Você está na página 1de 238

Lawrence Block

Quando nosso boteco fecha as portas


Tradução Maria Helena Rodrigues de Sousa
Companhia das Letras
Copyright © 1986 by Lawrence Block
Publicado mediante acordo com o autor
(Baror International, Inc., Armonk, Nova York)
Título original: When the sacred ginmill closes
Projeto gráfico da capa João Baptista da Costa Aguiar
Foto da capa: Bel Pedrosa
Preparação: Cacilda Guerra
Revisão: Renato Potenza Rodrigues e Roberta Vaiano

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Block, Lawrence
Quando nosso boteco fecha as portas / Lawrence Block; tradução Maria Helena Rubinato
Rodrigues de Sousa. — São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Título original: When the sacred ginmill closes. ISBN 85-359-0741-6
1. Ficção policial e de mistério (Literatura norte-americana) i. Título.
05-7426
CDD-813
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção: Literatura norte-americana 813
2005

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Contracapa

LAWRENCE BLOCK nasceu em Buffalo, nos Estados Unidos, em 1938.


Suas mais de cinquenta obras lhe valeram o título de Grão-Mestre dos
Escritores de Mistério da América e inúmeros prêmios. Dele, a
Companhia das Letras publicou Bilhete para o cemitério, O ladrão que
achava que era Bogart, O ladrão que estudava Espinosa, O ladrão que
pintava como Mondrian, Uma longa fila de homens mortos, Os pecados
dos pais, Punhalada no escuro e Cidade pequena.

Em 1985, Scudder lê no jornal que Angel Herrera saiu da cadeia. A


notícia o transporta ao verão de 1975, época em que praticamente morava
no Armstrong's. Ele relembra seu bar favorito, os problemas dos amigos,
seu dia a dia tumultuado, a Nova York de dez anos antes e um Matthew
Scudder que não existe mais.
Como o próprio Lawrence Block sugere aos que ainda não conhecem
seu personagem, a leitura da série Scudder deveria começar por Quando
nosso boteco fecha as portas — embora não seja o primeiro livro com
Matt Scudder, é a melhor maneira de conhecer esse ex-tira, detetive
particular, homem decente que luta contra seus próprios demônios e contra
o submundo do crime em Nova York. Para os fãs de Scudder este é o livro-
chave, um reencontro muito esclarecedor com o detetive.
Para Kenneth Reichel
E assim se foi mais uma noite
Em poesia e histórias
E a todos colhe a solidão
Quando o boteco fecha as portas.

DAVE VAN RONK


1
Os vidros das janelas do Morrissey's eram pintados de preto. A
explosão foi tão forte e tão próxima que fez os vidros tremerem. Cortou as
conversas, congelou o garçom que passava, transformando-o numa estátua
com uma bandeja de drinques apoiada no ombro e um pé erguido no ar. O
estrondo que nos envolveu cessou lentamente, feito poeira quando baixa, e
por longos instantes depois disso o salão ficou silencioso, como em sinal
de respeito.
Alguém exclamou “Deus do céu!”, e logo depois muita gente voltou a
respirar normalmente. Na nossa mesa, Bobby Ruslander pegou um cigarro
e disse:
— Foi igual a uma bomba.
— Um rojão — disse Skip Devoe.
— Só isso?
— É o suficiente — Skip respondeu. — O rojão é uma arma poderosa.
Se a mesma quantidade de explosivo estiver envolvida em metal em vez
de papel, você terá uma arma e não um brinquedo. Acenda uma dessas
coisinhas e se esqueça de largá-la, e terá de aprender a fazer uma porção
de coisas com a mão esquerda.
— Parecia mais do que fogo de artifício — insistiu Bobby. —
Dinamite, ou uma granada, ou coisa que o valha. Parecia a maldita
Terceira Guerra Mundial, isso sim.
— Vejam o grande ator — Skip falou afetuosamente. — Vocês não
adoram este cara? Lutando nas trincheiras, desafiando colinas varridas
pelo vento, patinando na lama. Bobby Ruslander, veterano de mil batalhas,
com muitas cicatrizes.
— Você quer dizer cicatrizes feitas por garrafas — alguém falou.
— Tremendo artista — disse Skip, estendendo a mão para despentear o
cabelo de Bobby. — “Escutem! Ouço o rugido de um canhão.” Você
conhece essa piada?
— Fui eu que contei para você.
— “Escutem! Ouço o rugido de um canhão.” Quando foi que você
ouviu um tiro dado com raiva? Pessoal, da última vez que houve uma
guerra, Bobby apareceu com um bilhete do analista: “Caro Tio Sam, Favor
dispensar Bobby, ele fica transtornado com tiros”.
— Foi ideia do meu velho, Skip.
— Mas você tentou tirar a ideia da cabeça dele. “Me dê uma arma”,
você pediu. “Quero servir ao meu país.”
Bobby riu. Com um braço em torno da namorada, pegou o copo com a
mão livre.
— Eu só falei que parecia dinamite. Skip balançou a cabeça.
— Dinamite é diferente. São todos barulhos diferentes, diferentes tipos
de ruídos. Dinamite parece uma única nota alta e tem um som mais surdo
que o do rojão. Todas essas coisas fazem ruídos diversos. A granada é
completamente diferente, parece um acorde.
— O acorde perdido — disse alguém, e outro acrescentou: — Escutem
isso. Parece poesia.
— Eu ia chamar meu boteco de Ferraduras e Granadas — disse Skip.
— Belo nome — falou Billie Keegan.
— Meu sócio odiou — disse Skip. — Maldito Kasabian, ele falou que
não parecia nome de botequim, que parecia nome de butique de balas e
confeitos ou de uma dessas lojas do Soho que vendem brinquedos para
crianças de escolas particulares. Eu não sei. Ferraduras e Granadas.
Continuo gostando da ideia. Mas Bobby, se você quer mesmo conhecer os
diferentes barulhos desses artefatos, devia ouvir um morteiro. Peça um dia
ao Kasabian para contar sobre o morteiro. É uma história e tanto.
— Vou pedir.
— Ferraduras e granadas — Skip falou. — Esse é o nome que
devíamos ter dado ao boteco.
Em vez disso, ele e o sócio haviam chamado o lugar de Miss Kitty's. A
maioria das pessoas associava o nome ao seriado Gunsmoke, mas a
inspiração deles viera de um bordel em Saigon. Eu bebia mais
frequentemente no Jimmy Armstrong's, na Nona Avenida, entre as ruas 57
e 58. O Miss Kitty ficava na Nona, logo abaixo da 56, e era um pouco
maior e muito barulhento para o meu gosto. Nos fins de semana eu não ia
lá, mas bem tarde da noite, durante a semana, quando o salão já estava
mais vazio e menos barulhento, não era um lugar desagradável de se
frequentar.
Naquela noite eu já passara no Miss Kitty's mais cedo. Primeiro fora
ao Armstrong's, onde, lá pelas duas da manhã, éramos apenas quatro —
Billie Keegan atrás do balcão, eu na frente dele, mais duas enfermeiras já
bem calibradas depois de muitos Black Russians. Billie trancou tudo e as
enfermeiras saíram se equilibrando pela noite adentro; nós dois seguimos
para o Miss Kitty's, e, um pouco antes das quatro, Skip também fechara as
portas, e um grupo fora para o Morrissey's.
O Morrissey's só fechava lá pelas nove ou dez da manhã. A hora legal
para o fechamento de bares em Nova York é quatro da manhã, uma hora
antes nas noites de sábado, mas o Morrisseys's é um estabelecimento
ilegal e, portanto, não está sujeito a esse tipo de regras. Ficava no segundo
andar de um desses prédios de tijolos de quatro andares, na rua 57, entre a
Décima Primeira e a Décima Segunda Avenida. Mais ou menos um terço
dos apartamentos desses blocos fora abandonado, as janelas quebradas ou
tapadas com tábuas, e algumas de suas entradas interditadas por blocos de
concreto.
Os irmãos Morrissey eram donos de um dos prédios. Não devia ter
custado muito caro. Moravam nos últimos dois andares, alugavam o térreo
para um grupo irlandês. De teatro amador e vendiam, no segundo andar,
depois da hora legal de fechamento, cerveja e uísque. Haviam removido
todas as paredes internas do segundo andar para criar um espaço aberto,
mais amplo. Haviam retirado as camadas de tinta das paredes até deixar os
tijolos aparentes, lixado e esfregado com areia e ácido as largas tábuas de
pinho que cobriam o chão. Haviam instalado uma iluminação suave e
decorado as paredes com pôsteres da Aer Lingus e uma cópia da
proclamação da República Irlandesa proclamada por Pearse em 1916
(“Irlandeses e irlandesas, em nome de Deus e de gerações passadas…”).
Havia um pequeno balcão ao longo de uma parede e mais ou menos umas
vinte ou trinta mesas quadradas, com tábuas de açougue servindo como
tampo.
Juntamos duas mesas. Skip Devoe, Billie Keegan, barman do turno da
noite do Armstrong's, Bobby Ruslander e sua garota daquela noite, uma
ruiva sonolenta chamada Helen. Também um camarada chamado Eddie
Grillo, barman de um restaurante italiano da rua 40 e tantas Oeste, e um
outro sujeito chamado Vince, técnico de som ou coisa parecida na CBS.
Eu bebia bourbon, Jack Daniels ou Early Times, já que essas eram as
únicas marcas que os Morrissey serviam. Também trabalhavam com três
ou quatro marcas de uísque, Canadian Club, uma marca de gim e outra de
vodca. Duas cervejas, Bud e Heineken. Um conhaque e um par de licores
estranhos. Kahlúa era um deles, creio, pois muitas pessoas estavam
bebendo Black Russian naquele ano. Três marcas de uísque irlandês,
Bushmill's, Jameson e um chamado Power's, que ninguém pedia, mas pelo
qual os irmãos Morrissey tinham uma queda. Era de se imaginar que
favorecessem cervejas irlandesas, ao menos a Guinness, mas Tim Pat
Morrissey uma vez me disse que não gostava de Guinness em garrafa,
somente da tirada na hora, do barril, preta e forte. E, assim mesmo, só do
outro lado do Atlântico.
Eram homens grandes, os Morrissey, com testas largas e barbas ruivas
bem cerradas. Usavam calças pretas e botinas muito bem engraxadas,
camisas brancas com as mangas enroladas até o cotovelo e avental branco,
de açougueiro, do comprimento dos joelhos. O garçom, um jovem magro,
de rosto bem barbeado, usava a mesma indumentária, que nele ficava
parecendo uma fantasia. Creio que era primo deles. Penso que só mesmo
um parente aceitaria trabalhar ali.
Abriam sete dias na semana, das duas da manhã até as nove ou dez.
Cobravam três dólares por um drinque, o que era mais caro que em outros
bares, mas razoável em comparação com outros estabelecimentos ilegais,
e serviam doses generosas. A cerveja custava dois dólares. Preparavam a
maioria dos drinques conhecidos, mas não era lugar para você pedir um
pousse-café.
Acho que a polícia nunca deu trabalho aos Morrissey. Apesar de não
ter nenhum luminoso na porta, o lugar não era dos segredos mais bem
guardados da vizinhança. Os tiras sabiam de sua existência, e naquela
noite vi entre os fregueses uma dupla de patrulheiros de Midtown North e
um detetive que conhecera no Brooklyn anos antes. Havia dois negros no
salão. Eu sabia quem eles eram: um, vira na plateia em várias lutas de
boxe; seu acompanhante era um senador conhecido. Tenho certeza de que
os irmãos Morrisey pagavam propina para o bar permanecer funcionando,
mas também sabia que, além disso, eram bem relacionados, tinham
conexões com associações políticas locais.
Não punham água na bebida e serviam bons drinques. Referência
suficiente para qualquer sujeito que se preze.
Lá fora, explodiu outro rojão. Dessa vez foi mais longe, a um
quarteirão ou dois, e nenhuma porta bateu, nenhuma conversa foi
interrompida. Na nossa mesa, o cara da CBS queixou-se de estarem
antecipando as datas.
— Dia 4 é só na próxima sexta, não é? E hoje é o quê? Dia 1º?
— Já faz duas horas que estamos no dia 2.
— Então ainda temos dois dias. Qual é a pressa?
— Eles compram essas merdas desses fogos e aí ficam doidos para
soltar — Bobby falou. — Vocês sabem quem são os piores? Os cretinos
dos chinas. Fiquei um tempo com uma garota que vivia perto de
Chinatown. No meio da noite explodiam vesúvios, morteiros, qualquer
coisa. Não era só em julho, não. Em qualquer época do ano. Em matéria de
fogo de artifício, todo mundo é criança, lá.
— Meu sócio queria chamar o boteco de Little Saigon — disse Skip.
— Eu falei: “John, pelo amor de Deus, vão pensar que é um restaurante
chinês, você vai receber grupos de famílias de Rego Park pedindo mu gu
gai pan e o número dois da coluna B”. Ele me perguntou: “Que diabos
Saigon tem a ver com a China?”. Respondi: “John, eu sei, você sabe, mas
as pessoas de Rego Park, não; John, para elas uma ladeira é uma ladeira e
tudo somado dá um mu gu gai pan”.
— E as pessoas de Park Slope? — Billie perguntou.
— As pessoas de Park Slope? — Skip franziu a testa, pensando no
assunto. — As pessoas de Park Slope… — resmungou. — Danem-se as
pessoas de Park Slope.
A namorada de Bobby, Helen, disse em tom sério que tinha uma tia que
morava em Park Slope. Skip olhou para ela. Peguei meu copo. Estava
vazio e fiquei procurando o garçom de rosto liso ou um dos irmãos.
Foi por isso que eu estava olhando para a porta quando ela se abriu
abruptamente. O irmão que cuidava da portaria lá em baixo entrou aos
trambolhões e despencou em cima de uma mesa. Os drinques entornaram e
uma cadeira caiu.
Atrás dele, dois homens irromperam salão adentro. Um tinha mais ou
menos um metro e setenta e cinco. O outro era um pouco mais baixo.
Ambos magros. Vestiam jeans e tênis. O mais alto vestia uma jaqueta de
beisebol e o outro um anoraque azul real. Na cabeça, bonés de beisebol
com o logotipo dos times, no rosto, lenços vermelho sangue que
escondiam a boca e o nariz.
Cada um com uma arma na mão: uma pistola e uma automática de
cano longo. O da automática ergueu a arma e deu dois tiros no teto
revestido de alumínio lavrado. O barulho foi diferente de um rojão, ou
mesmo de uma granada.
Entraram e saíram rapidamente. Um deles foi para trás do balcão e
saiu com a caixa de charutos Garcia y Vega onde Tim Pat guardava a
receita da noite. Havia uma jarra de vidro em cima do balcão com uma
etiqueta manuscrita em que pediam contribuições para as famílias dos
membros do IRA presos na Irlanda do Norte. O sujeito retirou as notas lá
de dentro, deixou só as moedas.
Enquanto ele esvaziava a jarra, o mais alto apontava a arma para os
Morrissey e os obrigava a esvaziar os bolsos. Tirou o dinheiro das
carteiras e um maço de cédulas de Tim Pat. O mais baixo largou a caixa de
charutos e foi para o fundo do salão, de onde removeu um pôster da Aer
Lingus que retratava os rochedos de Moher, expondo um armário trancado.
Deu um tiro na fechadura, retirou um cofre de metal, enfiou-o debaixo do
braço, voltou para pegar a caixa de charutos, correu para a porta e
desabalou escada abaixo.
O comparsa dele continuou mantendo os Morrissey sob sua mira até o
outro sair do prédio. Tinha a arma apontada para o peito de Tim Pat, e por
um instante achei que ia atirar. Sua arma era a de cano longo, ele é quem
dera os tiros no teto, e se atirasse em Tim Pat dificilmente erraria.
Não havia nada que eu pudesse fazer.
De repente, o perigo passou. O pistoleiro respirou pela boca fazendo o
lenço vermelho balançar. Recuou até a porta e fugiu pela escada.
Ninguém se mexeu.
Então Tim Pat trocou breves palavras com um dos irmãos, o da
portaria. Este concordou com a cabeça e foi até o armário escancarado, no
fundo do salão. Fechou-o e tornou a colocar na parede o pôster dos
rochedos de Moher.
Tim Pat falou com o outro irmão, depois pigarreou.

— Senhores — disse, e alisou a barba com a enorme mão direita. —


Senhores, por favor, sua atenção por uns instantes, para que eu explique a
cena que acabam de presenciar. Dois bons amigos nossos vieram pedir uns
dólares emprestados, o que fizemos com prazer; nenhum de nós os
reconheceu ou prestou atenção em sua aparência. E tenho certeza de que
ninguém aqui neste salão os reconheceria, se pela graça de Deus
viéssemos a encontrá-los outra vez. — Passava as pontas dos dedos pela
testa, delicadamente, depois tornou a cofiar a barba. — Senhores —
continuou —, meus irmãos e eu ficaremos honrados se tomarem o
próximo drinque por conta da casa.
Os Morrissey ofereceram uma rodada para os clientes. Para mim,
bourbon. Um Jameson para Billie Keegan, uísque para Skip, conhaque
para Bobby e um uísque sour para a namorada dele. Uma cerveja para o
cara da CBS, um conhaque para Eddie, o barman. Drinques para todos —
tiras, políticos negros, um salão cheio de garçons, barmen e demais
frequentadores da noite. Ninguém se levantou, ninguém saiu. Afinal a casa
estava pagando uma rodada e havia uma dupla de sujeitos mascarados e
armados lá fora.
O primo barbeado e dois dos irmãos serviram os drinques. Tim Pat
ficou ali do lado com os braços cruzados por cima do avental e sem
nenhuma expressão no rosto. Depois de servir a todos, um dos irmãos
sussurrou alguma coisa no ouvido dele e apontou para a jarra de vidro, em
que só restava um punhado de moedas. O rosto de Tim Pat se anuviou.
— Senhores — falou, e o salão ficou em silêncio. — Senhores, durante
a confusão, roubaram dinheiro doado ao Norad, dinheiro destinado a
aliviar o infortúnio das mulheres e filhos dos prisioneiros políticos da
Irlanda do Norte. Nossa perda é nossa, minha e de meus irmãos, não
falaremos mais nela. Mas as pessoas do Norte, sem dinheiro para a
comida… — Parou para recuperar o fôlego e prosseguiu em voz mais
baixa. — Passaremos a jarra entre os senhores e, se alguém quiser
contribuir, que Deus o abençoe.

