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XVI Encontro Nacional da ABET

3 a 6/9/2018, UFBA, Salvador (BA)


GT09 - Trabalho e Saúde

INVENTÁRIO PSICOSSOCIAL:
análise de um processo interventivo em saúde do trabalhador no serviço público

Danielle Teixeira Tavares Monteiro


RESUMO

Nesse trabalho apresentaremos os resultados iniciais de uma tese de doutorado que busca
relatar e analisar uma prática psicossociológica de intervenção em saúde do trabalhador,
denominada Inventário Psicossocial, que foi desenvolvida pelos profissionais da psicologia e do
serviço social, junto com um grupo de trabalhadores, em uma organização pública de Minas
Gerais. Essa prática surgiu da demanda desse grupo, que fazia parte de um mesmo setor, e que
buscou atendimento junto à equipe de saúde, na tentativa de minimizar os conflitos que
vivenciavam no trabalho. A intervenção constituiu no acompanhamento dos trabalhadores, em
três períodos diferentes, entre os anos de 2011 e 2018. Para alcançar o objetivo proposto, foi
utilizada a metodologia de Estudo de Caso, com abordagem qualitativa e quantitativa. Na parte
qualitativa, fizemos análise documental do material coletado durante a intervenção (cartas, e-
mails, documentos produzidos pelo grupo, ofícios, memoriais de entrevistas individuais e dos
trabalhos em grupo). Utilizamos, também, o diário de campo, e realizamos análise da literatura
existente, na qual as ciências clínicas, em especial a Psicossociologia, guiou a linha conceitual
adotada. Para apreciação desses dados, empregamos uma análise transversal, através do
método hermenêutico-dialético, proposto por Minayo (1993), no qual a fala e o contexto sócio-
histórico são considerados em sua complexidade. Na parte quantitativa, aproveitamos os dados
da intervenção, em 2015, e os dados do Exame Periódico Psicossocial dos Servidores, em 2018,
ambos coletados através da versão resumida do Questionário do Conteúdo do Trabalho,
proposto por Karasek e Theorel (1990) e validado no Brasil por Tânia Araújo (ARAUJO e
KARASEK, 2008). Para análise dos questionários, usamos o Statistical Package for the Social
Sciences (SPSS). Nessa parte, comparamos as respostas dos servidores participantes da
intervenção nesses dois momentos, na tentativa de compreender o impacto da intervenção.
Nossa hipótese inicial era que uma intervenção de natureza psicossociológica em saúde do
trabalhador passa pelo fortalecimento do coletivo de trabalho, através da construção de novos
conhecimentos frente ao saber e ao poder instituídos. Como resultados preliminares observamos
que a constituição de um espaço de escuta e de discussão dentro das organizações de trabalho
é um ponto crucial para a manutenção da saúde do trabalhador. A criação de novos métodos
interventivos é necessária para transpor algumas barreiras organizacionais instituídas. Nesse
cenário, os profissionais de saúde têm papel importante nas organizações, pois representam uma
instância de escuta capaz de mediar a relação entre a organização e os trabalhadores. O
Inventário Psicossocial foi uma metodologia que ampliou o espaço de discussão dentro da
organização e, consequentemente, deu voz ao trabalhador, o que fortaleceu o coletivo dos
trabalhadores. Apesar de a escuta guiar o processo interventivo, a utilização do Questionário de
Conteúdo do Trabalho foi uma estratégia importante para o reconhecimento organizacional da
intervenção, e não comprometeu o espaço da fala e a efetivação de espaços deliberativos para o
trabalhador. Ressalta-se que, nesse processo, a formação permanente dos profissionais de
saúde é necessária, assim como o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar, que facilita a
apreensão da realidade de trabalho em sua complexidade.

Palavras-chave: Intervenção psicossociológica; Saúde; Trabalho; Serviço público.

INTRODUÇÃO

A compreensão do impacto do trabalho sobre a saúde dos trabalhadores tem se tornado,


cada vez mais, foco de discussão. Com isso, a construção de métodos de intervenção em
ambientes laborais torna-se um desafio aos profissionais que atuam nessa área, sendo
necessário o uso de novas estratégias e técnicas de atuação. No sentido de ampliar o debate
sobre os processos interventivos relacionados à saúde do trabalhador, este artigo analisa de uma
prática profissional desenvolvida pelos setores de Serviço Social e Psicologia, juntamento a um
grupo de trabalhadores, em uma organização pública de Minas Gerais. Tal prática foi denominada
Inventário Psicossocial (IPSO) e teve como objetivo identificar os riscos psicossociais que
interferiam na saúde do trabalhador. Os trabalhos realizados contemplaram três períodos,
denominados aqui de primeiro e segundo momentos do Inventário Psicossocial e avaliação final,
período entre os anos de 2011 a 2018. No primeiro momento, mostraremos como o trabalho
começou e se desenvolveu, tendo sido interrompido em 2013. No segundo momento,
discutiremos sua retomada em 2015, e suas repercussões junto aos servidores e à organização.
A avaliação final ocorreu em 2018, ano de finalização do processo interventivo.

PRIMEIRO MOMENTO DO INVENTÁRIO PSICOSSOCIAL (2011 a 2013)

No ano de 2011, o serviço social recebeu uma demanda diferente das que recebia até
então. Oito servidores, de um mesmo setor 1, procuraram atendimento com queixas relativas ao
trabalho, principalmente associadas à sobrecarga física e psíquica. Por ser uma demanda
coletiva, ela não era clara, mas manifestava-se em termos de mal-estar e de sofrimento em
relação ao trabalho. No acolhimento dessa demanda, os profissionais do serviço social e da
psicologia2 desenvolveram um trabalho interdisciplinar, a fim de construir novas estratégias de
intervenção, de forma coletiva, nos ambientes laborais.
Os interventores buscaram metodologias que potencializassem a participação dos
servidores, pois eram eles que detinham o conhecimento sobre a realidade de trabalho. Nesse
sentido, as práticas psicossociológicas, principalmente as de origem francesa, serviram de base
para elaboração de uma intervenção específica, que contemplasse a particularidade do contexto.
Outro ponto importante refere-se à sua proposta metodológica, que busca se adaptar à realidade
concreta dos sujeitos, não sendo prescritiva. Além disso, a compreensão de sujeito, para a
Psicossociologia, se dá sob um duplo viés, psíquico e social, sendo uma disciplina
eminentemente interdisciplinar.

[...] de um lado o sujeito criativo por elementos intrapsíquicos singulares de


natureza inconsciente e, de outro, o sujeito inscrito no universo social. Existe uma
reciprocidade entre o indivíduo e o coletivo, psicológico e social. O sujeito é de
fato produto do social, porém ele não é o produto passivo das determinações
sociais. Ele dispõe de uma margem de manobra maior ou menor, conforme as
injunções objetivas do contexto no qual ele evolui e a natureza das ressonâncias
intrapsíquicas do social, que lhe permite virar de cabeça para baixo esses
determinismos para criar seus próprios caminhos. (AMADO; ENRIQUEZ, 2011, p.
101).

