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Copyright © 2006, Ildefonso Falcones de Sierra

Traduzido da edição original do Penguin Random House Grupo Editorial, Barcelona, 2006.

TÍTULO ORIGINAL
La catedral del mar

PREPARAÇÃO
Gabriel Demasi

REVISÃO
Milena Vargas

DESIGN DE CAPA
Richard Lasher Hasselberger

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira | Equatorium Design

FOTO DE CAPA
Ferran López Olmo

REVISÃO DE E-BOOK
Carolina Andrade
Rodrigo Rosa

GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca

E-ISBN
978-85-510-0430-2

Edição digital: 2018

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA .
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
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Sumário
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
Primeira parte: Servos da terra
1
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3
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Segunda parte: Servos da nobreza
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Terceira parte: Servos da paixão
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Quarta parte: Servos do destino
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Nota do autor
Sobre o autor
Leia também
A Carmen
PRIMEIRA PARTE

Servos da terra
1
Ano de 1320
Masía1 de Bernat Estanyol
Navarcles, Principado da Catalunha

Quando ninguém parecia prestar atenção nele, Bernat levantou a vista para
o nítido céu azul. O sol tênue de fim de setembro acariciava o rosto dos
convidados. Investira tantas horas e esforço na preparação da festa que só
um tempo inclemente poderia roubar seu brilho. Bernat sorriu para o céu
outonal e, ao baixar o olhar, seu sorriso se acentuou por causa do alvoroço
que reinava no pátio de pedra que se abria em frente à porta dos estábulos,
no térreo da masía.
A trintena de convidados estava exultante: a vindima daquele ano tinha
sido esplêndida. Todos, homens, mulheres e crianças, trabalharam de sol a
sol, primeiro colhendo as uvas e depois pisando-as, sem se permitir uma
jornada sequer de descanso.
Só depois de pôr o vinho para fermentar nas barricas e armazenar as
cascas de uva para destilar aguardente durante os tediosos dias de inverno,
os camponeses celebravam as festas de setembro. E Bernat Estanyol tinha
escolhido contrair matrimônio naquela época. Bernat observou seus
convidados. Tinham se levantado ao alvorecer para percorrer a pé a
distância, em certos casos muito grande, que separava suas masías da dos
Estanyol. Conversavam animadamente, talvez sobre a boda, sobre a
colheita ou sobre ambas; alguns, como o grupo que incluía seus primos
Estanyol e a família Puig, parentes de seu cunhado, caíram na gargalhada e
olharam-no dissimuladamente. Bernat sentiu-se enrubescer e se esquivou
da insinuação; não quis nem imaginar o motivo daqueles risos. Dispersos
pelo pátio da masía, distinguiu os Fontaníe, os Vila, os Joaquinet e, claro,
os parentes da noiva, os Esteve.
Bernat olhou de relance para o sogro, Pere Esteve, que não fazia outra
coisa além de passear com a enorme barriga, sorrindo para uns e logo
dirigindo-se a outros. Pere virou o rosto alegre em sua direção e Bernat foi
obrigado a saudá-lo pela enésima vez. Ele procurou os cunhados com o
olhar e os viu entre os demais convidados. Desde o primeiro momento
tratavam-no com certa reserva, por mais que Bernat se esforçasse por
conquistá-los.
Bernat olhou o céu outra vez. A colheita e o tempo tinham decidido
acompanhá-lo em sua festa. Observou outra vez sua masía e as pessoas, e
franziu os lábios levemente. Apesar da agitação reinante, de repente
sentiu-se só. Fazia apenas um ano que seu pai havia falecido; Guiamona,
sua irmã, instalada em Barcelona desde que se casara, não respondera aos
recados que ele enviara, e ele gostaria muito de revê-la. Era a única
parenta direta que lhe restava depois da morte do pai...
Uma morte que transformara a masía dos Estanyol no centro dos
interesses de toda a região: casamenteiras e pais com filhas núbeis
desfilaram por ali sem cessar. Antes ninguém os visitava, mas a morte de
seu pai, cujos acessos de raiva lhe renderam o apelido de “o louco
Estanyol”, trouxe de volta a esperança daqueles que desejavam casar suas
filhas com o camponês mais rico da região.
— Você já passou da hora de casar — diziam-lhe. — Quantos anos você
tem?
— Vinte e sete, acho — respondia.
— Nessa idade você já poderia ter netos — recriminavam-no. — O que
vai fazer sozinho nesta masía? Precisa de uma mulher.
Bernat ouvia os conselhos com paciência, sabendo que vinham
necessariamente acompanhados da menção a uma candidata cujas virtudes
superavam a força de um touro e a beleza do mais incrível pôr do sol.
O tema não era novidade. O louco Estanyol, viúvo depois do
nascimento de Guiamona, já havia tentado casá-lo, mas todos os pais com
filhas na idade certa deixavam a masía lançando impropérios: ninguém
conseguia atender às exigências do louco Estanyol quanto ao dote da
futura nora. Por isso, o interesse por Bernat foi diminuindo. Com a idade,
os desvarios de rebeldia do ancião viraram delírios. Bernat dedicou-se a
cuidar das terras e do pai e, de repente, aos vinte e sete anos, viu-se só e
assediado.
No entanto, a primeira visita que Bernat recebeu logo antes de enterrar
o defunto foi a do aguazil do senhor de Navarcles, seu senhor feudal.
“Você tinha mesmo razão, pai!”, pensou Bernat ao vê-lo chegar com vários
soldados a cavalo.
— Quando eu morrer — repetira o velho diversas vezes nos poucos
momentos de lucidez —, eles virão, e você deve lhes mostrar o
testamento. — Com um gesto, ele indicava a pedra sob a qual, enrolado
em couro, estava o documento que continha os últimos desejos do louco
Estanyol.
— Por quê, pai? — perguntara Bernat ao ouvir aquela advertência pela
primeira vez.
— Como bem sabe — respondera o velho —, possuímos estas terras em
enfiteuse, mas sou viúvo e, sem um testamento, com a minha morte o
senhor teria o direito de ficar com metade de todos os nossos móveis e
animais. Este direito se chama intestia; existem muitos outros que
beneficiam os senhores, e você deve conhecer todos. Eles virão, Bernat;
virão para levar o que é nosso, e você só poderá se livrar deles se mostrar
o testamento.
— E se eles o roubarem de mim? — perguntou Bernat. — Você sabe
como eles são...
— Ainda que o fizessem, está registrado nos livros.
A ira do aguazil e do senhor correu pela região e tornou ainda mais
atraente a situação do órfão, herdeiro de todos os bens do louco.
Bernat recordava muito bem a visita de seu agora sogro antes do
começo da vindima. Cinco soldos, um colchão e uma camisa branca de
linho; aquele era o dote oferecido pela filha Francesca.
— De que me serve uma camisa branca de linho? — perguntou Bernat
enquanto revolvia a palha no térreo da masía.
— Olhe — respondeu Pere Esteve.
Apoiando-se no forcado, o olhar de Bernat seguiu o indicador de Pere
Esteve até a entrada do estábulo. O forcado caiu na palha. À contraluz,
surgiu Francesca, vestida com a camisa branca de linho... Todo o seu corpo
se deixava ver através dela!
Um calafrio percorreu a espinha de Bernat. Pere Esteve sorriu.
Bernat aceitou a oferta ali mesmo, no palheiro, sem sequer se
aproximar da moça, mas sem desviar os olhos dela.
Foi uma decisão precipitada, ele estava consciente disso, mas não podia
dizer que havia se arrependido; ali estava Francesca, jovem, bela, forte.
Sua respiração se acelerou. Hoje mesmo... O que será que a moça estaria
pensando? Sentiria a mesma coisa que ele? Francesca não participava da
alegre conversa das mulheres; permanecia em silêncio junto à mãe, sem
rir, acompanhando as brincadeiras e gargalhadas das outras com sorrisos
forçados. Seus olhares se cruzaram por um instante. Ela enrubesceu e
baixou o olhar, mas Bernat reparou que seus seios denotavam nervosismo.
A camisa branca de linho novamente se aliou às fantasias e desejos de
Bernat.
— Parabéns! — disse alguém atrás dele, e o cumprimento foi
acompanhado de tapas fortes nas costas. Seu sogro havia se aproximado.
— Cuide bem dela — acrescentou o homem, seguindo o olhar de Bernat e
apontando para a moça, que já não sabia onde se esconder. — Se bem que,
se a vida que você vai lhe proporcionar for como esta festa... Este é o
melhor banquete que já vi. Com certeza nem o senhor de Navarcles pode
desfrutar manjares como estes!
Bernat quis receber bem os convidados e preparou quarenta e sete
fogaças brancas de farinha de trigo, evitando assim a cevada, o centeio e o
trigo duro comuns na alimentação dos camponeses. Farinha de trigo
candial, branca como a camisa de sua esposa! Levara as fogaças ao castelo
de seu senhor pensando que, como sempre, duas seriam suficientes para
pagar a queima. Os olhos do forneiro se arregalaram diante do pão de trigo
e logo se fecharam, formando fendas insondáveis. Daquela vez o
pagamento subiu para sete fogaças, e Bernat deixou o castelo praguejando
contra a lei que os impedia de possuir fornos para assar o pão em seus
lares... e forjas, e selarias...
— Com certeza — respondeu, afastando aquela má lembrança da
mente.
Os dois observaram o pátio da masía. Talvez lhe tivessem roubado parte
do pão, pensou Bernat, mas não o vinho que agora seus convidados bebiam
— o melhor, engarrafado por seu pai e que eles haviam deixado
envelhecer por muitos anos —, nem a carne de porco salgada, nem a
panela de verduras com algumas galinhas, nem, obviamente, os quatro
cordeiros que, abertos de ponta a ponta e amarrados em paus, assavam
lentamente sobre as brasas, soltando chispas e emanando um aroma
irresistível.
De repente, as mulheres se puseram em movimento. A panela já estava
pronta e as tigelas que os convidados tinham trazido começaram a ser
servidas. Pere e Bernat sentaram-se na única mesa que havia no pátio e as
mulheres vieram servi-los; ninguém se sentou nas quatro cadeiras
restantes.
De pé, sentadas em tábuas ou no chão, as pessoas começaram a dar
conta do ágape e, enquanto bebiam vinho, conversavam, gritavam e riam,
mantinham os olhos fixos nos cordeiros, atentamente vigiados por
algumas mulheres.
— Uma grande festa, sim, senhor — sentenciou Pere Esteve entre uma
colherada e outra.
Alguém brindou pelos noivos e todos rapidamente se juntaram ao
brinde.
— Francesca! — gritou Pere com o copo levantado em direção à noiva,
que se encontrava entre as mulheres, junto aos cordeiros.
Bernat olhou a moça, que novamente escondeu o rosto.
— Está nervosa — justificou-a Pere, piscando um olho. — Francesca,
minha filha! — gritou novamente. — Brinde conosco! Aproveite agora,
porque daqui a pouco vamos embora... quase todos.
As gargalhadas deixaram Francesca ainda mais assustada. A moça
ergueu ligeiramente o copo que colocaram em sua mão e, sem beber e
dando as costas aos risos, voltou a dirigir a atenção aos cordeiros.
Pere Esteve bateu seu copo no de Bernat, fazendo respingar o vinho. Os
convidados os imitaram.
— Você logo vai fazê-la perder a timidez — disse-lhe com uma voz
potente, para que todos os presentes o ouvissem.
As gargalhadas estalaram novamente, agora acompanhadas de
comentários dissimulados que Bernat preferiu ignorar.
Entre risadas e brincadeiras, todos deram conta do vinho, do porco e da
panela de verduras e galinha. Quando as mulheres começavam a retirar os
cordeiros da brasa, um grupo de convidados se calou e desviou o olhar em
direção à linha do bosque das terras de Bernat, situado além dos extensos
campos de cultivo, atrás de um suave declive do terreno onde os Estanyol
plantavam parte das cepas que produziam aquele vinho excelente.
Em poucos segundos, o silêncio se instalou entre os presentes.
Três cavaleiros surgiram por entre as árvores. Vários homens a pé,
uniformizados, os seguiam.
— O que fazem aqui? — perguntou Pere Esteve num sussurro.
Bernat acompanhou com o olhar os homens que se aproximavam
rodeando os campos. Os convidados murmuravam entre si.
— Não entendo — disse Bernat finalmente, também sussurrando —,
ele nunca mais passou por aqui. Não é caminho para o castelo.
— Não gosto nem um pouco dessa visita — acrescentou Pere Esteve,
visivelmente preocupado.
A comitiva movia-se lentamente. À medida que as figuras se
aproximavam, os risos e comentários dos cavaleiros substituíam o
alvoroço que até aquele momento reinara no pátio; todos podiam ouvi-los.
Bernat observou seus convidados; alguns tinham desviado o olhar e
estavam cabisbaixos. Procurou Francesca entre as mulheres. O vozeirão do
senhor de Navarcles chegou até eles. Bernat sentiu a ira invadi-lo.
— Bernat! Bernat! — exclamou Pere Esteve puxando-o pelo braço. —
O que ainda faz aqui? Corra para recebê-lo.
Bernat levantou-se de um salto e foi receber o seu senhor.
— Seja bem-vindo à vossa casa — saudou-o, arfando, ao alcançá-lo.
Llorenç de Bellera, senhor de Navarcles, puxou as rédeas de seu cavalo
e se deteve diante de Bernat.
— Você é Estanyol, o filho do louco? — indagou secamente.
— Sim, senhor.
— Estivemos caçando e, ao voltar para o castelo, fomos surpreendidos
por esta festa. A que se deve?
Entre os cavalos, Bernat pôde vislumbrar os soldados, carregados com
diversas peças: coelhos, lebres e galos selvagens. “É a sua visita que
requer explicação”, gostaria de ter respondido. “Ou quem sabe o forneiro
lhe contou sobre o pão de trigo candial?”
Até os cavalos, quietos e com grandes olhos redondos pousados sobre
ele, pareciam esperar uma resposta.
— É o meu casamento, senhor.
— Com a filha de quem você casou?
— Com a filha de Pere Esteve, senhor.
Llorenç de Bellera permaneceu em silêncio, olhando Bernat por cima
da cabeça de seu cavalo. Os animais patearam ruidosamente.
— E? — ladrou Llorenç de Bellera.
— Minha esposa e eu — continuou Bernat, tentando dissimular seu
desgosto — nos sentiríamos muito honrados se Vossa Senhoria e seus
acompanhantes quisessem juntar-vos a nós.
— Estamos com sede, Estanyol — disse o senhor de Bellera em
resposta.
Os cavalos se puseram em movimento sem que os cavaleiros
precisassem esporeá-los. Cabisbaixo, Bernat dirigiu-se à masía ao lado de
seu senhor. No final do caminho, todos os convidados haviam se reunido
para recebê-lo; as mulheres com o olhar cravado no chão, os homens sem
os chapéus. Ouviu-se um murmúrio ininteligível quando Llorenç de
Bellera se deteve diante deles.
— Vamos, vamos — ordenou enquanto desmontava. — Que a festa
prossiga.
As pessoas obedeceram e deram meia-volta em silêncio. Vários
soldados se aproximaram dos cavalos e se encarregaram deles. Bernat
acompanhou os novos convidados até a mesa em que ele e Pere tinham se
sentado. Suas tigelas e copos haviam desaparecido.
O senhor de Bellera e seus dois acompanhantes se acomodaram. Bernat
se afastou um pouco quando eles começaram a conversar. As mulheres
acudiram rápido com jarras de vinho, copos, fogaças, tigelas com galinha,
pratos de porco salgado e o cordeiro recém-preparado. Bernat procurou
Francesca com o olhar, mas não a viu. Não estava mais entre as mulheres.
Seu olhar cruzou com o do sogro, que já estava junto aos demais
convidados, e ele indicou as mulheres com o queixo. Com um gesto quase
imperceptível, Pere Esteve moveu a cabeça e deu meia-volta.
— Continuem com a festa! — gritou Llorenç de Bellera com uma perna
de cordeiro na mão. — Vamos, andem, adiante!
Em silêncio, os convidados começaram a se dirigir às brasas onde os
cordeiros tinham sido assados. Só um grupo permaneceu quieto, a salvo
dos olhares do senhor e seus amigos: Pere Esteve, seus filhos e alguns
outros convidados. Bernat vislumbrou o branco da camisa de linho entre
eles e se aproximou.
— Saia daqui, estúpido — ladrou o sogro.
Antes que pudesse abrir a boca, a mãe de Francesca pôs um prato de
cordeiro em suas mãos e sussurrou:
— Sirva o senhor e não se aproxime de minha filha.
Os camponeses começaram a comer o cordeiro em silêncio, olhando de
esguelha para a mesa. No pátio só se ouviam as gargalhadas e os gritos do
senhor de Navarcles e de seus dois amigos. Os soldados descansavam
afastados da festa.
— Antes ouvíamos os seus risos — gritou o senhor de Bellera —, tanto
que vocês até espantaram a caça. Riam, malditos!
Ninguém riu.
— Bestas rústicas — disse aos acompanhantes, que receberam o
comentário com gargalhadas.
Os três saciaram o apetite com o cordeiro e o pão candial. O porco
salgado e as tigelas de galinha ficaram num canto da mesa. Bernat comeu
de pé, um pouco afastado, olhando de esguelha para o grupo de mulheres
que ocultava Francesca.
— Mais vinho! — exigiu o senhor de Bellera, levantando o copo. —
Estanyol! — gritou de repente, procurando-o entre os convidados. — Da
próxima vez que você pagar o censo de minhas terras, terá de trazer vinho
como este, e não a beberagem com que o seu pai tem me enganado até
agora. — Bernat estava de costas para ele. A mãe de Francesca se
aproximava com a jarra. — Estanyol, onde você está?
O cavaleiro golpeou a mesa no momento em que a mulher trazia a jarra
para encher o seu copo. Algumas gotas de vinho salpicaram a roupa de
Llorenç de Bellera.
Bernat já tinha chegado perto dele. Os amigos do senhor riam da
situação e Pere Esteve levou as mãos ao rosto.
— Velha estúpida! Como se atreve a derramar o vinho? — A mulher
baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez um gesto
para esbofeteá-la, afastou-se e caiu no chão. Llorenç de Bellera virou-se
para os amigos e caiu na gargalhada ao ver a anciã se afastar
engatinhando. Depois recuperou a seriedade e dirigiu-se a Bernat: — Ora,
aqui está você, Estanyol. Olha o que fazem as velhas desajeitadas! Por
acaso você pretende ofender o seu senhor? Você é tão ignorante que não
sabe que os convidados devem ser servidos pela senhora da casa? Onde
está a noiva? — perguntou, passeando os olhos pelo pátio. — Onde está a
noiva? — gritou ao ver que todos permaneciam em silêncio.
Pere Esteve tomou Francesca pelo braço e levou-a à mesa para entregá-
la a Bernat. A moça tremia.
— Meu senhor — disse Bernat —, eu vos apresento minha mulher,
Francesca.
— Assim está melhor — comentou Llorenç, avaliando-a de alto a baixo
sem nenhum recato —, muito melhor. A partir de agora você nos servirá o
vinho.
O senhor de Navarcles sentou-se novamente e ergueu o copo, dirigindo-
se à moça. Francesca procurou uma jarra e correu para servi-lo. Llorenç de
Bellera agarrou a mão dela e segurou-a firmemente enquanto o vinho caía
no copo. Depois a puxou pelo braço e obrigou-a a servir seus
acompanhantes. Os peitos da moça roçaram o rosto de Llorenç de Bellera.
— Assim se serve o vinho! — gritou o senhor de Navarcles enquanto,
ao seu lado, Bernat cerrava punhos e dentes.
Llorenç de Bellera e seus amigos continuavam bebendo e exigindo aos
berros a presença de Francesca para repetir, vezes seguidas, a mesma cena.
Os soldados riam junto com o senhor e seus amigos cada vez que a
moça era obrigada a se inclinar sobre a mesa para servir o vinho.
Francesca tentava conter as lágrimas e Bernat sentiu o sangue correr pelas
palmas das mãos, que ele feriu com as próprias unhas. Em silêncio, os
convidados desviavam o olhar cada vez que a noiva entornava o vinho.
— Estanyol — gritou Llorenç de Bellera ao se levantar com Francesca
agarrada pelo punho. — No uso do direito que me cabe como seu senhor,
decidi ir para a cama com sua mulher em sua primeira noite.
Os acompanhantes do senhor de Bellera aplaudiram ruidosamente as
palavras do amigo. Bernat deu um salto na direção da mesa, mas, antes de
alcançá-la, os dois sequazes, que pareciam bêbados, puseram-se de pé e
levaram a mão à espada. Bernat parou. Llorenç de Bellera olhou para ele,
sorriu e depois gargalhou com estardalhaço. A moça cravou os olhos em
Bernat, suplicando ajuda.
Bernat deu um passo adiante, mas a espada de um dos amigos do nobre
tocou sua barriga. Impotente, deteve-se novamente. Francesca não deixou
de fitá-lo enquanto era arrastada pela escada da masía. A moça começou a
gritar quando o senhor daquelas terras a agarrou pela cintura e a carregou
no ombro.
Os amigos do senhor de Navarcles voltaram a se sentar e continuaram
bebendo e rindo, enquanto os soldados se colocavam ao pé da escada para
impedir o acesso de Bernat.
Ao pé da escada, diante dos soldados, Bernat não ouviu as gargalhadas
dos amigos do senhor de Bellera; tampouco os soluços das mulheres. Não
aderiu ao silêncio de seus convidados nem sequer percebeu a chacota dos
soldados, que faziam gestos com os olhos postos na casa: só ouvia os
gritos de dor que vinham da janela do primeiro andar.
O azul do céu continuava resplandecente.
Depois de um tempo que para Bernat pareceu interminável, Llorenç de
Bellera ressurgiu, suado, no alto da escada, amarrando a cota de caça.
— Estanyol — gritou com uma voz ensurdecedora ao passar ao lado de
Bernat e dirigir-se à mesa —, agora é sua vez. D. Caterina — disse aos
acompanhantes, referindo-se à sua jovem esposa — já está cansada dos
meus vários filhos bastardos... Já não aguento seus choramingos. Cumpra
seu dever como bom esposo cristão! — instou-o, dirigindo-se novamente a
ele.
Bernat abaixou a cabeça e, sob o olhar atento de todos os presentes,
subiu lentamente a escada lateral. Entrou no primeiro andar, um amplo
espaço destinado à cozinha e ao refeitório com uma grande lareira em uma
das paredes, na qual descansava uma impressionante estrutura de ferro
forjado que formava a chaminé. Bernat ouviu o som dos próprios passos
no assoalho enquanto se dirigia à escada de mão que levava ao segundo
andar, destinado a quarto e celeiro. Assomou a cabeça pelo vão do tablado
do piso superior e perscrutou seu interior sem se atrever a subir. Não se
ouvia nenhum ruído.
Com o queixo rente ao chão e o corpo ainda apoiado na escada, viu a
roupa de Francesca espalhada pelo lugar; sua camisa branca de linho, o
orgulho da família, estava rasgada e reduzida a trapos. Ele finalmente
subiu.
Encontrou Francesca encolhida em posição fetal, com o olhar perdido,
completamente nua sobre o colchão novo manchado de sangue. Seu corpo
suado, arranhado aqui e golpeado ali, permanecia absolutamente imóvel.
— Estanyol! — Bernat ouviu Llorenç de Bellera gritar lá embaixo. —
O seu senhor está esperando.
Sacudido pelas ânsias, Bernat vomitou sobre os grãos armazenados até
que suas tripas quase saíram pela garganta. Francesca continuava imóvel.
Bernat deixou o lugar correndo. Quando chegou lá embaixo, pálido, sua
cabeça era um turbilhão de sensações, cada qual mais repugnante. Cego,
topou de frente com a imensidão de Llorenç de Bellera, parado ao pé da
escada.
— Não parece que o novo marido tenha consumado o matrimônio —
disse Llorenç de Bellera aos companheiros.
Bernat teve de levantar a cabeça para enfrentar o senhor de Navarcles.
— Não... não pude, meu senhor — balbuciou.
Llorenç de Bellera guardou silêncio por uns instantes.
— Pois, se você não conseguiu, tenho certeza de que algum de meus
amigos... ou de meus soldados conseguirá. Já disse que não quero mais
bastardos.
— Não tendes o direito...!
Os camponeses que os observavam sentiram um calafrio ao imaginar as
consequências de tal insolência. O senhor de Navarcles agarrou Bernat
pelo pescoço com uma só mão e apertou com força, fazendo Bernat
arquejar em busca de ar.
— Como se atreve...? Por acaso pretende se aproveitar do legítimo
direito de seu senhor de se deitar com a noiva e depois vir reclamar com
um bastardo embaixo do braço? — Llorenç sacudiu Bernat antes de largá-
lo no chão. — É isso que você pretende? Eu, e só eu, determino os direitos
de vassalagem, entendeu? Você esquece que posso castigá-lo quando e
quanto quiser?
Llorenç de Bellera esbofeteou Bernat com força, derrubando-o.
— Meu açoite! — gritou, encolerizado.
O açoite! Bernat não passava de uma criança quando, ao lado dos pais,
fora obrigado a presenciar o castigo público infligido pelo senhor de
Bellera a um pobre desgraçado cujo crime ninguém soube qual era. A
lembrança dos estalidos do couro nas costas daquele homem soou em seus
ouvidos como naquele dia, e noite após noite durante boa parte de sua
infância. Os presentes não tinham ousado se mover até então, tampouco o
fizeram agora. Bernat começou a se arrastar e levantou a vista para seu
senhor; estava de pé, como um imenso bloco de pedra, com a mão
estendida esperando que algum servo pusesse nela o açoite. Lembrou-se
das costas em carne viva daquele desgraçado: uma grande massa
sanguinolenta da qual nem todo o ódio do senhor conseguia tirar mais um
pedaço. Bernat arrastou-se de quatro até a escada, com os olhos aturdidos
e tremendo, como fazia quando tinha pesadelos na infância. Ninguém se
mexeu. Ninguém disse nada. E o sol continuava a brilhar.
— Sinto muito, Francesca — balbuciou ao chegar junto dela depois de
subir a escada com dificuldade, seguido por um soldado.
Afrouxou as calças e se ajoelhou ao lado da esposa. A moça não se
movera. Bernat observou seu pênis flácido e se perguntou como poderia
cumprir as ordens do senhor. Com um só dedo, acariciou suavemente as
costas nuas de Francesca.
Francesca não respondeu.
— Eu tenho... nós temos de fazê-lo — insistiu Bernat, tomando-a pela
mão para virá-la para si.
— Não me toque! — gritou Francesca, abandonando seu
ensimesmamento.
— Ele vai me esfolar! — disse Bernat com rispidez, descobrindo seu
corpo nu.
— Deixe-me!
Pelejaram, até que Bernat conseguiu agarrá-la por ambas as mãos e
erguê-la. Apesar de tudo, Francesca resistia.
— Virá outro! — sussurrou-lhe. — Vai ser outro quem a... forçará! —
Os olhos da moça voltaram ao mundo e se abriram, acusadores. — Ele vai
me esfolar, vai me esfolar... — desculpou-se.
Francesca não parou de lutar, mas Bernat se jogou sobre ela com
violência. As lágrimas da moça não foram suficientes para esfriar o desejo
que tinha nascido em Bernat pelo contato com o corpo da jovem, e ele a
penetrou enquanto ela gritava para todo o universo.
Aqueles urros satisfizeram o soldado que tinha seguido Bernat e que,
sem nenhum pudor, contemplava a cena com metade do corpo apoiado no
assoalho.
Bernat ainda não tinha acabado de forçá-la quando Francesca deixou de
resistir. Mas pouco a pouco seus gritos se converteram em soluços. O
pranto da mulher acompanhou Bernat quando ele chegou ao ápice.
Llorenç de Bellera ouviu os gritos desesperados que vinham da janela
do segundo andar e, quando seu espião confirmou que o matrimônio havia
sido consumado, pediu os cavalos e deixou o lugar com sua comitiva
sinistra. A maior parte dos convidados, abatidos, o imitou.
A quietude invadiu o lugar. Bernat, em cima da mulher, não sabia o que
fazer. Só então percebeu que a mantinha agarrada à força pelos ombros;
soltou-a e apoiou as mãos na enxerga de palha junto à sua cabeça, mas seu
corpo caiu inerte sobre o dela. Instintivamente elevou o torso, esticando os
braços para se apoiar, e encontrou os olhos de Francesca, que o fitavam
sem vê-lo. Nessa postura, qualquer movimento o faria roçar novamente o
corpo de sua mulher. Bernat desejava escapar dessas sensações, mas não
sabia como fazê-lo sem continuar ferindo a moça. Desejou poder levitar
para separar-se de Francesca sem tocá-la novamente.
Finalmente, depois de instantes eternos de indecisão, afastou-se e
ajoelhou-se junto a ela; agora tampouco sabia o que fazer: levantar-se, cair
ao seu lado, abandonar o cômodo ou tentar se justificar... Desviou o olhar
do corpo de Francesca, jogado de costas, grosseiramente exposto. Olhou
seu rosto, que estava a menos de dois palmos do seu, mas não conseguiu
encontrá-lo. Baixou o olhar e, de repente, a visão de seu membro nu
deixou-o envergonhado.
— Sinto mui...
Um movimento inesperado de Francesca o surpreendeu. A moça tinha
virado o rosto em sua direção. Bernat tentou encontrar compreensão em
seu olhar, mas ele estava completamente vazio.
— Sinto muito — insistiu. Francesca continuou a fitá-lo sem mostrar o
menor indício de reação. — Sinto muito, sinto muito. Ele... ele teria me
esfolado — balbuciou.
Bernat recordou o senhor de Navarcles, de pé, com a mão estendida, à
espera do açoite. Procurou novamente o olhar de Francesca: vazio. Tentou
encontrar uma resposta nos olhos da moça e teve medo: eles gritavam em
silêncio, gritavam como ela gritara.
Inconscientemente, como se quisesse fazê-la entender que ele a
compreendia, como se fosse uma menina, Bernat aproximou a mão da face
de Francesca.
— Eu... — tentou dizer.
Não chegou a tocá-la. Quando aproximou a mão, todos os músculos de
Francesca se retesaram. Bernat desviou-a na direção do próprio rosto e
chorou.
Francesca continuou imóvel, com o olhar perdido.
Por fim, Bernat parou de chorar, levantou-se, vestiu as calças e
desapareceu pelo vão que dava para o andar inferior. Então Francesca se
levantou e foi até o baú, que constituía todo o mobiliário do quarto, para
pegar sua roupa. Já vestida, recolheu com delicadeza seus pertences
destroçados, entre eles a preciosa camisa de linho branco; dobrou-a
cuidadosamente, tentando encaixar os farrapos, e guardou-a no baú.

1. Casa de campo dos agricultores e criadores de gado, típica da região catalã. (N. da T.)
2

Francesca vagava pela masía como uma alma penada. Cumpria suas
obrigações domésticas, mas o fazia no mais absoluto silêncio, destilando
uma tristeza que não demorou a invadir os cantos mais recônditos do lar
dos Estanyol.
Em diversas ocasiões, Bernat tentou se desculpar pelo acontecido.
Passado o horror do dia das bodas, ele tinha conseguido articular
explicações mais detalhadas: o medo da crueldade do senhor, as
consequências, tanto para ele como para ela, caso tivesse se negado a
obedecer. E “sinto muito”; Bernat exclamou mil vezes “sinto muito” para
uma Francesca muda, que o fitava e escutava como se esperasse o
momento em que o argumento de Bernat, fatalmente, chegaria ao mesmo
ponto crucial: “Outro viria. Se eu não o tivesse feito...” Porque, ao chegar
àquele ponto, Bernat se calava; todas as desculpas caíam por terra e a
violação voltava a se interpor como uma barreira infranqueável. Os “sinto
muito”, as desculpas e os silêncios em resposta foram fechando a ferida
que Bernat pretendia curar na esposa, e o remorso foi se diluindo nos
afazeres diários, até que Bernat se resignou ante a indiferença de
Francesca.
Todas as manhãs, ao alvorecer, quando se levantava para enfrentar as
duras tarefas de camponês, Bernat se debruçava na janela do quarto. Assim
fizera sempre com seu pai e, ao final da vida dele, ambos se apoiavam no
grosso parapeito de pedra e observavam o céu para vaticinar o dia que os
esperava. Olhavam as terras férteis, nitidamente delimitadas pelos cultivos
que mantinham em cada trecho e que se estendiam pelo imenso vale
abrindo-se ao pé da masía. Observavam os pássaros e escutavam
atentamente os sons dos animais no estábulo do térreo. Esses eram
momentos de comunhão entre pai e filho e de ambos com suas terras,
escassos minutos em que o pai parecia recuperar a lucidez. Bernat tinha
sonhado compartilhar esses momentos com a esposa, em vez de vivê-los
sozinho, ouvindo-a movimentar-se atarefada no piso de baixo, e contar-lhe
tudo o que ele ouvira da boca de seu pai, e este do seu, e assim
sucessivamente ao longo de gerações.
Tinha sonhado contar-lhe que aquelas boas terras um dia tinham sido
alodiais, de propriedade dos Estanyol, e que seus antepassados as
trabalhavam com alegria e carinho, ficando com os seus frutos sem
precisar pagar censos ou impostos e sem render homenagens a senhores
soberbos e injustos. Tinha sonhado compartilhar com ela, a sua esposa, a
futura mãe dos herdeiros daqueles campos, a mesma tristeza que seu pai
compartilhara com ele ao lhe contar as razões pelas quais agora, trezentos
anos depois, os filhos que ela desse à luz seriam servos de outra pessoa.
Gostaria de contar-lhe com orgulho, como o seu pai lhe contara, que
trezentos anos antes os Estanyol e muitos outros como eles guardavam
suas armas em casa, como homens livres que eram, para acudir em defesa
da Catalunha velha ante as incursões dos sarracenos, sob as ordens do
conde Ramon Borrell e seu irmão, Ermengol d’Urgell; gostaria de contar-
lhe que, sob as ordens do conde Ramon, vários Estanyol tinham feito parte
do exército vitorioso que derrotara os sarracenos do califado de Córdoba
em Albesa, bem depois de Balaguer, na planície de Urgel. Quando tinham
tempo, seu pai falava disso emocionado, mas a emoção se transformava
em melancolia ao narrar a morte do conde Ramon Borrell no ano de 1017.
Segundo ele, aquela morte os convertera em servos: o filho do conde
Ramon Borrell, de quinze anos de idade, sucedera ao pai; sua mãe,
Ermessenda de Carcassonne, tornara-se regente e, uma vez garantidas as
fronteiras do principado, os barões da Catalunha – os mesmos que haviam
lutado ombro a ombro com os camponeses – tinham aproveitado o vazio
de poder para extorquir os camponeses, matar os que resistiam e obter a
propriedade das terras em troca da permissão para que os antigos donos as
cultivassem e pagassem ao senhor com parte de seus frutos. Os Estanyol
tinham acabado por ceder, como tantos outros, mas muitas famílias do
campo haviam sido assassinadas de maneira selvagem e cruel.
— Como homens livres que éramos — dizia seu pai —, nós, os
camponeses, lutamos a pé, claro, contra os mouros, ao lado dos cavaleiros,
mas nunca pudemos lutar contra os cavaleiros, e, quando os sucessivos
condes de Barcelona quiseram retomar as rédeas do principado catalão,
esbarraram com uma nobreza rica e poderosa com a qual foram obrigados
a pactuar, sempre às nossas custas. Primeiro foram nossas terras, as da
Catalunha velha, e depois nossa liberdade, nossa própria vida... nossa
honra. Foram seus avós — contava com voz trêmula, sem deixar de fitar
suas terras — que perderam a liberdade. Foram proibidos de abandonar os
campos, foram convertidos em servos, homens atados às suas masías, às
quais também seus filhos permaneceriam atados, como eu, e os netos,
como você. Nossa vida... a sua vida está nas mãos do senhor, que distribui
justiça e tem o direito de nos maltratar e ofender nossa honra. Não
podemos nem nos defender! Se alguém o maltratar, você deve acudir ao
seu senhor para que reclame uma reparação e, se ele a conseguir, fica com
a metade.
Depois, invariavelmente recitava os múltiplos direitos do senhor, os
quais tinham ficado gravados na memória de Bernat, pois ele nunca se
atrevera a interromper o irado monólogo do pai. O senhor podia exigir
juramento ao servo a qualquer momento. Tinha o direito de cobrar uma
parte dos bens do servo se este morresse intestado ou quando seu filho
herdava; se fosse estéril; se sua mulher cometesse adultério; se sua masía
se incendiasse; se a hipotecasse; se se casasse com o vassalo de outro
senhor e, logicamente, se quisesse abandoná-lo. O senhor podia se deitar
com a noiva em sua primeira noite; podia exigir que as mulheres
amamentassem seus filhos ou que suas filhas servissem como criadas no
castelo. Os servos eram obrigados a trabalhar gratuitamente nas terras do
senhor; a colaborar para defender o castelo; a entregar parte dos produtos
de suas masías; a alojar em suas casas o senhor ou seus enviados e
alimentá-los durante a estadia; a pagar o uso dos bosques e das terras de
pastagem; a utilizar, mediante pagamento prévio, a forja, o forno ou o
moinho do senhor; e a enviar-lhe presentes no Natal e demais festividades.
E o que dizer da Igreja? Quando fazia esta pergunta, a voz de seu pai
soava ainda mais colérica.
— Monges, frades, sacerdotes, diáconos, arquidiáconos, cônegos,
abades, bispos — recitava —, são todos iguais aos senhores feudais que
nos oprimem! Até proibiram que os camponeses entrassem para ordens
religiosas para não nos deixar escapar das terras e, assim, perpetuar a
nossa servidão!
“Bernat”, advertia ele seriamente quando a Igreja se transformava no
alvo de sua ira, “nunca confie naqueles que dizem servir a Deus. Eles
falarão com serenidade e usarão boas palavras, tão cultas que você não
conseguirá entendê-las. Tentarão convencê-lo com argumentos que só eles
sabem tecer, até se apropriarem de sua razão e de sua consciência. Vão se
apresentar a você como homens bons e dirão que querem salvar-nos do
mal e da tentação, mas, na verdade, sua opinião sobre nós está escrita e
eles, os soldados de Cristo, como se denominam, seguem fielmente o que
está nos livros. Suas palavras são desculpas e suas razões são idênticas às
que você poderia apresentar a um fedelho.”
— Pai — lembrava-se Bernat de ter perguntado em uma dessas
ocasiões —, o que os livros deles dizem sobre nós, os camponeses?
O pai fitou os campos no ponto onde se confundiam com o céu, porque
não queria olhar para o lugar em cujo nome falavam os hábitos e as
batinas.
— Dizem que somos bestas, brutos, incapazes de entender o que é a
cortesia. Dizem que somos horríveis, vilões e abomináveis,
desavergonhados e ignorantes. Dizem que somos cruéis e teimosos, que
não merecemos nenhuma honra porque não sabemos apreciá-la e que só
somos capazes de entender as coisas à força. Dizem que...1
— Pai, somos tudo isso?
— Filho, é isso que eles querem que nos tornemos.
— Mas você reza todos os dias, e quando mamãe morreu...
— À Virgem, filho, à Virgem. Nossa Senhora não tem nada a ver com
os frades e sacerdotes. Nela podemos continuar acreditando.
Bernat Estanyol gostaria de se apoiar no parapeito da janela pelas
manhãs e conversar com sua esposa; contar-lhe o que seu pai lhe contara e
olhar os campos junto com ela.

***

No que restava de setembro e durante todo o mês de outubro, Bernat


emparelhou os bois e arou os campos, levantando a dura crosta que os
cobria e abrindo sulcos para que o sol, o ar e o adubo renovassem a terra.
Depois semeou o cereal com a ajuda de Francesca; com um cesto ela
lançava as sementes, e ele, com a junta de bois, primeiro arava e depois
aplanava a terra já semeada com uma pesada prancha de ferro.
Trabalhavam em silêncio, um silêncio interrompido apenas pelos gritos de
Bernat tocando os bois, que ressoavam em todo o vale. Bernat pensava que
o trabalho os aproximaria um pouco. Mas não. Francesca continuava
indiferente; pegava o cesto e lançava as sementes sem sequer olhar para
ele.
Chegou novembro e Bernat se dedicou às tarefas próprias da época:
pastorear os porcos para a matança, acumular lenha para a masía e para
adubar a terra, preparar o pomar e os campos que seriam semeados na
primavera e podar e enxertar as vinhas. Quando voltava para a masía,
Francesca já tinha se ocupado das tarefas domésticas, da horta e das
galinhas e coelhos. Noite após noite servia o jantar em silêncio e se
retirava para dormir; de manhã se levantava antes dele, e ao descer Bernat
já encontrava o café da manhã e o embrulho com o almoço sobre a mesa.
Enquanto comia, ele a ouvia cuidar dos animais no estábulo.
O Natal passou como um suspiro, e em janeiro terminou a colheita da
azeitona. Bernat não tinha muitas oliveiras, só o suficiente para atender às
necessidades da masía e para pagar a renda do senhor.
Depois ele se ocupou da matança dos porcos. Quando seu pai era vivo,
os vizinhos, que quase não vinham à masía dos Estanyol, nunca faltavam
no dia da matança. Bernat recordava aquelas jornadas como verdadeiras
festas; matavam os porcos e depois comiam e bebiam enquanto as
mulheres preparavam a carne.
Os Esteve, pai, mãe e dois dos irmãos, se apresentaram certa manhã.
Bernat saudou-os no pátio da masía; Francesca os esperava logo atrás.
— Como você está, filha? — perguntou o pai.
Francesca não respondeu, mas se deixou abraçar. Bernat observou a
cena: a mãe, ansiosa, estreitava a filha entre os braços, esperando que ela a
rodeasse com os seus. Mas ela não o fez: permaneceu imóvel. Bernat
dirigiu o olhar ao sogro.
— Francesca — limitou-se a dizer Pere Esteve, com o olhar perdido
para além da moça.
Os irmãos a saudaram com a mão.
Francesca dirigiu-se à pocilga para buscar o porco; os demais
esperaram no pátio. Ninguém falou; só um soluço sufocado da mãe
interrompeu o silêncio. Bernat teve vontade de consolá-la, mas se absteve
ao ver que nem o marido nem os filhos o faziam.
Francesca voltou com o porco, que resistia como se soubesse qual seria
o seu destino, e o entregou ao marido com o mutismo habitual. Bernat e os
dois irmãos de Francesca jogaram o porco no chão e sentaram-se em cima
dele. Os guinchos do animal ressoaram por todo o vale dos Estanyol. Pere
Esteve degolou-o com um talho certeiro, e todos esperaram em silêncio
enquanto o sangue do animal fluía para os caços que as mulheres iam
trocando à medida que se enchiam. Ninguém olhava para ninguém.
Nem sequer tomaram um copo de vinho enquanto mãe e filha
trabalhavam no porco esquartejado.
Ao anoitecer, terminada a faina, a mãe tentou abraçar novamente a
filha. Bernat observou a cena, esperando uma reação da esposa. Não houve
reação. Os pais e os irmãos se despediram dela com os olhos baixos. A
mãe aproximou-se de Bernat.
— Quando você achar que a criança está por chegar — disse, afastando-
o dos demais —, mande me chamar. Acho que ela não o fará.
Os Esteve empreenderam o caminho de volta à casa. Naquela noite,
quando Francesca subia a escada para o quarto, Bernat não pôde deixar de
olhar para sua barriga.

***

No fim de maio, no primeiro dia da colheita, Bernat contemplou seus


campos com a foice apoiada no ombro. Como faria para colher sozinho
todo o cereal? Quinze dias antes proibira Francesca de fazer qualquer
esforço, pois ela tivera dois desmaios. Ela ouvira suas ordens em silêncio
e obedecera. Por que a proibira? Bernat olhou novamente os imensos
campos que o esperavam. Afinal de contas, perguntava-se, e se o filho não
fosse seu? As mulheres davam à luz no campo enquanto trabalhavam, mas
depois de vê-la cair duas vezes não podia evitar a preocupação.
Bernat agarrou a foice e começou a ceifar com força. As espigas
saltavam pelos ares. O sol alcançou o meio-dia. Bernat não parou nem
para comer. O campo era imenso. Sempre tinha ceifado na companhia do
pai, mesmo quando ele já estava mal. O cereal parecia revivê-lo. “Dá-lhe,
filho”, animava-o ele, “não vamos deixar uma tormenta ou o granizo
destruir tudo.” E ceifavam. Quando um se cansava, procurava apoio no
outro. Comiam na sombra e bebiam bom vinho, o de seu pai, o
envelhecido, e conversavam e riam, e... agora só ouvia o silvo da foice a
cortar o vento e golpear a espiga; só a foice, a foice, a foice, que parecia
lançar pelo ar as interrogações sobre a paternidade daquele futuro filho.
Nos dias seguintes, Bernat ceifou até o sol se pôr; alguns dias,
trabalhou à luz da lua. Ao voltar para a masía, encontrava o jantar na
mesa. Fazia a higiene na bacia e comia sem vontade. Até que uma noite o
berço que havia talhado durante o inverno, quando a gravidez de Francesca
já era evidente, se moveu. Bernat percebeu com o rabo do olho, mas
continuou a tomar a sopa. Francesca dormia no andar de cima. Olhou o
berço mais uma vez. Uma colherada, duas, três. O berço balançou
novamente. Bernat ficou observando o berço de madeira com a colher
suspensa no ar. Esquadrinhou o resto do cômodo, procurando o rastro da
presença da sogra... Mas não. Ela o dera à luz sozinha... E tinha se deitado.
Deixou a colher e levantou-se, mas antes de chegar ao berço se deteve,
deu meia-volta e voltou a se sentar. As dúvidas sobre aquele filho caíram
sobre ele com mais força do que nunca. “Todos os Estanyol têm um sinal
junto ao olho direito”, dissera-lhe seu pai. Ele o tinha e seu pai também.
“Seu avô também tinha”, havia garantido, “e o pai de seu avô...”
Bernat estava esgotado: tinha trabalhado de sol a sol. Estava nisso havia
dias. Olhou o berço novamente.
Levantou-se mais uma vez e aproximou-se do berço. O bebê dormia
placidamente, com as mãozinhas abertas, coberto por um lençol feito com
os trapos da camisa branca de linho. Bernat virou o bebê para ver-lhe o
rosto.

1. Lo crestià, de Francesc Eiximenis. (N. do A.)


3

Francesca sequer olhava para a criança. Colocava o bebê — a quem


tinham dado o nome de Arnau — em um dos peitos e depois no outro. Mas
não olhava para ele. Bernat tinha visto as camponesas darem o peito, e, da
mais rica à mais humilde, todas esboçavam um sorriso, baixavam as
pálpebras ou acariciavam os filhos ao alimentá-los. Francesca não.
Limpava-o e amamentava-o, mas nos dois meses de vida do menino
Bernat não a ouvira falar-lhe com doçura, não a vira brincar com ele,
erguer suas mãozinhas, mordiscá-lo, beijá-lo ou simplesmente acariciá-lo.
“Ele tem culpa, Francesca?”, pensava Bernat ao tomar Arnau nos braços.
Então o levava para longe da mãe, onde podia falar com ele e acariciá-lo a
salvo da frieza de Francesca.
Porque a criança era sua. “Todos os Estanyol o temos”, dizia Bernat a si
mesmo quando beijava o sinal que Arnau tinha perto da sobrancelha
direita. “Todos o temos, pai”, repetia ele erguendo Arnau no ar.
Aquele sinal em pouco tempo deixou de ser motivo de tranquilidade
para Bernat. Quando Francesca ia assar o pão no castelo, as mulheres
levantavam a manta que cobria Arnau para vê-lo. Francesca o permitia, e
depois elas sorriam entre si diante do forneiro e dos soldados. E, quando
Bernat ia trabalhar nas terras de seu senhor, os camponeses tocavam suas
costas e o felicitavam diante do capataz que vigiava o trabalho.
Llorenç de Bellera tinha muitos filhos bastardos, mas nunca uma
reclamação tinha sido levada adiante; sua palavra se impunha à de
qualquer camponesa ignorante, ainda que depois, entre os seus, ele
alardeasse sua virilidade. Era evidente que Arnau Estanyol não era seu
filho, e o senhor de Navarcles começou a notar sorrisos mordazes entre as
camponesas que iam ao castelo; de seu quarto as via cochichar, até com os
soldados, quando lá estava a mulher de Estanyol. O rumor se estendeu
além do círculo dos camponeses, e Llorenç de Bellera se tornou alvo de
troça entre seus iguais.
— Coma, Bellera — disse-lhe, sorridente, um barão em visita a seu
castelo. — Chegou aos meus ouvidos que você precisa de força.
Todos os presentes à mesa do senhor de Navarcles o acompanharam nos
risos.
— Nas minhas terras — comentou outro —, não permito que nenhum
camponês ponha minha virilidade em dúvida.
— Por acaso você proíbe os sinais? — respondeu o primeiro, já sob
efeito do vinho, provocando sonoras gargalhadas, às quais Llorenç de
Bellera respondeu com um sorriso forçado.

***

Aconteceu em princípios de agosto. Arnau descansava no berço à sombra


de uma figueira, no pátio de entrada da masía; sua mãe trabalhava na horta
e nos estábulos, e seu pai, sempre com os olhos postos no berço de
madeira, obrigava os bois a patear repetidamente o cereal que tinha
espalhado no pátio para que as espigas soltassem o apreciado grão que os
alimentaria durante todo o ano.
Não os ouviram chegar. Três cavaleiros entraram a galope pela masía: o
aguazil de Llorenç de Bellera e outros dois homens, armados e montados
em imponentes animais criados especialmente para a guerra. Bernat
percebeu que os cavalos não estavam armados como nas cavalgadas
guiadas por seu senhor. Provavelmente tinham pensado que não seria
necessário armá-los para intimidar um simples camponês. O aguazil ficou
um pouco afastado, mas os outros dois, adiantando-se, esporearam as
cavalgaduras até se aproximarem de Bernat. Os cavalos, adestrados para a
guerra, não hesitaram e se lançaram sobre ele. Bernat retrocedeu
tropeçando até cair no chão, muito perto dos cascos dos animais inquietos.
Só então os cavaleiros os detiveram.
— Seu senhor, Llorenç de Bellera — gritou o aguazil —, reclama os
serviços de sua mulher para amamentar D. Jaume, o filho de sua senhora,
D. Caterina. — Bernat tentou se levantar, mas um dos cavaleiros voltou a
esporear o cavalo. O aguazil dirigiu-se a Francesca: — Pegue o seu filho e
acompanhe-nos! — ordenou.
Francesca tirou Arnau do berço e saiu andando cabisbaixa atrás do
cavalo do aguazil. Bernat gritou e tentou se levantar, mas um dos
cavaleiros lançou o cavalo sobre ele e derrubou-o. Tentou de novo várias
vezes, todas com o mesmo resultado: os dois cavaleiros, rindo, brincavam
com ele, perseguindo-o e derrubando-o. Por fim, ofegante e machucado,
ficou estendido no chão aos pés dos animais, que não paravam de
mordiscar os freios. Depois que o aguazil se perdeu na distância, os
soldados deram a volta e esporearam suas cavalgaduras.
Quando o silêncio voltou à masía, Bernat olhou o rastro de poeira que
os cavaleiros haviam deixado e depois dirigiu o olhar para os bois, que
comiam as espigas que haviam pisoteado diversas vezes.

***

A partir daquele dia, Bernat, com o pensamento no filho, passou a cuidar


mecanicamente dos animais e dos campos. À noite vagava pela masía
recordando aquele sussurro infantil que falava de vida e futuro, o ranger da
madeira do berço quando Arnau se movia, o choro agudo com que pedia
alimento. Tentava cheirar nas paredes da masía, em qualquer canto, o
aroma de inocência do filho. Onde estaria dormindo agora? Aqui estava o
berço que ele fizera com as próprias mãos. Quando conseguia pegar no
sono, o silêncio o despertava. Então ele se encolhia na enxerga e deixava
as horas passarem, tendo por única companhia os sons dos animais lá
embaixo.
Bernat ia regularmente ao castelo de Llorenç de Bellera para assar o
pão que Francesca, encerrada à disposição de D. Caterina e do caprichoso
apetite de seu filho, já não lhe servia. O castelo — como seu pai lhe
explicara — no princípio não era mais do que uma albarrã no alto de um
pequeno promontório. Os antepassados de Llorenç de Bellera tinham
aproveitado o trono vazio que se seguira à morte do conde Ramon Borrell
para fortificar a torre à custa do trabalho dos camponeses de suas terras
cada vez mais extensas. Em torno da torre de vigia foram erguidos ao
acaso o forno, a forja, cavalariças novas e maiores, celeiros, cozinhas e
quartos.
O castelo de Llorenç de Bellera ficava a mais de uma légua de distância
da masía dos Estanyol. Nas primeiras vezes em que foi até lá, Bernat não
conseguiu obter nenhuma notícia de seu filho. Todos davam sempre a
mesma resposta: sua mulher e seu filho estão nos aposentos privados de D.
Caterina. A única diferença era que, ao responder, alguns riam
cinicamente e outros baixavam a vista, como se não quisessem enfrentar o
pai da criança. Bernat aguentou as desculpas durante um longo mês, até
que um dia, ao sair do forno com duas fogaças de farinha de fava, topou
com um esquálido aprendiz da forja, a quem em outra ocasião tinha
perguntado sobre o pequeno.
— O que você sabe sobre o meu Arnau? — perguntou.
Não havia ninguém à vista. O rapaz tentou se esquivar, como se não
tivesse ouvido, mas Bernat o agarrou pelo braço.
— Perguntei o que você sabe sobre o meu Arnau.
— A sua mulher e o seu filho... — começou a responder olhando o
chão.
— Já sei onde estão — interrompeu-o Bernat. — O que estou
perguntando é se o meu Arnau está bem.
O rapaz, ainda com os olhos baixos, raspou com os pés a areia do chão.
Bernat o sacudiu.
— Ele está bem?
O aprendiz não levantava os olhos, e a atitude de Bernat tornou-se
violenta.
— Não! — gritou o rapaz. Bernat cedeu para encará-lo. — Não —
repetiu.
Os olhos de Bernat o interrogavam.
— O que está acontecendo com a criança?
— Não posso... Temos ordens de não dizer a você... — A voz do rapaz
falhava.
Bernat sacudiu-o com mais força e levantou a voz, sem se importar em
chamar a atenção da guarda.
— O que está acontecendo com o meu filho? O que está acontecendo?
Responda!
— Não posso. Não podemos...
— Isto faria você mudar de opinião? — perguntou, oferecendo-lhe uma
fogaça.
Os olhos do aprendiz se arregalaram. Sem responder, arrancou o pão
das mãos de Bernat e mordeu-o como se estivesse sem comer por vários
dias. Bernat levou-o para um canto ao abrigo de olhares.
— O que houve com o meu Arnau? — indagou mais uma vez, ansioso.
O rapaz olhou-o com a boca cheia e fez um gesto para que o seguisse.
Encostados às paredes, avançaram com cuidado até a forja. Cruzaram as
portas e se dirigiram à parte de trás. O rapaz abriu a portinhola de um
quartinho anexo à forja, onde se guardavam materiais e ferramentas, e
entrou ali seguido por Bernat. Assim que entrou, o rapaz sentou-se no chão
e dedicou-se a devorar a fogaça. Bernat percorreu o quarto. Fazia um calor
sufocante. Não viu nada que o levasse a entender por que o aprendiz o
levara até ali: naquele lugar só havia ferramentas e ferros velhos.
Bernat interrogou o rapaz com o olhar. Este, que mastigava com
vontade, respondeu apontando para um dos cantos do depósito e insistiu
com gestos para que ele fosse até lá.
Em um cesto ordinário e desmantelado sobre tábuas, abandonada e
desnutrida, estava a criança, à espera da morte. A camisa branca de linho
estava suja e esfarrapada. Bernat não pôde evitar um grito. Foi um grito
surdo, um soluço escassamente humano. Tomou Arnau e apertou-o contra
si. A criança respondeu debilmente, muito debilmente, mas o fez.
— O senhor ordenou que o seu filho ficasse aqui — explicou o
aprendiz. — No começo a sua mulher vinha várias vezes por dia e o
acalmava, amamentando-o. — Com lágrimas nos olhos, Bernat apertava o
corpinho contra seu peito, tentando insuflar-lhe vida. — Primeiro foi o
aguazil — continuou o rapaz —, e a sua mulher resistiu e gritou... Eu vi,
eu estava na forja. — Mostrou uma abertura nas tábuas de madeira da
parede. — Mas o aguazil é muito forte... Quando terminou, entrou o
senhor, acompanhado por alguns soldados. Sua mulher estava deitada no
chão, e o senhor começou a rir dela. Depois todos riram. A partir desse
momento, cada vez que a sua mulher vinha amamentar o filho, os soldados
a esperavam ao lado da porta. Ela não podia resistir. Há alguns dias ela
quase não vem. Os soldados... qualquer deles, a agarram assim que ela sai
dos aposentos de D. Caterina. E ela nem tem tempo de chegar até aqui. Às
vezes o senhor os vê, mas só faz rir.
Sem pensar duas vezes, Bernat escondeu o corpinho do filho sob a
camisa; depois dissimulou o volume com a fogaça que lhe restava. O
pequeno nem se moveu. O aprendiz levantou-se bruscamente quando
Bernat se aproximou da porta.
— O senhor proibiu. Você não pode...!
— Me deixe, rapaz!
O rapaz tentou detê-lo. Bernat não duvidou. Segurava a fogaça e o
pequeno Arnau com uma das mãos, e com a outra agarrou uma barra de
ferro que estava pendurada na parede e girou-a em um movimento
desesperado. A barra pegou o rapaz na cabeça quando estava a ponto de
sair do quartinho. Ele foi ao chão sem pronunciar uma palavra. Bernat nem
olhou para trás. Limitou-se a sair e fechar a porta.

***

Não encontrou problema para sair do castelo de Llorenç de Bellera.


Ninguém podia imaginar que sob a fogaça Bernat levava o corpo
enfraquecido do filho. Só depois de cruzar a porta do castelo pensou em
Francesca e nos soldados. Indignado, recriminou-a mentalmente por não
ter tentado se comunicar com ele e adverti-lo do perigo que o filho corria,
por não ter lutado por Arnau... Bernat apertou o corpo do filho e pensou na
mãe dele, violada pelos soldados enquanto Arnau esperava a morte em
cima de tábuas asquerosas. Quanto demorariam para encontrar o rapaz que
ele golpeara? Estaria morto? Tinha fechado a porta do quartinho? As
perguntas assaltavam Bernat enquanto percorria o caminho de volta. Sim,
fechara. Lembrava-se vagamente de tê-lo feito.
Ao dobrar a primeira curva da vereda sinuosa que subia para o castelo,
quando este momentaneamente se perdeu de vista, Bernat descobriu o
filho; seus olhos apagados pareciam perdidos. Pesava menos que a fogaça!
Os bracinhos e as pernas... Seu estômago deu voltas e sentiu um nó na
garganta. As lágrimas começaram a rolar. Disse a si mesmo que não era
hora de chorar. Sabia que o perseguiriam, lançariam os cachorros em cima
deles, mas... De que adiantava fugir se a criança não sobrevivesse? Bernat
afastou-se do caminho e se escondeu atrás de uns arbustos, ajoelhou-se,
colocou a fogaça no chão e segurou Arnau com as duas mãos para colocá-
lo diante do rosto. A criança permaneceu inerte, com a cabecinha de lado,
pendurada. “Arnau!”, sussurrou Bernat. Sacudiu-o suavemente, várias
vezes. Seus olhinhos se moveram para fitá-lo. Com o rosto banhado de
lágrimas, Bernat percebeu que a criança nem sequer tinha forças para
chorar. Acomodou-a no braço. Esfarelou um pouco de pão, molhou-o com
saliva e aproximou-o da boca do pequeno. Arnau não reagiu, mas Bernat
insistiu até conseguir colocá-lo em sua boquinha. Esperou. “Engula, meu
filho”, suplicou-lhe. Os lábios de Bernat tremeram ao ver uma contração
quase imperceptível da garganta de Arnau. Esfarelou mais pão e repetiu a
operação ansiosamente. Arnau engoliu novamente, sete vezes.
— Sairemos desta — disse ele. — Eu prometo a você.
Bernat voltou para a vereda. Tudo continuava calmo. Decerto ainda não
tinham encontrado o rapaz; caso contrário, haveria um rebuliço. Por um
momento pensou em Llorenç de Bellera: cruel, mau, implacável. Que
satisfação teria ao caçar um Estanyol!
— Sairemos desta, Arnau — repetiu, correndo em direção à masía.
Percorreu o caminho sem olhar para trás. Ao chegar, não se permitiu
nem um instante de descanso: deixou Arnau no berço, pegou um saco e
encheu-o de trigo moído e legumes secos, um odre cheio de água e outro
de leite, carne salgada, uma tigela, uma colher e roupas, algumas moedas
que guardava escondidas, um facão e sua besta... “O pai tinha tanto
orgulho desta besta!”, pensou ao sopesá-la. Lutara ao lado do conde
Ramon Borrell quando os Estanyol eram livres, ele repetia sempre que
ensinava Bernat a usá-la. Livres! Bernat amarrou o menino ao peito e
agarrou suas coisas. Seria sempre um servo, a não ser que...
— Por enquanto seremos fugitivos — disse ao menino antes de
embrenhar-se na mata. — Ninguém conhece esta mata melhor que os
Estanyol — assegurou-lhe, já entre duas árvores. — Sempre caçamos
nestas terras, sabia? — Bernat caminhou entre a folhagem até um riacho,
meteu-se nele com água até os joelhos e começou a subir contra a
corrente. Arnau tinha fechado os olhos e dormia, mas Bernat continuou a
falar: — Os cachorros do senhor não são espertos, foram muito
maltratados. Chegaremos até lá em cima, onde o bosque fica mais denso e
é mais difícil andar a cavalo. Os senhores só caçam a cavalo, nunca vão
àquela área. Estragaria suas vestimentas. E os soldados... para que iriam
caçar ali? Para eles é suficiente roubar nossa comida. Nós nos
esconderemos, Arnau. Ninguém poderá nos encontrar, eu juro — disse
Bernat, e acariciou a cabeça do filho enquanto subia contra a corrente.
No meio da tarde, Bernat se deteve. O bosque agora era tão frondoso
que as árvores invadiam as margens do riacho e encobriam completamente
o céu. Sentou-se numa pedra e olhou suas pernas, brancas e enrugadas pela
água. Só então percebeu a dor, mas não lhe importou. Livrou-se da
bagagem e soltou Arnau. A criança tinha aberto os olhos. Diluiu leite na
água e acrescentou trigo moído, mexeu a mistura e aproximou a tigela dos
lábios do pequeno. Arnau rejeitou-a fazendo uma careta. Bernat limpou
um dedo no riacho, molhou-o na comida e tentou novamente. Depois de
várias tentativas, Arnau respondeu e permitiu que o pai o alimentasse com
o dedo; depois fechou os olhos e dormiu. Bernat comeu só um pouco de
carne salgada. Queria descansar, mas ainda faltava um bom trecho.
A gruta dos Estanyol, assim seu pai a chamava. Chegaram lá depois do
anoitecer, após outra parada para que Arnau comesse. Entrava-se nela por
uma estreita fenda aberta nas pedras que Bernat, seu pai e também seu avô
fechavam por dentro com troncos quando saíam para caçar, para dormirem
protegidos do mau tempo e das feras.
Acendeu um fogo na entrada da caverna e entrou nela com um graveto
aceso para verificar se algum animal a ocupava; depois acomodou Arnau
sobre uma enxerga improvisada com o saco e folhas secas e alimentou-o
novamente. O pequeno aceitou o alimento e caiu em um sono profundo,
assim como Bernat, que nem conseguiu comer a carne salgada. Ali
estavam a salvo do senhor, pensou antes de acompanhar a respiração do
filho e fechar os olhos.

***

Llorenç de Bellera saiu a galope com seus homens quando o mestre


forjador encontrou o aprendiz morto no meio de uma poça de sangue. O
desaparecimento de Arnau e o fato de terem visto seu pai perto do castelo
apontavam imediatamente para Bernat. O senhor de Navarcles esperava
montado em seu cavalo diante da porta da masía dos Estanyol e sorriu
quando seus homens disseram que o interior tinha sido revirado e que,
aparentemente, Bernat tinha fugido com o filho.
— Depois da morte de seu pai você se safou — grunhiu —, mas agora
tudo vai ser meu. Procurem-no! — gritou para seus homens. Depois se
dirigiu ao aguazil: — Faça uma relação de todos os bens, pertences e
animais desta propriedade e tome cuidado para que não falte nem uma
libra de grão. Depois, procure Bernat.
Após vários dias, o aguazil compareceu ante seu senhor na albarrã do
castelo:
— Procuramos nas outras masías, nos bosques e nos campos. Não há
rastro do Estanyol. Deve ter fugido para alguma cidade, talvez para
Manresa ou para...
Llorenç de Bellera o fez calar com um gesto.
— Ele cairá. Mande avisar a todos os demais senhores e aos nossos
agentes nas cidades. Diga-lhes que um servo escapou de minhas terras e
que deve ser detido. — Naquele momento, apareceram Francesca e D.
Caterina com Jaume, o seu filho, nos braços da primeira. Llorenç de
Bellera observou-a e fez uma expressão de desprezo; já não precisava dela.
— Senhora — disse à esposa —, não entendo como permite que uma
rameira amamente o meu filho. — D. Caterina teve um sobressalto. — Por
acaso você não sabe que a sua ama de leite é a meretriz de toda a tropa?
D. Caterina arrancou o filho das mãos de Francesca.
Quando Francesca soube que Bernat tinha fugido com Arnau,
perguntou-se o que teria acontecido com o seu pequeno. As terras e
propriedades dos Estanyol agora pertenciam ao senhor de Bellera. Não
tinha a quem recorrer, e os soldados continuavam a se aproveitar dela. Um
pedaço de pão duro, uma verdura podre, às vezes um osso duro para roer:
era o que valia o seu corpo.
Nenhum dos camponeses que iam ao castelo se dignou a olhar para ela.
Francesca tentou se aproximar de alguns, mas eles a evitaram. Não se
atreveu a voltar para a casa de seus pais; sua mãe a havia repudiado
publicamente diante do forno de pão, e ela foi obrigada a permanecer nas
redondezas do castelo como mais um dos muitos mendicantes que
rodeavam as muralhas para revirar o lixo. Seu único destino parecia ser
passar de mão em mão em troca das sobras do rancho do soldado que a
escolhesse naquele dia.
Chegou setembro. Bernat já tinha visto seu filho sorrir e engatinhar na
caverna e nos arredores. No entanto, as provisões começavam a escassear
e o inverno se aproximava. Chegara o momento de partir.
4

A cidade se estendia aos seus pés.


— Olhe, Arnau, Barcelona — disse Bernat à criança, que dormia
placidamente encostada em seu peito. — Ali seremos livres.
Desde a fuga com o filho, não parava de pensar naquela cidade, a
grande esperança de todos os servos. Bernat os ouvira contar sobre ela
quando iam trabalhar nas terras do senhor, consertar as muralhas do
castelo ou fazer qualquer outro trabalho que o senhor de Bellera
precisasse. Sempre atentos para que o aguazil e os soldados não os
ouvissem, seus sussurros tinham lhe despertado curiosidade. Ele era feliz
em suas terras e nunca teria abandonado o pai. Tampouco poderia ter
fugido com ele. Depois de perdê-las, no entanto, enquanto vigiava o sono
do filho na gruta dos Estanyol, aquelas histórias iam ganhando vida até
ecoarem no interior da caverna.
“Se você conseguir viver lá por um ano e um dia sem ser detido pelo
senhor”, lembrava-se muito bem de ter ouvido, “ganhará a carta de
vizinhança e obterá a liberdade.” Naquela ocasião, todos os servos ficaram
em silêncio. Bernat os olhou: alguns tinham os olhos fechados e os lábios
apertados, outros moviam a cabeça e os demais sorriam olhando o céu.
— E só é preciso viver na cidade? — rompeu o silêncio um rapaz, um
dos que tinham fitado o céu, decerto sonhando em romper as correntes que
o atavam à terra. — Por que em Barcelona se pode ganhar a liberdade?
O mais velho respondeu pausadamente:
— É, não é preciso mais nada. Basta viver lá durante esse tempo. — O
rapaz, com os olhos brilhando, pediu que ele continuasse. — Barcelona é
muito rica. Por muitos anos, de Jaime, o Conquistador, até Pedro, o
Grande, os reis pediram dinheiro à cidade para as guerras ou para suas
cortes. Durante todos esses anos, os cidadãos de Barcelona concederam
esse dinheiro em troca de privilégios especiais, até que o próprio Pedro, o
Grande, em guerra contra a Sicília, os cristalizou em um código... — O
velho titubeou. — Recognoverunt proceres, acho que se chama assim. É
ali que se diz que podemos obter a liberdade. Barcelona precisa de
trabalhadores, trabalhadores livres.
No outro dia, o rapaz não apareceu na hora marcada pelo senhor, nem
no dia seguinte. Porém o seu pai continuava trabalhando em silêncio.
Depois de três meses, trouxeram-no acorrentado, andando diante de um
açoite; mesmo assim, todos viam um brilho de orgulho em seus olhos.
Do alto da serra de Collserola, na antiga via romana que ligava
Ampúrias e Tarragona, Bernat contemplou a liberdade e... o mar! Nunca
tinha visto, nem sequer imaginado, aquela imensidão que parecia não ter
fim. Sabia que além daquele mar havia terras catalãs, era o que diziam os
mercadores, mas... era a primeira vez que se encontrava diante de algo
cujo final não se podia ver. “Atrás daquela montanha. Depois de cruzar
aquele rio.” Sempre podia apontar para o lugar, indicar um ponto ao
estrangeiro que perguntasse... Divisou o horizonte que se unia às águas.
Permaneceu um instante com o olhar fixo na lonjura, acariciando a cabeça
de Arnau, aqueles cabelos rebeldes que tinham crescido no topo.
Depois dirigiu o olhar para onde o mar se fundia com a terra. Perto da
margem, destacavam-se cinco navios junto à ilhota de Maians. Até então,
Bernat só tinha visto desenhos de navios. À sua direita se elevava a
montanha de Montjuïc, que também beijava o mar; aos pés de sua encosta,
campos e planícies e, depois, Barcelona. Do centro da cidade, onde se
encontrava o monte Taber, centenas de construções se espalhavam de
forma majestosa: palácios, igrejas, monastérios... Bernat se perguntava
quanta gente viveria ali. Porque de repente Barcelona terminava. Era como
uma colmeia rodeada de muralhas, exceto pelo lado do mar, e além das
muralhas só havia campos. Quarenta mil pessoas, ele tinha ouvido dizer.
— Como vão nos encontrar entre quarenta mil pessoas? — murmurou,
olhando Arnau. — Você será livre, filho.
Ali poderiam se esconder. Procuraria sua irmã. Mas Bernat sabia que
antes teria de cruzar as portas. E se o senhor de Bellera tivesse dado sua
descrição? Aquele sinal... Tinha pensado nisso durante as três noites de
caminho pelo monte. Sentou-se no chão e pegou uma lebre que tinha
caçado com a besta. Degolou-a e deixou o sangue cair na palma da mão,
onde pôs um montinho de areia. Misturou o sangue e a areia e, quando a
mistura começou a secar, espalhou-a sobre o olho direito. Depois guardou
a lebre no saco.
Quando percebeu que a pasta estava seca e não podia abrir o olho,
começou a descida em direção ao portão de Santa Anna, na parte mais
setentrional da muralha ocidental. As pessoas faziam fila no caminho para
entrar na cidade. Bernat entrou na fila arrastando os pés, discretamente,
sem deixar de acariciar a criança, que estava acordada. Carregando um
enorme saco de nabos, um camponês descalço se virou para ele. Bernat
sorriu.
— Lepra! — gritou o camponês, deixando cair o saco e afastando-se do
caminho com um salto.
Bernat viu toda a fila, até a porta, desaparecer em direção à beira do
caminho, uns de um lado, outros de outro; afastaram-se dele e deixaram o
acesso à cidade semeado de objetos e comida, vários carrinhos e algumas
mulas. No meio de tudo aquilo, os cegos que costumavam mendigar junto
ao portal de Santa Anna berravam.
Arnau começou a chorar e Bernat viu que os soldados desembainhavam
as espadas e fechavam as portas.
— Vá para o leprosário! — gritou alguém de longe.
— Não é lepra! — protestou Bernat —, entrou um galho no meu olho.
Olhem! — Bernat levantou as mãos e moveu-as. Depois, deixou Arnau no
chão e começou a despir-se. — Olhem! — repetiu, mostrando seu corpo
forte, inteiro e sem mácula, sem uma só chaga ou sinal. — Olhem! Sou só
um camponês, mas preciso que um médico cure o meu olho, ou não
poderei continuar a trabalhar.
Um soldado se aproximou dele. O oficial teve de empurrá-lo para que
se mexesse. Ele se deteve a uns passos de Bernat e observou-o.
— Vire-se — indicou com um movimento rotatório do dedo.
Bernat obedeceu. O soldado se dirigiu ao oficial e fez que não com a
cabeça. Da porta, com uma espada, apontaram para o volume aos pés de
Bernat.
— E a criança?
Bernat agachou-se para pegar Arnau. Despiu-o com o lado direito de
seu rosto grudado em seu peito e mostrou-o na horizontal, como se o
oferecesse, agarrando-o pela cabeça e tapando o seu sinal com os dedos.
O soldado voltou a balançar a cabeça em negativa, olhando para a porta.
— Cubra essa ferida, camponês — disse — ou você não vai conseguir
dar um passo na cidade.
As pessoas voltaram para a fila. As portas de Santa Anna se abriram
novamente e o camponês dos nabos recolheu seu saco sem olhar para
Bernat.
Cruzou o portão com o olho direito tapado com uma camisa de Arnau.
Os soldados seguiram-no com o olhar; como não chamar a atenção com
uma camisa cobrindo metade do rosto? Deixou a colegiada de Santa Anna
à esquerda e continuou seguindo as pessoas para dentro da cidade. Ao virar
à direita, chegou à Praça de Santa Anna. Caminhava cabisbaixo... Os
camponeses começaram a se dispersar pela cidade; foram desaparecendo
os pés descalços, as chancas e as alpercatas, e Bernat se viu diante de
pernas cobertas com meias de seda vermelhas como fogo por dentro de
sapatos verdes sem sola feitos de um fino tecido ajustado aos pés,
terminados em uma ponta tão comprida que dela saía uma correntinha de
ouro que envolvia os tornozelos.
Sem pensar, ergueu os olhos e topou com um homem de chapéu. Ele
exibia uma veste preta carregada de fios de ouro e prata, um cinto também
bordado em ouro e diversas correntes de pérolas e pedras preciosas. Bernat
fitou-o boquiaberto. O homem virou-se para o jovem, mas dirigiu o olhar
para além dele, como se não existisse.
Bernat titubeou, voltou a baixar os olhos e suspirou aliviado ao ver que
o homem não lhe prestara a menor atenção. Percorreu a rua até a catedral
em construção e aos poucos começou a erguer a cabeça. Ninguém olhava
para ele. Por um bom tempo observou o trabalho dos peões na catedral:
quebravam pedra, deslocavam-se pelos altos andaimes que a rodeavam,
erguiam enormes blocos de cantaria com roldanas... Arnau chorou pedindo
atenção.
— Bom homem — disse Bernat a um operário que passava ali perto —,
como posso encontrar o bairro dos oleiros? — Sua irmã Guiamona era
casada com um.
— Continue por esta mesma rua — respondeu o homem
atropeladamente — até chegar à próxima praça, a de Sant Jaume. Lá você
vai ver uma fonte; dobre à direita e continue até chegar à muralha nova, no
portal da Boquería. Não vá para o Raval. Caminhe junto à muralha em
direção ao mar até o portal de Trentaclaus. Ali fica o bairro dos oleiros.
Em vão, Bernat tentou assimilar todos aqueles nomes e, quando ia
perguntar de novo, o homem já tinha desaparecido.
— Continue por esta mesma rua até a Praça de Sant Jaume — repetiu a
Arnau. — Disso eu me lembro. Lá na praça dobramos novamente à direita,
disso também nos lembramos, não é, meu filho?
Arnau sempre parava de chorar ao ouvir a voz do pai.
— E agora? — disse em voz alta. Encontrava-se em outra praça, a de
Sant Miquel. — Aquele homem só mencionou uma praça, mas não
podemos estar enganados. — Bernat tentou perguntar a algumas pessoas,
mas ninguém parou. — Todos têm pressa — comentava com Arnau
quando viu um homem parado diante da entrada de... um castelo? —
Aquele não parece ter pressa. Talvez... Bom homem... — chamou-o por
trás, tocando sua túnica preta.
Quando o homem se virou, o susto de Bernat foi tal que até Arnau,
fortemente preso ao seu peito, se sobressaltou.
O ancião judeu balançou a cabeça lentamente. Uma reação típica após
anos ouvindo inflamados sermões de sacerdotes cristãos.
— Sim? — perguntou ele.
Bernat não conseguia tirar os olhos do círculo vermelho e amarelo que
cobria o peito do ancião. Depois olhou para o interior do que parecia ser
um castelo amuralhado. Todos os que entravam e saíam eram judeus!
Todos carregavam aquele sinal. Seria permitido falar com eles?
— Deseja alguma coisa? — insistiu o ancião.
— Co... como se chega ao bairro dos oleiros?
— Siga em frente por esta rua — indicou o ancião — e você chegará ao
portão da Boquería. Continue pela muralha até o mar, e na entrada
seguinte verá o bairro que procura.
Afinal de contas, os padres só tinham proibido as relações carnais com
os judeus; por isso a Igreja os obrigava a portar o escudo redondo, para
que ninguém pudesse alegar ignorância sobre a condição de qualquer um
deles. Os padres sempre falavam daquele povo de maneira exaltada e, no
entanto, aquele ancião...
— Obrigado, bom homem — respondeu Bernat, esboçando um sorriso.
— Obrigado a você — respondeu ele —, mas no futuro tome cuidado
para que não o vejam falando com um de nós... e muito menos sorrindo. —
O velho franziu os lábios com uma expressão de tristeza.
No portal da Boquería, Bernat topou com grande número de mulheres
que compravam carne: miúdos e bode. Observou-as escolher a mercadoria
e discutir com os vendedores. “Esta é a carne que causa tantos problemas
ao nosso senhor”, disse ao filho. Depois riu ao pensar em Llorenç de
Bellera. Quantas vezes o vira tentar amedrontar os pastores e criadores de
gado que abasteciam a cidade condal! Mas só se atrevia a isso, a
amedrontá-los com seus cavalos e soldados; os que levavam o gado para
Barcelona, onde só podiam entrar animais vivos, tinham direito de
pastagem em todo o principado.
Bernat rodeou o mercado e desceu em direção a Trentaclaus. Ali as ruas
eram mais largas, e, à medida que se aproximava do portão, viu que em
frente às casas dezenas de objetos de cerâmica secavam ao sol: pratos,
tigelas, panelas, jarras e tijolos.
— Estou procurando a casa de Grau Puig — disse a um dos soldados
que vigiavam o portão.

***

Os Puig eram vizinhos dos Estanyol. Bernat lembrava-se de Grau, o quarto


de oito irmãos famintos que não produziam comida suficiente para todos
em suas escassas terras. Sua mãe gostava muito deles, pois a mãe dos Puig
a tinha ajudado a dar à luz o próprio Bernat e sua irmã. Dos oito, Grau era
o mais inteligente e trabalhador; por isso, quando Josep Puig conseguiu
que um parente aceitasse um de seus filhos como aprendiz em Barcelona,
foi ele, então com dez anos, o escolhido.
Mas se Josep Puig não podia alimentar a família, dificilmente poderia
pagar os dois quarteiros1 de trigo branco e os dez soldos que o parente
pedia para cuidar de Grau durante os cinco anos que durava o aprendizado.
A isto era preciso somar os dois soldos que Llorenç de Bellera tinha
exigido para libertar um servo e roupa para Grau nos dois primeiros anos;
segundo o contrato de aprendizado, o mestre só se comprometia a vesti-lo
nos três últimos anos.
Por isso, Josep Puig foi à masía dos Estanyol acompanhado de Grau,
que era um pouco mais velho que Bernat e sua irmã. O louco Estanyol
escutou sua proposta com atenção: se dotasse sua filha com aquelas
quantidades e as adiantasse a Grau, aos dezoito anos, quando fosse oficial
oleiro, seu filho se casaria com Guiamona. O louco Estanyol olhou para
Grau; às vezes, quando a família do menino já não dispunha de outro
recurso, ele vinha ajudá-los nos campos. Nunca pedia nada, mas sempre
voltava para casa com verduras ou um pouco de grãos. Confiava nele. O
louco Estanyol aceitou.
Depois de cinco anos de trabalho duro como aprendiz, Grau alcançou a
categoria de oficial. Permaneceu às ordens de seu mestre, que, satisfeito
com suas qualidades, começou a pagar-lhe um salário. Aos dezoito anos,
cumpriu a promessa e casou-se com Guiamona.
— Meu filho — disse o pai a Bernat —, decidi dar outro dote a
Guiamona. Somos só nós dois e temos as melhores terras da região, as
mais extensas e mais férteis. Eles podem precisar deste dinheiro.
— Pai — interrompeu-o Bernat —, por que me dá explicações?
— Porque sua irmã já teve um dote e você é meu herdeiro. Este
dinheiro pertence a você.
— Faça o que achar certo.
Quatro anos depois, aos vinte e dois, Grau se apresentou para o exame
público, que era feito na presença dos quatro juízes da confraria. Fez suas
primeiras obras — uma jarra, dois pratos e uma tigela — sob o olhar
atento daqueles homens, que lhe conferiram a categoria de mestre, o que
lhe permitiria abrir sua própria oficina em Barcelona e, claro, usar o selo
distintivo dos mestres, que devia ser estampado em todas as peças de sua
loja, prevendo possíveis reclamações. Grau, honrando seu sobrenome,
escolheu o desenho de uma montanha.
Grau e Guiamona, que estava grávida, instalaram-se em uma pequena
casa de um só andar no bairro dos oleiros, que, por disposição real, ficava
no extremo ocidental de Barcelona, nas terras situadas entre a muralha
construída pelo rei Jaime I e o antigo limite fortificado da cidade. Para
comprar a casa, cheios de esperança, usaram o dote de Guiamona, que
estava guardado à espera daquele momento.
Ali, onde no mesmo espaço ficavam a oficina e a residência, o forno e
os quartos, Grau iniciou seu trabalho como mestre, em um momento em
que a expansão comercial catalã estava revolucionando a atividade dos
oleiros e lhes exigia uma especialização que muitos deles, ancorados na
tradição, rejeitavam.
— Nós nos dedicaremos às jarras e aos vasos — sentenciou Grau. — Só
jarras e vasos. — Guiamona olhou as quatro obras-primas que o marido
tinha feito. — Vi muitos comerciantes — continuou ele — mendigarem
vasos para comercializar azeite, mel e vinho, e os mestres ceramistas os
dispensavam sem lhes dar atenção, porque seus fornos estavam ocupados
com a fabricação de complicadas lajotas para uma casa nova, pratos
policromados para a baixela de um nobre ou frascos para um boticário.
Guiamona passou os dedos pelas obras-primas. Como eram suaves ao
tato! Quando Grau, exultante, lhe entregara as peças depois de passar no
exame, ela imaginara que o seu lar estaria sempre cheio de peças como
aquelas. Até os juízes do grêmio o felicitaram. Naquelas quatro obras Grau
demonstrara aos mestres o seu conhecimento do ofício — a jarra, os dois
pratos e a tigela, decorados com linhas em ziguezague, folhas de palmeira,
rosetas e flores-de-lis, combinavam todas as cores por cima de uma
camada branca de estanho previamente aplicada: o verde do cobre
característico de Barcelona, que não podia faltar na obra dos mestres da
cidade condal, o púrpura ou o roxo do manganês, o preto do ferro, o azul
do cobalto ou o amarelo do antimônio. Cada linha e cada desenho tinham
uma cor diferente. Guiamona mal conseguiu esperar que as peças ficassem
cozidas, por medo de que rachassem. Para terminar, Grau aplicara nelas
uma camada transparente de verniz de chumbo vitrificado que as
impermeabilizava completamente. Guiamona sentiu novamente a
suavidade das peças na ponta dos dedos. E agora... ele só faria vasos.
Grau se aproximou da esposa.
— Não se preocupe — tranquilizou-a —, para você eu continuarei a
fabricar peças como estas.
Grau tinha acertado. Encheu o secador de sua humilde oficina com
jarras e vasos, e logo os comerciantes souberam que na oficina de Grau
Puig podiam encontrar de imediato tudo aquilo de que precisavam.
Ninguém precisaria mendigar novamente junto a mestres soberbos.
Por isso, a residência diante da qual se detiveram Bernat e o pequeno
Arnau, que clamava por sua comida, era muito diferente daquela primeira
casa-oficina. O que Bernat pôde ver com o olho esquerdo era um grande
edifício de três andares. No térreo ficava a oficina aberta para a rua, e nos
dois andares superiores viviam o mestre e sua família. De um lado da casa
ficavam a horta e o jardim, e do outro havia construções auxiliares que
davam para os fornos e para um grande pátio onde secavam ao sol uma
infinidade de jarras e vasos de diferentes tipos, tamanhos e cores. Atrás da
casa, como exigiam as ordenanças municipais, havia um espaço destinado
à descarga e ao armazenamento da argila e outros materiais de trabalho.
Também se guardavam ali as cinzas e demais resíduos dos cozimentos,
que os oleiros eram proibidos de jogar nas ruas da cidade.
Na oficina, dez pessoas trabalhavam freneticamente. Pelo aspecto,
nenhuma delas era Grau. Junto à porta de entrada, ao lado de um carro de
boi carregado de vasos novos, Bernat viu dois homens se despedirem. Um
subiu no carro e partiu. O outro estava bem-vestido, e, antes que entrasse
na oficina, Bernat se dirigiu a ele.
— Espere! — O homem viu Bernat se aproximar. — Procuro Grau Puig
— disse.
O homem examinou-o de alto a baixo.
— Se está procurando trabalho, não precisamos de ninguém. O mestre
não pode perder tempo — disse com maus modos —, nem eu —
acrescentou, dando-lhe as costas.
— Sou parente do mestre.
O homem parou de súbito, antes de se virar rapidamente.
— Será que o mestre não lhe pagou o suficiente? Por que continua a
insistir? — grunhiu entredentes e empurrando Bernat. Arnau começou a
chorar. — Você sabia que se voltasse aqui nós o denunciaríamos. Grau
Puig é um homem importante, sabia?
Bernat retrocedia à medida que o homem o empurrava, sem saber a que
se referia.
— Escute — defendeu-se —, eu...
Arnau gritava.
— Não entendeu? — gritou o homem, mais alto que o choro de Arnau.
Porém gritos ainda mais fortes saíram de uma das janelas do andar
superior.
— Bernat! Bernat!
Bernat e o homem viram uma mulher agitar os braços com metade do
corpo para fora do parapeito.
— Guiamona! — gritou Bernat, retribuindo a saudação.
A mulher desapareceu, e Bernat se virou para o homem com os olhos
semicerrados.
— A senhora Guiamona conhece você?
— É minha irmã — respondeu Bernat secamente —, e saiba que
ninguém me pagou nada, nunca.
— Sinto muito — desculpou-se o homem, agora assustado. — Falava
dos irmãos do mestre: primeiro um, depois outro, e outro.
Ao ver a irmã sair da casa, Bernat deixou-o falando sozinho e correu
para abraçá-la.
***

— E Grau? — perguntou Bernat à irmã quando se acomodaram, depois de


limpar o sangue do olho, entregar Arnau à escrava moura que cuidava dos
filhos pequenos de Guiamona e vê-lo devorar uma tigela de leite e cereais.
Guiamona fez uma cara de tristeza.
— O que foi? — estranhou Bernat.
— Grau mudou muito. Agora é rico e importante. — Guiamona
apontou para os diversos baús junto às paredes, um armário — móvel que
Bernat nunca tinha visto — com livros e peças de cerâmica, os tapetes que
enfeitavam o chão e as tapeçarias e cortinas que pendiam das janelas e do
teto. — Agora quase não se ocupa da oficina nem do selo; quem faz isso é
Jaume, o contramestre, que você viu na rua. Grau se dedica ao comércio:
navios, vinho, azeite. Agora é juiz do grêmio e, segundo os Usatges,2 um
notável e cavaleiro, e está tentando ser nomeado membro do Conselho de
Cento3 da cidade. — O olhar de Guiamona vagou pelo aposento. — Já não
é a mesma coisa, Bernat.
— Você também mudou muito — comentou Bernat. Guiamona olhou
seu corpo de matrona e concordou, sorrindo. — Esse Jaume — continuou
Bernat — disse alguma coisa sobre os parentes de Grau. A que se referia?
Guiamona negou com força antes de responder:
— É que, assim que souberam que o irmão estava rico, os irmãos,
primos e sobrinhos começaram a correr para a oficina. Todos fugiam de
suas terras para buscar a ajuda de Grau. — Guiamona percebeu a
expressão do irmão. — Você... também? — Bernat assentiu. — Mas...
você tinha terras excelentes!
Guiamona não conseguiu conter as lágrimas ao ouvir a história de
Bernat. Quando ele contou sobre o rapaz da forja, ela se levantou e
ajoelhou diante da cadeira em que o irmão estava sentado.
— Isso você não vai contar a ninguém — aconselhou-o. Depois
continuou a escutar com a cabeça apoiada na perna dele. — Não se
preocupe — disse ela entre soluços quando Bernat terminou o relato —,
nós o ajudaremos.
— Minha irmã — disse Bernat acariciando sua cabeça —, como vai me
ajudar se Grau não ajudou os próprios irmãos?
***

— Porque o meu irmão é diferente! — gritou Guiamona, fazendo Grau


retroceder um passo.
Já tinha anoitecido quando seu marido voltou para casa. Nervoso, o
pequeno e magro Grau subiu a escada grunhindo impropérios. Guiamona o
esperava e o ouviu chegar. Jaume havia informado Grau sobre a nova
situação: “Seu cunhado está dormindo no palheiro junto com os
aprendizes, e a criança... com os seus filhos.”
Grau dirigiu-se atropeladamente à esposa ao vê-la.
— Como você se atreve? — gritou ao ouvir suas primeiras explicações.
— É um servo fugitivo! Sabe o que aconteceria se encontrassem um servo
fugitivo em nossa casa? Seria a minha ruína!
Guiamona escutou-o sem intervir enquanto ele dava voltas e
gesticulava em torno dela, que era uma cabeça mais alta do que ele.
— Você está louca! Enviei os meus próprios irmãos em um navio para
o estrangeiro! Dotei as mulheres da família para que se casassem com
pessoas de fora, tudo para que ninguém pudesse manchar esta família, e
agora você... Por que eu deveria agir de outra forma com o seu irmão?
— Porque o meu irmão é diferente! — gritou Guiamona, para sua
surpresa.
Grau titubeou.
— O que... o que você quer dizer?
— Você sabe muito bem. Não preciso lembrar a você.
Grau baixou os olhos.
— Precisamente hoje — murmurou — estive reunido com um dos
cinco conselheiros da cidade para, como juiz do grêmio, ser eleito membro
do Conselho de Cento. Parece que consegui convencer três dos cinco
conselheiros e ainda faltam o juiz de primeira instância e o veguer4 da
corte. Você imagina o que meus inimigos diriam se soubessem que dei
amparo a um servo fugitivo?
Guiamona falou docemente com seu marido:
— Nós devemos tudo a ele.
— Eu sou só um artesão, Guiamona. Rico, mas artesão. Os nobres me
desprezam e os mercadores me odeiam, ainda que se associem comigo. Se
souberem que acobertamos um fugitivo... Sabe o que dirão os nobres que
possuem terras?
— Devemos tudo a ele — repetiu Guiamona.
— Bem, então vamos dar-lhe dinheiro, e que vá embora.
— Ele precisa da liberdade. Um ano e um dia.
Grau voltou a caminhar nervoso pelo aposento. Depois levou as mãos
ao rosto.
— Não podemos — disse. — Não podemos, Guiamona — repetiu
fitando-a. — Você imagina...?
— Imagina! Imagina! — ela o interrompeu, levantando a voz
novamente. — Imagine o que acontecerá se o mandarmos embora daqui,
se ele for detido pelos agentes de Llorenç de Bellera ou dos seus próprios
inimigos e souberem que você deve tudo a ele, a um servo fugitivo que
consentiu um dote que não me cabia?
— Você está me ameaçando?
— Não, Grau, não. Mas está escrito. Tudo está escrito. Se não quer
fazê-lo por gratidão, faça-o por si mesmo. É melhor tê-lo vigiado. Bernat
não deixará Barcelona, ele quer a liberdade. Se não o acolher, você terá um
fugitivo e uma criança. Os dois com um sinal no olho direito, como eu,
vagando por Barcelona à disposição desses inimigos que você tanto teme.
Grau Puig cravou os olhos na esposa. Ia responder, mas limitou-se a
fazer um gesto com a mão. Deixou o aposento, e Guiamona ouviu-o subir
a escada em direção ao quarto.

1. Medida de capacidade para grãos usada na Catalunha, equivalente a cerca de 70 litros. (N. da
T.)
2. Usanças. Usos e costumes que formavam a base do direito comum na Catalunha. Em catalão
no original. (N. da T.)
3. Instituição de governo da cidade de Barcelona composta por cem conselheiros. (N. da T.)
4. Magistrado que em Aragão, na Catalunha e em Maiorca tinha, mais ou menos, a mesma
jurisdição que o corregedor em Castela. (N. da T.)
5

Seu filho ficará na casa grande. D. Guiamona cuidará dele. Quando tiver
idade suficiente, ele entrará na oficina como aprendiz.
Bernat deixou de escutar o que Jaume lhe dizia. O oficial apresentou-se
no dormitório ao amanhecer. Escravos e aprendizes saltaram de suas
enxergas como se ele fosse o próprio demônio e saíram esbarrando uns nos
outros.
Bernat ouviu aquelas palavras e disse a si mesmo que Arnau seria bem
cuidado e se tornaria um aprendiz, um homem livre com um ofício.
— Você entendeu? — perguntou o contramestre.
Ante o silêncio de Bernat, Jaume vituperou:
— Malditos camponeses!
Bernat esteve a ponto de reagir com violência, mas o sorriso que surgiu
no rosto de Jaume o deteve.
— Tente — provocou-o. — Faça isso e sua irmã não terá a que se
agarrar. Vou repetir o importante, camponês: você trabalhará de sol a sol,
como todos os demais, em troca de cama, roupa e comida... e que D.
Guiamona se encarregue de seu filho. Está proibido de entrar na casa; não
poderá entrar sob nenhum pretexto. Também está proibido de sair da
oficina enquanto não transcorrerem o ano e um dia de que precisa para
obter a liberdade, e deve se esconder quando alguém estranho entrar na
oficina. Não deve contar a sua situação a ninguém, nem aos daqui de
dentro, ainda que com este sinal... — Jaume balançou a cabeça. — Este é o
acordo que o mestre fez com D. Guiamona. Está bem?
— Quando poderei ver o meu filho? — perguntou Bernat.
— Isso não me compete.
Bernat fechou os olhos. Quando avistaram Barcelona pela primeira vez,
ele prometeu a Arnau a liberdade. Seu filho não teria nenhum senhor.
— O que tenho de fazer? — disse finalmente.
Carregar lenha. Carregar troncos e troncos, centenas deles, milhares
deles, para que os fornos trabalhassem. E cuidar para que estivessem
sempre acesos. Transportar argila e limpar, limpar o barro, o pó da argila e
a cinza dos fornos. Vezes seguidas, suando e levando a cinza e o pó para a
parte de trás da casa.
Quando voltava coberto de pó e cinza, a oficina estava suja novamente
e tinha de recomeçar. Colocar as peças ao sol ajudado por outros escravos
sob o olhar atento de Jaume, que controlava a oficina o tempo todo,
passeando entre eles, gritando, esbofeteando os jovens aprendizes e
maltratando os escravos, nos quais não hesitava em usar o açoite quando
alguma coisa não saía como queria.
Em certa ocasião, uma grande vasilha escapou de suas mãos quando a
levavam ao sol e rolou pelo chão, e Jaume fustigou os culpados. Ela nem
tinha quebrado, mas o contramestre, gritando como um possesso, açoitou
sem piedade os três escravos que haviam transportado a peça com Bernat.
Em dado momento, levantou o chicote contra ele.
— Faça isso e eu o mato — ameaçou-o Bernat, parado à sua frente.
Jaume hesitou; em seguida, enrubesceu e fez o açoite estalar em
direção aos outros, que já estavam a uma distância prudente. Jaume saiu
correndo atrás deles, e Bernat respirou fundo ao vê-lo afastar-se.
Apesar de tudo, ele continuou a trabalhar duro. Comia o que lhe
punham na frente. Gostaria de poder dizer à gorda mulher que os servia
que os seus cachorros eram mais bem alimentados, mas optou por ficar
calado ao ver que os aprendizes e os escravos agarravam as tigelas
avidamente. Dormia no dormitório em uma enxerga, sob a qual guardava
seus poucos pertences e o dinheiro que tinha trazido. Mas o enfrentamento
com Jaume lhe garantira o respeito dos escravos, dos aprendizes e também
dos outros oficiais, e Bernat dormia tranquilo, apesar das pulgas, do cheiro
de suor e dos roncos.
Ele suportava tudo pelas duas vezes por semana em que a escrava
moura lhe trazia Arnau, quase sempre adormecido, quando Guiamona já
não precisava dela. Bernat tomava-o nos braços e sentia o cheiro de roupa
limpa, de criança cuidada. Depois, com cuidado para não despertá-lo,
levantava sua roupa para ver suas pernas, seus braços e sua barriga
satisfeita. Ele crescia e engordava. Bernat embalava o filho e se virava
para Habiba, a jovem moura, suplicando-lhe um pouco mais de tempo com
o olhar. Às vezes tentava acariciá-lo, mas suas mãos enrugadas raspavam a
pele da criança e Habiba o levava sem hesitar. Com o passar dos dias,
chegou a um acordo tácito com a moura — ela nunca falava com ele —,
acariciando as bochechas rosadas do pequeno com o dorso dos dedos; o
contato com sua pele lhe provocava tremores. Quando, finalmente, a moça
gesticulava para que devolvesse a criança, Bernat beijava Arnau na testa
antes de entregá-lo.
Com o decorrer dos meses, Jaume percebeu que Bernat podia fazer um
trabalho mais frutífero na oficina. Eles haviam aprendido a se respeitar
mutuamente.
— Os escravos não têm jeito — comentou o contramestre com Grau
Puig em certa ocasião —, só trabalham por medo do açoite, não têm
nenhum cuidado. No entanto, seu cunhado...
— Não diga que é meu cunhado! — interrompeu-o Grau, mas aquela
era uma licença que Jaume gostava de se permitir com seu mestre.
— O camponês... — o contramestre se corrigiu, fingindo embaraço —,
o camponês é diferente; ele se interessa até pelas tarefas menos
importantes. Limpa os fornos com um cuidado que nunca...
— E o que você propõe? — interrompeu-o Grau de novo, sem levantar
os olhos dos papéis que estava examinando.
— Pois eu poderia indicar-lhe outras tarefas de maior responsabilidade
e, como nos sai barato...
Ao ouvir estas palavras, Grau levantou o olhar para o contramestre.
— Não se iluda — disse. — Pode não ter custado dinheiro como um
escravo, não terá um contrato de aprendizagem e não lhe pagarão como
aos oficiais, mas é o trabalhador mais caro que eu tenho.
— Eu me referia...
— Sei a que você se referia. — Grau voltou aos seus papéis. — Faça o
que considerar adequado, mas aviso: que o camponês nunca esqueça qual é
o seu lugar nesta oficina. Se isso acontecer, mando você embora e você
nunca será mestre. Entendeu?
Jaume assentiu, e, a partir daquele dia, Bernat passou a ajudar os
oficiais. Até ultrapassou os jovens aprendizes, incapazes de manejar os
moldes grandes e pesados de argila refratária que suportavam a
temperatura necessária para cozer a louça e a cerâmica. Com os moldes
eles faziam grandes vasos bojudos, de boca estreita, gargalo muito curto e
base chata e estreita, com capacidade para até duzentos e oitenta litros,1
destinados ao transporte de grãos e vinho. Até aquele momento, Jaume era
obrigado a destinar pelo menos dois oficiais para aquelas tarefas; com a
ajuda de Bernat, bastava um para completar todo o processo: fazer o
molde, cozê-lo, aplicar no vaso uma camada de óxido de estanho e óxido
de chumbo como fundentes e colocá-lo em um segundo forno a uma
temperatura mais baixa, para que o estanho e o chumbo se fundissem e se
misturassem, proporcionando à peça um revestimento impermeável
vidrado de cor branca.
Jaume ficou atento ao resultado de sua decisão até se dar por satisfeito:
a produção da oficina aumentou consideravelmente, e Bernat continuava
igualmente cuidadoso em suas tarefas. “Mais até que alguns oficiais!”, se
viu obrigado a admitir uma das vezes em que se aproximou de Bernat e do
oficial de turno para estampar o selo do mestre na base do gargalo de um
novo vaso.
Jaume tentava ler os pensamentos ocultos por trás do olhar do
camponês. Não havia ódio em seus olhos e tampouco parecia existir
rancor. Ele se perguntava o que lhe teria acontecido para ter acabado ali.
Não era como os outros parentes do mestre que tinham se apresentado na
oficina: todos tinham cedido por dinheiro. Já Bernat... a maneira como
acariciava o filho quando a moura o levava até ele! Queria a liberdade e
trabalhava por ela, duramente, mais do que ninguém.
O entendimento entre os dois homens deu outros frutos, além do
aumento da produção. Em uma ocasião em que Jaume se aproximou para
estampar o selo do mestre, Bernat dirigiu o olhar para a base do vaso.
“Você nunca será mestre!”, ameaçara-o Grau. Estas palavras voltavam à
cabeça de Jaume cada vez que considerava tratar Bernat de maneira mais
amistosa.
Jaume simulou um repentino acesso de tosse. Afastou-se do vaso sem
marcá-lo e olhou para o ponto que o camponês assinalava: havia uma
pequena rachadura, o que significava que a peça racharia no forno. Ele foi
tomado de cólera contra o oficial... e contra Bernat.
Transcorreram o ano e o dia necessários para que Bernat e o filho
fossem livres. De sua parte, Grau Puig conseguiu seu cobiçado posto no
Conselho de Cento da cidade. No entanto, Jaume não observou nenhuma
reação no camponês. Qualquer outro teria exigido a carta de cidadania e se
teria lançado às ruas de Barcelona à procura de diversão e mulheres, mas
Bernat não o fez. O que acontecia com aquele camponês?
Bernat lembrava recorrentemente do rapaz da forja. Não se sentia
culpado; aquele desgraçado se interpusera no caminho de seu filho. Mas se
ele tivesse morrido... Podia obter a liberdade de seu senhor, mas mesmo
depois de transcorridos um ano e um dia ele não se livraria da condenação
por assassinato. Guiamona lhe recomendara que não contasse a ninguém, e
ele assim tinha feito. Não podia se arriscar; talvez Llorenç de Bellera
tivesse dado ordens de capturá-lo como fugitivo e também como
assassino. O que aconteceria com Arnau se o prendessem? O assassinato
era castigado com a morte.
Seu filho continuava a crescer são e forte. Ainda não falava, mas já
andava e dava gorjeios que deixavam Bernat embevecido. Apesar de
Jaume continuar a não lhe dirigir a palavra, sua nova situação na oficina
— que Grau, ocupado com seus negócios e cargos, ignorava — levara os
outros a respeitá-lo mais, se isto era possível, e, com a aquiescência tácita
de Guiamona, que também andava mais ocupada devido à nova posição do
esposo, a moura lhe trazia o menino com mais frequência, em geral
acordado.
Bernat não queria ser visto em Barcelona para não prejudicar o futuro
do filho.

1. Para facilitar a compreensão, foram utilizadas medidas do sistema métrico decimal que
obviamente não existiam na época. (N. do E. espanhol.)
SEGUNDA PARTE

Servos da nobreza
6
Natal de 1329
Barcelona

Arnau tinha feito oito anos e se transformara em um menino tranquilo e


inteligente. Os cabelos castanhos, longos e crespos caíam-lhe sobre os
ombros, emoldurando um rosto atraente em que se destacavam os olhos
grandes, límpidos e cor de mel.
A casa de Grau Puig estava enfeitada para celebrar o Natal. Aquele
menino que aos dez anos pudera deixar a casa do pai graças a um vizinho
generoso tinha triunfado em Barcelona e agora, ao lado da esposa,
esperava a chegada dos convidados.
— Eles vêm me homenagear — disse ele a Guiamona. — Quando se
viu nobres e mercadores irem à casa de um artesão?
Ela se limitava a escutá-lo.
— O próprio rei me apoia. Você entende? O próprio rei! O rei Afonso.
Naquele dia não se trabalhava na oficina, e Bernat e Arnau, sentados no
chão e aguentando o frio, viam da esplanada dos vasos os escravos,
oficiais e aprendizes entrando e saindo da casa sem cessar. Naqueles oito
anos, Bernat não pusera os pés no lar dos Puig outra vez, mas isso não
importava, pensou enquanto acariciava os cabelos de Arnau: aqui estava
seu filho abraçado a ele, o que mais poderia querer? O menino comia e
vivia com Guiamona e tinha aprendido a ler, escrever e contar junto com
os primos. Porém sabia que Bernat era o seu pai, pois Guiamona não o
deixava esquecer-se disto. Quanto a Grau, tratava o sobrinho com absoluta
indiferença.
Arnau se comportava bem no interior da casa; Bernat lhe recomendava
isso frequentemente. O rosto de Bernat se iluminava quando ele entrava
rindo na oficina. Os escravos e oficiais e até Jaume não podiam deixar de
reparar no menino sorridente que corria para a esplanada e se sentava para
esperar que o pai terminasse seus afazeres, para então correr ao seu
encontro e abraçá-lo com força. Depois voltava a se sentar afastado do
movimento para observar o pai e sorria a quem quer que se dirigisse a ele.
Algumas noites, depois de fechada a oficina, Habiba deixava que
escapasse, e então pai e filho conversavam e riam.
As coisas tinham mudado, apesar de Jaume seguir interpretando o papel
que lhe exigia a onipresente ameaça do patrão. Grau não se preocupava
com a renda que obtinha nem com qualquer outra coisa relacionada à
oficina. No entanto, não podia prescindir dela, pois era graças à oficina
que ele acumulava os cargos de juiz do grêmio, pró-homem de Barcelona e
membro do Conselho de Cento. Contudo, uma vez superado o que não
passava de requisito formal, Grau Puig entrou de vez na política e nas
finanças de alto nível, algo muito fácil para um pró-homem da cidade
condal.
Desde o início de seu reinado, no ano de 1291, Jaime II tentara se impor
à oligarquia feudal catalã, e para isto buscara a ajuda das cidades livres e
de seus cidadãos, a começar por Barcelona. A Sicília já pertencia à coroa
desde os tempos de Pedro, o Grande; por isso, quando o papa concedeu a
Jaime II o direito de conquistar a Sardenha, Barcelona e seus cidadãos
financiaram a empreitada.
A anexação das duas ilhas mediterrâneas à Coroa favorecia os
interesses de todas as partes: garantia o abastecimento de cereais à
Catalunha e o domínio catalão do Mediterrâneo ocidental e, com ele, o
controle das rotas marítimas comerciais; de seu lado, a Coroa reservava
para si a exploração das minas de prata e as salinas da ilha.
Grau Puig não vivera aqueles acontecimentos. Sua oportunidade chegou
com a morte de Jaime II e a coroação de Afonso III. Naquele ano, o de
1329, os corsos iniciaram uma revolta na cidade de Sassari. Ao mesmo
tempo, os genoveses, temendo o poder comercial da Catalunha,
declararam guerra ao principado e atacaram os navios que portavam sua
bandeira. O rei e os comerciantes não hesitaram um momento sequer: a
campanha para sufocar a revolta na Sardenha e a guerra contra Gênova
deviam ser financiadas pela burguesia de Barcelona. E assim ocorreu,
principalmente sob o impulso de um dos pró-homens da cidade: Grau
Puig, que contribuiu generosamente para os gastos da guerra e, com
discursos inflamados, convenceu os mais refratários a colaborar. O próprio
rei agradeceu publicamente a sua ajuda.
Enquanto Grau ia a cada instante à janela para ver se seus convidados
chegavam, Bernat se despedia do filho com um beijo no rosto.
— Está fazendo muito frio, Arnau. É melhor você entrar. — O menino
fez menção de se queixar. — Hoje o jantar vai ser bom, não é?
— Galo, torrone e barquilhos — respondeu o filho rapidamente.
Bernat deu-lhe uma palmada carinhosa.
— Vá para dentro. Depois conversamos.

***

Arnau chegou a tempo de sentar-se para jantar; ele e os dois filhos


menores de Grau, Guiamon, de sua idade, e Margarida, um ano e meio
mais velha, comeriam na cozinha; os dois maiores, Josep e Genís,
comeriam no andar de cima, com os pais.
A chegada dos convidados aumentou o nervosismo de Grau.
— Eu me encarrego de tudo — disse a Guiamona quando preparava a
festa —, você apenas atende as mulheres.
— Mas como você vai se encarregar...? — tentou protestar Guiamona;
no entanto, Grau já estava dando instruções à cozinheira Estranya, uma
escrava mulata corpulenta e descarada que olhava sua senhora de soslaio
enquanto ouvia as palavras do seu senhor.
“Como você espera que eu reaja?”, pensou Guiamona. “Você não está
falando com o seu secretário, nem no grêmio, nem no Conselho de Cento.
Você não me considera capaz de atender os seus convidados, não é? Não
estou à sua altura, não é verdade?”.
Pelas costas do marido, Guiamona tentou pôr ordem entre os criados e
preparar tudo para que a celebração do Natal fosse um sucesso, mas no dia
da festa, com Grau atento a tudo, até às luxuosas capas dos convidados, ela
teve de ficar em segundo plano e limitar-se a sorrir para as mulheres, que
a olhavam por cima do ombro. Enquanto isso, Grau parecia o general de
um exército em plena batalha; conversava com uns e outros e ao mesmo
tempo indicava aos escravos o que deveriam fazer e a quem deveriam
servir; porém, quanto mais gesticulava, mais nervosos estes ficavam. No
fim, todos os escravos – exceto Estranya, que estava na cozinha
preparando o jantar – optaram por seguir Grau pela casa, atentos às suas
ordens peremptórias.
Livres de qualquer vigilância – pois Estranya e seus ajudantes, de
costas para eles, lidavam com as panelas e o fogo –, Margarida, Guiamon
e Arnau misturaram o galo com o torrone e os barquilhos e
compartilharam a comida sem deixar de brincar. Em dado momento,
Margarida pegou uma jarra de vinho e tomou um bom gole. Suas
bochechas ficaram vermelhas imediatamente, mas a menina conseguiu
superar a prova sem cuspir o vinho. Depois, insistiu com o irmão e o
primo para que a imitassem. Arnau e Guiamon beberam e tentaram manter
a compostura como Margarida tinha feito, mas, com os olhos cheios de
lágrimas, terminaram tossindo e tateando a mesa em busca de água.
Depois, os três começaram a rir: pelo simples fato de se olharem, por
causa da jarra de vinho, da bunda de Estranya.
— Fora daqui! — gritou a escrava, tendo suportado o suficiente das
brincadeiras das crianças.
Os três saíram da cozinha correndo, gritando e rindo.
— Xô! — repreendeu-os um dos escravos perto da escada. — O senhor
não quer crianças aqui.
— Mas... — começou a dizer Margarida.
— Neste caso não há mas — insistiu o escravo.
Naquele momento Habiba desceu para buscar mais vinho. O senhor
tinha olhado para ela com os olhos cheios de raiva porque um dos
convidados tentara se servir e só conseguira verter algumas míseras gotas.
— Vigie as crianças — disse Habiba ao escravo da escada ao passar por
ele. — Vinho! — gritou para Estranya antes de entrar na cozinha.
Grau, temendo que a moura trouxesse o vinho ordinário em vez do que
devia servir, saiu correndo atrás dela.
As crianças já não riam. Aos pés da escada, observavam a
movimentação, na qual de repente Grau se incluiu.
— O que vocês estão fazendo aqui? — disse ao vê-los junto do escravo.
— E você? O que faz aqui parado? Vá dizer a Habiba que o vinho deve ser
o das talhas velhas. Não esqueça, porque se você se enganar eu o esfolo
vivo. Crianças, já para a cama.
O escravo saiu disparado em direção à cozinha. As crianças se
entreolharam rindo, os olhos acesos pelo vinho. Quando Grau subiu as
escadas correndo, elas caíram na gargalhada. Para a cama? Margarida
olhou a porta bem aberta, franziu os lábios e arqueou as sobrancelhas.
— E as crianças? — perguntou Habiba quando o escravo apareceu.
— Vinho das talhas velhas... — começou ele.
— E as crianças?
— Velhas. Das velhas.
— E as crianças? — insistiu ainda Habiba.
— Na cama. O senhor disse que fossem para a cama. Estão com ele.
Das talhas velhas, sim? Ele nos esfolará...

***

Era Natal, e Barcelona permanecia vazia enquanto as pessoas não saíssem


para a missa de meia-noite para oferecer um galo sacrificado. A lua
refletida no mar fazia a rua parecer estender-se até o horizonte. Os três
olharam a esteira prateada na água.
— Hoje não vai haver ninguém na praia — sussurrou Margarida.
— Ninguém sai para o mar no Natal — acrescentou Guiamon.
Ambos se voltaram para Arnau, que resistiu.
— Ninguém vai perceber — insistiu Margarida. — Vamos e voltamos
logo. São só uns passos.
— Covarde — desafiou-o Guiamon.
Correram até Framenors, o convento franciscano que se erguia na
extremidade oriental da muralha da cidade, junto ao mar. Dali chegaram à
praia, que se estendia até o convento de Santa Clara, no limite ocidental de
Barcelona.
— Olhem só! — exclamou Guiamon. — A frota da cidade!
— Eu nunca tinha visto a praia assim — acrescentou Margarida.
Arnau, com os olhos arregalados, assentia com a cabeça.
De Framenors a Santa Clara, a praia estava abarrotada de embarcações
de todos os tamanhos. Nenhuma edificação impedia o desfrute daquela
vista magnífica. Quase cem anos atrás, o rei Jaime, o Conquistador,
proibira construir na praia de Barcelona, dissera Grau aos filhos certa vez,
quando, junto de seu professor, eles o tinham acompanhado ao porto para
ver carregar ou descarregar um navio do qual era sócio. A praia devia ficar
livre para que os marinheiros pudessem ancorar seus navios. Mas as
crianças não tinham dado a menor importância à explicação de Grau. Por
acaso não era natural que os navios estivessem na praia? Sempre tinham
estado ali. Grau trocou olhares com o mentor.
— Nos portos dos nossos inimigos ou dos nossos concorrentes
comerciais — explicou o preceptor —, as embarcações não estão
ancoradas na praia.
De repente, os quatro filhos de Grau olharam para o professor.
Inimigos! Aquilo sim lhes interessava.
— É verdade — concordou Grau, conquistando finalmente a atenção
das crianças. O preceptor sorriu. — Gênova, nossa inimiga, possui um
magnífico porto natural protegido do mar, graças ao qual os barcos não
precisam ancorar na praia. Veneza, nossa aliada, conta com uma grande
lagoa à qual se chega por canais estreitos; os temporais não a afetam, e as
embarcações podem ficar tranquilas. O porto de Pisa se comunica com o
mar através do rio Arno, e até Marselha possui um porto natural protegido
das inclemências do mar.
— Os gregos da Fócida já usavam o porto de Marselha — acrescentou o
outro.
— Os portos dos nossos inimigos são melhores? — perguntou Josep, o
filho mais velho. — Mas nós os vencemos, somos os donos do
Mediterrâneo! — exclamou, repetindo as palavras que tantas vezes ouvira
do pai. Os demais concordaram. — Como é possível?
Grau esperou a explicação do preceptor.
— Porque Barcelona sempre teve os melhores marinheiros. Agora não
temos porto, e ainda assim...
— Como não temos porto? — Genís pulou. — E isto? — disse,
apontando para a praia.
— Isto não é um porto. Um porto deve ser um lugar abrigado, protegido
do mar, e isto aqui... — O professor gesticulou, apontando para o mar
aberto que banhava a praia. — Escutem — continuou —, Barcelona
sempre foi uma cidade de marinheiros. Antes, há muitos anos, tínhamos
um porto como todas essas cidades que o seu pai mencionou. Na época dos
romanos, as embarcações se refugiavam no monte Taber, mais ou menos
por ali — ele apontou para o interior da cidade —, mas a terra foi
ganhando terreno do mar e aquele porto desapareceu. Depois tivemos o
porto Comtal, que também desapareceu, e, por último, o porto de Jaime I,
abrigado por outro pequeno refúgio natural, o Puig de les Falsies. Sabem
onde está agora o Puig de les Falsies?
Os quatro se entreolharam e depois olharam para Grau, que, com um
gesto dissimulado, como se não quisesse que o outro o visse, apontou com
o dedo para o chão.
— Aqui? — perguntaram as crianças em uníssono.
— Sim — respondeu o professor —, estamos sobre ele. Também
desapareceu, e Barcelona ficou sem porto, mas nessa época já éramos
marinheiros, os melhores, e continuamos a ser os melhores... mesmo sem
porto.
— Então qual é a importância do porto? — questionou Margarida.
— Isso o seu pai pode explicar melhor — disse o preceptor, e Grau
assentiu.
— Tem muita, muitíssima importância, Margarida. Vê aquele navio? —
perguntou, assinalando uma grande embarcação à vela, uma galera,
rodeada de pequenos barcos. — Se tivéssemos porto, poderíamos
descarregar no cais, sem precisar que todos esses barqueiros recolhessem a
mercadoria. Além disso, se houvesse um temporal, o navio estaria em
grande perigo, pois não está navegando, está muito próximo da praia e
teria de sair de Barcelona.
— Por quê? — insistiu a menina.
— Porque ali não conseguiria enfrentar o temporal e poderia naufragar.
Tanto é assim que a própria lei, as Ordenações do Mar da Ribera de
Barcelona, exige que em caso de temporal os barcos se refugiem no porto
de Salou ou no de Tarragona.
— Não temos porto — lamentou Guiamon, como se lhe tivessem tirado
algo de suma importância.
— Não — confirmou Grau, abraçando-o —, mas continuaremos a ser
os melhores marinheiros, Guiamon. Somos os donos do Mediterrâneo! E
temos a praia. Para lá vão nossas embarcações quando termina a época de
navegação, é ali que as consertamos e construímos. Você está vendo os
estaleiros? Ali, na praia, diante daqueles arcos.
— Podemos subir nas embarcações? — perguntou Guiamon.
— Não — respondeu, sério, o pai. — As embarcações são sagradas,
filho.
Arnau nunca saía com Grau e seus filhos, e menos ainda com
Guiamona. Ficava em casa com Habiba, e depois os primos lhe contavam
tudo o que tinham visto ou ouvido. Explicaram-lhe também sobre as
embarcações.
E elas estavam todas lá naquela noite de Natal. Todas! As pequenas —
alvarengas, esquifes e gôndolas —, as médias — lenhos, barcos, barcos
castelhanos, batéis, faluchos, pinaças, galeonetes e barquants, bergantins
—, e até algumas embarcações grandes — naus, navetes, cocas e galeras,
as quais, por uma proibição real, não podiam navegar entre os meses de
outubro e abril, apesar de seu tamanho.
— Olhem só! — exclamou Guiamon novamente.
No estaleiro, em frente a Regomir, ardiam fogueiras, em torno das
quais estavam alguns vigilantes. De Regomir a Framenors as embarcações
se apinhavam na praia, silenciosas, iluminadas pelo luar.
— Sigam-me, marinheiros! — ordenou Margarida, erguendo o braço
direito.
E, entre temporais e corsários, abordagens e batalhas, a capitã
Margarida levou seus homens em meio às embarcações, saltando de uma
borda para outra, vencendo os genoveses e os mouros e conquistando a
Sardenha para o rei Afonso aos gritos.
— Quem vem lá?
Os três ficaram paralisados numa alvarenga.
— Quem vem lá?
Margarida assomou meia cabeça pela borda. Três tochas brilhavam
entre os navios.
— Vamos embora — sussurrou Guiamon, deitado no fundo, puxando o
vestido da irmã.
— Não podemos — respondeu ela —, eles impedem nossa passagem...
— E se formos para o estaleiro?
Margarida olhou para Regomir. Outras duas tochas estavam a caminho.
— Também não dá — murmurou.
“As embarcações são sagradas!” As palavras de Grau ecoaram na
lembrança das crianças. Guiamon começou a soluçar. Margarida fez com
que se calasse. Uma nuvem ocultou a lua.
— Ao mar — disse a capitã.
Saltaram pela borda e se jogaram na água. Margarida e Arnau ficaram
encolhidos, Guiamon não precisou fazê-lo; os três estavam atentos às
tochas que se moviam entre os navios. Quando as tochas se aproximaram
dos navios na orla, os três retrocederam. Margarida olhou para a lua,
rezando em silêncio para que permanecesse oculta.
A inspeção demorou uma eternidade, mas ninguém olhou para o mar e,
se o fez... era Natal e, afinal de contas, eram só três crianças assustadas... e
suficientemente molhadas. Fazia muito frio.
De volta a casa, Guiamon nem podia caminhar. Seus dentes batiam, os
joelhos tremiam e seu corpo convulsionava. Margarida e Arnau o
agarraram pelas axilas e percorreram o curto trajeto.
Quando regressaram, os convidados já tinham ido embora. Grau e os
escravos, ao descobrir a escapada dos meninos, estavam a ponto de sair
para procurá-los.
— Foi Arnau — acusou Margarida, enquanto Guiamona e a escrava
submergiam o pequeno na água quente —, ele nos convenceu a ir à praia.
Eu não queria... — A menina acompanhou suas mentiras com as lágrimas
que lhe davam tão bons resultados com o pai.
O banho quente, os cobertores e o caldo fervente não curaram Guiamon.
A febre subiu. Grau mandou chamar o médico, mas seus cuidados
tampouco deram resultado; a febre subia, Guiamon começou a tossir e a
respiração converteu-se em um sibilo queixoso.
— Não posso fazer mais nada — reconheceu resignado Sebastià Font, o
doutor, na terceira noite em que foi visitá-lo.
Guiamona levou as mãos ao rosto pálido e depauperado, e começou a
chorar.
— Não pode ser! — gritou Grau. — Tem de haver algum remédio.
— Pode ser, mas... — O médico conhecia bem Grau e suas aversões.
Porém a ocasião pedia medidas desesperadas. — Você devia chamar
Jafudà Bonsenyor.
Grau ficou em silêncio.
— Chame-o — apressou-o Guiamona aos soluços.
“Um judeu!”, pensou Grau. Quem paga a um judeu paga ao diabo,
tinham-lhe ensinado na juventude. Quando era criança, junto com outros
aprendizes, Grau corria atrás das mulheres judias para quebrar seus
cântaros quando iam buscar água nas fontes públicas. E continuou a fazer
isso até que o rei, atendendo aos apelos da judiaria de Barcelona, proibiu
aquelas vexações. Odiava os judeus. Toda a vida tinha perseguido os que
levavam o escudo redondo, ou cuspido neles. Eram hereges; tinham
matado Jesus Cristo... Como um deles poderia entrar na sua casa?
— Chame-o! — gritou Guiamona.
O grito ressoou por todo o bairro. Bernat e os demais ouviram e se
encolheram em suas enxergas. Havia três dias que não via Arnau nem
Habiba, mas Jaume mantinha-o informado dos acontecimentos.
— O seu filho está bem — disse-lhe quando ninguém os observava.
Jafudà Bonsenyor veio assim que solicitaram sua presença. Vestia uma
túnica preta simples com o círculo. A distância, Grau o observava no
refeitório, encolhido e com uma longa barba grisalha, ouvindo as
explicações de Sebastià na presença de Guiamona. “Cure-o, judeu!”, disse-
lhe em silêncio quando seus olhares se cruzaram. Jafudà Bonsenyor
inclinou a cabeça em sua direção. Tratava-se de um erudito cuja vida era
dedicada ao estudo da filosofia e dos textos sagrados. Por encomenda do
rei Jaime II, tinha escrito o Llibre de paraules de savis y filòsofs,1 mas
também era médico, o mais importante da comunidade judaica. No
entanto, quando viu Guiamon, Jafudà Bonsenyor limitou-se a balançar a
cabeça negativamente.
Grau ouviu os gritos de sua mulher. Correu para a escada. Guiamona
desceu dos quartos acompanhada de Sebastià. Atrás deles ia Jafudà.
— Judeu! — exclamou Grau, cuspindo quando ele passou.
Ao fim de dois dias, Guiamon expirou pela última vez.

***

Assim que entraram na casa, todos de luto após o enterro do menino, Grau
fez um sinal para que Jaume se aproximasse dele e de Guiamona.
— Quero que você leve Arnau agora mesmo e fique atento para que ele
não volte a pôr os pés nesta casa. — Guiamona escutou-o em silêncio.
Grau lhe contou o que Margarida tinha dito: Arnau os incitara. Seu
filho ou uma simples menina não podiam ter planejado aquela escapada.
Guiamona ouviu suas palavras e as acusações, que a culpavam de ter
acolhido o irmão e o sobrinho. Ainda que no fundo do coração soubesse
que aquilo não passava de uma travessura com consequências fatais, a
morte de seu filho mais novo lhe roubara o ânimo para enfrentar o marido,
e as palavras de Margarida incriminando Arnau quase a impediam de
conviver com o menino. Era o filho de seu irmão, não lhe desejava
nenhum mal, mas preferia não vê-lo.
— Amarre a moura numa das vigas da oficina — ordenou Grau a
Jaume, antes que este desaparecesse à procura de Arnau — e reúna todo o
pessoal em torno dela, incluindo Arnau.
Grau refletira sobre isso durante o serviço funerário: a culpa era da
escrava, ela devia tê-los vigiado. Depois, enquanto Guiamona chorava e o
sacerdote continuava a recitar as orações, semicerrou os olhos e se
perguntou que castigo deveria dar-lhe. A lei só o proibia de matá-la ou
mutilá-la, mas ninguém poderia censurá-lo se ela morresse em
consequência da pena infligida. Grau nunca tinha enfrentado um delito tão
grave. Pensou nas torturas de que tinha ouvido falar. Untar o corpo com
gordura animal fervente — será que Estranya teria gordura suficiente na
cozinha? —, acorrentá-la ou encerrá-la em uma masmorra — muito leve
—, surrá-la, colocar-lhe grilhões nos pés... ou flagelá-la.
— Cuidado ao usá-lo — disse-lhe o capitão de um de seus navios ao
presenteá-lo —, com um só golpe você pode esfolar uma pessoa.
Desde então o mantinha guardado: um valioso açoite oriental de couro
trançado, grosso mas leve, fácil de manejar e terminado em uma série de
franjas, todas elas incrustadas de metais cortantes.
Quando o sacerdote ficou em silêncio, vários rapazes agitaram os
incensórios em torno do caixão. Guiamona tossiu; Grau respirou fundo.

***

A moura esperava, amarrada a uma viga pelas mãos, tocando o chão com a
ponta dos pés.
— Não quero que meu filho veja isto — disse Bernat a Jaume.
— Não é o momento, Bernat — aconselhou-o Jaume. — Não crie
problemas...
Bernat negou com a cabeça novamente.
— Você trabalhou muito duro, Bernat, não crie problemas para seu
filho.
Grau, de luto, entrou no círculo que os escravos, os aprendizes e os
oficiais formavam em torno de Habiba.
— Dispa-a — ordenou a Jaume.
A moura tentou levantar as pernas ao notar que Jaume lhe arrancava a
camisa. Seu corpo nu, escuro, brilhando com o suor, ficou exposto aos
espectadores forçados... e ao açoite que Grau já havia colocado no chão.
Bernat agarrava com força os ombros de Arnau, que começou a chorar.
Grau puxou o braço para trás e soltou o açoite contra o torso nu. O
couro estalou nas costas, e as franjas metálicas, depois de dar a volta no
corpo, se cravaram em seus peitos. Um filete de sangue apareceu na pele
escura da moura, e os seus peitos ficaram em carne viva. A dor penetrava
em seu corpo. Habiba levantou o rosto para o céu e urrou. Arnau começou
a tremer descontroladamente e gritou pedindo a Grau que parasse.
Grau esticou o braço mais uma vez.
— Você devia ter vigiado meus filhos!
O estalar do couro obrigou Bernat a virar o filho para si e apertar-lhe a
cabeça contra seu estômago. A moça urrou novamente. Arnau abafou os
gritos contra o corpo do pai. Grau continuou flagelando a moura até que as
suas costas e ombros, peitos, nádegas e pernas se transformaram em uma
massa sanguinolenta.

***

— Diga ao seu mestre que eu vou embora.


Jaume apertou os lábios. Por um momento, quis abraçar Bernat, mas
alguns aprendizes olhavam para ele.
Bernat viu o contramestre encaminhar-se para a casa. Tinha tentado
falar com Guiamona, mas a irmã não respondera a nenhum de seus
recados. Havia vários dias que Arnau não saía da enxerga onde o pai
dormia; ficava o dia todo sentado no colchão de palha que agora
compartilhavam, e quando o pai entrava para vê-lo, encontrava-o sempre
com o olhar fixo no lugar onde haviam tentado curar a moura.
Soltaram-na quando Grau abandonou a oficina, mas nem sabiam por
onde segurar o corpo. Estranya correu trazendo óleo e unguentos, mas
desistiu ao ver aquela massa ensanguentada. Arnau presenciara tudo a
certa distância, parado e com lágrimas nos olhos; Bernat tentou fazê-lo
sair, mas o menino não quis. Naquela mesma noite, Habiba faleceu. O
único sinal que anunciou a sua morte foi que a moura deixou de emitir um
gemido constante, como o pranto de um recém-nascido, que os perseguira
o dia todo.
Grau ouviu o recado do cunhado pela boca de Jaume. Era só o que
faltava: os Estanyol, com seus sinais, percorrendo Barcelona, procurando
trabalho, falando dele com quem quisesse escutá-los... e muitas pessoas
estariam dispostas a fazê-lo, agora que estava alcançando o cume. Seu
estômago encolheu e a boca ficou seca: Grau Puig, pró-homem de
Barcelona, juiz do grêmio dos ceramistas, membro do Conselho de Cento,
protegendo camponeses fugitivos. Os nobres estavam contra ele. Quanto
mais Barcelona ajudava o rei Afonso, menos ele dependia dos senhores
feudais e menores eram os benefícios que os nobres obtinham do monarca.
E quem tinha sido o principal incentivador da ajuda ao rei? Ele. Quem
eram os prejudicados pela fuga de servos do campo? Os nobres com terras.
Grau balançou a cabeça e suspirou. Maldita hora em que permitira que
aquele camponês se alojasse em sua casa!
— Faça-o entrar — ordenou a Jaume.
Assim que viu o cunhado, Grau disse:
— Jaume me disse que você pretende nos deixar.
Bernat assentiu.
— E o que pensa em fazer?
— Vou procurar trabalho para sustentar meu filho.
— Você não tem nenhum ofício. Barcelona está cheia de gente como
você: camponeses que não puderam viver de suas terras, que não
encontram trabalho e no fim morrem de fome. Além disso — acrescentou
—, você ainda não tem a carta de vizinhança, mesmo tendo tempo
suficiente na cidade.
— O que é isso de carta de vizinhança? — perguntou Bernat.
— É o documento que comprova que você tem um ano e um dia de
residência em Barcelona e que, portanto, é um cidadão livre, não
submetido a nenhum senhorio.
— Onde se consegue esse documento?
— Ele é concedido pelos pró-homens da cidade.
— Eu vou solicitá-lo.
Grau olhou para Bernat. Estava sujo, vestido com uma simples camisa
puída e alpercatas. Imaginou-o diante dos pró-homens da cidade, depois de
ter contado sua história a dezenas de escreventes: o cunhado e o sobrinho
de Grau Puig, pró-homem da cidade, ocultos em sua oficina durante anos.
A notícia correria de boca em boca. Ele mesmo tinha aproveitado
situações como aquela para atacar seus inimigos.
— Sente-se — convidou-o. — Quando Jaume me falou de suas
intenções, conversei com Guiamona — mentiu, para justificar sua
mudança de atitude —, e ela me pediu que me apiedasse de você.
— Não preciso de piedade — rebateu-o Bernat, pensando em Arnau
sentado na enxerga com o olhar perdido. — Há anos trabalho duro em
troca de...
— Este foi o trato — cortou-o Grau —, e você aceitou. Naquele
momento lhe interessava.
— Talvez — reconheceu Bernat —, mas não me vendi como escravo, e
agora já não me interessa.
— Vamos esquecer a piedade. Não creio que você encontre trabalho na
cidade, muito menos se não puder provar que é um cidadão livre. Sem esse
documento, só vai conseguir que se aproveitem de você. Sabe quantos
servos da terra andam vagando por aí, sem filhos nas costas, e aceitam
trabalhar por nada, única e exclusivamente para poder residir um ano e um
dia em Barcelona? Você não pode competir com eles. Vai morrer de fome
antes de receber a carta de vizinhança, você... ou o seu filho. E, apesar do
que aconteceu, não podemos permitir que o pequeno Arnau tenha a mesma
sorte que nosso Guiamon. Basta um. Sua irmã não resistiria. — Bernat
ficou em silêncio, esperando que o cunhado continuasse. — Se lhe
interessar — disse Grau, enfatizando a palavra —, você pode continuar a
trabalhar aqui, nas mesmas condições, e com o pagamento correspondente
a um operário não qualificado, descontando-se a cama e a comida, sua e de
seu filho.
— E Arnau?
— O que tem ele?
— Você prometeu tomá-lo como aprendiz.
— E assim farei... quando ele atingir a idade.
— Eu quero isso por escrito.
— Você o terá — comprometeu-se Grau.
— E a carta de vizinhança?
Grau assentiu. Não seria difícil consegui-la... discretamente.

1. Livro de palavras de sábios e filósofos. (N. do A.)


7

“Declaramos Bernat Estanyol e seu filho Arnau cidadãos livres de


Barcelona...” Finalmente! Bernat sentiu um calafrio ao ouvir as titubeantes
palavras do homem que lia os documentos. Perguntara no estaleiro onde
poderia encontrar alguém que soubesse ler e lhe oferecera uma pequena
tigela em troca do favor. Com o barulho dos trabalhadores ao fundo, o
cheiro de breu e a brisa marinha acariciando-lhe o rosto, Bernat ouviu a
leitura do segundo documento: Grau aceitaria Arnau como aprendiz
quando este fizesse dez anos e se comprometia a ensinar-lhe o ofício de
oleiro. Seu filho era livre e um dia poderia ganhar a vida e se defender
naquela cidade.
Bernat entregou a tigela sorrindo e caminhou de volta à oficina. O fato
de terem lhe concedido a carta de vizinhança significava que Llorenç de
Bellera não os havia denunciado às autoridades, que não existia nenhuma
acusação criminal contra ele. “Será que o rapaz da forja sobreviveu?”,
perguntou-se. Ainda assim... “Fique com nossas terras, senhor de Bellera;
nós ficamos com nossa liberdade”, murmurou desafiante. Os escravos de
Grau e o próprio Jaume interromperam seus afazeres ao ver Bernat entrar,
radiante de felicidade. No chão ainda havia resquícios do sangue de
Habiba. Grau tinha ordenado que não fossem lavados. Bernat tentou não
pisar ali, e seu semblante mudou.
— Arnau — sussurrou ele ao ouvido do filho naquela noite.
— Diga, pai.
— Já somos cidadãos livres de Barcelona.
Arnau não respondeu. Bernat procurou a cabeça do menino e a
acariciou; sabia que aquilo significava pouco para uma criança de quem
tinham arrebatado a alegria. Bernat ouviu a respiração dos escravos e
continuou a acariciar a cabeça do filho, mas uma dúvida o assaltava:
algum dia o menino concordaria em trabalhar para Grau? Naquela noite,
Bernat demorou a conciliar o sono.
Todos os dias, quando amanhecia e os homens iniciavam suas tarefas,
Arnau deixava a oficina de Grau. Todas as manhãs, Bernat tentava falar
com ele e animá-lo. “Você tem de procurar amigos”, quis lhe dizer uma
vez, mas antes que pudesse fazê-lo Arnau lhe deu as costas e saiu
lentamente para a rua. “Desfrute a sua liberdade, filho”, quis dizer em
outra ocasião, quando, ao fazer um gesto para falar com ele, o garoto o
fitou. Mas uma lágrima descera pelo rosto do seu menino. Bernat se
ajoelhou e só conseguiu abraçá-lo. Depois viu-o cruzar o pátio arrastando
os pés. Quando, uma vez mais, Arnau se desviou das manchas de sangue
de Habiba, o açoite de Grau voltou a estalar na cabeça de Bernat. Ele
prometeu a si mesmo que nunca mais cederia diante de um açoite: uma
vez fora suficiente.
Bernat correu atrás do filho, que se virou ao ouvir seus passos. Quando
chegou em frente a Arnau, começou a raspar com os pés a terra endurecida
onde as manchas de sangue da moura permaneciam expostas. O rosto de
Arnau se iluminou, e Bernat raspou com mais força.
— O que você está fazendo? — gritou Jaume da outra extremidade do
pátio.
Bernat ficou gelado. O açoite voltou a estalar em sua lembrança.
— Pai.
Com a ponta da alpercata, Arnau arrastou lentamente a terra enegrecida
que Bernat acabara de raspar.
— O que está fazendo, Bernat? — repetiu Jaume.
Bernat não respondeu. Depois de alguns segundos, o contramestre deu
meia-volta e viu todos os escravos parados... com os olhos cravados nele.
— Traga água, filho — disse Bernat, aproveitando a dúvida de Jaume.
Arnau saiu disparado, e, pela primeira vez em vários meses, Bernat o
viu correr. Jaume assentiu.
Ajoelhados em silêncio, pai e filho rasparam a terra até eliminar as
marcas da injustiça.
— Vá brincar, filho — disse-lhe Bernat naquela manhã, ao darem o
trabalho por terminado.
Arnau baixou os olhos. Queria perguntar com quem devia brincar.
Bernat afagou seus cabelos antes de empurrá-lo em direção à porta.
Quando Arnau se viu na rua, limitou-se, como em todos os dias, a rodear a
casa de Grau e trepar em uma árvore frondosa que se erguia acima da
parede de barro que dava para o jardim. Ali, escondido, esperava que os
primos saíssem acompanhados de Guiamona.
— Por que você não gosta mais de mim? — murmurava. — A culpa
não foi minha.
Seus primos pareciam contentes. A morte de Guiamon se diluía com o
tempo, e só o rosto de sua mãe refletia a dor da lembrança. Josep e Genís
fingiam brigar, enquanto Margarida os observava sentada junto à mãe, que
não se separava dela. Escondido na árvore, Arnau sentia a pontada da
saudade ao lembrar daqueles abraços.
Toda manhã Arnau trepava naquela árvore.
— Eles não gostam mais de você? — ouviu alguém lhe perguntar um
dia.
O susto o fez perder momentaneamente o equilíbrio, e ele ficou a ponto
de cair lá do alto.
Arnau olhou em volta procurando o dono da voz, mas não conseguiu
ver ninguém.
— Aqui — ouviu.
Olhou para dentro da árvore, de onde vinha a voz, mas tampouco
conseguiu ver nada. Finalmente viu alguns galhos se mexerem e, no meio
deles, distinguiu a figura de um menino que o saudava muito sério com a
mão, encarapitado em um dos nós da árvore.
— O que você está fazendo aqui, sentado na minha árvore? —
perguntou Arnau secamente.
O menino, sujo e encardido, não se alterou.
— A mesma coisa que você — respondeu. — Olhando.
— Você não pode olhar — afirmou Arnau.
— Por quê? Eu faço isso há muito tempo. Antes eu via você também.
— O menino ficou em silêncio por uns instantes. — Eles não gostam mais
de você? Por que você chora tanto?
Arnau percebeu que uma lágrima começava a escorrer pela sua face e
sentiu raiva: aquele menino vinha espiando-o.
— Desça daí — ordenou ao voltar para o chão.
O menino desceu com agilidade e parou na frente dele. Arnau era uma
cabeça mais alto, mas o menino não parecia assustado.
— Você tem andado me espiando! — acusou-o Arnau.
— Você também estava espiando — defendeu-se o pequeno.
— É, mas são meus primos, e eu posso fazer isso.
— Então por que você não brinca com eles como costumava fazer?
Arnau não resistiu mais e deixou escapar um soluço. Sua voz hesitou
quando tentou responder à pergunta.
— Não se preocupe — disse o menino, tentando tranquilizá-lo —, eu
também choro muitas vezes.
— E você chora por quê? — perguntou Arnau balbuciando.
— Não sei... Às vezes choro quando penso em minha mãe.
— Você tem mãe?
— Tenho, mas...
— E o que faz aqui se você tem mãe? Por que não está brincando com
ela?
— Eu não posso ficar com ela.
— Por quê? Ela não está na sua casa?
— Não... — titubeou o menino. — Sim, ela está em casa.
— Então por que você não está com ela?
O menininho sujo e encardido não respondeu.
— Ela está doente? — insistiu Arnau.
O outro negou com a cabeça.
— Ela está bem — afirmou.
— Então? — insistiu ainda Arnau.
O menino olhou-o com expressão desconsolada. Mordeu várias vezes o
lábio inferior e finalmente decidiu:
— Venha comigo — disse, puxando-o pela manga da camisa.
O pequeno desconhecido saiu correndo a uma velocidade surpreendente
para sua pouca estatura. Arnau o seguiu tentando não o perder de vista, o
que foi fácil enquanto percorriam o bairro dos ceramistas, que era amplo e
aberto, mas a coisa ficou complicada à medida que adentravam Barcelona;
as estreitas ruas da cidade, cheias de gente e de barracas de artesãos, se
transformavam em verdadeiros funis onde era difícil transitar.
Arnau não sabia onde estava, mas isso não o preocupava; seu único
objetivo era não perder de vista a figura ágil e rápida de seu companheiro,
que corria entre as pessoas e as mesas dos artesãos causando a indignação
de uns e outros. Arnau, mais desajeitado do que ele quando era preciso
esquivar-se dos transeuntes, pagava as consequências do rastro de raiva
que o menino ia deixando e ouvia gritos e impropérios. Alguém conseguiu
dar-lhe um cascudo e outro tentou detê-lo agarrando-o pela camisa, mas
Arnau se safou até que, com tantos tropeços, perdeu o rastro de seu guia e
de repente se viu sozinho na entrada de uma grande praça repleta de gente.
Conhecia aquela praça. Estivera ali com seu pai uma vez. “Esta é a
Praça de Blat”, dissera ele, “o centro de Barcelona. Está vendo aquela
pedra no centro da praça?”, Arnau olhara o ponto que seu pai indicava.
“Essa pedra significa que a partir dali a cidade se divide em quartos: o do
Mar, o de Framenors, o de Pi e o da Salada ou de Sant Pere.” Chegou à
praça pela rua dos mercadores de seda, e, parado sob o portão do castelo
do veguer da corte, Arnau tentou distinguir a silhueta do menino sujo, mas
a multidão que ali se aglomerava o impedia. Junto dele, ao lado do portão,
ficava o principal matadouro da cidade, e do outro lado havia mesas onde
se vendia pão cozido. Arnau procurou o pequeno entre os bancos de pedra
de ambos os lados da praça, diante dos quais os cidadãos se
movimentavam. “Este é o mercado de trigo”, explicara-lhe Bernat; “de um
lado, naqueles bancos, quem vende são os revendedores e comerciantes da
cidade, e do outro lado, naqueles outros bancos, ficam os camponeses que
vêm à cidade vender suas colheitas.” Arnau não via o menino sujo que o
tinha levado até ali nem de um lado nem do outro, e tampouco entre as
pessoas que barganhavam os preços ou compravam trigo.
Enquanto tentava encontrá-lo, parado sob o portão principal, Arnau era
empurrado pelas pessoas que chegavam à praça. Tentou desviar-se
aproximando-se das mesas dos padeiros, mas assim que suas costas
tocaram uma mesa ele recebeu um doloroso safanão.
— Fora daqui, fedelho! — gritou o padeiro.
Arnau mais uma vez se viu rodeado pelas pessoas, pelo bulício e pela
gritaria do mercado, sem saber para onde ir, empurrado de um lado para
outro por pessoas mais altas do que ele, carregadas de sacos de cereais e
que não reparavam nele.
Ele estava ficando tonto quando, do nada, viu aparecer diante de si
aquela cara suja de pícaro que ele tinha perseguido por meia Barcelona.
— O que você está fazendo aí parado? — perguntou o menino,
levantando a voz para se fazer ouvir.
Arnau não respondeu. Desta vez decidiu agarrar firmemente a camisa
do menino e se deixou arrastar por toda a praça até a Rua Bòria. Depois de
a percorrerem, chegaram ao bairro dos caldeireiros, em cujas ruas soavam
os golpes dos martelos sobre o cobre e o ferro. Naquela zona não
correram; Arnau, exausto e ainda aferrado à manga do menino, obrigou
seu descuidado e impaciente guia a diminuir o passo.
— Esta é a minha casa — disse o menino por fim, indicando uma
pequena construção de um andar. Diante da porta havia uma mesa cheia de
caldeiras de cobre de todos os tamanhos, onde trabalhava um homem
corpulento que nem sequer levantou os olhos para vê-los. — Aquele era o
meu pai — acrescentou quando se afastaram da fachada da casa.
— Por que não...? — começou Arnau, olhando novamente para a casa.
— Espere — interrompeu-o o menino sujo.
Seguiram pela rua e rodearam as pequenas construções até chegarem à
parte posterior, onde se abriam hortas anexas às casas. Quando chegaram à
que correspondia à casa do menino, ele trepou no muro de barro que
cercava a horta e disse a Arnau que fizesse o mesmo.
— Por quê...?
— Venha! — ordenou o menino, trepado no muro.
Os dois saltaram para a pequena horta, mas então o menino ficou
parado, com os olhos fixos numa construção anexa à casa, um pequeno
cômodo com uma pequena abertura em forma de janela, a uma altura
considerável, na parede que dava para horta. Arnau esperou, mas o menino
não se moveu.
— E agora? — perguntou ele.
O menino virou-se para Arnau.
— O quê...?
Mas o menino maltrapilho não lhe deu atenção. Arnau ficou quieto
enquanto seu acompanhante pegava um caixote de madeira e o colocava
embaixo da janela; depois subiu nele com o olhar fixo na janelinha.
— Mãe — sussurrou ele.
Pelas bordas da abertura surgiu o pálido braço de uma mulher; o
cotovelo ficou na altura no parapeito, e a mão, sem precisar tatear,
começou a afagar os cabelos do menino.
— Joanet — Arnau ouviu uma voz doce —, hoje você veio mais cedo; o
sol ainda não chegou ao meio-dia.
Joanet limitou-se a assentir.
— Aconteceu alguma coisa? — insistiu a voz.
Joanet levou uns segundos para responder. Fungou e disse:
— Vim com um amigo.
— Que bom que você tem amigos. Como se chama?
— Arnau.
“Como ele sabe o meu...? Claro! Ele me espiava”, pensou Arnau.
— Ele está aí?
— Está, mãe.
— Olá, Arnau.
Arnau olhou para a janela. Joanet virou-se para ele.
— Olá... senhora... — murmurou, inseguro sobre o que dizer a uma voz
que saía pela janela.
— Quantos anos você tem?
— Oito anos... senhora.
— Você é dois anos mais velho que o meu Joanet, mas espero que se
deem bem e conservem sempre a amizade. Não há nada melhor neste
mundo do que um bom amigo; lembrem-se sempre disso.
A voz não disse mais nada. A mão da mãe de Joanet continuou a afagar
os seus cabelos, e Arnau observou que o menino, sentado com as pernas
penduradas no caixote de madeira apoiado na parede, permanecia imóvel
recebendo aquelas carícias.
— Vão brincar — disse a mulher de repente enquanto a mão se retirava.
— Adeus, Arnau. Cuide bem do meu menino, já que você é mais velho do
que ele. — Arnau esboçou um adeus que não chegou a sair de sua
garganta. — Até logo, meu filho — acrescentou a voz. — Você vem me
ver?
— É claro que sim, mãe.
— Então vão logo.

***

Os dois meninos voltaram para o bulício das ruas de Barcelona e


perambularam por um tempo. Arnau esperou que Joanet falasse, mas,
como não o fez, finalmente se atreveu a perguntar:
— Por que a sua mãe não vai para a horta?
— Ela está trancada — respondeu Joanet.
— Por quê?
— Eu não sei. Só sei que está trancada.
— E por que você não entra pela janela?
— Ponç me proíbe.
— Quem é Ponç?
— Ponç é o meu pai.
— E por que ele proíbe você de entrar?
— Não sei.
— Por que você o chama de Ponç em vez de pai?
— Ele também me proíbe.
Arnau parou de repente e puxou Joanet até ficarem frente a frente.
— E também não sei por quê — adiantou-se o menino.
Continuaram a passear; Arnau tentava entender aquela confusão, e
Joanet esperava a pergunta seguinte de seu companheiro.
— Como é sua mãe? — decidiu-se por fim Arnau.
— Ela sempre esteve trancada ali — respondeu Joanet, se esforçando
para esboçar um sorriso. — Uma vez, Ponç estava fora da cidade e eu
tentei entrar pela janela, mas ela não deixou. Disse que não queria que eu a
visse.
— Por que você sorri?
Joanet continuou a caminhar por alguns metros antes de responder:
— Ela me diz que devo sorrir sempre.
Durante o resto da manhã Arnau percorreu cabisbaixo as ruas de
Barcelona atrás daquele menino sujo que nunca tinha visto o rosto da mãe.