Talvez eu tenha ficado ali por mais meia hora, se tanto. Bebi o drinque
oferecido por Tim Pat e depois outro, o que foi mais do que suficiente.
Billie e Skip saíram junto comigo. Bobby e sua garota ainda iam ficar um
pouco mais. Vince já tinha ido embora e Eddie se juntara a outra mesa;
estava tentando seduzir uma garçonete alta que trabalhava no O'Neal's.
O céu estava claro, as ruas ainda vazias, silenciosas naquele início da
manhã.
— Bem, de todo modo o Norad conseguiu alguns dólares. Não havia
tanto dinheiro assim quando Frank e Jesse esvaziaram a jarra, e o pessoal
soltou uma boa quantia, que deu para encher a jarra de novo — foi o
comentário de Skip.
— Frank e Jesse?
— Ora, aqueles lenços vermelhos, pelo amor de Deus! Você sabe,
Frank e Jesse James. Mas antes só havia notas de um e de cinco dólares,
depois a jarra foi recheada por outras de dez e vinte, portanto as mulheres
pobres e as criancinhas do Norte se deram bem.
— Quanto é que vocês acham que os Morrissey perderam? —
perguntou Billie.
— Meu Deus, não sei. Aquele cofre podia estar cheio de apólices de
seguro e retratos da santa mãe deles, mas isso seria uma surpresa e tanto,
não? Aposto como saíram com uma boa quantia para enviar armas aos
audaciosos rapazes de Derry e Belfast.
— Você acha que os assaltantes eram do IRA, Skip?
— Sei lá — ele respondeu. Jogou o cigarro na sarjeta. — Acho que os
Morrissey são. Acho que é para lá que o dinheiro deles vai. Calculo…
— Ei, rapazes! Esperem!
Olhamos para trás. Um homem chamado Tommy Tillary nos chamava
lá da entrada dos Morrissey. Era um cara corpulento, de rosto cheio, peito
largo, barrigudo. Usava um blazer cor de vinho e calça branca. E uma
gravata. Era raro que estivesse sem gravata.
A mulher que o acompanhava era baixa e esguia, cabelo castanho-claro
iluminado por mechas ruivas. Vestia um jeans justo e desbotado e uma
blusa de abotoar cor-de-rosa com as mangas enroladas. Parecia muito
cansada e meio bêbada.
— Vocês conhecem a Carolyn? Claro que conhecem. —
Cumprimentamos. — Estou com o carro parado logo depois da esquina,
tem lugar para todos. Deixo vocês em casa.
— Está uma linda manhã — Billie disse. — Acho que prefiro ir
andando, Tommy.
— Ah, é?
Skip e eu dissemos a mesma coisa.
— Vamos rebater um pouco da bebida. Relaxar, para dormir melhor.
— Têm certeza? Não é trabalho nenhum. — Tínhamos certeza. —
Bem, vocês se importam de andar conosco até o carro? Aquela pequena
demonstração lá no bar, sabe, aquilo deixa a pessoa meio nervosa.
— Claro, Tom.
— Linda manhã, não? Vai ser um dia quente hoje, mas agora está uma
beleza. Eu jurava que ele ia atirar no, como é mesmo o nome dele, Tim
Pat. De onde vocês estavam dava para ver o olhar dele?
— Houve um momento em que qualquer coisa podia acontecer —
Billie comentou.
— Eu só pensava, vai haver um tiroteio, fogo cruzado, e comecei a
procurar uma mesa para me proteger. Diabo de mesinhas pequenas, não
têm muito espaço para a pessoa se esconder, não é?
— Muito pouco.
— E eu sou um alvo bem grande, certo? O que você está fumando,
Skip? Camel? Se não se importa, quero experimentar um. Fumo desses
com filtro, mas a essa hora da noite eles não têm gosto. Obrigado.
Imaginei coisas ou tinha uma dupla de policiais no salão?
— Alguns, pelo menos.
— Eles têm que portar armas estando ou não em serviço, não é? — Fez
essa pergunta diretamente para mim e eu concordei, confirmando que
havia um regulamento que dizia mais ou menos isso.
— Pensei que um deles fosse tentar alguma coisa.
— Você achou que eles iam atirar nos assaltantes?
— Achei que iam fazer alguma coisa.
— É uma boa maneira de matar pessoas — respondi. — Sair atirando
chumbo numa sala cheia como aquela.
— Com certeza haveria perigo de ricochete.
— Por que você está dizendo isso?
Ele me olhou, surpreso com o tom cortante da minha voz.
— Ora, por causa das paredes de tijolo, acho. Até os tiros no teto
podiam ter ricocheteado e causado algum estrago. Não podiam?
— Acho que sim. — Um táxi passou por nós de luminoso apagado,
com um passageiro no banco da frente. — Em serviço ou fora dele, um
policial não faria nada naquela situação, a não ser que alguém começasse a
atirar. Havia tiras ali, na hora, provavelmente com as mãos em suas armas.
Se aquele sujeito tivesse dado um tiro em Tim Pat, com certeza sairia pela
porta se desviando de algumas balas; isso se algum dos tiras tivesse o
bandido na linha de tiro.
— E se os tiras estivessem suficientemente sóbrios para enxergar
direito — Skip acrescentou.
— Faz sentido — disse Tom. — Matt, você não impediu um assalto
num bar alguns anos atrás? Alguém comentou isso.
— Foi um pouco diferente — respondi. — Eles mataram o barman
antes de eu poder reagir. E não espalhei balas lá dentro. Fui para a rua atrás
deles. — Fiquei pensando naquele dia e perdi um pedaço da conversa.
Quando voltei a prestar atenção, Tommy estava dizendo que também tinha
ficado com medo de ser assaltado.
— Tinha muita gente naquele salão. Gente que trabalha à noite,
pessoas que haviam fechado suas lojas e que deviam estar com dinheiro no
bolso. Dava para pensar que eles iam passar o chapéu, não acha?
— Imagino que estivessem com pressa.
— Eu só tinha umas poucas notas de cem, mas prefiro ficar com elas a
entregá-las a um sujeito mascarado. A pessoa fica aliviada por não ter sido
assaltada, e aí é muito generosa quando passam a jarra para, como é
mesmo o nome do troço? Norad? Dei vinte dólares para as viúvas e os
órfãos, não pensei duas vezes.
— Foi tudo encenação — Billie Keegan sugeriu. — Os sujeitos com os
lenços são amigos da família e apresentam aquele teatrinho a cada duas
semanas a fim de aumentar a caixinha do Norad.
— Nossa! — Tommy exclamou, rindo da teoria. — Isso seria o
máximo, não? Lá está o meu carro, o Riv. Uma barcaça, pode transportar
nós todos com conforto, se vocês mudarem de ideia e me deixarem levar
vocês para casa.
Permanecemos firmes em nosso propósito. O carro dele era um Buick
Riviera marrom, estofado em couro branco. Ele abriu a porta para Carolyn,
depois contornou o carro e destravou sua porta, fazendo uma careta ao ver
que ela tentava e não conseguia destrancar a porta do lado do motorista.
Depois que eles se foram, Billie comentou:
— Eles ficaram no Armstrong's até uma, uma e meia da manhã. Não
esperava vê-los de novo esta noite. Espero que ele não pretenda dirigir até
o Brooklyn.
— Eles moram lá?
— Ele mora lá — Billie explicou para Skip. — Ela é daqui, da
vizinhança. Ele é casado. Por acaso não usa aliança?
— Nunca reparei.
— Carolyn da Carolina. É assim que ele apresenta a moça. Ela estava
mesmo com uma cara horrível hoje, não?
Quando eles saíram, achei que estavam indo para a casa dela; pensando
bem, foi isso mesmo. Antes ela estava com um vestido escuro, não é,
Matt?
— Não me lembro.
— Posso jurar que sim. Roupa de trabalho, de todo jeito, não estava de
jeans e camisa da Brooks, como agora, Ele a levou em casa, os dois deram
uma trepada, aí ficaram com sede e, como naquela hora as lojas já estavam
fechadas, foram ao sempre aberto em horas tardias, T. P. Morrissey,
Proprietário. O que é que você acha, Matt? Levo jeito para detetive?
— Está indo muito bem.
— Ele vestiu a mesma roupa, mas ela trocou a dela. Agora a pergunta
é: irá ele para casa ao encontro da mulher ou dormirá na casa de Carolyn,
aparecendo pela manhã no escritório com a mesma roupa? E o único
problema é: quem está ligando para isso?
— Era o que ia perguntar — disse Skip.
— É… Mas tem uma coisa que ele perguntou e que também vou
perguntar. Por que será que eles não assaltaram os fregueses? Com certeza
muitos deles estavam com Centenas de dólares no bolso, alguns até mais
do que isso.
— Não valia à pena.
— Estamos falando de alguns mil dólares.
— Eu sei. Também de uns vinte minutos mais, se você quer fazer as
coisas direito, e isso num salão cheio de bêbados, com Deus sabe quantos
deles armados. Aposto que tinha umas quinze armas ali.
— Sério?
— Não apenas sério, como acho que estou calculando por baixo. Para
começo de conversa, tinha uns três ou quatro tiras. Eddie Grillo estava na
nossa mesa.
— Eddie anda armado?
— Eddie anda com uns caras da pesada, sem falar nos donos do bar
onde ele trabalha. Havia um tipo chamado Chuck. Não conheço ele bem,
trabalha no Polly's Cage.
— Sei quem é. Ele também anda armado?
— Ou isso, ou anda com uma ereção permanente e tem um corpo
esquisito. Acredite, muita gente anda armada por aí. Você diz para uma
sala cheia de gente para tirarem suas carteiras do bolso e muitos sacarão
os revólveres também. Enquanto isso, no caso de hoje, a ação não levou
mais do que cinco minutos. Acho que não levou mais do que isso, do
momento em que abriram a porta e atiraram no teto até saírem e deixarem
Tim Pat em pé, de braços cruzados e expressão carrancuda.
— Isso é verdade.
— E tudo que eles tirassem das carteiras dos fregueses seria pouco,
perto do que levaram.
— Você acha que a caixa estava tão recheada assim? Quanto você acha
que tinha lá dentro?
— Uns vinte mil — Skip respondeu, encolhendo os ombros.
— Sério?
— Vinte mil, cinquenta mil, sei lá.
— Dinheiro do IRA, você falou.
— Ora, no que mais você acha que eles gastam, Bill? Não sei quanto
faturam, mas têm um negócio que dá um bom retorno sete dias por
semana. E quais são as despesas deles? Provavelmente compraram o
prédio saldando impostos atrasados, moram lá, portanto não pagam
aluguel, e também não têm folha de pagamento para honrar. Tenho certeza
de que não declaram o que ganham e por isso não pagam imposto de
renda, a não ser que declarem que aquele teatro no térreo apresenta um
bom lucro e paguem uma taxa simbólica sobre isso. Com certeza faturam
de dez a vinte mil por semana. E no que vocês acham que eles gastam?
— Mas pagam para manter o bar funcionando — falei.
— Suborno e propinas, claro, mas não dez ou vinte mil por semana.
Não têm automóveis caros, e nunca saem para gastar um dólar que seja no
boteco de alguém. Não imagino Tim Pat comprando esmeraldas para
pendurar no pescoço de alguma garota, ou os irmãos dele enfiando fileiras
de cocaína naqueles narizes irlandeses.
— Viva os narizes irlandeses! — Billie exclamou.
— Gostei do pequeno discurso de Tim Pat e daquela rodada de cortesia
depois. Tanto quanto sei, essa é a primeira vez que os Morrissey oferecem
uma por conta da casa.
— Irlandeses desgraçados.
— Puxa, Billie, você está bêbado de novo.
— Louvado seja Deus, você tem razão.
— O que você acha, Matt? O Tim reconheceu o Frank e o Jesse?
Fiquei pensando.
— Não sei. O que ele disse foi: “Fiquem fora dessa história que a gente
acerta tudo entre nós”. Acho que tem política nessa história.
— Acertou na mosca! Os democratas reformistas estão por trás de tudo
— Billie falou.
— Talvez os protestantes — Skip acrescentou.
— Engraçado. Não pareciam protestantes.
— Ou alguma outra facção do IRA. Tem diferentes facções, não é
mesmo?
— Claro que a gente raramente vê protestantes de lenço vermelho
cobrindo o rosto. Normalmente eles enfiam no bolso de cima do paletó
— Nossa, Keegan.
— Protestantes desgraçados — Billie disse.
— Maldito Billie Keegan — Skip falou. — Matt, acho melhor a gente
levar esse bobalhão em casa.
— Armas desgraçadas — Billie voltou ao ataque de repente. — A
pessoa sai para um gole antes de dormir e quando vê, está cercada de
armas. Você anda armado, Matt?
— Eu não, Billie.
— Verdade? — Ele apoiou a mão no meu ombro para se equilibrar. —
Mas você é tira.
— Era.
— Tira privado, agora. Até o alugue-um-tira, o guarda de segurança
numa livraria, o cara que pede para você deixar a pasta na recepção antes
de entrar na loja, esse cara carrega uma arma.
— Geralmente é só para impor respeito.
— Você está querendo dizer que eu não vou levar um tiro se sair da
livraria com um exemplar de A letra escarlate no bolso? Você devia ter me
dito isso antes de eu ir lá, comprar e pagar. Verdade que não anda armado?
— Outra ilusão despedaçada — disse Skip.
— E quanto ao seu amigo, o ator? — Billie perguntou a Skip. — O
pequeno Bobby é pistoleiro?
— Quem, o Ruslander?
— Ele seria capaz de dar um tiro nas suas costas.
— Se o Ruslander carregasse uma arma — Skip falou —, seria uma
arma de fantasia. Só tiros de festim.
— Atiraria nas suas costas — Billy insistiu. — Como aquele sujeito, o
Bobby the Kid.
— Você quer dizer Billy the Kid.
— Quem é você, para me dizer o que eu quero dizer? Afinal, ele tem
ou não?
— Ele tem o quê?
— Uma arma no bolso, pelo amor de Deus. Não era sobre isso que
estávamos falando?
— Deus do Céu, Keegan, não me pergunte sobre o que a gente estava
falando.
— Quer dizer que nenhum dos dois estava prestando atenção? Minha
nossa!

Billy Keegan morava num prédio alto na rua 56, perto da Oitava. Ao se
aproximar de casa, aprumou-se e aparentou estar suficientemente sóbrio
ao cumprimentar o porteiro.
— Matt, Skip — falou. — Até mais.
— O Keegan é boa praça.
— Ele é um bom homem — falei.
— Não estava tão bêbado quanto queria fazer acreditar. Estava era se
divertindo, curtindo.
— Claro.
— Nós temos uma arma atrás do balcão no Miss Kitty's, sabe. Já
fomos assaltados, no bar onde eu trabalhava antes que John e eu
abríssemos nosso negócio. Era eu quem estava atrás do balcão naquela
noite, naquele bar da Segunda Avenida, na altura das ruas 80. Um
camarada apareceu, um sujeito branco, enfiou uma arma na minha cara e
retirou o dinheiro da caixa. Assaltou os fregueses também. Eram cinco ou
seis pessoas, só, naquela hora, mas ele levou as carteiras de todo mundo e
acho que os relógios também. Serviço completo.
— Pelo jeito.
— Durante todo o tempo em que estive bancando o herói no Vietnã,
naquelas malditas Forças Especiais, nunca tive de encarar tão de perto o
cano de uma arma. Na hora, não senti nada, mas depois fiquei furioso,
entende? Fiquei enfurecido. Saí, comprei uma pistola, e desde então ela
fica comigo quando estou trabalhando. Naquele boteco e agora no Miss
Kitty's. Ainda acho que devíamos ter chamado o bar de Ferraduras e
Granadas.
— Você tem porte?
— Para a arma? — Ele fez que não com a cabeça. — Não está
registrada. Quando você trabalha numa taberna, não é nada difícil
descobrir onde ir para comprar uma arma. Levei dois dias fazendo
perguntas e no terceiro lá estava eu com menos cem dólares no bolso. Já
fomos assaltados, depois que abrimos nosso bar. Era o turno do John, mas
ele deixou a arma quietinha no lugar e entregou todo o dinheiro da gaveta.
O cara não assaltou os clientes. John achou que era um drogado, disse que
só se lembrou da arma depois que o rapaz saiu. Pode ser, mas também
pode ser que ele tenha achado melhor não fazer uso dela. Provavelmente
eu faria a mesma coisa, não sei. A gente nunca sabe ao certo até acontecer,
não é?
— É verdade.
— Você não tem mesmo nenhuma arma desde que saiu da polícia?
Dizem que, depois de anos de uso, o cara se sente nu quando está
desarmado.
— Eu não. Sinto como se tivesse me livrado de um peso.
— Pessoal, vou é largar minha carga. Foi isso que você sentiu?
— Mais ou menos isso.
— É… Ele não teve nenhuma intenção, sabe? Quando falou no
ricochete.
— O quê? Ah, o Tommy.
— Tommy Tillary, o Durão. Meio babaca, mas não é um mau sujeito.
Chamá-lo de Tommy Durão é como chamar um camarada grande de
Miudinho. Tenho certeza de que não falou por mal.
— Sei que não.
— Tommy Durão. Ele tem outro apelido.
— Telefone Tommy.
— Ou Tommy Telefone. Ele vende merda pelo telefone. Eu não sabia
que homens adultos trabalhavam nisso. Achava que era para donas de casa,
que faturam uns trinta e cinco centavos por hora.
— Parece que pode ser lucrativo.
— Evidente. Você viu o carrão. Nós todos vimos o carro. Não vimos a
moça abrir a porta para ele, mas vimos o carro. Matt, você não quer subir e
tomar a saideira comigo, antes de darmos o dia por encerrado? Tenho
uísque e bourbon e provavelmente alguma comida no freezer.
— Acho que prefiro ir pra casa, Skip. Mas obrigado. — Você está
certo. — Acendeu um cigarro. Ele morava no Parc Vendôme, do outro lado
da rua e a algumas portas a oeste do meu hotel. Jogou o cigarro fora,
apertamos as mãos, e nesse exato instante cinco ou seis tiros soaram a um
quarteirão e pouco de onde estávamos.
— Meu Deus! Isso foi um tiroteio ou meia dúzia de fogos? Você
consegue distinguir uns dos outros?
— Não — respondi.
— Nem eu. Provavelmente fogos, considerando-se o dia em que
estamos. Ou então os Morrissey alcançaram o Frank e a Jesse ou lá sei eu.
Hoje é dia 2, não é? Dia 2 de julho?
— Acho que sim.
— Vai ser um verão e tanto.
2
Tudo isso aconteceu há muito tempo.
Foi no verão de 1975 e, olhando para trás, num contexto mais amplo,
parece que foi uma estação na qual nada de muito importante aconteceu. A
renúncia de Nixon tinha sido no ano anterior, e o ano seguinte nos traria a
convenção, as campanhas, as Olimpíadas e o bicentenário.
Enquanto isso, Ford estava na Casa Branca, uma presença
curiosamente reconfortante, mesmo não sendo muito convincente. Um
sujeito chamado Abe Beame ocupava a Gracie Mansion; sempre achei que
ele na verdade não acreditava que era o prefeito de Nova York, assim
como Gerry Ford também nunca acreditou que era o presidente dos
Estados Unidos da América.
Lá pelo meio de seu mandato, Ford se recusou a ajudar Nova York, que
atravessava uma grave crise financeira, e a manchete do News foi: “Ford
para a cidade: Dane-se!”.
Me lembro da manchete, mas não sei se a li antes, no meio ou no fim
daquele verão. Li a manchete. Raramente deixava de ler o News; pegava a
edição da manhã a caminho de casa ou lia uma edição posterior enquanto
tomava o café da manhã. De vez em quando também lia o Times, quando
havia um caso que eu estivesse acompanhando, mas era mais frequente
comprar o Post à tarde. Nunca prestava muita atenção no noticiário
internacional ou político ou em qualquer coisa fora esportes e crimes
locais, mas pelo menos tinha uma noção do que se passava no mundo, e é
curioso como tudo se apagou inteiramente de minha memória.
Do que é que me lembro? Bem, três meses depois do salto ao
Morrissey's, o Cincinnati disputou uma série de jogos com o Red Sox.
Lembro-me disso e do home run de Fisk no sexto jogo, e de Pete Rose, que
disputou Série completa como se todo o destino da humanidade
dependesse de seu arremesso. Nenhum dos times de Nova York chegou à
final, mas, além disso, não me lembro se jogaram bem ou mal, e olha que
assisti a uma meia dúzia de jogos. Levei meus garotos ao Shea umas duas
vezes também fui a alguns jogos com amigos. O Stadium estava sendo
reformado naquele ano e ambos, o Mets e o Yankees, jogavam no Shea.
Billie Keegan e eu assistimos o Yankees jogando contra um time qualquer,
disso eu me lembro, um jogo que foi interrompido porque alguns imbecis
jogaram lixo no campo.
Será que Reggie Jackson já era dos Yankees naquele ano? Em 1973 ele
ainda estava em Oakland, jogando para O Charlie Finley, pois me lembro
daquela série, com o Mets perdendo feio. Mas quando foi que Steinbrenner
comprou Charlie Finley para o Yankees?
Que mais? Boxe?
O Ali lutou naquele verão? Assisti à segunda luta de Norton em
circuito fechado, aquela em que Ali sai do ringue com o maxilar fraturado
e uma decisão imerecida, mas isso foi no mínimo um ano antes, não foi? E
depois vi Ali bem de perto, sentado nas primeiras filas do Madison Square
Garden. Earnie Shavers lutou contra Jimmy Ellis, nocauteando o outro
logo no início do primeiro assalto. Pelo amor de Deus, eu me lembro do
soco que derrubou Ellis, lembro-me do olhar da mulher dele, sentada duas
filas depois da minha, mas em que ano foi isso?
Não foi em 1975, tenho certeza. Devo ter assistido às lutas desse ano.
Quem será que eu vi?
Isso tem importância? Acho que não. Se tivesse, eu poderia ir à
biblioteca e pesquisar no arquivo do Times, ou então procurar um
almanaque daquele ano. Mas lembro-me de tudo o que é preciso lembrar.
Skip Devoe e Tommy Tillary. São os rostos que vejo quando me
lembro do verão de 75. Eles se tornaram a cara da estação.
Eram meus amigos?
Eram, mas amigos de bar. Eu raramente os via — aliás, raramente via
fosse quem fosse, naqueles dias —, a não ser em locais onde estranhos se
reúnem para beber. Naquela época eu ainda bebia, claro, e já estava no
ponto em que a bebida fazia (ou parecia fazer) mais a mim do que por
mim.
Poucos anos antes, meu mundo se estreitara como se movido por
vontade própria, até limitar-se a apenas algumas quadras ao sul e a leste da
Columbus Circle. Deixara um casamento de doze anos e dois filhos,
mudando-me de Syosset, que fica em Long Island, para meu hotel, que
fica na rua 57, Oeste, entre as avenidas Oitava e Nona. Mais ou menos na
mesma época eu deixara o Departamento de Polícia de Nova York, onde
investira quase que o mesmo número de anos, com quase nada para
mostrar como resultado de ambas as experiências. Eu me sustentava e
enviava cheques para Syosset sem regularidade alguma, prestando
serviços para algumas pessoas. Não era um detetive particular — estes
têm que ter licença, preencher relatórios e prestar contas ao fisco. Fazia
favores para as pessoas, elas me davam dinheiro, meu aluguel estava
sempre em dia, tinha dinheiro para beber e, de vez em quando, conseguia
enviar pelo correio um cheque para Anita e os meninos. Meu mundo,
como já disse, encolhera geograficamente, e dentro daquela área se
limitava, em grande parte, ao quarto onde eu dormia e aos bares em que
passava a maioria das minhas horas. Havia o Morrissey's, mas lá eu não ia
com tanta frequência. Era mais comum ir para a cama lá pela uma, duas da
manhã; às vezes ficava até a hora de os bares fecharem, e muito raramente
ia a um desses que ficam abertos a noite inteira.
Havia o Miss Kitty's, bar do Skip Devoe. Na mesma quadra do meu
hotel ficava o Polly's Cage, forrado com um papel de parede de bordel
pontilhado de vermelho, frequentado por pessoas que iam tomar um
drinque depois do trabalho, a maioria saindo lá pelas dez, dez e meia; e o
McGovern's, uma sala estreita e sem graça, com lâmpadas aparentes e
fregueses que não trocavam uma palavra sequer. Às vezes eu dava um pulo
lá, em manhãs mais difíceis, para um drinque rápido, e a mão do barman
quase sempre tremia enquanto ele me servia.
No mesmo quarteirão havia dois restaurantes franceses, um ao lado do
outro. Um deles, o Mont St. Michel, vivia semivazio. Algumas vezes,
durante esses anos, levei mulheres para jantar lá e também fui sozinho
para tomar um drinque no bar. O estabelecimento ao lado tinha melhor
reputação e clientela maior, mas acho que nunca entrei lá.
Na Décima Avenida havia um lugar chamado Slate. Frequentado por
muitos policiais de Midtown North e do John Jay College, e era lá que eu
ia quando queria papear com gente desse grupo. O filé era bom e o
ambiente confortável. Na Broadway com a 60 havia o Martin's Bar, com
drinques baratos e um bom bife de carne enlatada com presunto, que
ficava num balcão aquecido a vapor; tinha uma televisão em cores grande
em cima do bar, e não era um mau lugar para se assistir a um jogo de
beisebol.
Do outro lado do Lincoln Center ficava o O'Neal's Baloon — uma
antiga lei, ainda em vigor naquele ano, proibia chamarem um bar de
saloon e, como os donos desconheciam essa lei quando encomendaram a
tabuleta, só mudaram a primeira letra e ficou por isso mesmo. De vez em
quando eu ia lá à tarde, mas à noite era muito moderninho e animado para
o meu gosto. Havia o Antares and Spiro's, um grego, na esquina da Nona
com a 57. Não fazia muito o meu gênero, com aquele monte de bigodudos
bebendo ouzo, mas, como eu passava pela porta todas as noites, às vezes
entrava para tomar um drinque rápido.
Havia a banca de jornais que nunca fechava, na esquina da 57 com a
Oitava. Geralmente comprava meu jornal ali, a não ser que o comprasse da
velha senhora com sua sacola, que apregoava os jornais em frente à Deli
400. Ela os comprava na banca por quarenta centavos cada — acho que
naquele ano todos custavam o mesmo preço, ou talvez o News custasse
apenas vinte — e os revendia pelo mesmo preço, o que é uma maneira
duríssima de ganhar a vida. Algumas vezes eu lhe dava um dólar e dizia
que guardasse o troco. Seu nome era Mary Alice Redfield, coisa que só
vim a saber uns anos mais tarde, quando alguém a matou a facadas.
Havia também a cafeteria chamada Red Flame, a delicatessen 400,
dois bons quiosques que vendiam fatias de pizza e um que vendia um filé
com queijo ao qual ninguém ia duas vezes.
Tinha também um lugar que servia espaguete, o Ralph's, e uns dois
restaurantes chineses. E um outro, tailandês, pelo qual Skip Devoe era
apaixonado. Na 58 ficava o Joey Farrell's — esses tinham acabado de abrir
no inverno anterior. Havia, essa é que é a verdade, lugares de todos os
tipos.
Porém, mais importante do que todos os outros, havia o Armstrong's.
Meu Deus, eu vivia lá. Tinha meu quarto para dormir e outros bares e
restaurantes aonde ir, mas durante alguns anos o Jimmy Armstrong's foi a
minha casa. As pessoas que procuravam por mim sabiam onde me
encontrar, e às vezes telefonavam primeiro para o Armstrong's, depois
para o hotel. Abria lá pelas onze, com um garoto filipino chamado Dennis,
que ficava atrás do bar durante o dia. Billie Keegan pegava o leme mais ou
menos às sete e ficava até as duas, três ou quatro da manhã, dependendo
do movimento e de como ele se sentisse. (Essa era a rotina dos dias de
semana. Nos fins de semana, havia barmen diferentes, um para o dia e
outro para a noite, e sua rotatividade sempre foi alta).
As garçonetes iam e vinham. Arranjavam trabalho como atrizes,
brigavam com os namorados, começavam novos namoros, se mudavam
para Los Angeles, voltavam para casa em Sioux Falls, brigavam com o
rapaz dominicano cozinha, eram mandadas embora por roubar, ficavam
grávidas. O próprio Jimmy pouco apareceu naquele Iocal. Acho que esse
foi o ano em que ele andou procurando terra para comprar na Carolina do
Norte.
O que posso dizer sobre o lugar? Um balcão comprido lado direito de
quem entra, mesas do lado esquerdo. Toalhas em xadrez azul e branco. As
paredes forradas de madeira escura, decoradas com quadros e alguns
anúncios emoldurados, retirados de revistas antigas. Na parede dos fundos,
destoando completamente do resto, uma cabeça de veado empalhada,
minha mesa favorita ficava bem embaixo, assim eu não precisava olhar
para aquela coisa.
A clientela era variada… Médicos e enfermeiras do hospital
Roosevelt, bem do outro lado da rua. Professores e estudantes da Fordham.
Pessoal dos estúdios de televisão — a CBS ficava a uma quadra e a ABC
um pouquinho mais longe. Pessoas que moravam por ali, ou que tinham
lojas na vizinhança. Alguns músicos clássicos. Um escritor. Dois irmãos
libaneses que tinham acabado de abrir uma loja de calçados.
Poucos jovens. Quando me mudei para aquela área, O Armstrong's
tinha uma jukebox com uma boa seleção de jazz e de country blues, mas
Jimmy logo retirou a máquina e a substituiu por um conjunto
estereofônico e fitas cassetes com músicas clássicas. Isso afastou a
clientela jovem, para alegria das garçonetes, que detestavam os garotos
por ficarem até muito tarde, bebendo pouco e dando pouca ou nenhuma
gorjeta. Também manteve o nível de ruído bem mais baixo, tornando o
ambiente mais apropriado para a pessoa ficar por ali bebendo devagar, e
por mais tempo.
Era para isso que eu ia lá. Gostava de ficar no limite, mas não queria
ficar embriagado, a não ser de vez em quando. Normalmente, eu punha
bourbon no café, só passando a tomar o drinque puro lá pelo fim da noite.
Lá eu podia ler meu jornal, comer um hambúrguer ou uma refeição
completa, conversar pouco ou muito, conforme me desse na veneta. Não
ficava lá o dia inteiro nem a noite inteira, mas raro era o dia em que não
passava por lá ao menos uma vez, e houve dias em que cheguei logo
depois de Dennis abrir as portas e ainda estava lá quando Billie as fechou.
Todo mundo tem que estar em algum lugar.
Amigos de bar.
Conheci Tommy Tillary no Armstrong's. Era freguês assíduo, capaz de
aparecer três ou quatro vezes por semana. Não me lembro da primeira vez
em que o vi, mas era difícil estar na mesma sala e não notá-lo. Era um
sujeito grande, que falava alto. Não tinha voz estridente, mas depois de
alguns drinques ela preenchia o ambiente.
Comia muita carne e bebia muito Chivas Regai e seu rosto revelava
isso. Devia estar perto dos quarenta e cinco anos. Começava a adquirir
queixo duplo e em suas bochechas brotava uma rede de finíssimos
capilares.
Nunca soube por que o chamavam de Tommy Durão. Talvez Skip
tivesse razão, talvez a intenção fosse irônica. Chamavam-no de Tommy
Telefone por causa de seu emprego. Ele trabalhava em vendas pelo
telefone, tentando captar investidores para uma corretora fajuta, lá pelos
lados de Wall Street. Parece que as pessoas trocam muito de emprego
nesse ramo de trabalho. A habilidade de captar dólares de estranhos
através do telefone é um talento muito especial, e seus possuidores podem
arranjar emprego a qualquer hora, trocando de um empregador para outro
à vontade.
Naquele verão Tommy trabalhava para um grupo chamado Tannahill &
Company, vendendo parcerias limitadas em imobiliárias sindicalizadas.
Eram vantajosas nos impostos, imagino, e havia a perspectiva de ganhos
de capital. Deduzi isso tudo, porque Tommy jamais falou sobre o assunto
no bar, comigo ou com qualquer outra pessoa. Uma vez eu estava por perto
quando um obstetra residente do St. Roosevelt tentou lhe fazer algumas
perguntas sobre suas Sitas. Tommy o afastou com uma piada.
— Não, estou falando sério — o médico insistiu. — que enfim estou
ganhando algum, e preciso começar a pensar em investir.
Tommy levantou os ombros.
— Você tem um cartão? — O médico não tinha. — Então escreva seu
nome aqui e anote também qual a melhor hora para lhe telefonar. Se você
quer umas dicas, eu lhe telefono e lhe dou o tratamento completo. Mas já
vou avisando, sou irresistível ao telefone.
Algumas semanas mais tarde os dois se encontraram e o residente se
queixou de que Tommy não o havia procurado.
— Juro que não foi por falta de vontade. Olhe, vou anotar isso já, já.
Era uma companhia aceitável. Contava piadas com sotaques e as
contava razoavelmente bem, e eu participava idas risadas. Suponho que
algumas fossem ofensivas, mas (raramente tinham espírito mesquinho.
Quando eu sentia vontade de recordar meus dias na polícia, ele era um
bom ouvinte, e se a história que eu estava contando era engraçada, ele ria
mais alto do que qualquer outro.
Em resumo, era escandaloso demais e alegre demais. Falava em
demasia e isso podia dar nos nervos da gente. Como já mencionei,
aparecia no Armstrong's três ou quatro vezes por semana, e na maioria das
vezes ela o acompanhava. Carolyn Cheatham, Carolyn da Carolina, com
sua voz suave, discreta e que, como certas ervas, ficava mais forte quando
você a embebia em álcool. Às vezes ela entrava de braço dado com ele.
Outras, ele chegava só e ela aparecia mais tarde. Ela morava por ali e os
dois trabalhavam no mesmo lugar. Imaginei — se é que parava para pensar
nisso — que o romance iniciado no escritório é que levara Tommy para o
Armstrong's.
Ele acompanhava os esportes. Apostava com um bookmaker — a
maioria das vezes nos jogos de bola, mas às vezes nos cavalos — e sempre
contava quando ganhava. Era um pouco íntimo demais,
indiscriminadamente amigável, e de vez em quando se percebia um gelo
em seus olhos que desmentia a cordialidade da voz. Tinha olhos pequenos
e frios e a boca meio mole, denotando certa fraqueza, mas nada disso
afetava sua voz.
Dava para perceber como podia ser persuasivo pelo telefone.

