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Crônicas

de
Gilmar Marcílio
Índice

Abraço de homem
Os alarmistas
Amor e boas obras
Histórias de cães
Autodefesa
Colcha de retalhos
É na cama que se resolve
Com humor e imaginação
De reis e mendigos
Condenado a ser feliz
Guetos
Conquiste seus desafetos
Descabelada
Em cada deserto existe um poço
Flexibilidade e rigidez
Lamente-se ou siga em frente
Meias verdades
Leia as pessoas
Maneiras de se comportar
Nem parece
Abraço de homem
23 de dezembro de 2016
Ele se aproxima e eu sinto um calafrio na espinha. Ai
minhas costas, penso, preocupado com o tamanho da
“agressão afetiva” de que serei vítima. O amigo
escancara seu melhor sorriso e, ao me abraçar,
expressando a saudade que sente, dá um tapa que faz
as costelas sofrerem um considerável abalo. Fala um
palavrão qualquer e diz que não podemos ficar tanto
tempo sem nos ver. Pega nos meus ombros com uma
violência moderada e me conta o que tem feito
ultimamente. Esta é, em resumo, a maneira calorosa
com que a maioria dos representantes do gênero
masculino se comunica entre si quando o assunto é a
demonstração do carinho que nutrem. É preciso
reafirmar, em doses cavalares, a presença da
testosterona. Não pode pairar no ar nenhum resquício
de doçura, nada que lembre vagamente a presença do
desejo amoroso, mesmo aquele que traduz a simples
expressão do bem-querer. É assim que os machos se
protegem de qualquer insinuação sobre uma possível
ambiguidade, resultante dos contatos físicos entre
eles.
Há que se deixar bem claro que são varões
tarimbados. Depois desse pequeno ato de
agressividade, afastam-se rapidamente e, a partir
desse momento, uma espessa e invisível parede os
separará. A voz será o único fio condutor a sinalizar o
que os une. Entremeiam o diálogo, de preferência, com
algumas expressões chulas, que não viemos ao
mundo para nos desmanchar em doçuras e
delicadezas. Pobres de nós. Com um sorriso de
superioridade perdemos o que de melhor a vida pode
nos oferecer. Felizes das mulheres que se permitem
andar de mãos dadas, chorar juntas, sentir o coração
ardendo de amor sem despertar “suspeitas”.
Aprenderam que tudo fica muito melhor agindo assim.
Olham nos olhos e, se tiverem vontade, dizem que se
amam e que estão aqui para se ajudar, se proteger. Os
dedos deslizam pela face úmida de alegria, compondo
uma espécie de poema silencioso, num ritual que as
autoriza a dizer e expressar o que verdadeiramente se
passa.Mesmo com a sintomática mudança de
comportamentos no que tange às relações humanas,
alguns medos ainda resistem e fazem residência
dentro de nós.
Procuro ficar atento para não incorporar esses
códigos de rigidez, despreocupando-me com o que os
outros vão pensar, quando pulso de felicidade ao
reencontrar um amigo que me é caro. Gosto de
colocar as mãos em concha no rosto que se desenha à
minha frente. Sentir a pele como um lago sereno onde
posso descansar das agruras do dia. Não quero me
conter pensando no que “os outros” vão pensar. Quem
são eles, afinal, e que importância têm? Portanto,
rapaz, se você me encontrar na rua, seja exagerado,
acolhendo-me com um largo e manso gesto.De uma
maneira que poucos desconfiam, estaremos tornando
nossas vidas bem mais ricas. E seremos mais livres
também.
Os alarmistas
12 de março de 2016
Há pessoas que vivem com um eterno ponto de
exclamação diante de si. Espantam-se com tudo,
dramatizam as situações mais prosaicas. Exageram
na dimensão dos fatos. Trocam a serenidade pelo
desespero com a mesma facilidade com que outros
mudam de roupa. Lembram atores em cena, sempre
em busca do tom mais alto para dar credibilidade ao
roteiro. Durante anos, trabalhei em terapia a
diminuição desses decibéis. Sim, eu também tendia a
exagerar a importância do que me acontecia. É um
traço de personalidade difícil de ser erradicado,
porque é com essa visão que interpretamos tudo.
Embora se apresente como algo intenso, vital,
orgânico, passa a ser nocivo, se usado em grandes
doses.
Sua função é deformar o pensamento, atribuindo-lhe
um valor que não tem. Depois de muitos anos, já
consigo capturar a realidade em cores mais
atenuadas. Parte das situações que nos parecem
desesperadoras têm uma solução muitas vezes
simples, à nossa disposição. Basta tirar essas lentes
de aumento, respirar fundo e logo somos devolvidos ao
mundo da lógica e da razão. Os ganhos são muitos,
quando reencontramos nosso centro. A possibilidade
de não ter mais contratura muscular é praticamente
certa. Adeus noites insones. Bem vindas relações
mais leves, permeadas de frases que traduzem com
exatidão o que se passa em nosso interior. Mesmo
diante de uma crise, sentimo-nos capazes de
raciocinar com mais clareza, deixando o espanto para
os momentos necessários. Quando agimos de maneira
superlativa, estamos fazendo terrorismo conosco.
Boicotando toda possibilidade de deparar com a
resposta correta e deixar que a capacidade analítica
se encarregue de resolver o que nos parece insolúvel.
Se o dinheiro pode solucionar, por exemplo, não deve
ser tão grave.
Pode-se dar um jeito. Agora que estou razoavelmente
curado, alegro-me ao perceber que posso até me
desestruturar por um tempo. Mas isso não se apossa
permanentemente de mim. Para tudo há que se
pensar num plano B. Para isso devemos nos valer de
uma pequena dose de humildade,que se expressa no
ato de perguntar para outras pessoas o que fariam em
nosso lugar. Um amigo tem uma intuição certeira
sobre o caráter dos que com ele convivem. Depois de
meia hora de conversa, é capaz de definir, quase
sempre com precisão espantosa, os traços de
personalidade dos que o rodeiam. Aprendi a partilhar
com ele as minhas dúvidas quando conheço alguém.
Isso tem me ajudado muito a não entrar em certas
roubadas. Como ainda conservo alguns traços de
passionalidade, geralmente me afeiçoo ou rechaço já
no primeiro encontro. Quando percebo que não fui
capaz de dosar o que sinto, recorro a ele. Respiro
cinco vezes antes de soltar o verbo de modo
destemperado.
Cada um deve descobrir os seus recursos para sair
desses extremos. O meu é ler algum trecho de
filosofia ou um poema. Aí me conecto novamente com
o que vale ser experimentado e o que me atormentava
no limite máximo passa a ser meramente
coadjuvante. Ser privado da paz e da serenidade deve
se constituir em algo excepcional, não pode ser
corriqueiro. Isso não significa que devemos deixar de
fazer as coisas com paixão. Ela é um motor vital para
as nossas existências, mas ninguém aguentaria viver
nesse estado de exaltação vinte e quatro horas do dia.
Um bom termômetro para a avaliar a nossa saúde
psíquica é quando percebemos que não somos mais
afetados por comportamentos alheios. E nossas
respostas não são determinadas pelas perguntas que
provocam uma descarga de adrenalina em nosso
cérebro. Claro que qualquer criatura de bom senso
prefere passar ao largo desses atritos, mas nem
sempre é viável. Então, façamos a nossa parte,
baixando o tom de voz e constatando a pouca
importância de quase tudo.
Parece-me fascinante a ideia de ir polindo a si mesmo,
observando com acuidade cirúrgica o que perturba o
nosso sossego. Nem todas as cartas estão postas
sobre a mesa. E quando estão, ainda assim dá para
virar o jogo. Somos testados com frequência
assombrosa. Para fugir disso, só indo morar no mais
ermo dos lugares. E mesmo assim, corremos o risco
de nos irritar com o latido mais alto de um cão ou com
as formigas que estão destruindo um pé de roseira.
Repito sempre essa frase: nada é tão complicado
como parece. Esses entraves podem me desviar de
algum projeto importante, mas podemos buscar uma
alternativa. Digo isso para alguém que ainda não se
aquietou e a resposta costuma ser esta: para ti pode
parecer fácil, mas eu estou sofrendo muito. Sim,
acredito, digo-lhe, mas a chance de sair desse
infortúnio só depende de nós. Essa tarefa mental
demanda energia e muita força de vontade. Quem está
sugerindo esse desvio de rota é um homem que
habitou seu próprio inferno durante longo tempo. A
satisfação que resulta dessa vitória ultrapassa a
linguagem.
Ah, outro modo eficaz é lembrar que a morte é nossa
vizinha. E nos alcançará. Daqui a dez, vinte anos. Ou
amanhã. Somos todos filhos do acaso. Mas também
tecelões ardilosos que se creem donos do próprio
destino. Espante-se, mas com moderação. Arregalar
os olhos e desgastar as cordas vocais
desnecessariamente é contraindicado. Busquemos
outros remédios para os nossos males. Em breve eles
serão filhos do esquecimento.
Amor e boas obras

Tudo o que precisamos, disse o jovem pastor da aldeia


inglesa, é de amor e de boas obras. A série a que eu
assistia era um instigante suspense, mas a partir
daquele momento se tornou uma reflexão que
dominou meus pensamentos. Passamos a vida nos
debatendo com coisas vãs, enquanto a morte espreita
ao nosso lado. O sofrimento alheio faz nascer em
nossas bocas cansadas algumas frases de lamento,
quanto muito. Pouca ação, abundância de consciência
teórica. O amigo que chora a morte da mãe, o
andarilho que dorme ao relento e que contemplamos
com certa indiferença. Outro atravessa o mês
angustiado porque não consegue mais pagar as contas
com seu parco salário. E nós, imobilizados no
egoísmo, vivemos distraídos, sem nada fazer. Afinal,
qual é a nossa obra? E o que estamos pincelando com
amor? Para se compreender um ser humano, basta
observar um único dia de sua existência.
Mesmo não sendo desafiado a mostrar a sua
generosidade, as atitudes de seu cotidiano revelarão
muito de si. É nas dobras modestas de uma manhã
qualquer que se revelam os traços mais marcantes do
nosso caráter. Crer e ter fé são poderosos motores a
nos conduzir rumo a algo que transcenda o egoísmo.
Perder é lição valiosa, mas de precária duração para
as almas distraídas. Nossa função no mundo é a de
ser um tênue fio que sustenta a teia. Quase invisível,
mas precioso para que a arquitetura se mantenha de
pé. Medito para ampliar minha compreensão, a
maravilha dos sentidos. Leio e procuro escutar com
atenção para descobrir que minha voz só existe em
consonância com as demais. Sou diferente e preciso
aceitar as diferenças - é esse o mais desejado dos
propósitos. Como um ser errante, cada um deve
colher nas feições alheias a gratidão por tudo o que
nos toca. E fazer. Nosso corpo é um instrumento
perfeito e é nele que encontramos a possibilidade de
servir a quem sofre, ultrapassando essa precária
individualidade. Não façamos das veleidades um
centro que nos impulsione.
