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Talvez eu tenha ficado ali por mais meia hora, se tanto. Bebi o drinque
oferecido por Tim Pat e depois outro, o que foi mais do que suficiente.
Billie e Skip saíram junto comigo. Bobby e sua garota ainda iam ficar um
pouco mais. Vince já tinha ido embora e Eddie se juntara a outra mesa;
estava tentando seduzir uma garçonete alta que trabalhava no O'Neal's.
O céu estava claro, as ruas ainda vazias, silenciosas naquele início da
manhã.
— Bem, de todo modo o Norad conseguiu alguns dólares. Não havia
tanto dinheiro assim quando Frank e Jesse esvaziaram a jarra, e o pessoal
soltou uma boa quantia, que deu para encher a jarra de novo — foi o
comentário de Skip.
— Frank e Jesse?
— Ora, aqueles lenços vermelhos, pelo amor de Deus! Você sabe,
Frank e Jesse James. Mas antes só havia notas de um e de cinco dólares,
depois a jarra foi recheada por outras de dez e vinte, portanto as mulheres
pobres e as criancinhas do Norte se deram bem.
— Quanto é que vocês acham que os Morrissey perderam? —
perguntou Billie.
— Meu Deus, não sei. Aquele cofre podia estar cheio de apólices de
seguro e retratos da santa mãe deles, mas isso seria uma surpresa e tanto,
não? Aposto como saíram com uma boa quantia para enviar armas aos
audaciosos rapazes de Derry e Belfast.
— Você acha que os assaltantes eram do IRA, Skip?
— Sei lá — ele respondeu. Jogou o cigarro na sarjeta. — Acho que os
Morrissey são. Acho que é para lá que o dinheiro deles vai. Calculo…
— Ei, rapazes! Esperem!
Olhamos para trás. Um homem chamado Tommy Tillary nos chamava
lá da entrada dos Morrissey. Era um cara corpulento, de rosto cheio, peito
largo, barrigudo. Usava um blazer cor de vinho e calça branca. E uma
gravata. Era raro que estivesse sem gravata.
A mulher que o acompanhava era baixa e esguia, cabelo castanho-claro
iluminado por mechas ruivas. Vestia um jeans justo e desbotado e uma
blusa de abotoar cor-de-rosa com as mangas enroladas. Parecia muito
cansada e meio bêbada.
— Vocês conhecem a Carolyn? Claro que conhecem. —
Cumprimentamos. — Estou com o carro parado logo depois da esquina,
tem lugar para todos. Deixo vocês em casa.
— Está uma linda manhã — Billie disse. — Acho que prefiro ir
andando, Tommy.
— Ah, é?
Skip e eu dissemos a mesma coisa.
— Vamos rebater um pouco da bebida. Relaxar, para dormir melhor.
— Têm certeza? Não é trabalho nenhum. — Tínhamos certeza. —
Bem, vocês se importam de andar conosco até o carro? Aquela pequena
demonstração lá no bar, sabe, aquilo deixa a pessoa meio nervosa.
— Claro, Tom.
— Linda manhã, não? Vai ser um dia quente hoje, mas agora está uma
beleza. Eu jurava que ele ia atirar no, como é mesmo o nome dele, Tim
Pat. De onde vocês estavam dava para ver o olhar dele?
— Houve um momento em que qualquer coisa podia acontecer —
Billie comentou.
— Eu só pensava, vai haver um tiroteio, fogo cruzado, e comecei a
procurar uma mesa para me proteger. Diabo de mesinhas pequenas, não
têm muito espaço para a pessoa se esconder, não é?
— Muito pouco.
— E eu sou um alvo bem grande, certo? O que você está fumando,
Skip? Camel? Se não se importa, quero experimentar um. Fumo desses
com filtro, mas a essa hora da noite eles não têm gosto. Obrigado.
Imaginei coisas ou tinha uma dupla de policiais no salão?
— Alguns, pelo menos.
— Eles têm que portar armas estando ou não em serviço, não é? — Fez
essa pergunta diretamente para mim e eu concordei, confirmando que
havia um regulamento que dizia mais ou menos isso.
— Pensei que um deles fosse tentar alguma coisa.
— Você achou que eles iam atirar nos assaltantes?
— Achei que iam fazer alguma coisa.
— É uma boa maneira de matar pessoas — respondi. — Sair atirando
chumbo numa sala cheia como aquela.
— Com certeza haveria perigo de ricochete.
— Por que você está dizendo isso?
Ele me olhou, surpreso com o tom cortante da minha voz.
— Ora, por causa das paredes de tijolo, acho. Até os tiros no teto
podiam ter ricocheteado e causado algum estrago. Não podiam?
— Acho que sim. — Um táxi passou por nós de luminoso apagado,
com um passageiro no banco da frente. — Em serviço ou fora dele, um
policial não faria nada naquela situação, a não ser que alguém começasse a
atirar. Havia tiras ali, na hora, provavelmente com as mãos em suas armas.
Se aquele sujeito tivesse dado um tiro em Tim Pat, com certeza sairia pela
porta se desviando de algumas balas; isso se algum dos tiras tivesse o
bandido na linha de tiro.
— E se os tiras estivessem suficientemente sóbrios para enxergar
direito — Skip acrescentou.
— Faz sentido — disse Tom. — Matt, você não impediu um assalto
num bar alguns anos atrás? Alguém comentou isso.
— Foi um pouco diferente — respondi. — Eles mataram o barman
antes de eu poder reagir. E não espalhei balas lá dentro. Fui para a rua atrás
deles. — Fiquei pensando naquele dia e perdi um pedaço da conversa.
Quando voltei a prestar atenção, Tommy estava dizendo que também tinha
ficado com medo de ser assaltado.
— Tinha muita gente naquele salão. Gente que trabalha à noite,
pessoas que haviam fechado suas lojas e que deviam estar com dinheiro no
bolso. Dava para pensar que eles iam passar o chapéu, não acha?
— Imagino que estivessem com pressa.
— Eu só tinha umas poucas notas de cem, mas prefiro ficar com elas a
entregá-las a um sujeito mascarado. A pessoa fica aliviada por não ter sido
assaltada, e aí é muito generosa quando passam a jarra para, como é
mesmo o nome do troço? Norad? Dei vinte dólares para as viúvas e os
órfãos, não pensei duas vezes.
— Foi tudo encenação — Billie Keegan sugeriu. — Os sujeitos com os
lenços são amigos da família e apresentam aquele teatrinho a cada duas
semanas a fim de aumentar a caixinha do Norad.
— Nossa! — Tommy exclamou, rindo da teoria. — Isso seria o
máximo, não? Lá está o meu carro, o Riv. Uma barcaça, pode transportar
nós todos com conforto, se vocês mudarem de ideia e me deixarem levar
vocês para casa.
Permanecemos firmes em nosso propósito. O carro dele era um Buick
Riviera marrom, estofado em couro branco. Ele abriu a porta para Carolyn,
depois contornou o carro e destravou sua porta, fazendo uma careta ao ver
que ela tentava e não conseguia destrancar a porta do lado do motorista.
Depois que eles se foram, Billie comentou:
— Eles ficaram no Armstrong's até uma, uma e meia da manhã. Não
esperava vê-los de novo esta noite. Espero que ele não pretenda dirigir até
o Brooklyn.
— Eles moram lá?
— Ele mora lá — Billie explicou para Skip. — Ela é daqui, da
vizinhança. Ele é casado. Por acaso não usa aliança?
— Nunca reparei.
— Carolyn da Carolina. É assim que ele apresenta a moça. Ela estava
mesmo com uma cara horrível hoje, não?
Quando eles saíram, achei que estavam indo para a casa dela; pensando
bem, foi isso mesmo. Antes ela estava com um vestido escuro, não é,
Matt?
— Não me lembro.
— Posso jurar que sim. Roupa de trabalho, de todo jeito, não estava de
jeans e camisa da Brooks, como agora, Ele a levou em casa, os dois deram
uma trepada, aí ficaram com sede e, como naquela hora as lojas já estavam
fechadas, foram ao sempre aberto em horas tardias, T. P. Morrissey,
Proprietário. O que é que você acha, Matt? Levo jeito para detetive?
— Está indo muito bem.
— Ele vestiu a mesma roupa, mas ela trocou a dela. Agora a pergunta
é: irá ele para casa ao encontro da mulher ou dormirá na casa de Carolyn,
aparecendo pela manhã no escritório com a mesma roupa? E o único
problema é: quem está ligando para isso?
— Era o que ia perguntar — disse Skip.
— É… Mas tem uma coisa que ele perguntou e que também vou
perguntar. Por que será que eles não assaltaram os fregueses? Com certeza
muitos deles estavam com Centenas de dólares no bolso, alguns até mais
do que isso.
— Não valia à pena.
— Estamos falando de alguns mil dólares.
— Eu sei. Também de uns vinte minutos mais, se você quer fazer as
coisas direito, e isso num salão cheio de bêbados, com Deus sabe quantos
deles armados. Aposto que tinha umas quinze armas ali.
— Sério?
— Não apenas sério, como acho que estou calculando por baixo. Para
começo de conversa, tinha uns três ou quatro tiras. Eddie Grillo estava na
nossa mesa.
— Eddie anda armado?
— Eddie anda com uns caras da pesada, sem falar nos donos do bar
onde ele trabalha. Havia um tipo chamado Chuck. Não conheço ele bem,
trabalha no Polly's Cage.
— Sei quem é. Ele também anda armado?
— Ou isso, ou anda com uma ereção permanente e tem um corpo
esquisito. Acredite, muita gente anda armada por aí. Você diz para uma
sala cheia de gente para tirarem suas carteiras do bolso e muitos sacarão
os revólveres também. Enquanto isso, no caso de hoje, a ação não levou
mais do que cinco minutos. Acho que não levou mais do que isso, do
momento em que abriram a porta e atiraram no teto até saírem e deixarem
Tim Pat em pé, de braços cruzados e expressão carrancuda.
— Isso é verdade.
— E tudo que eles tirassem das carteiras dos fregueses seria pouco,
perto do que levaram.
— Você acha que a caixa estava tão recheada assim? Quanto você acha
que tinha lá dentro?
— Uns vinte mil — Skip respondeu, encolhendo os ombros.
— Sério?
— Vinte mil, cinquenta mil, sei lá.
— Dinheiro do IRA, você falou.
— Ora, no que mais você acha que eles gastam, Bill? Não sei quanto
faturam, mas têm um negócio que dá um bom retorno sete dias por
semana. E quais são as despesas deles? Provavelmente compraram o
prédio saldando impostos atrasados, moram lá, portanto não pagam
aluguel, e também não têm folha de pagamento para honrar. Tenho certeza
de que não declaram o que ganham e por isso não pagam imposto de
renda, a não ser que declarem que aquele teatro no térreo apresenta um
bom lucro e paguem uma taxa simbólica sobre isso. Com certeza faturam
de dez a vinte mil por semana. E no que vocês acham que eles gastam?
— Mas pagam para manter o bar funcionando — falei.
— Suborno e propinas, claro, mas não dez ou vinte mil por semana.
Não têm automóveis caros, e nunca saem para gastar um dólar que seja no
boteco de alguém. Não imagino Tim Pat comprando esmeraldas para
pendurar no pescoço de alguma garota, ou os irmãos dele enfiando fileiras
de cocaína naqueles narizes irlandeses.
— Viva os narizes irlandeses! — Billie exclamou.
— Gostei do pequeno discurso de Tim Pat e daquela rodada de cortesia
depois. Tanto quanto sei, essa é a primeira vez que os Morrissey oferecem
uma por conta da casa.
— Irlandeses desgraçados.
— Puxa, Billie, você está bêbado de novo.
— Louvado seja Deus, você tem razão.
— O que você acha, Matt? O Tim reconheceu o Frank e o Jesse?
Fiquei pensando.
— Não sei. O que ele disse foi: “Fiquem fora dessa história que a gente
acerta tudo entre nós”. Acho que tem política nessa história.
— Acertou na mosca! Os democratas reformistas estão por trás de tudo
— Billie falou.
— Talvez os protestantes — Skip acrescentou.
— Engraçado. Não pareciam protestantes.
— Ou alguma outra facção do IRA. Tem diferentes facções, não é
mesmo?
— Claro que a gente raramente vê protestantes de lenço vermelho
cobrindo o rosto. Normalmente eles enfiam no bolso de cima do paletó
— Nossa, Keegan.
— Protestantes desgraçados — Billie disse.
— Maldito Billie Keegan — Skip falou. — Matt, acho melhor a gente
levar esse bobalhão em casa.
— Armas desgraçadas — Billie voltou ao ataque de repente. — A
pessoa sai para um gole antes de dormir e quando vê, está cercada de
armas. Você anda armado, Matt?
— Eu não, Billie.
— Verdade? — Ele apoiou a mão no meu ombro para se equilibrar. —
Mas você é tira.
— Era.
— Tira privado, agora. Até o alugue-um-tira, o guarda de segurança
numa livraria, o cara que pede para você deixar a pasta na recepção antes
de entrar na loja, esse cara carrega uma arma.
— Geralmente é só para impor respeito.
— Você está querendo dizer que eu não vou levar um tiro se sair da
livraria com um exemplar de A letra escarlate no bolso? Você devia ter me
dito isso antes de eu ir lá, comprar e pagar. Verdade que não anda armado?
— Outra ilusão despedaçada — disse Skip.
— E quanto ao seu amigo, o ator? — Billie perguntou a Skip. — O
pequeno Bobby é pistoleiro?
— Quem, o Ruslander?
— Ele seria capaz de dar um tiro nas suas costas.
— Se o Ruslander carregasse uma arma — Skip falou —, seria uma
arma de fantasia. Só tiros de festim.
— Atiraria nas suas costas — Billy insistiu. — Como aquele sujeito, o
Bobby the Kid.
— Você quer dizer Billy the Kid.
— Quem é você, para me dizer o que eu quero dizer? Afinal, ele tem
ou não?
— Ele tem o quê?
— Uma arma no bolso, pelo amor de Deus. Não era sobre isso que
estávamos falando?
— Deus do Céu, Keegan, não me pergunte sobre o que a gente estava
falando.
— Quer dizer que nenhum dos dois estava prestando atenção? Minha
nossa!
Billy Keegan morava num prédio alto na rua 56, perto da Oitava. Ao se
aproximar de casa, aprumou-se e aparentou estar suficientemente sóbrio
ao cumprimentar o porteiro.
— Matt, Skip — falou. — Até mais.
— O Keegan é boa praça.
— Ele é um bom homem — falei.
— Não estava tão bêbado quanto queria fazer acreditar. Estava era se
divertindo, curtindo.
— Claro.
— Nós temos uma arma atrás do balcão no Miss Kitty's, sabe. Já
fomos assaltados, no bar onde eu trabalhava antes que John e eu
abríssemos nosso negócio. Era eu quem estava atrás do balcão naquela
noite, naquele bar da Segunda Avenida, na altura das ruas 80. Um
camarada apareceu, um sujeito branco, enfiou uma arma na minha cara e
retirou o dinheiro da caixa. Assaltou os fregueses também. Eram cinco ou
seis pessoas, só, naquela hora, mas ele levou as carteiras de todo mundo e
acho que os relógios também. Serviço completo.
— Pelo jeito.
— Durante todo o tempo em que estive bancando o herói no Vietnã,
naquelas malditas Forças Especiais, nunca tive de encarar tão de perto o
cano de uma arma. Na hora, não senti nada, mas depois fiquei furioso,
entende? Fiquei enfurecido. Saí, comprei uma pistola, e desde então ela
fica comigo quando estou trabalhando. Naquele boteco e agora no Miss
Kitty's. Ainda acho que devíamos ter chamado o bar de Ferraduras e
Granadas.
— Você tem porte?
— Para a arma? — Ele fez que não com a cabeça. — Não está
registrada. Quando você trabalha numa taberna, não é nada difícil
descobrir onde ir para comprar uma arma. Levei dois dias fazendo
perguntas e no terceiro lá estava eu com menos cem dólares no bolso. Já
fomos assaltados, depois que abrimos nosso bar. Era o turno do John, mas
ele deixou a arma quietinha no lugar e entregou todo o dinheiro da gaveta.
O cara não assaltou os clientes. John achou que era um drogado, disse que
só se lembrou da arma depois que o rapaz saiu. Pode ser, mas também
pode ser que ele tenha achado melhor não fazer uso dela. Provavelmente
eu faria a mesma coisa, não sei. A gente nunca sabe ao certo até acontecer,
não é?
— É verdade.
— Você não tem mesmo nenhuma arma desde que saiu da polícia?
Dizem que, depois de anos de uso, o cara se sente nu quando está
desarmado.
— Eu não. Sinto como se tivesse me livrado de um peso.
— Pessoal, vou é largar minha carga. Foi isso que você sentiu?
— Mais ou menos isso.
— É… Ele não teve nenhuma intenção, sabe? Quando falou no
ricochete.
— O quê? Ah, o Tommy.
— Tommy Tillary, o Durão. Meio babaca, mas não é um mau sujeito.
Chamá-lo de Tommy Durão é como chamar um camarada grande de
Miudinho. Tenho certeza de que não falou por mal.
— Sei que não.
— Tommy Durão. Ele tem outro apelido.
— Telefone Tommy.
— Ou Tommy Telefone. Ele vende merda pelo telefone. Eu não sabia
que homens adultos trabalhavam nisso. Achava que era para donas de casa,
que faturam uns trinta e cinco centavos por hora.
— Parece que pode ser lucrativo.
— Evidente. Você viu o carrão. Nós todos vimos o carro. Não vimos a
moça abrir a porta para ele, mas vimos o carro. Matt, você não quer subir e
tomar a saideira comigo, antes de darmos o dia por encerrado? Tenho
uísque e bourbon e provavelmente alguma comida no freezer.
— Acho que prefiro ir pra casa, Skip. Mas obrigado. — Você está
certo. — Acendeu um cigarro. Ele morava no Parc Vendôme, do outro lado
da rua e a algumas portas a oeste do meu hotel. Jogou o cigarro fora,
apertamos as mãos, e nesse exato instante cinco ou seis tiros soaram a um
quarteirão e pouco de onde estávamos.
— Meu Deus! Isso foi um tiroteio ou meia dúzia de fogos? Você
consegue distinguir uns dos outros?
— Não — respondi.
— Nem eu. Provavelmente fogos, considerando-se o dia em que
estamos. Ou então os Morrissey alcançaram o Frank e a Jesse ou lá sei eu.
Hoje é dia 2, não é? Dia 2 de julho?
— Acho que sim.
— Vai ser um verão e tanto.
2
Tudo isso aconteceu há muito tempo.
Foi no verão de 1975 e, olhando para trás, num contexto mais amplo,
parece que foi uma estação na qual nada de muito importante aconteceu. A
renúncia de Nixon tinha sido no ano anterior, e o ano seguinte nos traria a
convenção, as campanhas, as Olimpíadas e o bicentenário.
Enquanto isso, Ford estava na Casa Branca, uma presença
curiosamente reconfortante, mesmo não sendo muito convincente. Um
sujeito chamado Abe Beame ocupava a Gracie Mansion; sempre achei que
ele na verdade não acreditava que era o prefeito de Nova York, assim
como Gerry Ford também nunca acreditou que era o presidente dos
Estados Unidos da América.
Lá pelo meio de seu mandato, Ford se recusou a ajudar Nova York, que
atravessava uma grave crise financeira, e a manchete do News foi: “Ford
para a cidade: Dane-se!”.
Me lembro da manchete, mas não sei se a li antes, no meio ou no fim
daquele verão. Li a manchete. Raramente deixava de ler o News; pegava a
edição da manhã a caminho de casa ou lia uma edição posterior enquanto
tomava o café da manhã. De vez em quando também lia o Times, quando
havia um caso que eu estivesse acompanhando, mas era mais frequente
comprar o Post à tarde. Nunca prestava muita atenção no noticiário
internacional ou político ou em qualquer coisa fora esportes e crimes
locais, mas pelo menos tinha uma noção do que se passava no mundo, e é
curioso como tudo se apagou inteiramente de minha memória.
Do que é que me lembro? Bem, três meses depois do salto ao
Morrissey's, o Cincinnati disputou uma série de jogos com o Red Sox.
Lembro-me disso e do home run de Fisk no sexto jogo, e de Pete Rose, que
disputou Série completa como se todo o destino da humanidade
dependesse de seu arremesso. Nenhum dos times de Nova York chegou à
final, mas, além disso, não me lembro se jogaram bem ou mal, e olha que
assisti a uma meia dúzia de jogos. Levei meus garotos ao Shea umas duas
vezes também fui a alguns jogos com amigos. O Stadium estava sendo
reformado naquele ano e ambos, o Mets e o Yankees, jogavam no Shea.
Billie Keegan e eu assistimos o Yankees jogando contra um time qualquer,
disso eu me lembro, um jogo que foi interrompido porque alguns imbecis
jogaram lixo no campo.
Será que Reggie Jackson já era dos Yankees naquele ano? Em 1973 ele
ainda estava em Oakland, jogando para O Charlie Finley, pois me lembro
daquela série, com o Mets perdendo feio. Mas quando foi que Steinbrenner
comprou Charlie Finley para o Yankees?
Que mais? Boxe?
O Ali lutou naquele verão? Assisti à segunda luta de Norton em
circuito fechado, aquela em que Ali sai do ringue com o maxilar fraturado
e uma decisão imerecida, mas isso foi no mínimo um ano antes, não foi? E
depois vi Ali bem de perto, sentado nas primeiras filas do Madison Square
Garden. Earnie Shavers lutou contra Jimmy Ellis, nocauteando o outro
logo no início do primeiro assalto. Pelo amor de Deus, eu me lembro do
soco que derrubou Ellis, lembro-me do olhar da mulher dele, sentada duas
filas depois da minha, mas em que ano foi isso?
Não foi em 1975, tenho certeza. Devo ter assistido às lutas desse ano.
Quem será que eu vi?
Isso tem importância? Acho que não. Se tivesse, eu poderia ir à
biblioteca e pesquisar no arquivo do Times, ou então procurar um
almanaque daquele ano. Mas lembro-me de tudo o que é preciso lembrar.
Skip Devoe e Tommy Tillary. São os rostos que vejo quando me
lembro do verão de 75. Eles se tornaram a cara da estação.
Eram meus amigos?
Eram, mas amigos de bar. Eu raramente os via — aliás, raramente via
fosse quem fosse, naqueles dias —, a não ser em locais onde estranhos se
reúnem para beber. Naquela época eu ainda bebia, claro, e já estava no
ponto em que a bebida fazia (ou parecia fazer) mais a mim do que por
mim.
Poucos anos antes, meu mundo se estreitara como se movido por
vontade própria, até limitar-se a apenas algumas quadras ao sul e a leste da
Columbus Circle. Deixara um casamento de doze anos e dois filhos,
mudando-me de Syosset, que fica em Long Island, para meu hotel, que
fica na rua 57, Oeste, entre as avenidas Oitava e Nona. Mais ou menos na
mesma época eu deixara o Departamento de Polícia de Nova York, onde
investira quase que o mesmo número de anos, com quase nada para
mostrar como resultado de ambas as experiências. Eu me sustentava e
enviava cheques para Syosset sem regularidade alguma, prestando
serviços para algumas pessoas. Não era um detetive particular — estes
têm que ter licença, preencher relatórios e prestar contas ao fisco. Fazia
favores para as pessoas, elas me davam dinheiro, meu aluguel estava
sempre em dia, tinha dinheiro para beber e, de vez em quando, conseguia
enviar pelo correio um cheque para Anita e os meninos. Meu mundo,
como já disse, encolhera geograficamente, e dentro daquela área se
limitava, em grande parte, ao quarto onde eu dormia e aos bares em que
passava a maioria das minhas horas. Havia o Morrissey's, mas lá eu não ia
com tanta frequência. Era mais comum ir para a cama lá pela uma, duas da
manhã; às vezes ficava até a hora de os bares fecharem, e muito raramente
ia a um desses que ficam abertos a noite inteira.
Havia o Miss Kitty's, bar do Skip Devoe. Na mesma quadra do meu
hotel ficava o Polly's Cage, forrado com um papel de parede de bordel
pontilhado de vermelho, frequentado por pessoas que iam tomar um
drinque depois do trabalho, a maioria saindo lá pelas dez, dez e meia; e o
McGovern's, uma sala estreita e sem graça, com lâmpadas aparentes e
fregueses que não trocavam uma palavra sequer. Às vezes eu dava um pulo
lá, em manhãs mais difíceis, para um drinque rápido, e a mão do barman
quase sempre tremia enquanto ele me servia.
No mesmo quarteirão havia dois restaurantes franceses, um ao lado do
outro. Um deles, o Mont St. Michel, vivia semivazio. Algumas vezes,
durante esses anos, levei mulheres para jantar lá e também fui sozinho
para tomar um drinque no bar. O estabelecimento ao lado tinha melhor
reputação e clientela maior, mas acho que nunca entrei lá.
Na Décima Avenida havia um lugar chamado Slate. Frequentado por
muitos policiais de Midtown North e do John Jay College, e era lá que eu
ia quando queria papear com gente desse grupo. O filé era bom e o
ambiente confortável. Na Broadway com a 60 havia o Martin's Bar, com
drinques baratos e um bom bife de carne enlatada com presunto, que
ficava num balcão aquecido a vapor; tinha uma televisão em cores grande
em cima do bar, e não era um mau lugar para se assistir a um jogo de
beisebol.
Do outro lado do Lincoln Center ficava o O'Neal's Baloon — uma
antiga lei, ainda em vigor naquele ano, proibia chamarem um bar de
saloon e, como os donos desconheciam essa lei quando encomendaram a
tabuleta, só mudaram a primeira letra e ficou por isso mesmo. De vez em
quando eu ia lá à tarde, mas à noite era muito moderninho e animado para
o meu gosto. Havia o Antares and Spiro's, um grego, na esquina da Nona
com a 57. Não fazia muito o meu gênero, com aquele monte de bigodudos
bebendo ouzo, mas, como eu passava pela porta todas as noites, às vezes
entrava para tomar um drinque rápido.
Havia a banca de jornais que nunca fechava, na esquina da 57 com a
Oitava. Geralmente comprava meu jornal ali, a não ser que o comprasse da
velha senhora com sua sacola, que apregoava os jornais em frente à Deli
400. Ela os comprava na banca por quarenta centavos cada — acho que
naquele ano todos custavam o mesmo preço, ou talvez o News custasse
apenas vinte — e os revendia pelo mesmo preço, o que é uma maneira
duríssima de ganhar a vida. Algumas vezes eu lhe dava um dólar e dizia
que guardasse o troco. Seu nome era Mary Alice Redfield, coisa que só
vim a saber uns anos mais tarde, quando alguém a matou a facadas.
Havia também a cafeteria chamada Red Flame, a delicatessen 400,
dois bons quiosques que vendiam fatias de pizza e um que vendia um filé
com queijo ao qual ninguém ia duas vezes.
Tinha também um lugar que servia espaguete, o Ralph's, e uns dois
restaurantes chineses. E um outro, tailandês, pelo qual Skip Devoe era
apaixonado. Na 58 ficava o Joey Farrell's — esses tinham acabado de abrir
no inverno anterior. Havia, essa é que é a verdade, lugares de todos os
tipos.
Porém, mais importante do que todos os outros, havia o Armstrong's.
Meu Deus, eu vivia lá. Tinha meu quarto para dormir e outros bares e
restaurantes aonde ir, mas durante alguns anos o Jimmy Armstrong's foi a
minha casa. As pessoas que procuravam por mim sabiam onde me
encontrar, e às vezes telefonavam primeiro para o Armstrong's, depois
para o hotel. Abria lá pelas onze, com um garoto filipino chamado Dennis,
que ficava atrás do bar durante o dia. Billie Keegan pegava o leme mais ou
menos às sete e ficava até as duas, três ou quatro da manhã, dependendo
do movimento e de como ele se sentisse. (Essa era a rotina dos dias de
semana. Nos fins de semana, havia barmen diferentes, um para o dia e
outro para a noite, e sua rotatividade sempre foi alta).