O primeiro nome de Skip Devoe era Arthur, mas Bobby Ruslander foi
a única pessoa que ouvi chamá-lo dessa forma. Bobby podia. Eram amigos
desde a quarta série do fundamental, cresceram juntos no mesmo
quarteirão de Jackson Heights. Skip fora batizado Arthur Jr., mas cedo
adquirira seu apelido. Skip explicava.
— Eu tinha um tio na Marinha e nunca me livrei disso — contou-me
uma vez. — Irmão da minha mãe. Comprava roupinhas de marinheiro,
barcos de brinquedo, tudo isso para mim. Eu tinha uma frota inteira e ele
me chamava de Skipper, e em pouco tempo todo mundo começou a fazer o
mesmo. Podia ter sido pior.
Tinha trinta e quatro, trinta e cinco anos, mais ou menos a minha
altura, mas era magro e forte. As veias saltavam em seus braços e no dorso
das mãos. Não havia nem um grama de carne excedente em seu rosto e a
pele seguia a curva do maxilar, dando-lhe um rosto esculpido. Tinha nariz
de águia e olhos penetrantes, de um azul que continha um pouco de verde
sob certas luzes. Tudo isso combinado com uma segurança e um
desembaraço que o tornavam bastante atraente para as mulheres;
raramente ia sozinho para casa, se quisesse companhia naquela noite. Mas
morava só e não tinha compromisso com ninguém; parecia preferir a
companhia habitual de outros homens. Tinha sido casado ou vivido com
alguém, mas aquilo terminara alguns anos antes e ele parecia sem vontade
de envolver-se novamente.
Tommy Tillary era chamado de Tommy Durão e tinha uns traços de
durão em suas atitudes. Skip Devoe era verdadeiramente durão, mas você
precisava perceber isso por debaixo da superfície. Não estava à mostra.
Ele servira nas Forças Armadas; não na Marinha, para a qual seu tio
tanto tentara atraí-lo, mas nas Forças Especiais do Exército, os boinas-
verdes. Alistou-se assim que saiu do secundário; mandaram-no para o
sudeste asiático durante os anos Kennedy. Deu baixa no final dos anos 60,
tentou uma faculdade, mas largou em seguida e começou a trabalhar atrás
do balcão de um single's bar no Upper East Side. Depois de uns dois anos,
ele e John Kasabian juntaram suas economias e arrendaram, por um longo
período, um galpão onde os antigos locatários costumavam vender
ferramentas; gastaram tudo o que tinham reformando o local e abriram o
Miss Kitty's.
Eu o via ocasionalmente em seu bar, mas mais frequentemente no
Armstrong's, onde ele aparecia quando não estava trabalhando. Uma
companhia agradável, de convívio fácil; era preciso muito para tirá-lo do
sério.
Havia alguma coisa nele, no entanto. Creio que era um ar de fria
competência. A gente sentia que ele era capaz de enfrentar fosse lá o que
fosse, e sem muito esforço. Dava a impressão de ser um homem que sabia
agir, de alguém que conseguia tomar decisões rápidas durante a ação.
Talvez tivesse adquirido essa qualidade usando uma boina verde no Vietnã,
ou talvez eu lhe atribuísse isso por saber que ele estivera lá.
Encontrei muitas vezes essa característica em criminosos. Conheci
muitos assaltantes armados que a possuíam, homens que tinham roubado
bancos e carros-fortes. Houve um caminhoneiro, desses que fazem longas
viagens transportando cargas, que também era assim. Eu o conheci depois
que ele voltou da costa Oeste antes do dia previsto e encontrou a mulher
na cama com o amante. Ele os matou com as próprias mãos.
3
Não saiu nada nos jornais sobre o assalto ao Morrissey's, mas durante
alguns dias, nas redondezas, o caso foi muito comentado. A perda que Tim
Pat e seus irmãos tinham sofrido aumentava dia a dia. Os números que
ouvi iam de dez mil a cem mil. Como somente os Morrissey e os bandidos
sabiam ao certo, e nenhum deles ia falar, uma quantia era tão boa quanto
qualquer outra.
— Creio que perderam cinquenta — Billie Keegan comentou comigo
na noite de 4 de julho. — Essa é a quantia mais mencionada. Claro que
estava quase todo mundo lá.
— O quê?
— Até agora ao menos três sujeitos me garantiram que estavam lá
quando tudo aconteceu e eu, que estava lá, posso jurar que eles não
estavam. E eles podem fornecer detalhes que me escaparam. Você sabia
que um dos facínoras saiu estapeando uma mulher?
— Realmente…
— Foi o que me contaram. Ah! E um dos irmãos Morrissey levou um
tiro, mas foi apenas um ferimento superficial. Pensei que já tivesse sido
um bocado emocionante da maneira como tudo se passou, mas parece que
é mais dramático quando você não está presente. Sabe, dez anos após o
levante de 1916, dizem que era muito difícil encontrar um homem em
Dublin que não tivesse participado de tudo. Aquela gloriosa manhã de uma
segunda-feira de abril, quando os Correios foram invadidos por trinta
bravos que, ao saírem, eram dez mil. O que é que você acha, Matt?
Cinquenta está bom para você?
Tommy Tillary estava lá também e pensei que ele fosse deitar e rolar
em cima do assunto. Talvez tenha feito isso mesmo. Mas eu não o vira
durante alguns dias e, quando nos reencontramos, ele nem ao menos
mencionou o salto. Tinha descoberto uma maneira de se apostar no
beisebol, é o que andava contando para todo mundo. Você aposta contra o
Mets e o Yankees e eles vão sempre fazer você ganhar.
No início da semana seguinte, Skip apareceu no Armstrong's no meio
da tarde e me encontrou em minha mesa no fundo. Apanhara uma cerveja
preta no bar e se aproximou com ela na mão. Sentou-se em frente a mim e
contou que estivera no Morrissey's na noite anterior.
— Não vou lá desde aquela noite — comentei.
— Bem, ontem foi a primeira vez que voltei. Consertaram o teto. Tim
Pat perguntou por você.
— Por mim?
— Hum, hum. — Acendeu um cigarro. — Disse que apreciaria muito
se você desse um pulinho lá.
— Para quê?
— Ele não disse. Você é detetive, não é? Talvez queira que você
descubra alguma coisa. Quanto você calcula que ele possa ter perdido?
— Não quero me envolver nessa história.
— Não me diga.
— Uma guerra irlandesa, é justo o que eu preciso. Ele encolheu os
ombros.
— Você não precisa ir. Ele pediu que você aparecesse lá qualquer
noite, depois das oito.
— Tenho a impressão que eles dormem até essa hora.
— Se é que dormem.
Bebeu um pouco de cerveja, limpou o lábio superior com as costas da
mão.
— Você foi lá ontem à noite, Skip? Como é que estava?
— Como sempre está. Já contei que restauraram o teto, fizeram um
bom trabalho, pelo menos não se percebe nada. Tim Pat e seus irmãos
estavam iguais ao que sempre são. Eu apenas disse que transmitiria o
recado da próxima vez que nos encontrássemos. Agora é com você.
— Acho que não vou, não.
Mas na noite seguinte, lá pelas dez, dez e meia, pensei, que diabos!, e
resolvi ir. No térreo, o grupo teatral ensaiava The quare fellow, de Brendan
Behan. A estreia estava marcada para a noite de quinta-feira. Toquei a
campainha do segundo andar e esperei até que um dos irmãos descesse.
Ele entreabriu a porta Falou que ainda estavam fechados e que só abririam
às duas. Disse-lhe que meu nome era Matthew Scudder e que Tim Pat teria
dito que queria me ver.
— Desculpe, não o reconheci nessa luz — ele respondeu. — Entre, que
vou dizer a ele que você está aqui.
Esperei no salão do segundo andar. Examinava o teto, procurando por
buracos de bala, quando Tim Pat entrou e acendeu algumas luzes. Estava
vestido com a roupa de costume, mas sem o avental de açougueiro.
— Que bom que você veio. Toma um drinque comigo. Você bebe
bourbon, não é?
Ele serviu os drinques e nos sentamos em uma das mesas. Pode ter
sido aquela em que seu irmão se estatelou quando entrou aos empurrões.
Tim Pat levantou seu copo contra a luz, inclinou-o para trás e o esvaziou.
— Você estava aqui na noite do incidente.
— Estava.
— Um daqueles infelizes deixou um boné para trás, mas infelizmente
sua mãe não costurou uma etiqueta nele, portanto é impossível devolvê-lo.
— Imagino.
— Se ao menos eu soubesse quem ele é e onde encontrá-lo, poderia
fazer com que ele recebesse de volta o que por direito é dele.
Aposto que sim, pensei.
— Você foi policial.
— Mas não sou mais.
— Mas pode ouvir algum comentário. As pessoas falam, não é, e um
homem que mantém os ouvidos e os olhos abertos pode se dar muito bem.
Eu não disse nada.
Ele penteou a barba com os dedos.
— Meus irmãos e eu — falou, com os olhos fixos num ponto acima de
meu ombro — gostaríamos muito de pagar dez mil dólares pelos nomes e
paradeiro desses dois rapazes que nos visitaram na outra noite.
— Apenas para lhes devolver um chapéu.
— Ora, nós temos nossas obrigações. Não foi o seu George
Washington quem caminhou milhas pela neve, para devolver um centavo a
um freguês?
— Acho que foi Abraham Lincoln.
— Tem razão. George Washington foi o outro, o da cerejeira. “Pai, não
posso contar uma mentira.” Os heróis desta terra são exemplos de
honestidade.
— Costumavam ser.
— Tempos depois, ele mesmo, garantindo a todos que não era uma
pessoa incorreta. Deus do céu. — Sacudiu sua grande cabeça. — Então,
você acha que poderá nos ajudar?
— Não vejo como.
— Você estava aqui e os viu.
— Tinham o rosto e a cabeça cobertos. Na verdade, poderia jurar que
ambos continuavam com seus bonés na cabeça quando saíram daqui. Você
não acha que pode ter encontrado o boné de outra pessoa?
— Talvez o rapaz o tenha deixado cair na escada. Se você ouvir alguma
coisa, Matt, você nos dirá?
— Por que não?
— Você descende de irlandeses, Matt?
— Não.
— Pensei que um de seus antepassados fosse de Kerry. Os homens de
Kerry são famosos por responderem a uma pergunta com outra pergunta.
— Não sei quem eles eram, Tim Pat.
— Mas se você souber de alguma coisa…
— Se eu souber de alguma coisa…
— Você não tem nenhuma queixa quanto à quantia? Está bem para
você?
— Nenhuma queixa. É uma quantia justa.

Era uma boa quantia, não obstante ser justa ou não. Foi o que eu disse
ao Skip na próxima vez que nos encontramos.
— Ele não queria me contratar. Queria anunciar um prêmio. Dez
milhas para quem lhe disser quem são e onde podem ser encontrados, para
que ele possa pôr as mãos neles.
— Você faria isso?
— O que, sair por aí caçando os caras? Eu lhe disse no outro dia que
não pegaria esse trabalho por um pagamento. Certamente não vou andar
metendo o meu nariz por aí, na expectativa de um ganho.
Ele sacudiu a cabeça:
— Mas suponha que você os encontre sem procurar. Um dia você vira
uma esquina e dá de cara com eles.
— Como é que iria reconhecê-los?
— Quantos homens mascarados com lenços vermelhos você vê por aí?
Não, sério. Suponha que os reconheça. Ou fique sabendo de alguma coisa,
o assunto surgiu e um antigo contato seu, dos velhos tempos, põe uma
pulga na sua orelha. Você costumava ter delatores, não é?
— Informantes. Todos os tiras têm os seus, não se pode fazer nada sem
eles. Ainda assim, eu…
— Esqueça a maneira como pode achá-los. Apenas suponha que você
os encontre. Você faria isso?
— Isso o quê?
— Vendê-los. Receber a bolada.
— Não sei nada sobre eles.
— Tudo bem, digamos que você não sabe se eles são assassinos ou
coroinhas. Qual é a diferença? De qualquer forma seria dinheiro manchado
de sangue, não seria? Se os Morrissey encontrarem esses garotos, eles
estarão liquidados.
— Não creio que Tim Pat queira convidá-los para um batizado.
— Ou chamá-los para se filiar à Sociedade do Santo Nome. Você
conseguiria fazê-lo?
Sacudi a cabeça.
— Não posso responder assim. Dependeria de quem eles são e de
quanto eu precisasse de dinheiro.
— Acho que você não seria capaz.
— Também acho que não.
— Eu não faria isso por nada — falou. Deu um tapinha no cigarro para
fazer cair a cinza. — Mas há muita gente que o faria.
— Há pessoas que os matariam por menos do que isso.
— Também acho.
— Havia alguns tiras no bar naquela noite — falei. — Quer apostar
como vão ficar sabendo sobre a recompensa?
— Não, não quero.
— Vamos imaginar que um policial descubra quem são os sujeitos do
assalto. Não pode fazer uma prisão. Não houve crime, não é mesmo? Não
houve queixa formal, não há testemunhas, nada. Mas ele pode entregar os
dois vagabundos para Tim Pat e sair com metade de um ano de salário no
bolso.
— Sabendo que vai ajudar e encorajar um assassinato.
— Não digo que todo mundo seja capaz disso. Mas você diz a si
mesmo que os caras são escória, que provavelmente já mataram muita
gente, que é uma barbada eles cometerem outros crimes, e que você não
tem certeza de qual é a intenção dos Morrissey. Talvez queiram apenas
quebrar-lhes alguns ossos, dar um susto neles. Tentar pegar o dinheiro
deles de volta. Você pode dizer tudo isso a si mesmo.
— E acreditar?
— A maioria das pessoas acredita naquilo que quer.
— É… — ele respondeu. — Não dá pra argumentar contra isso.

Você toma uma decisão com a cabeça e aí seu corpo vem e decide
coisa diferente Eu não ia fazer nada a respeito do problema de Tim Pat,
mas me descobri farejando o assunto tal qual um cachorro em volta do
poste. Na mesma noite em que assegurei a Skip que não entraria naquele
jogo, acabei na rua 72, num lugar chamado Poogan's Pub, sentado numa
mesa dos fundos e pagando uma Stolichnaya bem gelada para um negro
albino, magrinho, chamado Danny Boy Bell. Danny Boy era sempre uma
companhia interessante, mas era também um informante de primeira, um
corretor de informações, que conhecia todo mundo, de ouvidos sempre
atentos.
Claro que ouvira falar do assalto ao Morrissey's. Ouvira uma enorme
variedade de quantias, mas por conta própria chegara à conclusão de que o
roubo tinha ficado entre os cinquenta e os cem mil dólares.
— Seja quem for que tenha feito o assalto, não estão gastando nada nos
bares Meu sexto sentido diz que isso deve ser um assunto irlandês,
Matthew. Irlandês irlandês, não os daqui. Sabe, foi bem no meio de
território Westy, mas não consigo ver os Westies limpando Tim Pat dessa
maneira.
Os Westies são um bando mais ou menos organizado de ladrões e
assassinos, em sua maioria irlandeses, que agem na região de Hell's
Kitchen, desde o início do século XX. Talvez tenham começado antes,
talvez venham da época da Grande Fome, quando uma praga matou os
batatais na Irlanda.
— Não sei, não — comentei. — Com uma quantia assim…
— Se aqueles dois fossem Westies, se fossem da área, não seria
segredo por mais de oito horas. Todo mundo na Décima Avenida saberia
quem foi.
— Você tem razão.
— Algum tipo de confusão irlandesa, esse é o meu palpite. Você estava
lá, deve saber responder. As máscaras eram vermelhas?
— Eram lenços de bolso vermelhos.
— Que pena. Se fossem verdes ou cor de laranja, estariam fazendo
algum tipo de manifestação política. Ouvi dizer que os irmãos estão
oferecendo uma quantia generosa. Foi isso que trouxe você aqui,
Matthew?
— Não! — respondi. — De maneira nenhuma.
— Você não está começando um trabalhinho de pesquisa?
— Absolutamente não.

