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A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo

Ondina Maria Rodrigues Machado

Tese submetida ao corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Teoria


Psicanalítica – PPGTP - do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.

Aprovada por:

_____________________________________
Profa. Tania Coelho dos Santos - Orientadora
Doutora

____________________________________
Profa. Ana Lydia Santiago
Doutora

____________________________________
Profa. Márcia Mello de Lima
Doutora

____________________________________
Profa. Ana Cristina Figueiredo
Doutora

____________________________________
Prof. Marcus André Vieira
Doutor

Rio de Janeiro
2005
9

Ficha Catalográfica

Machado, Ondina Maria Rodrigues

A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo/ Ondina Maria Rodrigues


Machado. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGTP, 2005.
vii, 207 p.

(Tese) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGTP, 2005.

1. Clínica psicanalítica. 2. Sujeito contemporâneo.


Tese. ( Dout. - UFRJ/PPGTP). 4. Orientadora: Tania Coelho dos Santos.
I. A clínica do sinthoma e o sujeito contemporâneo
10

DEDICATÓRIA:

Para o meu netinho Théo


11

AGRADECIMENTOS:

Aos que me esperaram e aos que me acompanharam

André que fez os dois


Caetano e Dani que esperaram e nos deram o Théo
Tania que me acompanhou
Izabel que me esperou

À Vera Ribeiro pela revisão


Ao CNPq que financiou esta pesquisa.
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RESUMO

MACHADO, Ondina Maria Rodrigues. A clínica do sinthoma e o sujeito


contemporâneo. Orientadora: Tania Coelho dos Santos. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGTP-IP; CNPq, 2005. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica)

Nosso objetivo é trabalhar a clínica do sinthoma, postulação ulterior de

Lacan, investigando sua aplicabilidade na clínica contemporânea. Para isso

estudamos o sintoma em Freud, ressaltando os pontos posteriormente

aproveitados por Lacan na formulação do sinthoma. Dentro do próprio ensino de

Lacan destacamos dois momentos anteriores ao sinthoma, são eles: o sintoma

como mensagem e o sintoma como sentido e gozo. Para chegar ao sinthoma,

trabalhamos os conceitos de identificação e gozo, fundamentais para entender

que ao final de uma análise o sujeito se identifica a seu próprio gozo. O Seminário,

livro 23 é estudado através do recorte das principais modificações feitas para

contemplar a teoria do sinthoma. Finalmente, no último capítulo, o discurso

contemporâneo é apresentado e discutido como forma de orientar uma clínica

voltada para os sujeitos atuais.


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ABSTRACT

MACHADO, Ondina Maria Rodrigues. A clínica do sinthoma e o sujeito


contemporâneo. Orientadora: Tania Coelho dos Santos. Rio de Janeiro:
UFRJ/PPGTP-IP; CNPq, 2005. Tese (Doutorado em Teoria Psicanalítica)

Our purpose is to work the clinic of the sinthome, an ulterior postulation of Jacques

Lacan, by investigating its applicability in the contemporaneous clinic. In this

sense, we have studied the symptom as Freud had formulated, emphasizing the

topics that were profitable to Lacan in his sinthome’s formulation. In the Lacanian

specific teaching, we point out two different symptom‘s precedent moments, which

are: the symptom as a message and the symptom as sense and enjoyment

(jouissance). In order to approach the sinthome, we have worked the concepts of

identification and enjoyment which are fundamentally important in the

understanding that, at the end of an analysis process, the subject identifies himself

to his own enjoyment. The Seminary 23 is studied through the selection of the

main modifications that were made in order to take the sinthome’s theory into

consideration. Finally, in the last chapter, the contemporaneous speech is

presented and discussed aiming an orientation to a clinic devoted to

contemporaneous subjects.
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Sumário

Introdução: 01

Capítulo I: A carne do sintoma 07


1. O conceito de sintoma em Freud 07
2. O sintoma em Lacan 31
2.1. O sintoma como mensagem 31
2.2. O sintoma como sentido e gozo 36

Capítulo II: A identificação 39


1. A identificação à sua imagem no outro 40
2. A identificação ao Outro 41
2.1. A identificação ao significante do Outro 43
2.1.1. O traço unário 44
2.1.2. O traço unário e o Um 45
2.1.3. O traço unário e o ideal 48
2.2. A inclusão do sujeito no Outro 53
2.2.1. A identificação e a fantasia 56
3. A identificação como alienação-separação 58

Capítulo III: O gozo: 79


1. A mortificação 80
2. A vivificação 106

Capítulo IV: O osso do sinthoma 116


1. - Sobre o Seminário O sinthoma 116
1.1. A foraclusão 117
1.2. O nó 121
1.3. O real 125
1.4. A loucura de Joyce 129
1.5. O sinthoma 133
1.6. O savoir-faire 138
1.7. A escrita 139
1.8. O ego de Joyce 140
1.9. Considerações gerais 142
2. A relação entre sintoma e sinthoma 146

Capítulo V : O sujeito contemporâneo e sua clínica 155


1. O discurso da civilização contemporânea 156
2. O Outro não-todo 164
3. O sujeito contemporâneo 169
4. Ensaio para uma prática clínica do não-todo 179

Conclusão 196

Referências 201
15

Introdução

Onde me situo na pesquisa.

Esta tese teve início quando, ao escrever minha dissertação de mestrado,

deparei-me com o que era chamado, na época, a segunda clínica de Lacan. A

dissertação versava sobre o diagnóstico estrutural e, ao tomar contato com os

textos de Miller enfatizando o último Lacan, tive vontade de rasgar a dissertação e

começar tudo de novo. Esse foi o impacto que me causou a leitura de textos como

Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: A Conversação de

Arcachon (HENRY et al., 1998), A teoria do parceiro (MILLER,1997/2000), Le

conciliabule D'Angers (HENRY et al., 1997), La psychose ordinaire: la Convention

d' Antibes (DE GEORGES et al., 1999), L'Autre qui n'existe pas et ses comités

d'éthique (LAURENT & MILLER, 1997), Os seis paradigmas do gozo (MILLER,

1999), O Monólogo da apparola ( MILLER, 1998a) dentre outros. Empolgação de

momento que não me deixou ver o quanto o Lacan clássico era importante, e

como nele já estavam contidos ensinamentos que apontavam para os seus

desenvolvimentos dos anos 70. No entanto, foi desse entusiasmo que surgiu a

energia para empreender uma nova pesquisa.

Minha experiência sempre transitou por terrenos pouco ortodoxos. Desde

que me formei, mantive consultório na zona sul do Rio de Janeiro, mas,

paralelamente, atendia na zona oeste, além de trabalhar em escolas e creches.

Mais tarde, me mudei para Friburgo e passei a trabalhar em ambulatório de Saúde

Mental. Em todos esses âmbitos, vivia situações que não se enquadravam nas

práticas clínicas psicanalíticas tradicionais. Nunca aceitei abrir mão da psicanálise


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para entender o que acontecia na minha clínica. Por isso, pedi ajuda à Profa Ana

Cristina Figueiredo, que depois foi minha orientadora de mestrado, na época

engajada numa pesquisa sobre atendimento psicanalítico em ambulatórios

públicos. Foi quando comecei a articular minha experiência com um modo de

entender a psicanálise, que permitia justificar teoricamente remanejamentos no

dispositivo analítico. O mestrado no Instituto de Psiquiatria da UFRJ foi alimentado

pela esperança de aprofundar estudos que me permitissem utilizar a psicanálise

num campo mais amplo. Minha esperança não foi em vão. A experiência no IPUB

foi um marco importante no meu percurso pelas questões que me abriu. Comecei

pela estranheza da Saúde Mental até chegar à estranheza de casos para os quais

não conseguia sequer fazer um diagnóstico.

O contato com o Séphora, Núcleo de pesquisa sobre o moderno e o

contemporâneo, coordenado pela Profa. Tania Coelho dos Santos, encaminho u

mais decididamente minhas questões para o último ensino de Lacan e a leitura de

Jacques-Alain Miller. Pude, então, perceber a diferença entre a clínica freudiana e

a clínica atual, que antes era sentida apenas como um desconforto diante de

sujeitos que não respondiam às interpretações como os pacientes de Freud. Nova

estranheza, novo investimento. A tese que se segue é o produto desse

investimento.

As questões não se resolvem, elas apenas vão sendo melhor articuladas.

Circunscritas a um determinado campo, elas vão se aprofundando. Penso ser

esse o resultado do meu percurso até agora.

No presente trabalho, a questão inicial visava entender o último ensino de

Lacan e a clínica do sinthoma. No decorrer da pesquisa, fui percebendo a utilidade


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dessa nova concepção para o trabalho clínico na atualidade. Tive a sorte de

desenvolver essa pesquisa ao mesmo tempo em que o Campo Freudiano,

orientação a qual sigo, também estava empreendendo uma série de estudos sobre

psicanálise aplicada, tratamentos psicanalíticos de curta duração e reflexões sobre

o sujeito contemporâneo. Pude, através do Séphora e da Escola Brasileira de

Psicanálise, acompanhar esses estudos e espero tê-los aproveitado bem.

Onde a pesquisa se situa.

A passagem do mundo antigo ao mundo moderno foi marcada pelo advento

da ciência. Ela instala o poder da razão e vai, pouco a pouco, questionando a

autoridade simbólica. A razão se baseia em argumentos lógicos, enquanto a

autoridade simbólica dispensa justificativas racionais. Assim, a ciência começa a

promover uma desautorização das figuras que se sustentavam na tradição. O

declínio do poder de Deus, da religião e da Igreja atingem a vida social, política e

familiar. A moral vai perdendo força como o bem maior de um indivíduo. É nesse

contexto que a psicanálise surge, orientada pelos conflitos em relação ao pai e à

moral.

Com a crescente decadência do poder da Igreja, o poder de agregação

simbólica que ela transferiu ao pai de família também decai. É do pai ―faça o que

eu digo, mas não faça o que eu faço‖ que Freud trata. Sua autoridade é

questionada e isto faz sintoma.

A psicanálise, então, entra no mundo para autorizar o desejo e sua difusão

corrobora o declínio da função paterna. Segundo Laurent e Miller (1997), a época

de Freud foi a do reinado do Nome-do-pai, onde transformado em significante


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nomeava o desejo da mãe. A época de Lacan foi outra. No início, era um crente

do Nome-do-pai, mas após os anos 70 pluralizou o Nome-do-pai relativizando a

ligação entre este significante e seu significado. O matema S( A ) é o substituto do

Nome-do-pai na contemporaneidade. Esses autores consideram que essa

formulação foi o reconhecimento, por parte de Lacan, da nova configuração social

que já não se estruturava hegemonicamente pelo Édipo.

O mundo moderno, apesar de questioná-lo, era regido pelo pai como

exceção. Nesta posição ele era o transmissor dos ideais da época. O neurótico

freudiano era um sujeito moral e, por isso, mesmo culpado em relação aos ideais

paternos. Os ideais supunham a renúncia ao desejo, e o drama do neurótico

freudiano era não conseguir renunciar a ele para alcançar o bem supremo da paz

com sua consciência. A culpa era intrínseca à condição humana na modernidade.

Giddens (1991) caracteriza a sociedade contemporânea como aquela que

radicaliza e universaliza as conseqüências da modernidade. A modernidade

rompeu com o modelo tradicional de organização social. Os valores morais e a

organização hierárquica, baseados na tradição, foram substituídos pela liberdade

individual como bem maior. Hoje, vivemos as conseqüências dessa ruptura. Se,

na modernidade os ideais eram contestados, na contemporaneidade eles

perderam valor.

A modificação quanto ao lugar do ideal promoveu a ascensão do objeto 'a'

ao sociel, ao zênite social (MILLER, 2005). A universalização pelo Nome-do-pai e,

conseqüentemente, pelo ideal, deu lugar à particularidade do objeto 'a' como

objeto mais-de-gozar. Esta particularização não permite acordos coletivos, eles

funcionam mais no sistema ad hoc, onde, a cada situação e momento, surge uma
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regra. Se não há universal, não há uma exceção que venha confirmar a regra.

Cada um com seu cada qual é uma exceção.

O objeto mais-de-gozar é fomentado pelo capitalismo tardio ou selvagem,

que, pelo seu modus operandi, cria produtos para gerar demandas, invertendo a

regra das necessidades e orientando o sujeito para o excesso.

Vemos, assim, que o desejo não se situa mais como causa e o gozo passa

à compulsão. É nessa perspectiva que nossa pesquisa acontece.

Reconhecendo que a clínica de hoje guarda poucas semelhanças com a

clínica freudiana, tentamos fazer uso dos conceitos psicanalíticos visando os

sujeitos que hoje nos procuram.

A clínica do sinthoma foi privilegiada porque entendemos que as

modificações promovidas por Lacan, a partir dos anos 70, nos orientam melhor no

manejo transferencial com os sujeitos contemporâneos. Ela nos permite

reconhecer soluções particulares para questões que antes tinham soluções mais

coletivas. O trabalho no caso a caso sempre regeu a psicanálise, hoje, porém,

mais do que nunca, essa máxima precisa ser observada, cabendo ao analista os

riscos de sua ousadia.

O presente trabalho está organizado em cinco capítulos. No primeiro,

apresento a concepção freudiana do sintoma e seu modo de interpretação,

destacando o lugar dado por Freud à pulsão, que, a princípio, não foi muito

valorizado por Lacan. Faço isso através dos casos paradigmáticos das duas

grandes neuroses clássicas: a histérica e a obsessiva. Trabalho os casos Dora e o

Homem dos ratos, visando sempre apontar a vertente de gozo implicada no

sintoma e como ela foi entendida e tratada por Freud. Em seguida, apresento as
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considerações sobre o sintoma do primeiro Lacan, apontando apenas quais os

pontos a partir dos quais ele pôde, posteriormente, desenvolver a teoria do

sinthoma.

No segundo capítulo, trato da identificação tomando como eixo a definição

freudiana de que ela é ―a mais remota expressão de um laço emocional com outra

pessoa‖ (FREUD, 1921/1977, p.133). Investigo como essa definição vai se

desdobrando em Lacan, até chegar à concepção da identificação pelo processo

alienação-separação. Através desse processo, a determinação significante e o

modo de gozo se entrecruzam, mostrando a dupla vertente do sujeito que

permitirá a Lacan desenvolver a teoria do sinthoma.

O capítulo III abordará o gozo a partir da junção e disjunção do significante

com o gozo, tendo em vista dois modos de entendimento: um onde o significante

mortifica o corpo; outro em que o significante o vivifica porque é aparelho de gozo.

O capítulo IV trata especificamente do Seminário, livro 23: O sinthoma.

Destaco desse Seminário as coordenadas que orientam a teoria do sinthoma,

apresento uma possibilidade de relação entre sintoma e sinthoma e exemplifico,

com um depoimento de passe, como uma análise pode se orientar pelo real.

Finalmente, no capítulo V, discuto as perspectivas para uma clínica do

sujeito contemporâneo. Levo em consideração uma série de estudos que apontam

o mundo atual como não-todo, e que nos obrigam a repensar o dispositivo

analítico sem abrir mão dos princípios psicanalíticos.


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Capítulo I

A carne do sintoma.

Apresentamos neste capítulo o conceito de sintoma em Freud, assinalando

as pontas de raciocínio por ele deixadas e que permitiram a Lacan repensar o

sintoma, primeiro pela via da mensagem e depois como gozo. Trabalharemos os

casos Dora e O homem dos ratos, a partir da orientação de Lacan, para enfatizar

o modo de interpretação freudiano que leva em conta a satisfação embutida no

sintoma.

1- O conceito de sintoma em Freud:

A psicanálise começa pela histeria e Freud, a princípio, toma o sintoma

histérico como modelo do sintoma neurótico. Esse foi o modelo usado para a

análise das histéricas nos Estudos sobre a histeria de 1895. O caso de Elizabeth

Von R. é exemplar: Elizabeth se apaixonara pelo cunhado mas recalcara esse

desejo durante o casamento da irmã. Por ocasião da morte de sua irmã, um

pensamento lhe advém: ―ele está livre para mim‖ (FREUD, 1895/1977). Pouco

depois adoece, passa a ter fortes dores na perna que fica paralisada. No decorrer

da análise, Freud leva Elizabeth a descobrir esse sentimento pelo cunhado e

conclui estabelecendo a conexão do desejo inconsciente com o sintoma: ela não

queria dar um mau passo. O que acontece aqui é uma substituição do recalcado

pelo sintoma, o que mais tarde Lacan identificará como sendo uma metáfora.
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Nessa primeira concepção, Freud (1908/1977) pensava o sintoma como

produto de uma idéia, desejo ou pensamento que havia sido recalcado. A incidência

do recalque num dado conteúdo tinha como efeito a formação de um sintoma. Este

efeito, então, mostra que o recalque deixa um resto que tenta se fazer expressar de

alguma forma (FREUD, 1917/1977a). Este resto se instala entre os sistemas

inconsciente e pré-consciente/consciente, criando neste ultimo uma tensão em

direção à consciência. Pela proximidade das duas instâncias o resto se liga a um

comportamento e através dele se expressa. É essa expressão, propriamente dita,

que Freud denominava sintoma. Nas manifestações sintomáticas a tensão que

impelia à consciência era paulatinamente descarregada, propiciando um certo alívio

para o organismo, tal como aparece nas conversões.

Assim entendido, podemos reconhecer nesse processo que o sintoma

funciona como uma defesa contra o recalcado (FREUD, 1917/1977b, p.361). O

recalcado, para se manter recalcado, precisa encontrar uma forma de descarga e

esta acontece através do sintoma. Essa ponta do recalcado é a matéria prima do

sintoma, porém ela não é o sintoma propriamente dito (BRODSKY, 1999, p. 23). O

sintoma, mediante um mecanismo de substituição, vem no lugar do que foi

recalcado, evidenciando a natureza metafórica do fenômeno sintomático.

Freud chega à conclusão de que toda idéia ou pensamento recalcado era, na

realidade, desejos, e que estes sim sofriam recalque. Desejos que, por alguma

razão, não podiam se realizar e, por isso mesmo, eram recalcados. Essa não

realização era creditada à moral, fosse esta da própria pessoa em função de seus

ideais, ou em função de uma inadequação social. Evidentemente, Freud não tardou


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a perceber que essa divisão entre ideais pessoais e sociais era sem sentido, pois os

ideais são todos pessoais com forte influência do social ou pelo menos apoiados

nos ideais sociais 1.

O desejo, então, ficava retido no inconsciente e, desta forma, o sujeito não

tinha conhecimento dele. Era um desejo não reconhecido como próprio, um desejo

inconsciente.

Tendo em vista essa concepção de sintoma, era lógico que Freud

propusesse como solução o desvelamento desse desejo, tirando-lhe a barreira do

recalque. O recalque, porém, tem função de defesa e toda defesa é produzida pelo

eu. O eu se defende daquilo que ele supõe poder abalar a homeostase do aparelho

psíquico. Estamos então entre o Princípio do Prazer - realizar o desejo - e o

Princípio da Realidade - trazer tranqüilidade ao eu (FREUD, 1926/1977, p.113). O

trabalho analítico visava fazer com que o sujeito reconhecesse esse desejo, para

que o sintoma fosse eliminado.

Contudo, esse modelo não servia para a neurose obsessiva, uma vez que

nela Freud encontra o sintoma como resposta a uma satisfação insuportável. O

sintoma clássico é a compulsão de lavar as mãos. Freud considera esse sintoma

como paradigma, e diz que o obsessivo lava as mãos para livrar-se da culpa pela

masturbação. Mas a grande descoberta é que o lavar as mãos toma o lugar da

própria masturbação e, desse modo, torna-se seu equivalente: se antes o sujeito

lavava as mãos para desculpabilizar-se do ato masturbatório, quando o lavar as

mãos passa a equivaler a masturbar-se o que ocorre é um deslocamento da

1
Cf. Freud, S. (1917/1977c) Conferência XXIV - O Estado neurótico comum e Freud, S. (1931) O mal-estar na
civilização.
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satisfação obtida na masturbação para o lavar as mãos. Através do processo de

deslocamento, a mesma satisfação é obtida na execução de outra atividade que

toma o lugar da primeira, assim, o próprio lavar as mãos passa a ser fonte de

satisfação. Esse substituto se converte também em uma prática obsessiva: ‗não

posso parar de fazer isso‘. O ‗não posso parar de fazer isso‘ é uma resposta ao

pensamento obsessivo. Há aqui uma força impelindo o sujeito a fazer algo que

sempre o levará a uma satisfação, essa força é identificada como pulsional.

Podemos então dizer que a pulsão sempre se satisfaz, mesmo que de forma

substituta. Portanto, o que opera na neurose obsessiva é a infiltração da pulsão

no recalcado:

―É do próprio sintoma que provém o mal, pois o sintoma, sendo o


verdadeiro substituto e derivativo do impulso reprimido, executa o papel do
segundo; ele continuamente renova as exigências de satisfação e assim
obriga o ego, por sua vez, a dar sinal de desprazer e a colocar-se em uma
posição de defesa‖ (FREUD, 1926/1977, p.122).

Segundo Freud, isso não é da mesma ordem que o desejo recalcado da

histérica que se transforma em sintoma por não obter satisfação (Ibid., p. 139).

Aqui, o obsessivo obtém satisfação, portanto, não se trata de um desejo dado que

desejo é, por estrutura, insatisfeito. Então, o que é que faz o sintoma? Sendo essa

satisfação insuportável a ponto de o sujeito se condenar por ela, os sintomas

―expressam a luta entre a satisfação e a defesa‖ (FREUD, 1917/1977b, p.361) e

triunfam quando conseguem ―combinar a proibição com a satisfação, de modo que

o que era originalmente uma ordem defensiva ou proibição adquire também a

significância de uma satisfação‖ (FREUD, 1926/1977, p.135). Disso se deduz que


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não é o desejo, mas sim a pulsão que se satisfaz no sintoma. O sintoma vem no

lugar da pulsão, de algo que exige satisfação. Assim, o sintoma se converte em

uma satisfação em si mesmo. Isso ocorre porque a barreira do recalque é porosa

à pulsão, possibilitando que ela se infiltre no sintoma. A defesa, nesse caso, atua

contra a satisfação transformando-a em desprazer. Este caráter paradoxal do

sintoma – satisfação e defesa – é o ponto utilizado por Lacan para dizer que há

algo de excessivo no gozo que obriga o sujeito a erigir uma defesa.

Desde 1905, Freud percebeu que havia uma articulação entre sintoma e

satisfação pela via do ganho secundário. A doença possibilitava e, muitas vezes,

era motivada por dois tipos de ganho: um primário e outro secundário. O ganho

primário advinha de uma ―fuga para a doença‖ resultando na aparente resolução do

conflito psíquico. Uma espécie de solução de compromisso na qual a pulsão

poderia se satisfazer sem prejuízo da censura. O ganho secundário eram as

‗benesses‘ advindas do próprio adoecimento, que podiam ser tanto de cunho

pecuniário quanto emocional (FREUD, 1905/1977a, p. 40, nota). Na Conferência

XXIV das Conferências Introdutórias, Freud situa o ganho secundário como não

sendo só prazer, diz que o ego ―pagou caro demais por um alívio do conflito‖

(1917/1977c, p.447), o que implicaria num ―aumento de desprazer‖ (Id.). Esta

aparente antinomia entre prazer e desprazer estaria equacionada no sintoma. Nele,

haveria um certo prazer no qual o sujeito ficaria fixado, fazendo com que o ego,

diante do menor sinal de modificação dessa dinâmica distributiva, se visse

ameaçado e viesse a mobilizar poderosas resistências contra o tratamento. Isso

justificaria a dificuldade do neurótico em se desvencilhar de seus sintomas.


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―(...) apaziguar um conflito construindo um sintoma é a solução mais


conveniente e mais agradável para o Princípio de Prazer:
Inquestionavelmente, poupa ao ego uma grande quantidade de trabalho
interno que é sentido como penoso. Na verdade, há casos em que até
mesmo o médico deve admitir que um conflito terminar em neurose constitui
a solução mais inócua e socialmente mais tolerável‖ (FREUD, Ibid., p.445-
446).

Se examinarmos mais detidamente essas formulações, perceberemos que

nelas Freud não distinguia prazer e satisfação.

Podemos fazer essa distinção: o prazer segue o regime do Princípio do

Prazer, ao passo que a satisfação independe do prazer. Devido à sua estrutura em

circuito, a pulsão está sempre buscando satisfação e sempre a alcança, o que não

quer dizer que esta gere prazer.

Outra distinção deve ser feita entre realização de desejo e satisfação

pulsional. Todo desejo é desejo de desejo, portanto, não comporta a realização.

Todo desejo é por definição insatisfeito, já a pulsão não, ela sempre obtém

satisfação mesmo que para isso use de desvios.

Na Conferência XXIII, Os caminhos da formação dos sintomas, Freud

(1917/1977d) apresenta o sintoma como um ―novo método de satisfazer a libido‖

(p.419) que retoma um momento anterior da organização libidinal ou um objeto que

já havia sido abandonado. O caminho regressivo é determinado pelo ponto do

desenvolvimento no qual a libido ficou fixada. Aqui, podemos observar que não se

trata de um ganho advindo do sintoma, secundário a ele, mas sim que a própria

formação do sintoma já comporta um modo de satisfação.


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Essa Conferência é amplamente comentada por Miller no Seminário de

Barcelona (1997) onde ele dirá que a Conferência XXIII complementa a dimensão

semântica do sintoma - que aparece na Conferência XVII - com uma dimensão

referencial. O aspecto semântico da palavra pode se organizar de forma

independente da referência à realidade. Para trabalhar sobre essa diferença, Miller

tece alguns comentários sobre o título em alemão da Conferência XXIII: Die Wege

der Symptombildung. Deste, ele destaca dois termos: Wege e Bildung.

Sobre Wege, diz que o que caminha é a libido, ela se caracteriza por

caminhar; é a vocação errante da libido que se traduz na plasticidade da pulsão.

Para Freud, o sintoma não é o único caminho possível para a libido, ela também

pode ser sublimada e transformar-se em arte. Para Miller, sintoma e sublimação

se opõem porque se chega a um ou a outro. Todavia, eles estão em continuidade

e até mesmo se articulam. Para provar essa tese, Miller utiliza o texto de Lacan De

nossos antecedentes (1998). Diz Lacan: ―a fidelidade ao invólucro formal do

sintoma, (...) levou-nos ao limite em que ele se reverte em efeitos de criação‖

(p.70), ou seja, há um limite a partir do qual o caminho se inverte. Até este ponto,

o sentido, Sinn, e a obra de arte seguem o mesmo percurso, pois até então se

trata de um mecanismo significante que produz efeitos de sentido. No caso da

obra de arte há uma inversão de curso: o que se dirigia ao Outro, podemos pensar

assim, retorna ao sujeito mesmo. Para Miller isso denota que o criador toma para

si o querer dizer do sintoma, o considera como seu desejo decidido, sua própria

vontade. Nessa perspectiva, a obra de arte é uma espécie de sintoma artificial.

Acompanharemos melhor esse raciocínio quando falarmos do Seminário: O

Sinthoma, no qual Lacan diz que Joyce se identifica com seu próprio sinthoma.
28

Para Freud, a libido se desenvolve no tempo, ela pode andar para frente ou

para trás, mas ela também pode acontecer na forma de um circuito. Esta última

permite que a libido posta no sintoma sofra as adaptações necessárias para se

fazer veicular como mensagem. A idéia de circuito pulsional foi utilizada por Lacan

para explicar como a pulsão contorna o objeto 'a' criando uma zona de borda entre

o significante e o gozo. A forma de circuito é compatível com a constância da

finalidade libidinal, que sempre busca a satisfação, e com sua plasticidade em

termos de objeto. Para Freud, a errância da libido possibilita fazer substituições

com a finalidade de satisfação. A sugestão de Miller é que chamemos essa

possibilidade ‗metáfora pulsional‘ e a grafemos S2/ s 1: a primeira satisfação é

substituída por uma segunda. A satisfação substituta não é um semblante da

primeira, ela é a própria satisfação pulsional, é um real. Já os circuitos, estes sim

são semblantes. De acordo com Freud, a libido sofre Versagung, ela daria o passo

inicial em busca de satisfação, mas teria seu caminho bloqueado por um veto. Por

isso, ela se volta para o passado já fantasiado, fazendo uma regressão a um

estado anterior. Para prosseguir seu caminho em busca da satisfação ela sofre

uma série de transformações, só então poderá alcançar o que Freud chama uma

―satisfação real‖ (1917/1977d, p. 421), mesmo que restrita e irreconhecível.

Segundo Freud, a Versagung intercepta a libido fazendo com que ela

escape por alguma outra direção (Ibid., p.420). Ele usa a expressão: ―Não, pelo

contrário‖ para representar essa interceptação ( Ibid., p.421). Miller (1997), por sua

vez, a classifica como uma ―repressão semântica‖ (p.26). Tendo como

característica a plasticidade, a libido vai, diante do ‗não‘, buscar formas substitutas


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e deslocadas de satisfação, o que resulta em metáforas e metonímias. Para

escapar da Versagung, a libido contará com as fixações (FREUD, 1917/1977d,

p.421). Segundo Miller (Ibid.), esse é o mesmo percurso descrito por Lacan no

grafo do desejo, no qual a demanda se articula com a pulsão, fazendo com que a

dupla vertente da libido vá do sentido ao para além dele (p.26).

Segundo Miller, o Bildung é a origem do termo formações do inconsciente

utilizado por Lacan, mas assinala que, nesse caso, está mais do lado do Sinn do

que da Bedeutung (Ibid., p.43). Faz essa observação para mostrar que o sintoma

é uma formação, não um produto, e, como formação, não se separa do

inconsciente. No início desse Seminário, Miller havia defendido que a Bedeutung

concernia à relação com o real, e que a referência do sintoma era a fantasia.

Quando Lacan usa a expressão ‗formações do inconsciente‘, ele acentua o caráter

de envoltório que o sintoma tem em relação a fantasia, privilegiando portanto o

aspecto Sinn sem deixar de se referir à base pulsional do sintoma.

Em 1920, Freud descobre que o limiar entre prazer e desprazer é muito

tênue, diz que no ser humano existem ―tendências além do Princípio do Prazer‖

(1920/1977) de caráter mais primitivo, as quais independem desse Princípio. Freud

se servirá das neuroses traumáticas e das brincadeiras infantis - formas repetitivas -

para pensar a relação entre prazer e desprazer. Nelas, ele observa que há um

prazer advindo da repetição das situações traumáticas e o liga à satisfação obtida

pela pulsão.

Através do conceito de pulsão de morte ele aponta para esse caráter

paradoxal, característico de uma forma de satisfação pulsional, que está para além
30

do prazer, do qual o sujeito não pode abrir mão tendendo a buscá-lo através da

repetição. Esse para além se caracterizaria por um tipo de satisfação que

independe do prazer, algo que pode inclusive situar-se como desprazer e até

mesmo atentar contra o sujeito. A dualidade pulsional, em Freud, nos serve para

reafirmar que a satisfação está na base do sintoma, não só como ganho

secundário, mas principalmente como defesa contra a satisfação advinda da

fantasia. Somente por isso ela é resistente à decifração, ou seja, à interpretação

pela via do sentido.

Assim, o sintoma como formação do inconsciente, comparável aos sonhos e

aos atos falhos, é decifrável. Ele está inscrito na cadeia significante, permitindo que

a interpretação aja sobre ele. Por outro lado, o sintoma como satisfação pulsional

não se mostra tocável pelo significante. Ele é resistente à interpretação. É

justamente esse caráter inercial, repetitivo, intocável pelo significante, que se

destaca na segunda concepção apresentada acima. Ela mostra que o que resiste

não é o inconsciente - este está sempre pronto ―a irromper através da pressão que

pesa sobre ele, a abrir seu caminho à consciência ou a uma descarga por meio de

alguma ação real‖ (id.). A resistência é própria da estrutura do sintoma em função

da satisfação obtida por ele. Isso equivale a dizer que Freud reconhecia que, pela

palavra, não era possível dar conta inteiramente do sintoma, ou seja, havia algo da

satisfação no sintoma que permanecia inabalável apesar da interpretação, embora

muito do sintoma pudesse se removido por ela (1926/1977, p.172).

Para a psicanálise, satisfação e prazer não são correlatos, o sujeito pode se

satisfazer com aquilo que o faz sofrer. É o que demonstram a neurose traumática, a
31

compulsão à repetição e as brincadeiras infantis. Se eliminarmos o que faz sofrer,

eliminamos também o que satisfaz ou, como diz Freud: ―as formas que os sintomas

assumem tornam-se muito valiosas para o ego porque obtêm para este, não certas

vantagens, mas uma satisfação narcísica sem a qual, de outra forma, poderia

passar‖ (1926/1977, p.121). Há um desequilíbrio na forma de obter satisfação e o

sujeito passa a querer o que o fazia sofrer, o que lhe era insuportável. Por mais que

se argumente a favor do bem estar, da falta de sofrimento, isto não interessa

porquanto não traz satisfação.

Assim, os sintomas, ou parte deles, que atendem à satisfação pulsional,

tendem à repetição e se mostram mais resistentes à decifração. É o que Freud

descobre ao tomar o sintoma obsessivo como modelo, estendendo depois essa

concepção a todos os sintomas.

―Um sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação instintual


que permaneceu em estado jacente; é uma conseqüência do processo de
repressão. A repressão se processa a partir do ego quando este — pode ser
por ordem do superego — se recusa a associar-se com uma catexia
instintual que foi provocada no id. O ego é capaz, por meio de repressão, de
conservar a idéia que é o veículo do impulso repreensível a partir do tornar-
se consciente. A análise revela que a idéia amiúde persiste como uma
formação inconsciente‖ (Ibid., p. 112).

Freud chega à conclusão de que toda satisfação obtida pelo sintoma é

pulsional. Mesmo que o sintoma realize um desejo, nesta realização estarão

implicadas satisfações de ordem pulsional.


32

A busca da satisfação pulsional está implicada em qualquer sintoma e Freud

a compara à satisfação sexual. Segundo ele, os sintomas ―são substitutos da

satisfação sexual‖ dos neuróticos (1917/1977b, p.360). Os neuróticos obtêm do

sintoma uma satisfação que é a mesma que deveriam obter com a relação sexual.

Mais ainda, ele diz que os neuróticos se satisfazem mais com seus sintomas do que

na relação com o outro sexo. Essa idéia é enfatizada por Miller no texto A teoria do

parceiro (1997/2000), quando mostra que o parceiro do sujeito é o seu sintoma e

não o seu cônjuge, já que do sintoma o sujeito obtém gozo. Isso não ocorre na

relação conjugal onde, quanto ao gozo, cada um tem o seu sem compartilhá-lo.

Brodsky (1999) nota como os parceiros falam disso. Com freqüência eles se

queixam de terem sido preteridos em prol do sintoma, ou seja, o outro está mais

interessado no sintoma que nele (p.15-17). O parceiro fica esquecido porque há um

outro parceiro mais eficiente em proporcionar satisfação.

Na histeria, o sujeito padece do corpo, ao passo que na obsessão ele padece

dos pensamentos. Esse padecer denuncia uma satisfação e faz com que o sujeito

se dedique a ele. O que o faz sofrer lhe propicia mais gozo (satisfação) do que o

parceiro sexual. Nessa perspectiva, é natural que Freud não seja muito otimista em

relação ao sintoma e declare haver nele um caráter incurável. Reconhecemos que

muito do sintoma desaparece em função do trabalho analítico, mas reconhecemos

também o fato de haver algo no sintoma que não cessa de obter satisfação. No que

pode ceder ele cede, no que não pode o sujeito deve mudar sua posição em

relação a ele, isto é, saber servir-se dele.


33

Desse ponto de vista, o sintoma é sempre uma solução e, por isso, é tão

difícil fazer com que desapareça. Ele é uma solução para o desejo, para a pulsão e

para a relação sexual. O sintoma é resistente porque algo se resolve nele. Para

Freud, o que se resolve é o conflito psíquico; para Lacan, o que se resolve é o

enigma sobre o desejo do Outro, como veremos mais adiante. De todo modo, para

ambos, há um bônus pulsional.

Conforme dissemos no começo desse capítulo, utilizaremos o Caso Dora e o

Caso do Homem dos Ratos para examinar as duas concepções de sintoma que

aparecem em Freud.

Freud viu Dora (1905/1977a) pela primeira vez com dezesseis anos, ela

sofria de tosse e de rouquidão. Indicou-lhe, então, o tratamento analítico, que não

foi adotado. A crise desapareceu espontaneamente. Tornou a vê-la aos dezoito

anos quando apresentava desânimo e uma alteração de caráter que, segundo ele,

tinham se tornado os principais traços de sua doença: a relação difícil com a mãe e

uma atitude hostil para com o pai. Dora procurava evitar os contactos sociais e,

ocasionalmente, ocupava-se em ouvir conferências para mulheres e alguns estudos

mais sérios. A segunda busca por tratamento foi ocasionada por uma carta em que

Dora se despedia do mundo e por uma perda de consciência após discutir com o

pai.

Nessa segunda visita, Freud observa:

―Trata-se de uma ―petite hystérie‖ com os mais comuns de todos os


sintomas somáticos e psíquicos: dispnéia, tussis nervosa, afonia e
possivelmente enxaquecas, junto com depressão, insociabilidade histérica e
34

um taedium vitae que provavelmente não era muito levado a sério.‖ (Ibid., p.
21)

É nesse período que Dora relata a cena do lago, quando o Sr. K lhe faz uma

proposta amorosa. Ofendida, Dora pede ao pai que corte relações com o casal K. O

pai se recusa e Dora passa a se contrapor a ele acusando-o de ter relações extra-

conjugais com a Sra. K, e de usá-la como moeda de troca com o Sr. K de modo

que este seja indulgente para com essas relações.

A partir das investigações de Freud, Dora relata uma outra cena, ocorrida

aos 14 anos, quando o Sr. K. lhe deu um beijo nos lábios. Freud pondera que tal

situação teria despertado, numa moça virgem, uma sensação de excitação sexual.

Dora, porém, sentiu uma violenta repugnância e fugiu.

Freud pontua essa repugnância, e identifica ter havido nela: 1 - uma inversão

de afeto: a excitação sexual teria despertado sentimentos desprazerosos; 2 - um

deslocamento de sensação: da sensação de excitação genital para uma sensação

desprazerosa própria à mucosa de entrada do tubo digestivo (repugnância)

provocada pelo beijo. Esse processo de deslocamento deixou como seqüela uma

aversão por alimentos e um desconforto, ao defrontar-se com qualquer homem em

conversa terna ou animada com uma mulher.

Freud remonta a cena dizendo:

―Creio que, durante o abraço apaixonado, ela sentiu não só o beijo


em seus lábios, mas também a pressão do membro ereto contra seu ventre.
Essa percepção revoltante para ela foi eliminada de sua memória, recalcada
e substituída pela sensação inocente de pressão sobre o tórax, que extraía
de sua fonte recalcada uma intensidade excessiva. Uma vez mais, portanto,
35

vemos um deslocamento da parte inferior para a parte superior do corpo. Por


outro lado, a compulsão em seu comportamento construía-se como se
proviesse da lembrança inalterada da cena: ela não gostava de passar por
nenhum homem a quem julgasse em estado de excitação sexual porque não
queria voltar a ver o sinal somático desse estado‖.(Ibid., p.27-28).

É interessante notar que Freud constitui a repugnância, a sensação de

pressão na parte superior do corpo e a evitação de homens em conversa afetuosa

com mulheres como sintomas a serem analisados. Ele assim o faz por entender que

a inter-relação entre eles é que torna possível a formação dos sintomas, explicando

que a repugnância advém do recalcamento da excitação produzida pela zona

erógena da boca, a pressão no tórax advém do recalcamento da excitação da zona

genital, e a evitação dos homens em possível estado de excitação corresponde a

uma fobia ―destinada a dar proteção contra o reavivamento da percepção

recalcada‖ (Ibid., p. 28). Nesse contexto, Freud usa a sua primeira concepção do

sintoma, ou seja, os sintomas são provenientes de um desejo recalcado, eles dão

expressão a esse desejo.

Devemos ressaltar que o que Freud recortou como sintomas não faziam

parte da queixa de Dora, eles se configuraram como tal na relação transferencial.

Podemos dizer que eles adquiriram uma significação especial a partir da incidência

do discurso analítico sobre eles.

Os sintomas apresentados por Dora foram tosse e afonia. Freud relacionou-

os com os períodos de ausência do Sr. K., já que Dora admitiu a coincidência dos

ataques com os períodos de viagem do Sr. K.. Como os sintomas não cedessem,
36

Freud percebeu que eles tinham uma ligação estreita com as acusações dirigidas

ao pai, que também não cediam. Essa observação, aliada ao fato de ele já haver

firmado sua convicção de que todo sintoma tem uma vertente que corresponde à

representação de uma fantasia sexual, possibilitou-lhe o deciframento dos sintomas.

Freud construiu uma ligação entre a atividade sexual, tal como Dora pensava

ser praticada entre a Sra. K e seu pai - fellatio - , e os seus sintomas. Em ambos, a

mucosa oral era privilegiada como zona erógena, sendo que, em Dora, a mucosa

oral havia se fixado como uma zona primária de satisfação. A associação dessas

ocorrências ensejou a formação dos sintomas.

Segundo Freud, deve haver uma significação psíquica (sentido) associada a

uma complacência somática. O sentido do sintoma histérico lhe é emprestado pelo

pensamento recalcado que tenta, assim, se expressar: ―os sintomas são dissolvidos

buscando-se sua significação psíquica‖ (Ibid., p. 38). A complacência somática é

atribuída a fatores constitucionais e orgânicos. No caso de Dora, ele identifica o fato

de ela ter sido, quando pequena, uma chupadora de dedo e apresenta uma cena

em que: ―sentada num canto do assoalho, ela chupava o polegar esquerdo,

enquanto com a mão direita puxava o lóbulo da orelha do irmão, sentado quieto a

seu lado‖ (id.). A cena nos aponta para uma satisfação pulsional que estaria na

base dos sintomas de Dora: tosse, afonia, repugnância, dispnéia... A mucosa dos

lábios e da boca se constituiu na infância como uma zona erógena primária, dando

condição para a complacência somática e possibilitando que ali se instalassem seus

sintomas. O chupar o dedo tem como origem a amamentação e como

conseqüência a fantasia de chupar o pênis.


37

Se os sintomas correspondem a diversos significados simultaneamente, eles

também podem expressar diversos significados sucessivamente, passando de um

significado a outro, conservando sempre algum traço com a significação original.

Dessa forma, a tosse de Dora pode ser entendida como uma demanda ao pai, isto

é, um sintoma como portador de uma mensagem, um apelo ao Outro. Foi desse

modo que Freud pôde estabelecer uma conexão entre a fantasia perversa da

chupadora de dedo e o tipo de relação que ela supunha existir entre seu papai e a

Sra. K. Ele chega a essa conexão através de um significante, vermögender, que

ocultava o seu oposto unvermögender. Dora atribuía o interesse da Sra. K por seu

pai em razão de ele ser um homem de posses – vermögender - , mas sabia que seu

pai não podia tirar proveito desse relacionamento por ser impotente - sem recursos,

unvermögender. Diante dessa interpretação, Dora admitiu saber que haviam outras

formas de obter satisfação sexual que não pelo coito. Freud não perdeu a

oportunidade de ligar essas outras formas de satisfação sexual aos sintomas de

Dora - a tosse começava por cócegas na garganta. O silêncio de Dora diante da

interpretação foi considerado Freud como consentimento, na medida em que a

tosse cessara.