***

— A mãe acaricia a cabeça dele por uma janelinha do quarto — sussurrou


Arnau para o pai naquela noite, quando ambos estavam deitados na
enxerga. — Ele nunca a viu. O pai não deixa, e ela também não.
Bernat afagava a cabeça do filho como Arnau tinha lhe contado que a
mãe de seu novo amigo fazia. O ronco dos escravos e aprendizes que
compartilhavam o espaço com eles rompia o silêncio entre ambos. Bernat
se perguntou que delito aquela mulher teria cometido para merecer tal
castigo.
Ponç, o caldeireiro, não teria dúvidas em responder-lhe: “Adultério!”
Dissera a mesma coisa dezenas de vezes a todos os que quisessem ouvi-lo.
— Eu a surpreendi fornicando com o amante, jovenzinho como ela;
aproveitavam as minhas horas de trabalho na forja. Claro que acudi ao
veguer da corte para reclamar a justa reparação que ditam nossas leis. —
Em seguida, o robusto caldeireiro se deleitava falando da lei que tinha
permitido que se fizesse justiça. — Nossos príncipes são homens sábios,
conhecedores da maldade da mulher. Só as mulheres nobres podem livrar-
se da acusação de adultério mediante juramento; as demais, como a minha
Joana, devem fazê-lo mediante uma luta e submetidas ao juízo de Deus.
Os que presenciaram a luta lembravam como Ponç tinha surrado o
jovem amante de Joana; a mediação de Deus não servira de muito na
disputa entre o caldeireiro, endurecido pelo trabalho na forja, e o delicado
jovenzinho entregue ao amor.
A sentença real foi ditada conforme os Usatges: “Se a mulher ganhar, o
seu marido a manterá com honra e cobrirá todos os gastos que ela e seus
amigos tenham feito durante este litígio e esta batalha e os danos do
adversário. Mas, se ela for vencida, passará às mãos do marido com tudo o
que possuir.” Ponç não sabia ler, mas recitava de cor o conteúdo da
sentença, mostrando o documento para quem quisesse ver:

Dispomos que o dito Ponç, se quiser que Joana lhe seja entregue, deve dar caução boa e
idônea e garantir que a manterá em sua própria casa em um lugar com doze palmos de
comprimento, seis de largura e duas varas1 de altura. Deve dar-lhe um saco de palha que
sirva para dormir e um cobertor para se cobrir, devendo fazer neste lugar um buraco para
que ela possa satisfazer suas necessidades corporais e deixar uma janela pela qual se
possam entregar alimentos à dita Joana: o dito Ponç deve lhe dar cada dia dezoito onças de
pão completamente cozido e tanta água quanto queira, e não lhe dará nem fará coisa
alguma para precipitar a sua morte nem fará coisa alguma para que morra a dita Joana.
Ponç deve dar caução boa e idônea e garantia sobre todas as ditas coisas antes de que se
lhe entregue a referida Joana.

Ponç apresentou a caução que o veguer da corte exigiu, e este lhe


entregou Joana. Construiu na horta um quarto de dois metros e meio por
um metro e vinte, fez um buraco para que a mulher pudesse fazer suas
necessidades, abriu aquela janela pela qual Joanet, nascido nove meses
depois do julgamento e nunca reconhecido por Ponç, se deixava acariciar a
cabeça, e emparedou a jovem esposa pelo resto da vida.
— Pai — sussurrou Arnau para Bernat —, como era a minha mãe? Por
que você nunca fala dela?
“O que você quer que eu diga? Que perdeu a virgindade forçada por um
nobre bêbado? Que se converteu na mulher pública do castelo do senhor de
Bellera?”, pensou Bernat.
— Sua mãe — respondeu — não teve sorte. Foi uma pessoa desgraçada.
Bernat ouviu Arnau fungar antes de falar novamente:
— Ela gostava de mim? — insistiu o menino, com a voz embargada.
— Ela não teve oportunidade. Faleceu ao dar à luz.
— A Habiba gostava de mim.
— Eu também gosto de você.
— Mas você não é minha mãe. Até o Joanet tem uma mãe que acaricia
a cabeça dele.
— Nem todas as crianças têm... — começou a corrigi-lo.
“A mãe de todos os cristãos!” As palavras dos clérigos soavam em sua
memória.
— O que você disse, pai?
— Você tem uma mãe, sim. Claro que tem. — Bernat notou a quietude
do filho. — A todas as crianças que ficam sem mãe, como você, Deus lhes
dá outra: a Virgem Maria.
— Onde está essa Maria?
— A Virgem Maria — corrigiu-o — está no céu.
Arnau permaneceu em silêncio por um instante antes de falar
novamente:
— E para que serve uma mãe que está no céu? Ela não vai me acariciar,
não vai brincar comigo, não vai me beijar, nem...
— Vai, sim. — Bernat recordou claramente as explicações que seu pai
lhe dera quando ele fizera as mesmas perguntas. — Ela envia os pássaros
para acariciarem você. Quando vir um pássaro, envie um recado para a sua
mãe e verá que ele voa para o céu para entregá-lo à Virgem Maria; depois
um contará ao outro, e um deles virá piar e voejar à sua volta.
— Mas eu não entendo os pássaros.
— Você vai aprender.
— Mas eu nunca poderei vê-la...
— Você pode... você pode vê-la. Você pode vê-la em algumas igrejas e
até pode falar com ela.
— Nas igrejas?
— Sim, meu filho. Ela está no céu e em algumas igrejas, e você pode
falar com ela com a ajuda dos pássaros ou nessas igrejas. Ela vai
responder por meio dos pássaros ou à noite, quando você estiver
dormindo, e vai amá-lo e mimar você mais do que qualquer mãe que você
conhece.
— Mais do que a Habiba?
— Muito mais.
— E esta noite? — perguntou o menino. — Hoje eu não falei com ela.
— Não se preocupe, eu falei por você. Durma e você verá.

1. Medida empregada antes do estabelecimento do metro, equivalente a aproximadamente


167cm. (N. da T.)
8

Os dois novos amigos se encontravam todos os dias e juntos corriam até a


praia para ver as embarcações ou vagavam e brincavam pelas ruas de
Barcelona. Cada vez que brincavam atrás do muro, cada vez que ouviam as
vozes de Josep, Genís ou Margarida no jardim dos Puig, Joanet via o
amigo alçar a vista para o céu, como se procurasse algo entre as nuvens.
— O que você está olhando? — perguntou ele um dia.
— Nada — respondeu Arnau.
Os risos aumentaram, e Arnau olhou o céu mais uma vez.
— Vamos subir na árvore? — perguntou Joanet, achando que o que
atraía a atenção do amigo eram os galhos.
— Não — respondeu Arnau, enquanto com o olhar localizava um
pássaro para enviar uma mensagem à sua mãe.
— Por que você não quer subir na árvore? Assim podemos ver...
O que poderia dizer à Virgem Maria? O que se dizia a uma mãe? Joanet
não dizia nada à sua; mas, claro, ouvia sua voz e sentia suas carícias.
— Subimos?
— Não — gritou Arnau, conseguindo apagar o sorriso dos lábios de
Joanet. — Você já tem uma mãe que gosta de você, não precisa espiar a
dos outros.
— Mas você não tem — respondeu Joanet. — Se subirmos...
Ele gostava dela! Era isso o que os filhos de Guiamona lhe diziam. “Diz
isso a ela, passarinho.” Arnau o viu voar em direção ao céu. “Diga-lhe que
gosto dela.”
— E então? Subimos? — insistiu Joanet, já com uma das mãos em um
galho baixo.
— Não. Eu também não preciso... — Joanet se soltou da árvore e
interrogou o amigo com o olhar. — Eu também tenho uma mãe.
— Nova?
Arnau duvidou.
— Não sei. Seu nome é Virgem Maria.
— Virgem Maria? E quem é ela?
— Ela está em algumas igrejas. Eles — continuou, apontando para o
muro — iam às igrejas, mas não me levavam.
— Eu sei onde há igrejas. — Arnau arregalou os olhos. — Se quiser, eu
levo você. À maior igreja de Barcelona!
Como sempre, Joanet saiu correndo sem esperar a resposta do amigo,
mas Arnau já o conhecia e alcançou-o rapidamente.
Correram até a Rua da Boquería e rodearam a judiaria pela Rua Bisbe,
até topar com a catedral.
— Você acha que a Virgem Maria está lá dentro? — perguntou Arnau
ao amigo, apontando para o enxame de andaimes que subiam pelas paredes
inacabadas. Seguiu com a vista uma pedra grande que estava sendo içada
graças ao esforço de vários homens que puxavam uma roldana.
— Claro que sim — respondeu Joanet, convencido. — Isto é uma
igreja.
— Isto não é uma igreja! — ouviram dizer a suas costas. Viraram-se e
deram com um homem rude que segurava um martelo e um gancho. —
Isto é a catedral — provocou, orgulhoso do seu trabalho como ajudante do
mestre escultor. — Nunca a confundam com uma igreja.
Arnau olhou para Joanet com raiva.
— Onde há uma igreja? — perguntou Joanet ao homem quando ele já
estava indo embora.
— Logo ali — respondeu ele para sua surpresa, indicando com o
gancho a mesma rua por onde tinham vindo —, na Praça de Sant Jaume.
Correram de volta pela Rua Bisbe até a Praça de Sant Jaume, onde
viram uma pequena construção diferente das outras, com uma infinidade
de imagens em relevo esculpidas no lintel da porta, à qual se chegava por
uma pequena escada. Eles não pensaram duas vezes. Entraram
rapidamente. O interior era escuro e fresco, e antes que seus olhos se
acostumassem com a penumbra, mãos fortes os agarraram pelos ombros e,
tal como tinham entrado, foram jogados escada abaixo.
— Estou cansado de dizer que não quero correrias na igreja de Sant
Jaume.
Arnau e Joanet se entreolharam sem ligar para o sacerdote. A igreja de
Sant Jaume! Aquela também não era a igreja da Virgem Maria, disseram-
se um ao outro em silêncio.
Quando o padre desapareceu, eles se levantaram; estavam rodeados por
um grupo de seis meninos descalços, esfarrapados e sujos como Joanet.
— Ele vive de mau humor — disse um deles, fazendo um gesto com o
rosto na direção das portas da igreja.
— Se vocês quiserem, podemos contar por onde dá para entrar sem que
ele perceba — disse outro menino —, mas depois vocês têm de se virar
sozinhos. Se ele pegar vocês...
— Não, não precisa — respondeu Arnau. — Vocês sabem onde há outra
igreja?
— Não vão deixá-los entrar em nenhuma — disse um terceiro.
— Isso não é da sua conta — respondeu Joanet.
— Veja só o pirralho! — O mais velho deles riu, avançando para
Joanet. Era meio corpo mais alto, e Arnau temeu por seu amigo. — Tudo o
que acontece nesta praça é da nossa conta, entendeu? — disse,
empurrando-o.
Quando Joanet reagiu e estava a ponto de se lançar em cima do menino
mais velho, algo no outro lado da praça chamou a atenção de todos.
— Um judeu! — gritou um dos meninos.
O grupo todo saiu correndo em direção a um menino com o escudo
redondo vermelho e amarelo no peito, que arrancou em disparada quando
percebeu que vinham atrás dele. O pequeno judeu conseguiu chegar à porta
da judiaria antes que o grupo o alcançasse. Os meninos pararam de repente
diante da entrada. No entanto, junto de Arnau e Joanet estava um menino
ainda mais novo que Joanet, assombrado por ele ter enfrentado o mais
velho.
— Ali há outra igreja, atrás da de Sant Jaume — indicou ele. —
Aproveitem para escapar, porque Pau — acrescentou, indicando com a
cabeça o grupo, que já se dirigia outra vez na direção deles — vai ficar
muito zangado e vai descontar em vocês. Ele sempre fica zangado quando
um judeu escapa.
Arnau puxou Joanet, que, desafiador, esperava o mais velho dos
meninos voltar. Por fim, quando viu que eles começavam a correr em sua
direção, Joanet cedeu aos puxões do amigo.
Correram rua abaixo em direção ao mar, mas, ao perceberem que os
garotos — provavelmente mais preocupados com os judeus que
transitavam pela praça — não os seguiam, voltaram ao ritmo normal.
Tinham percorrido uma rua ao sair da Praça de Sant Jaume quando
toparam com outra igreja. Detiveram-se aos pés da escada e olharam.
Joanet fez um gesto com os olhos e a cabeça em direção às portas.
— Vamos esperar — disse Arnau.
Neste momento, uma velha saiu da igreja e desceu lentamente a escada.
Arnau não pensou duas vezes.
— Boa mulher — disse-lhe quando chegou à escada —, que igreja é
esta?
— A de Sant Miquel — respondeu a mulher sem se deter.
Arnau suspirou. Agora Sant Miquel.
— Onde há outra igreja? — quis saber Joanet ao ver a expressão do
amigo.
— Bem no final desta rua.
— E que igreja é? — insistiu, e pela primeira vez conseguiu atrair a
atenção da mulher.
— É a igreja de Sant Just i Pastor. Por que estão tão interessados?
Os meninos não responderam e se afastaram da anciã, cabisbaixos.
— Todas as igrejas são de homens! — reclamou Arnau. — Temos de
encontrar uma igreja de mulheres; com certeza a Virgem Maria vai estar
lá.
Joanet continuou a caminhar, pensativo.
— Eu conheço um lugar... — disse finalmente. — São todas mulheres.
Fica no canto da muralha, junto do mar. Chama-se... — Joanet tentou
lembrar. — Chama-se Santa Clara.
— Mas também não é a Virgem.
— Mas é uma mulher. Com certeza sua mãe está com ela. Por acaso ela
estaria com um homem que não fosse seu pai?
Desceram pela Rua da Ciutat até o portal do Mar, que se abria na antiga
muralha romana, junto ao castelo Regomir, e de onde surgia o caminho
para o convento de Santa Clara, que fechava as novas muralhas em sua
extremidade oriental, no limite com o mar. Após deixarem para trás o
castelo Regomir, dobraram à esquerda e prosseguiram até dar com a Rua
do Mar, que ia da Praça de Blat à igreja de Santa Maria do Mar, onde se
dividia em pequenas ruelas, todas paralelas, que desembocavam na praia.
Dali, cruzando a Praça do Born e a Pla d’en Llull, chegava-se pela Rua de
Santa Clara até o convento de mesmo nome.
Apesar da ansiedade para encontrar a igreja que procuravam, nenhum
dos dois conseguiu deter o impulso de parar junto às mesas dos prateiros
que ficavam de ambos os lados da Rua do Mar. Barcelona era uma cidade
próspera e rica, e os diversos objetos valiosos expostos naquelas mesas
eram uma boa mostra disso: baixelas de prata, jarras e vasos de metais
preciosos com incrustações de pedras, colares, pulseiras e anéis, cintos,
uma infinidade de obras de arte que refulgiam sob o sol do verão e que
Arnau e Joanet tentavam olhar antes que o artesão os obrigasse a seguir
seu caminho, às vezes com gritos ou cascudos.
Assim, correndo do aprendiz de um prateiro, chegaram à Praça de Santa
Maria; à direita havia um pequeno cemitério, o fossar maior, e à esquerda
a igreja.
— Santa Clara fica por... — começou a dizer Joanet, mas calou-se de
repente. Aquilo... aquilo era impressionante!
— Como será que fizeram isso? — perguntou-se Arnau, boquiaberto.
Diante deles se erguia uma igreja forte e resistente, séria, severa, plana,
sem janelas e com muros de espessura excepcional. O terreno em torno do
templo estava limpo e aplanado. Era rodeada por uma infinidade de
estacas cravadas no solo e unidas por cordas, formando figuras
geométricas.
Circundando a abside da pequena igreja, elevavam-se dez esguias
colunas de dezesseis metros de altura, cuja pedra branca sobressaía através
do andaime que as envolvia.
Os andaimes de madeira, apoiados na parte posterior da igreja, subiam
como imensas escadas. Apesar da distância, Arnau teve de levantar os
olhos para divisar o final dos andaimes, muito acima das colunas.
— Vamos — chamou Joanet quando se cansou de olhar o perigoso
movimento dos trabalhadores acima —, certamente esta é mais uma
catedral.
— Isto não é uma catedral — ouviram atrás de si. Arnau e Joanet se
olharam e sorriram. Viraram-se e interrogaram com o olhar um homem
forte e suarento que carregava uma enorme pedra nas costas. “E o que é?”,
parecia dizer sorrindo Joanet. — A catedral é paga pelos nobres da cidade;
mas esta igreja, que deve ser mais importante e mais bela do que a
catedral, é paga e construída pelo povo.
O homem nem sequer tinha parado. O peso da pedra parecia empurrá-lo
para a frente; no entanto, sorrira para eles.
Os dois meninos o seguiram até a lateral da igreja, junto a outro
cemitério, o fossar menor.
— Quer ajuda? — perguntou Arnau.
O homem suspirou antes de se virar e sorrir de novo.
— Obrigado, menino, mas é melhor não.
Por fim, se abaixou e deixou a pedra no chão. Os meninos a olharam e
Joanet se aproximou dela para tentar movê-la, mas não conseguiu. O
homem deu uma gargalhada e Joanet respondeu com um sorriso.
— Se não é uma catedral — interveio Arnau apontando para as altas
colunas oitavadas —, o que é?
— Esta é a nova igreja que o bairro da Ribera está construindo em
agradecimento e devoção à Nossa Senhora, a Virgem...
Arnau deu um salto.
— A Virgem Maria? — completou, com os olhos arregalados.
— Claro, menino — respondeu o homem afagando-lhe os cabelos. — A
Virgem Maria, Nossa Senhora do Mar.
— E... e onde está a Virgem Maria? — perguntou Arnau de novo, com
os olhos postos na igreja.
— Lá dentro, nesta igreja pequena, mas, quando esta estiver terminada,
ela terá o melhor templo que uma Virgem já teve.
Lá dentro! Arnau nem ouviu o resto. Lá dentro estava a sua Virgem. De
repente, um barulho os obrigou a levantar os olhos: uma revoada de
pássaros tinha alçado voo do alto dos andaimes.
9

O bairro de Ribera do Mar de Barcelona, onde se construía a igreja em


homenagem à Virgem Maria, havia crescido como um subúrbio da
Barcelona carolíngia, cercada e fortificada pelas antigas muralhas
romanas. No começo era só um bairro de pescadores, estivadores e todo
tipo de gente humilde. Já então havia ali uma pequena igreja, chamada
Santa Maria das Areias, construída no lugar onde supostamente Santa
Eulália fora martirizada no ano de 303. A pequena igreja de Santa Maria
das Areias recebeu este nome por ter sido edificada precisamente na areia
da praia de Barcelona, mas a mesma sedimentação que tinha tornado
impraticáveis os portos da cidade afastou a igreja dos areais que
configuravam a linha costeira, até fazê-la perder sua denominação
original. Passou então a se chamar Santa Maria do Mar, porque, ainda que
a orla tivesse se afastado, o mesmo não sucedera com os homens que
viviam do mar.
O transcurso do tempo, que já tinha conseguido livrar de areais a
pequena igreja, também obrigou a cidade a procurar novos terrenos
extramuros para dar lugar à incipiente burguesia de Barcelona, que já não
podia se estabelecer no recinto romano. E, dos três limites de Barcelona, a
burguesia optou pelo oriental, por onde passava o tráfego do porto para a
cidade. Ali, na mesma Rua do Mar, se instalaram os prateiros; as outras
ruas receberam cambistas, algodoeiros, açougueiros e padeiros,
vinhateiros e queijeiros, chapeleiros, espadeiros e uma variedade de outros
artesãos. Também se construiu ali um mercado de grãos, onde se alojavam
os mercadores estrangeiros em visita à cidade, e a Praça do Born, atrás de
Santa Maria, onde se celebravam as justas e os torneios. Mas não só os
artesãos ricos se sentiram atraídos pelo novo bairro da Ribera; muitos
nobres também se mudaram para lá guiados pelo senescal Guillem Ramon
de Montcada, a quem o conde de Barcelona Ramon Berenguer IV cedeu os
terrenos que deram lugar à rua que levava seu nome, a qual desembocava
na Praça do Born ao lado de Santa Maria do Mar, e onde foram erguidos
palácios grandes e luxuosos.
Depois que o bairro da Ribera do Mar de Barcelona se converteu em um
lugar próspero e rico, a antiga igreja romana onde os pescadores e outros
mareantes veneravam a sua patrona ficou pequena e pobre para os
paroquianos ricos e prósperos. No entanto, os esforços econômicos da
Igreja barcelonesa e da realeza concentravam-se exclusivamente na
reconstrução da catedral da cidade.
Os paroquianos ricos e pobres de Santa Maria do Mar, unidos pela
devoção à Virgem, não desistiram diante da falta de apoio e, pelas mãos de
Bernat Llull, recém-nomeado arquidiácono do Mar, solicitaram às
autoridades eclesiásticas permissão para erguer o que queriam que fosse o
maior dos monumentos à Virgem Maria. E a permissão foi concedida.
Santa Maria do Mar começou a ser construída para o povo e pelo povo,
que testemunhou quando colocaram a pedra fundamental do prédio, no
exato lugar onde ficaria o altar-mor e onde, à diferença do que ocorria nas
construções que contavam com o apoio das autoridades, só foi esculpido o
escudo da paróquia, para assinalar que o edifício, com todos os seus
direitos, pertencia única e exclusivamente aos paroquianos que a tinham
construído: os ricos com seu dinheiro; os humildes com seu trabalho.
Desde a pedra fundamental, um grupo de paroquianos e pró-homens da
cidade, chamado Vigésima Quinta, se reunia anualmente com o reitor da
paróquia para, auxiliados por um tabelião, entregar-lhe as chaves da igreja
durante aquele ano.
Arnau observou o homem da pedra. Ainda suado e arquejante, sorria ao
olhar para a construção.
— Posso ver? — perguntou Arnau.
— A Virgem? — questionou por sua vez o homem, sorrindo para o
pequeno.
“E se as crianças não pudessem entrar sozinhas nas igrejas?”, pensou
Arnau. E se tivessem de ir com os pais? O que o sacerdote de Sant Jaume
lhes havia dito?
— É claro. A Virgem gosta de ser visitada por meninos como vocês.
Arnau riu, nervoso. Depois olhou para Joanet.
— Vamos? — chamou.
— Ei! Um momento! — disse o homem. — Eu tenho de voltar ao
trabalho. — Olhou para os operários que trabalhavam a pedra. — Àngel —
gritou para um garoto de uns doze anos que veio correndo até eles —,
acompanhe estes meninos à igreja. Diga ao padre que eles querem ver a
Virgem.
O homem afagou mais uma vez os cabelos de Arnau e desapareceu em
direção ao mar. Arnau e Joanet ficaram com o tal Àngel, mas baixaram os
olhos quando o garoto olhou para eles.
— Vocês querem ver a Virgem?
Sua voz soou sincera. Arnau concordou e perguntou:
— Você... a conhece?
— É claro. — Àngel riu. — É a Virgem do Mar, a minha Virgem. O
meu pai é barqueiro! — acrescentou, orgulhoso. — Venham.
Os dois o seguiram até a entrada da igreja, Joanet com os olhos muito
abertos, Arnau cabisbaixo.
— Você tem mãe? — perguntou ele de repente.
— Tenho, claro — respondeu Àngel, sem deixar de andar à frente deles.
Às suas costas, Arnau sorriu para Joanet. Cruzaram as portas de Santa
Maria, e Arnau e Joanet se detiveram à espera de que seus olhos se
acostumassem à escuridão. Havia um cheiro de cera e incenso. Arnau
comparou as colunas altas e esbeltas que se erguiam do lado de fora com
as do interior da igreja: baixas, quadradas e grossas. Uma única luz
penetrava por janelas estreitas, largas e afundadas nos grossos muros da
construção, as quais deixavam retângulos amarelos no chão aqui e ali.
Havia embarcações penduradas no teto, nas paredes, por todos os lados:
algumas laboriosamente trabalhadas, outras mais toscas.
— Vamos — sussurrou Àngel.
Enquanto se dirigiam para o altar, Joanet apontou para várias pessoas
prostradas de joelhos no chão nas quais não tinham reparado. Ao passar
junto delas, os meninos estranharam o murmúrio de suas orações.
— O que eles estão fazendo? — perguntou Joanet, se aproximando do
ouvido de Arnau.
— Estão rezando — respondeu ele.
Quando voltava da igreja com seus primos, sua tia Guiamona o
obrigava a rezar ajoelhado no quarto diante de uma cruz.
Quando chegaram diante do altar, um sacerdote magro se aproximou.
Joanet se colocou atrás de Arnau.
— O que o traz aqui, Àngel? — perguntou o homem em voz baixa, mas
olhando os dois meninos.
O sacerdote estendeu a mão para Àngel, e o jovem se inclinou diante
dela.
— Estes dois meninos, padre. Querem ver a Virgem.
Os olhos do sacerdote brilharam na escuridão ao dirigir-se a Arnau.
— Ela está ali — disse, apontando para o altar.
Arnau seguiu a direção indicada pelo sacerdote até encontrar uma
figura simples e pequena de mulher esculpida em pedra, com um menino
no ombro direito e um barco de madeira a seus pés. Semicerrou os olhos;
as feições da mulher eram serenas. A sua mãe!
— Como se chamam? — perguntou o sacerdote.
— Arnau Estanyol — respondeu um.
— Joan, mas me chamam Joanet — respondeu o outro.
— E o seu sobrenome?
O sorriso desapareceu do rosto de Joanet. Não sabia qual era o seu
sobrenome. Sua mãe lhe havia dito que não devia usar o de Ponç, o
caldeireiro, porque se ele soubesse ficaria muito zangado, mas tampouco
devia usar o dela. Nunca dissera o seu sobrenome a ninguém. Por que
agora o sacerdote queria saber?
— Igual ao dele — disse por fim —, Estanyol.
Arnau se virou e leu uma súplica nos olhos do amigo.
— Então vocês são irmãos.
— Si... sim — conseguiu gaguejar Joanet ante à silenciosa
cumplicidade de Arnau.
— Vocês sabem rezar?
— Sim — respondeu Arnau.
— Eu não... ainda — acrescentou Joanet.
— Pois então o seu irmão mais velho vai ensinar a você — disse o
sacerdote. — Vocês podem rezar para a Virgem. Venha comigo, Àngel,
quero dar um recado para o seu mestre. Ali há umas pedras...
A voz do padre foi se perdendo à medida que se afastavam; os dois
meninos ficaram diante do altar.
— Será que é preciso rezar de joelhos? — sussurrou Joanet para Arnau.
Arnau dirigiu a vista para as sombras que Joanet indicava e, quando
este seguiu para os genuflexórios de seda vermelha em frente ao altar-mor,
agarrou-o pelo braço.
— As pessoas se ajoelham no chão — disse sussurrando também e
apontando para os paroquianos —, e além disso estão rezando.
— E você vai fazer o quê?
— Eu não vou rezar. Estou falando com a minha mãe. Você não se
ajoelha quando fala com a sua mãe, não é?
Joanet olhou para ele. Não, ele não se ajoelhava.
— Mas o padre não disse que podíamos falar com ela; só que podíamos
rezar.
— Não se atreva a dizer nada ao padre. Se você disser, eu conto que
você mentiu e não é meu irmão.
Joanet ficou ao lado de Arnau e se distraiu olhando as diversas
embarcações que adornavam a igreja. Gostaria de ter uma daquelas. Será
que flutuavam? Certamente; se não, por que as teriam feito? Poderia
colocar uma delas na beira do mar e...
O olhar de Arnau estava fixo na figura de pedra. O que podia dizer a
ela? Será que os pássaros tinham levado a sua mensagem? Ele dissera que
gostava dela, dissera isto muitas vezes.
— Meu pai me disse que ela está com você mesmo sendo moura, mas
eu não posso contar a ninguém porque as pessoas dizem que os mouros
não vão para o céu — murmurou. — Ela era muito boa. Ela não teve
nenhuma culpa. Foi a Margarida.
Arnau olhava fixamente para a Virgem. Dezenas de velas acesas a
rodeavam. O ar vibrava em volta da figura de pedra.
— A Habiba está com você? Se estiver, diga-lhe que gosto dela
também. Apesar de ser moura. Não fica aborrecida porque gosto dela, não
é mesmo?
Através da escuridão, do ar e das dezenas de velas que tremeluziam,
Arnau viu estender-se num sorriso os lábios da pequena figura de pedra.
— Joanet! — disse ao amigo.
— O que é?
Arnau apontou para a Virgem, mas agora os seus lábios... Talvez ela não
queira que ninguém mais a veja sorrir, não é mesmo? Quem sabe era um
segredo?
— O que foi? — insistiu Joanet.
— Nada, nada.
— Vocês já rezaram?
A presença de Àngel e do clérigo surpreendeu-os.
— Sim — respondeu Arnau.
— Eu não... — começou a se desculpar Joanet.
— Já sei, já sei — interrompeu-o o sacerdote carinhosamente,
acariciando os seus cabelos. — E você, o que rezou?
— A Ave-Maria — respondeu Arnau.
— Uma oração muito bela. Vamos, então — acrescentou o padre,
acompanhando-os até a porta.
— Padre — perguntou Arnau quando saíram da igreja —, nós podemos
voltar?
O sacerdote sorriu para eles.
— É claro, mas espero que antes disso você ensine o seu irmão a rezar.
— Joanet ficou sério enquanto o sacerdote lhe dava tapinhas nas
bochechas. — Voltem quando quiserem, serão sempre bem-vindos.
Àngel começou a caminhar para o monte de pedras. Arnau e Joanet o
seguiram.
— E agora, para onde vão? — perguntou ele, virando-se para os dois.
Os meninos se entreolharam e levantaram os ombros. — Vocês não podem
ficar na obra. Se o mestre...
— O homem da pedra? — questionou Arnau.
— Não — respondeu Àngel rindo —, aquele é Ramon, um bastaix. —
Joanet fez uma expressão inquisitiva como a de seu amigo. — Os
bastaixos são os arreeiros do mar; transportam as mercadorias da praia até
os armazéns dos mercadores, ou ao contrário. Carregam e descarregam as
mercadorias depois que os barqueiros as levam até a praia.
— Então eles não trabalham em Santa Maria? — perguntou Arnau.
— Sim, mais do que os outros. — Àngel riu ao ver a expressão dos
meninos. — São pessoas humildes e sem recursos, mas devotas da Virgem
do Mar, mais devotas do que qualquer pessoa. Como não podem dar
dinheiro para a construção, o grêmio dos bastaixos comprometeu-se a
transportar gratuitamente as pedras da canteira real, em Montjuïc, até a
obra. Eles as carregam nas costas e percorrem milhas carregados de pedras
que depois são movidas por duas pessoas — comentou Àngel com o olhar
perdido.
Arnau lembrou-se da enorme rocha que o bastaix tinha deixado no
chão.
— É claro que trabalham para a sua Virgem! — insistiu Àngel. — Mais
do que ninguém. Agora, vão brincar — acrescentou ele, antes de retomar o
seu caminho.
10

“Por que continuam a subir os andaimes?”


Arnau apontou para a parte posterior da igreja de Santa Maria. Àngel
levantou os olhos e, com a boca cheia de pão e queijo, soltou uma
explicação ininteligível. Joanet começou a rir, Arnau riu também, e,
afinal, o próprio Àngel não pôde evitar uma gargalhada, até que se
engasgou e o riso se converteu num ataque de tosse.
Todos os dias Arnau e Joanet iam a Santa Maria, entravam na igreja e
se ajoelhavam. Estimulado pela mãe, Joanet tinha decidido aprender a
rezar e repetia seguidamente as orações que Arnau lhe ensinava. Depois,
quando os dois amigos se separavam, o pequeno corria até a janela e
explicava quanto havia rezado naquele dia. Arnau falava com a sua mãe,
exceto quando o padre Albert — assim se chamava o sacerdote — se
aproximava deles; então se unia ao murmúrio de Joanet.
Quando saíam de Santa Maria, Arnau e Joanet, sempre a certa distância,
observavam as obras e os carpinteiros, canteiros e pedreiros; depois, se
sentavam no chão da praça para esperar que Àngel fizesse uma pausa no
trabalho e viesse se sentar junto deles para comer pão e queijo. O padre
Albert os olhava com carinho, os trabalhadores de Santa Maria os
saudavam com um sorriso, e até os bastaixos, quando apareciam
carregados com pedras nas costas, desviavam o olhar em direção àqueles
dois pequenos sentados em frente a Santa Maria.
— Por que continuam a subir os andaimes? — perguntou Arnau outra
vez.
Os três olharam para a parte posterior da igreja, onde dez colunas se
elevavam; oito em semicírculo e duas mais afastadas. Atrás delas tinham
começado a construir os contrafortes e os muros que formariam a abside.
Mas, enquanto as colunas se erguiam acima da pequena igreja romana, os
andaimes, sem razão aparente, subiam e subiam sem colunas no interior,
como se os operários tivessem ficado loucos e quisessem construir uma
escada para o céu.
— Não sei — respondeu Àngel.
— Esses andaimes todos não aguentam nada — interveio Joanet.
— Mas eles vão aguentar — disse, confiante, uma voz de homem.
Os três se viraram. Entre o riso e a tosse não tinham percebido, atrás
deles, a chegada de vários homens, alguns vestidos luxuosamente e outros
com hábito de sacerdote, mas adornados com uma cruz de ouro e pedras
preciosas no peito, um grande anel e um cinto bordado com fios de ouro e
prata.
O padre Albert os viu da porta da igreja e correu para recebê-los. Àngel
se levantou de um salto e engasgou novamente. Não era a primeira vez que
via aquele homem, mas poucas vezes o vira rodeado de tanta ostentação.
Era Berenguer de Montagut, o mestre de obras de Santa Maria do Mar.
Arnau e Joanet também se levantaram. O padre Albert se juntou ao
grupo e saudou os bispos beijando-lhes o anel.
— O que vão aguentar?
A pergunta de Joanet deteve o padre Albert, que estava a ponto de
beijar outro anel; de sua incômoda postura olhou o menino: não fale se não
lhe perguntarem nada, disse-lhe com os olhos. Uma das autoridades fez
menção de continuar em direção à igreja, mas Berenguer de Montagut
tomou Joanet por um ombro e se inclinou em sua direção.
— Às vezes as crianças conseguem ver o que nós não vemos — disse
ele em voz alta a seus acompanhantes —, e por isso eu não me
surpreenderia se eles tivessem visto algo que podemos não ter percebido.
Você quer saber por que continuamos a subir os andaimes? — Joanet
concordou, não sem antes olhar para o padre Albert. — Você está vendo o
final das colunas? Pois dali de cima, do final de cada uma delas, sairão
seis arcos, e sobre o mais importante de todos vai descansar a abside da
nova igreja.
— O que é uma abside? — perguntou Arnau.
Berenguer sorriu e olhou para trás. Alguns dos presentes estavam tão
atentos às explicações quanto as crianças.
— Uma abside é uma coisa parecida com isto — disse o mestre, e
juntou os dedos das mãos formando um vão. Os meninos continuavam
atentos àquelas mãos mágicas; alguns dos que estavam atrás se
aproximaram, incluindo o padre Albert. — Pois bem, em cima de tudo, na
parte mais alta — continuou, afastando uma das mãos e apontando para a
ponta de seu indicador —, vai ser colocada uma grande pedra, que se
chama chave de abóbada. Primeiro temos de içar esta pedra até o andaime
mais alto, lá em cima, você está vendo? — Todos olharam para o céu. —
Depois de colocá-la, vamos subir as nervuras destes arcos até que se
juntem com a chave de abóbada. Por isso necessitamos de andaimes tão
altos.
— E para que tanto esforço? — perguntou Arnau novamente. O
sacerdote teve um sobressalto ao ouvi-lo, apesar de já estar acostumado
com suas perguntas e observações. — De dentro da igreja não vamos ver
nada disso. Vai ficar por cima do teto.
Berenguer riu e alguns dos presentes o acompanharam. O padre Albert
suspirou.
— Vamos ver, sim, menino, porque o teto da igreja que existe agora vai
desaparecer à medida que a nova estrutura for construída. Será como se
esta pequena igreja fosse criando uma nova, maior, mais...
A expressão inquieta de Joanet o surpreendeu. A criança tinha se
acostumado com a intimidade da pequena igreja, com seu cheiro, sua
escuridão, com a intimidade que encontrava ao rezar.
— Você gosta da Virgem do Mar? — perguntou-lhe Berenguer.
Joanet olhou para Arnau. Os dois assentiram.
— Pois, quando terminarmos sua nova igreja, esta Virgem de quem
vocês tanto gostam terá mais luz do que todas as Virgens no mundo. Ela
não ficará no escuro como agora e terá o templo mais belo que alguém
possa imaginar; ela não ficará fechada entre paredes grossas e baixas, mas
entre paredes altas e finas, esguias, com colunas e absides que chegarão
até o céu, onde deve estar a Virgem.
Todos olharam para o céu.
— Sim — prosseguiu Berenguer de Montagut —, a nova igreja de
Santa Maria do Mar chegará até lá.
Ele começou a andar em direção ao templo, acompanhado por sua
comitiva. Os meninos e o padre Albert permaneceram parados,
observando-os.
— Padre — perguntou Arnau quando já não podiam ouvi-lo —, o que
vai acontecer com a Virgem quando derrubarem a igreja pequena mas a
grande ainda não estiver pronta?
— Vocês estão vendo aqueles contrafortes? — respondeu o sacerdote
indicando duas estruturas que estavam sendo construídas para fechar o
deambulatório, atrás do altar-mor. — Pois ali, entre eles, será construída a
primeira capela, a do Santíssimo, onde a Virgem ficará provisoriamente
para que não sofra nenhum dano, ao lado do corpo de Cristo e do sepulcro
que contém os restos de Santa Eulália.
— E quem vai vigiá-la?
— Não se preocupe — respondeu o clérigo, desta vez sorrindo —, a
Virgem será bem vigiada. A capela do Santíssimo pertence ao grêmio dos
bastaixos; eles terão a chave das grades e se encarregarão de vigiar a sua
Virgem.
Arnau e Joanet já conheciam os bastaixos. Àngel tinha recitado os seus
nomes quando surgiram em fila, carregando enormes pedras: Ramon, o
primeiro que conheceram; Guillem, duro como as rochas que carregava
nas costas, queimado de sol e com o rosto horrivelmente desfigurado por
um acidente, mas doce e carinhoso no trato; outro Ramon, chamado “o
Pequeno”, mais baixo que o primeiro e atarracado; Miquel, um homem
franzino que parecia incapaz de suportar o peso de sua carga, a qual levava
retesando os músculos e tendões do corpo de tal maneira que parecia a
ponto de estourar a qualquer momento; Sebastià, o mais antipático e
taciturno, e seu filho Bastianet; Pere, Jaume e uma infinidade de outros
nomes de trabalhadores da Ribera que assumiram a tarefa de transportar
da pedreira real La Roca até Santa Maria do Mar as milhares de pedras
necessárias para a construção da igreja.
Arnau pensou nos bastaixos, na maneira como olhavam a igreja quando,
encurvados, chegavam a Santa Maria; como sorriam depois de descarregar
as pedras; na força que as suas costas exibiam. Tinha certeza de que eles
cuidariam bem de sua Virgem.

***

O que Berenguer de Montagut lhes contara não tardou mais de sete dias
para acontecer.
— Venham amanhã ao amanhecer — aconselhou-os Àngel —, nós
vamos içar a chave de abóbada.
E ali estavam os meninos, correndo atrás dos operários reunidos ao pé
dos andaimes. Havia mais de uma centena de pessoas entre trabalhadores,
bastaixos e até sacerdotes; o padre Albert tinha se despojado da batina e
estava vestido como os outros, com uma grossa peça de tecido vermelho
enfaixada na cintura.
Arnau e Joanet meteram-se entre eles, cumprimentando uns e sorrindo
para outros.
— Meninos — disse-lhes um dos mestres pedreiros —, quando
começarmos a içar a chave de abóbada, não quero ver vocês por aqui.
Os dois concordaram.
— E onde está ela? — perguntou Joanet, levantando o olhar para o
mestre.
Correram para onde o homem indicara, ao pé do primeiro andaime, o
mais baixo de todos.
— Virgem! — exclamaram em uníssono quando chegaram perto da
grande pedra circular.
Muitos homens olhavam como eles em silêncio; sabiam que aquele era
um dia importante.
— Pesa mais de seis mil quilos — disse alguém.
Com os olhos arregalados, Joanet olhou para Ramon, o bastaix que
estava junto da pedra.
— Não — disse ele, adivinhando os seus pensamentos —, essa não
fomos nós que trouxemos.
O comentário suscitou alguns risos nervosos que logo cessaram. Arnau
e Joanet viram os homens desfilarem, olharem para a pedra e levantarem
os olhos para o alto dos andaimes; teriam de içar mais de seis mil quilos a
uma altura de trinta metros puxando maromas!
— Se alguma coisa falhar... — disse um deles enquanto se persignava.
— Vai nos esmagar — continuou outro, fazendo uma careta.
Ninguém ficava parado; até o padre Albert, com sua estranha
indumentária, se movia inquieto entre eles, animando-os, dando-lhes
tapinhas nas costas e conversando atropeladamente. A igreja velha se
erguia entre as pessoas e os andaimes. Muitos olhavam para ela. Cidadãos
de Barcelona começaram a se aglomerar a certa distância das obras.
Finalmente apareceu Berenguer de Montagut e, sem dar tempo às
pessoas para detê-lo ou cumprimentá-lo, subiu no andaime mais baixo e se
dirigiu aos homens reunidos. Enquanto ele falava, vários pedreiros que o
acompanhavam amarraram uma grande roldana na pedra.
— Como verão — gritou —, no alto do andaime foram montados vários
guindastes que servirão para içar a chave de abóbada. Os conjuntos de
roldanas, tanto as de cima quanto as que estão sendo amarradas a ela, são
compostos por outros três tipos de roldanas, e cada uma delas, por sua vez,
está unida a outras três. Como vocês já sabem, não vamos usar tornos nem
rodas, pois o tempo todo dirigiremos a chave de abóbada num movimento
lateral. Três maromas passam pelas roldanas, sobem até o alto e descem
de novo até o solo. — Observado por uma centena de cabeças, o mestre
indicou o percurso das maromas. — Eu quero que vocês se dividam em
três grupos ao meu redor.
Os mestres pedreiros começaram a dividir os trabalhadores. Arnau e
Joanet escapuliram para a fachada posterior da igreja e dali, encostados na
parede, acompanharam os preparativos. Berenguer continuou a falar
depois de certificar-se de que haviam se formado três grupos à sua volta:
— Cada um dos três grupos puxará uma das maromas. Vocês —
acrescentou, dirigindo-se a um dos grupos — serão Santa Maria. Repitam
comigo: Santa Maria! — Os homens gritaram Santa Maria. — Vocês,
Santa Clara. — O segundo grupo gritou o nome de Santa Clara. — E
vocês, Santa Eulália. Vou me dirigir a vocês por esses nomes. Quando eu
disser todos, estarei me referindo aos três grupos. Vocês devem puxar em
linha reta, de acordo com suas posições, sem perder as costas de seu
companheiro e atentos às ordens do mestre que vai dirigir cada fila.
Lembrem-se: devem ficar sempre retos! Agora formem as filas.
Cada fila era organizada por um mestre pedreiro. As maromas estavam
preparadas, e os homens as agarraram. Berenguer de Montagut não lhes
deu tempo para pensar.
— Todos! Comecem a puxar quando eu disser já, primeiro devagar, até
perceberem a tensão nas cordas. Já!
Arnau e Joanet viram as filas se moverem até as maromas se esticarem.
— Todos! Força!
Os meninos prenderam a respiração. Os homens cravaram os
calcanhares na terra, começaram a puxar, e braços, costas e rostos se
contraíram. Arnau e Joanet fixaram a vista na grande pedra. Não se movia.
— Todos! Mais força!
A ordem ressoou na esplanada. Os rostos dos homens começaram a
ficar vermelhos. A madeira dos andaimes rangeu, e a chave de abóbada se
levantou a um palmo do solo. Seis mil quilos!
— Mais! — gritou Berenguer, sem desviar a atenção da chave de
abóbada.
Outro palmo. Os meninos até se esqueceram de respirar.
— Santa Maria! Mais forte! Mais!
Arnau e Joanet dirigiram o olhar para a fila de Santa Maria. Ali estava
o padre Albert, que fechou os olhos e puxou a corda.
— Assim, Santa Maria! Assim! Todos! Mais forte!
A madeira continuou a estalar. Arnau e Joanet olharam para os
andaimes e depois para Berenguer de Montagut, que só prestava atenção à
pedra que subia lentamente, muito lentamente.
— Mais! Mais! Mais! Todos juntos! Força!
Quando a chave de abóbada chegou à altura do primeiro andaime,
Berenguer ordenou que parassem de puxar e segurassem a pedra no ar.
— Santa Maria e Santa Eulália, aguentem firme! — ordenou depois. —
Santa Clara, puxe! — A chave de abóbada deslocou-se lateralmente até o
andaime de onde Berenguer dava as ordens. — Agora todos! Soltem pouco
a pouco.
Todos, incluindo os que puxavam as cordas, prenderam a respiração
quando a chave de abóbada pousou no andaime ao pé de Berenguer.
— Devagar! — gritou o mestre de obras.
A plataforma vergou sob o peso da chave de abóbada.
— E se quebrar? — sussurrou Arnau para Joanet.
Se quebrasse, Berenguer...
Aguentou. No entanto, aquele andaime não estava preparado para
suportar o peso da chave de abóbada por muito tempo. Era preciso chegar
lá em cima, onde, segundo os cálculos de Berenguer, os andaimes
aguentariam. Os pedreiros mudaram as cordas para o guindaste seguinte, e
os homens puxaram as cordas novamente. Para o próximo andaime e o
seguinte; os seis mil quilos de pedra subiam até o lugar para onde
confluiriam as nervuras dos arcos, por cima das pessoas, no céu.
Os homens suavam e tinham os nervos retesados. De vez em quando
um caía, e o mestre da fila corria para retirá-lo de baixo dos pés dos que o
precediam. Alguns cidadãos fortes tinham se aproximado, e, quando
alguém já não podia mais, o mestre escolhia um deles para ocupar o posto.
Do alto, Berenguer dava ordens, e outro mestre, situado num andaime
abaixo, transmitia-as aos homens. Alguns sorrisos surgiram nos lábios
fortemente apertados quando a chave de abóbada chegou ao último
andaime, mas aquele era o momento mais difícil. Berenguer de Montagut
calculara o lugar exato em que a chave de abóbada devia ser colocada para
que as nervuras dos arcos se acoplassem perfeitamente. Durante dias
triangulou entre as dez colunas com cordas e estacas, jogou prumos de
cima do andaime e estirou cordas e mais cordas das estacas do solo até o
alto dos andaimes. Durante dias rabiscou nos pergaminhos, raspou-os e
voltou a escrever neles. Se a chave de abóbada não se encaixasse no local
exato, não aguentaria o esforço dos arcos e a abside poderia vir abaixo.
Afinal, depois de mil cálculos e uma infinidade de traços, ele desenhou
o lugar exato sobre a plataforma do último andaime. Ali deveria ficar a
chave de abóbada, nem um palmo para lá nem um palmo para cá. Os
homens se desesperaram quando, ao contrário do que tinha acontecido nas
outras plataformas, Berenguer de Montagut não lhes permitiu deixar a
chave de abóbada sobre o andaime e continuou a dar ordens:
— Um pouco mais, Santa Maria. Não. Santa Clara, puxe; agora
aguente. Santa Eulália! Santa Clara! Santa Maria...! Para baixo...! Para
cima...! Agora! — gritou de repente. — Aguentem todos! Para baixo!
Pouco a pouco, pouco a pouco. Devagar!
De repente as maromas deixaram de pesar. Em silêncio, todos os
homens olharam para o céu, onde Berenguer de Montagut se ajoelhara
para comprovar a posição da chave de abóbada. Rodeou a pedra de dois
metros de diâmetro, se levantou e saudou os homens debaixo dele
levantando os braços.
Arnau e Joanet, colados à parede da velha igreja, sentiram nas costas o
rugido que saiu da garganta dos homens que tinham passado horas
puxando as cordas. Muitos jogaram-se no chão. Alguns se abraçaram e
pularam de alegria. As centenas de espectadores que tinham acompanhado
a operação gritavam e aplaudiam; Arnau sentiu um nó na garganta, e os
pelos de seu corpo se eriçaram.

***
— Eu queria ser mais velho — sussurrou Arnau naquela noite ao pai,
deitados lado a lado na enxerga de palha, rodeados pela tosse e ronco dos
escravos e aprendizes.
Bernat tentou adivinhar o motivo daquele desejo. Naquele dia, Arnau
chegou exultante e contou mil e uma vezes como a chave de abóbada da
abside de Santa Maria tinha sido içada. Até Jaume o escutou com atenção.
— Por quê, filho?
— Todos fazem alguma coisa. Em Santa Maria há muitas crianças que
ajudam seu pai ou seu mestre, mas Joanet e eu...
Bernat passou o braço pelos ombros do menino e o puxou para perto.
Era verdade; a não ser quando recebia alguma tarefa esporádica, Arnau
passava o dia desocupado. O que podia fazer de útil?
— Você gosta dos bastaixos, não é mesmo?
Bernat havia percebido seu entusiasmo ao contar como aqueles homens
transportavam as pedras até a igreja. As crianças os seguiam até as portas
da cidade, os esperavam ali e os acompanhavam de volta, ao longo da
praia, de Framenors a Santa Maria.
— Sim — respondeu Arnau, enquanto o pai procurava algo com o outro
braço embaixo da enxerga.
— Tome — disse, entregando-lhe o velho odre que os acompanhara
durante a fuga. Arnau agarrou o odre na escuridão. — Ofereça-lhes água
fresca; você vai ver que não a rejeitarão e vão lhe agradecer.
No dia seguinte, como sempre ao amanhecer, Joanet já o esperava na
porta da oficina de Grau. Arnau mostrou-lhe o odre, pendurou-o no
pescoço e correram para a praia até a fonte do Àngel, perto dos Encantes, a
única que havia no caminho dos bastaixos. A fonte seguinte ficava já em
Santa Maria.
Quando os meninos viram chegar lentamente a fila dos bastaixos
encurvados sob o peso das pedras, subiram em um dos barcos varados na
praia. O primeiro bastaix passou por eles, e Arnau lhe mostrou o odre. O
homem sorriu e parou junto ao barco para que Arnau deixasse cair a água
diretamente em sua boca. Os demais esperaram que o primeiro terminasse
de beber; então o seguinte bebeu. De volta à pedreira real, livres do peso,
os bastaixos passavam pelo barco para agradecer a água fresca.
Daquele dia em diante, Arnau e Joanet converteram-se nos aguadeiros
dos bastaixos. Esperavam-nos junto da fonte do Àngel, e, quando era
preciso descarregar algum navio e os bastaixos não trabalhavam para
Santa Maria, eles os seguiam pela cidade para oferecer água sem que
precisassem soltar os pesados fardos que carregavam nas costas.
Não deixaram de ir a Santa Maria para observá-la, conversar com o
padre Albert ou se sentar no chão e fazer companhia a Àngel durante seu
almoço. Quem os visse podia perceber em seus olhos um brilho diferente
quando olhavam para a igreja. Eles também ajudavam a construí-la!
Tinham ouvido isso dos bastaixos e até do padre Albert.
Com a chave de abóbada no céu, os meninos viram que de cada uma das
dez colunas que a rodeavam começavam a nascer as nervuras dos arcos; os
pedreiros construíram escoras que se elevavam formando uma curva em
direção à chave de abóbada, sobre as quais se encaixavam uma pedra na
outra. Por trás das colunas, rodeando as oito primeiras, já tinham sido
erguidas as paredes do deambulatório com os contrafortes para dentro, no
interior da igreja.
— Entre estes dois contrafortes — dissera o padre Albert apontando
para duas das estruturas — ficará a capela do Santíssimo, a dos bastaixos,
onde descansará a Virgem.
Enquanto nasciam as paredes do deambulatório, enquanto começava a
construção das nove abóbadas apoiadas nas nervuras que saíam das
colunas, a velha igreja começava a ser demolida.
— Acima da abside — contou o sacerdote, enquanto Àngel assentia —
será construída a cobertura. Vocês sabem com que será feita? — Os
meninos negaram com a cabeça. — Com todas as vasilhas de cerâmica
defeituosas da cidade. Primeiro serão colocados os silhares e, sobre eles,
as vasilhas em fileiras, uma ao lado da outra. E, sobre elas, a cobertura da
igreja.
Arnau tinha visto as vasilhas amontoadas junto às pedras de Santa
Maria. Perguntara ao pai por que estavam ali, mas Bernat não soubera
responder.
— Só sei — disse ele — que todas as vasilhas defeituosas se amontoam
à espera de que venham buscá-las. Não sabia que eram para a sua igreja.
Foi assim que a nova igreja foi tomando forma por cima da abside da
antiga, que já começavam a demolir com cuidado para aproveitar as
pedras. O bairro da Ribera de Barcelona não queria ficar sem igreja
enquanto se construía aquele novo e magnífico templo mariano, e os
ofícios religiosos não foram suspensos em nenhum momento. Porém a
sensação era estranha. Arnau, como todos, entrava na igreja pelo portão
afunilado da pequena construção romana, e, uma vez lá dentro, a escuridão
em que se refugiava para falar com a sua Virgem desaparecia, dando lugar
à luz que entrava pelos janelões da nova abside. A antiga igreja se
assemelhava a uma pequena caixa rodeada pela magnificência de outra
maior, uma caixa fadada a desaparecer à medida que a segunda crescia,
uma caixa menor ao final da qual se abria a altíssima abside já coberta.
11

No entanto, a vida de Arnau não se reduzia a Santa Maria e a dar água aos
bastaixos. Em troca de cama e comida, suas obrigações incluíam
acompanhar a cozinheira nas compras pela cidade.
A cada dois ou três dias, Arnau deixava a oficina de Grau ao amanhecer
para acompanhar Estranya, a escrava mulata que andava de pernas abertas,
insegura, balançando perigosamente suas carnes exuberantes. Assim que
Arnau surgia à porta da cozinha, ela lhe entregava, sem lhe dirigir a
palavra, os primeiros volumes: dois cestos com fogaças para assar no
forno da Rua Ollers Blancs. Em um deles havia fogaças para Grau e sua
família, amassadas com farinha de trigo candial e que se transformavam
num delicioso pão branco; no outro estavam as fogaças para os demais, de
farinha de cevada, painço e até de fava e grão-de-bico, um pão que saía
escuro, maciço e duro.
Entregue a massa de pão, Estranya e Arnau deixavam o bairro dos
ceramistas e cruzavam as muralhas em direção ao centro de Barcelona. No
começo do percurso, Arnau seguia a escrava sem dificuldade, rindo do
balanço que agitava as suas carnes quando caminhava.
— De que você está rindo? — Ela costumava perguntar.
Então Arnau olhava para seu rosto redondo e chato e escondia o sorriso.
— Você quer rir? Então ria — dizia a mulata na Praça de Blat, quando o
carregava com um saco de trigo. — Cadê o seu sorriso? — Ela lhe
perguntava na baixada da Llet, quando lhe entregava o leite para seus
primos; e repetia a pergunta na pracinha de Cols, onde compravam couves,
legumes ou verduras, ou na Praça de l’Oli, onde adquiriam azeite, caça ou
aves.
A partir daí, cabisbaixo, Arnau seguia a escrava por toda Barcelona.
Nos dias de abstinência, que eram cento e sessenta, quase metade do ano,
as carnes da mulata tremiam até chegar à praia perto de Santa Maria, e ali,
em uma das peixarias da cidade, Estranya brigava para conseguir os
melhores golfinhos, atuns, esturjões, palomides, neros, reigs ou corballs.1
— Agora vamos buscar o seu peixe — dizia ela, sorridente, depois de
obter o que desejava.
Então se dirigiam à parte de trás, e a mulata comprava os restos.
Sempre havia muita gente nos fundos de qualquer peixaria, mas ali
Estranya não brigava com ninguém.
Ainda assim, Arnau preferia os dias de abstinência àqueles em que
Estranya comprava carne, porque, se para comprar os restos de peixe
davam só dois passos até os fundos da loja, para os restos de carne Arnau
tinha de percorrer meia Barcelona e sair carregado com os embrulhos da
mulata.
Nos açougues anexos aos matadouros da cidade, eles compravam carne
para Grau e sua família. Era carne de primeira qualidade, como toda a que
era vendida intramuros; Barcelona não permitia a entrada de animais
mortos. Toda a carne vendida na cidade condal entrava viva e era
sacrificada em seu interior.
Então, para comprar os restos com que alimentar os serventes e os
escravos, era preciso sair da cidade por Portaferrisa para chegar ao
mercado, onde se amontoavam animais mortos e todo tipo de carne de
origem desconhecida. Estranya sorria para Arnau enquanto comprava
aquela carne, carregava-o com ela, e, depois de passar pelo forno para
buscar as fogaças, voltavam para a casa de Grau; Estranya com o seu
bamboleio, Arnau arrastando os pés.
Certa manhã em que ambos faziam compras no matadouro principal ao
lado da Praça de Blat, começaram a soar os sinos da igreja de Sant Jaume.
Não era domingo nem dia de festa. Estranya, grande como era, parou de
pernas abertas. Alguém gritou na praça. Arnau não conseguiu entender o
que dizia, mas ao grito se uniram muitos outros, e as pessoas começaram a
correr em todas as direções. O menino olhou para Estranya com uma
pergunta que não chegou a sair de seus lábios. Soltou os embrulhos. Os
mercadores de grãos fechavam suas barracas rapidamente. As pessoas
corriam e gritavam, e os sinos de Sant Jaume não paravam de repicar.
Arnau tentou ir à Praça de Sant Jaume, mas... não eram os sinos de Santa
Clara que também estavam soando? Aguçou os ouvidos em direção ao
convento das freiras, e neste momento começaram a repicar os sinos de
Sant Pere, de Framenors e de Sant Just. Todos os sinos da cidade
repicavam! Arnau ficou imóvel, boquiaberto, ensurdecido, vendo todos
correrem.
De repente viu o rosto de Joanet diante do seu. Seu amigo, nervoso, não
conseguia ficar quieto.
— Via fora! Via fora!2 — gritou.
— O quê?
— Via fora! — gritou Joanet em seu ouvido.
— O que significa...?
Joanet o fez se calar e apontou para o antigo portão-mor sob o palácio
do veguer.
Arnau olhou para o portão justamente quando por ele saía um aguazil
do veguer vestido para a batalha, com uma armadura prateada e uma
grande espada na cintura. Na mão direita trazia o estandarte de São Jorge
pendurado num mastro dourado: uma cruz vermelha sobre um fundo
branco. Atrás dele outro aguazil, também vestido para a batalha, trazia o
estandarte da cidade. Os dois homens foram até o centro da praça, onde se
encontrava a pedra que dividia a cidade em bairros. Uma vez ali,
ostentando os pendões de São Jorge e de Barcelona, os aguazis gritaram
em uníssono:
— Via fora! Via fora!
Os sinos continuavam a repicar, e o “Via fora!” corria de boca em boca
pelas ruas da cidade.
Joanet, que observava o espetáculo em um silêncio reverente, começou
a gritar desmedidamente.
Por fim, Estranya pareceu reagir e puxou Arnau para saírem dali.
Atento aos dois aguazis parados no centro da praça com sua armadura
refulgente e sua espada, hieráticos sob os estandartes coloridos, o menino
se livrou da mão da mulata.
— Vamos, Arnau — ordenou Estranya.
— Não — opôs-se, instigado por Joanet.
Estranya o agarrou pelo ombro e o sacudiu.
— Vamos. Isso não é da nossa conta.
— O que você está dizendo, escrava? — As palavras partiram de uma
mulher que, ao lado de outras tão fascinadas quanto eles, observava os
acontecimentos e tinha assistido à discussão entre Arnau e a mulata. — O
menino é escravo? — Estranya negou com a cabeça. — É cidadão? —
Arnau assentiu. — Então como se atreve a dizer que o “Via fora!” não é da
conta dele? — Estranya titubeou e seus pés se moveram como os de um
pato que não quer andar.
— Quem é você, escrava — perguntou outra mulher —, para negar ao
menino a honra de defender os direitos de Barcelona?
Estranya abaixou a cabeça. O que seu senhor diria se soubesse? Ele, que
tanto defendia a honra da cidade. Os sinos continuavam a repicar. Joanet
tinha se aproximado do grupo de mulheres e incitava Arnau a se juntar a
ele.
— As mulheres não vão com a host3 da cidade — lembrou a primeira à
Estranya.
— E os escravos ainda menos — acrescentou outra.
— Quem você acha que vai cuidar de nossos maridos se não forem
meninos como eles?
Estranya não se atreveu a levantar os olhos.
— Quem você acha que cozinha e leva recados para eles, descalça suas
botas e limpa suas bestas?
— Siga seu caminho — ordenaram. — Este não é lugar de escravos.
Estranya apanhou os sacos que Arnau tinha carregado e começou a
caminhar movendo suas carnes. Joanet, sorrindo contente, olhou admirado
para o grupo de mulheres. Arnau continuava no mesmo lugar.
— Andem, meninos — encorajaram as mulheres —, e cuidem de
nossos homens.
— E conte a meu pai! — gritou Arnau para Estranya, que só tinha
conseguido caminhar três ou quatro metros.
Joanet percebeu que Arnau não tirava os olhos da lenta marcha da
escrava e adivinhou as suas dúvidas.
— Você não ouviu as mulheres? — disse ele. — Nós devemos cuidar
dos soldados de Barcelona. Seu pai vai entender.
Arnau concordou, primeiro lentamente e depois com veemência. Claro
que ele entenderia! Por acaso ele não tinha lutado para que fossem
cidadãos de Barcelona?
Ao voltarem para a praça, viram que ao lado dos estandartes dos
aguazis havia um terceiro: o dos mercadores. Seu portador não vestia
roupas de guerra, mas levava uma besta nas costas e uma espada na cinta.
Em pouco tempo chegou outro estandarte, o dos prateiros, e assim,
lentamente, a praça se encheu de bandeiras coloridas com todo tipo de
símbolos e figuras: o pendão dos curtumeiros, o dos cirurgiões ou
barbeiros, o dos carpinteiros, o dos caldeireiros, o dos ceramistas...
Sob os estandartes iam se agrupando, segundo o ofício, os cidadãos
livres de Barcelona; todos armados com uma besta, uma aljava com cem
flechas e uma espada ou uma lança, como exigia a lei. Em menos de duas
horas o sagramental4 de Barcelona estava disposto a partir em defesa dos
privilégios da cidade.
Nessas duas horas Arnau conseguiu descobrir a que se devia aquilo
tudo. Joanet finalmente lhe explicou.
— Barcelona não se defende só quando precisa — disse —, mas ataca
quem se atreve a ficar contra nós. — O pequeno falava com veemência,
apontando para os soldados e estandartes e mostrando o seu orgulho pela
resposta de todos. — É fantástico! Você vai ver. Com sorte ficaremos
alguns dias fora. Quem maltrata um cidadão ou ataca os direitos da cidade
é denunciado... bem, não sei a quem se faz a denúncia, se ao veguer ou ao
Conselho de Cento, mas, se as autoridades considerarem que a denúncia
tem fundamento, então se convoca a host sob o estandarte de São Jorge; é
aquele ali, você está vendo? No centro da praça, acima dos outros. Os
sinos tocam e as pessoas se lançam às ruas gritando “Via fora!”, para que
toda Barcelona saiba. Os pró-homens dos grêmios pegam seus pendões, e
os confrades se reúnem em volta dele para irem para a batalha.
Com os olhos arregalados, Arnau observava tudo o que acontecia ao seu
redor enquanto seguia Joanet por entre os grupos congregados na Praça de
Blat.
— E o que temos de fazer? É perigoso? — perguntou Arnau ao ver a
exibição de armas na praça.
— Geralmente não é perigoso — respondeu Joanet sorrindo para ele. —
O veguer deu permissão para a convocação em nome da cidade, mas
também em nome do rei, porque nunca se deve lutar contra as tropas reais.
Sempre depende de quem é o agressor, mas quando um senhor feudal vê a
host de Barcelona se aproximar costuma atender às suas exigências.
— Então não há batalha?
— Depende do que as autoridades decidam e da postura do senhor. Na
última vez uma fortaleza foi arrasada; então, sim, houve batalha e mortos,
e ataques e... Olhe! Ali está o seu tio! — disse Joanet apontando para o
estandarte dos ceramistas. — Vamos!
Sob o estandarte, junto aos outros três pró-homens do grêmio, Grau
Puig estava vestido para a batalha, com botas, uma armadura de couro que
cobria do peito ao meio da panturrilha e uma espada na cinta. Em volta
dos quatro homens se aglomeravam os oleiros da cidade. Quando Grau
percebeu a presença do menino, fez um sinal para Jaume, e este se interpôs
no caminho dos garotos.
— Aonde vocês vão? — perguntou.
Arnau procurou Joanet com o olhar.
— Vamos oferecer nossa ajuda ao mestre — respondeu Joanet —,
podemos levar o seu bornal com a comida... ou o que ele quiser.
— Sinto muito — Jaume limitou-se a dizer.
— E agora? — perguntou Arnau quando Jaume lhes deu as costas.
— E daí? — respondeu Joanet. — Não se preocupe, isto aqui está cheio
de gente que ficará feliz com nossa ajuda; além disso, eles não saberão que
vamos com eles.
Os dois meninos começaram a caminhar entre a multidão; observavam
as espadas, as bestas e as lanças, se maravilhavam com os que usavam
armadura e tentavam ouvir as conversas animadas.
— O que houve com esta água? — ouviram às suas costas.
Arnau e Joanet se viraram. O rosto dos dois meninos se iluminou ao
verem Ramon, que lhes sorria. A seu lado, mais de vinte macips5
imponentes e armados os fitavam.
Arnau tateou as suas costas à procura do odre, e seu desconsolo ao não
encontrá-lo foi tão evidente que vários bastaixos, rindo, se aproximaram e
lhe ofereceram os seus.
— É preciso estar sempre preparado quando a cidade chama você —
brincaram.
O sagramental deixou Barcelona seguindo a cruz vermelha do
estandarte de São Jorge em direção à vila de Creixell, perto de Tarragona.
Os habitantes daquele povoado tinham retido um rebanho de propriedade
dos açougueiros de Barcelona.
— E isso é assim tão ruim? — perguntou Arnau a Ramon, que eles
decidiram acompanhar.
— É claro que sim. O gado de propriedade dos açougueiros de
Barcelona tem o privilégio de passagem e de pastagem em toda a
Catalunha. Ninguém, nem mesmo o rei, pode deter um rebanho destinado
a Barcelona. Os nossos filhos têm de comer a melhor carne do principado
— acrescentou, acariciando o cabelo dos meninos. — O senhor de Creixell
reteve um rebanho e exige que o pastor pague direitos de pastagem e de
passagem por suas terras. Vocês imaginam se todos os nobres de Tarragona
a Barcelona resolverem exigir pagamento pela passagem e pela pastagem?
Não poderíamos comer!
“Se você soubesse como é a carne que Estranya nos dá...”, pensou
Arnau. Joanet adivinhou os pensamentos do amigo e fez uma expressão de
desgosto. Arnau só tinha contado aquilo a Joanet. Teve vontade de contar
ao pai sobre a origem da carne que flutuava na panela que lhes davam de
comer quando não era preciso guardar abstinência, mas, ao vê-lo comer
com prazer e ver os operários e escravos de Grau lançarem-se sobre a
panela, fazia das tripas coração, calava e comia.
— O sagramental sai por algum outro motivo? — perguntou Arnau,
com um sabor amargo na boca.
— É claro. Qualquer ataque aos privilégios de Barcelona ou contra um
cidadão pode provocar essa saída. Por exemplo, se alguém rapta um
cidadão de Barcelona, o sagramental acode para libertá-lo.
Conversando e sem deixar de avançar, Arnau e Joanet percorreram a
costa – Sant Boi, Castelldefels e Garraf – sob o olhar atento das pessoas
com que cruzavam, as quais se afastavam do caminho e permaneciam em
silêncio à passagem do sagramental. Até o mar parecia respeitar a host de
Barcelona, e seu rumor se apagava com a passagem das centenas de
homens armados que marchavam atrás do estandarte de São Jorge. O sol
os acompanhou durante todo o dia, e, quando o mar começou a se cobrir de
prata, se detiveram para pernoitar no castelo de Sitges. O senhor de
Fonollar recebeu os pró-homens da cidade em seu castelo, e o resto do
sagramental acampou às portas da propriedade.
— Vai haver guerra? — perguntou Arnau.
Todos os bastaixos olharam para ele. O crepitar do fogo rompeu o
silêncio. Joanet dormia com a cabeça apoiada nas pernas de Ramon.
Alguns bastaixos trocaram olhares ao ouvir a pergunta.
— Não — respondeu Ramon. — O senhor de Creixell não pode nos
enfrentar.
Arnau pareceu decepcionado.
— Talvez haja — tentou contentá-lo um dos pró-homens do grêmio, do
outro lado da fogueira. — Há muitos anos, quando eu era jovem, mais ou
menos como você — Arnau esteve a ponto de se queimar para escutá-lo
—, o sagramental foi convocado para ir a Castellbisbal, cujo senhor tinha
retido um rebanho de gado, como o senhor de Creixell fez agora. O senhor
de Castellbisbal não se rendeu e enfrentou o sagramental; talvez tenha
pensado que os cidadãos de Barcelona, mercadores, artesãos ou bastaixos
como nós, não éramos capazes de lutar. Barcelona tomou o castelo,
aprisionou o senhor e seus soldados e destruiu-o completamente.
Arnau já se imaginava empunhando uma espada, subindo por uma
escada ou gritando vitorioso sobre as ameias do castelo de Creixell:
“Quem ousa se opor ao sagramental de Barcelona?” Todos os bastaixos
notaram sua expressão: o menino, tenso, com o olhar perdido nas chamas,
as mãos crispadas agarrando o galho com que antes estava brincando,
atiçava o fogo e vibrava. “Eu, Arnau Estanyol...” Os risos o trouxeram de
volta a Sitges.
— Vá dormir — aconselhou-o Ramon, que já se levantava com Joanet
no colo. Arnau fez um muxoxo. — Assim você poderá sonhar com a
guerra — consolou-o o bastaix.
A noite estava fria, e alguém emprestou um cobertor aos dois meninos.
Ao amanhecer, prosseguiram a marcha em direção a Creixell. Passaram
por Geltrú, Vilanova, Cubelles, Segur e Barà, todos eles povoados com
castelos, e de Barà desviaram para o interior, em direção a Creixell. Este
era um povoado a pouco menos de uma milha do mar, situado em uma
colina em cujo cume se erguia o castelo do senhor de Creixell, uma
fortificação de onze lados com várias torres de defesa e construída sobre
um talude de pedras, em volta do qual se amontoavam as casas da vila.
Faltavam algumas horas para o anoitecer. Os pró-homens dos grêmios
foram chamados pelos conselheiros e pelo veguer. O exército de Barcelona
se alinhou em formação de combate diante de Creixell, com os estandartes
à frente. Arnau e Joanet caminhavam atrás das linhas, oferecendo água aos
bastaixos, mas quase todos a recusavam; tinham o olhar fixo no castelo.
Ninguém falava, e os meninos não se atreviam a romper o silêncio. Os
pró-homens voltaram e se somaram aos seus respectivos grêmios. Todo o
exército viu os três embaixadores de Barcelona caminharem em direção a
Creixell; outros embaixadores saíram do castelo e se reuniram com eles no
meio do caminho.
Arnau e Joanet, como todos os cidadãos de Barcelona, observavam os
negociadores em silêncio.
Não houve batalha. O senhor de Creixell, às escondidas do exército,
tinha fugido através de uma passagem secreta que ligava o castelo à praia.
O prefeito da vila, ante os cidadãos de Barcelona em formação de
combate, deu a ordem de rendição às exigências da cidade condal. Seus
vizinhos devolveram o gado, puseram o pastor em liberdade, aceitaram
pagar uma pesada compensação econômica, se comprometeram a obedecer
e respeitar os privilégios da cidade e entregaram dois de seus cidadãos,
que consideravam culpados pela afronta, os quais foram imediatamente
presos.
— Creixell se rendeu — anunciaram os conselheiros do exército.
Um rumor se alçou entre as filas dos barceloneses. Os soldados
acidentais embainharam suas espadas, largaram as bestas e lanças e se
livraram das roupas de combate. Risos, gritos e piadas começaram a se
fazer ouvir ao longo das filas do exército.
— O vinho, meninos! — pediu Ramon. — O que houve? — perguntou,
ao vê-los parados. — Vocês queriam ver uma guerra, não é?
A expressão dos meninos foi suficiente como resposta.
— Qualquer um de nós podia ter sido ferido ou até morto. Vocês teriam
gostado disso? — Arnau e Joanet se apressaram a negar com a cabeça. —
Vocês devem encarar isto de outro modo: vocês pertencem à maior e mais
poderosa cidade do principado, e todos temem nos enfrentar. — Arnau e
Joanet ouviam Ramon com os olhos muito abertos. — Busquem o vinho,
meninos. Vocês também vão brindar a esta vitória.
O estandarte de São Jorge voltou a Barcelona com honras e, com ele,
dois meninos orgulhosos de sua cidade, de seus concidadãos e de serem
barceloneses. Os presos de Creixell entraram acorrentados e foram
exibidos pelas ruas de Barcelona. As mulheres e todos os que se
aglomeravam nas ruas aplaudiram o exército e cuspiram nos presos. Sérios
e altivos, Arnau e Joanet acompanharam a comitiva durante todo o
percurso, até os presos serem definitivamente confinados no palácio do
veguer. Com este mesmo espírito se apresentaram diante de Bernat, o qual,
aliviado ao ver o filho são e salvo, em vez de repreendê-lo, escutou
sorridente o relato de suas novas experiências.

1. Bonitos, meros, garoupas ou corvinas. (N. da T.)


2. Grito de alarme que fazia as pessoas reunirem-se em caso de perigo. (N. da T.)
3. Milícia. (N. da T.)
4. Irmandade para garantir a segurança comum, criada mediante juramento. (N. da T.)
5. Sinônimo de bastaix. (N. da T.)
12

Alguns meses tinham se passado desde a aventura que os levara a Creixell,


mas a vida de Arnau mudara pouco nesse tempo. À espera de fazer dez
anos, quando entraria como aprendiz na oficina de seu tio Grau,
continuava a percorrer a atraente e sempre surpreendente Barcelona com
Joanet; dava de beber aos bastaixos e, principalmente, desfrutava de Santa
Maria do Mar, que ele via crescer, e rezava à Virgem, a quem contava suas
penas, se alegrando com o sorriso que adivinhava nos lábios da figura
pétrea.
Como lhe dissera o padre Albert, quando o altar-mor da igreja romana
desapareceu, a Virgem foi transportada para a pequena capela do
Santíssimo, no deambulatório atrás do novo altar-mor de Santa Maria,
entre dois contrafortes da construção e protegida por grades de ferro altas
e fortes. A capela do Santíssimo não recebia nenhuma manutenção além
daquela realizada pelos bastaixos, encarregados de cuidá-la, protegê-la,
limpá-la e manter sempre acesos os círios que a iluminavam. Aquela era a
sua capela, a mais importante do templo, destinada a guardar o corpo de
Cristo, e, no entanto, a paróquia a tinha cedido aos humildes estivadores.
O padre Albert lhes contou que muitos nobres e mercadores ricos
pagariam para construir e constituir benefícios sobre as trinta e três
capelas restantes que seriam erigidas em Santa Maria do Mar, todas elas
entre os contrafortes do deambulatório ou das naves laterais, mas aquela, a
do Santíssimo, pertencia aos bastaixos, e o jovem aguadeiro nunca teve
problemas para se aproximar de sua Virgem.
Certa manhã, quando Bernat arrumava seus pertences embaixo da
enxerga, onde escondia a bolsa com as moedas que salvara na fuga
precipitada da masía, quase nove anos atrás, e as poucas que seu cunhado
lhe pagava — dinheiro que serviria para Arnau poder seguir adiante
quando tivesse aprendido o ofício —, Jaume entrou no dormitório dos
escravos. Bernat, intrigado, olhou o contramestre. Não era comum que
Jaume entrasse ali.
— O que...?
— A sua irmã morreu — declarou Jaume.
As pernas de Bernat fraquejaram, e ele caiu sentado sobre a enxerga,
com a bolsa de moedas nas mãos.
— Co... como foi isso? O que aconteceu? — balbuciou.
— O mestre não sabe. Ela amanheceu fria.
Bernat deixou a bolsa cair e levou as mãos ao rosto. Quando as separou
e levantou os olhos, Jaume havia desaparecido. Com um nó na garganta,
Bernat se lembrou da menina que trabalhava nos campos ao lado dele e do
pai, a menina que cantava sem parar enquanto cuidava dos animais. Às
vezes Bernat via o pai interromper suas tarefas e fechar os olhos para se
deixar levar por aquela voz alegre e despreocupada. E agora...
O rosto de Arnau ficou impassível quando, na hora do almoço, o pai lhe
deu a notícia. Não via Guiamona havia um ano, salvo as raras vezes em
que trepava na árvore para ver seus primos brincarem; ele ficava ali
espiando, chorando em silêncio enquanto eles riam e corriam e ninguém...
Sentiu o impulso de dizer ao pai que não se importava, que Guiamona não
gostava dele, mas a expressão de tristeza nos olhos de Bernat o impediu.
— Pai — disse Arnau se aproximando dele.
Bernat abraçou o filho.
— Não chore — sussurrou Arnau, com a cabeça encostada em seu
peito.
Bernat o apertou contra si, e Arnau respondeu passando os braços em
volta dele.

***

Estavam comendo em silêncio, junto dos escravos e aprendizes, quando


ouviram o primeiro grito, um grito lancinante que parecia rasgar o ar.
Todos olharam na direção da casa.
— Carpideiras — disse um dos aprendizes. — Minha mãe é carpideira.
Talvez seja ela. É a que melhor chora em toda a cidade — acrescentou,
orgulhoso.
Arnau olhou para o pai; outro grito soou, e Bernat viu o filho se
encolher.
— Ouviremos muitos gritos — avisou ele. — Eu soube que Grau
contratou muitas carpideiras.
E assim foi. Durante toda a tarde e toda a noite, enquanto as pessoas
iam à casa dos Puig para dar os pêsames, várias mulheres choravam a
morte de Guiamona. Bernat e o filho não puderam pegar no sono devido ao
constante zumbido das carpideiras.
— Toda Barcelona sabe da morte — comentou Joanet com Arnau
quando conseguiram se encontrar pela manhã entre a multidão que se
apinhava em frente à porta da casa de Grau. Arnau encolheu os ombros. —
Todos vieram para o funeral — acrescentou Joanet diante do gesto do
amigo.
— Por quê?
— Porque Grau é rico e vai presentear com roupa os que
acompanharem o velório — Joanet mostrou a Arnau uma longa camisa
preta —, como esta — acrescentou sorrindo.
No meio da manhã, quando toda aquela gente estava vestida de preto, o
cortejo fúnebre partiu em direção à igreja de Nazaré, onde ficava a capela
de São Hipólito, patrono do grêmio dos ceramistas. As carpideiras iam ao
lado do féretro chorando, gritando e arrancando os cabelos.
A igreja estava repleta de personalidades: pró-homens de diversos
grêmios, os conselheiros da cidade e a maior parte dos membros do
Conselho de Cento. Morta Guiamona, ninguém se preocupou com os
Estanyol, mas Bernat, puxando o filho, conseguiu se aproximar do lugar
onde seu cadáver repousava, onde as vestes simples presenteadas por Grau
se misturavam com sedas e bissós, caros tecidos de linho preto. Nem
sequer lhe permitiram se despedir da irmã.
Dali, enquanto os sacerdotes oficiavam o funeral, Arnau vislumbrou os
rostos vermelhos de seus primos: Josep e Genís mantinham a compostura
e Margarida permanecia firme, mas sem conseguir impedir o tremor
constante do lábio inferior. Tinham perdido a mãe, como ele. Arnau se
perguntou se eles saberiam da Virgem; depois fitou o tio, hierático. Tinha
certeza de que Grau Puig não contaria aos filhos sobre ela. Os ricos são
diferentes, ele sempre ouviu; talvez eles tivessem outra forma de
encontrar uma nova mãe.
***

E certamente tinham. Um viúvo rico em Barcelona, um viúvo com


aspirações... O período de luto ainda não tinha terminado quando Grau
começou a receber propostas de matrimônio. E não teve pudor em
negociá-las. Finalmente, a eleita para se tornar a nova mãe dos filhos de
Guiamona foi Isabel, uma moça jovem e pouco atraente, mas nobre. Grau
considerou as virtudes de todas as aspirantes, mas escolheu a única que era
nobre. O seu dote: um título sem benefícios, terras ou riquezas, mas que
lhe permitiria ascender a uma classe que até então lhe estivera vedada. O
que lhe importavam os vultosos dotes oferecidos por alguns mercadores
desejosos de se unir à riqueza de Grau? As grandes famílias nobres da
cidade não se preocupavam com o estado de viuvez de um simples
ceramista, por mais rico que fosse; só o pai de Isabel, sem recursos
econômicos, intuiu no caráter de Grau a possibilidade de uma aliança
conveniente para as duas partes, e não estava enganado.
— Você entende — exigiu-lhe o futuro sogro — que a minha filha não
pode viver numa oficina de cerâmica, e também não pode se casar com um
simples ceramista. — Neste momento Grau tentou responder, mas o sogro
fez um gesto de desdém com a mão. — Grau — acrescentou —, nós, os
nobres, não podemos nos dedicar ao artesanato, você entende? Talvez não
sejamos ricos, mas nunca seremos artesãos.
“Nós, os nobres, não podemos...” Grau ocultou sua satisfação por ter
sido incluído. E tinha razão: que nobre da cidade possuía uma oficina de
artesanato? Senhor barão; a partir de então seria tratado como senhor
barão nas negociações mercantis, no Conselho de Cento... Senhor barão!
Como um barão da Catalunha podia ter uma oficina de artesanato?
Jaume não teve nenhum problema em ser alçado à categoria de mestre
pelas mãos de Grau. Trataram o assunto rapidamente devido à pressa de
Grau em se casar com Isabel, temeroso de que os nobres, sempre tão
caprichosos, se arrependessem. O futuro barão não tinha tempo para ficar
no mercado. Jaume se transformaria em mestre, e Grau lhe venderia a
oficina e a casa a prazo. Só havia um problema:
— Tenho quatro filhos — disse Jaume —, já vai ser difícil pagar o
preço da compra... — Grau incentivou-o a continuar. — Não posso assumir
todos os seus compromissos com o negócio: escravos, oficiais,
aprendizes... Nem sequer poderia alimentá-los! Para ir adiante, devo me
arrumar com meus quatro filhos.
A data das bodas estava marcada. Aconselhado pelo pai de Isabel, Grau
adquiriu um caro palacete na Rua de Montcada, onde viviam as famílias
nobres de Barcelona.
— Lembre-se — advertiu-o o sogro ao sair da propriedade recém-
adquirida —, não entre na igreja com uma oficina às costas.
Inspecionaram minuciosamente a nova casa; o barão assentia,
condescendente, e Grau calculava mentalmente quanto lhe custaria
mobiliar todo aquele espaço. Atrás dos portões que davam para a Rua de
Montcada, se abria um pátio calçado com pedras; em frente ficavam as
cavalariças, que ocupavam a maior parte do térreo, e também as cozinhas
e os dormitórios dos escravos. À direita, uma grande escada de pedra
descoberta dava para o primeiro andar, onde ficavam os salões e os demais
cômodos; em cima, no segundo andar, os quartos. Todo o palacete era de
pedra; os dois andares nobres com janelas ogivais de um lado a outro
davam para o pátio.
— Concordo — respondeu a quem em todos aqueles anos fora seu
primeiro oficial —, você fica livre de compromissos.
Assinaram o contrato naquele mesmo dia, e Grau, ufano, compareceu
diante do sogro com o documento.
— Já vendi a oficina — anunciou.
— Senhor barão — respondeu o sogro, oferecendo-lhe a mão.
“E agora?”, pensou Grau ao ficar sozinho. “Os escravos não são
problema; ficarei com os que servirem, e os que não servirem... para o
mercado. Quanto aos oficiais e aprendizes...”
Grau falou com os membros do grêmio e realocou todo o seu pessoal
em troca de modestas somas. Só restavam o cunhado e o menino. Bernat
não tinha nenhum título no grêmio; não tinha nem o de oficial. Ninguém o
admitiria em uma oficina, e também era proibido. O menino ainda nem
tinha começado a aprendizagem, mas havia um contrato e, como quer que
fosse, como ia pedir a alguém para admitir os Estanyol? Todos saberiam
que aqueles dois fugitivos eram seus parentes. Chamavam-se Estanyol,
como Guiamona. Todos saberiam que ele dera abrigo a dois servos da
terra, e agora que seria nobre... Por acaso não eram os nobres acérrimos
inimigos dos servos fugitivos? E aqueles mesmos nobres não estavam
pressionando o rei para que revogasse as disposições que permitiam a fuga
dos servos da terra? Como tornar-se nobre com os Estanyol na boca de
todos? O que diria o seu sogro?
— Vocês virão comigo — disse ele a Bernat, que há alguns dias andava
preocupado com os novos acontecimentos.
Jaume, enquanto novo dono da oficina, livre das ordens de Grau, se
sentou com o ex-servo e falou em confiança: “Ele não se atreverá a fazer
nada contra vocês. Eu sei, ele me confessou; não quer que a situação de
vocês se torne pública. Eu consegui um bom trabalho, Bernat. Ele tem
pressa, tem urgência de deixar os negócios em ordem antes de se casar
com Isabel. Você tem um contrato assinado para o seu filho. Aproveite
isso, Bernat. Pressione esse desalmado. Ameace-o com o tribunal. Você é
um bom homem. Queria que entendesse que tudo o que aconteceu durante
todos estes anos...”
Bernat entendia. E, motivado pelas palavras do antigo oficial, se
atreveu a enfrentar o cunhado.
— O que você está dizendo? — gritou Grau quando Bernat lhe
respondeu com um parco “Para onde e para quê?”. — Para onde eu quiser
e para o que eu quiser — continuou a gritar Grau, nervoso e gesticulando.
— Não somos seus escravos, Grau.
— Você tem poucas opções.
Bernat teve de pigarrear antes de seguir os conselhos de Jaume.
— Posso ir ao tribunal.
Pequeno e magro, Grau se levantou da cadeira crispado, tremendo. Mas
Bernat nem pestanejou, por mais que quisesse sair correndo dali; a ameaça
do tribunal ressoou nos ouvidos do viúvo.

***

Cuidariam dos cavalos que Grau se vira obrigado a comprar junto com o
palacete. “Como você pretende ter cavalariças vazias?”, dissera o sogro
sucintamente, como se falasse com uma criança ignorante. Grau somava e
somava mentalmente. “A minha filha Isabel sempre montou a cavalo”,
acrescentou.
Mas para Bernat o mais importante foi o bom salário que obteve para
ele e para Arnau, que também trabalharia com os cavalos. Poderiam viver
fora do palacete em um cômodo próprio, sem escravos nem aprendizes;
ele e o filho teriam dinheiro suficiente para seguir em frente.
Foi o próprio Grau quem convenceu Bernat a anularem o contrato de
aprendizagem de Arnau e assinarem outro.

***

Desde que lhe tinham concedido a cidadania, Bernat deixava a oficina em


raras ocasiões, sempre sozinho ou acompanhado de Arnau. O seu nome
constava nos registros de cidadania e não parecia haver nenhuma denúncia
contra ele; se houvesse, já teriam ido buscá-lo, pensava cada vez que
andava pelas ruas. Costumava andar até a praia, e ali se misturava às
dezenas de trabalhadores do mar, com o olhar sempre posto no horizonte,
saboreando o ambiente acre que envolvia a praia, as embarcações, o breu...
Fazia quase uma década que golpeara o rapaz da forja; esperava que ele
não tivesse morrido. Arnau e Joanet pulavam à sua volta. Se adiantavam
correndo, voltavam com a mesma rapidez e fitavam-no com os olhos
brilhantes e um sorriso na boca.
— Nossa própria casa! — gritou Arnau. — Vamos viver no bairro da
Ribera, por favor!
— Receio que será só um quarto — explicou Bernat, mas o menino
continuava a sorrir como se falassem do melhor palácio de Barcelona.
— Não é um lugar ruim — respondeu Jaume quando Bernat comentou
sobre a sugestão do filho —, lá você poderá encontrar quartos.
E para lá iam os três. Os dois meninos correndo, Bernat carregando os
seus poucos pertences. Fazia quase dez anos que chegara à cidade.
Durante todo o trajeto até Santa Maria, Arnau e Joanet não paravam de
cumprimentar as pessoas com que cruzavam.
— É meu pai! — gritou Arnau para um bastaix carregado com um saco
de cereais e apontando para Bernat, que vinha mais de vinte metros atrás.
O bastaix sorriu sem parar de andar, encurvado pelo peso. Arnau se
virou para Bernat e começou a correr de novo em sua direção, mas depois
de alguns passos parou. Joanet não o estava seguindo.
— Vamos — chamou-o com as mãos.
Mas Joanet negou com a cabeça.
— O que foi, Joanet? — perguntou, voltando para junto dele.
O pequeno baixou os olhos.
— Ele é seu pai — murmurou. — O que será de mim agora?
Ele tinha razão. Todos achavam que fossem irmãos. Arnau não tinha
pensado nisso.
— Corra, venha comigo — disse, puxando-o.
Bernat os viu se aproximarem; Arnau puxava Joanet, que resistia.
“Parabéns por seus filhos”, disse um bastaix ao passar junto dele. Mais de
um ano correndo juntos de lá para cá. E a mãe do pequeno Joanet? Bernat
imaginou-o sentado no caixote, acariciado por um braço sem rosto. Sentiu
um nó na garganta.
— Pai... — começou a dizer Arnau quando chegaram até ele.
Joanet se escondeu atrás do amigo.
— Meninos — interrompeu-os Bernat —, eu acho que...
— Pai, você poderia ser o pai de Joanet? — soltou Arnau de uma só
vez.
Bernat viu a cabeça do pequeno por detrás de Arnau.
— Venha aqui, Joanet — disse Bernat. — Você quer ser meu filho? —
acrescentou quando o pequeno deixou seu esconderijo.
O rosto de Joanet se iluminou.
— Isso significa que sim? — perguntou Bernat.
O menino abraçou as pernas dele. Arnau sorriu para o pai.
— Vão brincar — ordenou Bernat com a voz embargada.

***

Os meninos levaram Bernat até o padre Albert.


— Com certeza ele poderá nos ajudar — disse Arnau, e Joanet
concordou.
— O nosso pai! — disse o pequeno, se adiantando a Arnau e repetindo a
apresentação que vinha fazendo ao longo do trajeto, até para pessoas que
só conhecia de vista.
O padre Albert pediu aos meninos que os deixassem a sós e convidou
Bernat a tomar um copo de vinho doce enquanto escutava suas
explicações.
— Sei onde vocês podem se alojar — disse ele —; são boas pessoas.
Diga-me, Bernat. Você conseguiu um bom trabalho para Arnau; ele terá
um bom salário, aprenderá um ofício, e os cavalariços sempre são
necessários. Mas e seu outro filho? O que você pensa em fazer a respeito
de Joanet?
Bernat fez uma expressão de desgosto e se abriu com o padre.
O padre Albert os acompanhou à casa de Pere e sua mulher, um casal de
velhos sem filhos que vivia em uma pequena casa de dois andares perto da
praia, com a lareira no térreo e três quartos no andar superior. Estavam
interessados em alugar um deles.
Durante todo o trajeto e enquanto apresentava os Estanyol a Pere e à
mulher dele e observava Bernat lhes mostrar as suas moedas, o padre
Albert manteve Joanet junto a si, com a mão em seu ombro. Como pudera
ser tão cego? Como não percebera o calvário que aquele menino vivia?
Quantas vezes o vira ensimesmado, com o olhar perdido no infinito!
O padre Albert apertou o pequeno contra si. Joanet se virou e sorriu
para ele.
O quarto era pequeno, mas limpo; a única mobília que continha eram
dois enxergões no chão, e se ouvia o barulho constante das ondas. Arnau
aguçou o ouvido para escutar o movimento dos operários em Santa Maria,
bem atrás. Jantaram cozido preparado pela mulher de Pere. Arnau
observou o prato, levantou os olhos e sorriu para o pai. A gororoba de
Estranya tinha ficado para trás! Os três comeram com gosto observados
pela anciã, disposta a encher suas tigelas novamente a toda hora.
— Para a cama — anunciou Bernat, satisfeito. — Amanhã temos
trabalho.
Joanet titubeou. Olhou para Bernat e, quando todos já haviam levantado
da mesa, dirigiu-se para a porta da casa.
— Agora não é hora de sair, meu filho — disse-lhe Bernat na presença
dos dois velhos.
13

“Eles são o irmão da minha mãe e o filho dele”, explicou Margarida à


madrasta quando esta estranhou a contratação de mais duas pessoas para
cuidar de unicamente sete cavalos.
Grau lhe dissera que não queria saber dos cavalos e, de fato, nem
desceu para inspecionar as magníficas cavalariças no térreo do palácio.
Ela se ocupou de tudo: escolheu os animais e trouxe consigo Jesús, seu
cavalariço principal, o qual, por sua vez, recomendou que contratasse os
serviços de Tomàs, um cavalariço experiente.
Mas quatro pessoas para sete cavalos era demais, até para os costumes
da baronesa, e foi o que ela disse em sua primeira visita às cavalariças
depois da incorporação dos Estanyol.
Isabel insistiu para que Margarida continuasse.
— Eles eram camponeses, servos da terra.
Isabel não disse nada, mas a suspeita germinou em seu íntimo.
— O filho, Arnau, foi o culpado da morte de meu irmão mais novo,
Guiamon. Eu os odeio! Não sei por que meu pai os contratou.
— Nós já vamos saber — murmurou a baronesa, com os olhos cravados
nas costas de Bernat, que naquele momento escovava um dos cavalos.
No entanto, naquela noite Grau não fez caso das palavras da esposa.
— Achei que era conveniente — limitou-se a responder, confirmando
as suspeitas da mulher de que eram fugitivos.
— Se meu pai soubesse...
— Mas ele não vai saber, não é mesmo, Isabel? — Grau observou a
esposa, que estava vestida para jantar, um dos novos hábitos que ela
introduzira na vida da família de Grau. Tinha só vinte anos e era
extremamente magra, como Grau. Fora pouco agraciada pela natureza e
carecia das curvas voluptuosas com que Guiamona o recebera um dia, mas
era nobre e o seu caráter também devia ser, pensou Grau. — Você não
gostaria que seu pai soubesse que você vive com dois fugitivos.
A baronesa o fulminou com o olhar e saiu do quarto.
Apesar da animosidade da baronesa e de seus enteados, Bernat
demonstrou seu valor com os animais. Sabia tratá-los, alimentá-los,
limpar-lhes os cascos e as ranilhas, curá-los se fosse preciso e se mover
entre eles; se em algo se poderia dizer que carecia de experiência era nos
cuidados destinados ao embelezamento.
— Quero que fiquem bem brilhantes — comentou ele com Arnau um
dia, a caminho de casa —, sem nenhuma poeira. É preciso raspar e raspar
para tirar a areia que entra nas cerdas, e depois escová-las bem até deixá-
las brilhando.
— E a crina e a cauda?
— Vamos cortar, trançar e adornar a crina e a cauda deles.
— Por que querem tantos lacinhos nos cavalos?
Arnau estava proibido de se aproximar dos animais. Admirava-os nas
cavalariças, via como respondiam aos cuidados de seu pai e desfrutava
quando, sozinho com ele, podia acariciá-los. Excepcionalmente, em raras
ocasiões e a salvo de olhares indiscretos, Bernat montava a pelo em um
deles dentro da cavalariça. Suas funções não lhe permitiam deixar o
guarda-arnês. Ali ele limpava vezes seguidas os arneses, passava graxa no
couro e esfregava-o com um pano até a superfície das selas e das rédeas
ficar resplandecente, limpava os freios e os estribos e escovava as mantas
e os outros adornos até que não restasse uma só cerda de cavalo, tarefa que
precisava finalizar utilizando os dedos e as unhas como pinças, para
extrair as finas agulhas que penetravam no tecido e se confundiam com
ele. Depois, quando sobrava tempo, se dedicava a esfregar e esfregar a
carruagem que Grau tinha comprado.
Com o passar do tempo, até Jesús teve de reconhecer o valor do
camponês. Quando Bernat entrava em qualquer uma das quadras, os
cavalos nem sequer se mexiam e, na maioria das vezes, o buscavam.
Tocava-os, acariciava-os e sussurrava-lhes para tranquilizá-los. Se era
Tomàs quem entrava, os animais baixavam as orelhas e se refugiavam
junto às paredes quando ele gritava com eles. O que estava acontecendo
com aquele homem? Até então ele fora um cavalariço exemplar, pensava
Jesús cada vez que ouvia outro grito.

***
Todas as manhãs, quando pai e filho saíam para o trabalho, Joanet se
dedicava a ajudar Mariona, a esposa de Pere. Limpava, arrumava e a
acompanhava nas compras. Depois, enquanto ela cozinhava, Joanet corria
à procura de Pere na praia. Pere havia dedicado a vida à pesca e, além de
ajudas esporádicas que recebia do grêmio, obtinha algumas moedas
ajudando a consertar cabos e velas; Joanet o acompanhava, atento às suas
explicações, e corria de um lado para outro quando o velho precisava de
alguma coisa.
Assim que podia, escapava para ver a mãe.
— Hoje de manhã — explicou ele um dia —, quando Bernat foi pagar a
Pere, ele devolveu uma parte das moedas. Disse a ele que o pequeno... O
pequeno sou eu, sabe, mãe? Eles me chamam de pequeno. Bem, pois ele
disse que, como o pequeno ajudava na casa e na praia, não tinha de pagar a
minha parte.
A prisioneira escutava com uma mão na cabeça do menino. Como tudo
tinha mudado! Desde que vivia com os Estanyol, o seu pequeno já não
ficava sentado soluçando, esperando suas carícias silenciosas e uma
palavra de carinho, um carinho cego. Agora falava, contava coisas e até
ria!
— Bernat me deu um abraço — continuou Joanet —, e Arnau me
felicitou.
A mão afagou os cabelos dele.
Joanet continuou a falar atropeladamente. De Arnau e Bernat, de
Mariona, de Pere, da praia, dos pescadores, dos cabos e velas que
consertavam, mas a mulher já não o ouvia, satisfeita porque seu filho
finalmente sabia o que era um abraço, porque o seu pequeno era feliz.
— Corra, meu filho — aconselhou a mãe, tentando ocultar o tremor em
sua voz. — Devem estar esperando você.
Em sua prisão, Joana ouviu o seu pequeno pular do caixote e sair
correndo e imaginou-o saltando o muro que lutava para desaparecer de
suas recordações.
Que sentido tinha agora? Tinha aguentado a pão e água durante anos
entre aquelas quatro paredes, e centenas de vezes seus dedos tinham
tateado todos os cantos. Havia lutado contra a solidão e a loucura olhando
o céu pela janela diminuta que o rei lhe concedera; magnânimo monarca!
Tinha vencido a febre e a doença, tudo pelo seu pequeno, para lhe acariciar
a cabeça, para animá-lo, para fazê-lo sentir que, apesar de tudo, não estava
sozinho no mundo.
Agora ele já não estava só. Bernat o abraçava! Era como se o
conhecesse. Tinha sonhado com ele enquanto as horas se eternizavam.
“Cuide dele, Bernat”, disse para o ar. Agora Joanet era feliz e ria e corria
e...
Joana se deixou cair no chão e ficou sentada. Nesse dia não tocou no
pão nem na água; seu corpo não o desejava.
Joanet voltou outra vez, e outra, e outra, e ela ouviu como ria e,
encantado, falava do mundo. Da janela só saíam sons apagados: sim, não,
vá, corra, corra para a vida.
— Corra para desfrutar da vida que, por minha culpa, você não teve —
acrescentava Joana em um sussurro quando o menino já tinha saltado o
muro.
O pão foi se amontoando na prisão de Joana.

***

— Você sabe o que aconteceu, mãe? — Joanet puxou o caixote para junto
da parede e sentou-se nele; os seus pés ainda não alcançavam o chão. —
Não, como você poderia saber? — Já sentado, encolhido, apoiou as costas
no muro, ali onde sabia que a mão de sua mãe procuraria a sua cabeça. —
Eu vou contar a você. É muito engraçado. Acontece que ontem um dos
cavalos de Grau...
Mas da janela não saiu nenhum braço.
— Mãe? Escute. Estou dizendo que é engraçado. É que um dos
cavalos...
Joanet olhou novamente para a janela.
— Mãe?
Esperou.
— Mãe?
Aguçou o ouvido por cima das marteladas dos caldeireiros, que soavam
por todo o bairro: nada.
— Mãe! — gritou.
Ajoelhou-se no caixote. O que podia fazer? Ela o proibira de se
aproximar da janela.
— Mãe! — gritou novamente, erguendo-se em direção à janela.
Ela sempre lhe dissera que não olhasse, que nunca tentasse vê-la. Mas
ela não respondia! Joanet olhou pela janela. O interior estava escuro
demais.
Subiu nela e passou uma perna. Não cabia. Só conseguiria entrar de
lado.
— Mãe? — repetiu.
Agarrado à parte superior da janela, colocou os pés sobre o parapeito e,
de lado, pulou para dentro.
— Mãe? — sussurrou, enquanto seus olhos se acostumavam à
escuridão.
Esperou até conseguir vislumbrar um buraco de onde emanava um
cheiro insuportável, e do outro lado, à esquerda, junto à parede, sobre uma
enxerga de palha, viu um corpo encolhido.
Joanet esperou. Não se movia. Os golpes dos martelos no cobre tinham
ficado lá fora.
— Eu queria contar a você uma coisa divertida — disse ele se
aproximando. As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. — Você
teria rido muito — balbuciou já ao lado da mãe.
Joanet se sentou ao lado do cadáver da mãe. Joana havia escondido o
rosto entre os braços, como se intuísse que o filho entraria em sua cela,
como se quisesse evitar que a visse nessas condições mesmo depois de
morta.
— Posso tocá-la?
O pequeno acariciou os cabelos da mãe, sujos, emaranhados, secos e
ásperos.
— Foi preciso você morrer para ficarmos juntos.
Joanet rompeu em pranto.

***

Bernat não duvidou um minuto quando, ao voltar para casa, ainda na porta,
Pere e a mulher, interrompendo um ao outro, lhe comunicaram que Joanet
não havia regressado. Nunca tinham lhe perguntado aonde ia quando
desaparecia; supunham que a Santa Maria, mas ninguém o vira ali naquela
tarde. Mariona levou a mão à boca.
— E se tiver acontecido algo com ele? — soluçou.
— Nós o encontraremos — Bernat tentou tranquilizá-la.
Joanet permaneceu sentado ao lado da mãe. Primeiro deslizou a mão
por seus cabelos, depois os entrelaçou com os dedos para desembaraçá-los.
Não tentou ver suas feições. Depois se levantou e olhou pela janela.
Anoiteceu.
— Joanet?
Joanet olhou novamente para a janela.
— Joanet — ouviu a voz do outro lado da parede.
— Arnau?
— O que aconteceu?
Respondeu lá de dentro:
— Ela morreu.
— Por que você não...?
— Eu não consigo. Aqui não tem nenhum caixote. É muito alto.
“O cheiro é horrível”, pensou Arnau. Bernat bateu mais uma vez à porta
da casa de Ponç, o caldeireiro. O que o menino terá feito lá dentro o dia
inteiro? Bateu de novo com força. Por que não atende? Naquele momento
a porta se abriu, e um gigante ocupou quase a metade do vão da porta.
Arnau retrocedeu.
— O que querem? — bradou o caldeireiro, descalço e vestido com uma
camisa puída que chegava aos joelhos.
— Meu nome é Bernat Estanyol e este é meu filho — disse, puxando
Arnau por um ombro e empurrando-o para a frente —, amigo de seu filho
Joa...
— Eu não tenho nenhum filho — interrompeu-o Ponç, fazendo menção
de fechar a porta.
— Mas você tem uma mulher — respondeu Bernat, pressionando a
porta com o braço. Ponç cedeu. — Bem... — explicou, ante o olhar do
caldeireiro —, tinha. Ela morreu.
Ponç não se alterou.
— E? — perguntou ele, encolhendo os ombros imperceptivelmente.
— Joanet está lá dentro com ela. — Bernat tentou imprimir no olhar
toda a dureza que podia. — Ele não consegue sair.
— Esse bastardo devia ter passado a vida toda lá dentro.
Bernat sustentou o olhar do caldeireiro, apertando o ombro do filho.
Arnau estava a ponto de se encolher, mas aguentou ereto quando o
caldeireiro olhou para ele.
— O que você pensa em fazer? — insistiu Bernat.
— Nada — respondeu o caldeireiro. — Amanhã, quando eu derrubar o
quarto, o menino poderá sair.
— Você não pode deixar um menino toda a noite...
— Na minha casa eu posso fazer o que eu quiser.
— Vou avisar o veguer — devolveu Bernat, sabendo que sua ameaça
era inútil.
Ponç semicerrou os olhos e, sem dizer palavra, desapareceu no interior
da casa deixando a porta aberta. Bernat e Arnau esperaram até ele voltar
com uma corda, que entregou diretamente a Arnau.
— Tire-o de lá — ordenou — e diga a ele que, agora que a sua mãe
morreu, não quero mais vê-lo por aqui.
— Como...? — começou a perguntar Bernat.
— Pelo mesmo lugar por onde ele entrou durante todos esses anos —
adiantou-se Ponç. — Saltando o muro. Pela minha casa vocês não
passarão.
— E a mãe? — perguntou Bernat antes de ele fechar a porta.
— A mãe me foi entregue pelo rei com ordem de que não a matasse, e
vou devolvê-la ao rei agora que morreu — respondeu Ponç rapidamente.
— Entreguei um bom dinheiro como caução e juro por Deus que não
pretendo perdê-lo por uma rameira.

***

Só o padre Albert, que já conhecia a história de Joanet, e o velho Pere e


sua mulher, aos quais Bernat foi obrigado a contá-la, souberam da
desgraça do pequeno. Os três se dedicaram a ele. Ainda assim, o mutismo
do menino persistia, e seus movimentos, antes nervosos e inquietos, eram
agora mais lentos, como se carregasse nas costas um peso insuportável.
— O tempo cura tudo — disse Bernat a Arnau certa manhã. — Temos
de esperar e oferecer a ele o nosso carinho e o nosso apoio.
Mas Joanet continuou em silêncio, afora as crises de choro que o
assaltavam todas as noites. Pai e filho ficavam quietos, escutando
encolhidos em suas enxergas, até que parecia que as forças o abandonavam
e o sono, nunca tranquilo, o vencia.
— Joanet — Bernat ouviu Arnau chamar uma noite. — Joanet.
Não houve resposta.
— Se você quiser, eu posso pedir à Virgem que seja sua mãe também.
“Bem, meu filho”, pensou Bernat. Não quisera propor isso. Era a sua
Virgem, o seu segredo. Ele já compartilhava o pai: a decisão tinha de ser
dele.
E ele o propôs, mas Joanet não respondia. O quarto ficou no mais
absoluto silêncio.
— Joanet? — insistiu Arnau.
— Era assim que a minha mãe me chamava — foi a primeira coisa que
disse em dias, e Bernat ficou quieto na enxerga. — E ela já não está aqui.
Agora eu sou Joan.
— Como você quiser... Você ouviu o que eu disse sobre a Virgem,
Joanet... Joan? — Arnau se corrigiu.
— Mas sua mãe não fala com você, e a minha falava.
— Diga a ele sobre os pássaros — sussurrou Bernat.
— Mas eu posso ver a Virgem, e você não podia ver sua mãe.
O menino voltou a ficar em silêncio.
— Como sabe que ela ouve você? — perguntou finalmente. — É só
uma estatueta de pedra, e as estatuetas de pedra não ouvem.
Bernat prendeu a respiração.
— Se é verdade que não ouvem — replicou —, por que todos falam
com ela? Até o padre Albert fala com ela. Você já viu. Por acaso você acha
que o padre Albert está errado?
— Mas ela não é a mãe do padre Albert — insistiu o pequeno —, ele
me disse que já tem uma. Como vou saber se a Virgem é minha mãe se ela
não fala comigo?
— Ela vai falar à noite quando você estiver dormindo e por meio dos
pássaros.
— Dos pássaros?
— Bem — titubeou Arnau. É verdade que nunca tinha entendido a coisa
dos pássaros, mas tampouco se atrevia a dizer isso ao pai. — Isto é mais
complicado. O meu... nosso pai vai explicar a você.
Bernat sentiu que se formava um nó em sua garganta. O silêncio voltou
a reinar no quarto, até que Joan falou novamente:
— Arnau, nós podemos ir agora mesmo perguntar à Virgem?
— Agora?
“É, agora, filho, ele está precisando”, pensou Bernat.
— Por favor.
— Você sabe que é proibido entrar na igreja à noite. O padre Albert...
— Não vamos fazer barulho. Ninguém vai saber. Por favor.
Arnau concordou, e os dois meninos saíram sigilosamente da casa de
Pere e percorreram a curta distância até Santa Maria do Mar.
Bernat se cobriu na enxerga. O que podia acontecer? Todos na igreja
gostavam deles.
A lua brincava com as estruturas dos andaimes, com as paredes em
construção, os contrafortes, os arcos, as absides... Santa Maria estava em
silêncio, e só uma ou outra fogueira denotava a presença de vigias. Arnau
e Joanet rodearam a igreja até a Rua de Born; a entrada principal estava
fechada, e a área do cemitério de Moreres, onde era guardada a maior
parte dos materiais, era a mais vigiada. Uma fogueira solitária iluminava a
fachada em obras. Não era difícil entrar: os muros e contrafortes desciam
da abside até a porta de Born, onde um tapume de madeira indicava a
localização da escada da entrada. Os meninos pisaram nos desenhos do
mestre Montagut, que marcavam o lugar exato da porta e dos degraus,
entraram em Santa Maria e caminharam em silêncio pelo deambulatório
até a capela do Santíssimo, onde, atrás de grades de ferro forjado
finamente trabalhadas, a Virgem os esperava iluminada pelos círios que os
bastaixos repunham constantemente.
Ambos se persignaram. “Vocês devem fazê-lo toda vez que entrarem na
igreja”, tinha dito o padre Albert, e se aferraram às grades da capela.
— Ele quer que você seja mãe dele — disse Arnau em silêncio à
Virgem. — A mãe dele morreu, e eu não me importo em compartilhar
você.
Com as mãos agarradas às grades, Joan olhava seguidamente para a
Virgem e depois para Arnau:
— E então? — sussurrou.
— Silêncio! — Arnau virou-se novamente para a imagem. — Papai diz
que ele deve ter sofrido muito. A mãe dele estava presa, sabe? Ela só
mostrava o braço através de uma janela muito pequena, e ele não podia vê-
la, até que ela morreu, mas ele me disse que nem assim olhou para ela. Ela
tinha proibido.
A fumaça das velas de cera de abelha que se desprendia da palmatória
bem abaixo da imagem nublou a vista de Arnau, e os lábios de pedra
sorriram.
— Ela vai ser sua mãe — sentenciou o menino, virando-se para Joan.
— Como você sabe se você disse que ela responde pelas...?
— Eu sei e pronto — Arnau o interrompeu bruscamente.
— E se eu perguntar...?
— Não — interrompeu-o Arnau outra vez.
Joan olhou aquela imagem de pedra; desejava tanto poder falar com ela
como Arnau fazia. Por que ela não o ouvia e ouvia seu irmão? Como
Arnau sabia...? Quando Joan prometia a si mesmo que algum dia ele
também seria digno de que ela falasse com ele, ouviram um barulho.
— Psiu! — sussurrou Arnau, olhando para o vão do portal das Moreres.
— Quem vem lá? — O reflexo de um candeeiro apareceu no vão.
Arnau começou a caminhar em direção à Rua de Born, por onde tinham
entrado, mas Joan permaneceu imóvel, com os olhos fixos no candeeiro
que se aproximava do deambulatório.
— Vamos! — sussurrou Arnau, puxando-o.
Quando chegaram à Rua de Born, viram diversos candeeiros se
moverem em sua direção. Arnau olhou para trás; dentro de Santa Maria
outras luzes tinham se juntado à primeira.
Não tinham escapatória. Os vigias falavam e gritavam entre si. O que
podiam fazer? O tapume! Empurrou Joan para o chão; o pequeno estava
paralisado. As madeiras não tapavam as laterais. Empurrou Joan outra vez,
e os dois rastejaram para o interior até chegar às fundações da igreja. Joan
encostou-se nelas. As luzes subiam pelo tapume. As pisadas dos vigias
sobre as tábuas ressoaram nos ouvidos de Arnau, e suas vozes silenciaram
as batidas de seu coração.
Esperaram que os homens inspecionassem a igreja. E demorou uma
eternidade! Arnau olhava para cima tentando ver o que acontecia, e cada
vez que a luz se filtrava pelas juntas das tábuas ele se encolhia.
Finalmente os vigias desistiram. Dois deles pararam sobre o tapume e
dali iluminaram a área por uns instantes. Como não ouviam as batidas do
seu coração? E as do coração de Joan? Os homens desceram do tapume.
Arnau se virou para o lugar onde o pequeno estava encostado logo antes.
Um dos vigilantes pendurou um candeeiro perto do tapume, e o outro
começou a se perder na distância. Joan tinha sumido! Para onde teria ido?
Arnau se aproximou do ponto onde as fundações da igreja se uniam ao
tapume. Tateou. Havia um buraco, uma pequena passagem aberta entre as
fundações.
Empurrado por Arnau, Joan tinha rastejado para baixo do tapume; nada
se interpôs em seu caminho, e o pequeno continuou a rastejar pelo buraco,
uma passagem que descia suavemente em direção ao altar-mor. Arnau o
havia empurrado para lá. “Silêncio!”, lhe exigiu diversas vezes. O roçar de
seu próprio corpo na terra o impedia de ouvir qualquer coisa, mas Arnau
devia estar atrás dele. Ouviu que se metia embaixo do tablado. Só quando
o túnel estreito se alargou, lhe permitindo dar a volta e até ficar de joelhos,
Joan percebeu sua solidão. Onde estava? A escuridão era total.
— Arnau? — chamou.
Sua voz ressoou no interior. Era... era como uma caverna. Debaixo da
igreja!
Chamou de novo, uma e outra vez. Primeiro em voz baixa, depois
gritando, mas seus próprios gritos o assustaram. Poderia tentar voltar, mas
onde estava o túnel? Joan esticou os braços, mas suas mãos não tocaram
nada; tinha ido longe demais.
— Arnau! — gritou novamente.
Nada. Começou a chorar. O que podia haver naquele lugar? Monstros?
E se fosse o inferno? Estava debaixo de uma igreja; não diziam que o
inferno ficava embaixo? E se o demônio aparecesse?
Arnau rastejou pela passagem. Joan só podia ter ido por ali. Não podia
ter saído por baixo do tapume. Arnau chamou o amigo depois de percorrer
um trecho; era impossível ouvi-lo fora do túnel. Nada. Rastejou mais.
— Joanet! — gritou. — Joan! — corrigiu-se.
— Aqui — ouviu sua resposta.
— Aqui onde?
— No fim do túnel.
— Você está bem?
Joan parou de tremer.
— Estou.
— Então volte.
— Não posso — suspirou Arnau —, isto aqui é como uma caverna, e
agora eu não sei onde fica a saída.
— Vá tateando pelas paredes até que... Não! — retificou Arnau
instantaneamente. — Não faça isso, você me ouviu, Joan? Pode haver
outros túneis. Se eu chegasse até aí... Você consegue ver alguma coisa,
Joan?
— Não — respondeu o pequeno.
Podia continuar até encontrá-lo, mas e se ele também se perdesse? Por
que havia uma caverna ali embaixo? Ah! Agora já sabia como chegar.
Precisava de luz. Com um candeeiro poderiam voltar.
— Espere aí, está me ouvindo, Joan? Fique quieto e espere por mim
sem se mexer, está bem?
— Sim, eu ouvi. O que você vai fazer?
— Vou buscar um candeeiro e já volto. Espere por mim sem se mexer,
está bem?
— Sim — titubeou Joan.
— Pense que você está embaixo da Virgem, da sua mãe. — Arnau não
ouviu nenhuma resposta. — Joan, está me ouvindo?
“Como não ouvi-lo?”, perguntou-se o pequeno. Tinha dito “sua mãe”.
Ele não a ouvia; Arnau, sim. Mas Arnau não o deixou falar com ela. E se
ele não quiser compartilhar sua mãe e estiver pensando em prendê-lo ali,
naquele inferno?
— Joan? — insistiu Arnau.
— O quê?
— Espere por mim sem se mexer.
Arnau se arrastou com dificuldade para trás até voltar para baixo do
tapume da Rua de Born. Sem pensar duas vezes, pegou o candeeiro que o
vigia deixara pendurado e voltou a entrar no túnel.
Joan viu a luz chegar. Arnau aumentou a chama quando as paredes da
galeria se alargaram. O pequeno estava ajoelhado a alguns passos da saída
do túnel. Joan olhou para ele em pânico.
— Não tenha medo — Arnau tentou tranquilizá-lo.
Arnau alçou o candeeiro e aumentou a chama outra vez. Ele se
perguntava o que... Um cemitério! Estavam em um cemitério. Uma
pequena caverna que, por algum motivo, tinha permanecido sob Santa
Maria como uma bolha de ar. O teto era tão baixo que não podiam ficar de
pé. Arnau iluminou ânforas grandes, parecidas com as vasilhas que tinha
visto na oficina de Grau, mas mais grosseiras. Algumas estavam
quebradas e deixavam à mostra os cadáveres que guardavam, mas outras
não: grandes ânforas cortadas pelo bojo, unidas entre si e seladas no
centro.
Joan tremia; tinha o olhar fixo em um cadáver.
— Fique calmo — insistiu Arnau, se aproximando.
Mas Joan se afastou bruscamente.
— O que...? — Arnau começou a perguntar.
— Vamos — pediu Joan.
Entrou no túnel sem esperar resposta. Arnau o seguiu e apagou o
candeeiro quando chegaram embaixo do tapume. Não se via ninguém.
Devolveu o candeeiro ao seu lugar e voltaram para a casa de Pere.
— Não diga nada sobre isso a ninguém — disse a Joan no caminho. —
Está bem?
Joan não respondeu.
14
Desde que Arnau lhe garantira que a Virgem também era sua mãe, Joan
corria até a igreja sempre que tinha algum tempo sobrando e, agarrado às
grades da capela do Santíssimo, enfiava o rosto entre elas e ficava
contemplando a figura de pedra com o menino no braço e a embarcação
aos seus pés.
— Algum dia você não vai conseguir tirar a cabeça daí — disse-lhe o
padre Albert certa ocasião.
Joan tirou a cabeça da grade e sorriu para ele. O sacerdote acariciou
seus cabelos e se agachou.
— Você gosta dela? — perguntou, apontando para o interior da capela.
Joan titubeou.
— Agora ela é a minha mãe — respondeu, movido mais pelo desejo do
que pela certeza.
O padre Albert sentiu um nó na garganta. Quantas coisas ele poderia lhe
contar sobre Nossa Senhora! Tentou falar, mas não conseguiu. Abraçou o
pequeno enquanto recobrava a voz.
— Você reza para ela? — perguntou, já recuperado.
— Não. Só falo com ela. — O padre Albert o interrogou com o olhar. —
É, eu conto as minhas coisas a ela.
O sacerdote olhou para a Virgem.
— Continue, filho, continue — acrescentou, deixando-o sozinho.

***

Não foi difícil para ele conseguir. O padre Albert pensou em três ou quatro
candidatos e ao final se decidiu por um prateiro rico. Na última confissão
anual, o artesão tinha se mostrado muito contrito por relações adúlteras
que mantivera.
— Se a senhora é a mãe dele — murmurou o padre Albert, erguendo os
olhos para o céu —, não se importará se eu fizer uso de um pequeno ardil
em prol do seu filho, não é mesmo, Senhora?
O prateiro não se atreveu a dizer não.
— Trata-se de um pequeno donativo para a escola da catedral — disse a
ele o pároco —, assim você ajudará um menino e a Deus... Deus lhe
agradecerá.
Só faltava falar com Bernat, e o padre Albert foi procurá-lo.
— Consegui que admitam Joanet na escola da catedral — anunciou
enquanto passeavam pela praia, perto da casa de Pere.
Bernat se virou para o sacerdote.
— Não tenho dinheiro suficiente, padre — se desculpou.
— Não vai custar nada.
— Eu pensei que as escolas...
— Sim, mas isso é nas escolas da cidade. Na da catedral basta... — Por
que explicar? — Bem, eu consegui; ele aprenderá a ler e escrever,
primeiro com livros seculares, depois com outros, de salmos e orações. —
Por que Bernat não dizia nada? — Quando ele fizer treze anos, poderá
começar a escola secundária, o estudo do latim e das sete artes liberais:
gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia.
— Padre — disse Bernat —, Joanet ajuda na casa e graças a ele Pere me
cobra uma boca a menos. Se o menino estudar...
— Ele vai comer na escola. — Bernat olhou para ele e balançou a
cabeça pensando no assunto. — Além disso — acrescentou o sacerdote —,
já falei com Pere e ele está de acordo em continuar cobrando a mesma
coisa.
— Vós vos preocupais muito com o menino.
— Sim, você se incomoda? — Bernat negou sorrindo. — Imagine que
no final Joanet pode ir para a universidade, para o Estúdio1 Geral de
Lérida ou até para uma universidade no estrangeiro, em Bolonha, Paris...
Bernat caiu na gargalhada.
— Se eu dissesse não, imagino que ficaríeis desiludido, estou errado?
— O padre Albert concordou. — Ele não é meu filho, padre — continuou
Bernat. — Se fosse, eu não permitiria que um trabalhasse para o outro,
mas, se não me custa nada, por que não? O menino merece. Talvez um dia
ele vá para todos esses lugares que mencionastes.

***
— Eu preferia ficar com os cavalos, como você — disse Joanet a Arnau
enquanto passeavam pela praia, no mesmo lugar em que o padre Albert e
Bernat tinham decidido o seu futuro.
— É muito duro, Joanet... Joan. Eu só faço limpar e limpar, e quando
tudo fica brilhando, começo tudo de novo. Isso quando Tomàs não aparece
gritando e me entrega uma rédea ou as correias para limpar novamente. Da
primeira vez ele me deu um cascudo, mas então nosso pai apareceu e... Se
você visse! Ele estava com a forquilha e o imprensou contra a parede com
as pontas no peito dele, e o outro começou a gaguejar e pedir perdão.
— Por isso eu queria ficar com vocês.
— Ah, não! — respondeu Arnau. — Desde esse dia ele não voltou a pôr
as mãos em mim, é verdade, mas sempre acha alguma coisa malfeita. Ele
suja as coisas, sabe? Eu já vi.
— Por que você não conta ao Jesús?
— Papai diz que não, que ele não acreditaria em mim, que Jesús é
amigo de Tomàs e sempre vai defendê-lo, e que a baronesa aproveitaria
qualquer problema para nos atacar; ela nos odeia. E veja, você está
aprendendo muitas coisas na escola, e eu limpando o que os outros sujam e
aguentando gritos. — Ambos ficaram em silêncio por um instante, pisando
na areia e olhando o mar. — Aproveite, Joan, aproveite — disse Arnau de
repente, repetindo as palavras que ouvira da boca de Bernat.
Joan não demorou a apreciar as aulas. Se dedicou a isso desde o dia em
que o sacerdote que era seu professor felicitou-o publicamente. Joan sentiu
uma sensação engraçada e se deixou contemplar pelos companheiros de
sala. Se sua mãe estivesse viva! Naquele instante ele correria para se
sentar no caixote e lhe contar que tinha sido elogiado. “O melhor”, o
mestre havia dito, e todos, todos, tinham olhado para ele. Nunca tinha sido
o melhor em nada!
Naquela noite Joan fez o caminho de volta para casa envolto em uma
nuvem de satisfação. Pere e Mariona o escutaram sorrindo e animados e
lhe pediram que repetisse as frases que o menino pensava ter dito, mas que
se tinham perdido entre gritos e gestos. Quando Arnau e Bernat chegaram,
os três olharam para a porta. Joan fez menção de correr na direção deles,
mas o rosto do irmão o impediu: se notava que tinha chorado, e Bernat,
com a mão em seu ombro, o apertava contra si.
— O que...? — perguntou Mariona, se aproximando de Arnau para
abraçá-lo.
Mas Bernat interrompeu o gesto com a mão.
— É preciso aguentar — acrescentou, sem se dirigir a ninguém em
especial.
Joan procurou os olhos do irmão, mas Arnau olhava para Mariona.
E aguentaram. Tomàs, o cavalariço, não se atrevia a provocar Bernat,
mas o fazia com Arnau.
— Ele está procurando briga, filho. — Bernat tentava consolá-lo
quando a ira irrompia novamente em Arnau. — Não devemos cair nessa
armadilha.
— Mas não podemos continuar assim a vida toda, pai — queixou-se
Arnau um dia.
— E não vamos continuar. Já ouvi Jesús chamar a atenção dele várias
vezes. Ele não trabalha bem, e Jesús sabe disso. Os cavalos que ele toca
são intratáveis: dão coices e mordem. Ele não demora a cair, filho, não vai
demorar.
E, como Bernat previa, as consequências não tardaram a chegar. A
baronesa estava empenhada em que os filhos de Grau aprendessem a
montar a cavalo. Que Grau não soubesse era admissível, mas os dois
varões deviam aprender. Para isto, várias vezes por semana, quando
terminavam as aulas, Isabel e Margarida — na caleche conduzida por
Jesús — e os meninos, seu professor e Tomàs, o cavalariço — este último
a pé e levando um cavalo pelo cabresto —, saíam da cidade até um
pequeno descampado extramuros onde, um por um, recebiam aulas de
Jesús.
Jesús segurava com a mão direita uma corda comprida atada ao freio do
cavalo, de forma que o animal era obrigado a dar voltas em círculo; com a
mão esquerda empunhava um chicote para atiçá-lo, e, um depois do outro,
os aprendizes de cavaleiro montavam e giravam vezes seguidas em volta
do cavalariço principal, obedecendo às suas ordens e conselhos.
Naquele dia, da carruagem, de onde espreitava o estrago, Tomàs não
tirava os olhos da boca do cavalo; só era preciso um puxão mais forte, só
um. Em algum momento o cavalo sempre se assustava.
Genís Puig estava montado no animal.
O cavalariço desviou o olhar para o rosto do menino. Pânico. Ele tinha
pânico de cavalo e ficava tenso. Sempre havia um momento em que o
cavalo se assustava.
Jesús estalou o chicote e atiçou o cavalo para que galopasse. O cavalo
deu uma cabeçada forte e puxou a corda.
Tomàs não pôde evitar um sorriso que instantaneamente se apagou dos
lábios quando o mosquetão se soltou da corda e o cavalo ficou livre. Não
tinha sido difícil entrar às escondidas no guarda-arnês e cortar a corda por
dentro do mosquetão, deixando-a fracamente presa.
Isabel e Margarida contiveram os gritos. Jesús deixou cair o chicote e
tentou deter o animal, mas foi em vão.
Ao ver que a corda se soltava, Genís começou a gritar e se agarrou ao
pescoço do cavalo. Com os pés e as pernas, se cingiu aos flancos do
animal, e este, espantado, saiu num rápido galope em direção às portas da
cidade, com Genís se equilibrando em cima dele. Quando o cavalo saltou
uma pequena elevação, o menino foi jogado, saiu voando pelos ares e caiu
de bruços no mato depois de dar várias cambalhotas pelo chão.
No interior da cavalariça, Bernat primeiro ouviu as pisadas dos cavalos
no empedrado do pátio de acesso ao palácio e, em seguida, os gritos da
baronesa. Em vez de entrar devagar e com tranquilidade como sempre
faziam, os cavalos pisavam nas pedras com força. Quando Bernat se
encaminhava para a saída das quadras, Tomàs entrou com o cavalo. O
animal estava frenético, coberto de suor e arquejando pelas ventas.
— O que...? — começou Bernat.
— A baronesa quer ver seu filho — gritou Tomàs enquanto batia no
animal.
Os gritos da mulher continuavam a ressoar no pátio. Bernat olhou
novamente para o pobre animal que pateava no empedrado.
— A senhora quer ver você — gritou Tomàs quando Arnau saiu do
guarda-arnês.
Arnau olhou para o pai, e este encolheu os ombros.
Saíram para o pátio. A baronesa, encolerizada, brandindo o chicote que
sempre levava quando saía para montar, gritava para Jesús, para o
professor e para todos os escravos que tinham se aproximado. Margarida e
Josep permaneciam atrás dela. Ao lado dela estava Genís, machucado,
sangrando e com as roupas rasgadas. Assim que Arnau e Bernat
apareceram, a baronesa deu alguns passos em direção ao menino e
chicoteou-o no rosto. Arnau pôs as mãos na boca e na bochecha. Bernat
tentou reagir, mas Jesús se interpôs:
— Olhe isto — gritou o cavalariço principal, entregando a Bernat a
corda arrebentada e o mosquetão. — Este é o trabalho do seu filho!
Bernat pegou a corda e o mosquetão e os examinou; Arnau, com as
mãos no rosto, olhou também. Tinha revisado os dois no dia anterior.
Levantou os olhos para o pai no momento em que ele olhou para a porta
das quadras, de onde Tomàs observava a cena.
— Isto estava direito! — gritou Arnau, pegando a corda e o mosquetão
e agitando-os diante de Jesús. Olhou novamente para a porta das quadras.
— Estava direito! — repetiu, enquanto seus olhos vertiam as primeiras
lágrimas.
— Vejam como ele chora — ouviu-se de repente. Margarida apontava
para Arnau. — Ele é o culpado de seu acidente e está chorando —
acrescentou, se dirigindo a Genís. — Você não chorou quando caiu do
cavalo por culpa dele — mentiu.
Josep e Genís demoraram a reagir, mas logo também zombaram de
Arnau.
— Chore, garotinha — disse um.
— É, chore, menina — repetiu o outro.
Arnau os viu apontar para ele rindo. Não conseguia parar de chorar! As
lágrimas corriam por sua face, e seu peito se encolhia ao ritmo dos
soluços. De onde estava, abrindo as mãos, mostrou novamente a corda e o
mosquetão a todos, incluindo os escravos.
— Em vez de chorar, você devia pedir perdão pelo seu descuido —
insistiu a baronesa, depois de dirigir um sorriso descarado aos enteados.
Perdão? Arnau olhou para o pai com uma interrogação desenhada nas
pupilas. Bernat olhava fixamente para a baronesa. Margarida continuava a
apontar para ele e a cochichar com os irmãos.
— Não — ele se opôs —, isto estava direito — acrescentou, jogando a
corda e o mosquetão no chão.
A baronesa começou a gesticular, mas se deteve quando Bernat deu um
passo em sua direção. Jesús agarrou Bernat pelo braço.
— Ela é nobre — sussurrou ele ao seu ouvido.
Arnau olhou para todos e deixou o palácio.

***
— Não! — gritou Isabel quando Grau, ao saber dos acontecimentos,
decidiu despedir pai e filho. — Quero que o pai continue aqui, trabalhando
para seus filhos. Quero que ele se lembre a cada minuto de que estamos
esperando as desculpas do filho dele. Quero que esse menino se desculpe
publicamente diante de seus filhos! E isso eu não terei se você os despedir.
Avise-os de que o filho não poderá voltar a trabalhar aqui enquanto não
pedir perdão... — Isabel gritava e gesticulava sem parar. — Diga a ele que
enquanto isso não acontecer só receberá metade do salário, e, caso procure
outro trabalho, toda Barcelona saberá o que ocorreu aqui e ele não terá de
que viver. Quero uma desculpa! — exigiu, histérica.
“Toda Barcelona saberá...” Grau sentiu um arrepio. Tantos anos
tentando esconder o cunhado e agora... agora sua mulher pretendia que
toda Barcelona soubesse de sua existência!
— Peço a você que seja discreta — foi tudo o que conseguiu dizer.
Isabel fitou-o com os olhos injetados de sangue.
— Quero que se humilhem!
Grau ia dizer algo, mas se calou de repente e franziu os lábios.
— Discrição, Isabel, discrição — disse por fim.
Grau acatou as exigências da esposa. Afinal, Guiamona estava morta; já
não havia sinais na família e todos eram conhecidos como Puig, e não
como Estanyol. Quando Grau deixou as quadras, Bernat, com os olhos
semicerrados, escutou o cavalariço descrever suas novas condições de
trabalho.

***

— Pai, aquele cabresto estava direito — desculpou-se Arnau de noite,


quando os três estavam no pequeno quarto que compartilhavam. — Eu
juro! — insistiu, ante o silêncio de Bernat.
— Mas você não pode provar isso — interveio Joan, já sabendo do
acontecido.
“Você não precisa jurar”, pensou Bernat, “mas como posso explicar isso
a você...?”. Bernat ficou arrepiado ao lembrar da reação do filho na
cavalariça de Grau: “Eu não tenho culpa e não tenho de me desculpar.”
— Pai — repetiu Arnau —, eu juro.
— Mas...
Bernat mandou Joan se calar.
— Eu acredito em você, filho. Agora vamos dormir.
— Mas... — desta vez foi Arnau quem tentou.
— Vamos dormir!
Arnau e Joan apagaram o candeeiro, mas Bernat teve de esperar até
tarde da noite, até ouvir a respiração rítmica que lhe indicava que já
haviam dormido. Como iria lhe dizer que exigiam suas desculpas?

***

— Arnau... — Sua voz tremeu ao ver o filho parar de se vestir e olhar para
ele. — Grau... Grau quer que você se desculpe, caso contrário...
Arnau o interrogou com o olhar.
— Caso contrário, não vai permitir que você volte ao trabalho...
Ainda não tinha terminado a frase quando viu os olhos de seu pequeno
ganharem uma seriedade que ele nunca vira. Bernat desviou o olhar para
Joan e também o viu parado, apenas meio vestido e de boca aberta. Tentou
falar de novo, mas sua boca se negou.
— E então? — perguntou Joan, rompendo o silêncio.
— Você acha que devo pedir perdão?
— Arnau, eu abandonei tudo o que tinha para que você fosse livre.
Abandonei nossas terras, que foram propriedade dos Estanyol durante
séculos, para que ninguém pudesse fazer com você o que fizeram comigo,
com meu pai e com o pai de meu pai... e agora voltamos a ficar na mesma,
à mercê dos caprichos dos que se dizem nobres; mas com uma diferença:
podemos nos negar. Aprenda a usar a liberdade que nos custou tanto
esforço alcançar, meu filho. Só cabe a você decidir.
— Mas o que você me aconselha, pai?
Bernat ficou em silêncio por um instante.
— Se eu fosse você, não me submeteria.
Joan tentou intervir na conversa.
— Eles são apenas barões catalães! O perdão... só o Senhor concede o
perdão.
— E como viveremos? — perguntou Arnau.
— Não se preocupe com isso, filho. Poupei um pouco de dinheiro, que
nos permitirá seguir em frente. Grau Puig não é o único que possui
cavalos.
Bernat não esperou nem um dia. Naquela mesma tarde, quando
terminou sua jornada, começou a procurar trabalho para ele e Arnau.
Encontrou uma casa nobre com cavalariça e foi bem recebido pelo
encarregado. Muitas pessoas em Barcelona invejavam o cuidado com que
eram tratados os cavalos de Grau Puig, e quando Bernat se apresentou
como responsável por eles, o encarregado mostrou interesse em contratá-
los. Mas no dia seguinte, quando Bernat voltou à cavalariça para confirmar
uma notícia que já havia comemorado com os filhos, nem foi recebido.
“Não pagavam o suficiente”, mentiu naquela noite na hora do jantar.
Bernat continuou a tentar em outras casas nobres que possuíam
cavalariças, mas a disposição de contratá-los desaparecia de um dia para
outro.
— Você não vai conseguir encontrar trabalho — confessou-lhe um
cavalariço, afetado pelo desespero refletido no rosto de Bernat, que fitava
as pedras do pátio da enésima cavalariça que o rejeitava. — A baronesa
não vai deixar que você encontre serviço algum — explicou o cavalariço.
— Depois que você foi embora, o meu senhor recebeu uma mensagem da
baronesa lhe pedindo que não desse trabalho a você. Sinto muito.

***

— Bastardo — disse ao seu ouvido, em voz baixa e firme, arrastando as


vogais. Tomàs, o cavalariço, se sobressaltou e tentou escapar, mas Bernat,
às suas costas, agarrou-o pelo pescoço e apertou até que o corpo do
cavalariço começou a se dobrar. Só então ele afrouxou a pressão. “Se os
nobres recebem mensagens”, pensou Bernat, “alguém deve estar me
seguindo.”
— Deixe-me sair pela outra porta — implorou o cavalariço. Tomàs,
parado em uma esquina em frente à porta das quadras, não o vira sair;
Bernat chegara por trás dele. — Você preparou o cabresto para que se
soltasse, não foi? E agora o que mais você quer? — Bernat apertou
novamente o pescoço do cavalariço.
— De que... de que adianta? — soltou Tomàs.
— O que você quer dizer? — Bernat apertou com força. O cavalariço
moveu os braços sem conseguir se safar. Depois de uns instantes, Bernat
notou que o corpo de Tomàs começava a cair. Soltou o seu pescoço e
virou-o para si. — O que você quer dizer com isso? — perguntou
novamente.
Tomàs arquejou diversas vezes antes de responder. Quando seu rosto
recuperou a cor, um sorriso apareceu em seus lábios.
— Mate-me se quiser — disse de maneira entrecortada —, mas você
sabe muito bem que, se não tivesse sido o cabresto, teria sido outra coisa.
A baronesa odeia você e vai odiá-lo sempre. Você não passa de um servo
fugitivo. Você não vai conseguir trabalho em Barcelona. A baronesa deu
ordens, e, se não for eu, outro será encarregado de espionar você.
Bernat lhe cuspiu na cara. Tomàs não só não se moveu como seu sorriso
ficou maior.
— Você não entende nada, Bernat Estanyol. O seu filho tem de pedir
perdão.

***

— Eu vou pedir perdão — fraquejou Arnau naquela noite, com os punhos


fechados e contendo as lágrimas, depois de ouvir as explicações do pai —,
não podemos lutar contra os nobres e temos de trabalhar. Porcos! Porcos,
porcos!
Bernat olhou para o filho. “Ali seremos livres”, recordou o que lhe
prometera poucos meses depois de nascer, ao avistar Barcelona. Tanto
esforço e penúria para isto?
— Não, filho, espere, vamos procurar outro...
— Eles mandam, pai. Os nobres mandam. Mandam no campo,
mandavam nas suas terras e mandam na cidade.
Joanet os observava em silêncio. “É preciso obedecer e se submeter aos
príncipes”, lhe haviam ensinado seus professores. “O homem encontrará a
liberdade no reino de Deus, não neste.”
— Não podem mandar em toda Barcelona. Só os nobres têm cavalos,
mas podemos aprender outro ofício. Encontraremos algo, filho.
Bernat percebeu um raio de esperança nas pupilas do filho, que se
ampliaram como se quisessem absorver o alento de suas últimas palavras.
“Eu lhe prometi a liberdade, Arnau. Devo dá-la a você e a darei. Não
renuncie a ela tão cedo, meu pequeno.”
Nos dias seguintes Bernat se lançou às ruas em busca da liberdade. A
princípio, quando terminava o trabalho na cavalariça, Tomàs o seguia,
agora descaradamente, mas deixou de fazê-lo quando a baronesa entendeu
que não teria influência sobre os artesãos, pequenos mercadores ou
construtores.
— Dificilmente conseguirá algo. — Grau tentou tranquilizá-la quando a
esposa veio até ele gritando devido à atitude do camponês.
— O que você quer dizer? — perguntou ela.
— Que ele não vai encontrar trabalho. Barcelona está sofrendo as
consequências da falta de provisão. — A baronesa incentivou-o a
prosseguir; Grau nunca se equivocava em suas apreciações. — As
colheitas dos últimos anos têm sido desastrosas — continuou a explicar o
marido —, o campo está demasiado povoado, e o pouco que os
camponeses colhem não chega às cidades, eles comem tudo.
— Mas a Catalunha é muito grande — interveio a baronesa.
— Não se iluda, querida. A Catalunha é muito grande, mas há muitos
anos os camponeses já não se dedicam a cultivar cereais, que é o que se
come. Agora cultivam linho, uva, azeitonas ou frutos secos, mas não
cereais. A mudança enriqueceu os senhores dos camponeses e tem sido
muito boa para nós, mercadores, mas a situação começa a ficar
insustentável. Até agora comíamos os cereais da Sicília e da Sardenha,
mas a guerra com Gênova impede o abastecimento destes produtos. Bernat
não encontrará trabalho, mas todos, incluindo nós, teremos problemas, e
tudo por culpa de quatro nobres ineptos...
— Como você pode falar assim? — interrompeu-o a baronesa,
sentindo-se aludida.
— Você verá, querida — respondeu Grau, sério —, nós nos dedicamos
ao comércio e ganhamos muito dinheiro. Parte do que ganhamos
investimos em nosso próprio negócio. Hoje não navegamos com os
mesmos navios de dez anos atrás; por isso continuamos a ganhar dinheiro.
Mas os nobres da terra não investiram um só soldo em suas terras nem em
seus métodos de trabalho; na verdade, continuam a usar os mesmos
instrumentos agrícolas e as mesmas técnicas que usavam os romanos. Os
romanos! Deve-se barbechar as terras a cada dois ou três anos, e, se bem
cultivadas, elas podem aguentar o dobro ou até o triplo. Esses nobres
proprietários que você tanto defende não se importam com o futuro, a
única coisa que querem é dinheiro fácil, e levarão o principado à ruína.
— Não é para tanto — insistiu a baronesa.
— Você sabe quanto está custando o quarteiro de trigo? — A mulher
não respondeu, e Grau negou com a cabeça antes de prosseguir: — Está
em torno de cem soldos. Você sabe qual é o preço normal? — desta vez
não esperou resposta: — Dez soldos sem moer e dezesseis moído. O
quarteiro está custando dez vezes mais!
— Mas nós poderemos comer? — perguntou a baronesa, sem esconder
a preocupação que a assaltara.
— Você não quer entender, mulher. Poderemos pagar o trigo... se
houver, porque pode chegar o momento em que não haverá trigo... se é que
já não chegou. O problema é que, apesar de o valor do trigo ter aumentado
dez vezes, o povo continua a receber a mesma coisa...
— Então o trigo não vai nos faltar — interrompeu-o a mulher.
— Não, mas...
— E Bernat não encontrará trabalho.
— Creio que não, mas...
— Pois é a única coisa que me importa — disse ela antes de lhe dar as
costas, cansada de tanta explicação.
— ... mas algo terrível se aproxima — terminou Grau quando a
baronesa já não podia ouvi-lo.
Um ano ruim. Bernat estava cansado de ouvir aquela desculpa. O ano
ruim aparecia onde quer que fosse buscar trabalho. “Tive de despedir
metade dos meus aprendizes, como você quer que lhe dê trabalho?”, disse
um. “Estamos em um ano ruim, não tenho para dar de comer aos meus
filhos”, disse outro. “Você não sabe?”, provocou um terceiro. “Estamos em
um mau ano; gastei mais da metade das minhas economias para alimentar
os meus filhos, e antes teria me bastado a vigésima parte.” “Como não vou
saber?”, pensou Bernat. Mas continuou a procurar, até que chegaram o
inverno e o frio. Então houve lugares onde nem se atreveu a perguntar. As
crianças tinham fome, os pais jejuavam para alimentar os filhos, e a
varíola, o tifo e a difteria começaram a fazer sua aparição mortífera.
Arnau conferia a bolsa do pai quando ele saía de casa. No começo fazia
isso toda semana, mas agora o fazia diariamente e até várias vezes por dia,
consciente de que sua segurança encolhia a passos largos.
— Qual é o preço da liberdade? — perguntou ele uma vez a Joan
quando os dois rezavam à Virgem.
— São Gregório diz que, no começo, todos os homens nasceram iguais
e que, portanto, todos são livres — disse Joan em voz baixa, tranquila,
como se repetisse uma lição. — Foram os homens nascidos livres que, por
seu próprio bem, se submeteram a um senhor para que cuidasse deles.
Perderam parte de sua liberdade, mas ganharam um senhor para cuidar
deles.
Arnau escutou as palavras do irmão olhando para a Virgem. “Por que
não sorri para mim? São Gregório... por acaso São Gregório tinha uma
bolsa vazia como a do meu pai?”
— Joan.
— Diga.
— O que você acha que eu devo fazer?
— É você quem deve tomar a decisão.
— Mas o que você acha?
— Eu já disse a você. Foram homens livres que tomaram a decisão de
que um senhor cuidasse deles.
Neste mesmo dia, sem que seu pai soubesse, Arnau se apresentou na
casa de Grau Puig. Entrou pela cozinha para que não o vissem da
cavalariça. Ali encontrou Estranya, gorda como sempre, como se a fome
não a afetasse, parada como um pato em frente a um caldeirão sobre o
fogo.
— Diga aos seus senhores que vim vê-los — disse ele à cozinheira.
Um sorriso estúpido se desenhou nos lábios da escrava. Estranya avisou
o mordomo de Grau, e este avisou o seu senhor. Fizeram-no esperar de pé
por horas. Enquanto isso, todo o pessoal da casa desfilou pela cozinha para
vê-lo; uns sorriam, outros, em menor quantidade, demonstravam certa
tristeza pela capitulação. Arnau sustentou o olhar de todos e respondeu
com altivez aos que sorriam, mas não conseguiu apagar o ar de zombaria
de seus rostos.
Só faltou Bernat, apesar de Tomàs, o cavalariço, não ter vacilado em
avisá-lo de que seu filho tinha aparecido para se desculpar. “Sinto muito
Arnau, sinto muito.” Bernat ruminava enquanto escovava um cavalo.
Depois da espera, com as pernas doendo pela imobilidade obrigada –
tentou se sentar, mas Estranya o proibiu –, Arnau foi conduzido à sala
principal da casa de Grau. Não prestou atenção à decoração luxuosa da
sala. Assim que entrou, seus olhos pousaram sobre os cinco membros da
família que o esperavam ao fundo: os barões sentados e seus três primos
de pé ao lado deles, os homens usando vistosas calças de seda de cores
diferentes e gibão até os joelhos atado com cinto dourado; as mulheres
com vestido adornado de pérolas e pedrarias.
O mordomo conduziu Arnau até o centro da sala, a alguns passos da
família. Depois voltou para a porta, junto à qual, por ordens de Grau,
esperou.
— Diga — provocou Grau, hierático como sempre.
— Venho pedir-vos perdão.
— Então faça-o — ordenou Grau.
Arnau quis tomar a palavra, mas a baronesa o impediu.
— É assim que você pretende pedir perdão? De pé?
Arnau hesitou por uns segundos, mas ao final fincou um joelho no piso.
A risada boba de Margarida soou no salão.
— Peço perdão a todos — recitou Arnau, olhando diretamente para a
baronesa.
A mulher o fuzilou com o olhar.
“Só estou fazendo isto pelo meu pai”, respondeu-lhe Arnau com o olhar.
“Rameira.”
— Os pés! — gritou a baronesa. — Beije nossos pés! — Arnau fez um
gesto para se levantar, mas a baronesa o impediu novamente. — De
joelhos!
Arnau obedeceu e se arrastou até eles de joelhos. “É só pelo meu pai. É
só pelo meu pai. É só pelo meu pai...” A baronesa lhe mostrou as
sapatilhas de seda, e Arnau as beijou, primeiro a esquerda e depois a
direita. Sem levantar os olhos, se deslocou até Grau, que hesitou quando
teve o menino ajoelhado diante de si com o olhar fixo em seus pés, mas
sua mulher olhou para ele fora de si, e ele os ergueu até a altura da boca do
menino, um e depois o outro. Os primos de Arnau imitaram os pais. Arnau
tentou beijar a sapatilha de seda que Margarida lhe mostrava, mas quando
seus lábios iam roçá-la ela afastou-a e seu risinho soou outra vez. Arnau
tentou novamente, e a prima riu dele mais uma vez. Ao final, ele esperou
que a menina encostasse a sapatilha na sua boca... uma... e a outra.