As garçonetes iam e vinham. Arranjavam trabalho como atrizes,
brigavam com os namorados, começavam novos namoros, se mudavam
para Los Angeles, voltavam para casa em Sioux Falls, brigavam com o
rapaz dominicano cozinha, eram mandadas embora por roubar, ficavam
grávidas. O próprio Jimmy pouco apareceu naquele Iocal. Acho que esse
foi o ano em que ele andou procurando terra para comprar na Carolina do
Norte.
O que posso dizer sobre o lugar? Um balcão comprido lado direito de
quem entra, mesas do lado esquerdo. Toalhas em xadrez azul e branco. As
paredes forradas de madeira escura, decoradas com quadros e alguns
anúncios emoldurados, retirados de revistas antigas. Na parede dos fundos,
destoando completamente do resto, uma cabeça de veado empalhada,
minha mesa favorita ficava bem embaixo, assim eu não precisava olhar
para aquela coisa.
A clientela era variada… Médicos e enfermeiras do hospital
Roosevelt, bem do outro lado da rua. Professores e estudantes da Fordham.
Pessoal dos estúdios de televisão — a CBS ficava a uma quadra e a ABC
um pouquinho mais longe. Pessoas que moravam por ali, ou que tinham
lojas na vizinhança. Alguns músicos clássicos. Um escritor. Dois irmãos
libaneses que tinham acabado de abrir uma loja de calçados.
Poucos jovens. Quando me mudei para aquela área, O Armstrong's
tinha uma jukebox com uma boa seleção de jazz e de country blues, mas
Jimmy logo retirou a máquina e a substituiu por um conjunto
estereofônico e fitas cassetes com músicas clássicas. Isso afastou a
clientela jovem, para alegria das garçonetes, que detestavam os garotos
por ficarem até muito tarde, bebendo pouco e dando pouca ou nenhuma
gorjeta. Também manteve o nível de ruído bem mais baixo, tornando o
ambiente mais apropriado para a pessoa ficar por ali bebendo devagar, e
por mais tempo.
Era para isso que eu ia lá. Gostava de ficar no limite, mas não queria
ficar embriagado, a não ser de vez em quando. Normalmente, eu punha
bourbon no café, só passando a tomar o drinque puro lá pelo fim da noite.
Lá eu podia ler meu jornal, comer um hambúrguer ou uma refeição
completa, conversar pouco ou muito, conforme me desse na veneta. Não
ficava lá o dia inteiro nem a noite inteira, mas raro era o dia em que não
passava por lá ao menos uma vez, e houve dias em que cheguei logo
depois de Dennis abrir as portas e ainda estava lá quando Billie as fechou.
Todo mundo tem que estar em algum lugar.
Amigos de bar.
Conheci Tommy Tillary no Armstrong's. Era freguês assíduo, capaz de
aparecer três ou quatro vezes por semana. Não me lembro da primeira vez
em que o vi, mas era difícil estar na mesma sala e não notá-lo. Era um
sujeito grande, que falava alto. Não tinha voz estridente, mas depois de
alguns drinques ela preenchia o ambiente.
Comia muita carne e bebia muito Chivas Regai e seu rosto revelava
isso. Devia estar perto dos quarenta e cinco anos. Começava a adquirir
queixo duplo e em suas bochechas brotava uma rede de finíssimos
capilares.
Nunca soube por que o chamavam de Tommy Durão. Talvez Skip
tivesse razão, talvez a intenção fosse irônica. Chamavam-no de Tommy
Telefone por causa de seu emprego. Ele trabalhava em vendas pelo
telefone, tentando captar investidores para uma corretora fajuta, lá pelos
lados de Wall Street. Parece que as pessoas trocam muito de emprego
nesse ramo de trabalho. A habilidade de captar dólares de estranhos
através do telefone é um talento muito especial, e seus possuidores podem
arranjar emprego a qualquer hora, trocando de um empregador para outro
à vontade.
Naquele verão Tommy trabalhava para um grupo chamado Tannahill &
Company, vendendo parcerias limitadas em imobiliárias sindicalizadas.
Eram vantajosas nos impostos, imagino, e havia a perspectiva de ganhos
de capital. Deduzi isso tudo, porque Tommy jamais falou sobre o assunto
no bar, comigo ou com qualquer outra pessoa. Uma vez eu estava por perto
quando um obstetra residente do St. Roosevelt tentou lhe fazer algumas
perguntas sobre suas Sitas. Tommy o afastou com uma piada.
— Não, estou falando sério — o médico insistiu. — que enfim estou
ganhando algum, e preciso começar a pensar em investir.
Tommy levantou os ombros.
— Você tem um cartão? — O médico não tinha. — Então escreva seu
nome aqui e anote também qual a melhor hora para lhe telefonar. Se você
quer umas dicas, eu lhe telefono e lhe dou o tratamento completo. Mas já
vou avisando, sou irresistível ao telefone.
Algumas semanas mais tarde os dois se encontraram e o residente se
queixou de que Tommy não o havia procurado.
— Juro que não foi por falta de vontade. Olhe, vou anotar isso já, já.
Era uma companhia aceitável. Contava piadas com sotaques e as
contava razoavelmente bem, e eu participava idas risadas. Suponho que
algumas fossem ofensivas, mas (raramente tinham espírito mesquinho.
Quando eu sentia vontade de recordar meus dias na polícia, ele era um
bom ouvinte, e se a história que eu estava contando era engraçada, ele ria
mais alto do que qualquer outro.
Em resumo, era escandaloso demais e alegre demais. Falava em
demasia e isso podia dar nos nervos da gente. Como já mencionei,
aparecia no Armstrong's três ou quatro vezes por semana, e na maioria das
vezes ela o acompanhava. Carolyn Cheatham, Carolyn da Carolina, com
sua voz suave, discreta e que, como certas ervas, ficava mais forte quando
você a embebia em álcool. Às vezes ela entrava de braço dado com ele.
Outras, ele chegava só e ela aparecia mais tarde. Ela morava por ali e os
dois trabalhavam no mesmo lugar. Imaginei — se é que parava para pensar
nisso — que o romance iniciado no escritório é que levara Tommy para o
Armstrong's.
Ele acompanhava os esportes. Apostava com um bookmaker — a
maioria das vezes nos jogos de bola, mas às vezes nos cavalos — e sempre
contava quando ganhava. Era um pouco íntimo demais,
indiscriminadamente amigável, e de vez em quando se percebia um gelo
em seus olhos que desmentia a cordialidade da voz. Tinha olhos pequenos
e frios e a boca meio mole, denotando certa fraqueza, mas nada disso
afetava sua voz.
Dava para perceber como podia ser persuasivo pelo telefone.
O primeiro nome de Skip Devoe era Arthur, mas Bobby Ruslander foi
a única pessoa que ouvi chamá-lo dessa forma. Bobby podia. Eram amigos
desde a quarta série do fundamental, cresceram juntos no mesmo
quarteirão de Jackson Heights. Skip fora batizado Arthur Jr., mas cedo
adquirira seu apelido. Skip explicava.
— Eu tinha um tio na Marinha e nunca me livrei disso — contou-me
uma vez. — Irmão da minha mãe. Comprava roupinhas de marinheiro,
barcos de brinquedo, tudo isso para mim. Eu tinha uma frota inteira e ele
me chamava de Skipper, e em pouco tempo todo mundo começou a fazer o
mesmo. Podia ter sido pior.
Tinha trinta e quatro, trinta e cinco anos, mais ou menos a minha
altura, mas era magro e forte. As veias saltavam em seus braços e no dorso
das mãos. Não havia nem um grama de carne excedente em seu rosto e a
pele seguia a curva do maxilar, dando-lhe um rosto esculpido. Tinha nariz
de águia e olhos penetrantes, de um azul que continha um pouco de verde
sob certas luzes. Tudo isso combinado com uma segurança e um
desembaraço que o tornavam bastante atraente para as mulheres;
raramente ia sozinho para casa, se quisesse companhia naquela noite. Mas
morava só e não tinha compromisso com ninguém; parecia preferir a
companhia habitual de outros homens. Tinha sido casado ou vivido com
alguém, mas aquilo terminara alguns anos antes e ele parecia sem vontade
de envolver-se novamente.
Tommy Tillary era chamado de Tommy Durão e tinha uns traços de
durão em suas atitudes. Skip Devoe era verdadeiramente durão, mas você
precisava perceber isso por debaixo da superfície. Não estava à mostra.
Ele servira nas Forças Armadas; não na Marinha, para a qual seu tio
tanto tentara atraí-lo, mas nas Forças Especiais do Exército, os boinas-
verdes. Alistou-se assim que saiu do secundário; mandaram-no para o
sudeste asiático durante os anos Kennedy. Deu baixa no final dos anos 60,
tentou uma faculdade, mas largou em seguida e começou a trabalhar atrás
do balcão de um single's bar no Upper East Side. Depois de uns dois anos,
ele e John Kasabian juntaram suas economias e arrendaram, por um longo
período, um galpão onde os antigos locatários costumavam vender
ferramentas; gastaram tudo o que tinham reformando o local e abriram o
Miss Kitty's.
Eu o via ocasionalmente em seu bar, mas mais frequentemente no
Armstrong's, onde ele aparecia quando não estava trabalhando. Uma
companhia agradável, de convívio fácil; era preciso muito para tirá-lo do
sério.
Havia alguma coisa nele, no entanto. Creio que era um ar de fria
competência. A gente sentia que ele era capaz de enfrentar fosse lá o que
fosse, e sem muito esforço. Dava a impressão de ser um homem que sabia
agir, de alguém que conseguia tomar decisões rápidas durante a ação.
Talvez tivesse adquirido essa qualidade usando uma boina verde no Vietnã,
ou talvez eu lhe atribuísse isso por saber que ele estivera lá.
Encontrei muitas vezes essa característica em criminosos. Conheci
muitos assaltantes armados que a possuíam, homens que tinham roubado
bancos e carros-fortes. Houve um caminhoneiro, desses que fazem longas
viagens transportando cargas, que também era assim. Eu o conheci depois
que ele voltou da costa Oeste antes do dia previsto e encontrou a mulher
na cama com o amante. Ele os matou com as próprias mãos.
3
Não saiu nada nos jornais sobre o assalto ao Morrissey's, mas durante
alguns dias, nas redondezas, o caso foi muito comentado. A perda que Tim
Pat e seus irmãos tinham sofrido aumentava dia a dia. Os números que
ouvi iam de dez mil a cem mil. Como somente os Morrissey e os bandidos
sabiam ao certo, e nenhum deles ia falar, uma quantia era tão boa quanto
qualquer outra.
— Creio que perderam cinquenta — Billie Keegan comentou comigo
na noite de 4 de julho. — Essa é a quantia mais mencionada. Claro que
estava quase todo mundo lá.
— O quê?
— Até agora ao menos três sujeitos me garantiram que estavam lá
quando tudo aconteceu e eu, que estava lá, posso jurar que eles não
estavam. E eles podem fornecer detalhes que me escaparam. Você sabia
que um dos facínoras saiu estapeando uma mulher?
— Realmente…
— Foi o que me contaram. Ah! E um dos irmãos Morrissey levou um
tiro, mas foi apenas um ferimento superficial. Pensei que já tivesse sido
um bocado emocionante da maneira como tudo se passou, mas parece que
é mais dramático quando você não está presente. Sabe, dez anos após o
levante de 1916, dizem que era muito difícil encontrar um homem em
Dublin que não tivesse participado de tudo. Aquela gloriosa manhã de uma
segunda-feira de abril, quando os Correios foram invadidos por trinta
bravos que, ao saírem, eram dez mil. O que é que você acha, Matt?
Cinquenta está bom para você?
Tommy Tillary estava lá também e pensei que ele fosse deitar e rolar
em cima do assunto. Talvez tenha feito isso mesmo. Mas eu não o vira
durante alguns dias e, quando nos reencontramos, ele nem ao menos
mencionou o salto. Tinha descoberto uma maneira de se apostar no
beisebol, é o que andava contando para todo mundo. Você aposta contra o
Mets e o Yankees e eles vão sempre fazer você ganhar.
No início da semana seguinte, Skip apareceu no Armstrong's no meio
da tarde e me encontrou em minha mesa no fundo. Apanhara uma cerveja
preta no bar e se aproximou com ela na mão. Sentou-se em frente a mim e
contou que estivera no Morrissey's na noite anterior.
— Não vou lá desde aquela noite — comentei.
— Bem, ontem foi a primeira vez que voltei. Consertaram o teto. Tim
Pat perguntou por você.
— Por mim?
— Hum, hum. — Acendeu um cigarro. — Disse que apreciaria muito
se você desse um pulinho lá.
— Para quê?
— Ele não disse. Você é detetive, não é? Talvez queira que você
descubra alguma coisa. Quanto você calcula que ele possa ter perdido?
— Não quero me envolver nessa história.
— Não me diga.
— Uma guerra irlandesa, é justo o que eu preciso. Ele encolheu os
ombros.
— Você não precisa ir. Ele pediu que você aparecesse lá qualquer
noite, depois das oito.
— Tenho a impressão que eles dormem até essa hora.
— Se é que dormem.
Bebeu um pouco de cerveja, limpou o lábio superior com as costas da
mão.
— Você foi lá ontem à noite, Skip? Como é que estava?
— Como sempre está. Já contei que restauraram o teto, fizeram um
bom trabalho, pelo menos não se percebe nada. Tim Pat e seus irmãos
estavam iguais ao que sempre são. Eu apenas disse que transmitiria o
recado da próxima vez que nos encontrássemos. Agora é com você.
— Acho que não vou, não.
Mas na noite seguinte, lá pelas dez, dez e meia, pensei, que diabos!, e
resolvi ir. No térreo, o grupo teatral ensaiava The quare fellow, de Brendan
Behan. A estreia estava marcada para a noite de quinta-feira. Toquei a
campainha do segundo andar e esperei até que um dos irmãos descesse.
Ele entreabriu a porta Falou que ainda estavam fechados e que só abririam
às duas. Disse-lhe que meu nome era Matthew Scudder e que Tim Pat teria
dito que queria me ver.
— Desculpe, não o reconheci nessa luz — ele respondeu. — Entre, que
vou dizer a ele que você está aqui.
Esperei no salão do segundo andar. Examinava o teto, procurando por
buracos de bala, quando Tim Pat entrou e acendeu algumas luzes. Estava
vestido com a roupa de costume, mas sem o avental de açougueiro.
— Que bom que você veio. Toma um drinque comigo. Você bebe
bourbon, não é?
Ele serviu os drinques e nos sentamos em uma das mesas. Pode ter
sido aquela em que seu irmão se estatelou quando entrou aos empurrões.
Tim Pat levantou seu copo contra a luz, inclinou-o para trás e o esvaziou.
— Você estava aqui na noite do incidente.
— Estava.
— Um daqueles infelizes deixou um boné para trás, mas infelizmente
sua mãe não costurou uma etiqueta nele, portanto é impossível devolvê-lo.
— Imagino.
— Se ao menos eu soubesse quem ele é e onde encontrá-lo, poderia
fazer com que ele recebesse de volta o que por direito é dele.
Aposto que sim, pensei.
— Você foi policial.
— Mas não sou mais.
— Mas pode ouvir algum comentário. As pessoas falam, não é, e um
homem que mantém os ouvidos e os olhos abertos pode se dar muito bem.
Eu não disse nada.
Ele penteou a barba com os dedos.
— Meus irmãos e eu — falou, com os olhos fixos num ponto acima de
meu ombro — gostaríamos muito de pagar dez mil dólares pelos nomes e
paradeiro desses dois rapazes que nos visitaram na outra noite.
— Apenas para lhes devolver um chapéu.
— Ora, nós temos nossas obrigações. Não foi o seu George
Washington quem caminhou milhas pela neve, para devolver um centavo a
um freguês?
— Acho que foi Abraham Lincoln.
— Tem razão. George Washington foi o outro, o da cerejeira. “Pai, não
posso contar uma mentira.” Os heróis desta terra são exemplos de
honestidade.
— Costumavam ser.
— Tempos depois, ele mesmo, garantindo a todos que não era uma
pessoa incorreta. Deus do céu. — Sacudiu sua grande cabeça. — Então,
você acha que poderá nos ajudar?
— Não vejo como.
— Você estava aqui e os viu.
— Tinham o rosto e a cabeça cobertos. Na verdade, poderia jurar que
ambos continuavam com seus bonés na cabeça quando saíram daqui. Você
não acha que pode ter encontrado o boné de outra pessoa?
— Talvez o rapaz o tenha deixado cair na escada. Se você ouvir alguma
coisa, Matt, você nos dirá?
— Por que não?
— Você descende de irlandeses, Matt?
— Não.
— Pensei que um de seus antepassados fosse de Kerry. Os homens de
Kerry são famosos por responderem a uma pergunta com outra pergunta.
— Não sei quem eles eram, Tim Pat.
— Mas se você souber de alguma coisa…
— Se eu souber de alguma coisa…
— Você não tem nenhuma queixa quanto à quantia? Está bem para
você?
— Nenhuma queixa. É uma quantia justa.
Era uma boa quantia, não obstante ser justa ou não. Foi o que eu disse
ao Skip na próxima vez que nos encontramos.
— Ele não queria me contratar. Queria anunciar um prêmio. Dez
milhas para quem lhe disser quem são e onde podem ser encontrados, para
que ele possa pôr as mãos neles.
— Você faria isso?
— O que, sair por aí caçando os caras? Eu lhe disse no outro dia que
não pegaria esse trabalho por um pagamento. Certamente não vou andar
metendo o meu nariz por aí, na expectativa de um ganho.
Ele sacudiu a cabeça:
— Mas suponha que você os encontre sem procurar. Um dia você vira
uma esquina e dá de cara com eles.
— Como é que iria reconhecê-los?
— Quantos homens mascarados com lenços vermelhos você vê por aí?
Não, sério. Suponha que os reconheça. Ou fique sabendo de alguma coisa,
o assunto surgiu e um antigo contato seu, dos velhos tempos, põe uma
pulga na sua orelha. Você costumava ter delatores, não é?
— Informantes. Todos os tiras têm os seus, não se pode fazer nada sem
eles. Ainda assim, eu…
— Esqueça a maneira como pode achá-los. Apenas suponha que você
os encontre. Você faria isso?
— Isso o quê?
— Vendê-los. Receber a bolada.
— Não sei nada sobre eles.
— Tudo bem, digamos que você não sabe se eles são assassinos ou
coroinhas. Qual é a diferença? De qualquer forma seria dinheiro manchado
de sangue, não seria? Se os Morrissey encontrarem esses garotos, eles
estarão liquidados.
— Não creio que Tim Pat queira convidá-los para um batizado.
— Ou chamá-los para se filiar à Sociedade do Santo Nome. Você
conseguiria fazê-lo?
Sacudi a cabeça.
— Não posso responder assim. Dependeria de quem eles são e de
quanto eu precisasse de dinheiro.
— Acho que você não seria capaz.
— Também acho que não.
— Eu não faria isso por nada — falou. Deu um tapinha no cigarro para
fazer cair a cinza. — Mas há muita gente que o faria.
— Há pessoas que os matariam por menos do que isso.
— Também acho.
— Havia alguns tiras no bar naquela noite — falei. — Quer apostar
como vão ficar sabendo sobre a recompensa?
— Não, não quero.
— Vamos imaginar que um policial descubra quem são os sujeitos do
assalto. Não pode fazer uma prisão. Não houve crime, não é mesmo? Não
houve queixa formal, não há testemunhas, nada. Mas ele pode entregar os
dois vagabundos para Tim Pat e sair com metade de um ano de salário no
bolso.
— Sabendo que vai ajudar e encorajar um assassinato.
— Não digo que todo mundo seja capaz disso. Mas você diz a si
mesmo que os caras são escória, que provavelmente já mataram muita
gente, que é uma barbada eles cometerem outros crimes, e que você não
tem certeza de qual é a intenção dos Morrissey. Talvez queiram apenas
quebrar-lhes alguns ossos, dar um susto neles. Tentar pegar o dinheiro
deles de volta. Você pode dizer tudo isso a si mesmo.
— E acreditar?
— A maioria das pessoas acredita naquilo que quer.
— É… — ele respondeu. — Não dá pra argumentar contra isso.
Você toma uma decisão com a cabeça e aí seu corpo vem e decide
coisa diferente Eu não ia fazer nada a respeito do problema de Tim Pat,
mas me descobri farejando o assunto tal qual um cachorro em volta do
poste. Na mesma noite em que assegurei a Skip que não entraria naquele
jogo, acabei na rua 72, num lugar chamado Poogan's Pub, sentado numa
mesa dos fundos e pagando uma Stolichnaya bem gelada para um negro
albino, magrinho, chamado Danny Boy Bell. Danny Boy era sempre uma
companhia interessante, mas era também um informante de primeira, um
corretor de informações, que conhecia todo mundo, de ouvidos sempre
atentos.
Claro que ouvira falar do assalto ao Morrissey's. Ouvira uma enorme
variedade de quantias, mas por conta própria chegara à conclusão de que o
roubo tinha ficado entre os cinquenta e os cem mil dólares.
— Seja quem for que tenha feito o assalto, não estão gastando nada nos
bares Meu sexto sentido diz que isso deve ser um assunto irlandês,
Matthew. Irlandês irlandês, não os daqui. Sabe, foi bem no meio de
território Westy, mas não consigo ver os Westies limpando Tim Pat dessa
maneira.
Os Westies são um bando mais ou menos organizado de ladrões e
assassinos, em sua maioria irlandeses, que agem na região de Hell's
Kitchen, desde o início do século XX. Talvez tenham começado antes,
talvez venham da época da Grande Fome, quando uma praga matou os
batatais na Irlanda.
— Não sei, não — comentei. — Com uma quantia assim…
— Se aqueles dois fossem Westies, se fossem da área, não seria
segredo por mais de oito horas. Todo mundo na Décima Avenida saberia
quem foi.
— Você tem razão.
— Algum tipo de confusão irlandesa, esse é o meu palpite. Você estava
lá, deve saber responder. As máscaras eram vermelhas?
— Eram lenços de bolso vermelhos.
— Que pena. Se fossem verdes ou cor de laranja, estariam fazendo
algum tipo de manifestação política. Ouvi dizer que os irmãos estão
oferecendo uma quantia generosa. Foi isso que trouxe você aqui,
Matthew?
— Não! — respondi. — De maneira nenhuma.
— Você não está começando um trabalhinho de pesquisa?
— Absolutamente não.
Não posso dizer que um fato tenha causado o outro. Só posso dizer que
uma coisa levou à outra. Fui o instrumento involuntário da morte de uma
criança e depois disso algo mudou em mim. A vida que até então levava,
sem queixas, parecia não me satisfazer mais. Suponho que havia parado de
me satisfazer antes disso. Suponho que a morte da criança tenha
provocado uma mudança que se fazia necessária havia muito tempo. Mas
não posso garantir nada. Apenas que uma coisa levou à outra.
Tomamos um trem de volta à estação Penn. Eu disse aos meninos
como tinha sido bom passar um tempinho com eles e eles disseram que
tinham se divertido muito. Embarquei-os num trem, telefonei para a mãe
deles e disse a ela em que trem eles estavam. Ela me garantiu que iria
esperá-los na estação, depois, acanhada, mencionou que seria bom se eu
pudesse enviar dinheiro o quanto antes. Logo, eu lhe prometi.
Desliguei e pensei nos dez mil dólares que Tim Pat estava oferecendo.
E sacudi minha cabeça, achando graça no pensamento.
Mas naquela noite fiquei impaciente e acabei indo ao Village, parando
numa fieira de bares para um drinque em cada um. Tomei o trem A até a
rua 4, Oeste, e, começando pelo McBell's, fui caminhando em direção a
oeste. Jimmy Day's, 55, Lion's Head, George Hertz's, Comer Bistrô. Disse
a mim mesmo que estava apenas tomando uns drinques, aliviando a
pressão de um fim de semana com meus filhos, me acalmando depois do
despertar de lembranças após uma ida a Washington Heights.
Mas sabia que não era só isso. Estava começando uma investigação
malfeita, despropositada, tentando encontrar uma pista que me levasse à
dupla que deu o golpe no Morrissey's.
Acabei num bar gay chamado Sinthia's. Kenny, o proprietário, cuidava
de seu bar, vestindo calças Levi's e camisa sem mangas, de tecido fino e
listrado, servindo drinques para os homens. Ele era magro, leve, elástico,
com cabelos pintados de louro e um rosto que, de tanto ser esticado e
repuxado, lhe dava a aparência de menos de vinte e oito anos, ou seja, de
quase a metade dos anos em que habitava este planeta.
— Matthew! — exclamou. — Podem relaxar agora, meninas, a lei e a
ordem acabam de chegar à rua Grove.
Claro que ele não sabia de nada a respeito do assalto ao Morrissey's.
Para começar, ele não conhecia o Morrissey's; nenhum gay tinha de sair do
Village para beber um drinque depois da hora legal. Mas os assaltantes
podiam ser gays e, se não estavam gastando seu dinheiro em outros
lugares, bem poderiam estar gastando em botecos em torno da Rua
Christopher; de qualquer maneira, essa era a maneira de trabalhar, você
saía sondando aqui e ali, trabalhava todas as suas fontes, falava com um,
com outro, esperava para ver se alguma coisa voltava para você.
Mas por que eu estava fazendo isso? Por que estava perdendo meu
tempo?
Não sei o que teria acontecido — se teria continuado ou não, se teria
chegado a alguma conclusão ou acabado por deixar de lado aquela pista
fria. Não estava chegando a nenhum lugar, mas frequentemente é assim
mesmo, você vai seguindo sem nenhuma indicação de progresso, até que
vem uma lufada de sorte e algo acontece. Talvez uma coisa parecida fosse
ocorrer. Talvez não.
Em vez disso, outras coisas aconteceram para tirar Tim Pat Morrissey,
e sua busca por vingança, das minhas preocupações.
Para começar, alguém assassinou a mulher de Tommy Tillary.
4
Na terça à noite levei Fran para jantar no restaurante tailandês do qual
Skip gostava tanto. Acabado o jantar, caminhei com ela até sua casa, com
uma parada no Joey Farrell's para alguns drinques. Em frente ao prédio ela
tornou a alegar que seu dia seguinte começaria muito cedo e eu caminhei
de volta até o Armstrong's, com uma ou duas paradas no caminho. Estava
de humor azedo e o estômago cheio de uma comida fora do comum,
provavelmente não ajudava muito; é possível que tenha exagerado no
bourbon, saindo de lá perto das duas da manhã. Peguei o caminho mais
longo, comprei o Daily News, sentei na borda da cama de cueca e dei uma
olhada rápida em uma ou duas notícias.
Numa das páginas internas, li sobre uma mulher assassinada durante
um assalto. Estava cansado, tinha bebido muito e o nome não me chamou
a atenção.
Mas acordei na manhã seguinte com alguma coisa zunindo na cabeça,
metade sonho, metade lembrança. Sentei, peguei o jornal e encontrei a
notícia.
Margaret Tillary, de quarenta e sete anos, fora esfaqueada até a morte,
no quarto de dormir no segundo andar de sua casa na Colonial Road, em
Bay Ridge, no Brooklyn, tendo evidentemente despertado durante o
assalto. Seu marido, o corretor de ações Thomas J. Tillary, ficara
preocupado quando sua mulher não atendeu ao telefone na terça à tarde.
Tinha telefonado para um parente que morava perto e que, ao entrar na
casa, encontrou tudo revirado e a mulher morta.
“Este é um ótimo bairro”, uma vizinha declarara ao jornal. “Coisas
assim não acontecem aqui.” Mas uma fonte da polícia havia citado um
número acentuado de assaltos naquela área, nos últimos meses. Outro
vizinho se referira, de modo ambíguo, à presença de um “mau elemento”
na vizinhança.
Não é um nome comum. Há uma rua Tillary no Brooklyn, perto do
acesso à ponte, mas não tenho certeza de que herói de guerra ou político
velhaco foi homenageado, ou se é algum parente de Tommy. Há muitos
Tillery na lista telefônica de Manhattan, mas com a letra e. Thomas
Tillary, corretor de ações, Brooklyn — dava a impressão de ser mesmo o
Telefone Tommy.