A pesquisa-ação também serviu de base na elaboração do trabalho. Ela surgiu no final da


década de 30, nos Estados Unidos, com Kurt Lewin, como uma “psicossociologia ativa” frente à
realidade social (ROCHA, 2003). Tal proposta se afirma, tanto no sentido de resolver questões
concernentes aos problemas de ajustamento das populações marginais, trabalhar as crises nas

1 O setor era composto, nesse momento, por 25 servidores.


2 Os profissionais do serviço social e da psicologia serão denominados, a partir de agora, de interventores.
relações de trabalho e aliviar tensões em situações problemáticas, quanto no sentido de
desenvolver as ciências sociais, através de ações concretas na realidade, refletindo criticamente
e avaliando seus resultados. De acordo com Rocha (2003), Lewin criava a pesquisa-ação e a
dinâmica de grupo, fundamentando uma psicossociologia ativa frente as questões sociais, em
que a gênese social precedia a gênese teórico-metodológica.
Segundo Rocha (2003), Lewin também desestabilizava o mito da objetividade na
produção do conhecimento, ressaltando que a implicação do pesquisador está presente no
processo da investigação e que, por estar incluído no campo, sua ação (entrevistas,
questionários, dinâmicas, análises de dados e devolução das informações obtidas) modifica o
objeto estudado.
Porém, no início de seu surgimento, apesar de existir a ação sobre o social, sua
transformação se restringia à perspectiva funcionalista, no ajustamento dessa realidade. Assim,
“a ordem social é naturalizada e as crises e conflitos são interpretados como desordens, efeitos
disfuncionais, cujas resistências à mudança são alvos de intervenção” (ROCHA, 2003, p. 65).
Na América Latina, o processo de surgimento das pesquisas interventivas segue outro
caminho, sendo utilizadas como método potencializador na construção e na organização de
espaços de participação coletiva. Pensando na complexidade do processo de mudança,
entendido como uma construção coletiva, elas surgem com a demanda de problematizar as
questões sociais com os grupos e as organizações. Assim, “seus resultados estão vinculados à
tomada de consciência dos fatores envolvidos na situação de vida imediata e na participação
coletiva para a mudança da ordem social” (ROCHA, 2003, p. 65).
Segundo Rocha (2003), a pesquisa-intervenção consiste em práticas que desnaturalizam
as relações de poder dentro da organização, criticando o estatuto da verdade. As estratégias de
intervenção passam, assim, pelas relações de poder presentes no campo de investigação. Outro
ponto importante citado pela autora são as mudanças de parâmetro da investigação no que se
refere à neutralidade e à objetividade do pesquisador (ROCHA, 2003). Pesquisador/pesquisado,
sujeito/objeto, fazem parte do mesmo processo.
De acordo com Oliveira e Oliveira (1988), as pesquisas-participante exigem uma mudança
de postura do pesquisador e do pesquisado, na medida em que todos são coautores do processo
de diagnóstico. Não cabe ao pesquisador apresentar um diagnóstico fechado sobre o objeto
pesquisado, pois é o próprio pesquisado que detém o conhecimento necessário para a
construção desse diagnóstico. Para Rocha (2003), a pesquisa-intervenção tem como pressuposto
teórico, primeiramente, a intenção de transformação. Os mecanismos teóricos e metodológicos
são construídos com base na mudança. Além disso, a implicação do pesquisador está presente
no processo de investigação.
Na pesquisa-intervenção, a relação pesquisador/objeto é dinâmica e determinará os
próprios caminhos da pesquisa, sendo uma produção do grupo envolvido. Pesquisa é, assim,
ação, construção, transformação coletiva, análise das forças sócio-históricas e políticas que
atuam nas situações e das próprias implicações, inclusive dos referenciais de análise.

É um modo de intervenção, na medida em que recorta o cotidiano em suas


tarefas, em sua funcionalidade, em sua pragmática - variáveis imprescindíveis à
manutenção do campo de trabalho que se configura como eficiente e produtivo no
paradigma do mundo moderno (AGUIAR; ROCHA, 1997, p. 97).

Levando isso em consideração, criou-se um processo metodológico denominado


Inventário Psicossocial (IPSO). A palavra inventário deriva do latim inventarium, que significa
levantamento minucioso, podendo ser de bens ou de serviços. A terminologia é utilizada aqui
para definir uma “descrição pormenorizada” (BORBA, 1988, p. 580) da realidade de trabalho.
Uma proposta foi apresentada ao gerente-geral de saúde, ao diretor de recursos humanos, ao
diretor e aos gestores da área demandante, pois era fundamental o acolhimento e o
reconhecimento institucional da demanda dos trabalhadores. Seria necessário um alinhamento
institucional quanto aos objetivos e métodos propostos.
A proposta abrangia conhecimento do perfil epidemiológico do setor; entrevistas
individuais semiestruturadas com os agentes envolvidos (servidores e corpo gerencial);
seminários (trabalhos em grupo) para apresentação das hipóteses interpretativas e validação dos
dados; e construção de um relatório final, com propostas de ações que surgissem a partir das
discussões coletivas. A participação nas entrevistas e nos seminários era voluntária.
Após a aprovação dos gestores, a proposta foi apresentada aos servidores do setor
demandante, sempre ressaltando que a metodologia poderia ser transformada no decorrer do
processo, a partir de novas demandas que surgissem. Nesse momento, foram explicitados os
limites da intervenção, especialmente em termos das mudanças desejadas, tendo em vista que
os encaminhamentos precisariam ser discutidos a nível gerencial e em outras instâncias
organizacionais. Explicitaram-se, também, as questões relativas ao sigilo profissional e em
relação aos resultados, que nunca seriam expostos de forma individualizada, mas sempre
coletivamente. Buscou-se, nesse momento, a construção do vínculo de confiança entre os
interventores e os trabalhadores.
Após essa fase de negociação, a fase exploratória foi iniciada, no início de 2012. Os
interventores traçaram o perfil epidemiológico do setor, tendo como base os anos de 2009, 2010
e 2011, a partir dos dados do sistema de licenças médicas da Gerência-Geral de Saúde
Ocupacional. Esse levantamento permitiu conhecer a prevalência de adoecimento no grupo e,
com isso, identificar que os Transtornos Mentais e Comportamentais – CID F – eram a primeira
causa de afastamento do trabalho.
Partiu-se, então, para as entrevistas individuais, a fim de se aproximar da realidade dos
sujeitos. Dos 25 servidores do setor, que participaram da intervenção nesse primeiro momento,
12 foram entrevistados, incluindo os gestores. As escutas foram interdisciplinares, com a
presença da assistente social e da psicóloga, tendo duração média de 2 horas. Após cada uma,
foi construído um memorial, que auxiliou na construção de unidades de análise, culminando em
três categorias qualitativas: organização, trabalho e sujeito. A partir disso, foi elaborado um
material com alguns apontamentos para apresentação, análise, reformulação e validação no
grupo. Ocorreram três encontros com o grupo para discussão dos resultados preliminares.

A discussão coletiva

A organização

Em relação à organização, as entrevistas apontaram a existência de uma contradição


funcional, materializada por duas vertentes: uma política e outra administrativa/técnica. Na
maioria das vezes, essas vertentes se aproximavam, visando um objetivo comum. No entanto,
em alguns momentos, ocorriam interferências de uma sobre a outra, especialmente da instância
política sobre a técnica, o que desencadeava conflitos na realização do trabalho e na
profissionalização dos serviços. Nessa discussão, os interventores perceberam que havia um
entendimento do grupo em relação à interferência política na atividade. Tinha-se uma
compreensão de que a organização é política e que, devido à especificidade do trabalho
desenvolvido no setor, existia, muitas vezes, um conflito de interesses entre os servidores e
organização.
Para lidar com essa realidade, uma estratégia de defesa utilizada, pelo grupo, era
sobrepor a parte técnica à política, com utilização de argumentos teóricos-metodológicos. Porém,
na tentativa de profissionalização do trabalho, em algumas vezes, eles negavam a instância
política. Se, por um lado, isso diminuía o sofrimento, por outro, impedia a transformação dos
processos de trabalho, além de dificultar o relacionamento com a esfera política. Muitas vezes,
isso era compreendido como insubordinação ou resistência dos servidores a cumprir
determinadas ordens, o que gerava o estigma de “problemáticos” e “rebeldes”, intensificando o
sofrimento. A fala de uma servidora expressava esse conflito: “Acaba que tem questões
ideológicas que interferem na realização do nosso trabalho […] acaba que fica parecendo que a
gente não fez o nosso trabalho direito […] as coisas são sempre conturbadas” (servidora 1).
Nas escutas individuais e coletivas, foi possível perceber que o grupo identificava que a
organização passava por uma transição cultural, o que gerava contradições em vários aspectos.
O primeiro aspecto dizia respeito à cultura de ser servidor público, que passava da noção da
concessão, para a noção de direitos e deveres. Segundo, existia um choque geracional entre os
servidores, materializado no conflito entre os servidores antigos e os novatos, “o velho e o novo”
(MONTEIRO, 2013)3. Terceiro, foi observado que a cultura da democracia, que direcionava os