1. A instituição que deu origem à universidade. (N. da T.)


15
Barcelona
15 de abril de 1334

Bernat contou as moedas com que Grau lhe pagara e jogou-as na bolsa
murmurando. Deveriam ser suficientes, mas... malditos genoveses!
Quando terminaria o cerco ao principado? Barcelona tinha fome.
Pendurou a bolsa no cinto e foi à procura de Arnau. O menino estava
desnutrido. Bernat fitou-o preocupado. O inverno tinha sido duro. Mas
pelo menos tinham sobrevivido. Quantos podiam dizer o mesmo? Bernat
contraiu os lábios e afagou os cabelos do filho antes de apoiar a mão em
seu ombro. Quantos devem ter morrido de frio, fome e doença? Quantos
pais podiam agora apoiar a mão no ombro do filho? “Pelo menos você está
vivo”, pensou.
Nesse dia chegou ao porto de Barcelona um navio com cereais, um dos
poucos que conseguira furar o bloqueio genovês. Os cereais haviam sido
comprados pela própria cidade a preços astronômicos para serem
revendidos aos habitantes a preços acessíveis. Nessa sexta-feira havia
trigo na Praça de Blat, e desde as primeiras horas da manhã as pessoas
foram se aglomerando nela, se metendo em brigas para supervisionar os
medidores oficiais que separavam o grão.
Havia alguns meses, um frade carmelita vinha pregando contra os
poderosos, culpando-os pelos males da fome e acusando-os de ter
escondido trigo — apesar dos esforços dos conselheiros da cidade para
calá-lo. As acusações do frade tinham impactado os paroquianos, e os
rumores se disseminaram por toda a cidade; por isso, nessa sexta-feira, as
pessoas se moviam inquietas pela Praça de Blat, discutiam e se
amontoavam aos empurrões junto às mesas onde os funcionários
municipais pesavam o grão.
As autoridades calcularam a quantidade de trigo que correspondia a
cada barcelonês e ordenaram ao comerciante de tecidos Pere Juyol, o
vedor oficial da Praça de Blat, que controlasse a venda.
— O Mestre não tem família! — gritou alguém pouco depois de
efetuada a venda para um homem esfarrapado acompanhado de um
menino ainda mais esfarrapado. — Morreram todos durante o inverno.
Os medidores retiraram o grão do Mestre, mas as acusações se
multiplicaram: aquele tem um filho na outra mesa; já comprou; não tem
família; não é filho dele, só o trouxe para conseguir mais...
A praça se converteu num caldeirão de rumores. As pessoas
abandonaram as filas, começaram a discutir, e as palavras se
transformaram em insultos. Alguém exigiu aos gritos que as autoridades
pusessem à venda o trigo que mantinham escondido, e o povo, furioso,
repetiu a exigência. Os medidores oficiais foram superados pela massa que
se amontoou atropeladamente diante das mesas de venda; os aguazis do rei
tentaram enfrentar a gente faminta, e só uma decisão rápida de Pere Juyol
conseguiu salvar a situação. Ele ordenou que o trigo fosse levado para o
palácio do veguer, na extremidade oriental da praça, e suspendeu a venda
durante a manhã.
Bernat e Arnau regressaram à casa de Grau para continuar o seu
trabalho, decepcionados por não terem conseguido o tão cotado alimento,
e no pátio de entrada, em frente às quadras, contaram o ocorrido na Praça
de Blat ao cavalariço principal e a quem quisesse ouvir. Nenhum dos dois
se conteve ao lançar diatribes contra as autoridades e se queixar da fome
que passavam.
Atraída pelos gritos, de uma das janelas que dava ao pátio a baronesa se
deleitou com a penúria do servo fugitivo e seu filho descarado. Enquanto
os observava, um sorriso se formou em seus lábios ao lembrar das ordens
que Grau lhe dera antes de sair de viagem. Ele não queria que seus
devedores comessem?
A baronesa pegou a bolsa com o dinheiro destinado à alimentação dos
presos encarcerados por dívidas com seu marido, chamou o mordomo e
ordenou que desse aquela tarefa a Bernat Estanyol, que devia ser
acompanhado pelo filho Arnau para o caso de surgir algum problema.
— Diga-lhes — ordenou, diante do sorriso de cumplicidade do servo —
que este dinheiro é para comprar trigo para os presos de meu marido.
O mordomo cumpriu as instruções de sua senhora e se divertiu com a
expressão de incredulidade de pai e filho, que aumentou quando o pai
recebeu a bolsa e sopesou as moedas lá dentro.
— Para os presos? — perguntou Arnau ao pai quando saíram do palácio
dos Puig.
— Sim.
— Por que para os presos, pai?
— Estão presos porque devem dinheiro a Grau, e ele tem a obrigação de
pagar a alimentação deles.
— E se ele não pagar?
Continuavam a caminhar em direção à praia.
— Eles seriam soltos, e Grau não quer que isso aconteça. Paga as taxas
reais, paga ao diretor do cárcere e paga a comida dos presos. É a lei.
— Mas...
— Deixe, filho, esqueça isso.
Ambos continuaram em silêncio a caminho de casa.
Nessa tarde, Arnau e Bernat se encaminharam para o cárcere para
cumprir a sua estranha tarefa. Informados por Joan, que cruzava a praça
em direção à casa de Pere na volta da escola, eles sabiam que os ânimos
não tinham se acalmado e começaram a ouvir os gritos da multidão já na
Rua do Mar, que desembocava na praça vindo de Santa Maria. A turba se
aglomerava em torno do palácio do veguer, onde estava armazenado o
trigo que fora recolhido pela manhã e onde também estavam encarcerados
os devedores de Grau.
As pessoas queriam o trigo, e as autoridades de Barcelona não
contavam com aguazis suficientes para garantir uma distribuição
organizada. Reunidos com o veguer, os cinco conselheiros tentavam
encontrar uma solução.
— Que jurem — disse um —, sem juramento não há trigo. Cada
comprador deverá jurar que a quantidade que solicita é a necessária para
sustentar a sua família e que não pede mais do que lhe corresponde
segundo a divisão.
— Isso será suficiente? — duvidou outro.
— O juramento é sagrado! — respondeu o primeiro. — Por acaso não
juram os contratos, a inocência ou as obrigações? Por acaso não acorrem
ao altar de São Felix para jurar os testamentos sacramentais?
Assim foi anunciado de um balcão do palácio do veguer. As pessoas
correram a palavra para os que não conseguiam ouvir a proposta, e os
devotos cristãos que se aglomeravam reclamando o trigo se dispuseram a
jurar... mais uma vez na vida.
O trigo voltou para a praça, onde a fome não tinha desaparecido. Uns
juraram. Outros suspeitaram, e as acusações, os gritos e as discussões se
repetiram. O povo se exaltou novamente e mais uma vez reclamou o trigo
que, segundo o frade carmelita, as autoridades mantinham escondido.
Arnau e Bernat se encontravam ainda na saída da Rua do Mar, na
extremidade oposta do palácio do veguer, onde a venda de trigo tinha
começado. As pessoas gritavam desaforadamente em volta deles.
— Pai — perguntou Arnau —, vai sobrar trigo para nós?
— Acredito que sim, filho. — Bernat tentou não olhar para o filho.
Como sobraria trigo para eles? Não haveria trigo nem para um quarto dos
cidadãos.
— Pai — disse Arnau —, por que os presos têm o trigo assegurado e
nós não?
Aproveitando-se da confusão, Bernat fingiu não ouvir; ainda assim, não
pôde deixar de olhar para o filho: estava famélico, seus braços e pernas
tinham se convertido em finas extremidades, e em seu rosto esquálido se
destacavam uns olhos saltados que em outras épocas haviam sorrido
despreocupados.
— Pai, você me ouviu?
“Sim”, pensou Bernat, “mas o que posso responder? Que nós, os pobres,
estamos unidos à fome? Que só os ricos podem comer? Que nós, os
pobres, não valemos nada para eles? Que os filhos dos pobres valem
menos do que um dos presos encarcerados no palácio do veguer?”. Bernat
não respondeu.
— Há trigo no palácio! — gritou, unindo-se à vozaria do povo. — Há
trigo no palácio! — repetiu ainda mais alto quando os mais próximos a ele
calaram e o fitaram. Logo muitos prestavam atenção àquele homem que
afirmava haver trigo no palácio. — Se não houvesse, como os presos
poderiam comer? — gritou novamente, levantando a bolsa de dinheiro de
Grau. — E os nobres e ricos pagam a comida dos presos! De onde os
diretores do cárcere tiram o trigo para os presos? Por acaso eles saem para
comprá-lo como nós?
A multidão foi se afastando para abrir caminho para Bernat, que estava
fora de si. Arnau o seguia, tentando chamar sua atenção.
— O que você está fazendo, pai?
— Por acaso os diretores são obrigados a jurar como nós?
— Pai, o que está acontecendo?
— Onde os diretores conseguem o trigo para os presos? Por que não
podemos dar de comer aos nossos filhos, mas damos aos presos?
A multidão ficou ainda mais ensandecida ao ouvir as palavras de
Bernat. Desta vez os medidores oficiais não puderam recolher o trigo a
tempo, e as pessoas os assaltaram. Pere Juyol e o veguer quase foram
linchados. Salvaram sua vida graças a alguns aguazis que os defenderam e
escoltaram até o palácio.
Poucos satisfizeram suas necessidades, pois o trigo se esparramou pela
praça e foi pisoteado pela multidão enquanto alguns, em vão, tentavam
catá-lo antes de serem eles próprios pisoteados por seus concidadãos.
Alguém gritou que a culpa era dos conselheiros, e a turba se dispersou
em busca dos pró-homens da cidade, escondidos em suas casas.
Bernat não ficou alheio à loucura coletiva e foi um dos que mais
gritaram, se deixando levar pela maré de gente enfurecida.
— Pai, pai.
Bernat olhou para o filho.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou entre um grito e outro,
sem deixar de andar.
— Eu... o que está acontecendo com você, pai?
— Vá embora daqui. Isto não é lugar de criança.
— Para onde vou...?
— Tome. — Bernat entregou-lhe duas bolsas de dinheiro: a sua e a
destinada aos presos e ao diretor.
— O que faço com...? — perguntou Arnau.
— Vá, filho, vá.
Bernat desapareceu em meio à multidão. A última coisa que Arnau viu
nele foi o ódio que cuspia pelos olhos.
— Pai, aonde você vai? — gritou, quando já o tinha perdido de vista.
— Em busca da liberdade — respondeu uma mulher que também
observava a multidão se espalhar pelas ruas da cidade.
— Já somos livres — atreveu-se a afirmar Arnau.
— Não há liberdade na fome, filho — sentenciou a mulher.
Chorando, Arnau correu contra a corrente, esbarrando em uns e outros.

***
Os distúrbios duraram dois dias inteiros. As casas dos conselheiros e
muitas residências nobres foram saqueadas, e o povo, louco e
encolerizado, andava de um lado para outro, primeiro em busca de
comida... depois em busca de vingança.
Durante dois dias inteiros a cidade de Barcelona se viu mergulhada no
caos ante a impotência das autoridades, até que um enviado do rei Afonso,
com suficientes tropas, pôs fim ao alvoroço. Cem homens foram detidos e
muitos outros multados. Dentre os cem, dez foram executados na forca
depois de um julgamento sumário. Dentre os que foram chamados a
testemunhar em juízo, poucos foram os que não reconheceram Bernat
Estanyol, com seu sinal no olho direito, como um dos principais
instigadores da revolta cidadã da Praça de Blat.
16

Arnau correu por toda a Rua do Mar sem sequer olhar na direção de Santa
Maria, com os olhos do pai gravados nas retinas e seus gritos nos ouvidos.
Nunca o vira assim. O que está acontecendo, pai? É verdade que não
somos livres, como diz essa mulher? Entrou na casa de Pere sem reparar
em nada nem em ninguém e se trancou no quarto. Joan o encontrou
chorando.
— A cidade enlouqueceu... — disse assim que abriu a porta do quarto.
— O que foi?
Arnau não respondeu. Joan deu uma olhada rápida em volta.
— E papai? — Arnau fez um gesto em direção à cidade. — Está com
eles?
— Está — Arnau conseguiu balbuciar.
Joan reviveu os tumultos dos quais tivera de se esquivar entre o palácio
do bispo e a casa. Os soldados tinham fechado as portas da judiaria e se
colocaram diante delas para evitar que fosse assaltada pela multidão, que
agora saqueava as casas dos cristãos. Como Bernat podia estar com eles?
As imagens dos grupos de exaltados derrubando as portas dos lares de
gente de bem e saindo dali carregados de utensílios voltaram à memória
de Joan. Não podia ser.
— Não pode ser — repetiu em voz alta. Arnau olhou para ele da
enxerga onde estava sentado. — Bernat não é como eles... Como é
possível?
— Não sei... Havia muita gente. Todos gritavam...
— Mas... Bernat? Bernat não é capaz, talvez só esteja... sei lá, tentando
encontrar alguém!
Arnau olhou para Joan. “Como posso contar a você que era ele quem
gritava, quem mais gritava, que foi ele quem deixou as pessoas exaltadas?
Como posso contar se eu mesmo não consigo acreditar?”.
— Não sei, Joan. Havia muita gente.
— Estão roubando, Arnau! Estão atacando os pró-homens da cidade.
Um olhar foi suficiente.

***

Os dois meninos esperaram em vão o pai naquela noite. No dia seguinte,


Joan se preparou para assistir às aulas.
— Você não devia ir — aconselhou-o Arnau.
Neste momento foi Joan quem respondeu com o olhar.

***

— Os soldados do rei Afonso sufocaram a revolta — limitou-se a


comentar Joan quando retornou à casa de Pere.
Naquela noite, Bernat também não veio dormir.
Pela manhã, Joan se despediu novamente de Arnau.
— Você devia ir — disse ele.
— E se ele voltar? — acrescentou Arnau com a voz embargada.
Os dois irmãos se abraçaram. “Onde você está, pai?”
Quem saiu em busca de notícias foi Pere, e foi mais fácil encontrá-las
do que voltar para casa.
— Sinto muito, menino — disse ele a Arnau. — Seu pai foi preso.
— Onde ele está?
— No palácio do veguer, mas...
Arnau já estava correndo em direção ao palácio. Pere olhou para a
mulher e balançou a cabeça; a anciã levou as mãos ao rosto.
— Foram julgamentos de emergência — explicou Pere —, diversas
testemunhas reconheceram Bernat, com aquele sinal, como o principal
instigador da revolta. Por que será que ele fez isso? Parecia...
— Porque tem dois filhos para alimentar — interrompeu-o a mulher
com lágrimas nos olhos.
— Tinha... — corrigiu-a Pere com uma voz cansada. — Ele foi
enforcado na Praça de Blat junto com outros nove agitadores.
Mariona levou as mãos ao rosto novamente, mas de repente as retirou.
— Arnau...! — exclamou, dirigindo-se para a porta, mas ficou a meio
caminho ao ouvir as palavras do esposo:
— Deixe-o, mulher. A partir de hoje ele não será mais uma criança.
Mariona concordou com a cabeça. Pere foi abraçá-la.
Por ordem expressa do rei, as execuções foram imediatas. Não houve
tempo para construir um cadafalso, e os presos foram executados em cima
de carroças.
Arnau interrompeu bruscamente sua correria ao entrar na Praça de Blat.
Estava ofegante. A praça estava cheia de gente silenciosa, de costas para
ele, parada, com os olhos postos em... Acima das pessoas, perto do
palácio, se alçava uma dezena de corpos inertes.
— Não! Pai!
O uivo ressoou por toda a praça, e as pessoas se viraram para encarar
Arnau. O menino cruzou a praça devagar enquanto as pessoas lhe abriam
passagem. Procurava entre os dez...
— Deixe-me, pelo menos, avisar o sacerdote — pediu a esposa de Pere.
— Eu já fiz isso. Ele estará lá.
Arnau vomitou ao ver o cadáver do pai. As pessoas se afastaram com
um salto. O menino voltou a fitar aquele rosto desfigurado, roxo, quase
preto, caído para o lado, com os traços contraídos, os olhos abertos em
uma luta para sair das órbitas que agora seria eterna, e a língua pendurada,
inerte, entre as comissuras dos lábios. Na segunda e na terceira vez que
olhou, só vomitou bílis.
Arnau sentiu um braço sobre seus ombros.
— Vamos, filho — disse-lhe o padre Albert.
O sacerdote tentou puxá-lo em direção a Santa Maria, mas Arnau não se
moveu. Olhou para o pai novamente e voltou a fechar os olhos. Já não teria
fome. O menino se encolheu, trêmulo. O padre Albert tentou puxá-lo mais
uma vez para que deixasse aquele cenário macabro.
— Deixe-me, padre. Por favor.
Sob o olhar do padre e de todos os presentes, Arnau cruzou cambaleante
os poucos passos que o separavam do cadafalso improvisado. Agarrava o
estômago com as mãos e tremia. Quando se viu embaixo do pai, olhou
para um dos soldados que montavam guarda junto aos enforcados.
— Posso descê-lo?
O soldado hesitou diante do olhar do menino, parado debaixo do
cadáver do pai, apontando para ele. O que seus filhos teriam feito caso
tivesse sido enforcado?
— Não — viu-se obrigado a responder. Preferia não estar ali. Preferia
estar lutando contra um grupo de mouros, ou junto de seus filhos... Que
tipo de morte era aquela? Aquele homem só tinha lutado por seus filhos,
por este menino que agora o interrogava com o olhar, como todos os
presentes na praça. Por que o veguer não estava ali? — O veguer ordenou
que ficassem expostos na praça por três dias.
— Eu vou esperar.
— Depois serão levados para as portas da cidade, como qualquer
justiçado de Barcelona, para que todos os que as cruzem conheçam a lei do
veguer.
O soldado deu as costas a Arnau e iniciou uma ronda que sempre
começava e terminava em um enforcado.
— Fome — escutou atrás de si —, só tinham fome.
Quando aquela ronda sem sentido o levou novamente até Bernat, o
menino estava sentado no chão sob o pai, chorando com a cabeça entre as
mãos. O soldado não se atreveu a olhar para ele.
— Vamos, Arnau — insistiu o padre, outra vez ao lado dele.
O garoto fez que não. O padre Albert ia falar, mas um grito o impediu.
Começavam a chegar os parentes dos outros enforcados. Mães, esposas,
filhos e irmãos se aglomeravam aos pés dos cadáveres, em um doloroso
silêncio interrompido por gritos de dor. O soldado se concentrou em sua
ronda, procurando na memória o grito de guerra dos infiéis. Joan, que
passava pela praça de volta para casa, se aproximou dos mortos e
desmaiou ao ver o espetáculo terrível. Nem teve tempo de ver Arnau, que
continuava sentado no mesmo lugar, agora balançando para a frente e para
trás. Os próprios companheiros de Joan o levantaram e levaram ao palácio
do bispo. Arnau tampouco viu o irmão.
As horas transcorreram, e Arnau permanecia alheio aos cidadãos que
acorriam à Praça de Blat movidos por compaixão ou por uma curiosidade
mórbida. Só as botas do soldado que fazia a ronda diante dele
interrompiam seus pensamentos.
“Arnau, eu abandonei tudo o que tinha para que você pudesse ser livre”,
lhe dissera o pai havia muito tempo. “Abandonei nossas terras, que foram
propriedade dos Estanyol durante séculos, para que ninguém pudesse fazer
com você o que fizeram comigo, com meu pai e com o pai de meu pai... e
agora voltamos a ficar na mesma, à mercê dos caprichos dos que se dizem
nobres; mas com uma diferença: podemos nos negar. Aprenda a usar a
liberdade que nos custou tanto esforço alcançar, meu filho. Só cabe a você
decidir.”
“Realmente podemos nos negar, pai?” As botas do soldado passaram
novamente diante de seus olhos. “Não há liberdade na fome. Você já não
tem fome, pai. E a sua liberdade?”
— Olhem bem para eles, meus filhos.
Aquela voz...
— São delinquentes. Olhem bem para eles. — Pela primeira vez Arnau
se permitiu olhar as pessoas que se amontoavam diante dos cadáveres. A
baronesa e seus três enteados contemplavam o rosto desfigurado de Bernat
Estanyol. Os olhos de Arnau se cravaram nos de Margarida; depois olhou
seu rosto. Seus primos tinham ficado pálidos, mas a baronesa sorria e
olhava para ele, diretamente para ele. Arnau se levantou tremendo. — Não
mereciam ser cidadãos de Barcelona — ouviu Isabel dizer. As unhas dele
se cravaram na palma das mãos; seu rosto foi se avermelhando e seu lábio
inferior tremeu. A baronesa continuava a sorrir. — O que se poderia
esperar de um servo fugitivo?
Arnau ia se lançar sobre a baronesa, mas o soldado se interpôs entre
eles. Arnau se chocou com ele.
— Está acontecendo alguma coisa, menino? — O soldado seguiu o
olhar de Arnau. — Eu não faria isso — aconselhou-o. Arnau tentou se
esquivar do soldado, mas ele o agarrou pelo braço. Isabel já não sorria;
permanecia erguida, altaneira e desafiadora. — Eu não faria isso, você vai
cavar a sua própria ruína — ouviu o homem dizer. Arnau levantou o olhar.
— Ele está morto — insistiu o soldado —, você não. Sente-se, menino. —
O soldado percebeu que Arnau relaxava um pouco. — Sente-se — insistiu.
Arnau desistiu, e o soldado permaneceu de guarda ao seu lado.
— Olhem bem para eles, meninos — a baronesa sorria outra vez —,
amanhã voltaremos. Os enforcados ficarão expostos até apodrecerem,
como deve ser com os delinquentes fugitivos.
Arnau não pôde controlar o tremor do lábio inferior. Continuou a
encarar os Puig até que a baronesa decidiu lhe dar as costas.
“Um dia... um dia eu verei você morta... verei todos mortos...”,
prometeu a si mesmo. O ódio de Arnau perseguiu a baronesa e seus
enteados por toda a Praça de Blat. Ela tinha dito que voltaria no dia
seguinte. Arnau ergueu o olhar para o pai.
“Juro por Deus que não vão se deleitar novamente com o cadáver de
meu pai. Mas como?” As botas do soldado voltaram a passar diante de
seus olhos. “Pai, não vou deixar você apodrecer pendurado nessa corda.”
Arnau dedicou as horas seguintes a pensar como poderia fazer o
cadáver do pai desaparecer, mas todas as ideias que lhe ocorriam se
chocavam com as botas que passavam junto dele. Não podia descê-lo da
corda sem ser visto, e à noite tochas estariam acesas... tochas acesas...
Neste exato momento, Joan apareceu na praça com o rosto pálido, quase
branco, os olhos inchados e injetados de sangue, o andar cansado. Arnau se
levantou, e Joan se jogou em seus braços quando se aproximaram.
— Arnau, eu... — balbuciou.
— Escute bem — interrompeu-o Arnau, abraçado a ele —, não pare de
chorar. — “Eu não conseguiria fazê-lo, Arnau”, pensou Joan, surpreso com
o tom do irmão. — Eu quero que esta noite, às dez, você me espere
escondido na esquina da Rua do Mar com a praça; não deixe ninguém vê-
lo. Traga... traga um cobertor. O maior que você encontrar na casa de Pere.
E agora vá embora.
— Mas...
— Vá, Joan. Não quero que os soldados reparem em você.
Arnau teve de empurrar o irmão para se safar de seu abraço. Os olhos
de Joan se detiveram no rosto de Arnau; depois, olharam outra vez para
Bernat. O menino tremeu.
— Vá, Joan! — sussurrou Arnau.
Naquela noite, quando ninguém caminhava pela praça e só os parentes
dos enforcados permaneciam a seus pés, houve a troca da guarda e os
novos soldados deixaram de fazer a ronda diante dos cadáveres para se
sentar em volta de uma fogueira numa das pontas da fileira de carroças.
Tudo estava tranquilo e a noite refrescara o ambiente. Arnau se levantou e
passou junto dos soldados tentando esconder o rosto.
— Vou buscar um cobertor — disse.
Um deles olhou para ele de soslaio.
Cruzou a Praça de Blat até a esquina da Rua do Mar e ficou ali se
perguntando onde Joan estaria. Era a hora combinada, ele já deveria ter
chegado. Arnau se impacientou. O silêncio continuou a acompanhá-lo.
— Joan? — atreveu-se a chamar.
Do vão da porta de uma casa surgiu uma sombra.
— Arnau? — ouviu-se na noite.
— É claro que sou eu. — O suspiro de Joan se fez ouvir por vários
metros. — Quem mais poderia ser? Por que você não respondeu?
— Está muito escuro — limitou-se a responder Joan.
— Você trouxe o cobertor? — A sombra ergueu um volume. — Bom,
eu disse a eles que ia buscar um. Quero que você se cubra com ele e ocupe
o meu lugar. Caminhe na ponta dos pés para parecer mais alto.
— O que você pretende fazer?
— Vou queimá-lo — respondeu, quando Joan já estava ao seu lado —, e
quero que você ocupe o meu lugar. Quero que os soldados pensem que
você sou eu. Você só vai... só vai sentar-se onde eu estava e não vai fazer
nada; simplesmente esconda o rosto. Não se mexa. Não faça nada,
aconteça o que acontecer, você me entendeu? — Arnau esperou que Joan
respondesse. — Quando tudo terminar, você será eu, você será Arnau
Estanyol, e seu pai não tinha nenhum outro filho. Você entendeu? Se os
soldados perguntarem...
— Arnau.
— O que é?
— Não me atrevo.
— A quê?
— Eu não me atrevo. Vão me descobrir. Quando eu olhar para papai...
— Você prefere vê-lo apodrecer? Prefere vê-lo pendurado nas portas da
cidade enquanto os corvos e os vermes devoram o seu cadáver?
Arnau esperou uns instantes enquanto o irmão imaginava a cena.
— Por acaso você quer que a baronesa continue a zombar de nosso
pai... mesmo morto?
— Não será pecado? — perguntou Joan de repente.
Arnau tentou ver o irmão na noite, mas só vislumbrou uma sombra.
— Ele só estava com fome! Não sei se é pecado, mas não estou
disposto a deixar nosso pai apodrecer pendurado em uma corda. Eu vou
fazer isso. Se você quiser ajudar, ponha esse cobertor na cabeça e
simplesmente não faça nada. Se não quiser...
Sem dizer mais nada, Arnau saiu pela Rua do Mar, enquanto Joan se
dirigia à Praça de Blat coberto com o cobertor e com o olhar fixo em
Bernat: um fantasma entre os dez pendurados das carroças, tenuemente
iluminado pelo resplendor da fogueira dos soldados. Joan não queria ver o
rosto dele, não queria enfrentar a língua roxa pendurada, mas seus olhos
traíram sua vontade e ele caminhava com os olhos fixos em Bernat. Os
soldados o viram se aproximar. Enquanto isso, Arnau correu para a casa de
Pere; pegou o seu odre e virou a água; depois o encheu com o óleo dos
candeeiros. Pere e a mulher, sentados em volta do fogo, olhavam para ele.
— Eu não existo — disse Arnau com um fio de voz, se ajoelhando
diante deles e tomando a mão da anciã, que olhou para ele carinhosamente.
— Joan ocupará o meu lugar. Meu pai só tem um filho... Cuidem dele, se
alguma coisa acontecer.
— Mas Arnau... — começou a dizer Pere.
— Psiu — sussurrou Arnau.
— O que você vai fazer, meu filho? — insistiu o velho.
— Eu tenho de fazer isso — respondeu Arnau enquanto se levantava.
Eu não existo. Sou Arnau Estanyol. Os soldados continuavam a
observá-lo. “Queimar um cadáver deve ser pecado”, pensava Joan. Bernat
olhava para ele. Joan ficou parado a alguns metros do enforcado. Olhava
para ele! “A ideia é do Arnau.”
— O que foi, menino? — Um dos soldados fez um gesto para se
levantar.
— Nada — respondeu Joan antes de continuar a andar em direção aos
olhos mortos que o interrogavam.
Arnau pegou um candeeiro e saiu correndo. Procurou barro e espalhou-
o pelo rosto. Quantas vezes seu pai tinha lhe contado sobre sua chegada
àquela cidade que agora o assassinara. Circundou a Praça de Blat pela
Praça da Llet e pela da Corretgeria até chegar à Rua Tapineria, bem do
lado da fila de carroças dos enforcados. Joan estava sentado abaixo de seu
pai, tentando controlar o tremor que o delatava.
Arnau deixou o candeeiro escondido na rua, pendurou o odre nas costas
e, rastejando, começou a avançar em direção à parte posterior das
carroças, junto aos muros do palácio do veguer. Bernat estava na quarta
carroça, e os soldados continuavam a conversar em volta do fogo, na
extremidade oposta. Rastejou até a primeira carroça. Quando chegou à
segunda, uma mulher o viu; tinha os olhos inchados pelo pranto. Arnau se
deteve, mas a mulher desviou o olhar e continuou com a sua dor. O menino
subiu na carroça de onde pendia seu pai. Joan o ouviu e se virou.
— Não olhe! — Seu irmão parou de perscrutar a escuridão. — E tente
não tremer tanto — sussurrou Arnau.
Ele se ergueu para alcançar o corpo de Bernat, mas um barulho o
obrigou a se agachar novamente. Esperou uns segundos e repetiu a
operação; outro barulho o sobressaltou, mas Arnau se aguentou de pé. Os
soldados seguiam com sua conversa. Arnau levantou o odre e começou a
verter óleo sobre o cadáver do pai. A cabeça estava muito alta, de modo
que se espichou o máximo que pôde e apertou o odre com força para fazer
o óleo esguichar com a pressão. Um jorro viscoso começou a encharcar o
cabelo de Bernat. Quando o óleo acabou, ele fez o caminho de volta à Rua
Tapineria.
Só tinha uma chance. Arnau manteve o candeeiro às suas costas para
esconder a tênue chama. “Tenho de acertar de primeira.” Olhou para os
soldados. Agora era ele quem tremia. Respirou fundo e, sem pensar, entrou
na praça. Bernat e Joan estavam a uns dez passos. Avivou a chama, e com
isso ficou visível. O resplendor do candeeiro na Praça de Blat parecia um
amanhecer sem nuvens. Os soldados o viram. Arnau ia sair correndo
quando percebeu que nenhum deles parecia disposto a se mover. “Por que
o fariam? Por acaso podem imaginar que vou queimar meu pai? Queimar
meu pai!” O candeeiro tremeu em sua mão. Seguido pelo olhar dos
soldados, chegou até onde estava Joan. Ninguém se mexeu. Arnau parou
sob o cadáver do pai e o olhou pela última vez. O bruxulear do óleo em seu
rosto escondia o terror e a dor que antes refletiam.
Arnau jogou o candeeiro contra o cadáver, e Bernat começou a arder. Os
soldados se levantaram de um salto, viraram em direção às chamas e
correram atrás de Arnau. Os restos do candeeiro caíram sobre a carroça,
onde tinha se acumulado o óleo que escorria do corpo de Bernat, e ela
começou a arder também.
— Ei! — ouviu que os soldados gritavam para ele.
Arnau ia sair correndo quando reparou que Joan continuava sentado,
paralisado junto da carroça, oculto pelo cobertor. Os outros veladores
observavam as chamas em silêncio, absortos em sua própria dor.
— Alto! Em nome do rei!
— Mexa-se, Joan. — Arnau se virou para os soldados, que já corriam
em sua direção. — Mexa-se! Você vai se queimar!
Não podia deixar Joan ali. O óleo derramado no piso escorria em
direção à figura trêmula de seu irmão. Arnau ia tirá-lo dali quando a
mulher que antes o tinha visto se interpôs entre os dois.
— Corra — apressou-o.
Arnau teve de se safar da mão do primeiro soldado e saiu correndo.
Correu pela Rua Bòria até o portão Nou com os gritos dos soldados atrás.
Quanto mais o perseguissem, mais demorariam a voltar para perto de seu
pai e para apagar o fogo, pensou ele. Os soldados, veteranos e carregados
de equipamentos, nunca poderiam alcançar um menino cujas pernas eram
movidas pelo próprio fogo.
— Em nome do rei! — ouviu atrás de si.
Um silvo roçou sua orelha direita, e Arnau ouviu a lança se espatifar no
chão diante dele. Atravessou a Praça da Llana com rapidez; enquanto
várias lanças erravam a mira, correu diante da capela de Bernat Marcús e
chegou à Rua Carders. Os gritos dos soldados começavam a se perder à
distância. Não podia seguir correndo até o portão Nou, onde certamente
haveria mais soldados a postos. Para baixo, na direção do mar, podia
chegar até Santa Maria; para cima, em direção à montanha, podia ir até
Sant Pere de les Puelles, mas logo encontraria as muralhas novamente.
Resolveu ir pelo mar. Rodeou o convento de Santo Agostinho e se
perdeu no labirinto de ruas que se abriam depois do bairro de Mercadal;
pulava muros, pisava nas hortas e sempre buscava as sombras. Quando
teve certeza de que só o eco de seus passos o perseguia, diminuiu o ritmo.
Seguindo o curso de Rec Comtal, chegou à Pla d’en Llull, perto do
convento de Santa Clara, e dali, sem dificuldade, à Praça do Born e à Rua
de Born, à sua igreja, ao seu refúgio. No entanto, quando ia se meter
debaixo da escada de madeira à porta, algo chamou sua atenção: um
candeeiro jogado no piso com uma chama exígua que lutava para não se
apagar. Perscrutou os arredores da luz trêmula e não tardou em vislumbrar
a figura do aguazil, também no piso, imóvel, com um filete de sangue
saindo pela comissura dos lábios.
Seu coração disparou. Por quê? A tarefa daquele aguazil era vigiar
Santa Maria. Que interesse poderia haver...? A Virgem! A capela do
Santíssimo! A caixa dos bastaixos!
Arnau não pensou. Tinham executado seu pai; não podia permitir que
ainda por cima desonrassem sua mãe. Entrou sigilosamente em Santa
Maria pelo buraco da porta e se dirigiu ao deambulatório. À sua esquerda,
separada pelos dois contrafortes, ficava a capela do Santíssimo. Cruzou a
igreja e se escondeu atrás de uma coluna do altar-mor. Dali ouviu ruídos
vindos da capela do Santíssimo, mas ainda não podia vê-la. Deslizou até a
coluna seguinte e então, entre duas outras, pôde ver a capela, iluminada
como sempre por diversos círios acesos.
Um homem subia pelas grades da capela. Arnau viu a sua Virgem. Tudo
parecia estar em ordem. E então? Passeou rapidamente os olhos pelo
interior da capela do Altíssimo; a caixa dos bastaixos tinha sido forçada.
Enquanto o ladrão continuava a escalar, Arnau pensou ouvir o tilintar das
moedas que os bastaixos depositavam naquela caixa para seus órfãos e
suas viúvas.
— Ladrão! — gritou, se jogando contra a grade da capela.
Pulou a grade e golpeou o homem no peito. O ladrão, surpreendido,
caiu estrepitosamente. Não teve tempo para pensar. O homem se levantou
rapidamente e descarregou um tremendo murro no rosto do menino. Arnau
caiu de costas no chão de Santa Maria.
17

“Deve ter caído ao tentar escapar depois de roubar a caixa dos bastaixos”,
sentenciou um dos oficiais reais, de pé ao lado de Arnau, que permanecia
inconsciente.
O padre Albert negou com a cabeça. Como Arnau poderia cometer
semelhante atrocidade? A caixa dos bastaixos, na capela do Santíssimo, ao
lado da sua Virgem! Os soldados tinham-no avisado algumas horas antes
do amanhecer.
— Não pode ser — murmurou para si mesmo.
— Sim, padre — insistiu o oficial —, o menino estava com esta bolsa
— acrescentou, lhe mostrando a bolsa com as moedas de Grau para o
diretor do cárcere e os presos. — O que faria um menino com tanto
dinheiro?
— E o seu rosto? — interveio outro soldado. — Por que alguém iria se
lambuzar de barro se não fosse para roubar?
O padre Albert balançou a cabeça outra vez, com o olhar fixo na bolsa
que o oficial segurava. O que ele estaria fazendo ali àquela hora da noite?
Onde teria conseguido a bolsa?
— O que estão fazendo? — perguntou aos oficiais ao ver que
levantavam Arnau do chão.
— Vamos levá-lo preso.
— De jeito nenhum — ouviu-se dizer.
Talvez... talvez tudo aquilo tivesse uma explicação. Arnau não tentaria
roubar a caixa dos bastaixos. Não Arnau.
— Ele é um ladrão, padre.
— Isso terá de ser decidido num tribunal.
— E assim será — confirmou o oficial, enquanto seus soldados
seguravam Arnau pelas axilas —, mas ele vai esperar a sentença no
cárcere.
— Se tiver de ir para o cárcere, será o do bispo — disse o padre. — O
crime foi cometido em lugar santo e, portanto, na jurisdição da igreja e
não do veguer.
O oficial olhou para os soldados e para Arnau e, com um gesto de
impotência, ordenou que deixassem o menino no chão, o que eles fizeram
deixando-o cair. Um sorriso cínico assomou em seus lábios ao ver o rosto
do menino bater violentamente no chão.
O padre Albert os fitou, irado.
— Acordem-no — exigiu o padre Albert, enquanto pegava as chaves da
capela, abria a grade e entrava nela —, quero ouvir o que o menino tem a
dizer.
Aproximou-se da caixa dos bastaixos, cujas três fechaduras tinham sido
forçadas, e comprovou que estava vazia; no interior da capela não faltava
nada mais, nem tinha havido nenhum estrago. “O que aconteceu,
Senhora?”, perguntou à Virgem em silêncio. “Como permitiu que Arnau
cometesse esse delito?” Ouviu os soldados jogarem água no rosto do
menino e saiu da capela no momento em que vários bastaixos, advertidos
do roubo de sua caixa, entravam em Santa Maria.
Arnau despertou ao sentir a água gelada e viu que estava rodeado de
soldados. O som da lança na Rua Bòria voltou a silvar em seu ouvido.
Corria adiante deles. Como tinham conseguido alcançá-lo? Teria
tropeçado? Os rostos dos soldados se inclinavam sobre ele. Seu pai! Ele
ardia! Tinha de escapar! Arnau se levantou e tentou empurrar um dos
soldados, mas eles o imobilizaram sem dificuldade.
O padre Albert, abatido, viu a luta do menino para se safar das mãos
dos soldados.
— Vós ainda quereis ouvir alguma coisa, padre? — provocou-o com
ironia o oficial. — Parece-vos uma confissão suficiente? — insistiu,
apontando para Arnau, que estava ensandecido.
O padre Albert levou as mãos ao rosto e suspirou. Depois foi
lentamente até os soldados que detinham Arnau.
— Por que você fez isso? — perguntou quando ficou à sua frente. —
Você sabe que esta caixa é dos seus amigos bastaixos. Que com ela
satisfazem as necessidades das viúvas e órfãos de seus confrades, enterram
seus mortos, fazem obras de caridade, enfeitam a Virgem, a sua mãe, e
mantêm sempre acesas as velas que a iluminam. Por que você fez isso,
Arnau?
Arnau se tranquilizou com a presença do sacerdote, mas o que ele fazia
ali? A caixa dos bastaixos, o ladrão! Tinha sido golpeado, mas o que mais
tinha acontecido? Ele olhou ao redor. Atrás dos soldados, uma infinidade
de rostos conhecidos o observava e esperava sua resposta. Reconheceu
Ramon e Ramon, o Pequeno, Pere, Jaume, Joan, que tentava ver a cena
ficando na ponta dos pés, Sebastià e seu filho Bastianet, e muitos outros a
que tinha dado de beber e com os quais havia compartilhado momentos
inesquecíveis na saída da host para Creixell. Eles o acusavam! Era isso!
— Eu não... — balbuciou.
O oficial ergueu diante de seus olhos a bolsa de dinheiro de Grau, e
Arnau levou a mão ao cinto, onde ela deveria estar. Não quis deixá-la
embaixo da enxerga, para o caso de a baronesa os denunciar e culpar Joan,
e agora... Maldito Grau! Maldita bolsa!
— Você está procurando isto? — provocou-o o oficial.
Ouviu-se um murmúrio entre os bastaixos.
— Não fui eu, padre — defendeu-se Arnau.
O oficial soltou uma gargalhada, e logo os soldados se juntaram a ele.
— Ramon, não fui eu. Eu juro — repetiu Arnau, olhando diretamente
para o bastaix.
— Então, o que você fazia aqui de noite? Onde conseguiu esta bolsa?
Por que tentou fugir? Por que a sua cara está lambuzada de barro?
Arnau levou a mão ao rosto. O barro estava ressecado.
A bolsa! O oficial continuava a balançá-la diante de seus olhos.
Enquanto isso, cada vez mais bastaixos chegavam e contavam uns aos
outros, em voz baixa, o acontecido. Arnau viu a bolsa balançar. Maldita
bolsa! Depois falou diretamente ao padre:
— Havia um homem — disse —, tentei detê-lo, mas não consegui.
A gargalhada incrédula do oficial soou novamente no deambulatório.
— Arnau — insistiu o padre Albert —, responda às perguntas do
oficial.
— Não... não posso — reconheceu, provocando gestos de assombro nos
oficiais e soldados e alvoroço entre os bastaixos.
O padre Albert guardou silêncio, com o olhar fixo em Arnau. Quantas
vezes ouvira aquelas palavras? Quantos paroquianos se negavam a contar
os seus pecados? “Não posso”, diziam com medo no semblante; “se
souberem...” Certamente, pensava então o sacerdote, se soubessem do
roubo, do adultério ou da blasfêmia poderiam detê-los, e então ele
precisava insistir, jurando segredo eterno, até que sua consciência se
abrisse para Deus e o perdão.
— Você contaria só para mim? — perguntou ele.
Arnau assentiu, e o clérigo apontou para a capela do Santíssimo.
— Esperem aqui — disse aos demais.
— É a caixa dos bastaixos — ouviu-se então atrás dos soldados —, logo
um bastaix deveria estar presente.
O padre Albert assentiu, olhando para Arnau.
— Ramon? — propôs.
O menino concordou novamente, e os três entraram na capela. Ali ele
pôs para fora tudo o que estava guardando. Falou de Tomàs, o cavalariço,
do pai, da bolsa de Grau, da encomenda da baronesa, da revolta, da
execução e do fogo... da perseguição, do ladrão da caixa e de sua luta em
vão. Falou de seu medo de que soubessem que aquela bolsa era de Grau ou
de que o detivessem por atear fogo ao cadáver do pai.
As explicações foram longas. Arnau não soube descrever o homem que
o tinha esmurrado; estava escuro, disse em resposta às perguntas de
ambos, mas era grande e forte, isso sim. Finalmente, o padre e o bastaix se
entreolharam; acreditavam no menino, mas como provar às pessoas que já
estavam murmurando fora da capela que não tinha sido ele? O sacerdote
olhou para a Virgem e para a caixa forçada e saiu da capela.
— Acho que o menino está dizendo a verdade — anunciou para a
pequena multidão que esperava no deambulatório. — Acho que ele não
roubou a caixa; mais ainda, ele tentou evitar que fosse roubada.
Ramon saiu atrás dele e concordou.
— Então — perguntou o oficial —, por que não pode responder às
minhas perguntas?
— Eu sei os motivos — disse Ramon —, e eles são suficientemente
convincentes. Se alguém não acredita em mim, que se manifeste. —
Ninguém disse nada. — E agora onde estão os três pró-homens do grêmio?
— Três bastaixos se adiantaram até onde o padre Albert se encontrava. —
Cada um de vocês possui uma das três chaves que abrem a caixa, não é
verdade? — Os pró-homens assentiram. — Vocês juram que esta caixa só
foi aberta por vocês três de comum acordo e na presença de dez confrades,
como estabelecem as ordenanças? — Os pró-homens juraram em voz alta,
no mesmo tom em que o padre os interrogava. — Juram, pois, que a
última anotação feita no livro-caixa coincide com a quantidade que foi
depositada? — Os três pró-homens juraram de novo. — E vós, oficial,
jurais que esta é a bolsa que o menino trazia? — O oficial assentiu. —
Jurais que o seu conteúdo é o mesmo de quando a encontrou?
— Vós ofendeis um oficial do rei Afonso!
— Jurais ou não jurais? — gritou o pároco.
Alguns bastaixos se aproximaram do oficial, exigindo-lhe uma resposta
com o olhar.
— Eu juro.
— Bem — continuou o padre Albert —, agora vou buscar o livro-caixa.
Se este menino for o ladrão, o conteúdo da bolsa deve ser igual ou superior
à última anotação efetuada; se for inferior, ele deve merecer crédito.
Um murmúrio de assentimento correu entre os bastaixos. A maioria
olhou para Arnau; todos eles tinham bebido água fresca de seu odre.
Depois de entregar as chaves da capela a Ramon com a ordem de fechá-
la, o padre Albert se dirigiu aos seus aposentos para buscar o livro-caixa, o
qual, segundo as ordenanças dos bastaixos, deveria permanecer em poder
de uma terceira pessoa. Pelo que se lembrava, era impossível que o
conteúdo da caixa coincidisse com as moedas que Grau entregava ao
aguazil da prisão para alimentar seus presos; o valor depositado na caixa
deveria ser muito superior. Seria uma prova irrefutável, pensou sorrindo.
Enquanto o padre Albert buscava o livro e voltava para Santa Maria,
Ramon se encarregou de trancar as grades da capela. Então notou um
brilho no piso, entrou e examinou o objeto que brilhava. Não disse nada a
ninguém. Fechou as grades e dirigiu-se ao grupo de bastaixos que
esperavam o padre, parado em volta de Arnau e dos soldados.
Ramon sussurrou algo a três deles, e juntos eles deixaram a igreja sem
ninguém perceber.
— Segundo o livro — disse o padre Albert mostrando-o aos três pró-
homens para que o comprovassem —, na caixa havia setenta e quatro
dinheiros e cinco soldos. Contai o que há na bolsa — acrescentou, se
dirigindo ao oficial.
Antes de abrir a bolsa, o oficial negou com a cabeça. Ali dentro não
podia haver setenta e quatro dinheiros.
— Treze dinheiros — proclamou —, mas o menino pode ter um
cúmplice que levou a parte que falta.
— E por que esse cúmplice deixaria os treze dinheiros em poder de
Arnau? — disse um bastaix.
Um murmúrio de assentimento acompanhou a observação.
O oficial olhou para os bastaixos. “Por descuido”, esteve a ponto de
responder, por pressa, por nervosismo, mas de que serviria? Alguns deles
já se aproximavam de Arnau e lhe davam tapinhas nas costas ou afagavam
seus cabelos.
— Mas, se não foi o menino, quem foi? — perguntou ele.
— Acho que sei quem foi — ouviu-se a voz de Ramon atrás do altar-
mor.
Atrás dele, dois dos bastaixos com que tinha falado arrastavam com
dificuldade um homem corpulento.
— Foi esse homem! — exclamou Arnau.
O maiorquino1 sempre fora um bastaix conflituoso, até que os pró-
homens do grêmio souberam que tinha uma concubina e o tinham
expulsado. Um bastaix não podia manter relações fora do matrimônio,
nem sua mulher; nesse caso, ele era afastado do grêmio.
— O que este menino está dizendo? — gritou o maiorquino ao chegar
ao deambulatório.
— Ele o acusa de roubar a caixa dos bastaixos — respondeu o padre
Albert.
— Ele está mentindo!
O sacerdote procurou o olhar de Ramon, que concordou com um leve
movimento de cabeça.
— Eu também acuso você! — gritou Ramon apontando para ele.
— Você também está mentindo.
— Isso você terá oportunidade de demonstrar no caldeirão, no
monastério de Santes Creus — disse o padre Albert. Um delito fora
cometido em uma igreja, e, segundo as constituições de Paz e Trégua, a
inocência devia ser provada mediante a prova da água quente.
O maiorquino empalideceu. Os dois oficiais e os soldados olharam para
o padre com estranheza, mas ele lhes indicou que ficassem em silêncio. Já
não se empregava a prova da água quente, mas em muitas ocasiões os
clérigos ainda recorriam à ameaça de submergir os membros do suspeito
em um caldeirão de água fervente.
O padre Albert semicerrou os olhos e encarou o maiorquino.
— Se o menino e eu estamos mentindo, com certeza você vai aguentar
a água fervente nos braços e pernas sem confessar o seu delito.
— Sou inocente — balbuciou o outro.
— Eu já disse que você terá oportunidade de prová-lo — reiterou o
padre.
— Se você é inocente — interveio Ramon —, explique-nos o que o seu
punhal está fazendo no interior da capela.
O maiorquino virou-se para Ramon.
— Isso é uma armadilha! — respondeu rapidamente —, alguém o
colocou ali para culpar-me. O menino! Com certeza foi ele!
O padre Albert abriu novamente as grades da capela do Santíssimo e
apareceu com um punhal.
— Este punhal é seu? — perguntou, aproximando-o do rosto dele.
— Não... não.
Os pró-homens do grêmio e vários bastaixos se aproximaram do padre
e pediram o punhal para examiná-lo.
— Sim, ele é seu — disse um dos pró-homens, mostrando o punhal.
Seis anos atrás, devido às muitas brigas que se davam no porto, o rei
Afonso proibira o porte de machete e de armas similares entre os bastaixos
e demais pessoas não cativas que trabalhavam no porto. A única arma
permitida eram os punhais de lâmina cega. O maiorquino se negara a
acatar a ordem real e sempre exibia seu magnífico punhal com ponta para
mostrar sua desobediência. Só diante da ameaça de expulsão do grêmio ele
finalmente concordara em levá-lo à casa do ferreiro para limá-lo.
— Mentiroso — explodiu um dos bastaixos.
— Ladrão — gritou outro.
— Alguém o roubou para jogar a culpa em mim! — protestou ele,
forcejando contra os dois homens que o seguravam.
Então apareceu o terceiro bastaix que tinha ido com Ramon à procura
do maiorquino e que revistou sua casa em busca do dinheiro roubado.
— Aqui está — gritou, levantando uma bolsa e entregando-a ao padre,
que, por sua vez, entregou-a ao oficial.
— Setenta e quatro dinheiros e cinco soldos — disse o oficial depois de
contar o conteúdo.
À medida que o oficial contava, os bastaixos iam fechando o círculo em
volta do maiorquino. Nenhum deles tinha tanto dinheiro! Quando a conta
terminou, eles se jogaram sobre o ladrão. Houve insultos, chutes, murros,
cusparadas. Os soldados se mantiveram à margem, e o oficial deu de
ombros e olhou para o padre Albert.
— Estamos na casa de Deus! — gritou então o sacerdote, tentando
apartar os bastaixos. — Estamos na casa de Deus! — continuou a gritar até
chegar perto do maiorquino encolhido no chão. — Este homem é um
ladrão, é verdade, e também é um covarde, mas merece ser julgado. Vocês
não podem agir como delinquentes. Levem-no ao bispo — ordenou ao
oficial.

***

Quando os soldados deixaram Santa Maria levando o maiorquino, os


bastaixos se aproximaram de Arnau sorrindo e se desculpando. Depois se
retiraram para suas casas. Por fim, diante da capela do Santíssimo
novamente aberta só ficaram o padre Albert, Arnau, os três pró-homens do
grêmio e as três testemunhas exigidas pelas ordenanças quando se tratava
da caixa dos bastaixos.
O padre introduziu as moedas na caixa e anotou no livro o acontecido
durante a noite. Amanhecera e um serralheiro tinha sido chamado para
consertar as três fechaduras; todos aguardaram até que a caixa fosse
fechada outra vez.
O padre Albert apoiou um braço no ombro de Arnau. Só então
rememorou sua figura sentada debaixo do cadáver de Bernat pendurado
em uma corda. Afastou o fogo de sua mente. Ele era só uma criança!
Olhou para a Virgem. “Ele teria apodrecido na porta da cidade”, lhe disse
em silêncio, “então não tem importância! Ele é só um menino que agora
não tem mais nada; nem pai nem trabalho com que se alimentar...”.
— Acho — disse de repente — que vocês deviam admitir Arnau
Estanyol em seu grêmio.
Ramon sorriu. Quando a tranquilidade voltou, ele também tinha
pensado na confissão de Arnau. Os demais olharam surpresos para o padre,
incluindo Arnau.
— Ele é só um menino — disse um dos pró-homens.
— É fraco. Como vai carregar pacotes ou pedras na cabeça? —
perguntou outro.
— É muito jovem — afirmou um terceiro.
Arnau olhava para todos com os olhos arregalados.
— Tudo o que vocês dizem é verdade — respondeu o padre —, mas
nem o seu tamanho, nem a sua força, nem a sua juventude o impediram de
defender as suas moedas. Se não fosse ele, a caixa estaria vazia.
Os bastaixos permaneceram um instante perscrutando Arnau.
— Acho que poderíamos tentar — disse Ramon finalmente —, e se não
der certo...
Alguém no grupo concordou.
— Combinado — se manifestou por fim um dos pró-homens do
grêmio, olhando seus dois companheiros —, vamos colocá-lo à prova. Se
nos próximos três meses ele demonstrar o seu valor, nós o confirmaremos
como bastaix. Ele receberá proporcionalmente ao seu trabalho. Tome —
acrescentou, lhe entregando o punhal do maiorquino que ainda conservava
em seu poder —, este é o seu punhal de bastaix. Padre, anotai no livro para
que o menino não tenha problemas.
Arnau sentiu o padre apertar seu ombro. Sem saber o que dizer,
sorrindo, demonstrou seu agradecimento aos bastaixos. Se seu pai o visse!

1. Natural da ilha de Maiorca (N. da T.)


18

“Quem era? Você o conhece, menino?”


Ainda ecoavam na praça o corre-corre e os gritos dos soldados que
perseguiam Arnau, mas Joan não os ouvia: o crepitar do cadáver de Bernat
retumbava em seus ouvidos.
O oficial da noite que tinha permanecido junto ao cadafalso sacudiu
Joan e repetiu a pergunta.
— Você o conhece?
Mas Joan não tirava os olhos da tocha em que estava se transformando
aquele que se prestara a ser seu pai.
O oficial sacudiu-o até conseguir que o menino se virasse para ele, com
o olhar perdido e batendo os dentes.
— Quem era aquele? Por que ele queimou seu pai?
Joan nem sequer ouviu a pergunta. Começou a tremer.
— Ele não consegue falar — interveio a mulher que ajudara Arnau a
fugir, a mesma que afastara um Joan paralisado das chamas, a mesma que
reconhecera em Arnau o menino que tinha velado o enforcado durante toda
a tarde. “Se eu me atrevesse a fazer a mesma coisa”, pensou, “o corpo do
meu marido não apodreceria nas muralhas, devorado pelos pássaros.” Sim,
aquele menino fizera algo que qualquer dos que ali estavam gostaria de
fazer, e o oficial... Era o oficial da noite, de maneira que não poderia ter
reconhecido Arnau; para ele, o filho era o outro, o que estava embaixo do
pai. A mulher abraçou Joan e o embalou.
— Eu tenho que saber quem ateou fogo ao corpo — explicou o oficial.
Os dois se juntaram às pessoas que olhavam o cadáver de Bernat.
— De que adianta? — murmurou a mulher, percebendo as convulsões
de Joan. — Este menino está morrendo de medo e de fome.
O soldado fechou os olhos, depois assentiu com a cabeça, lentamente.
Fome! Ele mesmo tinha perdido um filho de pouca idade: o menino
começara a perder peso, até que uma simples febre o levara. Sua esposa o
abraçava como aquela mulher fazia com o menino. E ele via os dois, ela
chorando, o pequeno procurando abrigo em seus peitos. Como...
— Leve-o para casa — disse o oficial à mulher.
— Fome — murmurou, olhando novamente para o cadáver em chamas
de Bernat. — Malditos genoveses!

***

Tinha amanhecido em Barcelona.


— Joan! — gritou Arnau assim que abriu a porta.
Pere e Mariona, sentados diante do fogo, lhe pediram que fizesse
silêncio.
— Ele está dormindo — disse Mariona.
A mulher o levara para casa e contara o ocorrido. Os dois velhos tinham
cuidado dele até o menino conseguir pegar no sono; depois se sentaram
frente ao calor do fogo.
— O que vai acontecer com eles? — perguntou Mariona ao esposo. —
Sem Bernat, o menino não aguentará as cavalariças.
“E nós não podemos mantê-los”, pensou Pere. Não podiam deixar o
quarto para eles sem cobrar, nem lhes dar de comer. Pere estranhou o
brilho que viu nos olhos de Arnau. Tinham acabado de executar seu pai!
Ele até tinha ateado fogo ao cadáver, contou à mulher. Qual a razão
daquele brilho?
— Sou um bastaix! — anunciou Arnau, se ocupando dos escassos restos
do jantar da noite anterior, frios na panela.
Os dois anciãos se entreolharam e depois olharam o menino, que comia
diretamente da concha, de costas para eles. Estava famélico! A falta de
grãos o afetara, como sucedera com toda Barcelona. Como aquele menino
tão magro poderia carregar alguma coisa?
Mariona sacudiu a cabeça e fitou o esposo.
— Deus dirá — lhe respondeu Pere.
— O que disse? — perguntou Arnau, virando-se com a boca cheia.
— Nada, meu filho, nada.
— Tenho de ir — disse Arnau, agarrando um pedaço de pão duro. A
vontade de perguntar sobre o que acontecera na praça conflitava com uma
nova alegria: se juntar a seus novos companheiros. Finalmente decidiu: —
Quando Joan acordar, contem a ele.

***

Em abril começava a época de navegação, que era novamente


interrompida em outubro. Os dias se alongavam, os grandes navios
começavam a chegar ao porto ou a zarpar dele, e ninguém, nem patrões
nem armadores nem pilotos, queria permanecer atracado no perigoso porto
de Barcelona além do estritamente necessário.
Na praia, antes de se unir ao grupo de bastaixos que lá esperavam,
Arnau contemplou o mar. Sempre o tivera ali, mas, quando saía com seu
pai, depois de alguns passos lhe dava as costas. Naquele dia viu o mar de
maneira diferente. Viveria dele. No porto, além de uma infinidade de
pequenas embarcações, havia duas naus grandes que acabavam de chegar e
uma esquadra formada por seis imensas galeras de guerra, com duzentos e
sessenta botes e cada uma com vinte e seis bancos para remadores.
Arnau ouvira falar daquela esquadra, armada pela própria cidade para
ajudar o rei na guerra contra Gênova, que estava sob o comando de
Galcerà Marquet, o quarto conselheiro de Barcelona. Só a vitória sobre os
genoveses reabriria as vias de comércio e de sustento da capital do
principado; por essa razão Barcelona fora generosa com o rei Afonso.
— Você não vai dar para trás, não é, menino? — disse alguém às suas
costas. Arnau se virou e encontrou um dos pró-homens do grêmio. —
Vamos — ele o chamou enquanto caminhava para onde os demais
confrades estavam reunidos.
Arnau o seguiu. Quando chegou ao grupo, os bastaixos o receberam
com sorrisos.
— Isto não é como distribuir água — disse alguém, provocando o riso
dos demais.
— Tome — ofereceu-lhe Ramon —, é a menor que encontramos no
grêmio.
Arnau pegou a capçana com cuidado.
— Ela não arrebenta! — riu um dos bastaixos ao ver o cuidado com que
Arnau a segurava.
“Claro que não!”, pensou Arnau, sorrindo para o bastaix, “como poderia
arrebentar?”. Colocou a almofada no cangote, apoiou na testa a correia de
couro que a segurava e sorriu novamente.
Ramon o ajudou a assentar bem a almofada.
— Pronto — disse, dando-lhe uma palmada —, agora só falta o calo.
— Que calo...? — começou a perguntar Arnau, mas a chegada dos pró-
homens desviou a atenção dos confrades.
— Eles não chegam a um acordo — explicou um deles. Todos os
bastaixos, incluindo Arnau, olharam para além da praia, onde várias
figuras luxuosamente vestidas discutiam. — Galcerà Marquet quer que as
galeras sejam carregadas primeiro; os comerciantes, por sua vez, querem
que os dois navios que acabam de chegar sejam descarregados. Temos de
esperar — anunciou.
Os homens murmuraram, e a maior parte deles se sentou na areia.
Arnau se sentou ao lado de Ramon, com a capçana ainda presa à testa.
— Ela não vai arrebentar, Arnau — disse ele, apontando para a capçana
—, mas não deixe que se suje de areia: machucaria a sua pele.
O menino tirou a capçana e a guardou cuidadosamente, sem deixá-la
tocar a areia.
— Qual é o problema? — perguntou ele a Ramon. — Podemos
descarregar ou carregar primeiro uns e depois os outros.
— Ninguém quer permanecer no porto de Barcelona mais tempo que o
necessário. Se houver um temporal, os navios ficarão em perigo, sem
nenhuma proteção.
Arnau percorreu o porto com o olhar, de Puig de les Falsies a Santa
Clara; depois observou o grupo, que continuava a discutir.
— O conselheiro da cidade é quem manda, não é?
Ramon riu e lhe afagou os cabelos.
— Em Barcelona mandam os comerciantes. São os que custearam as
galeras reais.
Por fim, a disputa terminou com um pacto: os bastaixos buscariam os
apetrechos das galeras na cidade, e, enquanto isso, os barqueiros
começariam a descarregar os navios mercantes. Os bastaixos deveriam
estar de volta antes que os barqueiros chegassem à praia com as
mercadorias, que seriam guardadas em um local adequado, em vez de
serem repartidas entre os armazéns de seus donos. Os barqueiros levariam
os apetrechos para as galeras enquanto os bastaixos iriam buscar mais, e
dali iriam para os navios mercantes recolher as mercadorias. Assim fariam
vezes seguidas, até que as galeras e os navios mercantes estivessem
respectivamente carregados e esvaziados. Depois distribuiriam a
mercadoria entre os armazéns correspondentes e, se o tempo permitisse,
voltariam a carregar os navios mercantes.
Quando os pró-homens chegaram a um acordo, todos os operadores do
porto se puseram em movimento. Em grupos, os bastaixos entraram em
Barcelona na direção dos estaleiros municipais, onde estavam os
apetrechos dos tripulantes das galeras, incluídos os dos diversos
remadores de cada uma, e os barqueiros se dirigiram aos navios mercantes
que acabavam de aportar para descarregar as mercadorias, as quais, por
falta de cais, só podiam ser descarregadas por grêmios ligados à
organização portuária.
A tripulação de cada barca, lenho, falucho ou naveta era composta por
três ou quatro homens: o barqueiro e, dependendo do grêmio, escravos ou
homens livres assalariados. Os barqueiros agrupados no grêmio de Sant
Pere, o mais rico e antigo da cidade, não utilizavam mais de dois escravos
por barco, conforme estabeleciam as ordenanças; os do jovem grêmio de
Santa Maria, sem tantos recursos econômicos, utilizavam homens livres a
soldo. Em todo o caso, depois que os barcos eram amarrados aos navios
mercantes, a carga e descarga eram operações lentas e delicadas mesmo
com o mar tranquilo, pois os barqueiros eram responsáveis por qualquer
perda ou dano sofridos pelas mercadorias e podiam até ser condenados à
prisão caso não pudessem pagar as indenizações devidas aos mercadores.
Quando o temporal assolava o porto de Barcelona, a coisa se
complicava, não só para os barqueiros como para todos os que intervinham
no tráfego marítimo. Em primeiro lugar, porque os barqueiros podiam se
negar a descarregar mercadorias — o que não podiam fazer quando havia
bonança —, a menos que combinassem um preço muito especial com o
proprietário. Mas as principais consequências do temporal recaíam sobre
os donos, pilotos e até os marinheiros da embarcação. Sob a ameaça de
penas severas, ninguém podia abandonar o navio até que a mercadoria
fosse totalmente descarregada, e eles eram obrigados a permanecer
embarcados se o dono ou o escrivão, os únicos que podiam desembarcar,
estivessem fora da embarcação.
Assim, enquanto os barqueiros descarregavam o primeiro navio, os
bastaixos, divididos em grupos pelos pró-homens, traziam para a praia os
apetrechos das galeras recolhidos nos diversos armazéns da cidade. Após o
pró-homem lançar um olhar significativo a Ramon, o menino foi incluído
em seu grupo.
Sem sair da linha da praia, se dirigiram ao pórtico de Forment, o
armazém municipal de grãos, fortemente protegido pelos soldados do rei
depois da revolta popular. Arnau tentou se esconder atrás de Ramon ao
chegar à porta, mas os soldados perceberam a presença de um menino
entre aqueles homens fortíssimos.
— O que esse aí vai carregar? — perguntou um deles, rindo e
apontando para ele.
Ao ver que todos os soldados olhavam para ele, Arnau sentiu o
estômago encolher e tentou se esconder ainda mais, mas Ramon o agarrou
pelo ombro, colocou a capçana em sua testa e respondeu ao soldado no
mesmo tom que este tinha empregado:
— Já está na hora de ele trabalhar! — exclamou. — Tem catorze anos e
precisa ajudar a família.
Vários soldados concordaram e lhes deram passagem. Arnau caminhou
entre eles de cabeça baixa e com o couro na testa. Quando cruzou o pórtico
de Forment, o cheiro do grão armazenado o baqueou. Os raios de luz que
se filtravam pelas janelas refletiam o pó em suspensão, um polvilho que
não tardou a provocar tosse no menino e em muitos bastaixos.
— Antes da guerra com Gênova — comentou Ramon, gesticulando para
abarcar todo o perímetro do armazém —, isto estava cheio de grãos, mas
agora...
Arnau reconheceu os grandes vasos de Grau enfileirados.
— Vamos! — gritou um dos pró-homens.
Com um pergaminho nas mãos, o encarregado do armazém começou a
assinalar os vasos grandes. “Como vamos transportar estes vasos tão
cheios?”, pensou Arnau. Era impossível para um homem transportar
tamanho peso. Os bastaixos se agruparam de dois em dois, abraçaram os
recipientes e os amarraram com cordas, cruzando sobre as costas um pau
grosso que transpassava as cordas. Assim, aos pares, começaram a desfilar
em direção à praia. O pó em suspensão se multiplicou e se agitou. Arnau
tossiu novamente e, quando chegou sua vez, ouviu a voz de Ramon:
— Dê um dos pequenos ao menino, dos de sal.
O encarregado olhou Arnau e fez que não com a cabeça.
— O sal é caro, bastaix — alegou, dirigindo-se a Ramon. — Se o vaso
cair...
— Dê um de sal a ele!
Os recipientes de grão mediam cerca de um metro de altura; o de Arnau
não tinha mais de meio metro, mas quando, com a ajuda de Ramon, o
colocou sobre as costas, o menino sentiu as pernas bambearem.
Por trás, Ramon o agarrou pelos ombros.
— É agora que você tem de provar-se — sussurrou ele ao seu ouvido.
Arnau começou a caminhar encurvado, com as mãos fortemente
agarradas às asas do vaso, empurrando com a cabeça para a frente, e sentiu
a tira de couro lhe afundar a testa.
Ramon o viu partir cambaleante, movendo lentamente pé ante pé com
cuidado. O encarregado balançou a cabeça outra vez, e os soldados se
mantiveram em silêncio quando ele passou.
— Pelo senhor, papai — murmurou ele com os dentes apertados ao
sentir o calor do sol no rosto. O peso ia parti-lo em dois! — Não sou mais
criança, pai, você está vendo?
Ramon e outro bastaix o seguiam carregando um vaso de grãos e com
os olhos em seus pés; eles o viram tropeçar nos próprios pés e cambalear.
Ramon fechou os olhos. “Você ainda está lá pendurado?”, pensou Arnau
naquele momento, com a imagem do cadáver de Bernat nas pupilas.
“Ninguém poderá zombar de você! Nem a bruxa e seus enteados.” Se
ergueu sob o peso e recomeçou o trajeto.
Chegou à praia; Ramon sorria atrás dele. Todos se calaram. Os
barqueiros acudiram para receber a talha de sal antes que o menino
chegasse à margem. Arnau demorou uns segundos para voltar à posição
ereta.
— Você me viu, pai? — murmurou, olhando para o céu.
Ramon lhe deu uma palmadinha nas costas quando se livrou dos grãos.
— Outra? — perguntou sério ao menino.
Outras duas. Quando Arnau descarregou a terceira talha na praia, Josep,
um dos pró-homens, se aproximou dele.
— Basta por hoje, menino — disse ele.
— Eu posso continuar — garantiu Arnau, tentando ocultar a dor que
sentia nas costas.
— Não. Você não pode e eu não vou deixar que percorra Barcelona
sangrando como um animal ferido — disse paternalmente, apontando para
os filetes de sangue que escorriam por suas costelas. Arnau passou a mão
nas costas e olhou. — Não somos escravos, somos homens livres,
trabalhadores livres, e as pessoas devem nos ver como tais. Não se
preocupe — insistiu ao ver a expressão de desânimo de Arnau —, todos
passamos por isso e todos tivemos alguém que nos impediu de continuar.
A ferida que se abriu no seu cangote e nas costas tem de formar um calo. É
questão de dias, mas pode ter certeza de que depois disso eu não deixarei
você descansar mais do que os seus companheiros. — Josep lhe entregou
um frasco pequeno. — Limpe bem essa ferida, e peça que alguém lhe
aplique este unguento para secá-la.
A tensão desapareceu ao ouvir as palavras do pró-homem. Naquele dia
já não teria de carregar. Mas logo vieram a dor, o cansaço, os efeitos de
uma noite insone; Arnau sentiu que ia desfalecer. Murmurou umas
palavras de despedida e se arrastou até sua casa. Joan o esperava na porta.
Há quanto tempo estaria ali?
— Você sabe que eu sou um bastaix? — perguntou Arnau quando
chegou perto dele.
Joan fez que sim. Ele sabia. Ele o vira fazer as duas últimas viagens e
trincara os dentes e as mãos a cada passo trêmulo que Arnau dava em
direção ao seu destino, rezara para que não caísse e chorara ao ver seu
rosto exaurido. Joan limpou as lágrimas e abriu os braços para receber o
irmão. Arnau se deixou abraçar.
— Você precisa aplicar este unguento nas minhas costas — conseguiu
dizer enquanto Joan o acompanhava ao quarto.
Não conseguiu dizer nada mais. Jogado com os braços abertos, em
poucos segundos caiu em um sono reparador. Tentando não acordá-lo, Joan
limpou a ferida e as costas com a água quente que Mariona trouxe; a anciã
conhecia o ofício. Depois aplicou o unguento, de cheiro forte e azedo, que
deve ter começado a fazer efeito imediatamente, pois Arnau se moveu
inquieto, mas não chegou a acordar.
Naquela noite foi Joan quem não conseguiu dormir. Sentado no chão ao
lado do irmão, escutava sua respiração; deixava cair as pálpebras
lentamente quando ela era tranquila, e despertava sobressaltado quando
Arnau se movia. “E agora, o que será de nós?”, pensava de vez em quando.
Tinha conversado com Pere e sua mulher; o dinheiro que Arnau podia
ganhar como bastaix não seria suficiente para os dois. O que seria dele?
— Para a escola! — ordenou-lhe Arnau na manhã seguinte, quando viu
Joan atarefado na cozinha com Mariona.
Pensara nisso no dia anterior: tudo devia continuar igual, como o pai
tinha deixado.
Inclinada sobre o fogo, a anciã se virou para o marido. Joan quis
responder, mas Pere se adiantou:
— Obedeça seu irmão mais velho — pressionou-o Pere.
O olhar de Mariona se transformou num sorriso. Mas o velho estava
com o semblante sério. Como os quatro iriam viver? Mariona continuou a
sorrir, e Pere sacudiu a cabeça, como se quisesse livrá-la das incógnitas
sobre as quais tanto tinham conversado na noite passada.
Joan saiu correndo da casa, e Arnau tentou se espichar mais uma vez.
Não conseguia mover nem um músculo; eles estavam totalmente rígidos, e
pontadas terríveis percorriam seu corpo, da ponta dos pés ao pescoço. No
entanto, pouco a pouco seu corpo jovem começou a responder, e, depois de
tomar um café da manhã parco, saiu para o sol, sorrindo para a praia e o
mar e para as seis galeras que permaneciam no porto.
Ramon e Josep o obrigaram a mostrar as costas.
— Uma viagem — comentou o pró-homem com Ramon antes de se
dirigir ao grupo —, depois, para a capela.
Arnau virou o rosto para Ramon enquanto abaixava a camisa.
— Você ouviu — disse ele.
— Mas...
— Acredite, Arnau, Josep sabe o que faz.
E sabia. Ao carregar a primeira talha, Arnau começou a sangrar.
— Mas, se eu sangrei da primeira vez — alegou Arnau quando Ramon,
atrás dele, descarregou sua mercadoria na praia —, que diferença fariam
algumas viagens mais?
— O calo, Arnau, o calo. Não se trata de você destruir suas costas, só de
que se forme um calo. Agora vá se limpar, colocar o unguento, e vá para a
capela do Santíssimo... — Arnau tentou protestar. — É a nossa capela, a
sua capela, Arnau, é preciso cuidar dela.
— Meu filho — acrescentou o bastaix que fazia dupla com Ramon. —
Essa capela significa muito para nós. Nós somos apenas carregadores do
porto, mas a Ribera nos concedeu o que nenhum nobre e nenhum grêmio
rico possui: a capela do Santíssimo e as chaves da igreja da Senhora do
Mar, você entende? — Arnau assentiu, pensativo. — Só os bastaixos
podem cuidar dessa capela. Para nós não há maior honra. Você vai ter
muito tempo para carregar e descarregar, não se preocupe com isso.
Mariona tratou dele, e Arnau foi para Santa Maria. Lá, procurou o padre
Albert para lhe pedir as chaves da capela, mas o sacerdote o fez
acompanhá-lo ao cemitério, situado em frente ao portal das Moreres.
— Esta manhã enterrei o seu pai — disse ele, apontando para o
cemitério. Arnau o interrogou com o olhar. — Não quis avisar você porque
podia aparecer algum soldado. O veguer não quis que as pessoas vissem o
cadáver queimado de seu pai, nem na Praça de Blat nem nas portas da
cidade; ele teve medo de que virasse um exemplo. Não foi difícil
conseguir permissão para enterrá-lo.
Ambos permaneceram alguns instantes em silêncio diante do cemitério.
— Você quer ficar sozinho? — perguntou o padre.
— Tenho de limpar a capela dos bastaixos — respondeu Arnau, secando
as lágrimas.
Por alguns dias Arnau fazia só uma viagem e depois ia para a capela.
As galeras já haviam partido com a mercadoria habitual do tráfico
mercantil: tecidos, corais, especiarias, cobre, cera. Um dia suas costas
pararam de sangrar. Josep as inspecionou novamente, e Arnau prosseguiu
carregando grandes volumes de tecidos e sorrindo para os bastaixos com
que cruzava.
Logo ele recebeu suas primeiras moedas como bastaix. Um pouco mais
do que recebia trabalhando para Grau! Entregou tudo a Pere, junto com
algumas moedas que sobravam na bolsa de Bernat. “Não é suficiente”,
pensou o menino ao contar as moedas. Bernat pagava muito mais. Abriu a
bolsa mais uma vez. Não duraria muito, pensou ao comprovar o conteúdo
da minguada bolsa de Bernat. Com a mão enfiada nela, Arnau olhou para o
ancião. Pere franziu os lábios.
— Quando eu conseguir carregar mais — disse-lhe Arnau —, vou
ganhar mais dinheiro.
— Você sabe que isso vai demorar, e até lá a bolsa de seu pai estará
vazia. Você sabe que esta casa não é minha... Não, não é — explicou ele ao
ver a expressão de surpresa do menino. — A maioria das casas da cidade
pertence à Igreja: ao bispo ou a alguma ordem religiosa; nós as temos em
enfiteuse e pagamos uma pensão anual. Você sabe que eu não posso
trabalhar muito, e só conto com o aluguel do quarto para fazer o
pagamento. Se você não conseguir essa quantidade... Você entende?
— Então de que serve ser livre se os cidadãos estão presos às casas
como os camponeses às terras? — perguntou Arnau, balançando a cabeça.
— Não estamos presos a elas — respondeu Pere.
— Mas eu ouvi que todas essas casas passam de pais para filhos; até as
vendem! Como é possível se não são suas, e se eles tampouco são servos
delas?
— É fácil entender, Arnau. A Igreja é muito rica em terras e
propriedades, mas as leis a proíbem de vender os bens eclesiásticos. —
Arnau tentou interromper, mas Pere fez um gesto pedindo silêncio. — O
problema é que os bispos, abades e demais cargos importantes da Igreja
são escolhidos pelo rei entre os amigos dele. O papa nunca recusa —
acrescentou —, e todos esses amigos do rei esperam obter boas rendas
com os bens que lhes correspondem, porém, como não podem vendê-los,
inventaram a enfiteuse, e assim burlam essa proibição.
— É como se fossem inquilinos — disse Arnau.
— Não. Os inquilinos podem ser despejados a qualquer momento; o
enfiteuta nunca pode ser despejado... se pagar a pensão.
— E você pode vender a sua casa?
— Sim, e por isso se chama subenfiteuse. O bispo recebe uma parte da
venda, o laudêmio, e o novo subenfiteuta pode fazer o mesmo que eu. Só
existe uma proibição. — Arnau o interrogou com o olhar. — Não se pode
vender a ninguém de melhor condição social. Nunca poderia vendê-la a
um nobre, por exemplo. Mas um nobre não ia querer esta casa, não é
mesmo? — acrescentou sorrindo. Arnau não riu da brincadeira e Pere tirou
o sorriso do rosto. Os dois permaneceram em silêncio por um instante. —
O fato é que tenho de pagar a pensão, e com o que eu ganho e você paga...
“O que faremos agora?”, pensou Arnau. Com o mísero dinheiro que
ganhava não podia pagar nada, nem comida para duas pessoas, mas Pere
também não merecia sustentá-los; sempre tinha sido bom.
— Não se preocupe — disse titubeante —, nós sairemos para que você
possa...
— Mariona e eu pensamos que — Pere o ignorou —, se Joan e você
quiserem, poderiam dormir aqui, ao lado da lareira. — Os olhos de Arnau
se arregalaram. — Assim, podemos alugar o quarto para uma família e
pagar a pensão. Você só teria de conseguir duas enxergas. O que acha?
O rosto de Arnau se iluminou. Seus lábios tremeram.
— Isso significa que sim? — ajudou-o Pere.
Arnau apertou os lábios e concordou energicamente com a cabeça.

***

— Vamos pela Virgem! — gritou um dos pró-homens do grêmio.


Os pelos dos braços e das pernas de Arnau se arrepiaram.
Naquele dia não havia barcos para carregar nem descarregar, e só as
pequenas embarcações de pesca estavam no porto. Estavam reunidos na
praia, como sempre, enquanto o sol surgia prometendo um dia primaveril.
Desde que se unira aos bastaixos, no começo da época de navegação,
eles não haviam dedicado nem um dia a Santa Maria.
— Vamos pela Virgem! — ouviu-se no grupo de bastaixos.
Arnau observou seus companheiros: os rostos sonolentos abriram-se em
sorrisos. Alguns se espreguiçaram, movendo os braços para trás e para a
frente, preparando as costas. Arnau lembrou de quando lhes dava água e os
via passar diante dele encurvados, trincando os dentes, carregados com
aquelas pedras enormes. Ele seria capaz? O temor enrijeceu seus
músculos; quis imitar os bastaixos e começou a aquecê-los, mexendo os
braços.
— É a sua primeira vez — Ramon o felicitou. Arnau não disse nada e
deixou cair os braços. O jovem bastaix fechou os olhos. — Não se
preocupe, menino — acrescentou, apoiando o braço em seu ombro e
incentivando-o a acompanhar o grupo, que já estava em movimento —,
quando você carrega pedras para a Virgem, ela leva parte do peso.
Arnau ergueu os olhos para Ramon.
— É verdade — insistiu ele sorrindo —, você verá.
Saíram de Santa Clara, no extremo oriental, e percorreram toda a
cidade, cruzaram as muralhas e subiram até a pedreira real La Roca, em
Montjuïc. Arnau caminhava em silêncio; de vez em quando, se sentia
observado por um deles. Deixaram para trás o bairro da Ribera, os
estaleiros e o pórtico de Forment. Quando passaram diante da fonte do
Àngel, Arnau viu as mulheres que esperavam para encher seus cântaros;
muitas haviam lhe cedido a vez quando Joan e ele chegavam com o odre.
As pessoas os cumprimentavam. Alguns meninos se juntaram ao grupo
correndo e pulando, cochichando e apontando respeitosamente para Arnau.
Deixaram para trás os pórticos do arsenal e chegaram ao convento de
Framenors, no limite ocidental da cidade, onde acabavam as muralhas de
Barcelona; depois delas ficava o novo estaleiro da cidade condal, cujos
muros começavam a ser erguidos, e depois campos e plantações — Sant
Nicolau, Sant Bertran e Sant Pau del Camp — onde começava a subida
para a pedreira.
Mas, antes de chegar lá, os bastaixos tinham de cruzar o Cagalell. O
odor dos dejetos da cidade assaltou-os muito antes que pudessem vê-los.
— Estão desaguando — disse alguém sobre o fedor.
A maioria dos homens concordou.
— Não federia tanto se não estivessem desaguando — acrescentou
outro.
O Cagalell era uma represa formada na desembocadura de um barranco,
junto às muralhas, onde se acumulavam os dejetos e as águas pútridas da
cidade. Devido ao terreno acidentado, nunca desaguava completamente na
praia, e as águas permaneciam paradas; quando isso acontecia, um
funcionário municipal cavava uma saída e empurrava os dejetos para o
mar. Era quando o Cagalell cheirava pior.
Deram a volta na represa até o ponto onde era possível cruzá-la com um
salto e continuaram a atravessar os campos em direção à vertente de
Montjuïc.
— Como cruzamos de volta? — perguntou Arnau, apontando para a
corrente.
Ramon negou com a cabeça.
— Ainda não conheci ninguém capaz de pular com uma pedra nas
costas — disse ele.
Enquanto subia em direção à pedreira, Arnau se virou para olhar a
cidade. Ela estava longe, muito longe. Como ia aguentar aquela caminhada
com uma pedra nas costas? Sentiu as pernas fraquejarem e correu para
alcançar o grupo, que continuava a conversar e rir.
Por fim, a pedreira real La Roca se abriu diante deles. Arnau deixou
escapar uma exclamação de assombro. Era como a Praça de Blat ou
qualquer outro mercado, mas sem mulheres! Em uma grande esplanada, os
funcionários do rei tratavam com pessoas que tinham vindo em busca de
pedra. Carros e parelhas de mulas se enfileiravam num dos lados da
esplanada, onde as paredes da montanha ainda não tinham sido exploradas;
o resto era cortado com picareta e fazia a pedra refulgir. Uma infinidade de
cavouqueiros fazia grandes blocos de pedra se soltarem perigosamente,
para depois reduzi-los na esplanada.
Os bastaixos foram acolhidos com carinho pelos que esperavam pedras
e, enquanto os pró-homens tratavam com os funcionários, os demais se
misturaram às pessoas; houve abraços, apertos de mão, risos e
brincadeiras, e vasilhas de água ou de vinho circulando acima de suas
cabeças.
Arnau não parava de observar o trabalho dos cavouqueiros e dos peões,
que carregavam carros e mulas seguidos por um funcionário que fazia
anotações. Como nos mercados, as pessoas, impacientes, discutiam ou
aguardavam seu turno.
— Você não esperava por isso, não é?
Arnau se virou a tempo de ver Ramon devolver uma vasilha e fez que
não com a cabeça.
— Para onde vai tanta pedra?
— Ah! — respondeu Ramon e começou a recitar: — Para a catedral,
para Santa Maria del Pi, para Santa Anna, para o mosteiro de Pedralbes,
para o estaleiro real, para Santa Clara, para as muralhas; tudo está sendo
construído ou modificado, para não falar das novas casas de ricos e nobres.
Ninguém quer mais madeira nem tijolos de adobe. Pedra, só pedra.
— E o rei cede toda essa pedra?
Ramon deu uma gargalhada.
— Só a de Santa Maria do Mar; esta, sim, ele cedeu sem cobrar... e
suponho que a do mosteiro de Pedralbes, que está sendo construído por
ordem da rainha. Pelo resto ele cobra um bom dinheiro.
— E as do estaleiro real? — perguntou Arnau. — Se são reais...
Ramon sorriu novamente.
— Podem ser reais — rebateu ele —, mas o rei não as paga.
— A cidade?
— Também não.
— Os mercadores?
— Não.
— Então? — inquiriu Arnau, virando-se para o bastaix.
— O estaleiro real está sendo pago...
— Pelos pecadores! — roubou-lhe a palavra o homem que lhe passara a
vasilha, um arreeiro da catedral.
Ramon e ele riram ao ver a cara de assombro de Arnau.
— Pelos pecadores?
— É — continuou Ramon —, o novo estaleiro é pago com todas as
moedas dos mercadores pecadores. Veja, é muito simples: depois das
Cruzadas... você sabe o que foram as Cruzadas? — Arnau assentiu; como
não saberia o que foram as Cruzadas? — Pois bem, depois que perdemos
definitivamente a Cidade Santa, a Igreja proibiu o comércio com o sultão
do Egito, mas é lá que nossos comerciantes obtêm as melhores
mercadorias, e nenhum deles está disposto a deixar de comerciar com o
sultão; por isso, antes de fazê-lo, comparecem aos consulados do mar e
pagam uma multa pelo pecado que vão cometer. Então são absolvidos com
antecedência e já não pecam. O rei Afonso determinou que todo esse
dinheiro deveria ir para a construção do novo estaleiro de Barcelona.
Arnau ia falar, mas Ramon o interrompeu com a mão. Os pró-homens
os chamavam, e ele fez um gesto para que o seguisse.
— Vamos passar na frente deles? — perguntou Arnau, apontando para
os arreeiros que iam ficando para trás.
— Claro — respondeu Ramon sem deixar de caminhar —, nós não
necessitamos de tantos controles quanto eles; a pedra é gratuita e é fácil
contá-la: um bastaix, uma pedra.
“Um bastaix, uma pedra”, repetiu Arnau para si mesmo no momento
em que o primeiro bastaix e a primeira pedra passaram ao seu lado. Tinha
chegado ao lugar onde os cortadores de pedras reduziam os pedregulhos.
Viu o rosto do homem, contraído, tenso. Arnau sorriu, mas seu
companheiro de grêmio não retribuiu o sorriso; as brincadeiras tinham
terminado, já ninguém ria nem conversava; com a capçana presa à testa,
todos olhavam o monte de pedras no chão. A capçana! Arnau a colocou.
Os bastaixos passavam em fila ao seu lado, um após outro, em silêncio,
sem esperar o seguinte, e, à medida que passavam, o grupo que rodeava as
pedras minguava. Arnau olhou as pedras; sua boca secou, e seu estômago
encolheu. Um bastaix ofereceu as costas, e dois peões levantaram a pedra
para acomodá-la. Ele viu o homem ceder. Os seus joelhos tremiam!
Aguentou uns segundos, se ergueu e passou perto de Arnau, a caminho de
Santa Maria. Deus, era três vezes mais corpulento do que ele, e suas
pernas tinham bambeado! Como ele conseguiria...?
— Arnau — chamaram-no os pró-homens, os últimos a sair.
Ainda restavam alguns bastaixos. Ramon o empurrou para a frente.
— Coragem — disse ele.
Os três pró-homens falavam com um dos cavouqueiros, que se limitava
a dizer que não com a cabeça. Os quatro avaliavam o monte de pedras,
apontavam para uma ou outra e depois balançavam a cabeça novamente.
Junto às pedras, Arnau tentou engolir saliva, mas sua garganta estava seca.
Ele tremia! Não podia tremer! Moveu as mãos e depois os braços para trás
e para a frente. Não podia deixar que o vissem tremer!
Josep, um dos pró-homens, indicou uma pedra. O cavouqueiro
respondeu com um gesto de indiferença, olhou para Arnau, balançou a
cabeça novamente e disse aos peões que a erguesse: “São todas iguais”, ele
tinha repetido diversas vezes.
Quando viu os dois peões com a pedra, Arnau se aproximou deles. Se
encurvou e retesou todos os músculos do corpo. Todos os presentes
fizeram silêncio. Os peões soltaram a pedra suavemente e o ajudaram a
firmar as mãos nela. Ao sentir o peso, ele se encurvou ainda mais e suas
pernas se dobraram. Arnau trincou os dentes e fechou os olhos. “Para
cima!”, pensou ouvir. Ninguém dissera nada, mas todos haviam gritado em
silêncio ao ver as pernas do menino. Para cima! Para cima! Arnau se
ergueu sob o peso. Muitos suspiraram. Conseguiria andar? Arnau esperou,
de olhos ainda fechados. Conseguiria andar?
Avançou um pé. O próprio peso da pedra o obrigou a mover o outro e
novamente o primeiro... de novo o segundo. Se parasse... se parasse, a
pedra o faria cair de bruços.
Ramon inspirou e levou as mãos aos olhos.
— Coragem, menino! — ouviu o grito de um dos arreeiros que
esperavam.
— Vamos, seja valente!
— Você consegue!
— Pela Santa Maria!
A gritaria ressoou nas paredes da pedreira e acompanhou Arnau quando
ele se viu sozinho no trajeto de volta à cidade.
No entanto, não caminhou só. Todos os bastaixos que saíram depois
dele o alcançaram com facilidade, e todos, do primeiro ao último,
diminuíram o passo por alguns minutos para animá-lo e elogiá-lo; quando
vinha o próximo, o anterior recuperava seu ritmo.
Mas Arnau não os escutava. Ele sequer pensava. Sua atenção estava
posta naquele pé que devia surgir de trás e, quando o via avançar e se pôr a
caminho, esperava o seguinte; um pé depois do outro, se sobrepondo à dor.
Na altura da horta de Sant Bertran, os pés levavam uma eternidade para
aparecer. Todos os bastaixos já o tinham ultrapassado. Lembrou como Joan
e ele lhes davam água, com a pedra pesada apoiada na borda de uma
embarcação. Procurou algum lugar parecido, encontrou uma oliveira e
conseguiu apoiar a pedra em um galho; se a colocasse no chão, não
conseguiria colocá-la novamente nas costas. Suas pernas estavam
contraídas.
— Se você parar — aconselhara-o Ramon —, não deixe as pernas se
contraírem completamente ou não poderá continuar.
Livre de parte do peso, Arnau continuou a mover as pernas. Respirou
fundo diversas vezes. A Virgem carrega uma parte, ele também dissera.
Deus, se isso for verdade, quanto pesava aquela pedra? Não se atreveu a
mover as costas. Doíam, doíam terrivelmente. Descansou um bom tempo.
Conseguiria se mover de novo? Arnau olhou ao seu redor. Estava sozinho.
Nem os arreeiros seguiam por aquele caminho, pois iam para o portal de
Trentaclaus.
Conseguiria? Olhou para o céu. Escutou o silêncio e reacomodou a
pedra, de uma só vez. Os pés se puseram em movimento. Um, o outro, um,
o outro...
Em Cagalell repetiu o descanso, apoiando a pedra na saliência de uma
pedra grande. Ali apareceram os primeiros bastaixos, já voltando à
pedreira. Ninguém falou, só se entreolhavam. Arnau trincou os dentes
mais uma vez e voltou a acomodar a pedra. Alguns bastaixos o
cumprimentaram com um gesto, mas nenhum se deteve. “É o seu desafio”,
comentou um deles depois, virando-se para observar o lento avanço da
pedra, quando Arnau já não podia ouvi-los. “Ele deve enfrentá-lo
sozinho”, afirmou outro.
Quando transpôs a muralha ocidental e deixou Framenors para trás,
Arnau encontrou os cidadãos de Barcelona. Seguia com a atenção fixa nos
pés. Já estava na cidade! Marinheiros, pescadores, mulheres e crianças,
operários dos estaleiros, carpinteiros, todos observaram em silêncio o
menino encolhido sob o peso da pedra, que suava com o rosto
completamente vermelho. Todos fitaram os pés do jovem bastaix, que ele
também olhava sem prestar atenção a mais nada, e todos o empurravam
em silêncio: um, e outro, um, e outro...
Alguns se uniram ao percurso de Arnau, ajustando o passo ao avanço da
pedra, e assim, depois de mais de duas horas de esforço, o menino chegou
a Santa Maria acompanhado por uma pequena multidão silenciosa. A obra
parou. Os operários se debruçaram nos andaimes, e os carpinteiros e
cortadores de pedra deixaram suas tarefas. O padre Albert, Pere e Mariona
o esperavam. Àngel, o filho do barqueiro, já convertido em oficial, se
aproximou dele.
— Vamos! — gritou. — Pronto! Você já chegou! Venha, vamos, vamos!
Ouviram-se gritos de encorajamento do alto dos andaimes. Os que
tinham seguido Arnau gritaram vivas. Toda Santa Maria se somou à
gritaria; até o padre Albert acompanhou a gritaria geral. Porém Arnau
continuou a olhar para os pés, um, o outro, um, o outro... até chegar ao
lugar onde depositavam as pedras; ali, os aprendizes e os oficiais se
apressaram a receber a que o menino trouxera.
Só então Arnau levantou os olhos, ainda encurvado e tremendo, e
sorriu. As pessoas o rodearam e felicitaram. Arnau foi incapaz de saber
quem eram os que o rodeavam; só reconheceu o padre Albert, cujo olhar
estava posto no cemitério de Moreres. Arnau o imitou.
— Por você, pai — sussurrou.
Quando as pessoas se dispersaram e Arnau se preparava para voltar à
pedreira seguindo os passos de seus companheiros, alguns dos quais
tinham feito mais de três viagens, o padre o chamou; tinha recebido
instruções de Josep, o pró-homem do grêmio.
— Tenho um trabalho para você — disse a ele. Arnau se deteve e olhou
para ele, surpreso. — É preciso limpar a capela do Santíssimo, espevitar
os círios e colocá-la em ordem.
— Mas... — protestou Arnau, apontando para as pedras.
— Sem mas.
19

Aquele tinha sido um dia duro. Depois do solstício de verão, demorava a


anoitecer e os bastaixos trabalhavam de sol a sol carregando e
descarregando os navios que chegavam ao porto, sempre apressados pelos
mercadores e pilotos, que queriam permanecer no porto de Barcelona o
menor tempo possível.
Arnau entrou na casa de Pere arrastando os pés, com a capçana na mão.
Oito rostos se viraram para ele. Pere e Mariona estavam sentados à mesa
com um homem e uma mulher. Sentados no chão e apoiados à parede,
Joan, um rapaz e duas meninas olhavam para ele. Todos tinham uma tigela
nas mãos.
— Arnau — disse Pere —, lhe apresento os nossos novos inquilinos.
Gastó Segura, oficial curtidor. — O homem se limitou a inclinar a cabeça,
sem parar de comer. — Sua esposa, Eulália — ela, sim, sorriu — e seus
três filhos: Simó, Aledis e Alesta.
Arnau, que estava esgotado, fez um leve movimento com a mão
dirigido a Joan e aos filhos do curtidor e se dispôs a pegar a tigela que
Mariona lhe oferecia. No entanto, algo o obrigou a se virar de novo na
direção dos três recém-chegados. O que...? Os olhos! Os olhos das duas
meninas estavam fixos nele. Eram... eram imensos, castanhos, vivos. As
duas sorriram ao mesmo tempo.
— Coma, menino!
O sorriso desapareceu. Alesta e Aledis baixaram os olhos para a tigela,
e Arnau se virou para o curtidor, que tinha parado de comer e, com a
cabeça, apontava para Mariona, que estava junto ao fogo, com a tigela
estendida em sua direção.
Mariona cedeu seu lugar à mesa, e Arnau começou a se ocupar da
tigela; Gastó Segura, diante dele, sorvia e mastigava de boca aberta. Cada
vez que Arnau levantava o olhar da tigela, topava com o do curtidor fixo
nele.
Depois de um tempo, Simó se levantou para entregar sua tigela vazia e
as de suas irmãs a Mariona.
— Para a cama — ordenou Gastó, quebrando o silêncio.
Então o curtidor semicerrou os olhos olhando para Arnau, o que fez o
menino ficar desconfortável e o obrigou a se concentrar na tigela; só pôde
ouvir o barulho que as moças fizeram ao se levantar e uma despedida
tímida. Arnau levantou os olhos quando já não se ouviam os seus passos.
A atenção de Gastó parecia ter diminuído.
— Como são? — perguntou ele a Joan naquela noite, a primeira em que
dormiam junto à lareira, com as enxergas de palha no chão.
— Quem? — perguntou Joan.
— As filhas do curtidor.
— Como elas são? Normais — disse Joan, fazendo um gesto de
ignorância que o irmão não pôde ver na escuridão —, meninas normais.
Suponho... — titubeou — na verdade, eu não sei. Não me deixaram falar
com elas; o irmão nem me deixou apertar a mão delas. Quando estendi a
mão, ele a apertou e me separou delas.
Mas Arnau não o escutava. Como aqueles olhos podiam ser normais? E
as duas tinham sorrido para ele.

***

Pere e Mariona desceram ao amanhecer. Arnau e Joan já tinham guardado


suas enxergas. Pouco depois o curtidor e o filho apareceram. As mulheres
não os acompanhavam, pois Gastó tinha proibido que descessem enquanto
os meninos não fossem embora. Arnau deixou a casa de Pere com aqueles
imensos olhos castanhos na retina.
— Hoje você vai para a capela — disse-lhe um dos pró-homens quando
ele chegou à praia. No dia anterior ele o tinha visto descarregar
cambaleante o último volume.
Arnau concordou. Já não se aborrecia quando o mandavam para a
capela. Ninguém duvidava de sua condição de bastaix; tinha sido aprovado
pelos pró-homens e se dedicava com afinco a um trabalho que o satisfazia,
apesar de não conseguir carregar tanto quanto Ramon e a maioria deles.
Todos gostavam dele. Além disso, aqueles olhos castanhos... talvez não lhe
permitissem se concentrar em sua tarefa; por outro lado, estava cansado,
não tinha dormido bem ao lado do fogo. Entrou em Santa Maria pela porta
principal da velha igreja que ainda resistia. Gastó Segura não lhe permitiu
olhar para elas. Por que não podia olhar simples meninas? E nessa manhã
com certeza as tinha proibido...
Arnau tropeçou numa corda e quase caiu. Andou vacilante por alguns
metros, tropeçando em mais cordas, até que um par de mãos o agarrou.
Torceu o tornozelo e gritou de dor.
— Ei! — disse o homem que o ajudara. — Tenha mais cuidado. Olhe o
que você fez!
Seu tornozelo doía, mas ele olhou para o chão. Havia desmontado as
cordas e estacas com que Berenguer de Montagut apontava... mas... não
podia ser ele! Se virou lentamente para o homem que o ajudara. Não podia
ser o mestre! Enrubesceu ao se ver cara a cara com Berenguer de
Montagut. Depois prestou atenção aos oficiais que tinham interrompido
suas tarefas e os observavam.
— Eu... — gaguejou — se vós quereis... — acrescentou, apontando para
o emaranhado de cordas aos seus pés — poderia ajudar... eu... sinto muito,
mestre.
De repente, o rosto de Berenguer de Montagut se abriu. Ainda o tinha
agarrado pelo braço.
— Você é o bastaix — disse, dando um sorriso. Arnau assentiu. — Já o
vi em várias ocasiões.
O sorriso de Berenguer ficou maior. Os oficiais respiraram aliviados.
Arnau olhou de novo para as cordas enroladas em seus pés.
— Sinto muito — repetiu.
— Não é nada. — O mestre gesticulou se dirigindo aos oficiais. —
Consertem isto — ordenou. — Venha, vamos nos sentar. Está doendo?
— Não quero atrapalhar — respondeu Arnau com um esgar de dor
depois de se agachar para tentar se soltar das cordas.
— Espere.
Berenguer de Montagut o obrigou a se erguer e se ajoelhou para soltá-lo
das cordas. Arnau não se atreveu a fitá-lo e dirigiu a vista para os oficiais
que observavam a cena, atônitos. O mestre ajoelhado diante de um simples
bastaix!
— Devemos cuidar destes homens — gritou para os presentes quando
conseguiu soltar os pés de Arnau. — Sem eles, não teríamos pedras.
Venha, acompanhe-me. Vamos nos sentar. Está doendo? — Arnau negou
com a cabeça, mas mancou tentando não se apoiar no mestre. Berenguer
de Montagut o agarrou pelo braço com força e o conduziu até algumas
colunas deitadas no chão, prontas para serem içadas, e os dois se sentaram
sobre elas. — Vou lhe contar um segredo — disse ele assim que se
sentaram. Arnau olhou para Berenguer. Ia lhe contar um segredo! O
mestre! O que mais lhe aconteceria naquela manhã? — Um dia desses
tentei levantar a pedra que você tinha carregado e só consegui a duras
penas — Berenguer balançou a cabeça —, não fui capaz de dar muitos
passos carregando-a. Este templo é de vocês — disse ele, passeando os
olhos pelas obras. Arnau sentiu um calafrio. — Um dia, na época de
nossos netos, ou dos filhos deles, ou dos filhos dos filhos deles, quando as
pessoas olharem esta obra, não falarão de Berenguer de Montagut; falarão
de você, menino.
Arnau sentiu um nó na garganta. O mestre! O que ele estava dizendo?
Como um bastaix podia ser mais importante do que o grande Berenguer de
Montagut, mestre de obras de Santa Maria e da catedral de Manresa? Ele,
sim, era importante.
— Está doendo? — insistiu o mestre.
— Não... um pouco. Foi só uma torção.
— Acho que sim. — Berenguer de Montagut bateu em suas costas. —
Necessitamos das suas pedras. Ainda falta muito por fazer.
Arnau passeou o olhar pela obra junto ao mestre.
— Você gosta? — perguntou Berenguer de Montagut de repente.
Se ele gostava? Nunca tinha pensado nisso. Via a igreja crescer, seus
muros, suas absides, suas colunas esguias e magníficas, seus contrafortes,
mas... se gostava?
— Dizem que será o melhor templo para a Virgem que já foi construído
no mundo — resolveu dizer.
Berenguer se virou para Arnau e sorriu. Como contar a um menino, a
um bastaix, como seria aquele templo se nem os bispos e os nobres eram
capazes de vislumbrar o seu projeto?
— Como você se chama?
— Arnau.
— Pois bem, Arnau, não sei se será o melhor templo do mundo. —
Arnau esqueceu o pé e virou o rosto para o mestre. — Mas posso assegurar
que será único, e único não é melhor nem pior, é só isto: único.
Berenguer de Montagut continuava com o olhar perdido na obra, e
assim continuou a falar:
— Você já ouviu falar da França, ou da Lombardia, de Gênova, Pisa,
Florença...? — Arnau fez que sim. Como não saber quem eram os
inimigos do seu país? — Pois bem, em todos esses lugares também se
constroem igrejas; são catedrais magníficas, grandiosas e carregadas de
elementos decorativos. Os príncipes desses lugares querem que suas
igrejas sejam as maiores e as mais bonitas do mundo.
— E nós não queremos isso também?
— Sim e não. — Arnau balançou a cabeça. Berenguer de Montagut se
virou para ele e sorriu. — Vamos ver se você consegue me entender: nós
queremos que seja o melhor templo da história, mas queremos conseguir
isso empregando meios diferentes dos que os outros usam; nós queremos
que a casa da senhora do mar seja a casa de todos os catalães, como
aquelas em que vivem os seus fiéis, idealizada e construída com o mesmo
espírito que nos faz ser como somos e aproveitando o que é nosso: o mar,
a luz. Você entende?
Arnau pensou por uns segundos, mas acabou fazendo que não.
— Pelo menos você é sincero. — O mestre riu. — Os príncipes fazem
as coisas para a sua própria glória pessoal; nós as fazemos para nós
mesmos. Eu reparei que, às vezes, em vez de levar a carga nas costas,
vocês a transportam presa em paus, entre dois homens.
— Sim, quando é muito grande para carregar nas costas.
— O que aconteceria se duplicássemos o comprimento do pau?
— Ele quebraria.
— Pois é a mesma coisa que acontece com as igrejas dos príncipes... —
O menino fez uma expressão estranha. — Não, não estou dizendo que elas
caem — acrescentou o mestre. — Quero dizer que, como eles as querem
tão grandes, tão altas e tão compridas, elas têm de ser muito estreitas.
Altas, compridas e estreitas, entendeu? — Desta vez Arnau assentiu. — A
nossa será o contrário; não será tão comprida nem tão alta, mas será muito
larga, para que caibam os catalães lado a lado diante da Virgem. Você vai
ver quando tudo isto estiver terminado: o espaço será comum a todos os
fiéis, sem distinções, e como única decoração haverá a luz, a luz do
Mediterrâneo. Não necessitamos de outra decoração, só o espaço e a luz
que entra por ali — disse Berenguer de Montagut apontando para a abside,
e foi descendo a mão em direção ao chão. Arnau a seguiu. — Esta igreja
será para o povo, não para a glória de um príncipe.
— Mestre — disse um dos oficiais, que se aproximara depois de
arrumar as cordas e estacas.
— Você entendeu agora?
“Seria para o povo!”, pensou o garoto.
— Sim, mestre.
— As suas pedras são ouro para esta igreja, lembre-se disso —
acrescentou Montagut, se levantando. — Está doendo?
Arnau sacudiu a cabeça. Tinha se esquecido do tornozelo.

***

Naquela manhã, dispensado do trabalho com os bastaixos, Arnau voltou


para casa mais cedo. Limpou rapidamente a capela, espevitou algumas
velas, substituiu outras e, depois de uma breve oração, se despediu da
Virgem. O padre Albert o viu sair correndo de Santa Maria, e Mariona o
viu entrar correndo em casa.
— O que foi? — perguntou a anciã. — O que você faz aqui tão cedo?
Arnau varreu o cômodo com o olhar; ali estavam mãe e filhas, cosendo
em volta da mesa; as três olhavam para ele.
— Arnau — insistiu Mariona —, aconteceu alguma coisa?
Ele sentiu que enrubescia.
— Não... — Não tinha pensado em nenhuma desculpa! Como podia ser
tão estúpido? E olhavam para ele. Todas olhavam para ele, parado à porta,
arquejante. — Não... — repetiu — é que hoje eu... eu terminei antes.
Mariona sorriu e olhou para as meninas. Eulália, a mãe, tampouco
conseguiu evitar esboçar um sorriso.
— Então, já que você terminou antes — disse Mariona, interrompendo
seus pensamentos —, vá buscar água para mim.
Ela tinha olhado novamente para ele, pensou o menino enquanto ia com
o balde a caminho da fonte do Àngel. Será que ela queria dizer alguma
coisa? Arnau sacudiu o balde. Claro que sim.
Mas não teve oportunidade de comprová-lo. Quando não era Eulália,
Arnau topava com os dentes escuros de Gastó, os poucos que lhe restavam,
e, quando nenhum dos dois estava presente, Simó vigiava as duas meninas.
Por dias, Arnau teve de se conformar em olhar para elas com o rabo do
olho. Às vezes, conseguia por uns segundos fitar seus rostos finamente
delineados e de queixo bem marcado, maçãs do rosto salientes, nariz reto e
sóbrio, dentes brancos bem formados e aqueles impressionantes olhos
castanhos. Outras vezes, quando o sol entrava na casa de Pere, Arnau
quase podia tocar o reflexo azulado de seus longos cabelos sedosos, negros
como azeviche. Muito raramente, quando se sentia seguro, deixava o olhar
descer pelo pescoço de Aledis, até poder vislumbrar os peitos da irmã
mais velha através da camisa tosca que usava. Então um estranho calafrio
percorria seu corpo e, se ninguém estivesse vigiando, continuava a descer
os olhos para se deleitar nas curvas da menina.
Durante o período de escassez, Gastó Segura perdera tudo o que tinha, e
seu temperamento, já azedo, endurecera ainda mais. O filho Simó
trabalhava com ele como aprendiz de curtidor, e sua grande preocupação
eram as duas moças, que ele não podia dotar para conseguir um bom
marido. No entanto, a beleza das jovens prometia, e Gastó confiava que
encontraria um bom esposo. Dessa maneira, alimentaria duas bocas a
menos.
Para isso, pensava ele, as meninas deviam permanecer imaculadas, e
ninguém em Barcelona podia alimentar a menor suspeita sobre sua
decência. Só assim, repetia ele seguidamente para Eulália e Simó, Alesta e
Aledis poderiam encontrar um bom esposo. Os três, o pai, a mãe e o irmão
mais velho, tinham assumido aquilo como um objetivo pessoal, mas, se
Gastó e Eulália confiavam que não seria um problema consegui-lo, o
mesmo não ocorreu com Simó quando a convivência com Arnau e Joan se
prolongou.
Joan se tornara o aluno mais aplicado da escola da catedral. Em pouco
tempo dominou o latim, e os professores se dedicavam ao menino calmo,
sensato e reflexivo e, ainda por cima, crente; suas virtudes eram tais que
poucos duvidavam de seu grande futuro na Igreja. Joan conquistou o
respeito de Gastó e de Eulália, que, com frequência, atentos e fascinados,
compartilhavam com Pere e Mariona as explicações do pequeno sobre as
Escrituras. Só os sacerdotes podiam ler aqueles livros escritos em latim, e
ali, numa casa humilde junto ao mar, os quatro podiam desfrutar das
palavras sagradas, das histórias antigas e das mensagens do Senhor que
antes só ouviam dos púlpitos.
Mas, se Joan ganhara o respeito dos que o rodeavam, Arnau não ficava
atrás: até Simó olhava para ele com inveja: um bastaix! Poucos no bairro
da Ribera não conheciam os esforços de Arnau para transportar pedras
para a Virgem. “Dizem que o grande Berenguer de Montagut se ajoelhou
diante dele para ajudá-lo”, contara-lhe um aprendiz da oficina aos gritos e
com as mãos espalmadas. Simó imaginou o grande mestre, respeitado por
nobres e bispos, aos pés de Arnau. Quando o mestre falava, todos, até seu
pai, ficavam em silêncio, e quando gritava... quando gritava, tremiam.
Simó observava Arnau quando ele voltava para casa à noite. Era sempre o
último a chegar. Regressava cansado e suado com a capçana na mão e, no
entanto... sorria! Quando ele próprio tinha sorrido ao voltar do trabalho?
Às vezes cruzava com Arnau carregando pedras para Santa Maria; as
pernas, os braços, o peito, tudo nele parecia de ferro. Simó olhava a pedra
e depois o rosto avermelhado do garoto; por acaso não o tinha visto sorrir?
Por isso, quando estava cuidando das irmãs e Joan ou Arnau apareciam,
o aprendiz de curtidor se retraía, apesar de ser mais velho do que eles, e as
duas meninas desfrutavam da liberdade que não tinham quando os pais
estavam presentes.
— Vamos passear na praia! — propôs Alesta um dia.
Simó quis negar. Passear na praia; se o pai os visse...
— Está bem — disse Arnau.
— Vai nos fazer bem — afirmou Joan.
Simó ficou calado. Os cinco, Simó por último, saíram para o sol, Aledis
ao lado de Arnau, Alesta ao lado de Joan; ambas deixavam que a brisa
ondulasse seus cabelos e cosesse caprichosamente as camisas folgadas em
torno de seus corpos, moldando seios, barriga e virilhas.
Passearam em silêncio, olhando o mar ou batendo na areia com os pés,
até que encontraram um grupo de bastaixos ociosos. Arnau os
cumprimentou com um aceno.
— Quer que eu os apresente a você? — perguntou a Aledis.
A menina olhou para os homens. Todos tinham os olhos postos nela. O
que olhavam? O vento apertava a camisa contra seus peitos. Deus do céu!
Parecia que queriam atravessar o tecido. Ela enrubesceu e fez que não
quando Arnau já se dispunha a se aproximar deles. Aledis deu meia-volta,
e Arnau ficou parado no meio do caminho.
— Corra atrás dela, Arnau — ouviu gritar um de seus companheiros.
— Não a deixe escapar — aconselhou-o um segundo.
— É muito bonita! — completou um terceiro.
Arnau acelerou o passo até voltar para o lado de Aledis.
— O que foi?
A menina não respondeu. Tinha o rosto escondido e os braços cruzados
sobre a camisa, mas não pegou o caminho de volta para casa. Assim
continuaram a passear, com o barulho das ondas como única companhia.
20

Naquela mesma noite, enquanto jantavam junto à lareira, a menina


premiou Arnau com um segundo a mais do que o necessário, um segundo
em que manteve os enormes olhos castanhos cravados nele.
Neste segundo Arnau voltou a escutar o mar afundar na areia da praia.
Desviou os olhos em direção aos demais para conferir se alguém tinha
percebido a ousadia: Gastó continuava a conversar com Pere, e ninguém
pareceu lhe prestar maior atenção.
Quando Arnau se atreveu a olhar de novo para Aledis, ela estava
cabisbaixa e brincava com a comida da tigela.
— Coma, menina! — ordenou Gastó, o curtidor, ao ver que a filha
movia a colher sem levá-la à boca. — Comida não é brinquedo.
As palavras de Gastó trouxeram Arnau de volta à realidade, e durante o
resto do jantar Aledis não voltou a olhar para ele, claramente evitando-o.
Aledis demorou alguns dias para se dirigir silenciosamente a Arnau
como fizera naquela noite, depois do passeio na praia. Nas poucas ocasiões
em que se encontravam, ele queria sentir de novo os olhos castanhos de
Aledis sobre ele, mas a menina se esquivava e escondia o olhar.
— Até logo, Aledis — disse distraidamente uma manhã.
Por sorte estavam a sós naquele momento. Arnau foi fechar a porta
atrás de si, mas algo indefinível o impeliu a se virar para ver a menina, e
ali estava ela, de pé junto à lareira, linda, convidando-o com seus olhos
castanhos.
Finalmente! Finalmente. Arnau enrubesceu e baixou o olhar. Confuso,
tentou fechar a porta, mas no meio do movimento algo chamou sua
atenção mais uma vez: Aledis continuava ali, seus grandes olhos castanhos
chamando-o e sorrindo. Aledis sorria para ele.
Sua mão escorregou da fechadura, ele tropeçou e quase caiu no chão.
Não se atreveu a olhá-la novamente e escapou com passos ligeiros em
direção à praia, deixando a porta aberta.
***

— Ele fica envergonhado — sussurrou Aledis para a irmã naquela mesma


noite, quando estavam deitadas na enxerga que compartilhavam, antes que
seus pais viessem se deitar.
— Por que ele se envergonharia? — perguntou a outra. — Ele é um
bastaix. Trabalha na praia e leva pedras para a Virgem. Você é só uma
criança. Ele é um homem — acrescentou, em tom de admiração.
— Você, sim, é uma criança — provocou-a Aledis.
— Olha só! Falou a mulher — respondeu Alesta, dando-lhe as costas e
usando a expressão que sua mãe empregava quando elas pediam algo
inadequado para a sua idade.
— Está bem, está bem.
“‘Falou a mulher.’ E por acaso eu não sou uma mulher?”. Aledis pensou
em sua mãe, nas amigas da mãe, no pai. Talvez... talvez sua irmã tivesse
razão. Por que alguém como Arnau, um bastaix que demonstrava sua
devoção à Virgem do Mar por toda Barcelona, ficaria envergonhado só
porque ela, uma criança, olhara para ele?

***

— Ele fica envergonhado. Tenho certeza de que fica envergonhado —


insistiu Aledis na noite seguinte.
— Que chata! Por que Arnau ficaria envergonhado?
— Não sei — respondeu ela —, mas ele fica. Tem vergonha de olhar
para mim. Tem vergonha quando eu olho para ele. Ele se atrapalha, fica
vermelho, foge...
— Você está louca!
— Talvez esteja, mas... — Aledis sabia o que estava dizendo. Se na
noite anterior sua irmã tinha conseguido semear a dúvida, agora não
conseguiria mais. Ela tirara a prova. Observara Arnau, procurara o
momento oportuno, quando ninguém poderia surpreendê-los, e se
aproximara dele o bastante para sentir o cheiro do seu corpo. “Olá,
Arnau.” Fora um simples olá, um cumprimento acompanhado de um olhar
carinhoso, próximo, o mais próximo que pudera, quase roçando seu braço,
e Arnau enrubescera novamente, evitara seu olhar e sua presença. Ao ver
que ele se afastava, Aledis sorrira orgulhosa de um poder até então
desconhecido. — Amanhã você vai ver — disse ela à irmã.
A presença indiscreta de Alesta animou-a a levar o seu breve flerte
ainda mais longe; não poderia falhar. De manhã, quando Arnau se
dispunha a sair de casa, Aledis impediu sua passagem, se colocando em
frente à porta e se apoiando nela. Ela tinha planejado aquilo mil e uma
vezes enquanto a irmã dormia.
— Por que você não quer falar comigo? — disse com voz melosa,
olhando-o nos olhos outra vez.
Ela própria ficou surpresa com seu atrevimento. Tinha repetido aquela
simples frase muitas vezes, duvidando se seria capaz de dizê-la sem
gaguejar. Se Arnau respondesse, ela ficaria indefesa, mas, para sua
satisfação, não foi assim. Consciente da presença de Alesta, Arnau se
virou instintivamente para Aledis com o esperado rubor adornando suas
bochechas. Não podia sair e também não se atrevia a olhar para Alesta.
— Eu, sim... eu...
— Você, você, você — interrompeu-o Aledis, ousada. — Você foge de
mim. Antes nós conversávamos e ríamos, mas agora, toda vez que tento
falar com você...
Aledis ficou o mais reta que pôde, e seus seios jovens se delinearam
firmes através da camisa. Apesar do tecido grosseiro, seus mamilos
ficaram marcados como dardos. Arnau os viu, e nem todas as pedras da
pedreira real teriam conseguido desviar o seu olhar do que Aledis lhe
oferecia. Um calafrio percorreu as suas costas.
— Meninas!
A voz de Eulália, que descia a escada, os devolveu à realidade. Aledis
abriu a porta e saiu à rua antes que sua mãe chegasse ao térreo. Arnau se
virou para Alesta, que continuava boquiaberta a observar a cena e, por sua
vez, saiu da casa. Aledis já tinha desaparecido.
Nessa noite as irmãs cochicharam sem encontrar resposta para as
perguntas que aquela nova experiência suscitava e que não podiam
compartilhar com ninguém. Do que Aledis tinha certeza, ainda que não
soubesse explicá-lo à irmã, era do poder que seu corpo jovem exercia
sobre Arnau. Aquela sensação a deixava satisfeita e tomava conta dela
inteira. Se perguntou se todos os homens reagiriam assim, mas não se
imaginou diante de outro que não fosse Arnau; jamais pensaria em agir de
forma semelhante com algum dos amigos de Simó; só de imaginar... Com
Arnau, no entanto, algo dentro dela se libertava...

***

— O que está acontecendo com o menino? — perguntou Josep, o pró-


homem do grêmio, a Ramon.
— Eu não sei — respondeu Ramon com sinceridade.
Os dois homens olharam para os barqueiros, onde Arnau exigia, de
maneira ostensiva, que lhe dessem o volume mais pesado. Quando
conseguiu, Josep, Ramon e seus companheiros o viram partir com o passo
titubeante, os lábios apertados e o rosto vermelho.
— Ele não vai aguentar por muito tempo — sentenciou Josep.
— É jovem — Ramon tentou defendê-lo.
— Não vai aguentar.
Todos tinham percebido. Arnau exigia os volumes e as pedras mais
pesados e os transportava como se sua vida dependesse daquilo. Voltava
correndo ao lugar de carga e reclamava de novo mais peso que o
conveniente. Ao final do dia, se arrastava para a casa de Pere esgotado.
— O que está acontecendo, rapaz? — inquiriu Ramon no dia seguinte,
quando ambos carregavam volumes para os depósitos municipais.
Arnau não respondeu. Ramon tentou avaliar se ele permanecia em
silêncio porque não queria falar ou se, por algum motivo, não podia fazê-
lo. Seu rosto estava mais uma vez avermelhado devido ao peso que
carregava nas costas.
— Se você estiver com algum problema, eu poderia...
— Não, não — conseguiu articular Arnau. Como contar a ele que seu
corpo ardia de desejo por Aledis? Como contar que só encontrava calma
carregando mais e mais peso nas costas até que sua mente, obcecada por
chegar, conseguia esquecer os olhos, o sorriso, os peitos, todo o corpo
dela? Como contar que cada vez que Aledis o provocava ele perdia o
controle sobre seus pensamentos e a via despida ao seu lado, acariciando-
o? Então se lembrava das palavras sobre as relações proibidas: “Pecado!
Pecado!”, o padre advertia os fiéis com voz firme. Como contar que
desejava chegar em casa quebrado para cair morto na enxerga e conseguir
pegar no sono, apesar da proximidade daquela menina? — Não, não —
repetiu. — Obrigado, Ramon.
— Ele vai se arrebentar — insistiu Josep ao final daquele dia.
Dessa vez Ramon não se atreveu a contradizê-lo.

***

— Você não acha que está passando dos limites? — perguntou Alesta à
irmã certa noite.
— Por quê?
— Se papai souber...
— O que ele pode saber?
— Que você gosta do Arnau.
— Eu não gosto do Arnau! Eu só... só... me sinto bem, Alesta. Ele me
agrada. Quando olha para mim...
— Você gosta dele — insistiu a pequena.
— Não. Como posso explicar? Quando vejo que ele olha para mim,
quando ele enrubesce, é como se um friozinho percorresse todo o meu
corpo.
— Você gosta dele.
— Não. Durma. O que você sabe? Durma.
— Você gosta dele, você gosta dele, você gosta dele.
Aledis resolveu não responder, mas será que gostava? Apenas gostava
de saber que era olhada e desejada. Ficava satisfeita em ver que os olhos
de Arnau não conseguiam se afastar de seu corpo; ficava contente com sua
evidente inquietação quando ela parava de tentá-lo: isso era gostar? Aledis
tentou encontrar outra resposta, mas não demorou muito tempo para que
sua mente voltasse a vagar por aquela satisfação antes de dormir.

***

Certa manhã, Ramon deixou a praia assim que viu Joan sair da casa de
Pere.
— O que está acontecendo com o seu irmão? — perguntou ele antes de
cumprimentá-lo.
Joan pensou por um instante.
— Acho que está apaixonado por Aledis, a filha de Gastó, o curtidor.
Ramon deu uma gargalhada.
— Pois esse amor o está deixando louco — advertiu ele. — Se
continuar assim, ele vai se arrebentar. Não se pode trabalhar nesse ritmo.
Ele não está preparado para tanto esforço. Não seria o primeiro bastaix a
quebrar... e o seu irmão é muito jovem para ficar inválido. Faça algo, Joan.
Naquela mesma noite, Joan tentou conversar com o irmão.
— O que está acontecendo com você, Arnau? — perguntou ele, deitado
na enxerga.
O outro ficou em silêncio.
— Você tem que me contar. Sou seu irmão e quero... desejo ajudar você.
Você sempre fez o mesmo comigo. Compartilhe os seus problemas
comigo.
Joan deixou que o irmão pensasse em suas palavras.
— É... é a Aledis — reconheceu. Joan não quis interrompê-lo. — Não
sei o que está acontecendo comigo, Joan. Desde aquele passeio na praia...
alguma coisa mudou entre nós. Ela me olha como se quisesse... não sei. E
também...
— Também o quê? — perguntou Joan, ao ver que o irmão ficava quieto.
“Não vou contar mais nada, só sobre os olhares”, decidiu Arnau depois
de um momento, com os seios de Aledis na memória.
— Nada.
— Então, qual é o problema?
— É que tenho maus pensamentos, eu a vejo nua. Bem, queria vê-la
nua. Eu queria...
Joan tinha insistido com seus professores em que se aprofundasse o
assunto, e eles, sem saber que seu interesse se devia à preocupação que o
irmão lhe causava e por medo de que o menino caísse em tentação e saísse
do caminho que havia iniciado de maneira tão decidida, se alongaram em
explicações sobre as teorias do caráter e a perniciosa natureza da mulher.
— Isso não é culpa sua — sentenciou Joan.
— Não?
— Não. A malícia — explicou ele aos sussurros, os dois deitados diante
do fogo — é uma das quatro enfermidades naturais do homem e nasce
conosco por culpa do pecado original, e a malícia da mulher é maior do
que qualquer malícia que existe no mundo — Joan repetia de memória as
explicações dos professores.
— E quais são as outras enfermidades?
— A avareza, a ignorância e a apatia ou incapacidade para fazer o bem.
— E o que a malícia tem a ver com Aledis?
— As mulheres são maliciosas por natureza e se comprazem tentando o
homem para os caminhos do mal — recitou Joan.
— Por quê?
— Porque as mulheres são como o ar em movimento, vaporosas. Não
cessam de ir de um lado para outro, como se fossem correntes de ar —
Joan se lembrou do sacerdote que fizera aquela comparação: seus braços,
com as mãos estendidas e os dedos vibrando sem parar, revoavam acima
da cabeça. — Em segundo lugar — recitou —, porque as mulheres, por
natureza, por criação, têm pouco bom senso e, em consequência, não há
freio para sua malícia natural.
Joan tinha lido tudo isso e muito mais, mas não conseguia expressá-lo
em palavras. Os sábios afirmavam que, também por natureza, a mulher era
fria e fleumática, e se sabe que, quando uma coisa fria se acende, arde com
muita força. Segundo os entendidos, a mulher era, definitivamente, a
antítese do homem e, portanto, incoerente e absurda. Bastava reparar que
até o seu corpo era oposto ao do homem: largo embaixo e fino em cima, ao
passo que o corpo de um homem bem-feito deve ser fino do peito para
baixo, largo no peito e nas costas, com o pescoço curto e grosso e a cabeça
grande. Quando uma mulher nasce, a primeira letra que diz é o “e”, que é
uma letra para censurar, enquanto a primeira letra que o homem diz ao
nascer é o “a”, a primeira letra do abecedário e oposta ao “e”.
— Não é possível. Aledis não é assim — contradisse-o Arnau
finalmente.
— Não se iluda. À exceção da Virgem, que concebeu Jesus sem pecado,
todas as mulheres são iguais. Até as ordenanças de seu grêmio pensam
assim! Por acaso elas não proíbem as relações adúlteras? Por acaso não
determinam a expulsão de quem conviva com uma mulher desonesta ou
tenha uma amiga?
Arnau não conseguia se opor àquele argumento. Desconhecia as razões
dos sábios e filósofos e, por mais que Joan se empenhasse, podia ignorá-
las, mas não as ordenanças do grêmio. Estas regras, sim, ele conhecia. Os
pró-homens do grêmio o haviam informado sobre elas e o tinham
advertido de que seria expulso se não as cumprisse. E o grêmio não podia
estar errado!
Arnau se sentiu tremendamente confuso.
— Então, o que devo fazer? Se todas as mulheres são más...
— Primeiro, você tem que se casar com elas — esclareceu Joan — e,
depois de contrair matrimônio, agir como ensina a Igreja.
Casar, casar... a possibilidade nunca tinha passado por sua cabeça,
mas... se esta era a única solução...
— E o que se faz depois de casados? — perguntou com voz trêmula,
diante da hipótese de se ver ao lado de Aledis por toda a vida.
Joan recuperou o fio da explicação dos professores da catedral:
— Um bom marido deve procurar controlar a malícia natural de sua
esposa segundo alguns princípios: o primeiro é que a mulher está sob o
domínio do homem, submetida a ele: “Sub potestate viri eris”, reza o
Gênesis. O segundo vem do Eclesiastes: “Mulier si primatum haber...” —
vacilou Joan —, “Mulier si primatum habuerit, contraria est viro suo”,
que significa que, se a mulher tiver primazia na casa, será contrária ao
marido. Outro princípio é o que aparece nos Provérbios: “Qui delicate
nutrit servum suum, inveniet contumacem”, que quer dizer que quem trata
delicadamente os que devem servi-lo, entre os quais se encontra a mulher,
encontrará rebelião onde deveria encontrar humildade, submissão e
obediência. E, se, apesar de tudo, a malícia continuar presente na mulher,
o marido deve castigá-la com a vergonha e o medo; corrigi-la no começo,
quando é jovem, sem esperar que ela envelheça.
Arnau ouviu as palavras do irmão em silêncio.
— Joan — disse quando ele terminou —, você acha que eu poderia
casar com a Aledis?
— É claro que sim! Mas você deveria esperar um pouco até prosperar
no grêmio para que possa mantê-la. De qualquer modo, convém falar com
o pai dela antes que ele arranje um casamento com outra pessoa, porque
neste caso você não poderá fazer nada.
A imagem de Gastó Segura com seus poucos dentes escuros surgiu
diante de Arnau como uma barreira intransponível. Joan imaginou os
temores do irmão.
— Você deve fazer isso — insistiu.
— Você me ajuda?
— É claro!
Por instantes o silêncio voltou a reinar entre os dois enxergões de palha
que rodeavam a lareira na casa de Pere.
— Joan — chamou Arnau.
— Diga.
— Obrigado.
— Não há de quê.
Os dois irmãos tentaram dormir, mas não conseguiram. Arnau,
entusiasmado com a ideia de se casar com sua desejada Aledis; Joan,
perdido nas recordações, se lembrando da mãe. Será que o caldeireiro
Ponç tinha razão? A malícia é natural na mulher. A mulher deve se
submeter ao homem. O homem deve castigar a mulher. Será que o
caldeireiro tinha razão? Como ele podia respeitar a recordação de sua mãe
e dar esses conselhos? Joan se lembrou da mão da mãe saindo pela
pequena janela de sua prisão e afagando sua cabeça. Lembrou-se do ódio
que tinha sentido, e sentia, por Ponç... Mas o caldeireiro tinha razão?

***

Nos dias seguintes, nenhum dos dois se atreveu a falar com o mal-
humorado Gastó, um homem cuja situação como inquilino na casa de Pere
só lhe fazia recordar o infortúnio que o levara a perder sua casa. O
temperamento azedo do curtidor piorava quando estava em casa, que era
justamente quando os dois irmãos tinham oportunidade de fazer sua
proposta, mas os seus grunhidos, protestos e grosserias os faziam desistir.
Enquanto isso, Arnau continuava envolto pelo rastro que Aledis deixava
atrás de si. Ele a via e perseguia com os olhos e a imaginação, e não havia
momento do dia em que seus pensamentos não estivessem voltados para
ela, menos quando Gastó aparecia; nestas horas, o seu espírito se encolhia.
Porque, por mais que os sacerdotes e os confrades proibissem, o rapaz
não podia afastar os olhos de Aledis quando ela, consciente de que
estavam a sós, aproveitava qualquer tarefa para ajustar a folgada camisa
desbotada. Arnau ficava embevecido com aquela visão: aqueles mamilos,
aqueles peitos; todo o corpo de Aledis o chamava. “Você será minha
esposa, algum dia você será minha esposa”, pensava ele acalorado. Então
tentava imaginá-la nua, e sua mente viajava por lugares proibidos e
desconhecidos, pois, à exceção do corpo torturado de Habiba, nunca tinha
visto uma mulher nua.
Em outras ocasiões, Aledis se abaixava diante de Arnau, dobrando-se
pela cintura em vez de se agachar, para lhe mostrar as nádegas e as curvas
dos quadris; aproveitava também qualquer situação propícia para levantar
a túnica acima dos joelhos e mostrar as coxas; levava as mãos às costas,
pousando-as nos rins, e, simulando uma dor inexistente, se curvava quanto
sua coluna permitia para mostrar que a barriga era lisa e dura. Depois ela
sorria e, fingindo descobrir de repente a presença de Arnau, parecia
encabulada. Quando ela desaparecia, Arnau tinha de lutar para afastar
aquelas imagens da memória.
Em dias como esses, Arnau fazia um grande esforço para falar com
Gastó.
— Que diabo vocês fazem aí parados! — disse ele uma vez, quando
ambos os meninos pararam diante dele com a ingênua intenção de pedir
sua filha em casamento.
O sorriso com que Joan pretendia falar com Gastó desapareceu assim
que o curtidor passou entre os dois, empurrando-os sem contemplação.
— Vá você — disse Arnau ao irmão em outra ocasião.
Gastó estava sozinho na mesa do térreo. Joan se sentou diante dele,
pigarreou, e, quando ia falar, o curtidor levantou os olhos da peça que
estava examinando.
— Gastó... — disse Joan.
— Vou esfolá-lo vivo! Vou arrancar os ovos dele! — gritou o curtidor,
cuspindo saliva pelos vãos entre os dentes pretos. — Simooooó! — Joan
fez um gesto de impotência para Arnau, escondido em um canto do
cômodo. Enquanto isso, Simó tinha acudido ao grito do pai. — Como você
costurou isto desta maneira? — gritou Gastó, colocando a peça de couro
diante de seu nariz.
Joan se levantou da cadeira e se afastou da discussão familiar.
Mas não desistiram.
— Gastó — Joan voltou a tentar em outra ocasião, quando, depois de
jantar e aparentemente de bom humor, o curtidor saiu para dar um passeio
pela praia e ambos foram no seu encalço.
— O que você quer? — perguntou ele, sem parar de caminhar.
“Pelo menos nos deixe falar”, pensaram os dois.
— Eu queria... falar sobre Aledis...
Ao ouvir o nome da filha, Gastó parou de repente e se aproximou de
Joan, e seu hálito fétido sacudiu o menino como uma labareda.
— O que ela fez? — Gastó respeitava Joan; tinha-o por um jovem sério.
A menção a Aledis e sua desconfiança inata o faziam crer que queria
acusá-la de algo, e o curtidor não podia permitir a menor mácula em sua
joia.
— Nada — disse Joan.
— Como nada? — continuou Gastó atropeladamente, sem se afastar um
milímetro. — Então por que você quer falar de Aledis? Diga a verdade, o
que ela fez?
— Nada, ela não fez nada, de verdade.
— Nada? E você? — disse virando-se para Arnau, para alívio de seu
irmão. — O que tem a dizer? O que sabe sobre a Aledis?
— Eu... nada.
A hesitação de Arnau aguçou a suspeita obsessiva de Gastó.
— Conte-me!
— Não há nada... não...
— Eulália! — Gastó não esperou mais, e, gritando o nome de sua
mulher como um energúmeno, voltou para a casa de Pere.
Nessa noite, com a culpa na garganta, os dois rapazes ouviram os gritos
de Eulália enquanto Gastó, a pauladas, tentava obter dela uma confissão
impossível.
Eles tentaram outras duas vezes, mas não conseguiram sequer começar
a se explicar. Depois de uma semana, desanimados, contaram o problema
ao padre Albert, que, sorrindo, prometeu falar com Gastó.

***

— Sinto muito, Arnau — anunciou o padre Albert uma semana depois. Ele
marcara um encontro com Arnau e Joan na praia. — Gastó Segura não
aprova que você se case com a filha dele.
— Por quê? — perguntou Joan. — Arnau é uma boa pessoa.
— Você pretende que eu case a minha filha com um escravo de Ribera?
— respondera o curtidor. — Um escravo que não ganha o suficiente para
alugar um quarto.
O padre tentara convencê-lo:
— Na Ribera já não há nenhum escravo trabalhando; isso era antes.
Você sabe muito bem que os escravos são proibidos de trabalhar em...
— É um trabalho de escravos.
— Isso era antes — insistira o padre. — Além disso — acrescentara —,
consegui um bom dote para a sua filha. — Gastó Segura, que já tinha dado
a conversa por terminada, se virara de repente para o sacerdote. — Com
ele poderiam comprar uma casa...
Gastó interrompera-o de novo:
— A minha filha não precisa da caridade dos ricos! Guarde os seus
sermões para outros.
Depois de ouvir as palavras do padre Albert, Arnau olhou para o mar; o
reflexo da lua corria do horizonte à margem e se perdia na espuma das
ondas que quebravam na praia.
O padre Albert deixou que o barulho das ondas os envolvesse. E se
Arnau perguntasse os motivos? O que ele diria?
— Por quê? — balbuciou Arnau sem deixar de olhar para o horizonte.
— Gastó Segura é... é um homem estranho. — Não podia deixar o rapaz
ainda mais triste! — Ele quer um nobre para a sua filha! Como um oficial
curtidor pode pretender algo semelhante?
Um nobre. Será que o rapaz acreditou? Ninguém podia se sentir
menosprezado diante da nobreza. Até o barulho das ondas, constante,
paciente, parecia esperar a resposta de Arnau.
Um soluço retumbou na praia.
O sacerdote passou um braço pelo ombro de Arnau e percebeu que ele
tremia. Depois fez o mesmo com Joan, e os três permaneceram em frente
ao mar.
— Você vai encontrar uma boa mulher — disse o padre após um tempo.
“Não como ela”, pensou Arnau.
TERCEIRA PARTE

Servos da paixão
21
Segundo domingo de julho de 1339
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona

Quatro anos tinham transcorrido desde que Gastó Segura negara a mão da
filha a Arnau, o bastaix. Depois de alguns meses, Aledis fora dada em
matrimônio a um velho mestre curtidor viúvo que aceitara com lascívia a
falta de dote da moça. Enquanto não fora entregue ao esposo, Aledis
estivera constantemente acompanhada da mãe.
Arnau, por sua vez, se transformara em um homem de dezoito anos,
alto, forte e bem-apessoado. Durante esses quatro anos vivera por e para o
grêmio, a igreja de Santa Maria do Mar e seu irmão, Joan — trabalhava
com afinco carregando mercadorias e pedras, contribuía para o caixa dos
bastaixos e participava com devoção de atos religiosos —, mas não se
casara, e os pró-homens viam com preocupação o celibato de um jovem
como ele: se caísse na tentação da carne, teriam de expulsá-lo, e era fácil
que um jovem de dezoito anos cometesse tal pecado.
No entanto, Arnau não queria ouvir falar de mulheres. Quando o padre
lhe dissera que Gastó não queria saber dele, Arnau se lembrara, olhando o
mar, das mulheres que haviam passado por sua vida: nunca conhecera a
mãe; Guiamona o acolhera com carinho, mas depois lhe negara afeto;
Habiba desaparecera entre sangue e dor — muitas noites ainda sonhava
com o açoite de Grau estalando em seu corpo nu; Estranya o tratara como
a um escravo; Margarida zombara dele no momento mais humilhante de
sua vida; e Aledis, o que dizer de Aledis? Junto dela havia descoberto o
homem que levava dentro de si, mas ela logo o abandonara.
— Tenho de cuidar de meu irmão — respondia ele aos pró-homens cada
vez que o assunto vinha à baila. — Vocês sabem que ele vai entrar para a
Igreja, se dedicando a servir a Deus — acrescentava, enquanto eles
pensavam em suas palavras. — Há melhor propósito do que esse?
Então os pró-homens se calavam.
Assim Arnau viveu durante aqueles quatro anos: tranquilo, dedicado ao
trabalho, à igreja de Santa Maria e, principalmente, a Joan.
O segundo domingo de julho do ano de 1339 era uma data
transcendental para Barcelona. Em janeiro de 1336, o rei Afonso, o
Benigno, falecera na cidade condal, e, depois da Páscoa daquele ano, seu
filho Pedro havia sido coroado em Saragoça e reinava com o título de
Pedro III da Catalunha, IV de Aragão e II de Valência.
Por quase quatro anos, de 1336 a 1339, o novo monarca não fez uma
visita a Barcelona, a cidade condal, a capital da Catalunha, e tanto a
nobreza quanto os comerciantes estavam preocupados com aquele
descuido em render homenagens à cidade mais importante do reino. A
antipatia do novo monarca pela nobreza catalã era bem conhecida: Pedro
III era filho de Teresa de Entenza, condessa de Urgel e viscondessa de
Ager, a primeira mulher do falecido Afonso. Teresa faleceu antes de o
marido ser coroado rei, e Afonso contraiu segundas núpcias com Leonor
de Castela, mulher ambiciosa e cruel, com a qual teve dois filhos.
O rei Afonso, conquistador da Sardenha, era influenciável e fraco de
caráter, e a rainha Leonor logo conseguiu importantes concessões de terras
e títulos para seus filhos. Seu propósito seguinte foi perseguir
implacavelmente os filhos de Teresa de Entenza, seus enteados e herdeiros
do trono do pai. Durante os oito anos de reinado de Afonso, o Benigno,
Leonor, com a condescendência do rei e da corte catalã, se dedicou a
atacar o infante Pedro, que era uma criança na época, e seu irmão Jaime,
conde de Urgel. Só dois nobres catalães, Ot de Montcada, padrinho de
Pedro, e Vidal de Vilanova, comendador de Montalbán, apoiaram a causa
dos filhos de Teresa de Entenza e aconselharam o rei Afonso e os próprios
infantes a fugir para não serem envenenados. Os infantes Pedro e Jaime
seguiram o conselho e se esconderam nas montanhas de Jaca, em Aragão;
depois obtiveram o apoio da nobreza aragonesa e se refugiaram na cidade
de Saragoça, sob a proteção do arcebispo Pedro de Luna.
Por isso a coroação de Pedro rompeu uma tradição que se mantinha
desde a união do reino de Aragão e do principado da Catalunha. Se o cetro
de Aragão fosse entregue em Saragoça, o principado da Catalunha, que
correspondia ao rei na qualidade de conde de Barcelona, devia ser entregue
oficialmente a ele em terras catalãs. Até a entronização de Pedro III, os
monarcas juravam antes em Barcelona para depois serem coroados em
Saragoça. Porque se o rei recebia a coroa pelo simples fato de ser o
monarca de Aragão, como conde de Barcelona só recebia o principado
depois de jurar lealdade aos privilégios e constituições da Catalunha, e, até
então, o juramento dos privilégios fora considerado um trâmite anterior a
qualquer entronização.
Para a nobreza catalã, o conde de Barcelona, príncipe da Catalunha, era
só um primus inter pares, como deixava claro o juramento de homenagem
que recebia: “Nós, que somos tão bons como vós, juramos a vossa mercê,
que não é melhor do que nós, aceitá-lo como rei e senhor soberano, sempre
que respeitardes todas as nossas liberdades e leis; senão, não.” Daí que,
quando Pedro III seria coroado rei, a nobreza catalã se dirigiu a Saragoça
para lhe exigir que primeiro jurasse em Barcelona, como tinham feito os
seus antepassados. O rei se negou, e os catalães abandonaram a coroação.
Porém o rei devia receber o juramento de fidelidade dos catalães, e, apesar
dos protestos da nobreza e das autoridades de Barcelona, Pedro, o
Cerimonioso, decidiu fazê-lo na cidade de Lérida, onde recebeu a
homenagem em junho de 1336, depois de jurar os Usatges e privilégios
catalães.
Naquele segundo domingo de julho de 1339, pela primeira vez o rei
Pedro visitava Barcelona, a cidade que o humilhara. Três acontecimentos
levavam o rei a Barcelona: o juramento que seu cunhado Jaime III, rei de
Maiorca, conde de Roussillon e da Sardenha e senhor de Montpellier,
devia lhe prestar, na condição de vassalo da coroa de Aragão; o concílio
geral dos prelados da província tarragonesa — na qual, para efeitos
eclesiásticos, Barcelona estava incluída —; e o traslado dos restos da
mártir Santa Eulália da igreja de Santa Maria para a catedral.
Os dois primeiros atos foram realizados sem a presença de plebeus.
Jaime III solicitou expressamente que seu juramento de homenagem não
fosse celebrado diante do povo, mas em local mais íntimo, na capela do
palácio e na presença de um grupo seleto de nobres.
O terceiro acontecimento, no entanto, se converteu em um espetáculo
público. Nobres, eclesiásticos e todo o povo compareceram, uns para ver e
os mais privilegiados para acompanhar o rei e sua comitiva real, que,
depois de assistir à missa na catedral, foram a Santa Maria buscar os
restos da mártir e levá-los à sé.
Todo o percurso da catedral até Santa Maria estava tomado pelo povo,
que desejava aclamar o seu rei. A abside de Santa Maria já estava coberta,
trabalhava-se nas nervuras da segunda abóbada, e ainda restava uma
pequena parte da igreja romana inicial.
Santa Eulália foi martirizada na época romana, no ano de 303. Seus
restos repousaram primeiro no cemitério romano e depois na igreja de
Santa Maria das Areias, construída sobre a necrópole quando o edito do
imperador Constantino permitiu o culto cristão. Com a invasão árabe, os
responsáveis pela pequena igreja decidiram esconder as relíquias da
mártir. No ano de 801, quando o rei francês Luís, o Piedoso libertou a
cidade, o então bispo de Barcelona, Frodoí, decidiu buscar os restos da
santa. Desde que foram encontrados, eles permaneciam em uma pequena
arca em Santa Maria.
Apesar de estar coberta de andaimes e rodeada de pedras e materiais de
construção, Santa Maria estava esplendorosa para a ocasião. O
arquidiácono de Santa Maria do Mar, Bernat Rosell, junto com os
membros da junta de obras, nobres, beneficiados e demais membros do
clero, todos ataviados com suas melhores vestes, esperavam a comitiva
real. O colorido das vestimentas era espetacular. O sol da manhã de julho
atravessava com força as abóbadas e janelas inacabadas, fazendo reluzir os
dourados e metais que vestiam os privilegiados que podiam esperar o rei
no interior.
O sol brilhou também no punhal de Arnau, cego e polido, pois junto
daqueles importantes personagens estavam os humildes bastaixos. Alguns,
entre os quais o jovem, se posicionaram diante da capela do sacramento, a
sua capela; outros, como guardiões do portão-mor, estavam junto ao
pórtico de acesso ao templo, o da velha igreja romana.
Os bastaixos, aqueles antigos escravos ou macips, gozavam de
inúmeros privilégios pelo que faziam para Santa Maria do Mar, e Arnau
desfrutara deles nos últimos quatro anos. Além de lhes corresponder a
capela mais importante do templo e de serem os guardiões do portão-mor,
as missas de suas festividades eram celebradas no altar-mor, o pró-homem
mais importante do grêmio guardava a chave do sepulcro do Altíssimo,
nas procissões eram eles os que carregavam a Virgem (um pouco mais
abaixo dela levavam Santa Tecla, Santa Catarina e Sant Macia), e, quando
um bastaix estava à beira da morte, o Viático saía solenemente de Santa
Maria pela porta principal sob o pálio, à hora que fosse.
Naquela manhã, junto de seus companheiros, Arnau superou as
barreiras de soldados do rei que controlavam o trajeto da comitiva; ele
sabia que era invejado pelos muitíssimos cidadãos que se amontoavam
para ver o rei. Ele, um humilde trabalhador portuário, tinha entrado em
Santa Maria ao lado de nobres e ricos mercadores, como um deles. Ao
cruzar a igreja para chegar à capela do Santíssimo, topou com Grau Puig,
Isabel e seus três primos, todos com vestes de seda, engalanados de ouro,
altivos.
Arnau titubeou. Os cinco o fitavam. Baixou os olhos ao passar próximo
a eles.
— Arnau — ouviu que o chamavam quando deixou Margarida para
trás. Já não bastava terem arruinado a vida de seu pai? Seriam capazes de
humilhá-lo outra vez agora, junto de seus confrades, na igreja? — Arnau
— ouviu outra vez.
Levantou os olhos e encontrou Berenguer de Montagut; os cinco Puig
estavam a menos de um passo dele.
— Excelência — disse o mestre, se dirigindo ao arquidiácono de Santa
Maria do Mar —, apresento-vos Arnau... — “Estanyol”, balbuciou Arnau
— o bastaix de que tanto vos falei. Ele era só um menino, mas já
carregava pedras para a Virgem.
O prelado assentiu com a cabeça e ofereceu seu anel a Arnau, que se
inclinou para beijá-lo. Berenguer de Montagut lhe deu uma palmadinha
nas costas. Arnau viu Grau e sua família se inclinarem diante do prelado e
do mestre, mas estes os ignoraram e retomaram seu caminho em direção a
outros nobres. Arnau se ergueu e, com o passo firme e o olhar no
deambulatório, se afastou dos Puig e se dirigiu à capela do Santíssimo,
onde se posicionou junto aos outros confrades.
A gritaria da multidão anunciou a chegada do rei e sua comitiva. O rei
Pedro III; o rei Jaime de Maiorca; a rainha Maria, esposa de Pedro; a
rainha Elienda, viúva do rei Jaime, avô de Pedro; os infantes Pedro,
Ramón Berenguer e Jaime, os dois primeiros tios e o último irmão do rei;
a rainha de Maiorca, também irmã do rei Pedro; o cardeal Rodés,
representante do papa; o arcebispo de Tarragona; bispos; prelados; nobres
e cavaleiros se dirigiam a Santa Maria em procissão pela Rua do Mar.
Barcelona nunca tinha visto tão grande desfile de personalidades, luxo e
ostentação.
Pedro III, o Cerimonioso, queria impressionar o povo que tinha
mantido no abandono durante mais de três anos, e conseguiu. Os dois reis,
o cardeal e o arcebispo andavam sob o pálio, que era carregado por muitos
bispos e nobres. No altar-mor provisório de Santa Maria, receberam das
mãos do arquidiácono a pequena arca com os restos da mártir sob o olhar
atento dos presentes e o nervosismo contido de Arnau. O próprio rei
transportou a arca da igreja de Santa Maria até a catedral. Saiu sob o pálio
e voltou, e os restos de Santa Eulália foram sepultados na capela
especialmente construída para tal, embaixo do altar-mor.
22

Depois do sepultamento, o rei ofereceu um banquete em seu palácio. Ao


lado de Pedro na mesa real se sentaram o cardeal, os reis de Maiorca, a
rainha de Aragão e a rainha-mãe, os infantes da casa real e vários prelados,
num total de vinte e cinco pessoas; em outras mesas os nobres e, pela
primeira vez na história dos banquetes reais, uma grande quantidade de
cavaleiros.
Mas não só o rei e seus favoritos celebraram o acontecimento: toda
Barcelona esteve em festa por oito dias.
Na primeira hora da manhã, Arnau e Joan iam à missa e às procissões
solenes que percorriam a cidade ao som do repique dos carrilhões. Depois,
como todos, se perdiam pelas ruas da cidade e desfrutavam das justas e
torneios no Born, onde os nobres e cavaleiros demonstravam suas
habilidades guerreiras a pé, armados com grandes espadas, ou a cavalo, se
lançando uns contra os outros a galope com a lança apontada para o
oponente. Os dois rapazes ficavam fascinados com os simulacros de
combates navais. “Fora do mar parecem muito maiores”, comentou Arnau
com Joan, apontando para os lenhos e galeras que percorriam a cidade
sobre carros, com marinheiros simulando abordagens e lutas. Joan
censurava Arnau com os olhos quando ele apostava algumas moedas nas
cartas ou nos dados, mas não teve inconveniente em partilhar, sorridente,
dos jogos de pinos, o bòlit e a escampella, nos quais o jovem estudante
demonstrou uma habilidade inusitada ao acertar os pinos com as bolas no
primeiro ou golpear as moedas no segundo.
Mas o que Joan mais gostava era escutar da boca dos muitos trovadores
que tinham vindo à cidade a respeito das grandes façanhas de guerra dos
catalães. “Estas são as crônicas de Jaime I”, comentou com Arnau em uma
ocasião, depois de ouvir a história da conquista de Valência. “Esta é a
crônica de Bernat Desclot”, explicou em outra ocasião, quando o trovador
terminou as histórias do rei Pedro, o Grande, na conquista da Sicília ou na
cruzada francesa contra a Catalunha.
— Hoje temos de ir à Pla d’en Llull — disse Joan ao terminar a
procissão do dia.
— Por quê?
— Soube que lá vai estar um trovador valenciano que conhece a
Crônica de Ramon Muntaner. — Arnau o interrogou com o olhar. —
Ramon Muntaner é um famoso cronista do Ampurdán que foi comandante
dos almogávares na conquista dos ducados de Atenas e Neopátria.1 Há sete
anos, ele escreveu a história dessas guerras, e ela deve ser interessante...
Pelo menos é verdadeira.
A Pla d’en Llull, um espaço aberto entre Santa Maria e o convento de
Santa Clara, estava cheia de gente. As pessoas estavam sentadas no chão e
conversavam sem afastar os olhos do lugar onde apareceria o trovador
valenciano; sua fama era tal que até alguns nobres tinham vindo escutá-lo,
acompanhados de escravos carregando cadeiras para toda a família. “Eles
não vieram”, disse Joan a Arnau ao notar que seu irmão procurava com
receio entre os nobres. O mais velho lhe contara do encontro com os Puig
em Santa Maria.
Conseguiram um bom lugar junto a um grupo de bastaixos que fazia
algum tempo esperava que começasse o espetáculo. Arnau se sentou no
chão, mas não sem antes olhar novamente para as famílias dos nobres, que
se destacavam acima dos plebeus.
— Você devia aprender a perdoar — Joan lhe sussurrou. Arnau se
limitou a responder com um olhar duro. — O bom cristão...
— Nunca, Joan. Nunca esquecerei o que essa bruxa fez com o meu pai.
Neste momento apareceu o trovador, e as pessoas aplaudiram
entusiasmadas. Martí de Xàtiva, um homem alto e magro que se movia
com agilidade e elegância, pediu silêncio com as mãos.
— Vou lhes contar a história de como e por que seis mil catalães
conquistaram o Oriente e venceram os turcos, os bizantinos, os alanos e
todos os povos guerreiros que tentaram enfrentá-los.
Os aplausos se fizeram ouvir novamente na Pla d’en Llull. Arnau e Joan
se somaram a eles.
— Contarei também como o imperador de Bizâncio assassinou nosso
almirante Roger de Flor e vários catalães que ele havia convidado para
uma festa... — Alguém gritou “Traidor!” e o público vociferou insultos.
— Contarei, finalmente, como os catalães vingaram a morte de seu
comandante e arrasaram o Oriente, semeando a morte e a destruição. Esta
é a história da companhia dos almogávares catalães, que no ano de 1305
embarcaram sob o comando do almirante Roger de Flor...
O valenciano sabia atrair a atenção do público. Gesticulava, atuava e se
fazia acompanhar de dois ajudantes que, atrás dele, representavam as
cenas que narrava. Ele também obrigava o público a atuar.
— Agora falarei novamente do César — disse, dando início ao capítulo
sobre a morte de Roger de Flor —, que, acompanhado de trezentos homens
a cavalo e mil a pé, foi a Adrianópolis para uma festa em sua homenagem
a convite de xor2 Miqueli, filho do imperador. — Neste momento o
trovador se dirigiu a um dos nobres mais bem-vestidos e lhe pediu que
subisse ao palco para representar o papel de Roger de Flor. “Se você
envolver o público”, lhe explicara o mestre, “principalmente se forem
nobres, ele lhe dará mais moedas”. Em frente ao povo, Roger de Flor foi
adulado pelos ajudantes durante os seis dias que durou sua estadia em
Adrianópolis, e, no sétimo, xor Miqueli mandou chamar Girgan, chefe dos
alanos, e Melic, chefe dos turcópolos,3 com oito mil homens a cavalo.
O valenciano se moveu inquieto pelo cenário. As pessoas começaram a
gritar de novo, algumas se levantaram, e seus acompanhantes as
impediram de acudir Roger de Flor. O próprio trovador assassinou Roger
de Flor, e o nobre caiu no chão. As pessoas começaram a clamar por
vingança pela traição do almirante catalão. Joan aproveitou para observar
Arnau, que, quieto, tinha o olhar fixo no nobre caído. Os oito mil alanos e
turcópolos assassinaram os mil e trezentos catalães que acompanhavam
Roger de Flor. Os ajudantes se mataram diversas vezes entre si.
— Só se salvaram três — continuou o trovador, erguendo a voz: —
Ramon de Arquer, cavaleiro do Castelló d’Empúries, Ramon de Tous...
A história prosseguiu com a vingança dos catalães e a destruição da
Trácia, de Calcídia, da Macedônia e da Tessália. Os cidadãos de Barcelona
se felicitavam cada vez que o trovador mencionava um daqueles lugares.
“Que a vingança dos catalães o atormente!”, gritavam volta e meia. Todos
participaram das conquistas dos almogávares quando eles chegaram ao
ducado de Atenas. Ali venceram, cantou o trovador, depois de levar à
morte mais de vinte mil homens e de nomear Roger de Flor capitão, e ele
recebeu a mulher que fora do senhor de Sola como sua, além do castelo de
Sola. O valenciano procurou outro nobre, convidou-o ao palco e lhe
concedeu uma mulher, a primeira que encontrou entre o público, que ele
levou até o novo capitão.
— E assim — disse o trovador de mãos dadas com o nobre e a mulher
— a cidade de Tebas e todas as vilas e castelos do ducado foram repartidos
e todas as mulheres foram entregues como esposas aos homens da
companhia de almogávares, de acordo com as qualidades de cada um.
Enquanto o trovador cantava a Crônica de Muntaner, seus ajudantes
escolhiam homens e mulheres do público e os colocavam em duas filas,
uma em frente à outra. Muitos queriam ser escolhidos: estavam todos no
ducado de Atenas, eram eles os catalães que tinham vingado a morte de
Roger de Flor. O grupo de bastaixos chamou a atenção dos ajudantes. O
único solteiro era Arnau, e seus companheiros o ergueram e apontaram
como candidato a desfrutar da festa. Para alegria deles, os ajudantes o
escolheram. Arnau subiu ao palco aplaudido pelos bastaixos.
Quando o jovem se colocou na fileira dos almogávares, uma mulher do
público se levantou, cravando os imensos olhos castanhos no jovem
bastaix. Os ajudantes a viram. Ninguém podia deixar de vê-la, bela e
jovem como era, exigindo com altivez que a escolhessem. Quando os
ajudantes foram até ela, um ancião mal-humorado a agarrou pelo braço e
tentou fazê-la sentar de novo, despertando risos entre o povo. A moça
resistiu aos puxões do velho. Os ajudantes olharam para o trovador, e ele
assentiu com um gesto; não se preocupe em humilhar alguém, tinham lhe
ensinado, se assim você ganhar a maioria; e a maioria ria do ancião que,
de pé, lutava com a jovem.
— É minha esposa — avisou a um dos ajudantes que forcejava com ele.
— Os vencidos não têm esposa — respondeu o trovador de longe —,
todas as mulheres do ducado de Atenas são para os catalães.
O velho vacilou, e neste momento os ajudantes aproveitaram para lhe
arrebatar a moça e colocá-la na fila das mulheres, entre os gritos da
plateia.
Enquanto o trovador seguia com a representação, entregando as
atenienses aos almogávares e provocando gritos de alegria a cada novo
matrimônio, Arnau e Aledis se olhavam nos olhos. “Quanto tempo faz,
Arnau?”, perguntaram aqueles olhos castanhos. “Quatro anos?” Arnau
olhou os bastaixos, que sorriam para ele e o animavam; no entanto, evitou
enfrentar Joan. “Olhe para mim, Arnau.” Aledis não tinha aberto a boca,
mas sua exigência chegou a ele como uma queixa. Arnau se perdeu nos
olhos dela. O valenciano tomou a mão da moça e a fez atravessar o espaço
que separava as filas. Levantou a mão de Arnau e apoiou nela a de Aledis.
Ouviu-se outro clamor. Todos os casais estavam em fila, encabeçados
por Arnau e Aledis e virados para o público. A jovem sentiu o corpo
tremer e apertou suavemente a mão de Arnau, enquanto o bastaix
observava de soslaio o velho, que, de pé na plateia, o atravessava com o
olhar.
— Assim os almogávares puseram ordem em suas vidas — cantou o
trovador apontando para os casais. — Estabeleceram-se no ducado de
Atenas e ali, no longínquo Oriente, continuam a viver para a grandeza da
Catalunha.
A Pla d’en Llull explodiu em aplausos. Aledis chamou a atenção de
Arnau apertando sua mão. Ambos se olharam. “Me possua, Arnau”,
rogaram seus olhos castanhos. De repente, Arnau sentiu a mão vazia.
Aledis tinha desaparecido; o velho a agarrara pelos cabelos e, em meio à
zombaria do público, a arrastava em direção a Santa Maria.
— Umas moedas, senhor — pediu o trovador, se aproximando.
O velho cuspiu e continuou a puxar Aledis.

