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A PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS

A fé e o funcionamento da igreja bíblica

3ª Edição
Revista e Ampliada

Marcos Granconato

São Paulo
2015
Copyright © 2015 por Marcos Granconato
Publicado pela Hermeneia Editora

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998.

É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por


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Granconato, Marcos

A prática da igreja de Deus / Marcos Granconato – São Paulo:


Hermeneia, 2015.

3ª Edição Revista e Ampliada

________________________________________

Capa: Thomas Tronco e Níckolas Ramos – Saint Alban’s Cathedral, UK


(foto do autor)
Ilustração: Carlos A. Ferolla
Preparação de texto: Amorim Leite
Revisão: Simone Matias
Diagramação: Níckolas Ramos Borges

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados pela:


Hermeneia Editora Ltda
Nenhum tijolo escolhe seu vizinho:
isso depende do plano do dono da obra.
É ele quem escolhe e ajusta cada tijolo que forma a casa
e os coloca lado a lado.

Os outros nos apertam e limitam,


mas também nos sustentam e apoiam.
Quem quiser ficar sozinho será como um tijolo abandonado,
inútil e frio.

Hino alemão

Atendei por vós e por todo o rebanho


sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos,
para pastoreardes a igreja de Deus,
a qual ele comprou com seu próprio sangue.

Atos 20.28
Dedicado a Renato Macieira, Carlos Alberto Ferolla e Leandro Boer,
homens que amam a igreja de Deus e mostram isso na prática.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
PRÓLOGO - O ‘CRISTÃO VELHO’ E O ‘CRISTÃO NOVO’
Capítulo 1 - Igreja local: definição, propósito, importância e modo válido de implantação
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS
Capítulo 4 – O EVANGELISMO
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E VÃO
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA LOCAL
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL DA IGREJA
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA IGREJA
Capítulo 12 – O CASAMENTO
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTÃ
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE ENFRENTAR A MORTE
CONCLUSÃO – AS PEDRAS DE CARBURETO
PRINCÍPIOS GERAIS LIGADOS À PRÁTICA DA IGREJA DE DEUS
REFERÊNCIAS
SOBRE O AUTOR
APRESENTAÇÃO
Este livro surgiu a partir de aulas ministradas na classe de novos
membros da Igreja Batista Redenção na qual exerço o ministério pastoral
desde 1997. Como o objetivo da classe era tornar a igreja conhecida para
aqueles que demonstravam interesse em fazer parte dela, era natural que as
aulas versassem sobre os princípios que cremos ser fundamentais na
composição das bases de uma igreja bíblica, bem como sobre os
desdobramentos práticos desses mesmos princípios.
Assim, antes de iniciar a leitura, o leitor deve estar preparado para
entrar em contato com a defesa de inúmeras convicções, bem como atentar
para a solidez dos fundamentos bíblicos sobre os quais estão edificadas. A
angustiosa situação presente requer definições claras e objetivas de fé e um
total abandono de meias-palavras que evitam o compromisso sério com
qualquer linha de pensamento. Tal postura, tão comum em nossos dias, não
defende a verdade, antes a obscurece ainda mais. Por isso, este livro
raramente apresentará “leques de opções”. Antes, sairá na defesa do que
cremos ser verdadeiramente bíblico, recusando clara e veementemente os
desvios eclesiásticos que proliferam nos nossos dias.
Finalmente, devo tecer algumas frases de agradecimento àqueles que
tornaram possível a vinda deste livro à luz. Agradeço, em primeiro lugar,
aos membros da minha querida Igreja Batista Redenção que me
concederam o tempo e o apoio necessários para a realização do presente
trabalho. Também sou grato aos alunos do Seminário Bíblico Palavra da
Vida, onde tenho lecionado por quase trinta anos. Esses alunos sempre me
incentivaram a escrever sobre minha filosofia e prática ministeriais. Sem
esse incentivo, o conteúdo deste trabalho talvez permanecesse para sempre
restrito à pequena classe de novos membros da igreja que pastoreio.
Agradeço ainda aos pastores Thomas Tronco dos Santos, Marcos
Samuel Pereira dos Santos e Adarlei Martins. Suas preciosas sugestões
serviram para sanar diversas falhas neste projeto e contribuíram para tornar
a presente obra melhor sistematizada e também mais relevante e atual.

Pr. Marcos Granconato


Novembro de 2014
Soli Deo gloria
PRÓLOGO O CRISTÃO VELHO E O CRISTÃO NOVO
- ‘ ’ ‘ ’

Nos dias modernos, os maiores perigos que desafiam os crentes


verdadeiros não são mais os provenientes do catolicismo, do espiritismo,
das religiões afro-brasileiras e nem do ateísmo. Hoje, é dentro da própria
comunidade dita evangélica que o crente encontra as mais graves ameaças
contra a fé, a verdade e o bom proceder.
Verifica-se atualmente a assustadora e incessante multiplicação dos
pastores da mentira, das igrejas que ensinam fábulas e dos conjuntos
“evangélicos” que cantam coisas sem sentido enquanto dançam
freneticamente. Isso tudo, além de se encontrar em quase toda esquina, está
todos os dias no rádio, na TV, nas revistas e nos jornais, deixando muitos
crentes confusos diante de tantos ensinos novos, proclamados aos berros
com o propósito de dar a impressão de que quem os prega está convicto do
que diz.
Em virtude desse tão horrível quadro, os raros pastores bíblicos de
hoje têm de alertar os membros de suas igrejas contra práticas e crendices
que, equivocamente, se denominam cristãs e se preocupar mais com o
perigo que elas representam do que com os tradicionais inimigos da fé.
Outro efeito desse estado de coisas é a infeliz associação da
superstição, da ignorância, do engano, da exploração e do escândalo com o
nome “evangélico”. Essa associação promovida pelos movimentos
pseudocristãos dos nossos dias trouxe irreparáveis prejuízos para a
verdadeira igreja de Cristo, comprometendo sua identidade.
Foi-se o tempo em que as palavras “crente” e “evangélico”
designavam pessoas diferentes, marcadas por decência, amor à família,
responsabilidade, firmeza doutrinária e zelo pelos interesses do Reino.
Atualmente, essas palavras designam muitas vezes pessoas desprovidas de
virtudes espirituais, de bom discernimento e de conhecimento bíblico, que
se ocupam quase todo o tempo de correr atrás das mais absurdas heresias,
ensinadas por vigaristas interessados somente em lucro financeiro.
Os crentes verdadeiros, portanto, não podem mais se sentir à vontade
com o título “evangélico”. Esse termo está muito desgastado, e a maior
parte das pessoas a que agora se refere está bem distante do seu significado
original. Nos dias de hoje, infelizmente, a linguagem tem de sofrer
modificações a fim de se acomodar à nova e triste realidade e expressar
com maior clareza o que um real convertido quer dizer quando afirma que é
crente.
Também as palavras “crente”, “cristão” e “protestante”, conforme a
experiência mostra, não são mais satisfatórias, de modo que tudo indica a
necessidade de uma nova designação. Em face da urgência em frisar a
diferença, sugere-se aqui a expressão “cristão velho”. Ainda que evoque
lembranças dos tempos da inquisição espanhola, é possível que essa
[1]
expressão suporte eficazmente a ideia que pretende aqui transmitir.
Assim, “cristão velho” seria uma forma de designar o crente
verdadeiro, cuja fé e vida se amoldam aos antigos padrões da igreja
neotestamentária. Cristão velho seria, portanto, o homem que se identifica
com o antigo cristianismo e se distingue por forte apego à sã doutrina e
monumental proceder moral.
Em oposição a essa notável e bela figura surge em anos recentes o
“cristão novo”. Este é o seguidor de fábulas e superstições das mais
diversas espécies. Trata-se daquele “evangélico” que frequenta as
numerosas “comunidades” modernas e mal conhece quem se senta ao seu
lado, já que nesses lugares há constante vaivém de pessoas que raramente se
firmam em algo, as quais geralmente vivem de lá para cá ávidas por
emoções novas.
Com efeito, enquanto o cristão velho é conhecido por seus irmãos e
por seu pastor e mantém com eles comunhão e amizade, o cristão novo
dificilmente tem vínculos com a igreja que frequenta, nem se exige isso
dele. Aliás, a maior parte dos pastores das igrejas de cristãos novos não tem
interesse em formar um rol de membros com os quais tenha de se
preocupar, além de cuidar e nutrir. Ao que parece, tudo que importa para a
maioria desses líderes é ter a casa cheia de uma multidão de desconhecidos
que, impulsionados pela superstição, queiram obter prosperidade, emprego,
saúde e proteção contra males imaginários.
Outra marca distintiva dos cristãos novos é a despreocupação em
avaliar o que lhes é ensinado. Seja qual for a mentira que ouçam, se vier
acompanhada da fórmula “em nome de Jesus” ou de três ou quatro
“aleluias”, imediatamente lhe dão crédito. Já foi dito ousadamente que, se
[2]
alguns falsos pastores, que a Bíblia chega a chamar de cães, literalmente
latissem, sem dúvida seus seguidores os aplaudiriam e gritariam comovidos
e em lágrimas: “Glória a Deus!”. A triste verdade, porém, é que isso já tem
acontecido. Escritores modernos têm documentado que em certas
comunidades evangélicas o latir ou o emitir outros sons de animais têm sido
[3]
reconhecido como evidência de plenitude espiritual.
Fato também digno de nota é que, em vez de ser luz do mundo a
brilhar nas trevas e sal da terra a preservar a sociedade da podridão, os
cristãos novos assemelham-se a tambores: são tão barulhentos quanto
vazios. Os crentes verdadeiros devem ter pena dessas pessoas e orar por
elas, pois sua vida é tão oca, tão privada de conteúdo, tão carente de
satisfação espiritual que todo o barulho que fazem durante suas reuniões e
passeatas pode ser interpretado como um grito desesperado em busca de
algo que a preencha, mesmo que só por alguns instantes. Ainda assim,
chamam essas manifestações de “fervor” ou de “reavivamento” e acusam
quem delas não participa de “crente frio”. Se, contudo, iluminados pelo
Espírito Santo, tivessem leve noção do real significado dessas palavras que
tanto usam, saberiam que chamar manifestações bizarras de “fervor” é o
mesmo que chamar um urubu de querubim.
No imenso mar de variedades em que é tão difícil para o homem
comum distinguir entre as igrejas que pregam a verdade e as que só têm o
título de cristãs, mister se faz manter bem nítidas as diferenças. Em outras
palavras, igrejas compostas por cristãos velhos devem se afastar das
perigosas seitas chamadas evangélicas que dia a dia atraem e geram cristãos
novos. De outro modo, o mundo jamais saberá que existe um imenso
abismo a separar os dois modelos e continuará acreditando que cristãos
novos e velhos são todos iguais, sem nenhuma distinção essencial ou
vivencial entre ambos.
Além disso, é preciso tornar bastante conhecidos a fé e o
funcionamento da igreja bíblica, aquela que é liderada e composta por
cristãos velhos. Assim, o rebanho do Senhor poderá se proteger melhor dos
ataques das modernas superstições, percebendo o quanto a verdadeira igreja
está distante delas. Da mesma forma, jovens e sinceros pastores recém-
saídos do seminário saberão que posição tomar diante de tantas práticas e
ideias novas. De fato, até mesmo os cristãos novos serão beneficiados com
o conhecimento da fé e do funcionamento da igreja bíblica, pois se tornarão
aptos para identificar os traços da verdadeira comunidade cristã, onde
poderão, se quiserem, refugiar-se do ensino falso em que têm andado.
Tudo isso sugere uma santa expectativa: a expectativa de que a sã
doutrina não seja um veículo de confusão, destruição e dor, mas sim um
instrumento para a formação de mais e mais cristãos do tipo antigo, já que o
sincero interesse do povo de Deus é a promoção do bem da igreja e o seu
fortalecimento com o que há de melhor. Ora, os santos sabem o que é o
melhor. Eles sabem que hoje o cristão é como vinho: o velho é que é bom.
Capítulo 1 - Igreja local: definição, propósito, importância e
modo válido de implantação
A igreja local não é uma entidade religiosa assistencial como muitos
pensam. Também não se deve conceber a igreja como uma agência
promotora de eventos. Ainda que muitos pastores e líderes eclesiásticos
tenham transformado suas comunidades em meras organizações movidas e
sustentadas por passeios, festas, retiros, jantares e outros programas
especiais, nenhum desses eventos reflete o que a igreja é em essência.
É claro que não é errado uma igreja realizar programas como os
mencionados. Contudo, foge do perfil bíblico a comunidade eclesiástica que
tem na promoção dessas coisas a sua marca dominante, dependendo
intensamente delas para subsistir e gerar motivação.
Tampouco a igreja local pode ser entendida como uma mera opção de
congraçamento social para os fins de semana. Não há dúvidas de que a
alegre comunhão dos crentes é um ideal bíblico, mas a natureza e os alvos
desse convívio são bastante diferentes e se situam muito acima daqueles
que são buscados por quem vê a igreja como uma alternativa de programa
social para as manhãs ou noites de domingo (sobre a comunhão cristã
bíblica veja-se a próxima seção deste capítulo e também o Capítulo 6).
Igreja local é, isto sim, a comunidade autônoma de crentes em Cristo
unidos entre si por laços de fé, amor e amizade; caracterizada pelo ensino e
proteção da sã doutrina, pela observância das ordenanças de Cristo e pela
aplicação da disciplina bíblica.
A Bíblia apresenta de forma clara os dois propósitos fundamentais da
igreja: o imediato, que é anunciar o evangelho (1Pe 2.9); e o final, que é
glorificar para sempre a Deus (Ef 1.5-6; 12-14).
Desse modo, um grupo em que as pessoas não têm comunhão entre si,
que não prega a sã doutrina, que não observa adequadamente as ordenanças
de Cristo (o batismo e a ceia do Senhor), que jamais aplica a disciplina
bíblica, que não se preocupa com a expansão do Reino de Cristo neste
mundo mediante a pregação do evangelho e não persegue o ideal maior de
glorificar a Deus não pode de maneira nenhuma ser chamado de igreja.
Disso se conclui que pouquíssimas são as verdadeiras igrejas, o que é de
lamentar, dada a importância vital dessa comunidade em inúmeros aspectos.
Dessa última afirmação brotam, naturalmente, as seguintes questões:
Por que a igreja é importante? Que diferença faz essa instituição? O que foi
dito nos parágrafos anteriores fornece em linhas gerais o conteúdo da
resposta a essas perguntas. É necessário, porém, maior exatidão.

A importância da igreja local

Em primeiro lugar, pode-se dizer que a igreja é extremamente


importante neste mundo porque fornece o contexto em que ocorre uma cura
[4]
substancial nas relações interpessoais. É na igreja local que pessoas de
diferentes idades, origens, etnias, culturas, formações e níveis sociais são
convidadas a viver em plena harmonia, formando uma verdadeira família
(1Co 1.10; 12.12-27; 2Co 13.11; Gl 3.28; Ef 4.1-3; Fp 1.27; 2.1-4; 4.2-3;
1Pe 3.8).
Nesse ponto, nenhum outro grupo social é comparável à igreja. E essa
unidade, a que seus membros são chamados e exortados a manter, tem
como base não o simples interesse na paz social, mas a própria obra
redentora de Cristo (1Co 10.16-17), de modo que quem atenta contra a
unidade da igreja, levanta-se, na verdade, contra um dos santos propósitos
da cruz (Ef 2.13-19).
Sendo a igreja o ambiente em que o indivíduo pode se relacionar em
amor com pessoas diferentes e em que pode se sentir aceito e respeitado a
despeito de qualquer fator secundário, fica difícil exagerar sua importância
para o sustento e o bem-estar emocional do ser humano, que procura a todo
custo obter o amor e o respeito dos outros a fim de se sentir importante e
[5]
seguro.
Em segundo lugar, a relevância da igreja assume proporções imensas
pelo fato de ser o grupo em que a medida do comprometimento do crente dá
a medida da sua saúde espiritual. É fácil alguém saber se é mesmo um servo
obediente a Cristo e se tem vigor espiritual: basta observar se está de bem
com sua igreja, dela participando, com ela cooperando e nela cultivando
suas maiores amizades (Jo 15.10,12,14; Hb 10.25).
De fato, João mostra como descobrir se alguém está andando na luz.
Diz ele: “Se, porém, andarmos na luz, como ele está na luz, mantemos
comunhão uns com os outros…” (1Jo 1.7). Isso é assim porque existe
íntima ligação entre Cristo e a igreja, ligação esta em que ela é o “corpo” e
ele a “Cabeça” (Ef 1.22-23; 5.23; Cl 1.24). Desse modo, é impossível se
afastar da igreja sem se afastar de Cristo; e o terrível Saulo descobriu
perplexo que era impossível odiar e atacar a igreja sem ao mesmo tempo
odiar e perseguir o próprio Cristo (At 9.1-5).
Além disso, Deus determinou que a igreja fosse o celeiro onde o
cristão pudesse encontrar alimento para crescer espiritualmente. Nela o
Senhor pôs pessoas com os mais diversos dons (Rm 12.4-8) para que
quando os exercitassem no contexto eclesiástico, os santos se
aperfeiçoassem, se tornassem aos poucos semelhantes a Cristo e não
seguissem ensinos enganadores (Ef 4.11-14). Como poderá o crente que não
visita esse celeiro se alimentar adequadamente? E sem se alimentar
adequadamente, como demonstrará vigor?
A Bíblia ensina também que os diferentes membros do corpo que é a
igreja formam um organismo só (1Co 12.12) e, uma vez que realizam
funções específicas, todos são essenciais e indispensáveis para o bem de
cada um em particular e o bom funcionamento do todo (1Co 12.17-23).
Como será, pois, a saúde espiritual do cristão que, afastado da comunhão
com seus irmãos, deixa de desfrutar do trabalho dos membros em geral e
não coopera, ele mesmo, com o aperfeiçoamento do corpo?
Tudo isso mostra a importância que a igreja tem para o crescimento
espiritual de cada um e prova que o cristão que não participa de nenhuma
igreja e diz que é possível ser bom crente adorando a Deus sem sair de casa
não compreendeu a espiritualidade ensinada no Novo Testamento. Esse
crente, além de desobedecer abertamente as determinações bíblicas (Ef 4.3;
Hb 10.25) e não cumprir seu papel de membro do corpo de Cristo,
privando-o de funcionamento melhor (1Co 12.25; Ef 4.15-16), deixa de
receber o crescimento que a participação conjunta do estudo, do louvor e da
oração sempre poderá proporcionar.
Em terceiro lugar, a igreja é importante porque é a organização
responsável pelo avanço da obra missionária (At 13.1-3). Ainda que
organizações missionárias de renome internacional façam trabalhos
notáveis, é a igreja local que tem sobre seus ombros a responsabilidade de,
orientada pelo Espírito Santo, escolher e enviar pessoas aos campos brancos
para a ceifa e sustentá-las ali quando for preciso.
Relevante também é a igreja em sua função didática. Além de
funcionar como centro de educação cristã para todos os que se acercam
dela, tem a igreja a responsabilidade de ser escola preparatória de pastores e
núcleo formativo de novos líderes (2Tm 2.2; Tt 1.5 cf. At 14.21-23). Isso, é
claro, não anula a necessidade dos seminários teológicos. Porém, não se
pode admitir que a igreja deixe de participar da instrução dos seus novos
obreiros mantendo-se alheia à sua formação e transferindo toda a
responsabilidade educacional dos vocacionados para as mãos das
faculdades de teologia.
Não se pode deixar de mencionar aqui outro fator, também de extrema
importância, que é o papel da igreja consistente de zelar pela redução do
[6]
sofrimento humano (1Tm 5.3,16; 2Co 9.1-2,12). À luz da Bíblia, não há
dúvidas de que a igreja deve agir de tal maneira que todos percebam com
clareza que, caso ela não existisse, a dor dos menos favorecidos seria muito
maior.
Finalmente, a igreja é importante porque é a guardiã da sã doutrina
(1Tm 3.14-15). Como protetora de depósito tão precioso, levanta-se contra
tudo que se caracteriza por falsidade e não somente rejeita a fraude como
também a desmascara.
A verdadeira igreja não dá boas-vindas às constantes novidades
doutrinárias que dia após dia aparecem no cenário dito evangélico. Antes,
protege o legado que recebeu dos antigos. A velha fé que habitou nos seus
antepassados cristãos desde os tempos dos apóstolos é a mesma que nela
hoje também habita (2Tm 1.5; 3.14-15), sendo certo que seus membros
atuais conservam esse legado com zelo sem igual (Gl 1.8-9; 1Tm 1.18-19;
4.16; 6.11-14, 20-21; 2Tm 1.13-14).

Modo válido de implantação

Tendo em vista a grande importância da igreja local, fica evidente a


urgente necessidade do surgimento de mais e mais agências dessa natureza.
No entanto, a própria sublimidade de sua tarefa neste mundo exige que a
fundação de uma nova igreja ocorra debaixo de cuidadosa tutela.
É recomendável, assim, observar certos critérios e superar algumas
etapas antes de conceder o status de igreja a um grupo de crentes que
eventualmente se reúne. Isso porque a forma estranha como grande parte
das igrejas surge atualmente – um indivíduo qualquer põe uma gravata,
aluga um salão e começa a ensinar qualquer coisa, atraindo pessoas
dispostas a crer em tudo – por não observar princípios bíblicos, só tem
servido para criar igrejas falsas.
Por isso, para que igrejas bíblicas nasçam, sugere-se o cumprimento
das seguintes fases:

1. Estabelecimento de um ponto de pregação. Uma igreja


devidamente organizada escolhe um local estratégico e carente onde
realizará esforços evangelísticos por tempo indeterminado. Podem
funcionar como sede provisória para o trabalho nascente a casa de um
irmão, uma garagem, uma sala comercial e até mesmo uma praça.

2. Formação de uma congregação. Havendo certo crescimento com a


ocorrência de conversões e a chegada de outros crentes, o ponto de
pregação adquire o status de congregação. O novo grupo continua a se
reunir sob a autoridade da igreja responsável, que insere em seu
próprio rol de membros os crentes oficialmente comprometidos com a
congregação.

3. Estabelecimento de um local exclusivo. O crescimento do grupo


dá ensejo à compra ou locação de um lugar que sirva como sede
exclusiva da igreja em formação. A escolha desse local deve levar em
conta aspectos estratégicos bem como a possibilidade de expansão
futura. Fundamental é que os membros que cooperam na congregação
sejam estimulados a participar ativamente do estabelecimento desse
novo local, seja por meio do trabalho ou com contribuições
financeiras.

4. Nomeação de um líder. É claro que em todas as fases de formação


da igreja haverá um responsável pelo trabalho. Porém, nessa fase do
processo deve-se dar especial atenção à necessidade de nomear alguém
que se dedique ao ministério no novo local de forma mais intensa. A
escolha e contratação desse obreiro serão feitas pela igreja
responsável, levando seriamente em conta a opinião e vontade da
maioria dos membros da congregação. Estes, na medida do possível,
deverão participar do sustento desse líder, a fim de que desde cedo
aprendam acerca dos deveres da igreja em relação a seus ministros
(1Tm 5. 17-18).

5. Incentivo à capacidade de autogestão. Superadas as fases acima


descritas, tanto a igreja responsável como os membros da congregação
deverão empenhar-se para que a igreja em formação adquira
independência substancial, estabelecendo uma liderança local e
conquistando autonomia financeira para, sozinha, poder arcar com o
suprimento de todas as suas necessidades e buscar a realização de
todos os seus deveres e alvos.

6. Organização da nova igreja. Capaz de autogerir-se, a congregação


poderá, caso queira, organizar-se em igreja independente daquela que a
fundou. Essa independência poderá ser absoluta, como é o caso da
maioria das igrejas batistas, ou relativa, como é o caso da Igreja
Presbiteriana e a Assembleia de Deus, cujas comunidades locais se
mantêm sob a autoridade de um órgão centralizador, mas desfrutam de
ampla autonomia. Para fins administrativos e para que o ato tenha
caráter oficial, recomenda-se que a concessão do status de igreja seja
aprovada em assembleia realizada pela igreja sede ou por eventual
órgão representativo. Se for feito assim, obviamente a medida será
registrada em ata que alistará, inclusive, os nomes dos membros
fundadores da nova igreja como nota de valor histórico.

Evidentemente, esse processo deve ser entendido como mera sugestão.


As particularidades de cada caso, muitas vezes, impedirão que as etapas
acima se concretizem de modo pleno ou na sequência apresentada. O que
deve, porém, permanecer intocável, até onde for possível, é o princípio de
que uma igreja só pode ser gerada sob os auspícios de outra.
Esse princípio se encontra no Novo Testamento, especificamente no
livro de Atos, no qual é evidente que as novas igrejas nasciam em geral
graças ao envio de missionários, que, por sua vez, eram sujeitos a igrejas de
sólidos alicerces e autoridade inquestionável (At 13.1-3), às quais esses
mesmos missionários também prestavam relatórios acerca de suas
atividades (At 14.26-28).
Vê-se também em Atos que as igrejas que aos poucos surgiam ficavam
a princípio sob a supervisão e o cuidado de outra previamente estabelecida,
que lhes enviava delegados com o intuito de mantê-las debaixo de
necessário controle e proteção (At 8.14; 11.20-22; 15.1-4, 22-31).
É difícil, portanto, encontrar amparo bíblico para o indivíduo que,
dizendo-se chamado por Deus, toma a iniciativa de, por si mesmo, “abrir
um trabalho”, tornando-se uma espécie de “dono” de igreja. Tampouco
pode encontrar apoio indiscriminado o homem que, insatisfeito com sua
igreja ou denominação, rompe com ela e passa a trabalhar ao lado de alguns
simpatizantes no afã de formar uma igreja nova nos moldes que considera
corretos. De fato, somente em casos excepcionalíssimos, em que é
impossível o patrocínio de uma verdadeira igreja, essa conduta poderá ser
recomendada e aceita.

Os cinco pilares da igreja de Deus

Uma vez estabelecida, a igreja deve se firmar sobre cinco pilares:


adoração, ensino, comunhão, proclamação e pureza. Esses cinco pilares
manterão a igreja de pé. Por isso, seus membros devem ter como propósito
contínuo preservá-los e fortalecê-los. A tarefa de manter, proteger, restaurar
e robustecer as cinco colunas aqui elencadas é a essência do que o
cristianismo chama de “servir ao Senhor”.
Observe-se a seguir o que está envolvido em cada um dos itens
[7]
denominados aqui como pilares da igreja de Deus.

Adoração: A igreja verdadeira é uma comunidade que se reúne para


adorar (At 2.47; Ef 5.19-20; Cl 3.16). Essa adoração deve ser dirigida
exclusivamente ao Deus trino. Nenhum outro personagem, seja
humano ou angélico, pode ser objeto dela (At 14.11-18; Ap 19.10;
22.8-9). De acordo com João 4.23-24, a adoração cristã não deve ser
meramente ritual nem repleta de erros geralmente decorrentes das
opiniões, preferências e invenções de supostos adoradores (Mt 15.8-9).
Antes, o culto deve ser focado em Deus, levando em conta como ele
realmente é (um Espírito e não um local ou um objeto material) e ser
feito do modo como ele aprova e diz ser correto (esse é o significado
de adorar “em verdade”).

Ensino: A tarefa de ensinar a sã doutrina deve ser mantida pela igreja


como um dos seus mais importantes pilares (At 15.35; 18.11; 20.20).
Isso porque, de acordo com Efésios 4.11-13, o ensino faz com que os
crentes amadureçam e, assim, se tornem aptos para o serviço de
edificação da igreja, além de mais semelhantes a Cristo (Cl 1.28).
Ademais, o texto de Efésios destaca que o ensino protege os crentes de
serem enganados pelos falsos mestres e suas doutrinas fraudulentas (Ef
4.14). É por isso que o pastor deve ser apto para ensinar (1Tm 3.2;
2Tm 2.24; Tt 1.9-11) e fazer isso com insistência e perseverança (1Tm
4.13). O conteúdo do ensino ministrado na igreja deve ser a Escritura e
não filosofias humanas (Rm 15.4; 1Co 2.1-7; 2Tm 3.16), sendo certo
que cada crente deve realizar, em alguma medida, uma tarefa didática
no convívio com seus irmãos (1Ts 5.11).

Comunhão: Diferente do que muitos pensam, o pilar da comunhão


cristã não é construído apenas com reuniões sociais em torno de mesas
de café e bolos. Ainda que essas reuniões sejam úteis para estreitar os
laços de amizade entre os crentes, de forma nenhuma elas esgotam o
sentido da genuína comunhão dos santos ensinada nas Escrituras. Com
efeito, essa comunhão abrange uma unidade amorosa em que cada um
se preocupa humildemente com os interesses do outro (Fp 2.1-4) e
realiza uma tarefa de encorajamento e exortação junto aos seus irmãos
(Hb 10.25). A comunhão amorosa entre os crentes é uma das mais
eficientes formas de testemunho (Jo 17.20-23) e também uma das
provas mais notáveis do andar na luz (1Jo 1.7).
Proclamação: Trata-se da responsabilidade que pesa sobre os ombros
da igreja de tornar Deus conhecido ao mundo (1Co 9.16; 2Tm 4.5; 1Pe
3.15). Nessa tarefa, a igreja deve proclamar os atributos divinos (1Pe
2.9) e, especialmente, a obra salvadora do Pai realizada no envio do
seu Filho ao mundo para morrer pelos pecadores, ressuscitando ao
terceiro dia (At 13.38-39; 1Co 15.1-4). Assim, para ser realmente
bíblica, a igreja não pode perder de vista o evangelismo (At 5.42) e a
obra missionária (At 13.1-3), trabalhando para que o pilar da
proclamação nunca desabe e o evangelho alcance os que estão perto e
também os que habitam nos lugares mais distantes da terra (Mt 28.19;
Rm 10.13-15; Ap 14.6).

Pureza: A igreja que não zela pelo pilar da pureza muito cedo se verá
invadida pelos costumes e práticas do mundo que, aos poucos, tomarão
conta dela (1Co 5.6). Então, nenhuma diferença haverá entre a igreja e
qualquer associação de incrédulos. Na verdade, uma igreja assim será
ainda pior do que uma sociedade de pagãos, pois, por causa dela, o
evangelho será desacreditado e o nome de Cristo será blasfemado entre
os perdidos (1Tm 6.1; 2Pe 2.1-2). Se não primar pela pureza em seu
meio, a igreja logo se tornará um covil de hipócritas, perderá sua força
espiritual, desencorajará a vida de temor, afastará do seu convívio os
que buscam a Deus com sinceridade e atrairá sobre si a ira do Senhor
(1Co 10.21-22; Ap 2.12-25). A pureza da igreja, portanto, é questão de
sobrevivência! Se essa coluna for derrubada, toda igreja cairá,
tornando-se apenas um aglomerado de pessoas que nutrem os padrões
do mundo, às vezes de maneira até mais escandalosa (1Co 5.1). A
ferramenta mais importante para a manutenção da pureza da igreja é a
disciplina eclesiástica prevista em Mateus 18.15-17 e 1Coríntios 5.1-5.

Esses cinco pilares não devem ser usados somente como fundamentos
da igreja como organização, mas também como alicerces sobre os quais a
vida de cada crente é construída. De fato, cada irmão, no seu dia a dia, tem
de adorar o Deus trino, aprender a verdade e ensiná-la aos que estão à sua
volta, manter acesa a chama da santa comunhão com outros crentes,
proclamar o evangelho aos perdidos e buscar pureza no seu proceder.
Digressão: a igreja é o novo Israel de Deus?

Sob o ponto de vista teológico, a igreja local não é uma espécie de


célula visível ou a expressão concreta do que tem sido chamado de “novo
Israel de Deus”.
A teologia cristã antiga, já a partir do século 2, israelizou a igreja e,
nesse particular, tem sido hoje seguida pela teologia aliancista (ou teologia
do pacto), dominante no meio evangélico (tradicional ou não). Ora, as
implicações práticas disso podem ser vistas ao longo dos séculos e na
atualidade em diversos equívocos.
Entre esses equívocos podem-se destacar os seguintes:

1. O apoio à preservação de uma igreja estatal, já que Israel era um


[8]
Estado teocrático nos tempos do AT.
2. A negligência, notável já nos escritos dos pais apostólicos (séc. 2),
do evangelho ensinado no Novo Testamento que realça a salvação pela
fé somente, em troca de uma soteriologia baseada na prática da lei
moral exposta no Antigo Testamento (salvação pela justiça própria).
3. A construção de santuários majestosos, comparáveis ao templo de
Jerusalém, onde possam ser praticados os atos “sacerdotais” cristãos
[9]
assimilados do culto levítico.
4. A definição do batismo infantil como o correspondente cristão da
[10]
circuncisão (para mais detalhes, veja-se o Capítulo 3).
5. A transformação da Ceia do Senhor num sacrifício sangrento
(transubstanciação e consubstanciação) realizado continuamente por
um sacerdote (o pastor ou bispo) sobre um altar, tudo nos moldes da
tradição litúrgica judaica e seu sistema sacrificial. Isso obscureceu a
real natureza da morte de Cristo como um sacrifício único, oferecido
uma vez por todas.
6. A sacerdotalização da figura e do papel do pastor (ou bispo) que,
num arremedo dos oficiantes levitas, passou a ser visto como detentor
de prerrogativas especiais para dispensar a graça divina (por meio dos
sacramentos), oferecer sacrifícios (a Ceia do Senhor) e realizar a
mediação entre Deus e os membros da igreja. Essas noções serviram,
inclusive, como fundamento para a distinção entre a figura única e
suprema do bispo (ou pastor) e o grupo geral de presbíteros. Também
geraram a divisão entre clero e laicato. Finalmente, estimularam a
criação de uma hierarquia eclesiástica e, consequentemente, o
aparecimento do papado.
7. A alegorização de passagens bíblicas referentes a Israel a fim de que
pudessem ser aplicadas à igreja.
8. A identificação da igreja da era presente com o reino messiânico
prometido, sendo tal entendimento fortalecido pela alegorização de
textos bíblicos que tratam do tema. Essa identificação foi a base para o
surgimento da teocracia medieval com suas aspirações de uma igreja
onipotente que deveria exercer domínio político universal (o chamado
Império Cristão).
9. A guarda do domingo como o “sábado cristão”.
10. A imposição da obrigação do dízimo judaico aos crentes como
dever legal, às vezes sob pena de disciplina. Eventualmente,
contribuições financeiras dadas além do dízimo são chamadas de
“ofertas alçadas”, numa demonstração da adoção, por parte da igreja,
da linguagem própria do sistema levítico.
11. A apropriação por parte da igreja das promessas de bênçãos (mas
não das maldições!) feitas a Israel especialmente no campo material
(teologia da prosperidade).
12. O emprego de símbolos e objetos do culto israelita (candelabro,
arca, altares, vestes especiais, incenso, etc.) na liturgia cristã.
13. A atribuição do título de “levita” aos componentes de grupos de
louvor, fazendo com que essas pessoas sejam vistas como uma espécie
de elite dentro da igreja.

Em casos mais extremos, a “teologia da substituição”, que define a


igreja como o novo Israel de Deus, tem conduzido as pessoas de algumas
épocas e lugares ao desprezo e até à perseguição dos judeus que, segundo
essas propostas, perderam sua relevância ou seu status como o povo
escolhido do Senhor.
De fato, para muitos teólogos aliancistas, com o advento da igreja, a
importância do Israel étnico foi irremediavelmente nublada. Na verdade, de
[11]
acordo com essa visão, Deus repudiou Israel e o substituiu pela igreja.
Adeptos dessa linha doutrinária também afirmam que o verdadeiro Israel
sempre foi a igreja.
Esse raciocínio, como se sabe, corroborou inclinações antissemitas
[12]
durante alguns períodos da história, dando ensejo aos seguintes desvios:

1. A rejeição da cosmovisão judaica em favor de uma visão de mundo


marcantemente helenista, responsável pela introdução de elementos da
filosofia grega na teologia cristã e pela adoção do método alegórico ao
tempo da igreja antiga, fonte de inúmeras interpretações bíblicas
arbitrárias.
2. A espiritualização de textos bíblicos que falam do Israel étnico,
levando os judeus a considerar a hermenêutica cristã do AT (inclusive
em suas conclusões sobre o Messias) indigna de crédito, o que
dificultou ainda mais a evangelização desse povo.
3. A consideração da expectativa de um reino escatológico davídico
[13]
literal e terreno (At 1.6) como uma esperança judaica grosseira que
deve dar lugar a uma concepção absolutamente espiritual do reino
messiânico.
4. A falta de interesse pelo entendimento judaico acerca do cânon do
AT, o que levou alguns pais da igreja antiga a fazer uso de livros
apócrifos na construção de sua teologia.
[14]

5. A aceitação do uso de imagens no culto cristão tendo como um dos


fundamentos para essa prática a ideia de que sua reprovação refletia
uma perniciosa forma judaica de pensar.
[15]
6. A degradação dos israelitas pela lei canônica e pela tradição
eclesiástica, gerando conflitos entre a igreja e a sinagoga e também
massacres perpetrados contra a população judaica durante toda a Idade
Média.
7. O estímulo a inclinações antijudaicas, colocando sobre a igreja uma
parcela de culpa pelo Holocausto, o que foi admitido por vários
círculos protestantes, especialmente na Europa, a partir de 1950.

O fato, porém, é que na Bíblia existe clara distinção entre Israel e


igreja, ambos ocupando espaços distintos no plano de Deus. De fato, nada
na Escritura corrobora a ideia de que o advento da igreja a posicionou como
substituta de Israel, de maneira que essa nação deixasse de ocupar espaço
de alta importância no projeto de Deus para a história (Rm 1.16).
Textos como Jeremias 31.35-37 envolvem a promessa de Deus de
preservar Israel para sempre como nação, sem jamais rejeitar sua
descendência. O fato de isso ter sido dito ao povo rebelde dos dias de
Jeremias mostra que se trata de uma promessa incondicional.
Ademais, o Israel étnico é visto também no Novo Testamento como o
povo eleito que Deus não rejeitou (Rm 3.1-2; 9.1-5; 11.1-2). Isso, é claro,
não significa que cada judeu é eleito para a salvação. Na verdade, Paulo diz
que apenas um número limitado de israelitas foi escolhido no sentido
salvífico (Rm 11.5-6). Mesmo assim, permanece intocável a verdade de que
a nação judaica inteira foi eleita por Deus num sentido instrumental, isto é,
como veículo por meio do qual ele realiza seus planos de abençoar e salvar
(Gn 12.3; 28.14; Jo 4.22; Rm 11.11-12,15).
Romanos 11.28 alude claramente à eleição não salvífica de Israel. Isso
mostra que nem mesmo a rejeição do evangelho fez com que essa nação
perdesse seu status como povo especial de Deus. Aliás, esse status também
é um dos motivos pelos quais todo o Israel será salvo na inauguração da
futura era messiânica (Rm 11.25-27).
Assim, não é correto definir a igreja como um novo Israel de Deus. A
verdade é que a igreja se constitui num povo diferente, composto sim por
judeus e gentios, mas de maneira que perfazem juntos uma terceira classe
de homens – os homens novos – livre de distinções raciais (Ef 2.11-18),
trazida à luz pela obra de Cristo ao tempo dos apóstolos (Ef 3.1-9) e com
um espaço específico dentro dos propósitos de Deus para o presente (Ef
3.10-11; 1Tm 3.15) e do seu plano para o futuro (1Co 6.2-3; 15.22-23; 1Ts
4.14-18).
Duas questões

1) Conforme o ensino deste capítulo, fundar uma igreja sem a tutela de


outra não é prática recomendável. Não foi, porém, exatamente isso o
que fizeram os reformadores quando se desligaram da Igreja Católica?
Não. Os reformadores do século 16 não fundaram igrejas novas. Eles
apenas reformaram as antigas, purgando-as dos erros e das superstições
papistas. Além disso, é bom lembrar que os reformadores não se
desligaram da Igreja Católica. Na verdade, foi essa igreja que os expulsou.

2) Se é errado dizer que o domingo é o sábado cristão, então é lícito os


crentes trabalharem nesse dia?
Sim, sem nenhum problema. A guarda de dias não é ensinada no Novo
Testamento (Rm 14.5-6). Aliás, Paulo até censura quem se apega a essa
prática, indicando que pessoas assim nutrem noções judaicas erradas e até
ideias pagãs (Gl 4.10-11; Cl 2.16).
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO
De todos os aspectos da vida da igreja cristã, o culto é o mais
importante. É no culto que a presença atuante de Deus se focaliza,
instruindo, corrigindo, consolando e transformando vidas, já que o Senhor
habita não somente no corpo físico do crente (1Co 6.19), mas também (e
especialmente) na comunidade dos salvos que se reúne para servir e adorar
(1Co 3.16-17; Ef 2.21-22; 1Pe 2.5). É no culto que o nome de Deus é
exaltado em cânticos e orações, com a força que decorre da união de vozes,
pensamentos e corações (Sl 34.3). É no culto que a plenitude espiritual dos
adoradores se expressa em salmos, hinos e ações de graça (Ef 5.18-20). É,
finalmente, no culto verdadeiramente cristão que o alimento espiritual é
distribuído aos crentes por meio da pregação da Palavra viva que nutre,
fortalece, ensina e admoesta (Mt 4.4; 2Tm 3.16).
Sendo, assim, tão importante, o culto não é opcional e deve ocupar
lugar central na vida do homem redimido, sendo o próprio Deus que, em
sua Palavra, o conclama a prestá-lo (Sl 95.6-7). Na verdade, tantos quantos
forem os cultos realizados na igreja de Deus, tantas devem ser as
participações dos crentes nesses eventos sagrados, sob pena de sua vida
cristã minguar, seu crescimento espiritual desacelerar e sua força contra o
mundo, contra a carne e contra o diabo entrar em declínio.
Também se deve destacar que, sendo tão central na vida da igreja, o
culto precisa ser realizado dentro de critérios instituídos pelo próprio Deus,
bem como ser composto por elementos fixados na Bíblia. Isso foi
corretamente afirmado há muito tempo por teólogos que propuseram o
chamado Princípio Regulador do Culto, uma norma que subjaz a adoção de
uma liturgia marcada por elementos como pregação, oração, louvor, dádivas
e ordenanças. Cada um desses elementos será exposto neste capítulo, exceto
as ordenanças – estas serão objeto de estudo no capítulo seguinte.

O princípio regulador do culto

A expressão Princípio Regulador do Culto denota a existência de um


valor básico e imutável que deve ser protegido enquanto se realiza qualquer
ato formal de adoração. A proteção desse valor implica a observância de
uma norma geral que rege o culto e lhe dá forma. Esse preceito básico
impõe limites ao adorador, impedindo-o de, levado pelos ditames de sua
consciência depravada, apresentar diante de Deus qualquer coisa que não
corresponda à sua natureza e vontade.
O valor básico e imutável a ser protegido no campo da adoração é o
“direito” exclusivo de Deus de determinar o modo como deve ser cultuado.
A regra básica que protege esse valor pode ser formulada da seguinte
maneira: nada pode ser praticado durante o culto a Deus que não tenha
sido expressamente estabelecido e determinado por ele próprio nas páginas
da sua revelação escrita. É a essa regra básica que se convencionou chamar
de Princípio Regulador do Culto.
Já em Calvino (1509-1564), é possível encontrar a adoção desse
princípio. Nas suas Institutas, onde se insurge contra os abusos da igreja de
seu tempo, o reformador ensina que somente a Deus compete estabelecer o
modo como importa ser adorado. Diz ele:

De ter-se em mente, ademais, é que as superstições


frequentemente se referem nestes termos, que são obras das mãos
dos homens, e carecem da divina autoridade, para que seja isto
estabelecido: que são abomináveis todas as formas de culto que
[16]
os homens inventam de si próprios.

Logo a seguir, Calvino escreve:

Deus, porém, para que a si vindique seu direito, se proclama


ser zeloso e haver de ser severo vingador, se com qualquer
deidade fictícia se mesclar. Então, para que lhe mantenha o
gênero humano em obediência, define seu legítimo culto. A um e
outro desses aspectos enfeixa em sua Lei, quando, primeiramente,
a si adjudica os fiéis, a fim de ser-lhes o legislador único, depois,
prescreve a regra segundo a qual seja devidamente cultuado,
[17]
conforme seu alvedrio.
Que Calvino via a Escritura como a fonte de informação acerca da
maneira como deve realizar-se o culto fica claro a partir das citações acima
e também do que ensina logo a seguir, ao enunciar que “mediante sua Lei,
quis ele [Deus] prescrever aos homens que seja justo e reto e, destarte,
adstringi-los a uma norma precisa, para que ninguém se permitisse forjar
[18]
expressão cultual qualquer que seja”.
O Princípio Regulador do Culto, conforme ensinado por Calvino, foi
posteriormente, fixado pela Confissão de Fé de Westminster (1646), no
primeiro artigo do seu Capítulo XXI:

A luz da natureza nos ensina que há um Deus, que exerce


senhorio e soberania sobre tudo, que é bom e faz o bem a todos, e
que por isso deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido de
todo coração e servido com toda a alma e com todas as forças;
mas o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus foi instituído
por ele mesmo, e de tal modo determinado por sua vontade
revelada, que não se deve adorar a Deus conforme as
imaginações e invenções dos homens ou as sugestões de Satanás,
sob alguma representação visível ou de outro modo que não seja
[19]
o prescrito na Santa Escritura.

Poucas décadas mais tarde, pastores batistas calvinistas reunidos em


Londres reproduziram exatamente o mesmo texto acima transcrito, o qual
passou a compor o Artigo 1 do Capítulo 22 da Confissão de Fé Batista de
1689.
Levando em conta isso tudo, pode-se conceituar o Princípio Regulador
do Culto como o preceito que reserva exclusivamente a Deus a liberdade e
o poder para determinar o modo como o seu culto deve ser realizado, sendo
tais determinações reveladas de forma clara, detalhada e específica na
Bíblia.
Ao tempo em que Calvino pronunciou seus ensinos sobre esse assunto
e também à época em que a Confissão de Westminster e a Confissão de Fé
Batista foram elaboradas, a maior expressão de culto absolutamente
inaceitável para os cristãos verdadeiros era encontrada na veneração de
imagens, praticada especialmente na Igreja Católica Romana. O próprio
texto das confissões mencionadas revela que esse era o desvio que os
teólogos de então tinham em mente quando enunciaram o Princípio
Regulador.
De fato, como se vê na citação supra, assim se pronunciaram: “Não se
deve adorar a Deus conforme as imaginações e invenções dos homens ou as
sugestões de Satanás, sob alguma representação visível...”. É, pois, evidente
que, num primeiro momento, o Princípio Regulador foi ressaltado no afã de
demonstrar a impiedade manifesta no culto das imagens.
Ocorre, porém, que a norma que impõe limites ao culto cristão se
revela preciosa não só como base sólida para a rejeição das imagens, mas
também como um padrão fixo por meio do qual o crente pode medir
qualquer prática ou costume que se insinuem no culto a Deus ao longo dos
séculos.
É, portanto, com o Princípio Regulador do Culto em mente que o líder
cristão moderno poderá avaliar o que pode ou não ser aceito no culto pelo
qual ele é responsável. Por outro lado, a ausência de um princípio por meio
do qual possam ser avaliadas certas práticas modernas deixará o ministro de
Deus à mercê de sua própria consciência e sem força de argumentos para
resistir à pressão de indivíduos que pretendem fazer do culto um mero
período de descontração.
Para agir, porém, com a consciência firmada na Escritura, onde o
homem de Deus pode encontrar os fundamentos para o princípio aqui
tratado? Ora, é do próprio artigo primeiro do Capítulo XXI da Confissão de
Fé de Westminster (reproduzido pelos batistas reunidos em Londres, em
1689) que constam os fundamentos teológicos do Princípio Regulador do
Culto. Pode-se reduzi-los a três, a saber: o senhorio e soberania de Deus
sobre tudo; o dever do homem de buscar, servir e adorar a Deus de forma
aceitável; e o fato de Deus ter revelado sua vontade na Palavra.
A Confissão de Westminster e a Confissão de Fé Batista de 1689
declaram que a luz da natureza revela a existência de um Deus soberano.
De fato, a chamada revelação geral, a qual inclui em seus aspectos a própria
consciência humana, aponta para a existência de um criador, preservador e
benfeitor soberano (Sl 19.1-6; At 17.24-25; Rm 1.19-20). Dessa mesma
fonte se depreende que esse ser é o governador moral absoluto, a quem
todos os seres pessoais devem temer e adorar, o que é testificado
universalmente pelo pensar e agir de todas as nações em todas as épocas (At
17.23; Rm 2.14-15) .
Uma vez admitida a existência de um soberano Senhor, o dever de
buscá-lo, servi-lo e adorá-lo de maneira que lhe seja aceitável é a verdade a
que se chega com fácil e breve reflexão. A Escritura Sagrada é pródiga nas
insistências de que o homem deve adorar a Deus, sendo-lhe devedor
perpétuo de louvor, obediência e serviço, tudo isso feito com inteireza de
coração e empenho absoluto da totalidade de suas forças (Sl 31.23; 150; Jr
10.7; Mt 22.37-38; Jo 4.24) .
Sendo Deus o Senhor soberano a que se deve honrar de maneira que
lhe agrade, resta ao homem a tarefa de descobrir em que Deus se compraz
quando é cultuado e adorado. Ora, essa descoberta não pode ser feita
quando o homem vasculha sua consciência, sua imaginação, suas
inclinações pessoais ou mesmo o exemplo de povos (antigos ou
contemporâneos) que seguiram os impulsos da criatividade humana para
estabelecer suas cerimônias religiosas em honra à divindade.
Por isso, sendo infinitamente misericordioso e não podendo deixar o
homem à mercê de seus impulsos naturais numa matéria de tão elevada
importância, o Senhor lhe revelou em sua Palavra não somente seu caráter e
obras, mas também sua vontade, a qual abrange determinações que devem
ser observadas no culto de sua santíssima Pessoa.
O eminente teólogo Archibald Alexander Hodge (1823-1886),
comentando esse ensino, escreve: Pode haver sucedido que, no estado
natural do homem e em suas relações morais com Deus antes da queda, sua
razão natural, sua consciência e instinto religioso tenham sido suficientes
para dirigi-lo nesse culto e serviço. Mas quando sua natureza moral se
corrompeu, seu instinto religioso se perverteu e suas relações morais com
Deus se transtornaram em razão do pecado, é evidente que se fez
necessária uma revelação que não somente dissesse aos homens o que
Deus admitiria no culto, mas que também prescrevesse os princípios e
métodos debaixo dos quais tal serviço e adoração deveriam ser oferecidos.
[20]
Assim, na Sagrada Escritura – a revelação a que se refere Hodge – é
ensinado que o culto ao Deus verdadeiro não deve ser maculado com o uso
de imagens de escultura (Ex 20.4-6); que tal culto se torna vão quando
mesclado com ensinamentos que não passam de regras inventadas por
homens (Mt 15.8-9; Cl 2.20-23); que o Deus trino é o alvo exclusivo da
adoração, não podendo o louvor dos adoradores ser dirigido a nenhum
outro, seja homem, anjo ou qualquer outra criatura (Mt 4.9-10; Rm 1.25; Cl
2.18; Ap 22.8-9); que o culto cristão dispensa o valor dado a templos de
madeira e pedra (Jo 4.21-23); que a adoração precisa ser feita em espírito e
em verdade (Jo 4.24); que o culto deve ocorrer num ambiente marcado por
decência e ordem (1Co 14.40); que o crente que cultua deve ter a alma
mergulhada em reverência e santo temor (Hb 12.28-29); e que o culto
genuíno tem de ser oferecido a Deus por meio de um mediador, o qual é
Jesus Cristo (Ef 2.18; 1Tm 2.5).
A totalidade dessas prescrições, como se vê, baseia-se na Sagrada
Escritura, sendo todas elas, quando postas em prática, demonstrações
notáveis da aplicação do Princípio Regulador do Culto. Resgatado, pois,
esse princípio, pouco espaço continuará a existir nas igrejas para desvios
como a realização de danças, as homenagens a este ou aquele indivíduo
(pastores, líderes, políticos, etc.), a espontaneidade desregrada, as
apresentações humorísticas, os supostos exorcismos e as inúmeras outras
práticas carentes de amparo bíblico. Em lugar dessas coisas, o culto a Deus,
conforme já dito, será constituído essencialmente de pregação bíblica,
oração, louvor, dádivas e ordenanças.

A pregação

Nenhum crente instruído e maduro, do tipo “cristão velho”, duvida da


centralidade da pregação na vida da igreja de Deus. Na verdade, qualquer
cristão bem preparado considerará a proclamação pública da Palavra um
sinal infalível da verdadeira igreja, sendo por meio dela que as ovelhas são
buscadas, curadas e alimentadas enquanto os lobos são feridos, assustados e
afugentados.
Infelizmente, porém, de todos os componentes do culto verdadeiro,
talvez esse seja o mais negligenciado no contexto do evangelicalismo
moderno. Grant Osborne observou com precisão:
A vida da igreja depende de ensino e pregação, e os dois
fluem um do outro – os sermões devem ensinar a verdade
teológica, e o ensino deve impactar vidas de uma forma prática...
Richard Lischer lamenta que a pregação tenha sido excluída da
teologia e que a teologia tenha sido excluída da pregação. O
resultado disso é a falta de substância, a incoerência, a
[21]
irrelevância e a perda de autoridade na pregação moderna.

Para evitar que as coisas permaneçam nesse estado lamentável, é


necessário que os pastores de hoje façam o que Martinho Lutero (1483-
1546) fez nos dias da Reforma Protestante, recuperando a doutrina paulina
da proclamação, elevando a pregação a um alto patamar dentro do culto
cristão e tornando-a novamente o núcleo da liturgia.
Como, porém, isso pode ser feito? Em primeiro lugar, o ministro de
Cristo deve desenvolver uma visão da pregação que, no mínimo, a
reconheça como um dos aspectos principais do trabalho pastoral (1Tm 4.13)
e a conceba como o veículo ordenado por Deus para a salvação dos
perdidos (Rm 10.17; 1Co 1.21; Tg 1.18) e a instrução dos crentes (2Tm
4.2). A isso o pregador deve acrescentar a noção de que quando proclama
fielmente a Palavra, é como se Deus falasse por seu intermédio,
transformando-o num porta-voz e embaixador do céu (2Co 5.20; 1Ts 2.13).
Munido dessas verdades, o pregador cuidará para que sua mensagem
não seja uma exposição acadêmica e estéril de filosofias humanas ou de
teorias seculares (1Co 2.4-7). Em vez disso, lerá e exporá os textos da
Bíblia. Se pregar regularmente numa igreja, poderá expor aos poucos livros
bíblicos inteiros, apontando o assunto sobre o qual cada passagem trata,
explicando suas dificuldades, destacando os ensinos doutrinários que dali
emanam, ilustrando de forma vívida e didática as lições principais,
detectando o que o autor quis produzir na mente e na vida dos leitores
originais e, talvez o mais importante, mostrando como o texto exposto pode
ser aplicado à realidade dos crentes atuais, mudando seu modo de pensar e
de viver e transformando-os em pessoas dotadas de caráter semelhante ao
de Jesus.
Esse último aspecto é de importância vital porque não basta que a
pregação seja doutrinariamente sadia. Ela deve também ser prática e
aplicável, gerando benefícios palpáveis para o dia a dia dos santos.
Ao preparar um sermão assim, o mensageiro deve evitar a cópia
completa de outros pregadores, isto é, o tipo de homilia que apenas
reproduz o que diferentes teólogos disseram ou escreveram. Mesmo sendo
necessário que o pastor pesquise todas as fontes disponíveis, é também
importante que ele mesmo desenvolva, à luz do texto, suas próprias
observações e reflexões, contando para isso com o auxílio de Deus buscado
em oração.
No tocante à forma como é transmitida, isto é, à sua entrega, a
pregação deve aflorar com linguagem clara para que a mensagem seja
compreendida por todos, desde o mais simples ao mais letrado. No dizer de
Calvino, ao pregar, o pastor deve ser “como um pai repartindo o pão em
[22]
pequenos pedaços para alimentar seus filhos”.
Cuidando para que seja assim, o pregador não deve entediar os
ouvintes com elucubrações confusas, longos devaneios e argumentações
complexas. Deve, pois, evitar a mistura de assuntos, os rodeios que não
chegam a lugar nenhum, os apelos prolongados e insistentes que não
produzem nada e o falar monótono, moroso e soporífero, pois um dos erros
mais trágicos do pregador é tornar a Palavra de Deus enfadonha aos
ouvintes. Aliás, sabendo disso, é importante também que o mensageiro
cristão tenha tato para perceber quando está sendo cansativo e quando já
passou da hora de se calar. Em tudo, pois, deve cuidar para, como porta-voz
de Deus, dar com entusiasmo, dinamismo, clareza e sabedoria o recado que
seu Senhor ordenou que desse.
Ainda no tocante à entrega, o discurso santo admite o uso do bom
humor e até da ironia (1Rs 18.27; 1Co 4.8-10). Contudo, não pode ocorrer
do pregador trazer sobre si a fama de palhaço. A figura do pastor bufão, que
todos anelam escutar para dar boas risadas, não é salutar, pois ao ministro
de Cristo não é adequada a tarefa de divertir os ouvintes ou de deleitá-los
continuamente com gracejos. Ainda que o humor inteligente e saudável
tenha seu lugar na pregação como um artifício de retórica, isso não pode em
hipótese alguma ser dominante durante a homilia. Muito menos deve o
pregador fazer do púlpito palco para piadas de duplo sentido (Ef 5.4). Aliás,
nunca deve usar linguagem deselegante em suas mensagens (1Tm 4.12; Tt
2.7-8), nem tampouco fazer do sermão um veículo para atacar
covardemente pessoas da igreja por quem nutre antipatia.
É necessário dizer, finalmente, que, enquanto prega, o arauto de Deus
não deve se preocupar se está agradando ou não os homens, mas sim se está
sendo leal àquele que o enviou. Isso não significa que o pregador tem
licença para ser agressivo ou grosseiro, mas sim que ele tem de evitar o
discurso político que foge do que a Bíblia diz com medo de incomodar os
incrédulos e os que vivem no erro (Gl 1.10). Expondo a concepção de
Lutero a esse respeito, Timothy George escreveu:

Alguns pregadores hesitam em proferir palavras duras de


julgamento, com medo de ofender os “grandes” que se assentam
em sua congregação. Tais pregadores são, na realidade,
mercenários que “tagarelam no púlpito”, mas não proclamam a
verdade, porque amam seus ventres e a esta vida temporal mais
do que a Cristo... “Deus nos proteja dos pregadores que agradam
a todos e desfrutam de um bom testemunho de todos”, disse
[23]
Lutero.

O pregador que fugir do desejo de aprovação geral, for fiel ao ensino


bíblico e sábio na entrega de suas mensagens precisa saber que nem sempre
será ouvido pela maioria (Jo 12.37-38; Rm 10.16). De fato, muitos
escutarão a mensagem, mas isso não lhes será de proveito nenhum, pois não
crerão nela (Hb 4.2) e não a colocarão em prática (Tg 1.22-24). Por isso, o
pregador deve lembrar que o sucesso do mensageiro de Cristo não pode ser
medido pela recepção que tem junto aos homens, mas sim pelo seu grau de
fidelidade ao Senhor que o enviou para fustigar o coração dos maus com o
aguilhão do bem.

A oração

Outro componente do culto cristão é a oração (At 2.42). Esta, para ser
aceitável, deve ser feita em nome do Filho (Jo 14.13-14), com a assistência
do Espírito Santo (Rm 8.26) e na expectativa de que somente a vontade do
Pai seja feita (Mt 6.10; 1Jo 5.14). A oração pode ser dirigida a qualquer
[24]
uma das três pessoas da Santíssima Trindade, mas nunca a santos ou anjos
(Fp 4.6-7). Além disso, o crente deve rogar por coisas lícitas (1Tm 2.1-2) e
por pessoas vivas ou que ainda hão de nascer, jamais orando pelos mortos
(2Sm 12.16,21-23). Observe-se ainda que, durante o culto público, a oração
deve ser proferida numa língua conhecida pela congregação (1Co 14.16-
19).
Na Bíblia, pode-se encontrar pelo menos seis orientações básicas
acerca da oração que devem ser observadas pelos cristãos na prática de seus
atos cultuais.
Primeiro, as Escrituras ensinam que o crente deve orar com reverência.
Os cristãos têm uma percepção clara da majestade de Deus e da grandeza da
sua santidade. Conhecendo a Santa Palavra, eles sabem que o Senhor está
envolto em sublime esplendor, que ele habita na luz inacessível, que sua
glória é indizível e que sua soberania se estende sobre todo o universo e
além (1Tm 6.15-16; Jd 25). Por isso, jamais se referem ao Senhor como “o
cara lá de cima”. Tampouco falam com ele como quem fala com qualquer
um. Ainda que tenham em Deus um pai e amigo (Rm 8.15), sua intimidade
com ele não lhes dá licença para serem irreverentes (1Tm 2.8). Assim, ao
orar, os crentes têm de usar uma linguagem respeitosa e decente (Hb 12.28).
Devem fazer da sua oração uma oferta verbal pura e bonita ao Deus
glorioso (Ap 5.8). Os piedosos personagens bíblicos oravam assim e os
cristãos devem imitá-los.
Em segundo lugar, o crente deve orar com humildade. A noção de se
aproximar de Deus com palavras de reivindicação, exigindo supostos
direitos, está bem longe do ensino cristão sobre a oração. Trata-se de uma
noção nova, inventada por homens de mente corrompida, que acham que
podem se dirigir a Deus como se fossem senhores dele. A verdade, porém, é
que o homem é sempre pequeno, pobre e incapaz diante daquele que é
grande, rico e poderoso. Por isso, quando oram, os crentes devem
reconhecer sua miséria e necessidade e, numa atitude súplice, implorar a
ajuda imerecida de Deus (Sl 123.1-2), crendo que essa ajuda virá somente
se ele quiser e sabendo que sua vontade é soberana, não tendo o Senhor
obrigação nenhuma de fazer o que lhe é pedido (Mt 6.10; 2Co 12.7-9).
Em terceiro lugar, o crente tem de orar com contrição. O tempo de
oração, mesmo pública, deve ser como um vestíbulo dentro do qual o
homem se despe de qualquer noção de dignidade e glória pessoal. Toda
confiança em si mesmo, toda autoindulgência devem ser lançadas fora
quando o cristão está orando (Lc 18.10-14). No lugar dessas coisas, ele
deve olhar para os trapos da sua indignidade, da sua desídia, do seu pecado
e da sua ingratidão (Ed 9.5-15; Is 64.6; Lm 3.40-42). Então, com o coração
arrependido, deve pedir perdão e restauração, sabendo que, como Juiz,
Deus absolverá seus eleitos pelos méritos de Cristo (1Jo 1.9) e, como
Médico, ele os curará pelo poder da sua Palavra, divino remédio (Lm 3.22-
33).
Em quarto lugar, o crente deve orar com gratidão. É na oração que o
homem salvo expressa verbalmente seu louvor a Deus por tudo que ele é e
por tudo que ele tem feito. O crente reconhece em suas súplicas que nada do
que o Senhor lhe confere é devido ao seu merecimento. Ele se lembra que o
ar que respira, o alimento que come e as roupas que o cobrem são dádivas
sublimes de Deus que as derrama sobre as pessoas, apesar da sua
pecaminosidade e vileza (Sl 147.7-19; At 17.25). Isso sem falar das coisas
que ele concede sem que o homem necessite delas, com o propósito doce e
paterno de alegrá-lo e consolá-lo neste mundo mau. É em face disso que o
cristão remove de sua boca as reclamações e o murmurar sombrio, dirigindo
ao Senhor palavras de sincera gratidão e louvor (Fp 4.6-7; Cl 3.15).
Em quinto lugar, o crente tem de orar com fé. Ninguém deve ser tolo
ao ponto de acreditar que pode “fazer a cabeça” de Deus, induzindo-o a
realizar alguma coisa (Is 46.10). Assim, em vez de orar crendo
ingenuamente em sua suposta capacidade de persuasão, o cristão deve fazer
suas petições crendo no amor e no poder de Deus, confiando que ele o ama
como seu herdeiro especial e que lhe fará sempre o melhor, mesmo quando
seus olhos não forem capazes de enxergar isso (Lc 11.11-13; Hb 4.16). O
servo do Senhor deve crer que ele tem poder para fazer muito mais do que
lhe é pedido (Ef 3.20) e que efetivamente o fará, caso isso se encaixe nos
propósitos do seu amor infinito (1Jo 5.14-15).
Em sexto lugar, o crente deve orar com brevidade. A mente humana,
marcada pelo pecado, com muita facilidade se deixa levar durante as
orações pelo vento de pensamentos desconexos ou de preocupações
terrenas. Por isso, quando o cristão ora longamente, gera grande dificuldade
de concentração tanto para si mesmo (quando ora sozinho) como para seus
irmãos (quando ora em público). A forma de evitar isso é imitar o exemplo
do Senhor (Mt 6.9-13) e fazer uso da objetividade, abandonando jargões,
frases prontas, grandes formulações doutrinárias e exposições históricas,
lembrando, inclusive, que orações longas não são necessariamente sinais de
espiritualidade (Lc 20.46-47). O crente que ora deve, portanto, apresentar
brevemente seus motivos, seus louvores e sua confissão. Isso ajudará a
evitar que longos rios de preces terminem num oceano de confusões
mentais.
Eis aí seis pequenas “dicas” de como orar de modo bíblico e
proveitoso. Que o crente se afaste, pois, das rezas supersticiosas, das
orações de quebra de maldição ensinadas por pastores feiticeiros e das
palavras de ordem e de reivindicação que os falsos mestres estimulam os
incautos a dirigir ao Senhor. Em vez disso, que ore como os santos de Deus
mencionados na Bíblia. É o exemplo deles e o ensino do Senhor que se
devem seguir. O resto é invenção danosa.
O louvor cantado

A arte cristã tem várias formas de expressão. A pintura, a escultura, o


teatro e a literatura são aspectos da realização artística por meio dos quais
os crentes de talento têm manifestado suas percepções acerca de Deus, de
sua Palavra e de sua obra de forma tocante, original e criativa.
Com efeito, o cristianismo, desde os seus primórdios, encontrou na
arte um aliado tanto para a tarefa de estímulo à devoção como para o
trabalho de comunicação da fé. Uma das evidências mais curiosas disso
encontra-se nas antigas catacumbas de Roma. Nas paredes subterrâneas
desses imensos cemitérios cristãos existem pinturas datadas entre os séculos
2 e 4, ilustrando momentos da vida da igreja como o batismo e a eucaristia,
ou destacando temas ligados à fé como a figura do Bom Pastor ou a
pombinha que foi solta por Noé e que retornou à arca com um raminho de
oliveira no bico, símbolo da alma redimida chegando ao Paraíso.
Em que pese a importância de toda forma de arte para a comunicação
da fé, é na música que o talento artístico encontra sua melhor forma de
expressão cultual. Sim, pois por meio da música a igreja reunida entoa
louvores e eleva o coração a Deus em tocante adoração, proclamando os
gloriosos atributos do Senhor e anunciando seus feitos maravilhosos. Por
isso, o louvor cantado tem lugar de extrema importância no culto cristão,
sendo, inclusive, estimulado nos escritos do Novo Testamento (Ef 5.19; Cl
3.16).
Toda forma de arte, porém, para ser plenamente aceita e desfrutada
pelo crente deve apresentar três qualidades: excelência, isto é, não pode ser
malfeita ou isenta de qualquer demonstração real de talento; legitimidade,
ou seja, não pode ser um simples plágio de outras obras; e veracidade. Essa
última qualidade deve ser considerada a mais importante para o crente, pois
significa que a obra artística tem de dizer ou representar a verdade, jamais
promovendo qualquer forma de crença, ideia ou filosofia mentirosa.
Ora, essas três qualidades precisam ser levadas seriamente em conta
pela igreja na escolha dos hinos que decide cantar durante seus cultos. Caso
contrário, a santa adoração será gravemente ameaçada pela feiura, pelo
ridículo e pela mentira.
A prática do louvor na igreja de Deus deve também assumir um estilo
ordeiro e moderado. É aceitável o uso de qualquer instrumento musical,
mantendo sempre, contudo, o caráter equilibrado que é apropriado ao culto
prestado ao Deus soberano. Disso os adoradores cristãos jamais devem se
esquecer, a fim de que, em seus momentos de louvor, a igreja jamais deixe
reinar as desordens, as gritarias e as manifestações de histeria ou de
descontrole emocional tão comuns nas corrompidas igrejas modernas.
Aliás, nesse sentido, a Bíblia mostra que os homens que estiveram
realmente diante do Deus verdadeiro jamais sentiram qualquer desejo de
pular, rir, dançar ou gritar. Em vez disso, aqueles homens foram tocados por
sentimentos de profundo temor, reverência e contrição (Gn 28.16,17; Jó
42.5,6; Is 6.1-5; Ez 1.28; Mt 17.1-6; Ap 1.17). Assim, na igreja de Deus, o
louvor, bem como cada momento do culto realizado na presença do Senhor,
é marcado por decência e ordem (1Co 14.40). Isso porque a preocupação de
cada crente maduro consiste em adorar a Deus “de modo aceitável, com
reverência e temor, pois o nosso Deus é um fogo consumidor” (Hb
12.28,29).
Em busca do equilíbrio, a igreja de Deus deve entoar tanto cânticos
avulsos como hinos dos hinários tradicionais, tais como o Cantor Cristão, o
Hinário para o Culto Cristão e a Harpa Cristã. Pelo fato de a igreja de
Cristo ser uma comunidade composta de pessoas de diversas idades, origens
e formações, é necessário estabelecer uma liturgia equilibrada, na qual
todos os crentes se sintam bem.
No Brasil, uma tradição evangélica antiga considera o bater palmas
pouco recomendável durante o cântico dos hinos. As palmas, porém, não
devem ser absolutamente proibidas, uma vez que não há amparo bíblico
para essa restrição. Contudo, deve-se cuidar para que o uso constante e
desordenado dessa forma de participação congregacional não conflite com a
reverência que deve existir diante do Deus santo e majestoso.
Ademais, conforme dito, a igreja do Senhor é uma comunidade mista,
composta por pessoas de diferentes percepções, havendo, inclusive, aquelas
que se escandalizam com a prática de bater palmas. Essas pessoas, como
preciosas ovelhas de Cristo, têm de ser respeitadas em seus sentimentos e
reações, pois, segundo o ensino apostólico, age contra o amor aquele que
faz deliberadamente qualquer coisa que deixe um irmão entristecido ou
incomodado (1Co 8.12-13).
O levantar as mãos durante os cânticos não é prática comum nas
igrejas mais tradicionais. Não obstante esse gesto esteja presente na Bíblia
associado ao juramento (Gn 14.22,23; Dn 12.7; Ap 10.5,6), à oração (Sl
28.2; 77.2; 88.9; 141.2; Lm 2.19; 3.41,42; 1Tm 2.8) e ao louvor (Ne 8.6; Sl
63.4; 134.2), a igreja zelosa deverá ter cautela ao usá-lo. Isso porque a boa
igreja precisa preservar os traços de sua identidade, mostrando-se diferente
das inúmeras seitas atuais que se autodenominam evangélicas. Nessas
seitas, os frequentadores ficam quase o tempo todo de mãos levantadas sem
ter a menor noção do significado disso ou movidos por ideias
supersticiosas, sendo necessário que a igreja verdadeira evite ser
confundida com movimentos assim.
É sabido que levantar as mãos ao Senhor é o mesmo que dizer: “Pai,
olhe minhas mãos; elas estão limpas de pecado. Também nelas não há
nenhum recurso que eu possa usar na difícil situação em que me encontro.
Elas estão totalmente vazias! Por isso, ouve a minha súplica!”. Sabe-se
também que levantar as mãos é uma expressão física que simboliza o desejo
de alcançar a Deus (Sl 143.6), o seu perdão, o seu favor ou os seus ensinos
(Sl 119.48).
Conhecendo os sentidos desse gesto, nada há que impeça o crente de
manifestá-lo em suas orações ou expressões de louvor. Tão somente os
membros da igreja séria devem ser orientados a que sejam criteriosos e
sensíveis durante o culto público a fim de que, com tato em bom senso,
evitem dúvidas e confusões ao adotar gestos assim.
Considerando tudo isso, é fácil concluir que, em seu louvor cantado, a
prática da igreja de Deus deve revelar profunda preocupação em manter
bem nítidas as distinções entre o culto dos cristãos sérios, os ritmos do
mundo enlouquecido e as sandices das seitas ignorantes, oferecendo sempre
a Deus um cântico digno de sua majestade, marcado por beleza, arte,
verdade e amor aos irmãos presentes.

Os chamados ‘momentos de louvor’

As décadas de 1970 e 1980 viram surgir no meio evangélico uma


teologia acerca do louvor absolutamente estranha aos ensinos da Bíblia.
Essa teologia que ainda vigora dentro das igrejas em geral atribui ao louvor
um poder exacerbado, afirmando que essa prática, quando realizada de
forma vitoriosa, maciça, jubilosa e contínua, cria um ambiente que “libera o
poder de Deus”, afugenta Satanás ou o impede de agir, fazendo, afinal, com
que todo tipo de mal se desvaneça e o crente obtenha grandes conquistas e
livramentos.
Fundamentadas nessa teologia, afirmações ousadas passaram a ser
feitas acerca do louvor, enaltecendo-o como um instrumento infalível por
meio do qual o crente pode obter uma fé robusta, uma vida de oração
triunfante, um crescimento espiritual mais acelerado, um lar feliz e até a
[25]
cura para a depressão, o estresse e inúmeras doenças mentais.
Os reflexos práticos desses ensinos sobre a liturgia cristã foram,
basicamente, dois: primeiro, ocorreu a redução da importância e do lugar da
pregação no culto; em segundo lugar, houve a criação de equipes
responsáveis por promover períodos especiais de louvor dinâmico e
entusiasmado durante as reuniões da igreja.
Foi assim, pois, que surgiu na ordem de culto das comunidades cristãs
de todas as vertentes evangélicas o “momento de louvor”, dirigido
geralmente por um grupo de jovens que, via de regra, atua num dado
momento da programação promovendo uma espécie de culto dentro do
culto. Em algumas igrejas, os membros da equipe responsável por isso são
chamados de levitas, sendo assim colocados numa categoria especial de
adoradores, algo totalmente estranho ao culto cristão.
No instante, pois, em que esse grupo vai à frente é como se um
parêntese se abrisse na sequência que está sendo seguida e uma liturgia
diferente e mais eficaz tomasse então lugar, com músicas, leituras bíblicas,
orações e pequenas pregações feitas entre um cântico e outro.
Quando, enfim, esse “momento especial” termina, retorna-se à
sequência litúrgica antes interrompida, fecha-se assim o parêntese, e os
componentes do grupo de louvor voltam para os seus lugares, muitas vezes
do lado de fora da igreja, onde, em rodinhas animadas de bate-papo,
aguardam a pregação e tudo o mais acabar. No fim das contas, a impressão
que tudo isso passa é que o ápice do culto é o tal momento de louvor, sendo
tudo o mais apenas um apêndice indesejável, quando não desnecessário.
Tanto por causa de seus pressupostos doutrinários como de seus efeitos
danosos, esse modelo deve ser desencorajado ou mesmo extinto da igreja de
Deus. Uma maneira de fazer isso é por meio da alteração dessa dinâmica,
[26]
redirecionando o trabalho dos componentes dos grupos de louvor.
Como? Os líderes da igreja devem trabalhar para integrar o trabalho
desses irmãos ao culto como um todo, fazendo com que não mais realizem
o chamado “momento de louvor”, mas, sendo o culto um evento unificado
de adoração, dirijam cânticos avulsos em momentos diversos da liturgia.
Devem ainda lhes dizer, se for o caso, que não são levitas, mas
adoradores no mesmo nível dos demais e, enfim, instruí-los a não fazer
outras leituras bíblicas, outros períodos de oração ou outras pregações (por
mais curtas que sejam) enquanto estiverem à frente, restringindo-se a dirigir
os cânticos nos instantes em que a programação normal assim requerer.
Isso, ainda que possa gerar certas reclamações e descontentamentos,
fará desaparecer a natureza parentética e “especial” dos “momentos de
louvor” e o culto voltará a ser caracterizado pela unidade saudável que
reflete a igualdade de cada adorador e a idêntica importância de cada
elemento cultual.

As dádivas durante o ofertório

Como será visto adiante (Capítulo 6), os crentes têm o dever de


oferecer os recursos que a igreja usará para funcionar bem e realizar suas
metas. Ora, o culto cristão fornece o contexto em que esse ato de entrega
deve ocorrer. Por isso, existe espaço na liturgia cristã para o ofertório,
devendo esse aspecto da adoração ser regido também por princípios que
emanam da Palavra de Deus.
O primeiro princípio a ser observado no momento do ofertório é o
princípio da exclusividade. Com base nesse princípio afirma-se que as
ofertas dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos do seu
povo redimido. Um exemplo claro disso se encontra em 3João 7. Esse
versículo afirma que os evangelistas itinerantes que haviam sido enviados
pela igreja em que João estava (provavelmente em Éfeso) realizaram sua
jornada missionária “nada recebendo dos gentios”, ou seja, dos pagãos
incrédulos. Eles agiram assim porque, em seus dias, os falsos mestres
obtinham dinheiro fácil com a venda de um evangelho distorcido (2Co
2.17; 4.2; 1Tm 6.5) e aqueles mensageiros de Deus não queriam ser
confundidos com os tais obreiros fraudulentos (2Co 11.13).
Hoje, o mesmo problema permanece, havendo pregadores da mentira
que tiram dinheiro dos incrédulos com mensagens vazias. Assim, para
evitar que a igreja de Deus seja confundida com um covil onde esses
ladrões se reúnem, deve-se acolher a mesma prática sensata dos antigos
evangelistas de Éfeso, recusando qualquer recurso que não venha das mãos
de pessoas convertidas.
As ofertas de incrédulos também devem ser recusadas porque,
tomados muitas vezes por uma visão comercial das bênçãos de Deus, os
homens perdidos acreditam que podem comprar o favor do Senhor
oferecendo-lhe alguns trocados, como se o Dono do universo precisasse de
dinheiro. Essa atitude é tão blasfema e tão contrária à natureza santa,
autossuficiente e graciosa de Deus que é imperativo que seja desencorajada
durante o momento de ofertório, a fim de que o culto não seja maculado por
impulsos tão perversos.
O segundo princípio a ser observado no momento do ofertório é o
princípio da obediência, pelo qual se estabelece que as ofertas aceitáveis a
Deus são aquelas que vêm de vidas santas, marcadas por arrependimento,
retidão e busca sincera da vontade do Senhor. A base bíblica desse princípio
pode ser encontrada já no Livro de Gênesis, onde a oferta de Caim é
rejeitada porque seu procedimento não era reto diante de Deus (Gn 4.3-7).
Outros textos fortalecem a importância do princípio da obediência,
mostrando que as dádivas que vêm de pessoas perversas, hipócritas,
apóstatas e mundanas são vistas por Deus como verdadeira abominação
(1Sm 15.22; Pv 15.8; 21.27). Aliás, deve-se destacar que não são somente
as ofertas de pessoas assim que Deus rejeita, mas sim cada gesto cultual que
elas realizam (Is 1.11-15). Assim, quando for iniciar o momento de
ofertório, o dirigente deve alertar os adoradores acerca dessas coisas, a fim
de que haja arrependimento no coração de todos e as dádivas oferecidas
agradem realmente a Deus (Sl 51.17).
Finalmente, durante o momento de ofertório, os cristãos devem
observar o princípio da responsabilidade pelo qual cada crente deve
contribuir não com qualquer igreja, mas com aquela de que participa, seja
como membro, seja como assíduo frequentador, sendo essa a prática
reinante em todo o Novo Testamento.
É claro que o membro de uma determinada igreja é livre para,
eventualmente, dar ofertas em outra, caso queira. Isso, porém não pode ser
feito em prejuízo da igreja de que faz parte, igreja essa pela qual é
responsável e que conta com sua cooperação. Cada ovelha de Cristo deve,
pois, saber que seu compromisso maior é com o aprisco de fé e adoração
em que o Supremo Pastor a colocou, sendo livre para dar ofertas para
qualquer agência do Reino, mas sem deixar de lado a contribuição de que
sua própria igreja necessita.