A interpretação foi feita pelo deciframento, pela via da produção de sentido.

Ela foi eficaz quanto à remissão dos sintomas, conforme o relato do caso nos

informa. Porém, conforme Freud reconheceu, a marca produzida pelas satisfações

primárias, que permitiu ao sintoma se instalar, não desapareceu junto com eles.

Essa zona primária de satisfação serve de base para a formação de sintomas em

qualquer ocasião.
38

A análise desse caso serve para verificarmos o que havíamos estudado

como o modelo histérico do sintoma, assim como a base pulsional sob o qual ele se

ergue.

Para nos auxiliar quanto à compreensão da pulsão articulada ao sintoma,

recorreremos ao Seminário 11 de Lacan (1964/1979, p. 153-189), onde ele realça

as cores da pulsão em Freud dando-lhe, inclusive, novos tons.

Para Lacan, o aparelho pulsional é um vai e vem, um abre e fecha que traça

no seu percurso uma volta em torno do objeto. Isso destaca o fato de não se tratar

de um vetor em linha reta, o que nos daria a impressão de começo e fim. Ao

caracterizar a pulsão como circular, Lacan ressalta que o caminho pulsional só se

fecha sobre si mesmo e não através de uma finalização como conseqüência da

satisfação. A satisfação faz o aparelho retornar ao ponto de partida. O objeto, por

sua vez, caracteriza-se por um vazio que é contornado. Lacan propõe escrever

esse lugar vazio como 'a', ou seja, como causa de desejo. Portanto, não se trata de

um objeto qualquer, como entendia Freud, trata-se, na verdade, de um objeto que

não há, de um objeto que é pura ausência. Lacan enfatiza que a satisfação da

pulsão não se dá no encontro com um objeto, mas no próprio vai e vem pulsional.

Nesse momento de seu ensino, esse vai e vem passa pelo campo do Outro de onde

toma um significante para nomear o objeto ‗a‘.

Coelho dos Santos (2000), ao comentar o texto de Miller (1999) Os seis

paradigmas do gozo, nos explica que esse objeto é o objeto perdido, sempre

presente no ensino de Lacan, e é também um ―ser ambíguo‖ (id.), uma vez que ele

encarna a Coisa e, ao mesmo tempo, diz respeito ao Outro. Essa explicação é


39

fundamental para entendermos que, como objeto de gozo, o objeto ‗a‘ é um

elemento e não um objeto absoluto, e é como elemento que ele se articula ao

significante. Hoje, com base nessa observação, podemos entender como Freud, no

Caso Dora, pôde identificar na dupla significante vermögender/unvermögender um

ponto de conexão do sintoma com o gozo. Mais ainda, que ele tenha, a partir disso,

ligado o gozo à satisfação própria da pulsão pela via de uma zona erógena.

A articulação entre o corpo erógeno e a pulsão também é esclarecida. O

corpo todo funciona como uma zona erógena e não somente partes dele. O que dá

unidade ao corpo é o seu transpassamento pelo significante. Assim, o inconsciente

como simbólico inclui o corpo naquilo que ele tem de estrutura de borda, ou seja, no

abre e fecha. Inconsciente e corpo são homólogos porque ―há uma comunidade de

estrutura entre o inconsciente simbólico e o funcionamento da pulsão‖ (MILLER,

1999, p.94). Por essa comunidade de estrutura, intuída por Freud, esclarecemos a

ligação entre o sintoma de Dora e a satisfação por ele proporcionada. Pensamos

inclusive poder, a partir disso, dizer que Freud já considerava o sintoma como uma

solução, mas não só de compromisso. Esclarecido por Lacan, a solução do sintoma

já era uma solução tendo em vista a satisfação pulsional, concepção próxima à

formulação ulterior de Lacan do sinthoma.

Trabalharemos, a seguir, o Caso do Homem dos Ratos (FREUD, 1909/1977)

para percorrer a segunda concepção do sintoma em Freud. Esse paciente se

queixava de sofrer de obsessões desde sua mais tenra idade, tendo elas se

agravado nos últimos tempos.


40

―Os aspectos principais de seu distúrbio eram medos de que algo


pudesse acontecer a duas pessoas de quem ele gostava muito: seu pai e
uma dama a quem admirava. Além disso, ele estava consciente de impulsos
compulsivos, tais como, por exemplo, um impulso de cortar a garganta com
uma lâmina; posteriormente, criou proibições, às vezes em conexão com
coisas um tanto sem importância.‖ (Ibid., p. 163)

Sua vida sexual havia começado aos quatro ou cinco anos de idade. Ele

relata uma cena em que se arrastara para debaixo da saia de uma governanta e

manipulara seus genitais. Isso lhe causou uma impressão muito forte, decorrendo

dela uma curiosidade ―ardente e atormentadora de ver o corpo feminino‖ (p. 165).

Toda vez que essa curiosidade se manifestava ―tinha um estranho sentimento,

como se algo devesse acontecer se eu pensasse em tais coisas, e como se

devesse fazer todo tipo de coisas para evitá-lo‖. (...) ―Por exemplo, que meu pai

deveria morrer‖ (p. 167).

Pensamentos relacionados à morte do pai o acompanhavam desde a

infância, mesmo depois que este morrera.

Freud relata que o pensamento obsessivo vinha sempre seguido de um

medo obsessivo, ou seja, o desejo fazia par com um afeto aflitivo. Essa seqüência

se completava com medidas de proteção tomadas pelo sujeito contra esse desejo –

os atos obsessivos.

Freud o explica desta forma: ―Um instinto erótico e uma revolta contra ele; um

desejo que ainda não se tornou compulsivo e, lutando contra ele, um medo já
41

compulsivo; um afeto aflitivo e uma impulsão em direção ao desempenho de atos

defensivos‖ (Ibid., p. 168).

Os sintomas tinham se agravado a partir de um acontecimento particular

gerador de enorme angústia. O paciente estava na frente de batalha quando perdeu

seus óculos. Pediu que outros lhe fossem enviados pelo correio. No mesmo dia,

ouviu uma história escabrosa contada por um capitão tcheco afeito a crueldades. O

capitão disse ter lido sobre um tipo de castigo em que o criminoso era amarrado a

um vaso virado sobre suas nádegas, no vaso haviam muitos ratos que cavavam

caminho pelo anus do criminoso.

O paciente conta essa história com muita dificuldade. Mas Freud observou

que, paradoxalmente, ao contá-la, ele ―assumiu uma expressão muito estranha e

variada. Eu só podia interpretá-la como uma face de horror ao prazer todo seu do

qual ele mesmo não estava ciente‖ (p.171).

No momento em que ouviu a história dos ratos, um pensamento atravessou

sua mente, como um relâmpago: ―a idéia de que isso estava acontecendo a uma

pessoa que me era muito cara‖ (id.). A princípio, instigado por Freud, reconheceu

que essa pessoa seria a dama, mas logo adiante teve de admitir que pensara

também em seu pai já morto. Uma vez mais Freud aponta para o fato de que,

fazendo par com o desejo, vinha uma sanção - o medo -, como medida defensiva

contra o desejo.

Naquela mesma noite, o paciente recebeu do capitão cruel o pacote do

correio com os seus óculos e a recomendação de que ele deveria reembolsar o

Tenente A pelas despesas com o envio. No mesmo instante, ele pensou que não
42

deveria fazer o reembolso senão a fantasia sobre os ratos poderia se realizar com

seu pai e com a dama. A fim de combater esse pensamento, surgiu-lhe uma ordem

na forma de um juramento: ―Você deve pagar as 3800 coroas ao Tenente A‖

(p.172). Não nos deteremos nos detalhes das tentativas sempre frustradas de fazer

esse pagamento, queremos apenas enfatizar o caráter de impossibilidade criado

pelo paciente para não cumprir o prometido. Ele estava em um dilema: tinha jurado

pagar, mas se pagasse seu pai e/ou a dama sofreriam o castigo dos ratos. O fato

de seu pai já está morto em nada contribuía para a tranqüilidade do paciente, pois

ele desenvolveu a idéia de que a punição poderia ocorrer mesmo no outro mundo.

Outro dado importante é que antes mesmo do capitão cruel lhe entregar os

óculos e dizer-lhe para fazer o pagamento ao Tenente A, ele havia encontrado com

um outro oficial que havia estado no correio e soubera da encomenda em seu

nome. Esse oficial lhe disse que a jovem do correio tinha pago as despesas postais

por ele.

Freud conclui que o paciente fizera seu juramento em cima de uma premissa

que ele já sabia ser falsa. Seu juramento já foi feito para não ser cumprido. Assim, a

dívida se tornaria impagável, ou seja, por mais que ele fizesse para pagá-la ele

estaria fadado ao fracasso.

Freud considera como sintoma do Homem dos ratos uma dívida que ele não

consegue pagar. Ele é impelido a buscar compulsivamente cumprir sua promessa e,

ao mesmo tempo, é impedido por seus pensamentos. A própria situação foi armada

de modo a possibilitar que uma ação anulasse a outra, que nada se resolvesse, ou

melhor, que o próprio sintoma fosse uma solução: com ele, o Homem dos ratos
43

paga e não paga a sua dívida, o que assinala uma característica do desejo

obsessivo - a impossibilidade.

Freud vai encontrar como base para esse sintoma uma fantasia: a fantasia

de crueldade. Ele descobre a articulação entre o sintoma e a fantasia através do

significante ratten/rate, o que se torna claro diante das recordações trazidas pelo

Homem dos ratos em relação a seu pai. Este havia contraído uma dívida de jogo

quando ainda era um jovem oficial. O paciente não sabe ao certo se o pai havia

pago essa dívida. Freud localiza uma conexão significante entre os ratos e a dívida

paterna: spielratte é a expressão usada para designar um jogador, na qual spiel

quer dizer jogo e ratte significa rato, ratão, havendo homofonia entre ratte e rate que

quer dizer quota, prestação (TOCHTROP, 1989).

Numa cena da infância o paciente tem um ataque de fúria contra o pai e o

xinga ao modo das crianças: sua lâmpada, sua toalha. Esse ódio é recalcado e

torna a aparecer quando o Homem dos ratos se mostra inclinado a se casar

(heiraten = casar) com uma certa dama e seu pai se opõe a isso.

O Homem dos ratos era profundamente ligado ao pai. Nutria por ele um

extremo amor e um imenso ódio recalcado. Essa ambivalência fazia com que seus

pensamentos hostis para com o pai fossem acompanhados de medidas de proteção

contra ele: os pensamentos obsessivos – ―alguma coisa ruim poderia acontecer ao

pai no outro mundo‖.

Diferentemente dos sintomas histéricos - que dão expressão ao desejo

recalcado -, o sintoma obsessivo faz da compulsão a medida de proteção contra a

fantasia. Nesse aspecto, ele também funciona como uma solução ao conflito
44

psíquico, porém, não pela via da realização do desejo e sim pela via da repetição da

satisfação experimentada. É bem verdade que essa satisfação aparece sob a forma

do horror, ao que Lacan denominará gozo.

Aqui, podemos identificar duas operações efetuadas por Freud. A primeira: a

constituição da dívida como sintoma, já que o Homem dos ratos não se queixava

dela, mas sim dos medos. A segunda: a conexão entre o sintoma e a satisfação

pulsional através dos significantes spielratte, rate, ratte, heiraten, ligando o pai aos

ratos da prática cruel, que, por sua vez, se ligam ao pagamento dos óculos a ao

casamento. Nesse caso, a zona erógena privilegiada é a anal, por onde os ratos

entram e por onde o inconsciente se liga à pulsão. Os ratos se tornam, assim, o

objeto 'a' que vem no lugar do vazio contornado pela pulsão. Como objeto, os ratos

encarnam o objeto perdido; como significante, mostram sua ligação com o Outro.

Segundo Miller (1999), essa é a forma com que Lacan, no Seminário 11, chega a

significantizar o gozo sem com isso reduzi-lo ao simbólico (p.95). O objeto 'a' é

elemento de gozo, portanto, não responde à combinatória significante de poder

representar o sujeito, guardando, porém, a propriedade significante de se

apresentar como um elemento e não como a Coisa, no máximo como um elemento

da Coisa que, por ser elemento, pode se multiplicar, metonimizar-se. Entendemos,

assim, que Freud pode ter identificado na história dos ratos o que Lacan chama de

alienação do sujeito sob a forma do objeto, ―uma face de horror ao prazer todo seu

do qual ele mesmo não estava ciente‖ (FREUD, 1909/1977, p.171).

Se, na primeira concepção do sintoma, o desejo recalcado é a origem do

sintoma, na segunda concepção o que temos é a fantasia. Em ambas podemos


45

notar o comparecimento da satisfação pulsional determinando a forma como o

sintoma se estrutura.

2 - O sintoma em Lacan:

Destacaremos, agora, duas concepções do sintoma em Lacan, fruto do

primeiro período do seu ensino: o sintoma como mensagem e o sintoma como

sentido e gozo. Ressaltamos que a chamada concepção clássica do sintoma em

Lacan é herdeira de Freud em muitos aspectos, porém distante quanto à sua

estreita relação com a pulsão e o gozo.

Lacan extraiu de Freud ensinamentos que o fizeram reconhecer no sintoma a

metáfora, figura de linguagem. Todo o inconsciente foi, no primeiro momento de seu

ensino, submetido às leis da linguagem, ora pela via do imaginário, quando tendia a

tomar a fala como intersubjetiva, ora pela via do simbólico, quando mais fortemente

se manifestou a influência do estruturalismo.

2.1 - O sintoma como mensagem:

A experiência da análise é uma experiência de fala, o analista ―dispõe de

apenas um meio: a fala do paciente‖ (LACAN, 1953/1998, p.248). Dentro da

perspectiva da fala como intersubjetiva, Lacan entende que ―toda fala pede

resposta‖ (Id.), ou seja, está dentro de uma estrutura comunicacional, supõe uma

emissão e um retorno dessa emissão sob a forma de resposta. Mas não é na fala

propriamente dita que ele vai identificar a emergência do inconsciente, e sim naquilo
46

que não é falado, mas veiculado pela fala. Desse modo, a realidade, sob o ponto de

vista da verdade, está para além da fala, ela encerra um apelo à verdade.

Nesse momento do ensino de Lacan, a verdade se confunde com o próprio

inconsciente, sua emergência, sob a forma do equívoco, tem valor de verdade. Mas

o equívoco em si não diz nada se não houver alguém que possa interpretá-lo.

Monta-se, assim, a estratégia da análise, onde uma emissão será significada ou

não pelo analista.

O sintoma é situado como mensagem a partir da transferência, ele é

mensagem para aquele que puder lê-la. Lacan (Ibid.) parte do pressuposto de que

se o sintoma pode ser dissolvido através da fala, é porque sintoma e fala guardam

uma certa homogeneidade: as leis da fala como fundamento do trabalho analítico

abrem a via de acesso ao entendimento da estrutura do sintoma (pp.256, 260 e

270). Dessa forma, ele vai entender que todo sintoma é constituído de um duplo

sentido, é ―símbolo de um conflito defunto, para-além de sua função, num conflito

presente não menos simbólico‖ (p. 270), e que se acompanharmos o texto das

associações detectaremos que sua linhagem é simbólica. Esta linhagem, feita de

formas verbais, permitirá que o ―sintoma se resolva por inteiro numa análise

linguajeira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a

linguagem cuja fala deve ser liberada‖ (id.).

Lacan faz da análise um dispositivo de comunicação, modificando, porém, a

concepção clássica da comunicação na qual só entravam dois elementos: o emissor

e o receptor. Para entender que a análise se dá numa relação intersubjetiva e que o

sintoma pode ser tratado por esse dispositivo, foi necessário ampliar a idéia de
47

comunicação. A homogeneidade entre sintoma e linguagem parte da subversão

promovida por ele na teoria da comunicação, ao introduzir um terceiro elemento na

díade emissor-receptor. Este elemento é o Outro que comparece no discurso por

uma exterioridade inclusiva, porquanto é a ele que toda fala se dirige, é a ele que

toda fala se endereça, é a ele que toda fala visa. Essa dimensão do Outro faz com

que o sujeito receba sua própria mensagem de forma invertida, o que cria uma

ilusão de comunicação e revela o caráter paranóico do eu.

Tomando Freud como guia, Lacan considerará que é na linguagem que o

inconsciente se demonstra como uma verdade ―que não diz sua última palavra‖

(1953/1998, p. 271). Aliando o inconsciente à linguagem, reconhecendo neles a

mesma estrutura, Lacan enfatizará que na fala há a intervenção do Outro, ou seja,

que o inconsciente, como Outro da fala do sujeito, comparece naquilo que é dito

independentemente da vontade daquele que fala. Trata-se de uma comunicação

baseada em um equivoco, mas neste equivoco se constitui uma verdade.

Para situar uma fala própria ao inconsciente foi necessária a distinção entre

fala plena e fala vazia, considerando que a primeira é a expressão do inconsciente e

a segunda expressão do eu. Como vazia, a fala está no eixo imaginário e

demonstra a alienação do sujeito no objeto. Como plena, testemunha ―a emergência

da verdade no real‖ (Ibid., p. 253). Ao valorizar na análise a fala plena, Lacan quis

marcar de forma contundente o descaminho pelo qual a psicanálise estava

passando, naquela época, com a supervalorização do ego e a desvalorização da

concepção do inconsciente como linguagem.


48

A concepção de fala plena e fala vazia está alicerçada em uma prevalência

do imaginário sobre o simbólico. Não é que este último não entre em cena, mas o

faz secundariamente. É pela produção de sentido, para além do que é dito, que se

introduz o simbólico, ou seja, o simbólico se manifesta no sentido que possa vir a

produzir nos ditos do sujeito. Este sentido esclarecerá o sintoma e situará o sujeito

em relação ao seu próprio inconsciente.

O espaço analítico se constitui como uma outra cena onde se joga o jogo

do inconsciente. A transferência é caracterizada como uma relação de sujeito a

sujeito, na qual o que opera é uma dialética intersubjetiva.

Já trabalhando em outro espaço que não o da relação dual, pois a

intersubjetividade sai do encontro entre dois eus para ser o encontro entre dois

sujeitos, Lacan perceberá o lugar do analista como diferenciado: é ele quem

decide o sentido a ser dado à fala do paciente. Nessa outra cena, situa o analista

no lugar do Outro, lugar homólogo ao do inconsciente.

O Outro é o lugar da palavra onde estão marcadas as determinações

subjetivas. Ao ocupar esse lugar, o analista cria uma dessimetria na relação

transferencial e inscreve a transferência no eixo simbólico.

Para Miller (1999), a conceitualização do eixo simbólico, nesse momento do

ensino de Lacan, produz um certo equivoco na medida em que se inscreve entre

dois pólos: o da fala e o da linguagem. Na vertente da fala, ele situa a

intersubjetividade; na da linguagem, ele situa a autonomia do simbólico, isto é, a

cadeia significante tem exigências próprias a partir de uma lógica singular.

Essa conceitualização permite tomar o inconsciente como decifrável.

Conseqüentemente, ela permite ao mesmo tempo tomar o sintoma como uma


49

formação do inconsciente. O sintoma pode ser decifrado porque ele porta um

sentido: ―o sintoma, aqui, é o significante de um significado recalcado da

consciência do sujeito‖ (LACAN, 1953/1998, p. 282). Isso implica haver no sintoma

um ―sentido aprisionado‖ (Id.) que a interpretação deverá libertar.

Segundo Miller, Lacan não reconhece, nesse momento, a intrincação do

inconsciente com a pulsão. Por isso, privilegia a ordem semântica do sintoma a

despeito de sua função de promover a satisfação pulsional. A satisfação é

entendida como advinda da própria comunicação, pela liberação do sentido

recalcado do sintoma, uma satisfação simbólica. Fora do simbólico, há uma outra

ordem de satisfação que é imaginária e que, nesse momento, se constitui como

gozo enquanto desarticulado do significante. O significante estaria na ordem

simbólica e, opondo-se a ele, estaria o gozo como imaginário fazendo, inclusive,

barreira à emergência do significante.

Posteriormente, Lacan conceberá o sintoma como tributário unicamente da

ordem simbólica. Essa concepção se manterá por um longo período, chamado por

Miller (Ibid.) de significantização do gozo. É o que veremos no capítulo III, quando

trataremos dessa questão em detalhe. Aqui, destacaremos apenas os pontos

importantes para situar o sintoma nesse período do ensino de Lacan.

Consideraremos o texto Subversão do sujeito e dialética do desejo no

inconsciente freudiano (1960/1998) como marco do sintoma enquanto tributário da

ordem simbólica. Nele, Lacan apresenta o grafo do desejo onde articula a pulsão à

demanda, de modo que o gozo possa ser incluído na cadeia significante. Essa

operação faz com que a pulsão sofra os efeitos da linguagem e, portanto, entre
50

também no simbólico. O grafo mostra a pulsão sendo transpassada pelo

significante, apontando para o sujeito, do outro lado, como resposta a uma

pergunta dirigida ao Outro. O que seria a resposta do Outro se transforma em uma

demanda dirigida ao sujeito, e ―não há demanda que não passe de algum modo

pelos desfiladeiros do significante‖ (LACAN, 1960/1998a, p.826). A suposta

demanda do Outro significará o desejo do sujeito mediante um deslocamento que

o aliena, pois ―é como Outro que ele deseja‖ (Ibid., p.815). Assim, seu desejo

passa a ser o desejo do Outro.

Ao articular a pulsão à demanda, Lacan restringe a satisfação a termos

simbólicos. Segundo Miller (Ibid.), nesse paradigma a satisfação é do desejo, ora

através de objetos, ora como significado de um significante que insiste e que se

caracteriza como causa. Todavia, nenhuma delas diz respeito, propriamente

falando, à satisfação da pulsão.

Podemos, então, entender que o sintoma como mensagem exclui a

satisfação pulsional, ou pelo menos a reduz à satisfação do desejo. Como

mensagem, o sintoma é inscrito na categoria das formações do inconsciente e,

como tal, é passível de decifração.

2.2 - O sintoma como sentido e gozo:

Lacan foi promovendo algumas modificações nas suas bases conceituais

que redundaram em modificações sobre o sintoma. Já situamos as modificações no

conceito de transferência e no conceito de gozo - de imaginário para simbólico.

Cabe-nos agora mostrar como Lacan reconsidera a fala.


51

No texto A psicanálise e seu ensino (1957/1998a), Lacan diz que a fala não

comporta apenas efeitos semânticos, que há nela um suporte material identificado

por ele à letra, entendendo-a como pura forma. Toma, então, o significante como

letra: ―se o sintoma pode ser lido, é porque ele mesmo já está inscrito em um

processo de escrita. Enquanto formação particular do inconsciente, não é uma

significação, mas sim sua relação com uma estrutura significante que o determina‖

(Ibid., p. 445-446). O sintoma deixa de ser entendido apenas como mensagem para

entrar num sistema de escrita.

Há várias conseqüências decorrentes dessa modificação, mas podemos

apontar como a principal delas o fato de que o sintoma, assim entendido, não pode

ser reduzido a um efeito semântico, a uma significação do Outro. Como significação

do Outro, o sintoma estaria dentro das formações do inconsciente inserido num

sistema essencialmente semântico, determinado pelo significante. Nesse momento,

Lacan visa apontar que há algo no sintoma que transcende a significação, algo

inerte, fixo e resistente à interpretação. São essas considerações que levarão Lacan

a entender que, se há sentido no sintoma, nele também há gozo. Miller justifica esta

virada dizendo que desse modo, Lacan inclui a determinação significante do

sintoma ―em um circuito mais vasto onde o gozo e a castração se encontrem

implicados‖ (MILLER, 1986-87/1998, p.277).

Essa vertente é apontada por Freud a partir dos anos 20 em Além do

Princípio do Prazer e, segundo Miller, pelo próprio Lacan, em seu texto A Instância

da Letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957/1998b) , onde ele já

reconhece que o sintoma ultrapassa a estrutura da linguagem apesar de estar a ela


52

intimamente ligado: ―já se pode apreender uma função significante que ultrapassa

sua capacidade de engendrar significação‖ (MILLER, Ibid., p.301).

Assim, o sintoma não se esgota na significação produzida no lugar do Outro.

Para além desta significação, há uma vertente do sintoma que se liga ao significante

na sua forma de letra, significante enigmático que coordena o gozo do corpo com o

significante, ou seja, com a mensagem.

A partir disso, podemos reconhecer que o sintoma tem duas vertentes: a

vertente do sentido como significação do Outro, significação inconsciente; a vertente

da letra, marca que aponta para o que há de enigmático no trauma, o modo de

gozo.

Como veremos no capítulo III, a concepção de sintoma oscilará em função

da concepção de gozo. Este, contudo, nunca mais deixará de ser levado em

consideração quando se falar de sintoma. Veremos o gozo como absoluto e não

simbolizável no Seminário 7: A Ética, parcializado no Seminário 11, como mais-de-

gozar no Seminário 17 e, por fim, no Seminário 20, totalmente integrado à fala.

Esses desenvolvimentos merecerão atenção especial nos capítulos que se seguem,

bastando, por ora, ressaltar que é da concepção do sintoma como sentido mais

gozo que surgirá o sinthoma como identificação ao próprio gozo, rearticulando o

significante ao corpo, mostrando que ―a fala tem efeitos de despertar no corpo a

modalidade de gozo que lhe é própria‖ (COELHO DOS SANTOS, 2002, p.161).
53

Capítulo II

A identificação

Dois aspectos desta tese nos levam a tratar da identificação. O primeiro é a

própria definição do que é o sinthoma: identificação do sujeito ao seu próprio gozo.

Nesse caso, estamos objetivando não só o final de análise, mas, principalmente, o

paradigma lacaniano para o sinthoma: Joyce. Por meio desse paradigma,

chegaremos ao segundo aspecto que nos interessa na identificação, ou seja, as

formas particulares de gozo tão próprias dos sujeitos contemporâneos. Faremos

um percurso acompanhando os desenvolvimentos de Lacan a respeito da

identificação, a fim de podermos destacar o ponto a partir do qual a identificação

nos servirá para distinguir o que ocorre na atualidade e as dificuldades que isso

nos cria.

―A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota

expressão de um laço emocional com outra pessoa‖. Esta é a definição de Freud

em 1921, no texto Psicologia de grupo e a análise do ego (p.133). Nossa proposta

neste capítulo é utilizar essa definição para acompanhar os desdobramentos feitos

por Lacan da concepção de identificação, pois entendemos que ela é o fio

condutor que o fará, ao longo de seu ensino e a cada vez, ressaltar um aspecto ou

outro.

A princípio, Lacan entenderá essa outra pessoa à qual Freud se refere

como o pequeno outro semelhante, na forma de uma imagem refletida. Num

segundo momento, teremos o grande Outro ocupando esse lugar. Quando define
54

que o sujeito está em relação com o Outro, Lacan passa a investigar qual é a

modalidade de laço que os une. Primeiro, ele responderá com a teoria do sujeito

como efeito do significante do Outro. Mais tarde, ele entenderá que nessa relação

há um resto que situa o sujeito como objeto. Vamos acompanhar o percurso

lacaniano através dos textos que consideramos mais representativos de cada

concepção.

1- A identificação à sua imagem como outro:

Em um primeiro momento, Lacan trabalhará a constituição do sujeito

através da assunção de uma imagem produzida no espelho. Essa concepção de

identificação, que é prioritariamente imaginária, tem por base o estádio do espelho

(LACAN, 1949/1998), experiência na qual o sujeito humano, na sua precariedade

orgânica, tenta estabelecer uma relação do seu organismo com sua realidade (p.

100). Diante do espelho, a criança se rejubila com o que vê e se precipita numa

identificação com essa imagem. A assunção da imagem promove no sujeito uma

transformação, a constituição do eu. A ―assunção jubilosa‖ dessa imagem constitui

a matriz simbólica presente na formação do eu. O eu se precipita numa forma

primordial, ou seja, anterior à identificação com o outro e à concorrência da

linguagem. Para Lacan, esse momento da constituição do eu imporá ao sujeito,

doravante, uma divisão, porquanto essa imagem na qual ele se precipita é uma

imagem virtual, um eu ideal com o qual o sujeito terá de se haver no momento de

sua constituição como sujeito, dando origem ao ideal do eu.


55

A assunção jubilosa constitui uma matriz simbólica composta de imagos,

em que se pode denotar a intervenção do simbólico num processo marcadamente

imaginário. Lacan, já nesse texto, aponta para um encaminhamento simbólico da

questão quando diz que essa forma primordial do sujeito, presente na matriz

simbólica, ―deveria ser designada por eu ideal― (p.97), pois originará as

identificações secundárias. Se utilizarmos o desenvolvimento posterior, quando

Lacan fará intervir nessa identificação o Outro simbólico, poderemos entender que

a imagem especular é o limiar visível das imagos. Devemos lembrar, contudo,

que, neste momento, ao utilizar o termo imago, Lacan o faz em relação à matriz

que dará origem ao simbólico. O que o estádio do espelho vem inaugurar, a partir

da identificação com a imago do outro, é a relação do sujeito com a cultura,

mediatizada pelo desejo do outro, constituindo seus objetos ―numa equivalência

abstrata pela concorrência de outrem‖ (p.101). Esta mediatização terá seu apogeu

no complexo de Édipo. O narcisismo, aqui, é entendido como uma latência

semântica.

2- A identificação ao Outro:

Em um segundo momento, essa concepção da identificação será

reconsiderada e ampliada no texto de 1960, Observações sobre o relatório de

Daniel Lagache. Nele, Lacan já está no momento de seu ensino em que o

simbólico é o registro organizador por excelência e, sem pudor, ele subordinará

toda a construção do sujeito ao simbólico.

Ele também já havia elaborado o esquema L e, ao apresentá-lo em 1956, já

o fez para tentar corrigir uma certa versão da psicanálise, chamada de relação de
56

objeto, que reduzia a análise à retificação do par imaginário (LACAN, 1956, p. 58).

Nesse esquema, ele traça dois vetores que se cruzam num determinado ponto.

Um vetor é o eixo imaginário e o outro o eixo simbólico. O vetor imaginário já

estava presente no estádio do espelho, a correção aqui se dá pela introdução do

eixo simbólico cuja função será a de furar o par imaginário. Ao fazer o simbólico

interferir no imaginário, Lacan já está separando os dois registros e promovendo

uma ascensão do simbólico através da significantização dos elementos até então

imaginários.

Tendo por base o esquema L, Lacan construirá, em 1960 (op.cit.), um

complexo esquema ótico no qual o sujeito, diante do espelho, terá sua imagem

desdobrada em imagem real e virtual pela concorrência de um olho que o olha de

fora do espelho. Com esse esquema, Lacan pretende introduzir o Outro do

simbólico incidindo sobre a assunção da imagem. O Outro do simbólico está

representado no esquema pelo olho fora do quadro. Com isso, teremos uma

imagem de si que se conjuga com uma presunção do modo pelo qual se é olhado.

Sem a introdução desse elemento simbólico ficaríamos retidos no transitivismo

próprio às imaginarizações. O olhar do olho fora do quadro produz para o sujeito

uma imagem ideal, para além de uma imagem puramente refletida. Desse modo, o

olho cria um espaço virtual onde o sujeito vai se localizar no olhar do Outro.

Assim, para Lacan, o ideal do eu freudiano é o ponto para onde as identificações

do eu convergem e preconizam que a identificação primordial se dá baseada no

eu ideal da imagem refletida no espelho, em conjunção com a imagem suposta

estar no Outro.
57

O Outro interfere na imagem que o sujeito tem de si, que nunca será uma

imagem pura, pois terá sempre a intervenção de uma imagem presumida vir do

Outro. A distância entre o sujeito e o outro, sua imagem, que o tira do

transitivismo, só é possível pela intervenção do ideal do eu.

Para Lacan, o Outro intervém pela via do significante na forma de um apelo

feito pela criança àquele que a segura, pedindo que confirme e testemunhe que

ela é de onde ele a olha. A relação imaginária com o outro e a aspiração de ser,

denotada no eu ideal, constituirão um campo no qual o sujeito cria a ilusão de um

ideal de eu, que funcionará como um modelo, fazendo o sujeito existir no lugar do

Outro.

Miller (1986-87/1998) nos esclarece que essa articulação do outro com o

Outro pode ser vista também no grafo do desejo, onde as identificações do eu,

com seu transitivismo característico, precisariam de um ponto de detenção

(p.127). Este ponto é justamente a resposta do Outro ao apelo de significação que

o sujeito lhe endereça. A questão do neurótico, então, está colocada em uma

miragem de ser desde onde supõe que o Outro o olhe.

2.1 A identificação ao significante do Outro:

No Seminário, livro 9: A identificação, de 1961-62, Lacan amplia a

concorrência do Outro como operador da identificação através do significante.

O que ressalta das considerações de Lacan nesse seminário é o fato de

que a identificação se baseia no traço unário, portanto, é identificação ao

significante e não à pessoa. Vamos começar justamente por aí, entendendo o que

é o traço unário e como nele subjaz a concepção do sujeito como conjunto vazio.
58

2.1.1- O traço unário:

Diz Lacan (Ibid.): ―a identificação trata da relação do sujeito com o

significante‖ (aula de 15/11/61), razão pela qual seus desenvolvimentos sobre o

assunto vão estar relacionados ao einziger zug freudiano. Ele entende que o traço,

denominado por Freud traço único, é um traço significante que tem a função de

Um. A esse significante ele dá o nome de traço unário, retirando essa

denominação da teoria dos conjuntos (aula de 6/12/61). A teoria dos conjuntos se

baseia no conjunto vazio, o que nos obriga a entender que o Um do traço unário

não é o da unidade, pois ele tem por base o conjunto vazio - termo com o qual

Lacan define também o sujeito -, tampouco é o Um de uma existência, porquanto

o que lhe dá origem é uma inexistência. A referência ao sujeito como conjunto

vazio vai aparecer em todo o percurso do ensino de Lacan. Nos anos setenta ele

irá introduzir a série dos números inteiros, indicando ser o zero o iniciador da série

e que a consistência da série dos números inteiros está em contar o zero. No

Seminário da Identificação (Ibid.) esse raciocínio se apresenta, por exemplo,

quando se refere ao livro de Lorde Shackleton. Nele, o explorador britânico do

Pólo Sul relata suas desventuras ao desbravar o mar Antártico e diz que, diante

das baixas na tripulação, contava-se sempre com um a mais, fazendo do um a

mais o menos um da falta. Nessa época, Lacan quer provar que nesta contagem –

que conta como mais um aquele que falta - há a ―aparição em estado desnudo do

sujeito que não é nada mais que isto, a possibilidade de um significante a mais

graças ao qual se constata que há um que falta‖ (aula de 26/03/62). Assim, o

significante aparece porque não há uma consistência de sujeito. Dessas


59

considerações podemos concluir que não importa o viés pelo qual Lacan abordou

a questão do Um, pois ele sempre a considerou como tendo por base uma

inexistência, seja no sujeito como efeito do significante, seja no sujeito como

conjunto vazio, seja no sujeito dedutível a partir de uma indeterminação originária.

No desenrolar do Seminário: A Identificação (Ibid.) podemos perceber que,

ao denominar o traço único de traço unário, Lacan pretende marcar também a

diferença entre o um que promove a unidade e o Um que marca uma diferença.

Como vimos acima, o traço unário é um traço significante. Se levarmos em

conta que um significante é definido como aquilo que marca uma diferença,

entenderemos porquê ele não promove a unidade. Neste momento de seu ensino,

Lacan usa o termo signo para falar de uma identidade que remete à semelhança e

usa o termo significante para falar de uma marca que presentifica uma diferença.

O significante não representa algo para alguém, não cria uma unidade entre algo e

alguém; o significante representa o sujeito para outro significante. Essa definição,

por já ter se tornado clássica, pode embaçar a sutileza que ela comporta, ou seja,

que o significante representa um elemento heterogêneo - o sujeito - para outro

significante. Uma vez reconhecidas as suas nuances, essa definição bastaria para

provar que o significante não trata de semelhança e sim de diferença.

Vamos incluir uma breve discussão sobre o traço unário e o Um, para

depois considerarmos de onde vem esse traço.

2.1.2- O traço unário e o Um:

No Seminário: A identificação, Lacan diz que o Um de que se trata no traço

unário não é ―nem o Um de Parmênides nem o Um de Plotino‖ (aula de 22/11/61).


60

Ele propõe substituir o idealismo da tradição filosófica, o Um de Parmênides e de

Plotino que tem função de idealização, pelo ideal do eu como necessidade

estrutural na identificação inaugural do sujeito ao significante radical, o traço

unário. Como necessidade de estrutura, o traço unário é totalmente

depersonalizado, não só de qualquer conteúdo subjetivo como de qualquer

variação que ultrapasse o próprio traço (id.). Ele é pura marca significante que não

remete a nenhum idealismo nem a nenhuma totalidade, é uma notação mínima.

Esta notação mínima é o Einziger zug. Assim, podemos dizer que a identificação

trata da relação desse traço com o ideal, mas ela não faz disso uma unidade.

A referência ao Um de Plotino foi enunciada rapidamente por Lacan, mas

mereceu, por parte de Miller, alguns capítulos de seu Seminário Los signos del

goce de 1986-87/1998. Neles, o autor nos leva aos neoplatônicos para esclarecer

a função do Um na filosofia clássica e o modo como Lacan o considera, para

posteriormente reconsiderar essa referência ao Um e mesmo recuperá-la.

Em primeiro lugar, Miller (Ibid.) aponta a diferença entre o traço unário, aqui

chamado de S1, e o binário S1-S2 (p.35). Com o binário se diz que o S1 só terá

sentido a partir do S2; quando, porém, o S1 está sozinho, isolado de S2, ele pode

ser chamado de unário. S1 se torna um unário quando entre ele e S2 se operou

um corte, quando um dito primeiro não foi repetido ou complementado. Esse

momento está num passado apenas dedutível, pois sempre já se terá dito tudo. O

lugar ocupado por esse dito nos dará o seu valor de unário. Esse significante

representará o sujeito, mas não estará em conexão com S2, com um outro

significante. Neste momento lógico, o S1 é o ideal, um significante tomado do

Outro como ideal; ele é um significante que fica fora da série. É num segundo
61

momento, ao se conectar com S2, que teremos o significante representando o

sujeito para outro significante, o S1 articulado ao S2.

Para enfatizar o Um como unário, Miller (Ibid.) examina as hipóteses sobre

o Um de Parmênides à luz da concepção do significante (p.51, 71-78). Não me

atreverei a ir muito longe, mas acho importante entender a base dessa discussão

para poder prosseguir.

O autor nos indica a complexidade desse raciocínio lógico ao dizer que no

Parmênides de Platão não se trata de uma aporia simples, ela comporta nove

hipóteses sobre o Um. Todavia, pela orientação dos neoplatônicos, as três

primeiras é que são essenciais, são elas: o ‗Um é um‘, o ‗Um é‘ e o ‗Um é e não é‘.

Essas três hipóteses examinam a relação entre o ser e o Um. Na primeira,

ao dizer que o ‗Um é um‘ estaríamos predicando o Um. Platão conclui que o Um

―não possui nenhum nome‖, ou seja, ele não se predica porque ele não é nem um

todo, nem tampouco é composto de partes. Se o Um não pode se predicar

elimina-se o predicado e questiona-se o ‗Um é‘ da segunda hipótese. Esta forma -

o ‗Um é‘ - já conota uma existência. Miller (Ibid.) assinala o fato de que para se

dizer isso em francês é necessária uma estrutura de frase que faz do Um o Um - il

y a de l’un. É necessária a inserção do artigo, o que reafirma a sua existência sem

que a questão se ele é um seja formulada. Ele é o Um. Foi esta a forma

privilegiada por Lacan para falar do Um, derivada da segunda hipótese. Miller a

considera uma excelente fórmula para traduzir o ‗Um é‘, uma vez que nela não há

nenhum pré-julgamento de que o Um seja um. Conseqüentemente, ele está aberto

a todos os predicados: de tempo, de sensações, de opinião. A terceira hipótese

parte de: o ‗Um é‘, e se ele é, pode deixar de ser. Miller cria uma teologia para
62

essa hipótese propondo que para o Um é há um Deus diferente daquele do Um

não é.

A crítica de Lacan reside no fato de que os neoplatônicos partiram da

primeira hipótese e foram hierarquizando os termos. Mas parece que Miller tenta

lhes recuperar o prestígio ao escrevê-los nos termos lacanianos de s , S1 e S2, e


dispô-los nos círculos de Euler, também usados por Lacan para tratar a

identificação.

No campo da esquerda ele situa o Um e no campo da direita o ser. Os dois

círculos se cruzam criando uma área de interseção. Segundo Miller, a primeira

hipótese – o ‗Um é um‘ - localiza o sujeito no campo do Um; a segunda hipótese –

o ‗Um é‘ – localiza o S1 na interseção e a terceira – o ‗Um é e não é‘ – localiza o

S2 no campo do ser. Assim, em Parmênides, temos uma hipótese do Um que se

conjuga com o ser e outra que o isola, ou seja, nos termos da alienação-

separação temos o sujeito cativo do significante do Outro e o sujeito cativo da falta

no Outro. Ao se afirmar como aquilo que o Outro quer, o sujeito se perde como

ser, isto é, conforme à metáfora utilizada por Lacan, ele fica com a bolsa e perde a

vida. Se ele não se deixa recobrir pelo significante do Outro, busca uma existência

sem predicados, ou seja, resta-lhe a vida sem a bolsa. Tomando esse viés,

tentaremos entender, mais adiante, como o Um que vem do Outro se constitui

como diferença e, exatamente por isso, pode se incluir no Outro. Antes, porém,

devemos pensar de onde vem o traço como significante.

2.1.3- O traço unário e o ideal:


63

Recapitulando: temos o traço unário como um traço significante que suporta

a diferença. Mas de onde vem esse significante?

Lacan vai retomar o cogito de Descartes para dizer que no ―eu sou‖ o Outro

está incluído, ou seja, que a identificação não é do um com o um e sim do Um

com o Outro (aula de 22/11/61). Ele citará sua cadela Justine para mostrar que

entre ela e ele há uma relação, mas que esta não supõe o Outro. Justine, segundo

Lacan, fala, mas não tem acesso à linguagem porque, para ela, não há senão o

pequeno outro. A relação entre o sujeito humano e a linguagem está diretamente

relacionada ao fato de que a fala supõe a colocação de um outro em lugar de

Outro. Isso significa que, ao falarmos, esperamos uma resposta. É o que ele

desenvolverá ao explicar que a emissão de um som não constitui, por si só, um

apelo, um chamado. É a resposta que faz dessa emissão uma emissão

significante.