Que os olhos abracem sempre quem está precisando
ser consolado. Essa aprendizagem pode ser feita
lendo a Bíblia, um texto de Sêneca ou escutando o
desabafo de quem nos procura. São poucos os
momentos de grandeza, as epifanias com as quais
todos sonham. O que nos é oferecido é pequeno, mas é
esse o material que temos para testar se nosso
destino é a grandeza ou a mediocridade. Ser delicado,
gentil, emprestar nosso tempo para cuidar do outro,
tais são os desafios para nossa breve jornada. A
grande ceifadora ri satisfeita toda vez que nos
esquecemos disso. É a vitória que ela procura. Este
pequeno hino ao desapego me alcança numa serena
manhã de outono, quando me sinto reconciliado. Sou
grato por saber que só existe um enquanto existirem
todos.
Frase:
“Não façamos das veleidades um centro que nos
impulsione.”
Histórias de cães
24 de outubro de 2015
Gostaria de contar algumas histórias que vivencio
em minhas caminhadas matinais pelo interior de São
Virgílio. Além do prazer de estar em contato com a
exuberante natureza do lugar, ainda sou presenteado
com o carinho de muitos, muitos cães que me
acolhem com uma alegria que não costumo encontrar
em diversos seres humanos. Eu e minha amiga Veroni
mantemos uma saudável rotina dessa prática três
vezes por semana. Saímos de casa bem no início da
manhã, quando o sol começa a banhar os campos e a
recolher o orvalho. É um momento de grande beleza,
pois o perfume das flores se intensifica e ainda
podemos ouvir o canto de algum pássaro. E, como
complemento ao cenário perfeito, fazemos algumas
paradas para dar bom dia e acariciar a cachorrada
feliz que parece ficar ainda mais feliz quando nos vê. É
impressionante. Eles sabem (ou intuem, quiçá) o dia e
a hora em que passaremos em frente aos portões das
casas em que moram. É lindo vê-los em prontidão, tão
lépidos e fagueiros, no mais puro contentamento.
Começamos por cumprimentar a Juba. Com sua
pelagem preta, curta e reluzente, coloca o focinho
molhado entre as grades e late sem parar. Às vezes
ela está com um grande osso na boca, que larga por
breves instantes. Demonstra seu afeto sem perder a
oportunidade de se deliciar com o que, para ela,
representa uma verdadeira iguaria. Suas pernas
tremem, como se para expressar seu sentimento por
nos ver. Coloco a mão perto de sua bocarra para que
ela simule uma discreta mordida. Pronto, deve
“pensar”, já mostrei o quanto gosto deles. E, ato
contínuo, volta a se refestelar na grama úmida,
brincando com uma bola surrada, um pedaço de pano
ou de madeira.
Poucas dezenas de metros mais adiante, encontramos
a Georgete (o nome é ótimo!), uma simpática vira- lata
que costuma dormir no dorso de um pastor alemão
com cara de bravo. Mas só cara, pois é de uma
mansidão enternecedora. Quando ela nos vislumbra,
voa para a cerca e se retorce inteira de felicidade.
Sultão nem se mexe, só dá uma olhada de soslaio e
segue dormindo. A Georgete teve muita sorte. Ela
apareceu na nossa chácara, poucos meses atrás. Uma
adolescente traquinas que fez de tudo para nos
conquistar. Como eu e minha irmã já adotamos três
cães, não pretendíamos aumentar a família. Mas, por
uma boa coincidência, um vizinho que estava pintando
o portão justamente buscava por um filhote com
essas características – ela é bicolor, branca e
caramelo. Diante da nossa disponibilidade em doá-la,
não hesitou um minuto: ao entardecer, já estava em
seu novo lar. Foi um dia do mais puro regozijo para
todos nós.
Um final que poderia ter sido trágico, pois o que mais
vemos por aí são animais abandonados e maltratados,
demonstrando a indiferença de tantos diante do
sofrimento dos bichos sem dono. Sei muito bem disso
por morar próximo à SOAMA. Alguns que são
abandonados nas cercanias fogem, com medo,
morrendo à mingua, de fome e sede, perdidos nos
matagais próximos. É nessas horas que penso: será
que realmente somos feitos à imagem e semelhança
de Deus? Avançamos no nosso roteiro afetivo quando,
um quilômetro adiante, ouvimos o barulho
ensurdecedor de doze cães (doze!) que saem de seus
pátios para nos dar seu costumeiro oi. Eles
pertencem a duas famílias que, com a alma
encharcada de bondade, os recolheram da rua. É um
espetáculo adorável. Os pequenininhos, ousadamente,
saem atropelando os maiores, atirando-se uns sobre
os outros, lambendo nossas mãos e nosso rosto.
Há os de pelo curto, longo, claros; os escuros,
malhados, obesos e bem magrinhos. Eu me divirto
tanto, a ponto de esquecer que estou fazendo uma
atividade física e paro um bom tempo para brincar.
Minha amiga apura o passo e sou obrigado a seguir
em frente. Mas a disciplina termina logo.
Encontramos um cão que mais parece um lobo, mas
que nos encara com olhos amistosos, entretanto.
Abandonado, também foi abrigado por um senhor que
está uma residência em construção. Ele é o guarda do
local. Apesar do gesto admirável, ele se tornou
melancólico, taciturno, sem brilho. Por quê? Simples:
passa o tempo todo sozinho, sem ver ninguém, exceto
uma ou duas vezes por semana, quando lhe deixam
comida. Eu o chamo de maneira carinhosa, tocando
sua pelagem macia... mas dificilmente obtenho
alguma resposta. Só o sacudir discreto de seu rabo.
Claro, é melhor isso do que vê-lo transformado numa
criatura esquelética, como tantos que vagueiam por
aí.
Só que toda vez sou invadido por uma dor no peito, um
sentimento de impotência diante do seu olhar tão
carregado de solidão. Persisto, no entanto, nas
minhas tentativas de tirá-lo desse torpor. E a vida vai
seguindo e outros adoráveis cãezinhos nos aguardam.
O ponto alto acontece quase na metade do percurso,
logo após a bucólica igreja de São Francisco. Numa
antiga escola da localidade, hoje ocupada por um
casal, quatro figuras irrompem estrada afora e
começam a pular sobre nós. A palavra é exatamente
esta: pular. Imagine como ficam nossas roupas no
inverno, pois a partir desse trecho termina o asfalto e
se inicia um caminho de estrada de chão. Paciência,
penso, nada que uma máquina de lavar não resolva.
Vocês não imaginam a confusão: um querendo chegar
na frente do outro, atabalhoadamente. Seus nomes?
Branquinha, Pretinha, Lilica e Band (o nome “original”
é Bandido, mas achei que não combinava).
Eles nos acompanham. Durante quase uma hora
continuamos em sua companhia, tendo à nossa frente
essa matilha que corre, entra nas estradinhas
laterais, descobrindo sempre algo de seu interesse.
Voltam cansados, sedentos, com as energias
esgotadas. Mas nunca deixam de estar conosco,
mesmo quando chove torrencialmente. Relato essas
passagens para sensibilizar os mais empedernidos, os
que ainda não descobriram como é bom, como é
terapêutico amar e ser amado pelos cães. Eles são o
coração de um mundo onde a gratuidade pincela todas
as horas que passamos ao seu lado.
Autodefesa
Pense duas vezes antes de querer descobrir algum
segredo. Você pode não estar preparado para certas
revelações. Isso se chama autodefesa, o saudável
mecanismo que muitas vezes precisamos usar para
nos proteger de nós mesmos. O exemplo mais comum
é o de casais que atropelam o seu amor em busca de
uma evidência de que estão sendo traídos. Hoje em dia
ficou muito mais fácil monitorar os passos de quem
está ao nosso lado. Um celular esquecido sobre a
mesa, o computador distraidamente aberto numa
página pessoal. Pronto. Suas dúvidas se transformam
em certeza numa fração de segundo. Estou sendo
enganado. E agora? O que fazer com essa
constatação? Poucos estão aptos a lidar
emocionalmente com tal descoberta. O desejo de
exclusividade nos lança em busca de provas. Mas
esquecemos de perguntar a nós mesmos se essa
vigilância ostensiva não vai se transformar numa
espécie de veneno, num dardo que cravamos em nossa
própria carne.
Este é apenas um exemplo de situação em que, no
ímpeto de ter razão, buscamos desvendar certas
áreas obscuras, provocando uma dor que não estava
lá. Somos tentados o tempo todo a nos apoderar da
intimidade alheia, sem levar em conta que há
pântanos que só podem ser habitados por quem
conhece muito bem o lodo. Não quero dizer com isso
que a melhor solução seja ignorar o que
eventualmente nos machuca. No campo amoroso,
sobretudo, a sinceridade é um ingrediente essencial
para a criação de laços mais efetivos. Mas não
devemos esquecer que nem sempre conseguimos
manter o comando do que se passa em nosso coração
ou mesmo no cérebro. Então, uma pequena miopia
pode ser muito bem- vinda. Costuma ser
contraindicado testar nossos limites emocionais. As
prisões estão repletas de pessoas que perderam o
controle e a razão em casos assim.
Essa regra pode ser ampliada para diversas áreas.
Quando deixamos de lado a arrogância, a pretensão de
monitorar a vida alheia, passamos a viver mais
confortavelmente, sem tanta tensão. Afinal, o que
vemos é o resultado das ações, nunca os motivos que
as geraram. E cada um pode apresentá-los quase que
em ordem alfabética. Até os assassinos confessos.
Tenho tentado observar mais e interferir menos.
Compreender, quando o bom senso me permite, que
há espaços dentro de cada um que não podem ser
mapeados. Eles simplesmente estão aí e cabe a nós
aceitá-los. Pensemos no processo de negação. Quando
uma coisa é muito dolorosa para ser vivenciada sem
anestesia, fechamos os olhos e nos recusamos a ver o
que grita diante de nós. Claro que depois o
arrependimento toma conta e tentamos entender
como pudemos ser tão tolos, não percebendo o que
era absurdamente óbvio. Mas quem sabe isso
também não seja outra vertente da autodefesa.
Quando não podemos suportar algo, fazemos de conta
que isso não existe. Injetamos uma espécie de
morfina de efeito psíquico para não enlouquecer.
Ao invés de procurar inimigos do lado de fora, primeiro
é necessário investigar dentro de nós o mal que
estamos nos causando. A pretensão de tudo saber,
colocando uma lupa sobre cada pegada, pode resultar
mais em tristeza do que em satisfação. Estamos
perdidos num mar revolto que tanto mais nos engole
quanto mais nos debatemos. Quando aprendemos a
ficar bem quietos, buscando entender determinadas
atitudes, contribuímos para o fim de muita violência
emocional. Podemos e devemos erguer barricadas se
o material em estudo formos nós. Ensaiar coragem,
pôr limites toda vez que nos aproximamos do abismo.