A bênção apostólica

Um costume bastante antigo e comum nas igrejas evangélicas é


encerrar o culto com uma oração especial feita pelo pastor denominada
“bênção apostólica”. Essa oração consiste basicamente da repetição do
texto de 2Coríntios 13.13 (ou 14, na NVI) enunciada pelo ministro com o
braço estendido sobre a congregação.
A maioria dos crentes tende a crer que a bênção apostólica só pode ser
impetrada por um pastor devidamente ordenado, chegando alguns a
acreditar que ela possui uma força maior do que as orações comuns feitas
pelos cristãos em geral.
Essas noções, porém, não passam de pequenas superstições e desvios
que persistem há várias gerações no meio evangélico, mesmo nas igrejas
mais zelosas. De fato, não existe nada nas Escrituras que conceda aos
pastores o direito exclusivo de pronunciar esta ou aquela oração. Tampouco
existe qualquer base para a crença de que uma oração feita por um ministro
com as mãos estendidas tenha efeitos mais eficazes sobre o povo.
Na verdade, ao que parece, essas crenças decorrem de um erro muito
comum no contexto cristão, a saber, a ideia de que o pastor é um sacerdote
que ministra ao povo leigo. Essa ideia tem duas fontes: a teologia católica
romana que confere aos seus “pastores” o status de sacerdotes detentores de
prerrogativas espirituais não concedidas ao cristão comum; e a visão da
igreja como um novo Israel (com leis, rituais e sacerdotes) – concepção que
[27]
surge como um desdobramento natural da teologia aliancista.
De acordo com essa visão, uma vez que o pastor é um sacerdote,
somente ele está autorizado a realizar os “rituais” do culto cristão, sendo a
bênção apostólica apenas mais um deles.
Ora, a noção que define o pastor como um sacerdote que ministra a
leigos é absolutamente oposta a uma das colunas teológicas centrais do
Novo Testamento, a saber, a doutrina do sacerdócio universal de todos os
crentes.
Essa doutrina tem sólido amparo bíblico (1Pe 2.5,9; Ap 1.5-6; 5.9-10)
e foi um dos temas principais pregados pelos reformadores do século 16, os
quais viam no ensino acerca do sacerdócio exclusivo dos padres uma das
ferramentas mais nocivas de opressão do povo.
Considerando que a prática da impetração da bênção apostólica é um
resquício do sacerdotalismo católico, além de um desdobramento talvez
involuntário da concepção equivocada da igreja como um novo Israel, duas
alternativas se abrem para a igreja de Deus no tocante a esse assunto: a
primeira é permitir que todo e qualquer crente impetre a bênção apostólica
antes de despedir o povo, preservando a igualdade; a segunda é rejeitar de
vez o hábito de encerrar o culto com a bênção apostólica pronunciada pelo
pastor com imposição de mãos.
Salvo melhor juízo, a segunda opção é a melhor, posto que dá cabo
definitivo de qualquer sombra sacerdotalista que certamente se insinua
nesse antigo costume.

Demônios no culto?

Uma das obras de Satanás e seus anjos que mais escravizam e


destroem vidas é o fenômeno da possessão demoníaca. Em face dessa
aflição, duas correntes de opinião se formam, ambas marcadas por
extremismo injustificado. Na primeira corrente, encontram-se os que em
tudo veem os “chifres do diabo”. Basta alguém ficar irado, ter um mal-estar
físico, discordar do que disse o pastor, ou simplesmente tossir, e logo dizem
que a pessoa está endemoninhada.
No outro extremo encontram-se os que, mesmo diante das mais claras
evidências de possessão demoníaca, se mantêm céticos, afirmando que o
que estão testemunhando é mero resultado da bebida ou de algum problema
mental.
O cristão que pretende pensar e agir de conformidade com a Palavra de
Deus deve se situar de modo equilibrado entre esses dois extremos. Deve
aceitar que a possessão demoníaca é um fenômeno que realmente existe,
pois são inúmeros os textos bíblicos que o atestam (Mt 8.28; 9.32; 12.22;
15.22; Mc 1.23; 5.2; Lc 8.2; At 5.16). Contudo, deve também ter bom senso
para discernir se está diante de alguém realmente endemoninhado ou de
uma vítima de outro problema qualquer.
Nem sempre é fácil fazer distinção. Tanto mais quando se sabe que é
possível diferentes problemas serem patentes, ao mesmo tempo, numa
pessoa só. De fato, é comum a mesma pessoa estar endemoninhada e
embriagada, ou endemoninhada e com problemas mentais, ou até
endemoninhada, embriagada e com problemas mentais, o que torna difícil,
se não impossível, saber onde terminam as evidências de um problema e
começam as do outro.
De qualquer modo, parece ser ponto pacífico que a mudança de voz, a
força física descomunal (Mc 5.2-4), a alteração notável do semblante, a
imitação de movimentos e sons de animais, o olhar carregado de ódio
assassino e selvagem (Mt 8.28), a fúria incontrolável diante das verdades da
Bíblia e o dizer ou fazer coisas que o indivíduo em seu estado normal não
saberia dizer ou fazer (Mc 1.23,24) são evidências claras de possessão
demoníaca. Diante de fatores desse tipo, portanto, o crente deve considerar
seriamente a hipótese de estar lidando com um endemoninhado.
O modo de agir do cristão em face de um problema de tão elevado
grau de gravidade deve levar em conta alguns critérios, especialmente se a
manifestação demoníaca ocorrer durante um culto. Aqui também é a
Palavra do Senhor que fornecerá orientação para o povo de Deus não ser
enganado nem cair nos mesmos erros de certas seitas modernas que fazem
do endemoninhado o centro de um espetáculo, agradando com isso somente
aos próprios demônios. Estes se deleitam em ser o alvo das atenções e
zombam de todos quando fingem obedecer aos ministros que, com seus
shows de exorcismo, só lhes satisfazem as vontades e propósitos.
Para evitar tudo isso, deve o cristão e, principalmente o pastor, ter os
seguintes cuidados:
1. Não permitir que o problema ocupe o lugar central do culto.
Satanás tem como maior objetivo usurpar o lugar de Deus. Esse
objetivo fez que ele fosse expulso do céu (Is 14.12-15). É natural,
portanto, que, juntamente com seus anjos, queira ocupar o lugar central
no culto, lugar este que pertence unicamente a Deus. Sabendo disso, a
igreja bíblica jamais deve cair em tão sutil armadilha (2Co 2.11).
Portanto, ocorrendo alguma manifestação demoníaca durante as
reuniões da igreja, a vítima da possessão deve ser imediatamente
levada para outro recinto e o culto deverá seguir normalmente. O
menor número possível de pessoas deverá deixar a adoração cultual
para atender ao endemoninhado. Geralmente, três ou quatro crentes
são suficientes para socorrer o indivíduo que sofre. O restante dos
irmãos permanecerá firme no propósito de adorar a Deus. Se não agir
assim, a igreja “fará o jogo” do diabo, e ele logrará sucesso em desviar
todos dos objetivos principais do culto: o aprendizado, a adoração, o
louvor e o serviço.
Além disso, tangidos por sentimentos de amor e compaixão, os crentes
devem lembrar que, nessas ocasiões, quem está diante deles não é só
um demônio. Ali está também (e principalmente) um indivíduo
escravizado pelo diabo, sofrendo terrivelmente e sendo por ele
humilhado. Levando isso em conta, é preciso poupar essas tristes
vítimas de humilhação e vergonha ainda maiores, evitando expô-las ao
ridículo e jamais usar sua desgraça para se afirmar diante dos outros ou
granjear admiração e aplauso.

2. Verificar se o problema é realmente possessão demoníaca. Como


já dito, é possível que o problema manifesto não seja de origem
espiritual. Ataques de epilepsia, crises de histeria, doenças mentais,
influência de drogas, síndromes e embriaguez são alguns exemplos de
casos que podem confundir. O crente que considera essas hipóteses
não é alguém que duvida das coisas espirituais. Antes, é pessoa que dá
mostras de zelo, estando preocupado em não usar em vão o nome de
Deus e as armas espirituais que ele colocou à disposição dos santos.
Por isso, diante da dúvida quanto à natureza do que está sendo
enfrentado, é muito útil entrevistar os familiares ou outras pessoas que
acompanham o suposto endemoninhado a fim de obter informações
esclarecedoras acerca dos vícios e do estado de saúde dele. Muitas
vezes, indivíduos com sinais de perturbação não precisam de um
pastor, mas sim de um médico.

3. Evitar ferimentos. O endemoninhado geralmente é lançado


violentamente ao solo e, muitas vezes, tenta, de todos os modos,
machucar o próprio corpo (Mc 5.5; 9.17-22). Também ataca as pessoas
ao seu redor, produzindo com isso sérios ferimentos. Por isso, é
preciso deter o indivíduo nessas suas arremetidas. Em casos extremos
pode ser preciso até mesmo amarrá-lo. A aplicação de sedativos, desde
que sob orientação médica, também pode ser medida necessária e útil.
Isso porque, usando uma analogia não muito feliz, os demônios
controlam o corpo de um homem do mesmo modo que um cavaleiro
controla o animal em que monta. Assim, se o corpo do homem estiver
inerte, nada poderão fazer os demônios, do mesmo modo que o
cavaleiro nada poderá fazer com um cavalo desmaiado.

4. Não dialogar longamente com o demônio. A prática de entrevistar


o demônio, desafiá-lo, ordenar que se ajoelhe ou faça outras coisas é
uma das maiores evidências de maldade, ignorância e orgulho
presentes em certas pessoas que se dizem aptas para lidar com
possessão demoníaca. Com isso, geralmente, tenta-se conquistar o
respeito que, pelo testemunho de vida, talvez seja difícil obter.
Assim, é comum se ver líderes religiosos demonstrando suas supostas
habilidades em lidar com maus espíritos, enquanto a multidão sem
instrução se revolve em gritos, vaias, risos e aplausos. Nesses
momentos, contudo, quem mais ri e aplaude é o próprio demônio que,
fingindo-se dominado e impotente, alegra-se vitorioso por expor sua
vítima, imagem e semelhança de Deus, a tantos vexames; por desviar o
povo do interesse por igrejas sérias; e por construir no coração dos
falsos pastores o império do orgulho.
Na Bíblia nenhum servo de Deus dá demasiada atenção aos demônios.
Jesus nunca ficou a dialogar longamente com eles (Mt 8.28-32; Mc
1.23-26) e o apóstolo Paulo, ao ser incomodado por uma jovem
endemoninhada, só lhe deu atenção depois de muitos dias, limitando-
se, ainda assim, a somente ordenar que o mau espírito se retirasse dela
(At 16.16-18).
Que os crentes verdadeiros sigam esses exemplos! Em vez de ficarem
a ouvir durante horas as podridões que emanam da mente dos espíritos
infernais, trabalhem depressa para que, em nome de Cristo, eles se
retirem. Maior parcela de tempo, então, seja gasta na evangelização da
vítima agora liberta, pois a possessão demoníaca é evidência de que a
[28]
vítima não é crente (Ef 2.2).

5. Não acreditar que o êxito na expulsão de demônios é, por si só,


evidência de maturidade espiritual. Há quem pense que expulsar
demônios é um dom especial dado por Deus a alguns escolhidos dele.
Outros acreditam que o sucesso no exorcismo é prova cabal de que um
indivíduo é maduro espiritualmente ou detentor de poder sobrenatural
dado por Deus. Pensando assim, muitos pastores ficam preocupados
com sua reputação quando estão diante de algum endemoninhado. E
mesmo os crentes em geral põem em dúvida o grau de espiritualidade
dos ministros que, eventualmente, não logram êxito em libertar um
possesso.
É verdade que a falta de fé muitas vezes impede que a vitória nessas
lutas venha na mesma hora (Mt 17.19,20). Porém, o sucesso na
expulsão de demônios não é, por si só, evidência de que o pastor é um
supercrente. Isso porque a Bíblia diz que até os incrédulos podem
expulsar demônios! Evidentemente, a probabilidade de eles passarem
por vexame nessas ocasiões será muito grande (At 19.13-16), mas
mesmo assim é inegável que pessoas não salvas também podem
praticar o exorcismo com sucesso (Mt 7.22-23).
De fato, em certas ocasiões, os demônios obedecem às ordens de
incrédulos provavelmente com o fim de enganá-los criando neles a
falsa sensação de que estão bem espiritualmente. Por isso, o êxito
nessas batalhas não pode servir de base para avaliar a condição
espiritual de alguém. Aliás, muitas vezes, o crente pode se ver diante
de casos de possessão demoníaca que hão de requerer tempo e esforços
muito intensos para serem solucionados. Nessa luta, nem sempre a
vitória se obtém num só dia (Mc 9.28-29).

Concluindo, deve ser dito que os anjos de Satanás jamais se sentirão


atraídos por um ambiente em que reinem a santidade, o louvor e a pregação
da cruz. É mais natural que se manifestem em lugares que lhes sejam mais
condizentes com o caráter, onde impere a soberba, a mentira, a fraude, a
má-fé, a perversão das Escrituras, a superstição, a incredulidade, a
desordem e a podridão moral. Por isso, ainda que possíveis, as
manifestações de demônios na igreja não devem ser vistas como coisa
normal. Esses casos poderão ocorrer só mui raramente e, uma vez
constatados, devem estimular a igreja à autoanálise.
Quão infeliz deverá se sentir a igreja em que Satanás se manifestar
ousada e constantemente durante os seus cultos! Deverá rever sua conduta,
sua pureza e sua fidelidade a Deus, avaliando-se a si mesma em busca de
algum caminho mau que deva ser abandonado, pois o contexto em que o
Espírito de Deus verdadeiramente reina e atua de modo soberano e absoluto
não serve ao mesmo tempo de palco para as apresentações do inimigo.
O que se deve esperar é que tais apresentações ocorram nos ambientes
podres para os quais os anjos do inferno sempre se sentirão atraídos, cientes
de que ali serão recebidos como personagens centrais de odiáveis
espetáculos.
Questões comuns

1) Quantas horas deve durar um culto e o que deve ocupar maior


parcela de tempo ao longo dessa reunião?
No passado, especialmente entre os puritanos, os cultos podiam chegar a
seis ou nove horas! Hoje, por causa das mudanças nos costumes e no estilo
de vida, as pessoas têm dificuldade para permanecer tanto tempo numa
reunião. Por isso, o melhor é que o culto dure, no máximo, duas horas.
Desse período, a maior parcela de tempo (quarenta minutos a uma hora)
deve ser reservada para a pregação que é o veículo mais eficaz para a
edificação dos santos e a proclamação da fé.

2) No culto, pode haver espaço para homenagens?


Nunca, em hipótese alguma! O culto deve ser centrado exclusivamente no
Deus Trino. Somente ele deve ser focalizado durante a adoração cristã.
Homenagens, como as que são feitas no Dia das Mães, no Dia dos Pais ou
no Dia do Pastor, devem ser realizadas numa reunião à parte.

3) Muitos cultos têm coreografias e danças. Isso é certo?


A liturgia eclesiástica, conforme encontrada no Novo Testamento, não tem
espaço para essas coisas. O Antigo Testamento fala sobre adorar a Deus
com danças (Sl 149.3) e fornece alguns exemplos disso (Êx 15.20; 2Sm
6.14-16). Porém, mesmo ali, a dança jamais está associada à liturgia
levítica, ou seja, ao culto formal instituído por Deus, mas sim a eventos
festivos ou a atos espontâneos e informais de alegria e de gratidão. Além
disso, em nossa sociedade, a dança tem conotações bem distintas das que
tinha nos tempos bíblicos (alegria e louvor), tendo como alvo promover
exibições artísticas, muitas vezes até com apelos sensuais. Nada disso se
harmoniza com a natureza do culto cristão.
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS
O capítulo anterior tratou do culto cristão, sendo ali destacado, logo no
início, que as ordenanças são elementos que compõem os atos litúrgicos da
comunidade da fé.
De fato, a observância das ordenanças estabelecidas por Cristo, ou
seja, o batismo e a ceia, é um traço distintivo da congregação do Senhor.
Infelizmente, porém, ao longo dos séculos, muitos equívocos
macularam também esses elementos tão sublimes da vida eclesiástica.
Concepções supersticiosas, entendimentos heréticos e práticas jamais
ensinadas nos escritos apostólicos geraram e têm gerado intrigas,
produziram rompimentos entre lideranças cristãs, provocaram zombaria por
parte dos incrédulos e macularam a igreja de Deus de diversas e inusitadas
maneiras.
Considere-se especificamente a Ceia do Senhor. É difícil imaginar
outro assunto que tenha sido objeto de tantos debates e divisões dentro da
igreja desde os tempos da Reforma. Aliás, está tristemente marcada na
história do protestantismo a inimizade surgida entre Lutero e Zuínglio por
causa do sentido da frase “isto é o meu corpo”, presente em Mateus 26.26.
Tratava-se de uma sinédoque (Lutero) ou de uma metáfora (Zuínglio)? O
impasse acerca dessa questão discutida calorosamente no Colóquio de
Marburgo (1529) foi suficiente para que a igreja reformada suíça e a igreja
luterana rompessem entre si e seguissem direções distintas!
Mesmo, porém, envolvendo temas que suscitam controvérsias tão
densas, a questão das ordenanças deve ocupar a mente do povo santo que
precisa ajustar seu entendimento àquilo que o Senhor revelou em sua
Palavra. E não apenas isso. É necessário também que, como resultado do
bom entendimento daquilo que a Bíblia realmente diz sobre o batismo e a
ceia, a igreja de Deus observe importantes e salutares orientações práticas.
Este capítulo pretende oferecer alguma ajuda nessa direção.

O batismo: significado e método

O verbo “batizar”, na língua em que foi escrito o Novo Testamento


(grego koinê), significa imergir. De fato, a imersão, era a forma de batismo
adotada pelos apóstolos e pelos primeiros cristãos. Aliás, é bom dizer desde
já que a alegação de que no Novo Testamento o batismo por aspersão é
visto em Atos 9.18; 10.47-48 e 16.33 não se baseia em nenhuma evidência
textual ou histórica, mas somente nas suposições de alguns intérpretes que
imaginam ter sido difícil realizar a imersão nas ocasiões descritas nesses
textos. Essas suposições, contudo, não levam em conta a natureza abreviada
ou resumida da narrativa nem a consequente implicação lógica de que as
pessoas mencionadas nos textos de Atos se deslocaram para um lugar onde
houvesse água suficiente para imergir os novos crentes.
A convicção acerca da imersão como prática dos cristãos primitivos
baseia-se em ampla evidência neotestamentária (Mt 3.16; Mc 1.5, 9-11; Jo
3.23; At 8.36-39). Essa evidência, porém, é fortalecida por fatores
históricos de peso incontestável. Por exemplo: a literatura produzida nos
tempos da igreja antiga mostra, mais especificamente no Didaquê, o uso da
imersão. Ali fica claro que a aspersão era admitida somente quando não
[29]
havia água suficiente.
É também curioso observar que as catedrais europeias construídas na
Idade Média têm ainda hoje marcado no piso do prédio do batistério o local
em que antigamente ficava o “tanque” usado para a imersão. Diga-se ainda
que o próprio reformador João Calvino, praticante do batismo por aspersão,
escreveu em suas Institutas: “… na verdade, o próprio termo batizar
significa imergir, e é patente haver sido observado na igreja antiga o rito de
[30]
imergir”.
O fato de a imersão ser, inegavelmente, a forma de batismo adotada
pelos primeiros cristãos não implica, necessariamente, na rejeição do
batismo por aspersão como prática herética. Isso porque, à luz do Novo
Testamento, o batismo cristão deve atingir quatro propósitos fundamentais,
sendo certo que a maior parte deles é alcançada também pelo rito de
aspergir.
O primeiro propósito do batismo é proclamativo. Quando é batizado, o
crente, sendo indagado pelo ministrante acerca do seu relacionamento com
Deus, anuncia publicamente que fez as pazes com ele, por meio da obra
realizada por Cristo (1Pe 3.21). Esse alvo é perfeitamente alcançado,
independentemente da forma de batismo adotada.
O batismo tem também um propósito identificador, apontando para a
associação do batizando com Cristo e seus seguidores. A Bíblia ensina que
os israelitas libertos do Egito foram batizados na nuvem e no mar com
respeito a Moisés. Isso significa que, ao se colocar sob a nuvem e ao passar
pelo mar, cada israelita se identificou com Moisés ou, mais
especificamente, com o povo liberto por ele (1Co 10.1-2). Da mesma
forma, o crente, quando se submete ao batismo, apresenta-se como alguém
que faz parte da comunidade de redimidos por Cristo, identificando-se com
esse grupo que se “revestiu” do Senhor (Gl 3.27).
De fato, Cristo disse que, por meio do batismo, o homem demonstra
que se tornou um discípulo dele (Mt 28.19). Obviamente, não sendo
dependente da forma, esse ideal se perfaz não só no rito de imergir, mas
também por meio da aspersão da água sobre o crente.
O terceiro propósito do batismo é simbólico e consiste de prover uma
alegoria da lavagem espiritual que beneficia todo aquele que recebeu o
Salvador. Com efeito, o homem que é justificado pela fé em Cristo é lavado
dos seus pecados (1Co 6.11). Esse é o lavar regenerador e renovador do
Espírito Santo de que fala Paulo em Tito 3.5. Ora, o batismo é uma forma
de simbolizar essa realidade (At 22.16) e tanto o batismo por imersão como
o realizado pela aspersão suprem muito bem esse objetivo (Hb 10.22).
Finalmente, o batismo tem um propósito dramatizador, posto que na
sua realização são encenadas a morte do crente para o pecado e a sua
ressurreição para uma nova vida. A conexão entre o batismo e o processo
abrangente da morte, sepultamento e ressurreição do crente é vista em
Romanos 6.4 e Colossenses 2.12. Nesse aspecto, a imersão supre
perfeitamente o ideal de encenar o que aconteceu com o homem que
recebeu o perdão de Deus. É, de fato, nítido o significado de cada gesto: o
mergulhar na água evoca a morte do crente para o pecado e seu
sepultamento com Cristo; o levantar-se da água denota sua ressurreição para
uma vida nova sob a influência do Espírito Santo.
É precisamente na realização desse quarto objetivo que o batismo por
aspersão se mostra ineficaz. Ora, para atingir o propósito dramatizador, a
forma de batismo é essencial, impondo-se a necessidade da imersão. Isso
porque, obviamente, o processo de morte, sepultamento e ressurreição não
pode ser adequadamente simbolizado por meio da mera aspersão de água
sobre o candidato.
Assim, não é correto dizer que o batismo por aspersão é herético.
Também peca pelo exagero quem afirma que o crente aspergido jamais foi
batizado. O que deve ser afirmado é que o crente batizado por aspersão
cumpriu sim a ordenança de Jesus. Porém, o fez de modo irregular, não
realizando um dos propósitos centrais dela, ou seja, a encenação do
processo morte/sepultamento/ressurreição. Em suma: seu batismo foi
existente, mas não foi regular. Naturalmente, o único modo de suprir essa
irregularidade é submeter o crente a um novo batismo, no qual seja
observado o rito da imersão.

O batismo infantil

A prática do batismo infantil foi adotada muito cedo pela igreja cristã.
De fato, já no século 2 há evidências de que os cristãos batizavam seus
bebês, uma vez que criam no batismo como uma forma de remissão de
pecados, capaz de garantir a salvação das vítimas de morte prematura.
Esse chocante desvio do ensino apostólico é encontrado poucas
décadas depois de concluído o Novo Testamento. Alguns documentos do
século 2 que o atestam são a Epistola de Barnabé (11:1,11) e O pastor de
Hermas (11:5; 93:2-4). Justino de Roma (Primeira apologia 66:1) e Teófilo
de Antioquia (A Autólico 2:16) também estão entre os escritores do século 2
que defendem o batismo como forma de remissão de pecados.
É verdade que Tertuliano de Cartago († c. 220) se insurgiu contra essa
prática. Porém, ele o fez porque entendia que o arrependimento para perdão
[31]
de pecados mortais só poderia ocorrer uma vez depois do batismo.
Segundo Tertuliano, esse fato deixava os que eram batizados muito cedo em
situação perigosa, sujeitos a perder irremediavelmente e para sempre o
favor de Deus na fase adulta. Para ele, esse era o motivo pelo qual o
batismo devia ser protelado até que a pessoa se sentisse mais distante do
perigo de cometer pecados mortais como o adultério, o assassinato ou a
[32]
apostasia.
Os reformadores do século 16 também foram favoráveis ao batismo
infantil, sendo o pastor anabatista Menno Simons uma exceção. Timothy
George explica por quê:
Em 20 de março de 1531, na cidade de Leeuwarden, capital
da província holandesa da Frísia, um alfaiate itinerante de nome
Sicke Freerks foi decapitado porque havia sido batizado pela
segunda vez. Mais tarde, Menno comentou: “Soou muito
estranhamente em meus ouvidos o fato de que alguém falasse
sobre um segundo batismo” ... A execução brutal de Freerks deve
ter deixado uma impressão marcante em Menno. De qualquer
modo, ele começou a investigar o fundamento do batismo infantil.
Ele examinou os argumentos de Lutero, Bucer, Zuínglio e
Bullinger, mas achou que em todos faltava algo. Ele consultou
seu colega sacerdote em Pingjum; leu os pais da igreja. Por fim,
Menno pesquisou diligentemente as Escrituras e considerou
seriamente a questão, mas não pôde encontrar nada sobre o
batismo infantil. Ele chegou à conclusão de que “todos estavam
[33]
equivocados sobre o batismo infantil”.

Se, por um lado, há ampla evidência histórica em prol do pedobatismo


entre os pais da igreja e os reformadores, de outro, como Menno Simons
descobriu, não há nenhum fundamento bíblico que favoreça essa prática. A
despeito disso, os expoentes do batismo infantil apresentam basicamente
três argumentos em sua defesa.
O primeiro desses argumentos (e talvez o mais popular) é construído a
partir da história narrada em Atos 16.27-34, referente à conversão do
carcereiro de Filipos e seus familiares. Segundo o texto, depois que ouviu a
Palavra do Senhor, o carcereiro foi batizado, ele e todos os da sua casa (At
16.33). No entender dos pedobatistas, certamente havia crianças bem
pequenas naquela família, sendo todas incluídas no batismo realizado na
ocasião.
É difícil, porém, levar esse argumento a sério, posto que se sustenta
unicamente sobre o frágil alicerce da imaginação e da criatividade dos seus
proponentes. Para desmantelá-lo, basta lembrar o fato óbvio de que nem
todas as famílias têm bebês em casa.
A defesa do batismo infantil tem, na verdade, colunas de apoio muito
mais sólidas do que o argumento exposto acima. Seus proponentes mais
capazes expõem razões que merecem consideração séria e análise melhor
elaborada.
É o caso do argumento relativo ao Pacto. Os pedobatistas entendem
que, assim como os bebês dos israelitas eram circuncidados pelo fato de
seus pais pertencerem ao pacto entre Deus e a nação judaica (Gn 17.10-14),
da mesma forma os bebês dos crentes devem ser batizados, uma vez que
seus pais, desde o dia em que se converteram, tornaram-se participantes do
mesmo pacto por intermédio da fé em Cristo (Gl 3.7, 29).
Essa concepção ainda admite expressamente que os filhos de quem
participa do pacto também pertencem eles próprios ao pacto, estando aí a
razão principal para que se sujeitem ao símbolo desse mesmo pacto. O
teólogo reformado Louis Berkhof (1873-1957) diz expressamente: “Os
filhos dos crentes são batizados porque estão no pacto, independentemente
[34]
da questão se já são ou não regenerados.”
Levando esse raciocínio às últimas consequências, muitos de seus
expoentes têm insistido, inclusive, no direito que os bebês, filhos de pais
crentes, têm de participar até mesmo da ceia (!). Se essas crianças realmente
fazem parte da aliança, dizem, sendo por isso batizadas, por que impedi-las
de participar da eucaristia que, como o batismo, é também um símbolo
pactual?
Retomando a defesa do batismo infantil, os pedobatistas afirmam que
no passado o símbolo do pacto foi a circuncisão, mas, como ela foi anulada
(Gl 5.2, 6; 6.15), o batismo a substituiu. Assim, de acordo com essa visão, o
batismo infantil é o correspondente cristão da circuncisão judaica.
Essa conexão entre circuncisão e batismo é defendida especialmente
com base em Colossenses 2.11-12. Nesse texto, dizem, circuncisão e
batismo estão ligados, ambos representando o fim da velha vida de pecado,
[35]
havendo, assim, forte associação entre os dois ritos.
Em seu desdobramento final, toda essa argumentação conclui o
seguinte: se Paulo iguala a circuncisão e o batismo e se o primeiro era
aplicado aos bebês, nenhum absurdo há em aplicar também o batismo aos
recém-nascidos.
Outro intrigante argumento em prol do batismo infantil é baseado em
Romanos 4.11. Esse argumento é construído assim: em Romanos 4.11,
Paulo define a circuncisão como “selo da justiça da fé”. Ora, no Antigo
Testamento Deus ordenou que esse “selo da justiça da fé” fosse aplicado a
bebês que não tinham fé (Lv 12.3). Logo, não é errado gravar com um selo
de fé as crianças que ainda não creem. Condenar essa prática seria reprovar
o que o próprio Deus ordenou! Assim, considerando que o batismo também
é um selo de fé, nada há de errado em aplicá-lo ao bebê que ainda não crê.
Se o próprio Deus mandou que isso fosse feito, quem somos nós, dizem,
[36]
para afirmar que é preciso crer antes de receber o selo da fé?
Esse conjunto de argumentos, ainda que muito bem elaborado, está
sujeito a sérios questionamentos. Primeiro: a noção de que a participação
dos pais crentes no Novo Pacto autoriza o batismo de seus filhos, da mesma
forma que a participação dos pais israelitas no Velho Pacto impunha-lhes o
dever de circuncidar seus bebês merece grave objeção. Isso porque o bebê
israelita não era circuncidado porque seus pais eram israelitas. Ele era
circuncidado porque, sendo filho de judeus, ele próprio era israelita. A
causa direta da circuncisão do bebê judeu não estava nos pais, mas no
próprio bebê, no fato de ele mesmo ser um judeu.
Ora, não é esse o caso dos filhos dos crentes. Estes não nascem
crentes, inexistindo neles próprios qualquer razão para que recebam o
batismo. De fato, se o filho do israelita nascia israelita e, por isso, era
circuncidado, o filho do cristão, por sua vez, não nasce cristão, não havendo
razão nenhuma para ser batizado.
Há também uma grave deficiência no ensino de que o batismo é um
substituto da circuncisão. Na verdade, absolutamente nada na Bíblia
corrobora essa concepção. Mesmo o texto de Colossenses 2.11-12 está mui
longe de confirmá-la. Aliás, uma simples leitura dessa passagem deixará o
leitor surpreso, questionando onde é possível encontrar ali qualquer base
para o ensino de que o batismo ocupa hoje o lugar da circuncisão.
A eventual surpresa do leitor será fácil de ser compreendida. Isso
porque Colossenses 2.11-12 fala claramente da circuncisão do coração e do
batismo do crente na morte de Cristo, ou seja, trata de realidades espirituais
e não de ritos externos. Ademais, a passagem aponta essas realidades
espirituais como fenômenos distintos e não como se o segundo fosse
substituto do primeiro.
Com efeito, em Colossenses 2.11-12, Paulo explica que o crente foi
circuncidado por Cristo (Rm 2.28-29). Isso significa, conforme o próprio v.
11 esclarece, que sua natureza pecaminosa foi despojada e enfraquecida
(Rm 6.6). Em seguida, o apóstolo afirma que esse milagre aconteceu
quando o crente foi batizado na morte de Cristo (v. 12), isto é, quando, pela
fé, ele se uniu ao Salvador, morrendo para o pecado e ressuscitando para
uma vida nova (Rm 6.3-4).
Assim, Paulo trata nessa passagem de duas realidades ligadas, porém
bastante diferentes: a participação do crente na morte de Cristo (o que é
chamado de batismo) e o amortecimento de sua natureza pecaminosa (a
circuncisão do coração) decorrente daquela maravilhosa participação. Esse
e somente esse é o ensino claro da passagem, estando mui longe de servir
de base para a noção de que o batismo é a versão cristã da circuncisão
judaica. Consequentemente, batizar bebês sob tal pretexto é prática carente
de fundamento sólido.
Outro argumento contrário ao ensino da conexão entre batismo e
circuncisão pode ser construído a partir da exposição que Pedro fez, no
Concílio de Jerusalém, acerca de seu ministério junto aos gentios (At 15.6-
11).
O relato de Atos mostra como Pedro foi chamado para pregar o
evangelho aos gentios na casa de Cornélio (At 10.1-22) e como todos ali se
converteram a Cristo, sendo, em seguida, batizados (At 10.44-48).
Ocorreu, porém, que, mais tarde, após a Primeira Viagem Missionária
de Paulo, alguns indivíduos procedentes da Judeia começaram a ensinar que
os gentios convertidos deviam ser circuncidados (At 15.1). Isso deu ensejo
a que os apóstolos e presbíteros de Jerusalém, além de Paulo, Barnabé e
outros irmãos de Antioquia, se reunissem para tratar da questão (At 15.2-6).
De um lado, Pedro, Paulo e Barnabé defendiam a desnecessidade da
circuncisão (At 15.2,10). De outro, os que pertenciam à seita dos fariseus
exigiam que os gentios convertidos fossem submetidos ao rito judaico (At
15.5).
No fim, o parecer de Tiago foi decisivo e a igreja entendeu que os
crentes gentios não precisavam se submeter à lei de Moisés, especialmente
no tocante à circuncisão (At 15.13-29).
O que chama a atenção no curso dos debates em Jerusalém é a
preleção de Pedro contra a necessidade da circuncisão (At 15.6-11). Ele
havia batizado todos aqueles gentios que tinham se convertido na casa de
Cornélio (At 10.47-48). Ora, se para ele o batismo correspondesse à
circuncisão exigida pelos seus oponentes, por que não fez essa alegação em
seu discurso? Por que Pedro não disse: “Meus irmãos, os gentios foram
circuncidados sim, mas pelo novo método que é o batismo!”. Nenhum outro
momento da história bíblica seria mais apropriado para enunciar esse ensino
e calar de vez a boca dos cristãos judaizantes.
No entanto, Pedro sequer menciona ter batizado os gentios! Paulo
também silencia sobre isso em seu discurso (At 15.12), levando a crer que a
ideia de que o batismo é um substituto da circuncisão jamais passou pela
mente dos apóstolos, sendo apenas fruto da criatividade de teólogos de
séculos posteriores.
Quanto ao argumento construído sobre Romanos 4.11, em que a
circuncisão é chamada de “selo da justiça da fé”, este também é facilmente
desfeito. Conforme visto, seus proponentes afirmam que a circuncisão
judaica, um selo da justiça da fé, devia ser aplicada a bebês sem fé, de
modo que, segundo eles, nada pode haver de errado em fazer o mesmo com
o batismo, outro selo da justiça da fé.
Essa linha de raciocínio, contudo, está equivocada, pois, ao chamar a
circuncisão de selo da justiça da fé, Paulo se refere à circuncisão específica
de Abraão. Tanto isso é verdade que, se o texto em análise for lido com
atenção, fatalmente saltará aos olhos que a circuncisão ali mencionada é
vista como um selo da justiça procedente da fé que Abraão teve quando
ainda incircunciso.
A circuncisão isoladamente considerada, portanto, não era um selo de
fé, mas apenas uma marca distintiva no corpo dos que participavam da
Antiga Aliança. Para receber um selo de fé, é preciso ter fé. Foi por isso que
quando o eunuco etíope perguntou a Filipe se podia ser batizado, o
evangelista respondeu: “É lícito, se crês de todo o coração” (At 8.37).
Desse modo, batizar bebês permanece uma prática sem qualquer base
nas Escrituras. Na verdade, apenas crianças que já compreenderam o
evangelho e aceitaram sua mensagem podem ser batizadas. Isso porque
antes de ser batizada a pessoa deve se arrepender e crer em Cristo (At 2.38,
41-42; 8.37).
Ademais, se, conforme visto, o batismo é um gesto proclamativo,
identificador, simbólico e dramatizador, só estão aptos a se sujeitar a ele
quem sinceramente proclama ter uma boa consciência para com Deus,
quem se identifica com a comunidade de discípulos de Jesus, quem pode
afirmar simbolicamente que foi lavado pelo Espírito Santo e quem de fato
morreu para o pecado e ressuscitou para uma nova vida, de maneira que
tem o direito e o dever de encenar essas realidades por meio do rito
batismal.

Regeneração batismal

Finalizando esse assunto, é necessário frisar que a doutrina verdadeira


não ensina que o batismo seja fator necessário à santificação ou requisito
fundamental para que o crente receba bênçãos espirituais de Deus. Também
não é correto crer que o cumprimento dessa ordenança seja essencial à
salvação, posto que esta é obtida unicamente pela fé (Rm 1.17; 5.1; Ef 2.8).
Os textos que os defensores da regeneração batismal geralmente
evocam em defesa de suas concepções são Marcos 16.16, Romanos 6.4,
Colossenses 2.12 e 1Pedro 3.21.
Quanto ao texto de Marcos, além de ser objeto de sérios
questionamentos no campo da crítica textual, conforme exposto por todos
os comentaristas bíblicos, seu enunciado não afirma, de modo algum, a
salvação por meio da fé somada ao batismo. Antes, fala acerca do tipo de fé
que realmente salva, ou seja, uma fé comprometida, que leva quem a possui
a se submeter ao batismo. É como se o texto dissesse: “Quem crer ao ponto
de ser batizado será salvo”. Isso porque pode existir uma fé
descomprometida e covarde que não salva ninguém (Jo 12.42-43).
As demais passagens mencionadas anteriormente associam a salvação
ao batismo por uma razão muito simples. Nos dias do Novo Testamento, o
batismo era realizado no momento da conversão. Sendo assim, eventos
simultâneos, conversão e batismo muitas vezes eram vistos como uma só e
mesma realidade. Por isso, algumas vezes os escritores bíblicos falavam do
batismo para se referir à conversão da pessoa. A concomitância dos eventos
permitia essa linguagem. Contudo, não havia qualquer dúvida na mente
deles de que, se alguém cresse e morresse antes de ser batizado, isso em
nada afetaria sua salvação.
Para provar isso, basta recordar que quando Jesus foi crucificado, os
dois ladrões também condenados escarneciam e zombavam do Senhor (Mt
27.43-44). Um deles, porém, logo foi tocado pelo arrependimento e
suplicou por misericórdia (Lc 23.39-42). Não teve ele tempo, após a
conversão, de ser batizado. Na verdade, não teve tempo de fazer nada além
de crer. Contudo, o que o Senhor lhe disse? “Em verdade, em verdade te
digo que hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43).
Os escritos de Paulo também mostram que o batismo não é essencial
para a salvação. Diz ele: “Dou graças a Deus porque a nenhum de vós
batizei, exceto Crispo e Gaio…” (1Co 1.14). E ao concluir o assunto de que
está tratando, afirma: “Porque não me enviou Cristo para batizar, mas para
pregar o evangelho…” (1Co 1.17).
Ora, é evidente que se o batismo fosse fundamental à salvação, o
apóstolo Paulo não se referiria a essa ordenança nesses termos. Antes,
lamentaria ter batizado poucos e tomaria providências para batizar o maior
número possível de pessoas.
Uma ressalva, contudo, é importante aqui. O fato de não ser essencial à
salvação não torna o batismo uma prática inútil. Ele foi ordenado por Jesus
(Mt 28.19) e serve como testemunho público que o crente dá de sua fé no
Salvador; um testemunho dramatizado, em que não só sua lavagem
espiritual, mas também sua morte, seu sepultamento para o pecado e sua
ressurreição para uma nova vida são vividamente retratados, marcando de
maneira indelével a mente e o coração de todos os que assistem a ele.

A Ceia do Senhor: concepções divergentes

A afirmação “isto é o meu corpo”, feita por Jesus pouco antes da sua
paixão (Mt 26.26), é uma das frases que mais têm originado debates ao
longo da história da igreja. Conforme dito anteriormente, na época da
Reforma Protestante a falta de acordo acerca do seu real significado foi a
causa do rompimento das relações entre Lutero e Zuínglio, após o
[37]
malfadado Colóquio de Marburgo (1529) e ainda hoje o meio cristão
permanece dividido acerca do modo como a ceia do Senhor deve ser
entendida, tanto no tocante à sua natureza como no que diz respeito aos
efeitos que produz sobre os que participam dela.
Num dos extremos da discussão estão os que entendem a frase de
Jesus de modo figurado, dizendo que se trata apenas de uma metáfora,
como se o Mestre tivesse dito simplesmente “isto representa o meu corpo”.
No outro extremo do debate, há intérpretes que propõem uma visão
absolutamente literal, ensinando que os elementos da ceia são, de fato, o
corpo e o sangue reais de Cristo, num sentido que encerra a sua mais
completa essência. Entre esses dois polos há interpretações intermediárias,
propostas por teólogos que tentam compor uma opinião mais equilibrada,
fazendo uso, inclusive, de argumentos usados pelos dois extremos.
Basicamente, quatro são as concepções acerca da ceia do Senhor
dominantes do meio cristão: transubstanciação, consubstanciação, presença
espiritual e memorial.
A doutrina da transubstanciação é esposada pela Igreja Católica
[38]
Apostólica Romana , sendo um dos temas centrais de sua teologia e prática
[39]
litúrgica. De acordo com essa visão, a ceia deve ser ministrada ao povo
num só elemento, a hóstia, nome dado a um pequeno pão sem fermento, de
[40]
formato arredondado. Esse elemento, dizem, após ser consagrado pelo
sacerdote ministrante, passa por uma transformação em sua substância (daí
o termo transubstanciação), tornando-se literalmente carne, sangue, ossos,
unhas e cabelos de Cristo.
Os católicos entendem que essa transformação não é visível porque
ocorre apenas na substância do pão e não nos seus acidentes. Assim,
conforme alegam, o elemento eucarístico, ainda que apresente em sua
forma e aparência os atributos do pão, é, na verdade, em sua essência, carne
humana!
Uma das implicações da doutrina da transubstanciação é que sempre
que a eucaristia é celebrada no culto católico (e isso acontece em todas as
[41]
missas), o sacrifício de Cristo se repete. Portanto, se três missas forem
realizadas num só domingo numa mesma catedral, naquele dia o sacrifício
de Cristo se repetirá ali três vezes, o mesmo ocorrendo em outras igrejas
romanistas ao redor do mundo. É essa suposta repetição contínua do
sacrifício do Senhor que dá o motivo pelo qual as igrejas católicas celebram
sua ceia num altar e não numa mesa como fazem as igrejas evangélicas.
A doutrina da transubstanciação também explica porque os padres,
pelo menos há alguns anos, orientavam os fiéis a não morder a hóstia, mas
sim deixá-la dissolver-se na boca. Essa era uma forma de tentar infundir nas
pessoas um entendimento maior acerca do suposto mistério presente no
“corpo eucarístico de Cristo”.
Essa doutrina é ainda o fundamento pelo qual os sacerdotes católicos
tendem a fazer o “sepultamento” de hóstias consagradas que sobram após
encerrada a missa. No seu entender, jogá-las fora seria sacrilégio cometido
contra o próprio corpo de Cristo e armazená-las não seria o modo digno de
lidar com um cadáver tão santo.
Os católicos acreditam que é somente graças ao milagre da
transubstanciação que o homem pode efetivamente conhecer Cristo como o
pão da vida e se alimentar dele para viver eternamente (Jo 6.48-58).
Segundo eles, comer a hóstia consagrada ajudará o fiel a conquistar a
salvação, sendo, pois, imensos os benefícios espirituais que emanam da
[42]
eucaristia.
Evidentemente, não há como sustentar essa concepção da ceia, nem
racional nem tampouco biblicamente. Primeiro porque não faz sentido
propor a hipótese de uma mudança de substância sem uma consequente
alteração nos acidentes, pois os acidentes de determinada substância
pertencem necessariamente a ela. Assim, não há como um pedaço de pão
deixar de ser pão e continuar com as células do pão. Negar isso seria
contrariar as mais elementares noções de lógica.
O absurdo dessa concepção também é percebido quando se leva em
conta a própria história da instituição da ceia. Ora, é óbvio que, quando o
Senhor disse “isto é o meu corpo”, não estava segurando um pedaço dele
próprio. Com efeito, naquele momento o pão estava nas mãos de Jesus, não
era uma extensão de seus dedos.
A doutrina da transubstanciação, com todos os seus desdobramentos,
também não leva em conta ensinos fundamentais da Palavra de Deus. As
Escrituras ensinam que o sacrifício de Cristo ocorreu uma vez por todas,
não havendo necessidade de que se repita (Rm 6.9-10; Hb 7.27; 9.12, 26,
28; 10.10; 1Pe 3.18).
Ademais, quando o Senhor afirmou ser o pão da vida, sendo necessário
comer o seu corpo e beber o seu sangue para ser salvo (Jo 6.48-58), não
pretendia com isso ensinar algum tipo de antropofagia, como entenderam
seus ouvintes naquela ocasião (Jo 6.52).
O que Jesus quis ensinar no discurso registrado em João 6 deve ser
entendido à luz do versículo 35. Esse versículo revela a que Jesus se referiu
quando fez alusão aos atos de comer sua carne e beber seu sangue. De fato,
João 6.35 apresenta Jesus como o Pão da Vida, destacando que quem vai a
ele se alimenta, e quem crê nele mata a sede. Logo, comer a carne de Cristo
é buscá-lo; enquanto beber seu sangue é crer nele. Alimenta-se, pois, do
Senhor, o indivíduo que o busca e deposita nele sua confiança para ser
salvo. Este faz de Cristo sua comida e sua bebida, jamais tendo fome ou
sede outra vez.
Deve-se destacar, finalmente, que a doutrina da transubstanciação é
antibíblica porque conduz sutilmente a uma forma grosseira de idolatria. De
fato, crendo que a hóstia é o próprio Cristo, o católico a cultua como Deus e
deposita nela sua esperança de salvação. Esse erro chocante foi denunciado
vividamente pelo já citado pastor anabatista Menno Simons (1496-1561),
ex-sacerdote católico que se converteu a Cristo e se tornou um dos grandes
pregadores do século 16, tendo também fundado a Igreja Menonita:

Sim, eu disse a uma criatura débil, perecível, que veio da


terra, que foi quebrada num moinho, que foi cozida no fogo, que
foi mastigada por meus dentes e digerida por meu estômago, a
saber, a um bocado de pão: “Tu me salvaste”. [...] Ó Deus, assim
eu, pecador miserável, brinquei com a prostituta da Babilônia
[43]
[isto é, a Igreja Católica] por muitos anos.

A doutrina da transubstanciação tem sua irmã gêmea no conceito de


consubstanciação. Esse segundo modo de interpretar a ceia do Senhor foi
proposto inicialmente por Martinho Lutero (1483-1546). Ele rejeitou a
transubstanciação por considerá-la uma doutrina irracional e também
condenou o ensino de que o sacrifício de Cristo se repete na eucaristia.
Porém, Lutero não via possibilidade de interpretar a fórmula “isto é o meu
corpo” de outro modo que não fosse o literal. Por isso, propôs que mesmo o
pão continuando a ser pão e o vinho continuando a ser vinho, a presença
física de Cristo é real na ceia, sendo seu corpo recebido por todos os
participantes da mesa do Senhor.
Para Lutero, portanto, o corpo de Cristo estava nos elementos e com os
elementos, sem que o pão e o vinho se transformassem em carne e sangue.
Assim, por propor que na ceia a substância dos elementos é recebida pelo
crente junto com a substância do corpo físico do Senhor, a doutrina
ensinada pelo reformador recebeu posteriormente o nome de
consubstanciação.
A concepção de Martinho Lutero acerca da ceia estava atrelada à sua
proposta acerca da ubiquidade do corpo de Cristo. Na verdade, a doutrina
da consubstanciação depende exclusivamente desse conceito. Ubiquidade
significa onipresença. Lutero ensinava, pois, que o corpo físico de Cristo
tinha atributos divinos, podendo estar em vários lugares ao mesmo tempo e
não somente sentado à direita do Pai nas alturas. Daí a possibilidade de
estar junto aos elementos da ceia e servir de alimento para os cristãos.
O maior oponente de Lutero nesse assunto foi o reformador suíço
Ulrico Zuínglio (1484-1531). Ele combateu a consubstanciação dizendo que
os benefícios da ceia eram puramente espirituais, não havendo sentido nem
necessidade de qualquer presença corporal de Cristo no pão e no vinho.
Além disso, Zuínglio rejeitou o conceito da ubiquidade exposto por
Lutero, afirmando que a encarnação não ocorreu de tal modo que a natureza
humana de Cristo, em seu aspecto corporal, se tornasse onipresente. Com
base em João 6.63, ele frisou que “a carne para nada aproveita” e insistiu
que a fórmula “isto é o meu corpo” devia ser interpretada como uma
metáfora.
Zuínglio estava certo em tudo isso. De fato, nunca existiu qualquer
fundamento racional ou bíblico para a doutrina da consubstanciação, sendo
evidente que Lutero a elaborou por estar ainda fortemente ligado a tradições
romanistas, sendo-lhe difícil romper radicalmente com elas, depois de ter
vivido tanto tempo sob o papismo. Aliás, vários argumentos expostos
anteriormente e usados contra a crença católica acerca da transubstanciação
podem ser usados também contra as noções de Lutero, o que comprova o
notável grau de semelhança entre as duas posições.
A despeito disso, a doutrina da consubstanciação seguiu seu curso
dentro do luteranismo. Ela apareceu na primeira edição da Confissão de
[44]
Augsburgo (1530), escrita por Filipe Melanchton , foi claramente afirmada
na Fórmula da Concórdia (1577), um documento produzido para por fim às
[45]
controvérsias que haviam surgido dentro do luteranismo , e continua sendo
defendida pelas igrejas luteranas ao redor do mundo, por meio da confiante
afirmação de que a ceia do Senhor “é o verdadeiro corpo e sangue de nosso
Senhor Jesus Cristo para ser comido e bebido por nós, cristãos, sob o pão e
[46]
o vinho”.
A concepção acerca da ceia conhecida como presença espiritual foi
[47]
ensinada pelo grande reformador francês João Calvino (1509-1564). Seu
conceito acerca da mesa do Senhor é que não se trata de um ritual em que o
corpo de Cristo está presente de alguma maneira física, como ensinam os
católicos e os luteranos. Para Calvino, a ceia é um sacramento em que a
carne e o sangue do Salvador estão espiritualmente presentes, sendo
exibidos nos elementos, de modo que os que participam do pão e do cálice
[48]
alimentam-se em espírito do próprio Senhor. É nesse sentido que Calvino
afirma que, ao receber o símbolo do corpo, o crente deve confiar que a ele
[49]
está sendo dado também o próprio corpo.
Na concepção calvinista, o sacrifício de Cristo não se repete durante a
eucaristia, mas os benefícios de sua morte substitutiva (redenção, justiça,
santificação e vida eterna) são renovados e reforçados em prol dos
comungantes. Isso, porém, só acontece com quem come e bebe com fé. Os
que o fazem na incredulidade não recebem tais benefícios. Antes, são
condenados por sua indigna aproximação da mesa do Senhor.
É importante frisar que a doutrina da presença espiritual esposada por
Calvino tem relação direta com seu conceito de sacramento. Segundo ele,
há somente dois sacramentos: o batismo e a ceia. Em ambos, Cristo e seus
benefícios são representados. Porém, o valor desses sinais supera o simples
objetivo simbólico. Neles há uma relação espiritual entre o símbolo e a
coisa simbolizada, de tal forma que os efeitos do que é simbolizado são
comunicados ao símbolo, graças à atuação do Espírito Santo e à virtude da
[50]
palavra que instituiu os sacramentos.
É, pois, por causa dessa visão que, no tocante à ceia, Calvino insiste
em afirmar que o corpo de Cristo está fisicamente presente no céu, mas, por
meio do poder do Espírito, durante a eucaristia os cristãos participam da sua
carne e do seu sangue, unindo-se desse modo ao Senhor e recebendo seus
benefícios.
Ele diz expressamente: “Sustentamos que Cristo desce até nós, tanto
pelo símbolo exterior, quanto por seu Espírito, para que nossas almas
verdadeiramente vivifique com a substância de sua carne e de seu
[51]
sangue.” Uma vez que, segundo o reformador, isso ocorre pelo misterioso
poder (arcana virtus) do Espírito, esse ensino é também chamado de
“virtualismo”.
A doutrina da presença espiritual de Cristo na ceia foi recepcionada
pela Confissão de Fé de Westminster (1646), um dos documentos mais
importantes da fé reformada, e se constitui num dos ensinos distintivos das
igrejas presbiterianas.
Ao longo dos séculos, essa doutrina tem se imposto com notável força,
não com base em sutilezas gramaticais que negam o sentido figurado da
frase “isto é o meu corpo”, mas especialmente pela ênfase no controvertido
enunciado de Paulo em 1Coríntios 10:16: “Porventura, o cálice da bênção
que abençoamos não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que
partimos não é a comunhão do corpo de Cristo?”. É com o sentido dessas
palavras que os oponentes da doutrina da presença espiritual são desafiados
a lidar.
Esse desafio, porém, talvez não seja tão difícil. Na verdade, a leitura
de 1Coríntios 10.16 colocada sob a luz do contexto que abrange os vv. 14-
22 mostra que, certamente, Paulo não fala da presença espiritual de Cristo
nos elementos da ceia, mas sim da comunhão especial que o crente tem com
o próprio Senhor durante a celebração dessa ordenança.
Na verdade, o próprio v. 16 fala de “comunhão” e não de alimentação
ou sustento. Ademais, nos vv. 20-21 fica claro que a preocupação de Paulo
se centrava no campo da associação. Com efeito, ele adverte os crentes no
tocante à ligação que eles teriam com os demônios caso participassem de
festas pagãs. Isso, segundo o apóstolo, seria inaceitável, uma vez que, na
ceia, se uniam a Cristo, não havendo sentido em terem comunhão com o
Senhor e também com os espíritos malignos.
Assim, 1Coríntios 10.16 não ensina que Cristo está espiritualmente
presente nos elementos da ceia. Antes, revela que, ao participar da mesa do
Senhor, o crente se associa com ele de forma especial, nutrindo, no
momento da celebração, uma comunhão mais íntima com o Senhor,
presente sim de forma intensa durante o rito, mas não nos elementos do
rito.
Conforme visto de início, a quarta concepção acerca da ceia é chamada
memorial. Essa é a visão segundo a qual a ceia é apenas uma ordenança do
Senhor, útil para trazer à memória dos crentes o sacrifício que Cristo
realizou no Calvário. Geralmente, essa doutrina é atribuída ao já
mencionado reformador Ulrico Zuínglio. De fato, Zuínglio rejeitou
qualquer noção sobre a presença de Cristo nos elementos eucarísticos. Para
ele, comer a carne do Senhor significava crer nele, de modo que a expressão
“isto é o meu corpo” devia ser entendida como uma metáfora.
Deve-se dizer, contudo, que não é correto atribuir a Zuínglio uma
concepção memorialista extrema. Isso porque esse reformador via a ceia
não apenas como um momento de recordação, alegria e gratidão, mas
também como um sinal mediante o qual, como no batismo, o crente
comprova sua fé e mostra para a igreja que pertence a Cristo.
Dentre as quatro visões sobre a ceia do Senhor, a que a concebe
basicamente como um memorial parece ser a que melhor se harmoniza com
o ensino das Escrituras. O próprio Senhor, ao instituir essa ordenança,
afirmou: “Fazei isso, em memória de mim” (1Co 11.23-25).
O memorialismo bíblico, porém, não é do tipo que despreza as
realidades espirituais ligadas à ceia. Na verdade, um enunciado que leve
realmente em conta a totalidade da evidência neotestamentária deve afirmar
que a ceia do Senhor é um memorial que recorda o sacrifício de Cristo,
memorial este celebrado em meio a uma realidade espiritual que transcende
a experiência regular da igreja, à medida que proporciona aos crentes uma
cumplicidade mais plena com o próprio Senhor presente de forma intensa
no momento da celebração.
Ora, é evidente que desfrutar de uma cerimônia assim provocará
transformações nos participantes, mais do que meras recordações.

Ceia aberta, restrita e ultrarrestrita

No meio evangélico tradicional, três são as condutas geralmente


adotadas pelos pastores no que diz respeito à participação da ceia do
Senhor. Uma delas é a “ceia restrita”, da qual só podem participar os
membros de igrejas da mesma denominação. Os pastores que adotam esse
procedimento geralmente dizem, antes da distribuição dos elementos, que
só é permitida a participação da ceia de pessoas que pertençam a uma igreja
“da mesma fé e ordem”.
Há também a “ceia ultrarrestrita”, da qual só podem participar os
membros da igreja local, ou seja, a igreja em que a ceia é ministrada. Esse
critério é bem mais raro do que o mencionado anteriormente.
Finalmente há a “ceia aberta”. Esta é oferecida a todos os crentes,
independentemente da denominação a que pertençam. Esse é o critério
correto, devendo ser acolhido, uma vez que a Palavra do Senhor não
oferece nenhum respaldo para a adoção da ceia restrita nem da ultrarrestrita.
Com efeito, nada dizem as Escrituras sobre a necessidade de pertencer
a esta ou àquela denominação (como todos sabem, na época em que o Novo
Testamento foi escrito, sequer existiam denominações) para poder participar
da ceia. Nem tampouco dizem algo sobre ter de ser membro da igreja local
em que o memorial é celebrado.
Na verdade, segundo o ensino de Paulo, para participar da ceia do
Senhor basta que o crente o faça dignamente (1Co 11.27), o que, pelo
contexto da passagem, significa primariamente comer e beber sem nutrir
rancores, desrespeito ou desprezo pelos irmãos (1Co 11.17-22, 33-34).
Além do mais, o texto de 1Coríntios 11 diz que é o próprio participante
quem deve avaliar se preenche ou não esse requisito em sua vida (1Co
11.28). Se não o fizer, correrá o risco de comer e beber “juízo para si” (1Co
11.29). De fato, na ceia, o participante (o que inclui o pastor e os diáconos)
deve avaliar-se a si mesmo, e não os outros. E se tiver de proibir alguém de
comer e beber, que proíba a si mesmo, caso, depois de se autoavaliar,
perceber que corre o risco de comer e beber indignamente.
Deve-se lembrar que o próprio Jesus não proibiu Judas de participar da
ceia quando a instituiu. Em Lucas 22.21, após instituir essa maravilhosa
ordenança (v.19-20), o Mestre disse: “Todavia, a mão do traidor está
comigo à mesa”. Mesmo sabendo que Judas era ladrão (Jo 12.6), traidor,
controlado e possuído pelo diabo (Jo 13.2,27), Jesus não o expulsou da
mesa, mostrando que quem tem a responsabilidade de vedar a participação
do pão e do cálice é tão-somente o próprio indivíduo a quem esses
elementos são oferecidos (1Co 11.31).
Desse modo, o ministrante não tem autoridade para proibir a
participação de ninguém na ceia. Sua responsabilidade se limita a alertar os
ouvintes acerca dos perigos de tomar parte indignamente do santo
memorial. Deve mostrar que quem come e bebe nessas condições será
considerado réu do corpo e do sangue do Senhor (1Co 11.27), comerá e
beberá juízo (castigo) para si (1Co 11.29), sendo até possível que Deus o
visite com doenças e morte (1Co 11.30).
Uma pergunta frequente

Para participar da ceia, o crente tem de ser batizado?


Não é possível encontrar essa exigência na Bíblia. É mera invenção
humana, não havendo motivo algum para que a igreja de Deus se submeta
a ela.
Os critérios que a Bíblia estabelece para a participação da ceia estão
muito bem definidos em 1Coríntios 11. Tudo que for acrescentado ao que
está ali estabelecido é fruto da imaginação, ou seja, uma fonte sem
autoridade alguma para o “cristão velho”.
Aliás, deve ser lembrado que todo aquele que crê em Cristo recebe da parte
de Deus o batismo do Espírito Santo (1Co 12.13). Obviamente, esse
batismo é mais importante do que o batismo na água e, por si só, autoriza o
crente a tomar parte na mesa do Senhor.
Nesse aspecto, é bom recordar que Pedro censurou a hipótese de negar a
ministração de uma ordenança (o batismo na água) a quem havia sido
batizado pelo Espírito (At 10.47). Logo, é também evidente que a quem
Deus não negou o seu Espírito, não se pode negar o pão e o cálice.
Seguindo esse mesmo raciocínio, se a ceia é, entre outras coisas, um
símbolo que aponta para Cristo como o alimento espiritual do crente, como
negar esse símbolo a quem participa da própria realidade que ele
representa?
Capítulo 4 – O EVANGELISMO
Há um mito que circula no meio evangélico segundo o qual as igrejas
de soteriologia reformada, por acolher a doutrina da soberana eleição de
Deus, não se preocupam em fazer evangelismo pessoal ou missões.
Segundo os expoentes dessa lenda, essas igrejas, crendo que Deus já tem os
seus eleitos a quem fatalmente irá salvar, não veem nenhuma necessidade
de evangelizar as pessoas, nem mesmo de orar para que alguém se converta.
Realmente, as igrejas que acolhem o ensino integral da Bíblia
defendem tenazmente a doutrina da livre escolha de Deus para a salvação. E
isso por uma razão muito simples: o Novo Testamento ensina nitidamente
essa doutrina, sendo impossível rejeitá-la sem, ao mesmo tempo, rejeitar as
Escrituras.
De fato, mesmo representando um atentado contra a orgulhosa lógica
humana (Rm 9.19-21), a Bíblia é pródiga em suas afirmações referentes à
soberania absoluta de Deus na ministração de sua graça, dizendo, inclusive,
que ele alcança quem quer e endurece a quem lhe apraz (Jo 1.13; Rm 8.29-
30; 9.18,21-22; Ef 1.5; 1Pe 2.8). É por isso que as igrejas de coloração
calvinista não abrem mão desse ensino tão controvertido que as torna alvo
de constantes acusações falsas.
A questão, então, permanece: a aceitação da doutrina da eleição inibe o
trabalho de evangelismo? Surpreendentemente, a resposta é um enfático
não. Aliás, é até o oposto o que acontece! Com efeito, tanto a Bíblia como a
história do cristianismo mostram que a doutrina da eleição tem se
constituído num dos maiores incentivos à evangelização do mundo!

A conexão bíblica entre eleição divina e evangelismo

Ao contrário do que alguém poderia imaginar, nas páginas da Bíblia,


um dos maiores impulsos à prática missionária é precisamente a doutrina da
eleição. Como? De que forma as Escrituras destacam a eleição divina como
um estímulo ao trabalho de pregação do evangelho?
Basicamente, o texto sagrado faz isso de duas maneiras: afirmando que
os eleitos de Deus estão espalhados pelas diversas comunidades ao redor do
mundo; e ensinando que eles fatalmente atenderão à mensagem das boas-
novas em Cristo.
Jesus foi o primeiro a mostrar essas duas maravilhosas realidades. A
certa altura do Evangelho de João, o autor conta que o Mestre fez uma
intrigante afirmação: “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco [isto
é, não são de Israel]. É necessário que eu as conduza também. Elas ouvirão
a minha voz, e haverá um só rebanho e um só pastor” (Jo 10.16). Em
seguida, para mostrar que havia grande distinção entre esse grupo espalhado
pelo mundo e as demais pessoas não escolhidas, ele se dirigiu aos seus
oponentes dizendo: “... vocês não creem, porque não são minhas ovelhas”
(Jo 10.26).
O Senhor ensinou, assim, que ele tem um povo espalhado pelo mundo,
que as pessoas que compõem esse povo ainda estão por ser alcançadas e
que elas fatalmente atenderão ao convite da fé. Como um evangelista
poderia ser desencorajado diante disso? Não seriam essas palavras
exatamente um estímulo para o seu trabalho?
O Evangelho de João insiste nessas verdades também no Capítulo 11.
Ali, o evangelista comenta algumas palavras pronunciadas pelo sumo
sacerdote, dizendo: “Ele não disse isso de si mesmo, mas, sendo o sumo
sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus morreria pela nação judaica, e
não somente por aquela nação, mas também pelos filhos de Deus que estão
espalhados, para reuni-los num povo” (Jo 11.51-52). É mais do que claro
aqui que Deus tem “filhos” dispersos pelo mundo. Esses “filhos” ouvirão a
mensagem da cruz e serão, afinal, reunidos num povo.
Ora, com essas concepções em mente, seria possível um evangelista
desanimar? É claro que não! Na verdade, sabendo disso, o missionário
trabalhará ainda mais confiante, ciente de que as ovelhas de Jesus, os
“filhos de Deus que estão espalhados”, cedo ou tarde, seguirão o Bom
Pastor. Sim, amanhã ou depois, serão todos reunidos pelo Pai.
Além disso, o obreiro que aceita essas verdades não se sentirá
fracassado ou frustrado no ministério quando não crerem na sua pregação.
Antes, entenderá que os que a rejeitaram fizeram-no por não serem ovelhas
do Senhor e seguirá avante, certo de que as ovelhas fatalmente ouvirão e o
alvo do Pai de reunir seus filhos num só povo será finalmente alcançado.
Mais uma vez: poderia haver estímulo maior para o trabalho evangelístico?
Na história de missões, quem primeiro se sentiu animado por essas
verdades foi o apóstolo Paulo. Isso aconteceu quando ele esteve pregando
em Corinto, um foco tenebroso da multiforme religião pagã, centro
cosmopolita marcado por variados excessos de imoralidade e por todo tipo
de devassidão. Corinto talvez fosse, ao mesmo tempo, o maior desafio e o
mais terrível pesadelo de qualquer missionário cristão; uma boa desculpa
para o abandono do trabalho evangelístico.
Paulo esteve ali em cerca de 50 AD, por ocasião da sua Segunda
Viagem Missionária (At 18.1-18). Logo de início, sua presença e mensagem
despertaram a oposição da comunidade judaica local que trabalhou
intensamente para dificultar ainda mais a obra missionária em Corinto (At
18.6,12-13). Paulo, porém, não desistiu.
Onde o apóstolo encontrou estímulo para continuar seu trabalho num
ambiente tão difícil? A resposta é surpreendente: ele foi incentivado pela
doutrina da eleição! O registro bíblico diz que, certa noite, o Senhor
apareceu a Paulo numa visão e disse: “Não tenha medo, continue falando e
não fique calado, pois estou com você, e ninguém vai lhe fazer mal ou feri-
lo, porque tenho muita gente nesta cidade” (At 18.9-10).
Conforme exposto, nos dias do seu ministério terreno, o Senhor havia
dito que tinha outras ovelhas que viviam em vários apriscos fora de Israel.
Agora, o mesmo Senhor se manifesta a Paulo revelando que muitas dessas
ovelhas estavam em Corinto. O apóstolo não devia, portanto, recuar. A
realidade de que as ovelhas já estavam ali, somente esperando ouvir a voz
do Supremo Pastor, devia incentivá-lo, pois elas certamente atenderiam a
pregação e seriam salvas.
Paulo ouviu isso tudo e permaneceu firme. Foi assim que a santa
doutrina da eleição fez o apóstolo perseverar por mais um ano e seis meses
no trabalho missionário em Corinto (At 18.11).
Cerca de dez anos mais tarde, Lucas escreveu essa e outras histórias de
Paulo na obra que recebeu o título de Atos dos Apóstolos. Foi, talvez, por
perceber que a doutrina da eleição servia como estímulo para a
evangelização, que Lucas fez questão de frisar, justamente numa obra de
história de missões, que os que acolhiam a pregação de Paulo eram somente
os que faziam parte do rebanho de Cristo espalhado pelo mundo. “... E
creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna” (At 13.48),
escreveu ele. Vê-se, assim, que o primeiro historiador da igreja aprendeu,
por meio de suas pesquisas e de sua observação, que a eleição não somente
estimula o trabalho do pregador, mas também garante o seu sucesso.
Conclui-se, assim, que, à luz da Bíblia, a doutrina da eleição não
desencoraja a obra missionária, mas faz exatamente o oposto. Além disso,
todo calvinista sabe que Deus decidiu salvar os eleitos por meio da
pregação (1Co 1.21), sendo, portanto, imprescindível a sua prática somada
ao dever de orar pelos perdidos.
Aliás, no tocante a esses assuntos, é significativo que Paulo, mesmo
depois de tratar extensivamente acerca da doutrina da eleição, em Romanos
9, prossegue, no capítulo 10, falando sobre seu empenho na oração pelos
perdidos (Rm 10.1) e sobre o dever de enviar missionários aos que nunca
ouviram falar de Jesus (Rm 10.14-15). Para o apóstolo, as verdades que
expôs em Romanos 9 não anulavam os deveres que mencionou em
Romanos 10.

Provas históricas

Se o argumento que diz que a doutrina da eleição desestimula a


pregação do evangelho não se sustenta à luz da Bíblia, tampouco esse mito
pode se manter de pé diante da análise histórica. Com efeito, se o ensino
bíblico acerca da eleição gerasse desmazelo no evangelismo, seus
expoentes nada teriam feito em prol da expansão da fé e ficariam fechados
dentro de suas igrejas, aguardando sua fatal extinção.
No entanto, não é isso que se vê na história. Antes, um zelo ardente
por missões moveu os expoentes da doutrina da eleição, conduzindo-os
como pioneiros e mártires aos rincões mais distantes do mundo, sempre à
procura das ovelhas dispersas que fatalmente atenderiam a voz do Pastor
Divino.
O primeiro exemplo disso é apontado pelo próprio Calvino. Em suas
Institutas da Religião Cristã, o grande reformador citou Agostinho de
Hipona, dizendo:

Porque não sabemos quem pertença ao número dos


predestinados, ou não pertença, assim nos convém tratar que a
todos queiramos venham a ser salvos. Assim acontecerá que,
quem quer que seja que se nos haverá de deparar, esforcemo-nos
por fazê-lo participante de nossa paz. Mas, nossa paz repousará
somente sobre os filhos da paz (Mt 10.13; Lc 10.6). Portanto,
quanto a nós concerne, deverá ser a todos aplicada, à
semelhança de um remédio... A Deus, porém, pertencerá fazê-la
[52]
eficaz a quem pré-conheceu e predestinou.

Calvino, contudo, não somente ensinou essas coisas. Ele também as


pôs em prática. Uma prova disso está no fato de que, em Genebra, cidade
em que atuou como pastor e estadista, foi criado, após 1545, o Fundo
Francês, uma instituição que tinha como propósito central dar apoio
material aos franceses pobres ali refugiados por causa da perseguição em
sua terra natal. Calvino contribuía prodigamente para esse fundo e é
provável que tenha sido um dos seus criadores. Ainda que os objetivos
principais da instituição fossem no campo humanitário, é sabido que o
Fundo Francês era também usado para fins missionários, sustentando
pastores em Genebra que deveriam ser enviados à França.
É também preciso destacar que, em meados do século 16, havia em
Genebra 38 tipografias, com cerca de dois mil empregados, cujo trabalho
dominante era imprimir literatura evangélica destinada aos países vizinhos,
especialmente a França. Por conta disso, na década de 1540, Paris foi
inundada pela literatura produzida em Genebra e as conversões começaram
a ocorrer.
Isso despertou a atenção e o desagrado do parlamento parisiense, o
qual emitiu sucessivas listas de livros proibidos, nas quais eram incluídas
quaisquer obras que expusessem ideias calvinistas. As gráficas de Genebra,
porém, não paravam de lançar novos títulos, numa velocidade que o
Parlamento não podia acompanhar. Assim, as listas de livros censurados
estavam sempre desatualizadas e as obras de Calvino continuavam a ser
vendidas e lidas pelo povo francês.
Além disso, sendo impossível um controle absoluto sobre o comércio
de literatura por parte das autoridades de Paris, os livros proibidos
procedentes de Genebra eram vendidos no mercado negro. O resultado era
que as conversões à fé evangélica não paravam de ocorrer na França. Os
registros históricos apontam que, em 1562, dois anos antes de Calvino
morrer, existiam pelo menos 1.250 congregações calvinistas naquele país,
abrangendo mais de dois milhões de membros! Foi certamente por causa
desses extraordinários avanços, que a Venerável Companhia de Pastores,
outra instituição da Genebra de Calvino, enviou 151 missionários à França
[53]
só no ano de 1561! Essa mesma instituição, entre 1555 e 1562, também
[54]
enviou 88 ministros para quase todos os países da Europa.
A obra missionária de Calvino também abrangeu a fundação da
Academia de Genebra (1559), criada para treinar pastores e suprir a
demanda que o crescimento do número de igrejas impunha aos
reformadores. Muitos alunos da academia eram estrangeiros refugiados
(franceses, ingleses, holandeses, italianos e alemães) que, depois de
formados, voltavam para seus países de origem ensinando o que ali haviam
aprendido. Entre esses alunos esteve John Knox, o grande reformador
escocês. Foi assim que a escola fundada por Calvino tornou-se um grande
centro missionário, irradiando a fé evangélica para o mundo inteiro.
É preciso ainda lembrar que os primeiros missionários protestantes que
chegaram ao Brasil foram enviados precisamente por João Calvino. Eles
vieram a pedido de Nicolas Durand de Villegaignon (1510-1571), com o
objetivo de ensinar a fé reformada aos colonizadores franceses do Rio de
Janeiro e evangelizar os indígenas.
O grupo chegou em março de 1557, mas, menos de um ano depois, foi
expulso por causa de conflitos doutrinários com Villegaignon. Esses
conflitos resultaram na produção da Confissão de Fé da Guanabara (1558),
um documento de orientação reformada escrito por cinco calvinistas leigos
aprisionados por Villegaignon. Desses cinco, quatro foram estrangulados,
[55]
pondo fim ao trabalho missionário de Calvino no Brasil.
No século 17, o Brasil mais uma vez foi cenário da atividade
missionária calvinista. Isso aconteceu como resultado indireto dos conflitos
políticos entre Espanha e Holanda. Movido por esses conflitos, Filipe II, da
Espanha, proibiu as relações comerciais entre os holandeses e todas as áreas
de dominação espanhola, o que abrangia a América do Sul. Nessa época, a
Holanda dominava a distribuição de açúcar na Europa e não podia abrir
mão do comércio com a empresa açucareira nordestina. Por isso, em 1621,
foi criada a Companhia das Índias Ocidentais, com sede em Amsterdã, cujo
objetivo era a exploração mercantil na América.
A companhia das Índias Ocidentais promoveu duas invasões
holandesas ao Brasil: uma na Bahia (1624-1625) e outra em Pernambuco
(1630-1654). Esta última foi melhor sucedida e, para garantir a paz e os
seus interesses no Brasil, a companhia enviou um representante, o conde
João Maurício de Nassau, que governou o Brasil Holandês de 1637 a 1644.
Maurício de Nassau era crente, membro zeloso e assíduo frequentador
da Igreja Cristã Reformada. Seu governo foi brilhante, cobrindo uma área
que ia do Sergipe até o Maranhão.
Ocorreu, porém, que a companhia passou a adotar políticas que
desagradavam os senhores de engenho, exigindo o pagamento imediato de
empréstimos e impondo certos limites à liberdade religiosa. Quando, então,
Maurício de Nassau pediu demissão de seu cargo, iniciou-se a luta contra os
holandeses. A chamada Insurreição Pernambucana (1645-1654) resultou na
expulsão dos invasores, os quais passaram a produzir açúcar nas Antilhas.
Foram os holandeses desse período que trouxeram para o Brasil a
igreja calvinista. Seu nome oficial era Igreja Cristã Reformada e contava
com 22 congregações locais espalhadas pelo Brasil Holandês. Ela adotava
confissões de fé calvinistas, além de outros credos ortodoxos antigos, e
realizou intensa obra missionária, especialmente entre os índios.
O primeiro pastor dessa igreja a se envolver com a evangelização dos
nativos foi Vincentius Joaquimus Soler. A princípio, ele pregou na aldeia
Nassau, no Recife (atual Bairro das Graças), e somente mais tarde, a pedido
dos nativos da capitania da Paraíba, dedicou-se à evangelização dos índios.
Cabe, porém, a David Doreslaer, cujo trabalho iniciou-se em 1638, o título
de primeiro pastor missionário de tempo integral entre os nativos do Brasil.
O trabalho missionário dos calvinistas holandeses cresceu muito, a
ponto de, em 1641, ser celebrada a primeira ceia do Senhor na aldeia do
cacique Pedro Poti. Várias tribos pediam que a Igreja Cristã Reformada lhes
enviasse pregadores e congregações indígenas foram abertas. Até os
antropófagos tapuias pediram o envio de missionários. Infelizmente, nem
sempre essas solicitações podiam ser atendidas, até mesmo em virtude da
instabilidade decorrente dos conflitos entre Holanda, Espanha e Portugal.
Apesar disso, 17% do trabalho pastoral era dedicado aos índios, graças,
inclusive, à iniciativa pessoal de vários ministros que viam a pregação aos
nativos como parte obrigatória do seu ministério.
Em seu trabalho, os pastores calvinistas ganhavam a confiança dos
nativos dando-lhes assistência social (remédios, alimentos, proteção, etc.).
Além disso, traduziam partes das Escrituras para o tupi, produziam
literatura reformada em português e em tupi, primavam pela educação e
formação de professores índios (alguns se tornaram “consoladores” ou
evangelistas) e zelavam não somente pelo ensino doutrinário, mas também
pelo ideal de santidade que deve acompanhar a fé. De fato, o puritanismo
holandês via a Bíblia como norma de fé e prática (norma credendi et
agendi) e isso foi transmitido aos índios.
Infelizmente, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654, a
Igreja Cristã Reformada também partiu. Os índios convertidos foram
incluídos no “Perdão Geral” promulgado pelos portugueses. Contudo, sem
acreditar nesse perdão, os índios membros da primeira igreja evangélica
verdadeiramente brasileira fugiram para a Serra de Ibiapaba, no Ceará, a
750 km do Recife. O local tornou-se, então, o que o padre jesuíta Antônio
Vieira chamou de “Genebra de todos os sertões do Brasil”, repleta de índios
calvinistas que consideravam o catolicismo uma fé falsa.
No mesmo ano da expulsão dos holandeses, os índios da Serra de
Ibiapaba enviaram uma pequena delegação a Holanda, suplicando socorro
em prol do povo que havia abraçado a fé calvinista. Porém, a Igreja Cristã
Reformada viu-se atada pelas negociações de paz entre Portugal e Holanda
e não enviou auxílio. Por isso, a igreja indígena morreu. Aos poucos seus
membros foram novamente submetidos a Roma ou massacrados como
hereges. Foi assim que terminou um dos capítulos mais belos da história da
igreja reformada no Brasil; e esse capítulo prova quão falaciosa é a
acusação de que os calvinistas não se importam com a evangelização dos
[56]
povos sem Deus.
As provas históricas do empenho evangelístico dos calvinistas são
inumeráveis. Porém, para concluir esse assunto, é suficiente apontar
[57]
somente mais dois personagens: George Whitefield e Charles Haddon
Spurgeon, sem dúvida os maiores pregadores de todos os tempos, ambos
fervorosos expoentes da fé reformada, com sua ênfase na doutrina da
predestinação dos santos.
George Whitefield nasceu em Gloucester, na Inglaterra, em 1714, e
morreu em Newbury Port, nos Estados Unidos, em 1770. Ele viveu menos
de sessenta anos, mas dificilmente a história poderá mostrar um homem
mais zeloso no trabalho de proclamação das boas-novas aos perdidos. De
fato, Whitefield foi o maior pregador da Inglaterra no século 18 e,
certamente, um dos mais notáveis evangelistas de todos os tempos. Com
certeza, ele foi o principal líder do Grande Avivamento evangélico que
varreu a Inglaterra há mais de duzentos anos.
Whitefield começou a pregar em 1736 e, já no ano seguinte, era capaz
de reunir grandes multidões em Londres dispostas a ouvi-lo. A ele cabe a
honra de ter sido o primeiro evangelista da igreja moderna a pregar ao ar
livre, rompendo antigas tradições eclesiásticas em prol da expansão da fé.
A estratégia de pregar a céu aberto foi usada pela primeira vez por
Whitefield em 1739. Ele foi motivado pelas terríveis informações que lhe
chegaram acerca da vida depravada dos trabalhadores das minas de carvão
que moravam numa vila perto de Bristol. A princípio, Whitefield pregou ao
ar livre para um grupo de cem homens daquela vila, mas seu impacto foi tão
grande que logo o número passou para cinco mil, superando mais tarde os
vinte mil ouvintes. Aquelas pessoas nunca tinham entrado numa igreja e,
mesmo cansadas e sujas em virtude do trabalho nas minas de carvão, não
iam para casa, preferindo ficar de pé ouvindo a pregação de Whitefield.
Desde esse tempo até o fim da vida, Whitefield se dedicou à pregação
em lugares abertos, alcançando dezenas de milhares de pessoas tanto na sua
terra natal como na Escócia, onde esteve 14 vezes.
A partir de 1738, Whitefield fez também diversas viagens aos Estados
Unidos a fim de pregar o evangelho ali. Sua coragem em atravessar o
oceano treze vezes em suas idas e vindas à América, enfrentando todos os
perigos que essa viagem representava no século 18, mostra o zelo
missionário desse pastor calvinista que, em 34 anos de ministério, pregou
cerca de 18 mil sermões!
Proclamando suas mensagens ao ar livre ao longo de toda a vida,
Whitefield enfrentava qualquer situação, mesmo as mais difíceis. Frio,
calor, chuva e neve, nada disso o impedia de anunciar a Palavra às
multidões que, também sob essas condições se ajuntavam para ouvi-lo. Ele
pregava cerca de seis vezes por dia e fez isso por mais de três décadas! Não
tinha descanso no trabalho, submetendo seu corpo a severas tensões. Foi
por isso que, durante sua sétima visita aos Estados Unidos, estando
extremamente exausto e doente, faleceu em Newbury Port, Massachusetts,
com apenas 56 anos de idade, após árduos esforços para pregar uma última
vez.
Ninguém mais do que George Whitefield provou como a fé calvinista
move o crente ao evangelismo. Sendo árduo defensor da doutrina da eleição
soberana de Deus, ele foi um evangelista incomparável, superando todos do
seu tempo no nobre trabalho de alcançar os escolhidos do Senhor.
Whitefield pregou para a aristocracia inglesa, para os homens
humildes do campo e das minas e para as crianças dos orfanatos, tanto em
sua terra natal como em regiões distantes dali. A fé reformada não o
desencorajava. Muito pelo contrário. Foi essa fé que se constituiu na base
de todo o seu empenho, por décadas a fio, até a morte. Hoje, os que dizem
que calvinistas não evangelizam devem estudar a vida de George
Whitefield. Isso, certamente, os fará mudar de opinião!
Uma dramática mudança de opinião acerca do zelo evangelístico
calvinista também ocorrerá no crítico da fé reformada que estudar a vida de
Charles Haddon Spurgeon (1834-1892), notável pastor batista inglês,
[58]
conhecido como o “Príncipe dos Pregadores”.
Mesmo pertencendo a uma família de tradição protestante e sendo
criado sob a forte influência de seu avô, um pastor congregacional, Charles
Spurgeon só se converteu realmente aos 16 anos de idade. Logo no início de
sua vida cristã, ele mostrou grande preocupação pelas almas, dedicando-se
à distribuição de folhetos, ao ensino na escola dominical e, eventualmente,
à pregação. Aos poucos, porém, suas habilidades como comunicador da
Palavra de Deus começaram a aflorar e Spurgeon viu sua fama de pregador
crescer quando ainda era bem jovem.
Em 1852, ele se tornou pastor e, dois anos depois, assumiu o
ministério na Capela Batista de New Park Street, em Londres. Seu
desempenho ali como pregador e evangelista atraiu tantas pessoas que as
ruas ao redor da igreja logo se tornaram intransitáveis por conta da multidão
que afluía para ouvir o jovem pastor. Em pouco tempo, a igreja teve de se
mudar para Newington, onde, em 1861, foi construído o Tabernáculo
Metropolitano, que abrigava cerca de 12 mil pessoas. O local ficava repleto
de homens e mulheres desejosos de ouvir os sermões ardentes de Spurgeon
que anunciava o Evangelho com uma paixão e clareza nunca vistas em
nenhum outro pregador daqueles dias.
Charles Spurgeon era calvinista convicto e seus sermões são prova
[59]
cabal desse fato. Defendendo vigorosamente a doutrina da predestinação
dos santos e a eleição incondicional, ele foi, ao mesmo tempo, um zeloso
evangelista de renome mundial, pregando em diversos países da Europa,
tanto em igrejas ou em amplos salões como ao ar livre. Ele pregava de oito
a doze vezes por semana e chegou a falar para um público de mais de 23
mil pessoas, no Crystal Palace, em Londres.
Tantas foram as pregações de Spurgeon que, quando seus sermões
passaram a ser publicados, a partir de 1855, a obra abrangeu 63 volumes,
com mais de 3.500 homilias. Desejoso de que a mensagem de Cristo
alcançasse o maior número possível de pessoas, Spurgeon se esforçava para
que as publicações dos sermões fossem semanais, revisando ele próprio os
textos antes que chegassem ao público. Como resultado dessa imensa obra
evangelizadora, Spurgeon batizou cerca de 15 mil pessoas ao longo de
quarenta anos de ministério pastoral. Mais tarde, seus sermões foram
traduzidos para diversos idiomas, transformando vidas em todo o mundo.
Sempre preocupado com a divulgação da mensagem cristã, Spurgeon
também começou um trabalho de treinamento de evangelistas e pastores, o
que deu origem ao posteriormente chamado Spurgeon’s College. Essa
instituição existe até hoje, adotando a mesma visão do seu fundador e
formando evangelistas, missionários e pastores.
Charles Spurgeon adotava uma concepção ortodoxa das Sagradas
Escrituras e, por isso, passou a ser fortemente criticado pelos membros
liberais da União das Igrejas Batistas da Inglaterra da qual sua igreja fazia
parte. Por causa disso, em 1887, ele se desligou da união e, sob severa
oposição, viu sua saúde minguar. Spurgeon tinha gota, reumatismo e uma
enfermidade crônica degenerativa incurável chamada Doença de Bright. Ele
morreu aos 57 anos. Grandes cortejos foram realizados em Londres por
ocasião de seu sepultamento no cemitério de Norwood. Naquele dia, 31 de
janeiro de 1892, o Senhor tomou para si um dos maiores evangelistas de
todos os tempos.
Quem conhece a vida e os sermões de Spurgeon vê quão grande é o
impulso que a doutrina da eleição incondicional dá ao evangelismo. Aquele
grande pregador provou que, encorajados pelo precioso ensino acerca da
predestinação dos santos, os homens de Deus se lançam com maior
empenho na busca daqueles que o Senhor escolheu e trazem para o seio da
igreja os convertidos verdadeiros em quem a graça do Senhor realmente
atuou.