No capitulo VII de Los Signos del goce, Miller (1986-87/1998) se estende

sobre a diferença entre o grito e o chamado. Começa explicando o grito como

sendo o delta que dá início ao grafo do desejo de Lacan, diz que ele é uma

emissão significante em estado bruto só podendo ser concebida como uma ficção

teórica. O grito se torna chamado pela suposição ao Outro. O chamado é um grito

dirigido ao Outro e que recebeu deste uma resposta, ainda que esta resposta seja

o silêncio. É a resposta que reconhece no grito um chamado, ela imprime ao grito

uma significação. Esse processo está desenhado no primeiro andar do grafo do

desejo quando a intervenção do Outro corta uma emissão sonora produzindo, do

outro lado, um significado s (A). O primeiro passo é que se reconheça no grito um

significante, ou seja, que o Outro tome o grito como um significante que


64

representa o sujeito. Essa ligação pode ser representada pelo algoritmo S1-S2,

desde que se entenda que o índice 1 de S1 não significa que ele antecede S2. Na

verdade o S1 só existe a partir do S2, da resposta, quando, então, o sujeito surge

como significação. O grito é um pedaço de realidade que se tornará uma demanda

pela concorrência do Outro. Esse processo em que o grito é atravessado pela

resposta constitui simultaneamente o sujeito e o Outro como espaço de

ressonância. Essa origem comum permitirá a Lacan afirmar, anos à frente, que no

processo alienação-separação a escolha entre o ser e o sentido, ou seja, entre o

sujeito e o Outro, é letal (LACAN, 1964/1979, p.201).

Pautado nesse raciocínio, Lacan dirá que ―o Um como tal é o Outro‖ (aula

de 22/11/61), pois é no significante do Outro que o sujeito se engancha tentando

se dar uma certa consistência. O significante lhe serve como garantia de sua

existência diante da sua indeterminação original. A consistência vem da

articulação do sujeito com o Outro através de um significante no qual Lacan

reconhece o ideal do eu (aula de 22/11/61), ou seja, de uma significação

produzida no campo do Outro advém a significação do próprio sujeito. Desse

modo, o traço unário coincide com o ideal do eu. Aqui, porém, não devemos

esquecer da estreita relação entre o ideal do eu e o eu ideal como mostrado

anteriormente.

O Ideal do eu é uma necessidade estrutural porque não há sujeito sem

Outro, visto serem dois campos que se constituem em interdependência. Ele

conjuga o sujeito e o Outro no significante radical da identificação inaugural

(LACAN, aula de 22/11/61).


65

Essa conjunção será desmembrada por Miller (1986-87/1998) em

identificação constituinte e identificação constituída, apontando para o caráter

duplo da identificação (p.121). Usando o mesmo argumento da relação grito-

chamado, ele vai situar a identificação constituinte como S2 e a constituída como

S1, a fim de mostrar como essa relação é lógica, pois de uma se deduz a outra.

Como já vimos, é da resposta que se deduz o chamado. Assim, a identificação

constituída é um efeito da presença do Outro (p.114).

Segundo Miller (Ibid.), se quisermos tratar a identificação no singular,

devemos discriminar o operador da identificação - o Outro - dos efeitos que

aparecem no sujeito. Com isso ele avança sobre um ponto importante que nos

ajudará a entender do que se trata no traço unário. Ele diz que essa dependência

do sujeito em relação ao Outro não apaga o que a clínica só faz ressaltar: o sujeito

manipula o Outro, pois é ele que constitui um pequeno outro como grande Outro.

O sujeito cria o espaço do Outro no qual ele mesmo está incluído (p.115).

Poderemos observar esse efeito no testemunho de passe a ser relatado no

capítulo IV, em que o sujeito fixado a uma frase do Outro paterno pauta suas

escolhas afetivas e profissionais. Outra questão importante quanto à inclusão do

sujeito no Outro também é formulada em relação às novas subjetividades. Nelas,

vamos observar que o laço com o Outro não tem poder de fixá-lo em uma

identificação, ficando esta pulverizada nos diferentes elementos da cultura.

Consideramos que, nesses casos, justamente pelo operador ser o Outro, as

identificações sofrem os efeitos da sua não consistência e deslocalização. Por

esse motivo, a construção em que o sujeito faz do outro um Outro merece nossa

atenção, pois ela articula a identificação imaginária ao significante.


66

Lacan a apóia no esquema do espelho onde o Outro é ―o espaço real ao

qual se superpõem as imagens virtuais ―por trás do espelho‖‖ (LACAN, 1960, p.

684). Seria um erro, ressalta ele, acreditarmos que o Outro não está presente na

distância tomada pelo sujeito em relação ao outro na díade imaginária (p.685),

pois o sujeito precisa do testemunho do Outro para reconhecer no espelho a sua

própria imagem, origem do apelo, visando confirmar aquilo que jubilosamente já

assumira, o que só faz ratificar que toda a identificação se sustenta em um apelo

ao Outro.

A identificação fixa um ponto ideal para o sujeito, fixa o significante da

resposta do Outro como o ideal do eu. É na resposta do Outro que o sujeito

encontra o significante que o representa e nele se engancha para se fazer

representar, mostrando assim a não coincidência entre o sujeito e o eu. O sujeito,

porém, não se substancializa nesse ideal, assim como não o faz na imagem. O

ideal funciona como uma abstração tomada como real, uma hipóstase do sujeito.

Desse modo, o ideal como significante está no Outro. Miller (1986) nos esclarece

que Lacan se reporta ao ideal do eu ora como significante, ora como efeito. O

ideal do eu como efeito aparece em referência à psicose, na metáfora paterna: o

Nome-do-pai como significante situa o ideal como efeito da substituição do desejo

da mãe pelo Nome-do-pai. Neste contexto, a identificação fálica é a identificação

imaginária fundamental do sujeito (p. 136), na qual incidirá o operador simbólico

Nome-do-pai promovendo uma mutação significante no eu, uma significantização

do eu transformando-o em ideal do eu. Assim, o ideal do eu merece duas

formalizações: como significante e como efeito do significante.


67

Nessa passagem do outro ao Outro vemos o campo do Outro ser criado e,

com ele, o próprio sujeito. Dessa forma, podemos pensar a constituição do sujeito

a partir de um Outro que não localiza um ideal, portanto, que não responde com

um pedido de renúncia ao gozo. Isso é exatamente o que observamos nos dias de

hoje, dado que o Outro da cultura contemporânea não mais veicula ideais. A

resposta que vem do Outro é um imperativo de gozo e não de renúncia. Sendo

assim, podemos deduzir que a própria inclusão do sujeito no Outro fica

prejudicada, seus efeitos podem ser a segregação e as identificações ad hoc, pois

não há um S1 balizador que fixe o sujeito em uma identificação pela via do pai.

Vamos então examinar como se dá essa inclusão do sujeito no Outro.

2.2- A inclusão do sujeito no Outro:

A conjunção do sujeito com o Outro é a base da identificação pela via da

representação significante, mas essa conjunção não supõe uma confusão. É como

diferença - pois é isto que um significante marca - que o sujeito se inclui no campo

do Outro. Esse fato é muito bem exemplificado pela frase ―queria ser um alho-poró

para ser colocado em fila como as cebolas‖, recolhida por Miller de um caso

clínico apresentado por Jean-Guy Godin (Miller, 1986-87/1998, cap.I). Nela,

tentaremos identificar como o Um, como significante unário, isolado do S2, se

conjuga com o Outro do universal para pensarmos, depois, nas soluções de

massa promovidas pela cultura atual: depressões, bulimias, anorexias,

toxicomanias.

Segundo Miller (Ibid.), essa frase resume todos os desejos, ela expressa o

desejo dos desejos (p.17). Primeiro, expressa o desejo de ser um alho-poró, o que
68

já denota que não se é um alho-poró. Depois ela mostra que é como alho-poró

que se quer fazer fila, tal como as cebolas se põem em fila numa réstia. O

problema é que o alho-poró é um tipo de salsa, portanto, não tem as raízes que

permitem às cebolas se trançarem e formarem uma réstia. Mesmo sem este

atributo, ele quer ser colocado em fila. Isto mostra o paradoxo do sujeito que se

supõe alho-poró, mas é cebola, e que, aprisionado nesta ‗identificação

desafortunada‘, pensa ser o que não é, não se percebe incluído no Outro porque

faz dessa distinção radical o seu bem maior. O que é afirmado sobre o Um é: ‗há o

Um‘, e este se situa na interseção do Um com o ser. Miller (Ibid.) diz que esse

lugar lhe é imposto pela função e campo da palavra e da linguagem, ou seja, se

‗há o Um‘ é porque há linguagem e há palavra, e ambos dependem do ser (p.81).

Podemos tentar entendê-lo se considerarmos que, para falar, precisamos supor

que o Um é um, ou seja, que há um significante que nos recobre por inteiro como

sujeitos, mas é preciso também haver outros significantes para os quais

estaremos representados. Colocar o ‗há o Um‘ na interseção equivale a dizer que

o sujeito extrai seu ser da linguagem, mas, como no Outro sempre falta o

significante que seja próprio ao sujeito, podemos então perceber que o sujeito ex-

siste ao campo do Outro.

Pois bem, o traço unário representa justamente isto: a conjunção do sujeito

com o Outro, que é negada por uma miragem de distinção, colocando-o sob o

comando do Outro tanto mais quanto ele o negue. Nas novas subjetividades essa

miragem de distinção chega ao paroxismo, porquanto todos querem ser exceções,

o que acaba promovendo mais e mais a segregação.


69

O ‗Um é‘ caracteriza o sujeito sem que uma predicação lhe venha em

socorro, um sujeito sem substância, pois sua base é a inexistência de um

significante que dê conta dele inteiramente. Porém, subsistirá sempre uma sombra

de palavra para que o sujeito não abdique totalmente da fala.

O paradoxo está no fato de a existência do sujeito se dar pelo significante,

sendo exatamente o significante que o marca como inexistente: ao se representar

para outro significante, o sujeito desaparece sob esse outro significa nte, e precisa

de um outro ao qual sucederá o mesmo. Esse movimento marca o sujeito como

um eterno vir a ser, razão pela qual tem sempre de retomar o caminho.

A presença do significante marca a inexistência do sujeito, o que levou

Lacan a defini-lo como falta-a-ser. A representação significante é correlata da

ausência do ser. A falta-a-ser dá substância ao neurótico e por isso se converte

em sua paixão. Esta paixão é a mola propulsora do enganchamento no

significante do Outro, base da identificação. Entendemos assim a advertência de

Miller (1986-87/1998) no que concerne à definição do operador da identificação

(p.115). Se esse operador é sempre o Outro, podemos definir a paixão pela falta-

a-ser como um efeito dela sobre o sujeito. Não nos estenderemos agora sobre

esse ponto, pois pretendemos abordá-lo melhor quando falarmos da função de

complemento cumprida tanto pelo significante quanto pelo objeto.

Para resumir o que foi dito até aqui, vamos situar a identificação ao traço

unário como simbólica, portanto, dependendo diretamente do significante. Este

significante é aquele tomado do Outro para suprir a falta estrutural de uma

significação que dê conta do sujeito. Como já vimos, esse significante é o Ideal do

eu freudiano que localiza o sujeito numa série, numa descendência. Porém, a


70

identificação como representação impõe ao sujeito tomar o Outro como referência

e, assim, buscar nele a sua significação. Por essa via, o sujeito é lançado em

especulações em torno do desejo do Outro e a fazer desse desejo o seu próprio. A

fantasia incidirá nessas especulações como resposta ao que o Outro quer do

sujeito. Assim, pela via da representação significante, o sujeito se articula ao Outro

tendo a fantasia como seu mediador.

2.2.1- A identificação e a fantasia:

Retomando nosso fio condutor pautado na definição freudiana apresentada

no início do capítulo - ―A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais

remota expressão de um laço emocional com outra pessoa‖ -, trataremos agora

desse laço emocional em que intervém a fantasia.

No Seminário: A identificação, Lacan situará o neurótico como aquele que

busca no Outro uma significação que dê conta de seu ser, significação

encontrada na suposição de que o Outro deseje. Sua busca é fruto de uma

indeterminação primordial, ou seja, de uma inexistência no nível do ser. A fantasia

vem responder à inexistência dando, em primeiro lugar, existência ao Outro e,

depois, atribuindo-lhe um desejo. Como vimos anteriormente, a constituição do

sujeito é correlata da constituição do Outro, não nos é então difícil deduzir que o

sujeito se veja aprisionado numa significação que vem do Outro. Nesta

significação, que é a frase da fantasia, o sujeito se coloca numa posição em que

se identifica ao gozo do Outro como sendo o seu próprio gozo.

A estrutura da fantasia foi descrita por Freud, em 1919, no texto Uma

criança é espancada. Nela, temos o sujeito ―vendo‖ o Outro gozar do corpo de


71

uma criança. A indeterminação da expressão ―Bate-se‖ demonstra uma

deslocalização desse Outro, ou melhor, uma enunciação que não nomeia aquele

que bate. Por outro lado, aquele que apanha também não é localizado: pode ser o

sujeito mesmo ou alguém que esteja em seu lugar, segundo as considerações

freudianas. O importante, porém, é que essa criança não é reconhecida como

sendo o próprio sujeito. Destacamos esse fato para demonstrar que nada nos

garante que se trate realmente de um Outro, ou de uma criança. Essa estrutura

nos serve para nos fazer perceber que a fantasia produz um gozo só suportável se

atribuído ao Outro. Senão vejamos: quem constitui o Outro? Quem goza da cena?

Quem goza em contá-la? Sob o ponto de vista da representação, podemos dizer

que a fantasia concorre para a identificação ao ideal do eu, pois a significação que

o sujeito toma do Outro não se dá sem a intermediação da fantasia. Contudo,

nesse modo de identificação, o que está em jogo é o objeto, já que a frase da

fantasia paralisa o sujeito no sem sentido denotado por ela: ―Bate-se‖. Segundo

Miller (1986-87/1998), a frase da fantasia não implica em um chamado ao Outro,

mas sim em recusar-se a deslizar na via do sentido. Segundo esse autor, a frase

da fantasia equivale a um S1, a um significante unário (p.316) sem pretensões de

significação, ela equivale a um ―É isso‖, porquanto na fantasia o sujeito é.

No Seminário: A identificação, Lacan localiza a fantasia como resposta à

pergunta Che vuoi?, que aparece no patamar de cima do grafo do desejo (aula de

09/05/62). Essa localização é homóloga ao i(a) no patamar de baixo, pois é dessa

imagem do eu, o eu ideal, que vem a resposta ao Che vuoi?. Por essa razão, ele

situa a fantasia como tendo valor imaginário, ou seja, o sujeito tenta responder ao

desejo do Outro com o i(a). Na fantasia, o lugar que seria do sujeito é ocupado por
72

i(a), ponto a partir do qual se produz o sinal de angústia (LACAN, 1960-61/1992,

p.349 e 350).

3- A identificação como alienação-separação:

Em um terceiro momento, a concepção de identificação vai estar ligada às

operações de alienação e de separação, que, coordenadas, constituem o sujeito.

Esse momento pode ser localizado tanto no texto Posição do Inconsciente como

no Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ambos

de 1964.

Na alienação, opera a reunião ou união. Essa operação reúne os elementos

comuns presentes nos dois conjuntos. Lacan situa o sujeito no círculo da

esquerda como conjunto vazio; no campo da reunião está o S1 presente tanto em

S1 quanto em S1-S2. Ao passo que na separação opera a interseção entre a falta

resultante da reunião e a falta do conjunto S1-S2.

Para entender melhor como a união opera, precisamos saber o que é união

na lógica matemática, da qual Lacan extrai esse termo promovendo-lhe uma certa

modificação.

Trataremos, primeiro, da diferença entre adição e união.

Estamos diante de dois conjuntos. O primeiro é composto dos elementos

a,b,c, o segundo é composto dos elementos b,c,d. Se fizermos operar sobre eles

uma adição, nosso resultado será composto de 6 termos: a,b,b,c,c,d. Em

contrapartida, se operarmos uma união teremos quatro termos: a, bc, d. Os termos

comuns são recobertos contando-se apenas uma vez, já que eles estão no campo

próprio da união. Assim, com relação à adição, a união parece uma subtração.
73

Seguindo o raciocínio de Lacan no Seminário 11, capítulo XVI, a união é a

operação que serve à dialética da alienação e separação porque ela prevê a

exclusão. Lacan usa o termo dialética do sujeito para diferenciá-la da dialética de

Hegel, a fim de mostrar que, em relação ao sujeito, o fato de haver uma exclusão

na união lógica entre o sujeito e o Outro é decisivo. Senão vejamos: o ser do

sujeito é definido pela união do conjunto ser com o conjunto sentido. Essa união

implica um campo no qual, se optarmos pelo lado do ser, o sujeito perde o sentido

e, sem sentido, ele nos escapa. Por outro lado, se escolhermos o sentido, o sujeito

é decepado do sem sentido do inconsciente (LACAN, 1964, p.200). Desse modo,

Lacan introduz na operação de união uma exclusão decisiva para a construção do

sujeito.

No Seminário 11, Lacan não constrói o esquema da separação.

Historicamente, ele é creditado a Jacques-Alain Miller (LAURENT, 1997, p.37).

Nesse esquema, o binário S1-S2 é usado para definir o Outro, querendo dizer com

isso que o Outro é a própria cadeia significante. O sujeito é representado por s no

círculo da esquerda; S1-S2 representa o Outro; no campo onde há a interseção

entre o sujeito e o Outro se localiza 'a'. Esse esquema nos mostra que o sujeito é

duplamente faltoso, ou seja, ele se constitui de duas faltas: a falta de um

significante no Outro que o represente inteiramente e a falta de gozo estabelecida

pelo fato de as pulsões serem sempre parciais. A fantasia demonstra que a

identificação do sujeito ao gozo do Outro faz com que nesse gozo esteja implicado

algo que rateia, que não é todo. Assim, a separação é a interseção de duas faltas.
74

Uma vez concluído esse percurso, podemos passar a trabalhar a tese de

Miller segundo a qual o sujeito se define como significante e como gozo.

Acompanharemos seu raciocínio baseando-nos no capítulo XIV do Seminário Los

signos del goce (1986-87/1998).

Miller começa o capítulo dizendo que a função da insígnia deve ser

circunscrita por dois termos: S1 e a. O S1 inclui o I do Ideal do eu, a marca do

traço unário. Assim, define a insígnia como sendo não apenas o S1, o traço

unário, porém o traço unário mais 'a'. Desse modo, o que faz insígnia resulta da

relação entre S1 e a, considerando que S1 pode ser escrito de várias maneiras.

Miller utiliza a aula de 6 de dezembro de 1967, do Seminário O ato analítico

(1967-68) de Lacan, para trabalhar sobre o triângulo formado por 'a', s , e I.

Originalmente, Lacan desenhou um triângulo em cujos vértices situou o seu RSI.

Dentro dele, desenhou outro triângulo, desta vez de ponta-cabeça, onde localizou

o s , o 'a' e o I. Diferentemente de Lacan, Miller (Ibid., p.238) destaca o triângulo


interno para mostra que o sujeito está enquadrado pelos termos com os quais se

relaciona. Ele define o sujeito barrado ( s ) como aquele com quem nos

confrontamos na experiência analítica, ou seja, aquele que sofre um apagamento

do eu, o sujeito que emerge de um discurso. No triângulo original, o s é a projeção


do Simbólico incidindo entre o Imaginário e o Real. A axiomática proposta é a da

inexistência necessária à emergência do sujeito como efeito do significante. Isto

prova que o significante tem por base uma inexistência.


75

Miller prossegue com a seguinte questão: o que escrevemos quando

grafamos o sujeito como s ? Sua resposta é que escrevemos o sujeito do

significante e o sujeito do gozo, ao mesmo tempo .

Primeiro, o s escreve o sujeito como um efeito de significação produzido por


um significante, o que comporta sempre um a menos. Lacan, mesmo depois de ter

definido o sujeito como efeito de significação ( s ), não deixou de escrevê-lo,

conforme a necessidade, com o pequeno s, especialmente quando o escreveu

como sujeito suposto saber.

Escrevê-lo como um significante a menos é escrevê-lo como conjunto

vazio, ou seja, sob o domínio do significante. Para que se possa dizer que o

sujeito é inexistente, é preciso delinear o conjunto vazio. Isso ressalta uma

inexistência subjetiva marcada de entrada pelo significante.

Tomá-lo assim, como sujeito do significante, como um vazio significante,

introduz imediatamente a necessidade de um significante que venha preencher,

tamponar esse vazio, ou seja, essa marca primeira. Se a definição de sujeito

supõe o apagamento de um significante (um a menos), dela deduzimos a

necessidade de uma representação significante proveniente do Outro. Esta

representação feita com um significante do Outro é a própria definição de

identificação para Freud. A identificação freudiana, como representação do sujeito

pelo significante do Outro, corresponde à alienação para Lacan. A alienação está

na identificação primeira formadora do ideal do eu. Não se trata de modo algum de

uma identificação imaginária, especular. A identificação ao ideal do eu é definida

por Lacan, ao final do Seminário 11, como aquela em que o sujeito se vê como
76

gostaria de ser visto pelo Outro. Miller se reporta ao último capítulo desse

Seminário, quando Lacan diz que a mola da incidência do ideal do eu está no

cruzamento do significante unário com o campo do Lust, ou seja, no campo da

identificação primária chamada por ele de narcísica. Esta identificação primária é

fruto do olhar do Outro no espelho, ao qual o sujeito se agarra como uma

referência formando assim seu eu ideal, ―ponto em que ele deseja comprazer-se

em si mesmo‖ (LACAN, 1964, p. 242). Na relação narcísica o sujeito se faz objeto

amável, e tenta induzir o Outro numa relação de miragem a fim de convencê-lo de

que é amável (Ibid., p.253). A identificação especular suporta a identificação ao

ideal e fornece a imagem que o sujeito quer ter para o Outro, a partir do ponto

ideal ―colocado em algum lugar do Outro, de onde o Outro me vê, na forma em

que me agrada ser visto‖ (Id.)

Ao escrever sujeito como s , como conjunto vazio, como tendo um

significante a menos, valorizamos a necessidade da articulação freudiana da

identificação pela via da representação, dizendo que o sujeito, assim definido,

apela para um complemento significante que supõe estar no Outro.

Em segundo lugar, ao escrever s , escrevemos o sujeito do gozo. Miller se


propõe a aplicar ao sujeito do gozo a mesma lógica aplicada ao sujeito do

significante, ou seja, aí também teremos um a menos e uma busca de

preenchimento.

Se o sujeito do gozo é escrito como s , é porque ele é designado como

esvaziado de gozo. Como sujeito do significante, ele não é pleno de significante,

pelo contrário, o significante apaga algo da existência do sujeito. Como sujeito do


77

significante, a barra aponta para um a-menos. Como sujeito de gozo, a barra

aponta para um esvaziamento de gozo produzido pelo significante. Da mesma

forma, esse esvaziamento requer um preenchimento que não mais será feito por

um significante.

Na opinião de Miller (1986-87/1998), isso justifica o fato de Lacan ter

indicado no triângulo que não há apenas o complemento pelo ideal, há também

uma outra forma de complemento. Ao chamar o sujeito de sujeito de gozo, ele

enfatiza que há um complemento além da fantasia. A fantasia é um modo de

relação do sujeito com o gozo, porém na forma imaginária. A outra relação do

sujeito com o gozo é através da pulsão, neste caso, na dimensão do real. A

identificação como representação apela para a fantasia, é o modelo da

identificação em Freud. Quando, no triângulo, Lacan escreve 'a', de um lado, e I,

do outro, Miller (op.cit.) deduz que há uma relação do sujeito com o gozo pela via

da fantasia e outra pela via da pulsão. Tratar o sujeito do gozo só pela fantasia é

uma visão parcial, uma aproximação. Miller considera esclarecedor examinar a

fantasia e a pulsão segundo a relação do sujeito com o gozo, assim como opor a

relação do sujeito com o significante à relação do sujeito com o gozo.

Sujeito do significante e sujeito do gozo são as duas vertentes da insígnia.

Essa duplicidade, todavia, pode ser aplicada também ao conceito de Outro.

Este Outro é o lugar do significante. Mas Lacan também o define como

corpo enquanto deserto de gozo.

Vamos abrir um parêntese para explicar qual é a articulação que permite

dizer que o Outro é corpo. Para tanto, recorremos ao texto de Miller Biologia

lacaniana e acontecimento de corpo, que faz parte do Seminário A experiência do


78

real na cura psicanalítica (1998-99/2004). Nele, Miller vai se referir ao

Seminário,livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992), para explicar que

esse Outro não existe, porém tem um corpo. Para dizer isso, Lacan parte da

fantasia Uma criança é espancada (FREUD, 1919/1976) e diz que nela aquele que

espanca não é nomeado. Essa observação o leva a afirmar que o que não é

nomeado na frase da fantasia é a metade do sujeito ligada ao gozo. Da mesma

forma que o sujeito recebe do Outro sua mensagem de forma invertida, Lacan vai

dizer que na fantasia o sujeito recebe ―seu próprio gozo sob a forma do gozo do

Outro‖ (LACAN, op.cit., p.62). Esse ―corpo pode ser sem rosto‖ (Id.), o que o torna

apreensível somente como corpo. O Outro, mesmo não existindo, tem um corpo.

Dessa forma, ele estabelece a ligação do Outro inapreensível como nome ao Eu

sou o que sou da auto-nomeação divina. Essa articulação permitirá a Lacan

afirmar que ―a única chance da existência de Deus é que Ele goze, que ele seja o

gozo‖ (Id.).

Em Biologia lacaniana (op.cit.), Miller explicita não ser possível subtrair ao

Outro o seu corpo pois, se ele goza, é porque tem corpo, mesmo que não exista.

Trata-se, então, do Outro que habita a fantasia e que, através dela, goza do

sujeito. Assim, o parceiro do ser falante é o corpo do Outro suposto gozar do

sujeito, do mesmo modo como para Schreber Deus era um corpo que gozava

dele. Parêntese fechado, voltemos à articulação S1-a.

De acordo com Miller (1986-87/1998), a articulação S1-a percorre e

impulsiona o ensino de Lacan, tal como sujeito do significante e sujeito do gozo

servem de chave para entender a escrita ( s ). Visto assim, podemos entender que
79

há um único termo para designar o sujeito ( s ), existindo, porém, dois termos para

designar o que o complementa: S1 e 'a'. Ainda segundo Miller, Lacan, nos anos

70, chegou a um modo de grafar o sujeito no qual estão indicados os dois valores

que o designam, a saber, mediante a letra sigma (∑). A tese de Miller é que

Lacan foi conduzido, ao final de seu ensino, a introduzir uma nova maneira de

grafar o sintoma de modo a escrever, ao mesmo tempo e com um só traço, o

significante e o gozo. Embora ele aqui não o enuncie, podemos dizer que se trata

do sinthoma, cujo símbolo é o sigma.

Miller (Ibid.) se proporá a demonstrar a necessidade de se tomar estes dois

valores para o sujeito (S1 e 'a'), tanto no ensino de Lacan como na própria

experiência de análise. Ele o fará no processo alienação-separação, no esquema

dos quatro discursos, no grafo do desejo e no significante da transferência.

O processo alienação-separação corresponde a cada um desses valores

segundo um ordenamento temporal. S1 e 'a' se escrevem sucessivamente no

mesmo lugar. A alienação tem no campo da interseção o S1 e a separação tem o

'a'.

Na alienação, o sujeito ( s ) está de um lado, o S2 de outro e o S1 no campo

da união. Isso denota que o sujeito como s é uma representação e se distingui de


S1 e de S2. As formações do inconsciente indicam essa distinção e marcam, nos

tropeços, a verdade do sujeito do inconsciente. A alienação permite imaginarizar a

representação.

Quanto à separação, não podemos dizer que o sujeito está representado,

uma vez que nela ele se situa com seu valor de gozo, como 'a'. Este valor provém
80

da falta que o marca como sujeito do significante. Ao ir buscar no Outro um

significante que dê conta dele, o que encontra é a falta desse significante no

Outro, e nesse lugar que falta no Outro o sujeito irá se alojar como 'a'. Desse

modo, temos 'a' situado na interseção, o mesmo lugar ocupado por S1 na

alienação, enquanto S1 e S2 estão no campo da direita. Aqui, o sujeito vale como

'a', o que atesta não se tratar de representação, mas de identidade. É uma

identificação entre o sujeito e o objeto de gozo, produzindo uma identidade do

sujeito com o seu ser de gozo.

O processo alienação-separação distingue e articula dois tipos de

identificação: uma identificação por representação e outra com o objeto. Mesmo

que isso não tenha sido dito por Lacan, seus desenhos indicam essa distinção

permitindo-nos pensar na relação S1 e 'a', a partir da representação significante

do sujeito pelo traço unário e de seu ser de gozo.

Miller (Ibid.) identifica essa mesma relação nos quatro discursos. No

discurso do mestre, S1 ocupa o mesmo lugar ocupado por 'a' no discurso do

analista. Por sua vez, o lugar ocupado por 'a' no discurso do mestre é ocupado por

S1 no discurso do analista. Temos ainda uma relação de inversão entre S1 e 'a'

interna a cada discurso: no discurso do mestre temos a diagonal S1-a enquanto

no discurso do analista essa diagonal se inverte para a-S1.

Podemos deduzir que no discurso do mestre - que é também o discurso do

inconsciente - o lugar de dominância é ocupado por S1, ou seja, pelo sujeito

identificado ao significante que tomou do Outro para se fazer representar. Em

contrapartida, no discurso a partir do qual o analista opera esse lugar é ocupado

pelo 'a'. O analista se posiciona estrategicamente como objeto, a fim de extrair do


81

analisando seu S1 em posição de agente. No discurso do inconsciente,

observamos que 'a' está na posição da produção de gozo, na qual, por mais que

se produza, haverá sempre uma perda. Já no discurso do analista o que tenderá a

vir nesse lugar será o significante (S1) com o qual o sujeito goza do sentido.

Miller (Ibid.) se pergunta por que S1 e 'a' podem ser equivalentes,

homólogos. Ele vai buscar a resposta no final do Seminário 11 (1964/1979), no

comentário de Lacan sobre o esquema de Freud (p.257). Abordaremos primeiro o

texto de Freud ao qual Lacan se refere e, depois, o comentário de Lacan.

O texto de Freud é o capítulo VIII da Psicologia de grupo e análise do ego

(1921/1976), cujo título é Estar amando e hipnose. Nele, Freud investigará o tipo

de ligação que une os membros de um grupo ao seu líder. Tentará estabelecer um

paralelo entre essa ligação e a ligação amorosa. Destacaremos o ponto que nos

interessa, a saber: a ligação amorosa supervaloriza o objeto e o livra de críticas,

tendendo a falsificar seu julgamento pela idealização. O objeto amado é tratado

como nosso próprio ego, para o qual converge uma quantidade considerável de

libido narcísica, servindo como sucedâneo para um ideal não atingido por nós

mesmos. Há o engrandecimento do objeto e o conseqüente rebaixamento do ego,

o que Freud entende como o objeto tendo consumido o ego e se colocado no

lugar do ideal do eu (p.142-143). Ele faz a diferença entre a identificação e o

apaixonamento dizendo que, na primeira, o objeto foi perdido ou abandonado, ao

passo que no segundo foi hipercatexizado. Freud diz ser possível comparar o

apaixonamento à hipnose porque há, em ambos, uma sujeição humilde (p. 144), o

hipnotizador também foi colocado no lugar do ideal do eu. Partindo da hipnose,

Freud chega ao grupo isolando a ligação com o líder: ―Um grupo primário desse
82

tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no

lugar de seu ideal do ego e, conseqüentemente, se identificaram uns com os

outros em seu ego‖ (p.147). É neste momento final do texto que Freud apresenta o

esquema: três linhas retas e paralelas que saem do ideal do eu, passam pelo eu e

chegam ao objeto do eu. Uma linha em arco marca o vetor que retorna do objeto

ao ideal do eu. Num ponto virtual está apontado um objeto externo para onde as

três linhas convergem.

Em seu comentário, Lacan (1964/1979) está tratando do objeto 'a' na

experiência analítica, portanto, em um processo sustentado pela transferência.

Faz uma série de considerações sobre a identificação ao ideal do eu, tal como

apresentado anteriormente, e, ao citar o texto de Freud, apresenta o esquema

acima descrito dizendo que nele se destaca o objeto, o eu e o ideal. Diz também

que o objeto é o seu objeto 'a', e que as linhas curvas fazem a conjunção de 'a'

com o ideal. O objeto externo é o denominador comum que ocupa em cada sujeito

a função do ideal do eu. Podemos deduzir que é justamente mediante esse

denominador comum - o ideal do eu - que o sujeito se situa em uma série, a qual,

por sua vez, está situada em um universal. Para Lacan, a conjunção de 'a' com o

ideal, em Freud, é feita pela superposição de 'a' e da ―distinção significante que se

chama ideal do eu‖ (Ibid. p.257). Entende que, para Freud, o nó da hipnose é o

olhar do hipnotizador e considera que definir a hipnose ―pela confusão, num ponto,

do significante ideal em que o sujeito se refere com o 'a', é a definição estrutural

mais segura que já foi avançada‖ (p.258). Argumenta, porém, que se a psicanálise

nasceu ao se distinguir da hipnose, é porque a mola da operação analítica está

em manter a distância entre o ideal e 'a' (Id.).


83

Não resisto em ir um pouco mais adiante, pois no parágrafo seguinte Lacan

dará uma indicação clínica importante, ao dizer como o analista deve operar para

separar I de 'a':

― (...) se a transferência é o que, da pulsão, desvia a demanda, o


desejo do analista é aquilo que a traz ali de volta. E, por esta via, ele isola o
'a', o põe à maior distância possível do I que ele, o analista, é chamado pelo
sujeito a encarnar. É dessa idealização que o analista tem que tombar para
ser o suporte do 'a' separador, na medida em que seu desejo lhe permite,
numa hipótese às avessas, encarnar, ele, o hipnotizado‖ (LACAN,
1964/1979, p.258).

Como veremos mais adiante, a fantasia se tornará pulsão a partir do

momento em que se destacar o objeto 'a' do ideal. Essa citação implica uma

oposição entre transferência e desejo do analista: a primeira leva à fantasia, ao

passo que o segundo leva à pulsão. Essa diferença também constitui uma

importante indicação clínica, pois, como veremos a seguir, a transferência tem

parentesco com a sugestão e, como tal, conduz, no máximo, à identificação com o

analista. Outra observação pertinente é que a via da transferência é a via do amor,

mais próprio às formações fantasísticas de complementariedade; já o desejo do

analista poderia ser situado no campo da pulsão. Este último aspecto será objeto

de uma longa discussão no capítulo V, quando será abordada a prática clí nica

com o sujeito contemporâneo e o necessário comparecimento do desejo do

analista.

Retomando a ligação 'a' e ideal, Miller (Ibid.) diz que o fundamental é

compreender a lógica que permite superpor essa ligação, ou seja, como o objeto

'a' pode ocupar o lugar de uma referência significante essencial, que é I, ficando
84

legível a homogeneidade entre I e 'a'. É importante reter essa informação porque

uma das maneiras de Miller pensar o sujeito contemporâneo será através do

matema (a>I), que mostra a prevalência do objeto sobre o ideal no mundo

contemporâneo. Se, por um lado, há homogeneidade entre I e 'a', a possibilidade

da psicanálise está na distância entre I e A. Portanto, separá-los é a condição para

que uma análise seja possível, caso contrário estaríamos na vertente da

identificação ao analista e na prática da sugestão.

Miller (Ibid.) propõe apreciar, a partir da relação de I com 'a', a economia do

grafo do desejo. Segundo ele, o grafo nos mostra que se sabe da transferência

pela identificação, dado que a transferência se funda na sugestão. O sujeito se

compromete com o Outro pela via da palavra, pela demanda, e a saída, então, é a

identificação. A transferência conduz a demanda à identificação. A outra saída

possível é o discurso do mestre, que entra na alienação e que Lacan articulou nos

quatro discursos como representação. Se colocarmos o discurso do analista no

grafo do desejo, veremos que a demanda pode prosseguir até a pulsão. A

demanda passa por A e vai, pela transferência, até a identificação I(A), separando-

a da pulsão. Se, no lugar de A, operar o desejo do analista, ele poderá conduzir a

demanda até a pulsão. É justamente essa última operação que caracteriza a

transferência analítica, porquanto a transferência que leva à identificação é

possível em qualquer psicoterapia.

Quando a demanda alcança a pulsão a fantasia se converte em pulsão

(vide acima). Pulsão e fantasia têm relações específicas com o gozo. Se o sujeito

está no plano da identificação, a pulsão está mascarada pela fantasia. Para

ultrapassar esse plano e se dirigir à pulsão o sujeito precisará situar-se em relação


85

ao seu objeto 'a'. Como vimos anteriormente, a separação situa o sujeito com

valor de 'a', ou seja, o sujeito está identificado ao objeto de gozo e, como tal, ele

se constitui como ser de gozo. Para que o plano da identificação seja superado, o

sujeito necessita separar-se do objeto de gozo. A fantasia revela que entre sujeito

e gozo há uma relação imaginária unindo-os pela identificação ao objeto. Por isso,

o atravessamento se faz necessário, a fim de que o sujeito se destaque do objeto

de gozo, que, na fantasia, é o objeto de gozo do Outro. Quando o sujeito se situa

em relação a esse objeto, observamos que a fantasia se confunde com a pulsão.

A identificação pelo Ideal do eu I(A) mostra que a pulsão está mascarada pela

fantasia.

O caminho da demanda à pulsão implica no atravessamento da fantasia. Se

a fantasia trata o gozo sob o prisma do imaginário, a pulsão, por sua vez, lida com

o que do gozo é real, o objeto 'a'. Se a fantasia serve para mascarar a pulsão, ao

passar do imaginário ao real do gozo haverá a extração de 'a', a separação do

sujeito do objeto de gozo.

No grafo de Lacan o objeto 'a' só aparece na fantasia. Miller (Ibid.), contudo,

diz que, no fundo, o objeto 'a' fica mais evidente quando se trata da pulsão,

mesmo que isso não esteja escrito no grafo. O autor, então, propõe que se

desloque a fantasia, situada originalmente do lado esquerdo, para o lado direito do

grafo. Segundo Miller, Lacan grafou a fantasia com caracteres em itálico, a fim de

assinalar que ela é imaginária, mas, quando a grafamos do lado direito, devemos

fazê-lo com letras redondas para mostrar que se trata da pulsão, portanto, do real.

Para distinguir e enfatizar que houve atravessamento, Miller (Ibid.) propõe

anotar ao lado direito do grafo, na direção demanda-pulsão, uma nova escrita da


86

relação do sujeito com o objeto, onde o vetor vai de 'a' a s (a → s ). Desse modo,

ele põe em oposição o significante da identificação I(A) e o objeto 'a', apontando

assim para a conjunção de S1 e 'a', ou seja, do significante primordial da

identificação do sujeito com o objeto do seu gozo (p. 247).

No que concerne à transferência, o significante que lhe é próprio se forma a

partir de um efeito de significação tendo por base S1. S1 é o significante primordial

do sujeito, o significante do Outro que o marcou, a matéria prima do significante da

transferência, o que é consoante com a transferência freudiana. O S1 resulta do

sujeito que, na sua indeterminação primordial, sem dispor de nada que diga o que

ele é, busca no Outro um significante que o localize e o represente. O significante

tomado do Outro é suposto representar o desejo desse Outro em relação ao

sujeito, constituindo o seu ideal do eu. O significante primordial do sujeito, seu S1,

está, então, diretamente ligado a um significante que representa um ideal. Isto

permite a Lacan dizer que a transferência está motivada no caráter primário do

traço unário. Segundo Miller, isso ressalta o fato de que, para Lacan, a estrutura

básica da transferência não implica o objeto 'a', mas apenas o traço unário

(p.247). Essa idéia permite a Lacan pensar a transferência a partir de um efeito

significante, ou seja, do sujeito suposto saber. Podemos dizer, então, que o objeto

'a' em lugar de agente no discurso analítico é, desde o começo da análise, uma

estratégia própria ao analista visando o real. Para o analisando, o analista só

tomará o lugar de 'a' quando houver a dessuposição de saber.

Miller (Ibid.) lembra que Lacan, na Proposição de 1964, entende que a

significação baseada em S1 funciona como um referente (p.248). O lugar da


87

significação é também o lugar do ideal. No final da análise, é exatamente aí que o

objeto 'a' será colocado como resultado da dessuposição de saber, ou seja,

haverá uma troca da significação pelo objeto 'a'. Assim, Miller afirmará que na

teoria do sujeito suposto saber está implícita a conjunção S1-a, uma vez que o

efeito de significação pode ser trocado por um produto real. Podemos dizer que o

sujeito suposto saber está diretamente ligado ao S1, ao passo que a

dessuposição, ou seja, o S( A ), está ligada ao objeto. No lugar da significação,

pela via do ideal, o sujeito se identifica ao desejo suposto ao Outro. Assim, na

fórmula da fantasia ( s ◊ a), o S1 constituirá o s como o significante tomado ao

Outro e o 'a' será o gozo do sujeito enquanto identificado ao gozo do Outro. O

caminho da fantasia à pulsão trata de isolar o objeto de gozo do sujeito mesmo, o

qual, evidentemente, tem uma ligação com aquilo que ele supõe ser o gozo do

Outro, mas que, todavia, dele estará destacado. No caminho para a pulsão haverá

a troca do S da significação para o 'a' do objeto. A manobra que encaminha o

sujeito ao atravessamento da fantasia e o leva à pulsão depende diretamente do

desejo do analista.

Nesse percurso, Miller (Ibid.) distinguirá o sintoma do sinthoma, distinção

que em um texto posterior será abolida, quando o autor dirá explicitamente que o

sintoma, sendo entendido como sintoma-gozo, prescinde da diferenciação

ortográfica (Miller, 1998c). Como nossa finalidade neste capítulo é tratar da

identificação, achamos por bem apresentar essa distinção, a fim de marcar os

dois modos de identificação que serão desenvolvidos nos capítulos posteriores.


88

Lacan partiu do fato de que se o sintoma é interpretável pelo Outro, é

porque equivale a uma mensagem vinda do Outro. É o Lacan freudiano, ou seja,

aquele que define o inconsciente como linguagem. Miller (Ibid., p.249) enfatiza que

a definição de inconsciente repercute sobre a definição de sintoma, já que estão

diretamente ligados: se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o

sintoma também o é, portanto, é passível de ser interpretado, uma vez que ele

está sustentado por uma estrutura idêntica à da linguagem. Isto é diferente de

dizer que o sintoma é sustentado pela linguagem: ao dizer que é uma estrutura

idêntica à da linguagem, podemos incluir o corpo como elemento que tem função

no sintoma. Ele não é só significação, é também a relação da significação com

uma estrutura significante, ou seja, é a significação do sujeito em relação à

significação suposta vir do Outro. Assim, no grafo do desejo o sintoma se situa em

s(A) – significado do Outro.

Miller (Id.) diz que essa significação não basta para produzir um sintoma,

nem mesmo aqueles que estão na série das formações do inconsciente. A esse

respeito, devemos considerar que a significação provém da passagem da

demanda pelo Outro. E é neste ponto que a fantasia interfere no sintoma.

