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Traduzido da edição original do Penguin Random House Grupo Editorial, Barcelona, 2006.
TÍTULO ORIGINAL
La catedral del mar
PREPARAÇÃO
Gabriel Demasi
REVISÃO
Milena Vargas
DESIGN DE CAPA
Richard Lasher Hasselberger
ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira | Equatorium Design
FOTO DE CAPA
Ferran López Olmo
REVISÃO DE E-BOOK
Carolina Andrade
Rodrigo Rosa
GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca
E-ISBN
978-85-510-0430-2
1ª edição
Servos da terra
1
Ano de 1320
Masía1 de Bernat Estanyol
Navarcles, Principado da Catalunha
Quando ninguém parecia prestar atenção nele, Bernat levantou a vista para
o nítido céu azul. O sol tênue de fim de setembro acariciava o rosto dos
convidados. Investira tantas horas e esforço na preparação da festa que só
um tempo inclemente poderia roubar seu brilho. Bernat sorriu para o céu
outonal e, ao baixar o olhar, seu sorriso se acentuou por causa do alvoroço
que reinava no pátio de pedra que se abria em frente à porta dos estábulos,
no térreo da masía.
A trintena de convidados estava exultante: a vindima daquele ano tinha
sido esplêndida. Todos, homens, mulheres e crianças, trabalharam de sol a
sol, primeiro colhendo as uvas e depois pisando-as, sem se permitir uma
jornada sequer de descanso.
Só depois de pôr o vinho para fermentar nas barricas e armazenar as
cascas de uva para destilar aguardente durante os tediosos dias de inverno,
os camponeses celebravam as festas de setembro. E Bernat Estanyol tinha
escolhido contrair matrimônio naquela época. Bernat observou seus
convidados. Tinham se levantado ao alvorecer para percorrer a pé a
distância, em certos casos muito grande, que separava suas masías da dos
Estanyol. Conversavam animadamente, talvez sobre a boda, sobre a
colheita ou sobre ambas; alguns, como o grupo que incluía seus primos
Estanyol e a família Puig, parentes de seu cunhado, caíram na gargalhada e
olharam-no dissimuladamente. Bernat sentiu-se enrubescer e se esquivou
da insinuação; não quis nem imaginar o motivo daqueles risos. Dispersos
pelo pátio da masía, distinguiu os Fontaníe, os Vila, os Joaquinet e, claro,
os parentes da noiva, os Esteve.
Bernat olhou de relance para o sogro, Pere Esteve, que não fazia outra
coisa além de passear com a enorme barriga, sorrindo para uns e logo
dirigindo-se a outros. Pere virou o rosto alegre em sua direção e Bernat foi
obrigado a saudá-lo pela enésima vez. Ele procurou os cunhados com o
olhar e os viu entre os demais convidados. Desde o primeiro momento
tratavam-no com certa reserva, por mais que Bernat se esforçasse por
conquistá-los.
Bernat olhou o céu outra vez. A colheita e o tempo tinham decidido
acompanhá-lo em sua festa. Observou outra vez sua masía e as pessoas, e
franziu os lábios levemente. Apesar da agitação reinante, de repente
sentiu-se só. Fazia apenas um ano que seu pai havia falecido; Guiamona,
sua irmã, instalada em Barcelona desde que se casara, não respondera aos
recados que ele enviara, e ele gostaria muito de revê-la. Era a única
parenta direta que lhe restava depois da morte do pai...
Uma morte que transformara a masía dos Estanyol no centro dos
interesses de toda a região: casamenteiras e pais com filhas núbeis
desfilaram por ali sem cessar. Antes ninguém os visitava, mas a morte de
seu pai, cujos acessos de raiva lhe renderam o apelido de “o louco
Estanyol”, trouxe de volta a esperança daqueles que desejavam casar suas
filhas com o camponês mais rico da região.
— Você já passou da hora de casar — diziam-lhe. — Quantos anos você
tem?
— Vinte e sete, acho — respondia.
— Nessa idade você já poderia ter netos — recriminavam-no. — O que
vai fazer sozinho nesta masía? Precisa de uma mulher.
Bernat ouvia os conselhos com paciência, sabendo que vinham
necessariamente acompanhados da menção a uma candidata cujas virtudes
superavam a força de um touro e a beleza do mais incrível pôr do sol.
O tema não era novidade. O louco Estanyol, viúvo depois do
nascimento de Guiamona, já havia tentado casá-lo, mas todos os pais com
filhas na idade certa deixavam a masía lançando impropérios: ninguém
conseguia atender às exigências do louco Estanyol quanto ao dote da
futura nora. Por isso, o interesse por Bernat foi diminuindo. Com a idade,
os desvarios de rebeldia do ancião viraram delírios. Bernat dedicou-se a
cuidar das terras e do pai e, de repente, aos vinte e sete anos, viu-se só e
assediado.
No entanto, a primeira visita que Bernat recebeu logo antes de enterrar
o defunto foi a do aguazil do senhor de Navarcles, seu senhor feudal.
“Você tinha mesmo razão, pai!”, pensou Bernat ao vê-lo chegar com vários
soldados a cavalo.
— Quando eu morrer — repetira o velho diversas vezes nos poucos
momentos de lucidez —, eles virão, e você deve lhes mostrar o
testamento. — Com um gesto, ele indicava a pedra sob a qual, enrolado
em couro, estava o documento que continha os últimos desejos do louco
Estanyol.
— Por quê, pai? — perguntara Bernat ao ouvir aquela advertência pela
primeira vez.
— Como bem sabe — respondera o velho —, possuímos estas terras em
enfiteuse, mas sou viúvo e, sem um testamento, com a minha morte o
senhor teria o direito de ficar com metade de todos os nossos móveis e
animais. Este direito se chama intestia; existem muitos outros que
beneficiam os senhores, e você deve conhecer todos. Eles virão, Bernat;
virão para levar o que é nosso, e você só poderá se livrar deles se mostrar
o testamento.
— E se eles o roubarem de mim? — perguntou Bernat. — Você sabe
como eles são...
— Ainda que o fizessem, está registrado nos livros.
A ira do aguazil e do senhor correu pela região e tornou ainda mais
atraente a situação do órfão, herdeiro de todos os bens do louco.
Bernat recordava muito bem a visita de seu agora sogro antes do
começo da vindima. Cinco soldos, um colchão e uma camisa branca de
linho; aquele era o dote oferecido pela filha Francesca.
— De que me serve uma camisa branca de linho? — perguntou Bernat
enquanto revolvia a palha no térreo da masía.
— Olhe — respondeu Pere Esteve.
Apoiando-se no forcado, o olhar de Bernat seguiu o indicador de Pere
Esteve até a entrada do estábulo. O forcado caiu na palha. À contraluz,
surgiu Francesca, vestida com a camisa branca de linho... Todo o seu corpo
se deixava ver através dela!
Um calafrio percorreu a espinha de Bernat. Pere Esteve sorriu.
Bernat aceitou a oferta ali mesmo, no palheiro, sem sequer se
aproximar da moça, mas sem desviar os olhos dela.
Foi uma decisão precipitada, ele estava consciente disso, mas não podia
dizer que havia se arrependido; ali estava Francesca, jovem, bela, forte.
Sua respiração se acelerou. Hoje mesmo... O que será que a moça estaria
pensando? Sentiria a mesma coisa que ele? Francesca não participava da
alegre conversa das mulheres; permanecia em silêncio junto à mãe, sem
rir, acompanhando as brincadeiras e gargalhadas das outras com sorrisos
forçados. Seus olhares se cruzaram por um instante. Ela enrubesceu e
baixou o olhar, mas Bernat reparou que seus seios denotavam nervosismo.
A camisa branca de linho novamente se aliou às fantasias e desejos de
Bernat.
— Parabéns! — disse alguém atrás dele, e o cumprimento foi
acompanhado de tapas fortes nas costas. Seu sogro havia se aproximado.
— Cuide bem dela — acrescentou o homem, seguindo o olhar de Bernat e
apontando para a moça, que já não sabia onde se esconder. — Se bem que,
se a vida que você vai lhe proporcionar for como esta festa... Este é o
melhor banquete que já vi. Com certeza nem o senhor de Navarcles pode
desfrutar manjares como estes!
Bernat quis receber bem os convidados e preparou quarenta e sete
fogaças brancas de farinha de trigo, evitando assim a cevada, o centeio e o
trigo duro comuns na alimentação dos camponeses. Farinha de trigo
candial, branca como a camisa de sua esposa! Levara as fogaças ao castelo
de seu senhor pensando que, como sempre, duas seriam suficientes para
pagar a queima. Os olhos do forneiro se arregalaram diante do pão de trigo
e logo se fecharam, formando fendas insondáveis. Daquela vez o
pagamento subiu para sete fogaças, e Bernat deixou o castelo praguejando
contra a lei que os impedia de possuir fornos para assar o pão em seus
lares... e forjas, e selarias...
— Com certeza — respondeu, afastando aquela má lembrança da
mente.
Os dois observaram o pátio da masía. Talvez lhe tivessem roubado parte
do pão, pensou Bernat, mas não o vinho que agora seus convidados bebiam
— o melhor, engarrafado por seu pai e que eles haviam deixado
envelhecer por muitos anos —, nem a carne de porco salgada, nem a
panela de verduras com algumas galinhas, nem, obviamente, os quatro
cordeiros que, abertos de ponta a ponta e amarrados em paus, assavam
lentamente sobre as brasas, soltando chispas e emanando um aroma
irresistível.
De repente, as mulheres se puseram em movimento. A panela já estava
pronta e as tigelas que os convidados tinham trazido começaram a ser
servidas. Pere e Bernat sentaram-se na única mesa que havia no pátio e as
mulheres vieram servi-los; ninguém se sentou nas quatro cadeiras
restantes.
De pé, sentadas em tábuas ou no chão, as pessoas começaram a dar
conta do ágape e, enquanto bebiam vinho, conversavam, gritavam e riam,
mantinham os olhos fixos nos cordeiros, atentamente vigiados por
algumas mulheres.
— Uma grande festa, sim, senhor — sentenciou Pere Esteve entre uma
colherada e outra.
Alguém brindou pelos noivos e todos rapidamente se juntaram ao
brinde.
— Francesca! — gritou Pere com o copo levantado em direção à noiva,
que se encontrava entre as mulheres, junto aos cordeiros.
Bernat olhou a moça, que novamente escondeu o rosto.
— Está nervosa — justificou-a Pere, piscando um olho. — Francesca,
minha filha! — gritou novamente. — Brinde conosco! Aproveite agora,
porque daqui a pouco vamos embora... quase todos.
As gargalhadas deixaram Francesca ainda mais assustada. A moça
ergueu ligeiramente o copo que colocaram em sua mão e, sem beber e
dando as costas aos risos, voltou a dirigir a atenção aos cordeiros.
Pere Esteve bateu seu copo no de Bernat, fazendo respingar o vinho. Os
convidados os imitaram.
— Você logo vai fazê-la perder a timidez — disse-lhe com uma voz
potente, para que todos os presentes o ouvissem.
As gargalhadas estalaram novamente, agora acompanhadas de
comentários dissimulados que Bernat preferiu ignorar.
Entre risadas e brincadeiras, todos deram conta do vinho, do porco e da
panela de verduras e galinha. Quando as mulheres começavam a retirar os
cordeiros da brasa, um grupo de convidados se calou e desviou o olhar em
direção à linha do bosque das terras de Bernat, situado além dos extensos
campos de cultivo, atrás de um suave declive do terreno onde os Estanyol
plantavam parte das cepas que produziam aquele vinho excelente.
Em poucos segundos, o silêncio se instalou entre os presentes.
Três cavaleiros surgiram por entre as árvores. Vários homens a pé,
uniformizados, os seguiam.
— O que fazem aqui? — perguntou Pere Esteve num sussurro.
Bernat acompanhou com o olhar os homens que se aproximavam
rodeando os campos. Os convidados murmuravam entre si.
— Não entendo — disse Bernat finalmente, também sussurrando —,
ele nunca mais passou por aqui. Não é caminho para o castelo.
— Não gosto nem um pouco dessa visita — acrescentou Pere Esteve,
visivelmente preocupado.
A comitiva movia-se lentamente. À medida que as figuras se
aproximavam, os risos e comentários dos cavaleiros substituíam o
alvoroço que até aquele momento reinara no pátio; todos podiam ouvi-los.
Bernat observou seus convidados; alguns tinham desviado o olhar e
estavam cabisbaixos. Procurou Francesca entre as mulheres. O vozeirão do
senhor de Navarcles chegou até eles. Bernat sentiu a ira invadi-lo.
— Bernat! Bernat! — exclamou Pere Esteve puxando-o pelo braço. —
O que ainda faz aqui? Corra para recebê-lo.
Bernat levantou-se de um salto e foi receber o seu senhor.
— Seja bem-vindo à vossa casa — saudou-o, arfando, ao alcançá-lo.
Llorenç de Bellera, senhor de Navarcles, puxou as rédeas de seu cavalo
e se deteve diante de Bernat.
— Você é Estanyol, o filho do louco? — indagou secamente.
— Sim, senhor.
— Estivemos caçando e, ao voltar para o castelo, fomos surpreendidos
por esta festa. A que se deve?
Entre os cavalos, Bernat pôde vislumbrar os soldados, carregados com
diversas peças: coelhos, lebres e galos selvagens. “É a sua visita que
requer explicação”, gostaria de ter respondido. “Ou quem sabe o forneiro
lhe contou sobre o pão de trigo candial?”
Até os cavalos, quietos e com grandes olhos redondos pousados sobre
ele, pareciam esperar uma resposta.
— É o meu casamento, senhor.
— Com a filha de quem você casou?
— Com a filha de Pere Esteve, senhor.
Llorenç de Bellera permaneceu em silêncio, olhando Bernat por cima
da cabeça de seu cavalo. Os animais patearam ruidosamente.
— E? — ladrou Llorenç de Bellera.
— Minha esposa e eu — continuou Bernat, tentando dissimular seu
desgosto — nos sentiríamos muito honrados se Vossa Senhoria e seus
acompanhantes quisessem juntar-vos a nós.
— Estamos com sede, Estanyol — disse o senhor de Bellera em
resposta.
Os cavalos se puseram em movimento sem que os cavaleiros
precisassem esporeá-los. Cabisbaixo, Bernat dirigiu-se à masía ao lado de
seu senhor. No final do caminho, todos os convidados haviam se reunido
para recebê-lo; as mulheres com o olhar cravado no chão, os homens sem
os chapéus. Ouviu-se um murmúrio ininteligível quando Llorenç de
Bellera se deteve diante deles.
— Vamos, vamos — ordenou enquanto desmontava. — Que a festa
prossiga.
As pessoas obedeceram e deram meia-volta em silêncio. Vários
soldados se aproximaram dos cavalos e se encarregaram deles. Bernat
acompanhou os novos convidados até a mesa em que ele e Pere tinham se
sentado. Suas tigelas e copos haviam desaparecido.
O senhor de Bellera e seus dois acompanhantes se acomodaram. Bernat
se afastou um pouco quando eles começaram a conversar. As mulheres
acudiram rápido com jarras de vinho, copos, fogaças, tigelas com galinha,
pratos de porco salgado e o cordeiro recém-preparado. Bernat procurou
Francesca com o olhar, mas não a viu. Não estava mais entre as mulheres.
Seu olhar cruzou com o do sogro, que já estava junto aos demais
convidados, e ele indicou as mulheres com o queixo. Com um gesto quase
imperceptível, Pere Esteve moveu a cabeça e deu meia-volta.
— Continuem com a festa! — gritou Llorenç de Bellera com uma perna
de cordeiro na mão. — Vamos, andem, adiante!
Em silêncio, os convidados começaram a se dirigir às brasas onde os
cordeiros tinham sido assados. Só um grupo permaneceu quieto, a salvo
dos olhares do senhor e seus amigos: Pere Esteve, seus filhos e alguns
outros convidados. Bernat vislumbrou o branco da camisa de linho entre
eles e se aproximou.
— Saia daqui, estúpido — ladrou o sogro.
Antes que pudesse abrir a boca, a mãe de Francesca pôs um prato de
cordeiro em suas mãos e sussurrou:
— Sirva o senhor e não se aproxime de minha filha.
Os camponeses começaram a comer o cordeiro em silêncio, olhando de
esguelha para a mesa. No pátio só se ouviam as gargalhadas e os gritos do
senhor de Navarcles e de seus dois amigos. Os soldados descansavam
afastados da festa.
— Antes ouvíamos os seus risos — gritou o senhor de Bellera —, tanto
que vocês até espantaram a caça. Riam, malditos!
Ninguém riu.
— Bestas rústicas — disse aos acompanhantes, que receberam o
comentário com gargalhadas.
Os três saciaram o apetite com o cordeiro e o pão candial. O porco
salgado e as tigelas de galinha ficaram num canto da mesa. Bernat comeu
de pé, um pouco afastado, olhando de esguelha para o grupo de mulheres
que ocultava Francesca.
— Mais vinho! — exigiu o senhor de Bellera, levantando o copo. —
Estanyol! — gritou de repente, procurando-o entre os convidados. — Da
próxima vez que você pagar o censo de minhas terras, terá de trazer vinho
como este, e não a beberagem com que o seu pai tem me enganado até
agora. — Bernat estava de costas para ele. A mãe de Francesca se
aproximava com a jarra. — Estanyol, onde você está?
O cavaleiro golpeou a mesa no momento em que a mulher trazia a jarra
para encher o seu copo. Algumas gotas de vinho salpicaram a roupa de
Llorenç de Bellera.
Bernat já tinha chegado perto dele. Os amigos do senhor riam da
situação e Pere Esteve levou as mãos ao rosto.
— Velha estúpida! Como se atreve a derramar o vinho? — A mulher
baixou a cabeça em sinal de submissão e, quando o senhor fez um gesto
para esbofeteá-la, afastou-se e caiu no chão. Llorenç de Bellera virou-se
para os amigos e caiu na gargalhada ao ver a anciã se afastar
engatinhando. Depois recuperou a seriedade e dirigiu-se a Bernat: — Ora,
aqui está você, Estanyol. Olha o que fazem as velhas desajeitadas! Por
acaso você pretende ofender o seu senhor? Você é tão ignorante que não
sabe que os convidados devem ser servidos pela senhora da casa? Onde
está a noiva? — perguntou, passeando os olhos pelo pátio. — Onde está a
noiva? — gritou ao ver que todos permaneciam em silêncio.
Pere Esteve tomou Francesca pelo braço e levou-a à mesa para entregá-
la a Bernat. A moça tremia.
— Meu senhor — disse Bernat —, eu vos apresento minha mulher,
Francesca.
— Assim está melhor — comentou Llorenç, avaliando-a de alto a baixo
sem nenhum recato —, muito melhor. A partir de agora você nos servirá o
vinho.
O senhor de Navarcles sentou-se novamente e ergueu o copo, dirigindo-
se à moça. Francesca procurou uma jarra e correu para servi-lo. Llorenç de
Bellera agarrou a mão dela e segurou-a firmemente enquanto o vinho caía
no copo. Depois a puxou pelo braço e obrigou-a a servir seus
acompanhantes. Os peitos da moça roçaram o rosto de Llorenç de Bellera.
— Assim se serve o vinho! — gritou o senhor de Navarcles enquanto,
ao seu lado, Bernat cerrava punhos e dentes.
Llorenç de Bellera e seus amigos continuavam bebendo e exigindo aos
berros a presença de Francesca para repetir, vezes seguidas, a mesma cena.
Os soldados riam junto com o senhor e seus amigos cada vez que a
moça era obrigada a se inclinar sobre a mesa para servir o vinho.
Francesca tentava conter as lágrimas e Bernat sentiu o sangue correr pelas
palmas das mãos, que ele feriu com as próprias unhas. Em silêncio, os
convidados desviavam o olhar cada vez que a noiva entornava o vinho.
— Estanyol — gritou Llorenç de Bellera ao se levantar com Francesca
agarrada pelo punho. — No uso do direito que me cabe como seu senhor,
decidi ir para a cama com sua mulher em sua primeira noite.
Os acompanhantes do senhor de Bellera aplaudiram ruidosamente as
palavras do amigo. Bernat deu um salto na direção da mesa, mas, antes de
alcançá-la, os dois sequazes, que pareciam bêbados, puseram-se de pé e
levaram a mão à espada. Bernat parou. Llorenç de Bellera olhou para ele,
sorriu e depois gargalhou com estardalhaço. A moça cravou os olhos em
Bernat, suplicando ajuda.
Bernat deu um passo adiante, mas a espada de um dos amigos do nobre
tocou sua barriga. Impotente, deteve-se novamente. Francesca não deixou
de fitá-lo enquanto era arrastada pela escada da masía. A moça começou a
gritar quando o senhor daquelas terras a agarrou pela cintura e a carregou
no ombro.
Os amigos do senhor de Navarcles voltaram a se sentar e continuaram
bebendo e rindo, enquanto os soldados se colocavam ao pé da escada para
impedir o acesso de Bernat.
Ao pé da escada, diante dos soldados, Bernat não ouviu as gargalhadas
dos amigos do senhor de Bellera; tampouco os soluços das mulheres. Não
aderiu ao silêncio de seus convidados nem sequer percebeu a chacota dos
soldados, que faziam gestos com os olhos postos na casa: só ouvia os
gritos de dor que vinham da janela do primeiro andar.
O azul do céu continuava resplandecente.
Depois de um tempo que para Bernat pareceu interminável, Llorenç de
Bellera ressurgiu, suado, no alto da escada, amarrando a cota de caça.
— Estanyol — gritou com uma voz ensurdecedora ao passar ao lado de
Bernat e dirigir-se à mesa —, agora é sua vez. D. Caterina — disse aos
acompanhantes, referindo-se à sua jovem esposa — já está cansada dos
meus vários filhos bastardos... Já não aguento seus choramingos. Cumpra
seu dever como bom esposo cristão! — instou-o, dirigindo-se novamente a
ele.
Bernat abaixou a cabeça e, sob o olhar atento de todos os presentes,
subiu lentamente a escada lateral. Entrou no primeiro andar, um amplo
espaço destinado à cozinha e ao refeitório com uma grande lareira em uma
das paredes, na qual descansava uma impressionante estrutura de ferro
forjado que formava a chaminé. Bernat ouviu o som dos próprios passos
no assoalho enquanto se dirigia à escada de mão que levava ao segundo
andar, destinado a quarto e celeiro. Assomou a cabeça pelo vão do tablado
do piso superior e perscrutou seu interior sem se atrever a subir. Não se
ouvia nenhum ruído.
Com o queixo rente ao chão e o corpo ainda apoiado na escada, viu a
roupa de Francesca espalhada pelo lugar; sua camisa branca de linho, o
orgulho da família, estava rasgada e reduzida a trapos. Ele finalmente
subiu.
Encontrou Francesca encolhida em posição fetal, com o olhar perdido,
completamente nua sobre o colchão novo manchado de sangue. Seu corpo
suado, arranhado aqui e golpeado ali, permanecia absolutamente imóvel.
— Estanyol! — Bernat ouviu Llorenç de Bellera gritar lá embaixo. —
O seu senhor está esperando.
Sacudido pelas ânsias, Bernat vomitou sobre os grãos armazenados até
que suas tripas quase saíram pela garganta. Francesca continuava imóvel.
Bernat deixou o lugar correndo. Quando chegou lá embaixo, pálido, sua
cabeça era um turbilhão de sensações, cada qual mais repugnante. Cego,
topou de frente com a imensidão de Llorenç de Bellera, parado ao pé da
escada.
— Não parece que o novo marido tenha consumado o matrimônio —
disse Llorenç de Bellera aos companheiros.
Bernat teve de levantar a cabeça para enfrentar o senhor de Navarcles.
— Não... não pude, meu senhor — balbuciou.
Llorenç de Bellera guardou silêncio por uns instantes.
— Pois, se você não conseguiu, tenho certeza de que algum de meus
amigos... ou de meus soldados conseguirá. Já disse que não quero mais
bastardos.
— Não tendes o direito...!
Os camponeses que os observavam sentiram um calafrio ao imaginar as
consequências de tal insolência. O senhor de Navarcles agarrou Bernat
pelo pescoço com uma só mão e apertou com força, fazendo Bernat
arquejar em busca de ar.
— Como se atreve...? Por acaso pretende se aproveitar do legítimo
direito de seu senhor de se deitar com a noiva e depois vir reclamar com
um bastardo embaixo do braço? — Llorenç sacudiu Bernat antes de largá-
lo no chão. — É isso que você pretende? Eu, e só eu, determino os direitos
de vassalagem, entendeu? Você esquece que posso castigá-lo quando e
quanto quiser?
Llorenç de Bellera esbofeteou Bernat com força, derrubando-o.
— Meu açoite! — gritou, encolerizado.
O açoite! Bernat não passava de uma criança quando, ao lado dos pais,
fora obrigado a presenciar o castigo público infligido pelo senhor de
Bellera a um pobre desgraçado cujo crime ninguém soube qual era. A
lembrança dos estalidos do couro nas costas daquele homem soou em seus
ouvidos como naquele dia, e noite após noite durante boa parte de sua
infância. Os presentes não tinham ousado se mover até então, tampouco o
fizeram agora. Bernat começou a se arrastar e levantou a vista para seu
senhor; estava de pé, como um imenso bloco de pedra, com a mão
estendida esperando que algum servo pusesse nela o açoite. Lembrou-se
das costas em carne viva daquele desgraçado: uma grande massa
sanguinolenta da qual nem todo o ódio do senhor conseguia tirar mais um
pedaço. Bernat arrastou-se de quatro até a escada, com os olhos aturdidos
e tremendo, como fazia quando tinha pesadelos na infância. Ninguém se
mexeu. Ninguém disse nada. E o sol continuava a brilhar.
— Sinto muito, Francesca — balbuciou ao chegar junto dela depois de
subir a escada com dificuldade, seguido por um soldado.
Afrouxou as calças e se ajoelhou ao lado da esposa. A moça não se
movera. Bernat observou seu pênis flácido e se perguntou como poderia
cumprir as ordens do senhor. Com um só dedo, acariciou suavemente as
costas nuas de Francesca.
Francesca não respondeu.
— Eu tenho... nós temos de fazê-lo — insistiu Bernat, tomando-a pela
mão para virá-la para si.
— Não me toque! — gritou Francesca, abandonando seu
ensimesmamento.
— Ele vai me esfolar! — disse Bernat com rispidez, descobrindo seu
corpo nu.
— Deixe-me!
Pelejaram, até que Bernat conseguiu agarrá-la por ambas as mãos e
erguê-la. Apesar de tudo, Francesca resistia.
— Virá outro! — sussurrou-lhe. — Vai ser outro quem a... forçará! —
Os olhos da moça voltaram ao mundo e se abriram, acusadores. — Ele vai
me esfolar, vai me esfolar... — desculpou-se.
Francesca não parou de lutar, mas Bernat se jogou sobre ela com
violência. As lágrimas da moça não foram suficientes para esfriar o desejo
que tinha nascido em Bernat pelo contato com o corpo da jovem, e ele a
penetrou enquanto ela gritava para todo o universo.
Aqueles urros satisfizeram o soldado que tinha seguido Bernat e que,
sem nenhum pudor, contemplava a cena com metade do corpo apoiado no
assoalho.
Bernat ainda não tinha acabado de forçá-la quando Francesca deixou de
resistir. Mas pouco a pouco seus gritos se converteram em soluços. O
pranto da mulher acompanhou Bernat quando ele chegou ao ápice.
Llorenç de Bellera ouviu os gritos desesperados que vinham da janela
do segundo andar e, quando seu espião confirmou que o matrimônio havia
sido consumado, pediu os cavalos e deixou o lugar com sua comitiva
sinistra. A maior parte dos convidados, abatidos, o imitou.
A quietude invadiu o lugar. Bernat, em cima da mulher, não sabia o que
fazer. Só então percebeu que a mantinha agarrada à força pelos ombros;
soltou-a e apoiou as mãos na enxerga de palha junto à sua cabeça, mas seu
corpo caiu inerte sobre o dela. Instintivamente elevou o torso, esticando os
braços para se apoiar, e encontrou os olhos de Francesca, que o fitavam
sem vê-lo. Nessa postura, qualquer movimento o faria roçar novamente o
corpo de sua mulher. Bernat desejava escapar dessas sensações, mas não
sabia como fazê-lo sem continuar ferindo a moça. Desejou poder levitar
para separar-se de Francesca sem tocá-la novamente.
Finalmente, depois de instantes eternos de indecisão, afastou-se e
ajoelhou-se junto a ela; agora tampouco sabia o que fazer: levantar-se, cair
ao seu lado, abandonar o cômodo ou tentar se justificar... Desviou o olhar
do corpo de Francesca, jogado de costas, grosseiramente exposto. Olhou
seu rosto, que estava a menos de dois palmos do seu, mas não conseguiu
encontrá-lo. Baixou o olhar e, de repente, a visão de seu membro nu
deixou-o envergonhado.
— Sinto mui...
Um movimento inesperado de Francesca o surpreendeu. A moça tinha
virado o rosto em sua direção. Bernat tentou encontrar compreensão em
seu olhar, mas ele estava completamente vazio.
— Sinto muito — insistiu. Francesca continuou a fitá-lo sem mostrar o
menor indício de reação. — Sinto muito, sinto muito. Ele... ele teria me
esfolado — balbuciou.
Bernat recordou o senhor de Navarcles, de pé, com a mão estendida, à
espera do açoite. Procurou novamente o olhar de Francesca: vazio. Tentou
encontrar uma resposta nos olhos da moça e teve medo: eles gritavam em
silêncio, gritavam como ela gritara.
Inconscientemente, como se quisesse fazê-la entender que ele a
compreendia, como se fosse uma menina, Bernat aproximou a mão da face
de Francesca.
— Eu... — tentou dizer.
Não chegou a tocá-la. Quando aproximou a mão, todos os músculos de
Francesca se retesaram. Bernat desviou-a na direção do próprio rosto e
chorou.
Francesca continuou imóvel, com o olhar perdido.
Por fim, Bernat parou de chorar, levantou-se, vestiu as calças e
desapareceu pelo vão que dava para o andar inferior. Então Francesca se
levantou e foi até o baú, que constituía todo o mobiliário do quarto, para
pegar sua roupa. Já vestida, recolheu com delicadeza seus pertences
destroçados, entre eles a preciosa camisa de linho branco; dobrou-a
cuidadosamente, tentando encaixar os farrapos, e guardou-a no baú.
1. Casa de campo dos agricultores e criadores de gado, típica da região catalã. (N. da T.)
2
Francesca vagava pela masía como uma alma penada. Cumpria suas
obrigações domésticas, mas o fazia no mais absoluto silêncio, destilando
uma tristeza que não demorou a invadir os cantos mais recônditos do lar
dos Estanyol.
Em diversas ocasiões, Bernat tentou se desculpar pelo acontecido.
Passado o horror do dia das bodas, ele tinha conseguido articular
explicações mais detalhadas: o medo da crueldade do senhor, as
consequências, tanto para ele como para ela, caso tivesse se negado a
obedecer. E “sinto muito”; Bernat exclamou mil vezes “sinto muito” para
uma Francesca muda, que o fitava e escutava como se esperasse o
momento em que o argumento de Bernat, fatalmente, chegaria ao mesmo
ponto crucial: “Outro viria. Se eu não o tivesse feito...” Porque, ao chegar
àquele ponto, Bernat se calava; todas as desculpas caíam por terra e a
violação voltava a se interpor como uma barreira infranqueável. Os “sinto
muito”, as desculpas e os silêncios em resposta foram fechando a ferida
que Bernat pretendia curar na esposa, e o remorso foi se diluindo nos
afazeres diários, até que Bernat se resignou ante a indiferença de
Francesca.
Todas as manhãs, ao alvorecer, quando se levantava para enfrentar as
duras tarefas de camponês, Bernat se debruçava na janela do quarto. Assim
fizera sempre com seu pai e, ao final da vida dele, ambos se apoiavam no
grosso parapeito de pedra e observavam o céu para vaticinar o dia que os
esperava. Olhavam as terras férteis, nitidamente delimitadas pelos cultivos
que mantinham em cada trecho e que se estendiam pelo imenso vale
abrindo-se ao pé da masía. Observavam os pássaros e escutavam
atentamente os sons dos animais no estábulo do térreo. Esses eram
momentos de comunhão entre pai e filho e de ambos com suas terras,
escassos minutos em que o pai parecia recuperar a lucidez. Bernat tinha
sonhado compartilhar esses momentos com a esposa, em vez de vivê-los
sozinho, ouvindo-a movimentar-se atarefada no piso de baixo, e contar-lhe
tudo o que ele ouvira da boca de seu pai, e este do seu, e assim
sucessivamente ao longo de gerações.
Tinha sonhado contar-lhe que aquelas boas terras um dia tinham sido
alodiais, de propriedade dos Estanyol, e que seus antepassados as
trabalhavam com alegria e carinho, ficando com os seus frutos sem
precisar pagar censos ou impostos e sem render homenagens a senhores
soberbos e injustos. Tinha sonhado compartilhar com ela, a sua esposa, a
futura mãe dos herdeiros daqueles campos, a mesma tristeza que seu pai
compartilhara com ele ao lhe contar as razões pelas quais agora, trezentos
anos depois, os filhos que ela desse à luz seriam servos de outra pessoa.
Gostaria de contar-lhe com orgulho, como o seu pai lhe contara, que
trezentos anos antes os Estanyol e muitos outros como eles guardavam
suas armas em casa, como homens livres que eram, para acudir em defesa
da Catalunha velha ante as incursões dos sarracenos, sob as ordens do
conde Ramon Borrell e seu irmão, Ermengol d’Urgell; gostaria de contar-
lhe que, sob as ordens do conde Ramon, vários Estanyol tinham feito parte
do exército vitorioso que derrotara os sarracenos do califado de Córdoba
em Albesa, bem depois de Balaguer, na planície de Urgel. Quando tinham
tempo, seu pai falava disso emocionado, mas a emoção se transformava
em melancolia ao narrar a morte do conde Ramon Borrell no ano de 1017.
Segundo ele, aquela morte os convertera em servos: o filho do conde
Ramon Borrell, de quinze anos de idade, sucedera ao pai; sua mãe,
Ermessenda de Carcassonne, tornara-se regente e, uma vez garantidas as
fronteiras do principado, os barões da Catalunha – os mesmos que haviam
lutado ombro a ombro com os camponeses – tinham aproveitado o vazio
de poder para extorquir os camponeses, matar os que resistiam e obter a
propriedade das terras em troca da permissão para que os antigos donos as
cultivassem e pagassem ao senhor com parte de seus frutos. Os Estanyol
tinham acabado por ceder, como tantos outros, mas muitas famílias do
campo haviam sido assassinadas de maneira selvagem e cruel.
— Como homens livres que éramos — dizia seu pai —, nós, os
camponeses, lutamos a pé, claro, contra os mouros, ao lado dos cavaleiros,
mas nunca pudemos lutar contra os cavaleiros, e, quando os sucessivos
condes de Barcelona quiseram retomar as rédeas do principado catalão,
esbarraram com uma nobreza rica e poderosa com a qual foram obrigados
a pactuar, sempre às nossas custas. Primeiro foram nossas terras, as da
Catalunha velha, e depois nossa liberdade, nossa própria vida... nossa
honra. Foram seus avós — contava com voz trêmula, sem deixar de fitar
suas terras — que perderam a liberdade. Foram proibidos de abandonar os
campos, foram convertidos em servos, homens atados às suas masías, às
quais também seus filhos permaneceriam atados, como eu, e os netos,
como você. Nossa vida... a sua vida está nas mãos do senhor, que distribui
justiça e tem o direito de nos maltratar e ofender nossa honra. Não
podemos nem nos defender! Se alguém o maltratar, você deve acudir ao
seu senhor para que reclame uma reparação e, se ele a conseguir, fica com
a metade.
Depois, invariavelmente recitava os múltiplos direitos do senhor, os
quais tinham ficado gravados na memória de Bernat, pois ele nunca se
atrevera a interromper o irado monólogo do pai. O senhor podia exigir
juramento ao servo a qualquer momento. Tinha o direito de cobrar uma
parte dos bens do servo se este morresse intestado ou quando seu filho
herdava; se fosse estéril; se sua mulher cometesse adultério; se sua masía
se incendiasse; se a hipotecasse; se se casasse com o vassalo de outro
senhor e, logicamente, se quisesse abandoná-lo. O senhor podia se deitar
com a noiva em sua primeira noite; podia exigir que as mulheres
amamentassem seus filhos ou que suas filhas servissem como criadas no
castelo. Os servos eram obrigados a trabalhar gratuitamente nas terras do
senhor; a colaborar para defender o castelo; a entregar parte dos produtos
de suas masías; a alojar em suas casas o senhor ou seus enviados e
alimentá-los durante a estadia; a pagar o uso dos bosques e das terras de
pastagem; a utilizar, mediante pagamento prévio, a forja, o forno ou o
moinho do senhor; e a enviar-lhe presentes no Natal e demais festividades.
E o que dizer da Igreja? Quando fazia esta pergunta, a voz de seu pai
soava ainda mais colérica.
— Monges, frades, sacerdotes, diáconos, arquidiáconos, cônegos,
abades, bispos — recitava —, são todos iguais aos senhores feudais que
nos oprimem! Até proibiram que os camponeses entrassem para ordens
religiosas para não nos deixar escapar das terras e, assim, perpetuar a
nossa servidão!
“Bernat”, advertia ele seriamente quando a Igreja se transformava no
alvo de sua ira, “nunca confie naqueles que dizem servir a Deus. Eles
falarão com serenidade e usarão boas palavras, tão cultas que você não
conseguirá entendê-las. Tentarão convencê-lo com argumentos que só eles
sabem tecer, até se apropriarem de sua razão e de sua consciência. Vão se
apresentar a você como homens bons e dirão que querem salvar-nos do
mal e da tentação, mas, na verdade, sua opinião sobre nós está escrita e
eles, os soldados de Cristo, como se denominam, seguem fielmente o que
está nos livros. Suas palavras são desculpas e suas razões são idênticas às
que você poderia apresentar a um fedelho.”
— Pai — lembrava-se Bernat de ter perguntado em uma dessas
ocasiões —, o que os livros deles dizem sobre nós, os camponeses?
O pai fitou os campos no ponto onde se confundiam com o céu, porque
não queria olhar para o lugar em cujo nome falavam os hábitos e as
batinas.
— Dizem que somos bestas, brutos, incapazes de entender o que é a
cortesia. Dizem que somos horríveis, vilões e abomináveis,
desavergonhados e ignorantes. Dizem que somos cruéis e teimosos, que
não merecemos nenhuma honra porque não sabemos apreciá-la e que só
somos capazes de entender as coisas à força. Dizem que...1
— Pai, somos tudo isso?
— Filho, é isso que eles querem que nos tornemos.
— Mas você reza todos os dias, e quando mamãe morreu...
— À Virgem, filho, à Virgem. Nossa Senhora não tem nada a ver com
os frades e sacerdotes. Nela podemos continuar acreditando.
Bernat Estanyol gostaria de se apoiar no parapeito da janela pelas
manhãs e conversar com sua esposa; contar-lhe o que seu pai lhe contara e
olhar os campos junto com ela.
***
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***
***
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***
***
1. Medida de capacidade para grãos usada na Catalunha, equivalente a cerca de 70 litros. (N. da
T.)
2. Usanças. Usos e costumes que formavam a base do direito comum na Catalunha. Em catalão
no original. (N. da T.)
3. Instituição de governo da cidade de Barcelona composta por cem conselheiros. (N. da T.)
4. Magistrado que em Aragão, na Catalunha e em Maiorca tinha, mais ou menos, a mesma
jurisdição que o corregedor em Castela. (N. da T.)
5
Seu filho ficará na casa grande. D. Guiamona cuidará dele. Quando tiver
idade suficiente, ele entrará na oficina como aprendiz.
Bernat deixou de escutar o que Jaume lhe dizia. O oficial apresentou-se
no dormitório ao amanhecer. Escravos e aprendizes saltaram de suas
enxergas como se ele fosse o próprio demônio e saíram esbarrando uns nos
outros.
Bernat ouviu aquelas palavras e disse a si mesmo que Arnau seria bem
cuidado e se tornaria um aprendiz, um homem livre com um ofício.
— Você entendeu? — perguntou o contramestre.
Ante o silêncio de Bernat, Jaume vituperou:
— Malditos camponeses!
Bernat esteve a ponto de reagir com violência, mas o sorriso que surgiu
no rosto de Jaume o deteve.
— Tente — provocou-o. — Faça isso e sua irmã não terá a que se
agarrar. Vou repetir o importante, camponês: você trabalhará de sol a sol,
como todos os demais, em troca de cama, roupa e comida... e que D.
Guiamona se encarregue de seu filho. Está proibido de entrar na casa; não
poderá entrar sob nenhum pretexto. Também está proibido de sair da
oficina enquanto não transcorrerem o ano e um dia de que precisa para
obter a liberdade, e deve se esconder quando alguém estranho entrar na
oficina. Não deve contar a sua situação a ninguém, nem aos daqui de
dentro, ainda que com este sinal... — Jaume balançou a cabeça. — Este é o
acordo que o mestre fez com D. Guiamona. Está bem?
— Quando poderei ver o meu filho? — perguntou Bernat.
— Isso não me compete.
Bernat fechou os olhos. Quando avistaram Barcelona pela primeira vez,
ele prometeu a Arnau a liberdade. Seu filho não teria nenhum senhor.
— O que tenho de fazer? — disse finalmente.
Carregar lenha. Carregar troncos e troncos, centenas deles, milhares
deles, para que os fornos trabalhassem. E cuidar para que estivessem
sempre acesos. Transportar argila e limpar, limpar o barro, o pó da argila e
a cinza dos fornos. Vezes seguidas, suando e levando a cinza e o pó para a
parte de trás da casa.
Quando voltava coberto de pó e cinza, a oficina estava suja novamente
e tinha de recomeçar. Colocar as peças ao sol ajudado por outros escravos
sob o olhar atento de Jaume, que controlava a oficina o tempo todo,
passeando entre eles, gritando, esbofeteando os jovens aprendizes e
maltratando os escravos, nos quais não hesitava em usar o açoite quando
alguma coisa não saía como queria.
Em certa ocasião, uma grande vasilha escapou de suas mãos quando a
levavam ao sol e rolou pelo chão, e Jaume fustigou os culpados. Ela nem
tinha quebrado, mas o contramestre, gritando como um possesso, açoitou
sem piedade os três escravos que haviam transportado a peça com Bernat.
