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INVENTÁRIO PSICOSSOCIAL:
análise de um processo interventivo em saúde do trabalhador no serviço público
Nesse trabalho apresentaremos os resultados iniciais de uma tese de doutorado que busca
relatar e analisar uma prática psicossociológica de intervenção em saúde do trabalhador,
denominada Inventário Psicossocial, que foi desenvolvida pelos profissionais da psicologia e do
serviço social, junto com um grupo de trabalhadores, em uma organização pública de Minas
Gerais. Essa prática surgiu da demanda desse grupo, que fazia parte de um mesmo setor, e que
buscou atendimento junto à equipe de saúde, na tentativa de minimizar os conflitos que
vivenciavam no trabalho. A intervenção constituiu no acompanhamento dos trabalhadores, em
três períodos diferentes, entre os anos de 2011 e 2018. Para alcançar o objetivo proposto, foi
utilizada a metodologia de Estudo de Caso, com abordagem qualitativa e quantitativa. Na parte
qualitativa, fizemos análise documental do material coletado durante a intervenção (cartas, e-
mails, documentos produzidos pelo grupo, ofícios, memoriais de entrevistas individuais e dos
trabalhos em grupo). Utilizamos, também, o diário de campo, e realizamos análise da literatura
existente, na qual as ciências clínicas, em especial a Psicossociologia, guiou a linha conceitual
adotada. Para apreciação desses dados, empregamos uma análise transversal, através do
método hermenêutico-dialético, proposto por Minayo (1993), no qual a fala e o contexto sócio-
histórico são considerados em sua complexidade. Na parte quantitativa, aproveitamos os dados
da intervenção, em 2015, e os dados do Exame Periódico Psicossocial dos Servidores, em 2018,
ambos coletados através da versão resumida do Questionário do Conteúdo do Trabalho,
proposto por Karasek e Theorel (1990) e validado no Brasil por Tânia Araújo (ARAUJO e
KARASEK, 2008). Para análise dos questionários, usamos o Statistical Package for the Social
Sciences (SPSS). Nessa parte, comparamos as respostas dos servidores participantes da
intervenção nesses dois momentos, na tentativa de compreender o impacto da intervenção.
Nossa hipótese inicial era que uma intervenção de natureza psicossociológica em saúde do
trabalhador passa pelo fortalecimento do coletivo de trabalho, através da construção de novos
conhecimentos frente ao saber e ao poder instituídos. Como resultados preliminares observamos
que a constituição de um espaço de escuta e de discussão dentro das organizações de trabalho
é um ponto crucial para a manutenção da saúde do trabalhador. A criação de novos métodos
interventivos é necessária para transpor algumas barreiras organizacionais instituídas. Nesse
cenário, os profissionais de saúde têm papel importante nas organizações, pois representam uma
instância de escuta capaz de mediar a relação entre a organização e os trabalhadores. O
Inventário Psicossocial foi uma metodologia que ampliou o espaço de discussão dentro da
organização e, consequentemente, deu voz ao trabalhador, o que fortaleceu o coletivo dos
trabalhadores. Apesar de a escuta guiar o processo interventivo, a utilização do Questionário de
Conteúdo do Trabalho foi uma estratégia importante para o reconhecimento organizacional da
intervenção, e não comprometeu o espaço da fala e a efetivação de espaços deliberativos para o
trabalhador. Ressalta-se que, nesse processo, a formação permanente dos profissionais de
saúde é necessária, assim como o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar, que facilita a
apreensão da realidade de trabalho em sua complexidade.
INTRODUÇÃO
No ano de 2011, o serviço social recebeu uma demanda diferente das que recebia até
então. Oito servidores, de um mesmo setor 1, procuraram atendimento com queixas relativas ao
trabalho, principalmente associadas à sobrecarga física e psíquica. Por ser uma demanda
coletiva, ela não era clara, mas manifestava-se em termos de mal-estar e de sofrimento em
relação ao trabalho. No acolhimento dessa demanda, os profissionais do serviço social e da
psicologia2 desenvolveram um trabalho interdisciplinar, a fim de construir novas estratégias de
intervenção, de forma coletiva, nos ambientes laborais.