Divulgando a fé

Os evangelistas que não acolhem nem compreendem a doutrina da


eleição geralmente se envolvem em práticas reprováveis na tentativa de
“ganhar almas”. Desprezando ou desconhecendo o fato de que a conversão
de pecadores é obra de Deus e que ele, tendo os seus escolhidos, age
graciosamente em seu coração mediante a exclusiva exposição da Palavra,
os evangelistas desse tipo criam estratégias e artifícios os mais diversos no
afã de convencer os incrédulos a “tomar uma decisão”.
É assim que, movidos pela crença de que todos os homens são capazes
de crer caso queiram, bastando que os “botões certos” sejam apertados,
esses evangelistas elaboram pregações seguidas de apelos emocionados,
com músicas tocantes ao fundo, com convites prolongados e insistentes
para que o pecador “levante a sua mão” ou “venha à frente” aceitando
Jesus.
Tais pregadores acreditam que, criando essa atmosfera artificial, serão
capazes de convencer o homem perdido a crer, esquecendo-se que a fé
salvífica não se aloja no coração do homem por meio de métodos teatrais de
manipulação e sim pela ação sobrenatural de Deus (Jo 6.37,44; At 16.14; Ef
2.8).
Outros vão além e tentam convencer os incrédulos a crer atraindo-os
para a igreja com todo tipo de programação, mesmo as mais mundanas.
Espetáculos de música profana, uso de linguagem indecente, festas
irreverentes, “baladas”, danças e até apelos sensuais são utilizados na
tentativa de trazer o incrédulo para a igreja. Uma vez alcançado esse
objetivo, todas essas práticas são mantidas a fim de que o descrente não seja
espantado e volte para o mundo do qual, na verdade, nunca saiu – apenas
passou a expressar sua velha carnalidade num novo endereço.
Outro problema se verifica na prática do evangelismo que despreza a
soberana eleição de Deus. Pastores, evangelistas e missionários com essa
deficiência teológica tendem a acreditar que a conversão dos perdidos
depende não só da vontade deles, mas também das habilidades pessoais do
pregador. Por isso, fazem de tudo para elevar o número de seus conversos.
Trata-se, na verdade, de uma questão de valor pessoal. Os ministros
precisam mostrar que são oradores hábeis, dotados de grande poder de
persuasão, obreiros de sucesso, pregadores irresistíveis diante de quem os
incrédulos não conseguem se manter endurecidos. Isso ajuda a explicar os
longos e intermináveis apelos à conversão e as estratégias absurdas de
atração dos perdidos à fé evangélica. Resultados têm de ser vistos a todo
custo. Do contrário, a imagem do pregador ficará irremediavelmente
manchada.
Naturalmente, essa concepção acerca do evangelismo põe um fardo
enorme sobre os ombros do pregador, o qual se vê obrigado a mostrar
números sob pena de ser considerado um fracasso. Por outro lado, essa
visão estimula o orgulho próprio, pois o pregador passa a ver seus
convertidos como provas de sua habilidade e aptidão, esquecendo-se que é
mero lavrador, sendo Deus quem dá o crescimento e o fruto (1Co 3.5-7).
Todos esses erros precisam ser evitados pela igreja de Deus. Nela o
evangelismo deve se centralizar na mensagem pura da salvação e não em
estratégias humanas, artifícios de retórica ou habilidades imaginárias. E a
mensagem pura da salvação se concentra em basicamente cinco verdades
bíblicas:

1. Todos os homens são pecadores (Rm 3.23); 2. Por causa do pecado


todos estão separados da glória de Deus, sendo a morte eterna o
destino de cada um (Rm 6.23);
3. Para salvar o ser humano dessa situação, Deus enviou Jesus Cristo
ao mundo, a fim de sofrer o castigo pelo pecado em seu lugar (Rm 5.6-
8);
4. Por isso, Cristo foi crucificado, morto e sepultado, mas ao terceiro
dia ressuscitou como prova de que as exigências da justiça de Deus
foram satisfeitas (Rm 4.25);
5. Agora, os benefícios da morte de Cristo são aplicados a todos os que
o recebem pela fé como Salvador. Estes são plenamente perdoados e o
Senhor lhes concede vida eterna (Rm 5.1; 6.23; 8.1).
É com a divulgação dessas verdades que o servo de Deus deve se
ocupar, tanto no púlpito como em suas abordagens individuais, sem perder
tempo com a criação de táticas “infalíveis” de propaganda ou de
manipulação de massas.
Então, tendo semeado a boa semente, o evangelista deve descansar na
certeza de que cumpriu seu dever e na convicção de que o Senhor, uma vez
pregada a sua Palavra, agirá no tempo que quiser, da maneira que quiser e,
especialmente, em quem quiser, reunindo soberanamente o rebanho que de
antemão conheceu e um dia glorificará (Rm 8.29-30).
É, pois, dentro dessa objetividade e tocante singeleza que deve ser
realizado o evangelismo na prática diária da igreja de Deus, pois o que se
requer dos despenseiros dos santos mistérios não é que tenham sucesso a
qualquer preço, mas sim que sejam considerados fiéis (1Co 4.2).
Três perguntas

1) Já existiram pessoas de convicção calvinista que deixaram o


evangelismo de lado por crerem na doutrina da eleição?
Sim, existiram e ainda existem! Não só pessoas, mas igrejas inteiras! São
os chamados hipercalvinistas. Aliás, é sabido que William Carey, o pai das
missões modernas, encontrou barreiras para iniciar o seu ministério
exatamente em pessoas que tinham essa mentalidade. A visão
hipercalvinista é mais um entre os inúmeros exemplos de como uma
doutrina santa pode ser desvirtuada e usada para embasar erros terríveis.
O fato de fazerem isso, porém, não significa que a doutrina da eleição é
má. Significa apenas que o coração do homem é mau, sendo capaz de
realizar coisas perniciosas e usar o ensino bíblico como justificativa (Jd 4).

2) Fazer apelos após o sermão é errado?


Se o apelo dá a entender que a pessoa é salva pelo gesto de levantar a mão
ou de ir à frente, então é errado, pois a salvação é unicamente pela fé (Ef
2.8-9). Por isso, uma boa sugestão para quem gosta de fazer apelos é pedir
que os incrédulos venham à frente não para serem salvos, mas para que a
igreja ore por eles, suplicando que o Senhor lhes conceda a fé (Hb 12.2). O
pastor poderá dizer: “Se você não tem a fé em Cristo, mas gostaria de ter e
luta com esse dilema, venha à frente para que a igreja ore por você”. Há
muitas pessoas nessa situação, lutando com dúvidas e temores, percebendo
que não conseguem crer em Cristo de fato (Mc 9.24). Essas pessoas, se
atenderem o convite aqui sugerido, saberão que não foram salvas ao ir à
frente, mas sim que se tornaram alvos das orações da igreja para que o
Senhor lhes abra o coração (At 16.14).

3) Com que intensidade o pregador deve insistir para que alguém se


converta?
Essas insistências, muitas vezes, partem da ideia (ou dão a entender) que a
pessoa tem de ir à frente para ser salva. Por isso, “martelar” o convite por
longos períodos pode ser mais prejudicial do que se imagina.
Também na esfera do evangelismo individual, a prática de insistir
ininterruptamente para que alguém creia em Cristo é estranha ao modelo
bíblico. O livro de Atos mostra que os evangelistas apresentavam o
evangelho com clareza e até se envolviam em longos debates visando a
convencer as pessoas acerca da salvação em Cristo (At 6.9-10; 28.23).
Porém, quando afinal os incrédulos diziam “não” à mensagem, eles se
dirigiam a outros ouvintes (At 13.46; 28.24-29). Na verdade, os pregadores
do NT apresentam o evangelho a um mesmo grupo no máximo duas vezes!
Isso mostra que, quando há rejeição, ataque ou zombaria, o evangelista
deve interromper seu trabalho e buscar outras pessoas (Mt 7.6).
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E VÃO
O meio evangélico de hoje revela uma ampla ausência de qualquer
noção de congregacionalidade. Isso acontece porque muitos líderes
eclesiásticos atuais de destaque desprezam o congregacionalismo bíblico –
um modelo que realça a importância da participação do povo santo nos
rumos e decisões da igreja. O modelo congregacional é claramente visto em
textos como Mateus 18.17, Atos 6.2-3, 15.2 e 2Coríntios 2.6. Porém, não
levando em conta esse aspecto da eclesiologia apostólica, vários
movimentos (pseudo?) evangélicos evitam formar uma comunidade
eclesiástica local definida, fixa, bem identificada e comprometida. Tudo que
importa é apenas atrair multidões variáveis, formadas por milhares de
anônimos sem nenhum vínculo oficial com a igreja.
Muito diferente disso, o que se vê na Bíblia é que as igrejas locais são
formadas por grupos certos e determinados em que cada componente da
comunidade cristã está conectado a ela de forma intensa e responsável,
participando ativamente da vida, dos problemas, das escolhas, dos planos e
dos destinos da igreja a que pertence.
Por isso, dada a importância da congregação na eclesiologia bíblica, e
considerando que a congregação é, obviamente, formada por indivíduos,
toda igreja precisa de um rol de membros definido. Isso deixará claro quem
de fato compõe a congregação local e desfruta, assim, do precioso direito de
participar das decisões e direções eclesiásticas.
Neste capítulo serão brevemente expostas as formas mais comuns
pelas quais um crente pode se tornar parte do rol de membros de uma igreja
local e também as maneiras como pode ser desligado.
Dá-se aqui especial realce à conversão como requisito essencial para
sua admissão e também se destaca a vida de santidade como fator
determinante da participação permanente de um membro da igreja na
comunhão dos santos.
Contudo, antes de tratar desses assuntos, é bom apontar quando um
crente pode solicitar desligamento da igreja a que pertence e o que deve
procurar na nova comunidade eclesiástica de que pretende ser membro.
Quando, como e porque procurar uma nova igreja

Os “cristãos velhos”, ou seja, aqueles que não se deixaram levar pelos


vícios do evangelicalismo atual, não veem com bons olhos a prática comum
nos dias atuais de se mudar de igreja por qualquer motivo ou sem nenhum
critério. Os homens espirituais entendem que o vínculo existente entre o
crente e sua igreja deve ser muito forte, de modo que não é por qualquer
razão que alguém pode abandonar a congregação de que faz parte e se filiar
a outra.
Com efeito, na Palavra de Deus é ensinado que a comunhão dos
crentes requer perseverança e grande esforço (At 2.42; Ef 4.3; Cl 3.13). Não
é, portanto, correta a mudança constante de uma igreja para outra e muito
menos o total abandono da comunhão com os crentes (Hb 10.25; 1Jo 1.7).
Nesse sentido, é interessante notar que mesmo quando Paulo escreveu
a igrejas marcadas por discórdias, imoralidades e desregramentos, jamais
ensinou que a solução para os descontentes seria sair da igreja ou buscar a
comunhão com outros irmãos. Ao contrário, seu ensino sempre consistiu
em exortar os crentes a buscar soluções, a pensar concordemente (Fp 4.2-3
[veja tb. o ensino de Pedro em 1Pe 3.8-9]), a aprender a vencer as contendas
(1Co 6.7-8), a extirpar o mal e a desordem de seu meio (1Co 5.1-5; 14.40),
a manter a paz, o amor e a unidade (2Co 13.11; Cl 3.12-16), permanecendo,
finalmente, unidos (1Co 1.10; Fp 2.2). É, pois, notável que o grande
apóstolo jamais orientou alguém a deixar sua igreja por mais problemática
que fosse.
Todavia, é claro que há razões mais do que justas para que alguém
queira se filiar a outra igreja. Uma delas é o fato de a igreja de origem
abandonar obstinadamente o ensino da doutrina bíblica ou a ênfase na
pureza necessária em seu meio. Também o recebimento de alimento
espiritual fraco, dado por pregadores incorrigíveis e negligentes no ensino,
é motivo justo para alguém mudar de igreja. Acontece também de uma
família procurar outra igreja quando percebe que aquela em que está tem
estrutura irremediavelmente frágil no que diz respeito ao trabalho com
crianças, adolescentes ou jovens. Nesses casos, os pais procuram uma
comunidade em que seus filhos recebam instrução melhor por meio de
programas e atividades bem elaborados, próprios para a idade de cada um.
Como se pode deduzir do ensino bíblico acima exposto, as razões ora
mencionadas não devem fazer com que os crentes corram afoitos para
outras igrejas sem tentar, por todos os meios lícitos, mudar o quadro difícil
instalado na comunidade em que cooperam.
Por isso, antes de se mudar pelos motivos mencionados, o crente deve
orar por sua igreja, tentar ajudar na correção dos erros, trabalhar para que as
coisas melhorem, apontar com amor e brandura os problemas e as soluções
que a Palavra de Deus ensina, enfim, deve fazer tudo para restaurar a igreja
em que o Senhor o colocou, empenhando-se para fazer dela a melhor igreja
jamais vista.
Só quando todas as suas tentativas forem infrutíferas, quando perceber
que não há mais o que fazer, quando tiver a consciência tranquila por saber
que trabalhou com todo o empenho para destruir o erro e não logrou
sucesso em suas justas e constantes tentativas é que o crente deve mudar de
igreja. Se em tais circunstâncias não o fizer, correrá o risco de se acostumar
com o mal e desenvolver tolerância em relação à heresia, ao pecado, à
superficialidade e à desordem.
Deve ficar claro, portanto, que o pular de igreja em igreja, sem criar
raízes em nenhuma; o mudar-se porque teve problemas de relacionamento
facilmente solucionáveis; o insurgir-se contra os irmãos ou contra os
líderes, nutrindo mágoas e rancores no coração que culminem num pedido
de transferência; enfim, a mudança de igreja por motivos que podem ser
relevados ou solucionados com um mínimo de disposição e humildade não
pode ser aprovada pelo povo de Deus, pois vai contra o ensino das Sagradas
Escrituras, além de revelar um vínculo muito fraco entre o crente e a igreja
em que o Senhor o colocou, o que é sinal de imaturidade e falta de amor.
Assim, quando pessoas que revelam essas dificuldades procurarem a
igreja bíblica interessadas em fazer parte de seu rol de membros, esta, por
meio de seu pastor e líderes, deverá orientá-las a que retornem para sua
igreja de origem e se empenhem em resolver as tais dificuldades. Isso
porque é notório que quem critica sua igreja e depressa a abandona porque
nela enfrenta problemas, também da sua nova igreja sairá e a criticará tão
logo ali encontre dificuldades que o desagradem. É claro que crentes assim
precisam não de uma igreja nova, mas de uma mentalidade nova. E é isso o
que a igreja verdadeira deve oferecer a membros de outras comunidades
que a procuram nessas condições.
Finalmente, uma palavra de alerta precisa ser dita a quem sai em busca
de uma igreja a que possa se filiar. É preciso ter cuidado com a tendência
dos crentes modernos que, na escolha de uma igreja, não levam em conta o
que realmente é importante. É frequente os crentes procurarem uma igreja
que tenha belos espetáculos musicais durante os cultos, bastante conforto e
comodidade para desfrutar (boas instalações, amplo estacionamento, bela
decoração, etc.), e inúmeras atividades sociais, como festas, retiros e
passeios. Obviamente, tudo isso tem certa importância. No entanto, esses
elementos não podem servir como fatores determinantes da igreja que se
deve escolher.
O que é preciso procurar numa igreja é, basicamente, ensino bíblico de
qualidade, aplicação da disciplina eclesiástica e primor pela ordem e pela
decência. A igreja que não enfatiza essas coisas não deve jamais atrair o
crente, não importa quão espetaculares sejam seus cultos, nem quanta
comodidade ofereça, nem ainda quantas festas, acampamentos ou
atividades promova.
Isso porque o que deve atrair o crente a filiar-se a outra igreja é o
desejo de ser alimentado espiritualmente com o ensino sólido da Palavra de
Deus, dentro de um ambiente genuinamente cristão, em que sua edificação
e a de sua família sejam promovidas com alegria e paz entre pessoas que,
com coração puro, invocam ao Senhor (2Tm 2.22).

Os membros que chegam

Geralmente, quatro são os meios pelos quais alguém se torna membro


de uma igreja evangélica, a saber: carta de transferência, batismo,
aclamação e reconciliação.
A carta de transferência é usada quando um crente que faz parte de
determinada igreja manifesta o desejo de ser membro de outra da mesma
denominação.
Em linhas gerais, funciona assim: a pedido do candidato à membrezia,
uma determinada igreja reunida em assembleia ou na figura de seu conselho
(dependendo da forma de governo que adota), decide solicitar à igreja de
onde ele procede uma carta da qual conste que nenhuma pendência existe
em sua vida que o impeça de fazer parte da igreja que o está recebendo.
Em seguida, a igreja solicitada, também após a aprovação da
assembleia ou voto favorável do conselho, envia a carta requerida, tomando
ciência de que o irmão em pauta está se desligando de seu rol de membros e
fornecendo as informações solicitadas. No momento em que essa carta é
formalmente lida diante da igreja solicitante ou do seu conselho de líderes,
não constando nenhum impedimento, o candidato passa a integrar o seu rol
de membros.
Esse método, com ligeiras variações, é o mais usado pelas principais
denominações históricas, na sua forma de administrar o trânsito de
membros entre suas próprias congregações. Quando o candidato à
membrezia provém de outra denominação igualmente bíblica, o documento
que algumas vezes é solicitado por essas igrejas é a carta de referência ou
de apresentação.
A segunda forma de recebimento de membros é o batismo. Os que se
tornam membros por essa via são geralmente crentes novos, pessoas que
conheceram a Cristo em data recente.
É recomendável que esses irmãos, antes de serem batizados,
frequentem uma classe preparatória e, somente ao final de um período
indeterminado de ensino cristão básico, façam profissão de fé diante da
igreja e sejam batizados, passando a integrar o rol de membros.
É verdade que, no Novo Testamento, o batismo era realizado tão logo a
pessoa se convertesse (At 2.41; 8.38; 9.18, etc.). Contudo, isso ocorria
porque, em geral, os convertidos, sendo em grande parte judeus ou pessoas
familiarizadas com a fé judaica, eram dotados de um grau de conhecimento
bíblico que tornava desnecessária qualquer preparação prévia. Com o
tempo, porém, essa realidade mudou e os pastores viram a necessidade de
conscientizar melhor os novos convertidos acerca dos pontos essenciais do
cristianismo, antes de os receberam em suas congregações como membros.
A aclamação é o meio de aceitação de um novo membro pela simples
aprovação da assembleia ou do conselho da igreja (nesse caso, é mais
propriamente chamada de recebimento ex officio), sem necessidade de
nenhuma outra formalidade. Ocorre quando, depois de conhecer por algum
tempo o candidato, a igreja ou seu conselho, dando crédito ao testemunho
dele de conversão e batismo, aprova a sua inclusão em seu rol de membros.
Uma pessoa também pode se tornar membro de uma igreja verdadeira
mediante pedido de reconciliação. Esse método deve ser utilizado
exclusivamente quando o candidato foi excluído de sua igreja de origem por
causa de pecado obstinado.
Evidentemente, o requisito fundamental para que alguém seja aceito na
igreja mediante pedido de reconciliação é o arrependimento. Este, é claro,
deverá vir acompanhado de evidências de sua veracidade. Tanto que,
quando possível, é útil exigir que o solicitante procure a igreja à qual
ofendeu e lhe peça perdão humildemente, antes de ser oficialmente
integrado na nova comunidade que está frequentando.
A aceitação de alguém mediante pedido de reconciliação deve ser
precedida de muito cuidado. Do contrário, corre-se o risco de dar
oportunidade para que pessoas rebeldes, expulsas de suas igrejas, se
refugiem atrás de outras trazendo consigo pecados horríveis que depressa
contaminarão a igreja descuidada (1Co 5.6), causando prejuízos, tristezas,
sofrimentos e vergonha para todos.

O requisito essencial

Seja qual for o método mediante o qual alguém se torne membro de


uma igreja verdadeira, deve-se exigir de todos os candidatos um requisito
essencial sem o qual ninguém poderá sequer sonhar em fazer parte da igreja
de Deus: ser realmente crente em Jesus Cristo.
Por isso, quando uma pessoa diz que quer ser incluída no rol de
membros de determinada igreja local, a primeira pergunta a ser feita é:
“Como foi a sua conversão?”. Com essa pergunta, espera-se que o
candidato conte como e quando se rendeu aos pés de Cristo, crendo nele a
ponto de recebê-lo como único e suficiente Salvador (Jo 1.12).
Se o indivíduo que quer ser membro da igreja nunca reconheceu que é
pecador (Rm 3.23), nunca aprendeu que Cristo morreu pelos pecados e
ressuscitou ao terceiro dia a fim de justificar os pecadores diante de Deus
(Rm 4.25; 5.1,8), nunca se curvou aos pés de Cristo, crendo nele como
Salvador (Mt 11.28-30; Jo 6.37), enfim, nunca “nasceu de novo” (Jo 3.3 cf.
2Co 5.17), esse indivíduo não deve ser recebido de modo nenhum como
membro até que, pela fé em Jesus (Jo 3.16, 36), seja feito nova criatura.
Ser portador de cartas de transferência ou de referência emitidas por
outras igrejas, pertencer a famílias tradicionalmente evangélicas, frequentar
assiduamente os cultos, nutrir amizade com os líderes eclesiásticos... nada
disso substituirá o requisito essencial para se tornar membro da igreja, isto
é, a conversão.
Por isso, em conversa particular com o interessado a ingressar na
igreja, o pastor deve sempre perguntar acerca de sua conversão e,
verificando pelo testemunho dado os sinais do novo nascimento, deve
aconselhar o candidato a frequentar os cultos, a participar da classe de
novos membros (especialmente se será recebido por meio do batismo) e a
cultivar amizades durante alguns meses, ao cabo dos quais será conhecido
por quase todos e também conhecerá melhor a igreja à qual deseja
pertencer.
Somente depois disso, as medidas práticas para o efetivo arrolamento
do candidato, tais como cartas, entrevistas e profissões de fé, poderão ser
tomadas.

A saída da igreja por vias administrativas

O desligamento de um membro da igreja por vias meramente


administrativas pode ocorrer de duas maneiras: pedido de carta de
transferência e desligamento direto.
Conforme visto, quando um membro de determinada igreja manifesta
o desejo de pertencer a outra da mesma denominação, o instrumento pelo
qual se realiza essa mudança é a carta de transferência. O interessado
dirige o pedido à igreja a que quer pertencer e esta formaliza o pedido à
igreja de onde o crente procede. Se for aprovado, a igreja solicitada emite
uma carta à igreja solicitante concedendo a transferência.
A rigor, no exato momento em que a referida igreja, por intermédio da
assembleia ou do conselho que a representa, aprova a concessão da carta, o
membro interessado na transferência deixa de pertencer ao seu rol. Logo,
não é necessária a chegada da carta à igreja solicitante para que o membro
deixe de fazer parte do rol da igreja solicitada. Para tanto, basta que esta
aprove a concessão da carta. Assim, o período em que a carta está em
trânsito constitui um interregno em que o membro não pertence nem à
igreja solicitada (pois o seu pedido de transferência já foi deferido), nem à
igreja que pediu sua carta (pois a carta que concede a transferência ainda
não chegou a ela).
O desligamento direto, por sua vez, é um procedimento muito simples.
Nesse modelo, o nome de um membro da igreja é tirado do rol de maneira
imediata, logo após a aprovação da igreja em assembleia ou em reunião de
líderes, no caso das igrejas que conferem essa prerrogativa a um conselho.
Esse método é usado geralmente quando um membro de determinada
igreja filia-se a outra de diferente denominação, ou quando um membro
confessa que nunca foi de fato crente em Cristo (a exclusão por motivos
disciplinares não é cabível aqui, pois a disciplina bíblica, como se verá, só
pode ser aplicada a crentes), ou ainda quando abandona a comunhão com os
irmãos por ter mudado de residência, indo morar em local distante e incerto,
tornando o contato impossível.
Em suma, sempre que o caso não trouxer os contornos que tornem
possível a transferência mediante carta ou a exclusão por razões
disciplinares (conforme exposta a seguir), o meio de remoção de um
membro será o desligamento direto.

A disciplina eclesiástica

A exclusão por razões disciplinares (ou excomunhão, isto é, a remoção


de alguém da comunhão) é a forma mais dolorosa de desligamento de um
membro. De acordo com as Escrituras, essa severa medida só se aplica nos
casos de pecado obstinado, quando todas as tentativas de recuperar o
ofensor forem infrutíferas.
Desse modo, ninguém na igreja de Deus pode ser excluído por
adultério, fornicação, mau testemunho ou homossexualismo. Não são esses
pecados em si que levam à exclusão, mas sim a prática obstinada desses ou
de qualquer outro pecado. Assim, a obstinação é a única causa de exclusão
disciplinar. Só a postura rebelde, orgulhosa e contumaz levará a igreja a
agir com mão forte e amputar o membro que, gangrenado pela prática
insistente do mal, põe em risco a saúde de todo o corpo (1Co 5.6-7).
Portanto, se alguém praticar qualquer pecado, independentemente da
gravidade, e em seguida demonstrar real arrependimento, o desligamento
não poderá ocorrer. Por outro lado, mesmo os pecados que causem menor
comoção, como desobediência aos pais, má administração do dinheiro ou
maledicência, poderão dar causa a medidas disciplinares se aqueles que os
praticarem se revelarem obstinados, não aceitando a correção.
Isso é assim porque, na Bíblia, a rebelião e a obstinação são
comparadas respectivamente à feitiçaria e à idolatria (1Sm 15.23). Fica,
portanto, fácil entender porque a igreja não pode tolerar esses pecados, seja
qual for a maneira que se expressem.
O processo que culmina na aplicação da medida disciplinar é lento.
Baseia-se em Mateus 18.15-17. Nesse texto é dito que, ao se tomar
conhecimento de pecado na vida de um irmão, é necessário admoestá-lo
individualmente. Se a postura desse irmão não for de arrependimento, deve-
se levar mais dois ou três até ele a fim de que o admoestem. Se o trabalho
do grupo for infrutífero, o caso deve ser levado à igreja não para exclusão,
mas para que todos os irmãos admoestem o pecador impenitente, tentando
convencê-lo da necessidade do arrependimento. Se também nessa etapa do
processo o arrependimento não ocorrer, procede-se à exclusão.
É recomendável que a medida seja aplicada em reunião especialmente
convocada para esse fim. Tudo deve ser feito a portas fechadas, presentes
apenas os membros da igreja. No início da reunião, o pastor ou líder
apresentará um relatório de todo o processo mostrando que, biblicamente, a
medida a ser tomada agora é a “amputação”. Os membros da igreja deverão
ter oportunidade de se manifestar, apresentando suas dúvidas ou
enriquecendo o relatório dado com testemunhos pessoais.
Em seguida, a igreja unânime, convencida de que a exclusão é,
infelizmente, o único caminho a seguir, declarará removido o membro
rebelde da comunhão com o corpo de Cristo representado pela igreja ali
reunida e pedirá ao Senhor que o trate como alguém fora do convívio dos
santos (Mt 18.17), preso ao seu pecado (Mt 18.18) e sob a severa disciplina
de Deus (Hb 10.26-31). Esse pedido corresponde ao “entregar a Satanás” de
que Paulo fala em 1Coríntios 5.5 e 1Timóteo 1.20.
Depois que esse ato for realizado pela igreja, o crente rebelde se verá
lançado novamente aos domínios de Satanás. Espera-se assim que,
experimentando as mais terríveis agruras espirituais e até físicas, ele se
arrependa e se volte humildemente para Cristo e sua igreja, suplicando
perdão e acolhida.
Deve-se observar que, em reunião especialmente convocada para
aplicação da disciplina bíblica, não há votação. Isso porque não cabe à
igreja decidir se deve ou não fazer o que Cristo ordena em Mateus 18.15-
17.
O que pode ocorrer é o consenso de que a medida deve ser aplicada
mais tarde, a fim de que o impenitente tenha mais tempo para considerar
sua situação e os irmãos que ainda não o fizeram tenham oportunidade de
admoestá-lo antes da exclusão, já que, depois dela, todas as relações com o
crente rebelde deverão ser cortadas, conforme será visto a seguir. Essas
decisões protelatórias poderão ocorrer com relativa frequência, e a igreja
deve cuidar para que o constante adiamento não perpetue o mal em seu
seio.
Após a reunião disciplinar, o membro excluído será desligado do rol de
membros na assembleia ordinária que sobrevier. Esta será uma simples
medida administrativa, tendo por propósito cumprir mera formalidade, pois
não fará sentido manter no rol de membros o nome de alguém que foi
desligado por razões disciplinares.
Como já foi dito, o processo que culmina na exclusão por razões
disciplinares é lento. Em muitos casos se arrasta por meses a fio. Isso
porque, antes de se tomar medida tão séria, é fundamental que a igreja
esteja convicta de que fez todo o possível para recuperar o irmão caído.
Há casos especiais, porém, em que a exclusão por razões disciplinares
segue um rito sumário. Isso ocorre quando o membro está vivendo em
pecado sem a menor discrição, apresentando-se em sua conduta vil diante
de toda a sociedade, sem demonstrar nenhum constrangimento por isso.
É o caso, por exemplo, do crente que abandona a esposa e vai morar
com a amante, passando a andar com ela pelas ruas e apresentando-a às
pessoas com toda a naturalidade. Em casos como esse, a obstinação é
verificada de pronto e a igreja não poderá se demorar em aplicar a medida
de exclusão, pois o nome do evangelho estará sendo publicamente
manchado. Algo, portanto, deverá ser feito de imediato.
É nessas ocasiões que, em vez de adotar o modelo descrito em Mateus
18.15-17, aplica-se o processo descrito em 1Coríntios 5.1-5, em que Paulo
trata de um pecado chocante que era de conhecimento público. O processo
consistirá em apresentar o problema diretamente à igreja que, sem mais
delongas, munida de provas incontestáveis, realizará a imediata
“amputação”.
Há outra hipótese em que os passos de Mateus 18 podem ser
substituídos por outro procedimento. Trata-se dos casos de pecados
cometidos por grupos da igreja.
Nessas ocasiões, fica difícil para o membro que toma conhecimento do
problema procurar cada indivíduo em particular e dar o primeiro passo no
processo de recuperação. Aliás, muitas vezes, o crente que fica sabendo de
problemas assim sequer tem estrutura emocional para confrontar cada
membro do grupo.
Por isso, ocorrendo essa hipótese, recomenda-se seguir o procedimento
mencionado em 1Coríntios 1.11. Nesse texto é dito que os “da casa de
Cloe”, ao perceber a conduta errada de certos grupos da igreja de Corinto,
comunicaram o problema diretamente a Paulo, que passou a tratar do
assunto. Esse exemplo mostra que é possível o crente que sabe do pecado
conjunto de seus irmãos procurar o líder da igreja e lhe transferir o dever de
confrontar os que se têm associado para agir de modo reprovável e
vergonhoso.
A aplicação da disciplina bíblica suscita uma importante questão:
como devem os crentes se relacionar com o membro excluído por razões
disciplinares? O ensino neotestamentário mostra que a disciplina consiste
em abandono e afastamento. O membro excluído, conforme o ensino de
Jesus e de Paulo, deve ser cortado da esfera de relacionamentos e dos
círculos de amizade dos cristãos (Mt 18.17; Rm 16.17; 1Co 5.11; 2Ts 3.6).
Observe-se que essa é a essência da punição eclesiástica, capaz de
fazer o crente rebelde sentir, em alguma medida, o gosto amargo do seu
castigo. Na verdade, sem isso, a exclusão não fará o menor sentido,
tornando-se apenas a remoção de um nome da lista de membros da igreja.
Em vista disso, na igreja de Deus, quando alguém chega ao extremo de
ser excluído por razões disciplinares, todos os irmãos são orientados a se
afastar dele. Espera-se, então, que, ao sentir a perda da comunhão com a
igreja, o pecador rebelde, que não pôde ser levado ao arrependimento pelas
constantes e pacientes admoestações de todos, o seja pela disciplina
dolorosa sentida quando é tratado como “gentio e publicano” (Mt 18.17).
Note-se que o irmão que não segue essa orientação e continua a se
relacionar normalmente com o excluído frustra o propósito da disciplina e
torna-se empecilho para a recuperação do ofensor, uma vez que abranda o
peso da medida, além de demonstrar completo desrespeito às orientações
bíblicas e às decisões da igreja.
A história eclesiástica mostra que esse procedimento, ensinado pelo
apóstolo Paulo, foi precisamente o adotado na igreja antiga. Edward Gibbon
(1737-1794), ao escrever sobre a disciplina na igreja dos primeiros séculos,
diz:

Os cristãos contra os quais ela tivesse sido lançada se viam


privados de participar das oblações dos fiéis. Dissolviam-se os
vínculos de amizade quer religiosa, quer pessoal; ele se tornava
objeto profano de aversão por parte das pessoas às quais mais
estimava ou pelas quais houvesse sido mais ternamente amado; e
na medida em que uma expulsão do seio de uma sociedade
pudesse imprimir-lhe no caráter um sentimento de desonra, as
[60]
pessoas em geral o evitavam ou o encaravam suspeitosamente.

Uma das mais claras evidências de que a descrição de Gibbon é exata


pode ser colhida no sermão Contra os Espetáculos, pronunciado por João
Crisóstomo (c. 354-407). Nesse sermão, o grande pregador, ao falar sobre a
hipótese de alguns crentes serem excluídos da comunhão, orienta sua igreja
nos seguintes termos:

Sejam expulsas, pois, tais pessoas, a fim de que os sãos


tenham saúde mais robusta ainda e os doentes se restabeleçam de
sua grave moléstia… Portanto, quem quiser continuar na vida
impura não entre na igreja, mas seja censurado por vós… Fazei
assim, não converseis com tal pessoa, não a recebais em casa,
não comais com ela, evitai sua companhia nas viagens, passeios
[61]
e negócios. Desta maneira será reconquistada com facilidade.
Há quem diga que tal procedimento, mesmo tendo sido ensinado por
Jesus e por Paulo, não revela amor (!), pois os membros caídos, dizem,
precisam ser buscados, não abandonados.
Deve-se, porém, lembrar de que antes da exclusão, essas pessoas são
persistentemente buscadas e só se tornam objeto da disciplina quando se
revelam inamovíveis em sua decisão de não dar ouvidos às palavras de
exortação e sabedoria que lhes são dirigidas.
Essa atitude obstinada mostra que tais pessoas não querem de modo
nenhum abandonar os seus pecados. É só quando se verifica esse estado de
coisas que a dura disciplina bíblica é aplicada. Se não for, o amor e a
paciência se transformarão em tolerância para com o pecado e o Senhor
Jesus Cristo repreenderá a igreja, acusando-a de abrigar passivamente o mal
em seu seio (Ap 2.20).
Por isso, o povo de Deus deve evitar que a pureza da igreja seja
sacrificada com o argumento aparentemente piedoso de que é preciso ter
mais amor. Ademais, deve ser reconhecido que a disciplina eclesiástica não
é um fim em si, mas é, na verdade, um meio empregado para recuperar o
pecador obstinado. Trata-se, assim, de um ato de amor, pois quem ama,
corrige; quem ama às vezes precisa ferir (Pv 27.6). O próprio Deus age
assim com seu povo (Hb 12. 4-11).
Outro fator a se considerar com seriedade é que a disciplina
eclesiástica é, acima de tudo, uma forma de sobrevivência! Isso porque é
por meio dela que a igreja se livra do fermento do mal que fatalmente
leveda a massa toda, caso não seja removido (1Co 5.6-7). Além disso, é
preciso destacar que a disciplina também tem efeito preventivo, já que
incute um temor salutar nos demais crentes, fazendo-os ser mais cuidadosos
e vigilantes em seu proceder (At 5.11).
Por tudo isso, feliz será a igreja que zelar pela disciplina em seu meio.
Aliás, é precisamente o desmazelo nesse campo que tem gerado tantas
tristezas e dissabores dentro das comunidades eclesiásticas, além de
inúmeros escândalos.
Antes de encerrar este assunto, uma palavra precisa ser dita quanto a
um instrumento de desligamento muito usado por aqueles que querem viver
no pecado sem enfrentar os incômodos da disciplina bíblica. Trata-se da
“carta de pedido de exclusão”. Como se pode deduzir do próprio nome, essa
carta é escrita e assinada pelo membro da igreja interessado em seu próprio
desligamento. Nela, o referido membro pede para ser excluído alegando
motivos particulares ou razões pessoais.
Quando perceber que uma carta desse tipo tem como alvo driblar a
disciplina bíblica, a igreja zelosa não poderá aceitá-la. Se o fizer, será
conivente com os membros que buscam subterfúgios para se ver livres da
maneira que a Bíblia ensina tratar o pecado.
Dúvidas comuns

1) O batismo realizado em seitas pode ser reconhecido como válido no


recebimento de um novo membro?
Os batismos realizados nas seitas geralmente são rituais supersticiosos de
purificação ou formas de se obter a salvação. Algumas seitas não batizam
em nome do Deus Trino e há ainda aquelas, geralmente do meio
neopentecostal, que ensinam que o batismo é uma forma de se conquistar
sucesso, curas e bênçãos especiais. Por tudo isso, os batismos realizados
nas seitas não são batismos bíblicos e verdadeiramente cristãos. Assim, não
podem ser aceitos como válidos.

2) O terceiro passo do processo disciplinar descrito em Mateus 18


(“leva-o à igreja”) dificilmente pode ser dado, pois os crentes
obstinados, muitas vezes, se recusam a ir à igreja. Como fazer, então?
Muito simples. Se o crente em pecado se recusa a comparecer diante da
igreja para ser admoestado e, enfim, conduzido ao arrependimento, fica de
pronto caracterizado o fato de ele “se recusar ouvir também a igreja”.
Nesse caso, o terceiro passo será considerado superado e a exclusão será
aplicada.

3) Como agir no caso do membro da igreja que sempre se arrepende


quando é admoestado pelos irmãos, mas nunca muda definitivamente
de vida?
O nome dado a isso é “arrependimento ficto”. Essa forma de
arrependimento é apenas um subterfúgio que algumas pessoas adotam para
tentar se livrar da disciplina. Na verdade o arrependimento ficto é uma
forma branda e disfarçada de obstinação que, se for tolerada, perpetuará o
pecado na igreja. Por isso, percebendo sua ocorrência, a igreja não deve se
deixar enganar, mas sim dar sequência normal ao processo disciplinar.
4) Como cortar a comunhão com um crente disciplinado, quando esse
crente é da própria família (cônjuge, pai, filho, irmão, etc.)?
Não há previsão bíblica para essa hipótese. Obviamente, não haverá como
cortar totalmente o contato com alguém da família imediata e o tratamento
amigo, simpático, respeitoso e amoroso deve permanecer dentro do lar
mesmo no trato com o parente que foi disciplinado pela igreja. Contudo,
uma boa sugestão é os membros da família fazerem o excluído sentir seu
abandono pelo menos no âmbito espiritual. Isso eles farão interrompendo
as admoestações bíblicas que antes lhe dirigiam, parando de convidá-lo
para ir à igreja, deixando-o fora dos cultos domésticos e das conversas
relacionadas à igreja e à fé, enfim, cortando-o de tudo que se relaciona à
vida com Deus. Agindo assim o parente excluído perceberá que, mesmo
morando na casa de pessoas crentes, não desfruta mais dos privilégios da
comunidade da fé e ali também é tratado como gentio e publicano. A dor
que isso causará no cristão verdadeiro que está em disciplina o fará
abandonar depressa a vida de pecado.

5) O que fazer quando um membro da igreja, ao longo do processo


disciplinar, confessa que não é crente?
A disciplina é para alguém que, “dizendo-se irmão”, vive no pecado (1Co
5.11). Se um membro da igreja diz que não é crente, não é possível que a
igreja o entregue a Satanás”(1Co 5.3-5), pois não há como colocá-lo nas
mãos de quem ele nunca deixou de estar. Por isso, no caso de membros que
confessam ser incrédulos, a igreja deverá apenas removê-los do rol de
membros numa assembleia administrativa comum. Se o ex-membro quiser
continuar a vir à igreja, é até possível permitir, ficando os líderes atentos
ao perigo de sua influência. Se perceberem que sua presença ali está sendo
danosa, então poderão proibir sua entrada.

6) É possível impedir que um membro disciplinado entre na igreja e


participe dos cultos?
É claro que sim. A igreja realiza cultos abertos ao público, mas ela não é
uma entidade pública, nem seus imóveis são públicos. Em vez disso, sob o
ponto de vista legal, a igreja é uma pessoa jurídica de direito privado. Por
isso, pode gerir o ingresso às suas propriedades como bem lhe parecer.
Assim, se seus membros e administradores entenderem que devem limitar o
acesso às suas dependências, proibindo que alguém entre, poderão fazê-lo
livremente, desde que as causas dessa restrição não sejam ilegais ou
criminosas.

7) Quando a disciplina acaba?


A disciplina não tem um tempo definido de duração. Ela acaba quando
ocorre o arrependimento. Se o arrependimento nunca ocorrer, a disciplina
perdurará indefinidamente. Caso, porém, o crente excluído se arrependa,
deverá comunicar isso à igreja, pedir perdão por tê-la ferido e desprezado
e suplicar sua readmissão. A igreja então, deverá perdoar o suplicante
imediatamente e a disciplina, tendo alcançado seu objetivo, terminará (2Co
2.5-8).
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA
LOCAL
Após seu ingresso numa igreja bíblica, o crente passa a ter certos
deveres e obrigações diante da irmandade. Isso é tão claro no Novo
Testamento que é de surpreender que, nos tempos atuais, esse aspecto do
ensino apostólico seja tão negligenciado.
Na verdade, a impressão que se tem nos dias de hoje é que o
envolvimento do crente com a igreja de que é membro é meramente
opcional, sendo o bastante que compareça aos cultos eventualmente.
É claro que todo trabalho e compromisso assumido por um crente
diante de sua igreja é voluntário. Porém, os cristãos que conhecem o ensino
bíblico sabem que essa voluntariedade é a voluntariedade de um servo, ou
seja, é a voluntariedade de quem disse: “Sou um discípulo e servo de Cristo
e estou comprometido com sua causa nesta igreja de que faço parte”. É,
pois, essa “livre obrigação” que deve mover o crente na direção de um
envolvimento mais intenso no dia a dia da igreja, fazendo disso um dos
aspectos prioritários da sua vida.
É pelo fato de muitos crentes não entenderem essas verdades que os
dias modernos viram o surgimento de uma geração de discípulos sem
compromisso algum com a igreja, distantes da sua realidade, ignorantes
quanto às suas particularidades e apáticos diante de seus problemas, lutas e
ideais.
Sem dúvida, toda essa situação precisa mudar para que a presente
geração cause um impacto maior na história e deixe um legado mais rico
para os que estão por vir. Para que isso aconteça, é necessário que os
discípulos de Cristo ouçam a voz da Bíblia e aprendam dela como deve ser
sua participação na comunidade da fé.
Ora, o crente que se empenhar nesse sentido descobrirá que suas
responsabilidades junto à igreja podem ser resumidas em três palavras:
comunhão, cooperação e contribuição. Ele também se surpreenderá ao
perceber que sobre o cristão pesam sérios deveres em relação aos seus
pastores, conforme será visto neste capítulo.

A comunhão
Por comunhão entende-se a convivência amorosa, pacífica, pura e
produtiva que deve marcar todo ajuntamento cristão. Sendo, a princípio,
amorosa e pacífica, a comunhão cristã revela o sentido da verdadeira
unidade e, com isso, mostra ao mundo que a igreja é uma autêntica
comunidade de discípulos de Jesus (Jo 13.35).
Como isso ocorre? É simples: a unidade que caracteriza o convívio
cristão revela que os membros da igreja estão nutrindo “o mesmo
sentimento que houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.5), provando, assim,
que são seus verdadeiros seguidores.
O texto que mais ajuda na compreensão disso é Filipenses 2.1-8,
passagem que trata do que os teólogos chamam de “esvaziamento”
(kenosis) de Cristo. Nesse texto, Paulo ensina que o Senhor não se apegou
aos magníficos privilégios que tinha antes de se encarnar. Em vez disso, se
“esvaziou”, ou seja, deixou para trás o esplendor da sua glória, fez-se
homem, assumiu a forma de servo e humilhou-se até a morte de cruz (v. 5-
8)!
Observe-se que essa passagem, talvez a mais rica da Carta aos
Filipenses em termos de conteúdo doutrinário, foi escrita por Paulo
precisamente com a finalidade de ilustrar como deve ser a disposição do
coração dos crentes no convívio entre si.
De fato, após ensinar que os filipenses deveriam ter seu ajuntamento
marcado por amor, compaixão, unidade, humildade e desprendimento (vv.
1-4), o apóstolo resumiu todos esses itens num exemplo magnífico,
apontando para o autoesvaziamento do Senhor. É, pois, como se dissesse:
“Irmãos, sejam amorosos e humildes no seu convívio, ou seja, imitem o
Senhor. Assim como ele se esvaziou por amor de nós, abrindo mão de sua
glória real, esvaziem-se vocês também no trato de uns com os outros,
abrindo mão de sua glória imaginária.”
Assim, a base do apelo à comunhão cristã amorosa não é o simples
anelo pela paz social (presente até nos incrédulos), mas sim a cristologia
ortodoxa que destaca a disposição humilde do Filho de Deus, apontando-a
como modelo a ser seguido pelos discípulos no cultivo do relacionamento
que têm entre si.
Negligenciar, pois, essa santa comunhão, ou militar contra ela, é, em
último caso, desprezar o exemplo dado por Cristo em sua encarnação,
humilhação e morte.
A comunhão cristã, além de amorosa e pacífica, também deve ser
produtiva. Não basta ao membro da igreja ser apenas um “cara legal”, um
amigo bonzinho que nunca se indispõe com os outros. Mais do que isso, sua
aproximação dos irmãos deve também promover crescimento, consolo e
correção.
No fundamento desse ensino está, por exemplo, a ordem de Jesus
dirigida a Pedro: “E quando você se converter, fortaleça os seus irmãos” (Lc
22.32), mostrando que a restauração da comunhão com Deus deve ser
seguida de trabalho em prol da saúde espiritual da igreja.
Há também a verdade ilustrada por Paulo na figura da igreja como
organismo vivo, no qual cada crente deve atuar como membro singular,
usando seus dons e desempenhando suas funções em favor do crescimento
do todo (Rm 12.3-8; 1Co 12.12-31; Ef 4.1-16).
Finalmente, existe a firme exortação dirigida aos cristãos hebreus,
ordenando que eles não deixem de se congregar. O que chama a atenção
nessa ordem é que o autor bíblico não diz que a conduta oposta ao
abandono da congregação é apenas voltar a reunir-se. Em vez disso, ele diz:
“... mas procuremos encorajar-nos uns aos outros...” (Hb 10.25), dando a
entender que o contrário de abandonar a igreja é mais do que frequentá-la.
É frequentá-la realizando um trabalho de aconselhamento, correção,
admoestação e consolo.

A cooperação

Cooperação é o termo usado para referir o trabalho conjunto.


Cooperar, pois, com alguém é labutar ao seu lado, empenhando-se por
alcançar seus mesmos objetivos. Assim, quando se diz que o crente deve
cooperar com sua igreja, isso significa que ele deve empreender esforços ao
lado de seus irmãos para fazer com que a comunidade eclesiástica de que
faz parte realize seus ideais da maneira mais célere e da melhor forma
possível.
Quais seriam os ideais da igreja pelos quais os seus membros deveriam
juntos lutar? O Novo Testamento aponta pelo menos três: a promoção e
defesa da fé evangélica; a edificação do corpo de Cristo; e a pureza da
comunidade dos santos.
Que os crentes devem trabalhar unidos pela promoção e defesa da fé
cristã está claro na expectativa de Paulo em relação aos irmãos de Filipos,
sobre quem ele anelava ouvir que permaneciam “firmes num só espírito,
lutando unânimes pela fé evangélica” (Fp 1.27).
Quanto ao empenho conjunto visando à edificação do corpo de Cristo,
sua base mais nítida encontra-se em Efésios 4.16, o qual diz que o corpo de
Cristo, isto é, a igreja, edifica-se em amor, “segundo a justa cooperação de
cada parte”. Aliás, conforme foi destacado no subtítulo anterior, esse deve
ser um dos objetivos da comunhão cristã verdadeira.
Já no tocante à cooperação dos crentes entre si tendo em vista a pureza
da igreja, o fundamento desse ideal pode ser verificado em 1Coríntios 5.7,
texto em que Paulo ordena que a igreja como um todo tome sobre si a tarefa
de lançar fora o velho fermento do pecado. Note-se que os coríntios
deveriam fazer isso quando estivessem reunidos (1Co 5.4), de maneira que
o trabalho de purificação da igreja fosse coletivo.
Na prática, a colaboração do crente na busca desses alvos tão
importantes do povo de Deus pode assumir os mais diferentes contornos.
Ministrar uma aula ou apagar uma lousa para que essa mesma aula possa
ser ministrada são igualmente formas de cooperar com o ideal de defesa e
expansão da fé. De forma semelhante, o irmão que recebe com simpatia um
visitante e o irmão que varre o salão de cultos onde esse mesmo visitante é
recebido estão cooperando com o ideal sagrado de promover a verdade que
liberta. Também o crente que exorta um irmão em particular dentro de uma
sala e o crente que troca a lâmpada queimada dessa mesma sala em que a
exortação é feita laboram lado a lado em prol da pureza da igreja, sendo
colegas de serviço no Reino, desfrutando do mesmo status diante do Senhor
para quem trabalham.
Infelizmente, porém, o quadro evangélico atual mostra um grande
distanciamento dessa visão. De fato, poucos crentes cooperam com intensa
dedicação na realização dos alvos santos da igreja, sendo imenso o número
de membros de comunidades locais que não fazem absolutamente nada,
mantendo-se distantes e apáticos, muitas vezes até murmurando contra
quem obedece a ordem bíblica de cooperar.
Crentes assim devem avaliar onde realmente está seu coração e trazer à
superfície de sua memória o ensino de Paulo acerca do alvo sublime que
devem perseguir nesta vida, conforme registrado em 2Coríntios 5.15: “E ele
morreu por todos para que aqueles que vivem já não vivam mais para si
mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”.

A contribuição

Uma forma branda de legalismo controla a prática de muitas igrejas


evangélicas. Esse legalismo leve se expressa especialmente na obrigação
imposta aos crentes de “pagar” o dízimo, tomando como base a Lei
Mosaica.
De fato, a Lei de Moisés exigia que os israelitas entregassem o dízimo
de tudo ao Senhor (Lv 27.30-32; Dt 14.22-26; Hb 7.5), sendo certo que nos
dias de Jesus essa norma ainda vigorava, já que ele nasceu sob a Lei (Gl
4.4) e, por isso, até aprovou a obediência a essa regra (Mt 23.23).
Porém, com a morte do Senhor, uma nova fase começou. A Nova
Aliança, diferente da mosaica, apontando Cristo como o novo sumo
sacerdote diante de Deus, trouxe mudança de lei (Hb 7.12), livrando o
crente das exigências do código imposto a Israel no deserto (2Co 3.7-11; Gl
3.19, 23-25; Ef 2.14-15; Cl 2.13-14; Hb 7.18-19; 8.6-7,13).
Isso faz, entre outras coisas, com que os dízimos dos cristãos sejam
semelhantes aos de Abraão e Jacó, homens que viveram antes da entrega da
Lei a Moisés e que, assim, deram seus dízimos não por obrigação legal, mas
voluntariamente, como demonstrações de gratidão, compromisso e devoção
(Gn 14.20; 28.22).
Com efeito, sob a Nova Aliança, o crente é estimulado pelo Espírito
Santo que nele habita a cumprir espontaneamente a justiça que há na Lei
(Rm 7.4-6; 8.3-4; Hb 8.10-12). Por isso, todo crente genuíno se vê impelido
por Deus a honrá-lo com recursos materiais a fim de que a causa do Senhor
seja mantida neste mundo. E o bom cristão deve atender a esses impulsos
livremente, cheio de alegria no coração, sem barganhar com Deus e sem ser
ameaçado ou forçado por seus líderes.
Surge, então, a pergunta: que necessidades e deveres materiais recaem
sobre a igreja local para que seus membros sejam sensíveis ao estímulo do
Espírito Santo e contribuam financeiramente com ela?
A resposta a isso é muito simples. O Novo Testamento ensina que
sobre a igreja pesa o dever de enviar recursos para obreiros que estão
passando por dificuldades no trabalho que realizam (2Co 11.8-9; 12.13).
Paulo diz que dádivas assim apresentadas são como “uma oferta de aroma
suave, um sacrifício aceitável e agradável a Deus” (Fp 4.14-18).
É ainda claro no Novo Testamento o costume de a igreja auxiliar nas
despesas de quem viaja como missionário aprovado por ela (Rm 15.24; 3Jo
5-8). O socorro material de irmãos que são verdadeiramente carentes é
também responsabilidade da igreja de que fazem parte, caso não tenham
família (1Tm 5.3-6,16). Além disso, a igreja tem o dever de sustentar os
pastores que a governam e ensinam bem, sendo esse tipo de obreiro “digno
do seu salário” (1Tm 5.17-18). Aliás, o ensino de que os ministros de Deus
devem receber recursos materiais da igreja se constitui num dos princípios
defendidos por Paulo com mais vigor e veemência (1Co 9.4-14).
Ora, pesando todos esses deveres sobre a igreja local, além das
despesas comuns próprias de qualquer organização, de onde devem vir os
recursos para sua realização? Do Estado? Dos incrédulos? De empresas ou
entidades simpatizantes do evangelho? É certo que não. Os crentes
individuais é que devem ser a fonte de todos esses recursos e o Novo
Testamento mostra que mesmo os cristãos mais pobres se dispõem a
assumir esse papel quando atendem ao impulso do Espírito que habita neles
e são agraciados por Deus com o desejo de contribuir (2Co 8.1-5).

Os deveres do crente para com seu pastor

Muito se fala sobre as responsabilidades dos pastores em relação às


suas ovelhas. Entretanto, quase nenhuma ênfase é dada ao que a Bíblia diz
sobre os deveres das ovelhas em relação ao seu pastor. Esses deveres,
porém, existem e podem ser resumidos em três palavras: sujeição,
consideração e sustento.
Os dias atuais são marcados por uma verdadeira crise no campo da
autoridade. O homem moderno perdeu qualquer noção de obediência a
indivíduos legitimamente investidos no poder (2Pe 2.10). Por isso, quando
se fala em sujeição, certo desconforto se insinua no coração das pessoas
como se essa palavra evocasse apenas noções de opressão, privação de
liberdade, tirania e manipulação egoísta.
Contudo, goste ou não, o cristão de verdade deve encarar o fato de que
a Bíblia exige que os servos de Deus se sujeitem às autoridades que o
Senhor estabeleceu, quais sejam os governadores e seus representantes no
âmbito estatal (Rm 13.1-7; Tt 3.1; 1Pe 2.13-14), os maridos e pais na esfera
familiar (Ef 5.22-24; 6.1-2; 1Pe 3.1) e os ministros de Cristo no contexto
eclesiástico (At 20.28; Ef 4.11-12; 1Pe 5.1-3).
Ocorre, porém, que, assim como o cristão mundano não se importa em
obedecer a autoridade civil e a esposa com mentalidade secular não aceita
submeter-se ao marido, da mesma forma, crentes comuns, movidos por
conceitos antibíblicos, opõem resistência ao ensino apostólico acerca da
obediência ao líder da igreja. A Escritura, porém, é clara e coloca sobre o
[62]
crente o dever de se sujeitar ao seu pastor (1Pe 5.5).
É óbvio que essa obediência não deve ser cega, disposta a acolher
ordens tolas, insensatas ou injustas. Há líderes maus que emitem comandos
errados e até perversos como era o caso de Diótrefes, mencionado em 3João
9-10. Obedecer a líderes assim é contribuir para a deterioração da igreja e
trabalhar para o enfraquecimento da causa do Mestre.
Por isso, diante de situações em que a ordem do pastor tem claramente
o potencial de gerar prejuízos, o crente deve expor com brandura os
motivos porque não pretende fazer o que foi ordenado, ajudando o líder a
enxergar os perigos que sua ordem encerra e fazendo isso sem provocar
atritos.
Em situações normais, porém, a sujeição dos membros ao pastor deve
ser branda e marcada por prontidão. O texto bíblico que mais claramente
encerra esse dever imposto às ovelhas encontra-se em Hebreus 13.17:
“Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam
de vocês como quem deve prestar contas. Obedeçam-lhes para que o
trabalho deles seja uma alegria e não um peso, pois isso não seria
proveitoso para vocês”.
De acordo com o texto citado, os crentes devem obedecer aos seus
pastores porque eles cuidam do rebanho como quem terá de dar explicações
a Deus acerca do modo como realizou suas tarefas.
A noção presente no texto grego é de um cuidado constante e sem
descanso (agrypnéo). Assim, parece que uma das bases que dão ao pastor
suporte para exigir a obediência das ovelhas é precisamente seu trabalho
contínuo de proteção, vigilância e amparo em prol daqueles que lhe foram
confiados. Dessa forma, quanto mais o pastor demonstrar cuidado do
rebanho, mais será merecedor de obediência.
O texto diz ainda que a obediência dos crentes fará com que o pastor
realize seu trabalho com alegria e não com gemidos (stenázo). Com efeito,
nada tortura, desanima e entristece mais o ministro eclesiástico do que a
postura rebelde de alguns membros de sua igreja que insistem em desprezar
suas ordens, fazendo-lhe oposição. O autor de Hebreus mostra que essa
atitude faz com que o trabalho pastoral se torne um peso e, segundo ele,
isso trará prejuízos ao rebanho.
Sem dúvida, esses danos ocorrerão porque o pastor que vê seu
ministério como um fardo fará tudo sem ânimo ou entusiasmo, preparará
suas mensagens com má vontade, perderá a alegria e o vigor na busca dos
alvos da igreja, não terá forças para sustentar os feridos (uma vez que ele
mesmo estará ferido) e, sentindo-se frustrado e abatido, logo pensará em
desistir de tudo. Com certeza, produzir esses sentimentos no líder da igreja
não será, de modo nenhum, proveitoso para o povo de Deus.
Consideração ou apreço são palavras que se aplicam ao segundo dever
que os membros da igreja de Deus têm em relação ao seu pastor. A base
bíblica para esse ensino se encontra em 1Tessalonicenses 5.12-13: “Agora
lhes pedimos, irmãos, que tenham consideração para com os que se
esforçam no trabalho entre vocês, que os lideram no Senhor e os
aconselham. Tenham-nos na mais alta estima, com amor, por causa do
trabalho deles. Vivam em paz uns com os outros”.
Esse texto afirma, primeiro, que os crentes devem ter consideração
para com seus líderes eclesiásticos. O verbo que Paulo usa aqui (oida)
significa, basicamente, conhecer. Porém, quando o contexto exige, esse
termo adquire o sentido de respeitar, reconhecer, destacar ou mostrar
interesse.
Na prática, Paulo está dizendo que os crentes não devem agir com
descaso ou ser indiferentes diante da figura do pastor e, para reforçar isso,
ele acrescenta: “Tenham-nos na mais alta estima, com amor”. A construção
grega dessa frase pode ser traduzida da seguinte maneira: “Considerem-nos
como altamente merecedores de amor”.
A razão pela qual os pastores devem ser tidos em tão grande apreço
não repousa sobre seus possíveis dotes intelectuais, nem sobre seu ocasional
magnetismo pessoal, nem mesmo sobre a simpatia que eventualmente
demonstrem no trato com as pessoas. Ainda que essas coisas sejam
importantes, os crentes não devem fazer delas a causa do seu respeito pelo
pastor. Segundo Paulo, a consideração devida aos ministros da Palavra deve
ser tributada a eles por causa do trabalho que realizam.
Assim, no tocante a esse assunto, é secundário se o pastor é jovem ou
velho, pobre ou rico, imponente ou acanhado, animado ou melancólico,
genial ou um homem comum. Tampouco importa se sua origem, aparência
ou personalidade impressionam ou não. A consideração e estima devidas ao
pastor têm como causa o trabalho nobre e santo que ele realiza. Esse é o
fator primordial que o torna digno de respeito e o faz merecedor da amizade
e da simpatia dos membros da igreja.
Nesse ponto, porém, uma ressalva se faz necessária. A consideração
devida ao pastor não deve ser do tipo que silencia diante de suas falhas e
desvios. Isso se depreende, por exemplo, de 1Timóteo 5.19: “Não aceite
acusação contra um presbítero se não for apoiada por duas ou três
testemunhas”. Essa passagem mostra, em primeiro lugar, que os pastores
são denunciáveis, ou seja, são passíveis de acusação quando praticam o
mal. Isso deixa claro que tratar o pastor com apreço não significa colocá-lo
acima da verdade e da justiça, fazendo vistas grossas diante dos seus
desvios. Aliás, o texto vai além e ensina que os pastores estão sujeitos até
mesmo à repreensão pública (1Tm 5.20). Porém, a consideração devida aos
presbíteros é demonstrada também aqui na proibição de aceitar
gratuitamente e sem provas qualquer acusação que lhes for dirigida.
Paulo sabia que, na defesa da verdade e da pureza da igreja, o pastor
despertaria o ódio de cruéis inimigos que não poupariam esforços para
atacá-lo, caluniá-lo e, enfim, destruí-lo. Por isso, colocou em sua volta um
muro de proteção, proibindo que o ministro do evangelho seja punido sem
que existam provas seguras de sua culpa. Observar, pois, essa diretriz com
cuidado é também uma forma de revelar consideração pelo homem de Deus
que está à frente de uma igreja.
O último dever do crente em relação ao seu pastor é no campo do
sustento. Esse assunto já foi tratado no subtítulo anterior, bastando aqui
recordar que os presbíteros que lideram bem a igreja e que se afadigam no
ensino da Palavra são merecedores de um salário adequado (1Tm 5.17-20),
sendo cada membro da igreja responsável por prover os recursos que
deverão compor o sustento material do ministro do evangelho.
Uma pergunta importante

Como um crente pode servir ao Senhor na igreja quando todos os


cargos e funções já estão ocupados?
Em Atos 13.1-3, a Bíblia mostra que o simples fato de se reunir com os
irmãos para cultuar a Deus já é uma forma de servi-lo. Ademais, não é
preciso ter cargos na igreja para trabalhar nela. Esvaziar um cesto de lixo,
dar boas-vindas a um visitante ou encorajar um irmão que está triste são
ministrações sempre necessárias que podem ser feitas por qualquer crente
que queira realmente servir ao Senhor. A experiência mostra, portanto, que
não trabalhar na igreja tem somente uma causa: a falta de vontade!
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
O Deus pregado e cultuado na igreja bíblica é um Deus Trino que, em
seu âmago, se estrutura de forma hierárquica. Pai, Filho e Espírito Santo
coexistem numa igualdade essencial que, contudo, não anula a submissão
da Segunda Pessoa à Primeira (Jo 8.28-29), nem tampouco a sujeição da
Terceira Pessoa ao Filho e ao Pai (Jo 15.26).
Por ser um Deus que “funciona” dentro de uma estrutura assim, foi do
seu agrado imprimir marcas de hierarquia em tudo quanto criou. Desde os
anjos até os insetos foram postos dentro de uma pirâmide funcional em que
alguns exercem atividades de liderança, enquanto outros se ocupam de
tarefas distintas, sempre sob o comando dos primeiros.
Esse modelo impresso por Deus em sua criação é tão salutar que
quaisquer núcleos ou conjuntos sociais que o desprezam, apelando para
formas variadas de anarquia, caem fatalmente no fracasso e na desordem
total. Com efeito, governos, empresas, instituições e famílias que não
funcionam dentro de uma ordem hierárquica descambam facilmente para o
caos completo, o que comprova que, num universo criado pelo Deus Trino,
num universo em que ele imprimiu as marcas de sua própria realidade
operacional, o funcionamento hierárquico é requisito essencial para o bom
andamento de tudo.
Ora, se nas estruturas que criou, o Senhor fixou relações de
subordinação, é obvio que essas relações também foram impostas à igreja
que, à luz do ensino bíblico, deve ter uma liderança real e operante, à qual
os crentes devem se sujeitar.
Essa liderança, porém, como será visto, deve ser formada conforme os
padrões impostos pelo Senhor em sua Palavra, fonte de orientação que a
igreja de Deus leva muito a sério, especialmente nesse campo, sob o risco
de se enfraquecer e até ter alguns de seus núcleos locais levados à extinção
completa.
Deve-se dizer de antemão, que essa liderança deve ser formada por
duas classes de oficiais, os pastores (também chamados de bispos e de
presbíteros) e os diáconos, conforme Paulo deixa transparecer em
Filipenses 1.1 e 1Timóteo 3.1-13
A vocação ministerial: reconhecimento e auxílio

Reconhecendo a importância de estar sob uma liderança nos moldes


fixados por Deus, a igreja bíblica tem como um dos seus objetivos
principais o investimento em vidas que exerçam as funções de ensiná-la,
orientá-la e presidi-la, enquanto persegue o ideal maior de expandir o Reino
do Senhor Jesus Cristo.
Ademais, é preciso ser destacado que, segundo o ensino apostólico, a
igreja tem papel essencial, inclusive, no chamado de obreiros e não somente
em seu preparo. Esse papel, vale lembrar, se realiza à medida que a
assembleia dos santos reconhece expressamente os vocacionados por Deus
para o ministério da Palavra.
O desdobramento lógico e prático disso é que nunca a investidura de
um membro da igreja na função pastoral pode ser baseada no mero desejo
pessoal dele. Ainda que o chamado para o ministério abranja, sem dúvida, o
anelo individual (1Tm 3.1), é inegável que a igreja como um todo tem
participação ativa na vocação do Senhor. Na verdade, nos tempos do Novo
Testamento, era por meio da aprovação do povo de Deus que o chamado
pastoral se efetivava, o que se vê especialmente em Atos 14.23, texto em
que figura o termo grego cheirotonéo, (traduzido na ARA como “eleição”, e
na NVI como “designar”), cujo significado básico é “estender a mão para
votar”.
À luz disso tudo, é óbvio que o crente que quer ser pastor precisa
demonstrar submissão à vontade da igreja e respeito por suas decisões.
Aliás, em hipótese alguma a igreja zelosa agirá em prol do candidato
debaixo de pressões impostas por ele ou por outras pessoas que partilhem
dos seus interesses.
Para ser escolhido pela igreja a fim de exercer o ofício pastoral, o
candidato deve, necessariamente, enquadrar-se nos requisitos constantes em
1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9, o que significa, entre outras coisas, que ele
deve demonstrar convicções doutrinárias sadias e ortodoxas, ser membro
em plena comunhão com os irmãos e estar livre de qualquer processo
disciplinar.
A escolha de futuros ministros da Palavra também levará em conta a
opinião pessoal do pastor da igreja, uma vez que este, à luz do Novo
Testamento, tem responsabilidade direta na constituição de outros pastores
(1Tm 5.22; Tt 1.5 — em ambos os textos, fica evidente que os pastores
Timóteo e Tito eram responsáveis diretos pela escolha de novos ministros).
Caso a igreja veja a necessidade de o candidato ingressar num
seminário, um auxílio financeiro poderá ser destinado a ele para esse fim. É
recomendável, porém, que o futuro pastor só receba essa ajuda se for
matriculado numa escola teológica conservadora, evitando, assim,
instituições liberais ou heterodoxas.
É ainda recomendável que a eventual ajuda financeira seja calculada
com base na necessidade presente em cada caso. Uma boa sugestão é que
essa ajuda seja dada somente depois de concluído o primeiro ano de
seminário para que, ocorrendo as desistências tão comuns nessa fase, a
igreja não sofra prejuízos.
A ajuda financeira a um seminarista só poderá ser mantida caso ele
demonstre bom desempenho no âmbito acadêmico, ausência de desvios
doutrinários e reto procedimento ético e moral. Se esses fatores forem
inexistentes, não fará qualquer sentido a igreja investir em sua formação.
Caso o faça, estará contribuindo para o surgimento de maus obreiros, os
quais só trarão prejuízos e vergonha para a causa do Mestre.

A ordenação ao ministério pastoral

No Novo Testamento é estranha a prática tão comum em nossos dias


de alguém se autointitular pastor. Na verdade, essa prática não tem nenhum
precedente na literatura neotestamentária.
Também não existe na Bíblia nada que permita um pastor ordenar
alguém ao ministério segundo sua livre vontade ou opinião pessoal. É claro
que essa opinião deve ser levada em conta (Tt 1.5), mas a decisão final
quanto a quem será investido no múnus pastoral não é prerrogativa de um
ministro, nem mesmo de um grupo de ministros.
Conforme visto, é a igreja que, soberanamente, detém o direito de
decidir quem deve ser investido na função pastoral (At 14.23), observando
os requisitos elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9. Aliás, textos como
Atos 6.1-6; 15.22 e 2Coríntios 8.18-19, 23 mostram que a igreja
neotestamentária era notadamente democrática, sendo decisiva sua
participação em escolhas dessa natureza.
Assim, somente se for aprovado pela igreja, o candidato a pastor, caso
a igreja julgue necessário, poderá passar pelo exame de conhecimento
teológico exigido por sua denominação. Esse exame não é requisito imposto
pela Bíblia, sendo, portanto, opcional. Porém, seu valor reside
especialmente no fato de dar ao candidato a oportunidade de demonstrar seu
preparo para o cargo importante que irá ocupar, além de habilitá-lo
oficialmente para ser ministro de qualquer igreja pertencente à sua
denominação.
Passada essa fase, procede-se à cerimônia de imposição de mãos, que é
um gesto simbólico de investidura do candidato no cargo de ministro do
evangelho, com todos os seus deveres e prerrogativas. De fato, na Bíblia, a
cerimônia de imposição de mãos tem relação com a consagração de alguém
para um serviço especial (At 6.6; 13.3). É, pois, natural que esteja presente
na constituição de novos obreiros.
É bom frisar que a imposição de mãos se faz exclusivamente por
pastores presentes na cerimônia e nunca por todos os membros da igreja, já
que estes não têm autoridade pastoral a ser transmitida (1Tm 4.14).
Realizado o ato solene, o candidato será oficialmente reconhecido
como pastor, encarregado de todas as tarefas relativas a esse ofício. Outros
nomes pelos quais poderá ser designado são presbítero e bispo, pois,
conforme dito, no Novo Testamento, esses termos são igualmente usados
para referir o cargo de pastor (At 20.17,28; 1Tm 3.1-3; Tt 1.6-7).
Como se vê, tornar-se pastor não é simples e rápido. Aliás, a Bíblia
proíbe que seja assim quando Paulo diz a Timóteo: “A ninguém imponhas
precipitadamente as mãos…” (1Tm 5.22). Todo o processo acima descrito,
demorado talvez, visa ao cumprimento dessa ordem e também à
preservação da soberania da igreja em escolher novos pastores.
Nesse aspecto, é preciso repisar a verdade de que a função pastoral é
delegada por Deus. Ele, porém, faz isso por intermédio do seu instrumento
chamado igreja. De fato, ainda que em última análise seja o Espírito Santo
quem constitui os bispos (At 20.28), as Escrituras ensinam que a
constituição deles é feita por meio de homens que, reunidos como igreja, a
concretizam (At 14.23; Tt 1.5).
Por isso, o método descrito aqui e usado com ligeiras variações na
prática das igrejas de Deus não pode ser alterado de modo substancial.
Tampouco podem ser adotados os critérios novos e arbitrários presentes em
comunidades cristãs da atualidade nas quais um líder supremo detém o
poder exclusivo de investir quem quiser no ministério. Esses novos métodos
e critérios são antibíblicos e perigosos, já que não observam as instruções
que o próprio Deus estabeleceu em sua Palavra. Por isso, as igrejas
formadas por “cristãos velhos” — aqueles comprometidos com as antigas
verdades da Bíblia — jamais poderão acolhê-los.
Finalmente, é bom alertar que conferir arbitrariamente poderes a
alguém para o exercício do ministério é puro “micaísmo”. O livro de Juízes
conta a história de um homem chamado Mica, o qual investiu primeiro seu
filho e, depois, um levita num ministério religioso abominável que
acreditava ser do agrado de Deus (Jz 17.5-13). Ora, mesmo se a religião de
Mica se voltasse unicamente para o Senhor e fosse livre de idolatria, o que
não era o caso, esse homem não tinha autoridade alguma para investir
alguém na função sacerdotal (Hb 5.1-4). Além disso, seu filho não
preenchia os requisitos impostos por Deus para o ministério santo, já que só
os levitas filhos de Arão podiam realizar esse serviço (Êx 29.44).
Assim, micaísmo é a prática de investir no ministério quem não
preenche os requisitos impostos por Deus. É também a prática de,
arbitrariamente, um indivíduo consagrar quem bem entender num serviço
que acredita ser santo. Ora, o micaísmo é abominável aos olhos do Senhor e
as igrejas de Deus devem sempre evitá-lo com todo o zelo e cuidado.

