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Meu filho você não merece nada

Eliane Brum
Disponível em: http://saladeleituraencantada.blogspot.com.br/2013/07/meu-
filho-voce-nao-merece-nada-eliane.html
A crença de que a felicidade é um direito tem tornado despreparada a geração mais
preparada
Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco
e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos
diante da geração mais preparada –e, ao mesmo tempo, da mais despreparada.
Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar
com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia,
despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em
viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da
vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu
com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor.
Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras
línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração
que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que
a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse
a sua genialidade.
Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma
continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que
tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que
queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-
se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste.
Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam
tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é
construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética
e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram
dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para
os insistentes.
Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento
importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa
época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E
tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam
“felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de
todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade.
É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores.
Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida
sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do
processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a
falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se
confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas
capacidades individuais?
Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está
no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma
ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo
de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi
aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais.
Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam
assegurar seu lugar no país.
Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço,
existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as
dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens,
uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm
pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso.
Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”.
Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de
jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão
que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque
possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar
com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar
limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer.
A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos
combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha
e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém
descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento
é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no
confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer
se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão.
Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é
um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente
teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de
dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que
seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no
mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar
construído sobre a ilusão da felicidade e da completude.
Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a
escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais
fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o
desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família
pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém
dentro de casa.
Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais
caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como
seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas
estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é
possível fingir.
Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez
mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de
alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que
sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após
dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os
pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o
que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para
manter o jogo funcionando.
O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas
se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem
muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam
fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o
atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que
paralisa.
Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas
possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de
realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é
para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com
habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar
a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza
de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é
nesse movimento que a gente vira gente grande.
Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma
boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira,
meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como
sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com
dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou
tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer
ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil,
incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em
volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico
possa ser dito.
Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo
simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar
ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia.
O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo
– ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque
eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou
transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência.
Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida
é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo
injustiçado porque um dia ela acaba.

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