Os interventores buscaram metodologias que potencializassem a participação dos
servidores, pois eram eles que detinham o conhecimento sobre a realidade de trabalho. Nesse
sentido, as práticas psicossociológicas, principalmente as de origem francesa, serviram de base
para elaboração de uma intervenção específica, que contemplasse a particularidade do contexto.
Outro ponto importante refere-se à sua proposta metodológica, que busca se adaptar à realidade
concreta dos sujeitos, não sendo prescritiva. Além disso, a compreensão de sujeito, para a
Psicossociologia, se dá sob um duplo viés, psíquico e social, sendo uma disciplina
eminentemente interdisciplinar.
A discussão coletiva
A organização
3 Essa foi uma categoria de análise discutida em minha dissertação do mestrado. Esta categoria explicitava
um período de transição vivenciado pela organização, na qual se observa o envelhecimento da mão de
obra. Isso apresentava, como consequência principal, um choque entre as gerações, além de conflitos de
relacionamento expressos no trabalho. Os “novatos”, que eram os servidores recém-concursados,
possuíam um elevado nível técnico, apresentando a possibilidade de uma mudança na forma como o
valores e a missão organizacional, antes com resquícios de clientelismo e autoritarismo, passou a
abranger a ideia de cidadania e de relações mais igualitárias, pois a organização passava por
processos de Planejamento Estratégico, Gestão por Competência e outros projetos que
formalizavam protocolos e fluxos de trabalho. Essas contradições manifestavam-se, também, na
gestão, que vivenciava o conflito entre o gerencialismo e o patrimonialismo. Assim, existia uma
gestão prescrita de orientação gerencialista, mas a gestão real possuía traços fortes de
patrimonialismo.
O trabalho
Em relação ao trabalho, nas discussões com grupo, pôde-se perceber que a própria
natureza da atividade do setor era dinâmica, sendo composta por uma parte de pesquisa e
planejamento e, outra, de execução. Isso era um ponto de conflito entre os servidores e acabava
fragmentando o grupo. Haviam aqueles que enxergavam hierarquia nessas partes, valorizando o
planejamento em detrimento à execução: “Tem gente que é muito crítico, que gosta de ficar
planejando, planejando, planejando... Tá, isso é legal, mas se for só isso, quem vai fazer?”
(servidor 2). A fala do servidor 3, também, expressava essa contradição: “Eu sou muito crítico,
mas não sofro com isso, como vejo que alguns colegas acabam sofrendo, mas eu sei que
alguém precisa fazer”.
Outra característica do trabalho referia-se à imprevisibilidade e dinamicidade da atividade.
Quanto a isso, os servidores demonstravam gostar dessas características, pois o trabalho
tornava-se motivante e desafiador. No momento da intervenção, o grupo encontrava-se com uma
demanda alta de trabalho, o que gerava uma sobrecarga física e psíquica, objeto da demanda
apresentada inicialmente. Essa discussão contemplou a falta de pessoal, além de uma questão
grupal relativa à falta de confiança no trabalho do outro, tanto entre os membros do grupo, quanto
nas interfaces de trabalho. Além disso, esse problema se intensificava pela falta de protocolos e
de fluxos de informação. Os servidores relataram que existia a necessidade em se clarear os
papéis nos processos, definindo as atribuições de cada trabalhador e setor envolvido nos
processos de trabalho.
