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de
Gilmar Marcílio
Índice
Abraço de homem
Os alarmistas
Amor e boas obras
Histórias de cães
Autodefesa
Colcha de retalhos
É na cama que se resolve
Com humor e imaginação
De reis e mendigos
Condenado a ser feliz
Guetos
Conquiste seus desafetos
Descabelada
Em cada deserto existe um poço
Flexibilidade e rigidez
Lamente-se ou siga em frente
Meias verdades
Leia as pessoas
Maneiras de se comportar
Nem parece
Abraço de homem
23 de dezembro de 2016
Ele se aproxima e eu sinto um calafrio na espinha. Ai
minhas costas, penso, preocupado com o tamanho da
“agressão afetiva” de que serei vítima. O amigo
escancara seu melhor sorriso e, ao me abraçar,
expressando a saudade que sente, dá um tapa que faz
as costelas sofrerem um considerável abalo. Fala um
palavrão qualquer e diz que não podemos ficar tanto
tempo sem nos ver. Pega nos meus ombros com uma
violência moderada e me conta o que tem feito
ultimamente. Esta é, em resumo, a maneira calorosa
com que a maioria dos representantes do gênero
masculino se comunica entre si quando o assunto é a
demonstração do carinho que nutrem. É preciso
reafirmar, em doses cavalares, a presença da
testosterona. Não pode pairar no ar nenhum resquício
de doçura, nada que lembre vagamente a presença do
desejo amoroso, mesmo aquele que traduz a simples
expressão do bem-querer. É assim que os machos se
protegem de qualquer insinuação sobre uma possível
ambiguidade, resultante dos contatos físicos entre
eles.
Há que se deixar bem claro que são varões
tarimbados. Depois desse pequeno ato de
agressividade, afastam-se rapidamente e, a partir
desse momento, uma espessa e invisível parede os
separará. A voz será o único fio condutor a sinalizar o
que os une. Entremeiam o diálogo, de preferência, com
algumas expressões chulas, que não viemos ao
mundo para nos desmanchar em doçuras e
delicadezas. Pobres de nós. Com um sorriso de
superioridade perdemos o que de melhor a vida pode
nos oferecer. Felizes das mulheres que se permitem
andar de mãos dadas, chorar juntas, sentir o coração
ardendo de amor sem despertar “suspeitas”.
Aprenderam que tudo fica muito melhor agindo assim.
Olham nos olhos e, se tiverem vontade, dizem que se
amam e que estão aqui para se ajudar, se proteger. Os
dedos deslizam pela face úmida de alegria, compondo
uma espécie de poema silencioso, num ritual que as
autoriza a dizer e expressar o que verdadeiramente se
passa.Mesmo com a sintomática mudança de
comportamentos no que tange às relações humanas,
alguns medos ainda resistem e fazem residência
dentro de nós.
Procuro ficar atento para não incorporar esses
códigos de rigidez, despreocupando-me com o que os
outros vão pensar, quando pulso de felicidade ao
reencontrar um amigo que me é caro. Gosto de
colocar as mãos em concha no rosto que se desenha à
minha frente. Sentir a pele como um lago sereno onde
posso descansar das agruras do dia. Não quero me
conter pensando no que “os outros” vão pensar. Quem
são eles, afinal, e que importância têm? Portanto,
rapaz, se você me encontrar na rua, seja exagerado,
acolhendo-me com um largo e manso gesto.De uma
maneira que poucos desconfiam, estaremos tornando
nossas vidas bem mais ricas. E seremos mais livres
também.
Os alarmistas
12 de março de 2016
Há pessoas que vivem com um eterno ponto de
exclamação diante de si. Espantam-se com tudo,
dramatizam as situações mais prosaicas. Exageram
na dimensão dos fatos. Trocam a serenidade pelo
desespero com a mesma facilidade com que outros
mudam de roupa. Lembram atores em cena, sempre
em busca do tom mais alto para dar credibilidade ao
roteiro. Durante anos, trabalhei em terapia a
diminuição desses decibéis. Sim, eu também tendia a
exagerar a importância do que me acontecia. É um
traço de personalidade difícil de ser erradicado,
porque é com essa visão que interpretamos tudo.
Embora se apresente como algo intenso, vital,
orgânico, passa a ser nocivo, se usado em grandes
doses.
