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REVISTA DA

PROCURADORIA-GERAL
DO ESTADO
DE SÃO PAULO

Procedimentos Disciplinares
10 anos da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares

95
JANEIRO/JUNHO 2022
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

RODRIGO GARCIA
Governador do Estado

PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO

INÊS MARIA DOS SANTOS COIMBRA


Procuradora-Geral do Estado

Anna Candida Alves Pinto Serrano


Procuradora do Estado Chefe do Centro de Estudos

COORDENAÇÃO EDITORIAL

Eraldo Ameruso Ottoni


Procurador do Estado Chefe da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares

ISSN 0102-8065

Proc. Geral do Est. São Paulo São Paulo n. 95 p. 1-365 jan./jun. 2022
CENTRO DE ESTUDOS
PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO
Rua Pamplona, 227 – 10o andar
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Procuradora do Estado Chefe do Centro de Estudos


Anna Candida Alves Pinto Serrano

Assessoria
Emanuel Fonseca Lima, Claudia Aparecida Cimardi

Comissão Editorial
Presidência
Anna Candida Alves Pinto Serrano

Membros
Adalberto Robert Alves, Dr. Bruno Betti Costa, Cláudio Henrique Ribeiro Dias, Joyce Sayuri Saito,
Juliana Campolina Rebelo Horta, Luis Claudio Ferreira Cantanhêde, Mariana Beatriz Tadeu de
Oliveira, Rafael Issa Obeid, Thamy Kawai Marcos e Thiago Oliveira de Matos

Revista
Coordenação editorial desta edição: Eraldo Ameruso Ottoni
Permite-se a transcrição de textos nela contidos desde que citada a fonte. Qualquer pessoa pode
enviar, diretamente ao Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, matéria
para publicação na Revista. Os trabalhos assinados representam apenas a opinião pessoal dos
respectivos autores.

Tiragem: revista eletrônica.

REVISTA DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, SP,


Brasil, 1971 - (semestral)

1971-2021 (1-94)

CDD-341.336
CDU-342.922
Sumário

APRESENTAÇÃO.................................................................................. VII

O “DEVIDO PROCESSO LEGAL NO DIREITO DISCIPLINAR”


E A NECESSIDADE DE IMPLEMENTAÇÃO DE UM PROGRAMA
SANCIONATÓRIO ADEQUADO.............................................................9
Inácio de Loiola Mantovani Fratini

O PAPEL DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO NA


REGULAÇÃO DAS PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS
INTRODUZIDAS PELA LEI COMPLEMENTAR N° 1.361,
DE 22 DE OUTUBRO DE 2021..............................................................47
Ana Paula Vendramini

BREVES APONTAMENTOS SOBRE A REFORMA DO SISTEMA


DISCIPLINAR DO ESTADO DE SÃO PAULO.........................................81
Adriana Masiero Rezende

A SUSPENSÃO CONDICIONAL DA SINDICÂNCIA (SUSCONSIND)


PREVISTA NA LC Nº 1.381/2021 E SEUS REFLEXOS NO SISTEMA
DISCIPLINAR DO ESTADO DE SÃO PAULO.............................................. 99
Ricardo Kendy Yoshinaga

O ILÍCITO DE INASSIDUIDADE...........................................................129
Eraldo Ameruso Ottoni

A PROCURADORIA DE PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES,


A PANDEMIA DA COVID-19 E A AUDIÊNCIA VIRTUAL....................155
Norberto Oya
PECULIARIDADES DA DILAÇÃO PROBATÓRIA NOS
PROCEDIMENTOS ADMINISTRATIVOS DISCIPLINARES..................175
René Zamlutti Júnior

DA OITIVA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES NO PROCESSO


ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSIDERAÇÕES SOBRE
FALSAS MEMÓRIAS............................................................................203
Kristina Yassuko Iha Kian Wandalsen

O ASSÉDIO SEXUAL COMO INFRAÇÃO DISCIPLINAR....................225


Margarete Gonçalves Pedroso

REPERCUSSÕES DA NOVA LEI DE IMPROBIDADE


ADMINISTRATIVA NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
DISCIPLINARES: ANÁLISE DOUTRINÁRIA E DAS
JURISPRUDÊNCIAS ADMINISTRATIVA E PRETORIANA....................259
Melissa Di Lascio Sampaio e Suzane Ramos Rosa Esteves

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:
EVOLUÇÃO PATRIMONIAL INCOMPATÍVEL......................................301
José Carlos Cabral Granado

NOTAS SOBRE RECURSOS, REVISÃO ADMINISTRATIVA E


EXERCÍCIO DE DIREITO DE PETIÇÃO NOS PROCESSOS
DISCIPLINARES DA LEI N° 10.261/68.................................................337
Luciana R. L. Saldanha Gasparini
APRESENTAÇÃO

E
m 2017, o Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Estado
editou a Revista nº 85, dedicada exclusivamente a assuntos relacio-
nados ao procedimento disciplinar. A Revista celebrava o primeiro
quinquênio de existência da Procuradoria de Procedimentos Disciplina-
res, nossa querida PPD, criada pela Lei Complementar nº 1.183, de 30
de agosto de 2012. A PPD agora completa seu segundo quinquênio, e,
para comemorar esse marco, o Centro de Estudos edita a Revista nº 95,
também dedicada exclusivamente aos procedimentos disciplinares.
Tive a honra de coordenar a Revista nº 85, honra que se renova e se
avulta com a coordenação e apresentação desta edição, que conta com
artigos de procuradoras e procuradores do estado que atuam em assun-
tos de natureza disciplinar em seu trabalho quotidiano.
Os artigos abordam temas atuais do Direito Disciplinar paulista, que
sofreu profundas modificações com a publicação da Lei Complementar
nº 1.361, de 21 de outubro de 2021, principalmente ao introduzir a con-
sensualidade na solução dos conflitos disciplinares, diante da possibilidade
de adoção de práticas autocompositivas, termo de ajustamento de conduta
e suspensão condicional da sindicância; houve também alteração nos ilíci-
tos relacionados à inassiduidade, que tem gerado uma série de controvér-
sias no âmbito da Administração Pública. Sobre essas alterações cuidam
os primeiros artigos: O Dr. Inacio de Loiola Mantovani Fratini escreve
sobre as bases teóricas para um programa sancionatório adequado, com
superação do paradigma exclusivamente punitivista; a Dra. Ana Paula
Vendramini Segura, com a experiência que acumulou à frente do Prac
(Programa de Resolução Adequado de Conflitos Disciplinares), discorre
sobre o papel da Procuradoria-Geral do Estado na regulamentação das
práticas autocompositivas; a Dra. Adriana Masiero Rezende faz apon-
tamentos sobre as inovações da Lei Complementar nº 1.361, trazendo
para a publicação sua experiência na Assessoria Técnico Legislativa; o
Dr. Ricardo Kendy Yoshinaga aprofunda pontos controvertidos relacio-
nados à suspensão condicional da sindicância, e o subscritor escreve sobre
as alterações nos ilícitos de inassiduidade.
A pandemia de Covid-19 e a restrições dela decorrentes trouxeram
uma nova realidade para a condução dos processos disciplinares, diante
da impossibilidade de realização de audiências presenciais. A nova reali-
dade impôs a realização de audiências virtuais para todos os casos em tra-
mitação, e sobre a implantação delas trata o artigo do Dr. Norberto Oya.
O Dr. René Zamlutti Júnior aborda o tema da independência das
instâncias administrativa e judicial, diante de recente julgado do Superior
Tribunal de Justiça; a Dra. Kristina Yassuko Iha Kian Wandalsen, as
cautelas na oitiva de crianças e adolescentes, comuns principalmente em
processos oriundos da Secretaria de Educação.
Há dois artigos sobre as alterações introduzidas na Lei de
Improbidade Administrativa pela Lei nº 14.230, de 25 de outubro de
2021: o escrito em conjunto pelas Dras. Melissa Di Lascio Sampaio
e Suzane Ramos Rosa Esteves, sobre os entendimentos vigentes na
Procuradoria-Geral do Estado acerca da irretroatividade de alterações
benéficas ao réu no âmbito do disciplinar, e o do Dr. José Carlos Cabral
Granado, analisando o combate à evolução patrimonial incompatível
com os vencimentos.
A Dra. Margarete Gonçalves Pedroso analisa o combate do assédio
assexual nas repartições públicas estaduais, sob a perspectiva da utiliza-
ção dos instrumentos do direito disciplinar.
Completando o arco procedimental, a Dra. Luciana R. L. Saldanha
Gasparini discorre sobre os meios legais de impugnação das decisões
administrativas tomadas em procedimentos disciplinares.
São raras as publicações de Direito Disciplinar que enfrentam temas
diretamente relacionados à interpretação e aplicação da legislação disci-
plinar paulista, razão da importância desta Revista que, além de suprir
uma lacuna da literatura jurídica, fornece uma fonte de consulta extre-
mamente útil para todos aqueles que atuam no procedimento discipli-
nar, desde o conhecimento do fato tido por irregular até a decisão final
da mais alta autoridade do Estado.
Boa leitura!
O “DEVIDO PROCESSO LEGAL
NO DIREITO DISCIPLINAR”
E A NECESSIDADE DE
IMPLEMENTAÇÃO DE UM PROGRAMA
SANCIONATÓRIO ADEQUADO

Inácio de Loiola Mantovani Fratini1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Evolução da noção do devido processo


legal no direito sancionador; 2.1 – A noção do “Jus Puniendi” estatal;
2.2 – O problema da transposição automática das garantias do direito
penal ao direito sancionador; 2.3 – Princípios do direito sancionador;
3 – Racionalidade do direito disciplinar; 3.1 – Administração Pública
e a regulação responsiva; 3.1.1 – “Tit-for-tat enforcement” (TFT);
3.2 – Consensualidade no direito sancionador; 3.3 – Programa de reportantes
(“Whistleblowing”); 4 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O estudo objeto do presente artigo pretende revisitar


a noção do devido processo legal, analisando as especificidades do
direito disciplinar e voltar o olhar para uma perspectiva mais ampla que
contemple a implementação de um programa sancionatório adequado
e consentâneo com o atual estágio do direito sancionatório.

PALAVRAS-CHAVE: Devido processo legal. Identidade do direito


administrativo sancionador. Programa sancionatório adequado.

1 Procurador do estado de São Paulo. Atua como Procurador do estado Assistente na


Procuradoria de Procedimentos Disciplinares. Bacharel em Direito formado pela
Universidade Paulista (Unip). Especialista em Direito Civil pela Università Degli Studi
di Camerino, Itália. Mestrando pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV).

9
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo tem como objetivo trazer a discussão para o sis-


tema disciplinar acerca dos reais contornos do devido processo legal
no direito sancionador, buscando entender sua identidade e campo de
aplicação como disciplina autônoma do direito, bem como analisar
a racionalidade do direito sancionador na construção de um programa
sancionatório adequado que seja consentâneo com o atual estágio de
desenvolvimento do direito administrativo, pensando em uma política
pública que melhor prestigie as boas técnicas de governança e gestão
dos recursos humanos.
Nesse sentido, por devido processo legal disciplinar se pretende anali-
sar não somente o sistema de garantias inerentes ao processo sancionador,
mas sobretudo refletir sobre o dever do Poder Público de implementar um
programa sancionatório adequado, que considere a importância das téc-
nicas responsivas e a busca pela ampliação do espaço de consenso como
medidas de enforcement complementares à aplicação da sanção, com vistas
a uma melhoria da eficiência na seara sancionatória.
Para essa releitura do tema em questão, em primeiro lugar verifica-se
a necessidade de romper com um vetusto dogma do direito sancionador
que enxergava o direito disciplinar como um mero apêndice do processo
penal, sem atentar para a existência no ordenamento jurídico de um
conjunto de regras e princípios que lhe confere identidade própria.
Outrossim, não se mostra mais viável conceber o direito disciplinar
sob sua vertente exclusivamente punitivista, em que a Administração
Pública se vale de seu poder de império para aplicar ao servidor sanções
como a primeira e única alternativa, sem pensar em um desenho mais
amplo que estabeleça um programa sancionatório com instrumentos
adequados, lastreado nas técnicas responsivas e na consensualidade
ao lado das medidas de imposição de sanções.
Com essa análise não se pretende rechaçar a importância das pena-
lidades administrativas no direito sancionatório, mas trazer luzes para
a importância da utilização de ferramentas que incrementem os incentivos
corretos para que o agente público não incida em infração funcional ou,
quando não possível evitar sua ocorrência, possibilite buscar a resolução
por mecanismos outros que não a sanção, deixando a via punitiva como

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

uma das ferramentas dispostas pela lei ao gestor público e não mais como
o primeiro mecanismo a ser acionado, formando, desse modo, um arca-
bouço disciplinar mais fluido e menos custoso para o Estado.
E foi justamente com esse racional que o estado de São Paulo introduziu
no sistema disciplinar paulista um programa consensual sancionatório
envolvendo as práticas autocompositivas, o termo de ajustamento de con-
duta e a suspensão condicional da sindicância2.
É preciso ajustar as lentes e fortalecer o caráter instrumental
do poder punitivo estatal, para que seja possível substituir a cultura
de uma Administração Pública adversarial por uma concepção mais
moderna de dissuasão da prática infracional e que vise alcançar melhores
resultados na árdua tarefa de promover o desenvolvimento e a melhoria
do serviço público para os administrados.

2. EVOLUÇÃO DA NOÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL


NO DIREITO SANCIONADOR

O princípio do devido processo legal é considerado por muitos


doutrinadores como o princípio mais importante3, encerrando verda-
deira garantia fundamental e servindo como norte para todos os demais
princípios que tutelam o plexo de direitos e prerrogativas dos cidadãos,
mormente no contexto das relações sancionatórias4.

2 As alterações incorporadas pela Lei Complementar estadual nº 1.361, de 21 de outubro


de 2021 ao Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de São Paulo tiveram origem
na minuta de anteprojeto de lei elaborada pelo Grupo de Trabalho que foi instituído
por meio da Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017 e formado por integrantes da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, da Procuradoria Administrativa, da Assessoria
Jurídica do Governador, da SubConsultoria, um representante das Procuradorias Regionais
e três representantes das Consultorias Jurídicas, sendo um da Educação, um da Administração
Penitenciária e um da Saúde. A minuta enviada no relatório final do Grupo de Trabalho em
março de 2018 foi endereçada na parte disciplinar no Projeto de Lei Complementar (PLC)
nº 26/2021, que foi aprovado pela Assembleia Legislativa em outubro de 2021.
3 Cabe trazer os ensinamentos de Nelson Nery Junior sobre o princípio do devido processo legal:
“O princípio fundamental do processo civil que entendemos como a base, sobre a qual todos os
outros se sustentam, é o devido processo legal, expressão oriunda da inglesa due process of law.
A Constituição Federal brasileira de 1988 fala expressamente que ‘ninguém será privado da
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal’”. (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios
do processo civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 30).
4 Nesse sentido, Fábio Medina Osório: “A base dos princípios (e direitos) fundamentais do Direito
Administrativo Sancionador, no sistema brasileiro, reside na cláusula do due process of law,

11
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Essa prerrogativa possui origem na Common Law, remontando


à Magna Carta Inglesa de 1215, exsurgindo como uma via de proteção
dos cidadãos com vistas à tutela da própria liberdade e do patrimônio.
Na Constituição Federal de 1988, o princípio se encontra previsto no rol
dos direitos e garantias fundamentais, no inciso LIV do art. 5º: “Ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”5.
Com efeito, o devido processo legal abarca não somente o denominado
devido processo legal formal ou adjetivo, como também o devido processo
legal material ou substancial, o que importa dizer que a proteção visa efeti-
vamente garantir que o cidadão tenha respeitado seu mais irrestrito direito
a um processo justo, protegendo-o do arbítrio estatal.
Na seara disciplinar, destaca Antonio Carlos Alencar Carvalho que:
O servidor público goza da segurança de que não poderá ser sumariamente
punido, nem ficar privado da oportunidade de se defender e de influenciar
a decisão final a ser proferida a seu respeito pela Administração Pública,
na sede de processos punitivos, de maneira que o funcionário acusado de
irregularidades e desvio de conduta funcional não será surpreendido pela
súbita perda do cargo público, nem pela imposição de pena de suspensão,
advertência, cassação de aposentadoria ou disponibilidade ou multa,
senão depois de concluída uma relação processual instaurada e processada
pela autoridade ou pelos órgãos imparciais competentes, precedida de um
rito previamente definido, com prazos e formalidades quanto a intimações/
citações/notificações/decisões/recursos regulados em lei. 6

expressamente prevista na CF/88. Necessário será, portanto, partir de uma visão preliminar
desse importante princípio jurídico, percebendo o potencial alcance dessa cláusula constitucional
no ordenamento jurídico pátrio. Há que se proceder a uma análise fundamentada do Direito
Comparado e também na inserção e caracterização técnica do instituto no contexto normativo
nacional. Sem embargo, desde logo é possível assinalar que o devido processo legal resguarda
o campo das relações punitivas, direitos fundamentais em todas as direções possíveis e legítimas,
o que envolve a proteção dos direitos dos acusados e das vítimas em perspectiva equilibrada.
(OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 5. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2015, p. 174-175).
5 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 22 jun. 2022.
6 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar
e sindicância à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da administração pública.
5. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 352.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

No âmbito da Lei nº 10.261/1968, deve ser observada pela


Administração Pública uma colheita de indícios de autoria e de
materialidade por meio da apuração preliminar7 nos termos dos seus
artigos 264 e 265, com ulterior instauração do processo disciplinar8 com
observância do contraditório e da ampla defesa.
Não se pode olvidar a importância da observância do princípio do
devido processo legal sancionatório sob sua vertente formal, pois é jus-
tamente na previsibilidade por parte do acusado ou do administrado
acerca da ritualística que será seguida pela autoridade que se permitirá
deduzir uma defesa justa, contrapondo-se à acusação formulada pela
Administração em todos os seus pontos.
Como bem observa Fábio Medina Osório, citando Eloísa Carbonel
e José Luis Muga, o procedimento deve ostentar os seguintes passos:

7 A apuração preliminar tem caráter inquisitivo, razão pela qual não há obrigatoriedade de
observância do contraditório que será diferido para a fase de instauração do procedimento
disciplinar. Não obstante, conforme se verifica da alteração trazida pela Lei nº 13.245/2016
ao Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil: “assistir a seus clientes investigados
durante a apuração de infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório
ou depoimento e, subsequentemente, de todos os elementos investigatórios e probatórios
dele decorrentes ou derivados, direta ou indiretamente, podendo, inclusive, no curso da
respectiva apuração” (BRASIL. Lei nº 13.245, de 12 de janeiro de 2016. Altera o art. 7º
da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1,
13 jan. 2016, art. 7º, inc. XXI).
8 No sistema disciplinar do estado de São Paulo coexistem três ritos procedimentais, a saber:
aos servidores estatutários e aqueles regidos pela Lei nº 500/1974, a sindicância com
incidência nos casos de mera violação de dever e falta grave, e o processo administrativo
disciplinar para os casos de infrações que levem à demissão e à demissão a bem do serviço
público. No caso dos empregados públicos regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho
aplica-se o processo sancionatório previsto nos artigos 62 e ss. da Lei nº 10.177/1998,
conforme entendimento exarado no parecer PA nº 39/2013, cuja ementa peço vênia
para transcrever: “SERVIDOR TRABALHISTA. PROCEDIMENTO DISCIPLINAR.
Lei Complementar estadual nº 1183, de 30/08/2012, que criou a Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares e atribui-lhe competência para ‘realizar procedimentos
disciplinares punitivos’ em face de servidores autárquicos, inclusive submetidos ao regime
jurídico da CLT. Viabilidade de extensão analógica do art. 63 da Lei nº 10.177/1998 para
disciplinar processo a ser instaurado no âmbito da PPD, quando não houver a autarquia
disciplinado a matéria em regulamento. Viabilidade de enquadramento das condutas tidas
por irregulares no art. 482 da CLT. Desnecessidade de adequação formal dos regulamentos
disciplinares das autarquias à nova lei, eis que se operou ‘ex vi legis’. Condutas definidas
em lei como ‘falta grave’ são aptas a ensejar a rescisão contratual por justa causa, mesmo
quando não referidas expressamente no regulamento disciplinar” (SÃO PAULO. Parecer
PA nº 39/2013. Servidor Trabalhista. Procedimento disciplinar. São Paulo: Procuradoria-
Geral do Estado, 2013, p. 1).

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INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

notificação ou citação do imputado, para dar-lhe ciência da imputação


em curso; garantia dos direitos de defesa, com abertura da possibili-
dade de manifestar-se, por escrito ou oralmente, a respeito do caso;
resolução motivada por parte da autoridade competente (previamente);
existência de um órgão decisor imparcial. 9
Essa exigência visa justamente impedir desmandos da Administração
no exercício do direito punitivo, representando verdadeira garantia aos
administrados em geral e aos servidores em sua relação de sujeição especial,
de que não serão surpreendidos por decisões imotivadas, que não sejam
adotadas por autoridade incompetente ou que não observem o rito do
procedimento previsto em lei, o que revela a importância de observar,
nessa esteira, o princípio da confiança legítima, com o cumprimento das
regras procedimentais de parte a parte.
Porém, o respeito ao devido processo legal formal não se mostra sufi-
ciente para garantir aos acusados em geral a tutela ao direito fundamental
ao processo justo. Nesse sentido, de nada serviria o cumprimento das
formalidades procedimentais no processo disciplinar se a portaria instau-
radora não descrevesse adequadamente a conduta10 que teria sido prati-
cada pelo acusado, impedindo que este pudesse exercer, em sua plenitude,
o contraditório e a ampla defesa. Tampouco se pode imaginar uma
defesa técnica que não proteja adequadamente os interesses jurídicos do
acusado, não indicando a produção de provas ou não realizando a jun-
tada de documentos probatórios, quando poderia fazê-lo.
O prolator da decisão no processo administrativo também deve,
no momento de aplicação e fixação da dosimetria da pena e na análise
da viabilidade ou não da mitigação da sanção, levar em consideração
todas as circunstâncias específicas11 do caso concreto, assim como

9 OSÓRIO, op. cit., p. 179.


10 No âmbito da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares (PPD), os requisitos para
a elaboração de uma portaria se encontram previstos na Ordem de Serviço PPD nº 05/2018,
que veicula as Rotinas da PPD, com indicação dos elementos indispensáveis para
a elaboração da portaria.
11 Para maior aprofundamento sobre os critérios para a dosimetria da pena na seara disciplinar,
ver em artigo deste articulista: FRATINI, Inacio de Loiola Mantovani. As hipóteses
de demissão simples e de demissão agravada à luz da Lei nº 10.261/68 e a incompatibilidade
com o serviço público. Critérios para a mitigação da pena legalmente prevista. Revista da
Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, Procedimentos Disciplinares, nº 85,
p. 231-259, 2017.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

as circunstâncias de caráter pessoal, objetivo e subjetivo do servidor,


para que a pena imposta seja razoável e proporcional, princípios estes
inerentes ao devido processo legal substancial.
Para além dessas variantes já conhecidas do devido processo legal,
verifica-se atualmente a necessidade de que a autoridade competente
possa fazer um juízo de valor sobre de qual mecanismo irá lançar mão
dentro do conjunto de medidas dispostas no ordenamento jurídico e do
programa sancionatório como ótima solução do caso concreto.
Com efeito, essa valoração poderá levar à conclusão pela ado-
ção das técnicas responsivas de dissuasão ou das medidas consensuais,
como as práticas restaurativas e o termo de ajustamento de conduta,
ferramentas que podem ser aplicadas mesmo antes da instauração
da sindicância ou, ainda, que seja aplicada ao caso a suspensão condicio-
nal da sindicância, nos termos das medidas consensuais implementadas
pela Lei Complementar estadual nº 1.361/202112.
Finalmente, caso esses mecanismos mais flexíveis não se mostrarem
pertinentes para a solução do caso concreto, de acordo com a gravidade
do fato, restará à autoridade competente encaminhar o caso para a via
tradicional do processo administrativo disciplinar.

2.1. A noção do Jus Puniendi estatal

A evolução da noção do poder punitivo estatal (poder extroverso)


e a opção pela transposição das garantias do direito penal para o direito
sancionador são quase indissociáveis, o que se pode verificar na doutrina
e também na jurisprudência13.

12 Essas medidas serão melhor apresentadas no item 3.2.


13 Em recente decisão exarada nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.975-DF,
em 7 de dezembro de 2020, o eminente relator Min. Gilmar Mendes proferiu voto em que
sustentou a aplicação dos princípios, garantias e normas do processo penal à atividade
sancionatória do Estado, mencionando precedente do C. Superior Tribunal de Justiça (RMS
nº 24.559-DF no mesmo sentido). No voto condutor, o relator sustenta a inconstitucionalidade
da norma prevista no parágrafo único do artigo 137 ao estabelecer a proibição de retorno ao
serviço público ao servidor punido nas hipóteses dos incisos I, IV, VIII, X e XI do artigo 132
da Lei nº 8.112/90 por afronta ao inciso XLVII, “b” do artigo 5º da Constituição Federal
que veicula a garantia fundamental da vedação à pena perpétua, ressalvando a possibilidade
de ser a matéria regulamentada pelo Congresso Nacional que poderia, com certa margem
de discricionariedade, estabelecer o prazo de proibição, que não pode ser fixado de forma

15
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Nessa linha, Alice Voronoff pondera sobre a escolha de inúmeros14


autores ao acolher o discurso da transposição das garantias penais para
o direito sancionador, sob o fundamento de que haveria uma unidade do
ius puniendi15 do Estado, ressaltando que esse posicionamento se deve,
em grande parte, à influência da doutrina espanhola16, que reverberou
fortemente em países como Brasil e o Chile.
Porém, para a construção de um modelo sancionatório adequado
deve haver a compreensão de que a sanção disciplinar não se apresenta
como uma consequência imediata17 da violação de uma dada norma
legal, devendo respeitar a adequação da resposta estatal face à infração
cometida e às características próprias de determinada seara do direito,
sob pena de representar a aplicação de determinadas garantias de outro
ramo do direito ao sancionatório uma adaptação sem uma justificativa
suficiente, o que iria de encontro com a segurança jurídica.

indefinida e tampouco desproporcional. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta


de Insconstitucionalidade nº 2.975. Lei nº 8.112/90. Afronta ao artigo 5º, XLVII, “b”,
da Constituição da República. Relator: Min. Gilmar Mendes, 7 de dezembro de 2020. Disponível
em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2159610. Acesso em: 21 jun. 2022).
No estado de São Paulo os prazos de incompatibilização para novas investiduras vêm definidos
no parágrafo único do artigo 307 da Lei estadual nº 10.261/68, fixando em cinco e dez anos
respectivamente para os casos de condenação a pena de demissão simples e demissão a bem do
serviço público, o que está em linha, a contrário senso, do quanto decidido pelo Pretório Excelso
na decisão ora apreciada (SÃO PAULO. Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre
o estatuto dos funcionários públicos civis do estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo:
seção 1, São Paulo, ano 78, n. 206, p. 2, 29 out. 1968).
14 Dentre os autores administrativistas brasileiros que adotaram o entendimento do poder
repressivo estatal único podem ser citados: Heraldo Garcia Vitta, Regis Fernandes de
Oliveira, Daniel Ferreira, Rafael Munhoz de Mello, e Fábio Medina Osório (VORONOFF,
Alice Bernardo. Direito administrativo sancionador no Brasil: Justificação, interpretação
e aplicação. Belo Horizonte: Fórum, 2018).
15 Nas palavras da autora: “Na literatura nacional, tem destaque a posição de autores
administrativistas que partem da origem comum do poder punitivo do Estado (o ius puniendi
único) para dela extrair consequências relevantes. A primeira delas é que não existiriam
diferenças ontológicas entre sanções penais e administrativas. Por isso, caberia ao Estado
decidir, no âmbito de sua discricionariedade político-legislativa, entre tipificar ilícitos de
uma ou de outra espécie, ou até de ambas. Logo a diferença entre esses institutos jurídicos
decorreria exclusivamente do elemento formal, i.e., do regime jurídico escolhido pelo
legislador. Regime esse, por sua vez, construído em larga medida a partir da transposição de
garantias típicas da seara criminal à administrativa, ainda que com nuances” (Ibidem, p. 57).
16 García de Enterría e Tomás-Ramón Fernandez, dentre outros.
17 A respeito do tema, interessante ponderação trazida por Alice Voronoff: “A sanção
administrativa não deve ser tida como consequência necessária e automática do
descumprimento de uma obrigação pelo administrado. Nem como fim em si mesmo.
É preciso que ela se apresente como uma resposta apropriada em cada contexto, à luz dos
incentivos que potencialmente pode produzir”. (Ibidem, p. 198).

16
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

Nesse passo, faz-se necessário aprofundar a análise acerca das


garantias que integram o devido processo legal no direito sancionatório,
bem como verificar a natureza da relação jurídica que lhe serve de
sustentação, procurando identificar contornos mais bem definidos para
conferir segurança jurídica aos administrados.
Como primeiro ponto de discrímen entre o direito penal e o direito
disciplinar, e talvez o mais importante, tem-se a relação de sujeição
especial que se estabelece entre o Poder Público de um lado e os servi-
dores e empregados públicos de outro, formada pelo vínculo funcional
ou contratual, que faz exsurgir, a partir dos critérios definidos em lei,
a moldura dos direitos e deveres a eles aplicáveis e, consequentemente,
o poder punitivo disciplinar.
Com efeito, o servidor público, quando ingressa no serviço público,
adere a um conjunto de normas e princípios que formam seu regime
jurídico, tendo o estatuto dos servidores como plexo normativo de
regência, mas também as demais normas e regulamentos editados pelo
ente federativo. Isso porque a atividade administrativa do Estado segue
o influxo das regras de organização administrativa fundadas nos poderes
da Administração Pública que, no caso dos servidores, decorrem direta-
mente dos poderes hierárquico e disciplinar.
No campo do direito penal, a relação existente entre o cidadão e
o Estado é de sujeição geral, decorrente da aplicação da lei a todo aquele
que incidir na violação da norma criminal, sob a perspectiva de uma pre-
sunção18 de que a lei em vigor no país é de conhecimento e observância de
toda a coletividade, razão pela qual há um discrímen nítido do vínculo que
justifica a repressão nesse ramo do direito daquele vínculo de caráter fun-
cional ou contratual que embasa a aplicação de sanção ao servidor.
O servidor público possui um ônus em relação ao particular,
pois tem o dever de estar em dia com leis e regulamentos, devendo,
assim, conhecer as normas que digam respeito às suas funções, o que no
final do dia, importa nesse especial vínculo de sujeição com o Estado,

18 Essa presunção decorre do artigo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:


“Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece” (BRASIL. Decreto-lei
nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de introdução às normas do direito brasileiro.
Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 13635, 9 set. 1942, art. 3º).

17
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

trazendo contornos diferenciados entre o arcabouço jurídico que irá


buscar na Magna Carta o fundamento para o exercício do ius puniendi.
Logo, ainda que se admita que exista uma origem comum desse
ius puniendi, uma vez que sua fonte emana diretamente da Constituição,
que formula um conjunto de princípios explícitos e implícitos que cons-
tituem um núcleo comum de garantias aos cidadãos face ao poder
repressivo estatal, cada disciplina, como não poderia deixar de ser,
possui seus próprios princípios informativos, ainda que haja pontos
de intersecção entre esses ramos do direito.
Por outro lado, também podem ser mencionados como um segundo
ponto diferenciador entre o direito penal e o direito sancionador os bens
jurídicos tutelados, bem como o objeto sobre o qual poderá recair a sanção
que se diferencia em ambas as disciplinas.
Na penalidade criminal, a sanção pode recair sobre a própria vida do
autor do fato (em alguns países que adotam a pena de morte ou mesmo no
Brasil quando houver declaração de guerra19) ou sobre a liberdade de ir e vir
(com a privação da liberdade do réu), enquanto que no direito administra-
tivo sancionador eventual penalidade se restringe a direitos (de propriedade
ou do exercício de determinada atividade) e, no caso do agente público,
a sanção imposta poderá, nos casos mais graves, redundar no rompimento
do vínculo de caráter funcional ou contratual.
Sobre o ponto ora analisado neste estudo, cabe mencionar interes-
sante passagem da obra de Rafael Munhoz com alusão aos ensinamentos
do Ministro Luís Roberto Barroso:
Ocorre que tais princípios do regime jurídico punitivo decorrem da
opção constitucional por um Estado de Direito. São corolários do
princípio do Estado de Direito, uma das “decisões políticas estruturais
do Estado”, segundo Luís Roberto Barroso. Tratando-se de princípio
constitucional fundamental, seus efeitos incidem sobre toda a ordem
jurídica – o que inclui o regime jurídico que disciplina a imposição de
sanções retributivas pela Administração Pública. Não se trata, portanto,
de princípios de direito penal, mas sim de princípios que regem toda

19 Conforme artigo 5º, inciso XLVII, “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra
declarada, nos termos do art. 84, inciso XIX”. (BRASIL, 1988, art. 5º).

18
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manifestação do poder punitivo estatal, seja penal ou administrativa.


Tampouco se trata de aplicar no campo do direito administrativo
sancionador os princípios que são próprios do direito penal, mas apenas
os que são comuns a ambos os ramos jurídicos, corolários da opção
constitucional por um Estado de Direito.20
Também nessa linha José Roberto Pimenta e Dinorá Adelaide Musetti,
em lúcida passagem informam:
A identidade do Direito Administrativo Sancionador deve ser construída
no próprio Direito Administrativo, como ordem jurídica vocacionada
à tutela e realização de interesses públicos. Este componente nuclear de
qualquer legislação de DAS não afasta a necessidade de exame rigoroso
do conteúdo dos direitos e garantias fundamentais, expressa ou impli-
citamente, previstos na Constituição, na tutela das situações jurídicas
afetadas por potestades sancionadoras.21
Essa discussão sobre as diferenças do direito disciplinar em relação
ao direito penal já vem de longa data, sendo oportuno mencionar a pon-
deração feita por Carlos S. de Barros Junior, citando a diferenciação feita
por Laband: “o poder disciplinar encontra fundamento num princípio
diverso daquele que é próprio do direito penal. Êste é decorrência da
soberania; aquêle, do vínculo de subordinação que nasce de certas
relações especiais, como por exemplo o emprego público”.22

2.2. O problema da transposição automática das garantias


do direito penal ao direito sancionador
Não se discute a imprescindibilidade da proteção dos administrados
e servidores frente ao exercício arbitrário do poder repressivo estatal, tutela
esta que representou uma conquista histórica que necessita ser devidamente
respeitada, seja em relação ao direito penal seja em relação ao direito sancionador.

20 MELLO, Rafael Munhoz. Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador:


as sanções administrativas à luz da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros,
2007, p. 105.
21 OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Direito administrativo
sancionador brasileiro: breve evolução, identidade, abrangência e funcionalidades. Interesse
Público, Belo Horizonte, ano 22, n. 120, p. 83-126, 2020, p. 121.
22 BARROS JÚNIOR, Carlos Schmidt. Do poder disciplinar na administração pública.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 30.

19
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Ocorre que pretender transpor de maneira acrítica todas as garantias


do direito penal para o direito sancionatório, para além de ser inviável,
também tem gerado distorções que não se fundamentam em uma base
teórica e não permite o estabelecimento de critérios uniformes que presti-
giem a segurança jurídica, pois ora a doutrina aplica um entendimento
mais garantista para determinado caso e ora atenua os rigores de determi-
nada proteção, de maneira absolutamente casuística23.
Embora seja possível verificar uma repressão estatal tanto na pena
imposta pela prática de um crime quanto em relação à sanção que incide
sobre um infrator no âmbito administrativo, há peculiaridades próprias
que no caso do direito sancionatório lhe confere identidade que não
justificam o argumento da necessidade de transposição automática dos
princípios do processo penal para o direito administrativo sancionador.
Essa oscilação e insegurança jurídica também vem sendo sentida na
jurisprudência, que por vezes amplia a rigidez das garantias aplicáveis ao
direito sancionador, e por vezes faz incidir uma interpretação maleável,
a depender do caso concreto.
Há necessidade de desenvolvimento de contornos reais entre o ramo
do direito penal e o espaço do direito sancionador, para que os limites da
extensão e a densidade das garantias aplicáveis a este último ramo não fiquem
sempre na dependência da análise casuística do gestor ou do julgador, o que
pode resultar em decisões que não privilegiem a segurança jurídica.

2.3. Princípios do direito sancionador

Não há uma definição legal24 acerca dos princípios aplicáveis ao


direito sancionador, cabendo justamente à doutrina e à jurisprudência

23 Sobre essa questão não há como deixar de concordar com os argumentos apresentados pela
ilustre jurista Alice Voronoff quando trabalha sobre o tema da transposição de garantias penais
ao direito sancionador: “Assim, com a mesma naturalidade com que se maximizam garantias,
excepcionam-se garantias. Sem muito bem explicar por que nem como. De forma ad hoc. É como
se o direito administrativo sancionador se movesse por intuições, guiado pela sensação de que
aqui ou acolá, determinadas exigências não fazem sentido. Como num ciclo vicioso perverso,
propagam-se fórmulas nuançadas e construções excepcionais que buscam se legitimar a fórceps.
Pela repetição e pela prática, e não pelo direito” (VORONOFF, op. cit., p. 200).
24 A Constituição Estadual prevê em seu artigo 111 os princípios aplicáveis à Administração
Pública: “A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes

20
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

a incumbência de formar o quadro de garantias dos administrados face ao


poder repressivo estatal no âmbito do direito administrativo sancionador,
mesmo porque esse ramo se espraia por inúmeras tarefas do Poder Público
nas diversas esferas de poder, passando tanto pelo campo regulatório e con-
tratual como também pela seara disciplinar do funcionalismo público.
Para além dessa gama de incidência do poder sancionatório,
cabe também relembrar que a formação do Estado Federativo Brasileiro
conduz a múltiplos centros irradiadores de normas jurídicas, uma vez
que a competência para legislar sobre matéria administrativa é comum
a todas as pessoas jurídicas de direito público.
A delimitação do direito sancionador como ramo autônomo do direito
ganhou ainda mais força com a recente alteração trazida pela Lei Federal
nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que introduziu o §4º ao artigo 1º da Lei
de Improbidade Administrativa (Lei Federal nº 8.429/1992): “Aplicam-se
ao sistema de improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucio-
nais do direito administrativo sancionador”25.
O legislador não apresentou um rol principiológico que comporia
o direito sancionador, nem tampouco procurou conceituar os institutos,
mas destacou que seriam os princípios do direito constitucional
sancionador, o que se revela positivo, de certa maneira, tendo em vista
que essa tarefa de mapear e consolidar os princípios do direito sanciona-
dor pode ser melhor desenvolvida pelos estudiosos do direito.

do Estado, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,


razoabilidade, finalidade, motivação, interesse público e eficiência” (SÃO PAULO. [Constituição
(1989)]. Constituição Estadual de 5 de outubro de 1989. São Paulo: Assembleia Legislativa
do Estado de São Paulo, [2021]. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/
constituicao/1989/compilacao-constituicao-0-05.10.1989.html. Acesso em: 22 jun. 2022).
A Lei de Processo Administrativo Paulista define em seu artigo 4º: “A Administração Pública
atuará em obediência aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade,
razoabilidade, finalidade, interesse público e motivação dos atos administrativos” (SÃO PAULO.
Lei nº 10.177, de 30 de dezembro de 1998. Regula o processo administrativo no âmbito da
Administração Pública estadual. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo,
v. 108, n. 248, p. 3-4, 31 dez. 1998). Porém, em ambos os casos, os princípios têm destinação
mais ampla, não havendo elenco próprio do direito sancionatório.
25 BRASIL. Lei nº 14.230, de 25 de outubro de 2021. Altera a Lei nº 8.429, que dispõe
sobre improbidade administrativa. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1,
26 out. 2021, p. 1.

21
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Sem a pretensão de esgotar o tema, serão abordados, na sequência,


alguns dos princípios elencados pela doutrina como aplicáveis ao direito
sancionador, notadamente aqueles com incidência e repercussão direta
no direito disciplinar.

I) Princípio da legalidade (tipicidade)

O conceito do princípio da legalidade sempre foi visto no direito


administrativo clássico como uma limitação da atuação estatal que só
poderia fazer ou deixar de fazer alguma coisa se houvesse lei autorizando.
Não se pode olvidar que as atividades da Administração Pública
são dinâmicas e há impossibilidade de definir ex ante todos os contor-
nos das condutas proscritas aos servidores públicos, sendo esta questão
reconhecida por Fábio Medina Osório:
a legalidade das infrações e das sanções é composta, no mais das vezes,
por conceitos ou termos jurídicos altamente indeterminados26, cláusulas
gerais, princípios e descrição de valores superiores que outorgam amplos
espaços à autoridade julgadora, seja ela administrativa ou judicial.27
Sobre o atual conceito mais amplo da legalidade na esfera administra-
tiva, ensina Gustavo Binenbojm: “A ideia de juridicidade administrativa,
traduz-se, assim, na vinculação da Administração Pública ao ordena-
mento jurídico como um todo, a partir do sistema de princípios e regras
delineados na Constituição”28.
É certo que no direito disciplinar a criação de tipos de infrações
funcionais e a previsão das respectivas penas demandam a observância
de garantias mínimas que protejam o vínculo funcional do servidor com
a Administração Pública, mesmo que não incidam as mesmas garantias
do direito penal no que toca à reserva absoluta de lei para a previsão

26 Há na Lei nº 10.261/68 previsão do chamado “procedimento irregular de natureza grave”


(inciso II, do art. 256) ou do tipo previsto no inciso I do artigo 257: “for convencido de
incontinência pública e escandalosa e de vício de jogos proibidos”, que veiculam conceitos
jurídicos indeterminados ou albergam os chamados tipos abertos (SÃO PAULO, 1968,
art. 256 e 257).
27 OSÓRIO, op. cit., p. 227.
28 Binenbojm, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais,
democracia e constitucionalização. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 149.

22
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

de infrações penais e suas respectivas penas29. E mesmo no direito penal,


há situações que admitem um campo de delegação válida, como no caso
das normas penais em branco heterogêneas30.
Nesse sentido, pode o servidor público paulista vir a ser proces-
sado e até mesmo demitido se praticar conduta que vá de encontro
com o quanto estabelecido em regulamento, portaria ou outro ato nor-
mativo qualquer, desde que emanado de autoridade competente, pois a
própria legislação prevê como dever do servidor agir em conformidade
com leis e regulamentos31.
Há nessa hipótese verdadeira cláusula de remissão direta, pois o
Estatuto dos Servidores Públicos do estado de São Paulo expressamente
impõe como dever do servidor público estar em dia com leis e regu-
lamentos, o que neste último caso implica no estabelecimento de uma
delegação ao Poder Executivo32 para a edição de atos normativos infra-
legais que digam respeito ao exercício funcional do servidor.
Por sua vez, a possibilidade de que a Administração faça uso
do poder regulamentar no campo sancionatório e venha a editar normas
prevendo ilícitos disciplinares e/ou sanções não importa em liberdade
para criar o que melhor lhe aprouver, devendo extrair da norma legal

29 Mesmo no direito penal, há tipos penais que se classificam como normas penais em branco,
sendo aquelas que demandam complemento em outro ato normativo de competência diversa,
podendo ser da mesma espécie (lei) ou estar situado em ato infralegal (ato normativo do Poder
Executivo), como é o caso da Lei de Drogas, em que a listagem das substâncias entorpecentes
não se encontra na Lei nº 13.436/2006 e sim em portaria da Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária), recebendo, nesses casos, respectivamente a designação de norma penal
em branco homogênea e heterogênea.
30 A lei penal em branco indica a tipificação de crime que depende de norma posterior que lhe
dê conteúdo. Trata-se de hipótese em que a lei penal é imperfeita e exige a complementação
de outra norma jurídica, que irá integrar o próprio tipo penal. Em outras palavras,
são normas de conteúdo incompleto, vago, lacunoso, que necessitam de complementação
que, no geral, tem caráter extrapenal (cf. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito
penal: parte geral (arts. 1º a 120). 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1, p. 192).
31 Lei nº 10.261/1968: “estar em dia com as leis, regulamentos, regimentos, instruções e ordens
de serviço que digam respeito às suas funções;” (SÃO PAULO, 1968, art. 241, inc. XIII).
32 Interessante destacar que o regulamento ou ato normativo pode derivar até mesmo de outra
esfera legislativa, como por exemplo a utilização de verba repassada pela União às escolas
que demandam por parte do Diretor do estabelecimento de ensino o conhecimento e
a observância das portarias e atos normativos exarados pelo Ministério da Educação.

23
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

ao menos uma remissão suficiente ou uma habilitação formal33, isto é,


retirar da norma as balizas mínimas para a edição do ato administrativo
que veicule sanção disciplinar.

II) Princípios do contraditório e da ampla defesa

Não há como falar nos princípios do contraditório e da ampla defesa


sem destacar seu substrato de cláusula pétrea previsto no inciso LV do
artigo 5º da Constituição Federal: “aos litigantes, em processo judicial
ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contradi-
tório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”34.
Segundo o princípio do contraditório, o acusado que responder
a um processo administrativo disciplinar deve ter assegurado o direito
irrestrito de ter ciência sobre a acusação formulada e de impugná-la
ponto a ponto, isto é, de poder reagir sobre cada acusação e prova contra
si apresentada, num processo dialógico e bilateral.
Com relação ao princípio da ampla defesa, consectário indissociá-
vel do princípio do devido processo legal, garante ao acusado o direito,
dentre outros, de ser notificado da existência do processo administrativo;
ter acesso aos autos do processo; requerer produção das provas tendentes
a provar sua inocência; acompanhar a produção das provas em audiência;
solicitar perícias; arrolar testemunhas; apresentar defesa escrita (defesa
prévia e alegações finais); e interpor recurso quando for condenado.
Reforçando a identidade do direito sancionatório em relação ao
direito penal, o Pretório Excelso editou a Súmula Vinculante nº 5/200835,

33 Sobre o princípio da legalidade e a reserva de lei, v. VORONOFF, op. cit., p. 213-265.


34 BRASIL, 1988, art. 5º.
35 No âmbito do direito disciplinar no estado de São Paulo, não obstante a edição da súmula
vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal que assevera que a ausência de defesa
técnica por advogado não ofende a Constituição, o acertado entendimento exarado
pela Procuradoria Administrativa no Parecer PA nº 173/2008 foi no sentido de que nas
sindicâncias e processos administrativos disciplinares regidos pela Lei nº 10.261/1968
continua a ser necessária a presença de advogado, uma vez que a legislação prevê no
artigo 282, §3º, a defesa técnica que se revela dada a exigência legal, como verdadeira
condição de validade para o processo. No caso de empregado público, regido na parte
procedimental pela Lei nº 10.177/1998, a defesa é feita diretamente pelo empregado e no
caso de revelia é indicado servidor da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares para
auxiliar na defesa do empregado, atuação esta que não se dá na qualidade de advogado.

24
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

para destacar que não há nulidade na falta de defesa técnica no processo


administrativo disciplinar, justamente sob a perspectiva de que o direito
disciplinar possui características próprias decorrentes da existência do vín-
culo especial de sujeição entre a Administração Pública e seus servidores.

III) Princípio da Irretroatividade da norma mais grave

Nesse caso, importante destacar que a vedação de que uma norma


não existente ao tempo da prática da conduta levada a efeito pelo
administrado ou servidor retroaja, não somente decorre do regime garan-
tista do direito penal, como também do próprio Estado Democrático
de Direito que protege como garantia fundamental o princípio da
segurança jurídica.
No caso, não se pode conceber que a criação de uma nova infra-
ção administrativa ou uma alteração que torne mais grave infração
existente36 possa retroagir para incidir sobre fatos pretéritos, sob pena
de gerar insegurança aos administrados e frustrar a expectativa de
que a Administração Pública não agirá em detrimento do princípio da
confiança legítima37.

36 Nesse sentido, poder-se-ia citar como exemplo a infração de abandono de cargo que
estava prevista no §1º do artigo 256 da Lei nº 10.261/1968 e estabelecia que o servidor
estatutário praticaria a infração de abandono caso faltasse de maneira consecutiva ao
trabalho por mais de 30 dias e agora, com a nova previsão trazida pela Lei Complementar
nº 1.361, de 21 de outubro de 2021, passou a estabelecer que a infração de inassiduidade
(consecutiva) se caracteriza após 15 dias de faltas consecutivas ao trabalho. Nesse caso,
o prazo reduzido é considerado maléfico ao servidor público estatutário, de modo que não
pode retroagir para alcançar um servidor por faltas anteriores à entrada em vigor da nova
disciplina mais gravosa, sob pena de injusta e ilegítima retroação.
37 Sobre o princípio da confiança legítima aplicável à Administração Pública, interessante
ponderação feita por Francesco Caringella: (no original) “La tutela dell’affidamento legittimo
è l’incarnazione di un principio non scritto. Se si eccettua infatti l’ordinamento tedesco, che si
occupa ex professo (agli artt. 20 e 29 del Grundgesetz), del vertrauensschutz (così assurgendo
a principio dello Stato di diritto, ossia a Rechtsstaatsprinzip), le fonti comunitarie ed i sistemi
europei coniano il legittimo affidamento, ovvero la legittimate expectation o ancora la confiance
lègitime (figlia o parente della securité juridique) alla stregua di categoria naturale del diritto non
scritto. Nonostante l’assordante silenzio della legislazione, la Corte di Giustizia a tal punto non
dubita dell’esistenza e della baricentricità dell’istituto da non avere remore nell’affermare che
il principio di tutela dell’affidamento fa parte del diritto comunitario. Ad esso quindi fa rinvio
l’art. 1 della legge 241/1990, che, dopo la riforma di cui alla L. 15/2005, rinvia ai principi
generali dell’ordinamento comunitário ai fini della regolazione dell’azione amministrativa”.
(CARINGELLA, Francesco. Manuale di diritto amministrativo. 4. ed. Roma: Dike Giuridica
Editrice, 2011, p. 1062-1063).

25
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Por sua vez, não se aplica ao direito sancionador a retroativi-


dade38 da lei mais benéfica39, tal qual no direito penal, caso o servidor
já tenha sido penalizado administrativamente, havendo “coisa julgada
administrativa”. Nesse sentido, não há que se falar na necessidade de
revisão de penalidade aplicada ao servidor que incidiu em falta funcional
de improbidade administrativa por violação de princípios, hoje não mais
contemplada na nova redação do artigo 11 da Lei nº 8.429/1992 com
a redação alterada pela Lei nº 14.230/2021, pois a situação do acusado
já estava definida ao tempo da alteração.
O mesmo fundamento não se pode utilizar se o processo administrativo
disciplinar estivesse em curso e não concluído ao tempo da alteração legal,
pois no momento de realizar o relatório final que embasará o ato da
autoridade competente à infração já não existe, posto ter havido alteração
da norma do artigo 11, exigindo a subsunção da conduta praticada pelo
servidor num dos incisos que se seguem ao caput.
Nesse cenário, não se trata de retroatividade da lei mais benéfica,
mas sim impossibilidade jurídica de aplicar infração administrativa não
mais contemplada no ordenamento jurídico, isso porque o inciso XIII do
artigo 257 que prevê a hipótese de demissão a bem do serviço público por
ato de improbidade não define o que seria improbidade, numa espécie de
“norma administrativa em branco”40, em que o conceito de improbidade
é extraído diretamente da Lei Federal nº 8.429/1992.

IV) Princípio da culpabilidade e do non bis in idem

Como um standart do Direito sancionador, o princípio da culpabilidade


assegura que ninguém poderá ser punido pela Administração Pública se não
tiver agido com intenção deliberada de violar a norma (dolo) ou, ao menos,

38 Rafael Munhoz de Mello diferencia o racional que demanda a retroação benéfica no direito
penal e no direito a partir do inciso XL, do art. 5º da Constituição Federal: “Peculiaridades essas
atreladas à existência de razões humanitárias que, no âmbito penal, justificariam a retroatividade
da lei mais benéfica, mas não no administrativo” (MELLO, op. cit., p. 154-155).
39 Nesse sentido, o entendimento exarado pela Procuradoria Administrativa nos pareceres
PA nº 257/2003 e 306/2003.
40 Por norma penal em branco tem-se o tipo penal cujo complemento se encontra em outro ato
normativo, de igual hierarquia (norma penal em branco homogênea) ou em ato normativo
de hierarquia inferior, e.g. Resolução (norma penal em branco heterogênea).

26
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

tenha deixado de agir em conformidade com os deveres objetivos de cuidado


(culpa). Não se admite no campo disciplinar a responsabilização objetiva
do servidor ou empregado público.
Segundo sustenta Flávio Henrique Unes Pereira acerca do princípio
da culpabilidade: “Se não bastasse o Estado Democrático de Direito como
alicerce do princípio da culpabilidade, o art. 37, §6º, da Constituição da
República de 1988, determina a adoção da responsabilidade subjetiva
nas relações entre o Estado, ou de quem lhe faça as vezes, e o agente
público”41. Destaca também o autor que a Lei de Introdução às Normas
do Direito Brasileiro (LINDB), alterada pela Lei nº 13.655/2018, no seu
art. 28, afirma que o “agente público responderá pessoalmente por suas
decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”42.
Por outro lado, o acusado em processo administrativo não pode ser nova-
mente processado pelos mesmos fatos a que já foi condenado anteriormente na
seara administrativa, uma vez que incide no processo disciplinar o brocardo
do non bis in idem. Todavia, em razão da independência das instâncias e dos
bens jurídicos tutelados na seara penal, civil e administrativa, eventualmente
o acusado poderá ser condenado nas três esferas pelo mesmo fato43, sem que
isso importe em violação ao princípio do non bis in idem.
Outros princípios também são aplicáveis ao direito sancionador
e também decorrem do conjunto de garantias individuais previsto na
Constituição Federal, como o princípio da individualização da pena,
da vedação da prova ilícita, dentre outros, mas a análise exarada permite,
com certo grau de tranquilidade, evidenciar a identidade própria desses
princípios constitucionais do direito sancionador, não sendo possível
neste estudo realizar uma análise pormenorizada de todos eles.

41 PEREIRA, Flávio Henrique Unes. Sanções disciplinares: o alcance do controle jurisdicional.


2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 79.
42 Ibidem, p. 82.
43 Com a alteração havida na Lei de Improbidade (Lei nº 14.230/2021) o §6º do artigo 12
passou a exigir que o Juiz, no momento de fixação do dano a ser reparado, deduza desse
montante o que já tiver sido objeto de ressarcimento nas demais searas pelo réu: “Se ocorrer
lesão ao patrimônio público, a reparação do dano a que se refere esta Lei deverá deduzir o
ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, civil e administrativa que tiver por objeto
os mesmos fatos” (BRASIL, 2021, art. 12). Essa alteração prestigia o princípio do non bis
in idem, ainda que sob o enfoque da reparação do dano.

27
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

3. RACIONALIDADE DO DIREITO DISCIPLINAR

Se no passado a resposta punitiva44 encontrava esteio no pensamento


do direito administrativo, assentado no princípio da imperatividade dos
atos emanados da Administração Pública em face dos administrados,
numa relação verticalizada, hodiernamente é sentida de maneira sólida
uma ação disruptiva que concita todos os operadores do direito a uma
reflexão sobre a racionalidade do direito sancionatório e da finalidade
da imposição de pena.
Por muito tempo o Poder Público impingiu nos administrados em
geral e também nos agentes públicos uma cultura institucional lastreada
na imperatividade e na força estatal, uma política que possuía como único
e primeiro instrumento a punição, acarretando falhas sancionatórias45,
formando uma imagem que restou conhecida como a “Administração
Pública Adversarial”.

44 Com a experiência adquirida nos últimos sete anos de atuação como Procurador do Estado
Assistente na Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, foi possível identificar que
a resposta exclusivamente sancionatória encontrou seu ponto máximo de inflexão, exigindo
de maneira premente a construção de um conjunto de instrumentos complementares que
permita ao Administrador Público soluções mais adequadas aos conflitos, em especial,
em relação às situações cuja lesividade ao ordenamento jurídico não demandem aplicação da
pena expulsória ao servidor. Dessa maneira, não há dúvidas de que as medidas consensuais
introduzidas no ordenamento estadual pela Lei Complementar nº 1.361/2021 vieram
em boa hora, demandando agora uma postura proativa da Administração para tornar
a implementação dos institutos efetiva.
45 Ao analisar as falhas sancionatórias no campo das concessões do serviço público, Juliana
Bonacorsi de Palma aponta cinco axiomas que as explicariam, apontamentos que, embora
sejam dirigidos às concessões públicas, possuem perfeita aplicação ao sistema disciplinar:
“i) legalismo estrito, em que qualquer incompatibilidade normativa ou clausular enseja
automática responsabilização da concessionária (servidores), com absoluta insensibilidade ao
contexto e aos efeitos concretos sobre a prestação do serviço público; ii) enquadramento estático
da conduta reputada infracional, de forma descolada dos antecedentes e do grau de colaboração
da concessionária (servidores) com as autoridades públicas; iii) punitivismo, em que a sanção
é tida mais como retribuição à conduta reprovável que técnica regulatória (política sancionatória
adequada), razão pela qual deve ser obrigatoriamente aplicada diante da ocorrência de uma
infração ou irregularidade simples; iv) sobrevalorização do efeito simbólico da sanção pelo
pressuposto forte de que a simples reprimenda sancionatória enseja imediato ajustamento da
conduta da concessionária (servidores) e dos demais atores sem lastro em evidências, pesquisas
empíricas ou dados da ciência comportamental; v) imperatividade, seja pela desconfiança da
consensualidade ou seu completo afastamento no caso concreto” (PALMA, Juliana Bonacorsi.
Identidade das sanções administrativas nas concessões de serviço público. In: TAFUR, Diego
Jacome Valois; JURKSAITIS, Guilherme Jardim; ISSA, Rafael Hamze (coord.). Experiências
práticas em concessões e PPP: estudo em homenagem aos 25 anos da lei de concessões. São Paulo:
Quartier Latin, 2021. v. 1, p. 426, grifo nosso).

28
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

As mudanças no cenário organizacional e também as complexas


relações que são diariamente estabelecidas entre o Estado de um lado
e os particulares e os servidores de outro, não mais comportam uma
solução simplista fundada exclusivamente no binômio infração/sanção,
exsurgindo a necessidade de se pensar em modelos sancionatórios mais
abrangentes que tenham um leque de ferramentas para ser usado para
resolver os distintos conflitos que se apresentam.
Isso porque o poder sancionatório que originalmente encontrava
sua razão de ser nas prerrogativas públicas que conferiam ao Poder
Público poderes fundados em normas derrogatórias e exorbitantes do
direito comum (imperatividade na aplicação direta de penalidades),
modernamente demanda uma análise voltada ao princípio da
eficiência que busca na concepção de uma Administração Pública
de resultados a formação de uma adequada política de governança
pública na seara sancionatória.
Assim, como ponto de partida, deve ser pensada uma política
pública para evitar o cometimento de infrações, o que demanda o esta-
belecimento no ordenamento jurídico de estratégias dissuasórias,
como destacado por Alice Voronoff:
As teorias dissuasórias de justificação da pena (“deterrence Theories”)
propõem uma abordagem econômica da punição construída a partir
de raciocínios alinhados à chamada análise econômica do direito –
“Law and Economics”, notadamente com lastro nas teorias esposadas
pela chamada “Escola de Chicago”.46

Para essa vertente teórica a infração à legislação irá ser praticada


pelo agente quando os incentivos para sua prática forem superiores aos
riscos de ser apenado, considerando que o homo economicus levará

46 VORONOFF, op. cit., p. 82. A autora prossegue, destacando que: “Coube a Gary Becker,
um dos expoentes da Escola de Chicago explorar esse enfoque de dissuasão ótima no campo
punitivo. Para o autor, o crime deve ser encarado como uma atividade economicamente
relevante. […] uma pessoa comete um crime se a utilidade esperada para ela exceda a
utilidade que ela poderia obter usando o seu tempo e outros recursos em outras atividades.
Algumas pessoas se tornam ‘criminosos’, portanto, não porque a sua motivação difira da de
outras pessoas, mas porque os seus benefícios e custos diferem […]”. Ibidem, p. 86.

29
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

em consideração os benefícios e os prejuízos a serem eventualmente


suportados em caso de ser punido47.
A utilização das “armas”48 mais gravosas tão somente, não tem
se mostrado suficiente para operar o efeito dissuasório esperado pela
Administração Pública, o que traz à tona a necessidade de pensar em
ferramentas complementares como forma de aperfeiçoar o modelo
sancionatório disciplinar.
Verifica-se a necessidade de se pensar nos mecanismos que irão
integrar o programa sancionatório que se afigure como um modelo ótimo
disciplinar e que possa resultar em maior eficiência na organização dos
servidores públicos, culminando na consequente melhoria dos serviços
prestados aos administrados.
Como já destacado anteriormente, não se apregoa com esse pen-
samento o banimento da sanção ou a redução de sua importância no
sistema disciplinar, e sim uma oportunidade de revisitar o significado
do devido processo legal no campo disciplinar, com estudo de mecanis-
mos que formam um programa amplo sancionatório.
Desse modo, serão analisadas abaixo as ferramentas de regulação
responsiva, como forma de evitar o cometimento das infrações funcionais
e trazer os incentivos corretos para o aprimoramento do servidor público,
os mecanismos consensuais introduzidos no sistema disciplinar estadual que
possibilitam resolver adequadamente os conflitos em relação às infrações
de pequeno e médio potencial ofensivo e estimulam, inclusive, o chamado
self report49 e programas públicos de reportantes.

47 São reiterados os casos de servidores públicos que após obterem afastamentos por longos períodos
para tratar de problemas de saúde, passam a exercer atividade remunerada na iniciativa privada
em violação ao quanto disposto no artigo 187 da Lei nº 10.261/68, sujeitando-se à penalidade
de demissão. O prognóstico do benefício econômico nesses casos supera os riscos da descoberta
(na visão dos infratores), pois continuam percebendo integralmente suas remunerações durante
o período de licença saúde e ainda auferem renda pelo trabalho junto à iniciativa privada.
48 Esse pensamento de utilização de mecanismos responsivos e outras técnicas dissuasórias
antes da utilização das “grandes armas” estão bem apontados por Ian Ayres e John
Braithwaite em: AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive regulation: trancending
the deregulation debate. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 19-53.
49 O sistema do self report já possui larga utilização no direito penal com a delação premiada
(Art. 3º-A da Lei nº 12.850/2013, com a redação dada pela Lei nº 13.964/2019), prevendo
no artigo 4º a possibilidade de ser concedido pelo juiz o perdão judicial ou a redução

30
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

Esses mecanismos podem contribuir com o descortinamento de


esquemas de desvios de dinheiro no interior da Administração Pública,
viabilizando medidas eficientes de combate à corrupção e desestímulo
à prática de condutas desconformes à lei, formando, assim, um conjunto
de técnicas de gestão do sistema disciplinar, o que permite deixar a indis-
pensável via punitiva para os casos mais graves.
Para a tomada de decisão pela autoridade acerca de qual mecanismo
irá utilizar dentre aqueles vislumbrados no programa sancionatório,
revela-se essencial a motivação do ato, para que a escolha não atenda
a capricho ou vingança, mas sirva para o atingimento do melhor inte-
resse público50, o que somente poderá ser objeto de controle no caso

da pena: “Art. 4º. O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial,
reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva
de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação
e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes
resultados” (BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa
e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais
correlatas e o procedimento criminal. Diário Oficial da União: edição extra, Brasília, DF,
p. 3, 5 ago. 2013). Podem ser também citados os acordos de leniência como o já consagrado
programa instituído há longa data pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que
traz no seu artigo 86 benefícios para a empresa que trouxer ao conhecimento da autoridade
antitruste acerca da existência do cartel, fornecendo provas para o desmantelamento da
organização, poderá ser beneficiado com a isenção de responsabilidade administrativa
e também penal: “Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá
celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública
ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo,
com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde
que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa
colaboração resulte” (BRASIL. Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011. Estrutura
o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência; e dá outras providências. Diário Oficial
da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 1 dez. 2011). Não existe instrumento similar no
sistema disciplinar paulista, o que pode ser um campo a ser explorado com a previsão
de um Acordo de Não Persecução Disciplinar, cuja proposta está sendo veiculada por este
articulista na tese de mestrado a ser apresentada perante a Fundação Getúlio Vargas.
50 Nesse sentido, cabe menção ao Artigo 5º, da Lei de Processo Administrativo Estadual:
“A norma administrativa deve ser interpretada e aplicada da forma que melhor garanta
a realização do fim público a que se dirige” (SÃO PAULO, 1998, art. 5º). E na tarefa de
bem fundamentar a decisão deve o gestor estar atento não somente ao texto legal, mas
igualmente às práticas e costumes administrativos, aos precedentes, inclusive, em relação
aos acordos anteriormente firmados, às súmulas administrativas, sob pena de que a escolha
pública possa ser invalidada de ofício ou em grau de reconsideração na via administrativa
no exercício da autotutela (Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal) ou por
meio do controle judicial por força do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário
(BRASIL, 1988, Art. 5º, inciso XXXV).

31
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

de serem exteriorizadas as razões de fato e de direito que deram ensejo


àquele ato51.
Embora seja viável concluir que a competência sancionatória possa
ser afastada para que seja utilizada a consensualidade no caso concreto,
não se pode olvidar o incremento do ônus argumentativo da autoridade
competente com vistas a demonstrar que a medida alternativa melhor
atende a finalidade pública, representando a melhor solução para o conflito.

3.1. Administração Pública e a regulação responsiva

A finalidade precípua das sanções disciplinares não é impor uma


reprimenda ao servidor público que incidiu em infração funcional,
mas servir como um instrumento apto a garantir o regular desenvol-
vimento do serviço público, com vistas a gerar maior engajamento
e sinergia entre a Administração e os agentes públicos.
A propósito, o ideal é que o desenho de um bom programa sanciona-
tório possa servir ao desiderato eminentemente orientativo, colaborativo
e dialógico, estabelecendo um sistema de rede entre o Poder Público
e aqueles que cumprem a relevante missão institucional de executar
as atividades administrativas do Estado.
No caso, a utilização das técnicas responsivas52 pode se mostrar
extremamente útil na conformação de um adequado programa sanciona-
tório na esfera disciplinar, pois é baseada justamente num escalonamento
das medidas que devem ser utilizadas para dissuadir a prática de ilícitos
funcionais, manter uma relação de diálogo e conscientização do agente
quando o comportamento não estiver de acordo com o ordenamento
jurídico, passando pelas medidas consensuais, podendo chegar à adoção
das medidas punitivas quando as medidas anteriores não forem suficientes

51 Nesse ponto também a Lei nº 10.177/98 prevê: “A motivação indicará as razões que
justifiquem a edição do ato, especialmente a regra de competência, os fundamentos de fato
e de direito e a finalidade objetivada” (SÃO PAULO, 1998, art. 9º).
52 Importante destacar que a regulação responsiva foi criada para buscar resolver
os problemas que ocorriam entre Regulador e Regulado no campo no contexto da atividade
regulatória do Estado, portanto, a utilização da presente teoria para auxiliar na construção
de um adequado programa sancionatório se dá a partir de uma adaptação do modelo,
considerando as particularidades do sistema disciplinar.

32
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

para restabelecer o adequado desempenho das atividades pelo servidor


ou quando a conduta praticada for de tal gravidade, que a utilização dos
instrumentos menos gravosos não se mostre eficiente e adequada.
A respeito da regulação responsiva vale trazer o destaque de Alice
Voronoff, ao mencionar a visão dos idealizadores da teoria (Ian Ayres
e John Braithwaite): “Para os autores, o sucesso da regulação nas sociedades
atuais, complexas e dinâmicas reside em um sofisticado balanceamento.
Nem as medias punitivas e rigorosas seria per se eficientes, nem as respostas
suaves e persuasivas”53.
Pelas técnicas responsivas se pretende possibilitar ao agente objeto
da ação estatal maior capacidade de compreender a dinâmica do
funcionamento da máquina pública e poder auxiliar o Poder Público
nesta tarefa de planejar e executar as políticas públicas, reduzindo
a assimetria informacional entre a Administração Pública e seus agentes,
capacitando, no caso do direito disciplinar, os servidores para colaborar
para o indene desenvolvimento do serviço público.
De maneira muito simplificada, a regulação responsiva se estrutura
a partir de um modelo piramidal, que prevê em sua base medidas de apoio
e engajamento, sem conteúdo punitivo, que deve ser seguida como primeira
providência, passando-se para as outras camadas, no caso de a anterior não
surtir os efeitos esperados, podendo chegar, finalmente, às “armas” mais fortes,
que no caso do direito disciplinar seria a aplicação da penalidade.

3.1.1. Tit-for-tat enforcement (TFT)

A teoria da regulação responsiva pressupõe a utilização do sistema


denominado tit-for-tat enforcement (TFT), com utilização de técnicas
dialógicas54 que conduzam o administrado para o regular comportamento,

53 Como bem observa Alice Voronoff: “a regulação responsiva corresponde a um modelo teórico
desenvolvido por Ian Ayres e John Braithwaite na obra Responsive regulation: transcending the
deregulation debate, publicada em 1992”. VORONOFF, op. cit., p. 131-132.
54 A Procuradoria de Procedimentos Disciplinares possui a atribuição de prestar orientação
técnica sobre a aplicação da lei em matéria disciplinar para as unidades administrativas,
conforme inciso VI do artigo 1º da Lei Complementar estadual nº 1.183/2012, mister
esse que vem exercendo constantemente com a realização de seminários e palestras para
as Secretarias. Já houve ciclos de formação em apuração preliminar na Secretaria de
Administração Penitenciária, na Secretaria de Saúde e na Secretaria da Educação, cabendo

33
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

mas ao mesmo tempo mantenha, na órbita normativa, a possibilidade de


aplicação das medidas mais gravosas, como a efetiva punição e até a apli-
cação da penalidade expulsória do servidor público.
Nesse sentido, verifica-se a importância de ser estabelecida pela
Administração Pública técnicas responsivas no sistema disciplinar que
sirvam ao propósito de evitar o cometimento de ilícitos funcionais como
alternativa à imposição de sanção.
O efeito de prevenção geral da pena é verificado não somente quando
uma sanção é aplicada, mas também pode ter seus reflexos sentidos
na vedação legal ao servidor punido de ser beneficiado pelas medidas
consensuais, exempli gratia com a celebração do termo de ajustamento
de conduta e da suspensão condicional da sindicância, o que já se apre-
senta como um alerta ao servidor para que se conduza corretamente,
pois o servidor que estiver impedido de celebrar os acordos substitu-
tivos e vier a ser condenado em sede de sindicância, pode ter como
consequência, para além da pena, a interrupção do cômputo do tempo
para aquisição de licença-prêmio.
No quadro dos incentivos dispostos pelo ordenamento jurídico
para a atuação do agente público em conformidade com a lei e com
a eficiência no serviço público, tem-se para alguns cargos a previsão do
prêmio de produtividade55, dentre outros benefícios/incentivos de cará-
ter funcional, que mesmo sem relação direta com a questão disciplinar
propriamente dita, auxiliam no reforço dos estímulos corretos para que
o servidor adote boas práticas em sua atividade funcional.
Esses instrumentos legais se apresentam também como mecanis-
mos responsivos para que o servidor permaneça motivado a cumprir
adequadamente suas funções e ao mesmo tempo se veja desincentivado

destacar o último ciclo de treinamento ocorrido no ano de 2021, realizado com as 81


diretorias de ensino da Pasta, sob o título: “Procedimentos Disciplinares e Resolução de
Conflitos: quebra de Paradigmas Punitivos”. Foram ao todo oito seminários, cada qual
abrangendo de 10 a 15 diretorias de ensino, realizado pela plataforma Microsoft Teams,
que capacitou mais de 1.000 servidores da Secretaria da Educação que trabalham direta
ou indiretamente com apuração preliminar em matéria disciplinar.
55 No caso da Procuradoria-Geral do Estado existe o Prêmio de Incentivo à Qualidade
e Produtividade – PIQP (LC nº 907/2001).

34
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

a perpetrar faltas funcionais, sob o risco de vir a ser punido ou perder


direitos e benefícios junto à Administração Pública56.
No caso da suspensão condicional da sindicância há destaque para a veda-
ção de que o interessado na formalização do acordo substitutivo esteja ocupando
ou venha a ocupar cargo ou função de confiança, o que também evidencia um
incentivo escalonado até chegar à aplicação da sanção, pois o melhor cenário é
o não cometimento de qualquer irregularidade. Se ocorrer uma falha passível
de incidir a consensualidade, sua adesão ao acordo evita a punição, mas repre-
senta um óbice à ocupação de cargos e funções de confiança na Administração
pelo período de um a dois anos, prazo de cumprimento do acordo, conforme
previsto no §5º do artigo 267-N da Lei nº 10.261/1968.
Também deve ser levado em conta como técnica responsiva a cons-
cientização do servidor acerca da importância de manter seu histórico
funcional incólume, evitando-se, justamente, dano reputacional,
que pode gerar impacto na evolução profissional do servidor ou gerar
agravamento da penalidade em caso de reincidência.
As técnicas responsivas podem dar maior efetividade ao lado do clás-
sico ferramental de comando e controle das punições, quando for capaz de
inibir condutas desconformes que seriam levadas a efeito pelos servidores,
seja pelo receio causado pelo efeito repressivo da pena aplicada a outros
servidores, seja pela adesão a acordos substitutivos da pena, gerando o efeito
comportamental esperado decorrente da sistemática sancionatória.
Para evitar o cometimento de novas infrações, o conjunto de medidas
dispostas no desenho sancionatório deve gerar no agente público o sen-
timento de que o custo por violar a lei é demasiadamente maior do que
o de cumprir o seu comando. Desta feita, quanto melhor for o programa
sancionatório, maior será o efeito comportamental inibidor da prática
infracional (deterrence effect).

56 Interessante proposta foi apresentada na minuta do anteprojeto de Lei de alteração do Estatuto


dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo pelo Grupo de Trabalho instituído no âmbito
da Procuradoria pela Resolução PGE nº 19/2017, no sentido de que a penalidade de repreensão
poderia ser imposta ao servidor, com simples anotação em seu prontuário funcional, porém
sem gerar a interrupção do prazo de aquisição da licença-prêmio, medida esta que acabou não
compondo o rol de alterações enviadas no PLC 26/2021: “Art. 253 – […] Parágrafo Único –
A repreensão poderá ser aplicada com a nota de que a pena não interrompe o prazo aquisitivo
de licença-prêmio, desde que devidamente motivada a decisão”.

35
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

3.2. Consensualidade no direito sancionador

O segundo instrumento proposto no contexto de um adequado


programa sancionatório é a aplicação de mecanismos consensuais de
resolução dos conflitos. Como é cediço, a consensualidade hoje possui
centralidade na Administração Pública, apresentando-se como importante
instrumento de consecução das políticas públicas e de governança pública
na busca de eficiência e efetividade da atividade administrativa.
Sobre o fundamento dos reflexos da consensualidade na eficiência
na gestão pública, Juliana Bonacorsi de Palma destaca passagem sempre
citada pelos administrativistas de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
É inegável que a renovada preocupação com o consenso, como forma
alternativa de ação estatal, representa para a Política e para o Direito
uma benéfica renovação, pois contribui para aprimorar a governabilidade
(eficiência), propicia mais freios contra os abusos (legalidade), garante
a junção de todos os interesses (justiça), proporciona decisão mais sábia
e concedente (legitimidade), evita os desvios morais (licitude), desenvolve a
responsabilidade das pessoas (civismo) e torna os comandos estatais mais
estáveis e facilmente obedecidos (ordem).57
No sistema disciplinar paulista não havia qualquer previsão expressa
no Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de São Paulo
(Lei Complementar nº 10.261/1968) ou na Lei de Processo Administrativo
(Lei nº 10.177/1998) autorizando a celebração de acordos substitutivos,
ferramental importante de política pública que já havia sido implementado
por diversos entes federativos. Cabe destacar que alguns entes optaram pela
introdução dos mecanismos consensuais por meio de lei em sentido formal58,
enquanto outros optaram por fazê-la por atos normativos infralegais59.

57 MOREIRA NETO, Novas Tendências da Democracia: consenso e Direito Público na virada


do século – o caso brasileiro, p. 36. Apud PALMA, Juliana Bonacorsi. Atuação Administrativa
Consensual – Estudo dos acordos substitutivos no processo administrativo sancionador,
Tese de dissertação de Mestrado defendida na Universidade São Paulo, 2010, p. 84.
58 Adotaram o instituto do Termo de Ajustamento de Conduta por meio de lei formal o estado
de Tocantins por meio da Lei nº 1.818, de 23 de agosto de 2007 e o estado de Santa Catarina
por meio da Lei Complementar nº 491, de 20 de janeiro de 2010.
59 Fizeram a opção pela introdução do TAC por meio de ato infralegal a Controladoria-Geral
da União, por meio da Instrução Normativa nº 04, de 21 de fevereiro de 2020 e a Advocacia
Geral da União por meio da Portaria AGU nº 248, de 10 de agosto de 2018.

36
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

É certo que a doutrina já indicava que o artigo 26 da LINDB e também


o §6º do artigo 5º da Lei nº 7.347/1985 (Lei da Ação Civil Pública) já
poderiam ser utilizados como permissivos genéricos dando fundamentos
jurídicos suficientes para a implementação de mecanismos consensuais
pelo estado de São Paulo por meio de atos infralegais60, o que acabou não
ocorrendo, vindo a ser instituídos os mecanismos consensuais no Estatuto
dos Servidores Públicos Civis do estado de São Paulo por meio da aprova-
ção da Lei Complementar nº 1.361, de 21 de outubro de 2021.
Interessante destacar que houve a criação de três instrumentos
consensuais na Lei Complementar nº 10.261/196861, quais sejam: as práticas
autocompositivas, o termo de ajustamento de conduta e a suspensão condi-
cional da sindicância, o que mostra a abrangência do desenho de consensua-
lidade pensado para o sistema disciplinar paulista.
A propósito, verifica-se que a efetiva utilização desses mecanismos
consensuais importará em impacto extremamente positivo no sistema
disciplinar estadual, contribuindo significativamente na construção de
um programa sancionatório estadual.
A análise mais aprofundada dos mecanismos consensuais em espécie
criados pela Lei Complementar Estadual nº 1.361/2021 não se mostra
possível, tendo em vista o delimitado objeto deste estudo, que não tem
por finalidade estudar os instrumentos em si e sim apontar a relevância
deles para a composição de um programa sancionatório, razão pela qual
apenas serão feitas menções acerca das aplicações de cada um dos meca-
nismos recém-criados.
As práticas autocompositivas estão voltadas, notadamente, para os casos
evolvendo conflitos interpessoais, abarcando diversos modais, como a mediação,
a justiça restaurativa, e a conciliação, porém, essas medidas ainda demandam,
para sua efetiva implementação, a elaboração de decreto regulamentar.

60 No estado de São Paulo também poderia ser mencionado o Decreto nº 52.201/2007 como
um permissivo genérico para viabilizar a realização de acordos na seara disciplinar. Tendo
em vista que a análise mais aprofundada deste argumento fugiria do objeto do presente
artigo, sugere-se para tal finalidade a leitura do artigo de Sérgio Guerra e Juliana Bonacorsi
de Palma: GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi. Art. 26 da LINDB – novo regime
jurídico de negociação com a administração pública. Revista Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, Edição especial, p. 135-169, 2018, p. 140.
61 Os mecanismos consensuais na Lei nº 10.261/68 se encontram disciplinados, basicamente,
do artigo 267-A ao 267-P.

37
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Por sua vez, o termo de ajustamento de conduta (TAC) foi concebido


para ser utilizado na origem, pelas Secretarias e Autarquias para a reso-
lução dos conflitos envolvendo condutas culposas, em especial aquelas
que importam em dano ao erário ou resultem em extravio de bens,
cujas penalidades sejam de repreensão ou suspensão, isto é, para as
infrações de mera violação de deveres e faltas graves.
Já em relação à suspensão condicional da sindicância que abrange as
condutas dolosas e culposas passíveis de aplicação de sanção de repreensão
e de suspensão até noventa dias, essa medida permite abranger um maior
número de situações em relação ao TAC que só permite condutas culposas.
A utilização da consensualidade em detrimento da via punitiva,
com celebração de acordos substitutivos bem desenhados e que imponha
pertinentes obrigações aos servidores celebrantes é conditio sine qua
non para o sucesso do programa sancionatório vislumbrado para o
estado de São Paulo.

3.3. Programa de reportantes (Whistleblowing)

No direito estrangeiro, já existe de longa data uma cultura de


estimular que administrados reportem62 para o Poder Público falhas
ou ilícitos perpetrados por agentes públicos no seio das instituições,
havendo incentivos, inclusive, financeiros para que o particular colabore
com a elucidação de esquemas de corrupção, normalmente sendo fixado
um percentual de recompensa sobre o montante que for restituído ao
erário a partir da notícia e das provas apresentadas.
Diversamente do que ocorre nos casos de delação premiada
ou nos programas de leniência existentes no ordenamento jurídico
brasileiro, no caso do programa de reportantes, o informante não faz
parte de nenhuma irregularidade, seja ela penal ou administrativa,
mas dela tem conhecimento e por essa razão pode colaborar com
a Administração Pública.

62 Conforme ensina Irene Nohara, a “Expressão inglesa que literalmente significa ‘assoprador
de apito’, em alusão à postura antiga da polícia na Inglaterra que usava o apito para acusar
em público uma prática delituosa e chamar a atenção da sociedade” (NOHARA, Irene.
O que é whistleblower. Direito Administrativo, São Paulo, 15 fev. 2020. Disponível em:
https://direitoadm.com.br/o-que-e-whistleblower/. Acesso em: 03 mar. 2022).

38
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

Sobre o instituto houve expressa previsão na Lei Anticrime


(Lei Federal nº 13.964/2019) que alterou o artigo 15 da Lei Federal
nº 13.608/2018 dispondo sobre a figura do reportante:
Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas
autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia
mista manterão unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar
a qualquer pessoa o direito de relatar informações sobre crimes contra
a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer ações ou
omissões lesivas ao interesse público.
Parágrafo único. Considerado razoável o relato pela unidade de
ouvidoria ou correição e procedido o encaminhamento para apuração,
ao informante serão asseguradas proteção integral contra retaliações
e isenção de responsabilização civil ou penal em relação ao relato, exceto
se o informante tiver apresentado, de modo consciente, informações ou
provas falsas.63
Na linha dos incentivos corretos visando fomentar a adesão dos
administrados ao instituto, há previsão de isenção da responsabilização
na seara penal ou cível por parte do informante, proteção como regra
de sua identidade, que só será revelada em caso de relevante interesse
público ou interesse concreto para apuração dos fatos, havendo, ainda,
incentivo financeiro com a previsão de que o colaborador, no caso
de recuperação do produto do crime contra a administração pública,
em decorrência das informações por ele prestadas, poderá ter fixada em
seu favor, recompensa de até 5% do valor recuperado.
Trata-se de relevante ferramental previsto pela Lei para que a
Administração Pública possa frenar atividades ilícitas perpetradas nas
organizações estatais, bem como possa viabilizar a recuperação dos
valores pecuniários desviados dos cofres públicos.
Se de um lado o Poder Público deve buscar implementar técnicas
de regulação responsiva visando o importante efeito dissuasório,
bem como fortalecer o espaço de consensualidade para a resolução
consensual dos conflitos, por outro deve fechar o cerco aos infratores,

63 BRASIL. Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019. Aperfeiçoa a legislação penal


e processual penal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1-7, 24 dez. 2019, p. 7.

39
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

fomentando programas de reportantes e de self report de modo que os


riscos da punição se evidenciem para o infrator em maior peso em rela-
ção aos possíveis benefícios decorrentes de sua violação.
Há no direito disciplinar previsão legal do dever do servidor64 de
representar aos superiores hierárquicos qualquer irregularidade de que
tenha conhecimento no exercício da função, sob pena de incidir em
violação funcional.
Todavia, muitas vezes o agente público tem receio de representar
um colega ou seu superior hierárquico por medo de sofrer represálias ou
perseguições65, não havendo previsão legal de alguma espécie de proteção
ao servidor que cumpre com seu dever de reportar para o Poder Público,
o que precisa ser repensado para estimular melhores práticas.

64 Na Lei nº 10.261/1968 o artigo 241 estatui os deveres dos servidores públicos do estado de
São Paulo, prevendo no inciso V: “representar aos superiores sobre todas as irregularidades
de que tiver conhecimento no exercício de suas funções;” (SÃO PAULO, 1968, art. 241,
inc. V). No âmbito federal a Lei nº 8.112/90 estabelece no inciso VI do artigo 116: “levar
as irregularidades de que tiver ciência em razão do cargo ao conhecimento da autoridade
superior ou, quando houver suspeita de envolvimento desta, ao conhecimento de outra
autoridade competente para apuração;” (BRASIL. Lei nº 8.112, de 11 de novembro de
1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias
e das fundações públicas federais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1,
19 abr. 1991, art. 116, inc. VI).
65 Nesse sentido, bem lembrado por Juliana Bonacorsi de Palma o caso envolvendo a máfia dos
fiscais do ICMS: “Em 2015, fiscal de rendas do Estado de São Paulo relatou ao Ministério
Público a Máfia do ICMS. Trata-se de um esquema de corrupção maduro estruturado desde
2003 na Secretaria da Fazenda paulista envolvendo ao menos 12 agentes fiscais. A soma dos
desvios é multimilionária – em apenas uma empresa, o suborno chegou ao valor aproximado
de R$ 17 milhões entre 2006 e 2013. Em síntese, fiscais reduziam significativamente o valor
da multa pela inadimplência de pagamento do tributo – desproporcionalmente fixada – em
troca de propina. Apenas através do relato do fiscal reportante pôde ser deflagrada a Operação
Zinabre, que culminou na acusação pelo Ministério Público dos suspeitos e já levou ao
sequestro de mais de 90 imóveis e bloqueio de contas. Porém, não são apenas os fiscais
da Máfia do ICMS que respondem a processo: também o próprio reportante responde a
processo administrativo disciplinar instaurado pela Secretaria da Fazenda. Acusa-se quebra
do sigilo fiscal, pois teria repassado informações sigilosas a terceiros, já que as provas
apresentadas foram obtidas no sistema interno do órgão. […] O reportante impetrou
mandado de segurança que foi denegado em primeira instância, porém revertido em grau
de apelação pelo TJ-SP, em abril de 2019 que determinou o trancamento do processo
administrativo disciplinar.” (PALMA, Juliana Bonacorsi. O Brasil precisa de um programa
público de reportantes contra a corrupção? Juridicidade e proteção para relatos envolvendo
o poder público. In: CYRINO, André; MIGUEIS, Anna Carolina; PIMENTEL, Fernanda
Morgan (coord.). Direito administrativo e corrupção. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 179).

40
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

No âmbito do Estatuto dos Servidores Públicos Federais há previsão


expressa no artigo 126-A, com redação dada pela Lei nº 12.527/2011
(Lei de Acesso à Informação), isentando de responsabilização civil, penal
ou administrativa o servidor que der ciência à autoridade superior para
apuração de informação concernente à prática de crimes ou improbidade
de que tenha conhecimento, ainda que em decorrência do exercício do
cargo, emprego ou função pública66.
Como se vê da norma federal, há importante tutela do servidor repor-
tante relativa aos crimes e atos de improbidades reportados, o que não se
verifica na legislação bandeirante. Não obstante, mesmo na Lei nº 8.112/1990,
não houve extensão da mesma proteção ao servidor que reporta infração
funcional praticada por outro servidor ou por superior hierárquico, o que
poderia ter reforçado o sistema de incentivos para os reportantes públicos.
No âmbito do estado de São Paulo, a previsão de um programa
público de reportantes poderia representar em ganhos ao programa
sancionatório, uma vez que permite aos servidores reportantes se afas-
tarem da ilegalidade e trazer à luz esquemas perversos de desvios de
dinheiro público, incrementando os riscos e os incentivos negativos para
aqueles que pretendam se locupletar às custas do estado.

4. CONCLUSÃO

No presente estudo, o devido processo legal foi analisado em sua


perspectiva tradicional de proteção dos administrados face ao poder
estatal, sem perder de vista que a noção do que se concebe por pro-
cesso justo demanda a previsão de ferramentas mais amplas aos gestores
públicos para aplicar as medidas corretas para cada situação concreta.
A ideia de procurar uma ressignificação dos contornos do direito admi-
nistrativo sancionador não parte de preconcepções meramente terminológicas,
mas da necessidade de definir contornos mais precisos acerca dos princípios
aplicáveis ao direito disciplinar, estabelecer um programa sancionador adequado
que considere a identidade desse ramo do direito e um conjunto de mecanismos
capazes de sustentar o desenvolvimento desse desenho sancionatório.

66 BRASIL. Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações e dá


outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1-4, 18 nov. 2011.

41
INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

Quando da análise da racionalidade do direito sancionador, foram


apontadas como medidas que podem ser implementadas para um ade-
quado programa sancionatório: i) das técnicas responsivas; ii) dos meca-
nismos consensuais; iii) das medidas tradicionais de imposição de pena;
iv) dos programas de reportantes, considerando que o ótimo desenho
sancionatório pressupõe a utilização coordenada desses mecanismos.
O Poder Público tem capacidade institucional para alavancar a
cooperação quando dispõe de uma escalada de meios intimidatórios,
a serem manejados de forma responsiva67, restando o imperativo de
formulação de políticas públicas voltadas à melhoria efetiva da orga-
nização e desenvolvimento do serviço público para potencializar os
resultados esperados.
Com efeito, a Procuradoria-Geral do Estado, após a aprovação das
medidas consensuais previstas na Lei Complementar nº 1.361, de 21 de
outubro de 2021, assume uma posição ainda maior de centralidade na
promoção de políticas públicas na seara disciplinar, cabendo atuar em
coordenação com as Secretarias e Autarquias para que o sistema sancio-
natório paulista possa estar na vanguarda do direito disciplinar.
Na parte dialógica e orientativa é essencial que se dê continuidade
aos programas de capacitação dos servidores estaduais que atuam com
apuração preliminar, com ampliação dos destinatários e disponibilização
das ferramentas necessárias para aplicar as novas medidas pensadas sob
o enfoque de um novo desenho sancionatório.
No campo normativo verifica-se a importância de que sejam regu-
lamentadas por meio de Decreto estadual as práticas autocompositivas,
para que os mecanismos consensuais possam ser integralmente
implementados68, buscando aproveitar o entusiasmo das Secretarias
e Autarquias com a edição das alterações legislativas.

67 AYRES; BRAITHWAITE apud VORONOFF, op. cit., p. 144.


68 Conforme já destacado no item 3.2., o termo de ajustamento de conduta (TAC) e a suspensão
condicional da sindicância (SUSCONSIND) possuem aplicabilidade imediata, diversamente
das práticas restaurativas, cuja implementação depende de regulamentação por decreto,
por expressa exigência legal constante do artigo 267-B, da Lei nº 10.261/68.

42
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 9-46, jan./jun. 2022

Com vistas a atender adequadamente os desafios que foram trazidos


a partir da introdução dos novos mecanismos consensuais no estado
de São Paulo, será muito importante coragem para aplicar os institutos
e para experimentar novos modelos, com responsabilidade e inovação
no ordenamento jurídico na esfera disciplinar estadual.