Em dado momento, levantou o chicote contra ele.
— Faça isso e eu o mato — ameaçou-o Bernat, parado à sua frente.
Jaume hesitou; em seguida, enrubesceu e fez o açoite estalar em
direção aos outros, que já estavam a uma distância prudente. Jaume saiu
correndo atrás deles, e Bernat respirou fundo ao vê-lo afastar-se.
Apesar de tudo, ele continuou a trabalhar duro. Comia o que lhe
punham na frente. Gostaria de poder dizer à gorda mulher que os servia
que os seus cachorros eram mais bem alimentados, mas optou por ficar
calado ao ver que os aprendizes e os escravos agarravam as tigelas
avidamente. Dormia no dormitório em uma enxerga, sob a qual guardava
seus poucos pertences e o dinheiro que tinha trazido. Mas o enfrentamento
com Jaume lhe garantira o respeito dos escravos, dos aprendizes e também
dos outros oficiais, e Bernat dormia tranquilo, apesar das pulgas, do cheiro
de suor e dos roncos.
Ele suportava tudo pelas duas vezes por semana em que a escrava
moura lhe trazia Arnau, quase sempre adormecido, quando Guiamona já
não precisava dela. Bernat tomava-o nos braços e sentia o cheiro de roupa
limpa, de criança cuidada. Depois, com cuidado para não despertá-lo,
levantava sua roupa para ver suas pernas, seus braços e sua barriga
satisfeita. Ele crescia e engordava. Bernat embalava o filho e se virava
para Habiba, a jovem moura, suplicando-lhe um pouco mais de tempo com
o olhar. Às vezes tentava acariciá-lo, mas suas mãos enrugadas raspavam a
pele da criança e Habiba o levava sem hesitar. Com o passar dos dias,
chegou a um acordo tácito com a moura — ela nunca falava com ele —,
acariciando as bochechas rosadas do pequeno com o dorso dos dedos; o
contato com sua pele lhe provocava tremores. Quando, finalmente, a moça
gesticulava para que devolvesse a criança, Bernat beijava Arnau na testa
antes de entregá-lo.
Com o decorrer dos meses, Jaume percebeu que Bernat podia fazer um
trabalho mais frutífero na oficina. Eles haviam aprendido a se respeitar
mutuamente.
— Os escravos não têm jeito — comentou o contramestre com Grau
Puig em certa ocasião —, só trabalham por medo do açoite, não têm
nenhum cuidado. No entanto, seu cunhado...
— Não diga que é meu cunhado! — interrompeu-o Grau, mas aquela
era uma licença que Jaume gostava de se permitir com seu mestre.
— O camponês... — o contramestre se corrigiu, fingindo embaraço —,
o camponês é diferente; ele se interessa até pelas tarefas menos
importantes. Limpa os fornos com um cuidado que nunca...
— E o que você propõe? — interrompeu-o Grau de novo, sem levantar
os olhos dos papéis que estava examinando.
— Pois eu poderia indicar-lhe outras tarefas de maior responsabilidade
e, como nos sai barato...
Ao ouvir estas palavras, Grau levantou o olhar para o contramestre.
— Não se iluda — disse. — Pode não ter custado dinheiro como um
escravo, não terá um contrato de aprendizagem e não lhe pagarão como
aos oficiais, mas é o trabalhador mais caro que eu tenho.
— Eu me referia...
— Sei a que você se referia. — Grau voltou aos seus papéis. — Faça o
que considerar adequado, mas aviso: que o camponês nunca esqueça qual é
o seu lugar nesta oficina. Se isso acontecer, mando você embora e você
nunca será mestre. Entendeu?
Jaume assentiu, e, a partir daquele dia, Bernat passou a ajudar os
oficiais. Até ultrapassou os jovens aprendizes, incapazes de manejar os
moldes grandes e pesados de argila refratária que suportavam a
temperatura necessária para cozer a louça e a cerâmica. Com os moldes
eles faziam grandes vasos bojudos, de boca estreita, gargalo muito curto e
base chata e estreita, com capacidade para até duzentos e oitenta litros,1
destinados ao transporte de grãos e vinho. Até aquele momento, Jaume era
obrigado a destinar pelo menos dois oficiais para aquelas tarefas; com a
ajuda de Bernat, bastava um para completar todo o processo: fazer o
molde, cozê-lo, aplicar no vaso uma camada de óxido de estanho e óxido
de chumbo como fundentes e colocá-lo em um segundo forno a uma
temperatura mais baixa, para que o estanho e o chumbo se fundissem e se
misturassem, proporcionando à peça um revestimento impermeável
vidrado de cor branca.
Jaume ficou atento ao resultado de sua decisão até se dar por satisfeito:
a produção da oficina aumentou consideravelmente, e Bernat continuava
igualmente cuidadoso em suas tarefas. “Mais até que alguns oficiais!”, se
viu obrigado a admitir uma das vezes em que se aproximou de Bernat e do
oficial de turno para estampar o selo do mestre na base do gargalo de um
novo vaso.
Jaume tentava ler os pensamentos ocultos por trás do olhar do
camponês. Não havia ódio em seus olhos e tampouco parecia existir
rancor. Ele se perguntava o que lhe teria acontecido para ter acabado ali.
Não era como os outros parentes do mestre que tinham se apresentado na
oficina: todos tinham cedido por dinheiro. Já Bernat... a maneira como
acariciava o filho quando a moura o levava até ele! Queria a liberdade e
trabalhava por ela, duramente, mais do que ninguém.
O entendimento entre os dois homens deu outros frutos, além do
aumento da produção. Em uma ocasião em que Jaume se aproximou para
estampar o selo do mestre, Bernat dirigiu o olhar para a base do vaso.
“Você nunca será mestre!”, ameaçara-o Grau. Estas palavras voltavam à
cabeça de Jaume cada vez que considerava tratar Bernat de maneira mais
amistosa.
Jaume simulou um repentino acesso de tosse. Afastou-se do vaso sem
marcá-lo e olhou para o ponto que o camponês assinalava: havia uma
pequena rachadura, o que significava que a peça racharia no forno. Ele foi
tomado de cólera contra o oficial... e contra Bernat.
Transcorreram o ano e o dia necessários para que Bernat e o filho
fossem livres. De sua parte, Grau Puig conseguiu seu cobiçado posto no
Conselho de Cento da cidade. No entanto, Jaume não observou nenhuma
reação no camponês. Qualquer outro teria exigido a carta de cidadania e se
teria lançado às ruas de Barcelona à procura de diversão e mulheres, mas
Bernat não o fez. O que acontecia com aquele camponês?
Bernat lembrava recorrentemente do rapaz da forja. Não se sentia
culpado; aquele desgraçado se interpusera no caminho de seu filho. Mas se
ele tivesse morrido... Podia obter a liberdade de seu senhor, mas mesmo
depois de transcorridos um ano e um dia ele não se livraria da condenação
por assassinato. Guiamona lhe recomendara que não contasse a ninguém, e
ele assim tinha feito. Não podia se arriscar; talvez Llorenç de Bellera
tivesse dado ordens de capturá-lo como fugitivo e também como
assassino. O que aconteceria com Arnau se o prendessem? O assassinato
era castigado com a morte.
Seu filho continuava a crescer são e forte. Ainda não falava, mas já
andava e dava gorjeios que deixavam Bernat embevecido. Apesar de
Jaume continuar a não lhe dirigir a palavra, sua nova situação na oficina
— que Grau, ocupado com seus negócios e cargos, ignorava — levara os
outros a respeitá-lo mais, se isto era possível, e, com a aquiescência tácita
de Guiamona, que também andava mais ocupada devido à nova posição do
esposo, a moura lhe trazia o menino com mais frequência, em geral
acordado.
Bernat não queria ser visto em Barcelona para não prejudicar o futuro
do filho.
1. Para facilitar a compreensão, foram utilizadas medidas do sistema métrico decimal que
obviamente não existiam na época. (N. do E. espanhol.)
SEGUNDA PARTE
Servos da nobreza
6
Natal de 1329
Barcelona
***
***
***
Assim que entraram na casa, todos de luto após o enterro do menino, Grau
fez um sinal para que Jaume se aproximasse dele e de Guiamona.
— Quero que você leve Arnau agora mesmo e fique atento para que ele
não volte a pôr os pés nesta casa. — Guiamona escutou-o em silêncio.
Grau lhe contou o que Margarida tinha dito: Arnau os incitara. Seu
filho ou uma simples menina não podiam ter planejado aquela escapada.
Guiamona ouviu suas palavras e as acusações, que a culpavam de ter
acolhido o irmão e o sobrinho. Ainda que no fundo do coração soubesse
que aquilo não passava de uma travessura com consequências fatais, a
morte de seu filho mais novo lhe roubara o ânimo para enfrentar o marido,
e as palavras de Margarida incriminando Arnau quase a impediam de
conviver com o menino. Era o filho de seu irmão, não lhe desejava
nenhum mal, mas preferia não vê-lo.
— Amarre a moura numa das vigas da oficina — ordenou Grau a
Jaume, antes que este desaparecesse à procura de Arnau — e reúna todo o
pessoal em torno dela, incluindo Arnau.
Grau refletira sobre isso durante o serviço funerário: a culpa era da
escrava, ela devia tê-los vigiado. Depois, enquanto Guiamona chorava e o
sacerdote continuava a recitar as orações, semicerrou os olhos e se
perguntou que castigo deveria dar-lhe. A lei só o proibia de matá-la ou
mutilá-la, mas ninguém poderia censurá-lo se ela morresse em
consequência da pena infligida. Grau nunca tinha enfrentado um delito tão
grave. Pensou nas torturas de que tinha ouvido falar. Untar o corpo com
gordura animal fervente — será que Estranya teria gordura suficiente na
cozinha? —, acorrentá-la ou encerrá-la em uma masmorra — muito leve
—, surrá-la, colocar-lhe grilhões nos pés... ou flagelá-la.
— Cuidado ao usá-lo — disse-lhe o capitão de um de seus navios ao
presenteá-lo —, com um só golpe você pode esfolar uma pessoa.
Desde então o mantinha guardado: um valioso açoite oriental de couro
trançado, grosso mas leve, fácil de manejar e terminado em uma série de
franjas, todas elas incrustadas de metais cortantes.
Quando o sacerdote ficou em silêncio, vários rapazes agitaram os
incensórios em torno do caixão. Guiamona tossiu; Grau respirou fundo.
***
A moura esperava, amarrada a uma viga pelas mãos, tocando o chão com a
ponta dos pés.
— Não quero que meu filho veja isto — disse Bernat a Jaume.
— Não é o momento, Bernat — aconselhou-o Jaume. — Não crie
problemas...
Bernat negou com a cabeça novamente.
— Você trabalhou muito duro, Bernat, não crie problemas para seu
filho.
Grau, de luto, entrou no círculo que os escravos, os aprendizes e os
oficiais formavam em torno de Habiba.
— Dispa-a — ordenou a Jaume.
A moura tentou levantar as pernas ao notar que Jaume lhe arrancava a
camisa. Seu corpo nu, escuro, brilhando com o suor, ficou exposto aos
espectadores forçados... e ao açoite que Grau já havia colocado no chão.
Bernat agarrava com força os ombros de Arnau, que começou a chorar.
Grau puxou o braço para trás e soltou o açoite contra o torso nu. O
couro estalou nas costas, e as franjas metálicas, depois de dar a volta no
corpo, se cravaram em seus peitos. Um filete de sangue apareceu na pele
escura da moura, e os seus peitos ficaram em carne viva. A dor penetrava
em seu corpo. Habiba levantou o rosto para o céu e urrou. Arnau começou
a tremer descontroladamente e gritou pedindo a Grau que parasse.
Grau esticou o braço mais uma vez.
— Você devia ter vigiado meus filhos!
O estalar do couro obrigou Bernat a virar o filho para si e apertar-lhe a
cabeça contra seu estômago. A moça urrou novamente. Arnau abafou os
gritos contra o corpo do pai. Grau continuou flagelando a moura até que as
suas costas e ombros, peitos, nádegas e pernas se transformaram em uma
massa sanguinolenta.
***
***
***
Dispomos que o dito Ponç, se quiser que Joana lhe seja entregue, deve dar caução boa e
idônea e garantir que a manterá em sua própria casa em um lugar com doze palmos de
comprimento, seis de largura e duas varas1 de altura. Deve dar-lhe um saco de palha que
sirva para dormir e um cobertor para se cobrir, devendo fazer neste lugar um buraco para
que ela possa satisfazer suas necessidades corporais e deixar uma janela pela qual se
possam entregar alimentos à dita Joana: o dito Ponç deve lhe dar cada dia dezoito onças de
pão completamente cozido e tanta água quanto queira, e não lhe dará nem fará coisa
alguma para precipitar a sua morte nem fará coisa alguma para que morra a dita Joana.
Ponç deve dar caução boa e idônea e garantia sobre todas as ditas coisas antes de que se
lhe entregue a referida Joana.
***
O que Berenguer de Montagut lhes contara não tardou mais de sete dias
para acontecer.
— Venham amanhã ao amanhecer — aconselhou-os Àngel —, nós
vamos içar a chave de abóbada.
E ali estavam os meninos, correndo atrás dos operários reunidos ao pé
dos andaimes. Havia mais de uma centena de pessoas entre trabalhadores,
bastaixos e até sacerdotes; o padre Albert tinha se despojado da batina e
estava vestido como os outros, com uma grossa peça de tecido vermelho
enfaixada na cintura.
Arnau e Joanet meteram-se entre eles, cumprimentando uns e sorrindo
para outros.
— Meninos — disse-lhes um dos mestres pedreiros —, quando
começarmos a içar a chave de abóbada, não quero ver vocês por aqui.
Os dois concordaram.
— E onde está ela? — perguntou Joanet, levantando o olhar para o
mestre.
Correram para onde o homem indicara, ao pé do primeiro andaime, o
mais baixo de todos.
— Virgem! — exclamaram em uníssono quando chegaram perto da
grande pedra circular.
Muitos homens olhavam como eles em silêncio; sabiam que aquele era
um dia importante.
— Pesa mais de seis mil quilos — disse alguém.
Com os olhos arregalados, Joanet olhou para Ramon, o bastaix que
estava junto da pedra.
— Não — disse ele, adivinhando os seus pensamentos —, essa não
fomos nós que trouxemos.
O comentário suscitou alguns risos nervosos que logo cessaram. Arnau
e Joanet viram os homens desfilarem, olharem para a pedra e levantarem
os olhos para o alto dos andaimes; teriam de içar mais de seis mil quilos a
uma altura de trinta metros puxando maromas!
— Se alguma coisa falhar... — disse um deles enquanto se persignava.
— Vai nos esmagar — continuou outro, fazendo uma careta.
Ninguém ficava parado; até o padre Albert, com sua estranha
indumentária, se movia inquieto entre eles, animando-os, dando-lhes
tapinhas nas costas e conversando atropeladamente. A igreja velha se
erguia entre as pessoas e os andaimes. Muitos olhavam para ela. Cidadãos
de Barcelona começaram a se aglomerar a certa distância das obras.
Finalmente apareceu Berenguer de Montagut e, sem dar tempo às
pessoas para detê-lo ou cumprimentá-lo, subiu no andaime mais baixo e se
dirigiu aos homens reunidos. Enquanto ele falava, vários pedreiros que o
acompanhavam amarraram uma grande roldana na pedra.
— Como verão — gritou —, no alto do andaime foram montados vários
guindastes que servirão para içar a chave de abóbada. Os conjuntos de
roldanas, tanto as de cima quanto as que estão sendo amarradas a ela, são
compostos por outros três tipos de roldanas, e cada uma delas, por sua vez,
está unida a outras três. Como vocês já sabem, não vamos usar tornos nem
rodas, pois o tempo todo dirigiremos a chave de abóbada num movimento
lateral. Três maromas passam pelas roldanas, sobem até o alto e descem
de novo até o solo. — Observado por uma centena de cabeças, o mestre
indicou o percurso das maromas. — Eu quero que vocês se dividam em
três grupos ao meu redor.
Os mestres pedreiros começaram a dividir os trabalhadores. Arnau e
Joanet escapuliram para a fachada posterior da igreja e dali, encostados na
parede, acompanharam os preparativos. Berenguer continuou a falar
depois de certificar-se de que haviam se formado três grupos à sua volta:
— Cada um dos três grupos puxará uma das maromas. Vocês —
acrescentou, dirigindo-se a um dos grupos — serão Santa Maria. Repitam
comigo: Santa Maria! — Os homens gritaram Santa Maria. — Vocês,
Santa Clara. — O segundo grupo gritou o nome de Santa Clara. — E
vocês, Santa Eulália. Vou me dirigir a vocês por esses nomes. Quando eu
disser todos, estarei me referindo aos três grupos. Vocês devem puxar em
linha reta, de acordo com suas posições, sem perder as costas de seu
companheiro e atentos às ordens do mestre que vai dirigir cada fila.
Lembrem-se: devem ficar sempre retos! Agora formem as filas.
Cada fila era organizada por um mestre pedreiro. As maromas estavam
preparadas, e os homens as agarraram. Berenguer de Montagut não lhes
deu tempo para pensar.
— Todos! Comecem a puxar quando eu disser já, primeiro devagar, até
perceberem a tensão nas cordas. Já!
Arnau e Joanet viram as filas se moverem até as maromas se esticarem.
— Todos! Força!
Os meninos prenderam a respiração. Os homens cravaram os
calcanhares na terra, começaram a puxar, e braços, costas e rostos se
contraíram. Arnau e Joanet fixaram a vista na grande pedra. Não se movia.
— Todos! Mais força!
A ordem ressoou na esplanada. Os rostos dos homens começaram a
ficar vermelhos. A madeira dos andaimes rangeu, e a chave de abóbada se
levantou a um palmo do solo. Seis mil quilos!
— Mais! — gritou Berenguer, sem desviar a atenção da chave de
abóbada.
Outro palmo. Os meninos até se esqueceram de respirar.
— Santa Maria! Mais forte! Mais!
Arnau e Joanet dirigiram o olhar para a fila de Santa Maria. Ali estava
o padre Albert, que fechou os olhos e puxou a corda.
— Assim, Santa Maria! Assim! Todos! Mais forte!
A madeira continuou a estalar. Arnau e Joanet olharam para os
andaimes e depois para Berenguer de Montagut, que só prestava atenção à
pedra que subia lentamente, muito lentamente.
— Mais! Mais! Mais! Todos juntos! Força!
Quando a chave de abóbada chegou à altura do primeiro andaime,
Berenguer ordenou que parassem de puxar e segurassem a pedra no ar.
— Santa Maria e Santa Eulália, aguentem firme! — ordenou depois. —
Santa Clara, puxe! — A chave de abóbada deslocou-se lateralmente até o
andaime de onde Berenguer dava as ordens. — Agora todos! Soltem pouco
a pouco.
Todos, incluindo os que puxavam as cordas, prenderam a respiração
quando a chave de abóbada pousou no andaime ao pé de Berenguer.
— Devagar! — gritou o mestre de obras.
A plataforma vergou sob o peso da chave de abóbada.
— E se quebrar? — sussurrou Arnau para Joanet.
Se quebrasse, Berenguer...
Aguentou. No entanto, aquele andaime não estava preparado para
suportar o peso da chave de abóbada por muito tempo. Era preciso chegar
lá em cima, onde, segundo os cálculos de Berenguer, os andaimes
aguentariam. Os pedreiros mudaram as cordas para o guindaste seguinte, e
os homens puxaram as cordas novamente. Para o próximo andaime e o
seguinte; os seis mil quilos de pedra subiam até o lugar para onde
confluiriam as nervuras dos arcos, por cima das pessoas, no céu.
Os homens suavam e tinham os nervos retesados. De vez em quando
um caía, e o mestre da fila corria para retirá-lo de baixo dos pés dos que o
precediam. Alguns cidadãos fortes tinham se aproximado, e, quando
alguém já não podia mais, o mestre escolhia um deles para ocupar o posto.
Do alto, Berenguer dava ordens, e outro mestre, situado num andaime
abaixo, transmitia-as aos homens. Alguns sorrisos surgiram nos lábios
fortemente apertados quando a chave de abóbada chegou ao último
andaime, mas aquele era o momento mais difícil. Berenguer de Montagut
calculara o lugar exato em que a chave de abóbada devia ser colocada para
que as nervuras dos arcos se acoplassem perfeitamente. Durante dias
triangulou entre as dez colunas com cordas e estacas, jogou prumos de
cima do andaime e estirou cordas e mais cordas das estacas do solo até o
alto dos andaimes. Durante dias rabiscou nos pergaminhos, raspou-os e
voltou a escrever neles. Se a chave de abóbada não se encaixasse no local
exato, não aguentaria o esforço dos arcos e a abside poderia vir abaixo.
Afinal, depois de mil cálculos e uma infinidade de traços, ele desenhou
o lugar exato sobre a plataforma do último andaime. Ali deveria ficar a
chave de abóbada, nem um palmo para lá nem um palmo para cá. Os
homens se desesperaram quando, ao contrário do que tinha acontecido nas
outras plataformas, Berenguer de Montagut não lhes permitiu deixar a
chave de abóbada sobre o andaime e continuou a dar ordens:
— Um pouco mais, Santa Maria. Não. Santa Clara, puxe; agora
aguente. Santa Eulália! Santa Clara! Santa Maria...! Para baixo...! Para
cima...! Agora! — gritou de repente. — Aguentem todos! Para baixo!
Pouco a pouco, pouco a pouco. Devagar!
De repente as maromas deixaram de pesar. Em silêncio, todos os
homens olharam para o céu, onde Berenguer de Montagut se ajoelhara
para comprovar a posição da chave de abóbada. Rodeou a pedra de dois
metros de diâmetro, se levantou e saudou os homens debaixo dele
levantando os braços.
Arnau e Joanet, colados à parede da velha igreja, sentiram nas costas o
rugido que saiu da garganta dos homens que tinham passado horas
puxando as cordas. Muitos jogaram-se no chão. Alguns se abraçaram e
pularam de alegria. As centenas de espectadores que tinham acompanhado
a operação gritavam e aplaudiam; Arnau sentiu um nó na garganta, e os
pelos de seu corpo se eriçaram.
***
— Eu queria ser mais velho — sussurrou Arnau naquela noite ao pai,
deitados lado a lado na enxerga de palha, rodeados pela tosse e ronco dos
escravos e aprendizes.
Bernat tentou adivinhar o motivo daquele desejo. Naquele dia, Arnau
chegou exultante e contou mil e uma vezes como a chave de abóbada da
abside de Santa Maria tinha sido içada. Até Jaume o escutou com atenção.
— Por quê, filho?
— Todos fazem alguma coisa. Em Santa Maria há muitas crianças que
ajudam seu pai ou seu mestre, mas Joanet e eu...
Bernat passou o braço pelos ombros do menino e o puxou para perto.
Era verdade; a não ser quando recebia alguma tarefa esporádica, Arnau
passava o dia desocupado. O que podia fazer de útil?
— Você gosta dos bastaixos, não é mesmo?
Bernat havia percebido seu entusiasmo ao contar como aqueles homens
transportavam as pedras até a igreja. As crianças os seguiam até as portas
da cidade, os esperavam ali e os acompanhavam de volta, ao longo da
praia, de Framenors a Santa Maria.
— Sim — respondeu Arnau, enquanto o pai procurava algo com o outro
braço embaixo da enxerga.
— Tome — disse, entregando-lhe o velho odre que os acompanhara
durante a fuga. Arnau agarrou o odre na escuridão. — Ofereça-lhes água
fresca; você vai ver que não a rejeitarão e vão lhe agradecer.
No dia seguinte, como sempre ao amanhecer, Joanet já o esperava na
porta da oficina de Grau. Arnau mostrou-lhe o odre, pendurou-o no
pescoço e correram para a praia até a fonte do Àngel, perto dos Encantes, a
única que havia no caminho dos bastaixos. A fonte seguinte ficava já em
Santa Maria.
Quando os meninos viram chegar lentamente a fila dos bastaixos
encurvados sob o peso das pedras, subiram em um dos barcos varados na
praia. O primeiro bastaix passou por eles, e Arnau lhe mostrou o odre. O
homem sorriu e parou junto ao barco para que Arnau deixasse cair a água
diretamente em sua boca. Os demais esperaram que o primeiro terminasse
de beber; então o seguinte bebeu. De volta à pedreira real, livres do peso,
os bastaixos passavam pelo barco para agradecer a água fresca.
Daquele dia em diante, Arnau e Joanet converteram-se nos aguadeiros
dos bastaixos. Esperavam-nos junto da fonte do Àngel, e, quando era
preciso descarregar algum navio e os bastaixos não trabalhavam para
Santa Maria, eles os seguiam pela cidade para oferecer água sem que
precisassem soltar os pesados fardos que carregavam nas costas.
Não deixaram de ir a Santa Maria para observá-la, conversar com o
padre Albert ou se sentar no chão e fazer companhia a Àngel durante seu
almoço. Quem os visse podia perceber em seus olhos um brilho diferente
quando olhavam para a igreja. Eles também ajudavam a construí-la!
Tinham ouvido isso dos bastaixos e até do padre Albert.
Com a chave de abóbada no céu, os meninos viram que de cada uma das
dez colunas que a rodeavam começavam a nascer as nervuras dos arcos; os
pedreiros construíram escoras que se elevavam formando uma curva em
direção à chave de abóbada, sobre as quais se encaixavam uma pedra na
outra. Por trás das colunas, rodeando as oito primeiras, já tinham sido
erguidas as paredes do deambulatório com os contrafortes para dentro, no
interior da igreja.
— Entre estes dois contrafortes — dissera o padre Albert apontando
para duas das estruturas — ficará a capela do Santíssimo, a dos bastaixos,
onde descansará a Virgem.
Enquanto nasciam as paredes do deambulatório, enquanto começava a
construção das nove abóbadas apoiadas nas nervuras que saíam das
colunas, a velha igreja começava a ser demolida.
— Acima da abside — contou o sacerdote, enquanto Àngel assentia —
será construída a cobertura. Vocês sabem com que será feita? — Os
meninos negaram com a cabeça. — Com todas as vasilhas de cerâmica
defeituosas da cidade. Primeiro serão colocados os silhares e, sobre eles,
as vasilhas em fileiras, uma ao lado da outra. E, sobre elas, a cobertura da
igreja.
Arnau tinha visto as vasilhas amontoadas junto às pedras de Santa
Maria. Perguntara ao pai por que estavam ali, mas Bernat não soubera
responder.
— Só sei — disse ele — que todas as vasilhas defeituosas se amontoam
à espera de que venham buscá-las. Não sabia que eram para a sua igreja.
Foi assim que a nova igreja foi tomando forma por cima da abside da
antiga, que já começavam a demolir com cuidado para aproveitar as
pedras. O bairro da Ribera de Barcelona não queria ficar sem igreja
enquanto se construía aquele novo e magnífico templo mariano, e os
ofícios religiosos não foram suspensos em nenhum momento. Porém a
sensação era estranha. Arnau, como todos, entrava na igreja pelo portão
afunilado da pequena construção romana, e, uma vez lá dentro, a escuridão
em que se refugiava para falar com a sua Virgem desaparecia, dando lugar
à luz que entrava pelos janelões da nova abside. A antiga igreja se
assemelhava a uma pequena caixa rodeada pela magnificência de outra
maior, uma caixa fadada a desaparecer à medida que a segunda crescia,
uma caixa menor ao final da qual se abria a altíssima abside já coberta.
11
No entanto, a vida de Arnau não se reduzia a Santa Maria e a dar água aos
bastaixos. Em troca de cama e comida, suas obrigações incluíam
acompanhar a cozinheira nas compras pela cidade.
A cada dois ou três dias, Arnau deixava a oficina de Grau ao amanhecer
para acompanhar Estranya, a escrava mulata que andava de pernas abertas,
insegura, balançando perigosamente suas carnes exuberantes. Assim que
Arnau surgia à porta da cozinha, ela lhe entregava, sem lhe dirigir a
palavra, os primeiros volumes: dois cestos com fogaças para assar no
forno da Rua Ollers Blancs. Em um deles havia fogaças para Grau e sua
família, amassadas com farinha de trigo candial e que se transformavam
num delicioso pão branco; no outro estavam as fogaças para os demais, de
farinha de cevada, painço e até de fava e grão-de-bico, um pão que saía
escuro, maciço e duro.
Entregue a massa de pão, Estranya e Arnau deixavam o bairro dos
ceramistas e cruzavam as muralhas em direção ao centro de Barcelona. No
começo do percurso, Arnau seguia a escrava sem dificuldade, rindo do
balanço que agitava as suas carnes quando caminhava.
— De que você está rindo? — Ela costumava perguntar.
Então Arnau olhava para seu rosto redondo e chato e escondia o sorriso.
— Você quer rir? Então ria — dizia a mulata na Praça de Blat, quando o
carregava com um saco de trigo. — Cadê o seu sorriso? — Ela lhe
perguntava na baixada da Llet, quando lhe entregava o leite para seus
primos; e repetia a pergunta na pracinha de Cols, onde compravam couves,
legumes ou verduras, ou na Praça de l’Oli, onde adquiriam azeite, caça ou
aves.
A partir daí, cabisbaixo, Arnau seguia a escrava por toda Barcelona.
Nos dias de abstinência, que eram cento e sessenta, quase metade do ano,
as carnes da mulata tremiam até chegar à praia perto de Santa Maria, e ali,
em uma das peixarias da cidade, Estranya brigava para conseguir os
melhores golfinhos, atuns, esturjões, palomides, neros, reigs ou corballs.1
— Agora vamos buscar o seu peixe — dizia ela, sorridente, depois de
obter o que desejava.
Então se dirigiam à parte de trás, e a mulata comprava os restos.
Sempre havia muita gente nos fundos de qualquer peixaria, mas ali
Estranya não brigava com ninguém.
Ainda assim, Arnau preferia os dias de abstinência àqueles em que
Estranya comprava carne, porque, se para comprar os restos de peixe
davam só dois passos até os fundos da loja, para os restos de carne Arnau
tinha de percorrer meia Barcelona e sair carregado com os embrulhos da
mulata.
Nos açougues anexos aos matadouros da cidade, eles compravam carne
para Grau e sua família. Era carne de primeira qualidade, como toda a que
era vendida intramuros; Barcelona não permitia a entrada de animais
mortos. Toda a carne vendida na cidade condal entrava viva e era
sacrificada em seu interior.
Então, para comprar os restos com que alimentar os serventes e os
escravos, era preciso sair da cidade por Portaferrisa para chegar ao
mercado, onde se amontoavam animais mortos e todo tipo de carne de
origem desconhecida. Estranya sorria para Arnau enquanto comprava
aquela carne, carregava-o com ela, e, depois de passar pelo forno para
buscar as fogaças, voltavam para a casa de Grau; Estranya com o seu
bamboleio, Arnau arrastando os pés.
Certa manhã em que ambos faziam compras no matadouro principal ao
lado da Praça de Blat, começaram a soar os sinos da igreja de Sant Jaume.
Não era domingo nem dia de festa. Estranya, grande como era, parou de
pernas abertas. Alguém gritou na praça. Arnau não conseguiu entender o
que dizia, mas ao grito se uniram muitos outros, e as pessoas começaram a
correr em todas as direções. O menino olhou para Estranya com uma
pergunta que não chegou a sair de seus lábios. Soltou os embrulhos. Os
mercadores de grãos fechavam suas barracas rapidamente. As pessoas
corriam e gritavam, e os sinos de Sant Jaume não paravam de repicar.
Arnau tentou ir à Praça de Sant Jaume, mas... não eram os sinos de Santa
Clara que também estavam soando? Aguçou os ouvidos em direção ao
convento das freiras, e neste momento começaram a repicar os sinos de
Sant Pere, de Framenors e de Sant Just. Todos os sinos da cidade
repicavam! Arnau ficou imóvel, boquiaberto, ensurdecido, vendo todos
correrem.
De repente viu o rosto de Joanet diante do seu. Seu amigo, nervoso, não
conseguia ficar quieto.
— Via fora! Via fora!2 — gritou.
— O quê?
— Via fora! — gritou Joanet em seu ouvido.
— O que significa...?
Joanet o fez se calar e apontou para o antigo portão-mor sob o palácio
do veguer.
Arnau olhou para o portão justamente quando por ele saía um aguazil
do veguer vestido para a batalha, com uma armadura prateada e uma
grande espada na cintura. Na mão direita trazia o estandarte de São Jorge
pendurado num mastro dourado: uma cruz vermelha sobre um fundo
branco. Atrás dele outro aguazil, também vestido para a batalha, trazia o
estandarte da cidade. Os dois homens foram até o centro da praça, onde se
encontrava a pedra que dividia a cidade em bairros. Uma vez ali,
ostentando os pendões de São Jorge e de Barcelona, os aguazis gritaram
em uníssono:
— Via fora! Via fora!
Os sinos continuavam a repicar, e o “Via fora!” corria de boca em boca
pelas ruas da cidade.
Joanet, que observava o espetáculo em um silêncio reverente, começou
a gritar desmedidamente.
Por fim, Estranya pareceu reagir e puxou Arnau para saírem dali.
Atento aos dois aguazis parados no centro da praça com sua armadura
refulgente e sua espada, hieráticos sob os estandartes coloridos, o menino
se livrou da mão da mulata.
— Vamos, Arnau — ordenou Estranya.
— Não — opôs-se, instigado por Joanet.
Estranya o agarrou pelo ombro e o sacudiu.
— Vamos. Isso não é da nossa conta.
— O que você está dizendo, escrava? — As palavras partiram de uma
mulher que, ao lado de outras tão fascinadas quanto eles, observava os
acontecimentos e tinha assistido à discussão entre Arnau e a mulata. — O
menino é escravo? — Estranya negou com a cabeça. — É cidadão? —
Arnau assentiu. — Então como se atreve a dizer que o “Via fora!” não é da
conta dele? — Estranya titubeou e seus pés se moveram como os de um
pato que não quer andar.
— Quem é você, escrava — perguntou outra mulher —, para negar ao
menino a honra de defender os direitos de Barcelona?
Estranya abaixou a cabeça. O que seu senhor diria se soubesse? Ele, que
tanto defendia a honra da cidade. Os sinos continuavam a repicar. Joanet
tinha se aproximado do grupo de mulheres e incitava Arnau a se juntar a
ele.
— As mulheres não vão com a host3 da cidade — lembrou a primeira à
Estranya.
— E os escravos ainda menos — acrescentou outra.
— Quem você acha que vai cuidar de nossos maridos se não forem
meninos como eles?
Estranya não se atreveu a levantar os olhos.
— Quem você acha que cozinha e leva recados para eles, descalça suas
botas e limpa suas bestas?
— Siga seu caminho — ordenaram. — Este não é lugar de escravos.
Estranya apanhou os sacos que Arnau tinha carregado e começou a
caminhar movendo suas carnes. Joanet, sorrindo contente, olhou admirado
para o grupo de mulheres. Arnau continuava no mesmo lugar.
— Andem, meninos — encorajaram as mulheres —, e cuidem de
nossos homens.
— E conte a meu pai! — gritou Arnau para Estranya, que só tinha
conseguido caminhar três ou quatro metros.
Joanet percebeu que Arnau não tirava os olhos da lenta marcha da
escrava e adivinhou as suas dúvidas.
— Você não ouviu as mulheres? — disse ele. — Nós devemos cuidar
dos soldados de Barcelona. Seu pai vai entender.
Arnau concordou, primeiro lentamente e depois com veemência. Claro
que ele entenderia! Por acaso ele não tinha lutado para que fossem
cidadãos de Barcelona?
Ao voltarem para a praça, viram que ao lado dos estandartes dos
aguazis havia um terceiro: o dos mercadores. Seu portador não vestia
roupas de guerra, mas levava uma besta nas costas e uma espada na cinta.
Em pouco tempo chegou outro estandarte, o dos prateiros, e assim,
lentamente, a praça se encheu de bandeiras coloridas com todo tipo de
símbolos e figuras: o pendão dos curtumeiros, o dos cirurgiões ou
barbeiros, o dos carpinteiros, o dos caldeireiros, o dos ceramistas...
Sob os estandartes iam se agrupando, segundo o ofício, os cidadãos
livres de Barcelona; todos armados com uma besta, uma aljava com cem
flechas e uma espada ou uma lança, como exigia a lei. Em menos de duas
horas o sagramental4 de Barcelona estava disposto a partir em defesa dos
privilégios da cidade.
Nessas duas horas Arnau conseguiu descobrir a que se devia aquilo
tudo. Joanet finalmente lhe explicou.
— Barcelona não se defende só quando precisa — disse —, mas ataca
quem se atreve a ficar contra nós. — O pequeno falava com veemência,
apontando para os soldados e estandartes e mostrando o seu orgulho pela
resposta de todos. — É fantástico! Você vai ver. Com sorte ficaremos
alguns dias fora. Quem maltrata um cidadão ou ataca os direitos da cidade
é denunciado... bem, não sei a quem se faz a denúncia, se ao veguer ou ao
Conselho de Cento, mas, se as autoridades considerarem que a denúncia
tem fundamento, então se convoca a host sob o estandarte de São Jorge; é
aquele ali, você está vendo? No centro da praça, acima dos outros. Os
sinos tocam e as pessoas se lançam às ruas gritando “Via fora!”, para que
toda Barcelona saiba. Os pró-homens dos grêmios pegam seus pendões, e
os confrades se reúnem em volta dele para irem para a batalha.
Com os olhos arregalados, Arnau observava tudo o que acontecia ao seu
redor enquanto seguia Joanet por entre os grupos congregados na Praça de
Blat.
— E o que temos de fazer? É perigoso? — perguntou Arnau ao ver a
exibição de armas na praça.
— Geralmente não é perigoso — respondeu Joanet sorrindo para ele. —
O veguer deu permissão para a convocação em nome da cidade, mas
também em nome do rei, porque nunca se deve lutar contra as tropas reais.
Sempre depende de quem é o agressor, mas quando um senhor feudal vê a
host de Barcelona se aproximar costuma atender às suas exigências.
— Então não há batalha?
— Depende do que as autoridades decidam e da postura do senhor. Na
última vez uma fortaleza foi arrasada; então, sim, houve batalha e mortos,
e ataques e... Olhe! Ali está o seu tio! — disse Joanet apontando para o
estandarte dos ceramistas. — Vamos!
Sob o estandarte, junto aos outros três pró-homens do grêmio, Grau
Puig estava vestido para a batalha, com botas, uma armadura de couro que
cobria do peito ao meio da panturrilha e uma espada na cinta. Em volta
dos quatro homens se aglomeravam os oleiros da cidade. Quando Grau
percebeu a presença do menino, fez um sinal para Jaume, e este se interpôs
no caminho dos garotos.
— Aonde vocês vão? — perguntou.
Arnau procurou Joanet com o olhar.
— Vamos oferecer nossa ajuda ao mestre — respondeu Joanet —,
podemos levar o seu bornal com a comida... ou o que ele quiser.
— Sinto muito — Jaume limitou-se a dizer.
— E agora? — perguntou Arnau quando Jaume lhes deu as costas.
— E daí? — respondeu Joanet. — Não se preocupe, isto aqui está cheio
de gente que ficará feliz com nossa ajuda; além disso, eles não saberão que
vamos com eles.
Os dois meninos começaram a caminhar entre a multidão; observavam
as espadas, as bestas e as lanças, se maravilhavam com os que usavam
armadura e tentavam ouvir as conversas animadas.
— O que houve com esta água? — ouviram às suas costas.
Arnau e Joanet se viraram. O rosto dos dois meninos se iluminou ao
verem Ramon, que lhes sorria. A seu lado, mais de vinte macips5
imponentes e armados os fitavam.
Arnau tateou as suas costas à procura do odre, e seu desconsolo ao não
encontrá-lo foi tão evidente que vários bastaixos, rindo, se aproximaram e
lhe ofereceram os seus.
— É preciso estar sempre preparado quando a cidade chama você —
brincaram.
O sagramental deixou Barcelona seguindo a cruz vermelha do
estandarte de São Jorge em direção à vila de Creixell, perto de Tarragona.
Os habitantes daquele povoado tinham retido um rebanho de propriedade
dos açougueiros de Barcelona.
— E isso é assim tão ruim? — perguntou Arnau a Ramon, que eles
decidiram acompanhar.
— É claro que sim. O gado de propriedade dos açougueiros de
Barcelona tem o privilégio de passagem e de pastagem em toda a
Catalunha. Ninguém, nem mesmo o rei, pode deter um rebanho destinado
a Barcelona. Os nossos filhos têm de comer a melhor carne do principado
— acrescentou, acariciando o cabelo dos meninos. — O senhor de Creixell
reteve um rebanho e exige que o pastor pague direitos de pastagem e de
passagem por suas terras. Vocês imaginam se todos os nobres de Tarragona
a Barcelona resolverem exigir pagamento pela passagem e pela pastagem?
Não poderíamos comer!
“Se você soubesse como é a carne que Estranya nos dá...”, pensou
Arnau. Joanet adivinhou os pensamentos do amigo e fez uma expressão de
desgosto. Arnau só tinha contado aquilo a Joanet. Teve vontade de contar
ao pai sobre a origem da carne que flutuava na panela que lhes davam de
comer quando não era preciso guardar abstinência, mas, ao vê-lo comer
com prazer e ver os operários e escravos de Grau lançarem-se sobre a
panela, fazia das tripas coração, calava e comia.
— O sagramental sai por algum outro motivo? — perguntou Arnau,
com um sabor amargo na boca.
— É claro. Qualquer ataque aos privilégios de Barcelona ou contra um
cidadão pode provocar essa saída. Por exemplo, se alguém rapta um
cidadão de Barcelona, o sagramental acode para libertá-lo.
Conversando e sem deixar de avançar, Arnau e Joanet percorreram a
costa – Sant Boi, Castelldefels e Garraf – sob o olhar atento das pessoas
com que cruzavam, as quais se afastavam do caminho e permaneciam em
silêncio à passagem do sagramental. Até o mar parecia respeitar a host de
Barcelona, e seu rumor se apagava com a passagem das centenas de
homens armados que marchavam atrás do estandarte de São Jorge. O sol
os acompanhou durante todo o dia, e, quando o mar começou a se cobrir de
prata, se detiveram para pernoitar no castelo de Sitges. O senhor de
Fonollar recebeu os pró-homens da cidade em seu castelo, e o resto do
sagramental acampou às portas da propriedade.