Tomando o sintoma passo a passo, podemos observar que o sujeito de uma

necessidade encaminha ao Outro uma demanda que deverá estar em

conformidade com os termos desse Outro. Abriremos aqui um parêntese para

explicar como isso ocorre.

Miller o explica muito bem no texto Réflexions sur l’enveloppe formelle du

symptôme, de 1986. Nele, o autor usa o exemplo de uma ação que se quer

impetrar na Justiça para demonstrar como uma necessidade se torna demanda.


89

Ele o explica da seguinte maneira: quando se tem uma queixa e se quer levá-la à

justiça, devemos adequar nossa queixa aos termos do Outro, ou seja, devemos

apresentá-la em termos jurídicos para sermos ouvidos. Temos de contratar um

advogado que funcionará como o operador e transformará o nosso desprazer,

nossa queixa, visando encaminhá-la para o campo de linguagem do Outro. O

advogado converte essa queixa surgida do nosso desprazer em uma mensagem

que, então, será emitida do lugar do Outro e dentro da linguagem própria a esse

Outro. Assim, passamos a existir de uma maneira nova no campo do Outro, pois

só podemos existir no campo do Outro do direito representados por um advogado

que falará por nós nas formas previstas. Transformar a queixa em mensagem, na

forma constituída no campo do Outro, desnaturaliza a queixa porque, nesse

campo, há o que se pode dizer e o que não se pode dizer, ou seja, há uma lógica

própria ao Outro que se impõe a nós, congelando e fixando nossa queixa. Só

assim ela poderá seguir seu curso.

Esse é o apólogo usado por Miller visando explicar como uma necessidade

vira demanda. Embora não seja o objetivo deste nosso trabalho, vale a pena

seguir mais algumas linhas desse texto para entendermos também como uma

mensagem, ou uma demanda, ou uma significação pode produzir gozo. Nossa

queixa passou por um processo de formalização para chegar ao Outro. Durante o

próprio processo de formalização já nos sentimos contentes só por dar forma ao

desprazer, ainda que isso represente uma infração ao princípio do prazer. A

operação de formalização por si só já produz um gozo, um mais-de-gozar

arrancado, subtraído ao desprazer. Esse apólogo nos ajuda a entender o que é o

envelope formal do sintoma assim como do gozo produzido por ele.


90

Retomando a formação do sintoma: há um sujeito de uma necessidade que

se formaliza em uma demanda dirigida ao Outro. Ao chegar no campo do Outro

produz-se uma significação. A significação não basta para produzir o sintoma

porque ela pode se configurar como demanda de amor, como mal entendido,

como deslocamento. Para que se produza um sintoma é necessária a interferência

da fantasia na significação. Segundo Miller, esse circuito mascara a pulsão.

O sintoma do grafo do desejo é composto de um efeito significante e da

fantasia, ou seja, de significação e gozo, dois elementos imaginários a serviço de

defender o sujeito do gozo pulsional.

A fantasia fundamental depende unicamente da interpretação, isto é, por

não estar ali, ela é construída a partir da interpretação do sintoma. A interpretação

do sintoma vai produzindo efeitos de verdade que permitem enumerar os

significantes mestres (S1). Desse modo, a construção da fantasia se dá ao mesmo

tempo em que se interpreta o sintoma: isola-se o objeto 'a' separando as suas

duas vertentes, a saber, o sentido e o gozo. Essa operação acaba por

desimaginarizar a fantasia reduzindo-a à pulsão.

O sintoma está articulado a uma estrutura significante, mas como pensar o

gozo ali capturado?

Somente depois das elaborações sobre o passe é que Lacan poderá definir

o sintoma a partir do gozo, dizendo que ele é uma verdade que resiste ao saber,

ao deciframento. Isso o conduzirá a um novo ternário: gozo, saber e verdade (aula

de 06/12/67). Refere-se, aqui, à reação terapêutica negativa, ou seja, mesmo

interpretado, há, no sintoma, um gozo que resiste. Subjaz no sintoma a fantasia

que, por sua vez, mantém o sujeito satisfeito pela via do gozo. Só então a
91

distinção entre sintoma e fantasia pode ser superada e questionada. É o que faz

Lacan quando engloba no sinthoma o sintoma e a fantasia. Esse novo conceito

enfatiza o gozo do sintoma e sustenta que não gozamos senão de nossas

fantasias. No Seminário 19, ...ou pior, Lacan fala da inexistência da verdade como

o princípio do sintoma, assinalando que o automatismo de repetição evidencia a

insistência como sendo a prova da inexistência do gozo (aula de 12/01/72).

Lacan tenta distinguir o sintoma como efeito de verdade s(A) da relação

com o gozo presente no automatismo de repetição. Na época, todo o seu trabalho

visava uma definição do sintoma que englobasse tanto a verdade quanto o gozo,

tanto o efeito significante quanto o gozo, portanto, que incluísse no sintoma o

automatismo de repetição. Ele só o fará no Seminário RSI, quando, servindo-se

dos nós, escreverá o sintoma e o automatismo e situará o sintoma como o que

não cessa de se escrever. Miller (Ibid., p. 252) deduz que, para fazê-lo, Lacan

precisou deixar de definir o sintoma somente como efeito de verdade, pois como

verdade o sintoma cessa.

Em RSI Lacan define o sintoma como o modo com que cada um goza do

seu inconsciente enquanto o inconsciente o determina. Essa definição de sintoma

muda por completo a perspectiva até então traçada para o sintoma. ‗Enquanto o

inconsciente o determina‘ aponta para o S1 como o significante imperativo, o dito

primeiro, e define o sintoma como um modo de gozo do inconsciente, um modo de

gozo de S1. Segundo Miller, o último esforço de Lacan girou em torno da

conjunção, da superposição de S1 e de 'a'. Foi por essa via que concebeu um

gozo do significante. Ao fazê-lo, ele deslocou a perspectiva substituindo, inclusive,

a reflexão sobre o significante pela reflexão sobre o signo.


92

Se Lacan falou de signo no lugar de significante foi porque estava

empenhado em conseguir um termo no qual o significante estivesse

complementado pelo gozo. As mesmas razões o levaram a distinguir a

interpretação da decifração. Em oposição à decifração, propôs a cifração, a fim de

pensar ao mesmo tempo o significante e o gozo. Foi por conceber o sintoma como

'a' e como I, como função de gozo e função significante, que usou a letra sigma

como símbolo desta conjunção S1-a. O sinthoma é o termo mais adequado para

falar do nome próprio como o mais particular do sujeito. Só assim podemos

entender o título dado por Lacan: Joyce o sinthoma. Segundo Miller (Ibid.), as

considerações que levam Lacan a designar o nome próprio de James Joyce como

Joyce o sinthoma continuam ―bastante obscuras‖ (p. 254). Com isso, assinala

Miller, Lacan dizia que o que faz insígnia para um sujeito é seu próprio sintoma, o

que iremos investigar logo adiante no capítulo dedicado a Joyce.


93

Capítulo III

Gozo

Neste capítulo, tomaremos como eixo o estudo feito por Miller (1999) sobre

as concepções de gozo no ensino de Lacan. Nesse estudo, o autor identifica seis

paradigmas a partir dos quais organiza os desenvolvimentos de Lacan no que

concerne à concepção de gozo: a imaginarização, a significantização, o gozo

impossível, o gozo normal, o discursivo e, por fim, a não relação.

Acompanharemos esse estudo introduzindo, porém, uma outra divisão

paradigmática: a mortificação e a vivificação do gozo. Assim fazendo, poderá

parecer que estamos excluindo o primeiro paradigma proposto por Miller, o que,

em parte, estará correto, uma vez que não o consideramos tão representativo do

ensino de Lacan. Mas, na verdade, estaremos falando dele indiretamente na

mortificação do gozo.

Muitas organizações desse tipo podem ser feitas do ensino de Lacan. No

nosso caso, elegemos a dicotomia mortificação e vivificação do gozo por estar

mais objetivamente ligada ao argumento sustentado nesta tese. Todavia, não

podemos deixar de apontar que na divisão proposta por Miller observamos uma

oscilação entre conjunção e disjunção, entre o significante e o gozo. Assim,

esclarecemos que esse movimento se tornará evidente no modo como

organizamos nosso estudo, e que essa organização agrupará os momentos de

conjunção tendo em vista duas modalidades: a conjunção que promove a

mortificação do gozo pelo significante e a conjunção que vivifica o gozo pelo

significante.
94

1 - A mortificação do gozo:

Este momento corresponde ao período clássico em Lacan, assim chamado

não só porque foi o mais duradouro, como também porque seus desenvolvimentos

marcaram indelevelmente a psicanálise, sendo suas teses as mais identificadas a

Lacan pelo público não iniciado. Esse é o Lacan do significante, o Lacan do

inconsciente estruturado como uma linguagem, do sujeito representado por um

significante para outro significante.

É preciso entender que Lacan não partiu daí, ele começou fazendo uma

releitura de Freud na qual acompanhou o fundador da psicanálise pela perspectiva

imaginária. Aos poucos, foi percebendo outras leituras possíveis de Freud,

imprimindo nelas principalmente os fundamentos da lingüística de Saussure. Essa

etapa da mortificação do gozo baseia-se nesses fundamentos, em especial, a

predominância do simbólico na estruturação do sujeito.

Esse período se inicia com a introdução da perspectiva simbólica nos

termos que antes eram tratados pelo imaginário. De acordo com Miller (op.cit.), no

início da introdução do simbólico ainda restaram termos muito ligados ao

imaginário, mas que ficaram velados pela importância dada por Lacan à função da

palavra como doadora de sentido. Nesse tempo, o inconsciente é histórico e a

palavra permitia acesso a ele por serem ambos feitos da mesma matéria – a

linguagem. Assim, a história do sujeito era tomada para produzir, com esses

elementos históricos, subjetivações e ressubjetivações. Tanto a experiência

analítica quanto a existência do sujeito eram tributárias do simbólico e entendidas

como uma experiência de fala. É justamente o momento em que o simbólico é


95

introduzido no ensino de Lacan que permitirá a Miller detectar restos de imaginário

em suas formulações.

Um desses restos é a concepção da relação transferencial como

comunicação intersubjetiva e dialética, ou seja, a transferência se dava entre dois

sujeitos idênticos e simetricamente colocados. Pouco depois, Lacan corrigiu essa

simetria inerente à intersubjetividade, reconhecendo que entre analista e

analisando o que há é uma dissimetria; que o analista tem um papel diferenciado

na produção de sentido, pois é ele quem interpreta. A fim de dar conta dessa

dissimetria, Lacan introduziu a instância do grande Outro para nele localizar o

analista na transferência, visando distinguí-lo do sujeito. Essa distinção será a

base da discordância de Lacan em relação à contratransferência. Antes, porém,

ele precisará ampliar a concepção do Outro fazendo dele o lugar da palavra, da

estrutura, concebendo-o como prévio, origem de todas as determinações do

sujeito.

O simbólico está coordenado à cadeia significante, portanto, é um simbólico

de regras, um simbólico regido pela lógica do significante. Esse modelo dará

origem ao esquema L, no qual imaginário e simbólico estão em disjunção. A

separação entre simbólico e imaginário, com o predomínio do simbólico, é a tese

central desse período. Esse predomínio fez com que o simbólico fosse

absorvendo os termos imaginários, de tal forma que acabou dominando por

completo a cena teórica do ensino de Lacan. Tudo era simbólico, tudo era

significante.

As pulsões, antes ligadas ao investimento libidinal do corpo unificado pela

imagem no espelho, agora partem do sujeito simbólico que se constitui entre dois
96

significantes. Elas são estruturadas pela linguagem, sendo capazes de metonímia,

substituição e combinação. A entrada da pulsão no simbólico se dá através da sua

vinculação à demanda, grafada no algoritmo s ◊ D. Esta é a tese capital desse

período em que há uma prevalência da conjunção entre significante e gozo. Essa

conjunção é chamada por Miller (op.cit., p.89) de significantização do gozo. Nela,

o significante vem mortificar o gozo.

Associar a pulsão à demanda é um gesto ousado, mas coerente com a tese

principal de Lacan segundo a qual o inconsciente se estrutura como uma

linguagem. Não podemos deixar de perceber que, desse modo, se promove uma

certa degradação da pulsão freudiana, que não se encerra na palavra. Mais tarde,

Lacan se aproximará dessa elaboração quando incluir a concepção de escrita, na

qual poderemos perceber algo que se escreve, mas não necessariamente se fala.

No grafo do desejo, a pulsão é transpassada pelo significante, localizando o

sujeito a partir de uma pergunta endereçada ao Outro, cuja resposta é enigmática.

A afirmação de Lacan: ―não há demanda que não passe de algum modo pelos

desfiladeiros do significante‖ (1960/1998, p.826) é a chave para entendermos a

vinculação da pulsão à linguagem. No grafo, a pulsão passa pelo Outro e dele

extrai um significante ao qual vai se fixar, como mostra a frase da fantasia.

Para que fosse possível integrar a pulsão na ordem simbólica foram

necessárias algumas modificações e redefinições. Miller (2005b, p.48) denomina

de ‗catedral da intersubjetividade‘ o momento do ensino de Lacan em que a pulsão

fora proscrita. Esse momento é seguido da readmissão lenta e gradual da pulsão

até o Seminário 11, aonde Lacan vai considerá-la um dos conceitos fundamentais
97

da psicanálise. Nesse caminho, a pulsão é dividida em três níveis: necessidade,

demanda e desejo. A necessidade é aquilo que da pulsão se impõe na

experiência, é o seu elemento bruto. A demanda é o que da pulsão pode ser

capturado pelo significante. Se a pulsão como um todo pudesse sofrer essa

transformação, isso implicaria na anulação da necessidade. Lacan (1958/1998b),

todavia, considera que essa operação não ocorre na sua totalidade, ela deixa uma

sobra. Esta sobra seria o desejo: diferença entre a necessidade e a demanda

(p.698). Assim, o desejo tomaria o lugar do significado da demanda, um

significado, porém, que ultrapassa o significante, uma vez que o desejo vem no

lugar do absoluto da demanda de amor (Id.). Segundo Miller (2005b, p.51), o que

sobra da necessidade, que não pôde ser convertido em significante, portanto, em

demanda, se manifesta em linguagem. Dessa forma, esse autor entende que o

desejo, como significado recalcado, fica fora da cadeia significante só podendo ser

apreendido nas entrelinhas. Essa é, inclusive, a interpretação de Miller para a

famosa frase de Lacan: ―o desejo deve ser tomado ao pé da letra‖, em seu texto A

direção da cura e os princípios de seu poder (1958/1998a), ou seja, o desejo deve

ser tomado nas entrelinhas, por alusão, sem tradução, como desejo mesmo, não

como demanda.

A definição do desejo como significado de uma cadeia significante

inconsciente faz dele uma metonímia, o que situa sua realização sempre num

porvir, sempre num tempo futuro. Portanto, nele não há satisfação a não ser por

uma instância que represente o significante do desejo na ordem simbólica. Se

entendermos que a satisfação é gozo e que o desejo é desejo de desejo, não

havendo portanto satisfação, podemos dizer que o significante apaga o gozo, ou


98

seja, o gozo é mortificado pelo significante porque o desejo volta sempre para

baixo da barra, como um significado à procura de um significante. Nesse nível,

poderíamos pensar que não há satisfação, não há gozo, ou, como propõe Miller

(1999), há um gozo repartido entre desejo e fantasia (p.91). No desejo, o gozo é

significado recalcado, é mortificado porque é um gozo passado ao significado, tal

como o mostra o segundo patamar do grafo do desejo, onde a significantização

está escrita na trajetória do gozo à castração - S( A ) - ( s ◊ D). Na fantasia, o gozo

comporta tudo o que é da vida, mas se encerra numa imagem, é um gozo gerador

de angustia. Desse modo, o sujeito é só função significante, não há acesso ao

gozo a não ser pela transgressão. É o que Miller (1999) nos mostra no terceiro

paradigma, quando fala do gozo como impossível, como real (p.91).

Uma vez feita a cobertura da pulsão pelos termos necessidade, demanda e

desejo, Lacan poderia ter abolido o termo pulsão, mas ele não o fez porque havia

algo da necessidade que subsistia de modo silencioso, sem representação

significante e não se esgotando no significado suplementar do desejo. Foi nesse

momento que Lacan escreveu a pulsão freudiana como s ◊D. Temos então a

pulsão lacaniana representada pelo D da demanda e pelo pequeno d do desejo,

mas temos também a pulsão freudiana se reerguendo no algoritmo s ◊ D. Ele

serve para dizer que há um empuxo da pulsão à linguagem que não se concretiza,

fica para além da necessidade, da demanda e do desejo como um resto

silencioso, sem enunciado, fazendo-se presente pelos seus efeitos (LACAN,

1958/1998b, p.697). No Seminário 11, de 1964, Lacan nomeou esse resto como

objeto 'a', ao qual voltaremos mais adiante.


99

A fantasia, antes situada no eixo a-a', passa a ser assimilável a uma cadeia

significante com a concorrência do Nome-do-pai como elemento organizador.

Nesse momento do ensino de Lacan, a fantasia ganha o caráter de um roteiro, tal

como Freud nos apresentou no artigo Uma criança é espancada (1919/1977). O

matema s ◊ a grafa uma imagem em função significante que é articulada ao

sujeito simbólico, como no Bate-se. Esse matema vincula o simbólico - s -, ao

libidinal - a -, e faz da fantasia o nó entre o simbólico e o libidinal, aqui entendido

como imaginário porque ligado ao narcisismo. Não esqueçamos que o narcisismo

foi relido por Lacan nos termos do estádio do espelho, o que restringe a libido ao

eu e aos seus objetos. Este é um dos problemas de Lacan: entender a libido como

imaginária foi seu ponto de partida e teve como conseqüência entender o gozo

como imaginário em oposição ao simbólico. O esquema L demonstra que o

imaginário faz barreira ao simbólico.

Em Freud (1922/1976), a libido é definida como ―manifestação dinâmica da

sexualidade‖ (p.308), ou seja, energia sexual essencialmente masculina

(1905/1977b, p.226). No texto Introdução ao Narcisismo, de 1914, Freud entende

que o narcisismo faz parte do ―curso regular do desenvolvimento sexual humano‖

(p.89), a fim de que este ascenda a uma escolha de objeto sexual. O caminho não

é linear. Para que o narcisismo aconteça, é necessário realizar-se uma operação

sobre o eu. O eu não existe desde o começo, ele precisa ser desenvolvido. Assim,

o eu é fruto de uma ―nova ação psíquica‖ (FREUD, 1914/1976, p.93) sobre os

instintos do eu, presentes desde o início. Ainda segundo Freud, antes do

narcisismo há o auto-erotismo, quando a pulsão sexual está voltada ao próprio


100

corpo, fragmentado em diversos órgãos, não constituindo uma unidade. Esta não

unidade é o corpo antes de sua unificação pelo eu. Sobre essa pulsão incidirá

uma ação fazendo com que o investimento anteriormente depositado no próprio

corpo se dirija aos objetos, promovendo assim a diferenciação eu – não eu. Nessa

etapa de passagem poderíamos identificar o narcisismo primário como estando

muito próximo ao auto-erotismo. A unificação do eu só se dará quando essa

passagem estiver feita e o investimento pulsional retornar ao eu, o que podemos

identificar ao narcisismo secundário (Ibid., p.91). Assim, o narcisismo corresponde

ao nascimento do eu. O narcisismo é uma fase do desenvolvimento psíquico em

que uma nova ação é impetrada e, com ela, o eu é engendrado. Segundo Freud

(Ibid.), a observação da vida amorosa dos seres humanos se constituiu como ―o

mais forte motivo‖ (p.104) que o levou à concepção do narcisismo. Essa

observação destacou dois tipos de escolha de objeto: uma anaclítica e outra

narcísisca. A primeira estaria mais dentro das características masculinas por ser

uma escolha propriamente de objeto. Nesse caso, o objeto é escolhido por ser

aquele que cuida tal como um dia o sujeito fora cuidado pela mãe. Já o tipo

narcísico é mais característico do feminino, dado que as mulheres não teriam, por

restrições sociais, ascendido a uma escolha objetal propriamente dita. Desse

modo, esse tipo de escolha se caracteriza por amar aquele que a ama. Os

homens teriam renunciado a uma parte do seu narcisismo, enquanto as mulheres

ainda estariam ligadas ele. Mesmo declarando que o narcisismo se esclarece pela

vida erótica, podemos perceber que a distinção mais clara se dá quando Freud

tenta estabelecer diferenças entre a neurose e a psicose. Na neurose, o retorno

da libido ao eu não deixa de manter o investimento nos objetos pela via da


101

fantasia, enquanto na psicose a libido é totalmente retirada dos objetos (Ibid.,

p.102). O delírio seria uma forma de restabelecer o investimento no eu quando

algum fator externo veio perturbar esse arranjo, o que Lacan apontou como o

momento do desencadeamento.

Com a pulsão articulada à demanda foi possível a Lacan ressituar a libido

em termos simbólicos, ou seja, inseri-la na cadeia significante. A libido é realocada

na cadeia significante inconsciente através da conversão do falo imaginário em

significante. Esta dica é dada ao final do texto A significação do falo, de 1958,

quando Lacan diz que a intuição de Freud sobre a libido ser masculina se

esclarece pela função significante do falo. Vamos examinar melhor essa

passagem.

Nesse texto, Lacan diz que a relação do sujeito com o falo desconsidera a

diferença anatômica, o que torna espinhoso o entendimento do desejo feminino

para ambos os sexos. Ele começa por fazer a distinção entre significante e

significado, destacando o significante como prioritário em relação ao significado e

fazendo do primeiro uma nova dimensão da condição humana. Essa nova

condição diz respeito ao inconsciente como a Outra cena, tal como lido por Freud.

A Outra cena freudiana é o isso cujo tecido é a linguagem e é veiculado pelo

Outro. É porque o isso fala no Outro que o sujeito encontra ali seu lugar

significante (Ibid., p.696). O falo é definido como um significante destinado a

designar os efeitos de significado. Isso equivale a dizer que o desejo não se

esgota na demanda, mas é designado, apontado por ela, permanecendo errático e

escandaloso. Não voltaremos a essa questão porque já a trabalhamos parágrafos

acima.
102

O importante é que, na relação sexual, não basta que os parceiros sejam

quer sujeitos de uma necessidade, sob o ponto de vista masculino, quer objetos

de amor, sob o ponto de vista feminino. O importante é que se constituam como

causa de desejo. A esse respeito, Lacan enunciará uma de suas pérolas

frasísticas: ―O falo é o significante privilegiado dessa marca, onde a parte do logos

se conjuga com o advento do desejo‖ (Ibid., p. 699). Esta é a chave para

entendermos o falo como significante, ou seja, a articulação do desejo com o

significante que, como bom significante, marca a presença de uma falta. O falo

cunha o significado como bastardo em relação ao significante, isto é, o desejo não

tem enunciado a não ser o que da necessidade pode ser veiculado pela demanda.

Como vimos no capítulo sobre a identificação, isso é também o que instaura o

sujeito como barrado precisando de um complemento significante que é buscado

no Outro. Nesse capítulo, vimos igualmente que é pelo Outro que o sujeito tem

acesso ao seu desejo, o que é uma função do falo como significante – ―média e

razão extrema‖ do desejo (Ibid., p. 700). O fosso entre demanda e desejo faz com

que a demanda de amor padeça de um desejo cujo significante lhe é estranho

(Id.). Na relação da criança com a mãe, o falo se situa neste ponto: o desejo da

mãe é o falo e a criança quer ser o falo para satisfazer a mãe. Mas, como esse

desejo não pode ser satisfeito, pouco importa se a criança quer ter ou não esse

falo, porquanto ela jamais poderá ser o que falta à mãe. Instaura-se, então, uma

nostalgia ou uma ameaça da falta-a-ter, duas vertentes da castração simbólica

que podem ser localizadas tanto no homem quanto na mulher. No seu efeito

significante, o falo é ambíguo, ele marca a presença e a ausência encarnadas na

entumescência e detumescência do pênis, mas, na subjetivação, ele aparece


103

como se fazendo representar pelo significante ao mesmo tempo em que nele se

desvanece. Na relação entre os sexos, isso adquire o valor de um ideal quanto ao

papel a ser desempenhado, visando mascarar a falta e reduzir o desejo à

demanda. Assim, do lado feminino a tentativa é ser o falo, significante do desejo

do Outro, pela via da abdicação de seu próprio desejo, o que corresponde a ser

amada pelo que não tem. O que ela não tem é localizado no corpo do homem, a

quem não é demandado o pênis, mas sim o amor, o tal significante estranho do

desejo do qual padece a demanda de amor. Seria natural entender que ao ganhar

o status de significante o órgão se transformasse em objeto fetiche, mas isso não

ocorre com a mulher. Para ela, a importância do falo está em lhe propiciar a

experiência do amor e servir de significante para seu desejo. Do lado do

masculino, a dialética da demanda e do desejo promove uma certa degradação da

vida amorosa, restringindo-a à satisfação pela via do objeto fetiche, que, como tal,

pode estar presente tanto na santa quanto na puta. Lacan enfatiza esse quadro

dizendo que nem na homossexualidade se escapa dessa determinação

significante. A homossexualidade masculina mantém a vertente fetichista e a

homossexualidade feminina mantém a vertente amorosa. Tanto faz se uma mulher

ostenta demasiadamente os atributos fálicos ou deles tenta se livrar com

empenho, pois em ambas se afirma que a libido está referida ao falo como

significante.

Ora, sob esse prisma, há o momento máximo da conjunção entre

significante e gozo: se, por um lado, há conjunção, ou seja, o gozo pode ser

articulado à cadeia significante, por outro, é um desejo alienado, não articulável,

como figura no Seminário, livro 5: As Formações do Inconsciente (1957- 58/1999)


104

: ― o fato de o desejo não ser articulável não é razão para que ele não seja

articulado‖ (p.341). É nessa medida que o sintoma é a máscara do desejo

recalcado, como foi apresentado no primeiro capítulo. Ele representa o sujeito na

situação de desejo, ele veicula um desejo que só pode ser reconhecido, jamais

satisfeito.

Antes de chegarmos ao Seminário 11, aonde Lacan vai fragmentar o gozo

em objetos 'a' dando uma nova articulação à conjunção significante e gozo,

através do processo alienação-separação, é necessário apontarmos o que se

produziu no Seminário, livro 7: A ética da psicanálise (1959-60/1988). Nele, Lacan

situa o gozo como real, o identifica à das Ding colocando-o fora do alcance do

significante. Aqui, apesar de se tratar do oposto à significantização do gozo, ou

seja, de uma disjunção entre significante e gozo, a tese da mortificação se

mantém.

Nesse seminário, tanto a ordem simbólica quanto a imaginária fazem

barreira ao gozo, o gozo real só pode ser alcançado pela via da transgressão. O

gozo como impossível inscreve a mãe ocupando o lugar de das Ding. Portanto, o

desejo pela mãe não pode ser satisfeito porque isso representaria o fim da

demanda, que é o que estrutura o inconsciente (LACAN, 1959-60/1988, p. 86 e

87). Lacan usa Kant e Sade para mostrar que qualquer lei tomada como universal

tem o mesmo valor: ―o mundo sadista é concebível (...) como uma das efetivações

possíveis do mundo governado por uma ética radical, pela ética kantiana‖ (Ibid., p.

101). Ao dizer que Kant tem a mesma opinião de Sade (Ibid., p. 102), Lacan

pretende nos mostrar que o extremo do prazer é a dor e que ele não é possível de

ser suportado, portanto, que o acesso à Coisa está barrado e só poderemos


105

experimentá-lo, como neuróticos, através da fantasia. Mas o gozo produzido pela

fantasia engana o sujeito quanto à das Ding (p. 126), isto é, o gozo produzido pela

fantasia é uma tentativa de driblar o impossível do gozo. Do mesmo modo, o gozo

como real está em oposição ao simbólico, uma vez que ―não há nada entre a

organização na rede significante (...) e a constituição no real desse espaço (...)

sob o qual o campo da Coisa (...) se apresenta para nós‖ (p. 149). Assim, a Coisa,

entendida como o gozo absoluto, não é acessível nem pelo imaginário, nem pelo

simbólico, muito pelo contrário, essas duas ordens lhe impõem barreiras visando

livrar o sujeito do acesso direto à Coisa: a barreira simbólica da lei e a barreira

imaginária do belo. Aqui, o sintoma não está relacionado ao recalque e sim à

defesa contra o gozo. A defesa se distingue do recalque porque ela existe antes

mesmo que se formulem as condições para o recalque - condições simbólicas. A

defesa designa uma orientação primeira do ser, como uma mentira originária que

protege o sujeito contra o gozo.

A dificuldade que se impôs a Lacan no Seminário 7 foi a de articular a

disjunção entre significante e gozo com o axioma o ‗inconsciente estruturado como

uma linguagem‘. A disjunção implica que o inconsciente não inclui o gozo, dado

que ele está fora da simbolização e, pelo mesmo argumento, poderíamos ser

levados a pensar que o inconsciente não poderia falar.

Isolar o gozo como Coisa, como não simbolizável, introduz um impasse

clínico: como a análise poderia operar senão pelo incitamento à transgressão?

Lacan irá responder a esse impasse ao criar o conceito de objeto 'a', e ao retomar

a linha da conjunção entre significante e gozo pela articulação entre o sujeito e o


106

Outro. Foi o que ele fez no Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais

da psicanálise, de 1964.

Nesse Seminário, Lacan conceitua o que ele mesmo considerou como a

sua invenção: o objeto 'a'. Para tanto, ele distinguiu o inconsciente freudiano do

inconsciente lacaniano e, desse modo, pôde reconsiderar a pulsão. Vamos

acompanhar as principais modificações produzidas nesse período, a fim de

apontar a nova conjunção entre o significante e o gozo e mostrar como elas ainda

se postam sob a via da mortificação do gozo.

O conceito de inconsciente sofre uma modificação importante. Até então

definido como linguagem, o inconsciente comportava uma ordenação, uma cadeia,

uma regularidade, caracterizando uma continuidade. Seu funcionamento estava

regido por uma lei, a do significante, lei que determinaria o modo pelo qual se

daria a veiculação do desejo através da demanda. O que aparece como novidade

é a introdução da causa operando no inconsciente, o que lhe retira a regularidade

da lei e lhe imprime uma descontinuidade. A causa é definida como claudicação

(Ibid., p. 27), ou seja, o inconsciente é algo que fica à espera, não nascido (p. 28),

no qual serão depositados os significantes no lugar mesmo onde surge essa

hiância. O inconsciente é determinado pelo real, que, por sua vez, não é

determinado (p. 27). Seu funcionamento se dá pelo tropeço (p.29). O que Freud

encontrava nesse tropeço, era, na verdade, algo reencontrado que tratava de

escapar imediatamente após sua descoberta. O inconsciente caracterizado como

descontinuidade se manifesta pela vacilação (p. 30), não pela regularidade. As

rupturas que aparecem na cadeia significante evidenciam não haver ali nada que

existisse antes, não há ser no inconsciente, ele é evasivo (p. 36). A clínica nos
107

demonstra a indeterminação do sujeito, dado que a cadeia significante, ao

produzir o sujeito, faz com que ele se ache e se perca a cada enunciação. Por

isso, Lacan vai dizer que o ―estatuto do inconsciente é ético, e não ôntico‖

(1964/1979, p.37). Não há nele nada que lhe seja anterior, nada que se constitua

como uma ontologia, e a cada aparição do sujeito uma nova lógica estará em jogo,

uma nova causa estará operando.

Essa concepção do inconsciente permitirá a Lacan integrá-lo ao circuito

pulsional, pois, como nos diz Miller (1999), nesse Seminário ―há uma comunidade

de estrutura entre o inconsciente simbólico e o funcionamento da pulsão‖ (p. 94).

O inconsciente passa a ser entendido como um circuito de borda que se abre e se

fecha, nos moldes de uma zona erógena. É pelo fato de haver no aparelho do

corpo algo que se estrutura como a pulsão que esta terá seu papel no

funcionamento do inconsciente (LACAN, 1964/1979, p. 172). Está feita a nova

aliança entre significante e gozo.

Para que essa aliança se desse, foi necessário romper com o caráter

absoluto do gozo, como pensado no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, e

promover a sua fragmentação em objetos 'a'. O que encaminhou Lacan para esse

ponto foi um questionamento a respeito do tipo de satisfação propiciado pela arte.

Ele parte da indagação sobre o que leva alguém a buscar análise se seu sintoma ―é

feito para lhe trazer certas satisfações‖ (LACAN, 1964/1979, p. 131). Justifica que a

demanda de análise já comporta uma dupla face na qual, através de uma mentira,

se instaura a dimensão da verdade, uma vez que ela mesma faz parte dessa

dimensão. Ele toma o exemplo do eu minto para mostrar que, a essa afirmativa, o

analista deve responder com: você diz a verdade. Não prosseguiremos nesse
108

comentário uma vez que ele nos basta para apontar a origem do questionamento

sobre a satisfação.

Seguindo esse caminho, Lacan tentará entender de onde vem a satisfação

produzida pela contemplação de uma obra de arte. Ele observa que a arte tem um

poder calmante, apaziguador, que lhe é conferido não pelo que é retratado, mas

pela satisfação da voracidade do olho – ―há um apetite do olho naquele que olha‖

(LACAN, 1964/1979, p. 112) -, ou seja, a satisfação não se dá em função de uma

necessidade, mas sim de uma experiência de completude. Essa experiência tem

como centro o objeto 'a', aquilo que falta ao sujeito e que ele supõe encontrar no

Outro. A satisfação produzida pelo objeto 'a' é deduzida do circuito traçado pela

pulsão em torno de um buraco.

Nos capítulos do Seminário dedicados à pulsão, vemos Lacan (1964/1979)

percorrer o texto de Freud Os instintos e suas vicissitudes (1915/1977). Nesse

percurso, ele entenderá que a pulsão se satisfaz ao chegar ao seu Ziel, seu alvo (p.

157), o qual, todavia, não é o objeto. Como Freud ressalta, o objeto não tem

nenhuma importância, ele é indiferente. Portanto, a satisfação oral nada tem a ver

com o alimento e sim com a própria boca. A pulsão se satisfaz ao contornar o objeto

e voltar ao próprio corpo, ela se satisfaz com seu próprio percurso. Desse modo,

nos diz Lacan: ―o que é fundamental, no nível de cada pulsão, é o vaivém em que

ela se estrutura‖ (LACAN, Ibid., p. 168). Esse vaivém é designado por Freud no ver

e ser visto, porque ―parte alguma desse percurso pode ser separada de seu vaivém,

de sua reversão fundamental, do caráter circular do percurso da pulsão‖ (id.),

mostrando assim que a reversão do ver em ser visto reduplica o trajeto na direção
109

de um retorno ao corpo. No percurso do corpo ao corpo, ou da boca à boca, do olho

ao olho, delineia-se um buraco, um cavo, um vazio, ocupável por qualquer objeto. A

presença de um vazio projetado pelo circuito em arco da pulsão é o objeto 'a', lugar

do objeto perdido freudiano. Mas, esclarece Lacan, contrariamente ao que se

poderia pensar, a origem da pulsão não é o objeto perdido, que criaria, com o vazio,

uma necessidade a ser satisfeita por um objeto - no caso da pulsão oral a satisfação

viria do alimento. A conceituação do objeto 'a' formula que ―nenhum alimento jamais

satisfará a pulsão oral, senão contornando-se o objeto eternamente faltante‖ (id.).

As pulsões são parciais, para cada uma há um modo de satisfação próprio, todas,

porém, têm no circuito em arco o seu modelo básico de satisfação. O que quer dizer

isso? Além de dizer que não há objeto que satisfaça a pulsão, o modelo em arco

mostra que a satisfação advém do próprio funcionamento, reafirmando a proposição

freudiana de que a pulsão é uma konstante Kraft. Ao situar o objeto 'a' no centro

como um espaço a ser circundado, Lacan mostra que desse circuito não resulta um

sujeito. Assim, ele poderá dizer que a pulsão é acéfala, pois tudo se articula em

termos de tensão – uma constante sempre presente que não dá descanso ao

aparelho que é o sujeito. A konstante Kraft freudiana é equivalente ao ‗não cessa‘

lacaniano.

Com a parcialização das pulsões e a conseqüente fragmentação do gozo em

objeto 'a', em pequenos elementos substituíveis, Lacan pode pensar as operações

de alienação e separação. A modificação de perspectiva quanto à pulsão incidirá

diretamente na segunda operação – a separação -, pois a alienação, de certa

forma, já estava presente no Seminário: A identificação.


110

Alienação e separação são operações mutuamente dependentes que

explicam, cada uma a seu modo, a constituição do sujeito a partir da sua relação

com o Outro. Como esse item já foi tratado em detalhe no capítulo da identificação,

não me aterei aqui ao básico, tentarei apenas tirar as conseqüências relacionadas

ao gozo. Como vimos, essas operações explicam a articulação entre o gozo e o

significante mostrando que, na constituição do sujeito, o gozo já está implicado.

Essa concepção de gozo favorecerá à postulação de que a

complementariedade buscada pelo sujeito não virá somente do significante, mas

também de uma parte do próprio sujeito que foi perdida. A separação, por sua vez,

trará a seguinte novidade: o sujeito buscará a parte perdida de si mesmo

justamente na falta do Outro. Essa noção será muito importante mais adiante para

compreendermos o que ocorre com o sujeito contemporâneo, a saber: diante da

civilização do não-todo, o sujeito precisa extrair do Outro um objeto ‗para chamar de

seu‘.

Como vimos, o processo de separação se dá pela interseção do campo do

sujeito no campo do Outro, ou seja, o campo da interseção se constitui pelos

elementos presentes em ambos os conjuntos. Nesse caso, o sujeito deduz o Outro

não como completo, como ocorre na alienação, mas como faltoso, pois se o Outro

quer alguma coisa de mim é porque a ele algo falta. A isso Lacan chamou de

recobrimento de duas faltas (1964/1979, p.203), o que irá engendrar o sujeito a

partir de um outro ponto de vista: ―o sujeito reencontra no desejo do Outro sua

equivalência ao que ele é como sujeito do inconsciente‖ e se ―realiza na perda em

que surgiu como inconsciente, mediante a falta que produz no Outro‖ (LACAN,
111

1966/1998, p.857). Aqui, o sujeito não está motivado por um complemento

significante, pelos efeitos de sentido que possam ser produzidos, pois o que o

anima é poder recobrir a sua falta com a falta do Outro.

Assim, conforme Miller (1999) assinala no texto que nos serve de eixo,

entendemos que a separação responde à alienação ao fazer com que a estrutura

do sujeito venha acompanhada da estrutura do gozo (p. 93-94). Essa orientação é

crucial para o que se pretende nesta tese, pois somente quando entendermos que o

sujeito tem dois valores – significante e gozo – poderemos desenvolver nossa

argumentação na direção do sinthoma.

O percurso circular da pulsão constitui um buraco no qual se inscreverão os

objetos 'a' visando recuperar o objeto perdido, fazendo com que o sujeito dividido,

vazio de significantes, seja articulado a essa perda de objeto.

Segundo Miller (1999), o objeto perdido está referido a uma falta natural.

Portanto, ele diz respeito ao corpo vivo mais do que ao sujeito dividido, conjunto

vazio (p.94). Como conjunto vazio, o sujeito está reduzido à falta de significante e,

para articulá-lo ao gozo, teríamos de pensar o sujeito como um corpo vivo vitimado

por uma perda natural não oriunda do significante.

Lacan (1964/1979), ao dizer que ―a libido deve ser concebida como um

órgão‖ (p.177), quer tão somente reforçar a idéia de que ela está articulada à pulsão

da qual ela é um instrumento (p.185). Nessa definição, o sujeito é considerado

como ser vivo, como ser sexuado que, como tal, tem na reprodução uma perda de

vida (p.186). No lugar da perda natural, perda de vida, Lacan introduzirá o objeto 'a'

como representante dessa perda (p.186-187). Ao nascer, só por sermos sexuados,


112

já sofremos uma perda pelo fato de estarmos fadados à morte, diferentemente dos

protozoários que podem multiplicar-se sem que se dissipe seu material genético.

Assim, conforme propõe Lacan, podemos dizer que o objeto 'a' tem duas vertentes:

como perda e como o que vem no lugar dessa perda.

A operação da separação recupera a libido como objeto perdido, não mais

como a Coisa do Seminário: A ética, e sim como um elemento passível de

substituição, que, além de propiciar a esperança de gozo, se inscreve também

como uma resposta normal, tanto à falta significante na identificação quanto ao

recalque (LACAN, 1964/1979, p. 176). Se o objeto 'a', como elemento de gozo,

responde ao vazio de significação e ao recalque, podemos deduzir que ele deve ter

alguma ligação com o significante, caso contrário não haveria conjunção de

significante e gozo e sim duas definições distintas para o sujeito.

Segundo Miller (1999), a elementarização do gozo corresponde à

elementarização da Coisa (p.95) e, como vimos na operação de separação, esse

objeto também provém do Outro. Miller deduz, então, que o objeto 'a' faz uma

mediação entre a Coisa e o Outro, e, se o faz, é porque ele tem um caráter

ambíguo, a saber, encarnar a Coisa e provir do Outro: ―é como se, pelo objeto 'a', o

Outro do significante impusesse sua estrutura à Coisa‖ (id.). Só assim podemos

entender porquê a significantização vai se manter, apesar da conceituação do

objeto 'a'. Esse caráter ambíguo favorece que ele seja substância de gozo e

também ―dotado de uma propriedade significante‖ (id.), isto é, se apresente como

elemento podendo, então, entrar na ordem simbólica. A mesma propriedade faz


113

dele gozo e permite que ele se encarne na cadeia significante. Sem isso, a

psicanálise estaria invalidada.

Mantendo a via da mortificação do gozo, examinaremos agora os

desenvolvimentos do Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise (1969-70/1992),

em que Lacan vai postular uma relação primitiva entre significante e gozo ao

entender que a repetição é repetição de gozo.

―A repetição tem uma certa relação com aquilo que, desse saber, é o limite

– e que se chama gozo‖ (LACAN, Ibid., p.13). Mediante essa frase Lacan introduz

um raciocínio que já vinha sendo esboçado no Seminário, livro 16: De um Outro

ao outro, de 1968-69, onde o saber é definido como gozo do Outro. Em O avesso

da psicanálise, ele incluirá a repetição na definição do gozo mostrando que nela

não se trata de memória, mas de uma necessidade imperiosa do sujeito de buscar

satisfação. Aqui, o saber entraria fazendo barreira ao gozo uma vez que este é

pulsão de morte, mas, por outro lado, o gozo também barra o saber pois o saber

não avança sobre o campo do gozo. O que aparentemente poderia ser entendido

como uma oposição, foi entendido por Lacan como uma juntura (1969-70/1992, p.

16), uma relação primitiva que já estaria justificada pelo processo alienação-

separação postulado no Seminário 11.

No momento do Seminário 17, ele propõe uma nova maneira, uma releitura

da função do significante tendo por base essa relação primitiva, levando-nos a

considerar que a cadeia significante em si já demonstra uma repetição, pois S1 se

repete em S2 e assim sucessivamente. Esse suceder sem estancamento é gozo.