Quanto aos técnicos, ou seja, aqueles servidores que prestaram concurso público a nível
de ensino médio, existia uma indefinição de tarefas, o que ampliava o conflito no grupo e a
formação de subgrupos – técnicos e analistas. Esse era um problema vivenciado em toda a
organização, pois se tratava de um cargo novo e que contemplava um escopo ampliado de
atividades (desde atividades básicas, como atendimento telefônico, a atividades complexas,
trabalho se realizava, com instauração de procedimentos, protocolos etc.. Já os servidores antigos
possuíam um saber prático sobre o funcionamento da organização, principalmente sobre a estrutura de
poder que a regia. Mas, se por um lado o conhecimento dos antigos era importante, pois dizia da estrutura
organizacional, por outro lado, existia certa dificuldade em tentar transformar a conjuntura de poder da
organização, principalmente em seus aspectos patrimonialistas. Nesse sentido, os novatos apareciam
como possibilidade de mudança da forma como o poder se organizava dentro da organização, com a
instituição de valores mais democráticos (MONTEIRO, 2013).
como a organização e condução de reuniões com o público externo), o que dificultava sua
sistematização.
Quanto aos apontamentos referentes ao gerenciamento, esse foi um ponto conflitante na
discussão em grupo. O grupo ressaltou a capacidade intelectual da gerente-geral. No entanto,
apontaram uma incompreensão e um certo distanciamento dela em relação ao grupo, o que
dificultava o diálogo e os processos de trabalho. Foi destacada, ainda, a falta de feedbacks.
Diante disso, a discussão girou em torno das dificuldades da função gerencial dentro da
organização. Esta função, de forma geral, acaba sendo ambígua, na medida em que se trata de
uma posição de poder que tem que atender às particularidades da equipe de trabalho e, ao
mesmo tempo, responder às demandas política e institucionais, muitas vezes contraditórias.
Em relação à gerência imediata, o grupo legitimava seu trabalho, pois a reconhecia como
uma profissional qualificada e que apresentava conhecimento sobre a atividade do setor.
Ressaltaram que a sobrecarga de trabalho à qual ela estava exposta dificultava a definição de
prioridades e a comunicação com o grupo. Ela, também, assumia a função técnica, limitando sua
atuação na gestão. Outro ponto, destacado pelo grupo, foi à sua postura democrática. Foi
percebido que se por um lado, ela ampliava o espaço de diálogo e de participação dos servidores
nos processos decisórios, por outro lado, isso dificultava a tomada de decisão e a delegação das
atividades, o que tornava o trabalho, às vezes, moroso.
Os sujeitos e o grupo
Prezado Diretor,
Hoje estivemos reunidos na Gerência-Geral de Saúde e Assistência com a
finalidade de encaminhar, junto à assistente social e psicóloga, a retomada do
trabalho de diagnóstico psicossocial iniciado em 2012. Esse processo foi em
algum momento, interrompido, por motivos que desconhecemos, antes que as
propostas de melhoria fossem apresentadas.
Como nos últimos dias a equipe vem trabalhando no limite da
insustentabilidade, com grandes impactos na saúde física e emocional dos
servidores, julgamos necessário uma atuação conjunta dos servidores em prol de
uma solução definitiva para os problemas da área. Não entraremos aqui em
detalhes sobre a situação, que é bastante complexa e envolve todos os níveis
hierárquicos da Gerência-Geral, mas estamos, juntamente com a equipe de
saúde (serviço social e psicologia) à disposição para expor a situação e explicar o
que for necessário.
A equipe de saúde, em decorrência da consulta realizada hoje, oficializará
à Diretoria de Recursos Humanos sobre a demanda de retomada do trabalho
iniciado em 2012.
Gostaríamos de esclarecer que a nossa intenção, com a iniciativa, é abrir
um canal consistente para a solução definitiva de problemas recorrentes na área
e que há anos não conseguimos encaminhar. Para isso, gostaríamos de contar
com o apoio da Diretoria na consolidação desse processo que tem como principal
objetivo construir um ambiente de trabalho tranquilo, sustentado por relações de
trabalho saudáveis e transparentes.
Atenciosamente,
Setor demandante” (E-mail enviado ao diretor do setor em 11/09/2015)
Prezados servidores,
A gerência-geral em nenhum momento solicitou o arquivamento do
diagnóstico psicossocial iniciado em 2012. Estranho que esse pedido de
retomada desse importante trabalho não tenha chegado a esta gerência.