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INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

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INÁCIO DE LOIOLA MANTOVANI FRATINI

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46
O PAPEL DA PROCURADORIA-GERAL DO
ESTADO NA REGULAÇÃO DAS PRÁTICAS
AUTOCOMPOSITIVAS INTRODUZIDAS
PELA LEI COMPLEMENTAR Nº 1.361,
DE 22 DE OUTUBRO DE 2021

Ana Paula Vendramini1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Do histórico da atuação da Procuradoria-


Geral do Estado na regulação das práticas autocompositivas no contexto
das infrações funcionais; 3 – Uma breve explanação sobre justiça
restaurativa; 4 – Da atuação da Procuradoria-Geral do Estado na regulação
das práticas autocompositivas no contexto das infrações funcionais
nos termos da nova legislação; 5 – Conclusão; 6 – Agradecimentos;
Referências bibliográficas.

RESUMO: O artigo discute qual o papel da Procuradoria-Geral do Estado


na implantação das inovações trazidas pela Lei nº 1.361, de 22 de outubro
de 2021. É resgatado o histórico da participação da Procuradoria-Geral
do Estado na seara das práticas de Justiça Restaurativa. Posteriormente,
explana-se o conceito de Justiça Restaurativa. Por fim, o referido papel é
objeto de reflexões e ponderações.

PALAVRAS-CHAVE: Procuradoria-Geral do Estado. Infrações


disciplinares. Processos disciplinares. Práticas autocompositivas. Justiça
restaurativa. Inovações legislativas.

1 Procuradora do estado desde março de 2013, atualmente lotada no Núcleo de Políticas


Públicas. Graduada e mestre em psicologia. Coordenadora do Programa de Solução
Adequada de Conflitos desde julho de 2019.

47
Ana Paula Vendramini

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo visa a oferecer uma reflexão sobre o papel da


Procuradoria-Geral do Estado no fomento e regulação das soluções
alternativas de conflitos, no âmbito disciplinar. Em 2018, com a edi-
ção da Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1, que instituiu o Pro-
grama de Solução Adequada dos Conflitos de Natureza Disciplinar,
a Procuradoria-Geral do Estado passou a coordenar a gestão da im-
plementação de práticas autocompositivas nessa seara. Por sua vez, em
2021, foi promulgada a Lei Complementar nº 1.361, de 22 de outubro,
que, dentre outras alterações, ampliou e tornou lei a utilização das refe-
ridas práticas extinguindo a punibilidade nas hipóteses em que, em tese,
o processo disciplinar não culmina no rompimento do vínculo do servi-
dor público com o estado de São Paulo. Assim, atualmente, a depender
de regulamentação por Decreto, toda infração que suscitar, hipotetica-
mente, a aplicação das penas de repreensão, suspensão e multa, confor-
me art. 267-D da Lei nº 10.261/68, comporta sua extinção por práticas
autocompositivas2. Nos demais casos, pode a penalidade ser mitigada.
Nesse contexto, diante do advento da novel legislação, é mister re-
fletir acerca de qual a participação, posição e papel que a Procuradoria
deveria, idealmente, ocupar. Será que a gestão das referidas práticas deve
ser delegada inteiramente às Secretarias, com o apoio das respectivas
Consultorias Jurídicas? Ou seria importante que a Procuradoria-Geral do
Estado atuasse de forma mais contundente e especializada nessa seara?

2 Artigo 267-D – O acordo celebrado na sessão autocompositiva será homologado pela


autoridade administrativa competente para determinar a instauração da sindicância ou pelo
Procurador do Estado responsável por sua condução.
§ 1º – O cumprimento do acordo celebrado na sessão autocompositiva extingue a
punibilidade nos casos em que, cumulativamente:
1. a conduta do funcionário não gerou prejuízo ao Erário ou este foi integralmente reparado;
2. forem cabíveis, em tese, as penas de repreensão, suspensão e multa.
§ 2º – Nos casos em que o cumprimento do acordo restaurativo não ensejar a extinção da
punibilidade, tal acordo deverá ser considerado pela autoridade competente para mitigação
da sanção, objetivando sempre a melhor solução para o serviço público.
§ 3º – A extinção da punibilidade, nos termos do § 1º deste artigo, será declarada pelo Chefe de
Gabinete, que poderá delegar esta atribuição. (NR) (BRASIL. Lei nº 10.261, de 28 de outubro de
1968. Dispõe sobre o estatuto dos funcionários públicos civis do Estado. São Paulo: Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo, [2022]. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/
legislacao/lei/1968/lei-10261-28.10.1968.html. Acesso em: 20 jun. 2022, grifo nosso).

48
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

Para embasar essa reflexão, serão analisados elementos e resultados


do Programa já instituído pela Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1,
algumas diretrizes teóricas presentes na metodologia mais amplamente
utilizada até o momento para a solução alternativa de conflitos no âm-
bito disciplinar – ancorada nos princípios, técnicas e práticas da Justiça
Restaurativa, bem como as inovações legislativas introduzidas pela Lei
Complementar nº 1.361, de 22 de outubro de 2021.

2. DO HISTÓRICO DA ATUAÇÃO DA PROCURADORIA-GERAL DO


ESTADO NA REGULAÇÃO DAS PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS
NO CONTEXTO DAS INFRAÇÕES FUNCIONAIS

Há quase quatro anos, desde 20 de julho de 2018, vige a Resolução


Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1, que implementou o Programa de Solução
Adequada dos Conflitos de Natureza Disciplinar. Esse programa, de
seu turno, é fruto de uma das conclusões da quarta subcomissão do
Grupo de Trabalho criado pela Resolução PGE nº 19, de 30 de junho
de 2017, com a finalidade de estudar medidas para o aperfeiçoamento
do sistema Disciplinar.
A 4ª subcomissão do Grupo de Trabalho primeiramente dimensio-
nou o quantitativo de infrações funcionais processadas pela Procurado-
ria de Procedimentos Disciplinares que não acarretavam o rompimento
do vínculo do servidor público com o Estado:
“[…] aproximadamente 75% dos servidores que respondem a um
procedimento disciplinar permanecem em exercício – ou foram ab-
solvidos ou receberam uma sanção que não implica o rompimento do
vínculo funcional”. Com efeito, dados das penalidades propostas nos
relatórios elaborados pela PPD no ano de 2016 sustentam, com folga,
a afirmação supra. Sem considerar a diferença entre Processo Admi-
nistrativo Disciplinar e Sindicâncias (nas quais a penalidade máxima
que pode ser aplicada é a suspensão), 82% dos servidores que res-
pondem a processo de natureza disciplinar permanecem vinculados à
Administração Pública.3

3 SÃO PAULO. Relatório final do Grupo de Trabalho criado pela Resolução PGE nº 19, de 30
de junho de 2017. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2018, p. 15, grifo nosso.

49
Ana Paula Vendramini

Veja-se que o mesmo relatório aponta que, no próprio ano de 2016,


foram concluídos na Procuradoria de Procedimentos Disciplinares 1.732
processos administrativos. Assim, conclui-se que 1.420 processos admi-
nistrativos não romperam o vínculo funcional do servidor público com
o Estado. Ainda, em tese, fosse atualmente, esses 1.420 processos admi-
nistrativos poderiam ter sido 1.420 procedimentos autocompositivos.
De qualquer modo, as referências quantitativas acima deduzidas
têm a finalidade de dimensionar o impacto, em tese, da efetiva adoção
de práticas autocompositivas na seara disciplinar. Importa ainda trans-
crever do referido relatório a conclusão da 4ª subcomissão do Grupo de
Trabalho, no seguinte sentido:
O Grupo entende que é possível e conveniente trabalhar, desde logo,
em duas frentes. De um lado, cria-se um projeto piloto que tem por
finalidade conceber e testar um modelo replicável; de outro, trabalha-
-se com a perspectiva de alteração do Estatuto, inserindo-se na Lei nº
10.261/68 a previsão do procedimento disciplinar restaurativo, a ser
regulamentado por Decreto.4
À mesma época, a procuradora do estado Ana Sofia Schmidt
de Oliveira, então responsável pela 2ª Unidade da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares, em comemoração aos cinco anos de cria-
ção da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, escreveu um arti-
go5 analisando profundamente as premissas e procedimentos basilares
ao procedimento disciplinar, confrontando-as com outros elementos
invisíveis ao referido processo, como os impactos, danos e afetos dos
servidores e Chefia envolvidos na situação conflituosa e infracional, bem
como os impactos, danos e afetos no meio ambiente de trabalho fun-
cional. Em melhores palavras e argumentos do que os aqui utilizados,
o artigo escancarou a divergência entre a realidade criada no e pelo pro-
cesso e a realidade experimentada pelos sujeitos da vivência, propondo
a paradigmática e brilhante pergunta:

4 Ibidem, p. 19.
5 OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt. Superando o paradigma punitivo. Por um procedimento
disciplinar restaurativo. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, São Paulo,
nº 85, p. 67-138, 2017.

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[…] a imposição de uma pena inquestionavelmente resolve o processo


(o que não é ruim, considerado o enorme volume de processos em an-
damento e de processos a serem relatados). E a pergunta, a essa altura
inevitável, é: resolver o processo significa resolver o problema?6
Ao que constata:
Se o problema for o acúmulo de processos, resolver (no sentido de co-
locar um fim, encerrar) é possível dizer que sim. Mas, se o problema é
o aprimoramento do serviço público, a qualidade do ambiente de tra-
balho, o restabelecimento de uma relação cordata entre os servidores e
o desempenho profissional deles, a resposta já não é tão automática.7
Por fim, não é possível deixar de aqui transcrever um pequeno tre-
cho relatando o que talvez tenha sido o primeiro procedimento discipli-
nar restaurativo do estado de São Paulo:
Baixada a Portaria que instaurou a Sindicância, os acusados foram
citados. Por ocasião do interrogatório, Carlos, o chefe acusado de
omissão, disse que deixou de elaborar um Comunicado de Evento em
face de João e Ana porque olhou para a situação e viu uma “falta de
educação”; considerou que uma conversa poderia resolver a questão.
Ana e João deram as suas versões, cada qual deles atribuindo ao outro
a responsabilidade pelo ocorrido. Ambos se mostravam ainda bastante
impactados pelo que havia acontecido. Ao término dos interrogatórios,
foi-lhes perguntado se gostariam de uma oportunidade para expres-
sar, um ao outro, os respectivos pontos de vista. Ambos disseram que
sim. Foram estabelecidas algumas regras para a conversa, ressaltando-
-se a importância (i) de ouvir sem interromper; de ouvir fazendo um
esforço para entender o ponto de vista do outro em vez de ouvir ape-
nas para contra-argumentar; (ii) de expressar os próprios sentimentos
em vez de simplesmente apontar o dedo para o outro. Assim foi feito.
Ambos, bastante emocionados, se desculparam, reconheceram que se
expressaram de forma inadequada, reconheceram o valor um do outro.
Ao final, trocaram um caloroso aperto de mão, enquanto sorriam ali-
viados desfazendo a tensão que os acompanhava desde a data do fato.

6 Ibidem, p. 75.
7 Ibidem, p. 75.

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Ana Paula Vendramini

Um deles havia vindo de carro, o outro de ônibus. Combinaram de voltar


juntos. Ambos estavam agradecidos pela oportunidade e cientes de que,
embora tivessem vivenciado ali algo muito importante, isso não necessa-
riamente teria um impacto na decisão do processo. Um resumo do que
ocorreu ficou registrado em um documento que foi juntado aos autos.
Depois, o procedimento seguiu sua tramitação normal. Testemunhas
foram ouvidas, encerrou-se a instrução, os defensores apresentaram
alegações finais. Os autos estavam prontos para a elaboração do relató-
rio final. Como mencionado no item 2 supra, as formulações de praxe
resolveriam tudo rapidamente. Seria um processo a menos. Mas algo
de diferente havia aparecido ali e propor a aplicação de uma sanção
não parecia atender a nenhum interesse além daquele representado pela
conveniência de colocar logo um fim na questão.8
Assim, a partir da publicação desse artigo e das conclusões do Grupo
de Trabalho acima referidas, foram engendradas as ações necessárias à
criação do Programa de Solução Adequada dos Conflitos de Natureza
Disciplinar, regulamentado pela Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1.
O Programa de Solução Adequada dos Conflitos de Natureza
Disciplinar, com base no relatório emanado pelo Grupo de Trabalho
formado em 2017, destinou-se a implementar o encaminhamento de
conflitos interpessoais, representantes de potenciais infrações ao dever
de urbanidade, às práticas autocompositivas.
O Programa previu a criação de dois órgãos, entre eles um Comitê Ges-
tor, de caráter estratégico e regulatório, com atribuições de, por exemplo,
definir o âmbito de atuação do Programa; estabelecer o fluxo de procedi-
mentos; identificar servidores capacitados; conceber estratégias de sensibili-
zação no âmbito dos órgãos e entidades da Administração Direta e Autár-
quica – de modo a fomentar e divulgar os princípios basilares das práticas
autocompositivas; estabelecer metodologia de registro e monitoramento
dos casos; e identificar, por intermédio da análise dos casos encaminhados
ao Centro de Práticas, situações, estruturas e procedimentos que possam ge-
rar conflitos recorrentes, recomendando sua alteração9. Ainda, esse Comitê

8 Ibidem, p. 88-89.
9 SÃO PAULO. Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1, de 20 de julho de 2018. Diário Oficial
do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, n. 135, p. 30, 24 jul. 2018.

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é coordenado por um Procurador de estado e composto por membros de


todas as Secretarias participantes do Programa – Secretaria da Educação
(SEE), Secretaria da Saúde (SES) e Secretaria da Administração Penitenci-
ária (SAP). A título de nota, cumpre esclarecer que as referidas Secretarias
foram escolhidas para a participação do Programa, vez que respondem por
cerca de 90% dos procedimentos administrativos em trâmite pela Procura-
doria de Procedimentos Disciplinares.
Além do Comitê Gestor, a Resolução também indicou a criação de
um Centro de Práticas, com a finalidade de promover os atos executó-
rios dos casos recebidos pelo Programa.
Durante sua vigência, o Programa celebrou termo de convênio
com entidade de referência na área da Justiça Restaurativa; consolidou
um fluxo de encaminhamento de casos; concebeu todos os modelos de
registros (relatório simplificado, relatório de admissibilidade, relatórios
finais); propôs um formato para avaliação continuada do Programa e
do meio ambiente funcional (pesquisas de indicadores); promoveu even-
tos, círculos de sensibilização, cursos e recebeu ainda casos de conflitos
interpessoais para sua resolução.
O Programa, sem dúvida nenhuma, acarretou a construção de muito
conhecimento pertinente à implementação de práticas autocompositivas na
Administração Pública. Um dos primeiros aprendizados de ordem estrutu-
ral e de maior dimensão foi registrado no segundo relatório emitido pelo
Programa e acostado ao GDOC nº 1000725-619727/2018, concernente à
necessidade de promoção de informações e sensibilização da Administração
Pública acerca da cultura da autocomposição. Em primeiro lugar, com o
andamento das ações do Programa, foi visibilizada a seguinte problemática:
Num primeiro momento, o foco principal do Projeto constituiu-se no
enfrentamento dos casos de conflitos. Com o Convênio em vigor e
divulgada internamente, aos Gabinetes, a existência, funcionamento,
objetivos e metodologias do Projeto, esperou-se o recebimento de casos.
Tal período perdurou entre maio e julho de 2019.
Verificando-se que os casos não vinham sendo encaminhados, o Comitê
Gestor passou a refletir sobre os fatores que poderiam estar funcio-
nando como entrave à utilização da referida tecnologia social, che-
gando às propostas de sensibilização como estratégia para aumentar

53
Ana Paula Vendramini

o quantitativo do referido encaminhamento. Partiu-se da premissa de


que uma divulgação maior, com experimentação do círculo de diálogo
seria suficiente para que os gestores passassem a repassar os casos de
conflitos para serem solucionados junto ao PRAC.
Neste sentido, foi formulada e executada uma grande ação de sensibi-
lização realizada na Escola de Administração Penitenciária, conforme
descrito no item Atividades. Ainda, à época, foram realizadas reuniões
com a Diretoria do Hospital pérola Byington e Darcy Vargas.
No decorrer de todas as reuniões e eventos realizados, o Projeto foi sem-
pre celebrado, bem recebido, com manifestos pedidos de sua continuida-
de por parte dos participantes. Ainda assim, referida receptividade não se
converteu no repasse dos casos de conflitos internos ao Programa.
Referido fenômeno é multifatorial, sendo possível se apontar algumas
causas para sua evidenciação: i) os conflitos muitas vezes não são ma-
nifestos ou são invisíveis aos níveis hierárquicos superiores; ii) o enca-
minhamento de casos pode ser interpretado, às vezes fantasiosamente,
como exposição do gestor e/ou de sua inabilidade em conduzir suas
equipes; iii) a administração pública não possui ainda familiaridade,
e/ou confiança suficientes quanto aos resultados de metodologia inova-
dora e ainda estranha às rotinas e protocolos usuais para o enfrenta-
mento de questões pertinentes a conflitos e convivência.10
Em seguida, foi formulada estratégia levando em consideração as
premissas ocultas quando se propõe a inserção de propostas de práti-
cas autocompositivas nos ambientes administrativos como modalidade
prioritária de enfrentamento de conflitos.
Veja-se que, quando as normas jurídicas migram de um modelo uni-
lateral e repreensivo para um modelo dialógico e focado em danos e
responsabilidades – ao invés das culpas e punições –, essas normas estão
partindo de determinada concepção de servidor e cultura funcional da
Administração Pública bem diversa da anterior.
Quando se propõe o enfrentamento de questões por meio do diálo-
go e reparabilidade (derivada, por sua vez, da responsabilidade) está se

10 GDOC nº 1000725-619727/2018, fls. 8-9 do segundo relatório emitido pelo Programa.

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partindo da premissa da plena capacidade de o servidor público partici-


par das soluções necessárias e corrigir seus erros. Tal situação é absolu-
tamente diversa daquela que propõe o desdobramento da questão com
base exclusivamente punitiva – nessa modalidade, a premissa é a de que
não pode haver confiança de que o servidor público tem capacidade
para participar da solução ou reparar o dano. Assim, por trás das so-
luções jurídicas disponibilizadas para os conflitos e infrações, há essas
premissas ocultas que devem compor, por si, as próprias estratégias para
a implementação de normas jurídicas inovadoras.
No caso concreto, visualizou-se a extrema diversidade de cultura
em uma e outra solução jurídica para conflitos e infrações. Assim, a solu-
ção que o Comitê Gestor passou a conceber perpassava pela continuada
informação e sensibilização para uma nova cultura administrativa:
Em vista dos aprendizados e amadurecimento que foram advindos da
própria execução do projeto, com a resposta dos agentes públicos pe-
rante as iniciativas tomadas, migrou-se do enfoque prioritário no pilar
enfrentamento de casos, para o pilar sensibilização institucional.11
A mera utilização burocrática e mecânica de meios autocompositi-
vos para a solução de conflitos e infrações – sem uma devida adequação
à sua lógica e filosofia – aniquila ou reduz extremamente o potencial
que eles trazem implicitamente, que é o de outra cultura administrativa
possível, focada em responsabilidade e diálogo.
Como se não bastasse, além de subaproveitar o potencial da in-
serção das práticas autocompositivas na Administração Pública, o não
investimento em informação de qualidade a ser divulgada e em ações
pertinentes à transformação da cultura administrativa pode acarretar
efeitos deletérios e até mesmo contrários aos desejados pela norma ju-
rídica. As práticas autocompositivas, por força da inovação legislativa
referida, vêm para substituir as punições concernentes às repreensões,
multas e suspensões. E tal substituição, com evidente inspiração no pa-
radigma da Justiça Restaurativa, está preconizada no atual artigo 267-A
do Estatuto do Servidor, baseando-se expressamente nos princípios da
corresponsabilidade e reparação do dano.

11 Ibidem, p. 10.

55
Ana Paula Vendramini

Ora, numa cultura administrativa desfavorável – ou numa facilitação


malconduzida – qual a imagem e significado que as práticas autocomposi-
tivas vão ganhar? Vão ganhar a fama, baseada em absoluta falta de conhe-
cimento técnico, de que representam a malfadada impunidade, o famoso
passar a mão na cabeça. A Administração Pública perderá um recurso de
adequação de comportamento do servidor, qual seja, a punição – ainda
que ela seja absolutamente criticável em uma série de aspectos, para nada
pôr em seu lugar.
Assim, se essa Administração Pública não se apoderar do verdadeiro
sentido das práticas autocompositivas, as intenções da norma se perdem
e geram problemas adicionais ao funcionamento do Estado. De quebra,
vulnerabilizam ainda mais a imagem do servidor público perante a socie-
dade, tão precisada atualmente de uma nova significação e valorização.
Um segundo grande aprendizado que o Programa possibilitou, ain-
da não reproduzido em relatório, concerne ao modelo utilizado para
a facilitação de casos. Num primeiro momento, a aposta do Comitê foi a
celebração de um termo de convênio com uma entidade de referência na
área. Supostamente, a experiência e conhecimentos da referida entidade
seriam o suficiente para o sucesso do Programa. Entretanto, num segun-
do momento do Programa, quando os casos passaram a aportar, houve
uma série de entraves para a adequação de oferta (de facilitadores) e
demanda (de casos). Principalmente, quando começaram a aumentar os
casos, a oferta de facilitadores não foi suficiente para suprir as deman-
das. No mais, o esperado é que, com a amplificação de programas desse
gênero, a demanda tenda a ter acentuado crescimento por um longo
período até que se estabilize, de modo que dificilmente uma entidade
contratada dará conta da larga demanda por vir.
A título de exemplo, vamos computar os procedimentos discipli-
nares do ano de 2016 que hoje, com a Lei Complementar nº 1.361/21,
poderiam – a depender ainda de Decreto regulamentador – ser encami-
nhados à autocomposição. Como se disse acima, 1.420 casos, naquele
ano, poderiam ter tido tal destino. Por mês, seriam cerca de 118 casos em
que é necessário ainda a presença de dois facilitadores. Se cada facilitador
conseguisse começar e terminar três casos num mês (o que é um número
elevadíssimo, já que os facilitadores não eram remunerados, não tinham
dedicação exclusiva e dificilmente casos complexos tardariam somente

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

um mês para serem resolvidos), ainda assim seriam necessárias 40 duplas


de facilitadores – somando um total de 80 pessoas.
Por outro lado, se para uma entidade privada ou sem fins lucrati-
vos o quantitativo de 76 pessoas formadas em mediação, conciliação ou
técnicas de Justiça Restaurativa é um número absolutamente expressivo,
se se considerar o universo apenas das três Secretarias participantes do
Programa – SAP, SES e SEE – e PGE, tal montante é mínimo.
Dessa forma, seria muito menos custoso ao Estado investir na capa-
citação continuada de um, proporcionalmente, pequeno quantitativo de
servidores no espectro de muitas Secretarias – e que não necessariamen-
te precisariam possuir dedicação exclusiva ao Programa, bastando uma
participação por algumas horas da semana – do que em entidades con-
veniadas para promover as facilitações das práticas autocompositivas.
Como se não bastasse, a facilitação de casos por servidores públicos
sequer representaria desvio de função, por ser dever inerente a todo servi-
dor público a devida manutenção do ambiente de trabalho: “São deveres
do funcionário: […] XII – cooperar e manter espírito de solidariedade
com os companheiros de trabalho”12.
Por fim, o Estado já possui e se utiliza desse modelo de selecionar al-
guns servidores para algumas funções adicionais como o caso, a título de
exemplo, dos apuradores preliminares. Via de regra, os apuradores preli-
minares não exercem exclusivamente essa função, mas são convocados a
tal quando necessário. A diferença para o caso de servidores facilitadores
é que os últimos necessitam, absolutamente, de uma capacitação inicial e
uma formação continuada. Além disso, é importante frisar que no caso
dos apuradores está expresso que a “a autoridade realizará apuração”13,
enquanto que nas hipóteses de realização de práticas autocompositivas
determina-se que a autoridade vai submeter o caso às práticas auto-
compositivas, não que ela realizará as práticas autocompositivas. Assim,
por mais que se argumente que é mais adequado que a facilitação das
práticas autocompositivas se faça por servidores, importante reconhecer
que a Lei não se limita a essa possibilidade.

12 BRASIL, 1968, art. 241.


13 Ibidem, art. 264.

57
Ana Paula Vendramini

Como se não bastasse, o Estado, ao eleger a estratégia do servidor


facilitador estaria ainda contribuindo de modo muito mais incisivo para
a transformação da cultura administrativa do que ao contratar facili-
tadores externos, por vezes muito pouco familiarizados com a lógica
própria do Estado, suas peculiaridades e modo de funcionamento.
Outros resultados do Programa experimentados como sendo muito
positivos referiram-se à proposta de que os membros do Comitê Gestor
também empreendessem à facilitação de casos, bem como a composição
intersecretarial que foi atribuída a esse órgão.
A princípio, a atribuição precípua dos membros do Comitê Gestor,
conforme acima esposado, concerne a formular os aspectos estratégicos
do Programa. Ocorre que a não segmentação absoluta entre o pensar o
Programa e sua execução proporcionam que este esteja em contínua e
permanente progressão. A prática e execução do que se está propondo
fornecem informações valiosas sobre como o idealizado está se materia-
lizando na consecução do Programa e ainda permite seu acompanha-
mento de forma aprofundada e comprometida. Ressalte-se ademais que
sói comum a crítica em diversos âmbitos da Administração Pública da
cisão e disparidade de perspectivas entre proponentes/gestores e execu-
tores. Muitas vezes, aponta-se que referida cisão contribui para planeja-
mentos, acompanhamentos e medidas interventivas ineficazes e até mes-
mo inexequíveis, tornando a gestão muito mais custosa e desgastante.
Veja-se um exemplo de como a assunção de algum grau de execu-
ção do Programa contribui para sua melhor gestão. O fluxo dos casos
primeiramente desenhado estipulava que, admitido o caso ao Programa,
seria o servidor contatado pelo facilitador para agendar o primeiro en-
contro do processo, denominado este de pré círculo, com a finalidade
de oferecer-lhe uma escuta qualificada, bem como informar acerca do
Programa e processo circular (metodologia específica de Justiça Restau-
rativa escolhida pelo Programa). Pois bem. Após a realização de um
determinado número de pré círculos, identificou-se que este primeiro
contato com o servidor apresentava uma série de dificuldades. Pelo seu
ineditismo, o Programa é muito pouco conhecido pela imensa maioria
dos servidores públicos, de modo que o contato pelo facilitador gerava
estranhamento e padecia de grande falta de legitimidade – os servido-
res estranhavam o contato e era difícil inspirar sua confiança na legiti-

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midade da intervenção. Com base nesses resultados, o Programa está


atualmente testando o contato inicial com a Chefia imediata do referido
servidor. Essa prática tem ofertado melhores resultados, pois termina
por também informar as Chefias acerca de outras possibilidades de en-
frentamento de conflitos.
Quanto à composição do Comitê Gestor por servidores de diver-
sas Secretarias, os resultados têm sido também bastante frutíferos. Cada
Secretaria apresenta suas especificidades, peculiaridades e eficiências
próprias; então, as propostas debatidas acabam incorporando os pon-
tos mais fortes de contribuição de cada uma das Pastas e, como se não
bastasse, possibilitam sim um grau de uniformização que é coerente com
essas peculiaridades.
No mais, em linhas mais amplas, a concretização recorrente de Co-
mitês, órgãos e fóruns intersecretariais criam expressivo incremento no
diálogo institucional, promovendo fértil campo para inovações no âmbi-
to do Estado. Ainda, fortalecem estruturas vigentes, as tornando menos
suscetíveis e frágeis quando da alternância do comando do Estado.
Concluindo, acima foram exemplificados alguns dos aprendizados
que o Programa de Solução Adequada de Conflitos proporcionou, den-
tre muitos outros. Atualmente, o Programa se encontra vigente, tendo-se
em vista que a Legislação que ampliou a incidência das práticas auto-
compositivas no âmbito das infrações funcionais carece ainda de regu-
lamentação via Decreto. O foco do Programa hoje é o de promover ex-
perimentações para criar uma base segura para a implantação em massa
das práticas autocompositivas, quando a Lei for regulamentada.

3. UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE JUSTIÇA RESTAURATIVA

É importante, a esta altura, a explanação de algumas conceituações


centrais à Justiça Restaurativa para o prosseguimento da presente re-
flexão. E por que a teoria base para a reflexão será aquela que sustenta
a Justiça Restaurativa e não, por exemplo, aquela que fundamenta as
práticas de mediação e conciliação, se a Lei Complementar nº 1.361, de
21 de outubro de 2021 também as admite?
Com efeito, a Lei Complementar nº 1.361, de 21 de outubro de 2021
acrescentou o Capítulo III ao Título VII do Estatuto do Servidor citando as

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Ana Paula Vendramini

práticas autocompositivas de modo genérico. Ainda, o § 2º do art. 267-B


esclarece que “são práticas autocompositivas a mediação, a conciliação,
os processos circulares e outras técnicas de justiça restaurativa”14.
Novamente, por que então assumir a Justiça Restaurativa como
linha mestra da aplicação da nova Lei?
Primeiramente, cumpre ressaltar que a autocomposição partilha de
uma série de premissas e princípios comuns. Tanto a mediação como a
prática de Justiça Restaurativa têm como base a voluntariedade, o empo-
deramento das partes, a informalidade, a consensualidade, dentre outros
princípios e ademais, técnicas em comum.
Entretanto, a prática de Justiça Restaurativa pressupõe, sem que
a mediação e a conciliação também o façam, a incidência dos princí-
pios centrais da corresponsabilidade e reparação do dano. Veja-se que o
art. 267-B fala expressamente em ambos os princípios.
Além disso, a reparação do dano, para além de um princípio nortea-
dor de todas as práticas autocompositivas (ou seja, a eventual mediação
e conciliação deverão sim pautar-se em ambos os princípios próprios à
Justiçam Restaurativa) consta como requisito para extinção da punibili-
dade referente à infração funcional cometida:
Artigo 267-D – O acordo celebrado na sessão autocompositiva será ho-
mologado pela autoridade administrativa competente para determinar
a instauração da sindicância ou pelo Procurador do Estado responsável
por sua condução.
§ 1º – O cumprimento do acordo celebrado na sessão autocompositiva
extingue a punibilidade nos casos em que, cumulativamente:
1. a conduta do funcionário não gerou prejuízo ao Erário ou este foi
integralmente reparado;
2. forem cabíveis, em tese, as penas de repreensão, suspensão e multa.15
Ainda, a novel legislação, infere-se, espelhou mais estritamente
o teor da Resolução nº 225 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ

14 Ibidem, § 2º do art. 267-B.


15 Ibidem, art. 267-D, grifo nosso.

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(que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito


do Poder Judiciário) do que a Lei nº 13.140/2015 (que dispõe sobre a
mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e so-
bre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública)
ou Resolução nº 125 do CNJ (que versa sobre a mediação e conciliação).
Tanto a legislação que alterou o Estatuto do Servidor como a Resolução
nº 225 do CNJ partem da premissa de que é necessário que as partes
reconheçam os fatos essenciais para ser então possível a aplicação das
práticas autocompositivas.
Por fim, cumpre destacar que a Lei Complementar nº 1.361, de 21 de
outubro de 2021, na parte que inseriu as previsões atinentes às práticas
autocompositivas, partiu das reflexões e conclusões do Grupo de Traba-
lho criado pela Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017 com a fina-
lidade de estudar medidas para o aperfeiçoamento do sistema Disciplinar:
O Grupo entende que é possível e conveniente trabalhar, desde logo,
em duas frentes. De um lado, cria-se um projeto piloto que tem por
finalidade conceber e testar um modelo replicável; de outro, traba-
lha-se com a perspectiva de alteração do Estatuto, inserindo-se na
Lei 10.261/68 a previsão do procedimento disciplinar restaurativo, a ser
regulamentado por Decreto.16
Assim, ainda que seja possível e, ademais, bem-vinda a utilização
da mediação e conciliação no âmbito disciplinar, por um lado, ambas
precisarão de adequações na técnica para englobarem o princípio da
corresponsabilidade e reparação do dano. Por outro, o ancoramento das
práticas autocompositivas não deixa de ser o arcabouço teórico e práti-
co da Justiça Restaurativa. E assim, nesse contexto, importante explici-
tar alguns aspectos desse paradigma.
A princípio, assim a Resolução nº 225 do CNJ define o que seja
Justiça Restaurativa:
Art. 1º. A Justiça Restaurativa constitui-se como um conjunto ordena-
do e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias,
que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e

16 SÃO PAULO. Relatório final do Grupo de Trabalho criado pela Resolução PGE nº 19, de
30 de junho de 2.017. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2018, p. 19-20, grifo nosso.

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Ana Paula Vendramini

sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os con-


flitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo
estruturado na seguinte forma: […].17
À primeira vista, com base na leitura do referido artigo, pode ainda
parecer algo obscuro ou abstrato o que seja Justiça Restaurativa. Este
foi acima transcrito, pois a Resolução nº 225 é um grande marco na his-
tória da Justiça Restaurativa Brasileira. No mais, ele traz a importante
concepção de Justiça Restaurativa atual que não a limita a aplicação de
uma determinada técnica. A Justiça Restaurativa carreia tanto elemen-
tos filosóficos, constituindo um verdadeiro paradigma para as relações
humanas, como compõe-se de um repertório infindável de técnicas e
metodologias – ainda e em permanente evolução, com ampla utilização
ao redor do mundo.
Cumpre ainda pontuar que o caput do art. 1º da Resolução nº 225
explicita a ampla afinidade das metodologias de Justiça Restaurativa
com os conflitos e danos. Isto é, as técnicas criadas para enfrentar con-
flitos atualmente são voltadas e pressupõem etapas tanto para mapear
danos, como para planejar as devidas reparações.
Assim, do acima exposto e, levando-se em consideração que a Justiça
Restaurativa parte de epistemologias calcadas na ciência contemporâ-
nea (como epistemologias holísticas e da complexidade, em detrimento
das epistemologias deterministas das ciências modernas), é possível se
concluir que os conflitos e danos são tanto parametrizados como enfren-
tados como fenômenos complexos.
Isto é, o paradigma da Justiça Restaurativa e as metodologias utili-
zadas não levam em consideração apenas aspectos subjetivos dos confli-
tos (sentimentos, experiências e a subjetividade em sentido mais amplo
vivenciada pelos sujeitos envolvidos) e nem apenas os aspectos objetivos
do conflito (estrita reparação dos danos e/ou cumprimento de normas).
Ambos são relevantes e têm espaço no diálogo que se desenrola a partir
da condução do facilitador.

17 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 225 de 31 de maio de 2016. Dispõe


sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Diário da Justiça. Brasília, DF, n. 91, p. 28-33, 2 jun. 2016, art. 1, grifos nossos.

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No mais, a metodologia também abre campo para que se amplie o


rol de sujeitos que são envolvidos no conflito. Tanto quando se mapeiam
aqueles que sofreram danos de ordem subjetiva, como aqueles que são
responsáveis por referidos danos. A título de exemplo, é possível que in-
frações administrativas cujas bases sejam conflitos interpessoais correla-
cionem-se a toda uma equipe cujas relações podem ser pouco funcionais.
As metodologias de Justiça Restaurativa abrem a possibilidade tanto
de se mapear, como de se incluir toda uma equipe no processo – e tam-
bém sujeitos de outros locais. Dessa forma, atua-se no foco do problema
(o funcionamento de toda uma equipe, grupo ou coletivo), gerando re-
sultados muito mais satisfatórios a todos os envolvidos.
Prosseguindo com a breve explanação de elementos atinentes à Jus-
tiça Restaurativa, para os fins do presente artigo, importa consignar que
o paradigma propõe inversões hermenêuticas na interpretação de fa-
tos que nomeamos como conflitos. No âmbito da Justiça Restaurativa,
o foco são as responsabilidades e danos e não a culpa e as punições.
Tal inversão está atrelada ao grande papel que os valores humanos –
em seu sentido ético – exercem no âmbito da Justiça Restaurativa. Neste
momento, interessante rememorar as pesquisas promovidas por Yves de
la Taille18, que diferenciam a moral da ética.
Comumente, as palavras “moral” e “ética” são empregadas como
sinônimas. Mas, para Yves, moral tem a ver com essa dimensão da re-
gra e da norma. A moral traz um senso de dever, obrigatoriedade. Yves,
ao adotar o conceito de Comte-Sponville entende que “a moral responde
à questão ‘o que devo fazer?’, e a ética, à questão ‘como viver?’”19.
O plano ético refere-se então ao tema da “vida boa” e o plano
moral, ao tema dos deveres para com outrem e para consigo mesmo.
A “vida boa” preocupa os filósofos desde a antiguidade, e as respostas
dadas costumam responder pelo nome de eudemonismo (teoria da feli-
cidade como bem para o homem).

18 TAILLE, Yve de la. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto Alegre: Artmed, 2006.
19 Ibidem.

63
Ana Paula Vendramini

Na Justiça Restaurativa a questão dos valores nesse lugar da ética


é central. A forma de se relacionar não é pensada com base nos deveres,
mas em como é a vida boa. A ação emerge da ética para se construir a
vida boa, eu respeito o outro porque a vida é boa quando há respeito e
não eu respeito o outro porque é minha obrigação.
Nessa toada, as técnicas vão buscar oferecer um campo de diálogo
junto aos participantes do que seja a responsabilidade e como ela se
manifesta no seu sentido ético e não normativo. Na prática, isso pode
significar que o ato de reparação do dano, da ação e iniciativa derive da
emergência de uma potência humana calcada no valor ético da respon-
sabilidade ao invés de uma reparação que emerja da culpa, vergonha e
medo da punição.
Note-se que a Justiça Restaurativa passa ao largo da visão calcada
na ideia de que represente conivência com o cometimento de danos e
infrações, o malfadado, conforme anteriormente já exposto, passar a
mão cabeça. Muito pelo contrário. A Justiça Restaurativa visa a, com
base nos valores éticos, incrementar a motivação intrínseca para com-
portamentos e relações funcionais, compromissadas e respeitosas nas
repartições públicas.
Sobre essa diferenciação entre a origem da motivação para o compor-
tamento humano e suas consequências, bem acentua Elizabeth M. Elliott:
Idealmente, as sociedades democráticas trabalham melhor se os cida-
dãos agirem a partir de uma motivação intrínseca em vez de extrínseca.
Tanto através da punição como da recompensa, a motivação extrínse-
ca oferece um valor limitado. As suas raízes em teorias contemporâ-
neas de punição são encontradas nos condicionamentos operantes de
Skinner, nos quais se supõe que, quando o reforço (recompensa) vem
em seguida a um comportamento, é provável que o comportamen-
to se repita (Kohn 1999:5). O comportamento skinneriano acredita
que quase tudo o que fazemos é resultado de reforço, tanto positivo
(recompensa), como negativo (punição). E na superfície das coisas,
isso parece verdadeiro.
No entanto, pesquisas mostram que a punição funciona somente com
comportamentos banais por pequenos períodos de tempo e condições
nas quais há constantes reforços. […]

64
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

Motivação intrínseca significa que, de certa forma, a pessoa vai agir


sem o reforço da punição ou recompensa. No capítulo 7, consideramos
a ideia dos valores, que são o centro motivacional do qual esperamos
incentivar o comportamento moral. Na família, na escola, no local de
trabalho e no Sistema de justiça Criminal, a conduta apropriada é sus-
tentada por mais tempo – e menos custo – se o indivíduo autônomo
for motivado intrinsecamente em vez de ter de requisitar o centro de
motivação extrínseca do condicionamento operante.20
Por fim, não menos importante em termos de considerações introdu-
tórias sobre a Justiça Restaurativa, necessário ressaltar que esta se baseia
inteiramente em metodologias colaborativas. Então, a proposta é a de se
criar entendimento tanto acerca de problemas, conflitos e entraves bem
como acerca de soluções e possibilidades a partir de um grupo, de uma
pluralidade de vozes e perspectivas, e não a partir de uma visão individual.
Essa premissa é uma questão de coerência com o olhar que se está
sustentando. Se se parte da premissa de que as questões, conflitos e deci-
sões são fenômenos complexos, não seria coerente pautar um processo
de decisão por um recorte individual.
Howard Zerh, fundamentando ainda mais a necessidade de que a
técnica utilizada parta da colaboração e consensualidade, elenca o enga-
jamento como um dos três pilares da aplicação da justiça Restaurativa
(os outros dois são foco no dano e a necessidade de reparação que dele
decorre). Assim ele se manifesta:
O princípio do engajamento sugere que as partes afetadas pelo crime –
aqueles que foram vitimados, aqueles que ofenderam e membros da
comunidade – desempenham papéis significativos no processo judicial.
Tais “detentores de interesses” precisam receber informações uns sobre
os outros e envolver-se na decisão do que é necessário para que se faça
justiça em cada caso específico.
Em alguns casos, isto pode significar diálogo direto entra as partes. […]
Em outros casos, o processo envolve trocas indiretas, por intermédio de
representantes, ou ainda outras formas de envolvimento. […]

20 ELLIOTT, Elizabeth M. Segurança e cuidado: justiça restaurativa e sociedades saudáveis.


São Paulo: Palas Athena, 2018, p. 69.

65
Ana Paula Vendramini

O princípio de engajamento implica o envolvimento de um círculo am-


pliado de partes, quando comparado ao processo de justiça tradicional.21
O trecho acima foi selecionado deliberadamente por aprofundar
o princípio do engajamento, no sentido de que este não se manifesta
apenas pelo diálogo direto, mas está resguardado por meio de trocas
indiretas e representantes. Tal especificidade é relevante quando se inse-
rem as metodologias de Justiça Restaurativa no âmbito disciplinar, uma
vez que as infrações funcionais podem não ter como pano de fundo um
conflito interpessoal, mas malferir um bem jurídico da Administração
Pública – caso em que a metodologia pressupõe a troca indireta sobre o
dano e a reparação.
Em termos de metodologias em Metodologias, há uma série de pos-
sibilidades. A título de exemplo nomeia-se as mais comuns no Brasil,
havendo muitas outras utilizadas ao redor do mundo:
– Círculos Restaurativos sistematizados por Dominic Barter;
– Círculos de construção de paz ou processos circulares sistemati-
zados por Kay Pranis;
– Mediação vítima – ofensor; e
– Conferências familiares.
Observe-se que nossa legislação Paulista, inclusive, cita uma meto-
dologia de Justiça Restaurativa em seu art. 267-B, a metodologia dos
Processos Circulares – a mesma que vem mais amplamente, até a pre-
sente data, sendo utilizada pelos Tribunais do País (todos com a incum-
bência de apresentar, ao Conselho Nacional de Justiça, plano de implan-
tação, difusão e expansão da Justiça Restaurativa, conforme art. 28-A,
acrescentado na Resolução nº 225 do CNJ, por meio da Resolução
nº 300, de 31 de dezembro de 2019).
Assim, antes de prosseguir nas reflexões, a título de breve conclusão,
pode-se dizer que a Justiça Restaurativa: i) nos convida a buscar um
maior aprofundamento e complexificação dos fatores de conflito, tendo
como premissa de que este se trata de fenômeno complexo; ii) funda-se

21 ZEHR, Howard. Justiça restaurativa: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Palas Athena, 2017, p. 40.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

em base ética e de valores humanos; iii) constrói-se por metodologias


colaborativas; e iv) foca no dano ao invés da culpa e na responsabilidade
ao invés da punição.

4. DA ATUAÇÃO DA PROCURADORIA-GERAL DO ESTADO NA


REGULAÇÃO DAS PRÁTICAS AUTOCOMPOSITIVAS NO CONTEXTO
DAS INFRAÇÕES FUNCIONAIS NOS TERMOS DA NOVA LEGISLAÇÃO

Como exposto nas seções anteriores, a nova legislação amplia sig-


nificativamente a possibilidade de resolução de infrações funcionais por
meio de práticas autocompositivas. Numericamente também se verificou
que será expressiva a quantidade de práticas a serem realizadas ao ano.
Os dados numéricos foram aqui extraídos do ano de 2016, mas estes
não sofreram diminuição ao longo dos anos seguintes. Pelo contrário.
Assim, as infrações funcionais já geram atualmente quantidade signifi-
cativa de movimentação processual e administrativa (mas, nem sempre
resolvendo as questões de fundo de modo adequado).
Quanto ao papel da Procuradoria-Geral do Estado na implementa-
ção e acompanhamento de tais práticas, não há, entretanto, uma posição
totalmente esgotada já pela Lei.
Nos artigos 267-A e 267-D da Lei nº 10.261/1968, resta previsto
que tanto a autoridade competente para determinar a apuração de irre-
gularidade e a instauração de sindicância ou processo administrativo e o
Procurador do Estado responsável por sua condução ficam autorizados,
mediante despacho fundamentado, a propor as práticas autocompositi-
vas. No caso da homologação do acordo, assim determina o art. 267-D:
Artigo 267-D – O acordo celebrado na sessão autocompositiva será ho-
mologado pela autoridade administrativa competente para determinar
a instauração da sindicância ou pelo Procurador do Estado responsável
por sua condução.22
Ocorre que a Lei, para a aplicação das práticas autocompositivas,
requer ainda regulamentação via Decreto. Assim, é possível, provável e,
mesmo adequado que a Procuradoria exerça ainda outros papéis no âm-

22 BRASIL, 1968, art. 267-D.

67
Ana Paula Vendramini

bito da autocomposição na seara das infrações funcionais para além des-


tes expressamente determinados pela Legislação.
A título de comparação, é bastante frutífero que se tome o exemplo
de como o Poder Judiciário vem atuando na seara da autocomposição.
No âmbito do Poder Judiciário, no que concerne às soluções alternativas
de conflitos, como a mediação e a própria Justiça Restaurativa, é pre-
vista uma grande participação de membros desse Poder no exercício
de funções de gestão, regulamentação e acompanhamento. A Resolução
nº 125 do CNJ, de 29 de novembro de 2010, dentre outras considera-
ções, assim justifica essa participação de membros do Poder Judiciário
na seara da autocomposição:
CONSIDERANDO a necessidade de se consolidar uma política públi-
ca permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos mecanismos consen-
suais de solução de litígios;
CONSIDERANDO que a conciliação e a mediação são instrumentos
efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a
sua apropriada disciplina em programas já implementados no país tem
reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quan-
tidade de recursos e de execução de sentenças;
CONSIDERANDO ser imprescindível estimular, apoiar e difundir a sis-
tematização e o aprimoramento das práticas já adotadas pelos tribunais;
CONSIDERANDO a relevância e a necessidade de organizar e unifor-
mizar os serviços de conciliação, mediação e outros métodos consensu-
ais de solução de conflitos, para lhes evitar disparidades de orientação e
práticas, bem como para assegurar a boa execução da política pública,
respeitadas as especificidades de cada segmento da Justiça;
CONSIDERANDO que a organização dos serviços de conciliação, me-
diação e outros métodos consensuais de solução de conflitos deve servir
de princípio e base para a criação de Juízos de resolução alternativa de
conflitos, verdadeiros órgãos judiciais especializados na matéria;23

23 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010.


Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de
interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Diário da Justiça,
Brasília, DF, n. 219, p. 2-14, 1 dez. 2010, p. 2.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

As considerações preliminares à referida Resolução não se esgotam


nas já transcritas, mas estas, especialmente, denotam alguns focos im-
portantes de atenção e com potencial de inspirar e nortear a aplicação
de métodos autocompositivos no estado de São Paulo. Os considerandos
expostos, em primeiro lugar, alçam os métodos consensuais de solução
de conflitos ao patamar de uma política pública permanente. Essa carac-
terização da autocomposição como uma política pública revela, por um
lado, a escolha institucional realizada para lidar com uma massa expres-
siva de conflitos assumindo, implicitamente, que esta é solução mais efe-
tiva para seu enfrentamento. Por outro lado, nomear a autocomposição
como política pública denota que o conjunto de ações que consubstan-
cia referida política pública requer tanto estímulos, quanto acompanha-
mento e revisões permanentes. Note-se que a autocomposição poderia
ter sido regulamentada independentemente de ocupar a posição de uma
política pública, mas não foi este o caminho escolhido, realmente foi
feita uma escolha por alavancar a cultura da autocomposição.
Aprofundando um pouco em razões e argumentos para alçar a au-
tocomposição ao nível de uma política pública permanente, as consi-
derações acima transcritas (bem como todo o conjunto delas) trazem
já indicativos que fundamentaram a opção eleita: i) o aperfeiçoamento
permanente é importante; ii) há reflexos na diminuição de processos;
iii) é necessária a difusão e sistematização das práticas; iv) há relevância
e necessidade de organizar e uniformizar os métodos consensuais de so-
lução de conflitos, para lhes evitar disparidades de orientação e práticas,
bem como para assegurar a boa execução da política pública; e v) é neces-
sária a criação de órgãos especializados na matéria.
Assim, vê-se que o Poder Judiciário há tempos vem se debruçando
sobre as práticas autocompositivas, quais as razões para adotá-las, de que
forma fazer e qual o melhor locus que tais práticas devem ocupar – tendo
elegido o lugar da política pública. E, ainda nesse sentido, desde o ano
de 2010, na época em que sequer estava ainda regulamentada a Justiça
Restaurativa, mas apenas a mediação, o Poder Judiciário já anteviu a
necessidade da criação de órgãos, especialização e acompanhamento das
soluções alternativas de controvérsias. E o fez de modo absolutamente
adequado, não poderia ser diferente face toda a complexidade e especiali-
dade que acima se rascunhou acerca da autocomposição.

69
Ana Paula Vendramini

Veja-se também que todo o contexto que envolve as infrações fun-


cionais demonstra necessidades muito similares às já elaboradas pelo
Poder Judiciário. E, assim como o Poder Judiciário se insere como um
grande gestor dessa política pública referida, paralelamente, a Procura-
doria de Procedimentos Disciplinares, guardadas as proporções, é cen-
tral no sistema disciplinar, conforme art. 42 e incisos, da Lei Comple-
mentar nº 1.270/15 (Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado).
Referida norma, ainda, repete o art. 1°, da Lei Complementar nº 1.183,
de 30 de agosto de 2012 (Legislação que criou a Procuradoria de Pro-
cedimentos Disciplinares).
E é absolutamente importante essa especialização concretizada
por meio da criação da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares.
As infrações funcionais são fenômenos complexos, possuindo dimen-
sões subjetivas, objetivas e jurídicas. Nos casos em concreto pode haver
complexidade tanto sob o ponto de vista fático, como sob o ponto de
vista jurídico. Ainda, o vínculo jurídico entre o servidor e o Estado con-
figura relações de trato continuado de longuíssima duração – podendo
alcançar, até mesmo, muitas décadas. Lembrando novamente que a au-
tocomposição está prevista justamente para aquelas hipóteses em que o
vínculo jurídico com o Estado, em tese, não se encontra sob ameaça de
rompimento. Assim, para além de se tratar de um fenômeno complexo,
a autocomposição no bojo das infrações que não geram ruptura de vín-
culo caracteriza, ou, ao menos, dialoga com os recursos humanos e ges-
tão de pessoal no que concerne ao gerenciamento de conflitos, erros e
desvios de conduta.
A título de exemplo da possível complexidade que a autocomposição
pode alcançar – havendo, claro, casos concretos que podem ser absoluta-
mente mais complexos –, analise-se, por exemplo, o requisito da reparação
do dano, previsto no art. 267-D, § 1º, 1. Em abstrato, reparação do dano
é facilmente inteligível. Entretanto, no cotidiano da Administração Pública,
a tradução do que se constitua reparação do dano no caso concreto de-
manda a verificação das regulações jurídicas incidentes, bem como questões
fáticas e circunstanciais à infração.
Veja-se que, se uma mesa for quebrada, a reparação do dano pode
configurar, em tese, condutas diametralmente opostas. Pode ser admiti-
do ao servidor utilizar durepox, colas, pregos no móvel para consertá-lo

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

ou pode ser determinado que este adquira uma mesa inteiramente nova.
Para além do que se possa significar como reparo do dano no caso em
concreto, outros questionamentos podem ainda ser feitos como os se-
guintes: E quanto às garantias dos reparos? São ou não exigíveis? E as
marcas dos bens lesados? Pode a Administração se encarregar do reparo
e o servidor obrigar-se a efetuar um ressarcimento? Pode o servidor ofer-
tar algum reparo, serviço ou prestação alternativos como forma de com-
pensação pelo dano causado? Há fatores que devem ser considerados e
que estão por trás da conduta desse servidor? Sua equipe está, talvez, em
contexto de assédio moral?
Outro aspecto que certamente demandará participação da
Procuradoria-Geral do Estado nas práticas autocompositivas refere-
-se ao artigo 267-A, que determina que a autoridade e o Procurador
do Estado ficam autorizados, mediante despacho fundamentado, a pro-
por as práticas autocompositivas. Pois bem. As práticas autocompo-
sitivas, por serem menos gravosas ao servidor do que as penalidades,
configurar-se-ão como direito subjetivo, assim que regulamentadas.
A ausência de uniformização de critérios para a admissibilidade ou
não do caso às práticas, além de sujeitar servidores a situações injustas,
sujeita a Administração Pública a uma grande judicialização, nos casos
em que se entender que a resolução não admite a prática autocompo-
sitiva. Isso sem falar em possível atuação de Sindicatos e Associações
de servidores na matéria.
Assim, em tais encaminhamentos, o exercício de um papel ao menos
consultivo inequivocamente compete à Procuradoria-Geral do Estado –
este órgão já está implicado de outros modos no acompanhamento das
práticas autocompositivas.
Resta saber como se daria tal participação. A título de reflexão
podem ser levantadas ainda muitas outras questões sobre a participação
da Procuradoria-Geral do Estado nas práticas autocompositivas:
1. Seria adequado que a Procuradoria-Geral do Estado atuasse
como um órgão regulador, fiscalizador, executor das práticas
autocompositivas previstas na Lei?
2. São necessárias novas estruturas na Procuradoria-Geral do Estado
para a execução do previsto na nova legislação? Se sim, quais?

71
Ana Paula Vendramini

3. Os Comitês Gestores criados no Poder Judiciário, com coor-


denação pela Procuradoria-Geral do Estado e com integrantes
de diversas Secretarias, seriam um modelo adequado para fixar
diretrizes e dar uniformidade à aplicação das práticas restaura-
tivas em todo o Estado?
4. Seria interessante a criação de Núcleos de Práticas próprios
com o fim de atender às Secretarias com o maior número de ca-
sos junto à Procuradoria de Procedimentos Disciplinares e um
Núcleo comum para atender as secretarias menores – que assim
estariam desobrigadas de manter estrutura e servidor habilita-
do para a realização das práticas restaurativas?
5. Quem faria a facilitação e/ou mediação? Poderiam os servido-
res ser capacitados a facilitar, assim como atuam nas apurações
preliminares? Seria possível estabelecer convênios para esse fim?
6. Eventual Comitê Gestor de Práticas Autocompositivas poderia
estabelecer diretrizes mínimas, tal como vem fazendo o Poder
Judiciário, para a formação de facilitadores, indicando os re-
quisitos necessários para essa qualificação e as condições para
que essa função possa ser desempenhada por servidores?
7. Como seria o fluxo para o encaminhamento dos casos às práticas
autocompositivas? Seria necessário um juízo de admissibilidade?
8. Quais casos poderiam ser encaminhados? Qual a medida a ser
adotada quando for verificada além da infração disciplinar,
também possível infração penal?
9. Quais seriam as balizas para a reparação? Objetos danifica-
dos poderiam ser reparados? Teriam que ser adquiridos novos
em substituição?
Pois bem. Repise-se que é então inegável que a Procuradoria-Geral
do Estado irá participar de algum modo na implementação e acompanha-
mento das práticas autocompositivas. Seja por meio de suas Consultorias
Jurídicas, seja por meio da criação de um órgão especializado.
Nesse sentido, tanto a experiência do Poder Judiciário como a do
Programa de Solução Adequada de Controvérsias podem ofertar indica-
tivos de opções mais sólidas e seguras a serem seguidas.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

Isso porque o modelo que parece ser o mais adequado para essas
tarefas é o utilizado tanto pelo Poder Judiciário, como pelo Programa
de Solução Adequada de Controvérsias. Em ambos leva-se em conside-
ração a especialização necessária à boa condução da matéria. Em ambos
ainda, há um órgão gestor, estratégico – comumente denominado de
Comitê Gestor – e outro executor – como o Centro de Práticas ou um
Núcleo de Justiça Restaurativa.
A Resolução do CNJ de nº 225, de 31 de maio de 2016, determina a
instituição de um Comitê Gestor de Justiça Restaurativa em seu art. 27:
Art. 27. Compete à Presidência do CNJ, com o apoio da Comissão Perma-
nente de Acesso à Justiça e Cidadania, coordenar as atividades da Política
Judiciária Nacional no Poder Judiciário, assim como instituir e regulamen-
tar o Comitê Gestor da Justiça Restaurativa, que será responsável pela im-
plementação e acompanhamento das medidas previstas nesta Resolução.24
Referido Comitê, ainda conforme a mesma Resolução, além das
funções expostas, tem o papel de deliberar sobre os requisitos para a
formação dos facilitadores25.
Quanto a este modelo, é ainda importante esclarecer que o Comitê
Gestor de Justiça Restaurativa no âmbito do CNJ foi criado em 2016,
pela Portaria nº 91, de 17 de agosto de 2016. Tendo-se em vista que se está
aqui propondo que a participação da Procuradoria-Geral do Estado se
dê em termos tais quais vem o Poder Judiciário atuando há muitos anos,
é relevante transcrever os termos da Portaria, uma vez que esta explicita
em minúcia tanto as atribuições como a composição do Comitê Gestor:
Art. 1º Instituir o Comitê Gestor da Justiça Restaurativa, com as se-
guintes atribuições, sem prejuízo de outras necessárias ao cumprimento
dos seus objetivos:

24 BRASIL, 2016, art. 27.


25 Art. 17. Os cursos de capacitação, treinamento e aperfeiçoamento de facilitadores deverão
observar conteúdo programático com número de exercícios simulados e carga horária
mínima, conforme deliberado pelo Comitê Gestor da Justiça Restaurativa, contendo, ainda,
estágio supervisionado, como estabelecido pelas Escolas Judiciais e Escolas da Magistratura.
Parágrafo único. Será admitida a capacitação de facilitadores voluntários não técnicos
oriundos das comunidades, inclusive indicados por instituições parceiras, possibilitando
maior participação social no procedimento restaurativo e acentuando como mecanismo de
acesso à Justiça. (Ibidem, art. 17).

73
Ana Paula Vendramini

I – promover a implementação da Política;


II – organizar programa de incentivo à Justiça Restaurativa, observadas
as linhas programáticas estabelecidas na Resolução;
III – atuar na interlocução com a Ordem dos Advogados do Brasil, as
Defensorias Públicas, as Procuradorias, o Ministério Público e as de-
mais instituições relacionadas, estimulando a participação na Justiça
Restaurativa e valorizando a atuação na prevenção dos litígios;
IV – acompanhar os projetos de Justiça Restaurativa existentes no país
e o desempenho de cada um deles;
V – definir conteúdo programático para os cursos de capacitação, trei-
namento e aperfeiçoamento de facilitadores, com número de exercícios
simulados, carga horária mínima e estágio supervisionado, observan-
do-se o estabelecido pelas Escolas Judiciais e Escolas da Magistratura;
VI – buscar a cooperação de órgãos públicos competentes, instituições
públicas e privadas da área de ensino, bem como com Escolas Judiciais
e da Magistratura, a fim de promover a capacitação necessária à efeti-
vação da Política;
VII – realizar reuniões, encontros e eventos vinculados à Política;
VIII – propor formas de reconhecimento, valorização e premiação de
boas práticas, projetos inovadores e participação destacada de magis-
trados e servidores no desenvolvimento da Política;
IX – auxiliar a Presidência do CNJ no acompanhamento das medidas
previstas na Resolução CNJ 225/2016;
X – monitorar, avaliar e divulgar os resultados alcançados.
Art. 2º O Comitê Gestor da Justiça Restaurativa terá, no mínimo, a
seguinte composição:
I – 3 (três) Conselheiros do CNJ, indicados pelo Presidente, sendo 1
(um) deles integrante da Comissão Permanente de Acesso à Justiça e
Cidadania, que o coordenará;
II – 1 (um) Juiz Auxiliar da Presidência do CNJ;
III – 4 (quatro) magistrados designados pelo Presidente do CNJ.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

§ 1º O Comitê Gestor poderá contar com auxílio técnico e operacional


das unidades administrativas do Conselho e de participação de colabo-
radores eventuais.
§ 2º A composição nominada do Comitê observará o Anexo desta Portaria.
Art. 3º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.26
Como se vê acima, o Comitê Gestor criado no âmbito do CNJ tem
o papel de implementar, incentivar e acompanhar a Justiça Restaurativa
aplicada nos Tribunais Brasileiros. A este também está atribuída a função
de gerenciar a capacitação, bem como a de representar o Poder Judiciário
externamente na interlocução, parcerias e outras formas de cooperação.
Em cada Tribunal do País pode ainda ser instituído um Comitê Gestor –
no caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo este foi denomi-
nado Grupo Gestor; referido Grupo foi instituído pelo Provimento CSM
(Conselho Superior da Magistratura) nº 2.416/2017 (observe-se que refe-
rido Grupo Gestor tem ainda atribuições bem interessantes listadas, como
a de criar um cadastro de facilitadores de Justiça Restaurativa, mas que,
mais profundamente, não vem ao caso para o escopo do artigo).
Além desses papéis, no estado de São Paulo seria adequado ainda
que o Comitê Gestor pudesse atuar como órgão consultivo e resoluti-
vo de conflitos internos, à similaridade das agências reguladoras, com
competências regulatórias, fiscalizatórias e normativas, conforme reco-
nhecido pela Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019. No mais, há que se
observar ainda que a composição do Comitê Gestor deveria incluir in-
tegrantes de outras Secretarias, em especial aquelas que possuem maior
acervo de procedimentos disciplinares no âmbito da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares (Secretaria da Educação, Secretaria da
Administração Penitenciária e Secretaria da Saúde).
A Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1/2018, que institui o
Programa de Solução Adequada dos Conflitos de Natureza Discipli-
nar também traz atribuições muito relevantes na consecução com-
prometida das práticas de Justiça Restaurativa:

26 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Portaria nº 91 de 17 de agosto de 2016. Institui o


Comitê Gestor da Justiça Restaurativa. Diário da Justiça, Brasília, DF, n. 145, p. 2-3, 19 ago.
2016, p. 2-3.

75
Ana Paula Vendramini

Artigo 6º – O Comitê Gestor terá por atribuições, dentre outras:


I – definir o âmbito de atuação do Programa, mediante recorte territo-
rial e numérico dos casos a serem encaminhados ao Centro de Práticas;
II – estabelecer o fluxo de procedimentos, levando em conta as pecu-
liaridades organizacionais de cada Secretaria de Estado participante;
III – identificar servidores capacitados em práticas autocompositivas no
âmbito da Administração Pública;
IV – identificar entidades que promovam capacitação em práticas auto-
compositivas interessadas em estabelecer parcerias para o desenvolvimento
do Programa;
V – conceber estratégias de sensibilização no âmbito dos órgãos e en-
tidades da Administração Direta e Autárquica, de modo a fomentar e
divulgar os princípios basilares das práticas autocompositivas, zelando
pela fidelidade do Programa a tais princípios;
VI – estabelecer metodologia de registro e monitoramento dos casos
submetidos ao Centro de Práticas para avaliação permanente;
VII – sugerir ao Centro de Estudos da Procuradoria-Geral do Estado a
realização de cursos de formação em práticas autocompositivas, capa-
citação em comunicação não violenta, palestras e workshops pertinen-
tes ao escopo do Programa e que valorizem a cultura da paz;
VIII – elaborar e encaminhar, se necessário, propostas de alteração
legislativa;
IX – identificar, por intermédio da análise dos casos encaminhados ao
Centro de Práticas, situações, estruturas e procedimentos que possam
gerar conflitos recorrentes, recomendando sua alteração.27
Desses incisos relacionados, digno de nota é o inciso V, que trata da
possibilidade de o Comitê Gestor propor ações proativas de sensibilização
institucional. Tal possibilidade foi incisiva no Programa, vez que identifi-
cada a complexa problemática da cultura administrativa em relação à for-
ma como se enfrentam os conflitos e infrações no âmbito das Secretarias.

27 SÃO PAULO, 2018, art. 6º.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

Pois bem. Para além dos Comitês Gestores, a legislação também pre-
vê órgãos diretamente executores, os núcleos de práticas – que podem ser
criados nas comarcas – e o centro de práticas do Prac (Programa de Solu-
ção Adequada de Conflitos), responsável pela facilitação dos casos. É de
se pensar se seria estratégico o estado de São Paulo criar duas modalidades
de órgãos para a consecução da grande massa de casos sujeitos à auto-
composição – um comitê gestor e centros de práticas – ou se seria mais
estratégico um órgão único, que tanto se responsabilizasse pela gestão
das práticas no sentido mais amplo, bem como pelos fluxos de encami-
nhamento de casos, designação de facilitadores, formação continuada e
estratégias de sensibilização.
Por um lado, a existência de mais órgãos pode responder às pecu-
liaridades de cada Pasta com maior assertividade. Além disso, a existên-
cia de órgãos locais pode favorecer uma maior participação e adesão
dos servidores. Por outro lado, um órgão central poderia atuar de for-
ma mais uniforme e isenta na condução das práticas autocompositivas.
Sendo esta a opção do estado de São Paulo, seria muito importante que
o Comitê Gestor tivesse representatividade das Secretarias e, nesse caso,
ele cumularia funções de gestão e execução.
Ainda, ao espelho do que ocorre sob a gestão do Tribunal de Justiça
de São Paulo, poderia ser interessante que comitês gestores locais pudes-
sem ser criados – com a aprovação e acompanhamento do Comitê Gestor
central. Comitês locais podem responder de forma mais precisa às necessi-
dades locais e construir rede de parcerias com órgão locais, como Unidades
de Saúde, Capes e assistência social.
Assim, em linhas bastante gerais, o artigo buscou ofertar uma re-
flexão sobre a participação da Procuradoria-Geral do Estado na conse-
cução das práticas autocompositivas na seara das infrações funcionais.
Tratou-se como vem o Poder Judiciário implementando a autocompo-
sição – especialmente a Justiça Restaurativa – e como o Prac também o
fez. O entendimento exposto é o de que essa participação se dará, de um
modo ou de outro, mas que seria efetiva se se concretizasse por meio de
órgãos especializados.
Esse aspecto é fundamental. Como se não bastassem os argumentos
até o momento explicitados, há que se rememorar toda a qualificação

77
Ana Paula Vendramini

da atuação da Procuradoria-Geral do Estado trazida pela própria criação


da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, por meio da Lei Comple-
mentar nº 1.183, de 30 de agosto de 2012.
Quando no âmbito das Consultorias Jurídicas, os procedimentos
disciplinares se dispersavam entre outras matérias e entre problemáticas
de outra ordem de grandeza, se isoladamente consideradas, como vulto-
sas licitações, contratos e parcerias público-privadas. Ainda, não havia
procuradores especializados nos procedimentos disciplinares, à época.
Assim, historicamente, a criação da Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares trouxe não apenas um elevado acréscimo qualitativo na
condução dos procedimentos disciplinares, bem como pôde efetivamen-
te atuar numa orientação geral da Administração Pública.
Note-se ainda que a especialização é uma estratégia que vem sendo ex-
plorada pela Procuradoria-Geral do Estado também na área do contencio-
so, discriminados núcleos e bancas por matérias cada vez mais específicas.
Desta feita, é primordial a especialização na seara da autocompo-
sição para que essa modalidade de enfrentamento de conflitos. Se, indi-
vidualmente, cada procedimento disciplinar e cada prática autocom-
positiva traz como desdobramento menos impacto que uma vultosa
contratação, como massa, está se deixando de atuar com qualidade no
coração do Estado, que é o conjunto de todos os seus recursos humanos:
os servidores públicos.
Sendo importante maiores reflexões acerca da necessidade de cons-
tituição de centros práticos, o Comitê Gestor desponta como órgão es-
sencial e estratégico, havendo, ademais e como anteriormente se listou,
um rol bastante amplo de atribuições que lhe podem ser outorgadas.

5. CONCLUSÃO
O presente artigo teve como objeto central trazer elementos correlatos
às inovações trazidas pela Lei Complementar nº 1.361, de 22 de outubro
de 2021, que ampliou e tornou lei a utilização de práticas autocompositivas
nas hipóteses em que, em tese, o processo disciplinar não culmina no rom-
pimento do vínculo do servidor público com o estado de São Paulo.
Referida alteração é uma excelente oportunidade para o estado de
São Paulo tornar a gestão de conflitos e infrações mais eficiente. Ela tanto

78
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 47-80, jan./jun. 2022

pode alcançar uma maior satisfação pessoal dos servidores públicos, com um
maior senso de justiça e reconhecimento, como bem acarretar reparações de
danos ao Estado mais assertivas e uma melhor prestação de serviço público.
Para que a nova Legislação realmente cumpra com seu potencial e
não desvirtue a utilização das práticas autocompositivas, é necessário
que a regulamentação por Decreto e implementação se faça com muita
segurança e a partir dos conhecimentos especializados já produzidos na
área há muitos anos.
Nesse sentido, o Poder Judiciário e a própria Procuradoria-Geral do
Estado já possuem experiências efetivadas com bastante sucesso.
De se ressaltar que dois aspectos que emergem como prioritários
nessa seara são: i) a participação da Procuradoria-Geral do Estado,
e ii) a criação de órgão especializado na matéria.
Um modelo que leve em consideração esses aspectos será mais efetivo,
dada a quantidade massiva de casos encaminhados às práticas autocom-
positivas que aportarão com a regulamentação da Lei. Será possível ainda,
com essa especialização, concretizar uma efetiva atuação preventiva e dota-
da da uniformidade necessária ao seu sucesso, calcado em uma verdadeira e
comprometida cultura de autocomposição e consensualidade.
Tendo-se em vista que há ainda a previsão de um Decreto para regu-
lamentar a implementação das práticas autocompositivas no Estado que
ainda não foi editado, é esta a oportunidade concreta para a adequada
implantação na consensualidade na seara das infrações disciplinares.
Assim, até o presente momento, a trajetória do estado de São Paulo
na utilização de metodologias autocompositivas na solução de contro-
vérsias mostra-se adequada, séria e absolutamente promissora, podendo
criar um exemplo a ser seguido nacionalmente.

6. AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos aqueles que participaram e contribuíram na constru-


ção do Programa de Soluções Adequadas de Conflitos. Agradeço, no que é
pertinente a este artigo, àqueles que se dispuseram a ler, comentar e revisar o
artigo, especialmente Marisa Maizzo Vendramini, Fabiana Kimie Gushiken,
Ana Sofia Schmidt de Oliveira, Regina Sartori e Eraldo Ameruso Ottoni.

79
Ana Paula Vendramini

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de 2016. Institui o Comitê Gestor da Justiça Restaurativa. Diário da
Justiça, Brasília, DF, n. 145, p. 2-3, 19 ago. 2016.
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bro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento ade-
quado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras
providências. Diário da Justiça, Brasília, DF, n. 219, p. 2-14, 1 dez. 2010.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 225 de 31 de maio
de 2016. Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no
âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Diário da Justiça.
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tuto dos funcionários públicos civis do Estado. São Paulo: Assembleia
Legislativa do Estado de São Paulo, [2022]. Disponível em: https://www.
al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/1968/lei-10261-28.10.1968.html.
Acesso em: 20 jun. 2022.
ELLIOTT, Elizabeth M. Segurança e cuidado: justiça restaurativa e
sociedades saudáveis. São Paulo: Palas Athena, 2018.
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um procedimento disciplinar restaurativo. Revista da Procuradoria-
-Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, nº 85, p. 67-138, 2017.
SÃO PAULO. Relatório final do Grupo de Trabalho criado pela Resolu-
ção PGE nº 19, de 30 de junho de 2017. São Paulo: Procuradoria-Geral
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SÃO PAULO. Resolução Conjunta PGE-SE-SS-SAP-1, de 20 de julho de
2018. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, n. 135,
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TAILLE, Yve de la. Moral e ética: dimensões intelectuais e afetivas. Porto
Alegre: Artmed, 2006.
ZEHR, Howard. Justiça restaurativa: teoria e prática. 2. ed. São Paulo:
Palas Athena, 2017.

80
BREVES APONTAMENTOS SOBRE A
REFORMA DO SISTEMA DISCIPLINAR
DO ESTADO DE SÃO PAULO

Adriana Masiero Rezende1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – A Assessoria Técnico-Legislativa;


3 – Os estudos jurídicos que precederam a proposta de aperfeiçoamento
do sistema disciplinar previsto na Lei estadual nº 10.261, de 28 de outubro
de 1968; 4 – Síntese das medidas adotadas pela Lei Complementar
estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021, na seara disciplinar;
4.1 – O ilícito funcional de inassiduidade. 4.2 – Aperfeiçoamento da redação
do artigo 187 da Lei estadual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968;
4.3 – As Práticas Autocompositivas, o Termo de Ajustamento de Conduta e a
Suspensão Condicional da Sindicância; 5 – Conclusão; Referências Bibliográficas.

RESUMO: Este breve artigo propõe-se a abordar o recente aperfeiçoamento


do regime disciplinar previsto na Lei estadual nº 10.261, de 28 de outubro
de 1968, com destaque para participação da Procuradoria-Geral do Estado
nos estudos que deram ensejo à proposta legislativa, realizando, para
tanto, resumida exposição da história e atribuições da Assessoria Técnico-
Legislativa, bem como das alterações efetuadas pela Lei Complementar
estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021, na seara disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Disciplinar. Reforma. Consensualidade.

1. INTRODUÇÃO

Este breve artigo propõe-se a abordar o recente aperfeiçoa-


mento do regime disciplinar previsto na Lei estadual nº 10.261,

1 Procuradora do Estado de São Paulo.

81
ADRIANA MASIERO REZENDE

de 28 de outubro de 1968, que “dispõe sobre o Estatuto dos Funcionários


Públicos Civis do Estado”, a partir dos estudos que deram ensejo à
proposta legislativa e sintetizar as alterações realizadas, nesta seara,
pela Lei Complementar Estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021,
originada do Projeto de Lei Complementar nº 26, de 2021, encami-
nhado à Assembleia Legislativa do Estado, pelo governador do estado
de São Paulo, com o objetivo de aprimorar a estrutura administrativa do
Estado e o regime jurídico dos servidores públicos.
Nesse sentido, observa-se que a Lei Complementar estadual
nº 1.361, de 2021, instituiu a Bonificação por Resultados (BR),
no âmbito da administração direta e autarquias, criou a Controladoria-
Geral do Estado, dispôs sobre a Assistência Técnica em Ações Judiciais,
alterou as Leis nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, e nº 500, de
13 de novembro de 1974; as Leis Complementares nº 180, de
12 de maio de 1978, nº 367, de 14 de dezembro de 1984, nº 432,
de 18 de dezembro de 1985, nº 907, de 21 de dezembro de 2001, nº 1.034,
de 4 de janeiro de 2008, nº 1.059, de 18 de setembro de 2008, nº 1.079, de
17 de dezembro de 2008, nº 1.080, de 17 de dezembro de 2008, nº 1.093,
de 16 de julho de 2009, nº 1.104, de 17 de março de 2010, nº 1.122,
de 30 de junho de 2010, nº 1.144, de 11 de julho de 2011, nº 1.157, de
2 de dezembro de 2011, nº 1.164, de 4 de janeiro de 2012, nº 1.195,
de 17 de janeiro de 2013, nº 1.245, de 27 de junho de 2014, nº 1.317,
de 21 de março de 2018, e nº 1.354, de 6 de março de 2020; e revogou a
Lei nº 1.721, de 7 de julho de 1978; as Leis Complementares nº 1.078,
de 17 de dezembro de 2008, nº 1.086, de 18 de fevereiro de 2009,
e nº 1.121, de 30 de junho de 2010.
Entre as medidas levadas a efeito pela Lei Complementar nº 1.361,
de 2021, importam para o presente artigo as alterações da Lei estadual
nº 10.261, de 1968 – especificamente em seu Título VII que, nos termos
da mencionada Lei Complementar, passou a denominar-se, respectiva-
mente, “Das Penalidades, da Extinção da Punibilidade, das Providências
Preliminares, das Práticas Autocompositivas, do Termo de Ajustamento
de Conduta e da Suspensão Condicional da Sindicância”; e no
Capítulo IV de seu Título VIII, que passou a denominar-se “Do Processo
por Inassiduidade” – e da Lei estadual nº 500, de 13 de novembro de 1974,
no que se refere ao ilícito de inassiduidade (artigos 36 e 40).

82
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

2. A ASSESSORIA TÉCNICO-LEGISLATIVA

O presente estudo é fruto da experiência da autora como procura-


dora do Estado, designada para prestar serviços na Assessoria Técnico-
Legislativa do Gabinete do procurador-geral do Estado. Assim, para
melhor contextualização, incialmente será feito um perfunctório histó-
rico do aludido órgão e de suas atribuições.
A Assessoria Técnico-Legislativa, a primeira do país e que serviu de modelo
para outros estados e para o Governo Federal2, foi criada pelo Decreto-Lei
estadual nº 17.252, de 29 de maio de 1947, na Secretaria da Justiça e Negócios
do Interior, junto ao Gabinete do secretário3 e a ele diretamente subordinada,
com atribuições de órgão consultivo dos secretários de estado, e ainda as de:
a) colaborar na revisão ou elaboração dos ante-projetos de leis de ini-
ciativa do Governador e preparar as respectivas mensagens;
b) elaborar ou examinar os projetos de decretos da competência da
Secretaria da Justiça e opinar sobre os das demais Secretarias quanto
à parte formal e seu enquadramento no sistema da legislação estadual;
c) fundamentar o veto dos projetos de lei, conforme as determinações
do Governador do Estado;
d) preparar os anteprojetos de consolidação das disposições legais vigentes;
e) numerar, registar e publicar as leis e decretos, arquivando os autógrafos;
f) organizar o serviço de documentação;
g) acompanhar, como órgão informativo do Govêrno, a discussão dos
projetos de lei;
h) incumbir-se de quaisquer outros trabalhos determinados pelo Secre-
tário da Justiça, da elaboração, divulgação e execução dos atos legisla-
tivos do Estado.4

2 Conforme texto disponível em: https://justica.sp.gov.br/index.php/a-secretaria/secretarios-


da-justica/.
3 Por ocasião da edição da norma, ocupava o cargo de secretário da Justiça o ilustre jurista
e imortal da Academia Brasileira de Letras, Miguel Reale.
4 Alíneas do Artigo 2º do Decreto-Lei nº 17.252, de 1947, na ortografia da época em que editado.

83
ADRIANA MASIERO REZENDE

Passados alguns meses, a Lei estadual nº 74, de 21 de fevereiro


de 1948, subordinou a Assessoria Técnico-Legislativa diretamente ao
governador do estado e lhe conferiu as seguintes atribuições:
a) – dar redação final aos projetos de lei de iniciativa do Governador e
preparar as respectivas mensagens;
b) – acompanhar, como órgão informativo do Govêrno, a discussão dos
projetos de leis;
c) – fundamentar o veto dos projetos de leis aprovados pela Assembléia Legislativa;
d) – elaborar os ante-projetos de consolidação das disposições legais vigentes;
e) – incumbir-se de quaisquer outros trabalhos determinados pelo Gover-
nador inclusive a divulgação dos atos legislativos do Estado;
f) – funcionar como órgão consultivo do Govêrno em assuntos que se refi-
ram ao serviço civil; e
g) – opinar sobre assuntos relativos a organização e funcionamento dos
serviços públicos.5
Com a promulgação da Lei Complementar estadual nº 93,
de 28 de maio de 1974, a Assessoria Técnico-Legislativa passou a ser órgão
complementar da Procuradoria-Geral do Estado. Foram alterados, ainda,
os requisitos para provimento do cargo em comissão de assessor-chefe
da Assessoria Técnico-Legislativa – exigindo-se a condição de advogado
e o reconhecido saber jurídico –, ao passo que os cargos de provimento
em comissão de Assessor Técnico-Legislativo foram reservados aos inte-
grantes e ex-integrantes da carreira de procurador do estado, que possu-
íssem, ao menos, cinco anos de exercício no cargo (artigo 5º).
A condição da assessoria Técnico-Legislativa como órgão com-
plementar da Procuradoria-Geral do Estado foi mantida pela
Lei Complementar estadual nº 478, de 18 de julho de 1986 (artigo 4º),
que estabeleceu, ademais, ser atribuição do órgão “o assessoramento
jurídico do exercício das funções legislativas que a Constituição do
Estado outorga ao Governador, bem como o acompanhamento da tra-
mitação de todas as proposições legislativas” (artigo 40). Outrossim,

5 Alíneas do artigo 2º da Lei nº 74, de 1948, na ortografia da época em que promulgada.

84
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

a Lei Complementar estadual nº 478, de 1986 previu que os cargos


de provimento em comissão de procurador do Estado assessor-chefe
e procurador do assessor da Assessoria Técnico-Legislativa, são priva-
tivos de procurador do estado, em atividade ou aposentado, vincula-
dos à carreira de procurador do estado.
A nova Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado de São
Paulo, a Lei Complementar estadual nº 1.270, de 25 de agosto de 2015,
integrou a Assessoria Técnico-Legislativa ao Gabinete do procurador-
-geral do estado (artigo 9º, II). Com a integração da Assessoria Técnico-
Legislativa à Procuradoria-Geral do Estado, as atividades burocráticas e
administrativas que antes lhe competiam passaram a ser desempenhadas
pela Casa Civil, especificamente pela Subsecretaria de Gestão Legislativa,
do Decreto estadual nº 64.462, de 11 de setembro de 2019).
Por outro lado, a Lei Complementar estadual nº 1.270,
de 25 de agosto de 2015, determinou ser atribuição da Assessoria
Técnico-Legislativa “o assessoramento jurídico ao exercício das fun-
ções legislativas e normativas que a Constituição do Estado outorga
ao Governador”, sendo certo que, com fundamento no § 2º do artigo 9º
da referida Lei Complementar, o procurador-geral do estado, por meio
da Resolução PGE nº 4, de 10 de fevereiro de 2017, ao detalhar as
atribuições da Assessoria Técnico-Legislativa no artigo 2º, caput, esta-
beleceu que lhe compete:
I – manifestar-se em processos e expedientes que versem sobre a edição
de decretos regulamentares de leis estaduais;
II – manifestar-se em processos e expedientes instaurados para a análise
da constitucionalidade de leis estaduais, elaborar pareceres e, quan-
do o caso, as minutas de petição inicial de ação direta de inconstitu-
cionalidade, declaratória de constitucionalidade e/ou informações do
Governador do Estado; e
III – elaborar minuta de manifestação do Procurador Geral, nos termos
do disposto no artigo 90, §2º, da Constituição Estadual.
Parágrafo único. A Assessoria Técnico-Legislativa poderá solicitar
a oitiva da Procuradoria Administrativa, previamente à manifestação
de que trata o inciso II deste artigo, se assim entender recomendável
em razão da repercussão da matéria.

85
ADRIANA MASIERO REZENDE

Dessa forma, em síntese, atualmente, a Assessoria Técnico-


Legislativa do Gabinete do procurador-geral do Estado: (i) é o último
órgão da Procuradoria-Geral do Estado a manifestar-se sobre os aspec-
tos jurídicos de anteprojeto de lei de iniciativa do chefe do Poder
Executivo e de minuta de decreto regulamentar de lei estadual, confe-
rindo-lhes redação final; (ii) é responsável pela análise dos autógrafos,
originados de projetos de lei aprovados pela Assembleia Legislativa e
encaminhados ao Gabinete do governador do estado para os fins do
artigo 28 da Constituição do Estado, e consequente proposta de sanção
ou o veto (total ou parcial), em razão de inconstitucionalidade ou con-
trariedade ao interesse público, sendo certo que, no último caso, a pro-
posta de veto será embasada em manifestação das Pastas diretamente
interessadas na medida; (iii) manifesta-se em processos e expedientes
instaurados para a análise da constitucionalidade de leis estaduais, ela-
bora pareceres e, quando o caso, as minutas de petição inicial de ação
direta de inconstitucionalidade, declaratória de constitucionalidade e
ou informações do governador do estado em ações de controle concen-
trado de constitucionalidade; e (iv) elabora a minuta de manifestação do
procurador-geral do Estado, nos termos do disposto no artigo 90, § 2º,
da Constituição Estadual, observado o previsto na Resolução PGE nº 3,
de 12 de fevereiro de 2019.
Sem prejuízo, a fim de afastar eventuais dúvidas, é mister destacar
que a primeira e principal análise sobre a constitucionalidade e legali-
dade das propostas de edição de lei ou decreto regulamentar de lei esta-
dual compete aos órgãos de execução da Subprocuradoria-Geral da
Consultoria-Geral, que realizam a função em conjunto com a assessoria
que prestam aos órgãos e entidades que atendem (artigo 44, incisos I e IV,
da Lei Complementar estadual nº 1.270, de 2015).

3. OS ESTUDOS JURÍDICOS QUE PRECEDERAM A PROPOSTA DE


APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA DISCIPLINAR PREVISTO NA
LEI ESTADUAL Nº 10.261, DE 28 DE OUTUBRO DE 1968

A partir de proposta da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares,


apresentada com fundamento no artigo 1º, inciso III, da Lei Complementar
estadual nº 1.183, de 30 de agosto de 2012, o procurador-geral do
estado, por meio da Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017,

86
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

instituiu Grupo de Trabalho “com a finalidade de aprofundar estudos


visando identificar medidas de aperfeiçoamento dos processos discipli-
nares e a possibilidade de ser implementado o procedimento disciplinar
restaurativo no âmbito do estado de São Paulo”.
O referido Grupo de Trabalho foi composto por procurado-
res do estado em atividade: (i) na Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares; (ii) no Gabinete da Subprocuradoria-Geral da Consultoria-
Geral; (iii) na Consultoria Jurídica da Secretaria da Educação; (iv) na
Consultoria Jurídica da Secretaria de Administração Penitenciária; (v) na
Consultoria Jurídica da Secretaria da Saúde; (vi) na Assessoria Jurídica
do Gabinete do procurador-geral; (vii) na Procuradoria Administrativa;
e (viii) na Procuradoria Regional de Campinas. Durante os trabalhos,
foram realizadas reuniões com integrantes de órgãos da Administração
relacionados ao tema, tais como a Corregedoria-Geral da Administração
e a Unidade Central de Recursos Humanos.
O profícuo resultado dos trabalhos desenvolvidos foi apresentado
ao procurador-geral do estado, por intermédio da então subprocuradora-
-geral da Consultoria-Geral, que aprovou o relatório e as propostas apre-
sentadas, inclusive a que interessa ao presente artigo, de prosseguimento
dos estudos para eventual apresentação de proposta de alteração da:
I. Lei estadual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, a fim de
aperfeiçoar questões relativas à proteção do dever funcional de
assiduidade e para o aprimor tracking amento da celeridade, da
eficácia e da segurança dos procedimentos destinados a apurar
faltas disciplinares, mediante, inclusive, a criação de medidas
alternativas ao procedimento punitivo disciplinar, quais sejam:
o Termo de Ajustamento de Conduta, a Suspensão Condicional
da Sindicância e as Práticas Autocompositivas;
II. Lei estadual nº 500, de 13 de novembro de 1974, no que se
refere à proteção do dever funcional de assiduidade; e
III. Lei Complementar estadual nº 1.183, de 30 de agosto de 2012,
especificamente para retirar o termo “punitivo” do artigo 1º
e detalhar a forma de instrução dos expedientes enviados
à Procuradoria de Procedimentos Disciplinares para fins de
apuração da falta disciplinar.

87
ADRIANA MASIERO REZENDE

Com apresentação do relatório consolidado e de anteprojeto de


lei complementar, a questão foi encaminhada à Assessoria Técnico-
Legislativa que, após recomendar alterações redacionais e de técnica
legislativa no anteprojeto de lei complementar, recambiou os autos
à Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, para manifestação
e complementação da instrução.
No entanto, posteriormente, entendeu-se pelo prosseguimento
de estudos para apresentação de novo anteprojeto de lei complemen-
tar, que teria por objetivo apenas instituir as Práticas Autocompositivas,
o Termo de Ajustamento de Conduta e a Suspensão Condicional
da Sindicância no âmbito dos procedimentos disciplinares da Lei esta-
dual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.
Referido anteprojeto de lei não se limitou a reproduzir os exatos ter-
mos do anteprojeto anterior no que se referia aos temas tratados (com as
adequações necessárias à nova forma legislativa empregada), mas apre-
sentou redação aprimorada tendo em vista o aprofundamento dos estu-
dos e a experiência acumulada a partir da implantação de projeto-piloto,
denominado Programa de Solução Adequada dos Conflitos de Natureza
Disciplinar – instituído pelo procurador-geral do estado, pelo secretário
da Educação, pelo secretário da Saúde e pelo secretário da Administração
Penitenciária, por meio da Resolução Conjunta PGE/SE/SS/SAP nº 1,
de 2018, com o objetivo de racionalizar e aprimorar a atuação da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares da Procuradoria-Geral do
Estado e dos órgãos e entidades da Administração Direta e Autárquica no
âmbito disciplinar.
Novamente, o anteprojeto de lei complementar foi encaminhado
à Assessoria Técnico-Legislativa para análise, que teceu recomendações de
aperfeiçoamento redacional e de técnica-legislativa ao texto, devolvendo os
autos à Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, onde ficaram sobres-
tados aguardando momento político oportuno para prosseguimento.
Com a determinação da retomada dos estudos visando o aper-
feiçoamento do sistema disciplinar do Estado, pela procuradora-geral
do estado, considerando a tempo decorrido desde a apresentação das
propostas, ecessidade de compatibilização e integração de dispositi-
vos dos dois anteprojetos de lei complementar e a abrangência dos

88
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

temas tratados, deliberou-se que, em atenção aos princípios da efici-


ência e celeridade, os estudos visando a atualização e aperfeiçoamento
da proposta, no âmbito da Procuradoria-Geral do Estado, seriam fei-
tos por meio de trabalho conjunto entre a Subprocuradoria-Geral da
Consultoria Jurídica (por atuação de representantes do Gabinete
da Subprocuradoria-Geral da Consultoria-Geral, da Procuradoria
de Procedimentos Disciplinares e do Núcleo de Direito de Pessoal),
a Assessoria Jurídica do Gabinete do procurador-geral do estado e a
Assessoria Técnico-Legislativa.
Paralelamente, as Secretarias de Orçamento e Gestão, Fazenda
e Planejamento, e Casa Civil conduziam estudos com o objetivo de
propor medidas legislativas para o aperfeiçoamento da estrutura
administrativa do Estado e do regime jurídico dos servidores, dentre
as quais citam-se: (i) a ampliação e reconfiguração da Bonificação por
Resultados, instrumento de política de recursos humanos até então
restrito a determinados órgãos e entidades estaduais, caracterizado
pelo pagamento de prestação pecuniária eventual para servidores em
atividade, vinculada ao desempenho das unidades administrativas do
órgão ou entidade em que estão em exercício, mensurado por meio
dos resultados alcançados em relação às metas previamente estabeleci-
das pela Administração, de acordo com indicadores específicos, com o
objetivo de melhorar a prestação do serviço público e valorizar o ser-
vidor público; (ii) a criação da Controladoria-Geral do Estado, órgão
vinculado diretamente ao governador do Estado, com as finalidades de
adotar as providências necessárias à defesa do patrimônio público, ao
controle interno, à auditoria pública, à correição, à prevenção e ao com-
bate à corrupção, às atividades de ouvidoria, à promoção da ética no
serviço público e ao incremento da transparência da gestão no âmbito
da Administração Pública direta e indireta do Estado; (iii) o aperfei-
çoamento da disciplina da contratação por tempo determinado de que
trata o inciso X do artigo 115 da Constituição Estadual, mediante
alteração da Lei Complementar estadual nº 1.093, de 16 de julho de
2009; (iv) a instituição da licença para doação de tecidos, de órgãos,
de partes de órgãos e de partes do corpo vivo para fins terapêuticos
ou de transplantes intervivos; e (v) a alteração da Lei Complementar
estadual nº 367, de 14 de dezembro de 1984, para conceder a licença

89
ADRIANA MASIERO REZENDE

de 180 (cento e oitenta dias) ao servidor público que adotar ou obtiver


guarda judicial para fins de adoção de criança ou adolescente6.
Dessa forma, deliberou-se pela integração das medidas pertinentes
ao aperfeiçoamento do regime disciplinar dos servidores públicos estatu-
tários ao outro anteprojeto de lei complementar que também estava em
estudo e tinha por objetivo a alteração de diversos aspectos do regime
jurídico dos servidores públicos, a fim de apresentar ao governador a
proposta unificada de encaminhamento de projeto de lei complementar,
sendo necessário, no entanto, restringir a proposta inicial do Grupo de
Trabalho aos aspectos entendidos como prioritários e que, necessaria-
mente, deveriam ser disciplinados por lei complementar.