Miller (1998-99/2004) lembra que a idéia de discurso promove a unificação da

alienação e da separação, ou seja, não há precedência do significante sobre o


114

gozo, o laço entre eles está desde sempre (Ibid., p.239). Ainda segundo Miller,

para fazer essa articulação foi necessário a Lacan pensar não só o sujeito, mas

também o ser vivo, ou seja, o corpo sexuado presente na libido freudiana. É

importante perceber que, com a significantização do gozo, Lacan não consegue

contemplar toda a libido freudiana, fica faltando justamente o sexual, o corpo

marcado por uma satisfação pulsional.

A questão avançada por essa concepção é que não há oposição entre

simbólico e imaginário, não sendo portanto necessária a significantização do gozo,

dado que a relação com o gozo é intrínseca ao significante, na medida em que

este faz a marca da libido no corpo. Este é o ponto de unificação da alienação e

da separação. Se, na primeira, o sujeito se faz representar por um significante

para outro significante - forma circular que marca o período da primazia do

simbólico -, através da teoria dos discursos Lacan inclui a separação no processo

de constituição do sujeito, fazendo com que o significante represente o gozo para

outro significante. Com essa fórmula, Miller (1999) ressalta a inclusão da pulsão e

de seus objetos na definição do sujeito (p.96). Ele justifica essa torção na

definição clássica de Lacan sobre o sujeito entendendo que nela já estaria

presente a definição de pulsão.

É interessante acompanharmos o argumento de Miller pontuando-o com o

texto de Lacan. Na formulação ‗o significante representa o sujeito para outro

significante‘, Miller (1999) já identifica S1 enquanto concebido como um enxame

de significantes, concepção posterior de Lacan. O S1 é uma multiplicidade de

significantes que podem representar o sujeito para um outro significante entendido

como único. Por outro lado, o S2 é o conjunto de significantes presentes no


115

código, ao qual falta, todavia, um significante que represente o ser do sujeito.

Assim, ele pode fazer com que S2 tenha o valor de S ( A ), impulsionando o sujeito

a buscar uma complementação. Utilizando-se desse raciocínio, o autor prova que

pelo fato dessa representação que possibilita ao sujeito identificar-se a um

significante não ser completa, ela tende a se repetir (1998-99/2004, p. 247). Desse

modo, a repetição é uma busca de representação daquilo que é irrepresentável, o

sujeito. Somando-se a isso a novidade trazida por Lacan no Seminário 17, onde

ele diz que o significante é um aparelho de gozo (p.46), podemos concluir que a

repetição é gozo.

Para Lacan, há um ser prévio a todo funcionamento significante, pois é o

significante ―que faz surgir ali o sujeito do ser que ainda não possui a fala‖

(1964/1998, p.854), ou seja, antes da alienação. O aparelho significante se

inscreverá nesse ser prévio. Portanto, a alienação faz surgir o sujeito no

significante do Outro. A separação, porém, difere da alienação, pois nela não está

em jogo o significante, ela opera sobre a falta que é perda de vida do corpo.

Podemos então dizer que o significante é a causa do sujeito, não há sujeito no real

a não ser representado por uma descontinuidade, por uma falta. Esta é a face

encadeada do objeto 'a', a face, por assim dizer, significante do objeto 'a'. Desse

modo, o sujeito se declina em duas formas da verdade (que nunca darão uma

descrição do real):

1- como morte: a incidência do significante no real é a mortificação do

sujeito;

2- como desejo: a morte do significante torna o desejo indestrutível, marca

o sujeito como barrado do desejo, fazendo com que o desejo entre em uma
116

memória do tipo cibernética ou eletrônica. Assim, a repetição se torna repetição

de um desejo morto.

Desde o texto A significação do falo (1958/1998), Lacan tentava articular o

gozo com o significante. Para tanto, usa o menos phi (-) como significação e o

grande phi () como significante. Mas, mesmo assim, restava algo da libido. As

considerações sobre o desejo não cobriam toda a libido freudiana, restava a parte

gozo da libido, a parte não simbolizavel. Já no Seminário 17, temos um gozo

interdito, porém com a possibilidade de ser dito nas entrelinhas. O gozo ―se

introduz na dimensão do ser do sujeito‖ (LACAN, 1969-70/1992, p.47) pela via do

objeto perdido, o que será operacionalizado na separação. O gozo é marca

significante porque sua origem é o traço unário. Se, ao entrar na cadeia, produz

gozo pela repetição, é na tentativa de reencontrar o objeto perdido evocado pelo

significante. Segundo Miller, esta é uma forma de Lacan esboçar a metonímia do

gozo: o significante veicula o sujeito barrado ( s ) e também o gozo como objeto

perdido, fundando a equivalência entre o sujeito e o gozo ( s = J). Tal leitura

autoriza Miller a dizer que o significante representa o gozo para outro significante.

Podemos deduzir então que o ser prévio à linguagem é um ser de gozo, ou

seja, é um corpo afetado de gozo. Este corpo sofre a incidência do significante

mostrando o ponto no qual foi marcado pelo significante, ―o ponto de inserção do

aparelho‖ (LACAN, 1969-70/1992, p.13). Portanto, o que é veiculado na cadeia

significante é o gozo.

Ao mesmo tempo em que o significante é marca de gozo, ele também

promove a sua anulação. O gozo é proibido e seu acesso se dá por um desvio,


117

não por uma transgressão, porque esse ―pequeníssimo desvio‖ ocorre no sentido

do próprio gozo (Ibid., p.47). O que Lacan quer dizer com isso? Ele quer apontar

para o fato de que o gozo é entrópico, ou seja, ele tende à degradação. O sujeito

busca o gozo para poder desperdiçá-lo. Assim, o gozo é um excesso que precisa

ser gasto. Pelo fato de o gozo ser inicialmente apreendido como perda – objeto

perdido –, é necessário que alguma coisa venha compensar. Esta é a função do

mais-de-gozar, a saber: tentar recuperar o gozo, razão pela qual ele se repete

(Ibid., p.48). Nesse Seminário, a mortificação aparece sob a forma do desperdício:

aquilo que era perda de vida em função da natureza sexuada virou perda de gozo,

uma perda significantizada. Justamente porque há perda, há suplemento: o mais-

de- gozar é o suplemento de gozo que se busca na cadeia significante. O gozo

que se produz na cadeia pouco tem a ver com a fala, ele tem a ver com a

estrutura, com aquilo que faz o aparelho da linguagem funcionar. Parece-nos que

ao dizer: o ser humano é o ―húmus da linguagem‖ (p.48), Lacan pretende enfatizar

o caráter de ser de linguagem do ser humano, marcando, porém, que é

justamente nessa dimensão do ser que o gozo se introduz.

Assim, o acesso ao gozo não se dá pela transgressão, pois, segundo

Lacan, ―não se transgride nada‖ (1969-70/1992, p.17). O gozo se dá pelo

desperdício produzido pelo significante – o significante desperdiça gozo -, o gozo

do blablablá é perda de gozo. Ao dizer: ―a verdade é irmã do gozo‖ (Ibid., p.64),

Lacan ressalta que a verdade é inseparável dos efeitos da linguagem, ela é irmã

do gozo interdito, ela só pode ser meio-dita, ela é a irmã querida da impotência

(Ibid., p. 166). Essas formulações evidenciam haver, nas considerações de Lacan,


118

um declínio da primazia do simbólico. A ordem simbólica, o significante, o Outro

são impensáveis sem a sua conexão com o gozo.

Miller (1999) chama atenção para o fato de que ao instituir o sujeito como

um ser de gozo, Lacan irá reconsiderar o final de análise. Antes, o final de análise

se dava pela via da fantasia, agora, ele incluirá a repetição em suas

considerações. Por essa razão, já nesse Seminário, o sintoma ganha um novo

valor, ele é repetição e repetição de gozo. A fantasia pode ser atravessada, o que

implica haver um mais além, ou seja, para além da fantasia há o sintoma, ou

melhor o sinthoma. Esta formulação, que só virá no Seminário dedicado a Joyce,

mostra o sintoma como uma constância de gozo que não se extingue, co m o qual

só restará saber o que fazer com ele.

Para podermos entender este ‗saber fazer‘, que abordaremos mais adiante,

precisamos primeiro perceber uma modificação surgida nesse Seminário com

relação aos objetos de gozo. O mais-de-gozar é uma modalidade do gozo que

supõe haver mais objetos com os quais se possa gozar do que aqueles

concernidos à pulsão. No Seminário, livro 7: A ética da psicanálise Das Ding

aparece como um objeto de gozo, mas, nesse caso, se trata de um objeto inteiro,

um objeto em si. Já no Seminário 11, o objeto 'a' faz com que o gozo seja parcial,

mas em estreita relação com a pulsão. Os objetos de gozo podem ser

enumerados como aqueles ligados às zonas erógenas, acrescidos do olhar, da

voz e do nada como objetos. O mais-de-gozar se estende aos objetos culturais,

uma vez que estes apontam mais decididamente para o caráter de desperdício do

gozo. Ele promove o gozo, mantendo, porém, a falta.


119

A ligação dos objetos de gozo com a cultura é de grande importância para

esta tese pois, como veremos no capítulo V, o sujeito contemporâneo faz dos

objetos de consumo equivalentes dos objetos pulsionais e por eles se deixa

comandar.

Os objetos da cultura se prestam muito bem a essa função que, mesmo sob

o signo do excesso, marca o sujeito como sempre em falta. Eles são

abundantemente ofertados pelo mercado, causando desejo e vendendo a ilusão

de que tamponarão a falta. Como a satisfação produzida por eles é fugaz, eles só

fazem promover mais e mais demanda, fazendo com que a repetição retome seu

percurso. A isso se refere Lacan (1969-70/1992) quando diz que a ―mais-valia é o

memorial do mais-de-gozar, é o seu (de Marx) equivalente do mais-de-gozar‖ (p.

76), dado que os produtos produzidos em abundância pela indústria forjam o mais-

de-gozar.

Temos aqui o gozo separado do corpo, na medida em que o objeto de gozo

não é necessariamente uma parte do corpo, nem uma função deste. Miller (1999)

nos orienta no sentido de entender que é preciso fazer um corte entre a libido e a

natureza para podermos conceber objetos culturais que produzem gozo, que

fazem, portanto, a conexão da libido com a cultura (p.100).

Tentamos mostrar, até aqui, como o gozo, ao se ligar ao significante,

apresenta sua face morta, ou seja, a relação primitiva do significante com o gozo

impunha sua mortificação. Na seqüência, examinaremos exatamente o contrário, o

que Miller denominou de inversão de perspectiva, inversão esta que caracteriza o

ultimo ensino de Lacan.


120

2- A vivificação do gozo:

Em O Seminário, livro 20: mais, ainda... (1972-73/1985), diz Lacan: ―a

realidade é abordada com os aparelhos do gozo‖ (p.75). Essa concepção é

fundamental para entendermos a inversão de perspectiva que caracteriza esse

Seminário e que nos orienta quanto à vivificação do gozo. Anteriormente, a

realidade era abordada pelo sistema significante. Será essa a inversão? Não nos

parece. Aqui, a inversão une de forma indissolúvel o significante com o gozo. Só

assim podemos entender que se o corpo é marcado pelo significante é porque o

significante é gozo.

A perspectiva da vivificação do gozo, que já vinha sendo elaborada desde o

Seminário 17, toma agora uma forma mais radical. O significante mortifica o corpo

porque o faz entrar nos desfiladeiros da linguagem. Mas, se entendermos o

significante como gozo, podemos perceber que essa nova articulação faz com que

esse corpo seja marcado pelo gozo produzindo um efeito que não é de

mortificação e sim de vivificação.

A vivificação aparece sobre a forma do mais-de-gozar que, como já foi

tratado anteriormente, estende a satisfação - antes restrita aos objetos pulsionais -

aos objetos da cultura. Isso equivale a dizer que há um prolongamento do corpo

no campo da cultura. Essa idéia não é nada estranha, já que podemos comprovar

a satisfação experimentada pelas compulsões atuais. Nelas, encontramos uma

satisfação que não advém nem da simbolização, nem das partes do corpo pelas

quais se poderia gozar naturalmente. Para sermos precisos, encontramos

justamente um prolongamento da satisfação corporal através dos objetos de

consumo: drogas, coisas, comida, etc.


121

Nessa perspectiva, não mais se trata de um gozo mortificado, apagado ou

reduzido pelo significante, mas sim de um gozo que vivifica, anima a vida, ainda

que nos dirigindo para a morte.

Examinaremos detalhadamente o Seminário 20, no qual Lacan se dedica

de maneira mais específica ao gozo, tomando-o como aquele que marca a virada

no seu ensino.

No capítulo dedicado a Jakobson, diz Lacan: gozar é ―gozar de um corpo,

de um corpo que, o Outro, o simboliza, e que comporta talvez algo de natureza a

fazer pôr em função uma outra forma de substância, a substância gozante‖ (p.35).

Diz também que a experiência analítica recai justamente sobre o corpo, porquanto

é dele que se goza pela via do significante. Ao dizer que o corpo do qual se goza é

um corpo que é simbolizado pelo Outro, Lacan está querendo ressaltar que o

corpo do qual se goza é um corpo marcado de gozo pelo significante. Tanto é

assim que, mais adiante, ele dirá que ―o significante se situa no nível da

substância gozante‖ (p.35) e que ele ―é a causa de gozo‖ (p.36). Portanto, o

significante produz gozo, acepção que já havia encaminhado no Seminário 17,

tomando, porém, neste momento, um outro valor. Essa é a sua tese central.

Seria importante esclarecer a diferença que se operou na concepção da

linguagem. No Lacan clássico, a linguagem tinha a intenção de comunicação, era

intersubjetiva, tinha um endereçamento. No Seminário 20, quando Lacan lança a

tese da alíngua, podemos notar que a língua não é uma estrutura primária, mas

sim alíngua. Ele entende que a linguagem é feita de alíngua, sendo esta última

anterior à primeira. Neste momento, Lacan considera a linguagem como uma

elocubração de saber sobre alíngua, afirma que o ―inconsciente é um saber, um


122

saber-fazer com alíngua. E o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa muito o

que podemos dar conta a título de linguagem‖ (LACAN,1972-73/1985, p.190).

O primeiro ponto a ser notado é que se a linguagem visava a comunicação,

ela implicava o Outro. Este já não é o caso de alíngua. Lacan se pergunta se

alíngua serve para o diálogo e responde que ―nada é menos garantido do que

isto‖(Ibid., p.189).

Ora, se a linguagem é uma elocubração de saber sobre alíngua e esta

última não serve para o diálogo, podemos então entender a definição proposta por

Miller para alíngua, a saber: é ―a fala antes de seu ordenamento gramatical e

lexicográfico‖ (1999, p. 101), evidenciando, assim, que ela não se presta ao

diálogo, não se presta à comunicação. Ela nem mesmo é uma estrutura, pois não

tem os elementos ordenados de modo a poder fazer combinações. Se a

linguagem visa o sentido, visa se fazer entender, alíngua, em contrapartida, não

tem essa intenção, ela é tão somente gozo.

Alíngua é formada por uma espécie de depósito daquilo que fica à margem

do código e que é reutilizado pelo ser falante de forma original. De acordo com

essa formulação, alíngua visa o gozo e não o sentido, pois o que a move é a

pulsão. No início do ensino de Lacan, a pulsão estava inserida numa rede onde o

querer dizer, a promoção da significação, impunha-lhe sempre a referência ao

Outro. Isto pode ser verificado no grafo do desejo quando a pulsão, ao passar pelo

campo do Outro, toma dele um significante para dar nome ao objeto de satisfação.

Por outro lado, sob o ponto de vista de alíngua, a fala – denominada por Miller de

'apparola' para diferenciar da fala da primeira clínica - não é dialógica, não se

endereça ao Outro, não supõe sequer um Outro com quem tente dialogar.
123

"Apparola é um monólogo" (MILLER, 1998a, p.72), uma fala que visa um gozo

autista e não à comunicação como forma de satisfação.

Paralelamente e, a nosso ver, de modo convergente, é também nesse

Seminário que Lacan propõe o axioma 'a relação sexual não existe', para apontar

a defasagem entre o gozo esperado e o gozo obtido, além de estabelecer

diferenças marcantes quanto à forma de gozo do sujeito masculino e do sujeito

feminino: "Não há relação sexual porque o gozo do Outro, tomado como corpo, é

sempre inadequado – perverso, de um lado, no que o Outro se reduz ao objeto 'a'

– e, do outro, eu direi louco, enigmático‖ (LACAN, 1972-73/1985, p.197).

A defasagem entre gozo esperado e gozo obtido depende diretamente da

consistência que se dê ao Outro. O gozo esperado é o gozo total, absoluto; o gozo

obtido é o gozo fálico, o melhor de gozo que podemos alcançar. Pelo viés da

diferença dos modos de gozo, Lacan toma por base as fórmulas da sexuação em

que o sujeito masculino está inserido na lógica do todo, enquanto o feminino está

na lógica do não-todo, mostrando que a diferença quanto aos modos de gozo é

um dos sustentáculos da não relação. Vamos examinar essas fórmulas e tentar

tirar as conseqüências para a nossa argumentação.

O capítulo VII, Letra de uma carta de Almor, se abre com um quadro onde

figura uma partição dos modos de gozo masculino e feminino. Esse quadro nos

mostra que todo ser falante está inscrito em um dos lados, e que a máxima

freudiana ―a anatomia é o destino‖ (FREUD, 1912/1977) é reinterpretada por

Lacan desta forma: ―Tais são as únicas definições possíveis da parte dita homem

ou bem mulher para o que quer que se encontre na posição de habitar a

linguagem‖ (p.107). Assim, do lado masculino, temos um sujeito que toma o pai
124

como exceção e, a partir dele, se ordena em relação à castração: há um que é

exceção ao ‗todos estamos submetidos à castração‘. Este um da exceção faz com

que o homem se escore em uma fantasia para se defender da castração. Nessa

fantasia, a satisfação advém de um objeto, é o que nos diz a fórmula da fantasia (

s ◊ a), fazendo com que o parceiro do sujeito masculino ocupe esse lugar. O gozo
masculino é regido pela lógica segundo a qual para todo homem há um objeto que

o complementa, o seu parceiro de gozo. Para Lacan, essa lógica faz com que o

homem só atinja ―seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disto, de ele

ser a causa de seu desejo‖ (p.108), tal como está representado no quadro pela

seta ligando o s ao 'a', do outro lado. No início do ensino de Lacan o Outro era o

parceiro privilegiado do sujeito. Nessa frase, todavia, ele diz que o parceiro do

sujeito não é o Outro, mas sim o que no Outro causa o desejo do sujeito, ou seja,

o Outro passa a ser meio de gozo e só toma o lugar de parceiro porque é gozo.

Faremos agora uma pequena digressão a fim de entendermos como o

Outro se torna meio de gozo para, depois, retomarmos as fórmulas da sexuação.

No texto O osso de uma análise, Miller (1998b) destaca que a inversão de

perspectiva apresentada no Seminário 20, ao redefinir o sujeito, redefine também

o Outro. Nesse Seminário, o sujeito antes definido a partir do significante como s ,


é agora definido como ser falante ou falasser. É importante entendermos que

nessa redefinição o sujeito está além do sujeito barrado porque, agora, em sua

definição, está incluído o corpo (p.89). Se o corpo está incluído, o gozo também

está. O Outro não deixa de ser o lugar do significante, porém a ele se acrescenta

a função de gozo. Os objetos ‗a‘ vêm substituir o Outro na forma de causa de


125

desejo, e é em função dessa substituição que os objetos são reclamados (Lacan,

1972-73/1985, p.171). A conjunção dessas duas concepções é a tese central do

Seminário 20: ―o significante é a causa do gozo‖ (p.36).

Retomando: do lado masculino temos o que Miller (1998b) chamou de gozo

fetichista, dado que ele visa o outro sexo como objeto parcializando, assim, o

corpo feminino (p.109). Isto impõe ao homem que seu desejo só se satisfaça pela

via fantasística, uma vez que apenas através dela o traço do objeto se mantém,

mesmo que encarnado por suportes variáveis. O caráter pouco variável do objeto

fetiche caracteriza bem o modo de gozo masculino, chamado por Lacan de gozo

do órgão (1972-73/1985, p.15). O homem não goza com a mulher que tem, mas

sim com aquela – ou parte dela - que está na sua fantasia. Na fantasia, todo

homem é fiel, pois ele goza sempre com a mesma mulher, independentemente do

fato de seus nomes variarem. O gozo masculino é limitado e circunscrito pela

fantasia.

Vamos agora examinar o lado direito do quadro das fórmulas,

correspondente ao modo de gozo próprio ao feminino. Nele, a mulher é não toda

submetida à castração, ou seja, o modo de gozo feminino não toma o pai como

exceção. Ao tomar um ponto como exceção os homens se ordenam a partir de um

universal. Em contrapartida, no caso da mulher não há um universal. Esta é a

conseqüência primeira da lógica do não-todo, a radical particularidade do gozo

feminino. Ao ser regida pela lógica do não-todo fálica, a mulher não tem um

elemento comum a partir do qual possa formar um conjunto. Esse é um dos

motivos de Lacan dizer que A Mulher não existe, grafando A Mulher para ressaltar

esse aspecto do feminino. Outro motivo dessa grafia é o fato de o gozo feminino,
126

por ser não-todo fálico, ter como direção o Outro, e não o objeto. É o que Lacan

escreve no lado feminino do quadro, aonde aparece o A , marcando que o Outro

é o parceiro da mulher. O Outro, este ―lugar onde vem se inscrever tudo que se

pode articular do significante, é, em seu fundamento, radicalmente Outro‖ (1972-

73/1985, p. 109). O S( A ) quer dizer justamente que o gozo feminino não tem

significante, ou seja, dele nada se pode dizer, razão pela qual a seta parte de A

para S( A ) mostrando essa condição de falta de significante. Assim, o Outro com

quem a mulher faz parceria quanto ao gozo é a sua própria falta e, ao buscar do

lado masculino o seu complemento, este toma o valor de falo simbólico, o  para

o qual a segunda seta se dirige. No que concerne ao gozo, esclarece Lacan, a

mulher se duplica, ou seja, por não ser toda fálica, ela se dirige ao S( A ), mas

―pode ter relação com ‖ (p.109). Por não poder ser todo significantizado, o gozo

feminino tem relação com A barrado, ele é não-todo inscrito na rede de

significantes. Todavia, como diz Lacan, ―falar de amor é, em si mesmo, um gozo‖

(Ibid., p.112). Desta estrutura resulta uma exigência de ser amada, na tentativa de

fazer com que seu gozo se inscreva no Outro. Nessa exigência Lacan reconhece

a forma erotomaníaca do gozo feminino, a saber: a exigência de amor, de ser

amada, é o modo como a mulher tenta se fazer consistir no Outro, dado que nele

não há significante para ela. Isto corresponde ao famoso e polêmico ―A Mulher

não existe‖. Como conseqüência, o gozo feminino é ilimitado pois, sendo demanda

de amor, nunca é suficiente, o que faz com que essa demanda retorne ao mesmo

ponto onde a exigência foi gerada, promovendo no sujeito feminino uma

desvastação.
127

Aqui, vale a pena fazermos um parêntese, visando esclarecer melhor de

onde vem a exigência de amor do sujeito feminino. No Seminário 20 (1972-

73/1985), Lacan localiza no supereu toda a exigência de gozo: ―Nada força

ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo de gozo: Goza!‖

(p. 11) No feminino, essa exigência se reveste de demanda de amor, situando o

gozo feminino na via do excesso, do ilimitado, já que o gozo é impossível. Assim,

quando essa demanda retorna, ela põe o sujeito feminino frente a frente com o

real como impossível de ser significantizado. Ao se deparar com o S( A ), que no

final da análise leva o sujeito a se identificar com seu gozo – tal como vimos no

capítulo da identificação -, a mulher se dá conta da inconsistência do Outro no

qual se apoiava para fazer consistir A Mulher. Sem esse apoio só resta a

devastação. Decorre dessa concepção a interessante e até divertida frase de

Lacan, ao dizer que para o homem a mulher é um sintoma, enquanto para a

mulher o homem é um desastre, uma devastação (LACAN, 1975-76/2005, p.101),

pois, ao dirigir ao ser do parceiro uma demanda que afirmaria a sua existência, ela

recebe de volta o impossível do gozo.

Para não nos estendermos demais nas considerações referentes às

fórmulas da sexuação, precisamos apreender o que delas emana sobre a nova

formulação do gozo marcada neste momento do ensino de Lacan. Entendemos

que só depois de considerar o significante como produtor de gozo é que Lacan

poderá reconhecer no feminino um gozo que está além do objeto. Esta nos parece

ser a base do raciocínio que o leva a entender o modo de gozo feminino como

erotomaníaco, ou seja, a mulher ama o amor – ―elas almam a alma‖ (Lacan,1972-

73/1985, p.114), formulando então que ―o amor visa o ser, isto é aquilo que, na
128

linguagem, mais escapa‖ (Ibid., p.55). O amor é um efeito de linguagem, portanto,

nos esclarece Miller (1998b), ―para amar é preciso falar; o amor é inconcebível

sem a palavra‖ (p. 112). A carência do significante promove a valorização da fala

como suplência à relação sexual que não existe. Disso decorre a exigência

feminina de que o parceiro lhe fale. De acordo com essa seqüência, para gozar, é

preciso amar, e o amor deve ser falado. Assim, a exigência feminina recai sobre a

fala de amor, não só a declaração de amor, pois a mulher prefere a fala, mesmo

que mal falada, ao silêncio. Desse modo, o não-todo se manifesta fazendo incidir

sua demanda no próprio ser do parceiro. Laurent (MILLER, 1996-97/2005) o

enfatiza ao dizer que a mulher acredita mais no juiz do que na lei (p.104). Esta é a

articulação da demanda de amor com o que poderia ser o equivalente da fantasia

no falasser feminino, o S( A ).

O gozo feminino vem comprovar a tese da vivificação do gozo, pois mostra

que se goza de um corpo porque ele é vivificado pelo significante. É o significante

que dá corporiedade ao corpo, isto é, que faz do corpo uma substância gozante. O

homem goza falicamente devido ao fato de ter um órgão no qual esse gozo pode

se encarnar imaginariamente, ao passo que a mulher, por não ter esse substrato

anatômico, prova que o corpo goza porque é vivificado pelo significante.

Dessa postulação sobre o gozo derivam alguns dos mais importantes

questionamentos sobre a prática clínica, que interessam especialmente ao que se

pretende nesta tese. No capítulo V trataremos dessa prática, mas gostaríamos de

apontar, desde já, quais são essas modificações. Um primeiro questionamento

incide sobre a interpretação. A questão é a seguinte: como operar sobre o gozo

pela via da palavra? Se o significante produz gozo, é natural que a interpretação,


129

como busca de significação, seja questionada. Isso enfatizará o corte e o ato

como artifícios clínicos para redistribuir o gozo.

Outra questão diz respeito à função do sintoma. Se a não relação sexual é

o que não cessa de não se escrever, como podemos pensar um final de análise

sem levar em conta esta impossibilidade? A tese aqui anunciada, mas que só irá

se formular no Seminário 23, é a do sinthoma como conjunção entre significante e

gozo, ou seja, a da identificação do sujeito ao seu próprio gozo, apontando para

uma nova concepção do sintoma, desta vez, como solução para uma análise.

Trataremos dessas questões na seqüência de nosso trabalho.

Capítulo IV
130

O osso do sinthoma

O presente capítulo tem como eixo Le Séminaire, livre XXIII: Le Sinthome,

de 1975/76, no qual Lacan introduz o termo sinthome, traduzido como sinthoma, e

faz do escritor irlandês James Joyce o paradigma para o que se convencionou

chamar de clinica da suplência. No percurso de seu ensino, o Seminário XXIII

marca uma concepção de clínica que já vinha sendo anunciada desde 1969/70.

Ele é o ponto chave para o entendimento da clínica atual dos sujeitos

contemporâneos e suas formas particularizadas de gozo, além de apontar uma

nova concepção do final de análise. Nesse capítulo, apresentaremos nossa leitura

desse Seminário, o modo como entendemos a articulação entre os termos sintoma

e sinthoma e, servindo-nos de um caso clínico, discutiremos como se dá a

coincidência do sujeito com o seu sinthoma no final da análise.

1 – Sobre o Seminário O sinthoma:

A leitura do Seminário 23 pode ser feita levando-se em conta algumas

questões distintas. Como estratégia de apresentação, trabalharei os pontos que

considerei mais importantes sob a forma de itens. Estes, muitas vezes, se

entrelaçarão, mas procurarei manter em cada item um ponto central a partir do

qual meu raciocínio irá gravitar.

1.1 - A foraclusão:
131

De um modo geral, podemos destacar duas questões que, se tomadas

separadamente, nos propiciam um melhor aproveitamento do texto. São elas: a

loucura de Joyce e a foraclusão.

A discussão em torno da loucura de Joyce percorre o seminário todo, sem,

todavia, concluir-se. Em alguns momentos, Lacan parece afirmá-la para, em

seguida, relativizá-la, embora jamais a tenha negado. A foraclusão, por sua vez, é

desenvolvida como uma vertente independente do questionamento sobre a

loucura de Joyce, ela versa sobre a foraclusão do Nome-do-pai e sobre a

foraclusão do real. Entendo que para Lacan, nesse Seminário, a foraclusão do

Nome-do-pai não define Joyce, aparecendo, contudo, como um dos elementos

que possibilitam pensar um modo peculiar de enlaçamento feito por ele.

Lacan se expressa de um modo surpreendente ao dizer que a escrita de

Joyce funcionou como uma compensação da foraclusão ‗de fato‘ do Nome-do-pai.

Esta idéia nos impõe duas deduções: a primeira, relativa ao ‗de fato‘ e a segunda

relativa à compensação. A clínica do sinthoma vem sendo entendida como uma

clínica que não trabalha com a idéia de déficit. Isso equivale a dizer que se, na

primeira clínica, a psicose era vista como um déficit no simbólico devido à

foraclusão do Nome-do-pai, na clínica do sinthoma a foraclusão estaria para

todos. Há realmente uma foraclusão que está para todos, mas seria ela a do

Nome-do-pai?

Lacan faz distinção entre uma foraclusão de fato do Nome-do-pai e uma

foraclusão que não é de fato do Nome-do-pai. No início do Seminário, Lacan já dá

essa pista. Ele se refere a uma falta primordial que não cessa de se escrever. Esta

falta é significada como uma falha, algo da própria estrutura do ser falante, o que a
132

inclui na categoria do necessário fazendo com que não cesse de se escrever.

Essa falha é real, ou seja, ela toca algo do real na medida em que é impossível de

ser modificada. Isto é diferente do conceito de castração como imaginário ou

simbólico, o que nos faz supor que tanto um quanto outro sejam interpretações.

Essa falha real não é uma interpretação, portanto, não pode ser qualificada nem

de imaginária nem de simbólica. A castração é da categoria do possível porque

pode cessar de se escrever pela via do semblante, já a falha real é necessária. Ela

é de estrutura, é a foraclusão do sentido no real, conforme afirma Lacan.

A foraclusão do sentido no real tem como estratégia de defesa a criação do

sinthoma, porém, parece-nos que em Joyce houve mais do que uma defesa à ex-

sistência do real.

O sinthoma é apresentado pela expressão ‗tudo menos isso‘, ponto sobre o

qual não se pode ceder, aquilo que não cessa, que não pode ser tratado pela

linguagem porque é êxtimo à cadeia significante. Isto difere do que acontece com

Joyce. Nele, o que opera não é o sinthoma como recurso à falha real, mas sim um

recurso à falta do Nome-do-pai, uma resposta à foraclusão do Nome-do-pai.

Joyce não faz exatamente um sinthoma, ele usa sua arte como estratégia

para suprir a contenção fálica da qual é vítima. A arte teria suprido a função fálica

que não lhe foi transmitida pelo pai.

Uma das formas de nó utilizada por Lacan a fim de localizar o que acontece

com Joyce é o nó de trevo. Nele, há um laço feito de um círculo que se redobra,

torna-se um oito e amarra o nó, não permitindo que este se afrouxe. Para Lacan,

esse é o laço do desejo de Joyce de ser um artista com o qual todos se


133

ocupassem por anos a fio, o que compensaria a falta da função paterna, isto é,

aquilo que situa o sujeito no mundo como fazendo parte de série geracional.

A escrita funcionou para Joyce como uma compensação da foraclusão ―de

fato‖ do Nome-do-pai, foi seu nome que veio em lugar dessa foraclusão,

enlaçando de um modo todo especial o nó de três que não é o borromeano,

também chamado nó bo. Mais do que como significante mestre, seu nome

funcionou como um nome comum fazendo a sutura necessária para que o nó não

desatasse.

O uso do nome próprio como um nome comum faz a distinção entre o

significante mestre que domina o discurso do inconsciente do neurótico e o nome

como suplência. No caso do neurótico, o nome próprio é um modo de cifrar o

desejo do Outro, cifração, todavia, inanalisável, por mais que se dêem sentidos

para ele. Segundo Lacan, o que se operou em Joyce foi da ordem de uma

invenção: tomar o nome próprio como nome comum. O escritor irlandês fez de sua

obra o seu nome, o que equivale a tomar o nome próprio por um nome comum, o

nome de sua arte. Para exemplificar este tipo de uso, Lacan faz uma joycianada

(irresistível)! Referindo-se ao seu cansaço e ao daqueles que o escutavam

acompanhando-o em suas complexas articulações, constrói um neologismo

utilizando seu próprio nome, a expressão en avoir sa claque (estar exausto) e a

onomatopéia han (expressão de um alívio ao final de um esforço): jaclaquehan

(p.89).

A foraclusão do sentido no real pode ser desmembrada em outras formas

de ‗não há‘, utilizadas por Lacan para falar do limite imposto ao ser falante a
134

respeito de um saber sobre o real. Uma dessas formas é o ‗não há relação

sexual‘, a outra é ‗não há A Mulher‘. O ‗Não há‘ significa não haver um sentido

para isso no real – a relação sexual e A Mulher. No real não há sentido porque

não há lei.

No capítulo VI do Seminário 23, Lacan utilizará a metáfora da luva calçada

pelo avesso para mostrar o modo peculiar de Joyce lidar com a não relação entre

os sexos e, em especial, com sua mulher, Nora. A imagem feita por Lacan é a de

uma luva da mão esquerda calçada pelo avesso na mão direita. Temos, assim,

uma total inversão, sem, contudo, impedir o encaixe: a luva fica pelo avesso, a

palma da luva fica no dorso da mão e o botão fica virado para dentro. Joyce e

Nora têm uma relação sexual, o que Lacan acha bastante estranho. Por isso,

compara Nora à luva pelo avesso que cabe muito bem em Joyce. O raciocínio de

Lacan é bastante sutil. Segundo ele, para Joyce, A Mulher existe e é Nora com

quem ele se enluva tal como a mão na luva invertida da metáfora, ou seja, Joyce

faz a relação sexual existir entre ele e Nora. Ela é a luva que lhe serve, lhe aperta,

o contém, mesmo que esse enluvamento tenha por base a repugnância, como

veremos mais adiante.

A escrita de Joyce, especialmente em Finnegans Wake, fornece outro

exemplo da maneira peculiar como esse escritor lidou com a foraclusão do sentido

no real. Nessa obra, temos palavras fraturadas, compostas e recompostas de

pedaços de várias línguas utilizadas de modo a não fechar um sentido. Muito pelo

contrário, o sentido fica tão aberto que se torna incompreensível, resultando ser

impossível determinar um sentido. Tudo, porém, é feito de maneira a capturar o

leitor que não desiste, mesmo diante de tantos obstáculos, mantendo-se preso
135

como a um jogo de enigmas, achando que se ler de novo, uma vez mais e mais

outra, conseguirá apreender tudo. Este efeito de gozo sobre o leitor é o mesmo

para Joyce. Todavia, para cada um as conseqüências diferem: inquietação no

leitor, efeito apaziguador no escritor. Seu modo de escrever desafia o limite entre

sentido e real, é uma escrita que não é para ser lida – expressão utilizada por

Lacan ao se referir a seus próprios escritos (1964/79, p.263) -, é uma escrita que

se aproxima do real. Jacques Aubert (2001, p. 175 e 177) ressalta a importância

da voz nos escritos de Joyce. Ao lermos em voz alta, principalmente Finnegans

Wake, percebemos a voz imprimindo uma leitura diferente daquilo que está

escrito. Assim, há incidência da voz como objeto pulsional empurrando o escrito

na direção do real. Ao final do Seminário, Lacan isola a função de fonação como

suporte do significante e lança, como questão, a diferença da significância

operada pela escrita e como efeito de fonação. Conclui, então, ser esta última que

transmite o nome (p. 76).

1. 2 - O nó:

Em vários momentos, Lacan justifica o uso do nó como um recurso que lhe

possibilita falar do real prescindindo do simbólico e do imaginário. Em sua

concepção, o nó está mais afeito ao real porque não se presta ao sentido. Desse

modo, ele poderá dizer que a apreensão analítica do nó é o negativo da religião,

uma vez que a religião trabalha na vertente do sentido, enquanto o nó é puro

artifício para se tocar o real.

O nó é o more geométrico de Lacan, em referência ao more geométrico

euclidiano – base de toda geometria euclidiana -, portanto, o nó é a base da


136

topologia lacaniana. O nó é uma geometria interditada ao imaginário, isto é, com o

nó Lacan tenta fazer uma transmissão e não um ensino, ao que ele vai completar

dizendo que o nó substancia a verdade, ou seja, substancia a verdade como meio-

dita, meio-entendida, aquela que toca o real. Só há verdade como buraco, é como

buraco na linguagem que se captura o real. A verdade tanto quanto o real são

impossíveis.

Não acreditamos no objeto, isto é, não há um objeto para o desejo, mas

constatamos que há desejo. É esta constatação que permite deduzir que o desejo

foi causado, portanto, que ele tem como ‗origem‘ um objeto, ou melhor, a

suposição de um objeto. O desejo de conhecer a causa do desejo encontra

obstáculos, o próprio desejo encontra obstáculos. A causa é insondável porque o

objeto foi, desde sempre, perdido. O nó encarna esse obstáculo em conhecer a

causa, ele encarna a impossibilidade quanto ao objeto. Ele permite conceber uma

relação entre um objeto suposto existir e um desejo suposto causado por esse

objeto, por um lado ele é abstrato, mas deve ser concebido como concreto, isto é,

a causa do desejo deve ser concebida como concreta, como tendo um objeto.

Nesse Seminário, Lacan fala de dois tipos de nó: o nó borromeano e o nó

trevo. Existem duas espécies de nós borromeanos - o nó de três e o nó de quatro -

, e duas espécies de nós de trevo – o dextrógiro que começa pela direita, e o

levógiro que começa pela esquerda.

Segundo Lacan, nó borromeano é aquele cujas três consistências – real,

simbólico e imaginário - estão entrelaçadas. A consistência é definida como aquilo

que se mantém junto. O nó borromeano de três é aquele em que os três registros


137

estão entrelaçados de tal forma que, quando um de seus aros se solta, os demais

se desprendem.

No nó borromeano de quatro há três aros soltos que serão enlaçados por

um quarto, o qual fará uma costura através dos buracos formados pelo encontro

dos outros três.

Ao introduzir o nó de quatro, Lacan articula a teoria dos conjuntos com a

teoria do sucessor para falar do nó borromeano: são três elos distintos que

precisam de um quarto que os enlace. Este quarto elo é o sinthoma, mas é

também o pai, uma das versões do pai, e ―o Pai não é senão um sintoma, ou um

sinthoma, como queiram‖ (p. 19). Temos aqui duas vertentes do pai: como

sintoma - ligado ao complexo de Édipo e ao Nome-do-pai - e como sinthoma, o

quarto elemento que dá estabilidade ao nó de quatro. Esta função não precisa ser

exercida pelo pai do Édipo, ou seja, pelo significante extraído na metáfora paterna.

De acordo com Lacan, o nó borromeano não é a norma para a relação das três

funções – real, simbólico e imaginário, reforçando assim a idéia de que o sinthoma

é uma modalidade de enlaçamento, não a norma. E o que será aqui a norma? A

neurose, talvez.

Lacan afirma que a passagem do nó borromeano de três ao nó de quatro

faz o nó borromeano desaparecer. O nó borromeano é caracterizado pelo fato de

que, nele, os elos se entrelaçam por uma trajetória de tal forma que ao se cortar

um deles, os outros dois ficam soltos. Há, portanto, uma interdependência das três

consistências. Em contrapartida, o nó de quatro se baseia na independência dos

três elos. Nele, os três elos – real, simbólico e imaginário – estão soltos. Eles são
138

mantidos juntos por um quarto elo chamado sinthoma.

O nó de trevo é composto de um só fio, ele é o suporte de todo sujeito. Esta

característica será usada por Lacan ao descrever topologicamente a

personalidade e a paranóia, dizendo que elas não têm relação porque são a

mesma coisa, fazendo, assim, uma crítica à sua tese de doutorado. O nó de trevo

supõe uma continuidade porquanto é feito de uma só linha, uma só consistência.

Essa característica é a mesma da paranóia na qual não há divisão, há unidade, há

uma única consistência. Contudo, a paranóia – o nó trevo - é o suporte de

qualquer sujeito. Isso nos autorizaria a pensar que o enlaçamento pelo sinthoma

incluiria todas as demais configurações subjetivas, exceto a paranóia. Lacan,

porém, dirá que nada indica que a personalidade seja paranóica, pois, na verdade,

o nó borromeano é uma cadeia composta por um número indefinido de nós de

três. Assim sendo, tal cadeia não constitui mais uma paranóia. Ora, como nó, o

trevo é uma linha contínua, mas, se tomarmos a trança subjetiva formada pela

cadeia de nós, constatamos haver nela um ponto limite: o sinthoma consiste nisso.

O que faz limite à cadeia não é a personalidade e, em comparação com os outros

três modos de amarração – a paranóia, a psicose paranóica e a personalidade –,

o sinthoma é especificamente neurótico (p. 54).

No nó borromeano de quatro as três consistências são equivalentes: o

imaginário é o suporte da consistência, o buraco é o essencial do simbólico e o

real ex-siste ao imaginário e ao simbólico. O real só tem ex-sistência ao encontrar

a interrupção do simbólico e do imaginário (p. 34 e 36). O imaginário enco ntra seu

limite na ex-sistência do real. Disso se conclui que precisamos rejuntar os três


139

termos na forma do nó. Por serem análogos, não se pode supor que sejam

contínuos. O nó borromeano de quatro é uma cadeia (p.73), e o mínimo a se

esperar de uma cadeia é a relação de um com os três outros. Portanto, é preciso

haver três suportes para o quarto de apoiar. Aqui, interessa-nos o fato de Lacan

dizer que os três são independentes e iguais, isto é, três são análogos e há um

quarto que difere. O sinthoma, então, não é da mesma ordem dos outros três,

razão pela qual Lacan faz um esquema onde inscreve todas as combinações entre

RSI, separando-as do sinthoma com uma barra e ressaltando a diferença deste

para os demais (p. 52).

Os três círculos se imitam e dão consistência ao imaginário, fazem buraco

no simbólico e participam do real porquanto o real ex-siste aos outros dois. Nessa

articulação, eles se compõem como um nó triplo, embora se mantenham livres por

haver um quarto termo que os une – o sinthoma.

