os gibeonitas (Josué 9:27) são chamados nethinim, mas

o papel designado a eles como transportadores de água e cortadores

de madeira para o santuário transmite uma ideia do trabalho desses

assistentes. Os assistentes vieram a ser tratados como entre os

levitas.

Babilônia, babilônios. Um poder menor no contexto da história

primitiva de Israel, ao tempo de Jeremias, os babilônios assumiram a

posição de superpotência da Assíria, mantendo-a por quase um

século, até ser conquistada pela Pérsia. Profetas como Jeremias

descrevem como Deus estava usando os babilônios como um meio

de disciplinar Judá. Eles tomaram Jerusalém em 587 a.C. e

transportaram muitos dentre o povo. Suas histórias sobre a criação,

os códigos legais e os textos mais filosóficos nos ajudam a

compreender aspectos de escritos equivalentes presentes no Antigo

Testamento, embora sua religião astrológica também constitua o

cenário para polêmicos aspectos nos Profetas.


Cabeças ancestrais. Os cabeças das (muitas) famílias estendidas

dentro dos doze clãs de Israel, uma unidade familiar maior do que a

família nuclear.

Compromisso. O termo corresponde à palavra hebraica hesed, que as

traduções expressam de modos distintos: amor inabalável,

benignidade, bondade ou fidelidade. Trata-se do equivalente, no

Antigo Testamento, à palavra para amor no Novo Testamento, isto

é, agapē. O Antigo Testamento utiliza a palavra “compromisso” em

referência a um ato extraordinário por meio do qual uma pessoa se

dedica a alguém, numa atitude de generosidade, lealdade ou graça,

quando não há um relacionamento prévio entre as partes e,

portanto, nenhum motivo para isso. Desse modo, em Josué 2, Raabe

fala, apropriadamente, de sua proteção aos espias israelitas como um

ato de compromisso. Pode também referir-se a um ato

extraordinário similar que ocorre quando há uma relação prévia, na

qual uma das partes decepciona a outra e, assim, não tem o direito

de esperar qualquer fidelidade da outra parte. Caso a parte ofendida

continue sendo fiel, trata-se de uma demonstração desse

compromisso. Em resposta a Raabe, os espias israelitas declaram

que irão se relacionar com ela dessa maneira.

Efraim, efraimitas. Inicialmente, Efraim é o nome de um dos filhos de

José e, então, o nome do clã que remonta a sua origem a ele. Após o

reinado de Salomão, a nação de Israel se dividiu em duas. A nação

do norte era a maior das duas e manteve o nome Israel como a sua

designação política, o que é confuso porque Israel também é o nome

do povo como um todo, que pertence a Deus. Assim, o nome Israel

pode ser usado nas duas conexões. Para confundir ainda mais, o

livro de Crônicas é, especialmente, propenso a continuar usando o

nome Israel em referência ao povo de Deus e, portanto, ao próprio

Judá, para sublinhar o fato de Judá ser a real expressão do povo de

Deus. O Estado do norte, contudo, pode também ser referido pelo


nome de Efraim, por ser um de seus clãs principais. Assim, uso esse

termo como referência ao reino do Norte, na tentativa de minimizar

a confusão. Após o exílio, a província de Samaria abrange grande

parte da área outrora ocupada por Efraim, e muitos de seus

habitantes consideram-se sucessores dos efraimitas.

Esposa secundária. As traduções usam a palavra “concubina” para

descrever mulheres como algumas das esposas de Davi, mas o termo

hebraico usado em relação a elas não sugere que não sejam

apropriadamente casadas, como a palavra “concubina” sugere, em

nossa língua. Ser uma esposa secundária indica possuir uma posição

diferente das outras esposas. Talvez implique que seus filhos tenham

direitos limitados ou mesmo nenhum direito sobre a herança do pai.

É possível a um homem rico ou poderoso ter inúmeras esposas com

plenos direitos e muitas esposas secundárias, ou mesmo apenas uma

de cada. Pode, ainda, ter apenas a esposa principal ou somente a

esposa secundária. Um rei como Xerxes poderia, certamente, ter

inúmeras esposas.