Continuo aberta ao encaminhamento de demandas do interesse do setor, em
especial, àquelas que levem a resultados importantes em termos de saúde e de
bem-estar no ambiente setorial, transparência e justiça nas relações de trabalho
de nossa equipe.
Continuem contando comigo.
Gerente-geral” (E-mail enviado pela gerente-geral em 11/09/2015)
Nesses primeiros fatos, foi aparente o desconforto da gestora ao ver que o grupo recorreu
diretamente ao diretor da área para solicitar a retomada da intervenção. No atendimento ao
grupo, percebemos que os servidores estavam imaginando que ela havia sido a responsável pela
interrupção do processo, o que não procedia, conforme concluído no término do primeiro
momento da intervenção. Foi possível perceber um nível de tensionamento entre o grupo e a
gerente-geral, sendo esta uma demanda implícita para o trabalho.
Os interventores também informaram ao diretor de recursos humanos quanto à solicitação
da equipe. Com isso, em 14 de setembro de 2015, foi realizada uma reunião na DRH, na qual
estavam presentes os profissionais de saúde (interventores), o diretor de recursos humanos, o
diretor e a gerente geral e operacional da área demandante, para definirem os encaminhamentos.
Nesta data, foi acordada a avaliação do Inventário Psicossocial no setor, com continuidade do
trabalho.
Na reunião, o diretor de recursos humanos solicitou aos interventores que construíssem
uma nova metodologia, com indicadores objetivos, capazes de quantificar o problema que o setor
vivenciava. A partir dessa demanda institucional, foram englobados estudos quantitativos à
intervenção, mas sem alterar sua base psicossociológica.
A discussão coletiva, nesse segundo momento, não trouxe novidades em relação à primeira
fase da intervenção. Nas discussões, os interventores perceberam que os velhos problemas,
identificados e discutidos anteriormente, não foram sanados, fazendo ressurgir as mesmas
categorias analíticas: organização; trabalho e sujeitos/grupo.
A organização
Quanto a esta categoria, foi retomada a discussão iniciada no início da intervenção, sobre
a transição cultural vivenciada por ela. O grupo discutiu sobre a história da organização, sobre a
realidade mítica na qual ela se desenvolveu e sobre a especificidade da parte política. A partir
dessa discussão, o grupo refletiu acerca da sistemática do poder e sobre a dificuldade em
compreendê-la (ou aceitá-la), o que gerava conflito entre os servidores e a organização.
Fazendo um paralelo ao momento anterior, aqui os servidores conseguiram aprofundar a
discussão, abrangendo as relações institucionais e organizacionais de poder e ultrapassando a
dicotomia e a contradição entre a instância política e a administrativa. Apesar do avanço em
termos da discussão, havia um certo conformismo em relação a esse aspecto, como se as
relações de poder, ali existentes, fossem imutáveis. Quanto a isso, foi apontada a dificuldade da
equipe em ver os avanços organizacionais em curso, provocados, principalmente pela transição
cultural. A relação com a gestão, por exemplo, estava se transformando de maneira geral, com
relações mais transparentes, cuidado em termos de orientação técnica, diminuição do
patrimonialismo entre outras coisas. Infelizmente, nem sempre as mudanças ocorriam no tempo
desejado pelos servidores, o que foi pontuado no trabalho em grupo.
O trabalho
Os sujeitos e o grupo
[...] eu precisava encarar o assunto de frente e não deixar prevalecer uma história
contada sobre mim que não era real. [...] o que eu queria era que o trabalho [...]
fizesse algum sentido, tivesse uma contribuição e atribuição clara e pudesse ser
melhor aproveitado. Apesar de ser só eu a verbalizar, alguns colegas também
compartilhavam comigo desse sentimento. [...] Eu precisava reagir e me
posicionar. [...] Eu realmente me sentia uma pessoa menor e menos competente.
E creio que vocês puderam ver, esse contexto é algo sustentado por parte do
grupo. Se não em palavras diretas, mas em entrelinhas e ações. [...].