1.3 - O real:

―Inventei o que se escreve como real‖ (p. 129). A escrita inventada por

Lacan para o real é o nó bo de três. O nó é uma cadeia e um de seus elementos é

o real. RSI são três elementos que fazem metáfora. A essa metáfora Lacan chama

de cifra, e diz que existe um certo número de modos de traçar as cifras, a mais

simples delas é o traço unário.

O que Lacan inventou não foi uma idéia, foi um modo de escrever o que

não pode ser absorvido pelo sentido. Ele o faz com o nó, escrevendo nele o real e

suas possíveis relações com o simbólico e o imaginário. É justamente por não


140

poder ser absorvido pelo sentido que o real tem valor traumático. O real é o

forçamento de uma nova escrita que não deixa florescer o sentido. Assim, o

forçamento da nova escrita do real faz metáfora, portanto, tem alcance simbólico.

As idéias florescidas dessa nova escrita não são do tipo das que florescem

espontaneamente. Estas são as que fazem sentido e que, portanto, são do

imaginário.

O real comporta o seu próprio buraco que subsiste no enlaçamento de real,

simbólico e imaginário. Neste enlaçamento, o buraco que se forma é o real. Não

há buraco no real, o buraco é no simbólico, é a cadeia significante que não dá

conta de dizer o real. A reta infinita é a melhor ilustração do buraco porque ela vai,

no infinito, formar um círculo. No atamento de dois círculos é que se forma um

buraco.

Entre o simbólico e o sintoma há um buraco que é falso. É pelo fato de o

sintoma se enganchar na linguagem que ele subsiste e que podemos ter uma

ação sobre ele através da interpretação, isto é, jogando com o sentido. O real não

é só o corpo, ele é o acordo entre o corpo e a linguagem, é desse acordo que

surge o sintoma.

A relação sexual não se inscreve no inconsciente. Segundo Lacan, temos

sobre ela um conhecimento enganoso. Há uma opacidade no sexual advinda

dessa não inscrição. Sobre isso, conseguimos apenas balbuciar. Balbuciamos

porque o sentido resulta de um campo formado entre o imaginário e o simbólico,

não se trata de um sentido sobre um sentido, ou seja, de um simbólico sobre

simbólico, de um Outro do Outro. Se a não-relação sexual está para todos, uma


141

análise é feita de suturas e costuras entre o imaginário e o simbólico. Este é o

saber inconsciente, um saber em forma de sintoma. Todavia, Lacan adverte que,

ao fazermos uma costura entre imaginário e simbólico, fazemos uma outra entre o

sintoma e o real: ―ensinamos ao analisante a fazer uma costura entre seu

sinthoma e o real parasita do gozo. Isto é o que caracteriza nossa operação‖ (p.

73). O sintoma seria um gozo que parasitaria o real. A direção do real é fazer uma

costura a fim de liberar o gozo desse parasita, da crença no sofrimento do

sintoma: isto seria o sinthoma. O j’ouïs sens – ouço sentido - é tornar esse gozo

possível, é suturar e costurar o sintoma com o real.

Essa costura não implica em confundir as instâncias do real, simbólico e

imaginário. Elas são distintas e devem ser consideradas em separado. Encontrar

um sentido não é produzir sentido sobre o sentido, é descobrir qual é o nó, e, ao

encontrá-lo, devemos costurá-lo bem, ponta com ponta. Essa costura é feita

através de um artifício, um artifício que forme uma cadeia borromeana – cadeianó

(p. 73).

Só se alcança o real pelos seus pedaços, por isso o uso de matemas. O

matema reacrescenta ao real, mas não dá conta do real. O real é sempre um

pedaço, um talo em torno do qual o pensamento borda (de bordar e de bordejar),

sem, todavia, se reatar a nada. O real é concebido como pedaços que aparecem

em emergências históricas. Em seguida, Lacan cita Newton como uma dessas

emergências históricas e diz que, quando se alcança um pedaço de real, isto

causa efeito e, se causa efeito, é porque se atingiu o real (p. 123).

O real está num campo distinto do sentido. O sentido está ali e o real lá, o

sentido é o Outro do real. Quanto ao simbólico, ele se especializa como buraco.


142

Mas, o verdadeiro buraco está entre simbólico e real, na interseção entre os dois

que não é recoberta pelo sentido, na parte da interseção em que só há real e

simbólico e onde se revela que não há Outro do Outro. No lugar do Outro do Outro

não há nenhuma ordem de existência, é o vazio.

O real é desprovido de sentido e pode se esclarecer pelo sinthoma (p. 135),

sendo o sinthoma uma ponta de real. A função do inconsciente não é sem

referência ao corpo, mas ela se funda numa interpretação. O real é impossível

porque é sem lei; o verdadeiro real implica a ausência de lei, o real não tem

ordem. Da mesma forma, a consistência não é dada pelo ponto comum, o real não

comporta o ponto comum, ele é feito de pedaços.

A verdade seria o verdadeiro real. O real se encontraria nas embrulhadas

do verdadeiro (p. 85), ou seja, ali onde há nó entre real e simbólico. O real é o

impossível, portanto, onde há sentido – simbólico – o verdadeiro se perfura, ele

escapa. O real é um espaço falado pois não há um espaço do real, há uma

construção verbal.

A metáfora só indica a relação sexual que, mesmo não existindo, pode ser

indicada pela linguagem. O fato de a relação sexual poder dizer alguma coisa

sobre o sexo não quer dizer que diga a verdade – isto engana. A metáfora não faz

a relação sexual existir. ―Uma bexiga pode passar por uma lanterna sob a

condição de se pôr fogo no interior‖ (p. 121), expressão utilizada por Lacan para

exprimir uma confusão, um engano, mas, neste contexto, ele a usa para falar do

real. Diz ele: ―O fogo é o real. O real põe fogo em tudo. Mas é um fogo frio‖

(p.121). E prossegue: ―O fogo que queima é uma máscara do real. O real deve ser

procurado do outro lado, do lado do zero absoluto‖ (p. 121). Assim, segundo
143

Lacan, o que ilumina a bexiga é o real, mas o que aparece é uma máscara desse

real. É um engano tomar alguma coisa pelo real visto que, por definição, o real é

impossível. O real é uma orientação e, de acordo com Lacan, essa orientação não

é o sentido. O sentido se dá na copulação entre o simbólico e o imaginário. A

orientação do real foraclui o sentido.

1.4 - A loucura de Joyce:

Lacan pergunta explicitamente: Joyce era louco? É interessante notar que

essa pergunta é precedida de outra na qual ele questiona a partir de quando se é

louco. Ele parece exaltar de tal forma a peculiaridade de Joyce – no uso da língua,

na forma de se relacionar com a mulher –, que chega a um ponto onde precisa

delimitar o que é peculiar e o que é ruptura. Responder a essa questão não é fácil

e, por isso mesmo, Lacan não o faz. Não acredito que Lacan não tivesse uma

opinião sobre isso. Afinal ele já vinha, em conferências e neste Seminário,

detectando pontos que demonstrariam a estrutura psicótica de Joyce. Parece-nos,

porém, que, neste momento de seu ensino, não importava tanto fazer um

diagnóstico do escritor, importava sim entender como ele conseguiu se manter

conectado com o mundo. Importava saber que recursos Joyce utilizou para não

surtar. Aqui, não estou considerando Joyce como um caso de psicose não

desencadeada, mas sim tentando manter esse diagnóstico em suspensão,

respeitando o que Lacan fez, até para poder seguir seu raciocínio. Provavelmente,

Lacan não tinha o menor interesse em entrar num debate já em vigor sobre a

loucura de Joyce, no qual muitos já haviam se embrenhado com resultados pouco

interessantes. Jung fez o dele ao afirmar que não haveria dificuldade em ―traçar
144

analogias entre Ulisses e a mentalidade esquizofrênica‖ (apud Laia, 2001, p.218).

Esse veredicto foi dado em um artigo que o discípulo de Freud escrevera sobre

Ulisses, portanto, baseado numa psicobiografia que Lacan tanto condenava. Cito

Jung para ficar entre os próximos à psicanálise. Segundo Laia, outros autores, de

outros campos, também fizeram considerações dessa ordem. Esse era um terreno

perigoso no qual Lacan não estava disposto a se arriscar eticamente. Na verdade,

não encontrei nenhuma frase taxativa sobre a loucura de Joyce na bibliografia do

Campo Freudiano que percorri. Assim, levantarei apenas os pontos nos quais

Lacan percebe que essa peculiaridade beira à ruptura.

Um dos pontos examinados por Lacan é referente à ‗inspiração‘ dos

escritos de Joyce. Para tanto, evoca um artigo seu junto com dois outros

companheiros, no qual trabalha a mesma idéia a respeito de uma paciente que

dizia que seus escritos lhe teriam sido inspirados ―no sentido forte do termo

inspiração‖ (LACAN; LÉVY-VALENSO; MIGAULT, 1931) Nesse trabalho, Lacan e

seus colegas destacam três atitudes da paciente que se identificam à estrutura de

todo delírio: a convicção absoluta do valor dos seus escritos, a perplexidade diante

do sentido contido nesses escritos e uma profissão de não conformismo indicando

uma missão a ser cumprida. É nesse contexto que Lacan pergunta: ―Joyce era

louco? Pelo quê seus escritos lhe foram inspirados?‖ (p. 78). E mais adiante: ―Ele

escreve isso. O que ele escreve é a conseqüência do que ele é‖ (p. 79). Nesse

contexto, pergunta a Jacques Aubert se Joyce se acreditava um redentor. Aubert

responde que em Stephen Hero há vestígios de que ele tenha se acreditado um

redentor. Lacan diz que isso não está claro e dá como exemplo o Retrato do

artista quando jovem no qual, segundo Lacan, Joyce não era um redentor, mas
145

sim um artista, o próprio Deus, um criador. Portanto, acrescentemos, se ele cria,

ele é um Deus, não um redentor, pois redentor é aquele que liberta, que redime, é

Jesus e não Deus, é o filho e não o pai. Com os nós, Lacan espera esclarecer até

onde Joyce cria.

A partir dessas considerações sobre a possível loucura, Lacan se dedica a

averiguar a relação de Joyce com Nora. Diz que é uma relação sexual estranha,

pois essa relação sexual existe (p. 83). Usa, então, a metáfora da luva calçada

pelo avesso, em que Nora é a luva, conforme já citada no início deste capítulo.

Aqui, o autor mostra a diferença entre a neurose e o que se dá com Joyce:

na neurose, não há relação sexual, um sexo não serve ao outro como uma luva;

com Joyce, sua mulher – Nora especificamente – lhe cabe muito bem. Dirá então

que, para Joyce, não existem as mulheres, existe só uma, Nora. Ele se enluva

com ela através da repugnância e a elege por depreciação. Nora é o nó de Joyce,

que, tal como definiu anteriormente, não serve para nada (depreciação), mas o

aperta, o suporta, lhe dá consistência. ―Entre Jim (numa referência a Jeems Joke,

modo como Joyce assina uma carta para sua editora) e Nora, as coisas não

andam quando há um pimpolho‖ (p. 84).

A luva virada é denunciada pelo botão que fica para dentro. Lacan se refere

a este fato quando diz que a maneira como se chama um órgão pode ter a ver

com a não complementaridade entre os sexos. O clitóris é um ponto negro, o

botão da luva virada com o qual uma mulher pode não querer se ocupar.

Para Lacan, imaginar-se um redentor é o protótipo da pai-versão, ou seja,

para ser um redentor (filho) deve haver um pai, uma versão do pai. Nora não é

uma versão do pai, Nora é um artifício de enodamento. Lacan considera a relação


146

pai-filho como a base do sadismo-masoquismo, mas desconsidera que haja uma

polaridade. Segundo ele, a reta infinita que penetra no toro precisa ser tomada

como uma realidade para que se considere o sadismo e o masoquismo como ativo

e passivo. A reta infinita que penetra no toro aponta para um dentro que é fora,

não havendo, portanto, polaridades.

Lacan não deixa de marcar a carência de pai em Joyce e, em vários

momentos, dirá que essa carência é compensada por sua obra, mas não no

sentido de uma frustração que se compensa com uma satisfação. Trata-se de uma

compensação através do nome que Joyce forja para si, que ao mesmo tempo é

seu e é sua obra.

Outro momento em que Lacan parece argumentar em prol da loucura de

Joyce, mas que devemos ter o cuidado de observar as sutilezas dessa

argumentação, é ao falar da esquizofrenia de Lúcia, filha de Joyce. O escritor

irlandês jamais admitiu que sua filha sofresse de uma doença mental. Para ele,

Lúcia era uma telepata, embora ela demonstrasse uma clarividência, pois percebia

o que viria a acontecer. Lacan entende que tanto a recusa em aceitar a doença da

filha, quanto a explicação dada por Joyce são, na verdade, um prolongamento do

seu próprio sintoma. Assim, por carecer da função paterna em si mesmo, Joyce

não pôde transmiti-la à filha e, neste contínuo pai-filha, Lacan identifica um

fenômeno caracteristicamente psicótico: a imposição de palavras (p. 95). Tanto o

pai quanto a filha sofreriam dessa imposição. Vale lembrar que Lúcia escrevia

poemas considerados geniais por Joyce, mas só por ele. O pai também conseguia

entender os intrincados raciocínios propostos pela filha. Disso Lacan deduz que o
147

sintoma de Joyce, que se fazia presente e continuava em Lúcia, eram as palavras

impostas.

De acordo com Lacan, a atribuição de uma faculdade especial à filha

demonstra que também nele essas forças se manifestavam, ou seja, também em

Joyce alguma coisa lhe era imposta. Lacan o argumenta dizendo ser muito difícil

não perceber, no esforço contínuo da obra de Joyce, que sua relação com a

palavra lhe era cada vez mais imposta.

Em função disso, Joyce quebra, dissolve e decompõe a linguagem por não

reconhecer nela uma identidade fonatória. É a falta de identidade fonatória que

possibilita a Joyce manipulá-la sem maiores constrangimentos. Ele a decompõe

no nível da escrita impondo uma deformação que, segundo Lacan, fica ambígua:

isso ocorreria por ele ter se livrado do parasita da linguagem ou por ter se deixado

invadir pelas propriedades fonêmicas? De qualquer forma, Lacan diz que o fato de

Joyce não reconhecer em sua filha uma doença é indicativo da sua própria

carência paterna (p. 97).

1.5 - O sinthoma:

O sinthoma é definido como o quarto elemento que ata o real, simbólico e

imaginário. O Pai é equivalente ao sinthoma porque tem a função de manter juntos

os três registros, mas, nesse caso, trata-se de um recurso simbólico. No caso de

Joyce, Lacan usa o termo sinthoma para dizer que, na carência de um pai, Joyce

fez do seu nome um sinthoma, ou seja, o recurso que utiliza para se enodar não é

simbólico, não é o Pai.


148

Se Pai é equivalente a sinthoma, podemos deduzir que o que se manifesta

em Joyce é uma das versões do pai. Nessa versão, o que o Pai- sinthoma faz,

aparece em Joyce através da sua arte. Com ela, Joyce ilustra e faz subsistir tanto

seu pai quanto ―o espírito incriado de sua raça‖ (p. 22). Fazer subsistir o pai

denota que ele não pode se servir do pai a ponto de prescindir dele, ele é o

incriado, o que denota que ele tem uma missão a cumprir. Não entrarei nos dados

biográficos de Joyce, mas indico a leitura de Aubert (Ibid.) para este fim.

Em um certo momento, Lacan diz que sinthoma é o termo adequado ao

caso de Joyce. Em nossa investigação sobre a possível loucura de Joyce, não

podemos deixar de notar que Lacan usa o mesmo termo para se referir a um outro

caso apresentado por ele, que chamou de psicose lacaniana, dizendo que o

referido caso ―começou pelo sinthoma palavras impostas‖ (LACAN, 2000, p. 95).

Isso nos levaria a pensar que o sinthoma não se especifica em ser neurótico.

Porém, Lacan não é simples assim. Seguindo sua investigação sobre essa

questão, mostra-se surpreso indagando como pode ser possível que não

tenhamos, todos nós, tal como Joyce, o sentimento de que palavras nos são

impostas, uma vez que elas são parasitas, funcionam como um revestimento para

o gozo, são uma forma de câncer que atinge o ser falante. Podemos deduzir que,

se todos somos parasitados pela linguagem, a solução de Joyce para isso não foi

a norma, foi uma solução muito peculiar. Seja por ter se livrado do parasita da

linguagem ou porque era invadido por ela, o que Joyce soube fazer com as

palavras lhe deu o suporte que faltava: seu nome.


149

O sinthoma se produz no lugar onde o traçado do nó comete erro. Em

Joyce, onde falta o pai, onde algo no traçado do nó falha, produz-se o sinthoma.

Onde há lapso do nó há sinthoma. Se, por um lado, Lacan declara que em Joyce

há sinthoma no lugar onde o nó falha, por outro diz: ―o nó, isso falha‖ (p. 98),

deixando entender que todo nó tem sua falha. Diz ainda que ―é a partir da

consistência do inconsciente que há montões de falhados‖ (id.).

Se pensarmos em Joyce, podemos levantar a hipótese de que seu nome e

sua arte estão no lugar onde o lapso se produziu, enquanto Nora e seu ego

enlaçam, respectivamente, o simbólico e o imaginário.

Lacan se diz embaraçado com Joyce ao constatar que, sendo ele um

sinthoma, nada há para ser analisado. Joyce faz mais que reencontrar, ele ‗sabe

fazer com isso‘ um sinthoma. É o que diferencia Joyce do neurótico uma vez que

este não acredita em Deus, caso acreditasse, não faria análise: Joyce é um

verdadeiro católico, aquele que tem uma verdade que não pode vacilar. Uma

verdade que não vacila aponta para uma solução de certa forma dramática, uma

forma de defesa contra o real que não é a solução neurótica da divisão subjetiva

que redundará em um sintoma.

Lacan separa o sintoma do simbólico, diferentemente de Freud que faz do

sintoma um símbolo do desejo recalcado. Para Freud, o inconsciente é um saber

falado, por isso ele é interpretável, pode ser redutível a um saber. O saber exige

dois suportes: o S1 e o S2 (p. 131). O S1 representa verdadeiramente um sujeito

como tal, isto é, representa o sujeito conforme a realidade, que não é o real.

Assim, Lacan distingue o real do inconsciente: o inconsciente não é o real, o


150

inconsciente é S2 e, como tal, não supõe o real. Lacan diz ter inventado o real, ele

é o elemento que pode juntar o simbólico e o imaginário. Afirma que o real é o seu

sintoma e que o sintoma freudiano, chamado por ele de elucubração freudiana,

está em segundo grau em relação ao real (p. 132). A concepção do real é a

resposta sintomática de Lacan ao inconsciente freudiano, mas é uma resposta

pela via do sinthoma, da invenção. No caso de Joyce, Lacan mostra que as

epifanias estão sempre ligadas ao real. Nele, as epifanias fazem o inconsciente e

o real se enodarem (p.154). Isto porque Joyce é desabonado do inconsciente

(1975-76 b/1986). Há um lapso entre real e simbólico que é suprido pelo ego,

conforme veremos mais adiante. No neurótico, o real e o simbólico compõem o

inconsciente.

O buraco formado entre simbólico e sintoma é falso. Todavia, uma vez que

o sintoma se engancha de algum modo na linguagem, ele é passível de ser

interpretado, desde que essa interpretação jogue com o sentido. Isso é possível

porque há simbólico no real. Assim, o real tem e não tem sentido, ele é corpo em

acordo com a linguagem. É neste campo onde há simbólico no real que a

interpretação pode atuar. A parte do sinthoma situada no campo do simbólico no

real é passível de interpretação. Contudo, há algo do sinthoma que é radicalmente

distinto do campo simbólico. Localizamos nessa parte o gozo resistente ao sentido

e com o qual devemos saber o que fazer, pois ele não pode ser extinto.

Há, para todos, uma falta primordial que na verdade é uma falha e não

cessa de se escrever. Ela é um buraco no real que constitui o próprio real. Não se

trata de um buraco no sentido da falta, mas sim no sentido da falha. Esta falha diz
151

respeito ao sentido, pois não há sentido no real propriamente dito. Lacan usa a

expressão ‗tudo menos isso‘ para falar desse buraco, um ponto limite à

interpretação, aquilo que não pode ser tratado pela linguagem porque é êxtimo à

cadeia significante e, precisamente por isso, não cessa. Isso que permanece fora

do campo interpretativo é o gozo, parte dele não é acessível pelo significante, o

que justamente é contemplado na concepção do sinthoma e do final de análise

como identificação ao sinthoma.

Lacan dá a entender que Joyce não faz propriamente um sinthoma por ter

precisado suprir com sua arte a função fálica da qual era carente (p.15). Ao

colocar a arte no lugar da função fálica ele defendeu o seu falo. Esta defesa foi

feita mediante uma interdição que se denuncia no fato de ele ter se concebido

como herói através de seu personagem Stephen Héro. Por que Joyce não se

declarou Stephen Héro como muitos loucos fazem ao se dizerem Napoleão? Algo

especial ocorreu com ele levando-o a criar, mesmo que sob o modo de um outro

eu, um herói ficcional, cujos vários dados biográficos eram os seus, como

suplência. Assim, não precisou delirar porque pôde escrever.

Se a psicanálise é um semblante para tratar o real, ela pode se utilizar da

artimanha do ego. O ego é uma artimanha que Lacan cogitou situar em torno de

um nó. Se tomarmos artimanha como um derivado do artífice, como sinônimo de

artifício, entendemos que o ego pode se prestar para enlaçar um nó. Talvez seja a

isso que Lacan chega no último capítulo, quando considera o ego de Joyce como

enlaçando os três registros, fazendo papel de sinthoma, de quarto elemento,

quarta consistência.
152

1.6 - O savoir-faire:

―Não se é responsável senão na medida de seu savoir-faire‖ (p.61). A obra

de Joyce é um savoir-faire com a linguagem, o que lhe permitiu nomear-se. Ser

um escritor que propôs enigmas à posteridade tem a forma de uma verdade

primeira, um axioma. Mais do que ser a primeira no sentido cronológico, essa

verdade diz que a verdade principal do ser é o valor que se dá àquilo que se é

capaz. Se não há Outro do Outro, como entender que há valor no que se faz? Não

há Outro para autorizar o gozo obtido com o que se faz, por isso somos por ele

responsáveis.

Segundo Lacan, todo sentido gravita em torno do sexo, ele é o grande

enigma do homem. Diante do ato sexual nos imaginamos ativos, nos imaginamos

conhecedores do sentido do sexual. Mas esse conhecimento é enganoso, como

vimos anteriormente, há uma opacidade no sexual proveniente da não inscrição

da relação sexual no inconsciente, tornando-o impossível de ser apreendido pelo

significante. Diante desse conhecimento enganoso, resta apenas a

responsabilidade como resposta à opacidade do sexual. Por isso, em relação ao

gozo, há somente responsabilidade, não produção de sentido. A produção de

sentido implica o Outro, a responsabilidade implica o Um.

O savoir-faire é um artifício diante da impossibilidade que caracteriza o real

como disjunto do sentido. O artifício é arte, habilidade, destreza, artimanha, um

modo singular de fazer alguma coisa com o que põe limite ao sentido. Lacan usará

o exemplo bíblico do oleiro e dirá que este cria para manter o buraco, o vazio que

forma o vaso. ‗Há o Um‘ significa que é desse vazio que se cria. O Um não é um
153

número no sentido contável, não evoca uma totalidade, nem uma identidade. ‗Há o

Um‘, mas não se sabe onde, pois ele não tem consistência, não é contável e nem

tampouco o traço unário, porquanto este último inicia uma série. O Um do ‗Há o

Um‘ é sozinho, não está encadeado. Ele não preenche o buraco da significação,

ele o mantém e, desse modo, possibilita a criação. Onde não há significação há

invenção, saber-fazer. O artifício é um fazer que nos escapa sob a forma do saber,

ele é um saber que se sabe ao fazer. Ele transborda o gozo que podemos ter dele,

o gozo medíocre do espírito. O saber-fazer está além do gozo obtido com o

pensamento.

1.7 - A escrita:

Há significante na escrita e há significante na voz. O que se modula na voz

não tem nada a ver com a escrita e muda o sentido da escrita. A voz como um

objeto 'a' possibilita que o significante se enganche no corpo. Há um efeito do

dizer no corpo que faz consoar (consonne) o corpo com o significante (p.17). Aqui,

Lacan utiliza a homofonia em consoar – com + soar - e extrai a voz como o som

que ressoa ou consoa no corpo. Em outro momento (p.144), Lacan dirá vai que os

significantes se engancham porque o dito é da ordem de uma dit-mention, e

desliza mention para mensionge (menção = mentira). Lacan usa essas palavras a

fim de, pelo equívoco, incluir a mentira no dito. Todo dito diz uma mentira, o que é

próprio da metáfora.

Lacan parece falar de dois tipos de escrita: uma do significante que se

sustenta no traço unário e outra do nó que se sustenta na reta infinita. Esta última
154

é uma escrita que tende ao real, é uma escrita para não ser lida, mas que tem

efeitos no corpo por sua base ser pulsional.

Na escrita de Joyce há um uso da linguagem que lhe serve de um modo

especial. Lacan destaca que nesta escrita o enquadramento sempre tem uma

relação de homonímia com a imagem. No exemplo do quadro de Cork (p. 147), há

uma homonínia entre Cork, a cidade, e cork a cortiça que enquadra a paisagem de

Cork. O conteúdo do quadro se equipara ao material do qual é feito. Assim, a

escrita tem um papel essencial para o ego de Joyce, é através dela que ele ganha

um contorno, tal como o quadro e seu conteúdo.

1.8 - O ego de Joyce:

A vida para a linguagem está em relação com as pulsões. Como vimos no

capítulo III, esta relação vivifica o corpo. O corpo tem buracos dos quais a

enunciação faz buracos abstratos. Lacan usa a surra que Joyce levou dos colegas

para situar um certo modo dele lidar com o corpo: ele não guardou magoa do

colega que o espancou de modo covarde. Segundo Lacan, ele metaforizou a

relação com seu corpo fazendo deste uma casca. Lacan pergunta se algum de

nós sabe o que se passa no seu corpo, apontando para uma disjunção entre corpo

e saber.

Ter seu próprio corpo como estranho é diferente de se ser um corpo. A

idéia de si como corpo remete ao ego e ao narcisismo nele implicado, fazendo

com que o corpo seja suportado como imagem. No caso de Joyce, Lacan percebe

que essa imagem não é o que conta para ele na relação com seu corpo: ele o

deixa cair. Isto, para Lacan, sinaliza que o ego de Joyce tem uma função muito
155

particular. Se, para Freud, tudo se apóia na função do pai, resta saber em Joyce

qual é a versão de pai e até onde ela está implicada nessa relação com o corpo.

Para pensar a relação de Joyce com seu corpo, Lacan construirá um nó bo

de três marcando nele um erro, um lapso situado no encontro do real com o

simbólico/inconsciente. Lacan se pergunta o que resulta desse lapso e responde

que é através dele que o imaginário foge, desliza. Com isso, a relação imaginária

não se realiza e o real não se enlaça ao inconsciente. Não se trata, porém, de

uma perversão, pois Joyce não gostou da surra (p. 149). Para entender isso,

Lacan apresenta a idéia principal do último capítulo, a saber: o ego de Joyce

tomou o lugar desse enlaçamento corrigindo, assim, a relação faltante. O ego,

então, seria o artifício usado por Joyce para restituir a relação do real como

inconsciente, restituir o nó bo.

A escrita de Joyce, então, demonstra o lapso do nó e sua recomposição

mediante um artifício. No seu caso, o artifício foi o seu próprio ego. O texto de

Joyce demonstra o lapso, mas não o mostra, não o evidencia, o que, para Lacan,

é a prova de sua autenticidade. Lacan compara o uso de enigmas pela

manipulação das palavras, típico de Joyce, ao seu próprio modo de transmissão,

ou seja, é pelo equívoco que algo se expressa, não pelos sentidos presumíveis. O

enigma está situado na relação entre a enunciação e o enunciado. Por isso, o

esclarecimento do enunciado não leva a nada, uma vez que o enigma está na

enunciação sob a forma de uma escrita, uma escrita que não é para ser lida

(LACAN, 1964/1979, p. 263).


156

Assim, Joyce é o escritor de enigmas e é este ‗estilo‘ que faz a soldadura

reparatória do seu nó bo. O modo como ele usa o enigma em sua escrita seria a

conseqüência da soldadura mal feita do ego.

Quando Lacan diz que Joyce é o sinthoma de Joyce, ele o afirma no plano

do nome próprio que toma função de nome comum. Já na parte final do

Seminário, é ao ego de Joyce, e não ao eu, que Lacan se refere para dizer qual é

o elemento que enlaça. O nome de Joyce lhe dá corpo, lhe dá consistência, mas

parece que é seu ego que compensa o lapso do nó.

1.9 - Considerações gerais:

Uma coisa é a loucura de Joyce, outra é a foraclusão. Joyce tem uma

foraclusão no lugar do Nome-do-pai e, para compensá-la, fez uma versão do pai

com a sua arte. Dizer que Joyce é psicótico parece-nos pouco, se pensarmos no

artifício criado por ele para suprir o Nome-do-pai com seu próprio nome. Todavia,

devemos distinguir o que Joyce fez daquilo que o neurótico clássico faz: a

metáfora paterna. Na primeira clínica lacaniana, não fazer a metáfora paterna

seria suficiente para caracterizar a psicose. Joyce, contudo, não se encaixa na

primeira clínica. Lacan lia e se interessava por Joyce desde seus primeiros

escritos. Entendemos, porém, que só depois de fazer as modificações conceituais

dos anos 70 é que ele pôde utilizar Joyce como um paradigma. Sob o ponto de

vista da primeira clínica, Joyce não é neurótico nem psicótico, pois não se encaixa

em nenhuma das duas classificações estruturais. Somente quando dispôs do

conceito de sinthoma, fruto do último ensino, Lacan pôde considerar Joyce como
157

um modo peculiar de amarração dos três registros e, assim, pensar mais

radicalmente o singular de cada caso. Este novo passo de Lacan nos serve para

pensar, tanto as novas configurações que o sujeito assume na cultura pós-

moderna, quanto o final de análise.

Sob a ótica do sujeito pós-moderno, o que se delineia na clínica é uma

certa ausência de conflito, acompanhada de uma dificuldade de estabelecer

conexões simbólicas, ou seja, de ligar S1 a S2. Por essa razão, os sujeitos não se

mostram sensíveis à interpretação pela via do sentido. A transferência não

aparece sob a vertente da suposição de saber porque o Outro não ocupa um lugar

de autoridade simbólica. O sujeito se mostra descrente do Outro, descrente de

que exista algo para além da realidade factual.

Sob a ótica do final de análise, podemos estabelecer o que se passa

durante uma experiência analítica que, em um certo momento, se mostra sem

sentido – o sujeito dessupõe o Outro de saber e toma seu próprio fazer como um

saber posto em prática. Joyce, na sua falta de demanda endereçada ao Outro,

exemplifica essa dessuposição de saber acompanhada do saber-fazer com seu

sinthoma – ele se identifica com sua forma de gozo e faz com ele um tipo de laço.

A foraclusão do Nome-do-pai continua valendo no último ensino para as

psicoses clássicas, assim como a metáfora paterna continua valendo para a

neurose clássica. Sob esse aspecto, o que o último ensino traz de novo é uma

expansão no ‗mundo‗ das classificações, onde o privilégio antes dado às

estruturas clínicas freudianas se transfere para a solução encontrada por cada um,

a fim de fazer frente ao real. Na particularidade de Joyce, temos um modo de


158

foraclusão que se apresenta como um lapso, um lapso no enodamento do

simbólico com o real. Acho interessante esta perspectiva do lapso pois ela nos

põe diante de algo que foi recomposto/composto sem a ajuda da análise. A partir

daí, a foraclusão do Nome-do-pai pode ser distinta na clínica para os casos de

psicoses onde há um franco desenlaçamento. O lapso, por sua vez, pode servir

como orientação na direção do tratamento possível desses casos. No caso de

Joyce, por exemplo, a consistência é dada pelo imaginário, cabendo ao ego essa

função.

No que concerne à foraclusão há, nesse Seminário, uma formulação na

qual ela não se restringe ao Nome-do-pai. Ela aparece como foraclusão do

sentido no real e está para todos. A foraclusão do sentido no real está na origem

do ‗não relação sexual‘ e de ‗A Mulher não existe‘. Dois pontos que marcam a

extimidade do real em relação ao simbólico.

Separando essas duas questões fica mais fácil entender porquê o sinthoma

é neurótico. O sinthoma não é qualquer tipo de enlaçamento, é o enlaçamento que

dá estabilidade aos três registros permitindo a equivalência entre eles. No caso de

Joyce, não há equivalência entre os registros, há uma predominância do

imaginário - Cork significa cork. Quando Lacan usa o termo sinthoma referindo-o a

Joyce, é para marcar que o famoso escritor fez com seu ego a função que poderia

ter sido desempenhada pelo sinthoma. É interessante notar que, nos últimos

capítulos, Lacan passa a usar o termo lapso para designar o erro de amarração

que é recomposto em Joyce, deixando então de usar a palavra sinthoma.


159

De qualquer forma, gostaríamos de ressaltar desse Seminário as seguintes

pontuações:

1- Joyce é psicótico? É, na medida em que precisou fazer uma suplência ao

Nome-do-pai que não teve função de amarrar os três registros. O que fez essa

função foi o ego. Não se trata, porém, de uma psicose clássica, desencadeada,

parece mais uma psicose tratada, estabilizada. Lacan suspeita que seus escritos

lhe fossem inspirados, mas não há fenomenologia da psicose, há estrutura.

2- Há foraclusão para todos, não a do Nome-do-pai. A foraclusão para

todos é a do sentido no real. A foraclusão do Nome-do-pai desabona o sujeito do

inconsciente. A foraclusão do sentido no real é o que funda o inconsciente. O

sinthoma faz suplência a essa foraclusão, não à foraclusão do Nome-do-pai.

3- A suplência à foraclusão do Nome-do-pai no caso de Joyce, serve para

pensarmos as neo-psicoses, ou as formas de estruturação que não são pela via

do Nome-do-pai: complusões, eventos de corpo, depressões. O Nome-do-pai não

é a única forma de fazer suplência à falta de sentido no real. Existem outras que

não privilegiam o simbólico, embora possam ser eficientes. Existem também

formas de amarração nas quais há um laço com o Outro, porém muito frouxo,

sujeitos que se pautam por identificações ad hoc, que não têm a potência

esperada de um S1.

4- Por fim, chamamos atenção para o fato de que se o sinthoma é o que dá

estabilidade ao nó, podemos nos perguntar se só há sinthoma ao final da análise.

Outra forma de indagar sobre o papel do sinthoma no início de análise é perguntar

o que amarra os três registros antes da análise. Podemos argumentar que sempre

há um sinthoma fazendo o enodamento e que, do momento em que esse


160

enodamento se torna problemático – por insuficiência ou por que uma nova

exigência mostrou sua fragilidade –, o sujeito, então, busca uma análise. Sim,

esse argumento é possível. Todavia, podemos ir um pouco mais adiante e tentar

pesquisar que relação há entre o sintoma com o qual se inicia uma análise, ou

seja, o sintoma da identificação ao Outro, e a identificação ao sinthoma com que

se termina uma análise. Sobre esse ponto, apresentaremos um ensaio de

resposta.

2 - A relação entre sintoma e sinthoma 2:

A distinção gráfica sintoma e sinthoma será mantida para acentuar os dois

momentos: de início e de final de análise.

Lacan (1975-76a/2005) indica que uma análise bem sucedida prova ser

possível prescindir do Nome-do-pai, desde que se saiba dele se servir. Ainda no

mesmo Seminário, diz ele: ―não se é responsável senão na medida de seu saber-

fazer‖ (p. 61).

Essas seriam as bases que possibilitam o salto do sintoma para o sinthoma.

Vamos examiná-las.

Ao servir-se do pai, sob a forma do saber articulado ao significante e do

sujeito suposto saber, pode-se dispensá-lo. Depois de percorridas as redes

simbólicas que determinam o sujeito, depois de isolado o ponto incurável pela

redução ao real, chega-se a um limite do saber pela via significante. Este limite é o

encontro com a consistência do objeto 'a', é um limite entre sintoma e objeto. A

2 Partes da argumentação que se segue foram apresentadas também em dois trabalhos já publicados. Ver MACHADO, 2004 e
2005.
161

partir desse ponto, o que restaria é da ordem da invenção. Poder servir-se do pai

aponta para uma mudança de posição do sujeito: enquanto na fantasia ele é

objeto de gozo do Outro, ao servir-se do Outro ele inventa um modo de gozo

próprio. A invenção dispensa o pai, dispensa a resposta do Outro ao ―Che vuoi?‖

porque o sujeito desistiu de buscar no Outro um saber sobre si mesmo, um saber

suposto no Outro. Mas, se a invenção dispensa o pai, foi porque soube dele se

servir, razão pela qual a invenção de que se trata não é ex-nihilo.

O sinthoma é uma invenção no sentido de um modo novo de uso, mas não

é uma invenção ex-nihilo. Assim como o diamante já está na pedra, e a escultura

já está no mármore, o sinthoma está no sintoma em potência, embora soterrado

pelos significantes-mestres, os enunciados do supereu. Depois de feito o trabalho

de redução, ele é novo em relação ao que anteriormente estava aparente, e não

no sentido de nunca ter estado ali e de ter sido criado pela análise.

Através desse raciocínio, propomos pensar a relação entre sintoma e

sinthoma usando a consideração aristotélica de causa eficiente. Dessa forma, o

sinthoma estaria incluído no sintoma, porém só em potência, faltando uma causa

eficiente, o trabalho de análise, para transformá-lo em ato, para atualizá-lo. O ato

engendra a potência que já estava lá: primeiro vem o ato e, a partir dele, surge a

potência. Sem ato, a potência não existiria. Assim, só podemos pensar no

sinthoma como algo produzido no final de uma análise, ou seja, só no final de uma

análise é que se pode reconhecer ali uma potência. Essa articulação é coerente

com a idéia de inconsciente tal como proposta por Lacan no Seminário 11. Nele,

Lacan diz que o inconsciente é ético e não ôntico (p. 37). Em outras palavras, no

que concerne ao inconsciente, não se trata de saber se ele é ou não, se ele tem
162

ou não existência, mas sim de que o ato cria o inconsciente. Quando o simbólico

emerge, ele cria o passado. Isso quer dizer que o passado não estava lá, só pôde

estar depois de lido.

A parte decifrável do sintoma, que tem a possibilidade de ser dissipada pela

interpretação, é a que forma as camadas mais externas e aparentes. A operação

de redução ao real as vai reduzindo ao seu osso, ao objeto 'a', ou seja, ao seu

ponto de fixação. Feita essa redução, caberia nos perguntarmos o que fazer com

isso que, mesmo reduzido, não se extinguiu. A resposta seria justamente o saber-

fazer com o sintoma.

Essa ‗solução‘ é sem dúvida paradoxal: como vamos lidar com o que restou

de toda operação possível com o significante pela via do saber? De que saber se

trata aqui? Miller (1998b) nos responde dizendo que não é um saber da ordem

significante, anterior ao ato. Trata-se de um saber que só se sabe ao fazer, depois

de feito. Utilizaremos a travessia do Rubicão 3 como modelo de ato: depois de

saltar o pequeno córrego, César não é mais o mesmo sem que, para isso, tivesse

de emitir uma só palavra, apenas saltar. Nesse caso, não havia dificuldade em

relação a saber como atravessar o Rubicão, uma vez que a questão em jogo era

responsabilizar-se pelo ato de atravessá-lo.

Tomemos o final de análise e seu inevitável resto de gozo. O que fazer com

ele? Se ele não pode servir ao discurso, ou seja, se ele não se conformou à

redução simbólica, ele é um puro fazer sem significação, é um resto de libido. O

que quer dizer puro fazer sem significação? É o mesmo que um saber sem Outro,

3 Rubicão era “o rio que separava a Itália da Gália Cisalpina. César o transpôs quando decidiu abandonar a legalidade para marchar
sobre Roma. A expressão “transpor o Rubicão” serve para designar decisão audaciosa e definitiva”. Ref. KOOGAN/
HOUAISS. Enciclopédia e dicionário, ilustrado. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan, 1995.
163

um saber que não se acumula, um saber que só é sabido em ato. Justamente por

não se dirigir ao Outro é um saber-fazer, um saber que não é antecipado por uma

suposição, não é prévio ao ato.

Do ponto de vista clínico, os depoimentos de passe podem nos fornecer os

elementos necessários para demonstrar como essa passagem se dá e quais são

as condições para sua ocorrência.

Utilizaremos o matema S1-a que escreve esse saber-fazer, escreve o

sinthoma. Lacan se serviu de Joyce para entender isso. Hoje, contudo, dispomos

dos testemunhos de passe que, em alguns casos, nos auxiliam nesse

entendimento.

Nossa proposta é examinar um desses testemunhos, o de Mariage (2002 e

2003), e verificar como se dá essa conjunção ao final de uma análise. Tentaremos

também aproveitá-lo para perceber qual é o manejo da transferência que orienta

um tratamento na direção do real e cujo efeito incide duplamente no significante

mestre e no objeto. Antes, porém, devemos sublinhar que a parte do relato

privilegiada por nós diz respeito apenas ao terceiro tempo de uma experiência

analítica que durou mais de 25 anos, com dois analistas diferentes. Como

acontece em todo caso clínico, daremos crédito ao relato, sem, todavia, fazer dele

um manual do bem-fazer, utilizando-o apenas para demonstrar nossa hipótese.

Nos textos produzidos a partir de seu relato de passe, Mariage credita ao

ato do analista a separação entre as duas vertentes do objeto 'a', que, no seu

caso, era a voz: na via do sentido e na via do gozo. ―É o ato do analista, que

escreve, que permite separar o sentido do gozado, a sentença e a satisfação. Seu


164

uso do significante mestre e seu modo de gozo foram então modificados‖ (2003, p.

27).

Mariage relata uma frase de seu pai que lhe foi evocada após ouvir uma

frase do analista durante um seminário deste. A frase do analista foi: ― as marcas

de palavras, nós as encontramos... nós as esquecemos onde sempre nos

lembramos delas... quando o sujeito é absorvido por sua marca, ele não se

distingue mais aí‖. A frase do pai foi: ―O trabalho é uma punição do bom Deus‖

(2003, p. 26). No decorrer da sessão analítica, a frase lembrada foi comunicada ao

analista. Justo naquele momento, o analista tomou a frase, fez incidir sobre ela um

equívoco e a escreveu dizendo: ‖Ora veja! Eu aposto que todos os seus filhos

trabalham feito loucos!‖. Em seguida, levantou-se, pegou um caderno e lhe disse:

―Repita isso. É formidável, vou anotá-lo‖ (2002, p. 29).