4. SÍNTESE DAS MEDIDAS ADOTADAS PELA LEI


COMPLEMENTAR ESTADUAL Nº 1.361, DE 21 DE OUTUBRO
DE 2021, NA SEARA DISCIPLINAR

O resultado dos estudos realizados no âmbito da Procuradoria-Geral do


Estado, delineados no item precedente do presente artigo, foi exitoso: as medi-
das propostas foram entendidas como pertinentes pela Administração Pública
Estadual e integraram o Projeto de Lei Complementar nº 26, de 2021, sendo
aprovadas pela Assembleia Legislativa.
Vejamos, portanto, em apertada síntese, as principais medidas, inse-
ridas pela Lei Complementar estadual nº 1.361, de 2021, no âmbito do
sistema disciplinar paulista:

4.1. O ilícito funcional de inassiduidade

O dever de assiduidade ou, por outras palavras, de frequência assí-


dua e pontual, é inerente ao cargo público e indispensável à regular pres-
tação dos serviços atribuídos ao servidor público e, por conseguinte,
à continuidade dos serviços e à adequada proteção do interesse público.

6 A redação do caput do artigo 1º da Lei Complementar estadual nº 367, de 14 de dezembro


de 1984, conferida pela Lei Complementar estadual nº 1.054, de 7 de julho de 2008,
estabelecia que “o servidor público poderá obter licença de 180 (cento e oitenta) dias, com
vencimentos ou remuneração integrais, quando adotar menor, de até sete anos de idade,
ou quando obtiver judicialmente a sua guarda para fins de adoção” (grifo nosso).

90
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

Sob sistema disciplinar anterior, o dever de assiduidade era tutelado


por dispositivos que cuidavam, de um lado, do ilícito de “abandono de
cargo”, configurado por mais de trinta dias consecutivos de faltas injustifi-
cadas ao trabalho e, de outro, da “ausência ao serviço sem causa justificá-
vel”, configurada por mais de 45 dias de faltas, interpoladas, durante um
ano. A pena em tese prevista para os dois ilícitos era idêntica: demissão.
Considerando a identidade do dever funcional tutelado, assim como
a impropriedade terminológica de denominar como abandono de cargo7
a falta injustificada ao trabalho superior a trinta dias consecutivos, as Leis
estaduais nº 10.261, de 1968 e nº 500, de 19748 foram alteradas para que o
ilícito administrativo de inassiduidade passasse a ter idêntica denominação.
Ademais, para melhor tutela do interesse público na continuidade
do serviço público, os prazos para configuração do ilícito de inassidui-
dade passível de demissão foram reduzidos, de sorte que a partir da
produção de efeitos da Lei Complementar estadual nº 1.361, de 2021,
“considerar-se-á inassiduidade a ausência ao serviço, sem causa jus-
tificável, por mais de 15 (quinze) dias consecutivos, ou por mais de
20 (vinte) dias úteis intercalados, durante 1 (um) ano” (artigo 256, § 1º,
da Lei estadual nº 10.261, de 1968). Não foi alterada a pena cabível
para a hipótese, que continuou a ser a de demissão.

7 A denominação do ilícito como “abandono de cargo” poderia conduzir a incorreta


interpretação de que a legislação estadual exigiria para sua configuração a conjugação de
dois elementos: um objetivo (determinado número de faltas injustificadas ao trabalho) e
outro subjetivo (o ânimo do servidor de abandonar o cargo). Em que pese tal interpretação
não encontrasse supedâneo na redação original das Leis Estaduais nº 10.261, de 1968,
e nº 500, de 1974, a impropriedade terminológica aliada à jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça, firmada em face do artigo 132, inciso II, da Lei federal nº 8.112, de
11 de dezembro de 1990 – segundo a qual para tipificação da infração administrativa de
“abandono de cargo”, terminologia empregada na norma federal em tela e também punível
com demissão, é indispensável que a Administração investigue e comprove a intenção
deliberada do servidor de abandonar o cargo (v.g., AgInt nos EDcl no RMS 57.202/MS,
Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 10/05/2021,
DJe 13/05/2021) – gerava desnecessária litigiosidade.
8 A propósito, oportuno esclarecer que, embora a admissão de pessoal com fundamento na
Lei estadual nº 500, de 1974 tenha sido proibida pelo artigo 24 da Lei Complementar
estadual nº 1.093, de 16 de julho de 2009, não se pode olvidar que ainda existem muitos
servidores em atividade submetidos ao seu regime, tendo em vista que a Lei Complementar
estadual nº 1.010, de 1º de junho de 2007, determinou que os servidores ativos e inativos
admitidos, até sua vigência, com fundamento nos incisos I e II do artigo 1º da Lei estadual
nº 500, de 1974, são titulares de cargos efetivos (artigo 2º, § 2º).

91
ADRIANA MASIERO REZENDE

4.2. Aperfeiçoamento da redação do artigo 187 da Lei estadual


nº 10.261, de 28 de outubro de 1968

A redação original do artigo 187 da Lei estadual nº 10.261, de 1968,


permitia interpretação divergente sobre a existência de ilícito punível na seara
administrativa, pela prática de atividade remunerada por servidor público
afastado em licença para tratamento de saúde ou por acidente de trabalho.
Dessa forma, a redação do dispositivo foi alterada com o obje-
tivo de evidenciar a proibição ao desempenho de atividade remunerada
por servidor em gozo de licença para tratamento da própria saúde ou
por acidente do trabalho, sob pena de cassação da licença e apuração
de responsabilidade funcional.

4.3. As Práticas Autocompositivas, o Termo de Ajustamento


de Conduta e a Suspensão Condicional da Sindicância

Pela prática de atos decorrente do exercício do cargo ou fun-


ção, o servidor público se sujeita a responsabilização nas searas civil,
penal e administrativa.
Nessa linha, Di Pietro observa que:
O servidor público sujeita‑se à responsabilidade civil, penal e adminis-
trativa decorrente do exercício do cargo, emprego ou função. Por outras
palavras, ele pode praticar atos ilícitos no âmbito civil, penal e adminis-
trativo. Hoje existe também a responsabilidade por atos de improbidade
administrativa que, embora processada e julgada na área cível, produz
efeitos mais amplos do que estritamente patrimoniais, porque pode levar
à suspensão dos direitos políticos e à perda do cargo, com fundamento
no artigo 37, § 4º, da Constituição [Federal] […].9
A prática de um ilícito funcional por um servidor público implica
a atribuição de responsabilidade administrativa, sendo certo que o ilícito
poderá se verificar por conduta omissiva ou comissiva, e os fatos que
o configuram deverão estar previstos na legislação estatutária.

9 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Gen Forense,
2022. Edição Kindle, p. 1814.

92
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

A propósito, Carvalho Filho esclarece que:


os estatutos funcionais apresentam um elenco de deveres e vedações
para os servidores, e o ilícito administrativo vai configurar-se exata-
mente quando tais deveres e vedações são inobservados. Além do mais,
os estatutos relacionam as penalidades administrativas, sem, contudo,
fixar qualquer elo de ligação “a priori” com a conduta.
Prossegue o ilustre doutrinador alertando para a necessidade de que
o sistema punitivo na Administração atenda aos princípios da ampla
defesa, do contraditório, da adequação punitiva (ou proporcionalidade),
“pelo qual se incumbe ao administrador certa margem de discricionarie-
dade para compatibilizar a conduta e a sanção”, bem como ao princí-
pio da “motivação da penalidade, necessário para apontar os elementos
que comprovam a observância pelo administrador, da correlação entre
a infração funcional e a punição imposta”10.
No mesmo sentido, Di Pietro pondera que:
Não há, com relação ao ilícito administrativo, a mesma tipicidade que
caracteriza o ilícito penal. A maior parte das infrações não é definida com
precisão, limitando‑se a lei, em regra, a falar em falta de cumprimento
dos deveres, falta de exação no cumprimento do dever, insubordinação
grave, procedimento irregular, incontinência pública; poucas são as infra-
ções definidas, como o abandono de cargo ou os ilícitos que correspondem
a crimes ou contravenções. Isso significa que a Administração dispõe de
certa margem de apreciação no enquadramento da falta dentre os ilíci-
tos previstos na lei, o que não significa possibilidade de decisão arbitrá-
ria, já que são previstos critérios a serem observados obrigatoriamente;
é que a lei (arts. 128 da Lei Federal e 256 do Estatuto Paulista) determina
que na aplicação das penas disciplinares serão consideradas a natureza
e a gravidade da infração e os danos que dela provierem para o serviço
público. É precisamente pelo fato de a Administração dispor de certa mar-
gem de apreciação (ou discricionariedade limitada pelos critérios previstos
em lei) na aplicação de penalidade que se exige a precisa motivação, para
demonstrar a adequação entre a infração e a pena escolhida e impedir o

10 Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32. ed. São Paulo: Atlas,
2018, p. 829-830.

93
ADRIANA MASIERO REZENDE

arbítrio da Administração. Normalmente essa motivação consta do rela-


tório da comissão ou servidor que realizou o procedimento; outras vezes,
consta de pareceres proferidos por órgãos jurídicos preopinantes aos quais
se remete a autoridade julgadora; se esta não acatar as manifestações ante-
riores, deverá expressamente motivar a sua decisão.11
Em consequência, verificada a existência de indícios suficientes da
possível prática do ilícito funcional e de sua autoria12, a Administração
Pública, tradicionalmente, em qualquer circunstância, providenciava
a instauração de processo administrativo disciplinar para apurar a res-
ponsabilidade do servidor e definir, se o caso, a pena correspondente.
No entanto, em um movimento que acompanha a evolução do direito
no sentido de buscar a racionalidade e a adequação do jus puniendi, o direito
administrativo disciplinar aplicável aos servidores estatutários do estado de
São Paulo passa a dispor de instrumentos para buscar uma via consensual
para solução da parcela dos conflitos disciplinares considerada como de
reduzido potencial ofensivo à norma jurídica incidente, sempre condicio-
nada a que o servidor público interessado ostente perfil profissional favorá-
vel e que a solução consensual seja a que melhor atenda ao interesse público,
especialmente no que concerne à regular prestação do serviço público.
A propósito, esclarece Messias Lourenço:
[…] na seara disciplinar, o chamado espaço de conflito, destinado às infra-
ções disciplinares de maior gravidade (punidas com demissão, demissão
a bem do serviço público e cassação de aposentadoria e disponibilidade),
bem como aquelas praticadas por servidores públicos com perfil profis-
sional desfavorável (v.g.: condenações anteriores, inúmeros processos
em andamento ou excessivo número de faltas injustificadas), manteria
o modelo “clássico”, no qual a imposição de sanções previamente
descritas em lei, observado o devido processo legal, concretamente aten-
deria aos fins preventivos e repressivos, necessários ao restabelecimento

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op.cit., p. 1823-1824.


12 Se não estiver suficientemente caracterizada a infração disciplinar ou sua autoria,
a autoridade realizará apuração preliminar, de natureza simplesmente investigativa, finda
a qual a autoridade que conduziu o procedimento deverá opinar pelo seu arquivamento ou
pela instauração de sindicância ou de processo administrativo (cf. artigo 265 da Lei estadual
nº 10.261, de 1968).

94
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

do indene desenvolvimento do serviço público.


No entanto, nas hipóteses em que a falta disciplinar praticada viesse
a ser classificada como de “menor ou médio potencial ofensivo”
(v.g.: punidas com advertência, repreensão ou suspensão)13, desde que
o servidor apresentasse um perfil profissional favorável (v.g., vários
anos de serviço público, ausência de maus antecedentes, elogios, pontu-
alidade indene e ausência de faltas), seria possível, em consonância com
os princípios da razoabilidade, eficiência, interesse público e celerida-
de, reconhecer a existência de um verdadeiro espaço de consenso, cuja
ideia central, como próprio nome sugere, é a convergência de vontades
e celebração de um acordo.14
Partindo dessas premissas, a Lei Complementar estadual nº 1.361,
de 2021, ao alterar a Lei estadual nº 10.261, de 1968, introduziu
no ordenamento jurídico bandeirante a possibilidade da autoridade
competente para determinar a apuração de irregularidade e a ins-
tauração de sindicância ou processo administrativo e o procurador
do estado responsável por sua condução, de ofício ou a requerimento
do interessado – à vista das circunstâncias do caso concreto e tendo
como objetivo a melhor solução para resguardar o interesse público –,
mediante decisão fundamentada, encaminhar a questão para solução
por meio das Práticas Autocompositivas, da celebração de Termo
de Ajustamento de Conduta, bem como da Suspensão Condicional
da Sindicância, nos termos da lei.
As Práticas Autocompositivas, definidas pela Lei estadual nº 10.261,
de 28 de outubro de 1968, como sendo a mediação, a conciliação, os pro-
cessos circulares e outras técnicas de justiça restaurativa, são orientadas
pelos princípios da voluntariedade, corresponsabilidade, reparação do
dano, confidencialidade, informalidade, consensualidade e celeridade.

13 O autor alerta que o rol de penas dependerá da escolha de cada ente da Federação, cabendo
acrescentar a Lei estadual nº 10.261, de 1968, estabelecer as seguintes penas disciplinares:
repreensão, suspensão, multa, demissão, demissão a bem do serviço público; disponibilidade
e cassação de aposentadoria (artigo 251).
14 LOURENÇO, Messias José. Reforma Administrativa Disciplinar no estado de São Paulo,
Lei 1.361, de 21 de outubro de 2021. São Paulo: Amazon, 2022. Edição Kindle, p. 18-19.

95
ADRIANA MASIERO REZENDE

Ademais, constituem a medida consensual mais adequada aos casos em


que restar evidenciada a ocorrência de conflitos interpessoais.
Por outro lado, considerando que para aplicação das Práticas
Autocompositivas é necessário que as partes reconheçam os fatos essen-
ciais em discussão, a lei prevê que esse reconhecimento não implica admis-
são de culpa em eventual sindicância ou processo administrativo, bem
como que o conteúdo das sessões restaurativas é sigiloso, não podendo
ser utilizado como prova em processo administrativo ou judicial.
O encaminhamento às Práticas Autocompositivas poderá ocorrer de
forma alternativa ou concorrente à sindicância ou ao processo administrativo.
Por sua vez, o Termo de Ajustamento de Conduta é definido pela
Lei estadual nº 10.261, de 1968, como sendo o instrumento mediante
o qual o funcionário assume a responsabilidade pela irregularidade a que
deu causa e compromete-se a ajustar sua conduta, bem como a observar
os deveres e proibições previstos nas leis e regulamentos que regem suas
atividades e a reparar o dano, se houver.
O Termo de Ajustamento de Conduta deverá conter: (i) a qualifi-
cação do funcionário envolvido; (ii) a descrição precisa do fato a que
se refere; (iii) as obrigações assumidas; (iv) o prazo para integral cumpri-
mento das obrigações, que não poderá ser inferior a um ano nem superior
a dois anos; (v) a forma de cumprimento das obrigações; e (vi) a forma
de fiscalização das obrigações assumidas.
A Suspensão Condicional da Sindicância, como a denominação
indica, poderá ocorrer após a edição da portaria de instauração da sindi-
cância. As condições da suspensão serão especificadas pelo procura-
dor do estado oficiante e, no mínimo, contemplarão a apresentação de
relatórios trimestrais de atividades e a frequência regular do servidor,
não sendo admitidas faltas injustificadas.
A suspensão será revogada se o beneficiário descumprir as condições
fixadas ou vier a ser processado por outra falta disciplinar e, por conse-
guinte, a sindicância terá prosseguimento.
O encaminhamento para as Práticas Autocompositivas de forma
alternativa à instauração ou prosseguimento da sindicância e do processo
administrativo, a celebração do Termo de Ajustamento de Conduta

96
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 81-98, jan./jun. 2022

e a Suspensão Condicional da Sindicância suspendem o prazo de pres-


crição da pretensão punitiva disciplinar estatal.
Por outro lado, o cumprimento do acordo celebrado em sessão
autocompositiva extingue a punibilidade nos casos em que a conduta
do funcionário não gerou prejuízo ao Erário ou este foi integralmente
reparado, bem como sejam cabíveis, em tese, as penas de repreensão,
suspensão e multa. Nos casos em que o cumprimento do acordo res-
taurativo não ensejar a extinção da punibilidade, será considerado pela
autoridade competente para mitigar a sanção.
O integral cumprimento das condições do Termo de Ajustamento de
Conduta ou da Suspensão Condicional da Sindicância acarreta a extin-
ção da punibilidade.

5. CONCLUSÃO

A reforma do sistema disciplinar bandeirante, efetivada pela


Lei Complementar Estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021, dotou
a Administração de instrumentos importantes para a adequada aplica-
ção do jus puniendi, uma vez que, ao passo que possibilita – com estrita
observância aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
eficiência, celeridade, proporcionalidade e razoabilidade, e com o
objetivo de preservar o interesse público, mediante a adoção de medi-
das que tenham maior probabilidade de garantir a adequada presta-
ção do serviço público – o encaminhamento dos ilícitos funcionais que
apresentam potencial ofensivo reduzido e no qual estão envolvidos
servidores que ostentam bom perfil profissional para a via da solução
consensual, assegura que a Administração possa concentrar esforços na
apuração e punição de ilícitos disciplinares graves, de relevante impacto
para o regular desempenho do serviço público e em relação aos quais
a aplicação célere da sanção correspondente se revela indispensável
tanto pelo aspecto preventivo quanto pelo repressivo.
Sem prejuízo, trata-se de recente inovação normativa, não tendo
havido tempo hábil sequer para edição de decreto regulamentar, de sorte
que apenas com o decurso do tempo, o estudioso do Direito Administrativo
Disciplinar terá elementos para aferir e mensurar seus resultados práticos
e confirmar se seus elevados desígnios foram alcançados.

97
ADRIANA MASIERO REZENDE

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo.


32. ed. São Paulo: Atlas, 2018.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed.
Rio de Janeiro: Gen Forense, 2022. Edição Kindle.
LOURENÇO, Messias José. Reforma Administrativa Disciplinar no
estado de São Paulo, Lei 1.361, de 21 de outubro de 2021. São Paulo:
Amazon, 2022. Edição Kindle.
WARMLIN, Glenda Liz de Paula. O processo disciplinar por aban-
dono de cargo: situações que afastam a demissão. Revista Jurídica
Consulex, [s. l.], n. 257, 30 set. 2007. Disponível em: https://www.tjdft.
jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-
e-entrevistas/artigos/2007/o-processo-disciplinar-por-abandono-de-
cargo-situacoes-que-afastam-a-demissao-glenda-liz-de-paula-warmlin.
Acesso em: 22 fev. 2022.

98
A SUSPENSÃO CONDICIONAL
DA SINDICÂNCIA (SUSCONSIND)
PREVISTA NA LC 1.381/2021 E SEUS
REFLEXOS NO SISTEMA DISCIPLINAR
DO ESTADO DE SÃO PAULO

Ricardo Kendy Yoshinaga1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Fundamentos; 3 – A suspensão


condicional da sindicância no Estatuto Paulista: definição; 4 – Propositura;
5 – Requisitos; 6 – Prazos e condições; 7 – Revogação; 8 – Novo benefício
e prescrição: cargo em comissão e função de confiança; 9 – Extinção da
punibilidade; 10 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: Trata-se de trabalho que tem por escopo a análise da suspensão


condicional da sindicância (susconsind) prevista na Lei Complementar
nº 1.381, de 21 de outubro de 2021. O texto traz apontamentos sobre
sua aplicação no âmbito dos procedimentos disciplinares regidos pelo
Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo,
destacando a adoção do conceito de solução consensual inserida no
referido instituto, bem como as implicações daí decorrentes.

PALAVRAS-CHAVE: Sindicância disciplinar. Suspensão condicional


da sindicância. Solução consensual. Previsão legislativa. Atribuições e
desafios da PPD.

1 Procurador do estado de São Paulo, atualmente em exercício na Segunda Unidade Processante


da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares. Bacharel em Direito pela Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.

99
RICARDO KENDY YOSHINAGA

1. INTRODUÇÃO

Durante o transcurso desses dez anos de existência, a Procuradoria de


Procedimentos Disciplinares (PPD),órgão de execução da Procuradoria-Geral
do Estado de São Paulo, caracterizou-se por uma dinâmica própria,
enriquecida sobremaneira pelo contato direto com os envolvidos2 nos fatos
apurados, por vezes trazendo peculiaridades e nuances nem sempre detectá-
veis por uma fria e impessoal leitura dos autos. Essa experiência acumulada
trouxe a conclusão de ser imperioso um aperfeiçoamento no sistema disci-
plinar vigente no âmbito estadual, em especial no tratamento a ser confe-
rido em situações envolvendo infrações funcionais de menor gravidade pra-
ticados por agentes públicos sem antecedentes funcionais desabonadores.
Não é sem razão, portanto, que no Grupo de Trabalho instituído
pela Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017, e coordenado pela
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, foi sugerida – entre outras
propostas – a adoção de institutos que permitissem uma melhor solução
para alguns casos que, num primeiro momento, ensejariam a instauração
de procedimento disciplinar e posterior aplicação de penalidade ao ser-
vidor processado.
A reforma administrativa implantada pela Lei Complementar
nº 1.381, de 21 de outubro de 2021, acolheu parte das sugestões
formuladas e promoveu algumas alterações no sistema disciplinar do
estado de São Paulo, entre as quais se destaca a introdução de mecanismos
que trouxeram alternativas ao tradicional procedimento administrativo
punitivo previsto no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado
de São Paulo3.
Nesse contexto, foram instituídas as práticas autocompositivas, o termo
de ajustamento de conduta, e a suspensão condicional da sindicância4.

2 Sejam eles denunciantes, testemunhas e os próprios servidores investigados.


3 Lei Estadual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.
4 A Lei Orgânica da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo – Lei complementar nº 1.270,
de 25 de agosto de 2015 – foi o primeiro texto legal prevendo a susconsind no estado de
São Paulo, servindo de parâmetro para sua introdução no âmbito da reforma administrativa
ocorrida em 2021.

100
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 99-128, jan./jun. 2022

Por envolver de forma mais direta a atuação da Procuradoria


de Procedimentos Disciplinares, razão principal desta edição
comemorativa, o foco deste trabalho implicará em discorrer sobre a sus-
pensão condicional da sindicância (susconsind) prevista nas novas regras
estatutárias, indicando os fundamentos que a justificam, suas caracterís-
ticas, forma de condução, além de alguns apontamentos decorrentes da
experiência ainda incipiente na aplicação do instituto nos procedimentos
disciplinares atualmente em andamento na Especializada.

2. FUNDAMENTOS
É incontroverso que uma das consequências do poder hierár-
quico da Administração resida na obrigatoriedade de se apurar toda
irregularidade praticada no serviço público; vale dizer, aquela tem o
poder-dever de buscar o esclarecimento do fato ilícito ocorrido em sua
seara, responsabilizando o agente público faltoso. Nesse sentido, explica
Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
O poder disciplinar é discricionário, o que deve ser entendido em
seus devidos termos. A Administração não tem liberdade de escolha
entre punir e não punir, pois, tendo conhecimento de falta pratica-
da por servidor, tem necessariamente que instaurar o procedimento
adequado para sua apuração e, se for o caso, aplicar a pena cabível.
Não o fazendo, incide em crime de condescendência criminosa, previsto
no artigo 320 do Código Penal e em improbidade administrativa,
conforme artigo 11, inciso II, da Lei nº 8.429, de 2-6-92.5
O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São
Paulo, e na redação anterior ao advento da Lei Complementar nº 1.381,
de 21 de outubro de 20216, em seu artigo 264, expressamente consignou

5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, p. 95.


6 Com o advento da referida Lei Complementar, o dispositivo passou a admitir a possibilidade
de a autoridade administrativa submeter o caso às práticas autocompositivas ou propor
a celebração do termo de ajustamento de conduta: “Artigo 264 – A autoridade que,
por qualquer meio, tiver conhecimento de irregularidade praticada por funcionário adotará
providências visando à sua imediata apuração, sem prejuízo das medidas urgentes que
o interesse da Administração exigir, podendo submeter o caso às práticas autocompositivas
ou propor celebração de termo de ajustamento de conduta. Parágrafo único – A autoridade
poderá, desde logo, submeter o caso às práticas autocompositivas, especialmente nas
situações em que evidenciada a ocorrência de conflitos interpessoais, objetivando sempre
a melhor solução para resguardar o interesse público”.

101
RICARDO KENDY YOSHINAGA

a obrigatoriedade na apuração de irregularidade praticada por servidor:


“Artigo 264 – A autoridade que, por qualquer meio, tiver conhecimento
de irregularidade praticada por servidor é obrigada a adotar providências
visando à sua imediata apuração, sem prejuízo das medidas urgentes que
o caso exigir”.
Esse caráter compulsório tem seu fundamento nos princípios da
supremacia e indisponibilidade do interesse público que, portanto,
justificam a atuação imperativa da Administração.
Ocorre que cada vez mais tem se entendido que uma atuação con-
sensual da Administração no âmbito dos procedimentos administrati-
vos igualmente atenderia aos princípios em apreço. Na lição de Diogo
de Figueiredo Moreira Neto, a adoção de instrumentos consensuais
não se constitui em exclusão do interesse público em detrimento do
particular; mas, ao contrário, preserva-se o interesse público na medida
em que a maneira a ser utilizada para encontrar a solução atende tanto
à Administração Pública quanto ao administrado:
Afastadas as convicções que se tornaram ideologicamente pelo tempo
e pela inércia, a objeção central técnica remanescente se prendia
à interpretação dada ao princípio da indisponibilidade do interesse
público. Segundo a óptica então dominante, na esfera administrativa
seria impossível negociar com o interesse público, o que proscreveria
o emprego de todos os instrumentos do gênero, incluindo-se os de
composição extrajudicial de conflitos, como a conciliação, a mediação,
a arbitragem e os ajustamentos de conduta. Ora, distintamente do
que se possa aceitar sem maiores indagações, em todas as modali-
dades preventivas e de composição de conflitos em que se envolva
a Administração Pública, no âmbito do Direito Administrativo,
jamais se cogita de negociar o interesse público, mas, sim, de negociar
os modos de atingi-lo com maior eficiência.7
Em interessante ensaio sobre a consensualidade administrativa,
Julia d’Alge Mont’Alverne Barreto assim escreve:

7 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Novas tendências da democracia: consenso e


direito público na virada do século – o caso brasileiro, p. 124.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 99-128, jan./jun. 2022

o elemento central que aproxima todas as análises sobre a consensuali-


dade no Direito Administrativo brasileiro corresponde à desautorização
da Administração Pública que, aos poucos, cede espaço para o emprego
de técnicas negociadas a fim de atingir o interesse público. É isso o que
demonstra a passagem do autoritarismo administrativo, verticalizado,
para um novo estágio marcado pelo consenso, no qual a Administração se
coloca em posicionamento mais horizontalizado, seja para celebrar acor-
dos, buscando a solução pela negociação, seja para colher informações
referentes à escola de políticas públicas, seja ainda, para obter prévias
à tomada de uma decisão unilateral […]. Em qualquer dessas formas,
havendo maior ou menor grau de participação e influência do particular,
visualiza-se a busca pelo consenso enquanto instrumento de legitimação
da atuação do Poder Público.8
Sob a ótica dos procedimentos disciplinares punitivos, esse novo
enfoque, por óbvio, não afastaria a atuação imperativa do estado na
sua função de controle interno e repressão aos desvios de condutas de
seus agentes. Entretanto, de forma alternativa, permitiria uma melhor
solução para determinadas situações expressamente previstas em lei.
Na linha desse raciocínio, Juliana Bonarcosi de Palma, em dissertação
de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (USP), registra:
Alertar para a cultura repressiva no aparato burocrático do esta-
do não significa proclamar a falência da sanção como mecanismo de
ordenação administrativa. A sanção administrativa é um dos mais
relevantes instrumentos que dispõe a Administração Pública, pois,
quando adequadamente manejada, afirma a autoridade estatal e previne
novas infrações administrativas em razão de seu efeito simbólico, den-
tre outros efeitos. Questiona-se a sanção como o fim da atuação ad-
ministrativa, a repressão da impunidade como o escopo da atividade
administrativa. Somente com a consideração da sanção e do acordo
substitutivo como mecanismos igualmente hábeis a disciplinar as ativida-
des privadas, cada qual com suas peculiaridades, será possível afirmar a
consensualidade no panorama do Direito Administrativo Sancionador.9

8 BARRETO, Júlia d’Alge Mont’Alverne. Consensualidade administrativa: o uso de dispoute


boards para solução de conflitos no âmbito das agências reguladoras, p. 53-54.
9 PALMA, Juliana Bonacorsi de. Atuação administrativa consensual: estudos dos acordos
substitutivos no processo administrativo sancionador, p. 312-313.

103
RICARDO KENDY YOSHINAGA

3. A SUSPENSÃO CONDICIONAL DA SINDICÂNCIA NO


ESTATUTO PAULISTA: DEFINIÇÃO

Nesse cenário de uma Administração Pública consensual, a Lei


Complementar nº 1.381/2021 inseriu a suspensão condicional da
sindicância no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado
de São Paulo, fazendo-o, principalmente, no Capítulo III do Título VII
desse último diploma legal10.
Trata-se de instituto aplicável após a instauração da sindicância disciplinar,
ensejando a suspensão desta por determinado período, desde que atendidos
os requisitos previstos na lei e que exige a concordância do servidor proces-
sado, acarretando a extinção da punibilidade caso não ocorra sua revogação.
Verifica-se, assim, sua natureza despenalizadora: embora não afaste a ilicitude
da conduta, evita a aplicação de qualquer reprimenda disciplinar.
Manifesta sua similitude com a suspensão condicional do processo
criminal prevista no artigo 89 da Lei Federal nº 9.099, de 26 de setembro
de 1995. Também conhecida como “sursis processual”, na definição de
Julio Fabrini Mirabete,
consiste, assim, em sustar-se a ação penal após o recebimento da
denúncia, desde que o réu preencha determinados requisitos e obedeça
a certas condições durante o prazo prefixado, findo o qual ficará extinta
a punibilidade quando não der causa à revogação do benefício11.

4. PROPOSITURA
Conforme apontado, a proposta da suspensão condicional da
sindicância poderá ser feita ao acusado em momento posterior à
instauração do procedimento disciplinar; esta, a regra contida no artigo
267-N, da Lei nº 10.261/1968:
Artigo 267-N – Após a edição da portaria de instauração da sindicância,
o Procurador do Estado que a presidir poderá propor sua suspensão
pelo prazo de 1 (um) a 2 (dois) anos, desde que o funcionário tenha

10 A susconsind tem sua previsão nos artigos 261, § 4º, III; 267-A; 267-N; 267-O; 267-P;
e 272, § 2º, todos da Lei Estadual nº 10.261/1968.
11 MIRABETE, Julio Fabrini. Juizados especiais criminais, p. 274.

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mais de 5 (cinco) anos de exercício no cargo ou função e não registre


punição de natureza disciplinar nos últimos 5 (cinco) anos.
Uma primeira observação a ser lançada reside na circunstância de
que o legislador, ao determinar que a suspensão somente poderá ser
proposta após a instauração da sindicância, exige que haja indícios
de materialidade e autoria infracionais, na medida em que a portaria
que inicia o procedimento precisa conter “o nome e a identificação do
acusado, a infração que lhe é atribuída, com descrição sucinta dos fatos,
a indicação das normas infringidas e a penalidade mais elevada em
tese cabível”12. Portanto, e sem a presença de elementos mínimos que
evidenciem a prática de um ilícito disciplinar e de sua autoria por parte
do servidor acusado, não há que se falar em proposta de suspensão,
porque, em última instância, inexiste a justa causa para a instauração de
procedimento disciplinar punitivo.
Neste momento, cabe reproduzir as ponderações de Mauro Roberto
Gomes de Mattos sobre a justa causa:
No processo administrativo disciplinar, a justa causa identifica-se com
o justo, revelado através de uma coerente acusação, onde existam
indícios ou provas diretas da prática de infrações disciplinares, por parte
de servidores públicos, ligadas ao exercício da função pública, ou em
virtude dela. A justa causa é a condição mínima exigida pela norma legal,
pela jurisprudência e pela doutrina para que não ocorra uma acusação
sem fundamento e temerária, movida por interesses que não são jurídi-
cos, totalmente desatrelada de provas e de embasamentos sérios, que não
configurem a legitimidade da acusação. Por essa razão, é necessário,
pelo menos, indícios suficientes de autoria e a existência de prova direta
como condição da instauração desses processos, para que eles correspon-
dam a legalidade da acusação ou da própria investigação.13
Pela própria dicção do artigo 267-N, verifica-se que a atribuição para
a formulação da proposta da suspensão da sindicância é do procurador do
estado responsável pela sua condução; cabe a esse profissional, de forma

12 Artigo 277, parágrafo primeiro, da Lei nº 10.261/1968.


13 MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Tratado de Direito Administrativo Disciplinar,
p. 212 e 214.

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RICARDO KENDY YOSHINAGA

privativa, avaliar se no caso concreto estão presentes os requisitos legais


para a sua concretização, o que deverá ocorrer em ato solene, formal,
ocasião em que será colhida a manifestação do servidor processado sobre
o interesse em aceitar (ou não) a proposta da suspensão.
Alguma dúvida pode surgir a partir do que estabelece o artigo
267-A do Estatuto14. Com efeito, uma leitura mais precipitada do
dispositivo leva ao entendimento de que as autoridades competen-
tes para determinar a apuração de irregularidade e aquelas para
determinar a instauração15 da sindicância também teriam atribuição
de formular a proposta da susconsind.
Entretanto esse entendimento entra em rota de colisão com toda
a sistemática prevista no Estatuto para a tramitação dos expedientes
disciplinares. Conforme já mencionado neste trabalho, a proposta
somente poderá ocorrer após a edição da portaria instauradora da
sindicância disciplinar, ato privativo de procurador do estado.
Nos termos do artigo 271 do Estatuto, uma vez editada a portaria
e instaurada a sindicância, esta será realizada pela Procuradoria-Geral
do Estado e presidida por procurador do estado confirmado na carreira,
vale dizer, cabe a este toda a condução do procedimento instaurado16.
Dessa forma, não se vislumbra a possibilidade de outras autoridades
administrativas, senão aquela mencionada no artigo 271, formular a
proposta da suspensão, sob pena de violar toda a lógica do sistema dis-
ciplinar previsto no ordenamento jurídico vigente.

14 Artigo 267-A – A autoridade competente para determinar a apuração de irregularidade


e a instauração de sindicância ou processo administrativo e o procurador do estado
responsável por sua condução ficam autorizados, mediante despacho fundamentado,
a propor as práticas autocompositivas, a celebração de termo de ajustamento de conduta,
bem como a suspensão condicional da sindicância, nos termos desta lei.
15 Aqui, cabe registrar que são distintos o ato de determinar a instauração da sindicância e o
ato de sua efetiva instauração; o primeiro é aquele praticado pelo superior hierárquico do
servidor e cuja previsão está inserida no art. 272, “caput”, da Lei nº 10.261/1968; o segundo
é o ato (portaria inicial) que efetivamente inicia a relação processual entre a Administração
e o acusado e cuja atribuição é exclusiva de procurador do estado, nos termos do artigo 271
do mesmo texto de Lei.
16 O artigo 6º, “caput”, da Lei Complementar Estadual nº 1.183, de 30 de agosto de 2012,
possui idêntica previsão. A Lei Complementar em referência dispôs sobre a criação da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 99-128, jan./jun. 2022

Assim, a leitura do artigo 267-A que nos parece mais consentânea


com os demais dispositivos da Lei Estadual nº 10.261/1968, é no sentido
de que as autoridades ali indicadas, no âmbito de suas respectivas com-
petências, poderão formular propostas de práticas autocompositivas,
termo de ajustamento de conduta e suspensão condicional da sindicân-
cia, reiterando-se que, em relação a esta última, essa atribuição deve
ser aferida numa leitura conjunta com o que estabelece o artigo 271 do
mesmo diploma normativo.
Nos termos do artigo 278 do Estatuto, na sequência deverá o procura-
dor do estado designar audiência de interrogatório do acusado. Em sendo
caso que permita a suspensão da sindicância, a proposta deverá ser for-
mulada durante a audiência e antes que se inicie o interrogatório. Caso o
acusado aceite a proposta de suspensão, o interrogatório restará prejudicado.
Aqui cabe a indagação sobre a possibilidade de a proposta ser formu-
lada a terceiros, ainda que com poderes específicos outorgados pelo acu-
sado. A resposta parece ser negativa, pois a aceitação ou recusa deverá ser
manifestada perante o procurador do estado de forma direta, por ser ato
de natureza personalíssima, sendo inviável a delegação dessa manifesta-
ção a outrem. Em relação a essa específica circunstância, parece ser razo-
ável transportar-se o entendimento consagrado no âmbito da suspensão
condicional do processo penal, onde se mostra inválida a manifestação de
vontade que não seja efetuada pessoalmente pelo acusado. Nesse sentido
já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
EMENTA: Habeas corpus. Art. 89 da Lei nº 9.099/1995. Proposta do
Ministério Público de suspensão condicional do processo. Discordância do
advogado constituído. Falta de intimação do denunciado. Nulidade absoluta.
Ato voluntário e personalíssimo. Necessidade de sua manifestação.
1. A falta de intimação do denunciado para se manifestar sobre
a proposta de suspensão condicional do processo caracteriza nulidade
absoluta, e não apenas relativa, podendo, pois, ser arguida a qualquer
tempo, prescindindo da demonstração do prejuízo.
2. O alegado constrangimento é evidente e manifesto, pois a aceitação ou
não da proposta de suspensão condicional do processo é ato a ser pratica-
do pessoalmente pelo denunciado. Não há como admitir que o advogado,
mesmo com poderes especiais, delibere unilateralmente sobre a proposta

107
RICARDO KENDY YOSHINAGA

oferecida pelo Ministério Público, não aceitando, como no caso, se a Lei


nº 9.099/1995 exige em seu art. 89, § 1°, a manifestação tanto do interes-
sado como de seu defensor, prevendo, aliás, que, em caso de divergência
entre eles, prevalecerá a vontade do indiciado (art. 89, § 711).
3. Habeas corpus parcialmente concedido para anular o processo a
partir da audiência de conciliação, inclusive.17
O mesmo entendimento é adotado por Luiz Flávio Gomes:
Ninguém pode aceitar a suspensão no lugar do acusado, mesmo porque
ela tem por fundamento a autodisciplina e o senso de responsabilida-
de. Nunca será possível tal ato por procurador, ainda que conte com
poderes especiais. É o acusado que tem que saber das condições da
suspensão e assumi-las. É um ato em que se assumem responsabilidades.
Nisso há sempre uma carga emocional, que favorece o seu êxito. O juiz
tem que conversar com o próprio acusado, inclusive para ajustar
a dosimetria das condições, tão importante em termos de prevenção
geral (intimidação) como especial (ressocialização). Se o acusado não
comparece (salvo motivo justo) na audiência de conciliação, torna-se
impossível a suspensão.18
Diante dessas considerações, revela-se imprescindível que no
mandado de citação e intimação do servidor processado, além dos
elementos ventilados no art. 278, parágrafo primeiro do Estatuto conste
que na audiência designada, e antes de seu interrogatório, poderá ser
formulada a proposta da suspensão da sindicância; tal informação
se mostra imprescindível para que o servidor, inclusive, tenha prévia
ciência quanto à possibilidade da suspensão e possa melhor avaliar
o seu posicionamento, evitando-se, assim, que seja surpreendido com
a proposta no momento da audiência.
Nos casos em que haja a figura do denunciante prevista no
artigo 279 do Estatuto, e uma vez que este deve ser ouvido antes do
interrogatório do acusado, a solução que parece melhor se adequar
a essa situação consiste em se designar uma audiência específica para a
proposta de suspensão. Caso ela seja recusada, a tramitação terá normal

17 STJ – HC nº 17.165-SP, relator o Ministro Vicente Leal, 6ª Turma, DJ de 05/04/2004.


18 GOMES, Luiz Flávio. Suspensão condicional do processo, p. 309.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 99-128, jan./jun. 2022

prosseguimento com a oitiva do denunciante para somente depois ser


realizado o interrogatório do servidor processado.
Na audiência para a proposta de suspensão, o acusado deverá se fazer
acompanhar de advogado que lhe preste a assistência técnica necessária
para que possa manifestar sua vontade. Efetivamente, pelas regras previstas
no artigo 282 e parágrafos da Lei nº 10.261/1968, verifica-se que o acusado
será assistido por advogado em todos os atos e termos do processo. Para
além disso, pertinente invocar o entendimento consagrado no âmbito da
Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo no sentido de que,
nada obstante a edição da Súmula vinculante nº 5 do Supremo Tribunal
Federal (“a falta de defesa técnica por advogado no processo admi-
nistrativo disciplinar não ofende a Constituição”), nos processos
administrativos disciplinares e sindicâncias punitivas regidas pela
Lei Estadual nº 10.261/1968, a defesa técnica do acusado por advoga-
do continua sendo condição necessária para a tramitação do feito, se e
na medida em que for assim estabelecido pelo Estatuto19.
Em audiência objetivando a formulação da proposta de suspensão,
caso o acusado não compareça ao ato processual nem justifique sua ausên-
cia, apesar de regularmente citado e intimado, restará inviabilizada nova
oportunidade para se valer do instituto, diante da preclusão temporal
operada. Por outro lado, caso o acusado compareça à audiência e recuse
a proposta formulada, não poderá, posteriormente, manifestar-se de
forma contrária, na medida em que a posição originariamente adotada
é de natureza irretratável, além de estar caracterizada a preclusão lógica,
diante da clara incompatibilidade das manifestações externadas.
Interessante é a situação inversa, vale dizer, o acusado inicialmente
aceitou a suspensão da sindicância e, posteriormente, pretende se retratar,
manifestando o desejo de que o procedimento disciplinar tenha prosse-
guimento. Conforme exposto, o pedido do acusado deverá ser indeferido,
diante da natureza irretratável de sua adesão à proposta e pela preclusão
lógica operada. Entretanto não se afasta a possibilidade do acusado, então,
passar a descumprir as condições que lhe foram impostas, ocasião em que a
susconsind será revogada e a sindicância passará a ter normal prosseguimento.

19 Parecer PA nº 173/2008, parecerista Dra. Patrícia Ester Fryszman. Peça opinativa aprovada
pelas Instâncias Superiores da PGE/SP em 2/10/2008.

109
RICARDO KENDY YOSHINAGA

É certo que, nessa situação específica, não há mesmo como evitar


a retomada da marcha processual. Contudo, e caso fique demonstrado
que a revogação se deu de forma deliberada em razão de retratação do
acusado quanto à aceitação na suspensão do procedimento, não se afasta
a possibilidade – em caso de eventual condenação administrativa ao
final da instrução processual – de considerar essa deslealdade processual
como circunstância agravante na dosimetria da pena disciplinar.
Com relação às sindicâncias em curso quando do advento da
Lei Complementar nº 1.381/2021, não se verifica óbice à imediata aplicação
do novo instituto. Nesse sentido, e invocando-se novamente a regra pre-
vista no artigo 267-N, constata-se que o dispositivo legal estabelece que
a proposta poderá ocorrer após a edição da portaria de instauração da
sindicância, não delimitando, entretanto, o momento final em que aquela
poderá ser formulada, a revelar que, desde que ainda não tenha ocorrido
o julgamento da sindicância, perfeitamente viável a adoção da susconsind.
A esse argumento some-se que o artigo 30 da Lei Complementar
nº 1.361/2021 estabeleceu que esta entraria em vigor na data de sua publi-
cação, produzindo seus efeitos a partir do primeiro dia do mês subsequente
à data da sua publicação. O mesmo artigo de lei estabeleceu exceções à
entrada em vigor na data prevista em seu “caput”, sendo que a suspensão
condicional da sindicância não se encontra no rol dessas exceções,
ou seja, tem imediata aplicação. Para além disso, também merece registro
a circunstância de que apenas em relação às práticas autocompositivas
é que o legislador fez menção de que será necessária a regulamentação
por decreto20, inexistindo essa previsão para o termo de ajustamento de
conduta e a suspensão condicional da sindicância.

5. REQUISITOS
Na sequência, passa-se à análise dos requisitos que o servidor
processado deverá preencher para que seja possível valer-se da suspen-
são condicional da sindicância.
Eles estão previstos no “caput” do artigo 267-N, e se referem à situ-
ação funcional do sindicado, envolvendo o tempo de serviço no cargo

20 Artigo 267-B, da Lei Estadual nº 10.261/1968.

110
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 99-128, jan./jun. 2022

ou função e os seus antecedentes disciplinares. Assim, o dispositivo legal


estabeleceu dois requisitos a serem preenchidos: (i) mais de 5 (cinco)
anos de exercício no cargo ou função; e (ii) não registre punição de natu-
reza disciplinar nos últimos 5 (cinco) anos.
O primeiro requisito temporal diz respeito à necessidade de prestigiar
o servidor que já tenha certo período de serviços prestados à Administração,
circunstância que acena para maior grau de confiança por parte do ente
público, a justificar a adoção da medida despenalizadora.
Interessante questionamento diz respeito a saber se o prazo quinquenal
é contabilizado até a data do fato objeto da apuração administrativa ou
até o momento da proposta da suspensão da sindicância. Aqui, parece-nos
que a opção legislativa foi no sentido de considerar o lapso temporal que
medeia o início do exercício no cargo ou na função e a data do fato apu-
rado, de modo que não seria razoável que essa contagem se estendesse até
a data da proposta da suspensão da sindicância.
Essa conclusão decorre também de uma interpretação sistemática,
pois adota o mesmo balizamento daquele previsto no artigo 307 do Estatuto,
no qual se estabelece que a sanção disciplinar não será considerada em desfavor
do servidor, desde que entre o cumprimento daquela e o cometimento de
nova infração tenha decorrido 5 (cinco) anos de efetivo exercício21.
Outro aspecto que merece registro reside na necessidade de o
servidor estar em exercício há mais de cinco anos no cargo ou na função
em que ocorreu a irregularidade. Ainda que o artigo 267-N não tenha
sido expresso, entende-se que, ao mencionar o “exercício no cargo ou
função”, acena mesmo para que o tempo a ser considerado envolve
justamente o vínculo funcional em que se deram os fatos.
O segundo requisito exigido pelo comando normativo consiste na ausên-
cia de qualquer reprimenda disciplinar em desfavor do servidor nos últimos
5 (cinco) anos. Aqui também o lapso quinquenal deverá ser contabilizado
entre a data do cumprimento da antecedente penalidade e a prática dos novos
fatos, invocando-se novamente a regra prevista no artigo 307 do Estatuto.

21 Artigo 307 – Decorridos 5 (cinco) anos de efetivo exercício, contados do cumprimento


da sanção disciplinar, sem cometimento de nova infração, não mais poderá aquela ser
considerada em prejuízo do infrator, inclusive para efeito de reincidência.

111
RICARDO KENDY YOSHINAGA

Ao contrário do que foi dito em relação ao requisito de tempo de


exercício no cargo ou na função, o legislador não restringiu a existên-
cia de penalidade no específico vínculo funcional em que ocorridos os
novos fatos, de tal modo que a punição de natureza disciplinar a ser
considerada abarca qualquer sanção sofrida pelo servidor, ainda que
aplicada no âmbito de cargo ou função diverso. Ao que parece, e em
relação a este específico requisito, a intenção do legislador foi no sentido
de se avaliar a postura do funcionário no serviço público considerado
globalmente, mesmo que em ocupação funcional outra que não aquela
em que se deram os fatos apontados como ilícitos funcionais.
Uma discussão que se vislumbra na aplicação do instituto da suspensão
condicional da sindicância reside na possibilidade da Administração,
de forma motivada, se recusar a formular a proposta de suspensão ao
servidor que preencha os requisitos anteriormente mencionados, em razão
de outras circunstâncias que apontem para a incompatibilidade do instituto
em determinado caso concreto. Um exemplo clássico reside na situação
do servidor que esteja respondendo a outros procedimentos disciplinares
punitivos, ainda que não tenha qualquer condenação administrativa
em seu desfavor e tenha mais de 5 (cinco) anos de exercício no cargo
ou função. Poderia a Administração, nesta situação, deixar de propor a
suspensão da sindicância?
Nesse cenário, uma linha de entendimento aponta a possibilidade
de a Administração deixar de formular a proposta, ainda que o funcio-
nário processado seja portador dos requisitos previstos no artigo 267-N.
Messias José Lourenço, em recente obra sobre os aspectos disciplinares
da reforma administrativa, expôs os fundamentos desse posicionamento:
Tal entendimento, que interpreta a expressão ‘poderá’ com mera
faculdade da Administração Pública, tem sido aquele acolhido por
outras Instituições, como a Advocacia Geral da União – AGU e
a Controladoria Geral da União – CGU. Nessa direção, a Advocacia
Geral da União, ao editar a portaria nº 248/2018, que estabeleceu o
Termo de Ajustamento de Conduta como meio alternativo à instauração
de processo disciplinar nas hipóteses de irregularidades de menor
potencial ofensivo, em seu artigo 2.º, limitou sensivelmente seu alcance,
inviabilizando o TAC nos seguintes casos:

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“Art. 2º O disposto nesta Portaria não se aplica nas seguintes


hipóteses: I – indício de ocorrência de prejuízo ao erário; II – cons-
tatação de considerável prejuízo ao serviço público; III – notícia de
fatos indicadores da prática de improbidade administrativa ou crime,
ainda que não instaurado inquérito policial ou civil ou ajuizada ação
judicial; Ano XXV – Suplemento B do BSE Nº 32, de 10 de agosto de
2018 Boletim de Serviço Eletrônico – Suplemento 5 IV – quando houver
sido celebrado TAC nos últimos 2 (dois) anos, contados da homologa-
ção, pelo membro ou servidor administrativo interessado; e V- quando
constar registro válido de aplicação de penalidade disciplinar nos assen-
tamentos funcionais, nos termos do art. 131 da Lei nº 8.112, de 1990”.
A aludida Portaria, ao tratar da delicada questão envolvendo o reconhecimento
ou não de um direito subjetivo do servidor público, foi enfática:
“Art. 6º – A celebração de TAC não constitui direito subjetivo do
interessado, devendo sujeitar-se aos termos da presente Portaria”.
Sobre o tema, a Controladoria Geral da União editou a Instrução
Normativa 4 – fevereiro de 2020, na qual o art. 1º, estabelece que
os órgãos do Poder Executivo Federal, pertencentes à Administração
Pública direta, as autarquias, as fundações, as empresas públicas e as
sociedades de economia mista, compreendidas na Administração Públi-
ca indireta, ainda que se trate de empresa estatal que explore atividade
econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação
de serviços, poderão celebrar, nos casos de infração disciplinar de
menor potencial ofensivo, Termo de Ajustamento de Conduta-TAC,
desde que atendidos os requisitos previstos nesta instrução norma-
tiva. Nos termos do art. 1º. § 2.º da referida Instrução Normativa,
somente se caracterizariam infrações disciplinares de menor potencial
ofensivo às condutas puníveis com advertência ou suspensão de até
30 dias, nos termos do artigo 129 da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro
de 1990, ou com penalidade similar, prevista em lei ou regulamento
interno. Para a celebração do Termo de Ajustamento de Condu-
ta, de acordo com o art. 2º, o TAC somente será celebrado quando
o investigado: I – não tenha registro vigente de penalidade discipli-
nar em seus assentamentos funcionais; II – não tenha firmado TAC
nos últimos dois anos, contados desde a publicação do instrumento;
e III – tenha ressarcido, ou se comprometido a ressarcir, eventual dano

113
RICARDO KENDY YOSHINAGA

causado à Administração Pública. Ao tratar da questão envolvendo a


discricionariedade, o art. 5.º § 2º expressamente dispõe: o pedido de
celebração de TAC apresentado por comissão responsável pela con-
dução de procedimento disciplinar ou pelo interessado poderá ser,
motivadamente, indeferido. Esse entendimento já foi objeto de exame
em outra área, envolvendo uma ação civil pública e a eventual proposta
de Ajustamento de Conduta. Na ocasião, o Superior Tribunal de Justiça
(STJ), traçando uma interessante analogia com o instituto da concilia-
ção, entendeu que o Ministério Público não estava obrigado a aceitar
uma proposta de ajustamento formulada pelo particular.22
Por outro lado, um segundo ponto de vista caminha em sentido
oposto, acenando que, uma vez preenchidos os requisitos previstos no
artigo 267-N, deverá a Administração formular a proposta de suspensão
da sindicância ao funcionário processado.
O argumento central dessa corrente invoca a submissão da
Administração Pública ao princípio da legalidade, assim definido por
Edmir Netto de Araújo:
O princípio da legalidade nos termos do art. 5º, II, da Carta Mag-
na, significa, para os particulares, que estes poderão fazer tudo o que
a lei não proíbe, e que só a lei poderá obrigá-los a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa. Já seu correspondente para o Poder Público, men-
cionado no art. 37, significa que o agente público, as autoridades,
a Administração, enfim, só poderão fazer o que a lei determina ou permi-
te expressamente, devendo agir de acordo com a lei e o interesse público,
não podendo prevalecer frente a este decisões e interesses individuais.
Este desdobramento do princípio da legalidade é conhecido, em Direito
Administrativo, como princípio da legalidade estrita, ou princípio da
restritividade: as leis administrativas são de ordem pública, contendo
“poderes-deveres” irrelegáveis pelos agentes públicos, que não as podem,
portanto, descumprir.

22 LOURENÇO, Messias José. Reforma Administrativa Disciplinar no Estado de São Paulo,


p. 88-90, grifos do autor. Ressalte-se que o autor destacou a controvérsia, concluindo que
“é inegável que ambas as posições possuem concretos subsídios jurídicos e, provavelmente,
a questão deve ser futuramente levada à apreciação do Poder Judiciário, a quem caberá
definir se há direito subjetivo ou se, em caráter excepcional, um requerimento do sindicado,
poderá ser motivadamente recusado pela Procuradoria de Procedimentos Disciplinares”.

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[…]
Na verdade, o princípio da legalidade estrita significa que a Administra-
ção não pode inovar na ordem jurídica por simples atos administrativos,
não pode conceder direitos, criar obrigações, impor vedações, compelir
comportamentos: para tudo isso, e em outras hipóteses, é necessário
o respaldo da lei, e mesmo que em certos casos a atividade adminis-
trativa pareça realizar-se sem essa particularidade, só será legítima se
houver lastro em determinação ou autorização legal. Por isso mesmo
não se pode dizer que o princípio da legalidade estrita se refira somente
ao agente público, pois se dirige, na verdade, à Administração em si,
à atividade administrativa como um todo, pois a lei (conformidade com
a lei, conformidade com o Direito) é o fundamento da Administração
em si mesma de sua ação.23
Nesse panorama, verifica-se que o comando normativo trazido pela
reforma administrativa estabeleceu de forma exaustiva os requisitos que
o servidor deverá atender para se valer da suspensão da sindicância,
vedado, portanto, o estabelecimento de outros sem qualquer previsão
normativa, sob pena de afronta ao princípio constitucional em apreço.
Com todas as vênias aos respeitáveis argumentos em sentido con-
trário, esse segundo posicionamento nos pareceu mais convincente.
Note-se que o legislador não deixou margem para que a Administração
considerasse outras circunstâncias24; ainda que se entendesse como
“econômica” a opção legislativa, é esta que deverá ser respeitada pelos
seus intérpretes e aplicadores.
Nunca é demais lembrar que, uma vez praticado o ilícito funcional,
surge para a Administração o poder-dever de realizar a apuração dos
fatos. Na lição de Antonio Carlos Alencar Carvalho,
uma vez conhecida a infração de deveres ou proibições funcionais por
parte de agente público, com a consequente quebra da disciplina inte-

23 ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo, p. 75-76.


24 Ao contrário, por exemplo, de quando tratou das condições da suspensão condicional da
sindicância, ocasião em que, além daquelas previstas no parágrafo primeiro do artigo 267-N,
estabeleceu a possibilidade de as Secretarias de Estado, da Procuradoria-Geral do Estado,
da Controladoria-Geral do Estado e das Autarquias estabelecerem outras, observadas as
suas especificidades, conforme previsão contida no artigo 267-P.

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RICARDO KENDY YOSHINAGA

rior administrativa, rende-se ensejo ao exercício do poder disciplinar da


Administração Pública, que constitui o poder-dever de impor sanções
administrativas, previstas em lei, aos servidores faltosos, com a finali-
dade de corrigir os seus desvios de comportamento25.
Dessa forma, a redação do “caput” do artigo 267-N, estabelecendo
que o procurador do estado “poderá” propor a suspensão da sindi-
cância, não sinaliza para uma atuação discricionária dessa autoridade
administrativa no tocante à fixação dos requisitos necessários à formulação
da proposta. O referido vocábulo, salvo melhor juízo, aponta tão somente
para a possibilidade de não prosseguir na persecução administrativa,
afastando-se o poder-dever acima ventilado, desde que atendidos os requi-
sitos taxativamente previstos no referido dispositivo legal.

6. PRAZOS E CONDIÇÕES

Uma vez constatada a presença dos requisitos para a formulação


da proposta de suspensão, deverá o procurador do estado estabelecer o
prazo e as condições aos quais ficará sujeita.
O legislador estabeleceu que o prazo do período de prova será de
1 (um) a 2 (dois) anos, não declinando, entretanto, os critérios para a fixação
do prazo da suspensão do procedimento disciplinar. Assim, aqui se abre a
possibilidade para que a autoridade processante, de forma discricionária,
estabeleça o período em que a sindicância ficará suspensa, podendo aten-
tar para as circunstâncias pessoais do servidor, bem como para as peculia-
ridades envolvendo os fatos apurados. Exemplificativamente, poder-se-ia
levar em conta a existência de processos disciplinares instaurados em
face do servidor26, tempo do funcionário no serviço público, existência de
mais de uma conduta irregular apurada na sindicância.
As regras relativas às condições a serem cumpridas pelo servidor
durante o período de prova se encontram no parágrafo primeiro do

25 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar


e sindicância à luz da jurisprudência dos tribunais e da Casuística da Administração
Pública, p. 417.
26 Evidentemente, se considerarmos que o fato de o servidor responder a outros procedimentos
disciplinares não se constitua em óbice à suspensão da sindicância, conforme apontamentos
relativos aos requisitos para sua concessão.

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artigo 267-N: “§ 1º – O procurador do estado especificará as condições


da suspensão, em especial, a apresentação de relatórios trimestrais de
atividades e a frequência regular sem faltas injustificadas”.
Da leitura do dispositivo, verifica-se que duas condições deverão
ser obrigatoriamente estabelecidas na proposta: (i) apresentação de
relatórios trimestrais de atividades; e (ii) proibição de incorrer em falta
injustificada durante o período da suspensão.
Além dessas condições obrigatórias, o procurador do estado, ava-
liando as especificidades do caso concreto, poderá estabelecer outras,
diante da autorização legislativa contida na expressão “em especial”,
de modo que, aqui sim, nos parece haver um campo para atuação
discricionária da autoridade processante. Tudo isso sem contar na
possibilidade de as Secretarias de Estado, da Procuradoria-Geral do
Estado, da Controladoria-Geral do Estado e das Autarquias estabelecerem
outras, observadas as suas especificidades, conforme previsão contida
no já mencionado artigo 267-P.

7. REVOGAÇÃO

A revogação da susconsind está prevista no parágrafo segundo


do artigo 267-N: “§ 2º – A suspensão será revogada se o beneficiário
vier a ser processado por outra falta disciplinar ou se descumprir as
condições estabelecidas no § 1º deste artigo, prosseguindo, nestes casos,
o procedimento disciplinar cabível”.
Verifica-se que a primeira causa de revogação consiste no fato de o acu-
sado, durante o período de suspensão, ser processado administrativamente
por outra conduta irregular. Não se vislumbra nesta causa de revogação
qualquer ofensa ao princípio da inocência previsto na Constituição Federal,
na medida em que tal circunstância não acarreta a aplicação de qualquer
sanção ou restrição funcional ao servidor, mas apenas retoma o curso da
sindicância disciplinar em que este poderá exercer seu direito de se contra-
por aos termos da acusação formulada em seu desfavor.
Nessa questão, mostra-se perfeitamente aplicável o entendimento
consagrado na jurisprudência para os casos de revogação da suspensão
condicional do processo penal:

117
RICARDO KENDY YOSHINAGA

RECURSO ESPECIAL. PROCESSO PENAL. SURSIS PROCESSUAL


(ART. 89, § 3º DA LEI Nº 9.099/95. REVOGAÇÃO. A teor do
art. 89, § 3º, da Lei nº 9.099/95, se o acusado vier a ser processado por
outro crime, impõe-se a revogação. O réu deixa de ser merecedor do
benefício, que é norma excepcional, para ser normalmente processado
com todas as garantias pertinentes. Não há, por igual, inobservância
à presunção de não culpado. […] Recurso conhecido e provido.27
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO ESTELIONATO – REVOGAÇÃO
DA SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO – DESCUMPRI-
MENTO DAS CONDIÇÕES ESTABELECIDAS – RÉU PROCESSADO
POR OUTRO CRIME – NECESSIDADE. A revogação do sursis é obri-
gatória quando no curso da suspensão o beneficiado vier a ser proces-
sado pela prática de outro crime, ainda que não haja sentença definitiva
ou trânsito em julgado.28
Interessante debate diz respeito à correta interpretação da locução
“vier a ser processado por outra falta disciplinar”, vale dizer, saber se,
para revogação da susconsind, é necessário que os fatos ensejadores
da instauração do novo procedimento disciplinar tenham ocorrido
no período de prova da suspensão ou se basta a instauração do novo
procedimento, independentemente da data em que ocorreram os fatos
nele apurados.
Caso seja adotado o entendimento consagrado pelo Superior
Tribunal de Justiça em relação à suspensão condicional do processo
penal, a singela circunstância de ser instaurado um novo procedi-
mento disciplinar seria suficiente para a revogação da susconsind, pois,
“tratando-se de benefício de índole processual, mostra-se irrelevante
que os fatos apurados no novo processo instaurado sejam anteriores
ao período da suspensão, uma vez que, nos termos do art. 89, § 3º,
da Lei nº 9.099/95, a suspensão será revogada se, no curso do prazo,
o beneficiário vier a ser processado por outro crime”29.

27 STJ – REsp 708.658/SP, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, DJ de 5/9/05.
28 TJ/SP – RESE nº 0084378-55.2008.8.26.0050, Relator: Des. Willian Campos, 4ª Câmara de
Direito Criminal, DJ de 16/08/2011.
29 STJ – HC 62.401/ES, Rel. Min. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJ de
23/06/08.

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Ocorre que, na situação vertente, não parece recomendável o


transplante automático dos conceitos do direito penal para o direito
administrativo disciplinar.
Inicialmente, invoca-se a necessidade de se manter a coerência do
conjunto de regras estabelecidas pela reforma administrativa. Sobre a coe-
rência de dado ordenamento jurídico, vale mencionar artigo de Franciele
Silva Cardoso, publicado na Revista da Faculdade de Direito da USP:
Para Bobbio, conforme já mencionado, Ordenamento Jurídico é um
conjunto unitário, sistemático (coerente) e completo. Após tratar da
questão da unidade, Norberto Bobbio passa a questionar se o ordena-
mento jurídico também constituiria um sistema. Para tanto, o autor ini-
cia sua análise utilizando-se de aproximações sucessivas, considerando
sistema uma totalidade ordenada, isto é, o conjunto de entes entre os
quais existe uma certa ordem. E haverá ordem, para Bobbio, quando
esses entes estiverem em relacionamento com o todo e também em re-
lacionamento de coerência entre si. Neste sentido, saber se um orde-
namento é um sistema equivale saber se as normas estão em coerência
entre si e em que condições é possível essa relação.30
Conforme já apontado no presente trabalho, o legislador não exigiu
a inexistência de procedimento disciplinar em curso como requisito para
a proposta da suspensão, sinalizando que fatos com apuração existente
em período anterior à formulação da proposta não serão considerados
para fins de aplicação do instituto. Assim, a primeira causa de revogação
somente teria sua razão de ser para aquelas condutas praticadas após o
início do período de prova; caso contrário, teríamos uma ruptura com
a harmonia necessária ao sistema normativo, uma vez que a mesma cir-
cunstância (ser processado administrativamente por fatos anteriores à
susconsind) não seria empecilho à concessão da suspensão e, paradoxal-
mente, serviria para a revogação desse mesmo benefício31.

30 CARDOSO, Franciele Silva. O Direito como sistema: dever de coerência e as antinomias


segundo Norberto Bobbio, p. 617
31 A coerência e a harmonia são mantidas no âmbito penal, na medida em que a Lei Federal
nº 9.099/1995 (art. 89, “caput” e seu parágrafo terceiro) estabelece expressamente que a
existência de processos criminais em curso se constitui em requisito para concessão e também
causa de revogação da suspensão condicional do processo penal, fato que, como visto,
inocorre no campo administrativo disciplinar estadual.

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RICARDO KENDY YOSHINAGA

Acresça-se que, caso se entenda que a revogação também se aplica-


ria aos fatos ocorridos anteriormente à suspensão, seria possível enfren-
tarmos situações em que dois servidores poderiam receber tratamentos
diferenciados em relação à revogação do instituto, a depender da data em
que foi instaurado um novo procedimento disciplinar em seu desfavor32.
Também sob esse enfoque restaria afastada a coerência do ordenamento
jurídico, entendida “como condição de justiça do ordenamento, uma vez
que onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto
ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem
a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de pre-
ver com exatidão as consequências jurídicas da própria conduta, nem a
justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem
à mesma categoria”33.
Para além desses argumentos, o cumprimento das condições aven-
çadas na susconsind deverá ser avaliado no período de prova a que se
submete o servidor; é a conduta deste no lapso temporal probatório que
será objeto de análise quanto à manutenção (ou não) do benefício. É o
que Messias José Lourenço chama de um “olhar para o futuro”:
Com efeito, como se tem insistido, o real escopo do instituto, máxime ao
estipular um período de prova no qual determinadas condições deverão
ser necessariamente observadas, é justamente oportunizar ao servidor
acusado de uma falta disciplinar de menor ou médio potencial ofensivo
que, doravante, adote uma nova postura profissional, a justificar a desne-
cessidade de uma futura reprimenda. Aliás, numa abordagem metafóri-
ca, poder-se-ia dizer que no momento da audiência conciliatória, o juízo
de admissibilidade da Suspensão Condicional da Sindicância consistira
num “olhar para o passado”, enquanto o período de prova e eventual
extinção da punibilidade representariam um “olhar para o futuro”. Ora,
caso entendimento contrário venha a ser adotado, o sindicado proces-
sado por faltas disciplinares cometidas antes da aceitação do acordo,
teria inevitavelmente seu benefício revogado a qualquer momento,
independentemente de sua postura profissional durante o período de

32 Observe-se que a data de instauração do procedimento disciplinar é circunstância totalmente


alheia à vontade e conduta do servidor processado.
33 CARDOSO, Franciele Silva. op. cit., p. 621.

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prova; o que, repita-se, desvirtuaria totalmente as finalidades da suscon-


sind e afrontaria qualquer conceito de Segurança Jurídica. Depreende-se,
portanto, que eventual revogação estará condicionada a processos
instaurados durante o período de prova que, no entanto, dizem respeito
a infrações disciplinares praticadas após a celebração da susconsid.34
A segunda causa de revogação decorre da própria natureza condicional
do instituto, consistente justamente no descumprimento das condições
estabelecidas para a sua aplicação. A inobservância do quanto avençado
no acordo de suspensão, por óbvio, tem como consequência natural seu
rompimento e o prosseguimento da sindicância disciplinar instaurada.
Cabe registrar que, ao contrário da suspensão condicional do
processo penal, na susconsind não há previsão para causas facultativas de
revogação. Incidindo uma das hipóteses do parágrafo segundo do artigo
267-N, a suspensão será obrigatoriamente revogada por despacho do
procurador do estado que, então, deverá determinar o prosseguimento
da sindicância a partir do momento em que esta se encontrava.
Não se pode afastar a hipótese de a administração, após o transcurso
do prazo de suspensão, constatar a existência de causa revogadora do
benefício. Nesse caso, e desde que ainda não tenha havido a declaração
da extinção da punibilidade, é perfeitamente possível a revogação da sus-
consind por descumprimento das condições durante o período de prova,
na medida em que não se mostra razoável a utilização do benefício por
quem violou o acordo firmado, descumprindo as obrigações que volun-
tariamente assumiu.
Aqui também, e diante de sua equivalência, mostra-se aplicável o
posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal para os casos
da suspensão condicional do processo penal:
AGRAVO REGIMENTAL. AÇÃO PENAL. SUSPENSÃO
CONDICIONAL DO PROCESSO. MEDIDA DESPENALIZADORA.
POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO APÓS O PERÍODO DE PROVA.
NÃO CUMPRIMENTO DA CONDIÇÃO DE COMPARECIMENTO
MENSAL A JUÍZO. INADMISSIBILIDADE DO APROVEITAMENTO

34 LOURENÇO, Messias José. Reforma Administrativa Disciplinar no Estado de São Paulo,


p. 100-101.

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RICARDO KENDY YOSHINAGA

DE COMUNICAÇÕES DE VIAGEM PARA EFEITO DE AUTO-


RIZAÇÕES DE AFASTAMENTO DA COMARCA. CONDIÇÕES
DISTINTAS DE CUMPRIMENTO. JUSTIFICATIVAS INSUBSIS-
TENTES. OBSERVÂNCIA DO PRÉVIO CONTRADITÓRIO NO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. QUESTÕES NÃO VERSADAS
NA DECISÃO AGRAVADA. NÃO CONHECIMENTO. AGRAVO
DESPROVIDO. 1. O instituto da suspensão condicional do processo
constitui importante medida despenalizadora, estabelecida por motivos
de política criminal, com o objetivo de possibilitar, em casos previamente
especificados, que o processo nem chegue a se iniciar. 2. A jurisprudência
desta Casa de Justiça é firme no sentido de que o benefício da suspen-
são condicional do processo pode ser revogado mesmo após o período
de prova, desde que motivado por fatos ocorridos até o seu término.
A melhor interpretação do art. 89, § 4º, da Lei 9.099/95 leva à conclusão
de que não há óbice a que o juiz decida após o final do período de prova
(cf. HC 84.593/SP, Primeira Turma, da minha relatoria, DJ 03/12/2004).
Precedentes de ambas as Turmas. 3. Em se tratando de instrumento de
política criminal despenalizadora, o instituto da suspensão condicional do
processo exige mais do que a aplicação das condições objetivamente con-
sideradas. Vai além: para efeito de revogação da suspensão do processo,
confere ao julgador importante função de sopesar a gravidade de eventual
falta no cumprimento das condições fixadas, diante da conduta do acusa-
do frente ao benefício. 4. O acusado não soube se valer do favor legal que
lhe foi conferido, não demonstrando o necessário comprometimento com
a situação de suspensão condicional do processo, em claro menoscabo da
Justiça Criminal do Estado. Na situação em concreto, deixou o acusado
de cumprir uma das condições com as quais se comprometeu, respeitante
ao comparecimento mensal em Juízo eleitoral para informar e justificar as
suas atividades. 5. O comparecimento a juízo constitui obrigação distinta
daquela alusiva às justificações para viagem, motivo pelo qual não podem
as diversas comunicações de viagem juntadas aos autos ser encaradas
como justificadoras do não comparecimento do acusado. Por outro
lado, considera-se justificado o não comparecimento ocorrido no mês de
setembro de 2006, quando, estando o acusado em campanha eleitoral,
a exigência de comparecimento importaria dano à continuidade de suas
atividades, incompatível com as finalidades do instituto da suspensão do
processo. (Cf. Inq 641-QO/MG, Tribunal Pleno, da relatoria do ministro

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Marco Aurélio, DJ 05/06/1998.) 6. Não há que se falar em falta de pré-


vio contraditório nesta nossa instância quando se observa que, logo em
seguida ao pronunciamento do procurador-geral da república, o acusado
teve vista efetiva dos autos, em atendimento a requerimento por ele apre-
sentado, nada peticionando. Inconformismo que foi manifestado apenas
depois de exarada a decisão revogatória do benefício, por meio do pre-
sente recurso, cujo conhecimento, per se, afasta eventual prejuízo, não
demonstrado na espécie. 7. Agravo regimental desprovido.35
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SURSIS PROCESSUAL:
REVOGAÇÃO APÓS O PERÍODO DE PROVA POR DESCUMPRIMEN-
TO DAS CONDIÇÕES ANTES DO SEU TÉRMINO. POSSIBILIDADE.
PRECEDENTES. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. A suspensão con-
dicional do processo pode ser revogada, mesmo após o seu termo final, se
comprovado que o motivo da sua revogação ocorreu durante o período
do benefício. Precedentes. 2. Habeas corpus denegado.36
HABEAS CORPUS. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCES-
SO. POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO APÓS O
TÉRMINO DO PERÍODO DE PROVA. PRECEDENTES DO STF.
ORDEM DENEGADA. 1. Esta Suprema Corte já “firmou entendimento
no sentido de que o benefício da suspensão condicional do processo
pode ser revogado após o período de prova, desde que os fatos que
ensejaram a revogação tenham ocorrido antes do término deste
período” (HC 84.654/SP, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 01.12.2006).
2. Tendo ocorrido o descumprimento das condições impostas, durante
o período de suspensão, deve ser revogado o benefício, mesmo após o
término do prazo fixado pelo juiz. 3. Habeas corpus denegado.37

8. NOVO BENEFÍCIO E PRESCRIÇÃO: CARGO EM COMISSÃO E


FUNÇÃO DE CONFIANÇA

O parágrafo quarto do artigo 267-N, por seu turno, veda a


concessão de novo benefício durante o dobro do prazo da anterior

35 STF – AP 512 AgR, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJ de 20.4.2012.
36 STF – HC 90.833/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJ de 11.5.2007.
37 STF – HC 97.527/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ de 1º.7.2009.

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RICARDO KENDY YOSHINAGA

suspensão, contado da declaração de extinção da punibilidade pela auto-


ridade administrativa competente. O dispositivo revela a importância de
a Procuradoria de Procedimentos Disciplinares comunicar a suspensão
da sindicância ao órgão de recursos humanos das Secretarias de Estado
e das Autarquias, inclusive para fins de evitar a duplicidade de benefícios
em prazo inferior ao permitido pelo comando normativo em testilha.
O legislador também estabeleceu que, durante o período da
suspensão da sindicância, igualmente fica suspenso o prazo da prescrição
da pretensão punitiva, que só voltará a correr na hipótese de revogação
do benefício. A suspensão do lapso prescricional tem previsão no artigo
261, parágrafo quarto, item 3, e no parágrafo quinto do art. 267-N:
Artigo 261 – Extingue-se a punibilidade pela prescrição:
[…]
§ 4º – A prescrição não corre:
[…]
3 – durante a suspensão da sindicância, nos termos do artigo 267-N
desta lei;
Artigo 267-N: […]
§ 5º – Durante o período da suspensão não correrá prazo prescricional,
ficando vedado ao beneficiário ocupar cargo em comissão ou exercer
função de confiança.
O mesmo parágrafo quinto do art. 267-N vedou ao beneficiário da
suspensão ocupar cargo em comissão ou exercer função de confiança.
Aqui, não ficou devidamente esclarecido se a proibição se referiu apenas
à assunção de novo cargo ou função, ou se ela atingiria também aquele
já ocupado pelo servidor sujeito à sindicância disciplinar.
Uma interpretação que se pode extrair é de que os vocábulos “ocupar”
e “exercer” se referem a todos os cargos e funções, independentemente da
data em que o servidor passou a titularizá-los. A susconsind, nesse sentido,
seria incompatível com o exercício de cargo em comissão ou função de
confiança, que, na lição de Odete Medauar, deve ser “ocupado por pessoa
que desfruta da confiança daquele que nomeia ou propõe a nomeação.
Se a confiança deixa de existir ou se há troca da autoridade que popôs a

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nomeação, em geral o ocupante do cargo em comissão não permanece;


o titular do cargo em comissão nele permanece enquanto subsistir o vínculo
de confiança”38. Assim, haveria necessidade de o servidor se desvincular
do cargo comissionado ou função de confiança que já ocupasse para,
então, se valer do benefício da suspensão condicional da sindicância.
Rendendo o necessário respeito a esse posicionamento, filiamo-nos
ao entendimento de que a vedação em apreço se refere à assunção de um
novo cargo em comissão ou função de confiança, de modo que não seria
razoável exigir-se que o servidor detentor desses cargos e das funções deles
se desvinculasse para se valer da susconsind. A vedação, portanto, envol-
veria a impossibilidade de assumir um novo cargo ou função, inclusive
para que o período de prova seja cumprido justamente na ocupação em
que supostamente praticada a infração, onde poderia haver melhor avalia-
ção sobre a adequação e o merecimento acerca do benefício em questão.
Para além disso, e conforme já ventilado na lição de Odete Medauar,
a ocupação desses cargos e funções pressupõe a confiança depositada no
seu titular. Ora, se no momento da proposta da suspensão o servidor
ainda o titulariza, pressupõe-se que continua depositário dessa confiança,
mesmo porque sua exoneração/cessação poderia ter ocorrido ad nutum,
já que não é detentor de estabilidade39.
Messias José Lourenço também aponta que
caso o legislador pretendesse impedir que um servidor público,
ocupante de um cargo em comissão ou em confiança, não tivesse direito
ao benefício, fatalmente iria inserir tal condição entre os requisitos
elencados no “caput” do art. 267-N (mais de 5 (cinco) anos de exercício
no cargo ou função, e o registrar punição de natureza disciplinar nos
últimos 5 (cinco) anos). Ademais, criaria uma injustificada distinção de
tratamento entre o servidor que ocupasse e aquele que não ocupasse
um cargo dessa natureza.40

38 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno, p. 327


39 Inclusive, podem-se verificar casos em que o administrador público seja compelido
a cessar a designação do servidor ocupante de função de confiança para que este seja
beneficiário da susconsind, mesmo que venha prestando bons serviços à repartição e haja
o interesse da administração na manutenção do servidor naquela função. Essa situação,
por si só, já colocaria séria dúvida se o interesse público realmente seria atendido com
a desincompatibilização do sindicado em relação à função de confiança por ele ocupada.
40 LOURENÇO, Messias José. op. cit, p. 94-95.

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9. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE

Decorrido o período de prova e cumpridas as condições avençadas,


deverá o procurador do estado encaminhar os autos da sindicância disciplinar
à Secretaria de Estado ou Autarquia para que seja declarada a extinção da
punibilidade do agente público; esta, a regra prevista no parágrafo terceiro
do artigo 267-N. A decisão administrativa que declarar a extinção da punibi-
lidade deverá ser proferida por uma das autoridades mencionadas no artigo
260 da Lei nº 10.261/196841, e ela não poderá gerar reincidência nem confi-
gurar antecedente desabonador na vida funcional do servidor, pois, repita-se,
inexiste qualquer condenação disciplinar e, portanto, formação de culpa.

10. CONCLUSÃO
A suspensão condicional da sindicância, para além de trazer significativa
mudança na relação da Administração para com o servidor público,
afastando-se de uma relação impositiva para dar margem a uma interação
negociada, abriu a possibilidade de conferir um desfecho mais célere a esse
tipo de procedimento administrativo, inclusive em atenção ao princípio
constitucional que prega a necessidade da duração razoável do processo42.
Essa maior agilidade na solução da sindicância envolve também
a exclusão dos atos instrutórios nos quais, não raro, relações conflitu-
osas são ressuscitadas43, ocasionando dissabores e até mesmo a instiga-
ção a novos conflitos entre pessoas cujo relacionamento interpessoal o
tempo já havia cuidado de pacificar.

41 Artigo 260 – Para aplicação das penalidades previstas no artigo 251, são competentes: (NR)
I – o Governador; (NR)
II – os Secretários de Estado, o Procurador-Geral do Estado e os Superintendentes de
Autarquia; (NR)
III – os Chefes de Gabinete, até a de suspensão; (NR)
IV – os Coordenadores, até a de suspensão limitada a 60 (sessenta) dias; e (NR)
V – os Diretores de Departamento e Divisão, até a de suspensão limitada a 30 (trinta) dias. (NR)
Parágrafo único – Havendo mais de um infrator e diversidade de sanções, a competência
será da autoridade responsável pela imposição da penalidade mais grave. (NR)
42 Artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal.
43 No âmbito da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, diversas sindicâncias
disciplinares envolvem apuração de infrações relacionadas à violação ao dever de
urbanidade, vale dizer, decorrem de conflitos nas relações interpessoais entre servidores e
entre estes e particulares.

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Sob a ótica do agente público, trouxe a oportunidade de evitar o cons-


trangimento de se ver processado administrativamente e a possibilidade de
demonstrar, durante o período de prova, a regularidade de sua atuação laboral.
Indiscutíveis, assim, os benefícios que a suspensão condicional da
sindicância trouxe para o sistema disciplinar do estado de São Paulo.
Por outro lado, a implantação do novo instituto trouxe também novos
desafios, sobretudo para a Procuradoria de Procedimentos Disciplinares,
órgão diretamente responsável por sua aplicação prática.
Sem prejuízo de sua atuação tradicional, instruindo os procedimentos
disciplinares sob sua responsabilidade, a susconsind inseriu uma nova vertente
no seu cotidiano. O formato consensual do novo instituto, no qual a manifes-
tação de vontade do servidor processado é indispensável para sua aplicação,
ensejou a necessidade de adequação na rotina do órgão disciplinar, notada-
mente no que se refere à análise e tramitação das sindicâncias disciplinares.
O presente trabalho, além de expor alguns dos principais aspectos da
susconsind, também destacou que o legislador não previu todas as situa-
ções que o instituto poderia acarretar, diante da riqueza de circunstâncias
e peculiaridades que a dinâmica disciplinar oferece. Nesse compasso,
e diante do natural surgimento de questões controversas, a atividade
de interpretação da ratio legis demandará profunda pesquisa e reflexão,
inclusive para permitir uma atuação uniforme por parte da Administração.
Aqui, cabe registrar a convicção do autor de que a Procuradoria
de Procedimentos Disciplinares saberá enfrentar esse bom combate
com a maestria de sempre. Os diversos obstáculos por ela suplantados
durante esses 10 (dez) anos de existência não deixam a menor dúvida
sobre a dedicação e competência com que a Especializada atuará nesse
novo cenário do sistema disciplinar estadual.

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São Paulo: Saraiva, 2014.
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tiva: o uso de dispoute boards para solução de conflitos no âmbito das
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de São Paulo, São Paulo, 2010. Disponível em https://www.teses.usp.br/
teses/disponiveis/2/2134/tde-18112011-141226/publico/Dissertacao_
Juliana_Bonacorsi_de_Palma.pdf. Acesso em: 24 fev. 2022.

128
O ILÍCITO DE INASSIDUIDADE

Eraldo Ameruso Ottoni1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Tutela da assiduidade, abandono de cargo


e ânimo de abandonar; 3 – Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017,
relatório final do Grupo de Trabalho e reorganização da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares; 4 – Quadros comparativos das alterações
trazidas pela Lei Complementar n° 1.361, de 21 de outubro de 2021;
5 – Proposta não acolhida; 6 – Aplicação das alterações legislativas;
7 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente estudo procura apresentar as inovações legislativas


no controle disciplinar de assiduidade dos servidores públicos estaduais
introduzidas pela Lei Complementar n° 1.231, de 21 de outubro de 2021.
Analisa o propósito que ensejou as alterações e a aplicação delas.

PALAVRAS-CHAVE: Inassiduidade. Alteração legislativa. Aplicação.

1. INTRODUÇÃO

A Procuradoria de Procedimentos Disciplinares foi criada pela


Lei Complementar n° 1.183, de 30 de agosto de 2012, e seu primeiro
quinquênio de existência foi comemorado com a edição da Revista da
Procuradoria-Geral do Estado n° 85, dedicada exclusivamente a assuntos
de natureza disciplinar.

1 Procurador do Estado de São Paulo. Corregedor Auxiliar da Corregedoria


da Procuradoria-Geral do Estado (2008/2012). Procurador do Estado Assistente da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares (2012/2015). Procurador do Estado Chefe
da Procuradoria desde 2015. Especialista em Direito do Estado pela Escola Superior da
Procuradoria-Geral do Estado.

129
ERALDO AMERUSO OTTONI

Naquela ocasião estava reunido e em plena atividade o Grupo


de Trabalho instituído pela Resolução PGE n° 19, de 30 de junho de
20172. O Grupo de Trabalho foi instituído a pedido da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares, e tinha por incumbência estudar e propor
medidas para o aprimoramento do sistema disciplinar.
Ao término de suas atividades, o Grupo de Trabalho apresentou,
em 03 de março de 2018, relatório circunstanciado de suas discussões,
com diversas propostas, envolvendo inclusive alterações de natureza
legislativa, todas devidamente fundamentadas. O relatório apresen-
tado foi acolhido pelas instâncias superiores da Procuradoria Geral do
Estado, e desde então desenvolveu-se intensa atividade no sentido de
divulgação das propostas apresentadas.
Após grande esforço institucional algumas das propostas foram
acolhidas pelo Governador do Estado, que as incluiu no Projeto
de Lei Complementar n° 26 (PLC 26), encaminhado à Assembleia
Legislativa em 4 de agosto de 2021 e rapidamente convertido na
Lei Complementar n° 1.361, de 21 de outubro de 20213.
Dentre as propostas acolhidas está a mudança no tratamento das
infrações funcionais relacionadas ao dever de assiduidade cuja pena em
tese cabível é a de demissão.
Tais infrações eram: i) as faltas injustificadas interpoladas4
superiores a 45 dias durante um ano, antes prevista no art. 256, inc. V,
da Lei n° 10.261/685, e ii) o abandono de cargo, que se configurava com
mais de 30 faltas injustificadas consecutivas, nos termos do que então
dispunha o art. 256, inc. I e § 1°, também da Lei n° 10.261/68.
Esses dois ilícitos também estavam previstos na Lei n° 500/74,
lei que institui o “regime jurídico dos servidores admitidos em caráter

2 SÃO PAULO. Resolução n. 19, de 30 de junho de 2017. Institui Grupo de Trabalho com
a finalidade de aprofundar estudos visando identificar medidas de aperfeiçoamento dos
processos disciplinares. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, p. 54, 4 jul. 2017b.
3 Das disposições de natureza disciplinar, apenas o acréscimo do art. 243-A, na Lei n° 10.261/68,
não se originou de proposta do Grupo de Trabalho.
4 Designada na prática administrativa como inassiduidade.
5 Lei que dispõe sobre o “Estatuto dos Funcionários Civis do Estado”, mencionados neste
trabalho como como efetivos.

130
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

temporário”6, de forma um pouco diversa. Eram exigidas para a dispensa


(equivalente à demissão da Lei n° 10.261/68) mais de i) 30 faltas
injustificadas interpoladas durante o ano7 (art. 36, inc. I) e ii) mais de
15 faltas injustificadas consecutivas para configurar o abandono de fun-
ção (art. 36, inc. II).
Embora a Lei n° 500/1974 disciplinasse a contratação temporária,
tal foi sua aplicação que a vinculação do pessoal por ela admitido
tornou-se verdadeiramente permanente, o que levou o Grupo de Trabalho
a propor unificação de tratamento jurídico8 nos assuntos que analisou.
A Lei Complementar n° 1.361/2021 alterou os dispositivos
mencionados, prevendo apenas a infração de inassiduidade, que
pode se configurar a partir de faltas injustificadas intercaladas ou

6 Houve alteração legislativa quanto às admissões temporárias de excepcional interesse


público, que passaram a ser feitas nos termos da Lei Complementar n° 1.093, de 16 de julho
de 2009. A Lei n° 500/74 não foi revogada, tendo havido proibição de novas contratações
com base nela. Nos termos do art. 24, da LC nº 1.093/09, “fica vedada, a partir da publicação
desta lei complementar, a admissão de pessoal com fundamento na Lei nº 500, de 13 de
novembro de 1974” (SÃO PAULO. Lei Complementar n. 1.093, de 16 de julho de 2009.
Dispõe sobre a contratação por tempo indeterminado de que trata o inciso X do artigo 115
da Constituição Federal. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, v. 119,
n. 131, p. 1-3, 17 jul. 2009, p. 1).
7 E não durante um ano, como previsto na Lei n° 10.261/68. A diferença de redação rendeu
ensejo a debates sobre a forma de contagem em um e outro regime, conforme bem delineado
no parecer PA n° 20/2010, da Dra. Ana Maria Oliveira de Toledo Rinaldi. Quanto à
forma de contagem, foi firmada a tese de que “durante o ano” significa o ano civil, e não
qualquer período de 12 meses. Nas palavras da ilustre pareceristas, de saudosa memória:
“Dispõe o referido inciso II do artigo 36 da L. 500 ‘durante o ano’; não dispôs ‘durante
um ano’ como se encontra no EFP (no inciso V do artigo 256). Desse modo, a meu ver,
as faltas interpoladas para fins de dispensa de servidores temporários devem ser apuradas
considerado o ano civil. Nessa linha de raciocínio, por exemplo, encontramos o precedente
parecer PA n° 335/2002, em que se examinou o alcance da expressão ‘por ano’ e, recorrendo
à analogia, concluiu-se que o Estatuto pretende designar o ano civil, e não um período
qualquer de doze meses, ‘quando emprega a locução ‘por ano’ e outras sinônimas – sem
acrescentar qualquer esclarecimento acerca do seu significado, e sem que significado distinto
decorra inequivocamente do contexto normativo’” (SÃO PAULO. Parecer PA n. 20/2010.
São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2010, p. 05-06, grifos do autor).
8 Com a ressalva de que nem todo pessoal admitido pela Lei nº 500/74 é regido por normas
estatutárias, pois o art. 3°, caput, determinava regime da CLT, principalmente “para a
execução de serviços decorrentes de convênio” (SÃO PAULO. Lei n. 500, de 13 de novembro
de 1974. Institui o regime jurídico dos servidores admitidos em caráter temporário e dá
providências correlatas. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, p. 3,
14 nov. 1974, art. 1°, inc. III), de grande incidência na Secretaria da Saúde. Para o pessoal
CLT obviamente não há como unificar o tratamento.