Exílio. No final do século VII a.C., a Babilônia se tornou o maior poder

no mundo de Judá, mas os judaítas estavam determinados a se

rebelar contra a sua autoridade. Então, como parte de uma

campanha vitoriosa para obter a submissão de Judá, em 597 a.C. e

587 a.C. os babilônios transportaram muitos israelitas de Jerusalém

para a Babilônia, particularmente pessoas em posições de liderança,

como membros da família real e da corte, sacerdotes e profetas.

Essas pessoas foram, portanto, compelidas a viver na Babilônia

durante os cinquenta anos seguintes ou mais. Pelo mesmo período,

as pessoas deixadas em Judá também estavam sob a autoridade dos

babilônios. Assim, não estavam fisicamente no exílio, mas também

viveram em exílio por um período de tempo. Após o período exílico,

muitos judaítas permaneceram em lugares como a Babilônia, não


como exilados sem alternativa, mas como parte do que, então, era a

comunidade judaíta/israelita/judaica na dispersão.

Grécia. Em 336 a.C., forças gregas, sob o comando de Alexandre, o

Grande, assumiram o controle do Império Persa, porém após a

morte de Alexandre em 333 a.C., o seu império foi dividido. A maior

extensão, ao norte e a leste da Palestina, foi governada por Seleuco,

um de seus generais, e seus sucessores. Judá ficou sob o controle

grego por grande parte dos dois séculos seguintes, embora estivesse

situado na fronteira sudoeste desse império e, às vezes, caísse sob o

controle do Império Ptolomaico, no Egito, governado por

sucessores de outro dos generais de Alexandre.

Israel, israelita. Originariamente, Israel era o novo nome dado por

Deus a Jacó, neto de Abraão. Seus doze filhos foram, então, os

patriarcas dos doze clãs que formam o povo de Israel. No tempo de

Saul, Davi e Salomão, esses doze clãs passaram a ser uma entidade

política. Assim, Israel significava tanto o povo de Deus quanto uma

nação ou Estado, como as demais nações e Estados. Após Salomão,

esse Estado dividiu-se em dois Estados distintos, Efraim e Judá.

Pelo fato de Efraim ser maior, manteve como referência o nome de

Israel. Desse modo, se alguém estiver pensando em Israel como

povo de Deus, Judá está incluído. Caso pense em Israel

politicamente, Judá não faz parte. Uma vez que Efraim não existe

mais, então, para todos os efeitos, Judá é Israel, do mesmo modo que

é o povo de Deus.

Judá, judaítas. Um dos doze filhos de Jacó e, portanto, o clã que traça a

sua ancestralidade até ele e que se tornou dominante no sul dos dois

Estados, após o reinado de Salomão. Mais tarde, como província ou

colônia persa, Judá ficou conhecido como Jeúde. Ainda mais tarde,

a palavra hebraica yehudim tornou-se uma designação religiosa,

referente a pessoas que vivem pela Torá; a tradução “judeus” é,


então, apropriada. Em Ester, ela tem aquelas implicações, apesar da

recusa do livro em usar termos religiosos, como Deus e Israel, torne

apropriado manter a sua tradução por “judaítas” ali também,

embora o povo estivesse sob ataque em razão de seu distinto

compromisso com a religião judaica.

Levitas. Dentro do clã de Levi, os descendentes de Arão são os

sacerdotes, aqueles que têm responsabilidades específicas em relação

às ofertas dos sacrifícios da comunidade e no auxílio aos indivíduos

que desejam oferecer seus sacrifícios, pela realização de alguns

aspectos da oferta como a aspersão do sangue do animal. Os demais

levitas cumprem um papel de apoio e de administração, além de

estarem envolvidos no ensino ao povo e em outros aspectos da

liderança do culto.

Nome. O nome de alguém representa a pessoa. O Antigo Testamento

fala do templo como um lugar no qual o nome de Deus habita.