Na sexta à tarde eu estava bebendo no Armstrong's e comecei a bater


papo com duas enfermeiras na mesa ao lado. Elas tinham ingressos para
uma peça off-off-Broadway, naquela noite. Flores não podia ir e Fran
queria ir, mas não tinha certeza se queria ir sozinha, além do que Uma
entrada ficaria sobrando.
Evidentemente, a peça tinha de ser The quare fellow. Não tinha relação
alguma com o incidente no Morrissey's, só o fato de estar sendo encenada
no andar de baixo, e a ideia não tinha sido minha, mas o que é que eu
estava fazendo ali? Sentado numa frágil cadeira dobrável, assistindo à
peça de Behan sobre criminosos detidos em Dublin, comecei a pensar que
diabos eu estava fazendo na plateia.
Depois Fran e eu fomos parar no Miss Kitty's, com um grupo que
incluía dois membros do elenco. Um deles, uma esguia garota ruiva com
enormes olhos verdes, era uma amiga de Fran chamada Mary Margaret, e
o motivo pelo qual Fran tanto queria assistir à peça. Mas qual era o meu?
Falou-se sobre o assalto. Não fui eu quem puxou o assunto, nem
participei muito do papo, mas não pude ficar de fora completamente
porque Fran disse ao grupo que eu era um ex-detetive da polícia e
perguntou qual a minha opinião profissional sobre o caso. Minha resposta
foi o menos comprometedora possível e evitei mencionar que
testemunhara o assalto.
Skip estava lá, mas tão ocupado atrás do balcão com a clientela de uma
sexta à noite que só fiz acenar-lhe um alô. O lugar estava lotado e
barulhento, como sempre fica nos fins de semana, mas foi aquele o local
escolhido por quase todos e acabei aderindo.
Fran morava na rua 68, entre a Columbus e a Amsterdam. Levei-a em
casa e na porta ela me disse:
— Matt, você foi um amor me fazendo companhia. A peça foi boa, não
foi?
— Foi.
— De qualquer modo, achei Mary Margaret muito bem. Matt, você se
incomoda muito se eu não convidá-lo para subir? Estou pregada e preciso
acordar cedo amanhã.
— Tudo bem. Você me lembrou de que também preciso.
— Para dar uma de detetive? Sacudi a cabeça.
— Para dar uma de pai.

Na manhã seguinte, Anita colocou os meninos no trem na estação


ferroviária de Long Island e eu os peguei na estação de Corona e fomos ao
Shea ver o Mets perder para o Astros. Os meninos iam passar quatro
semanas num acampamento em agosto e estavam animadíssimos com a
ideia. Comemos cachorro-quente, pipoca e amendoim. Eles tomaram
Coca-Cola e eu umas duas cervejas. Havia uma espécie de promoção
especial naquele dia e eles ganharam dois bonés, ou duas flâmulas, não me
lembro bem.
Depois voltamos para a cidade de metrô e fomos a um cinema Loew's,
na rua 83. Depois do cinema, comemos pizza na Broadway e pegamos um
táxi de volta para o hotel, pois tinha alugado um quarto duplo para os dois,
num andar abaixo do meu. Foram para a cama e eu subi para o meu quarto.
Uma hora mais tarde, fui até o quarto deles dar uma olhada. Dormiam
profundamente. Tranquei a porta de novo e fui até a esquina, ao
Armstrong's. Não fiquei muito tempo, talvez uma hora. Voltei para o hotel,
olhei os garotos outra vez e subi para me deitar.
De manhã saímos para um grande café da manhã, com panquecas,
bacon e salsichas. Levei-os ao Museu do Índio Americano, em Washington
Heights. Há cerca de duas dúzias de museus em Nova York, e quando você
se separa de sua mulher, acaba descobrindo todos eles.
Era uma sensação estranha estar em Washington Heights. Foi ali que
alguns anos antes, fora do meu horário de serviço, eu tomava uns drinques
quando uma dupla de punks assaltou o bar e, antes de ir embora, deu um
tiro mortal no barman.
Fui para a rua atrás deles. Há muitas colinas em Washington Heights.
Eles correram ladeira abaixo e eu tive que dar tiros para baixo. Peguei os
dois, mas um dos tiros fez ricochete e matou uma menininha chamada
Estrellita Rivera.
Essas coisas acontecem. Houve uma investigação do departamento,
sempre há quando você mata alguém, mas julgaram que agi corretamente
e de modo justificado.
Logo depois, entreguei meus papéis e deixei o Departamento de
Polícia.

Não posso dizer que um fato tenha causado o outro. Só posso dizer que
uma coisa levou à outra. Fui o instrumento involuntário da morte de uma
criança e depois disso algo mudou em mim. A vida que até então levava,
sem queixas, parecia não me satisfazer mais. Suponho que havia parado de
me satisfazer antes disso. Suponho que a morte da criança tenha
provocado uma mudança que se fazia necessária havia muito tempo. Mas
não posso garantir nada. Apenas que uma coisa levou à outra.
Tomamos um trem de volta à estação Penn. Eu disse aos meninos
como tinha sido bom passar um tempinho com eles e eles disseram que
tinham se divertido muito. Embarquei-os num trem, telefonei para a mãe
deles e disse a ela em que trem eles estavam. Ela me garantiu que iria
esperá-los na estação, depois, acanhada, mencionou que seria bom se eu
pudesse enviar dinheiro o quanto antes. Logo, eu lhe prometi.
Desliguei e pensei nos dez mil dólares que Tim Pat estava oferecendo.
E sacudi minha cabeça, achando graça no pensamento.
Mas naquela noite fiquei impaciente e acabei indo ao Village, parando
numa fieira de bares para um drinque em cada um. Tomei o trem A até a
rua 4, Oeste, e, começando pelo McBell's, fui caminhando em direção a
oeste. Jimmy Day's, 55, Lion's Head, George Hertz's, Comer Bistrô. Disse
a mim mesmo que estava apenas tomando uns drinques, aliviando a
pressão de um fim de semana com meus filhos, me acalmando depois do
despertar de lembranças após uma ida a Washington Heights.
Mas sabia que não era só isso. Estava começando uma investigação
malfeita, despropositada, tentando encontrar uma pista que me levasse à
dupla que deu o golpe no Morrissey's.
Acabei num bar gay chamado Sinthia's. Kenny, o proprietário, cuidava
de seu bar, vestindo calças Levi's e camisa sem mangas, de tecido fino e
listrado, servindo drinques para os homens. Ele era magro, leve, elástico,
com cabelos pintados de louro e um rosto que, de tanto ser esticado e
repuxado, lhe dava a aparência de menos de vinte e oito anos, ou seja, de
quase a metade dos anos em que habitava este planeta.
— Matthew! — exclamou. — Podem relaxar agora, meninas, a lei e a
ordem acabam de chegar à rua Grove.
Claro que ele não sabia de nada a respeito do assalto ao Morrissey's.
Para começar, ele não conhecia o Morrissey's; nenhum gay tinha de sair do
Village para beber um drinque depois da hora legal. Mas os assaltantes
podiam ser gays e, se não estavam gastando seu dinheiro em outros
lugares, bem poderiam estar gastando em botecos em torno da Rua
Christopher; de qualquer maneira, essa era a maneira de trabalhar, você
saía sondando aqui e ali, trabalhava todas as suas fontes, falava com um,
com outro, esperava para ver se alguma coisa voltava para você.
Mas por que eu estava fazendo isso? Por que estava perdendo meu
tempo?
Não sei o que teria acontecido — se teria continuado ou não, se teria
chegado a alguma conclusão ou acabado por deixar de lado aquela pista
fria. Não estava chegando a nenhum lugar, mas frequentemente é assim
mesmo, você vai seguindo sem nenhuma indicação de progresso, até que
vem uma lufada de sorte e algo acontece. Talvez uma coisa parecida fosse
ocorrer. Talvez não.
Em vez disso, outras coisas aconteceram para tirar Tim Pat Morrissey,
e sua busca por vingança, das minhas preocupações.
Para começar, alguém assassinou a mulher de Tommy Tillary.
4
Na terça à noite levei Fran para jantar no restaurante tailandês do qual
Skip gostava tanto. Acabado o jantar, caminhei com ela até sua casa, com
uma parada no Joey Farrell's para alguns drinques. Em frente ao prédio ela
tornou a alegar que seu dia seguinte começaria muito cedo e eu caminhei
de volta até o Armstrong's, com uma ou duas paradas no caminho. Estava
de humor azedo e o estômago cheio de uma comida fora do comum,
provavelmente não ajudava muito; é possível que tenha exagerado no
bourbon, saindo de lá perto das duas da manhã. Peguei o caminho mais
longo, comprei o Daily News, sentei na borda da cama de cueca e dei uma
olhada rápida em uma ou duas notícias.
Numa das páginas internas, li sobre uma mulher assassinada durante
um assalto. Estava cansado, tinha bebido muito e o nome não me chamou
a atenção.
Mas acordei na manhã seguinte com alguma coisa zunindo na cabeça,
metade sonho, metade lembrança. Sentei, peguei o jornal e encontrei a
notícia.
Margaret Tillary, de quarenta e sete anos, fora esfaqueada até a morte,
no quarto de dormir no segundo andar de sua casa na Colonial Road, em
Bay Ridge, no Brooklyn, tendo evidentemente despertado durante o
assalto. Seu marido, o corretor de ações Thomas J. Tillary, ficara
preocupado quando sua mulher não atendeu ao telefone na terça à tarde.
Tinha telefonado para um parente que morava perto e que, ao entrar na
casa, encontrou tudo revirado e a mulher morta.
“Este é um ótimo bairro”, uma vizinha declarara ao jornal. “Coisas
assim não acontecem aqui.” Mas uma fonte da polícia havia citado um
número acentuado de assaltos naquela área, nos últimos meses. Outro
vizinho se referira, de modo ambíguo, à presença de um “mau elemento”
na vizinhança.
Não é um nome comum. Há uma rua Tillary no Brooklyn, perto do
acesso à ponte, mas não tenho certeza de que herói de guerra ou político
velhaco foi homenageado, ou se é algum parente de Tommy. Há muitos
Tillery na lista telefônica de Manhattan, mas com a letra e. Thomas
Tillary, corretor de ações, Brooklyn — dava a impressão de ser mesmo o
Telefone Tommy.
Entrei no chuveiro, fiz a barba, e saí para tomar o café. Pensei no que
acabara de ler e tentei raciocinar sobre o que sentia. Não parecia ser
verdade. Eu não o conhecia bem e nunca havia visto sua esposa, nunca
soubera o nome dela, sabia apenas que existia em algum lugar do
Brooklyn.
Olhei para a minha mão esquerda, para o anular. Nenhum anel,
nenhuma marca. Usei uma aliança durante anos e a retirei quando me
mudei de Syosset para Manhattan. Durante meses aquela marca ficou lá, e
então, de repente, sumiu.
Tommy usava uma aliança. De ouro amarelo, larga, com quase dois
centímetros de largura. E na mão direita, no dedo mindinho, um anel de
formatura no ginásio, pelo menos era o que parecia. Lembrei-me disso,
sentado ali tomando meu café no Red Flame. Um anel de formatura no
dedo mindinho da mão direita, uma aliança de ouro amarelo no anular da
mão esquerda.
Não consegui definir o que sentia.

Naquela tarde fui até a igreja Saint Paul e acendi uma vela por
Margaret Tillary. Tinha descoberto igrejas quando saí da polícia e, apesar
de não rezar ou comparecer aos serviços religiosos, de vez em quando
entrava numa delas e sentava no escuro silencioso. Às vezes, acendia velas
por pessoas mortas recentemente, ou por alguns mortos havia mais tempo,
mas que permaneceram na minha memória. Não sei por que isso me
parecia algo que devesse fazer, nem sei por que me sentia obrigado a
enfiar um décimo de qualquer dinheiro que ganhasse na caixa de esmolas
da primeira igreja que em seguida visitasse.
Sentei num banco de trás e pensei um pouco em morte súbita. Quando
saí da igreja, caía uma chuvinha fina. Atravessei a Nona Avenida e me
enfiei no Armstrong's. Dennis estava atrás do bar. Pedi um bourbon puro,
tomei-o de um gole só, pedi outro, mas disse que, com esse, tomaria uma
xícara de café.
Enquanto eu misturava bourbon ao café, ele perguntou se eu sabia do
que acontecera ao Tillary. Disse-lhe que tinha lido no News.
— Saiu no Post de hoje, também. Mais ou menos a mesma coisa.
Aconteceu anteontem à noite, é o que eles acham. É evidente que ele não
foi para casa, seguiu direto para o escritório pela manhã, começou a
telefonar para se desculpar e, como não conseguiu que ela atendesse, ficou
preocupado.
— Dizia isso no jornal?
— Mais ou menos. Isso aconteceu na noite de anteontem. Enquanto eu
estive aqui, ele não apareceu. Você o viu?
Tentei me lembrar.
— Acho que sim. Anteontem à noite, é, ele esteve aqui com a Carolyn.
— A bela do sul.
— Essa mesmo.
— Como será que ela está se sentindo agora… — Usou o polegar e o
indicador para ajeitar as pontas de seu bigodinho. — Provavelmente com
remorsos, vendo seus sonhos se tornarem realidade.
— Você acha que ela queria ver a mulher dele morta?
— Não sei. Mas não é essa a fantasia de uma garota quando está saindo
com um homem casado? Ora, eu não sou casado, o que é que eu sei sobre
essas coisas?
A notícia desapareceu dos jornais ao longo dos dias seguintes.
Colocaram um anúncio fúnebre no News, quinta-feira. Margaret Wayland
Tillary, amada esposa de Thomas, mãe do finado James Alan Tillary, tia da
senhora Richard Paulsen. Seria velada naquela noite, com um serviço
fúnebre na tarde seguinte, na funerária Walter B. Cooke's, esquina da
Quarta com a Bay Ridge Avenue, no Brooklyn.
Naquela noite Billie Keegan comentou.
— Não vi mais o Tillary desde que tudo aconteceu. Não creio que a
gente vá vê-lo novamente. — Serviu para si mesmo uma dose de JJ&S, o
Jameson de doze anos que cliente algum pedia. — Aposto que nunca mais
vamos vê-lo com ela.
— Com a namorada?
Ele assentiu:
— O que deve ter ficado na mente dos dois é que estavam juntos
enquanto a mulher dele era esfaqueada no Brooklyn, até morrer. E que, se
ao menos ele estivesse em casa na hora, que é onde deveria estar, e
blablablá… Você está prevaricando, quer uma trepada rápida e umas boas
risadas, a última coisa que precisa é de algo que faça com que se lembre
de que sua mulher foi assassinada porque você estava pulando a cerca.
Pensei no assunto, depois concordei.
— O velório foi hoje à noite.
— É? Você foi?
Sacudi a cabeça:
— Não conhecia ninguém que fosse.
Saí antes da hora de fechar. Tomei um drinque no Polly's e outro no
Miss Kitty's. Skip parecia tenso e distante. Sentei no bar e tentei ignorar o
homem sentado ao meu lado, sem ser abertamente hostil. Ele queria me
contar como todos os problemas da cidade eram culpa do antigo prefeito.
Não é que discordasse inteiramente, apenas não queria ouvir falar nisso.
Terminei meu drinque e me dirigi para a porta. No meio do caminho
ouvi Skip chamar meu nome. Olhei e ele fez um sinal para que eu me
aproximasse.
Voltei para o balcão.
— Essa é a hora errada para isso, mas gostaria de falar com você o
mais depressa possível.
— É?
— Pedir um conselho, talvez até arranjar um serviço para você. Você
vai ao Jimmy's amanhã à tarde?
— Provavelmente — respondi. — Se eu não for ao enterro.
— Quem morreu?
— A mulher do Tillary.
— Ah, e o enterro é amanhã? Você está pensando em ir? Eu não sabia
que você era tão íntimo do sujeito.
— E não sou.
— Então por que é que você quer ir? Desculpe, não é da minha conta.
Vou procurar você no Armstrong's amanhã, por volta das duas, duas e
meia. Se você não estiver lá, acabarei por encontrá-lo numa outra hora.

Eu estava lá quando ele apareceu, no dia seguinte, às duas e meia.