***

— Rameira! Por que você fez aquilo?


O velho mestre curtidor ainda tinha força nos braços, mas Aledis não
sentiu a bofetada.
— Não... não sei. As pessoas, os gritos; de repente me senti no
Oriente... Como ia permitir que o entregasse a outra?
— No Oriente? Sua puta!
O curtidor agarrou uma tira de couro, e Aledis se esqueceu de Arnau.
— Por favor, Pau. Por favor. Não sei por que fiz aquilo, juro. Perdoe-
me. Eu suplico, perdoe-me.
Aledis se ajoelhou diante do marido e abaixou a cabeça. A tira de couro
tremeu na mão do ancião.
— Você vai ficar dentro de casa enquanto eu não lhe der permissão para
sair — cedeu o homem.
Aledis não disse nada nem se mexeu até ouvir o barulho da porta que
dava para a rua.
Havia quatro anos, seu pai a tinha entregado em matrimônio. Sem
nenhum dote, aquele fora o melhor partido que Gastó pudera conseguir
para a filha: um velho mestre curtidor, viúvo e sem filhos. “Um dia você
herdará”, fora a única explicação que lhe dera. Não acrescentara que então
ele, Gastó, ocuparia o lugar do mestre e ficaria com o negócio, mas, em
sua opinião, suas filhas não precisavam saber desses detalhes.
No dia das bodas, o velho não esperou a festa terminar para levar a
jovem esposa para o quarto. Aledis se deixou despir por mãos trêmulas e
deixou os peitos serem beijados por uma boca que babava. Na primeira
vez que ele a tocou, a pele de Aledis se encolheu ao contato daquelas mãos
calosas e ásperas. Depois, levou-a para a cama e se jogou sobre ela ainda
vestido, babando, tremendo, arfando. O velho a sovou e mordiscou seus
peitos. Beliscou-lhe a virilha. Depois, em cima dela, ainda vestido,
começou a arfar e a se mover mais rapidamente, até que um suspiro levou-
o à quietude e ao sono.
Na manhã seguinte, Aledis perdeu a virgindade sob um corpo leve,
frágil e debilitado que investia contra ela desajeitado. Se perguntou se
chegaria a sentir alguma coisa além do asco.
Aledis observava os jovens aprendizes de seu marido sempre que descia
à oficina por algum motivo. Por que não olhavam para ela? Ela, sim, os
via. Seus olhos seguiam os músculos daqueles rapazes e se deleitavam nas
pérolas de suor que lhes nasciam na testa, percorriam o rosto, escorriam
pelo pescoço e se alojavam no torso forte e poderoso. O desejo de Aledis
dançava ao ritmo que marcava o constante movimento dos braços que
curtiam a pele, uma e outra vez, uma e outra vez... mas as ordens do
marido tinham sido claras: “Dez chibatadas em quem olhar para minha
mulher na primeira vez, vinte na segunda, a fome na terceira.” E Aledis,
noite após noite, se perguntava onde estava o prazer de que havia ouvido
falar, aquele que sua juventude reclamava, e que o marido decrépito a que
tinha sido entregue jamais poderia lhe proporcionar.
Algumas noites o velho a arranhava com as mãos ásperas, em outras a
obrigava a masturbá-lo e às vezes a penetrava, apressando-a para que se
dispusesse antes que ele fosse impedido pela debilidade. Depois caía no
sono. Em uma dessas noites, Aledis se levantou em silêncio, procurando
não despertá-lo, mas o velho nem sequer mudou de posição.
Desceu para a oficina. As mesas de trabalho delineadas na penumbra a
atraíram, e passeou entre elas deslizando os dedos pelas tábuas polidas.
Vocês não me desejam? Não os atraio? Aledis estava sonhando com os
aprendizes, passeando entre suas mesas, acariciando os peitos e os quadris,
quando uma luz tênue na parede de um canto da oficina chamou sua
atenção. Um pequeno nó em uma das tábuas que separavam a oficina do
dormitório dos aprendizes tinha caído. Aledis espiou por ali. A moça se
afastou do buraco. Tremia. Encostou novamente o olho no buraco.
Estavam nus! Por um instante temeu que sua respiração a delatasse. Um
deles se masturbava deitado na enxerga!
— Em quem você está pensando? — perguntou o que estava mais
próximo à parede em que estava Aledis. — Na mulher do mestre?
O outro não respondeu e continuou a manipular o pênis sem parar...
Aledis suava. Sem perceber, deslizou uma das mãos até a virilha e,
olhando para o rapaz que pensava nela, aprendeu a se dar prazer. Ela gozou
antes do jovem aprendiz e caiu no chão, com as costas apoiadas à parede.
Na manhã seguinte, Aledis passou diante da mesa do aprendiz
emanando desejo. Sem perceber, se deteve diante da mesa. Ao final, o
jovem elevou o olhar por um instante. Ela soube que o rapaz se masturbara
pensando nela e sorriu.
À tarde, Aledis foi chamada à oficina. O mestre a esperava atrás do
aprendiz.
— Querida — disse quando ela chegou perto dele —, você já sabe que
não gosto que ninguém distraia os meus aprendizes.
Aledis olhou as costas do rapaz. Dez filetes de sangue a cruzavam. Não
respondeu. Naquela noite ela não desceu para a oficina, nem na seguinte,
nem na outra, mas em seguida desceu, noite após noite, para acariciar o
próprio corpo com as mãos de Arnau. Ele estava só, os seus olhos o tinham
dito. Ele tinha de ser dela!

1. Antigo território grego, situado nas atuais regiões da Macedônia e da Tessália. (N. da T.)
2. Título de imperador ou príncipe da casa real bizantina. (N. da T.)
3. Mercenários que formavam tropas de cavalaria ligeira. (N. da T.)
23

Barcelona ainda estava em festa.


Era uma casa humilde, como todas as casas dos bastaixos, ainda que
fosse a de Bartolomé, um dos pró-homens do grêmio. Como a maioria das
casas dos bastaixos, ficava em uma das ruas estreitas que saíam de Santa
Maria, do Born ou da Pla d’en Llull e davam na praia. O andar térreo, onde
ficava a lareira, era de tijolos de adobe, e o andar superior, construído
depois, de madeira.
Arnau não parava de salivar diante da comida que a mulher de
Bartolomé preparava: pão branco de trigo candial; carne de vitela com
verduras fritas no toucinho, colocada diante dos convidados em uma
grande panela sobre a lareira e temperada com pimenta, canela e açafrão;
vinho misturado com mel; queijos e tortas doces.
— O que estamos comemorando? — perguntou ele sentado à mesa,
com Joan diante dele, Bartolomé à sua esquerda e o padre Albert à direita.
— Você já vai saber — respondeu o padre.
Arnau se virou para Joan, mas ele permaneceu calado.
— Você já vai saber — insistiu Bartolomé. — Agora coma.
Arnau encolheu os ombros enquanto a filha mais velha de Bartolomé se
aproximava com uma tigela cheia de carne e meia fogaça.
— Minha filha Maria — disse-lhe Bartolomé.
Arnau moveu a cabeça, com a atenção fixa na tigela. Depois que os
quatro homens foram servidos e o sacerdote benzeu a mesa, começaram a
comer em silêncio. A mulher de Bartolomé, a filha e quatro crianças
comeram no chão, espalhadas pelo cômodo.
Arnau provou a carne com verduras. “Que sabores estranhos!” Pimenta,
canela e açafrão; era o que os nobres e os mercadores ricos comiam.
“Quando descarregamos uma destas especiarias”, tinham lhe explicado na
praia, um dia, “rezamos. Se caírem na água ou estragarem, não teremos
dinheiro para pagar o seu preço: é prisão certa”. Arrancou um pedaço de
pão e o levou à boca; depois pegou o copo de vinho com mel... Mas por
que olhavam para ele? Os três o observavam, tinha certeza, apesar de
tentarem disfarçar. Viu que Joan não erguia o olhar da comida. Arnau se
concentrou na carne; uma, duas, três colheradas, e de repente levantou os
olhos: Joan e o padre Albert gesticulavam.
— Bem, o que está acontecendo? — Arnau deixou a colher sobre a
mesa.
Bartolomé fez uma careta. “O que vamos fazer?”, parecia dizer aos
outros.
— Seu irmão decidiu entrar para a Ordem dos Franciscanos — disse
finalmente o padre Albert.
— Então era isso. — Arnau pegou o copo de vinho e, virando-se para
Joan, ergueu-o com um sorriso nos lábios. — Parabéns!
Mas Joan não brindou com ele. Tampouco Bartolomé e o padre. Arnau
ficou imóvel com o copo levantado. O que estava acontecendo? Afora as
quatro crianças que comiam alheias a tudo, todos tinham os olhos postos
nele.
Arnau pôs o copo na mesa.
— E então? — perguntou diretamente ao irmão.
— Não posso fazer isso — Arnau fez cara de espanto. — Não quero
deixar você sozinho. Só receberei o hábito quando você estiver junto de
uma boa mulher, a futura mãe de seus filhos.
Joan acompanhou essas palavras com um olhar furtivo para a filha de
Bartolomé, que escondia o rosto.
Arnau suspirou.
— Você deve se casar e formar uma família — interveio o padre Albert.
— Você não pode ficar sozinho — repetiu Joan.
— Eu me sentiria muito honrado se você aceitasse minha filha Maria
como esposa — interveio Bartolomé olhando para a jovem, que procurava
o amparo da mãe. — Você é um homem bom e trabalhador, são e devoto.
Ofereço a você uma boa mulher com dote suficiente para que vocês
possam ter uma casa própria; além disso, você sabe que o grêmio paga
mais aos homens casados.
Arnau não se atreveu a seguir o olhar de Bartolomé.
— Procuramos muito e achamos que Maria é a pessoa indicada para
você — acrescentou o padre.
Arnau olhou para o sacerdote.
— Todo bom cristão deve se casar e trazer filhos ao mundo — lembrou
Joan.
Arnau virou o rosto para o irmão, mas este ainda não tinha terminado
de falar quando uma voz à esquerda chamou sua atenção.
— Não pense mais, filho — aconselhou-o Bartolomé.
— Eu não vou entrar para a Ordem se você não se casar — reiterou
Joan.
— Você nos deixaria muito felizes se resolvesse se casar — disse o
padre.
— O grêmio não veria com bons olhos se você se negasse a contrair
matrimônio e se, por causa disso, seu irmão não seguisse o caminho da
Igreja.
Ninguém disse mais nada. Arnau franziu os lábios. O grêmio! Já não
tinha desculpas.
— E então, meu irmão? — perguntou Joan.
Arnau olhou para Joan e pela primeira vez viu uma pessoa diferente da
que conhecia: um homem que o interrogava seriamente. Como não se dera
conta? Tinha ficado preso ao seu sorriso, ao menino que havia lhe
mostrado a cidade, aquele com as pernas enroscadas em um caixote
enquanto o braço de sua mãe lhe acariciava os cabelos. Tinham
conversado tão pouco nos últimos quatro anos! Sempre trabalhando,
descarregando navios, voltando para casa ao anoitecer, quebrado, sem
vontade de falar, com o dever cumprido. Certamente ele já não era o
pequeno Joanet.
— Você realmente deixaria de receber o hábito por minha causa?
De repente os dois estavam a sós.
— Deixaria.
Arnau levou a mão ao queixo e pensou por uns instantes. O grêmio.
Bartolomé era um dos pró-homens, o que diriam os seus companheiros?
Não podia faltar com Joan, não depois de tanto esforço. Além disso, se
Joan fosse embora, o que ele faria? Olhou para Maria.
Arnau viu uma jovem simples, de cabelos crespos e expressão bondosa.
— Ela tem quinze anos — disse Bartolomé quando Maria veio para
perto da mesa. Observada pelos quatro, juntou as mãos no colo e baixou os
olhos para o chão. — Maria! — seu pai a chamou.
A moça levantou o rosto para Arnau, enrubescida, apertando as mãos.
Neste momento foi Arnau quem desviou o olhar. Bartolomé ficou
apreensivo ao vê-lo desviar o olhar. A jovem suspirou. Estaria chorando?
Ele não tivera intenção de ofendê-la.
— Estou de acordo — afirmou.
Joan ergueu o copo, e rapidamente Bartolomé e o padre fizeram o
mesmo. Arnau pegou o seu copo.
— Você me deixa muito feliz — disse-lhe Joan.
— Aos noivos! — exclamou Bartolomé.

***

Cento e sessenta dias por ano! Por determinação da Igreja, os cristãos


tinham de guardar abstinência durante cento e sessenta dias por ano, e
nesses dias Aledis, como as demais mulheres de Barcelona, ia até a praia,
perto de Santa Maria, para comprar peixe em uma das peixarias da cidade
condal, a velha ou a nova.
Onde você está? Assim que via um navio, Aledis olhava para a beira da
praia, onde os barqueiros recolhiam ou descarregavam mercadorias. Onde
você está, Arnau? Uma vez o vira, os músculos tensos como se quisessem
romper a pele que os cobria. Meu Deus! Então Aledis estremecia e
começava a contar as horas que faltavam para o anoitecer, quando seu
esposo dormiria e ela desceria para a oficina para estar com ele, a
lembrança fresca na mente. Forçada pela abstinência, Aledis passou a
conhecer a rotina dos bastaixos: quando não descarregavam algum navio,
transportavam pedras para Santa Maria, e, depois da primeira viagem, a
fila de bastaixos se desfazia e cada um fazia o trajeto por sua conta, sem
esperar os outros.
Naquela manhã, Arnau voltava para buscar outra pedra. Sozinho. Era
verão e ele caminhava balançando a capçana em uma das mãos. Com o
torso nu! Aledis o viu passar diante da peixaria. O sol refletia no suor que
cobria o seu corpo, e ele sorria, sorria para quem cruzasse com ele. Aledis
saiu da fila. Arnau! O grito lutava para escapar de seus lábios. Arnau! Não
podia. As mulheres da fila a observavam. A velha que esperava sua vez
atrás dela apontou para o espaço que havia entre Aledis e a mulher adiante
dela; Aledis lhe deu a vez. Como distrair a atenção de todas aquelas
curiosas? Fingiu sentir ânsias de vômito. Uma veio para ajudá-la, mas
Aledis dispensou-a; então sorriram. Outra ânsia e saiu correndo, enquanto
algumas grávidas gesticulavam entre si.
Arnau ia para Montjuïc, a pedreira real, pela praia. Como podia
alcançá-lo? Aledis correu pela Rua do Mar até a Praça de Blat e dali,
dobrando à esquerda por baixo do antigo portal da muralha romana, ao
lado do palácio do veguer, seguiu direto até a Rua da Boquería. Tinha de
alcançá-lo. As pessoas olhavam para ela; alguém a reconheceria? E daí?
Arnau estava sozinho. A moça cruzou o portal da Boquería e voou pelo
caminho que levava a Montjuïc. Ele tinha de estar por ali...
— Arnau! — desta vez, sim, ela gritou.
Arnau parou no meio do caminho e se virou para a mulher que corria
em sua direção.
— Aledis! O que você faz aqui?
Ela recuperou ar. O que diria agora?
— Aconteceu alguma coisa, Aledis?
O que dizer a ele?
Se curvou agarrando o estômago e fingiu sentir enjoo outra vez. Por que
não? Arnau se aproximou dela e a pegou pelos braços. O simples contato
fez a moça tremer.
— O que você tem?
Que mãos! Elas a seguravam com força, abarcando todo o seu
antebraço. Aledis levantou o rosto, encontrou o peito de Arnau, ainda
suado, e sentiu o seu cheiro.
— O que você tem? — repetiu Arnau, tentando fazê-la se erguer.
Aledis aproveitou o momento e o abraçou.
— Meu Deus! — sussurrou.
Escondeu a cabeça em seu pescoço e começou a beijá-lo e a lamber o
seu suor.
— O que você está fazendo?
Arnau tentou afastá-la, mas a moça se agarrava a ele.
Vozes vindas de uma curva no caminho deixaram Arnau sobressaltado.
Os bastaixos! Como explicaria...? Talvez fosse o próprio Bartolomé. Se o
encontrassem ali com Aledis abraçada a ele, beijando-o... ele seria expulso
do grêmio! Arnau a ergueu pela cintura e a levou para trás de uns arbustos;
ali, lhe tapou a boca com a mão.
As vozes se aproximaram e se afastaram, mas Arnau não prestou
atenção a elas. Estava sentado no chão com Aledis por cima dele; com
uma das mãos a tinha agarrada pela cintura; com a outra lhe tapava a boca.
Aqueles olhos castanhos! De repente Arnau percebeu que a estava
abraçando. Sua mão apertava o estômago de Aledis e seus peitos... seus
peitos arfavam contra ele, se movendo em convulsão. Quantas noites havia
sonhado abraçá-la? Quantas noites fantasiara com o seu corpo? Aledis não
resistia; se limitava a fitá-lo, atravessando-o com seus grandes olhos
castanhos.
Ele lhe destapou a boca.
— Preciso de você — seus lábios sussurraram.
Depois aqueles lábios o beijaram, doces, suaves, desejantes.
Seu sabor! Arnau estremeceu.
Aledis tremia.
Seu sabor, seu corpo... seu desejo.
Eles não disseram nada mais.
Naquela noite, Aledis não desceu para espionar os aprendizes.
24

Fazia pouco mais de dois meses que Maria e Arnau tinham contraído
matrimônio em Santa Maria do Mar, em uma celebração oficiada pelo
padre Albert e na presença de todos os membros do grêmio, de Pere e
Mariona e de Joan, já vestido com o hábito dos franciscanos e de cabelo
cortado. Com a garantia do aumento de salário que correspondia aos
confrades casados, escolheram uma casa em frente à praia e a mobiliaram
com a ajuda da família de Maria e de todos os que quiseram colaborar com
o jovem casal, e foram muitos. Ele não teve de fazer nada. A casa, os
móveis, as tigelas, a roupa, a comida, tudo apareceu pelas mãos de Maria e
sua mãe, que insistiam em que ele descansasse. Na primeira noite, Maria
se entregou ao marido sem voluptuosidade, mas sem reticência. Ao
amanhecer do dia seguinte, quando Arnau acordou, o café da manhã estava
preparado: ovos, leite, carne salgada, pão. Ao meio-dia, a cena se repetiu,
e à noite, e no dia seguinte, e no seguinte; Maria sempre deixava a comida
preparada para Arnau. Tirava os seus sapatos. Lavava-o e curava suas
chagas e feridas com delicadeza. Maria sempre estava disponível no leito.
Um dia depois do outro, Arnau encontrava o que um homem podia desejar:
comida, limpeza, obediência, atenção e o corpo de uma mulher jovem e
bonita. Sim, Arnau. Não, Arnau. Maria nunca discutia com Arnau. Se ele
queria uma vela, Maria deixava o que estivesse fazendo para consegui-la
para ele. Se Arnau reclamava, ela se adiantava em resolver o que fosse.
Quando ele respirava, Maria corria para lhe trazer ar.
Caía um dilúvio. Escureceu repentinamente, e a tormenta provocava
raios que atravessavam as nuvens negras com estrondo e iluminavam o
mar. Arnau e Bartolomé, encharcados, se encontraram na praia. Todos os
navios tinham abandonado o perigoso porto de Barcelona para procurar
refúgio em Salou. A pedreira real estava fechada; naquele dia os bastaixos
não tinham trabalho.
— Como vai você, meu filho? — perguntou Bartolomé ao genro.
— Bem. Muito bem, mas...
— Há algum problema?
— É só que não estou acostumado a que me tratem tão bem como
Maria me trata.
— Ela foi educada para isso — afirmou Bartolomé, satisfeito.
— Mas é demais...
— Eu disse que você não se arrependeria de casar com ela. —
Bartolomé olhou para Arnau. — Você já vai se acostumar. Aproveite sua
mulher.
Estavam nisso quando chegaram à Rua das Dames, uma pequena
travessa que desembocava na praia. Mais de vinte mulheres, jovens e
velhas, bonitas e feias, sãs e doentes, todas pobres, passeavam sob a chuva.
— Você as vê? — interveio Bartolomé, apontando para as mulheres. —
Sabe o que elas esperam? — Arnau negou com a cabeça. — Em dias de
temporal como hoje, depois que os pilotos solteiros dos pesqueiros
esgotaram os seus recursos, depois de pedirem a todos os santos e virgens
sem conseguir evitar o temporal, só lhes resta um recurso. A tripulação
sabe e exige isso. Chegado este momento, o piloto jura em voz alta diante
de Deus e da tripulação que, se conseguir fazer o pesqueiro e seus homens
chegarem sãos e salvos ao porto, casará com a primeira mulher que vir
assim que pisar a terra. Você entende, Arnau? — Arnau observou as
mulheres que subiam e desciam a rua inquietas, olhando o horizonte. —
As mulheres nasceram para isso, para contrair matrimônio, para servir o
homem. Assim educamos Maria e assim eu a entreguei a você.
Os dias transcorriam e Maria continuava concentrada em Arnau, mas
ele só pensava em Aledis.
— Essas pedras vão destruir as suas costas — comentou Maria quando
massageava com um unguento a ferida que Arnau mostrara na altura da
omoplata.
Arnau não respondeu.
— Esta noite vou revisar a sua capçana. As pedras não podem cortar
você deste jeito.
Arnau não respondeu. Tinha chegado em casa depois do anoitecer.
Maria o descalçou, serviu um copo de vinho e o obrigou a se sentar para
massageá-lo nas costas, como durante toda a infância vira a mãe fazer com
seu pai. Arnau se deixou massagear como sempre. Agora a ouvia em
silêncio. A ferida não tinha nada a ver com as pedras da Virgem, nem com
a capçana. Ela limpava e curava a ferida da vergonha, o arranhão de outra
mulher à qual Arnau não era capaz de renunciar.
— Estas pedras vão destruir as costas de todos vocês — repetiu sua
esposa.
Arnau bebeu um gole de vinho enquanto sentia as mãos de Maria
percorrerem suas costas delicadamente.

***

Desde que seu marido a chamou para mostrar as feridas do aprendiz que se
atrevera a olhar para ela, Aledis se limitava a espiar os jovens da oficina.
Descobriu que muitas vezes iam à horta à noite, onde se encontravam com
mulheres que pulavam o muro para se juntar a eles. Os rapazes tinham
acesso ao material, às ferramentas e aos conhecimentos necessários para
fabricar uma espécie de touca de couro finíssimo que, devidamente
engordurada, se acopla ao pênis antes de fornicar com a mulher. A certeza
de que não engravidariam, aliada à juventude dos amantes e à escuridão da
noite, era uma tentação irrefreável para muitas mulheres que desejavam
uma aventura anônima. Aledis não teve dificuldade para entrar no
dormitório dos aprendizes e pegar algumas daquelas toucas; a ausência de
risco em suas relações com Arnau dera asas à sua luxúria.
Aledis explicou que com aquelas toucas não fariam filhos, e Arnau a
observou deslizar uma delas ao longo do seu pênis. Seria a gordura que
depois ficava em seu membro? Seria um castigo por se opor aos desígnios
da natureza divina? Maria não engravidava. Era uma moça forte e sã. Que
motivo senão os pecados de Arnau a impediriam de ficar pejada? Que
outro motivo poderia levar o Senhor a não o premiar com o herdeiro
desejado? Bartolomé necessitava de um neto. O padre Albert e Joan
queriam ver Arnau se tornando pai. O grêmio estava atento ao momento
em que os jovens cônjuges anunciariam a boa-nova; os homens brincavam
com Arnau, e as mulheres dos bastaixos visitavam Maria para aconselhá-
la e lhe contar as maravilhas da vida familiar.
Arnau também desejava um filho.
— Não quero que você me ponha isto — opôs-se ele uma vez em que
Aledis o assaltou no caminho para a pedreira.
Aledis não se intimidou.
— Não penso em perder você — disse. — Antes que isso aconteça,
abandonarei o velho e exigirei você. Todos saberão o que aconteceu entre
nós, você cairá em desgraça, o expulsarão do grêmio e provavelmente da
cidade, e então você só terá a mim; só eu estarei disposta a segui-lo. Não
vejo minha vida sem você, sentenciada como estou a permanecer ao lado
de um velho obcecado e incapaz.
— Você arruinaria a minha vida? Por que faria isso comigo?
— Porque sei que no fundo você gosta de mim — respondeu Aledis,
decidida. — Na verdade, só estaria ajudando você a dar um passo que não
se atreve a dar.
Ocultos entre os arbustos na encosta da montanha de Montjuïc, Aledis
deslizou a touca pelo membro do amante. Arnau a observava. Seria
verdade o que dissera? Seria verdade que no fundo desejava viver com
Aledis, abandonar sua esposa e tudo o que tinha para fugir com ela? Se
pelo menos seu membro não se mostrasse tão disposto... O que tinha
aquela mulher para ser capaz de anular sua vontade? Arnau pensou em lhe
contar a história da mãe de Joan; a possibilidade de que, se a relação entre
eles se revelasse, fosse o velho a reclamá-la e emparedá-la pelo resto da
vida, mas em vez disso montou nela... mais uma vez. Aledis gemeu ao
ritmo das investidas de Arnau. O bastaix, no entanto, só ouvia os seus
medos: Maria, o seu trabalho, o grêmio, Joan, a desonra, Maria, sua
Virgem, Maria, sua Virgem...
25

No trono, o rei Pedro ergueu a mão. Ladeado pelo tio e pelo irmão, pelos
infantes D. Pedro e D. Jaime, de pé à sua direita, e pelo conde de
Terranova e pelo padre Ot de Montcada à esquerda, o rei esperou que os
demais membros do conselho fizessem silêncio. Se encontravam no
palácio de Valência, onde tinham recebido Pere Ramon de Codoler,
mordomo-mor e mensageiro do rei Jaime de Maiorca. Segundo o senhor
de Codoler, o rei de Maiorca, conde do Roussillon e da Sardenha e senhor
de Montpellier, tinha decidido declarar guerra à França devido às
constantes afrontas que os franceses impingiam ao seu senhor e, como
vassalo de Pedro, solicitava que em 21 de abril do próximo ano de 1341
seu senhor fosse a Perpignan, à frente dos exércitos catalães, para ajudá-lo
e defendê-lo na guerra contra a França.
Durante toda a manhã, o rei Pedro e seus conselheiros estudaram o
pedido de seu vassalo. Se não acudissem em ajuda do rei de Maiorca, este
negaria sua vassalagem e ficaria livre, mas se o fizessem — todos estavam
de acordo — cairiam numa armadilha: assim que os exércitos catalães
entrassem em Perpignan, Jaime se aliaria ao rei da França contra ele.
Quando houve silêncio, o rei disse:
— Todos vós pensastes nisso, tentando encontrar uma maneira de negar
ao rei de Maiorca o pedido que nos fez. Acho que a encontramos: vamos a
Barcelona e convocamos as Cortes e, uma vez convocadas, pediremos ao
rei de Maiorca que, no dia 25 de março, venha a Barcelona para as ditas
Cortes, como é sua obrigação. E o que pode acontecer? Que ele vá, ou não.
Se for, terá feito o que lhe corresponde, e, neste caso, nós cumpriremos o
que nos pede... — Alguns conselheiros se moveram inquietos; se o rei de
Maiorca fosse às Cortes, entrariam em guerra com a França, ao mesmo
tempo que guerreavam contra Gênova! Alguém até se atreveu a negar em
voz alta, mas Pedro pediu tranquilidade com a mão e sorriu antes de
prosseguir, elevando a voz: — E buscaremos o conselho de nossos
vassalos, que decidirão o melhor a fazer. — Alguns conselheiros sorriram
com o rei, outros assentiram com a cabeça. As Cortes eram competentes
em matéria de política catalã e podiam decidir dar ou não início a uma
guerra. Não seria o rei, pois, quem negaria ajuda a seu vassalo, seriam as
Cortes da Catalunha. — Se não vier — continuou Pedro —, ele romperá a
vassalagem e, neste caso, não seremos obrigados a ajudá-lo nem a entrar
em sua guerra contra o rei da França.
Barcelona, 1341

Nobres, eclesiásticos e representantes das cidades livres do principado, os


três braços que compunham as Cortes, se congregaram na cidade condal,
enchendo suas ruas de cores e adornando-a de sedas de Almeria, Barbaria,
Alexandria e Damasco; de lã da Inglaterra ou de Bruxelas, de Flandres ou
de Malinas; de Orlanda ou da fantástica roupa de linho preto de Bisso,
todas adornadas com brocados de fios de ouro ou prata formando
preciosos desenhos.
Porém Jaime de Maiorca ainda não tinha chegado à capital do
principado. Após serem advertidos pelo veguer, fazia alguns dias que os
barqueiros, bastaixos e outros trabalhadores portuários se preparavam para
o caso de o rei de Maiorca decidir comparecer às Cortes. O porto de
Barcelona não estava preparado para o desembarque de grandes
personagens, que não sairiam dos humildes lenhos carregados nos braços
dos barqueiros, como faziam os mercadores para não molhar a roupa. Por
isso, quando alguma personalidade chegava a Barcelona, os barqueiros
amarravam seus lenhos uns aos outros, desde a beira até bem depois da
arrebentação, e sobre eles construíam uma ponte para que reis e príncipes
chegassem à praia de Barcelona com a solenidade necessária.
Os bastaixos, Arnau entre eles, levaram para a praia as tábuas para
armar a ponte e, como muitos cidadãos e nobres da Corte que se
aproximavam da praia, fitavam o horizonte à procura das galeras do
senhor de Maiorca. As Cortes de Barcelona eram o assunto de todas as
conversas; o pedido de ajuda do rei de Maiorca e o estratagema do rei
Pedro estavam na boca de todos os barceloneses.
— Pode-se supor — comentou um dia Arnau com o padre Albert,
enquanto espevitava as velas da capela do Santíssimo — que o rei Jaime
também sabe o que o rei Pedro pensa em fazer, já que toda a cidade sabe;
então por que esperá-lo?
— Por isso ele não virá — respondeu o padre, sem interromper suas
tarefas na capela.
— E então?
Arnau olhou para o padre, que se deteve e fez um gesto preocupado.
— Temo que a Catalunha entre em guerra com Maiorca.
— Outra guerra?
— Sim. É sabida a obsessão do rei Pedro por reunificar os antigos
reinos catalães que Jaime I, o Conquistador, dividiu entre seus herdeiros.
Desde então, os reis de Maiorca só fizeram trair os catalães; não faz mais
de cinquenta anos que Pedro, o Grande, teve de vencer os franceses e
maiorquinos no desfiladeiro de Panissars. Depois conquistou Maiorca, o
Roussillon, e a Sardenha, mas o papa o obrigou a devolvê-los a Jaime II.
— O padre se virou para Arnau. — Haverá guerra, Arnau, não sei quando
nem por quê, mas haverá guerra.
Jaime de Maiorca não compareceu às Cortes. O rei lhe concedeu um
novo prazo, de três dias, mas transcorrido este tempo suas galeras
tampouco chegaram ao porto de Barcelona.
— Você agora sabe o porquê — comentou o padre Albert com Arnau
outro dia. — Continuo sem saber quando, mas já temos o porquê.
Ao final das Cortes, Pedro III ordenou iniciar um processo legal contra
o seu vassalo por desobediência, ao qual, além disso, acrescentou a
acusação de que nos condados de Roussillon e da Sardenha eram cunhadas
moedas catalãs, quando a moeda real só podia ser cunhada em Barcelona.
Jaime de Maiorca continuou a não fazer caso, mas o processo, dirigido
pelo veguer de Barcelona, Arnau d’Erill, assistido por Felip de Montroig e
Arnau Çamorera, vice-chanceler real, continuou à revelia, sem a presença
do senhor de Maiorca, que começou a ficar nervoso quando seus
conselheiros lhe comunicaram qual poderia ser o resultado: o confisco de
seus reinos e condados. Então Jaime buscou a ajuda do rei da França, ao
qual rendeu homenagem, e a do papa, para que mediassem com seu
cunhado, o rei Pedro.
O Sumo Pontífice, defensor da causa do senhor de Maiorca, solicitou a
Pedro um salvo-conduto para Jaime a fim de que, sem perigo para ele e
para os seus, pudesse ir a Barcelona para se desculpar e se defender das
acusações que lhe eram imputadas. O rei não pôde negar o pedido do papa
e concedeu o salvo-conduto, mas antes solicitou a Valência que lhe
enviasse quatro galeras sob o comando de Mateu Mercer para vigiar o
senhor de Maiorca.

***
Toda Barcelona compareceu ao porto quando as velas das galeras do rei de
Maiorca surgiram no horizonte. A frota capitaneada por Mateu Mercer
esperava por elas. Arnau d’Erill ordenou aos trabalhadores do porto que
dessem início à construção da ponte; os barqueiros atravessaram seus
barcos, e os homens começaram a unir as tábuas por cima deles.
Quando as galeras do rei de Maiorca atracaram, os demais barqueiros
se dirigiram à galera real.
— O que está acontecendo? — perguntou um dos bastaixos, ao ver que
o estandarte real continuava a bordo e que do barco descia um só homem.
Arnau estava ensopado, assim como seus companheiros. Todos olharam
para o veguer, que tinha os olhos fixos no barco que se aproximava da
praia.
Pela ponte desembarcou apenas uma pessoa: o visconde de Èvol, um
nobre de Roussillon ricamente vestido e armado que se deteve sobre as
madeiras antes de pisar a praia.
O veguer foi ao seu encontro e, da areia, ouviu as explicações de Èvol,
que se limitava a apontar para Framenors e depois para as galeras do rei de
Maiorca. Quando a conversa terminou, o visconde regressou para a galera
real e o outro desapareceu em direção à cidade; em pouco tempo, retornou
com as instruções do rei Pedro.
— O rei Jaime de Maiorca — gritou para que todos o ouvissem — e sua
esposa, Constança, rainha de Maiorca, irmã de nosso bem-amado rei
Pedro, ficarão no convento de Framenors. É preciso construir uma ponte
de madeira, fixa, coberta dos dois lados e telhada, de onde as galeras
ficarão ancoradas até as habitações reais.
Um murmúrio se fez ouvir na praia, mas a expressão severa do veguer o
calou. Depois, a maioria dos trabalhadores do porto foi para o convento de
Framenors, que se erguia imponente sobre a linha costeira.
— É uma loucura — Arnau ouviu alguém dizer no grupo de bastaixos.
— Se houver um temporal — pressagiou outro —, isso não vai
aguentar.
— Coberto e telhado! Para que o rei de Maiorca quer uma ponte assim?
Arnau se virou para o veguer justamente quando Berenguer de
Montagut chegava à praia. Arnau d’Erill mostrou ao mestre de obras o
convento de Framenors e depois, com a mão direita, traçou uma linha
imaginária dali até o mar.
Arnau, bastaixos, barqueiros e carpinteiros de ribeira, calafates,
remolares, ferreiros e cordoeiros permaneceram em silêncio quando o
veguer terminou suas explicações, e o mestre ficou pensativo.
Por ordem do rei foram suspensas as obras de Santa Maria e da
catedral, e todos os operários se dedicaram à construção da ponte. Sob a
supervisão de Berenguer de Montagut, uma parte dos andaimes do templo
foi desmontada, e naquela mesma manhã os bastaixos começaram a
transportar o material para Framenors.
— Que bobagem — comentou Arnau com Ramon enquanto os dois
carregavam um pesado tronco. — Afanamo-nos em carregar pedras para
Santa Maria e agora as desmontamos, e tudo pelo capricho...
— Cale-se! — advertiu-o Ramon. — São ordens do rei; ele sabe por
quê.
Movidas a remo, as galeras do rei de Maiorca, sempre vigiadas de perto
pelas valencianas, se colocaram de frente para Framenors, ancoradas a
uma distância considerável do convento. Pedreiros e carpinteiros
começaram a montar um andaime apoiado na fachada do convento que
dava para o mar, uma estrutura de madeira imponente que descia até a
beira da praia, enquanto os bastaixos, ajudados por todos os que não
tinham tarefa definida, iam e vinham de Santa Maria carregando troncos e
pedaços de madeira.
Ao anoitecer, os trabalhos foram suspensos. Arnau chegou em casa
reclamando.
— Nosso rei nunca pediu uma loucura como essa; conforma-se com a
ponte tradicional, sobre os barcos. Por que permitiu semelhante capricho a
um traidor?
Mas suas palavras se apagaram e seus pensamentos mudaram ao sentir
a massagem de Maria em seus ombros.
— Suas feridas estão melhores — comentou a moça. — Algumas
pessoas usam gerânio com framboesa, mas nós sempre confiamos na
sempre-viva. Minha avó tratava meu avô com ela, e minha mãe trata meu
pai...
Arnau fechou os olhos. Sempre-viva? Há dias não via Aledis. Essa era a
única razão de ter melhorado!
— Por que você está tenso? — perguntou Maria, interrompendo seus
pensamentos. — Relaxe, você deve relaxar para que...
Continuou sem escutá-la. Para quê? Relaxar para que ela tratasse as
feridas feitas por outra mulher? Se pelo menos ela se zangasse...
Mas, em vez de gritar com ele, Maria se entregou naquela noite:
procurou-o carinhosamente e se ofereceu a ele com doçura. Aledis não
sabia o que era a doçura. Fornicavam como animais! Arnau aceitou-a de
olhos fechados. Afinal, como fitá-la? A moça lhe acariciou o corpo e a
alma e transportou-o a um prazer que, quanto maior, mais doloroso era.
Ao amanhecer, Arnau se levantou para ir a Framenors. Maria já estava
lá embaixo, junto à lareira, trabalhando para ele.
Nos três dias que duraram as obras de construção da ponte, nenhum
membro da corte do rei de Maiorca deixou as galeras; os valencianos
tampouco o fizeram. Quando a estrutura apoiada em Framenors superou a
praia e chegou à água, os barqueiros se juntaram para permitir o transporte
dos materiais. Arnau trabalhou sem descanso; quando descansava, ao parar
em casa, as mãos de Maria acariciavam seu corpo novamente, o mesmo
que dias atrás Aledis tinha mordido e arranhado. Os operários dos barcos
introduziam as estacas no fundo do porto de Barcelona, dirigidos por
Berenguer de Montagut, que, de pé na proa de um lenho, ia de um lado
para outro testando a resistência dos pilares antes de permitir que se
colocasse peso em cima deles.
No terceiro dia, a ponte de madeira — de mais de cinquenta metros de
comprimento, coberta dos dois lados — rompeu a visão diáfana do porto
da cidade condal. A galera real se aproximou da ponte, e após um tempo
Arnau e todos os que tinham participado da construção ouviram os passos
do rei e de seu séquito sobre as tábuas; muitos levantaram a cabeça.
Já em Framenors, Jaime enviou um mensageiro ao rei Pedro para
notificá-lo de que ele e a rainha Constança tinham ficado doentes devido
às inclemências da travessia marítima e que sua irmã lhe pedia que fosse
ao convento visitá-la. O rei se dispunha a fazer as vontades de Constança
quando o infante D. Pedro se apresentou diante dele acompanhado por um
jovem frade franciscano.
— Fale, frade — ordenou o monarca, visivelmente irritado por ter de
atrasar a visita à irmã.
Joan se encolheu tanto que superar o rei em altura por uma cabeça
perdeu importância. “Ele é muito baixinho”, tinham dito a Joan, “e nunca
se apresenta de pé diante de seus cortesãos.” Porém desta vez estava de pé
e olhava diretamente nos olhos de Joan, atravessando-o.
Joan balbuciou.
— Fale — insistiu o infante D. Jaime.
Joan começou a suar profusamente e notou que o hábito, apesar de
grosso, grudava em seu corpo. E se a mensagem não fosse verdadeira?
Pensou nisto pela primeira vez. Ouvira-a do velho frade que desembarcara
com o rei de Maiorca e não esperara nem um instante. Saíra correndo para
o palácio real, brigara com a guarda porque se negava a dar a mensagem a
qualquer outro que não fosse o monarca e depois cedera ante o infante D.
Pedro, mas agora... E se não fosse verdade? E se não fosse nada além de
outra armadilha do senhor de Maiorca?
— Fale, por Deus! — gritou o rei.
Ele o fez de uma só vez, sem respirar.
— Majestade, vós não deveis ir visitar vossa irmã, a rainha Constança.
É uma armadilha do rei Jaime de Maiorca. Com a desculpa de sua esposa
estar enferma e fraca, o criado encarregado da custódia da porta de seus
aposentos tem ordens de não deixar passar ninguém além de Vossa
Majestade e os infantes D. Pedro e D. Jaime. Ninguém mais poderá entrar
nos aposentos da rainha; lá dentro vos esperará uma dezena de homens
armados que vos farão prisioneiros, vos conduzirão pela ponte até as
galeras e partirão para a ilha de Maiorca, para o castelo de Alaró, onde
querem vos reter cativo até que liberteis o rei Jaime de toda a vassalagem
e lhe concedais novas terras na Catalunha.
Pronto!
Semicerrando os olhos, o rei perguntou:
— E como um frade jovem como você sabe de tudo isso?
— Foi-me contado pelo frei Berenguer, parente de Vossa Majestade.
— Frei Berenguer?
D. Pedro assentiu em silêncio, e o rei pareceu se lembrar de repente de
seu parente.
— O frei Berenguer — continuou Joan — recebeu em confissão, de um
traidor arrependido, a recomendação de que esta mensagem vos fosse
transmitida, mas, como está muito velho e não se locomove com rapidez,
confiou em mim para esta missão.
— Para isso queria a ponte fechada — interveio D. Jaime. — Se nos
prendessem em Framenors, ninguém perceberia o sequestro.
— Seria simples — assentiu o infante D. Pedro.
— Vocês sabem muito bem — disse o rei, se dirigindo aos infantes —
que, se minha irmã, a rainha, estiver doente, não posso deixar de visitá-la
dentro de meus domínios. — Joan escutava sem se atrever a fitá-los. O rei
se calou por alguns instantes. — Postergarei minha visita desta noite, mas
preciso... me ouve, frade? — Joan teve um sobressalto. — Preciso que esse
penitente arrependido nos permita revelar publicamente a traição.
Enquanto for um segredo de confissão, terei de comparecer para visitar a
rainha. Então vá — ordenou.
Joan voltou correndo para Framenors e transmitiu o recado real ao frei
Berenguer. O rei não fez a visita e, para sua tranquilidade, foi declarado
que tinha uma infecção no rosto perto do olho que precisou ser sangrada,
obrigando-o a guardar repouso por uns dias, o que Pedro entendeu como
uma proteção da divina providência, pois era o suficiente para que o frei
Berenguer conseguisse a autorização do confessante.
Naquela ocasião, Joan não duvidou nem por um instante da veracidade
da mensagem.
— O penitente do frei Berenguer é vossa própria irmã — comunicou ao
rei assim que foi levado diante dele —, a rainha Constança, que vos
solicita que a faça vir ao palácio, por sua vontade ou à força. Aqui, longe
da autoridade do marido e sob vossa proteção, vos revelará a traição com
todos os detalhes.
O infante D. Jaime, acompanhado por um batalhão de soldados, se
apresentou em Framenors para cumprir o desejo de Constança. Os frades
lhe abriram passagem, e infante e soldados se apresentaram diretamente
ao rei, cujas queixas de pouco serviram: Constança partiu para o palácio
real.
Ao rei de Maiorca tampouco serviu a visita que fez a seu cunhado, o
Cerimonioso.
— Pela palavra dada ao papa — disse-lhe o rei Pedro —, respeitarei
vosso salvo-conduto. Vossa esposa fica aqui, sob minha proteção. Deixai
os meus reinos.
Quando Jaime de Maiorca partiu com suas quatro galeras, o rei ordenou
a Arnau d’Erill que acelerasse o processo aberto contra seu cunhado, e, em
pouco tempo, o veguer de Barcelona ditou uma sentença pela qual as terras
do vassalo infiel, julgado à revelia, passavam ao poder do rei Pedro; o
Cerimonioso já tinha a desculpa que legitimava sua declaração de guerra
ao rei de Maiorca.
Enquanto isso, o rei, exultante ante a possibilidade de unir novamente
os reinos que seu antepassado Jaime, o Conquistador, dividira, mandou
chamar o jovem frade que tinha descoberto a trama.
— Você nos serviu bem e fielmente — disse o rei, desta vez sentado no
trono. — Concedo-lhe uma graça.
Joan já sabia da intenção do rei; os mensageiros o tinham comunicado.
E pensou muito bem. Vestia o hábito franciscano por indicação de seus
mestres, mas, já em Framenors, o jovem ficara desiludido: onde estavam
os livros? Onde o saber? Onde o trabalho e o estudo? Quando finalmente
se dirigiu ao prior de Framenors, este pacientemente o fez se lembrar dos
três princípios estabelecidos pelo fundador da ordem, São Francisco de
Assis:
— Simplicidade radical, pobreza absoluta e humildade. Assim devemos
viver os franciscanos.
Mas Joan desejava saber, estudar, ler, aprender. Por acaso seus mestres
não tinham lhe garantido que aquele também era o caminho do Senhor?
Por isso, quando encontrava um frade dominicano, Joan olhava para ele
com inveja. A ordem dos dominicanos se dedicava principalmente ao
estudo da filosofia e da teologia e tinha criado diversas universidades.
Joan queria pertencer à ordem dos dominicanos e prosseguir seus estudos
na prestigiada Universidade de Bolonha.
— Assim seja — sentenciou o rei, depois de ouvir os argumentos de
Joan; os pelos do corpo do jovem se eriçaram. — Confiamos em que um
dia voltará aos nossos reinos investido da autoridade moral que
proporcionam o conhecimento e a sabedoria, e que a aplicará para o bem
do seu rei e de seu povo.
26
Maio de 1343
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona

Quase dois anos tinham se passado desde que o veguer de Barcelona


condenara Jaime III. Os sinos de toda a cidade repicavam sem descanso, e
no interior de Santa Maria, cujos muros estavam abertos, Arnau os
escutava assustado. O rei tinha proclamado guerra contra Maiorca, e a
cidade estava repleta de nobres e soldados. Arnau, de guarda em frente à
capela do Santíssimo, os observava entre a gente que abarrotava Santa
Maria e se espalhava pela praça. Todas as igrejas de Barcelona oficiavam
missa para o exército catalão.
Arnau estava cansado. O rei tinha reunido sua armada em Barcelona e
fazia dias que os bastaixos trabalhavam por empreitada. Cento e dezessete
navios! Nunca se vira tal quantidade de embarcações: vinte e duas grandes
galeras aparelhadas para a guerra; sete cocas amplas preparadas para levar
os cavalos e oito grandes naus de dois e três conveses para o transporte dos
soldados. O restante era composto por embarcações médias e pequenas. O
mar estava lotado de mastros, e os navios entravam e saíam do porto.
Certamente em alguma daquelas galeras, agora armadas, Joan
embarcara, mais de um ano antes, vestido de negro, com o hábito
dominicano e com destino a Bolonha. Arnau o acompanhou até a beira.
Joan entrou em um barco e se acomodou de costas para o mar; então sorriu
para ele. Arnau viu-o subir a bordo e, assim que os remadores puseram o
barco em movimento, sentiu o estômago apertar e as lágrimas começarem
a rolar por seu rosto. Tinha ficado só.
E assim continuava. Arnau olhou em volta. Os sinos de todas as igrejas
da cidade continuavam a repicar. Nobres, clérigos, soldados, mercadores,
artesãos e o povo plebeu se espremiam em Santa Maria; a seu lado, os
companheiros do grêmio mantinham-se firmes, mas ele se sentia só. Suas
ilusões, sua vida inteira tinham desmoronado aos poucos, como a velha
igreja romana que dera vida ao novo templo. Ela já não existia. Não
restava nenhum vestígio da pequena igreja, e de onde estava podia ver a
imensa e larga nave central, delimitada pelas colunas oitavadas que
sustentavam a abóbada. Além das colunas, pelo exterior, as paredes da
igreja continuavam a ser erguidas e içadas em direção ao céu, pedra por
pedra, pacientemente.
Arnau olhou para cima. A chave da segunda abóbada já tinha sido
colocada, e os trabalhadores se dedicavam às naves laterais. O nascimento
de Nosso Senhor: este tinha sido o motivo escolhido para aquela segunda
chave de abóbada. A abóbada do presbitério estava totalmente coberta. A
seguinte, a primeira de uma imensa nave central retangular, ainda não
coberta, parecia uma teia de aranha: as quatro nervuras dos arcos estavam
a céu aberto, com a chave de abóbada no centro como uma aranha disposta
a mover-se por finos fios em busca de sua presa. O olhar de Arnau se
perdeu naqueles nervos finos. Ele sabia muito bem o que era se sentir
preso em uma teia de aranha! Cada dia Aledis o perseguia com mais
afinco. “Eu vou contar tudo aos pró-homens do seu grêmio”, ameaçava-o
quando Arnau vacilava, e ele pecava outra vez, e outra, e outra. Arnau se
virou para os outros bastaixos. Ali estava Bartolomé, seu sogro, pró-
homem, e Ramon, seu amigo e protetor. O que eles diriam? E nem sequer
contava com Joan.
Até Santa Maria parecia ter lhe dado as costas. Quando ficou
parcialmente coberta, e depois de erguidos os contrafortes que
sustentavam os arcos das naves laterais da segunda abóbada, a nobreza e
os ricos mercadores da cidade haviam começado a trabalhar nas capelas
laterais, decididos a deixar sua marca, em forma de escudos heráldicos,
imagens, sarcófagos e todo tipo de relevos cinzelados na pedra.
Quando Arnau ia à procura da ajuda de sua Virgem, sempre havia
algum mercador rico ou algum nobre circulando entre as obras. Era como
se tivessem roubado a sua igreja. Apareciam de repente e se detinham
orgulhosos nas onze capelas, entre as trinta e quatro previstas, que já
haviam sido construídas ao longo do deambulatório. Ali já se viam os
pássaros do escudo dos Busquets, na capela de Todos os Santos; a mão e o
leão rampante dos Junyents, na de São Jaime; as três peras de Boronat de
Pera, cinzeladas na chave de abóbada da capela ogival de São Paulo; a
ferradura e as bandas de Pau Ferran, no mármore da mesma capela; os
escudos dos Duforts e dos Dusays ou a fonte dos Fonts, na capela de Santa
Margarida. Até na capela do Santíssimo! Nela, a sua, a dos bastaixos,
estava sendo instalado o sarcófago do arquidiácono do Mar, que tinha
começado a construção do templo, Bernat Llull, junto ao escudo dos
Ferrers.
Arnau passava cabisbaixo ao lado dos nobres e mercadores. Ele só
carregava pedras e se ajoelhava diante da Virgem para lhe rogar que o
livrasse daquela aranha que o perseguia.
Quando terminaram os ofícios religiosos, toda Barcelona se dirigiu para
o porto. Ali estava Pedro III, ataviado para a guerra e rodeado por seus
barões. Enquanto o infante D. Jaime, conde de Urgel, permanecia na
Catalunha para defender as fronteiras do Ampurdán, Besalú e Camprodón,
que faziam limite com os condados peninsulares do rei de Maiorca, os
demais partiriam com o rei para conquistar a ilha: o infante D. Pedro,
senescal da Catalunha; mosén1 Pere de Montcada, almirante da frota;
Pedro de Eixèrica e Blasco de Alagó; Gonzalo Díez de Arenós e Filipe de
Castre; o padre Joan de Arbórea; Alfonso de Llòria; Galvani de Anglesola;
Arcadic de Mur; Arnau d’Erill; o padre Gonzalvo García; Joan Ximénez
de Urrea e muitas outras personalidades e cavaleiros nobres, preparados
para a guerra com suas tropas e respectivos vassalos.
Maria, que se encontrou com Arnau fora da igreja, apontou gritando
para eles e o obrigou a seguir a direção de seu dedo.
— O rei! O rei, Arnau. Olhe. Que porte! E a sua espada? Que grande! E
aquele nobre. Quem é, Arnau? Você o conhece? E os escudos, as
armaduras, os pendões...
Maria arrastou Arnau de um extremo ao outro da praia até que
chegaram a Framenors. Ali, longe de nobres e soldados, um enorme grupo
de homens, sujos e esfarrapados, sem escudo nem armadura, sem espada,
vestidos só com uma camisa comprida e rasgada, polainas e gorros de
couro, estava embarcando nos lenhos que os levariam aos navios.
Aqueles homens iam armados unicamente com um facão e uma lança!
— A Companhia? — perguntou Maria ao esposo.
— Sim, os almogávares.
Os dois se juntaram ao silencioso respeito com que os cidadãos de
Barcelona observavam os mercenários contratados pelo rei Pedro. Os
conquistadores de Bizâncio! Até as crianças e as mulheres, impressionadas
com as espadas e as armaduras dos nobres, como ocorrera com Maria, os
olhavam orgulhosas. Lutavam a pé e com o peito desprotegido, confiando
única e exclusivamente na sua destreza e habilidade. Quem poderia rir de
sua indumentária, de suas armas?
Os sicilianos o fizeram, ouviu dizer Arnau: riram deles no campo de
batalha. Que resistência uns esfarrapados poderiam opor a nobres a
cavalo? No entanto, os almogávares os derrotaram e conquistaram a ilha.
Os franceses também o fizeram; a história era contada por toda a
Catalunha a quem quisesse ouvi-la. Arnau a ouvira diversas vezes.
— Dizem — sussurrou ele ao ouvido de Maria — que cavaleiros
franceses aprisionaram um almogávar e o levaram à presença do príncipe
Carlos de Salerno, que o insultou chamando-o de miserável, pobre e
selvagem e riu das tropas catalãs. — Nem Arnau nem Maria afastavam o
olhar dos mercenários, que continuavam a subir nas embarcações. —
Então o almogávar, na presença do príncipe e de seus cavaleiros, desafiou
o melhor de seus homens. Ele lutaria a pé, armado unicamente com sua
lança; o francês a cavalo, com todas as suas armas. — Arnau ficou quieto
por instantes, mas Maria se virou para ele incentivando-o a continuar. —
Os franceses riram do catalão, mas aceitaram o desafio. Todos partiram
para um campo próximo do acampamento francês. Ali, o almogávar
venceu o oponente depois de matar o cavalo e aproveitar-se da falta de
agilidade do cavaleiro na luta a pé. Quando se preparava para degolá-lo,
Carlos de Salerno lhe concedeu a liberdade.
— É verdade — disse alguém às suas costas. — Lutam como
verdadeiros demônios.
Arnau sentiu que Maria se aproximava dele e o agarrava pelo braço
com força, sem afastar o olhar dos mercenários. “O que você procura,
mulher? Proteção? Se você soubesse! Nem sequer sou capaz de enfrentar
minhas fraquezas. Você acha que algum deles lhe faria mais mal do que
estou fazendo? Lutam como demônios.” Arnau olhou para eles: homens
que partiam contentes para a guerra, alegres, deixando para trás suas
famílias. Por que... por que ele não fazia a mesma coisa?
O embarque dos homens durou horas. Maria foi para casa, e Arnau
terminou vagando pela praia, no meio do povo; encontrou alguns
companheiros aqui e ali.
— Por que tanta pressa? — perguntou a Ramon, apontando para os
barcos que iam e vinham sem cessar, abarrotados de soldados. — O tempo
está bom. Não parece que haverá temporal.
— Você já vai saber — respondeu Ramon.
Naquele instante, ouviu-se o primeiro relinchar; em pouco tempo havia
dezenas deles. Os cavalos tinham esperado fora das muralhas e agora era a
hora de eles embarcarem. Das sete cocas destinadas ao transporte de
animais, algumas já estavam cheias de cavalos, os que haviam chegado
junto com os nobres de Valência ou que tinham embarcado nos portos de
Salou, Tarragona ou no norte de Barcelona.
— Vamos embora — propôs Ramon —, isto aqui vai se tornar um
verdadeiro campo de batalha.
Exatamente quando estavam deixando a praia chegaram os primeiros
animais puxados por seus cavalariços. Enormes cavalos de guerra que
escoiceavam, pateavam e mordiam, enquanto seus cuidadores lutavam
para controlá-los.
— Eles sabem que vão para a guerra — comentou Ramon, os dois
protegidos entre os barcos.
— Sabem?
— É claro. Sempre que embarcam é para ir à guerra. Olhe. — Arnau
desviou o olhar para o mar. Quatro cocas grandes, com uma quilha de
baixa profundidade, se aproximaram o máximo que puderam da praia e
abriram as rampas da popa; estas caíram na água e mostraram as entranhas
das embarcações. — E os que não sabem — continuou Ramon — são
levados pelos outros.
Logo a praia ficou repleta de cavalos. Havia centenas deles, todos
grandes, fortes e pujantes, cavalos de guerra treinados para o combate. Os
cavalariços e escudeiros corriam de um lado para outro, tentando se
esquivar dos coices e das mordidas dos animais. Arnau viu mais de um
sair voando pelo ar ou terminar escoiceado ou pisado. A confusão era
enorme, e o barulho, ensurdecedor.
— O que estão esperando? — gritou Arnau.
Então Ramon apontou novamente para as cocas. Vários escudeiros, com
a água na altura do peito, levavam cavalos até elas.
— Aqueles são os mais bem treinados. Depois que entrarem, atrairão os
outros.
Assim foi. Quando os cavalos chegaram ao final das rampas, os
escudeiros os viraram para a praia. Então começaram a relinchar
freneticamente.
Aquele foi o sinal.
O restante dos animais entrou na água levantando tanta espuma que por
instantes não se viu nada. Atrás deles, contendo-os e dirigindo-os em
direção às cocas, alguns cavalariços experientes faziam soar os chicotes.
Os homens tinham perdido as rédeas dos cavalos, que em sua maioria
andavam soltos na água, empurrando uns aos outros. Por um bom tempo, o
caos foi total: gritos e o estalo dos chicotes, animais relinchando e
brigando para subir nas cocas, e as pessoas torcendo da praia. Depois, a
tranquilidade voltou a reinar no porto. Quando as cocas foram carregadas
com os cavalos, as rampas da popa foram içadas e os enormes navios que
os levariam ficaram prontos.
A galera do almirante Pere de Montcada deu a ordem de partir, e os
cento e dezessete navios começaram a navegar. Arnau e Ramon voltaram
para a beira da praia.
— Lá se vão — comentou Ramon — para conquistar Maiorca.
Arnau assentiu em silêncio. Sim, lá se iam. Sós, deixando para trás seus
problemas e misérias. Despedidos como heróis, com a mente na guerra, só
na guerra. Quanto ele daria para estar a bordo de uma daquelas galeras!

***

Em 21 de junho daquele mesmo ano, Pedro III assistia a uma missa na


catedral de Maiorca in sede majestatis, ataviado segundo o costume: com
as vestes, as honras e a coroa correspondentes ao rei de Maiorca. Jaime III
fugira para seus domínios no Roussillon.
A notícia chegou a Barcelona e dali se espalhou por toda a península: o
rei Pedro tinha dado o primeiro passo para cumprir sua palavra de
reunificar os domínios divididos com a morte de Jaime I. Agora só faltava
reconquistar o condado da Sardenha e as terras catalãs além dos Pireneus:
o Roussillon.
Durante o longo mês que durou a campanha de Maiorca, Arnau não
pôde esquecer a imagem da armada real deixando o porto de Barcelona.
Quando os navios estavam a certa distância, as pessoas se dispersaram e
voltaram para casa. Para quê ele voltaria? Para receber um afeto e um
carinho que não merecia? Se sentou na areia e permaneceu ali até muito
depois de a última vela desaparecer no horizonte. “Afortunados eles, que
abandonam seus problemas”, repetia para si mesmo seguidamente.
Durante todo o mês, quando Aledis o espreitava no caminho de Montjuïc,
ou quando tinha de se submeter aos cuidados de Maria, Arnau ouvia
novamente os gritos e o riso dos almogávares e via a armada partir. Mais
dia, menos dia, ele seria descoberto. Não fazia muito tempo, enquanto
Aledis gemia em cima dele, alguém gritara no caminho. Alguém os teria
ouvido? Os dois permaneceram em silêncio um instante; depois, ela riu e
se jogou sobre ele. No dia em que descobrissem... o escárnio, a expulsão
do grêmio. O que ele faria então? De que viveria?
Em 29 de junho de 1343, quando toda a cidade de Barcelona, reunida na
desembocadura do rio Llobregat, foi receber a armada real, Arnau já havia
tomado uma decisão. O rei tinha de partir para conquistar o Roussillon e a
Sardenha, só assim cumpriria sua promessa, e ele, Arnau Estanyol, estaria
com aquele exército. Tinha de fugir de Aledis! Talvez assim ela o
esquecesse e, quando ele regressasse... Sentiu um calafrio: era a guerra,
homens morriam. Mas talvez quando regressasse poderia retomar a vida
com Maria, sem a perseguição de Aledis.
Pedro III ordenou aos navios que entrassem no porto da cidade,
separados e por ordem hierárquica: primeiro a galera real, depois a do
infante D. Pedro, depois a do padre Pere de Montcada, em seguida a do
senhor de Eixèrica, e assim sucessivamente.
Enquanto a frota esperava, a galera real entrou no porto e deu uma volta
por ele, para que as pessoas reunidas na praia de Barcelona pudessem
admirá-la e celebrar sua vitória.
Arnau ouviu os gritos exaltados do povo quando o navio passou.
Bastaixos e barqueiros estavam de pé na praia, na beira, já dispostos a
construir a ponte pela qual o rei devia desembarcar. Junto a ele, também
esperando, estavam Francesc Grony, Bernat Santcliment e Galcerà Carbó,
pró-homens da cidade, ladeados pelos pró-homens dos grêmios. Os
barqueiros começaram a colocar seus barcos, mas os pró-homens lhes
ordenaram que esperassem.
O que estava acontecendo? Arnau olhou para os outros bastaixos. Como
o rei ia desembarcar se não fosse pela ponte?
— Não deve desembarcar — ouviu Francesc Grony dizer ao senhor de
Santcliment. — O exército deve partir para o Roussillon antes que o rei
Jaime se reorganize ou pactue com os franceses.
Todos os presentes concordaram. Arnau desviou o olhar para a galera
real, que continuava seu percurso triunfal pelas águas da cidade. Se o rei
não desembarcasse, se a armada seguisse para o Roussillon sem parar em
Barcelona... Suas pernas ficaram bambas. Tinha de embarcar!
Até o conde de Terranova, conselheiro do rei, que tinha ficado
encarregado da cidade, apoiava a ideia. Arnau olhou para ele com ódio.
Os três pró-homens de Barcelona, o conde de Terranova e outras
autoridades subiram em um lenho que os transportou até a galera real.
Arnau ouviu seus próprios companheiros apoiarem a ideia: “Não deve
deixar que o rei de Maiorca se arme”, diziam concordando.
As discussões duraram horas. As pessoas, paradas na praia, esperaram a
decisão do rei.
Finalmente a ponte não foi construída, mas não porque a armada fosse
partir para conquistar o Roussillon e a Sardenha. O rei decidiu que não
podia continuar a campanha nas circunstâncias em que se encontrava:
carecia de dinheiro para continuar a guerra; grande parte de seus
cavaleiros havia perdido a montaria durante a travessia marítima e, por
último, precisava se apetrechar para conquistar aquelas novas terras.
Apesar do pedido das autoridades de que lhes concedesse alguns dias para
preparar os festejos pela conquista de Maiorca, o monarca se negou e
alegou que não haveria festejos enquanto seus reinos não estivessem
unidos novamente. Por isso, em 29 de junho de 1343, Pedro III
desembarcou em Barcelona como um marinheiro qualquer, pulando do
lenho na água.
Mas como diria a Maria que pensava em se alistar no exército? Aledis
não importava; o que ela ganharia se tornasse público o adultério? Se ele
fosse para a guerra, por que ela faria mal a ambos? Arnau rememorou a
história de Joan e sua mãe; aquele era o destino que a esperava caso
soubessem do adultério, e Aledis estava consciente disso, mas Maria...
Como dizer a Maria?
Arnau tentou. Tentou se despedir da moça quando ela lhe massageava
as costas. “Vou para a guerra”, podia lhe dizer. Simplesmente isto: “Vou
para a guerra.” Ela choraria. Que culpa tinha Maria? Tentou quando ela lhe
servia a comida, mas seus doces olhos o impediram. “Aconteceu alguma
coisa?”, perguntou ela. Tentou até depois de fazer amor, mas Maria o
acariciava.
Enquanto isso, Barcelona estava muito agitada. O povo desejava que o
rei partisse para conquistar a Sardenha e o Roussillon, mas o rei não
partia. Os cavaleiros exigiam do monarca o pagamento de seus soldos e
indenização pela perda de cavalos e armamentos, mas as arcas reais
estavam vazias e o rei teve de permitir que muitos de seus cavaleiros
voltassem para suas terras, entre os quais Ramon de Anglesola, Joan de
Arbórea, Alfonso de Llòria, Gonzalo Díez de Arenós e muitos outros
nobres.
Então o rei convocou a host de toda a Catalunha; os cidadãos é que
lutariam por ele. Os sinos repicaram por toda parte no principado e, por
ordem do rei, dos púlpitos foram lançados proclamas para que os homens
livres se alistassem. Os nobres abandonavam o exército catalão! O padre
Albert falava fervorosamente, alto e forte, gesticulando sem parar. Como o
rei podia defender a Catalunha? E se o rei de Maiorca, ao saber que os
nobres haviam abandonado o rei Pedro, se aliasse aos franceses e atacasse
a Catalunha? Isso já tinha acontecido em outra ocasião! O padre Albert
gritou para os paroquianos de Santa Maria; quem não se lembrava, quem
não tinha ouvido falar da cruzada dos franceses contra os catalães? Aquela
vez fora possível vencer o invasor. Mas e agora? Seria possível, se
deixassem que Jaime se rearmasse?
Arnau olhou para a Virgem de pedra com o menino no braço. Se pelo
menos tivessem tido um filho. Com certeza nada daquilo teria acontecido
se tivessem tido um filho. Aledis não teria sido tão cruel. Se tivessem tido
um filho...
— Acabo de fazer uma promessa à Virgem — sussurrou Arnau para
Maria de repente, enquanto o sacerdote, no altar-mor, seguia recrutando
soldados. — Vou me alistar no exército real para que ela nos conceda a
bênção de ter um filho.
Maria se virou para ele e antes de olhar para a Virgem pegou sua mão e
a apertou com força.

***

— Você não pode! — gritou Aledis quando Arnau lhe comunicou sua
decisão. Com as mãos, Arnau lhe pediu que baixasse o tom de voz, mas ela
continuou a gritar: — Você não pode me deixar! Vou contar a todo o
mundo...
— E daí, Aledis? — rebateu. — Vou estar no exército. Você só vai
conseguir arruinar a sua vida.
Escondidos entre os arbustos, os dois se olharam. O lábio inferior de
Aledis começou a tremer. Como ela era linda! Arnau quis tocar seu rosto
onde as lágrimas escorriam, mas se conteve.
— Adeus, Aledis.
— Você não pode me deixar — soluçou.
Arnau se virou para ela. Tinha caído de joelhos com a cabeça entre as
mãos. O silêncio a incitou a elevar os olhos para Arnau.
— Por que você faz isso comigo? — chorou.
Arnau viu as lágrimas no rosto de Aledis; todo o seu corpo tremia.
Arnau mordeu o lábio e levantou os olhos para o alto da montanha, onde
costumava buscar pedras. Para que lhe causar mais mal? Abriu os braços.
— Tenho de fazê-lo.
Ela começou a se arrastar de joelhos até poder lhe tocar as pernas.
— Tenho de fazer isso, Aledis — repetiu Arnau, pulando para trás.
E começou a descer de Montjuïc.

1. Tratamento que se dava em Aragão aos nobres de segunda classe. (N. da T.)
27

Eram prostitutas; seus vestidos coloridos o proclamavam. Aledis não sabia


se devia se aproximar delas, mas o aroma da panela de carne e verduras a
levava a fazê-lo. Estava com fome. Estava esquálida. As moças, jovens
como ela, se moviam e conversavam alegremente em volta do fogo.
Convidaram-na a se aproximar quando a viram a poucos passos das
barracas do acampamento, mas eram prostitutas. Aledis se examinou:
esfarrapada, malcheirosa, suja. As prostitutas a convidaram de novo; os
reflexos de seus vestidos de seda se movendo ao sol a distraíram. Ninguém
lhe oferecera algo para comer. Por acaso não tinha tentado em todas as
barracas, casebres ou simples fogueiras pelas quais havia se arrastado?
Alguém se apiedara dela? Fora tratada como uma mendiga comum; pedira
esmola: um pouco d’água, um pouco de pão, algo de carne, uma simples
hortaliça. Tinham cuspido na sua mão estendida. Depois tinham rido.
Aquelas mulheres eram rameiras, mas a convidaram a compartilhar sua
panela.
O rei ordenara que seu exército se reunisse na cidade de Figueras, ao
norte do principado, e para lá se dirigiram tanto os nobres que não haviam
abandonado o monarca quanto as hosts da Catalunha, entre elas os
soldados de Barcelona e, com eles, Arnau Estanyol, liberto, otimista,
armado com a besta de seu pai e uma simples adaga cega.
Mas, se em Figueras o rei Pedro conseguiu reunir cerca de mil e
duzentos homens a cavalo e quatro mil soldados a pé, conseguiu também
reunir outro exército: parentes dos soldados — principalmente dos
almogávares, os quais, como nômades que eram, carregavam consigo suas
famílias e seus lares —, comerciantes de todo tipo de mercadorias — que
esperavam comprar o que os soldados conseguissem com os saques —,
mercadores de escravos, clérigos, jogadores, ladrões, prostitutas,
mendigos e todo tipo de necessitados sem outro objetivo na vida além de
perseguir a carniça. Todos formavam uma impressionante retaguarda que
se movia ao ritmo dos exércitos e com leis próprias, geralmente muito
mais cruéis do que as da contenda de que viviam como parasitas.
Aledis era só mais uma naquele grupo heterogêneo. A despedida de
Arnau ainda ressoava em seus ouvidos. Uma vez mais, Aledis sentiu as
mãos rugosas e envelhecidas de seu marido percorrerem os interstícios de
sua intimidade. Os arquejos do velho curtidor se misturaram às
lembranças. O ancião beliscou sua vulva. Aledis não se mexeu. O ancião
beliscou de novo, mais forte, reclamando a falsa generosidade com a qual
sua mulher o premiara até aquele momento. Aledis fechou as pernas.
“Arnau, por que você me deixou?”, pensou Aledis, sentindo o velho sobre
ela, o qual se valia das mãos para poder penetrá-la. Cedeu e abriu as
pernas, ao mesmo tempo que a amargura invadia sua garganta. Dissimulou
suas ânsias de vômito. O ancião se movia sobre ela como um réptil. Ela
vomitou ao lado do leito. Ele nem percebeu. Continuou a empurrar
languidamente o pênis, ajudado por suas mãos, que o seguravam, com a
cabeça apoiada nos peitos dela, mordiscando mamilos que o asco impedia
de endurecer. Quando terminou, se jogou para seu lado da cama e dormiu.
Na manhã seguinte, Aledis fez uma pequena trouxa com seus escassos
pertences, um pouco de dinheiro que furtou do marido e um pouco de
comida e, como em qualquer outro dia, saiu à rua.
Andou até o mosteiro de Sant Pere de les Puelles e deixou Barcelona
para tomar a antiga via romana que a levaria até Figueras. Cruzou as
portas da cidade cabisbaixa, reprimindo a necessidade de sair correndo e
evitando cruzar o olhar com os soldados; alçou os olhos para o céu, azul e
brilhante, e seguiu rumo a seu novo futuro, sorrindo para os muitos
viajantes que cruzavam com ela a caminho da grande cidade. Arnau
também tinha abandonado sua esposa, ela havia comprovado. Com certeza
tinha ido embora por causa de Maria! Não podia gostar daquela mulher.
Quando faziam amor... ela percebia! Sentia-o em cima dela! Não podia
enganá-la: ele gostava dela, Aledis. E quando a visse... Aledis o imaginou
correndo em sua direção de braços abertos. Fugiriam! Sim, fugiriam
juntos... para sempre.
Nas primeiras horas de viagem, Aledis ajustou seu passo ao de um
grupo de camponeses que voltavam para suas terras depois de vender seus
produtos. Explicou a eles que ia à procura de seu marido, pois estava
grávida e tinha prometido que ele devia sabê-lo antes de entrar em
combate. Soube por eles que Figueras estava a cinco ou seis jornadas a
bom passo, seguindo aquele mesmo caminho até Girona. Mas também
teve oportunidade de escutar os conselhos de duas anciãs desdentadas que
davam a impressão de que se quebrariam sob o peso das cestas vazias que
transportavam; no entanto, iam caminhando descalças com uma energia
inconcebível em seus corpos velhos e magros.
— Não é bom que uma mulher ande sozinha por estes caminhos —
disse uma delas, fazendo que não com a cabeça.
— Não, não é — ratificou a outra.
Alguns segundos se passaram, o suficiente para que ambas
recuperassem o fôlego.
— Muito menos se for jovem e bonita — acrescentou a segunda.
— Certo, certo — concordou a primeira.
— O que pode me acontecer? — perguntou ingenuamente Aledis. — O
caminho está cheio de gente, gente boa como vocês.
Teve de esperar novamente, enquanto as anciãs davam alguns passos
em silêncio, um pouco mais longos desta vez, para não se afastarem do
grupo de camponeses.
— Aqui encontrará gente. Há muitos povoados perto de Barcelona que,
como o nosso, vivem dela. Mas um pouco mais adiante — acrescentou
sem alçar a vista do chão —, onde os povoados se distanciam entre si e
não há cidades, os caminhos ficam solitários e perigosos.
Neste momento sua companheira se absteve de fazer comentários; no
entanto, depois da espera de sempre, foi ela quem se dirigiu a Aledis:
— Quando estiver sozinha, evite que alguém a veja. Esconda-se ao
menor barulho que ouvir. Evite toda e qualquer companhia.
— Mesmo se forem cavaleiros? — perguntou Aledis.
— Principalmente estes! — gritou uma delas.
— Assim que ouvir os cascos de um cavalo, esconda-se e reze!
Desta vez as duas responderam em uníssono, encolerizadas e sem
necessidade de recuperar o fôlego; até fizeram uma pequena parada, e a
comitiva se adiantou um pouco.
A expressão de incredulidade de Aledis deve ter sido suficientemente
evidente para que as duas anciãs, depois de recuperarem o ritmo,
voltassem a insistir:
— Escute, menina — aconselhou-a uma delas, enquanto a outra
concordava antes de saber o que sua companheira ia dizer —, se eu fosse
você, voltaria para a cidade e esperaria o meu homem lá. Os caminhos são
muito perigosos, principalmente quando todos os soldados e oficiais estão
em campanha com o rei. Então não há autoridade, ninguém vigia e
ninguém teme o castigo de um rei que está ocupado com outras coisas.
Aledis caminhou pensativa ao lado das duas velhas. Se esconder dos
cavaleiros? Por que devia fazer isso? Todos os cavaleiros que iam à oficina
de seu marido tinham se mostrado corteses e respeitosos com ela. Da boca
dos numerosos mercadores que forneciam matéria-prima a seu marido,
nunca tinha ouvido relatos de roubos ou desmandos ocorridos nos
caminhos do principado. Em contrapartida, se lembrava das histórias
terríveis com que costumavam entretê-los sobre as acidentadas vias
marítimas, as viagens por terras mouras ou pelas mais distantes, do sultão
do Egito. Seu marido lhe havia contado que mais de duzentos anos atrás os
caminhos catalães eram protegidos pelas leis e pelo rei; qualquer pessoa
que ousasse infringir as leis na estrada real temia um castigo muito pior do
que o que corresponderia ao mesmo delito cometido em outro lugar. “O
comércio exige paz nos caminhos!”, acrescentava. “Como poderíamos
vender nossos produtos por toda a Catalunha se o rei não a garantisse?”
Então lhe contava, como se ela fosse uma menina, que mais de duzentos
anos atrás a Igreja tinha começado a tomar medidas para defender os
caminhos. Primeiro houve as Constituições de Paz e Trégua, que foram
ditadas em sínodos. Se alguém atentasse contra essas regras, seria
imediatamente excomungado. Os bispos estabeleceram que os habitantes
de seus condados e bispados não podiam atacar seus inimigos entre a nona
hora de sábado e a primeira hora de segunda-feira, nem nas festas
religiosas; além disso, a trégua protegia os clérigos, as igrejas e todos os
que para elas fossem ou delas regressassem. As constituições, explicara
ele, tinham sido ampliadas para proteger um número maior de pessoas e
bens: mercadores e animais agrícolas e de transporte, as ferramentas do
campo e as casas dos camponeses, os habitantes das vilas, as mulheres, as
colheitas, os olivais, o vinho... Por fim, o rei Afonso I decretou a paz nas
vias públicas e nos caminhos e determinou que quem a transgredisse
estaria cometendo um delito contra o rei.
Aledis olhou para as anciãs, que continuavam a caminhar em silêncio e
carregadas com seus fardos, arrastando os pés descalços. Quem ousaria
trair Vossa Majestade? Que cristão se arriscaria a ser excomungado por
atacar alguém em um caminho catalão? Pensava nisso quando o grupo de
camponeses virou em direção a San Andrés.
— Adeus, menina — despediram-se as velhas. — Escute estas duas
velhas — acrescentou uma delas. — Se decidir continuar, seja prudente.
Não entre em nenhum povoado e em nenhuma cidade. Poderiam vê-la, e
você seria seguida. Detenha-se unicamente nas quintas, e só onde houver
crianças e mulheres.
Aledis viu o grupo se afastar; as duas anciãs se esforçavam para não
perder o grupo de camponeses. Em poucos minutos ficou sozinha. Até
então tinha avançado na companhia daqueles camponeses, conversando e
deixando que seus pensamentos voassem tão despreocupados quanto sua
imaginação, desejando estar ao lado de Arnau, emocionada pela aventura a
que tinha sido levada por sua decisão precipitada; no entanto, quando as
vozes e barulhos de seus companheiros de viagem se perderam na
distância, Aledis se sentiu só. Tinha um longo caminho pela frente, o qual
tentou esquadrinhar colocando uma das mãos sobre a testa para se proteger
de um sol que já estava alto no céu, um céu azul-celeste, sem uma só
nuvem para embaçar a imensidão daquela magnífica cúpula que se unia no
horizonte com as vastas e ricas terras da Catalunha.
Talvez não fosse só a sensação de solidão o que assaltou a moça quando
se viu abandonada pelos camponeses, ou a sensação de estranhamento por
estar em lugar desconhecido. Na verdade, Aledis nunca tinha encarado o
céu e a terra quando nada mais se interpõe à visão do espectador, quando
se pode divisar o horizonte dando um giro... e ver isso todo o tempo! E ela
viu. Aledis olhou para o horizonte, para onde lhe haviam dito que estava
Figueras. Suas pernas fraquejaram. Girou sobre si mesma e olhou para
trás. Nada. Se afastava de Barcelona e só via terras desconhecidas. Aledis
procurou os telhados dos edifícios que sempre tinham se interposto ante a
maravilha de uma realidade desconhecida: o céu. Procurou os odores da
cidade, o cheiro de couro, os gritos do povo, o burburinho de uma cidade
viva. Estava só. De repente, as palavras das duas anciãs afluíram
atropeladamente à sua mente. Tentou divisar Barcelona na distância. Cinco
ou seis jornadas! Onde dormiria? O que comeria? Sopesou a sua trouxa. E
se as anciãs tivessem razão? O que faria? O que um cavaleiro ou um
delinquente poderiam fazer contra ela? O sol estava alto no céu. Aledis
dirigiu o olhar para onde lhe disseram que estava Figueras... e Arnau.
Redobrou a prudência. Caminhou com os sentidos à flor da pele, atenta
a qualquer ruído que perturbasse a solidão do caminho. Nas imediações de
Montcada, cujo castelo, no cume de mesmo nome, defendia a entrada da
planície de Barcelona, e com o sol já situado no meio-dia, mais uma vez o
caminho ficou coalhado de camponeses e mercadores. Aledis se juntou a
eles como se fizesse parte de uma das comitivas que se dirigiam à cidade,
mas quando chegou à porta se lembrou dos conselhos das anciãs e deu a
volta até encontrar a estrada outra vez.
Aledis ficou satisfeita ao comprovar que quanto mais avançava mais se
dissipavam os temores que a tinham assaltado ao ficar só no caminho.
Quando chegou ao norte de Montcada, continuou a cruzar com
camponeses ou mercadores, a maioria a pé, outros em carros, mulas ou
burros. Todos a cumprimentavam amavelmente, e Aledis começou a se
sentir bem com aquela generosidade no trato. Como tinha feito antes, se
juntou a um grupo, agora de mercadores, que se dirigia a Ripollet. Quando
Aledis, novamente só, deixou Val Romanas para trás, topou com o
verdadeiro rio Besós: uma corrente de água que naquela época do ano
ainda estava suficientemente caudalosa para impedir que a atravessassem
a pé.
Aledis olhou o rio e o barqueiro que esperava indolente na margem. O
homem sorriu com uma absurda expressão de condescendência e mostrou
dentes horrivelmente pretos. Aledis não tinha outra saída se queria
prosseguir a viagem: teria de usar os serviços daquele barqueiro de dentes
escuros. Tentou fechar o decote puxando os fios que se cruzavam sobre
ele, mas precisava segurar a trouxa e não conseguiu. Diminuiu o passo.
Sempre tinham lhe dito que seus movimentos eram bonitos; sempre se
aproveitava disso quando sabia que estava sendo observada.
O homem estava todo encardido. Emanava sujeira! E se soltasse a
trouxa? Não. Ele perceberia. Não tinha por que temê-lo. A camisa do
barqueiro chegava a estar áspera de sujeira. E seus pés? Deus do céu!
Quase não se viam seus dedos. Devagar. Devagar. “Deus, que homem mais
horrível”, pensou.
— Quero atravessar o rio — disse.
O barqueiro desviou o olhar dos peitos de Aledis para seus grandes
olhos castanhos.
— Tá — limitou-se a responder; depois, descaradamente, posou os
olhos em seus peitos.
— Você não me ouviu?
— Tá — repetiu, sem sequer levantar o olhar.
O rumor das águas do Besós rompeu o silêncio. Aledis pensou ter
sentido o roçar dos olhos do barqueiro em seus seios. Sua respiração se
acelerou, o que realçou seus peitos, e os olhos sanguinolentos
esquadrinharam até a última curva de seu corpo.
Aledis estava sozinha, perdida no interior da Catalunha, à beira de um
rio do qual nem sequer tinha ouvido falar e que pensava já ter atravessado
com o grupo de Ripollet, ainda por cima com um homem enorme que a
olhava com luxúria. Aledis olhou em volta. Não havia vivalma. Alguns
metros à esquerda, um pouco afastada da margem, havia uma choça
construída com troncos empilhados, tão precária e suja quanto o dono.
Diante da porta da cabana, entre restos e lixo, um fogo esquentava uma
panela apoiada em um tripé de ferro. Aledis nem quis imaginar o que
poderia estar sendo preparado naquela panela, mas o cheiro que exalava
lhe pareceu repulsivo.
— Tenho de encontrar o exército do rei — começou a dizer, hesitante.
— Tá — respondeu o barqueiro mais uma vez.
— O meu esposo é oficial do rei — mentiu, elevando o tom de voz — e
tenho de lhe comunicar que estou grávida antes que ele entre em combate.
— Tá — respondeu, mostrando novamente os dentes pretos.
Um fiozinho de baba apareceu no canto de seus lábios. O barqueiro se
limpou com a manga da camisa.
— Você não sabe dizer outra coisa?
— Sei — respondeu ele, semicerrando os olhos. — Os oficiais do rei
costumam morrer logo na batalha.
Aledis não o viu se aproximar. O barqueiro deu uma bofetada terrível
em seu rosto, e ela girou antes de cair aos pés imundos de seu agressor.
O homem se abaixou, pegou-a pelos cabelos e começou a arrastá-la
para a choça. Aledis cravou as unhas na mão dele até sentir que se
enfiavam na carne, mas ele continuou a arrastá-la. Tentou ficar de pé,
tropeçou várias vezes e caiu novamente. Se recuperou e, engatinhando, se
jogou contra as pernas de seu agressor, tentando imobilizá-lo. O barqueiro
se safou e lhe deu um chute na boca do estômago.
Já dentro do casebre, enquanto tentava recuperar o fôlego, Aledis sentiu
que a terra e o barro arranhavam seu corpo ao som da luxúria do barqueiro.

***
Enquanto esperava as diversas hosts e assembleias do principado, bem
como os víveres correspondentes, o rei Pedro estabeleceu seu quartel-
general num albergue de Figueras, cidade com representação nas Cortes e
próxima à fronteira do condado de Roussillon. O infante D. Pedro e seus
cavaleiros se instalaram em Perelada, e o infante D. Jaime e os demais
nobres — o senhor de Eixèrica, o conde de Luna, Blasco de Alagó, mosén
Juan Ximénez de Urrea, Filipe de Castro e mosén Juan Fernández de Luna,
entre outros — se dividiram, junto com suas tropas, pelos arredores de
Figueras.
Arnau Estanyol estava com as tropas reais. Aos vinte e dois anos, nunca
vivera uma experiência como a daqueles dias. O acampamento real, onde
se amontoavam mais de dois mil homens exultantes com a vitória
conquistada em Maiorca, ávidos por guerra, briga e butim, sem nada para
fazer além de esperar a ordem real de marchar contra o Roussillon, era o
polo oposto da ordem reinante em Barcelona. Afora os momentos em que
a tropa recebia instruções ou fazia exercícios de tiro, a vida no
acampamento girava em torno das apostas, das conversas em que os
novatos escutavam histórias de guerra aterrorizantes contadas pelos
veteranos orgulhosos e, como não podia deixar de ser, dos furtos e das
brigas.
Ao lado de três jovens de Barcelona tão novatos quanto ele na arte da
guerra, Arnau costumava passear pelo acampamento. Ficava maravilhado
com os cavalos e as armaduras, que os serventes sempre mantinham
lustrosas e ficavam expostas ao sol, diante das barracas, numa espécie de
competição na qual venciam as armas e apetrechos mais brilhantes. Mas,
se as selas e armas o deixavam fascinado, ele sofria com o suplício da
sujeira, do mau cheiro e da infinidade de insetos atraídos pelos dejetos de
milhares de homens e animais. Os oficiais reais ordenaram que se
cavassem fossos longos e profundos para servir como latrinas, o mais
longe possível do acampamento, perto de um regato onde se pretendia
desaguar os detritos dos soldados. Porém o córrego estava quase seco e os
montes de dejetos em decomposição criavam um fedor pegajoso e
insuportável.
Certa manhã em que Arnau e seus três companheiros passeavam entre
as barracas, viram se aproximar um cavaleiro que voltava dos exercícios.
O cavalo, em busca de uma ração bem merecida e de se livrar do peso da
armadura que lhe cobria o peito e os flancos, relinchava erguendo as patas
enquanto o cavaleiro tentava chegar à sua barraca sem causar danos, se
esquivando dos soldados e dos apetrechos amontoados nas ruas formadas
entre as barracas. Mas o animal, grande e vivaz, obrigado a se submeter ao
cruel freio que o embocava, trocava seu desejo de avançar por uma dança
espetacular cujo ritmo lançava naqueles que cruzavam com ele o suor
branco que lhe ensopava os flancos.
Arnau e seu grupo se afastaram o máximo que puderam dos passos do
cavaleiro, mas com tanta inépcia que, no exato momento, o animal
retrocedeu lateralmente e golpeou Jaume, o menor dos quatro, que perdeu
o equilíbrio e caiu no chão. O golpe não machucou o rapaz; o cavaleiro,
por sua vez, nem olhou para trás e continuou seu caminho até uma barraca
próxima. No entanto, o pequeno Jaume caiu bem no lugar em que alguns
veteranos jogavam seus soldos nos dados. Um deles perdera uma
quantidade equivalente aos benefícios que poderiam lhe caber em todas as
campanhas futuras do rei Pedro, e a briga não se fez esperar. O jogador
azarado levantou disposto a descarregar em Jaume a ira que não podia
descarregar nos companheiros. Era um homem robusto, de cabelo e barba
compridos e sujos e com uma expressão no rosto, fruto de horas de perdas
seguidas, que teria amedrontado o mais valente inimigo.
O soldado agarrou o intrometido e o levantou no ar até a altura de seus
olhos. Jaume nem sequer teve tempo de entender o que estava
acontecendo. Em questão de segundos, o cavalo o tinha derrubado, ele
caíra e agora era atacado por um energúmeno que gritava com ele e o
sacudiu até que, sem soltá-lo, lhe deu uma bofetada que fez com que um
filete de sangue escorresse por seus lábios.
Arnau viu Jaume se debater no ar.
— Deixe-o, seu porco! — Ele próprio se surpreendeu com suas
palavras.
As pessoas começaram a se afastar de Arnau e do veterano. Jaume, que,
também surpreso, tinha parado de se mexer, caiu sentado quando o outro o
soltou para enfrentar aquele que tinha ousado insultá-lo. De repente, Arnau
se viu no centro de um círculo formado pelos muitos curiosos que tinham
se aproximado para assistir ao espetáculo. Ele e um soldado enfurecido. Se
pelo menos não o tivesse insultado... Por que o chamara de porco?
— Ele não teve culpa — balbuciou Arnau apontando para Jaume, que
ainda não entendera o que tinha acontecido.
Sem dizer nenhuma palavra, o soldado investiu contra Arnau como um
touro furioso; golpeou-o no peito com a cabeça e lançou-o vários metros
adiante, o bastante para afastar o círculo de curiosos. Arnau sentiu uma
dor como se tivessem arrebentado seu peito. O ar fétido a que tinha se
acostumado parecia ter desaparecido de repente. Abriu a boca. Tentou ficar
de pé, mas um chute no rosto o jogou novamente por terra. Uma dor
intensa tomou conta de sua cabeça enquanto tentava recuperar o fôlego e,
quando começava a recuperá-lo, outro chute, desta vez nos rins, o
derrubou mais uma vez. Depois a surra foi tão terrível que Arnau fechou
os olhos e se encolheu como um novelo no chão.
Quando o veterano cessou os ataques, Arnau pensou que aquele louco o
tinha arrebentado; mas, apesar da dor que sentia, parecia que ouvia algo.
Do chão, ainda encolhido, aguçou o ouvido.
Então ouviu.
Ouviu uma vez.
E outra vez, e outra, e outras mais. Abriu os olhos e viu as pessoas do
círculo apontando para ele e rindo. As palavras de seu pai ressoaram em
seus ouvidos maltratados: “Eu abandonei tudo o que tinha para que você
pudesse ser livre.” Em sua mente aturdida, imagens e lembranças se
confundiram. Viu seu pai pendurado em uma corda na Praça de Blat...
Levantou-se com o rosto sangrando. Lembrou-se da primeira pedra que
levou para a Virgem do Mar... O veterano estava de costas. O esforço que
naquela época precisara fazer para transportar aquela pedra nas costas... A
dor, o sofrimento, o orgulho ao descarregá-la...
— Seu porco!
O barbudo girou em sua direção. Todo o acampamento ouviu o roçar de
suas calças quando girou.
— Camponês estúpido! — gritou, antes de tornar a se lançar com todo
o seu tamanho sobre Arnau.
Nenhuma pedra poderia pesar menos do que esse porco. Nenhuma
pedra... Arnau se lançou sobre o outro, se agarrou a ele para impedir que o
golpeasse e ambos rolaram pela areia. Arnau conseguiu se levantar antes
do soldado e, em vez de bater nele, o agarrou pelos cabelos e pelo cinto de
couro que usava, ergueu-o como se fosse uma marionete e jogou-o pelo ar
em cima do círculo de curiosos.
O barbudo caiu estrepitosamente sobre os espectadores.
Porém aquela demonstração de força não intimidou o soldado.
Acostumado a brigar, em poucos segundos ele estava de novo diante de
Arnau, que estava firmemente plantado no chão, esperando-o. Dessa vez o
veterano tentou golpeá-lo em vez de se jogar sobre ele, mas Arnau foi
mais rápido: deteve o golpe agarrando-o pelo antebraço e, depois de girar
sobre si mesmo, jogou-o no chão mais uma vez, a vários metros dali. No
entanto, a maneira como Arnau se defendia não causava dano no soldado,
e o ataque se repetia diversas vezes.
No final, quando o veterano esperava que seu oponente o lançasse
novamente pelo ar, Arnau lhe desferiu um murro no rosto, um golpe em
que o bastaix colocou toda a raiva que trazia dentro de si.
Os gritos que tinham acompanhado a luta se calaram. O barbudo caiu
inconsciente aos pés de Arnau, que queria pegar a mão com que o tinha
golpeado e aliviar a dor que estava sentindo nos nós dos dedos, mas
aguentou os olhares com o punho fechado, como se estivesse disposto a
esmurrar novamente. “Não se levante”, pensou olhando para o soldado.
“Por Deus, não se levante.”
De maneira desajeitada, o homem tentou se erguer. “Não faça isso!”
Arnau apoiou o pé direito no rosto de seu adversário e empurrou-o para o
chão. “Não se levante, filho da puta.” Ele não o fez, e seus companheiros
se aproximaram para erguê-lo.
— Rapaz! — A voz soou autoritária. Arnau se virou e viu o cavaleiro
que causara a briga, ainda vestido com a armadura. — Venha até aqui.
Arnau obedeceu, massageando a mão dissimuladamente.
— Sou Eiximèn d’Esparça, escudeiro de sua majestade o rei Pedro III, e
quero que você sirva sob minhas ordens. Apresente-se aos meus oficiais.
28

As três moças se calaram e se entreolharam quando Aledis caiu de joelhos


frente à panela como um animal faminto, enfiando as mãos na sopa para
apanhar a carne e as verduras, sem deixar de observá-las por cima da
tigela. A moça mais jovem, com uma cascata de cabelos louros
encaracolados que caíam sobre seu vestido azul-celeste, franziu os lábios
para as outras duas perguntando-se: quem entre elas não vivera a mesma
situação? Suas companheiras assentiram com o olhar, e as três se
afastaram alguns passos.
Enquanto se afastavam, a moça de cabelos louros se virou para o
interior da barraca. Ali, protegidas do sol de julho que inundava o
acampamento, a patroa sentada em um banquinho e outras quatro moças
um pouco mais maduras não desviavam a vista de Aledis. A patroa
balançara a cabeça quando Aledis aparecera, autorizando-as a lhe
oferecerem comida; dali em diante não deixara de observá-la: esfarrapada
e suja, mas bela... e jovem. O que fazia aquela moça por ali? Não era uma
vagabunda, não mendigava como elas. Tampouco era uma prostituta;
retrocedera instintivamente ao vê-las. Estava suja, sim; também tinha a
camisa rasgada. Seus cabelos eram um emaranhado de fios engordurados,
é verdade, porém seus dentes eram brancos como a neve. Aquela jovem
não conhecia a fome nem as doenças que escureciam os dentes. O que
fazia ali? Devia estar fugindo de algo, mas de quê?
A patroa fez um gesto para uma das mulheres que a acompanhavam no
interior da barraca.
— Eu a quero limpa e arrumada — sussurrou quando a outra se
inclinou em sua direção.
A mulher olhou para Aledis, sorriu e assentiu.

***
Aledis não pôde resistir. “Você precisa de um banho”, disse uma prostituta
que saiu da barraca quando ela terminou de comer. Um banho! Havia
quantos dias não se lavava? Dentro da barraca, lhe prepararam uma bacia
de água fresca, e Aledis se sentou nela com as pernas encolhidas. As três
moças que a tinham acompanhado enquanto comia se ocuparam dela e a
lavaram. Por que não se deixar cuidar? Não podia se apresentar diante de
Arnau naquele estado. O exército estava acampado muito perto dali, e
Arnau devia estar lá. Ela conseguira! Por que não se deixar lavar? Também
se deixou vestir. Escolheram para ela o vestido menos chamativo, mas,
mesmo assim... “As mulheres públicas devem usar tecidos coloridos”, lhe
dissera a mãe quando ela, ainda menina, confundira uma prostituta com
uma nobre e quisera lhe dar passagem. “Então, como as distinguimos?”,
perguntara Aledis. “O rei as obriga a se vestir assim, mas elas são
proibidas de usar capa ou sobretudo mesmo no inverno. Assim você
distingue as prostitutas: elas nunca cobrem os ombros.”
Aledis se olhou novamente. As mulheres de sua classe, as esposas dos
artesãos, não podiam usar roupas coloridas; assim ordenava o rei, e, no
entanto, como eram belos aqueles tecidos! Mas como se apresentaria a
Arnau vestida daquela maneira? Os soldados a confundiriam... Ergueu um
braço para se ver de lado.
— Você gosta?
Aledis se virou e viu a patroa junto à entrada da barraca. Antònia, a
jovem loura de cabelos encaracolados que a ajudara a se vestir,
desapareceu ao primeiro sinal da outra.
— Sim... não... — Aledis se olhou outra vez. O vestido era verde-claro.
Será que aquelas mulheres teriam algo para cobrir os ombros? Se ela se
cobrisse, ninguém pensaria que era prostituta.
A patroa a olhou de cima a baixo. Não se enganara. Um corpo
voluptuoso que deixaria qualquer oficial encantado. E os olhos? As duas
mulheres se olharam. Eram enormes. Castanhos. Porém pareciam tristes.
— O que a trouxe aqui, menina?
— O meu esposo. Ele está no exército e foi embora sem saber que vai
ser pai. Quero dizer isso a ele antes que entre em combate.
Ela falou rapidamente, como fizera com os mercadores que a tinham
recolhido no Besós quando o barqueiro, ao tentar se desfazer dela
afogando-a no rio após consumar a violação, fora surpreendido pelos
comerciantes e fugira. Aledis terminara por se render àquele homem e
soluçara jogada no chão de lama enquanto ele a forçava e quando a
arrastara para o rio. O mundo não existia, o sol tinha se apagado e os
arquejos do barqueiro se perdiam em seu interior, mesclando-se às
lembranças e à impotência. Os mercadores tiveram dó quando a viram
naquele estado.
— É preciso denunciá-lo ao veguer — disseram.
Mas o que ela diria ao representante do rei? E se o seu marido estivesse
atrás dela? E se a descobrissem? Haveria um julgamento, e ela não podia...
— Não. Preciso chegar ao acampamento real antes que as tropas partam
para o Roussillon — disse ela, depois de lhes explicar que estava grávida e
que o marido não sabia. — Assim, contarei ao meu esposo e ele decidirá.
Os mercadores a acompanharam até Girona. Aledis se separou deles na
igreja de Sant Feliu, nos arredores da cidade; o mais velho balançou a
cabeça ao vê-la só e maltratada junto ao muro da igreja. Aledis recordou o
conselho das anciãs: não entre em nenhum povoado ou cidade. Por conta
disso, ela não entrou em Girona, uma cidade de seis mil habitantes. De
onde estava podia ver a cobertura da igreja de Santa Maria, a sé, em
construção; ao seu lado estava o palácio do bispo e, ao lado deste, a torre
Gironella, alta e grossa, a maior defesa da cidade. Olhou tudo aquilo por
um instante e se pôs novamente a caminho de Figueras.
A patroa, que continuava a observá-la enquanto Aledis recordava a
viagem, notou que ela tremia.
A presença do exército em Figueras atraía centenas de pessoas. Aledis
se somou a elas acossada pela fome. Não conseguia gravar os rostos.
Deram-lhe pão e água fresca. Alguém lhe ofereceu uma verdura. Passaram
a noite ao norte do rio Fluviá ao pé do castelo de Pontons, que protegia a
passagem do rio pela cidade de Báscara, a meio caminho entre Girona e
Figueras. Ali os viajantes cobraram pela comida, e dois deles montaram
nela como selvagens durante a noite. Que diferença fazia! Aledis buscou
na memória o rosto de Arnau para se consolar. No dia seguinte, seguiu-os a
alguns passos de distância, como um animal, mas não lhe deram comida
nem falaram com ela até que, finalmente, chegaram ao acampamento.
E agora... o que aquela mulher olhava? Seus olhos não se afastavam
de... sua barriga! Aledis reparou na própria barriga lisa e dura sob o
vestido justo. Se moveu inquieta e baixou os olhos.
A patroa deixou escapar uma expressão de satisfação que Aledis não
pôde ver. Quantas vezes ouvira aquelas confissões silenciosas? Moças que
inventavam histórias, incapazes de sustentar suas mentiras diante da mais
leve pressão; ficavam nervosas e baixavam os olhos, como aquela.
Quantas vezes ela vira moças grávidas? Dezenas, centenas de vezes?
Nunca vira uma moça grávida com uma barriga dura e lisa como aquela.
Uma falha na menstruação? Podia ser, mas era inimaginável que uma
falha a levasse a correr atrás de um esposo a caminho da guerra.
— Você não pode comparecer ao acampamento real vestida desse jeito.
— Aledis levantou os olhos ao ouvir a patroa e se olhou novamente. —
Somos proibidas de ir lá. Se você quiser, eu posso encontrar o seu esposo.
— Você me ajudaria? Por que o faria?
— Por acaso já não a ajudei? Dei-lhe de comer, lavei e vesti você.
Ninguém fez isto neste acampamento de loucos, não é mesmo? — Aledis
concordou. Um calafrio percorreu seu corpo ao lembrar como fora
maltratada. — Por que você estranha, então? — continuou a mulher.
Aledis hesitou. — Somos mulheres públicas, é verdade, mas não significa
que não tenhamos coração. Se alguém tivesse me ajudado há alguns anos...
— A patroa ficou com o olhar perdido, e suas palavras flutuaram no
interior da barraca. — Bem, não importa. Se você quiser, eu posso fazer
isso. Conheço muita gente no acampamento e não seria difícil trazer o seu
esposo.
Aledis avaliou a oferta. “Por que não?” A patroa pensou em sua futura
aquisição. Não seria difícil fazer desaparecer o esposo, uma simples briga
no acampamento... aqueles soldados lhe deviam muitos favores, e então a
quem a moça pediria ajuda? Estava só. Ela se entregaria facilmente. Se
fosse verdade, a gravidez não seria um problema; quantas ela resolvera
com algumas moedas?
— Eu agradeço — assentiu Aledis.
Pronto. Ela era sua.
— Como se chama seu esposo, e de onde vem?
— Vem com a host de Barcelona e se chama Arnau, Arnau Estanyol. —
A patroa estremeceu. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou Aledis.
A mulher procurou o banquinho e sentou-se. Suava.
— Não — respondeu —, deve ser esse maldito calor. Traga-me aquele
leque.
“Não pode ser!”, pensou enquanto Aledis atendia seu pedido. Suas veias
latejavam. Arnau Estanyol! Não era possível!
— Descreva o seu esposo — disse, sentada e abanando-se.
— Ah! Deve ser muito fácil encontrá-lo. É bastaix do porto. É jovem e
forte, alto e bonito, e tem um sinal ao lado do olho direito.
A patroa continuou a se abanar em silêncio. Sua atenção foi muito além
de Aledis, para um povoado chamado Navarcles, uma festa de casamento,
uma enxerga e um castelo... Llorenç de Bellera, o escárnio, a fome e a
dor... Quantos anos tinham se passado? Vinte? Sim, deviam ser vinte,
talvez mais. E agora...
Aledis interrompeu o seu silêncio:
— Conhece-o?
— Não... não.
Chegara a conhecê-lo? Na verdade, recordava de muito pouco sobre ele.
Ela era só uma menina naquela época!
— A senhora me ajudará a encontrá-lo? — Aledis a interrompeu
novamente.
“E quem me ajuda se o encontrar?” Precisava ficar sozinha.
— Farei isso — afirmou, indicando a saída da barraca.
Quando Aledis saiu, Francesca levou as mãos ao rosto. Arnau! Tinha
chegado a esquecê-lo; ela se obrigara a fazê-lo, e agora, vinte anos
depois... Se a moça estava dizendo a verdade, aquela criança que levava
nas entranhas seria... seu neto! E ela chegara a pensar em matá-lo. Vinte
anos! Como seria ele? Aledis dissera que era alto, forte, bonito. Não se
lembrava dele, nem sequer recém-nascido. Conseguira que ele ficasse no
calor da forja, mas depois não podia chegar até onde estava o seu menino.
“Malditos! Eu era só uma menina e faziam fila para me violar!” Uma
lágrima começou a rolar pelo seu rosto. Havia quanto tempo não chorava?
Naquela época, vinte anos antes, não o fizera. “O menino estará melhor
com Bernat”, pensara na época. Quando soube de tudo, D. Caterina
esbofeteou-a e ela terminou mendigando, primeiro entre os soldados e o
lixo; depois, ao redor da muralha do castelo. Ninguém a desejava mais, e
Francesca passou a vagar entre a imundície ao lado de um monte de
desgraçados como ela, brigando pelos restos de pão duro, mofado e cheio
de vermes. Ali encontrou uma menina enquanto ambas fuçavam os restos.
Estava magra, mas era bonita. Ninguém a vigiava. Talvez se... Ofereceu-
lhe os restos de comida que guardara para si. A menina sorriu e seus olhos
se iluminaram; provavelmente não conhecia outra vida além daquela.
Lavou-a em um riacho e esfregou sua pele com areia até que a garota
gritou de dor e de frio. Depois só teve de levá-la a um dos oficiais do
castelo do senhor de Bellera. Assim começou tudo. “Endureci, filho,
endureci a tal ponto que meu coração tem calos. O que seu pai terá lhe
contado sobre mim? Que o entreguei à morte?”
Naquela mesma noite Francesca indagou sobre Arnau aos oficiais e
soldados do rei que foram à barraca depois de ganhar nas cartas.
— Você se refere ao bastaix? — respondeu um deles. — É claro que o
conheço, todos o conhecem. — Francesca inclinou a cabeça. — Dizem que
venceu um veterano que todos temiam — explicou —, e Eiximèn
d’Esparça, o escudeiro do rei, recrutou-o para sua guarda pessoal. Tem um
sinal perto do olho. Foi treinado para usar o punhal, sabe? Então começou
a competir em várias contendas e venceu todas. Vale a pena apostar nele.
— O oficial sorriu. — Por que está interessada nele? — acrescentou,
ampliando o sorriso.
“Por que não dar asas a uma imaginação lasciva?”, pensou ela. Era
difícil dar outra explicação. Ela piscou um olho para o oficial.
— Você já está velha para um homem desses. — O soldado riu.
Francesca não se alterou.
— Traga-o para mim e não se arrependerá.
— Aonde? Aqui?
E se Aledis estivesse mentindo? Suas primeiras impressões nunca
falhavam.
— Não. Aqui não.

***

Aledis se afastou alguns passos da barraca de Francesca. A noite estava


linda, estrelada e cálida, com uma lua que tingia a escuridão de amarelo. A
moça fitava o céu e observava os homens que entravam na barraca e logo
saíam acompanhados por uma das mulheres em direção a pequenas choças
de onde depois saíam, às vezes rindo, às vezes em silêncio. A cena se
repetia vezes seguidas. A cada vez, as mulheres iam até a bacia onde
Aledis tinha se banhado e lavavam as partes olhando-a com descaro, como
fizera aquela mulher a quem uma vez sua mãe não lhe permitira dar
passagem.
— Por que ela não é presa? — perguntara Aledis à mãe naquela
ocasião.
Eulália olhou para a filha, avaliando se já seria suficientemente adulta
para receber uma explicação.
— Não podem fazê-lo; o rei e a Igreja lhes permitem exercer o seu
ofício. — Aledis olhou para ela, incrédula. — Sim, filha, é assim. A Igreja
diz que as mulheres públicas não podem ser castigadas pela lei terrena,
que a lei divina o fará. — Como explicar a uma criança que a verdadeira
razão que levava a Igreja a sustentar aquela máxima era evitar o adultério
e as relações sexuais contra a natureza? Eulália voltou a observar a filha.
Não, ela não podia conhecer as relações sexuais contra a natureza.
Antònia estava ao lado da bacia e sorriu para ela. Aledis franziu os
lábios tentando sorrir.
“O que mais sua mãe lhe dissera?”, pensou tentando se distrair. Que não
podiam viver em cidades, povoados e em nenhum outro lugar onde
vivessem pessoas honestas, sob pena de serem expulsas até de suas
próprias casas se os vizinhos assim pedissem. Que eram obrigadas a ouvir
sermões para tentar se reabilitar. Que só podiam usar os banhos públicos
às segundas e às sextas-feiras, dias reservados aos judeus e sarracenos. E
que com seu dinheiro podiam fazer caridade, mas nunca oferendas diante
do altar.
Antònia, de pé na bacia, com a saia recolhida em uma das mãos, se
lavava com a outra e continuava a sorrir para ela. Cada vez que se erguia
depois de pegar água com a mão para lavar a virilha, olhava para ela e
sorria. Aledis tentava retribuir o sorriso e não olhar o seu púbis exposto à
luz da lua.
Por que sorria para ela? Devia ser só uma menina e já estava
condenada. Alguns anos atrás, pouco depois que seu pai se recusara a
deixá-la casar-se com Arnau, sua mãe a levara com a irmã Alesta ao
mosteiro de San Pedro de Barcelona. “Que elas vejam aquilo!”, ordenara o
curtidor à esposa. O átrio estava cheio de portas arrancadas das
dobradiças, apoiadas nos arcos ou jogadas no pátio. O rei concedera um
privilégio à abadessa de San Pedro para que, com sua autoridade e sem
implorar a ajuda de ninguém, ordenasse às mulheres desonestas que
saíssem de sua paróquia e depois arrancasse as portas de suas casas e as
levasse para o átrio do mosteiro. A abadessa, é claro, pôs mãos à obra!
— Tudo isso são despejados? — perguntou Alesta, agitando a mão e
recordando quando haviam sido despejadas de sua casa antes de
terminarem na de Pere e Mariona: a porta de sua casa tinha sido arrancada
por falta de pagamento.
— Não, filha — respondeu a mãe. — Isto é o que acontece com as
mulheres que não guardam a castidade.
Aledis rememorou aquele momento. Enquanto falava, a mãe olhou
diretamente para ela com os olhos semicerrados.
Afastou aquela má lembrança da mente balançando a cabeça de um
lado para outro, até topar novamente com o púbis louro de Antònia,
coberto de pelos crespos como os de sua cabeça. O que a abadessa de San
Pedro faria com Antònia?
Francesca saiu da barraca procurando pela moça. “Menina!”, gritou.
Aledis a viu pular da bacia, calçar os sapatos e entrar correndo na barraca.
Depois seu olhar cruzou com o de Francesca antes de a patroa voltar aos
seus afazeres. O que escondia aquele olhar?

***

Eiximèn d’Esparça, escudeiro de sua majestade o rei Pedro III, era um


personagem importante, muito mais importante por sua posição do que por
sua compleição, porque, no momento em que apeou de seu imponente
cavalo de guerra e retirou a armadura, mostrou ser um homem baixo e
magro. Fraco, concluiu Arnau, temendo que o nobre adivinhasse seus
pensamentos.
Eiximèn d’Esparça estava no comando de uma companhia de
almogávares que ele pagava com seus próprios meios. Mas quando
observava os seus homens era assaltado pela dúvida. Onde estava a
lealdade daqueles mercenários? No soldo, só no soldo. Por isso gostava de
se ver rodeado por uma guarda pretoriana, e o combate de Arnau o
impressionara.
— Que armas você sabe usar? — perguntou-lhe o oficial do escudeiro
real. O bastaix mostrou a besta de seu pai. — Isso eu já imaginava. Todos
os catalães sabem usá-la; é uma obrigação. Alguma outra?
Arnau negou com a cabeça.
— E este punhal? — disse o oficial, apontando para a arma que Arnau
levava no cinto, e caiu numa sonora gargalhada, jogando a cabeça para trás
quando ele lhe mostrou o punhal cego. — Com isso — disse ele rindo —
você não rasga nem o hímen de uma donzela. Você vai treinar com um de
verdade, no corpo a corpo.
Abriu uma arca e lhe entregou um machete, muito mais comprido que o
punhal de bastaix. Arnau passou um dedo pelo gume. A partir de então,
todos os dias ele se juntava à guarda de Eiximèn para treinar com o novo
punhal na luta corpo a corpo. Também lhe deram um uniforme colorido
que incluía uma cota de malha, um elmo — que ele polia até deixar
resplandecente — e fortes sapatos de couro amarrados à panturrilha com
tiras cruzadas. Os duros treinamentos eram alternados com combates
reais, corpo a corpo, sem armas, organizados pelos oficiais dos nobres do
acampamento. Arnau se tornou representante das tropas do escudeiro real
e não passava um dia sem que participasse de uma ou duas contendas, e
toda a gente se juntava à sua volta, gritava e fazia apostas.
Poucas contendas foram suficientes para que adquirisse fama entre os
soldados. Quando passeava entre eles em seus poucos momentos de
descanso, sentia que o observavam e apontavam para ele. Que estranha era
a sensação de provocar silêncio por onde passava!
O oficial de Eiximèn d’Esparça sorriu quando seu companheiro o
questionou sobre o jovem bastaix.
— Eu também poderei desfrutar de uma das suas moças? — quis saber.
— Claro. A velha está interessada no seu soldado. Você não imagina
como seus olhos brilhavam.
Os dois riram.
— Para onde devo levá-lo?

***

Francesca escolheu para a ocasião uma pequena taberna fora de Figueras.


— Obedeça e não faça perguntas — disse o oficial a Arnau —, alguém
quer ver você.
Os dois oficiais o acompanharam até a taberna e, uma vez ali, até o
mísero quarto onde Francesca o esperava. Quando Arnau entrou, fecharam
a porta e a trancaram por fora. Arnau deu meia-volta e tentou abri-la;
depois bateu na porta.
— O que está acontecendo? — gritou. — O que significa isto?
Em resposta, ouviu as gargalhadas dos oficiais.
Arnau os ouviu por um instante. O que significava aquilo? De repente
percebeu que não estava só e se virou. Francesca, de pé, o observava
apoiada na janela, fracamente iluminada pela luz de uma vela pendurada
em uma parede. Apesar da penumbra, seu vestido verde brilhava. Uma
prostituta! Ele ouvira muitas histórias de mulheres diante do calor das
fogueiras do acampamento, quando os homens se gabavam de gastar seu
dinheiro com uma moça sempre melhor, mais bela e mais voluptuosa que
a dos outros. Então Arnau se calava e baixava os olhos; ele chegara ali
fugindo de duas mulheres. Talvez... talvez aquela brincadeira fosse
consequência de seu silêncio, de sua aparente falta de interesse pelas
moças... Quantas vezes os soldados o tinham provocado devido ao seu
silêncio?
— Que brincadeira é esta? — perguntou a Francesca. — O que você
quer de mim?
Ainda não conseguia vê-lo. A vela não o iluminava suficientemente,
mas a sua voz... era a voz de um homem, e ele era grande e alto como a
outra o descrevera. Sentiu os joelhos tremerem e as pernas fraquejarem. O
seu filho!
Francesca teve de pigarrear antes de falar.
— Tranquilize-se. Não quero nada que possa comprometer a sua honra.
Em todo caso — acrescentou —, estamos sozinhos; o que eu, uma mulher
comum, poderia fazer contra um homem jovem e forte como você?
— Então por que eles estão rindo? — perguntou Arnau apontando para
a porta.
— Deixe-os rir se quiserem. A mente do homem é torta e geralmente
prefere acreditar no pior. Se eu tivesse contado as razões de minha
insistência em vê-lo, talvez não se mostrassem tão dispostos como ficaram
quando a imaginação alimentou sua luxúria.
— O que pensariam de uma prostituta e um homem trancados num
quarto nesta taberna? O que se pode esperar de uma prostituta?
Seu tom foi duro, incisivo. Francesca conseguiu se manter calma.
— Também somos pessoas — disse, elevando a voz. — Santo
Agostinho escreveu que Deus julgaria as meretrizes.
— Você não me fez vir até aqui para falar de Deus, não é mesmo?
— Não — Francesca aproximou-se dele; tinha de ver seu rosto —,
chamei-o para falar de sua esposa.
Arnau vacilou. Era realmente belo.
— O que está acontecendo? Como é possível?
— Está grávida.
— Maria?
— Aledis... — corrigiu-o Francesca sem pensar; mas ele não dissera
Maria?
— Aledis?
Francesca viu que o jovem estava tremendo. O que significava aquilo?
— O que vocês tanto falam? — Os gritos vinham do outro lado da
porta, entre batidas e gargalhadas. — O que foi, patroa? Ele é homem
demais para você?
Arnau e Francesca se entreolharam. Ela lhe fez um sinal para se afastar
da porta, e Arnau obedeceu. Os dois baixaram a voz.
— Você disse Maria? — perguntou Francesca, quando já estavam ao
lado da janela, no extremo oposto do quarto.
— Sim. Minha esposa se chama Maria.
— E quem é Aledis, então? Ela me disse...
Arnau negou com a cabeça. “É tristeza o que transparece em seus
olhos?”, perguntou-se Francesca. Arnau desabara: seus braços caíam ao
lado do corpo, e o pescoço, antes altaneiro, parecia incapaz de suportar o
peso da cabeça. No entanto, não respondeu. Francesca sentiu uma pontada
no mais profundo de seu ser. “O que houve, filho?”
— Quem é Aledis? — insistiu.
Arnau negou novamente com a cabeça. Ele deixara tudo: Maria, seu
trabalho, a Virgem... e agora ela estava ali! Grávida! Todos saberiam.
Como poderia voltar para Barcelona, para seu trabalho e sua casa?
Francesca olhou pela janela. Estava escuro. O que era aquela dor que a
oprimia? Ela vira homens se arrastarem, mulheres despejadas; presenciara
a morte e a miséria, a doença e a agonia, mas até aquele momento nunca
se sentira assim.
— Não acho que ela esteja dizendo a verdade — afirmou com a
garganta seca, sem deixar de olhar pela janela. Percebeu que Arnau se
mexia ao seu lado.
— O que você quer dizer?
— Acho que não está grávida, acho que está mentindo.
— Que diferença faz! — ouviu Arnau dizer a si mesmo.
Ela estava ali, isso era o suficiente. Ela o seguia, o assediaria
novamente. Tudo o que fizera não servira para nada.
— Eu poderia ajudá-lo.
— E por que o faria?
Francesca se virou para ele. Quase se tocavam. Poderia tocá-lo. Podia
senti-lo. “Porque você é meu filho!”, podia dizer. Seria o momento, mas o
que Bernat teria lhe dito sobre ela? De que serviria aquele moço saber que
sua mãe era uma mulher pública? Francesca estendeu uma mão trêmula.
Arnau não se mexeu. De que serviria? Interrompeu o gesto. Mais de vinte
anos tinham transcorrido, e ela não passava de uma prostituta.
— Porque ela me enganou — respondeu. — Dei-lhe de comer, vesti-a e
acolhi-a. Não gosto de ser enganada. Você parece uma boa pessoa, e acho
que ela também está tentando enganar você.
Ele a olhou diretamente nos olhos. Que diferença fazia? Livre do
marido e longe de Barcelona, Aledis contaria tudo. No entanto, aquela
mulher... O que havia nela que o deixava tranquilo?
Arnau abaixou a cabeça e começou a falar.
29

O rei Pedro III, o Cerimonioso, já estava em Figueras havia seis dias


quando, em 28 de julho de 1343, ordenou levantar acampamento e iniciar a
marcha em direção ao Roussillon.
— Você terá de esperar — disse Francesca a Aledis enquanto as moças
desmontavam a barraca para seguir o exército. — Quando o rei dá ordens
de marchar, os soldados não podem abandonar as fileiras. Talvez no
próximo acampamento...
Aledis a interrogou com os olhos.
— Já mandei um recado para ele — acrescentou Francesca sem lhe dar
importância. — Você vem conosco?
Aledis concordou.
— Então ajude — ordenou Francesca.
Mil e duzentos homens a cavalo e mais de quatro mil a pé, armados
para a guerra e com provisões para oito dias, se puseram em movimento
em direção a La Junquera, a pouco mais de meia jornada de Figueras.
Atrás do exército, uma multidão de carroças, mulas e todo tipo de gente.
Uma vez em La Junquera, o rei ordenou montar acampamento outra vez; o
novo mensageiro do papa, um frade agostiniano, trazia outra carta de
Jaime III. Quando Pedro III conquistou Maiorca, o rei Jaime recorreu ao
papa em busca de ajuda; frades, bispos e cardeais mediaram em vão
perante o Cerimonioso.
Como ocorrera antes, o rei não fez caso do enviado papal. O exército
anoiteceu em La Junquera. “Seria o momento?”, pensou Francesca vendo
Aledis ajudar as outras moças com a comida. Não, concluiu. Quanto mais
longe estivessem de Barcelona e da antiga vida de Aledis, mais
oportunidades Francesca teria. “Temos de esperar”, respondeu quando a
moça lhe perguntou por Arnau.
Na manhã seguinte, o rei levantou acampamento novamente.
— Para Panissars! Em formação de combate! Em quatro grupos
dispostos para a batalha.
A ordem correu pelas fileiras do exército. Arnau ouviu-a junto da
guarda pessoal de Eiximèn d’Esparça, pronta para marchar. “Para
Panissars!”, gritavam alguns; outros apenas sussurravam, mas todos o
faziam com orgulho e respeito. O desfiladeiro de Panissars era a passagem
pelos Pireneus entre terras catalãs e o Roussillon. Naquela noite, a meia
légua de La Junquera, em todas as fogueiras se ouviam as façanhas de
Panissars.
Foram os catalães, seus pais, seus avós que venceram os franceses. Só
os catalães! Anos atrás, o rei Pedro, o Grande, fora excomungado pelo
papa por conquistar a Sicília sem o seu consentimento. Os franceses, sob o
comando do rei Filipe, o Ousado, tinham declarado guerra ao herege em
nome da cristandade e, com a ajuda de alguns traidores, cruzaram os
Pireneus pela passagem da Maçana.
Pedro, o Grande, teve de bater em retirada, e os nobres e cavaleiros de
Aragão abandonaram o rei e regressaram às suas terras com seus exércitos.
— Só ficamos nós! — disse alguém no meio da noite, calando até o
chispear do fogo.
— E Roger de Llúria! — disse outro.
Minguados os seus exércitos, o rei teve de deixar que os franceses
invadissem a Catalunha enquanto esperava pelos reforços da Sicília,
comandados pelo almirante Roger de Llúria. Pedro, o Grande, ordenou ao
visconde Ramon Folch de Cardona, defensor de Girona, que resistisse aos
avanços dos franceses até que Roger de Llúria chegasse à Catalunha. O
visconde de Cardona assim o fez e defendeu a cidade epicamente, até que
o monarca o autorizou a entregá-la ao invasor.
Roger de Llúria chegou e derrotou a armada francesa; enquanto isso,
em terra, o exército francês foi assolado por uma epidemia.
— Violaram o sepulcro de Sant Narcís na tomada de Girona —
interveio alguém.
Segundo os velhos do lugar, milhões de moscas saíram do sepulcro do
santo quando os franceses o profanaram, e os insetos propagaram a
epidemia entre os soldados. Derrotados no mar, doentes em terra, o rei
Filipe, o Ousado, pediu uma trégua para a retirada e para evitar uma
matança.
Pedro, o Grande, concedeu-a, mas advertiu que o fazia exclusivamente
em seu nome e no de seus nobres e cavaleiros.

***

Arnau ouviu os gritos dos almogávares que entravam em Panissars.


Protegendo os olhos, olhou para as montanhas que rodeavam a passagem,
onde reverberavam os gritos dos mercenários. Ali, junto a Roger de Llúria,
observados do alto por Pedro, o Grande, e seus nobres, os mercenários
dizimaram o exército francês. No dia seguinte, em Perpignan, Filipe, o
Ousado, faleceu, e a cruzada contra a Catalunha terminou.
Os almogávares continuavam a gritar ao longo do desfiladeiro,
desafiando um inimigo que não apareceu; talvez rememorassem o que
seus pais e seus avós lhes tinham contado sobre o que ocorrera ali mesmo
havia cinquenta anos.
Aqueles homens esfarrapados, que quando não guerreavam como
mercenários viviam nos bosques e montanhas saqueando e devastando as
terras sarracenas e ignorando os tratados feitos entre os reis cristãos da
península e os chefes mouros, andavam à vontade. Aledis pôde comprovar
essa situação no caminho de Figueras a La Junquera e agora via o mesmo:
dos quatro grupos em que o rei dividira o exército, três marchavam em
formação sob os pendões, mas o dos almogávares marchava
desordenadamente, gritando, ameaçando, rindo e até brincando, fazendo
graça do inimigo que não aparecia e daquele que um dia o faria.
— Eles não têm chefes? — perguntou Arnau ao ver que os almogávares
se adiantavam de maneira desordenada e seguiam seu caminho
despreocupadamente quando Eiximèn d’Esparça ordenou um alto.
— Não parece, não é mesmo? — respondeu um veterano, firme ao seu
lado como todos os componentes da guarda pessoal do escudeiro real.
— Não. Não parece.
— Mas têm, e não desobedecem a eles. Não são chefes como os nossos.
— O veterano apontou para Eiximèn; depois tirou um inseto imaginário da
tigela sacudindo-o no ar. Vários soldados riram junto com Arnau. — Estes,
sim, são chefes — continuou o veterano, ficando sério de repente. — Ali
não adianta ser filho de alguém, chamar-se assim ou assado ou ser
protegido por algum conde. Os mais importantes são os adalils. — O
bastaix olhou para os almogávares, que continuavam a passar junto a ele.
— Não se preocupe — disse o veterano —, você não os distinguirá. Todos
se vestem igual, mas eles sabem muito bem quem são. Para chegar a ser
adalil são necessárias quatro virtudes: sabedoria para guiar as hosts; ser
esforçado e exigir o mesmo esforço dos homens sob seu comando; possuir
dons naturais de liderança; e, sobretudo, ser leal.
— É o que dizem que ele tem — comentou Arnau, apontando para o
escudeiro real e fazendo o mesmo gesto com os dedos da mão direita.
— Sim, mas este ninguém contestou nem contesta. Para ser adalil dos
almogávares é preciso que outros doze adalils jurem sob pena de morte
que o aspirante cumpre estas condições. Não sobrariam nobres no mundo
se tivessem de jurar da mesma maneira a respeito de seus iguais...
principalmente em se tratando de lealdade.
Os soldados que ouviam a conversa concordaram sorrindo. Arnau
voltou a olhar para os almogávares. Como conseguiam matar um cavalo
com uma simples lança?
— Abaixo dos adalils — continuou o veterano — estão os almogatens;
eles devem ser especialistas em guerra, esforçados, rápidos e leais, e são
escolhidos da mesma forma: doze almogatens devem jurar que o candidato
reúne essas qualidades.
— Sob pena de morte? — perguntou Arnau.
— Sob pena de morte — confirmou o veterano.
O que Arnau não podia imaginar era que a confiança daqueles
guerreiros chegava ao ponto de desobedecer ao rei. Pedro III ordenou que,
uma vez cruzado o desfiladeiro de Panissars, o exército se dirigisse a
Perpignan, a capital do Roussillon; porém, depois de cruzá-lo, os
almogávares foram em direção ao castelo de Bellaguarda, erguido no alto
de um pico de mesmo nome sobre o desfiladeiro.
Arnau e os soldados do escudeiro real os viram marchar e subir ao topo
do Bellaguarda. Continuavam a gritar como tinham feito ao longo de todo
o percurso. Eiximèn d’Esparça e seus homens começaram a subir
Bellaguarda atrás dos almogávares.
Os catalães sitiaram o castelo e, no resto do dia e durante toda a noite,
os mercenários se revezaram cortando árvores para construir aparatos de
cerco: escadas de assalto e um grande aríete sobre rodas que oscilava
impulsionado por cordas penduradas no tronco superior, coberto de peles
para proteger os homens que o manuseavam.
Arnau montou guarda diante dos muros de Bellaguarda. Como atacar
um castelo, afinal? Teriam de subir de peito aberto, enquanto os
defensores, refugiados atrás das ameias, se limitariam a disparar contra
eles. Ali estavam. Ele percebeu como aqueles no castelo se juntavam e os
olhavam; em certo momento pareceu até que alguém o observava
diretamente. Aparentavam tranquilidade, enquanto Arnau tremia ao
perceber aquela atenção a seus companheiros.
— Eles parecem muito seguros de si — comentou com um veterano
que estava ao seu lado.
— Não se iluda — respondeu ele. — Lá dentro eles estão pior do que
nós. Além disso, eles viram os almogávares.
Os almogávares; outra vez os almogávares. Arnau se virou na direção
deles. Trabalhavam sem descanso, agora perfeitamente organizados.
Ninguém ria nem discutia; trabalhavam.
— Como eles podem provocar tanto medo entre os que estão atrás das
muralhas? — perguntou.
O veterano riu.
— Você nunca os viu lutar, não é mesmo? — Arnau negou com a
cabeça. — Espere e verá.
Esperou cochilando no chão, ao longo de uma noite tensa em que os
mercenários construíram seus aparatos à luz de tochas que iam e vinham
sem parar.
Ao despontar o dia, quando a luz do sol começava a assomar no
horizonte, Eiximèn d’Esparça ordenou às suas tropas que se pusessem em
formação. A escuridão da noite se atenuara um pouco com aquela luz
distante. Arnau procurou os almogávares. Tinham obedecido e estavam em
formação diante dos muros de Bellaguarda. Depois olhou para o castelo
acima deles. Todas as luzes tinham desaparecido, mas eles estavam ali;
tinham se preparado para o ataque durante a noite. Arnau sentiu um
calafrio. O que ele fazia ali? O amanhecer estava fresco, e, no entanto,
suas mãos, agarradas à besta, não paravam de suar. O silêncio era total. Ele
podia morrer. Durante o dia, os defensores tinham olhado para ele várias
vezes; para ele, um simples bastaix. Os rostos daqueles homens, então
perdidos na distância, adquiriram vida. Estavam ali esperando por ele!
Tremeu. Suas pernas fraquejaram e ele teve de fazer um esforço para não
bater os dentes. Apertou a besta contra o peito para que ninguém
percebesse o tremor de suas mãos. O oficial lhe dissera que, ao ouvir a
ordem de atacar, ele devia se aproximar dos muros e se proteger atrás de
pedras para disparar sua besta contra os defensores. O problema era chegar
até as pedras. Chegaria? Arnau não afastava o olhar delas; tinha de chegar
até lá, se proteger, disparar, se esconder e disparar outra vez...
Um grito rasgou o silêncio.
A ordem! As pedras! Arnau saiu correndo na direção delas, mas o
oficial agarrou-o pelo ombro.
— Ainda não — disse.
— Mas...
— Ainda não — insistiu o oficial. — Olhe.
O soldado apontou para os almogávares.
Outro grito soou entre as fileiras.
— Acorde, ferro!
Arnau não pôde afastar o olhar dos mercenários. Logo todos gritavam
em uníssono.
— Acorde, ferro! Acorde, ferro!
Começaram a golpear lança contra lança e faca contra faca, até que o
som do metal superou suas próprias vozes.
— Acorde, ferro!
E o aço começou a despertar: lançava chispas à medida que as armas se
chocavam, entre si ou contra as pedras. O estrondo surpreendeu Arnau.
Pouco a pouco as chispas, centenas, milhares de chispas romperam a
escuridão, e os almogávares ficaram rodeados por um halo luminoso.
Arnau se viu golpeando o ar com a besta.
— Acorde, ferro! — gritava. Já não suava, já não tremia. — Acorde,
ferro!
Olhou para as muralhas; parecia que iam cair sob os gritos dos
almogávares. O solo retumbava, e o resplendor das chispas crescia à sua
volta. De repente soou uma trombeta, e a gritaria se transformou em um
uivo ensurdecedor:
— São Jorge! São Jorge!
— Agora, sim — gritou o oficial, empurrando-o para a frente na
direção das centenas de homens que se lançavam ferozmente ao ataque.
Arnau correu até alcançar as pedras ao pé da muralha com o oficial e
um corpo de besteiros. Concentrou-se em uma escada que os almogávares
apoiaram contra a muralha e tentou mirar nas figuras nas ameias lutando
para impedir a ameaça dos mercenários, que continuavam a gritar
encolerizados. E foi o que fez. Acertou dois defensores bem onde o
revestimento de malha não os protegia e os viu desaparecer com o impacto
das flechas.
Um grupo de assaltantes conseguiu galgar os muros da fortaleza, e o
oficial, batendo no ombro de Arnau, ordenou que suspendesse os disparos.
O aríete não foi necessário. Quando os almogávares alcançaram as ameias,
as portas do castelo se abriram e vários cavaleiros fugiram a galope para
não serem tomados como reféns. Dois deles caíram frente às investidas
das bestas catalãs; os demais conseguiram fugir. Os outros ocupantes,
órfãos de autoridade, se renderam. Eiximèn d’Esparça e seus cavaleiros
entraram no castelo montados em seus cavalos de guerra e mataram os que
ainda resistiam. Depois os homens a pé entraram correndo.
Após cruzar as muralhas, Arnau ficou parado, com a besta pendurada
no ombro e o punhal na mão. Eles já não eram necessários. O pátio do
castelo estava cheio de cadáveres, e os que não tinham caído permaneciam
ajoelhados, desarmados, suplicando entre os cavaleiros que percorriam o
pátio com suas longas espadas desembainhadas. Os almogávares se
entregavam ao saque; uns na torre, outros revirando os cadáveres com uma
avidez que obrigou Arnau a desviar o olhar. Um dos almogávares se
dirigiu a ele e ofereceu um punhado de flechas; algumas provinham de
disparos errados, muitas estavam manchadas de sangue, outras até traziam
pedaços de carne aderidos. Arnau hesitou. O almogávar, um homem mais
velho, fino como aqueles artigos que lhe estendia, se surpreendeu; depois
sorriu, mostrando uma boca sem dentes, e ofereceu as setas a outro
soldado.
— O que você está fazendo? — perguntou este último a Arnau. — Por
acaso você espera que Eiximèn substitua as suas flechas? Limpe-as —
disse ele, jogando-as a seus pés.
Em poucas horas tudo estava terminado. Os sobreviventes foram
agrupados e imobilizados. Naquela noite seriam vendidos como escravos
no acampamento que seguia o exército. As tropas de Eiximèn d’Esparça se
puseram novamente em marcha à procura do rei; transportavam os feridos
e deixaram atrás de si dezessete catalães mortos e uma fortaleza em
chamas que já não teria utilidade para os seguidores de Jaime III.
30

Eiximèn d’Esparça e seus homens alcançaram o exército real a só duas


léguas de Perpignan, nas proximidades de Elna, a Orgulhosa, onde o rei
decidiu pernoitar e recebeu a visita de outro bispo que, outra vez em vão,
tentou mediar em nome de Jaime de Maiorca.
O rei não se opôs à tomada do castelo de Bellaguarda por Eiximèn
d’Esparça e seus almogávares, mas tentou impedir que outro grupo de
cavaleiros tomasse pelas armas a torre de Nidoleres no caminho para Elna.
No entanto, quando o rei lá chegou, os cavaleiros já a haviam tomado de
assalto, matado seus ocupantes e abandonado o local. Por outro lado,
ninguém ousou se aproximar de Elna nem perturbar os seus habitantes.
Todo o exército se reuniu em torno dos fogos do acampamento e
observou as luzes da cidade. Elna mantinha as portas abertas em um claro
desafio aos catalães.
— Por quê...? — começou Arnau, sentado junto ao fogo.
— A Orgulhosa? — completou um dos mais veteranos.
— Sim, por que a respeitamos? Por que não fecham as portas?
O veterano olhou para a cidade antes de responder.
— A Orgulhosa pesa em nossa consciência... na consciência catalã. Eles
sabem que não nos aproximaremos. — Calou-se. Arnau aprendera a
respeitar a maneira de ser dos soldados. Sabia que se o pressionasse o
veterano o olharia com desprezo e não falaria. Eles gostavam de se
deleitar em suas lembranças e histórias, verdadeiras ou falsas, exageradas
ou não. Uma de suas manias consistia em manter as intrigas. Finalmente,
reiniciou seu discurso: — Na guerra contra os franceses, quando Elna nos
pertencia, Pedro, o Grande, prometeu defendê-la e enviou um
destacamento de cavaleiros catalães. Eles o traíram; fugiram durante a
noite e deixaram a cidade à mercê do inimigo. — O veterano cuspiu no
fogo. — Os franceses profanaram as igrejas, assassinaram as crianças
batendo-as contra as paredes, violentaram as mulheres e executaram todos
os homens... menos um. A matança de Elna pesa em nossa consciência.
Nenhum catalão ousará se aproximar dela.
Arnau olhou novamente as portas abertas da Orgulhosa. Depois desviou
a vista para os agrupamentos que formavam o acampamento; em todos
havia alguém que observava Elna em silêncio.
— Quem foi poupado? — perguntou, violando suas próprias regras.
O veterano ouviu-o do outro lado da fogueira.
— Um homem chamado Bastard de Rosselló. — Arnau esperou o
homem continuar: — Anos depois, esse soldado guiou as tropas francesas
pela passagem da Maçana para invadir a Catalunha.

***

O exército dormiu à sombra da cidade de Elna.


A uma boa distância dele, as centenas de pessoas que o seguiam
fizeram o mesmo. Francesca olhou para Aledis. Seria aquele o lugar
adequado? A história de Elna se espalhara por barracas e choças e um
silêncio pouco comum reinava no acampamento. Ela mesma olhou várias
vezes para as portas abertas da Orgulhosa. Sim, estavam em terra inóspita;
nenhum catalão seria bem recebido em Elna nem em seus arredores.
Aledis estava longe de casa. Só faltava que, além disso, ficasse só.
— O seu Arnau morreu — disse Francesca quando Aledis atendeu o seu
chamado.
Ela veio abaixo. Francesca a viu diminuir no vestido verde e levar as
mãos ao rosto. Seu pranto rompeu aquele estranho silêncio.
— Co... como foi? — perguntou depois de um tempo.
— Você me enganou — Francesca se limitou a comentar friamente.
Aledis olhou para ela com os olhos cheios de lágrimas, soluçando e
tremendo; depois baixou os olhos.
— Você me enganou — repetiu Francesca. A outra não respondeu. —
Quer saber como foi? Foi morto pelo seu esposo, o verdadeiro, o mestre
curtidor.
Aledis ergueu a cabeça. “Impossível!” Era impossível que aquele
velho...
— Ele se apresentou no acampamento real acusando o tal Arnau de ter
sequestrado você — continuou Francesca, interrompendo os pensamentos
da jovem. Queria observar suas reações. Arnau lhe contara que ela tinha
medo do esposo. — O rapaz negou, e seu esposo o desafiou. — Aledis
tentou interromper. “Como Pau podia desafiar alguém?” — Pagou a um
oficial para que brigasse por ele — continuou Francesca, obrigando-a a
permanecer em silêncio. — Você não sabia? Quando alguém está muito
velho para lutar, pode pagar a outro para que lute por ele. O seu Arnau
morreu defendendo a sua honra.
Aledis se desesperou. Francesca a viu tremer. Pouco a pouco suas
pernas cederam e ela foi ao chão de joelhos, mas a mulher não teve pena.
— Soube que seu esposo anda procurando por você.
Aledis voltou a cobrir o rosto com as mãos.
— Você tem de nos deixar. Antònia devolverá as suas roupas.
Este era o olhar que queria. Medo! Pânico!
As perguntas se atropelavam na cabeça de Aledis. O que faria? Para
onde iria? Barcelona ficava do outro lado do mundo e, em todo caso, o que
lhe sobrara ali? Arnau morto! A viagem de Barcelona a Figueras passou
por sua mente como um raio, e seu corpo sentiu o horror, a humilhação, a
vergonha... a dor. E Pau ainda a procurava!
— Não... — balbuciou Aledis. — Não posso!
— Não posso me meter em problemas — respondeu seriamente
Francesca.
— Proteja-me! — suplicou. — Não tenho para onde ir. Não tenho a
quem recorrer.
Soluçava. Aledis ajoelhou-se diante da outra, sem se atrever a fitá-la.
— Você não poderia ficar, está grávida.
— Também era mentira — gritou a moça.
Ela se arrastou até as suas pernas. A mais velha não se mexeu.
— O que você faria em troca?
— O que você quiser! — gritou Aledis. Francesca disfarçou um sorriso.
Era a promessa que esperava ouvir. Quantas vezes a obtivera de moças
como Aledis? — O que você quiser! — repetiu ela. — Proteja-me,
esconda-me do meu esposo, e farei o que quiser.
— Você já sabe o que somos — insistiu a patroa.
Que diferença fazia? Arnau estava morto. Não tinha nada. Não lhe
sobrava nada... só um esposo que a apedrejaria se a encontrasse.
— Esconda-me, eu lhe rogo. Farei o que quiser — repetiu Aledis.
***

Francesca ordenou que Aledis se mantivesse longe dos soldados; Arnau


era conhecido nas fileiras do exército.
— Você vai trabalhar escondida — disse-lhe no dia seguinte, quando se
preparavam para partir. — Não gostaria que o seu esposo... — Aledis
concordou antes que ela terminasse a frase. — Você não deve ser vista
enquanto a guerra não terminar — Aledis concordou mais uma vez.
Naquela mesma noite, Francesca enviou um recado a Arnau: “Tudo
acertado. Você não será mais incomodado.”

***

No dia seguinte, em vez de ir a Perpignan, onde estava Jaime de Maiorca,


Pedro III decidiu prosseguir em direção ao mar, para a cidade de Canet,
onde Ramon, visconde do lugar, deveria lhe entregar o seu castelo devido
à vassalagem jurada após a conquista de Maiorca. Naquela ocasião, o
monarca catalão, depois da fuga do rei Jaime, o libertara ao receber o
castelo de Bellver.
Com a chegada do rei, o visconde de Canet entregou-lhe seu castelo, e o
exército pôde descansar e comer abundantemente graças à generosidade
dos habitantes do lugar, certos de que os catalães logo levantariam
acampamento para se dirigir a Perpignan. Além disso, o soberano pôde
criar uma cabeça de ponte com sua armada, que foi imediatamente
abastecida na parada provisória.
Estabelecido em Canet, Pedro III recebeu outro mediador; desta vez um
cardeal, o segundo que intercedia por Jaime de Maiorca. Tampouco fez
caso dele, liberou-o e se pôs a estudar com seus conselheiros a melhor
forma de invadir Perpignan. Enquanto o rei esperava as provisões por mar
e as armazenava no castelo de Canet, o exército catalão acampou no
povoado durante seis dias, nos quais assaltou os castelos e fortalezas que
se encontravam entre Canet e Perpignan.
Em nome do rei Pedro, a host de Manresa tomou o castelo de Santa
Maria do Mar, outras companhias assaltaram o castelo de Castellarnau
Sobirà, e Eiximèn d’Esparça, com seus almogávares e outros cavaleiros,
tomou Castell-Rosselló.
Castell-Rosselló não era um mero posto fronteiriço como Bellaguarda:
constituía uma das defesas avançadas da capital do condado de Roussillon.
Ali, se repetiram os gritos de guerra e o choque de lanças dos
almogávares, que dessa vez foram acompanhados pelos uivos de centenas
de soldados desejosos de entrar em combate. A fortaleza não caiu tão
facilmente como acontecera com Bellaguarda; a luta nos muros foi difícil,
e o uso de aríetes foi imprescindível para derrubar suas defesas.
Os besteiros foram os últimos a cruzar as defesas abertas do castelo.
Aquilo era diferente do assalto a Bellaguarda. Soldados e civis, e até
mulheres e crianças, defendiam o local com suas vidas. No interior do
castelo, Arnau teve um combate corpo a corpo feroz.
Ele pôs a besta de lado e agarrou o punhal. Centenas de homens
lutavam à sua volta. O silvo de uma espada introduziu-o no combate. Se
afastou instintivamente, e a espada passou roçando ao seu lado. Com a
mão livre, o bastaix agarrou o pulso que manejava a arma e cravou o
punhal no adversário. Agiu mecanicamente, como aprendera nas
intermináveis lições do oficial de Eiximèn d’Esparça. Tinham ensinado-o
a lutar e a matar, mas ninguém lhe ensinara a afundar o punhal no
abdômen de um homem. A cota de malha de seu oponente resistiu à
punhalada, e, apesar de estar agarrado pelo pulso, o defensor do castelo
virou a espada violentamente e feriu Arnau no ombro.
Foram só alguns segundos de confronto, mas suficientes para ele
perceber que devia matá-lo.
Arnau apertou o punhal com fúria. A lâmina atravessou o revestimento
da armadura e penetrou no estômago do inimigo. A espada perdeu força,
mas continuou a dar voltas perigosamente. Então ele empurrou o punhal
para cima. Sua mão sentiu o calor das entranhas. O corpo do inimigo se
alçou do chão, o punhal rasgou o abdômen, a espada caiu no chão, e o filho
de Bernat deparou-se com o rosto do rival sobre o seu. Aqueles lábios se
moveram a pouca distância de seu rosto. Queria lhe dizer algo? Apesar do
fragor do combate, Arnau ouviu seus estertores. Pensava em alguma
coisa? Veria a morte? Os olhos vazios pareciam querer adverti-lo, e Arnau
se virou no momento em que outro defensor de Castell-Rosselló se
lançava sobre ele.
Não hesitou. Seu punhal rasgou o ar e o pescoço do novo oponente. Já
não pensava. Foi ele quem procurou mais mortes. Lutou e gritou. Bateu e
enfiou o punhal na carne do inimigo mais de uma vez, sem reparar em seu
rosto nem em sua dor.
Matou.
Quando tudo terminou e os defensores de Castell-Rosselló se renderam,
Arnau percebeu que estava ensanguentado e tremendo devido ao esforço.
Olhou em volta, e os cadáveres mantinham viva a lembrança da
batalha. Não pôde prestar atenção em nenhum de seus oponentes. Não
pôde participar de sua dor nem se compadecer de sua alma. A partir
daquele momento, os rostos que ele não vira quando cego pelo sangue
começaram a surgir diante dele reclamando seus direitos, a honra dos
vencidos. Arnau recordaria muitas vezes o rosto impreciso dos que tinham
morrido atravessados pelo seu punhal.