— Vai haver guerra? — perguntou Arnau.
Todos os bastaixos olharam para ele. O crepitar do fogo rompeu o
silêncio. Joanet dormia com a cabeça apoiada nas pernas de Ramon.
Alguns bastaixos trocaram olhares ao ouvir a pergunta.
— Não — respondeu Ramon. — O senhor de Creixell não pode nos
enfrentar.
Arnau pareceu decepcionado.
— Talvez haja — tentou contentá-lo um dos pró-homens do grêmio, do
outro lado da fogueira. — Há muitos anos, quando eu era jovem, mais ou
menos como você — Arnau esteve a ponto de se queimar para escutá-lo
—, o sagramental foi convocado para ir a Castellbisbal, cujo senhor tinha
retido um rebanho de gado, como o senhor de Creixell fez agora. O senhor
de Castellbisbal não se rendeu e enfrentou o sagramental; talvez tenha
pensado que os cidadãos de Barcelona, mercadores, artesãos ou bastaixos
como nós, não éramos capazes de lutar. Barcelona tomou o castelo,
aprisionou o senhor e seus soldados e destruiu-o completamente.
Arnau já se imaginava empunhando uma espada, subindo por uma
escada ou gritando vitorioso sobre as ameias do castelo de Creixell:
“Quem ousa se opor ao sagramental de Barcelona?” Todos os bastaixos
notaram sua expressão: o menino, tenso, com o olhar perdido nas chamas,
as mãos crispadas agarrando o galho com que antes estava brincando,
atiçava o fogo e vibrava. “Eu, Arnau Estanyol...” Os risos o trouxeram de
volta a Sitges.
— Vá dormir — aconselhou-o Ramon, que já se levantava com Joanet
no colo. Arnau fez um muxoxo. — Assim você poderá sonhar com a
guerra — consolou-o o bastaix.
A noite estava fria, e alguém emprestou um cobertor aos dois meninos.
Ao amanhecer, prosseguiram a marcha em direção a Creixell. Passaram
por Geltrú, Vilanova, Cubelles, Segur e Barà, todos eles povoados com
castelos, e de Barà desviaram para o interior, em direção a Creixell. Este
era um povoado a pouco menos de uma milha do mar, situado em uma
colina em cujo cume se erguia o castelo do senhor de Creixell, uma
fortificação de onze lados com várias torres de defesa e construída sobre
um talude de pedras, em volta do qual se amontoavam as casas da vila.
Faltavam algumas horas para o anoitecer. Os pró-homens dos grêmios
foram chamados pelos conselheiros e pelo veguer. O exército de Barcelona
se alinhou em formação de combate diante de Creixell, com os estandartes
à frente. Arnau e Joanet caminhavam atrás das linhas, oferecendo água aos
bastaixos, mas quase todos a recusavam; tinham o olhar fixo no castelo.
Ninguém falava, e os meninos não se atreviam a romper o silêncio. Os
pró-homens voltaram e se somaram aos seus respectivos grêmios. Todo o
exército viu os três embaixadores de Barcelona caminharem em direção a
Creixell; outros embaixadores saíram do castelo e se reuniram com eles no
meio do caminho.
Arnau e Joanet, como todos os cidadãos de Barcelona, observavam os
negociadores em silêncio.
Não houve batalha. O senhor de Creixell, às escondidas do exército,
tinha fugido através de uma passagem secreta que ligava o castelo à praia.
O prefeito da vila, ante os cidadãos de Barcelona em formação de
combate, deu a ordem de rendição às exigências da cidade condal. Seus
vizinhos devolveram o gado, puseram o pastor em liberdade, aceitaram
pagar uma pesada compensação econômica, se comprometeram a obedecer
e respeitar os privilégios da cidade e entregaram dois de seus cidadãos,
que consideravam culpados pela afronta, os quais foram imediatamente
presos.
— Creixell se rendeu — anunciaram os conselheiros do exército.
Um rumor se alçou entre as filas dos barceloneses. Os soldados
acidentais embainharam suas espadas, largaram as bestas e lanças e se
livraram das roupas de combate. Risos, gritos e piadas começaram a se
fazer ouvir ao longo das filas do exército.
— O vinho, meninos! — pediu Ramon. — O que houve? — perguntou,
ao vê-los parados. — Vocês queriam ver uma guerra, não é?
A expressão dos meninos foi suficiente como resposta.
— Qualquer um de nós podia ter sido ferido ou até morto. Vocês teriam
gostado disso? — Arnau e Joanet se apressaram a negar com a cabeça. —
Vocês devem encarar isto de outro modo: vocês pertencem à maior e mais
poderosa cidade do principado, e todos temem nos enfrentar. — Arnau e
Joanet ouviam Ramon com os olhos muito abertos. — Busquem o vinho,
meninos. Vocês também vão brindar a esta vitória.
O estandarte de São Jorge voltou a Barcelona com honras e, com ele,
dois meninos orgulhosos de sua cidade, de seus concidadãos e de serem
barceloneses. Os presos de Creixell entraram acorrentados e foram
exibidos pelas ruas de Barcelona. As mulheres e todos os que se
aglomeravam nas ruas aplaudiram o exército e cuspiram nos presos. Sérios
e altivos, Arnau e Joanet acompanharam a comitiva durante todo o
percurso, até os presos serem definitivamente confinados no palácio do
veguer. Com este mesmo espírito se apresentaram diante de Bernat, o qual,
aliviado ao ver o filho são e salvo, em vez de repreendê-lo, escutou
sorridente o relato de suas novas experiências.
***
***
Cuidariam dos cavalos que Grau se vira obrigado a comprar junto com o
palacete. “Como você pretende ter cavalariças vazias?”, dissera o sogro
sucintamente, como se falasse com uma criança ignorante. Grau somava e
somava mentalmente. “A minha filha Isabel sempre montou a cavalo”,
acrescentou.
Mas para Bernat o mais importante foi o bom salário que obteve para
ele e para Arnau, que também trabalharia com os cavalos. Poderiam viver
fora do palacete em um cômodo próprio, sem escravos nem aprendizes;
ele e o filho teriam dinheiro suficiente para seguir em frente.
Foi o próprio Grau quem convenceu Bernat a anularem o contrato de
aprendizagem de Arnau e assinarem outro.
***
***
***
Todas as manhãs, quando pai e filho saíam para o trabalho, Joanet se
dedicava a ajudar Mariona, a esposa de Pere. Limpava, arrumava e a
acompanhava nas compras. Depois, enquanto ela cozinhava, Joanet corria
à procura de Pere na praia. Pere havia dedicado a vida à pesca e, além de
ajudas esporádicas que recebia do grêmio, obtinha algumas moedas
ajudando a consertar cabos e velas; Joanet o acompanhava, atento às suas
explicações, e corria de um lado para outro quando o velho precisava de
alguma coisa.
Assim que podia, escapava para ver a mãe.
— Hoje de manhã — explicou ele um dia —, quando Bernat foi pagar a
Pere, ele devolveu uma parte das moedas. Disse a ele que o pequeno... O
pequeno sou eu, sabe, mãe? Eles me chamam de pequeno. Bem, pois ele
disse que, como o pequeno ajudava na casa e na praia, não tinha de pagar a
minha parte.
A prisioneira escutava com uma mão na cabeça do menino. Como tudo
tinha mudado! Desde que vivia com os Estanyol, o seu pequeno já não
ficava sentado soluçando, esperando suas carícias silenciosas e uma
palavra de carinho, um carinho cego. Agora falava, contava coisas e até
ria!
— Bernat me deu um abraço — continuou Joanet —, e Arnau me
felicitou.
A mão afagou os cabelos dele.
Joanet continuou a falar atropeladamente. De Arnau e Bernat, de
Mariona, de Pere, da praia, dos pescadores, dos cabos e velas que
consertavam, mas a mulher já não o ouvia, satisfeita porque seu filho
finalmente sabia o que era um abraço, porque o seu pequeno era feliz.
— Corra, meu filho — aconselhou a mãe, tentando ocultar o tremor em
sua voz. — Devem estar esperando você.
Em sua prisão, Joana ouviu o seu pequeno pular do caixote e sair
correndo e imaginou-o saltando o muro que lutava para desaparecer de
suas recordações.
Que sentido tinha agora? Tinha aguentado a pão e água durante anos
entre aquelas quatro paredes, e centenas de vezes seus dedos tinham
tateado todos os cantos. Havia lutado contra a solidão e a loucura olhando
o céu pela janela diminuta que o rei lhe concedera; magnânimo monarca!
Tinha vencido a febre e a doença, tudo pelo seu pequeno, para lhe acariciar
a cabeça, para animá-lo, para fazê-lo sentir que, apesar de tudo, não estava
sozinho no mundo.
Agora ele já não estava só. Bernat o abraçava! Era como se o
conhecesse. Tinha sonhado com ele enquanto as horas se eternizavam.
“Cuide dele, Bernat”, disse para o ar. Agora Joanet era feliz e ria e corria
e...
Joana se deixou cair no chão e ficou sentada. Nesse dia não tocou no
pão nem na água; seu corpo não o desejava.
Joanet voltou outra vez, e outra, e outra, e ela ouviu como ria e,
encantado, falava do mundo. Da janela só saíam sons apagados: sim, não,
vá, corra, corra para a vida.
— Corra para desfrutar da vida que, por minha culpa, você não teve —
acrescentava Joana em um sussurro quando o menino já tinha saltado o
muro.
O pão foi se amontoando na prisão de Joana.
***
— Você sabe o que aconteceu, mãe? — Joanet puxou o caixote para junto
da parede e sentou-se nele; os seus pés ainda não alcançavam o chão. —
Não, como você poderia saber? — Já sentado, encolhido, apoiou as costas
no muro, ali onde sabia que a mão de sua mãe procuraria a sua cabeça. —
Eu vou contar a você. É muito engraçado. Acontece que ontem um dos
cavalos de Grau...
Mas da janela não saiu nenhum braço.
— Mãe? Escute. Estou dizendo que é engraçado. É que um dos
cavalos...
Joanet olhou novamente para a janela.
— Mãe?
Esperou.
— Mãe?
Aguçou o ouvido por cima das marteladas dos caldeireiros, que soavam
por todo o bairro: nada.
— Mãe! — gritou.
Ajoelhou-se no caixote. O que podia fazer? Ela o proibira de se
aproximar da janela.
— Mãe! — gritou novamente, erguendo-se em direção à janela.
Ela sempre lhe dissera que não olhasse, que nunca tentasse vê-la. Mas
ela não respondia! Joanet olhou pela janela. O interior estava escuro
demais.
Subiu nela e passou uma perna. Não cabia. Só conseguiria entrar de
lado.
— Mãe? — repetiu.
Agarrado à parte superior da janela, colocou os pés sobre o parapeito e,
de lado, pulou para dentro.
— Mãe? — sussurrou, enquanto seus olhos se acostumavam à
escuridão.
Esperou até conseguir vislumbrar um buraco de onde emanava um
cheiro insuportável, e do outro lado, à esquerda, junto à parede, sobre uma
enxerga de palha, viu um corpo encolhido.
Joanet esperou. Não se movia. Os golpes dos martelos no cobre tinham
ficado lá fora.
— Eu queria contar a você uma coisa divertida — disse ele se
aproximando. As lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. — Você
teria rido muito — balbuciou já ao lado da mãe.
Joanet se sentou ao lado do cadáver da mãe. Joana havia escondido o
rosto entre os braços, como se intuísse que o filho entraria em sua cela,
como se quisesse evitar que a visse nessas condições mesmo depois de
morta.
— Posso tocá-la?
O pequeno acariciou os cabelos da mãe, sujos, emaranhados, secos e
ásperos.
— Foi preciso você morrer para ficarmos juntos.
Joanet rompeu em pranto.
***
Bernat não duvidou um minuto quando, ao voltar para casa, ainda na porta,
Pere e a mulher, interrompendo um ao outro, lhe comunicaram que Joanet
não havia regressado. Nunca tinham lhe perguntado aonde ia quando
desaparecia; supunham que a Santa Maria, mas ninguém o vira ali naquela
tarde. Mariona levou a mão à boca.
— E se tiver acontecido algo com ele? — soluçou.
— Nós o encontraremos — Bernat tentou tranquilizá-la.
Joanet permaneceu sentado ao lado da mãe. Primeiro deslizou a mão
por seus cabelos, depois os entrelaçou com os dedos para desembaraçá-los.
Não tentou ver suas feições. Depois se levantou e olhou pela janela.
Anoiteceu.
— Joanet?
Joanet olhou novamente para a janela.
— Joanet — ouviu a voz do outro lado da parede.
— Arnau?
— O que aconteceu?
Respondeu lá de dentro:
— Ela morreu.
— Por que você não...?
— Eu não consigo. Aqui não tem nenhum caixote. É muito alto.
“O cheiro é horrível”, pensou Arnau. Bernat bateu mais uma vez à porta
da casa de Ponç, o caldeireiro. O que o menino terá feito lá dentro o dia
inteiro? Bateu de novo com força. Por que não atende? Naquele momento
a porta se abriu, e um gigante ocupou quase a metade do vão da porta.
Arnau retrocedeu.
— O que querem? — bradou o caldeireiro, descalço e vestido com uma
camisa puída que chegava aos joelhos.
— Meu nome é Bernat Estanyol e este é meu filho — disse, puxando
Arnau por um ombro e empurrando-o para a frente —, amigo de seu filho
Joa...
— Eu não tenho nenhum filho — interrompeu-o Ponç, fazendo menção
de fechar a porta.
— Mas você tem uma mulher — respondeu Bernat, pressionando a
porta com o braço. Ponç cedeu. — Bem... — explicou, ante o olhar do
caldeireiro —, tinha. Ela morreu.
Ponç não se alterou.
— E? — perguntou ele, encolhendo os ombros imperceptivelmente.
— Joanet está lá dentro com ela. — Bernat tentou imprimir no olhar
toda a dureza que podia. — Ele não consegue sair.
— Esse bastardo devia ter passado a vida toda lá dentro.
Bernat sustentou o olhar do caldeireiro, apertando o ombro do filho.
Arnau estava a ponto de se encolher, mas aguentou ereto quando o
caldeireiro olhou para ele.
— O que você pensa em fazer? — insistiu Bernat.
— Nada — respondeu o caldeireiro. — Amanhã, quando eu derrubar o
quarto, o menino poderá sair.
— Você não pode deixar um menino toda a noite...
— Na minha casa eu posso fazer o que eu quiser.
— Vou avisar o veguer — devolveu Bernat, sabendo que sua ameaça
era inútil.
Ponç semicerrou os olhos e, sem dizer palavra, desapareceu no interior
da casa deixando a porta aberta. Bernat e Arnau esperaram até ele voltar
com uma corda, que entregou diretamente a Arnau.
— Tire-o de lá — ordenou — e diga a ele que, agora que a sua mãe
morreu, não quero mais vê-lo por aqui.
— Como...? — começou a perguntar Bernat.
— Pelo mesmo lugar por onde ele entrou durante todos esses anos —
adiantou-se Ponç. — Saltando o muro. Pela minha casa vocês não
passarão.
— E a mãe? — perguntou Bernat antes de ele fechar a porta.
— A mãe me foi entregue pelo rei com ordem de que não a matasse, e
vou devolvê-la ao rei agora que morreu — respondeu Ponç rapidamente.
— Entreguei um bom dinheiro como caução e juro por Deus que não
pretendo perdê-lo por uma rameira.
***
***
Não foi difícil para ele conseguir. O padre Albert pensou em três ou quatro
candidatos e ao final se decidiu por um prateiro rico. Na última confissão
anual, o artesão tinha se mostrado muito contrito por relações adúlteras
que mantivera.
— Se a senhora é a mãe dele — murmurou o padre Albert, erguendo os
olhos para o céu —, não se importará se eu fizer uso de um pequeno ardil
em prol do seu filho, não é mesmo, Senhora?
O prateiro não se atreveu a dizer não.
— Trata-se de um pequeno donativo para a escola da catedral — disse a
ele o pároco —, assim você ajudará um menino e a Deus... Deus lhe
agradecerá.
Só faltava falar com Bernat, e o padre Albert foi procurá-lo.
— Consegui que admitam Joanet na escola da catedral — anunciou
enquanto passeavam pela praia, perto da casa de Pere.
Bernat se virou para o sacerdote.
— Não tenho dinheiro suficiente, padre — se desculpou.
— Não vai custar nada.
— Eu pensei que as escolas...
— Sim, mas isso é nas escolas da cidade. Na da catedral basta... — Por
que explicar? — Bem, eu consegui; ele aprenderá a ler e escrever,
primeiro com livros seculares, depois com outros, de salmos e orações. —
Por que Bernat não dizia nada? — Quando ele fizer treze anos, poderá
começar a escola secundária, o estudo do latim e das sete artes liberais:
gramática, retórica, dialética, aritmética, geometria, música e astronomia.
— Padre — disse Bernat —, Joanet ajuda na casa e graças a ele Pere me
cobra uma boca a menos. Se o menino estudar...
— Ele vai comer na escola. — Bernat olhou para ele e balançou a
cabeça pensando no assunto. — Além disso — acrescentou o sacerdote —,
já falei com Pere e ele está de acordo em continuar cobrando a mesma
coisa.
— Vós vos preocupais muito com o menino.
— Sim, você se incomoda? — Bernat negou sorrindo. — Imagine que
no final Joanet pode ir para a universidade, para o Estúdio1 Geral de
Lérida ou até para uma universidade no estrangeiro, em Bolonha, Paris...
Bernat caiu na gargalhada.
— Se eu dissesse não, imagino que ficaríeis desiludido, estou errado?
— O padre Albert concordou. — Ele não é meu filho, padre — continuou
Bernat. — Se fosse, eu não permitiria que um trabalhasse para o outro,
mas, se não me custa nada, por que não? O menino merece. Talvez um dia
ele vá para todos esses lugares que mencionastes.
***
— Eu preferia ficar com os cavalos, como você — disse Joanet a Arnau
enquanto passeavam pela praia, no mesmo lugar em que o padre Albert e
Bernat tinham decidido o seu futuro.
— É muito duro, Joanet... Joan. Eu só faço limpar e limpar, e quando
tudo fica brilhando, começo tudo de novo. Isso quando Tomàs não aparece
gritando e me entrega uma rédea ou as correias para limpar novamente. Da
primeira vez ele me deu um cascudo, mas então nosso pai apareceu e... Se
você visse! Ele estava com a forquilha e o imprensou contra a parede com
as pontas no peito dele, e o outro começou a gaguejar e pedir perdão.
— Por isso eu queria ficar com vocês.
— Ah, não! — respondeu Arnau. — Desde esse dia ele não voltou a pôr
as mãos em mim, é verdade, mas sempre acha alguma coisa malfeita. Ele
suja as coisas, sabe? Eu já vi.
— Por que você não conta ao Jesús?
— Papai diz que não, que ele não acreditaria em mim, que Jesús é
amigo de Tomàs e sempre vai defendê-lo, e que a baronesa aproveitaria
qualquer problema para nos atacar; ela nos odeia. E veja, você está
aprendendo muitas coisas na escola, e eu limpando o que os outros sujam e
aguentando gritos. — Ambos ficaram em silêncio por um instante, pisando
na areia e olhando o mar. — Aproveite, Joan, aproveite — disse Arnau de
repente, repetindo as palavras que ouvira da boca de Bernat.
Joan não demorou a apreciar as aulas. Se dedicou a isso desde o dia em
que o sacerdote que era seu professor felicitou-o publicamente. Joan sentiu
uma sensação engraçada e se deixou contemplar pelos companheiros de
sala. Se sua mãe estivesse viva! Naquele instante ele correria para se
sentar no caixote e lhe contar que tinha sido elogiado. “O melhor”, o
mestre havia dito, e todos, todos, tinham olhado para ele. Nunca tinha sido
o melhor em nada!
Naquela noite Joan fez o caminho de volta para casa envolto em uma
nuvem de satisfação. Pere e Mariona o escutaram sorrindo e animados e
lhe pediram que repetisse as frases que o menino pensava ter dito, mas que
se tinham perdido entre gritos e gestos. Quando Arnau e Bernat chegaram,
os três olharam para a porta. Joan fez menção de correr na direção deles,
mas o rosto do irmão o impediu: se notava que tinha chorado, e Bernat,
com a mão em seu ombro, o apertava contra si.
— O que...? — perguntou Mariona, se aproximando de Arnau para
abraçá-lo.
Mas Bernat interrompeu o gesto com a mão.
— É preciso aguentar — acrescentou, sem se dirigir a ninguém em
especial.
Joan procurou os olhos do irmão, mas Arnau olhava para Mariona.
E aguentaram. Tomàs, o cavalariço, não se atrevia a provocar Bernat,
mas o fazia com Arnau.
— Ele está procurando briga, filho. — Bernat tentava consolá-lo
quando a ira irrompia novamente em Arnau. — Não devemos cair nessa
armadilha.
— Mas não podemos continuar assim a vida toda, pai — queixou-se
Arnau um dia.
— E não vamos continuar. Já ouvi Jesús chamar a atenção dele várias
vezes. Ele não trabalha bem, e Jesús sabe disso. Os cavalos que ele toca
são intratáveis: dão coices e mordem. Ele não demora a cair, filho, não vai
demorar.
E, como Bernat previa, as consequências não tardaram a chegar. A
baronesa estava empenhada em que os filhos de Grau aprendessem a
montar a cavalo. Que Grau não soubesse era admissível, mas os dois
varões deviam aprender. Para isto, várias vezes por semana, quando
terminavam as aulas, Isabel e Margarida — na caleche conduzida por
Jesús — e os meninos, seu professor e Tomàs, o cavalariço — este último
a pé e levando um cavalo pelo cabresto —, saíam da cidade até um
pequeno descampado extramuros onde, um por um, recebiam aulas de
Jesús.
Jesús segurava com a mão direita uma corda comprida atada ao freio do
cavalo, de forma que o animal era obrigado a dar voltas em círculo; com a
mão esquerda empunhava um chicote para atiçá-lo, e, um depois do outro,
os aprendizes de cavaleiro montavam e giravam vezes seguidas em volta
do cavalariço principal, obedecendo às suas ordens e conselhos.
Naquele dia, da carruagem, de onde espreitava o estrago, Tomàs não
tirava os olhos da boca do cavalo; só era preciso um puxão mais forte, só
um. Em algum momento o cavalo sempre se assustava.
Genís Puig estava montado no animal.
O cavalariço desviou o olhar para o rosto do menino. Pânico. Ele tinha
pânico de cavalo e ficava tenso. Sempre havia um momento em que o
cavalo se assustava.
Jesús estalou o chicote e atiçou o cavalo para que galopasse. O cavalo
deu uma cabeçada forte e puxou a corda.
Tomàs não pôde evitar um sorriso que instantaneamente se apagou dos
lábios quando o mosquetão se soltou da corda e o cavalo ficou livre. Não
tinha sido difícil entrar às escondidas no guarda-arnês e cortar a corda por
dentro do mosquetão, deixando-a fracamente presa.
Isabel e Margarida contiveram os gritos. Jesús deixou cair o chicote e
tentou deter o animal, mas foi em vão.
Ao ver que a corda se soltava, Genís começou a gritar e se agarrou ao
pescoço do cavalo. Com os pés e as pernas, se cingiu aos flancos do
animal, e este, espantado, saiu num rápido galope em direção às portas da
cidade, com Genís se equilibrando em cima dele. Quando o cavalo saltou
uma pequena elevação, o menino foi jogado, saiu voando pelos ares e caiu
de bruços no mato depois de dar várias cambalhotas pelo chão.
No interior da cavalariça, Bernat primeiro ouviu as pisadas dos cavalos
no empedrado do pátio de acesso ao palácio e, em seguida, os gritos da
baronesa. Em vez de entrar devagar e com tranquilidade como sempre
faziam, os cavalos pisavam nas pedras com força. Quando Bernat se
encaminhava para a saída das quadras, Tomàs entrou com o cavalo. O
animal estava frenético, coberto de suor e arquejando pelas ventas.
— O que...? — começou Bernat.
— A baronesa quer ver seu filho — gritou Tomàs enquanto batia no
animal.
Os gritos da mulher continuavam a ressoar no pátio. Bernat olhou
novamente para o pobre animal que pateava no empedrado.
— A senhora quer ver você — gritou Tomàs quando Arnau saiu do
guarda-arnês.
Arnau olhou para o pai, e este encolheu os ombros.
Saíram para o pátio. A baronesa, encolerizada, brandindo o chicote que
sempre levava quando saía para montar, gritava para Jesús, para o
professor e para todos os escravos que tinham se aproximado. Margarida e
Josep permaneciam atrás dela. Ao lado dela estava Genís, machucado,
sangrando e com as roupas rasgadas. Assim que Arnau e Bernat
apareceram, a baronesa deu alguns passos em direção ao menino e
chicoteou-o no rosto. Arnau pôs as mãos na boca e na bochecha. Bernat
tentou reagir, mas Jesús se interpôs:
— Olhe isto — gritou o cavalariço principal, entregando a Bernat a
corda arrebentada e o mosquetão. — Este é o trabalho do seu filho!
Bernat pegou a corda e o mosquetão e os examinou; Arnau, com as
mãos no rosto, olhou também. Tinha revisado os dois no dia anterior.
Levantou os olhos para o pai no momento em que ele olhou para a porta
das quadras, de onde Tomàs observava a cena.
— Isto estava direito! — gritou Arnau, pegando a corda e o mosquetão
e agitando-os diante de Jesús. Olhou novamente para a porta das quadras.
— Estava direito! — repetiu, enquanto seus olhos vertiam as primeiras
lágrimas.
— Vejam como ele chora — ouviu-se de repente. Margarida apontava
para Arnau. — Ele é o culpado de seu acidente e está chorando —
acrescentou, se dirigindo a Genís. — Você não chorou quando caiu do
cavalo por culpa dele — mentiu.
Josep e Genís demoraram a reagir, mas logo também zombaram de
Arnau.
— Chore, garotinha — disse um.
— É, chore, menina — repetiu o outro.
Arnau os viu apontar para ele rindo. Não conseguia parar de chorar! As
lágrimas corriam por sua face, e seu peito se encolhia ao ritmo dos
soluços. De onde estava, abrindo as mãos, mostrou novamente a corda e o
mosquetão a todos, incluindo os escravos.
— Em vez de chorar, você devia pedir perdão pelo seu descuido —
insistiu a baronesa, depois de dirigir um sorriso descarado aos enteados.
Perdão? Arnau olhou para o pai com uma interrogação desenhada nas
pupilas. Bernat olhava fixamente para a baronesa. Margarida continuava a
apontar para ele e a cochichar com os irmãos.
— Não — ele se opôs —, isto estava direito — acrescentou, jogando a
corda e o mosquetão no chão.
A baronesa começou a gesticular, mas se deteve quando Bernat deu um
passo em sua direção. Jesús agarrou Bernat pelo braço.
— Ela é nobre — sussurrou ele ao seu ouvido.
Arnau olhou para todos e deixou o palácio.
***
— Não! — gritou Isabel quando Grau, ao saber dos acontecimentos,
decidiu despedir pai e filho. — Quero que o pai continue aqui, trabalhando
para seus filhos. Quero que ele se lembre a cada minuto de que estamos
esperando as desculpas do filho dele. Quero que esse menino se desculpe
publicamente diante de seus filhos! E isso eu não terei se você os despedir.
Avise-os de que o filho não poderá voltar a trabalhar aqui enquanto não
pedir perdão... — Isabel gritava e gesticulava sem parar. — Diga a ele que
enquanto isso não acontecer só receberá metade do salário, e, caso procure
outro trabalho, toda Barcelona saberá o que ocorreu aqui e ele não terá de
que viver. Quero uma desculpa! — exigiu, histérica.
“Toda Barcelona saberá...” Grau sentiu um arrepio. Tantos anos
tentando esconder o cunhado e agora... agora sua mulher pretendia que
toda Barcelona soubesse de sua existência!
— Peço a você que seja discreta — foi tudo o que conseguiu dizer.
Isabel fitou-o com os olhos injetados de sangue.
— Quero que se humilhem!
Grau ia dizer algo, mas se calou de repente e franziu os lábios.
— Discrição, Isabel, discrição — disse por fim.
Grau acatou as exigências da esposa. Afinal, Guiamona estava morta; já
não havia sinais na família e todos eram conhecidos como Puig, e não
como Estanyol. Quando Grau deixou as quadras, Bernat, com os olhos
semicerrados, escutou o cavalariço descrever suas novas condições de
trabalho.
***
***
— Arnau... — Sua voz tremeu ao ver o filho parar de se vestir e olhar para
ele. — Grau... Grau quer que você se desculpe, caso contrário...
Arnau o interrogou com o olhar.
— Caso contrário, não vai permitir que você volte ao trabalho...
Ainda não tinha terminado a frase quando viu os olhos de seu pequeno
ganharem uma seriedade que ele nunca vira. Bernat desviou o olhar para
Joan e também o viu parado, apenas meio vestido e de boca aberta. Tentou
falar de novo, mas sua boca se negou.
— E então? — perguntou Joan, rompendo o silêncio.
— Você acha que devo pedir perdão?
— Arnau, eu abandonei tudo o que tinha para que você fosse livre.
Abandonei nossas terras, que foram propriedade dos Estanyol durante
séculos, para que ninguém pudesse fazer com você o que fizeram comigo,
com meu pai e com o pai de meu pai... e agora voltamos a ficar na mesma,
à mercê dos caprichos dos que se dizem nobres; mas com uma diferença:
podemos nos negar. Aprenda a usar a liberdade que nos custou tanto
esforço alcançar, meu filho. Só cabe a você decidir.
— Mas o que você me aconselha, pai?
Bernat ficou em silêncio por um instante.
— Se eu fosse você, não me submeteria.
Joan tentou intervir na conversa.
— Eles são apenas barões catalães! O perdão... só o Senhor concede o
perdão.
— E como viveremos? — perguntou Arnau.
— Não se preocupe com isso, filho. Poupei um pouco de dinheiro, que
nos permitirá seguir em frente. Grau Puig não é o único que possui
cavalos.
Bernat não esperou nem um dia. Naquela mesma tarde, quando
terminou sua jornada, começou a procurar trabalho para ele e Arnau.
Encontrou uma casa nobre com cavalariça e foi bem recebido pelo
encarregado. Muitas pessoas em Barcelona invejavam o cuidado com que
eram tratados os cavalos de Grau Puig, e quando Bernat se apresentou
como responsável por eles, o encarregado mostrou interesse em contratá-
los. Mas no dia seguinte, quando Bernat voltou à cavalariça para confirmar
uma notícia que já havia comemorado com os filhos, nem foi recebido.
“Não pagavam o suficiente”, mentiu naquela noite na hora do jantar.
Bernat continuou a tentar em outras casas nobres que possuíam
cavalariças, mas a disposição de contratá-los desaparecia de um dia para
outro.
— Você não vai conseguir encontrar trabalho — confessou-lhe um
cavalariço, afetado pelo desespero refletido no rosto de Bernat, que fitava
as pedras do pátio da enésima cavalariça que o rejeitava. — A baronesa
não vai deixar que você encontre serviço algum — explicou o cavalariço.
— Depois que você foi embora, o meu senhor recebeu uma mensagem da
baronesa lhe pedindo que não desse trabalho a você. Sinto muito.
***
***
Bernat contou as moedas com que Grau lhe pagara e jogou-as na bolsa
murmurando. Deveriam ser suficientes, mas... malditos genoveses!
Quando terminaria o cerco ao principado? Barcelona tinha fome.
Pendurou a bolsa no cinto e foi à procura de Arnau. O menino estava
desnutrido. Bernat fitou-o preocupado. O inverno tinha sido duro. Mas
pelo menos tinham sobrevivido. Quantos podiam dizer o mesmo? Bernat
contraiu os lábios e afagou os cabelos do filho antes de apoiar a mão em
seu ombro. Quantos devem ter morrido de frio, fome e doença? Quantos
pais podiam agora apoiar a mão no ombro do filho? “Pelo menos você está
vivo”, pensou.
Nesse dia chegou ao porto de Barcelona um navio com cereais, um dos
poucos que conseguira furar o bloqueio genovês. Os cereais haviam sido
comprados pela própria cidade a preços astronômicos para serem
revendidos aos habitantes a preços acessíveis. Nessa sexta-feira havia
trigo na Praça de Blat, e desde as primeiras horas da manhã as pessoas
foram se aglomerando nela, se metendo em brigas para supervisionar os
medidores oficiais que separavam o grão.
Havia alguns meses, um frade carmelita vinha pregando contra os
poderosos, culpando-os pelos males da fome e acusando-os de ter
escondido trigo — apesar dos esforços dos conselheiros da cidade para
calá-lo. As acusações do frade tinham impactado os paroquianos, e os
rumores se disseminaram por toda a cidade; por isso, nessa sexta-feira, as
pessoas se moviam inquietas pela Praça de Blat, discutiam e se
amontoavam aos empurrões junto às mesas onde os funcionários
municipais pesavam o grão.
As autoridades calcularam a quantidade de trigo que correspondia a
cada barcelonês e ordenaram ao comerciante de tecidos Pere Juyol, o
vedor oficial da Praça de Blat, que controlasse a venda.
— O Mestre não tem família! — gritou alguém pouco depois de
efetuada a venda para um homem esfarrapado acompanhado de um
menino ainda mais esfarrapado. — Morreram todos durante o inverno.
Os medidores retiraram o grão do Mestre, mas as acusações se
multiplicaram: aquele tem um filho na outra mesa; já comprou; não tem
família; não é filho dele, só o trouxe para conseguir mais...
A praça se converteu num caldeirão de rumores. As pessoas
abandonaram as filas, começaram a discutir, e as palavras se
transformaram em insultos. Alguém exigiu aos gritos que as autoridades
pusessem à venda o trigo que mantinham escondido, e o povo, furioso,
repetiu a exigência. Os medidores oficiais foram superados pela massa que
se amontoou atropeladamente diante das mesas de venda; os aguazis do rei
tentaram enfrentar a gente faminta, e só uma decisão rápida de Pere Juyol
conseguiu salvar a situação. Ele ordenou que o trigo fosse levado para o
palácio do veguer, na extremidade oriental da praça, e suspendeu a venda
durante a manhã.
Bernat e Arnau regressaram à casa de Grau para continuar o seu
trabalho, decepcionados por não terem conseguido o tão cotado alimento,
e no pátio de entrada, em frente às quadras, contaram o ocorrido na Praça
de Blat ao cavalariço principal e a quem quisesse ouvir. Nenhum dos dois
se conteve ao lançar diatribes contra as autoridades e se queixar da fome
que passavam.
Atraída pelos gritos, de uma das janelas que dava ao pátio a baronesa se
deleitou com a penúria do servo fugitivo e seu filho descarado. Enquanto
os observava, um sorriso se formou em seus lábios ao lembrar das ordens
que Grau lhe dera antes de sair de viagem. Ele não queria que seus
devedores comessem?
A baronesa pegou a bolsa com o dinheiro destinado à alimentação dos
presos encarcerados por dívidas com seu marido, chamou o mordomo e
ordenou que desse aquela tarefa a Bernat Estanyol, que devia ser
acompanhado pelo filho Arnau para o caso de surgir algum problema.
— Diga-lhes — ordenou, diante do sorriso de cumplicidade do servo —
que este dinheiro é para comprar trigo para os presos de meu marido.
O mordomo cumpriu as instruções de sua senhora e se divertiu com a
expressão de incredulidade de pai e filho, que aumentou quando o pai
recebeu a bolsa e sopesou as moedas lá dentro.
— Para os presos? — perguntou Arnau ao pai quando saíram do palácio
dos Puig.
— Sim.
— Por que para os presos, pai?
— Estão presos porque devem dinheiro a Grau, e ele tem a obrigação de
pagar a alimentação deles.
— E se ele não pagar?
Continuavam a caminhar em direção à praia.
— Eles seriam soltos, e Grau não quer que isso aconteça. Paga as taxas
reais, paga ao diretor do cárcere e paga a comida dos presos. É a lei.
— Mas...
— Deixe, filho, esqueça isso.
Ambos continuaram em silêncio a caminho de casa.
Nessa tarde, Arnau e Bernat se encaminharam para o cárcere para
cumprir a sua estranha tarefa. Informados por Joan, que cruzava a praça
em direção à casa de Pere na volta da escola, eles sabiam que os ânimos
não tinham se acalmado e começaram a ouvir os gritos da multidão já na
Rua do Mar, que desembocava na praça vindo de Santa Maria. A turba se
aglomerava em torno do palácio do veguer, onde estava armazenado o
trigo que fora recolhido pela manhã e onde também estavam encarcerados
os devedores de Grau.
As pessoas queriam o trigo, e as autoridades de Barcelona não
contavam com aguazis suficientes para garantir uma distribuição
organizada. Reunidos com o veguer, os cinco conselheiros tentavam
encontrar uma solução.
— Que jurem — disse um —, sem juramento não há trigo. Cada
comprador deverá jurar que a quantidade que solicita é a necessária para
sustentar a sua família e que não pede mais do que lhe corresponde
segundo a divisão.
— Isso será suficiente? — duvidou outro.
— O juramento é sagrado! — respondeu o primeiro. — Por acaso não
juram os contratos, a inocência ou as obrigações? Por acaso não acorrem
ao altar de São Felix para jurar os testamentos sacramentais?
Assim foi anunciado de um balcão do palácio do veguer. As pessoas
correram a palavra para os que não conseguiam ouvir a proposta, e os
devotos cristãos que se aglomeravam reclamando o trigo se dispuseram a
jurar... mais uma vez na vida.
O trigo voltou para a praça, onde a fome não tinha desaparecido. Uns
juraram. Outros suspeitaram, e as acusações, os gritos e as discussões se
repetiram. O povo se exaltou novamente e mais uma vez reclamou o trigo
que, segundo o frade carmelita, as autoridades mantinham escondido.
Arnau e Bernat se encontravam ainda na saída da Rua do Mar, na
extremidade oposta do palácio do veguer, onde a venda de trigo tinha
começado. As pessoas gritavam desaforadamente em volta deles.
— Pai — perguntou Arnau —, vai sobrar trigo para nós?
— Acredito que sim, filho. — Bernat tentou não olhar para o filho.
Como sobraria trigo para eles? Não haveria trigo nem para um quarto dos
cidadãos.
— Pai — disse Arnau —, por que os presos têm o trigo assegurado e
nós não?
Aproveitando-se da confusão, Bernat fingiu não ouvir; ainda assim, não
pôde deixar de olhar para o filho: estava famélico, seus braços e pernas
tinham se convertido em finas extremidades, e em seu rosto esquálido se
destacavam uns olhos saltados que em outras épocas haviam sorrido
despreocupados.
— Pai, você me ouviu?
“Sim”, pensou Bernat, “mas o que posso responder? Que nós, os pobres,
estamos unidos à fome? Que só os ricos podem comer? Que nós, os
pobres, não valemos nada para eles? Que os filhos dos pobres valem
menos do que um dos presos encarcerados no palácio do veguer?”. Bernat
não respondeu.
— Há trigo no palácio! — gritou, unindo-se à vozaria do povo. — Há
trigo no palácio! — repetiu ainda mais alto quando os mais próximos a ele
calaram e o fitaram. Logo muitos prestavam atenção àquele homem que
afirmava haver trigo no palácio. — Se não houvesse, como os presos
poderiam comer? — gritou novamente, levantando a bolsa de dinheiro de
Grau. — E os nobres e ricos pagam a comida dos presos! De onde os
diretores do cárcere tiram o trigo para os presos? Por acaso eles saem para
comprá-lo como nós?
A multidão foi se afastando para abrir caminho para Bernat, que estava
fora de si. Arnau o seguia, tentando chamar sua atenção.
— O que você está fazendo, pai?
— Por acaso os diretores são obrigados a jurar como nós?
— Pai, o que está acontecendo?
— Onde os diretores conseguem o trigo para os presos? Por que não
podemos dar de comer aos nossos filhos, mas damos aos presos?
A multidão ficou ainda mais ensandecida ao ouvir as palavras de
Bernat. Desta vez os medidores oficiais não puderam recolher o trigo a
tempo, e as pessoas os assaltaram. Pere Juyol e o veguer quase foram
linchados. Salvaram sua vida graças a alguns aguazis que os defenderam e
escoltaram até o palácio.
Poucos satisfizeram suas necessidades, pois o trigo se esparramou pela
praça e foi pisoteado pela multidão enquanto alguns, em vão, tentavam
catá-lo antes de serem eles próprios pisoteados por seus concidadãos.
Alguém gritou que a culpa era dos conselheiros, e a turba se dispersou
em busca dos pró-homens da cidade, escondidos em suas casas.
Bernat não ficou alheio à loucura coletiva e foi um dos que mais
gritaram, se deixando levar pela maré de gente enfurecida.
— Pai, pai.
Bernat olhou para o filho.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou entre um grito e outro,
sem deixar de andar.
— Eu... o que está acontecendo com você, pai?
— Vá embora daqui. Isto não é lugar de criança.
— Para onde vou...?
— Tome. — Bernat entregou-lhe duas bolsas de dinheiro: a sua e a
destinada aos presos e ao diretor.
— O que faço com...? — perguntou Arnau.
— Vá, filho, vá.
Bernat desapareceu em meio à multidão. A última coisa que Arnau viu
nele foi o ódio que cuspia pelos olhos.
— Pai, aonde você vai? — gritou, quando já o tinha perdido de vista.
— Em busca da liberdade — respondeu uma mulher que também
observava a multidão se espalhar pelas ruas da cidade.
— Já somos livres — atreveu-se a afirmar Arnau.
— Não há liberdade na fome, filho — sentenciou a mulher.
Chorando, Arnau correu contra a corrente, esbarrando em uns e outros.
***
Os distúrbios duraram dois dias inteiros. As casas dos conselheiros e
muitas residências nobres foram saqueadas, e o povo, louco e
encolerizado, andava de um lado para outro, primeiro em busca de
comida... depois em busca de vingança.
Durante dois dias inteiros a cidade de Barcelona se viu mergulhada no
caos ante a impotência das autoridades, até que um enviado do rei Afonso,
com suficientes tropas, pôs fim ao alvoroço. Cem homens foram detidos e
muitos outros multados. Dentre os cem, dez foram executados na forca
depois de um julgamento sumário. Dentre os que foram chamados a
testemunhar em juízo, poucos foram os que não reconheceram Bernat
Estanyol, com seu sinal no olho direito, como um dos principais
instigadores da revolta cidadã da Praça de Blat.