Entrei no chuveiro, fiz a barba, e saí para tomar o café. Pensei no que
acabara de ler e tentei raciocinar sobre o que sentia. Não parecia ser
verdade. Eu não o conhecia bem e nunca havia visto sua esposa, nunca
soubera o nome dela, sabia apenas que existia em algum lugar do
Brooklyn.
Olhei para a minha mão esquerda, para o anular. Nenhum anel,
nenhuma marca. Usei uma aliança durante anos e a retirei quando me
mudei de Syosset para Manhattan. Durante meses aquela marca ficou lá, e
então, de repente, sumiu.
Tommy usava uma aliança. De ouro amarelo, larga, com quase dois
centímetros de largura. E na mão direita, no dedo mindinho, um anel de
formatura no ginásio, pelo menos era o que parecia. Lembrei-me disso,
sentado ali tomando meu café no Red Flame. Um anel de formatura no
dedo mindinho da mão direita, uma aliança de ouro amarelo no anular da
mão esquerda.
Não consegui definir o que sentia.
Naquela tarde fui até a igreja Saint Paul e acendi uma vela por
Margaret Tillary. Tinha descoberto igrejas quando saí da polícia e, apesar
de não rezar ou comparecer aos serviços religiosos, de vez em quando
entrava numa delas e sentava no escuro silencioso. Às vezes, acendia velas
por pessoas mortas recentemente, ou por alguns mortos havia mais tempo,
mas que permaneceram na minha memória. Não sei por que isso me
parecia algo que devesse fazer, nem sei por que me sentia obrigado a
enfiar um décimo de qualquer dinheiro que ganhasse na caixa de esmolas
da primeira igreja que em seguida visitasse.
Sentei num banco de trás e pensei um pouco em morte súbita. Quando
saí da igreja, caía uma chuvinha fina. Atravessei a Nona Avenida e me
enfiei no Armstrong's. Dennis estava atrás do bar. Pedi um bourbon puro,
tomei-o de um gole só, pedi outro, mas disse que, com esse, tomaria uma
xícara de café.
Enquanto eu misturava bourbon ao café, ele perguntou se eu sabia do
que acontecera ao Tillary. Disse-lhe que tinha lido no News.
— Saiu no Post de hoje, também. Mais ou menos a mesma coisa.
Aconteceu anteontem à noite, é o que eles acham. É evidente que ele não
foi para casa, seguiu direto para o escritório pela manhã, começou a
telefonar para se desculpar e, como não conseguiu que ela atendesse, ficou
preocupado.
— Dizia isso no jornal?
— Mais ou menos. Isso aconteceu na noite de anteontem. Enquanto eu
estive aqui, ele não apareceu. Você o viu?
Tentei me lembrar.
— Acho que sim. Anteontem à noite, é, ele esteve aqui com a Carolyn.
— A bela do sul.
— Essa mesmo.
— Como será que ela está se sentindo agora… — Usou o polegar e o
indicador para ajeitar as pontas de seu bigodinho. — Provavelmente com
remorsos, vendo seus sonhos se tornarem realidade.
— Você acha que ela queria ver a mulher dele morta?
— Não sei. Mas não é essa a fantasia de uma garota quando está saindo
com um homem casado? Ora, eu não sou casado, o que é que eu sei sobre
essas coisas?
A notícia desapareceu dos jornais ao longo dos dias seguintes.
Colocaram um anúncio fúnebre no News, quinta-feira. Margaret Wayland
Tillary, amada esposa de Thomas, mãe do finado James Alan Tillary, tia da
senhora Richard Paulsen. Seria velada naquela noite, com um serviço
fúnebre na tarde seguinte, na funerária Walter B. Cooke's, esquina da
Quarta com a Bay Ridge Avenue, no Brooklyn.
Naquela noite Billie Keegan comentou.
— Não vi mais o Tillary desde que tudo aconteceu. Não creio que a
gente vá vê-lo novamente. — Serviu para si mesmo uma dose de JJ&S, o
Jameson de doze anos que cliente algum pedia. — Aposto que nunca mais
vamos vê-lo com ela.
— Com a namorada?
Ele assentiu:
— O que deve ter ficado na mente dos dois é que estavam juntos
enquanto a mulher dele era esfaqueada no Brooklyn, até morrer. E que, se
ao menos ele estivesse em casa na hora, que é onde deveria estar, e
blablablá… Você está prevaricando, quer uma trepada rápida e umas boas
risadas, a última coisa que precisa é de algo que faça com que se lembre
de que sua mulher foi assassinada porque você estava pulando a cerca.
Pensei no assunto, depois concordei.
— O velório foi hoje à noite.
— É? Você foi?
Sacudi a cabeça:
— Não conhecia ninguém que fosse.
Saí antes da hora de fechar. Tomei um drinque no Polly's e outro no
Miss Kitty's. Skip parecia tenso e distante. Sentei no bar e tentei ignorar o
homem sentado ao meu lado, sem ser abertamente hostil. Ele queria me
contar como todos os problemas da cidade eram culpa do antigo prefeito.
Não é que discordasse inteiramente, apenas não queria ouvir falar nisso.
Terminei meu drinque e me dirigi para a porta. No meio do caminho
ouvi Skip chamar meu nome. Olhei e ele fez um sinal para que eu me
aproximasse.
Voltei para o balcão.
— Essa é a hora errada para isso, mas gostaria de falar com você o
mais depressa possível.
— É?
— Pedir um conselho, talvez até arranjar um serviço para você. Você
vai ao Jimmy's amanhã à tarde?
— Provavelmente — respondi. — Se eu não for ao enterro.
— Quem morreu?
— A mulher do Tillary.
— Ah, e o enterro é amanhã? Você está pensando em ir? Eu não sabia
que você era tão íntimo do sujeito.
— E não sou.
— Então por que é que você quer ir? Desculpe, não é da minha conta.
Vou procurar você no Armstrong's amanhã, por volta das duas, duas e
meia. Se você não estiver lá, acabarei por encontrá-lo numa outra hora.
Queria dizer-lhe que ele só podia contar consigo mesmo, mas por que
estava evitando ganhar algum dinheiro? Seu dinheiro era tão bom quanto o
de qualquer outro. Não tinha certeza se gostava dele, mas preferia mesmo
não gostar das pessoas para quem fosse trabalhar. Acabava por ser menos
aflitivo, se por acaso eu percebesse que estava lhes dando menos do que
deveria.
E não via como poderia servi-lo bem. O caso contra ele parecia
suficientemente sem base para soçobrar sem minha ajuda. Será que o
Kaplan não estava apenas querendo fazer marola, para poder cobrar
honorários altos, no caso de tudo virar fumaça dentro de uma semana? Era
possível, mas não era da minha conta.
Disse que teria prazer em ajudar. Também que esperava descobrir
algum detalhe útil.
Tommy disse que tinha certeza disso.
— Você vai querer um adiantamento sobre seus honorários? Suponho
que você cobre uma taxa diária mais despesas, ou você cobra por hora?
Por que você está sacudindo a cabeça? — Drew Kaplan perguntou.
— Não tenho licença. Não tenho nenhuma posição oficial.
— Isso não é problema. Podemos colocar você nos livros como
consultor.
— Não quero constar de livro algum. Não faço anotações de como
empreguei meu tempo, nem de despesas. Pago as contas com dinheiro de
meu próprio bolso. Recebo sempre em dinheiro vivo.
— Como é que você calcula seu preço?
— Penso num número. Se, ao fim de tudo, acho que tenho direito a
mais, digo. Se você não concordar, não me paga. Não vou processar
ninguém por causa disso.
— Parece uma maneira pouco regular de fazer negócios.
— Não faço negócios. Faço favores para os amigos.
— E recebe dinheiro por esses favores.
— Há alguma coisa de errado em receber dinheiro em troca de um
favor?
— Acho que não. — Ele ficou pensativo. — Quanto é que você espera
receber por este favor?
— Ainda não sei bem no que estou me metendo. Suponha que você me
dê mil e quinhentos dólares hoje. Se as coisas se arrastarem, e eu achar
que tenho direito a mais, direi a você.
— Mil e quinhentos. E claro que Tommy não sabe direito o que vai
receber em troca desse dinheiro.
— Não. Nem eu — falei.
Kaplan apertou os olhos e disse:
— Isso me parece muito para uma comissão. Pensava que um terço
disso fosse o bastante, para começar.
Lembrei-me de meu amigo antiquário. Será que eu sabia o que era
hondle? Kaplan evidentemente sabia.
— Não é tanto assim — eu disse. — Um por cento do dinheiro do
seguro, e esse é um dos motivos pelos quais vocês precisam de um
investigador, não é? A companhia seguradora só paga quando Tommy
estiver totalmente livre de suspeitas.
— Isso é verdade — Kaplan admitiu, meio espantado —, mas não sei
se é o motivo para contratarmos você. A seguradora, cedo ou tarde, vai
pagar. Não acho que seu preço seja muito alto, apenas me pareceu uma
soma desproporcionalmente grande para dar em adiantamento.
— Não discuta preços — Tommy interrompeu. — Para mim essa
comissão está perfeita, Matt. Só que nesse momento, sabe, estou com
pouco dinheiro e arranjar mil e quinhentos em dinheiro vivo…
— Talvez seu advogado adiante para você — sugeri.
Kaplan achou que isso era irregular. Fui para a antessala enquanto eles
discutiam o assunto. A recepcionista estava lendo um número da revista
Fate. Um par de gravuras coloridas à mão, em molduras antigas, mostrava
cenas do centro de Brooklyn no século XIX. Eu as estava olhando quando
Kaplan abriu a porta e me chamou.
— Tommy vai poder tomar emprestado baseado na expectativa do
dinheiro do seguro e da herança de sua mulher. Nesse meio-tempo posso
lhe adiantar os mil e quinhentos. Espero que não faça objeção a assinar um
recibo?
— Nenhuma — respondi. Contei as notas, doze de cem e seis de
cinquenta, todas notas já em circulação e com os números fora de
sequência. Todo mundo parece ter algum dinheiro separado, até os
advogados.
Ele redigiu um recibo e eu assinei. Desculpou-se pelo momento
ligeiramente constrangedor a respeito de meu pagamento.
— Os advogados são treinados para serem seres humanos muito
convencionais — disse. — Às vezes tenho uma certa dificuldade em me
adaptar a procedimentos fora dos padrões. Espero não ter sido ofensivo.
— De maneira nenhuma.
— Fico feliz. Bem, não vou esperar relatórios escritos ou uma
prestação de contas de todos os seus movimentos, mas você vai me dando
notícias de vez em quando, informando sobre o que descobrir? E, por
favor, não poupe detalhes, nunca se sabe o que será útil.
— Isso eu já sei.
— Tenho certeza que sim. — Acompanhou-me até a porta. — A
propósito, seu adiantamento foi de apenas meio por cento do dinheiro do
seguro. Creio que mencionei que a apólice tem uma cláusula de
indenização em dobro, e assassinato é considerado um acidente.
— Eu sei. Sempre desejei saber por quê.
8
O sexagésimo oitavo distrito fica na Rua 65, entre a Terceira e a Quarta
Avenida, como se estivesse a cavaleiro sobre o limite imaginário entre Bay
Ridge e Sunset Park. No lado sul da rua, um conjunto residencial
começava a surgir; do outro lado, o posto policial lembrava alguma coisa
saída do período cubista de Picasso, todo em blocos apoiados em colunas e
áreas rebaixadas. A estrutura lembrou-me o prédio que abriga o vigésimo
terceiro distrito policial, em East Harlem; depois soube que foram
projetados pelo mesmo arquiteto.
O prédio fora construído seis anos antes, de acordo com a placa na
entrada que mencionava o arquiteto, o comissário de polícia, o prefeito e
alguns notáveis que fizeram doações em busca da imortalidade municipal.
Fiquei ali, em pé, lendo a placa como se ela trouxesse alguma mensagem
especial para mim. Depois entrei e fui até a recepção. Disse que procurava
pelo detetive Calvin Neumann. O policial de plantão deu um telefonema,
depois apontou para a sala do esquadrão.
O interior do distrito era limpo, espaçoso e bem iluminado. Mas já
funcionava havia tempo suficiente para começar a adquirir o jeito daquilo
que realmente era.
A sala do esquadrão possuía uma fieira de arquivos de metal cinza,
outra de armários pessoais pintados de verde e escrivaninhas de aço,
encostadas umas nas outras, de duas em duas. Num canto da sala ficava
um aparelho de televisão, que ninguém assistia. Metade das oito ou dez
mesas estava ocupada. No bebedouro, um homem de terno conversava
com outro em mangas de camisa. No xadrez, um bêbado cantava alguma
coisa desafinada, em espanhol.
Reconheci um dos detetives em uma das mesas, mas não consegui
lembrar seu nome. Ele não olhou para cima. No lado oposto da sala, um
outro sujeito me pareceu familiar. Fui até um cara que não conhecia e ele
me apontou Neumann, duas mesas mais para os fundos, do outro lado.
Ele preenchia um formulário e fiquei ali em pé enquanto ele acabava
de datilografar. Depois olhou para cima.
— Scudder? — falou e apontou para uma cadeira. Girou a cadeira para
ficar de frente para mim e mostrou a máquina de escrever com a mão: —
Eles não dizem as horas que você vai passar datilografando lixo. Ninguém
aí fora imagina o quanto este trabalho tem de administrativo.
— Essa é a parte da qual não se tem nenhuma saudade.
— Acho que também não sentiria falta. — Bocejou demoradamente.
— Eddie Koehler falou muito bem de você. Telefonei-lhe, como você
sugeriu. Ele disse que você é legal.
— Você conhece o Eddie?
Ele fez que não a cabeça:
— Mas sei o que é um tenente. Não tenho muita coisa para lhe dar,
mas o que tenho está às ordens. Talvez você não consiga a mesma
cooperação da delegacia de homicídios do Brooklyn.
— Por que será?
— Para começar, avocaram o caso para lá. Logo de início, foi enviado
para o centésimo quarto, o que na verdade estava errado, mas isso
acontece com frequência. Depois, a homicídios reagiu juntamente com o
centésimo quarto e tiraram o caso dos policiais da área.
— E quando foi que você se envolveu?
— Quando um de meus informantes favoritos apareceu com um
punhado de histórias que ouvira em bares e padarias na Terceira, debaixo
da via expressa. Um bom casaco de vison num ótimo preço, mas você tem
que guardar isso para você, sabe, porque o ambiente já anda muito
carregado. Bem, julho é um mês engraçado para se vender casacos de pele
em Sunset Park. Um sujeito, quando compra um casaco para sua senhora,
quer que ela o use na mesma noite. Daí esse meu amigo vem me dizer que
Miguelito Cruz tem uma casa cheia de troços que quer vender e pode ser
que ele não tenha as notas de compra de muitos daqueles artigos. Com o
casaco e outros itens que ele mencionou, lembrei-me do caso Tillary, na
Colonial Road, o que foi suficiente para que um juiz me desse um
mandado de busca.
Passou a mão pelos cabelos. Eram castanho médio, mais claros onde o
sol os descolorira, e pouco cuidados. Foi nessa época que os policiais
começaram a usar cabelos um pouco mais longos, e os mais jovens já
começavam a exibir barbas e bigodes. Neumann não, tinha o rosto
escanhoado, as feições regulares, a não ser pelo nariz, que tinha sido
quebrado e mal restaurado.
— A muamba estava na casa de Cruz. Ele mora na Rua 51, do outro
lado da via expressa Gowanus. Tenho o endereço aí em algum lugar, se
você quiser. São uns prédios bem deteriorados, lá para os lados do Bush
Terminal Warehouse, se é que você sabe onde fica isso. Um monte de lotes
vazios, algumas construções fechadas com tábuas e outras que ninguém se
incomodou em fechar, ou então alguém arrancou as tábuas, e está cheio de
drogados por lá. O lugar onde Cruz morava não era tão ruim. Você verá, se
for até lá.
— Ele morava sozinho?
Sacudiu a cabeça:
— Com sua abuela. A avó. Uma velhinha pequenina, não sabe falar
inglês, provavelmente deveria estar num asilo. Talvez o Marien-Heim a
acolha, é bem ali na vizinhança. A velha veio para cá de Porto Rico; antes
que consiga aprender inglês, acaba num lar com nome alemão. Isso é Nova
York, não é?
— Você encontrou os pertences de Tillary no apartamento de Cruz?
— Foi. Não há dúvida. Quer dizer, a numeração da vitrola era a mesma
da relação do que foi roubado. Ele tentou negar. Mas isso não é novidade.
“Ah, comprei esse troço na rua, de um cara que conheci num bar. Não sei o
nome dele.” Claro, Miguelito, nós lhe dissemos, mas acontece que nesse
meio-tempo uma mulher foi toda cortada na casa onde esse aparelho
ficava, portanto está parecendo que você vai ser trancado por assassinato
em primeiro grau. No minuto seguinte ele já estava desembuchando tudo
sobre o roubo, mas insistindo que não havia nenhuma mulher na casa.
— Mas com certeza ele sabia que uma mulher fora morta lá.
— Claro, seja lá quem tenha feito o serviço. Saiu nos jornais, não é?
Num minuto ele diz que não leu nada sobre essa história, no outro diz que
não reconheceu o endereço, você sabe como as histórias desses tipos vão
mudando.
— E onde é que entra o Herrera?
— São primos, ou coisa parecida. Herrera mora num quarto mobiliado
na Rua 48, entre a Quinta e a Sexta, a uns dois quarteirões do parque. Quer
dizer, morava. Neste momento ambos moram na Casa de Detenção do
Brooklyn e continuarão nesse endereço até se mudarem para o norte do
estado.
— Os dois são fichados?
— Seria uma surpresa se não fossem, não é? — Deu uma risada. —
São os típicos ferrados. Algumas prisões juvenis por brigas de gangue.
Ambos se saíram bem de uma queixa por roubo há um ano e meio atrás, o
juiz sentenciou que não havia provas suficientes que justificassem uma
revista. — Fez um gesto de desânimo. — O raio das regras a que a gente
tem que obedecer. Bem, essa eles ganharam. Foram novamente apanhados
por roubo, mas dessa vez alegaram invasão de propriedade e assim
obtiveram suspensão da pena. De outra vez, outro caso de roubo, mas as
provas desapareceram.
— Desapareceram?
— Foram perdidas, ou arquivadas no lugar errado, ou coisa parecida,
não sei bem. É um milagre alguém ir parar na cadeia nesta cidade. Para
que isso aconteça, só mesmo em um caso de morte.
— Quer dizer que eles já cometeram muitos roubos?
— Parece que sim. Coisa pequena, merrecas. Derrubar uma porta,
agarrar um rádio, correr para a rua e vendê-lo lá mesmo por cinco ou dez
dólares. Cruz era pior que Herrera. Este de vez em quando trabalhava,
empurrando carrinho no distrito das confecções, entregando almoços,
bicos com salário mínimo. Não creio que Miguelito algum dia tenha
trabalhado.
— Mas nenhum dos dois matou alguém antes.
— Cruz, sim.
— Ah, é?
Ele assentiu:
— Numa briga de bar, ele e um outro babaca como ele, lutando por
uma mulher.
— Os jornais não publicaram isso.
— Nunca chegou aos tribunais. Ninguém apresentou queixa. Uma
dúzia de testemunhas declarou que o morto começou tudo, indo atrás de
Cruz com uma garrafa quebrada.
— E qual a arma usada por Cruz?
— Uma faca. Disse que não era dele e havia testemunhas preparadas
para jurar que viram quando alguém atirou a faca para ele. Não tínhamos
nada para justificar um caso por porte de arma branca, que dirá de
homicídio.
— Mas Cruz normalmente andava com uma faca?
— Seria mais fácil pegá-lo saindo de casa sem cueca.
Essa conversa aconteceu no início da tarde, no dia seguinte àquele em
que tirei mil e quinhentos dólares de Drew Kaplan. Naquela manhã
comprara um vale postal e o remetera para Syosset. Paguei o aluguel de
agosto adiantado, aceitei uma ou duas contas e peguei o metrô para Sunset
Park.
Fica no Brooklyn, claro, na parte oeste do distrito, acima de Bay Ridge
e ao sul e a oeste do cemitério Green Wood. Hoje em dia há um bom
número de casas sendo remodeladas em Sunset Park, com jovens
profissionais urbanos fugindo dos aluguéis de Manhattan e reformando as
antigas casas geminadas, deixando a vizinhança mais atraente Mas,
naqueles dias, os jovens em ascensão social ainda não tinham descoberto
aquele lugar e a população era basicamente formada por latinos e
escandinavos. Os primeiros eram, em sua maioria, porto-riquenhos; os
segundos, noruegueses. Mas a proporção estava gradualmente pendendo da
Europa para as ilhas, do claro para o escuro, mas isso era um processo
continuado, que já vinha de muitos e muitos anos, sem nada de apressado.
Andei um pouco por ali, antes de minha visita ao sexagésimo oitavo,
mantendo-me sempre a um quarteirão, mais ou menos, da Quarta Avenida,
principal via comercial da região, e orientando-me, a intervalos regulares,
pela igreja de Saint Michael. Poucos prédios tinham mais do que três
andares, e a cúpula ovalada da igreja, no alto de uma torre de sessenta
metros, era visível mesmo de longe.
Caminhei pela Terceira Avenida, em direção ao norte, pelo lado direito
da rua, sob a sombra da via expressa que a cobria. À medida que me
aproximava da rua de Cruz, mais para absorver a vizinhança do que para
fazer perguntas, entrei em alguns bares. Em um tomei uma dose de
bourbon, depois me mantive na cerveja.
O quarteirão onde Miguelito morara com a avó era exatamente como
Neumann o descrevera. Havia vários lotes grandes e vazios, um deles
fortificado por uma cerca anticiclone, os outros abertos e cheios de
entulho. Num terreno baldio, crianças pequenas brincavam na carcaça
abandonada de um Volkswagen. Quatro prédios de três andares, com
fachadas decoradas por tijolos recortados, se perfilavam no lado norte do
quarteirão, mais próximos da Segunda Avenida do que da Terceira. Os
edifícios contíguos a esses, de ambos os lados, tinham sido postos abaixo,
deixando as paredes laterais, feitas dos mesmos tijolos, com aspecto de
cruas em comparação com as fachadas expostas ao ar livre havia mais
tempo, a não ser pelos grafites, feitos com spray, nas partes inferiores.
Cruz tinha morado no prédio mais próximo da Segunda Avenida, mais
próximo também do rio. No vestíbulo, muitos azulejos estavam quebrados,
outros já não existiam, com a tinta das paredes descascando. Havia seis
caixas de correio, as fechaduras arrebentadas e consertadas e quebradas de
novo. Não havia campainhas, nem uma tranca na porta de entrada. Abri e
comecei a subir os dois lances da escada, que cheirava a comida sendo
cozida, a ratos, e exalava um ligeiro odor amoníaco de urina. Todas as
casas velhas que abrigam gente pobre têm o mesmo cheiro. Ratos morrem
nas paredes, crianças e bêbados urinam em qualquer lugar. O prédio de
Cruz não era pior do que milhares por aí.
A avó vivia no último andar, num apartamentinho do tamanho de uma
cabine rodoviária, muito limpo, cheio de gravuras de santos e pequenos
relicários iluminados com velas. Se ela falava algum inglês, não deixou
perceber.
Ninguém atendeu às minhas batidas no apartamento do outro lado do
hall.
Comecei a investigar o prédio. No segundo andar, exatamente abaixo
do da avó de Cruz, morava uma mulher latina, de pele muito escura, com
um bando de cinco crianças, todas aparentando menos de seis anos. Na
sala da frente, a televisão e o rádio estavam ligados. Na cozinha, outro
rádio tocava. As crianças se mexiam sem parar e ao menos duas delas
gritavam ou choravam o tempo todo. A mulher era bem acessível, mas
falava pouco inglês e era de todo impossível concentrar-se em qualquer
coisa naquele ambiente.
Do outro lado do hall, ninguém respondeu às minhas batidas. Como
podia ouvir uma televisão ligada, continuei batendo. Finalmente, a porta
se abriu. Um homem exageradamente gordo, de cueca, abriu a porta e
tornou a entrar, dando a entender que eu poderia segui-lo. Conduziu-me
por diversos quartos cheios de jornais e de latas vazias de Pabst Blue
Ribbon até a sala da frente, onde sentou numa poltrona de molas, para
continuar a assistir a um programa de jogos. A cor em seu aparelho de TV
estava com algum problema, dando ao painel de jurados rostos ora
vermelhos, ora verdes.
Ele era branco, com cabelo liso que um dia fora louro, mas que agora
estava quase todo grisalho. Era difícil calcular sua idade por causa do
excesso de peso, mas provavelmente tinha entre quarenta e sessenta anos.
Havia vários dias não fazia a barba e talvez também não tomasse banho
nem trocasse os lençóis da cama. Ele fedia, seu apartamento também
fedia, e fiquei lá assim mesmo, fazendo-lhe perguntas Quando entrei,
havia três latas de cerveja, de um pacote de seis. Ele as bebeu uma atrás da
outra e depois foi, descalço, buscar numa geladeira outro pacote de seis.
Seu nome era Illing, disse, Paul Illing, e ouvira a respeito de Cruz, vira
na televisão, achou horrível, mas não ficou surpreso, não. Tinha morado
toda a vida ali naquele apartamento, contou-me, e disse que essa, em
outros tempos, fora uma boa vizinhança, com pessoas decentes, que se
respeitavam e respeitavam os outros. Mas agora havia esses elementos
estranhos, o que é que se podia esperar?
— Vivem como animais — disse-me. — Não dá pra acreditar.
Fiz o que deve ser feito. Na maior parte do tempo, andei por ali e bati
nas portas e fiz perguntas. Voltei às duas casas, de Cruz e de Herrera.
Conversei com vizinhos de Cruz que não encontrara no dia anterior, e
conversei também com outros moradores da casa de cômodos do Herrera.
Andei até o sexagésimo oitavo para falar com Cal Neumann. Ele não
estava, mas conversei com outros policiais ali da delegacia e fui tomar
café com um deles.
Dei uns telefonemas, mas a maior parte de meu trabalho foi andar por
ali, conversar com as pessoas, anotar alguns pedaços de conversas,
fazendo o meu trabalho e tentando não questionar o objetivo de minhas
ações. Estava recolhendo uma razoável quantidade de dados, mas não
tinha a menor ideia se iriam ou não ajudar em alguma coisa. Não sabia ao
certo o que procurava, nem mesmo se havia alguma coisa ali para ser
procurada. Creio que tentava me movimentar bastante e recolher uma
quantidade de informações que justificasse para mim mesmo, para Tommy
e para seu advogado o dinheiro que recebera, e que já fora amplamente
consumido.
Lá pelo início do entardecer, cansei. Peguei o trem para casa. Havia
um recado de Tommy Tillary na recepção, com o telefone de seu
escritório. Coloquei no bolso, andei até a esquina e Billie Keegan me disse
que o Skip andava à minha procura.
— Estão todos procurando por mim.
— É bom ser procurado. Tive um tio que foi procurado em quatro
estados. Tem um recado telefônico também. Onde é que eu pus? —
Entregou-me um pedacinho de papel. Tommy Tillary de novo, mas dessa
vez com um número diferente. — Quer tomar alguma coisa, Matt? Ou
passou apenas para checar sua correspondência e recados?
Tinha sido cuidadoso no Brooklyn, pedindo apenas um café na maioria
das bodegas e padarias, e nos bares bebendo só umas cervejinhas. Deixei
Billie me servir uma dose dupla de bourbon, que caiu muito bem.
— Procurei por você hoje. Eu e alguns amigos fomos ao hipódromo.
Pensei que você talvez gostasse de ir.
— Tinha trabalho, Billie. Mas não sou muito de cavalos.
— É divertido, se você não levar a sério.