131
ERALDO AMERUSO OTTONI

de faltas injustificadas consecutivas; o número de faltas ao traba-


lho para a configuração dos ilícitos foi reduzido, e as disposições da
Lei n° 10.261/1968 foram unificadas com as da Lei n° 500/1974.
Este artigo se propõe a analisar as razões que levaram às alterações
legislativas quanto ao dever de assiduidade, com ênfase para a figura do
abandono de cargo, bem assim a aplicação dessas alterações.

2. TUTELA DA ASSIDUIDADE, ABANDONO DE CARGO E ÂNIMO


DE ABANDONAR

Os deveres dos servidores públicos civis estão previstos no art. 241,


da Lei n° 10.261/1968, sendo o primeiro deles o de assiduidade.
Dispõe o art. 241, inciso I, que o servidor deve ser “assíduo e pontual”.
Assim que toma posse e entra em exercício, “o funcionário contrai o
dever de desempenhar regular e continuamente, nos lugares e dentro
das horas que lhe forem designadas, as suas funções: nisto consiste o
dever de assiduidade9”.
O dever de assiduidade está intimamente relacionado com o princípio
da continuidade do serviço público (e das atividades administrativas),
na medida em que é inviável a prestação contínua de um serviço ou a
realização contínua de uma atividade sem que a força humana encarre-
gada de sua consecução esteja a postos para realizá-la.
Com efeito,
um dos princípios gerais e basilares do Direito Administrativo é o de
continuidade do serviço público, para que sejam evitados danos aos
administrados, decorrentes da interrupção, gerando esses prejuízos até
responsabilização do Poder Público, em termos patrimoniais.
Assim, deve o servidor desempenhar suas atribuições regular e con-
tinuamente, no lugar e horário que lhe forem legalmente designados.
Ou seja, assiduamente.10

9 CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. São Paulo: Forense, 1970. v. 2,


p. 675, grifos do autor.
10 ARAÚJO, Edmir Netto. Curso de direito administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, p. 400,
grifo do autor.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

A relação entre continuidade do serviço público e dever de assiduidade


está em que este é instrumento de tutela daquela. A continuidade do serviço
público está tutelada contra faltas injustificadas interpoladas e consecutivas.
Sendo a ênfase deste artigo o abandono de cargo, interessam-nos analisar
com mais detalhe as consecutivas, e como eram tratadas.
Na sua redação original dispunha o artigo 6311, da Lei n° 10.261/68,
que “salvo os casos previstos nesta lei, o funcionário que interromper o
exercício por mais de 30 (trinta) dias consecutivos, ficará sujeito à pena de
demissão por abandono de cargo”12. O abandono de cargo, por sua vez,
estava previsto no art. 256, inc. I e § 1°, da mesma lei, da seguinte forma:
Artigo 256 – Será aplicada a pena de demissão nos casos de:
I – abandono de cargo;
[…]
§ 1º – Considerar-se-á abandono de cargo, o não comparecimento do
funcionário por mais de (30) dias consecutivos ex-vi do art. 63.13
[…]
Essa era a dicção legal quanto ao ilícito de abandono de cargo.
A doutrina especializada ensina que para a existência do abandono de
cargo devem estar presentes dois elementos, um objetivo e outro subjetivo.
O elemento objetivo do ilícito se compõe das faltas injustificadas ao
serviço, comprovadas por documentação de frequência em que conste
os dias de não comparecimento injustificado; o elemento subjetivo,
como o nome sugere, reside na subjetividade do servidor, na sua vontade
de abandonar o cargo, comumente designada animus abandonandi.
José Armando da Costa leciona que
o ilícito disciplinar em comento compreende dois planos, a saber, o
objetivo e o subjetivo. Pelo ângulo puramente objetivo ou material,

11 Revogado pela Lei Complementar n° 1.361/21.


12 SÃO PAULO. Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, p. 2,
29 out. 1968, art. 63.
13 Ibidem, art. 256.

133
ERALDO AMERUSO OTTONI

o abandono se caracteriza quando o servidor deixa de comparecer


ao expediente de sua repartição por mais de trinta dias consecutivos;
enquanto que, pelo prisma da subjetividade, tal configuração carece de
animus abandonandi. Vale dizer, sem que haja a coexistência concor-
rencial desses dois elementos, não sobre-restará aperfeiçoado o corpus
delicti do abandono de cargo.14
De tal modo, e com base na exigência do animus abandonandi para
a tutela da continuidade do serviço público, “não basta, entretanto,
a simples ocorrência das trinta faltas para o abandono: necessária se faz
a apuração da intenção, da falta de justificação das ausências, do descaso
e desinteresse do funcionário, em processo administrativo”15, “tornando
necessária a caracterização do dolo para a tipificação da infração”16.
A apuração do elemento objetivo não traz maiores dificuldades,
bastando a existência de um controle rigoroso, metódico e confiável de
presença, a partir do qual são constatadas e somadas as faltas ao trabalho.
Já a apuração do elemento subjetivo, para a perquirição do animus
abandonandi, sempre foi tema dos mais tormentosos, pois “não existia
um consenso acerca do real significado do aludido elemento subjetivo,
o que gerava incontáveis discussões e impugnações”17. A ausência de
consenso, somada à multiplicidade de escusas apresentadas pelos
faltosos, muitas delas plangentes, geravam absolvições que nem sempre
se acomodavam às excludente legais.
As excludentes são aquelas previstas no art. 311, da Lei
n° 10.261/1968, a saber: força maior, coação ilegal ou motivo legalmente
justificável, de modo que as escusas dos faltosos deveriam se enquadrar
numa dessas hipóteses legais18.

14 COSTA, José Armando. Direito administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Método,
2009, p. 397.
15 ARAÚJO, Edmir Netto. O ilícito administrativo e seu processo. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 154.
16 OLIVEIRA, Regis Fernandes. Servidores públicos. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 184.
17 LOURENÇO, Messias José. Reforma administrativa disciplinar no Estado de São Paulo.
São Paulo: [s.n.], 2022, p. 121.
18 SÃO PAULO, 1968, art. 311.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

Nada obstante, o art. 311 rarissimamente era citado nos relatórios


finais que propunham absolvição, ou nas decisões que absolviam,
pois tudo se resolvia, pelas mais diversas razões e sem maior rigor
técnico, na ausência de animus abandonandi. A prática aproximou-
-se, e muito, da corrente subjetivista, “que pesquisa as razões íntimas
da atitude do agente e vai além, considerando-as, acolhendo-as e jus-
tificando, na maior parte das vezes, o procedimento irregular pela
análise da intenção”19.
Uma das razões que levou à proposta de criação de Grupo de
Trabalho no âmbito da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares
foi justamente essa constatação, e a necessidade de melhor tutelar a
continuidade do serviço público.

3. RESOLUÇÃO PGE Nº 19, DE 30 DE JUNHO DE 2017, RELATÓRIO


FINAL DO GRUPO DE TRABALHO E REORGANIZAÇÃO DA
PROCURADORIA DE PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES

Na representação em que é proposta a criação de Grupo de Trabalho,


elaborada em 29 de maio de 2017 pela Chefia da Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares e endereçada à sra. subprocuradora geral
da Área da Consultoria Geral20 logo em seguida, o tema da inassidui-
dade foi assim abordado:
A Procuradoria de Procedimentos Disciplinares foi criada pela Lei Comple-
mentar Estadual n° 1.183, de 30 de agosto de 2012. Brevemente comple-
tará 05 (cinco) anos de enriquecedora atividade. Neste período de intenso
trabalho acumulou grande experiência, que lhe permite, com segurança,
exercer as atribuições previstas no art. 1°, inc III, de sua lei de criação. São
elas: estudar, elaborar e propor: i) instruções de caráter geral e súmulas
para uniformização da jurisprudência administrativa do Estado em ma-
téria de procedimentos disciplinares e ii) medidas para o aprimoramento
da celeridade, da eficácia e da segurança dos procedimentos disciplinares.
Nesse sentido, foram detectados assuntos que merecem estudos

19 LUZ, Egberto Maia. Direito administrativo disciplinar. 2. ed. São Paulo: Editora RT,
1992, p. 140.
20 A Dra. Cristina Margarete Wagner Mastrobuono, atualmente aposentada.

135
ERALDO AMERUSO OTTONI

aprofundados, do qual poderão resultar alterações regulamentares e


até mesmo legislativas. Sem prejuízo de outros, os assuntos de maior
importância que reclamam aprofundamento são os seguintes:
1. Atuação da Administração nos ilícitos de abandono de cargo e inas-
siduidade. Estes dois ilícitos representam praticamente 30% do mo-
vimento processual da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares.
Embora sejam ilícitos aparentemente fáceis de apurar, são os que mais
impactam o quotidiano da Administração, na medida em que consti-
tuem verdadeiro atentado à continuidade do serviço público.
Sobre o tema há importante parecer PA (187/09), nem sempre bem
compreendido pelos operadores do Direito e, principalmente,
pelos administradores. Mais não fosse, mesmo hipóteses que envol-
vem atuação do DPME, mas nele não se enquadram com exatidão,
não podem, em razão de entendimentos jurisprudenciais consolidados,
ser tratados como abandono ou inassiduidade, muito embora haja
clara desídia do servidor, situação que reclama o aperfeiçoamento das
apurações conduzidas pela Administração21.
Acolhida a representação, o sr. procurador geral do estado editou a
Resolução PGE nº 19, de 30 de junho de 2017, momento a partir do qual o
Grupo de Trabalho iniciou suas atividades, todas elas fartamente documen-
tadas em procedimento administrativo (GDOC 1000725-421551/2017),
ao cabo do qual foi apresentado minucioso relatório final.
Embora um pouco longa, vale a transcrição dos trechos do relatório
final que abordaram as questões discutidas neste artigo:
Atualmente, quando se cuida de faltas ao trabalho injustificadas,
podem ensejar a demissão do servidor o abandono (faltas ao trabalho
por mais de 30 dias consecutivos) ou a inassiduidade (mais de 45 faltas
intercaladas durante um ano).
Considerando-se os 06 abonos autorizados pelo art. 110, § 1°,
da Lei 10.261/68, as 06 faltas médicas autorizadas pela Lei Complemen-
tar Estadual n° 1.041/08 e a previsão normativa de justificação de até 24

21 SÃO PAULO. Relatório final do Grupo de Trabalho criado pela Resolução PGE n° 19,
de 30 de junho de 2017. São Paulo: Procuradoria Geral do Estado, p. 02-03.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

faltas por ano (art. 10, do Decreto Estadual n° 52.054/07), a continuidade


do serviço público está em risco diante da possibilidade de até 36 ausências
anuais ao serviço, que equivalem a praticamente 2 meses úteis de trabalho.
A sistemática atual verdadeiramente autoriza o servidor a não traba-
lhar por até 66 dias ao ano, sendo 30 dias deles consecutivos, (26% dos
dias úteis de 2017, considerados 252 dias úteis) ou até 81 dias inter-
calados (32% dos dias úteis, considerados os mesmos 252 dias úteis),
sem qualquer risco de demissão.
De tal sorte, em vista das oportunidades legais que o servidor tem para
justificar suas ausências, o interesse na continuidade do serviço público
será melhor tutelado pela redução dos prazos para configuração de
ilícito passível de demissão.22
Aqui cumpre interromper a transcrição para fazer um impor-
tante destaque.
Em nenhum momento a possibilidade de abono de faltas foi
considerada um risco à continuidade do serviço público, ou a qualquer
outro princípio, de modo que a revogação do art. 110, § 1°, da
Lei n° 10.261/6823, pelo art. 29, I, “a”, da Lei Complementar n° 1.361/21,
não foi proposta oriunda do Grupo de Trabalho.
Seguindo na transcrição:
E o ilícito deve ser designado simplesmente como inassiduidade, pois é
o dever de assiduidade que está sendo tutelado. Com efeito, ainda que a
lei não aprisione a cultura e nem modifique, por si só, hábito arraigados,
o vocábulo abandono não é o mais adequado para rotular o ilícito do
servidor que falta continuamente ao trabalho.
Tradicionalmente o ilícito de abandono se configura a partir da
conjugação de dois elementos, um dito objetivo (as faltas ao trabalho)
e outro dito subjetivo (o ânimo de abandonar). Em vista disso os pro-

22 SÃO PAULO. Relatório final do Grupo de Trabalho criado pela Resolução PGE n° 19,
de 30 de junho de 2017. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2017a, p. 140-141.
23 que tratava do abono de faltas, da seguinte forma: “As faltas ao serviço, até o máximo de
6 (seis) por ano, não excedendo a uma por mês, em razão de moléstia ou outro motivo
relevante, poderão ser abonadas pelo superior imediato, a requerimento do funcionário,
no primeiro dia útil subseqüente ao da falta” (SÃO PAULO, 1968, art. 110).

137
ERALDO AMERUSO OTTONI

cessos de abandono deixaram de tutelar a continuidade do serviço pú-


blico e se transformaram em instrumento de perquirição do ânimo do
servidor que não trabalha e nem regulariza sua vida funcional.
O regular funcionamento da repartição está hoje em segundo plano. A po-
pulação que espere na fila, olhando para um guichê vazio, ou um consultó-
rio médico fechado num Hospital público, deixou de ter relevância diante
da preponderância de averiguação do ânimo de abandonar do faltoso.
Nesse sentido, para além da mudança do título do ilícito, há proposta de
inserção de dever no art. 242, inc. I, para que o servidor, assim que possível,
e para logo, comunique sua Chefia eventual impossibilidade de compareci-
mento. É verdade que o servidor já conta com a exigência estatutária de co-
operação e espírito de solidariedade com os colegas, consoante disciplina do
art. 242, inc. XII, mas ainda assim é importante a existência de disposição ex-
pressa que permita a responsabilização funcional pelo desleixo e desatenção
em não cientificar sua repartição dos problemas que impedem o compareci-
mento ao trabalho, de sorte a que o superior possa reorganizar o serviço.24
Essas foram as propostas do Grupo de Trabalho quanto ao tema
da inassiduidade.
O relatório final foi acompanhado de esboço de anteprojeto de lei,
e no esboço as disposições da Lei n° 500/1974 e da Lei n° 10.261/1968
sobre inassiduidade tiveram idêntico tratamento, com redução para
10 faltas injustificadas consecutivas ou 20 faltas injustificadas intercaladas.
O esboço das alterações propostas no art. 256, da Lei n° 10.261/1968,
sem rigor algum de técnica legislativa, ficou assim:
Artigo 256 – […]
I – Inassiduidade. (NR).
[…]
V – Exercício de atividade remunerada, nos termos do art. 187 (NR)
VI – Perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o
exercício do cargo ou função.
Parágrafo Único – Considera-se inassiduidade o não comparecimento

24 SÃO PAULO, 2017a, p. 141.

138
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do funcionário por 10 (dez) dias consecutivos, ou 20 (vinte) dias inter-


calados durante um ano.25
O relatório final também propôs a inserção da expressão “que
impeça o comparecimento ao trabalho” no art. 311.
A Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, porém, não se limitou
a estudar e propor mudanças legislativas, tendo alterado sua organização
interna para melhor enfrentamento das questões de assiduidade.
No primeiro semestre de 2017 a Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares contava com 12 Unidades Processantes. Cinco recebiam
processos disciplinares oriundos da Secretaria da Administração
Penitenciária; quatro, da Secretaria da Educação e três das demais
Secretarias de Estado e Autarquias atendidas. Não havia especialização
por matéria, e os processos de abandono e inassiduidade tramitavam
por todas elas, a depender de sua origem, o que muito dificultava
a uniformização das teses.
A especialização por matéria era uma necessidade, que só pode ser
atendida no segundo semestre de 2018, com a criação da 13ª Unidade
Processante, dedicada exclusivamente a processos de abandono e inassi-
duidade, de todas as Secretarias de Estado e Autarquias atendidas.
Mesmo com a redução de uma Unidade Processante ao longo do tempo
(no final do primeiro semestre de 2019 a PPD voltou a contar com apenas
12 Unidades Processantes), a especialização persiste nos dias de hoje26.
Para além da uniformização das teses em tema tão sensível para a
Administração Pública, a especialização trouxe uma redução significativa
dessa espécie de processos. Em termos percentuais os processos de aban-
dono e inassiduidade representavam pouco mais de 30% do acervo da PPD
por ocasião da representação, e hoje representam pouco mais de 18%.
Havia também dificuldade de aplicação do parecer PA n° 187/2009,
especialmente pelos órgãos de origem. O parecer reconhecia a presença

25 Ibidem, p. 158.
26 A Unidade Processante especializada é a 1ª. Dado o volume de trabalho, foi instalada com
dois Procuradores do Estado e três Assistentes. No momento de conclusão deste artigo conta
com um Procurador do Estado, um Assistente e dois Apoios Técnicos e um Residente Jurídico.

139
ERALDO AMERUSO OTTONI

de motivo legalmente justificável nos casos de servidor que, amparado


por atestado médico, deixava de comparecer ao trabalho enquanto sua
situação era analisada pelo DPME. Confira-se a ementa do parecer:
FALTA AO SERVIÇO por mais de trinta dias consecutivos. Licença
para tratamento de saúde indeferida. Interessada que cumpriu o “iter”
procedimental necessário à obtenção de licença médica, na forma legal
e regulamentar prevista, e que, uma vez negada a fruição da licença,
retornou de pronto ao exercício de seu cargo. Agendamento da perícia
médica para data posterior, em mais de trinta dias, à protocolização da
Guia para Perícia Médica. Delonga não imputável à interessada. Faltas que
podem ser atribuídas a motivo legalmente justificável, o que elide a confi-
guração do abandono de cargo. Proposta de serem as faltas consideradas
justificadas, exclusivamente para fins disciplinares. Necessidade de ser pre-
liminarmente certificada a frequência da interessada pelo CRH-PGE27.
O problema estava no reconhecimento do motivo legalmente justifi-
cável, previsto no art. 311, da Lei n° 10.261/68, que os órgãos de origem
temiam fazer. Não aplicando o entendimento do parecer, era determinada
a instauração de processo administrativo disciplinar, sobrecarregando a
PPD. O Grupo teve várias frentes, e uma delas foi o contato mais próximo
com as autoridades Administrativas (Chefias de Gabinete, DPME, UCRH,
IMESC etc.), atividade que fez superar as dificuldades então encontradas.
Brevemente expostas a trajetória do Grupo de Trabalho e as mobilizações
no sentido de melhor enfrentamento do absenteísmo, cumpre agora analisar as
alterações que as propostas ensejaram, o que se fará doravante, a partir da com-
paração das disposições legais antes e depois da Lei Complementar n° 1.361/21.

4. QUADROS COMPARATIVOS DAS ALTERAÇÕES TRAZIDAS PELA


LEI COMPLEMENTAR N° 1.361, DE 21 DE OUTUBRO DE 2021

Lei n° 10.261/68 – FALTAS INJUSTIFICADAS INTERCALADAS


Nomenclatura Artigo Faltas Período
Antes da LC 1.361 Faltas Interpoladas 256, inc. V 45 Durante 01 ano
Depois da LC 1.361 Inassiduidade 256, inc. V, § 1° 20 Durante 01 ano

27 Parecerista Dra. Patrícia Ester Fryszman. SÃO PAULO. Parecer PA n. 187/09. São Paulo:
Procuradoria-Geral do Estado, 2009, p. 1.

140
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

Quantos às faltas injustificadas intercaladas ao trabalho no regime


da Lei n° 10.261/68 houve: i) alteração da nomenclatura da infração,
que passou a designar-se inassiduidade, e ii) redução do limite legal a
partir do qual o servidor está sujeito à pena de demissão, não tendo
havido alteração quanto à forma de contagem.

Lei n° 500/74 – FALTAS INJUSTIFICADAS INTERCALADAS


Nomenclatura Artigo Faltas Período
Antes da LC Durante o
Faltas Interpoladas 36, inc. II 30
1.361 ano
Depois da LC Durante 01
Inassiduidade 36, caput 20
1.361 ano

No regime da Lei n° 500/74 houve também alteração do disposi-


tivo que trata das faltas injustificadas intercaladas. As alterações são:
i) da nomenclatura da infração, que passou a designar-se inassiduidade;
ii) redução do limite legal de faltas a partir do qual o servidor está sujeito
à pena de dispensa e iii) do período de contagem, que passa a ser durante
um ano e não mais durante o ano.
Esta última alteração não trará consequências na prática dos depar-
tamentos de RH, em vista do entendimento já consolidado sobre o
assunto, marcadamente a partir do parecer PA nº 20/2010, já mencio-
nado anteriormente.
Com as alterações atingiu-se o tratamento uniforme do pessoal efe-
tivo e temporário, prevendo-se idêntico número de faltas injustificadas
intercaladas que podem levar à demissão ou dispensa, respectivamente.
O tratamento unificado significou para o pessoal efetivo redu-
ção maior do número de faltas em comparação aos temporários.
Para ambos, as novas previsões são mais gravosas, mas para os efetivos
é um pouco mais, pois a redução foi da ordem de 55,55%, enquanto
para os temporários é de 33,33%.
Na legislação trabalhista não se encontra disposição semelhante, embora
faltas injustificadas e atrasos habituais possam configurar a desídia, prevista
como justa causa para rescisão do contrato de trabalho no art. 482, e, da CLT.
Para tanto, porém, não há número de faltas predeterminado, nem conceito
legal de habitualidade, pois o “número de faltas para a caracterização da

141
ERALDO AMERUSO OTTONI

desídia vai depender de cada caso concreto e assim terá que ser analisado.
Não há como estabelecer forma matemática para esse fim”28.

Lei n° 10.261/68 – FALTAS INJUSTIFICADAS CONSECUTIVAS


Nomenclatura Artigo Faltas
Antes da LC 1.361 Abandono de cargo 256, inc. I, § 1° 30
Depois da LC 1.361 Inassiduidade 256, inc. V, § 1° 15

No que toca às faltas injustificadas consecutivas no regime da Lei


n° 10.261/68, duas são as alterações.
A primeira, e mais evidente, é a alteração da nomenclatura da infra-
ção. Foi excluída da legislação a locução abandono de cargo para dar
lugar ao vocábulo inassiduidade, que se configura mediante a consta-
tação de faltas injustificadas consecutivas; a segunda é a alteração do
número de faltas injustificadas consecutivas que caracterizam o ilícito: a
partir da 16ª, ou mais de 15, na dicção legal.
Não houve alteração quanto à forma de contagem. Nesse sentido é
bom esclarecer que o disposto no § 3°, do art. 256, da Lei n° 10.261/196829,
após as alterações da Lei Complementar n° 1.361/2021 não constitui
novidade. Trata-se tão somente de trazer para a lei uma disposição que se
encontrava no art. 16, do Decreto n° 52.054, de 14 de agosto de 200730.

28 MARTINS, Sergio Pinto. Manual da justa causa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 82.
29 § 3º – Para configuração do ilícito administrativo de inassiduidade em razão da
ausência ao serviço por mais de 15 (quinze) dias consecutivos, observar-se-á o seguinte:
1 – serão computados os sábados, os domingos, os feriados e os pontos facultativos subsequentes
à primeira falta; 2 – se o funcionário cumprir a jornada de trabalho sob regime de plantão, além
dos sábados, dos domingos, dos feriados e dos pontos facultativos, serão computados os dias de
folga subsequentes aos plantões a que tenha faltado. (SÃO PAULO, 1968, art. 256).
30 Artigo 16 – Para a configuração do ilícito administrativo de abandono de cargo ou função,
são computados os dias de sábados, domingos, feriados e pontos facultativos.
Parágrafo único – Para os servidores pertencentes às atividades-fim das áreas de saúde,
segurança pública e administração penitenciária que trabalham sob o regime de plantão
são computados, para os fins previstos no “caput”, além dos dias de sábado, domingos,
feriados, pontos facultativos, os dias de folgas subsequentes aos plantões aos quais tenham
faltado. (SÃO PAULO. Decreto n. 52.054, de 14 de agosto de 2007. Dispõe sobre o horário
de trabalho e registro de ponto dos servidores públicos estaduais da Administração Direta e
das Autarquias, consolida a legislação relativa às entradas e saídas no serviço. Diário Oficial
do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, p. 1, 15 ago. 2007, art. 16).

142
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

Lei n° 500/74 – FALTAS INJUSTIFICADAS CONSECUTIVAS


Nomenclatura Artigo Faltas
Antes da LC n°1.361 Abandono da função 36, inc. I 15
Depois da LC n°1.361 Inassiduidade 36, caput 15

No regime da Lei n° 500/74 a alteração foi apenas de nomenclatura,


com exclusão da locução abandono da função para adoção da inassi-
duidade, cuja configuração é idêntica ao do regime da Lei n° 10.261/68.
Também não houve alteração quanto à forma de contagem.
A exemplo do que ocorreu para os efetivos, é bom esclarecer, como se
fez acima, que o acréscimo do § único ao art. 36 da Lei n° 500/7431,
pela Lei Complementar n° 1.361/21, não constitui novidade.
Apenas trouxe para lei uma disposição que se encontrava no art. 16 do
Decreto n° 52.054, de 14 de agosto de 2007.
A partir da Lei Complementar n° 1.361/21, o que era abandono
de cargo (mais de 30 faltas injustificadas consecutivas) ou abandono da
função (mais de 15 faltas injustificadas consecutivas) passa a ser inassi-
duidade por mais de 15 faltas injustificadas consecutivas.
Novamente aqui o regime disciplinar passou a ser mais gravoso para
o pessoal efetivo, com a redução de 50% do número de faltas injustificadas
consecutivas para a configuração do ilícito passível de demissão. Para o
pessoal temporário, como visto, não houve alteração do número de faltas.
Vale registrar que a legislação administrativa não se distancia,
com isso, da legislação trabalhista.
Na CLT o abandono de emprego é previsto como justa causa para a
rescisão do contrato de trabalho no art. 482, i, sem prazo definido para
sua caracterização. É a Súmula n° 32, do Tribunal Superior do Trabalho,

31 Parágrafo único – Para configuração do ilícito administrativo de inassiduidade em razão da


ausência ao serviço por mais de 15 (quinze) dias consecutivos, será observado o seguinte:
1 – serão computados os sábados, os domingos, os feriados e os pontos facultativos
subsequentes à primeira falta;
2 – quando o servidor cumprir a jornada de trabalho sob regime de plantão, além dos
sábados, dos domingos, dos feriados e dos pontos facultativos, serão computados os dias de
folga subsequentes aos plantões a que tenha faltado. (NR)

143
ERALDO AMERUSO OTTONI

que diz: “presume-se o abandono de emprego se o trabalhador não


retornar ao serviço no prazo de 30 dias após a cessação do benefício
previdenciário nem justificar o motivo de não fazer”32.
Segundo Sergio Pinto Martins
O verbete foi editado em razão de que, muitas vezes, após a alta médi-
ca, o trabalhador não volta a trabalhar, alegando que ainda não se sente
completamente recuperado. A súmula estabeleceu a presunção relativa de
30 dias para a configuração do abandono de emprego. Mesmo não estando
plenamente apto a trabalhar com a concessão da alta médica, o empregado
deve retornar ao serviço sob pena de incorrer em abandono de emprego33.
A alta médica, a bem ver, é do órgão previdenciário, ou seja, do perito
do INSS, e não do Médico que acompanha o tratamento do trabalhador. É
importante ter isso em mente, pois a incapacidade para o trabalho, seja qual
for o regime jurídico que o regula (administrativo ou CLT) não decorre tão
somente da existência de uma moléstia descrita em atestado médico. Depende,
o reconhecimento da incapacidade para o trabalho, de análise pericial.
Embora a súmula fale em presunção de abandono após 30 dias
sem comparecimento ou justificativas, no âmbito privado pode haver
rescisão em tempo menor, caso se constate, por exemplo, que o empre-
gado está trabalhando em outra empresa.
Isso ocorre, como bem aponta Mauricio Godinho Delgado, porque
Do ponto de vista rigorosamente técnico-jurídico, a figura importa
extinção do contrato por ato tácito de vontade do empregado. Contudo,
a lei enquadrou-a no rol das justas causas certamente com o objetivo
de acentuar o ônus probatório do empregador, inviabilizando alegações
de pedido de demissão tácito sem maior fundamento34.

32 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Súmula n. 32. Presume-se abandono de emprego


se o trabalhador não retornar ao serviço no prazo de 30 (trinta) dias após a cessação do
benefício previdenciário nem justificar o motivo de não o fazer. Brasília, DF: Tribunal
Superior do Trabalho, [2003]. Disponível em: https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/
Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_1_50.html. Acesso em: 24 jun. 2022.
33 MARTINS, Sergio Pinto. Comentários às súmulas do TST. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 29.
34 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016,
p. 1.336.

144
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

O dispositivo trabalhista, como se vê, tem em mira a proteção do


trabalhador, condizente com o caráter tuitivo desse ramo do Direito,
ao contrário da legislação administrativa que, sem desconhecer os
direitos de seus servidores, objetiva a proteção do interesse público e da
continuidade dos serviços que o concretizam no dia a dia.

Art. 311, Lei n° 10.261/68 – EXCLUDENTES


Antes da LC
Força maior, coação ilegal e motivo legalmente justificável
n°1.361
Depois da LC Força maior, coação ilegal e motivo legalmente
n°1.361 justificável que impeça o comparecimento ao trabalho

O Art. 311, da Lei n° 10.261/68, com a redação da Lei Complementar


n° 1.361/21, dispõe que “a defesa somente poderá versar sobre força
maior, coação ilegal e motivo legalmente justificável que impeça o compa-
recimento ao trabalho”35.
Sendo ampla, por determinação constitucional (art. 5°, inc. LV,
Constituição Federal), a defesa poderá versar sobre qualquer matéria que
o acusado e seu Advogado entendam que deva ser trazido para o conhe-
cimento da Administração no processo disciplinar. A Administração,
por outro lado, em vista do princípio da legalidade, deve verificar se
a matéria trazida pela defesa pode ou não ser acolhida como justificativa
para as faltas, excluindo assim o ilícito disciplinar.
As justificativas que a Administração pode reconhecer são aquelas
previstas no artigo 311, de modo que eventual absolvição deve ter
fundamento em uma das hipóteses nele previstas, e essa hipótese deve
ser tal que impeça o comparecimento ao trabalho.

Art. 40, Lei n° 500/74 – EXCLUDENTES


Antes da LC n°1.361 Força maior e coação ilegal
Força maior, coação ilegal e motivo legalmente
Depois da LC n°1.361
justificável que impeça o comparecimento ao trabalho

Após as alterações da Lei Complementar n° 1.361/21 foi expressa-


mente reconhecida a excludente do motivo legalmente justificado (que

35 SÃO PAULO, 1968, art. 311.

145
ERALDO AMERUSO OTTONI

deve impedir o comparecimento ao trabalho) ao pessoal temporário,


não previsto originalmente no artigo 40, da Lei n° 500/7436.

5. PROPOSTA NÃO ACOLHIDA


Infelizmente a alteração proposta no inciso I, do art. 241,
que reforçaria a tutela da Administração Pública quanto à pontuali-
dade e assiduidade de seus servidores não foi aproveitada no PLC 26.
Pela proposta do Grupo de Trabalho, a redação seria a seguinte:
Artigo 241 – São deveres do funcionário:
I – ser assíduo e pontual, comunicando a chefia imediata, assim que
possível, o motivo de eventual ausência ou atraso.37
Em muitos casos o servidor faltava por longo período, sem dar qual-
quer justificativa a seu órgão de origem, e ao ser citado para o processo de
abandono defendia-se alegando doença e trazendo, não raro, atestados
de seu Médico, recomendando repouso ou mesmo afastamento do
trabalho. Ao longo do período de faltas os atestados não eram enviados
para a Administração, nem o servidor comunicava seu superior acerca de
eventual impossibilidade de comparecimento. Em tais casos era comum
o reconhecimento da ausência de animus abandonandi em vista da exis-
tência de atestados médicos, o que resultava em absolvição do servidor.
A solução de reconhecimento de ausência de ânimo de abandonar em
vista da existência de atestado médico nem sempre era a mais adequada,
pois necessariamente não estava provada incapacidade laborativa que
inviabilizasse o desempenho da atividade profissional.
Com efeito,
A proposição de licença para tratamento de saúde somente se justifica
quando houver doença incapacitante para o trabalho.

36 Em sua redação original, o artigo 40 dispunha que “no caso de abandono de função, a defesa
cingir-se-á aos motivos de força maior ou coação ilegal” (SÃO PAULO, 1974, art. 40).
O motivo legalmente justificável foi introduzido na Lei n° 10.261/68 pela Lei Complementar
n° 942, de 06 de junho de 2003. A redação original do art. 311 era a seguinte: “Artigo 311 –
No caso de abandono do cargo ou função, instaurado o processo e feita a citação, na forma
dos artigos 272 e 284, comparecendo o indiciado e tomadas as suas declarações, terá ele
o prazo de 5 (cinco) dias para oferecer defesa ou requerer a produção da prova que tiver,
que só podem versar sobre força maior ou coação ilegal” (SÃO PAULO, 1968, art. 311).
37 SÃO PAULO, 2017a, p. 155.

146
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

Portanto, não é suficiente a simples existência de doença para propor-se


a licença, sendo indispensável que esta doença se apresente em nível
que determine incapacidade laborativa.
A incapacidade não decorre apenas da doença diagnosticada, mas sim de
sua situação clínica no momento do exame. Exemplificando, o diagnós-
tico de Diabete Mellitus, simplesmente, não basta para o licenciamento,
se compensado e sem complicações, enquanto os estágios mais avança-
dos desta patologia incapacitam e podem até mesmo levar à invalidez.38
Ainda que os atestados pudessem apontar para a existência de um
motivo legalmente justificável, não havia prova de que o motivo fosse
realmente incapacitante para o trabalho, impedindo o comparecimento,
o que agora se exige expressamente, como visto.
Mais não fosse, a não comunicação oportuna do motivo das faltas
para a Administração revela, por si só, extraordinário descaso do servi-
dor. Descaso que, no âmbito das relações privadas, pode inclusive levar
à rescisão do contrato de trabalho.
Leciona Domingos Sávio Zainaghi:
Se, na ocorrência de doença, o empregado se ausentar do serviço por
longo tempo, não avisando o empregador, poderá ocorrer a dispensa
por justa causa. E não há que se falar em ausência da vontade de aban-
donar o emprego, pois quem tem vontade de manter seu emprego co-
munica ao empregador o motivo de sua ausência39.
Nos casos de atestados não oportunamente apresentados, embora
afastado o ânimo de abandonar, a Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares propôs, em alguns casos, a desclassificação da conduta40,
ao argumento de que “falta injustificada” assume duas acepções diversas:
i) falta que não foi oportunamente justificada pelo servidor e ii) falta não

38 SOGAYAR, Paulo (coord.). Perícia médica: normas e orientações. 2. ed. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 1990, p .27.
39 ZAINAGHI, Domingos Sávio. A justa causa no direito do trabalho. 2. ed. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 120.
40 As propostas cujos fundamentos serão elencados foram lançadas em diversos
processos administrativos disciplinares que tramitaram pela PPD, dentre os quais o
GDOC n° 1000726-172912/2015.

147
ERALDO AMERUSO OTTONI

considerada justificada pelo superior hierárquico. A justificativa de faltas


é prevista no Decreto Estadual n° 52.054/2007, que traz um conjunto de
normas que se integram no plexo de direitos e deveres de todos aqueles que
se encontram vinculados à Administração Pública pelo regime estatutário.
Dizia-se que, para além do dever de assiduidade a que se refere o
art. 241, inc. I, da Lei Estadual n° 10.261/1968, o servidor deve coo-
perar e manter espírito de solidariedade com os companheiros de tra-
balho41, e também deve estar em dia com leis e regulamentos42; que a
cooperação e o espírito de solidariedade não se resumem a uma palavra
amiga num momento de dificuldade, nem o dever de estar em dia com
leis e regulamentos se contenta com o conhecimento enciclopédico das
disposições legais em vigor. Pelo contrário, argumentava-se, esses deve-
res são cumpridos na faina diária do trabalho, no compromisso sério
com a execução das tarefas a cargo do órgão, que devem ser executadas
nos termos dos regulamentos existentes, sempre em vista da continui-
dade que informa toda a prestação do serviço público.
Na situação de doença, seguia o argumento, os deveres dos inci-
sos XII e XIII, do art. 241, da Lei Estadual, começam a ser cumpri-
dos com a simples apresentação de justificativa para as ausências.
Devidamente comunicado o órgão acerca dos problemas do servidor,
e do tempo necessário para o restabelecimento de sua saúde, as tarefas
podem eventualmente ser redistribuídas, escalas de plantão podem ser
alteradas, e até mesmo todo o cronograma de atividades pode ser rema-
nejado, a depender do número de servidores afastados. Evidentemente,
seguia ainda o arrazoado, o estado de saúde do servidor deve ser de
tal ordem que possibilite a comunicação, na medida em que ninguém
é obrigado ao impossível (ad impossibilita nemo tenetur). Não se vai
exigir de servidor acidentado, internado em estado de coma, que comu-
nique seu Chefe do acidente. Diversa, porém, deve ser a solução para
o servidor que pode comunicar eventuais problemas que esteja enfren-
tando, mas de forma desleal e cínica, demonstrando total menoscabo
pelo serviço público e pelos colegas que nele trabalham, deixa de fazê-lo.

41 SÃO PAULO, 1968, art. 241, inc. XII.


42 Ibidem, art. 241, inc. XIII.

148
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

Com esses fundamentos, o servidor era apenado por descumpri-


mento dos deveres, e não pelo abandono. Foi com base na experiência
dessas manifestações que se propôs a alteração do inciso I, do artigo 241.
A proposta seria um reforço da tutela disciplinar da assiduidade, mas seu
não acolhimento, por outro lado, em nada a diminui.
Este artigo, como dito na introdução, tem o propósito de analisar os
ilícitos de inassiduidade que levam à demissão.
Nesse ponto, é bom esclarecer que pode haver ofensa de menor
grau ao dever de assiduidade, como o caso do servidor que registra
19 faltas injustificadas intercaladas durante o ano, ou 14 consecutivas.
Nessas hipóteses não estará presente o elemento objetivo que permite
o enquadramento no art. 256, inc. V, da Lei n° 10.261/1968 ou no
art. 36, da Lei n° 500/1974, razão pela qual não há como instaurar pro-
cesso administrativo disciplinar. Nada obstante, a conduta viola o dever
de assiduidade, e pode mesmo configurar falta grave, o que impõe a aber-
tura de sindicância de que poderá resultar pena de suspensão até 90 dias.

6. APLICAÇÃO DAS ALTERAÇÕES LEGISLATIVAS


Nos termos do art. 6°, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), “a lei em vigor
terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisa julgada”43, de modo que a lei disciplina o que ocorre a
partir de sua vigência, tendo, em regra, efeitos futuros.
Sendo assim, as alterações da Lei Complementar n° 1.361/2021
devem ser aplicadas a partir de sua vigência ou, mais especificamente,
a partir do momento em que passou a produzir efeitos, ante o que cons-
tou no caput do seu artigo 30. Nos termos deste dispositivo, “esta lei
complementar e suas Disposições Transitórias entram em vigor na data
de sua publicação, produzindo seus efeitos a partir do primeiro dia
do mês subsequente à data da sua publicação, exceto com relação ao
disposto”44. A publicação da lei se deu em 22 de outubro de 2021, razão
pela qual passou a gerar efeitos em 1 de novembro de 2021.

43 BRASIL. Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às Normas do


Direito brasileiro. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 9 set. 1942, art. 6.
44 SÃO PAULO. Lei Complementar n. 1.361, de 21 de outubro de 2021. Institui bonificação
por resultados, no âmbito da administração direta e autarquias e dá providências correlatas.
Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo, p. 1, 22 out. 2021, art. 30.

149
ERALDO AMERUSO OTTONI

A partir de 1 de novembro de 2021 é que se vão contar as faltas


injustificadas, intercaladas ou consecutivas, adotando-se os prazos mais
reduzidos para a configuração dos ilícitos de inassiduidade por faltas
injustificadas consecutivas ou por faltas injustificadas intercaladas.
Quanto às faltas ao trabalho verificadas até 31 de outubro de 2021,
devem ser adotados os prazos da redação original e a nomenclatura, tanto da
Lei n° 10.261/68, quanto da Lei n° 500/74, em vista do princípio tempus
regit actum (a lei que rege a atuação é aquela vigente ao tempo do fato).
Há uma discussão no campo Direito Administrativo Disciplinar,
que está longe de ser solucionada, acerca da retroação de normas mais
benéficas ao infrator. As alterações da Lei Complementar n° 1.361/21 no
tema da inassiduidade são todas mais gravosas ao infrator, razão pela
qual o tema não tem relevância para os fins deste artigo.
Apenas uma disposição é aparentemente mais benéfica aos tempo-
rários, regido pela Lei n° 500/74. Trata-se do acréscimo de uma exclu-
dente que não estava prevista no art. 40, a do motivo legalmente justifi-
cável que impeça o comparecimento ao trabalho. Ela é mais benéfica na
parte do motivo legalmente justificado, embora pareça ser mais gravosa
quando diz que tal motivo deve impedir o comparecimento ao trabalho.
Ainda que não houvesse previsão expressa do motivo legalmente
justificável como excludente, o art. 33 da Lei n° 500/1974 dispõe que
além das obrigações que decorrem normalmente da própria função, está o
servidor sujeito aos mesmos deveres e às mesmas proibições, assim como
ao regime de responsabilidade e às penas disciplinares de repreensão, sus-
pensão e multa vigentes para o funcionário público civil do Estado.45
Com base nessa disposição era possível reconhecer a excludente
para os temporários, mesmo antes da Lei Complementar n° 1.361/2021.
Embora o impedimento de comparecimento ao trabalho não esti-
vesse na letra da disposição, certamente estava em seu espírito, pois é de
todo inconcebível reconhecer uma excludente de responsabilidade por
uma infração disciplinar a quem tem plena possibilidade de cumprir o
dever que ela tutela.

45 SÃO PAULO, 1974, art. 33.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

7. CONCLUSÃO
Uma leitura apressada das alterações legais analisadas pode levar
à percepção de que estamos diante de novo ilícito, e que não há mais
punição para o abandono.
Pelo que foi exposto no artigo pensamos que essa percepção não é cor-
reta, na medida em que a simples redução dos prazos de configuração cer-
tamente não implica no surgimento de novo ilícito, pois o elemento objetivo
que o estrutura é rigorosamente o mesmo: a falta injustificada ao trabalho.
A redução dos prazos de contagem tutela com mais rigor o dever de
assiduidade, e esse rigor maior não pode ser entendido como expressão
de uma desconsideração com o servidor; pelo contrário, é o explícito reco-
nhecimento de sua importância para as atividades estatais, na medida em
que sua presença é fundamental para a continuidade do serviço público.
No que toca à alteração da nomenclatura, é bem de ver que, quanto
às faltas intercaladas, houve apenas adoção, pela lei, de um termo já
consagrado pela prática administrativa.
Quanto às faltas consecutivas, a exemplo do antigo abandono,
a atual inassiduidade se configura a partir de um determinado número
de faltas injustificadas em sequência ininterrupta. Essa sequência
ininterrupta de faltas faz ingressar na contagem os sábados, domingos,
feriados etc. intercalados aos dias úteis, agora como antes.
A alteração da nomenclatura, somada à nova redação do art. 311,
da Lei n° 10.261/1968 e do art. 40, da Lei n° 500/1974, é verdadeira-
mente uma reação aos excessos da corrente subjetivista, e tem o propó-
sito de ressignificar a tutela da continuidade do serviço público, para
que não mais fique exclusivamente ancorada na análise de um elemento
subjetivo sobre o qual não há definição nem consenso. Nem por isso, é
óbvio, deixarão de ser consideradas as justificativas apresentadas pelo
servidor faltoso; suas justificativas, porém, devem ser analisadas à luz
das excludentes legais, tal qual delineadas pelo legislador.
Há, sempre, um dever de assiduidade a atender, e nunca um direito
de faltar injustificada e impunemente até um dado limite de dias.
As violações ao dever de assiduidade, em qualquer grau, devem ser repri-
midas pela Administração Pública, e a Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares está preparada para bem cumprir suas atribuições.

151
ERALDO AMERUSO OTTONI

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: Saraiva, 2010.
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dono de emprego se o trabalhador não retornar ao serviço no prazo de
30 (trinta) dias após a cessação do benefício previdenciário nem justifi-
car o motivo de não o fazer. Brasília, DF: Tribunal Superior do Trabalho,
[2003]. Disponível em: https://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_
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o horário de trabalho e registro de ponto dos servidores públicos esta-
duais da Administração Direta e das Autarquias, consolida a legislação

152
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 129-154, jan./jun. 2022

relativa às entradas e saídas no serviço. Diário Oficial do Estado de São


Paulo: seção 1, São Paulo, p. 1, 15 ago. 2007.
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dico dos servidores admitidos em caráter temporário e dá providências
correlatas. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São Paulo,
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______. Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto
dos Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de
São Paulo: seção 1, p. 2, 29 out. 1968.
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SOGAYAR, Paulo (coord.). Perícia médica: normas e orientações. 2. ed.
São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1990.
ZAINAGHI, Domingos Sávio. A justa causa no direito do trabalho.
2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

153
A PROCURADORIA DE
PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES,
A PANDEMIA DA COVID-19 E
A AUDIÊNCIA VIRTUAL
Norberto Oya1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – A Procuradoria de Procedimentos


Disciplinares e a instrução processual; 3 – A crise gerada pela pandemia da
Covid-19; 4 – A superação dos desafios; 5 – As ferramentas tecnológicas
na instrução processual; 6 – A videoconferência; 7 – Código de Processo
Penal e a audiência virtual por videoconferência; 8 – Código de Processo
Civil e a audiência virtual por videoconferência; 9 – A Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares e a audiência virtual; 10 – A aplicação das
garantias processuais; 11 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente estudo procura apresentar os impactos da pandemia


da Covid-19 na Procuradoria de Procedimentos Disciplinares e o que foi
feito para superar os desafios. Analisa a implantação da audiência virtual
com aplicação da videoconferência e as vantagens que essa ferramenta
tecnológica impulsiona para a rápida conclusão do procedimento
administrativo disciplinar, sem prejuízo das garantias processuais.

PALAVRAS-CHAVE: Pandemia da Covid-19. Audiência virtual por


videoconferência. Aplicação das garantias processuais.

1 Mestrando em Direito Processual Civil e Especialista em Direito Constitucional pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Procurador do estado de São Paulo,
presidente da Oitava Unidade Processante da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares.
E-mail: oya@sp.gov.br

155
NORBERTO OYA

1. INTRODUÇÃO

A Procuradoria de Procedimentos Disciplinares (PPD), criada em


30 de agosto de 2012 pela Lei Complementar nº 1.1832, órgão vinculado
à Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (PGE-SP), tem como função
precípua realizar procedimentos disciplinares punitivos, não regulados
por lei especial, em face de servidores da administração direta e
autárquica (art. 1º, “I”).
Com o impacto da pandemia da Covid-19, anunciada em março de
2020, e suas consequências, houve a necessidade de a PPD se reestruturar
e apresentar uma rápida solução, em razão da suspensão das audiências
presenciais e, sobretudo, com contínuo transcurso ordinário dos prazos
prescricionais dos procedimentos disciplinares (processo administrativo
disciplinar e sindicância administrativa disciplinar).
O objetivo deste artigo é apresentar como as audiências transcorriam na
PPD, os impactos causados com a pandemia da Covid-19 e a solução adotada
no enfrentamento da crise, com destaque à implantação da audiência virtual.

2. A PROCURADORIA DE PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES E A


INSTRUÇÃO PROCESSUAL

A instrução processual dos procedimentos disciplinares em curso


na PPD segue a Lei Estadual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968 –
Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo
(EFP) –, art. 278 e ss., no caso de servidores da administração direta.
Para o procedimento sancionatório, tratado pela Lei Estadual nº 10.177,
de 30 de dezembro de 1998 (regula o processo administrativo no âmbito
da Administração Pública Estadual), o EFP é utilizado subsidiariamente.
Ao seguir, no início, o paradigma tradicional das legislações
processuais penal e civil3, de modos supletivo e subsidiário, o registro do
conteúdo verbal expressado nas audiências no procedimento administrativo
disciplinar pelo acusado, no interrogatório, e pelas testemunhas, na instrução

2 Diário Oficial do Estado de São Paulo (DOE), Poder Executivo, seção I, 31 ago. 2012, p. 1.
3 Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, Código de Processo Penal; e Lei nº 5.869,
de 11 de janeiro de 1973, sucedida pela Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, art. 15,
Código de Processo Civil.

156
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

processual, era transcrito no papel. Ouvia-se o que era falado, transcrevia-se


para o sistema informatizado as partes relevantes e imprimia-se o conteúdo.
Depois, colhia-se as assinaturas do narrador, advogado e demais presentes
na sala de audiência, e juntava-se aos autos físicos.
A partir de março de 2019, as doze Unidades Processantes da PPD,
presididas por procurador do estado (Lei Complementar nº 1.183/2012,
art. 6º), passaram a gravar imagem e áudio das audiências presenciais
de interrogatório e da instrução processual, bem como a transferir o
conteúdo dos dados para um disco digital de vídeo (DVD), com sua poste-
rior juntada aos autos físicos. Deu-se início à transformação da audiência
analógica para a digital, considerada a primeira fase da audiência digital.

3. A CRISE GERADA PELA PANDEMIA DA COVID-19

Em março de 2020, o mundo recebeu uma notícia impactante que


alterou todo o modo de ser e de agir da população.
A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 11 de março de 2020,
anunciou que a Covid-19, doença causada pelo coronavírus, era caracterizada
como pandemia4.
Esse panorama criou o risco generalizado de contágio da doença
e fez que o Governo do Estado de São Paulo, naquele mesmo mês,
determinasse medidas de prevenção por parte dos órgãos do estado
na prestação de serviços à população. Entre essas medidas, destaca-se
o emprego de meios virtuais com dispensa do atendimento presen-
cial5. Na sequência, houve o reconhecimento do estado de calamidade
pública, com a suspensão das atividades de natureza não essencial
da Administração Pública6. Em 23 de março de 2020, decretou-se a

4 OMS afirma que Covid-19 é agora caracterizada como pandemia. Representação


da Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde no Brasil,
11 de março de 2020. Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_
content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-
pandemia&Itemid=812. Acesso em: 12 dez. 2021.
5 Decreto nº 64.864, de 16 de março de 2020, arts. 1º, 2º, “II”. DOE, Poder Executivo, seção I,
17 mar. 2020, p. 1.
6 Decreto nº 64.879, de 20 de março de 2020. DOE, Poder Executivo, seção I, 21 mar. 2020, p. 1.

157
NORBERTO OYA

quarentena, consistente na restrição de atividades com objetivo de evitar


a contaminação ou propagação do coronavírus7.
Para ter uma ideia do cenário de antes da pandemia, o fluxo diá-
rio de pessoas no prédio da PPD8 era de em torno de 250 pessoas,
muitas delas para participar de audiência. Em média, eram realizadas
3.280 audiências por ano, com a oitiva de 5.832 pessoas. Com o começo
da pandemia, houve a interrupção de 972 audiências presenciais9.

4. A SUPERAÇÃO DOS DESAFIOS

Diante desse inusitado quadro e com a impossibilidade da realização


das audiências presenciais, a PPD teve de se reinventar, se inovar e se
adaptar a essa nova realidade.
Em menos de dois meses do início da quarentena estadual,
os procuradores do estado presidentes das Unidades Processantes e
respectivos servidores já estavam treinados, preparados e organiza-
dos para reiniciarem as audiências. Ocorreu uma mudança radical de
paradigma da realidade até então vivenciada: a realização de audiência
presencial para audiência virtual.
Não mais se recebia presencialmente para audiência os atores do
processo. Passou-se a recepcioná-los no formato virtual e a proporcio-
nar-lhes a liberdade de participar da audiência de onde eles quisessem,
seja de suas casas (cidade, campo ou veraneio) ou locais de trabalho.
A escolha cabia exclusivamente a eles.
Mas, para isso, foi necessário preparar instruções práticas para
orientar advogados, acusados e testemunhas sobre como ingressar na
audiência virtual e enviá-las juntamente com o convite para a audiência10.
Cabia ao participante ter disponíveis os dois únicos requisitos
essenciais: i) um equipamento tecnológico correspondente a um

7 Decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020. DOE, Poder Executivo, seção I, 23 mar. 2020, p. 1.
8 Localizada na rua Maria Paula, 172, Bela Vista, São Paulo (SP).
9 Newsletter Mensal da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, maio de 2020, edição 4,
volume II, e junho de 2020, edição 5, volume II.
10 O programa utilizado é o Microsoft Teams.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

computador de mesa (desktop) ou portátil (notebook), dispositivo móvel


(tablet) ou aparelho celular; ii) conexão à internet.
Deu-se, assim, a transição da instrução processual presencial para
a virtual, ainda que o processo permaneça físico. Essa mudança caracte-
riza a segunda fase da audiência digital.
Dados da Chefia da PPD dão conta de que os números contabilizados das
audiências virtuais são significativos de destaque. Em 2020, foram realizadas
2.364 audiências, com 4.359 oitivas. Em 2021, o registro surpreende de
forma positiva: ocorreram 3.564 audiências, nas quais foram ouvidas 6.942
pessoas. Só relembrando que a relação desses dados de audiência e oitiva
expressa que, em cada audiência, pode ser colhido um ou mais depoimentos.
Ao que parece, portanto, esse novo formato de audiência,
sem intercorrências, veio para ficar e representa uma propulsão na
eficiência e qualidade do serviço público.
A PPD, dessa forma, redirecionou seu rumo de maneira rápida e
consciente, e adotou medidas para enfrentar o desafio inesperado e a crise
vivenciada, tudo com o único objetivo de não prejudicar os procedimentos
disciplinares em curso, uma vez que o prazo prescricional administrativo
manteve seu curso regular. Isso demonstra que a Procuradoria-Geral do
Estado de São Paulo está em permanente construção11.

5. AS FERRAMENTAS TECNOLÓGICAS NA INSTRUÇÃO PROCESSUAL

A passagem para a chamada segunda fase da audiência digital pela PPD


está conforme os ditames da Constituição Federal (CF) e demais normas infra-
constitucionais, em especial quando visa alcançar a célere tramitação processual.
A CF, no art. 5º, LXXVIII, tem o seguinte comando: “a todos,
no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração
do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Por razoável duração do processo, não pode ser utilizado o mero
cálculo matemático de dias transcorridos entre a instauração do processo

11 NUSDEO, Marcos Fábio de Oliveira. Apresentação. PGE/SP, uma permanente construção, In:
SCHUBSKY, Cássio (coord.). Advocacia Pública: apontamentos sobre a história da Procuradoria-
Geral do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008.

159
NORBERTO OYA

até determinado marco temporal escolhido e aleatório. Tampouco se


podem utilizar duas balizas de datas predefinidas e, a partir desse resul-
tado, assegurar que o processo está com seu transcurso dentro de um prazo
aceitável, plausível, racional ou que esse período extravasou em demasia.
Alguns dados podem auxiliar na análise da razoabilidade do tempo
do processo: i) a complexidade do caso; ii) as peculiaridades do feito;
iii) a pluralidade de partes no processo; iv) a ausência do impulso oficial;
e v) a conduta dos litigantes, que podem dar causa à procrastinação do
processo, com uso de todos os meios disponíveis para retardar o andamento12.
O excesso temporal irrazoável no transcurso do processo caracte-
riza violação do direito fundamental constitucional.
O uso das ferramentas tecnológicas na instrução processual,
portanto, é mais um instrumento que concretiza essa garantia consti-
tucional e visa a celeridade, economicidade, eficiência, racionalização e
desenvolvimento do processo, na prestação jurisdicional e administrativa.
No âmbito federal, a Lei nº 11.419, de 19 dez. 2006, que instituiu
o processo judicial eletrônico, tornou-se marco relevante para implantar
a prática de atos processuais por intermédio de recursos tecnológicos,
entre os quais a videoconferência, aos processos civil, penal, trabalhista e
aos juizados especiais, em qualquer grau de jurisdição (art. 1º e § 1º).
Foi a modernização tecnológica para dentro do Poder Judiciário.
A mesma lei definiu meio eletrônico como sendo qualquer forma
de armazenamento ou tráfego de documentos e arquivos digitais,
e transmissão eletrônica como toda forma de comunicação a distância
com a utilização de redes de comunicação, preferencialmente a rede
mundial de computadores (art. 1º, § 2º, I e II).
No âmbito processo civil, a Lei nº 13.105, de 16 de março de
2015 (CPC), destacou a importância com a celeridade e conclusão do
processo, com o resultado da satisfação judicial. É o que dispõem os
arts. 4º (“As partes têm o direito de obter em prazo razoável a solução

12 STF, Habeas Corpus 174.086/SP, relator ministro Celso de Mello. ARRUDA, Samuel
Miranda. Art. 5º, LXXVIII. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET,
Ingo W.; STRECK, Lênio L. (coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo:
Almedina, 2013, p. 507-511.

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integral do mérito, incluída a atividade satisfativa”) e 6º (“Todos os sujei-


tos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo
razoável, decisão de mérito justa e efetiva”).
Quanto ao uso dos recursos tecnológicos nos atos processuais,
o CPC trata do tema nos arts. 196, 236, § 3º, 385, § 3º, 453, § 1º, 461,
§ 2º, 464, 4º, 751, § 3º, 937, § 4º. Vale destacar que o CPC tem aplicação
supletiva e subsidiária na ausência de regulação dos processos eleitorais,
trabalhistas ou administrativos (art. 15).

6. A VIDEOCONFERÊNCIA
o instrumento da tecnologia da informação e comunicação
que auxilia na fase de colheita de depoimentos é a videoconferência
(que corresponde à transmissão e possível gravação de imagem e som
entre interlocutores que estejam em ambientes distintos, por meio da
rede mundial de computadores), a qual torna possível a audiência virtual.
Nesse ato processual, os personagens da audiência – o responsável por
colher o depoimento, advogado e depoente – podem estar no espaço físico que
melhor atender a seus interesses, seja no mesmo ambiente, seja em locais distintos.
Para a conexão entre essas duas pontas, utiliza-se um programa
tecnológico de videoconferência (como Cisco Webex, Google Meet,
Microsoft Teams, Zoom) por todos os participantes, conectado à rede
mundial de computadores (internet). Esse aplicativo pode ser executado
no computador de mesa, computador portátil, tablet ou aparelho celular.
A videoconferência, como ferramenta eletrônica revolucionária,
é marcante na celeridade, eficiência, racionalização e economicidade da
prestação jurisdicional, traz benefícios a todos os partícipes do processo e
não reduz, em absoluto, as garantias processuais das partes e testemunhas.
O uso desse inovador meio de comunicação à distância em tempos pas-
sados nem era cogitado pela futurologia. Por muito menos, Barbosa Moreira13
assinalou – na época em que as comunicações se davam apenas por escrito –
ser puro sonho pensar na gravação em fita magnética dos depoimentos como
forma de evitar a infidelidade da reprodução das declarações prestadas e

13 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. Quarta Série. São Paulo:
Saraiva, 1999, p. 152-153.

161
NORBERTO OYA

datilografadas contidas nos autos, ou mesmo o emprego da taquigrafia e da


estenotipia. Para ele, somente o videotape (gravação analógica de imagem e
som) tornaria fidedigna a declaração prestada e a prova produzida no processo.

7. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A AUDIÊNCIA VIRTUAL POR


VIDEOCONFERÊNCIA

O Código de Processo Penal (CPP), em 2008, recebeu influxo do


avanço tecnológico e, por meio da Lei nº 11.690, de 9 de junho de 2008,
possibilitou a realização de atos processuais por videoconferência quando
a presença de réu preso puder causar algum embaraço à testemunha ou
ofendido (art. 217, do CPP). No ano seguinte, a Lei nº 11.900, de 8 de
janeiro de 2009 autorizou, excepcionalmente, o uso da videoconferência no
interrogatório de réu preso, na oitiva de testemunha ou ofendido, quando a
presença do réu puder causar humilhação, temor ou sério constrangimento,
e na oitiva de testemunha que morar fora da jurisdição do juiz da causa
(arts. 185, §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º; 217; e 222, § 3º, do CPP). Essa iniciativa teve
por escopo acudir a segurança pública, ante o risco de fuga de réu preso;
privar vítima e testemunha de constrangimentos em audiência; e eliminar o
custo que o deslocamento de preso gerava aos cofres públicos.
Normas supralegais também se referem à produção de prova por
meio de tecnologias de comunicação eletrônica – gravação de vídeo, áudio,
videoconferência. Em destaque estão: i) Estatuto de Roma do Tribunal Penal
Internacional (arts. 68, “2”, e 69, “2”, incorporado ao direito brasileiro pelo
Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002); ii) Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (arts. 18, “18” e 24,
“2”, “b”, a qual integrou o direito positivo interno por meio do Decreto
nº 5.015, de 12 de março de 2004); iii) Convenção das Nações Unidas contra
a Corrupção (arts. 32, “2”, “b”, e 46, “18”, que passou a ter executoriedade
no plano interno por meio do Decreto nº 5.687, de 31 de janeiro de 2006).

8. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E A AUDIÊNCIA VIRTUAL POR


VIDEOCONFERÊNCIA

O CPC previu, de início, o uso da videoconferência para as hipóteses


de parte e testemunha residirem em comarca, seção ou subseção judiciária
diversa daquela em que tramita o processo (arts. 385, §3º e 453, §1º).

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

Entretanto, durante o estado de calamidade pública14, o Conselho


Nacional de Justiça (CNJ) regulamentou o uso da videoconferência
nas audiências e demais atos oficiais no âmbito do Poder Judiciário,
por meio de várias Resoluções15.
Tornou-se possível, assim, acomodar as regras sanitárias para conter a
disseminação do contágio do vírus e a prestação da atividade jurisdicional.
Paulo Henrique dos Santos Lucon observa que somente com
a pandemia a comunicação a distância atingiu seu ápice, com acesso à jus-
tiça de forma segura e eficiente16. As tecnologias complexas incorporadas
ao processo, com o CPC, foram bem recebidas pela comunidade jurí-
dica, porém não foram implementadas de imediato.
A audiência virtual, com uso da videoconferência, é importante ins-
trumento para agilizar o processo em direção à prestação jurisdicional
e dar efetividade ao mandamento constitucional que impõe a razoável
duração do processo, sem prejuízo das garantias do CPC.
Entre as garantias processuais observadas, podemos citar a paridade
de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades proces-
suais (art. 7º), a vedação do acompanhamento do depoimento pessoal
por quem ainda não depôs (art. 385, § 2º), a proibição de depoimento
sobre fatos articulados com amparo em escritos anteriormente prepara-
dos (art. 387) e a incomunicabilidade entre as testemunhas (art. 456).

9. A PROCURADORIA DE PROCEDIMENTOS DISCIPLINARES E A


AUDIÊNCIA VIRTUAL

Como destacado no item 3, a instrução processual dos procedimentos


disciplinares em curso na PPD segue o EFP (nos art. 278 e ss.), no caso de
servidores da administração direta, o qual é aplicado subsidiariamente para

14 Reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, em razão da pandemia


mundial da Covid-19, e pela Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que determinou,
entre outras medidas, o isolamento social indicado pela Organização Mundial de Saúde.
15 Resoluções CNJ nº 105, de 6 de abril de 2010; nº 314, de 20 de abril de 2020; nº329,
de 30 de julho de 2020; nº 330, de 26 de agosto 2020; nº 337, de 29 de setembro de 2020.
16 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Processo, novas tecnologias e pandemia, In: CARVALHOSA,
Modesto; KUYVEN, Fernando (coord.). Impactos Jurídicos e Econômicos da COVID-19.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 324-325.

163
NORBERTO OYA

o procedimento sancionatório contido no processo administrativo estadual.


Ainda são utilizados, de forma supletiva e subsidiária, o CPP e o CPC.
Na obtenção dos depoimentos de acusado e testemunha, é muito
comum que elas não estejam habituadas à formalidade e liturgia
de uma audiência presencial, e sintam-se, muitas vezes, acanhadas
naquele ambiente.
Para minimizar essa sensação, a videoconferência para a prática de
ato processual de oitivas de acusado e testemunha é de grande relevo,
pois os participantes da audiência podem permanecer na sua zona de
conforto (ambiente de livre escolha, sem causar medo ou ansiedade)
e prestar seus esclarecimentos dos fatos objeto do procedimento sem
a pressão emocional que pode causar o espaço real e formal. É prestar as
informações ao procurador do estado presidente da Unidade Processante
distante das formalidades que causam inibição naquele que é chamado
a estar frente a frente ao responsável pela colheita do depoimento.
Com a aplicação desse meio tecnológico, é possível ao próprio
procurador do estado presidente da Unidade Processante (designado
procurador natural, em alusão ao juiz natural) colher o depoimento
do acusado e/ou testemunha que esteja situado em local diverso da
sede da PPD e que, em situações ordinárias, utilizaria carta precató-
ria (art. 286, do EFP). Tal medida agiliza a dinâmica processual.
Isso significa que os participantes podem estar em locais diferentes e
distantes geograficamente para participar da audiência virtual.

10. A APLICAÇÃO DAS GARANTIAS PROCESSUAIS

Primeiramente, a audiência virtual, por meio do recurso tecnoló-


gico da videoconferência, não ofende o princípio da oralidade, pelo qual
se obtém a imediação de quem está colhendo a prova oral com o
acusado e a testemunha.
Por esse princípio, o procurador do estado presidente natural da causa
fica próximo da instrução e da colheita de provas produzidas na audiência,
sem intermediário, ainda que esteja distante física e geograficamente,
sem o contato presencial e real das partes, de seus defensores, testemunhas
e demais participantes do ato processual. Dessa maneira, o procurador do
estado presidente natural fica imediatamente em contato com a prova oral.

164
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

Aplicado ao procedimento administrativo disciplinar, e em


referência ao magistrado, a imediatez do juiz com as partes e a prova
oral produzida em audiência, classificada de subprincípio da oralidade17,
é também atendido pelo uso da videoconferência na audiência virtual.
O julgador da causa, nessa oportunidade, poderá ter as mesmas sensações
que as vivenciadas na audiência real de colheita de prova ao aferir se
os participantes do ato processual estão à vontade ao se expressarem,
sendo fiéis e sinceros ou imprecisos, omissos ou inverídicos ao exporem
respostas ao que lhes é perguntado.
Outro ponto a observar é que há regras dispostas no CPC rela-
tivas à colheita de depoimento aplicáveis a audiência virtual no
procedimento administrativo disciplinar: a paridade de tratamento
em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais (art. 7º),
a vedação do acompanhamento do depoimento por quem ainda não
depôs (art. 385, § 2º), a proibição de depoimento sobre fatos articula-
dos com amparo em escritos anteriormente preparados (art. 387) e a
incomunicabilidade entre as testemunhas (art. 456).
É por isso que se coloca que todas as cautelas regulares por parte do
procurador do estado presidente para realização de audiência presencial devem
igualmente ser adotadas na audiência virtual, tornando-a efetiva e adaptável,
com os cuidados próprios do ato. Nesse caso, tanto acusado como testemunha
devem estar sempre sob o olhar do procurador e do(s) advogado(s).
Tanto no interrogatório como no depoimento prestado por testemu-
nha, a inquirição deve ser realizada de maneira separada e sucessivamente
(CPP, arts. 191, 210; CPC, arts. 385, § 2º, 456). No caso de testemunha,
primeiro são ouvidas aquelas arroladas pela administração e, na sequência,
as do réu, sempre a impedir que a pessoa que prestar o esclarecimento não
ouça o relato da parte ou testemunha que a preceder (EFP, art. 284).
Para dar cumprimento às essas diretivas processuais, o procurador do
estado presidente orienta o depoente para que esteja a sós, sem comunicação
presencial ou tecnológica com terceiros, e sempre com o olhar voltado para a
câmera de vídeo e atento ao microfone, os quais devem permanecer abertos.

17 BONICIO, Marcelo José Magalhães. Princípios do processo novo Código de Processo Civil,
São Paulo: Saraiva 2016, p. 203.

165
NORBERTO OYA

Mesmo assim, é possível observar qualquer tentativa do depoente


de tentar burlar a orientação e realizar alguma comunicação vedada.
Caso a comunicação seja verbal, presencial ou tecnológica, é percep-
tível ouvir a voz de terceira pessoa que se encontre no mesmo ambiente
ou que esteja se comunicando por meio de algum dispositivo tecnológico.
É descartado o uso de aparelho de telefone fixo, pois, para essa
transmissão de mensagem verbal, necessariamente, o depoente teria de
levar o fone ao ouvido, e essa ação seria visível pela câmera de vídeo.
A comunicação do terceiro com o depoente também pode se dar
por meio gestual presencial no mesmo espaço físico do depoente, ou por
meio de imagem, a partir de algum dispositivo tecnológico.
Para essa comunicação tecnológica do depoente com outra pessoa,
por meio gestual ou por mensagem, pode ser utilizado aparelho celular,
notebook, computador, tablet ou outro dispositivo similar.
Fato é que, para essas formas de comunicação presencial ou
tecnológica não verbal, o depoente precisará dirigir os olhos para cima,
para baixo ou laterais, em direção ao objeto que contém a informação
que lhe está sendo enviada.
Com essa mesma maneira de agir, o depoente poderá tentar ler
algum texto previamente preparado e que esteja próximo de si, o que é
igualmente vedado.
A fim de impedir qualquer comunicação não verbal por parte de
terceiros com o depoente, é possível solicitar a este que se aproxime da
câmera de vídeo e fixe seu olhar para esse dispositivo. Esse procedimento
visa dificultar o depoente de desviar os olhos para receber qualquer
mensagem não verbal.
Outros meios de dificultar qualquer comunicação do depoente é soli-
citar que ele: i) mostre, com a câmera de vídeo, o espaço físico em que se
encontre, de forma a constatar se há outra pessoa naquele mesmo local,
ou mesmo se há outro dispositivo tecnológico sendo utilizado para comuni-
cação; ii) deixe o aparelho celular à mostra na câmera de vídeo, a comprovar
que ele não mantém comunicação com outra pessoa, ainda que esta esteja
apenas ouvindo o conteúdo do depoimento, podendo, inclusive, ser outra
testemunha que aguarda a sua vez de ser ouvida.

166
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

O uso de fone de ouvido pelo depoente somente impedirá de se


ouvir o que lhe é perguntado, mas não evitará de ouvir sua resposta.
Seja como for, caberá a quem colher o depoimento ficar atento a essas
possíveis formas que o depoente poderá utilizar para transpor a vedação
de comunicação com terceiros durante o ato de instrução processual.
É importante destacar que o depoente não estará em seu estado
de tranquilidade, serenidade e quietude. Ao contrário, no momento do
depoimento, em geral, a pessoa se encontra insegura, ansiosa, agitada,
pois ignora o que lhe será perguntado.
Esse efeito surpresa, somada a pressão decorrente da formalidade
do ato processual da colheita do depoimento, favorece o procurador
do estado presidente que está na condução da audiência de instrução a
exigir do depoente que observe as instruções de não se comunicar com
terceiros de nenhuma forma.
Mas, se ainda assim persistir a dúvida quanto à obediência do
procedimento a ser cumprido por parte do depoente, só restará ao procu-
rador do estado presidente suspender a audiência de instrução processual
e remarcá-la para outra oportunidade, de forma virtual ou presencial.
É imperativo legal que o depoimento transcorra de forma livre e
espontânea. Para isso, impõe-se que seja separado, isolado, sem a pre-
sença de outro depoente, para que o ato processual seja resguardado de
influência de terceiros e possa macular a manifestação verbal do depo-
ente. Essa imposição tem por fim também evitar que o depoente que
aguarda sua vez seja influenciado pelo relato de quem está depondo.
Antes da inquirição, deve-se identificar o processo, o acusado, qualificar
o depoente e tomar a cautela quanto ao parentesco ou interesse na causa
por parte da testemunha. Também nesse instante é facultado ao defensor
contraditar a testemunha (EFP, art. 284; CPP, art. 214; CPC, art. 457).
Caso o acusado ou depoente esteja usando máscara de proteção
facial, é necessário que se realize o reconhecimento facial. O procedimento
é a retirada da peça, a confrontação da fisionomia com o documento
apresentado e, depois, sua recolocação.
A testemunha tem o dever de prestar o compromisso de dizer a
verdade do que lhe for perguntado (CPP, art. 203; CPC, art. 458).

167
NORBERTO OYA

A partir daí, o formato de realização da oitiva segue o da audiência


presencial e real, com os questionamentos formulados, primeiro pelo
procurador do estado presidente, depois diretamente pelos advogados,
com os cuidados ordinários (CPP, art. 212; CPC, art. 459).
Portanto a audiência virtual traz um ganho de eficiência na ins-
trução processual, com agilidade na audiência de instrução, possibilitar
a aproximação, ainda que virtual, de todos os atores do processo admi-
nistrativo disciplinar, independentemente da localização geográfica.
Não se deve olvidar das eventuais intercadências que impedem
a realização de audiência presencial, seja de ordem natural, seja por
motivo pessoal. Nessas situações, a ferramenta tecnológica da videocon-
ferência suplanta os referidos obstáculos.
Vale enfatizar que é possível a realização de audiência híbrida. Esse tipo
de audiência permite que parte dos participantes do ato processual (advogado,
parte e testemunha) esteja na sede da PPD e os demais estejam em locais
distintos (p. ex. no escritório do advogado, na própria casa ou trabalho).
Repita-se que a pessoa chamada a comparecer à presença do
procurador do estado presidente na sede da PPD, em comunicação direta
com ele, seja na qualidade de parte ou testemunha, muitas vezes se sente
desconfortável em razão do local e de suas formalidades.
Pode o sujeito, nessa situação, ficar com sua liberdade de pensamento
e de emissão pública desse pensamento prejudicada. Tal liberdade de emissão
de pensamento corresponde a uma extensão da liberdade da psique18.
Para superar essa situação, a audiência virtual por videoconferência
é um instrumento que pode, em concreto, auxiliar a parte e a testemu-
nha a prestarem suas informações com mais tranquilidade e segurança.
Na mesma medida, facilita que o procurador do estado presidente
extraia os dados necessários de que precisa para bem esclarecer os fatos
contidos no procedimento administrativo disciplinar.
Em prosseguimento ao estudo da aplicação das garantias processuais
na audiência virtual, quando acusado e testemunha prestam seus esclare-
cimentos, o ato corresponde ao de se expressar verbalmente, ao responder

18 MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade: os três caminhos, 1979, p 329.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

perguntas que lhe são formuladas sobre determinado acontecimento do


passado e relevante para o procedimento administrativo disciplinar.
Essa liberdade de expressão, por sua vez, não fica tolhida caso
esse ato processual seja realizado por meio de videoconferência,
uma vez que todas as garantias processuais incidentes estão presentes,
como anteriormente procurou-se demonstrar. A liberdade de manifesta-
ção no momento da audiência é ausente de qualquer constrangimento.
Mesmo assim, a liberdade de expressão em relação à testemunha
não é absoluta, pois é limitada pelo próprio legislador infraconstitucional
(CPP, art. 203; CPC, art. 458 e parágrafo único), ao prever o compromisso
que ela tem de dizer a verdade quanto aos questionamentos que lhe são
apresentados. É vedado à testemunha: i) fazer afirmação falsa; ii) calar-se;
iii) ocultar a verdade. Caso falseie a verdade, nada fale ou tergiverse quanto
ao que deve ser aclarado, mesmo sabedora de algo, incorre a testemunha
no crime de falso testemunho (Código Penal, art. 342).
Por essa razão que se diz que as precauções do procurador do estado
presidente na colheita da prova processual, em razão das intercorrências
passíveis de ocorrer na audiência presencial, são as mesmas na audiência
virtual. Aquele deve ter a acuidade e sensibilidade apuradas para não
ser “envolvido” pelo relato verbal dos acontecimentos apresentado pela
testemunha, cuja narrativa deve ter a exata correspondência com aquilo
que se sabe e lhe foi indagado, caracterizada, portanto, de veridicidade,
diferente de sinceridade.
O verdadeiro pontua o que entende conveniente dizer, retrata suas
percepções, sem proferir um juízo. O sincero pode colocar elementos
emotivos na sua exposição, afastando-se da realidade objetiva.
De acordo com Altavilla19, a sinceridade “tem um valor puramente
subjetivo e refere-se a uma atitude psicológica, à tendência para dizer
aquilo que se sabe e se pensa, e é acompanhada, quase sempre, por aquela
atitude espontânea que é a franqueza, a qual tem aspectos fisionômicos
especiais”. Já a veridicidade vem a ser “uma exacta correspondência
deste estado subjetivo com a realidade objetiva”.

19 ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária – volume II: personagens do processo penal.


Trad. Fernando de Miranda. 3. ed. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1982, p. 253.

169
NORBERTO OYA

Há ainda a classificação de testemunha hipócrita e a mentirosa.


A primeira demonstra algo diferente do que pensa ou sente, diverso da
realidade, age com dissimulação. A mentirosa altera conscientemente a
verdade. A mentira pode ser dividida em mentira-meio, que vem a ser
utilizada para uma finalidade específica, e a mentira-tendência, que é a
decorrente de um temperamento especial.
É fato que o depoente, comumente, não possui suficiente cultura e
inteligência verbal para expressar com exatidão suas vivências ou impres-
sões de experiência vivida. No processo de linguagem, é necessário utilizar
corretamente a comunicação. Cabe ao depoente inspirar confiança (etos)
no julgador, expor os fatos de acordo com as indagações formuladas pelo
advogado e pelo juiz. No primeiro momento, as observações por ele postas
serão verossímeis, pois admitem prova em contrário, e, caso contestadas,
ele poderá incorrer no crime de falso testemunho.
A testemunha deve estar com sua mente plenamente livre para
prestar suas declarações, com total ausência de interferência externa que
possa levá-la a ter prejudicada a qualidade de seu relato. Isso corresponde
a um dos modos pelos quais pode ser entendida a liberdade enquanto
ausência de interferência e na maneira de expressão20.
A liberdade de manifestação da testemunha deve estar delimitada
dentro da verdade, e esta é o limite daquela expressão de pensamento
exteriorizada, sob pena de censura.
Portanto o uso das tecnologias aplicadas na colheita do interroga-
tório e da prova processual em nada afeta a liberdade de manifestação
do acusado e/ou testemunha.
Daí os benefícios que a videoconferência propicia ao processo e,
em decorrência, à Administração Pública na solução da demanda.
No entanto não se quer com essas colocações afirmar que
a audiência virtual deve substituir a audiência presencial, mas que a fer-
ramenta tecnológica de videoconferência utilizada na audiência virtual
pode ser mais um instrumento à disposição da Administração Pública

20 MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III. São Paulo: Edições Loyola, 2001,
p. 1.733.

170
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

para dar agilidade e segurança para o bom resultado nos procedimentos


disciplinares, sem inconvenientes na busca desse fim.
A audiência presencial deve ser sempre a forma ordinária, principal
e escolhida pela Administração Pública, a permitir o contato presencial e
real com os participantes da instrução processual, sendo o modo virtual
a forma supletiva.
Contudo o formato virtual não deveria se restringir somente (em
substituição) às hipóteses em que o ato poderia ser realizado por meio
de carta precatória para oitiva de parte e ou testemunha situada em
comarca diversa da sede da PPD (art. 286, do EFP). Não se pode olvidar
o tempo demasiado a esperar para expedição, cumprimento e devolução
de carta remetida para outra unidade administrativa da PGE-SP, o que
certamente retardaria a solução do processo.
Com isso, diante dos benefícios produzidos, se poderia pensar na
utilização da videoconferência mesmo depois do estado de calamidade
em decorrência da pandemia mundial da Covid-19, e não apenas na
hipótese exposta no art. 286, do EFP, de lege ferenda.

11. CONCLUSÃO

Procurou-se demonstrar, no decorrer da exposição, que o uso da


videoconferência na audiência virtual é uma ferramenta tecnológica a
contribuir com a celeridade, eficiência, racionalização e economicidade
do procedimento administrativo disciplinar, em respeito aos ditames
constitucionais e infraconstitucionais.
A carta precatória aplicada para colher o depoimento de acusado e/ou
testemunha que esteja situado em local diverso da sede da PPD poderia ser
substituída, sem qualquer intercorrência, pela utilização da videoconferência.
Propõe-se, assim, que a videoconferência seja utilizada mesmo
depois do estado de calamidade em decorrência da pandemia mundial
da Covid-19, diante dos benefícios que o recurso tecnológico produz no
procedimento administrativo disciplinar. Portanto, não somente segundo
a regra do art. 286, do EFP, de lege ferenda.
A videoconferência, na audiência virtual, não ofende qualquer regra
ou princípio processual e garante o devido processo legal formal ou

171
NORBERTO OYA

procedimental consagrado no art. 5º, LIV, da CF, que vem a ser a exigên-
cia da observância das garantias processuais (contraditório, ampla defesa
efetiva, duração razoável do processo etc.), além da liberdade de expressão
de acusado e testemunha. Portanto beneficia todos os partícipes do processo.

REFERÊNCIAS BIBLIPGRÁFICAS

ALTAVILLA, Enrico. Psicologia Judiciária – volume II: personagens do


processo penal. Trad. Fernando de Miranda. 3. ed. Coimbra: Armênio
Amado, Editor, 1982.
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Processo Civil. Das Provas: Disposições Gerais. Arts. 369 a 404. Vol. VIII.
Tomo I. São Paulo: Saraiva, 2020.
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Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.
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CANTO-SPERBER, Monique (org.). Dicionário de ética e filosofia
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LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Processo, novas tecnologias e
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172
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 155-174, jan./jun. 2022

Impactos jurídicos e econômicos da Covid-19. São Paulo: Thomson


Reuters Brasil, 2020.
MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários
ao Código de Processo Civil. Vol. VII: Arts. 381 a 484. São Paulo:
Thomson Reuters, 2018.
MIRANDA, Pontes de. Democracia, liberdade, igualdade: os três
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MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. Tomo III. São Paulo:
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NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código
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NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual –
vol. único. 12. ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2019.
NUSDEO, Marcos Fábio de Oliveira. Apresentação. PGE/SP, uma
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REBOUL, Olivier. Introdução à Retórica. Tradução Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

173
PECULIARIDADES DA
DILAÇÃO PROBATÓRIA
NOS PROCEDIMENTOS
ADMINISTRATIVOS DISCIPLINARES

René Zamlutti Júnior1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – A dilação probatória na seara


administrativo-disciplinar; 2.1 – A prova produzida durante a apuração
preliminar; 2.2 – Aplicação subsidiária das normas processuais penais e
processuais civis; 2.3 – A produção probatória e a independência entre as
esferas judicial e administrativa, 3 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo traçar considerações sobre


o processo de produção de provas nos procedimentos administrativos
disciplinares, notadamente no âmbito da Administração Pública do
estado de São Paulo, sob a ótica das Leis Estaduais nº 10.261/1968
e nº 10.177/1998. Tendo em vista que tais diplomas normativos
contêm poucos dispositivos referentes à dilação probatória, o sistema
administrativo-disciplinar se vale, subsidiariamente, das normas
previstas no Código de Processo Penal (dada a natureza sancionatória
dos procedimentos disciplinares) e do Código de Processo Civil, leis que,
por conseguinte, também serão objeto de análise. Contudo, o Direito
Administrativo Disciplinar tem escopo próprio, substancialmente
distinto daqueles perseguidos pelos Direitos Penal e Civil, razão pela

1 Procurador do Estado. Especialista, Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Presidente da 12ª Unidade
Processante da Procuradoria de Procedimentos Disciplinares da Procuradoria Geral
do Estado de São Paulo. Professor Assistente da Escola Superior da Procuradoria Geral do
Estado de São Paulo.

175
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

qual a aplicação subsidiária das normas inerentes a esses dois últimos


campos do Direito há de atentar para as peculiaridades que envolvem
a natureza tanto dos procedimentos disciplinares, quanto dos agentes
neles envolvidos (ou seja, a relação entabulada entre a Administração
Pública e os servidores sujeitos a tais procedimentos). Além disso,
uma abordagem do tema não pode prescindir da análise da relação entre
as instâncias administrativo-disciplinar e judicial-penal, tema que também
será abordado, ainda que com a brevidade que o trabalho autoriza.

PALAVRAS-CHAVE: Processo administrativo disciplinar. Provas.


Independência entre as instâncias judicial e administrativa.

1. INTRODUÇÃO

Por expressa determinação constitucional, a Administração Pública,


no Brasil, em todos os níveis da Federação (federal, estadual, municipal e
distrital) está jungida ao princípio da legalidade, expressamente previsto no
caput do artigo 37 da Constituição Federal de 1988 nos seguintes termos:
“A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios
de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”2.
A submissão da Administração Pública à legalidade é corolário
direto da edificação da sociedade brasileira nos moldes do Estado de
Direito. Admitida a ideia do império da lei como norte regulador das
relações sociais, a legalidade constitui valor supremo condutor da atua-
ção dos entes públicos.
Disso não deixa dúvida a amplitude estabelecida pela aludida norma
constitucional. É conhecido o adágio segundo o qual a lei não contém pala-
vras inúteis – menos ainda as conteria o texto constitucional. Não menos
conhecida é a imprecisão do adágio, pois tanto a Constituição quanto as
normas que lhe são subordinadas não raro pecam pela imprecisão e pela
prolixidade. Não é esse, porém, o caso do artigo 37 da Magna Carta.

2 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.


Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27 jun. 2022, art. 37.

176
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

Sem dúvida, bastaria à Constituição estabelecer que “a Administração


Pública” deverá obedecer ao princípio da legalidade. Como já dito,
essa submissão é consequência lógica e inescapável da adoção, pela socie-
dade brasileira, do modelo do Estado Democrático de Direito no estabe-
lecimento de suas bases. A aparente prolixidade do Poder Constituinte
originário, nesse sentido, pode ser entendida, no entanto, como expressão
da vontade política de salientar a extensão da abrangência desse princí-
pio, como forma de reiterar sua relevância e, por conseguinte, a necessi-
dade de sua constante observância3.
Tão peremptória é a imposição de observância do princípio da legali-
dade por parte dos entes públicos que se consolidou na doutrina brasileira a
distinção (de resto, acolhida também pela jurisprudência) entre a legalidade
que vige para os particulares e a estrita legalidade imposta à Administração
Pública, distinção cristalizada na célebre fórmula atribuída a Seabra
Fagundes: o particular pode fazer tudo o que a lei não proíbe expressa-
mente, enquanto que a Administração só pode fazer o que a lei expressa-
mente autoriza. Na feliz síntese de Sérgio Ferraz e Adilson Abreu Dallari:
Sempre é bom recordar que existe uma enorme e – até mesmo – paradoxal
diferença entre as relações jurídicas de direito público e as relações ju-
rídicas de direito privado: os particulares agem com ampla liberdade,
mas são desprovidos de poderes e prerrogativas; a Administração Pública
é detentora de poderes e prerrogativas, mas não tem liberdade. Enquanto
os particulares podem fazer tudo aquilo que a lei não proíbe, a Adminis-
tração Pública somente pode fazer o que a lei determina.
É sempre necessária a previsão legislativa como condição de validade
de uma atuação administrativa. Mas isso não é suficiente: não basta
a existência de uma previsão geral e abstrata, é essencial que, no caso
concreto, tenham efetivamente acontecido os fatos aos quais a lei
estipulou uma consequência.4

3 É evidente que essas considerações não se restringem ao princípio da legalidade, e valem


para os demais princípios insculpidos no caput do artigo 37. O destaque dado à legalidade,
porém, se justifica à luz do objeto do presente artigo, pois é dela que virão as consequências
a seguir expostas.
4 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 89.

177
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

É certo que esse ensinamento já não é compreendido nem aplicado


com o caráter absoluto que outrora se lhe atribuíra. No entanto,
não resta dúvida de que, ainda hoje, a legalidade que norteia a atuação
da Administração Pública se reveste de características próprias, dentre as
quais encontramos maior rigor, do que a legalidade sob a qual os parti-
culares podem atuar.
Legalidade é, portanto, por decisão do Poder Constituinte
Originário, um dos princípios norteadores da atuação da Administração
Pública em todas as suas esferas. Tanto é assim que doutrina e juris-
prudência reconhecem, na ordem jurídica pátria, o chamado poder de
autotutela da Administração Pública, também chamado por parte da
doutrina de princípio da autotutela administrativa5, sintetizada nas
Súmulas do Supremo Federal nº 346 – “A Administração Pública pode
declarar a nulidade de seus próprios atos”6 – e nº 473:
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivadas de vícios
que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los,
por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos ad-
quiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial.7
Tal orientação jurisprudencial encontra amparo também em âmbito
legislativo, como demonstram os artigos 53 e 54 da Lei nº 9.784/99,
cujo teor é praticamente idêntico ao da Súmula nº 473.
Maria Sylvia Zanella Di Pietro fornece ainda outro fundamento,
além da própria legalidade, para o exercício da autotutela, a saber,
o princípio da predominância do interesse público, que, embora não
expressamente consignado no texto constitucional, dele deflui como
corolário inescapável:

5 A correção do emprego do vocábulo princípio para denominar a prerrogativa da autotutela


depende do contexto em que o vocábulo é utilizado, mas a análise dessa questão fugiria
completamente do escopo deste artigo.
6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 346. A Administração Pública pode
declarar a nulidade dos seus próprios atos. In: Súmula da Jurisprudência Predominante
do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento Interno. Brasília, DF: Imprensa
Nacional, 1964b, p. 151.
7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 473. A Administração pode anular seus
próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais. Diário da Justiça: seção 1,
Brasília, DF, p. 5929, 10 dez. 1969, p. 5929.

178
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

O poder de autotutela encontra fundamento nos princípios a que se subme-


te a Administração Pública, em especial o da legalidade e o da predominân-
cia do interesse público, dos quais decorrem todos os demais. Com efeito,
se a Administração está sujeita à observância da lei e à consecução do in-
teresse público, não há por que negar-lhe o controle sobre os próprios atos
para assegurar a observância daqueles princípios, mesmo porque, não o
fazendo, sujeita-se ao controle pelos demais Poderes, aumentando os ônus
do Estado na missão suprema de tutela do direito.8
Dessa imperiosidade de observância irrestrita da legalidade, a que se
somam a complexa estrutura dos entes públicos e o emaranhado de nor-
mas jurídicas de toda natureza que regulam cargos, funções e atividades de
seus servidores, decorre a necessidade de que os próprios entes públicos,
independentemente de qualquer provocação externa, fiscalizem seu desempe-
nho cotidiano, com os intuitos de prevenir, identificar e eventualmente sanar
desvios da trilha da legalidade. No exercício desse mister, o poder sanciona-
tório da Administração Pública, em relação aos servidores subordinados às
suas diversas esferas de competência, afigura-se ferramenta indispensável.
Perante a sociedade, não há distinção entre o servidor público e a
Administração Pública. No exercício de suas funções, o servidor público
incorpora o Poder Público, razão pela qual eventuais atos ilícitos praticados
por um servidor contra um particular geram, para este, o direito de se voltar
judicialmente não contra o servidor (embora também, caso deseje), mas con-
tra o próprio ente público por ele integrado. Nessa seara, os procedimentos
administrativos disciplinares – que, na legislação paulista, dividem-se entre
Sindicância e Processo Administrativo Disciplinar, a depender da gravidade
da ilicitude – integram o aparato que viabiliza a observância, por parte do
Poder Público, da legalidade, na melhor medida possível.
No âmbito do estado de São Paulo, o principal diploma normativo
que regula as normas concernentes aos procedimentos administrativos
disciplinares é a Lei Estadual nº 10.261/1968, conhecida como Estatuto
dos Servidores Públicos do Estado de São Paulo, secundada pela Lei
Estadual nº 10.177/1998 (que trata dos processos administrativos esta-
duais de modo geral e aborda os procedimentos sancionatórios em apenas
três dispositivos, a saber, dos artigos 62 ao 64). A insuficiência de normas

8 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 800.