16
Arnau correu por toda a Rua do Mar sem sequer olhar na direção de Santa
Maria, com os olhos do pai gravados nas retinas e seus gritos nos ouvidos.
Nunca o vira assim. O que está acontecendo, pai? É verdade que não
somos livres, como diz essa mulher? Entrou na casa de Pere sem reparar
em nada nem em ninguém e se trancou no quarto. Joan o encontrou
chorando.
— A cidade enlouqueceu... — disse assim que abriu a porta do quarto.
— O que foi?
Arnau não respondeu. Joan deu uma olhada rápida em volta.
— E papai? — Arnau fez um gesto em direção à cidade. — Está com
eles?
— Está — Arnau conseguiu balbuciar.
Joan reviveu os tumultos dos quais tivera de se esquivar entre o palácio
do bispo e a casa. Os soldados tinham fechado as portas da judiaria e se
colocaram diante delas para evitar que fosse assaltada pela multidão, que
agora saqueava as casas dos cristãos. Como Bernat podia estar com eles?
As imagens dos grupos de exaltados derrubando as portas dos lares de
gente de bem e saindo dali carregados de utensílios voltaram à memória
de Joan. Não podia ser.
— Não pode ser — repetiu em voz alta. Arnau olhou para ele da
enxerga onde estava sentado. — Bernat não é como eles... Como é
possível?
— Não sei... Havia muita gente. Todos gritavam...
— Mas... Bernat? Bernat não é capaz, talvez só esteja... sei lá, tentando
encontrar alguém!
Arnau olhou para Joan. “Como posso contar a você que era ele quem
gritava, quem mais gritava, que foi ele quem deixou as pessoas exaltadas?
Como posso contar se eu mesmo não consigo acreditar?”.
— Não sei, Joan. Havia muita gente.
— Estão roubando, Arnau! Estão atacando os pró-homens da cidade.
Um olhar foi suficiente.
***
***
“Deve ter caído ao tentar escapar depois de roubar a caixa dos bastaixos”,
sentenciou um dos oficiais reais, de pé ao lado de Arnau, que permanecia
inconsciente.
O padre Albert negou com a cabeça. Como Arnau poderia cometer
semelhante atrocidade? A caixa dos bastaixos, na capela do Santíssimo, ao
lado da sua Virgem! Os soldados tinham-no avisado algumas horas antes
do amanhecer.
— Não pode ser — murmurou para si mesmo.
— Sim, padre — insistiu o oficial —, o menino estava com esta bolsa
— acrescentou, lhe mostrando a bolsa com as moedas de Grau para o
diretor do cárcere e os presos. — O que faria um menino com tanto
dinheiro?
— E o seu rosto? — interveio outro soldado. — Por que alguém iria se
lambuzar de barro se não fosse para roubar?
O padre Albert balançou a cabeça outra vez, com o olhar fixo na bolsa
que o oficial segurava. O que ele estaria fazendo ali àquela hora da noite?
Onde teria conseguido a bolsa?
— O que estão fazendo? — perguntou aos oficiais ao ver que
levantavam Arnau do chão.
— Vamos levá-lo preso.
— De jeito nenhum — ouviu-se dizer.
Talvez... talvez tudo aquilo tivesse uma explicação. Arnau não tentaria
roubar a caixa dos bastaixos. Não Arnau.
— Ele é um ladrão, padre.
— Isso terá de ser decidido num tribunal.
— E assim será — confirmou o oficial, enquanto seus soldados
seguravam Arnau pelas axilas —, mas ele vai esperar a sentença no
cárcere.
— Se tiver de ir para o cárcere, será o do bispo — disse o padre. — O
crime foi cometido em lugar santo e, portanto, na jurisdição da igreja e
não do veguer.
O oficial olhou para os soldados e para Arnau e, com um gesto de
impotência, ordenou que deixassem o menino no chão, o que eles fizeram
deixando-o cair. Um sorriso cínico assomou em seus lábios ao ver o rosto
do menino bater violentamente no chão.
O padre Albert os fitou, irado.
— Acordem-no — exigiu o padre Albert, enquanto pegava as chaves da
capela, abria a grade e entrava nela —, quero ouvir o que o menino tem a
dizer.
Aproximou-se da caixa dos bastaixos, cujas três fechaduras tinham sido
forçadas, e comprovou que estava vazia; no interior da capela não faltava
nada mais, nem tinha havido nenhum estrago. “O que aconteceu,
Senhora?”, perguntou à Virgem em silêncio. “Como permitiu que Arnau
cometesse esse delito?” Ouviu os soldados jogarem água no rosto do
menino e saiu da capela no momento em que vários bastaixos, advertidos
do roubo de sua caixa, entravam em Santa Maria.
Arnau despertou ao sentir a água gelada e viu que estava rodeado de
soldados. O som da lança na Rua Bòria voltou a silvar em seu ouvido.
Corria adiante deles. Como tinham conseguido alcançá-lo? Teria
tropeçado? Os rostos dos soldados se inclinavam sobre ele. Seu pai! Ele
ardia! Tinha de escapar! Arnau se levantou e tentou empurrar um dos
soldados, mas eles o imobilizaram sem dificuldade.
O padre Albert, abatido, viu a luta do menino para se safar das mãos
dos soldados.
— Vós ainda quereis ouvir alguma coisa, padre? — provocou-o com
ironia o oficial. — Parece-vos uma confissão suficiente? — insistiu,
apontando para Arnau, que estava ensandecido.
O padre Albert levou as mãos ao rosto e suspirou. Depois foi
lentamente até os soldados que detinham Arnau.
— Por que você fez isso? — perguntou quando ficou à sua frente. —
Você sabe que esta caixa é dos seus amigos bastaixos. Que com ela
satisfazem as necessidades das viúvas e órfãos de seus confrades, enterram
seus mortos, fazem obras de caridade, enfeitam a Virgem, a sua mãe, e
mantêm sempre acesas as velas que a iluminam. Por que você fez isso,
Arnau?
Arnau se tranquilizou com a presença do sacerdote, mas o que ele fazia
ali? A caixa dos bastaixos, o ladrão! Tinha sido golpeado, mas o que mais
tinha acontecido? Ele olhou ao redor. Atrás dos soldados, uma infinidade
de rostos conhecidos o observava e esperava sua resposta. Reconheceu
Ramon e Ramon, o Pequeno, Pere, Jaume, Joan, que tentava ver a cena
ficando na ponta dos pés, Sebastià e seu filho Bastianet, e muitos outros a
que tinha dado de beber e com os quais havia compartilhado momentos
inesquecíveis na saída da host para Creixell. Eles o acusavam! Era isso!
— Eu não... — balbuciou.
O oficial ergueu diante de seus olhos a bolsa de dinheiro de Grau, e
Arnau levou a mão ao cinto, onde ela deveria estar. Não quis deixá-la
embaixo da enxerga, para o caso de a baronesa os denunciar e culpar Joan,
e agora... Maldito Grau! Maldita bolsa!
— Você está procurando isto? — provocou-o o oficial.
Ouviu-se um murmúrio entre os bastaixos.
— Não fui eu, padre — defendeu-se Arnau.
O oficial soltou uma gargalhada, e logo os soldados se juntaram a ele.
— Ramon, não fui eu. Eu juro — repetiu Arnau, olhando diretamente
para o bastaix.
— Então, o que você fazia aqui de noite? Onde conseguiu esta bolsa?
Por que tentou fugir? Por que a sua cara está lambuzada de barro?
Arnau levou a mão ao rosto. O barro estava ressecado.
A bolsa! O oficial continuava a balançá-la diante de seus olhos.
Enquanto isso, cada vez mais bastaixos chegavam e contavam uns aos
outros, em voz baixa, o acontecido. Arnau viu a bolsa balançar. Maldita
bolsa! Depois falou diretamente ao padre:
— Havia um homem — disse —, tentei detê-lo, mas não consegui.
A gargalhada incrédula do oficial soou novamente no deambulatório.
— Arnau — insistiu o padre Albert —, responda às perguntas do
oficial.
— Não... não posso — reconheceu, provocando gestos de assombro nos
oficiais e soldados e alvoroço entre os bastaixos.
O padre Albert guardou silêncio, com o olhar fixo em Arnau. Quantas
vezes ouvira aquelas palavras? Quantos paroquianos se negavam a contar
os seus pecados? “Não posso”, diziam com medo no semblante; “se
souberem...” Certamente, pensava então o sacerdote, se soubessem do
roubo, do adultério ou da blasfêmia poderiam detê-los, e então ele
precisava insistir, jurando segredo eterno, até que sua consciência se
abrisse para Deus e o perdão.
— Você contaria só para mim? — perguntou ele.
Arnau assentiu, e o clérigo apontou para a capela do Santíssimo.
— Esperem aqui — disse aos demais.
— É a caixa dos bastaixos — ouviu-se então atrás dos soldados —, logo
um bastaix deveria estar presente.
O padre Albert assentiu, olhando para Arnau.
— Ramon? — propôs.
O menino concordou novamente, e os três entraram na capela. Ali ele
pôs para fora tudo o que estava guardando. Falou de Tomàs, o cavalariço,
do pai, da bolsa de Grau, da encomenda da baronesa, da revolta, da
execução e do fogo... da perseguição, do ladrão da caixa e de sua luta em
vão. Falou de seu medo de que soubessem que aquela bolsa era de Grau ou
de que o detivessem por atear fogo ao cadáver do pai.
As explicações foram longas. Arnau não soube descrever o homem que
o tinha esmurrado; estava escuro, disse em resposta às perguntas de
ambos, mas era grande e forte, isso sim. Finalmente, o padre e o bastaix se
entreolharam; acreditavam no menino, mas como provar às pessoas que já
estavam murmurando fora da capela que não tinha sido ele? O sacerdote
olhou para a Virgem e para a caixa forçada e saiu da capela.
— Acho que o menino está dizendo a verdade — anunciou para a
pequena multidão que esperava no deambulatório. — Acho que ele não
roubou a caixa; mais ainda, ele tentou evitar que fosse roubada.
Ramon saiu atrás dele e concordou.
— Então — perguntou o oficial —, por que não pode responder às
minhas perguntas?
— Eu sei os motivos — disse Ramon —, e eles são suficientemente
convincentes. Se alguém não acredita em mim, que se manifeste. —
Ninguém disse nada. — E agora onde estão os três pró-homens do grêmio?
— Três bastaixos se adiantaram até onde o padre Albert se encontrava. —
Cada um de vocês possui uma das três chaves que abrem a caixa, não é
verdade? — Os pró-homens assentiram. — Vocês juram que esta caixa só
foi aberta por vocês três de comum acordo e na presença de dez confrades,
como estabelecem as ordenanças? — Os pró-homens juraram em voz alta,
no mesmo tom em que o padre os interrogava. — Juram, pois, que a
última anotação feita no livro-caixa coincide com a quantidade que foi
depositada? — Os três pró-homens juraram de novo. — E vós, oficial,
jurais que esta é a bolsa que o menino trazia? — O oficial assentiu. —
Jurais que o seu conteúdo é o mesmo de quando a encontrou?
— Vós ofendeis um oficial do rei Afonso!
— Jurais ou não jurais? — gritou o pároco.
Alguns bastaixos se aproximaram do oficial, exigindo-lhe uma resposta
com o olhar.
— Eu juro.
— Bem — continuou o padre Albert —, agora vou buscar o livro-caixa.
Se este menino for o ladrão, o conteúdo da bolsa deve ser igual ou superior
à última anotação efetuada; se for inferior, ele deve merecer crédito.
Um murmúrio de assentimento correu entre os bastaixos. A maioria
olhou para Arnau; todos eles tinham bebido água fresca de seu odre.
Depois de entregar as chaves da capela a Ramon com a ordem de fechá-
la, o padre Albert se dirigiu aos seus aposentos para buscar o livro-caixa, o
qual, segundo as ordenanças dos bastaixos, deveria permanecer em poder
de uma terceira pessoa. Pelo que se lembrava, era impossível que o
conteúdo da caixa coincidisse com as moedas que Grau entregava ao
aguazil da prisão para alimentar seus presos; o valor depositado na caixa
deveria ser muito superior. Seria uma prova irrefutável, pensou sorrindo.
Enquanto o padre Albert buscava o livro e voltava para Santa Maria,
Ramon se encarregou de trancar as grades da capela. Então notou um
brilho no piso, entrou e examinou o objeto que brilhava. Não disse nada a
ninguém. Fechou as grades e dirigiu-se ao grupo de bastaixos que
esperavam o padre, parado em volta de Arnau e dos soldados.
Ramon sussurrou algo a três deles, e juntos eles deixaram a igreja sem
ninguém perceber.
— Segundo o livro — disse o padre Albert mostrando-o aos três pró-
homens para que o comprovassem —, na caixa havia setenta e quatro
dinheiros e cinco soldos. Contai o que há na bolsa — acrescentou, se
dirigindo ao oficial.
Antes de abrir a bolsa, o oficial negou com a cabeça. Ali dentro não
podia haver setenta e quatro dinheiros.
— Treze dinheiros — proclamou —, mas o menino pode ter um
cúmplice que levou a parte que falta.
— E por que esse cúmplice deixaria os treze dinheiros em poder de
Arnau? — disse um bastaix.
Um murmúrio de assentimento acompanhou a observação.
O oficial olhou para os bastaixos. “Por descuido”, esteve a ponto de
responder, por pressa, por nervosismo, mas de que serviria? Alguns deles
já se aproximavam de Arnau e lhe davam tapinhas nas costas ou afagavam
seus cabelos.
— Mas, se não foi o menino, quem foi? — perguntou ele.
— Acho que sei quem foi — ouviu-se a voz de Ramon atrás do altar-
mor.
Atrás dele, dois dos bastaixos com que tinha falado arrastavam com
dificuldade um homem corpulento.
— Foi esse homem! — exclamou Arnau.
O maiorquino1 sempre fora um bastaix conflituoso, até que os pró-
homens do grêmio souberam que tinha uma concubina e o tinham
expulsado. Um bastaix não podia manter relações fora do matrimônio,
nem sua mulher; nesse caso, ele era afastado do grêmio.
— O que este menino está dizendo? — gritou o maiorquino ao chegar
ao deambulatório.
— Ele o acusa de roubar a caixa dos bastaixos — respondeu o padre
Albert.
— Ele está mentindo!
O sacerdote procurou o olhar de Ramon, que concordou com um leve
movimento de cabeça.
— Eu também acuso você! — gritou Ramon apontando para ele.
— Você também está mentindo.
— Isso você terá oportunidade de demonstrar no caldeirão, no
monastério de Santes Creus — disse o padre Albert. Um delito fora
cometido em uma igreja, e, segundo as constituições de Paz e Trégua, a
inocência devia ser provada mediante a prova da água quente.
O maiorquino empalideceu. Os dois oficiais e os soldados olharam para
o padre com estranheza, mas ele lhes indicou que ficassem em silêncio. Já
não se empregava a prova da água quente, mas em muitas ocasiões os
clérigos ainda recorriam à ameaça de submergir os membros do suspeito
em um caldeirão de água fervente.
O padre Albert semicerrou os olhos e encarou o maiorquino.
— Se o menino e eu estamos mentindo, com certeza você vai aguentar
a água fervente nos braços e pernas sem confessar o seu delito.
— Sou inocente — balbuciou o outro.
— Eu já disse que você terá oportunidade de prová-lo — reiterou o
padre.
— Se você é inocente — interveio Ramon —, explique-nos o que o seu
punhal está fazendo no interior da capela.
O maiorquino virou-se para Ramon.
— Isso é uma armadilha! — respondeu rapidamente —, alguém o
colocou ali para culpar-me. O menino! Com certeza foi ele!
O padre Albert abriu novamente as grades da capela do Santíssimo e
apareceu com um punhal.
— Este punhal é seu? — perguntou, aproximando-o do rosto dele.
— Não... não.
Os pró-homens do grêmio e vários bastaixos se aproximaram do padre
e pediram o punhal para examiná-lo.
— Sim, ele é seu — disse um dos pró-homens, mostrando o punhal.
Seis anos atrás, devido às muitas brigas que se davam no porto, o rei
Afonso proibira o porte de machete e de armas similares entre os bastaixos
e demais pessoas não cativas que trabalhavam no porto. A única arma
permitida eram os punhais de lâmina cega. O maiorquino se negara a
acatar a ordem real e sempre exibia seu magnífico punhal com ponta para
mostrar sua desobediência. Só diante da ameaça de expulsão do grêmio ele
finalmente concordara em levá-lo à casa do ferreiro para limá-lo.
— Mentiroso — explodiu um dos bastaixos.
— Ladrão — gritou outro.
— Alguém o roubou para jogar a culpa em mim! — protestou ele,
forcejando contra os dois homens que o seguravam.
Então apareceu o terceiro bastaix que tinha ido com Ramon à procura
do maiorquino e que revistou sua casa em busca do dinheiro roubado.
— Aqui está — gritou, levantando uma bolsa e entregando-a ao padre,
que, por sua vez, entregou-a ao oficial.
— Setenta e quatro dinheiros e cinco soldos — disse o oficial depois de
contar o conteúdo.
À medida que o oficial contava, os bastaixos iam fechando o círculo em
volta do maiorquino. Nenhum deles tinha tanto dinheiro! Quando a conta
terminou, eles se jogaram sobre o ladrão. Houve insultos, chutes, murros,
cusparadas. Os soldados se mantiveram à margem, e o oficial deu de
ombros e olhou para o padre Albert.
— Estamos na casa de Deus! — gritou então o sacerdote, tentando
apartar os bastaixos. — Estamos na casa de Deus! — continuou a gritar até
chegar perto do maiorquino encolhido no chão. — Este homem é um
ladrão, é verdade, e também é um covarde, mas merece ser julgado. Vocês
não podem agir como delinquentes. Levem-no ao bispo — ordenou ao
oficial.
***
***
***
***
***
***
***
***
***
— Você não acha que está passando dos limites? — perguntou Alesta à
irmã certa noite.
— Por quê?
— Se papai souber...
— O que ele pode saber?
— Que você gosta do Arnau.
— Eu não gosto do Arnau! Eu só... só... me sinto bem, Alesta. Ele me
agrada. Quando olha para mim...
— Você gosta dele — insistiu a pequena.
— Não. Como posso explicar? Quando vejo que ele olha para mim,
quando ele enrubesce, é como se um friozinho percorresse todo o meu
corpo.
— Você gosta dele.
— Não. Durma. O que você sabe? Durma.
— Você gosta dele, você gosta dele, você gosta dele.
Aledis resolveu não responder, mas será que gostava? Apenas gostava
de saber que era olhada e desejada. Ficava satisfeita em ver que os olhos
de Arnau não conseguiam se afastar de seu corpo; ficava contente com sua
evidente inquietação quando ela parava de tentá-lo: isso era gostar? Aledis
tentou encontrar outra resposta, mas não demorou muito tempo para que
sua mente voltasse a vagar por aquela satisfação antes de dormir.
***
Certa manhã, Ramon deixou a praia assim que viu Joan sair da casa de
Pere.
— O que está acontecendo com o seu irmão? — perguntou ele antes de
cumprimentá-lo.
Joan pensou por um instante.
— Acho que está apaixonado por Aledis, a filha de Gastó, o curtidor.
Ramon deu uma gargalhada.
— Pois esse amor o está deixando louco — advertiu ele. — Se
continuar assim, ele vai se arrebentar. Não se pode trabalhar nesse ritmo.
Ele não está preparado para tanto esforço. Não seria o primeiro bastaix a
quebrar... e o seu irmão é muito jovem para ficar inválido. Faça algo, Joan.
Naquela mesma noite, Joan tentou conversar com o irmão.
— O que está acontecendo com você, Arnau? — perguntou ele, deitado
na enxerga.
O outro ficou em silêncio.
— Você tem que me contar. Sou seu irmão e quero... desejo ajudar você.
Você sempre fez o mesmo comigo. Compartilhe os seus problemas
comigo.
Joan deixou que o irmão pensasse em suas palavras.
— É... é a Aledis — reconheceu. Joan não quis interrompê-lo. — Não
sei o que está acontecendo comigo, Joan. Desde aquele passeio na praia...
alguma coisa mudou entre nós. Ela me olha como se quisesse... não sei. E
também...
— Também o quê? — perguntou Joan, ao ver que o irmão ficava quieto.
“Não vou contar mais nada, só sobre os olhares”, decidiu Arnau depois
de um momento, com os seios de Aledis na memória.
— Nada.
— Então, qual é o problema?
— É que tenho maus pensamentos, eu a vejo nua. Bem, queria vê-la
nua. Eu queria...
Joan tinha insistido com seus professores em que se aprofundasse o
assunto, e eles, sem saber que seu interesse se devia à preocupação que o
irmão lhe causava e por medo de que o menino caísse em tentação e saísse
do caminho que havia iniciado de maneira tão decidida, se alongaram em
explicações sobre as teorias do caráter e a perniciosa natureza da mulher.
— Isso não é culpa sua — sentenciou Joan.
— Não?
— Não. A malícia — explicou ele aos sussurros, os dois deitados diante
do fogo — é uma das quatro enfermidades naturais do homem e nasce
conosco por culpa do pecado original, e a malícia da mulher é maior do
que qualquer malícia que existe no mundo — Joan repetia de memória as
explicações dos professores.
— E quais são as outras enfermidades?
— A avareza, a ignorância e a apatia ou incapacidade para fazer o bem.
— E o que a malícia tem a ver com Aledis?
— As mulheres são maliciosas por natureza e se comprazem tentando o
homem para os caminhos do mal — recitou Joan.
— Por quê?
— Porque as mulheres são como o ar em movimento, vaporosas. Não
cessam de ir de um lado para outro, como se fossem correntes de ar —
Joan se lembrou do sacerdote que fizera aquela comparação: seus braços,
com as mãos estendidas e os dedos vibrando sem parar, revoavam acima
da cabeça. — Em segundo lugar — recitou —, porque as mulheres, por
natureza, por criação, têm pouco bom senso e, em consequência, não há
freio para sua malícia natural.
Joan tinha lido tudo isso e muito mais, mas não conseguia expressá-lo
em palavras. Os sábios afirmavam que, também por natureza, a mulher era
fria e fleumática, e se sabe que, quando uma coisa fria se acende, arde com
muita força. Segundo os entendidos, a mulher era, definitivamente, a
antítese do homem e, portanto, incoerente e absurda. Bastava reparar que
até o seu corpo era oposto ao do homem: largo embaixo e fino em cima, ao
passo que o corpo de um homem bem-feito deve ser fino do peito para
baixo, largo no peito e nas costas, com o pescoço curto e grosso e a cabeça
grande. Quando uma mulher nasce, a primeira letra que diz é o “e”, que é
uma letra para censurar, enquanto a primeira letra que o homem diz ao
nascer é o “a”, a primeira letra do abecedário e oposta ao “e”.
— Não é possível. Aledis não é assim — contradisse-o Arnau
finalmente.
— Não se iluda. À exceção da Virgem, que concebeu Jesus sem pecado,
todas as mulheres são iguais. Até as ordenanças de seu grêmio pensam
assim! Por acaso elas não proíbem as relações adúlteras? Por acaso não
determinam a expulsão de quem conviva com uma mulher desonesta ou
tenha uma amiga?
Arnau não conseguia se opor àquele argumento. Desconhecia as razões
dos sábios e filósofos e, por mais que Joan se empenhasse, podia ignorá-
las, mas não as ordenanças do grêmio. Estas regras, sim, ele conhecia. Os
pró-homens do grêmio o haviam informado sobre elas e o tinham
advertido de que seria expulso se não as cumprisse. E o grêmio não podia
estar errado!
Arnau se sentiu tremendamente confuso.
— Então, o que devo fazer? Se todas as mulheres são más...
— Primeiro, você tem que se casar com elas — esclareceu Joan — e,
depois de contrair matrimônio, agir como ensina a Igreja.
Casar, casar... a possibilidade nunca tinha passado por sua cabeça,
mas... se esta era a única solução...
— E o que se faz depois de casados? — perguntou com voz trêmula,
diante da hipótese de se ver ao lado de Aledis por toda a vida.
Joan recuperou o fio da explicação dos professores da catedral:
— Um bom marido deve procurar controlar a malícia natural de sua
esposa segundo alguns princípios: o primeiro é que a mulher está sob o
domínio do homem, submetida a ele: “Sub potestate viri eris”, reza o
Gênesis. O segundo vem do Eclesiastes: “Mulier si primatum haber...” —
vacilou Joan —, “Mulier si primatum habuerit, contraria est viro suo”,
que significa que, se a mulher tiver primazia na casa, será contrária ao
marido. Outro princípio é o que aparece nos Provérbios: “Qui delicate
nutrit servum suum, inveniet contumacem”, que quer dizer que quem trata
delicadamente os que devem servi-lo, entre os quais se encontra a mulher,
encontrará rebelião onde deveria encontrar humildade, submissão e
obediência. E, se, apesar de tudo, a malícia continuar presente na mulher,
o marido deve castigá-la com a vergonha e o medo; corrigi-la no começo,
quando é jovem, sem esperar que ela envelheça.
Arnau ouviu as palavras do irmão em silêncio.
— Joan — disse quando ele terminou —, você acha que eu poderia
casar com a Aledis?
— É claro que sim! Mas você deveria esperar um pouco até prosperar
no grêmio para que possa mantê-la. De qualquer modo, convém falar com
o pai dela antes que ele arranje um casamento com outra pessoa, porque
neste caso você não poderá fazer nada.
A imagem de Gastó Segura com seus poucos dentes escuros surgiu
diante de Arnau como uma barreira intransponível. Joan imaginou os
temores do irmão.
— Você deve fazer isso — insistiu.
— Você me ajuda?
— É claro!
Por instantes o silêncio voltou a reinar entre os dois enxergões de palha
que rodeavam a lareira na casa de Pere.
— Joan — chamou Arnau.
— Diga.
— Obrigado.
— Não há de quê.
Os dois irmãos tentaram dormir, mas não conseguiram. Arnau,
entusiasmado com a ideia de se casar com sua desejada Aledis; Joan,
perdido nas recordações, se lembrando da mãe. Será que o caldeireiro
Ponç tinha razão? A malícia é natural na mulher. A mulher deve se
submeter ao homem. O homem deve castigar a mulher. Será que o
caldeireiro tinha razão? Como ele podia respeitar a recordação de sua mãe
e dar esses conselhos? Joan se lembrou da mão da mãe saindo pela
pequena janela de sua prisão e afagando sua cabeça. Lembrou-se do ódio
que tinha sentido, e sentia, por Ponç... Mas o caldeireiro tinha razão?
***
Nos dias seguintes, nenhum dos dois se atreveu a falar com o mal-
humorado Gastó, um homem cuja situação como inquilino na casa de Pere
só lhe fazia recordar o infortúnio que o levara a perder sua casa. O
temperamento azedo do curtidor piorava quando estava em casa, que era
justamente quando os dois irmãos tinham oportunidade de fazer sua
proposta, mas os seus grunhidos, protestos e grosserias os faziam desistir.
Enquanto isso, Arnau continuava envolto pelo rastro que Aledis deixava
atrás de si. Ele a via e perseguia com os olhos e a imaginação, e não havia
momento do dia em que seus pensamentos não estivessem voltados para
ela, menos quando Gastó aparecia; nestas horas, o seu espírito se encolhia.
Porque, por mais que os sacerdotes e os confrades proibissem, o rapaz
não podia afastar os olhos de Aledis quando ela, consciente de que
estavam a sós, aproveitava qualquer tarefa para ajustar a folgada camisa
desbotada. Arnau ficava embevecido com aquela visão: aqueles mamilos,
aqueles peitos; todo o corpo de Aledis o chamava. “Você será minha
esposa, algum dia você será minha esposa”, pensava ele acalorado. Então
tentava imaginá-la nua, e sua mente viajava por lugares proibidos e
desconhecidos, pois, à exceção do corpo torturado de Habiba, nunca tinha
visto uma mulher nua.
Em outras ocasiões, Aledis se abaixava diante de Arnau, dobrando-se
pela cintura em vez de se agachar, para lhe mostrar as nádegas e as curvas
dos quadris; aproveitava também qualquer situação propícia para levantar
a túnica acima dos joelhos e mostrar as coxas; levava as mãos às costas,
pousando-as nos rins, e, simulando uma dor inexistente, se curvava quanto
sua coluna permitia para mostrar que a barriga era lisa e dura. Depois ela
sorria e, fingindo descobrir de repente a presença de Arnau, parecia
encabulada. Quando ela desaparecia, Arnau tinha de lutar para afastar
aquelas imagens da memória.
Em dias como esses, Arnau fazia um grande esforço para falar com
Gastó.
— Que diabo vocês fazem aí parados! — disse ele uma vez, quando
ambos os meninos pararam diante dele com a ingênua intenção de pedir
sua filha em casamento.
O sorriso com que Joan pretendia falar com Gastó desapareceu assim
que o curtidor passou entre os dois, empurrando-os sem contemplação.
— Vá você — disse Arnau ao irmão em outra ocasião.
Gastó estava sozinho na mesa do térreo. Joan se sentou diante dele,
pigarreou, e, quando ia falar, o curtidor levantou os olhos da peça que
estava examinando.
— Gastó... — disse Joan.
— Vou esfolá-lo vivo! Vou arrancar os ovos dele! — gritou o curtidor,
cuspindo saliva pelos vãos entre os dentes pretos. — Simooooó! — Joan
fez um gesto de impotência para Arnau, escondido em um canto do
cômodo. Enquanto isso, Simó tinha acudido ao grito do pai. — Como você
costurou isto desta maneira? — gritou Gastó, colocando a peça de couro
diante de seu nariz.
Joan se levantou da cadeira e se afastou da discussão familiar.
Mas não desistiram.
— Gastó — Joan voltou a tentar em outra ocasião, quando, depois de
jantar e aparentemente de bom humor, o curtidor saiu para dar um passeio
pela praia e ambos foram no seu encalço.
— O que você quer? — perguntou ele, sem parar de caminhar.
“Pelo menos nos deixe falar”, pensaram os dois.
— Eu queria... falar sobre Aledis...
Ao ouvir o nome da filha, Gastó parou de repente e se aproximou de
Joan, e seu hálito fétido sacudiu o menino como uma labareda.
— O que ela fez? — Gastó respeitava Joan; tinha-o por um jovem sério.
A menção a Aledis e sua desconfiança inata o faziam crer que queria
acusá-la de algo, e o curtidor não podia permitir a menor mácula em sua
joia.
— Nada — disse Joan.
— Como nada? — continuou Gastó atropeladamente, sem se afastar um
milímetro. — Então por que você quer falar de Aledis? Diga a verdade, o
que ela fez?
— Nada, ela não fez nada, de verdade.
— Nada? E você? — disse virando-se para Arnau, para alívio de seu
irmão. — O que tem a dizer? O que sabe sobre a Aledis?
— Eu... nada.
A hesitação de Arnau aguçou a suspeita obsessiva de Gastó.
— Conte-me!
— Não há nada... não...
— Eulália! — Gastó não esperou mais, e, gritando o nome de sua
mulher como um energúmeno, voltou para a casa de Pere.
Nessa noite, com a culpa na garganta, os dois rapazes ouviram os gritos
de Eulália enquanto Gastó, a pauladas, tentava obter dela uma confissão
impossível.
Eles tentaram outras duas vezes, mas não conseguiram sequer começar
a se explicar. Depois de uma semana, desanimados, contaram o problema
ao padre Albert, que, sorrindo, prometeu falar com Gastó.
***
— Sinto muito, Arnau — anunciou o padre Albert uma semana depois. Ele
marcara um encontro com Arnau e Joan na praia. — Gastó Segura não
aprova que você se case com a filha dele.
— Por quê? — perguntou Joan. — Arnau é uma boa pessoa.
— Você pretende que eu case a minha filha com um escravo de Ribera?
— respondera o curtidor. — Um escravo que não ganha o suficiente para
alugar um quarto.
O padre tentara convencê-lo:
— Na Ribera já não há nenhum escravo trabalhando; isso era antes.
Você sabe muito bem que os escravos são proibidos de trabalhar em...
— É um trabalho de escravos.
— Isso era antes — insistira o padre. — Além disso — acrescentara —,
consegui um bom dote para a sua filha. — Gastó Segura, que já tinha dado
a conversa por terminada, se virara de repente para o sacerdote. — Com
ele poderiam comprar uma casa...
Gastó interrompera-o de novo:
— A minha filha não precisa da caridade dos ricos! Guarde os seus
sermões para outros.
Depois de ouvir as palavras do padre Albert, Arnau olhou para o mar; o
reflexo da lua corria do horizonte à margem e se perdia na espuma das
ondas que quebravam na praia.
O padre Albert deixou que o barulho das ondas os envolvesse. E se
Arnau perguntasse os motivos? O que ele diria?
— Por quê? — balbuciou Arnau sem deixar de olhar para o horizonte.
— Gastó Segura é... é um homem estranho. — Não podia deixar o rapaz
ainda mais triste! — Ele quer um nobre para a sua filha! Como um oficial
curtidor pode pretender algo semelhante?
Um nobre. Será que o rapaz acreditou? Ninguém podia se sentir
menosprezado diante da nobreza. Até o barulho das ondas, constante,
paciente, parecia esperar a resposta de Arnau.
Um soluço retumbou na praia.
O sacerdote passou um braço pelo ombro de Arnau e percebeu que ele
tremia. Depois fez o mesmo com Joan, e os três permaneceram em frente
ao mar.
— Você vai encontrar uma boa mulher — disse o padre após um tempo.
“Não como ela”, pensou Arnau.
TERCEIRA PARTE
Servos da paixão
21
Segundo domingo de julho de 1339
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona
Quatro anos tinham transcorrido desde que Gastó Segura negara a mão da
filha a Arnau, o bastaix. Depois de alguns meses, Aledis fora dada em
matrimônio a um velho mestre curtidor viúvo que aceitara com lascívia a
falta de dote da moça. Enquanto não fora entregue ao esposo, Aledis
estivera constantemente acompanhada da mãe.
Arnau, por sua vez, se transformara em um homem de dezoito anos,
alto, forte e bem-apessoado. Durante esses quatro anos vivera por e para o
grêmio, a igreja de Santa Maria do Mar e seu irmão, Joan — trabalhava
com afinco carregando mercadorias e pedras, contribuía para o caixa dos
bastaixos e participava com devoção de atos religiosos —, mas não se
casara, e os pró-homens viam com preocupação o celibato de um jovem
como ele: se caísse na tentação da carne, teriam de expulsá-lo, e era fácil
que um jovem de dezoito anos cometesse tal pecado.
No entanto, Arnau não queria ouvir falar de mulheres. Quando o padre
lhe dissera que Gastó não queria saber dele, Arnau se lembrara, olhando o
mar, das mulheres que haviam passado por sua vida: nunca conhecera a
mãe; Guiamona o acolhera com carinho, mas depois lhe negara afeto;
Habiba desaparecera entre sangue e dor — muitas noites ainda sonhava
com o açoite de Grau estalando em seu corpo nu; Estranya o tratara como
a um escravo; Margarida zombara dele no momento mais humilhante de
sua vida; e Aledis, o que dizer de Aledis? Junto dela havia descoberto o
homem que levava dentro de si, mas ela logo o abandonara.
— Tenho de cuidar de meu irmão — respondia ele aos pró-homens cada
vez que o assunto vinha à baila. — Vocês sabem que ele vai entrar para a
Igreja, se dedicando a servir a Deus — acrescentava, enquanto eles
pensavam em suas palavras. — Há melhor propósito do que esse?
Então os pró-homens se calavam.
Assim Arnau viveu durante aqueles quatro anos: tranquilo, dedicado ao
trabalho, à igreja de Santa Maria e, principalmente, a Joan.
O segundo domingo de julho do ano de 1339 era uma data
transcendental para Barcelona. Em janeiro de 1336, o rei Afonso, o
Benigno, falecera na cidade condal, e, depois da Páscoa daquele ano, seu
filho Pedro havia sido coroado em Saragoça e reinava com o título de
Pedro III da Catalunha, IV de Aragão e II de Valência.
Por quase quatro anos, de 1336 a 1339, o novo monarca não fez uma
visita a Barcelona, a cidade condal, a capital da Catalunha, e tanto a
nobreza quanto os comerciantes estavam preocupados com aquele
descuido em render homenagens à cidade mais importante do reino. A
antipatia do novo monarca pela nobreza catalã era bem conhecida: Pedro
III era filho de Teresa de Entenza, condessa de Urgel e viscondessa de
Ager, a primeira mulher do falecido Afonso. Teresa faleceu antes de o
marido ser coroado rei, e Afonso contraiu segundas núpcias com Leonor
de Castela, mulher ambiciosa e cruel, com a qual teve dois filhos.
O rei Afonso, conquistador da Sardenha, era influenciável e fraco de
caráter, e a rainha Leonor logo conseguiu importantes concessões de terras
e títulos para seus filhos. Seu propósito seguinte foi perseguir
implacavelmente os filhos de Teresa de Entenza, seus enteados e herdeiros
do trono do pai. Durante os oito anos de reinado de Afonso, o Benigno,
Leonor, com a condescendência do rei e da corte catalã, se dedicou a
atacar o infante Pedro, que era uma criança na época, e seu irmão Jaime,
conde de Urgel. Só dois nobres catalães, Ot de Montcada, padrinho de
Pedro, e Vidal de Vilanova, comendador de Montalbán, apoiaram a causa
dos filhos de Teresa de Entenza e aconselharam o rei Afonso e os próprios
infantes a fugir para não serem envenenados. Os infantes Pedro e Jaime
seguiram o conselho e se esconderam nas montanhas de Jaca, em Aragão;
depois obtiveram o apoio da nobreza aragonesa e se refugiaram na cidade
de Saragoça, sob a proteção do arcebispo Pedro de Luna.
Por isso a coroação de Pedro rompeu uma tradição que se mantinha
desde a união do reino de Aragão e do principado da Catalunha. Se o cetro
de Aragão fosse entregue em Saragoça, o principado da Catalunha, que
correspondia ao rei na qualidade de conde de Barcelona, devia ser entregue
oficialmente a ele em terras catalãs. Até a entronização de Pedro III, os
monarcas juravam antes em Barcelona para depois serem coroados em
Saragoça. Porque se o rei recebia a coroa pelo simples fato de ser o
monarca de Aragão, como conde de Barcelona só recebia o principado
depois de jurar lealdade aos privilégios e constituições da Catalunha, e, até
então, o juramento dos privilégios fora considerado um trâmite anterior a
qualquer entronização.
Para a nobreza catalã, o conde de Barcelona, príncipe da Catalunha, era
só um primus inter pares, como deixava claro o juramento de homenagem
que recebia: “Nós, que somos tão bons como vós, juramos a vossa mercê,
que não é melhor do que nós, aceitá-lo como rei e senhor soberano, sempre
que respeitardes todas as nossas liberdades e leis; senão, não.” Daí que,
quando Pedro III seria coroado rei, a nobreza catalã se dirigiu a Saragoça
para lhe exigir que primeiro jurasse em Barcelona, como tinham feito os
seus antepassados. O rei se negou, e os catalães abandonaram a coroação.
Porém o rei devia receber o juramento de fidelidade dos catalães, e, apesar
dos protestos da nobreza e das autoridades de Barcelona, Pedro, o
Cerimonioso, decidiu fazê-lo na cidade de Lérida, onde recebeu a
homenagem em junho de 1336, depois de jurar os Usatges e privilégios
catalães.
Naquele segundo domingo de julho de 1339, pela primeira vez o rei
Pedro visitava Barcelona, a cidade que o humilhara. Três acontecimentos
levavam o rei a Barcelona: o juramento que seu cunhado Jaime III, rei de
Maiorca, conde de Roussillon e da Sardenha e senhor de Montpellier,
devia lhe prestar, na condição de vassalo da coroa de Aragão; o concílio
geral dos prelados da província tarragonesa — na qual, para efeitos
eclesiásticos, Barcelona estava incluída —; e o traslado dos restos da
mártir Santa Eulália da igreja de Santa Maria para a catedral.
Os dois primeiros atos foram realizados sem a presença de plebeus.
Jaime III solicitou expressamente que seu juramento de homenagem não
fosse celebrado diante do povo, mas em local mais íntimo, na capela do
palácio e na presença de um grupo seleto de nobres.
O terceiro acontecimento, no entanto, se converteu em um espetáculo
público. Nobres, eclesiásticos e todo o povo compareceram, uns para ver e
os mais privilegiados para acompanhar o rei e sua comitiva real, que,
depois de assistir à missa na catedral, foram a Santa Maria buscar os
restos da mártir e levá-los à sé.
Todo o percurso da catedral até Santa Maria estava tomado pelo povo,
que desejava aclamar o seu rei. A abside de Santa Maria já estava coberta,
trabalhava-se nas nervuras da segunda abóbada, e ainda restava uma
pequena parte da igreja romana inicial.
Santa Eulália foi martirizada na época romana, no ano de 303. Seus
restos repousaram primeiro no cemitério romano e depois na igreja de
Santa Maria das Areias, construída sobre a necrópole quando o edito do
imperador Constantino permitiu o culto cristão. Com a invasão árabe, os
responsáveis pela pequena igreja decidiram esconder as relíquias da
mártir. No ano de 801, quando o rei francês Luís, o Piedoso libertou a
cidade, o então bispo de Barcelona, Frodoí, decidiu buscar os restos da
santa. Desde que foram encontrados, eles permaneciam em uma pequena
arca em Santa Maria.
Apesar de estar coberta de andaimes e rodeada de pedras e materiais de
construção, Santa Maria estava esplendorosa para a ocasião. O
arquidiácono de Santa Maria do Mar, Bernat Rosell, junto com os
membros da junta de obras, nobres, beneficiados e demais membros do
clero, todos ataviados com suas melhores vestes, esperavam a comitiva
real. O colorido das vestimentas era espetacular. O sol da manhã de julho
atravessava com força as abóbadas e janelas inacabadas, fazendo reluzir os
dourados e metais que vestiam os privilegiados que podiam esperar o rei
no interior.
O sol brilhou também no punhal de Arnau, cego e polido, pois junto
daqueles importantes personagens estavam os humildes bastaixos. Alguns,
entre os quais o jovem, se posicionaram diante da capela do sacramento, a
sua capela; outros, como guardiões do portão-mor, estavam junto ao
pórtico de acesso ao templo, o da velha igreja romana.