Enquanto nos preocuparmos tanto com o que os
outros imaginam e dizem a nosso respeito estaremos
fadados à inquietação, à raiva e ao desejo de moldar
nossa imagem ao que eles esperam. Nesse caso,
melhor é pensar que daqui a pouco vamos todos
morrer e o julgamento alheio não tem importância
alguma.
O que vale é como nos vemos. E para limpar essa
imagem - a única que conta, afinal – seria bom
começar desde já a criar uma discreta película.
Proteja-se: a salvação, muitas vezes, está em enganar
a si próprio. Cada um deve descobrir a dose de verdade
que consegue suportar. O contrário disso chama-se
masoquismo.
Frase:
“Proteja-se: a salvação, muitas vezes, está em
enganar a si próprio.”
Colcha de retalhos
10 de outubro de 2015
Não sou saudosista, mas gosto de olhar para trás,
colhendo impressões sobre essa imensa colcha de
retalhos que chamamos de vida. Sei que resulto de
todas as decisões que tomei ao longo do tempo. E,
com igual valor, daquelas em que, por precaução ou
medo, permaneci inerte, incapaz de dar um passo
adiante. Nesse saudável jogo de revisão, nem sempre
é fácil entender as razões que nos levaram a
determinadas escolhas. Podemos até ser severos
demais quando buscamos nas reminiscências a
compreensão do que nos define hoje. Tento evitar essa
rigidez, exigindo que minha mente não seja conclusiva
até ter se transportado para a época em que os fatos
ocorreram. Mudamos tanto com o passar dos anos,
somos tão diversos do que fomos outrora, que é bem
difícil fazer certas análises sem nos equivocarmos.
Com o amadurecimento ganhamos mais tolerância,
deixando que os juízos implacáveis cedam seu lugar a
uma aceitação tácita, serena.
Fizemos o que fizemos porque naquele momento
parecia ser o melhor para nós. Não podemos pensar
que houve precipitação ou negligência. Talvez
dispuséssemos de menos recursos internos para ver
com clareza o que estava ocorrendo. A palavra
remorso deve ser banida, evitando acoplá-la ao que foi
experimentado com outro grau de consciência.
Sobretudo se esse sentimento de inadequação
continua paralisando as ações presentes. Estou lendo
a autobiografia do neurocientista inglês Oliver Sacks,
com o instigante título de “Sempre em movimento”.
Ele se propõe a dissecar, com uma sinceridade
perturbadora, também os períodos sombrios de sua
existência. Acostumados à sua imagem dos últimos
anos, de um homem sábio, ponderado, pesquisador
incansável e coroado de sucesso, não conseguimos
imaginar que tudo isso foi precedido por grandes
turbulências interiores, escolhas equivocadas e
repletas de angústia.
Ele pondera sobre a necessidade de se chegar a um
saudável grau de aceitação de si mesmo, fazendo uma
constante revisão do que nos leva por caminhos que
hoje rechaçamos. No seu caso, o uso das mais
variadas drogas e, por timidez e medo, a um celibato
involuntário de mais de trinta anos. É uma obra que
pode ser lida como um romance, cujo personagem
principal se alia à tradição dos aventureiros clássicos.
Mas para que esse grande ser humano não se
sentisse paralisado pelas circunstâncias, foi preciso
mergulhar fundo e, em não poucas instâncias, quase
desistir da vida. O que nós chamaríamos de uma
tentativa de sabotagem, ele prefere chamar
simplesmente de acúmulo de experiências. Está certo
que nem todos se arriscam tanto quanto ele e chegam
aos oitenta anos em plenitude criativa. Mas é tão
louvável ver alguém se expor sem autopiedade, sem
derramar uma lágrima sequer pelo que se perdeu ou
quando não se foi bem-sucedido. Tudo ocorreu da
maneira que precisava, ele nos diz nas entrelinhas
desse texto.
É o retrato corajoso de quem soube jogar luz sobre
todos os fatos, pois só assim é possível vislumbrar a
paisagem completa. Nossa tendência é a de
escamotear as razões que nos levaram a dizer sim,
quando teria sido melhor dizer não. E vice-versa. Só
que esse mosaico que chamamos de personalidade é
tão complexo, tão intrincado, que é praticamente
impossível esmiuçá-lo sem correr o risco de nos
assustar, dizendo: mas que pena que agi errado
naquela ocasião. Quando chegamos a tal
discernimento, um peso enorme é retirado de nossas
costas. Esse processo é feito à fórceps. Penso aqui,
especialmente, no que acontece quando se vive uma
paixão. Os que passaram por esse estado febril
sabem que o bom senso e a inteligência cedem o seu
lugar a uma entrega sem limites. O mundo
desaparece e tudo existe em função do ser amado. Só
que um dia termina. Pode virar um amor tranquilo ou
se transformar num sentimento rancoroso, envolto
numa pergunta que repetimos à exaustão: como
permaneci cego assim? Precisamos mudar essa
percepção, pois não nos ajuda a entender o que
significa esse estado vulcânico.
Procuro me observar com o máximo de isenção que
posso, sabendo que tudo que fiz ou farei está
entrelaçado às pessoas que convivem comigo. No
fundo, nenhuma decisão é estritamente individual. O
outro, o amigo, o irmão, o colega, também participam
dela. O melhor de mim está amalgamado com o pior, o
que procuro recusar. Somos uma sucessão de
fragmentos que não nos permitem ver com clareza a
obra pronta. Afinal, o que pode ser verdadeiramente
concluído? Costurando, aqui e ali, conforme o
material que temos à mão. Se algo não funcionou
conforme nossos critérios de avaliação, é porque
ainda estamos aprendendo a ver dentro da noite, a
adaptar os nossos olhos a uma realidade cambiante,
que sempre nos surpreende. O que importa é mover-
se, buscar, descobrir.
Quem deseja acertar sempre, acaba paralisado,
prisioneiro de um orgulho infantil. E faz com que se
desperdice a rara (talvez única) oportunidade de
desvendar o significado dessa viagem onde a felicidade
e o medo tantas vezes andam juntos. Depende de nós
revigorar uma e enfraquecer o outro.
É na cama que se resolve?
Precisamos nos convencer disso: homens e mulheres
sempre serão diversos entre si. Louvemos todas as
conquistas de igualdade, toda ruptura de preconceito
e a forma mais livre e solta com que estamos nos
relacionando afetivamente. Mas nem tudo é paritário.
Darwin explica? Provavelmente. Creio, cada dia com
mais ênfase, que alguns comportamentos humanos
são tão atávicos que mudanças culturais não os
eliminam. Eles têm a força da ancestralidade e, por
mais que nos esforcemos em ser modernos,
acompanhando a evolução dos costumes, algo dentro
de nós grita por permanência. Não tento justificar
cartilhas que provocam o distanciamento entre os
sexos. Busco apenas ler o que a realidade me mostra.
E a arte, seu espelho mais fiel, também. Talvez seja
por isso que o filme “Como nossos pais”, da diretora
Laís Bodansky, tenha deixado em mim tão fortes
impressões.
Ao retratar o cotidiano de uma família de classe média
urbana, colocou uma lupa sobre questões que não
podem ser cobertas por movimentos feministas e
muito menos pelo saudável desejo de ruptura que
ouvimos no discurso dos mais jovens. São tentativas
admiráveis de aniquilar um passado carregado de
interditos, enganos que nada mais fazem do que
estilhaçar os contatos amorosos. A cena que me fez
reconhecer o óbvio camuflado: Um casal, Caco e Rosa,
vivem em constante desentendimento. De horários, de
ideias, de gostos, de respeito. Mas continuam juntos,
pois os filhos, os pais, os vizinhos, etc... Num
determinado momento ela brada que está tudo ruim,
que não aguenta mais e quer se separar. Ele,
espantadíssimo, a encara sem entender nada e diz:
“Mas do que é que você está reclamando? Ontem
mesmo nós fizemos um sexo selvagem, como dois
adolescentes apaixonados!” Pronto, isso é mais do
que suficiente, no imaginário masculino, para
considerar que um casamento está dando certo.
Quase tudo é medido pelo que se passou na cama. É
claro que muitos casais em crise não preservam nem
esse último resquício de cumplicidade: o desejo
erótico. Mas quando ele ainda está lá, queixar-se do
quê, exclamam em coro os machos satisfeitos. Um
bom orgasmo equivale a qualquer conversa que tente
resolver conflitos. Se isso não é diferença de gênero,
expliquem-me o que é, por favor. Estou para
encontrar uma mulher que aceite isso como a solução
de problemas conjugais. Talvez haja um pouco de
exagero nesse escrutínio permanente de tudo o que
acontece no âmbito conjugal, como elas costumam
propor. Mas o outro extremo também não parece ser a
solução ideal. A libido não aplaina os conflitos,
zerando-os. Apenas os encobre. Provisoriamente.
Solução? Nenhuma. Apenas observar e observar-se
com mais atenção quando estamos partilhando a vida
com alguém, procurando não impor ao outro o que
pode ser somente uma questão de biologia ou de
cultura, quem poderá dizer.
Frase:
“A libido não aplaina os conflitos, zerando-os; apenas
os encobre.”
Com humor e imaginação
Digno de inveja seria o ser humano capaz de
descobrir a receita para um relacionamento amoroso
que atravessasse, sem arranhões, algumas décadas.
Desconfio que esse desejo de perfeição há de
permanecer para sempre como desejo, fadado a não
se concretizar nunca. O que não nos impede de
continuar apostando: namoramos, casamos, temos
filhos. Mesmo neste mundo de possibilidades e
experiências quase infinitas, vemos tantos
acreditando no mais tradicional dos compromissos.
Moram juntos como uma experiência, um teste, um
ensaio. Mas sonham com mais. Querem-se bafejados
com a sorte grande: encontraram o amor de suas
vidas. Mas a realidade se encarrega de mostrar, em
não poucos casos, que o tempo desconstrói esta
certeza. O cotidiano doméstico e suas múltiplas
exigências desfaz a utopia dos eternamente
apaixonados. A cólica de um bebê, o limite do cartão
de crédito que extrapola, o emprego perdido... O real
cobra do idealista a lucidez e somente os muito
preparados não dão fim a este contrato,
comemorando, agora, o divórcio.
Se você ainda acredita, diante de tantas evidências,
que é possível apostar no sucesso das uniões
estáveis, assista ao magnífico filme “Monsieur e
Madame Adelman”, do diretor Nicolas Bedos.