179
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

de natureza processual, notadamente no que concerne à dilação proba-


tória, torna muitas vezes necessária a aplicação subsidiária do Código
de Processo Penal (dada a natureza sancionatória dos procedimentos
disciplinares) e do Código de Processo Civil. As particularidades do pro-
cesso administrativo-disciplinar no cotejo, principalmente com o processo
penal, notadamente em relação à dilação probatória, constituem o cerne
das considerações a seguir expostas.

2. A DILAÇÃO PROBATÓRIA NA SEARA ADMINISTRATIVO-


DISCIPLINAR

2.1. A prova produzida durante a apuração preliminar


À luz dos princípios constitucionais do devido processo
legal, da presunção de não culpabilidade dos acusados em geral
(in dubio pro reu), do contraditório e da ampla defesa9, todos alçados
à condição de direitos fundamentais pela Magna Carta, a aplicação de
penalidades de natureza administrativa a servidores públicos em razão
de violações de seus deveres funcionais é condicionada à comprovação
da materialidade e da autoria de tais violações, no bojo de procedimento
administrativo em que há de ser garantida ao servidor a possibilidade de
se defender de acusações eventualmente contra si formuladas.
As apurações preliminares usualmente – mas não necessariamente –
conduzidas antes da instauração de procedimentos disciplinares têm por
objetivo confirmar a existência de indícios suficientes de autoria e mate-
rialidade, quando estes já não existam de modo a tornar tal apuração
desnecessária, como deixa evidente o caput do artigo 265 da Lei Estadual
nº 10.261/1968, in verbis: “A autoridade realizará apuração preliminar,
de natureza simplesmente investigativa, quando a infração não estiver
suficientemente caracterizada ou definida autoria”10.
A dicção legal permite concluir, a contrario sensu, que, quando sufi-
cientemente caracterizada a infração e definida sua autoria, a apuração
preliminar não é necessária, podendo, de imediato, ser determinada a

9 BRASIL, 1988, incisos LIII a LVII do artigo 5º.


10 SÃO PAULO. Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo: São Paulo,
p. 2, 29 out. 1968, art. 265.

180
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

instauração em desfavor do servidor cuja prática infracional resta sufi-


cientemente delineada. É o caso, por exemplo, de infrações que se pro-
vam de modo puramente documental.
Evidentemente, a norma há de ser interpretada de forma adequada.
Há situações, descritas em Comunicados de Evento, que poderiam ser
entendidas como já devidamente demonstradas e que, mesmo assim,
demandam maior aprofundamento do ponto de vista apuratório – situ-
ações em que, portanto, as apurações preliminares, ainda que aparen-
temente desnecessária, devem ser conduzidas de forma a não deixar
dúvida acerca da efetiva caracterização da infração disciplinar imputada
a determinado servidor. É o que ocorre, por exemplo, em casos de vio-
lação do dever de urbanidade11, em que, via de regra, os comunicados
trazem não só o nome do comunicante, mas também de testemunhas
do fato. Em tais situações, é relevante a elucidação dos detalhes do fato,
porque o exato delineamento do ocorrido constitui pressuposto para o
adequado exercício da ampla defesa por parte do acusado.
A necessidade de precisa descrição da conduta imputada ao servidor,
aliás, é estabelecida no artigo 277 da Lei nº 10.261/68, que trata da portaria
de instauração do procedimento e prevê, em seu § 1º, que “da portaria deve-
rão constar o nome e a identificação do acusado, a infração que lhe é atribu-
ída, com descrição sucinta dos fatos, a indicação das normas infringidas e a
penalidade mais elevada em tese cabível”12. Por descrição sucinta dos fatos
deve-se entender que a narrativa há de albergar todos os elementos indis-
pensáveis ao seu reconhecimento, notadamente, data, local e circunstâncias
do ocorrido, contendo todo o necessário para – repita-se – viabilizar, com
a maior amplitude possível, o exercício do contraditório e da ampla defesa
pelo acusado. Como esclarece Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
A portaria bem elaborada é essencial à legalidade do processo, pois equivale à
denúncia do processo penal e, se não contiver dados suficientes, poderá
prejudicar a defesa; é indispensável que ela contenha todos os elementos
que permitam aos servidores conhecer os ilícitos de que são acusados.13

11 Ibidem, inciso VI do art. 241.


12 Ibidem, § 1º do art. 277.
13 DI PIETRO, op. cit., p. 700.

181
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Há que se atentar, ainda, ao destaque que o texto legal dá à


natureza simplesmente investigativa, expressamente mencionada no
dispositivo, que se contrapõe à natureza sancionatória dos procedimen-
tos administrativos disciplinares subsequentemente instaurados.
Com efeito, por mais grave que seja a conduta apurada em uma apura-
ção preliminar, e ainda que o conjunto probatório carreado ao fim da apu-
ração não deixe dúvida alguma acerca da caracterização de determinada
infração disciplinar, a conclusão da autoridade apuradora jamais poderá
implicar, de imediato, a aplicação de qualquer penalidade ao servidor,
como deixa claro o § 3º do referido artigo 265: “Ao concluir a apuração
preliminar, a autoridade deverá opinar fundamentadamente pelo arquiva-
mento ou pela instauração de sindicância ou de processo administrativo”14.
Após a determinação, pela autoridade competente, de instauração do pro-
cedimento disciplinar, esse sim de natureza sancionatória, tem início a sin-
dicância ou o processo administrativo, cujas conclusões fundamentarão a
eventual aplicação de penalidade (ou a absolvição do servidor).
Há, portanto, evidente equivalência estrutural entre as apura-
ções preliminares e os inquéritos policiais, aquelas, inaptas a gerar
sanções, mas aptas a fundamentar a instauração de um procedimento
administrativo de natureza sancionatória; estes, incapazes, por si mes-
mos, de gerar condenações, mas capazes de carrear um conjunto de
elementos probatórios autorizadores da instauração de procedimento
judicial também de natureza sancionatória (a ação penal).
Daí porque as limitações reconhecidas pela jurisprudência, em rela-
ção aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, no
bojo dos inquéritos policiais, encontram aplicabilidade também em rela-
ção às apurações preliminares. Destaquem-se, nesse sentido, os seguintes
entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
É cediço que o inquérito policial é peça meramente informativa, de
modo que o exercício do contraditório e da ampla defesa, garantias que
tornam devido o processo legal, não subsistem no âmbito do procedi-
mento administrativo inquisitorial.15

14 SÃO PAULO, op. cit, § 3º do art. 265.


15 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça (5. Turma). Recurso Ordinário em Habeas Corpus
57812/PR. Operação Delivery. Associação criminosa e contrabando de cigarros. Alegada
nulidade por ausência de interrogatório no curso do inquérito policial. Recorrente: Fernando
Cardoso Fagundes. Recorrido: Ministério Público Federal. Relator: Min. Felix Fischer, 15 de
outubro de 2015. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 22 out. 2015.

182
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

O entendimento adotado pela Corte de origem está de acordo com a


jurisprudência deste Tribunal Superior, firmada no sentido de que o
inquérito policial, em razão de sua natureza administrativa, não está
sujeito à observância do contraditório e da ampla defesa […]16
Também em razão da natureza meramente investigatória das apu-
rações preliminares, bem como da já demonstrada desnecessidade de sua
existência como requisito para a instauração de procedimentos disciplina-
res, eventuais irregularidades ocorridas ao longo da fase apuratória podem
ser sanadas no próprio procedimento disciplinar – em que, ao contrário
do que ocorre em relação aos procedimentos apuratórios, os princípios
constitucionais do contraditório e da ampla defesa deverão ser rigorosa-
mente observados. Novamente o magistério de Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, ao tratar da instrução processual nos procedimentos disciplinares:
A instrução rege-se pelos princípios da oficialidade e do contraditório,
este último essencial à ampla defesa. Com base no primeiro, a comissão toma
a iniciativa para levantamento das provas, podendo realizar ou determinar
todas as diligências que julgue necessárias a essa finalidade. O princípio do
contraditório exige, em contrapartida, que a comissão dê ao indiciado a
oportunidade de acompanhar a instrução, com ou sem defensor, conhecendo
e respondendo a todas as provas contra ele apresentadas.17
São também esclarecedoras sobre as dimensões do princípio do
contraditório em seara administrativo-disciplinar as considerações de
Romeu Felipe Bacellar Filho, in verbis:
A finalidade do contraditório no processo administrativo disciplinar
não difere daquela prevista pelo processo judicial: proteger a capacidade
de influência dos sujeitos processuais (administração/servidor acusado
ou litigante) na formação do convencimento do órgão julgador.
Do confronto da autoridade administrativa com o servidor viabiliza-se

16 BRASIL. Supremo Tribunal de Justiça (6. Turma). Habeas Corpus 259930/RJ. Sucedâneo
do Recurso Ordinário. Inadmissibilidade. Homicídio qualificado. Inquérito policial.
Reinquirição de testemunhas. Ausência de intimação da defesa. Nulidade. Inexistência.
Natureza inquisitiva. Contraditório e ampla defesa. Observância. Desnecessidade.
Impetrante: Dominique Sander Leal Guerra. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, 14 de maio de 2013. Diário da Justiça
eletrônico, Brasília, DF, 23 maio 2013.
17 DI PIETRO, op. cit., p. 700.

183
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

a assunção de um panorama mais completo da situação fática,


conduzindo a uma decisão mais ponderada e conforme à realidade.18
Uma vez que tais princípios são de observância obrigatória nos
processos administrativos e nas sindicâncias, mas não o são nas apurações
preliminares, é relevante que as provas de natureza oral eventualmente
produzidas na fase preliminar sejam repetidas – agora sob o crivo do
contraditório e da ampla defesa –, e, portanto, confirmadas, após a
instauração do procedimento disciplinar.
Há que se observar, no entanto, que, ao contrário do que afirma
a autora, ao menos no que concerne aos procedimentos disciplinares
instaurados no âmbito do estado de São Paulo, o servidor acusado não
pode acompanhar a instrução “com ou sem defensor”, dada a impres-
cindibilidade de defesa técnica, por expressa determinação legal.
Com efeito, nas sindicâncias e nos processos administrativos
disciplinares instaurados após as apurações preliminares (não raro como
corolários destas), a defesa técnica se faz necessariamente presente, à luz
do disposto no item 4 do artigo 278 da Lei nº 10.261/68, que preconiza
que no mandado de citação do acusado deverá constar, dentre outros ele-
mentos, “o esclarecimento de que o acusado será defendido por advogado
dativo, caso não constitua advogado próprio”19. Além deste, o artigo 282
da mesma lei, em seu caput determina que “o acusado poderá constituir
advogado que o representará em todos os atos e termos do processo”20,
e complementa, em seus parágrafos, que “não tendo o acusado recur-
sos financeiros ou negando-se a constituir advogado, o presidente
nomeará advogado dativo”21 e “o acusado poderá, a qualquer tempo,
constituir advogado para prosseguir na sua defesa22.
Esses dispositivos, como se vê, estabelecem a imprescindibilidade
da defesa técnica nos procedimentos disciplinares no âmbito do estado
de São Paulo. Tais normas evidenciam o rigor com que o contraditório

18 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 3. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 242.
19 SÃO PAULO, op. cit., art. 278.
20 Ibidem, art. 282.
21 Ibidem, art. 282, § 3º.
22 Ibidem, art. 282, § 4º.

184
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

e a ampla defesa são observados pela legislação paulista, que se mostra


mais protetiva e garantista em relação a tais princípios do que o pró-
prio Supremo Tribunal Federal, cuja Súmula Vinculante nº 5 estabelece
que “a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo
disciplinar não ofende a Constituição”23.
Embora a Súmula em questão provenha do órgão a quem foi
atribuído o papel de guardião da Constituição, sua edição foi objeto
de severa crítica por parte de diversos autores, dentre os quais pode ser
mencionado, a título de exemplo, Paulo Alves Netto de Araújo, para quem
“a decisão do STF que culminou na edição da Súmula Vinculante nº 5
observou muito mais questões práticas de política judiciária do que pro-
priamente argumentos jurídicos de relevo”24.
A adequada exegese dos dispositivos epigrafados, assim, deixa claro
que a defesa técnica, embora imprescindível ao longo das sindicâncias
e processos administrativos disciplinares no âmbito do estado de
São Paulo, não é indispensável durante a apuração preliminar. Contudo,
caso o servidor acusado pretenda ser acompanhado de defensor ainda na
fase apuratória (por exemplo, no momento em que prestará declarações
sobre a acusação contra si formulada), tal direito não lhe poderá ser
negado. A legislação, porém, não lhe confere o direito ao fornecimento,
por parte do Poder Público, de defensor dativo nessa situação, como o
faz após a instauração do procedimento disciplinar, razão pela qual,
durante a fase apuratória, o eventual acompanhamento do feito por
defensor deverá ser feito às suas expensas.
Embora, como visto, a legislação paulista tenha natureza mais garan-
tista do que o entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal Federal
acerca da defesa técnica dos acusados em procedimentos disciplinares, a
Lei nº 10.261/68 é consideravelmente lacônica em relação às normas pro-
cessuais aplicáveis a tais procedimentos, se comparada com o Código de

23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 5. A falta de defesa técnica no


processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição. Diário da Justiça, Brasília, DF,
n. 88, p. 1, 16 maio 2008, p. 1.
24 ARAÚJO, Paulo Alves Netto. Princípio da ampla defesa no processo administrativo e a súmula
vinculante nº 5. In: SERRANO, Mônica de Almeida Magalhães; SILVA, Alessandra Obara
Soares (org.). Teoria geral do processo administrativo. São Paulo: Verbatim, 2013, p. 322.

185
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Processo Penal ou o Código de Processo Civil. Com efeito, o arcabouço jurí-


dico norteador dos procedimentos disciplinares no que concerne ao aspecto
processual se encontra circunscrito aos artigos 268 a 321, a que se somam
os tímidos três dispositivos já mencionados da Lei Estadual nº 10.177/1998
(artigos 62 ao 64). Daí porque é necessário recorrer aos diplomas proces-
suais penal e civil quando ausentes, na Lei nº 10.261/68, normas aptas a
regular situações que podem surgir ao longo dos andamentos processuais
(como casos de suspeição, contraditas de testemunhas etc.).
A aplicação das normas processuais civis e penais aos procedimentos
disciplinares, no entanto, não se faz de forma indiscriminada, conforme
esclarecido a seguir.

2.2. Aplicação subsidiária das normas processuais penais e


processuais civis

Como visto, a legislação paulista alberga normas expressas


acerca dos ritos processuais concernentes aos procedimentos discipli-
nares. Tais normas, no entanto, são insuficientes para abranger todas
as questões processuais inerentes a tais procedimentos, o que torna
necessária a aplicação, de modo subsidiário, das normas previstas na
legislação processual penal e civil, quando ausentes dispositivos que,
em âmbito administrativo, solucionem os problemas de natureza proces-
sual que a realidade amiúde suscita ao longo das instruções processuais
em seara administrativo-disciplinar.
Nesse contexto, a natureza sancionatória dos procedimentos disci-
plinares, bem como sua proximidade (que não se confunde como simila-
ridade) estrutural com o Direito Penal, tornam recomendável a aplicação
subsidiária, em primeiro lugar, do Código de Processo Penal e, na ausência
de normas deste que solucionem a lacuna, do Código de Processo Civil (o
mais completo dos diplomas processuais da legislação vigente e, não por
acaso, aplicado subsidiariamente também nos processos penais).
Releva observar, sob essa ótica, que, até a promulgação da
Lei nº 11.719/2008, os ritos do processo penal e dos procedimentos dis-
ciplinares eram similares (não idênticos, dada a evidente distinção entre
os escopos do Direito Penal e do Direito Administrativo Disciplinar,
e dos bens jurídicos envolvidos em cada uma dessas áreas da ciência

186
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

jurídica), notadamente no que concerne à realização do interrogató-


rio do acusado antes da oitiva das testemunhas e aos prazos para a
apresentação de defesa prévia e alegações finais. A promulgação
da Lei nº 11.719/08, no entanto, alterou o rito do processo penal, e,
dando nova redação ao artigo 400 do Código de Processo Penal, poster-
gou o ato de interrogatório para o momento final da audiência, ou seja,
após a realização da quase totalidade dos atos instrutórios do processo:
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no pra-
zo máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações
do ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e
pela defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código,
bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconheci-
mento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado.
§ 1o. As provas serão produzidas numa só audiência, podendo o juiz
indeferir as consideradas irrelevantes, impertinentes ou protelatórias.25
A despeito do novo rito estabelecido para o processo penal a partir
da promulgação da Lei nº 11.729/2008, os dispositivos concernentes
ao rito processual dos procedimentos administrativos disciplinares
previstos na Lei Estadual nº 10.261/68 – a saber, seus artigos 283 e 284 –
mantiveram-se inalterados, e estabelecem os passos do andamento pro-
cessual de forma suficientemente precisa, in verbis:
Artigo 283. Comparecendo ou não o acusado ao interrogatório, inicia-se o
prazo de 3 (três) dias para requerer a produção de provas, ou apresentá-las.
§ 1º – O presidente e cada acusado poderão arrolar até 5 (cinco)
testemunhas.
§ 2º – A prova de antecedentes do acusado será feita exclusivamente
por documentos, até as alegações finais.
§ 3º – Até a data do interrogatório, será designada a audiência de instrução.
Artigo 284 – Na audiência de instrução, serão ouvidas, pela ordem,
as testemunhas arroladas pelo presidente e pelo acusado.

25 BRASIL. Lei n. 11.719 de 20 de junho de 2008. Altera dispositivos do decreto-lei n. 3.689, de


3 de outubro de 1941. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 4, 23 jun. 2008, art. 400.

187
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Parágrafo único – Tratando-se de servidor público, seu compareci-


mento poderá ser solicitado ao respectivo superior imediato com as
indicações necessárias.26
A alteração levada a efeito nos processos penais pode suscitar
dúvidas acerca da manutenção de vigência dos artigos 283 e 284 da
Lei nº 10.261/68. Recorde-se, no entanto, que, como já mencionado,
a aplicação da legislação processual penal é subsidiária e, no caso,
a existência de normas expressas acerca do tema na legislação estadual
não deixa dúvida alguma quanto ao fato de que, a partir da promulgação
da Lei nº 11.719/2008, os ritos dos processos penais e dos procedimentos
disciplinares no âmbito estadual paulista deixaram de ser similares.
Não há qualquer inconstitucionalidade na existência de distinção
entre os ritos, por duas razões essenciais: em primeiro lugar, como já
mencionado, o Direito Penal e o Direito Administrativo Disciplinar têm
escopos próprios e perseguem objetivos diferentes; como consequência
disso, não se pode entender que o artigo 400 do Código de Processo
Penal, em sua atual redação, constitui norma de repetição obrigatória
pelo legislador paulista.
Em segundo lugar, a constitucionalidade dos artigos 283 e 284 da lei
paulista é inconteste e, tal qual a legislação processual penal – tanto em
sua atual redação quanto na anterior –, tais artigos não violam de modo
algum os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.
Entendimento diverso implicaria assumir que todos os processos penais
anteriores à promulgação da lei alteradora estariam marcados pela
inconstitucionalidade, bem como todos os procedimentos disciplinares
a ela anteriores e posteriores.
Ora, se, anteriormente à promulgação da Lei nº 11.719/2008,
não havia inconstitucionalidade, seja nos processos penais, seja nos
procedimentos administrativos, é evidente que, após sua promulgação,
o rito até então observado na esfera judicial-penal, e que não se alterou
no âmbito administrativo-disciplinar, continua em plena consonância
com os princípios insculpidos no inciso LV do artigo 5º da Constituição
Federal de 1988. O que existe, atualmente, são dois ritos processuais

26 SÃO PAULO, op. cit., art. 283-284.

188
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

distintos, concernentes a dois modelos processuais também distintos,


ambos plenamente constitucionais.
A existência, no ordenamento jurídico brasileiro, de duas cate-
gorias de processo – administrativo-disciplinar e judicial-penal – que,
embora guardem similaridades (seu caráter sancionatório e a imperiosa
necessidade de observância de princípios como o do devido processo
legal, do contraditório, da ampla defesa e da presunção de inocência),
perseguem objetivos próprios, inerentes a seus campos de incidência,
tem por corolário a reconhecida independência entre suas instâncias.
Tal independência, por óbvio, não é absoluta, notadamente ante o
princípio de unicidade de jurisdição que caracteriza a ordem jurídica brasileira.
Apesar disso, a existência dessa independência leva a consequências
relevantes do ponto de vista da produção probatória, conforme exposto
a seguir.

2.3. A produção probatória e a independência entre as esferas


judicial e administrativa

Há, não raro, situações em que determinada conduta configura,


simultaneamente, ilicitude nas esferas penal a administrativa, o que
enseja a instauração de procedimentos tanto judiciais (ação penal,
ação de improbidade etc.) quanto disciplinares (processo administrativo
disciplinar ou sindicância27).
As decisões proferidas na seara administrativo-disciplinar não se
encontram sujeitas ou condicionadas àquelas proferidas no âmbito
judicial-penal, dada a existência da independência entre tais instâncias.
A Lei nº 10.261/68 trata expressamente da independência dessas instâncias
em seu artigo 250, notadamente em seu caput e em seu § 1º, in verbis:

27 Embora pareça pouco provável que uma conduta tipificável como crime possa levar à
instauração de uma sindicância e não de um processo administrativo disciplinar, tal hipótese
não se afigura tão improvável. Um crime de injúria, por exemplo, pode levar a uma ação
penal de natureza privada e a uma sindicância. Do mesmo modo, eventuais contravenções
penais praticadas na esfera da vida privada do servidor podem não se revestir de gravidade
suficiente, do ponto de vista funcional, para fundamentar a instauração de um processo
administrativo disciplinar, ensejando, no entanto, a instauração de uma sindicância.

189
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Artigo 250. A responsabilidade administrativa não exime o funcionário


da responsabilidade civil ou criminal que no caso couber, nem o paga-
mento da indenização a que ficar obrigado, na forma dos arts. 247 e
248, o exame da pena disciplinar em que incorrer.
§ 1º – A responsabilidade administrativa é independente da civil e
da criminal.28
O tema da independência entre as instâncias é, ainda, abordado nos
artigos 64 e 65 do Código de Processo Penal, que assim dispõe:
Art. 64. Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para
ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o
autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.
Parágrafo único. Intentada a ação penal, o juiz da ação civil poderá
suspender o curso desta, até o julgamento definitivo daquela.
Art. 65. Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido
o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito
cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.29
Não há nos dispositivos menção à esfera administrativo-disciplinar,
mas a conclusão de que a mesma lógica há de incidir sobre os procedimentos
disciplinares decorre da própria estrutura do sistema. Tanto é assim que o
§ único do artigo 64 do Código de Processo Penal estabelece regra simi-
lar àquela prevista no § 3º do artigo 250 da Lei nº 10.261/68, segundo o
qual “o processo administrativo só poderá ser sobrestado para aguardar
decisão judicial por despacho motivado da autoridade competente para
aplicar a pena”30. Vale dizer, tanto o juiz da ação civil quanto a autoridade
responsável pela aplicação da penalidade ao servidor poderão determinar
o sobrestamento dos procedimentos sob sua responsabilidade, se entende-
rem que o deslinde dos fatos na esfera penal é relevante para as conclusões
concernentes às esferas civil e administrativo-disciplinar.
Também na esfera federal, a Lei nº 8.112/1990, que trata do
Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União, preconiza,

28 Ibidem, art. 250.


29 BRASIL. Decreto-lei n. 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 19699, 13 out. 1941, art. 64-65.
30 SÃO PAULO, op. cit., art. 250.

190
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

em seu artigo 125, que “as sanções civis, penais e administrativas pode-
rão cumular-se, sendo independentes entre si”31.
As normas epigrafadas deixam claro, ainda, que a independência
entre as instâncias é relativa e não absoluta. São esclarecedoras, sobre o
tema, as seguintes considerações de José Armando da Costa:
Conquanto prevaleça, em regra, a noção da autonomia das instâncias,
como aludido acima, vale assinalar que, em hipóteses especiais – como
bem deixam entender as normas legais referias no item anterior – a decisão
penal definitiva faz coisa julgada nas instâncias civil e disciplinar, o que
não ocorre no sentido reverso, isto é, os decisórios dessas vertentes,
em circunstância alguma, poderão constituir prejudicial naquele juízo.
Quais, então, as razões pré-jurídicas ou extrajurídicas que conferem
essa especial posição de supremacia ao juízo penal?
Dentre outros motivos de igual ou superior peso, destacam-se os seguintes:
a) O princípio de ordem pública que, sem sombra de dúvidas, é bem
mais presente e intenso na matéria penal do que nas questões civis ou
administrativas (em que se incluem as de natureza disciplinar);
b) Maior gravidade, pelo menos em princípio, das consequências oriundas
da instância penal;
c) O juízo penal, em matéria de instrução e prova, é bem mais exigente
do que as instâncias aludidas.32
Essa relatividade da independência entre as instâncias é, também,
demonstrada pelo que determina o § 2º do artigo 250 da Lei nº 10.261/68:
§ 2º – Será reintegrado ao serviço público, no cargo que ocupava e com
todos os direitos e vantagens devidas, o servidor absolvido pela Justiça,
mediante simples comprovação do trânsito em julgado de decisão que ne-
gue a existência de sua autoria ou do fato que deu origem à sua demissão.33

31 BRASIL. Lei n. 8.112 de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre regime jurídico dos
servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 19 abr. 1991, art. 125.
32 COSTA, José Armando. Controle judicial do ato disciplinar. 2. ed. São Paulo: Método,
2009, p. 232-233.
33 SÃO PAULO, op. cit., art. 250.

191
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Outra circunstância que denota a relatividade da independência das


instâncias, bem como a parcial supremacia da instância judicial-penal sobre
a administrativo disciplinar, é a adoção, pelo direito brasileiro, do sistema
de unicidade de jurisdição, segundo o qual as decisões tomadas pelo
Judiciário em caráter definitivo não podem ser revistas pela Administração.
Novamente, o magistério de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
O controle judicial constitui, juntamente com o princípio da legalidade,
um dos fundamentos e quem repousa o Estado de Direito. De nada adian-
ta sujeitar-se a Administração Pública à lei se seus atos não pudessem ser
controlados por um órgão dotado de garantias de imparcialidade que
permitam apreciar e invalidar os atos ilícitos por ela praticados.
O direito brasileiro adotou o sistema da jurisdição uma, pelo qual o Poder
Judiciário tem o monopólio da função jurisdicional, ou seja, do poder
de apreciar, com força de coisa julgada, a lesão a direitos individuais e
coletivos. Afastou, portanto, o sistema de dualidade de jurisdição em
que, paralelamente ao Poder Judiciário, existem os órgãos do Conten-
cioso Administrativo que exercem, como aquele, função jurisdicional
sobre lides de que a Administração Pública seja parte interessada.
O fundamento constitucional do sistema da unidade de jurisdição é o
artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que proíbe a lei de
excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Qualquer que seja o autor da lesão, mesmo o poder público, poderá o
prejudicado ir às vias judiciais.34
Desse contexto se depreende que a instrução processual dos procedi-
mentos disciplinares, inclusive no que concerne à dilação probatória, guarda
independência dos processos penais, mesmo nos casos em que a conduta
apurada encontra tipificação tanto penal quanto disciplinar, a ensejar a
instauração concomitante de ação penal e procedimento disciplinar.
A independência entre as instâncias, conquanto relativa, viabiliza a
possibilidade de decisões díspares nas duas esferas. Não há inconsistência
na hipótese dessa ocorrência, uma vez que é perfeitamente possível que,
ao término das respectivas instruções processuais, os mesmos fatos
sejam comprovados, sendo distinta, no entanto, a decisão acerca da

34 DI PIETRO, op. cit., p. 816.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

procedência ou não das demandas. Isso porque uma mesma conduta,


comprovada nos dois âmbitos, pode configurar violação de deveres fun-
cionais por parte do servidor mesmo que não ostente as características
necessárias à tipificação penal.
Evidentemente, à luz das normas mencionadas e do sistema de juris-
dição una, a eventual decisão, na esfera penal, de que o fato não ocorreu,
ou de que, tendo ocorrido, foi praticado por outrem que não o acusado,
vincula a Administração de forma inescapável. Nesse sentido tem se
definido, de longa data, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.
Não obstante, em decisão proferida em setembro de 2021, a Sexta
Turma do (STJ) adotou entendimento diverso, mitigando ainda mais a
independência entre as esferas judicial e administrativa, sob o argumento
de que “a autonomia das esferas há que ceder espaço à coerência que
deve existir entre as decisões sancionatórias”35.
A decisão foi proferida em sede de habeas corpus impetrado
com o objetivo de cancelar a decisão administrativa que reconhe-
cera a existência de falta grave por fato tido como insuficientemente
comprovado na esfera judicial (o que levou à absolvição do acusado em
âmbito penal). Tratava-se de infração praticada por detento, e não por
servidor público, mas a lógica se aplica integralmente aos procedimentos
disciplinares instaurados contra os servidores.
A ementa da decisão tem o seguinte teor:
AGRAVO REGIMENTAL EM EMBARGOS DE DECLARA-
ÇÃO EM HABEAS CORPUS. AGRAVO EM EXECUÇÃO. FALTA
GRAVE. INDEPENDÊNCIA MITIGADA DAS INSTÂNCIAS. WRIT
INDEFERIDO LIMINARMENTE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO
REJEITADOS. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. A absolvição criminal só afasta a responsabilidade administrativa
quando restar proclamada a inexistência do fato ou de autoria.

35 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental em embargos de


declaração em habeas corpus n. 601533/SP. Agravo em execução. Falta grave. Independência
mitigada das instâncias. Writ indeferido liminarmente. Embargos de declaração rejeitados.
Agravo regimental provido. Agravante: Cristiano Barbosa Moura. Agravados: Ministério
Público do Estado de São Paulo; Ministério Público Federal. Relator: Min. Sebastião Reis
Júnior, 21 de setembro de 2021. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, 1 out. 2021.

193
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

2. Embora não se possa negar a independência entre as esferas –


segundo a qual, em tese, admite-se repercussão da absolvição penal
nas demais instâncias apenas nos casos de inexistência material ou de
negativa de autoria –, não há como ser mantida a incoerência de se ter
o mesmo fato por não provado na esfera criminal e por provado na
esfera administrativa. Precedente.
3. Em hipóteses como a dos autos, em que o único fato que motivou a
penalidade administrativa resultou em absolvição no âmbito criminal,
ainda que por ausência de provas, a autonomia das esferas há que ceder
espaço à coerência que deve existir entre as decisões sancionatórias.
4. Agravo regimental provido a fim de determinar o cancelamento
da falta grave apurada no Procedimento Administrativo Disciplinar
n. 41/2017 (E21/934137/2011) e de todos os efeitos dela decorrentes.36
É relevante observar que o voto do Ministro Relator foi acompanhado
pelos demais Ministros da Turma, em votação unânime.
O entendimento da Sexta Turma do STJ, ainda que minoritário
(ao menos até o presente momento), parte, ao que parece, de equivocada
premissa para chegar à conclusão de que, embora aparentemente lógica,
alberga, na verdade, uma conclusão insustentável.
Sem dúvida, é possível que ao longo de dois procedimentos
instrutórios levados a cabo simultaneamente – um na seara judicial,
outro no campo administrativo – conjuntos distintos de prova sejam pro-
duzidos. Em que pese o princípio da unicidade da jurisdição, não há qual-
quer garantia de que a instrução processual realizada na esfera penal será
mais completa ou eficiente do que aquela conduzida no contexto discipli-
nar. Assim, ainda que haja, como já mencionado, uma presunção, susten-
tada, por exemplo, por autores como Armando José da Costa, para quem
“o juízo penal, em matéria de instrução e prova, é bem mais exigente
do que as instâncias aludidas”37, tal presunção nem sempre corresponde
à realidade, e não há qualquer argumento lógico que logre demonstrar
que as provas constantes de ações penais são, sempre e necessariamente,
produzidas de forma mais rigorosa do que aquelas obtidas nos

36 Ibidem.
37 COSTA, op. cit., p. 233.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

procedimentos disciplinares. Em ambos os casos, os processos são presi-


didos e conduzidos por seres humanos, cujas peculiaridades e idiossincra-
sias marcam, indiscutivelmente, o resultado de seus trabalhos.
Se assim é, há que se admitir a hipótese de que, em determinadas
situações, as provas produzidas durante a instrução de determinado
procedimento disciplinar elucidarão de forma mais eficaz a dinâmica de
fatos eventualmente não tão bem esclarecidos na esfera penal. A assim
ser, não há que se falar em “incoerência de se ter o mesmo fato por não
provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa”38,
como constou da mencionada decisão judicial. Incoerência, a bem da
verdade, haveria em se constatar a existência de um conjunto probatório
satisfatório na esfera administrativo-disciplinar, que, no entanto,
não poderia levar à caracterização de infração disciplinar porque,
em âmbito judicial, os fatos não foram devidamente provados.
A decisão do STJ desconsidera ainda a circunstância de que, uma vez
que os tipos penais e os chamados “tipos administrativos” ou “tipos
disciplinares” têm elementos e estruturas distintos, a produção probatória
pode, igualmente, seguir trilhas não idênticas (conquanto similares) na
busca de elementos caracterizadores dos diferentes “tipos” aos quais os
fatos analisados podem ser subsumidos. É certo que, ainda que os fatos sob
análise sejam os mesmos, os questionamentos podem se voltar a detalhes e
aspectos de tais fatos que interessam a uma seara, mas não a outra.
Há que se lembrar, nesse sentido, a existência de significativa diferença
entre os tipos penais, que são “fechados”, de modo que a subsunção do
fato à norma exige a demonstração da presença dos elementos caracteriza-
dores do tipo, enquanto que os “tipos administrativos” ou “disciplinares”
têm estrutura mais “aberta” (citem-se, à guisa de exemplo, os incisos XII –
“cooperar e manter espírito de solidariedade com os companheiros de
trabalho” e XIV – “proceder na vida pública e privada na forma que
dignifique a função pública”39 do artigo 241 da Lei nº 10.261/68).
À luz dessa distinção, pode-se ter a impressão de que a perquirição
penal buscaria um maior detalhamento do fato a ser provado.

38 BRASIL, 2021.
39 SÃO PAULO, op. cit., art. 241, inc. XII e XIV.

195
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

No entanto, pode ocorrer justamente o contrário: a tipologia “aberta”


das infrações administrativas autoriza, e em certos casos até mesmo
exige, que aspectos concernentes a determinado fato, a princípio irre-
levantes na esfera penal, sejam investigados com maior interesse no
âmbito administrativo-disciplinar.
Como consequência dessas relevantes circunstâncias, a indepen-
dência entre as instâncias judicial e administrativa só pode ser miti-
gada, como já mencionado, se comprovada a inexistência do fato,
ou sua prática por outrem. Absolutamente correto, por conseguinte,
o entendimento tradicionalmente adotado pelo Superior Tribunal de
Justiça. Pelas mesmas razões, afigura-se preocupante o alargamento da
mitigação dessa separação, levado a efeito pela Sexta Turma do Tribunal
em setembro de 2021, fundamentado, como visto, num raciocínio que,
baseado apenas no argumento de uma suposta “incoerência”, deixa de
levar em consideração aspectos fundamentais da questão.
Desse modo, na hipótese de absolvição no campo penal por
insuficiência de provas40, a independência entre as instâncias há de ser
preservada, dispondo a Administração de ampla liberdade para chegar a
conclusões distintas daquelas alcançadas pelo Poder Judiciário.
Situação mais complexa, no entanto, se apresenta quando Judiciário
e Administração chegam a conclusões distintas com base no mesmo
arcabouço probatório.
Via de regra, como mencionado, Administração e Judiciário produzem
seus próprios conjuntos probatórios, nos autos de seus respectivos
procedimentos. Não é incomum, no entanto, que a Administração se
valha de elementos de prova constantes de autos judiciais, na qualidade
de prova emprestada, para instruir seus próprios expedientes.
Nesse caso, ainda seria possível sustentar a independência das instân-
cias judicial e administrativa? Dito de outro modo, pode a Administração
Pública, com base no mesmo grupo de provas, proferir decisão contrária
àquela tomada em âmbito judicial-penal?
Como já dito, a caracterização de uma infração disciplinar pode
levar em consideração outros elementos do fato que não aqueles

40 BRASIL, 1941, inciso VII do artigo 386.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

configuradores do ilícito penal. Também já foi salientado que, em suas


respectivas esferas de competência, as autoridades responsáveis pelas
instruções processuais penal e disciplinar buscarão aferir a existência ou
não dos elementos caracterizadores das ilicitudes previstas nas normas
aplicáveis às suas respectivas ambiências.
Sob essa ótica, infere-se que a análise dos fatos, quando realizada
em âmbito judicial-penal, dificilmente (ou apenas de forma incidental)
abordará aspectos que não aqueles voltados à tipificação penal. Pode-se
concluir, portanto, que quando a Administração se valer apenas das provas
produzidas na esfera penal, na qualidade de prova emprestada (procedi-
mento, aliás, absolutamente regular), o que pode acontecer, inclusive, em
casos de impossibilidade de produção de provas por outros meios, a defesa
da independência entre as instâncias será mais difícil. Nesse caso, caberá
à Administração demonstrar de forma bem fundamentada que o fato
comprovado, ainda que não se subsuma à norma penal por falta de um
ou mais elementos do tipo, preenche todos os requisitos necessários à
caracterização de uma infração disciplinar. Tal poderia ocorrer, por exem-
plo, no caso de uma conduta inicialmente tipificada como peculato (que
seria, a um só tempo, crime e infração disciplinar), mas que, por falta
de algum elemento subjetivo do tipo penal, não pudesse ser classificada
como crime, mas ainda assim sujeitasse o agente à penalidade de natureza
administrativa, ainda que menos grave do que a inicialmente prevista (se,
por exemplo, configurada a falta de zelo – infração prevista no inciso III
do artigo 241 da Lei nº 10.261/68 – , mesmo após a descaracterização
da imputação inicial de natureza administrativa). Nesse sentido, inclu-
sive, há orientação jurisprudencial consolidada, por parte do Supremo
Tribunal Federal, cuja Súmula nº 18 preconiza que “pela falta residual,
não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a puni-
ção administrativa do servidor público”41.
Por fim, não se pode desconsiderar que, mesmo diante do
reconhecimento da independência das instâncias penal e administrativa,

41 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 18. Pela falta residual, não compreendida na
absolvição pelo juízo criminal, é admissível a punição administrativa do servidor público.
In: Súmula da Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao
Regimento Interno. Brasília, DF: Imprensa Nacional, 1964a, p. 38.

197
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

a prevalência, no direito brasileiro, do princípio da jurisdição uma torna


possível a revisão, via Poder Judiciário, não só das decisões proferidas
nos procedimentos disciplinares, como também de questões envolvendo
a dilação probatória e mesmo a valoração de provas realizadas em
sede administrativo-disciplinar. Tratar dos limites de atuação do Poder
Judiciário nessa seara, no entanto, implicaria abordar questão tão inte-
ressante quanto complexa, que, por si só, mereceria um artigo próprio.
Mesmo uma análise superficial da questão demandaria considerações
que extrapolariam o escopo do presente trabalho, razão pela qual tal
análise há de ser feita alhures.

3. CONCLUSÃO

As ideias formuladas e expostas no presente artigo levam a conclu-


sões que podem ser assim sintetizadas:
• A Administração Pública, por imperativo constitucional e legal,
encontra-se jungida ao princípio da estrita legalidade, consubs-
tanciada da necessidade de observância da lei, por parte dos entes
públicos, com rigor ainda maior do que por parte dos particulares;
• Como corolário da necessidade de observância da estrita lega-
lidade, a Administração tem o poder de autotutela42, em razão
do qual tem o dever de apurar eventuais desvios da legalidade
estrita praticados por seus agentes;
• Os servidores públicos, no entanto, não perdem, em razão dos
cargos que assumem perante a Administração Pública, seus direi-
tos fundamentais, dentre os quais sobressaem, para os fins do
presente artigo, os do devido processo legal, da ampla defesa e
do contraditório, todos previstos no artigo 5º da Constituição
Federal. Portanto, a caracterização da prática de uma infração
disciplinar se condiciona à existência de um processo disciplinar
em que o servidor acusado terá ciência da imputação formulada
em seu desfavor e a oportunidade de dela se defender, produzindo,
no seio do referido processo, as provas que entender pertinentes;

42 BRASIL, 1964b; BRASIL, 1969.

198
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

• Diante do princípio constitucional de presunção de não culpa-


bilidade dos acusados em geral43, a Administração deve com-
provar a existência/materialidade da infração disciplinar, bem
como sua autoria, fazendo-o no bojo do procedimento discipli-
nar para tanto instaurado;
• Antes da instauração do procedimento disciplinar em desfa-
vor do servidor, caso seja necessário, será realizada uma apu-
ração preliminar, que, a exemplo do inquérito policial, com
que guarda similaridades estruturais, tem natureza meramente
investigatória, razão pela qual não é necessária estrita observân-
cia dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla
defesa, que, no entanto, deverão ser rigorosamente observados
após a instauração do procedimento disciplinar, dada sua natu-
reza sancionatória;
• Embora a Lei nº 10.261/68 traga normas acerca dos ritos pro-
cessuais dos procedimentos disciplinares, tais normas são insufi-
cientes para regular todas as situações possíveis, razão pela qual
o Direito Administrativo Disciplinar deve se valer subsidiaria-
mente das normas processuais penais e civis, nessa ordem;
• O direito e a jurisprudência brasileiros reconhecem a independência
entre as instâncias judicial-penal e administrativo-disciplinar,
independência esta que não é absoluta e que, de acordo com enten-
dimento de há muito pacificado no Superior Tribunal de Justiça, há
de ser afastada em duas hipóteses: (i) quando demonstrado que o
fato não ocorreu ou (ii) quando, demonstrada sua ocorrência, res-
tar comprovada a autoria por outrem que não o acusado. Apesar
disso, recente decisão da Sexta Turma do STJ alargou as margens
dessa relativização, para sustentar que, mesmo quando o fato não
restar comprovado em âmbito judicial por insuficiência de provas44,
“não há como ser mantida a incoerência de se ter o mesmo fato por não
provado na esfera criminal e por provado na esfera administrativa”45.

43 BRASIL, 1988, inc. LVII do art. 5º.


44 BRASIL, 1941, inc. VII do art. 386.
45 BRASIL, 2021.

199
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

Tal entendimento, no entanto, desconsidera diversas peculiaridades


ínsitas ao procedimento disciplinar, bem como distinções estruturais
existentes entre os tipos penais e as infrações disciplinares, resultando,
por conseguinte, em conclusão fundada sob premissas frágeis;
• A questão se revela mais complexa quando a Administração Pública
se vale exclusivamente de provas produzidas no bojo de procedimen-
tos judiciais, na qualidade de prova emprestada, para decidir de forma
diversa daquela decidida na esfera judicial. A independência entre as
instâncias, em tal hipótese, não é inviável, embora a prevalência de
decisões distintas exija, por parte da Administração, argumentação
que demonstre a existência de elementos caracterizadores de infração
disciplinar ainda que ausentes elementos tipificadores de crime;
• Apesar disso, quaisquer decisões administrativas na seara disciplinar
ficam sujeitas a revisão por parte do Poder Judiciário, em razão do
princípio da unicidade de jurisdição que caracteriza o direito brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Paulo Alves Netto. Princípio da ampla defesa no processo


administrativo e a súmula vinculante nº 5. In: SERRANO, Mônica de
Almeida Magalhães; SILVA, Alessandra Obara Soares (org.). Teoria geral
do processo administrativo. São Paulo: Verbatim, 2013. p. 299-324.
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3. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/cons-
tituicao.htm. Acesso em: 27 jun. 2022.
BRASIL. Decreto-lei n. 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo
Penal. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 19699, 13 out. 1941.
BRASIL. Lei n. 8.112 de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre regime
jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fun-
dações públicas federais. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF,
p. 1, 19 abr. 1991.

200
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 175-202, jan./jun. 2022

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Recurso Ordinário em


Habeas Corpus 57812/PR. Operação Delivery. Associação criminosa e contra-
bando de cigarros. Alegada nulidade por ausência de interrogatório no curso
do inquérito policial. Recorrente: Fernando Cardoso Fagundes. Recorrido:
Ministério Público Federal. Relator: Min. Felix Fischer, 15 de outubro de
2015. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, n. p., 22 out. 2015.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Agravo Regimental em
embargos de declaração em habeas corpus n. 601533/SP. Agravo em exe-
cução. Falta grave. Independência mitigada das instâncias. Writ indeferido
liminarmente. Embargos de declaração rejeitados. Agravo regimental
provido. Agravante: Cristiano Barbosa Moura. Agravados: Ministério
Público do Estado de São Paulo; Ministério Público Federal. Relator:
Min. Sebastião Reis Júnior, 21 de setembro de 2021. Diário da Justiça
eletrônico, Brasília, DF, n. p., 1 out. 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Habeas Corpus
259930/RJ. Sucedâneo do Recurso Ordinário. Inadmissibilidade. Homicídio
qualificado. Inquérito policial. Reinquirição de testemunhas. Ausência
de intimação da defesa. Nulidade. Inexistência. Natureza inquisitiva.
Contraditório e ampla defesa. Observância. Desnecessidade. Impetrante:
Dominique Sander Leal Guerra. Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado
do Rio de Janeiro. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, 14 de maio de
2013. Diário da Justiça eletrônico, Brasília, DF, n. p., 23 maio 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 18. Pela falta residual,
não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a puni-
ção administrativa do servidor público. In: Súmula da Jurisprudência
Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao Regimento
Interno. Brasília, DF: Imprensa Nacional, 1964a. p. 38.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 346. A Administração
Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos. In: Súmula da
Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal – Anexo ao
Regimento Interno. Brasília, DF: Imprensa Nacional, 1964b. p. 151.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula n. 473. A Administração
pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam
ilegais. Diário da Justiça: seção 1, Brasília, DF, p. 5929, 10 dez. 1969.

201
RENÉ ZAMLUTTI JÚNIOR

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 5. A falta


de defesa técnica no processo administrativo disciplinar não ofende a
Constituição. Diário da Justiça, Brasília, DF, n. 88, p. 1, 16 maio 2008.
COSTA, José Armando. Controle judicial do ato disciplinar. 2. ed.
São Paulo: Método, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26. ed.
São Paulo: Atlas, 2013.
FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo.
3. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
SÃO PAULO. Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o
Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do
Estado de São Paulo: São Paulo, p. 2, 29 out. 1968.

202
DA OITIVA DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES NO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.
CONSIDERAÇÕES SOBRE
FALSAS MEMÓRIAS

Kristina Yassuko Iha Kian Wandalsen1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Da prova testemunhal no processo


administrativo disciplinar; 3 – Da oitiva de crianças e adolescentes durante
a instrução do processo administrativo disciplinar; 4 – Das falsas memórias;
5 – Das falsas memórias em crianças; 6 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: As falsas memórias, enquanto fenômeno de distorção e erro


da memória, têm despertado interesse daqueles que se dedicam ao estudo
da prova testemunhal. O objetivo deste artigo é destacar a relevância das
oitivas de crianças e adolescentes durantes as instruções dos processos
administrativos disciplinares, especificamente naqueles que tiveram origem
no ambiente das escolas da rede estadual de ensino. Em sequência, são
tecidas considerações acerca do fenômeno das falsas memórias, que são
recordações de algo que não aconteceu ou que aconteceu de modo diverso
do lembrado, com enfoque específico nas falsas memórias de crianças,
ressaltando, por fim, a importância da compreensão do tema para os
envolvidos na apuração e no processo administrativo disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Falsas Memórias. Prova Testemunhal. Processo


Administrativo Disciplinar. Crianças. Adolescentes.

1 Procuradora do estado de São Paulo. Presidente da 5ª Unidade Processante da Procuradoria


de Procedimentos Disciplinares. Mestre em Filosofia do Direito e graduada em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

203
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

1. INTRODUÇÃO

A Secretaria da Educação do estado de São Paulo possui a maior


rede de ensino do Brasil, com 5,4 mil escolas autônomas e vinculadas,
aproximadamente 3,5 milhões de alunos e 234 mil servidores nos
quadros do Magistério (QM), no Quadro de Apoio Escolar (QAE) e
no Quadro da Secretaria da Educação (QSE). São 190 mil professores
e 5 mil diretores de escolas distribuídos em 91 Diretorias Regionais de
Ensino, que se agrupam em 15 Polos Regionais2.
Aproximadamente 41% dos processos administrativos discipli-
nares e sindicâncias que tramitam atualmente na Procuradoria de
Procedimentos Disciplinares são oriundos da Secretaria da Educação do
estado de São Paulo (informação verbal)3, muitos deles versando acerca
de supostas faltas funcionais que também implicam em supostas viola-
ções a direitos de crianças e adolescentes. Frequentemente tais processos
disciplinares tratam de imputações de faltas funcionais que não deixam
resquícios materiais, sendo a palavra da vítima ou das testemunhas de
importância substancial para a resolução da demanda.
Nesse panorama, frequentemente crianças e adolescentes são ouvi-
dos durante as audiências realizadas na Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, seja como
vítimas ou como testemunhas, o que suscitou a elaboração deste artigo,
que tem por objetivo destacar a relevância das oitivas de crianças e ado-
lescentes durante as instruções dos processos administrativos disciplinares,
especificamente naqueles que tiveram origem no ambiente das escolas da
rede estadual de ensino, tecendo, em sequência, considerações acerca das
falsas memórias, que são recordações de algo que não aconteceu ou que
aconteceu de modo diverso do lembrado, com enfoque específico nas falsas
memórias de crianças, ressaltando a importância da compreensão do tema
para os envolvidos na apuração e no processo administrativo disciplinar.

2 Disponível em: https://www.educacao.sp.gov.br/institucional/a-secretaria/. Acesso em:


09 mar. 2022.
3 Informação fornecida pelo Procurador do Estado Chefe da Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, Dr. Eraldo Ameruso Ottoni
no curso “Mesa de Debates: Alterações na Lei de Improbidade Administrativa pela Lei
n° 14.230/2021”, em São Paulo, dezembro de 2021.

204
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

2. DA PROVA TESTEMUNHAL NO PROCESSO ADMINISTRATIVO


DISCIPLINAR

A Lei n° 10.261, de 28 de outubro de 1968, dispõe de forma bastante


lacônica acerca da prova testemunhal nas sindicâncias e nos processos
administrativos disciplinares em seus artigos 273, inc. I, 283, § 1º, 284,
285, 286 e 287, todos na redação que lhes conferiu a Lei Complementar
n° 942, de 6 de junho de 2003.
A forma sucinta adotada pelo Estatuto dos Funcionários Públicos
Civis do Estado de São Paulo no que se refere à prova testemunhal enseja
a busca por subsídios no Direito Penal e no Direito Processual, ante a
estrutura sancionatória do Direito Disciplinar, sendo oportuno lembrar,
como o fez Zamlutti Júnior, que:
Essa dimensão de subsidiariedade não se encontra expressamente pre-
vista na Lei n° 10.261/68, mas constitui uma consequência lógica da
própria natureza punitiva do Direito Disciplinar, somada à escassez de
dispositivos normativos sobre o tema e ao laconismo destes.4
Logo, inexistindo dispositivo na Lei n° 10.261/68 que con-
tenha a especificação de quem poderá ser testemunha no processo
administrativo disciplinar, aplica-se o princípio genérico adotado
pelo Processo Penal, consubstanciado no artigo 202 do Código de
Processo Penal, segundo o qual toda pessoa poderá ser testemunha,
excetuando-se aquelas elencadas pelos artigos 206 e 207 do mes-
mo diploma legal, exceções também previstas no artigo 285, §§ 1º e
4º do Estatuto Funcional Paulista.
Na lição de Tourinho Filho, a imprevisibilidade quanto ao local e
ao horário em que o ilícito pode ocorrer justifica a adoção do princípio
genérico de que toda pessoa pode ser testemunha:
Assim, qualquer pessoa física, independentemente de idade, sexo ou
nacionalidade, pode ser testemunha. Não importam as imperfeições
físicas, às vezes, até, os estados contingentes de inconsciência. Não se
levam em conta o estado social e a condição econômica da pessoa,

4 ZAMLUTTI JÚNIOR, René. Subsunção e tipicidade no processo disciplinar. Revista da


Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, São Paulo, n. 85, p. 25-44, 2017, p. 26.

205
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

bem como sua reputação ou fama. […] Ninguém sabe onde e a que
hora o crime vai eclodir. Tanto pode ser nas vias públicas, nos palácios,
nos ministérios, como nas zonas licenciosas da cidade. Por isso nenhuma
restrição quanto à capacidade para depor.5

É natural que quase todos os fatos da vida sejam percebidos por al-
guém, o que faz da prova testemunhal a prova por excelência. Nesse sentido,
a lição de Magalhães Noronha6, ao discorrer sobre a prova testemunhal:
“Como quer que seja, máxime no processo penal, é ela a prova por
excelência. O crime é um fato, é um trecho da vida e, consequentemente,
é, em regra, percebido por outrem”7.
Ocorre que essa percepção do “trecho da vida”, como adiante se
verá, não armazena as imagens sob a forma de fotografias fac-similares
de coisas, de acontecimentos, de palavras ou frases, pois, como aponta
Damásio, “sempre que recordamos um dado objeto, um rosto ou uma
cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes uma interpretação,
uma nova versão reconstruída do original”8. Logo, pressupor que a me-
mória funciona como uma reprodução fiel da realidade é um engano.
Ao tratar da prova testemunhal, Fernandes9 alerta que a premissa
da qual se deve partir é a de que os sujeitos processuais, ao lidarem
com declarações de testemunho, não estão em contato com o evento
fático em si, mas sim, em verdade, com uma memória que o depoente
tem sobre o evento, “pois a testemunha não possui a capacidade de te-
letransportar os atores jurídicos à cena do crime presenciada, que pode
ter ocorrido inclusive há lapso temporal considerável do momento do
resgate da memória vivida”10.

5 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de processo penal comentado (arts. 1º


a 393). 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 678.
6 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de direito processual penal. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 1978, p. 113.
7 Ibidem.
8 DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021, p. 105, grifo do autor.
9 FERNANDES, Lara Teles. Prova testemunhal no processo penal: uma proposta
interdisciplinar de valoração. 2. ed. Florianópolis: EMais, 2020.
10 Ibidem, p. 228.

206
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

A colheita da prova testemunhal e seu exame apurado, portanto,


perpassam pelo conhecimento da memória e dos fenômenos a ela
relacionados, sendo de muita relevância, nesse aspecto, a evolução dos
estudos da Psicologia do Testemunho, que inclusive se consolidou como
segmento autônomo e especializado da Psicologia Forense.

3. DA OITIVA DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES DURANTE A


INSTRUÇÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Especificamente nos processos administrativos disciplinares e sin-


dicâncias que têm origem no ambiente das escolas da rede estadual de
ensino, alguns ilícitos administrativos, por sua natureza ou condição,
não deixam resquícios materiais, sendo a palavra da vítima ou das tes-
temunhas – normalmente crianças ou adolescentes – essencial para o
deslinde do feito. Oportuno aqui observar que atualmente encontra-se
pacificado o entendimento de que as crianças ingressam na rede pública
de ensino estadual com, no mínimo, seis anos de idade, tendo sido fixada
pelo Supremo Tribunal Federal11 a tese de que “É constitucional a exi-
gência de que o aluno possua 06 (seis) anos de idade para o ingresso no

11 “Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE


CONSTITUCIONALIDADE. FIXAÇÃO DA IDADE MÍNIMA DE 06 (SEIS) ANOS PARA
O INGRESSO NO ENSINO FUNDAMENTAL. 1. Ação declaratória de constitucionalidade
que tem por objeto os artigos 24, II, 31, I e 32, caput, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, que dispõem que o ensino fundamental obrigatório se inicia aos 06 (seis) anos de
idade. 2. É constitucional a norma que fixa a idade de 6 (seis) anos como marco para o ingresso
no ensino fundamental, tendo em vista que o legislador constituinte utilizou critério etário
plenamente compatível com essa previsão no art. 208, IV, da Constituição, de acordo com o
qual a educação infantil deve ser oferecida “às crianças até 5 (cinco) anos de idade”. 3. O critério
etário está sujeito a mais de uma interpretação possível com relação ao momento exato em
que o aluno deva ter 6 (seis) anos completos. Cabe ao Ministério da Educação a definição do
momento em que o aluno deverá preenchê-lo, pois se trata de órgão dotado de capacidade
institucional adequada para a regulamentação da matéria. 4. Procedência parcial do pedido
com a fixação da seguinte tese: ‘É constitucional a exigência de que o aluno possua 06 (seis)
anos de idade para o ingresso no ensino fundamental, cabendo ao Ministério da Educação a
definição do momento em que o aluno deverá preencher o critério etário’” (BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade 0005560-87.2007.1.00.0000
DF 0005560-87.2007.1.00.0000. Requerente: Governador do Estado de Mato Grosso do
Sul. Relator: Ministro Edson Fachin, 1 de agosto de 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.
com.br/jurisprudencia/1105676202/acao-declaratoria-de-constitucionalidade-adc-17-
df-0005560-8720071000000/inteiro-teor-1105676224. Acesso em: 29 jun. 2022, p. 1-2).

207
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

ensino fundamental, cabendo ao Ministério da Educação a definição do


momento em que o aluno deverá preencher o critério etário”12.
Diante da ausência de disposição na Lei n° 10.261/68 acerca da
oitiva de crianças e adolescentes como testemunhas no processo admi-
nistrativo disciplinar, aplica-se o disposto no Código de Processo Penal,
que não veda o depoimento de pessoas com menos de 14 anos de idade,
dispensando-as, todavia, do compromisso a que alude o artigo 203 do
mesmo diploma legal.
É inegável que o depoimento de crianças e adolescentes, em especial
o depoimento de crianças, constitui questão bastante controvertida,
seja entre doutrinadores ou entre os operadores do Direito. Tourinho
Filho bem manifestou essa controvérsia ao ponderar que:
E mais: há os depoimentos infantis, os dos sugestionáveis, que,
como já se disse, são os curingas no pôquer da prova testemunhal.
Malgrado as lições da Psicologia (quando ela quer mentir procede
com arte…, a imaginação enche a vida da criança… a criança ama as
ficções…), diz-se também: ex ore parvulorum veritas – da boca das
crianças (sai) a verdade. O certo é que o depoimento de uma criança
não pode ter total desvalia, dependendo o seu valor probatório,
sempre e sempre, da coerência que ele tiver com o tema objeto da
prova. Já se disse que cada idade tem os seus prazeres, seus costumes,
seus hábitos. Não se pode exigir de uma criança a maturidade de um
adulto. Pode inventar, pode criar, pode querer transformar-se no cen-
tro das atenções, pode fantasiar. Se mentir, não o faz por perversidade,
por maldade. Aí, das duas uma: ou foi instruída por alguém ou, então,
seu depoimento, se não coincidir com as demais provas colhidas,
pode ser fruto da sua imaginação ou do seu total desinteresse por
fatos que não integram seu pequeno-grande mundo.13
Stein e Nygaard, igualmente, lastreando-se nos estudos do pedago-
go e psiquiatra francês Alfred Binet, manifestaram reservas em relação
ao depoimento infantil:

12 Ibidem, p. 2.
13 TOURINHO FILHO, op. cit., p. 687.

208
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

Os estudos pioneiros sobre a sugestionabilidade da memória de


crianças do francês Alfred Binet (1900) levaram-no a concluir que
as crianças respondem com falta de acuidade porque elas esquecem
a informação originalmente experimentada. Ainda, as crianças podem
se sentir pressionadas a dizer alguma coisa para responder à pergunta
feita pelo entrevistador. Ele também estudou os efeitos da conformida-
de das crianças ao grupo. Assim, num grupo de crianças, a tendência é
que a resposta dada pelas primeiras a serem questionadas, geralmente,
é repetida pelas últimas crianças.14
Muito embora não se possa ignorar a controvérsia acima referida,
cumpre destacar que a Convenção sobre os Direitos da Criança, em seu
artigo 12, itens 1 e 2, formalmente incorporada ao ordenamento positivo
brasileiro por meio do Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990,
assegura à criança e ao adolescente o direito de serem ouvidos em juízo,
em todo processo judicial ou administrativo que afete seus interesses:
Artigo 12.
1. Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a
formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livre-
mente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se
devidamente em consideração essas opiniões, em função da idade e ma-
turidade da criança.
2. Com tal propósito, se proporcionará à criança, em particular, a opor-
tunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que
afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um represen-
tante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais
da legislação nacional.15
Assegurado o direito da criança e do adolescente de serem ouvidos
em todo processo judicial ou administrativo que afete seus interesses,
incumbe ao Estado assegurar-lhes, no exercício dessa prerrogativa,
respeito à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

14 STEIN, Lilian Milnitsky; NYGAARD, Maria Lúcia Campani. A memória em julgamento:


uma análise cognitiva dos depoimentos testemunhais. Revista Brasileiras de Ciências
Criminais, São Paulo, ano 11, n. 43, 2003, p. 159.
15 BRASIL. Decreto nº 99.710 de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os
direitos da criança. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 2-7, 22 nov. 1990, art. 12.

209
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

Assim, em processos administrativos disciplinares que tenham por


imputações ilícitos administrativos que também venham a consubs-
tanciar violações a direitos de crianças e adolescentes, estes devem ser
ouvidos durante a instrução probatória, seja como vítimas ou como
testemunhas, sempre com a observância dos princípios orientadores do
Direito da Criança e do Adolescente.
Cumpre destacar que, nos termos do artigo 227 da Constituição Federal,
da acima mencionada Convenção sobre os Direitos da Criança e seus pro-
tocolos adicionais, da Resolução n° 20/2005 do Conselho Econômico e
Social das Nações Unidas e de outros diplomas internacionais, foi editada a
Lei n° 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabeleceu um sistema articulado
e transdisciplinar de garantias de direitos da criança e do adolescente víti-
ma ou testemunha de violência, nas formas de violência elencadas pelo seu
artigo 4º16, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas.

16 Art. 4º. Para os efeitos desta Lei, sem prejuízo da tipificação das condutas criminosas,
são formas de violência:
I – violência física, entendida como a ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda
sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico;
II – violência psicológica:
a) qualquer conduta de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou
ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento,
agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação
sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional;
b) o ato de alienação parental, assim entendido como a interferência na formação psicológica
da criança ou do adolescente, promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou
por quem os tenha sob sua autoridade, guarda ou vigilância, que leve ao repúdio de genitor
ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculo com este;
c) qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente,
a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente
do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha;
III – violência sexual, entendida como qualquer conduta que constranja a criança ou o
adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso,
inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não, que compreenda:
a) abuso sexual, entendido como toda ação que se utiliza da criança ou do adolescente para
fins sexuais, seja conjunção carnal ou outro ato libidinoso, realizado de modo presencial ou
por meio eletrônico, para estimulação sexual do agente ou de terceiro;
b) exploração sexual comercial, entendida como o uso da criança ou do adolescente em
atividade sexual em troca de remuneração ou qualquer outra forma de compensação,
de forma independente ou sob patrocínio, apoio ou incentivo de terceiro, seja de modo
presencial ou por meio eletrônico;
c) tráfico de pessoas, entendido como o recrutamento, o transporte, a transferência,
o alojamento ou o acolhimento da criança ou do adolescente, dentro do território nacional ou

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

O dispositivo acima mencionado elenca quatro formas de violên-


cia para os efeitos da Lei n° 13.431/2017, evidenciando o propósito
do legislador de, na visão da Digiácomo e Digiácomo17, por um lado,
não dar margem para dúvida acerca do alcance da norma e, por outro,
para sinalizar, no mesmo sentido que já apontava o artigo 70-A do
Estatuto da Criança e do Adolescente, para necessidade de implemen-
tação de políticas públicas e abordagens/intervenções específicas para
cada uma das modalidades de violência elencadas, que reclamam um
planejamento e um atendimento diferenciados.
Dentre as inovações trazidas pela Lei em comento, merecem des-
taque a escuta especializada e o depoimento especial, consistindo a pri-
meira no procedimento de entrevista sobre situação de violência com
criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o
relato estritamente ao necessário para a cumprimento de sua finalidade
(artigo 7º) e o segundo no procedimento de oitiva de criança ou ado-
lescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial
ou judiciária (artigo 8º), devendo ambos ser realizados em local apro-
priado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a
privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de vio-
lência (artigo 10º), existindo previsão para que o depoimento especial

para o estrangeiro, com o fim de exploração sexual, mediante ameaça, uso de força ou outra
forma de coação, rapto, fraude, engano, abuso de autoridade, aproveitamento de situação de
vulnerabilidade ou entrega ou aceitação de pagamento, entre os casos previstos na legislação;
IV – violência institucional, entendida como a praticada por instituição pública ou
conveniada, inclusive quando gerar revitimização.
§ 1º. Para os efeitos desta Lei, a criança e o adolescente serão ouvidos sobre a situação de
violência por meio de escuta especializada e depoimento especial.
§ 2º. Os órgãos de saúde, assistência social, educação, segurança pública e justiça adotarão
os procedimentos necessários por ocasião da revelação espontânea da violência.
§ 3º. Na hipótese de revelação espontânea da violência, a criança e o adolescente serão
chamados a confirmar os fatos na forma especificada no § 1º deste artigo, salvo em caso de
intervenções de saúde.
§ 4º. O não cumprimento do disposto nesta Lei implicará a aplicação das sanções
previstas na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente)
(BRASIL. Lei nº 13.431 de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de garantia dos direitos
da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a lei nº 8.069, de 13
de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial da União: seção 1,
Brasília, DF, p. 1-3, 5 abr. 2017, p. 1.
17 DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Eduardo. Comentários à lei n° 13.431/2017.
Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2018.

211
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

seja realizado uma única vez, em sede de produção antecipada de prova


sempre que a vítima ou a testemunha tiver menos de sete anos de idade
ou quando se tratar de violência sexual (artigo 11, caput e § 1º, inc. I
e II), sendo vedada a tomada de novo depoimento especial, que fica
condicionada à justificação de sua imprescindibilidade pela autorida-
de competente e à expressa concordância da criança ou adolescente,
vítima ou testemunha ou de seu representante legal (artigo 11, § 2º).
Também relevante a menção à inclusão da revitimização como modali-
dade de violência institucional (artigo 4º, inciso IV) que, na lição de Zapater,
[…] corresponde ao ato de submeter a vítima (ou a testemunha) de
uma violência a procedimentos administrativos ou judiciais que po-
deriam ser dispensados, ocasionando-lhe sofrimento continuado ou
repetido em decorrência de lembrança forçada dos atos violentos que
sofreu ou testemunhou.18
A questão da violência institucional, entendida como a praticada
por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimi-
zação, foi bem abordada por Digiácomo e Digiácomo, que ressaltaram
o objetivo da norma de evitar que crianças e adolescentes, vítimas ou
testemunhas de violência, sejam tratadas como meros “instrumentos
de produção de prova” e/ou tenham que ser ouvidas repetidas vezes
por agentes que não possuem a devida qualificação técnica para tanto,
muito tempo após a ocorrência do fato, gerando a revitimização. E assim
prosseguiram em suas colocações:
Tamanha foi a preocupação em evitar que isto acontecesse, que a nova
Lei relacionou, dentre as diversas formas de violência previstas em seu
art. 4º, a chamada “violência institucional”, que acaba sendo praticada,
ainda que inadvertidamente, toda vez que os órgãos e agentes que deve-
riam atuar no sentido da proteção das crianças e adolescentes vítimas
ou testemunhas, deixam de observar as cautelas e respeitar os direitos
relacionados nesta e em outras normas correlatas. A ideia básica é erra-
dicar, de uma vez por todas, o amadorismo no atendimento dessa com-
plexa e difícil demanda, agilizando e tornando mais eficiente a atuação
dos órgãos de repressão e proteção, buscando a responsabilização dos

18 ZAPATER, Maíra. Direito da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 301.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

autores de violência na esfera criminal, sem causar danos colaterais às


vítimas ou testemunhas.19

Enfim, durante a apuração preliminar e durante o curso do pro-


cesso administrativo disciplinar há que se atentar para as inovações
trazidas pela Lei n° 13.431/2017, sempre com o objetivo de acolher a
criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, respeitando
sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, demandando da
Administração um planejamento para consecução dessas medidas.

4. DAS FALSAS MEMÓRIAS

Para ilustrar o fenômeno das falsas memórias, Neufeld, Brust e


Stein20 relataram episódio vivenciado pela renomada pesquisadora
norte-americana Elizabeth Loftus21 que, durante a adolescência, perdeu sua
mãe tragicamente afogada na piscina de casa. Passados trinta anos, um tio
comenta em uma reunião de família que ela, Elizabeth, teria sido a pri-
meira a encontrar a mãe boiando na piscina. A partir de então, ela passa
a se lembrar vividamente da impactante cena que teria presenciado.
Alguns dias depois, ela recebe um telefonema do irmão, desculpando-se
pelo tio, esclarecendo que este havia se confundido e que na realidade
quem encontrou a mãe na piscina fora sua tia. Posteriormente Loftus22
bem sintetizou a questão das falsas memórias ao ponderar que “a ideia
mais assustadora é que aquilo em que nós acreditamos com todo nosso
coração pode não ser necessariamente a verdade”.

19 DIGIÁCOMO; DIGIÁCOMO, op. cit., p. 4.


20 NEUFELD, Carmen Beatriz; BRUST, Priscila Goergen; STEIN, Lilian Milnitsky.
Compreendendo o fenômeno das falsas memórias. In: STEIN, Lilian Milnitsky et al. Falsas
memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Porto Alegre:
Artmed, 2010, p. 21.
21 Elizabeth Loftus é uma psicóloga cognitiva norte-americana especializada em memória
humana que, a partir da década de 70, tornou-se uma das maiores autoridades na temática das
falsas memórias. Foi pioneira na introdução de técnica para o estudo das falhas mnemônicas
consistente na sugestão da falsa informação. De acordo com essa técnica, logo após a experiência
vivida por determinado indivíduo, é a ele apresentada uma informação falsa compatível com
esta experiência, produzindo o chamado efeito da falsa informação, ou seja, uma diminuição dos
índices de reconhecimento verdadeiros e um aumento significativo dos falsos.
22 LOFTUS, 1996 apud NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 21.

213
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

Kagueiama, invocando a lição de Izquierdo23, reflete acerca da fa-


libilidade da memória humana, destacando a possibilidade de perdas e
alterações desde o início da percepção do evento:
Uma experiência externa percebida visualmente pela pessoa, penetra
pela retina, é transformada em sinais elétricos e, por meio de diversas
conexões neuronais, chega ao córtex occipital, local onde ocorre uma
série de processos bioquímicos. Quando instados a recuperar a memó-
ria armazenada, os neurônios revertem os sinais bioquímicos ou es-
truturais em elétricos a fim de que os sentidos e a consciência possam
interpretá-los como pertencentes ao mundo real. […] Esses processos elé-
tricos e bioquímicos de passagem da realidade externa para a memória
interna e, após do interno para o mundo externo, são responsáveis
por perdas e alterações do evento percebido. Os neurônios traduzem
as informações, sujeitando-as a imperfeições e a transformações.24
Trindade bem assinalou que “quando se reproduz a lembrança de
um acontecimento, repete-se não só a sensação da realidade já percebida,
mas também a própria reação perceptiva daquela realidade”25, pontuando
ainda que a memória de um indivíduo é impregnada de sua própria cos-
movisão, “é um produto da subjetividade de um indivíduo que testemu-
nhou (fixou, conservou e evocou uma lembrança)”26.
Para Bergson27, antes de ser atualizada pela consciência,
toda lembrança “vive” em estado latente, potencial. Esse estado,
porque está abaixo da consciência atual (“abaixo” metaforicamente),
é qualificado de “inconsciente”. O mal da psicologia clássica, raciona-
lista, segundo Bergson, é o de não reconhecer a existência de tudo o que
está fora da consciência presente, imediata e ativa. No entanto, o papel
da consciência, quando solicitada a deliberar, é sobretudo o de colher e
escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consci-

23 IZQUIERDO, 2011 apud KAGUEIAMA, Paula Thieme. Prova testemunhal no processo


penal: um estudo sobre falsas memórias e mentiras. São Paulo: Almedina, 2021, p. 83-84.
24 KAGUEIAMA, op. cit., p. 83-84, grifo do autor.
25 TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 6. ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, p. 254.
26 Ibidem, p. 287.
27 BERGSON, 1959, apud BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 4. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 51-52.

214
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

ência atual, trazendo-o à sua luz. Logo, a própria ação da consciência


supõe o “outro”, ou seja, a existência de fenômenos e estados infracons-
cientes que costumam ficar à sombra. É precisamente nesse reino de
sombras que se deposita a memória.
Halbwachs28 considera a memória humana essencialmente
coletiva. Para ele, a memória se constitui a partir de testemunhos ex-
ternos que a confirmam e sustentam. A lembrança, para Halbwachs,
é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento, na medida em
que porta o “sentimento do já visto”. É reconstrução, principalmen-
te em dois sentidos: por um lado, porque não é uma repetição linear
de acontecimentos e vivências do passado, mas sim um resgate desses
acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupa-
ções e interesses atuais; por outro, porque é diferenciada, destacada da
massa de acontecimentos e vivências evocáveis e localizada num tempo,
num espaço e num conjunto de relações sociais. Tanto o reconheci-
mento quanto a reconstrução dependem da existência de um grupo de
referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais,
e não simplesmente ideias ou sentimentos isolados, e que são constru-
ídas a partir de um fundamento comum de dados e noções comparti-
lhadas. Os grupos, no presente e no passado, permitem a localização da
lembrança num quadro de referência espaço-temporal que, justamente,
possibilita sua constituição como algo distinto do fluxo contínuo e eva-
nescente das vivências. A memória é esse trabalho de reconhecimento e
reconstrução que atualiza os “quadros sociais” em que as lembranças
podem permanecer e, então, articular-se entre si.
Gonçalves Filho29 afirma que a memória oferece o passado por
meio de um modo de ver o passado: o exercício de congenialidade,
em que há, pois, investimentos do sujeito recordador e da coisa recor-
dada, de maneira que ao termo e ao cabo do trabalho de recordação já
não podemos mais dissociá-los: então fará tanto sentido entender o su-
jeito a partir do que recordou quanto o que recordou a partir do modo

28 HALBWACHS, 1990 apud SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval; MAHFOUD, Miguel.


Halbwachs: memória coletiva e experiência. Psicologia USP, São Paulo, v. 4, n. 1-2,
p. 285-298, 1993.
29 GONÇALVES FILHO, José Moura. Olhar e memória. In: NOVAES, Adauto (org.). O olhar.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 99.

215
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

como o fez. A recordação traz a marca dos padrões e valores mais ou


menos ideológicos do sujeito, a marca dos seus sentimentos, a colorir
eticamente e afetivamente a lembrança, traz a marca de sua inteligência,
a encontrar razões do passado – e a recordação traz, ao mesmo tempo,
as determinações do passado na urdidura daqueles padrões, daqueles
valores, daqueles sentimentos, daquela inteligência.
Kagueiama também se vale da lição de Loftus30, por entender que
ela bem sintetiza a problemática da fragilidade e subjetividade da me-
mória nos seguintes termos:
[…] as memórias das pessoas não são a somatória de tudo que fizeram,
mas são mais que isso: as memórias são a somatória do que as pes-
soas pensam, do que a elas é dito, do que elas acreditam. Nós somos
moldados pelas nossas memórias, mas nossas memórias também são
moldadas por quem somos e por aquilo que fomos levados a acreditar.31
Merecem também alusão as considerações de Saramago acerca
da memória, pois ainda que tenham sido tecidas em texto literário de
viés memorialístico, corroboram, de certa forma, a síntese de Loftus
acima mencionada:
Fisicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habi-
tados por uma memória. Memória que é a de um espaço e de um tempo,
memória no interior da qual vivemos, como uma ilha entre dois mares: um
que dizemos passado, outro que dizemos futuro. Podemos navegar no mar
do passado próximo graças à memória pessoal que conservou a lembrança
das suas rotas, mas para navegar no mar do passado remoto teremos de
usar as memórias que o tempo acumulou, as memórias de um espaço con-
tinuamente transformado, tão fugidio como o próprio tempo.32
Muitas outras considerações acerca da memória poderiam ser
evocadas para demonstrar que a memória humana é falível e sujeita a
influências externas, que podem vir a comprometer a veracidade da repro-
dução de informações nela armazenadas. E é justamente nesse ambiente

30 LOFTUS, 2003 apud KAGUEIAMA, op. cit., p. 86.


31 KAGUEIAMA, op. cit., p. 86
32 SARAMAGO, José. O caderno: textos escritos para o blog (setembro de 2008-março de
2009). São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 18-19.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

permeado pela imprecisão que podemos situar as falsas memórias,


bem definidas por Ávila como “recordações de situações que, na verdade,
nunca ocorreram ou aconteceram de forma diversa de como lembrado
pela vítima/testemunha”33, que não se confundem com as mentiras.
Sacks esclarece que memórias vívidas produzem uma ativa-
ção cerebral disseminada envolvendo áreas sensoriais, emocionais
(límbicas) e executivas (lobos frontais) praticamente idêntica em me-
mórias baseadas efetivamente em experiências e em falsas memórias,
demonstrando, assim, que nas falsas memórias o sujeito realmente
acredita que os fatos ocorreram:
Mesmo se o mecanismo subjacente de uma falsa memória for exposto,
[…] isso pode não alterar a sensação de experiência realmente vivida
ou “realidade” que essas memórias geram. Tampouco, aliás, as óbvias
contradições ou absurdos de certas memórias podem alterar o senti-
mento de convicção ou crença. Grande parte das pessoas que dizem
ter sido abduzidas por extraterrestres não está mentindo quando fala
sobre suas experiências, e também não está consciente de que inventou
uma história – elas realmente acreditam que isso aconteceu. […]
Assim que uma história ou memória desse tipo é construída, acompa-
nhada por imagens sensoriais vívidas e emoção forte, pode não haver
um recurso interno, psicológico, para distinguir o verdadeiro do falso,
nem algum modo neurológico externo. Os correlatos fisiológicos desse
tipo de memória podem ser examinados com técnicas de imagem funcio-
nal do cérebro, as quais mostrarão que memórias vívidas produzem uma
ativação cerebral disseminada envolvendo áreas sensoriais, emocionais
(límbicas) e executivas (lobos frontais) — um padrão que é praticamen-
te idêntico quer a memória se baseie em experiência, quer não.
Ao que parece, a mente ou o cérebro não possui um mecanismo para asse-
gurar a verdade, ou pelo menos o caráter verídico das nossas recordações.34
Conceito mais amplo e detalhado de falsas memórias foi apresentado
por Kagueiama, em sua obra recentemente publicada, em que foi analisa-

33 ÁVILA, Gustavo Noronha. Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 104.
34 SACKS, Oliver. O rio da consciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 90-91.

217
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

da detalhadamente a prova testemunhal no processo penal, com destaque


para a contraposição das falsas memórias em relação à mentira:
As falsas memórias consistem no fenômeno de se lembrar de eventos que,
em realidade, nunca ocorreram, ou que ocorreram apenas parcialmente
da forma como se recorda. Portanto, a diferença entre as falsas me-
mórias e as memórias verdadeiras está na correspondência entre seus
conteúdos e a realidade, mas, no que tange às suas bases cognitivas e
neurofisiológicas, as duas formas de memórias aproximam-se.
Importante adiantar que as falsas memórias não se confundem com as
mentiras, uma vez que o indivíduo acredita verdadeiramente ter vivi-
do a experiência ou presenciado o evento, objeto das falsas memórias.
No caso da mentira, de fundamento social, o indivíduo falseia cons-
cientemente a verdade, sabendo que os fatos narrados são dissonantes
daqueles armazenados em sua memória.
Por sua vez, as falsas memórias não resultam de condições anormais e pa-
tológicas de funcionamento da memória; são frutos de erros de compre-
ensão e processamento de informações que acometem, potencialmente,
toda e qualquer pessoa.
As falsas memórias podem ser formadas tanto por distorções endógenas,
ou seja, por força de interferências ou interpretações do próprio indivíduo,
como podem ser decorrentes de sugestões externas, é dizer, de informa-
ções incorretas provenientes de terceiros ou outras fontes externas ao
sujeito. Por essa razão, considera-se haver dois tipos de falsas memórias,
a depender de sua origem: as ditas espontâneas e as sugeridas.35
As falsas memórias espontâneas são aquelas formadas sem que haja
qualquer interferência ou sugestão externa, pois são resultados de distor-
ções mnemônicas exclusivamente endógenas, ocorridas por consequência
de interferências, interpretações ou confusões feita pelo próprio indivíduo.
São também denominadas falsas memórias endógenas ou autossugeridas.
Por outro lado, as falsas memórias sugeridas são aquelas cujas fontes
de falsificação são externas ao indivíduo. Exemplo bastante ilustrativo de
falsa memória sugerida é o episódio vivenciado pela psicóloga Elizabeth

35 KAGUEIAMA, op. cit., p. 112-113.

218
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

Loftus narrado no início deste tópico. As falsas memórias sugeridas po-


dem derivar de conversas com outras pessoas sobre uma dada ocorrência,
quando se é sugestivamente arguido ou interrogado ou mesmo quando se
lê ou se assiste a uma cobertura midiática sobre evento vivenciado.
No que concerne às falsas memórias sugeridas, Neufeld, Brust e
Stein esclarecem que:
[…] elas advêm da sugestão de falsa informação externa ao sujeito,
ocorrendo devido à aceitação de uma falsa informação posterior ao
evento ocorrido e a subsequente incorporação na memória original.
Esse fenômeno, denominado efeito da sugestão de falsa informação,
pode ocorrer tanto de forma acidental quando de forma deliberada.
Nas FM sugeridas, após presenciar um evento, transcorre-se um perío-
do de tempo no qual uma nova informação é apresentada como fazendo
parte do evento original, quando na realidade não faz. Essa informação
sugerida pode ou não ser apresentada deliberadamente com o intuito de
falsificar a memória. O efeito da falsa informação tende a produzir uma
redução das lembranças verdadeiras e um aumento das FM.36

5. DAS FALSAS MEMÓRIAS EM CRIANÇAS

Pessoas de todas as idades são passíveis de formarem falsas memó-


rias, sejam espontâneas, pela autossugestão, sejam sugeridas, pela incor-
poração de informações falsas externas. Kagueiama37 discorre acerca do
dissenso entre os estudiosos quanto à maior suscetibilidade de crianças
mais novas à formação de falsas memórias do que crianças mais velhas
ou adultos, concluindo que diante da inexistência de consenso entre os
estudiosos acerca dessa questão e em face dos óbices para realização
de pesquisas empíricas, consistentes nas dificuldades em se criar tarefas
com grau de compreensão suficiente para crianças novas, sem que o
sugestionamento seja muito óbvio para crianças mais velhas, “não há
como se afirmar categoricamente que as crianças sempre se apresentam
mais sugestionáveis que os adultos, nem que as suas memórias são, em

36 NEUFELD; BRUST; STEIN, op. cit., p. 21.


37 KAGUEIAMA, op. cit., p. 121-122.

219
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

todo e qualquer contexto, menos confiáveis”. A própria autora ressalva,


contudo, que:
Essa conclusão, porém, não afasta a possibilidade de as memórias
infantis estarem sujeitas a um impacto mais intenso de certos fatores
involuntários de contaminação. A imaginação fértil da criança e a me-
nor capacidade de monitoração da fonte, por exemplo, podem levá-la
a ter dificuldades em distinguir entre eventos presenciados ou mera-
mente imaginados.38
No mesmo sentido da ressalva feita por Kagueiama, o posiciona-
mento de Fernandes que, com base nos estudos de Loftus, pontua que
“Geralmente, crianças são mais suscetíveis à sugestionabilidade que
jovens adultos, que, por sua vez, são menos passíveis de produção de
falsas memórias que idosos”39.
A despeito dessa aparente suscetibilidade a falsas memórias,
as crianças, assim, como os adolescentes, conforme ressaltado no tópico 3
deste artigo, têm o direito de serem ouvidos, em todo processo judicial
ou administrativo que afete seus interesses. Assim, ao entrevistador in-
cumbe municiar-se de conhecimento acerca da memória de crianças e
de suas questões comportamentais, para que seus depoimentos sejam
tomados de forma satisfatória, viabilizando também uma melhor com-
preensão da prova testemunhal infantil.

6. CONCLUSÃO

Em processos administrativos disciplinares que tenham por impu-


tações ilícitos administrativos que também venham a consubstanciar
violações a direitos de crianças e adolescentes, estes devem ser ouvidos
durante a instrução probatória, seja como vítimas ou como testemu-
nhas, sempre com a observância dos princípios orientadores do Direito
da Criança e do Adolescente.
Especificamente nos processos administrativos disciplinares e sin-
dicâncias que têm origem no ambiente das escolas da rede estadual de

38 Ibidem, p. 122.
39 LOFTUS, 2005 apud FERNANDES, op. cit., p. 231.

220
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

ensino, alguns ilícitos administrativos, por sua natureza ou condição,


não deixam resquícios materiais, sendo a palavra da vítima ou das
testemunhas – normalmente crianças ou adolescentes – essencial para
o deslinde do feito.
Muito embora a prova testemunhal tenha importância ímpar no pro-
cesso administrativo disciplinar, não se pode ignorar sua fragilidade, ante a
falibilidade da memória humana e mais, ante a existência de fenômenos
que comprovadamente distorcem as lembranças, como as falsas memórias.
Apesar da suscetibilidade das crianças à formação de falsas
memórias – que pode ou não ser superior à suscetibilidade dos adultos –,
o testemunho infantil deve ocorrer nos processos administrativos disci-
plinares, seja por constituir direito da criança na hipótese de a demanda
afetar seus interesses, seja porque alguns ilícitos administrativos, por sua
natureza ou condição, não deixam resquícios materiais, sendo a prova
testemunhal infantil a única prova a ser produzida.
O conhecimento acerca da memória de crianças e de suas questões
comportamentais é essencial para a boa colheita da prova testemunhal
infantil e também para que lhes seja assegurado o respeito à sua con-
dição peculiar de pessoa em desenvolvimento, demonstrando, assim,
não apenas o destaque da Psicologia do Testemunho nesse panorama,
mas também a relevância da interdisciplinaridade enquanto método de
integração do Direito e da Psicologia.

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BRASIL. Lei nº 13.431 de 4 de abril de 2017. Estabelece o sistema de
garantia dos direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha
de violência e altera a lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da

221
KRISTINA YASSUKO IHA KIAN WANDALSEN

Criança e do Adolescente). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF,


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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 203-224, jan./jun. 2022

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mentado (arts. 1º a 393). 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
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ZAPATER, Maíra. Direito da criança e do adolescente. São Paulo:
Saraiva, 2019.

223
O ASSÉDIO SEXUAL COMO
INFRAÇÃO DISCIPLINAR

Margarete Gonçalves Pedroso1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – A violência contra a mulher como


fator determinante ao assédio sexual; 3 – O assédio sexual em sentido
amplo; 4 – Consequências físicas e psicológicas do assédio na vítima e
implicações para a administração pública; 5 – O assédio sexual como
crime; 6 – Outros tipos penais que tutelam a dignidade sexual; 7 – Assédio
sexual como infração disciplinar; 8 – A produção de prova no assédio e a
não revitimização; 9 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho trata da análise do assédio sexual


como violência de gênero, decorrente de um problema estrutural,
histórico e cultural, que alimenta a desigualdade entre homens e mulheres,
especificamente, quando praticado por agente público no exercício de
suas funções, e discute suas consequências no âmbito disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Assédio Sexual. Violência contra a Mulher. Infração


Disciplinar.

1. INTRODUÇÃO

Embora o assédio sexual praticado por agentes públicos, no ambiente


de trabalho, possa ser praticado contra homens, daremos ênfase,
neste trabalho, à violência contra a mulher, considerando-se os dados

1 Procuradora do estado de São Paulo, Especialista em Direito do Estado, Conselheira do Conselho


Estadual da Condição Feminina, Coordenadora do Núcleo de Acompanhamento Legislativo
da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo
(OAB/SP) e Membro da Primeira Turma Julgadora do Conselho de Prerrogativas da OAB/SP.

225
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

estatísticos disponíveis, explicitados ao longo do artigo, que apontam


números alarmantes e refletem a desigualdade de gênero existente.
Em se tratando de uma sociedade patriarcal que anseia a manuten-
ção de poder, a violência é utilizada como um mecanismo de controle
e, evidentemente, isso se reflete no âmbito laboral, o que impede que
as mulheres tenham maior ascensão, levando cada vez mais à impossi-
bilidade de crescimento econômico e profissional em comparação aos
homens; reflete-se, também, na prestação do serviço público, dificultando
mulheres e meninas a terem acesso aos órgãos estatais e interferindo no
acesso ao trabalho, à escola, à saúde e às políticas públicas de modo geral.
A discriminação de gênero tem dimensão social preocupante, o que
é reforçado pela discriminação racial. Nesse diapasão, o assédio sexual,
além de um mecanismo violento de dominação, também se configura,
em regra, como meio de manutenção dos privilégios masculinos.
Assédio pode ser definido etimologicamente como: “insistência imper-
tinente, em relação a alguém, com declarações, propostas, pretensões etc.”2
Em termos legais, o assédio sexual consiste numa manifestação
sexual, alheia à vontade da vítima, sem seu consentimento, que lhe cause
algum constrangimento, humilhação ou medo. Há, portanto, uma finali-
dade de cunho sexual para os atos de perseguição ou perturbação.
Ao falarmos do conceito jurídico explicitado, estamos compreen-
dendo o sentido amplo de assédio, que é mais aberto do que aquele
descrito na lei penal. Conforme veremos mais adiante, para o direito
penal, o assédio sexual é crime e apresenta um tipo bem específico que
restringe o conceito legal acima descrito apenas para os atos praticados
por superior hierárquico no ambiente de trabalho.
Assim, para fins deste artigo, usaremos o termo assédio sexual em
sentido amplo todas as vezes em que descrevermos a perturbação de
cunho sexual, sem consentimento e que causa constrangimento à vítima,
o que para o direito penal pode ser crime de assédio, importunação

2 ASSÉDIO. In: MICHAELIS: dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo:


Melhoramentos Ltda., 2022. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/ass%C3%A9dio/. Acesso em: 30 jun. 2022.