Os bastaixos, aqueles antigos escravos ou macips, gozavam de
inúmeros privilégios pelo que faziam para Santa Maria do Mar, e Arnau
desfrutara deles nos últimos quatro anos. Além de lhes corresponder a
capela mais importante do templo e de serem os guardiões do portão-mor,
as missas de suas festividades eram celebradas no altar-mor, o pró-homem
mais importante do grêmio guardava a chave do sepulcro do Altíssimo,
nas procissões eram eles os que carregavam a Virgem (um pouco mais
abaixo dela levavam Santa Tecla, Santa Catarina e Sant Macia), e, quando
um bastaix estava à beira da morte, o Viático saía solenemente de Santa
Maria pela porta principal sob o pálio, à hora que fosse.
Naquela manhã, junto de seus companheiros, Arnau superou as
barreiras de soldados do rei que controlavam o trajeto da comitiva; ele
sabia que era invejado pelos muitíssimos cidadãos que se amontoavam
para ver o rei. Ele, um humilde trabalhador portuário, tinha entrado em
Santa Maria ao lado de nobres e ricos mercadores, como um deles. Ao
cruzar a igreja para chegar à capela do Santíssimo, topou com Grau Puig,
Isabel e seus três primos, todos com vestes de seda, engalanados de ouro,
altivos.
Arnau titubeou. Os cinco o fitavam. Baixou os olhos ao passar próximo
a eles.
— Arnau — ouviu que o chamavam quando deixou Margarida para
trás. Já não bastava terem arruinado a vida de seu pai? Seriam capazes de
humilhá-lo outra vez agora, junto de seus confrades, na igreja? — Arnau
— ouviu outra vez.
Levantou os olhos e encontrou Berenguer de Montagut; os cinco Puig
estavam a menos de um passo dele.
— Excelência — disse o mestre, se dirigindo ao arquidiácono de Santa
Maria do Mar —, apresento-vos Arnau... — “Estanyol”, balbuciou Arnau
— o bastaix de que tanto vos falei. Ele era só um menino, mas já
carregava pedras para a Virgem.
O prelado assentiu com a cabeça e ofereceu seu anel a Arnau, que se
inclinou para beijá-lo. Berenguer de Montagut lhe deu uma palmadinha
nas costas. Arnau viu Grau e sua família se inclinarem diante do prelado e
do mestre, mas estes os ignoraram e retomaram seu caminho em direção a
outros nobres. Arnau se ergueu e, com o passo firme e o olhar no
deambulatório, se afastou dos Puig e se dirigiu à capela do Santíssimo,
onde se posicionou junto aos outros confrades.
A gritaria da multidão anunciou a chegada do rei e sua comitiva. O rei
Pedro III; o rei Jaime de Maiorca; a rainha Maria, esposa de Pedro; a
rainha Elienda, viúva do rei Jaime, avô de Pedro; os infantes Pedro,
Ramón Berenguer e Jaime, os dois primeiros tios e o último irmão do rei;
a rainha de Maiorca, também irmã do rei Pedro; o cardeal Rodés,
representante do papa; o arcebispo de Tarragona; bispos; prelados; nobres
e cavaleiros se dirigiam a Santa Maria em procissão pela Rua do Mar.
Barcelona nunca tinha visto tão grande desfile de personalidades, luxo e
ostentação.
Pedro III, o Cerimonioso, queria impressionar o povo que tinha
mantido no abandono durante mais de três anos, e conseguiu. Os dois reis,
o cardeal e o arcebispo andavam sob o pálio, que era carregado por muitos
bispos e nobres. No altar-mor provisório de Santa Maria, receberam das
mãos do arquidiácono a pequena arca com os restos da mártir sob o olhar
atento dos presentes e o nervosismo contido de Arnau. O próprio rei
transportou a arca da igreja de Santa Maria até a catedral. Saiu sob o pálio
e voltou, e os restos de Santa Eulália foram sepultados na capela
especialmente construída para tal, embaixo do altar-mor.
22
***
1. Antigo território grego, situado nas atuais regiões da Macedônia e da Tessália. (N. da T.)
2. Título de imperador ou príncipe da casa real bizantina. (N. da T.)
3. Mercenários que formavam tropas de cavalaria ligeira. (N. da T.)
23
***
Fazia pouco mais de dois meses que Maria e Arnau tinham contraído
matrimônio em Santa Maria do Mar, em uma celebração oficiada pelo
padre Albert e na presença de todos os membros do grêmio, de Pere e
Mariona e de Joan, já vestido com o hábito dos franciscanos e de cabelo
cortado. Com a garantia do aumento de salário que correspondia aos
confrades casados, escolheram uma casa em frente à praia e a mobiliaram
com a ajuda da família de Maria e de todos os que quiseram colaborar com
o jovem casal, e foram muitos. Ele não teve de fazer nada. A casa, os
móveis, as tigelas, a roupa, a comida, tudo apareceu pelas mãos de Maria e
sua mãe, que insistiam em que ele descansasse. Na primeira noite, Maria
se entregou ao marido sem voluptuosidade, mas sem reticência. Ao
amanhecer do dia seguinte, quando Arnau acordou, o café da manhã estava
preparado: ovos, leite, carne salgada, pão. Ao meio-dia, a cena se repetiu,
e à noite, e no dia seguinte, e no seguinte; Maria sempre deixava a comida
preparada para Arnau. Tirava os seus sapatos. Lavava-o e curava suas
chagas e feridas com delicadeza. Maria sempre estava disponível no leito.
Um dia depois do outro, Arnau encontrava o que um homem podia desejar:
comida, limpeza, obediência, atenção e o corpo de uma mulher jovem e
bonita. Sim, Arnau. Não, Arnau. Maria nunca discutia com Arnau. Se ele
queria uma vela, Maria deixava o que estivesse fazendo para consegui-la
para ele. Se Arnau reclamava, ela se adiantava em resolver o que fosse.
Quando ele respirava, Maria corria para lhe trazer ar.
Caía um dilúvio. Escureceu repentinamente, e a tormenta provocava
raios que atravessavam as nuvens negras com estrondo e iluminavam o
mar. Arnau e Bartolomé, encharcados, se encontraram na praia. Todos os
navios tinham abandonado o perigoso porto de Barcelona para procurar
refúgio em Salou. A pedreira real estava fechada; naquele dia os bastaixos
não tinham trabalho.
— Como vai você, meu filho? — perguntou Bartolomé ao genro.
— Bem. Muito bem, mas...
— Há algum problema?
— É só que não estou acostumado a que me tratem tão bem como
Maria me trata.
— Ela foi educada para isso — afirmou Bartolomé, satisfeito.
— Mas é demais...
— Eu disse que você não se arrependeria de casar com ela. —
Bartolomé olhou para Arnau. — Você já vai se acostumar. Aproveite sua
mulher.
Estavam nisso quando chegaram à Rua das Dames, uma pequena
travessa que desembocava na praia. Mais de vinte mulheres, jovens e
velhas, bonitas e feias, sãs e doentes, todas pobres, passeavam sob a chuva.
— Você as vê? — interveio Bartolomé, apontando para as mulheres. —
Sabe o que elas esperam? — Arnau negou com a cabeça. — Em dias de
temporal como hoje, depois que os pilotos solteiros dos pesqueiros
esgotaram os seus recursos, depois de pedirem a todos os santos e virgens
sem conseguir evitar o temporal, só lhes resta um recurso. A tripulação
sabe e exige isso. Chegado este momento, o piloto jura em voz alta diante
de Deus e da tripulação que, se conseguir fazer o pesqueiro e seus homens
chegarem sãos e salvos ao porto, casará com a primeira mulher que vir
assim que pisar a terra. Você entende, Arnau? — Arnau observou as
mulheres que subiam e desciam a rua inquietas, olhando o horizonte. —
As mulheres nasceram para isso, para contrair matrimônio, para servir o
homem. Assim educamos Maria e assim eu a entreguei a você.
Os dias transcorriam e Maria continuava concentrada em Arnau, mas
ele só pensava em Aledis.
— Essas pedras vão destruir as suas costas — comentou Maria quando
massageava com um unguento a ferida que Arnau mostrara na altura da
omoplata.
Arnau não respondeu.
— Esta noite vou revisar a sua capçana. As pedras não podem cortar
você deste jeito.
Arnau não respondeu. Tinha chegado em casa depois do anoitecer.
Maria o descalçou, serviu um copo de vinho e o obrigou a se sentar para
massageá-lo nas costas, como durante toda a infância vira a mãe fazer com
seu pai. Arnau se deixou massagear como sempre. Agora a ouvia em
silêncio. A ferida não tinha nada a ver com as pedras da Virgem, nem com
a capçana. Ela limpava e curava a ferida da vergonha, o arranhão de outra
mulher à qual Arnau não era capaz de renunciar.
— Estas pedras vão destruir as costas de todos vocês — repetiu sua
esposa.
Arnau bebeu um gole de vinho enquanto sentia as mãos de Maria
percorrerem suas costas delicadamente.
***
Desde que seu marido a chamou para mostrar as feridas do aprendiz que se
atrevera a olhar para ela, Aledis se limitava a espiar os jovens da oficina.
Descobriu que muitas vezes iam à horta à noite, onde se encontravam com
mulheres que pulavam o muro para se juntar a eles. Os rapazes tinham
acesso ao material, às ferramentas e aos conhecimentos necessários para
fabricar uma espécie de touca de couro finíssimo que, devidamente
engordurada, se acopla ao pênis antes de fornicar com a mulher. A certeza
de que não engravidariam, aliada à juventude dos amantes e à escuridão da
noite, era uma tentação irrefreável para muitas mulheres que desejavam
uma aventura anônima. Aledis não teve dificuldade para entrar no
dormitório dos aprendizes e pegar algumas daquelas toucas; a ausência de
risco em suas relações com Arnau dera asas à sua luxúria.
Aledis explicou que com aquelas toucas não fariam filhos, e Arnau a
observou deslizar uma delas ao longo do seu pênis. Seria a gordura que
depois ficava em seu membro? Seria um castigo por se opor aos desígnios
da natureza divina? Maria não engravidava. Era uma moça forte e sã. Que
motivo senão os pecados de Arnau a impediriam de ficar pejada? Que
outro motivo poderia levar o Senhor a não o premiar com o herdeiro
desejado? Bartolomé necessitava de um neto. O padre Albert e Joan
queriam ver Arnau se tornando pai. O grêmio estava atento ao momento
em que os jovens cônjuges anunciariam a boa-nova; os homens brincavam
com Arnau, e as mulheres dos bastaixos visitavam Maria para aconselhá-
la e lhe contar as maravilhas da vida familiar.
Arnau também desejava um filho.
— Não quero que você me ponha isto — opôs-se ele uma vez em que
Aledis o assaltou no caminho para a pedreira.
Aledis não se intimidou.
— Não penso em perder você — disse. — Antes que isso aconteça,
abandonarei o velho e exigirei você. Todos saberão o que aconteceu entre
nós, você cairá em desgraça, o expulsarão do grêmio e provavelmente da
cidade, e então você só terá a mim; só eu estarei disposta a segui-lo. Não
vejo minha vida sem você, sentenciada como estou a permanecer ao lado
de um velho obcecado e incapaz.
— Você arruinaria a minha vida? Por que faria isso comigo?
— Porque sei que no fundo você gosta de mim — respondeu Aledis,
decidida. — Na verdade, só estaria ajudando você a dar um passo que não
se atreve a dar.
Ocultos entre os arbustos na encosta da montanha de Montjuïc, Aledis
deslizou a touca pelo membro do amante. Arnau a observava. Seria
verdade o que dissera? Seria verdade que no fundo desejava viver com
Aledis, abandonar sua esposa e tudo o que tinha para fugir com ela? Se
pelo menos seu membro não se mostrasse tão disposto... O que tinha
aquela mulher para ser capaz de anular sua vontade? Arnau pensou em lhe
contar a história da mãe de Joan; a possibilidade de que, se a relação entre
eles se revelasse, fosse o velho a reclamá-la e emparedá-la pelo resto da
vida, mas em vez disso montou nela... mais uma vez. Aledis gemeu ao
ritmo das investidas de Arnau. O bastaix, no entanto, só ouvia os seus
medos: Maria, o seu trabalho, o grêmio, Joan, a desonra, Maria, sua
Virgem, Maria, sua Virgem...
25
No trono, o rei Pedro ergueu a mão. Ladeado pelo tio e pelo irmão, pelos
infantes D. Pedro e D. Jaime, de pé à sua direita, e pelo conde de
Terranova e pelo padre Ot de Montcada à esquerda, o rei esperou que os
demais membros do conselho fizessem silêncio. Se encontravam no
palácio de Valência, onde tinham recebido Pere Ramon de Codoler,
mordomo-mor e mensageiro do rei Jaime de Maiorca. Segundo o senhor
de Codoler, o rei de Maiorca, conde do Roussillon e da Sardenha e senhor
de Montpellier, tinha decidido declarar guerra à França devido às
constantes afrontas que os franceses impingiam ao seu senhor e, como
vassalo de Pedro, solicitava que em 21 de abril do próximo ano de 1341
seu senhor fosse a Perpignan, à frente dos exércitos catalães, para ajudá-lo
e defendê-lo na guerra contra a França.
Durante toda a manhã, o rei Pedro e seus conselheiros estudaram o
pedido de seu vassalo. Se não acudissem em ajuda do rei de Maiorca, este
negaria sua vassalagem e ficaria livre, mas se o fizessem — todos estavam
de acordo — cairiam numa armadilha: assim que os exércitos catalães
entrassem em Perpignan, Jaime se aliaria ao rei da França contra ele.
Quando houve silêncio, o rei disse:
— Todos vós pensastes nisso, tentando encontrar uma maneira de negar
ao rei de Maiorca o pedido que nos fez. Acho que a encontramos: vamos a
Barcelona e convocamos as Cortes e, uma vez convocadas, pediremos ao
rei de Maiorca que, no dia 25 de março, venha a Barcelona para as ditas
Cortes, como é sua obrigação. E o que pode acontecer? Que ele vá, ou não.
Se for, terá feito o que lhe corresponde, e, neste caso, nós cumpriremos o
que nos pede... — Alguns conselheiros se moveram inquietos; se o rei de
Maiorca fosse às Cortes, entrariam em guerra com a França, ao mesmo
tempo que guerreavam contra Gênova! Alguém até se atreveu a negar em
voz alta, mas Pedro pediu tranquilidade com a mão e sorriu antes de
prosseguir, elevando a voz: — E buscaremos o conselho de nossos
vassalos, que decidirão o melhor a fazer. — Alguns conselheiros sorriram
com o rei, outros assentiram com a cabeça. As Cortes eram competentes
em matéria de política catalã e podiam decidir dar ou não início a uma
guerra. Não seria o rei, pois, quem negaria ajuda a seu vassalo, seriam as
Cortes da Catalunha. — Se não vier — continuou Pedro —, ele romperá a
vassalagem e, neste caso, não seremos obrigados a ajudá-lo nem a entrar
em sua guerra contra o rei da França.
Barcelona, 1341
***
Toda Barcelona compareceu ao porto quando as velas das galeras do rei de
Maiorca surgiram no horizonte. A frota capitaneada por Mateu Mercer
esperava por elas. Arnau d’Erill ordenou aos trabalhadores do porto que
dessem início à construção da ponte; os barqueiros atravessaram seus
barcos, e os homens começaram a unir as tábuas por cima deles.
Quando as galeras do rei de Maiorca atracaram, os demais barqueiros
se dirigiram à galera real.
— O que está acontecendo? — perguntou um dos bastaixos, ao ver que
o estandarte real continuava a bordo e que do barco descia um só homem.
Arnau estava ensopado, assim como seus companheiros. Todos olharam
para o veguer, que tinha os olhos fixos no barco que se aproximava da
praia.
Pela ponte desembarcou apenas uma pessoa: o visconde de Èvol, um
nobre de Roussillon ricamente vestido e armado que se deteve sobre as
madeiras antes de pisar a praia.
O veguer foi ao seu encontro e, da areia, ouviu as explicações de Èvol,
que se limitava a apontar para Framenors e depois para as galeras do rei de
Maiorca. Quando a conversa terminou, o visconde regressou para a galera
real e o outro desapareceu em direção à cidade; em pouco tempo, retornou
com as instruções do rei Pedro.
— O rei Jaime de Maiorca — gritou para que todos o ouvissem — e sua
esposa, Constança, rainha de Maiorca, irmã de nosso bem-amado rei
Pedro, ficarão no convento de Framenors. É preciso construir uma ponte
de madeira, fixa, coberta dos dois lados e telhada, de onde as galeras
ficarão ancoradas até as habitações reais.
Um murmúrio se fez ouvir na praia, mas a expressão severa do veguer o
calou. Depois, a maioria dos trabalhadores do porto foi para o convento de
Framenors, que se erguia imponente sobre a linha costeira.
— É uma loucura — Arnau ouviu alguém dizer no grupo de bastaixos.
— Se houver um temporal — pressagiou outro —, isso não vai
aguentar.
— Coberto e telhado! Para que o rei de Maiorca quer uma ponte assim?
Arnau se virou para o veguer justamente quando Berenguer de
Montagut chegava à praia. Arnau d’Erill mostrou ao mestre de obras o
convento de Framenors e depois, com a mão direita, traçou uma linha
imaginária dali até o mar.
Arnau, bastaixos, barqueiros e carpinteiros de ribeira, calafates,
remolares, ferreiros e cordoeiros permaneceram em silêncio quando o
veguer terminou suas explicações, e o mestre ficou pensativo.
Por ordem do rei foram suspensas as obras de Santa Maria e da
catedral, e todos os operários se dedicaram à construção da ponte. Sob a
supervisão de Berenguer de Montagut, uma parte dos andaimes do templo
foi desmontada, e naquela mesma manhã os bastaixos começaram a
transportar o material para Framenors.
— Que bobagem — comentou Arnau com Ramon enquanto os dois
carregavam um pesado tronco. — Afanamo-nos em carregar pedras para
Santa Maria e agora as desmontamos, e tudo pelo capricho...
— Cale-se! — advertiu-o Ramon. — São ordens do rei; ele sabe por
quê.
Movidas a remo, as galeras do rei de Maiorca, sempre vigiadas de perto
pelas valencianas, se colocaram de frente para Framenors, ancoradas a
uma distância considerável do convento. Pedreiros e carpinteiros
começaram a montar um andaime apoiado na fachada do convento que
dava para o mar, uma estrutura de madeira imponente que descia até a
beira da praia, enquanto os bastaixos, ajudados por todos os que não
tinham tarefa definida, iam e vinham de Santa Maria carregando troncos e
pedaços de madeira.
Ao anoitecer, os trabalhos foram suspensos. Arnau chegou em casa
reclamando.
— Nosso rei nunca pediu uma loucura como essa; conforma-se com a
ponte tradicional, sobre os barcos. Por que permitiu semelhante capricho a
um traidor?
Mas suas palavras se apagaram e seus pensamentos mudaram ao sentir
a massagem de Maria em seus ombros.
— Suas feridas estão melhores — comentou a moça. — Algumas
pessoas usam gerânio com framboesa, mas nós sempre confiamos na
sempre-viva. Minha avó tratava meu avô com ela, e minha mãe trata meu
pai...
Arnau fechou os olhos. Sempre-viva? Há dias não via Aledis. Essa era a
única razão de ter melhorado!
— Por que você está tenso? — perguntou Maria, interrompendo seus
pensamentos. — Relaxe, você deve relaxar para que...
Continuou sem escutá-la. Para quê? Relaxar para que ela tratasse as
feridas feitas por outra mulher? Se pelo menos ela se zangasse...
Mas, em vez de gritar com ele, Maria se entregou naquela noite:
procurou-o carinhosamente e se ofereceu a ele com doçura. Aledis não
sabia o que era a doçura. Fornicavam como animais! Arnau aceitou-a de
olhos fechados. Afinal, como fitá-la? A moça lhe acariciou o corpo e a
alma e transportou-o a um prazer que, quanto maior, mais doloroso era.
Ao amanhecer, Arnau se levantou para ir a Framenors. Maria já estava
lá embaixo, junto à lareira, trabalhando para ele.
Nos três dias que duraram as obras de construção da ponte, nenhum
membro da corte do rei de Maiorca deixou as galeras; os valencianos
tampouco o fizeram. Quando a estrutura apoiada em Framenors superou a
praia e chegou à água, os barqueiros se juntaram para permitir o transporte
dos materiais. Arnau trabalhou sem descanso; quando descansava, ao parar
em casa, as mãos de Maria acariciavam seu corpo novamente, o mesmo
que dias atrás Aledis tinha mordido e arranhado. Os operários dos barcos
introduziam as estacas no fundo do porto de Barcelona, dirigidos por
Berenguer de Montagut, que, de pé na proa de um lenho, ia de um lado
para outro testando a resistência dos pilares antes de permitir que se
colocasse peso em cima deles.
No terceiro dia, a ponte de madeira — de mais de cinquenta metros de
comprimento, coberta dos dois lados — rompeu a visão diáfana do porto
da cidade condal. A galera real se aproximou da ponte, e após um tempo
Arnau e todos os que tinham participado da construção ouviram os passos
do rei e de seu séquito sobre as tábuas; muitos levantaram a cabeça.
Já em Framenors, Jaime enviou um mensageiro ao rei Pedro para
notificá-lo de que ele e a rainha Constança tinham ficado doentes devido
às inclemências da travessia marítima e que sua irmã lhe pedia que fosse
ao convento visitá-la. O rei se dispunha a fazer as vontades de Constança
quando o infante D. Pedro se apresentou diante dele acompanhado por um
jovem frade franciscano.
— Fale, frade — ordenou o monarca, visivelmente irritado por ter de
atrasar a visita à irmã.
Joan se encolheu tanto que superar o rei em altura por uma cabeça
perdeu importância. “Ele é muito baixinho”, tinham dito a Joan, “e nunca
se apresenta de pé diante de seus cortesãos.” Porém desta vez estava de pé
e olhava diretamente nos olhos de Joan, atravessando-o.
Joan balbuciou.
— Fale — insistiu o infante D. Jaime.
Joan começou a suar profusamente e notou que o hábito, apesar de
grosso, grudava em seu corpo. E se a mensagem não fosse verdadeira?
Pensou nisto pela primeira vez. Ouvira-a do velho frade que desembarcara
com o rei de Maiorca e não esperara nem um instante. Saíra correndo para
o palácio real, brigara com a guarda porque se negava a dar a mensagem a
qualquer outro que não fosse o monarca e depois cedera ante o infante D.
Pedro, mas agora... E se não fosse verdade? E se não fosse nada além de
outra armadilha do senhor de Maiorca?
— Fale, por Deus! — gritou o rei.
Ele o fez de uma só vez, sem respirar.
— Majestade, vós não deveis ir visitar vossa irmã, a rainha Constança.
É uma armadilha do rei Jaime de Maiorca. Com a desculpa de sua esposa
estar enferma e fraca, o criado encarregado da custódia da porta de seus
aposentos tem ordens de não deixar passar ninguém além de Vossa
Majestade e os infantes D. Pedro e D. Jaime. Ninguém mais poderá entrar
nos aposentos da rainha; lá dentro vos esperará uma dezena de homens
armados que vos farão prisioneiros, vos conduzirão pela ponte até as
galeras e partirão para a ilha de Maiorca, para o castelo de Alaró, onde
querem vos reter cativo até que liberteis o rei Jaime de toda a vassalagem
e lhe concedais novas terras na Catalunha.
Pronto!
Semicerrando os olhos, o rei perguntou:
— E como um frade jovem como você sabe de tudo isso?
— Foi-me contado pelo frei Berenguer, parente de Vossa Majestade.
— Frei Berenguer?
D. Pedro assentiu em silêncio, e o rei pareceu se lembrar de repente de
seu parente.
— O frei Berenguer — continuou Joan — recebeu em confissão, de um
traidor arrependido, a recomendação de que esta mensagem vos fosse
transmitida, mas, como está muito velho e não se locomove com rapidez,
confiou em mim para esta missão.
— Para isso queria a ponte fechada — interveio D. Jaime. — Se nos
prendessem em Framenors, ninguém perceberia o sequestro.
— Seria simples — assentiu o infante D. Pedro.
— Vocês sabem muito bem — disse o rei, se dirigindo aos infantes —
que, se minha irmã, a rainha, estiver doente, não posso deixar de visitá-la
dentro de meus domínios. — Joan escutava sem se atrever a fitá-los. O rei
se calou por alguns instantes. — Postergarei minha visita desta noite, mas
preciso... me ouve, frade? — Joan teve um sobressalto. — Preciso que esse
penitente arrependido nos permita revelar publicamente a traição.
Enquanto for um segredo de confissão, terei de comparecer para visitar a
rainha. Então vá — ordenou.
Joan voltou correndo para Framenors e transmitiu o recado real ao frei
Berenguer. O rei não fez a visita e, para sua tranquilidade, foi declarado
que tinha uma infecção no rosto perto do olho que precisou ser sangrada,
obrigando-o a guardar repouso por uns dias, o que Pedro entendeu como
uma proteção da divina providência, pois era o suficiente para que o frei
Berenguer conseguisse a autorização do confessante.
Naquela ocasião, Joan não duvidou nem por um instante da veracidade
da mensagem.
— O penitente do frei Berenguer é vossa própria irmã — comunicou ao
rei assim que foi levado diante dele —, a rainha Constança, que vos
solicita que a faça vir ao palácio, por sua vontade ou à força. Aqui, longe
da autoridade do marido e sob vossa proteção, vos revelará a traição com
todos os detalhes.
O infante D. Jaime, acompanhado por um batalhão de soldados, se
apresentou em Framenors para cumprir o desejo de Constança. Os frades
lhe abriram passagem, e infante e soldados se apresentaram diretamente
ao rei, cujas queixas de pouco serviram: Constança partiu para o palácio
real.
Ao rei de Maiorca tampouco serviu a visita que fez a seu cunhado, o
Cerimonioso.
— Pela palavra dada ao papa — disse-lhe o rei Pedro —, respeitarei
vosso salvo-conduto. Vossa esposa fica aqui, sob minha proteção. Deixai
os meus reinos.
Quando Jaime de Maiorca partiu com suas quatro galeras, o rei ordenou
a Arnau d’Erill que acelerasse o processo aberto contra seu cunhado, e, em
pouco tempo, o veguer de Barcelona ditou uma sentença pela qual as terras
do vassalo infiel, julgado à revelia, passavam ao poder do rei Pedro; o
Cerimonioso já tinha a desculpa que legitimava sua declaração de guerra
ao rei de Maiorca.
Enquanto isso, o rei, exultante ante a possibilidade de unir novamente
os reinos que seu antepassado Jaime, o Conquistador, dividira, mandou
chamar o jovem frade que tinha descoberto a trama.
— Você nos serviu bem e fielmente — disse o rei, desta vez sentado no
trono. — Concedo-lhe uma graça.
Joan já sabia da intenção do rei; os mensageiros o tinham comunicado.
E pensou muito bem. Vestia o hábito franciscano por indicação de seus
mestres, mas, já em Framenors, o jovem ficara desiludido: onde estavam
os livros? Onde o saber? Onde o trabalho e o estudo? Quando finalmente
se dirigiu ao prior de Framenors, este pacientemente o fez se lembrar dos
três princípios estabelecidos pelo fundador da ordem, São Francisco de
Assis:
— Simplicidade radical, pobreza absoluta e humildade. Assim devemos
viver os franciscanos.
Mas Joan desejava saber, estudar, ler, aprender. Por acaso seus mestres
não tinham lhe garantido que aquele também era o caminho do Senhor?
Por isso, quando encontrava um frade dominicano, Joan olhava para ele
com inveja. A ordem dos dominicanos se dedicava principalmente ao
estudo da filosofia e da teologia e tinha criado diversas universidades.
Joan queria pertencer à ordem dos dominicanos e prosseguir seus estudos
na prestigiada Universidade de Bolonha.
— Assim seja — sentenciou o rei, depois de ouvir os argumentos de
Joan; os pelos do corpo do jovem se eriçaram. — Confiamos em que um
dia voltará aos nossos reinos investido da autoridade moral que
proporcionam o conhecimento e a sabedoria, e que a aplicará para o bem
do seu rei e de seu povo.
26
Maio de 1343
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona
***
***
— Você não pode! — gritou Aledis quando Arnau lhe comunicou sua
decisão. Com as mãos, Arnau lhe pediu que baixasse o tom de voz, mas ela
continuou a gritar: — Você não pode me deixar! Vou contar a todo o
mundo...
— E daí, Aledis? — rebateu. — Vou estar no exército. Você só vai
conseguir arruinar a sua vida.
Escondidos entre os arbustos, os dois se olharam. O lábio inferior de
Aledis começou a tremer. Como ela era linda! Arnau quis tocar seu rosto
onde as lágrimas escorriam, mas se conteve.
— Adeus, Aledis.
— Você não pode me deixar — soluçou.
Arnau se virou para ela. Tinha caído de joelhos com a cabeça entre as
mãos. O silêncio a incitou a elevar os olhos para Arnau.
— Por que você faz isso comigo? — chorou.
Arnau viu as lágrimas no rosto de Aledis; todo o seu corpo tremia.
Arnau mordeu o lábio e levantou os olhos para o alto da montanha, onde
costumava buscar pedras. Para que lhe causar mais mal? Abriu os braços.
— Tenho de fazê-lo.
Ela começou a se arrastar de joelhos até poder lhe tocar as pernas.
— Tenho de fazer isso, Aledis — repetiu Arnau, pulando para trás.
E começou a descer de Montjuïc.
1. Tratamento que se dava em Aragão aos nobres de segunda classe. (N. da T.)
27
***
Enquanto esperava as diversas hosts e assembleias do principado, bem
como os víveres correspondentes, o rei Pedro estabeleceu seu quartel-
general num albergue de Figueras, cidade com representação nas Cortes e
próxima à fronteira do condado de Roussillon. O infante D. Pedro e seus
cavaleiros se instalaram em Perelada, e o infante D. Jaime e os demais
nobres — o senhor de Eixèrica, o conde de Luna, Blasco de Alagó, mosén
Juan Ximénez de Urrea, Filipe de Castro e mosén Juan Fernández de Luna,
entre outros — se dividiram, junto com suas tropas, pelos arredores de
Figueras.
Arnau Estanyol estava com as tropas reais. Aos vinte e dois anos, nunca
vivera uma experiência como a daqueles dias. O acampamento real, onde
se amontoavam mais de dois mil homens exultantes com a vitória
conquistada em Maiorca, ávidos por guerra, briga e butim, sem nada para
fazer além de esperar a ordem real de marchar contra o Roussillon, era o
polo oposto da ordem reinante em Barcelona. Afora os momentos em que
a tropa recebia instruções ou fazia exercícios de tiro, a vida no
acampamento girava em torno das apostas, das conversas em que os
novatos escutavam histórias de guerra aterrorizantes contadas pelos
veteranos orgulhosos e, como não podia deixar de ser, dos furtos e das
brigas.
Ao lado de três jovens de Barcelona tão novatos quanto ele na arte da
guerra, Arnau costumava passear pelo acampamento. Ficava maravilhado
com os cavalos e as armaduras, que os serventes sempre mantinham
lustrosas e ficavam expostas ao sol, diante das barracas, numa espécie de
competição na qual venciam as armas e apetrechos mais brilhantes. Mas,
se as selas e armas o deixavam fascinado, ele sofria com o suplício da
sujeira, do mau cheiro e da infinidade de insetos atraídos pelos dejetos de
milhares de homens e animais. Os oficiais reais ordenaram que se
cavassem fossos longos e profundos para servir como latrinas, o mais
longe possível do acampamento, perto de um regato onde se pretendia
desaguar os detritos dos soldados. Porém o córrego estava quase seco e os
montes de dejetos em decomposição criavam um fedor pegajoso e
insuportável.
Certa manhã em que Arnau e seus três companheiros passeavam entre
as barracas, viram se aproximar um cavaleiro que voltava dos exercícios.
O cavalo, em busca de uma ração bem merecida e de se livrar do peso da
armadura que lhe cobria o peito e os flancos, relinchava erguendo as patas
enquanto o cavaleiro tentava chegar à sua barraca sem causar danos, se
esquivando dos soldados e dos apetrechos amontoados nas ruas formadas
entre as barracas. Mas o animal, grande e vivaz, obrigado a se submeter ao
cruel freio que o embocava, trocava seu desejo de avançar por uma dança
espetacular cujo ritmo lançava naqueles que cruzavam com ele o suor
branco que lhe ensopava os flancos.
Arnau e seu grupo se afastaram o máximo que puderam dos passos do
cavaleiro, mas com tanta inépcia que, no exato momento, o animal
retrocedeu lateralmente e golpeou Jaume, o menor dos quatro, que perdeu
o equilíbrio e caiu no chão. O golpe não machucou o rapaz; o cavaleiro,
por sua vez, nem olhou para trás e continuou seu caminho até uma barraca
próxima. No entanto, o pequeno Jaume caiu bem no lugar em que alguns
veteranos jogavam seus soldos nos dados. Um deles perdera uma
quantidade equivalente aos benefícios que poderiam lhe caber em todas as
campanhas futuras do rei Pedro, e a briga não se fez esperar. O jogador
azarado levantou disposto a descarregar em Jaume a ira que não podia
descarregar nos companheiros. Era um homem robusto, de cabelo e barba
compridos e sujos e com uma expressão no rosto, fruto de horas de perdas
seguidas, que teria amedrontado o mais valente inimigo.
O soldado agarrou o intrometido e o levantou no ar até a altura de seus
olhos. Jaume nem sequer teve tempo de entender o que estava
acontecendo. Em questão de segundos, o cavalo o tinha derrubado, ele
caíra e agora era atacado por um energúmeno que gritava com ele e o
sacudiu até que, sem soltá-lo, lhe deu uma bofetada que fez com que um
filete de sangue escorresse por seus lábios.
Arnau viu Jaume se debater no ar.
— Deixe-o, seu porco! — Ele próprio se surpreendeu com suas
palavras.
As pessoas começaram a se afastar de Arnau e do veterano. Jaume, que,
também surpreso, tinha parado de se mexer, caiu sentado quando o outro o
soltou para enfrentar aquele que tinha ousado insultá-lo. De repente, Arnau
se viu no centro de um círculo formado pelos muitos curiosos que tinham
se aproximado para assistir ao espetáculo. Ele e um soldado enfurecido. Se
pelo menos não o tivesse insultado... Por que o chamara de porco?
— Ele não teve culpa — balbuciou Arnau apontando para Jaume, que
ainda não entendera o que tinha acontecido.
Sem dizer nenhuma palavra, o soldado investiu contra Arnau como um
touro furioso; golpeou-o no peito com a cabeça e lançou-o vários metros
adiante, o bastante para afastar o círculo de curiosos. Arnau sentiu uma
dor como se tivessem arrebentado seu peito. O ar fétido a que tinha se
acostumado parecia ter desaparecido de repente. Abriu a boca. Tentou ficar
de pé, mas um chute no rosto o jogou novamente por terra. Uma dor
intensa tomou conta de sua cabeça enquanto tentava recuperar o fôlego e,
quando começava a recuperá-lo, outro chute, desta vez nos rins, o
derrubou mais uma vez. Depois a surra foi tão terrível que Arnau fechou
os olhos e se encolheu como um novelo no chão.
Quando o veterano cessou os ataques, Arnau pensou que aquele louco o
tinha arrebentado; mas, apesar da dor que sentia, parecia que ouvia algo.
Do chão, ainda encolhido, aguçou o ouvido.
Então ouviu.
Ouviu uma vez.
E outra vez, e outra, e outras mais. Abriu os olhos e viu as pessoas do
círculo apontando para ele e rindo. As palavras de seu pai ressoaram em
seus ouvidos maltratados: “Eu abandonei tudo o que tinha para que você
pudesse ser livre.” Em sua mente aturdida, imagens e lembranças se
confundiram. Viu seu pai pendurado em uma corda na Praça de Blat...
Levantou-se com o rosto sangrando. Lembrou-se da primeira pedra que
levou para a Virgem do Mar... O veterano estava de costas. O esforço que
naquela época precisara fazer para transportar aquela pedra nas costas... A
dor, o sofrimento, o orgulho ao descarregá-la...
— Seu porco!
O barbudo girou em sua direção. Todo o acampamento ouviu o roçar de
suas calças quando girou.
— Camponês estúpido! — gritou, antes de tornar a se lançar com todo
o seu tamanho sobre Arnau.
Nenhuma pedra poderia pesar menos do que esse porco. Nenhuma
pedra... Arnau se lançou sobre o outro, se agarrou a ele para impedir que o
golpeasse e ambos rolaram pela areia. Arnau conseguiu se levantar antes
do soldado e, em vez de bater nele, o agarrou pelos cabelos e pelo cinto de
couro que usava, ergueu-o como se fosse uma marionete e jogou-o pelo ar
em cima do círculo de curiosos.
O barbudo caiu estrepitosamente sobre os espectadores.
Porém aquela demonstração de força não intimidou o soldado.
Acostumado a brigar, em poucos segundos ele estava de novo diante de
Arnau, que estava firmemente plantado no chão, esperando-o. Dessa vez o
veterano tentou golpeá-lo em vez de se jogar sobre ele, mas Arnau foi
mais rápido: deteve o golpe agarrando-o pelo antebraço e, depois de girar
sobre si mesmo, jogou-o no chão mais uma vez, a vários metros dali. No
entanto, a maneira como Arnau se defendia não causava dano no soldado,
e o ataque se repetia diversas vezes.
No final, quando o veterano esperava que seu oponente o lançasse
novamente pelo ar, Arnau lhe desferiu um murro no rosto, um golpe em
que o bastaix colocou toda a raiva que trazia dentro de si.
Os gritos que tinham acompanhado a luta se calaram. O barbudo caiu
inconsciente aos pés de Arnau, que queria pegar a mão com que o tinha
golpeado e aliviar a dor que estava sentindo nos nós dos dedos, mas
aguentou os olhares com o punho fechado, como se estivesse disposto a
esmurrar novamente. “Não se levante”, pensou olhando para o soldado.
“Por Deus, não se levante.”
De maneira desajeitada, o homem tentou se erguer. “Não faça isso!”
Arnau apoiou o pé direito no rosto de seu adversário e empurrou-o para o
chão. “Não se levante, filho da puta.” Ele não o fez, e seus companheiros
se aproximaram para erguê-lo.
— Rapaz! — A voz soou autoritária. Arnau se virou e viu o cavaleiro
que causara a briga, ainda vestido com a armadura. — Venha até aqui.
Arnau obedeceu, massageando a mão dissimuladamente.
— Sou Eiximèn d’Esparça, escudeiro de sua majestade o rei Pedro III, e
quero que você sirva sob minhas ordens. Apresente-se aos meus oficiais.
28
***
Aledis não pôde resistir. “Você precisa de um banho”, disse uma prostituta
que saiu da barraca quando ela terminou de comer. Um banho! Havia
quantos dias não se lavava? Dentro da barraca, lhe prepararam uma bacia
de água fresca, e Aledis se sentou nela com as pernas encolhidas. As três
moças que a tinham acompanhado enquanto comia se ocuparam dela e a
lavaram. Por que não se deixar cuidar? Não podia se apresentar diante de
Arnau naquele estado. O exército estava acampado muito perto dali, e
Arnau devia estar lá. Ela conseguira! Por que não se deixar lavar? Também
se deixou vestir. Escolheram para ela o vestido menos chamativo, mas,
mesmo assim... “As mulheres públicas devem usar tecidos coloridos”, lhe
dissera a mãe quando ela, ainda menina, confundira uma prostituta com
uma nobre e quisera lhe dar passagem. “Então, como as distinguimos?”,
perguntara Aledis. “O rei as obriga a se vestir assim, mas elas são
proibidas de usar capa ou sobretudo mesmo no inverno. Assim você
distingue as prostitutas: elas nunca cobrem os ombros.”
Aledis se olhou novamente. As mulheres de sua classe, as esposas dos
artesãos, não podiam usar roupas coloridas; assim ordenava o rei, e, no
entanto, como eram belos aqueles tecidos! Mas como se apresentaria a
Arnau vestida daquela maneira? Os soldados a confundiriam... Ergueu um
braço para se ver de lado.
— Você gosta?
Aledis se virou e viu a patroa junto à entrada da barraca. Antònia, a
jovem loura de cabelos encaracolados que a ajudara a se vestir,
desapareceu ao primeiro sinal da outra.
— Sim... não... — Aledis se olhou outra vez. O vestido era verde-claro.
Será que aquelas mulheres teriam algo para cobrir os ombros? Se ela se
cobrisse, ninguém pensaria que era prostituta.
A patroa a olhou de cima a baixo. Não se enganara. Um corpo
voluptuoso que deixaria qualquer oficial encantado. E os olhos? As duas
mulheres se olharam. Eram enormes. Castanhos. Porém pareciam tristes.
— O que a trouxe aqui, menina?
— O meu esposo. Ele está no exército e foi embora sem saber que vai
ser pai. Quero dizer isso a ele antes que entre em combate.
Ela falou rapidamente, como fizera com os mercadores que a tinham
recolhido no Besós quando o barqueiro, ao tentar se desfazer dela
afogando-a no rio após consumar a violação, fora surpreendido pelos
comerciantes e fugira. Aledis terminara por se render àquele homem e
soluçara jogada no chão de lama enquanto ele a forçava e quando a
arrastara para o rio. O mundo não existia, o sol tinha se apagado e os
arquejos do barqueiro se perdiam em seu interior, mesclando-se às
lembranças e à impotência. Os mercadores tiveram dó quando a viram
naquele estado.
— É preciso denunciá-lo ao veguer — disseram.
Mas o que ela diria ao representante do rei? E se o seu marido estivesse
atrás dela? E se a descobrissem? Haveria um julgamento, e ela não podia...
— Não. Preciso chegar ao acampamento real antes que as tropas partam
para o Roussillon — disse ela, depois de lhes explicar que estava grávida e
que o marido não sabia. — Assim, contarei ao meu esposo e ele decidirá.