Trata-se de uma das maneiras de lidar com o paradoxo envolvido em

falar do templo como um local da habitação de Deus. Isso reconhece

a ausência de sentido: como pode um edifício conter o Deus que não

pode ser contido pelos céus, não importa quão amplo ele seja? Não

obstante, Israel sabe que Deus, em algum sentido, habita no templo.

Os israelitas sabem que podem falar com Deus ali; eles têm

consciência de que podem falar com Deus em qualquer lugar, mas há

uma garantia especial desse fato no templo. O povo de Israel sabe

que pode apresentar ofertas lá e que Deus irá recebê-las (supondo

que sejam feitas de boa-fé). Uma forma de tentar explicar o

inexplicável ao abordar a presença de Deus no templo é, portanto,

falar do nome de Deus como presente ali, porque o nome representa

a pessoa. Proferir o nome de alguém, como você sabe, traz a

realidade daquela pessoa; é quase como se ela estivesse ali. Ao dizer

o nome de alguém, há um sentido no qual você o evoca. Quando as

pessoas murmuram “Jesus, Jesus” em suas orações, isso traz a


realidade da presença do Filho de Deus. Igualmente, quando Israel

proclamava o nome de Yahweh em adoração, isso trazia a realidade

da presença de Deus.

Pérsia, persas. A terceira superpotência do Oriente Médio. Sob a

liderança de Ciro, o Grande, eles assumiram o controle do Império

Babilônico em 539 a.C. Isaías 40―55 vê a mão de Deus levantando

Ciro como um instrumento para restaurar Judá após o exílio. Judá e

os povos vizinhos, como Samaria, Amom e Asdode, eram províncias

ou colônias persas. Os persas permaneceram por dois séculos no

poder, até serem derrotados pela Grécia.

Porteiros. A exemplo dos assistentes, os porteiros desempenham um

importante papel adjunto no templo. Em termos gerais, como o

próprio nome sugere, a responsabilidade deles era evitar o acesso de

pessoas que não pudessem acessar o interior do templo. Isso

abrangeria a exclusão de pessoas que poderiam levar contaminação

ao santuário, mas também de pessoas interessadas em roubar

recursos do templo, como animais, ouro e prata. Eles vieram a ser

tratados como entre os levitas.

Segundo Templo. O primeiro templo foi construído por Salomão;

portanto, o Período do Primeiro Templo corresponde ao intervalo

de tempo entre os dias de seu reinado e o exílio. O segundo templo

foi aquele reconstruído por Zorobabel e Josué, após o exílio, mas que

foi sobremodo expandido por Herodes. Desse modo, o Período do

Segundo Templo corresponde ao intervalo de tempo que se inicia

com a sua restauração, após o exílio, e termina com a sua destruição,

no ano 70 d.C.

Torá. A palavra hebraica para os cinco primeiros livros da Bíblia. Eles,

em geral, são referidos como a “Lei”, mas esse termo propicia uma

impressão equivocada. No próprio livro de Gênesis, não há nada

como “lei”, bem como Êxodo e Deuteronômio não são livros


“jurídicos”. A palavra torah, em si, significa “ensino”, o que fornece

uma impressão mais correta da natureza da Torá. Com frequência, a

Torá nos fornece mais de um relato do mesmo evento (como a

comissão de Deus a Moisés). Desse modo, quando a igreja primitiva

contou a história de Jesus de diferentes maneiras, em contextos

distintos e de acordo com as percepções dos diferentes autores dos

Evangelhos, ela estava apenas seguindo o precedente pelo qual

Israel contou suas histórias mais de uma vez, em diferentes

contextos. Embora Samuel-Reis e Crônicas mantenham as versões

separadas, tal como ocorreria com os Evangelhos, na Torá as versões

foram combinadas.