Acompanhará a graça, inteligência e nuances
psicológicas brilhantes, o encontro e a despedida final
de dois seres fadados a rir e a chorar juntos ao longo
de muitos anos. A se adorarem e odiarem - em muitas
situações, concomitantemente. Intelectuais e
amantes da arte, encontram nas palavras uma
maneira de sentir e interpretar a realidade que os
cerca. Com ironia e sarcasmo, tentam enganar o tédio
para manter intacto o assombro do primeiro olhar, da
plenitude sexual. Sem ignorar, no entanto, o
chamamento do ordinário, do que amesquinha a
poesia de quem está enamorado. Resistem às crises,
às separações, aos sinais de desgaste que aparecem
com o surgimento das rugas e o desaparecimento dos
cabelos. São famintos no querer, mesmo quando
traem. Trapaceiam, voltam a acolher-se ao se
sentirem tragados pela solidão. Apreciam a cobiça
alheia quando o sucesso é deles.
Ridicularizam-na quando é o contrário. Atormentam-
se e se afagam. Não sabem ficar distantes, mesmo
abrindo cortes na alma de quem dizem idolatrar. Você
pode conceber algo mais próximo de nós do que isso?
Afinal, nem sempre as cenas emblemáticas da nossa
existência vêm acompanhadas de pungentes solos de
violino.
Misture êxtase e sofrimento e terá início a sua
compreensão do que significa a palavra matrimônio. É
isso que comove na trajetória de Sarah e Victor. O
caminho para tanta resistência é dado nesta
formidável frase que deveríamos decorar (e praticar)
desde muito cedo: “Com um pouco de humor e
imaginação, o que acontece entre duas pessoas vale
mais que todos os prêmios.”
Frase:
“Misture êxtase e sofrimento e você começará a
entender o que significa a palavra matrimônio.”
De reis e mendigos
14 de março de 2015
Sobre reis: Dez horas da noite de uma agitada sexta-
feira. Entro num restaurante próximo de casa. As
mesas estão lotadas e os garçons correm de um lado
para outro. Freneticamente. Não param um segundo.
Espero quinze minutos até vagar um lugar. Sou
atendido por uma moça extremamente simpática e
atenciosa. Percebo em seu rosto visíveis sinais de
cansaço, o que não impede que ela me explique com
paciência franciscana os ingredientes de alguns
pratos que não conheço. Como sou frequentador
assíduo do local, pergunto se começou a trabalhar ali
recentemente. Ela me responde que está lá já faz
quatro anos, só que no turno da amanhã e da tarde.
Como seu chefe estava precisando de mais uma
pessoa para essa noite, aproveitou para fazer algumas
horas extras.
Entre uma conversa e outra, continuo sendo
presenteado com seu bom humor, sua risada
contagiante e uma disposição que não cede lugar para
o desânimo em momento algum. Depois de algum
tempo já me sinto íntimo dela. Pergunto-lhe: “Você
me parece uma mulher muito feliz, não?” Resposta:
“Ah, eu sou, não me deixo abater facilmente. Meu
marido está desempregado, tenho um filho de dezoito
anos que deixou de estudar e está andando em más
companhias. Tudo isso me deixa triste, claro, mas se
me entregar, aí sim é que as coisas ficam ruins
mesmo. Quando chego aqui esqueço tudo, brinco com
os clientes e ainda levo pra casa comida para o
almoço do dia seguinte. A vida é difícil, mas também é
muito boa. Não mudaria nada. Gosto de estar sempre
fazendo alguma coisa, de servir as pessoas que
chegam aqui com fome. É um trabalho bonito. Eu me
orgulho bastante dele.”
Sobre mendigos: Ele tem trinta e sete anos, um ótimo
emprego, dois filhos na faculdade e uma esposa que
diz amar muito. Saúde perfeita, pratica esportes e
viaja no mínimo duas vezes por ano. Mas quando entra
na sala onde trabalha, e que divide com mais quatro
colegas, consegue azedar o ambiente em poucos
minutos. Ele reclama de tudo. Do calor, do frio, do
tédio, do excesso de tarefas, da azia que está sentindo,
do cachorro que precisa levar para o veterinário.
Quem está próximo costuma reagir de duas maneiras:
ou faz de conta que não se importa com seu
permanente mau humor e aproveita os minutos de
folga para falar mal dele ou é puxado de roldão para
baixo, o que destrói qualquer possibilidade de cultivar
a leveza. O fato é que essa triste figura, mesmo tendo
tudo, nada tem. E se tivesse o dobro, não faria
diferença alguma.
Durante diversas tardes convivi com ele e sei que não
há exagero algum na imagem que dissemina por aí.
Porque não importa o que ganhamos da vida ou o que,
por mérito, recebemos como consequência do nosso
esforço. Mais do que o acúmulo ou a variedade das
coisas que estão a nossa disposição, o que conta
mesmo é a nossa atitude emocional. Somos como
uma criança em relação aos seus brinquedos: se
divertirá mais aquela que amar seu carrinho de
plástico do que a outra, mimada, que se enfastia com
suas mini Ferraris cromadas e motorizadas. Quem
aposta nas cartilhas de autoajuda poderia dizer isso: é
o poder do pensamento positivo. Numa linguagem
menos reducionista, devemos lembrar da imensa
capacidade que temos de transformar o chumbo em
ouro só com a mudança de alguns paradigmas.
Exceto em casos onde a depressão faz seus
conhecidos estragos, a verdade é que cada um de nós
escolhe ser rei ou mendigo. Muitas vezes as cartas
são distribuídas de maneira injusta e é normal que
nos revoltemos. Uns muito bonitos, outros
exageradamente ricos e outros ainda verdadeiros
gênios. E nós aqui na mais absoluta mediania. Pois eu
ando cada vez mais convencido que há muitas
vantagens em pertencer a esse último grupo. Vale
sempre o alerta: o perigo é maior quando há
abundância do que quando há escassez; esta mobiliza
as forças latentes que existem dentro de nós. Quem
tem que lutar se fortalece. Os que recebem tudo de
mão beijada ficam com o corpo e a alma flácidos.
Como disse Goethe: “Quem supera, vence.” Parece
mais uma dessas frases que ficam muito bem na boca
de um palestrante motivacional. Mas na realidade é
esse o grande teste pelo qual precisamos passar. E
observar quem está próximo funciona como uma
terapia gratuita: quero ser como esta, Deus me livre
de ser como aquele.
Um homem e uma mulher comuns. Como eu e você.
Aparentemente, a vítima das circunstâncias é ela, não
ele. Observando com mais atenção, porém,
percebemos que a situação é inversa. Onde
imaginávamos pobreza descobrimos um manancial
infinito de possibilidades para extrair da vida o que há
de melhor. Que normalmente não tem tanto a ver com
dinheiro, trabalho ou posição social. É uma verdade
muito simples, mas facilmente esquecível nestes
tempos onde o grau de felicidade é medido pela
capacidade de exibicionismo de cada um.

Teria conversado a noite toda com a moça do


restaurante. E, sempre que possível, estou longe, bem
longe, do homem que descrevi acima. Medito sobre
isso e percebo o quão enganoso é ficar refém das
aparências. É sempre na segunda impressão que
podemos definir o valor de cada reino.
Condenado a ser feliz
Eu gosto da ideia de esvaziamento. De deixar as
coisas ocas, sem serem preenchidas. De atravessar
os dias dizendo não a certos avanços, pois nada é
absoluto, senão pelo olhar de quem assim o quer. Meu
antídoto? Ler poesia. Mais, tentar viver poeticamente
cada instante, na certeza de que tudo é derradeiro.
Não me recuso a participar do mundo. Gosto das
pessoas, de estar entre meus pares. Regozijo-me com
a possibilidade de expandir o conhecimento.
Reconheço a beleza do desafio, do confrontamento.
Por outro lado, mais fácil é ficar quieto no meu canto,
professando o inquestionável. Só que isso acaba por
aleijar o caráter. A árdua tarefa a que somos
convidados é a de encontrar o equilíbrio entre a
exposição excessiva e a recusa em colher o que
pertence ao humano. E talvez o caminho onde se pode
espalhar essa semeadura seja o de olhar novamente o
pequeno, o que viceja nas bordas e não costuma ser
nominado. Mas isso deverá ser feito sem esforço
sobressalente, como se fosse o nosso estado natural.
E talvez seja mesmo e o tenhamos perdido em algum
desvão do processo evolutivo. Busco não só os que
escrevem poesia, mas os que se transmutam num
poço de lirismo. Que ainda mantém encantamentos,
que sabem as colheitas de cada estação. Há que se
valer de outras medidas, formas diversas de enxergar
o invisível e transformá-lo em matéria de uso
cotidiano. Uma folha que se desprende, formigas em
seu ofício, os jasmineiros, o riso de uma criança, os
velhos tão frágeis... Nós é quem atribuímos
importância ou recobrimos com espessa capa de
esquecimento. Então, com treino e perseverança, é
certo que seremos capazes de inaugurar novas
manhãs, crepúsculos que enternecem, o silêncio
maduro que antecede o êxtase e a agonia. Pois somos
todos feitos dessa matéria volátil, que passeia entre o
que se desmancha e o que, resistente, passa a habitar
o coração. Mantenho o estranho hábito de acordar
contente. Abro portas e janelas e bebo a luz que
instaura a alegria em mim. Começo caminhando por
quase duas horas, agradecendo ao corpo por
continuar alimentando a consciência.
Hoje fará sol ou choverá, tanto faz. Encontrarei
amigos. Sorrirei e me decepcionarei. Mas sempre,
sempre algo se alçará em busca de vontade, potência,
arte e afeto. Não sonegarei minha presença a quem
assim a desejar. Mas espero ser discreto, quando
assim o precisar, não ocupando espaços que não são
meus. E assim vou recolhendo indícios que me fazem
amar o que é doce, lírico, amoroso. Cavo dentro de
mim o azul que nem sempre encontro lá fora. Pode
ser que este seja o último texto, o último abraço, a
última primavera. Esteja eu enganado para continuar
sorvendo tudo que me condena a ser feliz. Frase:
“Cavo dentro de mim o azul que não encontro lá fora.”
Guetos
04 de julho de 2015
Se há algo que marcou profundamente a trajetória
humana foi o fato de termos nos transformado de
animais nômades em sedentários. Antes,
carregávamos apenas a nós mesmos através das
paisagens que conhecíamos e abandonávamos, num
processo que parecia não ter fim. Porém, em certo
momento, por razões que pertencem mais à
antropologia do que à especulação filosófica,
resolvemos parar, construir casas, delimitar
propriedades. Foi uma mudança radical e que originou
muitos dos nossos comportamentos posteriores.