Os mercadores a acompanharam até Girona. Aledis se separou deles na
igreja de Sant Feliu, nos arredores da cidade; o mais velho balançou a
cabeça ao vê-la só e maltratada junto ao muro da igreja. Aledis recordou o
conselho das anciãs: não entre em nenhum povoado ou cidade. Por conta
disso, ela não entrou em Girona, uma cidade de seis mil habitantes. De
onde estava podia ver a cobertura da igreja de Santa Maria, a sé, em
construção; ao seu lado estava o palácio do bispo e, ao lado deste, a torre
Gironella, alta e grossa, a maior defesa da cidade. Olhou tudo aquilo por
um instante e se pôs novamente a caminho de Figueras.
A patroa, que continuava a observá-la enquanto Aledis recordava a
viagem, notou que ela tremia.
A presença do exército em Figueras atraía centenas de pessoas. Aledis
se somou a elas acossada pela fome. Não conseguia gravar os rostos.
Deram-lhe pão e água fresca. Alguém lhe ofereceu uma verdura. Passaram
a noite ao norte do rio Fluviá ao pé do castelo de Pontons, que protegia a
passagem do rio pela cidade de Báscara, a meio caminho entre Girona e
Figueras. Ali os viajantes cobraram pela comida, e dois deles montaram
nela como selvagens durante a noite. Que diferença fazia! Aledis buscou
na memória o rosto de Arnau para se consolar. No dia seguinte, seguiu-os a
alguns passos de distância, como um animal, mas não lhe deram comida
nem falaram com ela até que, finalmente, chegaram ao acampamento.
E agora... o que aquela mulher olhava? Seus olhos não se afastavam
de... sua barriga! Aledis reparou na própria barriga lisa e dura sob o
vestido justo. Se moveu inquieta e baixou os olhos.
A patroa deixou escapar uma expressão de satisfação que Aledis não
pôde ver. Quantas vezes ouvira aquelas confissões silenciosas? Moças que
inventavam histórias, incapazes de sustentar suas mentiras diante da mais
leve pressão; ficavam nervosas e baixavam os olhos, como aquela.
Quantas vezes ela vira moças grávidas? Dezenas, centenas de vezes?
Nunca vira uma moça grávida com uma barriga dura e lisa como aquela.
Uma falha na menstruação? Podia ser, mas era inimaginável que uma
falha a levasse a correr atrás de um esposo a caminho da guerra.
— Você não pode comparecer ao acampamento real vestida desse jeito.
— Aledis levantou os olhos ao ouvir a patroa e se olhou novamente. —
Somos proibidas de ir lá. Se você quiser, eu posso encontrar o seu esposo.
— Você me ajudaria? Por que o faria?
— Por acaso já não a ajudei? Dei-lhe de comer, lavei e vesti você.
Ninguém fez isto neste acampamento de loucos, não é mesmo? — Aledis
concordou. Um calafrio percorreu seu corpo ao lembrar como fora
maltratada. — Por que você estranha, então? — continuou a mulher.
Aledis hesitou. — Somos mulheres públicas, é verdade, mas não significa
que não tenhamos coração. Se alguém tivesse me ajudado há alguns anos...
— A patroa ficou com o olhar perdido, e suas palavras flutuaram no
interior da barraca. — Bem, não importa. Se você quiser, eu posso fazer
isso. Conheço muita gente no acampamento e não seria difícil trazer o seu
esposo.
Aledis avaliou a oferta. “Por que não?” A patroa pensou em sua futura
aquisição. Não seria difícil fazer desaparecer o esposo, uma simples briga
no acampamento... aqueles soldados lhe deviam muitos favores, e então a
quem a moça pediria ajuda? Estava só. Ela se entregaria facilmente. Se
fosse verdade, a gravidez não seria um problema; quantas ela resolvera
com algumas moedas?
— Eu agradeço — assentiu Aledis.
Pronto. Ela era sua.
— Como se chama seu esposo, e de onde vem?
— Vem com a host de Barcelona e se chama Arnau, Arnau Estanyol. —
A patroa estremeceu. — Aconteceu alguma coisa? — perguntou Aledis.
A mulher procurou o banquinho e sentou-se. Suava.
— Não — respondeu —, deve ser esse maldito calor. Traga-me aquele
leque.
“Não pode ser!”, pensou enquanto Aledis atendia seu pedido. Suas veias
latejavam. Arnau Estanyol! Não era possível!
— Descreva o seu esposo — disse, sentada e abanando-se.
— Ah! Deve ser muito fácil encontrá-lo. É bastaix do porto. É jovem e
forte, alto e bonito, e tem um sinal ao lado do olho direito.
A patroa continuou a se abanar em silêncio. Sua atenção foi muito além
de Aledis, para um povoado chamado Navarcles, uma festa de casamento,
uma enxerga e um castelo... Llorenç de Bellera, o escárnio, a fome e a
dor... Quantos anos tinham se passado? Vinte? Sim, deviam ser vinte,
talvez mais. E agora...
Aledis interrompeu o seu silêncio:
— Conhece-o?
— Não... não.
Chegara a conhecê-lo? Na verdade, recordava de muito pouco sobre ele.
Ela era só uma menina naquela época!
— A senhora me ajudará a encontrá-lo? — Aledis a interrompeu
novamente.
“E quem me ajuda se o encontrar?” Precisava ficar sozinha.
— Farei isso — afirmou, indicando a saída da barraca.
Quando Aledis saiu, Francesca levou as mãos ao rosto. Arnau! Tinha
chegado a esquecê-lo; ela se obrigara a fazê-lo, e agora, vinte anos
depois... Se a moça estava dizendo a verdade, aquela criança que levava
nas entranhas seria... seu neto! E ela chegara a pensar em matá-lo. Vinte
anos! Como seria ele? Aledis dissera que era alto, forte, bonito. Não se
lembrava dele, nem sequer recém-nascido. Conseguira que ele ficasse no
calor da forja, mas depois não podia chegar até onde estava o seu menino.
“Malditos! Eu era só uma menina e faziam fila para me violar!” Uma
lágrima começou a rolar pelo seu rosto. Havia quanto tempo não chorava?
Naquela época, vinte anos antes, não o fizera. “O menino estará melhor
com Bernat”, pensara na época. Quando soube de tudo, D. Caterina
esbofeteou-a e ela terminou mendigando, primeiro entre os soldados e o
lixo; depois, ao redor da muralha do castelo. Ninguém a desejava mais, e
Francesca passou a vagar entre a imundície ao lado de um monte de
desgraçados como ela, brigando pelos restos de pão duro, mofado e cheio
de vermes. Ali encontrou uma menina enquanto ambas fuçavam os restos.
Estava magra, mas era bonita. Ninguém a vigiava. Talvez se... Ofereceu-
lhe os restos de comida que guardara para si. A menina sorriu e seus olhos
se iluminaram; provavelmente não conhecia outra vida além daquela.
Lavou-a em um riacho e esfregou sua pele com areia até que a garota
gritou de dor e de frio. Depois só teve de levá-la a um dos oficiais do
castelo do senhor de Bellera. Assim começou tudo. “Endureci, filho,
endureci a tal ponto que meu coração tem calos. O que seu pai terá lhe
contado sobre mim? Que o entreguei à morte?”
Naquela mesma noite Francesca indagou sobre Arnau aos oficiais e
soldados do rei que foram à barraca depois de ganhar nas cartas.
— Você se refere ao bastaix? — respondeu um deles. — É claro que o
conheço, todos o conhecem. — Francesca inclinou a cabeça. — Dizem que
venceu um veterano que todos temiam — explicou —, e Eiximèn
d’Esparça, o escudeiro do rei, recrutou-o para sua guarda pessoal. Tem um
sinal perto do olho. Foi treinado para usar o punhal, sabe? Então começou
a competir em várias contendas e venceu todas. Vale a pena apostar nele.
— O oficial sorriu. — Por que está interessada nele? — acrescentou,
ampliando o sorriso.
“Por que não dar asas a uma imaginação lasciva?”, pensou ela. Era
difícil dar outra explicação. Ela piscou um olho para o oficial.
— Você já está velha para um homem desses. — O soldado riu.
Francesca não se alterou.
— Traga-o para mim e não se arrependerá.
— Aonde? Aqui?
E se Aledis estivesse mentindo? Suas primeiras impressões nunca
falhavam.
— Não. Aqui não.
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***
“Ninguém fará mal a estas crianças. Pai, onde você está? Por quê, pai? No
palácio há grãos. Maria, eu amo você...”
Quando Arnau delirava, Sahat obrigava as crianças a saírem do quarto e
mandava chamar Hasdai, o pai de Raquel e Jucef, para ajudá-lo a
imobilizar o bastaix caso ele começasse a lutar contra os soldados do
Roussillon, para que a ferida não se abrisse novamente. Senhor e escravo o
vigiavam aos pés da cama, enquanto uma escrava aplicava compressas
frias em sua testa. Estavam assim fazia uma semana, durante a qual Arnau
recebera os melhores cuidados dos médicos judeus e a atenção constante
da família Crescas e de seus escravos, especialmente Sahat, que velava o
doente dia e noite.
— A ferida não tem muita importância — diagnosticaram os médicos
—, mas a infecção afetou todo o corpo.
— Ele sobreviverá? — perguntou Hasdai.
— Ele é um homem forte — limitaram-se a responder os médicos antes
de deixar a casa.
— Há trigo no palácio! — gritou Arnau novamente depois de um
tempo, suando devido à febre.
— Se não fosse por ele — disse Sahat —, estaríamos todos mortos.
— Eu sei — respondeu Hasdai, de pé a seu lado.
— Por que terá feito isso? Ele é cristão.
— É uma boa pessoa.
À noite, quando Arnau descansava e a casa permanecia em silêncio,
Sahat se ajoelhava virado para a direção sagrada e rezava pelo cristão.
Durante o dia, pacientemente o obrigava a beber água e engolir as misturas
preparadas pelos médicos. Raquel e Jucef vinham vê-lo com frequência, e
Sahat os deixava entrar quando Arnau não estava delirando.
— Ele é um guerreiro — disse Jucef em certa ocasião, de olhos
arregalados.
— Ele disse que era um bastaix — Raquel o corrigiu.
— No cemitério ele disse que era um guerreiro. Talvez seja um bastaix
guerreiro.
— Ele disse isso para você ficar calado.
— Eu apostaria que é um bastaix — interveio Hasdai. — Pelo que ele
diz.
— É um guerreiro — insistiu o menor.
— Não sei, Jucef. — O escravo lhe acariciou os cabelos pretos. — Por
que não esperamos que se cure e então ele mesmo nos contará?
— Ele vai ficar bom?
— É claro. Onde já se viu um guerreiro morrer por causa de um
ferimento na perna?
Quando as crianças saíam, Sahat se aproximava de Arnau e tocava sua
testa, que continuava a arder. “Não foram só as crianças que sobreviveram
graças a você, cristão. Por que você fez isso? O que o levou a arriscar a
vida por um escravo e três crianças judias? Você tem de sobreviver. Quero
falar com você, agradecer. Além disso, Hasdai é muito rico e certamente
vai recompensá-lo.”
Alguns dias depois, Arnau começou a se recuperar. Certa manhã, Sahat
o encontrou muito menos febril.
— Alá, louvado seja seu nome, me ouviu.
Hasdai sorriu ao comprová-lo pessoalmente.
— Ele sobreviverá — atreveu-se a garantir aos filhos.
— Ele vai me contar das batalhas?
— Filho, não acho...
Mas Jucef começou a imitar Arnau, movendo o punhal diante de um
grupo imaginário de agressores. No momento em que ia degolar o caído, a
irmã agarrou-o pelo braço.
— Jucef! — gritou.
Quando voltaram a olhar para o doente, os olhos de Arnau estavam
abertos. Jucef se sobressaltou.
— Como se sente? — perguntou Hasdai.
Arnau tentou responder, mas sua boca estava seca. Sahat lhe trouxe um
copo d’água.
— Bem — conseguiu responder depois de beber. — E as crianças?
Empurrados pelo pai, Jucef e Raquel se aproximaram da cabeceira da
cama. Arnau esboçou um sorriso.
— Olá — disse Arnau.
— Olá — responderam elas.
— E Saul?
— Está bem — respondeu Hasdai —, mas agora você deve descansar.
Vamos, crianças.
— Quando você ficar bom, vai me contar de suas batalhas? —
perguntou Jucef antes que o pai e a irmã o levassem para fora do quarto.
Arnau concordou e tentou esboçar um sorriso.
Na semana seguinte a febre baixou completamente, e a ferida começou
a cicatrizar. Arnau e Sahat conversavam sempre que o bastaix tinha forças
para tal.
— Obrigado — foi a primeira coisa que disse ao escravo.
— Você já agradeceu, lembra? Por que... por que fez isso?
— Os olhos do menino... minha mulher não teria permitido...
— Maria — afirmou Sahat, se lembrando dos delírios de Arnau.
— Sim — respondeu Arnau.
— Quer que lhe avisemos que você está aqui? — Arnau apertou os
lábios e fez que não com a cabeça. — Quer que avisemos alguém? — O
escravo não insistiu ao ver a expressão que anuviou o rosto de Arnau.
— Como terminou o ataque? — perguntou Arnau a Sahat em outra
ocasião.
— Duzentos homens e mulheres assassinados. Muitas casas saqueadas
e incendiadas.
— Que tragédia!
— Nem tanto — afirmou Sahat. Arnau olhou surpreso para ele. — A
judiaria de Barcelona teve sorte. Os judeus foram assassinados sem
piedade do Oriente até Castela. Mais de trezentas comunidades foram
totalmente destruídas. Na Alemanha o próprio imperador Carlos IV
prometeu conceder perdão a qualquer delinquente que assassinasse um
judeu ou destruísse uma judiaria. Imagina o que teria ocorrido em
Barcelona se o seu rei, em vez de protegê-la, tivesse perdoado a todos os
que matassem um judeu? — Arnau fechou os olhos e balançou a cabeça.
— Em Mainz queimaram seis mil judeus na fogueira, e em Estrasburgo
imolaram outros dois mil em uma enorme pira no cemitério judeu,
incluindo mulheres e crianças. Dois mil de uma vez...
***
As crianças só podiam entrar no quarto de Arnau quando Hasdai visitava o
doente e cuidava para que não o perturbassem. Um dia, quando Arnau já
começava a se levantar do leito e caminhar um pouco, Hasdai apareceu
sozinho. O judeu, alto e magro, de cabelos negros longos e lisos, olhar
penetrante e nariz adunco, sentou-se diante dele.
— Você deve saber... — disse com voz grave. — Suponho que saiba —
corrigiu-se — que os seus sacerdotes proíbem a coabitação entre cristãos e
judeus.
— Não se preocupe, Hasdai; assim que eu puder andar...
— Não — interrompeu-o o judeu —; não estou dizendo que você deva
ir embora da minha casa. Você salvou os meus filhos da morte certa
arriscando a própria vida. Tudo o que eu tenho é seu, e lhe serei
eternamente agradecido. Você pode ficar nesta casa o tempo que quiser.
Minha família e eu ficaremos muito honrados se o fizer. Só queria adverti-
lo, principalmente se resolver ficar, que devemos ser extremamente
discretos. Da parte dos meus, ninguém saberá que você vive na minha
casa, e aqui incluo toda a comunidade hebraica; quanto a isto, você pode
ficar tranquilo. A decisão é sua, e insisto em que ficaríamos muito
honrados e felizes se você decidisse continuar conosco. O que você
responde?
— Quem contaria minhas batalhas a seu filho?
Hasdai sorriu e estendeu a mão, que Arnau apertou.
***
***
***
A mesa de câmbio de Arnau Estanyol funcionava. A peste dizimara os
cambistas catalães, a presença de Guillem era uma garantia para os
investidores, e as pessoas, à medida que a epidemia recuava, traziam à luz
o dinheiro que mantinham guardado em casa. No entanto, Guillem não
conseguia dormir. “Venda-os em Maiorca”, aconselhara Hasdai para que
Arnau não soubesse da operação com os escravos. Guillem assim ordenou.
“É um mau momento!”, reclamou, dando a enésima volta na cama.
Recorreu a um dos últimos navios que partiam de Barcelona na época de
navegação, quase no começo de outubro. Bizâncio, Palestina, Rodes e
Chipre: estes eram os destinos dos quatro mercadores que embarcaram em
nome de Arnau Estanyol, o cambista de Barcelona, garantidos por letras de
câmbio que Guillem dera a Arnau para assinar. Ele nem sequer as olhara.
Aqueles mercadores deveriam comprar escravos e levá-los a Maiorca.
Guillem voltou a mudar de posição na cama.
Entretanto, as circunstâncias políticas conspiravam contra ele: apesar
da mediação do Sumo Pontífice, o rei Pedro conquistara definitivamente a
Sardenha e o Roussillon um ano depois da primeira tentativa, ao término
da prorrogação que concedera. Em 15 de julho de 1344, depois da rendição
da maior parte de suas cidades e vilarejos, Jaime III se ajoelhou diante do
cunhado com a cabeça descoberta, rogando misericórdia e entregando seus
territórios ao conde de Barcelona. O rei Pedro lhe concedeu o senhorio de
Montpellier e os viscondados de Omelades e Carladés, mas recuperou as
terras catalãs de seus antepassados: Maiorca, o Roussillon e a Sardenha.
No entanto, após a rendição, Jaime de Maiorca reuniu um pequeno
exército de sessenta cavaleiros e trezentos homens a pé e voltou a entrar
na Sardenha para lutar contra o cunhado. O rei Pedro nem sequer se
apresentou para a batalha. Se limitou a enviar seus lugar-tenentes.
Cansado, farto e derrotado, o rei Jaime procurou refúgio junto ao papa
Clemente VI, que continuava a favorecer seus interesses, e lá, no seio da
Igreja, foi tramada a última estratégia: Jaime III vendeu ao rei Filipe VI,
da França, o senhorio de Montpellier por doze mil escudos de ouro; com
esta soma, além dos empréstimos da Igreja, armou uma frota fornecida
pela rainha Joana de Nápoles e, em 1349, voltou a desembarcar em
Maiorca.
Estava previsto que os escravos chegariam nas primeiras viagens de
1349. Uma grande quantidade de dinheiro estava em jogo, e, se alguma
coisa desse errado, o nome de Arnau — por mais que Hasdai respondesse
por ele — ficaria manchado ante os correspondentes com os quais
trabalharia no futuro. Ele assinara as letras de câmbio, e, mesmo que
Hasdai pagasse como avalista, o mercado não permitia que uma letra
ficasse sem pagamento. As relações com os correspondentes de países
longínquos se baseavam na confiança, uma confiança cega. Como um
cambista poderia triunfar se a sua primeira operação falhasse?
— Até ele me recomendou que evitássemos qualquer rota que passasse
por Maiorca — confessou Guillem um dia, sentado no jardim de Hasdai, a
única pessoa com quem podia se abrir.
Evitavam se olhar e, no entanto, sabiam que ambos pensavam a mesma
coisa. Quatro navios de escravos! Até Hasdai poderia se arruinar com
aquela operação.
— Se o rei Jaime não foi capaz de manter a palavra dada quando se
rendeu — disse Guillem, procurando o olhar de Hasdai —, o que será do
comércio e dos bens dos catalães?
Hasdai não respondeu. O que poderia dizer?
— Talvez os seus mercadores escolham outro porto — disse por fim.
— Barcelona? — perguntou Guillem, balançando a cabeça.
— Ninguém poderia prever uma coisa dessas — o judeu tentou
tranquilizá-lo.
Arnau salvara seus filhos de uma morte certa. Como não se consolar
com isso?
Em maio de 1349, o rei Pedro enviou a armada catalã a Maiorca em
plena época de navegação, em plena época de comércio.
— Por sorte não enviamos nenhum navio a Maiorca — comentou
Arnau certa vez.
Guillem se viu obrigado a concordar.
— O que teria acontecido — continuou — se tivéssemos feito isso?
— O que quer dizer?
— Nós recebemos dinheiro das pessoas e o investimos em comandas.
Se tivéssemos enviado um navio a Maiorca e o rei Jaime o tivesse
confiscado, não teríamos o dinheiro nem as mercadorias; não poderíamos
devolver os depósitos. Nós assumimos os riscos das comandas. O que
aconteceria então?
— Abatut — respondeu Guillem de mau humor.
— Abatut?
— Quando um cambista não pode devolver os depósitos, o juiz de
câmbios lhe concede um prazo de seis meses para saldar as dívidas. Se ao
final do prazo não as liquidar, é declarado abatut, ele é encarcerado a pão
e água e tem de vender seus bens para pagar os credores...
— Eu não tenho bens.
— Se os bens não são suficientes para cobrir as dívidas — continuou a
recitar Guillem —, sua cabeça é decepada diante de seu estabelecimento
para servir de exemplo aos outros cambistas.
Arnau ficou em silêncio.
O escravo não se atreveu a olhar para ele. Que culpa tinha Arnau de
tudo aquilo?
— Não se preocupe — tentou tranquilizá-lo —, isso não vai acontecer.
35
***
***
1. Instituição beneficente do bispado que fornecia cem refeições diárias aos necessitados. (N. da
T.)
36
1º de janeiro de 1354
Praça de Santa Maria do Mar
Barcelona
Tinha de ser em frente a Santa Maria, pensou Arnau vendo de sua janela
toda Barcelona reunida e acotovelada na praça e nas ruas adjacentes, sobre
os andaimes, até dentro da igreja, com os olhos no palanque que o rei
mandara erguer. Pedro III não escolhera a Praça de Blat nem a da catedral,
a alfândega nem o pomposo estaleiro que ele próprio estava construindo;
não. Ele escolhera Santa Maria, a igreja do povo, aquela que estava sendo
erguida graças à união e ao sacrifício de sua gente.
— Não existe um lugar em toda a Catalunha que represente melhor o
espírito dos habitantes de Barcelona — comentou Arnau com Guillem
naquela manhã, enquanto viam os operários erguerem o palanque. — E o
rei sabe disso. Por isso a escolheu.
Arnau sentiu um calafrio. Sua vida girava em torno daquela igreja!
— Isso vai nos custar dinheiro! — resmungou o mouro.
Arnau se virou para ele com vontade de protestar, mas Guillem não
tirou os olhos do palanque, e Arnau resolveu ficar quieto.
Cinco anos tinham se passado desde que tinham aberto a mesa de
câmbio. Arnau tinha trinta e três anos, era feliz... E rico, muito rico.
Levava uma via austera, mas os seus livros registravam uma fortuna
considerável.
— Vamos tomar o café da manhã — insistiu, colocando a mão em seu
ombro.
Lá embaixo, na cozinha, Donaha os esperava com a menina, que a
ajudava a pôr a mesa.
A escrava continuou a preparar a refeição, mas, ao vê-los, Mar correu
em sua direção.
— Todos falam da visita do rei! — gritou. — Podemos ir lá perto? Os
cavaleiros virão também?
Guillem se sentou à mesa com um suspiro.
— Vêm nos pedir mais dinheiro — explicou ele à menina.
— Guillem! — exclamou Arnau, ante a expressão perplexa de Mar.
— É verdade — defendeu-se o mouro.
— Não, não é, Mar — disse Arnau, recebendo um sorriso como prêmio.
— O rei vem nos pedir ajuda para conquistar a Sardenha.
— Dinheiro? — perguntou a menina, depois de piscar um olho para
Guillem.
Arnau olhou para ela primeiro e depois para Guillem; os dois sorriram
com ironia. Como aquela menina tinha crescido! Já era quase uma moça,
bela, inteligente, com um encanto capaz de cativar quem quer que fosse.
— Dinheiro? — repetiu ela, interrompendo os seus pensamentos.
— Todas as guerras custam dinheiro! — Arnau se viu obrigado a
reconhecer.
— Ah! — disse Guillem abrindo os braços.
Donaha começou a servir as tigelas.
— Por que você não diz a ela — continuou Arnau quando Donaha
terminou de encher as vasilhas — que na verdade não nos custa dinheiro,
mas ganhamos dinheiro?
Mar abriu os olhos em direção a Guillem.
O mouro hesitou.
— Há três anos pagamos impostos especiais — comentou, se negando a
dar razão a Arnau —, três anos de uma guerra que nós, os barceloneses,
estamos pagando.
Mar apertou os lábios em um sorriso e se virou para Arnau.
— Certo — reconheceu Arnau. — Há exatamente três anos nós, os
catalães, assinamos um tratado com Veneza e Bizâncio para guerrearmos
com Gênova. Nosso objetivo era conquistar a Córsega e a Sardenha, que,
pelo tratado de Agnani, deveriam ser feudos catalães e, no entanto,
estavam em poder dos genoveses. Sessenta e oito galeras armadas! —
Arnau elevou a voz. — Sessenta e oito galeras armadas, vinte e três
catalãs, e o restante venezianas e gregas, enfrentam sessenta e cinco
galeras genovesas no Bósforo.
— O que aconteceu? — perguntou Mar diante do silêncio repentino de
Arnau.
— Ninguém ganhou. Nosso almirante, Ponç de Santa Pau, morreu na
batalha, e só regressaram dez das vinte e três galeras catalãs. O que
aconteceu então, Guillem? — O escravo balançou a cabeça. — Conte-lhe,
Guillem — insistiu Arnau.
Guillem suspirou.
— Os bizantinos nos traíram — recitou — e, em troca da paz, fizeram
um pacto com Gênova concedendo-lhes o monopólio de seu comércio.
— E o que mais aconteceu? — insistiu Arnau.
— Perdemos uma das rotas mais importantes do Mediterrâneo.
— Perdemos dinheiro?
— Perdemos.
Mar acompanhava a conversa olhando de um para o outro. Até Donaha,
ao lado do fogo, fazia a mesma coisa.
— Muito dinheiro?
— Muito.
— Mais do que entregamos depois ao rei?
— Mais.
— Só se o Mediterrâneo for nosso poderemos comerciar em paz —
sentenciou Arnau.
— E os bizantinos? — perguntou Mar.
— No ano seguinte, o rei armou uma frota de cinquenta galeras,
capitaneada por Bernat de Cabrera, e venceu os genoveses na Sardenha. O
nosso almirante tomou trinta e três galeras e afundou outras cinco. Oito
mil genoveses morreram, e três mil e duzentos foram capturados, e só
quarenta catalães perderam a vida! Os bizantinos — continuou a encarar
Mar, cujos olhos brilhavam de curiosidade — voltaram atrás e abriram
novamente seus portos para o nosso comércio.
— Três anos de impostos especiais que ainda estamos pagando —
completou Guillem.
— Mas, se o rei já tem a Sardenha e nós o comércio com Bizâncio, o
que o monarca veio buscar desta vez? — perguntou Mar.
— Os nobres da ilha, encabeçados por um tal juiz de Arbórea, pegaram
em armas contra o rei Pedro, e ele precisa sufocar a revolta.
— O rei — interveio Guillem — deveria se conformar com as rotas
comerciais abertas e cobrar seus impostos. A Sardenha é uma terra difícil.
Nunca a dominaremos.
O rei não economizou em luxo para se apresentar diante de seu povo.
Sobre o palanque, sua baixa estatura passou despercebida para a multidão.
Estava usando sua melhor veste, de um vermelho carmesim que brilhava
tanto ao sol do inverno quanto as pedras que a adornavam. Para aquela
ocasião, não se esquecera de usar a coroa de ouro nem, claro, o pequeno
punhal que sempre levava na cinta. O seu séquito de nobres e cortesãos
não ficava atrás e, como o seu senhor, se vestia com muito luxo.
O rei se dirigiu ao povo, exaltando-o. Quando um rei falava aos
cidadãos simples para lhes explicar o que pensava em fazer? Ele falou da
Catalunha, de suas terras e seus interesses. Falou da traição de Arbórea na
Sardenha, e as pessoas levantaram os braços e clamaram por vingança. O
rei continuou a exaltar o povo diante de Santa Maria, e finalmente pediu a
ajuda de que precisava; todos lhe teriam entregado seus filhos, se ele
pedisse.
Todos os barceloneses contribuíram, Arnau pagou a quantia que lhe
correspondia como cambista da cidade, e o rei partiu para a Sardenha à
frente de uma frota de cem navios.
Quando o exército deixou Barcelona, a cidade retornou à normalidade e
Arnau voltou a se dedicar à sua mesa de câmbio, a Mar, a Santa Maria e a
ajudar os que o procuravam pedindo empréstimo.
Guillem teve de se acostumar a uma forma de agir muito diferente da
dos cambistas e mercadores que conhecera até então, incluindo Hasdai
Crescas. No começo, se opôs e reclamava com Arnau cada vez que abria a
bolsa para entregar dinheiro a um dos muitos trabalhadores que
precisavam dele.
— Por acaso eles não pagam? Por acaso não devolvem? — perguntava-
lhe Arnau.
— São empréstimos sem juros — argumentava Guillem. — Esse
dinheiro devia estar dando lucro.
— Quantas vezes você me disse que devíamos comprar um palácio, que
devíamos viver melhor? Quanto custaria tudo isso, Guillem? Você sabe
melhor do que ninguém dos créditos que concedemos a essas pessoas.
E Guillem foi obrigado a se calar. Porque era verdade. Arnau vivia em
uma casa modesta na esquina das ruas Canvis Nous e Canvis Vells. O
único gasto que não poupava era com a educação de Mar. A menina era
educada na casa de um mercador amigo aonde iam preceptores, e, claro,
em Santa Maria. Em pouco tempo a comissão da obra da paróquia foi
pedir ajuda econômica a Arnau.
— Já tenho uma capela — respondeu Arnau quando a comissão lhe
pediu que apadrinhasse uma das capelas laterais de Santa Maria. — Sim
— acrescentou, diante da surpresa da comitiva —, a minha capela é a do
Santíssimo, a dos bastaixos, e será sempre essa. De qualquer maneira... —
disse, abrindo o cofre — de que necessitam?
De que necessitam? Quanto quer? Esta quantia seria suficiente? Isto lhe
basta? Guillem teve de se acostumar àquelas perguntas, mas começou a
ceder quando as pessoas o cumprimentavam, sorriam-lhe e agradeciam
quando passeava pela praia ou pelo bairro da Ribera. “Talvez Arnau tenha
razão”, começou a pensar. Ele se entregava aos outros, mas não fizera a
mesma coisa com ele e as três crianças judias que iam ser apedrejadas e
ele nem conhecia? Se não fosse por seu caráter, o mais provável era que
ele, Jucef e Raquel tivessem sido mortos. Por que deveria mudar pelo fato
de ser rico? Então o mouro, como Arnau, começou a sorrir para as pessoas
com que cruzava e a cumprimentar os desconhecidos que lhe davam
passagem.
No entanto, aquela forma de agir não tinha relação com algumas
decisões que Arnau tomara ao longo dos anos. Parecia lógico que ele se
negasse a participar da comanda de frotas dedicadas ao comércio de
escravos, mas por que, Guillem se perguntava, se negava às vezes a
participar de certos negócios que não tinham nada a ver com os escravos?
Das primeiras vezes, Arnau justificou suas decisões sem entrar em
discussão.
— Não me convence.
— Não gosto.
— Não, não está claro para mim.
Finalmente, o mouro perdeu a paciência.
— É uma boa operação, Arnau — disse ele, quando os comerciantes
deixaram a mesa de câmbio. — O que está acontecendo? Às vezes você
recusa negócios que nos renderiam bons lucros. Não entendo. Já sei que
não devo...
— Sim, você deve — interrompeu-o, sem se virar para ele, sentados os
dois em suas cadeiras atrás da mesa —, sinto muito. O que acontece... —
Guillem esperou que ele se decidisse. — Você sabe, nunca participarei de
um negócio em que Grau Puig esteja envolvido. O meu nome nunca estará
unido ao dele.
Arnau olhou para a frente, muito além da parede de sua casa.
— Algum dia você me contará?
— Por que não? — murmurou, virando-se para ele. E contou.
***
Guillem conhecia Grau Puig, pois ele operara com Hasdai Crescas. O
mouro se perguntava por que, se Arnau não queria trabalhar com ele, o
barão, por sua vez, se prestava a fazê-lo com Arnau. Por acaso os
sentimentos não eram recíprocos depois de tudo o que Arnau lhe contara?
— Por quê? — perguntou ele uma vez a Hasdai Crescas depois de
resumir a história de Arnau, sabendo que ela não sairia dali.
— Porque muita gente não quer trabalhar com Grau Puig. Há muito
tempo eu não o faço, e, como eu, muitos outros. É um homem obcecado
por estar ali onde não foi chamado por nascimento. Enquanto era um
simples artesão, era confiável; agora... agora os seus objetivos são outros,
e nunca entendeu onde se meteu ao contrair matrimônio. — Hasdai
balançou a cabeça. — Para ser nobre é preciso nascer nobre, é preciso ter
mamado na nobreza. Não é que isso seja bom ou que eu o defenda, mas só
os nobres que mamaram ali podem continuar a ser nobres e, ao mesmo
tempo, controlar os riscos. Além disso, quando se arruínam, quem se
atreve a contradizer um barão catalão? São orgulhosos, soberbos, nascidos
para mandar e para estar acima dos demais, até na ruína. Grau Puig só
pode continuar a ser nobre à força de dinheiro. Gastou uma fortuna no dote
da filha Margarida, e isso quase o arruinou. Toda Barcelona sabe disso!
Riem dele pelas costas, e sua esposa sabe disso. O que faz um simples
artesão vivendo em um palácio na Rua de Montcada? E, quanto mais os
outros fazem piada, mais precisa demonstrar seu poder dilapidando
dinheiro. O que faria Grau Puig sem dinheiro?
— Você quer dizer...?
— Não quero dizer nada, mas eu não faria negócios com ele. Nisso,
ainda que seja por outros motivos, o seu patrão acertou.
A partir daquele dia, Guillem apurava os ouvidos quando ouvia alguma
conversa sobre Grau Puig, e na alfândega, no Consulado do Mar, nas
transações, no meio da compra e venda de mercadorias, nos comentários
sobre a situação do comércio, se falava muito do barão, até demais.
— O filho, Genís Puig... — comentou um dia com Arnau, ao saírem da
alfândega e pararem para olhar o mar, um mar calmo, plácido, manso
como nunca. Arnau se virou para ele ao ouvir aquele nome. — Genís Puig
teve de pedir um empréstimo barato para acompanhar o rei a Maiorca. —
Seus olhos brilharam? Guillem sustentou o olhar de Arnau. Não lhe
respondera, mas os olhos haviam, sim, brilhado. — Quer que eu prossiga?
Arnau continuou em silêncio, mas finalmente concordou com a cabeça.
Seus olhos estavam semicerrados, e os lábios levemente apertados. E
continuou a concordar por um bom tempo.
— Você me autoriza a tomar as decisões que eu considere oportunas?
— perguntou Guillem por fim.
— Não autorizo. Eu suplico, Guillem, eu suplico.
Discretamente, Guillem começou a empregar seus conhecimentos e os
muitos contatos que fizera ao longo de anos de negociações. Que o filho, o
cavaleiro D. Genís, tivesse de recorrer a um empréstimo especial para
nobres significava que o pai já não podia custear os gastos de guerra. Os
empréstimos baratos, pensava Guillem, implicavam juros consideráveis;
são os únicos em que se admite a cobrança de juros entre cristãos. Por que
um pai permitiria que o filho pagasse juros, a menos que não possuísse
esse capital? E a tal Isabel? Aquela víbora que tentara afundar Arnau e seu
pai, que obrigara Arnau a se arrastar de joelhos, como podia permitir uma
situação como essa?
Guillem lançou mão de suas redes ao longo de alguns meses; falou com
os amigos, com os que lhe deviam favores, e enviou mensagens a todos os
seus correspondentes: qual era a situação de Grau Puig, barão catalão,
comerciante? O que sabiam sobre ele, seus negócios, suas finanças... sobre
sua solvência?
Quando a temporada de navegação estava quase terminando e os navios
regressavam ao porto de Barcelona, ele começou a receber respostas às
suas cartas, informações valiosas! Uma noite, ao fecharem o
estabelecimento, Guillem permaneceu sentado à mesa.
— Tenho coisas para fazer — disse a Arnau.
— Que coisas?
— Amanhã lhe contarei.
No dia seguinte, pela manhã, antes do café da manhã, os dois se
sentaram à mesa, e Guillem contou:
— Grau Puig está em uma situação crítica. — Teriam aqueles olhos
voltado a brilhar? — Todos os cambistas e mercadores com quem
conversei concordam que sua fortuna se evaporou...
— Talvez sejam boatos mal-intencionados — interrompeu-o Arnau.
— Espere. Veja. — Guillem lhe entregou as respostas dos
correspondentes. — Isto é uma prova. Grau Puig está nas mãos dos
lombardos.
Arnau pensou nos lombardos: cambistas e mercadores, correspondentes
das grandes casas florentinas ou pisanas, um grupo fechado que velava por
seus próprios interesses, e cujos membros negociavam entre si ou com
suas casas matrizes. Monopolizavam o comércio de tecidos de luxo: lã,
seda e brocados, tafetá de Florença, tules pisanos e muitos outros
produtos. Os lombardos não ajudavam ninguém e, se cediam parte de seu
mercado ou de seus negócios, o faziam única e exclusivamente para não
serem expulsos da Catalunha. Não era bom depender deles. Folheou a
documentação e deixou-a sobre a mesa.
— O que você propõe?
— O que você quer?
— Você já sabe: quero a ruína dele.
— Segundo contam, Grau já é um ancião, e seus negócios estão nas
mãos dos filhos e da esposa. Imagine! Suas finanças estão em um
equilíbrio precário; se alguma operação falhar, tudo pode desmoronar, e
eles não poderão saldar seus compromissos. Eles perderiam tudo.
— Compre as suas dívidas — disse Arnau com frieza, sem mover um
só músculo do corpo. — Faça-o discretamente. Quero ser credor deles e
não quero que saibam. Faça com que uma de suas operações falhe... Não,
uma não — se corrigiu —, todas! — gritou, esmurrando a mesa com tanta
força que até os livros saltaram. — Todas as que você conseguir —
acrescentou em voz baixa. — Não quero que eles escapem.
20 de setembro de 1355
Porto de Barcelona
***
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***
A chegada de Arnau à praia foi tão festejada quanto a do próprio rei. Toda
a cidade quis parabenizá-lo, e ele foi de um para o outro, recebendo
felicitações, tapinhas nas costas e apertos de mão. Todo mundo queria se
aproximar do salvador da cidade, mas Arnau não conseguia reconhecer
nem ouvir ninguém. Agora que tudo ia bem para ele, que estava feliz, o rei
decidira casá-lo. Dificultando sua passagem, os barceloneses o
acompanharam da praia até a mesa de câmbio e, depois que entrou,
permaneceram diante da entrada gritando seu nome sem cessar.
Assim que entrou, Mar se jogou em seus braços. Guillem já tinha
chegado e estava sentado em uma cadeira; não contara nada. Joan, que
também viera para a mesa, o observava com seu habitual aspecto
taciturno.
Mar ficou surpresa quando Arnau, talvez com mais força do que
pretendia, se desvencilhou de seu abraço. Joan foi felicitá-lo, mas Arnau
também não lhe deu atenção. Por fim, se jogou em uma cadeira ao lado de
Guillem. Os demais olhavam para ele e não ousavam dizer nada.
— O que foi? — atreveu-se por fim a perguntar Joan.
— Vão me casar! — gritou Arnau, erguendo os braços acima da cabeça.
— O rei decidiu converter-me em barão e casar-me com sua pupila. Esse é
o favor que me faz por ajudá-lo a salvar a sua capital! Casar-me!
Joan pensou um instante, inclinou a cabeça e sorriu.
— Por que você se queixa? — perguntou.
Arnau olhou para ele de esguelha. Ao seu lado, Mar começara a tremer.
Só Donaha, da porta da cozinha, a viu e correu para ajudá-la a se manter de
pé.
— O que lhe desagrada? — insistiu Joan. O irmão nem olhou para ele.
Mar sentiu a primeira ânsia ao ouvir as palavras do frade. — O que há de
mau em se casar? E com a pupila do rei! Você se tornará um barão da
Catalunha.
Temendo vomitar, a jovem foi com Donaha para a cozinha.
— O que houve com Mar? — perguntou Arnau.
O frade demorou um instante para responder.
— Eu lhe direi o que está acontecendo — disse por fim. — Ela também
deve se casar! Os dois deveriam se casar. Por sorte o rei tem mais cabeça
do que você.
— Deixe-me, Joan, por favor — disse Arnau, sem energia.
O frade ergueu os braços e saiu da mesa de câmbio.
— Verifique o que está acontecendo com Mar — pediu Arnau a
Guillem.
— Não sei o que é — disse Guillem pouco depois —, mas Donaha disse
que não me preocupasse. Coisas de mulher — acrescentou.
Arnau se virou para ele.
— Não me fale de mulheres.
— Pouco podemos fazer contra os desejos do rei, Arnau. Talvez com
um pouco de tempo... encontremos uma solução.
Mas não tiveram tempo. Pedro III decidiu partir para Maiorca em 23 de
junho, para perseguir o rei de Castela; ordenou que a armada se reunisse
no porto de Barcelona e manifestou que, antes de partir, queria resolver o
assunto do matrimônio de sua pupila Elionor com o rico Arnau. O oficial
do rei comunicou isso ao bastaix em sua mesa de câmbio.
— Só tenho nove dias! — queixou-se a Guillem quando o oficial
desapareceu pela porta. — Talvez menos!
Como seria a tal Elionor? Arnau não dormia só de pensar naquilo.
Velha? Bela? Simpática e agradável ou altiva e cínica como todos os
nobres que conhecera? Como poderia se casar com uma mulher que sequer
conhecia? Encarregou Joan do assunto:
— Você tem como sabê-lo. Descubra como é essa mulher. Não consigo
parar de pensar no que me espera.
— Dizem — Joan lhe contou na tarde do dia em que o oficial se
apresentou em sua mesa — que é bastarda de um dos infantes do
principado, de um tio do rei, mas ninguém se atreve a garantir de qual
deles. A mãe faleceu no parto, e por isso ela foi acolhida na corte...
— Mas como é ela, Joan? — interrompeu-o Arnau.
— Tem vinte e três anos e é atraente.
— E de caráter?
— É nobre — limitou-se a responder.
Para que lhe contaria tudo o que soubera? Certamente é atraente, lhe
disseram, mas seus traços refletem um tédio permanente. É caprichosa e
mimada, altiva e ambiciosa. O rei a casara com um nobre que faleceu
pouco depois, e ela, sem filhos, voltou para a corte. Um favor para Arnau?
Uma graça real? Seus confidentes riram. O rei já não aguentava Elionor, e
com quem melhor casá-la do que com um dos homens mais ricos de
Barcelona, um cambista a quem poderia acudir para conseguir
empréstimos? O rei Pedro saía ganhando em todos os sentidos: se livrava
de Elionor e garantia o acesso a Arnau. Para que lhe contar tudo isso?