Transgressão. Esse termo sugere a ideia de que, por diversas formas, as

pessoas devem respeitar os direitos dos outros. Assim, os cônjuges

devem fidelidade um ao outro, pois isso é um direito de cada um

deles, de modo que a infidelidade envolve falhar em respeitar esse

direito. A infidelidade a Yahweh, pelo culto a outros deuses, possui

implicações similares; esse ato significa desrespeitar o direito de

Yahweh à obediência e à confiança. Portanto, em Esdras e Neemias,

casar-se com devotos de outras religiões constitui um ato de

transgressão.

Yahweh. Na maioria das traduções bíblicas, a palavra “Senhor” aparece

em letras maiúsculas ou em versalete, como ocorre, às vezes, com a

palavra “Deus”. Na realidade, ambas representam o nome de Deus,

Yahweh. Nos tempos do Antigo Testamento, os israelitas deixaram

de usar o nome Yahweh e começaram a usar “o Senhor”. Há dois

motivos possíveis. Os israelitas queriam que outros povos

reconhecessem que Yahweh era o único e verdadeiro Deus, mas esse

nome de pronúncia estranha poderia dar a impressão de que Yahweh

fosse apenas o deus tribal de Israel. Um termo como “o Senhor” era

mais facilmente reconhecível. Além disso, eles não queriam incorrer

na quebra da advertência presente nos Dez Mandamentos sobre


usar o nome de Yahweh em vão. Traduções em outros idiomas,

então, seguiram o exemplo e substituíram o nome de Yahweh por “o

Senhor”. O lado negativo é que isso obscurece o fato de Deus querer

ser conhecido por esse nome. Por esse motivo, o texto utiliza

Yahweh, com frequência, não algum outro nome (assim chamado)

deus ou senhor. Essa prática dá a impressão de Deus ser muito mais

“senhoril” e patriarcal do que ele o é na realidade. (A forma “Jeová”

não é uma palavra real, mas uma mescla das consoantes de Yahweh e

das vogais da palavra Adonai [Senhor, em hebraico], com o intuito

de lembrar às pessoas que na leitura da Escritura elas deveriam

dizer “o Senhor”, não o nome real.)


SOBRE O AUTOR

John Goldingay é pastor, erudito e tradutor do Antigo Testamento. Ele

é professor emérito David Allan Hubbard de Antigo Testamento no

prestigiado Seminário Teológico Fuller em Pasadena, Califórnia. É um

dos acadêmicos de Antigo Testamento mais respeitados do mundo com

diversos livros e comentários bíblicos publicados. O autor possui o livro

Teologia bíblica publicado pela Thomas Nelson Brasil.


Livros da série de comentários

O ANTIGO TESTAMENTO PARA TODOS

JÁ DISPONÍVEIS pela Thomas Nelson Brasil

Pentateuco para todos: Gênesis 1—16 • Parte 1

Pentateuco para todos: Gênesis 17—50 • Parte 2

Pentateuco para todos: Êxodo e Levítico

Pentateuco para todos: Números e Deuteronômio

Históricos para todos: Josué, Juízes e Rute

Históricos para todos: 1 e 2 Samuel

Históricos para todos: 1 e 2 Reis

Históricos para todos: 1 e 2 Crônicas

Históricos para todos: Esdras, Neemias e Ester


Livros da série de comentários

O NOVO TESTAMENTO PARA TODOS

JÁ DISPONÍVEIS pela Thomas Nelson Brasil

Mateus para todos: Mateus 1—15 • Parte 1

Mateus para todos: Mateus 16—28 • Parte 2

Marcos para todos

Lucas para todos

João para todos: João 1—10 • Parte 1

João para todos: João 11—21 • Parte 2

Atos para todos: Atos 1—12 • Parte 1

Atos para todos: Atos 13—28 • Parte 2

Paulo para todos: Romanos 1—8 • Parte 1

Paulo para todos: Romanos 9—16 • Parte 2

Paulo para todos: 1Coríntios

Paulo para todos: 2Coríntios

Paulo para todos: Gálatas e Tessalonicenses

Paulo para todos: Cartas da prisão

Paulo para todos: Cartas pastorais

Hebreus para todos

Cartas para todos: Cartas cristãs primitivas

Apocalipse para todos

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