Ao sair da sessão ela se lembrou do restante da frase do pai: ―o trabalho é

uma punição do bom Deus, não sou eu que digo, está escrito‖. Percebeu também

que, até então, só havia entendido essa frase como um estímulo ao trabalho

ligando-o ao prazer. Vale destacar que, curiosamente, essa significação é

contrária ao sentido literal da frase, pois nela está dito que o trabalho é uma

punição. Isso nos possibilita observar que, ao tomar um significante do Outro, o

sujeito faz incidir nele uma significação própria, fruto da fantasia, na qual já está

incluída a defesa contra o real do gozo. Nesse caso, a face de horror e

condenação foi denegada e utilizada como defesa contra o real, defesa que caiu

pela ação analítica. A defesa atuava contra o gozo pulsional, ela sempre atua

contra a satisfação, essa é a face de horror. O que faz a função de defesa contra a

pulsão é a fantasia.
165

Vamos nos permitir uma breve digressão a fim de ressaltar que a ação do

analista não partiu de um único registro. A enunciação foi sustentada por uma

ação, o que equivale a dizer que o corpo do analista estava em jogo dando

consistência, peso, valor, ao ato analítico. É o que podemos chamar de presença

do analista, um dos nomes do desejo do analista. Discutiremos essa questão no

capítulo V.

Retomando: o ‗está escrito‘ reenvia a analisante a um pesadelo que havia

sido levado para a análise logo depois de ela ter faltado a duas sessões: ―seu

irmão olha na direção do pé de uma árvore – uma árvore bem particular, cujo fruto

era proibido por seu pai. Ele lhe mostra um cadáver impossível de identificar. Ela

chama seu pai para que identifique esse cadáver. Mas ele não pode ajudá-la

porque havia perdido a voz‖ (2003, p. 26).

A frase do pai que fora extraída do Gênesis – cabe ressaltar que essa

pessoa é muito particularmente ligada à religião – soma-se ao texto do pesadelo:

―Por ter querido saber, por ter provado o fruto proibido da árvore, ela descobre o

que não queria saber, ou seja, a voz da sentença de seu pai que condena o

trabalho e sua identificação à criança morta, o cadáver no pé da árvore‖ (id.).

Segundo a autora, a frase do pai vinha recobrir um gozo sem limites

delimitando, ao mesmo tempo, a borda entre gozo e sentido. Com o ato analítico,

ela considera que as duas faces da sua relação com a voz se separaram. Uma

face é a da voz portadora de sentido e a outra é da voz como objeto de gozo.

Como portadora de sentido, a voz enunciava uma sentença, funcionou como S1

marcando seu destino, organizando suas escolhas e preenchendo o vazio do ser.

Como gozo, a voz escutada lhe propiciava satisfação pulsional, tanto na relação
166

com o pai quanto com o analista. Aqui, no que concerne ao conjunto dos

significantes, o objeto se mostra em extimidade: se o objeto não é um significante,

não é também sem relação com ele. Neste ponto, podemos observar que a

fantasia estava mascarando o gozo pulsional: trabalhar com crianças psicóticas

tinha sido sua escolha pela via da identificação ao gozo do Outro – a criança

morta, que não fala.

Segundo Mariage, depois da operação analítica ela, para quem a sentença

―O trabalho é a punição do bom Deus‖ funcionava como o S1 do discurso do

inconsciente/mestre, faz do trabalho para a Escola algo diferente de uma punição.

Isso decorre da articulação desse modo novo de usar o S1 com o objeto de gozo

‗voz‘. Nesta articulação, é a sua própria voz que se coloca no lugar vazio do objeto

'a'. Da voz do Outro, que só lhe restava ouvir, ela passa a falar fazendo

transmissão. Agora, a voz que se escuta é a dela. A voz escutada era o objeto de

gozo da fantasia, a voz falada é a voz da pulsão. Antes, esse sujeito estava

identificado ao gozo do Outro ( s ◊ a). A partir da separação ele está identificado

ao sinthoma (a→ s ).

Temos, assim, os elementos S1 e 'a'. Resta-nos saber o que foi feito deles,

isto é, que modificações sofreram diante da separação ocorrida em relação ao

objeto. Sob o ponto de vista de S1, o trabalho deixa de ser uma punição e a voz,

como borda do vazio, passa a ser a sua no trabalho de transmissão. Vemos, aqui,

a coalescência de S1 e 'a' comprovada pela modificação que se opera em 'a',

modificando simultaneamente S1. A ação analítica incidiu em 'a', que, pela

distinção da sua dupla vertente, pode se articular a S1.


167

Neste ponto, abriremos outro parêntese para destacar do que se trata

quando falamos de uma orientação pelo real. Ao relatar ao analista o pesadelo da

criança morta ao pé da árvore, momento em que seu pai aparece sem voz, a

autora frisa não ter sido o fato de não poder identificar a criança que a acordou. O

analista concorda com ela e direciona a investigação para o objeto, diz ele: ―é,

antes, o fato de seu pai não poder mais lhe falar, ter perdido a voz, que é

insuportável para você‖ (2002, p. 29). Essa passagem nos evidencia a postulação

de Lacan a respeito da interpretação. Para ele, o analisante deve dizer qualquer

coisa, porém, a interpretação não pode ser qualquer uma (LACAN, 1964/1979, p.

237). A interpretação precisa tem de ter como mira o objeto para não se perder

nos meandros do imaginário. A identificação com a criança morta, certamente não

é qualquer coisa para essa analisanda, tanto é assim que isso a direcionou

profissionalmente. Todavia, cabe ao analista não perder o rumo do real. Este pode

ser outro nome para o desejo do analista.

Podemos então concluir que a voz própria, falada, no trabalho de

transmissão, constituiu o sinthoma através de um saber-fazer, um artifício de

enlaçamento dos registros real, simbólico e imaginário. Assim, o sinthoma toma a

posição de ex-sistência em relação ao sentido, o objeto de gozo isolado do sentido

se acopla ao S1 transformando-o. A relação de 'a', como a voz escutada, S1,

mostra o que foi feito com o gozo no final da análise. Em S1, o trabalho estava

ligado ao supereu paterno na forma da punição, um sentido advindo da voz da

consciência. Agora, o sujeito faz do trabalho uma satisfação, dirigindo esse

trabalho ao Outro-Escola. Em 'a', a voz do Outro era ouvida, enquanto a sua era

calada; agora, é a sua voz que se faz ouvir como ser falante, agente da voz. Isso
168

foi possível porque a destituição do sentido do Outro produziu como efeito um

significante ímpar, capaz de criar um real que se sustenta por si mesmo (COELHO

DOS SANTOS, 2004).

Só há uma garantia de não se andar a esmo, a saber, ter um horizonte. O

analista não atira para qualquer lado, ele visa um certo ponto que orientará sua

ação. Isso vale para todo o percurso de uma análise, não só no final. A prática

psicanalítica, seja ela pura ou aplicada, tem como orientação o real. É o desejo do

analista que sustentará essa direção. É ele também que irá ‗saber-fazer‘ com cada

paciente visando esse ponto no horizonte.

O saber-fazer com cada paciente exclui a prática analítica de qualquer

standard e, no nosso ponto de vista, nos permitirá abordar as questões relativas a

essa prática nos dias atuais. Seguiremos, então, discutindo as características do

Outro na atualidade e a orientação possível para fazer frente aos desafios que nos

são colocados pelas novas subjetividades.


169

Capítulo V

O sujeito contemporâneo e sua clínica

Algumas questões devem ser levantadas para que possamos situar o que

estou chamando de sujeito contemporâneo. Nesse sentido, parece-me importante

fazer alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, essa denominação está referida

aos estudos sobre a contemporaneidade empreendidos pelos autores mais

ligados à sociologia, devendo-se a esses estudos muitas das considerações que

se seguem. Em segundo, optei por ater-me às incidências clínicas desses sujeitos,

tendo em vista as perspectivas abertas pelo último ensino de Lacan para

pensarmos uma prática que tente atender às novas demandas por eles

formuladas. Neste caso, levo em consideração a dificuldade da psicanálise em

estar à frente de seu tempo, pois ela só pode lidar com aquilo que se apresenta a

cada vez, não lhe sendo possível a previsão.

Nosso ponto de vista parte da idéia de que a interpretação de sentido é

inócua nas configurações subjetivas. Freud teve sucesso em sua empreitada pelo

fato de ela ter se dado num certo momento cultural em que seu discurso causava

surpresa. Não podemos afirmar que o mesmo aconteça hoje. O ―Freud explica‖ foi

de tal forma banalizado que, em geral, os sujeito já chegam para análise com

explicações prontas sobre seus males, tornando estéril a intervenção do analista

que se paute pelo modo freudiano de interpretação. Temos observado também um

crescimento da incidência de sujeitos que vem à análise sem nenhuma demanda

de saber, apresentando-nos, quando muito, uma demanda de gozo. Pensando

assim, nos alinhamos aos estudos empreendidos pelo Campo Freudiano,


170

capitaneados por Jacques-Alain Miller, onde a prática psicanalítica está sendo

pensada visando esses sujeitos.

Outro ponto a ser ressaltado, apoiando-nos também nos estudos

sociológicos, é que somos obrigados a reconhecer a transformação sofrida pelo

Outro da cultura incidindo diretamente na estruturação subjetiva e na demanda de

análise.

Tendo isso em vista, tentaremos localizar o discurso da cultura ao qual

essas novas conformações subjetivas respondem, que Outro sustenta essas

subjetividades e qual é a clínica que pode responder a elas.

1 - O discurso da civilização contemporânea:

Em nossa investigação sobre a civilização atual, orientamo-nos pelo texto

de Jacques-Alain Miller intitulado Uma fantasia (2004). Nele, o autor se pergunta

desde quando estamos desbussolados. Esta expressão tem sido usada para falar

da falta de um universal que ordene a esfera social e, conseqüentemente, dê um

norte às identificações subjetivas. Segundo esse autor, estamos desbussolados

desde que a moral civilizada foi abalada – tema explorado por Freud nas suas

reflexões sobre a cultura. Miller considera que a psicanálise contribuiu para a

dissolução da moral, pois, se antes a moral inibia e regulava o gozo, depois das

descobertas freudianas do desejo recalcado, e fomentado por elas, passou-se a

considerar o gozo como um direito. De acordo com Miller, a crueldade atribuída à

moral vitoriana talvez respondesse a uma fenda que se já ampliava na civilização.

Foi esta fenda que Freud chamou de desejo recalcado. Para tentar manter a moral

e não deixar proliferar a fenda, a era vitoriana exacerbou suas exigências como
171

uma formação reativa à ameaça que já pairava sobre ela. Se, na era vitoriana, a

fenda já constituía um sintoma, Miller irá supor o desbussolamento moral como

sendo, portanto, anterior a ela. Sua suposição é de que essa fenda seja

decorrente do advento da indústria, quando, não mais regulados pela natureza, o

homem passou a lidar com a multiplicidade dos artifícios. Em outras palavras: se

antes o real era a natureza, aquilo que os céus mandavam – chuvas, ventos e

tempestades –, agora o real passa a ser pouco a pouco devorado pelos artifícios,

pelos produtos construídos pela indústria – os guarda chuvas. Desse modo, ele

considera que a natureza foi substituída, como uma metáfora, pelo real.

Do nosso ponto de vista, entendemos já ter havido aqui uma modificação

quanto ao real de que se trata. Antes, para Freud, o real era regido por leis

naturais. Depois, passou a ser um real sem lei, isto é, um real sobre o qual não é

possível previsão, que impõe ao homem uma contingência desregulada.

A revolução industrial marcou uma virada importante na civilização

ocidental. Todavia, não devemos esquecer que se essa revolução foi possível, ela

se deveu essencialmente ao advento da ciência. Assim, acrescentaríamos à

reflexão de Miller o fato de que a substituição da agricultura pela indústria foi

acompanhada da proliferação e utilização prática dos conhecimentos científicos.

Coelho dos Santos (2001), em seu livro Quem precisa de análise hoje?, faz

um importante levantamento da incidência da ciência na cultura, apontando as

conseqüências decorrentes desse fato. Sobre esse assunto, destacamos a tese

da autora segundo a qual a foraclusão de Deus do mundo se deu pelo advento da

ciência, e foi nesse rastro que as revoluções modernas puderam acontecer. A

modernidade se caracterizaria por esse corte promovido pela ciência, tendo dele
172

decorrido a proclamação dos Direitos do homem. O sujeito da ciência é o sujeito

do direito jurídico, o sujeito livre e igual, produto da racionalidade científica. A

autora articula a declaração ―todo homem é livre e igual‖ à suposição aristotélica

―todo homem é racional‖, visando mostrar que o corte que promoveu a igualdade

entre os homens tem o mesmo porte daquele que promoveu o declínio do mito. A

igualdade é a base do Estado moderno, no qual a religião passa a ser uma

escolha pessoal, apresentando, porém, como seu avesso, o fato de que ―o espírito

do cristianismo se torna a base filosófica e moral do Estado moderno‖ (Ibid., p.

184). O espírito cristão promove a igualdade e a liberdade de crença calcada em

uma exceção – Deus. Desse modo, o espírito cristão que se abre para múltiplas

crenças não abdica de uma – a de que há uma exceção. Mesmo com a

declaração nitzcheana de que Deus está morto, podemos verificar a ascensão de

um lugar com força simbólica que, se por um lado denuncia a morte do Pai, por

outro dá consistência ao lugar de exceção. É esta a operação cultural que dá ao

pai o estatuto de sintoma.

Retomando ‗a fantasia‘ de Miller, o que hoje se poderia considerar como

bússola é o objeto 'a'. Para desenvolver essa idéia, o autor proporá inscrevê-lo no

lugar de dominância no esquema dos quatro discursos. Temos, então, a  s , ou


seja, o objeto ocupa o lugar de agente do discurso indicando que o sujeito

contemporâneo se orienta a partir do objeto, ou melhor, como diz Miller, o objeto

se impõe ao sujeito desbussolado. Disto resulta que na busca por este objeto, já

definido por Lacan como objeto mais-de-gozar, o sujeito ultrapassa inibições e faz

da busca pelo gozo a sua causa.


173

O mais-de-gozar é um objeto cultural, como nos diz Lacan no Seminário 17

e como já vimos no capítulo III, com o qual o sujeito tenta resolver o vazio próprio

ao ser falante; ele funciona como semblante daquilo que o sujeito se supõe em

falta. A diferença em relação ao que ocorria com o neurótico freudiano está no fato

de que os sujeitos de hoje se sentem no direito de gozar de todos os objetos,

enquanto o neurótico freudiano se sentia culpado em querer tudo.

A tese de que a agricultura foi substituída pela indústria mostra aqui a sua

conseqüência: são os objetos da indústria, a aquisição deles, que dirigem o sujeito

contemporâneo, fazendo com que o sujeito de direito da modernidade se

transforme no sujeito de direito ao consumo da contemporaneidade. Como o

objeto está em posição de dominância, o que seria um direito virou um dever.

Lembremos que no discurso do mestre o S1, em lugar de dominância, aponta para

o parentesco existente entre ele e o supereu. Desse modo, temos um sujeito que

funciona sob o imperativo: Goza!. O direito ao gozo acabou por se transformar em

obrigação de gozar.

A passagem do direito ao imperativo de gozo evidencia a outra face do

direito. Zizek (2004) faz uma interessante demonstração do que ele chama de

vínculo negativo entre os Dez Mandamentos e os direitos humanos. Segundo esse

autor, os direitos humanos são os direitos a violar os Dez Mandamentos. Em

seguida, ele nos mostra como cada um dos direitos do homem dá permissão à

violação de um mandamento: o direito à privacidade dá direito ao adultério, pois

ninguém pode se meter na vida do outro; o direito a buscar a felicidade e possuir

propriedade privada dá direito ao roubo e a explorar os outros; a liberdade de

imprensa e de opinião dá direito a mentir; o direito de possuir armas dá o direito de


174

matar e o direito à liberdade de crença dá direito à adoração de falsos deuses

(p.103).

Retornando à argumentação de Miller (Ibid.), no discurso da civilização

atual o S1 se colocaria no lugar da produção, este significante faz coincidir o

sujeito com sua determinação significante. Nos dias de hoje, isso se expressa

como um empuxo à avaliação, à estatística e também à auto-ajuda. O sujeito

saberia de si pelos cálculos estatísticos e probabilísticos que dominam o cenário

da atualidade, assim como prescindiria do outro/Outro para ser ajudado. A auto-

ajuda é o correlato terapêutico do self-made-man, em que, na solidão de si

mesmo, o sujeito se vê a mercê de uma ficção idealizada de auto-engendramento,

despossuindo-se dos laços com o outro/Outro. Miller fecha o quadro ao colocar o

S2 no lugar da verdade, dizendo que esta verdade aparece como semblante

incrementando um relativismo onde tudo pode ser tudo, o que pode redundar em

tudo é nada.

Essa configuração se apresenta idêntica ao discurso do analista: a  s ,


S2//S1. A coincidência do discurso da civilização com o discurso do analista nos

impõe algumas questões sobre o lugar da psicanálise nos dias de hoje. Se os dois

discursos têm a mesma estrutura, que lugar resta para a psicanálise hoje?

Tal discussão nos interessa vivamente, pois ela nos ajudará a pensar

justamente a mudança de perspectiva necessária para se alcançar uma clínica

psicanalítica possível para o sujeito contemporâneo.

Miller (Ibid.) destaca três posições básicas dos psicanalistas em relação a

essa questão e, em seguida, aponta quais seriam as coordenadas da orientação


175

lacaniana. As três posições são: a fundamentalista, a passadista e a progressista.

A posição fundamentalista aparece nos psicanalistas que tentam a todo custo

reconstruir o inconsciente freudiano, aquele em que o pai, como ponto de

exceção, promovia o sintoma como desejo recalcado. A posição passadista é a

que nega as mudanças sociais e suas conseqüências na estrutura subjetiva. A

posição progressista busca na ciência as balizas para uma nova psicanálise,

cedendo ao empuxo para as avaliações. Nas três posições, Miller reconhece a

prática da sugestão: na primeira, ela se daria pela exaltação do simbólico em

nome da tradição freudiana; na segunda, pela construção de um refúgio

imaginário como defesa ao real que se impõe; na terceira, essa prática se daria

pela adesão mercadológica à demanda de cientificismo, ao real da ciência. Em

todas elas há uma preocupação própria ao discurso do mestre: que isso funcione.

De nossa parte, vemos também aí uma inserção desmedida do discurso

universitário como o mestre dos tempos atuais.

Como assinala muito bem Juan Carlos Indart (2005), ―em nossa época o

discurso universitário é a religião da ciência‖. O autor o afirma depois de realizar

uma longa análise da ciência e de suas relações com a filosofia e com a magia, a

fim de demonstrar que o discurso universitário é um aparato para fazer com que

as suposições da ciência sejam tomadas como verdade. É importante frisar que a

ciência trabalha eminentemente com suposições e que uma grande parte dos

cientistas assim as considera, quem as transforma em verdade é o discurso

universitário. A importância dada por Indart à suposição é por ela evidenciar que,

por traz dela, há um sujeito. A diferença está no que Lacan expressa no Seminário

17, quando diz que o S2 em posição de dominância não quer dizer saber-de-tudo,
176

mas sim que tudo é saber (p.29). Articulando a idéia de Lacan com a de Indart,

podemos perceber que a suposição iria mais pela via do tentar saber tudo, o que

implica haver uma subjetividade atuando. Isso é totalmente diferente do tudo-

saber, pois nele não há um sujeito que saiba e que possa se retificar. Parece-nos,

então, que o tudo-saber é uma instituição, é saber sem sujeito, idéia coerente à

identificação do tudo-saber com a burocracia, uma prática sem sujeito.

Da mesma forma, em suas considerações, Aflalo (2005) chama de

cientificismo a posição da ciência, assim como a da psicanálise a ela aliada, que

define o desejo pelo objeto desejado rejeitando o laço entre o sujeito, o desejo e o

gozo (p.35). Esse laço estabelece que, para um sujeito desejar, é necessário que

ele renuncie ao gozo, que se instale uma falta de modo que o conseguido não seja

jamais o esperado. Se o desejo for definido pelo objeto desejado, essa defasagem

não acontecerá, a falta ficará em falta. Para a autora, o discurso universitário tenta

absorver a falha no saber promovida pelo real através de um a mais de ciência, ou

do que foi chamado por Laurent (2005) de efeito de ―falsa ciência‖ (p.47). O que

teríamos, então, seria uma tentativa de rejeitar a foraclusão do saber no real,

eliminar a falha considerada por Lacan inerente ao ser-falante, conforme

apresentamos no capítulo IV.

Verificamos, junto com Miller, que das três posições do psicanalista

apontadas por ele nenhuma nos serve para lidar com o que se apresenta em

nossa clínica atual. Então, qual seria a proposta da psicanálise de orientação

lacaniana?

Segundo Miller (Ibid.), a prática correspondente a essa orientação precisa

ser inventada, levando em conta o último ensino de Lacan. Claro que o autor não
177

está se referindo a uma prática única, standard, para todos. Essa formulação nos

indica que a prática não só é única para cada sujeito, como também é única em

cada momento, estando, assim, alicerçada na transferência. Tal invenção,

diferentemente do discurso do mestre, não visaria o ―que isso funcione‖, mas se

orientaria pelo ―isso rateia‖. O ratear considera a relação com o impossível, na

medida em que a falha de sentido no real se impõe ao ser-falante. A lógica a ser

utilizada proposta pelo autor, já que não se trata de pôr ―isso para funcionar‖, deve

levar em conta que a contingência atesta o impossível, pois não há lei no real.

A fim de explorar um pouco mais essa questão, nos serviremos de outro

texto de Miller (2001d) no qual ele enfatiza a perspectiva do último ensino de

Lacan, a saber, o real sem lei, termo que expressa a base foraclusiva do sentido

no real. O autor declina essa foraclusão para um ―real fora do saber‖. Ao mesmo

tempo em que distingue sentido e saber dizendo que este último está além do

sentido, mostra que em relação ao real, saber e sentido estão fora. Sua

argumentação é que o sentido é algo que se põe em cima do real e dele se extrai

um saber. Portanto, saber e sentido estão alicerçados na lógica do significante e,

desse ponto de vista, um não vale mais que o outro. Para isolarmos o real temos

de questionar o que faz sentido e o que constitui saber (p.13). Tanto é assim que

Lacan fez uso do nó dizendo que ele é o real, ou seja, aquilo que não se presta a

ser colocado na rede significante. Miller diz que o nó escapa ao saber, que é o

paradigma do real porque desafia o saber. É desta concepção de real que se

extrai o saber-fazer, onde o saber se junta ao fazer, como proposto no Seminário

23, para enfatizar que se trata de um saber que não se constitui como lei, sendo

apenas o saber de um fazer, um saber que não advém do simbólico.


178

Tomando o real sem lei, concordaremos com a formulação de Miller (2004),

segundo a qual nem sequer a falha é uma lei do real (p.12) porque é a

contingência que prova a falha. Portanto, não se trata de lei, não é da ordem do

necessário – se há contingência ela prova a falha, se não há, não prova nada.

Tendo em vista haver uma falha de sentido no real, como o Outro

contemporâneo lida com ela?

2 - O Outro não-todo:

A denominação sujeito contemporâneo diz respeito ao sujeito que funciona

em conformidade com a cultura própria à sua época. Qual é a nossa época? Qual

é o Outro de nossa época?

Seguindo a tese de Coelho dos Santos (2005), entendemos que o discurso

do mestre está diretamente ligado à lógica masculina, que o S1 só se sustenta na

posição de dominância porque o falo vem lhe dar sustentação. Pautados nessa

tese, podemos deduzir que o discurso do mestre tem relação com a lógica do

todo, tal como Lacan propõe no Seminário 20 através das fórmulas da sexuação.

A lógica do todo se instaura na dependência do falo como significante articulador

do gozo, sendo o pai aquele que, na cultura, o representa. Como já vimos que

esse elemento não se distingue mais por sua potência nem por sua autoridade,

precisamos pensar uma cultura que se oriente por outro regime.

Dando conseqüência à idéia de que o 'a' está em posição de dominância no

discurso do sujeito contemporâneo, somos levados a considerar que o novo

regime de gozo nos remete à lógica do não-todo - inscrita no lado feminino nas
179

referidas fórmulas de Lacan -, porque não regulado pelo falo, pela identificação ao

S1.

Para estabelecer essa argumentação precisamos situar as implicações das

duas lógicas no Outro da cultura. Sob o ponto de vista do todo, temos de

considerar que o lugar da autoridade do pai - que o colocava como exceção na

distribuição do gozo - organizava o mundo como um conjunto fechado, limitado e

ordenado segunda a função fálica, portanto, o gozo era regulado. Pela lógica do

não-todo, a organização se dá de maneira diferente, pois o não-todo não tem

como referência a exceção paterna, não tem como referência nenhuma exceção.

A conseqüência dessa lógica, por mais paradoxal que pareça, é que tudo é

exceção; não há um universal, tudo é singular, ou seja, o modo de gozo ordenado

pelo significante fálico deixa de ser o referente. No mundo do não-todo não há

limite ao gozo, prevalecendo a idéia de que para cada sujeito há um gozo próprio

e totalmente singular.

Ao dizer que no mundo de hoje não há limite ao gozo, precisamos

esclarecer que isso não significa um ‗liberou geral‘, em que todos têm acesso ao

gozo e podem gozar o tempo todo. O que se observa nos dias atuais não

corresponde a isso, pelo contrário. Paradoxalmente, a clínica nos revela que, hoje

em dia, ninguém goza mais que antes. A diferença está na obrigatoriedade de

gozar que os sujeitos se impõem, efeito do capitalismo que fabricou um Outro

gerador de consumo. O Outro atual é exemplificado por Vieira (2005a) como o

Outro 24 horas, ou seja, um Outro sem limites, um Outro não barrado que

antigamente só existia na fantasia do neurótico. É isso o que o discurso


180

contemporâneo revela, a fantasia está a céu aberto, ela é pública e não gera

vergonha, o que põe em xeque a própria noção de fantasia. Se o sujeito goza com

a nudez das crianças, com animais, ou com excrementos, isso não precis a ficar

confinado ao âmbito privado, pois seu gozo pode ser veiculado, encontrado e

compartilhado na rede mundial de computadores, por exemplo. O Outro na lógica

do todo pôde ser representado pelo pai porque ele, como exceção, formava a

regra para os demais, não para ele, dado que, afinal ele era a exceção. Claro que

esta condição de ‗faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço‘ era alvo de

revolta por parte de seus subalternos. Eles percebiam a fraqueza do pai e se

revoltavam denunciando a incoerência de seu discurso com sua prática. Os

subalternos, digamos assim, diante da exceção do pai, formavam um conjunto no

qual todos se posicionavam em relação ao referente. Ou bem se perfilavam e

tendiam a seguir o pai, o que sempre se mostra impossível, ou tentavam dele

escapar pela fantasia de transgressão. Dois pontos devem ser examinados: a

incoerência do discurso do pai e a idéia da transgressão.

Sobre a incoerência do discurso do pai, devemos ressaltar que era

justamente ela que dava humanidade ao pai, ou seja, embora ele estivesse na

lógica do todo, isto não significa que ele fosse Todo Poderoso. Sua ação em rota

de colisão com seu discurso denotava a presença de um ser em conflito, de

alguém que também fazia parte do universal, para quem algo estava proibido. Sua

condição de pai se situava em relação à sua prole, ou seja, havia uma

dependência geracional que sustentava essa posição: o pai era exceção enquanto

pai, todavia, ele já fora filho, o que o incluía no universal. Na verdade, o pai Todo

Poderoso só o era para o neurótico freudiano, porquanto esta é a condição da


181

neurose – sintoma do pai. Assim, o pai como exceção fundava a fantasia e a

fantasia fundava o pai como exceção. O conflito presente nas relações pai-filho

denunciava que nem um nem outro acreditavam piamente nessa exceção, todos

reagiam ao fato de não haver um Outro não barrado pela castração. Qual a

diferença, então, no que concerne ao não-todo?

Aparentemente e de modo ingênuo, poderíamos pensar que o mundo do

não-todo é o paraíso, pois sem exceção não haveria conflito, pais e filhos

vivenciariam uma relação horizontal. Pois bem, este parece ser o problema atual.

Primeiro porque o não-todo não é a negação do todo, ele é uma modalidade, uma

formatação da cultura onde o Outro existe sob a forma do não comparecimento

como exceção. É o que podemos chamar de um Outro anônimo, ou seja, um

Outro que impõe, não sendo, contudo, localizável, não se encarna em uma

pessoa. Ele emana ordens que são incorporadas sem que haja conflito, sem

dialética, sem que o sujeito se dê conta de que está sob jugo. Voltaremos ao não-

todo logo adiante, agora, porém, queremos situar a transgressão.

Referi-me à fantasia de transgressão para tentar situar o fato de que o

neurótico só transgride na fantasia, e que, como diz Lacan no Seminário 17,

podemos no máximo nos esgueirar, jamais transgredir. Neste ponto, poderíamos

inserir a questão do perverso, ou seja, se nessas novas formas de sintoma não

estaríamos no campo da perversão.

Zizek (Ibid., p. 115) nos ajuda a perceber a sutileza da diferença entre o

discurso do sujeito contemporâneo e o matema do perverso: ambos têm 'a' na

posição de agente. Essa diferença responde à tentativa de se pensar que hoje a

perversão impera, o que nos parece um equívoco. O autor nos explica que o
182

objeto 'a', em Lacan, guarda a ambigüidade de ser ao mesmo tempo o sonho

fantasmático imaginário e aquilo que o sonho oculta, o vazio por detrás do sonho.

Assim, no caso do sujeito contemporâneo, esse vazio se desvela na busca

frenética dos objetos. Com o perverso acontece o contrário: ao se colocar no lugar

do objeto do gozo do Outro, o que ele desvela é o vazio do Outro.

Lacan (1962-63/2004), no Seminário, livro 10: A angústia, diz que o

neurótico ―se serve de sua fantasia para fins particulares‖ (p.62), pois, ao se

dividir, ele se defende da angústia recobrindo-a com a fantasia (p.63), ou seja, ele

está totalmente situado no lugar do Outro (p.61). Isso equivale a dizer que ele está

alienado ao S1. Já no discurso contemporâneo, o que se desvela é a não

identificação do sujeito pela via do ideal, ao S1, mas sim pela via de uma cola com

o objeto de gozo. Há entre o sujeito contemporâneo e o Outro contemporâneo

uma solidariedade em termos de uma descrença generalizada.

No discurso do mestre antigo, ou do inconsciente, o S1 em posição de

agente mostra que o sujeito está investido neste significante de exceção, aquele

que lhe vem do Outro. O sujeito contemporâneo não está investido em um

significante, ele está investido em um gozo que lhe é cobrado pelo Outro.

Segundo Laurent (2004), a angustia de hoje tenta refazer o todo, mas fracassa

porque o sujeito não crê mais no S1 (p.16). Assim, o que é insuportável é a

ausência de garantia do gozo, e é justamente isso que o sujeito se esforça para

ter.

Advogo que a perversão também está em relação a um Outro todo, ou, em

outras palavras, a um pai posicionado como exceção. A perversão não é a

liberdade, apesar de se usar o termo libertino para falar de perversão. Em Kant


183

com Sade (1963/1998), Lacan nos mostra como Sade está submetido à lei, sendo

por isso comparado a Kant: tanto um quanto o outro são sujeitos da moral que

vislumbram um modo de ideal. Com isso eu quero dizer que as formas atuais de

relação com o Outro não são da ordem da transgressão, elas não são uma forma

de negação do recalque que o supereu fomentou, pelo contrário, mostram-se em

extrema submissão ao imperativo do supereu.

Sob o ponto de vista do não-todo, podemos entender que as formas atuais

de gozo, já classicamente exemplificadas pelas compulsões e pelos distúrbios

alimentares, lidam com um Outro que não tem uma localização precisa: onde

localizar o mercado de consumo? Lidam também com o ilimitado deste Outro que

está sempre disponível, modelo do banco 24 horas disponibilizando todos os

objetos que se possa comprar.

Apesar do Outro atual tornar o objeto disponível, o que se evidencia é que

ele não dá conta, é preciso sempre outro e mais outro e mais outro. Lacan (1969-

70/1992), ao fazer o mais-de-gozar equivaler aos objetos da cultura (p.76), mostra

como o sujeito, impelido ao consumo, volta a comprar, ―ele repete sua compra‖

(p.78) porque ‗não há‘ objeto que dê conta do gozo. Algo do gozo insiste sob a

forma de fracasso (p.44), pois nenhum objeto é capaz de fazer cessar o circuito,

pelo contrário, ele o engendra.

3 - O sujeito contemporâneo:

Quem é o sujeito contemporâneo? Todos nós. Esta seria a minha primeira

resposta, pois estamos todos imersos no mundo do não-todo; ele é um caldo

cultural do qual ninguém escapa. Há, porém, um hibridismo na nossa civilização


184

plenamente justificado pelo fato dos modos de gozo serem particulares. Nessas

particularidades podemos encontrar subjetividades mais ou menos alicerçadas no

pai como exceção e outras que não estão, ou não se apresentam coordenadas a

esse mesmo regime. Quando falamos do sujeito contemporâneo estamos nos

referindo aos que estão especialmente excluídos do regime do pai. Essa exclusão

não leva em conta o fato de haver acesso ou não aos bens de consumo, na

medida em que, mesmo sem acesso ao bem, há acesso ao gozo do bem – a

mídia democratiza o gozo como ideal.

Segundo Miller (2004), o recurso do sujeito contemporâneo é elevar o mais-

de-gozar ao zênite social, ou seja, fazer do objeto o agente do discurso.

Lembremos que a falha de sentido no real é uma das formas do ‗não há‘, que

também aparece no ‗não há relação sexual‘ e no ‗a mulher não existe‘, como foi

proposto no capítulo IV. Desse modo, o objeto no lugar de dominância

corresponde a uma defesa em relação a todas as formas de ‗não há‘. A diferença

em relação ao S1 - que ocupa esse mesmo lugar no discurso do mestre -, é o fato

de que ao invés de ‗fazer funcionar‘ o objeto ‗faz ratear‘. O S1 como dominante

também é uma defesa, porém, sob a forma do recalque, e, assim, tenta fazer

existir a relação sexual, tenta fazer existir o sentido no real pela renúncia ao gozo.

Explico melhor: a relação sexual não existe, mas podemos responder a isso, por

exemplo, com o casamento, ou seja, dando um sentido social, emocional,

financeiro, ao que no real não tem sentido nem nunca terá. Mas, para tanto,

precisamos cumprir algumas exigências sociais, fazer algumas renúncias.

Na atualidade, o mais-de-gozar ocupa justamente o posto que, no discurso

do inconsciente, servia para mediar o acesso ao real. Quando o mais-de-gozar


185

ascende a esse posto, ele expõe o ‗não há‘, redundando em um sujeito

desencantado com o mundo, com a política, com o casamento. É um sujeito para

o qual os ideais não contam para nortear suas escolhas. É exatamente isso que o

matema (a>I) escreve, no qual o predomínio é do objeto sobre o ideal.

O S1, em lugar de agente, mantinha a ilusão de que o Outro sexo viesse a

complementá-lo, que a realização de um ideal viesse a satisfazê-lo; o que ocorre

na civilização atual é a descrença nos ideais, a descrença no casal e em todas as

demais formas sublimatórias em que a pulsão se satisfaz por caminhos

derivativos.

O modo atual não é a renúncia, é a desinibição sob a forma do Goza!

imperativo, é a ditadura do mais-de-gozar. Isso nos coloca na dimensão da falha e

não da falta, pois na via do recalque se lidava com uma falta – o pai não dava

conta. Sob o ponto de vista do Goza! a falha fica evidente, daí a descrença.

A perspectiva que se traça hoje é a do individualismo, onde ―o um-sozinho

será o standard pós-humano‖ (MILLER, 2004, p. 13). A nosso ver, o um-sozinho

faz par com a desinibição, pois a perspectiva do individualismo mostra o quanto o

sujeito não está afeito a acordos, devendo prevalecer sua vontade de gozo sob o

modo do ―‘não posso abster-me‘, em que se eclipsa a responsabilidade do sujeito‖

(TARRAB, 2004, p.58).

A desinibição não quer dizer ‗não inibição‘, mas sim que há um

franqueamento no nível do supereu porquanto este não mais impõe limites ao

gozo, pelo contrário, o supereu do sujeito contemporâneo incita-o a gozar. Esse

franqueamento derruba a barreira do pudor e da vergonha fazendo com que o

gozo seja exibido e valorizado. Pela via da moral civilizada, o pudor e a vergonha
186

faziam da inibição um sintoma. Hoje, porém, observamos que a desinibição

angustia, pois ela franqueia o ato sem, contudo, impedir o fracasso. Voltaremos a

este ponto mais adiante. Resta-nos agora apontar que, de acordo com essa

configuração, não há porquê haver sintoma como fruto do recalque, o que

prevalece é a angústia.

Como vimos no capítulo da identificação, a alienação ao significante

tomado do Outro não é a única forma de laço, há uma identificação com a falta de

significante no Outro, levando o sujeito a fazer um laço com o Outro barrado. Na

civilização contemporânea temos um descortinamento desse Outro barrado, uma

forma de identificação que já supõe no Outro um furo. Talvez isto justifique a

incidência na clínica de sujeitos que, ou não fazem laço, ou o fazem frouxamente,

aceitam sem mediação a voz de comando: Consuma!, pois nenhuma substituição

satisfaz. É quando a compulsão se instaura.

Por essa razão, entendemos que as manifestações clínicas atuais põem em

xeque o sintoma como metáfora, uma vez que o poder da metáfora se esvaziou.

Põem em xeque a identificação que estabelecia o laço com o Outro dos ideais

parentais, que inscrevia o sujeito em uma ordem geracional. Hoje, ela está

deslocalizada – o planeta é a família, uma ―família horizontal e em redes‖

(ROUDINESCO, 2003, p. 197).

Essa nova conformação identificatória é tomada por Dominique Laurent

(2005) como um ―enxame identificatório‖ (p.23), em função da variedade com que

se apresenta ―o novo espaço familiar‖ (p.25). Segundo a autora, da multipicidade

de identificações decorre uma falta de estabilidade quanto ao gozo, convocando o

sujeito a se lastrear por aquilo que o mercado de consumo oferece, este também
187

múltiplo. Isso faz do sujeito contemporâneo alguém que não tem uma identificação

fixa e sedimentada nos laços familiares, mas que, justamente por isso, faz da não

identificação uma forma de gozo. Diríamos que esse seria o correspondente

emocional do relativismo intelectual observado nos dias de hoje. A multiplicidade

destitui o Outro de seu lugar de autoridade simbólica, na medida em que esse

lugar só teria sentido se configurasse uma exceção.

Ousamos dizer que essa foi a intuição de Lacan no Seminário, livro 10: A

angústia (1962-63/2004). Conforme o título, nesse Seminário Lacan se propõe a

falar sobre a angústia, mas acaba se dedicando ao objeto 'a' por entender que a

angustia é uma experiência que se anuncia no discurso, sem contudo ser por ele

absorvida. É no sentido de uma disjunção da angústia com o significante que ele

vai considerar o objeto 'a' um objeto sem nome. Só assim poderá dizer que a

angústia ―não é sem objeto‖ (p.185). Se Lacan precisou do objeto para situar a

angústia, podemos concordar com Miller quando diz que ―o objeto 'a' vale como o

fracasso do Nome-do-pai, porquanto o Nome-do-pai é o operador maior da

simbolização‖ (2005a, p. 67). Vemos nesse fato o que ora observamos: uma

prevalência da angustia sobre o sintoma. O sintoma tinha sentido num contexto

onde a falta promovia o mal-estar. O pai como exceção fazia com que sua

autoridade fosse questionada, e o sintoma era justamente uma forma de mostrar o

furo no pai, o furo no Outro, de instaurar um enigma sobre o desejo do Outro. A

angústia, no entanto, é uma experiência do real, é um afeto ―que não engana‖

(LACAN, 1962-63/2004, p.92), que não produz enigma, que leva o sujeito ao plano

da certeza.
188

A angustia aparece como prevalente nos dias de hoje porque entre o sujeito

e o Outro não há, ou há pouca, distância. O sujeito contemporâneo está mais a

mercê do supereu porque a distância entre ele e o desejo do Outro não é mediada

pelo objeto 'a' como causa, e sim como gozo. Utilizando uma metáfora de Lacan

poderíamos dizer que o sujeito contemporâneo se holofrasea com o objeto 'a', ou

seja, ele se confunde com o objeto. No Seminário: A angústia, Lacan diz que esta

se interpõe entre o desejo e o gozo, não como mediadora, mas como mediana

entre os dois (p.203). Mediana é o segmento que parte do meio de um dos lados

de um retângulo e vai até o meio do outro lado, ela liga um lado ao outro, mas, na

verdade, ela corta a figura ao meio. A angústia aparece quando essa distância se

reduz, quando o desejo do sujeito se aproxima perigosamente do gozo do Outro.

Se pensarmos sobre o modo contemporâneo de gozo, podemos perceber que

falta essa distância, que o desejo do sujeito está cada vez mais submetido ao

gozo do Outro e que o Outro não cria obstáculos ao gozo, pelo contrário, o

incentiva.

Para acompanhar esse raciocínio, precisamos entender que o Outro de

nossa época é o mestre capitalista, não é o pai baluarte da tradição, da moral e da

ética. No Seminário 17 (1969-70/1992), Lacan faz uma importante diferença entre

o amo, ou mestre, e o pai: o primeiro faz o escravo trabalhar para ele, enquanto o

segundo, regido pelo lugar do pai na religião, é aquele que trabalha para todos,

pois é um pai-amor (p.94). O mestre contemporâneo é o capitalista e o trabalho

que ele exige do escravo é o consumo. O pai fazia sintoma porque era um ideal a

ser alcançado. O mestre moderno, a rigor, não faz sintoma, ele promove a

angústia porque expõe o sujeito aos objetos de consumo impondo-lhe o dever de


189

gozar. O sintoma em geral é localizável e tem uma parte representada pelo

significante, a angústia não. O que costumamos designar como novos sintomas é

exatamente a emergência da angústia como resposta ao imperativo de gozo, pois

não podemos esquecer que ―o gozo é tóxico‖, como diz Tarrab (2004, p.60), e a

angústia combateria essa toxidade.

Os novos sintomas se caracterizam por essa emergência da angústia, pois

o Outro dos nossos dias não faz barreira ao gozo pela exigência da renúncia, a

vertente do supereu que promove o recalque. No Outro de hoje não há a

opacidade necessária à produção de um enigma e, conseqüentemente, fica

vetada qualquer tentativa de interpretação do desejo. O que se torna deficitário é o

laço simbólico do sujeito com o Outro, dele restando apenas a face violenta do

supereu como imperativo de gozo. No regime do pai, o significante Nome-do-pai

funciona como uma interpretação do desejo da mãe. Se o pai não funciona o

sujeito fica diante de um desejo sem possibilidade de significação, ―a grande boca

do desejo materno é a grande boca consumidora correlativa ao declínio do pai‖

(TARRAB, 2004, p.60), o que impulsiona o sujeito a consumir e consumir-se.