Tinha acabado de almoçar e tomava um café quando Skip entrou e
examinou o salão, lá da porta. Me viu, entrou, e veio se sentar.
— Você não foi. Bem, também não está um dia para um enterro. Acabo
de sair da academia, me senti um idiota sentado na sauna depois dos
exercícios. A cidade inteira está uma sauna. O que é que você está
tomando, algum daqueles seus famosos cafés do Kentucky?
— Um café puro, só isso.
— Assim não vai dar. — Virou-se, chamou a garçonete. — Traga uma
Prior Dark para mim e alguma coisa para o meu pai botar no café.
Ela trouxe uma dose pequena para mim e a cerveja dele. Ele a verteu
lentamente, examinou o colarinho de um centímetro e pouco, tomou um
gole, pousou o copo.
— Pode ser que eu esteja com um problema.
Eu não disse uma palavra.
— É confidencial, o.k.?
— Certo.
— Você sabe alguma coisa sobre a administração de um bar?
— Apenas do ponto de vista do consumidor.
— Gosto disso. Mas sabe que é tudo dinheiro em espécie.
— Claro.
— Muitos lugares trabalham com cartão. Nós não. Estritamente
dinheiro. Lógico, se nós conhecemos o cliente, aceitamos cheques, ou
mesmo uma conta pendurada, qualquer dos dois. Mas, basicamente, é
dinheiro vivo. Diria que noventa e cinco por cento de nosso bruto é
dinheiro. Na verdade, talvez seja até mais do que isso.
— E?
Pegou um cigarro, bateu com a ponta na unha do polegar.
— Detesto falar sobre isso.
— Então não fale.
Ele acendeu o cigarro.
— Todo mundo separa uma parte do apurado. Uma certa parte do
dinheiro que entrou nem é registrada. Não entra nos livros, não é
depositada, não existe. O dólar que você não declara vale dois dos que
você declara, porque não se pagam impostos sobre ele. Você está me
compreendendo?
— Não é tão difícil assim de compreender, Skip.
— Todo mundo faz isso, Matt. A lojinha de balas, a banca de jornal,
todos os que só lidam com dinheiro vivo. Por Deus do céu, é o modo
americano. O presidente trapacearia com seus próprios impostos se
pudesse se safar.
— O último fez isso mesmo.
— Nem me lembre. Aquele imbecil tinha que dar má reputação à
sonegação. — Tragou profundamente o cigarro. — Nós inauguramos o
Miss Kitty's há uns dois anos, mais ou menos. John toma conta dos livros.
Eu grito com as pessoas, contrato e demito; ele faz as compras e cuida da
contabilidade. Dá muito certo assim.
— E?
— Direto ao assunto, certo? Foda-se. Desde o início nós temos dois
tipos de livros, um para nós e outro para o Tio Sam. — Seu rosto
escureceu e ele balançou a cabeça. — Nunca fez sentido para mim. Eu
dizia: a gente mantém um fraudulento e pronto, mas ele dizia que
devíamos ter os dois tipos, para saber exatamente como estávamos indo.
Para você, isso faz sentido? Você conta o seu dinheiro e sabe como vai
indo, não precisa de dois tipos de livros para isso, mas ele é o cara com
cabeça para os negócios, ele entende dessas coisas, então eu digo sim, tudo
bem.
Pegou o copo, tomou mais um gole.
— Sumiram — falou.
— Os livros.
— John vai sempre lá aos sábados de manhã, fazer a contabilidade da
semana. Estava tudo em ordem até o sábado passado. Anteontem ele teve
que examinar não sei o que, procurou pelos livros, não achou.
— Sumiram os dois tipos?
— Só os das contas exatas. — Bebeu mais cerveja, limpou a boca com
a mão. — John passou o dia tomando Valium e se desesperando e aí ontem
resolveu me contar. E desde então quem está ficando louco sou eu.
— A coisa é muito séria, Skip?
— Merda! É muito séria. Podemos ir para a cadeia por causa disso.
— Sério?
Ele assentiu.
— São todos os nossos registros desde que abrimos o negócio e desde
a primeira semana nós tivemos lucro. Não sei por que, é apenas mais um
boteco, mas estamos sempre com a casa cheia. E temos roubado com as
duas mãos. Se aparecerem com os livros, vamos presos mesmo, sabe? Não
dá para dizer que foi um erro, está tudo lá, preto no branco, números
diferentes nos diferentes livros, e declarações de renda, ano a ano, de
acordo com um dos E livros apenas. Não dá nem para inventar uma
história, a única coisa que dá para fazer é perguntar a eles onde é que te
querem, Atlanta ou Leavenworth.
Ficamos em silêncio durante alguns minutos. Bebi um pouco do meu
café. Ele acendeu outro cigarro e soprou fumaça para o teto. Do aparelho
de som saía uma música em contraponto, com instrumentos de sopro.
— O que é que você quer que eu faça? — perguntei.
— Que descubra quem pegou os livros. Para recuperá-los.
— Talvez John tenha se afobado, não os colocou no lugar de sempre.
Pode ter…
Ele estava sacudindo a cabeça.
— Virei aquele escritório de cabeça para baixo. Sumiram
completamente.
— Desapareceram assim, sem mais nem menos? Nenhum sinal de
arrombamento? Onde é que vocês os guardavam, trancados à chave?
— Deveriam estar sempre no cofre. Mas às vezes ele esquecia, deixava
do lado de fora, enfiados numa gaveta. A gente vai ficando descuidado,
você compreende? Nunca tem um incidente, acha que está tudo bem, e se
estiver com pressa não se dá ao trabalho de guardar as coisas em seus
devidos lugares. Ele me disse que no sábado trancou tudo, mas no instante
seguinte admite que pode ter se esquecido, é uma coisa rotineira, ele faz
isso todos os sábados, por isso como é que vai destacar um sábado do
outro? Mas que diferença isso faz? O fato com letra maiúscula é esse: S de
Sumiram.
— Então alguém os levou.
— Foi.
— Se forem para o Serviço de Receita Interna com eles…
— Estamos mortos. Só isso. Podem nos botar ao lado da mulher do,
como é mesmo o nome dele, Tillary. Você não precisa ir ao enterro, não se
preocupe. Eu vou entender.
— Falta alguma outra coisa, Skip?
— Não notamos nada.
— Então foi um roubo muito especial. Alguém entrou, pegou os livros
e saiu.
— Bingo. Fiquei pensando.
— Se foi alguém ressentido com vocês, alguém que vocês demitiram,
digamos.
— Já pensei nisso.
— Se forem para os Federais, vocês saberão quando uma dupla de
caras vestidos com ternos escuros aparecer mostrando o cartão de
identificação. Levarão todos os seus documentos e registros, bloquearão
suas contas bancárias e farão tudo o mais que sempre fazem.
— Continue falando, Matt. Você está mesmo tornando o meu dia
delicioso.
— Se não for alguém que odeia vocês, então é alguém que pretende
faturar algum.
— Vendendo os livros.
— Isso mesmo.
— Para nós.
— Vocês são o freguês ideal.
— Já pensei nisso. Kasabian também. Fica frio, ele me diz. Fica frio
que quem quer que tenha roubado os livros vai entrar em contato conosco
e aí a gente vai começar a se preocupar. Enquanto isso, fica frio. O frio não
me incomoda, o que me incomoda é a espera. Você pode pagar fiança em
caso de sonegação?
— Claro que sim.
— Então eu calculo que possa escapar dessa e correr para fora do país.
Viver o resto da minha vida no Nepal, vendendo haxixe para os hippies.
— Tudo isso ainda está muito longe.
— Suponho que sim. — Ficou olhando pensativo pan o seu cigarro,
depois o afogou no resto da cerveja. — Eu odeio quando fazem isso —
disse, pensativo. — Devolver os copos com guimbas flutuando neles.
Nojento. — Ele me olhou, seus olhos sondando os meus. — Tem alguma
coisa que você possa fazer por mim? Quero dizer, contratado.
— Não vejo o quê. Não agora.
— Então o que tenho a fazer é esperar. Essa é sempre a pior parte para
mim, sempre foi. Eu fazia atletismo no fundamental, corria a prova dos
quatrocentos metros Era mais leve naquele tempo. Fumava pesado. Fumo
desde os treze anos, mas nessa idade você pode fazer o que quiser, nada
afeta você. Nada afeta os jovens, é por isso que eles acham que vão viver
para sempre. — Começou a tirar outro cigarro do maço, parou e o
recolocou de novo no lugar. — Eu amava a corrida, mas esperar pela
partida odiava aquilo. Alguns caras vomitavam. Nunca vomitei, mas sentia
vontade. Urinava, mas depois ficava pensando que ia ter de urinar de novo
dali a cinco minutos. — Sacudiu a cabeça com essas lembranças. — A
mesma coisa no exterior, esperando para entrar em combate. Nunca me
abalei com o combate e havia muita coisa para incomodar. Coisas que me
perturbam agora, quando me lembro delas, mas enquanto estávamos em
ação elas não me incomodavam.
— Compreendo isso perfeitamente.
— Agora, esperar, isso era a morte para mim. — Empurrou a cadeira.
— Matt, quanto é que eu lhe devo?
— Pelo quê? Não fiz nada.
— Pelo conselho.
Dispensei-o com a mão.
— Você pode me pagar essa bebida e já está de bom tamanho.
— Feito. — Levantou-se. — Posso vir a precisar de uma mãozinha
durante toda essa história.
— Sem problema.
Ele parou para falar com Dennis na saída. Continuei curtindo meu
café. Quando terminei, uma mulher duas mesas à frente tinha pago a conta
e esquecido o jornal. Peguei-o para ler, pedi outra xícara de café e um
copinho de bourbon para adoçá-lo.
A turma da tarde estava começando a encher o salão quando chamei a
garçonete. Dei-lhe um dólar e disse-lhe para pendurar minha despesa na
conta.
— Não tem conta. O cavalheiro pagou tudo. Ela era novata, não sabia o
nome do Skip.
— Não era para ele fazer isso. Falei. De qualquer modo, tomei um
drinque depois que ele saiu. Ponha na minha conta, está bem?
— Fale com o Dennis.
Ela foi atender a um cliente antes que eu pudesse retrucar. Fui para o
bar e fiz sinal para o Dennis chegar mais perto. — Ela está me dizendo que
não tem conta na minha mesa.
— Ela está dizendo a verdade. — Sorriu. Sorria com frequência, como
se a maior parte das coisas que via o divertisse — Devoe pagou a conta.
— Ele não tinha nada que fazer isso. De qualquer modo, tomei um
drinque depois que ele saiu e disse a ela que pusesse na minha conta e ela
me disse que viesse falar com você. Isso é alguma novidade? Não tenho
mais conta aqui?
Seu sorriso aumentou.
— A hora que quiser, mas de fato neste momento você não tem conta
nenhuma aqui. O senhor Devoe pagou. Zerou tudo.
— Quanto era o total?
— Oitenta dólares e uns trocados. Posso apresentar o total exato, se for
importante. É?
— Não.
— Ele me deu cem dólares para cobrir a sua conta, a despesa de hoje,
uma gorjeta para Lyddie e alguma coisa para tirar o cansaço da minha
alma. Suponho que poderíamos afirmar que o seu último drinque não
estava incluído, mas meu impenetrável senso de justiça das coisas acha
que estava. — Outro largo sorriso. — Portanto, você não nos deve nada.
Não discuti. Se há uma coisa que aprendi no Departamento de Polícia
de Nova York foi aceitar o que as pessoas me dão.
5
Voltei para o hotel, verifiquei se havia cartas ou mensagens. Nada. O
recepcionista, negro, meio desengonçado, nascido em Antígua, dizia não
se incomodar com o calor, sentia falta era da brisa do mar.
Subi e tomei um banho de chuveiro. Meu quarto estava quente. Tinha
ar-condicionado, mas alguma coisa estava errada com o condensador, pois
ele revolvia o ar quente, dando-lhe um cheiro químico, mas não resolvia o
problema do calor ou da umidade. Podia desligar o aparelho e abrir a parte
de cima da janela, mas o ar lá fora não estava nem um pouco melhor.
Deitei-me e devo ter cochilado por mais ou menos uma hora e, quando
acordei, precisava de outra chuveirada.
Depois do banho, telefonei para Fran. Sua companheira de apartamento
atendeu. Dei meu nome e esperei um bom bocado até Fran vir ao telefone.
Sugeri um jantar e talvez um cineminha depois, se tivéssemos vontade.
— Ah, Matt, acho que hoje não vai dar. Tenho outros compromissos.
Talvez outro dia?
Desliguei, arrependido por ter telefonado. Olhei no espelho, decidi que
não estava precisando fazer a barba novamente, me vesti e saí.
Fazia muito calor na rua, mas em poucas horas a temperatura estaria
mais baixa. Enquanto isso não acontecia, havia bares espalhados por toda
parte e seus aparelhos de ar-condicionado funcionavam muito melhor que
o meu.

Curiosamente, naquela tarde não bebi muito. Estava rabugento,


irritado, de mau humor, o que normalmente me levaria a beber um drinque
atrás do outro. Mas estava Impaciente e, por conta disso, não parei quieto.
Cheguei até a entrar e sair de alguns bares sem pedir nada.
Houve um momento em que quase me meto numa briga. Num boteco
na Décima Avenida, um bêbado esquálido e sem alguns dentes esbarrou
em mim e entornou um pouco do seu drinque nas minhas roupas, depois se
ressentiu com o meu modo de aceitar suas desculpas. Foi tudo uma
bobagem — ele procurando briga, e eu quase disposto a fazer-lhe a
vontade. Mas um dos amigos dele prendeu seus braços, outro se meteu
entre nós dois e eu caí em mim e saí dali.
Caminhei pela Rua 57, em direção ao leste. Uma dupla de prostitutas
negras fazia trottoir em frente ao Holiday Inn. Prestei mais atenção nelas
do que geralmente prestava. Uma delas, o rosto igual a uma máscara de
ébano, desafiou-me com os olhos. Senti uma onda de raiva e não saberia
explicar contra quem ou contra o que estava tão enraivecido.
Caminhei pela Nona, subindo meio quarteirão até o Armstrong's. Não
me surpreendi ao ver Fran lá. Foi quase como se esperasse vê-la, sentada
numa mesa ao longo da parede. Estava sentada de costas para a entrada e
não notou minha chegada.
Sua mesa era para dois e não reconheci seu acompanhante. Tinha um
rosto jovem, franco, e os cabelos e as sobrancelhas louros. Usava uma
camisa de um cinza azulado, de mangas curtas, e uma espécie de dragonas
nos ombros. Creio que é isso que chamam camisa safári. Fumava
cachimbo e bebia cerveja. O drinque dela era um líquido vermelho, num
copo enorme, de pé alto.
Provavelmente era um Tequila Sunrise. Naquele ano isso estava na
moda.
Fui até o balcão e lá estava Carolyn. As mesas estavam cheias, mas o
balcão estava meio vazio, com pouca gente naquela hora, sobretudo numa
sexta-feira. À sua direita, em direção à porta, dois bebedores de cerveja
discutiam beisebol. À esquerda, três bancos vazios.
Sentei-me no do meio e pedi um bourbon duplo, acompanhado por um
copo d'água. Billie me serviu e fez um comentário sobre o tempo. Tomei
um gole e dei uma olhadela em Carolyn.
Ela não parecia estar esperando por Tommy ou por outra pessoa
qualquer, nem parecia ter chegado havia poucos minutos. Vestia uma calça
amarela bem justa e uma blusa verde limão, sem mangas O cabelo estava
penteado de maneira a emoldurar seu rostinho manhoso. Bebia um líquido
escuro, num copo baixo.
Ao menos não era um Tequila Sunrise.
Tomei outro gole de bourbon e, contra a vontade, olhei para Fran.
Fiquei irritado com minha própria irritação. Tivera dois encontros com
ela, não havia nenhuma grande atração, nenhuma química, apenas duas
noites deixando-a na porta de casa. E, nessa noite, já tarde, eu havia lhe
telefonado e ela dissera que tinha outros planos e aqui estava, bebendo um
Tequila Sunrise com seu outro plano.
O que é que eu ganhava ficando zangado com isso?
Pensei com meus botões, aposto que ela não diz a ele que tem um dia
atribulado amanhã cedo. Aposto que esse cara não vai ter de se despedir na
calçada.
— Esqueci seu nome — ouvi, vindo da minha direita, naquele
inconfundível sotaque sulista.
Olhei para ela.
— Creio que fomos apresentados, mas não me recordo de seu nome.
— É Matthew Scudder, e você tem razão, Tommy nos apresentou. Você
é Carolyn.
— Carolyn Cheatham. Você o tem visto?
— Tommy? Não, desde o acontecido.
— Nem eu. Vocês foram ao enterro?
— Não. Pensei em ir, mas acabei não indo.
— Por que é que você iria? Não a conheceu, não é?
— Não.
— Nem eu. — Ela riu. Não havia muita alegria naquela risada. — Que
novidade, não conheci a mulher dele. Eu teria ido hoje à tarde. Mas não
fui. — Mordeu o lábio inferior. — Matt. Você quer me pagar uma bebida?
Ou eu pago uma para você, mas sente-se mais perto para eu não ter de
gritar. Por favor?
Ela estava tomando Amaretto, um licor de amêndoas doce, que pedira
com gelo. Tem gosto de sobremesa, mas é quase tão forte quanto uísque.
— Ele me disse para não ir. Ao funeral. Era em algum lugar do
Brooklyn, terra completamente desconhecida para mim, Brooklyn, mas
um monte de gente do escritório foi. Eu não precisava saber como chegar
lá. Podia ter pego uma carona, fazer parte do pessoal do escritório, ido
cumprimentá-lo junto com os outros. Mas ele me disse para não ir, que
não ia parecer correto.
Seus braços eram ligeiramente cobertos por uma penugem dourada.
Usava um perfume floral, meio almiscarado.
— Disse que não ia parecer correto. Que era uma questão de respeito
para com os mortos. — Pegou seu copo e ficou olhando para ele. —
Respeito. E ele lá se importa com respeito? O que ele sabe sobre respeito,
aos mortos ou aos vivos? Eu apenas faria parte da turma do escritório.
Ambos trabalhamos na Tannahill, para todos somos apenas amigos. Pelo
amor de Deus, nós nunca fomos mais do que amigos.
— Acredito em você.
— Ora, que merda! — ela falou, lentamente, dando à palavra uma ou
duas sílabas a mais. — Não estou dizendo que não trepava com ele. Claro
que não foi isso o que eu quis dizer. Mas, no fundo, o que a gente fazia era
dar boas risadas e se divertir. Ele era casado e voltava para casa a maioria
das noites — bebeu um pouco mais de Amaretto -e isso era ótimo, porque
qual é a mulher que, em seu perfeito juízo, iria querer Tommy Tillary a
seu lado na luz do início do dia? Por Deus, Matthew, eu derramei isso ou
bebi tudo?
Concordamos que ela estava bebendo depressa demais. Drinques
doces, asseguramos um ao outro, têm o hábito de se insinuar para dentro
da gente. Era esse pomposo Amaretto de Nova York, ela garantiu. Não era
como o bourbon que sempre bebeu. Com bourbon você sempre sabia onde
estava.
Lembrei-a de que também era um bebedor de bourbon e ela gostou da
informação. Alianças já foram formadas com laços muito mais tênues do
que esse, mas ela selou a nossa com um gole do meu drinque. Ofereci-lhe
meu copo e ela colocou sua mãozinha em cima da minha para firmar o
copo, sorvendo o líquido delicadamente.
— Bourbon é sem classe — ela falou. — Você compreende o que
quero dizer?
— E eu pensando que era uma bebida para cavalheiros.
— É para um cavalheiro que sabe lidar com qualquer classe de pessoa.
Uísque escocês é para coletes, gravatas e escolas particulares. Bourbon é
para aquele sujeito que não se importa de soltar suas feras, pronto a deixar
o asqueroso aparecer. Bourbon é ficar acordado numa noite quente e não se
incomodar com o suor.
Ninguém suava ali. Estávamos no apartamento dela, sentados no sofá
de uma sala um pouco abaixo do nível da rua, uns trinta centímetros
abaixo do piso da cozinha e do hall de entrada. O apartamento ficava num
prédio art déco na rua 57, a algumas portas a oeste da Nona Avenida. Uma
garrafa de Maker's Mark, comprada na loja da esquina, estava aberta em
cima de uma mesa de ferro batido, com tampo de vidro. O ar-condicionado
estava ligado, mais silencioso e mais eficiente que o meu. Bebíamos em
copos altos, próprios para beber com gelo, mas sem gelo.
— Você foi policial. Não foi isso que ele me disse?
— Pode ter dito.
— E agora você é detetive.
— Mais ou menos.
— Contanto que você não seja um ladrão. Seria uma coisa incrível eu
ser esfaqueada por um assaltante hoje à noite, não seria? Ele está comigo e
ela é assassinada, depois ele está com ela e eu sou assassinada. Só que não
creio que ele esteja com ela neste momento. A essa altura ela já foi
enterrada.
O apartamento era pequeno, mas confortável. A mobília era de linhas
retas; na parede de tijolo aparente ela colocara gravuras de arte pop, em
molduras simples, de alumínio. Da janela dava para ver o telhado de cobre
esverdeado do Parc Vendôme, na esquina mais afastada.
— Se um ladrão entrasse aqui, eu teria uma chance maior do que a
dela.
— Por que estou aqui para protegê-la?
— Hum, hum — ela murmurou. — Meu herói.
Então nos beijamos. Levantei seu queixo e a beijei, e nos ajustamos
num abraço confortável. Ficamos assim por uns minutos, depois nos
afastamos e, parecendo sincronizados, pegamos nossos drinques.
— Mesmo que eu estivesse sozinha — ela falou, continuando a
conversa com a mesma facilidade com que pegara seu copo. — Posso me
proteger.
— Você é faixa preta em caratê.
— Sou faixa bordada, doçura, para combinar com a bolsa. Não, eu me
protegeria com isso aqui, me dê um minuto que eu lhe mostro.
Um par de mesas modernas, pretas, foscas, ladeava o sofá. Ela se
inclinou sobre mim para alcançar a gaveta da mesinha ao meu lado. Ficou
esparramada no meu colo, com o rosto para baixo. Um pedacinho de pele
dourada ficou à mostra entre a calça amarela e a blusa verde. Coloquei
minha mão no seu traseiro.
— Pare com isso, Matthew. Acabo esquecendo o que é que estou
procurando.
— Não tem importância.
— Tem sim. Aqui. Viu?
Sentou-se com uma arma na mão. Tinha o mesmo acabamento fosco
da mesinha. Era um revólver e parecia ser um 32. Uma arma pequena, toda
preta, com um cano de uma polegada.
— Melhor guardar isso.
— Sei como me comportar com armas. Cresci numa casa cheia de
armas. Rifles, espingardas, pistolas. Meu pai e meu irmão eram caçadores.
Codornas, faisões. Alguns patos. Sei tudo sobre armas.
— Esta está carregada?
— Não teria muita serventia se não estivesse, não acha? Não posso
apontar para o ladrão e dizer: bum! Ele a carregou antes de me dar.
— Foi Tommy quem deu isso para você?
— Foi — Ela segurou o revólver com o braço estendido, fez pontaria
para o outro lado da sala, mirando um ladrão imaginário. — Bum! Ele não
deixou nenhuma munição extra, apenas a deixou carregada. Assim, se eu
atirasse num ladrão, no dia seguinte teria que lhe pedir mais balas.
— Por que ele lhe deu isso?
— Não foi para caçar patos. — Ela riu. — Para proteção. Contei como
às vezes me sentia nervosa, uma garota sozinha nesta cidade, e um dia ele
me trouxe isso. Disse que tinha comprado o revólver para ela, para sua
proteção, mas que ela não quis nem ouvir falar, não quis nem ao menos
encostar nele. — Deu uma risadinha.
— O que é tão engraçado assim?
— Isso é o que todos dizem, “Minha mulher não quer nem pegá-lo
com a mão”. Eu tenho uma mente suja, Matthew.
— Não há mal nenhum nisso.
— Eu disse que bourbon era sem classe. Desperta a besta na gente.
Você podia me beijar.
— Você podia guardar essa arma.
— Você tem alguma coisa contra beijar mulheres com armas na mão?
— Rolou para a esquerda, colocou o revólver na gaveta e a fechou. — Eu a
guardo na mesinha de cabeceira — explicou —, para estar à mão se
necessitar dela depressa. Este sofá vira uma cama.
— Não acredito.
— Você não acredita? Quer que eu prove?
— Quero.
Então fizemos aquilo que os adultos fazem quando estão sozinhos. O
sofá se transformava numa cama confortável e nós nos deitamos com as
luzes apagadas e a sala iluminada por velas enfiadas em garrafas de vinho
envoltas em palha. Música de uma estação FM. Seu corpo era doce, a boca
sôfrega, a pele perfeita. Fez muitos barulhos entusiasmados, um bocado de
movimentos bem experientes e depois chorou um pouco.
Conversamos, ela bebeu um pouco mais e, não demorou muito, caiu no
sono. Cobri-a com o lençol de cima e uma colcha de algodão. Poderia ter
adormecido também, mas me vesti e me mandei para casa. Por que quem,
em seu juízo perfeito, ia querer Matt Scudder ao lado, quando o dia
amanhecesse?
A caminho de casa parei na pequena delicatessen síria e pedi ao
atendente que afrouxasse as tampas de duas garrafas de Molson Ale. Subi
para o meu quarto, sentei com os pés apoiados no batente da janela e bebi
uma garrafa.
Pensei no Tillary. Onde é que ele estava agora? Na casa onde ela
morrera? Com amigos ou parentes?
Pensei nele em bares ou na cama com Carolyn, enquanto um ladrão
matava sua mulher, e fiquei imaginando o que ele pensava sobre isso tudo.
Ou se pensava nisso.
E meu pensamento voltou-se de repente para Anita, lá em Syosset com
os meninos. Tive um momento de medo por ela, imaginando-a ameaçada,
afastando-se aterrorizada de um perigo invisível. Reconheci esse medo
como irracional, e fui capaz, logo em seguida, de perceber o que era
aquilo, algo que trouxera para casa comigo, alguma coisa que colou em
mim junto com o perfume de Carolyn Cheatham. Carregava comigo a
culpa de Tommy Tillary, por procuração.
Ora, ao diabo com aquilo tudo. Não precisava da culpa dele. Já tinha as
minhas, que eram muitas.
6
O fim de semana foi tranquilo. Falei com meus filhos, mas eles não
vieram para cá. Sábado à tarde ganhei cem dólares para acompanhar um
dos sócios de um antiquário que fica no mesmo quarteirão do Armstrong's.
Fomos juntos de táxi até a Rua 74, Leste, onde ele arrebanhou roupas e
outros pertences do apartamento de seu ex-amante. O amante, com uns
quinze ou vinte quilos acima do peso, mostrou-se amargo e grosseiro.
— Não estou acreditando, Gerald. Você trouxe mesmo um guarda-
costas ou esse é o meu substituto para o verão? Seja como for, não sei se
devo ficar lisonjeado ou ofendido.
— Tenho certeza de que você vai resolver essa dúvida.
No táxi, na volta, Gerald falou:
— Gostei de verdade desse filho-da-puta, Matthew, e macacos me
mordam se eu conseguir descobrir por quê. Obrigado por tudo, Matthew.
Eu poderia ter contratado um carregador por cinco dólares a hora, mas a
sua presença fez toda a diferença. Você reparou como ele estava prestes a
dizer que a luminária Handel era dele? Pois sim! Quando o conheci, ele
não sabia nada sobre Handel, nem as luminárias, nem o compositor. Tudo
o que ele sabia era hondle. Você conhece essa palavra, hondle. Significa
regatear o preço, como se eu agora tentasse pagar a você cinquenta dólares
em vez dos cem combinados. Estou brincando, meu caro. Não tenho
nenhum problema em pagar a você os cem, acho que você valeu cada
centavo.