Estabelecido o novo terreno, literal e
metaforicamente falando, nossa independência sofreu
uma grande fissura. Começamos a precisar mais dos
outros para sobreviver, pois o que era oferecido pela
natureza também começou a ser partilhado. E, numa
estratégia darwiniana, criamos relações mais
próximas com nossos pares. Esses contatos
ganharam dimensões maiores entre os que tinham
algum tipo de afinidade.
A consequência é que nos firmamos como grupos que
se aproximavam por identificação, buscando enfrentar
com mais força ainda as adversidades que viriam pela
frente. Faço esse breve comentário para agora me
deter num assunto sobre o qual meditei ao longo da
vida: o de querermos viver em guetos. Da busca dos
semelhantes para consolidar a nossa própria
identidade. Um recurso legítimo que, além de validar
nosso pensamento e inclinações éticas e morais,
ajuda a nos reafirmar diante dos que discordam dos
nossos posicionamentos. Não são todos os que têm a
coragem de se confrontar com o que diverge.
Clamamos pelo amparo dos outros. Queremos esse
suporte para endossar opiniões, crenças, gostos.
Transformamo-nos numa raça em que a força da
multidão tem um peso de destino. É um recurso que
atravessa a história e a psicologia humanas. Ainda
devem persistir dentro de nós resquícios de uma
época longínqua onde o medo era o componente
essencial. Sozinho me surpreendo fraco, vulnerável.
Mas isso, paralelamente, cobra o seu preço. Apoiar-
se somente no igual, no que reflete a subjetividade de
cada ser, nos afasta da pluralidade da existência, um
dos mais valiosos desafios que enfrentamos. Mesmo
tendo passado toda a minha infância numa pequena
comunidade rural – época determinante para a
estruturação da nossa personalidade – procurei, com
serenidade e sem fazer muito alarde, ir me modelando
a partir das minhas convicções mais íntimas. E a isso
agrego o mérito de ter sido uma trajetória solitária,
pois não podia contar com o apoio de muitos amigos e
colegas. Desde muito cedo comecei a me sentir bem
entre os “estranhos”. Aqueles que faziam escolhas
tão diversas das minhas. Não estou dizendo que não
devemos, em alguns momentos, consolidar
psiquicamente nossas características mais
marcantes por meio do contato com quem se
assemelha a nós. O perigo reside, parece-me, em
reduzir tudo exatamente a esse aspecto: esgotar os
dias entre os que professam os mesmos hábitos, a
mesma linguagem. Ao agir assim sentimos um
enorme conforto, ninguém o nega.
Porém, pouco crescimento. É uma verdade que se
estende também para as opções sexuais de cada um.
A beleza se encontra na compreensão e subsequente
aceitação. No que vai além do monocromático. Um
exemplo marcante pode ser encontrado em nosso
gosto pessoal. Passar os dias ouvindo sempre o
mesmo tipo de música ou lendo somente autores com
os quais nos identificamos, reduz as chances de
compreender o mundo além dos limites domésticos.
Daí a começarmos a flertar com alguma espécie de
ditadura do pensamento é um passo. É premente
reafirmar a importância de sair pelas ruas e nos
maravilharmos com a ciranda de homens e mulheres
que também buscam seu lugar ao sol. Não
precisamos deixar de nos aproximar de quem é
parecido conosco. O erro é fixar-se somente neles.
Precisamos vê-los como uma ponte, sem a obsessão
da permanência. Continuo rindo, me divertindo e
tendo prazer ao lado de quem professa crenças iguais
às minhas. Mas não quero me tornar alguém que
valida tudo através de uma ótica reducionista.
Simpatizo bastante com esta expressão: pular de
galho em galho. Deve ser por isso que cercas me
incomodam tanto. Resisto, igualmente, à ideia de ser
analisado apenas pela minha característica mais
marcante. Sou bem mais do que isso. Principalmente
porque tenho um interesse multifacetado pela
realidade. Um encantamento pela vida que, espero,
jamais me seja roubado. Se tenho toda a paleta de
cores à minha disposição, porque escolher somente o
azul, por mais que o aprecie? Muito do que somos
resulta dos encontros que fomos estabelecendo desde
o início da nossa formação. São fragmentos de uma
imensa tapeçaria que será interrompida apenas com a
nossa morte. Portanto, mãos à obra: faz bem respirar
outros ares. Brancos, pretos, gays, héteros, cultos e
nem tanto. Pobres e ricos. Vamos misturar e nos
misturar a tudo isso. Não conheço receita melhor
para acabar com qualquer tipo de preconceito.
Conquiste seus desafetos
04 de abril de 2015
Gosto de ouvir histórias. Além de ser um exercício de
afetividade, é bem provável que dos relatos que amigos
e conhecidos nos contam possamos ampliar a nossa
compreensão sobre a vida. Acompanhando-me numa
das minhas caminhadas, Ana me diz que durante
meses travou uma luta insana com uma enfermeira
de sua mãe. Na clínica em que ela está internada as
profissionais se dividem claramente em dois grupos:
as que gostam do que fazem e dedicam o mais
profundo amor aos velhos que estão aos seus
cuidados e aquelas que simplesmente cumprem suas
horas de trabalho. Deixam transparecer uma certa
indiferença por tudo o que se passa naquele lugar,
ignorando o quanto essas pessoas precisam delas
para continuar existindo. Nossa tendência natural é a
de agradar quem é gentil e se empenha em cumprir
as tarefas da melhor maneira possível. As outras,
essas costumamos escantear, quando não tratá-las
com franca agressividade.
Minha amiga seguiu esse previsível roteiro durante
alguns meses e o resultado foi desastroso. Hostilidade
gera mais hostilidade. Sempre. Mas, quando imbuídos
de um espírito belicoso, não nos damos conta que em
determinados momentos precisamos ser os primeiros
a acenar uma bandeira branca para que a paz se
restabeleça. Depois de muitas noites remoendo a
raiva, medindo forças com a mulher que continuava
tratando mal sua mãe, ela se deu conta de que a
solução estava em seguir o caminho contrário.
Passou a se despreocupar com aquelas que pareciam
viver num eterno plantão de amorosidade e
concentrou todos os seus esforços na irredutível e
severa criatura. Começou com pequenos presentes,
conversas mais demoradas – delicadezas que
rapidamente foram desmanchando as resistências
que sempre encontrava tão logo pisasse no local. O
ato seguinte foi conversar longamente com ela,
ouvindo seus relatos de vida, elogiando seu esforço.
Em menos de quinze dias ela já tinha uma forte aliada,
alguém que protegia sua progenitora com o zelo e a
fidelidade de um cão de guarda. O que no começo foi
um tanto quanto forçado, logo se transformou numa
admiração verdadeira e num respeito pela sua história
pessoal. Não que isso justifique qualquer tipo de
comportamento mais áspero, mas o fato é que essa
sofrida senhora vivia com seu filho numa casa
dilapidada por suas investidas furiosas em busca de
drogas. Seu modesto salário a impedia de procurar
qualquer tipo de diversão. Durante oito horas ao dia,
seis dias por semana, dedicava-se a fazer a higiene
das pacientes e, com uma constância desgastante, a
tolerar crises
de mau humor dos chefes. O que se poderia esperar
senão uma imensa tristeza revestida de revolta?
Penso nisso e me dou conta do óbvio: amar quem nos
ama é o que há de mais fácil no mundo. Esposos que
protegem um ao outro, pais que dedicam suas vidas
aos filhos, amigos que atravessam o mundo para se
encontrar. Mérito? Nenhum. Tão somente o que se
espera que aconteça entre pessoas que cultivam bons
sentimentos e acreditam numa convivência civilizada.
E, sejamos sinceros, na base dessas relações há o
desejo de reciprocidade. Porém, as religiões nos
alertam para a grandeza das entregas incondicionais.
Se fizermos um exame de consciência, chegaremos à
conclusão de que raramente conseguimos nos elevar
a um patamar tão alto. Gostamos para ser gostados.
Ponto final. O teste definitivo pode ser feito quando
nos deparamos com uma situação como a descrita no
início deste texto. Raspar de dentro de nós essa
espécie de orgulho incrustado na alma e dizer: “Certo,
ele não gosta de mim, é indelicado, até grosseiro às
vezes. Mas isso não vai determinar o que sinto.”
Parabéns! Você é um sério candidato ao prêmio Nobel
da Paz.
Ironias à parte, a coragem de refletir sobre essa
questão força em nós a capacidade de entender os
outros em suas particularidades. Em buscar razões,
motivos. Comumente vemos apenas as respostas. A
vida da maioria de nós é bem difícil e costumamos
lidar mal com o que não corresponde às nossas
expectativas. Mas responder com grosseria apenas
agrava o problema. É por isso que o perdão é um dos
pilares da busca espiritual. Conquistar quem nos
desagrada demanda trabalho e não há garantia
nenhuma de que seremos bem sucedidos nessa
empreitada. E o louvor talvez resida exatamente nisso:
na gratuidade, na aposta sem garantias. Sem contar
na alegria que nos invade quando percebemos que
nossas intenções alcançaram o seu intento. Fiz isso
uma meia dúzia de vezes e ainda guardo dentro de mim
um orgulho manso por ter agido dessa forma. Quando
deixamos de lado nossos impulsos mais primitivos e
agimos movidos pelo desejo sincero de melhorar
algumas relações contaminadas pela raiva, afinamos
nossa sensibilidade.
No entanto, não devemos nos considerar seres
iluminados, mas apenas merecedores de respeito por
termos conseguido quebrar um modelo de
comportamento que dita muitas relações. Não
existem muros que, com persistência, não possam
ser derrubados. Isso exige esforço e perseverança.
Onde antes víamos apenas um ressentimento azedo
dirigido a nós, podemos encontrar afetos represados
que precisam apenas encontrar um ponto de vazão. A
água correrá solta, fertilizando os desertos.
Descabelada
18 de novembro de 2016
Gosto da vida assim, sem uma ordem aparente; vida
imprevista, que acaricia e açoita, que não se deixa
domar jamais. Já fui tão metódico que planejava meu
dia com inútil antecedência, sofrendo quando meus
planos não davam certo. Mas não existem vésperas
para armazenar os nossos desejos. Tombos e
delicadas piruetas nos esperam logo ali, à revelia de
nossa vontade. Não sei o que me espera e aposto tudo
no imprevisível, na surpresa. Continuo gostando da
rotina, mas em doses miúdas. Interesso-me em
descabelar o que vejo à minha frente, tirando das
prateleiras o que foi separado por cor, tamanho,
textura. Que meu coração não seja tão compassado,
acalmando-se ou acelerando na medida em que o
nutro de novas emoções. Quero versos soltos, amigos
que me abracem, partam e voltem. A inconstância é a
própria condição humana, nutrindo-se das perdas
para formar um novo húmus. Que importa saber se já
vivi mais da metade da minha existência? Meus
últimos dez, ou vinte, ou trinta anos poderão ser mais
densos e poéticos que os demais.