— Você devia ter saído conosco esta tarde — disse Skip. — Keegan,
Ruslander e eu pegamos meu carro e fomos até o Big A. — Ele falou de
um jeito arrastado, imitando W. C. Fields: — Participamos do esporte dos
reis, contribuímos para o aprimoramento da raça, sim senhor.
— Estava trabalhando.
— Era o que eu deveria ter feito. Maldito Keegan, tinha os bolsos
cheios de miniaturas de bebida, a cada páreo esvaziava uma, tinha os
bolsos cheios dessas garrafinhas. E começou a apostar nos cavalos baseado
nos nomes. Tinha esse pangaré, Jill the Queen, não ganhava nada desde
que Vitória era rainha, e daí que o Keegan se lembra de uma menina pela
qual teve uma paixão alucinada na sexta série. Claro que aposta nele.
— E o cavalo vence.
— Claro que o cavalo vence. E o rateio é mais ou menos de doze por
um. Keegan tinha apostado dez dólares e ficou dizendo que se enganou. Se
enganou como? “O nome dela era Rita”, diz ele. “A irmã é que se chamava
Jill. Lembrei errado.”
— Típico do Billie.
— Bem, a tarde inteira foi assim. Ele apostando em antigas namoradas
e suas irmãs, bebendo quase que dois litros de uísque, e enquanto
Ruslander e eu perdemos sei lá, cem, cento e cinquenta dólares, o sacana
do Billie Keegan ganhou seiscentos dólares, apostando em nomes de
garotas.
— Como é que você e o Ruslander escolhiam seus cavalos?
— Bem, você conhece o ator. Curvava os ombros, começava a falar
pelo canto da boca como um velho turfista, ia conversar com uns sujeitos
com cara de entendidos em corridas e voltava com um palpite. Com
certeza esses caras também eram atores.
— Vocês dois iam atrás desses palpites?
— Tá maluco? Eu aposto cientificamente.
— Você estuda os retrospectos?
— Não entendo nada disso. Observo quais começam a ser menos
apostados e quais os mais apostados; também desço para o padoque, para
olhar os cavalos dando voltas à espera da pesagem, e presto atenção
naquele que está fazendo um bom cocô.
— Científico.
— Totalmente. Quem é que quer investir dinheiro sério num
desgraçado de um cavalo com prisão de ventre? Algum cavalo condenado
por uma anormalidade? Meus cavalos — e baixou os olhos fingindo
timidez, — estão sempre com a saúde tinindo.
— E o Keegan é maluco.
— Isso mesmo. O homem banaliza uma pesquisa científica. —
Inclinou-se para a frente e esmagou o cigarro até apagá-lo. — Nossa,
como gosto dessa vida. Juro que nasci para isso. Passo metade dos meus
dias tomando conta de meu bar e a outra metade no bar dos outros, com
uma ou outra ensolarada tarde de folga para me aproximar da natureza e
comungar com a obra de Deus. — Seus olhos se fixaram nos meus. —
Adoro, mesmo. — Falou com voz segura e calma. — É por isso que vou
pagar àqueles miseráveis.
— Eles telefonaram?
— Antes que saíssemos para o prado. Apresentaram suas exigências
inegociáveis.
— Quanto?
— Quantia suficiente para fazer com que minhas apostas percam toda
a importância. Quem se importa se você perde ou ganha cem dólares? E eu
nunca aposto muito, não tem graça nenhuma quando a gente começa a
jogar pesado. Eles querem uma quantia considerável.
— E você pretende pagar?
Ele pegou seu drinque.
— Vamos nos encontrar com umas pessoas amanhã. O advogado, os
contadores. Quer dizer, isso se o Kasabian parar de vomitar.
— E depois?
— E depois vamos tentar negociar o inegociável e depois, porra, pagar.
Que mais os advogados e contadores nos dirão para fazer? Levantar um
exército? Começar uma guerrilha? Não é esse o tipo de resposta que
advogados e contadores costumam dar. — Pegou outro cigarro, deu uma
batidinha nele, levantou-o, examinou-o, tornou a dar uma batidinha,
depois é que acendeu. — Sou uma máquina que fuma e bebe — disse
através de uma nuvem de fumaça — e, vou lhe contar, não sei por que
estou dando tanta importância a isso tudo.
— Há um minuto atrás você amava esta vida.
— Fui eu quem disse isso? Conhece a história do sujeito que comprou
um Volkswagen e seu amigo lhe pergunta se está gostando do carro?
“Bem, é como sexo”, o cara responde. “Eu adoro, mas não me orgulho
muito disso não.”
10
Telefonei para Drew Kaplan na manhã seguinte, antes de ir para o
Brooklyn. Sua secretária me disse que ele estava em reunião, se poderia
retornar a ligação. Disse-lhe que telefonaria mais tarde e foi o que fiz,
quarenta minutos depois, ao saltar na estação em frente ao Sunset Park. A
essa altura ele havia saído para o almoço Mandei dizer que tornaria a
telefonar.
Naquela tarde conheci uma mulher que era amiga da namorada de
Angel Herrera. Tinha feições marcadamente indígenas e o rosto muito
castigado pela acne. Ela disse que era uma pena o Herrera ter sido preso,
mas que provavelmente isso fora bom para a namorada dele, porque o
Herrera não ia se casar nunca, nem mesmo viver com ela, já que ainda se
considerava casado em Porto Rico.
— Mesmo que sua mulher lhe dê o divórcio, ele não vai aceitar. E a
minha amiga, ela quer engravidar, mas ele não a engravida e não se casa
com ela. O que é que ela pode querer com ele, não é? Melhor para ela que
ele desapareça por uns tempos. Melhor para todo mundo.
— Ele é seu amigo, não é? É por isso que você está envolvido?
Tínhamos saído da casa de Tillary lá pelo início da noite. Lembro-me
de que o céu ainda estava claro, mas estávamos em julho e anoitecia bem
mais tarde. Apaguei as luzes e guardei a garrafa de Wild Turkey. Não
deixamos muito nela, não. Diebold brincou dizendo que eu devia limpar
minhas impressões da garrafa e dos copos também.
Ele estava com o seu carro, um Ford Fairlane que já estava cheio de
ferrugem. Escolheu o lugar, um restaurante alinhado de carne e frutos do
mar, perto do acesso à ponte Verrazano. Era conhecido no lugar e percebi
que não haveria conta. A maioria dos policiais tem uns determinados
restaurantes onde pode comer um certo número de vezes sem pagar. Isso
incomoda algumas pessoas, e eu nunca entendi bem por quê.
Comemos bem — coquetel de camarão, tiras de filé, pãezinhos de
centeio bem quentes, batatas assadas recheadas.
— Quando a gente era criança — Diebold falou —, um homem que
comia assim estava se tratando muito bem. Você nunca ouvia uma maldita
palavra sobre colesterol Agora só se fala nisso.
— Verdade.
— Tinha um colega, não sei se você o conheceu. Gerry O'Bannon.
Conhece?
— Acho que não.
— Bem, ele entrou nessa onda de saúde. O que desencadeou tudo foi
ele parar de fumar. Nunca fumei, por isso nunca tive que deixar o cigarro,
mas ele deixou e aí foi uma coisa atrás da outra. Perdeu muito peso,
mudou a dieta, começou a correr Ficou com uma cara horrível, todo
retesado, sabe como é que eles ficam? Mas estava feliz, estava mesmo
feliz consigo mesmo. Não bebia, pedia apenas uma cerveja e fazia com
que durasse um tempão, ou então pedia uma só e depois trocava por club
soda. Aquele troço francês. Perrier?
— Isso mesmo.
— Muito em voga hoje em dia, é uma simples água gaseificada e custa
mais do que cerveja. Pense nisso e depois me explique. Ele se matou.
— O'Bannon?
— Foi. Não quero dizer que uma coisa tenha a ver com a outra, perder
peso e beber club soda e se matar. A vida que você vive e as coisas que
você vê, vou te contar, um tira comer sua pistola, nunca achei que isso
precisasse de uma explicação. Você compreende o que estou dizendo?
— Compreendo.
Ele me olhou.
— Claro. Claro que você compreende. — E aí a conversa tomou outra
direção, e um pouco depois, com uma fatia de torta de maçã coroada por
queijo cheddar à sua frente, e café para os dois, ele retornou ao caso
Tillary, identificando-o como meu amigo.
— Mais ou menos amigo — respondi. — Conheço-o de bares.
— Claro, ela vive na sua vizinhança, não é? A namorada, esqueço seu
nome.
— Carolyn Cheatham.
— Queria que ela fosse todo o álibi dele. Mas, mesmo ele tendo se
ausentado algumas horas, o que a mulher dele estava fazendo durante o
assalto? Esperando que Tommy voltasse para casa e a matasse? Quer dizer,
exagerando, vamos dizer que ela tenha se escondido debaixo da cama
enquanto eles pilhavam seu quarto e deixavam impressões por toda parte.
Eles saem e ela chama a polícia, certo?
— Ele não pode ter cometido o crime.
— Eu sei, e isso me leva à loucura. Por que é que você gosta dele?
— Ele não é um mau sujeito. E estou sendo pago pelo meu trabalho,
Jack. O que é um desperdício do meu tempo e do dinheiro dele, de
qualquer forma, porque vocês não têm um caso contra ele.
— Não.
— Não têm, não é?
— Nem perto. — Ele comeu um pedaço da torta, bebeu um pouco de
café. — Que bom que você está sendo pago. Não é somente porque gosto
de ver um sujeito gastar algum. Detestaria ver você se fritar de graça por
ele.
— Mas não estou me fritando.
— Você me compreendeu.
— Estou perdendo alguma coisa, Jack?
— O quê?
— O que ele fez, roubou as bolas de beisebol da Liga Atlética da
Polícia? Por que você tem tanta gana dele?
Ele pensou antes de responder. Suas mandíbulas trabalhavam. Franziu
a testa.
— Bem, posso explicar — disse, depois de um tempo. — Porque ele é
fingido.
— Ele vende ações e titica pelo telefone. Claro que sabe fingir.
— Mais do que isso. Não sei como explicar de maneira a fazer sentido,
mas, porra, você foi um tira. Você sabe como a gente tem dessas intuições.
— Claro que sei.
— Ora, eu sinto isso em relação a esse cara. Tem alguma coisa nele
que não bate, alguma coisa relacionada com a morte dela.
— Vou dizer o que é — falei. — Ele está satisfeito porque ela morreu,
mas finge que não está. Livrou-o de uma encrenca e ele ficou feliz, mas
está agindo como um filho-da-mãe santarrão, e é a isso que você está
reagindo.
— Talvez em parte seja isso.
— Acho que isso é tudo. Você sente que ele está agindo como quem
tem culpa. Bem, está mesmo. Ele se sente culpado. Está feliz com a morte
dela, mas ao mesmo tempo ele viveu com essa mulher não sei quantos
anos, viveu uma vida com ela, uma parte dele agia como marido e a outra
parte a enganava.
— Sim, sim, estou entendendo.
— E então?
— Mas é mais do que isso.
— Por que tem que ser mais? Olha, talvez ele tenha armado tudo para
o Cruz e como é mesmo o nome do outro?
— Hernandez.
— Não, não é Hernandez. Como é mesmo o nome dele?
— Angel, Angel Eyes.
— Herrera. Talvez ele tenha armado para eles entrarem, roubarem a
casa. Talvez no fundo de sua mente estivesse a esperança que ela reagisse
ao roubo.
— Continue.
— Mas acontece que é muito talvez, não é não? Acho que ele apenas se
sente culpado por ter desejado que ela morresse, ou está contente porque
isso de fato aconteceu, e você está percebendo a culpa e é por isso que
você o quer culpado pelo assassinato.
— Não.
— Tem certeza?
— Não tenho certeza de ter certeza de nada. Sabe, estou contente que
você esteja sendo pago. Espero que esteja recebendo uma tonelada de
dinheiro.
— Nem tanto.
— Olhe, arranque o quanto puder. Porque ao menos isso está lhe
custando algum dinheiro, mesmo que seja só isso, e dinheiro que ele não
precisava estar gastando. Porque não podemos tocar nele. Mesmo que
aqueles dois mudassem suas versões, admitissem o assassinato e
dissessem que ele os meteu nessa, não seria suficiente para pegá-lo. E eles
não vão mudar suas histórias, e quem é que iria contratá-los para um
assassinato, quem? E eles não aceitariam uma empreitada dessas, sei que
não. Cruz é um bastardo mesquinho, mas Herrera é apenas um cara burro
e, que merda!
— O quê?
— Fico furioso ao ver esse tipo se sair bem dessa.
— Mas ele não a matou, Jack.
— Ele está escapando de alguma coisa e detesto ver isso acontecer.
Sabe qual é a minha esperança? Que em algum momento ele ultrapasse um
sinal vermelho naquela porra daquele barco dele. O que é mesmo, um
Buick, não é?
— Acho que é.
— Espero que ele avance um sinal e eu o detenha por isso, é só o que
espero.
— É isso que a delegacia de homicídios do Brooklyn faz hoje em dia?
Lida com os problemas do trânsito?
— Só espero que isso aconteça — ele respondeu. — Só isso.
12
Diebold insistiu em me levar. Quando lhe disse que iria de metrô,
objetou que eu não fosse ridículo, que já era meia-noite e que eu não
estava em condições de viajar em transportes públicos.
— Você vai apagar e algum vagabundo vai roubar os seus sapatos.
É possível que ele estivesse certo. O fato é que cabeceei e adormeci
durante o trajeto até Manhattan, acordando quando ele estacionou na
esquina da Rua 59 com a Nona. Agradeci a carona, perguntei-lhe se tinha
tempo para um drinque antes de voltar.
— Não, para mim chega. Não posso mais virar a noite como antes.
— Sabe, acho que também vou dar os trabalhos por encerrados.
Mas não foi o que acabei fazendo. Esperei que ele arrancasse com o
carro, comecei a caminhar em direção ao hotel, mas depois dobrei a
esquina e segui para o Armstrong's. Estava quase vazio. Entrei e Billie
acenou para mim.
Fui até o bar. E lá estava ela, na ponta do balcão, sozinha, os olhos
fixos no copo à sua frente. Carolyn Cheatham. Não a vira desde a noite em
que ficamos juntos.
Enquanto eu pensava se devia ou não dizer alguma coisa, ela levantou
os olhos e seu olhar encontrou o meu. Seu rosto parecia cristalizado numa
dor obstinada e antiga. Piscou duas vezes antes de me reconhecer, e
quando o fez um músculo começou a tremer em seu rosto e os olhos se
encheram de lágrimas. Usou a mão para enxugá-las. Já chorara antes;
havia lenços de papel amassados a seu lado, manchados de rímel.
— Meu amigo bebedor de bourbon. Billie, esse homem é um
cavalheiro. Você pode, por favor, trazer para meu cavalheiro uma dose de
um bom bourbon?
Billie me olhou. Concordei. Ele trouxe uma pequena dose da bebida e
uma jarra de café.
— Chamei você de meu cavalheiro, mas sem segundas intenções. —
Ela pronunciou as palavras com o cuidado exagerado dos bêbados. — Você
é um cavalheiro e um amigo, mas não o meu cavalheiro. Por outro lado, o
meu cavalheiro não é nenhuma das duas coisas.
Bebi um gole do bourbon e despejei um pouco no café.
— Billie, sabe como podemos concluir que o senhor Scudder é um
cavalheiro?
— Ele sempre tira sua dama na presença de um chapéu.
— É um bebedor de bourbon.
— Isso faz dele um cavalheiro, Carolyn?
— Faz dele um homem anos-luz à frente de um hipócrita filho-da-
puta, bebedor de uísque escocês.
Ela não estava falando alto, mas sua voz era incisiva o suficiente para
fazer calar a sala. Havia apenas três ou quatro mesas ocupadas, e as
pessoas escolheram justo aquele momento para se calarem. Por um
instante, a música de fita ficou surpreendentemente alta. Era uma das
poucas que eu reconhecia, um dos concertos de Brandeburgo. Era tão
comum ouvi-la ali que até eu já a reconhecia.
— Suponha que um homem beba uísque irlandês, Carolyn. Isso faz
dele o quê? — Billie perguntou.
— Um irlandês.
— Faz sentido.
— Estou bebendo bourbon — ela falou e empurrou intencionalmente o
copo um pouco para a frente. — Dane-se, sou uma dama.
Ele a olhou, depois me olhou. Assenti e ele encolheu os ombros e
serviu-lhe mais uma dose.
— Por minha conta — eu lhe disse.
— Obrigada. Obrigada, Matthew. — Seus olhos começaram novamente
a lacrimejar e ela pegou um lenço limpo na bolsa.
Queria falar sobre Tommy. Ele estava sendo bom com ela, disse.
Telefonando, enviando flores. Uma cena no escritório, porém, não ia
agradar; no entanto, como talvez viesse a precisar dela para comprovar
onde estava na noite em que sua mulher fora assassinada, precisava que
ela continuasse sua amiga.
Mas não queria vê-la, pois dizia que não ficava bem. Não para um
viúvo recente, para um homem virtualmente acusado de cumplicidade no
assassinato da mulher.
— Envia flores sem cartão. Telefona de cabines públicas. O filho-da-
mãe.
— Talvez o florista tenha esquecido de juntar o cartão.
— Ah, Matt, não arranje desculpas para ele.
— Claro que só pode falar de telefones públicos, afinal ele está num
hotel.
— Podia telefonar do quarto. Ele deu a entender que não queria que as
ligações passassem pela mesa telefônica do hotel, para o caso de a
telefonista estar escutando. Não há cartões porque ele não quer nada
escrito. Veio ao meu apartamento uma noite dessas, mas não quer ser visto
comigo, não quer sair comigo, e… ah, o hipócrita. O filho-da-mãe bebedor
de uísque escocês.
Billie me chamou e disse:
— Não queria pedir a ela que saísse, uma mulher tão gentil, do jeito
que está. Mas estava com medo de ter que fazê-lo. Você a acompanharia
até a casa dela?
— Claro.
Primeiro tive que deixar que ela nos pagasse mais uma rodada. Ela
insistiu. Depois consegui tirá-la de lá e andei com ela até seu prédio. A
chuva estava a caminho, era possível sentir seu cheiro; quando saímos do
ar-condicionado do Armstrong's para a umidade opressiva que anuncia
uma tempestade de verão, ela perdeu um pouco de sua energia. Enquanto
caminhávamos, segurou meu braço, agarrando-o de uma forma que
beirava o desespero. No elevador, encostou-se na parede dos fundos e
firmou os pés no chão.
— Oh, Deus! — falou.
Tirei as chaves de sua mão, abri a porta. Ajudei-a a entrar Ela meio
que sentou, meio que se esparramou no sofá. Tinha os olhos abertos, mas
não sei se estava vendo alguma coisa. Precisei usar o banheiro. Quando
voltei, ela fechara os olhos e ressonava.
Tirei seus sapatos, levei-a para uma cadeira e lutei com o sofá até
conseguir transformá-lo numa cama Deitei-a. Achei melhor desabotoar um
pouco de suas roupas, mas acabei por despi-la. Durante todo esse tempo
ela continuou inconsciente, e lembrei-me do assistente de um agente
funerário que uma vez me contou como era difícil vestir e despir os
mortos. Senti minha garganta se revoltar ao pensar nisso, mas sentei e dali
a pouco meu estômago sossegou.
Cobri-a com o lençol de cima e tornei a me sentar. Tinha alguma outra
coisa que pretendia fazer, mas não conseguia me lembrar do que era.
Tentei lembrar e devo ter cochilado. Acho que foi só por uns minutos,
tempo suficiente para que eu me perdesse num sonho que desapareceu no
instante em que abri os olhos.
Saí de lá. A porta trancava automaticamente. Havia um ferrolho que
podia ser trancado por dentro para maior segurança, mas só o que pude
fazer foi bater a porta e verificar se estava trancada, e razoavelmente
segura. Peguei o elevador e fui para a rua.
A chuva ainda não caíra. Na esquina da Nona Avenida um jogger
passou por mim, correndo perseverantemente em direção ao norte da
cidade, no sentido contrário dos carros. Sua camiseta estava molhada de
suor e ele parecia prestes a cair. Lembrei-me de O'Bannon, o antigo
parceiro de Jack Diebold, procurando a excelência física antes de estourar
os miolos.
Foi aí que me lembrei do que queria fazer no apartamento de Carolyn.
Tinha planejado retirar de lá a arma que Tommy lhe dera Se ela ia beber
desse jeito e ficar deprimida, não precisava de uma arma na mesinha de
cabeceira.
Mas a porta estava trancada. E ela estava desmaiada, não ia acordar e
se matar.
Atravessei a rua. A grade de ferro do Armstrong's estava quase que
inteiramente puxada, os globos de luz em cima da entrada apagados, mas
via-se luz lá dentro Cheguei até a porta, vi que as cadeiras já estavam
colocadas em cima das mesas, o salão preparado para o garoto dominicano
que vinha todas as manhãs varrer o lugar. Logo de início não vi Billie, mas
depois o avistei num tamborete lá no extremo oposto do balcão. A porta
estava trancada, mas ele me viu e veio abrir.
Logo que entrei, ele trancou novamente a porta, foi até o balcão e
assumiu seu posto. Sem dizer nada, serviu-me uma dose de bourbon.
Segurei o copo com a mão, mas não o levantei.
— O café acabou.
— Tudo bem. Eu não ia querer mais.
— Ela está bem? A Carolyn?
— Bem, pode ser que amanhã ela tenha uma ressaca.
— Quase todo mundo que conheço pode ter uma ressaca amanhã. Eu
posso ter uma ressaca amanhã. Vai chover muito, o melhor que posso fazer
é ficar sentado em casa e comer aspirinas o dia inteiro.
Alguém bateu na porta. Billie sacudiu a cabeça, fez sinal para que
fosse embora. O homem bateu de novo. Billie o ignorou.
— Será que não veem que o lugar está fechado? — queixou-se —
Guarde seu dinheiro, Matt. Estamos fechados, o caixa já fechou, é hora de
festa particular. — Segurou seu copo contra a luz e olhou para ele. —
Linda cor. Ela é uma beberrona, a velha Carolyn. Um bebedor de bourbon
é um cavalheiro e um bebedor de uísque… o que foi mesmo que ela disse
que um bebedor de uísque é?
— Acho que foi hipócrita.
— Então eu lhe dei uma boa fala, não foi? Uísque irlandês faz um
homem ser o quê? Um irlandês.
— Quem mandou perguntar?
— Também faz dele um bêbado, mas de uma maneira simpática. Só
fico bêbado da melhor maneira possível. Por Deus, Matt, estas são as
melhores horas do dia. Você pode ficar com seu Morrissey's. Isto aqui é
como ter a sua própria happy-hour, sabe? O boteco vazio e escuro, a
música desligada, as cadeiras empilhadas, uma ou duas pessoas para
companhia, o resto do mundo trancado lá fora. Maravilha, não é?
— Não é mau.
— Não, não é.
Ele estava renovando meu drinque. Não me lembro de ter bebido a
primeira dose.
— Sabe, meu problema é que não posso ir para casa — falei.
— Isso foi o que Thomas Wolfe disse. “You can't go home again”. Esse
é o problema de todo mundo.
— Não, falo sério. Meus pés, em vez disso, me levam para bares.
Estava no Brooklyn. Cheguei tarde em casa, cansado, caindo de sono, já
pertinho do hotel e de repente virei a esquina e vim para cá. Agora mesmo
acabo de pôr a Carolyn para dormir, e tive que me arrancar de lá para não
adormecer na cadeira dela, e em vez de ir para casa como um ser humano
sadio, voltei para cá, como um pombo domesticado regressa ao pombal.
— Você é uma andorinha e aqui é Capistrano.
— É isso que eu sou? Já não sei mais o que sou.
— Ora, bolas. Você é um cara, um ser humano. Apenas mais um filho-
da-mãe que não quer ficar sozinho quando a taverna sagrada fecha as
portas.
— O quê? — Comecei a rir. — É isso que este lugar é? A taverna
sagrada?
— Você não conhece a música?
— Que música?
— Aquela do Van Ronk, “Então tivemos outra noite” — parou. —
Diabos, não consigo cantar. Não consigo nem acertar a melodia. Last call,
de Dave Van Ronk. Você não conhece?
— Não sei nem do que você está falando.
— Por Deus! Você tem que ouvir essa música. Tem que ouvir de
qualquer jeito. É sobre isso que estivemos conversando até agora; e, o
mais importante, esse é o maldito hino nacional. Vamos.
— Vamos, assim, sem mais nem menos?
— Só isso, vamos. — Colocou uma bolsa de viagem da Piedmont
Airlines em cima do balcão, foi mexer lá atrás do bar e voltou com duas
garrafas lacradas, uma do Jameson irlandês de doze anos que ele adorava e
uma de Jack Daniel's. — Que tal?
— Que tal o quê?
— Para jogar na sua cabeça e matar os piolhos. Para beber, foi a minha
pergunta. Você esteve bebendo Forester, mas não consigo encontrar
nenhuma garrafa fechada, e há uma lei que proíbe andar com garrafas
abertas pelas ruas.
— É mesmo?
— Deveria haver. Nunca roubo garrafas abertas. Você pode responder a
uma simples pergunta? O Jack Preto está bom pra você?
— Claro que sim, mas onde é que estamos indo?
— Para a minha casa. Você tem que ouvir esse disco.
Mais tarde telefonei para a loja de bebidas que fica no outro lado da
rua, encomendei dois litros de Early Times e pedi que falassem com o
entregador para parar na delicatessen e pegar um pacote com seis cervejas
e alguns sanduíches. Eles me conheciam e sabiam que eu recompensaria
bem o rapaz das entregas pelo serviço especial, que foi o que fiz. Para
mim valia muito a pena.
Fui devagar com a bebida forte, bebi uma lata de cerveja, forcei-me a
comer metade de um sanduíche. Tomei um banho quente, o que ajudou,
depois comi a outra metade do sanduíche e bebi outra lata de cerveja.
Fui dormir, e quando acordei liguei a televisão e vi Bogart e Ida
Lupino, acho que era ela, em O último refúgio. Não prestei muita atenção
no filme, mas era companhia. De vez em quando ia até a janela e olhava a
chuva. Comi parte do outro sanduíche, bebi mais cerveja, bebi uns
golinhos da garrafa de bourbon. Quando o filme acabou, desliguei a TV,
tomei duas aspirinas e voltei para a cama.
Sábado acordei um pouco melhor. Ainda precisei de um drinque ao
acordar, mas servi uma dose pequena, que parou no estômago. Tomei
banho, bebi a última lata de cerveja, desci e fui tomar o café da manhã no
Red Flame Deixei metade dos ovos, mas comi as batatas e uma porção
dupla de torradas de pão de centeio e bebi muito café. Li o jornal, quer
dizer, tentei. Não consegui compreender muito do que li.
Depois do café parei no McGovern's para um drinque rápido. Ao sair,
virei a esquina e fui para a Saint Paul, onde fiquei sentado naquele silêncio
agradável por mais ou menos meia hora.
Então voltei para o hotel.
No meu quarto, primeiro assisti a um jogo de beisebol; no Wide World
of Sports, uma luta de boxe, um campeonato mundial de luta livre, depois
umas moças exibindo um tipo de esqui aquático individual. O que elas
faziam parecia realmente difícil, mas não era muito interessante para se
assistir. Desliguei a TV e saí. Dei um pulo no Armstrong's, conversei com
uns conhecidos, depois fui ao Joey Farrell's para uma tigela de chili bem
temperado e umas doses de Carta Blanca.
Tomei um conhaque com o café antes de regressar ao hotel. Tinha
bourbon suficiente no quarto para atravessar o domingo, mas parei no
caminho e comprei umas cervejas porque meu estoque acabara e, aos
domingos, as lojas não podem vender bebida antes de meio-dia. Ninguém
sabe por quê. Talvez seja coisa das igrejas, talvez queiram os fiéis com
suas ressacas aguçadas, talvez o arrependimento seja mais fácil de vender
aos que estão muito atormentados.