3 Essa foi uma categoria de análise discutida em minha dissertação do mestrado. Esta categoria explicitava
um período de transição vivenciado pela organização, na qual se observa o envelhecimento da mão de
obra. Isso apresentava, como consequência principal, um choque entre as gerações, além de conflitos de
relacionamento expressos no trabalho. Os “novatos”, que eram os servidores recém-concursados,
possuíam um elevado nível técnico, apresentando a possibilidade de uma mudança na forma como o
valores e a missão organizacional, antes com resquícios de clientelismo e autoritarismo, passou a
abranger a ideia de cidadania e de relações mais igualitárias, pois a organização passava por
processos de Planejamento Estratégico, Gestão por Competência e outros projetos que
formalizavam protocolos e fluxos de trabalho. Essas contradições manifestavam-se, também, na
gestão, que vivenciava o conflito entre o gerencialismo e o patrimonialismo. Assim, existia uma
gestão prescrita de orientação gerencialista, mas a gestão real possuía traços fortes de
patrimonialismo.

O trabalho

Em relação ao trabalho, nas discussões com grupo, pôde-se perceber que a própria
natureza da atividade do setor era dinâmica, sendo composta por uma parte de pesquisa e
planejamento e, outra, de execução. Isso era um ponto de conflito entre os servidores e acabava
fragmentando o grupo. Haviam aqueles que enxergavam hierarquia nessas partes, valorizando o
planejamento em detrimento à execução: “Tem gente que é muito crítico, que gosta de ficar
planejando, planejando, planejando... Tá, isso é legal, mas se for só isso, quem vai fazer?”
(servidor 2). A fala do servidor 3, também, expressava essa contradição: “Eu sou muito crítico,
mas não sofro com isso, como vejo que alguns colegas acabam sofrendo, mas eu sei que
alguém precisa fazer”.
Outra característica do trabalho referia-se à imprevisibilidade e dinamicidade da atividade.
Quanto a isso, os servidores demonstravam gostar dessas características, pois o trabalho
tornava-se motivante e desafiador. No momento da intervenção, o grupo encontrava-se com uma
demanda alta de trabalho, o que gerava uma sobrecarga física e psíquica, objeto da demanda
apresentada inicialmente. Essa discussão contemplou a falta de pessoal, além de uma questão
grupal relativa à falta de confiança no trabalho do outro, tanto entre os membros do grupo, quanto
nas interfaces de trabalho. Além disso, esse problema se intensificava pela falta de protocolos e
de fluxos de informação. Os servidores relataram que existia a necessidade em se clarear os
papéis nos processos, definindo as atribuições de cada trabalhador e setor envolvido nos
processos de trabalho.
Quanto aos técnicos, ou seja, aqueles servidores que prestaram concurso público a nível
de ensino médio, existia uma indefinição de tarefas, o que ampliava o conflito no grupo e a
formação de subgrupos – técnicos e analistas. Esse era um problema vivenciado em toda a
organização, pois se tratava de um cargo novo e que contemplava um escopo ampliado de
atividades (desde atividades básicas, como atendimento telefônico, a atividades complexas,
trabalho se realizava, com instauração de procedimentos, protocolos etc.. Já os servidores antigos
possuíam um saber prático sobre o funcionamento da organização, principalmente sobre a estrutura de
poder que a regia. Mas, se por um lado o conhecimento dos antigos era importante, pois dizia da estrutura
organizacional, por outro lado, existia certa dificuldade em tentar transformar a conjuntura de poder da
organização, principalmente em seus aspectos patrimonialistas. Nesse sentido, os novatos apareciam
como possibilidade de mudança da forma como o poder se organizava dentro da organização, com a
instituição de valores mais democráticos (MONTEIRO, 2013).
como a organização e condução de reuniões com o público externo), o que dificultava sua
sistematização.
Quanto aos apontamentos referentes ao gerenciamento, esse foi um ponto conflitante na
discussão em grupo. O grupo ressaltou a capacidade intelectual da gerente-geral. No entanto,
apontaram uma incompreensão e um certo distanciamento dela em relação ao grupo, o que
dificultava o diálogo e os processos de trabalho. Foi destacada, ainda, a falta de feedbacks.
Diante disso, a discussão girou em torno das dificuldades da função gerencial dentro da
organização. Esta função, de forma geral, acaba sendo ambígua, na medida em que se trata de
uma posição de poder que tem que atender às particularidades da equipe de trabalho e, ao
mesmo tempo, responder às demandas política e institucionais, muitas vezes contraditórias.
Em relação à gerência imediata, o grupo legitimava seu trabalho, pois a reconhecia como
uma profissional qualificada e que apresentava conhecimento sobre a atividade do setor.
Ressaltaram que a sobrecarga de trabalho à qual ela estava exposta dificultava a definição de
prioridades e a comunicação com o grupo. Ela, também, assumia a função técnica, limitando sua
atuação na gestão. Outro ponto, destacado pelo grupo, foi à sua postura democrática. Foi
percebido que se por um lado, ela ampliava o espaço de diálogo e de participação dos servidores
nos processos decisórios, por outro lado, isso dificultava a tomada de decisão e a delegação das
atividades, o que tornava o trabalho, às vezes, moroso.

Os sujeitos e o grupo

Especificamente em relação aos sujeitos e ao grupo, foi observado que os analistas


apresentavam vínculo de solidariedade forte. Isso era uma estratégia de defesa utilizada na
tentativa de minimizar o sofrimento no trabalho.
Apesar disso, havia, também, formações de subgrupos: os técnicos, os analistas que
gostavam de planejar, os analistas que gostavam de executar, os que se formaram em
universidade pública, os que se formaram em universidade particular, os servidores antigos e os
servidores novatos, os concursados e não concursados, ou seja, servidores efetivos que não
realizaram concurso público, são os servidores que vieram da antiga função pública etc. Logo,
em certos casos, os vínculos eram discriminatórios.
Os interventores buscaram, também, identificar questões individuais que interferiam no
trabalho, como problemas financeiros e familiares, por exemplo. Esses servidores foram
encaminhados para atendimento e acompanhamento individualizado, sendo a adesão voluntária.
As propostas de mudança