Domingo à noite Bobby Ruslander me encontrou no Armstrong's. Skip


queria falar comigo, disse. Ele estava no Miss Kitty's, e se eu estivesse
livre, ele queria que eu fosse até lá. Como eu tinha tempo, Bobby e eu
fomos caminhando.
Estava um pouco mais fresco; o pior da onda de calor tinha se
evaporado no sábado, quando choveu o suficiente para refrescar as ruas.
Um carro dos bombeiros passou em disparada por nós, enquanto
aguardávamos o sinal abrir.
— Coisa de louco — Bobby falou quando o barulho da sirene
diminuiu.
— O quê?
— Ele vai contar tudo para você. Nunca o vi assim, sabe? Ele é sempre
supercontrolado, o Arthur — comentou, enquanto atravessávamos a rua.
— Ninguém mais o chama de Arthur.
— Ninguém nunca o chamou assim. Quando éramos crianças, ninguém
o chamava de Arthur. Era como se estivéssemos falando de outra pessoa.
Todo mundo o chama de Skip. Sou seu melhor amigo, eu o chamo pelo seu
nome próprio.
Quando chegamos, Skip jogou uma toalha para Bobby e pediu-lhe que
o substituísse.
— Ele é um barman horrível, mas pelo menos não rouba muito.
— Isso é o que você pensa — Bobby falou. Fomos até o escritório e
Skip fechou a porta. Tinha um par de escrivaninhas velhas, duas cadeiras
giratórias e uma cadeira de encosto alto, um cabide para casacos, um
arquivo e um antigo cofre Mosler, mais alto que eu.
— Aí é que os livros deveriam estar — disse, apontando para o cofre.
— Mas o caso é que John e eu somos espertos demais para isso. Se
houvesse uma auditoria, seria o primeiro lugar que eles iriam examinar,
não é? Então, aí só temos mil dólares em dinheiro vivo, alguns papéis e
merda, ou seja, o contrato de arrendamento deste galpão, nosso acordo de
parceria, a papelada do divórcio dele, coisas assim. Maravilha. Salvamos
essa besteira e deixamos alguém sair andando com a loja. — Acendeu um
cigarro. — O cofre já estava aqui quando arrendamos o local. Sobra de
quando isso aqui era uma loja de ferragens. Sua remoção sairia mais cara
do que seu valor, por isso nós o herdamos. Tremendo de um bruto, não é?
Daria para colocar um cadáver aí dentro, se você tivesse um dando sopa
por aí. Assim, ninguém ia roubá-lo. Ele telefonou, o desgraçado que
roubou os livros.
— Ah, é? Skip assentiu:
— É um lance de resgate. “Tenho algo que é seu e posso devolvê-lo.”
— Ele disse o preço?
— Não. Disse que manteria contato.
— Você reconheceu a voz?
— Não… Parecia falsa.
— Como?
— Como se não fosse sua voz verdadeira. De qualquer modo, não
reconheci. — Ele apertou uma mão na outra e esticou os braços para
estalar os nós dos dedos. — Parece que tenho que sentar e esperar que ele
telefone de novo.
— Quando foi que ele ligou?
— Faz umas duas horas. Estava trabalhando, ele telefonou para cá. Boa
maneira de começar a noite, posso garantir.
— Ao menos ele está procurando você, não foi direto para a Receita.
— É, já pensei nisso. Dessa maneira temos chance de fazer alguma
coisa. Nós estamos nas mãos dele: se ele aparecesse e jogasse uma moeda
no chão, a única coisa que poderíamos fazer era nos abaixar e pegá-la.
— Já falou com seu sócio?
— Ainda não, telefonei, mas ele não estava.
— Você vai ter de esperar.
— É… Grande diferença! Que diabos estava fazendo até agora, me
divertindo por aí? — Em sua mesa havia uma garrafa d'água cheia de um
líquido amarronzado. Deu uma última tragada e jogou o cigarro ali dentro.
— Nojento. Não quero ver você fazendo isso, hein, Matt? Você não fuma,
não é?
— Às vezes, muito de vez em quando.
— É mesmo? Você fuma uma vez ou outra e não se vicia? Conheço um
sujeito que usa heroína assim. Você também o conhece, na verdade. Mas
esses merdinhas — bateu no maço —, creio que viciam mais do que
drogas pesadas. Quer um?
— Não, obrigado.
Ele se levantou.
— As únicas coisas que não me viciam são aquelas das quais não gosto
desde o início. Olhe, obrigado por ter vindo. Não há nada a fazer a não ser
esperar, mas achei melhor manter você informado.
— Fez bem, mas quero que saiba que não me deve nada por isso.
— O que é que você quer dizer?
— Quero dizer para você não sair por aí pagando minhas contas de bar.
— Você ficou magoado?
— Não.
— Foi uma coisa que me deu vontade de fazer.
— Obrigado, mas não era preciso.
— É, acho que não. Mas quando a gente está tirando um por fora, por
assim dizer, acaba ficando muito liberal com dinheiro. Gasta em coisas
que não aparecem. Droga. Mas posso pagar um drinque para você no meu
bar, não posso?
— Isso pode.
— Então vamos, antes que o Ruslander distribua a loja inteira.

Toda vez que eu entrava no Armstrong's ficava imaginando se ia


encontrar a Carolyn, e a cada vez me sentia mais aliviado do que
desapontado por ela não estar lá. Podia ter lhe telefonado, mas achei que
era mais apropriado não procurá-la. Sexta à noite tinha sido apenas aquilo
que nós dois tivemos vontade de fazer, é claro, e me pareceu que tinha
sido um ato completo em si mesmo, para ambos, e estava satisfeito que
assim fosse. Como um bônus extra, livrei-me do que quer que estivesse
me incomodando a respeito da Fran e, ao que tudo indica, acho que não era
nada mais complicado do que a velha vontade de ter relações sexuais.
Creio que meia hora com uma dessas prostitutas de rua teria resolvido o
problema do mesmo jeito, se bem que não de uma maneira tão prazerosa.
Também não dei de cara com Tommy, e isso foi, do mesmo modo, um
alívio, nem um pouco desapontador.
Logo em seguida, na segunda de manhã, li no News que tinham
prendido uma dupla de latinos de Sunset Park, pelo roubo e homicídio em
casa dos Tillary. O jornal estampava as fotos de sempre — dois jovens
magrinhos, um deles tentando esconder o rosto, o outro encarando
desafiadoramente a câmera, cada um algemado a um irlandês de terno,
ombros largos e cara amarrada. Havia uma legenda para explicar quem
eram os maus, totalmente desnecessária.
Eu estava no Armstrong's na tarde em que o tele fone tocou. Dennis
pousou o copo que enxugava e atendeu.
— Ele estava aqui há um minuto atrás. Vou ver se ainda o alcanço. —
Cobriu o bocal com a mão e, me olhando inquisitorialmente, perguntou:
— Você ainda está aqui? Ou saiu enquanto eu estava distraído com outras
coisas?
— Quem quer saber?
— Tommy Tillary.
Você nunca sabe o que uma mulher resolve dizer a um homem, ou
como esse homem irá reagir. Não tinha muita vontade de saber, mas era
melhor ouvir pelo telefone do que cara a cara. Assenti com a cabeça e
Dennis passou-me o telefone por cima do bar.
— Matt Scudder, Tommy. Sinto muito sobre sua mulher.
— Obrigado, Matt. Deus do céu, parece que tudo aconteceu há um ano.
E quando foi, há pouco mais de uma semana?
— Ao menos eles pegaram os desgraçados.
Uma pausa.
— Você não leu os jornais de hoje, não é?
— Claro que sim. Dois garotos latinos, com foto e tudo.
— Está parecendo que você leu o News da manhã.
— É o que eu geralmente leio. Por quê?
— Mas não leu o Post desta tarde?
— Não. Por que, o que foi que aconteceu? Eles estão limpos?
— Limpos — ele disse e riu com desdém. — Imaginei que você
soubesse. Os tiras apareceram de manhã cedo, antes que eu lesse a história
no News, de modo que eu ainda não sabia da prisão. Merda. Seria mais
fácil se você já soubesse disso.
— Não estou entendendo, Tommy.
— Os dois latin lovers. Limpos? Merda, o banheiro masculino da
estação do metrô de Times Square é mais limpo do que eles. Os policiais
foram à casa deles e encontraram coisas da minha casa por toda parte.
Joias das quais tinham a descrição, uma aparelhagem de som com a
numeração que eu lhes dera, tudo. Camisas com monograma. Quer dizer, é
assim que eles estão limpos, pelo amor de Deus.
— E aí?
— Aí que eles admitiram o roubo, mas não o assassinato.
— Bandidos fazem isso o tempo todo.
— Deixe eu acabar de falar, está bem? Confessaram o assalto, mas de
acordo com eles não foi bem um assalto. Eu lhes dei tudo aquilo.
— E eles foram buscar no meio da noite.
— É, foi isso… Não, a história deles é que deveriam fazer parecer um
assalto, para que eu pudesse receber do seguro. Eu poderia alegar uma
perda maior do que aquilo que eles estavam levando, e dessa forma
lucraríamos os três.
— Qual foi o total do roubo?
— Merda, eu não sei. Havia o dobro de coisas na casa deles do que o
declarado na queixa que assinei. Há coisas das quais só fui dar falta depois
da lista pronta e outras que nem sabia que tinham sumido, até serem
encontradas pela polícia. E levaram coisas que não estavam no seguro. Um
casaco de peles da Peg que íamos colocar na apólice, e nunca colocamos.
Algumas de suas joias, na mesma situação. Tenho uma apólice padrão de
seguro residência, não cobre nem a metade do que levaram. Roubaram um
conjunto de prata verdadeira, que herdamos de uma tia dela, juro que tinha
me esquecido que tínhamos esse troço. Também não está coberto pelo
seguro.
— Dificilmente isso pareceria um golpe contra a seguradora.
— Não, claro que não. Como poderia? De qualquer forma, o mais
importante, segundo eles, é que a casa estava vazia quando a invadiram.
Peg não estava em casa.
— E daí?
— Daí eu é que inventei essa história toda. Eles entraram na casa,
carregaram tudo que puderam, e depois voltei com a Peg e a esfaqueei
seis, oito vezes, sei lá quantas, e a deixei lá, para que ficasse parecendo
que tudo acontecera durante um assalto.
— Como é que esses sujeitos podem testemunhar que você esfaqueou
sua mulher?
— Não podem. Tudo que disseram foi que não foram eles e que ela não
estava em casa enquanto assaltavam, e que o roubo tinha sido combinado
comigo. Os policiais é que somaram dois mais dois.
— O que é que eles fizeram, prenderam você?
— Não. Vieram até o hotel onde estou, bem cedo. Tinha acabado de
sair do chuveiro. Foi quando fiquei sabendo que os cucarachas tinham
sido presos, e mais ainda, que estavam tentando pôr a culpa em mim.
Disseram que só queriam conversar, eu concordei, mas depois comecei a
perceber onde é que eles estavam querendo chegar. Aí falei que não diria
mais nada sem a presença de meu advogado, telefonei para ele, que deixou
seu café da manhã pela metade, veio correndo e não me deixou dizer uma
palavra.
— E os tiras não levaram você para o distrito, nem indiciaram você?
— Não.
— Mas também não compraram toda a sua história?
— Não. Na verdade, não lhes contei história alguma, porque o Kaplan
não me deixou dizer uma palavra. Eles ainda não me levaram porque não
têm um caso, mas segundo Kaplan vão tentar criar um, se puderem.
Disseram-me para não sair da cidade. Você acredita nisso? Minha mulher
está morta e a manchete do Post diz “Marido misterioso no assalto com
assassinato”, e o que é que eles acham que vou fazer? Pescar trutas em
Montana? “Não saia da cidade.” A gente ouve essa merda na televisão,
pensa que na vida real ninguém fala assim. Mas pode ser que sejam eles a
imitar a televisão.
Esperei que me dissesse o que queria de mim. Não precisei esperar
muito.
— Telefonei porque o Kaplan acha que devemos contratar um detetive.
Ele acha que esses sujeitos podem ter comentado alguma coisa lá na
vizinhança deles, talvez tenham se exibido para os amigos, talvez haja
uma maneira de provar que cometeram o crime. Disse que os policiais não
irão concentrar-se nessa linha de investigação, se estiverem muito
ocupados tentando fechar a tampa sobre o meu caixão.
Expliquei que não tinha nenhuma posição oficial, que não tinha
registro e que não apresentava relatórios.
— Tudo bem — ele insistiu. — Eu disse ao Kaplan que quero alguém
em quem possa confiar, alguém que vá trabalhar a meu favor. Acho que
eles não vão ter caso algum, Matt, porque posso provar onde estive o
tempo todo, não poderia estar onde eles acham que eu estava, para fazer
aquilo que eles estão dizendo que fiz. Mas quanto mais tempo essa merda
durar, pior vai ser para mim. Quero esclarecer a situação, quero que saia
nos jornais que esses babacas desses latinos fizeram tudo e que não tive
nada a ver com isso. Quero isso por mim, pelas pessoas com as quais faço
negócios, pelos meus parentes e pelos parentes da Peg, e por todas aquelas
pessoas maravilhosas que votaram em mim. Você se lembra do velho “A
Hora do Amador”? “Quero agradecer a mamãe e ao papai e a tia Edith e a
minha professora de piano, senhora Pelton, e a todas as pessoas
maravilhosas que votaram em mim.” Olhe, venha me encontrar no
escritório do Kaplan, ouça o que o homem tem a dizer, faça-me esse
grande favor e ganhe um dinheirinho. O que é que você me diz, Matt?
Ele queria alguém em quem pudesse confiar. Será que a Carolyn da
Carolina lhe dissera o quanto eu era confiável?
O que foi que eu disse? Eu disse sim.
7
Tomei o trem que só faz uma parada antes de chegar ao Brooklyn e
encontrei-me com Tommy Tillary no escritório de Drew Kaplan, na rua
Court, a poucas quadras da sede da Região Administrativa do Brooklyn.
Ao lado havia um restaurante libanês; na esquina, um armazém,
especializado em artigos do Oriente Médio; logo a seguir, um antiquário
atulhado de móveis em carvalho lixado, luminárias em cobre e estrados
para colchões. Em frente ao prédio de Kaplan, via-se um homem negro,
sem pernas, pousado numa pequena prancha com rodinhas. Ao seu lado,
uma caixa de charutos com algumas notas de um dólar e uma porção de
moedas. Usava óculos de tartaruga e, num cartaz escrito à mão, pousado
na calçada bem na sua frente, lia-se o seguinte: “Não se engane com os
óculos. Não sou cego, só não tenho as pernas”.
O escritório de Kaplan era daqueles com paredes de lambris, poltronas
de couro e arquivos de carvalho, tipo armários, que poderiam ter sido
comprados na loja da esquina. No vidro fosco da porta do escritório,
pintados em letras pretas e douradas, num estilo antigo, lia-se seu nome e
os de seus dois sócios. Nas paredes, diplomas emoldurados mostravam que
ele se graduara em Adelphi, formando-se em Leis na Faculdade de Direito
do Brooklyn. Um cubo de acrílico, em cima da escrivaninha vitoriana,
mostrava sua mulher e seus filhos. Um grande prego de bronze, peça de
uma antiga via férrea, servia como peso de papel. Na parede ao lado da
escrivaninha, um relógio de pêndulo marcava o desenrolar da tarde.
O próprio Kaplan tinha uma aparência conservadora, apesar do terno
moderno, de tropical cinza risca de giz, com uma gravata amarela de poás.
Parecia ter trinta e poucos anos, o que combinava com as datas de seus
diplomas. Era mais baixo do que eu e, claro, muito mais baixo do que
Tommy, com um bom corpo, barbeado, olhos e cabelos negros e um
sorriso ligeiramente enviesado. Seu aperto de mão era bastante firme, o
olhar franco, mas observador, avaliador.
Tommy usava seu blazer vinho com calça de flanela cinza e mocassins
brancos. Notava-se, pelo contorno da boca e no olhar, a tensão pela qual
passava. A tez pálida, como se a ansiedade, sugando todo o sangue para
dentro de seu corpo, tivesse descorado sua pele.
— Tudo o que queremos — Drew Kaplan me disse — é que você ache
uma chave no bolso de uma das calças deles, do Herrera ou do Cruz, e
consiga associá-la a um armário na estação Penn, e nesse armário
encontraremos uma faca comprida, cheia de sangue, com a impressão
digital dos dois.
— Só isso?
Ele sorriu.
— Digamos que não faria mal algum. Não, na verdade, não estamos
numa situação tão ruim. O que eles têm é o testemunho capenga de uma
dupla de latinos, que já entrou e saiu de confusões desde o dia em que, mal
tinham largado as fraldas, foram direto para o Tropicana. Quanto ao
Tommy, têm o que acreditam ser um bom motivo.
— Que é?
Eu olhava para o Tommy quando fiz a pergunta. Ele desviou os olhos
dos meus.
— Resumindo, um triângulo amoroso e um forte motivo financeiro.
Margaret Tillary herdou algum dinheiro de uma tia, falecida na primavera
passada. O inventário ainda não terminou, mas trata-se de uma quantia de
um pouco mais de meio milhão de dólares — foi a resposta de Kaplan.
— Vai ser muito menos que isso quando terminarem de retalhá-la.
Muito menos — Tommy falou.
— Além disso, há o seguro. Tommy e sua mulher tinham duas apólices
de seguro de vida, cada um nomeando o outro seu beneficiário, ambos com
cláusulas de indenização em dobro, num valor de — consultou um
papelzinho em sua mesa — cento e cinquenta mil dólares, duplicados para
trezentos mil, se a morte fosse por acidente. A essa altura, já estamos
falando de setecentos, oitocentos mil motivos para um crime.
— Esse é o meu advogado!
— Ao mesmo tempo, Tommy anda meio apertado, precisando de
dinheiro. Teve um mau ano no jogo, deve aos bookmakers e talvez já esteja
sendo pressionado por eles.
— Só um pouco — Tommy falou, interrompendo Kaplan.
— Estou contando a história da maneira que os tiras contariam, está
bem? Deve algum dinheiro por aí, está com o pagamento de seu Buick
atrasado. Nesse meio-tempo, empregou uma moça no escritório, pula de
bar em bar com ela, às vezes nem volta para casa.
— Raramente, Drew. Quase sempre voltava e, se não desse para dormir
umas horas, pelo menos tomava banho, me vestia e tomava o café da
manhã com a Peg.
— O que é que você tomava no café? Dexamyl?
— Às vezes. Tinha um escritório me aguardando, com trabalho à
minha espera.
Kaplan sentou-se na ponta da mesa, com as pernas cruzadas na altura
dos tornozelos.
— Isso serve como motivo. Eles não se dão ao trabalho de levar em
conta um par de coisas. Primeiro, ele gostava da mulher, e quantos
maridos traem suas mulheres? O que é mesmo que dizem por aí? Noventa
por cento admitem que traem e dez por cento mentem? Segundo, ele tem
dívidas, mas não está em situação desesperadora. É um cara que ganha
muito dinheiro durante o ano, mas está sempre em altos e baixos, faz anos
que é assim, rico num mês, apertado no outro.
— A gente acaba se acostumando.
— Além disso, as quantias parecem uma fortuna, mas não são números
expressivos. Meio milhão é uma quantia considerável, mas depois dos
impostos não vai sobrar muito, e uma parte disso é o título de propriedade
da casa que ele já ocupa há anos. Um chefe de família fazer um seguro de
cento e cinquenta mil dólares sobre sua vida não é nada demais, e ter a
mesma cobertura sobre a vida de sua mulher não é fora do comum. Muitos
corretores de seguro tentam vender apólices dessa maneira. Fazem tudo
parecer lógico, equilibrado, e você acaba esquecendo que não precisa
dessa espécie de cobertura sobre a vida de alguém que não é o seu ganha-
pão. — Ele abriu os braços. — De qualquer modo, essas apólices foram
adquiridas há anos. Não foi um seguro feito na semana passada.
Ficou em pé e caminhou até a janela. Tommy tirou o prego da via
férrea de cima da mesa e começou a brincar com ele, batendo-o contra a
palma da mão, consciente ou inconscientemente, acompanhando o ritmo
do pêndulo do relógio.
— Um dos ladrões, Angel Herrera, quer dizer, An-hell, pois suponho
que é assim que ele pronuncia seu nome, andou fazendo uns bicos na casa
dos Tillary, em março ou abril. Faxina geral de início da primavera, para
retirar coisas inúteis acumuladas no porão e no sótão; trabalhou pesado em
troca de pagamento por hora de serviço. De acordo com ele, foi quando
Tommy o contatou para fingir o tal assalto. De acordo com o bom senso,
foi assim que Herrera e seu amigo Cruz conheceram a casa, e o seu
recheio, e como invadi-la.
— Como é que entraram?
— Quebraram um pequeno painel de uma porta lateral, enfiaram a mão
e destravaram a porta. Dizem que Tommy deixou a porta destrancada para
eles e que depois quebrou o vidro. Também contam que deixaram a casa
relativamente limpa.
— Como se um ciclone a tivesse atingido — Tommy falou. — Tive
que ir lá. Só de olhar fiquei doente.
— A história deles é que Tommy sujou a casa enquanto assassinava a
mulher. Mas, se você examinar bem as coisas, verá que não pode ser. As
horas não batem. Eles entraram na casa cerca de meia-noite, e o legista diz
que a morte aconteceu entre dez da noite e quatro da manhã. Ora, nosso
amigo Tommy não voltou do escritório para casa naquela noite. Trabalhou
até depois das cinco, encontrou sua amiga para jantar, e depois esteve com
ela em uma porção de lugares públicos. — Olhou para seu cliente. —
Temos a sorte de ele não ser muito discreto. Seu álibi seria muito mais
fraco se tivesse passado todos os minutos daquela noite no apartamento
dela, com as cortinas cerradas.
— Eu era discreto no que se relacionava a Peg. No Brooklyn, era um
homem de família. O que eu fazia na cidade nunca a magoou.
— Depois da meia-noite, começa a ficar mais difícil provar onde ele
estava — Kaplan continuou. — A única testemunha para esse espaço de
tempo é a namorada, porque, pelo menos por um bocado, eles estiveram
no apartamento dela, com as cortinas fechadas.
Você não precisava fechar as cortinas, pensei. Ninguém pode ver o que
se passa lá dentro.
— Depois vem um espaço de tempo sobre o qual ela não pode
testemunhar.
— Ela dormiu e eu não, por isso me vesti e saí para tomar umas
tônicas. Mas não fiquei fora tanto tempo assim, e ela acordou quando
retornei. Eu tinha um helicóptero, talvez tivesse ido a Bay Ridge e voltado
naquele intervalo. Num Buick é que não foi.
— O negócio é o seguinte — Kaplan falou —, mesmo supondo que
houvesse tempo, ou ignorando inteiramente o álibi da namorada, aceitando
apenas as horas comprovadas por testemunhas imparciais, como é que ele
poderia ter cometido o crime? Vamos supor que tenha entrado na casa um
pouco depois de os latinos terem feito sua visitinha, e antes das quatro da
manhã, hora limite em que o assassinato pode ter acontecido. De acordo
com Herrera e Cruz, não havia ninguém na casa. Ora, então, onde ele a
encontrou para matá-la? O que é que ele fez, carregou-a na mala do carro a
noite inteira?
— Vamos supor que ele a matou antes de os ladrões chegarem lá —
falei.
— Meu instinto é mesmo muito bom, sabem? Quero contratar logo
esse cara!
— Não funciona. Em primeiro lugar, as horas não batem. Ele tem um
álibi sólido para antes das oito até depois de meia-noite, em público com
uma garota. O legista diz que às dez horas Margaret estava bem viva, não
poderia ter sido morta antes desse horário. Mesmo que a gente não leve as
horas em conta, não funciona. Como poderiam ter entrado, assaltado a
casa inteira e não ver uma mulher morta no quarto? Estiveram no quarto,
objetos roubados dali foram encontrados com eles, acho mesmo que
encontraram impressões digitais deles nesse quarto. Além do que, a
polícia achou o corpo de Margaret Tillary em seu quarto e esse é o tipo de
coisa que era impossível eles deixarem de notar.
— Talvez o corpo estivesse coberto. — Pensei no enorme cofre Mosler
de Skip. — Trancado num armário que não abriram.
Ele sacudiu a cabeça:
— Ela morreu esfaqueada. Havia muito sangue, por toda parte. A cama
estava empapada, o tapete também. — Ambos evitamos olhar para o
Tommy. — Ela não foi assassinada em outro lugar. Foi morta ali. Morreu
ali mesmo e, se não foi o Herrera quem a matou, foi o Cruz, mas de
qualquer modo não foi o Tommy — Kaplan concluiu.
Procurei um furo e não encontrei.
— Então não vejo motivo para vocês precisarem de mim. O caso
contra Tommy parece muito fraco.
— Tão fraco que não há caso algum.
— Então?
— O negócio é o seguinte: você entra num tribunal com uma história
parecida com essa e, mesmo que ganhe, ainda sai perdendo. Porque pelo
resto de sua vida o que todas as pessoas vão lembrar é que você um dia foi
julgado pelo assassinato de sua mulher. Não tem importância o fato de
você ter sido absolvido. Todos pensam que ou um advogado judeu
comprou o juiz ou enganou o júri.
— Então vou arranjar um advogado crioulo, assim vão pensar que ele
ameaçou o juiz e bateu nos jurados.
— Além disso — Kaplan prosseguiu —, nunca se sabe para que lado
os jurados vão. Lembre-se, o álibi de Tommy é que ele estava com outra
mulher na hora do assalto. A garota é uma colega de trabalho, o júri pode
até acreditar numa amizade totalmente inocente, mas você leu a matéria
que saiu no Post? Alguns jurados podem concluir que não acreditam no
seu álibi, porque sua namorada pode estar mentindo por você, e ao mesmo
tempo vão rotulá-lo de canalha por estar afogando o ganso enquanto sua
mulher está sendo assassinada.
— Continue, vou acabar achando que sou o culpado só pelo jeito que
você conta a história.
— Fora isso, vai ser difícil encontrar um corpo de jurados que
simpatize com ele. É um cara grande, bonitão, veste-se com apuro, você o
adoraria num papo de boteco, mas quanta afeição você teria por ele num
tribunal? Ele é um vendedor de valores mobiliários pelo telefone, coisa
perfeitamente respeitável, ele lhe telefona, aconselha como investir o seu
dinheiro. Perfeito. Isso significa que todo idiota que alguma vez perdeu
cem dólares numa dica de investimento, ou que assinou uma revista pelo
telefone, vai entrar na sala do tribunal com ganas de acabar com ele. Sério,
quero ficar longe do tribunal. Vou ganhar a causa, sei que vou, mesmo que
o pior aconteça, ganho em segunda instância, mas quem é que precisa
disso? Este é um caso que não tem base, em primeiro lugar, e o que eu
gostaria é de resolver tudo antes mesmo de a polícia levar o assunto
adiante.
— Então o que você quer de mim é…?
— Tudo que você possa descobrir, Matt. Tudo que possa desacreditar
Herrera e Cruz. Não sei se há alguma coisa para ser encontrada. Adoraria
que você encontrasse sangue, roupas com manchas, coisas assim. O fato é
que não sei o que podemos encontrar. Você foi policial, agora trabalha para
clientes particulares, pode andar pelas ruas, entrar nos bares, bisbilhotar.
Você conhece bem o Brooklyn?
— Uma parte. Já trabalhei aqui, algumas vezes.
— Então você sabe andar por aqui.
— Razoavelmente bem. Mas será que vocês não estariam melhor
servidos com alguém de língua espanhola? Sei o suficiente para pedir uma
cerveja numa bodega, mas estou longe de ser fluente.
— Tommy quer alguém de sua inteira confiança e foi inflexível nesse
ponto. Quer você. Acho que ele está certo. Uma relação pessoal vale mais
do que qualquer “Me llamo Matteo y como está usted?”.
— Isso é verdade. Matt, sei que posso contar com você, e isso vale
muito.