Infelizmente, talvez o meu relato tenha dado força à culpabilização da gerente
pelos problemas do setor. Mas pelo que entendi do relatório de vocês, muito bem
construído por sinal, essa culpabilização não é novidade no grupo. É muito difícil
se reconhecer enquanto parte de um grupo que sustentou (e sustenta) um
ambiente com tanta discriminação e fofoca. É difícil se colocar no lugar do outro e
perceber que a opressão que eu condeno, eu também pratico. É difícil perceber
que meu problema pode não ser problema do outro. Portanto, apesar da tentativa
de vocês de tentarem indicar caminhos de “cura” para um ambiente de trabalho
adoecedor por meio do diálogo, não acredito que ela acontecerá. Não sintam que
o trabalho de vocês foi em vão. Ele me ajudou muito, e muito! E ajudar a retirar
qualquer pessoa do sofrimento, por si só, já é maravilhoso. Ainda mais na
instituição em que vivemos. Mas, infelizmente, decidi fechar definitivamente meu
ciclo nesse setor de trabalho e não vou mais participar das reuniões. E, talvez,
outras pessoas estejam com a mesma sensação que eu e não se sintam tão
confortável para continuar tentando. (E-mail enviado pela servidora 4, em 13 de
março de 2017)
O primeiro ano da nova gestão foi de relativa tranquilidade. Alguns servidores foram
atendidos de forma pontual. Passado esse primeiro ano, os conflitos se intensificaram
novamente, especificamente em março de 2018. Nesse mês, foram atendidos quatro servidores e
o gerente operacional da área. Todos relataram que novos conflitos começaram no setor e,
mediante esse novo contexto, o gerente solicitou avaliação do processo interventivo, o que
também estava previsto na proposta inicial apresentada.
Nesse momento, os interventores optaram em fazer a avaliação mediante a escuta
interdisciplinar qualificada, entrevistando individualmente os servidores que participaram do
processo. Todos os servidores foram convidados, mas a adesão foi voluntária. Foram realizadas
nove entrevistas, elaborado o memorial e, novamente, preparada uma apresentação com
hipóteses. Nessa etapa, foi realizado apenas um trabalho com o grupo e, diferentemente dos
outros dois momentos da intervenção, este contou com a presença dos gestores da área
(gerentes, geral e imediato, e do diretor).
A avaliação coletiva
Essa fala abriu o processo avaliativo do Inventário Psicossocial, em 2018. Foi fruto da
primeira entrevista individual realizada. Ela apresentou uma nova demanda de intervenção, pois
se os problemas vivenciados pelo grupo eram a nível sobrenatural, qual a capacidade de
mudança?
Os interventores partiram dessa nova demanda para análise qualitativa das entrevistas e
apresentação das hipóteses interpretativas ao grupo. Abriu-se o seminário de avaliação
exatamente com essa frase, no sentido de chamar o grupo à reflexão coletiva do que ela
representava. A frase causou um certo desconforto, apesar de uma concordância coletiva.
A partir dessa frase, os servidores iniciaram um balanço sobre a história do setor,
principalmente dos fracassos na gestão. Nos últimos dez anos, foram cinco gestores diferentes
na área, que não conseguiram resolver os problemas apresentados. A equipe começou a se
questionar sobre esses problemas, para além da gestão e da organização, e sobre o que eles
esperavam enquanto solução. Eles perceberam uma forte tendência ao pensamento polarizado
(instituição X servidores; política X técnica; execução X planejamento), e que, diante a
polaridade, eles tinham de escolher um lado, o que trazia o sentimento de guerra e luta
permanente, como demonstra a fala da servidora 7: “Escolha seu lado”. Isso geava um
sentimento permanente de não pertencimento. Quanto a isso, foi apontado e discutido o quanto a
polarização fragmentava a equipe e o próprio servidor. Foi apontado que não existiam lados e
que todos poderiam estar juntos, ainda mais em se tratando de uma organização pública.