***

Em meados de agosto, o exército estava acampado entre o castelo de Canet


e o mar. Arnau invadiu Castell-Rosselló no dia 4 daquele mês. Dois dias
depois, o rei Pedro III pôs as tropas em marcha, e, porque Perpignan não
lhe rendera homenagens, durante uma semana os exércitos catalães se
dedicaram a devastar os arredores da capital do Roussillon: Basoles,
Vernet, Solés, Sant Esteve... Derrubaram vinhedos, oliveiras e, à exceção
das figueiras, todas as árvores que estivessem no caminho de um exército
espalhado por ordem do rei. Capricho do Cerimonioso? Queimaram
moinhos e colheitas, destruíram campos de cultivo e vilarejos, mas em
nenhum momento chegaram a adentrar Perpignan, a capital e refúgio do
rei Jaime.
15 de agosto de 1343
Missa de campanha solene

O exército, concentrado na praia, participava do culto à Virgem do Mar.


Pedro III cedera às pressões do Santo Padre e pactuara uma trégua com
Jaime de Maiorca. Correu o rumor entre o exército. Arnau não ouvia o
sacerdote; poucos o ouviam, a maioria tinha o rosto contrito. A Virgem
não consolava Arnau. Ele matara. Derrubara árvores. Arrasara vinhedos e
campos de cultivo diante do olhar assustado dos camponeses e de seus
filhos. Destruíra vilarejos inteiros e, com eles, os lares de pessoas de bem.
O rei Jaime conseguira a sua trégua, e o rei Pedro cedera. Arnau relembrou
as arengas em Santa Maria do Mar: “A Catalunha precisa de vocês! O rei
Pedro necessita de vocês! Partam para a guerra!” Que guerra? Aquilo não
passava de matança. Escaramuças em que os únicos que perdem são as
pessoas humildes, os soldados leais... e as crianças, que passariam fome no
próximo inverno por falta de grãos. Que guerra? A de bispos e cardeais, os
mensageiros de reis espertos? O sacerdote prosseguia com a sua homilia,
mas Arnau não ouvia suas palavras. Por que tivera de matar? De que
serviam aqueles mortos?
A missa terminou. Os soldados se dispersaram formando pequenos
grupos.
— E o prometido butim?
— Perpignan é rica, muito rica — disseram.
— Como o rei vai pagar seus soldados se antes não podia fazê-lo?
Arnau perambulava entre os grupos de combatentes. O que lhe
importava a recompensa? Era o olhar das crianças que lhe importava; o
daquele pequeno que, agarrado à mão da irmã, vira Arnau e um grupo de
soldados arrasar suas plantações e espalhar os grãos que deveria sustentá-
los durante o inverno. “Por quê?”, perguntavam seus olhos inocentes. “Que
mal fizemos a vocês?” Provavelmente as crianças eram as encarregadas do
cultivo e tinham permanecido ali, com as lágrimas caindo, enquanto o
grande exército catalão terminava de destruir suas escassas posses. Ao
fim, Arnau nem sequer fora capaz de se virar para olhá-los.
O exército voltava para casa. As colunas de soldados se espalhavam
pelos caminhos da Catalunha, acompanhadas por jogadores, prostitutas e
comerciantes desencantados com os ganhos que não chegariam.

***

Barcelona se aproximava. As diferentes hosts do principado se desviavam


para seus lugares de origem; outras atravessariam a cidade condal. Arnau
notou que, como ele, seus companheiros aceleravam o passo. Surgiram
alguns sorrisos entre os soldados. O rosto de Maria lhe apareceu no
caminho. “Tudo acertado”, tinham dito. “Você não será mais
incomodado.” Era a única coisa que desejava, a única pela qual fugira.
O rosto de Maria começou a sorrir para ele.
31
Final de março de 1348
Barcelona

Despontava o dia, e Arnau e os bastaixos esperavam na praia para


descarregar uma galera maiorquina que chegara ao porto durante a noite.
Os pró-homens da confraria davam ordens. O mar estava calmo, e as ondas
lambiam a praia com delicadeza, convocando os cidadãos de Barcelona a
iniciar o dia. O sol começava a soltar centelhas coloridas onde as águas
ondulavam, e os bastaixos, enquanto esperavam a chegada dos barqueiros
com as mercadorias, se deixavam levar pela beleza do momento, com o
olhar perdido no horizonte e o espírito dançando com o mar.
— Que estranho — disse alguém no grupo —, eles não descarregam.
Todos ficaram atentos à galera. Os barqueiros tinham se aproximado do
navio, e alguns voltavam à praia de mãos vazias; outros falavam aos gritos
com os marinheiros embarcados, alguns dos quais se jogavam na água e
subiam nos barcos. Mas ninguém descarregava fardos da galera.
— A peste! — os gritos dos primeiros barqueiros foram ouvidos na
praia muito antes que os barcos chegassem. — A peste chegou a Maiorca!
Arnau sentiu um calafrio. Seria possível que aquele mar tão belo lhes
trouxesse notícia semelhante? Um dia cinzento, um temporal... mas
naquela manhã tudo parecia mágico. Havia meses que aquilo era tema de
conversa entre os barceloneses: a peste assolava o longínquo Oriente, se
estendera para o oeste e devastava comunidades inteiras.
— Talvez não chegue a Barcelona — diziam uns. — Teria de cruzar
todo o Mediterrâneo.
— O mar nos protegerá — afirmavam outros.
Durante meses o povo pensou assim: a peste não chegaria a Barcelona.
“Maiorca”, pensou Arnau. Tinha chegado a Maiorca; a praga cruzara
léguas e léguas de Mediterrâneo.
— A peste! — repetiram os barqueiros ao chegarem à praia.
Os bastaixos os rodearam para ouvir as notícias que traziam. Em um
dos barcos vinha o piloto da galera.
— Levem-me ao veguer e aos conselheiros da cidade — ordenou ele ao
saltar na praia. — Rápido!
Os pró-homens o atenderam; os outros se aglomeraram junto aos
recém-chegados. “Estão morrendo às centenas”, contavam. “É terrível.
Ninguém pode fazer nada. Crianças, mulheres e homens, ricos ou pobres,
nobres ou humildes... até os animais são pasto para a praga. Os cadáveres
se amontoam nas ruas apodrecendo, e as autoridades não sabem o que
fazer. As pessoas morrem em menos de dois dias entre gritos de dor
pavorosos.” Alguns bastaixos correram para a cidade gritando e fazendo
algazarra. Arnau ouviu aquilo encolhido. Diziam que os infectados tinham
grandes pústulas purulentas no pescoço, nas axilas ou na virilha, que
cresciam até arrebentar.
A notícia se espalhou pela cidade, e muitos se aproximaram do grupo
na praia para ouvir um pouco e voltar correndo para casa.
Barcelona se transformou em um fervedouro de rumores: “Quando as
feridas se abrem, saem demônios. Os apestados enlouquecem e mordem as
pessoas; assim se transmite a doença. Os olhos e os órgãos genitais
arrebentam. Se alguém olha para as pústulas, se contamina. É preciso
queimá-los antes que morram, senão a enfermidade ataca outra pessoa. Eu
vi a peste!” Qualquer pessoa que iniciasse a conversa com estas palavras
era imediatamente objeto de atenção, e as pessoas se juntavam ao seu
redor para ouvir a história; depois, o horror e a imaginação se
multiplicavam na boca de cidadãos que ignoravam o que os esperava.
Como única precaução, o município ordenou higiene máxima, e as pessoas
se acotovelavam nos banhos públicos... e nas igrejas. Missas, rezas,
procissões: tudo era pouco para deter o perigo que pendia sobre a cidade
condal. Ao fim de um mês de agonia, a peste chegou a Barcelona.
Primeiro foi um calafate que trabalhava no estaleiro. Os médicos foram
vê-lo, mas a única coisa que puderam fazer foi comprovar o que haviam
lido em livros e tratados.
— São do tamanho de tangerinas pequenas — disse um, apontando para
as grandes pústulas no pescoço do homem.
— Negras, duras e quentes — acrescentou outro, depois de tocá-las.
— Compressas de água fria para a febre.
— É preciso sangrá-lo. Se o sangrarmos, as hemorragias em volta das
pústulas sararão.
— É preciso fazer um corte nas pústulas — aconselhou um terceiro.
Os outros médicos fitaram o que tinha falado.
— Os livros dizem que não devem ser cortadas — ponderou um.
— Afinal de contas — disse outro —, é só um calafate. Vamos
examinar as axilas e a virilha.
Também ali havia grandes pústulas negras, duras e quentes. Entre gritos
de dor, o doente foi sangrado e a pouca vida que ainda tinha escapou pelos
cortes que os galenos tinham feito em seu corpo.
Naquele mesmo dia surgiram novos casos. No dia seguinte mais, e no
seguinte outros mais. Os barceloneses se trancaram em casa, onde muitos
morriam entre terríveis sofrimentos; outros, por medo do contágio, eram
deixados nas ruas, onde agonizavam até morrer. As autoridades ordenaram
que se marcasse com uma cruz de cal a porta das casas onde houvesse
casos de peste. Insistiram na higiene corporal, em que se evitasse o
contato com os apestados, e ordenaram que os cadáveres fossem
queimados em grandes piras. Os cidadãos esfregavam o corpo até arrancar
a pele, e os que puderam ficaram longe dos doentes. No entanto, ninguém
tentou fazer o mesmo com as pulgas, e, para espanto de médicos e
autoridades, a enfermidade continuou a se alastrar.
Transcorreram semanas, e Arnau e Maria, como muitos outros,
continuaram a comparecer diariamente a Santa Maria para insistir em
súplicas que o céu parecia não atender. À sua volta, amigos queridos, como
o bom padre Albert, morriam por causa da epidemia. A peste também
tomou conta dos anciãos Pere e Mariona, que morreram logo sob a funesta
praga. O bispo organizou uma procissão para percorrer todo o perímetro
da cidade; ela sairia da catedral e desceria pela Rua do Mar até Santa
Maria, onde se uniria à Virgem do Mar sob o pálio antes de continuar o
trajeto previsto.
A Virgem esperava na Praça de Santa Maria, junto aos bastaixos que a
carregariam. Os homens se entreolhavam e se perguntavam em silêncio
por cada bastaix ausente. Ninguém respondia. Então eles apertavam os
lábios e baixavam os olhos. Arnau rememorou as grandes procissões em
que tinham levado a patrona, quando brigavam para carregar o andor. Os
pró-homens precisavam pôr ordem e estabelecer turnos para que todos
pudessem carregar a Virgem, mas agora... não eram suficientes nem para
se revezarem. Teriam morrido tantos? Quanto duraria aquilo, Senhora? O
rumor das súplicas do povo se espalhou pela Rua do Mar. Arnau olhou a
cabeça da procissão: as pessoas andavam cabisbaixas e arrastando os pés.
Onde estavam os nobres que sempre tinham se juntado ao bispo com tanta
pompa? Quatro dos cinco conselheiros da cidade tinham morrido; três
quartos dos membros do Conselho de Cento tinham tido igual sorte. Os
demais tinham fugido da cidade. Os bastaixos levantaram a Virgem em
silêncio, carregaram-na nos ombros, deixaram passar o bispo e se
juntaram à procissão e às súplicas. De Santa Maria continuaram até o
convento de Santa Clara, passando pela Praça do Born. Em Santa Clara,
apesar do incenso dos sacerdotes, foram assaltados pelo cheiro de carne
queimada; muitos interromperam as orações para chorar. Na altura do
portal de San Daniel viraram à esquerda em direção ao portão Nou e ao
mosteiro de Sant Pere de les Puelles; passaram por alguns cadáveres e
evitaram olhar os apestados que esperavam a morte nas esquinas ou diante
das portas assinaladas com a cruz branca que nunca mais se abririam para
eles. “Senhora”, pensou Arnau, com o andor nos ombros, “por que tanta
desgraça?”. De Sant Pere continuaram a rezar até o portão de Santa Anna,
onde viraram à esquerda na direção do mar até o bairro de Forn dels Arcs e
se dirigiram de novo à catedral.
Mas o povo começou a duvidar da eficácia da Igreja e de suas
autoridades; rezavam até a exaustão, e a peste continuava a fazer estragos.
— Dizem que é o fim do mundo — comentou Arnau um dia ao entrar
em casa. — Toda Barcelona enlouqueceu. Há uns que se dizem flagelantes.
— Maria estava de costas para ele. Arnau se sentou esperando que sua
mulher o descalçasse e continuou a falar: — Andam pelas ruas às centenas
com o torso descoberto, gritam que o dia do Juízo Final está chegando,
confessam seus pecados aos quatro ventos e flagelam as costas com
açoites. Alguns têm as costas em carne viva e continuam... — Arnau
acariciou a cabeça de Maria, ajoelhada diante dele. — Quê...?
Procurou o queixo da mulher com a mão. Não podia ser. Ela não. Maria
ergueu os olhos vidrados em sua direção. Suava e seu rosto estava
congestionado. Arnau tentou levantar sua cabeça para ver seu pescoço,
mas ela fez um gesto de dor.
— Você não! — exclamou Arnau.
Maria, ajoelhada com as alpercatas nas mãos, olhou fixamente para
Arnau enquanto lágrimas rolavam por sua face.
— Deus, você não. Meu Deus! — Arnau se ajoelhou junto dela.
— Saia daqui, Arnau — balbuciou Maria. — Não fique perto de mim.
Arnau tentou abraçá-la, mas ao tomá-la pelos ombros ela fez outro
esgar de dor.
— Venha — disse ele, levantando-a da maneira mais suave que podia.
Maria, soluçando, insistiu que ele fosse embora. — Como posso deixá-la?
Você é tudo o que tenho... a única coisa que tenho! O que eu faria sem
você? Alguns se curam, Maria. Você vai se curar. Você vai ficar boa. —
Tentando consolá-la, levou-a para o quarto e deitou-a na cama. Então viu
seu pescoço, um pescoço que era lindo e agora começava a escurecer. —
Um médico! — gritou, abrindo a janela e saindo para a sacada.
Ninguém parecia ouvi-lo. Mas, naquela mesma noite, quando as
pústulas começaram a tomar conta do corpo de Maria, alguém marcou sua
porta com uma cruz de cal.
Arnau só podia aplicar compressas frias na testa de Maria. Jogada na
cama, a mulher tiritava. Incapaz de se mover sem sentir dores terríveis,
suas queixas surdas davam calafrios a Arnau. Maria tinha o olhar perdido
no teto. Arnau viu as pústulas crescerem em seu pescoço e sua pele ficar
preta. “Eu amo você, Maria.” Quantas vezes ele quisera lhe dizer aquilo?
Pegou a mão dela e se ajoelhou junto à cama. Assim passou a noite,
clamando aos céus a cada espasmo da esposa.

***

Envolveu-a com o melhor lençol que possuíam e esperou o carro dos


mortos passar. Não a deixaria na rua. Ele próprio a entregaria aos
funcionários. Assim fez. Quando ouviu o som cansado dos cascos do
cavalo, ergueu o cadáver de Maria e desceu para a rua.
— Adeus — disse, beijando-a na testa.
Os dois funcionários, usando luvas e com o rosto coberto com um pano
grosso, se surpreenderam ao ver Arnau destapar e beijar o rosto de Maria.
Ninguém queria se aproximar dos apestados, nem os entes queridos, que
os abandonavam nas ruas ou, quando muito, os chamavam para recolhê-los
no leito de morte. Arnau entregou a esposa aos funcionários, que,
impressionados, tentaram colocá-la com cuidado sobre os cadáveres que
transportavam.
Com lágrimas nos olhos, o bastaix viu o carro se afastar até se perder
nas ruas de Barcelona. Ele seria o próximo: entrou em casa e se sentou
para esperar a morte, desejoso de se reunir com Maria. Por três dias
aguardou a chegada da peste, apalpando o pescoço constantemente à
procura de um inchaço que não apareceu. As pústulas não surgiram, e ele
terminou por se convencer de que, no momento, o Senhor não o chamaria
para o Seu lado junto à esposa.
Arnau caminhou pela praia pisando nas ondas que chegavam à cidade
maldita; vagou por Barcelona alheio à miséria, aos doentes e aos soluços
que provinham das janelas das casas. Algo o levou a Santa Maria. As obras
tinham sido interrompidas, os andaimes estavam vazios, as pedras
descansavam no chão à espera de alguém que as esculpisse, mas as
pessoas continuavam a frequentar a igreja. Entrou. Os fiéis, de pé ou
ajoelhados, se juntavam em oração em torno do altar-mor inacabado. A
igreja ainda estava aberta para o céu nas absides em construção, mas o
ambiente estava carregado do incenso que queimava para aplacar os
odores de morte que acompanhavam o povo. Quando ia se aproximar de
sua Virgem, um sacerdote, de pé no altar-mor, dirigiu-se aos paroquianos.
— Saibam — disse ele — que nosso Sumo Pontífice, o papa Clemente
VI, escreveu uma bula em que absolve os judeus da acusação de serem os
causadores da praga. A doença é só uma pestilência com a qual Deus
aflige o povo cristão. — Um murmúrio de desaprovação se elevou entre os
fiéis. — Rezem — continuou o sacerdote. — Confiem no Senhor...
Muitos deixaram Santa Maria discutindo aos gritos.
Arnau não se importou com o sermão e foi para a capela do Santíssimo.
Os judeus? O que tinham os judeus a ver com a peste? Sua pequena
Virgem o esperava no lugar de sempre. Os círios dos bastaixos
continuavam a acompanhá-la. Quem os teria acendido? Arnau mal
conseguia vislumbrar sua mãe; uma nuvem carregada de incenso girava
em volta dela. Não a via sorrir. Quis rezar, mas não conseguiu. “Por que
permitiu isto, minha mãe?” As lágrimas voltaram a correr por sua face ao
lembrar de Maria, seu sofrimento, seu corpo entregue à dor, as pústulas
que tinham se apossado dela. Aquilo fora um castigo, mas era ele quem o
merecia, ele havia pecado ao ser infiel.
E ali, diante da Virgem, ele jurou que nunca mais se deixaria levar pela
luxúria, não importava o que acontecesse. Devia isso a Maria. Nunca mais.
***

— Aconteceu alguma coisa, filho? — alguém lhe perguntou. Arnau se


deparou com o sacerdote que alguns instantes antes se dirigira aos fiéis. —
Olá, Arnau — cumprimentou-o ao reconhecer um dos bastaixos que se
dedicavam a Santa Maria. — Aconteceu alguma coisa?
— Maria.
O sacerdote assentiu com a cabeça.
— Rezemos por ela — sugeriu.
— Não, padre — opôs-se Arnau. — Ainda não.
— Só em Deus você encontrará consolo, Arnau.
Consolo? Como poderia encontrar consolo em alguma coisa? Arnau
tentou ver a sua Virgem, mas a fumaça o impedia.
— Rezemos... — insistiu o sacerdote.
— O que significa aquilo sobre os judeus? — questionou Arnau,
procurando uma saída.
— Toda a Europa acredita que a peste se deve aos judeus. — Arnau
interrogou-o com o olhar. — Dizem que em Genebra, no castelo de
Chillon, alguns judeus confessaram que a peste foi disseminada por um
judeu de Saboia que envenenava os poços com uma poção preparada pelos
rabinos.
— Isso é verdade? — perguntou Arnau.
— Não. O papa os eximiu de culpa, mas as pessoas procuram culpados.
Vamos rezar agora?
— Faça-o por mim, padre.
Arnau deixou Santa Maria. Uma vez na praça, foi rodeado por um
grupo de aproximadamente vinte flagelantes. “Arrependam-se!”, gritavam
castigando suas costas com açoites. “É o fim do mundo!”, gritaram outros,
cuspindo as palavras no rosto de Arnau. Arnau viu o sangue lhes escorrer
pelas costas em carne viva e descer pelas pernas nuas e pelos quadris
cingidos por cilícios. Observou os rostos e os olhos desorbitados que o
fitavam. Fugiu correndo para a Rua de Montcada, até que os gritos se
desvaneceram. Reinava o silêncio... mas algo estava diferente.
As portas! Entre os grandes portões de acesso aos palácios da Rua de
Montcada, poucos ostentavam a cruz branca que estigmatizava a maior
parte das portas da cidade. Arnau se viu diante do palácio dos Puig.
Tampouco ostentava a cruz branca; as janelas estavam fechadas e não se
percebia nenhuma atividade no interior do edifício. Desejou que a peste os
encontrasse em seu refúgio, que sofressem como Maria sofrera. Arnau
fugiu dali mais rápido do que quando fugira dos flagelantes.
Quando chegou ao cruzamento de Montcada com a Rua Carders, ele
encontrou novamente uma multidão exaltada, agora armada com paus,
espadas e bestas. “Estão todos loucos”, pensou ao se afastar dali. Os
sermões nas igrejas da cidade não tinham adiantado. A bula de Clemente
VI não apaziguara os ânimos de um povo que necessitava descarregar sua
ira. “Para a judiaria!”, ouviu gritarem. “Hereges! Assassinos!
Arrependam-se!” Os flagelados também estavam ali e continuavam a se
castigar nas costas, exaltando os que os rodeavam e salpicando-os de
sangue.
Arnau foi para o fim da horda, junto aos que a seguiam em silêncio,
entre os quais viu alguns apestados. Toda Barcelona confluiu para a
judiaria e rodeou o bairro. Alguns foram para o norte, junto ao palácio do
bispo; outros para o poente, diante da antiga muralha romana da cidade;
outros para a Rua Bisbe, perpendicular à judiaria no oriente, e os demais,
entre eles o grupo em que estava Arnau, para a Rua Boquería, ao sul,
diante do Castell Nou, onde ficava a entrada do bairro. A gritaria era
ensurdecedora. O povo clamava por vingança, apesar de se limitar a gritar
diante das portas exibindo os pedaços de pau e as bestas.
Arnau conseguiu espaço na abarrotada escadaria de Sant Jaume, a
mesma de onde ele e Joanet tinham sido expulsos muito tempo atrás,
quando procurava a Virgem à qual chamar de mãe. Sant Jaume se erguia
bem em frente à muralha sul da judiaria, e dali de cima Arnau podia ver o
que ocorria. A tropa de soldados reais, capitaneada pelo veguer, estava
preparada para defender a judiaria. Antes de atacarem, uma comitiva de
cidadãos foi falar com o veguer junto à porta entreaberta do local, para lhe
pedir que retirasse as tropas de lá; os flagelantes gritavam e
perambulavam em volta do grupo, e a multidão continuava a ameaçar os
judeus, que nem sequer estavam à vista.
— Eles não sairão — Arnau ouviu uma mulher dizer.
— Os judeus são propriedade do rei, dependem exclusivamente do rei
— concordou outro. — Se os judeus morrerem, o rei perderá os impostos
que recebe deles.
— E todos os créditos que pede a esses usurários.
— E não é só isso — interveio um terceiro —, se a judiaria for
assaltada, o rei perderá até os móveis que os judeus emprestam a ele e à
sua corte quando vêm a Barcelona.
— Os nobres teriam de dormir no chão — gritou alguém às
gargalhadas.
Arnau não pôde conter um sorriso.
— O veguer defenderá os interesses do rei — disse a mulher.
Assim foi. O veguer não cedeu e, quando a conversa terminou, se
trancou rapidamente no interior da judiaria. Aquele era o sinal que as
pessoas esperavam; antes que a porta se fechasse, os mais próximos à
muralha se jogaram sobre ela, e uma chuva de paus, flechas e pedras
começou a voar por cima da muralha do bairro judeu. O ataque começara.
Arnau viu uma turba cega pelo ódio se jogar desordenadamente contra a
porta e a muralha da judiaria. Não havia um comando; o mais semelhante
a uma ordem eram os gritos dos flagelantes, que continuavam a se torturar
aos pés da muralha, incitando os cidadãos a escalá-la para assassinar os
hereges. Muitos caíram sob as espadas dos soldados do rei ao chegar ao
topo da muralha, mas a judiaria estava sofrendo um ataque massivo por
todos os lados, e muitos conseguiram vencer os soldados e lutaram
diretamente com os judeus.
Arnau permaneceu nas escadarias de Sant Jaume por umas duas horas.
Os gritos de guerra dos combatentes lhe recordavam seus dias de soldado,
Bellaguarda e Castell-Rosselló. Os rostos dos que caíam se confundiram
com os dos homens que um dia ele matara; o cheiro de sangue o
transportou ao Roussillon, à mentira que o levara àquela guerra absurda, a
Aledis, a Maria... Ele deixou o lugar de onde observara a matança.
Caminhou em direção ao mar pensando em Maria e no que o levara a se
refugiar na guerra. Seus pensamentos foram bruscamente interrompidos.
Estava na altura do Castell de Regomir, um baluarte da antiga muralha
romana, quando gritos muito próximos o obrigaram a voltar à realidade.
— Hereges!
— Assassinos!
Arnau se deparou com cerca de vinte pessoas armadas com paus e facas
que ocupavam toda a rua e gritavam para pessoas que deviam estar
encostadas à fachada de uma das casas. Por que não choravam seus
mortos? Não se deteve e começou a cruzar o grupo de exaltados para
seguir seu caminho. Enquanto os afastava a cotoveladas, Arnau desviou o
olhar um instante para o lugar para onde as pessoas confluíam: no vão de
uma porta, um escravo mouro ensanguentado tentava proteger três
crianças vestidas de preto com o círculo amarelo no peito. De repente
Arnau se viu entre o mouro e os agressores. Houve silêncio, e as crianças
mostraram seus rostinhos assustados. Arnau as viu; lamentava não ter
dado filhos a Maria. Uma pedra voou na direção de uma das cabecinhas e
roçou o braço de Arnau. O mouro se interpôs em seu voo; a pedra bateu
em seu estômago e o fez se dobrar de dor. O rostinho olhou diretamente
para Arnau. Maria adorava crianças: não lhe importava que fossem cristãs,
mouras ou judias. Ela as seguia com o olhar na praia, nas ruas... Seus olhos
as seguiam e depois pousavam nele...
— Saia! Saia daí — disse uma voz atrás de Arnau.
Arnau olhou aqueles olhinhos aterrorizados.
— O que pretendem fazer com estas crianças? — perguntou.
Vários homens armados com facas o enfrentaram.
— Elas são judias — responderam em uníssono.
— E só por isso querem matá-las? Os seus pais não são suficientes?
— Eles envenenaram os poços — respondeu um. — Mataram Jesus.
Matam crianças cristãs para seus ritos hereges. Sim, arrancam-lhes o
coração... Roubam as hóstias sagradas. — Arnau não ouvia. Ainda sentia o
cheiro de sangue da judiaria... e o de Castell-Rosselló. Agarrou o homem
mais próximo pelo braço e lhe deu um soco no rosto, ao mesmo tempo que
tomava a sua faca e o virava para os demais.
— Ninguém fará mal a estas crianças!
Os agressores viram Arnau empunhar a faca, movê-la em círculos em
sua direção e encará-los.
— Ninguém fará mal a estas crianças — repetiu. — Vão lutar na
judiaria, contra os soldados, contra os homens.
— Eles vão matá-lo — advertiu-o o mouro às suas costas.
— Herege! — gritou alguém.
— Judeu!
Ele aprendera a atacar primeiro, a pegar o inimigo desprevenido, a não
permitir que seu oponente crescesse, a assustá-lo. Arnau se jogou contra os
mais próximos brandindo a faca e gritando “São Jorge!”. Cravou o punhal
no ventre do primeiro e girou sobre si mesmo, o que fez retroceder os que
se lançavam contra ele. O punhal rasgou o peito de mais de um. No chão,
um dos atacantes apunhalou-o na panturrilha. Arnau o viu, agarrou-o pelos
cabelos, puxou sua cabeça para trás e degolou-o. O sangue jorrou aos
borbotões. Três homens jaziam no chão, e os demais começaram a se
afastar. “Fuja quando estiver em desvantagem”, tinham lhe aconselhado.
Arnau ensaiou outro ataque, e as pessoas tropeçaram ao tentar se afastar
dele. Com a mão esquerda, sem olhar para trás, fez um sinal ao mouro
para que se aproximasse e, ao sentir o tremor das crianças em suas pernas,
começou a andar de costas em direção ao mar, sem perder os agressores de
vista.
— Estão esperando por vocês na judiaria — gritou para os homens,
enquanto continuava a empurrar as crianças.
Chegaram ao antigo portão do Castell de Regomir e começaram a
correr. Arnau, sem maiores explicações, impediu que as crianças se
dirigissem à judiaria.
Onde poderia escondê-las? Arnau levou-os para Santa Maria e parou de
repente diante da porta principal. De onde estavam, através da porta
inacabada, era possível ver o interior.
— Não... não pretende entrar com as crianças em uma igreja cristã, não
é mesmo? — perguntou o escravo, ofegante.
— Não — respondeu Arnau. — Mas muito perto dela.
— Por que não nos deixou voltar para nossas casas? — perguntou a
menina, a mais velha dos três e a mais recomposta depois da corrida.
Arnau apalpou a panturrilha. O sangue fluía em abundância.
— Porque as casas de vocês estão sendo atacadas pelo povo —
respondeu ele. — Culpam os judeus pela peste. Dizem que vocês
envenenaram os poços. — Ninguém disse nada. — Sinto muito —
acrescentou.
O escravo muçulmano foi o primeiro a reagir:
— Não podemos ficar aqui — disse, obrigando Arnau a parar de
examinar a própria perna. — Faça o que achar conveniente, mas esconda
as crianças.
— E você? — perguntou Arnau.
— Tenho de saber o que aconteceu com as famílias delas. Como posso
encontrá-los?
— Não há como — respondeu Arnau, pensando que naquele momento
não podia lhe mostrar o caminho do cemitério romano. — Eu encontrarei
você. Vá para a praia à meia-noite, diante da peixaria nova. — O escravo
concordou; quando se separavam, Arnau acrescentou: — Se você não
aparecer depois de três noites, eu o darei por morto.
O muçulmano concordou e encarou Arnau com seus grandes olhos
negros.
— Obrigado — disse, antes de sair correndo para a judiaria.
A criança mais nova tentou seguir o mouro, mas Arnau agarrou-a pelo
ombro.

***

Na primeira noite o muçulmano não compareceu ao encontro. Arnau o


esperou por mais de uma hora, enquanto ouvia o ruído longínquo do
tumulto na judiaria e observava a noite tingida de vermelho pelos
incêndios. Durante a espera teve tempo de pensar nos acontecimentos
daquele dia louco. Escondera três crianças judias em um antigo cemitério
romano sob o altar-mor de Santa Maria, debaixo da sua própria Virgem. A
entrada do cemitério que um dia ele e Joanet tinham descoberto estava
como na última vez em que haviam estado ali. A escada da porta do Born
ainda não tinha sido construída, e o tablado de madeira facilitou o acesso;
porém os guardas que vigiavam o templo ficaram rondando por quase uma
hora pela rua, obrigando-os a esperar agachados em silêncio uma
oportunidade de se meterem embaixo do tablado.
As crianças o seguiram sem reclamar, até que depois de percorrerem o
túnel no escuro Arnau lhes disse onde estavam e as advertiu para que não
tocassem em nada, ou teriam uma surpresa desagradável. Então os três
começaram a chorar desconsoladamente, e Arnau não soube como acalmar
aquele pranto. Maria certamente teria sabido acalmá-las.
— São só mortos — gritou ele —, e não foi de peste. O que vocês
preferem: estar aqui, vivos com os mortos, ou lá fora para que os matem?
— O choro cessou. — Agora vou sair para buscar uma vela, água e algo
para comer. Está bem? Está bem? — repetiu diante do silêncio dos três.
— Está bem — respondeu a menina.
— Vejam, arrisquei minha vida por vocês e vou continuar a arriscar que
alguém descubra que tenho três crianças judias escondidas embaixo da
igreja de Santa Maria. Não estarei disposto a fazer isso se vocês não
estiverem aqui quando eu voltar. O que vocês me dizem? Vocês me
esperam aqui ou querem sair novamente para a rua?
— Vamos esperar — respondeu a menina, decidida.
Arnau foi recebido por uma casa vazia. Se lavou e tentou curar a perna.
Pôs uma bandagem na ferida. Encheu o velho odre de água, agarrou um
lampião para abastecê-lo, uma fogaça dura e carne salgada e voltou
claudicando para Santa Maria.
As crianças estavam no mesmo ponto do túnel onde as deixara. Arnau
acendeu o lampião e viu três filhotinhos assustados que não responderam
ao sorriso com que tentou acalmá-los. Os três eram morenos, de cabelos
longos e limpos, sãos, com os dentes brancos como a neve e belos,
principalmente a menina. Ela.
— Vocês são irmãos? — perguntou Arnau de repente.
— Somos irmãos — respondeu mais uma vez a menina, apontando para
o menor. — Ele é nosso vizinho.
— Bem, acho que depois de tudo o que aconteceu e diante do que ainda
temos pela frente, devemos nos apresentar. Meu nome é Arnau.
A menina fez as honras: ela se chamava Raquel, seu irmão, Jucef, e o
vizinho, Saul. Arnau continuou a interrogá-los à luz do lampião, enquanto
as crianças olhavam furtivamente para o interior do cemitério. Tinham
treze, onze e seis anos. Tinham nascido em Barcelona e viviam na judiaria
com os pais, para onde estavam voltando quando foram atacados pelos
selvagens. O escravo, que chamavam de Sahat, era propriedade dos pais de
Raquel e Jucef e, se disse que iria até a praia, certamente o faria; ele nunca
lhes faltava.
— Bem — disse Arnau depois das explicações —, acho que vale a pena
dar uma olhada neste lugar. Há muito tempo não venho aqui, desde que
tinha mais ou menos a idade de vocês, mas não acho que nada tenha
mudado de lugar. — Ele riu sozinho. De joelhos, foi até o centro da cova e
a iluminou. As crianças ficaram agachadas onde estavam, olhando
aterrorizadas para as tumbas e esqueletos. — Esta foi a melhor ideia que
tive — desculpou-se ao perceber a expressão de pânico em seus rostos. —
Mas aqui ninguém os encontrará enquanto esperamos que as coisas se
acalmem...
— E o que vai acontecer se matarem nossos pais? — interrompeu-o
Raquel.
— Não pense nisso. Não vai acontecer nada com eles. Olhe, venha para
cá. Aqui há um espaço sem tumbas e é suficientemente grande para todos
nós. Venham! — insistiu, chamando-os com gestos.
Finalmente os quatro se reuniram em um pequeno espaço que lhes
permitia sentar no chão sem se encostar em nenhuma tumba. O antigo
cemitério romano continuava como da primeira vez que Arnau o vira, com
suas estranhas tumbas de barro em forma de pirâmides alongadas e as
grandes ânforas contendo cadáveres. Arnau pôs a lâmpada em uma delas e
ofereceu o odre, o pão e a carne salgada. As crianças beberam avidamente,
mas de comer só provaram o pão.
— Não é kosher — desculpou-se Raquel, apontando para a carne
salgada.
— Kosher?
Raquel explicou o que significava kosher e os ritos que deviam ser
seguidos para que os membros da comunidade judaica pudessem comer
carne, e continuaram a conversar até que os dois meninos caíram exaustos
no colo da menina. Então, sussurrando para não despertá-los, ela
perguntou:
— E você não acredita no que dizem, não é mesmo?
— O quê?
— Que envenenamos os poços.
Arnau demorou uns segundos para responder.
— Algum judeu morreu de peste? — disse.
— Muitos.
— Então não — afirmou. — Não acredito.
Quando Raquel dormiu, Arnau se arrastou pelo túnel e foi até a praia.

***

O ataque à judiaria durou dois dias, durante os quais as escassas forças


reais, ao lado dos membros da comunidade judaica, tentaram defender o
bairro dos ataques constantes do povo enlouquecido e exaltado que, em
nome da cristandade, alçava a bandeira do saque e do linchamento.
Finalmente o rei enviou suficientes tropas e a situação começou a voltar à
normalidade.
Na terceira noite, Sahat, que lutara ao lado de seus senhores, conseguiu
escapar para encontrar Arnau na praia diante da peixaria, como haviam
combinado.
— Sahat! — ouviu na noite.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou o escravo a Raquel, que
correu em sua direção.
— O cristão está muito doente.
— Não será...?
— Não — assegurou a menina —, não é peste. Não tem pústulas. É a
perna. A ferida infeccionou, e ele está com muita febre. Não pode
caminhar.
— E os outros? — perguntou o escravo.
— Bem. E...?
— Eles esperam por vocês.
Raquel guiou o mouro até o tablado da porta do Born de Santa Maria.
— Aqui? — perguntou o escravo quando a menina se meteu debaixo do
tablado.
— Silêncio — respondeu ela. — Siga-me.
Os dois deslizaram pelo túnel até o cemitério romano. Todos tiveram de
ajudar para tirar Arnau dali; Sahat, rastejando para trás, puxou-o pelas
mãos, e as crianças empurraram pelos pés. Arnau perdera a consciência.
Os cinco, com Arnau nos ombros do escravo e as crianças disfarçadas de
cristãs com as roupas que Sahat tinha trazido, se dirigiram à judiaria
tentando permanecer à sombra dos edifícios. Quando chegaram à porta do
bairro, vigiada por um forte contingente de soldados do rei, Sahat explicou
ao oficial de guarda a verdadeira identidade das crianças e por que não
usavam o círculo amarelo. Quanto a Arnau, sim, era um cristão com febre
que precisava de atendimento médico, como o oficial podia comprovar, e
este assim fez, apesar de ter se afastado imediatamente, pois podia ser um
apestado. O que realmente abriu as portas, no entanto, foi a generosa bolsa
que o escravo deixou cair nas mãos do oficial do rei enquanto conversava
com ele.
32

“Ninguém fará mal a estas crianças. Pai, onde você está? Por quê, pai? No
palácio há grãos. Maria, eu amo você...”
Quando Arnau delirava, Sahat obrigava as crianças a saírem do quarto e
mandava chamar Hasdai, o pai de Raquel e Jucef, para ajudá-lo a
imobilizar o bastaix caso ele começasse a lutar contra os soldados do
Roussillon, para que a ferida não se abrisse novamente. Senhor e escravo o
vigiavam aos pés da cama, enquanto uma escrava aplicava compressas
frias em sua testa. Estavam assim fazia uma semana, durante a qual Arnau
recebera os melhores cuidados dos médicos judeus e a atenção constante
da família Crescas e de seus escravos, especialmente Sahat, que velava o
doente dia e noite.
— A ferida não tem muita importância — diagnosticaram os médicos
—, mas a infecção afetou todo o corpo.
— Ele sobreviverá? — perguntou Hasdai.
— Ele é um homem forte — limitaram-se a responder os médicos antes
de deixar a casa.
— Há trigo no palácio! — gritou Arnau novamente depois de um
tempo, suando devido à febre.
— Se não fosse por ele — disse Sahat —, estaríamos todos mortos.
— Eu sei — respondeu Hasdai, de pé a seu lado.
— Por que terá feito isso? Ele é cristão.
— É uma boa pessoa.
À noite, quando Arnau descansava e a casa permanecia em silêncio,
Sahat se ajoelhava virado para a direção sagrada e rezava pelo cristão.
Durante o dia, pacientemente o obrigava a beber água e engolir as misturas
preparadas pelos médicos. Raquel e Jucef vinham vê-lo com frequência, e
Sahat os deixava entrar quando Arnau não estava delirando.
— Ele é um guerreiro — disse Jucef em certa ocasião, de olhos
arregalados.
— Ele disse que era um bastaix — Raquel o corrigiu.
— No cemitério ele disse que era um guerreiro. Talvez seja um bastaix
guerreiro.
— Ele disse isso para você ficar calado.
— Eu apostaria que é um bastaix — interveio Hasdai. — Pelo que ele
diz.
— É um guerreiro — insistiu o menor.
— Não sei, Jucef. — O escravo lhe acariciou os cabelos pretos. — Por
que não esperamos que se cure e então ele mesmo nos contará?
— Ele vai ficar bom?
— É claro. Onde já se viu um guerreiro morrer por causa de um
ferimento na perna?
Quando as crianças saíam, Sahat se aproximava de Arnau e tocava sua
testa, que continuava a arder. “Não foram só as crianças que sobreviveram
graças a você, cristão. Por que você fez isso? O que o levou a arriscar a
vida por um escravo e três crianças judias? Você tem de sobreviver. Quero
falar com você, agradecer. Além disso, Hasdai é muito rico e certamente
vai recompensá-lo.”
Alguns dias depois, Arnau começou a se recuperar. Certa manhã, Sahat
o encontrou muito menos febril.
— Alá, louvado seja seu nome, me ouviu.
Hasdai sorriu ao comprová-lo pessoalmente.
— Ele sobreviverá — atreveu-se a garantir aos filhos.
— Ele vai me contar das batalhas?
— Filho, não acho...
Mas Jucef começou a imitar Arnau, movendo o punhal diante de um
grupo imaginário de agressores. No momento em que ia degolar o caído, a
irmã agarrou-o pelo braço.
— Jucef! — gritou.
Quando voltaram a olhar para o doente, os olhos de Arnau estavam
abertos. Jucef se sobressaltou.
— Como se sente? — perguntou Hasdai.
Arnau tentou responder, mas sua boca estava seca. Sahat lhe trouxe um
copo d’água.
— Bem — conseguiu responder depois de beber. — E as crianças?
Empurrados pelo pai, Jucef e Raquel se aproximaram da cabeceira da
cama. Arnau esboçou um sorriso.
— Olá — disse Arnau.
— Olá — responderam elas.
— E Saul?
— Está bem — respondeu Hasdai —, mas agora você deve descansar.
Vamos, crianças.
— Quando você ficar bom, vai me contar de suas batalhas? —
perguntou Jucef antes que o pai e a irmã o levassem para fora do quarto.
Arnau concordou e tentou esboçar um sorriso.
Na semana seguinte a febre baixou completamente, e a ferida começou
a cicatrizar. Arnau e Sahat conversavam sempre que o bastaix tinha forças
para tal.
— Obrigado — foi a primeira coisa que disse ao escravo.
— Você já agradeceu, lembra? Por que... por que fez isso?
— Os olhos do menino... minha mulher não teria permitido...
— Maria — afirmou Sahat, se lembrando dos delírios de Arnau.
— Sim — respondeu Arnau.
— Quer que lhe avisemos que você está aqui? — Arnau apertou os
lábios e fez que não com a cabeça. — Quer que avisemos alguém? — O
escravo não insistiu ao ver a expressão que anuviou o rosto de Arnau.
— Como terminou o ataque? — perguntou Arnau a Sahat em outra
ocasião.
— Duzentos homens e mulheres assassinados. Muitas casas saqueadas
e incendiadas.
— Que tragédia!
— Nem tanto — afirmou Sahat. Arnau olhou surpreso para ele. — A
judiaria de Barcelona teve sorte. Os judeus foram assassinados sem
piedade do Oriente até Castela. Mais de trezentas comunidades foram
totalmente destruídas. Na Alemanha o próprio imperador Carlos IV
prometeu conceder perdão a qualquer delinquente que assassinasse um
judeu ou destruísse uma judiaria. Imagina o que teria ocorrido em
Barcelona se o seu rei, em vez de protegê-la, tivesse perdoado a todos os
que matassem um judeu? — Arnau fechou os olhos e balançou a cabeça.
— Em Mainz queimaram seis mil judeus na fogueira, e em Estrasburgo
imolaram outros dois mil em uma enorme pira no cemitério judeu,
incluindo mulheres e crianças. Dois mil de uma vez...

***
As crianças só podiam entrar no quarto de Arnau quando Hasdai visitava o
doente e cuidava para que não o perturbassem. Um dia, quando Arnau já
começava a se levantar do leito e caminhar um pouco, Hasdai apareceu
sozinho. O judeu, alto e magro, de cabelos negros longos e lisos, olhar
penetrante e nariz adunco, sentou-se diante dele.
— Você deve saber... — disse com voz grave. — Suponho que saiba —
corrigiu-se — que os seus sacerdotes proíbem a coabitação entre cristãos e
judeus.
— Não se preocupe, Hasdai; assim que eu puder andar...
— Não — interrompeu-o o judeu —; não estou dizendo que você deva
ir embora da minha casa. Você salvou os meus filhos da morte certa
arriscando a própria vida. Tudo o que eu tenho é seu, e lhe serei
eternamente agradecido. Você pode ficar nesta casa o tempo que quiser.
Minha família e eu ficaremos muito honrados se o fizer. Só queria adverti-
lo, principalmente se resolver ficar, que devemos ser extremamente
discretos. Da parte dos meus, ninguém saberá que você vive na minha
casa, e aqui incluo toda a comunidade hebraica; quanto a isto, você pode
ficar tranquilo. A decisão é sua, e insisto em que ficaríamos muito
honrados e felizes se você decidisse continuar conosco. O que você
responde?
— Quem contaria minhas batalhas a seu filho?
Hasdai sorriu e estendeu a mão, que Arnau apertou.

***

Castell-Rosselló era uma fortaleza impressionante... O pequeno Jucef se


sentava diante de Arnau no chão do jardim dos fundos dos Crescas, de
pernas cruzadas e olhos muito abertos, e saboreava incontáveis vezes as
histórias de guerra do bastaix, atento ao ataque, inquieto quanto à luta,
sorrindo na vitória.
— Os defensores lutaram com valentia — contava ele —, mas nós, os
soldados do rei, éramos muito melhores...
Quando terminava, Jucef insistia para que ele contasse outra história.
Arnau apresentava relatos verdadeiros ou inventados. “Eu só ataquei dois
castelos”, esteve a ponto de confessar. “Nos outros dias de guerra nos
dedicamos a saquear e destruir granjas e colheitas... exceto as figueiras.”
— Você gosta de figos, Jucef? — perguntou ele uma vez, recordando os
troncos retorcidos que se elevavam no meio da destruição total.
— Basta, Jucef — advertiu o pai, que acabava de chegar ao jardim,
diante da insistência do pequeno para que Arnau contasse outra batalha. —
Está na hora de dormir. — Jucef, obediente, se despediu do pai e de Arnau.
— Por que você lhe perguntou se gostava de figos?
— É uma longa história.
Sem dizer nada, Hasdai se sentou diante dele numa cadeira. “Conte-
me”, pediu com o olhar.
— Arrasamos tudo... — confessou Arnau depois de relatar brevemente
os antecedentes —, exceto as figueiras. É absurdo, não é? Deixávamos os
campos arrasados, e, no meio de tanta destruição, uma figueira solitária
nos olhava, perguntando o que estávamos fazendo.
Arnau se perdeu em suas lembranças, e Hasdai não se atreveu a
interrompê-lo.
— Foi uma guerra sem sentido — disse o bastaix por fim.
— No ano seguinte — completou Hasdai —, o rei recuperou o
Roussillon. Jaime de Maiorca se ajoelhou descoberto diante dele e
entregou a rendição de seus exércitos. Talvez a primeira guerra em que
você lutou tenha servido para...
— Para matar de fome os camponeses, as crianças e os humildes —
Arnau o interrompeu. — Talvez tenha servido para que o exército de Jaime
ficasse sem provisões, mas para isso muitas pessoas humildes precisaram
morrer, posso lhe assegurar. Nós não passamos de brinquedos nas mãos
dos nobres. Eles decidem sobre seus assuntos sem se importar com
quantas mortes ou quanta miséria podem trazer para os demais.
Hasdai suspirou.
— Se eu lhe contasse, Arnau... Nós somos propriedade real, somos
seus...
— Eu fui à guerra para lutar e acabei queimando as colheitas dos
humildes.
Os dois homens ficaram pensativos por um instante.
— Bem — disse Arnau finalmente, rompendo o silêncio —, agora você
conhece a história das figueiras.
Hasdai se levantou e tocou o ombro de Arnau. Depois o convidou a
entrar em casa.
— Está esfriando — disse, olhando o céu.
***

Quando Jucef os deixava a sós, Arnau e Raquel costumavam conversar no


pequeno jardim dos Crescas. Não falavam sobre a guerra; Arnau lhe
contava sobre sua vida de bastaix e sobre Santa Maria.
— Nós não acreditamos que Jesus Cristo seja o Messias; o Messias
ainda não veio, e o povo judeu espera a sua chegada — disse Raquel certa
vez.
— Dizem que vocês o mataram.
— Não é verdade! — respondeu ela, exaltada. — Nós é que sempre
fomos mortos e expulsos de onde estávamos!
— Dizem — insistiu Arnau — que na Páscoa vocês sacrificam uma
criança cristã e comem seu coração e seus membros nos rituais.
Raquel negou.
— Isso é uma bobagem! Você já viu que só podemos comer carne
kosher e que nossa religião nos proíbe de ingerir sangue. O que faríamos
com o coração de uma criança, com seus braços e pernas? Você conhece o
meu pai e o pai do Saul; acha que eles seriam capazes de comer uma
criança?
Arnau lembrou do rosto de Hasdai e voltou a ouvir suas sábias palavras;
recordou sua prudência e o carinho que iluminava seu rosto quando olhava
para os filhos. Como aquele homem poderia comer o coração de uma
criança?
— E a hóstia? — perguntou. — Dizem que vocês as roubam para
torturá-las e reviver o sofrimento de Jesus Cristo.
Raquel gesticulou.
— Os judeus não acreditam na transubs... — Fez um gesto contrariado.
Sempre tropeçava naquela palavra quando conversava com seu pai! —
Transubstanciação — repetiu rapidamente.
— Em quê?
— Na transubs... tanciação. Para vocês significa que o seu Jesus Cristo
está na hóstia, que a hóstia é realmente o corpo de Cristo. Nós não
acreditamos nisso. Para os judeus, a sua hóstia não passa de um pedaço de
pão. Seria completamente absurdo de nossa parte torturar um simples
pedaço de pão.
— Então nada de que os acusam é verdade?
— Nada.
Arnau queria acreditar em Raquel. A menina olhava para ele de olhos
muito abertos, implorando que afastasse da mente os preconceitos com
que os cristãos difamavam sua comunidade e suas crenças.
— Mas vocês são usurários. Isso, sim, não podem negar.
Raquel ia responder quando ouviu a voz do pai.
— Não. Não somos usurários — interveio Hasdai Crescas, se
aproximando deles e sentando ao lado da filha. — Pelo menos não como
contam. — Arnau permaneceu em silêncio, à espera de uma explicação. —
Veja, há pouco mais de um século, em 1230, os cristãos também
emprestavam dinheiro a juros. Tanto judeus quanto cristãos o faziam, mas
um decreto do seu papa Gregório IX proibiu que os cristãos emprestassem
a juros, e, a partir de então, só os judeus e algumas outras comunidades,
como os lombardos, continuamos a fazê-lo. Por mil e duzentos anos os
cristãos emprestaram dinheiro a juros. Oficialmente, vocês deixaram de
fazê-lo há pouco mais de cem anos — ressaltou Hasdai. — Mas somos nós
os usurários.
— Oficialmente?
— Sim, oficialmente. Muitos cristãos emprestam dinheiro a juros por
nosso intermédio. De qualquer maneira, gostaria de explicar por que o
fazemos. Em todas as épocas e em todos os lugares, nós, os judeus, sempre
dependemos diretamente do rei. Ao longo do tempo, nossa comunidade foi
expulsa de muitos países; primeiro de nossa própria terra, depois do Egito;
mais tarde da França, em 1183, e poucos anos depois, em 1290, da
Inglaterra. As comunidades judaicas tiveram de migrar de um país para
outro, deixar para trás todos os seus pertences e suplicar permissão aos
reis para se estabelecer nos países para onde iam. Esses reis, como
acontece com os seus, costumam se apropriar da comunidade judaica e nos
exigem grandes contribuições para suas guerras e gastos. Se não
obtivéssemos lucros a partir de nosso dinheiro, não poderíamos cumprir as
exigências exorbitantes de seus reis, que nos expulsariam outra vez de
onde estivéssemos.
— Mas vocês não emprestam dinheiro só aos reis — insistiu Arnau.
— Não, é verdade. E você sabe por quê? — Arnau fez que não. —
Porque os reis não pagam os empréstimos; pelo contrário, nos pedem cada
vez mais para suas guerras e seus gastos. De algum lugar precisamos tirar
dinheiro para emprestar ou contribuir sem retribuições, sem que isso seja
um empréstimo.
— Vocês não podem se recusar?
— Seríamos expulsos... ou, pior, não nos defenderiam dos cristãos,
como aconteceu há alguns dias. Todos nós morreríamos. — Desta vez
Arnau assentiu em silêncio ante o olhar satisfeito de Raquel ao ver que seu
pai conseguia convencer o bastaix. Ele próprio vira os barceloneses
encolerizados clamando contra os judeus. — De qualquer maneira,
tampouco emprestamos dinheiro a cristãos que não sejam mercadores ou
não tenham por ofício comprar e vender. Há quase cem anos o seu rei
Jaime I, o Conquistador, promulgou um usatge pelo qual qualquer
escritura de comanda1 ou de depósito efetuada por um cambista judeu a
quem não fosse mercador seria considerada falsa e forjada pelos judeus, e
por isso não se pode agir contra quem não for mercador. Não podemos
fazer escrituras de comanda ou de depósito a quem não for mercador, pois
nunca as receberíamos.
— E que diferença faz?
— Muita, Arnau, muita. Os cristãos se orgulham de seguir as ordens de
sua Igreja e não emprestar dinheiro a juros, e é verdade que não o fazem,
pelo menos abertamente. No entanto, vocês fazem a mesma coisa, mas
com outro nome. Veja bem, enquanto a Igreja não proibiu os empréstimos
a juros entre os cristãos, o negócio funcionava como hoje entre os judeus e
os mercadores: havia cristãos com muito dinheiro que emprestavam a
outros cristãos, mercadores, e que recebiam de volta seu capital com juros.
— O que aconteceu quando o empréstimo a juros foi proibido?
— É bem simples. Como sempre, os cristãos burlaram a norma da
Igreja. Era evidente que nenhum cristão com dinheiro o emprestaria sem
obter nenhum lucro, como ditava a norma. Neste caso, ele ficava com o
dinheiro e não corria nenhum risco. Então os cristãos inventaram uma
coisa que se chama comanda: você já ouviu falar nisso?
— Já — afirmou Arnau —, no porto falam muito das comandas quando
chega um navio com mercadorias, mas na verdade nunca entendi o que
era.
— É muito fácil. A comanda não passa de um empréstimo a juros, mas
disfarçado. Um comerciante, geralmente um cambista, entrega dinheiro a
um mercador para que compre ou venda uma mercadoria. Quando o
mercador termina o negócio, deve devolver ao cambista a mesma
quantidade que recebeu, além de uma parte dos lucros que obteve. É a
mesma coisa que o empréstimo a juros, mas com outro nome: comanda. O
cristão que entrega este dinheiro obtém um lucro com seu dinheiro, mas a
Igreja proíbe obter lucros mediante dinheiro e não mediante trabalho. Os
cristãos continuam a fazer exatamente a mesma coisa que faziam há cem
anos, antes da proibição dos juros, só que com outro nome. Então, se nós
emprestamos dinheiro para um negócio, somos usurários, mas, se um
cristão faz o mesmo através de uma comanda, ele não é usurário.
— Não há nenhuma diferença?
— Só uma: nas comandas, quem entrega seu dinheiro corre o mesmo
risco que o negócio. Isto é, se o mercador não regressar ou perder a
mercadoria porque foi assaltado por piratas, por exemplo, quem pôs o
dinheiro o perde. Isso não aconteceria em um empréstimo, porque o
mercador seria obrigado a devolver o dinheiro e seus juros, mas, na
prática, é a mesma coisa, porque o mercador que perdeu seus produtos não
nos paga, e, em último caso, nós, os judeus, temos de emprestar, caso
contrário não conseguiríamos lucros para atender aos seus reis. Você
entendeu?
— Nós, os cristãos, não emprestamos a juros, mas o resultado das
comandas é o mesmo — comentou Arnau para si.
— Exatamente. O que a sua Igreja tenta proibir não são os juros em si,
mas sua obtenção através do dinheiro e não do trabalho, sempre que os
empréstimos não forem feitos a nobres ou cavaleiros, os chamados
empréstimos baratos, porque um cristão pode emprestar dinheiro a juros
aos reis, aos nobres ou aos cavaleiros. A Igreja supõe que esse tipo de
empréstimo é para a guerra e considera os juros válidos.
— Mas isso só é praticado pelos cambistas cristãos — argumentou
Arnau. — Não se podem julgar todos os cristãos pelo que fazem...
— Não se engane, Arnau — Hasdai o advertiu com um sorriso. — Os
cambistas recebem em depósito o dinheiro dos cristãos e, com esse
dinheiro, contratam comandas, cujos lucros depois são pagos pelos
cristãos que lhes entregaram seu dinheiro. Os cambistas se mostram, mas
o dinheiro é dos cristãos, dos que o depositam em suas mesas de câmbio.2
Arnau, há algo que nunca mudará na história: quem tem dinheiro quer
mais; nunca o dá e nunca o fará. Se os seus bispos não o fazem, por que os
fiéis o fariam? Pode-se chamar empréstimo, comanda, o que for, mas as
pessoas não dão nada; no entanto, os únicos usurários somos nós.
Enquanto conversavam, caiu a noite, uma noite mediterrânea, estrelada
e plácida. Por um instante, os três permaneceram em silêncio, desfrutando
a paz e a tranquilidade que se respirava no pequeno jardim dos fundos da
casa de Hasdai Crescas. Por fim os chamaram para jantar, e, pela primeira
vez desde que se hospedava com aqueles judeus, Arnau os viu como
pessoas iguais a ele, com outras crenças, mas boas, tão boas e caridosas
quanto os mais santos entre os cristãos. Naquela noite ele desfrutou sem
reservas os sabores da comida judaica, acompanhado de Hasdai e servido
pelas mulheres da casa.

1. Equivalente à sociedade em comandita moderna. (N. da T.)


2. “Mesas de câmbio” era como se chamavam os bancos de comércio. (N. da T.)
33

O tempo ia passando e a situação começava a ficar incômoda para todos.


As notícias sobre a peste que chegavam ao call1 eram alentadoras: cada
vez havia menos casos. Arnau precisava voltar para casa. Na noite anterior
à sua partida, ele e Hasdai se reuniram no jardim. Tentaram conversar
amistosamente sobre coisas insignificantes, mas a noite tinha um sabor de
despedida, e, entre uma frase e outra, eles evitavam se olhar.
— Sahat é seu — anunciou Hasdai repentinamente, entregando-lhe a
documentação comprobatória.
— De que me serve um escravo? Se não poderei me alimentar enquanto
o tráfego marítimo não for restabelecido, como vou alimentar um escravo?
A confraria não permite que os escravos trabalhem. Não preciso de Sahat.
— Sim, você vai precisar dele — respondeu Hasdai rindo. — Ele tem
uma dívida com você. Desde que Raquel e Jucef nasceram, Sahat cuidou
deles como se fossem seus próprios filhos, e posso assegurar que os adora.
Sahat e eu nunca poderemos pagar a você pelo que fez por eles. Pensamos
que a melhor maneira de pagar essa dívida seria facilitar a sua vida. Para
isso você precisará de Sahat, e ele está disposto.
— Facilitar a minha vida?
— Nós o ajudaremos a ficar rico.
Arnau devolveu o sorriso de seu anfitrião.
— Eu não passo de um bastaix. A riqueza é para os nobres e
mercadores.
— Poderá ser para você também. Eu oferecerei os meios para que assim
seja. Se você agir com prudência e de acordo com as instruções de Sahat,
não tenho dúvida de que se tornará rico. — Arnau olhou para ele, à espera
de mais explicações. — Como você sabe — prosseguiu Hasdai —, a peste
está cedendo; os casos começam a ser isolados, mas as consequências são
terríveis. Ninguém sabe exatamente quantas pessoas faleceram em
Barcelona, mas o que se sabe é que quatro dos cinco conselheiros
morreram. E isso pode ser catastrófico. Mas, voltando ao assunto: muitos
mortos são cambistas que exerciam a profissão em Barcelona. Eu sei disso
porque colaborava com eles e agora se foram. Acho que, se lhe interessar,
você poderia se dedicar ao negócio do câmbio...
— Não sei nada de negócios nem de câmbio — replicou Arnau. —
Todos os mestres de ofícios precisam passar por uma prova. Eu não
conheço nada disso.
— Os cambistas ainda não — respondeu Hasdai. — Sei que foi
solicitado ao rei que proclame uma nova norma, mas ele ainda não o fez.
A profissão de cambista é livre, contanto que garanta sua mesa. Quanto à
sabedoria, Sahat a possui. Ele conhece absolutamente tudo sobre as mesas
de câmbio. Há anos ele colabora com o meu negócio. Eu o comprei porque
era especializado em transações desse tipo. Se deixá-lo agir, você
aprenderá e prosperará sem problema. Apesar de ser escravo, é um homem
de confiança e lhe deve lealdade pelo que fez pelos meus filhos, as únicas
pessoas que ele amou, pois para ele são sua família. — Hasdai interrogou
Arnau com os olhos. — E então?
— Não sei... — O bastaix hesitou.
— Você contará com a minha ajuda e a de todos os judeus que
conhecem a sua façanha. Somos um povo agradecido, Arnau. Sahat
conhece todos os meus correspondentes ao longo do Mediterrâneo, na
Europa e até para além do Oriente, nas terras do sultão do Egito. Você terá
uma ampla base para empreender, e nós o ajudaremos no início. É uma
boa proposta, Arnau. Você não terá nenhum problema.
O consentimento cético de Arnau pôs em marcha o esquema que Hasdai
já havia preparado. Primeira regra: ninguém deveria saber que Arnau
contava com o apoio dos judeus; isso deporia contra ele. Hasdai lhe
entregou uma documentação comprovando que o dinheiro provinha de
uma viúva cristã de Perpignan, e, formalmente, isso era verdade.
— Se alguém perguntar — disse —, não responda, mas, se for obrigado
a fazê-lo, você herdou. Você vai precisar de muito dinheiro — continuou.
— Em primeiro lugar, deve garantir sua mesa de câmbio com os juízes de
Barcelona a partir de um depósito no valor de mil marcos de prata; depois
deve comprar uma casa ou os direitos de uma casa no bairro dos
cambistas, seja na Rua de Canvis Vells, seja em Canvis Nous, e arrumá-la
para exercer a profissão; por último, terá de juntar mais dinheiro para
começar a trabalhar.
Cambista! E por que não? O que sobrara de sua antiga vida? Todos os
seus entes queridos haviam morrido devido à peste. Hasdai parecia
convencido de que, com a ajuda de Sahat, a casa funcionaria. Nem podia
imaginar como seria a vida de um cambista; ele ficaria rico, Hasdai lhe
assegurara. E o que faziam os ricos? De repente se lembrou de Grau, o
único rico que conhecera, e sentiu um vazio no estômago. Não. Ele nunca
seria como Grau.
Garantiu sua mesa de câmbio com os mil marcos de prata que Hasdai
lhe entregara e jurou diante do juiz que denunciaria as moedas falsas — se
perguntou como as reconheceria se algum dia não pudesse contar com
Sahat — e que as partiria em dois pedaços com uma serra especial que
todo cambista devia possuir. Com a assinatura do juiz, legalizou os
enormes livros contábeis onde registraria suas operações e, num momento
em que Barcelona se encontrava submersa no caos após a peste bubônica,
recebeu autorização para operar como cambista, e foram fixados os dias e
horas em que deveria estar obrigatoriamente à frente do estabelecimento.
A segunda regra sugerida por Hasdai tinha a ver com Sahat:
— Ninguém deve saber que ele é um presente meu. Sahat é muito
conhecido entre os cambistas, e se alguém souber disso você terá
problemas. Como cristão você pode fazer negócios com os judeus, mas
evite que saibam que é amigo de judeus. Há outro problema com relação a
Sahat que você deve saber: poucos profissionais do câmbio entenderiam a
sua venda. Recebi centenas de ofertas por ele, cada qual mais elevada, e
sempre as recusei devido à sua competência e ao seu amor por meus
filhos. Ninguém o entenderia. Então, decidimos que Sahat vai se converter
ao cristianismo...
— Ele vai se converter? — Arnau estranhou.
— Vai. Nós, os judeus, somos proibidos de possuir escravos cristãos. Se
algum de nossos escravos se converte, devemos alforriá-lo ou vendê-lo a
outro cristão.
— E os cambistas acreditarão nessa conversão?
— Uma epidemia de peste é capaz de abalar qualquer fé.
— Sahat está disposto a fazer esse sacrifício?
— Está.
Tinham falado sobre isso não como senhor e escravo, mas como os
amigos que tinham se tornado com o passar dos anos.
— Você seria capaz? — perguntara-lhe Hasdai na ocasião.
— Seria — respondera Sahat. — Alá, exaltado e glorificado seja!,
saberá entender. Somos proibidos de praticar nossa fé em terras cristãs.
Cumprimos nossas obrigações em segredo, na intimidade do coração.
Continuará a ser assim, por mais água benta que derramem em minha
cabeça.
— Arnau é um cristão devoto — insistira Hasdai —, se ele souber
disso...
— Ele nunca saberá. Nós, escravos, mais do que ninguém, conhecemos
a arte da hipocrisia. Não digo por você, mas fui escravo em outros lugares.
Muitas vezes nossa vida depende disso.
A terceira regra ficou em segredo entre Hasdai e Sahat.
— Não preciso lhe dizer, Sahat — disse seu antigo senhor com a voz
embargada —, como me sinto grato por sua decisão. Meus filhos e eu
seremos eternamente gratos.
— Sou eu quem agradece a vocês.
— Suponho que você saiba em que deve concentrar seus esforços neste
momento...
— Acho que sim.
— Nada de especiarias. Nada de tecidos, azeites ou ceras. — Sahat
assentiu ao ouvir os conselhos que já previa. — Enquanto a situação não se
estabilizar, a Catalunha não estará preparada para assumir essas
importações. Escravos, Sahat, escravos. Você os encontrará em Bizâncio,
na Palestina, em Rodes e em Chipre. Evidentemente, também no mercado
da Sicília. Mas eu sugiro que utilize os lugares de origem; em todos eles
temos correspondentes aos quais você pode recorrer. Em pouco tempo, o
seu novo senhor vai acumular uma fortuna considerável.
— E se ele se negar ao comércio de escravos? Não me parece que seja
uma pessoa...
— É uma boa pessoa — concluiu Hasdai, confirmando suas suspeitas.
— Escrupulosa, de origem humilde e muito generosa. Pode ser que se
negue a intervir no comércio de escravos. Não os traga a Barcelona. Que
Arnau não os veja. Leve-os diretamente a Perpignan, Tarragona ou Salou,
ou venda-os em Maiorca. Maiorca tem um dos mais importantes mercados
de escravos do Mediterrâneo. Deixe que outros os tragam a Barcelona e os
vendam onde quiserem. Castela também está muito necessitada de
escravos. De qualquer maneira, enquanto Arnau aprende como funcionam
as coisas, há bastante tempo para ganhar muito dinheiro. Eu proporia, e lhe
aconselhei pessoalmente, que no princípio ele se dedique a conhecer bem
as moedas, os câmbios, os mercados, as rotas e os principais objetos de
exportação e importação. Enquanto isso, você se dedica às suas tarefas.
Pense que não somos mais inteligentes que os demais e que qualquer
pessoa que tenha algum dinheiro vai importar escravos. Será uma época
muito lucrativa, mas breve. Aproveite-a enquanto o mercado não se
esgota, porque ele vai se esgotar.
— Posso contar com a sua ajuda?
— Claro. Darei a você cartas para todos os meus correspondentes, que
você já conhece. Eles lhe darão o crédito necessário.
— E os livros? Os escravos terão de constar neles, e Arnau poderá
descobrir.
Hasdai lhe deu um sorriso cúmplice.
— Estou certo de que você encontrará uma solução para esse detalhe.

1. Zona habitada por judeus na Catalunha medieval. (N. da T.)


34

— Essa! — Arnau assinalou uma pequena casa de dois andares, fechada e


com uma cruz branca na porta. A seu lado, Sahat, já batizado como
Guillem, concordou. — Sim? — perguntou Arnau.
Guillem voltou a concordar, agora com um sorriso nos lábios.
Arnau olhou a casinha e balançou a cabeça. Ele a indicara, e Guillem
concordara. Era a primeira vez na vida que seus desejos se cumpriam de
maneira tão simples. Seria sempre assim a partir de agora? Balançou a
cabeça outra vez.
— Aconteceu alguma coisa, meu senhor? — Arnau lhe lançou um olhar
atravessado. Quantas vezes dissera que não queria ser chamado de “meu
senhor”? Mas o mouro se negava; respondeu que deviam manter as
aparências. Guillem o encarou. — Por acaso não gostou, meu senhor?
— É claro que gostei. É adequada?
— É claro. Não podia ser melhor. Olhe — disse, apontando para a casa
—, fica bem na esquina das duas ruas dos cambistas: Canvis Nous e
Canvis Vells. O que poderia ser melhor?
Arnau acompanhou o dedo do escravo. Canvis Vells chegava até o mar,
à esquerda de onde estavam; Canvis Nous se abria diante deles. Mas Arnau
não a escolhera por isso; nem tinha reparado nas ruas, apesar de ter andado
por elas centenas de vezes. A casinha se erguia na esquina da Praça de
Santa Maria, em frente ao que seria o portão principal do templo.
— Bom augúrio — murmurou para si mesmo.
— O que disse, meu senhor?
Arnau se virou para Guillem bruscamente.
— Que aparências temos que manter neste momento? — reclamou ele.
— Ninguém nos ouve. Ninguém nos vê.
— Pense que, desde que virou cambista, muitas pessoas o ouvem e o
veem, ainda que você não creia. Deve se habituar a isso.
Naquela manhã, enquanto Arnau se perdia na praia, Guillem investigou
a propriedade da casinha, que, como era de se esperar, pertencia à Igreja.
Seus enfiteutas haviam falecido, e ninguém melhor que um cambista para
ocupá-la novamente.
À tarde a ocuparam. No andar superior havia três quartos pequenos, e
eles mobiliaram dois, um para cada. No andar inferior ficava a cozinha,
com saída para o que deveria ter sido uma pequena horta e, separada por
um muro, com vista para a rua, um quarto bem iluminado onde, nos dias
seguintes, Guillem instalou um armário, vários lampiões e uma comprida
mesa de madeira de lei com duas cadeiras atrás e quatro na frente.
— Está faltando alguma coisa — disse Guillem um dia, e saiu de casa.
Arnau ficou sozinho na sua futura mesa de câmbio. A grande mesa de
madeira reluzia; ele a limpara mais de uma vez. Passou os dedos pelo
encosto das cadeiras.
— Escolha o seu lugar — dissera Guillem.
Arnau escolheu o lado direito, à esquerda dos futuros clientes. Então
Guillem mudou as cadeiras de lugar: à direita colocou uma cadeira com
braços, forrada de seda vermelha; a que lhe correspondia era mais rústica.
Arnau se sentou em sua cadeira e observou a sala vazia. “Que estranho!”
Poucos meses atrás ele descarregava navios e agora... Nunca se sentara em
uma cadeira como aquela! Numa extremidade da mesa, desordenados,
estavam os livros; “de pergaminhos sem rasgos”, dissera Guillem ao
comprá-los. Também adquiriram penas, tinteiros, uma balança, vários
cofres para o dinheiro e uma grande serra para cortar moedas falsas.
Guillem retirou dinheiro de sua bolsa, muito mais do que Arnau vira
em toda a sua vida.
— Quem paga tudo isso? — perguntou certa vez.
— Você.
Arnau arqueou as sobrancelhas e olhou para a bolsa pendurada no cinto
de Guillem.
— Você a quer? — ofereceu ele.
— Não — respondeu.
Além dos objetos que compraram, Guillem trouxe algo seu: um belo
ábaco com moldura de madeira e bolas de marfim que Hasdai lhe ofertara.
Arnau o tomou e moveu as bolas. O que lhe dissera Guillem? Primeiro ele
as movera rapidamente, calculando e calculando. Arnau lhe pediu que o
fizesse mais devagar, e o mouro, obediente, tentou lhe explicar como
operar o ábaco, mas... o que ele tinha explicado?
Deixou o ábaco e se dedicou a ordenar a mesa. Os livros em frente à sua
cadeira... não, diante da cadeira de Guillem. Seria melhor que ele fizesse
as anotações. Os cofres, sim, podiam ficar do seu lado; a serra, um pouco
afastada, e as penas e tinteiros, ao lado dos livros, ao lado do ábaco. Quem
mais os usaria?
Estava nisso quando Guillem entrou.
— O que você acha? — perguntou ele, sorridente, estendendo a mão
sobre a mesa.
— Muito bom — respondeu Guillem devolvendo o sorriso —, mas
assim não conseguiremos nenhum cliente, e menos ainda alguém que nos
confie seu dinheiro. — O sorriso de Arnau se desfez imediatamente. —
Não se preocupe, só falta isto. É o que fui comprar.
Guillem lhe entregou um pano, e Arnau o desenrolou cuidadosamente.
Era um tapete de seda vermelha caríssima, com franjas douradas nas
pontas.
— Isto — disse o escravo — é o que falta sobre a sua mesa. Este é o
sinal público de que você cumpre todos os requisitos das autoridades e de
que sua casa está convenientemente assegurada diante do juiz municipal
no valor de mil marcos de prata. Ninguém, sob penas severas, pode pôr o
tapete sobre uma mesa de câmbio ou esteiras diante dela sem possuir a
autorização municipal. Por isso, se você não a puser, ninguém entrará nem
depositará aqui seu dinheiro.

***

A partir daquele dia, Arnau e Guillem se dedicaram com afinco ao novo


negócio, e, tal como Hasdai Crescas aconselhara, o bastaix tratou de
aprender os rudimentos da profissão.
— A primeira função de um cambista — disse Guillem, os dois
sentados à mesa com o rabo do olho posto na porta, para o caso de alguém
resolver entrar — é o câmbio manual de moedas.
Guillem se levantou da mesa, rodeou-a, parou diante de Arnau e
colocou uma bolsa de dinheiro sobre a mesa.
— Agora preste atenção — disse, tirando uma moeda da bolsa e
colocando-a na mesa. — Conhece-a? — Arnau disse que sim. — É um
croat de prata catalão. É cunhada em Barcelona, a poucos passos daqui...
— Muito poucos a têm na bolsa — Arnau o interrompeu —, mas estou
cansado de levá-la nas costas. Pelo visto, o rei só confia nos bastaixos para
transportá-las.
Guillem assentiu sorrindo e voltou a colocar a mão na bolsa.
— Esta — continuou, tirando outra moeda e colocando-a ao lado do
croat — é um florim de ouro aragonês.
— Nunca tive uma destas — disse Arnau, pegando o florim.
— Não se preocupe, você terá muitas. — Arnau fitou Guillem, e ele
assentiu seriamente. — Esta é uma antiga moeda barcelonesa, o tern. — o
escravo colocou mais uma moeda na mesa e, antes que o outro o
interrompesse, continuou a retirar moedas. — Mas no comércio há muitas
outras — disse —, e você deve conhecer todas. As muçulmanas: besantes,
mamudes reais, besantes de ouro. — Guillem foi dispondo as moedas em
fila diante de Arnau. — Os tornates franceses; os dobrões de ouro
castelhanos; os florins de ouro cunhados em Florença; os genoveses,
cunhados em Gênova; os ducados venezianos; a moeda marselhesa e as
outras moedas catalãs: o real valenciano ou maiorquino, o gros de
Montpellier, os melgorianos dos Pireneus orientais e a jaquesa, cunhada
em Jaca e usada principalmente em Lérida.
— Virgem Santa! — exclamou Arnau quando o mouro terminou.
— Você precisa conhecer todas elas — insistiu Guillem.
Arnau percorreu a fileira com o olhar em ambas as direções. Depois
suspirou.
— Existem mais? — perguntou, olhando para Guillem.
— Sim, muitas mais. Mas estas são as mais usadas.
— E como as trocamos?
Agora foi o mouro quem suspirou.
— Isso é mais complicado. — Arnau esperou sua explicação. — Bem,
para trocá-las, usamos as unidades de valor: as libras e marcos para as
grandes transações; os dinheiros e soldos para uso corrente. — Arnau
assentiu; ele sempre tinha falado de soldos ou dinheiros,
independentemente da moeda que os representasse, ainda que, em geral,
fosse a mesma. — Quando você tem uma moeda, precisa avaliá-la
segundo a unidade de valor e depois fazer o mesmo com a moeda pela qual
quer trocá-la.
Arnau tentava acompanhar as explicações do mouro.
— E esses valores?
— São fixados periodicamente na alfândega de Barcelona, no
Consulado do Mar. É preciso ir até lá para saber qual é o câmbio oficial.
— Ele varia? — Arnau sacudiu a cabeça; não conhecia aquelas moedas,
não entendia como se efetuavam os câmbios e, ainda por cima, o câmbio
variava!
— Constantemente — respondeu Guillem. — É preciso dominar os
câmbios; nisto reside o maior lucro de um cambista. Você verá. Um dos
maiores negócios é a compra e venda de dinheiro...
— Comprar dinheiro?
— Sim. Comprar... ou vender dinheiro. Comprar prata com ouro ou
ouro com prata, jogando com as diversas moedas que existem; aqui em
Barcelona, se o câmbio estiver bom, ou no estrangeiro, se lá estiver
melhor.
Arnau fez um gesto de impaciência.
— Na verdade, é bastante simples — insistiu Guillem —, você verá. Na
Catalunha é o rei quem fixa a paridade entre o florim de ouro e o croat de
prata, e o rei disse que é de treze para um; um florim de ouro vale treze
croats de prata. Mas, em Florença, em Veneza ou em Alexandria, o que o
rei disser não importa, e o ouro que contém um florim não vale treze vezes
um croat. Aqui, o rei fixa a paridade por motivos políticos; lá, o que
determina o seu valor é o ouro ou a prata que as moedas contêm. Isto é, se
uma pessoa acumula croats de prata e os vende fora, obterá mais ouro por
estes croats do que pagam na Catalunha. Se voltar aqui com este ouro,
receberá outra vez croats por cada florim de ouro.
— Mas isto qualquer pessoa pode fazer — objetou Arnau.
— E faz... quem pode. Quem tem dez ou cem croats não o faz. Quem
faz isso é quem conta com muita gente disposta a lhe entregar esses dez ou
cem croats. — Eles se entreolharam. — Somos nós — terminou o mouro,
estendendo as mãos.
Um tempo depois, quando Arnau já dominava as moedas e controlava
os câmbios, Guillem começou a lhe falar das rotas e mercadorias.
— Hoje em dia, a principal — disse ele — é a que vai de Cândia a
Chipre, dali a Beirute e, de lá, a Damasco ou Alexandria... apesar de o
papa ter proibido o comércio com Alexandria.
— Então, como se faz? — perguntou Arnau, que brincava com o ábaco.
— Com dinheiro, claro. Compra-se o perdão.
O bastaix então recordou as explicações que ouvira na pedreira real
sobre o dinheiro que pagava a construção do estaleiro real.
— E só fazemos comércio através do Mediterrâneo?
— Não. Comerciamos com todo o mundo, com Castela, com a França e
com Flandres, mas, sobretudo, através do Mediterrâneo. A diferença está
no tipo de mercadoria; da França, da Inglaterra e de Flandres compramos
tecidos, principalmente de luxo: tecidos de Toulouse, Bruges, Malinas,
Dieste ou Vilages, mas também lhes vendemos linho catalão. Compramos
ainda artigos de cobre e latão. Do Oriente, da Síria e do Egito, compramos
especiarias...
— Pimenta — completou Arnau.
— É, pimenta. Mas não se confunda. Quando alguém mencionar o
comércio de especiarias, incluirá cera, açúcar e até presas de elefante. Se
mencionar especiarias miúdas, então, sim, estará se referindo ao que
geralmente se entende por especiarias: canela, cravo, pimenta, noz-
moscada...
— Você disse cera? Como podemos importar cera se outro dia você
disse que exportávamos mel?
— Pois é — rebateu o mouro. — Exportamos mel e importamos cera. O
mel temos de sobra, mas as igrejas consomem muita cera. — Arnau
recordou a principal obrigação dos bastaixos: manter acesos os círios da
Virgem do Mar. — A cera vem da Dácia, através de Bizâncio. Outros
produtos importantes que comerciamos — continuou Guillem — são os
alimentos. Antes, há muitos anos, exportávamos trigo, mas agora temos de
importar todo tipo de cereais (trigo, arroz, painço e cevada) e exportamos
azeite, vinho, frutas secas, açafrão, toucinho e mel. Também se faz essa
transação com carnes salgadas...
Nesse momento entrou um cliente, e Arnau e Guillem interromperam a
conversa. Trocaram saudações, e o homem se sentou diante dos cambistas
e depositou uma soma considerável de dinheiro. Guillem ficou satisfeito:
não conhecia aquele cliente, o que era um bom sinal; começavam a não
depender dos antigos clientes de Hasdai. Arnau o atendeu com seriedade;
contou as moedas, comprovou sua autenticidade e as entregou a Guillem,
só para garantir. Depois anotou o depósito nos livros. Guillem o observou
enquanto escrevia. Ele tinha melhorado; fizera um esforço considerável
nesse sentido. O professor dos Puig lhe ensinara as letras, mas ele passara
anos sem praticar a escrita.
À espera do início da época de navegação, Arnau e Guillem se
limitavam a preparar os contratos de comanda. Compravam produtos para
exportar, concorriam com outros mercadores para fretar naus ou os
contratavam e discutiam que produtos importariam no regresso de cada
navio.
— O que ganham os mercadores que contratamos? — perguntou Arnau
uma vez a Guillem.
— Depende da comanda. Nas comandas normais, em geral levam um
quarto dos lucros. Nas comandas de dinheiro, ouro ou prata, não vale um
quarto. Nós determinamos o câmbio que queremos, e o mercador obtém
lucro mediante a diferença cambial que conseguir.
— O que esses homens fazem em terras tão distantes? — perguntou
Arnau, tentando imaginar como seriam aqueles lugares. — São terras
estrangeiras, lá se falam outras línguas... Tudo deve ser diferente.
— Sim, mas pense que em todas essas cidades há consulados catalães.
São como o Consulado do Mar em Barcelona — esclareceu o mouro. —
Em cada um desses portos, há um cônsul nomeado pela cidade de
Barcelona, que faz justiça em matéria comercial e intermedeia os conflitos
que possam surgir entre os mercadores catalães e as pessoas e autoridades
do lugar. Todos os consulados possuem uma alfândega. São locais
protegidos por muralhas, onde os mercadores catalães se hospedam e onde
há armazéns para guardar as mercadorias enquanto elas não são vendidas
ou embarcadas outra vez. Cada alfândega é como uma parte da Catalunha
em terras estrangeiras. Elas são extraterritoriais; quem manda nelas é o
cônsul, não as autoridades do país em que se encontram.
— E então?
— Todos os governos estão interessados no comércio. Cobram
impostos e enchem suas arcas. O comércio é um mundo à parte, Arnau.
Podemos estar em guerra com os sarracenos, mas desde o século passado,
por exemplo, temos consulados em Túnis e em Bugia. E não se aflija:
nenhum chefe mouro violará as alfândegas catalãs.

***
A mesa de câmbio de Arnau Estanyol funcionava. A peste dizimara os
cambistas catalães, a presença de Guillem era uma garantia para os
investidores, e as pessoas, à medida que a epidemia recuava, traziam à luz
o dinheiro que mantinham guardado em casa. No entanto, Guillem não
conseguia dormir. “Venda-os em Maiorca”, aconselhara Hasdai para que
Arnau não soubesse da operação com os escravos. Guillem assim ordenou.
“É um mau momento!”, reclamou, dando a enésima volta na cama.
Recorreu a um dos últimos navios que partiam de Barcelona na época de
navegação, quase no começo de outubro. Bizâncio, Palestina, Rodes e
Chipre: estes eram os destinos dos quatro mercadores que embarcaram em
nome de Arnau Estanyol, o cambista de Barcelona, garantidos por letras de
câmbio que Guillem dera a Arnau para assinar. Ele nem sequer as olhara.
Aqueles mercadores deveriam comprar escravos e levá-los a Maiorca.
Guillem voltou a mudar de posição na cama.
Entretanto, as circunstâncias políticas conspiravam contra ele: apesar
da mediação do Sumo Pontífice, o rei Pedro conquistara definitivamente a
Sardenha e o Roussillon um ano depois da primeira tentativa, ao término
da prorrogação que concedera. Em 15 de julho de 1344, depois da rendição
da maior parte de suas cidades e vilarejos, Jaime III se ajoelhou diante do
cunhado com a cabeça descoberta, rogando misericórdia e entregando seus
territórios ao conde de Barcelona. O rei Pedro lhe concedeu o senhorio de
Montpellier e os viscondados de Omelades e Carladés, mas recuperou as
terras catalãs de seus antepassados: Maiorca, o Roussillon e a Sardenha.
No entanto, após a rendição, Jaime de Maiorca reuniu um pequeno
exército de sessenta cavaleiros e trezentos homens a pé e voltou a entrar
na Sardenha para lutar contra o cunhado. O rei Pedro nem sequer se
apresentou para a batalha. Se limitou a enviar seus lugar-tenentes.
Cansado, farto e derrotado, o rei Jaime procurou refúgio junto ao papa
Clemente VI, que continuava a favorecer seus interesses, e lá, no seio da
Igreja, foi tramada a última estratégia: Jaime III vendeu ao rei Filipe VI,
da França, o senhorio de Montpellier por doze mil escudos de ouro; com
esta soma, além dos empréstimos da Igreja, armou uma frota fornecida
pela rainha Joana de Nápoles e, em 1349, voltou a desembarcar em
Maiorca.
Estava previsto que os escravos chegariam nas primeiras viagens de
1349. Uma grande quantidade de dinheiro estava em jogo, e, se alguma
coisa desse errado, o nome de Arnau — por mais que Hasdai respondesse
por ele — ficaria manchado ante os correspondentes com os quais
trabalharia no futuro. Ele assinara as letras de câmbio, e, mesmo que
Hasdai pagasse como avalista, o mercado não permitia que uma letra
ficasse sem pagamento. As relações com os correspondentes de países
longínquos se baseavam na confiança, uma confiança cega. Como um
cambista poderia triunfar se a sua primeira operação falhasse?
— Até ele me recomendou que evitássemos qualquer rota que passasse
por Maiorca — confessou Guillem um dia, sentado no jardim de Hasdai, a
única pessoa com quem podia se abrir.
Evitavam se olhar e, no entanto, sabiam que ambos pensavam a mesma
coisa. Quatro navios de escravos! Até Hasdai poderia se arruinar com
aquela operação.
— Se o rei Jaime não foi capaz de manter a palavra dada quando se
rendeu — disse Guillem, procurando o olhar de Hasdai —, o que será do
comércio e dos bens dos catalães?
Hasdai não respondeu. O que poderia dizer?
— Talvez os seus mercadores escolham outro porto — disse por fim.
— Barcelona? — perguntou Guillem, balançando a cabeça.
— Ninguém poderia prever uma coisa dessas — o judeu tentou
tranquilizá-lo.
Arnau salvara seus filhos de uma morte certa. Como não se consolar
com isso?
Em maio de 1349, o rei Pedro enviou a armada catalã a Maiorca em
plena época de navegação, em plena época de comércio.
— Por sorte não enviamos nenhum navio a Maiorca — comentou
Arnau certa vez.
Guillem se viu obrigado a concordar.
— O que teria acontecido — continuou — se tivéssemos feito isso?
— O que quer dizer?
— Nós recebemos dinheiro das pessoas e o investimos em comandas.
Se tivéssemos enviado um navio a Maiorca e o rei Jaime o tivesse
confiscado, não teríamos o dinheiro nem as mercadorias; não poderíamos
devolver os depósitos. Nós assumimos os riscos das comandas. O que
aconteceria então?
— Abatut — respondeu Guillem de mau humor.
— Abatut?
— Quando um cambista não pode devolver os depósitos, o juiz de
câmbios lhe concede um prazo de seis meses para saldar as dívidas. Se ao
final do prazo não as liquidar, é declarado abatut, ele é encarcerado a pão
e água e tem de vender seus bens para pagar os credores...
— Eu não tenho bens.
— Se os bens não são suficientes para cobrir as dívidas — continuou a
recitar Guillem —, sua cabeça é decepada diante de seu estabelecimento
para servir de exemplo aos outros cambistas.
Arnau ficou em silêncio.
O escravo não se atreveu a olhar para ele. Que culpa tinha Arnau de
tudo aquilo?
— Não se preocupe — tentou tranquilizá-lo —, isso não vai acontecer.
35

A guerra em Maiorca continuava, mas Arnau estava feliz. Quando não


tinha trabalho na mesa, ficava olhando a rua, apoiado no vão da porta de
entrada. Santa Maria voltava à vida depois da peste. A pequena igreja
romana que ele e Joanet tinham conhecido já não existia, e as obras
avançavam em direção ao portão principal. Podia passar horas vendo os
pedreiros colocarem as pedras e recordando as muitas que ele havia
carregado. Santa Maria era tudo para Arnau: sua mãe, a entrada na
confraria... incluindo o refúgio para as crianças judias. De vez em quando,
para aumentar sua alegria, recebia uma carta do irmão. As missivas de
Joan eram breves, e ele se limitava a informar Arnau de que estava bem de
saúde e plenamente dedicado aos estudos.
Apareceu um bastaix carregando uma pedra. Poucos haviam
sobrevivido à praga. Seu próprio sogro, Ramon, e muitos mais faleceram.
Arnau chorara na praia ao lado dos antigos companheiros.
— Sebastià — murmurou ao reconhecê-lo.
— O que disse? — ouviu Guillem perguntar atrás dele.
Arnau não se virou.
— Sebastià — repetiu. — Esse homem, o que está carregando a pedra,
se chama Sebastià.
Sebastià, com o olhar para a frente e os lábios apertados sob o peso da
pedra, cumprimentou-o ao passar diante dele sem virar o rosto.
— Por muitos anos eu fiz a mesma coisa — prosseguiu Arnau com a
voz embargada. Guillem não fez nenhum comentário. — Tinha só catorze
anos quando levei a primeira pedra para a Virgem. — Naquele momento
passou outro bastaix. Arnau o saudou. — Pensei que ia me partir ao meio,
que ia quebrar a espinha, mas a satisfação que senti ao chegar... Meu Deus!
— Sua Virgem deve ter alguma coisa boa para que as pessoas se
sacrifiquem por ela dessa maneira — disse o mouro.
Depois os dois permaneceram em silêncio enquanto a procissão de
bastaixos passava.

***

Eles foram os primeiros a procurar Arnau.


— Precisamos de dinheiro — disse sem rodeios Sebastià, convertido
em pró-homem da confraria. — A caixa está vazia, as necessidades são
muitas e o trabalho, neste momento, está muito escasso e mal pago. Os
confrades não têm como sobreviver depois da peste, e não posso obrigá-
los a contribuírem para a caixa enquanto não se recuperarem do desastre.
Arnau olhou para Guillem, que, inexpressivo, estava sentado a seu lado
à mesa onde brilhava o tapete vermelho de seda.
— A situação está tão ruim assim? — perguntou Arnau.
— Você nem imagina. Com o aumento do preço dos alimentos, nós, os
bastaixos, não ganhamos nem para dar de comer a nossas famílias. Além
disso, há as viúvas e os órfãos dos que morreram. É preciso ajudá-los.
Precisamos de dinheiro, Arnau. Devolveremos a você até o último
centavo.
— Eu sei.
Arnau voltou a olhar para Guillem em busca de aprovação. O que ele
sabia de empréstimos? Até então só recebera dinheiro, mas nunca tinha
emprestado.
Guillem levou as mãos ao rosto e suspirou.
— Se não for possível... — começou a dizer Sebastià.
— É, sim — o escravo o interrompeu. Estavam em guerra havia dois
meses, e não recebera notícias de seus escravos. Que diferença fariam
algumas poucas moedas? Seria Hasdai quem ficaria arruinado. Arnau
podia se permitir aquele empréstimo. — Se para meu senhor a sua palavra
for suficiente...
— Isso me basta — reforçou Arnau.
Contou o dinheiro que a confraria dos bastaixos lhe pedira e entregou-o
solenemente a Sebastià. Guillem os viu apertarem as mãos, os dois de pé
em silêncio, tentando esconder seus sentimentos em um momento que
durou uma eternidade.
No terceiro mês da guerra, quando o escravo começava a perder as
esperanças, os quatro mercadores chegaram juntos. Quando o primeiro
deles fez escala na Sicília e soube da guerra com Maiorca, esperou a
chegada dos outros navios catalães, entre eles as três galeras restantes.
Todos os pilotos e mercadores decidiram evitar a rota por Maiorca, e os
quatro venderam suas mercadorias em Perpignan, a segunda cidade do
principado. Como lhes ordenara o mouro, marcaram encontro com
Guillem na alfândega da Rua Carders, longe da mesa de câmbio de Arnau,
e, depois de deduzida sua quarta parte nos lucros, lhe entregaram letras de
câmbio pelo principal da operação, além dos três quartos que
correspondiam a Arnau. Uma fortuna! A Catalunha precisava de mão de
obra, e os escravos foram vendidos a um preço exorbitante.
Quando os três mercadores foram embora e ninguém na alfândega
podia vê-lo, Guillem beijou as letras de câmbio uma, duas, mil vezes.
Voltava à mesa de câmbio, mas, na altura da Praça de Blat, mudou de
ideia e se dirigiu à judiaria. Depois de dar a notícia a Hasdai, caminhou até
Santa Maria sorrindo para o céu e para as pessoas.
Ao chegar à mesa de câmbio, encontrou Arnau com Sebastià e um
sacerdote.
— Guillem — Arnau o cumprimentou —, apresento-lhe o padre Juli
Andreu. É o substituto do padre Albert.
Guillem se inclinou desajeitado diante do sacerdote. “Mais
empréstimos”, pensou, enquanto o cumprimentava.
— Não é o que você está pensando — disse Arnau. Guillem pôs as
mãos nas letras de câmbio que trazia consigo e sorriu. Que diferença faria?
Arnau estava rico. Sorriu novamente, e Arnau entendeu mal o seu sorriso.
— É pior do que você imagina — afirmou seriamente. “O que pode ser
pior do que emprestar à Igreja?”, esteve prestes a perguntar o mouro.
Depois cumprimentou o pró-homem dos bastaixos. — Temos um
problema — concluiu Arnau. Os três homens fitaram o recém-chegado por
um instante. “Só se Guillem concordar”, exigira Arnau, desprezando as
referências que o padre havia feito à sua condição de escravo.
— Alguma vez contei a você sobre Ramon? — Guillem negou. —
Ramon foi uma pessoa muito importante na minha vida. Ajudou-me...
ajudou-me muito. — Guillem continuava de pé, como correspondia a um
escravo. — Ele e a esposa faleceram de peste, e a confraria já não pode
sustentar a sua filha. Estivemos conversando... pediram-me...
— Por que me consulta, meu senhor?
O padre Juli Andreu, esperançoso, se virou para Arnau.
— A Pia Almoina1 e a Casa de Caridade já não podem atender a todos
— continuou Arnau. — Já nem sequer podem distribuir pão, vinho e sopa
entre os necessitados, como faziam diariamente. A peste fez estragos.
— O que você deseja, meu senhor?
— Propuseram-me que eu a afilhasse.
Guillem tocou novamente as letras de câmbio. “Agora você poderia
afilhar uns vinte!”, pensou.
— Se assim deseja — limitou-se a responder.
— Eu não sei nada de crianças — ressaltou Arnau.
— Só é preciso dar-lhes carinho e um lar — interveio Sebastià. — O lar
você tem... e tenho a impressão de que carinho você tem de sobra.
— Você vai me ajudar? — perguntou Arnau a Guillem, sem ouvir
Sebastià.
— Obedecerei a tudo o que me for pedido.
— Não quero obediência, quero... peço ajuda.
— Suas palavras me honram. Você a terá, de coração — comprometeu-
se o mouro. — Toda a ajuda de que precisar.

***

A menina, de seis anos, chamava-se Mar, como a Virgem. Em pouco mais


de três meses, começou a superar o choque da epidemia de peste e da
morte dos pais. A partir de então, já não se podiam ouvir o tilintar das
moedas nem a pena arranhando os livros na mesa de câmbio: os risos e
brincadeiras enchiam a casa. Arnau e Guillem, sentados à mesa, brigavam
com ela quando fugia da escrava que o mouro comprara para cuidar da
menina e entrava na sala, mas depois sempre terminavam sorrindo entre
si.
Donaha, a escrava, foi mal recebida por Arnau.
— Não quero mais escravos! — gritou, ignorando os argumentos de
Guillem.
Neste momento, a moça, esquálida, suja e com a roupa em farrapos,
começou a chorar.
— Onde poderá estar melhor do que aqui? — perguntou Guillem a
Arnau. — Se você fica tão desgostoso, prometa-lhe a liberdade, mas então
ela se venderá a outra pessoa. Ela precisa comer... e nós precisamos de
uma mulher que se ocupe da menina. — A moça se ajoelhou diante do
bastaix, e ele tentou se livrar dela. — Você pode imaginar quanto esta
menina deve ter sofrido? — Guillem semicerrou os olhos. — Se ela fosse
devolvida...
Muito contrariado, Arnau finalmente cedeu.
Além de Donaha, Guillem encontrou uma solução para o dinheiro
obtido com a venda dos escravos e, depois de pagar a Hasdai como
correspondente dos vendedores em Barcelona, entregou os volumosos
lucros obtidos a um judeu de confiança de Hasdai que estava de passagem
por Barcelona.
Abraham Levi se sentou certa manhã à mesa de câmbio. Era um homem
alto e magro, com uma rala barba branca, vestido com uma levita preta em
que se destacava o círculo amarelo. Abraham Levi cumprimentou
Guillem, e ele o apresentou a Arnau. Quando o judeu se sentou diante
deles, entregou a Arnau uma letra de câmbio pelos lucros obtidos.
— Quero depositar esta quantia em seu estabelecimento, mestre Arnau
— disse ele.
Ao ver a quantia, Arnau arregalou os olhos. Depois entregou o
documento a Guillem, insistindo nervoso para que o lesse.
— Mas... — começou a dizer, enquanto Guillem simulava estar
surpreso — isto é muito dinheiro. Por que o senhor o deposita em minha
mesa e não na de um de seus...?
— Irmãos de fé? — ajudou-o o judeu. — Sempre confiei em Sahat. Não
acho que a mudança de nome — disse, olhando para o mouro — tenha
mudado sua capacidade. Vou partir em viagem, uma viagem muito longa,
e quero que o senhor e Sahat movimentem meu dinheiro.
— Esta quantia é remunerada em um quarto pelo simples fato de
depositá-la na mesa, não é assim, Guillem? — O mouro concordou. —
Como pagaremos os seus lucros se o senhor vai partir em uma longa
viagem? Como entraremos em contato com...?
“Por que tantas perguntas?”, pensou Guillem. Não dera tantas
instruções a Abraham, mas o judeu se esquivou com desenvoltura.
— Reinvista-os — respondeu. — Não se preocupe comigo. Não tenho
filhos nem família e, para onde vou, não preciso de dinheiro. Algum dia,
no futuro, o usarei ou enviarei alguém para retirá-lo. Enquanto isso, não se
preocupe. Eu entrarei em contato com o senhor. Isto o incomoda?
— Como poderia me incomodar? — disse Arnau. Guillem respirou
fundo. — Se é assim que o senhor quer, que assim seja.
Fecharam a transação, e Abraham Levi se levantou.
— Tenho de me despedir de alguns amigos na judiaria — acrescentou
enquanto saía da casa.
— Eu o acompanho — disse Guillem, buscando a aprovação de Arnau,
que concordou com um gesto.
Dali os dois foram até um escrivão, e, diante dele, Abraham Levi
outorgou uma carta de pagamento do depósito que acabara de fazer na
mesa de câmbio de Arnau Estanyol, renunciando em favor deste a
quaisquer lucros que o depósito pudesse produzir. Guillem voltou para a
mesa de câmbio com o documento escondido sob a roupa. Era só questão
de tempo, pensou enquanto caminhava por Barcelona. Formalmente,
aquele dinheiro era propriedade do judeu, assim constava nos livros de
Arnau, mas nunca ninguém o reclamaria, pois o judeu concedera uma carta
de pagamento a seu favor. Enquanto isso, três quartos dos lucros que
aquele capital produzisse, de propriedade de Arnau, seriam mais que
suficientes para multiplicar a sua fortuna.
Naquela noite, enquanto Arnau dormia, Guillem desceu para a mesa.
Tinha visto uma pedra solta na parede. Protegeu o documento,
envolvendo-o com um tecido resistente, e escondeu-o atrás da pedra, que
voltou a fixar da melhor maneira possível. Algum dia pediria a um
pedreiro de Santa Maria para fixá-la melhor. A fortuna de Arnau
descansaria ali enquanto não pudesse lhe confessar de onde provinha o
dinheiro. Era só uma questão de tempo.
Uma questão de muito tempo, Guillem teve de se corrigir quando
passeavam pela praia depois de ter ido ao Consulado do Mar para resolver
uns assuntos. Barcelona continuava a receber escravos, mercadoria
humana que os barqueiros transportavam até a praia confinada em suas
naus. Homens e meninos aptos para o trabalho, mas também mulheres e
meninas cujo pranto obrigou os dois homens a desviarem o olhar.
— Escute-me bem, Guillem. Nunca financiaremos uma encomenda de
escravos, por pior que estivermos — disse Arnau —, por mais que
precisemos. Prefiro perder a cabeça nas mãos do juiz municipal.
Depois viram a galera se afastar do porto de Barcelona impelida pelos
remos.
— Por que ela está partindo? — perguntou Arnau sem pensar. — Não
vai aproveitar a viagem para levar mercadorias?
Guillem olhou para ele, negando imperceptivelmente com a cabeça.
— Vai regressar — garantiu. — Só está indo para alto-mar... para
continuar a descarregar — acrescentou, com a voz entrecortada.
Arnau permaneceu em silêncio por um instante, olhando a galera se
afastar do porto.
— Quantos morrem? — perguntou por fim.
— Muitos — respondeu o mouro, lembrando-se de um navio
semelhante.
— Nunca, Guillem! Lembre-se, nunca.

1. Instituição beneficente do bispado que fornecia cem refeições diárias aos necessitados. (N. da
T.)
36
1º de janeiro de 1354
Praça de Santa Maria do Mar
Barcelona

Tinha de ser em frente a Santa Maria, pensou Arnau vendo de sua janela
toda Barcelona reunida e acotovelada na praça e nas ruas adjacentes, sobre
os andaimes, até dentro da igreja, com os olhos no palanque que o rei
mandara erguer. Pedro III não escolhera a Praça de Blat nem a da catedral,
a alfândega nem o pomposo estaleiro que ele próprio estava construindo;
não. Ele escolhera Santa Maria, a igreja do povo, aquela que estava sendo
erguida graças à união e ao sacrifício de sua gente.
— Não existe um lugar em toda a Catalunha que represente melhor o
espírito dos habitantes de Barcelona — comentou Arnau com Guillem
naquela manhã, enquanto viam os operários erguerem o palanque. — E o
rei sabe disso. Por isso a escolheu.
Arnau sentiu um calafrio. Sua vida girava em torno daquela igreja!
— Isso vai nos custar dinheiro! — resmungou o mouro.
Arnau se virou para ele com vontade de protestar, mas Guillem não
tirou os olhos do palanque, e Arnau resolveu ficar quieto.
Cinco anos tinham se passado desde que tinham aberto a mesa de
câmbio. Arnau tinha trinta e três anos, era feliz... E rico, muito rico.
Levava uma via austera, mas os seus livros registravam uma fortuna
considerável.
— Vamos tomar o café da manhã — insistiu, colocando a mão em seu
ombro.
Lá embaixo, na cozinha, Donaha os esperava com a menina, que a
ajudava a pôr a mesa.
A escrava continuou a preparar a refeição, mas, ao vê-los, Mar correu
em sua direção.
— Todos falam da visita do rei! — gritou. — Podemos ir lá perto? Os
cavaleiros virão também?
Guillem se sentou à mesa com um suspiro.
— Vêm nos pedir mais dinheiro — explicou ele à menina.
— Guillem! — exclamou Arnau, ante a expressão perplexa de Mar.
— É verdade — defendeu-se o mouro.
— Não, não é, Mar — disse Arnau, recebendo um sorriso como prêmio.
— O rei vem nos pedir ajuda para conquistar a Sardenha.
— Dinheiro? — perguntou a menina, depois de piscar um olho para
Guillem.
Arnau olhou para ela primeiro e depois para Guillem; os dois sorriram
com ironia. Como aquela menina tinha crescido! Já era quase uma moça,
bela, inteligente, com um encanto capaz de cativar quem quer que fosse.
— Dinheiro? — repetiu ela, interrompendo os seus pensamentos.
— Todas as guerras custam dinheiro! — Arnau se viu obrigado a
reconhecer.
— Ah! — disse Guillem abrindo os braços.
Donaha começou a servir as tigelas.
— Por que você não diz a ela — continuou Arnau quando Donaha
terminou de encher as vasilhas — que na verdade não nos custa dinheiro,
mas ganhamos dinheiro?
Mar abriu os olhos em direção a Guillem.
O mouro hesitou.
— Há três anos pagamos impostos especiais — comentou, se negando a
dar razão a Arnau —, três anos de uma guerra que nós, os barceloneses,
estamos pagando.
Mar apertou os lábios em um sorriso e se virou para Arnau.
— Certo — reconheceu Arnau. — Há exatamente três anos nós, os
catalães, assinamos um tratado com Veneza e Bizâncio para guerrearmos
com Gênova. Nosso objetivo era conquistar a Córsega e a Sardenha, que,
pelo tratado de Agnani, deveriam ser feudos catalães e, no entanto,
estavam em poder dos genoveses. Sessenta e oito galeras armadas! —
Arnau elevou a voz. — Sessenta e oito galeras armadas, vinte e três
catalãs, e o restante venezianas e gregas, enfrentam sessenta e cinco
galeras genovesas no Bósforo.
— O que aconteceu? — perguntou Mar diante do silêncio repentino de
Arnau.
— Ninguém ganhou. Nosso almirante, Ponç de Santa Pau, morreu na
batalha, e só regressaram dez das vinte e três galeras catalãs. O que
aconteceu então, Guillem? — O escravo balançou a cabeça. — Conte-lhe,
Guillem — insistiu Arnau.
Guillem suspirou.
— Os bizantinos nos traíram — recitou — e, em troca da paz, fizeram
um pacto com Gênova concedendo-lhes o monopólio de seu comércio.
— E o que mais aconteceu? — insistiu Arnau.
— Perdemos uma das rotas mais importantes do Mediterrâneo.
— Perdemos dinheiro?
— Perdemos.
Mar acompanhava a conversa olhando de um para o outro. Até Donaha,
ao lado do fogo, fazia a mesma coisa.
— Muito dinheiro?
— Muito.
— Mais do que entregamos depois ao rei?
— Mais.
— Só se o Mediterrâneo for nosso poderemos comerciar em paz —
sentenciou Arnau.
— E os bizantinos? — perguntou Mar.
— No ano seguinte, o rei armou uma frota de cinquenta galeras,
capitaneada por Bernat de Cabrera, e venceu os genoveses na Sardenha. O
nosso almirante tomou trinta e três galeras e afundou outras cinco. Oito
mil genoveses morreram, e três mil e duzentos foram capturados, e só
quarenta catalães perderam a vida! Os bizantinos — continuou a encarar
Mar, cujos olhos brilhavam de curiosidade — voltaram atrás e abriram
novamente seus portos para o nosso comércio.
— Três anos de impostos especiais que ainda estamos pagando —
completou Guillem.
— Mas, se o rei já tem a Sardenha e nós o comércio com Bizâncio, o
que o monarca veio buscar desta vez? — perguntou Mar.
— Os nobres da ilha, encabeçados por um tal juiz de Arbórea, pegaram
em armas contra o rei Pedro, e ele precisa sufocar a revolta.
— O rei — interveio Guillem — deveria se conformar com as rotas
comerciais abertas e cobrar seus impostos. A Sardenha é uma terra difícil.
Nunca a dominaremos.
O rei não economizou em luxo para se apresentar diante de seu povo.
Sobre o palanque, sua baixa estatura passou despercebida para a multidão.
Estava usando sua melhor veste, de um vermelho carmesim que brilhava
tanto ao sol do inverno quanto as pedras que a adornavam. Para aquela
ocasião, não se esquecera de usar a coroa de ouro nem, claro, o pequeno
punhal que sempre levava na cinta. O seu séquito de nobres e cortesãos
não ficava atrás e, como o seu senhor, se vestia com muito luxo.
O rei se dirigiu ao povo, exaltando-o. Quando um rei falava aos
cidadãos simples para lhes explicar o que pensava em fazer? Ele falou da
Catalunha, de suas terras e seus interesses. Falou da traição de Arbórea na
Sardenha, e as pessoas levantaram os braços e clamaram por vingança. O
rei continuou a exaltar o povo diante de Santa Maria, e finalmente pediu a
ajuda de que precisava; todos lhe teriam entregado seus filhos, se ele
pedisse.
Todos os barceloneses contribuíram, Arnau pagou a quantia que lhe
correspondia como cambista da cidade, e o rei partiu para a Sardenha à
frente de uma frota de cem navios.
Quando o exército deixou Barcelona, a cidade retornou à normalidade e
Arnau voltou a se dedicar à sua mesa de câmbio, a Mar, a Santa Maria e a
ajudar os que o procuravam pedindo empréstimo.
Guillem teve de se acostumar a uma forma de agir muito diferente da
dos cambistas e mercadores que conhecera até então, incluindo Hasdai
Crescas. No começo, se opôs e reclamava com Arnau cada vez que abria a
bolsa para entregar dinheiro a um dos muitos trabalhadores que
precisavam dele.
— Por acaso eles não pagam? Por acaso não devolvem? — perguntava-
lhe Arnau.
— São empréstimos sem juros — argumentava Guillem. — Esse
dinheiro devia estar dando lucro.
— Quantas vezes você me disse que devíamos comprar um palácio, que
devíamos viver melhor? Quanto custaria tudo isso, Guillem? Você sabe
melhor do que ninguém dos créditos que concedemos a essas pessoas.
E Guillem foi obrigado a se calar. Porque era verdade. Arnau vivia em
uma casa modesta na esquina das ruas Canvis Nous e Canvis Vells. O
único gasto que não poupava era com a educação de Mar. A menina era
educada na casa de um mercador amigo aonde iam preceptores, e, claro,
em Santa Maria. Em pouco tempo a comissão da obra da paróquia foi
pedir ajuda econômica a Arnau.
— Já tenho uma capela — respondeu Arnau quando a comissão lhe
pediu que apadrinhasse uma das capelas laterais de Santa Maria. — Sim
— acrescentou, diante da surpresa da comitiva —, a minha capela é a do
Santíssimo, a dos bastaixos, e será sempre essa. De qualquer maneira... —
disse, abrindo o cofre — de que necessitam?
De que necessitam? Quanto quer? Esta quantia seria suficiente? Isto lhe
basta? Guillem teve de se acostumar àquelas perguntas, mas começou a
ceder quando as pessoas o cumprimentavam, sorriam-lhe e agradeciam
quando passeava pela praia ou pelo bairro da Ribera. “Talvez Arnau tenha
razão”, começou a pensar. Ele se entregava aos outros, mas não fizera a
mesma coisa com ele e as três crianças judias que iam ser apedrejadas e
ele nem conhecia? Se não fosse por seu caráter, o mais provável era que
ele, Jucef e Raquel tivessem sido mortos. Por que deveria mudar pelo fato
de ser rico? Então o mouro, como Arnau, começou a sorrir para as pessoas
com que cruzava e a cumprimentar os desconhecidos que lhe davam
passagem.
No entanto, aquela forma de agir não tinha relação com algumas
decisões que Arnau tomara ao longo dos anos. Parecia lógico que ele se
negasse a participar da comanda de frotas dedicadas ao comércio de
escravos, mas por que, Guillem se perguntava, se negava às vezes a
participar de certos negócios que não tinham nada a ver com os escravos?
Das primeiras vezes, Arnau justificou suas decisões sem entrar em
discussão.
— Não me convence.
— Não gosto.
— Não, não está claro para mim.
Finalmente, o mouro perdeu a paciência.
— É uma boa operação, Arnau — disse ele, quando os comerciantes
deixaram a mesa de câmbio. — O que está acontecendo? Às vezes você
recusa negócios que nos renderiam bons lucros. Não entendo. Já sei que
não devo...
— Sim, você deve — interrompeu-o, sem se virar para ele, sentados os
dois em suas cadeiras atrás da mesa —, sinto muito. O que acontece... —
Guillem esperou que ele se decidisse. — Você sabe, nunca participarei de
um negócio em que Grau Puig esteja envolvido. O meu nome nunca estará
unido ao dele.
Arnau olhou para a frente, muito além da parede de sua casa.
— Algum dia você me contará?
— Por que não? — murmurou, virando-se para ele. E contou.

***

Guillem conhecia Grau Puig, pois ele operara com Hasdai Crescas. O
mouro se perguntava por que, se Arnau não queria trabalhar com ele, o
barão, por sua vez, se prestava a fazê-lo com Arnau. Por acaso os
sentimentos não eram recíprocos depois de tudo o que Arnau lhe contara?
— Por quê? — perguntou ele uma vez a Hasdai Crescas depois de
resumir a história de Arnau, sabendo que ela não sairia dali.
— Porque muita gente não quer trabalhar com Grau Puig. Há muito
tempo eu não o faço, e, como eu, muitos outros. É um homem obcecado
por estar ali onde não foi chamado por nascimento. Enquanto era um
simples artesão, era confiável; agora... agora os seus objetivos são outros,
e nunca entendeu onde se meteu ao contrair matrimônio. — Hasdai
balançou a cabeça. — Para ser nobre é preciso nascer nobre, é preciso ter
mamado na nobreza. Não é que isso seja bom ou que eu o defenda, mas só
os nobres que mamaram ali podem continuar a ser nobres e, ao mesmo
tempo, controlar os riscos. Além disso, quando se arruínam, quem se
atreve a contradizer um barão catalão? São orgulhosos, soberbos, nascidos
para mandar e para estar acima dos demais, até na ruína. Grau Puig só
pode continuar a ser nobre à força de dinheiro. Gastou uma fortuna no dote
da filha Margarida, e isso quase o arruinou. Toda Barcelona sabe disso!
Riem dele pelas costas, e sua esposa sabe disso. O que faz um simples
artesão vivendo em um palácio na Rua de Montcada? E, quanto mais os
outros fazem piada, mais precisa demonstrar seu poder dilapidando
dinheiro. O que faria Grau Puig sem dinheiro?
— Você quer dizer...?
— Não quero dizer nada, mas eu não faria negócios com ele. Nisso,
ainda que seja por outros motivos, o seu patrão acertou.
A partir daquele dia, Guillem apurava os ouvidos quando ouvia alguma
conversa sobre Grau Puig, e na alfândega, no Consulado do Mar, nas
transações, no meio da compra e venda de mercadorias, nos comentários
sobre a situação do comércio, se falava muito do barão, até demais.
— O filho, Genís Puig... — comentou um dia com Arnau, ao saírem da
alfândega e pararem para olhar o mar, um mar calmo, plácido, manso
como nunca. Arnau se virou para ele ao ouvir aquele nome. — Genís Puig
teve de pedir um empréstimo barato para acompanhar o rei a Maiorca. —
Seus olhos brilharam? Guillem sustentou o olhar de Arnau. Não lhe
respondera, mas os olhos haviam, sim, brilhado. — Quer que eu prossiga?
Arnau continuou em silêncio, mas finalmente concordou com a cabeça.
Seus olhos estavam semicerrados, e os lábios levemente apertados. E
continuou a concordar por um bom tempo.
— Você me autoriza a tomar as decisões que eu considere oportunas?
— perguntou Guillem por fim.
— Não autorizo. Eu suplico, Guillem, eu suplico.
Discretamente, Guillem começou a empregar seus conhecimentos e os
muitos contatos que fizera ao longo de anos de negociações. Que o filho, o
cavaleiro D. Genís, tivesse de recorrer a um empréstimo especial para
nobres significava que o pai já não podia custear os gastos de guerra. Os
empréstimos baratos, pensava Guillem, implicavam juros consideráveis;
são os únicos em que se admite a cobrança de juros entre cristãos. Por que
um pai permitiria que o filho pagasse juros, a menos que não possuísse
esse capital? E a tal Isabel? Aquela víbora que tentara afundar Arnau e seu
pai, que obrigara Arnau a se arrastar de joelhos, como podia permitir uma
situação como essa?
Guillem lançou mão de suas redes ao longo de alguns meses; falou com
os amigos, com os que lhe deviam favores, e enviou mensagens a todos os
seus correspondentes: qual era a situação de Grau Puig, barão catalão,
comerciante? O que sabiam sobre ele, seus negócios, suas finanças... sobre
sua solvência?
Quando a temporada de navegação estava quase terminando e os navios
regressavam ao porto de Barcelona, ele começou a receber respostas às
suas cartas, informações valiosas! Uma noite, ao fecharem o
estabelecimento, Guillem permaneceu sentado à mesa.
— Tenho coisas para fazer — disse a Arnau.
— Que coisas?
— Amanhã lhe contarei.
No dia seguinte, pela manhã, antes do café da manhã, os dois se
sentaram à mesa, e Guillem contou:
— Grau Puig está em uma situação crítica. — Teriam aqueles olhos
voltado a brilhar? — Todos os cambistas e mercadores com quem
conversei concordam que sua fortuna se evaporou...
— Talvez sejam boatos mal-intencionados — interrompeu-o Arnau.
— Espere. Veja. — Guillem lhe entregou as respostas dos
correspondentes. — Isto é uma prova. Grau Puig está nas mãos dos
lombardos.
Arnau pensou nos lombardos: cambistas e mercadores, correspondentes
das grandes casas florentinas ou pisanas, um grupo fechado que velava por
seus próprios interesses, e cujos membros negociavam entre si ou com
suas casas matrizes. Monopolizavam o comércio de tecidos de luxo: lã,
seda e brocados, tafetá de Florença, tules pisanos e muitos outros
produtos. Os lombardos não ajudavam ninguém e, se cediam parte de seu
mercado ou de seus negócios, o faziam única e exclusivamente para não
serem expulsos da Catalunha. Não era bom depender deles. Folheou a
documentação e deixou-a sobre a mesa.
— O que você propõe?
— O que você quer?
— Você já sabe: quero a ruína dele.
— Segundo contam, Grau já é um ancião, e seus negócios estão nas
mãos dos filhos e da esposa. Imagine! Suas finanças estão em um
equilíbrio precário; se alguma operação falhar, tudo pode desmoronar, e
eles não poderão saldar seus compromissos. Eles perderiam tudo.
— Compre as suas dívidas — disse Arnau com frieza, sem mover um
só músculo do corpo. — Faça-o discretamente. Quero ser credor deles e
não quero que saibam. Faça com que uma de suas operações falhe... Não,
uma não — se corrigiu —, todas! — gritou, esmurrando a mesa com tanta
força que até os livros saltaram. — Todas as que você conseguir —
acrescentou em voz baixa. — Não quero que eles escapem.
20 de setembro de 1355
Porto de Barcelona

O rei Pedro III, no comando de sua frota, chegou vitorioso a Barcelona


depois de conquistar a Sardenha. Toda Barcelona foi recebê-lo. Em meio
ao fervor popular, ele desembarcou por uma ponte de madeira armada
sobre o mar diante do convento de Framenors. Atrás dele, nobres e
soldados desembarcaram em uma Barcelona vestida de festa para celebrar
a vitória sobre os sardos.
Arnau e Guillem fecharam a mesa de câmbio e foram receber a armada.
Depois, com Mar, se somaram aos festejos que a cidade preparara em
homenagem ao rei; riram, cantaram e dançaram, ouviram histórias,
comeram doces e, quando o sol começava a se pôr e a noite de setembro
começou a refrescar, voltaram para casa.
— Donaha! — gritou Mar quando Arnau abriu a porta.
A jovem entrou em casa contente com a festa e continuou a chamar
Donaha aos gritos, mas, ao chegar à porta da cozinha, parou de repente.
Arnau e Guillem se entreolharam. O que teria ocorrido? Será que
acontecera alguma coisa com a escrava?
Eles correram também.
— O que...? — começou a perguntar Arnau por cima do ombro de Mar.
— Acho que esses gritos não são adequados para receber um parente
que você não vê há muito tempo, Arnau — disse uma voz masculina
completamente desconhecida.
Arnau começara a afastar Mar, mas ficou com a mão em seu ombro.
— Joan! — exclamou depois de um instante.
Mar viu Arnau se adiantar com os braços abertos e, balbuciando,
abraçar aquela figura de preto que a assustara. Guillem, no vão da porta,
abraçou a menina.
— É o irmão dele — sussurrou-lhe.
Donaha estava escondida em um canto da cozinha.
— Meu Deus! — exclamou Arnau, abraçando Joan. — Meu Deus! Meu
Deus! Meu Deus! — continuou a dizer enquanto o erguia do chão várias
vezes.
Joan, sorridente, conseguiu se separar do irmão.
— Você vai me quebrar ao meio...
Mas Arnau não o ouviu.
— Por que você não avisou? — perguntou ele, dessa vez agarrando-o
pelos ombros. — Deixe-me vê-lo. Você mudou! — Treze anos, tentou
dizer Joan, mas o outro não o deixou falar. — Há quanto tempo você está
em Barcelona?
— Vim...
— Por que não me avisou?
Arnau sacudia o irmão a cada pergunta.
— Você veio para ficar? Diga que sim. Por favor!
Guillem e Mar não puderam evitar um sorriso. O frade os viu.
— Pare! — gritou, separando-se dele. — Pare. Você vai me matar.
Arnau aproveitou a distância para examiná-lo. Só os olhos eram o do
Joan que tinha deixado Barcelona: vivos, brilhantes; quanto ao resto,
estava quase careca, magro, depauperado... E o hábito preto que caía de
seus ombros tornava-o ainda mais acabado. Tinha três anos menos do que
ele, mas parecia muito mais velho...
— Você não está se alimentando? Se o dinheiro que eu lhe mandava não
era suficiente...
— Era — interrompeu-o Joan —, mais do que suficiente. O seu
dinheiro serviu para alimentar o meu espírito. Os livros são muito caros,
Arnau.
— Devia ter pedido mais.
Joan fez um gesto com a mão e se sentou à mesa, diante de Guillem e
de Mar.
— Bem, apresente-me à sua afilhada. Vejo que ela cresceu desde sua
última carta.
Arnau fez um sinal para Mar, e ela se aproximou de Joan. A menina
baixou os olhos, perturbada diante da severidade que via nos olhos do
sacerdote. Quando o frade deu por terminado seu exame, Arnau
apresentou-o a Guillem.
— Guillem — disse Arnau. — Já falei muito dele em minhas cartas.
— Sim. — Joan não estendeu a mão, e Guillem retirou a que tinha
estendido. — Você está cumprindo com suas obrigações cristãs? —
perguntou ele.
— Sim...
— Frei Joan — acrescentou Joan.
— Frei Joan — repetiu Guillem.
— Aquela é Donaha — interveio Arnau rapidamente.
Joan assentiu sem sequer olhar para ela.
— Bem — disse, dirigindo-se a Mar e indicando com o olhar que ela
podia se sentar —, você é a filha de Ramon, não é mesmo? O seu pai foi
um grande homem, trabalhador e cristão temente a Deus, como todos os
bastaixos. — Joan olhou para o irmão. — Tenho rezado muito por ele
desde que Arnau me avisou de sua morte. Quantos anos você tem, menina?
Arnau disse a Donaha que servisse o jantar e se sentou à mesa. Então,
percebeu que Guillem continuava de pé, afastado da mesa, como se não se
atrevesse a se sentar diante do novo convidado.
— Sente-se, Guillem — pediu ele. — A minha mesa é sua.
Joan não se alterou.
O jantar transcorreu em silêncio. Mar estava estranhamente calada,
como se a presença daquele recém-chegado lhe tivesse arrebatado a
espontaneidade. Joan, por sua vez, comeu frugalmente.
— Conte-me, Joan — disse Arnau quando terminaram —, como você
tem estado? Quando voltou?
— Aproveitei a volta do rei. Tomei um barco até a Sardenha quando
soube da vitória e dali vim para Barcelona.
— Você viu o rei?
— Ele não me recebeu.
Mar pediu permissão para se retirar. Guillem imitou-a. Ambos se
despediram do frei Joan. A conversa durou até a madrugada; assim, diante
de uma garrafa de vinho doce, os irmãos puseram em dia os treze anos
separados.
37

Para a tranquilidade da família de Arnau, Joan se transferiu para o


convento de Santa Catarina.
— Esse é o meu lugar — disse ele ao irmão —, mas virei visitá-los
todos os dias.
Arnau, que percebera que tanto sua afilhada quanto Guillem tinham se
sentido um pouco incomodados durante o jantar da noite anterior, não
insistiu mais do que o estritamente necessário.
— Sabe o que ele me perguntou? — sussurrou ele a Guillem ao meio-
dia, depois de almoçar, quando todos se levantaram da mesa. O outro ficou
atento. — O que nós fizemos para casar Mar?
Sem mudar de posição, o mouro olhou para a menina, que estava
ajudando Donaha a tirar a mesa. Casá-la? Mas se era só... Uma mulher!
Guillem se virou para Arnau. Nenhum dos dois a olhara assim antes.
— Onde foi parar a nossa menina? — sussurrou ele para Arnau.
Os dois olharam novamente para Mar: ágil, bela, serena e segura.
Entre uma tigela e outra, Mar também olhou para eles de soslaio.
O seu corpo já mostrava a sensualidade de uma mulher; as suas curvas
estavam claramente marcadas, e os seios se destacavam sob a camisa. Ela
tinha catorze anos.
Mar olhou para eles outra vez e os viu abobalhados. Desta vez ela não
sorriu; pareceu um pouco aturdida.
— O que vocês estão olhando? — provocou ela. — Por acaso não têm
nada para fazer? — acrescentou séria, olhando para ambos.
Os dois concordaram em uníssono. Sem sombra de dúvida: ela se
transformara em uma mulher.
— Ela terá um dote de princesa — comentou Arnau com Guillem, já na
mesa de câmbio. — Dinheiro, roupa e uma casa... não, um palácio! — Se
virou bruscamente para o amigo. — Como está a coisa com os Puig?
— Ela vai nos deixar... — respondeu o mouro, sem dar atenção à
pergunta de Arnau.
Os dois ficaram em silêncio.
— Ela nos dará netos — disse Arnau por fim.
— Não se iluda. Ela dará filhos ao esposo. Além disso, se os escravos
não têm filhos, muito menos netos.
— Quantas vezes já lhe ofereci a liberdade?
— O que faria sendo livre? Estou bem assim. Mas Mar... casada! Não
sei por quê, mas estou começando a odiá-lo, seja lá quem for.
— Eu também — murmurou Arnau.
Viraram-se um para o outro, sorriram e caíram na gargalhada.
— Você não me respondeu — disse Arnau quando recuperaram a
compostura. — Como está a coisa com os Puig? Quero aquele palácio para
Mar.
— Mandei instruções para Filippo Tescio em Pisa. Se alguém no mundo
pode fazer o que queremos, é Filippo.
— O que você disse a ele?
— Que contratasse corsários se fosse necessário, mas que as comandas
dos Puig não deveriam chegar a Barcelona, e as que saíssem de Barcelona
tampouco deveriam chegar a seu destino. Que ele podia roubar as
mercadorias ou incendiá-las, o que fosse, mas que não chegassem a seu
destino.
— Ele respondeu?
— Filippo? Nunca responderá. Não o faria por escrito nem contaria isto
a ninguém. Se alguém soubesse... É preciso esperar o final da temporada
de navegação. Falta pouco mais de um mês. Se então as comandas dos
Puig não chegarem, eles não poderão cumprir suas obrigações e ficarão
arruinados.
— Nós compramos os seus créditos?
— Você é o maior credor de Grau Puig.
— Eles devem estar sofrendo — murmurou Arnau para si mesmo.
— Não os viu? — rebateu Guillem. Arnau se virou rapidamente para
ele. — Já há muito tempo ficam na praia. Antes eram a baronesa e um dos
filhos; agora Genís, que voltou da Sardenha, juntou-se a eles. Passam
horas olhando o horizonte à espera de um mastro... e, quando chega ao
porto um navio que não é o que esperam, a baronesa maldiz as ondas.
Pensei que você soubesse...
— Não, eu não sabia. — Arnau ficou quieto um instante. — Avise-me
quando um de nossos navios chegar ao porto.

***

— Vários navios estão chegando juntos — disse Guillem certa manhã ao


voltar do consulado.
— É mesmo?
— Claro. A baronesa está tão perto da água que as ondas estão
molhando os seus sapatos... — Guillem se calou de repente. — Sinto
muito... não queria...
Arnau sorriu.
— Não se preocupe — tranquilizou-o.
Arnau subiu para o seu quarto e, lentamente, vestiu suas melhores
roupas. Finalmente Guillem o convencera a comprá-las.
— Uma pessoa de prestígio como você — dissera ele — não pode se
apresentar malvestido na alfândega ou no consulado. Isso é o que o rei
ordena, e até os seus santos; São Vicente, por exemplo...
Arnau o fez se calar, mas cedeu. Vestiu uma túnica branca sem mangas
de tecido de Malinas forrada de pele, uma cota de seda vermelha
adamascada até os joelhos, meias pretas e sapatos pretos de seda. À
cintura amarrou um largo cinto bordado com fios de ouro e pérolas.
Completou o traje com um fantástico manto preto forrado de arminho e
bordado com ouro e pedras preciosas que Guillem comprara durante uma
expedição para além de Dácia.
Guillem aprovou ao vê-lo passar pela mesa. Mar ia dizer alguma coisa,
mas permaneceu calada. Ela viu Arnau sair pela porta; depois correu atrás
dele e o viu caminhar em direção à praia, o manto ondulando com a brisa
do mar, envolto pelo cintilar das pedras preciosas.
— Aonde Arnau vai? — perguntou ela a Guillem ao voltar à mesa e se
sentar diante dele em uma das cadeiras dos clientes.
— Vai cobrar uma dívida.
— Deve ser muito importante.
— Muito, Mar — Guillem franziu os lábios. — Mas este vai ser só o
primeiro pagamento.
Mar começou a brincar com o ábaco de marfim. Muitas vezes,
escondida na cozinha, ela vira Arnau sério, concentrado, mover as
bolinhas com os dedos e anotar nos livros. Sentiu um calafrio lhe percorrer
a coluna.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não... não.
Por que não lhe contar? Guillem poderia entendê-la, pensou a menina.
À exceção de Donaha, que escondia um sorriso cada vez que ela ia à
cozinha espiar Arnau, ninguém mais sabia. Todas as moças que se reuniam
na casa do mercador Escales falavam disso. Algumas estavam até
prometidas, e não paravam de elogiar as virtudes de seus futuros esposos.
Mar as ouvia e se esquivava das perguntas que lhe faziam. Como falar de
Arnau? E se alguém soubesse? Arnau tinha trinta e cinco anos, e ela só
catorze. Uma moça tinha sido prometida a um homem mais velho que
Arnau! Ela queria poder conversar com alguém. As suas amigas podiam
falar sobre dinheiro, porte, atrativos, hombridade e generosidade, mas
Arnau superava a todos! Por acaso os bastaixos que Mar via na praia não
contavam que Arnau tinha sido um dos soldados mais valentes do exército
do rei Pedro? Mar descobrira no fundo de um baú a besta e o punhal, as
velhas armas de Arnau, e quando estava só ela as tirava de lá e as tocava,
imaginando-o cercado de inimigos, lutando como os bastaixos tinham lhe
contado que ele lutara.
Guillem observou a menina. Seus dedos brincavam com as contas de
marfim do ábaco. Ela estava parada e tinha o olhar perdido. Dinheiro? À
beça. Toda Barcelona sabia disso. E quanto à bondade...
— Tem certeza de que não aconteceu nada? — perguntou ele
novamente, deixando-a sobressaltada.
Mar enrubesceu. Donaha dizia que qualquer pessoa podia ler seus
pensamentos, que ela levava o nome de Arnau nos lábios, nos olhos, em
todo o rosto. E se Guillem tivesse percebido?
— Não... — repetiu. — Nada.
Guillem moveu as bolinhas do ábaco, e Mar sorriu para ele... Mas era
tristeza que via ali? O que se passava na mente da menina? Talvez o frei
Joan tivesse razão; já estava em idade núbil, era uma mulher trancada com
dois homens...
Mar afastou os dedos do ábaco.
— Guillem.
— Diga.
Ela ficou quieta.
— Nada, nada — disse por fim, se levantando.
Guillem seguiu-a com o olhar vendo-a deixar a mesa; ele não gostava
da ideia, mas provavelmente o frade tinha razão.

***

Arnau se aproximou deles. Tinha caminhado até a beira enquanto três


galeras e um baleeiro entravam no porto. O baleeiro era seu. Isabel, de
preto, segurando o chapéu com uma das mãos, e seus enteados Josep e
Genís, todos de costas para ele, observavam a entrada dos navios.
Bastaixos, barqueiros e mercadores se calaram ao ver Arnau passar
vestido de gala.
“Olhe para mim, sua víbora!” Arnau esperou a alguns passos da orla.
“Olhe-me! Na última vez que você o fez...” A baronesa se virou
lentamente; depois seus filhos fizeram o mesmo. Arnau respirou fundo.
“Na última vez que você me viu, o meu pai estava pendurado acima da
minha cabeça.”
Bastaixos e barqueiros murmuraram entre si.
— Você deseja alguma coisa, Arnau? — perguntou um dos pró-homens.
Arnau fez que não com a cabeça, olhando fixamente para a mulher. As
pessoas se afastaram e ele ficou frente a frente com a baronesa e seus
filhos.
Respirou fundo outra vez. Cravou os olhos em Isabel por um instante,
depois passeou o olhar por seus primos, observou os navios e sorriu.
Os lábios da mulher se contraíram antes de se virar novamente para o
mar, seguindo o olhar de Arnau. Quando se virou novamente foi para vê-lo
se afastar; as pedras de sua capa resplandeciam.

***

Joan continuava empenhado em casar Mar e propôs vários candidatos; não


foi difícil encontrá-los. Com o mero mencionar do valor do dote, nobres e
mercadores acudiam ao seu chamado, mas... como dizer a ela? Joan se
ofereceu para fazê-lo, mas, quando Arnau comentou com Guillem, este se
opôs terminantemente.
— Você tem de fazer isso — disse ele. — Não um frade que ela mal
conhece.
Desde a conversa com Guillem, Arnau perseguia Mar com o olhar. Ele a
conhecia? Eles conviviam havia anos, mas na verdade era Guillem quem
se ocupava dela. Ele simplesmente se limitara a desfrutar de sua presença,
seu riso e suas brincadeiras. Nunca conversara com ela sobre um assunto
sério. E agora, cada vez que pensava em se aproximar da menina e lhe
pedir que o acompanhasse para dar um passeio pela praia, ou, por que
não?, até Santa Maria, cada vez que pensava em lhe dizer que tinham um
assunto sério para tratar, encontrava uma mulher desconhecida... e
hesitava, até que ela o surpreendia observando-a e sorria. Onde estava a
menina que se balançava em seus ombros?
— Não quero me casar com nenhum deles — respondeu ela.
Arnau e Guillem se entreolharam. Por fim acudira ao mouro.
— Você tem de me ajudar — pediu.
Os olhos de Mar se iluminaram quando lhe falaram de casamento, os
dois atrás da mesa de câmbio, ela sentada na frente, como se fosse uma
operação mercantil. Mas depois recusou cada um dos cinco candidatos que
o frei Joan propusera.
— Mas, menina — interveio Guillem —, você tem de escolher um
deles. Qualquer moça ficaria orgulhosa ao ouvir os nomes que
mencionamos.
Ela negou mais uma vez.
— Não gosto deles.
— Mas é preciso fazer alguma coisa — disse Guillem, se dirigindo a
Arnau.
Arnau olhou para a moça. Ela estava a ponto de chorar. Escondia o
rosto, mas o tremor do lábio inferior e a respiração agitada a delatavam.
Por que uma moça a quem acabavam de propor aqueles nomes reagia
daquela maneira? O silêncio se prolongou. Por fim, Mar ergueu os olhos
para Arnau, num movimento quase imperceptível das pálpebras. Por que
fazê-la sofrer?
— Vamos procurar até encontrarmos um de quem você goste —
respondeu Guillem. — Você está de acordo, Mar?
A moça concordou com a cabeça, se levantou e saiu da sala, deixando
os dois homens atrás de si.
Arnau suspirou.
— E eu que pensava que o difícil seria falar!
Guillem não respondeu. Continuou com o olhar fixo na porta da
cozinha, por onde Mar desaparecera. O que estava acontecendo? O que ela
estava escondendo? Ela sorrira ao ouvir a palavra casamento, e seus olhos
tinham brilhado, mas depois...
— Você vai ver como Joan vai reagir quando souber — acrescentou
Arnau.
Guillem se virou para Arnau, mas se conteve a tempo. O que importava
o que o frade pensaria?
— Você tem razão. É melhor continuar a procurar.

***

Arnau se virou para Joan.


— Por favor — disse —, não é o momento.
Tinha ido a Santa Maria para se acalmar. As notícias não eram boas, e
ali se sentia à vontade, com a sua Virgem, com o barulho constante dos
operários e o sorriso de todos os que trabalhavam na obra. Mas Joan o
encontrara e estava grudado nele. Mar isso, Mar aquilo, Mar aquilo outro.
Além disso, não era da sua conta!
— Que razões ela pode ter para se opor ao casamento? — insistiu Joan.
— Não é o momento, Joan — repetiu Arnau.
— Por quê?
— Porque acabam de declarar outra guerra contra nós. — O frade se
sobressaltou. — Você não sabia? O rei Pedro, o Cruel, de Castela, acaba de
declarar guerra contra nós.
— Por quê?
Arnau balançou a cabeça.
— Porque ele queria fazê-lo havia muito tempo — respondeu
encolerizado. — A desculpa é que o nosso almirante, Francesc de Perellós,
deteve os navios genoveses que transportavam azeite diante da costa de
Sanlúcar. O castelhano exigiu que as liberasse e, como o almirante fez
ouvidos moucos, aquele nos declarou guerra. Esse homem é perigoso —
murmurou Arnau. — Acho que ganhou essa alcunha com toda a justiça; é
rancoroso e vingativo. Você percebe, Joan? Neste momento estamos em
guerra com Gênova e Castela ao mesmo tempo. Acha que é o momento de
estar às voltas com a menina? — Joan titubeou. Estavam sob a chave da
terceira abóbada da nave central, rodeados pelos andaimes de onde sairiam
as nervuras. — Você se lembra? — perguntou Arnau, apontando para a
pedra clave. Joan ergueu os olhos e assentiu. Eram crianças quando a
primeira fora içada! Arnau esperou um instante e continuou: — A
Catalunha não aguentará. Ainda estamos pagando a campanha contra a
Sardenha, e agora outra frente foi aberta.
— Pensei que os comerciantes fossem partidários das conquistas.
— Castela não nos abrirá nenhuma rota comercial. A situação é ruim,
Joan. Guillem tinha razão. — O frade fez uma careta ao ouvir o nome do
mouro. — Mal terminamos de conquistar a Sardenha, e os corsos se
sublevaram; eles o fizeram assim que o rei deixou a ilha. Estamos em
guerra com duas potências, e o rei esgotou todos os seus recursos; até os
conselheiros da cidade parecem ter ficado loucos!
Começaram a andar em direção ao altar-mor.
— O que você quer dizer com isso?
— Quero dizer que as arcas não aguentarão. O rei continua fazendo
grandes construções: o estaleiro real, a nova muralha...
— E?
— O rei continua a esgotar todos os recursos. Ele obrigou todas as
populações ao redor das muralhas a contribuir para a sua construção, para
o caso de terem que se refugiar dentro delas algum dia; além disso, criou
um novo imposto destinado à construção: a quadragésima parte de todas as
heranças deve se destinar à ampliação das muralhas. Quanto ao estaleiro,
todas as multas dos consulados vão para a obra. E, agora, outra guerra.
— Barcelona é rica.
— Já não é tanto, Joan, esse é o problema. O rei concedeu privilégios à
medida que a cidade lhe entregava recursos, e os conselheiros se meteram
com gastos que não podem financiar. Os impostos sobre a carne e o vinho
aumentaram. Você sabe que esses impostos cobriam parte do orçamento
municipal? — Joan fez que não. — Cinquenta por cento dos gastos
municipais, e agora elevam os impostos. As dívidas do município nos
levarão à ruína, Joan.
Ambos ficaram pensativos diante do altar-mor.
— E o que vai ser de Mar? — insistiu Joan quando deixaram Santa
Maria.
— Ela fará o que quiser, Joan, o que quiser.
— Mas...
— Sem mas. É a minha decisão.

***

— Bata — pediu Arnau.