Queria dizer-lhe que ele só podia contar consigo mesmo, mas por que
estava evitando ganhar algum dinheiro? Seu dinheiro era tão bom quanto o
de qualquer outro. Não tinha certeza se gostava dele, mas preferia mesmo
não gostar das pessoas para quem fosse trabalhar. Acabava por ser menos
aflitivo, se por acaso eu percebesse que estava lhes dando menos do que
deveria.
E não via como poderia servi-lo bem. O caso contra ele parecia
suficientemente sem base para soçobrar sem minha ajuda. Será que o
Kaplan não estava apenas querendo fazer marola, para poder cobrar
honorários altos, no caso de tudo virar fumaça dentro de uma semana? Era
possível, mas não era da minha conta.
Disse que teria prazer em ajudar. Também que esperava descobrir
algum detalhe útil.
Tommy disse que tinha certeza disso.
— Você vai querer um adiantamento sobre seus honorários? Suponho
que você cobre uma taxa diária mais despesas, ou você cobra por hora?
Por que você está sacudindo a cabeça? — Drew Kaplan perguntou.
— Não tenho licença. Não tenho nenhuma posição oficial.
— Isso não é problema. Podemos colocar você nos livros como
consultor.
— Não quero constar de livro algum. Não faço anotações de como
empreguei meu tempo, nem de despesas. Pago as contas com dinheiro de
meu próprio bolso. Recebo sempre em dinheiro vivo.
— Como é que você calcula seu preço?
— Penso num número. Se, ao fim de tudo, acho que tenho direito a
mais, digo. Se você não concordar, não me paga. Não vou processar
ninguém por causa disso.
— Parece uma maneira pouco regular de fazer negócios.
— Não faço negócios. Faço favores para os amigos.
— E recebe dinheiro por esses favores.
— Há alguma coisa de errado em receber dinheiro em troca de um
favor?
— Acho que não. — Ele ficou pensativo. — Quanto é que você espera
receber por este favor?
— Ainda não sei bem no que estou me metendo. Suponha que você me
dê mil e quinhentos dólares hoje. Se as coisas se arrastarem, e eu achar
que tenho direito a mais, direi a você.
— Mil e quinhentos. E claro que Tommy não sabe direito o que vai
receber em troca desse dinheiro.
— Não. Nem eu — falei.
Kaplan apertou os olhos e disse:
— Isso me parece muito para uma comissão. Pensava que um terço
disso fosse o bastante, para começar.
Lembrei-me de meu amigo antiquário. Será que eu sabia o que era
hondle? Kaplan evidentemente sabia.
— Não é tanto assim — eu disse. — Um por cento do dinheiro do
seguro, e esse é um dos motivos pelos quais vocês precisam de um
investigador, não é? A companhia seguradora só paga quando Tommy
estiver totalmente livre de suspeitas.
— Isso é verdade — Kaplan admitiu, meio espantado —, mas não sei
se é o motivo para contratarmos você. A seguradora, cedo ou tarde, vai
pagar. Não acho que seu preço seja muito alto, apenas me pareceu uma
soma desproporcionalmente grande para dar em adiantamento.
— Não discuta preços — Tommy interrompeu. — Para mim essa
comissão está perfeita, Matt. Só que nesse momento, sabe, estou com
pouco dinheiro e arranjar mil e quinhentos em dinheiro vivo…
— Talvez seu advogado adiante para você — sugeri.
Kaplan achou que isso era irregular. Fui para a antessala enquanto eles
discutiam o assunto. A recepcionista estava lendo um número da revista
Fate. Um par de gravuras coloridas à mão, em molduras antigas, mostrava
cenas do centro de Brooklyn no século XIX. Eu as estava olhando quando
Kaplan abriu a porta e me chamou.
— Tommy vai poder tomar emprestado baseado na expectativa do
dinheiro do seguro e da herança de sua mulher. Nesse meio-tempo posso
lhe adiantar os mil e quinhentos. Espero que não faça objeção a assinar um
recibo?
— Nenhuma — respondi. Contei as notas, doze de cem e seis de
cinquenta, todas notas já em circulação e com os números fora de
sequência. Todo mundo parece ter algum dinheiro separado, até os
advogados.
Ele redigiu um recibo e eu assinei. Desculpou-se pelo momento
ligeiramente constrangedor a respeito de meu pagamento.
— Os advogados são treinados para serem seres humanos muito
convencionais — disse. — Às vezes tenho uma certa dificuldade em me
adaptar a procedimentos fora dos padrões. Espero não ter sido ofensivo.
— De maneira nenhuma.
— Fico feliz. Bem, não vou esperar relatórios escritos ou uma
prestação de contas de todos os seus movimentos, mas você vai me dando
notícias de vez em quando, informando sobre o que descobrir? E, por
favor, não poupe detalhes, nunca se sabe o que será útil.
— Isso eu já sei.
— Tenho certeza que sim. — Acompanhou-me até a porta. — A
propósito, seu adiantamento foi de apenas meio por cento do dinheiro do
seguro. Creio que mencionei que a apólice tem uma cláusula de
indenização em dobro, e assassinato é considerado um acidente.
— Eu sei. Sempre desejei saber por quê.
8
O sexagésimo oitavo distrito fica na Rua 65, entre a Terceira e a Quarta
Avenida, como se estivesse a cavaleiro sobre o limite imaginário entre Bay
Ridge e Sunset Park. No lado sul da rua, um conjunto residencial
começava a surgir; do outro lado, o posto policial lembrava alguma coisa
saída do período cubista de Picasso, todo em blocos apoiados em colunas e
áreas rebaixadas. A estrutura lembrou-me o prédio que abriga o vigésimo
terceiro distrito policial, em East Harlem; depois soube que foram
projetados pelo mesmo arquiteto.
O prédio fora construído seis anos antes, de acordo com a placa na
entrada que mencionava o arquiteto, o comissário de polícia, o prefeito e
alguns notáveis que fizeram doações em busca da imortalidade municipal.
Fiquei ali, em pé, lendo a placa como se ela trouxesse alguma mensagem
especial para mim. Depois entrei e fui até a recepção. Disse que procurava
pelo detetive Calvin Neumann. O policial de plantão deu um telefonema,
depois apontou para a sala do esquadrão.
O interior do distrito era limpo, espaçoso e bem iluminado. Mas já
funcionava havia tempo suficiente para começar a adquirir o jeito daquilo
que realmente era.
A sala do esquadrão possuía uma fieira de arquivos de metal cinza,
outra de armários pessoais pintados de verde e escrivaninhas de aço,
encostadas umas nas outras, de duas em duas. Num canto da sala ficava
um aparelho de televisão, que ninguém assistia. Metade das oito ou dez
mesas estava ocupada. No bebedouro, um homem de terno conversava
com outro em mangas de camisa. No xadrez, um bêbado cantava alguma
coisa desafinada, em espanhol.
Reconheci um dos detetives em uma das mesas, mas não consegui
lembrar seu nome. Ele não olhou para cima. No lado oposto da sala, um
outro sujeito me pareceu familiar. Fui até um cara que não conhecia e ele
me apontou Neumann, duas mesas mais para os fundos, do outro lado.
Ele preenchia um formulário e fiquei ali em pé enquanto ele acabava
de datilografar. Depois olhou para cima.
— Scudder? — falou e apontou para uma cadeira. Girou a cadeira para
ficar de frente para mim e mostrou a máquina de escrever com a mão: —
Eles não dizem as horas que você vai passar datilografando lixo. Ninguém
aí fora imagina o quanto este trabalho tem de administrativo.
— Essa é a parte da qual não se tem nenhuma saudade.
— Acho que também não sentiria falta. — Bocejou demoradamente.
— Eddie Koehler falou muito bem de você. Telefonei-lhe, como você
sugeriu. Ele disse que você é legal.
— Você conhece o Eddie?
Ele fez que não a cabeça:
— Mas sei o que é um tenente. Não tenho muita coisa para lhe dar,
mas o que tenho está às ordens. Talvez você não consiga a mesma
cooperação da delegacia de homicídios do Brooklyn.
— Por que será?
— Para começar, avocaram o caso para lá. Logo de início, foi enviado
para o centésimo quarto, o que na verdade estava errado, mas isso
acontece com frequência. Depois, a homicídios reagiu juntamente com o
centésimo quarto e tiraram o caso dos policiais da área.
— E quando foi que você se envolveu?
— Quando um de meus informantes favoritos apareceu com um
punhado de histórias que ouvira em bares e padarias na Terceira, debaixo
da via expressa. Um bom casaco de vison num ótimo preço, mas você tem
que guardar isso para você, sabe, porque o ambiente já anda muito
carregado. Bem, julho é um mês engraçado para se vender casacos de pele
em Sunset Park. Um sujeito, quando compra um casaco para sua senhora,
quer que ela o use na mesma noite. Daí esse meu amigo vem me dizer que
Miguelito Cruz tem uma casa cheia de troços que quer vender e pode ser
que ele não tenha as notas de compra de muitos daqueles artigos. Com o
casaco e outros itens que ele mencionou, lembrei-me do caso Tillary, na
Colonial Road, o que foi suficiente para que um juiz me desse um
mandado de busca.
Passou a mão pelos cabelos. Eram castanho médio, mais claros onde o
sol os descolorira, e pouco cuidados. Foi nessa época que os policiais
começaram a usar cabelos um pouco mais longos, e os mais jovens já
começavam a exibir barbas e bigodes. Neumann não, tinha o rosto
escanhoado, as feições regulares, a não ser pelo nariz, que tinha sido
quebrado e mal restaurado.
— A muamba estava na casa de Cruz. Ele mora na Rua 51, do outro
lado da via expressa Gowanus. Tenho o endereço aí em algum lugar, se
você quiser. São uns prédios bem deteriorados, lá para os lados do Bush
Terminal Warehouse, se é que você sabe onde fica isso. Um monte de lotes
vazios, algumas construções fechadas com tábuas e outras que ninguém se
incomodou em fechar, ou então alguém arrancou as tábuas, e está cheio de
drogados por lá. O lugar onde Cruz morava não era tão ruim. Você verá, se
for até lá.
— Ele morava sozinho?
Sacudiu a cabeça:
— Com sua abuela. A avó. Uma velhinha pequenina, não sabe falar
inglês, provavelmente deveria estar num asilo. Talvez o Marien-Heim a
acolha, é bem ali na vizinhança. A velha veio para cá de Porto Rico; antes
que consiga aprender inglês, acaba num lar com nome alemão. Isso é Nova
York, não é?
— Você encontrou os pertences de Tillary no apartamento de Cruz?
— Foi. Não há dúvida. Quer dizer, a numeração da vitrola era a mesma
da relação do que foi roubado. Ele tentou negar. Mas isso não é novidade.
“Ah, comprei esse troço na rua, de um cara que conheci num bar. Não sei o
nome dele.” Claro, Miguelito, nós lhe dissemos, mas acontece que nesse
meio-tempo uma mulher foi toda cortada na casa onde esse aparelho
ficava, portanto está parecendo que você vai ser trancado por assassinato
em primeiro grau. No minuto seguinte ele já estava desembuchando tudo
sobre o roubo, mas insistindo que não havia nenhuma mulher na casa.
— Mas com certeza ele sabia que uma mulher fora morta lá.
— Claro, seja lá quem tenha feito o serviço. Saiu nos jornais, não é?
Num minuto ele diz que não leu nada sobre essa história, no outro diz que
não reconheceu o endereço, você sabe como as histórias desses tipos vão
mudando.
— E onde é que entra o Herrera?
— São primos, ou coisa parecida. Herrera mora num quarto mobiliado
na Rua 48, entre a Quinta e a Sexta, a uns dois quarteirões do parque. Quer
dizer, morava. Neste momento ambos moram na Casa de Detenção do
Brooklyn e continuarão nesse endereço até se mudarem para o norte do
estado.
— Os dois são fichados?
— Seria uma surpresa se não fossem, não é? — Deu uma risada. —
São os típicos ferrados. Algumas prisões juvenis por brigas de gangue.
Ambos se saíram bem de uma queixa por roubo há um ano e meio atrás, o
juiz sentenciou que não havia provas suficientes que justificassem uma
revista. — Fez um gesto de desânimo. — O raio das regras a que a gente
tem que obedecer. Bem, essa eles ganharam. Foram novamente apanhados
por roubo, mas dessa vez alegaram invasão de propriedade e assim
obtiveram suspensão da pena. De outra vez, outro caso de roubo, mas as
provas desapareceram.
— Desapareceram?
— Foram perdidas, ou arquivadas no lugar errado, ou coisa parecida,
não sei bem. É um milagre alguém ir parar na cadeia nesta cidade. Para
que isso aconteça, só mesmo em um caso de morte.
— Quer dizer que eles já cometeram muitos roubos?
— Parece que sim. Coisa pequena, merrecas. Derrubar uma porta,
agarrar um rádio, correr para a rua e vendê-lo lá mesmo por cinco ou dez
dólares. Cruz era pior que Herrera. Este de vez em quando trabalhava,
empurrando carrinho no distrito das confecções, entregando almoços,
bicos com salário mínimo. Não creio que Miguelito algum dia tenha
trabalhado.
— Mas nenhum dos dois matou alguém antes.
— Cruz, sim.
— Ah, é?
Ele assentiu:
— Numa briga de bar, ele e um outro babaca como ele, lutando por
uma mulher.
— Os jornais não publicaram isso.
— Nunca chegou aos tribunais. Ninguém apresentou queixa. Uma
dúzia de testemunhas declarou que o morto começou tudo, indo atrás de
Cruz com uma garrafa quebrada.
— E qual a arma usada por Cruz?
— Uma faca. Disse que não era dele e havia testemunhas preparadas
para jurar que viram quando alguém atirou a faca para ele. Não tínhamos
nada para justificar um caso por porte de arma branca, que dirá de
homicídio.
— Mas Cruz normalmente andava com uma faca?
— Seria mais fácil pegá-lo saindo de casa sem cueca.
Essa conversa aconteceu no início da tarde, no dia seguinte àquele em
que tirei mil e quinhentos dólares de Drew Kaplan. Naquela manhã
comprara um vale postal e o remetera para Syosset. Paguei o aluguel de
agosto adiantado, aceitei uma ou duas contas e peguei o metrô para Sunset
Park.
Fica no Brooklyn, claro, na parte oeste do distrito, acima de Bay Ridge
e ao sul e a oeste do cemitério Green Wood. Hoje em dia há um bom
número de casas sendo remodeladas em Sunset Park, com jovens
profissionais urbanos fugindo dos aluguéis de Manhattan e reformando as
antigas casas geminadas, deixando a vizinhança mais atraente Mas,
naqueles dias, os jovens em ascensão social ainda não tinham descoberto
aquele lugar e a população era basicamente formada por latinos e
escandinavos. Os primeiros eram, em sua maioria, porto-riquenhos; os
segundos, noruegueses. Mas a proporção estava gradualmente pendendo da
Europa para as ilhas, do claro para o escuro, mas isso era um processo
continuado, que já vinha de muitos e muitos anos, sem nada de apressado.
Andei um pouco por ali, antes de minha visita ao sexagésimo oitavo,
mantendo-me sempre a um quarteirão, mais ou menos, da Quarta Avenida,
principal via comercial da região, e orientando-me, a intervalos regulares,
pela igreja de Saint Michael. Poucos prédios tinham mais do que três
andares, e a cúpula ovalada da igreja, no alto de uma torre de sessenta
metros, era visível mesmo de longe.
Caminhei pela Terceira Avenida, em direção ao norte, pelo lado direito
da rua, sob a sombra da via expressa que a cobria. À medida que me
aproximava da rua de Cruz, mais para absorver a vizinhança do que para
fazer perguntas, entrei em alguns bares. Em um tomei uma dose de
bourbon, depois me mantive na cerveja.
O quarteirão onde Miguelito morara com a avó era exatamente como
Neumann o descrevera. Havia vários lotes grandes e vazios, um deles
fortificado por uma cerca anticiclone, os outros abertos e cheios de
entulho. Num terreno baldio, crianças pequenas brincavam na carcaça
abandonada de um Volkswagen. Quatro prédios de três andares, com
fachadas decoradas por tijolos recortados, se perfilavam no lado norte do
quarteirão, mais próximos da Segunda Avenida do que da Terceira. Os
edifícios contíguos a esses, de ambos os lados, tinham sido postos abaixo,
deixando as paredes laterais, feitas dos mesmos tijolos, com aspecto de
cruas em comparação com as fachadas expostas ao ar livre havia mais
tempo, a não ser pelos grafites, feitos com spray, nas partes inferiores.
Cruz tinha morado no prédio mais próximo da Segunda Avenida, mais
próximo também do rio. No vestíbulo, muitos azulejos estavam quebrados,
outros já não existiam, com a tinta das paredes descascando. Havia seis
caixas de correio, as fechaduras arrebentadas e consertadas e quebradas de
novo. Não havia campainhas, nem uma tranca na porta de entrada. Abri e
comecei a subir os dois lances da escada, que cheirava a comida sendo
cozida, a ratos, e exalava um ligeiro odor amoníaco de urina. Todas as
casas velhas que abrigam gente pobre têm o mesmo cheiro. Ratos morrem
nas paredes, crianças e bêbados urinam em qualquer lugar. O prédio de
Cruz não era pior do que milhares por aí.
A avó vivia no último andar, num apartamentinho do tamanho de uma
cabine rodoviária, muito limpo, cheio de gravuras de santos e pequenos
relicários iluminados com velas. Se ela falava algum inglês, não deixou
perceber.
Ninguém atendeu às minhas batidas no apartamento do outro lado do
hall.
Comecei a investigar o prédio. No segundo andar, exatamente abaixo
do da avó de Cruz, morava uma mulher latina, de pele muito escura, com
um bando de cinco crianças, todas aparentando menos de seis anos. Na
sala da frente, a televisão e o rádio estavam ligados. Na cozinha, outro
rádio tocava. As crianças se mexiam sem parar e ao menos duas delas
gritavam ou choravam o tempo todo. A mulher era bem acessível, mas
falava pouco inglês e era de todo impossível concentrar-se em qualquer
coisa naquele ambiente.
Do outro lado do hall, ninguém respondeu às minhas batidas. Como
podia ouvir uma televisão ligada, continuei batendo. Finalmente, a porta
se abriu. Um homem exageradamente gordo, de cueca, abriu a porta e
tornou a entrar, dando a entender que eu poderia segui-lo. Conduziu-me
por diversos quartos cheios de jornais e de latas vazias de Pabst Blue
Ribbon até a sala da frente, onde sentou numa poltrona de molas, para
continuar a assistir a um programa de jogos. A cor em seu aparelho de TV
estava com algum problema, dando ao painel de jurados rostos ora
vermelhos, ora verdes.
Ele era branco, com cabelo liso que um dia fora louro, mas que agora
estava quase todo grisalho. Era difícil calcular sua idade por causa do
excesso de peso, mas provavelmente tinha entre quarenta e sessenta anos.
Havia vários dias não fazia a barba e talvez também não tomasse banho
nem trocasse os lençóis da cama. Ele fedia, seu apartamento também
fedia, e fiquei lá assim mesmo, fazendo-lhe perguntas Quando entrei,
havia três latas de cerveja, de um pacote de seis. Ele as bebeu uma atrás da
outra e depois foi, descalço, buscar numa geladeira outro pacote de seis.
Seu nome era Illing, disse, Paul Illing, e ouvira a respeito de Cruz, vira
na televisão, achou horrível, mas não ficou surpreso, não. Tinha morado
toda a vida ali naquele apartamento, contou-me, e disse que essa, em
outros tempos, fora uma boa vizinhança, com pessoas decentes, que se
respeitavam e respeitavam os outros. Mas agora havia esses elementos
estranhos, o que é que se podia esperar?
— Vivem como animais — disse-me. — Não dá pra acreditar.