Durante o trabalho com o grupo, os interventores apontaram a baixa adesão às
entrevistas, pois apenas nove servidores compareceram. Foi perguntado como o grupo
compreendia o processo interventivo. Tal fato se deu, principalmente, pela identificação, no
segundo momento da intervenção, da utilização do espaço de fala por alguns servidores. Nas
discussões, os interventores constataram e explicitaram que a demanda pela intervenção já não
pertencia ao grupo como um todo. As pessoas, individualmente, colocaram que estavam
cansadas de discutir as mesmas coisas, desde 2012, e que o espaço institucional de fala estava
sendo utilizado como uma espécie de terceirização da solução dos problemas.
Os profissionais da saúde estavam sendo colocados no papel de “agentes
transformadores” e, principalmente, de avaliadores da situação-problema. Era como se os
interventores soubessem o que era melhor para o grupo, e qual dos lados era o lado certo, como
se esse lado existisse. Foi importante clarear, na avaliação, que os profissionais de saúde não
tinham um lado a escolher e que no acolhimento das demandas, todos apresentavam um
determinado nível de sofrimento.
Quanto ao trabalho, especificamente sobre suas condições, em relação ao layout, o novo
gerente modificou a estrutura física, tentando agregar melhor a equipe. A nova ocupação do
território facilitou a integração do grupo, sobretudo dos técnicos. Os técnicos estavam com mais
autonomia e com atribuições bem definidas.
Quanto ao novo gestor, esse foi um ponto contraditório na avaliação. Ele era um servidor
qualificado e que o grupo já conhecia, mas foi acolhido com muita desconfiança por alguns
servidores, sendo tachado de “messias” e “salvador da pátria”. Mais uma vez, essa qualificação
colocava os problemas do setor como sobrenaturais, sendo necessária a presença de um
salvador em suas soluções. Além disso, os problemas sobrenaturais tiravam a responsabilidade
do grupo na solução dos mesmos, sendo a mudança de origem externa e não provocada pelos
próprios sujeitos.
Foi possível perceber que, no discurso do grupo, o gestor era culpabilizado pelos
problemas da área e pela não resolução dos mesmos, como ocorreu anteriormente com os
demais gestores. Após essa discussão, uma servidora apontou: “Não existe esse gerente que o
setor quer. Esse gerente é um esqueleto, morto, dentro de um armário” (servidora 11). E ainda
completa:
“Para pressionar uma estrutura institucional a gente coloca, na linha de
ataque, o gerente. A gente tem que ter transparência nas relações, a falta
de transparência pressiona as pessoas, obriga as pessoas a tomar lados.
Temos que objetivar os problemas da gerência. O que se tem de objetivo
para levar a gerência?”
Essa objetividade apontada pela servidora foi identificada nas entrevistas individuais. A
maior parte dos servidores entrevistados reconheceu a capacidade técnica e intelectual do
gerente e não conseguia citar e concretizar problemas na gestão. Um ponto acordado por todos
foi a teorização excessiva da prática, realizada por ele, o que dificultava, às vezes, a praticidade
da atividade. A equipe apontou que o gestor implantou algumas estratégias que foram avaliadas
como positivas, como a gestão por especialidade (singularidade), e não mais por revezamento;
ele era, também, um gestor que reconhecia o trabalho da equipe, segundo fala do próprio grupo.
Foi reconhecida a melhoria na organização do trabalho no sentido de objetividade, clareza e
organização de processos e de agenda – avanço com a gestão de processos e com as
ferramentas de gestão adotadas.
O subgrupo que queria outra gestão para a área sempre foi muito crítico em relação à
forma de gerenciamento do novo gerente, como ocorria na gestão anterior. Foi relatado nas
entrevistas que as reuniões de equipe eram sempre tensas, como explicitado na fala da servidora
7: “Todo mundo é muito crítico, bate de frente demais”.
Os sujeitos e o grupo, nessa última etapa, foram o ponto mais discutido, devido à
dificuldade da equipe em se reconhecer enquanto parte do problema, assim como parte da
solução e do processo de mudança. Em relação aos sujeitos e ao grupo, durante as entrevistas
foi possível identificar o conflito existente entre as pessoas. A fofoca estava sendo utilizada como
forma de pertencimento e vínculo social, conforme no momento anterior. Foi percebido, também,
a influência negativa do grupo sobre os sujeitos: “Escolha seu lado? (servidora 8), fala de uma
servidora a se referir da atitude de alguns membros do grupo. Isso acarretava a quebra do
vínculo de solidariedade, como foi observado na fala da servidores 9: “Vivemos um salve-se que
puder”.