Guillem bateu no portão. O som ecoou pela rua deserta. Ninguém abriu.
— Bata de novo.
Guillem começou a bater à porta, uma, duas... sete, oito vezes; na nona
abriram o postigo.
— O que foi? — perguntaram os olhos que apareceram nele. — Por que
tanto barulho? Quem são vocês?
Mar, agarrada ao braço de Arnau, ficou tensa.
— Abra! — ordenou Arnau.
— Quem o pede?
— Arnau Estanyol — respondeu Guillem secamente —, proprietário
deste edifício e de tudo o que há dentro dele, incluindo a sua pessoa, se
você for escravo.
“Arnau Estanyol, proprietário deste edifício...” As palavras de Guillem
ressoaram nos ouvidos de Arnau. Quanto tempo se passara? Vinte anos?
Vinte e dois? Os olhos atrás do visor hesitaram.
— Abra! — insistiu Guillem aos gritos.
Arnau elevou os olhos para o céu, pensando em seu pai.
— O que...? — Mar começou a perguntar.
— Nada, nada — respondeu Arnau sorrindo quando a porta para a
passagem de pessoas começou a se abrir no portão. Guillem lhe cedeu
passagem.
— O portão, Guillem, que abram todo o portão.
“Você está me vendo, pai? Lembra? Foi aqui que entregaram a você a
bolsa de dinheiro que o fez se perder. O que você podia ter feito naquela
época?” A revolta da Praça de Blat voltou à sua memória; os gritos das
pessoas, os de seu pai, todos pedindo grãos! Arnau sentiu um nó na
garganta. O portão se abriu completamente, e Arnau entrou.
Vários escravos estavam no pátio da entrada. À sua direita, a escada
que dava para os andares nobres. Arnau não olhou para cima, mas Mar,
sim, e pôde ver sombras se moverem atrás das janelas. Diante deles
estavam as cavalariças, com os palafreneiros parados na entrada. Meu
Deus! Um tremor percorreu o corpo de Arnau, que se apoiou em Mar. A
moça deixou de olhar para cima.
— Tome — disse Guillem a Arnau, entregando-lhe um pergaminho
enrolado.
Arnau não o pegou. Sabia o que era. Decorara o seu conteúdo ao recebê-
lo de Guillem no dia anterior. Era o inventário dos bens de Grau Puig, que
o veguer lhe concedera em pagamento por seus créditos: o palácio, os
escravos — Arnau procurou em vão entre os nomes, mas Estranya não
constava —, algumas propriedades fora de Barcelona, entre as quais uma
casa insignificante em Navarcles que ele decidiu lhes ceder para viverem
nela. Algumas joias, dois pares de cavalos com seus arneses, uma
carruagem, trajes e vestidos, panelas e pratos, tapetes e móveis, tudo o que
se encontrava no interior do palácio estava listado naquele pergaminho
enrolado que Arnau havia lido mais de uma vez na noite anterior.
Observou novamente a entrada das cavalariças e depois passeou o olhar
pelo pátio de pedra... até o pé da escada.
— Subimos? — perguntou Guillem.
— Subimos. Leve-me ao seu senhor... a Grau Puig — corrigiu-se, se
dirigindo a um escravo.
Percorreram o palácio. Mar e Guillem observavam tudo; Arnau olhava
para a frente. O escravo os levou à sala principal.
— Anuncie-me — disse Arnau a Guillem antes de abrirem as portas.
— Arnau Estanyol! — gritou seu amigo ao abri-las.
Arnau não se lembrava da sala principal do palácio. Nem olhara em
volta quando, criança, tivera de percorrê-la... de joelhos. Tampouco o fez
neste momento. Isabel estava sentada ao lado de uma janela: junto a ela,
de pé, estavam Josep e Genís. O primeiro, como sua irmã Margarida, tinha
contraído matrimônio. Genís continuava solteiro. Arnau procurou a
família de Josep. Não estava. Em outra cadeira viu Grau Puig, velho e
babando.
Isabel olhava para ele com os olhos acesos.
Arnau se deteve no meio da sala, ao lado de uma mesa de jantar de
madeira nobre, duas vezes mais comprida que a sua mesa de câmbio. Mar
permaneceu ao lado de Guillem, atrás dele. Os escravos se apinharam
junto às portas.
Arnau falou suficientemente alto para fazer sua voz ecoar por todo o
cômodo.
— Guillem, estes sapatos são meus — disse, apontando para os pés de
Isabel. — Que os descalce.
— Sim, meu senhor.
Mar olhou para o mouro sobressaltada. Meu senhor? Ela sabia da
condição de Guillem, mas nunca o ouvira se dirigir a Arnau naqueles
termos.
Com um sinal, Guillem chamou dois escravos que olhavam do vão da
porta, e os três foram até onde estava Isabel. A baronesa continuava altiva,
enfrentando o olhar de Arnau.
Um dos escravos se ajoelhou, mas, antes que a tocasse, Isabel se
descalçou e deixou os sapatos caírem no chão, sem deixar de olhar Arnau
um só minuto.
— Quero que você recolha todos os sapatos desta casa e os queime no
pátio — disse Arnau.
— Sim, meu senhor — respondeu Guillem outra vez.
A baronesa continuava a olhá-lo com altivez.
— Estas cadeiras. — Arnau apontou para os assentos dos Puig. —
Leve-as daqui.
— Sim, meu senhor.
Grau foi erguido pelos dois filhos. A baronesa se levantou antes que os
escravos tomassem a cadeira e a levassem, junto com as outras, para uma
das esquinas.
Mar continuava a encará-lo.
— Este vestido é meu.
Teria tremido?
— Você não pretende... — começou Genís Puig a dizer, se erguendo
com o pai nos braços.
— Este vestido é meu — repetiu Arnau interrompendo-o, sem deixar de
olhar Isabel.
Tremia?
— Mãe — interveio Josep —, vá trocar de roupa.
Tremia.
— Guillem — gritou Arnau.
— Mãe, por favor.
Guillem se aproximou da baronesa.
Estava tremendo?
— Mãe!
— E o que quer que eu vista? — gritou Isabel, se dirigindo ao enteado.
Isabel se virou novamente para Arnau, tremendo. Guillem também
olhou para ele. “Você quer mesmo que eu tire o vestido?”, perguntavam
seus olhos.
Arnau franziu o cenho. Pouco a pouco, bem devagar, Isabel baixou o
olhar para o chão, chorando de raiva.
Arnau fez um sinal para Guillem e deixou que transcorressem alguns
segundos enquanto os soluços de Isabel invadiam a sala principal do
palácio.
— Esta mesma noite — disse por fim, se dirigindo a Guillem —, quero
este edifício vazio. Diga-lhes que podem voltar para Navarcles, de onde
nunca deviam ter saído. — Josep e Genís o fitaram, Isabel continuou a
soluçar. — Não estou interessado naquelas terras. Dê-lhes roupas dos
escravos, mas não calçados: queime-os. Venda tudo e feche a casa.
Arnau se virou e se viu cara a cara com Mar. Tinha se esquecido dela. A
moça estava atônita. Pegou-a pelo braço e saiu com ela.
— Já podem fechar estas portas — disse ao velho que as tinha aberto.
Caminharam em silêncio até a mesa de câmbio, mas, antes de entrar,
Arnau se deteve.
— Um passeio pela praia?
Mar concordou.
— Você já cobrou a sua dívida? — perguntou ela quando estavam
diante do mar.
Continuaram caminhando.
— Nunca poderei cobrá-la, Mar — murmurou depois de um tempo. —
Nunca.
38
9 de junho de 1359
Barcelona

Arnau estava trabalhando na mesa de câmbio. Era a temporada de


navegação. Os negócios iam de vento em popa, e ele acumulara uma das
maiores fortunas da cidade. Continuavam a viver na pequena casa da
esquina de Canvis Vells com Canvis Nous, com Mar e Donaha. Arnau
fizera ouvidos moucos ao conselho de Guillem de que se mudasse para o
palácio dos Puig, fechado havia quatro anos. De seu lado, Mar era tão
teimosa quanto Arnau e não quisera contrair matrimônio.
— Por que você quer me afastar daqui? — perguntou ela um dia, com
os olhos molhados.
— Eu... — titubeou Arnau. — Não quero afastar você de mim!
Ela continuou a chorar e apoiou a cabeça em seu ombro.
— Não se preocupe — disse Arnau, lhe acariciando os cabelos —,
nunca a obrigarei a fazer o que você não quiser.
E Mar continuava a viver com eles.
Naquele 9 de junho, um sino começou a tocar ao longe. Arnau
interrompeu o trabalho. Logo outro sino tocou e, em pouco tempo, muitos
mais se ouviam por toda a cidade.
— Via fora! — comentou Arnau.
Saiu à rua. Os operários de Santa Maria desciam rapidamente dos
andaimes; pedreiros e canteiros saíam pelo portão principal, e as pessoas
corriam pelas ruas com o “Via fora!” nos lábios.
Naquele momento, encontrou Guillem, que, alterado, caminhava
rapidamente.
— Guerra! — gritou.
— Estão conclamando a host — disse Arnau.
— Não... não. — Guillem fez uma pausa para recobrar o fôlego. — Não
é a host da cidade. É a de Barcelona e de todas as vilas e povoados a duas
léguas de distância. Não são só as de Barcelona.
Eram as de Sant Boi e Badalona. As de Sant Andreu e Sarrià;
Provençana, Sant Feliu, Sant Genís, Cornellà, Sant Just Desvern, Sant Joan
Despí, Sants, Santa Coloma, Esplugues, Vallvidrera, Sant Martí, Sant
Adrià, Sant Gervasi, Sant Joan d’Horta... O repicar dos sinos aturdia
Barcelona num raio de duas léguas.
— O rei invocou o usatge princeps namque — continuou Guillem. —
Não é a cidade. É o rei! Estamos em guerra! Estamos sendo atacados. O rei
Pedro de Castela ataca...
— Barcelona? — interrompeu-o Arnau.
— Sim, Barcelona.
Os dois entraram correndo em casa.
Arnau equipou-se como quando servira a Eiximèn d’Esparça, então
saíram e se dirigiram para a Rua do Mar a fim de chegar à Praça de Blat;
porém as pessoas desciam pela rua gritando o “Via fora!”, em vez de subir
por ela.
— O que...? — quis saber Arnau, agarrando pelo braço um dos homens
armados que corriam rua abaixo.
— Para a praia! — gritou o homem, se desvencilhando. — Para a praia!
— Pelo mar? — Arnau e Guillem se perguntaram.
Ao chegarem, os barceloneses, armados com suas bestas e ouvindo o
repicar dos sinos, começavam a se aglomerar na orla com o olhar posto no
horizonte. O “Via fora!” foi perdendo força, e os cidadãos terminaram em
silêncio.
Guillem levou a mão à testa para proteger os olhos do forte sol de junho
e começou a contar os navios: um, dois, três, quatro...
O mar estava calmo.
— Eles vão nos destruir — Arnau ouviu alguém dizer atrás de si.
— Arrasarão a cidade.
— O que podemos fazer contra um exército?
Vinte e sete, vinte e oito... Guillem continuava a contar.
“Vão nos destruir”, repetiu Arnau para si mesmo. Quantas vezes
conversara sobre isso com os mercadores e comerciantes? Barcelona era
indefesa por mar. A cidade se abria para o mar sem nenhuma defesa, de
Santa Clara até Framenors! Se uma armada entrasse pelo porto...
— Trinta e nove, quarenta. Quarenta navios! — exclamou Guillem.
Trinta galeras e dez lenhos, todos armados. Era a armada de Pedro, o
Cruel. Quarenta navios carregados de homens preparados, guerreiros
experientes, contra cidadãos repentinamente convertidos em soldados. Se
conseguissem desembarcar, a luta seria na própria praia e pelas ruas da
cidade. Arnau sentiu um calafrio ao pensar nas mulheres e crianças... em
Mar. Seriam derrotados! Saqueariam. Violentariam as mulheres. Mar! Se
apoiou em Guillem ao pensar nela. Era jovem e bela. Imaginou-a nas mãos
dos castelhanos, gritando e pedindo ajuda... Onde estaria ele então?
A praia continuava a se encher de gente. O próprio rei foi até lá e
começou a dar ordens aos seus soldados.
— O rei! — gritou alguém.
“E o que o rei poderia fazer?”, esteve a ponto de replicar Arnau.
Havia três meses o rei estava na cidade preparando uma armada para
sair em defesa de Maiorca, que Pedro, o Cruel, ameaçara atacar. No porto
de Barcelona só havia dez galeras — o restante da frota ainda estava por
chegar — e lutariam no próprio porto!
Arnau negou com a cabeça, olhos fixos nas velas que pouco a pouco se
aproximavam da costa. O rei de Castela tinha conseguido enganá-los.
Desde que a guerra começara, havia três anos, as batalhas e as tréguas se
alternavam. Pedro, o Cruel, atacou primeiro o reino de Valência e depois o
de Aragão, onde tomou Tarazona, colocando Saragoça em perigo. A Igreja
interveio, e Tarazona se entregou ao cardeal Pedro de la Jugie, que
decidiria a qual dos dois reis a cidade pertencia. Também foi assinada uma
trégua de um ano que não incluía as fronteiras dos reinos de Múrcia e
Valência.
Durante a trégua, o Cerimonioso conseguiu convencer seu meio-irmão
Ferrán, então aliado do rei de Castela, a trair este último, e, então, o
infante atacou e saqueou o reino de Múrcia até chegar a Cartagena.
Da praia, o rei Pedro ordenou que preparassem as dez galeras e que os
cidadãos de Barcelona e das vilas vizinhas, que começavam a chegar,
embarcassem com os poucos soldados disponíveis. Todos os navios,
pequenos ou grandes, mercantes ou de pesca, deveriam sair ao encontro da
armada castelhana.
— É uma loucura — comentou Guillem ao ver as pessoas entrarem nas
embarcações. — Qualquer uma dessas galeras vai abordar nossos navios e
parti-los ao meio. Muita gente vai morrer.
Ainda faltava muito para que a frota castelhana chegasse ao porto.
— Ele não terá piedade — disse outro. — Vai nos destruir.
Pedro, o Cruel, não teria piedade. Sua fama era muito conhecida:
executara seus irmãos bastardos, Frederico em Sevilha e Juan em Bilbao,
e, um ano depois, sua tia Leonor, após mantê-la presa por todo esse tempo.
Que piedade podiam esperar de um rei que assassinara os próprios
parentes? O Cerimonioso não matara Jaime de Maiorca, apesar das muitas
traições e guerras em que os dois se enfrentaram.
— Seria melhor organizar a defesa em terra — comentou Guillem,
gritando ao pé do ouvido de Arnau. — Por mar é impossível; os
castelhanos nos arrasarão assim que ultrapassarem as tasques.1
Arnau concordou. Por que o rei se empenhava em defender a cidade por
mar? Guillem tinha razão, assim que atravessassem as tasques...
— As tasques! — bradou Arnau. — Que navio temos no porto?
— O que você pretende?
— As tasques, Guillem! Você não percebe? Que navio temos?
— Aquele baleeiro — respondeu ele, apontando para um navio
barrigudo, imenso e pesado.
— Vamos. Não há tempo a perder.
Arnau correu novamente para o mar, misturado à multidão, que fazia o
mesmo. Olhou para trás para dizer a Guillem que andasse mais rápido.
A orla se convertera em uma confusão de soldados e barceloneses
metidos na água até a cintura. Uns tentavam subir nos pequenos barcos de
pesca que saíam para o mar, outros esperavam um barqueiro para levá-los
a um dos grandes navios mercantes ou de guerra fincados no porto.
Arnau viu chegar um barqueiro.
— Vamos! — gritou para Guillem e entrou na água, tentando passar
adiante dos que se dirigiam ao barco.
O barco estava cheio de gente, mas o barqueiro reconheceu Arnau e
encontrou lugar para eles.
— Leve-me ao baleeiro — disse ele quando o homem ia dar ordem de
partir.
— Primeiro para as galeras. É a ordem do rei...
— Leve-me ao baleeiro! — insistiu Arnau. O barqueiro inclinou a
cabeça. Os homens do barco começaram a se queixar. — Silêncio! —
gritou Arnau. — Você me conhece. Tenho de chegar ao baleeiro. Barcelona
e a sua família dependem disso. As famílias de todos vocês podem
depender disso!
O barqueiro olhou o grande navio barrigudo. Tinha que desviar muito
pouco. Por que não? Por que Arnau Estanyol o enganaria?
— Para o baleeiro! — ordenou aos remadores.
Quando Arnau e Guillem se agarraram à escada que o piloto do baleeiro
jogou para eles, o barqueiro rumou em direção à galera.
— Os homens aos remos — ordenou Arnau ao piloto antes de pisar no
convés.
O homem fez um gesto para os remadores, que imediatamente se
instalaram em seus bancos.
— O que faremos? — perguntou.
— Para as tasques — respondeu Arnau.
Guillem concordou.
— Que Alá, seu nome seja louvado, queira que tudo saia bem.
Mas, se Guillem chegou a entender o propósito de Arnau, o exército e
os cidadãos de Barcelona não o entenderam. Quando viram o baleeiro
rumar para alto-mar, sem soldados nem homens armados, alguém disse:
— Quer salvar o seu próprio navio.
— Judeu! — gritou outro.
— Traidor!
Muitos mais se somaram aos insultos, e em pouco tempo toda a praia
era um só clamor contra Arnau. “O que pretende Arnau Estanyol?”,
bastaixos e barqueiros se perguntaram observando o grande navio que se
movia lentamente, ao ritmo de mais de uma centena de remos que
afundavam na água para voltar a subir vezes sem fim.
Arnau e Guillem se colocaram de pé na proa com a atenção focada na
armada castelhana, que começava a se aproximar perigosamente, mas,
quando passaram ao lado das galeras catalãs, uma chuva de flechas
obrigou-os a se proteger. Se puseram novamente de pé ao ficarem fora de
alcance.
— Vai dar tudo certo — disse Arnau a Guillem. — Barcelona não pode
cair nas mãos deste canalha.
As tasques, uma cadeia de bancos de areia paralela à costa que impedia
a entrada das correntes marítimas, eram a única defesa natural do porto de
Barcelona, ao mesmo tempo que representavam um perigo para os navios
que tentavam aportar. Uma só entrada, por um canal com espaço suficiente
para a quilha dos navios, permitia a eles o acesso ao porto; se não
passassem por ele, os navios encalhavam nos bancos.
Arnau e Guillem se aproximaram das tasques deixando para trás
milhares de gargantas que proferiam os insultos mais obscenos. Os gritos
dos catalães conseguiram abafar até o repicar dos sinos.
“Vai dar tudo certo”, disse Arnau a si mesmo. Depois ordenou ao piloto
que parassem de remar. Quando todos aqueles remos se alçaram acima da
borda e o baleeiro deslizou em direção às tasques, os insultos e gritos
começaram a minguar, até que o silêncio reinou na praia. A armada
castelhana continuava a avançar. Por cima dos sinos, Arnau ouviu a quilha
do barco deslizar em direção aos bancos.
— Tem de dar certo! — gritou.
Guillem o agarrou pelo braço. Era a primeira vez que o tocava daquele
modo.
O baleeiro continuou a deslizar muito lentamente. Arnau olhou para o
piloto. “Estamos no canal?”, perguntou com um movimento das
sobrancelhas. O piloto fez que sim; ao ouvir a ordem para levantar os
remos, ele entendera o que Arnau pretendia.
Toda Barcelona entendera.
— Agora! — gritou Arnau. — Vire!
O piloto deu a ordem. Os remos de bombordo mergulharam, e o
baleeiro começou a girar, até que popa e proa encalharam nas paredes do
canal.
O navio se inclinou.
Guillem apertou com força o braço de Arnau. Os dois se entreolharam,
e Arnau o puxou para um abraço, enquanto a praia e as galeras estalavam
em vivas.
A entrada do porto de Barcelona estava fechada.
Da orla, armado para a batalha, o rei examinou o baleeiro adernado nas
tasques. Nobres e cavaleiros permaneciam silenciosos ao seu redor
enquanto o rei contemplava a cena.
— Às galeras! — ordenou ele finalmente.

***

Com o baleeiro de Arnau atravessado nos bancos de areia, Pedro, o Cruel,


organizou a armada em mar aberto. O Cerimonioso fez o mesmo no porto
fechado, e antes do anoitecer as duas frotas — uma de guerra, com
quarenta navios armados e dispostos, a outra inusitada, com apenas dez
galeras e dezenas de pequenos navios mercantes e pesqueiros carregados
de cidadãos — se encontraram frente a frente ao longo da linha da costa
portuária, de Santa Clara a Framenors. Ninguém entrava ou saía de
Barcelona.
Naquele dia não houve batalha. Cinco galeras de Pedro III se
posicionaram perto do baleeiro de Arnau, e à noite os soldados reais,
iluminados por uma lua resplandecente, o abordaram.
— Parece que a batalha vai girar à nossa volta — comentou Guillem
com Arnau, os dois sentados no convés com as costas apoiadas na borda,
protegidos dos besteiros castelhanos.
— Nós nos transformamos na muralha da cidade, e todas as batalhas
começam nas muralhas.
Naquele momento, um oficial real se aproximou.
— Arnau Estanyol? — perguntou. Arnau se fez notar erguendo a mão.
— O rei vos autoriza a deixar o navio.
— E os meus homens?
— Os condenados às galeras? — Na semiescuridão, Arnau e Guillem
notaram a expressão de surpresa do oficial. O que importava uma centena
de condenados? — Podem ser necessários aqui — desculpou-se o oficial.
— Nesse caso — disse Arnau —, eu fico; o navio é meu, e são os meus
homens.
O oficial deu de ombros e continuou a organizar os homens.
— Você quer desembarcar? — perguntou Arnau a Guillem.
— Por acaso já não sou um dos seus homens?
— Não, e você sabe muito bem disso. — Os dois ficaram em silêncio
por um instante, vendo passar as sombras e ouvindo os soldados correrem
para tomar posição sob as ordens dadas a meia-voz, quase em sussurro,
dos oficiais. — Você sabe que já não é escravo há muito tempo —
continuou Arnau. — Basta pedir a carta de liberdade e a terá.
Alguns soldados se posicionaram perto deles.
— Ide para o porão com os outros — sussurrou um dos soldados,
tentando ocupar o seu lugar.
— Neste navio vamos aonde quisermos — respondeu Arnau.
O soldado se inclinou sobre ambos.
— Perdão — desculpou-se. — Todos somos gratos pelo que fizestes.
E procurou outro lugar perto da borda.
— Quando você vai querer ser livre? — perguntou Arnau mais uma
vez.
— Acho que não saberia ser livre.
Os dois ficaram em silêncio. Quando todos os soldados abordaram o
baleeiro e ocuparam seus postos, a noite começou a transcorrer
lentamente. Arnau e Guillem cochilaram entre tosses e sussurros.
Ao amanhecer, Pedro, o Cruel, ordenou o ataque. A armada castelhana
se aproximou dos bancos de areia, e os soldados do rei começaram a
disparar as bestas e jogar pedras por catapultas e pequenos trabucos
montados nas bordas. A frota catalã fez a mesma coisa do outro lado. A
luta ocorria ao longo da linha costeira, mas principalmente em torno do
baleeiro de Arnau. Pedro III não podia permitir que os castelhanos
abordassem o navio, e várias galeras, incluindo a real, tomaram posição ao
lado dele.
Muitos homens morreram atingidos pelas flechas disparadas de ambos
os lados. Arnau recordou o sibilo daquelas que havia disparado, protegido
por uma pedra diante do castelo de Bellaguarda.
Gargalhadas interromperam o seu devaneio. Quem podia rir numa
batalha? Barcelona estava em perigo, homens estavam morrendo. Como
era possível que alguém risse? Arnau e Guillem se entreolharam. Sim,
eram risos. Gargalhadas cada vez mais sonoras. Procuraram um lugar
resguardado para observar a batalha. Os tripulantes de diversos navios
catalães, protegidos das flechas na segunda ou terceira linha, riam dos
castelhanos.
Os outros tentavam mirar as catapultas, mas com tão pouca pontaria
que as pedras caíam no mar uma atrás da outra. Algumas pedras formavam
uma árvore de espuma ao cair na água. Arnau e Guillem sorriram. Os
homens dos navios caçoaram outra vez dos castelhanos, e a praia de
Barcelona, repleta de cidadãos transformados em soldados, se somou ao
riso.
Durante todo o dia os catalães zombaram dos artilheiros castelhanos,
que volta e meia falhavam.
— Eu não gostaria de estar na galera de Pedro, o Cruel — comentou
Guillem com Arnau.
— Não — respondeu este rindo —, não quero pensar no que ele fará
com esses aprendizes.
Aquela noite não foi como a anterior. Arnau e Guillem atenderam aos
muitos feridos do baleeiro, tratando-os e ajudando-os a descer para os
navios que os levariam de volta. Mas as flechas dos castelhanos
alcançavam o baleeiro. Um novo contingente de soldados abordou o navio
e tentou descansar um pouco para a nova jornada quando a noite estava
quase terminando.
A luz do dia despertou as gargantas dos catalães, e os gritos, insultos e
risos ecoaram novamente no porto de Barcelona.
Arnau já não tinha flechas e, protegido ao lado de Guillem, se dedicou a
contemplar a batalha.
— Veja — disse ao amigo, assinalando as galeras castelhanas —, estão
se aproximando muito mais do que ontem.
Era verdade. O rei de Castela decidira acabar o quanto antes com a
zombaria dos catalães e seguia diretamente para o baleeiro.
— Diga-lhes que parem de rir — comentou Guillem, com o olhar fixo
nas galeras castelhanas que se aproximavam.
Pedro III se apressou a defender o baleeiro e se aproximou dele o mais
que pôde. A nova batalha ocorreu ao lado de Guillem e Arnau; quase
podiam tocar a galera real e distinguiam claramente o rei e seus
cavaleiros.
As duas galeras se posicionaram lateralmente, cada uma de um lado dos
bancos de areia. Os castelhanos dispararam os trabucos montados na proa.
Arnau e Guillem olharam para a galera real. Sem danos. O rei e seus
homens continuavam no convés, e o navio não parecia ter sido afetado
pelos disparos.
— Isso é uma bombarda? — perguntou Arnau, assinalando o canhão
para onde Pedro III se dirigia.
— É — respondeu Guillem.
— Deve ser a primeira vez que se arma uma galera com uma bombarda
— disse Arnau, prestando atenção às ordens do rei para os artilheiros. —
Nunca tinha visto...
— Eu também não.
A conversa foi interrompida pelo estrondo da bombarda, que disparou
uma grande pedra. Os dois se viraram para a galera castelhana.
— Bravo! — gritaram em uníssono quando a pedra destruiu o mastro
do navio.
Todos os navios catalães vitoriaram o disparo.
O rei mandou carregar a bombarda outra vez. A surpresa e a queda do
mastro impediram que os castelhanos respondessem com seus trabucos. O
disparo seguinte acertou em cheio o castelo de popa do navio, destruindo-
o.
Os castelhanos começaram a se afastar.
O escárnio constante e a bombarda da galera real fizeram o rei
castelhano reconsiderar, e, depois de algumas horas, ele ordenou à frota
que desistisse do ataque e rumasse para Ibiza.

***

Do convés, Arnau e Guillem observaram a retirada da armada castelhana


ao lado de vários oficiais do rei. Os sinos da cidade começaram a repicar.
— Agora temos de desencalhar este navio — comentou Arnau.
— Faremos isso — disse alguém. Arnau se virou e viu um oficial que
acabava de abordar o baleeiro. — Sua majestade vos espera na galera real.
O rei tivera duas noites inteiras para se informar de quem era Arnau
Estanyol. “Rico”, disseram os conselheiros de Barcelona, “imensamente
rico, majestade”. O rei assentia pouco interessado a cada comentário dos
conselheiros sobre Arnau: o trabalho como bastaix, a luta sob as ordens de
Eiximèn d’Esparça, a devoção por Santa Maria. No entanto, seus olhinhos
se abriram ao saber que era viúvo. “Rico e viúvo”, pensou o monarca; “se
sairmos desta...”
— Arnau Estanyol — apresentou-o um dos camareiros do rei —,
cidadão de Barcelona.
O rei, sentado no convés, estava rodeado de uma grande quantidade de
nobres, cavaleiros, conselheiros e pró-homens da cidade que tinham se
aproximado da galera real após a retirada dos castelhanos. Guillem
permaneceu junto à borda, atrás dos que rodeavam Arnau e o rei.
Arnau fez menção de se ajoelhar, mas o rei ordenou que se levantasse.
— Estamos muito satisfeitos com a vossa ação — disse o rei. — Vossa
ousadia e inteligência foram cruciais para vencer esta batalha.
O rei se calou, e Arnau hesitou. Deveria falar ou esperar? Todos os
presentes tinham os olhos nele.
— Em agradecimento à sua ação — prosseguiu o monarca —,
desejamos favorecê-lo com a nossa graça.
E agora? O que deveria dizer? Que graça o rei poderia lhe conceder? Já
tinha tudo o que queria...
— Concedemos-lhe em matrimônio nossa pupila Elionor, a quem
dotamos com os baronatos de Granollers, Sant Vicenç dels Horts e Caldes
de Montbui.
Todos os presentes murmuraram; alguns aplaudiram. Matrimônio! Teria
dito matrimônio? Arnau se virou à procura de Guillem, mas não o viu. Os
nobres e cavaleiros sorriam para ele. Teria dito matrimônio?
— Não estais contente, senhor barão? — perguntou o rei ao vê-lo
hesitar.
Arnau se virou para o rei. Senhor barão? Matrimônio? Para que queria
tudo isso? Nobres e cavaleiros se calaram diante do silêncio de Arnau. O
rei o atravessava com o olhar. Elionor... teria dito? Sua pupila? Não
podia... não devia afrontar o rei!
— Não... quer dizer, sim, majestade — titubeou. — Agradeço a vossa
graça.
— Assim seja, pois.
Pedro III se levantou, e a corte se fechou ao seu redor. Alguns deram
palmadinhas nas costas de Arnau ao passar junto a ele e felicitaram-no
com frases que lhe pareceram ininteligíveis. Ele ficou sozinho onde antes
tinha estado rodeado de gente. Virou-se para Guillem, que continuava
debruçado na borda.
De onde estava, Arnau abriu as mãos, mas o mouro respondeu
gesticulando em direção ao rei e à sua corte, e ele as escondeu
rapidamente.

***

A chegada de Arnau à praia foi tão festejada quanto a do próprio rei. Toda
a cidade quis parabenizá-lo, e ele foi de um para o outro, recebendo
felicitações, tapinhas nas costas e apertos de mão. Todo mundo queria se
aproximar do salvador da cidade, mas Arnau não conseguia reconhecer
nem ouvir ninguém. Agora que tudo ia bem para ele, que estava feliz, o rei
decidira casá-lo. Dificultando sua passagem, os barceloneses o
acompanharam da praia até a mesa de câmbio e, depois que entrou,
permaneceram diante da entrada gritando seu nome sem cessar.
Assim que entrou, Mar se jogou em seus braços. Guillem já tinha
chegado e estava sentado em uma cadeira; não contara nada. Joan, que
também viera para a mesa, o observava com seu habitual aspecto
taciturno.
Mar ficou surpresa quando Arnau, talvez com mais força do que
pretendia, se desvencilhou de seu abraço. Joan foi felicitá-lo, mas Arnau
também não lhe deu atenção. Por fim, se jogou em uma cadeira ao lado de
Guillem. Os demais olhavam para ele e não ousavam dizer nada.
— O que foi? — atreveu-se por fim a perguntar Joan.
— Vão me casar! — gritou Arnau, erguendo os braços acima da cabeça.
— O rei decidiu converter-me em barão e casar-me com sua pupila. Esse é
o favor que me faz por ajudá-lo a salvar a sua capital! Casar-me!
Joan pensou um instante, inclinou a cabeça e sorriu.
— Por que você se queixa? — perguntou.
Arnau olhou para ele de esguelha. Ao seu lado, Mar começara a tremer.
Só Donaha, da porta da cozinha, a viu e correu para ajudá-la a se manter de
pé.
— O que lhe desagrada? — insistiu Joan. O irmão nem olhou para ele.
Mar sentiu a primeira ânsia ao ouvir as palavras do frade. — O que há de
mau em se casar? E com a pupila do rei! Você se tornará um barão da
Catalunha.
Temendo vomitar, a jovem foi com Donaha para a cozinha.
— O que houve com Mar? — perguntou Arnau.
O frade demorou um instante para responder.
— Eu lhe direi o que está acontecendo — disse por fim. — Ela também
deve se casar! Os dois deveriam se casar. Por sorte o rei tem mais cabeça
do que você.
— Deixe-me, Joan, por favor — disse Arnau, sem energia.
O frade ergueu os braços e saiu da mesa de câmbio.
— Verifique o que está acontecendo com Mar — pediu Arnau a
Guillem.
— Não sei o que é — disse Guillem pouco depois —, mas Donaha disse
que não me preocupasse. Coisas de mulher — acrescentou.
Arnau se virou para ele.
— Não me fale de mulheres.
— Pouco podemos fazer contra os desejos do rei, Arnau. Talvez com
um pouco de tempo... encontremos uma solução.
Mas não tiveram tempo. Pedro III decidiu partir para Maiorca em 23 de
junho, para perseguir o rei de Castela; ordenou que a armada se reunisse
no porto de Barcelona e manifestou que, antes de partir, queria resolver o
assunto do matrimônio de sua pupila Elionor com o rico Arnau. O oficial
do rei comunicou isso ao bastaix em sua mesa de câmbio.
— Só tenho nove dias! — queixou-se a Guillem quando o oficial
desapareceu pela porta. — Talvez menos!
Como seria a tal Elionor? Arnau não dormia só de pensar naquilo.
Velha? Bela? Simpática e agradável ou altiva e cínica como todos os
nobres que conhecera? Como poderia se casar com uma mulher que sequer
conhecia? Encarregou Joan do assunto:
— Você tem como sabê-lo. Descubra como é essa mulher. Não consigo
parar de pensar no que me espera.
— Dizem — Joan lhe contou na tarde do dia em que o oficial se
apresentou em sua mesa — que é bastarda de um dos infantes do
principado, de um tio do rei, mas ninguém se atreve a garantir de qual
deles. A mãe faleceu no parto, e por isso ela foi acolhida na corte...
— Mas como é ela, Joan? — interrompeu-o Arnau.
— Tem vinte e três anos e é atraente.
— E de caráter?
— É nobre — limitou-se a responder.
Para que lhe contaria tudo o que soubera? Certamente é atraente, lhe
disseram, mas seus traços refletem um tédio permanente. É caprichosa e
mimada, altiva e ambiciosa. O rei a casara com um nobre que faleceu
pouco depois, e ela, sem filhos, voltou para a corte. Um favor para Arnau?
Uma graça real? Seus confidentes riram. O rei já não aguentava Elionor, e
com quem melhor casá-la do que com um dos homens mais ricos de
Barcelona, um cambista a quem poderia acudir para conseguir
empréstimos? O rei Pedro saía ganhando em todos os sentidos: se livrava
de Elionor e garantia o acesso a Arnau. Para que lhe contar tudo isso?
— O que você quer dizer com “é nobre”?
— Isso mesmo — disse Joan, evitando olhar para Arnau —, que é
nobre, uma mulher nobre, com seu caráter, como todas elas.
Elionor também fizera averiguações por sua conta, e sua irritação
aumentava à medida que as notícias chegavam: um antigo bastaix, um
grêmio que provinha dos escravos da ribeira. Como o rei pretendia casá-la
com um bastaix? Era rico, muito rico, disseram, mas o que importava o
seu dinheiro? Ela vivia na corte e não lhe faltava nada. Resolveu acudir ao
rei quando descobriu que Arnau era filho de um camponês fugitivo e que
ele mesmo, por nascimento, também tinha sido servo da terra. Como o rei
podia pretender que ela, filha de um infante, desposasse semelhante
pessoa?
Mas Pedro III não a recebeu e ordenou que o casamento fosse celebrado
no dia 21 de junho, dois dias antes de sua partida para Maiorca.

***

Ele se casaria no dia seguinte. Na capela real de Santa Ágata.


— É uma capela pequena — explicou Joan. — Foi construída por Jaime
II no princípio do século a pedido de sua esposa, Blanca de Anjou, e foi
consagrada às relíquias da Paixão de Cristo, como a Santa Capela de Paris,
onde nasceu a rainha.
Seria uma cerimônia íntima, tanto que só Joan acompanharia Arnau.
Mar se recusou a assistir. Desde o anúncio do matrimônio a moça fugia
dele e se calava em sua presença, observando-o de vez em quando, sem
sorrir para ele como antes.
Por isso, naquela tarde, Arnau lhe pediu que o acompanhasse.
— Aonde? — perguntou Mar.
— Não sei... Que tal a Santa Maria? Seu pai adorava aquela igreja. Eu o
conheci lá, sabia?
Mar concordou; os dois deixaram a mesa de câmbio e se dirigiram à
fachada incompleta de Santa Maria. Os operários começavam a trabalhar
nas duas torres oitavadas da fachada, e os mestres canteiros picavam e
repicavam as pedras do tímpano, das jambas, do montante e das
arquivoltas. Arnau e Mar entraram no templo. As nervuras da terceira
abóbada da nave central tinham começado a se estender em direção ao céu
à procura da chave, como uma teia de aranha protegida pelo andaime de
madeira por onde crescia.
Arnau sentiu a presença da moça ao seu lado. Ela era da sua altura, e
seus cabelos caíam graciosamente pelos ombros. Cheirava bem: a frescor,
a ervas. Ele percebeu que a maioria dos operários a admirava, mesmo ao
desviarem o olhar quando Arnau olhou para eles.
— Por que você não quer vir ao meu casamento? — perguntou ele de
repente.
Mar não respondeu. Passeava o olhar pelo templo.
— Não me permitiram casar nesta igreja — murmurou Arnau.
A moça continuou calada.
— Mar... — Arnau esperou que ela se virasse para ele. — Queria que
você estivesse comigo no dia de meu casamento. Você sabe que não quero
me casar, que o faço contra a minha vontade, mas o rei... Não vou mais
insistir, certo? — Mar concordou. — Se eu não insistir, podemos voltar a
ser como antes?
Mar baixou os olhos. Queria ter lhe dito tantas coisas... Mas não podia
recusar o que ele pedia; não conseguia lhe negar nada.
— Obrigado — disse Arnau —, se você me faltasse... Não sei o que
seria de mim se as pessoas que amo me faltassem!
Mar sentiu um calafrio. Não era esse o tipo de carinho que ela queria.
Era amor. Por que concordara em acompanhá-lo? Olhou a abside de Santa
Maria.
— Joan e eu vimos esta chave de abóbada ser colocada no lugar, sabia?
— disse ele, acompanhando a direção de seu olhar. — Quando éramos
crianças.
Os mestres vidracistas trabalhavam com afinco no clerestório, o
conjunto de janelas situado abaixo da abside, depois de terminarem as
janelas da parte superior, cujo arco ogival continha uma pequena roseta.
Depois decorariam as grandes janelas ogivais abaixo delas. Trabalhavam
as cores compondo figuras e desenhos cortados por filetes de chumbo
finos e delicados que filtravam a luz externa para o interior do templo.
— Quando eu era menino — continuou Arnau —, tive a sorte de falar
com o grande Berenguer de Montagut. Nós, lembro que ele me disse
referindo-se aos catalães, não precisamos de decoração: só do espaço e da
luz. Então ele apontou para a abside, bem ali onde você está olhando
agora, e deixou cair uma mão estendida até o altar-mor, simulando a luz
que mencionava. Eu lhe respondi que entendia o que ele estava dizendo,
mas na verdade não conseguia imaginar. — Mar se virou para ele. — Eu
era jovem — se desculpou —, e ele era o mestre, o grande Berenguer de
Montagut. Mas hoje eu entendo. — Arnau se aproximou mais de Mar e
estendeu a mão em direção à roseta da abside lá no alto. Mar tentou
esconder o ligeiro tremor que sentiu ao contato com Arnau. — Você está
vendo como a luz entra no templo? — Então começou a abaixar a mão até
o altar-mor, como Berenguer fizera, mas dessa vez apontou para os raios
de luz coloridos que entravam pela igreja. Mar seguiu a mão de Arnau. —
Olhe bem. Os vitrais orientados para o sol têm cores vivas, vermelhos,
amarelos e verdes, para aproveitar a força da luz do Mediterrâneo; as
outras são brancas e azuis. A cada hora, à medida que o sol percorre o céu,
o templo vai mudando de cor, e as pedras refletem diferentes tonalidades.
O mestre tinha razão! É como uma igreja nova a cada dia, a cada hora,
como se nascesse um templo novo a cada momento porque, apesar de a
pedra estar morta, o sol está vivo e é diferente a cada dia; nunca vemos os
mesmos reflexos.
Os dois permaneceram hipnotizados pela luz.
Finalmente, Arnau segurou Mar pelos ombros e virou-a para si.
— Não me deixe, Mar, por favor.
No dia seguinte, ao amanhecer, na escura e pesada capela de Santa
Ágata, Mar tentou ocultar as lágrimas durante a cerimônia.
Arnau e Elionor, por sua vez, permaneceram sérios diante do bispo.
Elionor nem se mexeu, com o olhar fixo à sua frente. Arnau se virou para
ela algumas vezes no começo da cerimônia, mas Elionor continuou a olhar
para a frente. Então ele só se permitiu umas olhadas de soslaio.

1. Uma cadeia de baixios. (N. da T.)


39

No próprio dia do casamento, assim que terminou a cerimônia, os novos


barões de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui partiram para o
castelo de Montbui. Joan apresentara a Arnau as perguntas do mordomo da
baronesa. Onde Arnau pretendia que dona Elionor dormisse? Nos cômodos
superiores de uma vulgar mesa de câmbio? E o seu serviço? E os seus
escravos? Arnau lhe pediu que se calasse e concordou em partir no mesmo
dia, com a condição de que Joan os acompanhasse.
— Por quê? — perguntou Joan.
— Porque tenho a impressão de que precisarei dos seus ofícios.
Elionor e seu mordomo partiram a cavalo, ela com as duas pernas para
o mesmo lado da cavalgadura e acompanhada de um cavalariço a pé que
segurava as rédeas. O escrivão e duas donzelas iam montados em mulas, e
uma dúzia de escravos puxava outros tantos burros de carga carregados
com os pertences da baronesa.
Arnau alugou uma carroça.
Quando a baronesa o viu aparecer extenuado, puxado por duas mulas e
carregando os poucos pertences de Arnau, Joan e Mar — Guillem e
Donaha ficaram em Barcelona —, suas pupilas soltaram tanto fogo que
podiam acender uma tocha. Aquela foi a primeira vez que olhou para
Arnau e sua nova família; tinham se casado diante do bispo e na presença
do rei e de sua esposa, e ela nem sequer olhara para eles.
Deixaram Barcelona escoltados pela guarda que o rei pusera à sua
disposição. Arnau e Mar na carroça. Joan caminhando ao seu lado. A
baronesa apressou o passo para chegar ao castelo o quanto antes. Eles
chegaram lá antes de o sol se pôr.
Erguido no alto de uma colina, o castelo era uma pequena fortaleza
onde até então residira um castelão. Camponeses e servos se somaram ao
séquito dos novos senhores, e a poucos metros do castelo mais de uma
centena de pessoas caminhava ao seu lado, perguntando-se quem seria
aquela personalidade vestida tão ricamente, mas naquela carroça que caía
aos pedaços.
— E agora, por que paramos? — perguntou Mar quando a baronesa
ordenou que parassem.
Arnau fez um gesto indicando que não sabia.
— Porque têm de nos entregar o castelo — respondeu Joan.
— E não deveríamos entrar para recebê-lo?
— Não. Os costumes gerais da Catalunha estabelecem outro
procedimento: o castelão deve deixar o castelo com sua família e serviçais
antes de entregá-lo. — As pesadas portas da fortaleza se abriram
lentamente, e o castelão saiu, seguido pela família e pelos serviçais.
Quando chegou perto da baronesa, entregou-lhe algo. — Era você quem
devia receber as chaves — disse Joan a Arnau.
— E para quê quero um castelo?
Quando a nova comitiva passou ao lado da carroça, o castelão dirigiu
um sorriso zombeteiro a Arnau e seus acompanhantes. Mar enrubesceu.
Até os serviçais os olharam diretamente nos olhos.
— Você não devia permitir isso — interveio Joan novamente. — Agora
você é o senhor. Eles lhe devem respeito, fidelidade...
— Ouça, Joan — Arnau o interrompeu —, vamos esclarecer uma coisa:
não quero nenhum castelo, não sou nem pretendo ser o senhor de ninguém
e penso em ficar neste lugar o tempo estritamente necessário para colocar
em ordem o que for preciso. Quando tudo estiver arrumado, voltarei a
Barcelona, e, se a senhora baronesa quiser viver no castelo, ele é dela, todo
dela.
Aquela foi a primeira vez em todo o dia em que Mar esboçou um
sorriso.
— Você não pode ir — insistiu Joan.
O sorriso de Mar desapareceu, e Arnau se virou para o frade.
— Não posso o quê? Eu não sou o barão? Por acaso os barões não
partem com o rei por meses e meses?
— Mas eles vão à guerra.
— Com o meu dinheiro, Joan, com o meu dinheiro. Parece que é mais
importante a minha presença do que a desses barões que só sabem pedir
empréstimos baratos. Bem — acrescentou —, e agora, o que estamos
esperando? O castelo está vazio e estou cansado.
— Ainda falta... — começou Joan.
— Você e as leis — interrompeu-o. — Por que vocês, os dominicanos,
precisam aprender as leis? O que falta ago...
— Arnau e Elionor, barões de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de
Montbui! — Os gritos ressoaram pelo vale que se estendia ao pé da colina.
Todos elevaram os olhos para o torreão mais alto da fortaleza, onde o
mordomo de Elionor se esganiçava. — Arnau e Elionor, barões de
Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui! Arnau e Elionor...!
— Faltava o anúncio de que o castelo foi tomado — completou Joan.
A comitiva se pôs em marcha novamente.
— Pelo menos dizem o meu nome.
O mordomo continuava a gritar.
— Se não fosse assim, não seria legal — esclareceu o frade.
Arnau ia dizer algo, mas se limitou a balançar a cabeça.

***

O interior da fortaleza, como era costume, crescera de maneira


desordenada por trás das muralhas e em volta da albarrã, à qual fora
anexado um edifício composto por uma enorme sala, cozinha, despensa e
cômodos no andar superior. Afastadas do conjunto, diversas construções se
destinavam a alojar os serviçais e os poucos soldados que compunham a
guarnição do castelo.
Foi o oficial da guarda, um homem baixo, gordo, desastrado e sujo,
quem teve de fazer as honras a Elionor e seu séquito. Todos entraram no
grande salão.
— Mostre-me os aposentos do castelão — gritou Elionor.
O oficial lhe indicou uma escada de pedra adornada por uma
balaustrada simples e também de pedra, e a baronesa, seguida pelo
soldado, pelo mordomo, pelo escrivão e pelas donzelas, começou a subir.
Em nenhum momento ela se dirigiu a Arnau.
Os três Estanyol permaneceram no salão enquanto os escravos
depositavam nele os pertences de D. Elionor.
— Talvez você devesse... — começou Joan, virando-se para o irmão.
— Não se intrometa, Joan — Arnau o interrompeu.
Eles se dedicaram a inspecionar a sala: seu alto teto, a lareira enorme,
os sofás, os candelabros e a mesa para uma dúzia de pessoas. Pouco
depois, o mordomo de Elionor apareceu na escada. No entanto, não chegou
a pisar na sala; parou três degraus acima dela.
— A senhora baronesa diz que está muito cansada e que esta noite não
deve ser incomodada.
O mordomo começava a dar meia-volta quando Arnau o deteve:
— Ei! — gritou. O mordomo se virou. — Diga à sua senhora que não se
preocupe, que ninguém a incomodará... Nunca — sussurrou. Mar abriu os
olhos e levou as mãos à boca. O mordomo deu meia-volta outra vez, mas
Arnau o deteve novamente. — Ei! — gritou —, quais são os nossos
quartos? — O homem encolheu os ombros. — Onde está o oficial?
— Atendendo à senhora.
— Pois suba até onde está a senhora e mande descer o oficial. E ande
logo, ou cortarei os seus testículos e, da próxima vez que anunciar a
tomada de um castelo, você o fará trinando.
O mordomo, agarrado à balaustrada, hesitou. Aquele era o mesmo
homem que aguentara todo o dia em uma carroça? Arnau semicerrou os
olhos, se aproximou da escada e desembainhou o punhal de bastaix que
levara para o casamento. O mordomo não viu a ponta cega; quando Arnau
deu o terceiro passo, correu escada acima.
Arnau se virou. Viu Mar rir e o rosto displicente de Joan. Mas eles não
eram os únicos a sorrir: alguns escravos de Elionor haviam presenciado a
cena e também trocavam sorrisos.
— E vocês — Arnau exigiu —, descarreguem a carroça e levem as
coisas para os nossos cômodos.

***

Estavam instalados no castelo havia mais de um mês. Arnau tentara pôr


ordem em suas novas propriedades; contudo, sempre que se dedicava aos
livros de contas da baronia, terminava fechando-os com um suspiro.
Folhas rasgadas, números apagados e sobrescritos, dados contraditórios ou
falsos. Eram ininteligíveis, totalmente indecifráveis.
Uma semana depois de chegar a Montbui, Arnau começou a acalentar a
ideia de voltar a Barcelona e deixar as propriedades em mãos de um
administrador, mas enquanto tomava a decisão resolveu conhecê-las um
pouco mais; no entanto, em vez de buscar os nobres que lhe deviam
vassalagem e que em suas visitas ao castelo o desprezavam para se
prostrar aos pés de Elionor, ele se dirigiu aos comuns, aos camponeses,
aos servos de seus servos.
Acompanhado de Mar, saiu pelos campos, curioso. O que haveria de
verdade no que ouvira em Barcelona? Eles, os comerciantes da grande
cidade, muitas vezes baseavam suas decisões nas notícias que ouviam.
Arnau sabia que a epidemia de 1348 despovoara os campos, isso diziam, e
que no ano anterior ao que estavam, em 1358, uma praga de gafanhotos
piorara a situação ao arruinar as colheitas. A falta de recursos próprios
começou a se fazer notar no comércio, e os mercadores mudaram de
estratégia.
— Meu Deus! — murmurou quando o primeiro camponês entrou
correndo em sua masía para apresentar a família ao novo barão.
Como ele, Mar não conseguia tirar os olhos do edifício arruinado e dos
arredores, tão sujos e abandonados quanto o homem que os recebera e que
agora saía acompanhado da mulher e de duas crianças pequenas.
Os quatro se puseram em fila e, desajeitadamente, tentaram fazer uma
reverência. Havia medo em seus olhos. Suas roupas estavam puídas, e as
crianças... as crianças não conseguiam se manter em pé. Suas pernas eram
finas como espigas.
— Esta é a sua família? — perguntou Arnau.
O camponês começou a assentir quando, de dentro da masía, se ouviu
um choro fraco. Arnau franziu as sobrancelhas, e o homem fez que não
com a cabeça, lentamente; o medo em seus olhos converteu-se em tristeza.
— Minha mulher não tem leite, senhoria.
Arnau olhou para a mulher. Como aquele corpo podia ter leite?
Primeiro precisava ter peitos!
— E ninguém por aqui poderia...?
O camponês se adiantou.
— Estamos todos iguais, senhoria. As crianças estão morrendo.
Arnau notou que Mar levava as mãos à boca.
— Mostre-me a sua masía: o celeiro, os estábulos, a sua casa, os
campos.
— Não podemos pagar mais, senhoria!
A mulher caíra de joelhos e começara a se arrastar em direção a eles.
Arnau se aproximou dela e a tomou pelos braços. A mulher encolheu ao
contato.
— O que...?
As crianças começaram a chorar.
— Não bata nela, senhoria, eu lhe rogo — interveio o esposo, se
aproximando dele. — É verdade, não podemos pagar mais. Castigue-me.
Arnau soltou a mulher e se virou para Mar, que observava a cena de
olhos arregalados.
— Não vou bater nela — disse ao homem —, em você nem em
ninguém da família. Não lhes pedirei mais dinheiro. Só quero ver a sua
masía. Diga à sua esposa que se levante.
Primeiro foi medo, depois tristeza e agora estranheza; os dois cravaram
seus olhos fundos em Arnau com uma expressão de surpresa. “Por acaso
brincamos de deuses?”, pensou Arnau. “O que fizeram a esta família para
que reaja dessa maneira? Estavam deixando um dos filhos morrer e ainda
pensavam que alguém vinha até eles para pedir mais dinheiro.”
O celeiro estava vazio. O estábulo também. Os campos descuidados, as
ferramentas de cultivo danificadas e a casa... Se a criança não morresse de
fome, morreria de uma doença qualquer. Arnau não se atreveu a tocá-la,
parecia... parecia que ia se quebrar ao toque.
Pegou a bolsa do cinto e tirou umas moedas.
— Quero que esta criança sobreviva — disse, deixando o dinheiro sobre
o que, tempos atrás, devia ter sido uma mesa. — Quero que você, sua
esposa e seus filhos comam. Este dinheiro é para vocês, entendido?
Ninguém tem direito a ele, e, se tiverem algum problema, venham me ver
no castelo.
Eles não se mexeram; seus olhos estavam cravados nas moedas. Nem
foram capazes de desviá-los para se despedir de Arnau quando ele saiu da
casa.
Arnau voltou cabisbaixo para o castelo, sem dizer palavra, pensativo.
Mar compartilhou o seu silêncio.

***

— Todos estão na mesma situação, Joan — disse Arnau uma noite,


enquanto os dois passeavam a sós nas imediações do castelo. — Alguns
tiveram a sorte de ocupar masías desabitadas, de camponeses mortos ou
que simplesmente fugiram. E como não fugir? Estas terras agora são
bosques e pastos, o que lhes garante a sobrevivência quando as terras não
produzem. Mas os outros... os outros estão em situação calamitosa. Os
campos não produzem, e eles morrem de fome.
— Não é só isso — completou Joan. — Eu soube que os nobres, os seus
feudatários, estão obrigando os camponeses que restaram a assinar
capbreus.
— Capbreus?
— São documentos em que os camponeses reconhecem a vigência de
todos os direitos feudais que tinham caído em desuso em épocas de
bonança. Como restaram poucos homens, eles os sangram para conseguir
os mesmos benefícios de quando havia muitos e as coisas iam bem.
Havia várias noites Arnau dormia mal. Despertava sobressaltado depois
de ver aqueles rostos macilentos. No entanto, daquela vez não conseguiu
conciliar o sono. Percorrera as suas terras e tinha sido generoso. Como
podia admitir aquela situação? Todas as famílias dependiam dele; primeiro
de seus senhores, mas estes, por sua vez, eram feudatários de Arnau. Se
ele, como senhor destes últimos, lhes exigisse o pagamento de rendas e
regalias, os nobres transfeririam àqueles desgraçados as novas obrigações
que o castelão administrara com absoluta negligência.
Eram escravos, escravos da terra. Escravos de suas terras. Arnau se
encolheu no leito. Seus escravos! Um exército de homens, mulheres e
crianças famintos aos quais ninguém dava importância... exceto para
explorá-los até a morte. Ele recordou os nobres que tinham ido visitar
Elionor: sãos, fortes, vestidos luxuosamente, alegres! Como podiam dar as
costas à realidade de seus servos? O que ele podia fazer?
Ele era generoso. Dava dinheiro aos que necessitavam, uma miséria
para ele, mas causava alegria entre as crianças e fazia Mar, sempre ao seu
lado, sorrir. Mas aquilo não podia durar para sempre. Se continuasse a
distribuir dinheiro, seriam os nobres que se aproveitariam disso.
Continuariam a não lhe pagar e explorariam ainda mais os desgraçados. O
que podia fazer?

***

Arnau despertava cada dia mais pessimista, porém o ânimo de Elionor


estava muito diferente.
— Ela convocou nobres, camponeses e aldeões para a Virgem de
Agosto — explicou Joan ao irmão; na qualidade de dominicano, ele era o
único que mantinha algum contato com a baronesa.
— Para quê?
— Para que lhe rendam... rendam homenagem a vocês — retificou.
Arnau insistiu que ele continuasse. — Segundo a lei... — Joan abriu os
braços; “você pediu”, tentou dizer com o gesto — segundo a lei, qualquer
nobre, em qualquer momento, pode exigir dos vassalos que renovem o
juramento de fidelidade e reiterem a homenagem ao seu senhor. É lógico
que, por não tê-la recebido ainda, Elionor quer que o façam.
— Quer dizer que virão?
— Os nobres e cavaleiros não têm obrigação de comparecer a uma
convocação pública, desde que renovem a vassalagem em particular,
apresentando-se diante de seu novo senhor no prazo de um ano, um mês e
um dia, mas Elionor conversou com eles e parece que virão. Afinal de
contas, é pupila do rei. Ninguém quer enfrentar a pupila do rei.
— E o esposo da pupila do rei?
Joan não respondeu. No entanto, algo em seus olhos... Ele conhecia
aquele olhar.
— Você quer me dizer alguma coisa, Joan?
O frade fez que não com a cabeça.

***

Elionor ordenou que construíssem um palanque na esplanada aos pés do


castelo. Sonhava com o dia da Virgem de Agosto. Várias vezes vira nobres
e povoados inteiros prestarem vassalagem a seu tutor, o rei. Agora a
prestariam a ela, como a uma rainha, como a uma soberana em suas terras.
Não importava se Arnau estivesse ao seu lado. Todos sabiam que era a ela,
a pupila do rei, que se submetiam.
Sua ansiedade era tal, que, perto do dia marcado, se permitiu até sorrir
para Arnau; de longe e com um sorriso fraco, mas sorriu.
Arnau hesitou, e seus lábios devolveram uma careta.
“Por que sorri para ele?”, pensou Elionor. Apertou os punhos.
“Imbecil!”, insultou a si mesma. “Como você se humilha diante de um
vulgar cambista, um servo fugitivo?” Estavam havia mais de um mês e
meio em Montbui, e Arnau não se aproximara dela. Por acaso não era
homem? Quando ninguém a via, observava o corpo de Arnau, forte,
poderoso, e à noite, sozinha na alcova, se permitia sonhar que aquele
homem a montava com selvageria. Fazia quanto tempo não vivia aquelas
sensações? E ele a humilhava com seu desdém. Como se atrevia? Elionor
mordeu com força o lábio inferior. “Ele virá”, disse a si mesma.
No dia da festa da Virgem de Agosto, Elionor despertou ao amanhecer.
Da janela de seu quarto solitário, observou a esplanada dominada pelo
palanque. Os camponeses começavam a se aglomerar por ali; muitos não
tinham dormido para chegar a tempo. Ainda não tinha chegado nenhum
nobre.
40

O sol anunciou um dia esplêndido e quente. O céu límpido e sem nuvens,


semelhante ao que havia quase quarenta anos acolhera a celebração do
casamento de um servo da terra chamado Bernat Estanyol, parecia uma
cúpula azul acima de milhares de vassalos congregados em volta do
tablado. A hora se aproximava, e Elionor passeava nervosa pela imensa
sala do castelo de Montbui em seus melhores trajes de gala. Só faltavam
os nobres e cavaleiros! Joan, com o hábito preto, descansava em uma
cadeira, e Arnau e Mar, divertindo-se como se a coisa não fosse com eles,
trocavam olhares de cumplicidade a cada suspiro ansioso de Elionor.
Finalmente os nobres chegaram. Sem respeitar os procedimentos, tão
impaciente quanto a sua senhora, um servente de Elionor entrou no
cômodo para anunciá-los. A baronesa foi à janela e, ao se virar para os
presentes, seu rosto irradiava felicidade. Os nobres e cavaleiros de suas
terras chegavam com toda a pompa de que eram capazes. As vestimentas
luxuosas, as espadas e as joias se misturavam com o povo, dando uma nota
de cor e brilho às roupas cinzentas, tristes e puídas dos camponeses. Os
cavalos, guiados pelos cavalariços, foram reunidos atrás do palanque, e
seus relinchos romperam o silêncio com que os humildes acolheram os
senhores. Os serventes instalaram cadeiras luxuosas forradas de sedas de
cores vivas ao pé da construção, onde os nobres e seus cavaleiros jurariam
homenagem aos novos senhores. As pessoas instintivamente se afastaram
da última fila, deixando um espaço aberto entre elas e os privilegiados.
Elionor olhou novamente pela janela e sorriu ao ver a demonstração de
luxo e nobreza com que seus vassalos pensavam em recebê-la. Quando,
por fim, acompanhada de seu séquito familiar, sentou diante deles,
olhando-os a distância, sentiu-se uma verdadeira rainha.
O escrivão de Elionor, transformado em mestre de cerimônia, iniciou o
evento lendo o decreto de Pedro III pelo qual concedia como dote a
Elionor, pupila real, a baronia das honras reais de Granollers, Sant Vicenç
e Caldes de Montbui, com todos os seus vassalos, terras, rendas...
Enquanto o escrivão lia, Elionor se deleitava com suas palavras; se sentia
observada e invejada — até odiada, por que não? — pelos que até então
tinham sido vassalos do rei. Acima de tudo, deviam fidelidade ao príncipe,
mas, daquele momento em diante, entre eles e o rei havia um novo
patamar: ela. Arnau, pelo contrário, não prestava a menor atenção às
palavras do escrivão e se limitava a devolver os sorrisos que lhe dirigiam
os camponeses que tinha visitado e ajudado.
Misturadas aos plebeus e indiferentes ao que ali ocorria, duas mulheres
estavam vestidas de forma chamativa, como obrigava a sua condição de
mulheres públicas: uma era velha. A outra, madura mas bela, exibia seus
atributos de forma altaneira.
— Nobres e cavaleiros — gritou o escrivão, atraindo a atenção de
Arnau —, vós prestais homenagem a Arnau e Elionor, barões de
Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui?
— Não!
A negativa rasgou o céu. O castelão desalojado do castelo de Montbui
se pusera de pé e respondera com voz de trovão. Um murmúrio surdo
partiu da multidão postada atrás dos nobres; Joan moveu a cabeça como se
já o tivesse previsto, Mar se sentiu estranha diante de toda aquela gente,
Arnau não soube o que fazer, e Elionor ficou atônita e seu rosto perdeu a
cor.
O escrivão olhou para trás à espera de instruções de sua senhora e,
diante de seu silêncio, tomou a iniciativa:
— Vós vos recusais?
— Recusamo-nos — bradou o castelão, seguro de si. — Nem o rei pode
obrigar-nos a prestar homenagem a uma pessoa de condição inferior à
nossa. É a lei! — Joan balançou a cabeça com tristeza. Não quisera
informar Arnau. Os nobres tinham enganado Elionor. — Arnau Estanyol
— continuou o castelão, se dirigindo ao escrivão aos gritos — é cidadão
de Barcelona, filho de um camponês fugitivo. Não prestaremos
homenagem ao filho fugitivo de um servo da terra, por mais que o rei lhe
tenha concedido as baronias que citou!
A mais jovem das mulheres ficou na ponta dos pés para ver o tablado.
A visão dos nobres sentados despertara a sua curiosidade, mas, ao ouvir o
castelão mencionar o nome de Arnau, cidadão de Barcelona e filho de
camponês, suas pernas começaram a fraquejar.
Com o murmúrio do povo ao fundo, o escrivão olhou para Elionor outra
vez. Arnau também o fez, mas a pupila real não se alterou. Estava
paralisada. Depois da primeira impressão, a surpresa se converteu em ira.
O seu rosto de branco passou a vermelho: ela tremia de raiva, e suas mãos,
agarradas aos braços da cadeira, pareciam querer atravessar a madeira.
— Por que você me disse que ele tinha morrido, Francesca? —
perguntou Aledis, a mais jovem das prostitutas.
— Ele é meu filho, Aledis.
— Arnau é seu filho?
Enquanto balançava a cabeça assentindo, Francesca fez um sinal a
Aledis para que baixasse a voz. Por nada no mundo queria que alguém
soubesse que Arnau era filho de uma mulher pública. Felizmente, as
pessoas que as rodeavam só prestavam atenção à disputa entre os nobres.
A discussão às vezes parecia se inflamar. Diante da passividade dos
demais, Joan decidiu intervir.
— Podeis estar com a razão — afirmou ele, de pé atrás da baronesa
ultrajada —, podeis negar-vos à homenagem, mas isso não abole a
obrigação de prestar serviços aos vossos senhores e assinar o direito que
lhes corresponde. É a lei! Estais dispostos a fazê-lo?
Enquanto o castelão, consciente de que o dominicano tinha razão,
olhava para seus companheiros, Arnau chamou Joan com um gesto.
— O que significa isso? — perguntou-lhe em voz baixa.
— Significa que eles honram seu compromisso. Não rendem
homenagem a...
— A uma pessoa de condição inferior — ajudou-o Arnau. — Você sabe
que isso nunca me preocupou.
— Não lhe prestam homenagem nem se submetem a você como
vassalos, mas a lei os obriga a seguir prestando serviços e a assinar o seu
direito, a reconhecer as terras e honras que possuem graças a você.
— Algo como os capbreus que eles fizeram os camponeses assinar?
— Algo assim.
— Nós assinaremos como manda a lei — respondeu o castelão.
Arnau não deu atenção ao nobre. Nem olhou para ele. Pensava: aí está a
solução para a miséria dos camponeses. Joan continuava inclinado sobre
ele. Elionor já não contava; seus olhos fitavam as ilusões perdidas, para
além do espetáculo.
— Isso quer dizer — perguntou Arnau a Joan — que mesmo que não
me reconheçam como seu barão eu continuo a mandar e eles têm de me
obedecer?
— Sim. Eles só honram o compromisso.
— Está bem — disse Arnau, se levantando lentamente e chamando o
escrivão com um gesto. — Você está vendo o espaço que há entre os
senhores e o povo? — perguntou quando ficou ao seu lado. — Quero que
vá até lá e repita palavra por palavra, o mais alto que puder, o que vou
dizer. Quero que todos se inteirem do que vou dizer! — Enquanto o
escrivão se encaminhava para o espaço vazio atrás dos nobres, Arnau deu
um único sorriso para o castelão, que aguardava uma resposta ao seu
compromisso de assinar conforme a lei. — Eu, Arnau, barão de
Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui...!
Arnau esperou que o escrivão vozeasse suas palavras:
— Eu, Arnau — repetiu —, barão de Granollers, Sant Vicenç e Caldes
de Montbui...
— ... declaro proscritos de minhas terras todos os costumes conhecidos
como maus usos...
— ... declaro proscritos...
— Você não pode fazer isso! — gritou um dos nobres interrompendo o
escrivão.
Diante das palavras dos nobres, Arnau olhou para Joan procurando a
confirmação de suas faculdades.
— Sim, eu posso — Arnau se limitou a responder quando Joan assentiu.
— Recorreremos ao rei! — gritou outro.
Arnau deu de ombros. Joan se aproximou dele.
— Você já pensou no que acontecerá com essa pobre gente se você lhes
der esperanças e depois o rei o contradisser?
— Joan — respondeu Arnau com uma autoconfiança que até então
nunca tivera —, é provável que eu não saiba nada sobre honra, nobreza ou
cavalaria, mas conheço as anotações em meu livro sobre os empréstimos à
sua majestade; aliás — acrescentou sorrindo —, consideravelmente
incrementados para a campanha de Maiorca depois de meu matrimônio
com a sua pupila. Isto eu sei. Garanto a você que o rei não vai me
contradizer.
Arnau olhou para o escrivão e lhe pediu que prosseguisse:
— ... declaro proscritos de minhas terras todos os costumes conhecidos
como maus usos... — gritou o escrivão.
— Declaro derrogado o direito de intestia, pelo qual o senhor tem
direito a herdar parte dos bens de seus vassalos. — Arnau continuou a
falar clara e lentamente, para que o escrivão repetisse suas palavras. O
povo escutava em silêncio, ao mesmo tempo incrédulo e esperançoso. —
O de cugutia, pelo qual os senhores se apropriam da metade ou da
totalidade dos bens da adúltera. E o de exorquia, pelo qual recebem parte
dos bens dos camponeses casados que falecem sem filhos. E o de ius
maletractandi, pelo qual os senhores podem maltratar à vontade os
camponeses e apropriar-se de seus pertences. — O silêncio acompanhava
as palavras de Arnau, tanto que o próprio escrivão se calou ao perceber
que a multidão ali congregada podia ouvir sem problemas o discurso de
seu senhor. Francesca se agarrou ao braço de Aledis. — E o de arsia, pelo
qual o camponês tem obrigação de indenizar o senhor pelo incêndio de
suas terras. O direito de firma de espoli forzada, pelo qual o senhor pode
deitar-se com a noiva em sua primeira noite...
O filho não viu, mas, entre a multidão que começava a se mover
alegremente à medida que captava a seriedade de suas palavras, uma
velha, sua mãe, se soltou de Aledis e levou as mãos ao rosto. Aledis
entendeu tudo imediatamente. As lágrimas assomaram em suas pupilas, e
ela abraçou a sua patroa. Enquanto isso, os nobres e cavaleiros, ao pé do
palanque de onde Arnau libertava os seus vassalos, discutiam a melhor
maneira de resolver aquilo com o rei.
— Declaro proscritos quaisquer outros serviços a que até agora os
rústicos estiveram obrigados e que não sejam o pagamento do imposto
justo e legítimo sobre suas terras. Declaro-os livres para cozinhar o
próprio pão, ferrar seus animais e consertar suas ferramentas em suas
próprias forjas. Às mulheres, às mães, declaro-as livres para negar-se a
amamentar gratuitamente os filhos de seus senhores — a velha, perdida
em suas lembranças, não conseguia conter o choro —, bem como para
negar-se a servir gratuitamente nas casas de seus senhores. Libero-os da
obrigação de presentear seus senhores no Natal e de trabalhar
gratuitamente em suas terras.
Arnau, olhando para além dos nobres preocupados, ficou em silêncio
um instante observando a multidão que esperava ouvir determinadas
palavras. Faltava um! As pessoas sabiam e esperavam inquietas diante do
repentino silêncio de Arnau. Faltava um!
— Declaro-os livres! — gritou finalmente.
O castelão gritou e ergueu o punho em direção a Arnau. Os nobres que
o acompanhavam gesticularam e gritaram também.
— Livres! — soluçou a velha entre os gritos da multidão.
— No dia de hoje, em que nobres se negaram a prestar homenagem à
pupila do rei, os camponeses que trabalham as terras que compõem as
baronias de Granollers, San Vicenç e Caldes de Montbui serão iguais aos
camponeses da Catalunha nova, iguais aos da baronia de Entença, de
Conca del Barberà, do campo de Tarragona, do condado de Prades, da
Segarra ou da Garriga, do marquesado de Aytona, do território de Tortosa
ou do campo de Urgell... iguais aos camponeses de qualquer das dezenove
regiões desta Catalunha conquistada com o esforço e o sangue de seus
pais. Vocês são livres! São camponeses, mas nestas terras nunca mais
voltarão a ser servos da terra, nem seus filhos e netos o serão!
— Nem suas mães — sussurrou Francesca para si mesma —, nem suas
mães — repetiu, antes de cair no choro outra vez e se amparar em Aledis,
que estava com os nervos à flor da pele.
Arnau teve de deixar o palanque para evitar que o povo se jogasse em
cima dele. Joan ajudou Elionor, incapaz de caminhar sozinha. Atrás deles,
Mar tentava controlar a emoção, que parecia a ponto de explodir em seu
peito.
A esplanada começou a se esvaziar quando Arnau e seu séquito
partiram em direção ao castelo. Os nobres, depois de combinar como
levariam o assunto ao rei, partiram a galope, sem respeitar quem ia pelo
caminho, e obrigavam as pessoas a saltar para os campos para não serem
atropeladas pelos cavaleiros raivosos. Os camponeses iniciaram a lenta
marcha de volta ao lar com um sorriso no rosto.
Só duas mulheres permaneceram quietas na esplanada.
— Por que você me enganou? — perguntou Aledis.
Desta vez a velha se virou para ela.
— Porque você não o merecia... e ele não devia viver ao seu lado. Você
não foi chamada para ser esposa dele — Francesca não hesitou: disse-o
friamente, tão friamente quanto sua voz rouca permitia.
— Você realmente pensa que eu não o merecia? — perguntou Aledis.
Francesca enxugou as lágrimas e recuperou a energia e a firmeza que
lhe haviam permitido levar adiante o seu negócio durante todos aqueles
anos.
— Por acaso você não vê no que ele se transformou? Por acaso não
ouviu o que ele fez? Você acha que a vida dele teria sido a mesma ao seu
lado?
— A história do meu marido e...
— Mentira.
— E que me procuravam...
— Também. — Aledis franziu a testa e observou Francesca. — Você
também mentiu para mim, lembra?
— Eu tinha meus motivos.
— E eu tinha os meus.
— Atrair-me para seu negócio... Agora eu entendo.
— Esse não foi o único, mas reconheço que sim. Você tem alguma
queixa? Quantas moças ingênuas você mesma não enganou?
— Isso não teria sido necessário se você...
— Quero lembrar que a decisão foi sua. — Aledis hesitou. — Outras,
como eu, não tiveram escolha.
— Foi muito duro, Francesca. Chegar a Figueras, arrastar-me,
submeter-me, para quê?
— Você vive bem, melhor do que muitos nobres que estavam aqui hoje.
Nada lhe falta.
— Minha honra.
Francesca esticou ao máximo seu corpo cansado. Então enfrentou
Aledis.
— Escute, Aledis, eu não entendo de moral nem de honra. Você me
vendeu a sua. A minha foi roubada quando eu era uma menina. Ninguém
me permitiu escolher. Hoje chorei o que não me permiti chorar em toda a
minha vida, e foi suficiente. Somos o que somos e de nada adianta, nem a
você nem a mim, recordar como chegamos aqui. Deixe que outros briguem
pela honra. Você os viu hoje. Quem dos que estavam perto de nós pode
falar de honra ou moral?
— Talvez agora, sem os maus usos...
— Não se iluda, continuarão a ser uns desgraçados sem ter onde cair
mortos. Lutamos muito para chegar ao ponto em que estamos; esqueça a
honra: ela não foi feita para o povo.
Aledis olhou em volta e viu as pessoas. Tinham sido libertadas dos
maus usos, mas continuavam a ser os mesmos homens e mulheres sem
esperança, as mesmas crianças famintas, descalças e seminuas. Balançou a
cabeça e abraçou Francesca.
41

“Arnau, você não vai me deixar aqui!”


Elionor desceu a escada furiosa. Arnau estava sentado à mesa do salão
assinando os documentos em que anulava os maus usos em suas terras.
“Assim que assinar, eu vou partir”, dissera a Joan. O frade e Mar, atrás de
Arnau, observavam a cena.
Arnau terminou de assinar e enfrentou Elionor. Devia ser a primeira vez
que se falavam desde que tinham se casado. Arnau não se levantou.
— Por que lhe interessa que eu fique?
— Como você quer que eu fique em um lugar onde me humilharam
dessa maneira?
— Vou falar de outra maneira então: por que você teria interesse em me
seguir?
— Você é meu esposo! — Sua voz saiu estridente. Tinha pensado mil
vezes: não podia ficar, mas tampouco podia voltar para a corte do rei.
Arnau fez uma expressão de desgosto. — Se você for, se me deixar —
acrescentou Elionor —, vou recorrer ao rei.
As palavras ressoavam nos ouvidos de Arnau. “Recorreremos ao rei!”,
tinham ameaçado os nobres. Achava que podia resolver o ataque dos
nobres, mas... Olhou os documentos que acabara de assinar. Se Elionor,
sua própria esposa, a pupila real, se somasse às queixas dos nobres...
— Assine — disse ele, colocando os documentos diante dela.
— Por que eu deveria fazê-lo? Se você anular os maus usos, ficaremos
sem renda.
— Assine e você viverá em um palácio na Rua de Montcada, em
Barcelona. Não precisará dessas rendas. Você terá todo o dinheiro que
quiser.
Elionor se aproximou da mesa, tomou a pena e se debruçou sobre os
documentos.
— Que garantia tenho de que cumprirá sua palavra? — perguntou ela
de repente, se virando para Arnau.
— A de que, quanto maior a casa, menos a verei. Essa é a garantia. A de
que, quanto melhor viva, menos me perturbará. São garantias suficientes?
Não tenho a intenção de dar-lhe outras.
Elionor olhou os que estavam atrás de Arnau. A moça estava sorrindo?
— Eles viverão conosco? — perguntou, apontando para eles com a
pena.
— Viverão.
— Ela também?
Mar e Elionor cruzaram um olhar gélido.
— Por acaso não fui suficientemente claro, Elionor? Vai assinar?
Assinou.

***

Arnau não esperou que Elionor fizesse seus preparativos; naquele mesmo
dia, ao entardecer, para evitar o calor de agosto, partiu para Barcelona em
uma carroça alugada, da mesma forma como tinha chegado ali.
Nenhum deles olhou para trás quando a carroça cruzou as portas do
castelo.
— Por que temos de viver com ela? — perguntou Mar a Arnau.
— Não posso ofender o rei, Mar. Nunca se sabe qual será a resposta de
um monarca.
Mar permaneceu calada por um tempo, pensativa.
— Por isso você lhe ofereceu aquilo tudo?
— Não... bem, também, mas a razão principal foram os camponeses.
Não quero que se queixe. Supostamente o rei nos concedeu rendas para
viver, mesmo que, na verdade, elas não existam ou sejam mínimas. Se ela
recorrer ao rei dizendo que por meus atos eu dilapidei as suas rendas,
talvez ele possa anular as minhas ordens.
— O rei? Por que o rei faria...?
— Você deve saber que há alguns anos o rei ditou uma pragmática
contra os servos da terra, e até contra os privilégios que ele mesmo e seus
antecessores haviam concedido às cidades. A Igreja e os nobres exigiram
que tomasse medidas contra os camponeses que fugiam e deixavam as
terras baldias... e ele assim fez.
— Não pensei que fosse capaz disso.
— Ele é só um nobre, Mar, o primeiro entre eles.
Passaram a noite em uma masía nas redondezas de Montcada. Arnau
pagou generosamente aos camponeses. Se levantaram ao alvorecer e
entraram em Barcelona antes do horário mais forte do sol.
— A situação é dramática, Guillem — contou Arnau quando ficaram a
sós depois de se cumprimentarem e trocarem explicações. — O principado
está muito pior do que imaginávamos. Aqui só chegam as notícias, mas é
preciso ver o estado dos campos e das terras. Não aguentaremos.
— Há muito tempo tomo medidas nesse sentido. — Guillem o
surpreendeu. Arnau o instou a prosseguir. — A crise é grave e estava a
caminho; já falamos disso uma vez. A nossa moeda se desvaloriza
constantemente nos mercados estrangeiros, mas o rei não adota nenhuma
medida aqui na Catalunha, e temos de suportar paridades insustentáveis. O
município está se endividando cada vez mais para financiar toda a
estrutura que se criou em Barcelona. As pessoas não obtêm lucros do
comércio e procuram lugares mais seguros para seu dinheiro.
— E o nosso?
— Está fora. Em Pisa, Florença, até em Gênova. Lá ainda é possível
comerciar com câmbios lógicos. — Os dois ficaram em silêncio por um
momento. — Castelló decidiu se declarar abatut — acrescentou Guillem,
rompendo a paz. — O desastre está começando.
Arnau se lembrou do cambista gordo, sempre suarento e simpático.
— O que aconteceu?
— Não soube ser prudente. As pessoas começaram a reclamar a
devolução de seus depósitos, e ele não pôde fazê-lo.
— Ele conseguirá pagar?
— Creio que não.

***

No dia 29 de agosto, o rei desembarcou vitorioso da campanha em


Maiorca contra Pedro, o Cruel, que fugiu para Ibiza depois de tomá-la e
saqueá-la assim que a frota catalã chegou às ilhas.
Um mês depois, quando Elionor chegou, os Estanyol, incluindo
Guillem, apesar de sua oposição inicial, se mudaram para o palácio da Rua
de Montcada.
O rei concedeu audiência ao castelão de Montbui dois meses depois. No
dia anterior, enviados de Pedro III solicitaram um novo empréstimo à
mesa de Arnau. Concedido o empréstimo, o rei despediu o castelão e
manteve as ordens de Arnau.
Passados outros dois meses, transcorridos os seis que a lei concedia ao
abatut para pagar suas dívidas, o cambista Castelló foi decapitado diante
de sua mesa de câmbio na Praça dels Canvis. Todos os cambistas da cidade
foram obrigados a presenciar a execução na primeira fila. Arnau viu a
cabeça de Castelló se separar do tronco depois do golpe certeiro do
verdugo. Queria fechar os olhos como muitos fizeram, mas não conseguiu.
Tinha de ver aquilo. Era um chamado à prudência que nunca devia
esquecer, disse a si mesmo enquanto o sangue corria pelo cadafalso.
42

Ele a via sorrir. Arnau continuava a ver sua Virgem sorrir, e a vida lhe
sorria também. Fizera quarenta anos, e, apesar da crise, seus negócios
funcionavam e proporcionavam grandes lucros, parte dos quais ele
destinava aos necessitados ou a Santa Maria. Com o tempo, Guillem
terminou por lhe dar razão: o povo pagava e devolvia os empréstimos,
moeda por moeda. Sua igreja, o templo do mar, continuava a crescer com
a construção da terceira abóbada central e dos campanários octogonais que
ladeavam a entrada principal. Santa Maria estava repleta de artesãos:
marmoristas e escultores, pintores, vidraceiros, carpinteiros e ferreiros.
Havia até um organista, cujo trabalho Arnau acompanhava atentamente.
Ele se perguntava frequentemente como soaria a música naquele templo
majestoso. Depois da morte do arquidiácono Bernat Llull e da passagem
dos cônegos, quem ocupava o cargo era Pere Salvete de Montirac, com
quem Arnau tinha boas relações. O grande mestre Berenguer de Montagut
e seu sucessor, Ramon Despuig, também haviam falecido. Agora o
encarregado da direção das obras do templo era Guillem Metge.
Mas Arnau não tratava só com as autoridades de Santa Maria. Sua
situação econômica e sua nova condição o levavam a confraternizar com
os conselheiros da cidade, os pró-homens e os membros do Conselho de
Cento. Sua opinião era levada em conta, e os comerciantes e mercadores
escutavam seus conselhos.
— Você deve aceitar o cargo — aconselhou-o Guillem.
Arnau estava pensativo. Acabavam de lhe oferecer um dos dois postos
de cônsul do Mar de Barcelona, o máximo representante do comércio na
cidade, juiz nas disputas mercantis com jurisdição própria, independente
de qualquer outra instituição de Barcelona, árbitro de todos os problemas
no porto ou entre seus trabalhadores e responsável pelo cumprimento das
leis e costumes do comércio.
— Não sei se posso...
— Não há ninguém melhor do que você, Arnau, escute o que estou lhe
dizendo — sustentou Guillem. — Você pode. É claro que pode.
Aceitou ser um dos novos cônsules ao término do mandato dos
anteriores.
Santa Maria, seus negócios, as futuras novas obrigações como cônsul
do Mar: tudo isso criou em torno de Arnau uma muralha atrás da qual o
bastaix se sentia cômodo, e, quando voltava para seu novo lar no palácio
da Rua de Montcada, ele não percebia o que acontecia por trás daquela
fachada.
Arnau cumpriu todas as promessas feitas a Elionor, e sua relação,
distante e fria, se limitava ao imprescindível para a convivência. Enquanto
isso, Mar fizera vinte anos esplendorosos e continuava a se negar a
contrair matrimônio. “Por que vou fazê-lo se tenho Arnau para mim? O
que ele faria sem mim? Quem o descalçaria? Quem o atenderia ao voltar
do trabalho? Quem conversaria com ele e escutaria seus problemas?
Elionor? Joan, cada vez mais dedicado aos estudos? Os escravos? Ou
Guillem, com quem passa a maior parte do dia?”, pensava a moça.
Todos os dias ela esperava impaciente a volta de Arnau. Sua respiração
se acelerava ao ouvir suas batidas nos portões, e o sorriso lhe voltava aos
lábios quando corria para esperá-lo no alto da escada que levava aos
andares nobres. Porque durante o dia, quando Arnau não estava, sua vida
era um suplício monótono e constante.
— Nada de perdiz! — ressoou nas cozinhas. — Hoje comeremos vitela.
Mar se virou para a baronesa, de pé na entrada da cozinha. Arnau
gostava de perdiz. Ela tinha ido comprá-las com Donaha. Ela mesma as
escolhera, pendurara-as em uma bancada na cozinha e verificara seu
estado cada dia. Finalmente decidira que já estavam no ponto e, de manhã
cedo, descera à cozinha para prepará-las.
— Mas... — tentou argumentar Mar.
— Vitela — interrompeu-a Elionor, atravessando-a com o olhar.
Mar olhou para Donaha, mas a escrava respondeu encolhendo os
ombros imperceptivelmente.
— Sou eu quem decide o que se come nesta casa — continuou a
baronesa, se dirigindo aos escravos na cozinha. — Nesta casa mando eu!
Depois desse último grito, deu meia-volta e foi embora.
Naquele dia, Elionor esperou para comprovar o resultado de seu
desplante. A moça recorreria a Arnau ou manteria a disputa em segredo?
Mar pensou a mesma coisa: devia contar a Arnau? O que ganharia se
contasse? Se Arnau ficasse do seu lado, discutiria com Elionor, e, na
verdade, ela era a senhora da casa. E se não ficasse do seu lado? Sentiu o
estômago encolher. E se não o fizesse? Uma vez Arnau dissera que não
deviam ofender o rei. E se Elionor se queixasse com o rei por sua causa? O
que diria Arnau?
Elionor deixou escapar um sorriso de desprezo por Mar no final do dia,
quando comprovou que Arnau continuava a tratá-la como sempre, sem lhe
dirigir a palavra. Com o tempo, o sorriso foi se convertendo em um
assédio constante. Elionor proibiu-a de acompanhar os escravos às
compras e de entrar nas cozinhas. Quando ela estava nas salas, colocava
escravos nas portas. “A senhora baronesa não deseja ser perturbada”,
diziam a Mar quando tentava entrar. Dia após dia Elionor encontrava
novas formas de importunar a moça.
O rei. Não deviam ofender o rei. Mar tinha aquelas palavras gravadas
na mente e as repetia a toda hora. Elionor continuava a ser a pupila e
poderia recorrer ao monarca a qualquer momento. Não seria por ela que
Elionor se ofenderia!
Mas ela estava muito enganada. Elionor não se satisfazia com as
intrigas domésticas. Suas pequenas vitórias se desvaneciam quando Arnau
voltava para casa e Mar pulava em seus braços. Os dois riam,
conversavam... e se roçavam. Arnau, sentado em uma cadeira e com Mar a
seus pés encantada com suas histórias, falava dos acontecimentos do dia,
das disputas na alfândega, dos câmbios, dos navios. Por acaso aquele não
devia ser o lugar da legítima esposa? Arnau e Mar ficavam à janela depois
do jantar, de braços dados e olhando a noite estrelada. Às suas costas,
Elionor apertava os punhos até cravar as unhas na palma das mãos; então a
dor a fazia reagir e, se levantando bruscamente, se retirava para seus
aposentos.
Solitária, pensava em sua situação. Arnau não a tocara desde que se
tinham casado. Ela acariciava o corpo, os seios... ainda estavam firmes! Os
quadris, a virilha, e, quando o prazer começava a chegar, sempre esbarrava
com a realidade: aquela moça... aquela moça ocupava o seu lugar!

***
— O que acontecerá quando meu esposo falecer?
Ela fez a pergunta diretamente, depois de sentar-se à mesa repleta de
livros. Depois tossiu; todo aquele escritório cheio de livros e papéis, a
poeira...
Reginald d’Area examinou a visitante com calma. Era o melhor
advogado da cidade, haviam dito a Elionor, um intérprete da lei
especializado nos Usatges da Catalunha.
— Tenho entendido que vós não tendes filhos com vosso esposo, não é
verdade? — Elionor franziu a testa. — Devo sabê-lo — insistiu
prudentemente. Todo ele, corpulento e de aspecto bonachão, com sua
cabeleira e barbas brancas, infundia segurança.
— Não, não tive.
— Imagino que vossa consulta se refira ao aspecto patrimonial.
Elionor se mexeu na cadeira, inquieta.
— Sim — respondeu por fim.
— Vosso dote será devolvido. Quanto ao patrimônio de vosso esposo,
ele pode dispor dele em testamento da maneira como lhe aprouver.
— Não me caberá nada?
— O usufruto dos bens durante um ano, o ano de luto.
— É só?
O grito conseguiu perturbar Reginald d’Area. Em que aquela mulher
estava pensando?
— Isso se deve ao vosso tutor, o rei Pedro — respondeu secamente.
— O que quer dizer?
— Antes de o vosso tutor subir ao trono, estava vigente na Catalunha
uma lei de Jaime I pela qual a viúva usufruía da herança do marido por
toda a vida enquanto vivesse honestamente. Mas os mercadores de
Barcelona e Perpignan são muito cuidadosos com seu patrimônio, até
quando se trata das esposas, e conseguiram um privilégio real pelo qual as
viúvas só desfrutariam durante o ano de luto e não teriam o usufruto. O
vosso tutor transformou esse privilégio em lei geral para todo o
principado...
Elionor não o ouvia e se levantou antes que o advogado terminasse sua
explicação. Tossiu novamente e passou os olhos pelo escritório. Para que
precisava de tantos livros? Reginald também se levantou.
— Caso necessiteis de algo mais...
Elionor, já de costas, se limitou a despedir-se com a mão.
Estava claro: precisava ter um filho de seu marido para garantir o seu
futuro. Arnau cumprira sua palavra, e Elionor conhecera outra forma de
vida: o luxo que vira na corte, mas que sempre estivera fora de seu alcance
devido aos numerosos controles dos tesoureiros reais. Agora gastava o que
queria, tinha tudo o que desejava. Mas se Arnau morresse... E a única coisa
que o impedia, a única que o mantinha afastado dela era aquela bruxa
voluptuosa. Se a bruxa não estivesse... se desaparecesse... Arnau se
renderia a ela! Como não seria capaz de seduzir um servo fugitivo?

***

Dias depois, Elionor chamou a seus aposentos o frade, o único dos


Estanyol com que tratava.
— Não posso acreditar! — respondeu Joan.
— Pois é assim, frei Joan — disse Elionor, com as mãos ainda no rosto.
— Desde que nos casamos, não pôs a mão em mim.
Joan sabia que não havia amor entre Arnau e Elionor, que dormiam em
quartos separados. E o que importava? Ninguém se casava por amor, e a
maioria dos nobres dormiam separados. Mas, se Arnau não tocara Elionor,
então não estavam casados.
— Vós conversastes sobre esse assunto?
Elionor afastou as mãos do rosto para mostrar olhos avermelhados que
imediatamente chamaram a atenção de Joan.
— Não me atrevo. Não saberia como fazê-lo. Além disso, creio... —
Elionor lançou suas suspeitas no ar.
— O que pensais?
— Que Arnau dá mais atenção a Mar que à própria esposa.
— Vós já sabeis que Arnau adora essa menina.
— Não me refiro a esse tipo de amor, frei Joan — insistiu, baixando a
voz. Joan se ergueu da cadeira. — Sim. Sei que é difícil acreditar, mas
estou convencida de que essa menina, como vós a chamais, tem outras
intenções com meu marido. É como ter o diabo na própria casa! — Elionor
conseguiu que sua voz tremesse. — As minhas armas, frei Joan, são as de
uma simples mulher que quer cumprir o que a Igreja impõe às mulheres
casadas, mas, cada vez que tento, vejo meu marido imerso em uma
voluptuosidade que o impede de prestar atenção em mim. Já não sei o que
fazer!
Por isso Mar não queria se casar! Seria verdade? Joan começou a
recordar: sempre estavam juntos, e ela se atirava em seus braços. E
aqueles olhares, e os sorrisos. Como fora estúpido! O mouro sabia, com
certeza sabia; por isso a defendia.
— Não sei o que vos dizer — desculpou-se.
— Tenho um plano... mas necessito da vossa ajuda e, sobretudo, do
vosso conselho.
43

Joan ouviu o plano de Elionor, e um calafrio percorreu o seu corpo.


— Preciso pensar — respondeu quando ela insistiu em sua dramática
situação matrimonial.
Naquela mesma tarde, Joan se trancou em seus aposentos. Deu uma
desculpa para se ausentar do jantar. Evitou Arnau e Mar. Evitou o olhar
inquisitivo de Elionor. O frei Joan parou diante dos livros de teologia
cuidadosamente arrumados em um armário. Neles devia estar a resposta
para seus problemas. Durante os anos que passara longe, ele não deixara
de pensar no irmão. Gostava de Arnau; ele e seu pai tinham sido a única
coisa que tivera na infância. No entanto, nesse carinho havia tantas dobras
quanto em seu hábito. Escondida nelas, havia uma admiração que, nos
piores momentos, tangenciava a inveja. Arnau, de sorriso franco e gesto
rápido, um menino que dizia falar com a Virgem. Frei Joan fez um gesto
de descontentamento ao recordar como tentara ouvir aquela voz. Agora
sabia que era quase impossível, que só uns poucos eleitos eram agraciados
com essa honra. Estudara e se disciplinara na esperança de ser um deles;
jejuara até quase perder a saúde, mas fora tudo em vão.
O frei Joan mergulhou nas doutrinas do bispo Hincmaro, nas de São
Leão Magno, nas do mestre Graciano, nas cartas de São Paulo e em muitas
outras.
Só a comunhão carnal entre os cônjuges, a coniunctio sexuum, pode
fazer o matrimônio espelhar a união de Cristo com a Igreja, objetivo
principal do sacramento: sem a carnalis copula não há matrimônio, dizia o
primeiro.
O casamento só é válido para a Igreja quando é consumado na cópula
carnal, dizia São Leão Magno.
Graciano, seu mestre na Universidade de Bolonha, sabia tudo sobre essa
doutrina que unia o simbolismo nupcial, o consentimento que os cônjuges
prestavam diante do altar, à cópula entre o homem e a mulher: a una caro.
Até São Paulo, na famosa Epístola aos Efésios, dizia: “Quem ama a sua
mulher, ama a si mesmo. Porque nunca ninguém odiou a sua própria
carne; antes a alimenta e sustenta, como também Cristo à Igreja. Por isso
deixará o homem seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher; e serão dois
numa só carne. Grande é este mistério; refiro-me, porém, a Cristo e à
Igreja.”
O frei Joan se dedicou aos ensinamentos e doutrinas dos grandes até
tarde da noite. O que procurava? Voltou a abrir um dos tratados. Até
quando negaria a verdade? Elionor tinha razão: sem cópula, sem união
carnal, não havia matrimônio. “Por que você não teve relações com ela?
Está vivendo em pecado. A Igreja não reconhece o seu matrimônio.” À luz
da tocha, releu Graciano devagar, acompanhando as letras com o dedo e
tentando encontrar o que sabia não existir. “A pupila real! O próprio rei
entregou-lhe sua pupila e você não se uniu a ela. O que diria o rei se
soubesse? Nem todo o seu dinheiro... isso é uma ofensa ao rei. Ele
entregou Elionor a você em matrimônio. Ele mesmo a conduziu ao altar, e
você ofendeu a graça que lhe foi concedida. E o bispo? O que diria o
bispo?”, insistiu com Graciano. E tudo por uma jovenzinha soberba que
não quis cumprir seu destino de mulher.
Joan procurou nos livros durante horas, mas sua mente divagava sobre
o plano de Elionor e as alternativas possíveis. Devia lhe dizer diretamente.
Então imaginava a si mesmo sentado diante de Arnau, talvez melhor de pé,
sim, ambos de pé... “Você deve deitar-se com Elionor. Você está vivendo
em pecado”, diria. E se ele se enfurecesse? Era barão da Catalunha, cônsul
do Mar. Quem era ele para lhe dizer alguma coisa? Voltou aos livros.
Maldita hora em que adotara aquela menina! Ela era a causa de todos os
seus problemas. Se Elionor estivesse certa, Arnau poderia se inclinar por
Mar e não pelo irmão. Mar era a culpada, a única culpada daquela
situação. Rejeitara todos os pretendentes para continuar a exibir sua
voluptuosidade diante de Arnau. Que homem resistiria? Era o diabo! O
diabo em forma de mulher, a tentação, o pecado. Por que ele arriscaria o
carinho do irmão se o diabo era ela? Ela era o diabo. A culpa era dela. Só
Cristo resistira às tentações. Arnau não era Deus, era um homem. Por que
os homens deviam sofrer por causa do diabo?
Joan mergulhou outra vez nos livros até encontrar o que procurava:

Veja como está impressa em nós essa má inclinação: a natureza humana em si mesma e por
sua corrupção original, sem outro estranho motivo ou instigação, se debruça sobre essa
vileza, e, se a bondade de Nosso Senhor não reprimisse essa natural inclinação, todo o
mundo cairia sujamente nessa vileza. Lemos que um menino pequeno e puro, criado por
santos ermitãos no deserto sem ter tido contato com mulher alguma, foi enviado à cidade
onde estavam seu pai e sua mãe. Assim que entrou no lugar onde estavam ambos,
perguntou aos que o tinham levado o que eram as coisas novas que via: como ali havia
mulheres belas e bem arrumadas, perguntou o que eram, e os santos ermitãos lhe disseram
que aquelas coisas eram diabos que perturbavam a todos. Como estava na casa do pai e da
mãe, os eremitas também questionaram o menino: “Olhe que quantidade de coisas belas e
novas você viu e que nunca vira. De que gostou mais?” E o menino respondeu: “De todas
as coisas belas que vi, as de que mais gostei são esses diabos que perturbam o mundo.” E
aqueles lhe disseram: “Oh, mesquinho! Você não ouviu dizer muitas vezes, e não leu, como
são maus os diabos e o mal que fazem, e que seu lugar é o inferno? Como, então, lhe
agradaram tanto quando os viu pela primeira vez?” Dizem que o garoto respondeu: “Ainda
que sejam coisas tão más e que façam tanto mal, e que no inferno estejam, não me
importariam todos esses males e não me importaria estar no inferno, contanto que estivesse
com diabos como esses. E agora sei que os diabos do inferno não são coisas tão más como
dizem. Agora sei que seria bom estar no inferno, pois tais diabos estão ali, e é com eles que
eu deveria estar. E que assim seja, eu junto a eles, Deus o queira.”

Joan terminou a leitura e fechou os livros quando o sol despontava. Não


se arriscaria. Ele não seria um santo ermitão que enfrenta o menino que
prefere o diabo. Não seria ele quem chamaria o irmão de mesquinho. Isso
diziam os livros, precisamente aqueles que Arnau comprara para ele. Sua
decisão não podia ser outra. Se ajoelhou no genuflexório de seu quarto sob
a imagem do Cristo crucificado e rezou.
Naquela noite, antes de cair no sono, pensou sentir um odor estranho,
um odor de morte que inundou seu quarto e quase o sufocou.

***

No dia de São Marcos, o Conselho de Cento e os pró-homens de Barcelona


elegeram Arnau Estanyol, barão de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de
Montbui, cônsul do Mar de Barcelona. Em procissão, como estabelecia o
Llibre de Consolat de Mar, aclamado pelo povo, Arnau e o segundo
cônsul, os conselheiros e os pró-homens da cidade percorreram Barcelona
até a alfândega, a sede do Consulado do Mar, um edifício na própria praia
que estava sendo reconstruído, a poucos metros da igreja de Santa Maria e
da mesa de câmbio de Arnau.
Os missatges, como se chamavam os soldados do consulado, lhe
prestaram homenagens; a comitiva entrou no palácio, e os conselheiros de
Barcelona entregaram a posse do edifício aos recém-eleitos. Assim que os
conselheiros deixaram o local, Arnau começou a exercer suas novas
funções. Um mercador reclamava o valor de um carregamento de pimenta
que caíra no mar ao ser descarregado por um jovem barqueiro. A pimenta
foi levada à sala de audiências, e Arnau comprovou pessoalmente o
estrago.
Ouviu os argumentos do mercador e do barqueiro e as testemunhas que
cada um levou ao julgamento. Conhecia pessoalmente o jovem barqueiro:
pouco tempo atrás pedira um crédito em sua mesa de câmbio. Acabara de
se casar; Arnau o felicitara e lhe dera os parabéns.
— Sentencio — a voz lhe tremeu — que o barqueiro deve pagar o preço
da pimenta. Assim o dispõe — Arnau leu o livro que o escrivão levou até
ele — o capítulo sessenta e dois dos costumes do Mar. — Acabara de lhe
pedir um crédito. Acabara de se casar em Santa Maria, como cabia aos
homens do mar. Ela estaria grávida? Arnau recordou o fulgor dos olhos da
jovem esposa do barqueiro no dia em que os felicitara. Pigarreou: — Você
tem...? — Pigarreou outra vez: — Você tem dinheiro?
Arnau afastou o olhar do jovem. Acabara de lhe conceder um crédito.
Teria sido para a casa? Para a roupa? Para os móveis, ou quem sabe para
esse barco? A negativa do jovem encheu os seus ouvidos.
— Então o condeno a... — O nó que se formou em sua garganta quase o
impediu de continuar. — Condeno-o à prisão até pagar a quantia devida.
Como poderia pagar sem trabalhar? Estaria grávida? Arnau se esqueceu
de bater na mesa com o martelete. Os missatges advertiram-no com o
olhar. Bateu. O jovem foi levado aos calabouços do consulado. Arnau
baixou os olhos.
— É preciso — disse o escrivão quando os interessados deixaram a
corte.
Arnau permaneceu quieto, sentado à direita do escrivão e ao centro da
imensa mesa que dominava a sala.
— Olhe — insistiu o escrivão, pondo diante dele outro livro, o
regulamento do consulado. — Aqui diz sobre as ordens de prisão: “Que
assim mostra seu poder, do maior para o menor.” Você é o cônsul do Mar e
deve mostrar o seu poder. Nossa prosperidade, a da nossa cidade, depende
disso.
Naquele dia não foi necessário mandar mais ninguém para a prisão,
mas ele teve de fazê-lo muitas outras vezes. A jurisdição do cônsul do Mar
abarcava todos os assuntos relacionados ao comércio — preços, salários
dos marinheiros, a segurança dos navios e das mercadorias — e quaisquer
outros que tivessem relação com o mar. Desde que tomou posse do cargo,
Arnau se transformou em uma autoridade independente do juiz e do
veguer; ditava sentenças, embargava, executava bens dos devedores,
encarcerava... e tudo com um exército às suas ordens.
Enquanto ele se via obrigado a encarcerar jovens barqueiros, Elionor
chamou Felip de Ponts, um cavaleiro que conhecera em seu primeiro
matrimônio e que em várias ocasiões recorrera a ela para que intercedesse
com Arnau, a quem devia uma considerável quantia que não tinha como
pagar.
— Tentei tudo o que estava ao meu alcance, D. Felip — mentiu Elionor
quando ele se apresentou diante dela —, mas foi totalmente impossível.
Em breve vossa dívida será executada.
Felip de Ponts, um homem grande e forte com uma frondosa barba
loura e olhos pequenos, empalideceu ao ouvi-la. Se executassem a dívida,
perderia suas poucas terras... e até seu cavalo de guerra. Um cavaleiro não
era nada sem terras para se manter e sem cavalo para guerrear.
Felip de Ponts se colocou de joelhos.
— Eu vos rogo, senhora — suplicou. — Tenho certeza de que, se vós o
desejardes, vosso marido postergará a decisão. Se ele executar a dívida,
minha vida ficará sem sentido. Fazei por mim! Pelos velhos tempos!
De pé diante do cavaleiro ajoelhado, Elionor o fez implorar por alguns
instantes. Fingiu pensar.
— Levantai-vos — ordenou. — Talvez haja uma possibilidade...
— Eu vos rogo! — repetiu Felip de Ponts antes de se erguer.
— É muito arriscado.
— Farei o que for preciso! Não temo nada. Lutei com o rei em to...
— Trata-se de sequestrar uma moça — soltou Elionor.
— Não... não vos estou entendendo — balbuciou o cavaleiro após um
momento de silêncio.
— Entendestes perfeitamente — replicou Elionor. — Trata-se de
sequestrar uma moça e, além disso... deflorá-la.
— Isso é castigado com a morte!
— Nem sempre.
Elionor ouvira falar disso. Nunca quisera perguntar, e menos agora,
com seu plano em mente, e então esperou que o dominicano esclarecesse
suas dúvidas.
— Procuramos alguém que a rapte — soltou ela. Joan arregalou os
olhos. — Que a viole. — Joan levou a mão ao rosto. — Tenho entendido
— prosseguiu — que os Usatges declaram que, se a moça ou seus pais
consentirem no matrimônio, não há pena para o violador. — Joan
continuava com a mão no rosto, mudo. — Isso é verdade, frei Joan? É
verdade? — insistiu, ante o silêncio do frade.
— Sim, mas...
— É ou não é?
— É — confirmou Joan. — A defloração ilícita é penalizada com o
desterro perpétuo se não houver violência, e com a morte se houver. Mas,
se o matrimônio for autorizado ou o violador propuser um marido que
aceite a moça e tenha um valor semelhante ao dela, não há pena.
Elionor esboçou um sorriso que tentou ocultar assim que Joan se virou
para dissuadi-la. Ela adotou a postura de uma mulher desonrada.
— Não sei, mas vos asseguro que estou disposta a fazer qualquer
barbaridade para recuperar meu esposo. Procuramos alguém que a rapte —
repetiu —, que a viole, e depois consentimos no matrimônio. — Joan
balançou a cabeça. — Que diferença faz? — insistiu Elionor. —
Poderíamos entregar Mar em matrimônio se Arnau não estivesse tão
cego... tão obcecado por essa jovem. Vós a entregaríeis em matrimônio se
Arnau o permitisse. A única coisa que faremos será impedir a perniciosa
influência dessa mulher sobre meu esposo. Seremos nós que escolheremos
o futuro esposo de Mar; como se a entregássemos em matrimônio, mas
sem contar com a aquiescência de Arnau. Não se pode contar com ele, está
louco, fora de si por causa dessa jovem. Vós conheceis algum pai que
permita à filha envelhecer solteira? Por mais dinheiro que tenha. Por mais
nobre que seja. Conheceis algum? Até o rei me entregou contra... sem
ouvir a minha opinião.
Joan foi cedendo ante as razões de Elionor, que aproveitou a
ingenuidade do frade para insistir diversas vezes na precariedade de sua
situação, no pecado que se cometia naquela casa. Joan prometeu pensar... e
o fez. Felip de Ponts obteve sua aprovação. Sob certas condições, mas
obteve.
— Nem sempre — repetiu Elionor.
Os cavaleiros eram obrigados a conhecer os Usatges.
— Vós afirmais que a moça consentiria no matrimônio? Por que não se
casa, então?
— Seus tutores consentiriam.
— Por que não a entregam em matrimônio?
— Isto não nos compete — cortou-o Elionor; “essa”, pensou, “será a
minha tarefa... e do fradezinho”.
— Vós me pedis que rapte uma moça e me dizeis que o motivo não é de
minha alçada. Senhora, vós vos equivocastes comigo. Serei devedor, mas
sou cavaleiro...
— É minha pupila. — Felip de Ponts ficou surpreso. — Sim. Estou
falando de minha pupila, Mar Estanyol.
Felip de Ponts se lembrou da menina que Arnau tinha adotado. Ele a
vira uma vez na mesa de câmbio de seu pai e até tivera uma agradável
conversa com ela um dia ao visitar Elionor.
— Quereis que rapte e viole a vossa própria pupila?
— Parece-me, D. Felip, que me expressei com bastante clareza. Eu vos
asseguro que o delito não será castigado.
— Que motivo...?
— Os motivos são assunto meu! Bem, o que decidistes?
— O que ganharia?
— O dote seria suficientemente vultoso para pagardes todas as vossas
dívidas, e, crede em mim, meu marido será muito generoso com sua
pupila. Além disso, ganharíeis o meu favor, e vós sabeis quão próxima sou
do rei.
— E o barão?
— Eu me ocupo do barão.
— Não entendo...
— Não há mais nada para entender: a ruína, o descrédito e a desonra, ou
meu favor. — Felip de Ponts se sentou. — A ruína ou a riqueza, D. Felip.
Se vos negardes, amanhã mesmo o barão executará vossa dívida e
adjudicará vossas terras, vossas armas e vossos animais. Isso, sim, posso
garantir.
44

Dez dias se passaram até Arnau ter as primeiras notícias de Mar. Dez dias
durante os quais paralisou qualquer atividade que não fosse investigar o
que acontecera com a moça, desaparecida sem deixar rastro. Se reuniu
com o veguer e os conselheiros para lhes pedir que se empenhassem em
averiguar o ocorrido. Ofereceu vultosas recompensas por qualquer
informação sobre o paradeiro de Mar. Rezou o que não rezara em toda a
vida, e finalmente Elionor, que disse ter recebido a informação de um
mercador de passagem que procurava por Arnau, confirmou suas
suspeitas. A moça fora sequestrada por um cavaleiro chamado Felip de
Ponts, seu devedor, que a mantinha à força em uma masía fortificada perto
de Mataró, a uma pequena distância a pé ao norte de Barcelona.
Arnau enviou para lá os missatges do consulado. Enquanto isso, foi a
Santa Maria e continuou a rezar à Virgem do Mar.
Ninguém se atreveu a perturbá-lo, e até os operários diminuíram o
ritmo de trabalho. Prostrado de joelhos aos pés da pequena figura de pedra
que tanto significara na sua vida, Arnau tentou afastar as cenas de horror e
pânico que o tinham assaltado durante aqueles dez dias e que agora
voltavam a rondar sua mente, misturadas com o rosto de Felip de Ponts.
Felip de Ponts surpreendeu Mar dentro de sua própria casa, amordaçou-
a e golpeou-a até que a moça, exausta, deixou de resistir. Colocou-a em um
saco e se sentou com ela na parte traseira de uma carroça carregada de
arneses e conduzida por um de seus criados. Dessa maneira, como se
tivesse vindo comprar ou consertar rédeas e selas, cruzaram as portas da
cidade sem que ninguém desconfiasse do cavaleiro. Uma vez em sua
masía, ele desonrou a moça mais de uma vez na torre fortificada que se
erguia em uma extremidade, cada vez com mais violência e lascívia à
medida que percebia a beleza da refém e sua obstinação em defender seu
corpo, e já não a sua virgindade. Porque Felip de Ponts se comprometera
com Joan que roubaria a virgindade de Mar sem sequer despi-la, sem lhe
mostrar seu próprio corpo, usando a força estritamente necessária para tal,
e assim fizera da primeira vez, a única em que deveria se aproximar de
Mar, mas a luxúria foi mais forte que a palavra de cavaleiro.
Nada do que Arnau, entre lágrimas e com o coração apertado, pudera
imaginar em Santa Maria se comparava com o que a moça sofrera.
A entrada dos missatges no templo paralisou completamente as obras.
As palavras do oficial ressoaram como na corte de justiça do consulado.
— Mui honorável cônsul, é verdade. Vossa afilhada foi sequestrada e
está em poder do cavaleiro Felip de Ponts.
— Vós falastes com ele?
— Não, mui honorável. Trancou-se na torre e negou nossa autoridade,
alegando que não se tratava de assunto mercantil.
— Sabeis algo da moça?
O oficial baixou os olhos.
Arnau cravou as unhas no genuflexório.
— Quer dizer, então, que não tenho autoridade? Se ele quer autoridade
— grunhiu —, terá.

***

A notícia do sequestro de Mar se espalhou rapidamente. No dia seguinte,


ao amanhecer, todos os sinos das igrejas de Barcelona começaram a
repicar insistentemente, e o “Via fora!” se transformou em um grito
unânime na boca de todos os cidadãos: era preciso resgatar uma
barcelonesa.
A Praça de Blat, como em tantas outras ocasiões, foi o ponto de reunião
do sometent, o exército de Barcelona, ao qual se somaram todos os
grêmios da cidade. Nenhum deles faltou, e os confrades, fortemente
armados, se congregaram sob seus pendões. Naquela manhã, Arnau
dispensou as roupas luxuosas e vestiu as que usara primeiro sob as ordens
de Eiximèn d’Esparça, e depois contra Pedro, o Cruel. Continuava a usar a
excelente besta que fora de seu pai, que ele não quisera substituir e que
acariciou como nunca; no cinto o mesmo punhal com que, anos antes,
matara os inimigos.
Quando Arnau se apresentou na praça, mais de três mil homens o
aclamaram. Os homens içaram os pendões. Espadas, lanças e bestas se
elevaram sobre as cabeças da multidão ao som de um “Via fora!”
ensurdecedor. Arnau não se alterou. Joan e Elionor, atrás de Arnau,
empalideceram. Arnau procurou entre o mar de armas e pendões acima das
cabeças; os cambistas não tinham grêmio.
— Isso estava em vossos planos? — perguntou o dominicano a Elionor
em meio ao estrondo.
Elionor tinha o olhar perdido na multidão. Toda Barcelona apoiava
Arnau. Brandiam as armas no ar e uivavam. E tudo por uma mulherzinha
qualquer.
Arnau avistou o estandarte. A multidão foi se abrindo para lhe dar
passagem, e ele se dirigiu ao ponto onde os bastaixos estavam reunidos.
— Isso estava em vossos planos? — perguntou de novo o frade. Os dois
olhavam para as costas de Arnau. Elionor não respondeu. — O seu
cavaleiro será trucidado. Suas terras serão arrasadas, sua masía destruída,
e então...
— O quê? Então o quê? — grunhiu Elionor, o olhar fixo à frente.
“Perderei o meu irmão. Talvez ainda haja tempo de consertar alguma
coisa. Isso não vai dar certo...”, pensou Joan.
— Falai com ele — insistiu.
— Estais louco, frade?
— E se não aceitar o matrimônio? E se Felip de Ponts confessar? Falai
com ele antes que a host se ponha a caminho. Fazei. Por Deus, Elionor!
— Por Deus? — Desta vez ela se virou para Joan. — Falai vós com o
vosso Deus. Fazei isso, frei.
Ambos chegaram até o estandarte dos bastaixos. Ali viram Guillem,
sem armas, como escravo que era.
Arnau franziu a testa quando percebeu a presença de Elionor.
— Ela também é minha pupila — disse ela.
Os conselheiros deram a ordem, e o exército do povo de Barcelona se
pôs em marcha. Os pendões de São Jorge e da cidade iam adiante, depois
os bastaixos e atrás os demais grêmios, três mil homens para um só
cavaleiro, Elionor e Joan com eles.
A meio caminho, a host de Barcelona foi acrescida de mais de uma
centena de camponeses das terras de Arnau, que se aproximavam
carregando suas bestas com gosto, para defender quem os tratara tão
generosamente. Arnau percebeu que nenhum nobre ou cavaleiro se somou
a eles.
Ele caminhava sério sob o pendão, no meio dos bastaixos. Joan tentou
rezar, mas o que em outros momentos lhe saía facilmente estava agora
travado em sua mente. Nem ele nem Elionor tinham imaginado que Arnau
chegaria a convocar a host cidadã. O estrondo provocado por aqueles três
mil homens à procura de justiça e satisfação para uma cidadã barcelonesa
deixava Joan atordoado.
Muitos beijaram as filhas antes de partir; mais de um, já armado, ao se
despedir da mulher, a segurou pelo queixo e disse: “Barcelona defende sua
gente... sobretudo as mulheres.”
“Arrasarão as terras do desgraçado Felip de Ponts como se a
sequestrada fosse filha deles”, pensou Joan. “Ele será julgado e executado,
mas antes terá oportunidade de falar...” Joan olhou para Arnau, que
continuava a caminhar em silêncio com o semblante sombrio.
Ao entardecer, o grupo chegou às terras de Felip de Ponts e parou no
sopé da pequena colina onde ficava a masía do cavaleiro. Esta não passava
de uma casa de camponês sem nenhuma defesa, à exceção da usual torre
de vigia em uma esquina. Joan olhou a masía; depois, observou o exército,
que aguardava as ordens dos conselheiros da cidade. Olhou para Elionor,
que evitou encará-lo. Três mil homens para tomar uma simples masía!
Joan saiu da espécie de transe em que se encontrava e correu até Arnau
e Guillem, que estavam sob o estandarte de São Jorge junto aos
conselheiros e demais pró-homens da cidade. Encontrou-os discutindo o
que fazer a partir dali, e seu estômago se revirou ao ver que a grande
maioria era partidária de atacar a masía sem aviso e sem dar a Ponts
oportunidade de se render.
Os conselheiros começaram a dar ordens aos pró-homens dos grêmios.
Joan olhou para Elionor, que permanecia séria e com o olhar perdido na
masía. Se aproximou do irmão. Tentou falar com ele, mas não pôde.
Guillem, de pé ao lado de Arnau, olhou o frade com ar de desprezo. Os
pró-homens começavam a transmitir as ordens aos seus soldados. O
murmúrio dos preparativos para a guerra se fez ouvir. Tochas foram
acesas; escutaram o aço das espadas e a corda das bestas sendo esticadas.
Joan se virou e olhou a masía e o exército. Estavam a caminho. Não
haveria concessões. Barcelona não teria clemência. Arnau, como um
soldado qualquer, deixou o frade para trás em direção à residência do
senhor De Ponts; levava um punhal. Outra olhada para Elionor: continuava
impassível.
— Não...! — gritou Joan quando seu irmão já estava de costas.
Porém seu grito foi abafado pelo barulho de todo o exército. Uma
figura a cavalo saiu da masía; Felip de Ponts se dirigia a eles lentamente.
— Prenda-o! — ordenou um conselheiro.
— Não! — gritou Joan. Todos se viraram para ele. Arnau o interrogou
com o olhar. — Não se prende um homem que se rende.
— O que foi, frei? — perguntou um dos conselheiros. — Por acaso
quereis mandar na host de Barcelona?
Joan suplicou a Arnau com o olhar.
— Um homem que se rende não deve ser preso — concedeu Arnau.
O primeiro olhar de Felip de Ponts foi para seus cúmplices, depois
encarou os que se encontravam sob o estandarte de São Jorge, entre eles
Arnau e os conselheiros da cidade.
— Cidadãos de Barcelona — gritou suficientemente alto para que todo
o exército pudesse ouvi-lo —, sei a razão por que estais aqui e sei que
procurais justiça para uma concidadã. Aqui me tendes. Confesso ser autor
dos delitos que me imputam, mas, antes de me deterdes e arrasardes
minhas propriedades, eu vos suplico a oportunidade de falar.
— Falai — permitiu um dos conselheiros.
— É certo que, contra a sua vontade, sequestrei e me deitei com Mar
Estanyol... — Um murmúrio percorreu as fileiras da host barcelonesa,
interrompendo o discurso de Felip de Ponts. Arnau firmou as mãos em
volta da besta. — Eu o fiz arriscando a vida, consciente do castigo por
esses delitos. Fiz e faria de novo se nascesse outra vez, pois o amor que
sinto por essa moça é tão grande, tão grande o desassossego por vê-la
murchar na juventude sem um marido ao lado para desfrutar os dons que
Deus lhe deu, que meus sentimentos superaram a razão e meus atos foram
mais os de um animal louco de paixão do que de um cavaleiro do rei
Pedro. — Joan sentiu a atenção do exército e mentalmente tentou ditar ao
cavaleiro suas palavras seguintes. — Como animal que fui, entrego-me a
vós; como cavaleiro que gostaria de voltar a ser, comprometo-me a
contrair matrimônio com Mar para seguir amando-a por toda a vida.
Julgai-me! Não estou disposto, como preveem as vossas leis, a oferecer-
lhe um marido com seu valor. Antes de vê-la com outro, eu mesmo poria
fim à minha vida.
Felip de Ponts terminou o seu discurso e esperou orgulhosamente
erguido sobre seu cavalo, desafiando um exército de três mil homens que
permanecia em silêncio tentando assimilar suas palavras.
— Louvado seja o Senhor! — gritou Joan.
O irmão olhou para ele, espantado. Todos se viraram para o frade, até
Elionor.
— A que se deve isso? — perguntou Arnau.
— Arnau — disse Joan, agarrando-o pelo braço e falando em um tom
de voz suficientemente alto para que os presentes o ouvissem —, isso é
resultado de nossa própria negligência. — Arnau teve um sobressalto. —
Por anos consentimos nos caprichos de Mar, relaxando com nossos
deveres para com uma jovem sã e bela que já devia ter trazido filhos a este
mundo como é sua obrigação; assim mandam as leis de Deus, e não somos
nós que vamos negar os desígnios de Nosso Senhor. — Arnau tentou
responder, mas, com um gesto, Joan o obrigou a permanecer em silêncio.
— Sinto-me culpado. Por anos me senti culpado por ser complacente
demais com uma mulher caprichosa cuja vida carecia de sentido conforme
as normas da santa Igreja católica. Esse cavaleiro — acrescentou,
apontando para Felip de Ponts — não é senão a mão de Deus, alguém
enviado pelo Senhor para realizar o que nós devíamos saber. Sim, durante
todos esses anos me senti culpado ao ver como murchavam a beleza e a
saúde com que Deus agraciou essa moça que teve a sorte de ser acolhida
por um homem bondoso como você. Não me quero culpar também pela
morte de um cavaleiro que, arriscando a própria vida, que hoje nos
oferece, cumpriu o que nós não fomos capazes de cumprir. Consinta no
matrimônio. Eu, se minha opinião tem algum valor, aceitaria.
Arnau ficou em silêncio por um instante. Todo o exército estava atento
às suas palavras. Joan aproveitou o momento para se virar para Elionor, e
ele pensou ter enxergado um sorriso orgulhoso em seus lábios.
— Você quer dizer que isso é culpa minha? — perguntou Arnau a Joan.
— Minha, Arnau, minha. Eu é que deveria tê-lo advertido sobre as leis
da Igreja, o desígnio de Deus, mas não o fiz... e sinto muito.
Guillem soltava fogo pelos olhos.
— Qual é o desejo da moça? — perguntou Arnau ao senhor de Ponts.
— Sou cavaleiro do rei Pedro — respondeu ele —, e suas leis, as
mesmas pelas quais estais vós aqui hoje, não dão valor ao desejo de uma
mulher casadoura. — Um murmúrio de aprovação percorreu as filas da
host. — Ofereço-me em matrimônio, eu, Felip de Ponts, cavaleiro catalão.
Se vós, Arnau Estanyol, barão da Catalunha, cônsul do Mar, não
consentirdes no matrimônio, prendei-me e julgai-me; se consentirdes,
pouco importa o desejo da moça.
O exército aprovou novamente as palavras do cavaleiro. Aquela era a
lei, e todos a cumpriam e entregavam suas filhas em matrimônio
independentemente de sua vontade.
— Não se trata de desejo, Arnau — interveio Joan, baixando a voz. —
Trata-se da sua obrigação. Assuma-a. Ninguém pede a opinião das filhas e
pupilas. Decide-se considerando o que é mais benéfico para elas. Esse
homem já se deitou com Mar. Já pouco importa o desejo da moça. Ou se
casa com ele, ou sua vida será um inferno. Você tem de decidir, Arnau;
mais uma morte ou a solução divina para a nossa negligência.
Arnau procurou entre os seus próximos. Olhou para Guillem, que
permanecia com o olhar cravado no cavalo, destilando ódio. Encontrou
Elionor, sua esposa por desígnio real, e os dois sustentaram o olhar. Com
um gesto, Arnau pediu sua opinião. Elionor assentiu. Finalmente, se virou
para Joan.
— É a lei — respondeu ele.
Arnau olhou para o cavaleiro e depois para o exército. Tinham abaixado
as armas. Nenhum daqueles três mil homens parecia discutir os
argumentos do senhor de Ponts, nenhum continuava a pensar na guerra.
Aguardavam a decisão de Arnau. Aquela era a lei catalã, a lei da mulher. O
que conseguiria lutando, matando o cavaleiro e libertando Mar? Qual seria
a vida da moça dali por diante, sequestrada e violada daquela forma? Um
convento?
— Consinto.
Houve um momento de silêncio. Depois um murmúrio se propagou
entre as fileiras dos soldados, enquanto a decisão de Arnau era passada de
um para outro. Alguém aprovou publicamente sua decisão. Outro gritou.
Outros se somaram, e a host rebentou em vivas. Joan e Elionor se
entreolharam.
A uma centena de metros de onde estavam, trancada na torre de
vigilância da masía de Felip de Ponts, a mulher cujo futuro acabara de ser
decidido observava a multidão aglomerada na base da pequena colina. Por
que não subiam? Por que não atacavam? O que podiam estar tratando com
aquele miserável? O que estavam gritando?
— Arnau! O que estão gritando os seus homens?
45

A gritaria da host o convenceu de que ouvira bem: “Consinto.” Guillem


apertou os lábios com força. Alguém lhe deu uma palmada nas costas e se
uniu à gritaria. “Consinto.” Guillem olhou para Arnau e depois para o
cavaleiro. Seu rosto parecia relaxado. O que um simples escravo como ele
podia fazer? Olhou novamente para Felip de Ponts; agora sorria. “Deitei-
me com Mar Estanyol”, era isso o que dissera: “Deitei-me com Mar
Estanyol!” Como Arnau podia...?
Alguém lhe deu um odre com vinho. Guillem o afastou com maus
modos.
— Não bebe, cristão? — perguntaram-lhe.
Seu olhar encontrou o de Arnau. Os pró-homens felicitavam Felip de
Ponts, ainda em seu cavalo. As pessoas bebiam e riam.
— Não bebe, cristão? — ouviu outra vez atrás de si.
Guillem empurrou o homem do odre e voltou a procurar Arnau com o
olhar. Os pró-homens também o felicitavam. Rodeado, conseguiu levantar
a cabeça para atender Guillem.
As pessoas, Joan entre elas, empurraram Arnau em direção à masía do
cavaleiro, mas ele não tirou os olhos de Guillem.
Enquanto isso, toda a host festejava o acordo. Os homens acenderam
fogueiras e cantavam em volta delas.
— Um brinde ao nosso cônsul e à felicidade de sua pupila — disse
outro, aproximando o odre de vinho do rosto de Guillem mais uma vez.
Arnau desaparecera a caminho da masía.
O escravo voltou a afastar o odre.
— Não quer brindar?
Guillem o fitou. Deu-lhe as costas e rumou em direção a Barcelona. O
barulho da host foi se apagando. Ele ficou sozinho a caminho da cidade;
arrastava os pés... arrastava seus sentimentos e o pouco orgulho de homem
que restava a um escravo. Todo ele se arrastou para Barcelona.
Arnau rejeitou o queijo oferecido pela trêmula anciã que cuidava da
masía de Felip de Ponts. Pró-homens e conselheiros se amontoavam no
primeiro andar acima dos estábulos, onde estava a grande lareira de pedra
da masía. Procurou Guillem entre a multidão. As pessoas conversavam,
riam e chamavam a anciã para que servisse queijo e vinho. Joan e Elionor
ficaram ao lado da lareira; ambos desviaram o olhar quando Arnau cravou
os olhos neles.
Um murmúrio obrigou-o a desviar a atenção para a outra extremidade
do cômodo.
Mar, agarrada pelo antebraço por Felip de Ponts, entrou na sala. Arnau
a viu se safar com violência da mão do cavaleiro e correr para ele. Um
sorriso apareceu em seus lábios. Mar abriu os braços muito antes de
chegar ao lugar aonde ele a esperava, mas quando ia abraçá-lo parou de
repente e deixou cair os braços lentamente.
Arnau pensou ver um hematoma em seu rosto.
— O que está acontecendo, Arnau?
Arnau se virou e procurou a ajuda de Joan, mas seu irmão permanecia
cabisbaixo. Todos esperavam suas palavras.
— O cavaleiro Felip de Ponts invocou o usatge: Si quis virginem... —
disse ele por fim.
Mar não se mexeu. Uma lágrima começou a escorreu por seu rosto.
Arnau fez um leve movimento com a mão direita, mas no mesmo instante
se retratou e deixou a lágrima se perder no pescoço.
— Seu pai... — tentou intervir Felip de Ponts, antes que Arnau o fizesse
calar com um gesto imperioso. — O cônsul do Mar deu sua palavra de
matrimônio diante da host de Barcelona — soltou Felip de Ponts depressa,
antes que Arnau pudesse calá-lo... ou desmenti-lo.
— Isso é verdade? — perguntou a jovem.
“A única verdade é que gostaria de abraçá-la... beijá-la... ter você
sempre comigo. Isso é o que sente um pai?”, pensou Arnau.
— É, sim, Mar.
As lágrimas deixaram de rolar pelo rosto de Mar. Felip de Ponts se
aproximou da moça e a tomou outra vez pelo antebraço. Ela não se opôs.
Alguém atrás de Arnau rompeu o silêncio, e todos se somaram aos gritos.
Arnau e Mar continuavam a se olhar. Ouviu-se um viva pelos noivos que
deixou Arnau aturdido. Neste momento o seu rosto também se encheu de
lágrimas. Talvez Joan tivesse razão, talvez ele tivesse adivinhado o que
nem o próprio Arnau sabia. Diante da Virgem jurara que nunca mais seria
infiel a uma esposa por amor a outra mulher, ainda que fosse uma esposa
imposta.
— Pai? — disse Mar aproximando a mão livre para secar suas
lágrimas.
Arnau tremeu ao sentir a mão de Mar roçar seu rosto.
Deu meia-volta e fugiu.
Naquele momento, em algum lugar do solitário e escuro caminho para
Barcelona, um escravo ergueu os olhos para o céu e ouviu o grito de dor da
menina que criara como se fosse sua. Nascera escravo e vivera como tal.
Aprendera a amar em silêncio e reprimir seus sentimentos. Um escravo
não era um homem, e por isso, em sua solidão, o único lugar em que
ninguém podia limitar sua liberdade, aprendera a ver além do que viam
aqueles cuja vida enevoavam o espírito. Vira o amor que eles sentiam um
pelo outro e rezara a seus dois deuses para que aqueles seres que ele tanto
amava conseguissem se libertar de seus grilhões, muito mais fortes que os
de um simples escravo.
Guillem se permitiu chorar, um comportamento que lhe estava vedado
como escravo.

***

Guillem nunca cruzou as portas de Barcelona. Chegou à cidade ainda de


noite e se deteve diante do portão de São Daniel. Tinham lhe arrebatado a
sua menina. Talvez o tivesse feito sem saber, mas Arnau a vendera como
se de uma escrava se tratasse. O que ele faria lá? Como poderia se sentar
onde Mar se sentara? Como poderia passear por onde passeara com ela
conversando, rindo, compartilhando os sentimentos secretos da jovem? O
que poderia fazer em Barcelona, além de recordá-la dia e noite? Que
futuro a esperava ao lado do homem que havia truncado as esperanças de
ambos?
Guillem continuou a percorrer o caminho da orla e, ao fim de dois dias,
chegou ao porto de Salou, o segundo mais importante da Catalunha. Ali
olhou o mar, o horizonte, e a brisa marinha lhe trouxe recordações da
infância em Gênova, de uma mãe e irmãos de que fora cruelmente
separado ao ser vendido a um comerciante com quem começara a aprender
o negócio. Depois, em uma viagem comercial por mar, senhor e escravo
foram capturados pelos catalães, em guerra permanente com Gênova.
Guillem passou de mão em mão até que Hasdai Crescas viu nele
qualidades muito superiores às de um simples trabalhador braçal. Fitou
novamente o mar, os barcos e os passageiros... Por que não Gênova?
— Quando parte o próximo navio para a Lombardia, para Pisa? —
Nervoso, o jovem à mesa do armazém remexeu os papéis amontoados.
Não conhecia Guillem e a princípio tratou-o com desdém, como teria feito
com qualquer escravo sujo e fedorento. Quando o mouro se apresentou, no
entanto, lhe vieram à mente as palavras que costumava ouvir de seu pai:
“Guillem é a mão direita de Arnau Estanyol, cônsul do Mar de Barcelona,
de quem dependemos.” — Preciso de apetrechos para escrever uma carta e
um lugar tranquilo para escrever — acrescentou Guillem.
“Aceito sua oferta de liberdade”, escreveu. “Parto para Gênova via Pisa,
para onde viajarei em seu nome como escravo, e onde esperarei a carta de
liberdade.” O que mais poderia dizer? Que sem Mar não poderia viver? E
Arnau, seu senhor e amigo, poderia fazê-lo? Para que lhe recordar isso?
“Vou à procura de minhas origens, de minha família”, acrescentou. “Junto
com Hasdai, você foi o melhor amigo que tive. Cuide dele; serei
eternamente grato a você. Que Alá e Santa Maria o protejam. Rezarei por
você.”
O jovem que o atendera partiu para Barcelona assim que a galera em
que Guillem embarcou manobrou para deixar o porto de Salou.

***

Arnau assinou a carta de liberdade de Guillem lentamente, observando


cada traço que surgia no documento: a peste, a briga, a mesa de câmbio,
dias e dias de trabalho, de conversa, de amizade, de alegria... Sua mão
tremeu no último traço. A pena entortou quando terminou de assinar. Os
dois sabiam que eram outros os motivos que o tinham levado a fugir.
Arnau regressou à alfândega e ordenou que a carta de liberdade fosse
enviada a seu correspondente em Pisa, acompanhada de uma ordem de
pagamento de uma pequena fortuna.

***
— Não vamos esperar Arnau? — perguntou Joan a Elionor ao entrar na
sala de jantar, onde a baronesa o esperava à mesa.
— Estais com apetite? — Joan assentiu. — Pois, se quereis jantar, é
melhor que o façais agora.
O frade se sentou diante de Elionor em um lado da comprida mesa de
jantar de Arnau. Dois criados serviram pão branco candial, vinho, sopa e
ganso assado temperado com pimenta e cebola.
— Não dissestes que tínheis apetite? — perguntou Elionor ao ver Joan
remexer a comida no prato.
Ele se limitou a erguer os olhos para a cunhada. Aquela foi a única
frase que se ouviu em todo o jantar.
Várias horas depois de ter se retirado para seus aposentos, Joan ouviu
movimento no palácio. Alguns criados corriam para receber Arnau.
Ofereceriam comida e ele a rejeitaria, como fizera nas três ocasiões em
que Joan decidira esperá-lo. Arnau se sentava na sala do palacete onde
Joan esperava por ele e rejeitava o jantar tardio com um gesto cansado.

***

Joan ouviu os passos dos criados que voltavam. Depois ouviu os de Arnau
diante de sua porta, se dirigindo com lentidão aos seus aposentos. O que
lhe diria se saísse agora? Tentara falar com ele em três ocasiões, mas
Arnau se fechou e respondeu de maneira monossilábica às perguntas do
irmão. “Você está bem?” “Sim.” “Teve muito trabalho na alfândega?”
“Não.” “As coisas vão bem?” Silêncio. “Santa Maria?” “Bem.” No escuro
do quarto, Joan levou as mãos ao rosto. Os passos de Arnau se perderam. E
de que queria que falasse? Dela? Como poderia ouvir de seus lábios que a
amava?
Joan vira Mar secar as lágrimas que escorriam pelo rosto de Arnau.
“Pai?”, ele a ouvira dizer. Vira Arnau estremecer. Então Joan se virara e
vira que Elionor estava sorrindo. Tinha sido necessário vê-lo sofrer para
compreender... mas como podia confessar a verdade a Arnau? Como podia
lhe dizer que tinha sido ele...? Aquelas lágrimas surgiram na lembrança de
Joan. Ele a amava tanto assim? Conseguiria esquecê-la? Ninguém
consolou Joan quando, mais uma noite, ele se colocou de joelhos, abaixou
a cabeça e rezou até o amanhecer.
***

— Gostaria de deixar Barcelona.


O prior dos dominicanos observou o frade; estava abatido, tinha os
olhos fundos com fortes olheiras arroxeadas, e seu hábito estava
descuidado.
— Considera-se capaz de assumir o cargo de inquisidor, frei Joan?
— Sim — afirmou Joan. O prior o olhou de alto a baixo. — Só preciso
sair de Barcelona e me recuperarei.
— Bem. Você parte para o norte na semana que vem.
Seu destino era uma região de pequenos povoados perdidos no interior
das montanhas, dedicados à agricultura ou à pecuária, e cuja gente vivia
temerosa da chegada do inquisidor. Sua presença não era algo novo para
eles. Havia mais de cem anos, quando Ramon de Penyafort recebera do
papa Inocêncio IV a incumbência de se encarregar da Inquisição no reino
de Aragão e no principado de Narbona, aqueles povoados vinham sofrendo
com os inquéritos dos frades de preto. A maior parte das doutrinas
consideradas heréticas pela Igreja tinha vindo da França para a Catalunha:
primeiro os cátaros e os valdenses, depois os begardos e, por último, os
templários, perseguidos pelo rei francês. As zonas fronteiriças foram as
primeiras a receber as influências heréticas. Naquelas terras nobres foram
condenados e executados o visconde Arnau e sua esposa Ermessenda;
Ramon, senhor do Cadí, ou Guillem de Niort, veguer do conde Nunó Sanç
na Sardenha e em Coflent, terras onde o frade Joan exerceria seu
ministério.
— Excelência. — Uma comitiva dos principais pró-homens num
povoado como tantos outros o recebeu, fazendo uma reverência.
— Não sou excelência — respondeu Joan, ordenando com um gesto que
se levantassem. — Chamem-me simplesmente frei Joan.
Sua pouca experiência lhe mostrava que aquela cena se repetia. Foram
precedidos pela notícia da chegada do inquisidor, do escrivão que o
acompanhava e de meia dúzia de soldados do Santo Ofício. Estavam na
pequena praça do povoado. Joan observou quatro homens que se negavam
a se erguer totalmente: mantinham a cabeça baixa, estavam descobertos e
não paravam quietos. Não havia ninguém mais na praça, mas Joan sabia
que muitos olhos ocultos estavam postos nele. Que tanto teriam para
esconder?
Depois da recepção, viria o de sempre: lhe ofereceriam o melhor
alojamento do povoado, onde uma mesa bem servida, demasiado bem
servida para as posses daquela gente, o esperava.
— Só quero um pedaço de queijo, pão e água. Retirem todo o resto e
certifiquem-se de que meus homens sejam atendidos — disse ele mais
uma vez depois de se sentar à mesa.
Outra casa igual. Humilde e simples, mas feita de pedra, diferente dos
barracos de taipa ou de madeira podre que se amontoavam naqueles
povoados. Uma mesa e várias cadeiras constituíam todo o mobiliário de
um cômodo que rodeava o fogão.
— Sua excelência deve estar cansado.
Joan olhou o queijo que tinha diante de si. Tinham viajado por muitas
horas, caminhando por rotas pedregosas e enlameadas pelo sereno. Cruzou
a perna direita para apoiá-la na esquerda e esfregou a panturrilha dolorida
e o pé debaixo da mesa.
— Não sou excelência — repetiu monotonamente —, e não estou
cansado. Deus não conhece o cansaço quando se trata de defender o seu
nome. Começaremos em breve, assim que eu terminar de comer. Reúnam
as pessoas na praça.
Antes de partir de Barcelona, Joan solicitara em Santa Catarina o
tratado escrito pelo papa Gregório IX em 1231 para estudar o
procedimento dos inquisidores itinerantes.
“Pecadores, arrependam-se!” Primeiro o sermão para o povo. As pouco
mais de setenta pessoas reunidas na praça baixaram os olhos ao ouvir suas
primeiras palavras. Os olhares do frade de preto as deixavam paralisadas.
“O fogo eterno os espera!” Da primeira vez duvidou de sua capacidade de
se dirigir às pessoas, mas as palavras vinham facilmente, uma atrás da
outra, muito mais facilmente à medida que percebia o poder que exercia
sobre aqueles camponeses atemorizados. “Nenhum de vocês se livrará!
Deus não permite ovelhas negras em Seu rebanho.” Tinham de se entregar;
alguma heresia tinha que sair à luz. Este era o seu propósito: encontrar o
pecado que se cometia na intimidade, que só o vizinho, o amigo ou a
esposa conheciam...
“Deus o sabe. Ele os conhece. Vigia-os. Aquele que contempla
impassível o pecado arderá no fogo eterno, porque é pior quem admite o
pecado do que o que peca; quem peca pode encontrar o perdão, mas o que
esconde o pecado...” Então os esquadrinhava: um movimento a mais, um
olhar furtivo. Aqueles seriam os primeiros. “Aquele que esconde o
pecado...” Joan ficava em silêncio e o prolongava até vê-los curvados ante
as ameaças: “... não terá perdão.”
Medo. Fogo, dor, pecado, castigo... o frade de preto gritava e ampliava
suas diatribes até se apoderar de seus espíritos, uma comunhão que
começou a sentir já em seu primeiro sermão.
— Vocês têm um período de graça de três dias — disse ao final. —
Todo aquele que se apresentar voluntariamente para confessar suas culpas
será tratado com benevolência. Transcorridos os três dias... o castigo será
exemplar. — Virou-se para o oficial. — Investigue aquela mulher loura, o
homem que está descalço e também o de cinto preto. A moça com a
criança... — Joan os assinalou discretamente. — Se não se apresentarem
voluntariamente, devem trazê-los junto com outros escolhidos ao acaso.

***

Durante os três dias de graça, Joan permaneceu sentado solenemente atrás


da mesa, ao lado de um escrivão e dos soldados que a todo instante
mudavam de posição vendo as horas passarem lenta e silenciosamente.
Só quatro pessoas vieram romper o tédio: dois homens que não tinham
cumprido a obrigação de assistir à missa, uma mulher que várias vezes
desobedecera ao marido, e uma criança com olhos enormes que colocou a
cabeça pelo vão da porta.
Alguém o empurrou para dentro, mas o menino se negou a entrar e
ficou com meio corpo para fora, meio corpo para dentro.
— Entre, menino — Joan lhe disse.
O menino retrocedeu, mas voltaram a empurrá-lo para dentro e
fecharam a porta.
— Quantos anos você tem? — perguntou Joan.
O menino fitou os soldados, o escrivão, já absorto em sua função, e
Joan.
— Nove anos — gaguejou.
— Qual é o seu nome?
— Alfons.
— Aproxime-se, Alfons. O que você quer nos contar?
— Que... que há dois meses peguei feijão na horta do vizinho.
— Peguei? — perguntou Joan.
Alfons baixou os olhos.
— Roubei — disse tenuemente.

***

Joan levantou-se da enxerga e atiçou o fogo. O povoado estava em silêncio


fazia várias horas, as mesmas em que ele estava tentando dormir. Fechava
os olhos e adormecia, mas uma lágrima escorrendo pelo rosto de Arnau o
devolvia à vigília. Precisava de luz. Tentava de novo, várias vezes, mas
sempre acabava se levantando, às vezes bruscamente, outras suando ou
devagar, remoendo as lembranças que o impediam de dormir.
Precisava de luz. Viu que o candeeiro estava sem óleo.
O rosto triste de Arnau surgiu nas sombras.
Jogou-se novamente na enxerga. Fazia frio. Sempre fazia frio.
Observou por alguns segundos o cintilar da chama e as sombras que se
moviam ao seu compasso. A única janela do quarto não tinha postigo, e o
ar entrava por ali. “Todos dançamos alguma dança; a minha...”
Se encolheu sob os cobertores e se obrigou a fechar os olhos.
Por que não amanhecia? Mais um dia e se acabariam os três dias de
graça.
Joan cochilou e pouco mais de meia hora depois acordou outra vez
suando.
O candeeiro continuava a arder. As sombras continuavam a dançar. O
povo permanecia em silêncio. Por que não amanhecia?
Se enrolou nos cobertores e foi até a janela.
Mais um povoado. Outra noite à espera do amanhecer.
Que o dia seguinte chegasse logo...

***

De manhã, uma fila de cidadãos escoltados pelos soldados se formou


diante da casa.
Disse que se chamava Peregrina. Joan fingiu não prestar muita atenção
à mulher loura, a quarta a entrar. Não conseguira nada dos três primeiros.
Peregrina permaneceu de pé diante da mesa atrás da qual Joan e o escrivão
estavam sentados. O fogo crepitava na lareira. Ninguém mais os
acompanhava. Os soldados permaneciam do lado de fora da casa. De
repente, Joan levantou os olhos. A mulher estremeceu.
— Você sabe de alguma coisa, não é, Peregrina? Deus nos vigia —
afirmou Joan. — Olhe para mim. Preciso que me olhe. Por acaso você quer
arder no fogo eterno? Olhe para mim. Você tem filhos?
A mulher ergueu os olhos lentamente.
— Sim, mas... — balbuciou.
— Mas não são eles os pecadores — Joan a interrompeu. — Então,
quem é, Peregrina? — A mulher hesitou. — Quem é, Peregrina?
— Blasfema — afirmou.
— Quem blasfema, Peregrina?
O escrivão se preparou para anotar.
— Ela... — Joan esperou em silêncio. A mulher já não tinha saída. —
Ela blasfema quando fica com raiva... — Peregrina olhou outra vez para o
chão de terra. — A irmã de meu marido, Marta. Diz coisas terríveis
quando fica com raiva.
O ruído da pena do escrivão se fez ouvir.
— Algo mais, Peregrina?
Desta vez a mulher ergueu a cabeça com tranquilidade.
— É só.
— Tem certeza?
— Eu juro. Crede em mim.
Só se equivocara com o do cinto preto. O homem descalço denunciou
dois pastores que não guardavam abstinência: afirmou tê-los visto comer
carne na Quaresma. A moça com a criança, viúva precoce, fez a mesma
coisa com o vizinho, um homem casado que não parava de lhe fazer
propostas desonestas... E que até lhe acariciou um seio.
— E você deixou? — perguntou Joan. — Sentiu prazer?
A moça desatou a chorar.
— Você desfrutou? — insistiu Joan.
— Nós estávamos com fome — soluçou, erguendo a criança.
O escrivão anotou o nome da moça. Joan o olhou fixamente. “E o que
ele lhe deu?”, pensou. “Um resto de pão duro? Isso é o que vale a sua
honra?”
— Confesse! — sentenciou Joan, apontando para ela.
Outras duas pessoas denunciaram seus vizinhos. Hereges, garantiram.
— Às vezes acordo com sons estranhos e vejo luzes na casa — disse
um. — São adoradores do demônio.
“O que terá feito o vizinho para que você o denuncie?”, pensou Joan.
“Você sabe que ele nunca saberá quem o delatou. O que você ganha se eu o
condenar? Quem sabe um pedaço de terra?”
— Como se chama o seu vizinho?
— Anton, o padeiro.
Já era noite quando Joan deu por terminado o interrogatório; fez entrar
o oficial, e o escrivão lhe ditou os nomes dos que deveriam comparecer
ante a Inquisição no dia seguinte assim que o sol despontasse.

***

Novamente o silêncio da noite, o frio, o bruxuleio da chama... e as


lembranças. Joan se levantou outra vez.
Uma blasfemadora, um libidinoso e um adorador do demônio. “Quando
amanhecer, serão meus”, disse entre dentes. Seria verdade a história do
adorador? Recebera muitas denúncias similares, mas só uma havia
prosperado. Seria verdade dessa vez? Como poderia comprovar?
Estava cansado e se deitou na enxerga para fechar os olhos. Um
adorador do demônio...

***

— Você jura pelos quatro Evangelhos? — perguntou Joan quando a luz


começava a entrar pela janela do térreo da casa.
O homem assentiu.
— Sei que você pecou — afirmou Joan.
Rodeado pelos soldados, de pé, o homem que comprara um segundo de
prazer da jovem viúva empalideceu. Gotas de suor apareceram em sua
testa.
— Qual é o seu nome?
— Gaspar — disse.
— Sei que você pecou, Gaspar — repetiu Joan.
O homem gaguejou.
— Eu... eu...
— Confesse — Joan levantou a voz.
— Eu...
— Chicoteiem-no até que confesse!
Joan se levantou e esmurrou a mesa com os punhos. Um dos soldados
levou a mão ao cinto, do qual pendia um açoite de couro. O homem caiu
de joelhos diante da mesa de Joan.
— Não. Eu vos suplico. Não me chicoteies.
— Confesse.
O soldado, com o açoite ainda enrolado, golpeou-o nas costas.
— Confesse! — gritou Joan.
— Eu... eu não tenho culpa. É essa mulher. Ela me enfeitiçou. — O
homem falava atropeladamente. — O marido já não a possui. — Joan não
se alterou. — E ela me procura, me persegue. Só fizemos umas poucas
vezes, mas... mas não farei outra vez. Não a verei novamente. Eu juro.
— Fornicou com ela?
— S... sim.
— Quantas vezes?
— Não sei.
— Quatro? Cinco, dez?
— Quatro. Sim, foi isso. Quatro.
— Como se chama essa mulher?
O escrivão anotou de novo.
— Que outros pecados cometeu?
— Não... nenhum outro, eu juro.
— Não jure em vão — Joan arrastou as palavras. — Chicoteiem-no.
Depois de dez chicotadas, o homem confessou que fornicava com
aquela mulher e com várias prostitutas quando ia ao mercado de
Puigcerdà; além disso, blasfemara, mentira e cometera vários pecados
menores. Mais cinco chicotadas foram suficientes para que se lembrasse
da jovem viúva.
— Confesso — sentenciou Joan —, amanhã você deve comparecer ao
sermo generalis na praça, e então conhecerá o seu castigo.
O homem nem teve tempo de protestar. De joelhos, foi arrastado pelos
soldados para fora da casa.
Marta, a cunhada de Peregrina, confessou sem necessidade de maiores
ameaças, e, depois de mandá-la voltar no dia seguinte, Joan apressou o
escrivão com o olhar.
— Traga Anton Sinom — ordenou o escrivão ao oficial depois de ler a
lista.
Assim que viu entrar o adorador do demônio, Joan se ergueu da dura
cadeira de madeira. Aquele nariz arqueado, a testa grande, os olhos
escuros...
Queria ouvir a sua voz.
— Jura pelos quatro Evangelhos?
— Juro.
— Como se chama? — perguntou antes mesmo que o homem se
pusesse diante dele.
— Anton Sinom.
Aquele homem pequeno, um pouco encurvado, encolhido entre os
soldados que o acompanhavam, respondeu à sua pergunta com um ar de
resignação que não passou despercebido pelo inquisidor.
— Você sempre se chamou assim?
Anton Sinom hesitou. Joan esperou a resposta.
— Aqui todos sempre me conheceram por este nome — disse
finalmente.
— E fora daqui?
— Fora daqui eu tinha outro nome.
Joan e Anton se entreolharam. O homenzinho não baixara os olhos em
nenhum momento.
— Um nome cristão, talvez?
Anton negou com a cabeça. Joan reprimiu um sorriso. Como começar?
Dizendo-lhe que sabia que tinha pecado? Aquele judeu não aceitaria esse
jogo. Ninguém no povoado o havia descoberto, ou mais de um o teria
denunciado, como era costume com os convertidos. Este Sinom devia ser
inteligente. Joan o observou por um instante enquanto se perguntava o que
ele esconderia, por que iluminaria sua casa à noite.
Joan se levantou e deixou o edifício; o escrivão e os soldados não se
mexeram. Ao fechar a porta atrás de si, os curiosos que se aglomeravam
diante da casa ficaram paralisados. Joan não lhes deu atenção e se dirigiu
ao oficial:
— Estão por aqui os parentes do que está lá dentro?
O oficial apontou para uma mulher e dois meninos que olhavam para
ele. Havia algo...
— A que se dedica esse homem? Como é a sua casa? O que fez quando
o convocaram ao tribunal?
— É padeiro — respondeu o oficial. — Tem uma oficina no porão de
casa. Sua casa...? Normal, limpa. Não o convocamos diretamente, falamos
com a mulher.
— Ele não estava trabalhando?
— Não.
— Vocês foram ao amanhecer, como ordenei?
— Sim, frei Joan.
“Às vezes acordo...” O vizinho dissera “acordo”. Um padeiro... um
padeiro desperta antes do amanhecer. “Você não dorme, Sinom? Se precisa
despertar ao amanhecer...” Joan observou a família do homem, um pouco
afastada dos curiosos. Passeou em círculos por um momento. De repente
voltou a entrar na casa; o escrivão, os soldados e o Sinom estavam no
mesmo lugar onde os deixara.
Joan se aproximou do homem até que seus rostos se tocaram; depois, se
sentou em seu lugar.
— Dispam-no — ordenou aos soldados.
— Sou circuncidado. Já o reconhe...
— Dispam-no!
Os soldados se viraram para Sinom e, antes que se lançassem sobre ele,
o olhar do convertido convenceu o frade de que tinha razão.
— E agora — disse-lhe quando estava completamente nu —, o que tem
a me dizer?
O outro tentou manter a compostura o melhor que pôde.
— Não sei a que se refere — respondeu.
— Refiro-me — Joan baixou a voz, e mastigou cada palavra — a seu
rosto e seu pescoço sujos, mas a pele imaculadamente limpa do peito para
baixo. Refiro-me a suas mãos e seus punhos sujos, mas seus antebraços
impolutos. Refiro-me a seus pés e tornozelos, que estão sujos, mas suas
pernas estão limpas.
— Sujeira onde não há roupa, limpeza onde há — alegou Sinom.
— Nem farinha, padeiro? Pretende me dizer que a roupa de um padeiro
o protege da farinha? Pretende que eu acredite que trabalha no forno com a
mesma roupa com que recebe o inverno? Onde está a farinha em seus
braços? Hoje é segunda-feira, Sinom. Você rendeu culto à festa de Deus?
— Sim.
Joan esmurrou a mesa e se levantou.
— Mas também se purificou conforme os seus ritos hereges — gritou,
apontando para ele.
— Não — gemeu Sinom.
— Veremos, Sinom, veremos. Encarcere-o e traga-me a mulher e seus
filhos.
— Não! — suplicou Sinom quando os soldados o arrastavam para o
sótão por debaixo dos braços. — Eles não têm nada a ver com isso.
— Alto! — ordenou Joan. Os soldados se detiveram e viraram o
homem para o inquisidor. — Com o que eles não têm nada a ver, Sinom?
Com o que eles não têm nada a ver?
Sinom confessou, tentando isentar sua família. Quando terminou, o
frade ordenou sua detenção... e a da família. Depois mandou trazer à sua
presença os demais acusados.

***

Ainda não tinha amanhecido quando Joan chegou à praça.


— Ele não dorme? — perguntou um dos soldados entre um bocejo e
outro.
— Não — respondeu o outro. — Muitas vezes, ouvem-no andar de um
lado para o outro durante a noite.
Os dois soldados observaram Joan, que terminava os preparativos para
o sermão final. O hábito preto sujo, puído e encardido, parecia se negar a
acompanhar seus movimentos.
— Pois se não dorme e também não come... — comentou o primeiro.
— Vive de ódio — interveio o oficial que ouvira a conversa.
O povo começou a comparecer assim que raiou o dia. Os acusados na
primeira fila, separados dos demais e escoltados pelos soldados; entre eles
Alfons, o menino de nove anos.
Joan deu início ao auto de fé, e as autoridades do povoado se
aproximaram para fazer o voto de obediência à Inquisição e jurar cumprir
as penas impostas. O frade começou a ler as acusações e as penas. Os que
tinham comparecido durante o período de graça receberam castigos
menores: peregrinar até a catedral de Girona. Alfons foi condenado a
ajudar gratuitamente, um dia por semana durante um mês, o vizinho a
quem tinha roubado. Quando leu a acusação de Gaspar, um grito
interrompeu seu discurso:
— Rameira! — Um homem se jogou em cima da mulher que se tinha
deitado com Gaspar. Os soldados acudiram para defendê-la. — Então este
era o pecado que você não queria me contar? — continuou a gritar de trás
dos soldados.
Quando o esposo ofendido se calou, Joan ditou a sentença:
— Todos os domingos durante três anos, vestido com um sambenito,
permanecerá de joelhos diante da igreja, desde o nascer do sol até o
anoitecer. Quanto a você... — se dirigiu à mulher.
— Reclamo o direito de castigá-la! — gritou o esposo.
Joan olhou para a mulher. “Você tem filhos?”, esteve a ponto de
perguntar. Que mal fizeram os filhos para serem obrigados a subir em
caixotes para falar com a mãe através de uma pequena janela, tendo como
único consolo uma carícia nos cabelos? Mas aquele homem tinha o
direito...
— Quanto a você — repetiu —, entrego-a às autoridades seculares, que
se encarregarão de fazer cumprir a lei catalã a pedido de seu esposo.
Joan continuou a acusar e impor penas.
— Anton Sinom, você e sua família ficarão à disposição do inquisidor-
geral.