A partir das discussões em grupo, algumas propostas foram construídas coletivamente e


sistematizadas em um relatório entregue à Diretoria de Recursos Humanos (DRH). As propostas
sistematizadas nesse relatório foram:
- Ampliar o espaço de diálogo na relação entre os servidores e a organização, entre os
gestores e os servidores e entre os próprios servidores, na tentativa de diminuir as contradições e
rupturas existentes, o que poderia ser feito com auxílio e orientação dos profissionais de gestão
de pessoas e da área de saúde, como mediadores.
- Realizar reuniões de equipe para discutir sobre o trabalho e a natureza da atividade, a
fim de melhorar o planejamento e o compartilhamento das informações;
- Construir fluxos e protocolos de trabalho mais efetivos, além de definição de atribuições
administrativas, técnicas e gerenciais, o que poderia ser facilitado pelo planejamento estratégico
setorial;
- Revisar as atribuições gerenciais, para ampliar o espaço da gestão;
- Ampliar o número de profissionais no setor, principalmente de analistas, o que dependia
da realização de concurso público e independia, totalmente, do processo interventivo.
- Realizar trabalho com o grupo para desenvolver habilidades psicossociais, como
confiança no trabalho do outro, delegação de tarefas, melhoria da comunicação, entre outras.
- Resgatar a história do setor para construir e entender o papel do setor dentro da
organização.
Nesse processo de intervenção, a gerente-geral e a gerente imediata foram
acompanhadas, individualmente. Ambas foram receptivas ao processo interventivo e receberam
feedbacks e orientações quanto aos problemas identificados na gestão. Cada uma vivenciava um
conflito diferente quanto às demandas organizacionais. A primeira, apresentava um conflito maior
quanto ao lugar gerencial dentro da organização, conforme havia sido discutido e apreendido no
grupo, inerente à posição de poder ocupada. Já a gerente imediata, apresentava um conflito ético
entre os interesses organizacionais e os seus próprios interesses. Sem desejo em desenvolver
carreira dentro da organização, ela avaliou que seria melhor deixar o cargo, o que ocorreu ao
final desse primeiro momento. Uma servidora da equipe foi indicada a assumir o cargo.
Conforme pode ser observado, as discussões, individuais e em grupo, apontaram para
diversas contradições vivenciadas pelo grupo dentro da organização, o que ultrapassava a
demanda inicial apresentada. Após o encaminhamento do relatório à DRH, não houve nenhum
desfecho quanto às demandas apresentadas.
Nessa época, os interventores, responsáveis pela condução do processo, foram
chamados à Gerência-Geral de Gestão de Pessoas (GGP) para discutir o relatório. Naquele
momento foram questionados aspectos metodológicos da intervenção, como, por exemplo, a
participação da gerente imediata em um dos seminários, o que tinha sido solicitado pelo grupo.
Os apontamentos sobre a organização também foram questionados. Até mesmo sobre o fato de
a gerente ter solicitado substituição, houve questionamento, pois geralmente as pessoas não
deixam a gestão na organização por iniciativa própria. Nessa reunião, ficou subentendido que a
organização não estava interessada em um trabalho dessa natureza.
Por fim, o relatório foi arquivado, em maio de 2013, e nenhuma ação foi feita com os
trabalhadores do setor de forma coletiva, apenas realizados atendimentos individuais pontuais
pela psicologia e pelo serviço social.

SEGUNDO MOMENTO DO INVENTÁRIO PSICOSSOCIAL (2015 a 2017)

Em agosto de 2015, um grupo de sete servidores, que participou da intervenção em 2011-


2013, regressou à área de saúde e solicitou a retomada do Inventário Psicossocial, pois os
problemas relacionados ao trabalho, e que impactavam à saúde, persistiam. No atendimento, foi
apontado o limite da área de saúde, principalmente em relação à autonomia, no resgate desse
trabalho, e orientado aos servidores que encaminhassem essa demanda aos gestores da área
(Gerente-geral, gerente-operacional e diretor).
Nessa época, o contexto organizacional havia se modificado. Uma troca na gestão da
DRH tinha ampliado o espaço de discussão sobre saúde no trabalho. O novo diretor era mais
engajado quanto às questões pertinentes à saúde do trabalhador. Aconteceu, ainda, o
Planejamento Estratégico Setorial na área da saúde, o qual trouxe novos protocolos e processos
de trabalho, com foco na prevenção e promoção da saúde nos ambientes laborais. Foram
instituídas legislações específicas, com instauração do Programa de Promoção da Saúde (PPS) e
do Comitê de Saúde e Segurança no Trabalho; além da criação do Núcleo Psicossocial (NUP),
que formalizou a psicologia e o serviço social como uma coordenação de saúde. Teve, também,
uma mudança na diretoria a qual o setor demandante da intervenção era subordinado, o que
facilitou os encaminhamentos que se seguiram.
E importante salientar, que essas mudanças ocorreram concomitantemente ao processo
de Inventário Psicossocial. O trabalho com o grupo mobilizou a organização e o setor de saúde a
pensar em estratégias de atuação nos ambientes de trabalho de forma coletiva. Os problemas
que a área demandante vivenciava ganharam dimensão pelo próprio perfil dos servidores da
área, engajados com os processos de mudança.
Após o atendimento ao grupo, os servidores redigiram um e-mail que foi encaminhado ao
novo diretor, com cópia para a gerente-geral, solicitando a continuidade do trabalho e reavaliação
do ambiente laboral.

Prezado Diretor,
Hoje estivemos reunidos na Gerência-Geral de Saúde e Assistência com a
finalidade de encaminhar, junto à assistente social e psicóloga, a retomada do
trabalho de diagnóstico psicossocial iniciado em 2012. Esse processo foi em
algum momento, interrompido, por motivos que desconhecemos, antes que as
propostas de melhoria fossem apresentadas.
Como nos últimos dias a equipe vem trabalhando no limite da
insustentabilidade, com grandes impactos na saúde física e emocional dos
servidores, julgamos necessário uma atuação conjunta dos servidores em prol de
uma solução definitiva para os problemas da área. Não entraremos aqui em
detalhes sobre a situação, que é bastante complexa e envolve todos os níveis
hierárquicos da Gerência-Geral, mas estamos, juntamente com a equipe de
saúde (serviço social e psicologia) à disposição para expor a situação e explicar o
que for necessário.
A equipe de saúde, em decorrência da consulta realizada hoje, oficializará
à Diretoria de Recursos Humanos sobre a demanda de retomada do trabalho
iniciado em 2012.
Gostaríamos de esclarecer que a nossa intenção, com a iniciativa, é abrir
um canal consistente para a solução definitiva de problemas recorrentes na área
e que há anos não conseguimos encaminhar. Para isso, gostaríamos de contar
com o apoio da Diretoria na consolidação desse processo que tem como principal
objetivo construir um ambiente de trabalho tranquilo, sustentado por relações de
trabalho saudáveis e transparentes.
Atenciosamente,
Setor demandante” (E-mail enviado ao diretor do setor em 11/09/2015)

A gerência-geral, de imediato, se colocou à disposição para retomada do processo interventivo.

Prezados servidores,
A gerência-geral em nenhum momento solicitou o arquivamento do
diagnóstico psicossocial iniciado em 2012. Estranho que esse pedido de
retomada desse importante trabalho não tenha chegado a esta gerência.
Continuo aberta ao encaminhamento de demandas do interesse do setor, em
especial, àquelas que levem a resultados importantes em termos de saúde e de
bem-estar no ambiente setorial, transparência e justiça nas relações de trabalho
de nossa equipe.
Continuem contando comigo.
Gerente-geral” (E-mail enviado pela gerente-geral em 11/09/2015)

Nesses primeiros fatos, foi aparente o desconforto da gestora ao ver que o grupo recorreu
diretamente ao diretor da área para solicitar a retomada da intervenção. No atendimento ao
grupo, percebemos que os servidores estavam imaginando que ela havia sido a responsável pela
interrupção do processo, o que não procedia, conforme concluído no término do primeiro
momento da intervenção. Foi possível perceber um nível de tensionamento entre o grupo e a
gerente-geral, sendo esta uma demanda implícita para o trabalho.
Os interventores também informaram ao diretor de recursos humanos quanto à solicitação
da equipe. Com isso, em 14 de setembro de 2015, foi realizada uma reunião na DRH, na qual
estavam presentes os profissionais de saúde (interventores), o diretor de recursos humanos, o
diretor e a gerente geral e operacional da área demandante, para definirem os encaminhamentos.
Nesta data, foi acordada a avaliação do Inventário Psicossocial no setor, com continuidade do
trabalho.
Na reunião, o diretor de recursos humanos solicitou aos interventores que construíssem
uma nova metodologia, com indicadores objetivos, capazes de quantificar o problema que o setor
vivenciava. A partir dessa demanda institucional, foram englobados estudos quantitativos à
intervenção, mas sem alterar sua base psicossociológica.