Requisitos bíblicos para ser pastor


Na igreja de Deus, a posição de destaque procedente do múnus
pastoral não é concedida a alguém em razão de seu mero desejo pessoal
(Mc 10.35-37, 40), nem pelo fato de esse alguém ter lutado ou sofrido em
prol da causa (Mc 10.38-40). Isso porque, de acordo com o ensino de Jesus,
somente os que servem humildemente os irmãos podem ocupar uma
posição de destaque dentro da igreja (Mc 10.41-45).
Logo, o bom candidato a líder eclesiástico é aquele que responde mais
prontamente do que qualquer outro ao chamado de servir aos irmãos,
demonstrando assim que em seu coração impera “o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus” (Fp 2.1-11). Por isso, para que um membro
da igreja se torne pastor, é fundamental que seja, antes de tudo, servo.
Existem, contudo, outros requisitos a serem exigidos dos candidatos ao
múnus pastoral. Esses requisitos, conforme referido anteriormente, estão
elencados em 1Timóteo 3.1-7 e Tito 1.5-9.
Observando-se essas listas, descobre-se que o pastor deve ser,
primeiro, irrepreensível. Os dois termos gregos traduzidos dessa forma
(anepílemptos em 1Timóteo e anénkletos em Tito) apontam para alguém
que não oferece nenhum motivo para ser acusado de mancha em seu caráter
ou conduta. São termos genéricos que evocam a necessidade de o pastor
nutrir todas as demais virtudes elencadas pelo apóstolo.
O ministro de Cristo também deve ser marido de uma só mulher, ou
seja, não pode ser bígamo ou polígamo. À luz desse ensino, o homem
divorciado e recasado também está impedido de exercer o ofício pastoral,
pois o vínculo com a primeira esposa permanece mesmo depois da
separação e só se dissolve com a morte (Rm 7.2-3). Na esteira desse ensino,
fica evidente que homens viúvos que se casaram novamente não são
alcançados pela restrição bíblica.
É bom destacar ainda que as expressões usadas por Paulo nos textos
em análise podem também ser traduzidas literalmente como “homem
(andrós ou anér) de uma só mulher”, o que indica que não basta o pastor ter
somente uma esposa, sendo necessário ainda que seja fiel a ela.
O bispo também tem de ser moderado ou sóbrio (nephálios). Isso
significa que ele não pode ser um homem que age de modo impetuoso ou
precipitado. Significa também que deve se mostrar livre de qualquer tipo de
excesso, seja no campo das atitudes, seja nos hábitos individuais da vida
social, do trabalho ou mesmo da alimentação. Numa palavra, o pastor deve
ser uma pessoa equilibrada.
Os requisitos de Paulo incluem também o vocábulo “sensato”, cujo
correspondente grego (sóphron) também pode ser traduzido como
“controlado”. No uso dessa palavra, Paulo tem em vista o homem confiável,
prudente e que, tendo autodomínio, é também disciplinado e discreto. Na
lista que consta na Carta a Tito, Paulo usa um sinônimo dessa palavra, o
termo enkratés, cujo sentido aponta para a qualidade de quem tem força
sobre si mesmo ou é mestre de si (Tt 1.8).
Outra exigência que consta das epístolas pastorais é que o bispo seja
respeitável (kósmios). A palavra grega aponta para alguém cuja vida não
apresenta desordens, alguém que realiza seus deveres com seriedade e
disciplina, impondo limites a si mesmo. Tendo uma vida em que não reina o
caos, esse homem revela também ser possuidor de uma mente livre de
confusão, com responsabilidades e rumos claramente definidos.
Na antiga cultura grega, a hospitalidade era tida na mais alta conta e
Paulo ensina que essa prática deveria marcar a vida dos pastores no cuidado
com os discípulos de Jesus, especialmente num tempo em que evangelistas
itinerantes dependiam da hospedagem de outros crentes nas cidades por
onde passavam (3Jo 5-8). Mesmo sendo certo que a realidade presente é
distinta da que marcava aqueles dias, não há dúvida de que o pastor, em
todas as épocas, deve ser alguém que busca amparar os crentes que
precisam de apoio e ajuda.
Paulo exige também que o bispo seja apto para ensinar (didaktikós).
Assim, ele deve demonstrar notável habilidade para comunicar as verdades
cristãs, tendo uma didática eficaz e um bom preparo intelectual, estando
capacitado tanto para admoestar e encorajar através da exposição da sã
doutrina como para refutar o erro doutrinário dos oponentes da fé (2Tm
2.24-26; Tt 1.9).
O cristianismo não proíbe o uso de bebidas alcoólicas (Cl 2.16; 1Tm
5.23), mas condena a embriaguês (Ef 5.18). Por isso, o ministro de Cristo
não pode ser um homem apegado ao vinho (pároinos), ou seja, alguém que,
mesmo eventualmente, fica bêbado. Daqui também se infere que o pastor
deve ser uma pessoa livre de qualquer forma de desregramento ou falta de
moderação.
O ensino paulino também veda o ofício pastoral ao indivíduo violento
(pléktes). O homem que Paulo reprova aqui é o tipo brigão, que ameaça e
agride os liderados. Na carta a Tito, o apóstolo, além de dizer que o bispo
não pode ser violento, afirma também que ele não deve ser irascível
(orgílos), termo que descreve a pessoa de “pavio curto”, que explode
facilmente. Em vez de ter esse perfil, o bispo precisa ser um líder amável
(epieikes) e pacífico (ámachos), tratando especialmente os membros da
igreja de forma gentil e fugindo de disputas e contendas.
Como servo sincero e verdadeiro, o pastor não pode ser homem
avarento e amante do dinheiro (aphilárgyros, na lista de 1Timóteo), nem
tampouco alguém que busca obter lucro de forma desonesta (aischrokerdés,
na lista de Tito) pois essas são marcas distintivas dos falsos mestres (1Tm
6.5-10; 2Pe 2.3). O bispo que for amante do dinheiro ou desonesto
facilmente se desviará do cuidado do rebanho, preocupando-se apenas com
formas de elevar rapidamente seu padrão de vida, muitas vezes às custas da
própria igreja.
Quanto ao seu lar, o pastor tem de governá-lo bem. A palavra
“governar” usada por Paulo em 1Timóteo 3.4-5,12 (proístemi) não significa
apenas liderar. O termo também abarca as noções de proteção, cuidado e
direção. Assim, o pastor ideal é aquele que exerce autoridade sobre a sua
família com afeto e compaixão, mostrando-lhe a direção a seguir, livrando-a
de perigos e suprindo suas necessidades tanto físicas como emocionais e
espirituais.
Em 1Timóteo 3.4, Paulo diz ainda que o pastor deve ter os filhos em
sujeição (hypotagé), isto é, sob seu controle. O apóstolo esclarece que esse
controle deve ser exercido com todo respeito (semnotés), o que significa
que o pastor não pode humilhar seus filhos, nem desprezá-los, irritá-los,
afligi-los ou adotar uma postura indecente e desonrosa no trato com eles.
Várias traduções da Bíblia para a língua portuguesa sugerem que,
quando escreve a Tito, Paulo diz que os filhos do pastor devem ser
“crentes” (Tt 1.6). A palavra adotada pelo apóstolo nessa passagem (pistós)
pode significar alguém que tem fé (o crente) ou alguém que é digno de fé (o
homem fiel ou confiável). O termo aparece dezesseis vezes nas Epístolas
Pastorais, sendo dominante o uso no segundo sentido (dez ocorrências).
Aliás, nas outras duas ocorrências em Tito (1.9 e 3.8), o único sentido
possível é “confiável”.
Assim, tudo indica que, no ensino paulino, os filhos do pastor não
precisam ser convertidos, mas devem ser, no mínimo, pessoas fidedignas,
verdadeiras e honestas. Isso se harmoniza em parte com o restante das
exigências relativas aos filhos do pastor constantes em Tito 1.6. De fato, o
texto prossegue dizendo que eles não podem ser pessoas acusadas de vida
desregrada (asotía), nem ser insubmissos (anypótaktos).
O apóstolo explica que o pastor precisa mostrar que governa bem a sua
casa porque, se não for capaz de desempenhar bem essa função junto à
própria família, certamente também não terá competência nem habilidade
para cuidar da igreja de Deus (1Tm 3.5). Sem dúvida, sua forma errada de
liderar o lar será adotada também na condução da igreja e, então, o caos, a
discórdia, o desrespeito e a indecência reinarão ali absolutos.
Ao homem recém-convertido também é vedado o exercício do
pastorado. Em 1Timóteo 3.6, Paulo usa a palavra “neófito” (neóphytos)
para descrever o indivíduo nessa condição. Seu uso primário pertence ao
contexto agrário e significa recém-plantado.
O novo convertido é, de fato, como uma planta nova e não tem raízes
profundas nem tampouco forças suficientes para sustentar um trabalho tão
pesado como o atribuído ao bispo. Ademais, Paulo, ainda em 1Timóteo 3.6,
afirma que se o neófito for conduzido ao cargo de líder eclesiástico,
facilmente será dominado pelo orgulho, talvez por ter sido alçado tão
depressa a uma posição de destaque.
Se isso ocorrer, cairá na “condenação do diabo”. Essa expressão pode
significar que o pastor será punido por Deus da mesma forma que o diabo
foi, perdendo sua posição (Ap 12.7-9), ou que o pastor será vítima do diabo,
caindo no laço a que Paulo alude no versículo seguinte (1Tm 3.7). É
possível que uma descrição do que ocorre com quem cai nesse laço se
encontre em 1Timóteo 6.9. Seja qual for a hipótese que Paulo tinha em
mente, fica fora de dúvida que é imprudente e errado investir o crente novo
no ofício pastoral.
Falando ainda sobre a soberba, é bom destacar que esse pecado não é
exclusivo do recém-convertido que é posto em cargos de liderança. Por
isso, ao escrever a Tito, Paulo afirma que o candidato ao episcopado,
mesmo antes de ser investido no cargo, não deve ser arrogante (authádes).
É preciso ainda que o bispo tenha bom testemunho dos de fora. Os
incrédulos observam a conduta dos cristãos e, com a luz que advém do
senso ético natural, conseguem detectar aquilo que não se harmoniza com a
justiça e a retidão decorrentes da fé. Por isso, quando não baseada em
calúnias, a opinião do mundo acerca da reputação de um determinado irmão
deve ser levada em conta, caso o seu nome seja apontado para o exercício
do episcopado.
Se essa cautela não for observada, Paulo diz que o pastor cairá em
reprovação (oneidismós). Os próprios descrentes vão reprová-lo, insultá-lo
e expô-lo vergonhosamente ao descrédito. Ele também cairá no “laço (ou
armadilha) do diabo”. Essa figura aparece novamente nas pastorais em
2Timóteo 2.26 e serve para descrever o estado deplorável de pessoas que,
enganadas por Satanás, vivem fazendo a sua vontade. É assustador que um
pastor possa chegar a essa condição, mas a experiência e a história mostram
a realidade desse perigo.
Restam três qualidades do bispo mencionadas por Paulo que ainda não
foram destacadas. São traços alistados em Tito 1.8 que não aparecem na
lista de 1Timóteo: amigo do bem, justo e consagrado. O amigo do bem
(philágathos) é o homem benevolente, que ama e pratica o que é bom. O
justo (díkaios) é aquele que observa os preceitos divinos e cumpre as leis
humanas, andando em retidão. Já o indivíduo consagrado (hósios) é o
homem santo, livre de iniquidade, que é também devoto e piedoso.
Todas essas marcas devem ser encontradas no pastor sob pena de ele
não poder exercer o ministério. Até porque a ausência de qualquer uma
delas redundará num ministério fraco, carente de vigor e de impacto
espiritual, levando o ministro a buscar substitutos para essas coisas em
programas especiais, eventos chamativos, espetáculos vibrantes e outras
distrações.

Os deveres dos pastores no trato com os membros da igreja

Nas seções anteriores deste capítulo, foram feitas alusões ao fato de


que o homem que ocupa o cargo pastoral na igreja de Deus é designado no
Novo Testamento por três termos distintos: pastor, presbítero e bispo (At
20.17,28; Ef 4.11; Tt 1.5,7). Cada um desses termos destaca diferentes
aspectos das funções que o ministro cristão deve exercer junto ao povo que
Deus lhe confiou.
O termo “pastor” (poimén) é o mais abrangente entre os três
supracitados, pois realça as tarefas de proteger e apascentar (o que inclui
conduzir) um rebanho.
A figura do pastor da igreja como protetor do rebanho de Deus aparece
em Atos 20.28-31. Nessa passagem, Paulo, despedindo-se dos pastores da
igreja de Éfeso, diz que lobos vorazes atacariam as ovelhas do Senhor que
estavam sob seus cuidados e não as poupariam, arrastando-as à destruição
por meio de ensinos perversos. Segundo Paulo, diante dessa ameaça, os
pastores deveriam vigiar, mantendo-se sempre atentos e prontos, a fim de
afugentar aquelas feras malignas e manter o rebanho de Deus ileso.
Obviamente, esse aspecto da função pastoral é imperativo aos
ministros de Cristo de todas as épocas e de todos os lugares, enquanto
dirigem as igrejas em que foram postos. Aliás, o Apocalipse revela que os
pastores de Pérgamo e de Tiatira foram negligentes precisamente na
realização dessa tarefa, sendo esse o motivo pelo qual o Senhor os censurou
tão severamente (Ap 2.14-16, 20-23).
Conforme já referido, o vocábulo grego poimén (e o verbo poimaino,
associado a essa palavra) também aponta para a tarefa de apascentar, ou
seja, prover as necessidades das ovelhas, conduzindo-as na direção de bons
pastos e de água fresca. Com base na figura que esses termos evocam,
conclui-se que o pastor, como oficial eclesiástico, também deve apascentar
o povo de Deus, garantindo-lhe o suprimento de alimento e de refrigério
espirituais.
Não resta dúvidas de que o crente precisa de alimento para a alma (Mt
4.4; 1Pe 2.2). Ora, o ofício de pastor está entre aqueles que Deus instituiu
exatamente para fornecer esse alimento aos crentes (2Tm 4.1-2), a fim de
que eles sejam equipados para o serviço dos santos, cresçam na unidade da
fé, amadureçam nas virtudes de Cristo e deixem de ser como meninos
facilmente levados por qualquer vento de doutrina (Ef 4.11-14).
Apascentar o rebanho de Cristo, porém, não abrange somente oferecer-
lhe o alimento da Palavra com o fim de transmitir conhecimento e gerar
maturidade. O pastor zeloso tem de ir além disso e, sempre com a Palavra
do Senhor em punho, deve trabalhar para satisfazer também as necessidades
de consolo e descanso das ovelhas de Jesus. Nesse aspecto, é notório que,
nas Escrituras Sagradas, a condução ao alívio e ao refrigério é uma prática
distintamente pastoral (Sl 23.1-3; Ap 7.17), sendo certo que a falta desse
trabalho é um dos motivos pelos quais as pessoas passam a viver cansadas e
aflitas (Mt 9.36).
Ora, há diversas situações em que o pastor poderá atuar como alguém
que conduz a ovelha cansada ao repouso, mas um exemplo prático dessa
forma de agir é mencionado em Tiago 5.14-15. Nesse texto, o escritor
bíblico (ele mesmo um pastor) ensina que quando alguém estiver doente,
deve chamar os presbíteros da igreja. Estes, então, orarão pelo enfermo e
[63]
tentarão trazer-lhe algum alívio tanto físico como espiritual. Esse tipo de
visita, marcada por afeição, cuidado e até serena admoestação, é uma das
mais tocantes expressões do trabalho do homem de Deus ocupado em
apascentar o rebanho de Cristo, levando-lhe refrigério.
O Novo Testamento ensina ainda que o pastoreio cuidadoso das
ovelhas de Cristo é uma das provas principais do amor do ministro por seu
Senhor (Jo 21.16). Conforme o ensino de Pedro, esse nobre trabalho deve
ser realizado de boa vontade, nunca por mera obrigação e em hipótese
alguma movido pelo anseio de receber alguma vantagem financeira
desonesta (1Pe 5.2). Pedro diz ainda que o homem de Deus, no exercício do
pastorado, não pode agir como um déspota dominador que subjuga e
oprime as pessoas. Antes, tem de exercer sua autoridade apresentando-se
como modelo para os irmãos (1Pe 5.3).
O segundo termo designativo da atividade pastoral é “presbítero”
(presbyteros). Essa palavra também está ligada à tarefa de ensinar (1Tm
5.17), pastorear (1Pe 5.1-2) e cuidar (Tg 5.14). Porém, o termo evoca ainda
outros deveres, os quais apontam para uma posição de destaque e de
liderança (At 21.17-19).
Em seu significado básico, o presbítero é um ancião. Assim, num
sentido não técnico, o termo se refere a um homem idoso (At 2.17). Já num
sentido técnico, como nos casos em que é usado para designar os oficiais da
igreja, a palavra sugere a ideia de honorabilidade e sabedoria. Vista ainda a
partir da realidade cultural dos tempos bíblicos, o vocábulo “presbítero”
evoca a figura do homem revestido de autoridade que realizava a tarefa de
julgar demandas e dirimir conflitos entre indivíduos em litígio.
Ora, tanto a experiência como a própria Escritura mostram que essa
função é necessária na igreja, sendo uma forma de evitar que as disputas
entre crentes sejam levadas ao magistrado civil, contrariando o ensino
apostólico (1Co 6.1-6). Sendo, pois, esse trabalho tão importante e delicado,
é o pastor que, atuando como presbítero, deverá realizá-lo ou, no mínimo,
presidi-lo, aplicando a cada caso concreto os princípios e preceitos
específicos da Palavra de Deus que sejam então cabíveis.
Realizando a importante função de julgador dentro da comunidade da
fé, o presbítero será, obviamente, alvo especial de pessoas que se sentirem
contrariadas por suas decisões. Por isso, a Escritura proíbe que acusações
contra ele sejam aceitas, exceto sob o depoimento de duas ou três
testemunhas (1Tm 5.19).
No Novo Testamento, o termo “presbítero” também aparece ligado à
tarefa de receber recursos destinados ao auxílio dos carentes, indicando que
os pastores são os responsáveis por avaliar a real necessidade de cada um
no momento da distribuição da ajuda material ofertada aos pobres da igreja
(At 11.29-30). Como juízes, eles também aparecem deliberando acerca de
disputas ético-doutrinárias, examinando as razões expostas pelas partes em
conflito e, finalmente, emitindo seu parecer que, estando em harmonia com
a revelação de Deus em sua Palavra, é acolhido por toda a igreja (At
15.2,4,6,22).
O terceiro vocábulo usado na Bíblia para designar o ofício pastoral é
“bispo”. O substantivo grego (epískopos) aparece somente cinco vezes no
Novo Testamento, sendo que em uma dessas vezes refere-se a Cristo (1Pe
2.25). As outras quatro ocorrências (At 20.28; Fp 1.1; 1Tm 3.2; Tt 1.7)
dizem respeito a líderes da comunidade cristã.
Epískopos é um termo relacionado à atividade de supervisionar ou
administrar. Esse sentido se encaixa perfeitamente em um dos deveres
pastorais, ou seja, o trabalho de inspecionar a igreja de Deus, primando pela
sua pureza vivencial e doutrinária, a fim de que em tudo ela reflita o caráter
do Senhor e seu reto ensino.
Evidentemente, para realizar as funções implícitas nos termos
“pastor”, “presbítero” e “bispo”, o ministro eclesiástico precisará ter um
amplo conhecimento bíblico e teológico (2Tm 2.15). Sem isso, seu trabalho
destruirá a igreja, arruinará vidas e, do ponto de vista bíblico e espiritual,
será um fracasso completo.

O diaconato

Apesar de não conter nenhuma vez a palavra “diácono”, o texto de


Atos 6.1-6 é comumente aceito como o trecho bíblico que narra as origens
do diaconato. Nesse texto os homens ali escolhidos tinham como função o
atendimento das necessidades de pessoas carentes. Eram, pois, diáconos no
sentido literal da palavra, cujo significado é designativo de um indivíduo
que presta serviço ou auxilia.
Segundo João Calvino, na igreja primitiva havia duas classes de
diáconos, ambas voltadas para o serviço aos pobres:

O cuidado dos pobres foi confiado aos diáconos. Todavia, na


Epístola aos Romanos, lhes são referidas duas modalidades:
“Aquele que distribui”…[e]…”aquele que faz misericórdia”…
(Rm 12.8). Uma vez que certo seja estar ele a falar dos ofícios
públicos da Igreja, de mister é haja havido dois graus distintos de
diáconos. A não ser que me engana o julgamento, no primeiro
membro da cláusula designa ele os diáconos que administravam
as esmolas; no segundo, porém, aqueles que se haviam dedicado
a cuidar dos pobres e dos enfermos... Se recebemos isso… duas
serão as modalidades de diáconos, dos quais uns servirão à
Igreja em administrando as cousas dos pobres, outros em
[64]
cuidando dos próprios pobres.

É digno de nota que, no desempenho dessas funções sociais, os


primeiros “diáconos” deveriam ser homens que preenchessem três
requisitos básicos (At 6.3): ter boa reputação; ser cheio do Espírito Santo
(Ef 5.18); e ser cheio de sabedoria (At 6.9,10). Os dois últimos itens
relacionam-se intimamente, ou seja, os diáconos deveriam ter sabedoria
concedida pelo Espírito.
Tendo sido instituídos a princípio com o simples objetivo de aliviar o
trabalho dos apóstolos, a função que os diáconos exerciam nos primeiros
dias de sua existência sequer tinha um nome formalmente fixado. Como
título designativo de um oficial da igreja, o termo “diácono” só surgiu mais
tarde, e é uma variação da palavra grega diakonia (serviço), ou do verbo
diakonéo (servir), ambos encontrados em Atos 6.3-4. Com efeito, é nas
epístolas que encontramos esse termo já evoluído, sendo usado com relação
a um grupo restrito de homens que tinham o ofício de diáconos (Fp 1.1;
1Tm 3.8).
Pelo fato de serem responsáveis desde o princípio por facilitar o
trabalho dos ministros da Palavra, as funções dos diáconos se ampliaram
com o passar do tempo à medida que as responsabilidades dos ministros se
tornavam mais numerosas. De conformidade com os costumes atuais, suas
funções geralmente se resumem nas seguintes atribuições:

1. Cuidar dos necessitados. Como já dito, essa foi a primeira função


dos diáconos, sendo para o exercício dela que foram constituídos. Um
conselho diaconal que não exerce essa atividade dentro dos moldes
bíblicos deve rever seus objetivos.

2. Participar dos processos disciplinares. Toda a igreja deve


participar dos processos disciplinares, conforme o ensino de Jesus em
Mateus 18 e de Paulo em 1Coríntios 5. Contudo, a experiência mostra
que muitas vezes a natureza do caso exige o acompanhamento e a
participação prévios de um grupo mais restrito de pessoas maduras que
tenham estrutura emocional e espiritual para analisar com sigilo os
diversos problemas em seus diversos ângulos, antes de tudo ser levado
à igreja. Essa atividade é geralmente (mas não obrigatoriamente)
realizada pelos diáconos e protege o pastor, evitando que ele se
exponha sozinho a situações perigosas ou que impliquem imensas
cargas emocionais.

3. Funcionar como grupo de conselheiros para o pastor. A Bíblia


diz que na multidão de conselheiros há segurança (Pv 11.14), bom
êxito (Pv 15.22) e vitória (Pv 24.6). Daí o supremo valor de um
conselho diaconal constituído de homens sérios, experientes e
maduros. Eles ajudarão o pastor a tomar decisões de modo que a
possibilidade de erro seja reduzida. Também conversarão sobre os prós
e os contras desta ou daquela medida e, nos casos em que o problema
deva ser levado à igreja, já terá sido debatido vastamente, podendo ser
apresentado de forma mais objetiva, o que poupará tempo e discussões
inúteis na assembleia. Eventualmente, o conselho dos diáconos
também valerá nas horas em que o pastor tiver de tomar decisões
pessoais ou quando novos rumos e desafios estiverem diante da igreja.

4. Zelar pela decência e ordem na igreja. Os diáconos atuam


também como auxiliares do pastor na manutenção da ordem e decência
na igreja. É recomendável que, a cada domingo, sejam escalados
diáconos de plantão que observem com atenção o desenrolar dos
cultos, repreendendo com docilidade as pessoas que eventualmente se
comportem de forma inadequada.

5. Resolver problemas de natureza econômico-administrativa.


Agindo na área de ação social e atuando como conselheiros do pastor,
inúmeras vezes os diáconos se verão às voltas com problemas de
natureza econômico-administrativa. Nesses casos, terão de agir em
conjunto com o departamento de finanças ou outros órgãos que tenham
competência para atuar nas áreas em questão. Dentro ainda desse
tópico, há igrejas que conferem exclusivamente aos diáconos poderes
para deliberar acerca do salário do pastor e de outros ministros e
funcionários. Essa conduta é positiva, pois evita que o pastor e outras
pessoas se sintam expostos e constrangidos durante discussões
públicas acerca de quanto devem receber mensalmente.

6. Supervisionar o procedimento, o ensino e as necessidades dos


ministros. Muitas vezes, a igreja local fica à mercê de homens
inescrupulosos que assumem o cargo de pastor e causam grandes
prejuízos à causa do Mestre. Frequentemente, esses homens agem
livremente, sem haver quem se coloque diante deles e os impeça de
continuar sua obra tão destruidora. Se ocorrer de algum membro sábio
e corajoso se insurgir contra o falso pastor, é logo excluído, não sem
antes sofrer os mais severos e injustos ataques. A igreja, porém, que
conta com um bom conselho diaconal, estará protegida dos ataques de
falsos pastores. Percebendo que o pastor da igreja tem mantido
conduta escandalosa ou ensinado doutrinas estranhas ao cristianismo, o
grupo de diáconos se reunirá, independentemente de o pastor convocar
a reunião ou concordar com ela, e decidirá o que fazer diante de tão
sério problema. O fato de esse grupo ter alcançado “justa
preeminência” (1Tm 3.13) fará com que a igreja acolha suas decisões,
pondo fim a obra pastoral ruim. Dentro desse assunto, é bom lembrar
que a realização de reuniões do conselho diaconal sem a presença do
pastor é prática comum e legítima. Para se reunirem, os diáconos não
precisam de autorização. Basta que o presidente do conselho diaconal
convoque o grupo para uma reunião sempre que julgar inconveniente a
presença do pastor em face do assunto que será tratado. Finalmente,
nos diáconos o pastor encontrará também um grupo atento às suas
necessidades físicas, emocionais, espirituais, sociais e profissionais.
Percebendo que o pastor tem enfrentado problemas nessas áreas, os
diáconos estudarão um modo de lhe oferecer apoio e amizade,
proporcionando-lhe maior alívio.

7. Cuidar da ceia do Senhor. Tradicionalmente (não


necessariamente) são os diáconos que cuidam dos preparativos e da
distribuição da ceia do Senhor. Para melhor funcionamento desse
serviço, é comum existir escalas em que figurem o nome dos que
deverão providenciar e distribuir os elementos. Quem geralmente faz
essas escalas e as comunica aos líderes é o presidente do conselho
diaconal, um diácono escolhido pelo próprio grupo com o fim de
representá-lo.

Na Bíblia, os diáconos desfrutam da posição que a igreja lhes atribui


por intermédio da imposição de mãos dos pastores (At 6.6). Na prática mais
recomendável, são os pastores também que indicam os candidatos ao
diaconato. A investidura é posteriormente aprovada ou não pela assembleia.
É melhor que seja assim porque a indicação dos diáconos, se feita pela
igreja, pode colocar o pastor em situações delicadas. Pode ocorrer de o
pastor ser contra determinada indicação por motivos que, em razão de sua
função, só ele conhece. Se a igreja indicasse e o pastor, por motivos que
merecessem sigilo, se opusesse à indicação, isso exporia o nome do
membro indicado a comentários maldosos e exigiria do pastor explicações
que nem sempre ele pode dar.
A investidura numa função de tanta responsabilidade só pode ser feita
após um período de experiência (1Tm 3.10) em que os candidatos serão
observados pelo pastor e pela igreja. Somente após o término do tempo de
prova é que os membros da igreja terão condições de votar sabiamente na
aprovação daqueles que farão parte da liderança como diáconos. Uma vez
investidos na função, os novos líderes deverão exercer as atividades a eles
atribuídas. Deve ficar claro, porém, que o diácono só poderá exercê-las na
igreja que reconhecer e solicitar seu trabalho.
Em muitas igrejas, o cargo de diácono é relativamente vitalício (pois o
diácono pode ser definitivamente afastado do cargo se deixar de ter as
qualificações bíblicas exigidas). Porém, isso não significa que alguém que
foi consagrado ao diaconato exercerá necessariamente essa função em
qualquer igreja de que se tornar membro.
Se ocorrer de um diácono mudar de igreja, continuará sendo diácono,
pois foi consagrado a esse cargo e investido nele por quem legitimamente
tinha poder para tanto. Porém, será diácono de direito, não de fato. Para ser
diácono de fato, exercendo suas funções, deverá ser convidado pelo pastor e
ter sua indicação aprovada pela igreja. Nesse caso, não haverá necessidade
de nova cerimônia de consagração.
Trata-se, portanto, de procedimento semelhante ao adotado no caso de
pastores. Efetivamente, nenhum ministro se torna pastor de uma igreja pelo
simples fato de se tornar membro dela. Num caso assim, o ministro será
pastor de direito (uma vez que adquiriu esse título ao ser ordenado), mas
não de fato, só podendo pastorear se para isso for convidado pela igreja.

Requisitos bíblicos para ser diácono

A lista de requisitos pessoais exigidos dos diáconos encontra-se em


1Timóteo 3.8-13 e é curioso observar que várias qualidades que devem
estar presentes na vida dos pastores também são impostas a essa classe de
oficiais da igreja.
Com efeito, assim como o bispo, o diácono não deve ser inclinado a
muito vinho, nem voltado para a obtenção de lucros desonestos
(aischrokerdés). Da mesma forma que o pastor, o diácono deve ser
irrepreensível (anénkletos), marido de uma só mulher e também um homem
que mantém os filhos e toda a casa sob boa direção e sábia autoridade.
A explanação mais detalhada desses requisitos já foi feita no item
anterior, onde foram expostas as necessárias qualificações dos bispos.
Contudo, o ensino paulino inclui determinações relativas aos diáconos que
não estão presentes nos textos de 1Timóteo e Tito que tratam dos pastores.
Isso não significa que os bispos não precisam demonstrá-las em sua vida e
conduta (até porque estão implícitas nas diversas virtudes que se requer
deles), mas sim que, ao pensar na figura do diácono, o apóstolo achou por
bem destacá-las, certamente levando em conta a natureza de suas funções.
A primeira dessas determinações é que o diácono seja um homem
respeitável. Respeitabilidade é qualidade que deve estar presente nos
cristãos em geral (1Tm 2.2; 3.11; Tt 2.2). Porém, para os diáconos, essa
exigência é ainda mais forte. A palavra usada por Paulo aqui (semnós)
aponta para a pessoa venerável e nobre, que desperta reverência nos outros.
Trata-se de um adjetivo grego que abrange não só a postura exterior da
pessoa, mas também seu temperamento. Isso precisa ser levado em conta
porque alguém pode ter postura que inspire respeito no dia a dia da vida
social e, contudo, demonstrar-se desprezível e reprovável no modo como
reage em face das eventuais contrariedades da vida.
Do diácono também se exige que seja homem de uma só palavra. A
expressão grega que consta do texto (dílogos) pode significar “não
difamador”, o que seria um requisito essencial para quem, no exercício de
suas funções, constantemente toma conhecimento dos problemas pessoais
dos outros. Parece, contudo, mais correto entender o termo no sentido de
“não ser alguém de conversa dupla”.
Assim, o diácono não pode ser pessoa que diz uma coisa enquanto tem
outra em mente. Também não pode dizer uma coisa a um homem e outra a
outro. Suas palavras têm de ser expressão da verdade, sem duplos sentidos e
revestidas de valor e peso notáveis.
Na prática, essa qualidade deve receber maior destaque no
relacionamento dos diáconos com os demais líderes, pois, na busca do bem
da igreja, o grupo de oficiais deve nutrir fidelidade mútua. Não se pode,
pois, conceber que, durante suas reuniões, os líderes da igreja tenham um
bom relacionamento, mas que isso seja seguido de comentários maldosos
feitos às escondidas.
Paulo prossegue dizendo que o diácono deve conservar o mistério da
fé com uma consciência limpa. Essa determinação impõe que os
componentes desse grupo de oficiais eclesiásticos sejam homens de clara e
firme convicção cristã; homens que preservam o corpo doutrinário sadio e
nele perseveram.
A expressão “mistério da fé” diz respeito às verdades que a razão, por
si só, não pode alcançar, mas que foram divulgadas pela revelação divina,
ou seja, refere-se aos ensinos contidos no Novo e no Antigo Testamentos
(Rm 16.25-26; 1Co 2.7-10). A guarda dessas doutrinas deve ser
acompanhada de consciência limpa, isto é, a consciência livre de mácula e
de coisas vergonhosas, só adquirida por quem vive retamente.
É necessário ainda que o diácono seja casado com mulher respeitável,
não maldizente, temperante e fiel em tudo. O modo como o apóstolo Paulo
escreve em 1Timóteo 3.11 não deixa claro se ele tinha em mente as esposas
dos diáconos ou mulheres investidas no cargo de diaconisas. Os
comentaristas bíblicos estão divididos e, qualquer que seja o caso, deve-se
levar em conta que as mulheres da igreja primitiva, ainda que prestassem
serviços semelhantes aos dos diáconos (e.g., ajuda a pobres e doentes),
como era o caso de Febe (Rm 16.1-2), jamais eram investidas na autoridade
própria de um oficial eclesiástico, mantendo-se a liderança da igreja nas
mãos dos homens (1Co 14.34; 1Tm 2.9-15).
Assim, é possível que Paulo se refira aqui a um grupo de mulheres que
servia a igreja, mas sem exercer a autoridade própria dos oficiais ou, o que
é mais provável, a alusão às mulheres diz respeito às esposas dos diáconos,
afirmando que suas qualificações deviam ser semelhantes às exigidas de
seus maridos. Essa última alternativa é corroborada pelo v. 12, que mostra
que Paulo, quando escreveu essas linhas, estava pensando no lar do diácono
casado.
Sem as qualificações expostas, não é possível alguém se tornar
diácono. Também é verdade que, se alguém for consagrado ao ministério
diaconal e, depois de algum tempo, perder as qualificações mencionadas,
deverá ser afastado do cargo por tempo indeterminado até que volte a
satisfazer os requisitos bíblicos.
Finalmente, é bom observar que, ao concluir sua lista de qualificações,
o apóstolo Paulo aponta dois resultados do bom desempenho do diaconato:
“Justa preeminência” e “muita intrepidez na fé” (1Tm 3.13). O primeiro
significa que o bom diácono se tornará um homem de influência e granjeará
o respeito da comunidade em que ministra; o segundo significa que
desenvolverá coragem e confiança tanto para anunciar o evangelho (At
7.51-60) como para se aproximar de Deus em profunda comunhão (Ef
3.12).

O ministério da mulher na igreja

O padrão de liderança espiritual adotado pela igreja de Deus é


estritamente neotestamentário e não leva em conta tendências modernas ou
culturais. Por isso, nela, a liderança é masculina, do mesmo modo que era
masculina a liderança espiritual da igreja nos tempos dos apóstolos (1Co
14.34,35; 1Tm 2.11,12; 3.1-13; Tt 1.5-9).
É verdade que, conforme afirmam alguns defensores da ordenação de
pastoras, no século 20 as mulheres conquistaram espaço em várias linhas de
frente, uma conquista que se iniciou por causa da ausência de homens como
mão de obra no período imediatamente posterior à Primeira Guerra
Mundial.
Amauri Mascaro Nascimento, citando Alain Touraine e Bernard
Mottez, diz:

A I Guerra Mundial precipitou o movimento de penetração


da mulher nas oficinas. Em 1900, na Grã-Bretanha, todavia, não
ultrapassaram a proporção de 10% do efetivo dos empregados e,
pouco antes da guerra, passam a constituir ¼. Com a guerra,
200.000 mulheres ingressaram nas oficinas; em 1911, foram
185.000; em 1931, 580.000; em 1951, 1.200.000, mais da metade
do efetivo. Na França, em 1954, 48,3% dos empregados do setor
secundário e 52,5% do setor terciário eram mulheres, somando
26% da força do trabalho subordinado. Nos Estados Unidos,
[65]
passaram de 3,7 a 27%.

Essa necessidade do pós-guerra intensificou-se em face do tão


acelerado progresso tecnológico que marcou o século 20 e abriu espaços
que até então eram não só inexistentes, mas também inimagináveis para as
mulheres dentro da esfera social.
Deve ficar claro, no entanto, que já no século 18, com a Revolução
Industrial, um grande contingente de mulheres passou a integrar a força de
trabalho, numa proporção nunca vista anteriormente, o que,
indubitavelmente, também cooperou para a formação do cenário que hoje se
vê.
Também acerca disso escreve o professor Amauri Mascaro
Nascimento:

Por ocasião da Revolução Industrial do século XVIII, o


trabalho feminino foi aproveitado em larga escala, a ponto de ser
preterida a mão de obra masculina. Os menores salários pagos à
mulher constituíam a causa maior que determinava essa
preferência pelo elemento feminino […] O processo industrial
criou um problema que não era conhecido quando a mulher, em
épocas remotas, dedicava-se aos trabalhos de natureza familiar e
de índole doméstica. A indústria tirou a mulher do lar, por 14, 15
ou 16 horas diárias, expondo-a a uma atividade profissional em
ambientes insalubres e cumprindo obrigações muitas vezes
[66]
superiores às suas possibilidade físicas.

O mesmo autor, na obra citada, oferece ainda uma visão clara do


enorme espaço que a mulher passou a ocupar no processo de produção
naqueles dias. Diz ele:

A situação das mulheres não era diferente… Em fins do


século XVIII trabalhavam em minas, fábricas metalúrgicas e
fábricas de cerâmica. A tecelagem, no entanto, passou a absorvê-
las em maior escala. No estabelecimento Dollfus-Mieg, em
Mulhouse, havia 100 homens, 40 menores e 340 mulheres,
proporção considerada normal na indústria têxtil. Na mesma
época, na fábrica de porcelanas de Gien, a quinta parte dos
efetivos era feminina. Em Creusot havia algumas mulheres que
trabalhavam nas escavações de carvão, mais precisamente 250,
de um efetivo de 10.000 pessoas… Em Londres, por volta de
1830, cerca de metade do trabalho do ramo de indumentária era
realizada por mulheres. Contribuiu muito para esse estado de
coisas o emprego cada vez maior da máquina de coser, inventada
por Thimonnier em 1830 […]. Essa máquina não necessitava de
qualquer energia muscular e permitia a uma mulher fazer o
trabalho para o qual antes eram necessárias 6 ou 7 […].
Reconheça-se, no entanto, que não cabe à Revolução Industrial a
iniciativa da utilização da mão de obra feminina. As mulheres
sempre trabalharam. A fábrica e os novos sistemas apenas
intensificaram a sua participação no mercado de trabalho que
[67]
aumentou muito.

Todos esses dados revelam que os espaços conquistados pelas


mulheres na atualidade foram abertos por causa de necessidades
econômicas seguidas de avanços tecnológicos que, como sempre, tiveram
forte impacto sobre a sociedade em geral. Isso, posteriormente, atingiu a
igreja, deixando fora de dúvida que a ordenação de mulheres é o resultado
tardio de um processo histórico e não de um processo exegético.
Na verdade, quando algum debatedor que rejeita a ordenação de
mulheres apela para a exegese de textos bíblicos, seus oponentes evitam o
campo hermenêutico, dizendo apenas que as passagens que fazem restrições
ao ministério feminino na igreja foram produzidas dentro de um contexto
social machista, próprio do mundo antigo, não devendo ser aplicadas no
novo ambiente em que funciona e se desenvolve a igreja contemporânea.
É sabido que a sociedade antiga era mesmo machista. Porém, de modo
nenhum se pode aceitar que os escritores bíblicos se deixaram influenciar
tão largamente pela mentalidade do mundo em que viveram. Ao contrário, o
que se percebe é que o advento do cristianismo deu impulso a uma
verdadeira revolução no modo que a mulher era vista na sociedade tanto
judaica como pagã dos primeiros séculos.
Com efeito, a fé pregada pelos apóstolos destacou o valor da mulher,
realçou a importância do seu papel, incentivou o respeito que a ela é devido
e a colocou em posição de igualdade com o homem diante de Deus. Toda
essa revolução, porém, não deixou de estabelecer distinções funcionais
entre ambos os sexos, ou seja, foi uma revolução que, mesmo rejeitando o
extremo machismo reinante naqueles dias, manteve nítidas as diferenças de
papéis do homem e da mulher, tanto na família como na igreja.
É nesse ponto que a revolução cristã difere da revolução feminista do
século 20. Esta desconsiderou as bases teológicas que explicavam o porquê
das restrições impostas pela igreja às mulheres e teve como base principal,
conforme dito, as necessidades econômicas oriundas do primeiro grande
conflito mundial e do progresso tecnológico. Isso, somado à ausência de
uma justificativa para a limitação do papel da mulher, fez com que, nas
últimas décadas, alguns traços funcionais distintivos entre homens e
mulheres passassem a se confundir.
É difícil calcular os prejuízos dessa confusão. Há quem lhe atribua
especialmente a má formação moral e psíquica das crianças de hoje, bem
como a fragilidade dos vínculos familiares.
De fato, na sociedade de outrora, percebia-se uma distinção bastante
definida entre os papéis do homem e da mulher: geralmente, o homem saía
de manhã para trabalhar, enquanto a mulher ficava cuidando das crianças e
da casa.
Na sociedade moderna, as funções dos dois não são tão distintas.
Muitas vezes o homem e a mulher trabalham e, nas “horas de folga”,
cuidam da casa. No final das contas, as crianças têm uma relação muito
pobre com a família e deixam, por isso, de receber elementos essenciais à
formação de sua estrutura emocional, de suas capacidades afetivas e do seu
caráter.
Além disso, o modo de vida de seus pais ensina pouco sobre o que é
devido ao “papai” e o que é devido à “mamãe”. Desse modo, as crianças
crescem sem saber direito quais funções específicas deverão exercer quando
formarem suas próprias famílias, o que contribui para a frustração nos
relacionamentos matrimoniais e o consequente aumento do número de
divórcios.
Enquanto a liberdade ou a igualdade das mulheres permaneceram
como um traço geral da sociedade moderna, a igreja não sofreu grandes
afrontas. Porém, a confusão funcional entre homens e mulheres da
sociedade avançada começou a se infiltrar na igreja — e livros e debates
sobre ordenação feminina, incomuns em outras épocas, surgiram tentando
oferecer a palavra final sobre o assunto.
Nessas discussões, os defensores do pastorado da mulher sempre
apresentam os argumentos acima mencionados: “Vivemos numa época em
que a mulher conquistou grandes espaços; e os textos bíblicos que limitam
as funções da mulher na igreja devem ser considerados impraticáveis hoje
em dia por revelarem apenas o modo de pensar do homem antigo”.
Independentemente, porém, do que se diga ou pense na atualidade, o
fato é que, no que se refere ao procedimento da mulher na igreja, os cristãos
têm diretrizes bem objetivas na Palavra de Deus. Essas diretrizes foram
observadas à risca pelas igrejas dos tempos antigos, com as quais, sem
dúvida, os crentes de hoje têm muito que aprender.
Sabe-se, por exemplo, pelo testemunho literário, que a mulher teve
papel extremamente dinâmico nas diversas atividades ministeriais da igreja
antiga. Pelo fato de os cristãos daqueles tempos olharem com admiração os
seus mártires, qualquer evidência de rejeição de prazeres era enaltecida
como virtude e, por isso, as virgens que pertenciam às diversas
comunidades cristãs exerceram nos primeiros séculos do cristianismo
funções de destaque.
Isso ocorreu principalmente na igreja oriental, em que as funções das
virgens passaram mais tarde a se identificar com as das viúvas. Estas
últimas, quando preenchiam as qualificações de 1Timóteo 5.9-10, eram
“inscritas” como membros de um grupo ministerial cujas responsabilidades
implicavam a prática da oração e de boas obras, bem como o auxílio a
mulheres doentes.
Digno de nota é que, mesmo vistas pelos membros da igreja com olhos
do mais profundo respeito e apreciação, a evidência literária demonstra que
as viúvas, ou qualquer outra classe de mulheres, eram proibidas de ensinar
na igreja ou de batizar. Em toda a igreja antiga, o consenso era que elas não
podiam exercer funções consideradas então como tipicamente masculinas.
Os documentos antigos também apontam para o fato de que existia no
período pós-apostólico uma ordem de “diaconisas”. Sem embargo, esse
termo não tinha nada que ver com o modo que é usado hoje. As diaconisas
da igreja antiga não eram líderes, mas sim auxiliadoras que tinham suas
funções claramente definidas. Seus deveres terminavam onde começavam
os dos bispos e tinham o objetivo de ajudá-los quando os serviços deles se
tornavam inadequados pela força das circunstâncias.
Desse modo, elas eram chamadas a ministrar a outras mulheres quando
a ocasião não era favorável ao serviço de um bispo ou diácono. Eram elas
que auxiliavam no batismo de senhoras ou moças numa época em que essa
ordenança era realizada com o candidato totalmente despido. Elas visitavam
outras mulheres crentes e ministravam às doentes. Assim, o ministério delas
era extremamente importante na igreja, porém, direcionava-se unicamente
às mulheres.
Como se vê, dentro da comunidade cristã antiga, as distinções
funcionais entre homens e mulheres eram bem delineadas. Isso não ocorria
por questões culturais. Na verdade, se os cristãos antigos se deixassem levar
pela cultura reinante na sociedade daqueles dias, as mulheres não teriam
[68]
tido espaço nenhum dentro da igreja.
A verdade, porém, é que as limitações funcionais da mulher tiveram
como base a herança doutrinária deixada pelos apóstolos. Foi de fato a
doutrina cristã, não a cultura judaica ou pagã, que impôs limites ao papel da
mulher na igreja.
H. Wayne House escreve:

O ensino da igreja apostólica era, e a prática da igreja


antenicena confirma, que as mulheres receberam um novo status
na igreja, o qual dificilmente teriam tido no mundo antigo.
Mesmo com esse reconhecimento de sua dignidade idêntica à do
homem, ainda assim, restrições foram feitas com respeito à
mulher por causa do entendimento apostólico acerca da relação
entre masculino e feminino presente na criação e na queda. Às
mulheres não era concedido ministrar numa posição de
autoridade espiritual sobre os homens na vida da igreja. Isso
inclui a proclamação pública das Escrituras a homens e funções
[69]
pastorais tais como a ceia do Senhor e o batismo.

Essas limitações ao ministério da mulher mencionadas por Wayne


House baseavam-se em textos como 1Coríntios 14.34-37 e 1Timóteo 2.11-
14. Quem observa essas passagens percebe que o apóstolo Paulo em
nenhum momento embasa suas restrições às funções das mulheres em
argumentos voltados para a cultura ou os costumes de seu tempo. Em vez
disso, o apóstolo põe como fundamento para as restrições ao papel da
mulher na igreja as seguintes doutrinas: a inspiração bíblica; a doutrina da
criação; e a doutrina da queda.
Em 1Coríntios, Paulo diz que o que escreve sobre o ministério da
mulher é “mandamento do Senhor” (v. 37), o que implica o ensino acerca
da inspiração divina daquilo que acabou de dizer no texto, não sendo
aceitável que algum crente o questione. Já em 1Timóteo, todas as suas
orientações se fundamentam no fato de primeiro ter sido formado Adão e
depois Eva (doutrina da criação), e no fato de Adão não ter sido enganado,
mas sim sua mulher (doutrina da queda).
O que Paulo escreveu, portanto, sobre o ministério feminino na igreja,
não se baseou nos costumes do seu tempo, mas sim em dogmas
inquestionáveis para o povo de Deus. Ele não deixou aos crentes de hoje
apenas vestígios acerca de como a mulher era vista ou tratada em seus dias.
Ele lhes deixou uma herança teológica e vivencial; algo que deve ser
defendido e aplicado com seriedade no dia a dia da igreja local de hoje, do
mesmo modo que foi no período apostólico e na igreja antiga.
Em face disso tudo, não há na igreja zelosa pastoras nem diaconisas.
Isso não significa que as mulheres não possam realizar um trabalho
abençoado junto à comunidade da fé (Rm 16.1-2). Na verdade, a elas pode
ser confiada a educação cristã dos pequeninos, a visitação de pessoas
enfermas e idosas, o ensino de classes de senhoras, o trabalho em comissões
especiais, a organização de campanhas, o envolvimento direto com
evangelização e missões, o desempenho de cargos da diretoria estatutária e
inúmeras outras atividades. Os cargos de liderança espiritual, porém, são
reservados a homens.
Deve ficar bem claro que não existe nenhum tipo de superioridade
espiritual em alguém pelo simples fato de ser do sexo masculino. Em
Cristo, todos desfrutam a mesma posição diante de Deus (Gl 3.27-28).
Também não se deve questionar a competência ou capacidade de alguém
por ser mulher. Simplesmente, a igreja de Deus deve adotar um modelo de
funcionamento bíblico e com ele conviver de modo pacífico, sem
preconceitos ou menosprezos.
Superioridade ontológica e superioridade funcional

Para que o posicionamento bíblico acerca do ministério feminino não


seja acusado de machista ou preconceituoso, é necessário que se entenda a
diferença entre superioridade ontológica e superioridade funcional.
A superioridade ontológica diz respeito à supremacia que um ente tem
sobre outro como ser (ontos, em grego, significa “ser”). Por exemplo, o
homem é um ser superior aos animais ou às árvores. Por outro lado, é
inferior a Deus. Por isso, é correto dizer que existe uma hierarquia
ontológica entre Deus, o homem e o cavalo, estando Deus no topo da
pirâmide e o cavalo na base.
Ora, não é esse tipo de superioridade que existe entre o homem e a
mulher. Como seres, os dois estão no mesmo nível, nenhum se situando
acima do outro, ambos desfrutando de igualdade ontológica inquestionável.
A concepção religiosa, filosófica ou cultural que nega isso “coisifica”
a mulher, tende a reduzi-la a um animal falante e acaba por destruir sua
dignidade. De fato, quando se adota a crença na inferioridade ontológica da
mulher, os homens se dão ao direito de comercializá-las, escravizá-las,
torturá-las e até matá-las.
Diferente da superioridade ontológica é a superioridade funcional. Esta
não diz respeito às distinções ligadas essencialmente ao ser, mas sim ligadas
aos cargos e funções que cada ser, ontologicamente igual, exerce numa
determinada instituição ou comunidade.
Assim, numa família, por exemplo, enquanto há igualdade ontológica
entre pai, mãe e filhos, existe uma hierarquia funcional entre eles, estando o
marido/pai no topo da pirâmide e os filhos, na base (Ef 5.22-6.1; 1Pe 3.1-2).
Numa empresa, numa escola, numa corporação militar, num estado,
enfim, em qualquer organização humana existe (ou deveria existir) uma
hierarquia funcional para que tudo tenha bom andamento. Isso ocorre sem
que ninguém possa dizer que o chefe, diretor, general ou presidente seja um
ser superior aos seus subordinados. De fato, somente seu cargo é superior.
A diferença entre o que ocorre nesses casos e o que ocorre na igreja é que
nesta a distinção funcional está ligada ao gênero por força do ensino
bíblico.
É, pois, essa superioridade funcional entre homem e mulher que deve
ser ensinada e vivida na igreja, e não a superioridade ontológica,
destacando-se que, mesmo sendo seres de valor, dignidade e capacidades
iguais, homem e mulher foram dispostos funcionalmente por Deus de forma
desigual, ocupando o homem a posição de líder no lar e na igreja, enquanto
a mulher, nessas duas instituições, atua como auxiliadora.
Perguntas frequentes

1) Como se dá, na prática, o chamado de um indivíduo para o


ministério pastoral?
O chamado para o ministério pastoral se realiza sob dois aspectos: o
interno e o externo. O chamado interno é o desejo que a pessoa tem de ser
pastor (1Tm 3.1). Sem esse anseio não se pode dizer que alguém é
vocacionado. É verdade que o chamado dos profetas do AT conflitava, às
vezes, com a vontade deles (Êx 4.10,13; Jn 1.1-3), mas não é assim no caso
do chamado para o ministério pastoral.
Quanto ao chamado externo, trata-se da decisão da igreja que vê num de
seus membros um ministro de Cristo em potencial. O chamado externo é
visto em Atos 14.23, onde se fala das igrejas elegendo seus presbíteros.
Se faltar um só desses fatores, a vocação pastoral será inexistente.

2) A Bíblia apresenta regras claras sobre liderança eclesiástica?


É claro que sim. Podemos enumerar as seguintes:

1. Não negligenciar o espírito de servo (Mt 20.26-28; Lc 22.26).


2. Não esquecer que sua função lhe foi confiada pelo próprio Senhor (At
20.24; Cl 4.17).
3. Não lançar novos fundamentos doutrinários (1Co 3.10-11).
4. Não se afastar do padrão de excelência (1Co 3.12-17; 2Tm 4.5).
5. Não fomentar tensões (1Co 16.12; 2Co 2.1).
6. Não recusar o perdão (2Co 2.10-11).
7. Não negligenciar a família (1Tm 3.4,15; Tt 1.6).
8. Não se descuidar do estudo da Palavra (2Tm 2.15; 3.16-17).
9. Não tolerar a heresia e o pecado (2Tm 2.22; Ap 2.2,6,14-15,20).
10. Não ser contencioso (2Tm 2.23-24).
11. Não buscar o interesse próprio (1Pe 5.2; Fl 2.3-4,19-20).
12. Não ser dominador (1Pe 5.3; 3Jo 9-10).
3) O pastor não tem também a obrigação de fazer visitas regulares nas
casas?
O texto de Mateus 25.34-36 fala sobre visitar doentes e presos, dizendo que
essa é uma prática que distingue os justos dos injustos. No entanto, a
passagem não se refere a uma atividade pastoral, mas sim a algo que se
espera de todos os discípulos de Cristo. Note-se ainda que as visitas
mencionadas têm como alvos específicos os doentes e presos e não os
crentes que estão vivendo vidas normais.
Ademais, é preciso notar que o contexto indica que as pessoas visitadas
mencionadas na passagem não são doentes e presos comuns, mas sim
discípulos de Jesus que adoeceram, foram encarcerados, fugiram para
outras terras e passaram privações por causa das tragédias que marcarão
o tempo da Grande Tribulação e por causa da perseguição contra os justos
que haverá naqueles dias (Mt 24.7-10). Nada se diz, portanto, no texto,
sobre qualquer suposto dever pastoral de ir regularmente às casas dos
membros da sua igreja.
Na Bíblia, só existe a menção de um tipo de visita especificamente pastoral.
É a hipótese prevista em Tiago 5.14. Ainda assim, a iniciativa para a
realização dessa visita parte do enfermo que chama os presbíteros para
orar por ele. Tiago também fala de visitar órfãos e viúvas nas suas
necessidades (Tg 1.27), mas o significado desse texto não aponta para a
mera prática de ir à casa de alguém, mas sim para gestos que aliviem os
fardos dos menos favorecidos. Ademais, Tiago 1.27 não é um texto dirigido
exclusivamente a pastores. Seu alvo são os crentes em geral.
Não há, portanto, nenhuma exigência bíblica que obrigue o pastor a fazer
visitas sociais, didáticas, admoestatórias ou de aconselhamento. Todos
esses aspectos do envolvimento do pastor com os membros da igreja podem
ser feitos em diferentes contextos, sendo a visita no lar somente mais uma
opção.
Assim, não é correto impor ao pastor o dever de ir à casa dos irmãos com
regularidade. Essa prática é boa, conforme a experiência mostra, e em
alguns casos pode ser a única alternativa que o ministro do evangelho tem
para alcançar certos objetivos. Contudo, a prática da visita regular não
pode ser elevada à categoria de obrigação pastoral.
Quanto aos perigos ligados ao costume de fazer visitas constantes aos
lares, vejam-se Provérbios 25.17, Mateus 23.14, 1Timóteo 5.13 e 2Timóteo
3.6.

4) Como o pastor deve lidar com membros ranzinzas, que vivem


reclamando e criticando tudo?
A princípio, ele deve admoestá-los brandamente, usando as Escrituras para
mostrar que essa atitude é pecaminosa (Ef 4.29-32; Fl 2.1-2,14; Cl 3.12-
17). A permanência no erro dará ensejo a processos disciplinares (veja-se
cap. 5 ). Casos mais sutis e que inviabilizam a aplicação da disciplina
bíblica, podem ser resolvidos se o pastor orientar a ovelha insatisfeita a
procurar outra igreja. Ao fazer isso, porém, o líder não deve transmitir a
ideia de raiva ou desprezo. Nessa hipótese, o pastor pode dizer ao membro
descontente algo mais ou menos assim: "Irmão, nossa igreja, assim como
qualquer outra, tem suas virtudes e seus defeitos. As virtudes tentamos
preservar; os defeitos tentamos superar, mas nem sempre temos sucesso.
Também temos nossas características próprias, nossos estilos e costumes.
Ocorre que, pelo que vejo, esse nosso perfil não o agrada, fazendo com que
o irmão se sinta sempre descontente e insatisfeito. Não é bom que alguém
venha à igreja e se sinta assim. Por isso, creio que o irmão deveria buscar
outro lugar para se congregar. Há muitas igrejas boas por aí afora e,
certamente, Deus tem preparado uma que se ajuste melhor aos anseios e
expectativas do irmão".
Seja qual for o caso, o que não pode ocorrer em hipótese alguma é o pastor
se retrair e, intimidado, tentar agradar os que vivem descontentes. Se agir
assim, seu ministério girará sempre em torno dessas pessoas e ele será,
praticamente, submisso a elas, agindo com medo e fazendo de tudo para
conquistar sua aprovação. Então, a igreja inteira perceberá essa fraqueza e
o líder perderá o respeito de todos.

5) Existem crentes que, pelo seu modo de ser, assim que chegam na
igreja vão logo ganhando espaço, assumindo tarefas e tomando
iniciativas. Como lidar com esses casos?
Muito simples. Corte as "asinhas" depressa. Pessoas assim geralmente
agem em igrejas que têm liderança fraca, mas pastores de pulso firme
também têm que lidar eventualmente com elas, pois muitas vezes essas
pessoas querem testar a liderança pra ver até onde podem ir. Na verdade,
há casos de excessos absurdos em que o indivíduo mal chega na igreja e já
assume a postura de líder, convocando reuniões, manifestando suas
opiniões e questionando o modo de funcionamento das coisas. Diante de
pessoas com esse perfil, o pastor e os demais líderes da igreja devem de
pronto obstruir a busca de espaço do crente recém-chegado, chamando-o
ao lado e dizendo que ele não tem autorização nenhuma para tomar
aquelas iniciativas, devendo permanecer no seu lugar de novato.
Infelizmente, muitos pastores que passam por essa situação acreditam, por
ingenuidade, que estão sendo abençoados com a chegada de um irmão (ou
um casal, ou ainda uma família) dinâmico e cheio de entusiasmo. Mais
tarde, porém, descobrem que não deviam ter dado espaço tão depressa a
um desconhecido e que a presença daquele novo irmão na igreja é fonte
mais de problemas do que de soluções.

6) Como deve agir a mulher que acredita ter dons ligados à atividade
pastoral ou diaconal?
Ela deve realizar o pastoreio dos irmãos (cuidado, conselho, consolo, etc.),
sem exercer o pastorado (o cargo de líder oficial da igreja). Também
poderá exercer a diaconia entre os santos (serviço, ajuda, socorro, etc.),
sem assumir o diaconato (a posição de líder dentro da comunidade).
Muitas senhoras fazem isso, sendo extremamente úteis à igreja de Deus
(Rm 16.1).

7) Foi dito neste capítulo que a mulher não pode ser líder na igreja. É
possível, porém, que ela, sem ser líder, pregue ocasionalmente nos
cultos?
Muitos entendem que sim, afirmando que, nesses casos, a mulher pregaria
debaixo de uma autoridade que lhe fosse emprestada pelo pastor. Contudo,
não existe base nenhuma para se aceitar a noção de “autoridade
emprestada”. Aliás, se isso pudesse ser feito, então, qualquer pessoa
poderia assumir o púlpito da igreja, desde que o pastor lhe “emprestasse”
sua autoridade.
Assim, em vez de buscar refúgio em conceitos ilusórios de autoridade, o
que se deve fazer é respeitar a autoridade real da Bíblia. Nela é clara a
proibição de a mulher ensinar na igreja, ficando óbvio que se ela o fizer,
exercerá autoridade cabível somente aos homens e inverterá o modelo
proposto na doutrina da criação, desconsiderando também um dos efeitos
da Queda (1Tm 2.11-14).

8) O ministro de Música não é também um oficial da igreja?


O cargo de ministro de Música não figura entre os ofícios eclesiásticos
apontados no Novo Testamento. Trata-se de uma criação recente que surgiu
para suprir as necessidades da igreja no campo do louvor congregacional e
das apresentações musicais litúrgicas (coros, quartetos, orquestras, etc.).
Obviamente, não existe nada de errado em manter esse cargo na igreja. No
entanto, todos (inclusive o ministro de Música) devem compreender que
essa função não tem relação nenhuma com a liderança espiritual da
comunidade, nos termos fixados pelo ensino apostólico. Isso significa que o
ministro de Música não é um tipo de pastor, nem mesmo um diácono no
sentido técnico do termo. De fato, o chamado “ministro de Música” deve
ser visto como um membro comum da igreja que atua na área musical,
coordenando esse aspecto da vida eclesiástica sob os auspícios da
liderança bíblica.
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL DA IGREJA
As verdades bíblicas devem permear cada aspecto da vida da igreja. A
administração dos seus bens materiais não é exceção.
É evidente que toda igreja, grande ou pequena, rica ou pobre, detém a
posse ou a propriedade de um determinado número de bens. O modo como
essas coisas são usadas pelos crentes, além do grau de cuidado que recebem
deles, reflete algo de sua visão acerca do senhorio de Deus sobre tudo que a
igreja tem.
Em tempos passados, quando se falava sobre esse assunto, a palavra
mordomia era bastante frequente na boca dos cristãos. Ao pronunciar esse
termo, os crentes reconheciam que, mesmo as coisas materiais mais
simples, pertencem, na verdade, a Deus, sendo dever dos santos apenas
cuidar delas com zelo elevado, como servos que administram os bens do
seu senhor.
Essa noção, porém, parece ter-se apagado um pouco da mente dos
cristãos, fazendo surgir na igreja a concepção equivocada de que não há
nenhum problema em usar o que lhe foi dado ao bel-prazer, como se o que é
material tivesse pequena importância e como se noções de ordem, limpeza,
estética e preservação não fizessem parte dos ideais cristãos.
Tudo isso deve ser corrigido na igreja que anseia refletir em sua prática
a natureza e o caráter de Deus. Para que essa correção seja feita, porém, o
povo santo deve resgatar os antigos fundamentos doutrinários da mordomia
cristã mencionada supra. E não somente isso, mas também deve construir
uma concepção bíblica acerca do espaço que possui, domina e sobre o qual
exerce influência praticamente completa.

Os fundamentos bíblicos da mordomia cristã

A palavra mordomia é tradução do termo grego oikonomia, cujo


significado básico denota a administração ou gerenciamento de uma casa
habitada. Geralmente, o vocábulo correlato oikónomos (mordomo, gerente
ou tesoureiro) é traduzido nas bíblias em português como despenseiro,
encarregado ou administrador.
No NT, o conceito de mordomia abrange o uso cuidadoso dos dons
espirituais que o Senhor concede a cada crente em particular (1Pe 4.10), a
proteção, divulgação e manejo da sã doutrina (1Co 4.1-2) e o bom trabalho
pastoral (Tt 1.7). Aqui, porém, a mordomia cristã será considerada sob um
aspecto mais estrito, focalizando somente o modo como a igreja local deve
cuidar do seu patrimônio material. Nesse sentido, uma boa definição para a
expressão em pauta é a seguinte: mordomia cristã é a administração
responsável e sábia dos bens pertencentes a Deus que foram confiados ao
cuidado do seu povo.
As bases teológicas da mordomia cristã podem ser resumidas em
quatro proposições:
1. O Senhor é o criador de todas as coisas, de maneira que tudo lhe
pertence no céu, na terra e no mar. Sendo ele o dono de tudo, todas as
coisas que os homens recebem (e a vida dos próprios homens! — Sl
24.1) são, a priori, dele (Dt 10.14; Sl 50.9-12; Ag 2.8).
2. Os homens detêm a posse e o uso das coisas graças à bondade e
liberalidade de Deus que é o único titular de sua propriedade (1Cr
29.14; Jó 1.21; Sl 104.27-28; Mt 6.25-34; At 14.17; Tg 1.17).
3. Os crentes, conhecendo as verdades acima mencionadas, devem
zelar pelo que está em seu poder (Gn 2.15; Pv 24.30-31), usando tudo
para a honra e glória do dono supremo de tudo que há (Pv 3.9; Mt
25.14-30; At 4.36-37; 2Co 9.7-15).
4. Os bens materiais colocados por Deus sob a administração do seu
povo e a própria administração deles são, um e outro, passageiros, de
maneira que não deve haver apego excessivo nem aos bens nem ao uso
deles, sob o risco de se tornarem fins em si e não meios que viabilizam
o serviço santo (Sl 62.10; Lc 12.15-21; At 2.45; 4.31-35; 5.1-11; 2Co
8.1-4; Hb 13.5; 1Jo 3.17).

É essencialmente sobre esse fundamento quádruplo que a igreja deve


construir o modo como fará uso de todo o seu patrimônio, bem como as
medidas que adotará para protegê-lo e mantê-lo em ordem.

A teologia do espaço
Além das noções básicas de mordomia cristã, o uso e o cuidado do
patrimônio material eclesiástico devem também se sustentar sobre aquilo
que se pode chamar de uma teologia cristã do espaço, ou seja, um grupo de
verdades ligadas ao modo como Deus lida com a extensão que rodeia tudo e
todos e na qual a criação inteira está inserida.
A construção de uma teologia assim designada deve partir da
afirmação de que Deus é o criador do espaço e, por isso, é também senhor
dele. É necessário, pois, lembrar que não somente a matéria veio à
existência por um ato criador divino, mas também, e necessariamente, o
espaço que essa matéria ocupa em suas variadas formas.
Aliás, se for aceito que o universo veio à existência pela palavra que
Deus pronunciou (criação pelo Fiat — Gn 1; Hb 11.3), então é preciso
reconhecer que, antes de criar qualquer outra coisa, o Senhor primeiro criou
o tempo (pois as sílabas que compõem as palavras são pronunciadas
cronologicamente, uma após a outra) e o espaço (pois o som das palavras
pronunciadas se propaga no espaço e o que veio à existência precisava de
espaço para ocupar).
De fato, o espaço foi criado por Deus e a ele pertence, sendo que disso
decorrem importantes questões práticas. Por exemplo: sendo Deus o senhor
do espaço, como a igreja e o crente em particular devem preenchê-lo? Outra
questão: se o espaço é parte da criação e um dia a criação será redimida,
como o cristão e sua igreja podem hoje mesmo resgatar o espaço, fazendo o
reino vindouro ser percebido desde já também nesse aspecto?
No tocante à primeira pergunta, está fora de dúvida que a igreja deve
santificar todo espaço a que tem acesso e sobre o qual tem algum grau de
autoridade ou influência. Isso não significa fazer cultos de consagração de
templos (tema que será tratado no Capítulo 9), mas sim usar o espaço de
modo agradável a Deus, deixando-o livre de tudo que desonre o Senhor e
fazendo de cada salão, cômodo, corredor ou saguão da igreja um ambiente
em que Cristo seja glorificado.
Obviamente, sendo Deus o senhor do espaço, a igreja não pode
permitir que o ambiente que ocupa e administra seja usado para a prática da
impureza, da mentira, da fraude, da desonestidade e da intriga. Antes, o
lugar confiado pelo Senhor ao seu povo deve ser um espaço no qual ele é
obedecido, inclusive por ser seu verdadeiro dono.
Quanto à segunda pergunta formulada supra, de fato, a Bíblia ensina
que a criação um dia será redimida da corrupção do pecado (Rm 8.18-22).
Sem dúvida, isso abrange o espaço. Aliás, basta olhar ao redor para
perceber como o pecado afetou não somente o que (as coisas), mas também
o onde. Por toda parte são vistas a feiura, a desorganização, a sujeira, a
desolação e o mau gosto. E isso não se percebe somente em favelas e becos.
A própria arquitetura e a arte contemporânea parecem ter perdido a noção
de beleza, de ordem e de estética, à medida que o homem foi se afastando
da visão de que Deus é o criador e o senhor de tudo.
Um dia, porém, conforme ensina a Escritura, quando o reino milenar
de Cristo finalmente se estabelecer neste mundo, todo espaço será redimido
dos efeitos do pecado e haverá completa beleza permeando tudo. Toda a
realidade criada — matéria, tempo e espaço — estará livre do cativeiro da
corrupção e o conhecimento de Deus encherá toda a Terra, “como as águas
cobrem o mar” (Is 11.6-9).
Ora, o Novo Testamento convida os cristãos a, na medida do possível,
trabalhar para que as bênçãos futuras do reino de Cristo se realizem em
alguma medida desde já (Rm 13.11-14; Hb 12.28). Por isso, o crente que
espera a redenção do espaço atua de modo a tornar parcialmente real, aqui e
agora, aquilo que será plenamente real quando Cristo voltar. Assim, a igreja
de Deus sempre se preocupará em tornar bonito e bem-cuidado todo espaço
que administra, sejam as paredes de seus salões, seja sua área externa, ou
mesmo sua cozinha e seus sanitários.
A igreja que aguarda o reino e sabe que é seu dever antecipar seus
efeitos até onde a realidade presente permite eliminará dos espaços que tem
sob seus cuidados toda feiura, toda desolação, toda sujeira e toda desordem.
Assim, as pessoas verão, nos lugares em que os cristãos vivem e convivem,
verdadeiras partículas do reino vindouro e poderão enxergar uma
“pontinha” de como será todo espaço redimido quando, afinal, tudo estiver
sob o cetro adorável do Senhor.
Uma teologia do espaço deve também considerar o modo como o
próprio Deus se relaciona com o espaço que criou, sendo certo que isso
revelará muito do seu caráter e da sua vontade. Nesse aspecto, é notável
que, no relato da criação, Deus preenche o espaço com beleza e ordem (Gn
1). Também no período do êxodo, é nítida a preocupação do Senhor em
fazer com que as doze tribos de Israel ocupassem seu espaço no deserto
dentro de um programa predefinido de organização (Nm 2). Ele também
fixou ordens ligadas à limpeza do acampamento, afirmando que a razão
daquelas leis residia no fato de o povo ser santo e de o próprio Senhor andar
no meio do arraial, não sendo do seu agrado ver coisas indecentes nos
lugares de habitação temporária de Israel (Dt 23.12-14).
Ainda na época do êxodo, o valor que o Senhor dá à beleza e à arte
como fatores que devem dignificar um lugar pode ser visto no tabernáculo e
nas peças que o guarnecem. Nesse templo portátil, Deus exigiu que tudo
fosse belo, benfeito e organizado (Êx 25-27; 30.1-21), qualidades que foram
reproduzidas com excelência ainda maior no templo construído
posteriormente por Salomão (1Rs 5-6).
Algo da forma como Deus lida com o espaço pode, inclusive, ser visto
no túmulo de Jesus, local em que também ressuscitou dos mortos. O relato
de João diz que, quando entraram no túmulo na manhã de domingo, os
discípulos perceberam que o corpo de Cristo não estava mais ali. Então
viram o lenço que estivera sobre a sua cabeça enrolado (Gr. entylísso) e
posto num lugar à parte (Jo 20.7). É significativo que o glorioso Senhor do
universo, ao romper vitorioso os grilhões da morte, mostrou a sublimidade
de seu caráter ao arrumar e deixar em ordem o local em que jazera, antes
de, enfim, deixá-lo e mostrar-se aos discípulos.
Em tudo isso, é possível ver o valor que o Deus verdadeiro dá ao
espaço, ornamentando-o sempre com tudo que é decente e aprazível,
usando-o como cenário de cuidado e esmero, a fim de ensinar aos crentes
de todas as eras um modo de vida ordeiro, limpo e bem-arrumado para que,
vivendo assim, eles também anunciem ao mundo algo mais das virtudes do
Senhor que os resgatou de toda forma de sujeira e caos. Ora, em nenhum
outro lugar, essas lições devem ser postas mais em prática do que na
verdadeira igreja de Deus.
Uma pergunta importante

Toda doutrina bíblica corre o risco de ser mal entendida e mal


aplicada. Quais os perigos da má compreensão da mordomia cristã e da
teologia do espaço?
Se a doutrina da mordomia cristã não for bem compreendida, poderá
desembocar numa proteção tão intensa do patrimônio da igreja que as
pessoas mal poderão usá-lo, sentindo-se sufocadas sob inúmeras restrições.
Por isso, a concepção correta da mordomia cristã deve levar em conta que
o Senhor coloca bens nas mãos dos crentes não somente para que eles
cuidem deles, mas também deles desfrutem. Do contrário, a igreja se
tornará serva e não beneficiária do seu patrimônio.
Quanto à teologia do espaço, o perigo de sua má compreensão é tentar
tornar o espaço tão belo ao ponto de se gastar dinheiro com luxos
desnecessários. Quando isso acontece, o desejo de resgatar o espaço
atingido pela Queda acaba levando à má mordomia dos recursos, pois estes
passam a ser empregados em futilidades.
Assim, no afã de cuidar do seu espaço, resgatando a beleza e a ordem que
Deus tanto preza, a igreja deve primar especialmente pela limpeza, pela
boa arrumação e por uma estética moderada e equilibrada, livre de luxos
inúteis.
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS
Os tempos atuais têm se revelado imensamente férteis na produção de
desvios e heresias dentro do contexto dito evangélico. Na verdade, é difícil
imaginar um ambiente em que a prática de distorção das Escrituras seja
maior do que a percebida hoje dentro das igrejas de origem protestante.
Na verdade, ao que parece, muitas igrejas que se denominam
evangélicas concedem a si mesmas certas liberdades no campo da
hermenêutica, da ética, da liturgia e da eclesiologia aplicada que nem
mesmo as seitas mais danosas jamais ousaram arrogar para si. Essas
liberdades, obviamente, têm produzido desvios horríveis que maculam o
nome do cristão diante da sociedade, exibindo a todos um cristianismo
caricaturizado, bem diferente daquele ensinado pelo Senhor e pelos seus
santos apóstolos.
Em face dos prejuízos que esses modelos têm gerado para a verdadeira
igreja do Senhor, o crente de hoje deve evitá-los a todo custo, retomando à
mesma postura do pastor anabatista Menno Simons (1496-1561), líder da
reforma radical que floresceu no século 16 e fundador da Igreja Menonita:

Irmãos, digo-lhes a verdade, não minto. Não sou nenhum


Enoque, não sou nenhum Elias, não sou ninguém que tenha
visões, não sou profeta que possa ensinar e profetizar algo além
do que esteja escrito na Palavra de Deus e seja compreendido no
Espírito. [...] Mais uma vez, não tenho visões nem inspirações
angélicas. Nem as desejo, para não ser enganado. A Palavra de
[70]
Cristo, por si só, é suficiente para mim.

Para estimular os membros da igreja de Deus a imitar Menno Simons


em seu apego à Palavra de Cristo, fugindo assim dos chocantes desvios
evangélicos da atualidade, este capítulo tratará de alistar esses mesmos
desvios, expondo suas principais ilusões sob a luz da Bíblia.