***

— Vamos — ordenou Joan depois de acomodar seus poucos pertences


sobre uma mula.
O dominicano se despediu daquela gente com um olhar, ouvindo suas
próprias palavras que ainda ressoavam na pequena praça; naquele mesmo
dia chegariam a outro povoado, e depois a outro, e a outro mais. “E as
pessoas em todos eles”, pensou, “me olharão e ouvirão atemorizadas. E
depois se denunciarão entre si, e seus pecados sairão à luz. E eu terei de
investigá-las e interpretar seus movimentos, suas expressões, seus
silêncios, seus sentimentos, para encontrar o pecado.”
— Apresse o passo, oficial. Quero chegar antes do meio-dia.
QUARTA PARTE

Servos do destino
46
Páscoa de 1367
Barcelona

Arnau permanecia ajoelhado diante de sua Virgem do Mar enquanto os


sacerdotes celebravam a Páscoa. Entrou em Santa Maria ao lado de
Elionor; a igreja estava apinhada, mas as pessoas se afastaram para deixá-
lo passar até a primeira fila. Reconhecia seus sorrisos: este tinha pedido
um empréstimo para seu novo navio; aquele lhe entregara suas economias;
outro lhe pedira um empréstimo para o dote da filha; aquele ainda não
devolvera o combinado. Este último estava cabisbaixo. Arnau se deteve ao
lado dele e, para desespero de Elionor, estendeu a mão.
— Que a paz esteja convosco.
Os olhos do homem se iluminaram, e Arnau continuou a caminhar até o
altar-mor. Isso era tudo o que tinha, dizia à Virgem: gente humilde que o
apreciava em troca de ajuda. Joan estava perseguindo o pecado e nada
sabia de Guillem. Quanto a Mar, o que dizer?
Elionor bateu em seu tornozelo, e, quando Arnau olhou para ela, a
esposa fez um gesto para que se levantasse. “Por acaso alguma vez você
viu um nobre que permanecesse de joelhos tanto tempo como você?”,
recriminara-o diversas vezes. Arnau não lhe deu atenção, mas Elionor
voltou a bater em seus tornozelos.
— Isto é o que tenho, mãe. Uma mulher que se preocupa mais com as
aparências do que com outra coisa, exceto que a faça mãe. Devo fazê-lo?
Ela só quer um herdeiro, só quer um filho que garanta o seu futuro.
Elionor golpeou mais uma vez os seus tornozelos. Quando Arnau se
virou para encará-la, ela indicou com o olhar os outros nobres que estavam
em Santa Maria. Alguns estavam de pé, mas a maioria permanecia
sentada; só Arnau continuava ajoelhado.
— Sacrilégio!
O grito ressoou por toda a igreja. Os sacerdotes se calaram, Arnau se
levantou, e todos se viraram para a entrada principal.
— Sacrilégio! — ouviram outra vez.
Vários homens abriram caminho até o altar gritando sacrilégio, heresia,
demônios... e judeu! Caminharam em direção aos sacerdotes, mas um
deles incitou os fiéis.
— Os judeus profanaram uma hóstia sagrada! — gritou.
Um rumor correu entre os presentes.
— Não lhes basta terem matado Jesus Cristo?! — exclamou o primeiro
do altar. — Também querem profanar o Seu corpo!
O rumor inicial se transformou em gritaria. Arnau olhava as pessoas,
mas seu olhar topou com o de Elionor.
— Seus amigos judeus — disse ela.
Arnau sabia a que ela se referia. Desde o casamento de Mar lhe era
insuportável ficar em casa, e muitas tardes ele ia visitar o velho amigo
Hasdai Crescas, com quem conversava até muito tarde. Antes que Arnau
pudesse responder a Elionor, os nobres e pró-homens que os
acompanhavam nos ofícios se juntaram aos comentários e discutiram entre
si:
— Querem que Cristo continue a sofrer depois de morto — disse um.
— A lei os obriga a permanecer em casa com as portas e janelas
fechadas durante a Páscoa. Como podem? — perguntou o que estava ao
lado.
— Devem ter escapado — afirmou outro.
— E as crianças? — interveio uma terceira. — Com certeza devem ter
raptado uma criança cristã para crucificá-la e comer seu coração...
— E beber seu sangue — disseram.
Arnau não podia afastar os olhos daquele grupo de nobres enfurecidos.
Como podiam...? Seu olhar cruzou novamente com o da esposa. Ela sorria.
De repente, toda Santa Maria começou a clamar por vingança. Para a
judiaria! Todos se incitavam mutuamente com os gritos de hereges e
sacrílegos. Arnau os viu correr em direção à saída da igreja. Os nobres
ficaram para trás.
— Se você não se apressar — disse Elionor —, vai ficar do lado de fora
da judiaria.
Arnau se virou para ela; depois olhou para a Virgem. A gritaria
começava a se perder na Rua do Mar.
— Por que tanto ódio, Elionor? Por acaso você não tem tudo o que
deseja?
— Não, Arnau. Você sabe que não tenho o que desejo, e talvez seja isso
o que você entrega aos seus amigos judeus.
— De que você está falando, mulher?
— De você, Arnau, de você. Você sabe muito bem que nunca cumpriu
suas obrigações conjugais.
Arnau recordou as inúmeras vezes em que rejeitara as aproximações de
Elionor; primeiro com delicadeza, tentando não magoá-la, depois de
maneira brusca, sem nenhuma benevolência.
— O rei me obrigou a casar com você, mas não disse nada sobre
satisfazer suas necessidades.
— O rei não — respondeu ela —, mas a Igreja, sim.
Elionor respondeu ao marido com o olhar fixo nele; depois, muito
lentamente, virou a cabeça em direção ao altar-mor. Tinham ficado a sós
em Santa Maria... à exceção de três sacerdotes que permaneciam em
silêncio ouvindo a discussão do matrimônio. Arnau se virou também para
os três sacerdotes. Quando os cônjuges se olharam outra vez, Elionor
semicerrou os olhos.
Não disse nada mais. Arnau lhe deu as costas e saiu de Santa Maria.
— Vá com a sua amante judia — ouviu Elionor gritar atrás dele.
Um calafrio percorreu a espinha de Arnau.
Naquele ano Arnau voltara a ocupar o cargo de cônsul do Mar. Se
encaminhou à judiaria vestido de gala; os gritos da multidão cresciam à
medida que percorria a Rua do Mar, a Praça de Blat e a baixada de Presó
para chegar à igreja de Sant Jaume. O povo clamava por vingança e se
aglomerava diante de uma das portas defendidas pelos soldados do rei.
Apesar do tumulto, Arnau conseguiu passar com relativa facilidade.
— Não se pode entrar na judiaria, honorável cônsul — disse o oficial de
guarda. — Estamos esperando ordens do lugar-tenente real, o infante D.
Juan, filho de Pedro III.
E as ordens chegaram. Na manhã seguinte, o infante D. Juan dispôs a
reclusão de todos os judeus de Barcelona na sinagoga principal, sem água
nem comida, enquanto não aparecessem os profanadores da hóstia.
— Cinco mil pessoas — Arnau se indignou ao ouvir a notícia. — Cinco
mil pessoas confinadas sem água nem comida! O que será das crianças,
dos recém-nascidos? O que pretende o infante? Que imbecil pode esperar
que um judeu se declare culpado por ter profanado uma hóstia? Que
estúpido pode esperar que alguém se condene à morte?
Arnau esmurrou a mesa de seu escritório e se levantou. O beleguim que
lhe trouxera a notícia teve um sobressalto.
— Avise a guarda — ordenou Arnau.
O mui honorável cônsul do Mar percorreu a cidade apressadamente,
acompanhado por meia dúzia de missatges armados. As portas da judiaria,
ainda vigiadas por soldados do rei, estavam completamente abertas: a
multidão desaparecera, mas havia pouco mais de uma centena de curiosos
que tentavam ver o interior, apesar dos empurrões dos soldados.
— Quem está no comando? — perguntou Arnau ao oficial na porta.
— O veguer está lá dentro — informou o oficial.
— Avise-o.
O veguer não demorou a aparecer.
— O que deseja, Arnau? — perguntou, estendendo-lhe a mão.
— Quero falar com os judeus.
— O infante ordenou...
— Eu sei — Arnau o interrompeu. — Por isso mesmo tenho de falar
com eles. Tenho muitos procedimentos em andamento que afetam os
judeus. Preciso falar com eles.
— Mas o infante... — começou o veguer.
— O infante vive das alfamas! Eles têm de pagar doze mil soldos
anuais por disposição do rei. — O veguer concordou. — O infante está
interessado em que apareçam os culpados da profanação, mas não tenha
dúvida de que também tem interesse nos negócios comerciais dos judeus
seguindo curso, caso contrário... Lembre-se de que a judiaria de Barcelona
é a que mais contribui para esses doze mil soldos anuais.
O veguer não hesitou e cedeu passagem a Arnau e sua comitiva.
— Estão na sinagoga principal — disse, enquanto Arnau passava por
ele.
— Eu sei, eu sei.
Apesar de estarem confinados, o local estava tumultuado. Enquanto
caminhava, Arnau viu um enxame de frades de preto vasculhar cada uma
das casas à procura da hóstia ensanguentada.
Na porta da sinagoga, Arnau topou com outra guarda real.
— Venho falar com Hasdai Crescas.
O oficial encarregado tentou se opor, mas o que os acompanhava fez
um gesto afirmativo.
Enquanto esperava que Hasdai saísse, Arnau se virou para a judiaria. As
casas, com as portas abertas, ofereciam um espetáculo deplorável. Os
frades entravam e saíam, muitas vezes com objetos, que examinavam
entre si para depois negarem com a cabeça e jogá-los no chão, já coalhado
de pertences dos judeus. “Quem são os profanadores?”, pensou Arnau.
— Honorável — ouviu atrás de si.
Arnau se virou e viu Hasdai. Por alguns segundos observou aqueles
olhos que choravam pelo saqueio de sua intimidade. Arnau ordenou aos
soldados que se afastassem. Os missatges obedeceram, mas os soldados do
rei continuaram ao lado deles.
— Por acaso estão interessados nos assuntos do Consulado do Mar? —
Arnau lhes perguntou. — Retirem-se para junto de meus homens. Os
assuntos do consulado são secretos.
Os soldados obedeceram de má vontade. Arnau e Hasdai se
entreolharam.
— Gostaria de abraçá-lo — disse Arnau quando ninguém podia ouvi-
los.
— Não devemos.
— Como estão?
— Mal, Arnau. Mal. Nós, os velhos, não importamos, os jovens
aguentarão, mas as crianças estão há horas sem comer nem beber. Há
vários recém-nascidos; quando o leite das mães acabar... Estamos aqui há
poucas horas, mas as necessidades do corpo...
— Posso ajudá-los?
— Nós tentamos negociar, mas o veguer não quer nos atender. Você
sabe muito bem que só há uma forma: compre nossa liberdade.
— Quanto pode valer a...?
O olhar de Hasdai o impediu de continuar. Quanto valia a vida de cinco
mil judeus?
— Confio em você, Arnau. A minha comunidade está em perigo.
Arnau estendeu a mão.
— Confiamos em você — repetiu Hasdai, aceitando o gesto de Arnau.
Arnau circulou novamente entre os frades de preto. Teriam encontrado
a hóstia ensanguentada? Os objetos, que agora incluíam móveis,
continuavam a se amontoar nas ruas da judiaria. Cumprimentou o veguer
ao sair. Naquela mesma tarde lhe pediria uma audiência, mas quanto
deveria oferecer pela vida de um homem? E por toda a comunidade?
Arnau já havia negociado com todo tipo de mercadorias — tecidos,
especiarias, cereais, animais, navios, ouro e prata —; conhecia o preço dos
escravos, mas quanto valia um amigo?

***

Arnau saiu da judiaria, virou à esquerda e entrou na Rua Banys Nous;


cruzou a Praça de Blat e, quando estava na Rua Carders, perto da esquina
com Montcada, onde ficava a sua casa, parou de repente. Para quê? Para se
encontrar com Elionor? Deu meia-volta para retornar à Rua do Mar e
dirigiu-se à sua mesa de câmbio. Desde o dia em que consentira no
matrimônio de Mar... desde aquele dia, Elionor o perseguia sem descanso.
Primeiro de maneira sorrateira. Até então nunca o chamara de querido,
nunca tinha se preocupado com os seus negócios, com o que comia ou
simplesmente como estava. Quando aquela tática falhou, Elionor resolveu
atacar de frente. “Sou uma mulher”, disse-lhe um dia. Não deve ter
gostado do olhar com que Arnau respondeu, porque não disse mais nada...
por alguns dias. “Temos de consumar nosso casamento; estamos vivendo
em pecado.”
— Desde quando você se interessa tanto pela minha salvação?
Elionor não baixou a guarda apesar dos desplantes do esposo, e afinal
resolveu conversar com o padre Juli Andreu, um dos sacerdotes de Santa
Maria, para lhe expor o assunto. Ele, sim, tinha interesse na salvação de
seus fiéis, e, entre eles, Arnau era um dos mais estimados. Diante do
padre, Arnau não poderia se desculpar como fazia com Elionor.
— Não posso, padre — respondeu, quando este o abordou em Santa
Maria.
Era verdade. Logo depois de entregar Mar ao cavaleiro de Ponts, Arnau
tentara esquecer a moça e, por que não?, criar sua própria família. Tinha
ficado só. Todas as pessoas que amava tinham desaparecido de sua vida.
Podia ter filhos, brincar com eles, se dedicar e encontrar neles o que lhe
faltava, e isso só podia ser feito com Elionor. Mas os seus propósitos
vinham abaixo quando a via se aproximar, persegui-lo pelos cômodos do
palácio, ou quando ouvia sua voz falsa, forçada, tão diferente da voz com
que se dirigira a ele até então.
— O que quer dizer, meu filho? — perguntou o sacerdote.
— O rei me obrigou a casar com Elionor, padre, mas nunca me
perguntou se eu gostava de sua pupila.
— A baronesa...
— A baronesa não me atrai, padre. O meu corpo se nega.
— Posso lhe recomendar um bom médico.
Arnau sorriu.
— Não, padre, não. Não se trata disso. Fisicamente estou bem; é só
que...
— Então deve se esforçar para cumprir suas obrigações matrimoniais.
Nosso Senhor espera...
Arnau aguentou a cantilena do padre, até que imaginou Elionor lhe
contando mil histórias. O que estavam pensando?
— Padre — interrompeu-o —, não posso obrigar o meu corpo a desejar
uma mulher que ele não deseja. — O sacerdote quis intervir, mas Arnau o
impediu com um gesto. — Jurei que seria fiel à minha esposa e sou:
ninguém pode me acusar do contrário. Venho rezar com muita frequência e
doo dinheiro a Santa Maria. Tenho a impressão de que ao contribuir para
erguer este templo pago as fraquezas de meu corpo.
O padre parou de esfregar as mãos.
— Filho...
— O que pensais, padre?
O sacerdote buscou em seus parcos fundamentos de teologia
argumentos para rebater os de Arnau. Não conseguiu e, por fim, se perdeu
entre os operários de Santa Maria com passos rápidos. Quando ficou
sozinho, Arnau foi até a sua Virgem e se ajoelhou:
— Só penso nela, mãe. Por que me deixou entregá-la ao senhor De
Ponts?
Não via Mar desde seu matrimônio com Felip de Ponts. Quando ele
morreu, poucos meses depois da cerimônia, tentou se aproximar da viúva,
mas Mar não quis recebê-lo. “Talvez seja melhor”, disse a si mesmo. O
juramento diante da Virgem agora o prendia ainda mais: estava condenado
a ser fiel a uma mulher que não o amava e que ele não podia amar. E a
renunciar à única pessoa com quem podia ser feliz...
***

— Encontraram a hóstia? — perguntou Arnau ao veguer, sentados frente a


frente no palácio que dava para a Praça de Blat.
— Não — respondeu ele.
— Estive conversando com os conselheiros da cidade — disse Arnau
—, e eles concordam comigo. O confinamento da comunidade judaica
pode afetar seriamente os interesses comerciais de Barcelona. Acabamos
de começar a temporada de navegação. Se você for ao porto, verá alguns
navios esperando para partir. Levam encomendas de judeus. Ou as
descarregam ou terão de esperar que os comerciantes as acompanhem. O
problema é que nem toda carga é de judeus; também há mercadorias de
cristãos.
— Por que não as descarregam?
— O preço do transporte das mercadorias dos cristãos se elevaria.
O veguer espalmou as mãos num gesto de impotência.
— Junte as dos judeus em alguns navios e as dos cristãos em outros —
disse, apresentando uma solução.
Arnau balançou a cabeça.
— Não pode ser. Nem todos os navios têm o mesmo destino. Você sabe
que a temporada de navegação é curta. Se os navios não zarparem, todo o
comércio se atrasará e não poderão voltar a tempo; perderão alguma
viagem, e isso encarecerá as mercadorias. Todos perderemos dinheiro. —
“Incluindo você”, pensou Arnau. — Por outro lado, a espera dos navios no
porto de Barcelona é perigosa; se houver um temporal...
— E o que você propõe?
“Que todos sejam soltos. Que você ordene aos frades que parem de
revistar suas casas. Que seus pertences sejam devolvidos, que...”
— Multe a judiaria.
— O povo exige culpados, e o infante se comprometeu a encontrá-los.
A profanação de uma hóstia...
— A profanação de uma hóstia — argumentou Arnau — será mais cara
que outro delito. — Para que discutir? Os judeus tinham sido julgados e
condenados com hóstia ensanguentada ou sem ela. A dúvida fez o veguer
franzir a testa. — Por que você não tenta? Se conseguirmos, os judeus
pagarão, só eles; caso contrário, será um mau ano para o comércio, e
pagaremos todos.
***

Rodeado de operários, de barulho e poeira, Arnau ergueu os olhos para a


chave que fechava a segunda das quatro abóbadas da nave central de Santa
Maria, a última a ser construída. Na grande pedra clave estava
representada a Anunciação, com a Virgem ajoelhada e coberta por um
manto vermelho bordado de ouro, recebendo do anjo a notícia de sua
maternidade. As cores vivas, os vermelhos e azuis, mas principalmente os
dourados, atraíam o olhar de Arnau. Bonita cena.
O veguer sopesou os argumentos de Arnau e finalmente cedeu.
Vinte e cinco mil libras e quinze culpados! Essa foi a resposta do
veguer no dia seguinte, depois de consultar a corte do infante D. Juan.
— Quinze culpados? Querem executar quinze pessoas pela intriga de
quatro dementes?
O veguer esmurrou a mesa.
— Esses dementes são a santa Igreja católica.
— Você sabe muito bem que não.
Os dois homens se encararam.
— Sem culpados — disse Arnau.
— Não é possível. O infante...
— Sem culpados! Vinte e cinco mil libras é uma fortuna.
Arnau deixou o palácio do veguer sem rumo fixo. O que diria a Hasdai?
Que quinze deles deveriam morrer? Porém não podia tirar da mente a
imagem de cinco mil pessoas apinhadas em uma sinagoga sem água, sem
comida...
— Quando terei a resposta? — perguntou ao veguer.
— O infante está caçando.
Caçando! Cinco mil pessoas estavam confinadas por uma ordem sua, e
ele tinha ido caçar. O percurso de Barcelona a Girona, a terra do infante,
duque de Girona e de Cervera, não demorava mais de três horas a cavalo,
mas só no fim da tarde do dia seguinte Arnau foi chamado pelo veguer.
— Trinta e cinco mil libras e cinco culpados.
Mil libras por judeu de diferença. “Talvez este seja o preço de um
homem”, pensou Arnau.
— Quarenta mil, sem culpados.
— Não.
— Recorrerei ao rei.
— Você bem sabe que o rei tem suficientes problemas com a guerra
contra Castela para se indispor com seu filho e lugar-tenente. Por isso o
nomeou.
— Quarenta e cinco mil, mas sem culpados.
— Não, Arnau, não...
— Consulte-o! — explodiu Arnau. — Eu suplico — retificou-se.

***

O fedor que saía da sinagoga atingiu Arnau a vários metros de distância.


As ruas da judiaria estavam piores, e os móveis e objetos dos judeus se
amontoavam por toda parte. No interior das casas ressoavam os golpes dos
frades de preto, que destruíam paredes e pisos em busca do corpo de
Cristo. Arnau teve de se esforçar para aparentar serenidade ao encontrar
Hasdai, desta vez acompanhado pelos rabinos e outros chefes da
comunidade. Seus olhos ardiam. Seria pelo cheiro forte de urina no
interior da sinagoga ou simplesmente pelas notícias que tinha para lhes
dar?
Por um instante, acompanhado por uma infinidade de gemidos, Arnau
observou aqueles homens que tentavam renovar o ar de seus pulmões.
Todos olharam de soslaio a desordem das ruas da judiaria, e sua forte
respiração ficou momentaneamente entrecortada.
— Exigem culpados — disse Arnau quando os cinco se recuperaram. —
Começamos por quinze. Estamos em cinco e espero...
— Não podemos esperar, Arnau Estanyol — um dos rabinos o
interrompeu. — Hoje um velho morreu; estava doente, mas nossos
médicos não puderam fazer nada por ele, nem sequer molhar seus lábios.
Não nos permitem enterrá-lo. Entende o que isso significa? — Arnau
concordou. — Amanhã, o fedor de seu corpo em decomposição se somará
aos...
— Na sinagoga — continuou Hasdai — não podemos nem nos mover;
as pessoas... As pessoas não podem se levantar para fazer suas
necessidades. As mães já não têm leite; deram de mamar aos recém-
nascidos e também às outras crianças, para saciar sua sede. Se esperarmos
mais alguns dias, cinco culpados serão um detalhe.
— Mais quarenta e cinco mil libras — acrescentou Arnau.
— O que importa o dinheiro quando podemos todos morrer? —
interveio outro rabino.
— E? — perguntou Arnau.
— Insista, Arnau — suplicou Hasdai.
Outras dez mil libras apressaram o correio do infante... ou ele nem foi,
talvez. Arnau foi convocado na manhã seguinte. Três culpados.
— São homens! — recriminou Arnau ao veguer.
— São judeus, Arnau, são só judeus. Hereges que são propriedade da
coroa. Sem o seu favor, hoje estariam todos mortos, e o rei decidiu que
três deles devem pagar pela profanação da hóstia. O povo o exige.
“Desde quando o povo importa tanto ao rei?”, pensou Arnau.
— Além disso — insistiu o veguer —, assim se solucionam os
problemas do consulado.
O cadáver do velho, os peitos secos das mães, as crianças chorando, os
gemidos e o fedor levaram Arnau a consentir. O veguer se acomodou na
cadeira.
— Há duas condições — acrescentou Arnau, obrigando-o a prestar
atenção novamente. — A primeira é que eles escolherão os culpados. — O
veguer consentiu. — A segunda é que o trato deve ser aprovado pelo bispo,
com o compromisso de acalmar o povo.
— Isso eu já fiz, Arnau. Você acha que eu gostaria de ver outra matança
na judiaria?

***

A procissão partiu da própria judiaria. No interior, as portas e janelas das


casas estavam fechadas, e as ruas pareciam desertas, coalhadas de móveis.
O silêncio do local parecia desafiar o clamor que se ouvia fora dela, onde
as pessoas se aglomeravam em torno do bispo, refulgente de ouro sob o sol
mediterrâneo, e da infinidade de sacerdotes e frades de preto que
esperavam ao longo da Rua da Boquería, separados do povo por duas filas
de soldados do rei.
A gritaria rasgou o céu quando três figuras apareceram nas portas da
judiaria. As pessoas ergueram os punhos, e seus insultos se confundiram
com o som das espadas desembainhadas pelos soldados que defendiam a
comitiva. As três figuras, enfileiradas por correntes presas a seus pés e
mãos, foram ladeadas por duas fileiras de frades, e assim a procissão
iniciou a marcha, encabeçada pelo bispo de Barcelona. A presença dos
soldados e dos dominicanos não impediu que o povo apedrejasse e
cuspisse nos três culpados.
Arnau rezava em Santa Maria. Tinha levado a notícia à judiaria, onde
fora outra vez recebido por Hasdai, pelos rabinos e pelos chefes da
comunidade diante da porta da sinagoga.
— Três culpados — disse, tentando não desviar o olhar. — Vocês
podem... vocês mesmos podem escolher.
Nenhum deles disse nada; simplesmente observaram as ruas da
judiaria, deixando as queixas e lamentos que vinham do templo
envolverem seus pensamentos. Arnau não teve coragem de alongar sua
intervenção e se desculpou com o veguer ao deixar a judiaria.
— Três inocentes... porque você e eu sabemos que a história da
profanação do corpo de Cristo é falsa.
Arnau começou a ouvir a gritaria da multidão ao longo da Rua do Mar.
O barulho encheu Santa Maria; ocupou os vãos das portas e escalou os
andaimes de madeira que sustentavam as estruturas da construção, como
qualquer operário, até alcançar as abóbadas. Três inocentes! “Como será
que fizeram a escolha? Os rabinos se encarregaram ou terão se
apresentado voluntariamente?”. Então Arnau recordou os olhos de Hasdai
fitando as ruas da judiaria. O que havia neles? Resignação? Por acaso seria
o olhar de alguém que estava se... despedindo? Arnau estremeceu; seus
joelhos fraquejaram e ele teve de se agarrar ao genuflexório. A procissão
se aproximava de Santa Maria. A gritaria aumentou. Arnau se levantou e
olhou para a porta que dava para a Praça de Santa Maria. A procissão
entraria a qualquer momento. Permaneceu no templo olhando a praça até
que os insultos se transformaram em realidade.
Arnau correu para a porta. Ninguém ouviu seus gritos. Ninguém o viu
chorar. Ninguém o viu cair de joelhos ao ver Hasdai acorrentado,
arrastando os pés em meio a uma chuva de insultos, pedras e cuspes.
Hasdai passou diante de Santa Maria com o olhar posto no homem que, de
joelhos, esmurrava o piso. Arnau o viu e continuou a esmurrar até que a
procissão se foi, até que a terra começou a se tingir de vermelho. Então
alguém se ajoelhou diante dele e tomou suas mãos suavemente.
— Meu pai não ia querer que você se machucasse por causa dele —
disse Raquel quando Arnau levantou os olhos.
— Vão matá-lo.
— Vão.
Arnau olhou o rosto daquela menina agora transformada em mulher. Ali
mesmo, debaixo daquela igreja, ele a escondera muitos anos atrás. Raquel
não chorava e, apesar do perigo, usava suas roupas de judia e o círculo
amarelo que evidenciava sua condição.
— Devemos ser fortes — disse-lhe a menina que ele recordava.
— Por quê, Raquel? Por que ele?
— Por mim. Por Jucef. Pelos meus filhos e pelos de Jucef, seus netos;
pelos amigos dele. Por todos os judeus de Barcelona. Disse que estava
velho, que já era o bastante.
Arnau se ergueu com a ajuda de Raquel e se apoiou nela; assim ambos
acompanharam a gritaria.
Foram queimados vivos. Arderam em fogo amarrados a um poste sobre
toras e gravetos, e em nenhum momento cessou o clamor de vingança dos
cristãos. Hasdai elevou os olhos para o céu quando as chamas alcançaram
o seu corpo. Então foi Raquel quem chorou, abraçou Arnau e escondeu as
lágrimas em seu peito; estavam um pouco afastados da multidão.
Arnau, abraçado à filha de Hasdai, não conseguia afastar o olhar do
corpo do amigo em chamas. Pareceu-lhe que sangrava. De repente, já não
ouvia os gritos das pessoas, só via seus punhos erguidos no ar... Depois,
alguma coisa o levou a olhar para a direita. A cerca de cinquenta metros
estavam o bispo e o inquisidor-geral, e, ao lado deles, Elionor apontava
para Arnau enquanto falava com eles. Do outro lado estava uma dama
elegantemente vestida, que ele não reconheceu de imediato. Arnau e o
inquisidor se entreolharam enquanto Elionor gesticulava e gritava sem
deixar de apontar para ele.
— Aquela, aquela judia é a sua amante. Olhai-os. Vede como a abraça.
Naquele preciso momento, Arnau abraçou com força a mulher judia que
chorava apoiada nele enquanto as chamas se erguiam em direção ao céu ao
som do bramido da multidão. Depois, ao desviar o olhar para fugir do
horror, os olhos de Arnau cruzaram com os de Elionor. Estremeceu ao ver
sua expressão de ódio profundo, a maldade da vingança satisfeita. Então
ouviu a risada da mulher que acompanhava sua esposa, uma risada
inconfundível, irônica, que Arnau tinha gravada na memória desde
criança: a risada de Margarida Puig.
47

Uma vingança que Elionor tramava havia muito tempo, e ela não estava
só. A acusação contra Arnau e a judia Raquel era só o começo.
As decisões de Arnau como barão de Granollers, Sant Vicenç dels Horts
e Caldes de Montbui atraíram o ódio dos demais nobres, que viam soprar o
vento da rebeldia entre os camponeses... Mais de um nobre fora obrigado a
sufocar, com mais contundência que de costume, revoltas que clamavam a
abolição de certos privilégios a que Arnau, o barão nascido servo,
renunciara. Entre esses nobres ofendidos estava Jaume de Bellera, filho do
senhor de Navarcles, que Francesca amamentara quando era um bebê. E,
ao seu lado, alguém a quem Arnau privara de sua casa, sua fortuna e seu
estilo de vida: Genís Puig, que, depois do desalojamento, tivera de ocupar
a velha casa de Navarcles que tinha pertencido a seu avô, o pai de Grau;
uma casa que pouco tinha a ver com o palácio da Rua de Montcada onde
passara a maior parte de sua vida. Ambos passavam horas lamentando a
má sorte e traçando planos de vingança. Um plano que agora, se as cartas
de sua irmã Margarida não mentiam, estava prestes a dar frutos...
Arnau pediu ao marinheiro que testemunhava que ficasse em silêncio e
se virou para o aguazil do tribunal do Consulado do Mar que interrompera
o julgamento.
— Um oficial e vários soldados da Inquisição querem vos falar —
sussurrou-lhe, se inclinando em sua direção.
— O que querem? — perguntou Arnau. O homem fez um gesto de
ignorância. — Que esperem até o final do julgamento — ordenou, antes de
indicar ao marinheiro que continuasse.
Outro marinheiro tinha morrido durante a travessia, e o dono do navio
se negava a pagar aos herdeiros mais de dois meses de salário, mas a viúva
afirmava que o acordo não fora por meses e, já que o marido morrera em
alto-mar, metade da quantia combinada lhe cabia.
— Continue — pediu Arnau, com os olhos na viúva e nos três filhos do
falecido.
— Nenhum marinheiro faz acordo por meses...
De repente, as portas do tribunal se abriram bruscamente. Um oficial e
seis soldados da Inquisição, armados, empurraram sem hesitação o aguazil
do tribunal e irromperam na sala.
— Arnau Estanyol? — perguntou o oficial, se dirigindo diretamente a
ele.
— O que significa isso? — gritou Arnau. — Como se atrevem a
interromper...
O oficial continuou a andar até se plantar diante dele.
— Vós sois Arnau Estanyol, cônsul do Mar, barão de Granollers...?
— Vós sabeis muito bem que sim, oficial — disse Arnau. — Mas...
— Por ordem do tribunal da Santa Inquisição, estais detido.
Acompanhai-me.
Os missatges do tribunal fizeram uma tentativa de defender seu cônsul,
mas Arnau os deteve com um gesto.
— Fazei o favor de esperar — pediu Arnau ao oficial da Inquisição.
O homem hesitou. O cônsul, com gesto calmo, insistiu com a mão, lhe
indicando que fosse até a porta, e, por fim, sem deixar de vigiar o
prisioneiro, o oficial se afastou, permitindo que Arnau encarasse os
familiares do marinheiro morto.
— Sentencio a favor da viúva e dos filhos — determinou ele com
tranquilidade. — Deverão receber metade do salário total da travessia e
não os dois meses que o dono do navio pretende. Assim ordena este
tribunal.
Arnau deu um golpe com a mão, se colocou de pé e encarou o oficial da
Inquisição.
— Vamos — disse.

***

A notícia da detenção de Arnau Estanyol se espalhou por Barcelona e, pela


boca dos nobres, mercadores ou de simples camponeses, por grande parte
da Catalunha.
Alguns dias depois, em uma pequena vila ao norte do principado, um
inquisidor que atemorizava um grupo de cidadãos recebeu a notícia de um
oficial da Inquisição.
Joan encarou o oficial.
— Parece que é verdade — insistiu.
O inquisidor olhou as pessoas agrupadas à sua frente. O que ele estava
dizendo? Arnau detido?
Olhou novamente o oficial, que assentiu.
Arnau?
As pessoas começaram a se mexer inquietamente. Joan tentou
continuar, mas não conseguia dizer uma palavra. Outra vez olhou o oficial
e percebeu um sorriso em seus lábios.
— Não prosseguis, frei Joan? — perguntou ele. — Os pecadores vos
esperam.
Joan se virou novamente para o povo.
— Partimos para Barcelona — ordenou.
De volta à cidade condal, Joan passou muito perto das terras do barão
de Granollers. Com um pequeno desvio de rota, poderia ter visto o
castelão de Montbui e outros cavaleiros submetidos a Arnau percorrerem
as terras amedrontando os camponeses, que novamente estavam sujeitos
aos maus usos que um dia Arnau derrogara. “Dizem que a própria
baronesa denunciou Arnau”, disse alguém.
Mas Joan não passou pelas terras do irmão. Na viagem de regresso, não
trocou uma palavra com o oficial ou com os homens que formavam a
comitiva, nem mesmo com o escrivão. No entanto, não pôde deixar de
ouvir.
— Parece que foi detido por heresia — disse um dos soldados,
erguendo a voz para que Joan o ouvisse.
— O irmão de um inquisidor? — perguntou outro, aos gritos.
— Nicolau Eimeric vai conseguir que confesse tudo o que tem
guardado no íntimo — interveio o oficial.
Joan se lembrou de Nicolau Eimeric. Quantas vezes o felicitara por seu
trabalho como inquisidor?
— É preciso combater a heresia, frei Joan... É preciso procurar o
pecado sob a aparência da bondade das pessoas; nas alcovas, entre os
filhos, entre os esposos.
E ele o fizera. “Não se deve hesitar em torturá-los para que confessem.”
E ele também o fizera, sem descanso. Que tortura teria aplicado a Arnau
para que confessasse sua heresia?
Joan apressou o passo. O hábito sujo e puído caía como chumbo sobre
suas pernas.

***

— Por culpa dele estou nesta situação — comentou Genís Puig,


caminhando de um lado para outro do cômodo. — Eu, que desfrutei...
— De dinheiro, mulheres, poder — completou o barão.
Mas Genís não fez caso ao barão.
— Meus pais e meu irmão morreram como simples camponeses,
famintos, atacados por doenças que só se disseminam entre os pobres, e
eu...
— Um simples cavaleiro sem tropas para apoiar o rei — acrescentou o
barão, entediado, terminando a frase repetida mil vezes.
Genís Puig se deteve diante de Jaume, o filho de Llorenç de Bellera.
— Você acha engraçado?
O senhor de Bellera não se movera de seu assento desde que começara a
acompanhar a ronda de Genís pela torre do castelo de Navarcles.
— Acho — respondeu depois de um momento —, mais do que
engraçado. Seus motivos para odiar Arnau Estanyol me parecem
grotescos, comparados aos meus.
Jaume de Bellera dirigiu o olhar para o alto da torre.
— Você quer parar de dar voltas?
— Quanto o seu oficial ainda vai demorar? — perguntou Genís, sem
deixar de andar.
Ambos esperavam a confirmação das notícias que Margarida Puig
havia insinuado em uma carta anterior. Genís Puig convencera a irmã a,
pouco a pouco, nas muitas horas que Elionor passava sozinha na casa que
fora da família Puig, ganhar a confiança da baronesa. Não foi difícil:
Elionor precisava de uma confidente que odiasse seu marido tanto quanto
ela. Foi Margarida quem, de maneira insidiosa, disse a Elionor aonde ia o
barão. Agora que Arnau estava detido por se relacionar com uma judia,
Jaume de Bellera e Genís Puig dariam o passo que tinham planejado.
— A Inquisição deteve Arnau Estanyol — confirmou o oficial assim
que entrou na torre.
— Então Margarida tinha ra... — Genís saltou.
— Cale-se — ordenou o senhor de Bellera. — Continue.
— Foi detido há três dias, enquanto participava de um julgamento no
tribunal do consulado.
— De que o acusam?
— Não está muito claro; há quem diga que é por heresia, outros
afirmam que por ser judaizante, e outros por manter relações com uma
judia. Ainda não foi julgado; está preso nas masmorras do palácio
episcopal. Meia cidade está a favor e meia contra, mas todos fazem fila
diante de sua mesa de câmbio para retirar os seus depósitos. Eu os vi. As
pessoas brigam para recuperar seu dinheiro.
— E pagam? — interveio Genís.
— No momento, sim, mas todos sabem que Arnau Estanyol emprestou
muito dinheiro a pessoas sem recursos e, se não puder recuperar estes
empréstimos... Por isso as pessoas brigam: duvidam que o cambista
consiga manter-se. A confusão é grande.
Jaume de Bellera e Genís Puig trocaram olhares.
— Começa a queda — comentou o cavaleiro.
— Procure a puta que me amamentou! — ordenou o barão ao oficial. —
E tranque-a nas masmorras do castelo!
Genís Puig se uniu ao senhor de Bellera e apressou o oficial.
— Esse leite endemoniado não era para mim — ouvira-o dizer várias
vezes. — Era para o seu filho, Arnau Estanyol, e, enquanto ele desfruta do
dinheiro e do favor do rei, eu sofro as consequências do mal que sua mãe
me transmitiu.
Jaume de Bellera tinha recorrido ao bispo para que a epilepsia de que
padecia não fosse considerada um mal do demônio. No entanto, a
Inquisição não teria dúvidas de que Francesca estava endemoniada.

***

— Gostaria de ver o meu irmão — disse Joan a Nicolau Eimeric assim que
se apresentou no palácio do bispo.
O inquisidor-geral semicerrou os olhos.
— Você tem de conseguir que ele confesse a sua culpa e se arrependa.
— De que é acusado?
Nicolau Eimeric teve um sobressalto detrás da mesa em que o tinha
recebido.
— Você pretende que lhe diga de que o acusam? Você é um grande
inquisidor, mas... Por acaso está tentando ajudar o seu irmão? — Joan
baixou os olhos. — Só posso lhe dizer que se trata de uma questão muito
séria. Permitirei que o visite, desde que prometa que o objetivo das visitas
será conseguir a confissão de Arnau.
Dez chibatadas! Quinze, vinte e cinco... Quantas vezes repetira aquela
ordem nos últimos anos? “Até que confesse!”, ordenara ao oficial que o
acompanhava. E agora... agora lhe pediam que obtivesse a confissão de seu
próprio irmão. Como poderia fazer isso? Joan quis responder, mas sua
tentativa se limitou a um simples movimento das mãos.
— É sua obrigação — Eimeric lembrou-o.
— É meu irmão. É tudo o que tenho...
— Você tem a Igreja. Tem a todos nós, seus irmãos na fé cristã. — O
inquisidor-geral deixou passar alguns segundos. — Esperei-o porque sabia
que viria, frei Joan. Se não assumir esse compromisso, terei de me
encarregar dele pessoalmente.

***

Não conseguiu reprimir uma expressão de desgosto quando o fedor das


masmorras do palácio episcopal chegou ao seu nariz. Enquanto percorria o
corredor que o levaria até Arnau, Joan ouviu o gotejar da água que se
infiltrava pelas paredes e o som das ratazanas que fugiam à medida que
passava. Viu uma delas correr entre seus pés. Estremeceu como fizera ao
ouvir a ameaça de Nicolau Eimeric: “Terei de me encarregar dele
pessoalmente.” Que falta teria cometido Arnau? Como lhe dizer que ele, o
seu próprio irmão, tinha prometido...?
O aguazil abriu a porta da masmorra, e um grande recinto escuro e
fedorento se abriu diante de Joan. Algumas sombras se moveram, e o
tilintar das correntes que as mantinham presas às paredes soou nos
ouvidos do dominicano. Ele sentiu o estômago se rebelar contra aquela
miséria, e a bílis lhe subiu até a boca. “Ali”, informou o aguazil,
apontando para uma sombra encolhida em um canto, e, sem esperar
resposta, saiu da masmorra. O barulho da porta às suas costas o
sobressaltou. Joan permaneceu de pé junto à entrada, envolto na
penumbra; uma única janela gradeada no alto da parede permitia a entrada
de tênues raios de luz. As correntes começaram a tinir depois da saída do
aguazil; mais de uma dezena de sombras se moveu. “Estariam tranquilos
porque não tinham vindo buscá-los, ou talvez desesperados por isso?”,
pensou Joan enquanto começava a se sentir acossado pelos lamentos e
gemidos. Se aproximou de uma das sombras, aquela para a qual pensava
que o aguazil apontara, mas, quando se agachou diante dela, viu o rosto
desdentado e cheio de chagas de uma anciã.
Caiu para trás. A anciã o fitou por um instante e voltou a esconder sua
desgraça na escuridão.
— Arnau? — sussurrou Joan, ainda no chão. Depois repetiu em voz
alta, rompendo o silêncio que obtivera em resposta.
— Joan?
Se dirigiu depressa à voz que lhe indicava o caminho. Se agachou
diante de outra sombra, tomou a cabeça do irmão entre as mãos e a trouxe
para si.
— Virgem Santa! O que...? O que fizeram com você? Como você está?
— Joan começou a apalpar Arnau; o cabelo áspero, as maçãs do rosto que
começavam a sobressair. — Não lhe dão de comer?
— Dão — respondeu Arnau —, pão amanhecido e água.
Joan tocou as argolas em seus tornozelos e afastou as mãos
rapidamente.
— Você pode fazer alguma coisa por mim? — perguntou Arnau. Joan
se calou. — Você é um deles. Sempre comentou comigo que o inquisidor
gostava de você. Isto é insuportável, Joan. Não sei há quantos dias estou
aqui dentro. Estava esperando você...
— Vim assim que pude.
— Você falou com o inquisidor?
— Falei.
Apesar da escuridão, Joan desviou o olhar. Os dois irmãos ficaram em
silêncio.
— E? — perguntou Arnau por fim.
— O que você fez, Arnau?
A mão de Arnau agarrou o braço de Joan.
— Como você pode pensar...
— Eu preciso saber, Arnau. Preciso saber de que o acusam para poder
ajudá-lo. Você sabe muito bem que a denúncia é secreta; Nicolau não quis
me dizer.
— Então, sobre o que conversaram?
— Sobre nada — respondeu Joan. — Eu não quis falar antes de ver
você. Preciso saber por onde a acusação pode ir, para convencer Nicolau.
— Pergunte a Elionor. — Arnau voltou a ver a mulher apontando para
ele entre as chamas que queimavam o corpo de um inocente. — Hasdai
morreu — disse.
— Elionor?
— Você se espanta?
Joan perdeu o equilíbrio e teve de se apoiar em Arnau.
— O que foi, Joan? — perguntou Arnau, fazendo um esforço para não
deixá-lo cair.
— Este lugar... ver você assim... Acho que estou ficando enjoado.
— Saia daqui — disse Arnau. — Você é mais útil fora daqui do que
tentando me consolar.
Joan se levantou. Suas pernas fraquejavam.
— Sim, acho que sim.
Chamou o aguazil e deixou a masmorra. Percorreu o corredor precedido
pelo vigilante obeso. Tinha algumas moedas.
— Tome — disse a ele. O homem se limitou a guardar o dinheiro. — Se
tratar bem o meu irmão, amanhã você terá mais. — A única resposta foi o
barulho das ratazanas fugindo. — Você me ouviu? — insistiu. Só se ouviu
um grunhido.

***

Precisava de dinheiro. Assim que deixou o palácio do bispo, Joan foi para
a mesa de câmbio de Arnau, e encontrou uma multidão aglomerada na
esquina de Canvis Vells e Canvis Nous, diante do pequeno edifício onde
Arnau administrava seus negócios. Joan recuou.
— Ali está o irmão dele! — gritou alguém.
Várias pessoas se lançaram sobre ele. Joan tentou escapar, mas mudou
de ideia ao ver que as pessoas se detinham a alguns passos dele. Como
poderiam atacar um dominicano? Ergueu-se o máximo que pôde e tentou
retomar o seu caminho.
— O que aconteceu com o seu irmão, frade? — perguntou alguém
quando Joan passou.
Ele viu um homem bem mais alto que ele.
— O meu nome é frei Joan, inquisidor do Santo Ofício — levantou a
voz ao mencionar o seu cargo. — Você pode se dirigir a mim como senhor
inquisidor.
Joan olhou para o alto, diretamente nos olhos do homem. “E quais são
os seus pecados?”, lhe perguntou em silêncio. O homem retrocedeu alguns
passos. Joan se encaminhou para a mesa de câmbio, e as pessoas foram lhe
dando passagem.
— Sou o frei Joan, inquisidor do Santo Ofício! — teve de gritar de
novo diante das portas fechadas do estabelecimento.
Três oficiais de Arnau o receberam. O interior estava revirado; os livros
estavam espalhados pelo tapete vermelho enrugado que cobria a grande
mesa de câmbio. Se Arnau visse aquilo...
— Preciso de dinheiro — disse ele.
Os três demonstraram incredulidade.
— Nós também — respondeu o mais velho, chamado Remigi, o
substituto de Guillem.
— O que você disse?
— Que não há nenhum níquel, frei Joan. — Remigi se aproximou da
mesa e virou vários cofres. — Nenhum.
— O meu irmão não tem dinheiro?
— Não em espécie. O que acha que toda essa gente lá fora está
fazendo? Querem o dinheiro deles. Estamos sendo acossados há vários
dias. Arnau continua muito rico — o oficial tentou tranquilizá-lo —, mas
está tudo investido em empréstimos, em comandas, em negócios em
andamento...
— E não podem exigir a devolução dos empréstimos?
— O maior devedor é o rei, e sabemos que as arcas de sua majestade...
— Ninguém mais deve dinheiro a Arnau?
— Sim, muita gente, mas são empréstimos que não venceram, e os que
venceram... vós sabeis que Arnau emprestava muito dinheiro a gente
humilde. Não podem devolver. Ainda assim, quando souberam da situação
de Arnau, muitos vieram e pagaram parte do que deviam, o pouco que têm,
mas seu gesto não passa disso. Não podemos cobrir a devolução dos
depósitos.
Joan se virou para a porta e apontou.
— E eles? Por que podem exigir seu dinheiro?
— De fato, não podem. Todos depositaram dinheiro para Arnau
negociar com ele. Mas o dinheiro é covarde, e a Inquisição...
Joan fez um gesto para que esquecesse o seu hábito. O grunhido do
aguazil voltou a ressoar em seus ouvidos.
— Preciso de dinheiro — pensou em voz alta.
— Pois não há — ouviu da boca de Remigi.
— Mas eu preciso — reiterou Joan. — Arnau precisa.
“Arnau precisa e, sobretudo”, pensou Joan, se virando novamente para a
porta, “precisa de tranquilidade. Este escândalo só vai prejudicá-lo. As
pessoas pensarão que está arruinado, e então ninguém vai querer saber
dele... Precisaremos de apoio.”
— Não se pode fazer nada para acalmar essa gente? Não podemos
vender nada?
— Poderíamos ceder algumas comandas. Agrupar os depositários de
acordo com as comandas em que Arnau não conste — respondeu Remigi.
— Mas, sem a sua autorização...
— A minha serve?
O oficial olhou para Joan.
— É preciso, Remigi.
— Suponho que sim — cedeu o empregado depois de um momento. —
Na realidade, não perderíamos dinheiro. Só permutaríamos os negócios:
eles ficariam com uns e nós com outros. Sem Arnau no meio, eles se
tranquilizariam... mas tem de me dar a autorização por escrito.
Joan assinou o documento que Remigi preparou.
— Consiga dinheiro em espécie para amanhã logo cedo — disse
enquanto assinava. — Precisamos de dinheiro vivo — insistiu diante do
olhar do oficial. — Venda algo a um preço baixo se for preciso, mas
precisamos de dinheiro.
Assim que Joan deixou a mesa de câmbio e calou novamente os
credores, Remigi começou a agrupar as comandas. Neste mesmo dia, o
último navio que zarpou do porto de Barcelona levava instruções para os
correspondentes de Arnau ao longo do Mediterrâneo. Remigi agiu com
rapidez; no dia seguinte satisfariam os credores, que começariam a
divulgar a nova situação dos negócios de Arnau.
48

Pela primeira vez em quase uma semana, Arnau bebeu água fresca e
comeu algo que não fosse pão duro. O aguazil o obrigou a se levantar
empurrando-o com o pé e jogou um balde de água onde ele estivera.
“Melhor água que excrementos”, pensou Arnau. Por um instante só se
ouviram o barulho da água no chão e a respiração ofegante do aguazil
obeso; até a anciã com o rosto permanentemente oculto entre farrapos que
tinha se rendido à morte ergueu os olhos para a figura de Arnau.
— Deixe o balde — ordenou o bastaix ao aguazil quando ele estava
indo embora.
Arnau o vira maltratar os presos que o encaravam. O aguazil se virou
com o braço estendido, mas se deteve pouco antes de golpear o corpo de
Arnau, que permaneceu imóvel diante do embate; então cuspiu e deixou
cair o balde no chão. Antes de sair, chutou uma das sombras que o
observava.
Quando a terra absorveu a água, Arnau se sentou novamente. Lá fora
um sino repicou. Seu único vínculo com o mundo eram o repicar dos sinos
e os tênues raios de sol que se filtravam pela janela que, pelo lado de fora,
ficava na altura do chão. Arnau ergueu os olhos para a janela e apurou o
ouvido. Santa Maria estava inundada de luz, mas ainda não tinha sinos; no
entanto, mesmo longe da igreja, podia ouvir o barulho dos cinzéis nas
pedras, o martelar nas madeiras e os gritos dos operários. Quando o eco
daqueles barulhos entrava na masmorra, meu Deus! A luz e o som o
envolviam e levavam para junto do espírito dos que trabalhavam entregues
à Virgem do Mar. Arnau voltou a sentir nas costas o peso da primeira
pedra que carregara para Santa Maria. Quanto tempo se passara desde
então? Como as coisas tinham mudado! Ele não passava de um menino,
um menino que encontrou na Virgem a mãe que nunca conheceu...
Pelo menos, disse Arnau a si mesmo, conseguira salvar Raquel do
terrível destino a que parecia sentenciada. Assim que viu Elionor e
Margarida Puig apontar para eles, Arnau se encarregara de que Raquel e
toda a sua família fugissem da judiaria. Nem ele sabia para onde...
— Quero que você procure Mar — disse a Joan quando ele voltou para
visitá-lo.
O frade ficou parado a poucos passos do irmão.
— Você me ouviu, Joan? — Arnau se levantou e deu alguns passos, mas
as correntes puxaram suas pernas. O outro continuava parado no mesmo
lugar. — Joan, você me ouviu?
— Si... sim... ouvi. — Joan foi até ele para abraçá-lo. — Mas... —
começou.
— Preciso vê-la, Joan. — Arnau agarrou os ombros do frade, detendo o
abraço, e o sacudiu suavemente. — Não quero morrer sem falar com ela
novamente...
— Por Deus! Não diga...
— Sim, Joan. Poderia morrer aqui mesmo, sozinho, com uma dezena de
desiludidos como testemunhas. Não quero morrer sem ter a oportunidade
de ver Mar. É algo...
— Mas o que você quer dizer a ela? O que pode ser tão importante?
— O perdão dela, Joan, preciso do perdão dela... E quero dizer que a
amo. — Joan tentou se livrar das mãos do irmão, mas Arnau o impediu. —
Você me conhece, você é um homem de Deus. Sabe que nunca fiz mal a
ninguém, exceto a essa menina.
Joan conseguiu se soltar... e caiu de joelhos diante do irmão.
— Não foi... — hesitou.
— Eu só tenho você, Joan — disse Arnau, se ajoelhando também. —
Você tem de me ajudar. Você nunca falhou comigo. Não pode fazer isso
agora. Você é tudo o que tenho, Joan!
O irmão mais novo permaneceu em silêncio.
— E o esposo dela? — lembrou-se de perguntar. — Talvez ele não
permita...
— Morreu — respondeu Arnau. — Averiguei quando parou de pagar os
juros de um empréstimo barato. Faleceu sob as ordens do rei, defendendo
Calatayud.
— Mas... — insistiu Joan.
— Joan... estou atado à minha esposa, atado por um juramento que fiz e
que me impede de me unir a Mar enquanto Elionor viver... Mas preciso vê-
la. Preciso contar-lhe sobre meus sentimentos, ainda que não possamos
estar juntos... — Pouco a pouco, Arnau recobrou a serenidade. Queria
pedir outro favor ao irmão. — Passe pela mesa de câmbio. Quero saber
como vão as coisas.
Joan suspirou. Naquela mesma manhã, ao ir até lá, Remigi lhe
entregara uma bolsa com dinheiro.
— Não foi um bom negócio — ouviu do oficial.
Nada era um bom negócio. Ao deixar Arnau depois de prometer
procurar a moça, Joan pagou ao aguazil na própria porta da masmorra.
— Pediu-me um balde.
O que valeria um balde para que Arnau...? Joan depositou outra moeda.
— Quero o balde sempre limpo. — O aguazil guardou as moedas e
andou em direção ao corredor. — Há um preso morto lá dentro —
acrescentou Joan.
O aguazil se limitou a dar de ombros.

***

Ele nem sequer saiu do palácio episcopal. Ao deixar as masmorras, foi à


procura de Nicolau Eimeric. Conhecia aqueles corredores. Quantas vezes
os percorrera na juventude, orgulhoso de suas responsabilidades? Agora
eram outros jovens que se moviam por ali, sacerdotes elegantes que o
observavam com certa estranheza.
— Confessou?
Ele prometera ir à procura de Mar.
— Ele confessou? — repetiu o inquisidor-geral.
Joan passara a noite acordado preparando aquela conversa, mas nada do
que planejara acudia em sua ajuda.
— Se ele o fizer, que condena...
— Já lhe disse que é muito grave.
— Meu irmão é muito rico.
Joan sustentou o olhar de Nicolau Eimeric.
— Está pretendendo comprar o Santo Ofício, você, um inquisidor?
— As multas são admitidas como condenações usuais. Estou certo de
que se propusesse uma multa a Arnau...
— Você sabe muito bem que depende da gravidade do delito. A
denúncia contra ele...
— Elionor não pode denunciá-lo por nada — Joan o interrompeu.
O inquisidor-geral se levantou da cadeira e encarou Joan com as mãos
apoiadas na mesa.
— Então — disse, elevando a voz —, os dois sabem que foi a pupila do
rei quem formulou a denúncia. Sua própria esposa, a pupila do rei! Por que
você pensaria que foi ela se o seu irmão não tivesse nada a esconder? Que
homem desconfia da própria esposa? Por que não um rival comercial, um
empregado ou um simples vizinho? Quanta gente Arnau condenou como
cônsul do Mar? Por que não seria um deles? Responda, frei Joan, por que a
baronesa? Que pecado esconde o seu irmão para saber que foi ela?
Joan se encolheu na cadeira. Quantas vezes ele mesmo utilizara esse
procedimento? Quantas vezes agarrara as palavras no ar para... Como
Arnau sabia que tinha sido Elionor? Poderia ser realmente...?
— Não foi Arnau quem apontou a esposa — mentiu Joan. — Eu sei.
Nicolau Eimeric levantou as mãos para o céu.
— Você sabe? E por que sabe, frei Joan?
— Ela o odeia... Não! — tentou retificar, mas Nicolau já se tinha
precipitado para ele.
— E por quê? — gritou o inquisidor. — Por que a pupila do rei odeia o
esposo? Por que uma boa mulher, cristã, temente a Deus, chega a odiar o
esposo? Que tipo de mal esse esposo lhe terá feito para despertar o seu
ódio? As mulheres nasceram para servir os homens; essa é a lei, terrena e
divina. Os homens batem nas mulheres, e elas não os odeiam por isso; os
homens encarceram as mulheres, e elas tampouco os odeiam por isso; as
mulheres trabalham para os homens, fornicam com eles quando eles
querem, têm de cuidar deles e submeter-se a eles, e nada disso gera ódio.
O que você sabe, frei Joan?
Joan trincou os dentes. Não devia falar mais. Se sentia vencido.
— Você é inquisidor. Exijo que me diga o que sabe — gritou Nicolau.
Joan permaneceu em silêncio.
— Você não pode amparar o pecador. Peca mais quem cala do que quem
peca.
Joan começou a se lembrar de uma infinidade de praças em pequenos
povoados e sua gente se encolhendo ao ouvir suas diatribes.
— Frei Joan — Nicolau cuspiu as palavras lentamente, apontando para
ele por cima da mesa —, quero esta confissão amanhã mesmo! E reze para
que eu não decida julgá-lo também. Ah, frei Joan! — acrescentou, quando
Joan já estava se retirando. — Procure trocar o hábito, já recebi algumas
queixas, e certamente...
Nicolau fez um gesto indicando o hábito de Joan. Quando ele deixou o
escritório, olhando seu hábito puído e sujo, topou com dois cavaleiros que
esperavam na antessala do inquisidor-geral, acompanhados de três homens
armados que custodiavam duas mulheres acorrentadas, uma velha e uma
mais jovem, cujo rosto...
— Ainda está aqui, frei Joan? — perguntou Nicolau Eimeric, que tinha
ido até a porta receber os cavaleiros.
Joan apertou o passo.

***

Jaume de Bellera e Genís Puig entraram no escritório de Nicolau Eimeric;


Francesca e Aledis receberam uma rápida olhada do inquisidor e ficaram
na antessala.
— Soubemos — começou a dizer o senhor de Bellera depois que se
apresentaram e se sentaram — que vós detivestes Arnau Estanyol.
As mãos de Genís Puig não paravam quietas.
— Sim — respondeu secamente Nicolau —, é público.
— De que o acusam? — perguntou Genís Puig, recebendo do nobre um
olhar de reprovação; “Não fale, não fale enquanto o inquisidor não se
dirigir a você”, aconselhara ele em várias ocasiões.
Nicolau se virou para Genís.
— Por acaso não sabeis que é segredo?
— Rogo a vossa senhoria que desculpeis o cavaleiro Genís — interveio
Jaume de Bellera —, mas, como vereis, nosso interesse tem fundamento.
Consta-nos que há uma denúncia contra Arnau Estanyol e queremos apoiá-
la.
O inquisidor-geral se ergueu da cadeira. Uma pupila do rei, três
sacerdotes de Santa Maria que tinham ouvido Arnau Estanyol blasfemar
aos gritos na própria igreja ao discutir com a mulher e, agora, um nobre e
um cavaleiro. Poucos testemunhos poderiam gozar de mais crédito.
Incentivou-os a prosseguir.
Jaume de Bellera semicerrou os olhos em direção a Genís Puig; depois
começou a expor o que tanto tinha preparado.
— Acreditamos que Arnau Estanyol é a encarnação do diabo. —
Nicolau nem se mexeu. — Esse homem é filho de um assassino e de uma
bruxa. Seu pai, Bernat Estanyol, assassinou um rapaz no castelo de Bellera
e fugiu com o filho, Arnau, que meu pai, sabendo quem era, tinha
mandado prender para que não fizesse mal a ninguém. Foi Bernat Estanyol
quem provocou a revolta da Praça de Blat no primeiro ano mau, vos
recordais? Ali mesmo o executaram...
— E o filho queimou o cadáver — intrometeu-se, então, Genís Puig.
Nicolau teve um sobressalto. Jaume de Bellera atravessou o
intrometido com o olhar.
— Queimou o cadáver? — perguntou Nicolau.
— Queimou, eu mesmo vi — mentiu Genís, lembrando as palavras da
mãe.
— E o denunciastes?
— Eu... — O senhor de Bellera fez um gesto para intervir, mas Nicolau
o impediu com outro movimento. — Eu... era só uma criança. Tive medo
de que fizesse a mesma coisa comigo.
Nicolau levou a mão ao queixo para cobrir um sorriso imperceptível.
Depois, pediu ao senhor de Bellera que continuasse:
— Sua mãe, a velha que está ali fora, é uma bruxa. Agora trabalha
como meretriz, mas me amamentou e me transmitiu o mal, me
endemoniou com o leite que estava destinado ao filho. — Nicolau abriu os
olhos ao ouvir a confissão do nobre. O senhor de Navarcles percebeu. —
Não se preocupe — acrescentou rapidamente —, assim que o mal se
manifestou, meu pai me levou ao bispo. Descendo de Llorenç e Caterina
de Bellera — continuou o nobre —, senhores de Navarcles. Podeis
comprovar que ninguém em minha família teve o mal do diabo. Só pode
ter sido o leite da endemoniada!
— Dizeis que é uma meretriz?
— Sim, podeis comprová-lo; chama-se Francesca.
— E a outra mulher?
— Quis vir com ela.
— Outra bruxa?
— Isso fica a vosso critério.
Nicolau pensou um instante.
— Algo mais?
— Sim — disse Genís Puig. — Arnau assassinou meu irmão Guiamon
quando ele não quis participar de seus rituais demoníacos. Tentou afogá-lo
uma noite na praia... Depois ele faleceu.
Nicolau voltou a prestar atenção ao cavaleiro.
— A minha irmã Margarida pode testemunhar. Ela estava lá. Ela se
assustou e tentou fugir quando Arnau começou a invocar o diabo. Ela
mesma pode confirmá-lo.
— E naquela ocasião tampouco o denunciastes?
— Soube agora, quando disse à minha irmã o que pensava em fazer. Ela
continua aterrorizada com a possibilidade de que Arnau lhe faça mal; há
muitos anos vive com medo.
— São acusações graves.
— As que Arnau Estanyol merece — alegou o senhor de Bellera. —
Vós sabeis que esse homem se dedicou a solapar a autoridade. Em suas
terras, aboliu os maus usos contra a opinião da esposa; aqui em Barcelona,
dedica-se a emprestar dinheiro aos humildes, e, como cônsul do Mar, é
conhecida a sua tendência a sentenciar a favor do povo. — Nicolau
Eimeric ouvia atentamente. — Durante toda a vida, dedicou-se a solapar
os princípios que devem reger a nossa convivência. Deus criou os
camponeses para trabalharem na terra, submetidos aos senhores feudais. A
própria Igreja proibiu que seus camponeses integrassem a Ordem, para não
perdê-los...
— Na Catalunha nova não existem os maus usos — alegou Nicolau.
O olhar de Genís Puig ia de um para outro.
— Isso é precisamente o que quero dizer — o senhor de Bellera
gesticulou com violência. — Na Catalunha nova não há maus usos... por
interesse do príncipe, por interesse de Deus. Era preciso povoar essas
terras conquistadas para os infiéis, e a única maneira era atrair pessoas. O
príncipe assim decidiu. Mas Arnau não passa de príncipe do diabo.
Genís Puig sorriu ao perceber que o inquisidor-geral assentia levemente
com a cabeça.
— Empresta dinheiro aos pobres — prosseguiu o nobre —, um dinheiro
que sabe que não vai recuperar nunca. Deus criou os ricos... e os pobres.
Não pode ser que os pobres tenham dinheiro e casem suas filhas como se
fossem ricos; isso contraria o desígnio de Nosso Senhor. O que vão pensar
esses pobres de vós, os eclesiásticos, e de nós, os nobres? Por acaso não
cumprimos os preceitos da Igreja tratando os pobres como o que são?
Arnau é um diabo filho de diabos e só faz preparar a chegada do diabo
mediante o descontentamento do povo. Pensai nisso.
Nicolau Eimeric pensou. Chamou o escrivão para que pusesse por
escrito as denúncias do nobre de Bellera e de Genís Puig, mandou chamar
Margarida Puig e ordenou o encarceramento de Francesca.
— E a outra? — perguntou o inquisidor ao senhor de Bellera. — É
acusada de algo? — Os homens hesitaram. — Nesse caso, permanecerá em
liberdade.
Francesca foi acorrentada longe de Arnau, na extremidade oposta da
enorme masmorra, e Aledis foi enxotada para a rua.
Depois de organizar tudo, Nicolau se sentou. Blasfemar no templo do
Senhor, manter relações carnais com uma judia, amigo dos judeus,
assassino, práticas diabólicas, agir contra os preceitos da Igreja... e tudo
isso afirmado por sacerdotes, nobres, cavaleiros... e pela pupila do rei. O
inquisidor-geral se jogou na cadeira e sorriu.
“Seu irmão será assim tão rico, frei Joan? Estúpido! A que multa se
refere, se todo esse dinheiro passará para as mãos da Inquisição assim que
eu o condenar?”.

***

Aledis tropeçou várias vezes quando os soldados a empurraram para fora


do palácio do bispo. Quando recuperou o equilíbrio, viu que a observavam.
O que ouvira os soldados gritarem? Bruxa? Estava quase no meio da rua, e
as pessoas continuavam a prestar atenção a ela. Olhou sua roupa suja.
Tocou os cabelos, ásperos e desgrenhados. Um homem bem-vestido passou
por ela, olhando-a despudoradamente. Aledis bateu com o sapato no chão e
se lançou contra ele gritando e mostrando os dentes, como os cachorros
quando atacam. O homem deu um pulo e se afastou correndo até perceber
que Aledis não se movera do lugar. Então foi ela quem encarou os
presentes; um a um eles baixaram os olhos e se afastaram, e mesmo assim
não faltou quem a olhasse de esguelha para vê-la encarar os curiosos.
O que tinha acontecido? Os homens do nobre de Bellera invadiram sua
casa e detiveram Francesca quando a velha descansava em uma cadeira.
Ninguém deu a menor explicação. Afastaram com um empurrão as moças
que se rebelaram contra os soldados; todas procuraram o apoio de Aledis,
que ficou paralisada devido à surpresa. Um cliente saiu correndo, seminu.
Aledis enfrentou aquele que parecia ser o oficial:
— O que está acontecendo? Por que estão prendendo esta mulher?
— Por ordem do senhor de Bellera — respondeu o homem.
O senhor de Bellera! Aledis desviou o olhar em direção a Francesca,
encolhida entre os soldados que a agarravam pelos braços. Francesca
começou a tremer. Bellera! Quando Arnau aboliu os maus usos no castelo
de Montbui e Francesca revelou o seu segredo a Aledis, as duas superaram
a única barreira que até então existira entre elas. Quantas vezes ouvira dos
lábios de Francesca a história de Llorenç de Bellera? Quantas vezes a vira
chorar ao recordar aqueles momentos? E agora... outra vez Bellera; outra
vez a levavam ao castelo, como quando...
Francesca continuava trêmula entre os soldados.
— Deixai-a — gritou Aledis para os soldados —, não percebeis que a
estais machucando? — Eles se viraram para o oficial. — Iremos
voluntariamente — acrescentou Aledis.
O oficial deu de ombros, e os soldados entregaram a velha a Aledis.
Levaram-nas para o castelo de Navarcles, onde foram aprisionadas nas
masmorras. No entanto, não as maltrataram. Pelo contrário, lhes deram
comida, água e até uns feixes de palha onde dormir. Agora entendia por
quê: o senhor de Bellera queria que Francesca chegasse em boas condições
a Barcelona, para onde, depois de dois dias, foram levadas em uma
carroça, no mais absoluto silêncio. Por quê? Para quê? O que significava
aquilo?
A balbúrdia a devolveu à realidade. Absorta em seus pensamentos,
tinha descido pela Rua do Bisbe e dobrado a Rua Sederes até chegar à
Praça de Blat. O dia claro e ensolarado de primavera reunira na praça mais
gente que o habitual, e dezenas de curiosos se movimentavam ao lado dos
compradores de grãos. Estava perto do antigo portão da cidade e se virou
quando sentiu o cheiro de pão que vinha da barraca à sua esquerda. O
padeiro a olhou com receio, e Aledis se lembrou de seu aspecto. Estava
sem um centavo. Engoliu a saliva e deu meia-volta, evitando o olhar do
padeiro.
Vinte e cinco anos; vinte e cinco anos sem pisar aquelas ruas, ver a sua
gente e sentir os cheiros da grande cidade condal. Será que a Pia Almoina
ainda estaria aberta? Naquela manhã não lhes tinham dado de comer no
castelo, e o seu estômago estava reclamando. Deu meia-volta, voltando à
catedral, ao lado do palácio do bispo. Começou a salivar outra vez ao se
aproximar da fila de necessitados que se aglomeravam diante das portas da
Pia Almoina. Quantas vezes, na juventude, passara por aqueles famintos
obrigados a se expor diante dos cidadãos em busca de caridade pública?
Juntou-se a eles. Aledis abaixou a cabeça para cobrir o rosto com os
cabelos e arrastou os pés na fila que avançava em direção à comida; se
escondeu ainda mais quando chegou até o noviço e estendeu as mãos. Por
que tinha de pedir esmola? Possuía uma boa casa e economizara dinheiro
para viver comodamente pelo resto da vida. Os homens continuavam a
desejá-la e... pão duro de farinha de fava, vinho e uma tigela de sopa.
Comeu com o mesmo gosto que os demais miseráveis que a rodeavam.
Ao terminar, ergueu os olhos pela primeira vez. Estava cercada de
mendigos, aleijados e velhos que comiam sem perder de vista os
companheiros de desgraça, agarrando com força o pão e a tigela. O que a
teria levado até ali? Por que tinham detido Francesca no palácio do bispo?
Aledis se levantou. Uma mulher loura com um vestido vermelho brilhante
que caminhava em direção à catedral chamou sua atenção. Uma nobre...
sozinha? Mas não era nobre, com esse vestido só podia ser uma... Teresa!
Aledis correu em direção à moça.
— Nós nos revezamos diante do castelo para saber o que tinha
acontecido com vocês — explicou Teresa depois de se abraçarem. — Não
foi difícil convencer os soldados que estavam na porta de que nos
informassem. — A moça piscou um lindo olho azul. — Quando as
levaram e os soldados nos disseram que as trariam para Barcelona,
tivemos de encontrar uma maneira de vir; por isso demoramos tanto... E
Francesca?
— Está detida no palácio do bispo.
— Por quê?
Aledis encolheu os ombros. Quando as separaram e lhe disseram que
fosse embora, tentara saber o motivo, mas a única coisa que conseguira
ouvir foi: “A velha para as masmorras.” Depois a afastaram do caminho
aos empurrões. Sua insistência em saber o motivo da detenção de
Francesca fez um frade jovem, cujo hábito ela tinha agarrado, chamar a
guarda. Jogaram-na à rua aos gritos de bruxa.
— Quantas vieram?
— Eulália e eu.
Uma mulher em um vestido verde brilhante corria na direção delas.
— Vocês trouxeram dinheiro?
— É claro...
— E Francesca? — perguntou Eulália ao chegar perto de Aledis.
— Detida — repetiu ela. Eulália quis fazer outra pergunta, mas Aledis a
fez se calar com um gesto. — Não sei por quê. — Aledis olhou as jovens...
O que elas não poderiam conseguir? — Não sei por que está detida —
repetiu —, mas logo saberemos, não é, meninas?
Ambas responderam com um sorriso malicioso.

***

Joan arrastou o barro na bainha de seu hábito por toda Barcelona. O irmão
lhe pedira que procurasse Mar. Como podia se apresentar diante dela?
Depois tentou fazer um acordo com Eimeric e, em vez disso, como um dos
que ele mesmo condenava, caíra em suas armadilhas e lhe dera novos
indícios de culpa. O que Elionor teria denunciado? Pensou em visitar a
cunhada, mas a lembrança de seu sorriso na casa de Felip de Ponts o fez
desistir. Se ela havia denunciado o próprio esposo, o que diria a ele?
Desceu pela Rua do Mar até Santa Maria, o templo de Arnau. Joan se
deteve e o contemplou. Ainda rodeado de andaimes de madeira onde os
pedreiros se movimentavam sem descanso, Santa Maria já mostrava o que
seria sua orgulhosa construção. Os muros externos com seus contrafortes
estavam terminados, bem como a abside e duas das quatro abóbadas da
nave central; as nervuras da terceira abóbada, cuja chave havia sido paga
pelo rei para que nela fosse cinzelada a imagem de seu pai, o rei Afonso,
montado em um cavalo, começavam a se elevar em um arco perfeito,
suportadas por complicadas estruturas, à espera da chave para equilibrar o
peso e fazer com que o arco se sustentasse por si só. Só faltavam as duas
últimas abóbadas principais para que Santa Maria ficasse completamente
coberta.
Como não se encantar com aquela igreja? Joan recordou o padre Albert
e a primeira vez que ele e Arnau tinham pisado em Santa Maria. Nem
sabia rezar! Anos depois, enquanto ele aprendia a rezar, ler e escrever, seu
irmão carregara pedras para lá. Joan lembrou os machucados profundos
com que Arnau voltava para casa nos primeiros dias e, no entanto, ele
sorria... Observou os mestres de diferentes ofícios atarefados com os
portais e as arquivoltas da fachada principal, admirou as estátuas, as portas
ornamentadas, os corrimões de ferro, as gárgulas, os capitéis das colunas e
os vitrais, principalmente os vitrais, essas obras de arte destinadas a filtrar
a mágica luz do Mediterrâneo para brincar com as formas e cores no
interior do templo a cada hora, a cada minuto.
Na imponente rosácea da fachada já se podia ver a futura composição:
no centro uma pequena roseta, de cujo diâmetro partiam, como belíssimas
flechas, como um sol de pedra cuidadosamente lavrado, os mainéis que
dividiam a estrutura principal; a partir deles, os relevos formavam uma
fileira de figuras com três lóbulos ogivais, e, depois, outra fileira de quatro
lóbulos arredondados fechava a grande rosácea. Entre todos esses traços,
como os que decoravam as janelas estreitas da fachada, seriam incrustados
os vitrais; naquele momento, porém, a rosácea parecia uma imensa teia de
aranha de pedra delicadamente estilizada, à espera dos mestres vitralistas
para fechar os seus vãos.
“Ainda há muito a fazer”, pensou Joan ao ver os homens que
trabalhavam impulsionados pela esperança do povo. Naquele momento
chegou um bastaix carregando uma pedra enorme. O suor escorria da testa
às panturrilhas, e todos os seus músculos estavam visíveis, tensos,
vibrando ao ritmo dos passos que o aproximavam da igreja. Mas ele sorria,
tal como o seu irmão fazia. Joan não conseguia deixar de olhá-lo. Nos
andaimes, os pedreiros pararam o que estavam fazendo e foram ver a
chegada das pedras que teriam de trabalhar. Depois do primeiro bastaix,
apareceu outro, e outro, e mais outro, todos encurvados. O barulho do
cinzel nas pedras se deteve diante dos humildes trabalhadores da ribeira de
Barcelona, e, por um instante, Santa Maria inteira ficou paralisada. Do alto
do templo, um pedreiro rompeu o silêncio. Seu grito de “força” rasgou o
ar, reverberou nas pedras e tocou os que presenciavam a cena.
“Força!”, sussurrou Joan, somando-se ao clamor. Os bastaixos sorriam,
e cada vez que um deles descarregava uma pedra a gritaria aumentava.
Depois, alguém lhes oferecia água, e os bastaixos erguiam os odres acima
da cabeça, deixando a água escorrer pelo rosto antes de bebê-la. Joan se
viu na praia perseguindo os bastaixos com o odre de Bernat. Depois elevou
os olhos para o céu. Devia procurá-la: se esta era a penitência que o
Senhor lhe impunha, iria à procura da moça e lhe confessaria a verdade.
Rodeou Santa Maria até a Praça do Born, a Pla d’en Llull e o convento de
Santa Clara, e saiu de Barcelona pelo portal de San Daniel.
***

Aledis não teve dificuldade para encontrar o senhor de Bellera e Genís


Puig. Além da alfândega, onde se hospedavam os comerciantes que
chegavam a Barcelona, a cidade possuía apenas cinco estalagens. Ordenou
a Teresa e Eulália que a esperassem no caminho para Montjuïc até que ela
fosse buscá-las. Aledis ficou em silêncio enquanto as via se afastarem,
com as lembranças agitando seus sentimentos...
Quando perdeu de vista o brilho dos vestidos de suas meninas, começou
a busca. Primeiro na estalagem de Bou, muito próxima do palácio do
bispo, junto à Praça Nova. O ajudante de cozinha a dispensou de forma
grosseira quando ela apareceu na parte de trás do prédio e lhe perguntou
pelo senhor de Bellera. Na estalagem da Massa, em Portaferrissa, também
próxima do palácio do bispo, uma mulher que amassava farinha lhe disse
que ali não estavam aqueles senhores, e então Aledis foi à estalagem do
Estanyer, ao lado da Praça da Llana. Ali, outro rapaz, muito desrespeitoso,
a olhou de alto a baixo.
— Quem está interessado no senhor de Bellera? — perguntou.
— A minha senhora — respondeu Aledis. — Ela o segue desde
Navarcles.
O rapaz, alto e magro como uma vara, pôs os olhos nos seios da
meretriz. Depois estendeu a mão direita e apalpou um.
— Por que a sua senhora está interessada nesse nobre?
Aledis aguentou sem se mexer, se esforçando para esconder um sorriso.
— Isso não me compete. — O rapaz começou a apalpá-la com força.
Aledis se aproximou e roçou a mão na virilha dele. O rapaz encolheu ao
contato. — Porém — disse ela arrastando as palavras —, se estiverem
aqui, talvez eu tenha de dormir esta noite no quintal, enquanto a minha
senhora...
Aledis acariciou o membro do jovem por cima das roupas.
— Hoje de manhã — balbuciou ele — vieram dois cavaleiros à procura
de alojamento.
Desta vez ela sorriu. Por um momento, pensou em se afastar do rapaz,
mas... por que não? Havia tanto tempo que não tinha em cima dela um
corpo jovem, inexperiente, movido só pela paixão...
Aledis o puxou para um pequeno galpão. Na primeira vez, o rapaz não
teve tempo nem para abaixar as calças, mas depois ela alimentou o ímpeto
do caprichoso objeto de seu desejo.
Quando Aledis se levantou para se vestir, o rapaz ficou deitado no chão,
arfando e com o olhar perdido em algum ponto do teto.
— Se me vir outra vez — disse ela —, seja como for, você não me
conhece, entendeu?
Aledis teve de insistir duas vezes para conseguir uma promessa do
rapaz.

***

— Vocês serão minhas filhas — disse Aledis a Teresa e Eulália depois de


lhes entregar as roupas que acabara de comprar. — Fiquei viúva há pouco
tempo, e estamos a caminho de Girona, onde esperamos que o meu irmão
nos acolha. Não temos recursos. O pai de vocês era um simples oficial...
curtidor de Tarragona.
— Pois, para quem acabou de ficar viúva e sem recursos, você está
muito sorridente — provocou-a Eulália enquanto trocava o vestido verde e
fazia uma expressão maliciosa para Teresa.
— É verdade — confirmou a outra —, você devia evitar essa expressão
de satisfação. Parece mais que você acaba de conhecer...
— Não se preocupem — disse Aledis. — Quando for preciso, saberei
aparentar a dor de uma viúva recente.
— E enquanto não for preciso — insistiu Teresa — você não podia
esquecer a viúva e contar a que se deve essa alegria?
As duas moças riram. Escondidas no mato em uma encosta da
montanha de Montjuïc, Aledis observou seus corpos nus, perfeitos,
sensuais... Juventude. Por um instante, se lembrou de si mesma naquele
mesmo lugar, muitos anos atrás...
— Ai! — exclamou Eulália —, isto é áspero.
Aledis voltou à realidade e viu Eulália vestida com uma camisa
comprida e desbotada que chegava até os tornozelos.
— As órfãs de um oficial curtidor não usam seda.
— Mas... isto? — Eulália se queixou segurando a camisa com dois
dedos.
— Isso é o normal — insistiu Aledis. — De qualquer forma, vocês
esqueceram isto.
Aledis lhes mostrou duas tiras de tecido desbotado e tão gastas como as
camisas. Elas estenderam as mãos para pegá-las.
— O que é...? — perguntou Teresa.
— Faixas, e servem para...
— Não. Você não quer...
— As mulheres decentes cobrem os peitos. — Ambas tentaram
protestar. — Primeiro os peitos — ordenou Aledis —, depois as camisas e
por cima as túnicas, e agradeçam-me — acrescentou, diante do olhar das
moças — por ter comprado camisas e não cilícios. Talvez vocês devessem
fazer um pouco de penitência.
As três tiveram de se ajudar mutuamente para amarrar as faixas.
— Pensei que você queria que seduzíssemos os nobres — disse Eulália
enquanto Aledis amarrava a faixa em seus seios grandes —, não vejo
como com isto...
— Deixe comigo — respondeu Aledis. — As túnicas são... quase
brancas, símbolo da virgindade. Esses dois canalhas não vão deixar passar
a oportunidade de deitar com duas virgens. Vocês não entendem nada de
homens — ela insistiu enquanto terminavam de se vestir —, não sejam
indiscretas nem ousadas. Neguem-se todo o tempo. Rejeitem-nos quantas
vezes for preciso.
— E se os rejeitarmos tanto que eles acabem desistindo?
Aledis ergueu as sobrancelhas ao olhar para Teresa.
— Ingênua — disse sorrindo. — A única coisa que vocês têm de fazer é
conseguir que eles bebam. O vinho fará o resto. Não desistirão enquanto
estiverem ao lado deles, tenho certeza. Porém não esqueçam que
Francesca foi detida pela Igreja, não por ordem do veguer nem de
representantes do rei. Conduzam a conversa para temas religiosos...
Ambas se surpreenderam.
— Religiosos?! — exclamaram em uníssono.
— Entendo que vocês não saibam muito sobre isso — reconheceu
Aledis. — Usem a imaginação. Acho que tem algo a ver com bruxaria...
Quando me expulsaram do palácio, chamaram-me de bruxa.
Depois de algumas horas, os soldados deixaram passar pela porta de
Trentaclaus uma mulher vestida de preto com o cabelo preso em um coque
e suas duas filhas com roupas quase brancas sem enfeites nem perfume, os
cabelos recatadamente presos, calçadas com alpercatas comuns. Ambas
caminhavam cabisbaixas atrás da primeira lhe fitando os calcanhares,
como Aledis lhes recomendara.
49

A porta da masmorra se abriu de repente. Não era a hora habitual; o sol


ainda não tinha baixado o suficiente, e a luz tentava entrar pela pequena
janela gradeada, mas a miséria que flutuava no ambiente parecia disposta
a impedi-la, e a claridade se fundia à poeira e aos eflúvios dos presos. Não
era a hora habitual, e as sombras se moveram. Arnau ouviu o ruído das
correntes, e o aguazil entrou com um novo preso; não vinham buscar
nenhum deles. Outro... outra mais, se corrigiu Arnau, ao ver o perfil de
uma anciã no umbral. Que pecado teria cometido aquela pobre mulher?
O aguazil empurrou a nova vítima para a masmorra. A mulher foi ao
chão.
— Levante-se, bruxa! — gritou ele. Mas a bruxa não se mexeu. O
aguazil deu dois chutes no vulto que jazia a seus pés. O eco surdo dos
chutes vibrou por segundos eternos. — Eu disse que se levantasse!
Arnau percebeu que as sombras tentavam se fundir às paredes. Eram os
mesmos gritos, o mesmo tom imperativo, a mesma voz. Nos dias que
passara encarcerado, ouvira várias vezes aquela voz gritar do lado de fora
da porta quando um preso era libertado das correntes. Também vira as
sombras se encolherem e vomitarem de medo da tortura. Primeiro era a
voz, o grito, e, após um instante, o grito lancinante de um corpo mutilado.
— Levante-se, sua puta velha!
O aguazil a chutou novamente, mas a velha não se mexia. Por fim, ele
se abaixou arfando, agarrou-a pelo braço e a arrastou para onde lhe tinham
ordenado que a acorrentasse: longe do cambista. O som das chaves e dos
grilhões a sentenciou. Antes de sair, o aguazil cruzou a masmorra até onde
estava Arnau.
— Por quê? — perguntara ele ao receber a ordem de acorrentar a bruxa
longe de Arnau.
— A bruxa é mãe do cambista — respondera-lhe o oficial da
Inquisição, que o soubera pelo oficial do nobre de Bellera.
— Não pense — disse o aguazil a Arnau — que pelo mesmo preço você
vai conseguir que sua mãe coma melhor. Por mais que seja sua mãe, uma
bruxa custa dinheiro, Arnau Estanyol.

***

Nada havia mudado: a masía com a torre fortificada continuava a dominar


a pequena colina. Joan olhou para cima e voltou a ouvir o som da host, os
homens nervosos, as espadas e os gritos de alegria quando ele, exatamente
ali, convencera Arnau a entregar Mar em matrimônio. Nunca se dera bem
com a moça; o que lhe diria agora?
Joan fitou o céu e depois, encurvado e cabisbaixo, arrastou o hábito ao
subir a encosta.
Os arredores pareciam desertos. Só os animais comendo palha nos
estábulos rompiam o silêncio.
— Alguém aí? — gritou Joan.
Já ia gritar outra vez quando um movimento chamou sua atenção. Um
menino de olhos incrivelmente arregalados olhava para ele em uma
esquina.
— Venha aqui, menino — disse Joan.
O menino hesitou.
— Venha aqui...
— O que houve?
Joan se virou para a escada externa que levava ao andar superior. No
alto, Mar o interrogava com o olhar.
Os dois permaneceram um longo tempo em silêncio, sem se mexer.
Joan tentou encontrar naquela mulher a imagem da moça cuja vida ele
oferecera ao cavaleiro de Ponts, mas a severidade daquela figura não
lembrava a explosão de sentimentos que cinco anos atrás ocorrera naquela
mesma masía. O tempo passava, e Joan se sentia cada vez mais inibido.
Parada, sem pestanejar, Mar o atravessava com o olhar.
— O que está procurando, frade? — perguntou ela por fim.
— Vim falar com você. — Joan teve de erguer a voz.
— Não estou interessada em nada que queira me dizer.
Mar começou a dar meia-volta, mas Joan se apressou a falar.
— Prometi a Arnau que falaria com você. — Ao contrário do que
esperava, Mar não se alterou ao ouvir o nome de Arnau; no entanto,
permaneceu ali. — Escute. Não sou eu quem quer falar com você. — Joan
deixou passar um instante. — Posso subir?
Mar lhe deu as costas e entrou na casa. Joan foi até a escada; antes de
subir, olhou o céu mais uma vez. Será que era a penitência que ele
merecia?
Pigarreou para chamar a atenção dela. Mar continuou virada para o
fogão, ocupada com uma panela pendurada em um gancho preso ao teto.
— Fale — limitou-se a dizer.
Joan a observou de costas, inclinada sobre o fogo. Os cabelos desciam
até quase tocar as nádegas, que pareciam firmes, perfeitamente delineadas
sob a camisa. Ela se tornara uma mulher atraente.
— Não vai dizer nada? — perguntou Mar, virando o rosto para ele por
um instante.
Como...?
— Arnau foi encarcerado pela Inquisição — soltou o dominicano.
Mar parou de mexer o conteúdo na panela.
Joan permaneceu em silêncio.
— Outras estão encarceradas há muito tempo — a voz parecia vir das
chamas, estremecida. Mar permaneceu de costas para Joan, com os braços
caídos ao longo do corpo e o olhar fixo no fogão.
— Não foi Arnau quem encarcerou você.
Mar se virou bruscamente.
— E não foi ele quem me entregou ao senhor de Ponts? — gritou. —
Não foi ele quem consentiu em meu matrimônio? Não foi ele quem
decidiu não vingar minha desonra? Fui forçada! Fui sequestrada e forçada.
Ela cuspiu cada palavra. Tremia. Tremia toda, do lábio superior às
mãos, que agora tentava juntar diante do peito. Joan não aguentou aqueles
olhos enfurecidos.
— Não foi Arnau — repetiu o frade com a voz trêmula. — Fui... fui eu!
— gritou. — Entende, mulher? Eu o convenci de que devia entregá-la em
matrimônio. O que teria acontecido com uma moça forçada? O que teria
sido de você quando toda Barcelona soubesse de sua desgraça? Fui eu
quem, convencido por Elionor, preparou o sequestro e consentiu na sua
desonra para convencer Arnau a entregá-la em matrimônio. Eu fui o
culpado de tudo. Arnau nunca teria concordado em separar-se de você.
Os dois se olharam. Joan se sentiu mais leve. Mar deixou de tremer, e
as lágrimas surgiram em seus olhos.
— Ele a amava — acrescentou Joan. — Ele a amava então e a ama
agora. Ele precisa de você...
Mar levou as mãos ao rosto. Dobrou os joelhos para um lado, e seu
corpo foi se encolhendo diante do frade.
Pronto. Estava feito. Agora Mar iria a Barcelona, contaria a Arnau e...
Com esses pensamentos, Joan se abaixou para ajudar Mar a se levantar...
— Não me toque!
Joan saltou para trás.
— Aconteceu alguma coisa, senhora?
O frade se virou para a porta. No umbral, um homem hercúleo, armado
com uma foice, olhava para ele, ameaçador; por trás de uma de suas
pernas via-se a cabeça de uma criança. Joan estava a menos de dois
palmos do recém-chegado, que era pelo menos duas cabeças mais alto que
ele.
— Não foi nada — respondeu Joan, mas o homem se adiantou em
direção a Mar, empurrando-o como se ele não existisse. — Já lhe disse que
não foi nada — insistiu Joan —, ocupe-se de suas tarefas.
A criança procurou refúgio atrás do batente da porta e voltou a deixar
só a cabeça aparecer por ali. Joan tirou os olhos dela e, ao se virar, viu que
o homem da foice estava ajoelhado ao lado de Mar.
— Não me ouviu? — perguntou Joan. O homem não respondeu. —
Obedeça e vá se ocupar de suas tarefas.
Dessa vez, o homem se virou para Joan.
— Só obedeço à minha senhora.
Quantos homens como aquele, grandes, fortes e orgulhosos, haviam se
colocado diante dele? Quantos ele vira chorar e suplicar antes de ditar a
sentença? Joan semicerrou os olhos, apertou os punhos e deu dois passos
em direção ao criado.
— Você se atreve a desobedecer à Inquisição?
Não tinha terminado a frase quando Mar se levantou. Tremia
novamente. O homem da foice também se levantou, mais lentamente.
— Como se atreve, frade, a vir à minha casa ameaçar o meu criado?
Inquisidor? Ah! Você não passa de um diabo disfarçado de frade. Você me
forçou! — Joan viu o criado apertar o cabo da foice. — Acabou de
reconhecer isso!
— Eu... — Joan hesitou.
O criado se aproximou e encostou o lado cego da foice em seu
estômago.
— Ninguém saberá, senhora. Eu vim sozinho.
Joan olhou para Mar. Não havia temor em seus olhos, nem compaixão,
só... Virou-se o mais rápido que pôde para chegar à porta, mas o menino a
bateu com violência e o encarou.
Atrás dele, o criado estendeu a foice e rodeou com ela o pescoço do
outro. Desta vez, o lado afiado da ferramenta pressionou o pomo de adão
do frade. Joan ficou quieto. A criança já não olhava para ele com temor.
Seu rosto refletia os sentimentos dos que estavam à sua volta.
— O que... o que você vai fazer, Mar? — Ao falar, a foice arranhou o
seu pescoço.
Mar ficou em silêncio. O irmão de Arnau podia ouvir a sua respiração.
— Tranque-o na torre — disse ela por fim.
Mar não voltara à torre desde o dia em que vira a host de Barcelona se
preparar para o ataque e, depois, celebrar a vitória. Quando seu esposo
morrera em Calatayud, ela mandara trancá-la.
50

A viúva e as duas filhas cruzaram a Praça da Llana até a estalagem do


Estanyer, uma construção de pedra de dois andares, com a lareira e o
refeitório dos hóspedes no andar de baixo e os quartos no andar superior.
Foram recebidas pelo dono e seu ajudante. Aledis piscou um olho para o
rapaz ao perceber que ele olhava para ela abobalhado. “O que está
olhando?”, lhe gritou o dono da estalagem antes de lhe dar um tapa no
pescoço. O jovem saiu correndo para a parte de trás do prédio. Teresa e
Eulália perceberam a piscadela e deram um sorriso cúmplice.
— Vou ter de dar um tapa em vocês — sussurrou-lhes Aledis,
aproveitando que o hospedeiro tinha se virado por um instante. — Querem
andar corretamente e parar de se coçar? A próxima que se coçar...
— Não dá para andar com estas tiras nos pés...
— Silêncio — ordenou Aledis quando o estalajadeiro se virou para lhes
dar atenção.
Ele dispunha de um quarto em que as três poderiam dormir, mas só
havia duas enxergas.
— Não se preocupe, bom homem — disse Aledis. — Minhas filhas
estão acostumadas a compartilhar o leito.
— Vocês viram como o dono nos olhou quando você disse que
dormíamos juntas? — perguntou Teresa quando já estavam no quarto.
Duas enxergas de palha e uma pequena arca com uma lamparina era
tudo o que havia como mobiliário.
— Ele se imaginou metido entre as duas — disse Eulália rindo.
— E isso porque vocês não estão mostrando os seus encantos. Eu disse
a vocês — interveio Aledis.
— Poderíamos trabalhar assim. Com um resultado desses...
— Só funciona uma vez — disse Aledis —, duas vezes no máximo.
Eles gostam da inocência, da virgindade. No momento em que
conseguem... Teríamos de ir de um lugar para outro enganando as pessoas,
e não poderíamos cobrar.
— Não há ouro suficiente na Catalunha que me fizesse andar com estas
alpercatas e estas...
Teresa começou a se coçar das coxas aos seios.
— Não se coce!
— Agora ninguém está vendo — defendeu-se a moça.
— Quanto mais você coçar, mais vai sentir comichão.
— E a piscadela para o rapaz? — perguntou Eulália.
Aledis as olhou.
— Não é da sua conta.
— Você cobrou? — perguntou Teresa.
Aledis recordou a expressão do rapaz quando nem tivera tempo de tirar
as calças e da violência desajeitada com que montara nela depois.
Gostavam da inocência, da virgindade...
— Alguma coisa eu consegui — disse sorrindo.

***

Esperaram no quarto até a hora do jantar. Então desceram e se sentaram


em volta de uma mesa de madeira rústica sem polimento. Em pouco
tempo apareceram Jaume de Bellera e Genís Puig. Ao se sentarem à mesa,
na outra extremidade do cômodo, puseram os olhos nas moças. Não havia
mais ninguém no refeitório da estalagem. Aledis chamou a atenção das
moças, e as duas se persignaram antes de se ocuparem das tigelas de sopa
que o hospedeiro serviu.
— Vinho? Só para mim — disse Aledis. — Minhas filhas não bebem.
— Outra jarra de vinho e mais outra... desde que nosso pai morreu... —
desculpou-a Teresa, dirigindo-se ao estalajadeiro.
— Para repor a dor... — disse Eulália.
— Escutem, meninas — sussurrou Aledis —, são três jarras de vinho...
e a verdade é que, sim, fizeram efeito. Bem, daqui a pouco vou deixar a
cabeça cair na mesa e começarei a roncar. A partir daí vocês já sabem o
que fazer. Precisamos saber por que detiveram Francesca e o que
pretendem fazer com ela.
Aledis ficou à escuta depois de apoiar a cabeça nas mãos sobre a mesa.
— Venham aqui — disse um dos homens no refeitório. Silêncio. — Se
estiver bêbada...
— Não lhes faremos nada — disse o outro. — Como poderíamos,
estando em uma estalagem de Barcelona? O estalajadeiro está aqui.
Aledis pensou no dono do local. Se o deixassem tocar em algo...
— Não se preocupem. Somos cavaleiros...
Finalmente as jovens cederam, e Aledis as ouviu se levantarem da
mesa.
— Não se ouve o seu ronco — sussurrou-lhe Teresa.
Aledis sorriu.
— Um castelo!
Aledis imaginou Teresa, com seus impressionantes olhos azuis bem
abertos, olhando diretamente para o senhor de Bellera e o deixando
embevecido com sua beleza.
— Você ouviu, Eulália? Um castelo. É um nobre de verdade. Nunca
tínhamos conversado com um nobre...
— Contai-nos sobre vossas batalhas — pedia Eulália. — Conheceis o
rei Pedro? Já falastes com ele?
— Que outros nobres conheceis?
As duas se debruçaram sobre o senhor de Bellera. Aledis ficou tentada a
abrir os olhos, só um pouquinho, para observar... Mas não devia. Suas
meninas sabiam o que fazer.
O castelo, o rei, a corte. Tinham participado da corte? A guerra... uns
gritinhos de terror quando Genís Puig, sem castelo, nem rei, nem corte,
reclamou protagonismo exagerando suas batalhas... e vinho, muito vinho.
— O que faz um nobre como vós na cidade, nesta estalagem? Por acaso
esperais alguém importante? — perguntou Teresa.
— Trouxemos uma bruxa — disse Genís Puig.
As moças dirigiam as perguntas ao senhor de Bellera. Teresa o viu
censurar o companheiro com o olhar. Aquele era o momento.
— Uma bruxa! — exclamou Teresa, se lançando sobre Jaume de
Bellera e o tomando pelas mãos. — Em Tarragona vimos queimarem uma
bruxa. Morreu gritando enquanto o fogo subia por suas pernas e queimava
seu peito e...
Teresa olhou para o teto como se seguisse a trajetória das chamas; em
seguida levou as mãos ao peito, mas após alguns segundos voltou à
realidade e se mostrou perturbada diante do nobre, cujo rosto já
demonstrava desejo.
Sem soltar as mãos da jovem, Jaume de Bellera se levantou.
— Venha comigo.
Aquilo foi mais uma ordem do que um convite, e Teresa se deixou
arrastar.
Genís Puig os viu partir.
— E nós? — disse a Eulália, pondo bruscamente a mão na panturrilha
da moça.
Ela não tentou detê-lo.
— Primeiro quero saber tudo sobre a bruxa. Isso me excita...
O cavaleiro deslizou a mão pela virilha da moça e começou a contar.
Aledis quase ergueu a cabeça e estragou tudo ao ouvir o nome de Arnau.
“A bruxa é mãe dele”, ouviu Genís Puig dizer. Vingança, vingança,
vingança...
— Vamos agora? — perguntou Genís Puig quando terminou a
explicação.
Aledis ouviu o silêncio de Eulália.
— Não sei... — respondeu a moça.
Genís Puig se levantou bruscamente e esbofeteou Eulália.
— Deixe de manha e venha.
— Tudo bem — cedeu ela.

***

Ao se ver sozinha no refeitório, Aledis teve dificuldade para se erguer.


Levou as mãos à nuca e a massageou. Enfrentariam Arnau e Francesca, o
demônio e a bruxa, como Genís Puig os chamara.
— Eu me mataria antes de Arnau saber que sou mãe dele — Francesca
lhe dissera em uma das poucas conversas que tiveram depois do discurso
de Arnau na esplanada de Montbui. — Ele é um homem respeitável —
acrescentou, antes que Aledis pudesse replicar —, e eu não passo de uma
meretriz vulgar; além disso... Não teria como lhe explicar muitas coisas,
por que não fui atrás dele e do pai, por que o entreguei à morte...
Aledis baixou os olhos.
— Não sei o que o pai contou a ele sobre mim — continuou Francesca
—, e, seja como for, já não tem conserto. O tempo traz o esquecimento,
até do amor de uma mãe. Quando penso nele, prefiro recordá-lo naquele
palanque desafiando os nobres; não quero que desça dali por minha causa.
É melhor deixar as coisas como estão, e você é a única pessoa neste
mundo que sabe; confio que nem depois da minha morte você revelará o
meu segredo. Prometa, Aledis.
Mas agora de que serviria a promessa?

***

Quando Esteve subiu de novo à torre, já não estava com a foice.


— A senhora mandou que amarrasse isto nos olhos — disse a Joan, lhe
jogando um trapo.
— Quem você pensa que é?! — exclamou Joan, chutando o pedaço de
pano.
O interior do cômodo era pequeno, não mais que três passos em
qualquer direção; com um só passo, Esteve se plantou diante dele e o
esbofeteou duas vezes, uma em cada lado do rosto.
— A senhora ordenou que você vende os olhos.
— Sou um inquisidor!
Desta vez, a bofetada o lançou contra a parede da torre. Joan caiu aos
pés do homem.
— Amarre-o. — Esteve o levantou com uma só mão. — Amarre-o —
repetiu depois de colocar Joan de pé.
— Você acha que com violência vai conseguir dobrar um inquisidor?
Você não imagina...
Esteve não o deixou terminar. Primeiro, o socou no rosto. Joan saiu
voando de novo, e o criado começou a lhe dar pontapés na virilha, no
estômago, no peito, no rosto...
O frade se encolheu de dor. Esteve o ergueu outra vez.
— A senhora mandou que colocasse isto.
Sangrava pela boca. Suas pernas tremiam. Quando o criado o soltou,
Joan tentou se manter de pé, mas uma dor intensa no joelho o fez se dobrar
e cair sobre Esteve, se agarrando em suas pernas. O outro o empurrou para
o chão.
— Ponha-o.
O trapo estava ao seu lado. Joan percebeu que tinha urinado e que o
hábito grudava em suas pernas.
Pegou o trapo e o amarrou nos olhos.
Ouviu o criado fechar a porta e descer a escada. Silêncio. Uma
eternidade. Depois, várias pessoas subiram. Joan se levantou tateando a
parede. A porta se abriu. Traziam móveis. Talvez cadeiras?
— Sei que você pecou. — Sentada em um banco, a voz de Mar soou no
interior da torre; ao lado dela, o menino observava o frade.
Joan permaneceu em silêncio.
— A Inquisição nunca tapa os olhos de seus... presos — disse por fim.
Talvez, se pudesse enfrentá-la...
— Certo — ouviu a resposta de Mar. — Só lhes tapam a alma, a
hombridade, a decência, a honra. Sei que você pecou — repetiu.
— Não aceito esse ardil.
Mar fez um sinal para Esteve. O criado se aproximou de Joan e o
esmurrou no estômago. O corpo do frade se dobrou ao meio. Quando
conseguiu se erguer, o silêncio reinava novamente. Seu próprio arquejo o
impedia de ouvir a respiração dos demais. Doíam-lhe as pernas e o peito,
seu rosto ardia. Ninguém disse nada. Uma joelhada na parte externa da
coxa o derrubou no chão.
A dor voltou, e Joan ficou encolhido em posição fetal.
Novamente se fez silêncio.
Um chute nos rins o obrigou a se dobrar em sentido contrário.
— O que pretende? — gritou Joan entre pontadas de dor.
Ninguém respondeu até que ele deixou de sentir dor. Então o criado o
ergueu e o colocou novamente diante de Mar.
Joan teve de se esforçar para se manter de pé.
— O que pret...?
— Sei que você pecou.
Até onde seria capaz de chegar? Até matá-lo a golpes? Seria capaz de
matá-lo? Pecara, mas que autoridade tinha Mar para julgá-lo? Seu corpo
foi tomado por um tremor que quase acabou por jogá-lo no chão outra vez.
— Você já me condenou — conseguiu dizer Joan. — Para que quer me
julgar?
Silêncio. Escuridão.
— Diga, mulher. Por que quer me julgar?
— Tem razão — ouviu Joan por fim. — Já o condenei, mas lembre-se
de que foi você quem confessou a culpa. Bem aí onde você está agora, ele
roubou minha virgindade; aí mesmo me forçou mais de uma vez.
Enforque-o e livre-se do cadáver — acrescentou Mar, se dirigindo a
Esteve.
Os passos de Mar começaram a se afastar escada abaixo. Esteve
amarrou as mãos de Joan às suas costas. Não conseguia se mover, nenhum
músculo do corpo respondia. O criado o ergueu para colocá-lo de pé no
banquinho em que Mar tinha sentado. Ele ouviu o barulho de uma corda
lançada contra as vigas de madeira da torre. Esteve não acertou, e a corda
caiu. Joan se urinou outra vez e defecou. A corda estava em volta de seu
pescoço.
— Pequei! — gritou Joan com as poucas forças que lhe restavam.
Mar ouviu o grito aos pés da escada.
Finalmente.
Mar subiu para a torre acompanhada do menino.
— Agora eu posso ouvi-lo — disse ela a Joan.

***

Ao amanhecer, Mar partiu para Barcelona. Vestida com suas melhores


roupas, enfeitada com as poucas joias que possuía, os cabelos limpos e
soltos, montou na mula ajudada por Esteve e chicoteou o animal.
— Cuide da casa — disse ao criado antes de a mula começar a andar. —
E você ajude o seu pai.
Esteve empurrou Joan.
— Cumpra, frade — disse a ele.
Cabisbaixo, Joan começou a arrastar os pés atrás de Mar. E agora o que
aconteceria? Naquela noite, quando desamarraram o trapo que lhe cobria
os olhos, Joan se viu diante de Mar, iluminada pela trêmula luz das tochas
que ardiam atrás dela na parede circular da torre.
Então ela cuspiu em seu rosto.
— Você não merece o perdão... mas Arnau pode precisar de você —
disse depois —, só isso o livra de que eu o mate com minhas próprias
mãos agora mesmo.
Os pequenos cascos pontudos da mula soavam suaves sobre o terreno.
Joan acompanhava o barulho ritmado com o olhar nos próprios pés.
Confessara tudo: das conversas com Elionor ao ódio com que se dedicara à
Inquisição. Foi quando Mar retirou a venda e cuspiu nele.
A mula continuava a andar docilmente em direção a Barcelona. Joan
sentiu o cheiro do mar, que à sua esquerda tinha se unido à sua
peregrinação.
51

O sol já estava alto quando Aledis deixou a estalagem do Estanyer e se


misturou às pessoas que transitavam pela Praça da Llana. Barcelona
despertara. Algumas mulheres, carregando bacias, panelas e botijas,
faziam fila diante do poço da cadeia ao lado da estalagem, enquanto outras
se amontoavam diante do açougue da praça, no extremo oposto. Todos
falavam aos gritos e riam. Quis sair antes, mas se atrasou para se disfarçar
novamente de viúva com a ajuda hesitante das duas moças, que não
paravam de perguntar o que iria acontecer, o que seria de Francesca e se a
queimariam na fogueira como pretendiam os cavaleiros. Pelo menos
ninguém reparava nela enquanto andava pela Rua Bòria em direção à
Praça de Blat. Aledis se sentiu estranha; sempre atraíra a atenção dos
homens e provocara o desprezo das mulheres, mas agora, com o calor
pregado à sua roupa preta, olhava para os lados e não deparava com um
olhar furtivo sequer.
O burburinho na Praça de Blat anunciou mais pessoas, sol e calor.
Suava, e seus seios começavam a brigar com as faixas que os oprimiam.
Aledis virou à direita pouco antes do mercado de Barcelona, procurando a
sombra da Rua dos Semolers, e subiu por ela até a Praça do Oli, onde
muita gente se amontoava em busca do melhor azeite ou comprava pão na
loja que dava para a praça. Depois de cruzá-la, chegou à fonte de Sant
Joan, onde as mulheres que faziam fila não repararam na viúva suarenta
que passou ao seu lado.
De Sant Joan, virando à esquerda, Aledis chegou à catedral e ao palácio
do bispo. No dia anterior tinham-na expulsado aos gritos de bruxa. Seria
reconhecida desta vez? O rapaz da estalagem... Aledis sorriu enquanto
procurava um acesso lateral; o rapaz tivera a oportunidade de reparar nela
melhor que os soldados da Inquisição.
— Procuro o aguazil das masmorras. Tenho um recado para ele —
disse, respondendo ao questionamento do soldado que vigiava a porta.
Ele a deixou entrar e indicou o caminho para as masmorras.
À medida que descia as escadas, a luz e as cores desapareceram. Aledis
foi parar em uma antessala retangular vazia, com chão de terra e
iluminada por tochas; junto a uma das paredes, o aguazil descansava suas
carnes abundantes em um banco com as costas apoiadas na parede; do
outro lado, se abria um corredor escuro.
O homem a observou em silêncio enquanto se aproximava.
Aledis respirou fundo.
— Gostaria de ver a velha que prenderam ontem — disse Aledis, e fez
soar uma bolsa de moedas.
Sem sequer se mexer, sem responder, o aguazil cuspiu muito perto de
seus pés e fez um gesto de desprezo com a mão. Aledis deu um passo para
trás.
— Não — respondeu ele.
Aledis abriu a bolsa. Os olhos do homem seguiram o brilho das moedas
que caíam na mão de Aledis. As ordens eram estritas: ninguém podia
entrar nas masmorras sem autorização expressa de Nicolau Eimeric, e ele
não queria enfrentar o inquisidor-geral. Conhecia seus rompantes de ira...
e os procedimentos que empregava contra os que o desobedeciam. Mas o
dinheiro que aquela mulher lhe estava oferecendo... Além disso, o oficial
dissera que o que o inquisidor não queria era que tivessem acesso ao
cambista. Mas aquela mulher não queria falar com o cambista, e sim com
a bruxa.
— Está bem — consentiu.

***

Nicolau esmurrou a mesa com força.


— Quem esse sem-vergonha pensa que é?
O jovem frade que levara a notícia deu um passo para trás. Seu irmão,
um mercador de vinhos, fizera o comentário na noite anterior durante o
jantar, rindo em meio ao alvoroço provocado por seus cinco filhos.
— O melhor negócio que fiz em muitos anos — disse ele. — Pelo visto,
o frade irmão de Arnau deu ordem de vender comandas a baixo preço para
conseguir dinheiro vivo, e, pelo que sei, se continuar assim, vai conseguir;
o oficial de Arnau está vendendo pela metade do preço — disse, e em
seguida ergueu o vinho e, sem deixar de sorrir, brindou por Arnau.
Ao saber da notícia, Nicolau emudeceu, depois ficou vermelho e,
finalmente, explodiu. O jovem frade ouviu Nicolau, aos gritos, ordenar ao
oficial:
— Vá e, assim que encontrar o frei Joan, traga-o aqui! Dê a ordem à
guarda!
Enquanto o irmão do mercador de vinhos deixava o escritório, Nicolau
balançou a cabeça. Quem o freizinho pensava que era? Por acaso pensava
em enganar a Inquisição esvaziando as arcas do irmão? Aquela fortuna
seria para o Santo Ofício... toda! Eimeric cerrou os punhos até o sangue
parar de fluir pelos nós dos dedos.
— Nem que eu tenha de levá-lo à fogueira — grunhiu para si mesmo.

***

— Francesca. — Aledis se ajoelhou ao lado da velha, que fez uma


expressão parecida com um sorriso. — O que fizeram com você? Como
você está? — A velha não respondeu. O lamento dos outros presos
acompanhou o seu silêncio. — Francesca, Arnau foi detido. Por isso a
trouxeram aqui.
— Eu já sei. — Aledis balançou a cabeça, e, antes que pudesse falar, a
velha prosseguiu: — Ele está ali.
Aledis virou a cabeça para o extremo oposto e vislumbrou uma figura
de pé, atenta a elas.
— Como...?
— Escutai — ressoou na masmorra —, visitante da velha. — Aledis se
virou novamente para a figura. — Quero falar convosco. Sou Arnau
Estanyol.
— O que foi, Francesca?
— Desde que entrei aqui, ele me pergunta por que o aguazil lhe disse
que sou sua mãe, diz que ele se chama Arnau Estanyol e foi preso pela
Inquisição... Isso, sim, é uma verdadeira tortura.
— E o que você respondeu?
— Nada.
— Escutai!
Dessa vez Aledis não se virou.
— A Inquisição quer provar que Arnau é filho de uma bruxa — disse
ela a Francesca.
— Escutai-me, por favor.
Aledis sentiu as mãos de Francesca lhe apertarem os antebraços. A
pressão da velha se juntou ao eco da súplica de Arnau.
— Não vai... — Aledis pigarreou — não vai lhe dizer nada?
— Ninguém precisa saber que Arnau é meu filho. Você está me
ouvindo, Aledis? Se não o admiti até agora, menos ainda quando a
Inquisição... Só você sabe disso, menina. — A voz da anciã ficava cada
vez mais clara.
— Jaume de Bellera...
— Por favor! — ouviram novamente.
Aledis se virou na direção de Arnau; as lágrimas a impediam de vê-lo,
mas ela se esforçou para não secá-las.
— Só você, Aledis — insistiu Francesca. — Jure que nunca vai contar
isso a ninguém.
— Mas o senhor de Bellera...
— Ninguém pode provar. Jure, Aledis.
— Vão torturá-la.
— Mais do que a vida já me torturou? Mais do que o silêncio que sou
obrigada a manter diante das súplicas de Arnau? Jure! Os olhos de
Francesca brilharam na penumbra.
— Eu juro.
Aledis a abraçou. Pela primeira vez em muitos anos, percebeu a
fragilidade da velha.
— Não... não quero deixá-la aqui — disse, chorando. — O que vai ser
de você?
— Não se preocupe comigo — sussurrou a velha. — Aguentarei até
convencê-los de que Arnau não é meu filho. — Francesca precisou tomar
fôlego antes de prosseguir. — Um Bellera arruinou a minha vida; o filho
dele não fará o mesmo com a de Arnau.
Aledis beijou Francesca e ficou um instante com os lábios colados ao
seu rosto. Então, se ergueu.
— Escutai!
Aledis olhou a figura.
— Não vá — pediu Francesca.
— Aproximai-vos! Eu vos suplico.
— Você não vai suportar, Aledis. Você jurou.
Arnau e Aledis se olharam na escuridão. Só duas sombras. As lágrimas
de Arnau brilharam em sua face.
Arnau desabou ao ver a desconhecida se dirigir à porta da masmorra.

***

Nessa mesma manhã, uma mulher montada em uma mula entrou em


Barcelona pelo portal de San Daniel. Atrás dela vinha um dominicano que
nem sequer olhou para os soldados enquanto arrastava os pés. Percorreram
a cidade até o palácio do bispo sem se falar, o frade atrás da mula.
— Frei Joan? — perguntou um soldado que montava guarda junto à
porta.
O dominicano ergueu o rosto machucado em direção ao soldado.
— Frei Joan? — perguntou o soldado novamente.
Joan assentiu.
— O inquisidor-geral ordenou que o levassem à sua presença.
O soldado chamou a guarda, e vários companheiros vieram buscar Joan.
A mulher nem desceu da mula.
52

Sahat irrompeu no armazém do velho comerciante às margens do Arno,


próximo ao porto de Pisa. Oficiais e aprendizes o cumprimentaram, mas o
mouro não lhes deu atenção. “Onde está o seu senhor?”, perguntava ao
caminhar entre as pilhas de mercadorias enfileiradas no amplo
estabelecimento. Finalmente, encontrou-o nos fundos, inclinado sobre
peças de tecido.
— O que houve, Filippo?
O velho comerciante se ergueu com dificuldade e se virou para Sahat.
— Ontem chegou um navio com destino a Marselha.
— Eu sei. Aconteceu alguma coisa?
Filippo observou Sahat. Quantos anos teria? A verdade é que já não era
jovem. Estava bem-vestido como sempre, sem cair na ostentação de tantos
outros menos ricos que ele. O que teria acontecido entre ele e Arnau?
Nunca falara sobre isso. Filippo se lembrou do escravo recém-chegado da
Catalunha, a carta de liberdade, a ordem de pagamento de Arnau...
— Filippo!
O grito de Sahat o trouxe de volta ao presente por alguns instantes, mas
ele voltou a se perder nos pensamentos. Seguia mostrando o ímpeto de um
jovem cheio de ilusões, fazia as coisas de maneira decidida...
— Filippo, eu lhe suplico!
— Certo, certo. Você tem razão. Desculpe. — O velho se aproximou e
se apoiou em seu antebraço. — Você tem razão, tem razão. Ajude-me,
vamos para o meu escritório.
No mundo dos negócios em Pisa eram raras as pessoas em que Filippo
Tescio se apoiava. Aquela demonstração pública de confiança por parte do
velho podia abrir mais portas que mil florins de ouro. Dessa vez, no
entanto, Sahat deteve o lento avanço do comerciante.
— Filippo, por favor.
O velho o puxou suavemente para seguir caminhando.
— Notícias... más notícias. Arnau... — disse, dando-lhe tempo para se
preparar. — Foi detido pela Inquisição.
Sahat permaneceu em silêncio.
— Os motivos são muito confusos — prosseguiu Filippo. — Seus
oficiais começaram a vender comandas e, pelo visto, a situação... Mas este
é só um simples rumor, e imagino que mal-intencionado. Sente-se —
convidou-o ao entrarem no que o velho chamava de seu escritório, uma
simples mesa em um tablado de onde controlava os três oficiais que, em
mesas similares, anotavam as operações em enormes livros de comércio, e
de onde vigiava o constante vaivém do armazém.
Filippo suspirou ao se sentar.
— Não é só isso — acrescentou. Sentado diante dele, Sahat não fez
nenhum gesto. — Nesta Páscoa, os barceloneses se levantaram contra a
judiaria. Acusaram-nos de profanar uma hóstia. Uma multa importante e
três executados... — Filippo viu que o lábio inferior de Sahat começava a
tremer. — Hasdai.
O ancião desviou o olhar de Sahat para lhe permitir um instante de
privacidade. Ao se virar para ele, viu que tinha os lábios firmemente
apertados. Sahat inspirou e levou as mãos ao rosto para esfregar os olhos.
— Tome — disse Filippo lhe entregando uma carta. — É de Jucef. Um
navio que zarpou de Barcelona com destino a Alexandria deixou-a com
meu representante em Nápoles; foi trazida pelo piloto da galera que
regressa a Marselha. Jucef encarregou-se dos negócios, e na carta conta o
que ocorreu, mas fala pouco sobre Arnau.
Sahat pegou a carta, mas não a abriu.
— Hasdai executado e Arnau detido — disse. — E eu aqui...
— Reservei uma passagem para Marselha para você — disse Filippo.
— Parte amanhã ao amanhecer. De lá você não terá dificuldade para
chegar a Barcelona.
— Obrigado — Sahat se ouviu dizer.
Filippo ficou em silêncio.
— Vim aqui em busca de minhas origens — começou Sahat —, em
busca da família que pensava ter perdido. Sabe o que encontrei? — Filippo
se limitou a fitá-lo. — Quando me venderam, ainda criança, deixei vivos
minha mãe e cinco irmãos. Só consegui encontrar um... e não posso
garantir quem seja. Era escravo de um carregador do porto de Gênova.
Quando o indicaram, não reconheci nele o meu irmão; nem lembrava o seu
nome. Arrastava uma perna, e faltavam-lhe o dedo mindinho da mão
direita e as duas orelhas. Então pensei que seu senhor deve ter sido muito
cruel com ele para tê-lo castigado daquela forma, mas depois... — Sahat
fez uma pausa e fitou o ancião. Não teve resposta. — Comprei a sua
liberdade e fiz com que lhe entregassem uma quantia sem que soubesse
quem estava por trás daquilo tudo. O dinheiro durou seis dias; seis dias
durante os quais esteve permanentemente embriagado e dilapidou no jogo
e em mulheres o que para ele devia ser uma fortuna. Voltou a vender-se ao
antigo dono como escravo, em troca de cama e comida. — Sahat fez um
gesto de repulsa. — Isso é tudo o que encontrei aqui, um irmão bêbado e
esbanjador...
— Você também encontrou um amigo — queixou-se Filippo.
— É verdade. Desculpe. Eu me referia...
— Eu entendo o que você quis dizer.
Os dois homens ficaram olhando os documentos sobre a mesa. O
barulho do armazém os despertou.
— Sahat — disse Filippo por fim —, por muitos anos fui
correspondente de Hasdai, e agora, enquanto Deus me dê vida, o serei de
Jucef. Depois, por vontade de Hasdai e instruções suas, transformei-me em
correspondente de Arnau. Durante todo esse tempo, só ouvi elogios a
Arnau, fossem eles de comerciantes, marinheiros ou pilotos; até se
comentou aqui o que fez com os servos de suas terras! O que aconteceu
entre vocês? Se tivessem brigado, ele não o teria premiado com a
liberdade nem, muito menos, teria me ordenado que lhe entregasse aquela
quantia. O que aconteceu para você abandoná-lo e ele beneficiá-lo daquela
maneira?
Sahat deixou suas lembranças voltarem ao sopé de uma colina perto de
Mataró, ao som de espadas e bestas...
— Uma moça. Uma moça extraordinária.
— Ah!
— Não é o que você está pensando.
E, pela primeira vez em cinco anos, Sahat contou em voz alta o que
durante todo aquele tempo guardara para si.

***
— Como se atreve?! — O grito de Nicolau Eimeric ressoou nos corredores
do palácio. Ele nem sequer esperou que os soldados saíssem do escritório.
O inquisidor passeava pelo cômodo, gesticulando. — Como se atreve a
colocar em perigo o patrimônio do Santo Ofício? — Nicolau se virou
bruscamente para Joan, que permanecia de pé no centro do cômodo. —
Como ousa ordenar a venda das comandas a baixo preço?
Joan não respondeu. Passara a noite acordado, sendo maltratado e
humilhado. Percorrera muitos e muitos quilômetros a pé atrás de uma
mula, e todo o seu corpo doía. Estava cheirando mal, e o hábito, sujo e
ressecado, arranhava a sua pele. Não comera nada desde o dia anterior e
tinha sede. Não. Não pensava em responder.
Nicolau se aproximou dele pelas costas.
— O que você pretende, frei Joan? — sussurrou-lhe ao ouvido. — Por
acaso pensa em vender o patrimônio de seu irmão para escondê-lo da
Inquisição?
Nicolau permaneceu um instante ao lado de Joan.
— Você está cheirando mal! — gritou, afastando-se dele e voltando a
gesticular. — Está cheirando como um camponês vulgar. — Continuou a
grunhir pela sala até que por fim se sentou. — A Inquisição confiscou os
livros de comércio de seu irmão; não haverá mais vendas. — Joan não se
mexeu. — Proibi as visitas à masmorra; logo, nem tente vê-lo. Dentro de
alguns dias começará o julgamento.
Joan continuou sem se mexer.
— Não me ouviu, frade? Em poucos dias começarei a julgar seu irmão.
Nicolau esmurrou a mesa.
— Basta! Saia daqui!
Joan arrastou a bainha do hábito sujo pelo piso brilhante do escritório
do inquisidor-geral.

***

Joan parou no vão da porta para deixar os olhos se acostumarem ao sol.


Mar o esperava com as rédeas da mula nas mãos. Ele a fizera vir da masía
e agora... Como explicar que o inquisidor proibira as visitas a Arnau?
Carregaria também a culpa dessa proibição?
— Está pensando em sair, frade? — ouviu alguém dizer atrás dele.
Joan se virou e topou com uma viúva desfeita em lágrimas. Ambos se
olharam.
— Joan? — perguntou a mulher.
Aqueles olhos castanhos, aquele rosto...
— Joan? — insistiu ela. — Joan, sou Aledis. Lembra-se de mim?
— A filha do curtidor... — balbuciou Joan.
— O que aconteceu, frade?
Mar tinha se aproximado da porta. Aledis viu que Joan se virava para a
recém-chegada. Depois o frade voltou a olhar para ela e outra vez para a
mulher da mula.
— Uma amiga de infância — disse. — Aledis, apresento-lhe Mar; Mar,
esta é Aledis.
As duas se cumprimentaram com uma inclinação de cabeça.
— Este não é lugar para conversas. — A ordem do soldado obrigou os
três a se virarem. — Afastem-se da entrada.
— Viemos ver Arnau Estanyol — disse Mar elevando a voz, com a
mula segura pelo cabresto.
O soldado a olhou de alto a baixo antes de esboçar uma expressão
cínica.
— O cambista? — perguntou.
— Sim — respondeu Mar.
— O inquisidor-geral proibiu as visitas ao cambista.
O soldado empurrou Aledis e Joan.
— Por que proibiu? — perguntou Mar, enquanto os outros dois
começavam a sair do palácio.
— Pergunte ao frade — respondeu ele apontando para Joan.
Os três começaram a se afastar.
— Devia ter te matado ontem, frade.
Aledis viu Joan baixar os olhos. Ele nem respondeu. Depois observou a
mulher da mula; andava erguida, puxando o animal com autoridade. O que
teria acontecido no dia anterior? Joan não escondia o rosto com
hematomas, e sua acompanhante queria ver Arnau. Quem era aquela
mulher? Arnau estava casado com a baronesa, a mulher que o
acompanhava no castelo de Montbui quando ele abolira os maus usos...
— O julgamento de Arnau será em poucos dias.
Mar e Aledis pararam de repente. Joan avançou alguns passos, até
perceber que elas não o estavam acompanhando. Ao se virar para elas, viu
que se olhavam cara a cara em silêncio. “Quem é você?”, pareciam
perguntar uma à outra.
— Duvido que este frade tenha tido infância... e muito menos amigas
— disse Mar.
Aledis não a viu piscar. Mas permanecia de pé, orgulhosa; seus jovens
olhos pareciam querer atravessá-la. Até a mula estava quieta, com as
orelhas atentas.
— Você é direta — disse Aledis.
— A vida me ensinou a sê-lo.
— Se meu pai tivesse consentido há vinte e cinco anos, eu teria me
casado com Arnau.
— Se há cinco anos tivessem me tratado como uma pessoa e não como
um animal — ela se virou para olhar Joan —, eu estaria ao lado de Arnau
— disse Mar.
O silêncio acompanhou uma nova rodada de olhares entre elas. As duas
competiam, medindo uma a outra.
— Há vinte e cinco anos não vejo Arnau — confessou Aledis
finalmente. “Não quero competir com você”, tentou lhe dizer em uma
linguagem que só duas mulheres podem entender.
Mar mudou o peso do corpo de um pé para o outro e afrouxou a pressão
no cabresto da mula. Abaixou os olhos, e seu olhar deixou de atravessar
Aledis.
— Moro fora de Barcelona; você sabe onde posso me hospedar? —
perguntou Mar após um instante.
— Eu também moro fora. Estou... com minhas filhas na estalagem do
Estanyer. Mas podemos nos ajeitar — acrescentou ao vê-la hesitar. — E...?
— Aledis sinalizou na direção de Joan.
As duas o observaram, imóvel, com o rosto roxo, o hábito sujo e
rasgado e os ombros caídos.
— Ele tem muito o que explicar — disse Mar —, e podemos precisar
dele. Que durma com a mula.
Joan esperou que as mulheres se pusessem a caminho novamente e as
seguiu.

***
“E por que você está aqui?”, vai me perguntar. “O que fazia no palácio do
bispo?” Aledis olhou de soslaio sua nova acompanhante; caminhava
erguida puxando a mula, sem se afastar quando alguém se interpunha em
seu caminho. O que teria ocorrido entre Mar e Joan? O frade parecia
totalmente submisso. Como um dominicano podia admitir que uma
mulher o mandasse dormir com uma mula? Atravessaram a Praça de Blat.
Já tinha dito que conhecia Arnau, mas não lhes dissera que o vira nas
masmorras, suplicando que se aproximasse. “E Francesca? O que devo
dizer-lhes sobre Francesca? Que é minha mãe? Não. Joan sabe que a mãe
do meu esposo não se chamava Francesca. Mas o que dirão quando ela for
mencionada no processo contra Arnau? Eu devia saber disso. E quando
souberem que é uma mulher pública? Como posso ser nora de uma mulher
pública?” Melhor que não saibam de nada, mas, então, o que eu estava
fazendo no palácio do bispo?

***

— Ah — respondeu Aledis quando Mar perguntou —, estava levando uma


encomenda do mestre curtidor, meu defunto marido. Como sabia que
íamos passar por Barcelona...
Eulália e Teresa a olharam de esguelha sem parar de comer de suas
tigelas. Tinham chegado à estalagem e conseguiram que o estalajadeiro
colocasse uma terceira enxerga no quarto de Aledis. Joan concordou
quando Mar lhe disse que dormisse no estábulo com a mula.
— Ouçam o que for — disse Aledis às moças —, fiquem quietas.
Procurem não responder a nenhuma pergunta, e, principalmente, não
conhecemos nenhuma Francesca.
Os cinco se sentaram para comer.
— Bem, frade — insistiu Mar —, por que o inquisidor proibiu visitas a
Arnau?
Joan não tinha provado a comida.
— Eu precisava de dinheiro para pagar o aguazil — respondeu ele com
a voz cansada — e, como na mesa de Arnau não havia dinheiro vivo,
ordenei a venda de algumas comandas. Eimeric pensou que eu estava
tentando esvaziar as arcas de Arnau.
Naquele momento entraram na estalagem o senhor de Bellera e Genís
Puig. Eles sorriram ao ver as moças.
— Joan — disse Aledis —, esses dois nobres estiveram ontem
incomodando minhas filhas, e tenho a impressão de que suas intenções...
Pode ajudar-me a que não as incomodem mais?
Joan se virou para os dois homens quando estes, de pé, se deleitavam
olhando Teresa e Eulália e recordando a noite anterior.
Seus sorrisos desapareceram ao verem o hábito preto de Joan. O frade
continuou a olhar para eles, e os cavaleiros se sentaram em silêncio à sua
mesa com os olhos nas tigelas que o hospedeiro acabara de servir.
— Por que vão julgar Arnau? — perguntou Aledis quando Joan voltou a
atenção para elas.

***

Sahat estudou o navio marselhês enquanto a tripulação fazia os últimos


preparativos para zarpar: uma galera sólida de um só mastro, com um
timão na popa e dois laterais, cento e vinte remadores a bordo e uma
capacidade de aproximadamente trezentas vasilhas.
— É rápida e muito segura — comentou Filippo. — Passou por vários
combates com piratas e sempre conseguiu escapar. Em três ou quatro dias
você estará em Marselha. — Sahat assentiu. — De lá não será difícil
embarcar em um navio de cabotagem e chegar a Barcelona.
Filippo se apoiava no braço de Sahat com uma das mãos, e com a
bengala na outra apontava para a galera. Funcionários, comerciantes e
trabalhadores do porto o saudavam respeitosamente ao passar por ele;
depois saudavam Sahat.
— O tempo está bom — acrescentou o comerciante, indicando o céu
com a bengala —, você não terá problemas.
O piloto da galera se aproximou da borda e fez um sinal para ele. Sahat
sentiu o ancião pressionar seu braço.
— Tenho a impressão de que não o verei novamente — disse o ancião.
O mouro virou o rosto para ele, mas Filippo agarrou-o com mais força. —
Já estou velho, Sahat.
Os dois homens se abraçaram diante da galera.
— Cuide de meus negócios — disse Sahat, se separando dele.
— Farei isso, e, quando não puder mais — acrescentou com voz
trêmula —, meus filhos o farão. Então, onde quer que esteja, você terá de
ajudá-los.
— Conte comigo — prometeu Sahat.
Filippo abraçou o amigo e o beijou nos lábios diante da multidão que
esperava a partida da galera, atenta ao último passageiro; ouviu-se um
murmúrio ante aquela demonstração de carinho por parte de Filippo
Tescio.
— Vá — disse o ancião.
Sahat chamou os dois escravos que carregavam sua bagagem, e juntos
subiram a bordo. Quando chegou ao convés da galera, Filippo tinha
desaparecido.
O mar estava calmo. O vento não soprava, e a galera avançava ao ritmo
do esforço dos cento e vinte remadores.
“Eu não tive coragem suficiente”, disse Jucef na carta, depois de
explicar a situação provocada pelo roubo da hóstia, “para fugir da judiaria
e acompanhar meu pai em seus últimos instantes. Confio que ele tenha
entendido, esteja onde estiver agora.” Sahat, na proa da galera, ergueu o
olhar para o horizonte. “Você e os seus são bastante corajosos para
viverem em uma cidade de cristãos”, disse a si mesmo. Tinha lido e relido
a carta:

Raquel não queria fugir, mas nós a convencemos.

Sahat pulou o restante da carta até o final:

Ontem a Inquisição deteve Arnau, e hoje consegui saber, por meio de um judeu que está na
corte do bispo, que foi sua esposa, Elionor, quem o denunciou como judaizante, e, como a
Inquisição precisa de testemunhas para comprovar denúncia, Elionor chamou vários
sacerdotes de Santa Maria do Mar que aparentemente presenciaram uma discussão do casal;
parece que Arnau proferiu palavras que podem ser consideradas sacrílegas e que
confirmam a denúncia de Elionor.

O caso, continuava Jucef, era bastante complexo. Por um lado, Arnau


era muito rico e seu patrimônio interessava à Inquisição; por outro, estava
nas mãos de alguém como Nicolau Eimeric. Sahat se lembrou do
inquisidor soberbo que chegara ao posto seis anos antes de sua partida do
principado, e a quem vira em alguma celebração religiosa à qual fora
obrigado a assistir na companhia de Arnau.
Desde que você partiu, Eimeric acumulou cada vez mais poder, sem nenhum medo de
enfrentar publicamente o próprio soberano. Há anos o rei não paga rendas ao papa, e por
isso Urbano IV ofereceu a Sardenha em feudo ao senhor de Arbórea, o cabeça da revolta
contra os catalães. Depois da longa guerra com Castela, os nobres corsos se rebelaram
outra vez. Tudo isso foi aproveitado por Eimeric, que depende do papa, para enfrentar o rei
abertamente. Ele afirma que a Inquisição deveria ampliar sua alçada sobre os judeus e
demais crenças não cristãs. Deus nos livre! O rei, como proprietário das judiarias da
Catalunha, opõe-se a isso radicalmente. No entanto, Eimeric continua a insistir com o papa,
que não está muito disposto a defender os interesses de nosso monarca.
Mas, além de querer intervir nas judiarias contra os interesses do rei, Eimeric atreveu-se
a tachar de heréticas as obras do teólogo catalão Ramon Llull. Há mais de meio século, as
doutrinas de Llull vêm sendo respeitadas pela Igreja catalã, e o rei pôs juristas e pensadores
para trabalhar em sua defesa, pois tomou o caso como uma ofensa pessoal por parte do
inquisidor.
Assim estão as coisas, e soube que Eimeric tentará transformar o processo contra Arnau,
barão catalão e cônsul do Mar, em um novo enfrentamento com o rei para afiançar ainda
mais sua posição e confiscar uma importante fortuna para a Inquisição. Soube que Eimeric
escreveu ao papa Urbano dizendo-lhe que ficará com a parte dos bens de Arnau que cabem
ao rei para cobrir as dívidas de Pedro; dessa forma, o inquisidor vinga-se do rei por meio de
um nobre catalão e assegura sua posição diante do papa.
Por outro lado, creio que a situação pessoal de Arnau é bastante delicada, para não dizer
desesperadora; seu irmão, Joan, é inquisidor e, por sinal, bastante cruel; sua esposa foi
quem o denunciou; meu pai morreu, e nós, devido à acusação de judaizante e para o seu
próprio bem, não devemos demonstrar nosso apreço por ele. Só lhe resta você.

***

Jucef terminava assim: “Só lhe resta você.” Sahat colocou a carta no
pequeno cofre onde guardava a correspondência que por cinco anos
mantivera com Hasdai. “Só lhe resta você.” Com o cofre nas mãos, de pé
na proa, voltou a fitar o horizonte. “Vamos, marselheses... ele só tem a
mim.”

***

Eulália e Teresa se retiraram ao sinal de Aledis. Joan já tinha saído havia


um tempo; sua despedida ficou sem resposta por parte de Mar.
— Por que você o trata assim? — perguntou Aledis quando ficaram a
sós no térreo da estalagem. Só se ouvia o crepitar da lenha quase
consumida. Mar permaneceu em silêncio. — Afinal de contas, é irmão
dele...
— Esse frade não merece outra coisa.
Mar não ergueu os olhos da mesa, de onde tentava tirar uma farpa. “Ela
é bela”, pensou Aledis. O cabelo, brilhante e ondulado, lhe caía pelos
ombros, e seus traços eram bem definidos: lábios delineados, maçãs do
rosto salientes, queixo marcado e nariz reto. Aledis se surpreendeu ao ver
seus dentes brancos e perfeitos, e, no trajeto entre o palácio e a estalagem,
notou seu corpo firme e bem formado. Porém tinha as mãos de uma pessoa
que trabalhava no campo: ásperas e calejadas. Mar deixou a farpa e fitou
Aledis, que a encarou em silêncio.
— É uma longa história — confessou.
— Se quiser, eu tenho tempo — disse Aledis.
Mar respondeu com uma careta e deixou passar alguns segundos. Por
que não? Havia anos não conversava com uma mulher; havia anos que
vivia fechada em si mesma, dedicada a trabalhar terras ingratas, tentando
fazer com que as espigas e o sol compreendessem sua desgraça e se
apiedassem dela. Por que não? Parecia uma boa mulher.
— Meus pais morreram na grande peste, quando eu era uma menina...
Não economizou detalhes. Aledis estremeceu quando Mar falou do
amor que sentira na esplanada do castelo de Montbui. “Eu entendo”,
esteve a ponto de dizer; “eu também...” Arnau, Arnau, Arnau; de cada
cinco palavras que dizia, uma era Arnau. Aledis se lembrou da brisa do
mar acariciando seu corpo jovem, traindo sua inocência, insuflando seu
desejo. Mar lhe contou a história de seu sequestro e matrimônio; a
confissão a fez romper num pranto.
— Obrigada — disse Mar quando sua garganta permitiu.
Aledis pegou sua mão.
— Você tem filhos? — perguntou-lhe quando Mar se recompôs.
— Tive um. — Aledis lhe apertou a mão. — Morreu recém-nascido há
quatro anos, na epidemia de peste que atingiu as crianças. O pai não
chegou a conhecê-lo nem soube que eu estava grávida. Morreu em
Calatayud defendendo um rei que, em vez de capitanear os seus exércitos,
zarpava de Valença com destino ao Roussillon para salvar sua família do
novo surto da doença. — Mar acompanhou estas palavras com uma
expressão de desprezo.
— E o que tudo isso tem a ver com Joan? — perguntou Aledis.
— Ele sabia que eu amava Arnau... e que ele me correspondia.
Aledis deu uma pancada na mesa quando terminou de ouvir a história.
Já era tarde da noite e a pancada ressoou na estalagem.
— Você pensa em denunciá-los?
— Arnau sempre protegeu esse frade. É irmão dele, e ele o ama. —
Aledis recordou os dois meninos que dormiam no térreo da casa de Pere e
Mariona: Arnau carregando pedras, Joan estudando. — Não gostaria de
fazer mal a Arnau, mas agora... agora não posso vê-lo nem sei se ele sabe
que estou aqui e que continuo a amá-lo... E ele vai ser julgado.
Talvez...talvez o condenem a...
Mar rompeu em prantos novamente.

***

— Não pense que vou quebrar o juramento que fiz, mas preciso falar com
ele — disse ao se despedir. Francesca tentou perscrutar seu rosto na
penumbra. — Confie em mim — acrescentou Aledis.
Arnau se levantou ao ver Aledis entrar nas masmorras, mas não a
chamou. Se limitou a observar as duas mulheres cochichando. Onde estava
Joan? Havia dois dias que não vinha visitá-lo, e ele tinha muitas coisas
para lhe perguntar. Queria que averiguasse quem era aquela velha. O que
ela estava fazendo ali? Por que o aguazil dissera que era sua mãe? O que
estava acontecendo com seu processo? E com os seus negócios? E Mar? O
que tinha acontecido com Mar? Havia algo errado. Desde a última vez que
Joan o visitara, o aguazil voltara a tratá-lo como a um qualquer; a comida
voltara a ser um pão amanhecido e água suja, e o balde tinha desaparecido.
Arnau viu a mulher se afastar da velha. Com as costas apoiadas à
parede, começou a se sentar, mas... ela vinha em sua direção.
Na escuridão, Arnau a viu se aproximar e se ergueu. A mulher se deteve
a alguns passos, afastada dos tênues raios de luz que iluminavam a
masmorra.
Arnau semicerrou os olhos para tentar vê-la mais claramente.
— Suas visitas foram proibidas — ouviu-a dizer.
— Quem é você? — perguntou ele. — Como sabe disso?
— Não temos tempo, Arn... Arnau. — Ela disse o seu nome! — Se o
aguazil aparecer...
— Quem é você?
Por que não contar? Por que não abraçá-lo e consolá-lo? Não suportaria.
As palavras de Francesca ressoaram em seus ouvidos. Aledis se virou para
ela e depois para Arnau. A brisa do mar, a praia, sua juventude, a longa
viagem até Figueras...
— Quem é você? — ouviu de novo.
— Isso não importa. Só quero dizer-lhe que Mar está em Barcelona,
esperando por você. Ela o ama. Continua a amá-lo.
Aledis viu Arnau se apoiar à parede. Esperou alguns segundos.
Barulhos no corredor. O aguazil lhe dera só alguns instantes. Mais
barulhos. A chave na fechadura. Arnau também ouviu e se virou para a
porta.
— Quer que eu lhe dê algum recado?
A porta se abriu, e a luz das tochas do corredor iluminou Aledis.
— Diga-lhe que eu também... — o aguazil entrou na masmorra — a
amo. Apesar de não poder...
Aledis deu meia-volta e caminhou para a porta.
— O que estava fazendo, falando com o cambista? — perguntou o
aguazil obeso depois de fechar a porta.
— Ele me chamou quando eu estava saindo.
— É proibido falar com ele.
— Eu não sabia. Também não sabia que aquele era o cambista. Não lhe
respondi. Nem me aproximei.
— O inquisidor proibiu...
Aledis puxou a bolsa e fez as moedas tilintarem.
— Não quero vê-la por aqui novamente — disse o aguazil, tomando o
dinheiro. — Se você voltar, não sairá da masmorra.
Enquanto isso, no interior tenebroso da masmorra, Arnau continuava a
escutar as palavras daquela mulher: “Ela o ama. Continua a amá-lo.”
Porém a lembrança de Mar foi turvada pelo reflexo fugidio das tochas em
olhos castanhos enormes. Conhecia aqueles olhos. Onde os tinha visto
antes?

***

Ela lhe dissera que daria o recado.


— Não se preocupe — insistira —, Arnau saberá que você o espera
aqui.
— Diga-lhe também que eu o amo — gritou Mar quando Aledis se
aproximava da Praça da Llana.
Da porta da estalagem, Mar viu que a viúva virava o rosto para ela e
sorria. Quando perdeu Aledis de vista, Mar deixou a estalagem. Pensou
durante a viagem; pensou quando os impediram de ver Arnau; pensou na
noite anterior. Da Praça da Llana caminhou alguns passos pela Rua Bòria,
passou diante da Capela d’en Marcus e virou à direita. Se deteve no início
da Rua Montcada e por um instante ficou observando os palácios nobres
diante dela.
— Senhora! — exclamou Pere, o velho criado de Elionor, ao abrir um
dos grandes portões do palácio de Arnau. — Que alegria vê-la! Faz tanto
tempo que... — Pere se calou e, com gestos nervosos, a convidou para o
pátio de pedra da entrada. — O que a traz aqui?
— Vim ver D. Elionor.
Pere assentiu e desapareceu.
Enquanto isso, Mar se perdeu em lembranças. Tudo estava igual; o átrio
fresco e limpo com as pedras polidas reluzindo; as cavalariças à frente e, à
direita, a impressionante escadaria que dava acesso à área nobre, por onde
Pere acabava de subir.
Voltou arrependido.
— A senhora não quer recebê-la.
Mar ergueu os olhos para o andar superior. Uma sombra desapareceu
atrás de uma janela. Quando ela tinha vivido aquela mesma situação?
Quando...? Olhou novamente para as janelas.
— Uma vez — murmurou para as janelas diante de Pere, que não se
atrevia a consolá-la pela falta de consideração —, vivi esta mesma cena.
Arnau saiu vitorioso, Elionor. É uma advertência: ele cobrou a dívida...
toda.
53

As armas e correias dos soldados que o acompanhavam soavam ao longo


dos altos e intermináveis corredores do palácio episcopal. A comitiva
marchava em formação; o oficial abria caminho, dois soldados iam
adiante dele, e outros dois às suas costas. Ao chegar ao fim da escadaria
que subia das masmorras, Arnau se deteve para se acostumar à luz que
inundava o palácio; um forte golpe nas costas o obrigou a acompanhar o
ritmo dos soldados.
Arnau desfilou diante de frades, sacerdotes e escrivães, todos
encostados às paredes para dar passagem à comitiva. Ninguém quisera
responder. O aguazil entrou na masmorra e o libertou das correntes. “Para
onde me levará?” Um dominicano de preto se persignou quando ele
passou, outro ergueu um crucifixo. Os soldados continuavam a marchar
impassíveis, afastando as pessoas com sua presença. Havia dois dias que
não tinha notícias de Joan nem da mulher de olhos castanhos; onde tinha
visto aqueles olhos? Perguntara à velha, mas não obtivera resposta. “Quem
era aquela mulher?”, lhe gritara em quatro ocasiões. Algumas sombras
presas às paredes grunhiram, outras permaneceram impassíveis, como a
anciã, que nem sequer se moveu, e, no entanto, quando o aguazil o levou
da masmorra aos empurrões, pareceu vê-la se mexer, inquieta.
Arnau deu um encontrão em um dos soldados que o escoltavam.
Tinham parado diante de imponentes portas duplas de madeira. O soldado
o empurrou para fazê-lo retroceder. O oficial bateu à porta, depois a abriu,
e a comitiva entrou em uma sala imensa com ricas tapeçarias nas paredes.
Os soldados acompanharam Arnau até o centro da sala e depois montaram
guarda junto à porta.
Sete homens olhavam para ele detrás de uma longa mesa de madeira
trabalhada. Nicolau Eimeric, o inquisidor-geral, e Berenguer d’Erill, bispo
de Barcelona, ocupavam o centro da mesa, ricamente vestidos com trajes
bordados com fios de ouro. Arnau conhecia ambos. À esquerda do
inquisidor, o tabelião do Santo Ofício; Arnau o vira em alguma ocasião,
mas não tratara com ele. À esquerda do tabelião e à direita do bispo, dois
dominicanos de preto desconhecidos completavam o tribunal.
Arnau sustentou os olhares em silêncio até que um dos frades fez uma
expressão de desprezo. Arnau levou a mão ao rosto e apalpou a barba
pegajosa que lhe crescera nas masmorras; sua roupa não tinha nenhum
sinal da cor original e estava rasgada; seus pés descalços estavam pretos, e
suas unhas compridas estavam tão sujas quanto as mãos. Ele cheirava mal;
teve nojo de seu próprio cheiro.
Eimeric sorriu ao ver o asco em seu rosto.

***

— Primeiro o farão jurar sobre os quatro Evangelhos — explicou Joan a


Mar e Aledis, sentados em volta de uma mesa na estalagem. — O
julgamento pode durar dias e até meses — disse ele quando elas o fizeram
ir até as portas do palácio do bispo —, é melhor esperar na estalagem.
— Alguém o defenderá? — perguntou Mar.
Joan negou com um gesto cansado.
— Será designado um advogado... que é proibido de defendê-lo.
— Como?! — exclamaram as duas mulheres em uníssono.
— Proibimos os advogados e tabeliões — recitou Joan — de ajudar os
hereges, de aconselhá-los ou apoiá-los, ou de acreditar neles e defendê-los.
— Mar e Aledis interrogaram Joan com o olhar. — Assim reza uma bula
do papa Inocêncio III.
— E então? — perguntou Mar.
— O trabalho do advogado é conseguir a confissão voluntária do
herege; se defendesse o herege, estaria defendendo a heresia.

***

— Não tenho nada para confessar — respondeu Arnau ao jovem sacerdote


que lhe designaram como advogado.
— Ele é especialista em direito civil e canônico — disse Nicolau
Eimeric. — E um entusiasta da fé — acrescentou sorrindo.
O sacerdote estendeu os braços em sinal de impotência como tinha feito
diante do aguazil na masmorra ao insistir em que Arnau confessasse sua
heresia. “Deve fazê-lo”, se limitou a aconselhá-lo; “deve confiar na
benevolência do tribunal.” Repetiu exatamente o mesmo gesto que fizera
tantas vezes como advogado dos hereges e, ao sinal de Eimeric, se retirou
da sala.

***

— Depois — continuou Joan —, ele deverá dar o nome dos seus inimigos.
— Para quê?
— Se der o nome de uma das testemunhas que o denunciaram, o
tribunal pode considerar que a denúncia está viciada por essa inimizade.
— Mas Arnau não sabe quem o denunciou — interveio Mar.
— Não. Agora não. Depois poderá saber... se Eimeric lhe conceder este
direito. Na verdade, ele deveria sabê-lo — acrescentou diante da expressão
de suas interlocutoras —, pois assim ordenou Bonifácio VIII, mas o papa
está muito longe, e cada inquisidor conduz o processo como melhor lhe
convém.

***

— Acho que minha esposa me odeia — disse Arnau, em resposta à


pergunta de Eimeric.
— Por que D. Elionor o odiaria? — perguntou novamente o inquisidor.
— Não tivemos filhos.
— Você tentou? Deitou-se com ela?
Ele tinha jurado sobre os quatro Evangelhos.
— Não.
O tabelião fez a pena correr sobre os papéis diante dele. Nicolau
Eimeric se virou para o bispo.
— Algum outro inimigo?
— Os nobres de minhas baronias, especialmente o castelão de Montbui.
— O tabelião continuou a escrever. — Também ditei sentenças em muitos
processos como cônsul do Mar, mas penso ter feito justiça.
— Possui algum inimigo entre os membros do clero?
Por que aquela pergunta? Sempre se dera bem com a Igreja.
— A menos que algum dos presentes...
— Os membros deste tribunal são imparciais — interrompeu-o
Eimeric.
— Confio nisso.
Arnau enfrentou o olhar do inquisidor.
— Alguém mais?
— Como bem sabeis, há muito tempo sou cambista; talvez...
— Não se trata — Eimeric o interrompeu outra vez — de que especule
sobre quem pode ou não ser seu inimigo e por que razão. Se os tem, deve
dizer seu nome; caso contrário, negue-o. Tem ou não? — rugiu Eimeric.
— Acho que não.

***

— E depois? — perguntou Aledis.


— Depois começará o verdadeiro processo inquisitorial — disse Joan, e
se transportou mentalmente para as praças dos povoados, para as casas das
pessoas importantes, para as noites de vigília... mas um forte golpe na
mesa o trouxe de volta à realidade.
— O que é isso, frade? — gritou Mar.
Joan suspirou e a olhou nos olhos.
— “Inquisição” significa busca. O inquisidor tem de buscar a heresia, o
pecado. Mesmo quando há denúncias, o processo não se fundamenta nelas
nem se prende a elas. Se o processado não confessa, deve-se buscar essa
verdade escondida.
— De que maneira? — perguntou Mar.
Joan fechou os olhos antes de responder.
— Se você se refere à tortura, sim, é um dos procedimentos.
— O que fazem com ele?
— Por que você quer saber? — perguntou Aledis, tomando-a pela mão.
— Só servirá para atormentá-la ainda mais.
— A lei diz que a tortura não pode provocar a morte nem a amputação
de um membro — esclareceu Joan —, e só se pode torturar uma vez.
Joan observou as mulheres chorosas, tentando se consolar mutuamente.
Porém o próprio Eimeric tinha encontrado uma forma de burlar a
disposição legal. “Non ad modum iterationis sed continuationis”,
costumava dizer com estranho brilho nos olhos; não como repetição, mas
como continuação, traduzia-o para os novatos que ainda não dominavam o
latim.
— O que acontecerá se o torturarem e ele não confessar? — indagou
Mar quando se refez.
— Sua atitude será levada em conta na hora de ditarem a sentença —
respondeu Joan sem mais detalhes.
— Eimeric é quem dita a sentença? — perguntou Aledis.
— Sim, a menos que a condenação seja à prisão perpétua ou à execução
na fogueira; neste caso, precisa do consentimento do bispo. No entanto —
prosseguiu o frade, interrompendo a pergunta seguinte das mulheres —, se
o tribunal considerar que o assunto é complexo, às vezes são consultados
os boni viri, entre trinta e oitenta pessoas, leigas e seculares, para que
opinem sobre a culpa do acusado e a pena correspondente. Neste caso, o
processo pode se estender por meses e meses.
— Durante os quais Arnau continuará na prisão — ressaltou Aledis.
Joan assentiu, e os três permaneceram em silêncio; as mulheres
tentavam assimilar o que tinham ouvido. Joan lembrou outra máxima de
Eimeric: “O cárcere deve ser lôbrego, um subterrâneo onde não penetre
nenhuma claridade, especialmente do sol ou da lua; deve ser duro e áspero,
para abreviar ao máximo a vida do réu, até fazê-lo perecer.”