A adequação metodológica: uma demanda institucional

A nova formatação do trabalho foi delineada a partir de três eixos de atuação: a


identificação dos riscos psicossociais no trabalho e perfil epidemiológico, a escuta interdisciplinar
qualificada, que já ocorria no primeiro momento, e o fortalecimento do coletivo de trabalho.

Primeiro Eixo: a identificação dos riscos psicossociais e perfil epidemiológico

Mediante a demanda institucional de quantificar os problemas psicossociais vivenciados


pelos servidores, os interventores buscaram inserir uma abordagem quantitativa ao IPSO. Para
isso, foi utilizado o Modelo de Karasek e Theorell (1990) – Modelo Tridimensional do Ambiente
Psicossocial do Trabalho. Como instrumento de coleta dos dados, foi usada a versão resumida
do Job Content Questionnaire (JCQ) ou Questionário do Conteúdo do Trabalho, validado no
Brasil por Tânia Araújo (ARAUJO e KARASEK, 2008), composto por 17 questões.
A análise metodológica desse modelo define quatro padrões de experiências que
caracterizam o trabalho. A primeira consiste no trabalho com alta exigência, que relaciona
demanda psicológica alta e baixo controle sobre o trabalho. A segunda seria o trabalho ativo, que
consiste na alta demanda psicológica e alto controle sobre o trabalho. A terceira refere-se ao
trabalho com baixa exigência, relacionando trabalho com baixa demanda psicológica e alto
controle do trabalho. A quarta seria o trabalho passivo, no qual se tem baixa demanda psicológica
e baixo controle sobre o trabalho. Ao questionário, foram incluídas algumas variáveis
sociodemográficas (como sexo, idade, escolaridade, estado civil, tempo de organização, turno de
trabalho, carga horária semanal, outra atividade remunerada) e variáveis de saúde (atividade
física, uso de álcool, entre outras). A proposta era que todos os servidores do setor demandante
respondessem a esse questionário, mas a participação seria voluntária. Além disso, o perfil
epidemiológico do setor seria construído, com as doenças prevalentes.
Seguindo a orientação da Psicossociologia, a avaliação dos riscos psicossociais no
trabalho não poderia limitar-se a um modelo quantitativo. Por isso, foram mantidas as entrevistas
individuais e coletivas, sendo denominadas, nesse segundo momento, de escuta interdisciplinar
qualificada.

Segundo Eixo: a escuta interdisciplinar qualificada

A escuta interdisciplinar qualificada referia-se ao atendimento individual e/ou coletivo aos


servidores, realizado pela assistente social e pela psicóloga conjuntamente, e objetivava
aproximar os profissionais da saúde aos trabalhadores, na tentativa de se construir um espaço
coletivo de diálogo no qual se efetivasse um conhecimento sobre o cotidiano.
Conforme ocorria no primeiro momento do Inventário, foram realizadas entrevistas com
roteiro semiestruturado, com adesão voluntária. Os memoriais foram mantidos, como forma de
registro dos dados, assim como os trabalhos em grupo para apresentar as hipóteses
interpretativas e validação dos resultados. Como produto, seria elaborado um relatório final, a
partir das propostas do grupo, conforme ocorreu no momento anterior da intervenção.

Terceiro Eixo: o fortalecimento do coletivo de trabalho

Essa é a dimensão mais importante de um processo interventivo, baseado na


Psicossociologia, no qual o trabalhador é capaz, no coletivo, de significar e ressignificar seu
trabalho, dando sentido àquilo que faz, e se comprometendo com os processos de mudança.
Dessa forma, os interventores tinham um compromisso ético com os trabalhadores, no sentido de
fortalecimento do coletivo, que passava, também, pelo fortalecimento de cada sujeito
individualmente. Isso foi colocado na proposta metodológica apresentada à organização, pois era
este o compromisso dos interventores.
Com isso, a metodologia do IPSO estava redesenhada. Esses eixos não representavam
etapas estanques, mas dinâmicas, sendo o processo decorrente da demanda e de sua
reformulação (ou análise) constante. Apesar desse desenho metodológico, a interlocução com o
grupo demandante era constante, sendo eles que direcionavam as etapas do processo.
Essa segunda fase da intervenção foi de 2015 a 2017. Os interventores foram convocados,
pela organização, a fazer a intervenção na gerência-geral como um todo, onde estava alocado o
setor demandante. Essa gerência-geral era composta de outros dois setores, sendo composta,
ao todo, por 62 servidores efetivos. Evidentemente que, no desenvolvimento do trabalho, isso
não se efetivou. Apesar da existência de conflitos relacionados ao trabalho, o que pôde ser
percebido na escuta interdisciplinar qualificada, não havia uma demanda de intervenção por parte
dos trabalhadores dos outros setores, inviabilizando o processo. Problemas pontuais foram
trabalhados nas entrevistas, mas não se chegou a realizar nenhum trabalho em grupo com os
outros dois setores.
Nessa segunda fase, o perfil epidemiológico foi baseado apenas no ano de 2016. Foram
contabilizados, nesse ano, 485 dias de afastamento e 123 ocorrências. Os transtornos mentais e
comportamentais continuavam representando a maior prevalência de afastamento.
Em relação à avaliação quantitativa, foram distribuídos 62 questionários, dos quais 52 foram
devolvidos (85,4%). Em relação ao setor demandante, dos 25 servidores, 16 responderam o
questionário e 13 compareceram às entrevistas. Na análise dos questionários, observamos que
42,3% dos servidores apresentavam riscos para o adoecimento (baixo desgaste e alto desgaste),
de acordo com o modelo adotado. Em relação ao apoio social, 57,7% avaliavam como
insatisfatórias as relações no trabalho, sendo baixo o apoio social. Foram realizados 02
seminários para apresentação, análise e validação dos resultados.
Nesse momento da intervenção, ocorreu nova troca na diretoria à qual o setor demandante
estava subordinado, sendo o processo apresentado ao novo diretor.

A discussão coletiva no segundo momento: os velhos e bons problemas reaparecem

A discussão coletiva, nesse segundo momento, não trouxe novidades em relação à primeira
fase da intervenção. Nas discussões, os interventores perceberam que os velhos problemas,
identificados e discutidos anteriormente, não foram sanados, fazendo ressurgir as mesmas
categorias analíticas: organização; trabalho e sujeitos/grupo.