[71]
O pentecostalismo
Ao longo de sua história, a igreja cristã tem enfrentado três graves
perigos: o paganismo, o papismo e o pentecostalismo.
O paganismo ameaçou a igreja logo nos primeiros anos de sua
existência, especialmente por meio de um misto de religiões, filosofias e
fábulas que mais tarde ficou conhecido como gnosticismo. Esse modelo
exercia forte atração sobre os cristãos menos preparados porque, além de
oferecer experiências místicas, como visões e coisas do tipo (Cl 2.18),
também impunha aos seus seguidores normas de conduta que pareciam
piedosas — regrinhas como “não pode isso, não pode aquilo” (Cl 2.20-23).
O maior atrativo do gnosticismo, porém, estava na alegação de que seus
adeptos formavam uma elite espiritual detentora de um grau de
espiritualidade e conhecimento (gnosis) que outras pessoas eram incapazes
de ter.
O papismo, por sua vez, desenvolveu-se em decorrência de processos
muito mais longos e complexos, iniciados já no século 2, e que culminaram
no surgimento de uma espécie de príncipe eclesiástico com autoridade
universal, supostamente dotado de infinitos poderes temporais e espirituais
— uma espécie de deus, reconhecido, aliás, como infalível!
Por causa do papismo, a igreja medieval ficou muitas vezes nas mãos
de homens inescrupulosos, imorais e corruptos que, em nome de Cristo e
em benefício próprio, cometeram atrocidades como as guerras das
Cruzadas, os crimes da Inquisição e a exploração impiedosa do povo por
meio da venda de relíquias e de indulgências. O caos e a vergonha a que o
papismo lançou a igreja deram ensejo à Reforma Protestante do século 16.
O terceiro perigo, o pentecostalismo, é de todos o mais recente e
também o mais danoso, posto que abriga elementos dos dois primeiros e,
conforme será demonstrado, trouxe prejuízos para o cristianismo que nem
mesmo os piores inimigos da fé foram capazes de causar nesses 2 mil anos
de história eclesiástica.
O surgimento do movimento pentecostal geralmente é datado de 1906,
ano em que William Joseph Seymour, um pregador afro-americano, iniciou
reuniões num barracão na Rua Azuza, número 312, em Los Angeles, EUA.
Nessas reuniões, a ênfase era a busca do batismo com o Espírito Santo, o
que Seymour cria ser uma experiência mística pós-conversão, acompanhada
pelo falar em línguas.
Ora, a Bíblia ensina que o batismo do Espírito Santo é dado a todos os
crentes, sem que eles precisem se esforçar para obtê-lo (1Co 12.13; Gl 3.2).
Também ensina que isso ocorre no momento da conversão (Ef 1.13), sem
nenhuma necessidade de ser evidenciado pelo dom de línguas, já que, na
Igreja Primitiva, esse dom era dado somente a alguns (1Co 12.30).
Contudo, os seguidores de Seymour criam que o batismo do Espírito
Santo era uma espécie de segunda bênção (a primeira bênção seria a
conversão) dada por Deus somente a quem a buscasse com orações, jejuns,
clamores, lágrimas e vigílias.
Por isso, testemunhas oculares relataram que, na Rua Azuza, as
pessoas passavam dias e noites gritando, chorando, gemendo, uivando,
pulando, girando e se contorcendo, enquanto clamavam pela “bênção”. Já
os que eram “batizados” balbuciavam o que criam ser línguas estranhas e,
em êxtase, caíam no chão, onde ficavam rolando ou se sacudindo, numa
manifestação frenética de loucura total. Outros, ainda, desmaiavam e
ficavam deitados por horas a fio, inertes como se estivessem mortos.
Tudo isso, pensavam, era necessário e valia a pena, pois o batismo do
Espírito Santo, uma vez recebido, elevaria o crente a um novo e mais rico
patamar espiritual, tornando-o participante de uma elite de homens santos e
fazendo-o desfrutar de uma vida repleta de experiências poderosas e
arrebatadoras com Deus.
Foi dito aqui que o primeiro grande perigo que ameaçou a igreja de
Cristo foi o paganismo manifesto em doutrinas gnósticas. Com isso em
mente, note-se que o pentecostalismo demonstrou ser um dos maiores danos
que já sobrevieram à igreja porque, com sua ênfase numa doutrina jamais
ensinada nas Escrituras, trouxe de volta para o cristianismo precisamente
aquelas velhas noções pagãs, apegando-se ao êxtase, ao frenesi espiritual e,
especialmente, ao principal conceito gnóstico da existência de uma elite
espiritual que se situa acima dos crentes comuns.
Então, como ocorreu com o gnosticismo nos séculos 1 e 2, a
possibilidade de provar emoções novas e de fazer parte de uma elite
espiritual fez com que o pentecostalismo atraísse uma imensa massa de
pessoas ávidas por experiências místicas e sedentas por conquistar o
reconhecimento e a admiração dos seus correligionários.
Conforme dito anteriormente, a segunda maior ameaça sofrida pela
igreja ao longo dos séculos foi o papismo. Ora, o pentecostalismo também
não deixou de fora os principais elementos desse mal. Com efeito, além de
trazer novamente para a igreja de Cristo o velho paganismo combatido
pelos pais apostólicos do século 2, o movimento pentecostal trouxe
também, para a igreja evangélica, o velho papismo combatido pelos
reformadores do século 16. A diferença é que o papismo pentecostal é um
papismo múltiplo e numeroso.
De fato, se no romanismo foi acolhida a figura de um papa apenas, no
movimento pentecostal ocorreu a proliferação de um exército de pequenos
papas locais, todos reivindicando autoridade divina e infalibilidade absoluta
sob os títulos de bispo, apóstolo, profeta ou patriarca.
Essas figuras alegam que Deus lhes fala diretamente e, à semelhança
dos pontífices medievais, não aceitam que suas opiniões ou condutas sejam
questionadas por ninguém e em nenhum grau. Também à semelhança dos
papas renascentistas, muitos líderes pentecostais exploram a boa-fé do povo
e juntam tesouros para si, vendendo quinquilharias que dizem ser santas e
dotadas de poder.
Os seis males do pentecostalismo

Se o pentecostalismo abriga elementos do paganismo e do papismo, há


também outras razões muito mais perceptíveis que comprovam que essa
vertente dita evangélica prejudica a causa cristã. Para expor essas razões,
basta descrever o pentecostalismo como uma fábrica de seis males: heresia,
superstição, falsos irmãos, hipocrisia, desordem e desilusão.
Por que o pentecostalismo pode ser considerado uma fábrica de
heresias? A resposta é simples e lógica: crendo que Deus fala diretamente
aos seus apóstolos e profetas, bem como àqueles que foram agraciados com
a “segunda bênção”, os pentecostais raramente valorizam o estudo
teológico, a exegese ou mesmo as lições mais elementares da hermenêutica
bíblica. Para que — dizem muitos deles — se afadigar na análise do texto
bíblico, no aprendizado das línguas originais ou na leitura de obras de
profundidade doutrinária se Deus nos fala diretamente?
Aliás, no afã de ressaltar essa fábula, alguns pastores pentecostais mais
criativos deixam uma cadeira vazia ao seu lado no púlpito, afirmando que
aquele lugar é ocupado por um anjo ou pelo próprio Espírito Santo que,
pondo-se ao seu lado, sussurra as coisas que ele deve dizer à multidão.
Agravando essa situação, grande parte dos líderes pentecostais se opõe
ferozmente ao estudo da teologia, dizendo que “a letra mata” (2Co 3.6).
Ora, o claro contexto dessa citação é suficiente para mostrar que Paulo fala
ali da Lei Mosaica (a letra) e seu impacto mortal sobre aqueles que tentam
ser justificados por meio da sua observância. Para muitos pentecostais,
porém, nesse texto, Paulo, justamente o apóstolo mais estudioso do Novo
Testamento (At 26.24), reprovava o dedicado estudo da Palavra de Deus!
O resultado dessa forma de pensar é que o pentecostalismo acaba
sendo uma cadeira de balanço para os que se deleitam na preguiça
intelectual e dá ensejo para que homens sem preparo, seguindo as
imaginações de seu próprio coração e chamando tudo que lhes vêm à mente
de “revelação”, ensinem aos seus seguidores absurdos que vão desde as
parvoíces mais ingênuas até as heresias mais deploráveis e destruidoras.
Diante disso, é triste dizer, mas a conclusão a que se chega é que
poucas vezes na história do pensamento cristão existiu uma fábrica de
heresias tão produtiva como o pentecostalismo. Com efeito, os estudiosos
de história eclesiástica sabem que nem Márcion, o arqui-herege do século 2,
nem os montanistas, nem os defensores da cristologia heterodoxa que
ameaçou a igreja nos séculos 4 e 5, nem os cátaros, nem o catolicismo
medieval, nem os radicais da época da Reforma, nem as seitas pseudocristãs
da atualidade superaram o pentecostalismo na produção de doutrinas
estranhas, desvios teológicos, erros de interpretação, ensinos destruidores,
[72]
lições perigosas e propostas antibíblicas.
O segundo mal que a máquina pentecostal produz incansavelmente é a
superstição. Mais uma vez, a noção de que Deus fala diretamente a seus
profetas, revelando coisas novas a cada dia, fez com que o pentecostalismo
abrisse as portas para o misticismo religioso, repleto de crendices toscas
inventadas por pessoas que diziam ter recebido uma “revelação” do céu.
Os reformadores do século 16 afirmavam que a superstição é filha da
ignorância. Assim, conhecendo pouco da doutrina bíblica e fiando-se nas
ilusões de inúmeros sonhadores, muitos irmãos em Cristo foram ensinados
a acreditar em frases mágicas (“eu determino”, “tá amarrado”; “eu tomo
posse”, “eu não aceito...”), em rituais de quebra de maldição, na força maior
de orações feitas de madrugada, no poder de objetos ungidos com óleo de
cozinha e até em água milagrosa obtida por meio de um copo deixado sobre
o aparelho de TV durante a transmissão de algum programa evangélico.
Percebendo a facilidade com que as massas criam nessas coisas,
homens perversos e impostores foram atraídos para o meio pentecostal onde
conquistaram postos de liderança e se tornaram pastores de muitas ovelhas
verdadeiras de Jesus. Então, movidos pela ganância, esses homens
inventaram ainda mais superstições, criaram um amplo comércio de
relíquias muito semelhante ao que a igreja católica explorou na Idade Média
e enriqueceram vendendo cacarecos ungidos, prometendo saúde e
[73]
prosperidade por meio dessas coisas (2Pe 2.1-3).
Muitos, sofrendo debaixo de graves problemas pessoais, seguiram
esses homens, acreditando que a vida ia melhorar e, então, os salões
pentecostais ficaram lotados, fazendo com que o movimento atingisse um
grau de crescimento talvez jamais visto no meio cristão.
Infelizmente, contudo, grande parcela desse crescimento não decorreu
da genuína conversão, mas da grosseira superstição. Por causa disso, a
maravilhosa fé cristã, exposta e defendida por gigantes e santos do passado,
passou a ter em vários lugares a pecha de uma religião de feiticeiros, muito
semelhante à macumba, ao candomblé, ao baixo catolicismo e ao
fetichismo de tribos primitivas.
O terceiro mal que o pentecostalismo fabrica incessantemente são os
falsos irmãos. Se, de um lado, não se pode duvidar da veracidade da fé de
muitos irmãos pentecostais, nem da nova vida que receberam em Cristo, de
outro, não há como negar que um número enorme de pentecostais jamais
conheceu a salvação anunciada no verdadeiro evangelho.
Isso acontece especialmente porque, quem se filia a esse movimento,
geralmente, o faz em busca dos milagres de Cristo e não do seu perdão.
Porém, outra causa para o grande número de incrédulos dentro dessa
vertente evangélica está no fato de que a maior parte dos pentecostais
acredita, piamente, na heresia arminiana da perda da salvação.
Consequentemente, ainda que afirmem em teoria que a salvação é
somente pela fé em Cristo, na prática, muitos pentecostais vivem tentando
se manter salvos por meio da religiosidade aparente, das práticas rituais e da
observância de regras criadas pela igreja. Em casos mais extremos, muitos
deles chegam a acreditar que preservam a salvação porque não deixam a
barba crescer ou porque nunca vestiram uma bermuda!
Tudo isso mostra, tristemente, que muitos pentecostais jamais
entenderam as boas-novas de Cristo, sendo apenas incrédulos oprimidos
tentando melhorar de vida ou buscando ser salvos pelo esforço próprio.
Obviamente, essa presença enorme de falsos crentes no meio
evangélico, produzida especialmente pelo movimento pentecostal, é uma
das principais causas do descrédito a que foi lançado o cristianismo nos
tempos modernos.
A hipocrisia é o quarto mal que a máquina pentecostal fabrica. A
ênfase numa espiritualidade marcantemente exterior, com gritos, pulos e
quedas no chão, deu espaço para constantes representações teatrais. Com
efeito, simulando o que chamam de “transbordar do Espírito”, muitos
pentecostais sapateiam, rodopiam e se contorcem freneticamente, tudo para
convencer os outros de que são fervorosos espiritualmente.
Também a altíssima valorização do falar em línguas impeliu esse povo
ao fingimento ou à autossugestão, levando-os a repetir, por conta própria,
três ou quatro sílabas desconexas a fim de dar a impressão de que foram
agraciados com o maravilhoso dom descrito em Atos 2.
Buscando ainda status dentro da igreja, muitos pentecostais fingem
profetizar, quando, na verdade, somente dizem qualquer coisa que lhes
venha à mente e que possa estar relacionada à vida alheia. Naturalmente,
todo esse teatro é facilmente percebido por qualquer pessoa normal, o que
transforma a fé cristã em motivo de piadas aos olhos dos incrédulos.
O quadro descrito acima desemboca facilmente no quinto mal
produzido pelas igrejas pentecostais: a desordem. Durante os cultos de
várias igrejas pentecostais, uns riem sem parar, outros uivam; uns correm de
lá para cá, outros rolam no chão; uns dançam; e outros oram aos gritos. No
final, dizem que tudo isso é fervor ou ação do Espírito Santo e acusam as
igrejas ordeiras, centradas no estudo da Palavra, marcadas por decência,
reverência e santo temor, de frias e carentes de vigor espiritual.
Finalmente, o sexto mal que se origina no pentecostalismo é a
desilusão. Ouvindo profecias vazias e revelações inventadas, muitos crentes
sinceros que pertencem a essas igrejas criam esperanças que jamais se
cumprem e que os lançam, enfim, num poço de frustração. Quando isso
acontece, para agravar a situação, são acusados por quem diz que as ditas
profecias não se cumpriram por causa da falta de fé. Então, além de
frustrados, esses irmãos passam a se sentir também culpados, vivendo
infelizes por muitos anos.
Outros, seguindo orientações que lhes disseram ter sido reveladas por
Deus, tomam decisões ou praticam coisas que põem em risco sua família,
seu casamento, sua juventude, seu futuro, sua saúde, sua carreira e seu
patrimônio. Infelizmente, inúmeros irmãos, quando enfim despertam para
isso, percebem muitas vezes que é tarde demais.
Há ainda aqueles que, numa busca cansativa pelo que acreditam ser o
batismo do Espírito Santo, entregam-se a um rigorismo cruel que os priva
do lazer (cinema é pecado!), do conforto (mulher de calça comprida? Nem
pensar!), do alegre convívio com os filhos pequenos (ir à praia com eles
seria pura carnalidade!) e até dos prazeres do leito conjugal. No fim de
tudo, ao descobrir que nada disso teve qualquer proveito, passam a se
lamentar frustrados, percebendo que foram enganados, que a vida passou e
que aquilo que perderam não pode mais ser recuperado.
Veem-se, assim, quantos males são causados pelo pentecostalismo.
Como evitá-los? Como fugir deles? Isso será visto na próxima seção.

Opções para o pentecostal realmente convertido

Muitas pessoas vão dizer que este capítulo faz confusão entre
pentecostalismo e neopentecostalismo. Dirão que, na verdade, é somente o
neopentecostalismo que realiza os abusos aqui mencionados, estando o
pentecostalismo “clássico” livre disso tudo.
Esse parecer resulta de certas distinções que foram feitas no passado
entre o chamado pentecostalismo de “primeira onda” (com ênfase no
batismo do Espírito acompanhado de línguas estranhas), o pentecostalismo
de “segunda onda”, também chamado de “movimento carismático” (com
ênfase em curas e milagres) e o da “terceira onda” (que, além das doutrinas
tipicamente pentecostais e carismáticas, adota ainda a teologia da
[74]
prosperidade). Sem dúvida, essa distinção tem certo valor como forma de
classificação que auxilia a análise histórica do movimento. Contudo, a
observação do cenário atual mostra que, na prática, a referida diferenciação
tornou-se obsoleta, não fazendo mais qualquer sentido.
Com efeito, como acontece em qualquer praia em que uma “onda”
logo se mistura com outra, o mesmo ocorreu com o pentecostalismo. Por
isso, hoje é possível perceber que a “primeira”, a “segunda” e a “terceira
onda” se mesclaram, viraram uma vaga só, espumando juntas os mesmos
erros e perigos. Isso faz com que igrejas ligadas ao pentecostalismo clássico
exponham doutrinas e práticas tipicamente atribuídas ao
neopentecostalismo (e vice-versa), tornando difícil separar as duas
vertentes.
Ao que parece, a diferença entre pentecostalismo e
neopentecostalismo, se houver, poderá talvez ser encontrada na eventual
ênfase que cada igreja em particular dá a um erro específico. No alicerce,
porém, e em muitos desdobramentos práticos, todo o movimento se iguala,
pois as comunidades que o compõem adotam os mesmos pressupostos,
praticam e pregam basicamente as mesmas coisas, afirmando a crença na
“segunda bênção”, abraçando doutrinas e ensinos estranhos e buscando as
revelações e os portentos que acreditam ser concedidos por Deus aos seus
supostos apóstolos e profetas.
Feita essa ressalva, importa agora voltar a atenção para os crentes em
Cristo que se encontram nas igrejas pentecostais. Há muitos cristãos de
verdade nessas comunidades. São irmãos em Cristo que percebem que algo
está errado, que sentem a falta de alimento sólido, que observam
inconformados aquelas manifestações forçadas de arrebatamento espiritual,
que sofrem percebendo a ação de falsos líderes e a santidade hipócrita de
pessoas que louvam a Deus com gritos, mas tem a vida cheia de impurezas
(Is 29.13).
São também irmãos que, à vezes, se sentem culpados, pensando: “Será
que o errado sou eu? Será que não tenho fervor? Será que Deus está
realmente agindo aqui e só eu não estou vibrando? Por que não sinto
vontade de gritar e pular? Por que não consigo falar em línguas? E quanto a
essas profecias, curas e orações barulhentas? Será que só eu percebo que
são forçadas?”.
Há muitos irmãos amados que enfrentaram esses dilemas no meio
pentecostal e que hoje estão num aprisco bíblico. Outros, porém,
geralmente por causa de vínculos sociais e afetivos, ainda vivem nesse
meio, mesmo se sentindo incomodados e pouco à vontade. Para esses
crentes de verdade, há quatro opções:

1. Permanência com influência. Nessa primeira opção, o crente


permanece na igreja em que está, tentando mudar as coisas. Trata-se de
uma decisão nobre, mas a experiência mostra que tem poucos
resultados. Ademais, essa opção tem se mostrado perigosa, pois,
geralmente, com o passar do tempo, os crentes que a adotam ficam
indiferentes diante do erro. Aos poucos, sem que percebam, tornam-se
menos rígidos em seus julgamentos. A constante e tácita convivência
com o desvio faz com que, para eles, o mal se torne normal (e até
engraçado). O resultado final é que, sem alimento espiritual e com as
faculdades amortecidas, seu testemunho entra em colapso, seu
casamento começa e enfrentar crises e seus filhos, quando crescem,
correm para o mundo, dizendo que tudo na igreja não passa de
representação barata.
2. Ecclesiola in ecclesia. Essa expressão, que significa “pequena igreja
dentro da igreja”, foi usada especialmente pelos puritanos da Inglaterra
para se referir a pequenos grupos de crentes verdadeiros que se
reuniam para cultuar a Deus de maneira correta, sem, contudo, se
desligar da igreja maior, cheia de erros, à qual pertenciam. Essa opção
pode ser útil, especialmente porque uma ecclesiola seria um bom lugar
para levar o visitante, sem passar por constrangimentos. Além disso,
talvez seja uma forma de obter alimento verdadeiro. Porém, essa
alternativa é perigosa porque pode gerar orgulho espiritual ou até
mesmo uma forma de elitização. Ademais, a liderança da igreja maior
se indisporá com grupos assim e os problemas serão inevitáveis.

3. Formação de uma nova igreja por um grupo. A vantagem dessa


opção é o surgimento quase imediato de uma igreja séria. Porém, os
perigos dessa medida a tornam desaconselhável. Isso porque a nova
igreja nascerá com a fama de dissidente, enfrentando a forte oposição
da igreja de origem. Esta, em regra, não poupará esforços para caluniá-
la, enfraquecê-la e até destruí-la. Ainda que possa sobreviver a tudo
isso, o sofrimento decorrente dessas investidas deixará marcas que
poderiam ser evitadas caso fosse adotado um modo de agir diferente.

4. Saída individual pacífica. De todas as alternativas, essa é a melhor.


Nessa opção, o crente simplesmente se desliga da comunidade
maculada em que se encontra e se filia a uma igreja séria, onde poderá
nutrir comunhão com seus irmãos e cultuar a Deus longe de
escândalos, encenações e desordens. Conforme dito, muitos crentes de
origem pentecostal têm tomado essa iniciativa e hoje fazem parte de
outras igrejas. O senso de terem achado finalmente o seu lar, a alegria
de aprender a Palavra de Deus a partir da hermenêutica sadia e o alívio
de terem se livrado de um ambiente eclesiástico nocivo, repleto de
excessos, fazem desses irmãos os mais gratos e vibrantes crentes que
há no meio cristão.
Seja qual for a opção adotada pelo crente que pertence a uma
comunidade pentecostal, o fato é que ele não deve, de modo algum,
perpetuar sua participação ali de maneira que comprometa seu crescimento
espiritual e o de sua família. A santificação é valor inegociável e nenhum
tipo de paz pode ser nutrido à parte dela (Hb 12.14).

Estratégias perigosas

O grande avanço da causa pentecostal se deu, muitas vezes, pelos


meios comuns de expansão, como a evangelização, o trabalho missionário e
o plantio de igrejas. Contudo, nem sempre o pentecostalismo realizou suas
conquistas usando métodos corretos e honestos. Na verdade, em vários
casos, o crescimento dessa vertente evangélica ocorreu em prejuízo de
muitas igrejas sérias e às custas do bem-estar espiritual de inúmeras
ovelhas, isso sem falar das dores e angústias causadas a um número
infindável de pastores e obreiros.
Entre esses métodos espúrios de expansão, dois deles se destacam dada
a grande frequência com que foram e têm sido empregados ao longo das
últimas décadas. O primeiro deles consiste em colocar em marcha um
processo relativamente lento de pentecostalização de igrejas tradicionais,
dando passos às escondidas, sem que os pastores saibam. Esse processo
comumente ocorre pela superação das seguintes etapas:

Etapa 1 – Infiltração. Um determinado indivíduo de convicções


pentecostais começa a frequentar uma igreja tradicional, mesmo
havendo várias igrejas de sua linha doutrinária próximas de sua casa.
Esse indivíduo geralmente acredita ser um enviado de Deus com a
missão sagrada de iniciar um avivamento naquela igreja “fria”. Ele,
porém, a princípio, não revela o que pensa. Isso ocorrerá lentamente
nas fases que se seguirão.

Etapa 2 – Proselitismo. Aos poucos, enquanto frequenta


assiduamente a igreja, o suposto enviado de Deus, ainda sem revelar
abertamente suas ideias, começa a fazer amizades com os membros,
detectando os mais vulneráveis e conquistando sua confiança. Junto a
essas pessoas, ele começa a disseminar ensinos pentecostais com
relativa discrição, chegando a fazer alguns discípulos. Nessa fase, já é
possível notar publicamente alguns sinais de suas tendências
doutrinárias, pois, estando mais à vontade, ele deixa escapar traços do
pentecostalismo em suas orações, durante os períodos de cânticos ou
em conversas triviais.

Etapa 3 – Reuniões no lar. Tendo conquistado a amizade mais


estreita de vários membros da igreja, o agente secreto pentecostal os
convida para uma “reunião de oração” em sua casa, sem o
conhecimento do pastor e de outros líderes que possam representar
ameaça aos seus planos. Nessa reunião, o pentecostal assume a direção
de tudo, afinal de contas foi ele quem a convocou e a reunião é em sua
casa. Ali ele propõe que os participantes orem para que Deus desperte
o pastor e faça uma obra de vivificação na igreja que está morta. Essa
proposta de oração tem dois objetivos: primeiro, acusar o pastor e a
igreja de estarem mal espiritualmente; segundo, aliviar a consciência
dos participantes, dando a entender falsamente que a reunião ali não
tem como objetivo fazer oposição, mas sim dar suporte em oração.
Essas reuniões começam a se tornar frequentes, mais membros da
igreja são convidados a participar (exceto o pastor) e, nesses “cultos”,
o pentecostal passa a expor abertamente todas as suas doutrinas e
práticas, induzindo os crentes despreparados a aceitá-las.

Etapa 4 – Divisão. O pastor (que já havia notado que algo estranho


estava acontecendo) toma finalmente ciência das reuniões “avivadas” e
tenta interferir. O grupo que, por meses a fio, ouviu sugestões de que o
pastor não tinha uma “experiência real” com o Espírito Santo resiste,
dizendo que ele está se opondo à obra poderosa de Deus. A partir
desse ponto, a igreja se divide, com pessoas dando apoio ao pastor e
outras se unindo ao grupo dissidente. No fim, um dos partidos é
obrigado a se retirar, num rompimento que deixa marcas profundas na
vida de todos e enfraquece a igreja por longos anos.
Esse método de avanço pentecostal foi muito utilizado nas décadas de
1970 e 1980, sendo enorme o número de igrejas tradicionais que foram
vítimas do que é descrito aqui. Não se deve, porém, pensar que se trata de
uma estratégia obsoleta. Na verdade, ainda hoje essa forma terrível de agir é
adotada e as igrejas bíblicas devem estar alertas a fim de que, caso esse
perigo se insinue em seu meio, o mal seja cortado pela raiz.
Especialmente os pastores de hoje — homens que aprenderam com a
história recente quão grandes são os danos causados pelo expediente
descrito acima — têm de sempre alertar suas igrejas e, estando vigilantes,
devem logo no início expulsar corajosamente do seu meio os indivíduos que
chegam e dão sinais de querer conduzir os irmãos por outros rumos
doutrinários.
A segunda estratégia espúria muito usada por pentecostais no afã de
expandir sua doutrina e se apossar de igrejas inteiras é ainda mais danosa,
pois, uma vez bem sucedida em sua primeira etapa, fatalmente sairá
vitoriosa no alvo de conquistar toda a comunidade. O processo se desdobra
da seguinte maneira:

Etapa 1 – Ascensão. Um pastor com convicções pentecostais,


escondendo sua linha doutrinária, é convidado para assumir o
ministério numa igreja tradicional. Ele aceita o convite nutrindo
reservas e alvos secretos em sua mente.

Etapa 2 – Mapeamento. Analisando a membrezia, o pastor detecta os


que têm inclinações pentecostais, os que são doutrinariamente neutros
e os que são mais “duros” e que jamais aceitarão suas ideias.

Etapa 3 – Avanço cuidadoso. À medida que vai ganhando a amizade,


a simpatia e a confiança das pessoas, o pastor começa a emitir frases
em suas orações, sermões e conversas com conteúdo marcantemente
pentecostal. Nessa etapa, ele também tenta fortalecer sua posição e
consolidar sua autoridade, conquistando o apoio de alguns líderes
menos rigorosos em termos teológicos. Simultaneamente, ele ainda se
aproxima dos jovens e adolescentes, ganhando sua simpatia e
aprovação, na expectativa de que, por meio deles, obtenha o apoio dos
pais e de outros familiares. Quanto mais vê sua posição fortalecida,
mais o pastor avança na exposição de suas doutrinas.

Etapa 4 – Revolução. Percebendo que tem a igreja quase inteira ao


seu lado, que os doutrinariamente neutros não vão se opor a ele
(inclusive para não “perder os jovens”) e que os “duros” não têm mais
força para fazer frente a ele, o pastor declara que chegou a hora de um
“despertamento espiritual” naquela igreja. Então, as mudanças
ocorrem num ritmo bastante acelerado. Preletores pentecostais são
convidados para realizar uma “conferência de poder”, pessoas são
ungidas com óleo, manifestações bizarras começam a ocorrer e são até
mesmo estimuladas nos cultos, experiências sobrenaturais são
compartilhadas nos sermões, enfim, uma verdadeira revolução
acontece na igreja.

Etapa 5 – Domínio total. O pequeno remanescente que discorda de


tudo que está ocorrendo já vinha sentindo certa hostilidade por parte
do pastor. Agora, porém, os ataques a eles são menos discretos, sendo
feitos até mesmo do púlpito e com o apoio da maioria. Percebendo
esse estado de coisas, esse remanescente fiel não vê outra saída senão
procurar outra igreja, deixando, inclusive, nas mãos dos pentecostais
todo o patrimônio eclesiástico construído por crentes zelosos do
passado.

Essa segunda estratégia é bastante frequente ainda na atualidade. Por


isso, antes de convidar um pastor para assumir o ministério local, a igreja
deve lhe fazer perguntas específicas relativas ao seu posicionamento em
face das doutrinas pentecostais. Questões como “o que o senhor pensa sobre
o dom de línguas?”, “qual a sua opinião acerca do batismo com o Espírito
Santo?”, “o senhor acredita que há apóstolos e profetas hoje?”, ou ainda, “o
que o senhor diria a alguém que alega ter o dom de curas e milagres?”
podem ajudar bastante os membros a não cair em armadilhas. O preço pago
pelo descuido é tão alto que vale a pena a igreja ser rigorosa ao máximo na
hora de avaliar um candidato ao seu pastorado.

A prática de falar em línguas

Seguindo na esteira do pentecostalismo, é comum nos dias atuais


alguns cristãos afirmar que têm o dom de línguas. A boa hermenêutica,
porém, mostra ser impossível que esse dom exista hoje. De fato, o que se vê
atualmente são manifestações estranhas sendo chamadas de dom de línguas.
Para verificar o quanto isso é verdade, basta assistir a um culto em que
as pessoas aleguem falar em línguas. Então será possível perceber que o que
ocorre ali é a simples emissão de sons ininteligíveis ou a pronúncia repetida
de duas ou três sílabas sem sentido. E, o que é pior: se alguém argumentar
que aqueles sonidos repetitivos não encontram paralelo em nenhum idioma
do mundo, responderão que estão a falar línguas “estranhas” ou línguas de
anjos!
Quão longe está essa prática do verdadeiro dom de línguas existente
nos dias da igreja primitiva e descrito nas páginas do Novo Testamento! Ali
é demonstrado que o referido dom era uma capacidade sobrenatural dada
por Deus aos cristãos daqueles tempos. Essa capacidade consistia em falar
sobre as grandezas do Senhor em idiomas que nunca tinham aprendido (At
2.5-11), com o propósito de indicar o juízo vindouro para os judeus
incrédulos (1Co 14.21-22) e, por meio da interpretação, edificar os ouvintes
salvos (1Co 14.6-9, 27-28).
Ao contrário do que alguns pastores ensinam hoje em dia, o Novo
Testamento não diz em lugar algum que todos os crentes tinham de falar em
línguas (1Co 12.8-11, 28-30). Também não há na Bíblia nenhuma relação
entre a prática desse dom e a maturidade espiritual. Aliás, na igreja de
Corinto havia todos os dons (1Co 1.7) e, no entanto, Paulo diz que seus
membros eram crianças em Cristo (1Co 3.1-3). Na verdade, para Paulo, os
cristãos deviam preocupar-se mais com o amor do que com o dom de
línguas (1Co 13.1-3).
É importante também salientar que as línguas de que fala o Novo
Testamento eram de natureza terrena (At 2.4,6,8,11; 1Co 14.21-22). De
fato, no Novo Testamento, duas palavras são empregadas para se referir às
línguas: glossa e dialektos. Essas duas palavras denotam sempre línguas
terrenas. O fato de a Bíblia em português na versão Almeida Revista e
Corrigida (ARC) da Imprensa Bíblica Brasileira (IBB) apresentar a
expressão “língua estranha” (1Co 14.2,4,5, etc.) pode dar a impressão de
que as línguas eram de natureza angélica ou coisa parecida. Mas é
importante notar que, no texto original do Novo Testamento, a palavra
“estranha” não aparece.
Nos tempos da igreja primitiva, quando o dom de que se trata aqui
ainda existia, algumas normas estabelecidas pelo apóstolo Paulo regiam o
seu uso. Em primeiro lugar, somente duas pessoas ou, no máximo três,
podiam falar em línguas no culto público e, ainda assim, esses dois ou três
deviam falar um de cada vez (1Co 14.27). Não era permitido o uso do dom
sem que houvesse intérprete (1Co 14.27-28), pois isso tornaria seu
exercício inútil para a igreja e sem proveito para o visitante (1Co 14.9, 16-
19, 23-25). Finalmente, às mulheres era proibido falar em línguas durante o
culto público (1Co 14.34). Se exercido dentro dessas regras, o dom de
línguas não podia ser proibido (1Co 14.39-40), e a aceitação das diretrizes
mencionadas era evidência de que a pessoa era espiritual (1Co 14.37-38).
Compare-se tudo isso com o que se faz hoje em dia e facilmente se
conclui que não há nada de bíblico no suposto dom de línguas praticado por
alguns crentes atualmente. Acresça-se a isso o fato de o dom de línguas,
conforme será demonstrado, ter cessado, deixando evidente que o que se vê
atualmente é simples resultado de autossugestão ou algo que vários crentes,
geralmente por influência do grupo a que pertencem, acabam fazendo com
uma pequena parcela de esforço próprio, sem contar com nenhuma atuação
sobrenatural de Deus.
Mas por que, afinal, pode-se dizer com tanta convicção que o dom de
línguas não existe mais? Basta um ligeiro passeio pelas Sagradas Letras e
pela história para que essa pergunta seja respondida satisfatoriamente.
No Novo Testamento, a permanência de um dom estava ligada ao seu
propósito. Uma vez atingido esse propósito, já não havia mais razão para a
existência do dom. De fato, em 1Coríntios 13.8, Paulo diz que o dom de
línguas era temporário — “línguas cessarão”.
No que diz respeito ao propósito do dom em análise, somente uma
passagem do Novo Testamento o aponta com clareza. Trata-se de
1Coríntios 14.22. Nesse texto, Paulo afirma que o propósito das línguas era
ser um sinal. Isso significa que o objetivo principal das línguas não era a
edificação pessoal de quem as falava. Ainda que o crente que falava em
línguas fosse edificado, Deus queria que esse fosse especialmente um dom
de sinal, não somente de edificação particular. Isso mostra o erro de alguns
que dizem que só falam em línguas sozinhos, para a sua própria edificação.
Essa prática é contrária ao propósito do dom. Ele devia ser um sinal e, por
isso, tinha de ser público. Se o dom de línguas fosse praticado a sós, não
seria propriamente um sinal como Deus queria que fosse.
Outro detalhe muito importante à luz desse texto é o grupo de pessoas
a quem o dom de línguas se destinava. Paulo diz que línguas constituem um
sinal para os incrédulos. Duas perguntas surgem naturalmente diante dessa
afirmação: “Sinal de quê?” e “Para que tipo de incrédulos?”.
As respostas a essas perguntas podem ser encontradas no mesmo texto
de 1Coríntios. Se o próprio v. 22 for observado atentamente, será possível
perceber que suas primeiras palavras indicam o desfecho de um
pensamento. Paulo escreve “de sorte que” para concluir um assunto. Essa
conclusão se baseia no que está escrito no v. 21, em que Paulo cita Isaías
28.11. Usando esse texto do Antigo Testamento, ele diz qual é o propósito
das línguas na igreja. Resta agora estabelecer a relação entre Isaías e esse
propósito.
O contexto de Isaías 28 mostra que os líderes de Israel rejeitavam as
mensagens claras do profeta de Deus. Apesar de os discursos de Isaías
serem claros e simples, havia grande resistência a eles por parte dos líderes
religiosos do seu tempo. Então, como uma forma de castigo por essa
resistência, Deus diz que não lhes falaria mais de modo simples e claro. Em
vez disso, levantaria estrangeiros que falariam uma língua que eles não
entenderiam. O juízo de Deus viria pela mão daqueles estrangeiros e, ao
ouvirem sua língua, desconhecida para eles, os israelitas deveriam
reconhecê-la como um sinal do juízo de Deus contra os que rejeitaram sua
mensagem dada primeiro de forma clara.
Algo semelhante também pode ser observado em Jeremias 5.10-15.
Nos tempos de Jeremias, Deus enviara profetas a Israel dizendo que o
julgaria por causa de seus pecados. Mais uma vez, porém, os israelitas
rejeitaram a mensagem de Deus e seus profetas. Israel duvidava das
ameaças de juízo feitas por Deus mediante seus mensageiros e dizia que os
profetas não passavam de vento (v. 12-13). Diante disso, nos v. 14-15, Deus
diz o que faria. Por terem rejeitado sua mensagem e seus mensageiros, Deus
trataria os israelitas de outra forma, levantando contra eles uma nação que
falaria uma língua que eles não conheciam. Isso seria um sinal de que os
israelitas estavam sob o juízo de Deus por terem rejeitado sua mensagem e
seus mensageiros.
Esse modo particular de Deus agir com o povo de Israel quando ele se
rebelasse já havia sido predito em Deuteronômio 28. Deus diz nesse
capítulo que, se a sua mensagem fosse rejeitada, ele amaldiçoaria o povo
(v.15). Uma dessas maldições está no v. 49, que mostra que, se Israel não
ouvisse a voz de Deus, ele falaria de outro modo com a nação. Nos
versículos 45 e 46, é interessante notar que as maldições relacionadas em
todo o capítulo seriam um sinal para sempre.
Portanto, sempre que os mensageiros de Deus fossem rejeitados pelos
israelitas, em qualquer geração, Deus forçaria Israel a ouvir uma língua que
não entendia como sinal de que estava sob seu juízo. É importante observar
que somente para a nação de Israel Deus falou dessa maneira, e nunca para
os gentios.
Esse princípio está, conforme visto, no Antigo Testamento. Paulo,
porém, lança mão dele no Novo Testamento para mostrar qual era o real
propósito das línguas na igreja, a saber: ser um sinal de juízo para os
incrédulos de Israel.
A relação entre esse princípio do Antigo Testamento e o dom de
línguas na igreja pode ser melhor compreendida se for considerado quem
foi o profeta supremo enviado por Deus a Israel. Na Epístola aos Hebreus
(evidentemente uma carta escrita aos judeus), o autor diz em 1.1-2 que,
“nos últimos dias”, o mensageiro de Deus fora o seu próprio Filho.
Contudo, como se sabe, aquela geração rejeitou o Filho de Deus.
Durante seu ministério terreno, Jesus alertara os judeus do seu tempo
acerca do perigo que corriam de cair na maldição de Deus. Em Mateus 23,
ele diz que o Senhor traria uma condenação sobre aquela geração que
serviria como castigo pelo sangue de todo justo assassinado nos tempos
antigos, desde Abel até Zacarias (v 34-39). Jesus dizia assim que Deus
traria sobre aquela geração uma condenação inédita por ela ter rejeitado o
Filho dele. Mais uma vez, como nos tempos de Isaías e Jeremias, as
maldições de Deuteronômio 28 estavam prestes a cair sobre os israelitas
rebeldes.
É de conhecimento geral que, no primeiro século da era cristã, Israel
estava sob o domínio de Roma. Os judeus, estando muito tempo em contato
com os romanos, eram conhecedores de sua língua. Além disso, por esse
tempo, o Império Romano era tão poderoso que não havia outro império
que pudesse vir contra os judeus falando uma língua desconhecida. Foi
então que Deus usou sua igreja para dar o sinal de que aquela geração
estava sob juízo por ter rejeitado seu mensageiro supremo.
Algo importante para lembrar é que a primeira vez que o dom de
línguas se manifestou foi em Atos 2, ou seja, depois da total rejeição do
Messias pelo povo judeu. Nem mesmo Jesus jamais falara em línguas. Em
Atos 2, depois de a igreja ter falado em línguas, Pedro dirigiu-se aos
“varões judeus” (v. 14) e lhes chamou a atenção para a coisa horrível que
haviam feito com Jesus (v. 22-23). No versículo 40, Pedro indica que aquela
geração estava prestes a sofrer uma condenação horrível — “Salvai-vos
desta geração perversa”. Ele disse isso de modo significativo no primeiro
dia do dom de línguas e exortou seus ouvintes a mudar o modo de pensar
sobre Jesus e assim escapar do juízo que viria sobre aquela geração.
Quando, afinal, o juízo representado pelas línguas na igreja veio sobre
aquela geração de judeus? Jesus, certa vez, refletiu sobre a cidade de
Jerusalém e chorou por causa do que ia acontecer. Disse que os inimigos a
destruiriam, mostrando assim o tipo de juízo que estava prestes a vir. Esse
juízo veio de 66 a 73 d.C. Aquela geração de judeus rebelou-se contra o
Império, e Roma inundou a Palestina com soldados que, liderados pelo
general Tito, mataram mais de um milhão de judeus. A cidade de Jerusalém
e o templo foram destruídos e milhares de israelitas foram vendidos como
escravos.
Algo curioso, entretanto, aconteceu. Registros históricos antigos
mostram que, antes da chegada dos romanos, todos os judeus crentes
abandonaram Jerusalém e foram para o Leste do rio Jordão, onde passaram
[75]
a morar na cidade de Pela. Quando os soldados romanos chegaram a
Jerusalém, nenhum cristão judeu pereceu no massacre!
Tendo servido assim como sinal para os judeus incrédulos da
destruição que havia de vir por mãos de estrangeiros, o dom de línguas
cumpriu seu propósito e, uma vez concluído o juízo em c. 70 d.C., o
exercício desse dom cessou. Seu propósito foi atingido e, por isso, não
havia mais razão para que permanecesse. É por isso que se pode dizer com
segurança que o dom de línguas de que falam as Escrituras não existe mais
nos dias de hoje.
Àqueles que, com base em 1Coríntios 14.39, dizem que não se deve
proibir o falar em línguas, deve-se responder que a igreja de Deus jamais
faz essa proibição. E isso por um motivo muito simples: não é possível
proibir o uso de algo que não existe mais. Proibir hoje o falar em línguas
seria o mesmo que proibir a caça aos dinossauros. Ora, é sabido que os
dinossauros foram extintos há milhares de anos e não há como nem porque
proibir que sejam caçados. O mesmo ocorre com as línguas. Não é possível
proibir o uso delas, uma vez que deixaram de existir há séculos. O que na
verdade é e deve ser proibido na igreja são manifestações desordenadas que
às vezes são chamadas de dom de línguas.
Outras considerações importantes ligadas ao debate sobre o dom de
línguas são as seguintes:

1. O fato de esse dom não existir mais não significa que Deus não pode
realizar milagres na área da comunicação. Deus tem poder para fazer
com que, em alguma situação especial, duas pessoas de idiomas
diferentes se comuniquem de forma surpreendente. Se isso, porém,
acontecer, não será correto dizer que houve uma manifestação do dom
de línguas, pois, conforme visto, não era assim o funcionamento desse
dom (quem o tinha o usava com frequência na igreja), nem era seu
objetivo quebrar as barreiras linguísticas entre as pessoas (tanto que
exigia a atuação de intérpretes). Por isso, diante da hipótese levantada,
o certo será dizer que ocorreu um milagre no campo da conversação.

2. A afirmação de que o dom de línguas está em vigor não conseguiu


ainda produzir nenhuma prova séria e observável de sua veracidade.
Com efeito, se esse dom ainda existe, em que local é possível
encontrá-lo? Até agora, tudo que os defensores da atualidade das
línguas têm apresentado são sonidos ininteligíveis, algo muito
diferente do que ocorreu em Atos 2, quando idiomas reais foram
falados. Isso é de surpreender, pois a afirmação de que o dom de
línguas bíblico existe ainda hoje deveria ser provada facilmente pela
simples apresentação de centenas ou milhares de crentes que falam
outros idiomas sem jamais tê-los aprendido. Essa prova, contudo,
nunca foi produzida.

3. As línguas de anjos mencionadas em 1Coríntios 13.1 não servem de


base para afirmar que o dom de línguas envolve linguagem estranha e
ininteligível. Na verdade, a expressão usada por Paulo representa
apenas um recurso retórico muito comum que tem como objetivo levar
uma hipótese ao nível do absurdo (uma forma de hipérbole) a fim de
reforçar um determinado ensino ou argumento. Ademais, anjo algum
jamais aparece na Bíblia falando uma língua ininteligível. Na verdade,
mesmo a noção de que os anjos têm seus próprios idiomas distintos é
inaceitável, pois significaria que sobre eles sobreveio um juízo
semelhante ao que houve em Babel (Gn 11.1-9). Finalmente,
considere-se que, se os anjos falassem uma língua específica deles,
dificilmente seria do tipo que é ouvido nas comunidades pentecostais,
posto que os sons emitidos nessas igrejas, conforme facilmente se
percebe, correspondem a quinze ou, no máximo, vinte palavras
pronunciadas repetidamente sem estrutura frasal e sem significado.

4. Segundo pareceres médicos e/ou psiquiátricos, falar em línguas é,


algumas vezes, um mero distúrbio de linguagem observado em alguns
[76]
doentes mentais que acreditam ter inventado uma língua nova ou
ainda a linguagem pessoal de psicopatas que adotam esse
[77]
comportamento como forma de diversão. A diferença é que esse tipo
de glossolalia muitas vezes cria neologismos e pode, assim, ser
[78]
traduzida, algo que não ocorre na glossolalia pentecostal.
Informações desse tipo deveriam levar os pentecostais a serem mais
criteriosos em sua avaliação da glossolalia em vez de simplesmente
taxar de carnal e incrédulo qualquer pessoa que questione a validade
das línguas.
5. Estudos linguísticos, ao analisar a prática da glossolalia no meio
pentecostal, têm concluído que as línguas faladas nesse contexto,
diferente do que ocorria nas igrejas do NT, não são línguas em
hipótese alguma. De fato, os linguistas não puderam detectar na
experiência pentecostal um sistema de signos, ou seja, um sistema em
que conceitos ou ideias sejam transmitidos por meio de sons (as
palavras). O que há nesses casos é o som destituído de conceito, a
emissão de ruídos articulados numa sequência de fonemas sem
[79]
significado — uma fala sem língua ou uma língua imaginária! Por
causa disso, diferente do que ocorreu em Atos 2, por exemplo, as
"línguas" de hoje nunca comunicam nada. Tão somente um indivíduo
simula falar um idioma e os demais apenas o observam, sem entender
coisa alguma e também simulando provar algum enlevo espiritual
naquele instante.

6. O ensino comum entre pessoas do movimento pentecostal de que as


línguas mencionadas em Atos 2 eram humanas, mas as mencionadas
em 1Coríntios eram de outra natureza esbarra no fato de que em
1Coríntios 14.21-22, Paulo faz referência aos idiomas das nações
gentílicas para explicar o propósito do dom de línguas, o que revela
que ele tinha em mente um fenômeno da mesma natureza daquele
narrado por Lucas em Atos dos Apóstolos. Outrossim, o argumento
que afirma que as línguas de Atos eram diferentes das de 1Coríntios
porque quem usava estas últimas falava “mistérios” (1Co 14.2) não é
válido, pois a palavra “mistério” empregada no texto significa apenas
que as línguas então faladas permaneciam enigmáticas, não sendo
entendidas pelas pessoas em geral. O próprio v. 2 indica esse sentido
ao enunciar a frase “porque ninguém o entende”.

7. Análises modernas da glossolalia religiosa feitas por linguistas com


o auxílio de tecnologia computadorizada descobriram que, na cadeia
de sons emitidos pelos que exercitam o suposto dom, é impossível
fazer qualquer segmentação que aponte para a existência de palavras
específicas. Também não há qualquer indício de sintaxe. Ademais, a
transcrição dessas falas revelou que nelas não existe nenhum fonema
estranho à língua materna do falante. Tratam-se, assim, apenas de
produções vocais fundamentadas em próprio sistema fônico de quem
fala, com a utilização estrita de alguns sons que se repetem
excessivamente durante a experiência de "línguas", numa sequência
variável e com características de declamações ou recitações. Nesse
último aspecto, nunca há, por exemplo, entonações interrogativas,
interrupções para se pensar no que vai dizer ou retomadas para
[80]
correção — fatores presentes na fala de qualquer idioma verdadeiro.
Aliás, é impossível que a experiência pentecostal dominante abranja
línguas verdadeiras, pois há muito mais variações glossolálicas do que
línguas reais. De fato, existem mais de nove milhões de glossolalistas
(dado do início da década de 80), cada um praticando uma ou mais
formas diferentes de "línguas estranhas", enquanto só existem três mil
[81]
línguas verdadeiras no mundo.

8. Entre alguns pentecostais existe o ensino de que Deus concede uma


língua estranha específica para cada diferente indivíduo, a fim de que a
pessoa ore na “nova língua” que Deus lhe deu, ou seja, numa língua
concedida somente a ele. Esse ensino não encontra respaldo em
nenhuma linha da Sagrada Escritura. É simples invenção.

9. A ideia tão comum entre os pentecostais de que o falar em línguas é


uma prática que foi resgatada por eles no início do século XX,
inaugurando uma nova fase de vigor espiritual para a igreja,
desconsidera a realidade histórica de que a glossolalia sempre esteve
presente em formas deturpadas de cristianismo desde os seus
primórdios. Ao tempo da igreja antiga, o herege Montano (157-212) e
seus seguidores alegavam falar em línguas. O corrompido catolicismo
medieval também fornece diversos exemplos de personagens tidos
como "santos" que afirmavam praticar a glossolalia. Alguns deles são:
Hildegard von Bigen (1098 – 1179), São Domingos (1170 – 1221),
Santo Antônio de Pádua (1195 – 1231), São Vicente Ferrer (1350 –
1419), São Francisco Xavier (1506 – 1552), São Louis Bertrand (1526
– 1581), São João D’Ávila (1500 – 1569), Santa Teresa D’Ávila (1515
– 1582), São João da Cruz (1542 – 1591) e Santo Inácio Loyola (1491
– 1556). O fato desses nomes estarem ligados ao romanismo tão tosco
como foi o vivenciado na Idade Média, deveria ser levado em conta
quando se diz que o falar em línguas marca uma época de maior
[82]
vitalidade espiritual na igreja.

10. Na visão pentecostal, na glossolalia o que importa não é o


significado das palavras, mas sim o significado da experiência. Como
ocorre na magia, em que o mágico não se preocupa com o significado
de "abracadabra", mas apenas com o que acredita que o
pronunciamento dessa palavra produz, também o pentecostal se
concentra na experiência, atribuindo validade a ela por se sentir bem
ao exercê-la. Nesse aspecto também se afasta das Escrituras, pois estas
ensinam que o significado do que era dito por quem falava em línguas
era essencial, tanto que esse dom só podia ser exercido da igreja
quando houvesse intérpretes.

11. Um olhar atento para o contexto pentecostal mostrará que muitos


passaram a exercitar o dom de línguas depois de o terem aprendido
formalmente. Em algumas igrejas até mesmo cursos de glossolalia são
oferecidos, mostrando que não há nada de sobrenatural nessa prática.
Além disso, é comum ex-pentecostais afirmarem que falavam em
línguas por indução, autossugestão ou pressão do grupo. Sabe-se,
porém, que a prática desse tipo de exercício é perigosa, pois produz
certo alívio mental (pois, entre outras coisas, o indivíduo se vê livre
das leis que regem a linguagem) e físico (pelo uso descontraído dos
órgãos que produzem a fala). Por causa disso, essa prática vicia,
fazendo a pessoa buscar mais e mais satisfação na experiência extática,
o que pode gerar comportamentos bizarros, práticas anormais,
preguiça intelectual, enfraquecimento do raciocínio lógico,
[83]
autoengano, frustração e culpa.

12. Dentro de cada comunidade pentecostal específica, as línguas


faladas pelos membros são sempre parecidas, com uma recorrência de
sons comum a todos. Há sempre, na verdade, uma grande repetição de
combinações vocálicas e consonantais, indicando uma padronização.
Isso mostra que as pessoas que falam "línguas estranhas" seguem
inconscientemente um padrão geral fornecido pela sua comunidade e
aprendido por meio da convivência. Mesmo repetindo basicamente os
mesmos sons vez após vez — sons semelhantes aos produzidos por
quase todos os demais membros da mesma igreja — os pentecostais
acreditam que, a cada nova experiência com línguas, dizem coisas
[84]
novas e diferentes das faladas pelos demais.

13. O fato de que as línguas faladas pelos pentecostais na atualidade


são falsas, além de receber o apoio da exegese bíblica, passou também
a contar com provas científicas. Isso porque em 2006, uma equipe de
cientistas da Universidade da Pensilvânia realizou experimentos num
grupo de pentecostais enquanto eles praticavam a glossolalia. Usando
técnicas específicas de medicina nuclear, os cientistas avaliaram o
fluxo sanguíneo em determinadas porções do cérebro dessas pessoas e
descobriram que as regiões associadas à linguagem não, eram ativadas
durante o exercício do "dom", mostrando que os pentecostais não
estavam falando língua alguma. Por outro lado, a análise revelou que
porções do cérebro fortemente associadas ao aprendizado inconsciente
e à memorização implícita (regiões ricas em "neurônios espelho")
ficavam mais ativas durante o "falar em línguas", deixando claro que
os pentecostais estavam apenas reproduzindo ou imitando sons que
ouviram em suas igrejas ou em outras reuniões. A equipe de cientistas
verificou ainda que durante a experiência de "línguas estranhas", a
parte do cérebro que coordena e integra atividades conscientes e
inconscientes (o tálamo) entra em atividade mais intensa. Em meio a
isso tudo, a pessoa "sente" que o "dom" está "fluindo naturalmente",
tem uma sensação agradável e experimenta certo alívio do estresse.
Todas essas conclusões tiraram o debate sobre línguas do campo da
opinião pessoal, revelando de forma objetiva que a glossolalia
moderna não tem nada de sobrenatural, sendo algo muito diferente do
[85]
que os cristãos experimentaram em Atos 2 e nas igrejas do século 1.
14. As manifestações de "línguas estranhas" ou de "línguas de anjos"
apresentam semelhanças muito grandes com as línguas naturais. Essas
semelhanças envolvem: nítidas segmentações em grupos respiratórios
(ritmo, pausas e tonicidade); organização de sílabas combinadas de
forma rígida; recorrência de elementos que compõem palavras
(morfemas); e padrões definidos de marcação ou de acento tônico. Isso
mostra que quem fala essas "línguas", na verdade as cria usando os
mesmos elementos das línguas naturais, adotando-os como modelo e
os organizando de forma semelhante, sem expor qualquer indício de
sobrenaturalidade. Outra evidência da naturalidade dessas
manifestações é a seleção e exacerbação que, inconscientemente, o
falante faz de recursos fônicos adequados somente à função expressiva
da fala (não há preocupação com a função comunicativa), mostrando a
inclinação de fazer com que a língua se encaixe melhor no ambiente
[86]
alvoroçado dos cultos pentecostais.

15. A análise linguística da glossolalia pentecostal mostra a construção


de uma língua a partir de um conjunto limitado de sons pertencentes ao
[87]
universo idiomático do falante. No contexto brasileiro, por exemplo,
esse conjunto fica estrito aos sons utilizados para falar a língua
portuguesa. O falante, porém, não usa todos os sons do português
durante a prática glossolálica, mas um número muito menor. De fato, a
média de segmentos utilizados é de nove sons consonantais e apenas
seis variações vogais. No caso de pessoas de baixa instrução, cujo
vocabulário é pequeno, as variações glossolálicas são ainda menores.
A predominância e repetição de alguns dos sons que compõem os
pequenos conjuntos sonoros usados pelos que falam em "línguas"
depende claramente da preferência do falante. Sequências ou sílabas
que tenham conotação grosseira ou chula são claramente evitadas.

16. A alegação de que a experiência com línguas eleva a pessoa a uma


vida espiritual de maior qualidade não tem sido confirmada em
hipótese alguma. Escândalos sexuais, fraudes financeiras, disputas
políticas, intrigas pessoais, crises familiares, hipocrisias, mentiras e
chocantes desvios de caráter são comuns nas igrejas pentecostais,
precisamente entre pessoas que afirmam falar em línguas, sejam
líderes ou membros comuns. Por outro lado, é possível verificar uma
vida cristã equilibrada em inúmeros crentes que, ao longo de décadas
de serviço e de bom testemunho, nunca tiveram qualquer experiência
com línguas. De fato, se o dom de línguas, segundo dizem, promove o
crente a um nível mais alto de maturidade cristã, então as igrejas
pentecostais fornecem a maior prova de que as línguas faladas por seus
membros não são verdadeiras.

17. O registro histórico e o relato de testemunhas recentes apontam


para a possibilidade de muitas experiências com línguas serem
procedentes de atuação demoníaca. Estudiosos afirmam que, nas
antigas religiões de mistério, o falar em línguas era procedimento
[88]
comum. Também as seitas modernas adotam essa prática. Ademais,
há testemunhos recentes de pessoas que, em visita a um determinado
país, ouviram blasfêmias serem proferidas em sua língua materna
durante manifestações de glossolalia ocorridas em igreja pentecostais.
Com efeito, o texto de 1Coríntios 12.3 dá indícios de que algumas
manifestações extáticas comuns nos dias de Paulo levavam as pessoas
a pronunciar blasfêmias.

18. A glossolalia não está associada apenas ao cristianismo em sua


vertente pentecostal. Registros históricos informam que, no Egito, ao
tempo de Ramsés XI (1100 – 1070 a.c), um jovem adorador de Amon,
após ter oferecido sacrifícios ao seu deus, foi por ele possuído e
começou a falar uma língua estranha. Séculos depois, Platão afirmou
na sua obra, “Fédon”, que nos seus dias várias pessoas praticavam a
fala extática sob possessão ou inspiração divina. No século 1 a.C.,
Virgílio disse na “Eneida” que as pitonisas sibilinas da Ilha de Delfos
falavam línguas estranhas como resultado da sua união com o deus
Apolo. Em transe, elas diziam coisas sem nexo, palavras confusas e
enigmáticas, sem nenhum sentido. Fenômenos semelhantes ocorriam
no culto egípcio a Osíris, no mitraísmo dos persas e nos Mistérios
Eleusianos. Em tempos mais recentes, a glossolalia pode ser
encontrada no catolicismo da Renovação Carismática, no espiritismo,
onde o fenômeno é chamado de xenoglossia ou mediunidade poliglota
(havendo também alegações de se falar línguas extraterrestres), nos
rituais indígenas, no xangô, no candomblé e no xamanismo, onde as
línguas faladas são reproduções de sons emitidos por animais. Esses
dados deveriam promover uma cautela maior por parte dos
pentecostais e não uma postura tão aberta às línguas como se verifica
nesse meio. Também deveriam servir como incentivo para a revisão de
[89]
seu conceito de línguas como evidência de alta condição espiritual.

19. A acusação de que as igrejas tradicionais são opositoras do dom de


línguas precisa ser revista, pois quem de fato deprecia esse dom são
exatamente os pentecostais. Isso porque são eles que reduzem o dom
de línguas ao mero pronunciar voluntário e grosseiro de sílabas
desconexas, enquanto as igrejas tradicionais honram e enaltecem esse
dom, afirmando que se constituiu num dos milagres mais
extraordinários testemunhado nos dias dos apóstolos: a magnífica
capacidade de alguém falar perfeitamente outro idioma sem jamais tê-
lo aprendido!

20. Os pentecostais afirmam que os tradicionais blasfemam contra o


Espirito Santo por não aceitar as manifestações que ocorrem em suas
igrejas, especialmente o que chamam de dom de línguas. No entanto, o
que realmente ofende o Espírito Santo é atribuir a ele a emissão de
sonidos toscos e banais. Da mesma forma, o Santo Espírito é ofendido
quando dizem que ele é a fonte de profecias inventadas, revelações
falsas, curas imaginárias, ensinos heréticos, comportamentos bizarros e
desordens chocantes.

As considerações acima enumeradas devem ser levadas muito a sério


pelos crentes, pois, na igreja de Deus, tudo deve corresponder à verdade e
nenhum espaço deve ser concedido dentro dela para encenações grotescas
que desfiguram a santa fé e fazem do culto cristão um show de desatinos.
O dom de profecia

Geralmente, os crentes que aceitam a continuidade do dom de línguas


também acreditam na atual existência de profetas.
É verdade que o dom de profecia esteve presente na igreja durante o
século 1 e que seu papel foi vital para o funcionamento, o ensino e o
encorajamento das comunidades cristãs da época. Contudo, o fato é que os
profetas deixaram de existir antes que raiasse o sol do século 2. Na verdade,
dentro do contexto eclesiástico dos tempos apostólicos, o fenômeno da
profecia tinha propósitos e conteúdos que apontam para a sua total extinção
nos dias de hoje.
Considerem-se, em primeiro lugar, os propósitos do dom de profecia.
Quais eram os objetivos das profecias pronunciadas naqueles tempos? A
leitura cuidadosa do Novo Testamento deixa isso muito claro. Veja-se, por
exemplo, o que diz Efésios 3.4-5: “Por isso, quando ledes, podeis perceber
a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual noutros séculos não foi
manifestado aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo
Espírito aos seus santos apóstolos e profetas”. Paulo prossegue, então,
falando acerca de uma das doutrinas do Novo Testamento que compõem o
“mistério de Cristo”, antes oculto, mas agora revelado aos seus servos.
Esse texto mostra que o objetivo principal das profecias dadas no
século 1 era revelar doutrinas desconhecidas por pessoas de outras épocas,
doutrinas que os apóstolos registraram nos livros e cartas do Novo
Testamento e que deveriam servir de base para a fé e a prática das igrejas de
Cristo nos séculos porvir.
Isso fica ainda mais claro em Efésios 2.20, onde Paulo ensina que a
igreja é edificada sobre “o fundamento dos apóstolos e profetas”. Por
“fundamento” entende-se aqui o conjunto de doutrinas que servem como
alicerce para a igreja; doutrinas sobre as quais ela constrói todas as suas
mensagens e toda a sua maneira de funcionar e agir. Uma vez que esse
fundamento foi trazido à luz pelos apóstolos e profetas do Novo
Testamento, Paulo, sendo apóstolo, pôde escrever: “Segundo a graça de
Deus que me foi dada, pus eu, como sábio arquiteto, o fundamento...” (1Co
3.10).
Por isso, dizer que existem profecias hoje equivale a dizer que as bases
doutrinárias da igreja ainda não estão prontas, que novas doutrinas ainda
estão por ser reveladas, que o Novo Testamento não está completo e que a
igreja, 2 mil anos depois de fundada por Cristo, ainda está na fase inicial de
construção de alicerces. Ora, isso é inaceitável para qualquer crente dotado
de bom senso e de maturidade. Por isso, não há como acolher a ideia de que
existem profecias ainda hoje.
Para mostrar que o dom de profecia não existe mais, além de estudar
seu propósito central, é preciso também observar qual era seu conteúdo. Na
verdade, parte disso já foi analisada quando foi dito que o objetivo principal
da profecia era revelar doutrinas outrora ocultas. Obviamente, se esse era
um dos seus objetivos centrais, é claro que o conteúdo da profecia era
predominantemente doutrinário.
Aliás, foi por isso que Paulo escreveu aos romanos dizendo que, se
alguém profetizasse, sua profecia deveria ser de acordo com “a proporção
da fé” (Rm 12.6). Isso significa que a profecia dita por alguém deveria estar
em harmonia com a fé já revelada, jamais a contradizendo. Sabendo, assim,
que as profecias tinham conteúdo doutrinário, Paulo recomendava cuidado,
admoestando os profetas a jamais pronunciar qualquer ensino que não
estivesse de acordo com a verdade já vinda à luz.
Foi também por saber do conteúdo doutrinário das profecias que Paulo
escreveu aos coríntios, ensinando que durante os cultos deveriam falar dois
ou três profetas e os demais deveriam julgar o que era dito (1Co 14.29).
Esse julgamento tinha por propósito avaliar a profecia, a fim de verificar se
ela se harmonizava com todo corpo doutrinário entregue por Deus à sua
igreja.
O conteúdo da profecia eclesiástica também envolvia consolo, sempre
em harmonia com a revelação dada (At 15.32), e, mais raramente, o
anúncio prévio de eventos vindouros não corriqueiros, mas que causassem
grande impacto sobre as igrejas espalhadas pelo mundo (At 11.27-28;
21.10-11).
Como se vê, o conteúdo das profecias do Novo Testamento era muito
diferente daquilo que é “profetizado” hoje em dia. De fato, na atualidade, os
supostos profetas se limitam a contar visões e sonhos, à semelhança dos
falsos mestres dos tempos apostólicos (Cl 2.18). Também tentam adivinhar
quem na congregação está com algum problema (“tem alguém aqui com dor
[90]
na coluna!”) ou a predizer bênçãos imaginárias para alguém (“o Senhor
revelou que seu marido vai voltar para casa!”), criando esperanças vazias,
gerando culpa nos corações aflitos (“a profecia não se cumpriu e seu marido
não voltou porque a irmã não teve fé!”) ou induzindo as pessoas a erros
graves na vida.
Uma vez que as profecias modernas se resumem nesses
pronunciamentos ocos e enganosos, isso robustece a afirmação de que o
dom de profecia não existe mais, conforme Paulo previu em 1Coríntios
13.8-10. Assim, se quiser ser protegida do erro, da mentira e do desvio, a
igreja de Deus deve fugir dos profetas atuais e edificar sua fé e
comportamento unicamente sobre as Escrituras, onde a revelação dada aos
verdadeiros profetas está presente, fornecendo as bases doutrinárias e éticas
da igreja de todos os tempos.
Curas e milagres

As igrejas pentecostais são afeiçoadas a supostas curas e milagres.


Algumas delas chegam a realizar cultos de libertação, prometendo a
realização de milagres com hora marcada e atraindo, assim, pessoas
oprimidas, doentes e vítimas de problemas difíceis. É comum em algumas
dessas igrejas até mesmo o comércio de objetos que, segundo afirmam, têm
o poder de proteger e livrar dos mais diversos males.
No tocante às curas, os mestres dessas igrejas se apoiam geralmente
em Isaías 53.4 para defender a ideia de que o cristão não deve ficar doente
nem se conformar com nenhum abalo em sua saúde, mas, pela fé, apropriar-
se do total livramento das enfermidades que, segundo dizem, Cristo obteve
em favor dos homens.
“Ele tomou sobre si as nossas enfermidades”, repetem. Logo,
concluem que o cristão que tem fé pode repreender a doença e viver livre
dela. Muitas pessoas são atraídas por esses ensinos e os abraçam com
absoluta convicção. Algumas, quando adoecem, chegam ao ponto de se
esconder a fim de que aquilo em que creem não fique exposto a
questionamentos.
Falta a essas pessoas o conhecimento da lição elementar de que, na
Bíblia, muitos crentes maduros enfrentaram sérios problemas de saúde,
sendo a doença uma experiência comum na vida do crente neste mundo (At
9.36-37; Gl 4.13-14; Fp 2.25-27; 1Tm 5.23; 2Tm 4.20).
No tocante especificamente a Isaías 53.4, é preciso compreender o
significado desse texto levando-se em conta que o profeta o compôs
adotando uma forma de paralelismo muito comum na poesia hebraica — o
paralelismo sinônimo (Isaías 53 foi escrito na forma de poesia). Esse
recurso literário consiste em afirmar uma mesma verdade em duas frases
(ou trechos) paralelas, de maneira que a segunda declaração apenas repete a
[91]
primeira usando sinônimos.
Levando isso em conta, é fácil perceber que Isaías 53.4 deve ser
entendido em paralelo com o v. 5, o que leva à conclusão de que as
“enfermidades” e “dores” de que fala o profeta são as “transgressões” e
“iniquidades” do povo. Observe-se que foi precisamente esse o
entendimento que Pedro teve dessa passagem em 1Pedro 2.24, texto em que
o apóstolo ensina que o que Cristo carregou em seu corpo sobre o madeiro
foram “os nossos pecados”.
Ademais, mesmo que o entendimento decorrente do paralelismo seja
desconsiderado, isso em nada fortalecerá o entendimento que os
pentecostais têm da passagem. De fato, a análise do texto livre de qualquer
consideração quanto ao estilo literário mostrará, no máximo, que Isaías 53.4
deve ser interpretado como se referindo apenas ao ministério terreno de
Cristo. É precisamente isso que mostra o Evangelho de Mateus que, citando
a passagem de Isaías, afirma que ela se refere à obra terrena do Messias,
marcada pela realização de curas sobrenaturais.
Sendo um autor bíblico, compondo um evangelho inspirado por Deus,
Mateus pôde atribuir ao texto de Isaías um sentido mais amplo do que
aquele que a passagem tinha de início. O resultado disso, porém, não foi a
afirmação de que os crentes em Cristo não devem aceitar as doenças, mas
sim que Isaías 53.4 se cumpriu também quando Jesus, durante seu
ministério aqui na Terra, curou, com o simples uso de suas palavras, os
numerosos doentes que lhe foram trazidos (Mt 8.16-17).
Sobre curas e milagres, é preciso ainda que o crente conheça as
verdades a seguir alistadas, a fim de que não se deixe levar pelas tendências
atuais e a igreja de Deus não seja maculada por ensinos e práticas
reprováveis:

1. Os milagres não são numerosos em todas as épocas abrangidas


pela Bíblia. As Escrituras abrangem, pelo menos, sete mil anos de
história. Ao longo desse tempo, houve longos períodos em que poucas
ou mesmo nenhuma atuação divina sobrenatural ocorreu. Na verdade,
a análise da história bíblica mostra que a realização intensa de milagres
teve lugar somente em três épocas: os anos do êxodo, o tempo de
ministério de Elias e Eliseu e os dias de Jesus e seus apóstolos. Isso
mostra um padrão específico do modo como Deus intervém no drama
humano, destacando que a operação de maravilhas não faz parte do seu
plano principal de ação.
2. A realização de milagres nunca serviu como prova de
espiritualidade ou de santidade. A Bíblia narra que os sacerdotes
egípcios pagãos, quando se viram diante dos sinais realizados por
Moisés, fizeram milagres semelhantes (Êx 7.8-12, 20-22; 8.6-7). No
Novo Testamento, há o registro das palavras de reprovação que Jesus
“naquele dia” dirigirá contra os incrédulos que, no nome dele, fizeram
“muitos milagres” (Mt 7.21-23). A realização de maravilhas por
homens perversos e impostores é possível porque Deus não é a única
fonte de poder sobrenatural. Ele é a fonte suprema, mas não exclusiva
de poder. Satanás e seus anjos também são poderosos e realizam sinais
pela mão de seus servos (Mt 24.24). Aliás, será com a força do poder
satânico que o anticristo e o falso profeta que hão de vir realizarão
feitos extraordinários, obtendo o apoio e a adoração do mundo inteiro
(2Ts 2.9; Ap 13.2-4, 11-14).

3. O pregador deve ser avaliado pela mensagem que anuncia e não


pelos milagres que realiza. Em Deuteronômio 13.1-5, é ensinado que
se alguém realiza um sinal espetacular e prega uma mensagem
contrária ao ensino de Deus em sua Palavra, deve ser rejeitado, não
importa quão grande ou espetacular tenha sido o milagre que fez. É a
mensagem que prega que mostrará se alguém é de Deus (2Jo 9-11).
Deve-se, portanto, observar se a pregação do “milagreiro” é bíblica. Se
não for, milagre e mensagem terão de ser rejeitados.

4. A atração por sinais espetaculares é perigosa e pode ser


evidência de ceticismo e fraqueza espiritual. Jesus destacou que a
busca de sinais pode advir não de pessoas piedosas e cheias de fé, mas
de homens maus e adúlteros (Mt 12.38-39). Ele também censurou
aqueles que o buscavam por causa do pão que havia sido multiplicado
(Jo 6.26). É interessante notar que, ao ouvir essa censura, aquelas
pessoas que o seguiam pediram ainda mais sinais (Jo 6.30). Não sendo
atendidas, elas se opuseram a Jesus (Jo 6.41-42,52,60) e, enfim, o
abandonaram (Jo 6.66). Simão, o mago é outro exemplo de alguém
que era atraído por milagres, mas não tinha o coração reto diante de
Deus (At 8.13,18-23). Tudo isso mostra que, ao contrário do que é dito
no meio pentecostal, o apego a milagres não é evidência de uma fé
mais forte. Aliás, é muito perigoso sentir-se atraído por alguém só
porque essa pessoa faz ou diz fazer milagres, pois, conforme visto no
item 2 supra, é essa atitude que levará muita gente a seguir os falsos
profetas e o anticristo no fim dos tempos (Mt 24.24; 2Ts 2.9-10; Ap
13.11-15).

5. O fator mais eficaz na produção da fé salvadora é a pregação e


não a realização de milagres. Há quem acredite que os milagres são
necessários para levar as pessoas à conversão. Porém, os inúmeros
milagres realizados por Moisés, Elias, Eliseu, Jesus e os apóstolos
mostram que isso não é verdade. De fato, ainda que muitas pessoas
tenham crido no evangelho ao ver um grande prodígio (At 9.42), o
efeito avassalador e transformador que seria de se esperar sobre as
multidões que testemunharam todos aqueles feitos milagrosos nunca
ocorreu. Na verdade, a força dos sinais na produção da fé sempre
esteve aquém do esperado, sendo o efeito dos prodígios, na maior parte
das vezes, apenas um entusiasmo passageiro. Isso ocorre porque Deus
determinou que a salvação das pessoas acontecesse por meio da
pregação (1Co 1.21). Paulo escreveu que o evangelho (não o ato
milagroso) é o poder de Deus para a salvação de quem crê (Rm 1.16) e
afirmou que a fé salvadora se instala no coração dos homens por
intermédio dos ouvidos e não dos olhos (Rm 10.17). O próprio Jesus
disse que se alguém não ouve as Escrituras (“Moisés e os profetas”)
não poderá crer ainda que veja uma pessoa ressuscitar dentre os mortos
(Lc 16.31).

6. Os milagres dos tempos apostólicos começaram a diminuir já no


século 1. Conforme exposto no item 1 supra, o período apostólico foi
uma das três fases da história em que feitos sobrenaturais ocorreram
com bastante frequência (At 5.15-16; 6.8; 8.13). Isso aconteceu porque
os milagres tinham por objetivo autenticar a mensagem nova que
estava sendo pregada pelos apóstolos (Mc 16.20; At 14.3; 2Co 12.12).
Porém, tão logo esse tempo de autenticação ficou para trás, os sinais
miraculosos foram se tornando mais esparsos. Já nos anos 60 do
primeiro século as curas sobrenaturais eram raras (Fp 2.26-27; 1Tm
5.23; 2Tm 4.20) e o autor da Carta aos Hebreus se referiu aos feitos
milagrosos como pertencentes ao período da primeira geração de
cristãos — a geração que viu a mensagem dos apóstolos ser
autenticada por meio de sinais e prodígios (Hb 2.3-4). Note-se ainda
que nas listas de dons elaboradas por Paulo (Rm 12.6-8; 1Co 12.8-
10,28; Ef 4.11), os dons de curas e de operação de milagres são
mencionados somente em 1Coríntios, escrita no ano 55. Listas
produzidas pouco tempo depois, como as de Romanos (escrita em 57-
58) e Efésios (escrita por volta de 61) não mencionam esses dons,
indicando que haviam entrado em fase de declínio, se é que já não
tinham desaparecido totalmente.

7. Curas e milagres podem acontecer em qualquer época, inclusive


a atual. Os dons de curas e de operação de milagres eram capacidades
dadas por Deus a alguns crentes de erradicar doenças e de realizar
maravilhas fora da ordem natural das coisas (1Co 12.8-10,28). As
pessoas que tinham esses dons curavam tudo e a todos (At 5.16), sendo
capazes, inclusive, de ressuscitar mortos algumas vezes (At 9.36-41;
20.9-12). Conforme visto no item 6, esses dons deixaram de existir já
no século 1. Isso, contudo, não significa que o Senhor, eventualmente,
não faça ainda hoje obras grandiosas, além da compreensão humana.
Antes, significa que, quando Deus realiza feitos assim, ele o faz em
resposta à oração dos crentes em geral e não por meio de indivíduos
dotados por ele com capacitações sobrenaturais, como era o caso dos
apóstolos e dos crentes que tinham dons de operar milagres. Por isso,
os cristãos que, ao enfrentar um sério problema, perceberem que a
solução está fora do alcance humano, devem buscar o milagre de Deus
[92]
na oração e na súplica (sua e de seus irmãos — Tg 5.14-18) e não nas
supostas habilidades dos “curandeiros” atuais, sabendo que, muitas
vezes, o Senhor pode ter um “não” como resposta (2Co 12.7-9).

8. Muitos milagres atuais são extremamente duvidosos. Os líderes


evangélicos que dizem realizar milagres sempre os fazem em benefício
de pessoas que a multidão que assiste a eles não conhece. Isso torna
impossível a comprovação até mesmo da existência da doença, sendo
comuns as fraudes. Esses líderes também não apresentam qualquer
comprovação válida de que tenham, de fato, realizado uma cura
espetacular. Além disso, as curas que dizem operar em público são de
doenças que não podem ter sua melhora verificada de pronto, sendo
casos de enxaqueca, tendinite, dores na coluna, tumores internos, etc.
Ademais, é estranho que ponham seus “dons” em operação somente
em programas promovidos por eles mesmos, em lugares e horários
previamente marcados — e nunca em hospitais, leprosários ou locais
atingidos por grandes tragédias ou epidemias —, o que mostra que
contam sempre com um ambiente de fácil controle e manipulação.
Além disso, os casos de cura real que acontecem nesse meio sempre
envolvem doenças funcionais e psicogênicas (e.g., dores, palpitações,
problemas respiratórios, rigidez muscular, etc.), ou seja, enfermidades
contra as quais o organismo reage por meio da sugestão, do otimismo
ou da força de vontade. Doenças orgânicas, isto é, que não podem ser
curadas por meio desses fatores (e.g., ferimentos, cegueira, surdez,
cálculos renais, tumores, tetraplegia, etc.) nunca são sanadas pelos
pastores milagreiros. Nada disso se encaixa no modelo de curas
mostrado na Bíblia. Ali, são apresentados casos de doentes que eram
conhecidos por todos (a realidade da doença podia, assim, ser
verificada), doentes que eram curados nas casas, nas ruas, nas praças e
em qualquer hora e lugar, e doentes que eram curados completa,
imediata e definitivamente de todos os tipos de enfermidade. Vê-se,
assim, que em nada as curas atuais se assemelham ao que aconteceu
nos tempos de Jesus e dos apóstolos.

Levando tudo isso em conta, a igreja de Deus afastará de sua prática


qualquer forma de reunião ou campanha que tenha como alvo produzir
curas e milagres. Seus membros também, sendo “cristãos velhos”, ou seja,
crentes do tipo que se protege do erro pelo conhecimento da sã doutrina,
jamais participarão de programas desse tipo, sabendo que a obra poderosa
de Deus se realiza dentro de contornos bem diferentes daqueles que se
veem nos espetáculos enganosos que marcam o meio evangélico atual.

A busca de sucesso e prosperidade


Muitas igrejas da atualidade adotam a teologia da prosperidade, um
modelo doutrinário que propõe que a vontade de Deus é que os crentes
sejam sempre abençoados financeiramente, tendo também sucesso em todas
as demais áreas da vida.
O principal expoente dessa vertente teológica é Kenneth Erwin Hagin
(1917-2003), que propôs, inclusive, que o sucesso material ou a vitória
sobre as doenças e outros males são possíveis por intermédio da fé expressa
[93]
em palavras, ensino chamado de “palavra da fé” ou “confissão positiva”.
Assim, para os teólogos da prosperidade (ou triunfalistas, como
também são conhecidos), o crente pode obter vitórias nesta vida por meio
de declarações confiantes (“eu determino”, “eu não aceito”, “eu tomo
posse...”), por meio do uso da fórmula “em nome de Jesus”, ou por meio de
palavras de ordem dirigidas até mesmo ao próprio Deus (“eu reivindico”),
sendo que, quando o ideal da pessoa é eventualmente alcançado, essa se
[94]
torna a maior evidência de que ela tem uma fé robusta e madura.
É bom destacar que o ensino de que as palavras do crente têm poder
tomou formas e alcançou desdobramentos surpreendentes. Mestres
triunfalistas alegam “liberar o poder de Deus” com algumas frases que
dizem. Outros chegam a afirmar que, em muitos casos, o falecimento de um
paciente em estado terminal não pode acontecer enquanto os crentes da
família não concordarem unânimes em fazer uma oração “liberando a
morte”! Sem o pronunciamento dessa autorização, Deus, segundo dizem,
não pode levar o doente.
Vê-se, assim que, para os mestres da teologia da prosperidade, os
crentes têm certo grau de autoridade sobre Deus, além de direito completo
às bênçãos dele, podendo reclamá-las com ousadia. Nesse sentido, alguns
afirmam categoricamente que é errado dizer a frase “seja feita a tua
vontade” durante as súplicas, pois isso, segundo entendem, revela falta de
fé e pode impedir que o que é buscado seja finalmente alcançado. Outros,
levando seus ensinos às últimas consequências, concluem que a oração é
desnecessária, devendo ser substituída por declarações de vitória, por
determinações de sucesso completo e por reivindicações de direitos junto ao
trono celeste. Na verdade, alguns pastores que acolhem esse modelo
doutrinário ensinam seus seguidores a “perdoar Deus” por, em algum
momento da vida, não ter concedido o que lhes era devido.
Os pastores triunfalistas ensinam ainda, e de modo bastante veemente,
que outra forma de demonstrar fé e obter então as sonhadas bênçãos
materiais é por meio de contribuições financeiras dadas às suas igrejas.
Segundo eles, quanto mais a pessoa ofertar, maior será a demonstração de
sua fé (especialmente se estiver passando por apertos financeiros) e, por
isso, certamente essa pessoa será recompensada por Deus com notável
prosperidade e sucesso em todas as áreas da vida.
As comunidades que acolhem essa heresia raramente pregam sobre o
pecado, a salvação pela fé em Cristo ou sobre a vida de santidade,
resumindo-se a mensagens em ensinos ligados à confissão positiva e em
apelos insistentes para que as pessoas demonstrem sua fé contribuindo de
modo pródigo com a igreja, a fim de obter sucesso financeiro e outras
conquistas como curas, restauração de casamentos ou vitórias sobre algum
vício. Todos os testemunhos dados pelos fiéis versam apenas sobre essas
coisas e têm por intuito reforçar os apelos dos pastores.
A teologia da prosperidade ensina, assim, um outro evangelho,
divulgando heresias e blasfêmias assustadoras e apresentando o sucesso
financeiro como um elemento da redenção que Cristo obteve na cruz, algo
jamais pregado pelo Senhor e seus apóstolos. Por isso, esse “evangelho”
deve ser rejeitado com todo vigor pela igreja de Deus (Gl 1.8-9).
Algumas verdades cristãs sólidas que servem para desmascarar o
triunfalismo são as seguintes:

1. O poder de criar novas realidades a partir do pronunciamento de


palavras é detido apenas por Deus (Gn 1.3; Sl 148.5; Hb 11.3). Quando
a Bíblia fala sobre a força das palavras humanas, refere-se apenas ao
cuidado que se deve ter com a língua, já que o mau uso dela em
ofensas, mentiras, blasfêmias e calúnias, tem o “poder” de criar sérios
problemas (Pv 18.21; 26.28; Mt 15.11,18; Tg 3.5-9), enquanto o uso
sábio da palavra traz alento, sabedoria e paz (Pv 12.18; 15.2,4).

2. Somente Deus tem autoridade absoluta na administração e


distribuição de suas bênçãos. Ele concede o bem e o mal a quem quer,
quando quer e conforme quer (Êx 4.11; Jó 1.21; 2.10; Lm 3.27-28,38-
39; Rm 9.15-18). Ninguém pode questioná-lo, obrigá-lo ou se opor a
ele no modo como executa seus desígnios (Is 43.13; 45.9; Rm 9.20-
21), até porque o Senhor é absolutamente soberano (Is 46.9-10) e tudo
que faz é bom, santo, perfeito, sábio e totalmente justo (Dt 32.4; Is
40.13-14; Ap 15.3). A soberania e a sabedoria de Deus também
apontam para o fato de que o homem não tem o poder de manipulá-lo
por meio de palavras, orações, rituais ou fórmulas específicas. O
infinito entendimento, o imenso senhorio e a suprema liberdade do
Senhor o colocam muito acima da possibilidade de ser controlado por
alguém que, descobrindo um suposto jeito de influenciá-lo, “aperta os
botões certos” (Jó 23.13).

3. A censura ao uso da expressão “seja feita a tua vontade” é um


ataque frontal ao próprio Cristo que orou desse modo e ensinou seus
seguidores a fazer exatamente assim (Mt 6.10; 26.42). Aliás, Tiago
censura seus leitores por fazerem planos ousados de obtenção de lucro
sem nunca reconhecer humildemente que só teriam sucesso se essa
fosse a vontade de Deus (Tg 4.13-16). Nesse sentido, vejam-se
também o entendimento e a postura dos escritores bíblicos em Atos
16.6-7, 1Coríntios 16.7 e Hebreus 6.3.