226
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

sexual, perseguição ou até mesmo irrelevante, mas que, para fins do


direito administrativo disciplinar, há repercussão sempre.
A questão do assédio sexual, em sentido amplo, é considerada hoje
mundialmente como uma pandemia, um comportamento silenciado,
escondido e não denunciado. Somente modificações legislativas (que em
muitas vezes foram historicamente imprescindíveis) não bastam, é urgente
e imprescindível que se dê visibilidade à questão por meio da educação,
informação e mudança de paradigmas culturalmente arraigados.
Na América Latina, o assédio tem sido um grande problema: o Peru
tornou-se um dos primeiros países na América Latina a aprovar, em 2015,
uma lei que prevê penas de 3 a 12 anos de prisão para quem cometer
assédio sexual em locais públicos. “No México, pesquisa constatou que
nos assédios sexuais as formas mais frequentes de violência foram os
comentários sexuais ofensivos (74%), toque sem consentimento (58%)
e o medo de sofrer assédio sexual (14%)”3.
Assim, muito embora o gênero da vítima não seja determinante
para a caracterização do assédio como crime ou infração disciplinar,
ou seja, possa ser praticado por qualquer pessoa e contra qualquer pes-
soa independentemente de gênero, pelos dados estatísticos, conforme já
dito, a imensa maioria das vítimas são mulheres.
Desse modo, para falarmos de assédio sexual é necessário contex-
tualizarmos a violência praticada contra as mulheres na sociedade e o
quanto isso reflete dentro do serviço público.

2. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER COMO FATOR DETERMINANTE


AO ASSÉDIO SEXUAL

Os números estatísticos da violência praticada contra a mulher no


Brasil demonstram que se trata de um problema social grave. A violência
demonstra-se como um elemento que cerceia a liberdade das mulheres e
das meninas, e representa uma forma de controle de poder.

3 PAES, Fabiana Dal’mas Rocha. Entenda as discussões sobre o feminismo nos cenários
nacional e internacional. Poder 360, Brasília, DF, 5 fev. 2018. Disponível em: https://www.
poder360.com.br/opiniao/entenda-as-discussoes-sobre-o-feminismo-no-cenario-nacional-e-
internacional/. Acesso em: 30 jun. 2022.

227
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

Diante disso, para entendermos a problemática do assédio sexual


praticado por agentes públicos, se faz imprescindível compreender a
dimensão da violência dentro da sociedade, as razões pelas quais são
historicamente naturalizadas e quais as soluções que podemos adotar
em termos sancionatórios e de políticas públicas.
Inicialmente é importante dizer que, embora a violência contra as
mulheres atinja indistintamente todas as pessoas do gênero feminino,
alguns recortes de classe, raça e aspectos geográficos fazem com que
algumas mulheres estejam mais expostas à violência do que outras.
Assim, a análise sobre a violência contra as mulheres que se pretende uni-
versal é excludente, porque as opressões atingem as mulheres de modos
diferentes, sendo necessário discutir gênero com um recorte de classe,
raça e etnia, bem como especificidades geográficas.
Nesse passo, dizer que a evolução legislativa, em termos de proteção
aos direitos das mulheres, por exemplo, atingiu todas as mulheres é uma
leviandade, é universalizar as mulheres e não as distinguir em suas parti-
cularidades de raça, etnia, classe ou localização geográfica.
Não há dúvidas de que vários avanços que estão previstos pela
legislação internacional e brasileira foram importantes, no entanto,
não chegaram a muitas mulheres, incluindo as latinas, negras e trans-
sexuais. Avanços não são iguais em todos os lugares, nem em todas as
raças, ou classes sociais, ou territórios.
Temos uma herança de 300 anos de escravidão, período em que as
mulheres negras eram estupradas pelos senhores como exercício de seu direito,
por isso, não é possível falarmos em direitos ou violência contra a mulher
sem fazermos uma relação com a colonização e o racismo, por exemplo4.
Djamila Ribeiro, em entrevista para o El País, pontuou que:
Todas as mulheres estão vulneráveis, suscetíveis à violência sexual.
Mas quando falamos da mulher negra, existe esse componente a mais
que é o racismo. Existe também a questão de ultra sensualizar a mulher

4 CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação negra na América Latina a partir


de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque. Pensamento feminista:
conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019. p. 324-333.

228
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

negra, colocá-la como objeto sexual, como lasciva […]. São tão de-
sumanizadas que até a violência contra elas de alguma forma se quer
justificar. Se eu luto contra o machismo, mas ignoro o racismo, eu estou
alimentando a mesma estrutura […].5
Desse modo, os “excluídos” e que se tornam os “desiguais”, dentro desse
contexto, são todos aqueles que fogem do padrão social relacionado à titu-
laridade do poder, ou seja, todos cujos corpos não têm seus espaços sociais
garantidos para o pleno exercício de seus direitos com liberdade. Conforme já
exposto, ao excluir grupos de pessoas ao acesso de direitos, alimenta-se
a desigualdade e mantém-se um sistema de privilégios. Assim, a mulher,
dentro dessa cadeia de privilégios e submetida aos marcadores de violência
nos espaços públicos e privados, sempre estará submetida a um processo de
desigualdade, por conseguinte, a mulher negra sofrerá mais.
Por isso tudo, para entender a desigualdade de gêneros e seus refle-
xos na violência contra a mulher, se faz necessário entender que houve
uma construção histórica da inferioridade das mulheres.
Na antiguidade clássica, as mulheres não tiveram acesso aos
mecanismos que transformaram a humanidade. No Egito antigo
(4.000 a. c.-476 d. c.), as mulheres não tinham acesso à escrita e ficaram
à margem na produção do conhecimento, tinham a única função de cons-
tituir família e podiam ser vendidas ou trocadas como objetos. Na Grécia
antiga, também não tinham acesso à educação, nem participavam do
debate político, ficando restritas exclusivamente ao ambiente doméstico.
O período medieval foi dominado pelo poder da Igreja Católica e as
mulheres sofreram perseguições e foram exterminadas pela Inquisição.
Silvia Chakian ressalta a crença de que a existência de feitiçaria estava
diretamente ligada à natureza feminina, de modo que as mulheres passaram a
ser vistas como perigosas, perversas e inimigas. A partir daí, deflagrou-se a era
de perseguição às mulheres, ou “caça às bruxas” que durou quatro séculos6.

5 RIBEIRO, Djamila. “É preciso discutir por que a mulher negra é a maior vítima de estupro
no Brasil”. [Entrevista cedida a] Marina Novaes. El País, São Paulo, 23 jul. 2016. Disponível
em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/07/14/politica/1468512046_029192.html. Acesso
em: 30 jun. 2022.
6 CHAKIAN, Silvia. A construção dos direitos das mulheres: histórico, limites e diretrizes
para uma proteção penal eficiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2019.

229
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

Desde gênesis, os livros cristãos remontam regras bem definitas para


as mulheres, como: submissão, castidade, silêncio e ignorância, e tudo
que contrariasse essas regras era visto como ameaça e justificava o justi-
çamento por meio de violência ou morte.
No século XIX, a inferioridade feminina foi caracterizada como
doença psíquica e todas as mulheres que subvertiam as regras sociais ou
morais a elas impostas, na época, eram tratadas como loucas e submeti-
das a tratamentos cruéis de “cura”.
Apenas com Freud, no início do século XX, que as mulheres pas-
saram a ser vistas como um sujeito psíquico e a sexualidade feminina
passou a ser estudada e normatizada.
Para Maira Zapater é:
[…] a partir da construção do modelo de dois sexos que as hierarquias
sociais se localizam no corpo e a capacidade de gerar vidas da mulher
passa a justificar a predisposição à domesticidade, assim a ordem di-
vina justificada pela predisposição genética justifica a assimetria entre
homens e mulheres. No modelo dos dois sexos, a mulher é o oposto do
perfeito, ou seja, do homem – racional – adequado ao novo pensamento
iluminista e pós iluminista.7
Ao observarmos todo contexto histórico, constatamos que as
mulheres eram objetificadas, úteis apenas para a reprodução humana
e permitidas a atuarem exclusivamente no campo privado da família.
Qualquer tipo de contestação ou insubordinação era vista ora como
ameaça, ora como doença, e a sexualidade feminina como algo perigoso,
proibido e ameaçador.
Após a segunda guerra mundial, a Organização das
Nações Unidas (ONU) elaborou a Declaração Universal dos Direitos
Humanos em 1948, reconhecendo sua universalidade e estabelecendo
um sistema universal de proteção desses direitos, constituindo um marco
no direito internacional de proteção à dignidade humana. Entretanto,

7 ZAPATER, Maíra Cardoso. A constituição do sujeito de direito “mulher” no direito


internacional dos direitos humanos. 2016. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 59-60.

230
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

não previu uma proteção específica para as mulheres, nem fixou diretri-
zes para minimizar a desigualdade entre os gêneros.
Os direitos das mulheres foram, pela primeira vez, expressamente
reconhecidos como direitos humanos na Conferência Mundial de
Direitos Humanos, em 1993. Antes, tivemos dois importantes instrumen-
tos jurídicos: a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher (em dezembro de 1979 e ratificada pelo
Brasil em fevereiro de 1984) e a Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a violência contra a mulher – Convenção de Belém do
Pará (em junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em novembro de 1995).
Até pouco tempo, os atos de violência contra as mulheres,
em particular a violência doméstica, sequer eram considerados como
violações aos direitos humanos, isso porque os direitos humanos eram
vistos apenas como tendentes a prevenir e coibir a violência exercida
pelo Estado contra os cidadãos.
A evolução histórica dos direitos das mulheres no Brasil chegou a
passos lentos. O direito ao voto feminino só foi conquistado em 1932.
Até 1962, as mulheres eram consideradas incapazes, o que significava,
entre outras coisas, a necessidade de autorização do marido para traba-
lhar, alienar bens e ter a guarda dos filhos. Somente em 1977, a mulher
brasileira pôde ter a opção de adotar ou não o nome do marido ao
contrair casamento. A igualdade de direitos entre homens e mulhe-
res somente foi legalmente reconhecida em 1988, com a promulgação
da atual Constituição Federal. E só tivemos uma lei específica tratando
de violência doméstica em 2006 (Lei Maria da Penha). O assédio sexual
praticado por superior hierárquico somente foi criminalizado em 2001
(Lei nº 10.224/2001) e a Importunação Sexual foi tipificada em 2008.
Fato incontroverso é que o exercício pleno de direitos nunca foi concedido
para todos. Homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, durante séculos foram
os titulares do poder e, portanto, durante toda a história, decidiram quais
corpos valem mais do que outros e quais espaços podem ocupar.
O sistema que sustenta a sociedade e garante o exercício do poder
é formado para garantir a manutenção de privilégios; nesta estrutura
patriarcal, branca e cisgênera, os espaços a serem ocupados não são igua-
litários e a violência sempre foi utilizada como um sistema de controle.

231
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

Para o Conselho Nacional de Justiça:


A violência sexual é, sem dúvida, algo que atenta à liberdade e à dig-
nidade do ser humano. Entretanto, essa visão é limitada e obscure-
ce o fato de que esse tipo de violência ocorre, antes de mais nada,
porque vivemos em uma sociedade patriarcal. Prova disso é o fato de
a grande maioria das vítimas desse tipo de violência serem meninas e
mulheres e a grande maioria dos perpetradores, homens. A violência
sexual – assim como todas as que compõem o espectro da violência
de gênero – é um sintoma de uma sociedade estruturalmente desigual.8
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública9, no Relatório
Anual sobre Violência de 2021, 37,9% das brasileiras sofreram algum tipo
de assédio sexual, o que significa 26,5 milhões de mulheres assediadas no
país. Somente no ano de 2021, 22,3 milhões de mulheres ouviram comentá-
rios desrespeitosos andando na rua, 8,9 milhões de mulheres receberam can-
tadas ou comentários desrespeitosos no ambiente de trabalho, 5,5 milhões
foram assediadas fisicamente no transporte público e 3,7 milhões foram
beijadas ou agarradas sem consentimento. Vivemos em um país em que uma
mulher é estuprada a cada oito minutos. Anualmente, em média, há 527 mil
casos de estupros (tentados ou consumados) no Brasil.
Em pesquisa reproduzida pela Agência Patrícia Galvão10, 53% das bra-
sileiras com idade entre 14 e 21 anos convivem diariamente com medo de
ser assediadas, 56% confirmaram assédio sexual por parte de professores,
estudantes e técnicos administrativos em instituições de ensino; 98% das
mulheres brasileiras já sofreram assédio em público e sentiram-se viola-
das por isso; 81% mudam a rotina de suas vidas por medo do assédio;
16% das mulheres relatam terem sido assediadas antes dos 10 anos de
idade; e 55% sofreram situações abusivas antes dos 18 anos.

8 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de


gênero 2021. Brasília, DF: CNJ, 2021a. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/
uploads/2021/10/protocolo-18-10-2021-final.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022, p. 31.
9 BRASIL. Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Relatório visível e invisível: a vitimização
de mulheres no Brasil. 3. ed. Brasília, DF: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021b.
Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/06/relatorio-
visivel-e-invisivel-3ed-2021-v3.pdf. Acesso em: 30 jun. 2022.
10 INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO. Assédio sexual. Dossiê Violência Sexual. São Paulo,
[2020]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-sexual/tipos-
de-violencia/assedio-sexual/. Acesso em: 30 jun. 2022.

232
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

A principal causa de morte violenta de mulheres no Brasil é a violên-


cia doméstica. O número de mortes violentas de mulheres negras aumen-
tou, em 10 anos, em 54%. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), uma em cada cinco estudantes, com idades
entre 13 e 17 anos, já sofreu violência sexual11.
No Brasil, a violência contra as mulheres ainda não comove,
é tratada (quando reconhecida) como um problema pontual e o agressor,
muitas vezes, é visto simplesmente como um doente. Não se reconhece a
violência como fruto de um problema estrutural, por isso que o máximo
que se chega é na exigência de punição do agressor e não na discussão
acerca das relações patriarcais que geram essa violência.

3. O ASSÉDIO SEXUAL EM SENTIDO AMPLO

Como já mencionado, vamos abordar a questão do assédio sexual


de modo amplo e não somente nos termos restritos da legislação penal.
Silvia Chakian explica que:
O assédio sexual acontece sempre que houver uma manifestação sexual ou
sensual não consentida pela pessoa a quem essa manifestação se destina.
Pode abranger cantadas grosseiras, ofensivas, ou situações em que há in-
tuito de intimidação e conotação sexual, podendo ou não haver contato
físico. Portanto, o assédio nunca se confunde com a paquera, por exemplo,
em que há uma relação mútua e uma intenção recíproca de aproximação.12

A Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio da


Convenção sobre a eliminação da violência e do Assédio no mundo do
Trabalho (Convenção nº 190)13, define Assédio Sexual no artigo 1º da
seguinte forma:

11 CRELIER, Cristiane. Uma em cada cinco estudantes já sofreu violência sexual. Agência IBGE
Notícias, Brasília, DF, 10 set. 2021. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/
agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/31579-uma-em-cada-cinco-estudantes-
ja-sofreu-violencia-sexual. Acesso em: 30 jun. 2022.
12 CHAKIAN, op. cit., p. 235.
13 A Convenção nº 190 foi adotada na Conferência Internacional da OIT em 21 de junho de
2019 e entrou em vigor em 25 de junho de 2021, já foi ratificada por dez países. O Brasil até
a conclusão deste artigo não a havia ratificado.

233
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

a) o termo “violência e assédio” no mundo do trabalho refere-se a um


conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou se suas ameaças,
de ocorrência única ou repetida, que visem, causem ou sejam susceptí-
veis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a
violência e o assédio com base no gênero;
b) o termo “violência e assédio no gênero” significa violência e assédio diri-
gido às pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, e inclui o assédio sexual.14
A dúvida que sempre vem à tona é sobre qual a diferenciação entre
assédio e paquera, ou seja, qual a diferença entre uma relação nor-
mal, consentida entre duas pessoas que se desejam e o que é violência.
Para melhor esclarecer, é importante termos em mente que a paquera
é sempre recíproca e consensual. O assédio é unilateral, invasivo.
Portanto, as diferenças principais são: o consentimento e o constran-
gimento. Vale ressaltar que o assédio não diz respeito à sedução, não é
sobre desejo. Assédio é sobre violência, sobre uso de poder, sobre medo.
O assédio sexual pode acontecer por atos explícitos ou velados,
pode ser insinuação, escritos, gestos, não é preciso haver contato físico.
A doutrina estabelece as seguintes espécies de assédio: chantagem ou
coação, e pode ser vertical ou horizontal15.
Assédio por chantagem, também conhecido como “quid pro quo”
(isto por aquilo), se sustenta na oferta de vantagens em troca de favores
sexuais ou de ameaças com prejuízos. Acontece por meio de chantagens,
insistências e importunação.
Assédio por coação, também chamado de assédio sexual ambiental,
ocorre quando o assediador busca criar condições de trabalho ruins,
abusivas ou ofensivas.
Assédio vertical é aquele praticado por superior hierárquico, valendo-se
da sua posição para constranger, intimidar, pressionar com o objetivo de
obter algum favorecimento sexual. É exatamente a descrição típica do crime
de assédio sexual (artigo 216A, do Código Penal) que veremos a seguir.

14 INTERNATIONAL LABOUR ORGANIZATION. C190: violence and harassment


convention, 2019 (no. 190). International Labour Organization, Geneva, 2019. Disponível
em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO::P12100_
ILO_CODE:C190. Acesso em: 30 jun. 2022, tradução nossa.
15 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Relatório V: acabar com a
violência e o assédio contra mulheres e homens no mundo do trabalho. Genebra: OIT, 2018.

234
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

Assédio horizontal acontece quando não há diferenças de posição


hierárquica entre assediador e assediado, como por exemplo, o assédio
praticado por um colega de trabalho que exerce a mesma função da vítima.
Do ponto de vista do Direito do Trabalho e do Direito Administrativo,
o assédio sexual horizontal pode ser reconhecido e gerar responsabilidade
para o assediador e para o empregador/Administração Pública, ainda que
por omissão, por não ter garantido um ambiente de trabalho saudável.
Todas as formas de Assédio Sexual são ilícitas e merecem sanção que
pode ser administrativa, cível ou criminal (por chantagem e horizontal).
Algumas condutas que podem indicar assédio sexual: chantagem
ou intimidação; propostas indesejadas de caráter sexual (“convites”);
olhares insinuantes, invasivos e persistentes; contatos físicos (toques, abraços,
beijos); questionamentos ofensivos sobre a vida privada, preferências e
práticas sexuais; compartilhamento de imagens ou vídeos íntimos do autor
ou da vítima; pedido de favores sexuais em troca de alguma vantagem
relacionada ou não com o cargo ou emprego; ameaças de perda da condi-
ção de trabalho ou serviço público ou de prejuízo; piadas ou comentários
de natureza sexual (sobre roupas, identidade de gênero, orientação sexual,
aspectos físicos); mensagens com conotação sexual através de e-mail, SMS,
WhatsApp, redes sociais, de modo público ou privado.
Embora seja condição para a ocorrência do assédio sexual a ausência
de consentimento da pessoa assediada, para fins do direito administrativo,
importante apontar que algumas relações por si só podem viciar, preju-
dicar o consentimento ou torná-lo impossível, mesmo ao tratar-se de
vítima maior de 14 anos e capaz (com consentimento válido). É o caso
da relação professor/aluno. Tais situações devem ser bem avaliadas de
acordo com as provas colhidas.
O artigo 15 do Estatuto da Criança e do Adolescente prevê
expressamente que “a criança e o adolescente têm direito à liberdade,
ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de
desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais”16,

16 BRASIL. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF,
p. 13563-13577, 16 jul. 1990, Art. 15.

235
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

esse direito consiste “ao respeito na inviolabilidade da integridade


física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo
a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores,
ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”17. Acrescenta, ainda,
no artigo 18, que “é dever de todos velar pela dignidade da criança e
do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”18. E que a criança
e o adolescente têm o direito de “ser educados sem o uso de tratamento
cruel ou degradante pela pessoa encarregada de educá-los”19.
Lembramos que ao professor é incumbida a tarefa de educar e
orientar, de modo que os alunos estão naturalmente em uma posição
subordinada e, por isso, mais vulneráveis.

4. CONSEQUÊNCIAS FÍSICAS E PSICOLÓGICAS DO ASSÉDIO NA


VÍTIMA E IMPLICAÇÕES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

O assédio gera na vítima um grande sofrimento, em alguns casos


provoca danos físicos e psicológicos incalculáveis, como alterações no
sono, palpitações, sentimento de vergonha, isolamento, irritabilidade,
redução da autoestima, hipertensão arterial, depressão, síndrome do
pânico, e reflexos na vida familiar, social e afetiva, por isso o assédio é
tratado como uma violência grave. Os reflexos na saúde da vítima de
assédio podem ocasionar incapacidade laborativa temporária ou perma-
nente ou até mesmo a morte (índices de suicídio).
Desse modo, para a Administração Pública há um prejuízo direto,
pois o ambiente em que existe assédio fica circundado de hostilidade,
desconfiança e desconforto, refletindo diretamente na produtividade,
não somente da vítima, mas de todos do setor, do que decorre aumento
de rotatividade de pessoal; elevação da possibilidade de erros e acidentes;
absenteísmo; aposentadoria prematura; licenças-médicas; aumento de
doenças profissionais e acidentes de trabalho; demissões; pagamento
de indenizações; e evasão escolar (no caso de assédio praticado em

17 Ibidem, Art. 17.


18 Ibidem, Art. 18.
19 Ibidem, Art. 18A.

236
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

escolas ou universidades). Todas essas consequências evidentemente


oneram a sociedade, tanto do ponto de vista orçamentário quanto pela
deficiência na prestação do serviço público.
Além disso, há a consequência para a Administração Pública que
pode afetar ou comprometer a confiança da sociedade em relação à sua
imagem e reputação.

5. O ASSÉDIO SEXUAL COMO CRIME

O crime de assédio sexual foi introduzido no Código Penal


(artigo 216-A) pela Lei nº 10.224/2001 e caracteriza-se por cons-
trangimentos e ameaças, com a finalidade de obter favores sexuais,
praticados por alguém de posição superior à vítima.
Assim, o artigo 216A do Código Penal dispõe:
Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favoreci-
mento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior
hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou
função. Pena de 1(um) a 2 (dois) anos de reclusão.20

Cezar Roberto Bitencourt afirma que:


Assediar sexualmente, sob o aspecto criminal, significa constranger al-
guém, com o fim especial de obter concessões sexuais, abusando de
sua condição de superioridade ou ascendência decorrentes de emprego,
cargo ou função. Destacam-se, fundamentalmente, quatro aspectos:
a) ação de constranger (constranger é sempre ilegal ou indevido);
b) especial fim (favores ou concessões libidinosas); c) existência de
uma relação de superioridade ou ascendência; d) abuso dessa relação e
posição privilegiada em relação à vítima.21

20 BRASIL. Lei nº 10.224 de 15 de maio de 2001. Altera o Decreto-lei nº 2.848, de 7 de


dezembro de 1940 – Código Penal, para dispor sobre o crime de assédio sexual e dá outras
providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 16 maio 2001a, art. 216A.
21 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial (arts. 213 1 311-A):
crimes contra a dignidade sexual até crimes contra a fé pública. 13. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2019. v.4, p. 132.

237
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

São requisitos do tipo penal: o dolo, a finalidade específica de


obtenção de vantagem sexual, a ausência de consentimento da vítima e
relação hierárquica entre autor e vítima.
Portanto, para a configuração de crime de assédio sexual é necessá-
rio que haja relação de trabalho e subordinação entre o assediador e a
pessoa assediada, ou seja, as relações entre a vítima e o agressor devem
decorrer do trabalho.
No Brasil, as mulheres ingressaram de maneira mais maciça no
mercado de trabalho apenas na década de 1970, sendo que a participa-
ção efetiva de mulheres em entidades sindicais apenas passou a existir
nos anos 198022. Esse contexto histórico particular apenas agravou a
situação de desigualdade que traz como consequência direta a despro-
porcionalidade salarial e a menor ocupação de cargos de chefia.
Como já vimos anteriormente, o assédio é definido como um
constrangimento com conotação sexual e no ambiente de trabalho,
como regra, o agente usa de sua posição hierarquicamente superior para
atingir os seus fins.
Para Angela Davis:
A existência generalizada do assédio sexual no trabalho nunca foi um
grande segredo. De fato, é precisamente no trabalho que as mulheres –
em especial quando não estão organizadas em sindicatos – são mais
vulneráveis. Por já terem estabelecido a dominação econômica sobre
suas subordinadas do sexo feminino, empregadores, gerentes e supervi-
sores podem tentar reafirmar sua autoridade em termos sexuais. O fato
de que as mulheres da classe trabalhadora são mais intensamente
exploradas do que os homens, contribui para sua vulnerabilidade ao
abuso sexual, enquanto a coerção sexual reforça, ao mesmo tempo,
sua vulnerabilidade à exploração econômica.23
Entretanto, embora para a caracterização do crime de assédio sexual
seja imprescindível a existência de hierarquia entre autor e vítima, isso não

22 GIULANI, Paola Cappellin. Os movimentos de trabalhadoras e a sociedade brasileira.


In: PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto,
1997. p. 640-669.
23 DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 201/202.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

significa que não exista assédio sexual, fora da definição dada pelo Direito
Penal. O assédio, para fins trabalhistas ou administrativos disciplinares,
não está apenas circunscrito às posições de chefia ou comando, é constitu-
ído por constrangimentos, incômodos, ameaças que constrangem a vítima
dentro ou fora (mas decorrente do labor) do seu ambiente de trabalho.
Para além das posições hierárquicas de chefe e subordinado,
a jurisprudência tem se posicionado no sentido de ser possível a confi-
guração do crime de assédio sexual, também na relação entre professor
e aluno, por estarem presentes as duas condições exigidas na norma
penal: hierarquia e ato praticado ser inerente ao exercício de emprego,
no caso o magistério.
Nesse diapasão, destaco a decisão proferida pelo Superior Tribunal
de Justiça:
Recurso especial. Assédio sexual. Art. 216-A, § 2º, do CP. Súmula
n. 7 do STJ. Não aplicação. Palavra da vítima. Harmonia com demais
provas. Relação professor-aluno. Incidência. Recurso especial conheci-
do e não provido.
1. Não se aplica o enunciado sumular n. 7 do STJ nas hipóteses em que
os fatos são devidamente delineados no voto condutor do acórdão recor-
rido e sobre eles não há controvérsia. Na espécie, o debate se resume à
aplicação jurídica do art. 216-A, § 2º, do CP aos casos de assédio sexual
por parte de professor contra aluna. 2. O depoimento de vítima de crime
sexual não se caracteriza como frágil, para comprovação do fato típico,
porquanto, de acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior,
a palavra da ofendida, nos delitos sexuais, comumente praticados às
ocultas, possui especial relevância, desde que esteja em consonância com
as demais provas que instruem o feito, situação que ocorreu nos autos.
3. Insere-se no tipo penal de assédio sexual a conduta de professor que,
em ambiente de sala de aula, aproxima-se de aluna e, com intuito de obter
vantagem ou favorecimento sexual, toca partes de seu corpo (barriga e
seios), por ser propósito do legislador penal punir aquele que se preva-
lece de sua autoridade moral e intelectual – dado que o docente natu-
ralmente suscita reverência e vulnerabilidade e, não raro, alcança auto-
ridade paternal – para auferir a vantagem de natureza sexual, pois o
vínculo de confiança e admiração criado entre aluno e mestre implica

239
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

inegável superioridade, capaz de alterar o ânimo da pessoa constran-


gida. 4. É patente a aludida “ascendência”, em virtude da “função”
desempenhada pelo recorrente – também elemento normativo do tipo –,
devido à atribuição que tem o professor de interferir diretamente na ava-
liação e no desempenho acadêmico do discente, contexto que lhe gera,
inclusive, o receio da reprovação. Logo, a “ascendência” constante do
tipo penal objeto deste recurso não deve se limitar à ideia de relação
empregatícia entre as partes. Interpretação teleológica que se dá ao texto
legal. 5. Recurso especial conhecido e não provido.24
Como acima explicitado, independentemente de ser fato típico nos
termos da legislação penal, no âmbito administrativo disciplinar o que
importa para a caracterização da infração é comprovação de conduta
reprovável, inaceitável e improba, consistente em ter o agente público,
no exercício do cargo, em ambiente escolar, feito uma manifestação
sexual não consentida contra discente.
Anota-se que, em qualquer hipótese, se houver a prática de violência
ou de grave ameaça com a consequente conjunção carnal, ou outro ato
libidinoso, haverá a configuração do crime de estupro25.

6. OUTROS TIPOS PENAIS QUE TUTELAM A DIGNIDADE SEXUAL

Como dissemos no início, ao tratarmos de assédio sexual em sen-


tido amplo praticado na Administração Pública, não estamos abordando
unicamente o tipo penal descrito no artigo 261A, vez que outros crimes
também podem ser praticados ao haver constrangimento de alguém com
o fim de obter favorecimento sexual.
Dessa forma, outras condutas tipificadas pela lei penal, por tam-
bém atingirem o bem jurídico da dignidade sexual, merecem ser tratadas
neste artigo.

24 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Recurso especial 1759135/SP.


Art. 216-A, § 2º do Código Penal. Recorrente: E A dos S. Recorrido: Ministério Público do
Estado de São Paulo Relator: Min. Sebastião Reis Júnior, 13 de agosto de 2019. Disponível
em: https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/859837568/recurso-especial-resp-1759135-
sp-2018-0168894-7/inteiro-teor-859837578. Acesso em: 1 jul. 2022, p. 1.
25 BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da
União: seção 1, Brasília, DF, p. 2391-2413, 31 dez. 1940, art. 213.

240
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

Para Bitencourt:
A liberdade sexual, entendida como a faculdade individual de escolher li-
vremente não apenas o parceiro ou parceira sexual, como também quando,
onde e como exercitá-la, constitui um bem jurídico autônomo, independente,
distinto da liberdade geral, com idoneidade para receber, autonomamente,
a proteção penal. No entanto, reconhecemos a importância de existir um
contexto valorativo de regras (não jurídicas) que discipline o comportamento
sexual nas relações interpessoais, pois estabelecerá os parâmetros de postura
e de liberdade de hábitos, como uma espécie de cultura comportamental,
que reconhece a autonomia da vontade para deliberar sobre o exercício da
liberdade sexual de cada um e de todos, livremente.
Pois é exatamente esse contexto valorativo de regras (normas não
jurídicas) que disciplina o comportamento sexual nas relações
interpessoais e estabelece os parâmetros de postura e de liberdade de
hábitos, como uma espécie de cultura comportamental, que reconhece
a autonomia da vontade para deliberar sobre o exercício da liberdade
sexual de cada um e de todos, livremente. É esse contexto normativo
cultural que estabelece os limites toleráveis de nosso comportamen-
to social sexual e nos recomenda respeitar a liberdade do outro,
que tem o direito de preservar a sua privacidade, liberdade e dignidade
sexuais, as quais, sendo desrespeitadas, transformam seus violadores
em verdadeiros infratores penais, devendo responder criminalmente
pela violação desses bens jurídicos sagrados e consagrados na própria
Constituição Federal. Por isso, sua violação constitui crime não apenas
contra a liberdade sexual – livre direito de escolha –, como também
contra a própria dignidade sexual, que é maior e mais abrangente, aliás,
tanto que abrange a própria dignidade humana.26
Assim, é o caso do crime de “stalking” ou perseguição, disposto
no artigo 147A do Código Penal (introduzido pela Lei nº 10.132/21),
que pune a conduta de quem perseguir alguém, reiteradamente e por
qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica,
restringindo-lhe a capacidade de locomoção, ou, de qualquer forma,
invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade.

26 BITENCOURT, op. cit., p. 53.

241
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

Se além da importunação, houver também a prática de ato libidinoso


com o objetivo de satisfação da libido, como beijo, passada de mão,
masturbação, poderá estar configurado o crime descrito no artigo 215A,
a Importunação Sexual.

7. ASSÉDIO SEXUAL COMO INFRAÇÃO DISCIPLINAR

Ainda são escassos os estudos acerca do assédio sexual na


Administração Pública, entretanto, é indiscutível a existência persistente
de condutas que caracterizam o assédio sexual perpetrado por agentes
públicos, primeiro porque a Administração Pública está inserida dentro
do contexto social e histórico exaustivamente descrito neste artigo,
e segundo, porque é nas instituições de Estado que as relações de poder
e hierarquia estão arraigadas.
Embora o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de
São Paulo (|Lei nº 10.261/1968) e a Consolidação das Leis do Trabalho
não abordem explicitamente, nem definam o assédio sexual, a conduta do
servidor público assediador pode e deve ser punida, pois afronta a morali-
dade da Administração Pública e viola vários deveres estabelecidos em lei.
A Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência
contra a Mulher que ingressou no ordenamento jurídico brasileiro por meio
do Decreto nº 1.973/1996, dispõe nos artigos 1 e 2, “c”, o que se entende
por violência contra a mulher: “[…] violência física, sexual e psicológica per-
petrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra”27.
O artigo 3 dispõe que “toda mulher tem direito a uma vida livre de violên-
cia, tanto na esfera pública como na esfera privada”28.
Prevê ainda expressamente no artigo 7 que:
Os Estados partes condenam todas as formas de violência contra a
mulher e convêm em adotar, por todos os meios apropriados e sem
demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência
e a empenhar-se em:

27 BRASIL. Decreto nº 1.973 de 1º de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana para


prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho
de 1994. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 14471-14472, 2 ago. 1996, art. 2.
28 Ibidem, art. 3.

242
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

a) abster-se de qualquer ato ou prática de violência contra a mulher e velar


para que as autoridades, seus funcionários e pessoal, bem como agentes
e instituições públicos ajam de conformidade com essa obrigação; […]29
O artigo 1º da Constituição Federal estabelece, como princípio
fundamental, a dignidade da pessoa humana e o seu artigo 37 dispõe,
expressamente, que a administração pública direta e indireta deverá
obedecer ao princípio da moralidade.
O Decreto Estadual nº 63.251/2018, no seu artigo 1º, determina que
o assédio sexual praticado pelo agente público do estado de São Paulo
deve ser punido com pena de demissão ou demissão por justa causa,
nos termos da Lei nº 10.261/1968 e da Consolidação das Leis do
Trabalho, nos seguintes termos:
Artigo 1º. O assédio sexual praticado pelo agente público que,
valendo-se de sua condição funcional, constrange alguém com intuito
de obter vantagem ou favorecimento sexual para si ou para outrem, po-
derá caracterizar procedimento irregular de natureza grave, passível de
punição com a pena de demissão, nos termos do artigo 256, inciso II,
da Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, ou justa causa para a
rescisão do contrato de trabalho, nos termos do artigo 482, alínea “b”,
da Consolidação das Leis do Trabalho.30
Como exposto anteriormente, para a configuração do assédio sexual,
no âmbito civil, trabalhista ou administrativo, não é necessária a existência
de relação hierárquica, podendo ser praticado por qualquer pessoa e contra
quem quer que seja, servidor, superior, subordinado, prestador terceirizado,
usuário do serviço público. Somente no âmbito penal a ascendência entre
autor e vítima, na relação de laboral, é imprescindível.
O assédio sexual não tem uma descrição específica na legislação
trabalhista ou administrativa sancionadora, mas conforme vimos,
o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo

29 Ibidem, art. 7.
30 SÃO PAULO. Decreto nº 63.251 de 8 de março de 2018. Disciplina a instauração e
o processamento de apuração preliminar na hipótese de assédio sexual praticado por
agente público no âmbito da Administração Pública Estadual. Diário Oficial do Estado de
São Paulo: seção 1, São Paulo, p. 1, 9 mar. 2018, art. 1º.

243
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

(Lei nº 10.261/1968) descreve no artigo 241, inc. VI, inc. XII, inc. XIII
e inc. XIV e art. 256, inc. II, condutas que perfeitamente se encaixam
como prática de assédio no serviço público.
O artigo 241 determina quais são os deveres dos servidores estatuais
estatutários, que entre outros, constam: tratar com urbanidade os colegas
de trabalho e as partes (inciso VI), cooperar e manter um ambiente solidário
no trabalho (artigo XII), estar em dia com leis, regulamentos, regimentos,
instruções e ordens de serviço (inciso XIII) e proceder na vida pública e privada
de modo que dignifique a função pública (inciso XIV), bem como preservação
da moralidade administrativa. Também constitui como procedimento irregular
de natureza grave (artigo 256, inc. I), estando sujeito à pena de demissão.
No caso de empregado público, submetido às normas da
Consolidação das Leis do Trabalho, o assédio sexual constitui-se causa
para a justa causa nos termos do artigo 482, inciso b, pois configura
incontinência de conduta.
No que tange à tipificação do ato como causa para a rescisão do
contrato de trabalho por justa causa, destacamos os seguintes julgados:
Assédio sexual. Tipificação como incontinência de conduta. Requisi-
tos. O assédio grosseiro, rude e desrespeitoso, concretizado em pala-
vras ou gestos agressivos, já fere a civilidade mínima que o homem
deve à mulher, principalmente em ambientes sociais de dinâmica ro-
tineira e obrigatória. É que nesses ambientes (trabalho, clube, etc.),
o constrangimento moral provocado é maior, por não poder a vítima
desvencilhar-se definitivamente do agressor.31
Constitui justa causa o assédio entre colegas de trabalho, quando a um
deles causa constrangimento, é repelido, descambando o outro para a
vulgaridade e ameaças, em típica má conduta.32

31 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 3ª REGIÃO apud LIPPMANN, Ernesto.


Advogado discute valor de indenização por assédio sexual após nova lei. Consultor Jurídico,
São Paulo, 20 maio 2001. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2001-mai-20/fica_
punicao_assedio_sexual_lei_10224?pagina=3. Acesso em: 1 jul. 2022.
32 TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO 5ª REGIÃO apud LIPPMANN, Ernesto.
Advogado discute valor de indenização por assédio sexual após nova lei. Consultor Jurídico,
São Paulo, 20 maio 2001. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2001-mai-20/fica_
punicao_assedio_sexual_lei_10224?pagina=3. Acesso em: 1 jul. 2022, grifo do autor.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

Para a doutrina trabalhista, o assédio sexual define-se como:


A conduta de importunação maliciosa e reiterada, explícita ou não,
com interesse e conotações libidinosos, de uma pessoa física em relação
a outra. Trata-se de uma ofensa de natureza essencialmente emocional,
psicológica, embora podendo ostentar também dimensão física.
A relevância do assunto desde a Constituição de 1988 fez esta situação
de dano moral transbordar do acanhado conceito de incontinência de
conduta (infração do trabalhador: art. 482, “b”, ab initio, CLT) ou do
tipo jurídico também indicado pelo art. 483, “e”, da CLT (infração
empresarial: “ato lesivo à honra e boa fama”). Embora, é claro,
o fato ou a conduta que denotem assédio sexual possam ser enqua-
drados nesses dispositivos, para os fins jurídicos previstos pela CLT,
sua caracterização é, efetivamente, ainda mais ampla.33
Ressalte-se que, nos termos da legislação trabalhista, o empregador
deve adotar posturas para evitar constrangimentos e violência no
ambiente de trabalho, pois é sua obrigação “cumprir e fazer cumprir as
normas de segurança e medicina do trabalho”34.
No âmbito da Administração Pública, portanto, o assédio sexual pode
ser considerado tanto crime, quanto infração disciplinar, sendo que a apu-
ração dos fatos é dever e não faculdade35. A autoridade administrativa que
tem ciência de uma situação de assédio deve adotar as medidas legais para
sua apuração, mesmo sem autorização da vítima. O assédio é um mal para
a toda a Administração e atenta contra a moralidade e o interesse público.
Dadas as peculiaridades da infração disciplinar, a autoridade admi-
nistrativa que tem ciência de uma situação de assédio deve providenciar
as seguintes medidas legais para sua apuração: instauração de apura-
ção preliminar, sigilo e prioridade de tramitação, acolhimento da vítima,
cuidado com a escuta tanto da vítima como das testemunhas e, se necessário,

33 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 2017,
p. 1394.
34 BRASIL. Consolidação das leis do trabalho – CLT e normas correlatas. Brasília, DF: Senado
Federal, 2017, p. 35, art. 157, inc. I.
35 SÃO PAULO. Lei nº 10.261 de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1,
São Paulo, p. 2-8, 29 out. 1968, art. 264.

245
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

deve determinar o afastamento preventivo do servidor (prazo máximo de


180 dias prorrogáveis)36. Se a conduta também for crime, a autoridade
deve providenciar para que se instaure, simultaneamente, o inquérito poli-
cial, nos termos do artigo 302 da Lei nº 10.261/1968.
É importante anotar que, para a tipificação criminal, é necessá-
rio o enquadramento estrito dos termos elencados na norma penal,
a chamada tipificação, que nem sempre é a mesma para a configuração
do ilícito administrativo e que nos termos do artigo 250, parágrafo 1º,
da Lei nº 10.261/68, a responsabilidade administrativa é independente
da civil e criminal.
No campo disciplinar, o agente público que praticar assédio sexual
em razão de seu cargo, emprego ou função, mesmo que fora do seu local
de trabalho, poderá estar sujeito, conforme a natureza do seu cargo,
às penas de demissão37, cassação de aposentadoria38, dispensa39 ou
demissão por justa causa – no caso de empregado público40.
Frise-se novamente que, se além do assédio, houver a prática
de ato libidinoso ou conjunção carnal, mediante violência ou grave
ameaça, estaremos diante do crime de estupro41, que, em razão de ser
crime hediondo, para o direito administrativo disciplinar, implicará na
demissão a bem do serviço público42 ou dispensa agravada43.

8. A PRODUÇÃO DE PROVA NO ASSÉDIO E A NÃO REVITIMIZAÇÃO

No que tange à instrução do processo disciplinar, nos casos de assé-


dio, há uma grande dificuldade na produção das provas, pois os atos

36 Ibidem, art. 266, inc. I.


37 Ibidem, art. 256, inc.II.
38 Ibidem, art. 259, inc. I.
39 SÃO PAULO. Lei nº 550 de 13 de novembro de 1974. Institui o regime jurídico dos servidores
admitidos em caráter temporário e dá providências correlatas. Diário Oficial do Estado de
São Paulo: seção 1, São Paulo, p. 3-4, 14 nov. 1974, artigo 35, inc. IV.
40 BRASIL, 2017, p. 80, art. 482, “b”.
41 Idem, 1940, art. 213.
42 SÃO PAULO, 1968, art. 257, inc. XI.
43 Idem, 1974, art. 35, § 1º.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

normalmente são praticados de maneira privada, ardilosa, escondida,


sem a presença de testemunhas.
Pode-se provar o assédio sexual por todos os meios de provas em
direito admitidos, notadamente por meio de bilhetes, cartas, mensagens
eletrônicas, áudios, vídeos, ligações telefônicas, mensagens ou postagens
em redes sociais, testemunhas.
Ressaltamos que, nos processos disciplinares em que se apura a
ocorrência de assédio sexual, assim como ocorre nos processos criminais
envolvendo crimes sexuais, a palavra da vítima é de extrema importância e
deve ser ouvida e valorada, isso porque em situações de assédio ou outras
infrações contra a dignidade sexual, dificilmente o agente pratica os atos
na presença de testemunhas ou de modo a ser publicamente notado.
Nesse sentido têm se firmado a Jurisprudência:
A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que, em crimes
de natureza sexual, à palavra da vítima deve ser atribuído especial va-
lor probatório, quando coerente e verossímil, pois, em sua maior parte,
são cometidos de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestí-
gios. Nessa linha, sendo a mãe, representante da ofendida, não há qualquer
ilegalidade em seu depoimento, mesmo sendo ela a assistente da acusação.
Prosseguindo, conforme consignado pela Corte de origem, no processo
penal, não há vedação legal para a oitiva da vítima ou sua representante
legal, quando figuram como Assistentes de Acusação, podendo suas decla-
rações serem valoradas para formação do livre convencimento motivado
do Magistrado, em busca da verdade real, tanto que a jurisprudência é
remansosa em admitir o depoimento da vítima e de seus parentes como
meio de prova, pois, caso contrário todos os crimes praticados na clandes-
tinidade (sem testemunhas presenciais), ficariam impunes, mormente em
relação aos cometidos contra a dignidade sexual, como no caso.44
Nos crimes contra os costumes a palavra da vítima assume preponderan-
te importância, se coerente e em consonância com as demais provas co-
ligidas nos autos, como é o caso da hipótese vertente, em que a ofendida

44 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo Regimental no Agravo em Recurso
Especial 1594445/SP. Agravante: I dos S. Agravado: Ministério Público do Estado de
São Paulo; Agravado: I C F dos S (menor). Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca,
6 de fevereiro de 2020. Diário da Justiça eletrônico, 14 fev. 2020.

247
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

expôs os fatos em conformidade com os demais elementos provatórios.45


Assédio Sexual – Prova – Exigir-se a prova cabal e ocular para vislumbrar
o assédio sexual é simplesmente impossibilitar a prova em Juízo, e assim
contribuir para que ilicitude de tanta gravidade continue ocorrendo.46
Outro ponto importante a ser tratado é a respeito do método de
colheita de provas. É sabido que o número de subnotificações de casos
em que se tem como objeto infrações que atentem contra a dignidade
sexual se dá, principalmente, pelo medo da vítima em ser julgada ou
revitimizada no curso do processo.
Diante disto, o processo não pode ser mais um instrumento para a
violência de gênero e não deve ser usado para violentar mais uma vez,
revimitizando a pessoa que sofreu o assédio.
Ressaltamos que a tentativa de culpabilizar a vítima de assédio,
por exemplo, com insinuações ou perguntas acerca da roupa que usava,
do comportamento, do estado civil ou orientação sexual não são condizen-
tes ao exercício ético que deve nortear a autoridade apuradora e a defesa.
É indiscutível que a garantia da ampla defesa está assegurada pela
Constituição Federal e inserida no rol das garantias fundamentais,
nos termos do artigo 5º, inciso XXXVIII, entretanto, o uso de argumen-
tos ofensivos é uma estratégia no mínimo cruel e atentatória a outras
garantias fundamentais que também são asseguradas constitucional-
mente: a dignidade da pessoa humana, o direito à não discriminação e o
direito à igualdade.
Fábio Medina Osório, ao citar Georges Dellis, enfatiza que:
O direito de defesa não significa um direito radical e absoluto a proteção
de interesses ilegítimos, ou um direito que se possa exercer sem limites
temporais, racionais, legais ou judiciais. Não se trata de um direito

45 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (5. Turma). Agravo Regimental no Agravo em Recurso
Especial 727704/PR. Relator: Ministro Jorge Mussi 7 de junho de 2016. Diário da Justiça
eletrônico, 13 jun. 2016.
46 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho 2ª Região (10. Turma). Recurso Ordinário
20000383150/SP. Recorrente: MBR comércio de calçados LTDA. Recorrido: Darlene
Barbosa Vieira. Relatora: Juíza Vera Marta Publio Dias, 14 de agosto de 2001. TRT-2,
31 ago. 2001b.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

supremo, superior a todos os demais direitos envolvidos em um litígio


de ordem administrativa.47
O Conselho Nacional de Justiça, por meio do Protocolo para
Julgamento com Perspectiva de Gênero traçou importantes diretrizes
para a instrução processual com perspectiva de gênero:
Em casos que envolvem desigualdades estruturais, a audiência é um
ponto nevrálgico, na medida em que, se não conduzida com perspec-
tiva de gênero, pode se tornar um ambiente de violência institucional
de gênero […]. A situação de subordinação de um grupo pode gerar
um sentimento de desconfiança por parte de autoridades públicas
que, muitas vezes, ocupam posições sociais diferentes das vítimas e,
por conta disso, têm maior dificuldade de se colocar no lugar daquela
pessoa que tem experiências de vida diferentes das suas. Em vista dessa
situação, o(a) julgador(a) atento(a) a gênero é aquele(a) que percebe
dinâmicas que são fruto e reprodutoras de desigualdades estruturais
presentes na instrução do processo e que age ativamente para barrá-las.
Assim como no caso das audiências, provas periciais devem ser pro-
duzidas com atenção a desigualdades estruturais que possam ter um
papel na demanda. É imprescindível que peritos(as) e outros atores
(assistentes sociais, policiais) sejam capacitados(as) para perceber essa
situação e tentar neutralizá-la. Isso significa dizer que, para além de
conhecimentos específicos, o gênero deve ser utilizado como lente para
a leitura dos acontecimentos, em todas as etapas da instrução. O papel
de juízes(as), nesse contexto, é o de circunscrever quesitos que tracem
as motivações decorrentes dos processos interseccionais de opressão,
como raça e orientação sexual. Ademais, a atenção ao gênero demanda
uma postura ativa dos(as) julgadores(as) quando da análise de laudos
técnicos. As ciências podem ser tão enviesadas quanto o direito e isso é
algo que, em muitos casos, passa desapercebido.
A questão-chave nesse ponto é: a instrução processual está reproduzindo
violências institucionais de gênero? A instrução está permitindo um
ambiente propício para a produção de provas com qualidade?

47 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 7. ed. São Paulo: Thomson
Reuters Brasil, 2020, p. 269.

249
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

Subquestões incluem, por exemplo:


• Perguntas estão reproduzindo estereótipos de gênero? (ex.: questio-
nam qualidade da maternidade ou o comportamento da mulher a par-
tir de papéis socialmente atribuídos?
• Perguntas estão desqualificando a palavra da depoente de alguma
maneira? (ex.: questionam os sentimentos da depoente com relação à
atual esposa de seu ex-marido ou qualquer ressentimento que possa
existir entre as partes?).
• Perguntas podem estar causando algum tipo de revitimização? (ex.:
perguntas que exponham a intimidade da vítima, perguntas que façam
a mulher revisitar situações traumáticas).
• O ambiente proporciona algum impedimento para que a depoente se ma-
nifeste sem constrangimentos e em situação de conforto? (ex.: a depoente
encontra-se cercada por homens? O acusado encontra-se na sala?).
• A depoente está sofrendo algum tipo de interrupção ou pressão que a
impeça de desenvolver seu raciocínio?
• Laudos de caráter técnico-científico ou social podem estar impregna-
dos de estereótipos, dando excessiva importância para pontos que só
importam por conta de desigualdades estruturais ou então deixando de
fora questões que só são percebidas quando há atenção a dinâmicas de
desigualdades estruturais?48
Neste contexto, o Código de Processo Penal, em seu artigo 400A,
cuja redação foi alterada pela Lei nº 14.245/2021, dispõe que:
Art. 400-A. Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial,
nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e
demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela inte-
gridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização
civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento
do disposto neste artigo, vedadas:
I – a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos
objeto de apuração nos autos;

48 BRASIL, 2021a, p. 47-48, grifos do autor.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

II – a utilização de linguagem, de informações ou de material que


ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.49
Embora as normas disciplinares sejam omissas a respeito do
tema, entendemos que em uma interpretação sistemática e conforme a
Constituição Federal, não é possível admitir que durante a produção de
provas, ocorram ofensas à dignidade humana e a autoridade administra-
tiva deve atuar para coibir condutas desse tipo.
A tentativa de produção de provas baseada em uma avaliação mora-
lista ou ideológica, nada mais é do que a reafirmação da desigualdade
entre os gêneros que impera na sociedade patriarcal e que tenta justificar
violências cotidianas, ou desacreditar denúncias e que afetam tão-somente
as mulheres. O foco da prova, articulada pela defesa ou pela autoridade,
baseado em argumentos morais e de gênero que impõe uma avaliação
crítica ao comportamento ou condutas privadas de uma vítima, normal-
mente acontece pelo simples motivo de ela ser do sexo feminino, o que
provavelmente não aconteceria com uma vítima do sexo masculino.
Segundo a professora Silvia Pimentel:
Estereótipos, preconceitos e discriminações contra homens tanto quanto
em relação às mulheres interferem negativamente na realização da Justiça.
Entretanto, há evidências de que o impacto negativo desse tipo de viés re-
cai de maneira mais intensa e frequente sobre as mulheres. Estereótipos,
preconceitos e discriminações de gênero estão presentes na nossa cultura e
profundamente indultados nas (in) consciências dos indivíduos; são, portanto,
absorvidos também pelos operadores do direito e refletidos em sua práxis
jurídica. Essa absorção, por vezes, implica em uma verdadeira “inversão
de atores” nos processos, vale dizer, através dos discursos proferidos pelos
operadores do Direito, vítimas transformam-se em réus e vice-versa.50

Silvia Chakian, por sua vez, nos ensina que:


Não se pode perder de vista a necessidade de avanço na mudança

49 BRASIL. Decreto-lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário


Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 19699, 13 out. 1941, art. 400-A.
50 PIMENTEL, Silvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro:
crime ou “cortesia”? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1998, p. 203.

251
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

de posturas sobre a forma como a sexualidade feminina é julgada,


a partir de uma dupla moral, para homens e mulheres, na qual delas
se espera, ainda hoje, o papel de recato, do comportamento sexual
“adequado”, discreto e tradicional. Afinal, são essas expectativas sobre
o comportamento feminino “adequado”, sedimentadas ao longo de
séculos de dominação masculina, que têm autorizado a absurda res-
ponsabilização da mulher pela própria violência que a vitimou, como se
tivesse contribuído para sua ocorrência, ao mesmo tempo em que tem a
vida exposta e devastada […].51
Inadmissíveis, portanto, as narrativas ou provas, no bojo do
processo disciplinar, que reforçam estereótipos morais e de gênero,
que revitimizem a vítima de assédio sexual ou de qualquer outro ato
atentatório à dignidade sexual, sob pena de se constituir em nova
violência de gênero, travestida de violência processual.

9. CONCLUSÃO

É preciso estabelecer um debate sério na sociedade e na Administração


Pública sobre o assédio, não apenas para apreciarmos estatísticas ou
números. Precisamos estabelecer uma profunda discussão a respeito
da violência estrutural que sustenta a sociedade patriarcal e que não
enxerga a mulher como sujeito.
Combater o assédio sexual dentro do serviço público faz parte da
luta por igualdade de gênero, pois é por meio do trabalho e do acesso às
políticas públicas que se garantem condições para a ocupação de impor-
tantes espaços na sociedade.
Dessa forma, somente teremos uma sociedade igualitária quando
promovermos efetivamente o combate à violência de gênero, de raça
e de classe, isso porque o acesso à cidadania de grupos minoritários,
como é o caso das mulheres, depende de condições isonômicas de acesso
ao trabalho, à educação, ao espaço público e ao poder.
Embora ainda não se tenha uma lei específica, no direito administra-
tivo ou no direito do trabalho, que defina o assédio sexual, ele já pode ser

51 CHAKIAN, op. cit., p. 255.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

tipificado como crime, conforme explanado neste artigo, mas também como
infração disciplinar, já que se constitui como ofensa aos deveres funcionais.
Por outro lado, entendemos que é necessária a adoção de medidas
não somente para apurar e tornar possível a punição de assediadores,
pois, como vimos, trata-se de um fenômeno estrutural, que não será
modificado apenas por soluções punitivistas, é preciso mais.
Entendemos que o Estado deva atuar, também, no aperfeiçoamento
das políticas públicas que garantam a educação, a informação aos
agentes públicos e a prevenção do assédio sexual no serviço público,
bem como na criação de estruturas de acolhimento que assegurem que as
mulheres/vítimas tenham acesso a canais de denúncia e, posteriormente,
encontrem pontos de apoio em seus locais de trabalho, de estudo ou de
atendimento ao cidadão.
Em suma, a prevenção e o combate ao assédio sexual devem ser um
compromisso da Administração Pública, pois é o modo de atingirmos
a igualdade de direitos entre homens e mulheres e, consequentemente,
construirmos uma sociedade mais justa.

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253
MARGARETE GONÇALVES PEDROSO

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 225-258, jan./jun. 2022

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257
REPERCUSSÕES DA NOVA LEI DE
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
NOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS
DISCIPLINARES: ANÁLISE DOUTRINÁRIA
E DAS JURISPRUDÊNCIAS
ADMINISTRATIVA E PRETORIANA

Melissa Di Lascio Sampaio1

Suzane Ramos Rosa Esteves2

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Principais alterações introduzidas pela


nova Lei de Improbidade Administrativa; 3 – O princípio da retroatividade
benéfica e a jurisprudência administrativa da Procuradoria-Geral do Estado
de São Paulo; 4 – A atual tendência jurisprudencial do Superior Tribunal
de Justiça acerca do princípio da retroatividade das normas cíveis mais
benéficas; 5 – Em caso de revisitação da jurisprudência administrativa,
quais seriam o instrumento procedimental e o recorte temporal adequados
para a aplicação do princípio da retroatividade benéfica aos processos
administrativos disciplinares?; 6 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: No presente artigo, pretende-se analisar os efeitos retroativos


da Lei Federal nº 14.230/2021, que alterou a Lei de Improbidade

1 Procuradora do estado, em exercício na Assessoria Jurídica do Gabinete do procurador-geral do


estado. Especialista em Direito Constitucional pela Escola Superior de Direito Constitucional.
Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado
de São Paulo. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo.
2 Procuradora do estado em exercício na Assessoria Jurídica do Gabinete do procurador-geral
do estado. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria-
Geral do Estado de São Paulo.

259
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

Administrativa (LIA), em relação aos processos administrativos


disciplinares. Nesse sentido, analisam-se a jurisprudência administrativa
da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo e o atual posicionamento
do Superior Tribunal de Justiça, em cotejo com a literatura jurídica.
Em seguida, passa-se a examinar, em caso de revisitação da jurisprudência
administrativa a respeito da aplicabilidade do princípio constitucional
da retroatividade benéfica, se haveria instrumento legal adequado e qual
seria o recorte temporal para revisão de penalidades administrativas
fundamentadas em ato definido em lei como improbidade.

PALAVRAS-CHAVE: Alteração da Lei de Improbidade Administrativa.


Lei Federal nº 14.230/2021. Processos Administrativos Disciplinares.
Princípio da retroatividade benéfica. Jurisprudência administrativa
e pretoriana. Instrumento processual e prazo legal.

1. INTRODUÇÃO

O ano de 2021 foi marcado por uma intensa produção legislativa


que, sem dúvida, tem provocando fortes impactos na atuação
da Procuradoria-Geral do Estado e, em especial, no âmbito da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares. Nesse contexto, tivemos
a alteração do Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo,
por meio da Lei Complementar estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021,
que trouxe importantes inovações na parte disciplinar, principalmente
introduzindo instrumentos de justiça restaurativa. Já no plano federal,
contamos com mudanças na Lei de Improbidade Administrativa, promo-
vidas pela Lei federal nº 14.230, de 25 de outubro de 2021.
Em especial no que se refere à improbidade administrativa, o Estatuto
estadual tem importante janela, por meio da qual as alterações da referida
Lei federal alcançam os processos disciplinares em que se apuram a prática
de ato definido em lei como de improbidade (artigo 257, inciso XIII,
da Lei estadual nº 10.261/1968).
A questão que se apresenta é entender em qual medida será possível
o alcance das disposições benéficas das alterações da Lei de Improbidade
Administrativa aos processos disciplinares. Discutem-se, na doutrina e na

260
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

jurisprudência, duas correntes principais: a restritiva e a expansiva quanto à


aplicabilidade ao direito sancionador do princípio constitucional da retroa-
tividade benéfica da lei penal (artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal).
O tema está em debate no Supremo Tribunal Federal, tendo sido
reconhecida a Repercussão Geral, sob o tema nº 1.199.
No âmbito da jurisprudência administrativa da Procuradoria-
Geral do Estado, por ora, temos nos manifestado, em precedentes que
serão analisados neste artigo, pela inaplicabilidade do princípio penal
da retroatividade benéfica na esfera disciplinar. Entretanto é oportuno
destacar que a questão ainda não foi objeto de análise sob o enfoque das
alterações da Lei de Improbidade Administrativa.
Por fim, cabe também a discussão, caso aplicável o princípio da retroatividade
benéfica aos processos administrativos disciplinares – a depender do julga-
mento do Supremo Tribunal Federal e de eventual revisitação da matéria pela
Procuradoria Administrativa – a respeito da extensão de sua incidência.

2. PRINCIPAIS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS PELA NOVA LEI DE


IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Historicamente, a Lei nº 8.429/1992, em sua redação original,


representou importante marco no combate à corrupção. Na ocasião,
por não haver instrumentos processuais semelhantes em nosso ordenamento
jurídico, o legislador optou pela utilização de tipos abertos e não taxativos,
conferindo aos órgãos de persecução (legitimados à propositura da ação
de improbidade) e ao Poder Judiciário ampla margem no enquadramento
das condutas dos agentes públicos nos tipos previstos nos artigos 9º, 10 e 11
da Lei de Improbidade Administrativa.
No decorrer dos anos, entretanto, restou demonstrado que o quadro
legal viabilizou a imputação a agentes públicos pela prática de atos que,
a princípio, não poderiam ser considerados como de improbidade admi-
nistrativa, por carecerem de má-fé qualificada, provocando, como con-
sequência, o “apagão das canetas”, consoante abordado por Carlos Ari
Sundfeld e Ricardo Alberto Kanayama:
A Lei de Improbidade Administrativa (LIA – Lei n° 8.429/1992) foi ela-
borada como resposta a antigos problemas na gestão pública brasilei-

261
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

ra. Quando seu projeto foi encaminhado ao Congresso pelo Presidente


da República da época, foi justificado como um “marco do processo
de modernização do país” e como medida indispensável para conter
“a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com
os dinheiros públicos”.
[…]
Diante da inadequação, para esse fim, de antigos instrumentos de controle
da gestão pública (ação popular, ação penal, ação de responsabilidade
e punição do enriquecimento ilícito da Lei n° 3.502/1958) uma das
estratégias da nova Lei foi optar por tipos muito abertos, vagos
e abrangentes, “um tipo de técnica legislativa [que] vê a Administra-
ção Pública e seus gestores com grande desconfiança, defendendo como
ideais medidas que importem a máxima ampliação de seus riscos”.
[…]
Na expectativa de virar o jogo na luta contra a corrupção e a má gestão,
a LIA confere grande discricionariedade a quem acusa e a quem julga,
confiando que as características institucionais do Ministério Público e do
Judiciário, liberados de amarras legais muito cerradas quanto à tipificação
de infrações e à imposição de sanções, serão suficientes para garantir
a consistência dessa luta. Não são desprezíveis os riscos assumidos
por esse modelo normativo. O perigo é as facilidades da lei – que orienta
pouco a propositura e o julgamento das ações de improbidade – abrirem
caminho para práticas inspiradas em idealizações, intuições, desconfianças
de princípio contra a gestão política e a política, razões midiáticas, per-
sonalismo, reações imprudentes, inércia, etc. Resultado desses desvios
são a perda de foco da ação punitiva estatal e o desperdício: Ministério
Público e Justiça passam a se empenhar no aumento do número de ações
e de condenações judiciais, sem muito aprofundamento quanto aos casos
concretos e sem medir o efeito real de todo esse esforço sobre o ambiente
político. O efeito pode ser ruim: inseguros diante do risco de se tornarem
alvo de ações de improbidade com resultados imprevisíveis e dispondo de
estruturas públicas frágeis, os agentes administrativos se intimidam, pas-
sam a priorizar sua segurança pessoal e, com frequência, cruzam os braços
(o famoso “apagão das canetas”). Os números são fortes: entre 2010
e 2015, impressionantes 27% do orçamento dos municípios do estado

262
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

de São Paulo ficaram sem execução. Ao longo do tempo, os prefeitos


municipais se tornaram os principais alvos, de modo que as ações
de improbidade podem ter a ver com a paralisia administrativa.3
Diante desse cenário, houve certo consenso de que havia chegado
a hora de uma alteração substancial na Lei de Improbidade Administrativa,
conferindo-se densidade às suas normas, tanto no que diz respeito
às infrações como às sanções.
Em resposta aos anseios doutrinários e aos novos contornos dados
por nossos Tribunais aos atos de improbidade administrativa, o legis-
lador, ao aprovar a Lei nº 14.230/2021, viu por bem: i) estipular tipos
fechados e taxativos no rol do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, afas-
tando a possibilidade de condenação dos agentes públicos pela prática
de atos atentatórios aos princípios da administração pública, pura
e simplesmente; ii) excluir a previsão de atos de improbidade culposos;
e iii) exigir a comprovação do dolo específico para a caracterização dos
atos de improbidade administrativa elencados nos artigos 9º, 10 e 11,
nos termos do que prevê o artigo 11, §2º.
Referidas alterações legislativas, embora tenham causado
intensos debates no meio acadêmico, tiveram como finalidade adequar
o texto legal aos princípios norteadores do Direito Administrativo
Sancionador, aplicáveis ao sistema de improbidade administrativa,
por expressa previsão legal (artigo 1º, §4º – inovação também da
nova legislação). Nas palavras de Flávio Luiz Yarshell e Heitor Vitor
Mendonça Sica, “a Lei nº 14.230/2021 tem por inequívoco objetivo
reposicionar a ação de improbidade administrativa, afastando-a do
microssistema de tutela dos interesses transindividuais e inserindo-a
no campo do ‘direito sancionador”’4.

3 SUNDFELD, Carlos Ari; KANAYAMA, Ricardo. A promessa que a Lei de Improbidade


Administrativa não foi capaz de cumprir. Publicações da Escola da AGU, Brasília, DF,
ano 12, n. 2. p. 409-426, maio-ago. 2020, p. 411-412.
4 YARSHELL, Flávio Luiz; SICA, Heitor Vitor Mendonça. Reposicionamento da ação de
improbidade administrativa, Consultório Jurídico, [s. l.], 26 jan. 2022. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2022-jn-26/yarshell-sica-reposicionamento-acao-improbidade.
Acesso em: 8 mar. 2022.

263
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

A respeito do assunto, a Procuradoria Administrativa, já nos idos


de 2000, entendeu que a improbidade administrativa demandaria
do agente público a prática de ilegalidade qualificada pela má-fé. Nesse
sentido, cumpre destacar trecho do Parecer PA-3 nº 43/2002, de autoria
do procurador do estado aposentado Carlos Ari Sundfeld:
A Constituição, ao tratar da Administração Pública, implicitamente
delimitou o conceito de improbidade administrativa. De um lado,
estabelecendo uma relação entre ela e o princípio da moralidade;
de outro, indicando que o ato de improbidade constitui conduta
especialmente contrária ao Direito (sendo passível, inclusive,
de ação penal – CF, art. 37, §4º, in fine), de maneira a gerar como
consequências a suspensão dos direitos políticos, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento ao erário (CF, art. 37, §4º).
[…]
Já por aí se percebe que a mera ação em desacordo com a lei não pode,
por si só, configurar ato de improbidade administrativa. Classificar
toda conduta ilegal como improbidade seria generalizar indevidamente
as consequências que a própria Constituição restringiu a uma espécie
qualificada de comportamentos. Seria, portanto, incidir em inconstitucio-
nalidade. O ato de improbidade, por imposição constitucional, deve ser
caracterizado levando-se em conta a intenção em praticar a ilegalidade
ou qualquer outra conduta contrária aos princípios básicos da
Administração. Há, portanto, um aspecto subjetivo inafastável na compo-
sição da hipótese do ato de improbidade administrativa. O agente público
que, em virtude de mera interpretação equivocada da lei, pratica ato invá-
lido, mas o faz com a convicção de estar dando fiel cumprimento à regra
de competência, obviamente não pratica ato de improbidade. É ímprobo
o agente que viola o ordenamento jurídico de modo desonesto; que busca,
com o exercício de sua autoridade, deliberadamente desviar-se dos fins
traçados na lei. Desta forma, a simples ação em desacordo com a lei não
implica a prática de conduta ímproba. Esta só se faz presente quando
houver, por assim dizer, uma nulidade qualificada pela má-fé do agente.
[…]
Conforme já dito, para que um ato seja considerado ímprobo precisa de-
satender mais do que a objetiva desconformidade com a lei. É necessário

264
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

que o agente, ao praticá-lo, tenha apresentado o ânimo de violar


a lei ou assumido conscientemente o risco de fazê-lo; a intenção de
desatender aos princípios norteadores da atividade administrativa;
tenha, enfim, praticado ato de má-fé, especialmente repugnado pelo
Direito. A improbidade se constata na análise subjetiva do móvel do
agente e não no simples confronto objetivo com a lei.5
O entendimento de que o ato de improbidade administrativa seria
incompatível com a mera ilegalidade foi tomando forma nos nossos tribu-
nais. A análise das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça,
nos últimos anos, demonstra que o Poder Judiciário afastou a incidência
da responsabilidade objetiva6 em matéria de improbidade administrativa,

5 SÃO PAULO. Parecer PA-3 nº 43/2002. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2002,
grifos do autor.
6 De acordo com a lição de Vivian Maria Pereira Ferreira: “Em uma proposta
de sistematização dogmática do conceito, o autor sugere a existência de duas
‘moralidades’ distintas, protegidas pelo ordenamento jurídico brasileiro. A primeira
delas, prevista no art. 5º da CF/1988, refere-se à legalidade interna do ato praticado
pelo agente público, em relação ao qual seria necessário perquirir eventual desvio
de finalidade. Ou seja, o controle de legalidade do ato pode se dar a partir de sua
legalidade externa – em razão da existência de vícios de incompetência, procedimento
ou forma – ou da sua legalidade interna – diante de vícios de conteúdo, de motivos e de intenção.
E, justamente, ao controlar a legalidade interna do ato é que se investigam os desvios de
finalidade, como forma de proteção da moralidade (GIACOMUZZI, 2002, p. 298-299).
Já a segunda moralidade está prevista no art. 37 da CF/1988 e tem por função veicular ao
Direito Público o princípio da boa-fé, que é tanto objetiva, consubstanciada na proteção
da confiança, quanto subjetiva, materializada na vedação e na repressão da improbidade
administrativa (GIACOMUZZI, 2002, p. 300-301). A distinção é útil, pois fornece uma
base mais sólida para a compreensão da LIA como integrante de um sistema normativo de
proteção da moralidade administrativa, por meio do controle da boa-fé subjetiva daqueles
que integram ou contratam com o Poder Público. […] As sanções associadas às condutas
tidas como ímprobas têm cunho punitivo e revestem-se de especial gravidade, podendo
resultar até mesmo na suspensão dos direitos políticos do cidadão, que fica, portanto,
impedido de votar e ser votado. Em razão disso, parte da doutrina administrativa vem
aproximando esse conjunto de normas do Direito Penal, informada pela necessidade de
se garantir ao acusado o respeito aos seus direitos fundamentais e as garantias da ampla
defesa e contraditório (GARCIA; ALVES, 2014, p. 431; COSTA, 2014, p. 112; NEISSER,
2018, p. 103-104). Um dos princípios norteadores do Direito Penal, que, de maneira
geral, vem se admitindo ter aplicação no campo da improbidade administrativa, por seu
caráter sancionador, é o princípio da culpabilidade, segundo o qual a punição de qualquer
pessoa depende da sua atuação com dolo ou culpa. Assim, a LIA prevê apenas hipóteses
de responsabilidade subjetiva, sendo impossível a responsabilização do agente público
(NEISSER, 2018, p. 71; CARVALHO FILHO, 2018, p. 1.157; JUSTEN FILHO, 2016,
p. 948-949; DI PIETRO, 2017, p. 1023-1024). Assim, não bastaria a existência de nexo
causal entre o ato e o resultado delitivo, sendo fundamental o exame da subjetividade do
agente” (FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma

265
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

exigindo a comprovação do dolo ou, excepcionalmente, da culpa grave para


a configuração do ato ímprobo, em razão da natureza sancionatória da LIA.
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento
no sentido de ser necessária a comprovação do dolo, ainda que genérico, para
a configuração do ato de improbidade previsto no artigo 11 da LIA7.
Ao demais, o Supremo Tribunal Federal, por decisão monocrá-
tica, em medida cautelar, do ministro Gilmar Mendes, na ADI nº 6.678,
deferiu liminar, em 1 de outubro de 2021, ou seja, dias antes da promul-
gação da Lei nº 14.230/2021, para:
a) conferir interpretação conforme a Constituição ao inciso II
do artigo 12 da Lei nº 8.429/1992, estabelecendo que a sanção
de suspensão de direitos políticos não se aplica a atos de improbidade
culposos que causem dano ao erário; e
b) suspender a vigência da expressão “suspensão dos direitos políticos
de três a cinco anos” do inciso III do art. 12 da Lei nº 8.429/1992.

busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração pública.
Revista Direito GV, São Paulo, v. 15, n. 3, 2019, p. 7-9).
7 “PROCESSUAL CIVIL.ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.AGRAVO
INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. SUPOSTA VIOLAÇÃO AOS ARTS. 128 E 460 DO
CPC/1973. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO CONFIGURADO. SÚMULA 83/STJ.
NÃO OCORRÊNCIA. ART. 515 DO CPC/1973. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA.
SÚMULA 211/STJ.ALEGADA AFRONTA AO ART. 535 DO CPC/1973. NÃO OCORRÊNCIA.
INOVAÇÃO DE TESE RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE. CONTRATO BANCÁRIO
CELEBRADO ENTRE O MUNICÍPIO E A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA, SEM PRÉVIO
PROCESSO LICITATÓRIO. DANO IN RE IPSA. DOLO. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICA.
IMPOSSIBILIDADE. 1. É firme o entendimento desta Corte no sentido de que ‘não há que se
falar em julgamento extra petita na hipótese de decisão que enquadra o ato de improbidade
em dispositivo diverso do indicado na inicial, pois a defesa atém-se aos fatos, cabendo ao juiz
a sua qualificação jurídica’ (AgInt no REsp 1.618.478/PB, Rel. ministra Regina Helena Costa,
Primeira Turma, DJe 19/6/2017). Incidência da Súmula 83/STJ. […] 6. É pacífica nesta Corte a
orientação no sentido de que ‘o elemento subjetivo, necessário à configuração de improbidade
administrativa censurada nos termos do art. 11 da Lei n° 8.429/1992, é o dolo genérico de
realizar conduta que atente contra os princípios da Administração Pública, não se exigindo
a presença de dolo específico’ (REsp 951.389/SC, Rel. ministro Herman Benjamin, Primeira
Seção, DJe 4/5/2011). 7. Caso concreto em que a revisão do entendimento firmado pelo
Tribunal de origem acerca da existência de conduta dolosa da parte ora agravante demandaria
o reexame de matéria fática, o que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ. Nesse sentido: AgInt no
REsp 1.676.613/MG, Rel. ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, DJe 16/11/2017.
8. Agravo interno não provido”. (AgInt no REsp 1580393/RJ, Rel. ministro Sérgio Kukina,
Primeira Turma, julgado em 23/11/2021, DJe 17/12/2021).

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A nova Lei de Improbidade Administrativa, porém, foi além


dos precedentes jurisprudenciais, na medida em que tornou atípica
a conduta culposa8 e passou a exigir o dolo específico para configuração
do ato ímprobo.
Para além de fixar os contornos da responsabilidade subjetiva,
o legislador, reconhecendo a incidência dos princípios do Direito
Administrativo Sancionador ao sistema da improbidade administrativa
e a gravidade das sanções impostas, viu por bem prever tipos fechados
para o art. 11 da Lei nº 8.429/1992, acompanhados de um rol taxativo
das hipóteses que poderiam configurar o ato de improbidade, evitando,
assim, prejuízos à ampla defesa e condenações genéricas.
Dessa maneira, considerando que a prática de ato definido
em lei como de improbidade administrativa está prevista no Estatuto dos
Funcionários Públicos do Estado de São Paulo (artigo 257, inciso XIII)
como modalidade de infração disciplinar sujeita à pena de demissão a bem
do serviço público, a demandar respeito ao princípio da tipicidade, parece
razoável que a Lei de Improbidade Administrativa preveja, de forma clara
e precisa, quais são os atos considerados ímprobos, sob pena de se permi-
tir grande margem aos operadores da norma.
Resta indene de dúvidas, entretanto, que referidas alterações legisla-
tivas causarão impacto direto na instrução dos processos administrativos

8 Cumpre anotar que parte da doutrina, antes mesmo dos debates da Nova Lei, defendia
que a improbidade administrativa era incompatível com a conduta culposa: “No caso
de improbidade administrativa, tendo em vista que o mesmo é caraterizado pela desonestidade
do agente, é imprescindível para a configuração da ofensa à probidade que haja uma
conduta dolosa, ou seja, que o agente tenha por objetivo uma conduta que é contrária à
moralidade administrativa. Tal raciocínio aplica-se a todas as capitulações da LIA, não se
admitindo a configuração da improbidade administrativa por culpa, mesmo que grave.
A culpa somente caracteriza um ato ilícito quando a conduta prevista pelo agente tem
um objetivo lícito e, no caminho escolhido para alcançar tal objetivo, por imprudência,
negligência ou imperícia do agente, ficar materializado um resultado ilícito perante a ordem
jurídica. No caso de improbidade administrativa, isso não ocorre, haja vista que não existe
desonestidade culposa. O direito comporta várias formas de adequação do comportamento
humano às necessidades da convivência social, de sorte que o fato de a conduta culposa não
configurar improbidade administrativa não implica que o agente não seja obrigado a ressarcir
o dano ou que não possa sofrer outras consequências jurídicas, até mesmo a demissão, devido
à ação culposa que ofende a norma jurídica” (ARÊDES, Sirlene. Responsabilização do agente
público: individualização da sanção por ato de improbidade administrativa. Belo Horizonte:
Fórum, 2012, p. 99-100).

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MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

disciplinares que versam sobre improbidade administrativa, exigindo da auto-


ridade processante mais rigor no enquadramento da conduta em um dos inci-
sos dos artigos 9º, 10 e 11 da LIA e na comprovação do elemento subjetivo
do agente.
Cumpre lembrar, ainda, que “por sua própria natureza, o dolo
e a má-fé não podem ser objeto de prova direta. A menos que haja uma
confissão por parte do réu, o dolo e a má-fé só poderão ser determinados
por uma operação racional, legitimamente realizada pelo julgador,
a partir de fatos conhecidos e suficientemente provados”9.
Dessa maneira, consoante abordado pela Procuradoria
Administrativa, no Parecer PA-3 nº 43/2002, a autoridade processante
deverá analisar aspectos do ato que possam ter relação com a intenção
do agente, fazendo prova indireta do elemento subjetivo:
É certo que, na maioria das vezes, a intenção do agente é um dado de
difícil verificação. Não obstante isso, a caracterização da improbidade
exige seu exame. É injurídico, por violar o próprio conceito constitucio-
nal de improbidade, tentar caracterizá-la de modo puramente objetivo.
A solução para contornar essa dificuldade é verificar aspectos do ato pra-
ticado que possam ter relação com o móvel do agente, ou, quando menos,
que possam servir de indício forte e seguro para inferi-lo. Saber se a de-
cisão foi motivada; quais as razões invocadas para a decisão; se o proce-
dimento de instrução seguiu o rito previsto; se a matéria sob apreciação
era razoável do ponto de vista operacional e legal; se a decisão, indepen-
dentemente das circunstâncias, implicaria benefício indevido a terceiros;
se a Administração realmente necessitava deliberar a matéria em questão;
todos esses são caminhos para revelar o móvel do agente na prática de ato.
Esses, aliás, são dados que se esperam disponíveis em processo administra-
tivo ou judicial, destinado à verificação de improbidade.
Resta claro, assim, que as modificações introduzidas pela
Lei nº 14.230/2021 aproximaram o sistema de improbidade administrativa
dos princípios constitucionais que regem o Direito Penal, entre eles a
culpabilidade e a tipicidade, exigindo da autoridade processante, no

9 FERREIRA, Vivian Maria Pereira. Op. cit., p. 23.

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bojo dos processos administrativos disciplinares correlatos, cautela


no enquadramento da conduta e na instrução do feito.

3. O PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE BENÉFICA


E A JURISPRUDÊNCIA ADMINISTRATIVA DA PROCURADORIA-
GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

Consoante retro mencionado, a Lei nº 14.230/2021 trouxe alterações


substanciais ao regime de improbidade administrativa, sendo importante
analisar se as modificações benéficas ao acusado poderão ser aplicadas
aos processos administrativos disciplinares, com efeitos retroativos.
Parte da doutrina sustenta que as normas benéficas introduzidas
pela nova Lei de Improbidade Administrativa não se aplicam retroa-
tivamente, quer porque a Constituição prevê que o princípio da retro-
atividade benéfica é aplicável apenas ao Direito Penal, quer porque
o objeto do Direito Penal e o do Direito Administrativo Disciplinar
não se confundem (corrente restritiva)10. Outra parte, entretanto, sus-

10 “Embora haja, como aponta Cino Vita, uma plêiade de renomados autores que
sustentam a absoluta afinidade entre o Direito Disciplinar e o penal (tais como: Mittermayer,
Mayer, Von Bar, Seydel, Zorn, Hariou, Jèze, Vaccheli, Presutti e Cammeo), despontam com
exuberante evidência substanciais distinções entre os ilícitos penal e disciplinar. Conquanto
haja certa aproximação conceitual entre o Direito Penal e o Direito Disciplinar, vale destacar
que são bem distintas essas duas categorias de ilicitude – ainda que ambas pertençam
ao gênero jurídico do direito punitivo geral. Este, por constituir matéria de reserva de lei,
se sujeita a certas exigências, a saber: a) observância da garantia constitucional do devido
processo legal; b) somente admite interpretação escrita; c) não comporta analogia,
a não ser para beneficiar o acusado; e d) observância do princípio da proporcionalidade
ou da razoabilidade […]. Destaquem-se, ainda, essas diferenciações: a) o ilícito penal
é rigorosamente típico, devendo estar previamente definido em lei (no sentido formal),
enquanto o ilícito disciplinar, nem sempre, exige anterior definição legal, a não ser nos
casos de punições mais severas; b) requer a infração penal que haja entre a discriminação
da lei (tipo penal) e a conduta do agente quase absoluta correspondência, ao passo que
a transgressão disciplinar necessita apenas de que haja entre a hipótese descrita na norma
e a conduta do servidor faltoso uma certa aproximação; c) a infração penal contraria todo
o corpo social da comunidade em que ocorreu; já a falta disciplinar afeta tão somente
o círculo funcional a que pertence o funcionário transgressor; d) para o comportamento
delituoso a lei, em princípio, comina pena muito mais grave do que para a conduta que
transgride a ordem disciplinar do serviço público; e) o procedimento investigatório do ilícito
penal é bem mais complexo e formal do que o apuramento das infrações disciplinares;
f) finalmente acentue-se que a infração penal é apreciada e decidida pelo órgão judicial
(com as garantias da vitaliciedade, da inamovibilidade e irredutibilidade de vencimento);
g) enquanto a falta disciplinar é apurada e sancionada pela própria administração, cujos
componentes não têm as mesmas garantias dos membros da magistratura, não dispondo,

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MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

tenta que, muito embora o Direito Penal e o Direito Administrativo


Disciplinar tutelem bens diversos, ambos pertencem ao grande campo
do Direito Administrativo Sancionador, justificando-se a aplicação dos
princípios constitucionais aos processos administrativos disciplinares
(corrente expansiva)11 12.

consequentemente, da mesma independência do Poder Judiciário. De efeito, pode-se


assentar que, na verdade, não há razão para que se confunda delito disciplinar com delito
penal, pelo menos em sentido formal. Já que, ontologicamente, não se distinguem as várias
modalidades de ilicitude” (COSTA, José Armando da. Direito Disciplinar: temas substanciais
e processuais. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 129-130).
11 “Indagação relativa à atenuação da pena surge também no tocante à aplicação
da lei disciplinar no tempo, ou seja, no caso de sucessão de leis disciplinares. Conquanto
nem sempre os preceitos que disciplinam a lei penal encontrem adequada aplicação
no âmbito da responsabilidade disciplinar, tem se admitido que, por analogia, tenha
vigência o princípio da retroação das disposições mais benignas […]. Assim, embora não
pacífica a doutrina no que tange à retroatividade da nova sanção disciplinar – admitem-na,
por exemplo, Bielsa e Nézard – aceita-se, de um modo geral, o princípio da aplicação da
pena mais benigna, como parece razoável fazê-lo, em face da mudança legislativa e como
consequência da inegável afinidade que há entre o direito disciplinar e o penal. Destarte,
se dúvida e divergências ocorrem, quanto à retroatividade de uma sanção nova para atingir
fato anteriormente não previsto expressamente como infração, parece até certo ponto pacífico
o entendimento de que a lei mais favorável se aplica sempre. Assim, se um fato era punido
de determinado modo pela lei disciplinar vigente na época em que a falta foi cometida,
e sobrevém norma posterior, mais rigorosa, aplica-se a norma anterior; por sua vez, se a norma
posterior é mais favorável, aplica-se esta […]. Está claro que se examinam, aqui, as hipóteses
de faltas ocorridas, sob vigência de lei anterior, modificada, ou de falta não prevista em lei
anterior. Porquanto, se a falta é cometida depois da alteração da lei, será esta a aplicável,
ainda que mais rigorosa. É o que assinalam Cino Vitta e Achille Guerra, ao explicar que, se o
empregado entrou em serviço sob a vigência de determinada norma disciplinar, e se após
alteração desta é que veio a cometer infração, dúvida não subsiste que à transgressão se aplica
a norma posterior” (BARROS JUNIOR, Carlos S. de. Do poder disciplinar na administração
pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 81/53). No mesmo sentido: “Caso haja
alteração do regime jurídico, pode beneficiar-se o infrator com a retroação benigna. Aplica-se
o inc. XL do art. 5º da CF, porque a norma constitui-se em garantia constitucional, não se
limitando seu conteúdo a albergar o fato criminal, mas também o administrativo. É dedutível
do ordenamento jurídico o entendimento. Isto é, se houver redução da penalidade imposta,
beneficiar-se-á o infrator, ou então, quando a infração legal deixar de existir. Por exemplo,
se alguém foi multado pela venda de remédio nocivo à saúde e, posteriormente, a própria
Administração entende que o mesmo remédio não produz qualquer dano, ao contrário,
é ato recomendável no tratamento de moléstia, poderá haver, também, a retroação da norma
administrativa. Nesse sentido o parágrafo único do art. 2º do CP. Assim, se um fato era punido
de certo modo pela lei vigente quando de sua ocorrência e sobrevém norma mais rigorosa,
prevalece a norma anterior, vigente ao tempo do cometimento da infração. Se a norma posterior
é mais favorável, aplica-se esta. É o que decorre do preceito constitucional mencionado”
(OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e sanções administrativas. 3. ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2012, p. 86-87).
12 Conferir também YARSHELL, Flávio Luiz e SICA, Heitor Vitor Mendonça. Reposicionamento
da ação de improbidade administrativa. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

No âmbito da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo firmou-se


o entendimento de que não se aplica aos processos administrativos discipli-
nares o princípio da retroatividade benéfica, previsto no artigo 5º, inciso XL,
da Constituição Federal, por se entender que existem diferenças substan-
ciais entre o ilícito penal e o ilícito administrativo13.
O primeiro precedente que traremos à colação é o Parecer PA nº 257/2003,
que analisou a incidência do princípio da irretroatividade da norma menos
benéfica em razão da alteração legislativa do prazo prescricional previsto

jn-26/yarshell-sica-reposicionamento-acao-improbidade. Acesso em 8.3.2022: “Acham-


se englobados no chamado ‘Direito sancionador’ as diversas expressões do jus puniendi
estatal, que não se esgotam no Direito Penal, e se espraiam para o Direito Administrativo
Sancionador e para outras manifestações do que se poderia denominar ‘processo judicial
punitivo não penal’ (na expressão usada por Sarah Merçon-Vargas, na obra ‘Teoria do
processo judicial punitivo não-penal’, Salvador: Juspodium, 2018), em especial a ação
de improbidade administrativa e a ação prevista na Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013).
Todos esses fenômenos compartilham os mesmos princípios de proteção ao acusado, tais
como irretroatividade da lei mais severa, retroatividade da lei mais benéfica, presunção de
inocência, ne bis in idem, mínima intervenção, insignificância, legalidade, tipicidade, entre
outros. A inequívoca opção legislativa se manifesta precipuamente em dois dispositivos: o
artigo 1º, §4º (“aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios
constitucionais do direito administrativo sancionador”), e o artigo 17-D, p.ú. (‘ressalvado
o disposto nesta Lei, o controle de legalidade de políticas públicas e a responsabilidade de
agentes públicos, inclusive políticos, entes públicos e governamentais, por danos ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico
e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, à ordem econômica, à ordem
urbanística, à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos e ao patrimônio
público e social submetem-se aos termos da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985’).
O primeiro dispositivo (re)aproxima a ação de improbidade administrativa do campo do
Direito sancionador. O segundo sepulta o entendimento de que a ação de improbidade
administrativa seria espécie do gênero ação civil pública. Assentada essas premissas,
compreendem-se com facilidade diversas inovações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021”.
13 Há quem sustente que as diferenças entre os ilícitos penais e administrativos não são
ontológicas, mas meramente formais: “Não há diferença de conteúdo entre crime,
contravenção e infração administrativa. Advém ela da lei, exclusivamente. Inexiste diferença
de substância entre pena e sanção administrativa. Inexistindo diferença ontológica entre
crime, contravenção e infração e entre pena e sanção, deve o jurista buscar, em dado
formal, o critério diferenciador. Crime e contravenção são julgados por órgão jurisdicional,
enquanto a infração por órgão administrativo. A decisão jurisdicional tem eficácia própria
de coisa julgada, enquanto a decisão administrativa tem caráter tão só de estabilidade,
é presumidamente legal, imperativa, exigível e executória. Crime e contravenção são
perquiríveis através da polícia judiciária e devem submeter-se a processo próprio previsto
pela legislação processual; a infração é apurável por qualquer forma de direito, desde que
prevista em lei, independendo de rigorismo formal, à maneira do processo civil ou penal.
Em suma, o fundamental para a distinção é o regime jurídico e, em especial, a específica
eficácia jurídica do ato produzido” (OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Infrações e Sanções
Administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais. 3. ed., 2012, pp. 72-73).