Contento-me com a quantidade de horas que me foi
destinada ou que o acaso depositar em minhas mãos.
Ao acordar, bem cedo, visito meu jardim como se para
confirmar meu amor pelas flores, pelo vento e pela
suave tessitura que compõe cada folha, abrigo de
pássaros e insetos. À noite, durmo com a janela do
quarto aberta, para deixar que a alma se encharque
com o canto dos sapos, dos grilos e, quiçá, com o voo
tardio de algum vagalume. Sou feliz por ter tido
poucas privações. Acompanhei a última respiração de
pessoas que amei muito e espero ter ao meu lado, no
momento final, alguém que segure a minha mão.
Espero ter apenas pequenos arrependimentos. Nada
que me leve a fazer pactos tardios com um Deus que
sempre foi para mim uma possibilidade, não a
arrogância de uma certeza ou de uma negação.
Continuo sorvendo tudo com imenso prazer, como se a
liberdade consistisse em apenas aceitar, fugindo da
tentação fácil dos julgamentos. Amo filosofia,
acariciar o pelo dos cães, o perfume das glicínias,
páginas lidas e relidas dos livros que guardo em minha
biblioteca.
Cozinhar, plantar, esquecer momentaneamente quem
sou, praticando meditação. O melhor de tudo é ainda
continuar me espantando, como se o mundo tivesse
sido inaugurado ontem. As íris florescem. Duram
somente um dia. Ao lado delas, um muro de pedras
respira a eternidade. Em meio a isso, nós, humanos.
Fabricamos guerras, amamos, contemplamos, rimos,
sonhamos. Longe de uma ordem que imaginamos
existir. Tudo se faz, indiferente ao que acreditamos.
Em cada deserto existe um poço
08 de agosto de 2015
Li O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, quando
tinha aproximadamente vinte anos. Uma obra repleta
de mensagens edificantes que ainda permanecem na
minha mente como uma referência para diversos
momentos na vida. Tendo se transformado num livro
de cabeceira de quase todas as candidatas de
concursos de beleza, é natural que tenha sofrido
alguns arranhões em sua credibilidade filosófica.
Nunca mais visitei suas páginas. Não exatamente por
preconceito. Simplesmente porque acabava
esbarrando a toda hora em algum ensinamento
proposto pelo personagem principal. Mensagens a
conta-gotas. Este é um dos males de uma obra de
arte que se populariza excessivamente: acaba por não
merecer uma atenção mais apurada, pois cremos que
já foi dito tudo sobre ela. Pois recentemente, na
escola de filosofia onde estudo, a Nova Acrópole, foi-
nos oferecida uma palestra justamente sobre o livro.
Participei, não sem uma certa resistência. Para
constatar, ainda no início da explanação, o quanto
estava equivocado.
Atribuo também o mérito desse novo encantamento
às brilhantes reflexões da professora Jerusa que
explanou o assunto, fazendo uma série de relações,
inclusive com um diálogo de Platão. Ao voltar para
casa, resolvi colocar no papel algumas frases que se
tornaram referência para milhões de pessoas mundo
afora. Há quase sessenta anos e em praticamente
todos os idiomas. Dentre elas, uma insistia em ocupar
o meu imaginário, surgindo com repetida insistência:
“Em cada deserto existe um poço.” Tão singelo, até
meio óbvio, dirão alguns. Mas, pense, isso não cai
como uma luva nesses tempos em que o foco parece
mais direcionado para o pessimismo e a gravidade dos
fatos que nos chegam pelos meios de comunicação? É
mais provável nos interessarmos por algo do gênero:
“Cuidado, cada poço é circundado por um imenso
deserto.” Porque o nosso interesse é muito maior
neste. Fomos treinados para perceber tudo de
maneira catastrófica. O cultivo da sensibilidade e da
poesia passou a ser ocupação de diletantes, não de
pessoas sérias, comprometidas com a realidade que
as cerca. Obrigado, não quero seguir em frente me
alimentando só de tragédias.
Quase todos enfrentam problemas, ninguém o nega.
Quando dilemas de ordem financeira não assolam
nossos dias, são os de ordem emocional ou de saúde.
E para quem os sofre, eles têm uma dimensão épica.
Creio, porém, que estamos caminhando por terrenos
pantanosos, porque nos recusamos a parar e beber a
água que está à disposição de cada um. Não em
baldes, mas em pequenos recipientes que podem
matar a sede. Aprendo em minhas aulas a voltar a
atenção para o belo, o justo, o bom e o verdadeiro,
princípios basilares na obra de Aristóteles. Por que,
então, darei espaço para aquilo que obscurece a
alegria? Convivo com colegas que, de maneira
invejável, não costumam se queixar de praticamente
nada. Praticam as lições dos estoicos, aceitando com
mansidão o que lhes é oferecido. Você poderá pensar
que são alienados. Muito pelo contrário: interessam-
se profundamente pelo que acontece ao seu redor. A
diferença entre eles e a grande maioria é que não se
deixam contaminar pelo que ouvem. Cultivam gostos
refinados em música e leitura, sem serem
exibicionistas. Aprenderam que a busca do saber é
um propósito que deveria nortear todo ser humano.
Uma tarefa permanente que implica vencer
resistências, um dos grandes males dessa nossa
geração preguiçosa e desatenta. E, o que me parece
mais nobre: longe de qualquer pedantismo intelectual.
São homens e mulheres que se encontram para
aprender a caminhar por paisagens de clima árido
com a certeza de que em algum momento
encontrarão um refrigério. Um amigo costuma dizer
uma frase que me marca toda vez que a ouço: “Eu
invento o meu sol, mesmo quando chove.” É nesse
esforço que a alma se fortifica e reconhece o que lhe é
semelhante. Não existem realidades sombrias para
quem busca na arte um esteio moral. Imagine a
grandeza e as múltiplas interpretações que se
escondem numa breve história que atravessou
décadas e ainda tem tanto a nos dizer. E essa
magnitude só pode ser encontrada nos clássicos. A
questão fundamental é saber onde procurar o nosso
alimento. O que rastreamos está atrelado aos
estímulos que recebemos lá na infância. Ninguém é
brilhante por acaso. Sê-lo significa trabalho e
observação permanentes.
Muitas vezes é preciso persistir durante anos e anos
até deparar-se com uma miragem que seja. Mas
suficientemente real para despertar em nós o desejo
de seguir em frente. Desde o momento em que decidi
que, à revelia do que se passasse comigo, meu projeto
pessoal de felicidade não seria interrompido, comecei
a extrair contentamento em quase tudo. Isso pode
soar estranho para alguns. Principalmente aos que
gostam de anunciar só o lado ruim das coisas. Não
vale a pena. A areia escorre com espantosa rapidez
pela ampulheta. Por isso a consciência me diz:
aproveite. Então, sentencio para mim mesmo: não
posso ser infiel a esse propósito. Vamos procurar
juntos pelo poço?
Flexibilidade e rigidez
12 de dezembro de 2015
Podemos passar anos, quando não décadas, repetindo
os mesmos padrões de comportamento sem perceber.
Um pouco por comodidade – porque o que reiteramos
exige menos esforço de nós – e outro tanto por
herança familiar. Demorei muito para me dar conta de
que fui me prendendo a determinadas condutas,
fazendo os mesmos caminhos por puro
condicionamento. Para extinguir com esses hábitos é
necessário um gigantesco empenho. Eles aderem em
nós como uma segunda pele. E, por não causar um
visível desconforto, acabam nos acompanhando
existência afora. Mas há algo de absolutamente
nocivo em não quebrar essas estruturas que passam
a fazer parte do nosso caráter: conseguimos ver
apenas uma possibilidade diante de tudo que se
apresenta à nossa frente. Nem nos predispomos a
pensar que é oportuno olhar para o lado e perceber
que alguém está fazendo escolhas diferentes das
nossas, testando se isso o fará mais feliz ou não.
Para os que se prendem a um único modo de vida,
tentar aventurar-se pode parecer perigoso demais.
Preferem não arriscar. Enquanto os mais ousados se
entregam, experimentando múltiplas paisagens. Um
exame de consciência mais apurado pode jogar luz
sobre essa situação. Sim, porque na maioria das vezes
isso se dá num plano onde a razão e a mente não
decidem. Observo que, na medida em que vamos
envelhecendo, há uma tendência de converter o
movimento em mera observação, mantendo um
distanciamento das coisas. Alguns chamam isso de
prudência. Não tenho tanta certeza se este é o nome
correto. É claro que não precisamos nos atirar
loucamente diante de tudo que nos é oferecido. Mas
enrijecer a vontade, cobrindo-a com o medo, não nos
torna homens e mulheres merecedores de louvor.
Apenas elimina a curiosidade, um dos motores que
nos impulsiona. Ficamos mais temerosos, esquecendo
que melhor vive quem mais se entrega, sem a
preocupação com os resultados.
Nos jovens, ao contrário, há uma disponibilidade, um
desejo especulativo sempre tão latente, que os
transforma em criaturas saudavelmente maleáveis.
Se não é possível ir pela rota traçada, eles inventam
outra e aproveitam da mesma maneira. Pode ser a B,
a C, a D... parecem ter ao seu dispor todo o alfabeto.
Gosto muito de testemunhar suas ousadias, porque
provocam uma indagação: o que estou fazendo
comigo? Até perceber que, se recusar essa dimensão
mais ampla da realidade, estarei inevitavelmente
perdendo algo. Meu mundo será menor, menos
colorido e com pouco a ser explorado. Não faço aqui
somente a apologia do inédito, do transgressivo. Há
prazeres que podem ser acomodados dentro de nós
durante muito tempo. Apenas pontuo uma tendência
que vejo se sedimentar em muitas pessoas. Fixar-se
em algo e tê-lo como referência adoece a alma. Nossa
passagem por esse planeta é meteórica e há tanto a
ser visto e sentido. De forma real, concreta. Novos
amigos, viagens, e até libertar- se de alguns vínculos
familiares.
Que são um dos mais belos exercícios de afetividade,
mas que não nos deixam crescer se, em determinado
momento, não nos permitirem (ou não formos
capazes de) fazer o corte do cordão que nos une a eles.
Sei disso por experiência própria. Sempre vivi com
meus pais e tias, na mesma casa. Guardo a lembrança
de ter sido amado e querido durante o tempo em que
com eles estive. Depois de suas mortes, no entanto,
fui forçado a iniciar uma lenta e dolorosa recuperação
da minha identidade. As mais tristes orfandades são
as tardias. Tornei-me rígido porque tudo acabou se
misturando num mesmo espaço físico e emocional. E
é aqui que cabe perguntar: o que é mais prejudicial
para o nosso crescimento interior: o excesso ou a
falta de amor? Temos exemplos magníficos na
literatura e no cinema de personagens que, numa
dolorosa solidão, numa ausência total de laços, vieram
a ser tornar adultos com uma maturidade invejável.