4. A noção de que a oração é desnecessária também contraria


frontalmente o ensino bíblico mais elementar (Rm 12.12; Ef 6.18-19;
Fp 4.6; Cl 4.2-3; 1Ts 5.17,25). Ademais, substituir a oração humilde e
dependente pela exigência ousada é uma demonstração tão chocante de
irreverência, petulância, destemor, orgulho, atrevimento e blasfêmia
que nenhum verdadeiro convertido seria capaz de aceitar (Hc 2.20),
posto que, para o homem transformado, a serena sujeição a Deus está
acima dos desejos pessoais (Jó 1.21; Lm 3.27-31,38-39; Mq 6.8; Hc
3.17-18; 2Co 12.7-9).

5. As promessas bíblicas de prosperidade material (assim como as


ameaças de miséria) foram dadas a Israel ao tempo da Lei e seu
cumprimento dependia da estrita observância dos preceitos mosaicos
(Dt 28.1-14). Essas promessas (e também as ameaças — Dt 28.15-68)
não se aplicam à igreja que, como se sabe, é uma realidade nova,
surgida nos tempos apostólicos (Ef 2.15-16; 3.4-6) e distinta do Israel
nacional (Rm 9.3-4; 10.1; 11.11,25-26). Ademais, a dispensação da Lei
teve seu fim (Jo 1.17; Rm 7.4-6; 2Co 3.7-11; Gl 3.19,24-25; Cl 2.13-
14; Hb 7.12,18-19; 8.6-7,13; 9.10), havendo a obra de Cristo
inaugurado a Nova Aliança (Lc 22.20; Hb 12.24). Nessa Nova Aliança
nada se diz sobre prosperidade material (Hb 8.8-13).

6. O evangelho verdadeiro coloca a condição da alma muito acima da


prosperidade material, sendo sua mensagem focada na felicidade
eterna futura e não na riqueza passageira presente (Mt 16.26). Por isso,
a Bíblia não vê como absurdo o fato de alguém perder bens e posição
após a conversão ou por causa dela, mostrando que, de fato, isso pode
acontecer com muitos crentes (Fp 3.4-8; Hb 10.32-34).

7. Ao contrário do que ensinam os mestres da prosperidade, as pessoas


ricas em fé são exatamente as pobres (Tg 2.5). Uma boa prova disso se
encontra na figura de Pedro. O livro de Atos mostra que ele não tinha
ouro nem prata, mas mesmo assim foi capaz de, pela fé, curar um
paralítico (At 3.5-8). Além disso, todos os apóstolos, homens de fé,
foram colocados por Deus debaixo das mais terríveis penúrias
materiais (1Co 4.9-13; 2Co 6.4-10). O mesmo aconteceu com outros
que o autor de Hebreus alista entre os grandes heróis da fé (Hb 11.36-
39).

8. Paulo ensina que Deus, ao administrar sua graça salvadora, deu


preferência aos pobres, aos pequenos e aos fracos, a fim de humilhar
os de nobre nascimento e os poderosos deste mundo (1Co 1.26-29).
Isso mostra que, para Deus, a prosperidade material dos homens não
provoca necessariamente o seu deleite.

9. Na Bíblia, em vez de serem exemplos de fidelidade e de vida cristã


robusta, os ricos são apresentados como pessoas de fé muito frágil e de
vida que tende com mais facilidade para os prazeres carnais e as
perversidades (Mc 10.25; Lc 12.13-21; 16.19-23; 1Tm 6.17-19; Tg
5.1-6; Ap 3.15-17). Logo, não há nenhum estímulo na Bíblia para que
o crente almeje ser alguém demasiadamente próspero. Em vez disso, o
texto sagrado desencoraja o desejo de ficar rico, ensinando que a
situação econômica equilibrada é a mais recomendável para o homem
que teme a Deus (Pv 30.8-9; 1Tm 6.8-10).

10. Ao contrário do que propõe a teologia da prosperidade, não é


correto buscar a Deus tendo em vista a obtenção de bens materiais
(1Tm 6.3-8), pois isso pode servir de laço (1Tm 6.9-10). Jesus mesmo
censurou aqueles que o seguiam por causa do pão que ele multiplicara
(Jo 6.26-27).

11. Os pastores da prosperidade se encaixam perfeitamente no perfil


dos falsos mestres que, segundo a Bíblia, ambicionam dinheiro na
prática do ministério (2Co 2.17; Tt 1.11), consideram a piedade fonte
de lucro (1Tm 6.5,9-11), são buscados por pessoas cheias de cobiça
(2Tm 4.3-4), exploram os crentes com palavras blasfemas e fictícias
(2Pe 2.1-3,18-19) e se comportam vergonhosamente (Jd 4,11-16).
Diferente desses líderes, o pastor bíblico é um homem livre de avareza
(1Tm 3.3; Tt 1.7; 1Pe 5.2).

12. Diante dos pobres que há na igreja, não é dever dos pastores
ensiná-los a anelar por riquezas (Mt 6.19-21; 1Tm 6.9-10), mas sim
encorajá-los a trabalhar (1Ts 4.11-12; 2Ts 3.10-12), ajudar os que são
mais pobres do que eles (2Co 8.1-5) e se contentar com o que têm
(1Tm 6.8; Hb 13.5). No caso de haver pobres que realmente não
podem obter sustento, o dever do pastor é exortar os parentes dessa
pessoa a ampará-la (1Tm 5.4,8,16). Também é tarefa do pastor
admoestar suas ovelhas para que ajudem seus irmãos na fé que, por
forças alheias à sua vontade, não podem obter pão (Rm 15.26; Gl 2.10;
[95]
6.10; Ef 4.28; 1Jo 3.17).
Um dos lados mais tristes da realidade criada pelo evangelho da
prosperidade é que, geralmente, seus seguidores, depois de doar aos líderes
tudo que têm, percebem angustiados que foram vítimas de grave engano
doutrinário. Então, vão se queixar aos pastores e estes lhes dizem que o que
os impediu de ter sucesso foi a falta de fé. Assim, esses infelizes vão para
casa (se ainda tiverem casa!) sem os poucos bens que antes possuíam e com
uma enorme carga de culpa no coração.
A verdadeira igreja de Deus pode evitar que esse e muitos outros
danos recaiam sobre as pessoas ensinando-lhes as verdades alistadas supra
e combatendo veementemente qualquer indício dessa destruidora heresia.

Quebra de maldições

A doutrina sobre a quebra de maldições consiste no ensino de que as


pessoas, crentes ou não, são em geral alvos de maldições proferidas contra
[96]
elas, normalmente num acesso de indignação, cólera ou algo semelhante.
Segundo esse ensino, a mãe ou mesmo a professora que disse à criança
rebelde: “Você vai se dar mal na vida, não será ninguém se continuar
assim”, já pronunciou, com isso, uma maldição contra o menino. Essas
supostas maldições sempre “pegam”, pois, conforme visto, para os mestres
dessas ideias, as palavras humanas têm poder.
De acordo com essa doutrina, outra forma de as maldições alcançarem
uma pessoa é uma espécie de transmissão hereditária. Em suas igrejas, os
quebradores de maldição ensinam que os pecados e práticas cultuais
diabólicas dos ancestrais são suficientes para colocar uma pessoa sob
maldição, pois, contrariando o ensino de Ezequiel 18.1-20 e João 9.1-3,
[97]
afirmam que essas culpas são transmitidas de geração a geração.
Esses mesmos mestres dizem que o resultado dessas maldições é que o
amaldiçoado passa a ter problemas de comportamento de difícil solução
(alcoolismo, adultério, acessos de ira, etc.), enfrenta graves e constantes
crises de saúde (diabetes, câncer, obesidade, miopia...), não prospera e nada
do que faz dá certo (aqui se encontra o vínculo entre essa doutrina e o
ensino que proferem acerca da prosperidade material, já mencionado
acima). Faz-se então necessário quebrar a maldição a fim de que o
indivíduo desfrute uma vida feliz e abundante. Mas como?
De acordo com os mestres dessas doutrinas, a solução geralmente é
fazer orações especiais que precisam ser aprendidas ou participar de cultos
de livramento. Especificamente no caso de maldições originadas nos
antepassados, a “vítima” tem de orar a Deus pedindo que lhe seja revelada a
geração em que a maldição teve origem e, então, pedir perdão pelo pecado
do ancestral que lhe deu causa. Outros dizem que é preciso fazer regressões
mentais até o momento em que a maldição foi adquirida, a fim de quebrá-la
[98]
ali, na própria raiz.
Por isso, em algumas igrejas são realizadas campanhas de libertação
das quais os interessados na “quebra” devem participar. Segundo entendem,
no final dessas campanhas a maldição terá sido anulada pelas orações,
unções e palavras de ordem dos pastores. Em outros casos, pessoas
supostamente habilitadas na arte de quebrar maldições vão a uma casa em
que, num dia designado, se reúnem todos os membros (crentes ou não) de
uma determinada família que acredita ser oprimida por maldições. Ali se
realiza um culto especial com orações e repreensões a maus espíritos.
Quando tudo acaba, os membros da família acreditam estar libertos. Se a
sorte da família não mudar, a explicação é sempre a mesma: falta de fé por
parte de alguém.
Outras comunidades realizam retiros especiais em que as pessoas são
induzidas a fazer regressões mentais até o tempo da origem da maldição.
Chegando a esse ponto por meio da memória ou da imaginação, o indivíduo
pode enfim quebrar o mal que lhe foi lançado, fazendo uma súplica ou
pronunciando uma palavra de ordem.
Na Bíblia, é impossível encontrar apoio para essas noções e práticas. O
que as Sagradas Escrituras ensinam é que todos os homens estão debaixo de
apenas duas maldições: a maldição do Éden e a maldição da Lei.
Pela maldição do Éden, a mulher passou a ter grande sofrimento ao dar
à luz, dificuldades de relacionamento surgiram no âmbito conjugal, a terra
passou a produzir espinhos e ervas daninhas, o trabalho árduo tornou-se
necessário para a obtenção do sustento e a morte sobreveio à humanidade
(Gn 3.16-19).
No tocante à maldição da Lei, esta é lançada sobre todos os que
transgridem os santos mandamentos de Deus (Pv 3.33; Gl 3.10). Essa
maldição torna os transgressores condenáveis e merecedores do castigo
eterno (Gl 3.12). Uma vez que todos os homens desobedecem às
prescrições do Senhor (Rm 3.10-12), todos são malditos diante dele e,
consequentemente, estão separados de Deus, aguardando o castigo eterno
(Rm 3.23).
A solução para a maldição do Éden não pode ser obtida na presente
era, estando reservada para o futuro, quando Deus criar “novos céus e nova
terra” para a eterna habitação dos salvos (Ap 21.1). Ali, diz o Apocalipse,
não haverá maldição (Ap 22.3).
No que diz respeito à maldição da Lei, Deus proveu a solução por
meio da obra substitutiva de Cristo na cruz. Nesse sentido, Paulo afirmou
que Cristo nos resgatou da maldição da Lei fazendo-se ele próprio maldição
em nosso lugar quando foi pendurado no madeiro (Gl 3.13). Por isso,
quando alguém crê em Cristo, imediatamente se beneficia do sacrifício dele
e é resgatado para sempre da terrível maldição que o levaria ao inferno (Rm
5.1; 8.1). Se, todavia, o homem permanecer rebelde, não crendo em Cristo,
não entregando a vida a ele, enfim, não o recebendo como salvador (Jo
1.12), “a ira de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36) e o próprio Senhor o
chama de maldito (Mt 25.41).
Vê-se, assim, que as duas únicas maldições reais que pesam sobre o
homem têm sua forma precisa de solução. Quaisquer outras maldições são
apenas invenções, como também são invenções as fórmulas que apresentam
para saná-las.
De fato, o ensino bíblico mostra que os salvos, especialmente, não têm
nenhuma razão para se preocupar com qualquer maldição proveniente de
seus ancestrais nem de quem quer que seja. Paulo ensina que os crentes são
novas criaturas, que para eles as coisas velhas já passaram e tudo se fez
novo (2Co 5.17). Ele diz também que não há porque os cristãos se
preocuparem com as coisas que para trás ficam, devendo, ao invés disso,
manter os olhos fixos em seu futuro glorioso (Fp 3.13-14). O ensino de
Paulo vai além, e ele afirma que nenhuma condenação há para os que estão
em Cristo (Rm 8.1) e que, por isso, não precisam viver atemorizados (Rm
8.15), pois o Senhor os protege e deles cuida com zelo sem igual (Rm 8.31-
39).
O Novo Testamento enfatiza que a obra de Cristo em favor dos crentes
foi suficiente para libertá-los do poder do pecado (Cl 1.13) e fez deles
membros da raça eleita, da nação santa (1Pe 2.9), um povo ricamente
abençoado (Ef 1.3), contra quem as portas do inferno não podem prevalecer
(Mt 16.18). Portanto, acerca dos salvos pode-se dizer o que Balaão foi
forçado a dizer acerca de Israel: “Como posso amaldiçoar a quem Deus não
amaldiçoou? (...) Ele abençoou, não o posso revogar... Pois contra Jacó não
vale encantamento, nem adivinhação contra Israel... Benditos os que te
abençoarem e malditos os que te amaldiçoarem…” (Nm 23.8a, 20b, 23a;
24.9b).
Assim, os rituais de quebra de maldição são desnecessários para os
crentes. Todavia, se alguém não é crente, o único modo de livrar-se das
duas reais maldições que lhe pesam (a do Éden e a da Lei) é render-se a
Cristo. Contra essas duas maldições, de nada valerá participar de cultos
barulhentos, fazer orações especiais ou coisas semelhantes. Somente pela fé
em Cristo o indivíduo pode deixar de ser maldito e tornar-se bendito.
Portanto, para o incrédulo, qualquer ritual de quebra de maldição é inútil.
Ora, se a quebra de maldição é desnecessária para o crente e inútil para
o incrédulo, para que serve então? Para nada! Logo, não há por que perder
tempo com essa prática supersticiosa inventada em anos recentes.
Concluindo esta seção, é importante destacar o real significado de duas
passagens bíblicas muito usadas pelos proponentes da doutrina da maldição
hereditária: Êxodo 20.5-6 e Romanos 5.12. Diante desses dois textos é
preciso fazer as seguintes ressalvas:

1. Êxodo 20.5-6 não trata de maldições hereditárias, nem de qualquer


tipo de feitiço que eventualmente esteja sobre os filhos dos perversos,
mas sim da experiência comum das famílias cujos ancestrais viveram
longe dos caminhos de Deus. Evidentemente, homens que não andam
sob o temor do Senhor deixam para seus filhos e netos uma herança de
sofrimentos, desajustes e erros que os afetam ao longo de toda a vida.
Ademais, os ímpios tendem a gerar uma prole que segue seus passos
de impiedade, trazendo ainda mais miséria sobre si e outros membros
da família. É ao sofrimento decorrente disso tudo que o Senhor se
refere quando diz que visita a iniquidade dos pais nos filhos, devendo
ser ainda lembrado que essa não é uma ação que ele realiza sempre.
Na verdade, quando o filho de uma pessoa perversa se volta para o
Senhor, muitos males (se não todos) decorrentes de sua criação
perversa são evitados, passando a pessoa a obter o favor do Senhor, o
que se pode facilmente verificar na história bíblica (2Rs 16.1-4
cp.18.1-7) e na experiência comum.

2. O ensino de Romanos 5.12 aponta para o impacto do pecado de


Adão sobre toda a sua descendência. É preciso, contudo, lembrar que,
conforme se depreende do próprio texto em questão, Adão ocupava o
lugar de representante da humanidade inteira (vejam-se o v. 19 e 1Co
15.21-22). Por isso, seu ato de rebeldia afetou todos os homens. Essa
posição, contudo, era exclusiva de Adão e não há na Bíblia nenhum
indício de que outras pessoas possam ocupar posições semelhantes em
relação aos seus descendentes. Aliás, Ezequiel 18.1-20 realça
exatamente o contrário, destacando que a responsabilidade pelo pecado
de um indivíduo é pessoal e intransferível.

A chamada ‘Restauração Apostólica’

Muitas igrejas de hoje acreditam na continuidade do apostolado. Isso


tem como causa um movimento recente denominado “restauração
apostólica”, promovido a partir dos anos 1990, especialmente no âmbito
[99]
pentecostal.
A verdade, porém, é que a igreja de Deus sempre teve de lutar contra
tendências desse tipo. De fato, o título de apóstolo foi reivindicado por
falsos mestres já nos dias do Novo Testamento (2Co 11.13-15; Ap 2.2) e a
doutrina da existência de apóstolos posteriores aos Doze tem marcado seitas
como o mormonismo e desvios como o romanismo. Este último defende há
séculos a continuidade do apostolado na figura do papa.
A análise desse erro ao longo da história da igreja cristã mostra que
seus proponentes arrogam para si o título de apóstolo ou investem seus
preferidos nessa função geralmente movidos pelo amor ao dinheiro, à
grandeza e ao poder. Com efeito, gigantescos impérios financeiros têm sido
construídos pelos “apóstolos” contemporâneos, mostrando o real objetivo
por trás do que chamam de ministério cristão. Também reivindicações de
autoridade absoluta são feitas por esses homens que escravizam pessoas,
exploram a gente ignorante e condenam qualquer um que avalie ou
questione seus ensinos absurdos.
A Bíblia silencia acerca de qualquer ideia referente à continuidade
apostólica e, por isso, os crentes de outrora jamais acolheram esse desvio.
De fato, a simples análise das Escrituras protege o crente de cair no engano
proposto pelos expoentes da restauração apostólica. Essa proteção tem
como base a distinção que existe no Novo Testamento entre o apóstolo no
sentido geral e o apóstolo no sentido técnico.
No sentido geral, a palavra “apóstolo” designava apenas um
missionário pioneiro, já que o significado básico do termo é mensageiro.
Nesse sentido mais abrangente, Barnabé, por exemplo, foi chamado de
apóstolo em Atos 14.14.
Já no sentido técnico, o vocábulo “apóstolo” tinha aplicação bastante
limitada, designando apenas aqueles que viram o Senhor ressurreto e foram
investidos diretamente por ele na função apostólica (At 1.21-22; 1Co 9.1;
Gl 1.1), recebendo também, da parte de Deus, revelações doutrinárias
especiais que serviram e ainda servem como fundamento doutrinário para a
igreja (Ef 2.20; 3.4-5).
Nesse sentido técnico e estrito, os apóstolos só existiram no século 1,
quando Deus lançou os alicerces teológicos, éticos e funcionais da igreja
(Ef 2.20), sendo seu número limitado a apenas doze componentes (Ap
21.14).
As marcas distintivas desse pequeno grupo eram as seguintes:

1. Eles eram missionários pioneiros e, nesse aspecto, se assemelhavam


aos apóstolos no sentido geral (Rm 15.20; 2Co 10.13-16).
2. Eles eram testemunhas oculares da ressurreição (1Co 9.1; 15.8).
3. Eles não se autoinvestiam na função apostólica (Rm 1.5; 2Co 11.13;
Ap 2.2).
4. Eles realizavam prodígios milagrosos (2Co 12.12).
5. Eles não entravam nessa função por intermédio de outros homens,
mas somente por ordem direta de Cristo (Gl 1.1, 11-12). A única
exceção que ocorreu no caso de Matias (At 1.21-26) foi provavelmente
por causa do caráter provisório de seu papel como décimo-segundo
apóstolo.
6. Eles eram canais de revelação doutrinária inédita (1Co 15.3; Ef 3.4-
6).
7. Eles eram colocados por Deus numa posição de desprezo, miséria e
sofrimento (1Co 4.9-13).

Se alguém não apresentasse essas marcas, poderia ser chamado de


apóstolo no sentido geral e não técnico, isto é, poderia ser, no máximo, um
missionário pioneiro. Para ser, contudo, um apóstolo no sentido técnico e
estrito, cada um desses traços devia ser real em sua vida. Ora, é evidente
que os apóstolos contemporâneos não apresentam nenhuma das marcas
supraenumeradas, sendo, portanto, absolutamente falsos.
Na exposição do funcionamento correto da igreja de Deus, é muito
importante destacar que o apóstolo no sentido técnico, já nos tempos do
Novo Testamento, foi perdendo a posição de liderança absoluta na igreja,
cedendo lugar aos bispos ou pastores.
Isso pode ser visto claramente no modo como a forte liderança do
apóstolo Pedro é nublada pelo decisivo governo de Tiago que era pastor e
que não fazia parte do grupo dos Doze. De fato, Pedro mostra temor diante
de uma comitiva que Tiago enviou a Antioquia (Gl 2.11-13) e, no Concílio
de Jerusalém, a palavra final e decisiva foi dada por Tiago e não pelos
apóstolos Pedro e Paulo (At 15.13ss).
Ademais, em Atos 21.17-26, há sinais de que a liderança da igreja de
Jerusalém passou a ser formada apenas por presbíteros (v. 18), havendo
ainda evidências de que o apóstolo Paulo reconhecia a posição daqueles
homens, chegando a prestar-lhes relatórios e a seguir suas orientações.
Tudo isso dá indícios de uma mudança de primazia já na igreja
primitiva que, aos poucos, foi substituindo a liderança apostólica pela
pastoral. Afinal, com a morte dos Doze ainda no século 1, o cargo de
apóstolo no sentido estrito desapareceu de maneira definitiva.
É, portanto, pertinente a observação de Joachim Rohde:
Depois de Atos 16.4 os apóstolos não são mais mencionados
e Lucas apresenta os anciãos [ou pastores], com Tiago, o irmão
de Jesus, à sua frente, como a nova liderança da comunidade de
Jerusalém, postulando uma espécie de conselho superior para a
[100]
igreja em geral (21.18).

Evidentemente, o desejo de ser apóstolo tem como causa o anseio de


galgar uma posição mais elevada na igreja, suplantando, inclusive, o cargo
pastoral. Esse mau anseio se baseia na visão equivocada de que o apóstolo
está acima do pastor.
Porém, conforme visto, no Novo Testamento a liderança máxima dos
apóstolos só perdurou durante algum tempo, cedendo depois lugar aos
bispos.
Isso serve para mostrar, entre outras coisas, que, mesmo que existissem
apóstolos ainda hoje, eles em nada seriam superiores aos pastores, sendo
estes os líderes que Deus designou para conduzir sua igreja depois que os
Doze cumpriram seu papel específico antes mesmo do fim do século 1.
Assim, nenhuma igreja bíblica deve se curvar aos apóstolos atuais,
uma vez que todos são falsos e, mesmo se fossem verdadeiros, seu papel de
liderança na igreja não poderia superar a autoridade pastoral.
Avivamentos estranhos

Influenciadas por falsos mestres, inúmeras pessoas acreditam que as


práticas bizarras que hoje se veem em muitos cultos evangélicos são prova
de avivamento. Para essas pessoas, a igreja avivada, ou seja, a igreja em que
o Espírito Santo está realmente atuando é aquela em que todos gritam,
sapateiam, dançam e choram freneticamente. A crença geral é num tipo de
“avivamento” em que não há nada de arrependimento, confissão,
santificação, consagração ou transformação, mas somente barulho e
confusão.
Em certas comunidades, essa forma bizarra de “avivamento” chega a
excessos incríveis, com pessoas emitindo sonoras gargalhadas, rolando no
chão, latindo, rosnando e uivando como animais ou imitando bêbados
[101]
cambaleantes. Todas essas práticas chocantes são atribuídas ao poder do
Espírito Santo em atuação notável sobre o seu povo.
Será, porém, que essas manifestações tresloucadas são mesmo
evidência da ação do Espírito na vida de alguém? Será que o Espírito que
moveu os profetas no Antigo Testamento (1Pe 1.11), atuou na vida e no
ministério de João Batista (Lc 1.13-15), ungiu o Messias prometido (Lc
4.16-19), capacitou a igreja para o testemunho do evangelho (At 1.8) e
inspirou os escritos da Bíblia (2Pe 1.20-21) é o mesmo espírito que faz
pessoas ficarem latindo de quatro no chão da igreja ou rolando
freneticamente entre os bancos da congregação?
É óbvio que não. Na verdade, no Novo Testamento, as pessoas
dominadas pelo Espírito Santo faziam uma só coisa: testemunhavam
ousadamente acerca da sua fé por meio da pregação e do viver piedoso (At
1.8; 4.8-13,31; 6.3; 11.22-24). Assim, os atos de histeria que se veem em
muitas igrejas hoje em dia não refletem nada do verdadeiro avivamento
espiritual.
Outro equívoco comum é considerar avivado qualquer movimento que
Deus use para promover conversões. Todo crente deve lembrar que ser
usado por Deus não é prova de vigor espiritual, uma vez que Deus usa
quem quer, até mesmo os piores incrédulos!
De fato, a Bíblia mostra que o diabo foi usado por Deus na vida de Jó e
de Paulo a fim de que esses homens conhecessem melhor o Senhor e sua
graça (Jó 42.5; 2Co 12.7-9). Demônios foram usados pelo Senhor para que
os planos dele se realizassem (1Sm 16.14; 1Rs 22.20-23). Pessoas e até
nações incrédulas foram usadas por Deus no cumprimento de seus
propósitos (Is 10.5,6; At 4.27,28).
Também na história da igreja cristã é possível ver Deus usando
instituições religiosas terrivelmente corrompidas para promover a
conversão de seus eleitos. Lutero e os demais reformadores de primeira
geração são exemplos de conversões ocorridas dentro da Igreja Católica
Romana, num tempo em que essa igreja era um verdadeiro covil de
malfeitores.
Não há, portanto, porque considerar avivado um movimento
simplesmente porque é usado por Deus na salvação dos perdidos.
Tampouco deve o crente estranhar quando o Senhor usa igrejas falsas ou
mesmo as mais horríveis seitas pagãs para cumprir seus desígnios
salvadores. Além do mais, é necessário destacar que o verdadeiro crente,
quando convertido em contextos assim corrompidos, logo percebe, pelo
Espírito Santo que nele habita (1Jo 2.20-21,27), que ali não é seu lugar e
depressa foge para dentro dos muros de uma igreja que prega a verdade.
Também bastante comum na atualidade é o pensamento errado de que
a igreja avivada tem um crescimento estrondoso. Ainda que muitas vezes
Deus abençoe a igreja viva com crescimento numérico, o aumento de
membros de uma comunidade evangélica não é necessariamente prova de
que se trata de um movimento cheio de vigor espiritual.
Na verdade, Jesus nunca disse que o evangelho e a sã doutrina teriam
grande aceitação neste mundo. Antes, ele falou que a pregação da
verdadeira fé atrairia um número reduzido de pessoas (Mt 7.13-14; 22.14;
Lc 12.32; 13.22-28) e em seu ministério provou quanto isso é verdade (Jo
6.66). Além do mais, disse que o que teria grande aceitação seria a mentira,
e o que se multiplicaria seria a iniquidade. Já o amor, procedente de
corações transformados, esse se esfriaria em quase todos (Mt 24.11-13).
Assim como Jesus, Paulo e João também afirmaram que a doutrina
verdadeira teria poucos seguidores e que as fábulas teriam imenso sucesso
entre os homens (2Tm 4.1-4; Ap 3.4), o que faz crer que o rápido e
descontrolado crescimento numérico de uma igreja é prova, muitas vezes,
de que seus líderes não pregam a sã doutrina.
Com efeito, os crentes não podem esquecer o fato de que “onde estiver
o cadáver, aí também se ajuntarão abutres” aos montes, saltando histéricos
sobre a carne pútrida da pregação mentirosa (Mt 24.28).
Todas essas noções distorcidas acerca do que é uma igreja avivada
devem, portanto, ser rejeitadas e substituídas por um conceito
fundamentado nas Escrituras e não nas invenções de falsos mestres. Ora, à
luz da Bíblia, uma possível definição de igreja avivada seria a seguinte:
aquela cujos membros são doutrinariamente maduros, têm uma vida reta de
santidade, se dedicam ao serviço a Cristo e demonstram alegria por sua
salvação numa adoração vibrante e numa comunhão dinâmica e amorosa.
Qualquer grupo que se diga avivado e não se encaixe de forma alguma
nessa definição é orgulhoso, engana-se a si mesmo e, com suas desordens e
desatinos, mancha o bom nome da igreja de Deus diante dos homens.
Era precisamente isso o que acontecia na igreja de Corinto. Ali os
cultos eram marcados pelo uso errado do dom de línguas (que na época
ainda existia) e por grande confusão (1Co 11.20-21; 14.19,23). Apesar
disso, aqueles crentes se consideravam a nata do cristianismo e andavam
cheios de si (1Co 5.2). O apóstolo, porém, lhes escreveu dizendo que, na
verdade, eles eram imaturos, carnais (1Co 3.1-2), tolerantes com o pecado
que reinava em seu meio (1Co 5.1) e desunidos (1Co 1.10-13; 6.7; 11.18).
Paulo os enxergava como pessoas carentes até de noções básicas de
decência e ordem, chegando a ter de lhes ensinar como se comportar
durante os cultos (1Co 14.26-40).

O princípio do santuário

Entre os erros mais comuns cometidos no meio cristão está também o


princípio do santuário. Segundo esse princípio, o edifício que a igreja usa
para realizar seus cultos e reuniões é um templo, ou seja, uma espécie de
lugar sagrado em que habita a divindade, um recinto em que o piso, as
paredes e os móveis que o guarnecem são revestidos de santidade especial
que jamais deve ser maculada.
Que esse princípio está errado é evidente, em primeiro lugar, porque o
cristianismo é uma religião sem templos. Desde os seus primórdios, a igreja
cristã nunca foi obrigada por qualquer disposição divina a ter um lugar
santo onde seus membros devessem se reunir. Se os cristãos de Jerusalém se
reuniam no templo (At 2.46), é preciso lembrar que aquela magnífica
[102]
construção feita por Herodes pertencia ao judaísmo, não ao cristianismo.
Além disso, não se deve esquecer que os crentes de Jerusalém se reuniam
nos imensos pátios e pórticos do templo (ali não existiam auditórios)
porque, sendo judeus, mantinham ainda certos costumes judaicos relativos à
prática da oração (At 3.1).
Também é preciso frisar que, como todos em Jerusalém naqueles dias,
os cristãos viam os amplos espaços do templo como lugares de convívio
social, muito convenientes para seus encontros e para a pregação do
[103]
evangelho ao povo (At 3.11; 4.1; 5.21,25,42). Ainda, porém, que
nutrissem esses costumes, a pregação de Estevão proferida diante do
sinédrio mostra que até os crentes judeus do período neotestamentário
sabiam que “o Altíssimo não habita em casas feitas por homens…” (At
7.48-49).
Além do mais, é sabido que a igreja do Novo Testamento, mesmo em
Jerusalém, se reunia nas casas dos crentes (At 2.2,46; 5.42; 12.12). Esse
fato se torna ainda mais notório quando são observadas as comunidades
cristãs espalhadas pelas diversas cidades distantes de Jerusalém, onde o
templo judaico estava. Todas aquelas comunidades se reuniam nos lares,
sem jamais se preocupar com a edificação de um “santuário” (At 20.20; Rm
16.5; 1Co 16.19; Cl 4.15; Fm 2).
Aliás, para o cristão da igreja primitiva, a construção de templos era
uma prática tipicamente pagã (At 14.13; 19.27,35; 1Co 8.10). Tanto que, ao
que parece, foi só no limiar do século 3 que o princípio do santuário
começou a integrar o pensamento cristão. Prova disso é que o mais antigo
templo cristão já encontrado é uma casa-igreja em Dura-Europos, que foi
[104]
construída por volta de 232 e destruída em 258.
A suposta conversão do imperador Constantino, ocorrida por volta do
ano 312, imprimiu o princípio do santuário com força ainda maior na
mentalidade da igreja. Segundo o notável historiador Edward Gibbon, a
partir dessa época esse princípio foi totalmente assimilado pelos cristãos.
Com isso, as ideias pagãs sobre edificações dedicadas aos deuses foram
cristianizadas e os templos de Júpiter e Minerva foram consagrados a
[105]
Cristo.
Desde então, muitos líderes eclesiásticos passaram a ensinar que as
sedes em que as igrejas locais se reúnem são templos e, com base nisso,
inventaram novos rituais e estranhas restrições que têm ares de piedade,
[106]
mas não servem para nada.
Por exemplo: muitas igrejas realizam “cultos de consagração” quando
terminam a construção de um “templo” novo. Essas consagrações,
comumente, abrangem móveis e utensílios como bancos, instrumentos
musicais e microfones. Outras igrejas consideram o púlpito a parte mais
sagrada do “santuário” e não permitem que ninguém sequer pise ali, exceto
os pastores e os pregadores (como os faxineiros fazem para limpar essas
áreas?). Outras ainda proíbem que se entre no “templo” fora do horário dos
[107]
cultos e censuram quem conversa ali depois de findas as reuniões.
Além da criação dessas práticas, regras e rituais, o acolhimento do
princípio do santuário também passou a ser usado por líderes
inescrupulosos para manipular as pessoas ignorantes, subjugando-as e,
então, tirando proveito delas.
Isso passou a ser feito por meio da construção de imensos santuários,
dotados de grande majestade arquitetônica. É sabido que esse tipo de
suntuosidade imprime nas pessoas um senso muito forte de pequenez e
insignificância, fazendo-as resignar-se diante da imensidão e do luxo que as
cerca. Ora, esse sentimento de baixeza também remove das pessoas comuns
qualquer disposição crítica, faz crescer nelas uma reverência cega e inibe
toda sua capacidade de perceber erros, abusos, desvios e mentiras
propagados dentro daqueles grandiosos recintos.
De fato, contemplando as colunas gigantes de um opulento e luxuoso
edifício religioso, ao som de uma música solene, esplêndida e inebriante, o
homem simples é tomado de assombro, sente-se esmagado em face de tanta
“glória” e facilmente se curva diante de qualquer coisa que ali veja ou
escute. Além disso, impressionado com toda aquela falsa majestade e
percebendo o forte sentimento de contemplação, arrebatamento e espanto
que o invade, esse homem tende a interpretar sua tocante experiência como
uma prova de que Deus de fato está naquele lugar e, afinal, duplamente
enganado, é levado pelos líderes desses “templos” a satisfazer todas as suas
vontades.
Como se sabe, esse expediente tão eficaz na manipulação da gente
ignorante é muito antigo e comum, sendo usado com bastante habilidade
pela igreja católica (basta observar a opulência de suas basílicas), por seitas
como o mormonismo e por várias igrejas que se dizem evangélicas.
Tudo isso jamais teria espaço entre os crentes de hoje se os verdadeiros
ministros da Palavra cultivassem uma visão melhor elaborada acerca do que
a Bíblia diz sobre santuários, em especial o templo usado na época do
Antigo Testamento. Ora, mesmo um estudo superficial desse assunto
revelará que sua análise deve envolver dois aspectos: o interno e o externo.
Em seu aspecto externo, o ensino bíblico sobre o templo judaico
aponta para as disposições dadas por Deus sobre o local em que devia ser
construído o edifício (Dt 12.4-14), suas dimensões, a maneira que seus
móveis e utensílios deviam ser dispostos, os detalhes acerca das práticas a
ser realizadas em suas dependências e as normas gerais sobre sua utilização
(Êx 25-30).
Já o aspecto interno do ensino sobre o templo realça os santos
princípios que cada um dos fatores externos visava a transmitir. É o autor de
Hebreus quem ensina claramente que o templo judaico, com suas formas e
utensílios, era uma representação de verdades e princípios eternos (Hb 9.1-
10). Ora, é sabido que esses princípios são imutáveis e permanentes,
enquanto as regulamentações de natureza exterior são mutáveis e
passageiras.
A efemeridade do que é meramente exterior no tocante ao templo pode
ser comprovada pelo próprio testemunho histórico. O templo de Jerusalém
foi destruído pelo general Tito no ano 70 d.C. e jamais foi reconstruído.
Aliás, o próprio Senhor predisse essa destruição quando seus discípulos se
revelaram admirados com as imensas colunas do templo de Herodes (Mt
24.1-2). Diga-se de passagem que, nessa ocasião, o Mestre mostrou que o
entusiasmo com monumentos religiosos de pedra, tão comum ainda hoje, é
vão.
Além disso, mostrando a importância passageira do templo em seu
aspecto físico, Jesus disse em outra ocasião, quando conversava com a
mulher samaritana, que a época de adorar a Deus levando em conta lugares
físicos chegara ao fim (Jo 4.19-24).
O que importa, portanto, para a igreja de Deus é o “aspecto interno” do
ensino sobre o templo. O que significavam todas as disposições exteriores
ligadas ao santuário? Para quais verdades apontavam aquelas prescrições?
Como a igreja pode observar e viver essas verdades hoje, num tempo em
que santuários de pedra não têm mais valor algum?
Em resposta a isso tudo, é preciso destacar primeiramente que o ensino
bíblico sobre o templo indica a necessidade que o homem tem de um
mediador para ter acesso a Deus. No templo, o “lugar santíssimo” ficava
separado do “lugar santo” por um véu que só o sumo sacerdote transpunha
uma vez por ano, a fim de oferecer sacrifícios por seus próprios pecados e
pelos do povo (Hb 9.2-4,6-8).
Isso significava que o acesso a Deus permanecia fechado (Hb 9.8),
aguardando um mediador perfeito, por meio de quem o pecador pudesse se
achegar ao Pai. Como se sabe, o mencionado mediador é o Senhor Jesus
Cristo (1Tm 2.5-6; Hb 9.11-12,15; 12.24). Foi, talvez, por esse motivo que,
quando ele morreu, o véu do templo se rasgou de alto a baixo (Mt 27.51).
Isso provavelmente mostrou, entre outras coisas, que o caminho do homem
[108]
para Deus acabara de ser aberto.
A implicação prática desse fato é que o cristão pode agora se
aproximar de Deus com confiança (Hb 10.19-22) e junto dele desfrutar de
boa comunhão, misericórdia, graça e auxílio (Hb 4.16), sem precisar, por
exemplo, da ajuda de um sacerdote a quem deva se confessar.
O fato de o véu ter-se rasgado também mostra que a necessidade do
templo como veículo de acesso a Deus desapareceu. Isso significa que
construir um templo hoje equivale a afirmar que a obra de Cristo não foi
suficiente para abrir o caminho do trono da graça para o pecador,
necessitando ele ainda de lugares sagrados e rituais especiais para se
achegar ao Senhor e obter o seu favor (Hb 9.8).
Em segundo lugar, o estudo das verdades que subjazem a figura do
templo mostra que a ira de Deus suscitada pelo pecado humano só pode ser
aplacada por meio de sangue (Hb 9.22). A justa indignação do Senhor
contra toda iniquidade exige propiciação, e esta só pode ser feita com a
morte. A existência do altar no templo, bem como todos os rituais de
sacrifício pelo pecado ali realizados, aponta para essa realidade (Lv 16).
Isso tudo explica a necessidade da morte de Cristo, destacando sua
importância singular, uma vez que o Novo Testamento ensina que, por sua
morte, Cristo fez propiciação pelos pecados (Rm 3.25; 1Jo 2.2; 4.10),
desviando do crente a ira de Deus (Rm 5.1,9; 8.1) ao lhe oferecer um
sacrifício perfeito e definitivo, suprindo assim uma necessidade que os
sacrifícios realizados no templo judaico não podiam suprir (Hb 9.11-12;
10.11-14).
Nesse aspecto em particular, a morte de Cristo mostra ainda quão
desnecessário o templo se tornou, pois sendo ali o local em que os
holocaustos eram feitos, sua importância desapareceu tão logo o Senhor
ofereceu a si mesmo como sacrifício final e completo pelos pecados, feito
uma vez por todas (Hb 7.26-27).
O caráter marcantemente sangrento dos rituais realizados no templo
também revela o quanto Deus é santo e não pode suportar a iniquidade (Hc
1.13).
Assimilando essas verdades ensinadas simbolicamente pelo sistema
sacrificial do Antigo Testamento, o cristão entenderá melhor o sentido da
cruz e também verá com maior nitidez o quanto Deus odeia o pecado (Hb
10.26-31), já que este só pode ser punido com a morte (Ez 18.4; Rm 6.23)
e, considerando essas coisas, tentará viver uma vida grata e reta (Hb 12.28-
29).
Outra verdade que deriva da análise do templo do Antigo Testamento
advém do seu papel na centralização da religião israelita. O estudo do
templo mostra que Deus se preocupou muito em criar um núcleo central
para o culto verdadeiro. Com efeito, o Senhor proibiu que diversos templos
fossem construídos em Canaã. Sua ordem era que somente um fosse
edificado no lugar que ele próprio escolhesse (Dt 12.4-14). Na verdade,
construir um santuário em outro local equivaleria a criar uma nova religião,
sujeita a outro deus (1Rs 12.26-33).
Evidentemente, a centralização do culto determinada pelo Senhor tinha
por propósito preservar a unidade nacional e evitar que as doze tribos de
Israel espalhadas pela Palestina, em contato com as diferentes formas
cananitas de culto pagão, dessem origem a alguma espécie de sincretismo
religioso, comprometendo com isso a qualidade moral e espiritual de toda a
nação que, então, sofreria fatalmente as terríveis consequências da quebra
da aliança (Dt 28.15-68).
Para evitar, ou pelo menos retardar tudo isso, a lei de Deus
determinava que o templo fosse um só, sendo instalado no local que Deus
escolhesse (Dt 14.23; 15.20; 16.2; 17.8), ao que Josué obedeceu e instalou o
tabernáculo em Siló (Js 18.1), onde permaneceu por cerca de trezentos
anos, até os dias de Samuel (1Sm 1.3).
Posteriormente, nos dias de Davi, um novo local para o templo foi
escolhido pelo Senhor na cidade de Jerusalém (1Cr 21.18 – 22.1; 2Cr 6.6).
Nesse lugar, Salomão construiu um magnífico santuário (2Cr 3.1). Depois
disso, nenhum outro local foi escolhido por Deus para a edificação de sua
[109]
casa. Os templos edificados pelos judeus depois do exílio babilônico
foram todos construídos no mesmo lugar que o Senhor indicara a Davi.
De todo esse cuidado de Deus em exigir a manutenção de um núcleo
central e singular para a adoração, depreende-se que ele quer que o culto ao
seu nome seja sempre livre de contaminações. O sincretismo religioso e o
tão pregado ecumenismo são abomináveis aos olhos dele, pois implicam a
mistura de atos legítimos de culto com práticas e crenças supersticiosas,
próprias de religiões demoníacas.
Fuja, portanto, a igreja cristã de qualquer tipo de associação com o
[110]
romanismo, o islamismo, o hinduísmo e com as seitas que parecem
[111]
cristãs e não são. Que esse zelo ocupe mais a mente dos pastores de
Cristo do que o vão cuidado de consagrar paredes de tijolo e móveis de
madeira.
Do estudo do templo também é possível auferir o princípio de que o
culto a Deus deve ser regido por determinações que emanam da sua vontade
soberana (Hb 8.5). Quando alguém observa as inúmeras regras divinas que
regiam os atos cultuais dentro do templo no Antigo Testamento, conclui
facilmente que é falsa a ideia de que a adoração ao Senhor pode ser feita da
[112]
maneira que o adorador bem entende.
A liberdade concedida por Deus, ao contrário do que muitos pensam,
não é liberdade sem fronteiras (Gl 5.13; 1Pe 2.16). Os interessados nesse
tipo de liberdade devem renunciar à condição de seres humanos e viver
como animais a dar vazão a todos os impulsos de seus instintos naturais.
Mas façam isso nos campos e florestas, não durante a adoração ao
verdadeiro Deus. Pois o culto cristão não deve ter espaço para baderneiros,
mas sim se desenvolver dentro dos limites da decência, da ordem, da
reverência, do temor e de tudo que é aceitável (1Co 14.40; Hb 12.28).
É também estudando o ensino bíblico sobre o templo judaico que o
crente descobre princípios eternos acerca da contribuição financeira para a
obra de Deus. Sabe-se, por exemplo, que, no Antigo Testamento, o dízimo
devia ser levado ao templo (Ml 3.10). Ora, essa determinação tinha por
objetivo proteger o princípio de que os bens materiais devem ser usados
para honrar a Deus, sendo aplicados em seu serviço (Pv 3.9).
Portanto, ainda que, pelo fato de não haver mais o templo, seja
impossível hoje cumprir à risca o preceito de Malaquias 3.10, permanece
intocável o princípio acima exposto. Assim, todo cristão que quer agir de
maneira responsável deve cooperar financeiramente para que a obra de
Deus seja mantida e levada adiante neste mundo (At 4.34-37; 11.29-30).
Eis, assim, alguns exemplos do aspecto interno do ensino bíblico sobre
o templo. O problema de muitas igrejas, conforme visto, é o apego às
normas acerca do santuário em sua face externa, ignorando que a época do
santuário de pedras ficou para trás.
Isso tem gerado preocupações e enormes gastos com a construção de
suntuosos edifícios, tem levado pessoas a gastar tempo precioso com o
planejamento de cultos solenes de consagração de santuários e seus
utensílios e tem feito pastores se desgastarem com a criação e manutenção
de regras acerca do que pode ou não ser feito na “nave” dos seus templos.
Todas essas enormes parcelas de tempo, trabalho e dinheiro poderiam
ser melhor direcionadas se uma compreensão maior das Escrituras reinasse
no meio evangélico. Com efeito, quantos esforços deixariam de ser
empregados em vão se todos os crentes atentassem para o ensino de Jesus à
samaritana, quando disse que o período de adoração a Deus em templos ou
lugares sagrados havia chegado ao fim (Jo 4.19-24)! E que dizer dos
ensinos de Paulo, de Pedro e do autor de Hebreus que, unânimes, insistem
em afirmar que o templo cristão são os próprios crentes (1Co 3.16; 6.19; Hb
3.6; 1Pe 2.5)?
Quem quiser, pois, consagrar um templo a Deus, consagre-se a si
mesmo; e quem quiser ter reverência dentro de um templo, tenha reverência
em si mesmo. Da mesma forma, se alguém quiser glorificar a Deus num
santuário, glorifique-o em seu próprio corpo, com cada membro que o
compõe; e se algum cristão quiser adorar o Pai num lugar sagrado, adore-o
dentro de si mesmo, no templo de sua alma, e de todo o coração, pois é esse
o tipo de adorador que o Pai procura (Jo 4.23-24).
Ora, o que é numeroso e patente não exige busca cuidadosa. Só o que é
raro e difícil de ver requer a diligência da procura. Que todo crente seja,
pois, parte da classe quase extinta de homens e mulheres que se preocupam
em adorar a Deus no verdadeiro santuário do coração.
Duas Perguntas

1) É possível que ocorram conversões em igrejas cheias de desvios?


É claro que sim. A graça salvadora de Deus não é impedida pelos desatinos
dos homens. Já foi dito neste capítulo que os reformadores do século 16 se
converteram dentro da Igreja Católica, precisamente numa época em que
essa igreja era uma das instituições mais corruptas do mundo. Casos assim
são possíveis porque, mesmo participando de igrejas corrompidas, as
pessoas têm ali algum contato com a Palavra de Deus ou ouvem alguma
porção da verdade em meio a todas as heresias que são propagadas nessas
comunidades. Isso, muitas vezes, desperta a pessoa para a fé verdadeira e a
conversão então ocorre. Via de regra, porém, os convertidos não
permanecem nessas igrejas. Guiados pelo Espírito Santo que neles passa a
habitar, logo percebem que há algo errado na comunidade de que fazem
parte e passam a buscar uma igreja saudável doutrinariamente.

2) Se não há templos cristãos, é certo vender mercadorias nas


dependências da igreja?
Essa pergunta é baseada no texto de Mateus 21.12-13, o qual mostra Jesus
expulsando e censurando os cambistas e vendedores que faziam comércio
no templo de Jerusalém, um lugar sagrado. Conforme visto, porém, a era
do templo passou. Por isso, não há nenhum problema em ter, por exemplo,
uma cantina ou uma livraria funcionando na igreja. O que é bom evitar,
porém, é o comércio individual e habitual em que alguém monta sua
“banquinha” de produtos num canto da igreja e começa oferecê-los aos
irmãos. Isso fatalmente gera transtornos, perturbações e constrangimentos.
Já vendas mediante catálogos e encomendas, a princípio, não têm
problema, desde que o “vendedor” não viva a importunar os crentes,
tentando transformar o rol de membros numa carteira de clientes.
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS
A geração que nasceu nos últimos quarenta anos não teve o privilégio
de conhecer os tempos em que o meio evangélico era dominado por igrejas
decentes e ordeiras. Quatro décadas atrás, se algum crente fosse visitar uma
igreja evangélica qualquer, dificilmente se depararia com todas as bizarrices
que hoje imperam nas comunidades por aí afora.
De fato, mesmo nas igrejas pentecostais que havia, não era possível
notar tantas expressões de frenesi e desequilíbrio como agora. Além disso,
essas igrejas eram poucas e pequenas. O mais comum era a existência de
comunidades em que as pessoas se comportavam de maneira normal e
prestavam cultos caracterizados em sua maioria por hinos clássicos,
leituras, apresentações corais e sermões bíblicos. É claro que nessas igrejas
existiam problemas e muitas vezes se ouvia falar de escândalos sexuais ou
financeiros ocorridos aqui ou acolá. Contudo, o que predominava era um
cristianismo ordeiro, distinto, mais solene e honroso.
Esse modelo ficou gravado na mente de muitas pessoas que viveram
naqueles tempos e a lembrança dele as faz procurar igrejas atuais que o
reproduzam. Porém, os que nasceram durante ou após as grandes mudanças
avivalistas dos últimos quarenta anos, jamais conheceram o antigo e correto
padrão.
Por isso, se antes os crentes em geral estranhavam o menor excesso
quando visitavam uma igreja, hoje eles se sentem deslocados quando
entram nas raras igrejas normais. Como têm somente um modelo
desfigurado em mente, anelam encontrá-lo em qualquer lugar e se
decepcionam quando participam de um culto nos moldes que deve ser, ou
seja, com decência, ordem, equilíbrio, ensino e adoração reverente.
Essa falta de bons referenciais coloca os critérios dos crentes na busca
de uma igreja num nível muito baixo. Sendo os paradigmas modernos tão
deformados, qualquer coisa que se ofereça como padrão eclesiástico novo é
aceito de pronto. Para crentes que dizem sim aos mais horríveis monstros
litúrgicos, que mal haveria em aceitar um bichinho deformado qualquer?
Quem dorme com lobisomens não se importa em tomar café com um
duende!
Tem sido em parte por causa da ausência de referenciais na mente das
pessoas e também devido à presente falta de boas opções eclesiásticas que
as igrejas pós-modernas e emergentes têm aflorado tanto. A maioria dos
crentes da presente geração nunca viu uma igreja séria para que tenha um
perfil definido que possa anelar e buscar. Também está cansado da
futilidade do único modelo que conhece. Então, passa a se envolver com
novidades para, muito cedo, perceber que a comunidade a que se filiou é
simpática e dinâmica, mas está bem longe de ser uma igreja ajustada ao que
Deus quer — uma igreja capaz de suprir suas necessidades espirituais.
Entre essas novidades de hoje existem as igrejas pós-modernas cujas
marcas e modelos expõem-se a seguir.

Marcas gerais

Pós-modernidade é a expressão usada para descrever os últimos trinta


ou quarenta anos, fase em que o homem ocidental desistiu da busca racional
da verdade, afirmando que ela é múltipla e subjetiva. Segundo a visão pós-
moderna, cada indivíduo tem a sua verdade particular, sendo todas as
concepções existentes igualmente válidas e dignas de respeito.
A visão pós-moderna invadiu a igreja de maneira que até mesmo as
denominações históricas foram contaminadas, deixando de lado a firme
defesa da verdade única do evangelho e dando espaço para uma “mente
mais aberta”, contrária às concepções cristãs sólidas, agora taxadas de
“fundamentalistas” ou “radicais”.
Basicamente, as igrejas pós-modernas apresentam quatro traços
distintivos: hermenêutica subjetiva, discurso conciliador, afrouxamento
ético/moral e ênfase excessiva na liberdade humana.
A hermenêutica subjetiva (ou relativista) é a forma de análise bíblica
que não se preocupa com a busca de um significado fixo e único no texto
sagrado. Os pregadores que atuam nessas igrejas não se empenham na
tentativa de descobrir a intenção autoral quando trabalham sobre uma
determinada porção das Escrituras. Antes, crendo que a verdade é múltipla,
atribuem ao texto sagrado o sentido que acham melhor ou mais
conveniente. A pregação pós-moderna é, assim, mais uma exposição de
percepções e insights pessoais do pregador do que uma apresentação
objetiva do que a Bíblia realmente diz, com suas inevitáveis implicações e
aplicações para a vida das pessoas.
Essa leitura subjetiva da Bíblia não fica, contudo, limitada ao púlpito
das igrejas pós-modernas. Seus membros também a praticam. Por isso, é
comum ouvir indivíduos que pertencem a essas comunidades dizendo:
“Essa passagem tem várias interpretações” ou, quando são confrontados à
luz da Bíblia por causa de algum erro que cometem, se evadir afirmando:
“Desculpe, essa é a sua interpretação dessa passagem. Eu entendo esse
texto de forma diferente.”
Conforme se vê, a hermenêutica adotada nas igrejas pós-modernas
esvazia a Bíblia de sua autoridade. Atribuindo ao texto sagrado um universo
infinito de sentidos, a Bíblia se torna para essa nova classe de cristãos um
livro inútil para ensinar, repreender, corrigir e educar na justiça (2Tm 3.16).
Além disso, sob a ótica de que a Bíblia tem múltiplos sentidos, todos
igualmente aceitáveis, qualquer crente sincero que tentar “impor” a
compreensão natural do texto a outro membro da igreja, tentando admoestá-
lo como irmão, é imediatamente visto como orgulhoso, como alguém que
pensa que só a visão dele é a certa, como pessoa que não tem o fruto do
Espírito, pois não ama até o ponto de respeitar o ponto de vista do outro.
Assim, quem quiser obter a simpatia dos membros das igrejas pós-
modernas deve ser “politicamente correto”, jamais se manifestando contra o
modo muitas vezes absurdo como os outros compreendem as questões
tratadas na Palavra de Deus.
Isso conduz ao segundo traço das igrejas pós-modernas: o discurso
conciliador. Não havendo uma verdade fixa, ou somente um sentido nos
escritos bíblicos, qualquer forma de religião ou de espiritualidade deve ser
considerada válida, segundo o pensamento dos crentes pós-modernos.
Portanto, o caráter exclusivo do cristianismo, a forma como sempre se
apresentou na história como o singular detentor da única mensagem que
pode salvar o homem (Jo 14.6; At 4.12; Ef 4.4-5; 1Tm 2.5), é totalmente
desprezado no discurso evangélico pós-moderno.
Como resultado, as igrejas que adotaram essas noções jamais
denunciam os erros doutrinários propostos pelo espiritismo, pelas religiões
orientais ou pelas seitas pseudocristãs. Na verdade, é mais fácil (e mais
comum!) atacar crentes convictos, acusando-os de terem visão estreita e
radical, do que reprovar os falsos credos.
Aqui é importante fazer uma ressalva. Não é que os cristãos pós-
modernos concordam com as doutrinas espíritas ou com os ensinos das
seitas ou mesmo com as lições das religiões orientais. O que ocorre é que,
para eles, concordar ou não com essas doutrinas (ou com qualquer outra) é
irrelevante. Segundo os pastores e membros dessas igrejas, o que deve ser
levado em conta na avaliação dos diferentes credos é que todos
supostamente perseguem os ideais supremos de construir uma sociedade
com menos sofrimento e de oferecer paz e consolo ao triste coração
humano. De acordo com o discurso cristão pós-moderno, só isso é
relevante, sendo precisamente nesse ponto que qualquer forma de
espiritualidade ou de religiosidade se iguala ao cristianismo, tanto em
importância como em validade.
O fato de as religiões em geral terem cosmovisões ou sistemas
doutrinários diferentes do que é ensinado na Bíblia é, pois, assunto
secundário para a nova mentalidade cristã, um detalhe sem importância, já
que, não havendo verdade fixa, o essencial é a sinceridade de cada um na
adoção de suas crenças, a busca (comum a todas elas) por um mundo
melhor e a tolerância com quem pensa diferente.
Por isso, o pensamento cristão pós-moderno é tão conciliador. Nele
não há espaço (e nem motivo) para o discurso bíblico que condena o erro,
se opõe ao desvio e denuncia a mentira. O homem pós-moderno não
entende que agir assim faz parte do dever cristão (Mt 22.29; 2Co 10.5; Gl
3.1-3; 2Tm 2.25-26). Para ele, o crente zeloso que exorta e corrige é
[113]
soberbo e sem amor.
O terceiro traço das igrejas pós-modernas, o afrouxamento ético/moral,
é consequência lógica tanto da hermenêutica subjetiva como do discurso
conciliador. Com efeito, atribuindo à Bíblia uma variedade ilimitada de
sentidos, o cristão pós-moderno, em situações que exigem a tomada de
decisões no campo moral, fatalmente escolherá a interpretação mais
cômoda, que melhor se ajuste aos seus interesses pessoais. Ademais,
adotando um discurso conciliador embasado na crença de que a verdade não
é única, o novo cristão aplicará essa forma de pensar também às questões
éticas, dizendo que não se podem condenar as opções de comportamento de
ninguém.
Unindo isso tudo, o resultado é previsível e óbvio: as igrejas pós-
modernas, invariavelmente, revelam posicionamentos muito frouxos em
relação a temas como namoro misto, sexo fora do casamento, divórcio,
homossexualismo, envolvimento do cristão com o mundo e uso de álcool,
cigarro ou mesmo drogas. Em decorrência dessa frouxidão, os membros das
igrejas pós-modernas que adotam posturas claramente antibíblicas acerca
dos temas mencionados, ou de outros assuntos ligados à ética cristã, não
recebem qualquer correção. Na verdade, nada diferente poderia ser
esperado, pois, como já dito, na visão pós-moderna, dizer o que é errado é
errado!
Cabe aqui uma observação importante: o fato de as igrejas pós-
modernas apresentarem tão nítida frouxidão ético/moral talvez seja a causa
do seu espantoso crescimento. Multidões lotam seus salões não na busca de
santidade, conhecimento e correção, mas de qualquer discurso que gere
conforto e bem-estar, longe do incômodo produzido pela pregação da pura
Palavra de Deus, capaz de ferir as consciências e infundir arrependimento.
É que, conforme disse o profeta Jeremias, “a palavra do Senhor é para eles
desprezível, não encontram nela motivo de prazer” (Jr 6.10). Além disso,
sabe-se que é próprio da natureza humana corrupta cercar-se de mestres que
não se opõem às suas paixões (2Tm 4.3).
O último traço do evangelicalismo pós-moderno é a ênfase excessiva
dada à liberdade humana. Nesse modelo, o crente não é apenas livre para
interpretar a Bíblia como quiser e, consequentemente, adotar o modelo ético
que quiser. Sua liberdade vai além. Mais do que ser dono de suas verdades e
dos seus caminhos, o cristão pós-moderno considera-se também dono do
seu destino!
Ocorre o seguinte: a mente pós-moderna tem dificuldades para aceitar
a presciência de Deus ensinada na Bíblia (Is 46.8-10; Jo 21.18-19), pois, no
seu entender, se Deus conhece de antemão o amanhã, então o futuro é fixo e
o homem, no fim das contas, não é livre. Esse dilema é real para qualquer
cristão, estando sua solução escondida na mente insondável de Deus,
verdade que deve ser suficiente para aquietar qualquer questionamento (Rm
9.19-20).
Diante dessa dificuldade, porém, o crente pós-moderno não passa
apertos. No afã de resguardar a liberdade do ser humano, resolve tudo
dizendo simplesmente que Deus não conhece o futuro, estando o porvir
aberto à influência do homem que pode escrevê-lo a partir do livre
exercício de sua vontade. Essa concepção de Deus e suas relações com o
mundo é uma das características do modelo teológico denominado Teísmo
Aberto.
Percebe-se, assim, que a hipervalorização da vontade livre do
indivíduo é a mola mestra do pensamento cristão pós-moderno. Conforme
visto, a partir de suas concepções, o crente é livre para atribuir às Escrituras
o sentido que quiser; é livre para construir a ética que quiser e é livre para
dirigir a história como quiser. Trata-se do império do indivíduo cuja
abrangência chega ao ponto de destronar o próprio Deus a fim de preservar
a supremacia da liberdade humana.
No fim das contas, o impacto mais desastroso dessa mentalidade sobre
a Sã Doutrina é a criação de um deus impotente e ignorante, que lamenta as
desventuras da raça humana, mas que pouco pode fazer, já que a
administração da história depende também do homem e qualquer
interferência divina soberana implicaria imposição de vontade, tornando
Deus culpado por não agir de modo “politicamente correto”.
Não restam dúvidas, pois, de que o deus do cristianismo pós-moderno
não é o Deus das Escrituras. Trata-se de outro deus, com tremendas
limitações. É lamentável, mas o que se deduz da análise desses conceitos é
que criou, pois, o Homem um deus à sua própria imagem, à imagem do
Homem o criou...

Igrejas emergentes

As quatro marcas das igrejas pós-modernas apresentadas aqui não


abrangem de forma alguma a totalidade das características dessas igrejas.
Há outras manifestações do pensamento pós-moderno no meio evangélico e
uma das que mais têm chamado a atenção nos últimos anos é o movimento
denominado “igreja emergente”.
É muito difícil encerrar esse movimento numa definição, pois as
diversas igrejas associadas a ele têm diferentes ênfases e maneiras de
expressão, todas se apresentando como comunidades cristãs emergentes.
Porém, um conceito genérico talvez seja possível nos seguintes termos:
igrejas emergentes são igrejas pós-modernas engajadas na busca de formas
práticas de funcionamento que sejam aceitáveis e atraentes para os homens
de hoje.
A pergunta crucial, pois, do “movimento igreja emergente” é: como a
igreja pode se tornar relevante e atraente para a sociedade atual pós-
moderna? Sendo certo que as respostas a essa questão variam muito, o
conceito de igreja emergente tem abrangido diferentes modelos
eclesiásticos que vão desde o total abandono de qualquer padrão tradicional
ou formal de culto até a adoção de práticas e símbolos intensamente
místicos e rigidamente litúrgicos.
No tocante à sua apresentação e formato, podem-se dividir as igrejas
emergentes em quatro classes distintas:

1. Conformistas. As igrejas emergentes conformistas entendem que o


homem pós-moderno busca manifestações mais livres de religiosidade,
sentindo aversão por qualquer expressão formal ou tradicional de
adoração, posto que liturgias assim, segundo entendem, refletem uma
mentalidade estreita e rígida demais. Por isso, os cultos e atividades
das igrejas emergentes conformistas buscam reproduzir formas
seculares de entretenimento, especialmente shows musicais, danças e
“baladas” nos quais recursos visuais e eletrônicos de ponta são
empregados (globos espelhados, gelo seco, canhões de luz, etc.), além
de desfiles de moda, apresentações de capoeira e formações de blocos
de carnaval. Os cristãos emergentes conformistas entendem que
nenhum descrente permanecerá numa igreja se, ao chegar, encontrar os
irmãos em oração ao som suave do prelúdio. Daí a necessidade de
medidas práticas que sejam sensíveis às expectativas do incrédulo pós-
moderno. Evidentemente, essa preocupação também se reflete na
pregação. Geralmente, os pastores dessas igrejas evitam falar sobre
pecado, condenação, cruz e arrependimento. Esses assuntos, no seu
entender, espantariam os descrentes da atualidade.

2. Místicas. As igrejas emergentes místicas se opõem frontalmente às


conformistas no que diz respeito ao modo como o culto deve ser.
Segundo seus representantes, o homem pós-moderno está cansado de
espetáculos e shows com efeitos especiais. Essas coisas, dizem, estão à
disposição das pessoas em qualquer lugar e o tempo todo. Por isso, no
tocante à religião, o mundo pós-moderno nutre uma expectativa mais
espiritual, que deve ser acompanhada de símbolos e práticas místicas.
Adotando essa visão, algumas igrejas evangélicas americanas têm
usado cruzes, incenso, velas, colunas e altares de oração em seus
cultos, produzindo um ambiente sombrio semelhante ao das antigas
[114]
catedrais católicas. No entender dos líderes dessas igrejas, essas
coisas servem como atrativo para o homem pós-moderno que anseia
por experiências espirituais intensas.

3. Pluripartidárias. Esse modelo de igreja emergente focaliza o fato


de que, para a mente pós-moderna, há muitas verdades sendo todas
igualmente válidas. Transportando esse raciocínio para o
funcionamento da igreja, tais instituições oferecem aos seus
frequentadores uma espécie de self service teológico. Assim, em suas
escolas de ensino doutrinário há classes para calvinistas, para liberais,
para pentecostais e para várias outras vertentes. As igrejas emergentes
pluripartidárias dizem não se identificar exclusivamente com nenhum
desses modelos, recusando qualquer rótulo. Seus líderes entendem que
toda concepção doutrinária é válida e deve ser respeitada. A visão
oposta só serve para criar divisões que atrapalham o crescimento da
igreja e a consecução dos seus objetivos.

4. Ultrainformais. Igrejas emergentes ultrainformais apegam-se à


desconfiança que o homem pós-moderno nutre contra o caráter das
instituições em geral. Seus expoentes ensinam que as igrejas nos
moldes institucionais criam barreiras para o evangelho ao tentar impor
sobre as pessoas a visão de um só indivíduo ou de uma pequena
minoria que, aliás, se beneficia da estrutura formal estabelecida.
Reagindo a isso, as igrejas emergentes ultrainformais recusam tudo
que ameace institucionalizar o grupo. Por isso, em regra, defendem a
realização de cultos nos lares (nunca em supostos templos ou edifícios
religiosos), opõem-se a todo tipo de hierarquia eclesiástica, desprezam
formalidades litúrgicas (o culto busca ser uma celebração livre, criativa
e artística em que todos participam de forma espontânea usando
talentos pessoais como música, poesia, pintura e dança), evitam filiar-
se a qualquer denominação religiosa e recusam-se até mesmo a criar
um rol de membros. Os representantes desses grupos afirmam que seu
modelo é o único verdadeiramente neotestamentário e recorrem a
textos como Atos 2.46-47 para tentar provar o que dizem.

É claro que há igrejas emergentes que, na medida do possível,


combinam características de duas ou mais diferentes classes. Todas, porém,
têm algo em comum: obter sucesso na atração dos descrentes de hoje,
propondo formas de religiosidade que lhes satisfaçam as expectativas,
jamais se insurgindo contra os pressupostos de sua cosmovisão secular.
A crítica bíblica aos modelos de igreja emergente aponta três erros
básicos presentes na raiz de suas propostas. Esses erros são pilares sobre os
quais todo o pensamento emergente acerca do culto é construído. Se tais
pilares forem removidos, o edifício inteiro cairá. Ora, essa demolição é
muito fácil. Na verdade, um leve sopro da verdade é suficiente para fazer
esses pilares de isopor vir abaixo.
O primeiro erro que subjaz o pensamento dos defensores da chamada
igreja emergente é a crença na falácia de que as conversões a Cristo
ocorrem como resultado de táticas e artifícios humanos. Os líderes das
igrejas emergentes, ainda que digam não estar comprometidos com nenhum
“rótulo” doutrinário, na verdade são ferrenhos defensores da teologia
arminiana, segundo a qual o homem tem em si a livre capacidade de “tomar
uma decisão por Cristo”.
A partir dessa concepção, o trabalho desses ministros se transforma na
elaboração incessante de estratégias de convencimento. Seus esforços se
voltam, assim, para a criação ou descoberta de técnicas que sejam mais
eficazes na atração do não crente. O pastor da igreja emergente sonha,
portanto, em encontrar métodos que sejam capazes de persuadir o incrédulo
a usar seu “livre arbítrio” de modo certo, recepcionando afinal o
cristianismo.
Essas noções, contudo, estão muito longe do ensino bíblico. Para
começar, é preciso lembrar que, segundo o Novo Testamento, o incrédulo é
um cadáver espiritual, insensível às coisas do Senhor e incapaz de desejá-
las (Rm 3.10-11). Por isso, a conversão do pecador nunca tem como causa
primária a vontade do homem, mas sim a de Deus (Jo 1.13; 6.65; Tg 1.18).
Prosseguindo na análise bíblica, descobre-se que, sendo o homem tão
insensível às coisas espirituais, somente Deus tem o poder de atraí-lo (Jo
6.44), sendo inútil o uso de táticas humanas para isso.
Aliás, é bom lembrar que o Senhor atrai o pecador perdido, não por
meio de iscas artificiais, mas pela atuação sobrenatural do Espírito Santo
que convence de forma eficaz a mente entorpecida (Jo 16.8; At 16.14; 1Co
12.3). Como o Espírito faz isso? Usando estratégias de marketing? Não! Ele
usa a pregação da Palavra, já que Deus determinou que somente por
intermédio dela a salvação fosse operada (Rm 10.17; 1Co 1.21; 1Pe 1.23).
A Bíblia ensina ainda que, dada a condição deplorável do homem, é o
próprio Deus quem, afinal, lhe concede a fé. Na verdade, o texto sagrado
ressalta que ninguém pode crer em Cristo sem que isso lhe seja concedido
pelo Pai (Jo 6.65; At 11.18; Rm 8.30; 9.18; Ef 2.8; Hb 12.2).
Assim, à luz das Escrituras, os diversos pregadores pós-modernos que
anelam despertar no incrédulo o desejo por Cristo com atrativos artificiais
são como a criança que tenta acordar o cãozinho morto mostrando-lhe o
prato de ração. A pobre criança, ao agir assim, mostra que não
compreendeu as suas próprias limitações, nem a ineficácia da ração, nem
tampouco o estado horrível em que se encontra o cachorrinho.
O segundo equívoco do pensamento emergente é a crença de que o
culto cristão deve ser planejado tendo como alvo o homem, posicionando-o
[115]
no centro de tudo. A Bíblia se insurge contra essa falácia. Em Mateus
4.10, Jesus aponta o Senhor Deus como o único personagem em torno do
qual o culto deve se desenvolver. Cristo ensina ainda que a verdadeira
adoração não é a que se preocupa com aspectos cultuais exteriores a fim de
satisfazer as expectativas das pessoas (Jo 4.20-21). Segundo ele, a adoração
genuína é aquela em que o homem fixa seu coração exclusivamente em
Deus, ansiando cultuá-lo de forma sincera, num louvor que emana da sua
própria alma (Jo 4.23-24). Ora, um adorador assim não se ocupa de agradar
incrédulos ou quem quer que seja. Seu alvo exclusivo durante o culto é
honrar e enaltecer o Senhor.
Ademais, o autor de Hebreus ensina que, enquanto cultua, a alma do
crente deve estar mergulhada em reverência e santo temor (Hb 12.28-29).
Isso significa que a mente do cristão deve se voltar totalmente para Deus
durante o culto, lembrando-se da sua grandeza, santidade e justiça e
preocupando-se, assim, em evitar qualquer coisa que o desonre ou
desagrade. Essa e somente essa deve ser a preocupação do crente enquanto
adora.
Por isso, se de um lado o cristão emergente pergunta: “Será que os
irmãos estão gostando do culto? Será que os incrédulos estão
entusiasmados? Será que os visitantes estão satisfeitos e pretendem
voltar?”, de outro, o cristão bíblico faz as seguintes indagações: “Será que
o Senhor está se agradando do que estamos fazendo aqui? Será que a nossa
adoração está sendo sincera e reverente? Será que o que estamos dizendo
nos cânticos, nas orações e na pregação correspondem à mensagem que
Deus ordenou que protegêssemos e proclamássemos?”. Esse segundo
conjunto de perguntas reflete quem deve ser o singular e verdadeiro foco de
qualquer gesto cultual.
Intimamente relacionado ao segundo desvio das igrejas emergentes
está o seu terceiro erro. Este consiste em acreditar que a adoração a Deus
pode ser realizada conforme bem entendem os adoradores. Movidos por
essa crença, as igrejas emergentes dão ao culto o formato que acham mais
conveniente, atrelando-lhe práticas estranhas, nascidas a partir das
percepções de seus líderes ou criadas segundo o bel-prazer dos responsáveis
pelo planejamento de suas reuniões.
Esse erro decorre da falta de conhecimento daquilo que, em teologia, é
tecnicamente chamado de Princípio Regulador do Culto, segundo o qual
[116]
somente Deus pode determinar o modo como deve ser adorado. Ora, esse
princípio parte da verdade de que Deus revelou na Bíblia como quer que o
adorem, tendo feito isso para evitar que os homens caíssem no erro de
prestar-lhe um culto maculado por práticas nascidas na mente corrompida.
O amparo bíblico para o Princípio Regulador do Culto pode ser visto
tanto no Antigo como no Novo Testamento. Nos tempos da Antiga Aliança,
todas as prescrições fixadas pelo Senhor acerca da forma como deveria ser
o culto no Tabernáculo e, posteriormente, no Templo, deixam claro que
somente Deus detém o direito de definir como deve ser o culto que lhe é
devido (Dt 12.13-14). No Novo Testamento, o culto aceitável ao Senhor
abrange orações (At 13.1-3), louvor cantado (Ef 5.19), celebração das
ordenanças, comunhão (At 2.42,46), exercício dos dons (1Co 14.26), leitura
e exposição das Escrituras (1Tm 4.13).
Nem sempre um só culto abrangerá todos esses fatores, mas deve-se
reconhecer que é lícito (e necessário) incluí-los na liturgia, sempre
primando pela decência e pela ordem (1Co 14.40). Por outro lado,
cerimônias de homenagem a este ou aquele indivíduo, decisões
administrativas, apresentações de coreografia ou dança, práticas de
entretenimento, uso de objetos religiosos, momentos de trato com demônios
e outras invenções devem ser afastadas do culto público na busca de moldá-
lo àquilo que o Senhor requer e não ao que as pessoas anseiam ver ou fazer.
Os três erros básicos aqui apontados são cometidos pelos diferentes
tipos de igreja emergente alistados anteriormente: as conformistas, as
místicas, as pluripartidárias e as ultrainformais. No entanto, duas palavras
ainda precisam ser ditas sobre o desvio das místicas e das ultrainformais.
Conforme dito, as igrejas emergentes místicas são aquelas que, em
suas reuniões, usam cruzes, velas, incenso, cortinas escuras e vários objetos
cultuais, tudo com o propósito de criar um ambiente lúgubre que, segundo
dizem, é capaz de satisfazer o anelo religioso do homem pós-moderno.
Ainda que aleguem que o uso desses recursos seja bíblico, o fato é que
é simplesmente impossível encontrá-los nos cultos realizados pelas igrejas
locais do Novo Testamento. Aliás, a atmosfera cultual lúgubre presente nos
cultos da Idade Média, atmosfera que essas igrejas pretendem reproduzir,
jamais resultou da análise de textos bíblicos, sendo, na verdade, o
desdobramento da corrompida teologia escolástica que marcou a época e
também da pessimista visão de mundo que permeou a mente dos homens
daqueles séculos.
De fato, segundo a teologia escolástica, na missa, o sacrifício de Cristo
acontecia literalmente, sendo a catedral (aliás, construída em forma de
cruz), o lugar sagrado em que esse sangrento holocausto se repetia vez após
vez. Daí a atmosfera melancólica e sombria daqueles imensos edifícios que,
como túmulos medonhos, abrigavam dentro de si o “corpo eucarístico” de
Cristo.
Além disso, deve-se considerar que os séculos 11 a 13, período em que
se ergueram as grandes catedrais europeias, o mundo estava imerso num
ambiente geral fúnebre, estando a realidade da morte presente de forma
contínua na mente das pessoas. As guerras, a fome e a miséria decorrentes
dessas mesmas guerras, a queima pública de hereges, as epidemias de peste
bubônica e outras doenças, tudo isso fazia com que o homem medieval
tivesse uma visão lutuosa da vida, o que se manifestava no culto cristão,
sempre sombrio e repleto de imagens e símbolos tenebrosos.
Ora, a realidade evangélica atual não compartilha nada disso. A
teologia protestante (pelo menos “oficialmente”) não adota nada da
concepção escolástica e o contexto histórico-cultural em que as igrejas
emergentes se desenvolvem não tem nada de lúgubre, estando mais voltado
para a diversão e o entretenimento numa intensidade jamais vista em
qualquer outra fase da história humana.
Assim, o ambiente criado pelas igrejas emergentes místicas é apenas
um arremedo da liturgia medieval, uma reprodução teatral grosseira do
culto escolástico, a montagem de um cenário repleto de componentes
artificiais que não traduzem nem o ensino bíblico, nem a teologia
evangélica, nem o momento histórico atual. Ao que parece, trata-se de
apenas mais uma estratégia de marketing religioso destinado a causar
impacto em jovens fascinados pela temática fúnebre ou atraídos por
qualquer coisa que tenha coloração mística.
Considere-se agora, especificamente, as igrejas emergentes
ultrainformais. Conforme se viu, os proponentes desse modelo entendem
que qualquer grau de institucionalização deve ser evitado na igreja, a fim de
que o formato neotestamentário seja preservado.
Para entender essas igrejas, é preciso frisar que a mente pós-moderna,
mergulhada no pluralismo relativista, tende a resistir a qualquer forma
institucionalizada de agrupamento humano. Isso porque as instituições, em
regra, nutrem uma forma oficial de liderança, além de normas fixas de
funcionamento, fatores esses que inibem a livre expressão de pensamento e
de ação de seus membros.
É por isso que as igrejas emergentes ultrainformais insistem num tipo
de funcionamento totalmente espontâneo, livre de elementos
organizacionais tais como prédios de educação religiosa, grupos de oficiais
eclesiásticos, sequências litúrgicas, departamentos e quaisquer outros
aspectos próprios de uma instituição formal.
Geralmente, essa proposta é acompanhada pelo argumento de que as
igrejas neotestamentárias não eram unidades institucionalizadas, de modo
que seus membros se reuniam no contexto informal dos lares, livres dos
complexos mecanismos organizacionais de hoje, os quais, segundo
entendem, servem apenas para manter uma minoria intransigente em
privilegiados postos de controle.
A pergunta que a análise crítica dessa proposta levanta é a seguinte:
será mesmo que as igrejas do Novo Testamento não tinham nenhuma marca
institucional? A resposta a essa pergunta, quando construída sobre bases
bíblicas, desfere um terrível golpe contra a visão ultrainformal. Sim, pois
desde o evento de Pentecostes (c. 30 AD) até a composição do Livro de
Apocalipse (c. 90 AD), ou seja, ao longo de um período de,
aproximadamente, sessenta anos, a igreja primitiva desenvolveu uma
estrutura de funcionamento que passou de um alto grau de informalidade
para a fixação de um modelo institucional comparativamente complexo,
criado a partir das necessidades que as circunstâncias foram impondo com o
passar do tempo.
Assim, se no ano 30 AD tudo que havia era a liderança dos apóstolos,
dedicados somente à oração e ao ministério da Palavra (At 6.4), naquele
mesmo tempo surgiu um grupo eleito pela comunidade cuja
responsabilidade era cuidar das mesas das viúvas (At 6.1-6). Já a partir daí
pode-se ver o germe da institucionalização, com a prática do voto por parte
dos membros (At 6.3,5) e a criação de um grupo autorizado para a
realização de funções distintas (At 6.6). Em termos de nível de organização,
portanto, a igreja de Atos 6 é diferente da igreja de Atos 2!
E as mudanças continuaram. Ao fim da Primeira Viagem Missionária
(c. 47 AD), as igrejas fundadas por Paulo e Barnabé assumiram um formato
diferente daquele inicialmente visto em Jerusalém. Com efeito, nas novas
comunidades, o povo também aparece votando, dessa vez, porém, para
escolher presbíteros (At 14.23).
Logo em seguida, em cerca de 48 AD, a liderança eclesiástica
apostólica, tão ligada ao modelo informal da igreja recém-inaugurada,
começou a dar sinais de declínio. A supremacia da voz do bispo Tiago,
pondo fim aos debates do Concílio de Jerusalém (At 15.1-29), indica o
início do fim da primazia dos apóstolos como chefes absolutos da igreja
local. Essa percepção deve ser válida porque, no Concílio de Jerusalém,
estavam presentes Pedro (até então o líder máximo da comunidade cristã
em Jerusalém) e Paulo, ambos apóstolos. No entanto, o destaque da
narrativa de Atos recai sobre a participação de Tiago (At 15.13-21), um
pastor cujo parecer foi acatado na íntegra pela assembleia, que novamente
participou das decisões por meio do voto (At 15.22).
Vê-se assim a ascensão da figura do bispo. Recorde-se ainda que,
cerca de dez anos depois, quando viajava para Jerusalém, Paulo se dirigiu
aos presbíteros de Éfeso (um grupo também denominado “presbitério”, cf.
1Tm 4.14), apontando-os como os líderes legítimos da igreja (At 20.17,28).
Ora, a convocação de um concílio, a promoção de eleições em assembleia e
a formação de presbitérios nas igrejas locais, tudo isso dá sinais óbvios da
lenta institucionalização da igreja, menos de trinta anos depois da sua
fundação.
Componentes que marcam a igreja do Novo Testamento como uma
instituição bem-organizada podem ser encontrados também nas epístolas.
Por exemplo, em Romanos 12.8, Paulo fala do dom de quem preside, dando
a entender que, por volta do ano 58 AD, a igreja cristã já contava com
indivíduos que se destacavam dentre os demais, liderando e dirigindo a
comunidade. Esse fato é também percebido na Carta aos Efésios (c. 61
AD), em que Paulo menciona quatro categorias distintas de líderes
eclesiásticos, todos capacitados por Deus com vistas ao “aperfeiçoamento
dos santos” (Ef 4.11-12).
Outro exemplo se encontra em Filipenses 1.1. Esse texto mostra que o
grupo que, por volta de 30 AD, foi eleito para servir as mesas das viúvas
(At 6.1-6), isto é, os diáconos, em cerca de 61 AD, transformou-se num
conselho de oficiais da igreja, ao lado dos bispos e distinto da assembleia
como um todo.
Torna-se, assim, evidente que aquela equipe voltada apenas para o
trabalho assistencial, num período aproximado de trinta anos galgou uma
posição eclesiástica mais elevada. Aliás, os “diáconos”, como passaram a
ser chamados, começaram a exercer um papel tão sério como líderes que,
em cerca de 66 AD, Paulo escreveu a Timóteo dizendo que os mesmos
requisitos impostos a quem desejasse ser bispo deveriam também ser
exigidos dos que quisessem ser diáconos. A única exceção parece ter sido a
aptidão para ensinar (1Tm 3.8-13).
Ademais, é impossível fazer alusão às Epístolas Pastorais (1 e
2Timóteo e Tito), sem lembrar que essas cartas, escritas em meados da
década de 60, não somente mostram uma liderança institucional na igreja
(1Tm 3.1-13; 5.22; Tt 1.5-9), como também revelam a fixação de uma
liturgia (1Tm 2.1; 4.13-14), além de regras de funcionamento que os crentes
deveriam observar a fim de que se comportassem adequadamente na “casa
de Deus” (1Tm 3.14-15).
Na organização mais complexa que já havia por volta de 66 AD, há até
uma ordem de viúvas, na qual as participantes só podiam ser inscritas se
preenchessem certos requisitos enumerados pelo apóstolo (1Tm 5.9-12). As
mulheres inscritas nessa ordem receberiam provisão material da igreja.
Não são somente as cartas de Paulo que mostram a institucionalização
da igreja. Especialmente no tocante a uma liderança definida, as Epístolas
Gerais (Hebreus, Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João e Judas) também apontam
para essa realidade (Hb 13.7; Tg 5.14; 1Pe 5.1-5). O fato de existirem já
naqueles dias líderes corruptos e dominadores (2Pe 2.1-3; 3Jo 9-10; Jd 12),
não era causa para a informalização da igreja. Pelo contrário, esse perigo
mostrava quão importante era o estabelecimento de um governo eclesiástico
forte ao qual a igreja pudesse se submeter sem correr qualquer perigo (Hb
13.17).
Quanto ao modelo de liderança eclesiástica centralizado na figura de
um só pastor, padrão tão comum hoje em dia, é possível vislumbrar seu
embrião já nos tempos do Novo Testamento. De fato, a figura do “bispo
monárquico” que tanto marcou a igreja a partir do século 2, pode encontrar
suas raízes nos pastores das sete igrejas do Apocalipse (Caps. 2-3), cada um
atuando como líder máximo de uma comunidade cristã específica (Ap
1.20).
Quão diferentes são entre si, portanto, as igrejas do Novo Testamento
quando observados os diversos estágios em que se encontram no seu lento
processo de organização. Realmente, a igreja de Jerusalém, sob a liderança
de Pedro, é marcada por quase completa informalidade. A de Éfeso, porém,
debaixo da autoridade de Timóteo, tem todos os traços de uma instituição
religiosa madura, com um presbitério, um conselho de diáconos, um
processo fixo para a formação e investidura de líderes, um conjunto de
regras objetivas de funcionamento, várias normas relativas ao culto e uma
[117]
associação formalmente organizada de mulheres carentes.
Assim, é vazia a crítica das igrejas emergentes ultrainformais, não
havendo nada de antibíblico no modelo de funcionamento de igreja como
instituição. Além disso, ao que parece (e a experiência aponta nessa
direção), os defensores da plena informalidade não estão realmente
interessados em reconstruir o modelo neotestamentário. Tudo indica que o
que verdadeiramente almejam é evitar associar-se a uma igreja num grau
maior de compromisso, livrando-se, inclusive, dos incômodos de viver sob
a autoridade eclesiástica instituída pelo próprio Deus. O fato é que a busca
da informalidade pode ser, na verdade, a fuga da responsabilidade.
Uma questão frequente

De que maneira a igreja atual pode se tornar relevante para o homem


do século 21?
A igreja sempre será relevante seja em que século for, desde que preserve a
tarefa dada exclusivamente ela de anunciar com fidelidade o único
caminho para a salvação do homem perdido. Se, porém, querendo atrair e
agradar os descrentes do seu tempo, a igreja mudar sua postura, seus
valores, seu discurso e sua conduta, amoldando-se à cultura depravada que
a cerca, sua relevância desaparecerá e ela se tornará apenas uma opção
secundária de lazer ou uma alternativa passageira de congraçamento
social.
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA IGREJA
A maioria dos membros da igreja de Deus é composta por pessoas de
poucas posses. De fato, não há entre os crentes muitos de nobre nascimento,
nem um grande número de homens poderosos e influentes.
A leitura dos antigos registros históricos mostra que sempre foi assim.
Na verdade, os pagãos viam na condição social dos cristãos em geral mais
uma causa para zombar do evangelho e dizer que a fé pregada pela igreja
era a fé dos ignorantes, dos iletrados, da gente de baixo nível social — uma
doutrina indigna de ser seguida por pessoas nobres e de boa formação.
O que os inimigos de Cristo não sabiam é que a condição social dos
crentes já tinha sido percebida e comentada pelo apóstolo Paulo, o qual
apresentou uma explicação teológica para essa realidade.
De fato, Paulo disse que Deus chamou poucas pessoas grandes
segundo os padrões do mundo para que a verdadeira sabedoria fosse
predominantemente propriedade dos fracos e dos que nada são. Dessa
forma — ensinou ele — a sabedoria dos nobres e dos poderosos seria
confundida e humilhada e ninguém poderia se vangloriar na presença de
Deus (1Co 1.26-29).
Sendo, então, a igreja marcada pela presença de pessoas pobres,
constantemente ela tem de lidar com a questão da ajuda aos carentes. Nessa
matéria, porém, ao contrário do que muitos pensam, as Escrituras não
deixam o povo de Deus à mercê de suas próprias percepções e julgamentos.
Antes, estabelecem diretrizes claras, as quais devem ser observadas pela
igreja caso esta queira obedecer em tudo à palavra do seu Senhor.