Fiquei bebericando enquanto assistia televisão. Adormeci em frente ao
aparelho, acordei no meio de um filme de guerra, tomei uma chuveirada,
fiz a barba, fiquei sentado de cueca vendo o fim daquele filme e o começo
de outro, tomando goles de bourbon e de cerveja até poder voltar a dormir.
Quando acordei, já era domingo de tarde e continuava a chover.
Lá pelas três e meia o telefone tocou. Atendi no terceiro toque e disse
alô.
— Matthew? — Era uma mulher e por um instante pensei que fosse
Anita. Quando ela continuou: — Tentei falar com você anteontem, mas
ninguém atendeu — percebi o sotaque sulista.
— Queria agradecer — falou.
— Não tem nada para agradecer, Carolyn.
— Quero agradecer por você ser um cavalheiro — continuou, seu riso
acompanhando suas palavras com delicadeza. — Um cavalheiro bebedor
de bourbon. Se não me engano, parece que falei muito sobre isso.
— Segundo me lembro, você foi bastante eloquente.
— Em outros assuntos também. Pedi desculpas ao Billie por não ter
sido uma verdadeira dama e ele me assegurou que me portei muito bem,
mas barmen sempre dizem isso, não é? Queria agradecer a vocês por se
preocuparem com a minha segurança. — Fez uma pausa. — Nós não…?
— Não.
Um suspiro.
— Bem, fico feliz com isso, mas somente porque detestaria não me
lembrar. Espero não ter me comportado muito mal, Matthew.
— Você se comportou perfeitamente bem.
— Eu não me comportei bem. Disso eu me lembro. Matthew, falei
coisas duras sobre Tommy. Difamei-o ao máximo, espero que você saiba
que aquilo era a bebida falando.
— Soube disso o tempo todo.
— Ele me trata bem, sabe. É um homem bom. Tem seus defeitos. É
forte, mas tem suas fraquezas.
Uma vez, no velório de um colega policial, ouvi uma irlandesa falar
assim da bebida: “Claro, é a fraqueza de um homem forte”.
— Ele gosta de mim — Carolyn continuou. — Não leve a sério nada
do que falei antes.
Disse-lhe que nunca duvidara do afeto que Tommy sentia por ela, que
eu mesmo não me lembrava muito bem do que ela dissera ou deixara de
dizer, que também bebera muito naquela noite.
No domingo à noite fui até o Miss Kitty's. Chovia, mas não muito.
Primeiro parei por uns instantes no Armstrong's e encontrei lá o
mesmo ambiente típico das noites de domingo, que depois notei no Miss
Kitty's. Um bando de clientes habituais e de pessoas das redondezas
curtindo o estado de espírito oposto ao Graças a Deus é Sexta-Feira. Da
jukebox vinha a voz de uma garota cantando sobre seus novos patins. Sua
voz parecia deslizar por entre as notas e encontrar sons fora da escala.
Não conhecia o barman. Quando perguntei pelo Skip, ele apontou para
o escritório, nos fundos.
Skip estava lá, assim como seu sócio. John Kasabian tinha um rosto
redondo e usava óculos com armação metálica e lentes também redondas,
que aumentavam seus olhos fundos e negros. Tinha a mesma idade que
Skip, ou quase, mas parecia mais moço, um colegial com ar severo. Exibia
tatuagens em ambos os braços e não parecia, em absoluto, ser alguém que
se deixasse tatuar.
Uma das tatuagens era uma reprodução convencional, apesar de
espalhafatosa, de uma cobra enrolada em torno de uma adaga. A cobra
estava pronta a dar o bote, e da ponta de sua língua pingava sangue. A
outra era simples, até de bom gosto: uma pulseira em forma de corrente
que envolvia seu pulso direito. “Se ao menos eu a tivesse feito no outro
braço, o relógio a cobriria”, tinha dito uma vez.
Não sei como se sentia, de verdade, a respeito das tatuagens. Simulava
um certo desdém por elas, desprezo pelo jovem que tinha se deixado
marcar dessa maneira, e às vezes parecia ter mesmo vergonha delas. Em
outras ocasiões, eu percebia que se orgulhava delas.
Não o conhecia muito bem. Sua personalidade era menos expansiva do
que a de Skip. Não gostava de fazer a ronda dos bares, trabalhava no turno
da tarde e mais cedo fazia as compras. E não bebia como seu sócio.
Gostava de cerveja, mas não ia com tanta sede ao pote quanto Skip.
— Matt — me cumprimentou e apontou para uma cadeira. — Estou
contente por você nos ajudar com essa história.
— O que eu puder fazer…
— É amanhã à noite — Skip falou. — Teremos que estar nesta sala, às
oito em ponto, quando o telefone vai tocar.
— E?
— Receberemos instruções. Devo estar com um carro a postos. Isso já
faz parte das instruções.
— Você tem carro?
— Tenho, e não é problema estar com ele a postos.
— John tem carro?
— Posso tirá-lo da garagem. Você acha que vamos precisar de dois
carros?
— Não sei. Ele disse para estarem com um carro pronto e suponho que
tenha dito para estarem com o dinheiro pronto também.
— É, parece estranho, mas ele disse isso mesmo.
— Mas não deu nenhuma pista do lugar para onde ele quer que vocês
vão.
— Nenhuma. Pensei um pouco.
— O que me preocupa — comecei.
— É cair numa armadilha.
— Isso mesmo.
— Também já pensei nisso. É como estar na linha de tiro, você está lá
e vem alguém e, pimba!, Você já era. Já é péssimo pagar resgate, mas
quem é que sabe se vamos ao menos sair dessa? Pode resultar num
sequestro e eles podem acabar com a gente enquanto estão com a mão na
massa.
— Por que fariam isso?
— Não sei. “Os mortos não falam.” Não é isso que dizem?
— Talvez tentem, mas assassinatos trazem complicações. — Estava
tentando me concentrar, mas não conseguia pensar com a clareza
necessária. Perguntei se podia pedir uma cerveja.
— Por Deus, onde estão os meus modos? O que é que você quer,
bourbon, uma xícara de café?
— Só uma cerveja.
Skip foi buscá-la. Enquanto isso, seu sócio falou:
— Isso é maluquice. É irreal, sabe o que quero dizer? Livros roubados,
extorsão, vozes ao telefone. Não parece verdade.
— Também acho.
— A quantia não parece ser real. Não consigo encontrar uma conexão.
Os números…
Skip trouxe uma garrafa de Carlsberg e um copo em forma de sino.
Tomei um gole e franzi o cenho como quem está imerso em pensamentos.
Skip acendeu um cigarro, ofereceu-me o maço, depois disse:
— Não, claro que você não quer, você não fuma — e tornou a colocar
o maço no bolso.
— Não deve ser um sequestro — falei. — Mas há uma hipótese de
poder ser.
— Como assim?
— Se eles não estiverem com os livros.
— Claro que eles têm os livros. Os livros sumiram e há essa voz ao
telefone.
— Suponha que alguém não tenha os livros, mas saiba que eles
sumiram. Se não tiver que provar que está com eles, pode arrancar uns
dólares de vocês.
— Uns dólares — Kasabian repetiu.
— Então, quem é que está com os livros? Os Federais? — Skip
perguntou. — Você acha que eles podem estar com os livros todo esse
tempo, que só estão preparando o caso, e nesse meio-tempo estamos
pagando um resgate a alguém que não tem porra nenhuma? — Ficou em
pé, contornou a escrivaninha. — Amo essa ideia. Amo tanto que gostaria
de me casar com ela e ter filhinhos. Deus meu…
— É só uma possibilidade, mas acho que devemos nos precaver.
— Como? Está tudo armado para amanhã.
— Quando ele telefonar, faça com que leia uma página dos livros.
Ele ficou me olhando.
— Você pensou isso neste momento? Agora mesmo? Ninguém se
mexa.
Kasabian perguntou-lhe aonde estava indo.
— Pegar mais duas dessas Carlbergs. A maldita cerveja estimula o
raciocínio. Deveriam usar isso na publicidade deles.
Trouxe duas garrafas. Sentou-se na borda da escrivaninha balançando
as pernas, bebendo sua cerveja do gargalo. Kasabian continuou na cadeira,
tentando retirar o rótulo de sua garrafa. Ele não tinha nenhuma pressa em
beber. Estávamos em nosso conselho de guerra, traçando os planos
possíveis. John e Skip planejando, e eu também, claro.
— Achei que o Bobby ia aparecer — falou Skip.
— O Ruslander?
— Ele é meu melhor amigo, sabe o que está acontecendo. Não sei se
ele ia poder fazer alguma coisa se a merda batesse no ventilador, mas
quem pode? Vou armado, mas se for uma cilada eles com certeza atirarão
primeiro, vai ser de grande valia eu levar um revólver… Você tem alguém
que queira levar com a gente?
Kasabian sacudiu a cabeça:
— Pensei em meu irmão. Foi a primeira pessoa em quem pensei, mas
o Zeke precisa dessa merda para quê?
— E alguém precisa? Matt, tem alguém que você queira levar?
— Não.
— Estava pensando em Billie Keegan. O que é que você acha?
— Ele é boa companhia.
— Claro que é. Mas, pensando bem, quem é que precisa de boa
companhia? O que precisamos é de artilharia pesada e apoio aéreo. Marcar
o local da batalha e posicionar uma barragem de morteiros. John, conte ao
Matt sobre as pás com o morteiro.
— Ora — Kasabian resmungou.
— Conte.
— Foi uma coisa que eu vi.
— Uma coisa que ele viu. Escute só.
— Foi mais ou menos em, bem, não importa quando, mas há um mês
ou pouco mais. Estava na casa da minha namorada, ela mora no West End,
na rua oitenta e alguma coisa, e eu tinha prometido que ia passear com o
cachorro dela. Saio do prédio e do outro lado da rua, em diagonal, vejo
esses três negros.
— Aí ele voltou e entrou de novo no prédio.
— Não, eles nem me olharam. Usavam uma espécie de jaqueta militar
e um deles tinha um quepe. Pareciam soldados.
— Conte o que eles fizeram.
— Bem, é duro de acreditar que vi isso. — Tirou os óculos, massageou
o osso do nariz. — Olharam em volta, me viram, mas concluíram que eu
não lhes causaria problemas.
— Perspicazes conhecedores de tipos humanos — disse Skip.
— Então montam um morteiro, como se já tivessem treinado aquilo
mil vezes, um deles carrega a munição, atiram em curva para dentro do
Hudson, um tiro certeiro e fácil, estavam na esquina e podiam ver o rio
direitinho, todos nós podíamos, mas eles continuaram me ignorando, em
silêncio se congratulam, desmontam o morteiro, empacotam-no e saem
andando juntos.
— Meu Deus! — falei.
— Aconteceu tão depressa e tão discretamente que fiquei imaginando
se não sonhara. Mas aconteceu.
— O barulho foi grande?
— Não muito. Ouvi aquela espécie de zunido que o morteiro faz
quando atira, e, se houve uma explosão quando a munição atingiu a água,
eu não ouvi.
— Provavelmente um tiro de festim — Skip falou. — Com certeza
estavam testando o mecanismo de ignição, checando a trajetória.
— Sim, mas para quê?
— Sei lá. Você nunca sabe quando é que vai necessitar de um morteiro
nesta cidade. — Ele inclinou a garrafa, bebeu um bom gole e começou a
bater com os calcanhares na mesa. — Eu não sei — disse —, estou
bebendo esse troço, mas não estou pensando melhor do que antes. Matt,
vamos falar de dinheiro.
Pensei que estivesse se referindo ao resgate. Mas falava de dinheiro
para mim e fiquei sem saber o que dizer. Não sabia o que cobrar, disse
alguma coisa sobre estar ajudando um amigo.
— E daí? É disso que você vive, não é? De fazer favores a amigos?
— Claro, mas…
— Você está nos prestando um favor. Kasabian e eu não sabemos o que
fazer. Estou certo, John?
— Completamente.
— Não vou dar nenhum dinheiro ao Bobby, ele não aceitaria, e se
Keegan vier também não será pelo dinheiro. Mas você é um profissional e
um profissional é pago. Tillary está pagando, não está?
— Há uma diferença.
— Qual é a diferença?
— Você é meu amigo.
— E ele não é?
— Não do mesmo jeito. Na verdade, gosto cada vez menos dele. Ele
é…
— Um babaca. Isso não se discute. Mas não faz diferença. — Abriu
uma gaveta, contou umas notas, dobrou-as e estendeu-as para mim. —
Aqui tem vinte e cinco. Diga se acha pouco.
— Não sei. Vinte e cinco não parece muito, mas…
— São vinte e cinco de cem, seu burro. — Todos começamos a rir. —
“Vinte e cinco não parece muito.” Johnny, por que é que tínhamos que
contratar um comediante? Sinceramente, Matt, está bem assim?
— Sinceramente, isso parece um pouco demais.
— Você sabe qual é o valor do resgate?
Sacudi a cabeça:
— Todos têm tido muito cuidado em não mencionar isso.
— Bem, não se fala de corda em casa de enforcado, não é? Estamos
pagando a esses veados cinquenta mil.
— Meu Deus! — falei.
— Esse nome já foi mencionado hoje — Kasabian falou. — Por acaso
é algum amigo seu? Se ele não tiver nada melhor para fazer amanhã à
noite, traga-o também.
14
Tentei dormir cedo. Fui para casa, deitei-me, e lá pelas quatro da
manhã vi que não ia conseguir. Tinha bourbon suficiente para apagar, mas
não era isso que queria. Também não queria estar de ressaca quando
lidássemos com os chantagistas.
Levantei-me, tentei ficar sentado, mas não conseguia parar quieto. Não
havia nada na televisão que tivesse vontade de assistir. Vesti-me e fui dar
uma volta, e já estava a meio do caminho quando percebi que meus pés me
levavam para o Morrissey's.
Um dos irmãos estava na porta do térreo. Deu-me um sorriso
simpático e me deixou subir. Lá em cima, outro irmão estava sentado num
banco, ao lado da porta de entrada. Sua mão direita estava escondida pelo
avental de açougueiro e eu já ouvira comentários de que andava armado.
Não ia lá desde que Tim Pat tinha me falado da recompensa que ele e seus
irmãos ofereciam, mas ouvira dizer que eles andavam se revezando na
guarda do bar e que qualquer um que atravessasse a porta estaria
enfrentando uma arma carregada. As opiniões variavam quanto ao tipo de
arma; ouvi várias versões, que iam de um revólver a uma pistola
automática ou a uma espingarda de caça com cano serrado. Para mim, o
sujeito tinha que ser doido para usar uma espingarda de caça, serrada ou
não, numa sala cheia de fregueses, mas ninguém atestara a sanidade
mental dos Morrissey.
Entrei, dei uma olhada no salão, e quando Tim Pat me viu fez um sinal
para que me aproximasse; ao me dirigir para onde ele estava, ouvi Skip
Devoe chamar meu nome, de uma mesa lá na frente, perto das janelas
completamente escurecidas. Estava com Bobby Ruslander. Fiz sinal de que
iria ter com eles dali a pouco. Bobby colocou a mão na boca e um som de
um apito de polícia atravessou a sala, cortando as conversas exatamente
como um tiro o faria. Skip e Bobby riram, todos perceberam que fora uma
brincadeira e não uma batida policial, e as conversas recomeçaram assim
que os clientes asseguraram a Bobby que ele era um babaca. Segui Tim Pat
até os fundos da sala, onde nos sentamos em lados opostos, numa mesa
que estava desocupada.
— Não nos vemos desde o dia em que conversamos. Você tem alguma
notícia?
Disse-lhe que não tinha nada para contar.
— Vim apenas tomar um trago.
— E não ouviu nada?
— Nada. Andei por aí, conversei com algumas pessoas. Se houvesse
alguma coisa no ar, certamente já saberíamos. Creio que foi algum tipo de
problema irlandês, Tim Pat.
— Um problema irlandês.
— Político.
— Se fosse isso, já teríamos ouvido falar no assunto. Algum fanfarrão
já teria deixado escapar alguma coisa. — Alisava a barba com as pontas
dos dedos. — Sabiam direitinho onde procurar o dinheiro. Levaram até
aqueles poucos dólares da jarra do Norad.
— Foi por isso que pensei… Tim Pat me interrompeu:
— Se fossem os Proddies já teríamos ouvido comentários. Ou se fosse
de alguma de nossas facções. — Sorriu sem nenhum humor. — Temos
nossos desacordos partidários, sabe. A causa tem mais de uma voz falando
por ela.
— Dizem que sim.
— Se fosse “um problema irlandês” — falou, destacando bem as
palavras —, outros incidentes teriam acontecido. Mas só houve esse.
— Que vocês saibam.
— Sim, que a gente saiba.
Levantei-me e fui até a mesa de Skip e Bobby. Bobby usava uma
camiseta cinza, com as mangas cortadas. Pendurado no pescoço, um apito
de plástico azul num cordão feito de tiras de plástico trançadas, também
azuis, como aqueles que os meninos fazem nos acampamentos de verão.
— O ator está fazendo laboratório para o papel — Skip me disse,
apontando com o polegar para Bobby.
— É?
— Fui chamado para gravar um comercial. Serei o juiz de um jogo de
basquete, vou estar com umas crianças no playground. São todos mais
altos que eu, é importante para o tema.
— Todo mundo é mais alto que você. O que é que eles estão querendo
vender? Se for desodorante, é melhor você usar outra camiseta.
— Fraternidade.
— Fraternidade?
— Garotos negros, garotos brancos, garotos latinos, todos
fraternalmente unidos ao tentarem alcançar o maldito aro. É qualquer
coisa de utilidade pública, vão exibir nos trechos mais calmos do
programa de Joe Franklin.
— Você está sendo pago para isso? — Skip perguntou.
— Claro que sim, merda. Creio que as agências doam seu tempo, e as
TVS não cobram pela veiculação. Mas o talento é pago.
— O talento — Skip falou.
— Le talent c'est moi — disse Bobby.
Pedi um drinque. Skip e Bobby já estavam servidos. Skip acendeu um
cigarro e a fumaça ficou suspensa no ar. Meu drinque chegou e tomei um
gole.
— Pensei que você fosse dormir cedo — Skip comentou. Disse-lhe que
não tinha conseguido dormir. — Por causa de amanhã?
Sacudi a cabeça:
— Ainda não estava cansado. Só desassossegado.
— Fico assim também. Ei, ator. A que horas é a sua gravação amanhã?
— Dizem que vai ser às duas.
— Dizem?
— Você pode chegar lá e esperar muito. Devo estar lá às duas.
— Será que terminam a tempo de você nos dar uma mão?
— Claro que sim. Esses janotas das agências têm que pegar o trem das
cinco e quarenta e oito para Scarsdale. Tomam uns dois drinques no vagão
restaurante, depois vão para casa saber como é que foi o dia do Jason e da
Tracy na escola.
— Jason e Tracy estão em férias de verão, seu idiota.
— Então têm que ir para casa ler o cartão-postal que eles enviaram do
acampamento. Vão para esses acampamentos classudos, no Maine, os
postais já foram escritos pelos funcionários, tudo que as crianças precisam
fazer é assiná-los.
Meus meninos iriam para um acampamento, dentro de algumas
semanas. Um deles tinha trançado para mim um cordão como o de Bobby.
Estava guardado em algum lugar, numa gaveta, sei lá. Ou será que ainda
estava em Syosset? Se eu fosse um bom pai, pensei, usaria o maldito
cordão, com apito e tudo.
Skip estava dizendo a Bobby que ele precisava de seu sono da beleza.
— Tenho que parecer um atleta — foi a resposta de Bobby.
— Se não tirarmos você daqui, vai parecer mais é com um embrulho.
— Olhou para seu cigarro, jogou-o para dentro do resto de seu drinque. —
Não quero vê-lo fazendo isso, hein? — me disse. — Não quero ver
nenhum dos dois fazer isso. Hábito nojento.
— Dois carros. Eles só sabem que Matt e eu vamos, portanto nós dois
iremos no meu carro. John, você leva Bobby e Billie. O que é que você
acha, Matt, vai ter alguém nos seguindo?
— Pode ter alguém observando nossa saída. John, por que vocês três
não vão na frente, agora? Seu carro está perto?
— Está estacionado a duas quadras daqui.
— Vocês três podem sair primeiro. Bobby, você e Bill vão para o carro
e esperam lá. É melhor que os três não caminhem juntos, para o caso de ter
alguém de olho na porta. Vocês dois vão primeiro, John espera uns
minutos e depois vai encontrá-lo no carro.
— E aí seguimos para a, como é mesmo o nome, Emmons Avenue?
— Fica em Sheepshead Bay. Você sabe onde é isso?
— Mais ou menos. Sei que é no Brooklyn, onde Judas perdeu as botas.
Já fui pescar por lá, mas outras pessoas dirigiam e não prestei muita
atenção.
— Você pode pegar a marginal, a Shore Parkway.
— Está bem.
— Saia da Shore na, espere aí, na Ocean Avenue. Com certeza verá
placas sinalizadoras.
— Espere. Acho que tenho um mapa por aí. Outro dia mesmo vi um —
disse Skip.
Ele encontrou um mapa de ruas do Brooklyn e nós três o examinamos.
Bobby Ruslander debruçou-se sobre o ombro de Kasabian. Billie Keegan
pegou uma cerveja que alguém tinha deixado de lado, tomou um gole e fez
uma careta. Estudamos uma rota e Skip disse a John que levasse o mapa.
— Nunca sei dobrar essas coisas direito.
— E quem é que se importa de que maneira você dobra essa droga? —
Pegou de volta o mapa, começou a rasgá-lo bem nas linhas marcadas pelas
dobras e entregou a Kasabian um pedaço de uns cinquenta centímetros
quadrados, deixando o resto cair no chão. — Isso aqui é Sheepshead Bay
— disse. — Você quer saber como sai da marginal, não é? Para que é que
você precisa da porra do resto do Brooklyn?
— Meu Deus.
— Desculpe, Johnny. Estou muito nervoso. Johnny, você está com uma
arma?
— Não quero arma nenhuma.
Skip abriu a gaveta da escrivaninha, colocou uma pistola automática
de aço em cima da mesa.
— Nós a guardamos atrás do balcão — me explicou —, para o caso de
querermos estourar os miolos ao fazer as contas no fim do dia. Você não a
quer, John? — Kasabian sacudiu a cabeça. — Matt?
— Não acho que vá precisar.
— Você não quer levá-la?
— Prefiro não levar.
Ele sopesou a arma, ficou procurando onde enfiá-la. Era uma 45,
parecia do tipo fornecido aos oficiais do Exército. Uma arma grandalhona
e pesada, daquelas chamadas de indulgentes — seu poder de fazer o
inimigo parar compensava uma péssima pontaria, pois podia derrubar um
homem apenas com um ferimento no ombro.
— Pesa uma tonelada essa maldita — Skip colocou-a dentro do cós da
calça jeans e não gostou do efeito. Puxou a camisa para fora da calça,
deixou-a cair por sobre a arma. Não era o tipo de camisa que se usa por
fora da calça e ficou esquisito. — Droga — queixou-se —, onde vou levar
esse troço?
— Você acaba descobrindo — Kasabian lhe disse. — Enquanto isso, é
melhor irmos andando, não é, Matt?
Concordei com ele. Repassamos tudo uma vez mais, enquanto Keegan
e Ruslander seguiam para o carro. Eles iriam até Sheepshead Bay e
estacionariam do outro lado da rua, mas não bem em frente ao restaurante.
Esperariam ali, com o motor desligado e as luzes apagadas, de olho no
lugar e na gente, quando chegássemos.
— Não tentem fazer nada — eu lhe disse. — Se virem algo suspeito,
só observem. Anotem placas, coisas assim.
— Devo tentar segui-los?
— Como é que você ia saber quem está seguindo? — Ele encolheu os
ombros. — Toquem de ouvido — falei. — Fiquem por perto, isso sim, e
mantenham os olhos abertos.
— Tudo bem.
Depois que ele saiu, Skip colocou uma maleta em cima da mesa e a
abriu. Estava cheia de montes de notas presas com elástico. — Essa é a
cara de cinquenta mil dólares — falou. — Não parece grande coisa, não é?
— Só papel.
— Mexe com você olhar para isso?
— Nem um pouco.
— A mim também não. — Colocou a .45 em cima do dinheiro, tentou
fechar a maleta. Não fechava direito. Tornou a arrumar as notas, fazendo
um ninho para a arma que ficou perfeito.
— Só até chegarmos ao carro. Não quero ficar andando na rua como
Gary Cooper em Matar ou morrer. — Enfiou a camisa para dentro da
calça. No caminho, falou: — Pensei que as pessoas fossem ficar me
encarando. Estou vestido como um mecânico, carregando uma maleta
típica de banqueiro. Malditos nova-iorquinos. Podia sair fantasiado de
gorila e ninguém ia me dar a mínima. Quero tirar a arma de dentro da
maleta.
— Tudo bem.
— Já vai ser muito ruim se eles puxarem uma arma e atirarem na
gente. Pior seria fazerem isso com a minha arma.
O carro dele ficava numa garagem na Rua 55. Deu um dólar de gorjeta
ao atendente, saímos e ele dobrou a esquina, parando em frente a um
hidrante. Abriu a maleta, retirou a pistola, examinou o pente, depois
colocou a arma no assento entre nós dois; pensou melhor e resolveu enfiá-
la no espaço entre o assento e o encosto.
Seu carro era um Chevrolet Impala, modelo de uns dois anos antes,
longo e baixo, de suspensão macia. Branco, com o forro bege e branco,
parecia não ter sido lavado desde que saíra de Detroit. O cinzeiro estava
entupido de pontas de cigarros e o chão cheio de lixo.
— O carro é igual à minha vida — disse, quando paramos num sinal na
Décima Avenida. — Uma bagunça confortável. O que é que vamos fazer,
seguir o mesmo caminho que indicamos para Kasabian?
— Não.
— Você conhece um caminho melhor?
— Melhor não, diferente. Agora pegamos a West Side Drive, mas
depois, em vez da marginal, vamos por ruas internas do Brooklyn.
— Mas vai ser mais demorado, não vai?
— Provavelmente. Mas é melhor deixá-los chegar antes da gente.
— Você é quem sabe. Algum motivo especial?
— É mais fácil para perceber se estão nos seguindo.
— Você acha que estão?
— Em princípio não vejo nenhuma razão, já que eles sabem para onde
vamos. Mas não há como prever se estamos lidando com um homem só ou
com um exército.
— Tem razão.
— Vire à direita na próxima esquina e na altura da rua 56 pegue a West
Side Drive.
— Está bem. Matt, você quer alguma coisa?
— O quê?
— Tomar alguma coisa? Veja no porta-luvas, deve ter alguma bebida.
Havia uma garrafa de meio litro de Black & White. Na verdade, não
era de meio litro, era menor. Lembro-me da garrafa, de vidro verde,
ligeiramente curva, parecida com um cantil, daqueles que ficam
confortáveis no bolso de trás da calça.
— Você eu não sei — ele disse —, mas eu estou uma pilha. Não quero
ficar relaxado, mas talvez fizesse bem tomar alguma coisa para acalmar
um pouco.
— Só um golinho — concordei, e abri a garrafa.
Fomos pela West Side Drive até a Rua Canal, cruzamos o rio em
direção ao Brooklyn pela ponte Manhattan, depois seguimos pela Flatbush
Avenue até seu cruzamento com a Ocean Avenue. Pegamos uma série de
sinais vermelhos e notei que ele de vez em quando olhava para o porta-
luvas. Mas não falou nada, e assim tomamos apenas aquele gole, deixando
a garrafa de Black & White onde estava.
Ele dirigia com o vidro inteiramente abaixado e com o braço esquerdo
para fora da janela, a mão apoiada no teto do carro e os dedos de vez em
quando tamborilando no metal. Às vezes conversávamos e às vezes
rodávamos em silêncio.
— Matt, quero saber quem armou isso — falou de repente. — Deve ser
gente de dentro, você não acha? Alguém viu essa oportunidade e se
aproveitou, alguém que deu uma olhada nos livros e compreendeu logo o
que estava vendo. Alguém que já trabalhou para mim, só não sei como fez
para entrar de novo no bar. Se demiti algum idiota, um barman bêbado ou
uma garçonete estabanada, como é que eles conseguiram penetrar no meu
escritório e sair rapidinho com os livros? Você pode explicar?