— O que você quer dizer com “é nobre”?
— Isso mesmo — disse Joan, evitando olhar para Arnau —, que é
nobre, uma mulher nobre, com seu caráter, como todas elas.
Elionor também fizera averiguações por sua conta, e sua irritação
aumentava à medida que as notícias chegavam: um antigo bastaix, um
grêmio que provinha dos escravos da ribeira. Como o rei pretendia casá-la
com um bastaix? Era rico, muito rico, disseram, mas o que importava o
seu dinheiro? Ela vivia na corte e não lhe faltava nada. Resolveu acudir ao
rei quando descobriu que Arnau era filho de um camponês fugitivo e que
ele mesmo, por nascimento, também tinha sido servo da terra. Como o rei
podia pretender que ela, filha de um infante, desposasse semelhante
pessoa?
Mas Pedro III não a recebeu e ordenou que o casamento fosse celebrado
no dia 21 de junho, dois dias antes de sua partida para Maiorca.
***
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Arnau não esperou que Elionor fizesse seus preparativos; naquele mesmo
dia, ao entardecer, para evitar o calor de agosto, partiu para Barcelona em
uma carroça alugada, da mesma forma como tinha chegado ali.
Nenhum deles olhou para trás quando a carroça cruzou as portas do
castelo.
— Por que temos de viver com ela? — perguntou Mar a Arnau.
— Não posso ofender o rei, Mar. Nunca se sabe qual será a resposta de
um monarca.
Mar permaneceu calada por um tempo, pensativa.
— Por isso você lhe ofereceu aquilo tudo?
— Não... bem, também, mas a razão principal foram os camponeses.
Não quero que se queixe. Supostamente o rei nos concedeu rendas para
viver, mesmo que, na verdade, elas não existam ou sejam mínimas. Se ela
recorrer ao rei dizendo que por meus atos eu dilapidei as suas rendas,
talvez ele possa anular as minhas ordens.
— O rei? Por que o rei faria...?
— Você deve saber que há alguns anos o rei ditou uma pragmática
contra os servos da terra, e até contra os privilégios que ele mesmo e seus
antecessores haviam concedido às cidades. A Igreja e os nobres exigiram
que tomasse medidas contra os camponeses que fugiam e deixavam as
terras baldias... e ele assim fez.
— Não pensei que fosse capaz disso.
— Ele é só um nobre, Mar, o primeiro entre eles.
Passaram a noite em uma masía nas redondezas de Montcada. Arnau
pagou generosamente aos camponeses. Se levantaram ao alvorecer e
entraram em Barcelona antes do horário mais forte do sol.
— A situação é dramática, Guillem — contou Arnau quando ficaram a
sós depois de se cumprimentarem e trocarem explicações. — O principado
está muito pior do que imaginávamos. Aqui só chegam as notícias, mas é
preciso ver o estado dos campos e das terras. Não aguentaremos.
— Há muito tempo tomo medidas nesse sentido. — Guillem o
surpreendeu. Arnau o instou a prosseguir. — A crise é grave e estava a
caminho; já falamos disso uma vez. A nossa moeda se desvaloriza
constantemente nos mercados estrangeiros, mas o rei não adota nenhuma
medida aqui na Catalunha, e temos de suportar paridades insustentáveis. O
município está se endividando cada vez mais para financiar toda a
estrutura que se criou em Barcelona. As pessoas não obtêm lucros do
comércio e procuram lugares mais seguros para seu dinheiro.
— E o nosso?
— Está fora. Em Pisa, Florença, até em Gênova. Lá ainda é possível
comerciar com câmbios lógicos. — Os dois ficaram em silêncio por um
momento. — Castelló decidiu se declarar abatut — acrescentou Guillem,
rompendo a paz. — O desastre está começando.
Arnau se lembrou do cambista gordo, sempre suarento e simpático.
— O que aconteceu?
— Não soube ser prudente. As pessoas começaram a reclamar a
devolução de seus depósitos, e ele não pôde fazê-lo.
— Ele conseguirá pagar?
— Creio que não.
***
Ele a via sorrir. Arnau continuava a ver sua Virgem sorrir, e a vida lhe
sorria também. Fizera quarenta anos, e, apesar da crise, seus negócios
funcionavam e proporcionavam grandes lucros, parte dos quais ele
destinava aos necessitados ou a Santa Maria. Com o tempo, Guillem
terminou por lhe dar razão: o povo pagava e devolvia os empréstimos,
moeda por moeda. Sua igreja, o templo do mar, continuava a crescer com
a construção da terceira abóbada central e dos campanários octogonais que
ladeavam a entrada principal. Santa Maria estava repleta de artesãos:
marmoristas e escultores, pintores, vidraceiros, carpinteiros e ferreiros.
Havia até um organista, cujo trabalho Arnau acompanhava atentamente.
Ele se perguntava frequentemente como soaria a música naquele templo
majestoso. Depois da morte do arquidiácono Bernat Llull e da passagem
dos cônegos, quem ocupava o cargo era Pere Salvete de Montirac, com
quem Arnau tinha boas relações. O grande mestre Berenguer de Montagut
e seu sucessor, Ramon Despuig, também haviam falecido. Agora o
encarregado da direção das obras do templo era Guillem Metge.
Mas Arnau não tratava só com as autoridades de Santa Maria. Sua
situação econômica e sua nova condição o levavam a confraternizar com
os conselheiros da cidade, os pró-homens e os membros do Conselho de
Cento. Sua opinião era levada em conta, e os comerciantes e mercadores
escutavam seus conselhos.
— Você deve aceitar o cargo — aconselhou-o Guillem.
Arnau estava pensativo. Acabavam de lhe oferecer um dos dois postos
de cônsul do Mar de Barcelona, o máximo representante do comércio na
cidade, juiz nas disputas mercantis com jurisdição própria, independente
de qualquer outra instituição de Barcelona, árbitro de todos os problemas
no porto ou entre seus trabalhadores e responsável pelo cumprimento das
leis e costumes do comércio.
— Não sei se posso...
— Não há ninguém melhor do que você, Arnau, escute o que estou lhe
dizendo — sustentou Guillem. — Você pode. É claro que pode.
Aceitou ser um dos novos cônsules ao término do mandato dos
anteriores.
Santa Maria, seus negócios, as futuras novas obrigações como cônsul
do Mar: tudo isso criou em torno de Arnau uma muralha atrás da qual o
bastaix se sentia cômodo, e, quando voltava para seu novo lar no palácio
da Rua de Montcada, ele não percebia o que acontecia por trás daquela
fachada.
Arnau cumpriu todas as promessas feitas a Elionor, e sua relação,
distante e fria, se limitava ao imprescindível para a convivência. Enquanto
isso, Mar fizera vinte anos esplendorosos e continuava a se negar a
contrair matrimônio. “Por que vou fazê-lo se tenho Arnau para mim? O
que ele faria sem mim? Quem o descalçaria? Quem o atenderia ao voltar
do trabalho? Quem conversaria com ele e escutaria seus problemas?
Elionor? Joan, cada vez mais dedicado aos estudos? Os escravos? Ou
Guillem, com quem passa a maior parte do dia?”, pensava a moça.
Todos os dias ela esperava impaciente a volta de Arnau. Sua respiração
se acelerava ao ouvir suas batidas nos portões, e o sorriso lhe voltava aos
lábios quando corria para esperá-lo no alto da escada que levava aos
andares nobres. Porque durante o dia, quando Arnau não estava, sua vida
era um suplício monótono e constante.
— Nada de perdiz! — ressoou nas cozinhas. — Hoje comeremos vitela.
Mar se virou para a baronesa, de pé na entrada da cozinha. Arnau
gostava de perdiz. Ela tinha ido comprá-las com Donaha. Ela mesma as
escolhera, pendurara-as em uma bancada na cozinha e verificara seu
estado cada dia. Finalmente decidira que já estavam no ponto e, de manhã
cedo, descera à cozinha para prepará-las.
— Mas... — tentou argumentar Mar.
— Vitela — interrompeu-a Elionor, atravessando-a com o olhar.
Mar olhou para Donaha, mas a escrava respondeu encolhendo os
ombros imperceptivelmente.
— Sou eu quem decide o que se come nesta casa — continuou a
baronesa, se dirigindo aos escravos na cozinha. — Nesta casa mando eu!
Depois desse último grito, deu meia-volta e foi embora.
Naquele dia, Elionor esperou para comprovar o resultado de seu
desplante. A moça recorreria a Arnau ou manteria a disputa em segredo?
Mar pensou a mesma coisa: devia contar a Arnau? O que ganharia se
contasse? Se Arnau ficasse do seu lado, discutiria com Elionor, e, na
verdade, ela era a senhora da casa. E se não ficasse do seu lado? Sentiu o
estômago encolher. E se não o fizesse? Uma vez Arnau dissera que não
deviam ofender o rei. E se Elionor se queixasse com o rei por sua causa? O
que diria Arnau?
Elionor deixou escapar um sorriso de desprezo por Mar no final do dia,
quando comprovou que Arnau continuava a tratá-la como sempre, sem lhe
dirigir a palavra. Com o tempo, o sorriso foi se convertendo em um
assédio constante. Elionor proibiu-a de acompanhar os escravos às
compras e de entrar nas cozinhas. Quando ela estava nas salas, colocava
escravos nas portas. “A senhora baronesa não deseja ser perturbada”,
diziam a Mar quando tentava entrar. Dia após dia Elionor encontrava
novas formas de importunar a moça.
O rei. Não deviam ofender o rei. Mar tinha aquelas palavras gravadas
na mente e as repetia a toda hora. Elionor continuava a ser a pupila e
poderia recorrer ao monarca a qualquer momento. Não seria por ela que
Elionor se ofenderia!
Mas ela estava muito enganada. Elionor não se satisfazia com as
intrigas domésticas. Suas pequenas vitórias se desvaneciam quando Arnau
voltava para casa e Mar pulava em seus braços. Os dois riam,
conversavam... e se roçavam. Arnau, sentado em uma cadeira e com Mar a
seus pés encantada com suas histórias, falava dos acontecimentos do dia,
das disputas na alfândega, dos câmbios, dos navios. Por acaso aquele não
devia ser o lugar da legítima esposa? Arnau e Mar ficavam à janela depois
do jantar, de braços dados e olhando a noite estrelada. Às suas costas,
Elionor apertava os punhos até cravar as unhas na palma das mãos; então a
dor a fazia reagir e, se levantando bruscamente, se retirava para seus
aposentos.
Solitária, pensava em sua situação. Arnau não a tocara desde que se
tinham casado. Ela acariciava o corpo, os seios... ainda estavam firmes! Os
quadris, a virilha, e, quando o prazer começava a chegar, sempre esbarrava
com a realidade: aquela moça... aquela moça ocupava o seu lugar!
***
— O que acontecerá quando meu esposo falecer?
Ela fez a pergunta diretamente, depois de sentar-se à mesa repleta de
livros. Depois tossiu; todo aquele escritório cheio de livros e papéis, a
poeira...
Reginald d’Area examinou a visitante com calma. Era o melhor
advogado da cidade, haviam dito a Elionor, um intérprete da lei
especializado nos Usatges da Catalunha.
— Tenho entendido que vós não tendes filhos com vosso esposo, não é
verdade? — Elionor franziu a testa. — Devo sabê-lo — insistiu
prudentemente. Todo ele, corpulento e de aspecto bonachão, com sua
cabeleira e barbas brancas, infundia segurança.
— Não, não tive.
— Imagino que vossa consulta se refira ao aspecto patrimonial.
Elionor se mexeu na cadeira, inquieta.
— Sim — respondeu por fim.
— Vosso dote será devolvido. Quanto ao patrimônio de vosso esposo,
ele pode dispor dele em testamento da maneira como lhe aprouver.
— Não me caberá nada?
— O usufruto dos bens durante um ano, o ano de luto.
— É só?
O grito conseguiu perturbar Reginald d’Area. Em que aquela mulher
estava pensando?
— Isso se deve ao vosso tutor, o rei Pedro — respondeu secamente.
— O que quer dizer?
— Antes de o vosso tutor subir ao trono, estava vigente na Catalunha
uma lei de Jaime I pela qual a viúva usufruía da herança do marido por
toda a vida enquanto vivesse honestamente. Mas os mercadores de
Barcelona e Perpignan são muito cuidadosos com seu patrimônio, até
quando se trata das esposas, e conseguiram um privilégio real pelo qual as
viúvas só desfrutariam durante o ano de luto e não teriam o usufruto. O
vosso tutor transformou esse privilégio em lei geral para todo o
principado...
Elionor não o ouvia e se levantou antes que o advogado terminasse sua
explicação. Tossiu novamente e passou os olhos pelo escritório. Para que
precisava de tantos livros? Reginald também se levantou.
— Caso necessiteis de algo mais...
Elionor, já de costas, se limitou a despedir-se com a mão.
Estava claro: precisava ter um filho de seu marido para garantir o seu
futuro. Arnau cumprira sua palavra, e Elionor conhecera outra forma de
vida: o luxo que vira na corte, mas que sempre estivera fora de seu alcance
devido aos numerosos controles dos tesoureiros reais. Agora gastava o que
queria, tinha tudo o que desejava. Mas se Arnau morresse... E a única coisa
que o impedia, a única que o mantinha afastado dela era aquela bruxa
voluptuosa. Se a bruxa não estivesse... se desaparecesse... Arnau se
renderia a ela! Como não seria capaz de seduzir um servo fugitivo?
***
Veja como está impressa em nós essa má inclinação: a natureza humana em si mesma e por
sua corrupção original, sem outro estranho motivo ou instigação, se debruça sobre essa
vileza, e, se a bondade de Nosso Senhor não reprimisse essa natural inclinação, todo o
mundo cairia sujamente nessa vileza. Lemos que um menino pequeno e puro, criado por
santos ermitãos no deserto sem ter tido contato com mulher alguma, foi enviado à cidade
onde estavam seu pai e sua mãe. Assim que entrou no lugar onde estavam ambos,
perguntou aos que o tinham levado o que eram as coisas novas que via: como ali havia
mulheres belas e bem arrumadas, perguntou o que eram, e os santos ermitãos lhe disseram
que aquelas coisas eram diabos que perturbavam a todos. Como estava na casa do pai e da
mãe, os eremitas também questionaram o menino: “Olhe que quantidade de coisas belas e
novas você viu e que nunca vira. De que gostou mais?” E o menino respondeu: “De todas
as coisas belas que vi, as de que mais gostei são esses diabos que perturbam o mundo.” E
aqueles lhe disseram: “Oh, mesquinho! Você não ouviu dizer muitas vezes, e não leu, como
são maus os diabos e o mal que fazem, e que seu lugar é o inferno? Como, então, lhe
agradaram tanto quando os viu pela primeira vez?” Dizem que o garoto respondeu: “Ainda
que sejam coisas tão más e que façam tanto mal, e que no inferno estejam, não me
importariam todos esses males e não me importaria estar no inferno, contanto que estivesse
com diabos como esses. E agora sei que os diabos do inferno não são coisas tão más como
dizem. Agora sei que seria bom estar no inferno, pois tais diabos estão ali, e é com eles que
eu deveria estar. E que assim seja, eu junto a eles, Deus o queira.”
***
Dez dias se passaram até Arnau ter as primeiras notícias de Mar. Dez dias
durante os quais paralisou qualquer atividade que não fosse investigar o
que acontecera com a moça, desaparecida sem deixar rastro. Se reuniu
com o veguer e os conselheiros para lhes pedir que se empenhassem em
averiguar o ocorrido. Ofereceu vultosas recompensas por qualquer
informação sobre o paradeiro de Mar. Rezou o que não rezara em toda a
vida, e finalmente Elionor, que disse ter recebido a informação de um
mercador de passagem que procurava por Arnau, confirmou suas
suspeitas. A moça fora sequestrada por um cavaleiro chamado Felip de
Ponts, seu devedor, que a mantinha à força em uma masía fortificada perto
de Mataró, a uma pequena distância a pé ao norte de Barcelona.
Arnau enviou para lá os missatges do consulado. Enquanto isso, foi a
Santa Maria e continuou a rezar à Virgem do Mar.
Ninguém se atreveu a perturbá-lo, e até os operários diminuíram o
ritmo de trabalho. Prostrado de joelhos aos pés da pequena figura de pedra
que tanto significara na sua vida, Arnau tentou afastar as cenas de horror e
pânico que o tinham assaltado durante aqueles dez dias e que agora
voltavam a rondar sua mente, misturadas com o rosto de Felip de Ponts.
Felip de Ponts surpreendeu Mar dentro de sua própria casa, amordaçou-
a e golpeou-a até que a moça, exausta, deixou de resistir. Colocou-a em um
saco e se sentou com ela na parte traseira de uma carroça carregada de
arneses e conduzida por um de seus criados. Dessa maneira, como se
tivesse vindo comprar ou consertar rédeas e selas, cruzaram as portas da
cidade sem que ninguém desconfiasse do cavaleiro. Uma vez em sua
masía, ele desonrou a moça mais de uma vez na torre fortificada que se
erguia em uma extremidade, cada vez com mais violência e lascívia à
medida que percebia a beleza da refém e sua obstinação em defender seu
corpo, e já não a sua virgindade. Porque Felip de Ponts se comprometera
com Joan que roubaria a virgindade de Mar sem sequer despi-la, sem lhe
mostrar seu próprio corpo, usando a força estritamente necessária para tal,
e assim fizera da primeira vez, a única em que deveria se aproximar de
Mar, mas a luxúria foi mais forte que a palavra de cavaleiro.
Nada do que Arnau, entre lágrimas e com o coração apertado, pudera
imaginar em Santa Maria se comparava com o que a moça sofrera.
A entrada dos missatges no templo paralisou completamente as obras.
As palavras do oficial ressoaram como na corte de justiça do consulado.
— Mui honorável cônsul, é verdade. Vossa afilhada foi sequestrada e
está em poder do cavaleiro Felip de Ponts.
— Vós falastes com ele?
— Não, mui honorável. Trancou-se na torre e negou nossa autoridade,
alegando que não se tratava de assunto mercantil.
— Sabeis algo da moça?
O oficial baixou os olhos.
Arnau cravou as unhas no genuflexório.
— Quer dizer, então, que não tenho autoridade? Se ele quer autoridade
— grunhiu —, terá.
***
***
***
***
— Não vamos esperar Arnau? — perguntou Joan a Elionor ao entrar na
sala de jantar, onde a baronesa o esperava à mesa.
— Estais com apetite? — Joan assentiu. — Pois, se quereis jantar, é
melhor que o façais agora.
O frade se sentou diante de Elionor em um lado da comprida mesa de
jantar de Arnau. Dois criados serviram pão branco candial, vinho, sopa e
ganso assado temperado com pimenta e cebola.
— Não dissestes que tínheis apetite? — perguntou Elionor ao ver Joan
remexer a comida no prato.
Ele se limitou a erguer os olhos para a cunhada. Aquela foi a única
frase que se ouviu em todo o jantar.
Várias horas depois de ter se retirado para seus aposentos, Joan ouviu
movimento no palácio. Alguns criados corriam para receber Arnau.
Ofereceriam comida e ele a rejeitaria, como fizera nas três ocasiões em
que Joan decidira esperá-lo. Arnau se sentava na sala do palacete onde
Joan esperava por ele e rejeitava o jantar tardio com um gesto cansado.
***
Joan ouviu os passos dos criados que voltavam. Depois ouviu os de Arnau
diante de sua porta, se dirigindo com lentidão aos seus aposentos. O que
lhe diria se saísse agora? Tentara falar com ele em três ocasiões, mas
Arnau se fechou e respondeu de maneira monossilábica às perguntas do
irmão. “Você está bem?” “Sim.” “Teve muito trabalho na alfândega?”
“Não.” “As coisas vão bem?” Silêncio. “Santa Maria?” “Bem.” No escuro
do quarto, Joan levou as mãos ao rosto. Os passos de Arnau se perderam. E
de que queria que falasse? Dela? Como poderia ouvir de seus lábios que a
amava?
Joan vira Mar secar as lágrimas que escorriam pelo rosto de Arnau.
“Pai?”, ele a ouvira dizer. Vira Arnau estremecer. Então Joan se virara e
vira que Elionor estava sorrindo. Tinha sido necessário vê-lo sofrer para
compreender... mas como podia confessar a verdade a Arnau? Como podia
lhe dizer que tinha sido ele...? Aquelas lágrimas surgiram na lembrança de
Joan. Ele a amava tanto assim? Conseguiria esquecê-la? Ninguém
consolou Joan quando, mais uma noite, ele se colocou de joelhos, abaixou
a cabeça e rezou até o amanhecer.
***
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Servos do destino
46
Páscoa de 1367
Barcelona
***
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***
Uma vingança que Elionor tramava havia muito tempo, e ela não estava
só. A acusação contra Arnau e a judia Raquel era só o começo.
As decisões de Arnau como barão de Granollers, Sant Vicenç dels Horts
e Caldes de Montbui atraíram o ódio dos demais nobres, que viam soprar o
vento da rebeldia entre os camponeses... Mais de um nobre fora obrigado a
sufocar, com mais contundência que de costume, revoltas que clamavam a
abolição de certos privilégios a que Arnau, o barão nascido servo,
renunciara. Entre esses nobres ofendidos estava Jaume de Bellera, filho do
senhor de Navarcles, que Francesca amamentara quando era um bebê. E,
ao seu lado, alguém a quem Arnau privara de sua casa, sua fortuna e seu
estilo de vida: Genís Puig, que, depois do desalojamento, tivera de ocupar
a velha casa de Navarcles que tinha pertencido a seu avô, o pai de Grau;
uma casa que pouco tinha a ver com o palácio da Rua de Montcada onde
passara a maior parte de sua vida. Ambos passavam horas lamentando a
má sorte e traçando planos de vingança. Um plano que agora, se as cartas
de sua irmã Margarida não mentiam, estava prestes a dar frutos...
Arnau pediu ao marinheiro que testemunhava que ficasse em silêncio e
se virou para o aguazil do tribunal do Consulado do Mar que interrompera
o julgamento.
— Um oficial e vários soldados da Inquisição querem vos falar —
sussurrou-lhe, se inclinando em sua direção.
— O que querem? — perguntou Arnau. O homem fez um gesto de
ignorância. — Que esperem até o final do julgamento — ordenou, antes de
indicar ao marinheiro que continuasse.
Outro marinheiro tinha morrido durante a travessia, e o dono do navio
se negava a pagar aos herdeiros mais de dois meses de salário, mas a viúva
afirmava que o acordo não fora por meses e, já que o marido morrera em
alto-mar, metade da quantia combinada lhe cabia.
— Continue — pediu Arnau, com os olhos na viúva e nos três filhos do
falecido.
— Nenhum marinheiro faz acordo por meses...
De repente, as portas do tribunal se abriram bruscamente. Um oficial e
seis soldados da Inquisição, armados, empurraram sem hesitação o aguazil
do tribunal e irromperam na sala.
— Arnau Estanyol? — perguntou o oficial, se dirigindo diretamente a
ele.
— O que significa isso? — gritou Arnau. — Como se atrevem a
interromper...
O oficial continuou a andar até se plantar diante dele.
— Vós sois Arnau Estanyol, cônsul do Mar, barão de Granollers...?
— Vós sabeis muito bem que sim, oficial — disse Arnau. — Mas...
— Por ordem do tribunal da Santa Inquisição, estais detido.
Acompanhai-me.
Os missatges do tribunal fizeram uma tentativa de defender seu cônsul,
mas Arnau os deteve com um gesto.
— Fazei o favor de esperar — pediu Arnau ao oficial da Inquisição.
O homem hesitou. O cônsul, com gesto calmo, insistiu com a mão, lhe
indicando que fosse até a porta, e, por fim, sem deixar de vigiar o
prisioneiro, o oficial se afastou, permitindo que Arnau encarasse os
familiares do marinheiro morto.
— Sentencio a favor da viúva e dos filhos — determinou ele com
tranquilidade. — Deverão receber metade do salário total da travessia e
não os dois meses que o dono do navio pretende. Assim ordena este
tribunal.
Arnau deu um golpe com a mão, se colocou de pé e encarou o oficial da
Inquisição.
— Vamos — disse.
***
***
***
— Gostaria de ver o meu irmão — disse Joan a Nicolau Eimeric assim que
se apresentou no palácio do bispo.
O inquisidor-geral semicerrou os olhos.
— Você tem de conseguir que ele confesse a sua culpa e se arrependa.
— De que é acusado?
Nicolau Eimeric teve um sobressalto detrás da mesa em que o tinha
recebido.
— Você pretende que lhe diga de que o acusam? Você é um grande
inquisidor, mas... Por acaso está tentando ajudar o seu irmão? — Joan
baixou os olhos. — Só posso lhe dizer que se trata de uma questão muito
séria. Permitirei que o visite, desde que prometa que o objetivo das visitas
será conseguir a confissão de Arnau.
Dez chibatadas! Quinze, vinte e cinco... Quantas vezes repetira aquela
ordem nos últimos anos? “Até que confesse!”, ordenara ao oficial que o
acompanhava. E agora... agora lhe pediam que obtivesse a confissão de seu
próprio irmão. Como poderia fazer isso? Joan quis responder, mas sua
tentativa se limitou a um simples movimento das mãos.
— É sua obrigação — Eimeric lembrou-o.
— É meu irmão. É tudo o que tenho...
— Você tem a Igreja. Tem a todos nós, seus irmãos na fé cristã. — O
inquisidor-geral deixou passar alguns segundos. — Esperei-o porque sabia
que viria, frei Joan. Se não assumir esse compromisso, terei de me
encarregar dele pessoalmente.
***
***
Precisava de dinheiro. Assim que deixou o palácio do bispo, Joan foi para
a mesa de câmbio de Arnau, e encontrou uma multidão aglomerada na
esquina de Canvis Vells e Canvis Nous, diante do pequeno edifício onde
Arnau administrava seus negócios. Joan recuou.
— Ali está o irmão dele! — gritou alguém.
Várias pessoas se lançaram sobre ele. Joan tentou escapar, mas mudou
de ideia ao ver que as pessoas se detinham a alguns passos dele. Como
poderiam atacar um dominicano? Ergueu-se o máximo que pôde e tentou
retomar o seu caminho.
— O que aconteceu com o seu irmão, frade? — perguntou alguém
quando Joan passou.
Ele viu um homem bem mais alto que ele.
— O meu nome é frei Joan, inquisidor do Santo Ofício — levantou a
voz ao mencionar o seu cargo. — Você pode se dirigir a mim como senhor
inquisidor.
Joan olhou para o alto, diretamente nos olhos do homem. “E quais são
os seus pecados?”, lhe perguntou em silêncio. O homem retrocedeu alguns
passos. Joan se encaminhou para a mesa de câmbio, e as pessoas foram lhe
dando passagem.
— Sou o frei Joan, inquisidor do Santo Ofício! — teve de gritar de
novo diante das portas fechadas do estabelecimento.
Três oficiais de Arnau o receberam. O interior estava revirado; os livros
estavam espalhados pelo tapete vermelho enrugado que cobria a grande
mesa de câmbio. Se Arnau visse aquilo...
— Preciso de dinheiro — disse ele.
Os três demonstraram incredulidade.
— Nós também — respondeu o mais velho, chamado Remigi, o
substituto de Guillem.
— O que você disse?
— Que não há nenhum níquel, frei Joan. — Remigi se aproximou da
mesa e virou vários cofres. — Nenhum.
— O meu irmão não tem dinheiro?
— Não em espécie. O que acha que toda essa gente lá fora está
fazendo? Querem o dinheiro deles. Estamos sendo acossados há vários
dias. Arnau continua muito rico — o oficial tentou tranquilizá-lo —, mas
está tudo investido em empréstimos, em comandas, em negócios em
andamento...
— E não podem exigir a devolução dos empréstimos?
— O maior devedor é o rei, e sabemos que as arcas de sua majestade...
— Ninguém mais deve dinheiro a Arnau?
— Sim, muita gente, mas são empréstimos que não venceram, e os que
venceram... vós sabeis que Arnau emprestava muito dinheiro a gente
humilde. Não podem devolver. Ainda assim, quando souberam da situação
de Arnau, muitos vieram e pagaram parte do que deviam, o pouco que têm,
mas seu gesto não passa disso. Não podemos cobrir a devolução dos
depósitos.
Joan se virou para a porta e apontou.
— E eles? Por que podem exigir seu dinheiro?
— De fato, não podem. Todos depositaram dinheiro para Arnau
negociar com ele. Mas o dinheiro é covarde, e a Inquisição...
Joan fez um gesto para que esquecesse o seu hábito. O grunhido do
aguazil voltou a ressoar em seus ouvidos.
— Preciso de dinheiro — pensou em voz alta.
— Pois não há — ouviu da boca de Remigi.
— Mas eu preciso — reiterou Joan. — Arnau precisa.
“Arnau precisa e, sobretudo”, pensou Joan, se virando novamente para a
porta, “precisa de tranquilidade. Este escândalo só vai prejudicá-lo. As
pessoas pensarão que está arruinado, e então ninguém vai querer saber
dele... Precisaremos de apoio.”
— Não se pode fazer nada para acalmar essa gente? Não podemos
vender nada?
— Poderíamos ceder algumas comandas. Agrupar os depositários de
acordo com as comandas em que Arnau não conste — respondeu Remigi.
— Mas, sem a sua autorização...
— A minha serve?
O oficial olhou para Joan.
— É preciso, Remigi.
— Suponho que sim — cedeu o empregado depois de um momento. —
Na realidade, não perderíamos dinheiro. Só permutaríamos os negócios:
eles ficariam com uns e nós com outros. Sem Arnau no meio, eles se
tranquilizariam... mas tem de me dar a autorização por escrito.
Joan assinou o documento que Remigi preparou.
— Consiga dinheiro em espécie para amanhã logo cedo — disse
enquanto assinava. — Precisamos de dinheiro vivo — insistiu diante do
olhar do oficial. — Venda algo a um preço baixo se for preciso, mas
precisamos de dinheiro.
Assim que Joan deixou a mesa de câmbio e calou novamente os
credores, Remigi começou a agrupar as comandas. Neste mesmo dia, o
último navio que zarpou do porto de Barcelona levava instruções para os
correspondentes de Arnau ao longo do Mediterrâneo. Remigi agiu com
rapidez; no dia seguinte satisfariam os credores, que começariam a
divulgar a nova situação dos negócios de Arnau.
48
Pela primeira vez em quase uma semana, Arnau bebeu água fresca e
comeu algo que não fosse pão duro. O aguazil o obrigou a se levantar
empurrando-o com o pé e jogou um balde de água onde ele estivera.
“Melhor água que excrementos”, pensou Arnau. Por um instante só se
ouviram o barulho da água no chão e a respiração ofegante do aguazil
obeso; até a anciã com o rosto permanentemente oculto entre farrapos que
tinha se rendido à morte ergueu os olhos para a figura de Arnau.
— Deixe o balde — ordenou o bastaix ao aguazil quando ele estava
indo embora.
Arnau o vira maltratar os presos que o encaravam. O aguazil se virou
com o braço estendido, mas se deteve pouco antes de golpear o corpo de
Arnau, que permaneceu imóvel diante do embate; então cuspiu e deixou
cair o balde no chão. Antes de sair, chutou uma das sombras que o
observava.
Quando a terra absorveu a água, Arnau se sentou novamente. Lá fora
um sino repicou. Seu único vínculo com o mundo eram o repicar dos sinos
e os tênues raios de sol que se filtravam pela janela que, pelo lado de fora,
ficava na altura do chão. Arnau ergueu os olhos para a janela e apurou o
ouvido. Santa Maria estava inundada de luz, mas ainda não tinha sinos; no
entanto, mesmo longe da igreja, podia ouvir o barulho dos cinzéis nas
pedras, o martelar nas madeiras e os gritos dos operários. Quando o eco
daqueles barulhos entrava na masmorra, meu Deus! A luz e o som o
envolviam e levavam para junto do espírito dos que trabalhavam entregues
à Virgem do Mar. Arnau voltou a sentir nas costas o peso da primeira
pedra que carregara para Santa Maria. Quanto tempo se passara desde
então? Como as coisas tinham mudado! Ele não passava de um menino,
um menino que encontrou na Virgem a mãe que nunca conheceu...
Pelo menos, disse Arnau a si mesmo, conseguira salvar Raquel do
terrível destino a que parecia sentenciada. Assim que viu Elionor e
Margarida Puig apontar para eles, Arnau se encarregara de que Raquel e
toda a sua família fugissem da judiaria. Nem ele sabia para onde...
— Quero que você procure Mar — disse a Joan quando ele voltou para
visitá-lo.
O frade ficou parado a poucos passos do irmão.
— Você me ouviu, Joan? — Arnau se levantou e deu alguns passos, mas
as correntes puxaram suas pernas. O outro continuava parado no mesmo
lugar. — Joan, você me ouviu?
— Si... sim... ouvi. — Joan foi até ele para abraçá-lo. — Mas... —
começou.
— Preciso vê-la, Joan. — Arnau agarrou os ombros do frade, detendo o
abraço, e o sacudiu suavemente. — Não quero morrer sem falar com ela
novamente...
— Por Deus! Não diga...
— Sim, Joan. Poderia morrer aqui mesmo, sozinho, com uma dezena de
desiludidos como testemunhas. Não quero morrer sem ter a oportunidade
de ver Mar. É algo...
— Mas o que você quer dizer a ela? O que pode ser tão importante?
— O perdão dela, Joan, preciso do perdão dela... E quero dizer que a
amo. — Joan tentou se livrar das mãos do irmão, mas Arnau o impediu. —
Você me conhece, você é um homem de Deus. Sabe que nunca fiz mal a
ninguém, exceto a essa menina.
Joan conseguiu se soltar... e caiu de joelhos diante do irmão.
— Não foi... — hesitou.
— Eu só tenho você, Joan — disse Arnau, se ajoelhando também. —
Você tem de me ajudar. Você nunca falhou comigo. Não pode fazer isso
agora. Você é tudo o que tenho, Joan!
O irmão mais novo permaneceu em silêncio.
— E o esposo dela? — lembrou-se de perguntar. — Talvez ele não
permita...
— Morreu — respondeu Arnau. — Averiguei quando parou de pagar os
juros de um empréstimo barato. Faleceu sob as ordens do rei, defendendo
Calatayud.
— Mas... — insistiu Joan.
— Joan... estou atado à minha esposa, atado por um juramento que fiz e
que me impede de me unir a Mar enquanto Elionor viver... Mas preciso vê-
la. Preciso contar-lhe sobre meus sentimentos, ainda que não possamos
estar juntos... — Pouco a pouco, Arnau recobrou a serenidade. Queria
pedir outro favor ao irmão. — Passe pela mesa de câmbio. Quero saber
como vão as coisas.
Joan suspirou. Naquela mesma manhã, ao ir até lá, Remigi lhe
entregara uma bolsa com dinheiro.
— Não foi um bom negócio — ouviu do oficial.
Nada era um bom negócio. Ao deixar Arnau depois de prometer
procurar a moça, Joan pagou ao aguazil na própria porta da masmorra.
— Pediu-me um balde.
O que valeria um balde para que Arnau...? Joan depositou outra moeda.
— Quero o balde sempre limpo. — O aguazil guardou as moedas e
andou em direção ao corredor. — Há um preso morto lá dentro —
acrescentou Joan.
O aguazil se limitou a dar de ombros.
***
***
***
***
Joan arrastou o barro na bainha de seu hábito por toda Barcelona. O irmão
lhe pedira que procurasse Mar. Como podia se apresentar diante dela?
Depois tentou fazer um acordo com Eimeric e, em vez disso, como um dos
que ele mesmo condenava, caíra em suas armadilhas e lhe dera novos
indícios de culpa. O que Elionor teria denunciado? Pensou em visitar a
cunhada, mas a lembrança de seu sorriso na casa de Felip de Ponts o fez
desistir. Se ela havia denunciado o próprio esposo, o que diria a ele?
Desceu pela Rua do Mar até Santa Maria, o templo de Arnau. Joan se
deteve e o contemplou. Ainda rodeado de andaimes de madeira onde os
pedreiros se movimentavam sem descanso, Santa Maria já mostrava o que
seria sua orgulhosa construção. Os muros externos com seus contrafortes
estavam terminados, bem como a abside e duas das quatro abóbadas da
nave central; as nervuras da terceira abóbada, cuja chave havia sido paga
pelo rei para que nela fosse cinzelada a imagem de seu pai, o rei Afonso,
montado em um cavalo, começavam a se elevar em um arco perfeito,
suportadas por complicadas estruturas, à espera da chave para equilibrar o
peso e fazer com que o arco se sustentasse por si só. Só faltavam as duas
últimas abóbadas principais para que Santa Maria ficasse completamente
coberta.
Como não se encantar com aquela igreja? Joan recordou o padre Albert
e a primeira vez que ele e Arnau tinham pisado em Santa Maria. Nem
sabia rezar! Anos depois, enquanto ele aprendia a rezar, ler e escrever, seu
irmão carregara pedras para lá. Joan lembrou os machucados profundos
com que Arnau voltava para casa nos primeiros dias e, no entanto, ele
sorria... Observou os mestres de diferentes ofícios atarefados com os
portais e as arquivoltas da fachada principal, admirou as estátuas, as portas
ornamentadas, os corrimões de ferro, as gárgulas, os capitéis das colunas e
os vitrais, principalmente os vitrais, essas obras de arte destinadas a filtrar
a mágica luz do Mediterrâneo para brincar com as formas e cores no
interior do templo a cada hora, a cada minuto.
Na imponente rosácea da fachada já se podia ver a futura composição:
no centro uma pequena roseta, de cujo diâmetro partiam, como belíssimas
flechas, como um sol de pedra cuidadosamente lavrado, os mainéis que
dividiam a estrutura principal; a partir deles, os relevos formavam uma
fileira de figuras com três lóbulos ogivais, e, depois, outra fileira de quatro
lóbulos arredondados fechava a grande rosácea. Entre todos esses traços,
como os que decoravam as janelas estreitas da fachada, seriam incrustados
os vitrais; naquele momento, porém, a rosácea parecia uma imensa teia de
aranha de pedra delicadamente estilizada, à espera dos mestres vitralistas
para fechar os seus vãos.
“Ainda há muito a fazer”, pensou Joan ao ver os homens que
trabalhavam impulsionados pela esperança do povo. Naquele momento
chegou um bastaix carregando uma pedra enorme. O suor escorria da testa
às panturrilhas, e todos os seus músculos estavam visíveis, tensos,
vibrando ao ritmo dos passos que o aproximavam da igreja. Mas ele sorria,
tal como o seu irmão fazia. Joan não conseguia deixar de olhá-lo. Nos
andaimes, os pedreiros pararam o que estavam fazendo e foram ver a
chegada das pedras que teriam de trabalhar. Depois do primeiro bastaix,
apareceu outro, e outro, e mais outro, todos encurvados. O barulho do
cinzel nas pedras se deteve diante dos humildes trabalhadores da ribeira de
Barcelona, e, por um instante, Santa Maria inteira ficou paralisada. Do alto
do templo, um pedreiro rompeu o silêncio. Seu grito de “força” rasgou o
ar, reverberou nas pedras e tocou os que presenciavam a cena.
“Força!”, sussurrou Joan, somando-se ao clamor. Os bastaixos sorriam,
e cada vez que um deles descarregava uma pedra a gritaria aumentava.
Depois, alguém lhes oferecia água, e os bastaixos erguiam os odres acima
da cabeça, deixando a água escorrer pelo rosto antes de bebê-la. Joan se
viu na praia perseguindo os bastaixos com o odre de Bernat. Depois elevou
os olhos para o céu. Devia procurá-la: se esta era a penitência que o
Senhor lhe impunha, iria à procura da moça e lhe confessaria a verdade.
Rodeou Santa Maria até a Praça do Born, a Pla d’en Llull e o convento de
Santa Clara, e saiu de Barcelona pelo portal de San Daniel.
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— Como se atreve?! — O grito de Nicolau Eimeric ressoou nos corredores
do palácio. Ele nem sequer esperou que os soldados saíssem do escritório.
O inquisidor passeava pelo cômodo, gesticulando. — Como se atreve a
colocar em perigo o patrimônio do Santo Ofício? — Nicolau se virou
bruscamente para Joan, que permanecia de pé no centro do cômodo. —
Como ousa ordenar a venda das comandas a baixo preço?
Joan não respondeu. Passara a noite acordado, sendo maltratado e
humilhado. Percorrera muitos e muitos quilômetros a pé atrás de uma
mula, e todo o seu corpo doía. Estava cheirando mal, e o hábito, sujo e
ressecado, arranhava a sua pele. Não comera nada desde o dia anterior e
tinha sede. Não. Não pensava em responder.
Nicolau se aproximou dele pelas costas.
— O que você pretende, frei Joan? — sussurrou-lhe ao ouvido. — Por
acaso pensa em vender o patrimônio de seu irmão para escondê-lo da
Inquisição?
Nicolau permaneceu um instante ao lado de Joan.
— Você está cheirando mal! — gritou, afastando-se dele e voltando a
gesticular. — Está cheirando como um camponês vulgar. — Continuou a
grunhir pela sala até que por fim se sentou. — A Inquisição confiscou os
livros de comércio de seu irmão; não haverá mais vendas. — Joan não se
mexeu. — Proibi as visitas à masmorra; logo, nem tente vê-lo. Dentro de
alguns dias começará o julgamento.
Joan continuou sem se mexer.
— Não me ouviu, frade? Em poucos dias começarei a julgar seu irmão.
Nicolau esmurrou a mesa.
— Basta! Saia daqui!
Joan arrastou a bainha do hábito sujo pelo piso brilhante do escritório
do inquisidor-geral.
***
***
“E por que você está aqui?”, vai me perguntar. “O que fazia no palácio do
bispo?” Aledis olhou de soslaio sua nova acompanhante; caminhava
erguida puxando a mula, sem se afastar quando alguém se interpunha em
seu caminho. O que teria ocorrido entre Mar e Joan? O frade parecia
totalmente submisso. Como um dominicano podia admitir que uma
mulher o mandasse dormir com uma mula? Atravessaram a Praça de Blat.