A organização

Quanto a esta categoria, foi retomada a discussão iniciada no início da intervenção, sobre
a transição cultural vivenciada por ela. O grupo discutiu sobre a história da organização, sobre a
realidade mítica na qual ela se desenvolveu e sobre a especificidade da parte política. A partir
dessa discussão, o grupo refletiu acerca da sistemática do poder e sobre a dificuldade em
compreendê-la (ou aceitá-la), o que gerava conflito entre os servidores e a organização.
Fazendo um paralelo ao momento anterior, aqui os servidores conseguiram aprofundar a
discussão, abrangendo as relações institucionais e organizacionais de poder e ultrapassando a
dicotomia e a contradição entre a instância política e a administrativa. Apesar do avanço em
termos da discussão, havia um certo conformismo em relação a esse aspecto, como se as
relações de poder, ali existentes, fossem imutáveis. Quanto a isso, foi apontada a dificuldade da
equipe em ver os avanços organizacionais em curso, provocados, principalmente pela transição
cultural. A relação com a gestão, por exemplo, estava se transformando de maneira geral, com
relações mais transparentes, cuidado em termos de orientação técnica, diminuição do
patrimonialismo entre outras coisas. Infelizmente, nem sempre as mudanças ocorriam no tempo
desejado pelos servidores, o que foi pontuado no trabalho em grupo.

O trabalho

Nesse tópico, a categoria trabalho foi discutida em termos de condições e organização. As


condições de trabalho não foram ressaltadas nas entrevistas. Mas o que chamou a atenção foi o
layout do setor, especialmente em relação à ocupação do espaço físico. A separação entre a
equipe de analistas e a de técnicos era refletida na ocupação subjetiva do espaço e na
objetivação da segregação do grupo, pois a divisão era concreta. Isso foi observado na discussão
coletiva.
A dicotomia relacionada à atividade, materializada no planejamento e na execução, ainda
persistia. Foi constatada a morosidade na condução das demandas e a dificuldade em se confiar
no trabalho de outras áreas, o que gerava, inclusive, um retrabalho. Novamente foi identificada a
necessidade de reorganização do trabalho, com melhoria dos fluxos e protocolos.

Os sujeitos e o grupo

Durante essa segunda fase do Inventário Psicossocial, enquanto aconteciam as


entrevistas individuais, em 2015, os servidores do setor, aproveitando a proximidade ao novo
diretor da área, se organizaram e criaram um grupo para discutir sobre os processos de trabalho,
com conivência do diretor, que se demonstrou aberto a sugestões. Foi um grupo formado apenas
por analistas. Esse grupo, institucionalmente, mexeu com o processo interventivo, pois o corpo
gerencial, de forma geral, associou tal iniciativa ao Inventário Psicossocial e considerou essa
ação como insubordinação e rebeldia.
A constituição desse grupo foi um dos primeiros momentos em que se percebeu uma
mobilização da equipe, efetivamente autônoma, na tentativa de propor mudanças na organização
do trabalho. O corpo gerencial não teve como abafar essa mobilização, nesse momento. Os
servidores concluíram o trabalho e entregaram uma proposta de reestruturação do setor aos
gestores.
Um conflito importante vivenciado, nessa época, foi em relação à gestora imediata
(gerente-operacional). Com a criação do grupo, ela começou a se sentir pressionada,
principalmente pela disputa de forças existentes entre ela e alguns membros da equipe. Nesse
conflito, ela acabou utilizando estratégias de gestão que potencializaram o conflito no grupo, ao
mesmo tempo em que uma parte do grupo aproveitou essa forma de gestão para intensificar o
conflito. A gestão passou a basear-se na fofoca, sendo uma estratégia utilizada por todos como
forma de criação de vínculos sociais e de pertencimento, o que acabou provocando a quebra dos
vínculos de confiança, inicialmente fortes. Nesse período, foram realizados atendimentos
individuais à gerente-operacional, que reconheceu suas dificuldades e apontou o conflito de
poder que vivenciava com alguns membros do grupo, o que estava gerando, inclusive seu
adoecimento.
Na análise desse fenômeno, identificamos problemas na equipe, que se fragmentou ainda
mais e, algumas pessoas, passaram a utilizar o espaço da fala, propiciado pela intervenção,
como forma de quebra de hierarquia e de tentativa de ascensão ao poder, que se referia, aqui, ao
cargo gerencial. Os subgrupos ficaram mais delimitados e começaram a surgir lideranças
paralelas.
No que se refere a essa fragmentação, as entrevistas apontaram a contradição entre os
discursos individuais e o discurso grupal, fenômeno importante observado na intervenção. As
pessoas, individualmente, tinham receio de discordar das ideias apresentadas em coletivo, e,
com isso, o pensamento do grupo não refletia o pensamento individual. Devido a isso, surgiu um
novo fenômeno no grupo, a opressão. O grupo, como instância opressora, tornava o ambiente de
trabalho propício para efetivação da violência e do assédio moral.
Essa discussão foi apresentada no primeiro seminário de discussão coletiva. Foi um
momento importante pois alguns servidores, individualmente, conseguiram explicitar as
dificuldades em se colocar na instância grupal. No dia seguinte a esse trabalho, as interventoras
receberam um e-mail de uma servidora:

[...] eu precisava encarar o assunto de frente e não deixar prevalecer uma história
contada sobre mim que não era real. [...] o que eu queria era que o trabalho [...]
fizesse algum sentido, tivesse uma contribuição e atribuição clara e pudesse ser
melhor aproveitado. Apesar de ser só eu a verbalizar, alguns colegas também
compartilhavam comigo desse sentimento. [...] Eu precisava reagir e me
posicionar. [...] Eu realmente me sentia uma pessoa menor e menos competente.
E creio que vocês puderam ver, esse contexto é algo sustentado por parte do
grupo. Se não em palavras diretas, mas em entrelinhas e ações. [...].
Infelizmente, talvez o meu relato tenha dado força à culpabilização da gerente
pelos problemas do setor. Mas pelo que entendi do relatório de vocês, muito bem
construído por sinal, essa culpabilização não é novidade no grupo. É muito difícil
se reconhecer enquanto parte de um grupo que sustentou (e sustenta) um
ambiente com tanta discriminação e fofoca. É difícil se colocar no lugar do outro e
perceber que a opressão que eu condeno, eu também pratico. É difícil perceber
que meu problema pode não ser problema do outro. Portanto, apesar da tentativa
de vocês de tentarem indicar caminhos de “cura” para um ambiente de trabalho
adoecedor por meio do diálogo, não acredito que ela acontecerá. Não sintam que
o trabalho de vocês foi em vão. Ele me ajudou muito, e muito! E ajudar a retirar
qualquer pessoa do sofrimento, por si só, já é maravilhoso. Ainda mais na
instituição em que vivemos. Mas, infelizmente, decidi fechar definitivamente meu
ciclo nesse setor de trabalho e não vou mais participar das reuniões. E, talvez,
outras pessoas estejam com a mesma sensação que eu e não se sintam tão
confortável para continuar tentando. (E-mail enviado pela servidora 4, em 13 de
março de 2017)

Depois desse primeiro trabalho em grupo, ocorreu outra troca na gerência-operacional. A


reunião de apresentação do novo gerente foi conflituosa, pois parte da equipe demonstrou-se
insatisfeita com a escolha institucional. Nesse momento, ainda, ficou explicito o interesse de parte
do grupo em assumir a gerência.
Uma semana após essa reunião, foi realizado outro seminário com a equipe. Foi
intensificada a discussão sobre a opressão para se fazer parte do grupo e sobre os subgrupos
existentes dentro da equipe, com exercício de poder paralelo. Foi falado sobre a ética no serviço
público, sobre a responsabilidade de cada um pelo processo de mudança e do grupo enquanto
pertencimento social.
Alguns integrantes do grupo tentaram responsabilizar o processo interventivo pela nova
escolha gerencial, não sendo nenhum componente do grupo a assumir a gerência. Eles disseram
que ficaram “tachados de doentes, pois o processo contava com a presença de uma assistente
social e de uma psicóloga só pra acompanhar a equipe” (servidor 9). Esse discurso foi
desconstruído pelos próprios membros do grupo. Mas, foi importante pois foi possível perceber a
dificuldade de algumas pessoas em se responsabilizarem pelo processo de mudança,
terceirizando o cuidado.