— É fácil entrar no seu escritório, Skip. Qualquer um que conheça a
planta do bar pode se dirigir ao banheiro e entrar no escritório sem chamar
a atenção de ninguém.
— Acho que sim. Tive é sorte de que não resolvessem urinar na gaveta
de cima, enquanto estavam lá dentro. — Tirou um cigarro do maço que
estava no bolso da camisa, bateu com o cigarro no volante — Devo cinco
mil ao Johnny.
— Como assim?
— O resgate. Ele entrou com trinta e eu com vinte. Seu cofre estava
em melhores condições que o meu Pode até ser que ele tenha mais
cinquenta guardados, ou talvez os trinta fossem o suficiente para sua
segurança — Freou, deixando um táxi pirata trocar de pista na nossa frente
— Olha esse infeliz — disse, sem rancor — Será que as pessoas dirigem
assim em qualquer lugar ou é só aqui no Brooklyn? Juro que as pessoas
começam a dirigir de maneira esquisita assim que a gente atravessa o rio.
Do que é que eu estava falando?
— Do dinheiro que Kasabian adiantou.
— É. Ele vai se reembolsar aos poucos, a cada semana, até cobrir a
diferença de cinco mil Matt, eu tinha vinte mil dólares num cofre de banco
e agora eles estão empacotados, prontos para serem entregues, e dentro de
alguns minutos não serão mais meus e isso não parece verdade Você me
compreende?
— Acho que sim.
— Não é só papel. Dinheiro é mais do que papel, se fosse só isso as
pessoas não enlouqueceriam por ele Mas não era real quando estava bem
guardado no banco e não será real quando desaparecer Preciso saber quem
está fazendo isso comigo, Matt.
— Talvez a gente descubra.
— Preciso mesmo saber Confio no Kasabian, sabe? Nesse tipo de
negócio, você está morto se não confiar no parceiro. Dois sócios num bar,
o tempo todo um vigiando o outro, em seis meses vão estar loucos de
pedra. Nunca funcionaria, o lugar teria o tipo de vibração que nem um
mendigo do Bowery toleraria. Ainda por cima, você pode vigiar seu sócio
vinte e três horas por dia e, na única hora em que você o deixa só, ele vai
deixar você nu Kasabian é quem faz as compras, pelo amor de Deus. Você
tem ideia de quanto se pode roubar quando se faz as compras para um
boteco?
— Aonde você quer chegar, Skip?
— O negócio é o seguinte, há uma voz dentro da minha cabeça dizendo
que essa é uma maneira genial de o Johnny me livrar de vinte mil, e isso
não faz o menor sentido, Matt. Ele teria que dividir com um comparsa,
tem que pôr um bocado do próprio dinheiro em jogo, e por que iria
escolher essa maneira de me roubar’ Fora o fato de que confio nele, não
tenho nenhum motivo para não confiar nele, sempre foi um cara decente
comigo, se quisesse me arrebentar haveria mil maneiras mais fáceis de
fazê-lo e eu nem ia saber o que estava acontecendo. Mas o diabo é que a
voz continua a buzinar na minha cabeça e aposto como ele também anda
ouvindo alguma coisa, porque já o peguei me olhando esquisito e,
provavelmente, também tenho olhado para ele do mesmo modo, e quem é
que precisa dessa merda? Quer dizer, isso ainda é pior do que entregar
todo esse dinheiro. Isso é o tipo de troço que fecha um negócio do dia para
a noite.
— Acho que a próxima é a Ocean Avenue.
— Já? E pensar que estamos dirigindo há apenas seis dias e seis noites
Dobro à esquerda na Ocean?
— Não, à direita.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Sempre me perco no Brooklyn. Juro que este lugar foi colonizado
pelas Dez Tribos Perdidas. Não conseguiram achar o caminho de volta,
tomaram posse do lugar e ergueram suas casas. Colocaram esgoto,
instalaram eletricidade. Todos os confortos do lar.
Os restaurantes da Emmons Avenue eram especializados em peixes e
crustáceos Um deles, o Lundy's, era um lugar grande como um celeiro,
onde gourmets sérios se enfiavam em mesas enormes para comer grandes
quantidades de frutos do mar. Nós estávamos indo para um outro, dois
quarteirões acima, numa esquina. Carlo's Ciam House era o nome do lugar
e um luminoso em neon vermelho piscava mostrando um molusco abrindo
e fechando sua concha.
Kasabian estacionara do outro lado da rua, a uma pequena distância do
restaurante. Paramos ao lado deles. Bobby estava no banco do passageiro.
Billie Keegan ia sozinho no banco de trás. Kasabian, claro, no banco do
motorista.
— Vocês demoraram um bocado. Se há qualquer coisa lá dentro, daqui
não dá para ver — Bobby disse.
Skip assentiu com a cabeça. Dirigimos um pouco mais para a frente e
ele estacionou ao lado de um hidrante.
— Eles não guincham os carros aqui. Guincham?
— Acho que não.
— Era só o que faltava. — Desligou o motor e nos entreolhamos. Seus
olhos se dirigiram para o porta-luvas.
— Matt, você está vendo o Keegan? No banco de trás?
— Estou.
— Pode apostar que ele bebeu uns goles desde que saíram de lá.
— Provavelmente.
— Nós vamos esperar, não é? Para comemorar depois.
— Claro.
Ele enfiou o revólver no cós da calça e deixou a camisa solta, cobrindo
a arma.
— Deve ser moda por aqui, as camisas ficarem assim — disse, abrindo
a porta e puxando a maleta. — Você está nervoso, Matt?
— Um pouco.
— Ótimo. Não quero ser o único.
Atravessamos a rua larga e nos aproximamos do restaurante. A noite
estava agradável, podia-se sentir o cheiro da água salgada. Por um instante
pensei se não era melhor a arma estar comigo. Fiquei pensando se ele seria
capaz de usar a pistola ou se a carregava apenas para se sentir mais seguro.
Será que ele sabia atirar? Servira no Exército, mas isso não significava que
fosse competente com uma arma na mão.
Eu já fora bom nisso. Excetuando os ricochetes, naturalmente.
— Olhe o luminoso. O molusco se abrindo e fechando, é obsceno.
“Vem cá, benzinho, deixe eu ver você abrir sua concha.” O lugar parece
vazio.
— Hoje é segunda-feira e já está ficando tarde.
— Com certeza o meio da manhã já é tarde por aqui. As armas pesam
uma tonelada, você já reparou? Parece que a minha calça vai cair até os
joelhos.
— Quer deixar a arma no carro?
— Você está brincando? “Esta é a sua arma, soldado. Pode vir a salvar
sua vida.” Estou bem, Matt. Só meio nervoso, só isso.
— Tudo bem.
Ele chegou primeiro e abriu a porta para mim. O lugar era nada mais,
nada menos, do que uma lanchonete metida a besta, toda de fórmica e aço
inoxidável, com um balcão comprido do lado esquerdo e reservados do
lado direito, e lá atrás algumas mesas. Quatro adolescentes estavam
sentados perto da entrada, comendo batatas fritas com as mãos, servindo-
se de um prato comunitário. Mais ao fundo, uma senhora de cabelos
grisalhos e com muitos anéis nos dedos lia um livro de capa dura, com a
encadernação típica das bibliotecas públicas.
O homem atrás do balcão era alto, gordo e completamente careca.
Acho que raspava a cabeça. Tinha a testa suada e a camisa encharcada. O
lugar era bem refrigerado, com o ar-condicionado a pleno vapor. No balcão
havia dois fregueses, um homem de ombros arredondados, com uma
camisa branca de mangas curtas, cara de contador fracassado, e uma
garota inexpressiva, com pernas pesadas e uma pele horrível Lá nos
fundos, uma garçonete fumava, com certeza era sua pausa para o
cigarrinho.
Sentamos no balcão e pedimos dois cafés. Alguém esquecera um Post,
edição vespertina, no tamborete ao lado. Skip o pegou e folheou.
Acendeu um cigarro, começou a fumar, olhando para a porta quase que
o tempo todo. Tomamos nossos cafés. Ele pegou um cardápio e examinou
o que oferecia.
— Servem milhões de coisas diferentes. Diga o que prefere,
provavelmente vai estar neste cardápio. O que é que me interessa? Não ia
conseguir comer nada.
Acendeu outro cigarro, colocou o maço em cima do balcão. Tirei um
para mim e o coloquei na boca. Ele levantou as sobrancelhas, mas não
disse nada, apenas me ofereceu fogo. Dei umas duas, três tragadas e
apaguei o cigarro.
Devo ter ouvido o telefone tocar, mas não registrei até a garçonete se
dirigir ao aparelho, atender e vir perguntar ao homem de ombros
arredondados se ele era Arthur Devoe. O homem ficou espantado com a
pergunta. Skip foi atender à chamada e eu o segui.
Ele pegou o fone, ouviu por um instante, depois começou a fazer sinais
de que queria lápis e papel. Peguei o bloco e anotei o que ele repetia para
mim.
Gargalhadas estridentes, vindas lá da frente do restaurante, chegaram
até nós. Os garotos estavam jogando batatas fritas uns nos outros. O
balconista inclinou seu corpanzil por cima da fórmica, dizendo alguma
coisa para eles. Desviei os olhos e me concentrei em anotar o que Skip
estava falando.
16
— Dezoito com Ovington. Você sabe onde fica? — perguntou Skip.
— Acho que sim. Conheço a Ovington, atravessa Bay Ridge, mas a
Décima Oitava Avenida fica para o lado oeste. Creio que isso a coloca na
altura de Bensonhurst, um pouquinho ao sul do cemitério Washington.
— Como é que pode alguém conhecer essa droga toda? Você falou
Décima Oitava Avenida? Existem dezoito avenidas?
— Acho que são vinte e oito, mas a Vigésima Oitava só tem dois
quarteirões. Vai de Cropsey a Stillwell.
— Onde é isso?
— Em Coney Island. Não é muito longe de onde estamos.
Ele sacudiu a mão, como se quisesse se livrar daquele distrito e de
todas as suas ruas desconhecidas.
— Você sabe onde estamos indo — disse. — E pegaremos o mapa com
o Kasabian. Droga! Será que isso vai estar na parte do mapa que está com
eles?
— Provavelmente não.
— Droga! Por que fui rasgar o mapa? Deus do céu. A essa altura já
tínhamos saído do restaurante. Estávamos na calçada, com o neon
piscando nas nossas costas.
— Matt, estou fora do meu elemento. Por que nos fizeram vir aqui,
depois nos telefonaram, para nos mandar para a igreja?
— Para poder dar uma olhada na gente, imagino. E interromper nossas
linhas de comunicação.
— Você acha que tem alguém nos olhando agora? Como é que vou
dizer ao Johnny para nos seguir? Não é isso que eles devem fazer, nos
seguir?
— Era melhor que fossem para casa.
— Por quê?
— Porque vão ser vistos nos seguindo ou quando formos contar a eles
o que está acontecendo.
— Você acha que estamos sendo vigiados?
— É possível. É um dos motivos para eles agirem como estão agindo.
— Merda. Não posso mandar o Johnny embora. Se eu estou
desconfiado dele, ele com certeza está desconfiado de mim e não posso…
Que tal se formos no mesmo carro?
— Seria melhor em dois carros.
— Você acabou de dizer que dois carros era pior.
— Vamos tentar desta maneira — falei, pegando seu braço para
conduzi-lo. Andamos não para o carro onde Kasabian e os outros nos
esperavam, mas direto para o Impala de Skip. Seguindo minhas instruções,
ele ligou o carro, piscou os faróis um par de vezes, dirigiu até a esquina,
virou à direita, avançou um quarteirão e estacionou.
Uns minutos depois o carro de Kasabian parou ao lado do nosso.
— Você estava certo — Skip me disse. Aos outros, falou: — Vocês são
mais espertos do que eu pensava. Recebemos um telefonema, estão nos
enviando a uma caça ao tesouro, só que o tesouro está conosco. Devemos
ir até uma igreja numa esquina na Décima Oitava.
— Esquina com a Ovington — expliquei. Ninguém sabia onde ficava
essa rua.
— Sigam-nos — falei. — Fiquem meia quadra ou uma quadra inteira
atrás da gente e, quando estacionarmos, deem uma volta no quarteirão e
estacionem atrás da gente.
— E se nós nos perdermos? — Bobby quis saber.
— Voltem para casa.
— Como?
— Se vocês nos seguirem, não vão se perder.
— Acho que fiquei mais nervoso agora do que quando estava no porão
da igreja — Skip comentou, depois que já nos afastáramos uns bons
quarteirões. — Eu ali de pé, com um saco de roupa suja no ombro,
parecendo que tinha acabado de roubar alguma coisa, e você com uma
quarenta e cinco no cinto. Se eles tivessem visto a arma, nós estávamos
fritos.
— Esqueci que estava com ela.
— E tínhamos acabado de saltar de um carro cheio de bêbados. Um
ponto a nosso favor.
— Keegan era o único bêbado.
— E foi ele o brilhante. Você pode me explicar, pode? Falando em
bebida…
Abri o porta-luvas e destampei a garrafa. Skip tomou um bom gole,
depois passou a garrafa para mim. Ficamos assim, um passando a bebida
para o outro, até esvaziarmos a garrafa, quando Skip disse:
— Maldito Brooklyn — e jogou a garrafa pela janela. Preferiria que
ele não tivesse feito isso — estávamos com bafo de bebida, com uma arma
sem licença e sem uma explicação plausível para nossa presença nas
redondezas —, mas fiquei calado.
— Eles foram muito profissionais — Skip comentou. — Os disfarces,
tudo. Por que será que ele atirou na lâmpada?
— Para nos atrasar.
— Por um momento pensei que fosse atirar em mim. Matt?
— Quê?
— Por que você não atirou nele?
— Quando ele estava com a arma voltada para você? Podia ter atirado,
se tivesse sentido que ele ia atirar. Tinha a arma apontada para ele. Mas do
jeito que as coisas estavam, se atirasse nele, ele atiraria em você.
— Não, depois disso. Depois que ele atirou nas lâmpadas. Você ainda
estava com a arma apontada para ele. Continuou assim até ele sair.
Levei um tempo para responder. Então falei:
— Você decidiu pagar um resgate para livrar seus livros da Receita. O
que você acha que poderia acontecer se o associassem a um tiroteio numa
igreja em Bensonhurst?
— Nossa, eu não estou raciocinando.
— E dar um tiro nele não faria você recuperar seu dinheiro. Já estava
na rua com o outro sujeito.
— Sei disso. Não estou raciocinando bem. Sabe o que é, eu talvez
tivesse atirado nele. Não por ser a coisa certa a fazer, mas no calor do
momento.
— Bem, ninguém sabe o que vai fazer numa hora dessas.
Ele voltou com uma garrafa de Teacher's de meio litro, num saco de
papel pardo. Rompeu o selo, destampou a garrafa e, sem removê-la do
saco, tomou um gole e passou-a para mim. Eu a segurei por uns instantes,
depois bebi.
— Agora podemos ir.
— Onde?
— Para casa. De volta a Manhattan.
— Não temos que fazer meia-volta, começar uma novena ou coisa que
o valha?
— A igreja era ligada aos luteranos.
— E isso significa que podemos voltar a Manhattan?
— Isso mesmo.
Ele ligou o motor, tirou o carro da vaga. Estendeu a mão e eu lhe dei a
garrafa; depois de beber, tornou a passá-la para mim.
— Não quero meter o nariz onde não sou chamado, detetive Scudder,
mas…
— Mas do que se trata?
— Exatamente.
— Fico me sentindo bobo ao explicar. É sobre uma coisa que Tillary
mencionou alguns dias atrás. Não sei nem se é verdade, mas parece que a
coisa se passou numa igreja em Bensonhurst.
— Uma igreja católica.
— Teria que ser — respondi, e contei-lhe a história que Tillary me
contara, sobre os dois garotos que assaltaram a igreja da mãe do chefão da
máfia e o que supostamente lhes acontecera depois.
— Verdade? Será que isso aconteceu mesmo?
— Não sei. Nem Tommy. Essas histórias circulam.
— Pendurados em ganchos de açougue e esfolados vivos…
— Vai ver Tutto gosta disso. Eles o chamam de Dom, o Açougueiro.
Acho que ele tem interesses no mercado atacadista de carnes.
— Nossa. Se aquela era a sua igreja.
— A igreja de sua mãe.
— Tanto faz. Você vai ficar agarrado nessa garrafa até o vidro
derreter?
— Desculpe.
— Se aquela era a igreja dele, ou da mãe dele, ou qualquer coisa
assim…
— Eu não gostaria que ele soubesse que estivemos lá enquanto davam
tiros nela. Não é a mesma coisa que assaltar o local, mas pode ser que ele
se ofenda, sei lá. Quem sabe qual será sua reação?
— Meu Deus.
— Mas aquela era definitivamente uma igreja protestante e sua mãe
com certeza é católica. Mesmo que seja uma igreja católica, deve haver
umas quatro ou cinco igrejas católicas em Bensonhurst. Talvez até mais.
Não sei.
— Um dia desses teremos que contá-las. — Ele tragou profundamente,
tossiu e jogou o cigarro pela janela. — Por que alguém faria uma coisa
dessas?
— Você se refere ao…?
— Ao fato de pendurarem dois garotos e esfolá-los, é disso que estou
falando. Por que alguém faria isso com dois garotos, quando a única coisa
que fizeram foi roubar alguma porcaria de uma igreja?
— Não sei. Calculo qual o motivo de Tutto.
— Qual?
— Dar uma lição nos garotos. Ele ficou pensativo.
— Bem, aposto que funcionou. Aposto que esses merdinhas nunca
mais vão roubar uma igreja.
18
Quando chegamos em Manhattan a garrafa, de Teacher's estava vazia.
Eu quase não bebera. Skip ficou tomando uns goles até jogá-la, esvaziada,
no banco de trás Calculo que ele só as jogasse para fora da janela do outro
lado do rio.
Conversamos muito pouco depois de falarmos sobre Dom, o
Açougueiro. Ele já mostrava sinais da birita, via-se pelo modo como
dirigia Ultrapassou alguns sinais e entrou correndo demais numa curva,
mas não batemos em nada nem em ninguém. Nem nenhum guarda nos fez
parar. Naquele ano, na cidade de Nova York, para ser multado era preciso
que você atropelasse uma freira.
Quando estacionamos em frente ao Miss Kitty's, ele se debruçou sobre
a direção, apoiando os cotovelos.
— Bem, pelo menos o boteco ainda está aberto. Deixei um rapaz
tomando conta do bar hoje, com certeza ele nos limpou quase tanto quanto
os caras em Bensonhurst. Entre, quero guardar os livros.
No seu escritório, sugeri que ele os colocasse no cofre. Ele me olhou e
começou a girar o segredo do cofre.
— Só por esta noite — falou. — Amanhã esta merda vai para
diferentes incineradores. Não vai mais haver livros honestos. Só servem
para nos deixar com o flanco a descoberto.
Ele colocou os livros no cofre e começou a fechar a porta. Segurei seu
braço e disse:
— Talvez seja melhor guardar isso também — e entreguei-lhe a 45.
— Já tinha esquecido — disse. — Não guardamos isso no cofre. Você
vai dizer a um assaltante: “Desculpe, é só um minuto, mas vou apanhar a
arma no cofre para estourar os seus miolos”? Nós a guardamos atrás do
bar.
Tomou-a de mim e ficou procurando uma maneira discreta de levá-la
para o salão. Encontrou um saco de papel branco em cima da escrivaninha,
manchado pelos sanduíches e café que embrulhara, e guardou-a nele.
— Pronto. — Fechou o cofre, desfez o segredo, certificou-se de que a
porta estava bem trancada. — Perfeito. Agora, deixe eu pagar um drinque
para você.
Fomos para o salão e ele foi para trás do balcão e serviu-nos dois
drinques, do mesmo uísque que tomáramos no carro.
— Talvez você prefira bourbon. Não me lembrei disso, nem quando
comprei a garrafa.
— Está bem assim.
— Você tem certeza? — Foi guardar a arma em algum lugar atrás do
balcão. O barman que ele contratara para a noite se aproximou e pediu
para falar-lhe a sós, e eles se afastaram e conversaram por uns minutos.
Skip voltou, terminou seu drinque e disse que queria guardar o carro na
garagem antes que fosse guinchado, mas que voltaria rapidinho. Ou, se eu
quisesse, podia ir com ele.
— Não, obrigado. Acho que vou para casa.
— Vai dormir cedo hoje?
— Não é má ideia.
— Não. Bem, se você não estiver aqui quando eu voltar, nos vemos
amanhã.
Não fui direto para casa. Parei em alguns botecos primeiro. Não fui ao
Armstrong's. Não queria conversar. Também não queria ficar bêbado. Não
tenho bem certeza do que queria.
Quando saía do Polly's Cage, vi um carro que me pareceu o Buick de
Tommy, cruzando a Rua 57. Não vi bem a pessoa na direção. Segui o carro
e vi quando estacionou na metade do quarteirão seguinte. Quando o
motorista saltou, eu já estava perto o suficiente para reconhecer Tommy.
De blazer e gravata, com dois embrulhos nas mãos. Um, em forma de
leque, devia ser um ramo de flores.
Fiquei olhando ele entrar no edifício de Carolyn.
Por algum motivo fui para o outro lado da rua e fiquei olhando a janela
que calculei que fosse a dela. A luz estava acesa. Fiquei ali um bom
tempo, até a luz se apagar.
Fui a um telefone público, disquei 411. A telefonista me informou que
havia realmente uma Carolyn Cheatham naquele endereço, mas que o
número estava fora do catálogo. Telefonei outra vez e fui atendido por
outra telefonista. Dessa vez usei o método que os policiais usam para obter
números que não estão na lista. Consegui e anotei no meu bloco, na
mesma página do meu pobre desenho das orelhas. Eram, pensando bem,
orelhas comuns. Passariam desapercebidas no meio de muita gente.
Coloquei uma moeda no telefone e disquei o número dela. Tocou três
ou quatro vezes e ela atendeu. Não sei bem o que esperava. Não falei uma
palavra, ela disse alô outra vez e desligou o aparelho.
Sentia a tensão nas costas e nos ombros. Queria ir a algum lugar e me
meter numa boa briga. Queria bater em alguma coisa.
De onde teria vindo essa raiva? Queria subir, arrancá-lo de cima dela e
socar a cara dele, mas por quê? Poucos dias antes, tinha ficado com raiva
porque ele a negligenciava. Agora, ficava furioso porque ele estava com
ela.
Será que estava enciumado? Mas por quê? Não tinha nenhum interesse
nela.
Maluquice.
Voltei e olhei de novo para sua janela. A luz continuava apagada. Uma
ambulância do hospital Roosevelt voava pela Nona Avenida, a sirene
gemendo. De um carro esperando o sinal abrir vinha o som alto de um
rock. Depois o carro seguiu em frente, a sirene da ambulância enfraqueceu
com a distância e por um momento a cidade pareceu silenciosa. Logo, o
silêncio também sumiu, quando de novo me apercebi de todos os ruídos
que nunca desaparecem completamente.
Lembrei-me da canção que Keegan me fizera ouvir. Não dela toda. Não
conseguia lembrar direito da melodia, só recordava pedaços da letra. Algo
sobre uma noite de poesia e poses. Bem, podíamos nos referir a essa noite
assim. Sabendo que você está só quando a taverna sagrada fecha.
Comprei umas cervejas a caminho de casa.
19
O sexto distrito fica na Rua 10, Oeste, entre a Bleecker e a Hudson, no
Village. Há alguns anos, quando servi ali, ficava num prédio todo rococó,
mais para oeste, na rua Charles. Desde então aquele edifício foi
transformado em um condomínio de apartamentos e batizado de
Gendarme.
A nova delegacia fica num prédio feio, uma estrutura moderna que
jamais será convertida em apartamentos. Na terça-feira, um pouco antes
do meio-dia, estive lá e fui diretamente ao gabinete de Eddie Koehler. Não
precisava perguntar, sabia onde ficava.
Ele tirou os olhos do relatório que estava lendo e piscou para mim. —
O problema dessa porta é que qualquer um pode passar por ela — falou.
— Você está com ótima aparência, Eddie.
— Bem, você sabe. Vida saudável. Sente-se, Matt.
Sentei e conversamos um bocado. Éramos velhos conhecidos, Eddie e
eu. Mas, quando o papo furado acabou, ele disse:
— Por acaso você estava passando por aqui, não é?
— Lembrei-me de você e calculei que estivesse precisando de um
novo quepe.
— Com esse tempo?
— Talvez um chapéu panamá. A palha é bonita e protege contra o sol.
— Talvez um capacete bem resistente. Mas nesta vizinhança — falou,
imitando o sotaque local — algumas garotas poderiam soltar piadas sujas.
Estava com meu bloco na mão.
— Uma placa de carro — disse. — Pensei que você talvez pudesse
checá-la para mim.
— Quer que eu telefone para o departamento de trânsito?
— Primeiro cheque a lista de carros procurados.
— Qual é o problema, um atropelamento e fuga? Seu cliente quer
saber quem o atropelou e talvez receber um dinheirinho por fora, em vez
de registrar queixa?
— Você tem uma imaginação e tanto.
— Você tem o número de uma placa e devo checar primeiro na lista
dos procurados? Merda. Qual é o número?
Li para ele, que anotou e se levantou.
— Só um minuto.
Fiquei olhando meus desenhos enquanto ele foi telefonar. As orelhas
são realmente diferentes umas das outras. O importante é a gente aprender
a notar as diferenças.
Ele não demorou muito. Voltou e sentou pesadamente em sua cadeira
giratória. — Não está na lista — disse.
— Será que você poderia checar a licença com o departamento?
— Poderia, mas não preciso. Nem sempre os carros procurados são
colocados na lista de imediato. Então telefonei para lá, é um carro
procurado mesmo, vai aparecer na próxima lista. Só avisaram ontem à
noite, foi roubado no fim da tarde ou início da noite.
— Já calculava isso.
— Um Mercury 73, certo? Seda? Azul-escuro?
— Isso mesmo.
— Era isso que você queria?
— Onde é que foi roubado?
— Em algum lugar do Brooklyn. Na Ocean Parkway, numeração alta,
deve ser bem longe.
— Faz sentido.
— Faz? Por quê?
Sacudi a cabeça.
— Nada, não. Pensei que o carro fosse importante, mas se é roubado
não me ajuda em nada. — Tirei vinte e cinco dólares da carteira, o preço
tradicional de um quepe em linguagem policial. Coloquei as notas em
cima da mesa. Ele as cobriu com as mãos, mas não as pegou.
— Agora eu tenho uma pergunta — falou.
— É?
— Por quê?
— É confidencial. Estou trabalhando para uma pessoa e não posso…
— Por que gastar vinte e cinco dólares numa informação que você
poderia obter pelo telefone? Por Deus, Matt, por quantos anos você usou
um escudo para não se lembrar mais de como obter uma lista dessas do
departamento de trânsito? Você telefona, se identifica, você conhece os
macetes, não conhece?
— Pensei que já estivesse nos carros procurados.
— Então, se você quer saber se está na lista de procurados, telefona
para o departamento. Diz que é um policial conduzindo uma investigação,
ou alguma coisa parecida, que acaba de ver um carro que você acha que
está sendo procurado e será que podem confirmar isso para você? Isso
evitaria sua vinda até aqui e ainda por cima economizaria o preço de um
quepe.
— Mas para isso teria que me fazer passar por policial.
— Ah, não diga! — Deu uns tapinhas no dinheiro. — Se quer andar tão
na linha assim, isto é subornar um policial. Você escolheu um lugar
engraçado para estabelecer seu limite.
A conversa estava ficando desconfortável. Menos de doze horas antes
eu fingira ser um policial para obter um telefone que não constava da lista,
o de Carolyn Cheatham.
— Acho que nos afastamos muito, Eddie. Como é que isso foi
acontecer?