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MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

na Lei Orgânica da Polícia Civil. Na ocasião, a Lei Complementar estadual


dilatou o prazo de prescrição do artigo 80, inciso I, da LOP14, de um para
dois anos, para apuração de faltas puníveis com advertência.
Interpretou-se, à luz do caso concreto, que não seria aplicável a norma
anterior e mais benéfica, mesmo os fatos tendo sido praticados antes da
alteração legislativa, porquanto tanto a Lei de Introdução ao Código Civil15
quanto as disposições transitórias da Lei Complementar nº 922/2002
consagravam o princípio da aplicabilidade imediata da lei. A ilustre pare-
cerista, dra. Dora Maria de Oliveira Ramos, destacou, alinhando-se à
tendência da jurisprudência pátria naquela época, o seguinte raciocínio:
17. A aplicação de princípios próprios do direito penal ao direito
administrativo sancionatório é muitas vezes justificada e explicada pela
invocação da analogia. Não obstante, parece mais preciso afirmar que se
deve buscar regras próprias de um direito sancionatório de caráter geral,
gênero do qual o Direito Penal e o Direito Administrativo Disciplinar
seriam espécies.
[…]
22. Dessa forma, ainda que se reconheça a existência de uma base princi-
piológica comum decorrente da expressão do poder punitivo estatal, não
se pode singelamente transplantar os princípios de Direito Penal e aplicá-
-los ao Direito Administrativo Sancionador, sem que se considerem as ca-
racterísticas próprias e peculiaridades de cada um desses ramos jurídicos.
23. Tanto assim é que em matéria de Direito Administrativo Disciplinar
não se dá aplicação ao princípio da tipicidade com os idênticos parâ-
metros aplicáveis ao Direito Penal.
[…]
28. Se o Direito Administrativo de caráter sancionatório tem seu campo de
incidência delimitado pelo próprio Direito Administrativo, refletindo ofensa

14 Artigo 80. Extingue-se a punibilidade pela prescrição: I – da falta sujeita à pena de


advertência, em 1 (um) ano;
[…].Artigo 80 . Extingue-se a punibilidade pela prescrição: (NR) I – da falta sujeita à pena
de advertência, repreensão, multa ou suspensão, em 2 (dois) anos; […].
15 Atualmente, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

a bens jurídicos que digam respeito ao exercício da função administrativa,


o Direito Penal destina-se a proteger valores jurídicos de grau superior,
tutelando bens jurídicos fundamentais, como vida, integridade física e men-
tal, honra, liberdade, patrimônio, costumes, paz pública, etc.
29. No Direito Penal, a aplicação da regra constitucional prevista no
artigo 5º, inc. XL, da Lei Maior, de que “a lei penal não retroagirá,
salvo para beneficiar o réu”, é regra geral que se justifica pela própria
natureza desse ramo do Direito.
[…]
31. Em consequência desse maior rigor punitivo, o Direito Penal
se caracteriza por voltar-se com acentuado destaque para os direitos
do acusado, enquanto o Direito Administrativo Sancionador, embora
igualmente salvaguarde as garantias individuais, destina-se primordial-
mente a proteger e fomentar os interesses gerais e coletivos.16
Da leitura do trecho citado extrai-se o entendimento de que as
diferenças substanciais existentes entre os ilícitos penal e administrativo
não permitiriam a aplicação automática dos princípios constitucionais
de Direito Penal, entre eles o princípio da retroatividade das normas
mais benéficas, aos processos administrativos disciplinares17.

16 SÃO PAULO. Parecer PA nº 257/2003. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2003.


17 Sobre o tema: “O poder disciplinar tem feição essencialmente apenadora, pois é destinado
a reprimir os desvios de comportamento dos servidores públicos por meio da imposição de
correspondentes sanções aos transgressores. A punição dos culpados é fundamental, porquanto
atua como fator de exemplo para os demais agentes públicos e termina por desencorajar
o descumprimento das regras de conduta funcional. Na verdade, o aspecto repressivo do direito
administrativo disciplinar reflete o ideal do ordenamento jurídico de, mediante a previsão
em lei de punições para condutas consideradas indesejáveis, proteger os valores fundamentais
para o bom funcionamento da Administração Pública, assim como assegurar o respeito
aos princípios constitucionais e legais que a regem. […] Cumpre dissociar o poder disciplinar,
aquele exercido pelas autoridades administrativas para aplicar punições aos agentes públicos,
em caso de violação das regras de conduta funcional, do direito de punir estatal, nas hipóteses
de cometimento de crimes. O poder disciplinar é exercitado no âmbito da função administrativa
do Estado sobre as pessoas que se vinculam à Administração Pública por um elo jurídico
especial (estatutário) e decorre da quebra das normas de disciplina na função pública, sendo
manejado por autoridades administrativas hierarquicamente superiores ao acusado e inserido
no campo do direito administrativo. O direito de punir no caso de crimes é pertinente à função
jurisdicional do Estado e efetivado por um membro do Poder Judiciário; decorre da prática de
condutas classificadas em lei como típicas, correspondentes a um tipo criminal, a um modelo de
comportamento punido, sujeitando-se às regras do direito penal (por exemplo: ‘Matar alguém’
é o tipo do homicídio: art. 121, Código Penal)”. (CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Manual

273
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

No mesmo ano, a Procuradoria Administrativa foi instada


a se manifestar sobre os efeitos intertemporais da alteração legislativa
promovida pela Lei Complementar estadual nº 942/2003 às disposições
da Lei nº 10.261/1968 (Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do
Estado), em específico, o termo inicial de contagem do prazo prescricional
(artigo 26118). Na oportunidade, foi editado o Parecer PA nº 306/2003,
de autoria da mesma parecerista retro mencionada, que, por uma questão
de coerência, manteve a tese afirmada no Parecer PA nº 257/2003:
19. Como já assinalado no precedente Parecer PA nº 257/2003, discute-se
se há ou não identidade ontológica entre o ilícito penal e o ilícito civil.
A tese da identidade é defendida, por exemplo, por Régis Fernandes de
Oliveira. Edmir Netto de Araújo, acolhendo lição de José Cretella Júnior,
sustenta a existência de diferenças substanciais entre as duas categorias
jurídicas. A tese da unidade do poder punitivo estatal, no entanto,
é majoritária na doutrina europeia, como noticia Fábio Medina Osório.
20. De qualquer forma, ainda que se acolha a tese da identidade do jus
puniendi estatal, não se pode concluir que são idênticos os princípios
regedores da matéria. Nesse sentido, reconhece a doutrina que estão
eles submetidos a regimes jurídicos diversos.19
Interessante o corte temporal estabelecido nesse precedente, a seguir
em destaque:
43. Nessa linha exegética, com relação às infrações cometidas anterior-
mente à alteração legislativa, importa considerar que a edição da Portaria
relativa à Sindicância ou ao Processo Administrativo Disciplinar antes
da lei nova interromperá a prescrição, contado como termo inicial desta
a data em que a Administração tomou conhecimento da falta, como

de processo administrativo disciplinar e sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais


e da casuística da administração pública. 4. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 90/96).
18 Artigo 261 – Prescreverá a punibilidade: […] Parágrafo único – O prazo da prescrição inicia-se no
dia em que a autoridade tomar conhecimento da existência da falta e interrompe-se pela abertura
de sindicância ou quando for o caso, pela instauração do processo administrativo. – Artigo 261
com redação dada pela Lei Complementar n° 61, de 21/08/1972. Artigo 261 – Extingue-se
a punibilidade pela prescrição: […] § 1º – A prescrição começa a correr:
1 – do dia em que a falta for cometida; 2 – do dia em que tenha cessado a continuação
ou a permanência, nas faltas continuadas ou permanentes.
19 SÃO PAULO. Parecer PA nº 306/2003. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2003.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

regido pelo texto original do artigo 261, parágrafo único, da Lei Estadual
nº 10.261/1968. Nessa hipótese, a aplicação imediata da lei não poderá
alterar a situação jurídica já consolidada com a edição da Portaria,
qual seja, a interrupção do prazo prescricional.
44. Nas situações em que a Portaria da Sindicância ou do Processo
Administrativo Disciplinar é posterior à LCE nº 942/2003, devem ser
consideradas para computo do termo inicial do prazo prescricional as
regras da lei nova, consubstanciadas na redação dada ao artigo 261,
§ 1º,‘1’ e ‘2’, da Lei nº 10.261/68, pela LCE nº 942/2003.
Muitos anos após a edição dos Pareceres PA nº 257 e 306, ambos
de 2003, o tema foi novamente objeto de análise pela Especializada, no
bojo do Parecer PA nº 129/201120, reafirmando-se, a latere, a mesma tese.
E mais recentemente, tivemos o Parecer PA nº 3/2022, da lavra do
ilustre dr. Adalberto Robert Alves, que analisou consulta advinda da
Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, em face da nova redação
do artigo 269, parágrafo único, do Estatuto dos Funcionários Públicos
Civis do Estado de São Paulo, introduzida pela Lei Complementar
estadual nº 1.361, de 21 de outubro de 2021.
Segundo a recente previsão estatutária, “não será instaurada sindicân-
cia em face de funcionário já exonerado, aposentado, anteriormente demi-
tido ou que, por qualquer razão, tenha deixado de manter vínculo com
a Administração Pública”. Assim, indagou a unidade especializada em

20 Ementa do Parecer PA nº 129/2011, de autoria do dr. Demerval Ferraz de Arruda Júnior:


“AGENTE PÚBLICO. Servidor público. Processo disciplinar. Infração disciplinar também
prevista em lei como infração penal. Prescrição punitiva disciplinar que se regula,
invariavelmente, pela pena criminal em abstrato. Descabimento, no âmbito administrativo,
do cômputo da prescrição pela pena concretamente fixada pelo juiz. Princípio da
independência das instâncias administrativa, civil e penal. Precedentes: Pareceres PA
nº 120/1999, nº 257/2003, nº 306/2003, nº 92/2004 e nº 221/2004. Jurisprudência
predominante do Superior Tribunal de Justiça em sentido contrário. Autoridade relativa
desse conjunto de julgados. Existência de divergência na mesma corte. Necessidade de que
o debate seja travado em torno dos fundamentos e não, apenas, à vista das conclusões
dos acórdãos que formam a posição majoritária. Ponto de vista da persuasão. Interesses
primários do Estado cujo atendimento depende da boa interpretação da lei. Jurisprudência
como auxiliar de exegese. Tese da Administração bem recebida pelo Tribunal de Justiça.
Farta e convincente fundamentação de parte a parte. Proposta de manutenção da posição
atualmente defendida pelo Estado de São Paulo”.

275
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

matéria disciplinar, se seria possível “o dispositivo legal em apreço abarcar


também as hipóteses envolvendo as sindicâncias disciplinares já em curso”21.
Pelos mais diversos e bem embasados fundamentos, interpretou-se
que não seria possível a extinção de sindicâncias instauradas sob a égide
das leis anteriores – destacando-se, entre os motivos, o princípio da irre-
troatividade da lei (tempus regit actum):
[…] o último argumento que alinhavo como impeditivo da
proposta formulada no seio da Procuradoria de Procedimentos
Disciplinares é o da irretroatividade da lei (tempus regit actum) que,
somado ao princípio (ou sistema) de isolamento dos atos processuais,
resulta na necessidade de processamento e conclusão das sindicâncias

21 Cumpre anotar que a Procuradoria de Procedimentos Disciplinares, em 2018, requereu


autorização para deixar de instaurar sindicância em face de pessoas que não mais mantivessem
vínculo funcional com a Administração Pública, bem assim para a imediata extinção das
sindicâncias instauradas em face de pessoas nas mesmas condições, sob o argumento de que
as penas corretivas cabíveis à espécie não teriam efeito jurídico. Na ocasião, a Procuradoria
Administrativa, por intermédio do Parecer PA nº 14/2018, firmou o entendimento de que
a instauração ou prosseguimento da sindicância tinha como finalidade assegurar o respeito
ao requisito da boa conduta, nos seguintes termos: “19. No entanto, há que se atentar para
o fim protetivo dos processos disciplinares, ponto em relação ao qual divergimos, em parte,
das conclusões desenvolvidas pela Especializada em procedimentos disciplinares. É certo que
nos casos sujeitos a penas expulsórias, que se processam mediante processo administrativo
disciplinar, a própria legislação encarregou-se de fixar como consequência da condenação
a impossibilidade de reingresso no serviço público por determinado período, tendo em
vista a maior gravidade das infrações (art. 307, parágrafo único, da Lei nº 10.261/1968).
20. De fato, não existe disposição com idêntico teor, que se destine às penas de suspensão ou
repreensão, aplicáveis a infrações de menor potencial lesivo, e que se processam mediante
sindicância. Contudo, remanesce a necessidade de atendimento ao requisito de boa conduta
para a posse em cargo público (art. 47, V, da Lei nº 10.261/1968), a recomendar a instauração
ou prosseguimento da sindicância, ainda que o servidor deixe os quadros da Administração
Pública; posto que, não obstante reste inócua a aplicação da pena, eventual condenação
será registrada em prontuário, com potenciais reflexos na configuração do aludido requisito.
21. Este ponto, aliás, consiste diferença relevante entre a proposta ora em exame e a situação
analisada no Parecer PA nº 95/2013, que envolvia prescrição da pretensão punitiva, e que,
portanto, não poderia ter caráter desabonador para o servidor. 22. Vale notar que a vedação
temporária ao reingresso do servidor demitido no serviço público foi inserida no parágrafo
único, do artigo 307, do Estatuto do Funcionalismo Paulista, por alteração introduzida pela
Lei Complementar nº 942/2003. Entretanto, muito antes da edição deste diploma legal,
diversos precedentes exarados por esta Procuradoria Administrativa já reconheciam, com
amparo no requisito da boa conduta (art. 47, V), que a prévia exoneração do servidor
responsável pela irregularidade não obstava a instauração ou o prosseguimento do processo
disciplinar, ante o interesse da Administração em formalizar o ato punitivo, consignando-o
no prontuário do infrator para preservar a segurança do serviço público. Nesse sentido:
PA-3 nº 315/1990, PA-3 nº 346/1993, PA-3 nº 333/1995, PA-3 nº 302/2001”.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

disciplinares instauradas quando da edição da Lei Complementar


nº 1.361, de 21 de outubro de 2021.22
Da análise desses precedentes, nota-se que a jurisprudência
administrativa da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo tem por
atual posicionamento institucional a inaplicabilidade do princípio penal
da retroatividade benéfica das normas aos processos administrativos
disciplinares, alinhando-se à corrente restritiva.

4. A ATUAL TENDÊNCIA JURISPRUDENCIAL DO SUPERIOR


TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DO PRINCÍPIO DA
RETROATIVIDADE DAS NORMAS CÍVEIS MAIS BENÉFICAS

O Superior Tribunal da Justiça, que até outrora tendia a adotar um


entendimento restritivo acerca da incidência dos princípios do direito
penal ao direito administrativo sancionador, também tem proferido
decisões especificamente no que se refere ao princípio da retroatividade
benéfica das normas, interpretando ser aplicável no âmbito dos processos
administrativos disciplinares. Nesse sentido:
DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. RECURSO
EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO
DISCIPLINAR. PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE DA LEI
MAIS BENÉFICA AO ACUSADO. APLICABILIDADE. EFEITOS
PATRIMONIAIS. PERÍODO ANTERIOR À IMPETRAÇÃO.
IMPOSSIBILIDADE. SÚMULAS 269 E 271 DO STF. CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL DE 1973. APLICABILIDADE.
I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada
em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da
publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se
o Código de Processo Civil de 1973.
II – As condutas atribuídas ao Recorrente, apuradas no PAD que
culminou na imposição da pena de demissão, ocorreram entre
03.11.2000 e 29.04.2003, ainda sob a vigência da Lei Municipal
nº 8.979/1979. Por outro lado, a sanção foi aplicada em 04.03.2008

22 SÃO PAULO. Parecer PA nº 3/2022. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2022.

277
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

(fls. 40/41e), quando já vigente a Lei Municipal nº 13.530/2003, a qual


prevê causas atenuantes de pena, não observadas na punição.
III – Tratando-se de diploma legal mais favorável ao acusado, de rigor
a aplicação da Lei Municipal nº 13.530/2003, porquanto o princípio
da retroatividade da lei penal mais benéfica, insculpido no art. 5º, XL,
da Constituição da República, alcança as leis que disciplinam o direito
administrativo sancionador. Precedente.
IV – Dessarte, cumpre à Administração Pública do Município de
São Paulo rever a dosimetria da sanção, observando a legislação mais be-
néfica ao Recorrente, mantendo-se indenes os demais atos processuais.
V – A pretensão relativa à percepção de vencimentos e vantagens
funcionais em período anterior ao manejo deste mandado de segurança,
deve ser postulada na via ordinária, consoante inteligência dos
enunciados das Súmulas n. 269 e 271 do Supremo Tribunal Federal.
Precedentes.
VI – Recurso em Mandado de Segurança parcialmente provido.
(RMS 37.031/SP, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA
TURMA, julgado em 08/02/2018, DJe 20/02/2018).
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ORDI-
NÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ENUNCIADO ADMI-
NISTRATIVO 3/STJ. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLI-
NAR. PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. NÃO OCOR-
RÊNCIA. AGRAVO INTERNO NÃO PROVIDO.
1. A sindicância investigativa não interrompe prescrição administrati-
va, mas sim a instauração do processo administrativo.
2. O processo administrativo disciplinar é uma espécie de direito sancionador.
Por essa razão, a Primeira Turma do STJ declarou que o princípio da retro-
atividade mais benéfica deve ser aplicado também no âmbito dos processos
administrativos disciplinares. À luz desse entendimento da Primeira Turma,
o recorrente defende a prescrição da pretensão punitiva administrativa.
3. Contudo, o processo administrativo foi instaurado em 11 de abril
de 2013 pela Portaria n. 247/2013. Independente da modificação do
termo inicial para a instauração do processo administrativo disciplinar

278
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

advinda pela LCE nº 744/2013, a instauração do PAD ocorreu opor-


tunamente. Ou seja, os autos não revelam a ocorrência da prescrição
durante o regular processamento do PAD.
4. Agravo interno não provido.
(AgInt no RMS 65.486/RO, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL
MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2021,
DJe 26/08/2021).
Consoante se depreende da análise dos precedentes acima destacados,
a ministra Regina Helena Costa, no julgamento do RMS nº 37.031-SP,
partiu da premissa de que a inexistência de diferenças substanciais entre
os ilícitos penal e administrativo autorizaria a aplicação do princípio
da retroatividade benéfica aos processos administrativos disciplinares.
De igual modo, o ministro Mauro Campbell Marques, no julgamento
do AgInt no RMS nº 65486-RO, reconheceu o caráter sancionador dos
processos administrativos disciplinares e a consequente aplicabilidade
dos princípios constitucionais que regem o Direito Penal.
Dessa maneira, de acordo com as citadas decisões do C. Superior
Tribunal de Justiça, a aplicabilidade do princípio da retroatividade
benéfica aos processos administrativos disciplinares encontraria
fundamento na unidade do direito punitivo estatal e na necessidade de
se garantir aos acusados, em processos judiciais ou administrativos, um
sistema mínimo de proteção individual.
Nas palavras de Fábio Medina Osório, cuja doutrina serviu
de fundamento para as mencionadas decisões do C. Superior Tribunal
de Justiça pela aplicabilidade dos princípios constitucionais que regem
o Direito Penal ao campo dos processos administrativos disciplinares:
10. Ainda que se faça uma análise crítica à unidade do ius puniendi
estatal, não se pode negar que ambos campos de incidência do poder
punitivo do Estado estão impregnados de postulados e garantias
constitucionais de proteção aos administrados e jurisdicionados, cuja
inobservância deslegitima a aplicação de qualquer sanção.
[…]
11. Aplicando-se os princípios e garantias informadores do Direito
Penal ao Direito Administrativo Sancionador, inegável a incidência da

279
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

retroatividade da lei mais benigna.


[…]
Ademais, a adoção dos princípios penais, com matizes, ao direito
administrativo sancionador, além de se encontrar sedimentada na juris-
prudência do STJ e do STF, decorre da compreensão acerca da estrutura
normativa do Direito Administrativo Sancionador. Nesse passo, fiz um
histórico importante sobre essa matéria na obra Direito Administrativo
Sancionador, em 2000: Não há dúvidas de que, na órbita penal, vige,
em sua plenitude, o princípio da retroatividade da norma benéfica ou
descriminalizante, em homenagem a garantias constitucionais expressas
e a uma razoável e racional política jurídica de proteger valores social-
mente relevantes, como a estabilidade institucional e a segurança jurídica
das relações punitivas. Se esta é a política do Direito Penal, não haverá
de ser outra a orientação do Direito Punitivo em geral, notadamente do
Direito Administrativo Sancionador, dentro do devido processo legal.23
Dessa maneira, tal posicionamento indica que “a unidade do Direito san-
cionador repousa nas cláusulas constitucionais comuns ao Direito Penal e ao
Direito Administrativo, pois, ainda que tais cláusulas não veiculem conteúdos
idênticos, ‘também veiculam conteúdos mínimos obrigatórios, onde repousa a
ideia de unidade mínima a vincular garantias básicas aos acusados em geral’”24.

5. EM CASO DE REVISITAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA


ADMINISTRATIVA, QUAIS SERIAM O INSTRUMENTO
PROCEDIMENTAL E O RECORTE TEMPORAL ADEQUADOS PARA
A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA RETROATIVIDADE BENÉFICA
AOS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DISCIPLINARES?

Temos por certo que, nos dias atuais, a matéria está sendo debatida
e que a solução da questão, em muito, dependerá do que o Supremo
Tribunal Federal vier a decidir no julgamento da já referida Repercussão
Geral – tema nº 1.199.

23 OSORIO, Fabio Medina. Retroatividade da Nova Lei de Improbidade Administrativa.


Brasília, DF, 29 out. 2021, p. 11-15.
24 OSORIO, Fabio Medina. Direito Administrativo Sancionador. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006, p. 132.

280
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

Caso prevaleça a tese da aplicabilidade retroativa das normas mais


benéficas aos acusados e condenados por improbidade administrativa,
e tal entendimento também seja aplicado em processos administrativos
disciplinares, caberá também o questionamento acerca do limite
temporal para o alcance retroativo da novel legislação, pois temos
alguns cenários possíveis:
a) Ilícitos praticados antes da Nova Lei, mas apurados após sua entrada
em vigor (instauração da Portaria depois de 25 de outubro de 2021);
b) Ilícitos praticados e com apuração em curso quando da entrada
em vigor da Lei nº 14.230/2021;
c) Ilícitos praticados e punidos antes da Nova Lei, mas com
recurso hierárquico pendente de julgamento;
d) Ilícitos praticados e punidos sob a égide da vetusta legislação, sem
recurso pendente de julgamento (coisa julgada administrativa25).
Nas hipóteses em que o ilícito foi praticado antes da edição da nova
Lei de Improbidade Administrativa, mas a Portaria editada somente após
sua publicação, o debate cabível é se a autoridade processante deverá des-
crever e classificar a conduta levando em consideração os contornos esta-
belecidos pelas novas regras, acerca da tipicidade e do elemento subjetivo.
Não obstante, cabe lembrar que a ausência de enquadramento
legal da conduta como ato de improbidade administrativa, por si só,
não impede a condenação do agente com fundamento no artigo 257,

25 Conforme ensinamento de Edmir Neto de Araújo: “Segundo Cretella Jr., a existência da


coisa julgada administrativa não é uma fantasia: o que se deve questionar é sua extensão
e as condições de sua existência. Nem é mera transposição do direito processual: a categoria
jurídica ‘coisa julgada’ é que, neste ramo específico do Direito (o Administrativo), assume
características especiais que, todavia, não a apartam de suas linhas mestras. Consideremos,
então, partindo do geral para o particular, dois sentidos para a coisa julgada: o sentido amplo,
que significa a imutabilidade genericamente considerada, de decisão sobre controvérsia, e os
sentidos estritos e específicos, da coisa julgada processual, oponível erga omnes, quando
material, ou no processo, quando formal, com todas as consequências anteriormente
descritas; e da coisa julgada administrativa, que é restrita ao âmbito da Administração,
sujeita ao controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal) e eventual
revisão. Neste último sentido, a mutabilidade da decisão da Administração, em seu âmbito,
só seria possível através de decisão judicial: esta, em certos casos, não poderia mais rever seu
ato, em termos de revogabilidade, após a exaustão dos recursos, esgotamento de seus prazos
ou não previsão legal”. (ARAÚJO, Edmir Netto de. O ilícito administrativo e seu processo.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 160-161).

281
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

inciso XIII, do EFP, na medida em que o acusado se defende dos fatos


e não especificamente das normas legais que teriam sido violadas.
Nesse sentido, cumpre transcrever trecho do Parecer PA nº 219/200226,
de autoria da dra. Dora Maria de Oliveira Ramos:
18. Assim, a portaria inicial do processo disciplinar deve descrever
de forma precisa a conduta irregular atribuída ao servidor, de forma
a permitir o exercício do contraditório e da ampla defesa. No entanto,
o servidor defende-se dos fatos e não especificamente da indicação das
normas legais que teriam sido violadas. Decorre daí que a descrição da
conduta irregular do servidor na portaria inicial do processo disciplinar
é em princípio suficiente para garantir-lhe o exercício do contraditório
e da ampla defesa, sendo irrelevante a circunstância de terem ou não
sido mencionados como violados dispositivos da lei de improbidade.
19. Se no curso do processo administrativo disciplinar for apurada
a prática de atos irregulares, deve ser cominada a penalidade corres-
pondente pela autoridade administrativa que, nos termos da lei, detém
o poder disciplinar.
20. As penas relativas aos atos de improbidade são de competência do
Poder Judiciário, devendo ser aplicadas no seio de ação civil pública que
poderá ser ajuizada pelo Estado. Compete à Procuradoria Geral do Esta-
do o ajuizamento da ação respectiva, nos termos do artigo 99, inciso VII,
da Constituição do Estado e artigo 2º, inciso XVI, da Lei Complemen-
tar Estadual nº 478, de 18 de julho de 1986. Assim, apurados os fatos,
se constatada conduta passível de caracterização de improbidade
administrativa, pode e deve a Procuradoria-Geral do Estado adotar as

26 EMENTA: “SERVIDOR PÚBLICO. Apropriação de dinheiro público. Apuração em processo


disciplinar da conduta da servidora envolvida. Atos enquadráveis como violadores da lei
de improbidade administrativa. Questão não apreciada no curso do processo disciplinar.
Questionamento da Procuradoria Judicial acerca da possibilidade de ajuizamento de ação
para responsabilização da servidora nos termos da lei de improbidade administrativa. Sanções
da Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992, que não se confundem com as penas disciplinares
previstas na Lei Estadual nº 10.261, de 28 de outubro de 1968. Instâncias sancionatórias
diversas. Inexistência de obrigatoriedade de enquadramento da conduta irregular na lei de
improbidade administrativa quando da elaboração da portaria inicial do processo disciplinar.
Penas da Lei de Improbidade a serem cominadas pelo Poder Judiciário, no seio de ação a ser
ajuizada pelo Ministério Público ou pela Procuradoria-Geral do Estado. Processo administrativo
prévio que não é condição para ajuizamento da ação pela Procuradoria-Geral do Estado”.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

providências cabíveis, independente de conclusão expressa nesse sentido


pela autoridade administrativa que exerce o poder disciplinar.
Caso a autoridade competente ainda não tenha proferido decisão
final, o questionamento que surge é se devem se aplicar ao caso, de ofício
ou por provocação da parte, as regras mais benéficas ao acusado
introduzidas pela Lei nº 14.230/2021, com a consequente improcedência
das acusações, em razão da atipicidade dos fatos, ou a desclassificação
da infração, mitigando-se a sanção27.
De igual modo, havendo decisão final ainda não definitiva, poderá a
parte interessada alegar a retroatividade da nova LIA, em sede recursal,
sendo possível, em caso de omissão, que a autoridade competente
enfrente, de ofício, o tema acerca da aplicabilidade das normas mais
benéficas ao acusado.
Dúvida mais polêmica surge, entretanto, nas hipóteses de ilícitos
praticados e punidos sob a égide da vetusta legislação, sem recurso
pendente de julgamento (formação da coisa julgada administrativa).

27 Sobre o tema, conferir: GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; RODRIGUES, João Paulo
Souza; BORGES, Sabrina Nunes. Caminhos para tratamento adequado aos processos
em curso a partir da nova LIA. Consultório Jurídico, [s. l.], 16 nov. 2021. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2021-nov-16/opiniao-tratamento-aos-processos-curso-partir-
lia. Acesso em: 9 mar. 2022.. “Para um entendimento adequado do estado da arte dessa
discussão, parece correto dividir o tema sob três perspectivas: a dos processos em curso, que
versem sobre condutas ou sanções que tenham sido total ou parcialmente suprimidas pela
nova LIA; a dos processos em curso, cujos contornos da atividade sancionatória do Estado
sofreram modificações, suprimindo determinadas espécies de sanção, restringindo os limites
de condenações, ou definindo modalidades diversas de cômputo da prescrição; e os processos
já decididos, com sentenças transitadas em julgado. Para o primeiro grupo, nota-se que as
mudanças trazidas pela Lei nº 14.230/2021 impactam frontalmente o interesse processual.
Nessas situações, o processo deixa de ser juridicamente útil, sobretudo nas hipóteses em que
as condutas típicas de improbidade assim deixaram de ser consideradas, ou nas hipóteses
em que o legislador passou a exigir a demonstração de um elemento volitivo específico para
a prática do ato ímprobo. Não sendo hipótese de extinção, e estando a ação de improbidade
em termos (isto é, o tipo permanece vigente, a prática imputada operou a título doloso
e a modalidade sancionatória ainda é juridicamente possível), caberá ao Estado-juiz acercar-
se de não ser hipótese de prescrição da pretensão condenatória, na forma definida pelo
artigo 23 da LIA, respeitada a nova ‘prescrição interfases’, em feliz expressão de Luana
Pedrosa de Figueiredo Cruz. Para essa categoria de processos, caberá ao magistrado,
na prolação da sentença, atentar-se não só ao que contém o pedido formulado pelo autor
à época do ajuizamento da ação de improbidade, mas também aos limites fixados pela
nova lei, cujos efeitos retroagirão em benefício do réu”.

283
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

A questão vem sendo debatida no campo das ações de improbidade


administrativa, divergindo a doutrina não apenas quanto à viabilidade
de reabertura da discussão após o trânsito em julgado das sentenças
condenatórias, como também em relação ao instrumento processual
mais adequado, caso a retroatividade seja possível.
Ricardo de Barros Leonel sustenta não ser viável a aplicabilidade da
norma mais benéfica após o trânsito em julgado da sentença, em razão
do disposto no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal28.
Para aqueles que entendem que a coisa julgada material não
é impeditiva para a revisão do julgado, resta saber se os fatos novos, no
caso da superveniência de norma mais benéfica ao acusado, deveriam ser
veiculados por meio de ação rescisória, com fundamento no artigo 966,
inciso V, do Código de Processo Civil, ou da ação prevista no artigo 501,
inciso I, do Código de Processo Civil. Nesse sentido:
Mas uma questão se coloca: qual o efeito da alteração legal diante
de decisões condenatórias transitadas em julgado? Evidentemente que
no espaço deste artigo não é possível desenvolver à exaustão o tema.
Mas cabem algumas pinceladas.
Nos termos do artigo 966, V, do CPC, é cabível rescindir a decisão de
mérito que “violar manifestamente norma jurídica”, sendo que uma
das normas jurídicas é justamente, nos termos do atual artigo 1º, §4º,
da Lei nº 8.429/92, a retroatividade da lei benigna, fruto da aplicação
às ações de improbidade dos ditames e dos princípios do DAS, com
amparo em todo o exposto nesta oportunidade.
Além disso, à luz dos princípios da razoabilidade e da isonomia,
não afigura sensato e plausível que alguns continuem a sofrer os
impactos das sanções, quando eventuais novos investigados, à luz da
Lei nº 14.230/21, não mais serão condenados (ou nem sequer processa-
dos) caso pratiquem as mesmas condutas objeto da sentença condena-
tória. A lógica subjacente a tal raciocínio é a mesma aplicável aos casos
de abolitio criminis em seara penal, quando mesmo a coisa julgada

28 LEONEL, Ricardo de Barros. Nova LIA: aspectos da retroatividade associada ao Direito


Sancionador. Consultório Jurídico, [s. l.], 17 nov. 2021. Disponível em: https:/www.conjur.com.
br/2021-nov-17/Leonel-lia-retroatividade-associada-direito-sancionador. Acesso em: 8 mar. 2022

284
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

é relativizada para alcançar aqueles condenados por condutas que,


hoje, são atípicas; e é a mesma pelo fundamento inicial deste trabalho.
De todo modo, reconhecemos que a questão não é simples. Se de um lado
a possibilidade do ajuizamento da ação rescisória ora defendida privile-
gia a retroatividade benigna, direito fundamental de raiz constitucional,
de igual modo a coisa julgada, corolário da segurança jurídica, é também
valor constitucionalmente protegido que não pode ser ignorado. É o caso,
pois, para alguns, de colisão entre princípios e direitos fundamentais,
a ser vislumbrado sob o prisma da técnica da proporcionalidade, mediante
sopesamento a ser realizado pelo Poder Judiciário, quando do julgamento
e da fixação de teses.
Aliás, diante da certa repetição de processos afetos à temática, somada ao
risco à isonomia e à segurança jurídica que entendimentos jurisdicionais
diversos podem causar, o ideal é que a questão do cabimento da ação
rescisória ora posta seja decidida e consequentemente uniformizada em
sede de IRDR — quando houver efetiva repetição de processos, porque
é descabido o referido incidente preventivo —, nos termos do artigo 976
e seguintes do CPC ou de afetação de recursos especiais e extraordinários
repetitivos quando houver a efetiva repetição de demandas, nos termos do
artigo 1.036 do mesmo estatuto29.
Posto isso, reitera-se como: aplicar as disposições mais benéficas contidas na
lei n° 14.230/21 a processos em que já houve decisão transitada em julgado?
Uma solução intuitiva seria fazer uso da ação rescisória e invocar
o artigo 966, V, do CPC.
Entretanto, é preciso pontuar que se a revisão criminal (instituto mui-
to mais próximo do direito administrativo sancionador que a ação
rescisória) pode ser interposta a qualquer tempo após o trânsito
em julgado, inclusive após ter sido extinta a pena do réu (art. 622
do CPP), a ação rescisória possui prazo decadencial de 2 anos após
o trânsito em julgado (art. 975 do CPC).

29 FORTINI, Cristina; CAVALCANTI, Caio Mário Lana. Retroatividade benigna da Lei 14.230:
o que dizer de decisões transitadas em julgado. Consultório Jurídico, [s. l.], 17 fev. 2022.
Disponível em: https://conjur.com.br/2022-fev-17/interesse-publico-retroatividade-benigna-
lei-1423021. Acesso em: 8 mar. 2022.

285
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

E aqui temos o primeiro problema, pois adotar a ação rescisória redunda


em amesquinhar ou mesmo emascular a retroatividade da lei mais benigna,
vez que confere aplicação a um direito fundamental por meio de um ins-
trumento que claramente está cerceado por uma interpretação restritiva,
no caso o possui prazo decadencial de 2 anos após o trânsito em julgado.
O segundo problema decorre do fato de que o artigo 966, V, do CPC,
dispor que é cabível rescindir a decisão de mérito que “violar manifes-
tamente norma jurídica”.
Ora, quando da prolação da decisão rescindenda claramente não havia
um claro e incontestável “vício qualificado” que desse azo à rescisão.
Entender que tal vício se deu de forma superveniente, com a edição de
uma lei mais benéfica, seria desnaturar a ação rescisória.
Não sendo a ação rescisória a via adequada para aplicar os efei-
tos retroativos da legislação mais benigna às ações de improbidade
administrativa com decisões transitadas em julgado, uma solução mais
adequada para emular o regime jurídico do direito penal e processu-
al penal no direito administrativo sancionador é o de entender que a
aplicação de penalidade no bojo de tais ações constitui uma relação
jurídica continuada que deve ser desconstituída na forma do art. 501,
I do CPC que estabelece que “nenhum juiz decidirá novamente as ques-
tões já decididas relativas à mesma lide, salvo se, tratando-se de relação
jurídica de trato continuado, sobreveio modificação no estado de fato
ou de direito, caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi
estatuído na sentença”.
Portanto, o art. 501, I do CPC contempla expressamente a possibili-
dade do ajuizamento de uma ação revisional que exponha uma mo-
dificação no estado de fato ou de direito superveniente ao trânsito em
julgado da decisão, o que é justamente o caso do surgimento da norma
mais benéfica com o condão de retroagir.
Por fim, como a ação prevista no art. 501, I do CPC não está limitada ao
prazo decadencial bienal previsto no art. 975 do CPC, ela se aproxima
muito mais do racional da revisão criminal prevista no art. 622 do CPP30.

30 ARAÚJO, Aldem Johnston Barbosa. Da inadequação da ação rescisória para aplicar a


retroatividade benigna da Lei 14.230/21 às decisões transitadas em julgado. Migalhas, [s. l.],

286
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

No caso das sanções impostas com base nas disposições legais mais gra-
vosas, se considerada a legislação superveniente, a permanência dos res-
pectivos efeitos configura a continuidade acima mencionada. Se ela não
reside exatamente na relação jurídica que foi objeto do julgamento
originário, ela está presente no prolongamento da eficácia da sentença,
isto é, da oneração decorrente da vigência da pena aplicada. Portanto,
se e enquanto persistam os efeitos das sanções aplicadas, suposto
sejam elas incompatíveis com as novas e mais benéficas disposições
legais, é precisamente do problema cronológico da eficácia da sentença e da
respectiva imutabilidade que se está a tratar (retroatividade in mellius).
E isso autoriza que o interessado demande a adequação do que se julgou,
de um lado, à regulação jurídica atual, de outro lado.
Aqui se chega, então, à dupla questão posta inicialmente: qual a via
processual adequada e como se determina a competência para tanto.
Quanto ao primeiro dos temas propostos, a hipótese encaixa-se perfeitamente
na previsão do inciso I do artigo 505 do CPC (que substancialmente reeditou
a regra constante do artigo 471, I, do diploma processual precedente): sobre-
vindo modificação no Estado de Direito (repita-se, na premissa de que a lei
mais benéfica retroage), a parte pode pedir “a revisão do que foi estatuído na
sentença”. A causa de pedir da demanda consiste na desconformidade entre
o que se decidiu com base na lei antiga e as disposições mais benéficas, cons-
tantes da lei nova. É ônus do interessado alegar e demonstrar que o objeto do
julgamento original — sua parte dispositiva à luz dos respectivos fundamen-
tos de fato e de direito — não se compadece com as regras vigentes.
Não se trata propriamente de invalidar atos do processo anterior porque
os fundamentos da demanda não residem em erro — de processo ou
de julgamento — que teria sido cometido no processo originário. Trata-se
de rever o que foi decidido e, portanto, considerar de que forma as novas
disposições legais aproveitam à parte condenada e, portanto, são capazes de
levar ao afastamento ou redução da sanção anteriormente aplicada. Disso se
extrai, portanto, que não se afigura cabível a propositura de ação rescisória,
que pressupõe invalidade da decisão originária, conforme hipóteses do ar-

21 fev. 2022. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/360212/acao-rescisoria-


para-aplicar-a-retroatividade-benigna-da-lei-14-230-21. Acesso em: 8 mar. 2022.

287
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

tigo 966 do CPC, que nenhuma correspondência guarda com a situação


examinada. Na pretensão revisional, não se cogita de erro contemporâneo
à edição da decisão originária; seus fundamentos são lógica e juridicamente
supervenientes à imposição da sanção e mesmo à formação da coisa julgada.
Se a fase de liquidação ou cumprimento de sentença condenatória do
processo sancionador estiver ainda em curso, a modificação (redução)
das sanções ou mesmo a extinção da punibilidade pode ser reconhecida
no próprio processo. A fim de se evitar tumulto processual e viabilizar-se
uma melhor tramitação, é conveniente que tal demanda seja autuada
separadamente, como medida incidental.31
Outrossim, há quem sustente que a alegação da aplicação da
retroatividade benéfica às ações de improbidade administrativa não deman-
daria rigor formal, nos moldes da revisão criminal. De fato, afirmam que,
uma vez transitada em julgado a sentença que aplicou ao agente a penali-
dade prevista na Lei de Improbidade Administrativa e sobrevindo norma
mais benéfica, seria suficiente a apresentação de petição ao juízo da exe-
cução, com a abertura de prazo para o Ministério Público se manifestar:
Mas como oportunizar tratamento adequado aos processos em curso, e como
proceder em relação aos processos cujas decisões já transitaram em julgado?
[…]
Finalmente, para os casos já decididos, com sentenças transitadas em
julgado, a solução nos parece bastante mais simples, sendo que os
subscritores deste trabalho, Diogo de Araújo Lima e Rogério Favreto
ofereceram as primeiras linhas de uma proposta de entendimento sobre
o tema, ao afirmar que não se trataria de hipótese que desafiaria a pro-
positura de ação rescisória, “bastando manifestação, com o contraditó-
rio do Ministério Público, com futura decisão”.
Parece-nos que o raciocínio está correto, e há elementos que o confirmam:
1) Como já se demonstrou, o tratamento a ser conferido

31 YARSHELL, Flávio Luiz; LUCON, Paulo Henrique dos Santos. A via processual adequada
para a revisão de sanções decorrentes de improbidade. Consultório Jurídico, [s. l.],
17 nov. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-nov-17/yarshell-lucon-
revisao-sancoes-decorrentes-improbidade. Acesso em: 8 mar. 2022.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

à Lei de Improbidade Administrativa deve ser semelhante ao conferido


às demais normas de índole sancionadora, o que significa que a norma
mais benéfica retroage para alcançar posições jurídicas pretéritas;
2) Segundo a jurisprudência do STF a sentença condenatória
não é estática, mas dinâmica, “ficando reservado ao juízo da execução
o dever de promover a correta individualização da pena”;
3) Nos termos da Súmula 611 do STF, “transitada em julgado a sentença
condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais
benigna”(grifo dos autores);
4) Se a competência para aplicar retroativamente a lei mais benéfica
é do juízo da execução, então definitivamente não se trata de hipótese
de ação rescisória, cuja competência é devolvida ordinariamente ao
tribunal ao qual pertença o juízo prolator da decisão rescindenda.
5) A desconstituição da sentença transitada em julgado, por força da
retroatividade da norma mais benéfica, não se insere em nenhuma das
hipóteses que justificariam o ajuizamento da ação rescisória, previstos
taxativamente pelo artigo 966 do CPC, como bem lembrado por
Fernando da Fonseca Gajardoni.
Diante dessas premissas, é seguro afirmar que a competência para
promover a aplicação da lei mais benéfica aos casos já decididos, com
trânsito em julgado, sob a vigência da Lei nº 8.429/92, pertence ao juízo
responsável pelo cumprimento da sentença, ao qual caberá, dadas
as circunstâncias do caso concreto: a) reduzir as sanções impostas, na
mesma proporção em que reduzidos os limites abstratos previstos a par-
tir da nova lei ou; b) extinguir a execução: b.1) nas hipóteses em que
a sanção já tiver sido integralmente cumprida, segundo os limites da nova
lei; b.2) quando o ato considerado ímprobo, e que subsidiou a condena-
ção, tenha sido revogado pela lei nova; ou b.3) quando a espécie de pena
aplicada ao agente, pelo cometimento de determinado ato de improbi-
dade, tenha sido suprimida pela nova legislação. De fato, as mudanças
imprimidas pela nova Lei de Improbidade Administrativa são muitas, mas
oferecer tratamento adequado aos processos vigentes, a fim de assegurar
tratamento justo ao jurisdicionado, frente à existência de norma mais be-
néfica, deve ser o primeiro passo. A diretriz central é uma só: “As novas
normas da Lei de Improbidade, desde que mais benéficas, devem incidir

289
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

não só nos processos em curso, mas também naqueles transitados em jul-


gado, na linha de pacífica orientação da doutrina e da jurisprudência em
torno das diretrizes de aplicação das regras do Direito Sancionador”.32
Feitas estas considerações, no campo dos processos administrativos
disciplinares, cabe analisar qual seria o mecanismo adequado para invo-
cação, pelo servidor público, da tese de retroatividade benéfica introdu-
zida pelas novas normas de improbidade administrativa.
Ao contrário do que ocorre no Direito Processual Civil, o Estatuto
dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo prevê a revisão como o
único instrumento capaz de veicular a pretensão de reconhecimento de fatos
novos, capazes de justificar a redução ou anulação das penalidades impostas
nos processos administrativos disciplinares, a teor do artigo 315, in verbis:
Artigo 315. Admitir-se-á, a qualquer tempo, a revisão de punição disci-
plinar de que não caiba mais recurso, se surgirem fatos ou circunstân-
cias ainda não apreciados, ou vícios insanáveis de procedimento, que
possam justificar redução ou anulação da pena aplicada.
§ 1º – A simples alegação da injustiça da decisão não constitui funda-
mento do pedido.
§ 2º – Não será admitida reiteração de pedido pelo mesmo fundamento.
§ 3º – Os pedidos formulados em desacordo com este artigo serão indeferidos.
§ 4º – O ônus da prova cabe ao requerente.
Nota-se a partir do texto legal que, para o deferimento do processa-
mento de revisão administrativa de processos disciplinares, é necessário o
surgimento de fatos ou circunstâncias não apreciados – chamados de “fatos
novos” – ou vícios insanáveis de procedimento. Necessário, portanto, enten-
der se a lei nova mais benéfica poderia ser tida como fato ou circunstância
“novos”, aptos a justificar o processamento de revisões administrativas.
Conforme os ensinamentos de Sérgio Ferraz e de Adilson Dallari:
O pedido de revisão não é exatamente uma manifestação de inconfor-
midade com os fundamentos e a motivação da decisão que se deseja

32 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel; RODRIGUES, João Paulo Souza; BORGES, Sabrina Nunes.
Op. cit., grifo nosso.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

modificar. Por meio do pedido de revisão o que se pretende é alterar


a situação jurídica decorrente de decisão definitiva no âmbito admi-
nistrativo, mas em função do surgimento ou da descoberta de fatos
novos, de novas provas, que justifiquem a modificação pretendida.
[…] A revisão não é um pedido de anulação da decisão proferida
anteriormente; não se alega vício jurídico naquela decisão anterior.
O que se alega é a inadequação ou a inconveniência da manutenção
da penalidade imposta, em função de dados fáticos novos, que ensejam
uma distinta configuração da base empírica da decisão revisanda,
privando-a de um de seus lastros fundamentais.33
Com base nessa premissa, “à luz do referido requisito [fatos novos],
não basta que da revisão conste alegação de fato novo ou de circuns-
tância não apreciada, sendo imperioso que os fatos e as circunstâncias
novéis apresentados tenham a aptidão probatória de demonstrar a ina-
dequação da pena aplicada” (Parecer AJG nº 490/2021).
Portanto, por essa linha de entendimento, a alteração legisla-
tiva não seria considerada propriamente “fato novo” apto a ensejar o
processamento de revisão de processos disciplinares.
A propósito do assunto, no ano de 2003, foi alterado o Estatuto
Funcional, por força da Lei Complementar estadual nº 942, suprimindo-se
a parte do dispositivo que previa a contrariedade à texto legal. Confira-se
a redação original do artigo 312 do diploma:
Artigo 312. Dar-se-á revisão dos processos findos, mediante recurso do
punido:
I — quando a decisão for contrária a texto expresso de lei ou à evidên-
cia dos autos;
II — quando a decisão se fundar em depoimento, exames ou documen-
tos comprovadamente falsos ou errados; e
III — quando, após a decisão, se descobrirem novas provas da inocên-
cia do punido ou de circunstância que autorize pena mais branda.

33 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 3. ed., São Paulo:
Malheiros, 2012, p. 306-307.

291
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

Parágrafo único — Os pedidos que não se fundarem nos casos enume-


rados no artigo serão indeferidos “in limine”.
Por outro lado, muito embora a redação atual não preveja, expressa-
mente, a possibilidade de revisão quando a decisão punitiva for contrária
ao texto expresso de lei, nos moldes da ação rescisória, pode-se entender
ser cabível o pedido revisional nas hipóteses de superveniência de lei mais
benéfica, interpretando-se de forma mais ampla o artigo 315 do Estatuto
quanto ao conceito de “fato novo”.
Dessa maneira, tornando-se definitiva a decisão punitiva, em
processo disciplinar no qual se discutia a prática de ato definido em
lei como de improbidade administrativa, caberia ao interessado arguir
a tese de superveniência de norma mais benéfica, capaz de anular ou
reduzir a penalidade imposta, por meio de revisão.
Restaria, ainda assim, analisar se tal pedido encontraria limites tem-
porais, uma vez que o artigo 315, do EFP menciona que a pretensão
poderá ser apresentada a qualquer tempo.
A Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, prevê,
em seu artigo 54, que “o direito da Administração de anular os atos
administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários
decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo
comprovada má-fé”.
Assim, de acordo com a legislação federal, o servidor público teria
o prazo de cinco anos, a contar da publicação da lei mais benéfica,
para requerer a revisão da decisão punitiva. Nessa linha de raciocí-
nio manifestou-se o C. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento
do RMS 33.484/RS, que tratava de prescrição, sedimentando
o entendimento de que a admissibilidade de revisão da penalidade
imposta, a qualquer tempo, criaria “hipótese de instabilidade que
afronta diretamente o interesse da administração pública em manter
em seus quadros apenas os servidores que respeitem as normas cons-
titucionais e infraconstitucionais no exercício de suas funções, respei-
tadas as garantias do due process”.
A respeito do assunto, merece destaque a lição de Antônio Carlos
Alencar Carvalho:

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

Efetivamente, o instituto revisional do feito administrativo, em


que pese alguma divergência doutrinária, encabeçada pela figura
de José Armando da Costa, que defende a inexistência de prazo pe-
remptório para o respectivo requerimento, não pode, concessa venia,
ser eternizado além do óbice prescricional quinquenal, no que concerne
a seus efeitos financeiros, opinião que é sufragada por doutrinadores
do porte de Caio Tácito, Themístocles Cavalcanti e Alberto Bonfim,
citados pelo também administrativista Palhares Moreira Reis, os quais
confirmam o juízo de que a flexibilidade temporal somente se estende
além do prazo prescricional quanto aos efeitos extrapatrimoniais da
decisão apenadora, no campo moral, mas sem surtir efeitos financeiros
contra a Fazenda Pública.
[…]
Parece que a observância do prazo prescricional quinquenal se afigu-
ra razoável como parâmetro para admissão, ou não, dos pedidos de
abertura de processo de revisão, ressalvados os casos em que o novo
meio de prova surja após cinco anos da aplicação da pena de demis-
são ou na hipótese de superveniência de sentença penal absolutória
vinculante da esfera administrativa (inexistência do fato ou negativa de
autoria, desde que ausente falta residual), contando-se o prazo a partir
do trânsito em julgado do decreto judicial alforriador.34 35
Fazendo um paralelo entre as legislações federal e estadual, que
tratam da revisão administrativa com contornos semelhantes, resta per-
quirir se o prazo decadencial de cinco anos se aplica, de igual modo, aos
processos administrativos disciplinares no âmbito do estado de São Paulo.
A Lei nº 10.177, de 30 de dezembro de 1998, que regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Estadual, estabelecia,
no artigo 10, inciso I, em sua redação original, que a Administração
teria o prazo de 10 (dez) anos para anular seus atos inválidos. Tal dis-
positivo, entretanto, foi julgado inconstitucional pela ADI nº 6.019,

34 CARVALHO, Antônio Carlos Alencar. Op. cit., p. 1.316-1.318.


35 No mesmo sentido, cf.: STOCO, Rui. Processo administrativo disciplinar: processo
disciplinar na administração pública, no Conselho Nacional de Justiça e nos tribunais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 131-133.

293
MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

com modulação de efeitos, para que: i) sejam mantidas as anulações já


realizadas pela Administração até a publicação da ata do julgamento de
mérito da ADI (23 de abril de 2021), desde que tenham observado o prazo
de 10 (dez) anos; ii) seja aplicado o prazo decadencial de 10 (dez) anos
aos casos em que, em 23.4.2021, já havia transcorrido mais da metade do
tempo fixado na lei declarada inconstitucional (aplicação, por analogia,
do art. 2.028 do Código Civil); e iii) para os demais atos administrativos
já praticados, seja o prazo decadencial de 5 (cinco) anos contado a partir da
publicação da ata do julgamento de mérito da ADI (23 de abril de 2021).
Adotando-se a posição da admissibilidade da revisão das decisões
punitivas transitadas em julgado, poder-se-ia argumentar que muitos
servidores condenados pela prática de ato de improbidade administra-
tiva poderiam ser reintegrados ao serviço, nos cargos outrora ocupados,
em prejuízo ao interesse público. Não se pode olvidar, entretanto, que,
na maioria dos casos, o servidor é condenado pela prática de procedimento
irregular de natureza grave, de ato definido em lei como de improbidade
administrativa e de ato definido em lei como crime, podendo a descaracte-
rização da improbidade implicar a desclassificação da conduta (para afas-
tar a demissão agravada), mas não de improcedência das acusações.
Na hipótese de a temática ser levantada em algum caso concreto, será
uma oportunidade para a manifestação da Procuradoria Administrativa,
acerca da adequada interpretação do artigo 315 do Estatuto dos Funcionários
Públicos do Estado de São Paulo, em face de alteração legislativa mais bené-
fica a condenados em processos disciplinares pela prática de ato definido em
lei como improbidade administrativa, assim como eventualmente o limite
temporal para a apresentação do pedido administrativo.

6. CONCLUSÃO

Neste artigo, fizemos um breve retrospecto das jurisprudências


administrativa e pretoriana acerca da aplicação do princípio da retroa-
tividade benéfica no campo do Direito Sancionador, à luz das recentes
alterações produzidas na Lei de Improbidade Administrativa, pela Lei
Federal nº 14.230/2021.
Como visto, a referida Lei trouxe diversas disposições mais
benéficas aos acusados por improbidade administrativa, entre elas:

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 259-300, jan./jun. 2022

a exigência do dolo específico para configuração do ato de improbi-


dade, em qualquer de suas modalidades, a exclusão da conduta culposa
e a redução do prazo prescricional.
Se a incidência (ou não) das normais mais favoráveis será aplicável
aos processos em curso ou findos, quando da entrada em vigor da
nova Lei, é um tema que, espera-se, venha a ser definido com a maior
brevidade possível pelo Supremo Tribunal Federal. E, a depender do
resultado do julgamento da Repercussão Geral – tema nº 1199, é possível
que ocorra também uma revisitação da jurisprudência administrativa
da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo.
Por outro lado, mesmo que haja eventual definição da aplicabilidade
do princípio da retroatividade benéfica aos processos administrati-
vos disciplinares, notamos que restaria ainda outro debate quanto aos
processos já decididos e sem mais pendência de recurso. Nesse ponto
já há divergência doutrinária instalada, na esfera do processo civil,
quanto ao instrumento adequado quando há condenação judicial: ação
rescisória (artigo 966, CPC), revisão de sentença sobre relação jurídica
de trato continuado (artigo 505, inciso I, CPC) ou manifestação simples,
perante o juízo da execução.
Já no campo disciplinar, apesar de não termos profícua produção
literária a respeito do assunto, certo é que se esbarra nas disposições
do artigo 315 do Estatuto local, que traz os requisitos para a revisão
administrativa. A solução, no estado de São Paulo, nessa hipótese, depen-
derá do sentido a ser conferido na interpretação do requisito “fato novo”.
Por fim, buscamos analisar possível recorte temporal, caso venha
a ser admitido o processamento de revisão administrativa para aná-
lise da tese de aplicação retroativa das normas de improbidade
administrativa mais benéficas aos servidores condenados em processos
disciplinares, pois, em que pese a norma prever que o pedido possa
ser apresentado “a qualquer tempo”, entendemos que seria necessária
uma análise sistêmica do ordenamento jurídico, para que se garanta um
mínimo de estabilidade e segurança jurídica à Administração Pública.
Nesse sentido, destacamos o prazo quinquenal decorrente da Lei esta-
dual nº 10.177/1998, conjugada com o julgamento da ADI nº 6.019,
pelo Supremo Tribunal Federal.

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MELISSA DI LASCIO SAMPAIO E SUZANE RAMOS ROSA ESTEVES

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299
IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA:
EVOLUÇÃO PATRIMONIAL
INCOMPATÍVEL

José Carlos Cabral Granado1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Improbidade administrativa; 2.1


– Conceito; 2.1.1 – Sujeitos; 2.1.2 – Elemento subjetivo; 2.1.3 – Elementos
objetivos; 2.1.4 – Tipicidade; 2.2 – Natureza jurídica; 2.3 – Improbidade
administrativa e infração disciplinar; 3 – Evolução patrimonial
incompatível; 3.1 – Ato de improbidade que cause enriquecimento ilícito;
3.2 – Enriquecimento ilícito por evolução patrimonial incompatível;
3.2.1 – Generalidades e histórico; 3.2.2 – Incidência da evolução
patrimonial incompatível; 3.2.3 – Ônus da prova; 3.2.4 – Declaração
de bens; 4 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho trata de uma exposição da improbidade


administrativa e da evolução patrimonial incompatível do agente
público, à luz da Constituição Federal e da Lei nº 8.429/92, bem como as
grandes alterações contidas na recente Lei nº 14.231/21. Por outro lado,
procurar-se-á analisar a possibilidade da evolução patrimonial, também,
como uma infração disciplinar.

PALAVRAS-CHAVE: Improbidade Administrativa. Enriquecimento


ilícito. Evolução patrimonial incompatível.

1 Procurador do Estado de São Paulo desde 1994. Mestre em Direito Processual Penal pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Especialista em Direito Processual
Civil pela Escola Superior da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo (ESPGE).

301
José Carlos Cabral Granado

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho inicia-se com o conceito de improbidade administra-


tiva, seus elementos e sua natureza jurídica, fazendo uma comparação
dessa improbidade com a infração disciplinar.
Posteriormente, será analisada a evolução patrimonial incompatí-
vel como ato de improbidade por enriquecimento ilícito, verificando se
é possível sua incidência como falta disciplinar pura, ou se é necessá-
ria uma exata coincidência com a previsão constante do artigo 9º, inci-
so VII, da Lei de Improbidade Administrativa (LIA).

2. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

2.1. Conceito

Já na época do antigo Império Romano, o pensador Júlio César


expressava a célebre frase: “A mulher de César não basta ser honesta,
deve parecer honesta”.
Essa ideia de honestidade sempre irradiou intensamente para o serviço
público, posto lidar invariavelmente com bens e direitos pertencentes a toda
a sociedade, sendo obrigação daqueles que exercem suas funções, direta
ou indiretamente, possuir cuidado redobrado no trato da coisa pública, de
forma, inclusive, mais acentuada do que na área privada, posto que, nes-
ta, eventual prejuízo será arcado pelo patrimônio individual, pertencente a
pessoa física ou jurídica, e naquela prejudicará toda a sociedade.
Por tudo isso, todo o servidor público possui o dever de probidade no
exercício de suas funções, que, no mais das vezes, significa honestidade. Esse
dever abarca tanto o zelo pelo patrimônio público como o comportamento
íntegro, no sentido de seus atos sempre visarem o interesse público, deixan-
do de lado a satisfação de eventuais predileções, suas ou de terceiros.
Evidente que o rompimento ao dever de probidade é um dos mais graves
dentro do serviço público, cuja incidência deve ser exemplarmente punida.
Costuma-se chamar de improbidade administrativa exatamente o
rompimento ao dever de probidade no serviço público.
A ideia de improbidade administrativa está diretamente ligada à
corrupção no serviço público, cujo sentido é mais amplo do que aquele

302
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

definido pelo artigo 317 do Código Penal, posto se tratar da utilização


da função pública para angariar benefícios para si ou para outrem, o que
convencionou-se chamar de vantagem indevida.
Igualmente, a improbidade administrativa deve abarcar a má ges-
tão da coisa pública, ou seja, a ineficiência administrativa, aqui, evi-
dentemente, como nos ensina Fabio Medina Osório, deve ser separada
para “aqueles fenômenos mais graves, aproximando-se dos casos de
desonestidades funcionais”2.
Não é só: a improbidade administrativa também deve encampar o
comportamento que viola os princípios mais importantes para a admi-
nistração pública, como a própria honestidade, legalidade, moralidade,
imparcialidade e lealdade.
Nossa legislação, como se verá mais adiante, somente passou a
exigir um tratamento específico para a improbidade administrativa na
Constituição Federal de 1988. Sem embargo, anteriormente, já havia
leis que tratavam do tema, destacando-se a Lei nº 3.502, de 21 de
dezembro de 1958, confeccionada por Bilac Pinto, resumida, abaixo,
pelo autor já citado:
A Lei n° 3.502, de 21.12.1958, de plausível influência anglo-saxônica,
confeccionada pelo saudoso Bilac Pinto, tratou dos casos de enrique-
cimento ilícito dos funcionários públicos, no exercício das funções.
Não se tratou expressamente da improbidade, mas sim dos casos de
corrupção, que julgamos ser uma espécie de improbidade adminis-
trativa, tipificando-se as condutas corruptas desde uma perspectiva
extrapenal. Seus tipos sancionadores constituem, entretanto, a base
da legislação que posteriormente tratou do tema da improbidade.
A única “sanção” prevista era a perda dos bens adquiridos ilicitamen-
te e o ressarcimento ao erário. Bilac Pinto, com nítida inspiração no
direito norte-americano, valendo-se de cláusulas gerais e usando o
modelo dos Códigos de Conduta, buscou institucionalizar uma ferra-
menta anticorrupção no sistema brasileiro.3

2 OSÓRIO, Fábio Medina. Teoria da improbidade administrativa: má gestão pública,


corrupção, ineficiência. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 63.
3 Ibidem, p. 135.

303
José Carlos Cabral Granado

Como foi dito, apesar de nossa legislação reprimir o comportamen-


to ímprobo, foi com a constituição cidadã que houve expressa referência
à improbidade administrativa como a mais grave violação aos deveres
do servidor público, merecendo as penas mais severas, assim determi-
nando em seu artigo 37, § 4º:
Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos
direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade
dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas
em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Referido dispositivo constitucional, de eficácia limitada, criou o ter-
mo atos de improbidade administrativa, cuja incidência importará sus-
pensão dos direitos políticos, perda da função pública, indisponibilidade
dos bens e ressarcimento ao erário sem, contudo, tipificá-los, deixando
essa missão para a lei infraconstitucional.
Passados quase quatro anos de nossa Constituição Federal, em cum-
primento à determinação acima, entrou em vigor a Lei nº 8.429, de 2 de
junho de 1992, que tratou dos atos de improbidade administrativa.
Recentemente, referida lei foi extensamente alterada pela Lei
nº 14.230, de 25 de outubro de 2021, que, quanto aos atos de improbida-
de administrativa, dentre outras mudanças, retirou a modalidade culposa
na descrição de seus tipos, exigindo, sempre, comportamento doloso.
A referida lei não se preocupou em definir a improbidade adminis-
trativa, cabendo à doutrina e jurisprudência sua conceituação.
Marçal Justen Filho, já com base nessa nova lei, assim define a im-
probidade administrativa:
A improbidade pode ser definida como uma ação ou omissão dolosa,
violadora do dever constitucional de probidade no exercício da fun-
ção pública ou na gestão de recursos públicos, que acarreta a imposi-
ção pelo Poder Judiciário de sanções políticas diferenciadas, tal como
definido em lei.4

4 JUSTEN FILHO, Marçal. Reforma da lei de improbidade administrativa: comparada e


comentada. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 33.

304
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

Dessa forma, podemos conceituar a improbidade administrativa


como um comportamento doloso, mediante ação ou omissão, definido
em lei, que viola o dever de probidade do servidor público, importando
na obtenção de vantagem indevida, ineficiência na gestão com lesão ao
erário ou violação aos princípios de honestidade, legalidade, moralidade,
imparcialidade e lealdade, cuja sanção administrativa será aplicada pelo
Poder Judiciário.
Com o desmembramento desse conceito, temos as seguintes figu-
ras a serem analisadas: a) sujeitos; b) elemento subjetivo; c) elementos
objetivos; d) tipicidade.

2.1.1. Sujeitos

A vítima nos atos de improbidade será sempre o ente lesado,


abarcando as pessoas jurídicas de direito público da União, Estados e
Municípios, bem como a administração indireta nos exatos termos do
artigo 1º, § 5º, da Lei nº 8.429/925, além das empresas privadas que re-
cebam dinheiro público dessas entidades6.
Os autores do ato de improbidade serão as pessoas elencadas
pelo artigo 2º, caput, deste diploma legal, que abarcam “agente pú-
blico o agente político, o servidor público e todo aquele que exerce,
ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomea-
ção, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura
ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades referi-
das no art. 1º desta Lei”7.

5 “Art. 1º, § 5º. Os atos de improbidade violam a probidade na organização do Estado e


no exercício de suas funções e a integridade do patrimônio público e social dos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como da administração direta e indireta, no âmbito
da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal” (BRASIL. Lei nº 8.429 de
2 de junho de 1992. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de
improbidade administrativa; e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1,
Brasília, DF, p. 6993, 3 jun. 1992, art. 1º, § 5º).
6 “§ 6º. Estão sujeitos às sanções desta Lei os atos de improbidade praticados contra o
patrimônio de entidade privada que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou
creditício, de entes públicos ou governamentais, previstos no § 5º deste artigo” (Ibidem,
art. 1º, § 6º).
7 Ibidem, art. 2º.

305
José Carlos Cabral Granado

A Lei nº 14.230/21 inovou ao ampliar como sujeito ativo o particular,


pessoa física ou jurídica, que receba valores das vítimas acima elencadas
“na celebração de convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo
de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente”8.
É possível a existência de concurso de pessoas com a participação de
particular que, de qualquer forma, auxilie o agente público na prática de
ato de improbidade administrativa, nos termos previstos pelo artigo 3º.

2.1.2. Elemento subjetivo

Houve várias discussões doutrinárias e jurisprudenciais sobre a


possibilidade de sancionar o comportamento culposo na improbidade
administrativa, prevalecendo o entendimento pelo Superior Tribunal
de Justiça de que somente os atos de improbidade que importem em
malversação da coisa pública, definido no artigo 10 da Lei nº 8.429/92,
tendo em vista sua expressa disposição legal, poderiam ser apenados
nessa modalidade9. No entanto, mesmo assim, era exigível a configura-
ção de, no mínimo, culpa grave10.

8 Ibidem, art. 2º.


9 “O entendimento do STJ é de que, para que seja reconhecida a tipificação da conduta
do réu como incursa nas previsões da Lei de Improbidade Administrativa, é necessária a
demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos
nos artigos 9º e 11 e, ao menos, pela culpa nas hipóteses do artigo 10” (BRASIL. Superior
Tribunal de Justiça (2. Turma). Recurso especial 1820364/MT. Recorrente: Evandro Bendito
Escorisa; Vilma Vaete Sasso; Claudio Salles Picchi; Wanderlei Farias Santos. Recorrido:
Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Relator: Ministro Herman Benjamin, 2 de
março de 2021. Diário da Justiça eletrônico 1 jul. 2021, p. 1).
10 O termo culpa grave é muito genérico, sendo preferível adotar a ideia de culpa consciente,
na exata definição de Zaffaroni:
“Chama-se culpa com representação, ou culpa consciente, aquela em que o sujeito ativo
representou para si a possibilidade da produção do resultado, embora a tenha rejeitado,
na crença de que, chegado o momento, poderá evitá-lo ou simplesmente ele não ocorrerá.
Este é o limite entre a culpa consciente e o dolo (dolo eventual, ver n. 265). Aqui há um
conhecimento efetivo do perigo que correm os bens jurídicos, que não se deve confundir
com a aceitação da possibilidade de produção do resultado, que é uma questão relacionada
ao aspecto volitivo e não ao cognoscitivo, e que caracteriza o dolo eventual. Na culpa com
representação, a única coisa que se conhece efetivamente é o perigo” (ZAFFARONI, Eugenio
Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 517).

306
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

No entanto, este autor partilha do entendimento de que a improbi-


dade, por se tratar da violação administrativa mais grave praticada pelo
servidor público no exercício de suas funções, e que, segundo entendi-
mento pacífico na doutrina e jurisprudência, deve ser seguida de má-fé,
há incompatibilidade entre o simples rompimento ao dever de cuidado,
mesmo que haja representação da possibilidade da ocorrência do resul-
tado, com a prática do ato de improbidade administrativa, devendo-se
sempre exigir um comportamento doloso.
Nesse sentido, em boa hora, a Lei nº 14.230/21 vedou a possibili-
dade de punição ao comportamento culposo, expressando em todos os
seus tipos que ele somente incide na forma dolosa, afirmando no seu ar-
tigo 1º, § 2º, que o dolo se consubstancia na “vontade livre e consciente
de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei,
não bastando a voluntariedade do agente”11.
Como nos ensina Marçal Justen Filho:
Apenas existe improbidade nos casos em que o agente estatal tiver cons-
ciência da natureza indevida da sua conduta e atuar de modo consciente
para produzir esse resultado. Ou seja, a improbidade é uma conduta ne-
cessariamente dolosa. Assim se impõe porque a configuração da desones-
tidade depende da consciência e da vontade de violar um dever moral.12

2.1.3. Elementos objetivos

A improbidade administrativa possui elementos que sempre a inte-


gram e outros que aparecem conforme a espécie do ato improbo.
Segundo nos ensina Fábio Medina Osório:
Toda e qualquer conduta ímproba reflete uma forma de ilegalidade,
imoralidade e de deslealdade institucional, eis uma das fundamentais
assertivas deste trabalho, rumo a uma conceituação mais densa e con-
sistente do dever de probidade.13

11 BRASIL, 1992, art. 1º, §2º.


12 JUSTEN FILHO, op. cit., p. 44.
13 OSÓRIO, 2020, p. 160.

307
José Carlos Cabral Granado

Dessa forma, a improbidade sempre viola o dever de legalidade,


posto que toda a administração deve ser regulada por normas, que in-
cluem da Constituição Federal a uma mera portaria, sendo conhecida a
expressão que ela “não pode fazer nada a não ser o que a lei determina”14.
Assim, é inconcebível que o ato improbo se dê em conformidade com a
lei, não sendo possível que o comportamento pautado na norma confi-
gure em desonestidade ou grave ineficiência.
Do mesmo modo, a improbidade sempre configura uma imorali-
dade e deslealdade administrativa, sendo que o agente, ao praticar um
ato improbo “trai o dever de lealdade institucional, incorrendo em uma
vulneração de normas de moral administrativa”15.
Outros elementos podem ou não aparecer, em conjunto ou separa-
do, conforme a espécie do ato de improbidade administrativa. Assim,
na existência de enriquecimento ilícito sempre haverá a presença da van-
tagem indevida; a ineficiência, na lesão ao erário público; a violação
aos princípios da honestidade e imparcialidade nos atos definidos no
artigo 11 da Lei nº 8.429/92.

2.1.4. Tipicidade
Por se tratar da espécie mais grave de ilícito administrativo, é im-
prescindível que haja previsão legal quanto aos atos de improbidade
administrativa; nesse sentido, o exige a própria Constituição Federal em
seu artigo 37, § 4º.
Via de regra os atos de improbidade administrativa estão previstos
nos artigos 9º, 10 e 11, formando três grupos: a) produção de enrique-
cimento ilícito16; b) lesão patrimonial ao erário público17; infração aos
princípios fundamentais da administração18.
Observa-se, no entanto, que a própria LIA, em seu artigo 1º, § 1º,
admite a possibilidade de eles serem previstos em leis especiais.

14 Ibidem, p. 153.
15 Ibidem, p. 163.
16 BRASIL, 1992, art. 9º.
17 Ibidem, art. 10.
18 Ibidem, art. 11.

308
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

A técnica da criação dos tipos de improbidade em seus dois primei-


ros grupos admite ampliação das hipóteses, posto que há uma descrição
geral no caput e exemplos específicos dos atos nos demais incisos, o que
não ocorre no último, em que somente ocorrerá a infração nas descri-
ções constantes nos incisos.
De qualquer forma, tendo em vista que o ato de improbidade
importa em violação à legalidade, diante das inúmeras disposições
normativas espalhadas em todos os entes da federação, os referidos
tipos são normas em branco, ou seja, sua constatação não se limita à
simples subsunção aos artigos 9º a 11, sendo imprescindível que, antes
da incidência do específico ato de improbidade, seja verificada qual
a ilegalidade praticada em face da legislação que rege a atividade do
agente público.
Este é o ensinamento de Fábio Medina Osório, do qual este autor
compartilha:
Conceituamos a LGIA como um instrumento composto de normas sancio-
nadoras em branco, aptas a absorver a incidência das legislações setoriais.
Não existe improbidade administrativa sem que haja, antes, subja-
centemente, uma violação das normas setoriais. Não pode existir im-
probidade administrativa por meio da violação direta das normas da
própria LGIA. Se aceitássemos tal hipótese, estaria aberta a via de
uma grave insegurança jurídica. Os princípios podem ostentar funcio-
nalidade normativa de controle da validez dos atos administrativos,
mas jamais uma função autônoma de suporte aos tipos sancionadores
da Lei Federal 8.429/92.19

2.2. Natureza jurídica

Quando se fala da natureza jurídica da improbidade adminis-


trativa, deve-se olhar em direção à espécie de sanção que ela produz
e, por conta disto, analisar qual o nível de garantias que deverá ser
dado para aplicá-las.

19 OSÓRIO, 2020, p. 331.

309
José Carlos Cabral Granado

Nesse sentido, segundo o Ministro José Augusto Delgado20, existem


três correntes firmadas: a) trata-se de sanção administrativa e patrimo-
nial, isto é, cível em sentido lato; b) encerra preponderantemente conte-
údo de Direto Penal; c) mista, ou seja, depende do sujeito ativo que pra-
ticar o ato improbo: caso seja autoridade passível da prática de crime de
responsabilidade será penal; nos demais, administrativa e patrimonial.
José Armando da Costa21, defensor da primeira corrente, ensina
que em nosso ordenamento jurídico possuímos cinco espécies de
improbidade: a) improbidade trabalhista; b) improbidade político-
-administrativa; c) improbidade disciplinar; d) improbidade penal;
e) improbidade civil ou administrativa.
Com relação a esta última, que vem prevista na Lei nº 8.429/92,
referido autor pontua:
Agora, sim, a improbidade administrativa adquiriu realmente feitio
legal de infração jurídica-disciplinar capaz de ensejar a demissão do
servidor público que exterioriza desvio de conduta enquadrada no do-
mínio de incidência dos tipos de improbidade previstos nos arts. 9º,
10 e 11 da mencionada lei.22
A corrente que defende a natureza jurídica penal da improbidade
administrativa é francamente minoritária, podendo-se citar, conforme in-
formado pelo Ministro José Augusto Delgado, quando cita obra de Fábio
Medina Osório, a existência do “Habeas Corpus nº 69680355, aprecia-
do pela 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, relatado pelo Des. Luiz Ubiraça Machado, julgado em 17.12.1996,
como tendo adotado essa linha de entendimento”23.
Segundo consta, referida ação determinou o trancamento da ação
civil pública contra Prefeito Municipal, tendo por fundamento que a
Lei nº 8.429/92 teria natureza criminal, aplicando em favor do autor o

20 DELGADO, José Augusto. Improbidade administrativa: algumas controvérsias doutrinárias


e jurisprudenciais sobre a lei de improbidade administrativa. Informativo Jurídico da
Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, Brasília, DF, v. 14, n. 1, p. 21-42, 2002.
21 COSTA apud DELGADO, op. cit.
22 Ibidem, p. 22.
23 OSÓRIO apud DELGADO, op. cit., p. 24.

310
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

disposto no artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal. Porém, essa


decisão foi reformada pelo pleno desse Tribunal, em julgamento de con-
flito de competência, fixando entendimento de que sua natureza era civil
e que a Vara Criminal era incompetente para seu julgamento.
Ainda sob o aspecto jurisprudencial, José Augusto Delgado informa
que o Superior Tribunal de Justiça, por maioria, afastou a tese da natu-
reza penal da improbidade administrativa, sendo que no Julgamento da
Reclamação 591/SP, por meio do voto de desempate do Ministro Nilson
Naves, afastou o foro de prerrogativa de função de Desembargador do
Tribunal Regional do Trabalho, fixando o seguinte entendimento:
3. Conquanto caiba ao STJ processar e julgar, nos crimes comuns e nos
de responsabilidade, os membros dos Tribunais Regionais do Trabalho
(Constituição, art. 105, l, a), não lhe compete, porém, explicitamente,
processá-los e julgá-los por atos de improbidade administrativa.
Implicitamente, sequer, admite-se tal competência, porquanto, aqui,
trata-se de ação civil, em virtude de investigação de natureza civil com-
petência, portanto, de juiz de primeiro grau.24
Importante destacar que há tendência nos Tribunais Superiores de
assumir a posição mista, considerando o ato de improbidade das au-
toridades passíveis de responder por crime de responsabilidade, como
se praticassem esse delito, devendo o processamento e julgamento ser
remetido às respectivas cortes, conforme se vê em interessante artigo do
Ministro Gilmar Mendes25.
Este subscritor conclui que, apesar das penas impostas no artigo 12
da LIA, elas não possuem natureza penal, pois não impõem ao condena-
do a submissão à perda de liberdade, não se tratando de pena privativa.
O fato dessas penalidades aproximarem-se dos efeitos da conde-
nação previstos nos artigos 91 e seguintes do Código Penal não interfe-
rem em sua natureza de sanção administrativa, posto que a improbidade
visa diretamente a aplicação das penas de perda da função pública ou

24 BRASIL apud DELGADO, p. 26.


25 MENDES, Gilmar Ferreira. A improbidade administrativa pelo supremo tribunal federal.
In: MARQUES, Mauro Campbell (coord.). Improbidade administrativa: temas atuais e
controversos. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 113-141.

311
José Carlos Cabral Granado

mandato, suspensão dos direitos políticos, valores acrescidos ilicitamen-


te com a prática do ato, multa civil e proibição de contratar e receber
incentivos fiscais, aplicadas conjunta ou separadamente, não se tratando
de efeito secundário de uma sentença condenatória.
Apesar de, indiscutivelmente, tratar-se de uma ação civil, há uma
peculiaridade na improbidade administrativa, muito bem observada por
Fábio Medina Osório.
Referido autor afirma que o Estado exerce seu poder punitivo de
diversas formas, sendo a sanção administrativa uma delas, ao lado do
próprio Direito Penal. De qualquer forma, todas as vezes em que a ad-
ministração aplica uma punição, ela está exercendo o que chamamos
de jus puniendi.
Por isso, ele defende que o tratamento da sanção administra-
tiva deve ser destacado em um ramo próprio, denominado Direito
Administrativo Sancionador.
Quanto à sanção administrativa propriamente dita, afirma que:
Antes de analisar o conceito mencionado, cabe reconhecer que tal
proposta teórica sinaliza quatro elementos fundamentais na estrutu-
ração da sanção administrativa, numa dimensão tipicamente europeia,
da qual, a priori, somos herdeiros: a) autoridade administrativa
(elemento subjetivo); b) efeito aflitivo da medida em que se exterioriza
(elemento objetivo), subdividindo-se, nesse tópico, em: b1) privação de
direitos preexistentes e b2) imposição de novos deveres; c) finalidade
repressora (elemento teleológico) consistente na repressão de uma con-
duta e no restabelecimento da ordem jurídica; d) natureza administra-
tiva do procedimento (elemento formal).26
Especificamente quanto às penas impostas pela Lei de Improbi-
dade Administrativa, apesar de sua aplicação ser realizada por uma
autoridade judicial27, em uma ação civil, o autor defende que, mesmo

26 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito administrativo sancionador. 8. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2022, p. 91.
27 Quanto à possibilidade de a autoridade judiciária eventualmente aplicar uma sanção
administrativa, assim nos ensina Fábio Medina Osório: “Não configura, portanto, elemento
indissociável da sanção administrativa a figura da autoridade administrativa, visto que

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assim, se trata de uma sanção administrativa, abarcada pelo Direito


Administrativo Sancionador.
A própria LIA em sua mais recente reforma deixou expressamente
assentado que “aplicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta
Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador”28.
Dessa forma, apesar de não se tratar de direito penal, a sanção na im-
probidade administrativa, por exteriorizar o jus puniendi do Estado, deve
absorver a maioria de suas garantias, mormente o devido processo legal.
Nesse sentido, importante lição trazida pelo autor citado:
A improbidade contemplada no art. 37, § 4º, da Magna Carta, é disci-
plinada pelo direito administrativo sancionador, ao passo que a ação
civil pública de improbidade administrativa tem natureza punitiva,
inserindo-se nos domínios do Direito Processual Civil Público Punitivo,
o que significa submetê-la explicitamente, por força do devido pro-
cesso legal, à garantia de interdição à arbitrariedade e da legalidade
que embasam o Estado Democrático de Direito, aos direitos e garan-
tias fundamentais assegurados aos acusados em geral e aos princípios e
regras do Direito Administrativo Sancionador. Refiro-me, mais concre-
tamente, aos princípios da legalidade, culpabilidade, tipicidade, especia-
lidade, subsidiariedade, alternatividade, consunção, proporcionalidade,
isonomia, razoabilidade, contraditório, ampla defesa, individualização da
pena e presunção de inocência, além do devido processo legal.29

2.3. Improbidade administrativa e infração disciplinar

Grande parte dos servidores públicos, ao ingressarem na admi-


nistração, seja por meio de concurso público ou cargo comissionado,
faz adesão a um estatuto, que regula seus direitos e deveres, tais quais,

podem as autoridades judiciárias, de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que
outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo
Direito Administrativo” (Ibidem, p. 99).
28 BRASIL, 1992, art. 1º, § 4º.
29 OSÓRIO, Fábio Medina. A inter-relação das decisões proferidas nas esferas administrativas,
penal e civil no âmbito da improbidade. In: MARQUES, Mauro Campbell (coord.).
Improbidade administrativa: temas atuais e controversos. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 94.

313
José Carlos Cabral Granado

forma de exercício, contagem de tempo de serviço, promoção, vantagens


pecuniárias, licenças, férias etc.
Além desses direitos, invariavelmente, esses estatutos possuem uma
parte que se dedica às hipóteses de rompimento com os deveres e proibi-
ções e a prática de condutas tidas como intoleráveis pela administração
pública, bem como suas consequências, que, no mais das vezes, variam
desde uma mera repreensão, advertência ou censura, passando pela pena
de suspensão, até a demissão ou cassação da aposentadoria, sendo que
algumas leis, como no caso do estado de São Paulo, criam, ainda, a figura
da demissão a bem do serviço público.
Chama-se de infração disciplinar o rompimento desses deveres,
proibições e a prática de condutas tidas como intoleráveis pela adminis-
tração pública, com a consequente punição.
Essa infração é uma espécie de ilícito administrativo, que apresenta
a mesma estrutura do ilícito civil, na exata definição de Maria Sylvia
Zanella Di Pietro:
O servidor responde administrativamente pelos ilícitos administrativos
definidos na legislação estatutária e que apresentam os mesmos elemen-
tos do ilícito civil: ação ou omissão contrária à lei, culpa ou dolo e dano30.
Evidente que, por se tratar de uma estrutura semelhante ao ilícito
civil, ela não exige, tal qual o crime, a presença da tipicidade, bastando
que o servidor público descumpra algum dever ou proibição imposto na
legislação, como por exemplo, “ser assíduo e pontual”31, sem a neces-
sidade de uma descrição de como se dará a infração disciplinar, com a
explicitação dos elementos subjetivos e objetivos.
Mais uma vez reporta-se aos ensinamentos de Maria Sylvia Zanella
Di Pietro sobre o tema:
Não há, com relação ao ilícito administrativo, a mesma tipicidade que
caracteriza o ilícito penal. A maior parte das infrações não é definida

30 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 520.
31 SÃO PAULO. Lei nº 10.261 de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1,
São Paulo, p. 2, 29 out. 1968, art. 241, inc. I.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

com precisão, limitando-se a lei, em regra, a falar em falta de cumpri-


mento dos deveres, falta de exação no cumprimento do dever, insubor-
dinação grave, procedimento irregular, incontinência pública; poucas
são as infrações definidas, como o abandono de cargo ou os ilícitos que
correspondem a crimes ou contravenções.32
A consequência da prática da infração disciplinar, que será apura-
da mediante regular processo, importa uma sanção administrativa e, por
isso, como já referido acima, trata-se do exercício do jus puniendi estatal,
fazendo parte daquilo que se convencionou enquadrar como Direito
Administrativo Sancionador, com todos os reflexos das garantias constitu-
cionais, muitas delas importadas do Direito Penal, como o devido proces-
so legal, direito ao contraditório e ampla defesa, proporcionalidade, razo-
abilidade, individualização da pena, presunção de inocência, entre outros.
Os atos de improbidade administrativa previstos na Lei nº 8.429/92,
sem exceção, importam em infração disciplinar, sendo que várias leis,
como o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo,
tratam especificamente deles, determinando aplicação da pena de de-
missão a bem do serviço público33. No entanto, diante da atipicidade
da infração disciplinar, é possível a prática da chamada improbidade
disciplinar, sem que tal ato esteja especificamente descrito na LIA, como
ocorre, explicitamente, no Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis
da União, que já previa o ato de improbidade como causa de demissão
no artigo 132, inciso IV, da Lei nº 8.112/90.
No caso do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São
Paulo (Lei Estadual nº 10.261/1968), apesar de não haver menção expressa
à improbidade como infração disciplinar, independentemente da LIA, ela
ocorre diante da violação ao dever de honestidade, seja por meio do rompi-
mento dos deveres dispostos no artigo 241, destacando-se o de guardar sigi-
lo sobre os assuntos da administração (inc. IV e art. 257, inc. III34) e proce-
der na vida pública e privada na forma que dignifique a função (inc. XIV);

32 DI PIETRO, op. cit., p. 520.


33 A Lei Estadual nº 10.261/68 prevê como pena de demissão a bem do serviço público praticar
ato definido em lei como de improbidade (SÃO PAULO, op. cit., art. 257, inc. XIII).
34 Dependendo do grau da violação pode haver incidência no artigo 257, inc. III, da Lei
nº 10.261/68.

315
José Carlos Cabral Granado

nas proibições dos artigos 242 e 243, como empregar material do serviço
público em serviço particular (art. 242, inc. VIII) e lograr proveito por meio
do exercício do cargo (art. 243, inc. XI e art. 257, inc. VIII); bem como nos
atos intoleráveis descritos no artigo 257, como a prática de crimes contra
a administração e fé pública (inc. II e inc. IX), lesar o patrimônio e cofres
públicos (inc. VI), recebimento de propinas (inc. VII); e pratica de lavagem
ou ocultação de bens, direitos ou valores (inc. XII).
Sendo infração disciplinar, é possível que o servidor público respon-
da cumulativamente, pelo mesmo ato de improbidade, tanto na esfera
civil como na disciplinar, podendo perder o cargo naquela e ser demitido
nesta, o que não representará bis in idem.
Isso ocorre em razão da independência dos poderes previsto no
artigo 2º da Constituição Federal. No caso do estado de São Paulo,
há previsão expressa no artigo 250, § 1º, de que “a responsabilidade
administrativa é independente da civil e da criminal”35.
Evidente que essa independência não pode ser encarada de
forma absoluta, havendo casos em que a decisão judicial repercute na
administrativa, nos exatos termos previstos pelo artigo 935 do Código
Civil, ao afirmar que haverá repercussão desta naquela quando, de forma
absoluta e definitiva, o juízo criminal afastar a autoria ou a existência do
fato, sem prejuízo de, na decisão administrativa, haver algum resíduo da
falta, ou seja, a sanção administrativa não se conter tão somente no crime
analisado pelo Poder Judiciário, nos exatos termos da Súmula 18 do STF.36
A par da independência das instâncias, é imprescindível a existência
de colaboração entre as autoridades que apuram o ato de improbidade
administrativa, auxiliando na produção de provas, a fim de que, dentro do
possível, se harmonizem as decisões, evitando contrariedade entre ambas.
Além da improbidade como infração disciplinar, ela também pode
ser considerada como justa causa para o rompimento do contrato de
trabalho, prevista no artigo 482, alínea “a”, da Consolidação das Leis
do Trabalho, que diz:

35 Ibidem, art. 250.


36 “Pela falta residual, não compreendida na absolvição pelo juízo criminal, é admissível a
punição administrativa do servidor público”.

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Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho


pelo empregador:
a) ato de improbidade;37

É o que a doutrina convencionou chamar de improbidade trabalhista,


que possui uma conceituação mais ampla do que a administrativa,
pois se relaciona a todos os atos desonestos praticados pelo empregado
durante o contrato de trabalho, como furto, adulteração de documentos
pessoais ou pertencentes ao empregador, recebimento de propina etc.
No caso de empregado público contratado no estado de São Paulo,
na administração direta, autárquica e fundacional, que pratique ato de
improbidade administrativa previsto na LIA, além de poder responder
pela respectiva ação civil de improbidade, concomitantemente, sofrerá
processo sancionatório previsto nos artigos 62 e seguintes da Lei Esta-
dual nº 10.177/98, visando a rescisão do contrato por justa causa.

3. EVOLUÇÃO PATRIMONIAL INCOMPATÍVEL

3.1. Ato de improbidade que cause enriquecimento ilícito

O artigo 9º da Lei nº 8.429/92 inaugura a descrição dos tipos de


improbidade administrativa, mais comumente chamados de atos de impro-
bidade administrativa, sendo que o caput traça seus elementos essenciais
e os incisos seguintes descrevem doze formas específicas de sua incidência,
sem, contudo, esgotá-las.
Essa espécie de ato de improbidade é a mais grave de todas, pois,
nos dizeres de Marino Pazzaglini Filho, “contempla o comportamento
torpe do agente público que desempenha funções públicas de sua atri-
buição de forma desonesta e imoral”38.
Apesar de necessariamente não constituir elemento do tipo, como
ocorre no artigo 11 dessa mesma lei, o dever de honestidade, que caracteriza

37 BRASIL. Consolidação das leis do trabalho – CLT e normas correlatas. Brasília, DF: Senado
Federal, 2017, p. 80.
38 PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de improbidade administrativa comentada: aspectos
constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal.
7. ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 53.

317
José Carlos Cabral Granado

a própria probidade, é frontalmente violado, pois, nesse caso, o autor do ato


faz do serviço público um balcão de negócios, deturpando a finalidade últi-
ma do exercício de suas funções, que é a concretização do interesse público.
Trata-se do agente público que trai o mais comezinho dever para
com a Administração Pública, buscando potencializar seus ganhos
por meio da venda do seu serviço em favor de interesses espúrios de
particulares, que buscam facilidades perante a Administração Pública,
ou mediante apropriação do erário público, infringindo os princípios
basilares insculpidos no artigo 37 da Constituição Federal: legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Atualmente, após a edição da Lei nº 14.230/21, assim reza o artigo 9º,
caput, da Lei nº 8.429/92:
Art. 9º. Constitui ato de improbidade administrativa importando em
enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qual-
quer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de
cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entida-
des referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente […].39
O artigo acima trouxe poucas alterações com relação à redação
anterior, sendo que a mais expressiva é a afirmação de que o ato de
improbidade somente se dará “mediante a prática de ato doloso”,
questão que já era pacificada pela doutrina e jurisprudência, como se vê
do ensinamento de Marçal Justen Filho:
O elemento subjetivo do ilícito do art. 9º é o dolo. Essa orientação
já prevalecia antes da edição da Lei 14.230/2021. No entanto e para
eliminar qualquer controvérsia, houve a inclusão da exigência do dolo
para a configuração da improbidade do art. 9º.40
De acordo com lição de Marino Pazzaglini Filho, esta modalidade
de ato de improbidade se caracteriza pelo preenchimento simultâneo
dos seguintes requisitos:
• recebimento de vantagem patrimonial indevida por agente público,
acarretando, ou não, dano ao erário;

39 BRASIL, 1992, art. 9º.


40 JUSTEN FILHO, op. cit., p. 126.

318
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

• vantagem decorrente de comportamento ilícito do agente;


• ciência do agente da ilicitude (dolo) da vantagem obtida; e
• nexo causal entre o exercício funcional abusivo do agente e a indevi-
da vantagem por ele auferida.41

O principal requisito, considerado elemento desse tipo, é o recebi-


mento de vantagem indevida.
Todo agente público, desde um simples Oficial Administrativo,
até um Magistrado, passando pelo trabalho não remunerado de um
mesário na Justiça Eleitoral42, com maior ou menor autonomia no
exercício de suas funções, presta seus serviços com o fim de atender as
necessidades da sociedade.
Normalmente o agente recebe uma contraprestação por esse ser-
viço, podendo ser representada em dinheiro (vencimentos, salários,
comissão etc.) ou reconhecimento público, quando não remunerado
(jurado, preferência em concurso público43; mesários, dispensa do
serviço pelo dobro dos dias prestados44 etc.), sendo que todas essas
vantagens devem ser previstas em lei.
Por outro lado, o recebimento de vantagem patrimonial não pre-
vista em lei é fruto de desvio, é considerada como indevida e, por isso,
pode constituir ato de improbidade administrativa.
Importante salientar que este artigo se refere a qualquer vantagem
patrimonial, desde que economicamente apreciável, compreendendo va-
lores em dinheiro, bens móveis ou imóveis, ações, título ao portador,
cheques, notas promissórias etc.