As propostas de superação e transformação da realidade

A partir do cenário apresentado, foram delineadas algumas estratégias de superação e de


transformação:
- Efetivar uma gestão por singularidade (respeito das habilidades e escolhas de cada um);
- Discutir em grupo o papel do setor no contexto da organização (o que tinha sido iniciado
pelo novo gerente através de visitas a setores de interface);
- Construir fluxos e protocolos de trabalho.
- Fortalecer o corpo gerencial – assessoramento pela equipe de gestão de pessoas;
Os servidores queriam, ainda, uma resposta institucional quanto ao documento de
reestruturação do setor proposto por eles.
Os interventores realizaram uma devolutiva ao novo gerente e à gerente geral. Ele
explicitou sua nova forma de trabalhar e ficou definido que ele e a gerente geral dariam um
feedback em relação ao documento de reestruturação produzido pelo grupo. Foi intensificado,
com o gestor, a importância em reorganizar o trabalho, embasando-se em relações mais
transparentes. Era preciso, e fundamental, resgatar os vínculos sociais e de confiança no local de
trabalho.
Nesse segundo momento da intervenção, foi possível perceber que a omissão da
organização quanto aos resultados apresentados no primeiro momento da intervenção gerou
impacto negativo para os servidores. Os problemas não foram sanados, pelo contrário, muitos
deles se intensificaram. Foi percebido, também, um problema no próprio processo interventivo.
Se num primeiro momento, ele foi algo em que todos os servidores se engajaram, o que serviu
como forma de ampliar o espaço de diálogo na organização, nesse segundo momento percebeu-
se que a iniciativa pela retomada do processo não foi de todos, ou pelo menos não da maioria.
Apesar do engajamento da equipe, a intervenção foi utilizada para dar voz, a nível organizacional,
a um subgrupo, que acabava oprimindo o restante, além de utilizá-la como forma de tentativa de
ascensão ao poder. Apesar disso, foi possível apontar a opressão e as relações de poder
horizontalizadas no grupo e discutir, coletivamente, sobre isso, o que tirou parte do grupo do
silenciamento.

AVALIAÇÃO FINAL DO PROCESSO DE INVENTÁRIO PSICOSSOCIAL

O primeiro ano da nova gestão foi de relativa tranquilidade. Alguns servidores foram
atendidos de forma pontual. Passado esse primeiro ano, os conflitos se intensificaram
novamente, especificamente em março de 2018. Nesse mês, foram atendidos quatro servidores e
o gerente operacional da área. Todos relataram que novos conflitos começaram no setor e,
mediante esse novo contexto, o gerente solicitou avaliação do processo interventivo, o que
também estava previsto na proposta inicial apresentada.
Nesse momento, os interventores optaram em fazer a avaliação mediante a escuta
interdisciplinar qualificada, entrevistando individualmente os servidores que participaram do
processo. Todos os servidores foram convidados, mas a adesão foi voluntária. Foram realizadas
nove entrevistas, elaborado o memorial e, novamente, preparada uma apresentação com
hipóteses. Nessa etapa, foi realizado apenas um trabalho com o grupo e, diferentemente dos
outros dois momentos da intervenção, este contou com a presença dos gestores da área
(gerentes, geral e imediato, e do diretor).

A avaliação coletiva

“Tem uma cabeça de bode enterrada no setor.” (Servidora 6 em entrevista


realizada em 03 de abril de 2018)

Essa fala abriu o processo avaliativo do Inventário Psicossocial, em 2018. Foi fruto da
primeira entrevista individual realizada. Ela apresentou uma nova demanda de intervenção, pois
se os problemas vivenciados pelo grupo eram a nível sobrenatural, qual a capacidade de
mudança?
Os interventores partiram dessa nova demanda para análise qualitativa das entrevistas e
apresentação das hipóteses interpretativas ao grupo. Abriu-se o seminário de avaliação
exatamente com essa frase, no sentido de chamar o grupo à reflexão coletiva do que ela
representava. A frase causou um certo desconforto, apesar de uma concordância coletiva.
A partir dessa frase, os servidores iniciaram um balanço sobre a história do setor,
principalmente dos fracassos na gestão. Nos últimos dez anos, foram cinco gestores diferentes
na área, que não conseguiram resolver os problemas apresentados. A equipe começou a se
questionar sobre esses problemas, para além da gestão e da organização, e sobre o que eles
esperavam enquanto solução. Eles perceberam uma forte tendência ao pensamento polarizado
(instituição X servidores; política X técnica; execução X planejamento), e que, diante a
polaridade, eles tinham de escolher um lado, o que trazia o sentimento de guerra e luta
permanente, como demonstra a fala da servidora 7: “Escolha seu lado”. Isso geava um
sentimento permanente de não pertencimento. Quanto a isso, foi apontado e discutido o quanto a
polarização fragmentava a equipe e o próprio servidor. Foi apontado que não existiam lados e
que todos poderiam estar juntos, ainda mais em se tratando de uma organização pública.
Durante o trabalho com o grupo, os interventores apontaram a baixa adesão às
entrevistas, pois apenas nove servidores compareceram. Foi perguntado como o grupo
compreendia o processo interventivo. Tal fato se deu, principalmente, pela identificação, no
segundo momento da intervenção, da utilização do espaço de fala por alguns servidores. Nas
discussões, os interventores constataram e explicitaram que a demanda pela intervenção já não
pertencia ao grupo como um todo. As pessoas, individualmente, colocaram que estavam
cansadas de discutir as mesmas coisas, desde 2012, e que o espaço institucional de fala estava
sendo utilizado como uma espécie de terceirização da solução dos problemas.
Os profissionais da saúde estavam sendo colocados no papel de “agentes
transformadores” e, principalmente, de avaliadores da situação-problema. Era como se os
interventores soubessem o que era melhor para o grupo, e qual dos lados era o lado certo, como
se esse lado existisse. Foi importante clarear, na avaliação, que os profissionais de saúde não
tinham um lado a escolher e que no acolhimento das demandas, todos apresentavam um
determinado nível de sofrimento.
Quanto ao trabalho, especificamente sobre suas condições, em relação ao layout, o novo
gerente modificou a estrutura física, tentando agregar melhor a equipe. A nova ocupação do
território facilitou a integração do grupo, sobretudo dos técnicos. Os técnicos estavam com mais
autonomia e com atribuições bem definidas.
Quanto ao novo gestor, esse foi um ponto contraditório na avaliação. Ele era um servidor
qualificado e que o grupo já conhecia, mas foi acolhido com muita desconfiança por alguns
servidores, sendo tachado de “messias” e “salvador da pátria”. Mais uma vez, essa qualificação
colocava os problemas do setor como sobrenaturais, sendo necessária a presença de um
salvador em suas soluções. Além disso, os problemas sobrenaturais tiravam a responsabilidade
do grupo na solução dos mesmos, sendo a mudança de origem externa e não provocada pelos
próprios sujeitos.
Foi possível perceber que, no discurso do grupo, o gestor era culpabilizado pelos
problemas da área e pela não resolução dos mesmos, como ocorreu anteriormente com os
demais gestores. Após essa discussão, uma servidora apontou: “Não existe esse gerente que o
setor quer. Esse gerente é um esqueleto, morto, dentro de um armário” (servidora 11). E ainda
completa:
“Para pressionar uma estrutura institucional a gente coloca, na linha de
ataque, o gerente. A gente tem que ter transparência nas relações, a falta
de transparência pressiona as pessoas, obriga as pessoas a tomar lados.
Temos que objetivar os problemas da gerência. O que se tem de objetivo
para levar a gerência?”