Durante as entrevistas foram realizados alguns atendimentos individuais. Alguns
servidores estavam mais tensionados com a realidade do setor. No período de janeiro a setembro
de 2018, ocorreram duas mudanças de lotação, principalmente dos servidores que tencionavam
o grupo, ou se sentiam tensionados pelo setor. A primeira mudança foi de um servidor que
solicitou sua saída, por incompatibilidade com a gestão apresentada. A segunda mudança foi
decidida institucionalmente, com orientação, inclusive, dos profissionais de saúde. O servidor em
questão teve uma discussão com o gerente-imediato o que não foi aceito a nível organizacional.
No seminário de avaliação, a discussão foi conflituosa. Muitas pessoas falaram das
dificuldades do setor. Alguns se reconheceram como co-responsáveis pela realidade conflituosa
atual. Foi exposto ao gestor sobre a necessidade de desenvolver uma “escuta justa”, pois foi
pontuado que ele tinha relações mais tensionadas com alguns servidores, o que já havíamos
identificado nas entrevistas.
Um ponto importante nesse processo foi quando um servidor perguntou aos interventores
se eles não achavam estranho que nenhum profissional gostasse de trabalhar no setor ou
quisesse ir trabalhar lá. Esse questionamento foi respondido com uma pergunta: “Quem é o
setor?” (assistente social). Um servidor respondeu: “Nós somos o setor” (servidor 10). Essa fala
causou um certo desconforto ao grupo, pois eles eram parte do problema. Nesse momento foi
possível ver a compreensão, da maior parte dos servidores, enquanto responsáveis pelo setor e
pelo conflito que vivenciavam. A partir disso, vários servidores começaram a falar ao mesmo
tempo. Quando eles foram interrompidos pelos interventores, uma servidora expôs sobre isso:
“Tá vendo, o que aconteceu aqui é exatamente o que acontece todos os dias no setor. As
pessoas começam a falar, responder, se defender. Eu não quero falar nada porque eu quero sair
daqui. E eu queria pedir que fosse a última reunião, o silenciar é não querer fazer parte disso. Eu
não quero fazer parte disso” (servidora 10).
Outro servidor também se expressou em relação a isso: “Tem que desarmar, abaixar as
armas, dar chance, chance pra nós mesmos. É doloroso não aproveitar a oportunidade. Somos
servidores públicos, pagos com dinheiro público” (servidor 2). E outro continua: “O setor está
machucado. Esse trabalho foi muito importante. Olha o privilégio que estamos tendo de estar
aqui nos ouvindo. O que a gente vai fazer com isso? Conversar com transparência e desarmar. O
desarmar não vem por documento, não vem por e-mail”. E outro servidor continua: “Vamos fazer,
desarmar, abaixar as armas. Vamos pra frente, mas sem ingenuidade”. Foi o primeiro momento
em que o grupo se colocou enquanto problema e enquanto solução, pois conseguiu questionar
seus próprios valores, para além dos problemas institucionais existentes.
Nessa última etapa do processo interventivo não houve nenhum encaminhamento prático.
O trabalho com o grupo girou em torno da discussão do papel de cada um dentro da organização
e enquanto responsável (ou co-responsável) pela transformação dos conflitos de trabalho, tendo
em vista os limites institucionais existentes e discutidos anteriormente. Esse trabalho foi uma
tentativa de explicitar aos trabalhadores que eles eram os agentes responsáveis pelo processo
de mudança. Como explicitou Lévy (2001), a apresentação dos resultados e sua discussão
coletiva não foi uma simples conclusão do processo interventivo, mas uma forma de tomada de
consciência, de novas trocas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS TEÓRICAS