Quando somos jogados sozinhos no mundo, só temos
uma opção: virar-se do jeito que dá. Ou perecer.
O ideal, o tão sonhado ideal, está em fornecer uma
dose de amor suficiente, mas que não ampute as
pernas dos que amamos. E quem poderá nos dizer
onde encontrar esse equilíbrio? Quando
presenteamos nossos filhos com o que de melhor o
dinheiro pode comprar, fazemos isso movidos por um
sentimento de carinho, como uma demonstração do
quão importantes eles são. Não há nada de nefasto
em si. Ninguém está pensando em mimá-los,
tornando-os inaptos a fazer escolhas futuras
baseadas em suas próprias decisões. O problema é
que, quando tudo nos é entregue sem esforço algum,
passamos a acreditar que deverá ser assim para todo
o sempre. Os outros nos devem isso. Lembro aqui de
uma clássica situação: deixe um adolescente que foi
superprotegido se virar sem apoio algum durante uma
semana e observe o que acontece; neste mesmo
período, acompanhe a trajetória de uma pessoa que
foi talhada com independência. Representam modelos
de rigidez e de flexibilidade. A força da sobrevivência
está na capacidade de extrair, em qualquer
circunstância, algo de precioso.
Há um transbordamento naqueles que sabem ir por
aqui, por ali, por lá. Transmutam os desafios numa
espécie de brincadeira. Sabem vergar-se como um
salgueiro que, mesmo diante dos temporais, consegue
manter-se de pé. Com o passar dos anos, mais difícil é
promover mudanças dessa ordem. A notícia boa é que
nunca é tarde demais. Pode provocar dor. Mas toda
vitória alcançada parecerá fazer parte de um enredo
épico. Vencemos, que maravilha! E não há a quem
culpar. Muitas vezes somos vítimas de vítimas.
Ninguém nos “deforma” propositalmente. Precisamos
lembrar que quando criamos vínculos e vamos
desenhando uma longa história em comum, tentamos
ofertar e receber o que há de melhor em cada um. O
jeito é absorver a parte mais bonita e não negar,
raivosamente, o que impede o crescimento. Isso pode
se transformar num rico material para reconstruir
com dignidade e valor a nós mesmos, pois jamais
poderemos nos considerar prontos.
Lamente-se ou siga em frente
24 de fevereiro de 2017
Na vida há sempre dois ou mais caminhos. Raramente
estamos encurralados numa única situação. Nossa
mente é que está. Basta fazer um movimento para
descobrir outras possibilidades. Creio que se
conseguíssemos ver isso com mais clareza, muitos
lamentos seriam trocados pela ação. A palavra, só a
palavra, paralisa, reforça o medo. Quando nos
sentimos atormentados por algo, é natural que
queiramos repartir essa sensação de aprisionamento.
Mas a linguagem deve ser apenas uma válvula de
escape temporária. A mudança está mais atrelada a
uma espécie de esforço físico, do funcionamento dos
músculos. O cérebro comanda, claro, só que é possível
desestabilizá-lo quando o foco é alterado. É difícil
admitir, porém. Muitas vezes a dor e o descompasso
com os nossos anseios nos deixam presos numa zona
de conforto. Repare, analisando o que acontece ao
longo de um dia, a quantidade de pessoas que sentem
um discreto prazer em se vitimizar.
Agora, pergunte a elas se estão fazendo algo para
romper essa casca que as isola das demais e das
situações que consideram perfeitas para a sua
felicidade. Preferem desfiar o velho rosário de sempre,
pois isso exige menos de cada um. Quando me sinto
desconfortável, quando algo me incomoda, reflito por
um curto tempo e depois saio de casa. Mudo de
cenário. Coloco as pernas para andar. A fórmula tem
se mostrado proveitosa. Principalmente porque o
drama se revela de menor importância. É como se eu
desse um zoom ao contrário. Ao invés de enxergar a
mim mesmo, somente, passo a incorporar à minha
realidade seres e objetos que até então eram
periféricos. Isso é o resultado de estar olhando cada
vez mais para o corpo e suas reações. Ah, e tenho
considerado o cansaço físico uma benção. Menos
devaneios e mais ação. Somos criaturas orgânicas,
respondemos aos humores corporais. Provocar o
esgotamento pode ser uma boa maneira de esquecer
nossos tormentos cotidianos.
Quando nos damos conta de que tudo é um sopro, não
gastamos nossas energias com enredos que são
apenas rascunhos de uma realidade mais valiosa. Já
não tenho muita paciência para servir de
confessionário das miudezas alheias. Ouço com
atenção, porque é sempre educado fazer isso. Mas
quando a lâmpada “perigo” acende, dou meia volta
volver. Bom mesmo é pisar no acelerador sem olhar
muito para trás. Não dá para ficar demasiado em
ponto morto. Oxida as engrenagens da mente. Um.
Duzentos. Seiscentos mil. Sete bilhões de criaturas se
colocando no centro do mundo. Não há espaço para
todos. Reserve suas melhores horas para cantar a
vida. Não enterre antecipadamente o que ainda pulsa.
E lembre: tudo é uma única vez.
Meias verdades
Reza a lenda que quando nos relacionamos com
alguém tudo o que queremos é que nos presenteiem
com a verdade; por favor, a verdade. Desde que seja um
derramamento amoroso, um dizer e redizer do quanto
somos importantes e de como a felicidade dele ou dela
depende infindavelmente de nós. De onde se conclui
que desejamos tão somente confirmações, certezas. O
tempo passa e insistimos numa transparência que
pode ser letal para qualquer projeto afetivo. Parece
estranho fazer a apologia dessa área nebulosa que fica
entre o real e o fantasiado. Pois será preciso mentir
para que tudo permaneça saudável? Nem tanto.
Prefiro acreditar que se ocultarmos de nossos amores
um pouco do que se passa conosco, tudo tende a
andar melhor. Não dá para colocar tudo na mesa. Por
exemplo, quem não gosta de olhar para uma pessoa
bonita, quem não tem inofensivos segredos e quem,
sobretudo, não deseja ficar sozinho em determinados
momentos?
É difícil encontrar esse equilíbrio, mas faz bem
afastar-se um pouco para sentir, logo adiante, o
conforto de um abraço, a doçura de uma frase bordada
em delicadezas. No dia a dia não conseguimos ser
constantemente encantadores. Precisamos ter
espaço para expressar nossas raivas, nossos
rancores. Um pouco distantes, por favor, porque
oscilamos entre sentimentos agradáveis e outros
francamente nocivos. O melhor antídoto para brigas e
desentendimentos continua sendo o bom humor.
Aprender a relativizar, colocando em perspectiva o que
por ora nos assusta e pode ser motivo de muita dor.
Saber que a falha é um pertencimento humano. Que
mesmo dando o nosso melhor muitas vezes somos
chatos, cansativos. Quando paramos de idealizar
quem está ao nosso lado passamos a ver leveza onde
antes colocamos âncoras. Depois de vários anos de
convivência, é natural que queiramos nos esconder
um pouco, resgatando uma intimidade pessoal, que o
casamento normalmente não abriga.
Digo isso com a convicção de que é uma dádiva
atravessar a existência ao lado de alguém que, acima
de tudo, admiramos. O resto pode até ir se tornando
sépia, mas há que se continuar olhando com
encantamento, querendo conversar horas a fio. Que
alegria termos nos encontrado, basta esta certeza. Dê
graças a Deus se você tem ao seu lado quem não lhe
impõe presença e atenção constantes. Que acha
aceitável o fato de você querer se divertir longe do
perímetro doméstico. Vele por isso. Pode ser o seu
maior patrimônio emocional. Tenho procurado
agradecer todos os dias por poder repousar minhas
mãos dentro de outras mãos. Mas aprendi a deixá-las
descansando no vazio em intervalos regulares. É
assim que continuo me entusiasmando com a
presença desse amor. Não blefo. Apenas não revelo
tudo.
Frase:
“Dê graças a Deus se você tem ao seu lado quem não
lhe impõe presença e atenção constantes.”
Leia as pessoas
06 de junho de 2015
Continuo acreditando, convictamente, que uma das
melhores maneiras de conhecer o mundo é por meio
da leitura. Com oito, nove anos, eu devorava
montanhas de gibis e revistas. Por morar numa
propriedade rural, sem televisão e sem acesso a
jornais, essa foi a maneira que encontrei de saber um
pouco mais do que se passava além desse
microcosmo. E não parei mais. Foram muitas as
personagens que habitaram a minha infância.
Consequentemente, nunca tive problema algum com
a solidão. Pelo contrário: continuo defendendo
ferozmente as horas diárias em que permaneço
sozinho, lendo e relendo os autores que são
responsáveis por grande parte do entendimento que
tenho da vida. É uma das formas mais prazerosas de
aprendizagem que conheço. Sempre farei a apologia do
contato apaixonado com as palavras.
Porém, mais recentemente, comecei a apreciar a ideia
de também sair desse esplêndido reduto e ir ao
encontro do variadíssimo cardápio composto pelos
seres humanos. É um desafio que me interessa cada
vez mais. Abrir a porta da casa e buscar um novo
material feito de emoções boas e também ruins, mas
que, ao cabo de tudo, nos ensinam como agir frente a
tantos desafios que somos convocados a enfrentar. É
um caminho áspero, que exige paciência e tolerância
em doses gigantescas. Estar em contato com as
pessoas nos fornece um rico material para avaliar
criticamente nossos próprios comportamentos.
Tentar entender as motivações alheias sem a
contaminação dos julgamentos prévios. Aprender a
ouvir, a ponderar, buscando no âmago de cada um as
razões que os levaram a agir assim e não como
gostaríamos.
Quando nos encastelamos no nosso fechado sistema
de crenças, tendemos a reforçar a conceito de que
todos deveriam pensar e agir como nós. Não é isso
que acontece com a maioria das religiões
monoteístas, por exemplo? Só há um Deus a ser
adorado e morte para todos os que não pensarem
assim. Os gregos foram mais sábios: tinham dezenas
de divindades às quais faziam seus pedidos e
dedicavam suas preces. Sem conflito algum.
Colocaram em prática a virtude da tolerância. Para
que isso volte a acontecer, precisamos expulsar essa
reiterada tendência de assimilar a vida passivamente.
Quando nos movimentamos, quando esbarramos em
outras criaturas que também buscam seu lugar neste
planeta habitado por bilhões e bilhões é que
conseguimos perceber o nosso real valor e, ao mesmo
tempo, a nossa insignificância. Uma percepção
saudável que ceifa a arrogância e nos faz compreender
o milagre de tanta diversidade.