A expressão ‗falta da falta‘, utilizada por Lacan (1962-63/2004, p. 53) no

Seminário: A angústia, mostra que no ponto onde a falta promoveria o sintoma

como um apelo lançado ao Outro, o que aparece é a falta da falta, o objeto mais-

de-gozar sempre à disposição, ou seja, ―os novos quadros clínicos não se

estruturam em função do que falta ao campo dos ideais paternos e sim do que

falta ao próprio corpo e ao próprio eu‖ (COELHO DOS SANTOS, 2000, p.315).

Essa referência nos permite pensar os novos sintomas como modos

particularizados de gozo, que denunciam o fracasso do sujeito em obter o gozo


190

completo tão prometido pela mentalidade consumista de nossa época. Se antes a

insuficiência era do pai, agora a insuficiência é do próprio sujeito, feito órfão pela

cultura que despotencializou o pai e seus representantes e, ao mesmo tempo,

elevou o objeto à categoria do necessário. Sem o pai o sujeito fica à mercê da

pulsão, na medida em que ela deixou de ser mediada simbolicamente pelo

significante Nome-do-pai. Brousse (1986) afirma que a ―pulsão manifesta as

conseqüências, sobre o gozo, da inscrição na ordem simbólica‖ (p.66),

acrescentando que a articulação da pulsão ao Outro depende do fato de o sujeito

reconhecer no Outro uma falta, o S( A ).

Se tomarmos esta configuração – pulsão sem mediação do Nome-do-pai –

como o modo hegemônico nos dias atuais, temos motivos para pensá-la como

uma psicose generalizada, já que é na psicose que observamos a foraclusão do

Nome-do-pai. Se tomarmos a psicose como estrutura de base, poderemos pensar

que os quadros atuais são uma outra solução, diferente da via do pai, para dar

conta do real. Esta nos parece uma boa forma de não cairmos em um neo-

estruturalismo, sem, contudo, deixar de reconhecer a originalidade dessas

configurações. Esses novos quadros, por mais estapafúrdios que nos pareçam,

procuram um analista. Qual é o estatuto desses novos sintomas, uma vez que

eles não se inscrevem mais na linhagem freudiana do sintoma como retorno do

recalcado? O que buscam numa análise?

Os novos sintomas tendem a fazer coincidir o ideal com o objeto da pulsão,

ou o desejo com o objeto do desejo, como se expressa Aflalo (2005). O supereu

no regime do pai era o agente do recalque, diferente do supereu que empurra ao

gozo, conforme observamos hoje em dia. Temos dois modos de funcionamento do


191

supereu: pela via do recalque e pela via da pulsão. Neste último caso, o supereu

recebe sua força da própria pulsão. Por isso, deixa de reprimir o gozo e passa a

encorajá-lo – Goza!. Seguindo essa linha, podemos entender que o novo ideal, o

ideal contemporâneo, é gozar. Assim, deduzimos que o novo ideal coincide com o

objeto, ao contrário do ideal moderno que promovia a disjunção entre o ideal e o

objeto. O ideal moderno era renunciar ao gozo, já o ideal contemporâneo é gozar.

A associação do supereu com a pulsão, que promove a coincidência do ideal com

o objeto, produz na mesma operação o gozo como dever. Coelho dos Santos

(2001) diz que essa operação de adequação ao Outro contemporâneo obriga o

sujeito a fazer uma torção: exibir a vertente masculina da fantasia, isto é, aquilo

que era recalcado na modernidade passa ao domínio público na

contemporaneidade (p.331 e 333). O que se escondia era o objeto do gozo, ao

passo que hoje, é isso o que se exibe. A exibição de 'a' faz dele o agente do

discurso contemporâneo. No discurso do inconsciente, aquele em que a verdade

do gozo estava recalcada, quem estava no lugar do agente era o S1 e o 'a'

aparecia no lugar de uma perda de gozo. No discurso contemporâneo não há

perda, há excesso, é onde o traumático de hoje se situa.

Falta examinarmos a hipótese de que os novos sintomas estejam mais na

vertente do caráter do que na vertente do sintoma. Esta foi a hipótese dos pós-

freudianos quando se depararam com a face real do gozo. Miller (1998-99/2004),

no Seminário sobre A experiência do real na cura psicanalítica, faz um

levantamento sobre a noção de caráter na história da psicanálise e mostra que os

pós-freudianos precisaram dessa noção para situar um modo de ser, uma

totalidade do sujeito que se distinguia do sintoma. Segundo o autor, o que os


192

alunos de Freud fizeram foi tomar uma manifestação do real e transformá-la em

conceito. Essa distorção foi motivada por um obstáculo epistemológico, pois os

pós-freudianos faziam uma distinção nítida do interior e do exterior. Quando

perceberam que havia um tipo de manifestação que integrava o exterior social ao

interior psíquico, precisaram separá-la do sintoma, pois não podiam supor que

este último era uma forma de laço social.

De todo modo, nos parece útil acompanhar essa distinção, mesmo que

brevemente, para enfatizar o papel representado pelo sinthoma na clínica atual.

O sintoma era definido como uma manifestação isolada que causava

sofrimento e da qual o sujeito se queixava. O caráter, ao contrário, estava

totalmente integrado ao ser do sujeito, fazia parte de sua personalidade. O

sintoma dependia do inconsciente, era uma idéia recalcada que se presentificava

em um sintoma. Em contrapartida, no caráter não se observava nenhum efeito do

recalque. O sintoma se deixava interpretar porque queria dizer alguma coisa, ao

passo que o caráter obstaculizava a interpretação porque não veiculava uma

mensagem. Sob o enfoque lacaniano, podemos dizer que o sintoma estava

referido à alienação significante, enquanto o caráter estava referido ao gozo

pulsional. Segundo Miller (Ibid.), Freud era sensível a esse aspecto, porém não o

considerou um tipo de neurose e sim como algo que se manifestava

obstaculizando a interpretação do sintoma, como um modo da pulsão se satisfazer

no sintoma. O autor entende que, em Lacan, a noção de sinthoma congrega estes

dois aspectos do sintoma: o valor de sentido e o de gozo, portanto o sintoma

freudiano e o caráter pós-freudiano. Já Coelho dos Santos (2005) entende que a

noção de caráter é pertinente para falar do gozo em ambos os sexos, propondo


193

definir o sinthoma como idêntico ao caráter e não como misto de sintoma e

fantasia, ou seja, como sentido e gozo. Argumenta que a fantasia estaria apenas

na vertente masculina da sexuação e que, para dar conta do gozo nos dois sexos,

portanto na vertente do todo e do não-todo, deveríamos preferir o termo caráter.

Penso que a noção de caráter esclarece a dificuldade dos sujeitos não regidos

pelo Nome-do-pai em formalizar um sintoma que possa ser interpretado. Porém,

considero desnecessário tomar o caráter como idêntico ao sinthoma e, tendo em

vista que este último abarca tanto o sentido quanto o gozo, parece-nos suficiente

para expressar o sintoma como solução nos dois sexos. Entendo que, em 1986,

quando Miller se refere à fantasia, ele ainda não havia desenvolvido a idéia de que

ela é eminentemente masculina, usando-a, nesse caso, para valorizar o gozo

como real presente no sinthoma. Penso inclusive que a dificuldade de

entendermos o sinthoma como misto de sintoma e fantasia está justamente no

fato de que o gozo em questão na fantasia é imaginário, e o que Lacan grafa

como sinthoma é o gozo como real. É o real que não cessa de não se escrever, é

ele que persiste como resto de uma análise.

4 - Ensaio para uma prática clínica do não-todo:

Diante dessa paisagem, cabe ao psicanalista se perguntar qual o lugar

possível de operar e sobre o quê operar.

Se antes o lugar do analista era definido como o de causar desejo, tendo

como estratégia principal o silêncio, hoje cabe nos perguntarmos se esse lugar

ainda produz efeitos.


194

O lugar de causa de desejo visava pôr em ação a rede simbólica para

extrair os significantes de comando e deles desvincular o sujeito. Ela visava tirar

do sujeito o peso dos ideais paternos, as limitações que o supereu impunha sob a

forma do recalque, enfim, demonstrar a inconsistência do Outro.

A prática de hoje nos exige criar um laço do sujeito com o Outro a partir de

seu próprio gozo, ou seja, instalar ou reciclar, como propõe Vieira (2005a e b), o

objeto ‗a‘ entre o sujeito e o Outro. A inconsistência do Outro os aproximou

perigosamente, não restando entre eles um espaço onde o desejo se conecte a

uma causa, ele se conecta tão somente ao próprio objeto. Como fazer o sujeito

suportar, já que não dá para voltar a fita, essa inconsistência? Como fazer para

que o sujeito não se deixe tomar pelo imperativo de gozo?

Para compor esse ensaio, recolheremos algumas indicações clínicas e

testaremos sua pertinência à luz das considerações já traçadas sobre o sujeito

contemporâneo.

Uma indicação clínica geral pode ser colhida no texto ―Uma fantasia‖

(MILLER, 2004). Depois de articular o ―discurso hipermoderno da civilização‖,

Miller faz uma observação que, se tomada ao pé da letra, pode esclarecer a

diferença entre o discurso analítico e o discurso contemporâneo. O autor diz que

os elementos do discurso contemporâneo ―estão dispersos na civilização e que só

na psicanálise, na psicanálise pura, esses elementos se ordenam em discurso‖

(p.10). O que podemos deduzir é que a civilização põe o objeto no lugar de

agente, ela propõe o consumo como forma de gozo, mas isto por si só não

estrutura um discurso, pois os objetos são tão diversos e sua utilização tão

particular que não conseguem sedimentar uma identificação.


195

Chamo atenção para o fato de que o discurso hipermoderno da civilização

não é necessariamente o discurso do sujeito contemporâneo, do primeiro

podemos deduzir o segundo, mas não penso que eles sejam coincidentes.

Quando Lacan formula os quatro discurso, ele o faz tomando o discurso do mestre

como base e dele deduzindo tanto o discurso do sujeito histérico quanto o do

sujeito obsessivo (considerando aqui o discurso universitário). Ele os formaliza

porque supõe que seus elementos estão ordenados pela identificação a um

significante mestre, podendo fazê-los girar porque há um eixo. Considero isso uma

manobra coerente com a lógica do todo porque o sujeito está fixado em uma

identificação. No caso do discurso da civilização hipermoderna, não creio ser

possível dele deduzir um discurso de sujeito porque ele rompe com a idéia do

universal. No não-todo não há exceção que funde uma regra. No discurso

hipermoderno, os elementos estão postos, porém a experiência do real suscitada

por ele é de dispersão. No discurso da civilização os elementos estão artic ulados,

contudo, as respostas são as mais diversas.

O sinthoma como modo de amarração subjetiva é o que a psicanálise tem a

oferecer, buscando para cada um uma fixação, uma ordenação. Parece-nos que

essa operação responde ao desbussolamento do sujeito pois, ao dar lugar aos

elementos dispersos, dá um norte, um norte singular, porém um norte. Essa

argumentação está na filiação do sinthoma como elemento articulador, enodando

os registros real, simbólico e imaginário. Articulando os elementos dispersos, o

sinthoma daria corpo ao sujeito desbussolado ao conectá-lo com seu próprio gozo.

Laurent (2004) nos dá uma indicação que tem a mesma direção,

apontando, porém, para dois aspectos do fazer do analista, hoje: o seu fazer
196

clínico e o seu fazer na polis. O autor ressalta a importância do sintoma dizendo

que ele é ―a dimensão de nossa ex-sistência no mundo‖. Sua recomendação é de

que:

―Instalemo-nos nesse sintoma, dediquemos a existir nós mesmos


como sintomas e descobriremos que nisso em que somos assim ―lançados‖
também nos é ―enviado‖ e podemos fazer disso nosso destino, e disso nos
fazer destinatários‖ (p.21).

Essa não é apenas uma retomada da indicação lacaniana de que o analista

precisa se incluir no sintoma do analisando, é também uma indicação da missão

da psicanálise na civilização. Sob o ponto de vista desta última, o psicanalista se

lança como sintoma da civilização para poder recolher o que lhe for enviado, ou

seja, coloca-se como destinatário do mal-estar. Sob o ponto de vista da clínica, a

forma de inclusão proposta por Laurent visa fazer-se destinatário dos enunciados

do sujeito, mas neste caso, penso que essa indicação implica em tomar o que é

dito tal como é, ou seja, não há interpretação do dito, há o dito. Desse modo, a

interpretação que convém, aquela que é oportuna, tem como direção colocar o

dito no lugar do S1, tentando promover uma aproximação do sujeito com o que ele

diz de si mesmo. Isso pode parecer ingênuo, mas se entendemos que o sujeito

contemporâneo está funcionando em um regime de desorientação no que diz

respeito àquilo que o determina, à sua causa como sujeito, poderemos apreciar

sua simplicidade e perceber nela uma manobra de estilo operada na transferência.

Em nossa compreensão, tomar o dito pelo que é nos remete a uma forma de

saber que não é suposto, que está mais afeito à invenção, pois fazer coincidir o
197

sujeito e seu dito, na circunstância em que estamos de quase absoluta disjunção,

dá chance a um saber que, mais do que novo pode ser mesmo inédito.

Ainda na vertente de que não há saber no real, vamos examinar a proposta

de Miller, formulada no Seminário Um esforço de poesia, de 2002-3, onde

preconiza que, pela palavra oracular, a psicanálise poderá reencantar o mundo.

Sua tese é de que a interpretação pela via do sentido perdeu sua força, ela não

surpreende mais, e, assim, deixa de ter efeitos. Além disso, mostra que a

interpretação pela via do sentido não alcança o real, sítio do gozo que não entrou

na rede significante. A palavra oracular tem a função de ser uma frase que não se

presta ao julgamento sobre sua verdade ou falsidade. Ela tem como característica

um modo de dizer do qual não se faz uso no dia a dia; o que importa não é seu

conteúdo, é a sua força de ‗é isso‘ (aula 13/11/02). A poesia, no caso, se refere

àquilo do poético que está no campo da criação. Assim, o analista não é o que fala

bonito, mas o que tem o senso de oportunidade para introduzir um elemento

aparentemente sem sentido, um tom de voz ou um gesto imprevisto. Miller se

refere a isso quando diz: ―é preciso pôr corpo para elevar a interpretação à

potência do sintoma‖, situando que a poética é um materialismo da interpretação

(2004, p.17). Vamos examinar essas idéias levando em conta o poder do

significante sobre o gozo, quando ele opera fora da vertente da significação.

De onde vem o poder do significante sobre o gozo?

Em Biologia Lacaniana (2002), Miller vai trabalhar sobre a capacidade do

significante se materializar no corpo, fenômeno denominado por ele de

corporização. Segundo ele, a corporização é um saber que, mesmo incorpóreo, é

incorporado, ou seja, é o que Lacan chama de afeto, no sentido amplo. O afeto é o


198

efeito corporal do significante, é um efeito de gozo. Não se trata aqui, explica

Miller, do efeito semântico nem do efeito de sujeito suposto, mas tão somente de

um efeito de gozo (p.99). Tanto é assim, que o autor vê nas manifestações

culturais que marcam o corpo a evidência da corporização do significante. Ele faz

uma lista incluindo desde as mutilações rituais, a preocupação com postura e

tônus, a ditadura da higiene e da boa forma, até a propagação das formas atuais

de decoração do corpo como piercing e body art, todas elas demonstrando a

atividade de corporização (p.100-101).

Se o significante tem essa potência, ela poderá também ser usada para

tocar o gozo. Todavia, precisamos ter clara a idéia de que para conseguir esse

efeito é necessário afastar-se da semântica fazendo um esforço na via do poético.

O poético pode estar no gesto, na entonação ou no equívoco. Em todos

eles, é requisitado do analista que seu desejo tenha corpo.

Em primeiro lugar, examinaremos o gesto.

Como vimos no depoimento de passe de Verónique Mariage, exposto no

capítulo IV, é o gesto do analista de escrever aquilo que a analisante lhe conta

que produz a virada do sujeito da fantasia para o sujeito da pulsão. Essa

perspectiva está inserida na concepção geral do ato analítico de Lacan. Contudo,

materializar a interpretação, penso eu, vai além dela, pois coloca em ato o analista

como parceiro suplementar do sujeito, fazendo com que a transferência seja

usada como real (COELHO DOS SANTOS, 2004b). Entendo que usar a

transferência como real é a possibilidade de aceitar a demanda do analisante sem

satisfazê-la, acompanhar o movimento do sujeito sem lhe fazer oposição a fim de,

assim posicionado, poder operar sobre o gozo. Logo a seguir daremos dois
199

exemplos. Mas, para não seccionar o fio do raciocínio, examinaremos agora a

dimensão do equívoco.

Miller (1998-99/2004, p. 136) considera dois tipos de interpretação: a

interpretação como decifração e a interpretação como perturbação. O equívoco se

insere nesta última visando perturbar a defesa e não produzir sentido. O contexto

em que Miller faz essa distinção tem por base a idéia de que o último Lacan define

o real como disjunto do sentido e até mesmo que o sentido tampona o real.

Seguindo essa orientação, a interpretação deve incidir no real a partir do

simbólico, ou seja, ela não cede ao simbólico, mas faz uso dele para chegar ao

real. Segundo Miller, essa interpretação deve levar em conta o ser-falante e não o

sujeito. O sujeito, a rigor, é o sujeito do inconsciente estruturado pela linguagem.

Em contrapartida, o ser-falante supõe um mais além do inconsciente: é o

inconsciente mais o corpo. O autor esclarece que, no ser-falante, o corpo em

questão não é o corpo simbólico nem o imaginário, é aquilo que o corpo tem de

real. Esse modo de interpretação visa o corpo e exige que o analista coloque seu

corpo em função interpretante. Os exemplos são: o tom de voz, o acento, o gesto

e o olhar, ou seja, os objetos pulsionais lacanianos, donde se conclui que colocar

o corpo significa fazer uso da pulsão.

Esse tipo de manejo da transferência indica uma prática que se orienta pelo

real do sintoma, mas o real sem lei, não o real das regras. Portanto, sabendo-o

impossível, tomaremos dele apenas seus pedaços para extrair deles aquilo que é

mais particular ao sujeito. Assim agindo, manteremos a origem subversiva da

psicanálise, pois, se o discurso do contemporâneo busca cada vez mais gozo,


200

oferecemos Um gozo, aquele que é próprio ao sujeito e através do qual ele goza

do inconsciente, dado que o inconsciente o determina (LACAN, 1974-75).

Essa afirmação de Lacan nos confronta com certas formas atuais de

subjetivação nas quais aparece um desabonamento do inconsciente. É importante

ressaltar esse fato porque ele nos dará a real medida implicada na perspectiva

clínica do sinthoma. Ao dizer que Joyce é um desabonado do inconsciente, como

vimos no capítulo IV, Lacan enfatiza que, nesse caso, não podemos contar com as

formações do inconsciente para operar o trabalho analítico. Nessa configuração, o

desabonado é o simbólico, ele não serve como recurso à construção de uma

fantasia. O que constatamos hoje não está longe disso, pois o Outro da civilização

atual não tem potência simbólica para engendrar um discurso que se oponha a ele

pela via sintomática clássica. A partir dessa constatação nos orientaremos pelo

sinthoma entendido como suplência.

Sabemos que a suplência foi classicamente pensada para a psicose.

Porém, nos ensinamentos extraídos por Miller do último Lacan, temos uma

indicação de que ela pode ocorrer também nos casos em que o simbólico aparece

esvaziado, com valor tendendo a zero. Não é difícil localizar essa referência em

Lacan pois Joyce era um desabonado do inconsciente que não surtou, ou seja,

usou seu fazer muito particular com a língua inglesa como um modo de se

nomear. Pautados nessa articulação, podemos dizer que um dos modos de se

lidar com os desbussolados é construir uma suplência ao que se impõe no social

como o desvelamento da relação sexual que não há. Nas formas clássicas da

neurose, a foraclusão da relação sexual era tratada pela fantasia porque a

civilização sustentava a crença de que ela existia. Hoje, o discurso contemporâneo


201

parte da descrença na relação sexual. Assim, o sinthoma aparece como solução

nos moldes de uma suplementação à inconsistência do Outro.

A clínica do sinthoma é, portanto, tributária da clínica da psicose clássica,

porém, Miller nos traz um dado novo ao dizer que ela é também tributária da

clínica do feminino: ―da subjetividade moderna ao sujeito contemporâneo, a

questão feminina brilha‖ (LAURENT & MILLER, 1997, p.18). A articulação em jogo

marca, justamente, uma correlação da posição sexuada feminina, pela lógica do

não-todo, com a inconsistência do Outro na cultura. Essa articulação é grafada

com o S ( A ), correspondendo tanto à posição feminina quanto ao Outro

inconsistente. Laurent, no Seminário O Outro que não existe e seus comitês de

ética (MILLER, 1996-97/2005), mostra que ―as mulheres são mais sensíveis ao

significante do Outro que não existe‖ (p. 108) porque elas se pautam menos pelos

ideais do que os homens. Na falta dos ideais como guia, as mulheres teriam mais

experiência em lidar com o significante da falta no Outro e seriam mais sensíveis à

configuração atual do Outro. Essa sensibilidade pode funcionar como uma

tendência à negociação, mas pode também gerar ações rígidas e reacionárias. O

argumento para o primeiro caminho é o fato de as mulheres conviverem com as

crianças e com elas fazerem acordos que prescindem da autoridade. No segundo

caminho temos os exemplo das feministas mais aguerridas e das damas de ferro

que têm surgido na cena política contemporânea. Ambos apontam para um modo

peculiarmente feminino de lidar com a descrença na exceção, com a redução do

Outro a puro semblante: se não há exceção, cabe sempre um acordo, ou, se não

há exceção, eu me faço de exceção. Neste ponto, justificamos a afirmação de que


202

a civilização se feminilizou no sentido de não se pautar pelo Outro como exceção,

de prescindir dos ideais como norte estando mais afeita a soluções particulares.

Arrisco dizer que a clínica do sinthoma, com a particularização do manejo

no caso a caso, com o saber-fazer a cada momento, tem uma dívida de gratidão

com a clínica do feminino, pois ela pode nos ensinar a lidar com os sujeito em

tempos de não-todo.

Comparando as duas clínicas – do sinthoma e do feminino –, podemos

entender que fazer o sujeito crer em seu sintoma é o mesmo que colocá-lo na ―via

pela qual é possível viver o invivível do não-todo‖, transformar o insuportável do

sintoma ―em ponto de apoio para que o sujeito reinvente seu lugar no Outro‖

(LAURENT, 2004, p.22).

Vieira (2004) avança nessa direção dando-nos uma indicação clínica

precisa sobre o modo de operar com o não-todo. Como já esclarecemos

anteriormente, o não-todo é o Outro que tem tudo, a quem nada falta, assim, para

operar uma mudança no sujeito é preciso extrair algo desse todo/tudo,

descompletá-lo, furá-lo. O sinthoma como modo de gozo seria uma maneira de

extrair do Outro um objeto ‗para chamar de seu‘. Vieira (Ibid.) nos indica que ―o

sinthoma faz o não-todo tomar corpo‖ (p.80) por haver extração do objeto e porque

essa extração se conjuga com o gozo. A localização e a extração desse objeto no

Outro têm como efeito a localização do sujeito no mundo através de um estilo, de

um modo de ser e de gozar. O objeto que ‗possa ser chamado de seu‘ é

destacado do Outro, mas sofre uma reciclagem, uma transformação na qual o

sujeito coloca a sua libra de carne, ou seja, ascende ao gozo aceitando pagar o

preço inerente a ele.


203

Um exemplo belíssimo sobre como se dá a extração do objeto nos é

apresentado por Laurent (MILLER, 1996-97/2005) ao se referir a uma matéria do

New Yorker sobre Woody Allen. Nela, Diane Keaton relata um momento muito

especial na sua relação com Allen: ―Há algo que conservarei comigo, sua imagem

vendo Gritos e sussurros, de Bergman. Entende o que quero dizer? Vê-lo

arrebatado, o vi em seu rosto, isso me comoveu e me fez amá-lo‖ (Keaton apud

MILLER, Ibid., p.114). Segundo Laurent, o que interessou Diane Keaton foi que,

naquele momento, Allen estava ―capturado, apanhado, separado de si mesmo‖

(id.) diante de uma obra que era seu ideal – a admiração de Woody Allen por

Ingmar Bergman é pública e notória. Mas não foi como ideal que Allen interessou

à Diane, o que a fascinou foi vê-lo como 'a', foi vê-lo subtraído de 'a', passivisado,

como testemunho da presença do objeto 'a'. ―Ama-o porque captou a passagem

do objeto 'a' no ponto em que o Outro não existe‖ (id.). Não consigo resistir a fazer

um comentário, apesar de reconhecer que o exemplo diz tudo. A extração do

objeto localizou um lugar para ela na relação com aquele homem tão admirado,

tão especial aos olhos do mundo. Para amá-lo, ela precisou descompletá-lo

porque só assim haveria um lugar para ela.

O exemplo nos faz retomar a idéia de que diante de um Outro a quem nada

falta, não há lugar para o sujeito, a extração do objeto fura o Outro, conecta o

sujeito com seu próprio gozo, dá corpo ao não-todo.

O gozo extraído na operação que visa o sinthoma é um gozo singular, não

derivado da identificação com o significante do Outro e sim da identificação com a

falta no Outro. Ele conecta o sujeito com o mundo, com o Outro da cultura,
204

mediante uma solução singular, mas isso tem um preço, não sai de graça uma vez

que ele não conta com a garantia do Outro.

A questão da singularidade nas novas configurações já está posta, o

problema é como fazer para que essa singularidade não enseje segregação, pois

a neurose histérica clássica já reivindicava essa singularidade, só que pela via do

reconhecimento do Outro. Podemos caracterizar esse modo histérico como aquele

que quer ‗pegar mosca com vinagre‘, ou seja, exigir que o Outro aquiesça à sua

própria destituição, à exibição de seu furo. Esse modo de proceder pode levar à

beligerância, ao apagamento de seu desejo e até à inibição intelectual, dentre

outras formas de devastação. Precisamos, então, esclarecer de que singularidade

se trata na coalescência do sujeito com seu sinthoma.

Pensamos em uma singularidade que faça laço, não que o destrua. As

novas subjetividades demonstram que o laço possível a elas é sempre frouxo, por

isso a emergência da angústia é inevitável, dado que o Outro não lhes dá o lastro

necessário para dele se separar. Todavia, para se criar uma singularidade

operativa, é necessário que haja separação entre sujeito e Outro, o que só se dá

pela extração do objeto criando um furo no Outro, mas não pela via do imaginário:

descrença generalizada. Não adianta furar o Outro sem dele extrair nada, isso

leva à angústia porque esse furo não será correlativo ao real e não implicará o

sujeito responsabilizando-se por seu gozo. Por essa razão, acho interessante o

modelo da reciclagem do lixo conforme proposto Vieira (2005b), pois nela há

transformação, mas há também resto. O resto do resto é o real que a cultura tenta

absorver a todo custo reciclando o lixo, por exemplo. Assim, o sinthoma seria
205

alguma coisa entre o resto e o resto do resto, seria uma reciclagem que não

absorveria tudo, já que o real é impossível.

Ousamos dizer que a operação de reciclagem que deixa resto, que destaca

o objeto e dá a ele uma utilização novidadeira, corresponde a recolocar as letras

do discurso contemporâneo nos seus devidos lugares, ou seja, os elementos que

estariam dispersos na civilização seriam rearrumados sob o ponto de vista do

sinthoma, sob o ponto de vista do que funciona como causa para um sujeito. Dar

corpo ao não-todo, localizar o gozo, fixar os elementos do discurso, coordenar a

pulsão com o simbólico, são operações que podem definir um fazer analítico nos

tempos atuais.

Que lugar o analista deverá ocupar para dar conta dessas operações?

Voltemos à tese de Coelho dos Santos (2005) a fim de investigar quais são

as conseqüências do discurso do mestre ser ―cativo da vertente masculina da

sexuação‖ (p.46). Quando, logo acima, recorremos a essa tese, foi para ligá-la à

lógica do todo prevalente na civilização onde a renúncia ao gozo predominava

sobre o empuxo ao gozo. Agora, nós a utilizaremos para desenvolver uma

concepção sobre o modo de operar tendo em vista a lógica do não-todo.

A autora defende a idéia de que pelas fórmulas da sexuação temos dois

modos de fazer suplência à não relação sexual: um modo masculino e um modo

feminino. Essa idéia foi extraída do texto de Miller Uma repartição sexual (2003),

no qual o autor faz um repertório de conseqüências das diferenças sexuais, onde

inscreve a fantasia do lado do masculino. Coelho dos Santos (Ibid.) frisa que o

modo masculino se identifica à exceção, ao passo que o feminino ―não é afetado

pela identificação ao mestre‖ (p.47). Ao se identificar com a exceção pela via do


206

S1 como ideal, o homem se divide entre o gozo incestuoso perdido e o gozo

possível através de um objeto 'a' e, nesse lugar, coloca a mulher como objeto

fetiche. Essa organização é idêntica a fórmula da fantasia s ◊ a. Coelho dos

Santos (Ibid.) ressalta que se a mulher não toma o S1 como exceção com o qual

se identifique, isso quer dizer que sua lógica não se coordena ao traço e sim ao

furo no real, em suas palavras: ao ―buraco no corpo‖ (id.). Assim, o sujeito

feminino não se limita pela identificação, não entra nas coordenadas da ameaça

de castração, o que faz com que seu gozo já pressuponha que o Outro é barrado,

que não há exceção. É nesse contexto que a mulher reivindica para si a posição

de exceção: ser a única para um homem. Sobre esse pano de fundo, podemos

dizer que o não-todo não está na vertente da fantasia o e sim do S ( A ). Como

vimos no capítulo III, muitas outras conseqüências advêm desse fato para a

mulher. Mas, para nossa argumentação sobre o fazer do analista, basta indicar

que o modo de suplência do não-todo não se dá pela fantasia.

Dito isso, podemos ter na contemporaneidade tanto homens quanto

mulheres vinculados a um modo de gozo não-todo. O problema é que se, no

mundo antigo, as mulheres eram identificadas às bruxas, e nessa condição de

exceção produziam enigma para o mundo do pai, hoje a exceção se generalizou,

todos reivindicam essa condição, o que pode apontar para a falta de velamento da

fantasia. A prática analítica alicerçada no discurso do inconsciente não alcança as

subjetividades que não interpretam o desejo do Outro, que apenas se submetem

sem questioná-lo. A posição do analista como causa de desejo é correlativa ao

sujeito comandado por S1, aquele que fazia da fantasia a sua janela para o
207

mundo. Nos dias atuais temos um sujeito comandado pelo objeto, à caça do mais-

de-gozar. Disso se deduz que a interpretação que vise localizar o S1 anda a

esmo, pois seu alvo não comparece na fala do sujeito. Por outro lado, temos a

idéia da localização do gozo, da extração do objeto que permite ao sujeito uma

separação e uma constituição, aí sim, subjetiva. Temos a palavra oracular como

um modo de fala, portanto, de simbólico, que demonstra potência em relação aos

pedaços de real. Temos também, na vertente do ato analítico, o gesto e a

entonação sustentando uma fala que não vise o sentido, mas sim o gozo. Mas

qual posição o analista deve ocupar para que essas táticas surtam efeito? Qual a

estratégia possível?

Nesses casos, o analista no lugar de causa de desejo poderá se declinar

para um analista como causa de sintoma. O analista, nessa posição, estará mais

próximo de complementar o sintoma fazendo-se de parceiro do sujeito. Baseado

na estratégia da parceria, o analista poderá sustentar a crença no sintoma e na

particularidade do gozo. Para Laurent (2005), ―passar da crença no pai à crença

no sintoma é uma ambição da psicanálise do nosso tempo‖ (p.24).

Para tanto, mais que nunca, o desejo do analista será a base de sua ação

porque, para colocar seu corpo a serviço do sintoma, é preciso que seu desejo

tenha sido interpretado. Segundo Brodsky (2004): ―a fórmula máxima do desejo do

analista seria assegurar no mundo (não somente em seu pequeno consultório), a

suposição de saber no inconsciente‖, indo contra o seu desabonamento (p.152).

Segundo a autora, já será um ganho o fato de o sujeito crer no Outro como

inconsciente, ao invés de crer no Outro como o vizinho com más intenções (ibid.,

p.153).
208

Laurent (2004) nos adverte que não devemos pretender trazer alívio da

culpa em relação aos ideais porque o sujeito já está aliviado. ―Trata-se sobretudo

de fazer suportar a inconsistência do Outro, sua ausência de garantia, sem

contudo ceder ao imperativo de gozo do supereu‖ (p.18). A questão em jogo é que

o sujeito possa se liberar da obrigação de gozar, mas possa também suportar o

peso da relação com o gozo.

Crer no inconsciente possibilita ao sujeito estabelecer um tipo de laço com

o Outro que não seja de subserviência. Com essa finalidade, conceder ao

movimento do sujeito implica, paradoxalmente, manter-se firme nos princípios da

psicanálise. Por exemplo: um homem procura Graciela Brodsky (2004) por ela ser

mulher e lacaniana, mas diz não aceitar que as sessões sejam cortadas porque

considera arbitrário e prepotente, um abuso. Ele se diz especialmente sensível a

essa situação porque seu avô havia abusado de sua mãe. Graciela propôs trinta

minutos e ele aceitou. No começo, a analista se guiou pelo relógio, depois passou

a indicar o momento em que cortaria, caso não tivessem combinado previamente

o tempo da sessão. Depois, a analista passou a propor o término num dado

momento, até chegar a fazer sessões curtas (p.187). Catherine Lazarus-Matet

(2005) relata o percurso de uma análise em que a analisante, tendo chegado a um

momento especialmente difícil, pede que a analista a ajude deixando-a continuar

não mais em análise, mas em psicoterapia. A analista avalia como não se tratando

de uma resistência e consente. Em suas palavras, ela diz que fez ―um semblante

de psicoterapia‖ (p.192).
209

Cottet (2005a), ao se referir à psicanálise aplicada, diz ter aprendido com

Bachelard que ―uma prática esclarecida não se degrada, nem abandona em nada

seus princípios, ao deformar seus conceitos para ampliar o campo da experiê ncia‖

(p.29). Ele relaciona quatro aspectos nos quais a psicanálise é aplicada às novas

manifestações de desagregação do Nome-do-pai sem abrir mão de seus

princípios. O autor toma por base a experiência dos atendimentos com tempo

determinado, mas penso ser possível observá-los, de um modo geral, para os

sujeitos que hoje nos procuram. Os aspectos são os seguintes: 1 - pôr limite à

associação livre mediante um corte não semântico; 2 - isolar o real do sintoma e

privilegiar o laço a ser restaurado; 3 - ativar o tempo para compreender; 4 - o

analista deve se presentificar como objeto no face a face e não se limitar à escuta

(COTTET, 2005b, p.48).

Estas nos parecem indicações precisas e sábias para a prática clínica atual,

tendo em vista que elas ―favorecem uma clínica da suplência por intermédio da

fala e visam essencialmente desfazer o desligamento do Outro social‖ (id.).

Estranhar, perguntar, pontuar a fala do sujeito, nesses casos de indiferenciação,

torna-se muitas vezes o ouro da ação analítica. Introduzir um significante que

produza um corte no gozo, que localize esse gozo e o inclua na cadeia

significante, positivar uma ação, marcar uma articulação como importante,

destacar, de um emaranhado de sentidos, algum que situe o sujeito, pode ter

efeito organizador sobre um discurso disperso e descoordenado. Claro está que

isso será o início de um trabalho, que poderá ou não se desenvolver para uma

demanda de saber, mas já será muito se o sujeito consentir em fazê-lo.


210

Conclusão

Nosso percurso começou com Freud, passou pelos diversos momentos do

ensino de Lacan e chegou às mais recentes formulações de Miller sobre o sujeito

contemporâneo.

Nele, vimos que, desde Freud, há uma preocupação com o que do sintoma

não pode ser extinto. O mestre vienense não nos disse claramente, mas podemos

deduzir, pelo encaminhamento do seu raciocínio, que o sintoma pode ser

transformado constituindo uma solução para o sujeito.

Com Lacan, percorrermos os conceitos de sintoma, identificação, gozo e

finalmente sua concepção do sinthoma, já entendido como solução de uma

análise.

Podemos inferir que, se há sinthoma ao término de uma análise, sinthomas

podem ser construídos ao longo de uma análise, mesmo que está não chegue a

um término. Estamos no campo da psicanálise aplicada, cujo horizonte é a

psicanálise pura, tendo como orientação o real e podendo encerrar-se muito antes

do que a análise de um analista o faria. As operações de redução dos significantes

mestres vão circunscrevendo o gozo a pontos cada vez mais próximos daquele

que faria o sujeito prescindir do Outro e, assim, poder gozar com seu sinthoma.

Acreditamos, baseados na experiência, que muitas análises têm fim sem

chegar a esse ponto, e não me refiro às interrupções. Penso nas análises em que

o sujeito faz do encontro com o analista uma oportunidade única de transformar

seu sofrimento em algo produtivo e que, muitas vezes, lhe traz prazer. Penso

também nas pessoas que nos procuram em determinados momentos de sua vida.
211

Crianças que vivem perdas, jovens diante da escolha profissional, do encontro

com o outro sexo, adultos diante de uma separação conjugal ou da morte, podem

se beneficiar da psicanálise naquele momento, resolver questões que estavam

empatando sua vida e seguir adiante. Alguns voltam a nos procurar ao se

depararem com outras questões para as quais já sabem que podem contar com a

psicanálise.

Penso que já saímos, nós também, da época da idealização da psicanálise

como um processo que tem de ter um fim determinado, quando qualquer saída

antes desse momento era considerada uma interrupção.

Na psicanálise aplicada também há fim de análise, aliás, pode haver vários

finais de análise. A clínica do sinthoma nos permite pensar assim, justificar e

entender um final sem idealizações, sem pré-concepções. Ela nos permite avaliar

o que cada sujeito pôde fazer com seu sintoma, a partir do encontro com um

analista, diante de uma leitura do sofrimento que inclui a responsabilidade do

sujeito. Com ela podemos acolher soluções sintomáticas fora dos padrões e

mesmo análises que não têm fim, e considerar que essa é a solução para o

sujeito.

A clínica do sinthoma nos propicia pensar essa diversidade dentro da

própria teoria. O analista multi-uso sempre existiu, porém de forma envergonhada.

Metade do que se fazia nos consultórios não era comunicado à comunidade

psicanalítica porque estava fora dos padrões. Lacan já havia ampliado o campo de

da prática analítica, já havia lhe dado novos ares. Todavia, um novo efeito

imaginário surgiu, sob a forma do ―isso não é psicanálise‖, e acabou impondo uma

outra ortodoxia. Não estamos dizendo que tudo pode ser psicanálise. Afinal,
212

existem as psicoterapias e muitas outras terapias, mas é inegável que o espaço

de ação se ampliou.

É relativamente recente a entrada, ética e respeitosa, dos psicanalistas nos

dispositivos de saúde mental, nas mais diversas instituições e até mesmo na

polícia. Os que já trabalhavam nessas áreas não produziam sobre seu trabalho, se

envergonhavam dele, tomavam-no como meio de sobrevivência e não o

consideravam um trabalho psicanalítico. A tese de doutorado da Profa. Ana

Cristina Figueiredo (1997), que se tornou um livro pioneiro no assunto, mostra o

desconforto de ser psicanalista em uma instituição pública. Mostra também o

quanto esse desconforto tinha menos a ver com a psicanálise e mais com os

próprios psicanalistas.

O Campo Freudiano, ao assumir oficialmente um discurso que valoriza o

trabalho institucional, propiciou a essas experiências virem à luz, sedimentando,

assim, um campo de conhecimento renovador da psicanálise. Em um o utro

trabalho (MACHADO, 2003) defendemos a tese de que é no último Lacan que

encontramos uma base teórica sólida para essas ousadias.

Minha empolgação com o tema não me cega aos seus dilemas. Eles são

muitos. Esta conclusão, como toda conclusão, só faz relançar questões, por isso,

vou propor algumas.

Na psicanálise, a pressa tem uma função: não permitir a proliferação

desmedida de sentidos e o gozo com o blablablá. Mas ela não deve ceder ao

empuxo pós-moderno das soluções rápidas, que fixam mais ainda o sujeito na sua

posição de gozo sem se responsabilizar por ele. A pressa deve ser um recurso,

uma tática do analista orientada pela transferência. A experiência com tratamentos


213

de curta duração demonstra que a psicanálise não precisa durar uma eternidade

para fazer efeitos. Existem efeitos rápidos e até imediatos, qualquer analista sabe

disso. Há alguns anos, esses efeitos eram pejorativamente chamados de ―curas

transferenciais‖ e não mereciam a atenção e o rigor de uma pesquisa. Hoje, essa

pesquisa está em curso, com seus sabores e dissabores. Ela visa saber como

produzir esses efeitos, quais podem ser produzidos mais rapidamente e quais os

seus limites. Tenho certeza que esse campo não só vai contribuir para a prática

analítica, como também abrirá um campo novo de conhecimentos. Mas o desafio

de não cair na rede dos fast e fundar uma fast terapy não pode deixar de ser uma

de nossas preocupações. Quais são os nossos limites?

Uma outra preocupação diz respeito ao que poderíamos chamar de

tendência à ortopedia simbólica. Enfiar o pai pela goela adentro do sujeito

contradiz a clínica do sinthoma. Nosso trabalho visa o real pela via do simbólico, o

que sempre provoca um forçamento em direção ao simbólico. Porém, precisamos

admitir que soluções imaginárias podem ser o possível para alguns sujeitos.

Penso nas adições que, muitas vezes, se resolvem em grupos de auto-ajuda. Isso

é bom? Não, mas às vezes é o possível. Desestabilizar uma identificação com

esse tipo de grupo pode ter efeito devastador e pôr em risco o próprio sujeito. Do

mesmo modo, as religiões. Pacientes psicóticos, em geral, piram nas igrejas

protestantes muito rígidas, mas já vi outros encontrarem ali um lugar no mundo, às

vezes galgando uma certa posição na hierarquia. Muitos sujeitos contemporâneos

fazem laços imaginários importantes que, dependendo do caso, não devem ser

tocados em nome da ideologia do simbólico. Muitos casamentos torturantes

podem ser solução para sujeitos que, sem eles, se perdem.


214

A clínica do sinthoma nos dá mais liberdade na medida em que ela não tem

como única intervenção a interpretação, isso, contudo, requer do analista mais

análise. Intervenções ousadas são raras, mas podem e devem ser feitas desde

que estejam orientadas pela transferência e não pela contra-transferência. Elas

precisam sempre ser avaliadas pelos seus efeitos. Sua adequação, assim como

os desastres acarretados por elas, só se mostram no a posteriori, daí o perigo.

A renovação da psicanálise está em curso. Precisamos ser cuidadosos e

atentos para não fazermos da revolução uma boa maneira de não mudar nada,

como dizia Dom Helder Câmara, mas também não fazer da renovação uma

descaracterização completa.

“Uma verdade que emergiu só persevera no ser se ela


for capaz de uma mutação interna, se aqueles que a servem
não estiverem entravados por uma inércia subjetiva. Quando
alguma coisa termina, acaba” (MILLER, 2005, p. 256).
215

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