Já tinha dito que conhecia Arnau, mas não lhes dissera que o vira nas
masmorras, suplicando que se aproximasse. “E Francesca? O que devo
dizer-lhes sobre Francesca? Que é minha mãe? Não. Joan sabe que a mãe
do meu esposo não se chamava Francesca. Mas o que dirão quando ela for
mencionada no processo contra Arnau? Eu devia saber disso. E quando
souberem que é uma mulher pública? Como posso ser nora de uma mulher
pública?” Melhor que não saibam de nada, mas, então, o que eu estava
fazendo no palácio do bispo?
***
***
Ontem a Inquisição deteve Arnau, e hoje consegui saber, por meio de um judeu que está na
corte do bispo, que foi sua esposa, Elionor, quem o denunciou como judaizante, e, como a
Inquisição precisa de testemunhas para comprovar denúncia, Elionor chamou vários
sacerdotes de Santa Maria do Mar que aparentemente presenciaram uma discussão do casal;
parece que Arnau proferiu palavras que podem ser consideradas sacrílegas e que
confirmam a denúncia de Elionor.
***
Jucef terminava assim: “Só lhe resta você.” Sahat colocou a carta no
pequeno cofre onde guardava a correspondência que por cinco anos
mantivera com Hasdai. “Só lhe resta você.” Com o cofre nas mãos, de pé
na proa, voltou a fitar o horizonte. “Vamos, marselheses... ele só tem a
mim.”
***
***
— Não pense que vou quebrar o juramento que fiz, mas preciso falar com
ele — disse ao se despedir. Francesca tentou perscrutar seu rosto na
penumbra. — Confie em mim — acrescentou Aledis.
Arnau se levantou ao ver Aledis entrar nas masmorras, mas não a
chamou. Se limitou a observar as duas mulheres cochichando. Onde estava
Joan? Havia dois dias que não vinha visitá-lo, e ele tinha muitas coisas
para lhe perguntar. Queria que averiguasse quem era aquela velha. O que
ela estava fazendo ali? Por que o aguazil dissera que era sua mãe? O que
estava acontecendo com seu processo? E com os seus negócios? E Mar? O
que tinha acontecido com Mar? Havia algo errado. Desde a última vez que
Joan o visitara, o aguazil voltara a tratá-lo como a um qualquer; a comida
voltara a ser um pão amanhecido e água suja, e o balde tinha desaparecido.
Arnau viu a mulher se afastar da velha. Com as costas apoiadas à
parede, começou a se sentar, mas... ela vinha em sua direção.
Na escuridão, Arnau a viu se aproximar e se ergueu. A mulher se deteve
a alguns passos, afastada dos tênues raios de luz que iluminavam a
masmorra.
Arnau semicerrou os olhos para tentar vê-la mais claramente.
— Suas visitas foram proibidas — ouviu-a dizer.
— Quem é você? — perguntou ele. — Como sabe disso?
— Não temos tempo, Arn... Arnau. — Ela disse o seu nome! — Se o
aguazil aparecer...
— Quem é você?
Por que não contar? Por que não abraçá-lo e consolá-lo? Não suportaria.
As palavras de Francesca ressoaram em seus ouvidos. Aledis se virou para
ela e depois para Arnau. A brisa do mar, a praia, sua juventude, a longa
viagem até Figueras...
— Quem é você? — ouviu de novo.
— Isso não importa. Só quero dizer-lhe que Mar está em Barcelona,
esperando por você. Ela o ama. Continua a amá-lo.
Aledis viu Arnau se apoiar à parede. Esperou alguns segundos.
Barulhos no corredor. O aguazil lhe dera só alguns instantes. Mais
barulhos. A chave na fechadura. Arnau também ouviu e se virou para a
porta.
— Quer que eu lhe dê algum recado?
A porta se abriu, e a luz das tochas do corredor iluminou Aledis.
— Diga-lhe que eu também... — o aguazil entrou na masmorra — a
amo. Apesar de não poder...
Aledis deu meia-volta e caminhou para a porta.
— O que estava fazendo, falando com o cambista? — perguntou o
aguazil obeso depois de fechar a porta.
— Ele me chamou quando eu estava saindo.
— É proibido falar com ele.
— Eu não sabia. Também não sabia que aquele era o cambista. Não lhe
respondi. Nem me aproximei.
— O inquisidor proibiu...
Aledis puxou a bolsa e fez as moedas tilintarem.
— Não quero vê-la por aqui novamente — disse o aguazil, tomando o
dinheiro. — Se você voltar, não sairá da masmorra.
Enquanto isso, no interior tenebroso da masmorra, Arnau continuava a
escutar as palavras daquela mulher: “Ela o ama. Continua a amá-lo.”
Porém a lembrança de Mar foi turvada pelo reflexo fugidio das tochas em
olhos castanhos enormes. Conhecia aqueles olhos. Onde os tinha visto
antes?
***
***
***
***
— Depois — continuou Joan —, ele deverá dar o nome dos seus inimigos.
— Para quê?
— Se der o nome de uma das testemunhas que o denunciaram, o
tribunal pode considerar que a denúncia está viciada por essa inimizade.
— Mas Arnau não sabe quem o denunciou — interveio Mar.
— Não. Agora não. Depois poderá saber... se Eimeric lhe conceder este
direito. Na verdade, ele deveria sabê-lo — acrescentou diante da expressão
de suas interlocutoras —, pois assim ordenou Bonifácio VIII, mas o papa
está muito longe, e cada inquisidor conduz o processo como melhor lhe
convém.
***
***
***
***
— Ele está começando a sentir dor — sussurrou ao ouvido de Berenguer
d’Erill.
— Deixemo-lo pensar nisto — respondeu o bispo.
Voltaram a sussurrar e Arnau continuou sentindo sobre si os quatro
pares de olhos dos dominicanos. Suas pernas doíam, mas precisava resistir.
Não se abateria diante de Nicolau Eimeric. O que aconteceria se caísse no
chão? Precisava... de uma pedra! Uma pedra sobre suas costas, um longo
caminho a percorrer carregando uma pedra para a Virgem. “Onde está você
agora? São estes seus verdadeiros representantes?” Ele era só uma
criança... Por que não aguentaria agora? Percorrera toda Barcelona com
uma pedra mais pesada do que ele, suando, sangrando, ouvindo os gritos
das pessoas que o animavam. Não lhe restava nada daquela força? Seria
derrotado por um frade fanático? Ele? A criança bastaix que todos os
meninos da cidade admiravam? Passo a passo, se arrastando pelo caminho
até Santa Maria e depois de volta para casa para descansar e refazer o
caminho na seguinte jornada. Para casa... os olhos castanhos, os grandes
olhos castanhos. Então, com um tremor que quase o fez cair, reconheceu
Aledis na visitante da masmorra escura.
Nicolau Eimeric e Berenguer d’Erill trocaram olhares ao verem Arnau
se erguer. Pela primeira vez um dos dominicanos desviou a atenção de
Arnau para o centro da mesa.
— Ele não cai — cochichou, nervoso, o bispo.
— Onde você satisfaz os seus instintos? — perguntou Nicolau,
elevando a voz.
Por isso ela sabia o seu nome. A voz... Sim, aquela era a voz que ouvia
nas encostas de Montjuïc.
— Arnau Estanyol! — O grito do inquisidor o trouxe de volta ao
tribunal. — Perguntei onde satisfaz os seus instintos.
— Não entendi a vossa pergunta.
— Você é um homem. Não teve relações com sua esposa durante anos.
É muito simples: onde satisfaz suas necessidades de homem?
— Por todos estes anos que mencionais não tive contato com nenhuma
mulher.
Respondera sem pensar. O aguazil disse que ali estava a sua mãe.
— Você mente! — Arnau teve um sobressalto. — Este mesmo tribunal
o viu abraçado a uma herege. Isso não é ter contato com uma mulher?
— Mas não se trata do que vós mencionais.
— O que pode levar um homem e uma mulher a se abraçarem em
público se não for a lascívia? — Nicolau gesticulou.
— A dor.
— Que dor? — questionou o bispo. — Que dor? — insistiu Nicolau
diante de seu silêncio. Arnau se calou. As chamas da pira iluminaram o
cômodo. — Pela execução de um herege que profanou uma hóstia
sagrada? — perguntou o inquisidor, apontando para ele com seu dedo
enjoiado. — É essa a dor de um bom cristão? A do peso da justiça sobre
um desalmado, um profanador, um miserável, um ladrão...?
— Não foi ele! — gritou Arnau.
Todos os membros do tribunal, incluindo o tabelião, se mexeram nos
assentos.
— Os três confessaram ser culpados. Por que você defende os hereges?
Os judeus...
— Judeus! Judeus! — Arnau revoltou-se. — O que o mundo tem contra
os judeus?
— E você não sabe? — perguntou o inquisidor, elevando a voz. —
Crucificaram Jesus Cristo!
— Não pagaram o suficiente com as próprias vidas?
Arnau enfrentou o olhar dos membros do tribunal. Todos estavam de pé.
— Você defende o perdão? — perguntou Berenguer d’Erill.
— Não são esses os ensinamentos de Nosso Senhor?
— O único caminho é a conversão! Não se pode perdoar quem não se
arrepende — gritou Nicolau.
— Falais de um fato que aconteceu há mais de mil e trezentos anos. Do
que um judeu que nasce em nossa época tem que se arrepender? Ele não
tem culpa pelo que aconteceu naquele tempo.
— Quem abraça a doutrina judaica é responsável pelos atos de seus
antepassados; deve assumir essa culpa.
— Eles só abraçam ideias, crenças, como nós... — Nicolau e Berenguer
tiveram um sobressalto; por que não? Por acaso não era verdade? Por
acaso aquele homem vilipendiado que deu a vida pela sua comunidade não
o merecia? — Como nós — afirmou Arnau de forma contundente.
— Está equiparando a fé católica à heresia? — O bispo pulou.
— Não me corresponde comparar nada; essa tarefa deixo a vós, os
homens de Deus. Só disse...
— Sabemos perfeitamente o que disse! — gritou Nicolau Eimeric. —
Você equiparou a autêntica fé cristã, a única, a verdadeira, às doutrinas
heréticas dos judeus.
Arnau enfrentou o tribunal. O tabelião continuava escrevendo. Até os
soldados às suas costas, sérios junto às portas, pareciam atentos ao som da
pluma riscando o papel. Nicolau sorriu e o som do escrivão alcançou
Arnau e desceu por sua espinha. Um calafrio percorreu o seu corpo. O
inquisidor percebeu e sorriu abertamente. Sim, disse com o olhar, são as
suas declarações.
— Eles são como nós — reiterou Arnau.
Nicolau fez um gesto para calá-lo.
O tabelião continuou escrevendo. Aí ficarão as suas palavras, Nicolau
lhe disse com o olhar. Quando ele ergueu a pluma, Nicolau sorriu mais
uma vez.
— A sessão está suspensa até amanhã — disse, levantando-se da
cadeira.
***
***
Os soldados o acompanharam de volta às masmorras. Enquanto o aguazil o
acorrentava outra vez, Arnau não desviou a vista da sombra agachada no
outro extremo do lúgubre cômodo. Continuou de pé quando o aguazil
deixou as masmorras.
— O que você tem a ver com Aledis? — gritou para a velha quando já
não se ouviam os passos no corredor.
Arnau pensou perceber um sobressalto na sombra, mas no mesmo
instante a figura ficou inerte outra vez.
— O que você tem a ver com Aledis? — repetiu. — O que ela fazia
aqui? Por que ela a visita?
O silêncio que teve em resposta lhe recordou o reflexo daqueles
grandes olhos castanhos.
— O que têm a ver Aledis e Mar? — suplicou à sombra.
Arnau tentou ouvir pelo menos a respiração da velha, mas uma
infinidade de arquejos e suspiros se misturou ao silêncio de Francesca.
Arnau passeou o olhar pelas paredes da masmorra; ninguém prestava a
menor atenção.
***
***
Mar e Guillem contaram um ao outro sobre seus cinco anos separados, até
que o sol subiu alto no céu de Barcelona; ela evitou mencionar Joan. As
primeiras a aparecer foram Teresa e Eulália. Chegaram acaloradas e
sorridentes, mas os sorrisos desapareceram ao verem Mar e lembrarem da
prisão de Francesca.
Haviam passeado pela cidade desfrutando a nova identidade que as
vestimentas de órfãs — e virgens — lhes proporcionava. Nunca tinham
tido tanta liberdade, pois a lei as obrigava a se vestirem com sedas
coloridas para que qualquer um as distinguisse. “Entramos?” Teresa
propôs, apontando às escondidas para as portas da igreja de Sant Jaume.
Ela falou sussurrando, como se tivesse medo de que a ideia desencadeasse
a ira de toda Barcelona. Mas nada aconteceu. Os fiéis que estavam no
interior não prestaram atenção nelas, nem o sacerdote, diante de quem as
moças abaixaram a vista e colaram uma na outra.
Da Rua da Boquería desceram rindo e conversando em direção ao mar;
se tivessem seguido pela Rua do Bisbe até a Praça Nova teriam visto
Aledis diante do palácio do bispo com os olhos nas janelas, tentando
reconhecer Arnau ou Francesca em cada silhueta que passava atrás dos
vidros. Nem sabia onde estavam julgando Arnau. Francesca já teria
falado? Joan não sabia nada sobre ela, e Aledis ia de uma janela a outra
com o olhar. Certamente que sim, mas para que lhe contar, se não podia
fazer nada? Arnau era forte e Francesca... não conheciam Francesca.
— O que faz aí parada, mulher? — Aledis viu um soldado da Inquisição
ao seu lado. Não o vira chegar. — O que olha com tanta atenção?
Ajeitou o xale e saiu fugindo sem responder. “Você não conhece
Francesca”, pensou enquanto escapava. “Nem todas as torturas a farão
confessar o segredo que calou durante toda a vida.”
Joan entrou na estalagem antes de Aledis, vestido com um hábito limpo
que conseguira no monastério de Sant Pere de les Puelles. Quando viu
Guillem sentado com Mar e as duas filhas de Aledis, ficou parado no meio
do refeitório.
Guillem o olhou. Aquilo era um sorriso ou uma expressão de desgosto?
O próprio Joan não sabia responder. Mar teria lhe contado sobre o
sequestro?
Por um instante Guillem recordou a maneira como o frade o tratava
quando estava com o irmão mais velho, mas não era hora para
implicâncias, e ele se levantou. Precisavam se unir pelo bem de Arnau.
— Como está, Joan? — disse, segurando-o pelos ombros. — O que
aconteceu com seu rosto? — acrescentou ao ver os hematomas.
Joan olhou para Mar, mas só deparou com o mesmo rosto duro e
inexpressivo com que o brindava desde que tinha ido buscá-la. Mas não,
Guillem não seria tão cínico para perguntar...
— Um encontro ruim — respondeu. — Os frades também passam por
isso.
— Suponho que você os excomungou — disse Guillem sorrindo
enquanto o acompanhava até a mesa. — Não é o que dizem as
Constituições de Paz e Trégua? — Joan e Mar se entreolharam. — Não é
assim? Será excomungado aquele que romper a paz contra clérigos
desarmados... Você não estava armado, não é, Joan?
Guillem não percebeu a tensão entre Mar e o frade, pois logo Aledis
apareceu. As apresentações foram breves; Guillem queria mesmo falar
com Joan.
— Você é inquisidor — disse-lhe —, o que acha da situação de Arnau?
— Acho que Nicolau deseja condená-lo, mas não tem muita coisa
contra ele. Suponho que seu nome e o castigo serão expostos nas igrejas e
que receberá uma forte multa, que é o que interessa a Eimeric. Conheço
Arnau, nunca fez mal a ninguém. Mesmo que Elionor o tenha denunciado,
não encontrarão...
— E se além da denúncia de Elionor houver denúncias de sacerdotes?
— Joan teve um sobressalto. — Os sacerdotes denunciariam detalhes
ínfimos?
— A que você se refere?
— Não vem ao caso. — Guillem lembrava a carta de Jucef. —
Responda-me. O que aconteceria se houvesse denúncia de sacerdotes?
Aledis não ouviu as palavras de Joan. Devia contar o que sabia? Aquele
mouro teria como ajudar? Ele era rico... e parecia... Eulália e Teresa
olharam para ela. Tinham ficado em silêncio como ela pedira, mas agora
pareciam incitá-la a falar. Não foi preciso lhes perguntar, as duas
assentiram. Isso significava... e daí? Alguém tinha que fazer algo, e aquele
mouro...
— Há muito mais — interveio ela, interrompendo as hipóteses que Joan
estava embaralhando.
Os dois homens e Mar olharam-na com atenção.
— Não vou lhes dizer como sei disso, nem quero falar novamente sobre
o assunto. Estão de acordo?
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Joan.
— Está suficientemente claro, frade — Mar o interrompeu.
Surpreso, Guillem olhou para Mar. Por que agia daquela maneira? Se
virou para Joan, mas ele estava cabisbaixo.
— Prossiga, Aledis. Estamos de acordo — aceitou Guillem.
— Lembram-se dos dois nobres que se hospedaram aqui?
Guillem a interrompeu ao ouvir o nome de Genís Puig.
— Tem uma irmã que se chama Margarida — disse Aledis.
Guillem levou as mãos ao rosto.
— Ainda estão alojados aqui?
Aledis continuou contando o que suas moças tinham descoberto;
Eulália não cedera a Genís Puig em vão. Depois de descarregar nela uma
paixão embebida em vinho, o cavaleiro desfiou as acusações contra Arnau
que tinham apresentado ao inquisidor.
— Dizem que Arnau queimou o cadáver do pai — contou Aledis —, e
eu não acredito...
Joan conteve uma ânsia. Todos se viraram para ele. O frade, com a mão
na boca, estava enjoado. A escuridão, o corpo de Bernat pendurado
naquele cadafalso improvisado, as chamas...
— O que tem a dizer agora, Joan? — Guillem se dirigia a ele.
— Ele será executado — conseguiu dizer antes de sair correndo da
estalagem com a mão na boca.
A sentença de Joan ficou flutuando no ar. Ninguém se olhou.
— O que aconteceu entre Joan e você? — perguntou Guillem
discretamente a Mar depois de um tempo, ao ver que o frade não voltava.
Era só um escravo... O que um simples escravo podia fazer? As
palavras de Guillem ressoaram na cabeça de Mar. Se ela contasse...
Precisavam estar unidos. Arnau precisava que todos lutassem por ele,
incluindo Joan.
— Nada — respondeu. — Você sabe que nunca nos demos bem.
Mar se esquivou do olhar de Guillem.
— Você me contará um dia? — insistiu Guillem.
Mar baixou ainda mais os olhos.
54
***
***
Queimar o cadáver?
Nicolau Eimeric permaneceu de pé, fitando Arnau com as mãos
apoiadas na mesa; estava transtornado.
— O seu pai — rugiu — foi um diabo que insuflou o povo. Por isso foi
executado e por isso você o queimou, para que morresse como tal.
Nicolau apontou para Arnau.
Como ele sabia disso? Só uma pessoa o sabia... o escrivão movia sua
pluma. Não podia ser Joan. Joan não... Arnau sentiu as pernas fraquejarem.
— Você nega ter queimado o cadáver de seu pai? — perguntou
Berenguer d’Erill.
Joan não podia tê-lo denunciado!
— Você nega? — repetiu Nicolau, erguendo a voz.
Os rostos dos membros do tribunal se desfiguraram e Arnau conteve
uma ânsia.
— Nós tínhamos fome! — gritou. — Alguma vez vós tivestes fome? —
O rosto arroxeado do pai com a língua pendurada se confundiu com os que
o fitavam. Joan? Por que não tinha ido vê-lo? — Estávamos com fome! —
gritou. Arnau ouviu seu pai dizer: “Se eu fosse você, não me submeteria.”
— Alguma vez vós tivestes fome?
Arnau tentou se lançar sobre Nicolau, que, soberbo, continuava de pé
interrogando-o com os olhos, mas antes que pudesse alcançá-lo os
soldados o imobilizaram e o arrastaram de volta para o centro da sala.
— Queimou seu pai como se fosse um demônio? — repetiu Nicolau aos
gritos.
— O meu pai não era um demônio! — gritou de volta Arnau,
forcejando com os soldados que o mantinham preso.
— Mas você queimou o cadáver dele.
“Por quê, Joan? Você é meu irmão e Bernat... Bernat sempre o quis
como um filho.” Arnau baixou a cabeça e ficou pendurado pelos braços.
— Foi por ordem de sua mãe?
Arnau só conseguiu erguer a cabeça.
— Sua mãe é uma bruxa que transmite o mal do diabo — acrescentou o
bispo.
O que estavam dizendo?
— Seu pai assassinou um rapaz para libertá-lo. Você confessa? —
gritou Nicolau.
— O quê...? — tentou dizer Arnau.
— Você — Nicolau apontou para ele — também assassinou um menino
cristão. O que pensava fazer com ele?
— Foi uma ordem de seus pais? — perguntou o bispo.
— Você queria o coração dele? — inquiriu Nicolau.
— Quantos meninos você assassinou?
— Quais são suas relações com os hereges?
Inquisidor e bispo o cravavam de perguntas. Seu pai, sua mãe, meninos,
assassinatos, corações, hereges, judeus... Joan! Arnau deixou a cabeça cair
novamente. Ele tremia.
— Você confessa? — terminou Nicolau.
Arnau não se moveu. O tribunal deixou o tempo correr. Arnau
continuava dependurado nos braços dos soldados. Finalmente, Nicolau fez
um sinal para que deixassem a sala, e Arnau foi arrastado para fora.
— Espere! — ordenou o inquisidor quando estavam a ponto de abrir as
portas. Os soldados se viraram. — Arnau Estanyol! — gritou. — Arnau
Estanyol!
Lentamente, Arnau ergueu a cabeça e olhou para Nicolau.
— Podem levá-lo — disse aos soldados ao perceber que Arnau olhava
para ele. — Anote, tabelião — Arnau o ouviu dizer quando fechavam as
portas —, o réu não negou nenhuma das acusações formuladas por este
tribunal e negou-se a confessar simulando um desvanecimento cuja
falsidade foi descoberta quando, livre do processo inquisitorial e antes de
deixar a sala, respondeu ao ser interpelado.
O som da pluma perseguiu Arnau até as masmorras.
***
***
***
1. Dinastia que, em diferentes épocas, governou em Castela, Aragão, Navarra e Nápoles. (N. da
T.)
55
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— Via fora!
O grito perturbou a tranquilidade da Praça Nova. Um rapaz a cruzou
correndo e repetindo o chamado às armas. “Via fora! Via fora!” Aledis e
Mar se entreolharam e depois olharam para Joan.
— Os sinos não estão tocando — respondeu ele dando de ombros.
Santa Maria não tinha sinos.
No entanto, o “Via fora!” correra pela cidade condal e o povo,
estranhando, se reuniu na Praça de Blat à espera de ver o pendão de São
Jorge ao lado da pedra que demarcava o centro. Em vez disso, dois
bastaixos armados com bestas se dirigiam a Santa Maria.
Na Praça de Santa Maria, sob o pálio nos ombros dos bastaixos, a
Virgem do Mar esperava que o povo se reunisse à sua volta. Diante da
Virgem e sob o pendão, os pró-homens do grêmio recebiam a multidão que
descia pela Rua do Mar, e um deles trazia a chave da Urna Sagrada
pendurada no pescoço. Um número cada vez maior de pessoas se
aglutinava em volta da Virgem. Junto à porta do local da mesa de Arnau,
Guillem observava e escutava atentamente.
— A Inquisição raptou um cidadão, o cônsul do Mar de Barcelona —
explicavam os pró-homens do grêmio.
— Mas a Inquisição... — disse alguém.
— A Inquisição não depende da cidade — respondeu um dos pró-
homens — nem do rei. Não obedece às ordens do Conselho de Cento, nem
do veguer, nem do juiz. Nenhum deles nomeia os seus membros; isso
quem faz é o papa, um papa estrangeiro que só quer nosso dinheiro. Como
podiam acusar de heresia um homem que sempre se sacrificou pela
Virgem do Mar?
— Só querem o dinheiro do nosso cônsul! — gritou alguém.
— Mentem para ficar com nosso dinheiro!
— Odeiam o povo catalão — alegou outro pró-homem.
As pessoas iam passando a conversa adiante. Os gritos começaram a
ressoar na Rua do Mar.
Guillem viu os pró-homens do grêmio darem explicações aos outros
grêmios da cidade. Quem não temia por seu dinheiro? Mesmo que a
Inquisição fosse algo igualmente temível. A denúncia mais absurda...
— Temos de defender nossos privilégios — disse alguém aos bastaixos.
O povo começava a se exaltar. As espadas, punhais e bestas
sobressaíam acima das cabeças, se agitando ao chamado do “Via fora!”.
A gritaria ficou ensurdecedora. Guillem viu chegarem alguns
conselheiros da cidade e imediatamente se aproximou do grupo que
discutia diante da imagem da Virgem.
— E os soldados do rei? — perguntou um conselheiro.
O pró-homem repetiu exatamente as palavras que Guillem lhe dissera:
— Vamos até a Praça de Blat, e vejamos como reage o veguer.
Guillem se afastou deles. Por um instante, fitou a pequena imagem de
pedra que repousava nos ombros dos bastaixos. “Ajude-o”, rogou em
silêncio.
A comitiva se pôs em marcha. “À Praça de Blat!”, diziam todos.
Guillem se somou à torrente que subiu pela Rua do Mar até a praça que
se abria diante do palácio do veguer. Poucos sabiam que o objetivo da host
barcelonesa era testar a reação do veguer e, por isso, enquanto a Virgem
era instalada onde deveriam estar os pendões de São Jorge e o da cidade ao
som dos gritos do povo, não houve problemas para chegar ao próprio
palácio.
Do centro da praça, ao lado da Virgem e do pendão dos bastaixos, pró-
homens e conselheiros fitaram o palácio. As pessoas começaram a
entender. Se fez silêncio e todos se viraram para o palácio. Guillem sentiu
a tensão. O infante cumpriria o pacto? Os soldados estavam perfilados
entre o povo e o palácio com as espadas desembainhadas. O veguer surgiu
na janela, olhou a massa humana e desapareceu. Depois de uns instantes,
um oficial do rei fez ato de presença na praça; milhares de olhos,
incluindo os de Guillem, se fixaram nele.
— O rei não pode intervir nos assuntos da cidade de Barcelona! —
exclamou. — Convocar a host é competência da cidade.
Em seguida, ordenou aos soldados que se retirassem.
As pessoas viram os soldados desfilarem diante do palácio e darem a
volta pelo antigo portal da cidade. Antes que o último deles desaparecesse,
um “Via fora!” rompeu o silêncio, fazendo Guillem estremecer.
***
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***
Mar e Aledis não conseguiram chegar perto dele, apesar dos empurrões e
cotoveladas que deram. Vislumbraram-no nos braços dos conselheiros
quando a Virgem do Mar e os pendões começaram a regressar à Praça de
Blat. Quem também o viu foram Jaume de Bellera e Genís Puig,
misturados entre a gente. Até aquele momento, haviam unido suas espadas
aos milhares de armas que se erguiam contra o palácio do bispo e tinham
se visto obrigados a se juntar aos gritos contra o inquisidor, ainda que, em
seu íntimo, rogassem para que Nicolau resistisse e que o rei voltasse atrás
e acudisse em defesa do Santo Ofício. Como era possível que aquele rei,
pelo qual tantas vezes tinham arriscado suas vidas...?
Ao ver Arnau, Genís Puig começou a girar a espada no ar e a bradar
como um possesso. O senhor de Navarcles conhecia aquele grito, o mesmo
que ouvira em outras ocasiões quando o cavaleiro se lançava ao ataque a
galope, a espada girando acima da cabeça. A arma de Genís bateu contra
as bestas e espadas dos que os rodeavam. As pessoas começaram a se
afastar e Genís avançou em direção à comitiva, que estava a ponto de
deixar a Praça Nova pela Rua do Bisbe. Como pretendia enfrentar toda a
host de Barcelona? Eles o matariam, e depois...
Jaume de Bellera correu em direção ao amigo e o obrigou a guardar a
espada. As pessoas em volta olharam para eles com estranheza, mas a
multidão continuava a se dirigir à Rua do Bisbe. O espaço se fechou
novamente assim que Genís parou de gritar e abaixou a espada. O senhor
de Bellera o afastou dos que o tinham visto tentar o ataque.
— Você enlouqueceu? — perguntou.
— Ele foi libertado... Está livre! — respondeu Genís olhando os
pendões que desciam pela Rua do Bisbe. Jaume de Bellera o obrigou a
olhá-lo.
— O que você pretende?
Genís Puig voltou a olhar para os pendões e tentou se safar de Jaume de
Bellera.
— Vingança! — respondeu.
— Esse não é o caminho — advertiu o senhor de Bellera. — Não é o
caminho. — Depois o sacudiu com força até que Genís respondeu. — Nós
encontraremos uma forma...
Genís olhou fixamente para ele; seus lábios tremiam.
— Você jura?
— Pela minha honra.
***
***
***
— Arnau! Arnau!
Quantas vezes sonhara ouvir aquele grito? Quando abriu os olhos se viu
carregado nos braços de homens cujos rostos não distinguia muito bem.
Eles o levavam em silêncio e apressados. O que estava acontecendo? Onde
estava? Arnau! Sim, era o mesmo grito que um dia saiu de uma moça que
ele traiu na quinta de Felip de Ponts.
Arnau! A praia. As recordações se confundiram com o barulho das
ondas e a brisa salobra. Por que estava na praia?
— Arnau!
A voz chegou de longe.
Os bastaixos entraram na água, em direção ao barco que levaria Arnau à
galeota fretada por Guillem e que esperava na metade do porto. A água do
mar salpicou Arnau.
— Arnau!
— Esperem — balbuciou ele, tentando se erguer —, essa voz...
Quem...?
— Uma mulher — respondeu um deles. — Ela não causará problemas.
Nós temos...
Arnau estava de pé ao lado do barco, sustentado pelos bastaixos. Olhou
para a praia. “Mar o espera.” As palavras de Guillem silenciaram tudo o
que o rodeava. Guillem, Nicolau, a Inquisição, as masmorras: tudo voltou
à sua mente em um torvelinho.
— Meu Deus! — exclamou. — Tragam-na. Eu suplico!
Um dos bastaixos correu até onde estava Mar.
Arnau a viu correr em sua direção.
Os outros também olhavam para ela e desviaram o olhar quando Arnau
se soltou de seus braços; parecia que a onda mais suave poderia derrubá-lo
ao tocar suas panturrilhas.
Arnau ficou de braços caídos diante de Mar; então viu uma lágrima
rolar por sua face. Se aproximou e a colheu com os lábios.
Eles não trocaram uma palavra. Ela ajudou os bastaixos a subi-lo no
barco.
***
***
***
Passou dois dias percorrendo Barcelona, lembrando dos lugares que por
tanto tempo fizeram parte de sua vida. As coisas tinham mudado pouco
nos cinco anos em que Guillem estivera em Pisa. A cidade fervia apesar da
crise. Barcelona continuava aberta ao mar, defendida exclusivamente
pelos bancos de areia, para onde Arnau levou o baleeiro quando Pedro, o
Cruel, ameaçou a costa da cidade condal com sua frota; ainda estava em
andamento a edificação da muralha ocidental que Pedro III tinha iniciado.
Também prosseguia a construção do estaleiro real. Enquanto não ficava
pronta, os navios eram construídos e consertados no antigo, ao pé da praia,
diante da torre de Regomir. Ali Guillem se deixou levar pelo forte cheiro
de alcatrão com que os calafates impermeabilizavam as embarcações.
Observou o trabalho dos carpinteiros de ribeira, dos remolares, dos
ferreiros e cordoeiros. Tempos atrás, costumava acompanhar Arnau para
inspecionar o trabalho destes últimos e comprovar se as cordas destinadas
a cabos e adriças dos navios não tinham cânhamo velho misturado ao
novo. Passeavam entre os navios solenemente, acompanhados pelos
carpinteiros de ribeira. Depois de examinar as cordas, Arnau ia até os
calafates. Dispensava os acompanhantes e, ao lado de Guillem, conversava
com eles em particular, observado de longe pelos outros.
— O trabalho deles é essencial; a lei os impede de trabalhar por
empreitada — explicou ele a Guillem da primeira vez. Por isso o cônsul
conversava com os calafates, para saber se algum deles, movido pela
necessidade, descumpria a norma que visava a garantir a segurança dos
navios.
Guillem viu que um, de joelhos, alcatroava novamente a junta que
acabava de calafetar. A imagem o fez fechar os olhos. Apertou os lábios e
balançou a cabeça. Lutaram muito um ao lado do outro, e agora Arnau
estava recluso em uma cela à espera de uma pena menor do inquisidor.
Cristãos! Pelo menos Mar estava com ele... a sua menina. Guillem não
estranhou quando o piloto da galeota, depois de deixar Mar e Arnau,
apareceu no estaleiro e explicou o ocorrido. Aquela era a sua garota!
— Sorte, querida — murmurou ele.
— O que dizeis?
— Nada, nada. Fizestes bem. Deixai o porto e regressai em um par de
dias.
No primeiro dia não recebeu notícias de Eimeric. No segundo, entrou
novamente na cidade. Não podia continuar esperando no estaleiro; deixou
ali os criados, com a ordem de procurá-lo por toda a cidade caso alguém
perguntasse por ele.
Os bairros dos mercadores continuavam exatamente iguais. Era
possível percorrer Barcelona de olhos fechados, se guiando unicamente
pelo cheiro de cada um. A catedral continuava em construção, assim como
Santa Maria e a igreja do Pi, mas o templo do mar estava muito mais
adiantado que os outros dois. Santa Clara estava em obras, e também Santa
Anna. Guillem parou diante de cada uma das igrejas para observar o
trabalho dos carpinteiros e pedreiros. E a muralha do mar? E o porto?
Aqueles cristãos eram curiosos.
— Perguntam por vós no estaleiro — anunciou, ofegante, um dos
criados no terceiro dia.
“Você cedeu, Nicolau?”, Guillem se questionou, se dirigindo apressado
em direção ao mar.
***
***
***
Com o sol no alto, os três foram até a galeota depois de fazer sinal ao
marinheiro para que se aproximasse da praia. Arnau e Guillem
embarcaram.
A moça se virou e olhou para a cabana. O que a esperava agora, a pena
de sambenito, Elionor...
Mar abaixou os olhos.
— Não se preocupe com ela — Arnau a consolou afagando seu cabelo
—, sem dinheiro, ela não nos chateará. O palácio da Rua de Montcada é
parte de meu patrimônio, portanto agora pertence à Inquisição. Só lhe
resta Montbui. Terá que ir para lá.
— O castelo — murmurou Mar — vai ser confiscado pela Inquisição?
— Não. O castelo e as terras foram entregues em dote pelo rei. A
Inquisição não pode confiscá-los como parte de meu patrimônio.
— Sinto muito pelos camponeses — murmurou Mar, lembrando o dia
em que Arnau revogou os maus usos.
Ninguém mencionou Mataró, a quinta de Felip de Ponts.
— Nós nos arranjaremos... — começou Arnau.
— De que você está falando? — Guillem o interrompeu. — Você terá
todo o dinheiro que precisar. Se quiser, podemos comprar novamente o
palácio da Rua Montcada.
— Esse dinheiro é seu — recusou Arnau.
— Esse dinheiro é nosso. Escutem — disse ele —, não tenho ninguém
além de vocês. O que vou fazer com o dinheiro que consegui graças à sua
generosidade? Ele é seu.
— Não, não — insistiu Arnau.
— Vocês são a minha família. A minha menina... e o homem que me
deu liberdade e riqueza. Isto quer dizer que vocês não me querem em sua
família?
Mar estendeu o braço para tocar Guillem. Arnau gaguejou:
— Não, eu não quis dizer isso... É claro...
— Pois o dinheiro vem comigo — insistiu o amigo. — Ou você quer
que eu o entregue à Inquisição?
A pergunta provocou um sorriso em Arnau.
— E tenho grandes projetos — acrescentou Guillem.
Mar continuou olhando a enseada. Uma lágrima rolou por sua face. Ela
permaneceu quieta. A lágrima tocou seus lábios e se perdeu na curva da
fenda entre eles. Voltavam para Barcelona. Para cumprir uma condenação
injusta, com a Inquisição, com Joan, o irmão que o traiu... E com uma
esposa que ele desprezava e da qual não tinha como se libertar.
59
Guillem alugou uma casa no bairro da Ribera. Evitou o luxo, mas a casa
era suficientemente ampla para abrigar os três. “E com um quarto para
Joan”, ele pensou ao dar as instruções. Arnau foi recebido com carinho
pelas pessoas da praia ao desembarcar da galeota no porto de Barcelona.
Alguns mercadores que vigiavam o transporte de suas mercadorias ou
transitavam nas proximidades da alfândega o cumprimentaram com um
movimento de cabeça.
— Não sou mais rico — comentou ele com Guillem enquanto
caminhava e distribuía cumprimentos.
— As notícias correm... — respondeu Guillem.
Arnau tinha dito que a primeira coisa que queria fazer ao desembarcar
era visitar Santa Maria, para agradecer à Virgem por sua libertação; seus
sonhos tinham passado da confusão à nitidez da pequena figura saltando
por cima das cabeças das pessoas enquanto era carregado nos braços dos
conselheiros da cidade. No entanto, seu trajeto foi interrompido ao passar
pela esquina de Canvis Vells com Canvis Nous. A porta e as janelas de sua
casa, de sua mesa de câmbio, estavam completamente abertas. Diante dela
havia um grupo de curiosos que se afastaram ao vê-lo chegar. Não
entraram. Os três reconheceram alguns móveis e objetos que os soldados
da Inquisição amontoavam em uma carroça estacionada junto à porta: a
mesa comprida, que era maior que a carroça e tinha sido amarrada com
cordas, o tapete vermelho, a serra para cortar moedas falsas, o ábaco, os
cofres...
Uma figura de preto que anotava os pertences desviou a atenção de
Arnau. O dominicano parou de anotar enquanto o bastaix reconhecia
aqueles olhos: eram os que o perscrutaram durante os interrogatórios
detrás da mesa, ao lado do bispo.
— Carniceiros — murmurou ele.
Eram seus pertences, seu passado, suas alegrias e dissabores. Jamais
imaginou que seria espoliado daquela forma... Nunca dera importância aos
seus bens e, no entanto, estavam levando uma vida inteira.
Mar sentiu o suor nas mãos de Arnau.
Alguém atrás vaiou o frade; imediatamente os soldados deixaram os
pertences e desembainharam as armas. Três deles saíram da casa
empunhando as armas.
— Eles não permitirão outra humilhação pelas mãos do povo —
advertiu Guillem, puxando Mar e Arnau para um lado.
Os soldados se arremessaram contra os curiosos, que saíram correndo
em todas as direções. Arnau se deixou levar por Guillem olhando para trás,
com o olhar fixo na carroça.
Esqueceram Santa Maria, pois para lá se dirigiram alguns soldados
perseguindo as pessoas. Deram a volta apressados para alcançar a Praça do
Born e, dali, sua nova casa.
***
***
Joan deixou a casa e caminhou atrás do escravo de Guillem até a
estalagem. O jovem precisou se virar diversas vezes para esperar o
dominicano, que se detinha no meio da rua com o olhar perdido. Tinham
ido pelo caminho que levava à alfândega, que o jovem conhecia.
Na Rua de Montcada, porém, o escravo não conseguiu fazer Joan segui-
lo. O frade permaneceu imóvel diante dos portões do palácio de Arnau.
— Vá sozinho — disse Joan, se safando das mãos do rapaz que o
puxava. — Eu preciso cobrar outra dívida — murmurou para si mesmo.
Pere, o velho escravo, conduziu-o à presença de Elionor. Ele começou a
sussurrar uma mesma frase sem cessar assim que cruzou o umbral; seu
tom de voz foi subindo à medida que avançava pela escadaria de pedra
acompanhado de Pere, que o olhava espantado e, ao chegar diante de
Elionor, antes que ela pudesse dizer alguma coisa, soltou numa voz
aterradora:
— Sei que você pecou!
A baronesa, de pé no salão, olhou para ele orgulhosa.
— Que besteira está dizendo, frade?
— Sei que você pecou!
Joan repetiu.
Elionor deu uma gargalhada antes de lhe dar as costas.
Joan viu o traje com ricos brocados que a mulher vestia. Mar tinha
sofrido, ele próprio tinha sofrido. Arnau... Arnau deve ter sofrido tanto
quanto eles.
Elionor continuava rindo de costas.
— Quem você pensa que é, frade?
— Sou um inquisidor do Santo Ofício — respondeu Joan. — E neste
caso não preciso de nenhuma confissão.
Elionor se virou em silêncio diante da frieza das palavras de Joan. Viu
que ele trazia uma lamparina na mão.
— O quê...?
Ela não teve tempo de terminar. Joan jogou a lâmpada nela. O óleo
impregnou suas luxuosas vestimentas e incendiou imediatamente.
Elionor urrou.
Quando o velho Pere entrou para acudir sua senhora, ela já tinha se
convertido em uma tocha. Ele chamou os demais escravos aos gritos. Joan
o viu puxar um tapete da parede para jogá-lo sobre Elionor. Afastou o
escravo com um empurrão, mas na porta do salão já estavam outros
criados, com os olhos esbugalhados.
Alguém pediu água.
Joan observou Elionor, que caíra de joelhos, envolta em chamas.
— Perdoe-me, Senhor — balbuciou.
Então procurou outra lâmpada. Tomou-a e, com ela na mão, se
aproximou de Elionor. A bainha de seu hábito pegou fogo.
— Arrependa-se! — gritou ele antes de ser envolto pelo fogo.
O tapete em que estavam começou a arder. Alguns móveis também
pegaram fogo.
Quando os escravos apareceram com a água, se limitaram a jogá-la das
portas do salão. Depois, tapando o rosto, fugiram da densa fumaça.
60
15 de agosto de 1384
Festa da Assunção
Igreja de Santa Maria do Mar
Barcelona
1. Conjunto de leis que vigorou na península Ibérica a partir da dominação visigoda, e foi
traduzido do latim para o castelhano no século XIII. (N. da T.)
Sobre o autor
O Olho do Mundo
Robert Jordan
A Grande Caçada
Robert Jordan
O Dragão Renascido
Robert Jordan
A Ascensão da Sombra
Robert Jordan
As Chamas do Paraíso
Robert Jordan
O Senhor do Caos
Robert Jordan
O torreão
Jennifer Egan
Sal
Leticia Wierzchowski