Diretrizes bíblicas para a ajuda aos carentes

Conforme destacado, desde os primeiros dias de sua existência, a


igreja cristã teve de lidar com o problema dos membros carentes de auxílio
material. Na verdade, foi o agravamento desse problema que impulsionou a
criação do diaconato (At 6.1-6).
Desse modo, não há como a igreja voltar as costas para a realidade
dura da existência de pessoas que, temporária ou permanentemente,
precisam ser assistidas não só no âmbito espiritual e emocional, mas
também com alimentos, roupas e, às vezes, até moradia.
A palavra de Deus disciplina essa matéria. Antes de tudo, porém, cada
crente em particular precisa saber que, no tocante à assistência aos pobres,
tudo indica que deve ser observada a seguinte ordem de prioridade:

1. As pessoas da própria família (1Tm 5.8); 2. Os irmãos da igreja a


que o cristão pertence (Gl 6.10);
3. Os crentes de outras igrejas ou desconhecidos (At 11.29-30; 1Co
16.1-4; 2Co 8.1-4,24; 9.1-2, 11-14);
4. Os incrédulos conhecidos (Pv 3.27,28; 14.21; 21.10; Rm 12.17,20);
5. Os incrédulos não conhecidos (Mt 22.37-40).

Note-se nessa lista que os crentes carentes devem ter prioridade sobre
os incrédulos. Isso deve ser assim porque o auxílio material deve fazer com
que os necessitados deem muitas graças a Deus, glorifiquem o nome dele
por causa da liberalidade do seu povo e orem em prol dos seus irmãos que
os ajudam, nutrindo grande afeto por eles (2Co 9.11-15). Ora, esses efeitos
só podem ser obtidos quando a assistência material é dirigida a crentes.
A ordem de prioridade apresentada aqui é útil principalmente para o
crente como indivíduo, o qual, com frequência, se vê diante de pessoas que
olham para ele esperando alguma ajuda material. Se o cristão não tiver
critérios embasados na Palavra de Deus, cometerá erros e injustiças nesse
campo, desconsiderando o que tem primazia e aplicando mal os recursos
que Deus lhe dá.
Os princípios de ajuda a pessoas carentes aplicáveis à vida do crente
individual devem, entretanto, ser aproveitados, o máximo possível, na
formação de uma filosofia de ajuda material a ser adotada pela igreja como
instituição. Porém, há também normas específicas dirigidas à igreja como
um todo, as quais versam sobre o modo que ela deve atuar no sustento dos
menos favorecidos.
É dito, por exemplo, com meridiana clareza, que a igreja jamais deve
ajudar pessoas que enfrentam dificuldades porque não trabalham. O
apóstolo Paulo chega a afirmar que quem não trabalha deve passar fome
(2Ts 3.10). De fato, a igreja que auxilia pessoas acomodadas incentiva a
ociosidade, o mau testemunho, a maledicência e as intrigas (2Ts 3.11; 1Tm
5.13).
É verdade que, muitas vezes, ocorre de o indivíduo não estar
trabalhando por não conseguir emprego. Nesse caso, a liderança terá de
avaliar as particularidades da questão: o irmão desempregado tem por
hábito ser inconstante em todos os seus empregos? É mau funcionário e, por
isso, sempre é demitido? O crente desempregado está procurando emprego
com real dedicação? Os empregos que lhe são arranjados têm sido
rejeitados por ele sob pretextos injustificáveis? Tudo isso deve ser avaliado
com bastante seriedade pelos líderes antes que a ajuda financeira seja dada.
Ainda no nível de igreja como instituição, a prática da ajuda financeira
aos membros deve seguir dois princípios básicos: a necessidade real e a
temporalidade.
Por necessidade real entende-se a situação caracterizada por inevitável
penúria, em que a pessoa, por motivo legítimo, não tem de onde tirar
recursos para sua alimentação, moradia, saúde e vestuário.
Esse princípio é absoluto, ou seja, não tem exceções. Desse modo, a
igreja nunca se verá obrigada a ajudar financeiramente quem não esteja
enfrentando essa circunstância (como, por exemplo, quem contraiu dívidas
e pede ajuda financeira para não ser protestado ou executado).
O princípio da necessidade real está previsto em 1Timóteo 5.3-6,16,
em que Paulo fala das mulheres que são verdadeiramente viúvas, ou seja,
mulheres idosas da igreja (com sessenta anos ou mais) que não apenas
tinham perdido o marido, mas também não contavam com filho ou neto
algum que as pudesse ajudar. Senhoras naquela situação deviam ter seus
nomes inscritos numa lista especial para receber auxílio da igreja, desde que
tivessem também um histórico de bom testemunho e serviço (1Tm 5.9-10).
Membros que não estivessem nessas circunstâncias não podiam se inscrever
(1Tm 5.11-13).
O segundo princípio (o da temporalidade), intimamente relacionado ao
primeiro e dele decorrente, aponta para o fato de que a ajuda financeira a
membros carentes não é necessariamente permanente. A ajuda deverá
cessar assim que a situação de necessidade real chegar ao fim. Ora, é
evidente que cessando a necessidade, o auxílio não será mais justo. É bom
ressaltar que a ajuda também poderá cessar quando os líderes perceberem
que a necessidade perdura em razão de negligência ou comodismo do
auxiliado.
O princípio da temporalidade é relativo, pois haverá casos
excepcionais em que a ajuda se perpetuará. Isso ocorre, por exemplo, no
caso de pessoas inválidas ou de bastante idade que vivem sozinhas, sem
nenhum parente, e recebem apenas uma pequena pensão mensal. Casos
como esses trazem em seu bojo situações que dificilmente se alterarão — e
a igreja terá de ajudar o indivíduo nessas condições talvez até o fim de sua
vida.
No tocante à ajuda material da igreja dirigida a pessoas incrédulas, é
bom dizer que essa conduta não é regulada pelo Novo Testamento. Em toda
a literatura neotestamentária, a preocupação da igreja com os carentes tem
sempre como objeto os irmãos na fé. Se não houver pessoas carentes numa
determinada igreja local (o que dificilmente ocorre), então essa igreja
direcionará sua ajuda a pessoas carentes de outras igrejas (At 11.27-30; Rm
15.25,26; 1Co 16.1-4; 2Co 9.1,2, 12-14).
Concluindo, deve ficar bem claro que a administração e o uso do
dinheiro da igreja são assuntos muito sérios. Todo centavo que entra para o
caixa, proveniente dos dízimos e ofertas, deve ser usado com
responsabilidade e critérios que se harmonizem com a Palavra do Senhor, o
qual, em última análise, é o dono de todos esses recursos, sendo os crentes
apenas administradores.
Por isso, os líderes cristãos, ao deliberar acerca da ajuda material a
alguém, não devem se deixar levar por apelos emocionais ou por temores de
desagradar a uns e outros, ou ainda por situações que gerem
constrangimento. Acima das circunstâncias, do agrado aos homens e das
fortes emoções está a Palavra de Deus, que deve ser sempre aplicada, seja
em que caso for.
Em regra, é bom que os pastores detenham a palavra final acerca de
quem deve receber recursos destinados ao suprimento de necessidades
materiais, julgando eles conforme a necessidade de cada um e a partir do
conhecimento especial que têm do seu rebanho. Ao que tudo indica, essa foi
a prática adotada em Atos 11.29-30.
Com efeito, a experiência pastoral ensina que, se o crente em particular
assumir essa tarefa, será facilmente movido pelas aparências e pela
manipulação de quem se mostra excessivamente carente e acabará suprindo
necessidades ilusórias, deixando os realmente necessitados vivendo em
desamparo. Por isso, o crente que quer ajudar os irmãos carentes de sua
igreja deve pedir orientação ao pastor que, quase sempre, saberá distinguir
quem realmente precisa de quem apenas parece precisar.

A proposta liberal

Os membros da igreja de Deus devem tomar cuidado ao se envolver


com comunidades evangélicas que dão muita ênfase ao trabalho social. Isso
porque essa tônica pode ser decorrente não da concepção cristã acerca do
sofrimento e da pobreza, mas sim de tendências doutrinárias liberais.
O liberalismo foi um movimento teológico que surgiu no século 18 e
que acolheu a cosmovisão reinante na modernidade gerada pelo
iluminismo. Essa cosmovisão dava lugar de supremacia à razão (a lógica
humana — e não a revelação bíblica — define o que é verdadeiro),
propunha o funcionamento uniforme da natureza (a ordem natural não se
altera; logo, não existem milagres) e cria no progresso da humanidade pelo
uso da razão, do avanço científico e da educação moral.
Os teólogos liberais perceberam que a visão de mundo desse tipo não
atribuía nenhum sentido às doutrinas ortodoxas cristãs, uma vez que estas
entram em choque com a mentalidade científica moderna. Por isso, temas
como a transcendência divina, a inspiração bíblica, a divindade de Jesus, a
morte expiatória de Cristo, a ressurreição e o juízo eterno foram totalmente
rejeitados pelos teólogos liberais ou, no mínimo, reinterpretados em termos
meramente morais ou simbólicos. Seu objetivo com isso era tornar o
cristianismo atraente e relevante para as novas gerações que não estavam
mais dispostas a sacrificar a razão, aceitando o sobrenatural.
Como, porém, manter as portas de uma igreja abertas quando o
coração de sua mensagem é removido? Em outras palavras: como a igreja
poderia continuar existindo e fazendo alguma diferença se a doutrina do
Deus-homem que morreu e ressuscitou para livrar os pecadores da
condenação eterna é, segundo diziam, somente uma fábula inspirada em
velhos mitos pagãos? Despojada de sua mensagem fundamental, não seria
melhor que a igreja fechasse suas portas e colocasse seus prédios à venda?
A resposta dos teólogos liberais a essas questões foi a seguinte: a
igreja deve mesmo abandonar seus velhos dogmas tão inaceitáveis para a
mente científica moderna, mas pode, ainda assim, continuar funcionando e
até se tornar relevante para o mundo desde que abrace a tarefa de educadora
moral e agente de auxílio social. Em vez de ser, portanto, a proclamadora de
um evangelho sem sentido e de histórias bíblicas fantasiosas, a igreja
deveria agora mostrar sua importância para o mundo agindo como uma
promotora de valores éticos e como uma entidade assistencial.
Filósofos e teólogos como Immanuel Kant (1724-1804), Albrecht
Ritschl (1822-1889) e Adolf Harnack (1851-1930) restringiram então o
cristianismo ao âmbito da ética e, especialmente Ritschl e Harnack,
realçaram a tarefa da igreja de promover o reino de Deus e a fraternidade
universal transformando este mundo por meio de gestos práticos de amor e
de justiça.
Os danos doutrinários do liberalismo foram devastadores e são
percebidos claramente ainda hoje em muitas igrejas e seminários em que
essa vertente teológica permanece viva a ativa. Com efeito, como resultado
de suas propostas, os dogmas cristãos foram desacreditados, sendo hoje
ridicularizados em alguns círculos teológicos. Também uma nova
concepção de Deus foi adotada: ele passou a ser apresentado como um
espírito universal imanente que está por trás da natureza, da história e da
cultura e que evolui com elas (Hegel), sendo também o Todo, a realidade
infinita da qual o homem depende e faz parte (Schleiermacher) — um
conceito bem diferente do Deus pessoal, livre, soberano e transcendente
apresentado na Bíblia. Também a crença na salvação de toda a humanidade
foi desenvolvida pelos teólogos liberais, como desdobramento teórico de
suas ideias.
Em termos de eclesiologia aplicada, porém, o legado do liberalismo foi
a construção de uma mentalidade em que a igreja mostra especialmente sua
relevância à medida que atua como escola de valores éticos ou associação
de amparo aos necessitados e às vítimas de injustiça social.
Essa mentalidade, ao que parece, se tornou bastante popular no Brasil
na década de 1970 graças ao forte impacto causado pelo livro Em seus
[118]
passos o que faria Jesus?, de Charles M. Sheldon. Numa atmosfera de
notável entusiasmo liberal, marcada ainda pelos atraentes desafios
propostos por obras como a de Sheldon, muitas igrejas passaram a abrir
creches, distribuir alimentos, fazer campanhas de agasalho e oferecer cursos
de alfabetização aos menos favorecidos.
Ainda que essas ações não fossem erradas em si mesmas, todas eram
desdobramentos de uma teologia que negava ou deixava em segundo plano
a mensagem pura do evangelho e tentava resguardar a relevância da igreja,
transformando-a numa entidade assistencial, com pouca ênfase no ensino,
na pregação, na santidade e na disciplina.
A ironia disso tudo pôde ser vista no fato de que, ao tentar dar
relevância à igreja, privando-a da sã doutrina e dando-lhe uma função
social, o liberalismo a tirou do seu foco principal e acabou por diminuí-la.
De fato, em muitos casos, a igreja, única detentora da mensagem de
salvação, envolveu-se em distrações assistenciais, pondo de lado a pregação
da cruz. Adotando um discurso demagógico, sentimental e apelativo, ela
deixou de cumprir a missão dada por Deus de distribuir a verdade salvadora
e passou a cumprir tarefas que cabiam ao Estado, distribuindo sopa e
cobertores.
Em outras ocasiões, igrejas que se deixaram levar pelos discursos
sociais se tornaram organizações realmente inúteis e até prejudiciais, dando
ajuda a famílias e indivíduos desocupados, financiando indiretamente, dessa
forma, o ócio, a bebida, a farra, a prostituição e as drogas. Também algumas
igrejas, seguindo as mesmas aspirações de “causar impacto” na comunidade
em que estavam, tornaram-se verdadeiramente banais, promovendo
campanhas de proteção a animais, realizando cultos de oração pelas árvores
ou formando grupos que distribuíam abraços aos transeuntes na rua (!).
Assim, o povo que deveria formar um exército de soldados que
defendem corajosamente a fé e a verdade, foi, em alguns casos,
transformado num grupo de escoteiros sentimentais que acariciam gatinhos
abandonados nas praças.

A proposta da chamada Missão Integral

Em julho de 1974, reuniu-se em Lausanne, na Suíça, o Primeiro


Congresso Internacional de Evangelização Mundial, com o objetivo
principal de definir a identidade e a missão evangélica no mundo
contemporâneo.
Os líderes reunidos em Lausanne revelaram preocupação com muitas
ameaças atuais dirigidas contra a igreja. Eles perceberam corretamente que
uma dessas ameaças eram as propostas liberais que privavam o cristianismo
da genuína mensagem bíblica. Posicionando-se, então, contra esse e outros
perigos, os teólogos de Lausanne reafirmaram algumas doutrinas centrais
da fé e se dispuseram a estimular a igreja a oferecer novamente ao mundo o
evangelho verdadeiro.
Envolvidos nessas reflexões e debates, alguns teólogos presentes em
Lausanne, especialmente os procedentes da América Latina, como René
Padilha e Samuel Escobar, ambos palestrantes no congresso, insistiram na
afirmação de que esse evangelho verdadeiro, ao ser anunciado, deveria
abarcar ações de impacto social, econômico e político. Mesmo participando
de um congresso antiliberal, o fato é que esses teólogos suspiravam os ares
assistencialistas soprados pelo liberalismo da época e pela Teologia da
Libertação, tão influente em seus países de origem.
Assim, segundo eles, o envolvimento da igreja com as necessidades
sociais da humanidade era parte integrante de sua tarefa de testemunho
cristão. No entender desses teólogos, para que o evangelho fosse anunciado
de forma integral, era preciso acentuar o que entendiam ser sua “dimensão
social”.
Os teólogos de Lausanne acolheram substancialmente essas
concepções e, ao fim do congresso, produziram um documento denominado
Pacto de Lausanne (redigido por John Stott) que, mesmo sendo claro e
enfático em seus enunciados ortodoxos (como a afirmação da autoridade
bíblica, a rejeição do universalismo e a crença no retorno literal de Cristo),
deixou-se infiltrar por ecos da Teologia da Libertação, um modelo de forte
coloração liberal.
De fato, o Pacto de Lausanne afirmou que a igreja deve mostrar
interesse “pela libertação dos homens de todo tipo de opressão” e que “a
evangelização e o envolvimento sócio-político são ambos parte do nosso
[119]
dever cristão”.
É verdade que o Pacto de Lausanne, sendo predominantemente
ortodoxo, declarou expressamente que a ação social não é evangelização,
que a libertação política não é salvação (Artigo 5) e que a igreja não pode se
identificar com nenhum sistema social ou político, nem com ideologias
humanas (Artigo 6).
No entanto, apesar dessas ressalvas, pastores de tendências liberais e
marxistas, considerando as conclusões do congresso muito tímidas no
tocante ao papel social da igreja, deram ênfase aos enunciados do pacto que
lhes eram mais convenientes. Então passaram a falar sobre a missão integral
da igreja com uma tônica nitidamente libertária e esquerdista, algo
certamente jamais pretendido pelo próprio texto do Pacto de Lausanne.
Foi assim que a expressão Missão Integral da Igreja passou a ser
fortemente relacionada com um “evangelho” que é pouco mais do que a
defesa de uma ideologia política igualitária, contrária à distinção entre
classes — uma ideologia que insiste na necessidade de grandes
intervenções sociais por parte da igreja mas que, em geral, não dá nenhuma
ênfase à cruz, ao perigo da perdição eterna e à necessidade de
arrependimento do pecador diante do Deus santo. De fato, o evangelho
proposto pelos defensores liberais e marxistas da Missão Integral da Igreja
acaba por encher estômagos (às vezes!), deixando os corações vazios
(sempre!).
Obviamente, a igreja de Deus deve recusar o discurso assistencialista
da chamada Missão Integral. Os princípios e prioridades relativos à ajuda
aos carentes, conforme elencados aqui, estão todos expostos nas Escrituras
e é com eles que o povo de Deus deve se comprometer e não com vertentes
filosóficas, sociológicas ou partidárias de esquerda que são, na verdade,
versões evangélicas da Teologia da Libertação.
A igreja de Deus deve fugir disso tudo não só porque a ênfase
exacerbada na ação social a afasta de sua tarefa essencial de proclamadora
da cruz e do arrependimento. A igreja deve fugir disso tudo porque a
proposta aparentemente piedosa da Missão Integral é apenas um reflexo
mais ou menos velado da teologia liberal e libertária que permanece viva e
que não aceita a realidade da perdição eterna, anunciando, por isso, uma
salvação meramente política e social no presente.
Além disso, é preciso destacar que, ao contrário do que muitos crentes
de hoje pensam, nunca foi dever nem responsabilidade da igreja ser fonte de
socorro material para o mundo. Com efeito, a igreja jamais foi idealizada
por Deus como uma organização que tem por obrigação reduzir a pobreza e
o sofrimento das pessoas do mundo. Se, conforme visto, ela tem essa
responsabilidade em relação aos domésticos da fé (Gl 6.10), isso de modo
nenhum se estende à sociedade como um todo.
Essas afirmações podem chocar os ouvidos dos cristãos modernos,
familiarizados que estão com os constantes apelos da Missão Integral, mas
a verdade é que Deus jamais colocou sobre os ombros da comunidade da fé
a tarefa de melhorar o mundo por meio de programas sociais ou obras
assistenciais. Absolutamente, nada na Bíblia ensina ou mesmo sugere isso.
Israel, o povo da aliança, nunca recebeu essa incumbência em face das
nações a quem deveria anunciar o Deus verdadeiro e as igrejas
neotestamentárias jamais foram instadas a isso.
Há quem diga que as mensagens dos profetas do AT eram centradas
em apelos sociais e que a igreja deve acolhê-las também nesse aspecto.
Porém, essa percepção está equivocada. Ainda que condenassem os pecados
sociais de seus contemporâneos, os profetas não viam isso como sua
preocupação central, mas sim como evidências adicionais de que o povo
havia abandonado os preceitos da aliança com Javé. O centro de suas
denúncias era, na verdade, a apostasia religiosa da nação. Esse era o quadro
maior de que as opressões sociais eram apenas mais um componente. Por
isso, na visão dos profetas, a solução para as injustiças que tanto atacavam
[120]
era o arrependimento e não a implementação de programas assistenciais.
Por isso, é errado dizer (como fazem muitos proponentes da Missão
Integral) que os profetas eram reformadores sociais urbanos e que a igreja
precisa ouvir suas mensagens como uma espécie de voz dos oprimidos. Na
verdade, a única tarefa que cabe à igreja diante do mundo é pregar o
evangelho da cruz, o evangelho do Deus verdadeiro que dá salvação eterna
e completa. Esse evangelho, quando acolhido por alguém por meio da fé,
acaba por enobrecer a pessoa, tirando-a da ignorância, da vadiagem, da
sujeira, das más companhias, dos vícios e da criminalidade.
Vê-se, assim, que o real convertido sofre e promove um impacto que
se faz sentir não apenas na sua vida espiritual, mas também no seu trabalho,
nas suas escolhas políticas, na sua avaliação do direito e das leis, nas suas
concepções éticas, no seu comportamento moral, na sua visão e prática
econômica e na importância que passa a dar à educação.
O indivíduo transformado pela fé também começa a agir em prol do
seu semelhante (especialmente seus familiares e irmãos em Cristo), não
movido por conceitos marxistas ou por tendências político-filosóficas, mas
sim por uma santa inclinação que passa a ter como criatura nova (2Co
5.17). Ele é o homem que furtava, mas agora não furta mais, antes trabalha
para socorrer o que tem necessidade (Ef 4.28).
Todo esse impacto social do evangelho não é, contudo, o alvo final do
trabalho da igreja diante do mundo que a cerca. É “apenas” o efeito
transformador comum que o Espírito Santo opera no homem salvo. Mais
uma vez: o alvo supremo da igreja diante dos perdidos é tentar livrá-los da
condenação do pecado, mostrando que a única forma de se proteger da ira
de Deus é buscando refúgio na cruz de Cristo. Realizando essa tarefa
proclamativa, a igreja verá pecadores sendo salvos do inferno e, como um
“bônus”, os verá também sendo libertos de inúmeras outras formas de
opressão, inclusive a social.
Note-se que o evangelho de Cristo sempre produziu esse efeito
magnífico, basta observar a mudança de vida de incontáveis indivíduos
alcançados pela graça salvadora no decorrer da história; basta também olhar
para os inúmeros hospitais, creches, escolas e abrigos fundados por cristãos
ao longo dos séculos, muito antes de surgir qualquer proposta liberal ou de
“missão integral”. Isso tudo mostra quão desnecessários são os apelos
demagógicos desses movimentos e leva a suspeitar de que se trata apenas
de artifícios para transformar a igreja numa aliada na promoção de
doutrinas heréticas e ideologias de esquerda, sob o disfarce de serva de
Cristo.
Por isso, se a igreja quer realmente causar impacto no mundo,
concentre seus esforços na pregação do evangelho autêntico, destacando a
obra de Cristo, o arrependimento, a fé e o livramento do castigo eterno. Isso
fará com que ela veja o homem perdido ser liberto da ira vindoura e de
muitas desgraças presentes. Se não cumprir essa tarefa, não verá nem uma
coisa nem outra.
Possíveis questões

1) Qual deve ser a resposta do crente às pessoas em geral que lhe


pedem socorro?
Este capítulo desaprova os projetos sociais eclesiásticos que reduzem a
igreja a uma entidade assistencialista e fazem com que ela se desvie de seus
alvos principais, os quais envolvem a pregação, o ensino, a santidade e a
disciplina.
Quanto ao cristão individual, é seu dever ajudar qualquer pessoa que lhe
pedir socorro (Mt 5.42; Rm 12.20), tendo apenas cuidado para não ser
enganado por pessoas de má-fé e por aproveitadores (Pv 3.27; 2Ts 3.10). O
crente também deve evitar se comprometer em ajudar alguém deixando
seus familiares e seus irmãos na fé sem amparo (Gl 6.10; 1Tm 5.8; 1Jo
3.17).
Ainda no tocante ao âmbito individual, há cristãos que criam entidades
humanitárias ou associações filantrópicas. Essas iniciativas são bastante
louváveis e não há nada de condenável nelas, desde que esses grupos não
deixem de pregar o evangelho puro, não tentem desviar a igreja de sua
tarefa principal de proclamação e pratiquem o ensino bíblico de socorrer
primeiro os da família da fé.

2) Não há nada que a igreja, como instituição, possa fazer para aliviar o
sofrimento deste mundo e reduzir as injustiças sociais?
É claro que há. Uma boa sugestão é a igreja cooperar como entidade
mantenedora de instituições beneficentes cristãs que tenham zelo
evangelístico. Se a igreja tiver condições financeiras, poderá destinar
verbas para essas instituições, ajudando no sustento do seu trabalho. Isso a
envolverá na obra central de evangelismo e a tornará presente numa esfera
mais ampla da vida social, sem comprometer a verdadeira razão da sua
existência e sem perder o foco do seu trabalho. A ajuda da igreja a essas
instituições, porém, deve ser dada sem prejuízo do amparo aos membros
necessitados da própria comunidade ou de irmãos de outros lugares que
enfrentam miséria e calamidade (veja-se a lista de prioridades acima).
Capítulo 12 – O CASAMENTO
A banalização do matrimônio é uma das marcas da sociedade
contemporânea — uma marca presente tanto no contexto secular como
cristão.
Com efeito, não é somente a mídia, os governos e as instituições
antiDeus que apregoam o afrouxamento dos laços matrimoniais. Também
pastores, escritores cristãos, igrejas, seminários e denominações inteiras
propagam discursos que são verdadeiras apologias à fragilidade do vínculo
conjugal, dando ensejo e estímulo a separações e fazendo com que seus
índices de incidência atinjam níveis surpreendentes.
Raras são as comunidades e solitários são os líderes evangélicos que se
opõem ao divórcio. Mais raros ainda são os crentes que se insurgem contra
o recasamento. E toda essa “tolerância”, na maior parte das vezes, não
repousa sobre a análise bíblica séria ou sobre a reflexão madura acerca de
um tema tão crucial para a felicidade das pessoas e para o bem da igreja.
Em vez disso, a defesa do casamento solúvel é construída sobre
jargões pobres (“você tem o direito de ser feliz com outra pessoa”), sobre
bases teológicas fracas expostas em retórica barata (“nosso Deus é o Deus
da segunda chance” ou “Deus não quer que fiquemos com alguém por mera
obrigação”) e sobre uma hermenêutica que faz malabarismos com
passagens da Bíblia (um dos exemplos mais chocantes é a defesa do
recasamento com base em Ageu 2.9: “A glória desta última casa será maior
do que a da primeira...”).
Isso tudo produz práticas erradas das quais a igreja de Deus deve fugir.
Para tanto, é preciso que os crentes corrijam suas ideias sobre o santo
matrimônio e construam uma estrutura conceitual bíblica e sólida acerca do
tema. Essa construção deve partir da análise do que, de fato, produz o
vínculo matrimonial.

Os três elementos que perfazem o casamento

Quando e em que circunstâncias nasce o vínculo matrimonial entre um


homem e uma mulher?
A resposta a essa pergunta é fundamental porque, enquanto não houver
vínculo conjugal unindo um casal, obviamente não existirá casamento,
sendo então impossível falar em divórcio, novas núpcias ou qualquer outro
assunto ligado à ética matrimonial.
Por isso, antes de lidar com as complexas questões ligadas ao ensino
bíblico acerca do matrimônio, é preciso determinar quando o casamento se
perfaz, isto é, quando se torna existente na experiência do homem e da
mulher que nutrem uma relação de afeto.
A partir da análise das Escrituras, é possível concluir que o vínculo
matrimonial se perfaz quando ocorrem três fatos: a decisão livre de casar, o
ato solene de união e o intercurso sexual.

1. A decisão livre de casar. Para que o casamento seja considerado


existente, é preciso que os cônjuges tenham se unido de livre vontade,
isto é, sem a força ou a influência dos vícios da vontade (coação, erro e
dolo).
A antiga cláusula “deixará o homem pai e mãe” (Gn 2.24) implica um
ato espontâneo, em que o indivíduo decide sair da casa paterna e
iniciar um novo núcleo familiar. Obviamente, para que essa vontade
seja exercida livremente, não podem haver coação, ameaça ou
constrangimento (o famoso casamento com “uma arma nas costas”).
Tampouco haverá o livre exercício da vontade no caso das pessoas que
são induzidas a erro pelas circunstâncias, como na situação em que os
cônjuges descobrem mais tarde que são irmãos entre si.
Também estará ausente o exercício livre da vontade no caso de um dos
envolvidos ser maliciosamente enganado e, então, levado a se casar —
algo que jamais faria caso tivesse conhecimento da totalidade dos fatos
que lhe foram sonegados. É o caso da mulher que se casa e depois
descobre que seu marido já é casado há muito tempo, tendo esposa e
filhos em outro lugar. É ainda a hipótese da esposa que logo descobre
que seu marido não tem interesse sexual por ela e que se casou apenas
para encobrir sua homossexualidade. Em casos assim, é evidente que a
vontade foi viciada pelo dolo (a intenção de enganar), não tendo sido
exercida livremente.
Uma vez verificado o fato de que não houve a decisão livre de casar,
conclui-se que o vínculo conjugal jamais surgiu e que o casamento
pretendido nunca se perfez, sendo inexistente de fato.
É importante salientar que, no caso de erro ou dolo, para que o
casamento não se perfaça, o fato oculto deve ser de tal natureza que, se
fosse conhecido antes, a pessoa não se casaria. Ninguém, portanto,
pode alegar que seu casamento não se perfez porque, à época da união,
desconhecia fatos de segunda importância.

2. O ato solene. O ato solene é a formalidade que oficializa e dá


publicidade ao casamento, diferenciando-o do concubinato ou da mera
convivência íntima. Dependendo da cultura em que se realiza, o ato
solene pode assumir diferentes formas. Pode ser a celebração de um
pacto nupcial consubstanciado num contrato escrito (como ocorria na
[121]
Palestina a partir do período interbíblico ), pode ser um evento
festivo (como os banquetes de bodas mencionados nos evangelhos),
pode ser composto pela entrega formal de um dote ou de presentes
nupciais (como em Gn 24.52-54 e 34.12), pode ser uma cerimônia
religiosa (como os casamentos feitos na igreja) ou um rito jurídico
(como os enlaces realizados em cartórios).
Dentre os elementos que perfazem o casamento, o ato solene é o mais
desprezado na atualidade. Até mesmo pastores se referem a essa
formalidade como algo desnecessário e irrelevante, dizendo que só
produz um “pedaço de papel” (a certidão de casamento).
Contudo, de forma surpreendente, a Bíblia mostra que o ato solene é
fundamental para que o casamento exista, sendo o único elemento que
distingue o matrimônio do concubinato e o cônjuge do simples
convivente.
Começando pelo Antigo Testamento, é possível notar que os escritores
sagrados fazem diferença entre a figura da esposa e a da concubina
(2Sm 5.13; 19.5; 1Rs 11.3; 2Cr 11.21; Dn 5.2). Qual era, porém, a
principal distinção entre essas duas posições? É simples. A esposa
[122]
havia se casado formalmente, por meio de uma cerimônia específica.
Já a concubina havia entrado no relacionamento de convívio por outras
vias, às vezes até como escrava (Gn 30.3-4 cp. 35.22). Daí a evidência
de que, no AT, o ato solene é essencial para que o casamento se
perfaça.
Corroborando essa ideia, observe-se, por exemplo, o Salmo 45.8-15.
Esse texto mostra o grau de pompa e de formalidade a que uma
cerimônia nupcial podia chegar, tudo para que um real matrimônio se
efetivasse. Ora, isso jamais foi exigido no caso de relações de
concubinato.
No Novo Testamento, a necessidade do ato solene como fator
fundamental para a criação do vínculo matrimonial é percebida
especialmente no ensino de Jesus. Em seu diálogo com a mulher
samaritana (Jo 4.16-18), o Senhor disse que ela tinha tido cinco
maridos (homens com quem se casara) e o que tinha então não era seu
marido, apesar de estar com ela.
Nessa passagem, o Mestre dá a entender que a simples convivência
não perfaz o casamento. Daí afirmar que o sexto homem não era
marido da samaritana. O casamento não havia ocorrido de modo
formal. Logo, não era considerado existente pelo Mestre.
O entendimento de que o ato solene é o único fator que distingue o
casamento do concubinato, sendo essencial para que alguém se torne
cônjuge e não apenas convivente era uma noção amplamente aceita
nos tempos antigos. O Rabino Meir, que viveu por volta do ano 150,
quando perguntado sobre a diferença entre a esposa e a concubina,
respondeu: “A esposa dispõe de um contrato de casamento, a
[123]
concubina não o possui”.
Esse entendimento tem amplo amparo bíblico, deixando claro que a
ausência de ato solene faz da convivência de um homem com uma
mulher um modo de vida irregular, reprovado por Deus e sem o poder
de gerar o vínculo conjugal.
Assim, os envolvidos nesse tipo de situação são apenas solteiros que
vivem juntos e a separação de ambos, caso ocorra, sequer exigirá o
expediente do divórcio. Ademais, como solteiros que são, após
separados poderão se casar com outra pessoa caso queiram, desta vez
cumprindo as eventuais formalidades.
3. O intercurso sexual. A base bíblica para a relação sexual como
fator que perfaz o casamento está em Gênesis 2.24: a frase “serão
ambos uma só carne” tem clara conotação sexual (1Co 6.16).
O intercurso sexual é o ato sexual em seu sentido pleno, sendo
excluídas desse conceito as carícias íntimas e outras práticas sexuais
que não envolvem o intercurso propriamente dito. Sem esse ato sexual
pleno, ou seja, sem o real intercurso, o casamento não existirá.
Essa é uma das razões pelas quais é impossível que haja casamento
entre pessoas do mesmo sexo. “Parceiros” nessas condições são
capazes de trocar carícias ou praticar extravagâncias de ordem sexual,
mas é impossível que realizem um intercurso sexual por razões físicas
e inadequações orgânicas impostas pela própria natureza.
É preciso destacar aqui que o intercurso sexual só é considerado uma
prática santa dentro do contexto matrimonial (Hb 13.4) e que tem por
objetivos consumar a união do casal (Mt 19.5-6) e promover a
felicidade e satisfação dos cônjuges (Pv 5.15-19; Ec 9.9; 1Co 7.9),
protegendo-os, assim, da imoralidade (1Co 7.1-5).

Eis aí os três elementos que perfazem o casamento. Se um só deles


estiver ausente, o vínculo conjugal não existirá. Com efeito, se não houver a
vontade livre, surgirá uma relação no mínimo questionável ou
controvertida. Já na ausência do ato solene, virá à luz somente uma relação
biblicamente irregular de concubinato. Finalmente, caso não exista
intercurso sexual, o matrimônio igualmente não existirá, surgindo apenas
uma relação de mera convivência.
Havendo, porém, a ocorrência dos três fatores, o consórcio
matrimonial se concretizará, produzindo os efeitos mencionados mais
adiante.

Ressalva: o casamento religioso

Não existe na Palavra de Deus nenhuma prescrição acerca do que é


chamado de “casamento na igreja”. Na verdade, essa prática não é
mencionada nenhuma vez em todo o Novo Testamento. Tampouco é
possível encontrar nas Escrituras qualquer indício de que uma das tarefas do
ofício pastoral seja realizar casamentos. Aliás, o “casamento religioso” não
pode ser embasado em nenhum texto da Bíblia, posto que em momento
algum os autores sagrados tratam desse assunto.
Assim, cerimônias cristãs de enlace matrimonial são atos solenes
originados certamente no desejo antigo de buscar a bênção de Deus para a
união entre um homem e uma mulher. Essa prática passou a fazer parte da
tradição cristã e parece ser um bom costume que, aliás, acaba por suprir um
dos requisitos para que o casamento se perfaça (o ato solene). Contudo, os
crentes não devem elevar as solenidades cristãs de enlace à categoria de
exigência divina, pois isso seria ir além do que está disposto na própria
revelação escrita de Deus.
Isso, entre outras coisas, significa que, para se unir em matrimônio, um
casal não precisa “casar na igreja”, podendo perfazer sua união por meio de
ritos meramente jurídicos (o chamado “casamento civil”) ou culturais
(celebrações, gestos simbólicos, reuniões solenes, etc.).
Porém, se o casal for crente, é aconselhável que promova uma
cerimônia religiosa nos moldes da tradição, não para cumprir preceitos
bíblicos, posto que, conforme já dito, não existem, mas para suprir a
formalidade necessária ao casamento da maneira que melhor promova a fé e
também para evitar ferir os escrúpulos de irmãos mais sensíveis à
observância dos bons e antigos costumes do cristianismo.

Os dois efeitos do casamento

Tão logo o vínculo conjugal se complete pelo preenchimento dos três


requisitos elencados neste capítulo, dois efeitos são produzidos. São os dois
efeitos básicos do casamento, a saber, a convivência e a indissolubilidade.
Ambos estão previstos em Gênesis 2.24: “Por isso, deixa o homem pai e
mãe e se une à sua mulher (convivência), tornando-se os dois uma só carne
(indissolubilidade)”. O primeiro é considerado o efeito programado, o
segundo pode ser chamado também de efeito não programado.

1. Convivência, o efeito programado do casamento — A


convivência é o efeito programado do casamento porque quem se casa
obviamente o faz com o objetivo assumido e consciente de conviver.
De fato, ao deixar pai e mãe, o indivíduo que se une ao seu cônjuge
tem planos de morar sob o mesmo teto, construindo um lar, um
patrimônio e uma história ao lado da pessoa com quem se casou.
O casamento é o fator que legitima essa convivência e a Bíblia mostra
que esse efeito programado da união conjugal deve ser regido por
diretrizes que o próprio Senhor fixou, a fim de que seja feliz,
realizador e edificante.
A primeira lição que emana das Escrituras sobre a convivência do
casal casado é que ela deve ser marcada por uma vida sexual dinâmica
(Pv 5.15-19; 1Co 7.3-4). Na verdade, o texto sagrado ensina que os
cônjuges não devem se privar mutuamente, exceto por consentimento
mútuo, e isso somente por algum tempo, com o objetivo exclusivo de
se dedicarem à oração. Depois desse período, devem se unir
novamente, para que Satanás não os tente, aproveitando-se da
dificuldade dos cônjuges em se conter por mais tempo (1Co 7.5). O
apóstolo Paulo é bastante direto ao tratar desse assunto, mostrando que
o casal que não tem uma vida sexual ativa e constante está longe do
ideal de Deus e se mantém exposto a perigos.
A convivência do casal também deve ser marcada pela sujeição (Ef
5.21). O marido deve se sujeitar à sua mulher movido pelo amor, do
mesmo modo como Cristo se sujeitou em amor à igreja (Ef 5.25).
Algo, porém, deve ficar bem claro nesse ponto: assim como Cristo é o
líder da igreja, também o marido é o líder do lar (Ef 5.23; 1Tm 3.4,12).
Por isso, a sujeição do marido não é do tipo que obedece, mas sim do
tipo que se sacrifica (Ef 5.25b). Se acaso o marido se sujeitar à esposa
como quem obedece, inverterá o modelo estabelecido por Deus e o lar
ficará desestruturado.
Algo também importante a se destacar é que, ao se sujeitar
sacrificialmente à esposa, conforme estabelecido na Bíblia, o marido
deve ter como alvos sublimes protegê-la e sustentá-la, bem como
aperfeiçoá-la espiritualmente (Ef 5.26-29).
Se o traço principal da sujeição do marido é o amor que se sacrifica, o
traço principal da sujeição da esposa é o respeito que se rende. Sua
sujeição é, portanto, do mesmo tipo que a igreja deve a Cristo (Ef
5.22,24). Isso implica auxílio (Gn 2.18), dedicação (Pv 31.13-27),
obediência e o reconhecimento de que as rédeas do lar estão nas mãos
do esposo (1Pe 3.5-6).
Os cônjuges também devem conviver livres de amarguras, rancores,
brigas e disposições ofensivas. Em vez disso, a esposa deve ser
pacífica, dócil e serena (Pv 31.12; 1Pe 3.1-5) e o marido deve ser sábio
no trato com sua mulher, tributando a ela honra e cuidado especial
(1Pe 3.7).

2. Indissolubilidade, o efeito não programado do casamento — A


indissolubilidade é o efeito não programado do casamento porque não
depende do planejamento, da vontade ou mesmo da ciência dos noivos
para que seja produzido. Quando duas pessoas se casam, preenchendo
os três requisitos que perfazem o casamento enumerados acima, a
indissolubilidade surgirá, quer os cônjuges queiram ou não, quer
saibam ou não, quer concordem com isso ou não.
Que o vínculo conjugal é insolúvel se depreende de textos como
Mateus 19.6, Romanos 7.2 e 1Coríntios 7.39. De fato, as duas últimas
referências mostram que o único fator que tem força para quebrar o
liame matrimonial é a morte. Nem a decisão dos envolvidos, nem os
sentimentos das partes, nem o afastamento dos cônjuges, nem os erros
do casal, enfim, nada exceto a morte tem o condão de destruir o elo
que foi estabelecido entre um homem e uma mulher casados entre si.
Obviamente, essas afirmações suscitam a seguinte pergunta: e quanto
ao divórcio? A Bíblia não mostra que há casos em que esse expediente
pode ser usado, pondo fim ao matrimônio?
Sim. Ainda que Deus odeie o repúdio (Ml 2.14-16) e Jesus ensine que
a causa básica da separação de um casal seja a dureza de coração (Mt
19.6-8), a verdade é que o divórcio é tolerado na Bíblia em dois casos
específicos: em razão de relações sexuais ilícitas, como o adultério (Mt
5.32; 19.9), e quando o cônjuge incrédulo quiser se apartar do cônjuge
crente (1Co 7.12-13,15). Nessa segunda hipótese, o texto bíblico deixa
[124]
claro que a iniciativa da separação deve ser do incrédulo.
Sem dúvida, há algumas situações que não se encaixam nas hipóteses
acima, nas quais a separação dos cônjuges é inevitável. É o caso, por
exemplo, do marido que expõe a perigo a vida e a integridade física da
esposa e dos filhos, espancando-os violentamente. Também é o caso do
pai que estimula a corrupção dos filhos, ensinando-os a roubar ou a
usar drogas, tornando impossível a convivência familiar.
Situações terríveis assim, ainda que não sejam previstas na Bíblia,
muitas vezes justificam o divórcio, uma vez que põem em risco
valores que estão acima da unidade conjugal — valores como a vida e
a integridade moral e física. Contudo, deve-se frisar que, antes de
chegar ao ponto de se separar, o casal deve empregar todos os recursos
possíveis para que a unidade familiar seja preservada.
Tendo sido demonstrado aqui que o divórcio é admitido na Bíblia em
algumas poucas hipóteses, deve-se agora fazer a seguinte ressalva: o
divórcio de que a Bíblia trata tem força para destruir o efeito
programado do casamento (a convivência), mas não o efeito não
programado. Isso significa que, mesmo com o advento do divórcio, o
vínculo matrimonial entre um homem e uma mulher casados entre si
perdura, sendo um elo estabelecido por Deus que só se dissolve com a
morte de um dos cônjuges.
É por causa disso que a Bíblia não aprova o recasamento de pessoas
divorciadas. Com efeito, à luz do texto sagrado, o casamento de
alguém separado, cujo ex-consorte permanece em vida, implica
adultério para ambas as partes envolvidas (Mc 10.11-12; Lc 16.18; Rm
7.3; 1Co 7.10-11).
Daí se conclui que o divórcio, conforme abordado na Bíblia, tem força
menor do que aquela que lhe é dada no âmbito jurídico. Se, de um
lado, a lei civil entende o divórcio como o expediente que dissolve o
vínculo conjugal e, consequentemente, abre a possibilidade de se
contrair novas núpcias, de outro, o Novo Testamento atribui a esse
recurso eficácia mais restrita.
De fato, segundo as Escrituras, o divórcio é capaz de interromper
somente a convivência do casal, sem, contudo, destruir o elo que
vincula o marido e a mulher. Esse elo, mesmo com o divórcio,
permanece intacto, fazendo de ambos “uma só carne” — algo que
perdura misteriosamente pelo poder de Deus até o advento da morte.
Ora, sendo a morte o único fator que quebra o vínculo conjugal, é
evidente que o casamento de viúvos é lícito (1Tm 5.14). A única
ressalva feita pelo apóstolo Paulo referente a esses casos é que o viúvo
crente se case com alguém que também seja cristão (1Co 7.39). Na
verdade, o casamento entre um crente e um incrédulo nunca é
aprovado na Bíblia que, aliás, condena qualquer associação intensa da
luz com as trevas (2Co 6.14-16).

A cláusula de exceção

Nos tempos do Novo Testamento, os judeus abrigavam na mente


algumas sérias diretrizes acerca do casamento. Por exemplo, eles sabiam
que, no caso de adultério, tanto o homem como a mulher envolvidos
deviam ser executados (Lv 20.10 cp. Jo 8.3-11). Eles também conheciam a
restrição que pesava sobre os sacerdotes que, por exercerem uma função
santa, não podiam se casar com uma prostituta, nem com uma moça que
não fosse virgem ou com uma mulher divorciada (Lv 21.7).
Dentre os trechos da lei que tratavam sobre o casamento, talvez a
passagem de Deuteronômio 24.1-4 fosse a que mais causava controvérsias.
Segundo esse texto, uma mulher que tivesse se divorciado e casado
novamente não poderia voltar para o seu ex-consorte, nem mesmo se o seu
segundo marido morresse (Dt 24.2-4).
É provável, porém, que a parte mais discutida do texto de
Deuteronômio 24 fosse o versículo 1, que dizia que o marido podia dar
certidão de divórcio à sua esposa caso encontrasse nela algo que não fosse
do seu agrado. Como é praticamente impossível definir nessa passagem o
limite exato do direito dado ao marido que quisesse se divorciar, os rabinos
da época defendiam opiniões divergentes, sendo uns mais liberais, enquanto
outros se mostravam bastante rigorosos em suas concepções.
No tocante a esse assunto, as escolas rabínicas mais conhecidas que se
opunham entre si eram a de Hillel e a de Shammai. Stuart Weber resume
muito bem a concepção dessas duas vertentes:

Em Israel, durante o primeiro século, o divórcio e o novo


casamento eram temas tão polêmicos quanto são hoje. A escola
de pensamento do rabino Hillel nutria visões bastante liberais
sobre o assunto, admitindo o divórcio por qualquer motivo. Hillel
aceitava o divórcio até no caso de uma refeição malcozida ou se
o marido visse uma mulher que considerasse mais atraente. Já a
escola do rabino Shammai era bem rigorosa, permitindo o
divórcio somente por motivos graves, especialmente o adultério.
[125]

Inspirados, assim, nessas discussões sobre o divórcio, os inimigos de


Jesus, movidos especialmente pelo desejo de colocá-lo à prova,
perguntaram-lhe certa vez se era permitido ao homem se divorciar de sua
mulher por qualquer motivo (Mt 19.3). A resposta do Mestre destacou então
a origem sobrenatural do casamento (Gn 1.27) e a indissolubilidade
implícita na expressão “uma só carne” (Gn 2.24), frisando afinal que
marido e esposa não devem se separar (Mt 19.4-6).
Diante dessa reposta, os fariseus recorreram a Deuteronômio 24.1,
precisamente o texto que diz que o homem pode dar certidão de divórcio à
sua esposa, caso não se agrade dela. O claro objetivo deles era acusar Jesus
de ensinar lições contrárias às Escrituras.
Nesse ponto, porém, Jesus enunciou uma importante verdade: Deus
não criou o divórcio e, então, o inseriu na lei, como pensavam muitos
judeus da época (e ainda pensam muitas pessoas hoje). Não! Ele havia
apenas dado instruções para regulamentar uma prática desordenada
inventada pelos homens por causa da dureza do seu coração (Mt 19.8).
Em seguida, Jesus acrescentou: “Eu, porém, vos digo: quem repudiar
sua mulher, exceto no caso de relações sexuais ilícitas, e casar com outra
comete adultério” (Mt 19.9). Como se vê, sua concepção acerca do divórcio
é rigorosa, permitindo que se recorra a esse expediente somente em caso de
“relações sexuais ilícitas”.
No aspecto referente à possibilidade do divórcio, o ensino de Jesus é,
de fato, bastante claro. O problema que se levanta em face de Mateus 19.9 é
que a expressão “exceto no caso de relações sexuais ilícitas” (a chamada
cláusula de exceção) parece aceitar a possibilidade não só do divórcio, mas
também do novo casamento, pelo menos para a parte que foi vítima da
infidelidade do seu cônjuge.
Essa impressão que o texto passa, contudo, não deve enganar o
estudioso da Bíblia. Isso porque, na verdade, à luz da gramática grega e do
ensino geral do Novo Testamento, a cláusula de exceção pronunciada por
[126]
Jesus só pode ser aplicada ao repúdio e não ao novo casamento.
De fato, um número notável de grandes exegetas é unânime em dizer
que, no texto em questão, a exceção é aplicável apenas ao divórcio,
permanecendo vedado o segundo casamento, mesmo em casos de adultério.
É o que explica o doutor em línguas bíblicas Carlos Osvaldo Cardoso
Pinto:

As palavras de Jesus em Mateus 19.9, conforme entendidas


por todos os comentaristas cristãos até o século XVI (com a única
exceção, Ambrosiastro, no século IV), declarava que recasamento
depois de divórcio implica adultério para todos os envolvidos...
Essa posição, menos popular e praticamente mais complexa,
entende que a frase “exceto em caso de relações sexuais ilícitas”
(a chamada “cláusula de exceção”) modifica apenas a frase “Se
um homem se divorciar de sua mulher”, o que, em linguagem
técnica, se chama prótase (oração condicional) e não a frase
seguinte, “e casar com outra comete adultério”, que os eruditos
[127]
chamam de apódose (oração principal).

Continuando sua exposição, o professor afirma que “a gramática e a


estatística do Evangelho de Mateus exigem que a cláusula de exceção se
refira apenas à frase que a precede”. Daí conclui que “o sentido das
palavras de Jesus em Mateus 19.9 seria, portanto: ‘O marido não pode
repudiar (divorciar-se de) sua mulher a não ser que ela seja culpada de
comportamento sexual ilícito.’ E mais: ‘Quem se casar depois de repudiar
[128]
sua esposa comete adultério’.”
Ao fim de toda essa discussão, alguém poderá perguntar: Por que o
nexo matrimonial é tão forte até o ponto de somente a morte poder quebrá-
lo? A resposta a essa questão está no fato de o casamento não ser um
simples contrato firmado entre duas partes, produzindo efeitos meramente
naturais. Antes, o casamento tem origem divina, produzindo nexos que
ultrapassam a compreensão humana.
Recorde-se mais uma vez que, segundo a Bíblia, quando duas pessoas
se casam, ambas se tornam uma só carne (Gn 2.24), passando a existir um
elo tão forte entre elas que a simples separação de corpos ou a distância
geográfica é incapaz de quebrar.
Trata-se, portanto, de um elo mais forte que o da filiação. Com efeito,
todos sabem que o vínculo natural entre pais e filhos é fortíssimo, de
maneira que ninguém deixa de ser filho pelo simples fato de não conviver
mais com os pais. Ora, se é assim no caso do elo natural de filiação, muito
mais forte deverá ser considerado o elo sobrenatural do casamento em que
as partes são tidas como “uma só carne”, algo jamais dito acerca da relação
pai/filho.
Vê-se, desse modo, que a ética cristã do casamento é extremamente
elevada e deve ser defendida a todo custo nos dias modernos. Aliás, é
significativo que João Batista, o primeiro mártir do Novo Testamento, foi
preso e decapitado precisamente por defender a ética bíblica do matrimônio
(Mt 14.3-12), o que deveria inspirar os cristãos modernos a se dispor muito
mais na defesa desses mesmos valores.
Concluindo, em face de tudo que foi dito, a igreja de Deus não pode
concordar com o segundo casamento de alguém cujo cônjuge ainda esteja
vivo. Por isso, essa igreja não incentivará nem promoverá o casamento de
pessoas nessa condição, apontando o erro de quem segue nessa direção.
Entretanto, é bom destacar que pessoas divorciadas que chegam à
igreja já tendo constituído nova família não devem ser rejeitadas.
Evidentemente, nesses casos, não há nada que fazer senão aceitar a situação
tal qual se encontra, pois seria muito prejudicial forçar a dissolução do
segundo casamento e quase sempre impossível viabilizar a restauração do
primeiro. Por isso, crentes nessas condições devem ser recebidos
normalmente na igreja, sendo-lhes apenas vedada a ocupação de cargos de
liderança ou orientação espirituais (1Tm 3.2,12).
Perguntas frequentes

1) É necessário que o crente se case na igreja?


Não. Conforme visto, o casamento na igreja não é sequer mencionado na
Bíblia. Já foi exposto que nos tempos do AT existiam formalidades muito
diferentes das realizadas em igrejas cristãs. Também nos tempos do NT, os
casamentos seguiam rituais que envolviam cortejos, banquetes e
festividades. Essas são as formas de casamento mencionadas na Bíblia.
Nenhuma cerimônia na igreja é mencionada, ainda que essa seja uma boa
e útil tradição.

2) Uma pessoa que convive há décadas com outra, tendo filhos e bens
em comum, sem, no entanto, casar-se, tem vínculo conjugal com seu
consorte?
Não, não tem. O vínculo conjugal não se perfaz com a passagem do tempo,
nem com o nascimento de filhos, nem com a aquisição conjunta de bens.
Tudo que a passagem do tempo faz numa relação de convivência entre um
homem e uma mulher não casados é tornar seu pecado mais velho, pois
qualquer conúbio carnal fora do matrimônio é pecado.
Como dito acima, para que o vínculo conjugal se perfaça, é preciso que
haja vontade livre, ato solene e intercurso sexual. No caso em pauta, falta o
ato solene. Portanto, não há vínculo conjugal unindo o casal hipotético
mencionado na pergunta.

3) É possível que alguém estabeleça vínculo conjugal com mais de uma


pessoa?
Sim, é errado, mas é possível. A Bíblia vislumbra essa possibilidade,
fazendo alusão a homens com mais de uma esposa (recorde-se os vários
personagens do AT e também 1Tm 3.2,12).
O fato é que sempre que se realizarem os três fatores que perfazem o
casamento (vontade livre, ato solene e intercurso sexual), o vínculo surgirá,
mesmo que o outro cônjuge ainda esteja em vida. Isso, no entanto, gerará
uma condição de bigamia (ou até poligamia), reprovada na Bíblia.
4) A pessoa que se divorcia e se casa novamente, estando o seu ex-
consorte ainda em vida, não passa a viver em adultério permanente?
A relação sexual inaugural da pessoa que contrai novas núpcias estando o
seu ex-consorte ainda em vida é uma relação adulterina, como se
depreende de Mateus 5.31, 19.9 e Romanos 7.2-3.
Essa relação, porém, uma vez consumada e estando presentes os outros
dois elementos que perfazem o casamento (a vontade livre e o ato solene)
gera vínculo, tornando o novo consorte um cônjuge de fato. A partir daí,
não se pode mais dizer que as relações sexuais do novo casal são
adulterinas, posto que ambos estão realmente casados entre si.
O que se poderá dizer é que vivem numa situação irregular de bigamia (o
que impede o exercício de cargos de liderança na igreja, nos termos de
1Tm 3.2,12), mas não na condição de adúlteros (o que os impediria até de
serem membros da igreja), posto que o casamento deles existe e é real,
[129]
ainda que seja irregular.
É bom frisar que na igreja do NT havia homens com mais de uma esposa.
Do contrário, Paulo não teria de fazer as restrições encontradas em
1Tmóteo 3.2,12. Talvez os homens a que Paulo se refere fossem
considerados maridos de mais de uma mulher por terem se casado
novamente estando o ex-cônjuge ainda em vida. É curioso, porém, que não
há nenhuma ordem para que aqueles homens sejam disciplinados por viver
em adultério. Existe somente a orientação para que não assumam cargos
de liderança espiritual. Esse é um forte indício de que o recasamento não
implica adultério permanente. Se fosse assim, não haveria como manter
aqueles homens mencionados em 1Timóteo 3.2,12 na membrezia da igreja.

5) Como tratar os casais que chegam à igreja e não são casados,


vivendo uma relação de concubinato?
O pastor deve orientá-los a suprir o elemento que falta para o surgimento
do vínculo conjugal — no caso, o ato solene. Isso poderá ser feito por meio
do casamento civil.

6) Como receber na igreja os casais que vivem em concubinato, mas um


dos conviventes é divorciado?
O ideal é que se separem e que a parte divorciada se reconcilie com o ex-
cônjuge ou simplesmente fique só (1Co 7.10-11). Porém, muitas vezes, a
convivência de um casal assim é muito antiga, tendo gerado filhos e muitos
liames entre os cônjuges. Nesses casos, a separação entre ambos e/ou a
volta do divorciado para seu cônjuge anterior são, geralmente, impossíveis
ou podem trazer danos ainda maiores às pessoas envolvidas (especialmente
os filhos).
O fato é que várias situações com as quais o pastor e a igreja precisam
lidar não têm solução perfeita. Então, o melhor é reduzir os erros até onde
for possível, fazendo apenas com que o casal se case, saindo pelo menos da
relação de concubinato.

7) Como o pastor deve lidar com a ameaça de ser punido pelo Estado,
caso se recuse a realizar casamentos homossexuais?
Ele deve enfrentar corajosamente a situação, mantendo-se firme em suas
convicções. Na Bíblia, é ensinado que as ordens das autoridades humanas
não podem ser postas acima da Palavra de Deus e que os santos devem
preferir o castigo humano a se curvar diante de ordens que contrariam a
vontade do Senhor (Dn 3.13-18; 6.6-10; At 4.18-20).

8) Que orientações seriam úteis para o pastor seguir na realização de


uma cerimônia de casamento?
Devido à profunda preocupação de harmonizar todos os atos da igreja com
o que está disposto na Palavra de Deus, somente casamentos entre pessoas
que não estejam em jugo desigual devem ser realizados pelo pastor. Assim,
ele jamais deve celebrar a cerimônia de enlace de um crente com um
incrédulo (1Co 7.39; 2Co 6.14-16).
Também em face de suas convicções ético-doutrinárias, sempre
fundamentadas na Sagrada Escritura, o pastor não realizará casamentos
entre pessoas divorciadas (Mt 5.31; 19.9).
À igreja que quer ser zelosa, recomenda-se que todas as cerimônias de
enlace feitas em suas dependências sejam realizadas pelo seu próprio
pastor. A eventual participação de outros pastores na cerimônia deverá ser
precedida de cuidados, pois não se pode admitir que programas conduzidos
por pessoas sem nenhum preparo comprometam a identidade e o bom nome
da igreja diante do número enorme de convidados presentes a esses
eventos.
Visando também à preservação de sua identidade, a igreja cuidadosa terá
controle sobre as participações especiais nos programas de casamento,
cuidando para que sejam feitas somente por pessoas crentes.
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTÃ
Com a proliferação das seitas evangélicas, acompanhada da crescente
ignorância do povo acerca do que a Bíblia ensina, um número enorme de
pessoas que se dizem cristãs passou a se sujeitar a severos sistemas de
conduta inventados por homens, sempre sob a ameaça da perda da salvação
para aqueles que tentam se livrar desses jugos.
Normas que restringem a vestimenta, o corte de cabelo e o uso de
maquiagem para as mulheres; regras que vedam a ida ao cinema, à praia e
aos estádios de futebol; leis que proíbem ouvir música secular e assistir à
televisão; e, especialmente, regulamentos que impõem a guarda de dias e a
abstenção de alimentos fazem parte da vida religiosa de muita gente que,
sob a ilusão de estar fazendo o que Deus manda, vive debaixo de intensa
escravidão.
O fato é que a liberdade para a qual Cristo libertou o homem salvo (Gl
5.1) não é nem de longe conhecida por esse povo infeliz que, quando se vê
cansado sob o peso de tantas exigências, busca alívio na hipocrisia, na farsa
e na tentativa de fazer as coisas às escondidas.
A igreja de Deus não compactua com essas ou outras formas de
escravidão. Nela a liberdade do crente é preservada e protegida como um
bem precioso conquistado na cruz (1Co 7.23) — um bem do qual o cristão
deve desfrutar com sabedoria, equilíbrio, maturidade e amor.

Os critérios para o desfrute da liberdade cristã

O cristianismo não é uma religião caracterizada por proibições. Com


efeito, o apóstolo Paulo ensina que todas as coisas são lícitas para os crentes
(1Co 6.12; 10.23), e que o servo do Senhor não deve se deixar escravizar
por regrinhas tolas (Cl 2.20-23). Por isso, a igreja de Deus não mantém
nenhum conjunto de normas legalistas que diga o que o crente pode ou não
fazer.
Contudo, é preciso levar em conta que, no mesmo texto em que Paulo
diz que todas as coisas são lícitas, também diz que nem tudo convém e que
o crente não pode se deixar dominar por nada (1Co 6.12). Noutra passagem,
o apóstolo acrescenta que, apesar de todas as coisas serem lícitas, nem tudo
edifica (1Co 10.23b).
Paulo declara ainda que não é certo fazer qualquer coisa que
escandalize ou entristeça um irmão, mesmo quando o que se faz não seja
necessariamente errado (Rm 14.21; 1Co 8.13; 10.32). Ele explica que isso
deve ser levado muito a sério porque o amor se situa acima da liberdade
(Rm 14.15; 1Co 8.9; Gl 5.13).
Assim, para desfrutar de sua liberdade de maneira sábia, o crente deve
avaliar suas ações sob a luz de quatro perguntas:

1. O que faço ou pretendo fazer convém a um cristão?


2. Esse modo de agir edifica?
3. A prática que tenho adotado está me escravizando?
4. Ao fazer isso, algum irmão em Cristo fica escandalizado, triste ou
decepcionado comigo?

Se responder honestamente a essas perguntas, o crente, mesmo livre do


pesado fardo das regras legalistas, evitará, por exemplo, as diferentes
formas de excesso (na comida, na bebida ou no lazer), o modo de vestir
impróprio (1Tm 2.9-10; 1Pe 3.3-4) e a escravidão ao trabalho, à TV, à
Internet ou às redes sociais. Ele também será tolerante e paciente no trato
com os irmãos que nutrem escrúpulos diferentes dos dele.
Desse modo, a vida do crente maduro jamais será pautada por
regrinhas sem fim. O que determinará sua conduta serão os critérios acima
elencados, os quais são mais sólidos e eficazes do que meras normas
exteriores.
É por isso que, na igreja de Deus, os membros não são forçados a usar
esse ou aquele tipo de roupa, não são ensinados, no caso das mulheres, a
usar ou deixar de usar maquiagem, não são proibidos de ouvir música nem
de assistir à televisão, não são ensinados a evitar este ou aquele alimento
(Mc 7.15-20; Rm 14.1-3,6; 1Tm 4.1-5; Hb 13.9), nem são exortados a
guardar o sábado, o domingo ou outro dia qualquer (Rm 14.5; Gl 4.10,11;
Cl 2.16-17).
Em vez disso, o que é exigido de cada um é que aja levando sempre
em conta o que convém, o que edifica, o que não escraviza e o que não fere
a consciência dos irmãos. Nenhuma outra carga pode ou deve ser colocada
sobre os ombros dos crentes.

As festas e símbolos religiosos

Ainda que para alguns, o assunto pareça de pouca relevância, é notável


o número de pessoas que procuram orientação pastoral no tocante a ser
lícito ou não ao cristão ter em casa um pinheirinho de Natal ou comprar um
ovo de Páscoa. Muitos desses questionamentos surgem como resultado de
preocupações reais, uma vez que há vários líderes eclesiásticos dizendo que
semelhantes festas (especialmente por causa das datas em que são
comemoradas) e seus respectivos símbolos são de origem pagã e, por isso, o
cristão deve se afastar de tudo que está ligado a essas coisas.
Esse modo de ver as coisas, porém, não é correto. Na verdade, as bases
sobre as quais essas opiniões se fundamentam são excessivamente frágeis e
não suportam o confronto histórico ou bíblico, sendo apenas uma espécie de
“terrorismo psicológico” travestido de zelo espiritual, tudo com o objetivo
infantil de impressionar os mais simples com sua aparência de seriedade.
Em primeiro lugar, deve-se salientar que as origens pagãs de um
costume não podem, por si só, torná-lo inválido ou reprovável. Inúmeros
são os elementos da cultura moderna que surgiram da mais detestável
superstição pagã e, no entanto, são recebidos por crentes e incrédulos com
toda a naturalidade. Na verdade, é impensável e até tola a mera sugestão de
bani-los.
Vejam-se alguns exemplos: o costume de a noiva vestir-se de branco
para a cerimônia do casamento, a instalação de lareiras dentro de casa, a
construção de muros nos limites das propriedades, o uso de colares,
pulseiras e outros ornamentos, a realização de festas de aniversário... Todas
essas práticas tão comuns no dia a dia das pessoas de hoje são apenas
alguns exemplos de costumes que nasceram no seio da religião pagã dos
povos antigos, sempre com conotações cultuais e com o objetivo de obter o
favor de falsos deuses.
Acresçam-se a isso tudo os conceitos atualmente tão familiares de
adoção, cidadania, propriedade e herança, todos oriundos do paganismo
[130]
pré-cristão. Ora, se a origem pagã de algo o torna ilícito, como os crentes
devem reagir a isso tudo? Devem remover as lareiras de suas casas? Devem
quebrar seus muros? Devem proibir que as moças da igreja se casem de
branco? Devem evitar festas de aniversário? A simples menção dessas
questões mostra quão absurdo é o rigor de quem se insurge contra enfeites
de Natal ou ovos de chocolate!
O fato é que, se a origem pagã de uma prática constituísse fator
suficiente para que essa mesma prática fosse rejeitada, os cristãos não
poderiam sequer praticar esportes, já que os jogos olímpicos, nas suas mais
diversas modalidades, surgiram no contexto religioso helenista da
[131]
Antiguidade.
Em face disso tudo, é possível deduzir o seguinte princípio: quando o
crente se vê diante de um determinado costume, não deve olhar para as suas
origens, mas sim para o propósito com que o referido costume é praticado
no presente. É a partir dessa análise que se deve concluir se tal costume é
bom ou mau.
Esse princípio será denominado aqui Princípio da Legitimidade de
Propósitos. Tendo-o em mente, será possível perceber, por exemplo, que
não há nada de errado em ter lareira em casa, pois, ainda que essa prática,
quando se originou entre os pagãos, tivesse por propósito manter acesa a
chama dos deuses nos lares (daí o nome “lareira”), hoje seu propósito é
outro: o homem moderno que constrói uma lareira quer apenas aquecer sua
casa, nada mais.
Se esse mesmo princípio for aplicado a certos costumes que há nas
igrejas de hoje, será possível descobrir facilmente que os propósitos com os
quais são observados nem sempre são reprováveis, nada havendo de errado
em mantê-los.
Considerem-se agora, à luz disso tudo, as eventuais (e improdutivas!)
controvérsias sobre pinheirinhos, ovos de Páscoa e coisas do gênero. Se os
pagãos dos tempos antigos veneravam o pinheiro como símbolo de
imortalidade, ou davam ovos de presente para manter viva a crença nos
deuses da fertilidade, ou mesmo adoravam (num determinado dia) esta ou
aquela “deusa-mãe”, nenhum desses propósitos persiste atualmente quando
alguém enfeita um pinheiro no Natal, compra ovos de Páscoa ou comemora
o Dia das Mães.
Os pinheiros de Natal de hoje têm propósitos meramente ornamentais,
distribuir ovos de Páscoa tem o simples alvo de deixar as crianças contentes
e comemorar o Dia das Mães tem como objetivo somente dizer a elas um
“muito obrigado” de forma mais especial.
Tudo isso é muito lógico. Contudo, não é só com a ajuda do raciocínio
lógico que o crente deve adotar o princípio da legitimidade de propósitos.
Na verdade, esse princípio está presente nas Sagradas Escrituras de modo
surpreendente!
De fato, há algumas notáveis ocasiões em que a Bíblia atribui
pecaminosidade ao propósito de uma prática — e não à pratica em si. Por
exemplo: no Antigo Testamento, Deus proíbe fazer imagens de escultura
(Êx 20.4). No entanto, o mesmo Deus ordenou que dois querubins de ouro
fossem fabricados e colocados sobre o propiciatório, cobrindo a arca da
aliança (Êx 24.17-22). Também é dito no livro de Números que o Senhor
ordenou que Moisés fizesse uma serpente de bronze para a qual os israelitas
picados por serpentes deviam olhar a fim de ser curados (Nm 21.4-9).
Desses exemplos se conclui que o pecado não estava em fazer uma
imagem, mas sim no propósito com o qual a imagem fosse feita. As
imagens de ouro dos querubins sobre a arca tinham o propósito de ilustrar a
presença, a santidade e a glória de Deus; e a imagem da serpente de bronze
tinha o propósito de curar os israelitas que para ela olhassem, simbolizando
também a morte de Cristo, que, como aquela serpente, seria “levantado” um
dia (Jo 3.14-15). Uma vez que o propósito daquelas imagens era bom, nada
havia de errado em construí-las e, de fato, o Senhor mesmo ordenou que as
fizessem.
Vale insistir, portanto, no fato de que o pecado não está em ter ou fazer
uma escultura, mas sim no uso que se faz dela. Aliás, deve-se lembrar que
quando Deus proibiu que se fizessem imagens, mostrou que o erro seria
adorá-las e curvar-se diante delas (Êx 20.5). Quando o propósito das
imagens fosse a ornamentação ou a ilustração, como visto acima, nada
havia que condenar.
A citada história da serpente de bronze, quando considerada em seu
todo, ilustra ainda mais o princípio da legitimidade de propósitos. A Bíblia
mostra que, enquanto o objetivo daquela imagem foi fazer com que os
israelitas exercitassem sua fé ao olhar para a serpente esperando a cura, ou
enquanto permaneceu apenas como um símbolo de Cristo, que também um
dia salvaria todos os que para ele olhassem, nada houve de errado em
manter a serpente de bronze entre o povo.
Quando, porém, o propósito com que a mantinham mudou, e os
israelitas passaram a guardá-la com o objetivo de adoração, queimando-lhe
incenso e chamando-a de Neustã, foi necessário destruí-la (2Rs 18.1-4). O
bom propósito pelo qual foi feita foi substituído por um propósito perverso
e, por isso, não foi possível dar continuidade à sua preservação.
Fica, pois, provado que as Escrituras Sagradas admitem o princípio
exposto aqui, a saber: muitas vezes, a manutenção de certas práticas ou
costumes é válida dependendo das razões que a motivam. Em outras
palavras, uma mesma prática pode ser certa ou errada, dependendo do
propósito com o qual é mantida.
Desviar-se de passar por debaixo de uma escada pode ou não ser
pecado. Se alguém se desvia para evitar o azar, como fazem os tolos em
geral, comete o pecado da superstição. Se, entretanto, alguém se desvia
porque vê a possibilidade de uma lata de tinta cair na sua cabeça, demonstra
prudência.
Note-se que, em ambos os casos, a conduta é idêntica. Contudo, cada
hipótese é motivada por razões distintas: uma reprovável, outra não. No
primeiro caso, o que se desvia da escada incorre no desagrado de Deus; no
segundo, o que se desvia demonstra cautela, o que Deus aprova, já que
sempre censura os incautos em sua Palavra.
Aplicando tudo isso à questão de festas cristãs tradicionais
(notadamente o Natal e a Páscoa) acompanhadas de seus símbolos tantas
vezes mantidos dentro de casa e da igreja, conclui-se que nada obsta a sua
manutenção, uma vez que os propósitos que abrigam são aceitáveis e em
nada perniciosos.
É importante que uma ressalva seja feita aqui. Se essas práticas deixam
pessoas da igreja escandalizadas e confusas, o melhor será não mantê-las. A
paz no seio da igreja é mais importante do que a decoração — e é melhor
manter a unidade do que as tradições.
A liberdade de que os crentes desfrutam na casa de Deus ou em
qualquer lugar deve ser limitada pelo amor aos irmãos, conforme já foi
destacado (Rm 14.15-16,19-21; 15.1-3; 1Co 8.9-13). Se o uso dessa
liberdade faz alguém sofrer, que se abra mão dela, pois nenhum proveito
haverá em iluminar um pinheiro com lâmpadas coloridas e deixar o próprio
coração na escuridão do descaso e da indiferença para com os que, entre os
santos, estão incomodados e tristes.
Duas questões

1) Os pais crentes podem deixar seus filhos participar de festas juninas


e das comemorações de Halloween?
Se o propósito das festas juninas é manter acesa a tradição cultural e
religiosa do povo brasileiro em seu aspecto de veneração a Santo Antônio,
São João e São Pedro (e esse parece ser o caso), então nenhum crente deve
participar delas.
Ainda que certo tom de inocência e ausência de malícia permeie essas
comemorações, é inegável que as escolas, na busca de seus objetivos
sociais, que incluem situar os pequeninos no ambiente cultural em que
nasceram, e no dever de ensinar aos alunos de modo ilustrativo as
tradições do seu povo, nunca poderão deixar de dar às festas juninas cunho
fundamentalmente católico-romano. Tanto isso é verdade que as imagens
dos “santos” celebrados estão sempre presentes nessas festividades.
Sendo, portanto, esses os objetivos dessas festas, os pais cristãos não
devem permitir que seus filhos participem delas e devem aproveitar a
oportunidade para ensinar aos pequeninos que os crentes em Cristo têm um
só Deus e é somente a fogueira de adoração a ele que deve ser mantida
sempre acesa no coração (Dt 6.4-7).
Quanto às comemorações de Halloween, é possível que um de seus
objetivos, além da diversão, seja a banalização do mal sobrenatural,
criando e nutrindo a mentalidade de que os poderes de trevas são apenas
temas de brincadeiras. Mais uma vez, se for esse o caso, os crentes não
devem de forma alguma cooperar com o sucesso desse tipo de evento.