***

Com Arnau sujo e esfarrapado de pé no centro da sala, inquisidor e bispo


aproximaram mutuamente as cabeças e começaram a conversar em voz
baixa. O tabelião aproveitou para organizar seus papéis, e os quatro
dominicanos cravaram os olhos em Arnau.
— Como pensa em proceder ao interrogatório? — perguntou Berenguer
d’Erill.
— Começaremos como sempre e, à medida que tivermos algum
resultado, lhe comunicaremos as acusações.
— Vai informá-lo a respeito?
— Vou. Acho que com este homem a pressão dialética será mais eficaz
do que a física, ainda que, se não houver outra saída...
Arnau tentou sustentar o olhar dos frades de preto. Um, dois, três,
quatro... Transferiu o peso do corpo para o outro pé e olhou novamente
para o inquisidor e o bispo. Continuavam a cochichar. Os dominicanos
tinham a atenção posta nele. A sala estava no mais absoluto silêncio, à
exceção do murmúrio ininteligível dos dois clérigos.
— Está começando a ficar nervoso — disse o bispo depois de observar
Arnau e voltar a tratar com o inquisidor.
— É uma pessoa acostumada a mandar e a ser obedecida — respondeu
Eimeric. — Precisa entender a sua verdadeira situação, aceitar o tribunal e
sua autoridade, submeter-se a ele. Só então estará disposto a ser
interrogado. A humilhação é o primeiro passo.
Bispo e inquisidor prolongaram as consultas por mais tempo, durante o
qual Arnau se sentiu constantemente observado pelos dominicanos. Ele
tentou distrair seus pensamentos se ocupando de Mar, de Joan, mas cada
vez que pensava neles o olhar de um dos frades o arranhava como se
soubesse o que estava pensando. Mudou de posição uma infinidade de
vezes; levou a mão à barba e aos cabelos e avaliou seu estado de sujeira.
Berenguer d’Erill e Nicolau Eimeric, refulgentes de ouro, comodamente
sentados à mesa do tribunal, o olhavam de soslaio antes de voltar a
sussurrar.
Finalmente, Nicolau Eimeric se dirigiu a ele com voz potente:
— Arnau Estanyol, sei que você pecou.
Começava o julgamento. Arnau respirou fundo.
— Não sei a que se refere. Acho que sempre fui um bom cristão.
Procurei...
— Você mesmo reconheceu diante deste tribunal que não teve relações
com sua esposa. Essa é uma atitude de um bom cristão?
— Não posso ter relações carnais. Não sei se sabeis que estive casado
em uma ocasião e tampouco... pude ter filhos.
— Quer dizer que tem um problema físico? — interveio o bispo.
— Sim.
Eimeric observou Arnau por um instante; apoiou os cotovelos na mesa
e, cruzando as mãos, tapou a boca. Depois, virou-se para o tabelião e lhe
deu uma ordem em voz baixa.
— Declaração de Juli Andreu, sacerdote de Santa Maria do Mar. — O
tabelião leu, mergulhado em papéis: — “Eu, Juli Andreu, sacerdote de
Santa Maria do Mar, por requisição do inquisidor-geral da Catalunha,
declaro que aproximadamente em março do ano de 1364 de Nosso Senhor
mantive com Arnau Estanyol, barão da Catalunha, uma conversa a pedido
de sua esposa, D. Elionor, baronesa, pupila do rei Pedro, que me
manifestara preocupação com o descaso do esposo diante dos deveres
conjugais. Declaro que Arnau Estanyol me confidenciou que sua esposa
não o atraía e que seu corpo se negava a manter relações com D. Elionor;
que se encontrava bem fisicamente e não podia obrigar seu corpo a desejar
uma mulher que ele não desejava; que sabia que estava em pecado” —
Nicolau Eimeric fitou Arnau com os olhos semicerrados — “e que por isso
rezava tanto em Santa Maria e fazia vultosas doações para a construção da
igreja.”
O silêncio voltou a se abater sobre a sala. Nicolau continuava com o
olhar fixo em Arnau.
— Você confirma que tem um problema físico? — perguntou o
inquisidor.
Arnau se lembrava daquela conversa, mas não de que exatamente...
— Não lembro o que disse.
— Reconhece ter conversado com o padre Juli Andreu?
— Reconheço.
Arnau ouviu a pena riscar o papel.
— No entanto, está colocando em dúvida a declaração de um homem de
Deus. Que interesse teria um clérigo em mentir contra você?
— Pode estar enganado. Não lembrar bem o que conversamos...
— Pretende dizer que um sacerdote que estivesse em dúvida faria uma
declaração como a do padre Juli Andreu?
— Só disse que pode estar enganado.
— O padre Juli Andreu não é seu inimigo, ou é? — interveio o bispo.
— Não o considero assim.
Nicolau se dirigiu outra vez ao tabelião.
— Declaração de Pere Salvete, cônego de Santa Maria do Mar: “Eu,
Pere Salvete, cônego de Santa Maria do Mar, por requisição do inquisidor-
geral da Catalunha, declaro que na Páscoa do ano de 1367 de Nosso
Senhor, enquanto celebrávamos a Santa Missa, irromperam na igreja
alguns cidadãos alertando sobre o roubo de uma hóstia por hereges. A
missa foi suspensa e os fiéis abandonaram a igreja, à exceção de Arnau
Estanyol, cônsul do Mar, e de sua esposa, D. Elionor.” — “Vá com sua
amante judia!”, ressoaram novamente as palavras de Elionor. Arnau foi
tomado pelo mesmo calafrio que sentira naquele dia. Ergueu os olhos.
Nicolau estava atento a ele... e sorria. Teria notado? O escrivão continuava
a ler. — “... e o cônsul respondeu-lhe que Deus não podia obrigá-lo a
deitar-se com ela...”
Nicolau pediu silêncio ao tabelião e deixou de sorrir.
— O cônego também está mentindo?
“Vá com sua amante judia!” Por que não o deixou terminar? O que
pretendia Nicolau? Sua amante judia, sua amante judia... as chamas
lambendo o corpo de Hasdai, o silêncio, o povo ensandecido reclamando
justiça em silêncio, gritando palavras que não chegavam a surgir de sua
boca, Elionor apontando em sua direção, Nicolau e o bispo olhando para
ele... e Raquel com a cabeça apoiada em seu peito.
— O cônego também está mentindo? — repetiu Nicolau.
— Não acusei ninguém de mentir — defendeu-se Arnau. Precisava
pensar.
— Nega os preceitos de Deus? Por acaso se nega às obrigações que lhe
correspondem como esposo cristão?
— Não... não. — Arnau hesitou.
— E então?
— Então o quê?
— Nega os preceitos de Deus? — repetiu Nicolau, levantando a voz.
As palavras reverberaram nas paredes de pedra da ampla sala. Arnau
sentia as pernas enrijecidas, tantos dias naquela masmorra...
— O tribunal pode considerar o seu silêncio uma confissão —
acrescentou o bispo.
— Não. Não os nego. — Suas pernas começavam a doer. — Minhas
relações com D. Elionor serão tão importantes para o Santo Ofício? Por
acaso é pecado...?
— Não se iluda, Arnau — rugiu o inquisidor —, as perguntas quem faz
é o tribunal.
— Perguntai, pois.
Nicolau observou que Arnau se mexia inquieto e mudava de posição a
todo instante.

***
— Ele está começando a sentir dor — sussurrou ao ouvido de Berenguer
d’Erill.
— Deixemo-lo pensar nisto — respondeu o bispo.
Voltaram a sussurrar e Arnau continuou sentindo sobre si os quatro
pares de olhos dos dominicanos. Suas pernas doíam, mas precisava resistir.
Não se abateria diante de Nicolau Eimeric. O que aconteceria se caísse no
chão? Precisava... de uma pedra! Uma pedra sobre suas costas, um longo
caminho a percorrer carregando uma pedra para a Virgem. “Onde está você
agora? São estes seus verdadeiros representantes?” Ele era só uma
criança... Por que não aguentaria agora? Percorrera toda Barcelona com
uma pedra mais pesada do que ele, suando, sangrando, ouvindo os gritos
das pessoas que o animavam. Não lhe restava nada daquela força? Seria
derrotado por um frade fanático? Ele? A criança bastaix que todos os
meninos da cidade admiravam? Passo a passo, se arrastando pelo caminho
até Santa Maria e depois de volta para casa para descansar e refazer o
caminho na seguinte jornada. Para casa... os olhos castanhos, os grandes
olhos castanhos. Então, com um tremor que quase o fez cair, reconheceu
Aledis na visitante da masmorra escura.
Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill trocaram olhares ao verem Arnau
se erguer. Pela primeira vez um dos dominicanos desviou a atenção de
Arnau para o centro da mesa.
— Ele não cai — cochichou, nervoso, o bispo.
— Onde você satisfaz os seus instintos? — perguntou Nicolau,
elevando a voz.
Por isso ela sabia o seu nome. A voz... Sim, aquela era a voz que ouvia
nas encostas de Montjuïc.
— Arnau Estanyol! — O grito do inquisidor o trouxe de volta ao
tribunal. — Perguntei onde satisfaz os seus instintos.
— Não entendi a vossa pergunta.
— Você é um homem. Não teve relações com sua esposa durante anos.
É muito simples: onde satisfaz suas necessidades de homem?
— Por todos estes anos que mencionais não tive contato com nenhuma
mulher.
Respondera sem pensar. O aguazil disse que ali estava a sua mãe.
— Você mente! — Arnau teve um sobressalto. — Este mesmo tribunal
o viu abraçado a uma herege. Isso não é ter contato com uma mulher?
— Mas não se trata do que vós mencionais.
— O que pode levar um homem e uma mulher a se abraçarem em
público se não for a lascívia? — Nicolau gesticulou.
— A dor.
— Que dor? — questionou o bispo. — Que dor? — insistiu Nicolau
diante de seu silêncio. Arnau se calou. As chamas da pira iluminaram o
cômodo. — Pela execução de um herege que profanou uma hóstia
sagrada? — perguntou o inquisidor, apontando para ele com seu dedo
enjoiado. — É essa a dor de um bom cristão? A do peso da justiça sobre
um desalmado, um profanador, um miserável, um ladrão...?
— Não foi ele! — gritou Arnau.
Todos os membros do tribunal, incluindo o tabelião, se mexeram nos
assentos.
— Os três confessaram ser culpados. Por que você defende os hereges?
Os judeus...
— Judeus! Judeus! — Arnau revoltou-se. — O que o mundo tem contra
os judeus?
— E você não sabe? — perguntou o inquisidor, elevando a voz. —
Crucificaram Jesus Cristo!
— Não pagaram o suficiente com as próprias vidas?
Arnau enfrentou o olhar dos membros do tribunal. Todos estavam de pé.
— Você defende o perdão? — perguntou Berenguer d’Erill.
— Não são esses os ensinamentos de Nosso Senhor?
— O único caminho é a conversão! Não se pode perdoar quem não se
arrepende — gritou Nicolau.
— Falais de um fato que aconteceu há mais de mil e trezentos anos. Do
que um judeu que nasce em nossa época tem que se arrepender? Ele não
tem culpa pelo que aconteceu naquele tempo.
— Quem abraça a doutrina judaica é responsável pelos atos de seus
antepassados; deve assumir essa culpa.
— Eles só abraçam ideias, crenças, como nós... — Nicolau e Berenguer
tiveram um sobressalto; por que não? Por acaso não era verdade? Por
acaso aquele homem vilipendiado que deu a vida pela sua comunidade não
o merecia? — Como nós — afirmou Arnau de forma contundente.
— Está equiparando a fé católica à heresia? — O bispo pulou.
— Não me corresponde comparar nada; essa tarefa deixo a vós, os
homens de Deus. Só disse...
— Sabemos perfeitamente o que disse! — gritou Nicolau Eimeric. —
Você equiparou a autêntica fé cristã, a única, a verdadeira, às doutrinas
heréticas dos judeus.
Arnau enfrentou o tribunal. O tabelião continuava escrevendo. Até os
soldados às suas costas, sérios junto às portas, pareciam atentos ao som da
pluma riscando o papel. Nicolau sorriu e o som do escrivão alcançou
Arnau e desceu por sua espinha. Um calafrio percorreu o seu corpo. O
inquisidor percebeu e sorriu abertamente. Sim, disse com o olhar, são as
suas declarações.
— Eles são como nós — reiterou Arnau.
Nicolau fez um gesto para calá-lo.
O tabelião continuou escrevendo. Aí ficarão as suas palavras, Nicolau
lhe disse com o olhar. Quando ele ergueu a pluma, Nicolau sorriu mais
uma vez.
— A sessão está suspensa até amanhã — disse, levantando-se da
cadeira.

***

Mar estava cansada de escutar Joan.


— Aonde você vai? — perguntou Aledis. Mar se limitou a fitá-la. —
De novo? Você foi todos os dias e não conseguiu...
— Consegui que ela saiba que estou aqui e que não vou esquecer o que
me fez. — Joan escondeu o rosto. — Consegui vê-la pela janela e fazê-la
saber que Arnau é meu; vi em seus olhos e quero que ela se lembre disso
por todos os dias de sua vida. Quero que a cada instante ela saiba que fui
eu quem ganhou.
Aledis a seguiu com o olhar enquanto ela deixava a estalagem. Mar
refez o caminho que vinha fazendo desde que regressara a Barcelona, até o
pórtico do palácio da Rua de Montcada. Bateu à porta com todas as suas
forças. Elionor se negaria a recebê-la, porém tinha que saber que ela
estava ali embaixo.
Mais uma vez o criado abriu o postigo.
— Senhora — disse ele —, já sabeis que D. Elionor...
— Abra a porta. Só quero vê-la, mesmo que seja pela janela onde ela se
esconde.
— Mas ela não quer, senhora.
— Ela sabe que sou eu?
Mar viu Pere se virar para olhar as janelas do palácio.
— Sabe.
Mar golpeou a porta com força.
— Não continueis, senhora, ou D. Elionor mandará chamar os soldados
— aconselhou-a o velho.
— Abra, Pere.
— Ela não deseja vê-la, senhora.
Mar foi gentilmente afastada da porta.
— Talvez ela queira me ver. — Mar ouviu antes de ver um homem se
aproximar do postigo.
— Guillem! — gritou ela, e se jogou em seus braços.
— Lembra-se de mim, Pere? — perguntou o mouro, com Mar
pendurada nele.
— Como não iria lembrar?
— Pois diga à sua senhora que quero vê-la.
Quando o velho fechou o postigo, Guillem pegou Mar pela cintura e a
ergueu do chão. Rindo, ela se deixou abraçar. Depois Guillem a colocou de
volta no chão e deu um passo para trás, tomando-a pelas mãos e abrindo os
braços para observá-la.
— Minha menina — disse com a voz embargada —, como sonhei
abraçá-la assim! Mas agora você pesa muito mais. Você virou uma...
Mar se safou e o abraçou outra vez.
— Por que você me abandonou? — perguntou ela, chorando.
— Eu era só um escravo, minha menina. O que podia fazer um simples
escravo?
— Você era como meu pai.
— E não sou mais?
— Você sempre será.
Mar abraçou Guillem com força. “Você sempre será”, pensou o mouro.
“Quanto tempo perdi longe daqui?”
Ele se virou para o postigo.
— D. Elionor não quer vê-lo — ouviram.
— Diga-lhe que terá notícias minhas.

***
Os soldados o acompanharam de volta às masmorras. Enquanto o aguazil o
acorrentava outra vez, Arnau não desviou a vista da sombra agachada no
outro extremo do lúgubre cômodo. Continuou de pé quando o aguazil
deixou as masmorras.
— O que você tem a ver com Aledis? — gritou para a velha quando já
não se ouviam os passos no corredor.
Arnau pensou perceber um sobressalto na sombra, mas no mesmo
instante a figura ficou inerte outra vez.
— O que você tem a ver com Aledis? — repetiu. — O que ela fazia
aqui? Por que ela a visita?
O silêncio que teve em resposta lhe recordou o reflexo daqueles
grandes olhos castanhos.
— O que têm a ver Aledis e Mar? — suplicou à sombra.
Arnau tentou ouvir pelo menos a respiração da velha, mas uma
infinidade de arquejos e suspiros se misturou ao silêncio de Francesca.
Arnau passeou o olhar pelas paredes da masmorra; ninguém prestava a
menor atenção.

***

O estalajadeiro parou de mexer no grande caldeirão sobre o fogo ao ver


que Mar entrava acompanhada de um mouro luxuosamente vestido. Seu
nervosismo aumentou quando atrás deles entraram dois escravos
carregando os pertences de Guillem. “Por que não foi a uma alfândega,
como todos os mercadores?”, pensou enquanto o recebia.
— É uma honra para esta casa — disse, fazendo uma mesura.
Guillem esperou o estalajadeiro terminar o salamaleque.
— Tem quartos?
— Sim, os escravos podem dormir no...
— Quartos para três — Guillem o interrompeu. — Dois quartos; um
para mim e outro para eles.
O hospedeiro olhou os dois rapazes de grandes olhos escuros e cabelos
encaracolados que esperavam em silêncio atrás do seu senhor.
— Sim — respondeu —, se é o que desejais. Acompanhai-me.
— Eles se ocuparão de tudo. Traga-nos um pouco de água.
Guillem acompanhou Mar até uma das mesas. Estavam a sós no
refeitório.
— Você disse que o julgamento não começou?
— Sim, mas não tenho certeza. A verdade é que não sei de nada. Nem
pude vê-lo.
Guillem notou que a voz de Mar falhou. Estendeu a mão para consolá-
la, mas não a tocou. Já não era uma menina e ele... afinal de contas, não
passava de um mouro. Alguém poderia pensar... Já se excedera diante do
palácio de Elionor. A mão de Mar fez o caminho que a de Guillem não
tinha feito.
— Continuo a mesma. Para você, sempre.
Guillem sorriu.
— E o seu esposo?
— Morreu.
Seu rosto não demonstrou tristeza. Guillem mudou de assunto:
— O que foi feito por Arnau?
Mar semicerrou os olhos e franziu os lábios.
— O que você quer dizer? Não podemos fazer...
— E Joan? Joan é inquisidor. Você tem notícias dele? Não intercedeu
por Arnau?
— Aquele frade? — Mar sorriu sem vontade e ficou em silêncio; para
que contar? Já era suficiente dizer tudo sobre Arnau, e Guillem viera por
causa dele. — Não, não fez nada. Além disso, o inquisidor-geral está
contra ele. Está aqui conosco...
— Conosco?
— Sim. Conheci uma viúva chamada Aledis que está aqui com suas
duas filhas. Era amiga de infância de Arnau. Pelo visto estava de passagem
por Barcelona e coincidiu com a detenção de Arnau. Durmo no quarto com
elas. É uma boa mulher. Você as verá na hora do jantar.
Guillem apertou a mão de Mar.
— Como você tem passado? — perguntou ela.

***

Mar e Guillem contaram um ao outro sobre seus cinco anos separados, até
que o sol subiu alto no céu de Barcelona; ela evitou mencionar Joan. As
primeiras a aparecer foram Teresa e Eulália. Chegaram acaloradas e
sorridentes, mas os sorrisos desapareceram ao verem Mar e lembrarem da
prisão de Francesca.
Haviam passeado pela cidade desfrutando a nova identidade que as
vestimentas de órfãs — e virgens — lhes proporcionava. Nunca tinham
tido tanta liberdade, pois a lei as obrigava a se vestirem com sedas
coloridas para que qualquer um as distinguisse. “Entramos?” Teresa
propôs, apontando às escondidas para as portas da igreja de Sant Jaume.
Ela falou sussurrando, como se tivesse medo de que a ideia desencadeasse
a ira de toda Barcelona. Mas nada aconteceu. Os fiéis que estavam no
interior não prestaram atenção nelas, nem o sacerdote, diante de quem as
moças abaixaram a vista e colaram uma na outra.
Da Rua da Boquería desceram rindo e conversando em direção ao mar;
se tivessem seguido pela Rua do Bisbe até a Praça Nova teriam visto
Aledis diante do palácio do bispo com os olhos nas janelas, tentando
reconhecer Arnau ou Francesca em cada silhueta que passava atrás dos
vidros. Nem sabia onde estavam julgando Arnau. Francesca já teria
falado? Joan não sabia nada sobre ela, e Aledis ia de uma janela a outra
com o olhar. Certamente que sim, mas para que lhe contar, se não podia
fazer nada? Arnau era forte e Francesca... não conheciam Francesca.
— O que faz aí parada, mulher? — Aledis viu um soldado da Inquisição
ao seu lado. Não o vira chegar. — O que olha com tanta atenção?
Ajeitou o xale e saiu fugindo sem responder. “Você não conhece
Francesca”, pensou enquanto escapava. “Nem todas as torturas a farão
confessar o segredo que calou durante toda a vida.”
Joan entrou na estalagem antes de Aledis, vestido com um hábito limpo
que conseguira no monastério de Sant Pere de les Puelles. Quando viu
Guillem sentado com Mar e as duas filhas de Aledis, ficou parado no meio
do refeitório.
Guillem o olhou. Aquilo era um sorriso ou uma expressão de desgosto?
O próprio Joan não sabia responder. Mar teria lhe contado sobre o
sequestro?
Por um instante Guillem recordou a maneira como o frade o tratava
quando estava com o irmão mais velho, mas não era hora para
implicâncias, e ele se levantou. Precisavam se unir pelo bem de Arnau.
— Como está, Joan? — disse, segurando-o pelos ombros. — O que
aconteceu com seu rosto? — acrescentou ao ver os hematomas.
Joan olhou para Mar, mas só deparou com o mesmo rosto duro e
inexpressivo com que o brindava desde que tinha ido buscá-la. Mas não,
Guillem não seria tão cínico para perguntar...
— Um encontro ruim — respondeu. — Os frades também passam por
isso.
— Suponho que você os excomungou — disse Guillem sorrindo
enquanto o acompanhava até a mesa. — Não é o que dizem as
Constituições de Paz e Trégua? — Joan e Mar se entreolharam. — Não é
assim? Será excomungado aquele que romper a paz contra clérigos
desarmados... Você não estava armado, não é, Joan?
Guillem não percebeu a tensão entre Mar e o frade, pois logo Aledis
apareceu. As apresentações foram breves; Guillem queria mesmo falar
com Joan.
— Você é inquisidor — disse-lhe —, o que acha da situação de Arnau?
— Acho que Nicolau deseja condená-lo, mas não tem muita coisa
contra ele. Suponho que seu nome e o castigo serão expostos nas igrejas e
que receberá uma forte multa, que é o que interessa a Eimeric. Conheço
Arnau, nunca fez mal a ninguém. Mesmo que Elionor o tenha denunciado,
não encontrarão...
— E se além da denúncia de Elionor houver denúncias de sacerdotes?
— Joan teve um sobressalto. — Os sacerdotes denunciariam detalhes
ínfimos?
— A que você se refere?
— Não vem ao caso. — Guillem lembrava a carta de Jucef. —
Responda-me. O que aconteceria se houvesse denúncia de sacerdotes?
Aledis não ouviu as palavras de Joan. Devia contar o que sabia? Aquele
mouro teria como ajudar? Ele era rico... e parecia... Eulália e Teresa
olharam para ela. Tinham ficado em silêncio como ela pedira, mas agora
pareciam incitá-la a falar. Não foi preciso lhes perguntar, as duas
assentiram. Isso significava... e daí? Alguém tinha que fazer algo, e aquele
mouro...
— Há muito mais — interveio ela, interrompendo as hipóteses que Joan
estava embaralhando.
Os dois homens e Mar olharam-na com atenção.
— Não vou lhes dizer como sei disso, nem quero falar novamente sobre
o assunto. Estão de acordo?
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Joan.
— Está suficientemente claro, frade — Mar o interrompeu.
Surpreso, Guillem olhou para Mar. Por que agia daquela maneira? Se
virou para Joan, mas ele estava cabisbaixo.
— Prossiga, Aledis. Estamos de acordo — aceitou Guillem.
— Lembram-se dos dois nobres que se hospedaram aqui?
Guillem a interrompeu ao ouvir o nome de Genís Puig.
— Tem uma irmã que se chama Margarida — disse Aledis.
Guillem levou as mãos ao rosto.
— Ainda estão alojados aqui?
Aledis continuou contando o que suas moças tinham descoberto;
Eulália não cedera a Genís Puig em vão. Depois de descarregar nela uma
paixão embebida em vinho, o cavaleiro desfiou as acusações contra Arnau
que tinham apresentado ao inquisidor.
— Dizem que Arnau queimou o cadáver do pai — contou Aledis —, e
eu não acredito...
Joan conteve uma ânsia. Todos se viraram para ele. O frade, com a mão
na boca, estava enjoado. A escuridão, o corpo de Bernat pendurado
naquele cadafalso improvisado, as chamas...
— O que tem a dizer agora, Joan? — Guillem se dirigia a ele.
— Ele será executado — conseguiu dizer antes de sair correndo da
estalagem com a mão na boca.
A sentença de Joan ficou flutuando no ar. Ninguém se olhou.
— O que aconteceu entre Joan e você? — perguntou Guillem
discretamente a Mar depois de um tempo, ao ver que o frade não voltava.
Era só um escravo... O que um simples escravo podia fazer? As
palavras de Guillem ressoaram na cabeça de Mar. Se ela contasse...
Precisavam estar unidos. Arnau precisava que todos lutassem por ele,
incluindo Joan.
— Nada — respondeu. — Você sabe que nunca nos demos bem.
Mar se esquivou do olhar de Guillem.
— Você me contará um dia? — insistiu Guillem.
Mar baixou ainda mais os olhos.
54

O tribunal já estava constituído: os quatro dominicanos e o tabelião


sentados à mesa, os soldados de guarda junto à porta e Arnau de pé no
centro, sujo como no dia anterior, vigiado por todos.
Pouco depois entraram Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill esbanjando
luxo e soberba. Os soldados os saudaram, e os outros membros do tribunal
se puseram de pé enquanto eles chegavam a seus assentos.
— A sessão vai começar — disse Nicolau. — Recordo-lhe —
acrescentou, olhando para Arnau — que continua sob juramento.
“Este homem”, comentara ele com o bispo a caminho da sala, “falará
mais devido ao juramento que prestou do que por medo da tortura.”
— Proceda à leitura das últimas palavras do réu — prosseguiu Nicolau,
se dirigindo ao tabelião.
“Só abraçam ideias, crenças, assim como nós.” Sua própria declaração
surpreendeu-o. Com a presença constante de Mar e Aledis em sua mente,
tinha passado a noite pensando no que dissera. Nicolau não permitira que
se explicasse, mas como fazê-lo? O que dizer àqueles caçadores de
hereges sobre suas relações com Raquel e sua família? O tabelião
continuava lendo. Não podia levar as investigações até Raquel; eles já
tinham sofrido o bastante com a morte de Hasdai para, ainda por cima, ter
a Inquisição no seu encalço...
— Considera que a fé cristã se reduz a ideias ou crenças que podem ser
abraçadas voluntariamente pelos homens? — perguntou Berenguer d’Erill.
— Por acaso um simples mortal pode julgar os preceitos divinos?
Por que não? Arnau encarou Nicolau. Por acaso vocês não são simples
mortais? Eles o queimariam. Como tinham feito com Hasdai e tantos
outros. Um calafrio percorreu o seu corpo.
— Expressei-me mal — respondeu ele finalmente.
— Como então se expressaria? — interveio Nicolau.
— Não sei. Não possuo os vossos conhecimentos. Só posso dizer que
creio em Deus, que sou um bom cristão e que sempre agi conforme os
preceitos cristãos.
— Você considera que queimar o cadáver de seu pai é agir conforme os
preceitos de Deus? — gritou o inquisidor, se levantando e esmurrando a
mesa com ambos os punhos.

***

Raquel, se amparando nas sombras, chegou à casa do irmão como haviam


combinado.
— Sahat — disse em saudação e permaneceu parada à porta de entrada
da casa.
Guillem se levantou da mesa onde estava com Jucef.
— Sinto muito, Raquel.
A mulher respondeu com uma expressão de tristeza. Guillem estava a
alguns passos, mas um leve movimento dos braços foi suficiente para que
ela se aproximasse e o abraçasse. Guillem a apertou contra si e tentou
consolá-la, mas sua voz não respondia. “Deixe correr as lágrimas,
Raquel”, pensou, “deixe que se apague este fogo em seus olhos.”
Depois de um instante, Raquel se afastou de Guillem e secou as
lágrimas.
— Você veio por causa de Arnau, não é mesmo? — perguntou, já
recomposta. — Você tem de ajudá-lo — acrescentou quando Guillem
assentiu. — Nós pouco podemos fazer sem complicar ainda mais as
coisas.
— Estava dizendo ao seu irmão que preciso de uma carta de
apresentação para a corte.
Raquel interrogou o irmão com o olhar.
— Vamos consegui-la — afirmou ele. — O infante D. Juan e sua corte,
os membros da corte do rei e os pró-homens do reino estão reunidos no
parlamento em Barcelona para tratar do assunto da Sardenha. É um
excelente momento.
— O que você pensa em fazer, Sahat? — perguntou Raquel.
— Ainda não sei. Você me escreveu — ele fitou Jucef — dizendo que o
rei está enfrentando o inquisidor. — Jucef assentiu. — E o filho dele?
— Ainda mais — respondeu Jucef. — O infante é um mecenas da arte e
da cultura. Gosta de música e poesia e, em sua corte em Girona, costuma
reunir escritores e filósofos. Nenhum deles aceita o ataque de Eimeric a
Ramon Llull. A Inquisição é malvista entre os pensadores catalães; no
princípio do século condenaram por heresia catorze obras do médico
Arnau de Vilanova. A obra de Nicolás de Calábria também foi considerada
herética pelo próprio Eimeric, e agora perseguem Ramon Llull, outro entre
os grandes. É como se tivessem repugnância por tudo o que é catalão.
Poucos se atrevem a escrever, por temerem a maneira como Eimeric pode
interpretar seus textos; Nicolás de Calábria terminou na fogueira. Por
outro lado, se alguém pode intervir no projeto do inquisidor de ampliar sua
jurisdição abraçando as judiarias catalãs, esse alguém é o infante. Você
deve levar em conta que o infante vive dos impostos que pagamos. Ele
prestará atenção às suas palavras — afirmou Jucef —, mas não se iluda:
dificilmente confrontará a Inquisição.
Guillem concordou.

***

Queimar o cadáver?
Nicolau Eimeric permaneceu de pé, fitando Arnau com as mãos
apoiadas na mesa; estava transtornado.
— O seu pai — rugiu — foi um diabo que insuflou o povo. Por isso foi
executado e por isso você o queimou, para que morresse como tal.
Nicolau apontou para Arnau.
Como ele sabia disso? Só uma pessoa o sabia... o escrivão movia sua
pluma. Não podia ser Joan. Joan não... Arnau sentiu as pernas fraquejarem.
— Você nega ter queimado o cadáver de seu pai? — perguntou
Berenguer d’Erill.
Joan não podia tê-lo denunciado!
— Você nega? — repetiu Nicolau, erguendo a voz.
Os rostos dos membros do tribunal se desfiguraram e Arnau conteve
uma ânsia.
— Nós tínhamos fome! — gritou. — Alguma vez vós tivestes fome? —
O rosto arroxeado do pai com a língua pendurada se confundiu com os que
o fitavam. Joan? Por que não tinha ido vê-lo? — Estávamos com fome! —
gritou. Arnau ouviu seu pai dizer: “Se eu fosse você, não me submeteria.”
— Alguma vez vós tivestes fome?
Arnau tentou se lançar sobre Nicolau, que, soberbo, continuava de pé
interrogando-o com os olhos, mas antes que pudesse alcançá-lo os
soldados o imobilizaram e o arrastaram de volta para o centro da sala.
— Queimou seu pai como se fosse um demônio? — repetiu Nicolau aos
gritos.
— O meu pai não era um demônio! — gritou de volta Arnau,
forcejando com os soldados que o mantinham preso.
— Mas você queimou o cadáver dele.
“Por quê, Joan? Você é meu irmão e Bernat... Bernat sempre o quis
como um filho.” Arnau baixou a cabeça e ficou pendurado pelos braços.
— Foi por ordem de sua mãe?
Arnau só conseguiu erguer a cabeça.
— Sua mãe é uma bruxa que transmite o mal do diabo — acrescentou o
bispo.
O que estavam dizendo?
— Seu pai assassinou um rapaz para libertá-lo. Você confessa? —
gritou Nicolau.
— O quê...? — tentou dizer Arnau.
— Você — Nicolau apontou para ele — também assassinou um menino
cristão. O que pensava fazer com ele?
— Foi uma ordem de seus pais? — perguntou o bispo.
— Você queria o coração dele? — inquiriu Nicolau.
— Quantos meninos você assassinou?
— Quais são suas relações com os hereges?
Inquisidor e bispo o cravavam de perguntas. Seu pai, sua mãe, meninos,
assassinatos, corações, hereges, judeus... Joan! Arnau deixou a cabeça cair
novamente. Ele tremia.
— Você confessa? — terminou Nicolau.
Arnau não se moveu. O tribunal deixou o tempo correr. Arnau
continuava dependurado nos braços dos soldados. Finalmente, Nicolau fez
um sinal para que deixassem a sala, e Arnau foi arrastado para fora.
— Espere! — ordenou o inquisidor quando estavam a ponto de abrir as
portas. Os soldados se viraram. — Arnau Estanyol! — gritou. — Arnau
Estanyol!
Lentamente, Arnau ergueu a cabeça e olhou para Nicolau.
— Podem levá-lo — disse aos soldados ao perceber que Arnau olhava
para ele. — Anote, tabelião — Arnau o ouviu dizer quando fechavam as
portas —, o réu não negou nenhuma das acusações formuladas por este
tribunal e negou-se a confessar simulando um desvanecimento cuja
falsidade foi descoberta quando, livre do processo inquisitorial e antes de
deixar a sala, respondeu ao ser interpelado.
O som da pluma perseguiu Arnau até as masmorras.

***

Guillem ordenou a seus escravos que organizassem a transferência para a


alfândega, muito próxima da estalagem do Estanyer, cujo proprietário
recebeu a notícia com desgosto; deixou Mar, porém não podia correr o
risco de ser reconhecido por Genís. Os escravos responderam negando
com a cabeça a cada tentativa do estalajadeiro de impedir que o rico
mercador deixasse seu estabelecimento. “Para que quero nobres que não
pagam?”, murmurou ao contar os dinheiros que os escravos de Guillem lhe
entregaram.
Guillem foi diretamente da judiaria à alfândega; nenhum mercador de
passagem pela cidade sabia de sua antiga relação com Arnau.
— Tenho um estabelecimento em Pisa — respondeu a um mercador
siciliano que se sentou à sua mesa e se interessou por ele.
— O que o traz a Barcelona? — perguntou o siciliano.
Um amigo com problemas, esteve a ponto de responder. O siciliano era
um homem baixo, calvo e de feições marcadas; disse que se chamava
Jacopo Lercardo. Tinha conversado longamente com Jucef, mas era
sempre bom conhecer outra opinião.
— Anos atrás mantive bons contatos com a Catalunha e aproveitei uma
viagem a Valência para explorar um pouco o mercado.
— Há pouco o que explorar — disse o siciliano, sem deixar de levar a
colher à boca.
Guillem esperou que ele prosseguisse, mas Jacopo continuou ocupado
com o seu prato de carne. Aquele homem só falaria com alguém que
conhecesse o mercado tão bem quanto ele.
— Comprovei que a situação mudou muito desde a última vez que
estive aqui. Nos mercados sente-se a falta dos camponeses; os seus postos
estão vazios. Lembro-me de que antes, anos atrás, o almotacé tinha que
impor a ordem entre os mercadores e os camponeses.
— Já não tem trabalho — disse o siciliano, sorrindo. — Os camponeses
já não produzem nem vendem nos mercados. As epidemias dizimaram a
população, a terra não rende e os próprios senhores as abandonam e as
deixam baldias. O povo migra para a terra de onde você vem: Valência.
— Visitei antigos conhecidos. — O siciliano olhou para ele por cima da
colher. — Já não arriscam dinheiro em operações comerciais; limitam-se a
comprar dívidas da cidade. Converteram-se em rentistas. Segundo me
contaram, há nove anos a dívida municipal era de umas cento e sessenta e
nove mil libras; hoje, pode chegar a duzentas mil libras e continua
subindo. O município não pode continuar obrigado a pagar os censos que
estabeleceu como garantia da dívida; ficará arruinado.
Por instantes Guillem se permitiu pensar na eterna discussão sobre o
pagamento de juros que estava proibido aos cristãos. Com a diminuição da
atividade comercial e das comandas que cobriam o investimento, tinham
conseguido mais uma vez burlar a proibição legal com a criação dos
censos, pelos quais os ricos entregavam dinheiro ao município e este
último se comprometia a pagar uma quantidade anual que, evidentemente,
incluía os juros proibidos. Nos censos, caso se quisesse devolver o
principal emprestado, era preciso pagar um terço a mais do total
emprestado. No entanto, comprar a dívida municipal não implicava os
riscos das expedições comerciais... enquanto Barcelona pudesse pagar.
— Mas enquanto essa ruína não chega — disse o siciliano, fazendo-o
voltar à realidade — a situação é excepcional para ganhar dinheiro no
principado...
— Vendendo — interrompeu-o Guillem.
— Principalmente — Guillem notou que o siciliano se abria —, mas
também pode-se comprar, contanto que isso seja feito com a moeda
adequada. A paridade entre o florim de ouro e o croat de prata é
totalmente fictícia e dista muito das paridades estabelecidas nos mercados
estrangeiros. A prata está saindo da Catalunha aos montes, e o rei continua
empenhado em sustentar o valor do seu florim de ouro contra o mercado;
essa atitude vai lhe custar muito caro.
— Por que acha que ele persiste? — perguntou Guillem, interessado. —
O rei Pedro sempre se comportou como uma pessoa sensata...
— Por mero interesse político — explicou Jacopo. — O florim é a
moeda real; por ser cunhada em Montpellier, depende diretamente do rei.
O croat, pelo contrário, é cunhado em cidades como Barcelona e Valência,
de acordo com uma concessão real. O monarca quer manter o valor de sua
moeda, apesar de estar equivocado; para nós, no entanto, não poderia
cometer um erro melhor. O rei fixou a paridade do ouro com relação à
prata treze vezes mais alta do que custa em nossos mercados!
— E as arcas reais?
Aquele era o ponto em que Guillem queria chegar.
— Treze vezes supervalorizadas. — O siciliano riu. — O rei segue em
sua guerra contra Castela, apesar de estar a ponto de terminar. Pedro, o
Cruel, enfrenta problemas com seus nobres, que tomaram o partido de
Trastámara.1 Só as cidades e, ao que parece, os judeus, são fiéis a Pedro o
Cerimonioso. A guerra contra Castela arruinou o rei. Há quatro anos, as
cortes de Monzón concederam-lhe um subsídio no valor de duzentas e
setenta mil libras, em troca de novas concessões a nobres e cidades. O rei
investe esse dinheiro na guerra à custa da perda de privilégios futuros e,
agora, há uma nova revolta na Córsega... Se estiver interessado na casa
real, é melhor desistir.
Guillem deixou de escutá-lo e se limitou a assentir com a cabeça e
sorrir quando parecia que devia fazê-lo. O rei estava arruinado, e Arnau
era um de seus maiores credores. Quando Guillem deixou Barcelona, os
empréstimos à casa real superavam as dez mil libras; a quanto chegariam
agora? Nem sequer deve ter pagado os juros dos empréstimos baratos.
“Eles o executarão.” A sentença de Joan voltou à sua mente. “Nicolau
usará Arnau para reforçar o seu poder”, dissera Jucef; “o rei não paga ao
papa e Eimeric prometeu-lhe parte da fortuna de Arnau.” Estaria o rei
Pedro disposto a virar devedor de um papa que acabava de promover uma
revolta na Córsega ao negar o direito da coroa de Aragão? Mas como
conseguir que o rei se opusesse à Inquisição?

***

— Vossa proposta me interessa.


A voz do infante se perdeu na imensidão do salão do Tinell. Tinha
apenas dezesseis anos, mas acabara de presidir, em nome do pai, o
Parlamento que tratou da revolução sarda. Guillem observou o herdeiro
dissimuladamente, sentado no trono e acompanhado pelos conselheiros
Juan Fernández de Heredia e Francesc de Perellós, ambos de pé. Dizia-se
que era fraco, mas havia dois anos aquele rapaz teve que julgar, sentenciar
e executar Bernat de Cabrera, que fora seu tutor desde o nascimento.
Depois de ordenar sua decapitação na praça do mercado de Saragoça, o
infante tivera que enviar a cabeça do visconde ao rei Pedro.
Naquela mesma tarde Guillem pôde falar com Francesc de Perellós. O
conselheiro o ouviu atentamente; depois, ordenou que esperasse atrás de
uma pequena porta. Quando o deixaram entrar, ao final de uma longa
espera, Guillem se deparou com o mais imponente salão que já vira: um
cômodo claro de mais de trinta metros de largura coberto por seis grandes
arcos em diafragma que chegavam quase até o chão, de paredes nuas e
iluminado por tochas. O infante e os conselheiros o esperavam ao fundo do
salão do Tinell.
Ainda a vários passos do trono, fincou um joelho no chão.
— No entanto — dizia o infante —, lembrem-se de que não podemos
enfrentar a Inquisição.
Guillem esperou até que Francesc de Perellós, com um olhar cúmplice,
indicou que podia falar.
— Não deveis fazê-lo, meu senhor.
— Assim seja — sentenciou o infante, e depois disso se levantou e
abandonou o salão acompanhado por Juan Fernández de Heredia.
— Levante-se — disse Francesc de Perellós a Guillem. — Quando
será?
— Amanhã, se eu puder. Caso contrário, depois de amanhã.
— Avisarei o veguer.

***

Guillem deixou o palácio-mor ao anoitecer. Olhou o límpido céu


mediterrâneo e respirou fundo. Ainda havia muito a fazer.
Naquela tarde, depois de sua conversa com Jacopo, o siciliano, recebeu
uma mensagem de Jucef: “O conselheiro Francesc de Perellós o receberá à
tarde no palácio-mor depois do Parlamento.” Sabia como captar o
interesse do infante; era simples: perdoar os vultosos empréstimos à coroa
que figuravam nos livros de Arnau para que não terminassem nas mãos do
papa. Mas como liberar Arnau sem que o duque de Girona tivesse que
enfrentar a Inquisição?
Guillem saiu para passear antes de se dirigir ao palácio. Seus passos o
levaram à mesa de Arnau. Estava fechada; os livros deviam estar com
Nicolau Eimeric para evitar vendas fraudulentas, e os oficiais de Arnau
tinham desaparecido. Olhou para Santa Maria rodeada de andaimes. Como
era possível que um homem que dera tudo por essa igreja...? O passeio o
levou ao Consulado do Mar e à praia.
— Como está o seu senhor? — disse alguém.
Guillem se virou e encontrou um bastaix carregado com um saco
enorme nas costas. Arnau lhe emprestara dinheiro havia muitos anos, e ele
devolvera moeda por moeda. Guillem sacudiu os ombros e tentou sorrir.
Logo estava rodeado pela fila de bastaixos que descarregavam um navio.
“O que está acontecendo com Arnau?”, ouviu ele. “Como podem acusá-lo
de heresia?” Também tinha emprestado dinheiro àquele... para o dote de
uma filha? Quantos deles tinham recorrido a Arnau? “Se você o vir”, disse
outro, “diga-lhe que há uma vela acesa para ele aos pés de Santa Maria.
Nós nos encarregamos de deixá-la sempre acesa.” Guillem tentou se
desculpar por sua ignorância, mas eles não deixaram: os bastaixos
praguejaram contra a Inquisição e seguiram seu caminho.
Guillem se dirigiu a passos firmes ao palácio-mor com a visão dos
bastaixos exaltados na mente.
Agora, com a silhueta de Santa Maria recortada contra a noite, o mouro
voltara à mesa de câmbio. Precisava da carta de pagamento assinada há
muitos anos pelo judeu Abraham Levi e que ele próprio escondera atrás de
uma pedra na parede. A porta estava trancada a chave, mas havia uma
janela no térreo que nunca fechara muito bem. Guillem observou com
cuidado; aparentemente não havia ninguém por ali. Arnau nunca soube da
existência daquele documento. Guillem e Hasdai decidiram ocultar os
benefícios proporcionados pela venda de escravos sob a aparência de um
depósito feito por um judeu de passagem por Barcelona: Abraham Levi.
Arnau não teria admitido aquele dinheiro. A janela rangeu rompendo o
silêncio da noite, e Guillem ficou paralisado. Ele não passava de um
mouro, um infiel que tentava entrar, à noite, na casa de um réu da
Inquisição. Se o vissem, de nada serviria o seu batismo. No entanto, os
ruídos noturnos lhe demonstraram que o universo não estava atento a ele:
o mar, o ranger dos andaimes de Santa Maria, crianças chorando, homens
gritando com as esposas...
Abriu a janela e entrou. O depósito fictício feito por Abraham Levi
serviu para que Arnau negociasse com aquele dinheiro e obtivesse bons
benefícios, porém, cada vez que fazia uma operação, Arnau anotava a
quarta parte a favor de Abraham Levi, o titular do depósito. Guillem
esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão até que a lua
começou a surgir. Antes de Abraham Levi deixar Barcelona, Hasdai o
acompanhara a um escrivão para assinar a carta de pagamento do dinheiro
em depósito; portanto, o dinheiro era propriedade de Arnau e tinha se
multiplicado a cada ano, apesar de, nos livros do cambista, constar em
nome do judeu.
Guillem se ajoelhou junto à parede. Era a segunda pedra do canto.
Começou a forçá-la. Nunca achou o momento certo para confessar a Arnau
aquele primeiro negócio feito à revelia em seu nome, e o depósito foi
crescendo e crescendo. A pedra resistia. “Não se preocupe”, lembrava as
palavras de Hasdai em uma ocasião, quando Arnau lhe falou sobre o judeu;
“tenho instruções para que isso continue assim. Não se preocupe”, repetiu.
Quando Arnau se virou, Hasdai olhou para Guillem, que respondeu
encolhendo os ombros e suspirando. A pedra começou a ceder. Não, Arnau
nunca teria admitido trabalhar com dinheiro proveniente da venda de
escravos. A pedra cedeu e Guillem encontrou o documento atrás dela,
cuidadosamente envolto em um pano. Não se preocupou em lê-lo,
conhecia seu conteúdo. Colocou a pedra no lugar e foi até a janela. Não
ouviu nada anormal e deixou a sala de Arnau depois de fechá-la.

1. Dinastia que, em diferentes épocas, governou em Castela, Aragão, Navarra e Nápoles. (N. da
T.)
55

Os soldados da Inquisição tiveram que buscá-lo na masmorra; dois deles o


agarraram pelas axilas e o arrastaram, pois Arnau tropeçava e caía no
chão. Seus tornozelos batiam nos degraus das escadas que levavam ao
térreo, e ele se deixou arrastar pelos corredores do palácio. Não tinha
dormido. Não prestou atenção aos monges e sacerdotes que o observaram
a caminho do salão. Como Joan podia tê-lo denunciado?
Quando o levaram de volta às masmorras, Arnau chorou, gritou e se
bateu violentamente contra a parede. Se Joan o denunciara, o que Aledis
tinha a ver com aquilo tudo? E a mulher presa? Aledis, sim, tinha motivos
para odiá-lo; ele a abandonara e depois fugira dela. Estaria de acordo com
Joan? É verdade que ele foi buscar Mar? E se assim era, por que ela não o
visitara? Seria tão difícil comprar um reles carcereiro?
Francesca o ouviu soluçar e vociferar. Quando ouvia os gritos do filho,
o seu corpo se contraía ainda mais. Queria fitá-lo e lhe responder, até
mentir, mas consolá-lo. “Ele não resistirá”, ela dissera a Aledis. Mas, e
ela? Resistiria por muito mais tempo àquela situação? Arnau continuou se
queixando do mundo, e Francesca se encolheu contra as frias pedras da
parede.
As portas da sala se abriram e Arnau entrou. O tribunal o esperava. Os
soldados o arrastaram para o centro da sala e o soltaram; ele caiu de
joelhos com as pernas abertas, cabisbaixo. Ouviu Nicolau romper o
silêncio, mas não conseguia entender o que dizia. Que importância tinha o
que aquele frade podia fazer se o seu próprio irmão o condenara? Não
tinha ninguém. Não tinha nada.
“Não se iluda”, respondeu o aguazil quando tentou comprá-lo
oferecendo uma pequena fortuna, “você já não dispõe de dinheiro.”
Dinheiro! Foi por dinheiro que o rei o casou com Elionor; o dinheiro
estava por trás da atitude de sua esposa e provocara sua detenção. Seria
dinheiro o que levou Joan a...?
— Traga a mãe!
Os sentidos de Arnau não podiam permanecer impassíveis ao ouvir
aquela ordem.

***

Mar e Aledis, com Joan um pouco afastado delas, permaneciam na Praça


Nova, diante do palácio do bispo. “A corte do infante D. Juan receberá
meu senhor à tarde”, dissera um dos escravos de Guillem no dia anterior.
Naquele dia, ao amanhecer, o mesmo escravo apareceu outra vez diante
delas e se limitou a dizer que o seu senhor queria que o esperassem na
Praça Nova.
E ali estavam os três, especulando sobre as razões de Guillem ao lhes
enviar aquele recado.

***

Arnau ouviu as portas da sala se abrindo às suas costas e depois os passos


dos soldados percorrendo a distância até onde ele estava. Então voltaram a
ocupar seus postos junto à porta.
Notou a presença dela. Viu seus pés descalços enrugados, sujos e com
chagas sanguinolentas. Nicolau e o bispo sorriram ao perceberem que
Arnau observava os pés da mãe. Virou a cabeça na direção dela. Ele estava
de joelhos, mas a velha não o superava em mais de um palmo de altura;
ela estava toda encolhida. Os dias de prisão não tinham passado em vão
para Francesca: seus escassos cabelos grisalhos estavam duros; com o
olhar fixo no tribunal, seu perfil era uma pelanca dependurada, sem nada
de carne. Arnau não conseguia ver seus olhos, afundados em órbitas que
pareciam roxas.
— Francesca Esteve — disse Nicolau —, jura pelos quatro Evangelhos?
A voz da velha, dura e firme, surpreendeu os presentes.
— Juro por eles — respondeu —, mas cometeis um erro, não me chamo
Francesca Esteve.
— Como se chama, então?
— Meu nome é Francesca, mas não Esteve. É Ribes. Francesca Ribes
— acrescentou, alçando a voz.
— Devemos lhe recordar seu juramento? — interveio o bispo.
— Não. Por este juramento estou dizendo a verdade. Meu nome é
Francesca Ribes.
— Por acaso não é filha de Pere e Francesca Esteve? — perguntou
Nicolau.
— Nunca conheci os meus pais.
— Casou-se com Bernat Estanyol no senhorio de Navarcles?
Arnau se ergueu. Bernat Estanyol?
— Não. Nunca estive nesse lugar nem casei com ninguém.
— Por acaso não teve um filho chamado Arnau Estanyol?
— Não. Não conheço nenhum Arnau Estanyol.
Arnau se virou para Francesca.
Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill cochicharam entre si. Depois o
inquisidor se dirigiu ao tabelião.
— Escute — disse a Francesca.
— Declaração de Jaume de Bellera, senhor de Navarcles — começou o
tabelião.
Arnau semicerrou os olhos ao ouvir o nome Bellera. Seu pai lhe contara
sobre ele. Escutou curioso a suposta história de sua vida, à qual seu pai
pusera fim ao morrer. A convocação de sua mãe ao castelo para
amamentar o filho recém-nascido de Llorenç de Bellera. Bruxa? Ouviu da
boca do tabelião a versão de Jaume de Bellera sobre a fuga de sua mãe
quando, recém-nascido, Jaume sofreu os primeiros ataques do mal do
diabo.
— Depois — prosseguiu o tabelião —, o pai de Arnau Estanyol, Bernat,
libertou-o em um descuido da guarda após assassinar um rapaz inocente, e
ambos fugiram para Barcelona abandonando suas terras. Já na cidade
condal, foram acolhidos pela família do comerciante Grau Puig. O
denunciante informa que a bruxa converteu-se numa mulher pública.
Arnau Estanyol é filho de uma bruxa e de um assassino — terminou.
— O que tem a dizer? — perguntou Nicolau a Francesca.
— Que se enganaram de meretriz — respondeu ela friamente.
— Você — gritou o bispo apontando para ela —, mulher pública! Ousa
colocar em dúvida os acertos da Inquisição?
— Não estou aqui como meretriz — respondeu Francesca —, nem para
ser julgada por isso. Santo Agostinho escreveu que Deus julgaria as
meretrizes.
O bispo ficou possesso.
— Como se atreve a citar Santo Agostinho? Como...?
Berenguer d’Erill continuou gritando, mas Arnau não o ouvia. Santo
Agostinho escreveu que Deus julgaria as meretrizes. Santo Agostinho
disse... Anos atrás, em uma hospedaria em Figueras, ouvira aquelas
mesmas palavras de uma mulher pública... Por acaso não se chamava
também Francesca? Santo Agostinho escreveu... Como era possível?
Arnau se virou para Francesca: ele a vira duas vezes na vida, dois
encontros cruciais. Os membros do tribunal perceberam sua atitude diante
da mulher.
— Observe seu filho! — gritou Eimeric. — Nega ser a mãe dele?
Arnau e Francesca ouviram os gritos ressoarem nas paredes da sala; ele
virado para ela, ela olhando fixamente o inquisidor.
— Olhe para ele! — voltou a gritar Nicolau, apontando para Arnau.
Um leve tremor percorreu o corpo de Francesca devido ao ódio daquele
dedo acusador. Só Arnau, ao seu lado, percebeu que a pele que pendia de
seu queixo se retraía quase imperceptivelmente. Francesca não deixou de
olhar para o inquisidor.
— Você confessará — afirmou Nicolau, mastigando as palavras. —
Garanto que vai confessar.

***

— Via fora!
O grito perturbou a tranquilidade da Praça Nova. Um rapaz a cruzou
correndo e repetindo o chamado às armas. “Via fora! Via fora!” Aledis e
Mar se entreolharam e depois olharam para Joan.
— Os sinos não estão tocando — respondeu ele dando de ombros.
Santa Maria não tinha sinos.
No entanto, o “Via fora!” correra pela cidade condal e o povo,
estranhando, se reuniu na Praça de Blat à espera de ver o pendão de São
Jorge ao lado da pedra que demarcava o centro. Em vez disso, dois
bastaixos armados com bestas se dirigiam a Santa Maria.
Na Praça de Santa Maria, sob o pálio nos ombros dos bastaixos, a
Virgem do Mar esperava que o povo se reunisse à sua volta. Diante da
Virgem e sob o pendão, os pró-homens do grêmio recebiam a multidão que
descia pela Rua do Mar, e um deles trazia a chave da Urna Sagrada
pendurada no pescoço. Um número cada vez maior de pessoas se
aglutinava em volta da Virgem. Junto à porta do local da mesa de Arnau,
Guillem observava e escutava atentamente.
— A Inquisição raptou um cidadão, o cônsul do Mar de Barcelona —
explicavam os pró-homens do grêmio.
— Mas a Inquisição... — disse alguém.
— A Inquisição não depende da cidade — respondeu um dos pró-
homens — nem do rei. Não obedece às ordens do Conselho de Cento, nem
do veguer, nem do juiz. Nenhum deles nomeia os seus membros; isso
quem faz é o papa, um papa estrangeiro que só quer nosso dinheiro. Como
podiam acusar de heresia um homem que sempre se sacrificou pela
Virgem do Mar?
— Só querem o dinheiro do nosso cônsul! — gritou alguém.
— Mentem para ficar com nosso dinheiro!
— Odeiam o povo catalão — alegou outro pró-homem.
As pessoas iam passando a conversa adiante. Os gritos começaram a
ressoar na Rua do Mar.
Guillem viu os pró-homens do grêmio darem explicações aos outros
grêmios da cidade. Quem não temia por seu dinheiro? Mesmo que a
Inquisição fosse algo igualmente temível. A denúncia mais absurda...
— Temos de defender nossos privilégios — disse alguém aos bastaixos.
O povo começava a se exaltar. As espadas, punhais e bestas
sobressaíam acima das cabeças, se agitando ao chamado do “Via fora!”.
A gritaria ficou ensurdecedora. Guillem viu chegarem alguns
conselheiros da cidade e imediatamente se aproximou do grupo que
discutia diante da imagem da Virgem.
— E os soldados do rei? — perguntou um conselheiro.
O pró-homem repetiu exatamente as palavras que Guillem lhe dissera:
— Vamos até a Praça de Blat, e vejamos como reage o veguer.
Guillem se afastou deles. Por um instante, fitou a pequena imagem de
pedra que repousava nos ombros dos bastaixos. “Ajude-o”, rogou em
silêncio.
A comitiva se pôs em marcha. “À Praça de Blat!”, diziam todos.
Guillem se somou à torrente que subiu pela Rua do Mar até a praça que
se abria diante do palácio do veguer. Poucos sabiam que o objetivo da host
barcelonesa era testar a reação do veguer e, por isso, enquanto a Virgem
era instalada onde deveriam estar os pendões de São Jorge e o da cidade ao
som dos gritos do povo, não houve problemas para chegar ao próprio
palácio.
Do centro da praça, ao lado da Virgem e do pendão dos bastaixos, pró-
homens e conselheiros fitaram o palácio. As pessoas começaram a
entender. Se fez silêncio e todos se viraram para o palácio. Guillem sentiu
a tensão. O infante cumpriria o pacto? Os soldados estavam perfilados
entre o povo e o palácio com as espadas desembainhadas. O veguer surgiu
na janela, olhou a massa humana e desapareceu. Depois de uns instantes,
um oficial do rei fez ato de presença na praça; milhares de olhos,
incluindo os de Guillem, se fixaram nele.
— O rei não pode intervir nos assuntos da cidade de Barcelona! —
exclamou. — Convocar a host é competência da cidade.
Em seguida, ordenou aos soldados que se retirassem.
As pessoas viram os soldados desfilarem diante do palácio e darem a
volta pelo antigo portal da cidade. Antes que o último deles desaparecesse,
um “Via fora!” rompeu o silêncio, fazendo Guillem estremecer.

***

Nicolau ia ordenar que levassem Francesca de volta às masmorras para ser


torturada quando foi interrompido pelo repicar dos sinos. Primeiro foi o de
Sant Jaume convocando a host, e a ele se somaram todos os sinos da
cidade. A maioria dos sacerdotes de Barcelona era fiel seguidora das
doutrinas de Ramon Llull, objeto da perseguição de Eimeric, e poucos
viram com maus olhos a lição que a cidade pretendia dar à Inquisição.
— A host? — perguntou o inquisidor a Berenguer d’Erill.
O bispo fez um gesto de ignorância.
A Virgem do Mar permanecia no centro da Praça de Blat, à espera dos
pendões dos diversos grêmios que iam se somando ao dos bastaixos. No
entanto, as pessoas já se dirigiam ao palácio do bispo.
Aledis, Mar e Joan as viram se aproximarem, até que o “Via fora!”
começou a ressoar na Praça Nova.
Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill foram até uma das janelas e, ao
abri-la, viram mais de uma centena de pessoas gritando e apontando armas
contra o palácio. A gritaria aumentou quando alguém reconheceu um dos
prelados.
— O que está acontecendo? — gritou Nicolau para o oficial, dando um
salto para trás.
— Barcelona veio libertar o cônsul do Mar — disse um menino na
praça a Joan, que fez a mesma pergunta. Aledis e Mar fecharam os olhos e
apertaram os lábios. Depois se deram as mãos e fitaram com olhos
chorosos a janela que tinha ficado semiaberta.
— Corra para buscar o veguer! — ordenou Nicolau ao oficial.
Enquanto isso, aproveitando que ninguém prestava atenção nele, Arnau
se levantou e pegou Francesca pelo braço.
— Por que você tremeu, mulher? — perguntou-lhe.
Francesca segurou uma lágrima que queria rolar por sua face, mas não
pôde evitar que seus lábios se contraíssem numa expressão de dor.
— Esqueça-me — respondeu com a voz entrecortada.
O clamor que vinha de fora interrompeu conversas e pensamentos. A
host, já completa, se aproximava da Praça Nova. Cruzou o antigo portal da
cidade, passou junto ao palácio do veguer, que observava o espetáculo de
uma janela, desceu a Rua dos Seders até a Rua da Boquería e a da igreja da
Sant Jaume, cujo sino continuava repicando, depois finalmente subiu pela
Rua do Bisbe até o palácio.
Mar e Aledis, ainda de mãos dadas, foram até a esquina. Apertaram as
mãos até os nós dos dedos ficarem brancos. As pessoas se encostavam nos
muros para dar passagem à host; primeiro o pendão dos bastaixos com
seus pró-homens, depois a Virgem sob o pálio e, atrás dela, em uma
amálgama de cores, os pendões de todas as confrarias da cidade.

***

O veguer não recebeu o oficial da Inquisição.


— O rei não pode se intrometer nos assuntos da host de Barcelona —
disse o oficial real.
— Atacarão o palácio do bispo — queixou-se o enviado da Inquisição,
ainda ofegante.
O outro deu de ombros. “Você usa essa espada para torturar?”, esteve a
ponto de perguntar. O oficial da Inquisição percebeu seu olhar e ambos se
encararam em silêncio.
— Gostaria de ver como se sairia contra uma espada castelhana ou um
alfanje mouro — disse o homem do veguer antes de cuspir aos pés do
oficial da Inquisição.
Enquanto isso, a Virgem já estava diante do palácio do bispo, dançando
ao ritmo dos gritos da host sobre os ombros dos bastaixos, espremidos em
meio à explosão inflamada do povo de Barcelona.
Alguém lançou uma pedra contra as vidraças decoradas do palácio.
A primeira errou o alvo, mas a seguinte acertou, e muitas a seguiram.
Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill se afastaram das janelas. Arnau
continuava esperando uma resposta de Francesca. Nenhum dos dois se
moveu.
Várias pessoas esmurravam as portas do palácio. Um menino começou
a escalar o muro com a besta pendurada nas costas. As pessoas o
aclamaram. Outros seguiram seus passos.
— Basta! — gritou um conselheiro da cidade, tentando afastar os que
esmurravam a porta. — Basta! — repetiu, empurrando-os. — Ninguém
ataca sem permissão da cidade.
Os homens que estavam junto à porta se detiveram.
— Ninguém ataca sem o consentimento dos conselheiros e pró-homens
da cidade — repetiu.
Os mais próximos se calaram e a mensagem foi transmitida por toda a
praça. A Virgem parou de dançar, se fez silêncio e todos fitaram os seis
homens trepados na fachada; o primeiro já estava na janela quebrada da
sala do tribunal.
— Desçam! — disse alguém.
Os cinco conselheiros da cidade e o pró-homem dos bastaixos, com a
chave da Sagrada Urna pendurada no pescoço, bateram à porta do palácio.
— Abram para a host de Barcelona!

***

— Abram! — O oficial da Inquisição esmurrou as portas da judiaria,


fechadas devido à passagem da host. — Abram para a Inquisição.
Tinha tentado chegar ao palácio do bispo, mas as ruas estavam
abarrotadas de cidadãos. Só havia uma maneira de chegar ao palácio:
cruzando a judiaria, que ficava ao lado. Dali ao menos poderia transmitir a
mensagem: o veguer não pensava intervir.

***

Nicolau e Berenguer receberam a notícia ainda na sala do tribunal: as


tropas do rei não acudiriam em sua defesa e os conselheiros ameaçavam
atacar o palácio se não fossem autorizados a entrar.
— O que querem?
O oficial olhou para Arnau.
— Libertar o cônsul do Mar.
Nicolau se aproximou de Arnau e seus rostos quase se tocaram.
— Como se atrevem? — bradou. Depois deu meia-volta e voltou a se
sentar. Berenguer o acompanhou. — Deixe-os entrar — ordenou Nicolau.
Libertar o cônsul do Mar; Arnau se ergueu como suas forças
permitiram. O olhar de Francesca se perdera desde que ouviu a pergunta
do filho. “Cônsul do Mar.” “Sou o cônsul do Mar”, ele disse com o olhar a
Nicolau.
Os cinco conselheiros e o pró-homem dos bastaixos irromperam no
tribunal. Atrás deles, tentando passar inadvertido, estava Guillem, que
obtivera permissão do bastaix para acompanhá-los.
Guillem ficou perto da porta enquanto os seis, armados, se colocavam
diante de Nicolau. Um dos conselheiros se adiantou.
— O que...? — começou a dizer Nicolau.
— A host de Barcelona — interrompeu-o o conselheiro, erguendo a voz
— vos ordena que entregue Arnau Estanyol, cônsul do Mar.
— Ousais dar ordens à Inquisição? — perguntou Nicolau.
O conselheiro não afastou a vista de Nicolau Eimeric.
— Pela segunda vez — advertiu —, a host vos ordena entregar o cônsul
do Mar de Barcelona.
Nicolau hesitou e procurou o olhar do bispo.
— Atacarão o palácio — disse ele.
— Não se atreverão — sussurrou Nicolau.
— É um herege — gritou o inquisidor.
— Não deveria julgá-lo primeiro? — ouviu-se no grupo de
conselheiros.
Nicolau olhou para eles com os olhos semicerrados.
— Ele é um herege — insistiu.
— Pela terceira e última vez, entregai-nos o cônsul do Mar.
— O que quereis dizer com última vez? — interveio Berenguer d’Erill.
— Olhai para fora se quereis saber.
— Detenham-nos! — disse o inquisidor, fazendo sinal aos soldados.
Guillem saiu de onde estava, ao lado dos soldados. Os conselheiros não
se moveram. Alguns soldados pegaram suas armas, mas o oficial no
comando os advertiu para que desistissem.
— Detenham-nos! — insistiu Nicolau.
— Eles vieram negociar — argumentou o oficial.
— Como se atreve...? — Nicolau começou a gritar de pé.
O oficial o interrompeu:
— Dizei-me como quereis que defenda este palácio e eu os deterei; o
rei não acudirá em nossa ajuda.
O oficial apontou para fora, de onde chegavam os gritos das gentes.
Depois olhou para o bispo pedindo ajuda.
— Podeis levar vosso cônsul do Mar — respondeu o bispo —, ele está
livre.
Nicolau ficou vermelho de raiva.
— O que dizeis...?! — exclamou, agarrando o bispo pelo braço.
Berenguer d’Erill se desembaraçou com um safanão.
— Vós não tendes autoridade para entregar-nos Arnau Estanyol —
disse o conselheiro, se dirigindo ao bispo. — Nicolau Eimeric —
continuou —, a host de Barcelona vos concedeu três oportunidades;
entregai o cônsul do Mar ou arcai com as consequências.
Acompanhando as palavras do conselheiro, uma pedra voou pelo
cômodo e bateu ao pé da mesa do tribunal; até os dominicanos saltaram
em seus assentos. A gritaria tinha tomado conta da Praça Nova. Outra
pedra entrou voando; o tabelião se levantou, agarrou seus papéis e se
refugiou no extremo oposto da sala. Os frades mais próximos à janela
tentaram fazer o mesmo, mas um grito do inquisidor os obrigou a
interromper a fuga.
— Estais louco? — sussurrou ele para o bispo.
Nicolau começou a observar os presentes, até topar com o olhar de
Arnau; ele sorria.
— Herege! — bradou.
— Já é suficiente — disse o conselheiro, dando meia-volta.
— Levai-o! — insistiu o bispo.
— Só viemos negociar — alegou o conselheiro, detendo-se e erguendo
a voz por cima da inquietação que vinha da praça. — Se a Inquisição não
acatar as exigências da cidade e libertar o preso, então a host o fará. É a
lei.
De pé, Nicolau tremia, os olhos injetados de sangue e quase fora das
órbitas. Mais duas pedras entraram pelas janelas do tribunal.
— Eles atacarão o palácio — disse o bispo, sem se preocupar em ser
discreto. — De que adianta? Vós tendes sua declaração e seus bens.
Declarai-o herege de qualquer forma; ele está condenado a fugir para o
resto da vida.
Os conselheiros e o pró-homem dos bastaixos já estavam na porta do
tribunal. Os soldados lhes deram passagem com o medo refletido nos
olhos. Guillem só prestava atenção na conversa entre o bispo e o
inquisidor. Enquanto isso, Arnau continuava no centro da sala ao lado de
Francesca, desafiando Nicolau, que se negava a fitá-lo.

***

Primeiro foram os que estavam na praça, depois os que abarrotavam as


ruas adjacentes; todos comemoraram quando os conselheiros saíram com
Arnau pela porta do palácio. Francesca se arrastava atrás deles; ninguém
reparou na velha quando Arnau a tomou pelo braço e a puxou para fora do
tribunal. No entanto, na porta da sala ele a soltou e se deteve. Os
conselheiros o incentivaram a ir em frente. Nicolau, de pé atrás da mesa, o
observava, alheio à chuva de pedras que entrava pela janela; uma delas
bateu em seu braço esquerdo, mas o inquisidor não se mexeu. Todos os
membros do tribunal tinham se refugiado longe da parede da fachada.
Arnau tinha parado ao lado dos soldados, apesar dos protestos dos
conselheiros que o apressavam.
— Guillem...
O mouro se aproximou, tomou-o pelos ombros e beijou-o na boca.
— Vá com eles, Arnau — disse-lhe. — Mar e seu irmão o esperam lá
embaixo. Ainda tenho coisas para fazer aqui. Eu o verei depois.
Apesar dos esforços dos conselheiros para protegê-lo, as pessoas se
lançaram sobre Arnau assim que ele pisou na praça; elas o abraçaram,
tocaram e parabenizaram. Rostos sorridentes surgiram diante dele em uma
sucessão interminável. Ninguém queria se afastar para dar espaço aos
conselheiros, e os rostos falavam com ele aos gritos.
A confusão fazia o grupo de cinco conselheiros da cidade e o pró-
homem dos bastaixos, com Arnau no centro, ir de um lado para o outro. A
gritaria ecoava no mais profundo de seu ser. A sucessão de rostos não
acabava nunca. Suas pernas começaram a fraquejar. Arnau olhou por cima
das cabeças das pessoas, mas só conseguiu ver uma infinidade de bestas,
espadas e punhais erguidos para o céu, subindo e descendo ao som dos
gritos da host, uma e outra vez, uma e outra vez... Tentou se apoiar nos
conselheiros e, quando começava a cair, uma pequena figura de pedra
apareceu entre o mar de bestas, dançando com elas.
Guillem tinha voltado e a Virgem lhe sorria. Arnau fechou os olhos e se
deixou carregar pelos conselheiros.

***

Mar e Aledis não conseguiram chegar perto dele, apesar dos empurrões e
cotoveladas que deram. Vislumbraram-no nos braços dos conselheiros
quando a Virgem do Mar e os pendões começaram a regressar à Praça de
Blat. Quem também o viu foram Jaume de Bellera e Genís Puig,
misturados entre a gente. Até aquele momento, haviam unido suas espadas
aos milhares de armas que se erguiam contra o palácio do bispo e tinham
se visto obrigados a se juntar aos gritos contra o inquisidor, ainda que, em
seu íntimo, rogassem para que Nicolau resistisse e que o rei voltasse atrás
e acudisse em defesa do Santo Ofício. Como era possível que aquele rei,
pelo qual tantas vezes tinham arriscado suas vidas...?
Ao ver Arnau, Genís Puig começou a girar a espada no ar e a bradar
como um possesso. O senhor de Navarcles conhecia aquele grito, o mesmo
que ouvira em outras ocasiões quando o cavaleiro se lançava ao ataque a
galope, a espada girando acima da cabeça. A arma de Genís bateu contra
as bestas e espadas dos que os rodeavam. As pessoas começaram a se
afastar e Genís avançou em direção à comitiva, que estava a ponto de
deixar a Praça Nova pela Rua do Bisbe. Como pretendia enfrentar toda a
host de Barcelona? Eles o matariam, e depois...
Jaume de Bellera correu em direção ao amigo e o obrigou a guardar a
espada. As pessoas em volta olharam para eles com estranheza, mas a
multidão continuava a se dirigir à Rua do Bisbe. O espaço se fechou
novamente assim que Genís parou de gritar e abaixou a espada. O senhor
de Bellera o afastou dos que o tinham visto tentar o ataque.
— Você enlouqueceu? — perguntou.
— Ele foi libertado... Está livre! — respondeu Genís olhando os
pendões que desciam pela Rua do Bisbe. Jaume de Bellera o obrigou a
olhá-lo.
— O que você pretende?
Genís Puig voltou a olhar para os pendões e tentou se safar de Jaume de
Bellera.
— Vingança! — respondeu.
— Esse não é o caminho — advertiu o senhor de Bellera. — Não é o
caminho. — Depois o sacudiu com força até que Genís respondeu. — Nós
encontraremos uma forma...
Genís olhou fixamente para ele; seus lábios tremiam.
— Você jura?
— Pela minha honra.

***

A sala do tribunal foi ficando em silêncio à medida que a host deixava a


Praça Nova. Quando os gritos de vitória do último cidadão viraram na Rua
do Bisbe, a respiração agitada do inquisidor se aquietou. Ninguém se
movera. Os soldados aguentaram firme, atentos para que suas armas e
correias não se chocassem entre si. Nicolau olhou devagar para cada um
dos presentes; não foi preciso dizer nada: “Traidor”, recriminou Berenguer
d’Erill; “covardes”, insultou os demais. Quando olhou os soldados,
percebeu a presença de Guillem.
— O que este infiel faz aqui? — gritou. — É preciso tanto escárnio?
O oficial não soube responder; Guillem entrara com os conselheiros e
ele não percebera a sua presença, ocupado que estava com as ordens do
inquisidor. De sua parte, Guillem esteve a ponto de negar sua condição de
infiel e declarar que era batizado, mas não o fez. Apesar dos esforços do
inquisidor, o Santo Ofício não tinha jurisdição sobre judeus e mouros.
Nicolau não podia prendê-lo.
— Meu nome é Sahat de Pisa — disse Guillem elevando a voz —, e
gostaria de falar convosco.
— Não tenho nada para falar com um infiel. Expulsem este...
— Penso que o que tenho a dizer vos interessa.
— Não me importa o que pensa.
Nicolau fez um gesto para o oficial, que desembainhou a espada.
— Talvez vos importe saber que Arnau Estanyol está abatut — insistiu
Guillem, retrocedendo diante da ameaça do oficial. — Não podereis dispor
de um só soldo de sua fortuna.
Nicolau suspirou e voltou os olhos para o teto da sala. O oficial deixou
de ameaçar Guillem sem precisar de ordens expressas.
— Explique-se, infiel — instou o inquisidor.
— Tendes os livros de Arnau Estanyol; revisai-os.
— Você acha que não o fizemos?
— Sabei que as dívidas do rei foram perdoadas.
O próprio Guillem assinou a carta de pagamento e a entregou a
Francesc de Perellós, pois Arnau nunca chegara a revogar os seus poderes,
como o mouro comprovou nos livros do magistrado municipal de câmbio.
Nicolau não moveu um só músculo. Todos na sala pensaram a mesma
coisa: por isso o veguer não interviera.
Por um instante, Guillem e Nicolau se encararam. Guillem sabia o que
rondava a cabeça do inquisidor naquele momento: “O que você dirá ao seu
papa? Como vai pagar-lhe a quantia prometida? Sua carta já foi enviada:
não há chance de que não chegue às mãos do papa. O que vai dizer a ele?
Você precisa de seu apoio diante de um rei o qual tem enfrentado
constantemente.”
— E o que você tem a ver com isso tudo? — perguntou Nicolau
finalmente.
— Posso explicar-lhe... em particular — exigiu Guillem.
— A cidade se levanta contra a Inquisição, e agora um simples infiel
me exige uma audiência privada! — reclamou Nicolau aos berros. —
Quem você pensa que é?
“O que você dirá ao seu papa?”, Guillem inquiriu com o olhar. “Por
acaso quer que toda Barcelona saiba de seus ardis?”
— Reviste-o — ordenou o inquisidor ao oficial —, veja se não traz
armas e acompanhe-o à antessala do meu escritório. Espere por mim lá.
Vigiado pelo oficial e por dois soldados, Guillem permaneceu de pé na
antessala do inquisidor. Nunca se atrevera a contar a Arnau a origem de
sua fortuna: a importação de escravos. Perdoadas as dívidas do rei, se a
Inquisição confiscasse a fortuna de Arnau, confiscaria também as suas
dívidas, e só ele, Guillem, sabia que as anotações a favor de Abraham Levi
eram falsas; enquanto ele não mostrasse a carta de pagamento assinada
pelo judeu, o patrimônio de Arnau era inexistente.
56

Assim que pisou na Praça Nova, Francesca se afastou da porta e se apoiou


no muro do palácio. Dali viu o povo se lançar sobre Arnau e os
conselheiros tentarem sustentar o cordão formado ao seu redor. “Olhe para
o seu filho!”, as palavras de Nicolau calaram os gritos da host. “Não
queria que olhasse para ele, inquisidor? Aí está, ele venceu.” Francesca se
ergueu contra a parede ao ver Arnau desmaiar, mas logo ele desapareceu
de sua vista e tudo se transformou num mar de cabeças, armas, pendões e,
no meio, a pequena Virgem sacudida de um lado para outro.
Pouco a pouco, sem parar de gritar e de brandir as armas, a host foi
entrando pela Rua do Bisbe. Francesca não se mexeu. Precisava do apoio
da parede; as suas pernas já não aguentavam. Quando a praça começou a
esvaziar, as duas se viram. Aledis não quisera acompanhar Mar e Joan; era
impossível que Francesca estivesse entre os conselheiros, uma velha como
ela... Ali estava! Sentiu um nó na garganta ao ver a outra segurando-se ao
único apoio que tinha conseguido encontrar, pequena, encolhida,
indefesa...
Começou a correr em sua direção no instante em que os soldados da
Inquisição, ouvindo a distância os gritos da host, se atreveram a colocar a
cabeça pela porta do palácio. Francesca estava a um passo do pórtico.
— Bruxa! — cuspiu-lhe o primeiro soldado.
Aledis parou de supetão, a pouca distância de Francesca e dos soldados.
— Deixai-a — gritou ela. Vários soldados já estavam do lado de fora
do palácio. — Deixai-a ou eu os chamarei — ameaçou ela, apontando para
as últimas espadas que giravam pela Rua do Bisbe.
Os soldados olharam para lá, mas um deles desembainhou a espada.
— O inquisidor aprovará a morte de uma bruxa — disse.
Francesca não lhes deu atenção. Seus olhos estavam fixos na mulher
que correra em sua direção. Quantos anos tinham passado juntas? Quantos
sofrimentos?
— Deixai-a, seus cachorros! — gritou Aledis, dando um passo atrás e
apontando para a host; queria correr até lá, mas o soldado já tinha alçado a
arma sobre Francesca. A lâmina da espada parecia maior do que ela. —
Deixai-a — gemeu.
Francesca viu Aledis levar a mão ao rosto e cair de joelhos. Ela a
acolhera em Figueras e, desde esta época... Morreria sem abraçá-la?
O soldado já tinha todos os músculos tensos quando Francesca o
atravessou com o olhar.
— As bruxas não morrem sob a espada — advertiu-o com a voz serena.
A arma tremeu nas mãos do soldado. O que aquela mulher estava dizendo?
— Só o fogo purifica a morte de uma bruxa. — Seria verdade aquilo? O
soldado procurou apoio entre os companheiros, mas eles retrocederam. —
Se você me matar com a espada, eu o perseguirei por toda a vida, a todos!
— Ninguém imaginava que daquele corpo pudesse sair o grito que
acabavam de ouvir. Aledis ergueu os olhos. — Eu os perseguirei —
Francesca sussurrou —, e também suas esposas e filhos, e os filhos de seus
filhos e as esposas deles. Eu os amaldiçoo! — Pela primeira vez desde que
deixou o palácio, Francesca dispensou o apoio da parede. Os outros
soldados já tinham entrado; só restava o que erguera a espada. — Eu o
amaldiçoo — disse ela, apontando para ele —, mate-me, e o seu cadáver
não terá repouso. Eu me transformarei em mil vermes e devorarei os seus
órgãos. Seus olhos serão meus por toda a eternidade!
Enquanto Francesca continuava ameaçando o soldado, Aledis se
levantou e foi até ela. Rodeou seu ombro e começaram a caminhar.
— Os seus filhos terão lepra... — As duas passaram por baixo da
espada do soldado. — Sua esposa se tornará meretriz do diabo...
Não olharam para trás. O soldado permaneceu alguns instantes com a
espada erguida, depois abaixou-a e se virou para as duas figuras que
lentamente saíam da praça.
— Vamos embora daqui, minha filha — disse Francesca quando
entraram na Rua do Bisbe já deserta.
Aledis tremeu.
— Tenho de passar pela estalagem...
— Não, não. Vamos embora. Agora. Sem perder um instante.
— E Teresa e Eulália...?
— Enviaremos um recado — respondeu Francesca, apertando a moça
de Figueras contra si.
Ao chegar à Praça de Sant Jaume, deram a volta em direção ao portal da
Boquería, o mais próximo. Caminhavam abraçadas em silêncio.
— E Arnau? — perguntou Aledis.
Francesca não respondeu.

***

A primeira parte saíra conforme o planejado. Naquele momento, Arnau


devia estar com os bastaixos no pequeno navio de cabotagem que Guillem
havia fretado. O pacto com o infante D. Juan fora preciso; Guillem
recordou as palavras de Francesc de Perellós: “O lugar-tenente
compromete-se unicamente a não enfrentar a host de Barcelona; em
nenhum caso ele desafiará a Inquisição, tentará forçá-la a fazer algo ou
questionará suas decisões. Se o seu plano funcionar e Estanyol for
libertado, o infante não o defenderá se a Inquisição o detiver novamente
ou condená-lo. Está claro?” Guillem assentiu e entregou a carta de
pagamento dos empréstimos baratos concedidos ao rei. Agora faltava a
segunda parte: convencer Nicolau de que Arnau estava arruinado e que ele
pouco conseguiria perseguindo-o e condenando-o. Podiam ter fugido para
Pisa e deixado os bens de Arnau em poder da Inquisição; na verdade ela já
os tinha e a condenação de Arnau, mesmo à revelia, implicaria o confisco.
Por isso Guillem tentava enganar Eimeric: não tinha nada a perder e muito
a ganhar: a tranquilidade de Arnau, que a Inquisição não o perseguisse
pelo resto da vida.
Nicolau o fez esperar várias horas até que finalmente apareceu
acompanhado por um judeu miúdo vestido com a levita preta obrigatória
onde se destacava o círculo amarelo. O judeu trazia vários livros debaixo
do braço e seguia o inquisidor com passos curtos e rápidos. Evitou o olhar
de Guillem quando Nicolau, com um gesto, lhes indicou que entrassem no
escritório.
Não os convidou a sentar. Mas ele, sim, tomou assento à mesa.
— Se for verdade o que diz — começou a falar dirigindo-se a Guillem
—, Estanyol está abatut.
— Vós sabeis que é verdade — disse Guillem —, o rei não deve nada a
Arnau Estanyol.
— Neste caso posso mandar chamar o magistrado municipal de
câmbios — disse o inquisidor. — Seria irônico se a cidade que o libertou
do Santo Ofício o executasse por abatut.
“Isso nunca ocorrerá”, Guillem ficou tentado a responder. “Eu tenho a
liberdade de Arnau; basta apresentar a carta de pagamento de Abraham
Levi...” Não. Nicolau não o recebera para ameaçá-lo de denunciar Arnau
ao magistrado municipal. Queria o dinheiro, o que prometeu ao seu papa, o
mesmo dinheiro do qual aquele judeu, certamente o amigo de Jucef, lhe
dissera que podia dispor.
Guillem se calou.
— Eu poderia fazer isso — insistiu Nicolau.
Guillem estendeu as mãos espalmadas e o inquisidor o examinou.
— Quem é você? — perguntou depois de um tempo.
— Meu nome...
— Sim, sim. — Eimeric o interrompeu com a mão. — Você se chama
Sahat de Pisa. O que eu quero saber é o que faz um pisano em Barcelona,
defendendo um herege.
— Arnau Estanyol tem muitos amigos, até em Pisa.
— Infiéis e hereges! — gritou Nicolau.
Guillem estendeu as mãos novamente. Quanto tempo levaria para
sucumbir ao dinheiro? Nicolau pareceu compreendê-lo. Ficou em silêncio
por um instante.
— O que estes amigos de Arnau Estanyol querem propor à Inquisição?
— cedeu ele finalmente.
— Nestes livros — disse Guillem apontando para o judeu, que não
tinha erguido a vista da mesa de Nicolau — constam anotações a favor de
um credor de Arnau Estanyol, uma fortuna.
O inquisidor se dirigiu ao judeu pela primeira vez.
— É verdade?
— Sim — respondeu o judeu. — Desde o início da atividade há
anotações a favor de Abraham Levi...
— Outro herege! — exclamou Nicolau.
Os três ficaram em silêncio.
— Continue — ordenou o inquisidor.
— Essas anotações se multiplicaram ao longo dos anos. Hoje podem
valer mais de quinze mil libras.
Uma faísca brilhou nos olhos semicerrados do inquisidor. Guillem e o
judeu não puderam deixar de perceber.
— E então? — perguntou ele, se dirigindo a Guillem.
— Os amigos de Arnau Estanyol poderiam conseguir que o judeu
renuncie ao crédito.
Nicolau se acomodou na cadeira de madeira.
— O seu amigo — disse ele — está livre. Dinheiro não se dá. Por que
alguém, por mais rico que seja, abriria mão de quinze mil libras?
— Arnau Estanyol foi libertado exclusivamente pela host.
Guillem deu ênfase ao exclusivamente; Arnau podia continuar se
considerando submetido ao Santo Ofício. Chegara o momento. Ele estivera
ponderando enquanto esperava na antessala, olhando as espadas dos
oficiais da Inquisição. Não devia menosprezar a inteligência de Nicolau. A
Inquisição não tinha jurisdição sobre um mouro... a menos que Nicolau
provasse que houve um ataque direto a ela. Ele nunca poderia propor um
pacto a um inquisidor. Eimeric teria que fazê-lo. Um infiel não podia
tentar comprar o Santo Ofício.
Nicolau incentivou-o a prosseguir. “Você não vai me pegar”, Guillem
pensou.
— Talvez tenhais razão — disse. — Na verdade não existe uma razão
lógica para que alguém ceda tal quantidade de dinheiro depois que Arnau
foi libertado. — Os olhos do inquisidor se converteram em duas frestas. —
Não entendo por que me enviaram aqui; disseram-me que vós
entenderíeis, mas sou da mesma opinião que vós. Sinto ter-vos feito perder
tempo.
Guillem esperou Nicolau se decidir. Quando o inquisidor se levantou da
cadeira e abriu os olhos, Guillem percebeu que tinha ganhado.
— Ide — ordenou ao judeu. Assim que o homem fechou a porta,
Nicolau continuou, ainda sem lhe oferecer um assento: — O seu amigo
está livre, é verdade, mas o processo contra ele não terminou. Tenho a
confissão. Apesar de livre, posso sentenciá-lo como herege relapso. A
Inquisição — continuou, como se falasse sozinho — não pode executar as
sentenças de morte; isso só pode ser feito pelo braço secular, o rei. Os
vossos amigos — acrescentou — devem saber que a vontade do rei é
volúvel. Talvez um dia...
— Tenho certeza de que tanto vós quanto sua majestade farão o que
deve ser feito — respondeu Guillem.
— O rei tem clareza sobre o que deve fazer: lutar contra o infiel e levar
a cristandade a todos os cantos do reino, mas a Igreja... Muitas vezes é
difícil saber qual é a melhor opção para os interesses de um povo sem
fronteiras. Vosso amigo, Arnau Estanyol, confessou sua culpa e a
confissão não pode ficar sem castigo. — Nicolau se deteve e voltou a
perscrutar Guillem. “Tem de ser você”, este insistiu com o olhar. — No
entanto — continuou o inquisidor, diante do silêncio de seu interlocutor
—, a Igreja e a Inquisição devem ser benevolentes se, com esta atitude,
conseguem prover outras necessidades que, mais tarde, revertem para o
bem comum. Os seus amigos, esses que o enviaram, aceitariam uma
condenação menor?
“Não vou negociar com você, Eimeric”, pensou Guillem. “Só Alá,
louvado seja o seu nome, sabe o que você poderia conseguir se me
prendesse, só Ele sabe se detrás destas paredes há olhos a nos observar e
ouvidos a nos escutar. Tem que ser você quem irá propor a solução.”
— Ninguém questionará jamais as decisões da Inquisição — respondeu.
Nicolau se moveu na cadeira.
— Você solicitou uma audiência privada alegando que poderia ter algo
do meu interesse. Disse que uns amigos de Arnau Estanyol poderiam
conseguir que o seu maior credor renunciasse a um crédito no valor de
quinze mil libras. O que você quer, infiel?
— Sei o que não quero — limitou-se a responder Guillem.
— Está bem — disse Nicolau, se levantando. — Uma condenação
mínima: sambenito durante todos os domingos por um ano na catedral, e
os seus amigos conseguem a renúncia do crédito.
— Em Santa Maria.
Guillem ficou surpreso ao ouvir suas próprias palavras, mas elas
vieram do mais profundo de seu ser. Onde, se não em Santa Maria, Arnau
poderia cumprir a pena de sambenito?
57

Mar tentou acompanhar o grupo que seguia Arnau, mas a multidão a


impedia. Se lembrou das últimas palavras de Aledis:
— Cuide dele — gritou por cima do clamor da host. Ela sorria.
Mar correu, tropeçando na torrente humana que a arrastava.
— Cuide bem dele — repetiu Aledis enquanto Mar continuava olhando
para ela, tentando se esquivar dos que se interpunham entre as duas. — Eu
quis fazer isso há muitos anos...
De repente ela desapareceu.
Mar quase caiu no chão e foi pisoteada. “A host não é para mulheres”,
criticou um homem que não se constrangeu em empurrá-la. Conseguiu dar
a volta. Procurou pelos pendões que já estavam chegando à Praça de Sant
Jaume, ao final da Rua do Bisbe. Pela primeira vez naquela manhã, ela
deixou de lado as lágrimas, e de sua garganta brotou um grito que calou os
que a rodeavam. Nem pensou em Joan. Gritou, empurrou, chutou os que a
precediam e foi abrindo passagem a cotoveladas.
A host se concentrou na Praça de Blat. Mar estava muito próxima da
Virgem, que, nos ombros dos bastaixos, dançava acima da pedra no centro
da praça, mas Arnau... Mar pensou ver uma discussão entre alguns homens
e os conselheiros da cidade. Entre eles... sim, ali estava. Só faltavam
alguns passos, mas a aglomeração era muito grande. Arranhou o braço de
um homem que se negava a lhe dar passagem. O homem desembainhou
um punhal e por um instante... Porém, terminou às gargalhadas e lhe deu
passagem. Arnau tinha que estar detrás dele, mas, ao avançar, só encontrou
os conselheiros e o pró-homem dos bastaixos.
— Onde está Arnau? — perguntou, ofegante e suarenta.
O bastaix, imponente com a chave da Urna Sagrada pendurada no
pescoço, baixou a vista para olhá-la. Aquilo era segredo. A Inquisição...
— Eu sou Mar Estanyol — disse ela, engasgando. — Sou a órfã de
Ramon, o bastaix. Você deve tê-lo conhecido.
Não, não o conhecera, mas ouvira falar dele, e da filha que Arnau
apadrinhara.
— Corra para a praia — foi a única coisa que ele disse.
Mar cruzou a praça e voou pela Rua do Mar, livre da host. Alcançou-os
na altura do consulado; um grupo de seis bastaixos carregava Arnau, ainda
aturdido, nos braços.
Mar quis se jogar sobre eles, mas um dos homens se interpôs; as
instruções do pisano foram claras: ninguém deveria conhecer o paradeiro
de Arnau.
— Solte-me! — gritou Mar, esperneando.
O bastaix a agarrou pela cintura, tentando não machucá-la. Não pesava
nem metade de quaisquer das pedras ou fardos que ele transportava
diariamente.

***

— Arnau! Arnau!
Quantas vezes sonhara ouvir aquele grito? Quando abriu os olhos se viu
carregado nos braços de homens cujos rostos não distinguia muito bem.
Eles o levavam em silêncio e apressados. O que estava acontecendo? Onde
estava? Arnau! Sim, era o mesmo grito que um dia saiu de uma moça que
ele traiu na quinta de Felip de Ponts.
Arnau! A praia. As recordações se confundiram com o barulho das
ondas e a brisa salobra. Por que estava na praia?
— Arnau!
A voz chegou de longe.
Os bastaixos entraram na água, em direção ao barco que levaria Arnau à
galeota fretada por Guillem e que esperava na metade do porto. A água do
mar salpicou Arnau.
— Arnau!
— Esperem — balbuciou ele, tentando se erguer —, essa voz...
Quem...?
— Uma mulher — respondeu um deles. — Ela não causará problemas.
Nós temos...
Arnau estava de pé ao lado do barco, sustentado pelos bastaixos. Olhou
para a praia. “Mar o espera.” As palavras de Guillem silenciaram tudo o
que o rodeava. Guillem, Nicolau, a Inquisição, as masmorras: tudo voltou
à sua mente em um torvelinho.
— Meu Deus! — exclamou. — Tragam-na. Eu suplico!
Um dos bastaixos correu até onde estava Mar.
Arnau a viu correr em sua direção.
Os outros também olhavam para ela e desviaram o olhar quando Arnau
se soltou de seus braços; parecia que a onda mais suave poderia derrubá-lo
ao tocar suas panturrilhas.
Arnau ficou de braços caídos diante de Mar; então viu uma lágrima
rolar por sua face. Se aproximou e a colheu com os lábios.
Eles não trocaram uma palavra. Ela ajudou os bastaixos a subi-lo no
barco.

***

Não adiantaria enfrentar o rei de uma maneira tão direta.


Desde que Guillem se fora, Nicolau andava de um lado para o outro no
escritório. Se Arnau não tinha dinheiro, tampouco adiantaria sentenciá-lo.
O papa nunca lhe perdoaria a promessa feita. Estava nas mãos do pisano.
Se queria cumprir a promessa ao papa...
Batidas na porta atraíram sua atenção, mas Nicolau olhou para ela e
prosseguiu em seu vaivém.
Sim. Uma condenação menor salvaria sua reputação como inquisidor,
evitaria um enfrentamento com o rei e lhe proporcionaria dinheiro
suficiente para...
As batidas se repetiram.
Nicolau olhou para a porta novamente.
Queria ter mandado aquele Estanyol à fogueira. E a mãe dele? O que
aconteceu com a velha? Com certeza aproveitou a confusão...
As batidas ressoaram no cômodo. Nicolau abriu a porta bruscamente.
— O que...?
Jaume de Bellera, com o punho fechado, estava a ponto de bater outra
vez.
— O que quereis? — perguntou o inquisidor, olhando para o oficial que
devia estar de guarda na antessala e que ele viu encurralado atrás da
espada de Genís Puig. — Como vos atrevestes a ameaçar um soldado do
Santo Ofício? — bradou.
Genís abaixou a espada e olhou o seu companheiro.
— Estamos esperando há muito tempo — respondeu o senhor de
Navarcles.
— Não quero receber ninguém — disse Nicolau ao oficial, já livre do
acosso de Genís —, eu o avisei.
O inquisidor tentou fechar a porta, mas Jaume de Bellera o impediu.
— Sou um barão catalão — disse arrastando as palavras —, e mereço
respeito.
Genís assentiu ao ouvir as palavras do amigo e, empunhando a espada,
se interpôs outra vez no caminho do oficial, que tentava acudir o
inquisidor.
Nicolau encarou o senhor de Bellera. Podia pedir ajuda; a guarda não
demoraria a acudir, mas aqueles olhos crispados... Quem sabe o que
poderiam fazer dois homens acostumados a impor suas vontades?
Suspirou. Não era um bom dia.
— E então, barão — cedeu —, o que desejais?
— Prometestes condenar Arnau Estanyol e o deixastes escapar.
— Não lembro de ter prometido nada e, quanto a deixá-lo escapar... foi
o vosso rei, esse cuja nobreza reclamais para vós, que não acudiu para
socorrer a Igreja. Peçam explicações a ele.
Jaume de Bellera balbuciou algumas palavras ininteligíveis e sacudiu
as mãos.
— Ainda podeis condená-lo — disse por fim.
— Ele escapou — alegou Nicolau.
— Nós o traremos de volta! — gritou Genís Puig, ainda ameaçando o
oficial, mas com a atenção posta neles.
Nicolau fitou o cavaleiro. Por que tinha que dar explicações a estes
dois?
— Apresentamos provas suficientes de seu pecado — interveio Jaume
de Bellera. — A Inquisição não pode...
— Que provas? — ladrou Eimeric. Aqueles dois pedantes eram a
oportunidade de salvar sua honra. Se desvirtuasse as provas... — Que
provas? — repetiu. — A denúncia de um endemoniado como vós, barão?
— Jaume de Bellera tentou intervir, mas Nicolau o impediu gesticulando,
impaciente. — Procurei todos esses documentos que, segundo vós, o bispo
entregou quando nascestes. — Os dois se enfrentaram com o olhar. — Não
os encontrei, sabe?
Genís Puig deixou cair a mão que empunhava a espada.
— Devem estar no arquivo da diocese — defendeu-se Jaume de
Bellera.
Nicolau se limitou a menear a cabeça.
— E vós, cavaleiro? — Nicolau se dirigiu a Genís aos gritos. — O que
tendes contra Arnau Estanyol? — O inquisidor reconheceu em Genís o
medo de quem esconde a verdade; aquele era o seu trabalho. — Sabeis que
mentir para a Inquisição é um delito? — Genís procurou apoio em Jaume
de Bellera, mas o nobre tinha o olhar perdido em algum ponto do
escritório do inquisidor. Ele estava só. — O que dizeis, cavaleiro? —
Genís se mexeu procurando ocultar o olhar. — Que mal lhe fez o
cambista? — insistiu Nicolau. — Talvez o tenha arruinado?
Genís respondeu. Foi só um segundo, um segundo em que olhou o
inquisidor de soslaio. Era isso. O que um cambista poderia fazer a um
cavaleiro senão arruiná-lo?
— A mim não — respondeu ingenuamente.
— Não a vós? Então a vosso pai?
Genís baixou a vista.
— Tentastes usar o Santo Ofício mediante uma mentira! Denunciastes
em falso por vingança pessoal! — Jaume de Bellera voltou à realidade
com os gritos do inquisidor.
— Ele queimou o próprio pai — insistiu Genís com voz inaudível.
Nicolau esmurrou o ar. O que faria agora? Detê-los e submetê-los ao
tribunal supunha manter vivo um assunto que era preferível enterrar
quanto antes.
— Comparecereis ante o tabelião e retirareis vossas denúncias; caso
contrário... Entendido? — gritou diante da passividade dos dois. Ambos
assentiram. — A Inquisição não pode julgar um homem com base em
denúncias falsas. Ide — disse e acompanhou a ordem com um gesto para o
oficial.
— Você jurou vingança pela sua honra — lembrou Genís Puig a Jaume
de Bellera quando se dirigiam à porta.
Nicolau ouviu a queixa do cavaleiro. Ouviu também a resposta.
— Nenhum senhor de Navarcles deixou de cumprir um juramento.
O inquisidor-geral semicerrou os olhos. Já era o bastante. Deixara um
processado em liberdade. Acabava de ordenar às testemunhas que
retirassem as denúncias. Estava fazendo tratos comerciais com um... um
pisano? Nem sabia com quem! E se Jaume de Bellera cumprisse seu
juramento antes que ele tivesse acesso à fortuna que restava de Arnau? O
pisano manteria o acordo? Aquele assunto precisava ser definitivamente
silenciado.
— Pois nesta ocasião — bradou às costas de ambos —, o senhor de
Navarcles não cumprirá seu juramento.
Os dois deram meia-volta.
— O que dizeis?! — exclamou Jaume de Bellera.
— Que o Santo Ofício não pode permitir que dois... — fez um gesto de
desprezo — leigos ponham em dúvida a sentença ditada. Esta é a justiça
divina. Não há mais vingança! Entendeis, Bellera? — O nobre hesitou. —
Se cumprirdes vosso juramento, sereis julgado como endemoniado.
Entendeis agora?
— Mas um juramento...
— Em nome da Santa Inquisição eu relevo a sua promessa. — Jaume de
Bellera assentiu. — E vós — disse a Genís Puig —, cuidado para não
vingardes o que a Inquisição já julgou. Compreendeis?
Genís Puig assentiu.

***

A galeota, uma embarcação de dez metros de comprimento com vela


latina, procurou refúgio em uma pequena cala na costa de Garraf,
escondida da passagem de outras embarcações e a qual só se podia acessar
por mar.
Uma cabana precária, construída pelos pescadores com os restos que o
Mediterrâneo arrastava até lá, quebrava a monotonia das pedras e seixos
cinzentos que tentavam devolver ao sol a luz e o calor com que as
banhava.
O piloto da galeota recebera ordens concretas de Guillem,
acompanhadas de uma boa bolsa de moedas. “Você o deixará ali com um
marinheiro de confiança, com água e comida suficientes, e depois se
dedicará à cabotagem, mas escolha portos próximos e volte a Barcelona
pelo menos a cada dois dias para receber instruções minhas; você receberá
mais dinheiro quando tudo terminar”, prometeu, a fim de conquistar sua
lealdade. Não era preciso: Arnau era querido pelo povo do mar, que o
considerava um cônsul justo, mas o homem aceitou aquela boa quantia. No
entanto, não contava com Mar, e a moça se recusou a compartilhar o
cuidado de Arnau com um marinheiro.
— Eu cuidarei dele — disse ela quando desembarcaram na enseada e
acomodaram Arnau no casebre.
— Mas o pisano... — argumentou o piloto.
— Diga ao pisano que Mar está com ele e, se houver algum
inconveniente, volte com o seu marinheiro.
Ela se expressou com uma autoridade imprópria para uma mulher. O
piloto olhou para ela e tentou se impor.
— Vá — exigiu ela.
Quando a galeota sumiu por trás das rochas que protegiam a cala, Mar
respirou fundo e ergueu o rosto para o céu. Quantas vezes negara a si
mesma aquela fantasia? Quantas vezes, com a lembrança de Arnau na
mente, tentara se convencer de que seu destino era outro? E agora... Olhou
ao redor. Ele continuava dormindo. Durante a travessia, Mar comprovou
que não tinha febre nem estava ferido. Sentou-se junto à borda e apoiou a
cabeça de Arnau em seu colo.
Ele abriu os olhos diversas vezes; olhava para ela e voltava a fechá-los
com um sorriso nos lábios. Ela tomou sua mão nas dela, e apertava-a cada
vez que Arnau a fitava, logo depois se entregando ao sono novamente. Isso
se repetiu, como se ele quisesse comprovar que sua presença era real. E
agora... Mar se sentou aos pés do homem.

***

Passou dois dias percorrendo Barcelona, lembrando dos lugares que por
tanto tempo fizeram parte de sua vida. As coisas tinham mudado pouco
nos cinco anos em que Guillem estivera em Pisa. A cidade fervia apesar da
crise. Barcelona continuava aberta ao mar, defendida exclusivamente
pelos bancos de areia, para onde Arnau levou o baleeiro quando Pedro, o
Cruel, ameaçou a costa da cidade condal com sua frota; ainda estava em
andamento a edificação da muralha ocidental que Pedro III tinha iniciado.
Também prosseguia a construção do estaleiro real. Enquanto não ficava
pronta, os navios eram construídos e consertados no antigo, ao pé da praia,
diante da torre de Regomir. Ali Guillem se deixou levar pelo forte cheiro
de alcatrão com que os calafates impermeabilizavam as embarcações.
Observou o trabalho dos carpinteiros de ribeira, dos remolares, dos
ferreiros e cordoeiros. Tempos atrás, costumava acompanhar Arnau para
inspecionar o trabalho destes últimos e comprovar se as cordas destinadas
a cabos e adriças dos navios não tinham cânhamo velho misturado ao
novo. Passeavam entre os navios solenemente, acompanhados pelos
carpinteiros de ribeira. Depois de examinar as cordas, Arnau ia até os
calafates. Dispensava os acompanhantes e, ao lado de Guillem, conversava
com eles em particular, observado de longe pelos outros.
— O trabalho deles é essencial; a lei os impede de trabalhar por
empreitada — explicou ele a Guillem da primeira vez. Por isso o cônsul
conversava com os calafates, para saber se algum deles, movido pela
necessidade, descumpria a norma que visava a garantir a segurança dos
navios.
Guillem viu que um, de joelhos, alcatroava novamente a junta que
acabava de calafetar. A imagem o fez fechar os olhos. Apertou os lábios e
balançou a cabeça. Lutaram muito um ao lado do outro, e agora Arnau
estava recluso em uma cela à espera de uma pena menor do inquisidor.
Cristãos! Pelo menos Mar estava com ele... a sua menina. Guillem não
estranhou quando o piloto da galeota, depois de deixar Mar e Arnau,
apareceu no estaleiro e explicou o ocorrido. Aquela era a sua garota!
— Sorte, querida — murmurou ele.
— O que dizeis?
— Nada, nada. Fizestes bem. Deixai o porto e regressai em um par de
dias.
No primeiro dia não recebeu notícias de Eimeric. No segundo, entrou
novamente na cidade. Não podia continuar esperando no estaleiro; deixou
ali os criados, com a ordem de procurá-lo por toda a cidade caso alguém
perguntasse por ele.
Os bairros dos mercadores continuavam exatamente iguais. Era
possível percorrer Barcelona de olhos fechados, se guiando unicamente
pelo cheiro de cada um. A catedral continuava em construção, assim como
Santa Maria e a igreja do Pi, mas o templo do mar estava muito mais
adiantado que os outros dois. Santa Clara estava em obras, e também Santa
Anna. Guillem parou diante de cada uma das igrejas para observar o
trabalho dos carpinteiros e pedreiros. E a muralha do mar? E o porto?
Aqueles cristãos eram curiosos.
— Perguntam por vós no estaleiro — anunciou, ofegante, um dos
criados no terceiro dia.
“Você cedeu, Nicolau?”, Guillem se questionou, se dirigindo apressado
em direção ao mar.

***

Nicolau Eimeric assinou a sentença na presença de Guillem, de pé diante


da mesa. Depois pôs nela o seu selo e a entregou em silêncio.
Guillem tomou o documento e começou a lê-lo ali mesmo.
— Depois, depois — pediu o inquisidor.
Tinha obrigado o escrivão a trabalhar durante toda a noite e não
passaria o dia inteiro esperando que aquele infiel lesse o documento.
Guillem olhou para Nicolau por cima do ombro e continuou lendo os
motivos do inquisidor. Então Jaume de Bellera e Genís Puig retiraram a
denúncia; como será que Nicolau conseguira aquilo? O testemunho de
Margarida foi questionado por Nicolau ao saber que sua família fora
arruinada devido aos negócios feitos com Arnau; e Elionor... não
demonstrara a entrega e a submissão que toda mulher devia ao esposo!
Além disso, Elionor afirmava que o denunciado tinha abraçado
publicamente uma judia, com quem supunha que ele mantinha relações
carnais, e apontava como testemunhas deste ato o próprio Nicolau e o
bispo Berenguer d’Erill. Guillem fitou Nicolau; o inquisidor sustentou seu
olhar. “Não é verdade”, dizia Nicolau, “que o denunciado estava abraçando
uma judia no momento citado por D. Elionor. Nem ele nem Berenguer
d’Erill, que também assinou a sentença” — Guillem passou à última
página para comprovar a assinatura e o selo do bispo —, “corroboravam
aquela denúncia. A fumaça, o fogo, a confusão, a paixão, quaisquer dessas
circunstâncias”, continuava a argumentar Nicolau, “podem ter levado uma
mulher, fraca por natureza, a pensar ter presenciado aquela situação.
Sendo, pois, notoriamente falsa a acusação vertida por D. Elionor quanto à
relação de Arnau com uma judia, restava pouca credibilidade ao restante
de sua denúncia.”
Guillem sorriu.
Os únicos fatos que certamente podiam ser considerados passíveis de
pena eram os denunciados pelos sacerdotes de Santa Maria do Mar. As
palavras blasfemas tinham sido reconhecidas pelo réu, apesar de ter se
arrependido delas no tribunal, objetivo último de todo processo
inquisitorial. Por isso, a pena de Arnau Estanyol consistiu no confisco de
todos os seus bens e em uma penitência, acrescidos do sambenito dos
condenados, durante todos os domingos por um ano diante de Santa Maria
do Mar.
Guillem terminou de ler as formalidades legais e examinou as
assinaturas e selos do inquisidor e do bispo. Ele conseguira!
Enrolou o documento e procurou entre suas roupas a carta de
pagamento assinada por Abraham Levi para entregá-la a Nicolau. Guillem
assistiu em silêncio enquanto ele lia o documento que representava a ruína
de Arnau, mas também sua liberdade e sua vida; de qualquer modo, nunca
teria conseguido lhe explicar de onde provinha aquele dinheiro e por que a
carta de pagamento permanecera escondida por tantos anos.
58

Arnau dormiu durante o resto do dia. Ao anoitecer, Mar acendeu uma


pequena fogueira com as folhas secas e a lenha que os pescadores tinham
amontoado na cabana. O mar estava calmo. Ela olhou o céu estrelado.
Depois olhou o despenhadeiro que circundava a enseada; a lua brincava
com as pontas das rochas, iluminando-as caprichosamente aqui e ali.
Ela respirou o silêncio e saboreou a calma. O mundo não existia.
Barcelona não existia, nem a Inquisição, nem mesmo Elionor e Joan: só
ela... e Arnau.
À meia-noite, ouviu ruídos no interior do cômodo. Se levantou para ir
até lá e Arnau saiu. Ambos ficaram quietos, a poucos passos de distância.
Mar estava entre Arnau e a fogueira. O resplendor das chamas definia
sua silhueta e escondia suas feições na sombra. “Será que estou no céu?”,
Arnau pensou. À medida que seus olhos se acostumavam à penumbra, as
feições que o perseguiram em sonho foram adquirindo forma; primeiro
foram os olhos, brilhantes. Quantas noites chorara por eles? Depois o
nariz, as maçãs do rosto, o queixo... e a boca. Aqueles lábios... A figura
abriu os braços para ele e o resplendor das chamas se filtrou pelos lados,
acariciando um corpo delineado através de vestimentas etéreas, cúmplices
de luz e escuridão. Ela o chamava.
Arnau acudiu ao chamado. O que estava acontecendo? Onde estava?
Seria mesmo Mar? Encontrou a resposta ao tomar suas mãos, no sorriso
que se abriu para ele, no beijo cálido que recebeu nos lábios.
Depois, Mar abraçou Arnau com força e o mundo voltou à realidade.
“Abrace-me”, ouviu-a pedir. Arnau rodeou as costas da moça e apertou seu
corpo contra o da jovem. Ouviu-a chorar. Sentiu os espasmos do peito dela
contra o seu e acariciou sua cabeça com suavidade. Quantos anos haviam
passado para que pudesse desfrutar aquele momento? Quantos erros
precisou cometer?
Arnau separou a cabeça de Mar de seu ombro e a obrigou a fitá-lo.
— Sinto muito — começou a dizer —, sinto ter entregado você...
— Não fale — pediu ela. — O passado não existe. Não há o que
perdoar. Comecemos a viver a partir de hoje. Olhe o mar — disse ela
tomando-o pela mão. — O mar não conhece o passado. Aí está. Nunca nos
pedirá explicações. As estrelas, a lua, aí estão e continuam a brilhar,
brilham para nós. O que lhes importa o que aconteceu? Elas nos
acompanham e são felizes assim. Você as vê brilhar? Elas cintilam.
Fariam isso se lhes importasse? Por acaso não se formaria uma tempestade
se Deus nos quisesse castigar? Estamos sós, você e eu, sem passado, sem
recordações, sem culpas, sem que nada se interponha em nosso... amor.
Arnau olhou o céu, depois o mar e as pequenas ondas que chegavam
suavemente à enseada. Olhou a parede de rochas que os protegia e se
deixou embalar pelo silêncio.
Virou-se para Mar sem soltar a sua mão. Tinha algo para lhe contar,
algo doloroso, que jurara diante da Virgem após a morte de sua primeira
esposa e ao qual não podia renunciar. Olhando-a nos olhos, em um
sussurro, lhe explicou.
Quando terminou, Mar suspirou.
— Só sei que não penso em abandoná-lo novamente, Arnau. Quero
estar com você, perto de você. Nas condições que você quiser.

***

Ao amanhecer do quinto dia chegou uma galeota de onde Guillem


desembarcou. Os três se encontraram na margem; Mar se afastou para
permitir que eles se fundissem num abraço.
— Meu Deus! — soluçou Arnau.
— Que Deus? — perguntou Guillem com um nó na garganta, afastando
Arnau e mostrando um grande e branco sorriso.
— O de todos — respondeu Arnau, somando-se à alegria.
— Venha aqui, minha menina — disse Guillem, abrindo os braços.
Mar se aproximou dos dois e os abraçou pela cintura.
— Já não sou uma menina — disse ela com um sorriso maroto.
— Você sempre será — corrigiu-a o mouro.
— Sempre será — confirmou o outro.
Assim, abraçados, os três se sentaram em volta dos restos da fogueira
da noite anterior.
— Você está livre, Arnau — comunicou Guillem assim que se
acomodaram no chão, e lhe entregou a sentença.
— Diga-me o que está escrito — pediu Arnau, se negando a pegá-la. —
Nunca li um documento que viesse de suas mãos.
— Diz que seus bens foram confiscados... — Guillem olhou para
Arnau, mas não viu nenhuma reação. — E que você está condenado à pena
de sambenito durante todos os domingos por um ano diante das portas de
Santa Maria. Fora isso, a Inquisição o deixa em liberdade.
Arnau se imaginou descalço, vestido com uma túnica de penitente até
os pés com duas cruzes pintadas, diante da porta da igreja.
— Eu supus que você o conseguiria ao vê-lo no tribunal, mas não
estava em condições...
— Arnau — chamou Guillem —, você ouviu o que eu disse? A
Inquisição confiscou todos os seus bens.
Arnau ficou em silêncio por alguns instantes.
— Eu estava morto, Guillem — respondeu ele. — Eimeric foi me
buscar. Ao mesmo tempo, teria dado tudo o que tenho... tinha — corrigiu-
se tomando Mar pela mão — por estes últimos dias. — Guillem fitou Mar
e viu um sorriso amplo e os olhos brilhantes. A sua menina... Ele também
sorriu. — Estive pensando...
— Traidor! — Mar o repreendeu com uma expressão travessa.
Arnau deu uma palmadinha na mão da moça.
— Pelo que recordo, deve ter custado muito dinheiro conseguir que o
rei não enfrentasse a host.
Guillem assentiu.
— Obrigado — disse Arnau. Os dois homens se olharam.
— Bem — acrescentou o bastaix, resolvendo romper o feitiço —, e
você? Como passou os últimos anos?

***

Com o sol no alto, os três foram até a galeota depois de fazer sinal ao
marinheiro para que se aproximasse da praia. Arnau e Guillem
embarcaram.
A moça se virou e olhou para a cabana. O que a esperava agora, a pena
de sambenito, Elionor...
Mar abaixou os olhos.
— Não se preocupe com ela — Arnau a consolou afagando seu cabelo
—, sem dinheiro, ela não nos chateará. O palácio da Rua de Montcada é
parte de meu patrimônio, portanto agora pertence à Inquisição. Só lhe
resta Montbui. Terá que ir para lá.
— O castelo — murmurou Mar — vai ser confiscado pela Inquisição?
— Não. O castelo e as terras foram entregues em dote pelo rei. A
Inquisição não pode confiscá-los como parte de meu patrimônio.
— Sinto muito pelos camponeses — murmurou Mar, lembrando o dia
em que Arnau revogou os maus usos.
Ninguém mencionou Mataró, a quinta de Felip de Ponts.
— Nós nos arranjaremos... — começou Arnau.
— De que você está falando? — Guillem o interrompeu. — Você terá
todo o dinheiro que precisar. Se quiser, podemos comprar novamente o
palácio da Rua Montcada.
— Esse dinheiro é seu — recusou Arnau.
— Esse dinheiro é nosso. Escutem — disse ele —, não tenho ninguém
além de vocês. O que vou fazer com o dinheiro que consegui graças à sua
generosidade? Ele é seu.
— Não, não — insistiu Arnau.
— Vocês são a minha família. A minha menina... e o homem que me
deu liberdade e riqueza. Isto quer dizer que vocês não me querem em sua
família?
Mar estendeu o braço para tocar Guillem. Arnau gaguejou:
— Não, eu não quis dizer isso... É claro...
— Pois o dinheiro vem comigo — insistiu o amigo. — Ou você quer
que eu o entregue à Inquisição?
A pergunta provocou um sorriso em Arnau.
— E tenho grandes projetos — acrescentou Guillem.
Mar continuou olhando a enseada. Uma lágrima rolou por sua face. Ela
permaneceu quieta. A lágrima tocou seus lábios e se perdeu na curva da
fenda entre eles. Voltavam para Barcelona. Para cumprir uma condenação
injusta, com a Inquisição, com Joan, o irmão que o traiu... E com uma
esposa que ele desprezava e da qual não tinha como se libertar.
59

Guillem alugou uma casa no bairro da Ribera. Evitou o luxo, mas a casa
era suficientemente ampla para abrigar os três. “E com um quarto para
Joan”, ele pensou ao dar as instruções. Arnau foi recebido com carinho
pelas pessoas da praia ao desembarcar da galeota no porto de Barcelona.
Alguns mercadores que vigiavam o transporte de suas mercadorias ou
transitavam nas proximidades da alfândega o cumprimentaram com um
movimento de cabeça.
— Não sou mais rico — comentou ele com Guillem enquanto
caminhava e distribuía cumprimentos.
— As notícias correm... — respondeu Guillem.
Arnau tinha dito que a primeira coisa que queria fazer ao desembarcar
era visitar Santa Maria, para agradecer à Virgem por sua libertação; seus
sonhos tinham passado da confusão à nitidez da pequena figura saltando
por cima das cabeças das pessoas enquanto era carregado nos braços dos
conselheiros da cidade. No entanto, seu trajeto foi interrompido ao passar
pela esquina de Canvis Vells com Canvis Nous. A porta e as janelas de sua
casa, de sua mesa de câmbio, estavam completamente abertas. Diante dela
havia um grupo de curiosos que se afastaram ao vê-lo chegar. Não
entraram. Os três reconheceram alguns móveis e objetos que os soldados
da Inquisição amontoavam em uma carroça estacionada junto à porta: a
mesa comprida, que era maior que a carroça e tinha sido amarrada com
cordas, o tapete vermelho, a serra para cortar moedas falsas, o ábaco, os
cofres...
Uma figura de preto que anotava os pertences desviou a atenção de
Arnau. O dominicano parou de anotar enquanto o bastaix reconhecia
aqueles olhos: eram os que o perscrutaram durante os interrogatórios
detrás da mesa, ao lado do bispo.
— Carniceiros — murmurou ele.
Eram seus pertences, seu passado, suas alegrias e dissabores. Jamais
imaginou que seria espoliado daquela forma... Nunca dera importância aos
seus bens e, no entanto, estavam levando uma vida inteira.
Mar sentiu o suor nas mãos de Arnau.
Alguém atrás vaiou o frade; imediatamente os soldados deixaram os
pertences e desembainharam as armas. Três deles saíram da casa
empunhando as armas.
— Eles não permitirão outra humilhação pelas mãos do povo —
advertiu Guillem, puxando Mar e Arnau para um lado.
Os soldados se arremessaram contra os curiosos, que saíram correndo
em todas as direções. Arnau se deixou levar por Guillem olhando para trás,
com o olhar fixo na carroça.
Esqueceram Santa Maria, pois para lá se dirigiram alguns soldados
perseguindo as pessoas. Deram a volta apressados para alcançar a Praça do
Born e, dali, sua nova casa.

***

A notícia do retorno de Arnau correu a cidade. Os primeiros a se


apresentarem foram os missatges do consulado. O oficial não se atreveu a
olhá-lo nos olhos. Quando se dirigiu a ele, o fez usando o título “mui
honrado”, mas devia lhe entregar a carta em que o Conselho de Cento o
destituía do cargo. Depois de lê-la, Arnau estendeu a mão ao oficial, que
só então ergueu os olhos.
— Foi uma honra trabalhar convosco — disse ele.
— A honra foi minha — respondeu Arnau. — Não querem pobres —
comentou com Guillem e Mar depois que o oficial e os soldados deixaram
a casa.
— Temos de conversar sobre isso — interveio Guillem.
Mas Arnau não quis. Ainda não, alegou.
Muitas outras pessoas passaram pela nova casa de Arnau. Ele recebeu
algumas, como o pró-homem do grêmio dos bastaixos; outras, de condição
humilde, se limitaram a expressar os melhores desejos aos criados que os
atendiam.
No segundo dia, Joan apareceu. Desde que recebera a notícia da
chegada de Arnau a Barcelona, ele não parou de se perguntar o que Mar
teria lhe contado. Quando a incerteza se tornou insuportável, decidiu
enfrentar seus medos e procurar o irmão.
Arnau e Guillem se levantaram quando Joan entrou na sala. Mar
continuou sentada à mesa.
“Você queimou o cadáver de seu pai!” A acusação de Nicolau Eimeric
ressoou nos ouvidos de Arnau assim que viu Joan. Tinha tentado não
pensar naquilo.
Na porta da sala, Joan balbuciou algumas palavras; depois, com a
cabeça baixa, cruzou o espaço que o separava de Arnau.
Arnau semicerrou os olhos. Vinha se desculpar. Como o seu irmão
pudera...?
— Como você pôde fazer uma coisa dessas? — soltou quando Joan se
aproximou.
Joan desviou o olhar dos pés de Arnau para Mar. Será que ela não o
castigara o bastante? Precisava contar a Arnau...? No entanto, a moça
parecia surpresa.
— Por que você veio? — perguntou Arnau com a voz fria.
Procurou desesperadamente uma desculpa...
— Preciso pagar os gastos na estalagem — disse.
Arnau esmurrou o ar com a mão e lhe deu as costas.
Guillem chamou um dos criados e lhe deu uma bolsa de dinheiro.
— Acompanhe o frade para liquidar a conta da estalagem — ordenou.
Joan procurou ajuda no mouro, que nem piscou. Voltou para a porta e
desapareceu por ela.
— O que aconteceu entre vocês? — perguntou Mar assim que Joan saiu
da sala.
Arnau permaneceu em silêncio. Devia lhes contar? Como explicar que
queimara o cadáver do próprio pai e que o irmão o denunciara à
Inquisição? Ele era o único que sabia.
— Vamos esquecer o passado — respondeu ele por fim —, pelo menos
o que for possível.
Mar ficou em silêncio por um instante; depois concordou.

***
Joan deixou a casa e caminhou atrás do escravo de Guillem até a
estalagem. O jovem precisou se virar diversas vezes para esperar o
dominicano, que se detinha no meio da rua com o olhar perdido. Tinham
ido pelo caminho que levava à alfândega, que o jovem conhecia.
Na Rua de Montcada, porém, o escravo não conseguiu fazer Joan segui-
lo. O frade permaneceu imóvel diante dos portões do palácio de Arnau.
— Vá sozinho — disse Joan, se safando das mãos do rapaz que o
puxava. — Eu preciso cobrar outra dívida — murmurou para si mesmo.
Pere, o velho escravo, conduziu-o à presença de Elionor. Ele começou a
sussurrar uma mesma frase sem cessar assim que cruzou o umbral; seu
tom de voz foi subindo à medida que avançava pela escadaria de pedra
acompanhado de Pere, que o olhava espantado e, ao chegar diante de
Elionor, antes que ela pudesse dizer alguma coisa, soltou numa voz
aterradora:
— Sei que você pecou!
A baronesa, de pé no salão, olhou para ele orgulhosa.
— Que besteira está dizendo, frade?
— Sei que você pecou!
Joan repetiu.
Elionor deu uma gargalhada antes de lhe dar as costas.
Joan viu o traje com ricos brocados que a mulher vestia. Mar tinha
sofrido, ele próprio tinha sofrido. Arnau... Arnau deve ter sofrido tanto
quanto eles.
Elionor continuava rindo de costas.
— Quem você pensa que é, frade?
— Sou um inquisidor do Santo Ofício — respondeu Joan. — E neste
caso não preciso de nenhuma confissão.
Elionor se virou em silêncio diante da frieza das palavras de Joan. Viu
que ele trazia uma lamparina na mão.
— O quê...?
Ela não teve tempo de terminar. Joan jogou a lâmpada nela. O óleo
impregnou suas luxuosas vestimentas e incendiou imediatamente.
Elionor urrou.
Quando o velho Pere entrou para acudir sua senhora, ela já tinha se
convertido em uma tocha. Ele chamou os demais escravos aos gritos. Joan
o viu puxar um tapete da parede para jogá-lo sobre Elionor. Afastou o
escravo com um empurrão, mas na porta do salão já estavam outros
criados, com os olhos esbugalhados.
Alguém pediu água.
Joan observou Elionor, que caíra de joelhos, envolta em chamas.
— Perdoe-me, Senhor — balbuciou.
Então procurou outra lâmpada. Tomou-a e, com ela na mão, se
aproximou de Elionor. A bainha de seu hábito pegou fogo.
— Arrependa-se! — gritou ele antes de ser envolto pelo fogo.
O tapete em que estavam começou a arder. Alguns móveis também
pegaram fogo.
Quando os escravos apareceram com a água, se limitaram a jogá-la das
portas do salão. Depois, tapando o rosto, fugiram da densa fumaça.
60
15 de agosto de 1384
Festa da Assunção
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona

Dezesseis anos haviam passado.


Na Praça de Santa Maria, Arnau ergueu o olhar para o céu. O repicar
dos sinos da igreja inundava Barcelona. Em resposta à música, ele se
arrepiou e um calafrio percorreu seu corpo ao ritmo dos quatro sinos. Vira-
os sendo içados com vontade de se juntar aos jovens para puxar as
maromas até o alto da torre: Assumpto, o maior, de oitocentos e setenta e
cinco quilos; Conventual, o médio, com seiscentos e cinquenta; André, de
duzentos quilos; e Vedado, o menor, de cem.
Naquele dia se inaugurava Santa Maria, a sua igreja, e os sinos
pareciam soar de uma forma diferente de como soaram ao serem
instalados... Ou seria ele que os ouvia de outra maneira? Olhou para as
torres oitavadas que coroavam a fachada principal pelos dois lados: altas,
esbeltas e leves, de três corpos, cada qual mais estreito à medida que se
elevavam em direção ao céu; abertas aos quatro ventos por janelas ogivais;
rodeadas de estreitas varandas guarnecidas com parapeitos em cada nível.
Durante a construção, disseram a Arnau que seriam simples, sem agulhas
nem capitéis, naturais como o mar, cuja patrona protegiam, mas também
imponentes e fantásticas, pensou Arnau ao contemplá-las.
Em seus melhores trajes, as pessoas se aglomeravam em Santa Maria.
Alguns entravam na igreja; outros, como Arnau, permaneciam do lado de
fora contemplando sua beleza e ouvindo a música de seus sinos. Arnau
apertou Mar contra si; à sua esquerda, erguido, compartilhando o prazer do
pai, um menino de treze anos com um sinal no olho direito.
Acompanhado pela família, Arnau entrou em Santa Maria do Mar
enquanto os sinos repicavam. As pessoas lhe abriram passagem. Aquela
era a igreja de Arnau Estanyol; como bastaix carregara nas costas as
primeiras pedras; como cambista e cônsul do Mar a favorecera com
importantes doações, e depois, como comerciante de seguro marítimo,
continuara a fazê-lo. No entanto, Santa Maria não se livrara de catástrofes.
No dia 28 de fevereiro de 1373, um terremoto assolou Barcelona e
derrubou o campanário da igreja. Arnau foi o primeiro a contribuir para a
reconstrução.
— Estou precisando de dinheiro — disse ele a Guillem naquela data.
— Ele é seu — respondeu o mouro, consciente do desastre e de que,
naquela manhã, Arnau recebera a visita de um membro da Junta de Obras
de Santa Maria.
A fortuna sorrira novamente para eles. Aconselhado por Guillem,
Arnau optou por se dedicar aos seguros marítimos. A Catalunha, órfã de
regulamentações, ao contrário do que ocorria em Gênova, Veneza ou Pisa,
era um paraíso para os primeiros que empreendessem no negócio, mas só
comerciantes prudentes como Arnau e Guillem conseguiram sobreviver. O
sistema financeiro do principado estava afundando e, com ele, os que
pretendiam obter benefícios rápidos, como aqueles que asseguravam a
carga acima de seu valor, dificilmente voltando a ter notícias dela, ou
como os que asseguravam naus e mercadorias mesmo depois de saber que
os corsários tinham assaltado as embarcações e apostavam que a notícia
era falsa. Arnau e Guillem escolheram bem as naus, e os riscos melhor
ainda, e logo recuperaram a vasta rede de representantes com que
trabalhavam como cambistas.
No dia 26 de dezembro de 1379, Arnau não pôde perguntar a Guillem se
podia doar dinheiro a Santa Maria. Encontrou-o sentado na horta em uma
cadeira voltada para Meca, onde rezava em um segredo conhecido por
todos. Arnau procurou os membros da comunidade moura, e à noite eles se
encarregaram do cadáver de Guillem.
Naquela noite, em 26 de dezembro de 1379, um incêndio terrível
devastou Santa Maria. O fogo reduziu a cinzas a sacristia, o coro, os
órgãos, os altares e tudo mais que não fosse de pedra. Mas as pedras
também sofreram os efeitos do incêndio, principalmente as cinzeladas, e a
pedra chave com a representação do rei Afonso, o Benigno, pai do
Cerimonioso, que custeara aquela parte da obra, ficou totalmente
destruída.
O rei se encolerizou ao saber da destruição da homenagem ao seu régio
progenitor e exigiu que fosse reconstruída, mas os habitantes do bairro da
Ribera já estavam demasiado ocupados para se dedicarem a pagar uma
nova pedra chave só para satisfazer os desejos do monarca. O esforço e o
dinheiro do povo se destinaram à sacristia, ao coro, aos órgãos e altares; a
figura do rei foi engenhosamente reconstruída em gesso, colada à pedra
chave e pintada de vermelho e ouro.
Em 3 de novembro de 1383, foi colocada a última chave da nave
central, a mais próxima da porta principal, que levava o escudo da Junta de
Obras, em honra a todos os cidadãos anônimos que contribuíram para a
construção da igreja.
Arnau olhou para ela. Mar e Bernat o acompanharam, e os três sorriram
ao caminharem para o altar-mor.
Desde que a chave fora posta no andaime à espera de que as nervuras
dos arcos chegassem até lá, Arnau repetira mais de uma vez as mesmas
palavras:
— Esta é a nossa insígnia — disse ele um dia ao filho Bernat.
O menino olhou para cima.
— Pai — retrucou —, esse é o escudo do povo. As pessoas como você
têm seus próprios escudos gravados nos arcos e nas pedras, nas capelas e
nos... — Arnau ergueu a mão para interromper o filho, mas o menino
continuou: — Você nem tem um assento no coro!
— Esta é a igreja do povo, meu filho. Muitos homens deram a vida por
ela, e seus nomes não estão em nenhuma parte.
Então as lembranças de Arnau voltaram até o menino que carregava
pedras da canteira real até Santa Maria.
— Seu pai — explicou Mar — marcou muitas dessas pedras com o
próprio sangue. Não há melhor homenagem do que essa.
Bernat se virou para o pai com os olhos arregalados.
— Como muitos outros, filho — respondeu ele —, como muitos outros.
Agosto no Mediterrâneo, agosto em Barcelona. O sol brilhava com um
esplendor difícil de encontrar em outro lugar no mundo. Antes de se filtrar
através dos vitrais de Santa Maria para brincar com as cores e as pedras, o
mar devolvia ao sol os reflexos de sua própria luz, e os raios chegavam à
cidade embebidos em um brilho inigualável. Dentro do templo, o reflexo
colorido dos raios solares ao passar pelos vitrais se confundia com o
cintilar de milhares de círios acesos distribuídos entre o altar-mor e as
capelas laterais de Santa Maria. O cheiro de incenso impregnava o
ambiente, e a música do órgão ressoava na construção acusticamente
perfeita.
Arnau, Mar e Bernat foram até o altar-mor. Sob a magnífica abside,
rodeada por oito esbeltas colunas, a pequena figura da Virgem do Mar
descansava diante de um retábulo. Atrás do altar — adornado com finos
tecidos franceses que o rei Pedro emprestou para a ocasião, não sem antes
advertir em uma carta enviada de Vilafranca del Penedès que deveriam ser
devolvidos imediatamente após a celebração —, o bispo Pere de Planella
se preparava para oficiar a missa de consagração do templo.
As pessoas abarrotavam Santa Maria, e os três tiveram que parar.
Algumas reconheceram Arnau e lhe deram passagem para o altar-mor,
mas ele agradeceu e continuou ali de pé entre eles: sua gente e sua família.
Só lhe faltavam Guillem... e Joan. Arnau preferia recordá-lo como o
menino com quem descobriu o mundo, e não como o amargurado monge
que se sacrificara entre as chamas.
O bispo Pere de Planella deu início à cerimônia.
Arnau percebeu que estava ansioso. Guillem, Joan, Maria, seu pai... e a
velha. Por que sempre que pensava naqueles que faltavam terminava por
lembrar daquela velha? Ele tinha pedido a Guillem que a procurasse, a ela
e a Aledis.
— Elas desapareceram — disse-lhe o mouro um dia.
— Disseram que era minha mãe — lembrou Arnau em voz alta. —
Insista.
— Não consigo encontrá-las — disse Guillem depois de um tempo.
— Mas...
— Esqueça-as — aconselhou o amigo, com certa autoridade na voz.
Pere de Planella prosseguia com a celebração.
Arnau tinha sessenta e três anos, estava cansado e se apoiou no filho.
Bernat apertou o braço do pai carinhosamente, e Arnau aproximou os
lábios de seu ouvido, apontando para o altar-mor.
— Você a vê sorrir, filho? — perguntou.
Nota do autor

Ao desenvolver este romance pretendi seguir a Crônica de Pedro III, com


as adaptações necessárias que exigia uma obra de ficção como esta.
A escolha de Navarcles como sede do castelo e das terras do senhor de
mesmo nome foi totalmente fictícia, mas não os baronatos de Granollers,
Sant Vicenç dels Horts e Caldes de Montbui, que o rei Pedro concede a
Arnau em dote por seu matrimônio com a pupila Elionor — esta última
uma criação do autor. Os baronatos em questão foram cedidos em 1380
pelo infante Martín, filho de Pedro, o Cerimonioso, a Guillem Ramon de
Montcada, do ramo siciliano dos Montcadas, por seus bons ofícios em prol
do matrimônio da rainha Maria com um dos filhos de Martín, que depois
reinaria com o nome de “O Humano”. Estes domínios, no entanto,
estiveram menos tempo em poder de Guillem Ramon de Montcada do que
duraram em mãos do protagonista do romance. Assim que os recebeu, o
senhor de Montcada os vendeu ao conde de Urgell para, com o dinheiro
obtido, armar uma frota e se dedicar à pirataria.
O direito de se deitar com a noiva em sua primeira noite era um dos
concedidos pelos Usatges aos senhores com relação aos servos. A
existência dos maus usos na Catalunha velha levou os servos da terra a se
rebelarem contra seus senhores, com contínuos conflitos enquanto não
foram completamente abolidos pela decisão arbitral de Guadalupe em
1486, mediante o pagamento de uma importante indenização aos senhores
desapossados de seus direitos.
A sentença real contra a mãe de Joan, que a obrigou a viver a pão e
água trancada em um quarto até morrer, foi realmente ditada em 1330 por
Afonso III contra uma mulher chamada Eulália, cônjuge de Juan Dosca.
O autor não compartilha das considerações sobre as mulheres e os
camponeses que aparecem ao longo do texto; todas elas, ou a sua grande
maioria, foram copiadas textualmente do livro Lo crestià, escrito pelo
monge Francesc Eiximenis aproximadamente em 1381.
Na Catalunha medieval — ao contrário do que ocorria no resto da
Espanha, submetida à tradição legal visigoda estabelecida no Fuero Juzgo1
que proibia o estupro —, os estupradores podiam, sim, se casar com a
estuprada, mesmo em caso de violência ou sequestro, mediante a aplicação
do usatge Si quis virginem, tal e como ocorre no casamento de Mar com o
senhor de Ponts.
O estuprador era obrigado a dotar a mulher para que ela pudesse
encontrar marido ou se casar com ela. Se a mulher fosse casada,
aplicavam-se as leis do adultério.
Não se sabe com certeza se o episódio em que o rei Jaime de Mallorca
tenta sequestrar o cunhado, Pedro III, e fracassa ao ser advertido por um
monge parente deste último depois de ouvir sobre o complô em confissão
— no romance com a ajuda de Joan — realmente ocorreu ou foi uma
invenção de Pedro III como desculpa para o processo contra o rei de
Mallorca, que terminou com o confisco de seus reinos. O que parece ser
verdade foi a exigência do rei Jaime de construir uma ponte coberta de
suas galeras, no porto de Barcelona, até o convento de Framenors, o que
talvez tenha exacerbado a imaginação do rei Pedro quanto ao complô
relatado em suas crônicas.
A tentativa de Pedro, o Cruel, rei de Castela, de invadir Barcelona é
minuciosamente relatada na Crônica de Pedro III. De fato, o porto da
cidade condal, após o avanço da terra e o fechamento dos portos
anteriores, estava indefeso diante dos fenômenos naturais e dos ataques
inimigos; só em 1340, no reinado de Afonso, o Magnânimo, teve início a
construção de um novo porto para satisfazer as necessidades de Barcelona.
Contudo, a batalha ocorreu exatamente como Pedro III a descreve, e a
armada castelhana não invadiu a cidade porque uma nau — um baleeiro,
segundo Capmany — atravessou as tasques (baixios) de acesso à praia,
impedindo o avanço do rei de Castela. Nessa batalha se encontra uma das
primeiras referências ao uso da artilharia — a bombarda montada na proa
da galera real — nas batalhas navais. Pouco depois, o que não passava de
um meio de transporte de tropas se converteu em grandes e pesadas naus
armadas com canhões, o que mudou completamente o conceito da batalha
naval. Em sua Crônica, Pedro III se diverte com o escárnio e a zombaria a
que a host catalã, da praia ou dos muitos barcos que saíram em defesa da
capital, submeteu as tropas de Pedro, o Cruel, e considera que essa foi uma
das razões que levaram o rei de Castela a desistir de invadir Barcelona,
além da eficácia da bombarda.
Na revolta da Praça de Blat, no chamado primeiro mau ano, em que os
barceloneses exigiram o trigo, os promotores da revolta foram realmente
submetidos a um juízo sumaríssimo e executados na forca, execução que,
por motivos de argumentação, foi situada na própria Praça de Blat. O certo
é que as autoridades municipais pensaram que o simples juramento
venceria a fome do povo.
Quem foi realmente executado por decapitação como estabelecia a lei
diante de sua mesa de câmbio, perto da atual Praça Palácio, foi o cambista
F. Castelló, declarado abatut, ou em falência, no ano de 1360.
Também em 1367, devido à acusação de profanação de uma hóstia e
depois de serem encerrados na sinagoga sem água nem comida, três judeus
foram executados por ordem do infante D. Juan, lugar-tenente do rei
Pedro.
Durante a Páscoa cristã, os judeus eram terminantemente proibidos de
sair de casa; além disso, naqueles dias deviam manter portas e janelas
sempre trancadas, para que não pudessem ver nem interferir nas
numerosas procissões dos cristãos. Ainda assim, a Páscoa acendia ainda
mais, se é que era possível, os ressentimentos dos fanáticos, e as acusações
de celebrações de rituais heréticos aumentavam nessas datas que os
judeus, com toda razão, temiam.
Havia duas acusações principais contra a comunidade judaica
relacionadas à Páscoa cristã: o assassinato ritual de cristãos,
especialmente crianças, para crucificá-las, torturá-las, beber seu sangue ou
comer seu coração, e a profanação da hóstia, ambos, segundo o povo,
destinados a reviver a dor e o sofrimento da Paixão do Cristo dos
católicos.
A primeira acusação de crucifixão de uma criança cristã de que se tem
notícia ocorreu em Würzburg, na Alemanha do Sacro Império, em 1147,
ainda que, como sempre aconteceu com os judeus, o delírio mórbido do
povo logo fez com que tais fatos se espalhassem por toda a Europa.
Apenas um ano depois, em 1148, judeus ingleses em Norwich foram
acusados de crucificar outro cristão. A partir daí, as acusações de
assassinatos rituais se generalizaram, principalmente durante a Páscoa e
mediante a crucifixão: Gloucester, 1168; Fulda, 1235; Lincoln, 1255;
Munique, 1286... O ódio aos judeus e a credibilidade das pessoas
chegaram a tal ponto que, no século XV, Bernardino de Feltre, um
franciscano italiano, anunciou com antecipação a crucificação de uma
criança em Trento, onde a profecia certamente se cumpriu e o pequeno
Simón apareceu morto na cruz. A igreja beatificou Simón, mas o frade
continuou “anunciando” crucifixões: Reggio, Bassano e Mântua. Só em
meados do século XX a Igreja retificou e anulou a beatificação de Simón,
mártir do fanatismo e não da fé.
Uma das saídas que a host de Barcelona fez realmente — se bem que no
ano de 1369, depois da data que consta no romance — foi contra o povo de
Creixell, por impedir a pastagem do gado e o livre trânsito com destino à
cidade condal; a retenção do gado era uma das principais causas pelas
quais a host cidadã saía para defender seus privilégios ante outras
povoações e senhores feudais.
Santa Maria do Mar é, sem dúvida alguma, um dos mais belos templos
que existem. Carece da monumentalidade de outras igrejas construídas na
mesma época ou em momentos posteriores, mas em seu interior é possível
respirar o espírito que Berenguer de Montagut tentou lhe imprimir: a
igreja do povo, edificada pelo povo e para o povo, como uma grande masía
catalã: austera, protegida e protetora, a luz mediterrânea sendo o supremo
elemento diferenciador.
A grande virtude de Santa Maria, segundo os especialistas, é que foi
construída em um período ininterrupto de cinquenta e cinco anos, sob uma
só influência arquitetônica e com o acréscimo de poucos elementos, o que
faz dela o expoente máximo do chamado gótico catalão ou gótico largo.
Como era costume na época, Santa Maria foi construída sobre a igreja
antiga, para não interromper os serviços religiosos. No começo, o
arquiteto Bassegoda Amigó situava o templo primitivo na esquina da Rua
Espaseria, afirmando que a atual fora construída diante da velha, mais ao
norte, deixando entre elas uma rua, hoje Rua de Santa Maria. No entanto,
em 1966, as obras de construção de um novo presbitério e de uma cripta
no templo levaram à descoberta de uma necrópole romana sob Santa
Maria, que modificou a ideia original de Bassegoda e seu neto, arquiteto e
estudioso do templo, que afirma atualmente que as sucessivas igrejas de
Santa Maria estiveram sempre no mesmo lugar, sobrepostas umas às
outras. É nesse cemitério que supostamente foi enterrado o corpo de Santa
Eulália, patrona de Barcelona, cujos restos foram transladados pelo rei
Pedro de Santa Maria para a catedral.
A imagem da Virgem do Mar mencionada no romance é a que se
encontra atualmente no altar-mor, antes localizada no tímpano do portal
da Rua do Born.
Dos sinos de Santa Maria não se tem notícia até 1714, quando Felipe V
venceu os catalães. O rei castelhano criou um imposto especial sobre os
sinos da Catalunha como castigo por seu constante repicar conclamando os
patriotas catalães ao sometent, a pegarem em armas para defender a sua
terra. No entanto, não só os castelhanos se irritaram com os sinos que
chamavam os cidadãos para a guerra. O próprio rei Pedro, o Cerimonioso,
ao vencer a oposição valenciana que se levantara em armas contra ele,
ordenou executar alguns rebeldes, obrigando-os a beber o metal fundido
do sino da União que convocara os valencianos ao sometent.
A representatividade de Santa Maria era tal que certamente o rei Pedro
escolheu a praça para arengar os cidadãos na guerra contra a Sardenha e
desprezou outros lugares para reunir os cidadãos, como a Praça de Blat,
junto ao palácio do veguer.
Os humildes bastaixos, com seu trabalho de transportar gratuitamente
as pedras até Santa Maria, são o mais claro exemplo do fervor popular que
edificou a igreja. A paróquia lhes concedeu privilégios, e hoje sua devoção
mariana está refletida nas figuras de bronze da fachada, nos relevos do
presbitério e nos capitéis de mármore, nos quais estão representadas as
figuras dos carregadores portuários.
O judeu Hasdai Crescas existiu — assim como um tal Bernat Estanyol,
capitão dos almogávares —, mas, se o primeiro foi escolhido pelo autor, o
segundo se deve a uma coincidência. O ofício de cambista e a vida a ele
atribuída, no entanto, são invenção do autor. Sete anos depois da
inauguração oficial de Santa Maria, em 1391 — mais de cem anos antes da
expulsão dos judeus pelos reis católicos —, a judiaria de Barcelona foi
arrasada pelo povo, seus moradores, executados, e os que tiveram melhor
sorte — como, por exemplo, os que conseguiram se refugiar em conventos
— foram obrigados a se converter. Destruída a judiaria barcelonesa,
derrubados seus edifícios e fundadas igrejas em seu lugar, o rei Juan,
preocupado com os prejuízos econômicos que o desaparecimento dos
judeus significava para as arcas reais, tentou atraí-los de volta a
Barcelona. Prometeu isenções fiscais enquanto a comunidade não chegasse
a duzentas pessoas e revogou obrigações, tais como deixar os leitos e
móveis quando a corte estava em Barcelona ou a de alimentar os leões e
outras feras reais. Mas os judeus não voltaram, e em 1397 o rei concedeu a
Barcelona o privilégio de não ter judiaria.
Nicolau Eimeric, o inquisidor-geral, terminou por se refugiar em
Avignon com o papa, mas voltou para a Catalunha e continuou atacando as
obras de Ramon Llull após a morte do rei Pedro. O rei Juan o desterrou da
Catalunha em 1393, e o inquisidor se refugiou novamente com o papa. No
entanto, naquele mesmo ano, voltou à Seu d’Urgell, e o rei Juan teve de
exigir sua expulsão imediata ao bispo da cidade. Nicolau fugiu mais uma
vez para Avignon e, após a morte do rei Juan, conseguiu a permissão do rei
Martín, o Humano, para passar seus últimos anos de vida em Girona, sua
cidade natal, onde faleceu aos oitenta anos. São verdadeiras as referências
às máximas de Eimeric sobre a possibilidade de torturar mais de uma vez
como uma continuação de uma tortura anterior, assim como as condições
que deviam prevalecer nos cárceres até que morresse o réu.
Ao contrário de Castela, onde a Inquisição só foi instituída em 1487,
ainda que a lembrança de seus processos terríveis tenha perdurado por
séculos, desde 1249 a Catalunha contou com tribunais da Inquisição
completamente diferenciados e independentes da jurisdição eclesiástica
tradicional, exercida mediante os tribunais episcopais. A importância da
instituição oficial dos tribunais da Inquisição na Catalunha se deveu ao seu
objetivo original: a luta contra a heresia, então identificada com os cátaros
no sul da França e os valdenses de Pedro Valdo em Lyon. Ambas as
doutrinas, consideradas heréticas pela Igreja, conquistaram adeptos entre a
população da Catalunha velha devido à proximidade geográfica; chegaram
a atrair nobres catalães dos Pireneus, como o visconde Arnau e sua esposa
Ermessenda; Ramon, senhor do Cadí, e Guillem de Niort, veguer do conde
Nunó Sanç na Sardenha e Conflent.
Por este motivo teve início precisamente na Catalunha a triste jornada
da Inquisição por terras ibéricas. Em 1286, no entanto, o movimento
cátaro foi extinto, e a Inquisição catalã, no século XIV, recebeu ordens do
papa Clemente V de se concentrar na ordem proscrita dos cavaleiros do
Templo, como ocorria no vizinho reino francês. Mas na Catalunha os
templários não eram alvo da aversão que impulsionava o monarca francês
— ainda que motivada principalmente por motivos econômicos —, e,
durante um conselho provincial convocado pelo arcebispo de Tarragona
para tratar o assunto dos templários, os bispos presentes adotaram por
unanimidade uma resolução na qual os declararam livres de culpa e que
não encontravam motivos para a heresia de que os acusavam.
Depois dos templários, a Inquisição catalã voltou o olhar para os
begardos, que também haviam se estabelecido na Catalunha, e ditou
algumas sentenças de morte executadas pelo braço laico, como era a
norma, ao qual era entregue o condenado. No entanto, em 1348, com o
ataque popular às judiarias em toda a Europa, motivado pela epidemia de
peste e pelas acusações generalizadas contra os judeus, a Inquisição catalã,
carente de hereges e de outras seitas ou movimentos espirituais, começou
a dirigir sua atenção para os judaizantes.
Agradeço à minha esposa Carmen, sem a qual este romance não teria
sido possível, a Pau Pérez, por tê-lo vivido com a mesma paixão que eu, à
Escola d’Escriptura de l’Ateneu Barcelonès, por seu magnífico trabalho
didático no mundo das letras, bem como a Sandra Bruna, minha agente, e a
Ana Liarás, minha editora.

Barcelona, novembro de 2005

1. Conjunto de leis que vigorou na península Ibérica a partir da dominação visigoda, e foi
traduzido do latim para o castelhano no século XIII. (N. da T.)
Sobre o autor

© Alessandra Benedetti — Corbis / Getty Images

ILDEFONSO FALCONES é escritor e advogado. Seu primeiro romance, A


catedral do mar, rapidamente se tornou um fenômeno editorial,
alcançando a marca de um milhão de exemplares vendidos em menos de
um ano, e teve seus direitos de publicação vendidos para mais de trinta
países. A obra ganhou diversos prêmios, incluindo o Qué Leer de melhor
livro de 2006, o Euskadi de Plata de melhor romance em espanhol, no
mesmo ano, e o prestigiado prêmio italiano Giovanni Boccaccio de melhor
autor estrangeiro em 2007. Falcones é um dos escritores espanhóis mais
conhecidos da atualidade, tendo ultrapassado a marca de nove milhões de
exemplares vendidos em todo o mundo.
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