Sua função é deformar o pensamento, atribuindo-lhe
um valor que não tem. Depois de muitos anos, já
consigo capturar a realidade em cores mais
atenuadas. Parte das situações que nos parecem
desesperadoras têm uma solução muitas vezes
simples, à nossa disposição. Basta tirar essas lentes
de aumento, respirar fundo e logo somos devolvidos ao
mundo da lógica e da razão. Os ganhos são muitos,
quando reencontramos nosso centro. A possibilidade
de não ter mais contratura muscular é praticamente
certa. Adeus noites insones. Bem vindas relações
mais leves, permeadas de frases que traduzem com
exatidão o que se passa em nosso interior. Mesmo
diante de uma crise, sentimo-nos capazes de
raciocinar com mais clareza, deixando o espanto para
os momentos necessários. Quando agimos de maneira
superlativa, estamos fazendo terrorismo conosco.
Boicotando toda possibilidade de deparar com a
resposta correta e deixar que a capacidade analítica
se encarregue de resolver o que nos parece insolúvel.
Se o dinheiro pode solucionar, por exemplo, não deve
ser tão grave.
Pode-se dar um jeito. Agora que estou razoavelmente
curado, alegro-me ao perceber que posso até me
desestruturar por um tempo. Mas isso não se apossa
permanentemente de mim. Para tudo há que se
pensar num plano B. Para isso devemos nos valer de
uma pequena dose de humildade,que se expressa no
ato de perguntar para outras pessoas o que fariam em
nosso lugar. Um amigo tem uma intuição certeira
sobre o caráter dos que com ele convivem. Depois de
meia hora de conversa, é capaz de definir, quase
sempre com precisão espantosa, os traços de
personalidade dos que o rodeiam. Aprendi a partilhar
com ele as minhas dúvidas quando conheço alguém.
Isso tem me ajudado muito a não entrar em certas
roubadas. Como ainda conservo alguns traços de
passionalidade, geralmente me afeiçoo ou rechaço já
no primeiro encontro. Quando percebo que não fui
capaz de dosar o que sinto, recorro a ele. Respiro
cinco vezes antes de soltar o verbo de modo
destemperado.
Cada um deve descobrir os seus recursos para sair
desses extremos. O meu é ler algum trecho de
filosofia ou um poema. Aí me conecto novamente com
o que vale ser experimentado e o que me atormentava
no limite máximo passa a ser meramente
coadjuvante. Ser privado da paz e da serenidade deve
se constituir em algo excepcional, não pode ser
corriqueiro. Isso não significa que devemos deixar de
fazer as coisas com paixão. Ela é um motor vital para
as nossas existências, mas ninguém aguentaria viver
nesse estado de exaltação vinte e quatro horas do dia.
Um bom termômetro para a avaliar a nossa saúde
psíquica é quando percebemos que não somos mais
afetados por comportamentos alheios. E nossas
respostas não são determinadas pelas perguntas que
provocam uma descarga de adrenalina em nosso
cérebro. Claro que qualquer criatura de bom senso
prefere passar ao largo desses atritos, mas nem
sempre é viável. Então, façamos a nossa parte,
baixando o tom de voz e constatando a pouca
importância de quase tudo.
Parece-me fascinante a ideia de ir polindo a si mesmo,
observando com acuidade cirúrgica o que perturba o
nosso sossego. Nem todas as cartas estão postas
sobre a mesa. E quando estão, ainda assim dá para
virar o jogo. Somos testados com frequência
assombrosa. Para fugir disso, só indo morar no mais
ermo dos lugares. E mesmo assim, corremos o risco
de nos irritar com o latido mais alto de um cão ou com
as formigas que estão destruindo um pé de roseira.
Repito sempre essa frase: nada é tão complicado
como parece. Esses entraves podem me desviar de
algum projeto importante, mas podemos buscar uma
alternativa. Digo isso para alguém que ainda não se
aquietou e a resposta costuma ser esta: para ti pode
parecer fácil, mas eu estou sofrendo muito. Sim,
acredito, digo-lhe, mas a chance de sair desse
infortúnio só depende de nós. Essa tarefa mental
demanda energia e muita força de vontade. Quem está
sugerindo esse desvio de rota é um homem que
habitou seu próprio inferno durante longo tempo. A
satisfação que resulta dessa vitória ultrapassa a
linguagem.
Ah, outro modo eficaz é lembrar que a morte é nossa
vizinha. E nos alcançará. Daqui a dez, vinte anos. Ou
amanhã. Somos todos filhos do acaso. Mas também
tecelões ardilosos que se creem donos do próprio
destino. Espante-se, mas com moderação. Arregalar
os olhos e desgastar as cordas vocais
desnecessariamente é contraindicado. Busquemos
outros remédios para os nossos males. Em breve eles
serão filhos do esquecimento.
Amor e boas obras