2) Se não é errado fazer imagens para fins decorativos ou didáticos, por


que os crentes não usam figuras e estátuas somente com esses
objetivos?
Na verdade, os crentes usam imagens religiosas com esses objetivos. Os
livros infantis adotados nas classes de crianças das igrejas evangélicas são
repletos de figuras de Maria, de José, de Jesus, dos profetas e dos
apóstolos. Em muitas igrejas evangélicas também existem quadros com
temas bíblicos e até cruzes ornamentando as paredes. Nenhum crente se
opõe a isso porque sabe que o objetivo dessas figuras é o ensino e a
decoração, nunca a veneração.
Já no tocante à questão das imagens esculpidas, a história eclesiástica
alerta para o fato de que seu uso, mesmo para fins de decoração, não é
recomendável. Os vários séculos de história do cristianismo revelam que,
por alguma razão, diante de estátuas de natureza religiosa, o vulgo, movido
pela ignorância e pela superstição, logo passa a venerá-las, desvirtuando o
propósito original para o qual foram feitas (Veja-se o já citado texto de 2Rs
18.1-4).
Por isso, a igreja cuidadosa não tem nenhuma imagem de escultura, nem
mesmo para fins de estética. Essa foi uma lição aprendida a partir da longa
observância de fatos passados.
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE ENFRENTAR A MORTE
A igreja de Deus, representada na pessoa de cada um dos seus
membros, deve aprender a se comportar adequadamente diante da morte. O
estilo de vida do crente verdadeiro não é mera representação teatral que, em
face dos mais profundos sofrimentos da vida, permite tirar a máscara de
santidade e revelar desespero e ódio contra Deus. Ao contrário, a verdade é
que no enfrentar das situações realmente difíceis, nas quais é impossível
manter qualquer grau de hipocrisia ou falsa piedade, a magnitude do caráter
cristão maduro desponta com brilho ainda maior.
Que situação mais difícil o homem pode enfrentar do que a morte? É
ela o terrível legado que a humanidade herdou dos seus primeiros pais, que
desobedeceram ao Criador no Éden (Gn 2.15-17; 3.19; Rm 5.12). É o
pagamento indesejado que o ser humano recebe por ter pecado (Rm 6.23).
É o fim para o qual cada um caminha a passos largos (Ec 12.1-7). Mais do
que isso, é o inimigo inexorável que vem no encalço de todos para, no
inevitável dia do encontro, deixá-los prostrados, sem exceção (Lc 12.20).
Que é ensinado na igreja de Deus sobre o modo como o cristão deve se
comportar diante da morte? Conforme o entender dos mestres dessa igreja,
qual deve ser a postura do crente quando um ente querido seu parte desta
vida? Como ele pode ajudar de modo real e significativo os enlutados? E
quando a morte, enfim, o vier chamar, como deverá proceder?
As respostas dadas a todas essas perguntas devem ter como
fundamento as Sagradas Escrituras. É na Bíblia que se obtêm respostas
claras e precisas para todas as questões relacionadas à morte, o cruel e
último inimigo.

Práticas salutares para o crente enlutado

O Livro Sagrado mostra que, quando se perde um ente querido, a


tristeza e o choro diante de fato tão doloroso não são censuráveis.
Davi, homem de Deus, pranteou amargamente a morte de seu filho
Absalão (2Sm 18.32-33). Marta e Maria foram consumidas de tristeza pela
morte de Lázaro, morte essa que levou o próprio Senhor Jesus, doador da
vida, às lágrimas (Jo 11.33-35). O historiador Lucas conta que, quando
Estevão morreu apedrejado, homens piedosos o sepultaram e fizeram
“grande pranto sobre ele” (At 8.2). O mesmo Lucas narra o quanto os
crentes de Jope choraram a morte de Dorcas, irmã amada por todos daquela
igreja (At 9.36-39).
Com efeito, inúmeros são os exemplos de homens e mulheres de Deus
que choraram muito quando viram seus queridos mortos.
O apóstolo Paulo ensina que, quando o falecido é crente, o desespero
por sua morte deve ser evitado. Entretanto, Paulo não diz que é errado se
entristecer nessas ocasiões. Na verdade, diz apenas que o cristão não deve
se entristecer “como os demais que não têm esperança” (1Ts 4.13).
Conforme se deduz do ensino do apóstolo, esse tipo de tristeza tão comum
nos incrédulos só se aloja no coração de um crente quando ele esquece o
fato de que os salvos ressuscitarão um dia.
De fato, para Paulo, a amarga tristeza dos incrédulos enlutados está
associada à sua falta de esperança. Logo, segundo o apóstolo, os crentes não
devem se entristecer como eles, uma vez que, cientes da ressurreição futura,
têm real esperança (1Co 15; 1Ts 4.13-18). E, não bastasse essa bendita
certeza, vem ainda em auxílio dos crentes enlutados a lembrança do lar
celestial, presente morada das almas dos santos que partem deste mundo
(Lc 16.22; 23.42-43; Fp 1.21-23; 2Tm 4.18).
É claro que esses consolos não funcionam na hipótese de o defunto ser
incrédulo. Porém, mesmo nesses casos, não fica o crente desamparado, pois
conta com a atividade sobrenatural do Consolador Divino, que lhe alivia as
mais profundas dores (Jo 14.16-17; Rm 8.26-27), podendo ainda descansar
na realidade da soberania de Deus.
Segundo a Bíblia, uma prática que pode ajudar muito o coração
enlutado é o isolamento temporário. Esse isolamento tem por propósito o
dedicar-se à oração e não deve ser feito em prejuízo de deveres e
responsabilidades comuns.
Isso se aprende com o exemplo do próprio Mestre. Quando Jesus
recebeu a notícia de que João Batista havia sido decapitado (Mt 14.1-12),
procurou um lugar isolado (Mt 14.13). O grande assédio de uma multidão
doente e faminta interrompeu seu retiro por algum tempo (Mt 14.13-21).
Porém, depois de cumprir seu trabalho, ele buscou novamente o isolamento
e orou só, sobre o monte (Mt 14. 22-23). Mateus diz que esse isolamento
em razão do luto durou cerca de dez horas (Mt 14.25)!
Talvez os crentes entristecidos pela morte de alguém ficassem
surpresos com o efeito restaurador e didático dessa prática. Infelizmente, o
que se veem com frequência são cristãos enlutados derramando o coração
diariamente diante de amigos, psicólogos, pastores e conselheiros. É claro
que isso tem seu lugar e valor, mas nada pode substituir a busca do consolo
de Deus, diante de quem se deve derramar o coração todo o tempo (Sl 62.8;
Mt 11.28-30; Fp 4.6-7) e em cuja Palavra é possível encontrar alívio para a
alma (Sl 19.7; 119.50).
No episódio narrado por Mateus e citado acima, é notável outro
exemplo deixado pelo Mestre. O texto mostra que, mesmo entristecido pela
morte tão cruel de João, o Senhor Jesus Cristo, ao invés de ser amparado,
amparou os outros. Ele socorreu uma multidão necessitada, quando seu
próprio coração sofria (Mt 14.14, 19-21). Nisso também os crentes devem
imitar seu Salvador. Devem ser como o trigo que, esmagado, produz pão
puro para alimentar os que estão ao redor.
Outra lição acerca do comportamento do crente enlutado está no livro
de Jó. Todos conhecem a tocante história desse homem piedoso que perdeu
bens, saúde e filhos em meio a uma tempestade de provas que o Senhor lhe
enviou (Jó 42.11). Todos também conhecem aquelas que talvez sejam suas
palavras mais marcantes, pronunciadas logo depois que recebeu a notícia da
morte de seus filhos: “…o Senhor o deu, e o Senhor o tomou; bendito seja o
nome do Senhor!”. O texto bíblico diz que Jó fez essa declaração após ter se
lançado em terra, em atitude de plena adoração a Deus (Jó 1.18-21).
Isso mostra que, quando está enlutado, o cristão deve fazer que de seus
lábios flua o louvor decorrente do reconhecimento da soberania de Deus.
Trata-se de um gesto chamado pelo autor da carta aos Hebreus de
“sacrifício de louvor” (Hb 13.15), ou seja, um louvor associado à dor, que
brota do coração sangrento de quem sofre. Esse tipo de louvor só pode ser
esperado do homem que confessa Jesus Cristo e descansa na certeza de que
todas as coisas o Senhor realiza de conformidade com sua vontade boa e
soberana.
Por isso, quando morre um ente querido, não é correto o crente ficar
perguntando inconformado por meses e anos a fio: “Por quê? Por quê? Por
quê?”. Na Bíblia está escrito que é pecado discutir com Deus e questionar
suas ações (Jó 38.1-2; 40.1-2; Is 45.9; Rm 9.20). Proceder desse modo pode
ser evidência de fé rasa, de má compreensão de quem é o Senhor e de
disfarçada revolta contra sua vontade soberana.

A prática de lidar com os enlutados

Convém agora falar acerca de como o crente deve agir diante de


pessoas que sofrem a dor da separação ocasionada pela morte de um
parente ou amigo. É comum nessas ocasiões que vários indivíduos tentem
desempenhar o papel de consolador, dizendo palavras com as quais
pretendem suscitar certo conforto nos que pranteiam.
Infelizmente, porém, esses consoladores (alguns deles se apresentam
até como pastores!), muitas vezes, dizem as mais grosseiras tolices e
devaneios, acreditando que seus ares artificiais de sabedoria podem
emprestar autoridade às palavras absurdas que proferem. Um diz que o
incrédulo morto descansou (!); outro, que, de algum lugar, a alma do
defunto estará cuidando agora daqueles que aqui permanecem; e outro,
ainda, fica enaltecendo virtudes imaginárias do falecido, suscitando dúvidas
nos presentes sobre se vieram ao velório da pessoa certa.
Todas essas demonstrações de ignorância são absolutamente
infrutíferas. É na Bíblia que se aprende como ajudar os enlutados. Paulo
ensina em 1Tessalonicenses 4 com que palavras se devem consolá-los. Ele
diz nos versículos 13-17 que, assim como Jesus morreu e ressuscitou, Deus,
mediante Jesus, um dia trará juntamente em sua companhia os crentes que
morreram. Diz ainda que o Senhor, depois de dar sua palavra de ordem,
uma vez ouvida a voz do arcanjo e ressoada a trombeta de Deus, descerá
dos céus, e os crentes mortos ressuscitarão. Diz também que os cristãos que
estiverem vivos nesse dia serão arrebatados junto com os que hão de ser
ressuscitados e, entre nuvens, todos subirão ao encontro do Senhor nos ares
e, então, estarão para sempre com ele.
Depois de expor tudo isso, Paulo diz: “Consolai-vos, pois, uns aos
outros com estas palavras” (v. 18). Por isso, todos os cristãos devem
conhecer a fundo “estas palavras”. Isso os tornará mais úteis no auxílio dos
que sofrem em razão da separação, evitará que emudeçam diante dos que,
inconsoláveis, pranteiam a morte de alguém e colocará freio nos desvios
que os indoutos proclamam em momentos tão propícios à reflexão da
verdade.
Evidentemente, as palavras que Paulo escreveu servem apenas para o
consolo dos que choram a morte de crentes. No texto analisado, o apóstolo
ensina sobre a tranquilidade que se pode ter quando se pensa nos mortos em
Cristo (1Ts 4.16).
Em se tratando da morte de incrédulos, nenhuma palavra agradável
pode ser dita a respeito do estado ou do lugar em que a alma deles se
encontra. Isso porque a Palavra de Deus é extremamente amarga quando
fala sobre o destino eterno dos que não receberam Jesus Cristo, crendo nele
como Salvador de sua vida. Tais pessoas, segundo as Escrituras, estão
condenadas ao tormento eterno no inferno, preparado para o diabo e seus
anjos, onde o verme não morre e o fogo nunca se apaga! (Mt 25.41,46; Mc
9.43-48; Lc 16.19-31; Jo 3.36; 2Ts 1.7-9; Jd 13; Ap 20.11-15).
É claro, porém, que o cristão deve ter tato. Há maneiras sábias e
ocasiões mais propícias para dizer essa verdade aos queridos de um
incrédulo que morreu. Por isso, na hora mais pesada do luto pela morte de
um perdido, é recomendável que o crente concentre suas conversas e
discursos não na condição espiritual do defunto (que já não importa mais),
mas na condição espiritual dos ouvintes. Esse proceder preservará o que
realmente é importante e livrará o crente de situações embaraçosas.
É evidente, entretanto, que se alguém perguntar sobre o destino da
alma do falecido incrédulo, o cristão terá de, cuidadosamente, dizer a
verdade. O consolo enganador é obra do mundo e do diabo, não dos
ministros de Cristo. E é melhor os ouvidos dos enlutados serem alertados
por verdades dolorosas que o coração deles ser iludido com uma falsa paz.
Uma forma sábia de agir diante de perguntas embaraçosas formuladas
nesses momentos é fazer o interlocutor chegar a suas próprias conclusões.
Basta lhe responder brandamente com perguntas do tipo: “A Bíblia diz que
só os crentes em Cristo são salvos. Ele era crente em Cristo?”.
Respondendo a essa questão, o interlocutor chegará às suas próprias
conclusões, sejam elas tristes ou não. Caso responda que não sabe, então o
servo do Senhor deverá dizer: “Se não sabemos se ele morreu tendo fé em
Cristo ou não, também não podemos saber onde a alma dele está”.
O crente em face de sua própria morte

Finalmente, é mister que o crente aprenda, ele mesmo, a morrer. Não


somente a vida do cristão deve servir de exemplo de piedade a todos, mas
também a sua morte (Rm 14.8). Não há dúvida, contudo, de que aprender
essa lição não constitui preocupação presente na mente das pessoas. Afinal,
pensam, no momento fatal não bastará fechar os olhos e partir? O que
haveria de aprender?
O problema é que, por estar despreparado para a morte, o crente
poderá demonstrar fraqueza, covardia e falta de fé diante dela. Enfim,
poderá dar péssimo testemunho exatamente no momento em que sua
postura mais deveria falar ao coração de todos. Pior, depois de dar esse
exemplo ruim, não terá oportunidade de consertar a situação, nem de se
explicar diante de quem assistiu ao vexame, uma vez que a morte é
experiência única (Hb 9.27). Quem se comportou mal no momento de sua
partida deste mundo, jamais terá uma segunda oportunidade.
Os crentes verdadeiros devem se preocupar em honrar o Salvador em
tudo. O Senhor Jesus deve ser engrandecido no corpo do cristão, quer pela
vida, quer pela morte (Fp 1.20). Daí a importância desse tema.
Para morrer de modo exemplar, é fundamental, primeiro, que, nos
momentos finais, o crente mantenha a serenidade (Sl 23.4). É natural que
certo grau de agonia permeie os sentimentos do moribundo, mesmo sendo
ele cristão maduro, visto que a morte, até a mais branda, é sempre amarga.
O próprio Jesus sofreu diante da iminência dela (Mc 14.32-36) e, embora
sua agonia não tivesse como causa apenas o morrer fisicamente, mas toda a
terrível experiência de fazer-se maldição em lugar dos pecadores (Gl 3.13),
é inegável que, sendo plenamente humano, Cristo experimentasse o ardente
desejo de viver.
Sendo a morte a experiência que marca o instante em que corpo e alma
têm de, finalmente, se separar (Gn 35.18; Ec 12.7); sendo ela o momento
em que é preciso deixar para trás tudo o que foi construído e todos os
amados deste mundo (Ec 5.15; Lc 12.20); sendo ela o golpe temido por
qualquer ser vivo — uma vez que todos, sem exceção, têm ao menos o
instinto de autopreservação e forte apego à vida, que inegavelmente é boa,
já que dada por Deus —, não é de estranhar que, ao morrer, as pessoas,
mesmo crentes, experimentem certa dose de angústia.
No que estiver a seu alcance, porém, desde que a morte não seja súbita
ou precedida de longo período de inconsciência, deve o cristão, ao enfrentá-
la, esforçar-se por demonstrar firme confiança e até promover a edificação
dos que o cercam em momento tão difícil.
Era assim que Paulo dizia estar pronto para enfrentar a morte. Quando
ele escreveu aos filipenses, estava preso (Fp 1.12-14) e sabia que havia uma
pequena possibilidade de ser condenado à morte. Em face disso, em vez de
revelar preocupação, medo ou insegurança, suas palavras demonstram
entusiasmo, coragem e ousadia (Fp 1.20-21). É que o justo sempre tem
esperança, ainda que veja a morte vindo ao seu encontro (Pv 14.32).
Para se comportar dessa maneira, algo que também pode ajudar muito
é o cristão fazer o que estiver ao seu alcance para deixar em ordem os
negócios que estão sob sua responsabilidade. Essa lição, o próprio Deus
ensinou ao rei Ezequias quando lhe revelou, por meio do profeta Isaías, que
sua morte era iminente (2Rs 20.1).
A preservação da tranquilidade diante da morte é ainda possível
especialmente se o cristão mantiver vivas cinco lembranças: o Senhor está
com ele naquele instante difícil (Sl 23.4); a morte é inimigo já vencido por
Cristo (1Co 15.3,4; 2Tm 1.10); pelo fato de Cristo viver, seus servos
também viverão, já que um dia serão ressuscitados como ele foi (Jo 6.40;
11.25; 14.19; 1Co 15.52; 2Co 4.14; 1Ts 4.16); sua alma vai para o céu
assim que seus olhos se fecharem nesta vida (Sl 49.15; Lc 16.22; 23.43; Fp
1.23; 2Tm 4.18; Ap 14.13); e Jesus morreu para livrar também do medo da
morte, não havendo, portanto, razão para se aterrorizar com a sua
aproximação (Hb 2.14-15).
Além de demonstrar serenidade, outro procedimento recomendável
para o crente que está morrendo é dar orientações sábias àqueles que o
Senhor lhe confiou nos dias desta vida. Vários homens de Deus agiram
desse modo quando perceberam que seus momentos finais se aproximavam.
Assim fizeram Moisés (Dt 32.44-50), Josué (Js 23-24) e Paulo (2Tm 4.1-8),
bem como o próprio Senhor Jesus Cristo (Jo 14-16).
Nem mesmo no leito de morte, o cristão pode esquecer que uma das
grandes responsabilidades que Deus lhe impõe nesta vida é a orientação de
pessoas colocadas por ele sob sua responsabilidade, sejam elas filhos,
esposa, alunos ou quaisquer outras sobre as quais exerça certo grau de
influência. Por isso, é bom terminar a jornada neste mundo realizando essa
tarefa.
Assim, evite o cristão perder minutos finais preciosos com o costume
comum de enumerar desejos pessoais vazios do tipo “enterrem meu corpo
na cidade tal”; “não me sepultem sem que antes cheguem todos os meus
parentes”; ou ainda “não se esqueçam de cantar o meu hino preferido no
funeral e de ornar o caixão com flores brancas”. Em vez de perder tempo
dizendo o que as pessoas deverão fazer com seu corpo morto, o cristão
[132]
deverá mostrar o que elas deverão fazer com seus próprios corpos vivos.
Em suas horas finais, o crente deve também fazer das promessas e dos
feitos passados de Deus os seus assuntos principais. Essa prática edifica e
consola os circunstantes, além de gerar profunda paz no coração de quem
está partindo.
José, em seus últimos momentos, trouxe à memória de seus irmãos as
promessas de Deus quanto à posse da terra de Canaã (Gn 50.24). Moisés,
em meio às bênçãos que no dia de sua morte proferiu aos filhos de Israel,
apontou-lhes as obras que o Senhor havia feito em benefício deles (Dt 32.1-
43). Também as expressões da benignidade do Senhor e o conteúdo das
suas promessas foram o tema das últimas palavras de Davi (2Sm 23.1-7).
Esses exemplos mostram que, às portas da morte, o coração do cristão
deve estar repleto de gratas lembranças do passado e da doce expectativa
quanto ao futuro glorioso e tão próximo. Por isso, é de esperar que fale
dessas coisas, já que a boca fala daquilo que está cheio o coração (Lc 6.45).
Que ao morrer o crente também demonstre aos que estiverem ao seu
redor que em seu coração não existem rancores e mágoas contra eventuais
inimigos ou desafetos. Morra o cristão como também morreu seu Senhor
Divino: perdoando os que mais o feriram nesta vida e suplicando o favor de
Deus sobre eles (Lc 23.33-34).
Hora tão solene quanto a hora da morte do crente — minutos tão
cheios de significado, já que precedem o momento em que a alma bem-
aventurada irá ao encontro de Cristo — não pode ser manchada por
demonstrações de ódio e contenda. Por isso, todo crente deve partir deste
mundo como partiu também Estevão, isto é, em plena paz: paz consigo
mesmo (At 6.15), paz com seu Senhor (At 7.55-56, 59) e paz com todos os
homens (At 7.60).
Finalmente, antes do último suspiro, o cristão deve esforçar-se para
que suas últimas palavras sejam uma oração de autoentrega a Deus. É que
o cristão que tanto imitou Cristo na vida, naturalmente também desejará
imitá-lo na morte. Ora, nosso Senhor crucificado bradou ao morrer: “Pai,
nas tuas mãos entrego o meu espírito!” (Lc 23.46). Estevão, crente piedoso,
fez também o mesmo quando, acometido de terríveis dores, orou dizendo:
“Senhor Jesus, recebe o meu espírito!” (At 7.59).
Ainda dentro deste assunto, existe a importante questão de se o crente,
ao ver a morte se aproximar, deve pedir mais anos de vida ao Senhor. Há
quem suspeite que isso seja sinal de medo, despreparo e fraqueza.
De fato, não há dúvida de que o cristão deve buscar grau tão elevado
de realização na obra cristã que o faça ter a morte como único anelo em
certo ponto da vida (Lc 2.25-32; Fp 1.23). Nem sempre, porém, esse estado
já foi alcançado pelo crente quando o dia da sua morte chega. Além disso,
já foi dito que é natural até mesmo o homem salvo enfrentar certa dose de
angústia em face da morte.
Nada obsta, pois, que, nos momentos em que vê a vida se esvair, o
cristão peça a Deus o prolongamento de seus dias. Não há nada de errado
nisso. O rei Ezequias o fez e obteve resposta positiva do Senhor (2Rs 20.1-
7).
Erradamente, muitos pastores ensinam que a longevidade que Deus
concedeu a Ezequias em resposta às suas súplicas foi, na verdade, castigo
por sua insistência na oração. Dizem que nos quinze anos a mais que o
Senhor lhe deu, Ezequias cometeu o terrível erro de mostrar tudo que
possuía aos embaixadores do rei de Babilônia (2Rs 20.12-19; 2Cr 32.24-31)
e teve um filho idólatra, assassino e feiticeiro chamado Manassés, o qual
induziu o povo a inúmeras abominações (2Rs 21.1-9,16), fatos esses que
poderiam ter sido evitados se o rei tivesse aceitado a morte assim que ela
lhe foi anunciada.
Diante disso, alguns professores da Bíblia concluem que não se pode
insistir com Deus nos pedidos de oração, nem mesmo quando a pessoa está
triste com a gravidade de uma doença que a levará à morte. Se isso for feito,
dizem, as consequências do atendimento do pedido poderão ser terríveis!
Quem ensina essas coisas, porém, não refletiu o suficiente sobre o
texto das Sagradas Escrituras e demonstra conhecer bem pouco o ensino
bíblico sobre a oração e a história veterotestamentária.
Em primeiro lugar, deve ser observado que o rei Ezequias não insistiu
com Deus em sua oração. A Bíblia diz que ele orou apenas uma vez (2Rs
20.2-3) e no mesmo instante o Senhor lhe respondeu por intermédio do
profeta Isaías (2Rs 20.4-5). Além do mais, mesmo que o rei tivesse
insistido, nada haveria de reprovável nisso. Ao contrário, sua conduta teria
sido correta, uma vez que o próprio Mestre ensinou que se deve insistir na
oração (Lc 11.5-10). Na verdade, os homens de Deus sempre agiram assim
(Dt 9.18; At 12.5), e alguns deles só pararam quando o próprio Senhor
ordenou (Dt 3.23-26; Jr 14.11; 2Co 12.7-9).
Em segundo lugar, é preciso salientar que o nascimento de Manassés
não foi uma consequência má da oração de Ezequias, mas sim um fato de
extrema relevância para a continuidade da linhagem davídica pela qual o
Messias viria ao mundo. Era, na verdade, necessário que Manassés
nascesse, uma vez que sua figura seria fundamental para a continuidade da
linhagem messiânica (Mt 1.10). Além disso, sabe-se que o filho de
Ezequias, apesar de ter sido um dos reis mais diabólicos que houve em
Judá, no fim de sua vida se arrependeu e se tornou um piedoso servo do
Senhor (2Cr 33.10-16).
Logo, ao contrário do que dizem, a resposta de Deus ao clamor
tristonho de Ezequias não foi castigo, mas uma bênção belíssima,
verdadeira demonstração de misericórdia e amor (2Rs 20.5-6). Isso porque
o Senhor não atende a súplica do coração aflito de modo vingativo pela
insistência e importunação. Por esse motivo, pode sim, o moribundo clamar
por mais tempo. O Senhor não o castigará por isso. Antes, responderá
conforme o seu querer e a multidão de suas misericórdias, concedendo o
melhor para aquele que o busca no desespero.
De tudo que foi dito, conclui-se que somente quem aprendeu a viver
dignamente saberá morrer dignamente. É ao longo da vida que se adquire
estrutura para enfrentar com intrepidez a morte. Quem, ao longo do viver,
jamais cultivou a serenidade, o senso de responsabilidade, a meditação
sobre a Palavra de Deus, o compartilhar de suas bênçãos, o falar de suas
promessas, a preocupação com os que estiveram sob seus cuidados, o
perdão, a vida de oração e de autoentrega e a busca do socorro em Deus
nunca na verdade viveu como cristão e, por isso, também não deve esperar
morrer como cristão. Pois é vivendo a vida cristã virtuosa que o homem se
prepara para morrer a morte cristã virtuosa. É vivendo do modo que se deve
morrer que se morre do modo que se deve viver.
Dúvidas frequentes

1) No céu, os salvos se lembram das pessoas que conheceram na terra


ou das coisas que lhes aconteceram aqui?
Há quem ensine que a alma do crente, ao entrar no céu, deixa de ter
ciência da existência do inferno ou de outras coisas ruins que possam
ameaçar a sua felicidade. Dizem que, se no céu a alma tiver conhecimento
dessas coisas, ficará triste, e o lar eterno, que é doce, em face dessas
lembranças, se tornará amargo.
Contudo, não há a menor razão para crer que a alma do salvo sofra algum
tipo de amnésia quando entra no céu. Na parábola do rico e Lázaro, Jesus
mostra Abraão tendo a mais plena consciência do sofrimento do rico no
inferno e do anterior sofrimento de Lázaro na terra (Lc 16.25). Também em
Apocalipse 6.9-11, veem-se as almas dos mártires clamando diante de
Deus. A simples leitura desse texto mostra que eles tinham consciência de
que haviam sido brutalmente mortos por seus perseguidores, além da
consciência de que o Senhor tomaria vingança contra os seus inimigos, e
que vários de seus irmãos ainda vivos na terra deveriam ser mortos como
eles mesmos haviam sido.
É, pois, infundada a ideia de que, no céu, o crente será mais ignorante do
que é agora. Lá, ao contrário, seu conhecimento será muito mais amplo.
Ele se lembrará de quem foi neste mundo e poderá identificar aqueles que
conheceu na terra (Elias e Moisés puderam ser identificados quando
apareceram no monte da transfiguração, de acordo com Lc 9.28-33),
saberá que Deus o livrou do pecado, da morte e do inferno (aliás, essa será
a base do seu louvor eterno, cf. Ap 7.9-10), saberá que sua salvação só
pôde ser obtida graças ao sacrifício sangrento de Cristo (Ap 5.8-10) e,
finalmente, saberá que muitos estão eternamente perdidos (Lc 16.25).
Apesar de ter consciência disso tudo, a alma salva não será acometida de
tristeza alguma, pois, ainda que não anule nenhuma porção do
conhecimento da verdade que há no crente, Deus lhe dará um coração
inabalável, no qual será impossível a tristeza se alojar (Ap 21.4).
2) É errado cremar os corpos dos falecidos ou doar os órgãos dos
mortos?
Não, não é errado. Ao tempo da igreja antiga, os cristãos não cremavam
seus mortos porque essa era uma prática ligada à religiosidade pagã que
os cercava. Por isso, não querendo ser confundidos com doutrinas falsas,
os crentes apenas sepultavam seus entes queridos. A rigor, porém, nada há
de errado em cremar um cadáver. A Bíblia diz que a morte faz a pessoa
voltar ao pó (Gn 3.19) e a cremação apenas acelera esse processo.
Não há, portanto, porque reprovar essa prática. Ademais, os crentes sabem
que na ressurreição seus corpos serão restaurados, não importa o grau de
decomposição ou de destruição em que se encontrem (Dn 12.2,13; 1Co
15.22-58; 1Ts 4.16).
No tocante à doação de órgãos, obviamente a Bíblia silencia. A doutrina da
ressurreição, porém, mostra que essa prática não representa prejuízo
nenhum para o crente que, naquele dia, terá seu corpo totalmente
restituído. Isso indica que o cristão que doa seus órgãos, não os doa de
fato. Somente os empresta por algum tempo!

3) É errado ir ao cemitério visitar o túmulo de pessoas falecidas?


Nos dias da igreja antiga, os cristãos, especialmente do Norte da África,
tinham o hábito de visitar os túmulos dos mártires para ali celebrar festas
em sua homenagem. Isso originou certas crendices e práticas de veneração
que os pastores da época tiveram de censurar com muita razão.
A ida, porém, ao cemitério com o simples objetivo de honrar a memória de
um falecido ou refletir de maneira mais centrada sobre o que ele significou
não é um procedimento errado. O crente só deve evitar a intensificação de
sua tristeza por meio dessas visitas. O ideal é que, com o tempo, esqueça a
realidade do fim da vida no presente e olhe para a promessa do fim da
morte no futuro.
CONCLUSÃO – AS PEDRAS DE CARBURETO
Os caçadores de rã são familiarizados com um curioso minério: o
carbureto. Empregam-no como combustível para as lanternas peculiares que
usam em suas incursões noturnas pelos brejos.
Quando eu era criança, participei de uma dessas “caçadas”.
Acompanhando um tio que apreciava muito a carne desse anfíbio,
aventurei-me mato adentro em busca do animal, cuja carne, a bem da
verdade, nunca tive coragem de por na boca.
Para um menino, aquela aventura se tornaria inesquecível: entrar no
brejo à noite; as instruções sobre os lugares preferidos pelas rãs nessa hora;
os golpes velozes da fisga… Quanta novidade! De tudo, porém, o que mais
me deixou intrigado foi a lanterna de carbureto. Nela eu via perplexo algo
que parecia mágico.
As pedras do tal minério, que na aparência externa não sugeriam nada
de especial, quando colocadas em contato com a água, produziam um efeito
que eu jamais vira ou imaginara. Começavam como que a ferver. A água
borbulhava e fumaça, gases e calor eram produzidos. Meu tio explicou que
aquilo fornecia o combustível para manter acesa a chama da lanterna. Não
fossem as pedras de carbureto, o grande fenômeno que eu testemunhava
não ocorreria — e a lanterna seria inútil.
As doutrinas da Palavra de Deus são como pedras de carbureto. Muitos
olham para elas e não veem nada de especial ou fantástico no modo que se
apresentam. Até entre os crentes é raro ver-se pessoas vibrando mesmo
diante das mais fascinantes doutrinas cristãs. O que há de errado?
É que as doutrinas bíblicas têm um ambiente dentro do qual
manifestam toda sua maravilha e todo seu poder. Há um contexto em que
elas surtem efeito fantástico e espetacular. E esse ambiente, sem o qual as
doutrinas cristãs parecem pedras frias, é a igreja. A igreja é a água em que
as verdades doutrinárias fervilham e revelam toda sua força. Sem ela os
ensinos bíblicos não têm nenhum campo em que possam demonstrar quão
eficazes são.
Todavia, a igreja que não acolhe a sã doutrina ou não a preserva não
ferve. É água sem calor, inútil como combustível para suprir as
necessidades espirituais de seus membros.
Precisamos da água e do carbureto. Um sem o outro tem pouca ou
nenhuma utilidade. Precisamos da igreja e da teologia. Uma sem a outra
não produz efeito algum. Sem a teologia a igreja é morta: um simples
aglomerado de gente nutrindo-se com programas sociais e intrigas
antissociais. Sem a igreja, a teologia não tem onde ser aplicada —
consequentemente, é impossível verificar seu valor prático, sua utilidade e
seu poder.
A razão disso é muito simples: a teologia do Novo Testamento
originou-se por causa da igreja. Foi a igreja que motivou sua existência.
Tudo que foi produzido pelos escritores neotestamentários teve como alvo a
edificação, a correção, o aprimoramento e o crescimento do povo que Cristo
comprou com seu próprio sangue (At 20.28).
Qualquer outro propósito para a teologia é secundário. O homem que a
usa exclusivamente para sua satisfação intelectual, não a mergulhando no
contexto eclesiástico e mantendo-se, ele mesmo, longe da igreja, jamais
poderá vislumbrar sua real grandeza nem compreendê-la em sua plenitude.
Tal homem saberá expressões gregas, latinas e alemãs; aprenderá definições
complexas e impressionará muita gente. Sentir-se-á muitas vezes inchado
de orgulho quando, em suas palestras, em diversas igrejas (com as quais
tomará o cuidado de nunca se comprometer profundamente), apresentar seu
show de conhecimento aos ouvintes, que a ele assistem boquiabertos. Mas a
dimensão completa da teologia, ele jamais compreenderá realmente, pois
não a verá em ação, funcionando no ambiente em que foi produzida e para o
qual é direcionada.
Um “teólogo” assim terá compreensão muito rasa da relevância das
doutrinas que ensina para o ser humano nas mais complexas e variadas
situações em que ele se encontra ao longo da vida. A teologia, para esse
homem, será pouco mais que um belo quadro que ele se deleita em
contemplar. Seus limites, porém, não ultrapassarão a madeira que o
emoldura.
É claro que um quadro tem valor. Mas as doutrinas da Palavra de Deus
são mais do que mera obra de estética. Elas podem e devem ser aspiradas,
sorvidas, apalpadas e saboreadas pelo homem salvo — e é só na igreja que
esse fenômeno, esse borbulhar das pedras na água, é testemunhado e
provado pelo estudioso das Escrituras. Isso ocorre, nunca é demais frisar,
por uma razão muito simples: a teologia do NT originou-se na igreja, com
ela e para ela; e é na igreja que percebemos sua verdadeira dimensão.
Na igreja, tão grande a teologia aparecerá, tão relevante para todos, tão
eficaz para todo e qualquer problema que o teólogo comprometido com o
corpo de Cristo, percebendo tão tocante imensidão, será um homem mais
humilde, o que dificilmente ocorrerá com o teólogo que vive longe da
igreja.
Este último, por jamais enxergar a real grandeza, maravilha e utilidade
do objeto de seu estudo, viverá na ilusão comum a muitos intelectuais de
que ele é que é grande. Será, por isso, homem orgulhoso, inacessível,
incapaz de suportar ofensa, implacável com quem de algum modo expõe
suas fraquezas e sempre pronto para tratar os outros com desprezo. Isso
mostrará que, no fundo, no fundo, ele não conhece realmente a teologia. Se
conhecesse, diante do gigantismo e dos insondáveis mistérios da fé,
perceberia quanto é pequeno e dependente e seria a pessoa mais humilde da
Terra.
Por ser a igreja o campo em que a teologia mostra toda sua força; o
ambiente em que a eficácia, a infalibilidade e a sobrenaturalidade desta se
evidenciam; e o ambiente em que esta se movimenta e age, é de esperar que
todo pastor seja teólogo e que todo teólogo seja pastor.
A teologia tem de ser o instrumento de trabalho do pastor, o seu
cajado. A igreja será o campo em que, com seu instrumento em punho,
trabalhará. Se o ministro não conhecer teologia, será como o pastor de
ovelhas sem cajado: não terá instrumento para trabalhar e, em regra, usará
instrumentos inadequados. O teólogo que, por sua vez, não atuar de modo
fixo e comprometido numa igreja, será como o pastor que tem cajado, mas
não vai ao aprisco ou não acompanha as ovelhas no pasto. As pessoas o
observarão e ninguém saberá ao certo por que, afinal de contas, ele tem um
cajado.
Muitos pastores, em vez de usar o verdadeiro cajado, vivem a buscar
artifícios para promover o despertamento e a motivação de sua igreja.
Alguns frequentam cursos e compram livros sobre técnicas “infalíveis” para
o sucesso no ministério. Tudo isso, porém, não passa de bobagem. São
recursos que servem apenas para transformar o pastor num “marqueteiro”
de baixa categoria.
Os ministros precisam é de coragem. Coragem para sair com o cajado
a campo, coragem para lançar as pedras na água e não se assustar com o
borbulhar que produzem. É isso que deve fazer o ministro de Deus. Em
todo este livro mostramos isto: a teologia em alguns de seus aspectos e o
modo como deve ser mergulhada no contexto eclesiástico. O fato é que a
“receita” para a realização de um bom ministério junto ao povo de Deus é
mais simples do que se pensa.
O que não pode ocorrer, em hipótese alguma, é o pastor ter medo. Não
foi espírito de temor que lhe foi dado (2Tm 1.7). Peguemos, portanto, as
pedras na mão. Elas parecem tão frias, não é mesmo? Mas sejamos ousados
e mergulhemo-las na água. Ouviremos um ruído. Não, não será o ruído de
multidões afluindo porta adentro (aliás, é hora de os pastores abandonarem
[133]
esse sonho ingênuo, ao mesmo tempo infantil e soberbo) . Nem tampouco
será o ruído incômodo de frenéticos instrumentos musicais a acompanhar
louvores barulhentos e pouco produtivos. Antes, será o alvoroço de cristãos
nominais incomodados com a verdade e, o que é mais importante, o
burburinho de vibração de vidas comovidas, de crentes autênticos a
despertar para a beleza e profundidade da Palavra de Deus, de gente
impressionada com a descoberta de verdades acerca das quais nunca nada
ouviram, apesar de membros da igreja há vários anos.
Podemos dizer que esse ruído será o som de uma espécie de revolução
que ocorrerá na vida cristã dos santos; o início de um fervilhar constante e
aquecedor na igreja local; o fim da água morta e quase inútil. A igreja
vibrará, se purificará, se alegrará. Seus membros sentirão muitas vezes o
coração arder durante os cultos, do mesmo modo que ardia o coração dos
discípulos no caminho de Emaús enquanto o Senhor lhes expunha as
Escrituras (Lc 24.32).
Lancemos depressa, portanto, as pedras na água. Não teremos de
esperar muito para ver os resultados. E esses são os únicos resultados que
realmente importam. Somente eles poderão ser levados em conta no
estabelecimento das distinções entre uma igreja viva e uma morta.
PRINCÍPIOS GERAIS LIGADOS À PRÁTICA DA IGREJA
DE DEUS
Os princípios comentados neste livro estão grafados em itálico e negrito,
com indicação de página.

1) PRINCÍPIOS RELATIVOS À LIDERANÇA PASTORAL


Princípio da proteção do valor real No exercício efetivo de suas funções,
o líder deve estabelecer somente normas que protejam valores morais ou
materiais de reconhecida relevância.

Princípio da alteridade
Ao dirimir conflitos interpessoais, o líder não deve tomar qualquer medida
ou decisão sem antes ouvir ambas as partes.

Princípio da via menos gravosa A solução de problemas de qualquer


natureza deve seguir a via menos gravosa para todos os envolvidos, sem
prejuízo da justiça e da verdade.

Princípio da reserva normativa Nenhuma exigência poderá ser feita pelo


líder aos seus subordinados ou aos membros da igreja em geral sem uma
ordem ou uma norma clara que a preceda.

Princípio do equilíbrio
O rigor da exigência deve ser temperado com bom senso e a dureza do
castigo deve ser mesclada de misericórdia.

Princípio do limite de competência O pastor não tem autoridade para, sem


ser consultado, decidir questões relacionadas à vida particular dos crentes,
exceto no caso em que essas questões afetem a pureza, o nome e os
interesses da igreja.

2) PRINCÍPIOS RELATIVOS AO FUNCIONAMENTO DA IGREJA


Princípio da supremacia das Escrituras A tradição e o costume não
devem se sobrepor às Escrituras, mesmo quando isso contrarie o desejo
expresso da maioria.

Princípio da santidade como valor supremo A paz dentro da igreja não


deve ser promovida ou mantida com o sacrifício da santidade.

Princípio da responsabilidade do agente As Escrituras não podem ser


invocadas na defesa ou abrandamento do erro, nem a sua ignorância pode
ser alegada para suprimir a culpa do transgressor.

Princípio da congregacionalidade Em matérias que não envolvem a


preservação da sã doutrina, a vontade expressa da assembleia de crentes
formalmente reunida se situa acima da vontade da liderança formalmente
constituída.

Princípio da legitimidade da origem


Uma igreja só pode ser gerada sob os auspícios de outra, excetuando-se
somente os casos de real impossibilidade.

Princípio regulador do culto


Nada pode ser praticado durante o culto a Deus que não tenha sido
expressamente estabelecido, determinado ou permitido por ele próprio nas
páginas da sua revelação escrita.

Princípio da legitimidade de propósitos


A legitimidade de um costume não depende de suas origens, mas sim dos
propósitos com que hoje é observado.

3) PRINCÍPIOS RELATIVOS ÀS OFERTAS TRAZIDAS À IGREJA


Princípio da exclusividade
As ofertas dedicadas ao serviço de Deus devem vir somente das mãos do
seu povo redimido, em especial daqueles que, como parte desse povo,
contribuem livre e espontaneamente.

Princípio da obediência
As ofertas aceitáveis a Deus são aquelas que procedem de vidas santas,
marcadas por arrependimento, retidão e busca sincera da vontade do
Senhor.

Princípio da responsabilidade
O crente que quer contribuir financeiramente para a causa do Mestre deve
fazer isso na igreja de que participa, seja como membro, seja como assíduo
frequentador, ainda que a ajuda dirigida a outras comunidades de linha
ortodoxa seja aceitável, desde que eventual.

4) PRINCÍPIOS RELATIVOS À AJUDA DE PESSOAS CARENTES


Princípio da preferência
O socorro da igreja dirigido a pessoas carentes deverá ter sempre como alvo
preferencial os irmãos na fé.

Princípio da necessidade real


A igreja de Deus só oferecerá amparo material a crentes que, por motivos
alheios à sua vontade e conduta, não podem trabalhar e, assim, passam por
inevitável penúria, sendo ainda defeso o auxílio dirigido a pessoas cuja
família imediata tem condições de sustentar.

Princípio da temporalidade
A ajuda material a irmãos carentes deverá cessar tão logo termine a
condição de necessidade real.
REFERÊNCIAS
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Artigos

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PINTO, Carlos Osvaldo. O Divórcio. Enfoque, Atibaia, nov. 2000.
SOBRE O AUTOR
Marcos Granconato é pastor-titular da Igreja Batista Redenção, em São
Paulo. Formou-se em teologia no Seminário Bíblico Palavra da Vida. É
graduado em direito pela Universidade São Francisco de Bragança Paulista
e mestre em teologia histórica pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação
Andrew Jumper.

Notas do prólogo
[1]
Nos tempos da Inquisição, “cristão velho” referia-se ao católico da
Península Ibérica que estava acima de qualquer suspeita de heresia. Já
“cristão novo” denominava o judeu convertido que passara a ser
perseguido com severidade, acusado de praticar o judaísmo secretamente
em casa. Veja-se KAYSERLING, M. História dos judeus em Portugal. São
Paulo: Pioneira, 1971. MAX, Frédéric. Prisioneiros da Inquisição. Porto
Alegre: L&PM, 1991. Veja-se tb. NORTON, Howard W.; NOVINSKY, Anita;
NAZÁRIO, Luiz; JOVANOVIK, Aleksandar. A Inquisição. Folha de S. Paulo, São
Paulo, 15 mai. 1987. Folhetim.
[2]
Jesus chamou de cães os incrédulos (Mt 7.6) e os pagãos (Mt 15.26), mas
o mesmo termo foi utilizado por Paulo para referir-se aos falsos mestres
(Fp 3.2). No Apocalipse, o Senhor emprega a mesma palavra ao falar
daqueles que vão sofrer a perdição eterna, fora da cidade santa (Ap
22.15).
[3]
Veja-se ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em crise. São Paulo: Mundo Cristão,
1997. p. 77-82.

Notas do capítulo 1
[4]
Nesse sentido, veja-se especialmente SCHAEFFER, Francis A. A verdadeira
espiritualidade. São Paulo: Fiel, 1980. p. 192-209.
[5]
O Dr. Lawrence J. Crabb Jr., psicólogo cristão, aponta o significado e a
segurança como as necessidades psicológicas fundamentais de todo ser
humano. Segundo ele, o homem só se sente importante quando é
respeitado e só se sente seguro quando tem o amor incondicional dos
outros. Veja-se CRABB JR., Lawrence J. Aconselhamento bíblico efetivo.
Brasília: Refúgio, 1985.
[6]
O modo como a igreja deve agir no suprimento das necessidades dos que
sofrem está exposto no Capítulo 11.
[7]
Nos capítulos subsequentes, todos os itens aqui denominados como
“pilares” serão considerados com maior atenção.
[8]
Um bom exemplo disso é visto na Inglaterra durante o século 17. Veja-se
LLOYD-JONES, Martyn. Os puritanos: suas origens e seus sucessores. São
Paulo: PES, 1993. p. 76-79.
[9]
Essa prática também foi corroborada por concepções pagãs. Veja-se o
Capítulo 9.
[10]
Na igreja antiga havia, inclusive, a tendência de batizar crianças no oitavo
dia de vida (Lv 12.3), dado o entendimento de que o batismo havia
substituído a circuncisão. Nesse sentido, veja-se CIPRIANO. Epistle LVIII - To
Fido, On the baptism of infants. Ante-Nicene Fathers, vol. 5, p. 353-
354). É inegável, assim, que o batismo infantil surgiu como resultado da
concepção nutrida por vários teólogos antigos que viam a igreja como o
verdadeiro Israel.
[11]
Wayne Grudem, defendendo essas noções, escreve: “… a igreja agora se
tornou o verdadeiro Israel de Deus e… receberá todas as bênçãos
prometidas a Israel no Antigo Testamento...”. GRUDEM, Wayne. Teologia
Sistemática. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 723.
[12]
Para uma exposição mais detalhada desses e outros efeitos, veja-se DIPROSE,
Ronald E. Israel and the church: The origin and effects of replacement
theology. Waynesboro, GA: Authentic Media, 2004.
[13]
O Artigo 17 da Confissão de Augsburgo, escrita em 1530, afirma que a
ideia de um reino messiânico físico a ser instalado no futuro neste mundo
(milenarismo) é apenas uma das diversas “opiniões judaicas” que as
igrejas condenam (A Confissão de Augsburgo. Edição bilíngue. São
Leopoldo: Sinodal, 1980. p. 25.). Também a primeira edição dos Artigos
Anglicanos elaborados por Thomas Cranmer em 1553 descreve o
milenarismo como “uma fábula própria da senilidade judaica” (SCHAFF,
History of the Christian Church, vol. II, p. 619).
[14]
Nesse sentido, veja-se OSBORNE, Grant R. A espiral hermenêutica: uma nova
abordagem à interpretação bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2009. p. 414.
[15]
A lei canônica é o conjunto de normas criadas pelos concílios
eclesiásticos que se reuniram ao longo dos séculos e que são
reconhecidos pela “igreja oficial”.

Notas do capítulo 2
[16]
CALVINO, João. As institutas ou tratado da religião cristã. Vol. III. São
Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1985. p. 119.
[17]
Ibid., p. 133.
[18]
Ibid., p. 136.
[19]
A Confissão de Fé de Westminster. São Paulo: Cultura Cristã, 1994. p.
110.
[20]
HODGE, Archibald Alexander. Comentário de la Confesion de Fe de
Westminster. Barcelona: CLIE, 1987. p. 251. Tradução livre.
[21]
OSBORNE, Op. Cit., p. 567.
[22]
CALVINO, João. Comentário sobre 2Timóteo 2.15: CNTC 10, p. 313. Citado
por GEORGE, Teologia dos reformadores. São Paulo: Vida Nova, 1993, p.
241.
[23]
GEORGE, Ibid., p. 92.
[24]
Na Bíblia há orações dirigidas ao Pai (Mt 6.9; Ef 3.14) e ao Filho (At
7.59; 1Co 1.2), mas não há nenhuma súplica feita ao Espírito Santo.
Negar, contudo, que os crentes possam orar ao Espírito equivale a negar
a divindade da Terceira Pessoa da Trindade.
[25]
Para livros que apresentam essas concepções, veja-se BILLHEIMER, Paul E. Seu
destino é o trono. São José dos Campos: CLC, 1984 (especialmente pp.
103-116); e CAROTHERS, Merlin. Louvor que liberta. Belo Horizonte: Betânia,
1988.
[26]
Para excelentes orientações sobre esse assunto, veja-se LOPES, Augustus
Nicodemus, O que estão fazendo com a igreja. São Paulo: Mundo
Cristão, 2008. p. 157ss.
[27]
Veja-se o Capítulo 1.
[28]
Segundo o ensino do NT, o corpo do cristão é casa habitada definitivamente
por Deus (Jo 14.20,23; 1Co 3.16; 6.19; Cl 1.27), e é impossível que
Satanás e seus anjos façam morada ali, uma vez que nunca a acharão
desocupada (Mt 12.43-45). Veja também 1João 5.18.

Notas do capítulo 3
[29]
SALVADOR, José Gonçalves (Edit.). O Didaquê ou O ensino do Senhor através
dos doze apóstolos. São Paulo: Imprensa Metodista, 1980. p. 75.
[30]
CALVINO, Op. Cit., IV:XV:19, p. 301.
[31]
A fonte desse ensino é a obra O pastor de Hermas (31.6-7), produzida por
volta de 150 AD.
[32]
Veja-se SCHAFF, Op. Cit., vol. II, p. 258-262.
[33]
GEORGE, Op. Cit., p. 258-259.
[34]
BERKHOF, L. Manual de Doutrina Cristã. Campinas: Luz para o Caminho,
1985. p. 288.
[35]
Segundo Berkhof, Colossenses 2.11-12 parte claramente da suposição de
que o batismo tomou o lugar da circuncisão! (Ibid., p. 287).
[36]
Assim argumenta Calvino em suas Institutas. Veja-se CALVINO, Op. Cit.,
IV:XVI:20, p. 322-323.
[37]
Para mais detalhes, veja-se CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos
séculos: uma história da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova, 1984. p.
239.
[38]
Essa doutrina é também adotada com pequenas variações pelos ortodoxos
e anglicanos.
[39]
O IV Concílio de Latrão (1215) oficializou a doutrina da
transubstanciação como dogma católico. Essa doutrina foi reafirmada e
plenamente definida no Concílio de Trento (1545-1563).
[40]
A prática da igreja ocidental de usar pão não levedado na Eucaristia deu
causa ao Cisma de 1054 que culminou no rompimento das relações entre
a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa Grega.
[41]
Aliás, a palavra “hóstia” vem do latim e significa vítima.
[42]
Na Idade Média corria a fábula de que o morcego passou a existir porque
um rato, após comer uma hóstia consagrada, foi abençoado com asas.
[43]
WENGER, John C. (org.). The complete works of Menno Simons. Scottdate:
Herald Press, 1956. p. 76. Citado por GEORGE, Op. Cit., p. 258.
[44]
Edições posteriores da Confissão de Augsburgo abrandaram essa posição.
[45]
A Fórmula foi publicada oficialmente em 1580. Como foi apresentada
num volume que trazia outros documentos, ficou conhecida mais tarde
como o Livro da Concórdia.
[46]
O sacramento do altar ou ceia do Senhor. Disponível em
www.luteranos.com.br/articles/8166/1. Acessado em 02/dez/2010.
[47]
Para uma compreensão mais precisa da concepção de João Calvino acerca
da ceia, veja-se CALVINO, Op. Cit., IV:XVII, p. 339-399. Veja-se ainda
GONZÁLEZ, Justo L. Uma história do pensamento cristão. Vol. 3. São Paulo:
Cultura Cristã, 2004.
[48]
Calvino diz expressamente: “... a fração do pão é um símbolo... Mas...
pela exibição do símbolo, no entanto, a própria coisa é exibida.” (Op.
Cit., IV:XVII:10, p. 348).
[49]
CALVINO, Idem.
[50]
Deve ser lembrado que os católicos e os luteranos também são
sacramentalistas, crendo a seu modo que, na eucaristia, graças especiais
são comunicadas aos participantes. Zuínglio, por sua vez, repudia essa
visão. Um dos possíveis fundamentos do sacramentalismo está na
expressão “o cálice da bênção” usada por Paulo em 1Coríntios 10.16. Se
for entendida como um genitivo de causa, o que é gramaticalmente
possível, essa expressão pode ser interpretada como “o cálice que traz a
bênção”, dando suporte para a concepção sacramentalista. É mais
provável, porém, que a expressão se refira ao cálice da gratidão, o
terceiro cálice usado pelos judeus durante a celebração da Páscoa. Ao
participar desse cálice os celebrantes davam graças a Deus e o
“abençoavam,” isto é, o bendiziam. Se esse entendimento for aceito, a
suposta base para o sacramentalismo presente em 1Coríntios 10.16
desaparece.
[51]
CALVINO, Op. Cit., IV:XVII:24, p. 365.

Notas do capítulo 4
[52]
AGOSTINHO DE HIPONA. De correptione et gratia, XIV-XVI. In CALVINO, Op. Cit.,
III:XXIII:14, p. 426.
[53]
Para mais detalhes, veja-se MCGRATH, Alister. A vida de João Calvino. São
Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 203-222.
[54]
FERREIRA, Franklin. Gigantes da fé. São Paulo: Vida, 2006. p. 168.
[55]
Mais informações sobre os calvinistas enviados de Genebra ao Brasil,
bem como acerca do conteúdo da Confissão de Fé da Guanabara, veja-
se NASCIMENTO, Adão Carlos e MATOS, Alderi Souza de. O que todo
presbiteriano inteligente deve saber. Santa Bárbara d’Oeste: SOCEP,
2007. p. 39-48.
[56]
A obra mais completa sobre o tema, escrita em português, é, sem dúvida
SCHALKWIJK, Franz Leonard. Igreja e Estado no Brasil Holandês: 1630-1654.
São Paulo: Vida Nova, 1989. O autor é pastor reformado holandês e
ministrou muitos anos no Brasil, tendo realizado profundas pesquisas
tanto aqui como em sua terra natal.
[57]
Informações mais completas sobre George Whitefield podem ser obtidas
em LLOYD-JONES, D.M. Op. Cit. p. 112-138.
[58]
Sobre a vida de Spurgeon, veja-se FERREIRA, Op. Cit., p. 270-278.
[59]
No Brasil, os sermões de Spurgeon têm sido publicados especialmente
pela Editora Fiel e pela PES: Publicações Evangélicas Selecionadas.

Notas do capítulo 5
[60]
GIBBON, Edward. Declínio e Queda do Império Romano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. p. 224.
[61]
GOMES, Cirilo Folch (org.). Antologia dos Santos Padres: Páginas Seletas
dos Antigos Escritores Eclesiásticos. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 284.
Notas do capítulo 6
[62]
Note-se que nesse texto a palavra traduzida em várias versões como
“mais velhos” é presbyteroi, termo que designa pastores. Aliás, o
contexto da passagem (v. 1-4) favorece esse entendimento.

Notas do capítulo 7
[63]
O emprego do óleo mencionado nesse texto tinha objetivos simbólicos (a
representação do favor de Deus vindo sobre o enfermo) e humanitários (o
óleo era usado para dar refrigério). Em nada essa prática se assemelhava
ao curandeirismo evangélico que se vê hoje em dia.
[64]
CALVINO, Op. Cit., IV:III:9, p. 51.
[65]
TOURAINE, Alain; MOTTEZ, Bernard. Histoire Générale du Travail. Apud
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo:
Saraiva, 1995. p. 13-14.
[66]
Idem, p. 560-561.
[67]
Idem, p. 12-13.
[68]
Para uma visão mais clara acerca do espaço concedido às mulheres no
contexto judaico, por exemplo, veja-se JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no
tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1983. p. 473-494. Veja-se também
DANIEL-ROPS, Henri. A vida diária nos tempos de Jesus, São Paulo: Vida
Nova, 1988. p. 88-91.
[69]
HOUSE, H. Wayne. Distinctive roles for women in the second and third
centuries. Bibliotheca Sacra, Dallas, v. 146, n. 581, jan./mar. 1989, p. 52-
53. Tradução livre.

Notas do capítulo 9
[70]
WENGER, John C. (org.). The complete works of Menno Simons. Scottdate:
Herald Press, 1956. p. 310. Citado por GEORGE, Op. Cit., p. 278.
[71]
Diga-se de antemão que o autor reconhece que há muitas igrejas
pentecostais que não se encaixam nas críticas elencadas nesta seção. Ele
também sabe que, mesmo adotando algumas concepções doutrinárias que
este livro reprova, muitos pentecostais são discípulos sinceros de Jesus
— irmãos amados que repudiam enfaticamente todos os desvios
mencionados aqui, fazendo tudo o que podem para evitá-los ou corrigi-
los.
[72]
Um exemplo chocante do ponto a que isso pode chegar é fornecido pelo
número 47 da revista portuguesa Visão, publicada na semana de 10 a 16
de fevereiro de 1994. Segundo essa revista, em junho de 1992, o
“apóstolo” Jorge Tadeu, líder da Igreja Maná em Portugal, disse numa
reunião de pastores na cidade de Loures, próxima de Lisboa: “Recebi isto
por revelação divina: Deus me disse que hoje o Senhor permite que um
homem tenha várias mulheres, desde que com isso sirva mais a Deus”.
Jorge Tadeu já esteve várias vezes em São Paulo, promovendo
conferências ao lado de líderes pentecostais brasileiros. Veja-se ROMEIRO,
Op. Cit., p. 48.
[73]
A exploração financeira levada a cabo por essas pessoas passa ainda pela
prática chocante de compra e venda de “campos”, pela qual pastores e
líderes eclesiásticos, tratando suas comunidades como se fossem lotes de
animais, vendem suas igrejas por uma determinada quantia em dinheiro,
cujo valor oscila dependendo do número de membros, potencial de
crescimento, média de entradas financeiras, localização, etc. O apóstolo
Pedro disse que os falsos mestres fariam comércio dos crentes (2Pe 2.3).
Esse é certamente o exemplo mais chocante do cumprimento dessa
previsão.
[74]
A expressão “terceira onda” aplicada ao neopentecostalismo tem a sua
criação atribuída ao teólogo e escritor americano, autointitulado apóstolo,
Charles Peter Wagner (The third wave of the Holy Spirit. Ann Harbor:
Vine, 1988). No Brasil, a história do pentecostalismo é dividida em três
“ondas” pelo sociólogo Paul Freston, no artigo “Breve história do
pentecostalismo brasileiro”, em ANTONIAZZI, Alberto (edit.). Nem anjos nem
demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
Vozes, 1996.
[75]
Veja-se SCHAFF, Op. Cit., I:VII:39.
[76]
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Verbete: ‘glossolalia’. RJ:
Objetiva, 2001.
[77]
Le Nouveau Petit Robert. Verbete: ‘glossolalie’. Paris: Dictionnaires Le
Robert, 2000.
[78]
FREIRE, Silvana Matias. Glossolalias: ficção, semblante, utopia Tese de
doutorado apresentada ao Curso de Linguística do Instituto de Estudos da
Linguagem da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP,
Instituto de Estudos da Linguagem, 2007. p. 73.
[79]
FREIRE, p. 31-32.
[80]
FREIRE, p. 67-68, 77, 79.
[81]
MOTLEY, Michael T. A linguistic Analysis of glossolalia: evidence of unique
psycholinguistic processing. Communication Quarterly, vol. 30, nº 1,
1981. p. 18-27.
[82]
Para mais detalhes veja-se FREIRE. p. 15-16. Veja-se tb. BAPTISTA, Selma.
Glossolalia, o sentido da desordem: a simbologia do som na constituição
do discurso pentecostal. Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas — Área de Antropologia Social —
UNICAMP, Campinas, 1989. p. 80-81.
[83]
Muitas vezes, a ideia de que o dom de línguas produz esvaziamento
mental busca fundamento em 1Coríntios 14.14, onde se diz que a mente
de quem ora em outra língua “fica infrutífera”. Essa expressão, porém,
significa apenas que a mente de quem orava em línguas não produzia
nada em proveito dos irmãos. Nesse sentido, veja-se THISELTON, Anthony C.
The First Epistle to the Corinthians: A commentary on the Greek text.
Michigan/Cambridge, UK: Eerdemans, 2000.
[84]
BAPTISTA, p. 267,285.
[85]
Para mais detalhes, veja-se BOER, Leandro. O dom de línguas hoje: adendo
científico para leigos. Publicado em três partes no Boletim Semanal da
Igreja Batista Redenção nº 806-808 (19 e 26 de abril / 03 de maio de
2015). Disponível também em www.igrejaredencao.org.br. O artigo traz
uma breve lista de referências de que constam as seguintes monografias:
DENGAH, F. Religious Dissociation and Economic Appraisal in Brazil. J
Relig Health. 2015 Feb 17. [Epub ahead of print] PubMed PMID:
25687180; JOHNSON, K. D. A neuropastoral care and counseling assessment
of glossolalia: a theosocial cognitive study. J Health Care Chaplain.
2010;16(3-4):161-71. doi:10.1080/08854726.2010.492698. PubMed
PMID: 20658429; KUHL P. K. Brain mechanisms in early language
acquisition. Neuron. 2010 Sep 9; 67(5):713-27. doi:
10.1016/j.neuron.2010.08.038. Review. PubMed PMID: 20826304;
PubMed Central PMCID: PMC2947444. NEWBERG, A.B.; WINTERING N. A.; MORGAN,
D.; WALDMAN, M. R. The measurement of regional cerebral blood flow during
glossolalia: a preliminary SPECT study. Psychiatry Res. 2006 Nov
22;148(1):67-71. Epub 2006 Oct 12. PubMed PMID: 17046214.
[86]
BAPTISTA, p. 250.
[87]
BAPTISTA, p. 265-266,282. Conclusões semelhantes foram expostas por
William SAMARIN. antropólogo e linguista americano, que realizou um dos
trabalhos mais completos sobre a glossolalia em Tongues of men and
angels. The religious language of pentecostalism. Macmillan, NY, 1972.
O trabalho de Samarin (e de outros linguistas que chegaram à mesmas
conclusões que ele) foi criticado num artigo escrito em 1981, por
Michael T. MOTLEY, intitulado A linguistic Analysis of glossolalia: evidence
of unique psycholinguistic processing (publicado em Communication
Quarterly, vol. 30, nº 1, 1981. p. 18-27). Contrariando teses já
consagradas, Motley afirma que a glossolalia tem traços de línguas reais
e é linguisticamente independente da língua nativa dos falantes. Ele
admite, porém, que traços desse tipo podem advir da prática (nota 1 de
seu artigo), mas rejeita a possibilidade de ser essa a hipótese que explica
a glossolalia (ainda que tenha baseado sua pesquisa na experiência de um
pentecostal que falava em "línguas" há vinte anos). Apesar de sua análise
abranger apenas dez páginas e de ter tirado suas conclusões a partir da
observação de somente um praticante da glossolalia, Motley afirma que o
trabalho de Samarin e de outros que chegaram às suas mesmas
conclusões é "superficial".
[88]
Para mais detalhes, veja-se MACARTHUR. O caos carismático. São José dos
Campos: Fiel, 1992. pp. 293-326.
[89]
Maiores detalhes em FREIRE, p. 11-12, 18-22 e BAPTISTA, p. 78.
[90]
Alguns crentes acreditam que 1Coríntios 14.24-25 serve como base
bíblica para a prática supostamente profética de adivinhar segredos da
vida alheia, especialmente dos visitantes que vão à igreja. No entanto,
esse texto ensina apenas que, tocado pelas verdades espirituais
pronunciadas durante o culto pelos profetas que havia na igreja primitiva,
o descrente se sentiria encorajado a abrir seu coração em confissão diante
dos irmãos. Também pode significar que a corrupção do coração do
descrente seria exposta a ele mesmo através da pregação dos profetas, o
que o levaria ao arrependimento. Nesse sentido, veja-se LOPES, Augustus
Nicodemus. O culto espiritual. São Paulo: Cultura Cristã, 2004. p. 221.
[91]
CHISHOLM, Robert B. From exegesis to exposition. Grand Rapids: Baker,
1999. p. 142.
[92]
Sobre o uso do óleo mencionado em Tiago 5.14, veja-se a nota 1 do
Capítulo 7.
[93]
Alguns livros de Hagin que expõem esses ensinos e que estão disponíveis
em português são: Compreendendo a unção; Novos limiares da fé;
Redimidos da miséria, da enfermidade e da morte; Dons do Espírito; A
autoridade do crente; O nome de Jesus, além de outros, todos publicados
no Brasil pela Graça Editorial.
[94]
No Brasil, esses ensinos foram bastante popularizados a partir de 1979 por
meio de um pequeno livro chamado Há poder em suas palavras, de Don
Gosset. Nesse livro é possível encontrar a raiz de diversos desvios
doutrinários amplamente aceitos no meio evangélico de hoje, tais como:
1) O ensino de que a pessoa concretiza tudo o que declara; 2) O
consequente incentivo à repetição de versículos e frases de vitória a fim
de se obter sucesso (essa é a razão porque muitos pastores, durante seus
sermões, mandam as pessoas dizer frases positivas a quem está sentado
ao seu lado); 3) A afirmação de que o crente tem direito a curas, dinheiro
e realização e que essas coisas, na verdade, já lhe pertencem, devendo
apenas “tomar posse” delas por meio da pronúncia de frases; 4) A
identificação de sentimentos e disposições negativas com espíritos
malignos (espírito do medo, espírito do rancor, espírito da malícia, etc.);
e 5) O entendimento de que todas as doenças e males têm como origem o
diabo.
[95]
Veja-se no Capítulo 11, o modo bíblico como se deve lidar com membros
da igreja que passam por necessidades materiais.
[96]
Para uma exposição sucinta, mas bastante proveitosa dessa concepção,
veja-se ROMEIRO, Op. Cit., p. 97-112.
[97]
Há também o ensino de que as maldições podem estar associadas ao nome
da pessoa, caso esse nome evoque noções de pecado ou de sofrimento
(e.g., Adão, Judas, Maria das Dores, etc.).
[98]
O jejum também é muito enfatizado nesses casos. Porém, o que os
seguidores dessas fábulas chamam de jejum é mera abstinência
supersticiosa de alimentos. A Bíblia mostra que o jejum verdadeiro é um
meio de estimular a concentração na oração quando o crente está
arrependido (Jl 2.12) ou passando por grande tristeza (Mt 9.15) ou ainda
diante de uma imensa tarefa (At 13.2-3). Portanto, quando alguém jejua
não deve apenas abster-se de alimentos, mas também evitar qualquer
outra atividade própria do dia a dia, dedicando-se exclusivamente à
meditação da Palavra e à oração (Is 58.3). Foi esse o jejum que Jesus
praticou no deserto (Mt 4.1-2).
[99]
No Brasil, a proposta de restauração apostólica tem sido defendida talvez
de forma mais elaborada por René Terra Nova, líder do Ministério
Internacional da Restauração, com sede em Manaus. No entanto, um
número infindável de igrejas evangélicas tem aceitado a liderança de
homens que se autodenominam apóstolos.
[100]
BALZ, Horst e SCHNEIDER, Gerhard (Orgs.). Exegetical Dictionary of the New
Testament. Edimburgo: T&T Clark Ltd., 1990. p. 3149.
[101]
Agir como bêbado é visto como sinal de plenitude espiritual porque,
segundo o entendimento dos líderes dessas igrejas, Atos 2.13 prova que
os crentes que estavam em Jerusalém por ocasião do Pentecoste
realmente pareciam embriagados quando o Espírito veio sobre eles.
[102]
Herodes, o Grande, reconstruiu o templo de Jerusalém ao longo de um
período de 44 anos (20 a.C. – 64 d.C.), tendo-o feito para cair no agrado
dos judeus sobre quem reinava.
[103]
Para uma noção mais clara sobre as dependências e dimensões do templo
de Jerusalém nos dias do Novo Testamento, veja COOK, Randall K. O
templo — sua história e seu futuro. Vox Scripturae, São Paulo, v. 2, n. 1,
mar. 1992, p. 67-81. Para o lugar do templo na vida social do povo de
Jerusalém,0 veja DANIEL-ROPS, Op. cit., p. 233-43.
[104]
CAIRNS, Op. Cit., p. 97.
[105]
GIBBON, Op. Cit., p. 278.
[106]
Isso também teve como causa o processo de israelização da igreja. Nesse
sentido, veja-se o Capítulo 1.
[107]
Tudo isso gera situações inusitadas: Certa vez, um jovem foi conhecer as
novas dependências de uma igreja no Estado do Espírito Santo e, ao subir
no púlpito para ter uma visão mais ampla do todo, foi abordado pelo
zelador que, diante de tão grande sacrilégio, ordenou que ele saísse dali
imediatamente. A ordem foi de pronto obedecida, mas era tarde: o
púlpito já havia sido profanado!
Numa outra grande igreja, o pastor disse que estava pensando em
“reconsagrar o templo”, pois um conjunto de americanos havia
apresentado ali músicas impróprias para a adoração. A medida correta
teria sido interromper a apresentação e admoestar os americanos. Se
algo devesse ser “reconsagrado”, talvez fosse a vida deles.
Ainda em outra igreja houve um “culto especial de consagração da
nova bancada”. Durante o evento, a congregação foi obrigada a
permanecer pacientemente em pé por um período interminável.
Jovens, velhos, mulheres e crianças só puderam se sentar nos novos
bancos depois que a “consagração” foi consumada!
[108]
O rasgar do véu também pode indicar a indignação de Deus (como
alguém que rasga as vestes) diante da morte do seu Filho, ou o prenúncio
do juízo sobre o templo (Mt 23.38), consumado em 70 AD. Nesse
sentido, veja-se NOLAND, John. The Gospel of Matthew: a commentary on
the Greek text. Grand Rapids/Michigan: Eerdmans, 2005. p. 1211-1214.

[109]
DANIEL-ROPS, Op. cit., p. 233-4.
[110]
A associação da igreja com o romanismo é proposta pelo ecumenismo. Já
a associação com o hinduísmo é mais sutil e surge quando os crentes
passam a crer, por exemplo, que “há poder em suas palavras”. Essa
crença é não só o corolário da doutrina hinduísta acerca da divindade do
homem, mas também o principal fundamento das práticas tanto antigas
como modernas de feitiçaria. Para mais detalhes sobre o assunto, veja
HUNT, David; MCMAHON, T. A. La seducción de la cristianidad. Grand
Rapids: Editorial Portavoz, 1988.
[111]
Quanto à associação da igreja com seitas que se parecem cristãs, o
exemplo mais comum é o espaço dado por alguns pastores aos
adventistas do sétimo dia. Prevalece no meio evangélico a crença errada
de que os adventistas são irmãos na fé, os quais diferem dos crentes pelo
simples fato de se reunirem aos sábados. Nada, porém, está mais longe
da verdade. Os adventistas não são crentes. Antes constituem uma seita
que ensina terríveis heresias. Dentre elas, sua doutrina sobre o “juízo
investigativo” contraria Hebreus 9.11-12 e tenta destruir a verdade acerca
da consumação da obra de Cristo realizada na cruz do Calvário. Para
mais detalhes, veja VAN BAALEN, J. K. O caos das seitas. São Paulo:
Imprensa Batista Regular, 1982.
[112]
Veja a exposição sobre o Princípio Regulador do Culto, no Capítulo 2.

Notas do capítulo 10
[113]
No Brasil, um dos livros que melhor refletem essa disposição teológica
conciliadora é MCLAREN, Brian. Uma ortodoxia generosa. Brasília: Editora
Palavra, 2007. O prefácio à edição americana desse livro, escrito por
John R. Franke, proclama que uma de suas marcas positivas é a aceitação
da possibilidade de salvação para os que estão fora da fé cristã,
recusando que a graça salvadora de Deus esteja limitada aos crentes (p.
19). De fato, McLaren, no capítulo 4 da sua obra, se insurge abertamente
contra a pregação de Jesus como salvador pessoal, insistindo que ele é o
salvador do mundo. O propósito do evangelismo, segundo essa
concepção, seria convidar as pessoas a terem uma vida diferente,
enquanto participam da fascinante obra de Cristo de salvar o mundo
inteiro.
[114]
Essa é a proposta de Dan Kimball no livro A igreja emergente:
cristianismo clássico para as novas gerações. São Paulo: Vida, 2008.
[115]
Essa é, pelo menos em parte, a proposta de Rick Warren, em seu livro
Uma igreja com propósitos. São Paulo: Vida, 2008.
[116]
Para mais detalhes sobre o Princípio Regulador do Culto veja-se o
Capítulo 2.
[117]
O NT também mostra que em meados do século 1 surgiram credos
cristãos e declarações hínicas que eram adotados pelas igrejas e que
serviam como fator de distinção entre elas e os diversos grupos heréticos
que as rodeavam (Gl 1.9; Fl 2.5-9 [talvez um hino cristão primitivo]; 2Ts
3.6; 1Tm 3.16 [também um hino cristão antigo]; 6.20; 2Tm 1.14; 2.2). A
adoção desses credos e hinos também sinaliza para as igrejas locais como
instituições bem organizadas, com identidade teológica formalmente
definida, todas comprometidas com uma tradição doutrinária específica,
cujos contornos eram claros e inegociáveis.
Notas do capítulo 11
[118]
Até onde a avaliação é possível, não se pode dizer que esse livro seja
proponente da teologia liberal. Sua menção aqui serve apenas para
destacar a contribuição que fez para a visão da igreja como agente mais
presente no campo social – uma visão que coincidiu com as propostas
liberais.
[119]
O texto integral do Pacto de Lausanne em português pode ser acessado
no site www.lausanne.org ou em www.monergismo.com.
[120]
Nesse sentido, veja-se OSBORNE, Op. Cit., p. 335.

Notas do capítulo 12
[121]
Veja-se Tobias 7.14. O livro apócrifo de Tobias foi escrito em cerca de
200 a.C. e é reconhecido como canônico pela Igreja Católica. O judaísmo
e as igrejas protestantes, porém, não o aceitam em seu rol de livros
inspirados.
[122]
Nos tempos do AT, o ritual central de matrimônio era a condução
simbólica da noiva à casa do noivo, o que era seguido de festejos (Jr
16.9). No dia do casamento, os noivos usavam trajes especiais (Ct 3.11;
Is 61.10) e participavam de um banquete com os convidados (Gn 29.21-
23). Esses costumes sofreram modificações ao longo do tempo, mas o
rito cerimonial que perfaz o casamento nunca deixou de existir (Veja-se o
verbete Marriage in ACHTEMEIER, Paul (Org.). Harper’s Bible Dictionary.
New York: Harpercollins, 1985.).
[123]
Citado por JEREMIAS, Op. Cit., p. 484.
[124]
Há no meio cristão uma posição ainda mais restritiva que admite o
divórcio somente no caso em que o incrédulo quer se apartar. Segundo os
proponentes dessa visão, o divórcio admitido na hipótese mencionada em
Mateus 5.32 e 19.9 era o rompimento das relações de noivado. Para uma
discussão sobre esse tema, veja-se KÖRSTENBERGER, Andreas J.; JONES, David W.
Deus, casamento e família: reconstruindo o fundamento bíblico. São
Paulo: Vida Nova, 2011. p. 243-248.
[125]
WEBER, Stuart K. Holman New Testament Commentary (ANDERS, Max
[Edit.]): Matthew. Broadman & Holman Publishers: Nashville,
Tennessee. 2000. p. 328.
[126]
Veja-se, aliás, os textos paralelos de Marcos 10.11-12 e Lucas 16.18,
onde não figura nenhuma cláusula de exceção.
[127]
PINTO, Carlos Osvaldo. O Divórcio. Enfoque, Atibaia, nov. 2000, p. 7. Veja-
se também HETH, William A. e WENHAM, Gordon J. Jesus and divorce. London,
The Chaucer Press, 1984.
[128]
Outra possível tradução para Mateus 19.9 é: “Quem se divorciar de sua
mulher, o que só poderá fazer se ela for infiel, e se casar com outra
comete adultério”. Note-se que essa opção conecta corretamente a
famosa cláusula de exceção somente à primeira parte da hipótese – a
parte referente ao divórcio.
[129]
Aqui, uma analogia pode ajudar: relações sexuais adulterinas podem
gerar filhos. Alguém poderá dizer que esses filhos são “irregulares”, mas
ninguém poderá afirmar que são inexistentes. Da mesma forma, uma
relação sexual adulterina poderá gerar um casamento irregular. Contudo,
não será correto alegar que esse casamento é irreal ou que não existe.
Esse casamento existirá sim, gerando direitos e obrigações, da mesma
forma que um filho “irregular” existe de fato e gera direitos e obrigações.

Notas do capítulo 13
[130]
Para análise mais detalhada do assunto, veja-se COULANGES, Fustel de. A
cidade antiga. São Paulo: Editora das Américas, 1961.
[131]
Os jogos olímpicos surgiram por volta de 884 a.C. e tinham por
propósito homenagear os deuses da Grécia antiga. Aliás, o imperador
cristão Teodósio I extinguiu a Olimpíada em 393 d.C. por considerá-la
um rito pagão. A restauração dos jogos só veio em 16 de junho de 1884,
num congresso realizado em Paris.

Notas do capítulo 14
[132]
A orientação dada no leito de morte por Jacó (Gn 49.29-33) e José (Gn
50.24-26) quanto a serem sepultados na terra de Canaã não foi expressão
de capricho tolo. Antes, constituiu ato de fé (Hb 11.22), uma vez que
esses homens criam que um dia ressuscitariam dentre os mortos e
possuiriam para sempre a terra prometida por Deus a Abraão e seus
descendentes (Gn 12.7; 13.14-17; 15.7-21).

Notas da conclusão
[133]
Veja o Capítulo 9 (subtítulo “Avivamentos estranhos”) para o ensino
bíblico acerca do impacto da verdade sobre as multidões.
Table of Contents
Capítulo 1 - Igreja local: definição, propósito, importância e modo válido de
implantação
Capítulo 2 – O CULTO CRISTÃO
Capítulo 3 – AS ORDENANÇAS
Capítulo 4 – O EVANGELISMO
Capítulo 5 – OS MEMBROS QUE VÊM E VÃO
Capítulo 6 – OS DEVERES DOS MEMBROS DA IGREJA LOCAL
Capítulo 7 – OS OFICIAIS DA IGREJA
Capítulo 8 – O PATRIMÔNIO MATERIAL DA IGREJA
Capítulo 9 – DESVIOS EVANGÉLICOS
Capítulo 10 – IGREJAS PÓS-MODERNAS
Capítulo 11 – O AUXÍLIO MATERIAL NA IGREJA
Capítulo 12 – O CASAMENTO
Capítulo 13 – A LIBERDADE E A CONDUTA CRISTÃ
Capítulo 14 – A PRÁTICA DE ENFRENTAR A MORTE

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