— Quem sabe? Talvez seu cérebro esteja enferrujando.
— Pode ser.
— Talvez você devesse largar a birita e voltar ao convívio da raça
humana. Será que ainda é possível?
Fiquei em pé.
— É sempre um prazer, Eddie. — Ele tinha mais coisas a dizer, mas eu
não era obrigado a ficar lá ouvindo.
Próximo dali havia uma igreja, Santa Verônica, uma estrutura de
tijolos vermelhos na rua Christopher, perto do rio Um pobre desafortunado
acomodara-se em seus degraus e dormia com uma garrafa de Night Train
agarrada numa das mãos. Um pensamento passou pela minha cabeça: o
Eddie tinha telefonado e armado esse cenário, como um exemplo amargo
do que me esperava. Não sabia se devia rir ou estremecer ao pensar nisso.
Subi os degraus e entrei. A igreja parecia uma caverna, vazia e
silenciosa. Sentei-me num banco e fechei os olhos por alguns minutos.
Pensei em meus dois clientes, Tommy e Skip, e em como estava
trabalhando mal para os dois Tommy não precisava da minha ajuda, que,
aliás, não estava recebendo. Quanto a Skip, podia ter colaborado para que
a troca fosse feita sem problemas, mas cometera alguns erros. Pelo amor
de Deus, quem devia ter dito a Billie e Bobby que anotassem as placas era
eu, não podia ter deixado essa iniciativa para Billie.
Estava quase contente com o fato de o carro ter sido roubado. Assim, a
pista de Keegan se tornava irrelevante e a minha falta de visão podia ter
um peso menor.
Burro. Por outro lado, fora eu quem dissera a eles para irem para a
outra rua, não fora? Eles não teriam visto o carro, muito menos a placa, se
tivessem ficado no carro de Kasabian.
Levantei-me para colocar uma moeda na caixa de coletas, pegar uma
vela e acendê-la. À minha esquerda, uma mulher estava ajoelhada. Quando
se levantou, percebi que era um transexual. Era uns cinco centímetros
mais alto do que eu. Suas feições misturavam traços latinos com orientais,
os ombros e os antebraços eram musculosos e seus seios, do tamanho de
melões-cantalupo, esticavam sua frente única estampada de bolinhas.
— Olá! — falou.
— Olá — respondi.
— Você veio acender uma vela para santa Verônica? Sabe alguma
coisa a respeito dela?
— Não.
— Nem eu. Mas prefiro pensar nela — ajeitou uma mecha de cabelo
por cima dos olhos — como Santa Verônica Lake.
Não posso dizer que contribuí para que isso acontecesse. Não
desenvolvi raciocínio nenhum. Continuei pegando as peças do quebra-
cabeça, continuei revirando-as assim e assado e, de repente, tinha o
quebra-cabeça montado, peça após peça se encaixando natural e
infalivelmente em seu lugar.
Será que tinha pensado nisso durante minha perda de consciência na
noite anterior, com os pensamentos sendo desfiados como na tapeçaria de
Penélope? Não acredito muito nisso, apesar da natureza da perda de
consciência ser tal que não sei dizer com certeza se isso é possível ou não.
Mas parecia ter sido assim. As respostas quando apareceram eram tão
óbvias — tal como no quebra-cabeça, uma vez que a peça se encaixa você
não acredita como é que não percebeu isso logo de cara. Eram tão óbvias
que me senti como se as conhecesse desde o início.
Telefonei para Nelson Fuhrmann. Ele não tinha a informação que eu
queria, mas sua secretária me deu um número de telefone e consegui falar
com uma mulher que sabia a resposta para algumas das minhas perguntas.
Comecei a telefonar para Eddie Koehler quando me lembrei de que
estava a dois quarteirões do sexto distrito. Fui para lá, encontrei-o atrás de
sua escrivaninha e contei-lhe sobre a chance que tinha de ganhar o resto do
chapéu que lhe comprara na véspera. Ele deu uns telefonemas sem se
levantar e quando saí de lá tinha mais algumas anotações em meu bloco.
Numa cabine da esquina, fiz outras ligações, depois andei até a Rua
Hudson e peguei um táxi. Saltei na esquina da Décima Primeira Avenida
com a Rua 51 e andei até o rio. Parei em frente ao Morrissey's, mas não
bati na porta nem toquei a campainha. Em vez disso, parei para ler o cartaz
do teatro lá do térreo. The quare fellow tinha encerrado sua breve carreira.
Na noite seguinte iriam estrear uma peça de John B. Keane chamada The
man from Clare. Exibia um retrato do ator que faria o papel principal. Seu
cabelo era ruivo, crespo, e o rosto atormentado, ansioso.
Tentei abrir a porta do teatro. Estava trancada. Bati e, como não
atendessem, tornei a bater. Finalmente, vieram abrir.
Uma moça bem baixinha, de vinte e poucos anos, olhou para mim e
disse:
— Sinto muito, a bilheteria só vai abrir amanhã à tarde. Estamos com
pouco pessoal no momento e nos ensaios finais e…
Falei que não viera comprar ingressos.
— Só preciso que me dê uns minutos de seu tempo.
— Isso é tudo o que todos querem e não tenho tempo suficiente para
distribuir. — Disse a frase com um jeito petulante, como se tivesse sido
escrita por um autor dramático. — Sinto muito — falou, dessa vez de
maneira mais prosaica —, mas agora não vai dar.
Depois que saí do teatro, telefonei para a casa de Skip e procurei por
ele no bar. Kasabian sugeriu que o procurasse na academia.
Primeiro tentei o Armstrong's. Ele não estava lá nem tinha estado, mas
Dennis disse que um homem passara por lá, perguntando por mim.
— Quem?
— Não deixou o nome.
— Como é que ele era?
Ele ficou pensando na pergunta.
— Se você estivesse escolhendo com quem brincar de polícia e ladrão,
você não o escolheria para ser um dos ladrões — respondeu, absorto.
— Deixou algum recado?
— Não. Nem uma gorjeta.
Fui até a academia de Skip, um loft espaçoso em cima de uma
delicatessen na Broadway. Ali funcionara uma pista de boliche que falira
havia um ou dois anos e o ginásio tinha aquele aspecto de lugar que não
vai sobreviver aos termos do contrato de aluguel. Uns homens se
exercitavam com pesos. Um negro, brilhando de suor, se esforçava num
dos aparelhos, enquanto seu colega, branco, o ajudava com os exercícios.
À direita, um grandalhão, os pés bem plantados no chão, alternava as mãos
socando um punching ball. Encontrei Skip fazendo alongamento muscular
num aparelho de pilates. Estava com calça de moletom cinza e sem
camiseta, e transpirava profusamente. Os músculos de suas costas, ombros
e braços estavam sendo bem exercitados Fiquei afastado, esperando que
ele terminasse aquela série de exercícios. Então o chamei e ele, ao se virar
e me ver, sorriu surpreso, depois fez outra série de alongamentos antes de
se levantar e vir me cumprimentar.
— O que é que há? Como é que você me encontrou aqui?
— Por sugestão de seu sócio.
— Bem, você chegou na hora certa. Uma pausa vai me fazer bem.
Deixa eu pegar meus cigarros.
Havia um espaço onde se podia fumar, umas poltronas perto de um
bebedouro. Ele acendeu um cigarro e disse:
— Fazer exercício ajuda. Quando acordei, minha cabeça estava
estourando. A gente fez o diabo ontem, não foi? Você chegou direito em
casa?
— Por que, estava tão mal assim?
— Não estava pior do que eu. Estava era se sentindo bem à beça. O
jeito como você falava… Frank e Jesse estavam com os mamilos num
espremedor e você estava prestes a girar a manivela.
— Você acha que eu estava sendo muito otimista?
— Ora, tudo bem. — Tragou seu Camel. — Quanto a mim, já estou
começando a me sentir humano de novo. O sangue começa a circular
melhor, você transpira e põe para fora um pouco do veneno, faz uma boa
diferença. Já trabalhou com pesos, Matt?
— Há muitos anos.
— Mas costumava se exercitar?
— Ah, cem anos atrás pensei em me tornar boxeador.
— Sério? Você costumava lutar?
— Isso foi na época da escola. Comecei frequentando o ginásio da
ACM, levantando uns pesos, treinando Depois lutei algumas vezes pela
Liga Juvenil da Polícia, mas descobri que não gostava de levar socos no
rosto. E era desajeitado no ringue, me sentia desajeitado e não gostava da
sensação.
— Então conseguiu um emprego onde deixavam você carregar uma
arma.
— E um escudo e um cassetete. Ele riu.
— O corredor e o boxeador — disse. — Olha os dois agora. Você veio
aqui por um motivo.
— Foi.
— E aí?
— Sei quem eles são.
— Frank e Jesse? Está brincando.
— Não.
— Quem são eles? E como é que você conseguiu?
— Estava pensando em reunir a equipe hoje à noite. Depois da hora de
fechar, pode ser?
— A equipe? Que equipe?
— Todos os que participaram daquela caçada, no Brooklyn. Vamos
precisar de ajuda e não vejo sentido em chamar gente de fora.
— Vamos precisar de ajuda? O que é que vamos fazer?
— Hoje à noite, nada, mas quero reunir um conselho de guerra. Se
você concordar, claro.
Ele esmagou o cigarro num cinzeiro.
— Se eu concordar? Claro que concordo Quem é que você quer, Os
Sete Samurais? Não, nós éramos cinco. Os Sete Samurais Menos Dois.
Você, eu, Kasabian, Keegan e Ruslander. Hoje é o que, quarta-feira? Se eu
pedir com jeito, Billie pode fechar à uma e meia. Vou telefonar para
Bobby e falar com John. Você sabe mesmo quem são eles?
— Sei mesmo.
— Quer dizer, sabe especificamente ou…
— Tudo. Nomes, endereços, tudo.
— O pacote completo. E quem são eles?
— Lá pelas duas estarei no seu escritório.
— Vá se danar. E se você for atropelado por um ônibus nesse meio-
tempo?
— Aí o segredo morre comigo.
— Cara chato. Vou levantar alguns pesos. Você quer experimentar
esses bancos de levantar peso, apenas para aquecer os músculos?
— Não. Quero é um drinque.
Não tomei o drinque. Olhei um bar, mas estava muito cheio. Quando
voltei para o hotel, Jack Diebold estava sentado numa cadeira do lobby.
— Imaginei que fosse você — falei.
— Por que, o barman chinês me descreveu?
— Ele é filipino. Disse que era um velho gordo que não dava gorjetas.
— Quem é que dá gorjeta nos bares?
— Todo mundo.
— Você está brincando? Deixo gorjetas nas mesas, mas não dou
gorjeta quando estou em pé num balcão. Pensei que ninguém dava.
— Ei, qual é? Onde é que você anda bebendo? No Blarney Stone? No
White Rose?
Ele me olhou.
— Você está esquisito — falou. — Animado, bem-disposto.
— Bem, é que estou resolvendo um assunto.
— É?
— Sabe quando tudo se encaixa e as coisas ficam claras para você?
Tive uma tarde assim.
— Não estamos falando do mesmo caso, estamos? Olhei para ele.
— Você não estava falando sobre coisa alguma — respondi. — A que
caso se refere? Ah! Tommy, claro. Não, não estava falando sobre isso. Ali
não há nada para ser descoberto.
— Sei disso.
Lembrei-me de como começara o meu dia.
— Ele me telefonou de manhã. Para se queixar de você.
— Foi mesmo?
— Você o está importunando, ele disse.
— Estou e isso não está me ajudando em nada.
— Devo dar referências sobre seu caráter, dizer a você que ele é um
bom sujeito.
— Verdade? Bem, e ele é um bom sujeito?
— Não, ele é um imbecil. Mas posso estar sendo preconceituoso.
— Claro. Afinal, ele é seu cliente.
— Isso mesmo. — Nesse meio-tempo ele se levantara e nos
encaminhamos para a calçada em frente ao hotel. No meio-fio, um taxista
e um motorista da van de uma loja de flores estavam discutindo.
— Jack, por que é que você veio me procurar, logo hoje?
— Por acaso estava nas redondezas e pensei em você.
— Conta outra.
— Está bem. Fiquei me perguntando se você não teria alguma
novidade sobre o caso.
— Do Tillary? Não vai haver nada contra ele, e se eu encontrasse
alguma coisa, bem, ele é meu cliente.
— Não, estava pensando nos rapazes latinos. — Suspirou. — Por que
estou começando a ficar preocupado. Acho que vamos perder essa no
julgamento.
— Sério? Eles já admitiram o assalto.
-Já, mas declarando-se culpados do assalto encerram o caso. A
promotoria quer uma queixa de assassinato, e se for parar no tribunal
desse jeito, já vi que vamos perder.
— Vocês têm os artigos roubados, identificados pelos números de
série, encontrados na casa deles, têm as impressões digitais, têm…
— Merda. Você sabe o que pode acontecer num tribunal. De repente os
artigos roubados não são prova de nada, porque há uma tecnicalidade a
respeito da busca e apreensão, encontraram uma máquina de escrever
quando tinham de procurar por uma calculadora, ou um diabo desses. E
quanto às impressões digitais, bem, um deles esteve lá meses atrás
fazendo faxina para os Tillary e isso pode explicar as impressões, não é?
Posso ver um advogado esperto fazendo miséria com o nosso caso. E então
pensei, bem, se Matt achou alguma coisa boa, gostaria que me contasse.
Vai ajudar seu cliente se nós trancafiarmos Cruz e Herrera, não vai?
— Acho que sim. Mas não encontrei nada.
— Nada?
— Não que eu me lembre.
Acabei por levá-lo ao Armstrong's e pagar uns drinques para nós dois.
Dei uma gorjeta boa ao Dennis, só pelo prazer de ver a reação de Jack.
Depois voltei ao meu hotel e deixei um pedido na recepção para que me
acordassem à uma da manhã, mas, para garantir, ajustei o despertador
também.
Tomei um banho de chuveiro e sentei na beira da cama, olhando para a
cidade. O céu começava a escurecer, ficando naquele azul cobalto que dura
tão pouco.
Deitei-me, estirei o corpo, mas não esperava adormecer. A próxima
coisa de que me lembro é do telefone tocando; mal atendi e desliguei, o
despertador soou. Vesti-me, joguei um pouco de água fria no rosto e saí
para fazer jus ao meu dinheiro.
22
Quando cheguei, eles ainda esperavam Keegan Skip tinha arrumado
um bar em cima de um arquivo, com quatro ou cinco garrafas, alguns tira-
gostos e um balde com gelo No chão, uma geladeira portátil, de isopor,
cheia de cervejas. Perguntei se tinha sobrado café. Kasabian disse que era
possível que tivesse sobrado um pouco, foi à cozinha, voltou com uma
jarra térmica cheia e uma caneca, um pouco de creme e açúcar. Servi-me
de café puro, no qual, pelo menos naquele momento, não coloquei
nenhuma bebida.
Tomei um gole do café e ouvimos uma batida na porta da frente. Skip
foi atender e voltou com Billie.
— O atrasado — (No original, um jogo de palavras que mostra a
implicância do personagem Ruslander com Keegan The late Billie Keegan,
que tanto pode significar atrasado como O falecido Billie Keegan —
NOTA DA TRADUTORA) Billie Keegan — Bobby falou. Kasabian
serviu-lhe uma dose do mesmo uísque irlandês de doze anos que Billie
bebia no Armstrong's.
Conversamos um bocado, com brincadeiras e piadas. De repente, fez-
se um silêncio e, antes que recomeçasse o barulho, levantei e disse.
— Há uma coisa que preciso falar com vocês.
— Seguro de vida — Bobby Ruslander falou. — Quer dizer, alguma
vez vocês já pensaram nisso? Pensar mesmo, para valer?
Continuei:
— Skip e eu conversamos ontem à noite e chegamos a uma conclusão.
Os dois tipos com barbas e perucas, nós nos lembramos de já tê-los visto
antes. Foram eles que assaltaram o Morrisey's naquela madrugada.
— Aqueles dois tinham os rostos cobertos por lenços.
— Bobby falou. — Os de ontem à noite usavam máscaras, barbas e
perucas, como é que você pode saber que são os mesmos?
— Eram eles — Skip respondeu. — Pode acreditar. Dois tiros no teto?
Lembra?
— Não sei do que você está falando — disse Bobby.
— Bobby e eu só os vimos de longe na segunda à noite; você nem os
viu, não é, Kasabian? Não, claro que não, você estava do outro lado do
quarteirão. Você estava no Morrissey's no dia do assalto? Não me lembro
de você lá — falou Billie.
Kasabian disse que nunca ia ao Morrissey's.
— Então nós três não temos que opinar. Se vocês dois dizem que eram
os mesmos homens, digo ótimo. Isso é tudo? Porque, a não ser que eu
tenha perdido alguma coisa, ainda não sabemos quem são eles.
— Sabemos, sim Todos me olharam.
— Ontem à noite fiquei muito arrogante, dizendo para Skip que nós já
os tínhamos na mão, pois, como sabíamos que eles fizeram os dois
trabalhos, era só uma questão de nos concentrarmos neles. Acho que foi o
Wild Turkey falando, mas havia uma certa verdade nisso, e hoje tive sorte.
Sei quem eles são. Skip e eu estávamos certos, eles cometeram os dois
assaltos e eu sei quem eles são.
— E agora? — Bobby quis saber. — O que é que vamos fazer?
— Depois falaremos nisso. Primeiro quero contar a vocês quem são
eles.
— Fale, fale.
— Eles se chamam Gary Atwood e Lee David Cutler. Skip os chama de
Frank e Jesse, como os irmãos James, e talvez tenha reconhecido um traço
familiar entre os dois. Atwood e Cutler são primos. Atwood vive no East
Village, lá para os lados de Alphabet City, na Nona Avenida, entre a ruas B
e C. Cutler mora com a namorada. Ela é professora e mora em Washington
Heights. Seu nome é Rita Donegian.
— Uma armênia — Keegan observou. — Deve ser sua prima, John. O
enredo fica mais intrincado.
— Como é que você os achou? — Kasabian perguntou. — Eles já
assaltaram antes? São fichados?
— Acho que não têm ficha. Não chequei isso ainda porque não me
pareceu importante. Provavelmente têm cartão Equity.
— O quê?
— Cartão de membros do Actors Equity. São atores.
— Você está brincando — disse Skip.
— Não.
— Raios me partam. Encaixa perfeitamente. Perfeitamente.
— Você percebe?
— Claro que sim. Explica os sotaques. Por isso é que pareciam
irlandeses quando assaltaram o Morrisey's. Não disseram uma palavra, não
fizeram nada irlandês, mas pareciam irlandeses porque estavam
representando. — Olhou zangado para Bobby. — Atores — disse. — Fui
assaltado por malditos atores.
— Você foi roubado por dois atores. Não pela categoria inteira.
— Atores — Skip continuou. — John, nós pagamos cinquenta mil
dólares a uma dupla de atores.
— Eles tinham balas de verdade em suas armas — Keegan lembrou-
lhe.
— Atores. Devíamos ter pago com dinheiro de mentira.
— Não sei o que me fez pensar nisso. — Servi-me de mais café. — O
pensamento simplesmente surgiu. Mas logo que apareceu vi que podia ter
muitas origens. Primeiro, uma sensação indefinível, alguma coisa estranha
neles, alguma coisa que nos dizia que assistíamos a uma performance. E a
performance no Morrissey's foi muito diferente da que nos foi oferecida
na noite de ontem. Uma vez sabendo que eram os mesmos homens, a
diferença em seus modos tornou-se digna de nota.
— Não vejo por que isso faz com que sejam atores. Só ficamos
sabendo que são trapaceiros — Bobby falou.
— Houve outros detalhes — continuei. — Moviam-se como pessoas
que estão profissionalmente conscientes de seus movimentos. Skip, você
comentou que eles poderiam ser dançarinos, que seus movimentos
poderiam ser coreografados. E um deles disse uma fala tão fora do texto
que só podia ser parte da pessoa, já que não fazia parte do papel que
interpretava.
— Que fala foi essa? — Skip perguntou. — Eu estava lá quando foi
dita?
— No porão da igreja. Quando você e o cara com a peruca amarela
começaram a arrumar os móveis, a tirá-los do caminho.
— Sim, mas o que foi que ele falou?
— Alguma coisa a respeito de não saber se o sindicato iria aprovar.
— É, eu me lembro dele dizendo isso. Foi uma frase estranha, mas não
chamou a minha atenção.
— Nem a minha, mas ficou gravada. E a voz dele estava
completamente diferente quando disse isso.
Skip fechou os olhos, rememorando a cena.
— Você está certo — falou.
— Por que isso faz dele um ator? Só o que prova é que ele é membro
do sindicato — Bobby comentou.
— O sindicato dos ajudantes de palco é muito forte — falei — e eles
se asseguram de que os atores não estão transportando cenários ou fazendo
coisas que poderiam estar tirando emprego de um ajudante Foi mesmo
uma fala de ator e o jeito como ele falou se encaixa com essa
interpretação.
— Como é que você chegou neles? — perguntou Kasabian. — Quando
soube que eram atores, ainda assim estava muito longe de descobrir seus
nomes e endereços.
— Orelhas — Skip falou. Todos olharam para ele.
— Ele desenhou as orelhas deles — disse, apontando para mim. — No
seu bloco de notas. As orelhas são a parte mais difícil de disfarçar. Não
olhem para mim, aprendi com o mestre. Ele desenhou as orelhas deles.
— E fez o quê? — Perguntou Bobby. — Anunciou uma audição
pública e saiu olhando as orelhas de todo mundo’
— Você pode folhear álbuns — Skip falou. — Olhar as fotos que os
atores tiram para publicidade e procurar o par certo de orelhas.
— Nos retratos para passaporte, as duas orelhas têm que estar visíveis
— acrescentou Billie.
— Senão?
— Eles não lhe dão o passaporte.
— Pobre Van Gogh. “O Homem Sem País” — foi o comentário de
Skip.
— Como é que você os encontrou? — Kasabian insistia em saber. —
Não pode ter sido pelas orelhas.
— Não, claro que não — respondi.
— A placa do carro. Já se esqueceram da placa? — Billie perguntou.
— A placa estava na lista dos carros procurados Quando concluí que
eram atores, fui até a igreja. Sabia que não escolheram aquela igreja ao
acaso e a invadiram. Tinham acesso a ela, com certeza até uma chave. De
acordo com o pastor, são muitos os grupos comunitários que têm ou
tiveram acesso ao porão, e provavelmente há muitas chaves em circulação.
Por acaso um dos grupos que ele mencionou era um grupo de teatro
amador que tinha usado o porão para ensaios e testes.
— Hum!
— Telefonei para a igreja, deram-me o nome de alguém ligado ao
grupo de teatro. Consegui falar com essa pessoa e expliquei-lhe que estava
tentando contatar um ator que tinha trabalhado com aquele grupo uns
meses atrás. Dei uma descrição física que servia para qualquer um dos
dois. Lembrem-se, a não ser por uma pequena diferença na altura, eles
tinham um tipo físico muito parecido.
— E deram um nome?
— Alguns nomes. Um deles foi o de Lee David Cutler.
— E acendeu-se uma luz — Skip falou.
— Que luz? Essa foi a primeira vez que esse nome apareceu, não foi?
Ou perdi alguma coisa? — Kasabian quis saber.
— Não, você está certo — respondi. — A essa altura, Cutler era apenas
um dos nomes em meu bloco de notas. O que eu precisava fazer era
associar esse nome ao outro crime.
— Que outro crime? Ah, o do Morissey's. Mas como? Ele é o único
dono de bar que não contrata garçons ou barmen. Tem a família
trabalhando para ele.
— E no térreo do Morrissey's, Skip, tem o quê?
— Ah! — ele respondeu.
— Aquele teatro irlandês. A Companhia de Repertório dos Burros, ou
seja lá que nome tenha — falou Billie Keegan.
— Fui lá hoje à tarde. Estavam no ensaio geral de uma nova peça, mas
mencionei o nome de Tini Pat e consegui conversar uns minutos com uma
jovem atriz. Eles têm fotos em exibição no hall de entrada, fotos
promocionais individuais de cada membro do elenco. Fotos só do rosto,
para publicidade. Ela me mostrou pôsteres dos vários elencos de peças que
foram encenadas no ano passado. Eles fazem pequenas temporadas,
sabem, por isso encenaram muitas peças.
— E?
— Lee David Cutler estava em Donnybrook, uma peça de Brian Friel
que puseram em cena na última semana de maio e na primeira semana de
junho. Reconheci seu retrato antes de ler o nome. E reconheci a foto do
primo também. A semelhança familiar é mais evidente quando não estão
disfarçados. De fato, é inquestionável. Talvez isso tenha contribuído para
que conseguissem papéis, já que não pertencem ao elenco regular. Mas
interpretaram dois irmãos, portanto a semelhança foi definitivamente uma
vantagem.
— Lee David Cutler. E qual é o nome do outro? Alguma coisa Atwood
— perguntou Skip.
— Gary Atwood.
— Atores.
— Isso.
Bateu a ponta do cigarro nas costas da mão, colocou-o na boca,
acendeu.
— Atores. Atuavam na peça no térreo e decidiram subir na vida, não é?
Foi ali que lhes veio a ideia de dar um golpe no Morrissey's.
— Provavelmente.
Tomei mais um gole de café. A garrafa de Wild Turkey estava bem ali,
em cima do arquivo, atraindo meus olhos, mas eu não queria tomar nada
que me deixasse menos atento. Estava satisfeito por não estar bebendo e
igualmente satisfeito por ver que os outros bebiam.
— Devem ter ido lá em cima uma ou duas vezes durante a temporada
— prossegui. — Talvez tenham ouvido falar no armário trancado, talvez
tenham visto Tini Pat guardando dinheiro ali, ou retirando. De uma
maneira ou de outra, devem ter chegado à conclusão de que era barbada
assaltar aquele bar.
— Se a pessoa viver para gastar o dinheiro…
— Talvez não soubessem o bastante para temer os Morrissey. Isso é
possível. Pode ser que tenham começado tudo como uma brincadeira,
como se encenassem uma peça, interpretando membros de uma outra
facção irlandesa, pistoleiros de alguma peça antiga sobre as convulsões
políticas no Norte da Irlanda. Depois se entusiasmaram com as
possibilidades visualizadas, saíram, compraram umas armas e encenaram
sua peça.
— Assim, sem mais nem menos. Encolhi os ombros:
— Talvez já tivessem feito outros assaltos antes. Não há nenhuma
razão para crer que aquela era sua estreia.
— Deve ser melhor do que levar o cachorro dos outros para passear ou
arranjar um emprego provisório num escritório — Bobby comentou. —
Que diabos, um ator precisa ganhar a vida. Talvez eu devesse comprar uma
máscara e uma arma.
— Você às vezes atende clientes no bar — Skip respondeu. — A ideia
é mais ou menos a mesma e você não precisa de coadjuvantes.
— Por que é que nos escolheram? Começaram a frequentar isso aqui
enquanto trabalhavam no teatro irlandês? — Kasabian perguntou.
— Talvez.
— Mas isso não explica como souberam sobre os livros. Skip, alguma
vez esses caras trabalharam para a gente? Atwood e Cutler? Nós
conhecemos esses nomes?
— Acho que não.
— Eu também não — falei. — Pode ser que eles conhecessem o lugar,
mas isso não é importante. Com certeza não trabalharam aqui, pois não
conheciam Skip.
— Isso pode ter sido parte da encenação.
— Pode ser. Mas, como já disse, isso é o menos importante. Eles
tinham um homem aqui dentro que roubou os livros e organizou tudo para
o pedido de resgate.
— Um homem aqui dentro?
— Foi isso que pensamos desde o início, lembra? Foi por isso que você
me contratou, Skip. Em parte para que a troca ocorresse sem tropeços e
também para descobrir, depois de tudo concluído, quem foi que armou
essa para vocês.
— Certo.
— Bem, foi assim que conseguiram os livros e foi assim que souberam
sobre vocês. Pelo que sei, eles nunca puseram os pés no Miss Kitty's Nem
precisavam. Tinham tudo mastigado para eles.