41 PAZZAGLINI FILHO, op. cit., p. 54.


42 As pessoas que não recebem remuneração, mas exercem um múnus público, apesar de,
especificamente, não serem conceituadas como servidores públicos, mas particulares
em colaboração com a Administração, são considerados agentes públicos nos termos do
artigo 2º, caput, da LIA.
43 BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário
Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 19699, 13 out. 1941, art. 440.
44 BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições.
Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 21801, 1 out. 1997, art. 98.

319
José Carlos Cabral Granado

O recebimento da vantagem indevida não precisa acarretar dano


ao erário público, sendo que somente o fato de a receber já viola o de-
ver de probidade do servidor, podendo, inclusive, tratar-se de prática
de ato de ofício.
O segundo requisito da improbidade é a razão de seu recebimento
ter por origem o exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego
ou de atividade com relação às pessoas enumeradas no artigo 1º da LIA.
O terceiro é o elemento subjetivo, que se constitui pelo dolo, ou seja,
o autor do ato de improbidade administrativa suscetível de causar enri-
quecimento ilícito deve ter a ciência da ilicitude da vantagem patrimonial.
Como nos ensina Marçal Justen Filho:
Somente se configura a infração do art. 9º quando o agente público atuar
de modo consciente e intencional quanto à obtenção de uma vantagem
indevida e a sua incorporação ao patrimônio próprio ou de terceiro.45
O último requisito é o nexo de causalidade entre o enriquecimento
ilícito e o desempenho de determinada função pública.
Isso significa que é necessário demonstrar que, por conta da pres-
tação do serviço público, correspondente a um ou vários atos, o agente
recebeu, em contraprestação, um bem patrimonialmente considerado.
Por exemplo, determinado Diretor de uma unidade do Departamento de
Trânsito (Detran) recebeu R$1.000,00 de um condutor para fazer desa-
parecer a pontuação em sua Carteira Nacional de Habilitação (CNH),
que seria causa de um processo de suspensão. Assim, temos a vantagem
indevida (R$1.000,00) e o exercício da função (Diretor do Detran com
atribuição de baixa em pontos de carteira de habilitação), bem como o
nexo causal entre o ato praticado: dar, sem causa legal que a justifique,
baixa nos pontos, e o recebimento do valor.
Assim, não basta demonstrar que em certa data um diretor da uni-
dade do Detran recebeu R$1.000,00 além de seus vencimentos. Aliás,
o valor pode ser ilícito, fruto de venda de entorpecente, por exemplo, sem,
contudo, tratar-se de ato de improbidade administrativa, posto a ausência
de nexo entre o valor e a atividade desempenhada pelo agente público.

45 JUSTEN FILHO, op. cit., p. 127.

320
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Por fim, como dito linhas atrás, o artigo 9º, além de definir o que
seria o ato de improbidade administrativa por enriquecimento ilícito,
criou doze espécies dessa modalidade, assim as definindo:
I – receber, para si ou para outrem, dinheiro, bem móvel ou imóvel,
ou qualquer outra vantagem econômica, direta ou indireta, a título
de comissão, percentagem, gratificação ou presente de quem tenha
interesse, direto ou indireto, que possa ser atingido ou amparado por
ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público;
II – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a
aquisição, permuta ou locação de bem móvel ou imóvel, ou a contrata-
ção de serviços pelas entidades referidas no art. 1° por preço superior
ao valor de mercado;
III – perceber vantagem econômica, direta ou indireta, para facilitar a
alienação, permuta ou locação de bem público ou o fornecimento de
serviço por ente estatal por preço inferior ao valor de mercado;
IV – utilizar, em obra ou serviço particular, qualquer bem móvel,
de propriedade ou à disposição de qualquer das entidades referidas no
art. 1º desta Lei, bem como o trabalho de servidores, de empregados
ou de terceiros contratados por essas entidades; (Redação dada pela
Lei nº 14.230, de 2021)
V – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indi-
reta, para tolerar a exploração ou a prática de jogos de azar, de leno-
cínio, de narcotráfico, de contrabando, de usura ou de qualquer outra
atividade ilícita, ou aceitar promessa de tal vantagem;
VI – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou in-
direta, para fazer declaração falsa sobre qualquer dado técnico que en-
volva obras públicas ou qualquer outro serviço ou sobre quantidade,
peso, medida, qualidade ou característica de mercadorias ou bens for-
necidos a qualquer das entidades referidas no art. 1º desta Lei;
VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, de
cargo, de emprego ou de função pública, e em razão deles, bens de
qualquer natureza, decorrentes dos atos descritos no caput deste artigo,
cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda
do agente público, assegurada a demonstração pelo agente da licitude
da origem dessa evolução; (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

321
José Carlos Cabral Granado

VIII – aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria


ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse
suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente
das atribuições do agente público, durante a atividade;
IX – perceber vantagem econômica para intermediar a liberação ou
aplicação de verba pública de qualquer natureza;
X – receber vantagem econômica de qualquer natureza, direta ou indi-
retamente, para omitir ato de ofício, providência ou declaração a que
esteja obrigado;
XI – incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas,
verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades men-
cionadas no art. 1° desta lei;
XII – usar, em proveito próprio, bens, rendas, verbas ou valores integrantes
do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.46

Essas espécies de atos de improbidade administrativa por enrique-


cimento ilícito, apesar de serem exemplificativas, ou seja, não esgotarem
suas hipóteses, devem se amoldar ao caput, isto é, não tratam de tipos
independentes, devendo estar presente a vantagem indevida em razão da
função, por ato doloso, com liame entre determinado ato funcional e a
obtenção do bem, havendo, porém, em relação à evolução patrimonial,
corrente em sentido diverso.

3.2. Enriquecimento ilícito por evolução patrimonial incompatível

3.2.1. Generalidades e histórico

O artigo 9º, inciso VII, da LIA criou uma hipótese específica de ato
de improbidade administrativa, conhecida como evolução patrimonial
incompatível ou, nos dizeres de Fábio Medina Osório, enriquecimento
desproporcional sem causa aparente.
Trata-se aqui de apenar o agente público que ostenta nível de vida
completamente destoante dos vencimentos recebidos, enriquecendo

46 BRASIL, 1992, art. 9º.

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rapidamente, sem qualquer paralelo com os demais colegas que atuam


na mesma repartição e, aparentemente, sem base em fortuna amealhada
por sua família.
Como nos ensina Fábio Medina Osório:
Não há o menor pudor por parte dos agentes públicos que passam a
ostentar patrimônio milionário, após alguns anos de serviço público,
rapidamente constituindo instrumentos de “lavagem” de dinheiros,
de modo a lograr aparência de suposta idoneidade, só factível aos olhos
dos incautos ou dos que não querem ver. É claro que o inventário dos
bens dos homens públicos não passa apenas pela fiscalização de seus
rendimentos e bens declarados, mas vai muito além desses patamares
formais, alcançando terceiros e todo um padrão de vida que pode e
deve ser auditado.47
A preocupação em punir o agente público que usou das suas fun-
ções para, indevidamente, tornar-se rico não surgiu com a LIA, mas já
vinha se desenhando anteriormente.
Já na época da ditatura militar dos anos 1960 a 1980 havia uma
grande preocupação com o combate à corrupção, sendo que o Ato
Institucional nº 05, de 13 de dezembro de 1968, prevendo a cassação de
mandados e a suspensão de direitos políticos por prazo indeterminado,
permitiu o confisco de bens em decorrência de enriquecimento ilícito,
por decreto do Presidente da República.
Em razão desse ato, foi editado o Decreto-Lei nº 359 de 17 de de-
zembro de 1968, que criou, dentro do Ministério da Justiça, a Comissão
Geral de Investigação, destinada a realizar investigação sumária para o
confisco de bens daqueles que enriqueceram ilicitamente no exercício
do cargo ou função pública. Concluída a investigação, eram aponta-
dos quais bens foram produto de enriquecimento ilícito, sendo que o
Presidente da República expedia um decreto determinando o confisco
em favor da Fazenda Pública, notificando os Cartórios de Registros de
Imóveis para fazerem a transmissão da propriedade.
Quanto a esse decreto, assim nos ensina Wallace Paiva Martins Junior:

47 OSÓRIO, 2020, p. 535.

323
José Carlos Cabral Granado

O Decreto-lei n°359 considerava enriquecimento ilícito, dentre ou-


tros fatos, “a aquisição de bens, dinheiros ou valores, por quem tenha
exercido ou exerça cargo função pública da União, Estados, Distrito
Federal, Territórios e Municípios, assim como das respectivas autar-
quia, empresas públicas ou sociedade de economia mista, sem que,
à época da aquisição, dispusesse de idoneidade financeira para fazê-lo,
à vista de declaração de rendimentos apresentada para fins de paga-
mento do imposto de renda”, bem como, “embora dispondo, à época
da aquisição, de idoneidade financeira para fazê-lo, não haja compro-
vado a sua legitimidade perante a comissão (art. 6º, parágrafo único).48
Assim, antes da LIA já havia previsão legal do enriquecimento ilícito
por evolução patrimonial incompatível, sendo que, pela dicção do artigo 7º
deste decreto: “o ônus da prova da legitimidade da aquisição caberá ao
indiciado”49. Dessa forma, constatado que determinado bem não era cor-
respondente aos vencimentos do agente público, cabia a ele demonstrar
sua legitimidade; não o fazendo, a Comissão indicava que ele era produ-
to de enriquecimento ilícito, sendo que o Presidente, por meio de Decreto,
determinava seu confisco, declarando nula qualquer alienação desse bem.
Posteriormente, por meio do Ato Complementar 42, de 27 de janeiro
de 1969, houve ampliação da incidência deste decreto, podendo atingir
particulares que mantivessem relação com a Administração Pública, bem
como as associações e entidades beneficiadas com verbas públicas, per-
missionárias ou concessionárias de serviços públicos.
Ainda em 1969 o Ato Institucional 14, de 5 de setembro de 1969, al-
terou a redação do artigo 150, § 11, da Constituição Federal para permitir
o confisco nos casos de enriquecimento ilícito ou dano ao erário público.
Esse sistema durou até a Emenda Constitucional nº 11, de 13 de ou-
tubro de 1978, que, dando nova redação ao artigo 153, 11, da Constitui-
ção Federal, revogou as regras acima, proibindo o confisco de bens.

48 MARTINS JUNIOR, Wallace Paiva. Enriquecimento ilícito de agentes públicos: evolução


patrimonial desproporcional à renda ou patrimônio – Lei Federal n° 8.429/92. Justitia,
São Paulo, v. 59, n. 177, p. 95-110, 1997, p. 100.
49 BRASIL. Decreto-lei nº 359, de 17 de dezembro de 1968. Cria a Comissão Geral de
Investigações e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF,
p. 10913, 18 dez. 1968, art. 7º.

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3.2.2. Incidência da evolução patrimonial incompatível

A evolução patrimonial incompatível é verificada quando o agente


público possui um nível de vida que seus vencimentos não comportam.
No entanto, para efeito da ocorrência de ato de improbidade,
nos termos do artigo 9º, inciso VII da LIA, basta que o agente público
adquira, durante o exercício de suas funções, qualquer bem não alcan-
çado pelos seus vencimentos.
A expressão bem contida nesse inciso deve abarcar todo e qualquer
objeto que tenha valor patrimonial, como veículos, casas, joias, títulos,
dinheiro em espécie etc. Importante ressaltar que não somente os bens
declarados no campo próprio na declaração de imposto de renda devem
ser considerados, mas deve-se, também, incluir eventuais rendimentos,
como, por exemplo, a simulação de aluguel inexistente, ou, mesmo que
existente, por valor superior àquele efetivamente pago.
Igualmente, a demonstração de patrimônio incompatível não deve
ficar limitada à declaração de renda do agente público, devendo, se o
caso, ser estendida às declarações de seu cônjuge, filhos, pais, ou seja,
havendo indício de ocultação de bens em patrimônio de terceiro deve a
investigação abrangê-los. Ademais, essa constatação também pode ser
estendida para outros gastos, geralmente ocultos, como cartão de crédi-
to, depósito em conta corrente no Brasil e no exterior etc., sendo possí-
vel, inclusive, quebra de sigilo fiscal e bancário durante a sindicância pa-
trimonial, sendo transcrito abaixo interessante caso julgado do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro sobre essa questão:
Procedimento administrativo instaurado. Sindicância patrimonial.
Quebra de sigilo de dados sem autorização judicial. Auditor fiscal da
receita estadual. Patrimônio incompatível com seus ganhos. Decisão
agravada que indeferiu o sobrestamento do Processo Administrativo
Disciplinar. Inconformismo do agravante. Alegação de impossibilidade
de quebra de sigilo no âmbito no bojo de sindicância. A Constituição
da República ao consagrar o princípio da moralidade, estabeleceu tam-
bém a necessidade de proteção à moralidade e de responsabilização
do agente que atua em desconformidade com tal preceito, sendo certo
que os atos que importem em enriquecimento ilícito configuram ato
de improbidade, consoante os termos do art. 9º, da Lei nº. 8.429/92.

325
José Carlos Cabral Granado

O procedimento impugnado pelo recorrente se lastreia em decre-


to cujo fundamento de validade constitucional reside no princípio
da moralidade administrativa. Por outro lado, o art. 198, § 1º, II,
do CTN, prevê a possibilidade de intercâmbio de informações sigi-
losas para a instrução de procedimento destinado a apurar infração
administrativa. O STJ já se pronunciou quanto à possibilidade de
quebra de sigilo bancário e fiscal sem a prévia autorização judicial.
Indeferimento ou concessão da antecipação que somente se reforma
se teratológica, contrária à lei ou à evidente prova dos autos. Súmula
59, do TJRJ. DESPROVIMENTO DO RECURSO.50

3.2.3. Ônus da prova

Esta provavelmente é a questão mais tormentosa sobre a evolução


patrimonial incompatível.
Vários autores, entre eles Wallace Paiva Martins, defendem que o pa-
trimônio incompatível é a forma residual encontrada pela LIA para punir
o agente público desonesto, que buscou o serviço público para enriquecer.
A evolução desproporcional do patrimônio (ou variação patrimonial
incompatível) é caso residual de enriquecimento ilícito, pois se não há
prova de que a vantagem econômica percebida é relacionada ou conexa
a prática de ato, ou abstenção da execução de ato de oficio, afastando a
incidência de outra modalidade de enriquecimento ilícito, mesmo assim
afigura-se inidôneo o enriquecimento do agente público, porque adqui-
riu bens ou valores desproporcionais ou incompatíveis com a evolução
de seu patrimônio ou renda. Sua razão repousa na ideia de uma presun-
ção da ilegitimidade do enriquecimento, pois não deriva de justa causa,
aproximando o enriquecimento sem causa do ilícito.
Neste caso, a lei presume a inidoneidade do agente público que adquire
bens ou valores incompatíveis com a normalidade do seu padrão de
vencimentos. Para tanto, basta provar que o agente público exercia

50 RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça (18. Câmara cível). Agravo de Instrumento


0020298-47.2019.8.19.0000. Agravante: Carlos Sergio Silva Janiques. Agravado: Estado
do Rio de Janeiro. Relatora: Des. Margaret de Olivaes Valle dos Santos, 18 de setembro
de 2019. Disponível em: https://tj-rj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/759753448/agravo-de-
instrumento-ai-202984720198190000. Acesso em: 6 jul. 2022, p. 1.

326
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

função pública e que os bens e valores (mobiliários ou imobiliários)


adquiridos sejam incompatíveis ou desproporcionais a evolução de seu
patrimônio ou sua renda.51
Dessa forma, defende este autor que aquele que recebe valores dos
entes da federação pode, eventualmente, ter seu patrimônio auditado e,
se durante essa investigação, for constatada que parte de seus bens não
são compatíveis com seus vencimentos, poderá ser instaurada contra
ele uma ação de improbidade administrativa, posto que o inciso VII da
lei cria uma presunção de que referido patrimônio constituiu vantagem
indevida, adquirido no exercício das funções.
Para esses autores, constatada a incompatibilidade, caberá ao servi-
dor público demonstrar sua legitimidade, havendo inversão do ônus da
prova, tratando-se de presunção juris tantum.
O Superior Tribunal de Justiça vem interpretando o inciso VII dessa
forma, como se vê do julgado a seguir:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLI-
CO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. AUMENTO
PATRIMONIAL SEM JUSTIFICATIVA LEGAL. ART. 132, IV, DA
LEI 8.112/1990 E ART. 9º, VII, DA LEI 8.429/1992. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. INCREMENTO PATRIMONIAL. RELAÇÃO
COM DESVIO FUNCIONAL. DESNECESSIDADE. JUSTIFICATIVA
DA ORIGEM DOS BENS. ÔNUS DA PROVA DO SERVIDOR. PENA
DE CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA. NATUREZA CONTRIBU-
TIVA/PREVIDENCIÁRIA DO BENEFÍCIO. EC 20/1998. CONSTI-
TUCIONALIDADE DA MEDIDA. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDA-
DA DO STJ E DO STF. MANDADO DE SEGURANÇA DENEGADO.
MEDIDA LIMINAR REVOGADA.
[…]
6. “A improbidade administrativa consiste em o servidor público ame-
alhar patrimônio a descoberto independe da prova de relação direta
entre aquilo que é ilicitamente feito pelo servidor no desempenho do
cargo e seu patrimônio a descoberto. Espécie de improbidade em que

51 MARTINS JUNIOR, op. cit., p. 103.

327
José Carlos Cabral Granado

basta que o patrimônio a descoberto tenha sido amealhado em época


em que o servidor exercia cargo público” (MS 20.765/DF, Rel. Minis-
tro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 14.2.2017). No mesmo
sentido: MS 18.460/DF, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho,
Rel. p/ Acórdão Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira
Seção, DJe 2.4.2014; MS 21.084/DF, Rel. Ministro Mauro Camp-
bell Marques, Primeira Seção, DJe 1o.12.2016; MS 19.782/DF, Rel.
Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 6.4.2016;
AgRg no AREsp 768.394/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Mar-
ques, Segunda Turma, DJe 13.11.2015; AgRg no REsp 1.400.571/
PR, Rel. Ministro Olindo Menezes (Desembargador convocado do
TRF 1a Região), Primeira Turma, DJe 13.10.2015; MS 12.660/DF,
Rel. Ministra Marilza Maynard (Desembargadora convocada do TJ/
SE), Terceira Seção, DJe 22.8.2014; e MS 12.536/DF, Rel. Ministra
Laurita Vaz, Terceira Seção, DJe 26/9/2008.
7. Não há, portanto, no fato típico ímprobo a imposição de que a ori-
gem do incremento patrimonial esteja relacionada com desvios no exer-
cício do cargo, o que denota que a hipótese legal considera o simples
ato genericamente doloso de ostentar patrimônio incompatível com a
renda auferida e não justificado legalmente como ato grave violador do
princípio da moralidade administrativa.
8. A compreensão sedimentada no STJ, relativa ao ônus da prova da li-
citude do incremento patrimonial, é de que, demonstrada pelo Estado-
-acusador riqueza incompatível com a renda do servidor, a incumbên-
cia de provar a fonte legítima do aumento do patrimônio é do acusado,
e não da Administração.
9. “A jurisprudência deste Superior Tribunal é no sentido de que em ma-
téria de enriquecimento ilícito, cabe à Administração comprovar o incre-
mento patrimonial significativo e incompatível com as fontes de renda
do servidor. Por outro lado, é do servidor acusado o ônus de demonstrar
a licitude da evolução patrimonial constatada pela administração, sob
pena de configuração de improbidade administrativa por enriquecimen-
to ilícito” (MS 20.765/DF, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira
Seção, DJe 14.2.2017). Com a mesma compreensão: MS 18.460/DF,
Rel. Ministro Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. p/ Acórdão
Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 2.4.2014;

328
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

MS 21.084/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Primeira


Seção, DJe 1o.12.2016; MS 19.782/DF, Rel. Ministro Mauro Campbell
Marques, Primeira Seção, DJe 6.4.2016; AgRg no AREsp 548.901/RJ,
Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 23.2.2016;
MS 13.142/DF, Rel. Ministro Humberto Martins, Primeira Seção, DJe
4.8.2015; MS 12.660/DF, Rel. Ministra Marilza Maynard (Desembar-
gadora convocada do TJ/SE), Terceira Seção, DJe 22.8.2014; e AgRg
no AREsp 187.235/RJ, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira
Turma, DJe 16.10.2012.52

De outra banda, há posicionamento doutrinário e jurisprudencial


de que cabe à Administração não só demonstrar a evolução patrimonial
incompatível como também que ela se deu em razão de determinado ato
ou atos durante o exercício da função.
Nesse sentido, diz Marino Pazzaglini Filho:

A bem da verdade, na ação civil de improbidade administrativa, in-


cumbe ao seu autor provar que o agente público adquiriu valores in-
compatíveis com a evolução de seu patrimônio e renda em decorrência
do exercício abusivo, corrompido, subvertido de seu mandato, cargo,
emprego ou função pública.
Não há, na espécie, qualquer previsão legal, explicitamente, de inversão
do ônus da prova. E sua adoção, por ser excepcional e afastar a regra
processual geral actori incumbit probatio, tem que ser expressa e não
tácita ou presumida.53

Esse mesmo autor cita julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:


AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. SERVIDOR
PÚBLICO. IMPUTAÇÃO DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
APARENTE (EVOLUÇÃO PATRIMONIAL SEM PROPORÇÃO
COM OS VENCIMENTOS). PROCEDÊNCIA ORIGINÁRIA.

52 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Mandado de Segurança 21.708/DF. Impetrante:


Celso Renato Inhan. Impetrado: Ministro de Estado da Justiça. Relator: Min. Napoleão
Nunes Maia Filho, 8 de maio de 2019. Diário da justiça eletrônico, 11 set. 2019, p. 1.
53 PAZZAGLINI FILHO, op. cit., p. 66.

329
José Carlos Cabral Granado

1. Admitir, contra o servidor público, uma presunção iuris tantum de


culpa é assediar indevidamente a norma constitucional que protege o
estado de não culpabilidade (inc. LVII, art. 5º, CF-88).
2. Exigir, para afastar suposta presunção iuris tantum de culpa, a prova
de toda causa do patrimônio de um servidor público abrangeria não
apenas as causas lícitas, mas também as ilícitas. Ora, quanto a estas
últimas, decerto, se infringiria o princípio nemo tenetur edere contra se,
acolhido tanto na esfera penal (art. 186, Cód. Pr. Pen.), quanto na civil
(cf. inc. II, art. 229, Cód. Civ., e inc. I, art. 347, Cód. Pr. Civ.).
3. A ação de improbidade administrativa tem por núcleo exatamente
atos ímprobos na órbita da Administração Pública e não outros even-
tuais ilícitos.
4. No sistema da Lei nº 8.429/1992, nulla poena sine accusatione,
actio ne improba, culpa ne que probatione. Extinção do processo,
sem resolução de mérito, prejudicado o exame do recurso da autora
(Ap. 994.09.315995-1 – 11a Câmara de Direito Público – Rel. Des.
Ricardo Dip, j. 3.5.2010).54
Assim, para tal corrente, cabe ao autor da ação de improbidade
não só demonstrar a existência da vantagem indevida e que o seu ator,
nesta época, ocupava determinada função pública, mas também o nexo
causal, ou seja, que o aumento do patrimônio incompatível se deu pela
prática de determinado ato ou atos em decorrência do seu exercício,
lícito ou ilícito.
Admitir a inversão do ônus da prova, para parte da doutrina,
importaria em desconfiguração do princípio da presunção de inocência
garantido pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, sendo
considerada correta a exclusão dessa previsão durante a tramitação do
projeto da lei de improbidade administrativa no Congresso Nacional55.

54 Ibidem, p. 68.
55 Marino Pazzaglini Filho escreveu sobre a previsão de inversão do ônus da prova:
“Além disso, o legislador, efetivamente, não pretendeu a inversão do ônus da prova, posto
que o projeto continha originalmente, no que era seu art. 26, a estipulação da inversão do
ônus da prova no caso de enriquecimento sem causa (antigo inciso VII do art. 12, atual
inciso VII do art. 9º), o qual dizia: ‘quando a ação civil tiver por fundamento o inciso VII
do art. 12, cabe ao agente público ou beneficiário demonstrar a origem lícita dos recursos

330
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

3.2.4. Declaração de bens

O artigo 13 da LIA determina que o agente público deverá, quan-


do ingressar no serviço público, apresentar uma via da declaração de
imposto de renda e proventos de qualquer natureza entregue à Receita
Federal do Brasil, que será arquivado no setor de Recursos Humanos,
devendo, anualmente, entregar a respectiva declaração, bem como na
data em que deixar o exercício do mandado cargo, emprego ou função.
Importante notar que a obrigatoriedade da entrega de uma via da
declaração de imposto de renda trata-se de novidade trazida pela Lei
nº 14.230/21, sendo que na regra anterior a obrigação era de apresentar
a declaração de bens.
Essa regra foi repetida na Lei nº 8.730/93 para os servidores pú-
blicos federais, sendo que no estado de São Paulo ela foi regulada pelo
Decreto nº 41.865/97, quanto aos servidores públicos estaduais da
administração direta ou indireta, empresa pública e sociedade de eco-
nomia mista, sendo que as autoridades e dirigentes enumerados no
artigo 3º desse decreto deverão apresentar, também, as declarações,
se houver, do cônjuge ou companheiro, dos filhos e de outras pessoas
que vivam sob sua dependência.56
A recusa na apresentação da via da declaração do imposto de renda
pode ser punida com demissão, bem como a apresentação de declaração
falsa, conforme expressa o § 3º, da Lei nº 8.429/92.
A investigação da evolução patrimonial, incluindo o ato de recusa
e falsidade na declaração, dar-se-á por meio do que se chama de sindi-
cância patrimonial, que na união fica a cargo da Controladoria-Geral
(Decreto nº 10.251/2020) e no estado de São Paulo pela Corregedoria
Geral da Administração (Decreto nº 58.276/12).

financeiros utilizados para a aquisição de valores ali mencionados’. Entretanto, esse


dispositivo, excluído na Câmara dos Deputados, não foi convertido em lei, o que demonstra,
também, não caber, na espécie, a inversão excepcional do ônus dessa prova” (Ibidem, p. 67).
56 A lei e decreto mencionados referem-se à declaração de bens, devendo ser atualizadas para
a apresentação de uma via da declaração do imposto de renda.

331
José Carlos Cabral Granado

4. CONCLUSÃO

A improbidade administrativa por enriquecimento ilícito, como


visto anteriormente, é a mais séria violação que o agente público pode
praticar no exercício de suas funções, equiparando-se, muitas vezes,
com os tipos penais de corrupção, concussão ou peculato, que, por isso,
merecem as reprimendas mais graves previstas no artigo 12 da LIA57.
Dentro do rol desses atos de improbidade está a evolução patrimonial
incompatível que, para parte da doutrina, necessitaria de todos os seus re-
quisitos para assim ser considerada, incluindo a prova de que a obtenção
daquele bem ou bens patrimoniais foram fruto da prática de determinado
ato ou atos no exercício de função, cargo, emprego ou mandato.
Igualmente, todo o ato de improbidade administrativa configura
infração disciplinar, cuja reprimenda máxima será a demissão, simples
ou qualificada, quando prevista.
Entretanto, além da improbidade administrativa, o servidor tam-
bém está sujeito a um complexo de deveres e proibições, previsto nos
vários estatutos (federal, estadual ou municipal), que não possui a mes-
ma tipicidade exigida na Lei nº 8.429/92.
Não se pode olvidar que ao servidor público é exigido um compor-
tamento probo, com maior intensidade do que o particular, pois além de
prestar seus serviços com o fim de atender as necessidades da sociedade,
recebe a respectiva contraprestação oriunda do erário público, fruto de
tributos arcados por essa mesma comunidade.
Por essa razão há, atualmente, vários dispositivos legais que exi-
gem transparência no serviço público, tanto quanto aos gastos, como à

57 “Art. 12. Independentemente do ressarcimento integral do dano patrimonial, se efetivo, e das


sanções penais comuns e de responsabilidade, civis e administrativas previstas na legislação
específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que
podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I – na hipótese do art. 9º desta Lei, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao
patrimônio, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 14 (catorze) anos,
pagamento de multa civil equivalente ao valor do acréscimo patrimonial e proibição de
contratar com o poder público ou de receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios,
direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio
majoritário, pelo prazo não superior a 14 (catorze) anos;” (BRASIL, 1992, art. 12).

332
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 301-336, jan./jun. 2022

remuneração paga a cada servidor. Igualmente, é dever do funcionário


não só prestar contas de seu patrimônio à receita federal como, também,
ao ente da federação a que está vinculado.
Dessa forma, tanto os ganhos como o patrimônio do servidor públi-
co podem e devem ser auditáveis, não se admitindo o descompasso entre
sua renda, fruto de seus vencimentos, e sua riqueza.
Por essa razão, resta claro que a evolução patrimonial incompatível
do servidor público, mesmo que não haja demonstração do liame entre o
ato no exercício da função e o recebimento da vantagem indevida, trata-se
de falta disciplinar, desde que não haja prova de sua origem lícita.
É o caso, por exemplo, de um agente público de São Paulo que seja
denunciado anonimamente de enriquecer no exercício de suas funções e,
durante a sindicância patrimonial, se constate, pelas suas declarações e
de sua esposa, ascensão incompatível de R$ 100.000,00 (cem mil reais),
sem comprovação de origem, sendo que, por outro lado, a Corregedoria-
-Geral da Administração não encontrou elementos de que a percepção
desse valor tenha se dado por determinado ato funcional. Haveria, aqui,
indício suficiente para a abertura de processo administrativo discipli-
nar e se, durante o contraditório, não conseguir a defesa demonstrar a
licitude do acréscimo, poderá haver a pena de demissão.
No estado de São Paulo, esse fato tratar-se-ia de motivo para de-
missão por procedimento irregular de natureza grave, previsto no arti-
go 256, inciso II, da Lei nº 10.261/68, diante da violação aos deveres de
“estar em dia com as leis, regulamentos, regimentos, instruções e ordens
de serviço que digam respeito às suas funções” e “proceder na vida pú-
blica e privada na forma que dignifique a função pública”58.
Assim, para a existência de falta disciplinar por patrimônio in-
compatível, cabe à Administração comprovar essa incompatibilidade,
e ao acusado, por sua vez, demonstrar a licitude do recebimento do
valor a descoberto.

58 SÃO PAULO, op. cit., art. 241, inc. XIII-XIV.

333
José Carlos Cabral Granado

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ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual
de direito penal brasileiro: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1999.

335
NOTAS SOBRE RECURSOS, REVISÃO
ADMINISTRATIVA E EXERCÍCIO DE
DIREITO DE PETIÇÃO NOS PROCESSOS
DISCIPLINARES DA LEI N. 10.261/68

Luciana R. L. Saldanha Gasparini1

SUMÁRIO: 1 – Introdução; 2 – Dos recursos nos processos disciplinares


da Lei estadual n. 10.261/68: recurso hierárquico e pedido de
reconsideração; 3 – Revisão administrativa; 4 – Direito de petição;
5 – Conclusão; Referências bibliográficas.

RESUMO: O presente trabalho examina o sistema recursal do procedimento


disciplinar, previsto no Título VIII, da Lei estadual nº 10.261/1968,
além de outros instrumentos frequentemente empregados no âmbito da
defesa administrativo disciplinar – a revisão e o exercício do direito de
petição –, com especial enfoque nos pressupostos de sua utilização, à luz
da jurisprudência administrativa e dos Tribunais Superiores.

PALAVRAS-CHAVE: Processo administrativo disciplinar. Recurso hierárquico.


Pedido de reconsideração. Revisão. Direito de petição. Fungibilidade recursal.
Instrumentalidade das formas. Abuso de direito de defesa.

1. INTRODUÇÃO

A ideia de tratar dos recursos nos processos disciplinares surgiu a


partir da constatação da frequente reiteração do emprego dos instrumen-
tos previstos na Lei Estadual nº 10.261/1968 (Estatuto dos Servidores

1 Procuradora do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC-SP).

337
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

Públicos Civis do Estado de São Paulo) em desconformidade ao regra-


mento previsto, caracterizando, em muitas oportunidades, abuso no
exercício do direito de defesa, bem como resultando em indesejável eter-
nização dos processos disciplinares.
Sem a pretensão de esgotar a matéria, o presente trabalho pre-
tende estabelecer distinção entre as modalidades recursais indicadas
no Título VIII, do Estatuto do Funcionalismo, que trata do procedi-
mento disciplinar, quais sejam, o recurso hierárquico e o pedido de
reconsideração; e outros instrumentos também empregados no con-
texto da defesa de caráter administrativo disciplinar, citando prece-
dentes exarados pela Procuradoria-Geral do Estado e jurisprudência
dos Tribunais Superiores.
A análise proposta limitar-se-á à disciplina prevista na Lei estadual
nº 10.261/68 (Estatuto dos Servidores Públicos Civis do Estado de São
Paulo), valendo recordar, porém, que há categorias de servidores com
legislação própria, como é o caso dos policiais civis e militares.

2. DOS RECURSOS NOS PROCESSOS DISCIPLINARES DA LEI


ESTADUAL Nº 10.261/1968: RECURSO HIERÁRQUICO E PEDIDO
DE RECONSIDERAÇÃO

A Lei Estadual nº 10.261/68 dedica seu Título VIII à disciplina


do procedimento disciplinar, estabelecendo, em seu artigo 268, que
“a apuração das infrações será feita mediante sindicância ou processo
administrativo, assegurados o contraditório e a ampla defesa”2. A pos-
sibilidade de interposição de recurso na sindicância e no processo ad-
ministrativo disciplinar insere-se no contexto do exercício da ampla
defesa, garantido aos litigantes, nos termos do artigo 5º, inciso LV,
da Constituição da República3.

2 SÃO PAULO. Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o Estatuto dos
Funcionários Públicos Civis do Estado. Diário Oficial do Estado de São Paulo: seção 1, São
Paulo, p. 2, 29 out. 1968, art. 268.
3 Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral
são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
(BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 6 jul. 2022, art. 5º).

338
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

O Capítulo V, do Título VIII do Estatuto Paulista veicula as regras


aplicáveis aos recursos nos processos disciplinares e prevê a possibilida-
de de interposição de recurso, por uma única vez, da decisão que aplicar
penalidade4. Segundo o § 1º, do artigo 3125, do citado Estatuto, há pra-
zo de 30 (trinta) dias para recorrer, contados da publicação da decisão
impugnada ou da intimação pessoal do servidor, quando for o caso.
O recurso será apresentado à mesma autoridade que aplicou a pena,
que poderá, motivadamente, reconsiderar sua decisão ou mantê-la6.
Na última hipótese, ou caso ocorra revisão apenas parcial da decisão
pela própria autoridade, a matéria será remetida para exame por seu
superior hierárquico7. Daí porque tal recurso é habitualmente referido
como recurso hierárquico.
Convém destacar que, ainda que incorretamente denominado ou
endereçado, o recurso será apreciado pela autoridade competente, conso-
ante estabelece o § 5º, do artigo 312, da Lei n.º 10.261/19688. Tal regra
guarda relação com a aplicação do princípio da fungibilidade dos recur-
sos, com a instrumentalidade das formas, eficiência e celeridade, que têm
aplicação em matéria processual, inclusive no processo administrativo.
Nesse ponto, contudo, há uma importante distinção a ser feita. A fun-
gibilidade dos recursos, conquanto minimize o rigor acerca da correta de-
nominação do recurso ou de seu endereçamento, privilegiando a garantia
ao direito de defesa em detrimento do formalismo, não deve ser inter-
pretada como uma autorização para não atendimento dos pressupostos

4 “Art. 312. Caberá recurso, por uma única vez, da decisão que aplicar penalidade. […]”
(SÃO PAULO, op. cit, art. 312).
5 Art. 312 […] § 1º – O prazo para recorrer é de 30 (trinta) dias, contados da publicação
da decisão impugnada no Diário Oficial do Estado ou da intimação pessoal do servidor,
quando for o caso. (Ibidem, art. 312).
6 Art. 312 […] §3º – O recurso será apresentado à autoridade que aplicou a pena, que terá
o prazo de 10 (dez) dias para, motivadamente, manter sua decisão ou reformá-la. (Ibidem,
art. 312).
7 Art. 312 […] §4º – Mantida a decisão, ou reformada parcialmente, será imediatamente
encaminhada a reexame pelo superior hierárquico. (SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de
outubro de 1968, art. 312).
8 Art. 312 […] § 5º – O recurso será apreciado pela autoridade competente ainda que
incorretamente denominado ou endereçado (Ibidem, art. 312).

339
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

legalmente previstos ou para indefinida apresentação de recursos, que não


tenham respaldo na respectiva legislação de regência.
Nesse sentido, o Parecer PA nº 50/2021 recentemente observou que
“o direito de recorrer não prescinde, para seu exercício, de embasamen-
to em disciplina infraconstitucional, até mesmo para que se verifique o
atendimento aos pressupostos fixados, como a tempestividade, não se
admitindo a interposição indefinida e procrastinatória”9.
Não obstante formuladas em relação a caso concreto envolvendo
contencioso administrativo tributário, são válidas e merecem ser desta-
cadas as linhas gerais traçadas no Parecer PA nº 77/200310, que apon-
tam para a necessidade da previsão legal da hipótese de cabimento de
determinado recurso e demais pressupostos.
Não é, assim, aceitável como recurso hierárquico não previsto na refe-
rida legislação a qual, por ter encerrada a instância administrativa, na
forma nela prevista, afasta seu cabimento. Para ser admissível, o recur-
so hierárquico exige previsão legal, porque, como ensinou Hely Lopes
Meirelles “para a interposição de tais recursos há prazos fatais e peremp-
tórios, os quais, uma vez transcorridos, impedem o recebimento do apelo
voluntário, operando-se, daí por diante, a preclusão administrativa da
impugnabilidade do ato”. Não havendo norma legal que o admita e so-
bretudo quando a legislação, dispondo sobre a impugnabilidade dos atos
da Administração, define os meios de defesa e os recursos cabíveis sem o
prever, é inquestionável o descabimento desse tipo de recurso.11
Além do recurso hierárquico, o Capítulo V, do Título VIII, do Esta-
tuto dos Servidores Públicos Civis do Estado prevê o pedido de recon-
sideração, correspondendo, o último, ao instrumento adequado para
manifestação de inconformismo em relação a decisão que aplicar pe-
nalidade disciplinar, a qual tenha sido proferida pelo Governador do
Estado em única instância.

9 PARECER nº 50/2021. São Paulo: Procuradoria-Geral do Estado, 2021.


10 De autoria do Procurador do Estado Antonio Joaquim Ferreira Custódio (aprovado nas
instâncias superiores da PGE).
11 CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Parecer n. 77/2003. São Paulo: Procuradoria-Geral
do Estado, 2003, p. 1-9, grifo nosso.

340
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

Tendo em vista que o Governador é a autoridade máxima do Poder


Executivo estadual, não há superior hierárquico ao qual possa ser reme-
tido eventual recurso interposto em face da pena imposta. Para garantir
que as decisões proferidas em única instância por tal autoridade restas-
sem recorríveis e tivessem oportunidade de reexame, o legislador optou
por autorizar a apresentação do pedido de reconsideração, nos termos
do artigo 313 da Lei nº 10.261/6812.
Não atende, portanto, aos pressupostos legais de interposição,
o pedido de reconsideração interposto em relação a decisão proferida pelo
Governador do Estado em sede recursal, quando citada autoridade exa-
mina pena aplicada por Secretário de Estado, no âmbito de recurso hierár-
quico, não se tratando, portanto, de decisão proferida em única instância.
Convém observar que a respectiva legislação de regência pode fi-
xar limites à interposição de recursos, sem que isso signifique qualquer
ofensa ao direito de recorrer do postulante. Nesse contexto, por exem-
plo, é relevante destacar que a jurisprudência dos Tribunais Superio-
res tem entendido pela não obrigatoriedade de duplo grau de jurisdição
administrativa. Confira-se, a respeito:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE
SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO CIVIL. DEMISSÃO. DECISÃO
DO CONSELHO SUPERIOR DE MAGISTRATURA. RECURSO AD-
MINISTRATIVO PARA O PLENO DO TRIBUNAL. NÃO CONHE-
CIMENTO. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL OU REGIMENTAL.
ILEGALIDADE OU ABUSO DE PODER. INOCORRÊNCIA. ÂMBI-
TO ADMINISTRATIVO. GARANTIA CONSTITUCIONAL DO DU-
PLO GRAU DE JURISDIÇÃO. INEXISTÊNCIA. CONTRADITÓRIO
E AMPLA DEFESA ASSEGURADOS NO PROCESSO ADMINISTRA-
TIVO. 1. Não havendo, à época do julgamento do processo adminis-
trativo, previsão legal ou regimental de interposição de recurso, para
o Pleno do TJMS, contra as decisões originárias do Conselho Superior
da Magistratura, em matéria administrativa ou disciplinar relativa aos
servidores do Poder Judiciário do Estado, inexiste ilegalidade ou abu-

12 Art. 313 – Caberá pedido de reconsideração, que não poderá ser renovado, de decisão
tomada pelo Governador do Estado em única instância, no prazo de 30 (trinta) dias
(SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 313).

341
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

so de poder no ato que deixa de conhecer do recurso administrativo.


2. Esta Corte Superior de Justiça firmou entendimento segundo o qual
“não há, na Constituição de 1988, garantia de duplo grau de jurisdi-
ção administrativa” (MS 10.269/DF, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO,
Rel. p/ Acórdão Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA
SEÇÃO, julgado em 14/09/2005, DJ 17/10/2005, p. 162). 3. Não há
se falar em violação dos princípios constitucionais do contraditório e
ampla defesa quando estas garantias constitucionais foram observadas
no processo administrativo disciplinar instaurado contra a recorrente.
4. Recurso ordinário a que se nega provimento.13
RECURSO ORDINÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ADMI-
NISTRATIVO. RECURSO ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA
DE OBRIGATORIEDADE DE DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
ADMINISTRATIVA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO HIERÁRQUICO.
1. A Constituição Federal não erigiu garantia de duplo grau de juris-
dição administrativa. 2. O recurso administrativo interposto pelo re-
corrente demandaria existência de previsão legal e vínculo hierárquico
entre o juízo a quo e o ad quem. 3. Recurso desprovido.14
Registre-se, por fim, que, consoante dispõe o artigo 314 da
Lei Estadual nº 10.261/6815, o recurso hierárquico (art. 312) e o pedi-
do de reconsideração (art. 313) não têm efeito suspensivo; porém, caso
providos, darão ensejo às retificações cabíveis, retroagindo seus efeitos
à data do ato punitivo.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ratifica a possibi-
lidade do imediato cumprimento da penalidade aplicada na conclusão
de processo administrativo disciplinar, uma vez que os recursos admi-

13 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6. Turma). Recurso Ordinário em Mandado de


Segurança 22064/MS. Recorrente: Leonilda dos Santos Cangussu. Recorrido: Estado de
Mato Grosso do Sul. Relator: Min. Vasco Della Giustina, 20 de setembro de 2011. Diário da
Justiça eletrônico, 5 out. 2011, p. 1.
14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (6º Turma). Recurso Ordinário em Mandado de
Segurança 12925/PE. Recorrente: xxxxxxx. Recorrido: xxxxxxx. Relator: Min. Paulo
Medina, 7 de outubro de 2003. Diário da Justiça eletrônico, 2003.
15 Art. 314 – Os recursos de que trata esta lei complementar não têm efeito suspensivo; os que
forem providos darão lugar às retificações necessárias, retroagindo seus efeitos à data do ato
punitivo (SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 314).

342
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

nistrativos e os pedidos de reconsideração, em regra, não possuem efeito


suspensivo automático. A esse respeito, já decidiu a citada Corte:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SE-
GURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. PROCESSO ADMI-
NISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. SERVIDOR PÚBLICO.
PRÁTICA DAS INFRAÇÕES DO ARTIGO 116, INCISOS I, II E III,
ART. 132, INC. IV E ART. 127, INC. III DA LEI N. 8.112/90, COMBI-
NADO AINDA COM O ARTIGO 136 E 137, CAPUT E PARÁGRAFO
ÚNICO DA LEI N. 8.112/90. POSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO
DA PENA ANTE A AUSÊNCIA DE EFEITO SUSPENSIVO AO RE-
CURSO OU RECONSIDERAÇÃO. […] INOBSERVÂNCIA DO DE-
VIDO PROCESSO LEGAL. AUSÊNCIA DE NULIDADE. PENALIDA-
DE DE DEMISSÃO. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO A
RECEBER PENALIDADE DIVERSA DA APLICADA. 1. No processo
administrativo disciplinar, “não sendo concedido efeito suspensivo ao
recurso administrativo ou ao pedido de reconsideração, não há irregu-
laridade na aplicação da pena de demissão imposta após regular pro-
cesso administrativo disciplinar” (RMS 17.839/SP, Rel. Min. Arnaldo
Esteves Lima DJ 13/03/2006). 2. […]. 3. Segurança denegada.16
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROCESSO ADMINIS-
TRATIVO DISCIPLINAR. PRESCRIÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA.
OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E DA
AMPLA DEFESA. INEXISTÊNCIA. APRESENTAÇÃO DE MEMO-
RIAL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. INTIMAÇÃO DO ATO
DE DEMISSÃO PELA PUBLICAÇÃO NA IMPRENSA OFICIAL. VIS-
TAS DOS AUTOS APÓS DECISÃO FINAL. NÃO APRESENTAÇÃO
DE RECURSO CABÍVEL. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO IME-
DIATA DA PENALIDADE. 1. […] 7. Hipótese em que devidamente
intimada e ciente de sua demissão – regularmente publicada –, a ser-
vidora não apresentou pedido de reconsideração ou recurso, ao qual
pudesse ser atribuído efeito suspensivo, mas apenas protocolou, em
sede administrativa, petição solicitando suspensão de prazo recursal

16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). Mandado de Segurança 21120/DF.


Impetrante: Dilson Juarez Abreu. Impetrado: Ministro de Estado da Saúde. Relator: Min.
Benedito Gonçalves, 22 de fevereiro de 2018. Diário da Justiça eletrônico, 1 mar. 2018, p. 1.

343
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

e não execução do ato demissionário, bem como impetrou o presente


mandado de segurança. 8. Os recursos administrativos, via de regra,
são recebidos apenas no efeito devolutivo, podendo haver a concessão
de efeito suspensivo a juízo da autoridade competente. Não havendo
sequer a apresentação de pedido de reconsideração ou interposição de
recurso, é perfeitamente possível o imediato cumprimento da pena-
lidade aplicada na conclusão do processo administrativo disciplinar.
Precedente. 9. Ordem denegada.17

3. REVISÃO ADMINISTRATIVA

O Capítulo VI, do Título VIII, da Lei Estadual nº 10.261/1968 dis-


ciplina o instituto da revisão. Note-se, preliminarmente, que aludido ins-
trumento, cujo emprego é admitido em relação à punição disciplinar de
que não caiba mais recurso18 e possui pressupostos específicos fixados
na legislação, é tratado em capítulo próprio, inserido no título destina-
do ao procedimento disciplinar (Título VIII), porém diferente daquele
aplicável aos recursos19.
Vale a pena recordar a distinção fixada no Parecer PA nº 315/200420,
que apartou a revisão administrativa dos recursos, apontando, como
características da primeira, (i) a interposição face à punição de que não
caiba mais recurso, e, (ii) sua natureza autônoma, processando-se em
apenso aos autos originais. O citado opinativo consignou:
13. Por sua vez, o perfil que o legislador bandeirante traçou para o
pedido de revisão muito se aproxima do correspondente instituto pro-
cessual da revisão criminal, hodiernamente tratada pela doutrina e
jurisprudência como ação autônoma de impugnação, distinguindo-se,

17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). Mandado de Segurança 14450/DF.


Impetrante: Vera Lúcia de Araújo Costa. Impetrado: Ministro de Estado da Saúde. Relator:
Min. Gurgel de Faria, 26 de novembro de 2014. Diário da Justiça eletrônico, 19 dez. 2014.
18 Art. 315 – Admitir-se-á, a qualquer tempo, a revisão de punição disciplinar de que não
caiba mais recurso, se surgirem fatos ou circunstâncias ainda não apreciados, ou vícios
insanáveis de procedimento, que possam justificar redução ou anulação da pena aplicada
(SÃO PAULO, Lei n° 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 315).
19 Como já mencionado, os recursos são disciplinados no Capítulo V do Título VIII.
20 De autoria do Procurador do Estado Luiz Francisco Torquato Avolio (aprovado nas
instâncias superiores da PGE).

344
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

em mais de um ponto, dos recursos, pela sua utilização em processo


independente, em face de decisões já não mais sujeitas a recurso, assim
como no que se refere às hipóteses de seu cabimento:
Artigo 315. […]
14. Assim, a nova disciplina legal está a aconselhar a revisão da orien-
tação administrativa vigente, no sentido de classificar-se o pedido de re-
visão como meio autônomo de impugnação, e não como recurso. (g.n.)
15. Na vigência do ordenamento revogado, a doutrina já se inclinava
a considerar a natureza da revisão diversa daquela do recurso, como
observa Edmir Netto de Araújo, em seu “O Ilícito Administrativo e seu
Processo”, 1994, p. 168/169:
O instituto da revisão dos processos administrativos disciplinares ou
funcionais é de inspiração direta da revisão criminal prevista pelos
arts. 621 a 631 do Código de Processo Penal, nesse diploma capitulada
entre os recursos.
[…]
No que concerne à revisão criminal, é controvertida a doutrina, consi-
derando-a alguns como misto de recurso e ação, assemelhada à rescisó-
ria civil, e outros como remedium juris diferente e não recurso propria-
mente dito, apesar de estar catalogada entre os recursos, no Código de
Processo Penal, mas isto não ocorre com a rescisória civil, que a própria
lei (art. 485 do CPC) define como ação.
Quanto à revisão administrativa, na doutrina encontraremos José
Armando da Costa considerando-a como “fase”, possível de ocorrer, do
processo administrativo. Caio Tácito também fala de “fase de revisão”
que foi acrescentada ao processo administrativo pelo Estatuto de 1952.
Cretella Jr., entretanto, a considera como outro processo, nem recurso, nem
pedido de reconsideração, no qual se fará o reexame integral da prova do
processo primitivo, e do qual resultará, se procedente a revisão, outro ato
administrativo, que se refletirá sobre as consequências da decisão revista.
Aliás, em abono desta tese, podemos lembrar que os Estatutos de-
terminam que o processo de revisão corra em apenso ao processo
administrativo original.

345
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

16. A doutrina processual penal, sob a pena de Ada Pellegrini Grinover,


Antonio Magalhães Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes,
na obra “Recursos no Processo Penal”, 2001, p. 29, resume as caracte-
rísticas dos recursos, fornecendo o conceito:
a) o fato de serem eles anteriores à coisa julgada;
b) a circunstância de não ensejaram a instauração de nova relação
processual.
Outra característica dos recursos é a sua voluntariedade, pois sua inter-
posição depende sempre de ato de vontade do recorrente.
[…]
São essas as características que possibilitam conceituar o recurso,
no direito processual brasileiro, como o meio voluntário de impug-
nação de decisões, utilizado antes da preclusão e na mesma relação
jurídica processual, apto a propiciar a reforma, a invalidação, o escla-
recimento ou a integração da decisão.
17. Parece-nos, assim, ser possível aplicar os conceitos da processualís-
tica moderna no campo do processo administrativo-disciplinar, à luz da
legislação vigente adrede citada, o que resultaria na seguinte distinção
básica entre os institutos do recurso e da revisão:
a) o recurso é exercitável antes da preclusão, enquanto a revisão pres-
supõe punição de que não caiba mais recurso (art. 315, ‘caput’);
b) o recurso tem lugar na mesma relação processual, ao passo que a revi-
são é processada em apenso aos autos originais (art. 320, ‘caput’).21
Em suma, portanto, o entendimento institucional vigente no âm-
bito da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo orienta-se no sen-
tido da natureza não recursal da revisão, cuja utilização destina-se a
decisões punitivas finais, em relação às quais se encontrem esgotadas as
vias recursais. Outra característica relevante da revisão é a possibilida-
de de sua apresentação reservada apenas a atos punitivos em processos
disciplinares. Cuida-se, portanto, de verdadeiro pleito para instauração

21 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Parecer PA nº 315/2004. São Paulo: Procuradoria-Geral


do Estado, 2004b, p. 1-11, grifo nosso.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

de um processo revisional em relação à punição aplicada, desde que


atendidas determinadas condições. Face à natureza própria da revi-
são, a Lei estadual nº 10.261/68 não fixa prazo para sua interposição
(art. 315, caput), diferentemente do que ocorre em relação aos recursos.
Segundo o artigo 315 do Estatuto do Funcionalismo Paulista, a re-
visão somente poderá ser admitida “se surgirem fatos ou circunstâncias
ainda não apreciados, ou vícios insanáveis de procedimento, que possam
justificar redução ou anulação da pena aplicada”22. O § 1º do mesmo
dispositivo esclarece, outrossim, que “a simples alegação da injustiça da
decisão não constitui fundamento do pedido”23. Não se trata, portanto,
de instrumento destinado a reiterar mero inconformismo com a punição
aplicada. O juízo de admissibilidade quanto à interposição da revisão
administrativa envolverá o exame dos pressupostos legais específicos,
estabelecidos na Lei estadual nº 10.261/68.
Essa característica da revisão administrativa foi destacada por
Antonio Carlos Alencar Carvalho. Conforme adverte o autor,
[…] não se presta a revisão como meio de amparar o eterno espíri-
to de irresignação do servidor punido, nem como forma de lhe ren-
der a possibilidade de provocar a interminável rediscussão de fatos
já exaustivamente debatidos no processo administrativo disciplinar
originário, cuja justiça e correção podem ser cotejados, pelos mesmos
fatos e argumentos, pela via do recurso hierárquico e do pedido de
reconsideração ordinários.
Mas o processo revisional tem seu cabimento restrito aos casos em
que, a partir de novas circunstâncias, fatos e argumentos não de-
clarados ou apreciados originariamente (ou cuja análise deva ser
modificada em face de novas informações justificadoras do pedido
revisional), seja possível discutir a ocorrência de erro administrativo
no ato decisório apenador.24

22 SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 315, grifos nossos.
23 Ibidem, art. 315.
24 CARVALHO, Antonio Carlos Alencar. Manual de processo administrativo disciplinar e
sindicância: à luz da jurisprudência dos tribunais e da casuística da administração pública.
2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 1111, grifo nosso.

347
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

Ao discorrer sobre a revisão disciplinar, à luz do Estatuto dos servi-


dores federais, Sebastião José Lessa apontou que a menção a fatos novos
não se refere a um aspecto cronológico25, ou seja, um fato mais recente,
mas a uma novidade como instrumental da prova disciplinar. Consignou
o autor que
[…] pondera a doutrina que “fato novo não é, em absoluto, aquele do-
tado de recenticidade, mas sim o que constitui novidade para o servidor
apenado”.
E mais adiante:
Cronologicamente, o fato deve ser, pelo menos, contemporâneo a fal-
ta atribuída ao servidor e nunca posterior. Caso contrário, não terá a
alegativa invocada idoneidade para justificar a inocência do requeren-
te. O instrumental probatório é que poderá surgir depois, como, por
exemplo, o caso em que o verdadeiro autor do ilícito disciplinar resolve
confessar a autoria unipessoal, que exclui, ipso facto, a responsabili-
dade do servidor inocente. O fato é antigo no tempo, mais novo como
instrumental de prova disciplinar. (COSTA, op. cit., p. 388).
Em questão similar, ao tratar do tema novas provas, o colendo Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do RHC n. 57.191, julg. Em 28.8.79,
DJ de 3.10.79, da relatoria do Min. Décio Miranda, alumiou:
Serão somente aquelas que produzem alteração no panorama pro-
batório dentro do qual fora concebido e acolhido o pedido de arqui-
vamento. A nova prova há de ser substancialmente inovadora e não
apenas formalmente nova.
Na mesma direção, ao ensejo da consolidação da Súmula n. 524, que
trata da nova prova: STF, RHC n. 66.424-5, rel. Min. Francisco Rezek,
DJ de 24.4.89 (Cf.: BUSSADA, Wilson. Súmulas do STF, São Paulo:
Jurídica Brasileira, vol. 3, p. 2.356-2.357).

25 No mesmo sentido, a observação contida no Parecer PA-3 nº 22/94, que examinou a


admissibilidade de pedido de revisão à luz de redação anterior do Estatuto do Funcionalismo,
que também contemplava a referência a “novas provas” (SÃO PAULO, Lei nº 10.261,
de 28 de outubro de 1968, art. 312, inc. III).

348
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

Cremos que o fato novo, demonstrado pela prova e eficaz para a re-
visão, deve ter força bastante para produzir alteração no panorama
probatório dentro do qual deu sustentação ao ato punitivo.
A título de exemplo, a sentença judicial (absolutória) identificada com
as hipóteses do art. 126 da Lei n. 8.112/90, e, em linha de princípio,
nas demais situações elencadas no art. 386, incisos I, II, IV e V, do CPP,
pode ser considerada como fato novo capaz de provocar o processo
revisional (Cf.: AGU, Pareceres n. GQ-28 e AGU/LS-07/94, DOU de
1.9.94).26
Ainda em relação à caracterização de fato novo como pressuposto
para a revisão administrativa, a jurisprudência exarada pelo Superior
Tribunal de Justiça tem entendido que “meras alegações de que existe
fato novo não têm o condão de abrir a via da revisão do processo admi-
nistrativo disciplinar, sendo indispensável a comprovação da existência
de fatos novos, desconhecidos ao tempo do PAD”27. Sobre o tema, a
Corte já decidiu:
MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. PAD. FATO
APURADO: UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE ARMA QUE LHE FORA
ACAUTELADA PARA O SERVIÇO POLICIAL. PENA APLICADA:
SUSPENSÃO PELO PERÍODO DE 8 DIAS DO CARGO DE PO-
LICIAL FEDERAL. PRETENSÃO DE REVISÃO DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR, EM RAZÃO DA PRESCRIÇÃO
PARA A APLICAÇÃO DA PENALIDADE. INOCORRÊNCIA DE
FATO NOVO. ORDEM DENEGADA, EM CONSONÂNCIA COM O
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. 1. O impetrante
pretende obter a revisão do Processo Administrativo Disciplinar, de-
fendendo a ocorrência de fato novo capaz de extinguir a punibilidade,
qual seja, consumação do prazo prescricional para a aplicação da pena
de suspensão. 2. Meras alegações de que existe fato novo não têm o
condão de abrir a via da revisão do processo disciplinar, sendo indis-
pensável a comprovação da existência de fatos novos, desconhecidos ao

26 LESSA, Sebastião José. Temas práticos de direito administrativo disciplinar. Brasília, DF:
Brasília Jurídica, 2005, p. 100-101, grifo nosso.
27 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Compilado: processo administrativo disciplinar.
Brasília, DF: STJ, 2020. Jurisprudência em teses, nº 154, p. 18.

349
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

tempo do PAD, ou de circunstâncias suscetíveis de justificar a inocência


do punido ou a inadequação da penalidade aplicada (MS 17.666/DF,
Rel. Min. ASSUSETE MAGALHÃES, DJe 16.12.2014). 3. Com efeito,
a alegação de prescrição não é suficiente para abrir a via da revisão do
Processo Administrativo Disciplinar, pois esta deve estar pautada na
comprovação de fatos novos, desconhecidos ao tempo do PAD, o que
não ocorreu no caso em comento. 4. Ante o exposto, denega-se a segu-
rança, em conformidade com o parecer do MPF.28
MANDADO DE SEGURANÇA. EX-SERVIDOR. PROCESSO
ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DEMISSÃO. IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA. ART. 132, IV, DA LEI 8.112/90. PEDIDO DE
REVISÃO. ARTS. 174 E SEGUINTES DA LEI 8.112/90. PRESCRI-
ÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. PEDIDO DE REVISÃO FUNDAMEN-
TADO NA ALEGAÇÃO DE FATO NOVO: REVOGAÇÃO TÁCITA
DA LEI 8.112/90 PELA LEI 8.429/92. INOCORRÊNCIA. PAD POS-
TERIOR À LEI 8.429/92. INEXISTÊNCIA DE FATO NOVO. SEGU-
RANÇA DENEGADA. I. Hipótese em que o impetrante se insurge
contra a decisão da autoridade impetrada que lhe negou o pedido de
revisão do processo disciplinar, nos termos do art. 147 da Lei 8.112/90,
por não estarem presentes os elementos mínimos necessários para o
processamento do pedido revisional. Sustenta o impetrante, demitido
em 20/06/97, por violação ao art. 132, IV, da Lei 8.112/90 c/c art. 5º,
parágrafo único, inciso IV, da Lei 8.027/90, que existiria fato novo,
a ensejar o pedido revisional, porquanto não lhe fora oportunizada
ampla defesa da acusação de improbidade administrativa, na vigên-
cia da Lei 8.429/92, que teria revogado tacitamente o art. 132, IV, da
Lei 8.112/90, passando à competência do Poder Judiciário investigar
e julgar servidor público por ato de improbidade administrativa, pelo
que seria nula a sanção que lhe fora aplicada. II. Nos termos da juris-
prudência do STJ, “o pedido de revisão do processo administrativo dis-
ciplinar encontra-se regulado pelos arts. 174 a 182 da Lei 8.112/1990,
podendo ser realizado a qualquer tempo, a pedido ou de ofício pela

28 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). Mandado de Segurança 21065/DF.


Impetrante: Ronaldo Alvez Cully dos Santos. Impetrado: Ministro de Estado da Justiça.
Relator: Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 10 de outubro de 2018. Diário da Justiça
eletrônico, 22 out. 2018, p. 1-2, grifo nosso.

350
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

autoridade, devendo restar demonstrados fatos novos ou circunstân-


cias suscetíveis de justificar a inocência do punido ou a inadequação
da sanção aplicada, competindo o ônus da prova ao requerente e não
constituindo fundamento para a revisão a simples alegação de injustiça
da penalidade aplicada, a qual pressupõe a existência de elementos no-
vos, ainda não apreciados no processo originário” (STJ, MS 20.824/DF,
Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, PRIMEIRA SEÇÃO,
DJe de 18/08/2014). Inocorrência da alegada prescrição para a revisão
do processo disciplinar. III. Meras alegações de que existe fato novo não
têm o condão de abrir a via da revisão do processo disciplinar, sendo
indispensável a comprovação da existência de fatos novos, desconhe-
cidos ao tempo do PAD, ou de circunstâncias suscetíveis de justificar
a inocência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada. […]
VI. Não tendo sido aduzidos fatos novos ou qualquer outra circuns-
tância suscetível de justificar a inocência do punido ou a inadequação
da pena aplicada, na forma prevista no art. 147 da Lei n° 8.112/90,
impõe-se reconhecer a legalidade do ato que indeferiu a instauração do
processo revisional. VII. Mandado de Segurança denegado.29
MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR
PÚBLICO. AUDITOR FISCAL DO TRABALHO. DEMISSÃO. REVI-
SÃO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DOEN-
ÇA MENTAL PARCIAL PERMANENTE CONTEMPORÂNEA AOS
FATOS INVESTIGADOS. FALTA DE PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA.
1. Conquanto possa ser postulada a qualquer tempo, a revisão deve estar
fundada em fatos novos ou circunstâncias suscetíveis de justificar a ino-
cência do punido ou a inadequação da penalidade aplicada. 2. Na hipó-
tese dos autos, alega-se a superveniência de incapacidade mental parcial
como fato novo a justificar a revisão da pena de demissão aplicada ao im-
petrante, numa tentativa de demonstrar sua inadequação, ao argumento
de que, já na época dos acontecimentos investigados no PAD, o impe-
trante se encontrava debilitado. 3. A atual situação de parcial debilidade
mental do impetrante não alcança a gênese dos ilícitos administrativos

29 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). Mandado de Segurança 17666/DF. Impetrante:
Marcorélio da Costa Ribeiro. Impetrado: Ministro de Estado do Desenvolvimento Agrário.
Relatora: Min. Assusete Magalhães, 10 de dezembro de 2014, Diário da Justiça eletrônico,
16 dez. 2014, grifo nosso.

351
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

por ele perpetrado quando no exercício do cargo público, porquanto o


documento trazido aos autos carece de potencialidade material e jurídica
suficiente a causar, ao menos, dúvida quanto à juridicidade do ato de
demissão, que permanece legítimo e adequado aos preceitos constitu-
cionais, notadamente a legalidade, moralidade, razoabilidade e propor-
cionalidade. 4. O laudo acostado aos autos não faz qualquer menção
de que a deficiência seja contemporânea aos fatos apurados, não indica
o período em que tenha se desencadeado, nem mesmo evidencia que à
época dos fatos o investigado sofria de qualquer debilidade psiquiátrica.
5. Não tendo sido suficiente para configurar um fato novo, uma circuns-
tância que justifique a inocência do apenado, ou a inadequação da pena,
o pedido de revisão torna-se manifestamente improcedente, restando in-
cólume a juridicidade da Portaria n. 40, de 15 de fevereiro de 2005, que
demitiu o servidor em razão dos ilícitos administrativos cometidos. […]
8. A teor do artigo 175 do referido diploma legal [Lei n. 8.112/1990], o
ônus da prova no processo revisional é do requerente. Contudo, olvidou-
-se o impetrante de produzir os elementos probatórios necessários à sua
pretensão de demonstrar seu direito líquido e certo à revisão do processo
administrativo. 9. Segurança denegada. (g. n.)30
Importante destacar que a apresentação da revisão deve ser feita por
meio de advogado e deverá ser demonstrado, desde logo, o atendimento
dos pressupostos legais, sob pena de indeferimento31, ressaltando-se que,
na revisão de punição disciplinar, o ônus da prova cabe ao requerente32.
Caso o interessado tenha falecido ou seja incapaz, o artigo 31733
da Lei estadual nº 10.261/68 autoriza o requerimento de instauração do

30 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). Mandado de Segurança 11441/DF.


Impetrante: José Luiz de Jesus da Silva. Impetrado: Ministro de Estado do Trabalho
e Emprego. Relator: Min. Haroldo Rodrigues, 13 de abril de 2011. Diário da Justiça
eletrônico, 1 jul. 2011 grifos nossos.
31 “Art. 315 […] §3º – Os pedidos formulados em desacordo com este artigo serão indeferidos”
(SÃO PAULO, Lei n. 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 315).
32 “Art. 315 […] §4º – O ônus da prova cabe ao requerente” (Ibidem, art. 315).
33 “Artigo 317. A instauração de processo revisional poderá ser requerida fundamentadamente
pelo interessado ou, se falecido ou incapaz, por seu curador, cônjuge, companheiro,
ascendente, descendente ou irmão, sempre por intermédio de advogado. Parágrafo único –
O pedido será instruído com as provas que o requerente possuir ou com indicação daquelas
que pretenda produzir” (Ibidem, art. 317).

352
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

processo revisional por seu curador, cônjuge, companheiro, ascendente,


descendente ou irmão.
Nos termos do artigo 318 do Estatuto, será competente para o exame
da admissibilidade do pedido de revisão, bem como, caso deferido o pro-
cessamento, para sua decisão final, a autoridade que aplicou a penalidade
ou que a tiver confirmado em grau de recurso. No caso de pena aplica-
da por Secretário de Estado, confirmada pelo Governador do Estado em
grau recursal, consideramos que a competência prevista no dispositivo
citado caberia à última autoridade, por força do princípio da hierarquia,
visto que a decisão final quanto à punição coube à autoridade superior e,
portanto, a ela também caberia decidir quanto à sua revisão.
Como já mencionado, a revisão não é recurso, mas sim um meio de
impugnação autônomo, desenvolvendo-se com rito semelhante ao pro-
cesso administrativo disciplinar, conforme disposto nos artigos 31934 e
32035 da Lei nº 10.261/68.
Por fim, o artigo 316 do Estatuto estabelece que “a pena imposta
não poderá ser agravada pela revisão”, espancando eventuais questio-
namentos acerca da aplicação do preceito da non reformatio in pejus.

4. DIREITO DE PETIÇÃO

O direito de petição tem raízes na própria Constituição da Repú-


blica, garantido, em termos gerais, segundo o inciso XXXIV, alínea “a”,
do artigo 5º:
Art. 5º. […]

XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento


de taxas:

34 “Artigo 319. Deferido o processamento da revisão, será este realizado por Procurador de
Estado que não tenha funcionado no procedimento disciplinar de que resultou a punição do
requerente” (Ibidem, art. 319).
35 “Artigo 320. Recebido o pedido, o presidente providenciará o apensamento dos autos
originais e notificará o requerente para, no prazo de 8 (oito) dias, oferecer rol de testemunhas,
ou requerer outras provas que pretenda produzir. Parágrafo único – No processamento
da revisão serão observadas as normas previstas nesta lei complementar para o processo
administrativo” (Ibidem, art. 320).

353
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou


contra ilegalidade ou abuso de poder; […].36
Note-se que o direito de petição tem feição ampla e genérica, vol-
tado à “defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”,
podendo ser invocado na esfera administrativa ou judicial, em vários
tipos de procedimentos. Segundo a lição de José Afonso da Silva,
O ‘direito de petição’ define-se “como o direito que pertence a uma
pessoa de invocar a atenção dos Poderes Públicos sobre uma questão
ou uma situação”, seja para denunciar uma lesão concreta e pedir a re-
orientação da situação, seja para solicitar uma modificação do Direito
em vigor, no sentido mais favorável à liberdade. Há nele uma dimensão
coletiva, consistente na busca ou defesa de direitos ou interesses gerais
da coletividade. Esse direito vinha ligado ao direito de representação.
Este não foi repetido. É que o constituinte deve ter raciocinado – e com
razão – que a representação pode ser veiculada pela petição, de sorte
que a legislação que regulamenta aquela foi recebida e permanece em
vigor. O que se tem observado é que o direito de petição é mais uma
sobrevivência do que uma realidade. Nota-se também que ele se re-
veste de dois aspectos: pode ser uma queixa, uma reclamação, e então
aparece como um recurso não-contencioso (não-jurisdicional) formu-
lado perante as autoridades representativas; por outro lado, pode ser a
manifestação da liberdade de opinião, e revestir-se do caráter de uma
informação ou de uma aspiração dirigida a certas autoridades. Esses
dois aspectos, que antes eram separados em direito de petição e direito
de representação, agora se juntaram no só direito de petição.37
A despeito dessa natureza mais genérica, não se confundindo aos re-
cursos previstos no processo administrativo disciplinar, constata-se, na prá-
tica, que o direito de petição é invocado, com certa frequência, nessa espécie
de processo, algumas vezes apenas reiterando a matéria já debatida e com
mero intuito protelatório; outras, na busca de aplicação subsidiária como
alternativa a vias recursais, cujos pressupostos não estão atendidos.

36 BRASIL, Constituição Federal de 1988, art. 5º, grifo nosso.


37 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 8. ed. São Paulo: Malheiros,
2012, p. 132-133, grifo nosso.

354
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

A feição genérica, contudo, não autoriza alusão ao direito de petição


como substitutivo de recursos não previstos ou não empregados segundo
as condições fixadas na legislação, para mera reiteração de inconformismo,
ventilando as mesmas questões decididas anteriormente. Nessa linha, ao
apreciar o Parecer AJG nº 1157/1999, advertiu o então Procurador do Esta-
do Assessor Chefe da Assessoria Jurídica do Governo, Elival da Silva Ramos,
que o exercício do direito de petição está sujeito à disciplina infraconstitu-
cional, que, no caso de relação estatutária, é a Lei estadual nº 10.261/1968:
Divirjo do Parecer AJG nº 1157/1999, contudo, ao preconizar que se receba
o pedido de revisão a título de exercício do direito constitucional de petição,
comportando o petitório do interessado, sob essa rubrica, conhecimento.
Venho dizendo e reiterando que o exercício do direito de petição, sediado no
inciso XXXIV, alínea ‘a’, da Lei Maior está sujeito à disciplina infraconsti-
tucional que a esfera competente, por meio da forma adequada, tenha even-
tualmente estabelecido. Assim, no caso de relação estatutária, as postulações
devem ser apresentadas à Administração na forma e prazos disciplinados na
legislação própria, no caso de São Paulo, a Lei Estadual nº 10.261/68. Ora,
no caso em foco, cuida-se de processo findo, uma vez ultrapassado in albis o
prazo do inciso II do artigo 240 deste diploma legal, não sendo, de outra par-
te, cabível a interposição de revisão pelas razões já expostas. Logo, operou-se
a preclusão administrativa em relação ao ato que exonerou o interessado.38

A Lei estadual nº 10.261/1968 estipulou os meios e condições para


exercício de inconformismo diante de sanções disciplinares impostas. Caso
já esgotados tais instrumentos ou inviável seu recebimento porque não pre-
enchidos seus pressupostos, não cabe pretender aplicação subsidiária do
direito de petição, caso não atendidas as condicionantes de seu emprego.
Note-se que os artigos 23939 e 24040 da Lei estadual nº 10.261/1968,
que disciplinam o direito de petição nas relações estatutárias, sequer inte-

38 RAMOS, Elival da Silva. Despacho que analisou o Parecer AJG n. 1157/99. São Paulo:
Procuradoria-Geral do Estado, 1999, p. 8, grifo nosso e do autor.
39 “Artigo 239 – É assegurado a qualquer pessoa, física ou jurídica, independentemente de
pagamento, o direito de petição contra ilegalidade ou abuso de poder e para defesa de
direitos. §1º […]” (SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, art. 239).
40 “Artigo 240 – Ao servidor é assegurado o direito de requerer ou representar, bem como,
nos termos desta lei complementar, pedir reconsideração e recorrer de decisões, no prazo de
30 (trinta) dias, salvo previsão legal específica” (Ibidem, art. 240).

355
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

gram o Título VIII, destinado ao procedimento disciplinar, mas estão inse-


ridos no Capítulo VII (Do Direito de Petição), que faz parte do Título V
(Dos Direitos e Vantagens em Geral). Aludidos dispositivos asseguram a
qualquer pessoa, física ou jurídica, o direito de petição contra ilegalidade ou
abuso de poder e para defesa de direitos; e ao servidor, em termos genéricos,
e não especificamente destinado à aplicação de penas disciplinares, o direito
de requerer ou representar, bem como, pedir reconsideração e recorrer de
decisões, no prazo de 30 (trinta) dias, salvo previsão legal específica.
O direito de petição, portanto, pode ser invocado em processos dis-
ciplinares, mas não se limita, nos termos da Lei Estadual nº 10.261/68
ao emprego nesse âmbito, vedando-se o uso como substitutivo dos re-
cursos disciplinares, especialmente para simples reiteração de inconfor-
mismo, se já consumada a preclusão administrativa.
Não obstante análise de caso concreto relativo à matéria tributá-
ria, pertinente a referência ao Parecer PA nº 77/200341, que traz pre-
cisa lição sobre o direito de petição. O citado opinativo admitiu que
a pretensão deduzida pelo interessado fosse acolhida com amparo no
exercício do direito de petição, garantido pelo artigo 5º, inc. XXXIV,
“a”, da Constituição Federal, visto que a postulação “formula novo pe-
dido fundamentado em causa diversa e superveniente: a anistia fiscal”42,
não se cuidando, desse modo, de mera reiteração de petitório, lastreado
nos mesmos fundamentos já expostos.
O parecer ressaltou ainda que a lei poderá fixar as condições para
exercício de tal direito, que não poderá ser empregado indefinidamente,
como instrumento procrastinatório:
Assim retratada [ao formular novo pedido fundamentado em causa di-
versa e superveniente], a finalidade objetivada pelo interessado arrima-
-se no direito de petição albergado constitucionalmente, porque ende-
reçada à defesa de direito que o interessado entende dispor. Essa con-
ceituação transmitida por Celso Ribeiro Bastos, que não discrepa da
generalidade das dos demais autores:

41 De autoria do Procurador do Estado Antonio Joaquim Ferreira Custódio (aprovado nas


instâncias superiores da PGE).
42 CUSTÓDIO, op. cit., p. 1-9.

356
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

“O direito de petição pode ser definido como aquele que, exercitável


por qualquer pessoa, tem por objetivo apresentar um pleito de interesse
pessoal ou de interesse coletivo, visando com isso obter uma medida
que considera mais condizente com o interesse público”.
O exercício desse direito, como qualquer outro contemplado pelo sis-
tema, pode, no entanto, ser disciplinado pelo ordenamento infracons-
titucional. Não constitui prerrogativa exercitável ao bel prazer do indi-
víduo, pela forma que melhor lhe aprouver. Pode, destarte, a lei estabe-
lecer-lhe limites e condições de exercício, desde que não o suprima ou
os institua de forma tal que o impeça ou o torne extremamente difícil.43
Pode-se extrair do Parecer PA nº 77/2003 que, para que a pretensão
do interessado seja veiculada – quer como recurso, ou, na ausência de
tal previsão, como direito de petição – há de sustentar-se na discipli-
na infraconstitucional, que ampare a interposição do inconformismo,
exercendo-se segundo o regramento fixado para tanto.
A expressão de inconformismo pela via do direito de petição foi exa-
minada pela Procuradoria Administrativa, em diversas oportunidades,
também na seara das relações estatutárias de natureza disciplinar, aco-
lhendo a mesma linha argumentativa desenvolvida no despacho que ana-
lisou o Parecer AJG nº 1157/1999 e no Parecer PA nº 77/2003. Para maior
clareza, transcrevam-se ementa e trecho do Parecer PA nº 149/200444:
Ementa: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. DIREITO
DE PETIÇÃO. INADMISSIBILIDADE, DIANTE DO ESGOTAMEN-
TO DA VIA RECURSAL E DA FORMAÇÃO DA COISA JULGADA
ADMINISTRATIVA. DEFESA TÉCNICA. DISPENSABILIDADE NO
ÂMBITO DA SINDICÂNCIA AVERIGUATÓRIA. INEXISTÊNCIA
DE NULIDADES PROCEDIMENTAIS. NÃO CONHECIMENTO.
[…]
9. O interessado, efetivamente, para manifestar seu inconformismo
com a penalidade que lhe foi aplicada, lançou mão de todos os recursos

43 Ibidem, p. 1-9, grifo nosso.


44 De autoria do Procurador do Estado Luiz Francisco Torquato Avolio (aprovado nas
instâncias superiores da PGE).

357
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

administrativos previstos em lei, encontrando-se, de há muito, esgotada


a via administrativa.
10. Com efeito, não se afigura ilimitado o direito de recorrer da decisão
que aplicar penalidade, visto que pode ser exercido por uma única vez,
como expressamente dispõe o artigo 312, “caput”, da Lei n. 10.261,
de 1968, com a redação conferida pela Lei Complementar n. 942,
de 6 de junho de 2003.
11. Dentro da nova sistemática do procedimento disciplinar instituí-
da pela referida Lei Complementar, e consoante bem demonstrado nos
precedentes pronunciamentos dos órgãos opinativos e da Comissão
Processante, incabível se mostra, na espécie, tanto o pedido de recon-
sideração ao Governador do Estado, posto que já exercitado e não
passível de renovação (art. 313), como a revisão de punição irrecorrível,
diante da inexistência de fatos ou circunstâncias novos (art. 315).
12. Assim, ainda que manifestado o inconformismo do interessado
com amparo no direito constitucional de petição, previsto no artigo 5º,
inciso XXXIV, não é de ser admitido novo pedido dirigido ao Governador,
à vista da legislação que inadmite a reiteração de recursos, como consig-
nado no Parecer PA n. 77/2003, da lavra do Dr. Antonio Joaquim Ferreira
Custódio, que mereceu aprovação pelo Procurador Geral do Estado.
13. O pedido, portanto, não deve ser conhecido, por lhe faltar pressu-
posto básico de admissibilidade, qual seja, o cabimento do recurso.45
Ainda em matéria disciplinar, porém tratando de caso concreto rela-
tivo a um integrante da Polícia Civil, que se submete a legislação própria,
mas cujos argumentos, na hipótese, permitem paralelo à sistemática da
Lei estadual nº 10.261/68, o Parecer PA nº 286/200346 rejeitou a possi-
bilidade de conhecimento, como direito de petição, de pedido de revisão,
que não atendia aos pressupostos de admissibilidade. Confira-se trecho do
opinativo, que reafirma a impossibilidade de se invocar o direito de peti-
ção como fundamento para admissão de recurso ou revisão, se não exer-
cido nos termos e condições impostos pela legislação infraconstitucional:

45 AVOLIO, Luiz Francisco Torquato. Parecer nº 149/2004. São Paulo: Procuradoria-Geral do


Estado, 2004a, grifo nosso.
46 De autoria da procuradora do estado Maria Lúcia Pereira Moióli (aprovado nas instâncias
superiores da PGE).

358
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DISCIPLI-


NAR – demissão a bem do serviço público. REVISÃO. Pedido formu-
lado por ex-investigador de Polícia, demitido a bem do serviço públi-
co, nos termos dos artigos 74, inciso II e 75, incisos II e VI, ambos da
LC 207/79 alterada pela LC n. 922/02. Inexistência de fatos novos
ou circunstâncias ainda não apreciadas ou vícios insanáveis de pro-
cedimento que justifiquem, conforme solicitado pelo interessado, a
redução da pena de demissão qualificada. Proposta de indeferimento
do pedido de revisão, nos termos do artigo 122, §3º da LC n. 207/79
alterada pela LC n. 922/02. Inviabilidade do conhecimento do pedido
de revisão, como direito de petição, assegurado no artigo 5º, inciso
XXXIX, alínea ‘a’ da Constituição Federal. Competência do Gover-
nador do Estado, autoridade que aplicou a penalidade.
[…]
14. Na realidade, no presente pedido de revisão, o interessado repete seus
argumentos e postulações anteriormente apreciadas; sendo aqui de se res-
saltar novamente que, em virtude da independência das instâncias penal e
administrativa, a r. decisão judicial em tela não lhe favorece, uma vez que,
por não negar a existência do fato ou da sua autoria, não repercute nesta
esfera administrativa para excluir os ilícitos previstos no artigo 75, incisos
II e VI, da Lei Complementar n. 207/79, alterada pela Lei Complementar
n. 922/02, que alicerçaram a decisão punitiva ora impugnada.
15. Posto isto, opinamos pelo indeferimento pedido de revisão, nos ter-
mos do artigo 122, §3º da Lei Complementar n. 207/79, com a redação
dada pela Lei Complementar n. 922/02.
16. Por fim, com a devida vênia da Consultoria Jurídica da Secretaria
da Segurança Pública, entendemos que o presente pedido de revisão
não pode ser conhecido como direito de petição, previsto no artigo 5º,
inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal, não só pela au-
sência de seus pressupostos, como também porque o mesmo deve ser
exercido nos termos e condições impostos pela legislação infraconstitu-
cional de regência, no caso dos autos, a Lei Complementar n. 207/79,
com a redação dada pela Lei Complementar nº 922/02.47

47 MOIÓLI, Maria Lúcia Pereira. Parecer nº 286/2003. São Paulo: Procuradoria-Geral do


Estado, 2004, p. 1-12, grifo nosso.

359
Luciana R. L. Saldanha Gasparini

Não atende, portanto, aos pressupostos do direito de petição a pre-


tensão de seu emprego como mera reiteração de inconformismo, quando
esgotadas as vias recursais próprias.
A existência de condicionantes ao direito de petição, fixadas em
normas instrumentais, que disciplinam a interposição de recursos,
é reconhecida também por nossos tribunais superiores. Confira-se acór-
dão proferido pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, no jul-
gamento do Agravo Regimental em Mandado de Segurança nº 28.156:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGU-
RANÇA. ATO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. TOMA-
DA DE CONTAS ESPECIAL. RECURSOS INTEMPESTIVOS. NÃO
OCORRÊNCIA DE CERCEAMENTO DE DEFESA. AUSÊNCIA DE
VIOLAÇÃO DO DIREITO DE PETIÇÃO.
O entendimento deste Supremo Tribunal Federal é no sentido de que o
direito de petição e as garantias do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal não são absolutos e seu exercício se perfaz nos
termos das normas processuais que regem a matéria, em conformidade
com o que dispõem as normas instrumentais, in casu, a Lei Orgânica do
Tribunal de Contas da União (Lei nº 8.443/92) e o Regimento Interno
do TCU (RITCU). Agravo regimental conhecido e não provido.48
Mencione-se, também, excerto do acórdão proferido pelo Supremo
Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso
Extraordinário nº 263.975:
O direito de petição, fundado no art. 5º, XXXIV, a, da Constituição
não pode ser invocado, genericamente, para exonerar qualquer dos
sujeitos processuais do dever de observar as exigências que condicio-
nam o exercício do direito de ação, pois, tratando-se de controvérsia
judicial, cumpre respeitar os pressupostos e os requisitos fixados pela
legislação processual comum. A mera invocação do direito de petição,

48 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (1. Turma). Agravo Regimental em Mandado de


Segurança 28.156/DF. Agravante: Associação de ensino superior de Nova Iguaçu –
SESNI; Fábio Gonçalves Raunheitti. Agravado: Presidente do Tribunal de Contas da
União. Relatora: Min. Rosa Weber, 2 de setembro de 2014. Diário da Justiça eletrônico,
17 set. 2014, p. 1, grifo nosso.

360
R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

por si só, não basta para assegurar à parte interessada o acolhimento


da pretensão que deduziu em sede recursal.49
Na mesma linha, a jurisprudência exarada pelo Superior Tribunal
de Justiça, da qual se extrai a ementa do acórdão referente ao julgamen-
to do Mandado de Segurança nº 25.131/DF:
EMENTA: ADMINISTRATIVO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DIS-
CIPLINAR. OPERAÇÃO “CARNE FRACA”. PROVA EMPRESTADA
DE INQUÉRITO POLICIAL E AÇÃO PENAL CORROBORADA POR
ELEMENTOS COLHIDOS NO PROCEDIMENTO ADMINISTRATI-
VO. LICITUDE. SÚMULA 591/STJ. AMPLA DEFESA E CONTRADI-
TÓRIO RESPEITADOS. DIREITO CONSTITUCIONAL DE PETIÇÃO.
CARÁTER NÃO ABSOLUTO. GRAVAÇÃO TELEFÔNICA ENVOL-
VENDO PESSOAS NÃO INVESTIGADAS. AUSÊNCIA DE NEXO
CAUSAL COM A INTERCEPTAÇÃO QUE SERVIU DE FUNDAMEN-
TO PARA A COMISSÃO PROCESSANTE. INAPLICABILIDADE DA
TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA.
[…]
5.O direito constitucional de petição, invocado pelo impetrante para
sustentar a ocorrência de ilegalidade na rejeição de seu pedido de nuli-
dade, formulado logo após a apresentação do Relatório Final, não pros-
pera, uma vez que não encontra respaldo no procedimento descrito na
Lei 8.112/90. A jurisprudência do STF é “no sentido de que o direito
de petição e as garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido
processo legal não são absolutos e seu exercício se perfaz nos termos
das normas processuais que regem a matéria” (MS 28.156/DF, Relatora
Min. Rosa Weber, Primeira Turma, DJe 17.9.2014).
[…]
7.Ordem denegada. Prejudicado o Agravo Interno contra a decisão que
indeferiu a tutela provisória.50

49 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2. Turma). Agravo Regimental no Recurso


Extraordinário 263975/RN. Agravante: xxxxx. Agravado: xxxxx. Relator: Min. Celso de
Mello, 26 de setembro de 2000, Diário da Justiça, 2 fev. 2001, p. 1.
50 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). Mandado de Segurança 25131/DF.
Impetrante: Eraldo Cavalcanti Sobrinho. Impetrado: Ministro da Agricultura, Pecuária

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Luciana R. L. Saldanha Gasparini

Em síntese, portanto, a jurisprudência dos Tribunais Superiores ratifica


o entendimento aprovado institucionalmente, no âmbito da Procuradoria-
-Geral do Estado, no sentido de que a lei poderá fixar as condições para
exercício do direito de petição, orientando sua aplicação, que não pode-
rá se dar indefinidamente, como instrumento procrastinatório.

5. CONCLUSÃO

A fungibilidade dos recursos, a instrumentalidade das formas, a efi-


ciência e celeridade no processo, conquanto minimizem o rigor acerca da
correta denominação do recurso ou de seu endereçamento, privilegiando
a garantia ao direito de defesa em detrimento do formalismo, não de-
vem ser interpretados como uma autorização para não atendimento dos
pressupostos legalmente previstos ou para indefinida apresentação de
recursos ou outras manifestações de inconformismo, que não tenham
respaldo na respectiva legislação de regência.
As modalidades com natureza recursal indicadas no Capítulo V do
Título VIII do Estatuto do Funcionalismo, que trata do procedimento
disciplinar, quais sejam, o recurso hierárquico e o pedido de reconside-
ração; e outros instrumentos também empregados no contexto da defesa
de caráter administrativo disciplinar, como a revisão administrativa51
e o exercício do direito de petição52 apresentam requisitos próprios,
que orientam seu emprego.
Os precedentes exarados pela Procuradoria-Geral do Estado e a
jurisprudência dos Tribunais Superiores apontam que, para que a pre-
tensão do interessado seja veiculada – quer como recurso, pedido de
reconsideração, revisão, ou como direito de petição – há de sustentar-se
na disciplina infraconstitucional, que ampare a interposição do incon-
formismo, exercendo-se segundo o regramento fixado para tanto.

e Abastecimento. Relator: Min. Herman Benjamin, 27 de novembro de 2019, Diário da


Justiça eletrônico, 8 maio 2020, p. 1-2, grifos nossos.
51 SÃO PAULO, Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, capítulo VI do Título VIII.
52 BRASIL, Constituição Federal de1988, art. 5º, inc. XXXIV, “a”; SÃO PAULO, op. cit.,
arts. 239-240, Capítulo VII, Título V.

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R. Proc. Geral Est. São Paulo, São Paulo, n. 95: 337-365, jan./jun. 2022

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ça 21120/DF. Impetrante: Dilson Juarez Abreu. Impetrado: Ministro de
Estado da Saúde. Relator: Min. Benedito Gonçalves, 22 de fevereiro de
2018. Diário da Justiça eletrônico, 1 mar. 2018.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (1. Seção). Mandado de Segurança
25131/DF. Impetrante: Eraldo Cavalcanti Sobrinho. Impetrado: Ministro
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Relator: Min. Herman Benja-
min, 27 de novembro de 2019, Diário da Justiça eletrônico, 8 mai. 2020.
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13 de abril de 2011. Diário da Justiça eletrônico, 1 jul. 2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Seção). Mandado de Segurança
14450/DF. Impetrante: Vera Lúcia de Araújo Costa. Impetrado: Ministro
de Estado da Saúde. Relator: Min. Gurgel de Faria, 26 de novembro de
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