Essa objetividade apontada pela servidora foi identificada nas entrevistas individuais. A
maior parte dos servidores entrevistados reconheceu a capacidade técnica e intelectual do
gerente e não conseguia citar e concretizar problemas na gestão. Um ponto acordado por todos
foi a teorização excessiva da prática, realizada por ele, o que dificultava, às vezes, a praticidade
da atividade. A equipe apontou que o gestor implantou algumas estratégias que foram avaliadas
como positivas, como a gestão por especialidade (singularidade), e não mais por revezamento;
ele era, também, um gestor que reconhecia o trabalho da equipe, segundo fala do próprio grupo.
Foi reconhecida a melhoria na organização do trabalho no sentido de objetividade, clareza e
organização de processos e de agenda – avanço com a gestão de processos e com as
ferramentas de gestão adotadas.
O subgrupo que queria outra gestão para a área sempre foi muito crítico em relação à
forma de gerenciamento do novo gerente, como ocorria na gestão anterior. Foi relatado nas
entrevistas que as reuniões de equipe eram sempre tensas, como explicitado na fala da servidora
7: “Todo mundo é muito crítico, bate de frente demais”.
Os sujeitos e o grupo, nessa última etapa, foram o ponto mais discutido, devido à
dificuldade da equipe em se reconhecer enquanto parte do problema, assim como parte da
solução e do processo de mudança. Em relação aos sujeitos e ao grupo, durante as entrevistas
foi possível identificar o conflito existente entre as pessoas. A fofoca estava sendo utilizada como
forma de pertencimento e vínculo social, conforme no momento anterior. Foi percebido, também,
a influência negativa do grupo sobre os sujeitos: “Escolha seu lado? (servidora 8), fala de uma
servidora a se referir da atitude de alguns membros do grupo. Isso acarretava a quebra do
vínculo de solidariedade, como foi observado na fala da servidores 9: “Vivemos um salve-se que
puder”.
Durante as entrevistas foram realizados alguns atendimentos individuais. Alguns
servidores estavam mais tensionados com a realidade do setor. No período de janeiro a setembro
de 2018, ocorreram duas mudanças de lotação, principalmente dos servidores que tencionavam
o grupo, ou se sentiam tensionados pelo setor. A primeira mudança foi de um servidor que
solicitou sua saída, por incompatibilidade com a gestão apresentada. A segunda mudança foi
decidida institucionalmente, com orientação, inclusive, dos profissionais de saúde. O servidor em
questão teve uma discussão com o gerente-imediato o que não foi aceito a nível organizacional.
No seminário de avaliação, a discussão foi conflituosa. Muitas pessoas falaram das
dificuldades do setor. Alguns se reconheceram como co-responsáveis pela realidade conflituosa
atual. Foi exposto ao gestor sobre a necessidade de desenvolver uma “escuta justa”, pois foi
pontuado que ele tinha relações mais tensionadas com alguns servidores, o que já havíamos
identificado nas entrevistas.
Um ponto importante nesse processo foi quando um servidor perguntou aos interventores
se eles não achavam estranho que nenhum profissional gostasse de trabalhar no setor ou
quisesse ir trabalhar lá. Esse questionamento foi respondido com uma pergunta: “Quem é o
setor?” (assistente social). Um servidor respondeu: “Nós somos o setor” (servidor 10). Essa fala
causou um certo desconforto ao grupo, pois eles eram parte do problema. Nesse momento foi
possível ver a compreensão, da maior parte dos servidores, enquanto responsáveis pelo setor e
pelo conflito que vivenciavam. A partir disso, vários servidores começaram a falar ao mesmo
tempo. Quando eles foram interrompidos pelos interventores, uma servidora expôs sobre isso:
“Tá vendo, o que aconteceu aqui é exatamente o que acontece todos os dias no setor. As
pessoas começam a falar, responder, se defender. Eu não quero falar nada porque eu quero sair
daqui. E eu queria pedir que fosse a última reunião, o silenciar é não querer fazer parte disso. Eu
não quero fazer parte disso” (servidora 10).
Outro servidor também se expressou em relação a isso: “Tem que desarmar, abaixar as
armas, dar chance, chance pra nós mesmos. É doloroso não aproveitar a oportunidade. Somos
servidores públicos, pagos com dinheiro público” (servidor 2). E outro continua: “O setor está
machucado. Esse trabalho foi muito importante. Olha o privilégio que estamos tendo de estar
aqui nos ouvindo. O que a gente vai fazer com isso? Conversar com transparência e desarmar. O
desarmar não vem por documento, não vem por e-mail”. E outro servidor continua: “Vamos fazer,
desarmar, abaixar as armas. Vamos pra frente, mas sem ingenuidade”. Foi o primeiro momento
em que o grupo se colocou enquanto problema e enquanto solução, pois conseguiu questionar
seus próprios valores, para além dos problemas institucionais existentes.
Nessa última etapa do processo interventivo não houve nenhum encaminhamento prático.
O trabalho com o grupo girou em torno da discussão do papel de cada um dentro da organização
e enquanto responsável (ou co-responsável) pela transformação dos conflitos de trabalho, tendo
em vista os limites institucionais existentes e discutidos anteriormente. Esse trabalho foi uma
tentativa de explicitar aos trabalhadores que eles eram os agentes responsáveis pelo processo
de mudança. Como explicitou Lévy (2001), a apresentação dos resultados e sua discussão
coletiva não foi uma simples conclusão do processo interventivo, mas uma forma de tomada de
consciência, de novas trocas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A constituição de um espaço de escuta e discussão dentro das organizações de trabalho é


um ponto crucial para a manutenção da saúde do trabalhador. A criação de novos métodos
interventivos é necessária para transpor algumas barreiras organizacionais instituídas. Nesse
cenário, os profissionais de saúde têm papel importante nas organizações, pois representam uma
instância de escuta capaz de mediar a relação entre a organização e os trabalhadores. Não se
trata de uma mediação funcionalista, mas que compreende os processos de conhecimento e de
poder dentro das esferas de trabalho. O Inventário Psicossocial foi uma metodologia que ampliou
o espaço de discussão dentro da organização e, consequentemente, deu voz ao trabalhador, o
que fortaleceu o coletivo. A escuta interdisciplinar qualificada é uma estratégia importante na
gestão da saúde do trabalho, pois auxilia o processo de autonomia e de empoderamento dos
trabalhadores. Através da instituição desse espaço, os trabalhadores têm conseguido significar e
ressignificar coletivamente suas atividades, transpondo as estratégias individuais de defesa em
prol de estratégias coletivas, como a formação do grupo, por exemplo. É importante salientar que,
na mediação entre a organização e o trabalho, os profissionais de saúde podem utilizar
estratégias que efetivem um trabalho voltado para o trabalhador, e não somente para a
produtividade. A utilização da Escala de Conteúdo do Trabalho, por exemplo, é uma estratégia
para reconhecimento organizacional do trabalho, e não representou diferença na condução do
processo, principalmente quando comparados os dois momentos apresentados. Ressalta-se que,
nesse processo, a formação permanente dos profissionais de saúde é necessária, assim como o
desenvolvimento do trabalho interdisciplinar. Podemos supor que o espaço de transformação se
instaura mediante um espaço de diálogo no qual a fala e a escuta se tornem os principais
instrumentos de transformação do cotidiano de trabalho.

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