— Pelo tal informante.
— Isso mesmo.
— E você sabe quem é esse homem?
— Sei.
A sala ficou em silêncio. Fui até o arquivo e peguei a garrafa de Wild
Turkey. Servi uma boa dose num copo com gelo e coloquei a garrafa de
novo onde estava. Segurei o copo sem provar da bebida. Não tinha tanta
vontade assim de beber, mas de prolongar o momento e deixar a tensão
crescer.
— O informante tinha um papel importante. Avisar Atwood e Cutler
que conhecíamos a placa do carro.
— Pensei que o carro fosse roubado — Bobby falou.
— Deram queixa do roubo do carro. Por isso a placa foi parar na lista
dos procurados. Roubado entre cinco e sete da noite, na segunda-feira, de
um endereço na Ocean Parkway.
— E daí?
— Essa foi a queixa apresentada na delegacia, e quando tomei
conhecimento disso não fiz o que deveria ter feito de imediato, que era
procurar saber o nome do proprietário do carro. Mas foi o que fiz hoje à
tarde. O carro é de Rita Donegian.
— A namorada de Atwood — Skip falou.
— Do Cutler. Mas isso não faz a menor diferença.
— Não estou entendendo nada — disse Kasabian — Ele roubou o carro
da namorada? Que confusão!
— Todo mundo cisma com os armênios — foi o comentário de
Keegan.
— Eles pegaram o carro dela. Atwood e Cutler. Depois receberam um
telefonema do cúmplice dizendo que a placa tinha sido vista. Então
telefonaram e deram queixa do roubo do carro, dizendo que fora roubado
umas horas antes e de um lugar bem longe, lá na Ocean Parkway. Hoje,
quando me aprofundei no assunto, fiquei sabendo também que a queixa só
foi apresentada quase que perto de meia-noite. Estou contando as coisas
meio fora de ordem. Na lista de carros procurados, o nome do dono do
Mercury roubado não era Rita Donegian. Era um nome irlandês, Flaherty
ou Farley, já esqueci, e o endereço era o da Ocean Parkway. Havia um
número de telefone, mas o endereço e o telefone não combinavam. Não
consegui achar o telefone do Flaherty, ou Farley, no catálogo. Então me
informei no departamento de trânsito e, pelo número da placa, descobri
que o carro pertence a Rita Donegian, com endereço na Cabrini Boulevard,
que fica em Washington Heights, bem longe da Ocean Parkway ou de
qualquer outro lugar no Brooklyn.
Bebi um pouco do Wild Turkey.
— Telefonei para Rita Donegian. Apresentei-me como um policial
checando rotineiramente a lista de carros procurados, para saber quais
tinham sido recuperados e quais ainda estavam desaparecidos. Ah, sim, ela
falou, recuperamos o carro logo em seguida. Na verdade, ela achava que o
carro nem tinha sido roubado: seu marido bebera um pouco e se esquecera
de onde estacionara o carro. Mais tarde, encontrara o carro a uns dois
quarteirões de onde pensava ter estacionado, mas aí ela já tinha dado
queixa. Disse-lhe que com certeza algum funcionário cometera um erro,
pois tínhamos o carro listado como roubado no Brooklyn, quando ela
morava em Manhattan. Não, ela falou, é porque estavam visitando o irmão
de seu marido, no Brooklyn. Disse-lhe que havia um erro no nome
também, pois dava o proprietário como Flaherty, ou sei lá que nome falei.
Não, ela respondeu, não foi erro nenhum. Esse é o nome do irmão de seu
marido. Depois, meio atrapalhada, explicou que, na verdade, esse era o
nome do cunhado de seu marido, pois a irmã dele tinha se casado com um
homem chamado Flaherty.
— Uma pobre garota armênia sendo arruinada por um irlandês. Pense
nisso, Kasabian — falou Keegan.
Skip perguntou se alguma coisa do que ela dissera era verdade.
— Perguntei-lhe se ela era Rita Donegian e se era proprietária de um
Mercury Marquis, com placa LJK-914. Respondeu sim a ambas as
perguntas. Essa foi a última verdade que me disse O resto é um rosário de
mentiras e ela sabia que estava dando cobertura a eles, ou não teria sido
tão criativa. Ela não tem marido. Podia referir-se ao Cutler como seu
marido, mas só falava nele como senhor Donegian, e o único senhor
Donegian é seu pai. Não quis insistir muito, pois não queria que ela
desconfiasse que meu telefonema era mais do que uma checagem de
rotina.
— Alguém telefonou para eles depois da troca. Para contar que
tínhamos o número da placa — Skip falou.
— Isso mesmo.
— Quem sabia? Nós cinco e quem mais? Keegan, você ficou eloquente
e contou para uma sala cheia de gente como você foi o herói da noite e
anotou a placa do carro? Foi isso o que aconteceu?
— Fui me confessar e contei para o padre O'Houlihan.
— Estou falando sério, droga.
— Nunca acreditei mesmo naquele safado de olhos fugidios — Billie
acrescentou.
John Kasabian falou com delicadeza:
— Skip, acho que ninguém contou coisa alguma para qualquer outra
pessoa. Acho que é isso que Matt quer nos dizer. Que foi um de nós, não é,
Matt?
— Um de nós? Um de nós cinco? — perguntou Skip.
— Não foi isso, Matt?
— Isso mesmo. Foi Bobby — falei.
23
Fez-se um longo silêncio, com todos olhando para Bobby. De repente
Skip deu uma gargalhada assustadora, que ecoou ferozmente pelo
escritório.
— Matt, seu canalha! Você quase me pegou. Quase compro a sua
história.
— Mas é verdade, Skip.
— Por que sou ator, Matt? — Bobby sorriu para mim. — Você acha
que todos os atores se conhecem, da mesma maneira que Billie acha que
Kasabian deve conhecer a professora. Pelo amor de Deus, com certeza há
mais atores nesta cidade do que armênios.
— Dois grupos muito mal falados — Keegan declarou. — Atores e
armênios, ambos dados a passar fome.
— Nunca ouvi falar nesses caras Atwood e Cutler? São esses os seus
nomes? Nunca ouvi falar em nenhum dos dois.
— Não vai colar, Bobby. Você foi colega de classe de Gary Atwood na
Academia de Arte Dramática de Nova York. No ano passado, você
participou de uma exibição no teatro Galinda, na Segunda Avenida, e esse
é um dos créditos de Lee David Cutler.
— Você está falando daquele espetáculo sobre o Strindberg? Seis
apresentações para uma sala cheia de cadeiras vazias, em que nem o
diretor sabia do que se tratava? Ah, Cutler, um cara magro que fez o papel
de Berndt? É esse o cara?
Não falei nada.
— O Lew me confundiu. Todos o chamavam de Dave. Acho que me
lembro dele, mas…
— Bobby, seu filho-da-puta, você está mentindo! Ele virou-se, olhou
para Skip. E disse:
— Estou, Arthur? É isso que você pensa?
— É o que eu desgraçadamente sei. Conheço você Da vida inteira. Sei
quando você está mentindo.
— O Detector de Mentiras Humano. — Deu um suspiro. — Acontece
que você está certo.
— Não acredito.
— Bem, decida-se, Arthur. É difícil concordar com você. Ou estou
mentindo, ou não. O que é que você prefere?
— Você me roubou. Você roubou os livros, você me traiu. Como é que
pôde fazer isso? Seu merda, como é que você pôde fazer isso?
Skip estava em pé. Bobby ainda estava sentado, com um copo vazio na
mão. Keegan e John Kasabian estavam cada um de um lado de Bobby, mas
se afastaram um pouco, como se quisessem ficar com mais espaço.
Eu estava em pé, à direita de Skip e de olho em Bobby. Ele levou
algum tempo para responder, como se a resposta merecesse uma
consideração cuidadosa.
— Bem, para o inferno com tudo — disse, finalmente. — Por que
alguém faria isso? Eu precisava do dinheiro.
— Quanto é que eles deram a você?
— Pra falar a verdade, não foi muito.
— Quanto?
— Sabe, eu queria um terço. Eles riram. Queria dez, eles falaram
cinco, concordamos com sete. — Abriu as mãos. — Sou um péssimo
negociador, não sou um negociante. O que é que eu sei sobre barganhar?
— Você me ferrou por sete mil dólares.
— Ouça, queria que fosse mais. Acredite.
— Não brinque comigo, seu veado.
— Então pare de me dar falas tão fáceis, seu babaca. Skip fechou os
olhos. Gotas de suor se acumulavam em sua testa e os tendões do pescoço
eram visíveis. Suas mãos formaram punhos, relaxaram, tornaram a se
fechar. Respirava pela boca como um lutador entre os assaltos.
— Você precisava do dinheiro para quê?
— Ora, sabe, minha irmãzinha precisa ser operada.
— Bobby, não banque o palhaço comigo. Juro que mato você!
— É? Eu precisava do dinheiro, acredite, porque eu ia ser operado. Iam
quebrar as minhas pernas.
— Do que é que você está falando?
— Estou falando sobre um empréstimo que fiz de cinco mil dólares e
que coloquei num negócio de cocaína e deu em merda e eu tinha que pagar
os cinco mil porque não tinha feito o empréstimo no Chase Manhattan.
Não tenho nenhum amigo lá. Tomei emprestado de um cara em Woodside,
que me avisou que minhas pernas eram a única garantia que eu precisava
dar.
— E por que você se meteu num negócio de cocaína?
— Estava tentando ganhar algum, para variar. Tentando sair de baixo.
— Você faz isso parecer com o sonho americano.
— Foi é um raio de um pesadelo. O negócio desceu latrina abaixo, eu
ainda precisava pagar o empréstimo, tinha que comparecer com cem por
semana só para pagar a comissão. Você sabe como isso funciona. Você
paga cem por semana a vida inteira e ainda deve os cinco mil; não consigo
nem pagar as minhas despesas, que dirá arranjar cem por semana. Estava
atrasado e havia juros sobre juros e os sete mil que recebi do Cutler e do
Atwood já sumiram, cara. Paguei seis mil ao agiota para que largasse do
meu pé, paguei outras dívidas, fiquei com duas notas de cem na carteira.
Foi o que sobrou. — Encolheu os ombros. — Vem fácil, vai fácil. Não é
assim?
Skip pôs um cigarro na boca e ficou mexendo no isqueiro. Deixou-o
cair e, quando se abaixou para pegá-lo, sem querer jogou-o para baixo da
escrivaninha. Kasabian colocou a mão em seu ombro para ajudá-lo a se
equilibrar, depois acendeu um fósforo para ele. Billie Keegan se ajoelhou
e ficou procurando o isqueiro até achar.
— Você sabe quanto me custou? — perguntou Skip.
— Custei vinte para você e trinta para o Kasabian.
— Você custou a cada um vinte e cinco mil. Devo cinco ao Johnny, ele
sabe que vai receber.
— Você é quem sabe.
— Você nos custou cinquenta mil dólares para poder ficar com sete.
Do que é que estou falando? Você nos custou cinquenta mil dólares para
ficar liso.
— Já disse que não tenho cabeça para negócios.
— Você não tem é cabeça, Bobby. Você precisava do dinheiro, por que
não entregou seus amigos para o Tim Pat Morrissey por dez mil? Essa é a
recompensa que ele está oferecendo, três mil a mais do que os sete que
você levou.
— Não ia dedurá-los.
— Não, claro que não. Mas você nos jogaria, a mim e ao John, na
sarjeta, não é?
Bobby deu de ombros.
Skip jogou o cigarro no chão e pisou nele.
— Você precisava de dinheiro — disse —, por que não me procurou?
Quer me dizer? Podia ter me procurado antes de ir ao agiota. Ou quando o
agiota começou a pressionar, podia ter vindo a mim.
— Não queria pedir dinheiro a você.
— Não queria me pedir. Tudo bem me roubar, mas me pedir, não.
Bobby ergueu bem a cabeça e disse:
— É isso mesmo, Arthur. Não queria pedir a você.
— Alguma vez eu disse não?
— Não.
— Já fiz você rastejar?
— Já.
— Quando?
— O tempo todo. Deixa o ator representar o barman por um tempo.
Vamos colocar o ator atrás do balcão, mas vamos rezar para que ele não
distribua a loja toda. É uma piada, uma grande piada, a minha carreira.
Sou seu brinquedinho de dar corda, seu atorzinho de estimação.
— Você acha que não levo sua carreira a sério?
— Claro que acho.
— Não acredito no que estou ouvindo. Aquela droga daquela peça na
qual você trabalhou na Segunda Avenida, ferrando com o Strindberg,
quantas pessoas levei para assistir aquilo? Havia vinte e cinco pessoas na
plateia e vinte fui eu que levei.
— Para verem o seu ator de estimação. “Aquela droga em que você
atuou.” Isso é levar minha carreira a sério, Skippy querido. Isso é que é
apoio.
— Não acredito nisso. Você me odeia — Skip olhou para todos nós. —
Ele me odeia.
Bobby só ficou olhando para ele.
— Você fez isso para acabar comigo. Foi isso.
— Fiz pelo dinheiro.
— Eu teria dado o maldito dinheiro!
— Não queria pedir a você.
— Não queria me pedir. De onde você acha que saiu esse dinheiro, seu
veado? Você acha que veio de Deus? Acha que caiu do céu?
— Acho que mereci receber.
— Você o quê?
Bobby encolheu os ombros.
— Como estava dizendo, acho que mereci. Trabalhei para merecer.
Fiquei ao seu lado não sei quantas vezes, desde o dia em que peguei os
livros. Fui naquela excursão de segunda-feira, fiquei o tempo todo ali,
participei de tudo. E vocês não desconfiaram de nada. Essa não foi a pior
interpretação jamais encenada.
— Apenas uma atuação.
— De um certo ponto de vista…
— Judas também foi muito bem. Foi indicado para o Oscar, mas não
pôde estar presente no dia da cerimônia de entrega dos prêmios.
— O seu Jesus é cômico, Arthur. Não é um papel para você.
Skip encarou-o, implacável:
— Não compreendo. Você não está nem um pouco envergonhado.
— Você ficaria mais feliz? Com uma pequena demonstração de
arrependimento?
— Você acha certo, não é? Colocar seu amigo num inferno, custar a ele
um bocado de dinheiro? Roubar dele?
— Você nunca roubou, não é, Arthur?
— Do que é que você está falando?
— Como é que você conseguiu vinte mil dólares, Arthur. O que é que
você fez, economizou o dinheiro do almoço?
— Nós desviávamos um pouco do lucro. Isso não é um grande segredo.
Você se refere ao fato de eu ter roubado do governo? Mostre-me alguém
que receba em dinheiro e que não faça isso.
— E como você conseguiu dinheiro para abrir o seu negócio? Como é
que você e o John começaram? Foi sonegando, também? Gorjetas que
você não declarou?
— E daí?
— Pois sim! Você trabalhava atrás do balcão no Jack Balkin's e
roubava com as duas mãos. Você fez de tudo, só não foi às mercearias
receber o depósito quando devolvia as garrafas vazias. Você roubou tanto
do Jack que é um espanto ele não ter tido que fechar o bar.
— Ele ganhou muito dinheiro.
— Ganhou, e você também. Você roubou, o Johnny roubou onde ele
trabalhava e, pasmem!, vocês dois conseguiram dinheiro para abrir um
negocio próprio. Por falar no sonho americano, esse é o sonho americano.
Roube de seu patrão até conseguir dinheiro suficiente para abrir o seu
próprio negócio e competir com ele.
Skip disse alguma coisa inaudível.
— O que é que você disse? Não ouvi, Arthur.
— Disse que barmen roubam. Todos sabem.
— Isso torna tudo honesto, não é?
— Não ferrei o Balkin. Ganhei dinheiro para ele. Você pode torcer as
coisas o quanto quiser, Bobby, mas não pode me transformar no que você
é.
— Não, você é o próprio santo, Arthur.
— Meu Deus — Skip murmurou. — Não sei o que fazer. Não sei o que
vou fazer.
— Eu sei. Você não vai fazer nada.
— Não vou?
Bobby sacudiu a cabeça.
— O que é que você vai fazer? Vai pegar a arma que está atrás do
balcão, voltar aqui e me dar um tiro? Você não vai fazer isso.
— Mas devia.
— É, mas não vai fazer. Você quer me bater? Você já nem está
zangado, Arthur. Você acha que deve estar com raiva, mas não está. Você
não está sentindo nada.
— Eu…
— Olhem, estou pregado. Se ninguém se opuser, vou encerrar a noite.
Ouçam, vocês dois, vou pagar tudo de volta, qualquer dia desses. Os
cinquenta inteirinhos. Quando eu me tornar um astro, sabem? Eu chego lá.
— Bobby.
— Até mais.
Depois de acompanharmos Skip até sua casa, depois que John pegou
um táxi, fiquei na esquina com Billie Keegan e disse-lhe que tinha
cometido um erro, que não devia ter contado a Skip o que descobrira.
— Não — ele falou. — Você fez bem.
— Agora ele sabe que seu melhor amigo o odeia. — Olhei para o alto
do Parc Vendôme. — Ele mora num andar alto. Espero que não resolva se
atirar pela janela.
— Não faz o tipo.
— Acho que não.
— Você tinha que contar. O que é que você podia fazer, deixar que ele
continuasse a achar que Bobby era seu amigo? Esse tipo de ignorância não
leva ao nirvana. O que você fez foi lancetar um furúnculo. Agora está
doendo pra burro, mas vai passar. Se deixasse ficar, só ia piorar.
— Pode ser.
— Acredite. Se Bobby se desse bem dessa vez, tentaria outra coisa.
Até Skip descobrir, porque não era suficiente ferrar o Skip, ele tinha que
esfregar o sal na ferida. Você está compreendendo?
— Estou.
— Concorda comigo?
— Talvez. Billie? Quero ouvir aquela canção.
— O quê?
— A taverna sagrada, corta o cérebro em fatias. Aquela que você que
você me fez ouvir.
— Last Call.
— Você não se incomoda?
— Não, suba. Tomaremos uns tragos.
Na verdade, não bebemos muito. Fui com ele até seu apartamento,
ouvimos a canção cinco vezes, seis vezes. Quando saí, ele tomou a me
dizer que eu tinha feito a coisa certa ao expor Bobby Ruslander. Mas eu
ainda não me convencera.
24
Dormi até tarde no dia seguinte. À noite fui ao Sunnyside Gardens, no
Queens, com Danny Boy Bell e dois amigos dele que moravam na parte
alta de Manhattan. No programa constava um peso médio, um garoto de
Bedford-Stuyvesant no qual os amigos de Danny Boy tinham uma
participação Ganhou a luta com folga, mas não achei que fosse uma
grande promessa.
No dia seguinte, uma sexta-feira, almoçava tarde no Armstrong's
quando Skip apareceu e tomou uma cerveja comigo. Acabara de sair da
academia e estava com sede.
— Eu hoje estava com muita força, Deus do céu. A raiva vai toda para
os músculos. Podia ter levantado o teto da academia. Matt? Eu o tratava de
forma condescendente?
— O que é que você quer dizer com isso?
— Toda aquela besteira de eu o tratá-lo como meu ator de estimação.
Isso é verdade?
— Acho que ele estava procurando uma maneira de se justificar.
— Não sei. Talvez eu aja daquela maneira, exatamente como ele disse.
Lembra quando você ficou queimado porque paguei sua conta aqui?
— E daí?
— Talvez eu fizesse isso com ele. Mas numa escala maior. — Acendeu
um cigarro e teve um acesso de tosse. Ao se recuperar, falou: — Dane-se,
o cara é asqueroso. Só isso. Vou é esquecer tudo.
— O que mais você pode fazer?
— Gostaria de saber. Ele vai pagar quando for rico e famoso, gostei
dessa parte. Há alguma maneira de a gente recuperar o dinheiro daqueles
dois outros merdas? Sabemos quem são eles.
— Você vai ameaçá-los com quê?
— Sei lá. Com nada, acho. Na outra noite você nos reuniu para um
conselho de guerra, mas aquilo foi só para armar o palco, não foi? Para ter
todos a postos quando expusesse o Bobby.
— Achei que seria melhor.
— Foi. Mas quanto a formar um conselho de guerra, com esse nome ou
outro qualquer, e calcular uma maneira de coagir esses atores e recuperar
nosso dinheiro…
— Não vejo como.
— Não, nem eu. Vou fazer o que, assaltar os caras que me assaltaram?
Não faz meu gênero. E depois, é só dinheiro. Quer dizer, no fundo é só
isso. Esse dinheiro estava num cofre bancário, eu não estava ganhando
nada com ele, agora ele não existe mais e que diferença isso faz na minha
vida? Você compreende?
— Acho que sim.
— Só queria esquecer, porque isso fica girando, girando, girando na
minha cabeça. Só queria esquecer.
Meus filhos vieram passar aquele fim de semana comigo. Era nosso
último fim de semana juntos, antes que fossem para o acampamento.
Peguei-os na estação sábado pela manhã e coloquei-os no trem de volta
domingo à noite. Fomos ao cinema, disso eu me lembro, e acho que
passamos a manhã de domingo explorando Wall Street e arredores e o
mercado de peixes Fulton, mas isso talvez tenha sido em outro fim de
semana. Às vezes esses fins de semana se misturam nas minhas
lembranças.
Passei a noite de domingo no Village e só voltei para o hotel quase de
madrugada. O telefone me despertou no meio de um sonho angustiante,
um exercício de frustração acrofóbica: eu ficava tentando sair de um
passadiço perigoso, mas não conseguia alcançar o chão. Peguei o telefone.
Uma voz rouca falou:
— Bem, não foi do jeito que eu queria, mas ao menos não temos que
nos preocupar em perder no tribunal.
— Quem está falando?
— Jack Diebold. O que é que há com você? Parece que ainda está meio
dormindo.
— Agora já acordei. Do que é que você está falando?
— Você não leu o jornal?
— Eu estava dormindo. O que…
— Você sabe que horas são? Quase meio-dia. Você está fazendo um
horário de cafetão, seu filho-da-mãe.
— Nossa!
— Vá comprar um jornal. Telefono de novo dentro de uma hora.
Achei que era hora de uma bebedeira. Meus dois casos estavam
encerrados, embora não satisfatoriamente. Meus filhos estavam a caminho
do acampamento. O aluguel estava pago, minhas contas nos bares
acertadas, alguns dólares guardados no banco. Tinha, era o que me parecia,
todos os motivos do mundo para desaparecer por uma semana ou mais e
me embriagar.
Mas meu corpo parece que sabia que ainda ia acontecer alguma coisa
e, apesar de não ter ficado inteiramente sóbrio, também não me atirei na
bebedeira a que me julgava inteiramente merecedor. E foi mais ou menos
um dia ou dois depois dessa decisão que Skip me apareceu, quando eu
cuidava com carinho de uma xícara de café batizada com bourbon, em
minha mesa no Armstrong's.
Cumprimentou-me da porta. Foi até o balcão, tomou um drinque,
esvaziou o copo de uma vez Depois veio até a minha mesa, puxou uma
cadeira e caiu sentado nela.
— Tome — disse, e colocou um envelope pardo na mesa, entre nós
dois. Um envelope pequeno, do tipo que os bancos dão.
— O que é isso?
— Para você.
Abri. Estava cheio de dinheiro. Tirei um maço de notas e me abanei
com elas.
— Pelo amor de Deus, não faça isso, quer todo mundo seguindo você
pelas ruas? Guarde no bolso, conte quando chegar em casa.
— O que é isso?
— A sua parte. Guarde, está bem?
— Minha parte do quê?
Ele suspirou, impaciente comigo. Estava com um cigarro aceso e
tragou raivosamente, virando a cabeça para não soprar a fumaça
diretamente no meu rosto. — Sua parte nos dez mil. Você fica com a
metade. Metade de dez mil é cinco mil e é isso que tem dentro desse
envelope, e quer nos fazer um grande favor e guardar isso?
— Mas o que é isso de “minha parte”, Skip?
— A recompensa.
— Que recompensa.
Seus olhos me desafiaram:
— Ora, eu podia receber algum de volta, não é não? Não devia nada
àqueles veados. Não é?
— Não sei do que você está falando.
— Atwood e Cutler. Eu os entreguei ao Tim Pat Morrissey Pela
recompensa.
Olhei para ele.
— Não podia chegar para eles e pedir meu dinheiro de volta. Não
podia tirar um tostão do desgraçado do Ruslander, ele já tinha gastado
tudo. Fui lá e me sentei com Tim Pat. Perguntei-lhe se ele e os irmãos
ainda estavam dispostos a pagar a recompensa. Os olhos dele se
acenderam como duas estrelas. Dei-lhe os nomes e os endereços e pensei
que ele fosse me beijar.
Coloquei o envelope na mesa. Empurrei-o para perto dele e ele o
empurrou de volta.
— Isso não é meu, Skip.
— É seu, sim. Já contei a Tim Pat que metade era seu, que foi você
quem fez todo o trabalho. Pegue.
— Não quero. Já fui pago pelo que fiz. A informação era sua. Você a
comprou. Se você a vendeu para Tim Pat, a recompensa é sua.
Ele tragou mais uma vez.
— Já dei metade para Kasabian. Os cinco mil que lhe devia. Ele
também não queria receber. Eu lhe disse, ouça, pegue isso e estamos
quites. Ele pegou. E essa parte aqui é sua.
— Eu não quero.
— É dinheiro. Qual é o problema? Não falei nada.
— Olhe, só pegue, está bem? Se não quiser guardar, não guarde.
Queime, jogue fora, dê para alguém, não me importa a mínima o que você
vai fazer com ele. O que eu não posso é ficar com isso. Não posso. Você
compreende?
— Por que não?
— Que merda. Que boa merda. Não sei por que fiz isso.
— Do que é que você está falando?
— E eu faria tudo de novo. Isso é que é pior. Está me roendo, mas, se
tivesse que fazer tudo de novo, eu o faria.
— Faria o quê? Ele me olhou.
— Dei a Tim Pat três nomes e três endereços. — Pegou o cigarro entre
o polegar e o indicador e ficou olhando para ele. — Não quero ver você
fazendo isso — disse, e jogou o cigarro na minha xícara. Em seguida
falou: — Deus meu, o que foi que eu fiz? Sua xícara ainda estava pela
metade. Pensei que fosse a minha xícara e nem sequer tenho uma xícara. O
que é que há comigo? Desculpe, vou pegar outra para você.
— Esqueça o café.
— Foi reflexo, não estava pensando, eu…
— Skip, esqueça o café. Sente aí.
— Você tem certeza que não quer?
— Esqueça o café.
— Certo, está bem. — Pegou outro cigarro, bateu com ele na parte
interna do pulso.
— Você deu a Tim Pat três nomes.
— Foi.
— Atwood, Cutler e?
— E Bobby — falou. — Vendi Bobby Ruslander para ele.
Pôs o cigarro na boca, pegou o isqueiro e o acendeu. Com os olhos
semicerrados por causa da fumaça, falou.
— Eu o traí, Matt. Meu melhor amigo, só que ele não é meu amigo e
eu o delatei. Contei a Tim Pat que Bobby era o informante, que ele armou
tudo. — Olhou pra mim. — Você acha que sou um canalha?
— Não acho nada.
— Era uma coisa que eu tinha que fazer.
— Tudo bem.
— Mas você vê que eu não posso ficar com esse dinheiro.
— Parece que não.
— Mas ele pode escapar, sabe. Ele é ótimo em sair do aperto. Na outra
noite, meu Deus, ele saiu do escritório como se fosse o dono do lugar. O
Ator, agora vamos ver se ele tem uma atuação que o faça escapar dessa,
hein?
Não falei nada.
— Pode acontecer. Ele pode se safar.
— Pode.
Ele secou os olhos com as costas da mão.
— Eu amava aquele cara. Pensei, pensei que ele também me amasse.
— Inspirou bem fundo, depois soltou o ar. — Daqui em diante, não vou
amar mais ninguém. — Levantou-se. — De qualquer modo, acho que ele
tem uma chance razoável. Talvez saia dessa. — Talvez.