Diante de um convite para encontrar um amigo ou
conversar com algum colega, fecho o livro que estou
lendo imediatamente. Sem pestanejar. Gosto muito de
acolher e ser acolhido, de reservar minha atenção
para o teatro das gentes. E se ele vier pincelado com
alguma dose de bom humor, melhor ainda. Numa
época em que todos se levam tão a sério, nada mais
salutar do que rir: de si e dos demais. Aprecio também
ouvir múltiplas opiniões antes de tomar alguma
decisão de maior relevância. Mas fico mais atento
ainda ao que me dizem todos aqueles com os quais
tenho algum tipo de discordância. São eles que me
mostram o reverso das minhas certezas, ampliando o
olhar sobre questões que passariam despercebidas se
buscasse tão somente o endosso do que penso. Até
porque cada ser é um palimpsesto sobre o qual vamos
sobrepondo sucessivas camadas. Hoje pensamos
assim. É possível que amanhã nos inclinemos a
considerar outro ponto de vista. Difícil conviver com
tantas polaridades?
Nem tanto. Já imaginou que entediante seria ficar ao
lado de alguém que se cobra coerência
permanentemente? Mais livres são os que se
permitem passear pelo céu e pelo inferno, com
paradas ocasionais no purgatório. Só depois disso será
possível fazer escolhas com convicção, não
comprometidas com o senso comum. Quando penso
nas belas lições que estão ao nosso dispor, bastando
que para isso saiamos do reduto do nosso eu, exulto
de alegria. Vem-me à mente a palavra “expansão”
toda vez que me predisponho a entender o que
motivou determinados atos. Expansão da alma, como
se algo dentro de mim se esgarçasse e fosse capaz de
abrigar multidões. Ler as pessoas é muito mais do
que analisá-las criticamente. É permitir que seus
sentimentos sejam nossos também. Como se
morássemos em muitas casas. E em cada uma delas
precisássemos aprender um idioma até então
desconhecido. Isso exige esforço e perseverança, mas
só assim aniquilaremos a soberba do individualismo.
Fique sozinho. É bom. Mas aproveite para celebrar
sempre que puder. E para isso você precisará de João,
Pedro, Carlos, Cristina... Somos também como os
livros: uma sucessão de páginas em branco que vão
sendo escritas com as impressões que deixamos e
recebemos da alma de cada um.
Maneiras de se comportar
14 de novembro de 2015
Lendo, observando ou conversando com amigos (se
você tiver algum que for psicólogo ajuda muito)
conseguirá ver com clareza que a maioria de nós
segue um mesmo tipo de comportamento nas
relações do começo ao fim da vida. Os que encontram
o modelo adequado não precisam passar por um
consultório terapêutico e nem perdem um precioso
tempo debruçados sobre si mesmos, investigando o
que lhes parece inadequado. São diversas as formas
de perceber o que se passa ao nosso redor. Temos
pouco controle sobre isso. Mas eventualmente chega
um momento em que nos damos conta de que algo
está errado e começamos a nos sentir
desconfortáveis. As coisas poderiam ser bem mais
agradáveis – quem não se fez essa pergunta algum
dia? O fato é que em nossa mente tudo se apresenta
intrincado, complexo. E deve-se aqui considerar o fato
de que em muitas de nossas experiências há o peso do
inconsciente.
Some-se aqui a força que a família exerce, não só a da
geração que nos antecede, mas outras e outras mais.
Felizes os que atravessam seus dias sem pensar
sobre isso e, com alegria e contentamento, seguem
com uma leveza que lhes confere satisfação plena.
São os que conseguiram estabelecer um patamar de
significados reais, práticos. Não precisam fazer
perguntas porque são gratos às respostas que
encontram. Coincidem consigo, afastando dúvidas de
qualquer ordem. Mas para tantos de nós será preciso
fazer ajustes para que aproveitemos melhor o que nos
é oferecido. Gostaria que você fizesse um exercício de
imaginação comigo. Visualize três imagens. Pense em
dois círculos. Entre eles há um considerável
afastamento. Jamais se tocam. O primeiro representa
o eu, o segundo o tu. Em meio a eles permanece este
espaço vazio. Há uma resistência que os impede de se
fundirem. Muitos, desconsiderando esse fato, seguem
em frente acreditando que estão estabelecendo um
contato permeado pela independência.
Mas o nome certo que se dá a isso é egoísmo. Não se
aproximam e nem deixam que deles se aproximem.
Simplesmente são incapazes disso. Nunca casam
verdadeiramente com ninguém. E uso aqui essa
palavra num sentido puramente subjetivo. Podem até
coabitar, mas suas almas raramente se encontram
com a do outro. Ocupar um mesmo ambiente, dividir
tarefas cotidianas, cuidar dos filhos. Isso não significa
uma união profunda e radical. Por isso, nem todos os
casais que estão juntos há muito tempo servem de
modelo a ser seguido ou invejado. Comunhão implica
em algo mais. Seria equivocado defini-los como
infelizes, necessariamente. Porém, deixarão de sentir
algo muito mais profundo e que, sem equívoco, pode-
se chamar de intimidade. O segundo modelo é
representado assim: Vários círculos, todos
sobrepostos, misturados, fundidos, emaranhados. A
tal ponto que não se consegue mais perceber qual é
um e qual é outro.
Parece até bonito num primeiro momento, uma
espécie de pacto para todo o sempre. Mas tende ao
doentio, pois significa a morte da individualidade. Pode
ocorrer entre esposos, pais e filhos, irmãos. Tudo
precisa ser feito junto. Vivem em bloco. Se você lhes
perguntar porque agem assim, a resposta mais
recorrente será esta: nós estamos nos protegendo, só
isso. Cabe aqui, no entanto, a seguinte indagação: e
quando quase toda essa pedra maciça for se
fragmentando e permanecerem somente uma ou duas
pessoas, nadando desesperadamente para não
soçobrar no mar da sua própria solidão? Um dia isso
acontece, sempre acontece. É a lei inexorável da vida.
O que parecia o modo perfeito de viver, um hábito onde
o cuidado e o zelo revestiam tudo, acaba se revelando
um abismo. A dificuldade de romper o cordão
umbilical o mais cedo possível resulta na deformação
da nossa personalidade. Ao passar décadas
caminhando com a ajuda de pernas alheias, fica difícil
demais recorrer apenas às duas que nos cabem de
direito. Dói saber que elas vão sendo amputadas.
Mas é necessário enfrentar isso o quanto antes, pois
as sombras poderão cobrir tudo ao chegar essa hora.
Quanto mais se espera, mais complexo será o que
precisaremos reelaborar. No terceiro modo de ser e de
agir encontra-se algo a que todos deveriam aspirar.
Um círculo se aproximando do outro, mas com
suficiente discernimento para não se confundir
totalmente com ele. Apenas uma pequena parte dos
dois está sobreposta. A maior permanece com suas
características originais, sem, no entanto, deixar de
experimentar a doçura de um sentimento
verdadeiramente partilhado. As peculiaridades de
cada um persistem, mas pode-se alimentar uma
profunda conexão. Há uma poesia que só pode ser
detectada por quem sabe que é essencial sair do
próprio casulo. Sem descartar, no entanto, o que os
faz ser quem são. Entrelaçam suas mãos, sem
abdicar jamais de sua liberdade. Apropriam-se de
seus companheiros não como um bote salva-vidas,
mas uma senda que se abre à sua frente e que
desejam conhecer.
Acercam-se um do outro de tal modo que acabam
compondo um cenário em que se dança ao sabor de
cada momento. É um balé de encontros e
afastamentos, no qual a fisionomia de cada um
obedece o ritmo e o movimento da música. Para
alguns é algo natural. Para outros, uma espécie de
presente genético; e há os que terão que trabalhar
arduamente para conquistá-lo. Há sempre uma
possibilidade de fabricar o próprio sol, quando se fala
de amor. Exige disciplina, perseverança e o abandono
do controle. Vamos nos habilitar?
Nem parece!
06 de janeiro de 2017
“Você já tem essa idade? Nossa, nem parece! Eu te
daria, tranquilamente, uns dez anos a menos.” Quem
de nós já não disse isso a um amigo ou amiga,
acreditando ser mais do que um elogio: a certeza de
deixá- los envaidecidos. Demonstrar menos do que
está escrito na certidão de nascimento passou a
encher de orgulho o destinatário de tal deferência. Ter
cinquenta anos e apresentar no rosto essas cinco
décadas tornou-se algo a ser evitado. Se der para
esconder ou disfarçar, perfeito. Cirurgias plásticas
nem sempre dão conta disso, no entanto. Muitos
passam a ser criaturas atemporais. Parecem estar
entre os trinta ou setenta, um verdadeiro horror! O
fato mais relevante, o de a quantas anda a nossa
estética interior, raramente vem à tona. Se a
aparência impressionar, ótimo. Afinal, tudo o que
queremos é convencer. Pouco, né? O bem-estar e a
renovação do gosto de existir, quando a sombra da
velhice se insinua entre as horas, deveria estar na
ordem primeira dos assuntos a nos preocupar.
Não lembro da minha avó ou dos meus pais tocarem
uma vez sequer nesse assunto. Eles eram bem mais
fiéis aos ciclos juventude/maturidade/senectude do
que nós. Dá muito trabalho (geralmente fadado ao
fracasso) retocar uma imagem que, a despeito do
resultado, tende invariavelmente ao declínio. A ideia
da decrepitude não agrada a ninguém. Se der para
postergar com sutileza, ok. Há um ponto em que é
preciso simplesmente aceitar. Minha maior
preocupação, atualmente, direciona-se em sentido
contrário. Ando vasculhando com insistência o lado de
dentro. Será que estou me transformando numa
pessoa mais rígida, tentando justificar meus
preconceitos? Estou mais ranzinza? Procuro só quem
tem a minha idade para conversar ou consigo me
relacionar com os mais novos e os mais velhos? Creio
que este é um questionamento que nos ajuda a
perceber se ainda persiste em nós o frescor tão típico
que vemos nos jovens e que, com certo esforço, pode
ser nosso companheiro enquanto houver prazer em
usufruir o que nos é oferecido.
Fico atento ao meu vocabulário, à quantidade de vezes
em que rio e faço rir, à capacidade de aceitar o novo e,
sobretudo, o quão curioso me mantenho em relação
ao que se passa ao redor de mim. Não preciso aceitar
tudo, mas também não quero ficar esbravejando só
porque o mundo está andando mais rápido do que eu
gostaria. Enquanto sentir prazer em me estar com
pessoas que pensam de forma diferente, sei que estou
no caminho certo. Alguma forma de juventude terei
conservado. Olho com certa reserva para quem se
submete com frequência a um bisturi. Prefiro cortar
de dentro pra fora. E sonhar que, chegando à provecta
fase da vida, depois de uma proveitosa e divertida
conversa, alguém me olhe e diga: Cinquenta e cinco?
Nem parece!

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