A casa de cômodos onde Angel Herrera morou era um prédio de


tijolos, de quatro andares, com uma lavanderia automática no térreo. Dois
homens, na casa dos vinte anos, estirados nos degraus da entrada, bebiam
cerveja de latas que ainda estavam dentro dos sacos de papel. Perguntei
pelo quarto de Herrera. Concluíram que eu era um policial; essa conclusão
ficou estampada em seus rostos e no endurecimento de seus ombros. Um
deles me mandou tentar o quarto andar.
No hall de entrada, sobrepondo-se a vários outros cheiros, havia o odor
desagradável de fumaça de maconha. No terceiro andar encontrei uma
mulher miúda, de olhos negros e brilhantes. Usava um avental e segurava
um exemplar dobrado do El Diário, um dos jornais de língua espanhola.
Perguntei-lhe pelo quarto de Herrera.
— Vinte e dois — respondeu, e apontou para cima.
— Mas ele não está. — Seus olhos se fixaram nos meus.
— Você sabe onde ele está?
— Sei.
— Então você sabe que ele não está aqui. Sua porta está trancada.
— A senhora tem uma chave?
Ela me olhou com severidade.
— Você é policial?
— Já fui.
Sua risada foi alta, inesperada.
— O que você arrumou, foi mandado embora? Não têm mais trabalho
para os tiras, todos os bandidos estão na cadeia? Você quer ir ao quarto do
Angel, vem, eu levo você lá.
Um cadeado barato trancava a porta do quarto 22. Ela tentou três
chaves até achar a certa, depois abriu a porta e entrou no quarto na minha
frente. De uma lâmpada descoberta, presa no teto, pendia uma corda, bem
em cima da estreita cama de ferro. Ela a puxou, depois ergueu a persiana
da janela, para iluminar o quarto um pouco mais.
Olhei pela janela, andei pelo quarto, examinei o conteúdo dos armários
e de uma pequena escrivaninha. Em cima dessa mesa, havia várias fotos
em porta-retratos baratos, mais uma meia dúzia de instantâneos sem
moldura. Duas mulheres diferentes, várias crianças. Numa das fotos, em
uma praia, um homem e uma mulher franziam os olhos sob o sol, tendo
por fundo a arrebentação. Mostrei essa foto à mulher e ela confirmou que
aquele homem era Herrera. Eu havia visto sua foto no jornal, ao lado da de
Cruz e de dois policiais, mas ali parecia completamente diferente.
Fiquei sabendo que aquela ao seu lado era a sua namorada. A outra,
que aparecia em outras fotos, com as crianças, era a esposa, que ficara em
Porto Rico. Ele era um bom menino, assegurou-me a vizinha. Educado,
mantinha o quarto limpo, não bebia muito, nem deixava o som do rádio
incomodar, tarde da noite. E amava seus bebês, enviava dinheiro para
Porto Rico, quando tinha dinheiro para enviar.

Na Quarta Avenida havia quase uma igreja por quarteirão — Metodista


Norueguesa, Luterana Alemã, Adventistas Espanhóis do Sétimo Dia e uma
chamada de Tabernáculo de Salem. Estavam todas fechadas, e quando
cheguei na Saint Michael, esta também já fechara. Eu era bastante
ecumênico no que se refere ao dízimo, os católicos recebiam a maior parte
do meu dinheiro simplesmente por terem um horário mais dilatado, mas lá
pela hora em que saí da casa do Herrera, ainda por cima tendo dado um
pulo no bar da esquina para um drinque rápido, a Saint Michael estava tão
fechada quanto suas companheiras protestantes.
Dois quarteirões mais abaixo, entre uma bodega e uma loja de apostas
em corridas de cavalos, um Cristo macérrimo e retorcido na cruz surgiu na
vitrine de uma loja usada como igreja. Lá dentro, em frente a um pequeno
altar, uns poucos bancos sem encosto, e num deles, duas mulheres
informes, de preto, amparavam-se uma na outra, em silêncio e imóveis.
Entrei e sentei num dos bancos por alguns momentos. Tinha meu
dízimo de cento e cinquenta dólares preparado, e ficaria tão satisfeito em
deixá-lo num lugar assim modesto quanto em alguma instituição mais
imponente e mais antiga, mas o que não estava encontrando era um modo
discreto de fazê-lo. Não havia caixa de coleta à vista, nenhum receptáculo
destinado a recolher doações. Não queria chamar a atenção procurando um
responsável para entregar-lhe o dinheiro, nem me sentiria tranquilo em
deixá-lo ali no banco, onde, vamos e venhamos, qualquer um podia pegar e
se mandar.
Não saí de lá mais pobre do que quando entrei.

Fiquei em Sunset Park até o início da noite.


Não sei se aquilo era trabalho, ou se por acaso pensava estar ajudando
Tommy Tillary. Andei pelas ruas, entrei nos bares, mas não procurava por
ninguém e não fiz muitas perguntas.
Na Rua 60, a leste da Quarta Avenida, encontrei uma cervejaria escura
chamada Fjord. Tinha decorações náuticas na parede, que pareciam
recolhidas ao acaso, ao longo dos anos — um pedaço de rede de pescar,
uma boia e, curiosamente, uma flâmula do time de futebol Minnesota
Vikings. Numa ponta do balcão, um aparelho de TV preto e branco
transmitia em som bem baixo. Alguns velhos, com seus copinhos de
destilado ou com uma cerveja, falando pouco, esperavam as horas passar.
Quando saí de lá, fiz sinal para um táxi que passava e pedi ao
motorista que me levasse à Colonial Road, em Bay Ridge. Queria ver a
casa onde Tommy Tillary vivera, onde sua mulher morrera. Mas não
anotara o número. Aquele trecho da Colonial Road era quase todo tomado
por prédios de tijolos, e tinha certeza de que os Tillary moravam numa
casa. Havia algumas, enfiadas entre os prédios, mas eu não tinha anotado o
número e não estava muito seguro das transversais. Disse ao taxista que
procurava pela casa onde uma mulher fora esfaqueada até a morte, e ele
não entendeu nada do que eu estava dizendo, ficou meio desconfiado,
como se eu pudesse, de repente, fazer qualquer coisa imprevisível.
Suponho que estivesse um pouco embriagado. Fiquei sóbrio a caminho
de Manhattan. Ele não se mostrou muito entusiasmado em me levar até lá,
mas fez um preço antecipado de dez dólares, com o qual concordei, e
descansei a cabeça no encosto. O táxi pegou a via expressa e no caminho
vi a torre da Saint Michael. Disse ao motorista que aquilo não estava certo,
que as igrejas deveriam ficar abertas vinte e quatro horas. Ele não
respondeu e fechei os olhos Quando dei por mim, o táxi estava parando na
porta do meu hotel.
Havia recados na recepção. Tommy Tillary telefonara duas vezes e
pedia que eu retornasse. Skip Devoe telefonara apenas uma vez.
Já estava muito tarde para telefonar para o Tommy, provavelmente
tarde demais para ligar para o Skip. De qualquer modo, era tarde o
bastante para dar a noite por encerrada.
9
Voltei ao Brooklyn no dia seguinte. Não saltei do trem nas estações de
Sunset Park; saltei na Bay Ridge Avenue. A saída do metrô era bem em
frente à rua da casa funerária de onde saíra o esquife de Margaret Tillary.
O enterro foi no cemitério Green-Wood, uns três quilômetros ao norte.
Virei para trás e fiquei olhando a Quarta Avenida, seguindo com os olhos o
caminho que o cortejo fúnebre percorrera. Depois caminhei pela Bay
Ridge Avenue no sentido oeste, em direção ao rio.
Na Terceira Avenida olhei para a esquerda e vi a ponte Verrazano ao
longe, estendendo-se sobre os Narrows, unindo o Brooklyn a Staten Island.
Continuei andando, numa vizinhança melhor do que aquela na qual passara
o dia anterior, e ao chegar à Colonial Road dobrei à direita, procurando
pela casa dos Tillary. Dessa vez, levava o endereço e foi fácil achar a casa.
Podia até ser que fosse uma daquelas que eu vira na noite anterior. O
percurso do táxi começava a se esvanecer da minha memória. Estava
nebuloso, como se visto através de um véu.
A casa era uma enorme estrutura de madeira e tijolos, com três
andares, bem em frente à esquina sudeste do Owl's Head Park. Ficava
entre dois prédios de tijolos vermelhos, ambos de quatro andares. Tinha
uma bela varanda, um toldo de alumínio, um telhado em declive
acentuado. Subi os degraus da escada que levava à varanda e toquei a
campainha. Um som de carrilhão, com quatro notas, soou lá dentro.
Ninguém atendeu. Tentei a porta, estava trancada. A fechadura não
parecia muito complicada, mas eu não tinha motivos para forçá-la.
A entrada para carros ficava do lado esquerdo da casa. Passava por
uma porta lateral, também trancada, indo dar em uma garagem fechada
com um cadeado. Os ladrões quebraram um painel de vidro na porta
lateral, que já tinha sido substituído por um retângulo de papelão
corrugado, preso por uma fita adesiva metálica.
Atravessei a rua, sentei no parque por um breve espaço de tempo.
Depois, fui até um ponto de onde podia observar a casa dos Tillary, do
outro lado da rua. Tentei visualizar o assalto. Cruz e Herrera estavam de
carro; fiquei me perguntando onde o teriam estacionado. Na entrada para
carros, escondido, perto da porta que arrombaram? Ou na rua, fazendo da
fuga uma coisa mais simples? A garagem podia estar aberta naquela noite;
talvez tivessem guardado o carro lá dentro, para que ninguém o visse na
entrada e ficasse imaginando coisas.
Almocei feijão, arroz e salsichas cozidas. Lá pelo meio da tarde, entrei
na Saint Michael. Dessa vez estava aberta e sentei-me por um momento
num banco lateral, depois acendi umas velas. Finalmente, meus cento e
cinquenta dólares alcançaram uma caixa de coleta.

Fiz o que deve ser feito. Na maior parte do tempo, andei por ali e bati
nas portas e fiz perguntas. Voltei às duas casas, de Cruz e de Herrera.
Conversei com vizinhos de Cruz que não encontrara no dia anterior, e
conversei também com outros moradores da casa de cômodos do Herrera.
Andei até o sexagésimo oitavo para falar com Cal Neumann. Ele não
estava, mas conversei com outros policiais ali da delegacia e fui tomar
café com um deles.
Dei uns telefonemas, mas a maior parte de meu trabalho foi andar por
ali, conversar com as pessoas, anotar alguns pedaços de conversas,
fazendo o meu trabalho e tentando não questionar o objetivo de minhas
ações. Estava recolhendo uma razoável quantidade de dados, mas não
tinha a menor ideia se iriam ou não ajudar em alguma coisa. Não sabia ao
certo o que procurava, nem mesmo se havia alguma coisa ali para ser
procurada. Creio que tentava me movimentar bastante e recolher uma
quantidade de informações que justificasse para mim mesmo, para Tommy
e para seu advogado o dinheiro que recebera, e que já fora amplamente
consumido.
Lá pelo início do entardecer, cansei. Peguei o trem para casa. Havia
um recado de Tommy Tillary na recepção, com o telefone de seu
escritório. Coloquei no bolso, andei até a esquina e Billie Keegan me disse
que o Skip andava à minha procura.
— Estão todos procurando por mim.
— É bom ser procurado. Tive um tio que foi procurado em quatro
estados. Tem um recado telefônico também. Onde é que eu pus? —
Entregou-me um pedacinho de papel. Tommy Tillary de novo, mas dessa
vez com um número diferente. — Quer tomar alguma coisa, Matt? Ou
passou apenas para checar sua correspondência e recados?
Tinha sido cuidadoso no Brooklyn, pedindo apenas um café na maioria
das bodegas e padarias, e nos bares bebendo só umas cervejinhas. Deixei
Billie me servir uma dose dupla de bourbon, que caiu muito bem.
— Procurei por você hoje. Eu e alguns amigos fomos ao hipódromo.
Pensei que você talvez gostasse de ir.
— Tinha trabalho, Billie. Mas não sou muito de cavalos.
— É divertido, se você não levar a sério.

O número que Tommy Tillary deixara era de uma mesa telefônica de


um hotel em Murray Hill. Ele veio atender e perguntou se eu não poderia
dar uma passada no hotel.
— Você sabe onde fica? Na Rua 37 com Lexington?
— Devo ser capaz de encontrar.
— No térreo tem um bar bem simpático, tranquilo. Cheio desses
japoneses com ternos da Brooks Brothers. De vez em quando, largam seus
uísques para tirar fotos uns dos outros. Aí sorriem, pedem mais drinques.
Você vai adorar.
Peguei um táxi e fui para lá, e vi que ele não exagerara. O bar, luxuoso
e pouco iluminado, naquela noite atendia muitos clientes japoneses.
Tommy estava sozinho no balcão; quando entrei, apertou minha mão e me
apresentou ao barman.
Levamos nossos drinques para uma mesa.
— Lugar de doidos. Olhe para isso. Você com certeza pensou que eu
estava brincando quanto às câmeras, não pensou? Fico imaginando o que é
que fazem com tantas fotos. Devem precisar de um quarto em casa só para
guardá-las, do jeito que saem clicando a torto e a direito.
— Vai ver não tem filme nas máquinas.
— Seria o máximo, não seria? — Ele riu. — Sem filme nas máquinas.
Merda, vai ver esses japoneses nem japoneses de verdade são. Tenho ido
mais ao Blueprint, a um quarteirão daqui, na Park Avenue, e tem outro
lugar, uma espécie de pub, chamado Dirty Dick's, ou coisa parecida. Mas
estou hospedado aqui e queria que você pudesse me achar. Está bom aqui
ou prefere que a gente vá para outro lugar?
— Está muito bom.
— Tem certeza? Nunca tive um detetive trabalhando para mim antes.
Quero ter certeza que ele está satisfeito. — Sorriu, depois ficou sério. —
Estava pensando, sabe, se você tem feito algum progresso. Se descobriu
algo.
Contei-lhe alguma coisa daquilo que descobrira. Ficou muito agitado
quando soube da briga de faca no bar.
— Isso foi ótimo — disse. — Isso com certeza encerra o caso contra
nossos irmãos escurinhos, não é?
— Como é que você chegou a essa conclusão?
— Ele é um artista com a faca. Já matou um e escapou da condenação.
Por Deus, isso é muito bom, Matt. Sabia que estava fazendo a coisa certa
quando contratei você. Já falou com o Kaplan?
— Não.
— Mas precisa falar. É o tipo de coisa que vai ajudá-lo.
Duvidava um pouco dessa ajuda. Para começo de conversa, ocorreu-me
que era impossível que Drew Kaplan não fosse capaz de descobrir sozinho
sobre esse caso do Miguelito Cruz, sem precisar de um detetive para isso.
Não me parecia que essa informação tivesse algum peso num processo,
nem mesmo que pudesse ser admitida no tribunal. Fora isso, Kaplan
frisara que procurava, em primeiro lugar, por qualquer coisa que pudesse
mantê-lo, e ao seu cliente, fora dos tribunais. E eu não via como aquela
informação se encaixava nisso.
— Você deve contar ao Drew qualquer coisa que descubra. Qualquer
coisinha que você passe para ele, pode não parecer nada para você, mas
pode encaixar com algo que ele já saiba e é disso que ele está precisando,
sabe? Mesmo que pareça completamente sem importância.
— Calculo que sim.
— Claro. Telefone para ele ao menos uma vez por dia, dando-lhe todas
as informações. Sei que você não apresenta relatórios escritos, mas você
não se importa de dar notícias regularmente pelo telefone, não é?
— Não, claro que não.
— Ótimo. Isso é muito bom, Matt. Deixe eu buscar mais uns drinques.
— Foi até o bar e voltou com os drinques renovados. — Então você andou
lá pelos meus lados do mundo, não foi? Gostou de lá?
— Gosto da sua vizinhança, mais do que da do Cruz e do Herrera.
— Droga, espero que sim. O que, você esteve lá na casa? Na minha
casa?
Concordei com a cabeça:
— Para sentir o clima. Você tem uma chave, Tommy?
— Uma chave? Chave da casa? Claro, tenho que ter uma chave da
minha própria casa, não é? Por quê? Você quer uma chave de lá, Matt?
— Se você não se importar.
— Pelo amor de Deus, todo mundo já esteve lá, tiras, o pessoal do
seguro, sem falar nos cucarachas. — Pegou um chaveiro no bolso, tirou
uma chave e estendeu-a para mim. — Essa é a da porta da frente. Quer a
da lateral também? Foi por lá que eles entraram, agora está com um
papelão grosso, para substituir o vidro quebrado.
— Notei isso hoje à tarde.
— Então por que é que você precisa de uma chave? Puxe o papelão e
entre. Enquanto estiver por lá, veja se há alguma coisa de valor que eles
esqueceram de roubar e tire lá de dentro numa fronha.
— Foi assim que eles fizeram?
— Quem é que sabe como é que eles fizeram? Na televisão é assim,
não é? Deus do céu, olhe para aquilo. Eles tiram retratos uns dos outros,
depois trocam de câmeras e fotografam tudo de novo. Há muitos deles
hospedados neste hotel, é por isso que vêm aqui. — Olhou para as mãos,
postas na mesa na sua frente, entrelaçadas frouxamente. O anel do dedo
mindinho estava virado para o lado e ele o ajeitou. — Esse hotel não é
mau, mas não posso ficar aqui para sempre. É pago por dia e fica muito
caro.
— Você pretende voltar para Bay Ridge?
Ele fez que não com a cabeça.
— Que é que eu quero com uma casa daquele tamanho? Se já era
muito grande para nós dois, eu sozinho lá dentro ia me perder. Sem falar
nas lembranças que ela traz.
— Como é que você foi parar numa casa tão grande, Tommy, só vocês
dois?
— Bem, não era para dois. — Ficou olhando para o nada, recordando.
— A casa era da tia de Peg. Foi ela quem comprou. Depois de enterrar o
marido, sobrou-lhe algum dinheiro do seguro, e como nós precisávamos de
um lugar para morar, já que íamos ter um bebê, ela comprou a casa. Você
sabia que tivemos um menino, que morreu?
— Acho que o jornal mencionou alguma coisa.
— No anúncio do funeral, foi. Eu coloquei aquilo. Tivemos um
menino, Jimmy. Ele não nasceu bem, tinha uma deficiência cardíaca
congênita e algum retardamento mental. Morreu um pouco antes de seu
sexto aniversário.
— Isso é duro, Tommy.
— Foi pior para ela. Acho que teria sido pior se não fosse pelo fato de
ele não ter ficado em casa depois dos primeiros meses. Certos
procedimentos médicos, sabe, não era possível mesmo lidar com eles em
casa, está compreendendo? Além do mais, o médico me chamou de lado e
disse: “Senhor Tillary, quanto mais a sua mulher se afeiçoar à criança, pior
será quando o inevitável acontecer”. Porque eles sabiam que ele não
viveria mais do que uns poucos anos.
Sem dizer nada, levantou-se e foi buscar novos drinques.
— Então ficamos só nós três, Peg, eu e sua tia, que tinha seus próprios
aposentos, com banheiro e tudo, no terceiro andar. Ainda assim, era uma
casa grande para três pessoas, mas as duas mulheres, sabe, elas faziam
companhia uma à outra. Depois, quando a velha morreu, falamos em nos
mudar, mas Peg estava habituada com a casa e com a vizinhança. — Ele
respirou e relaxou os ombros. — Não preciso de uma casa tão grande, nem
de dirigir para lá e para cá, ou lutar por um lugar no metrô, isso tudo é um
pé no saco. Logo que tudo isso passar, vendo a casa e compro um pequeno
apartamento na cidade.
— Que parte da cidade?
— Quer saber, nem sei. Em torno do Gramercy Park é bem simpático.
Ou no Upper East Side. Talvez compre um apartamento num sistema de
cooperativa, num edifício decente. — Bufou com ironia. — Podia me
mudar para a casa da, como é mesmo o nome dela? Você sabe, Carolyn.
— É?
— Você sabe que trabalhamos no mesmo escritório.
Vejo-a diariamente. Fui eu que a coloquei lá. — Ele suspirou. — Tenho
ficado afastado daquela área até que tudo se esclareça.
— Claro.
E de repente começamos a falar de igrejas e não me lembro bem como
surgiu o assunto. Alguma coisa sobre os bares terem horários melhores
que as igrejas, pois as igrejas fechavam mais cedo.
— Bem, elas precisam fechar, por causa da onda de crimes. Matt,
quando éramos crianças, falava-se em igrejas sendo roubadas?
— Também devia acontecer.
— Pode ser, mas você ouvia falar nisso? Hoje há uma classe diferente
de pessoas, não respeitam mais nada. Claro, tem aquela igreja em
Bensonhurst, creio que ficam abertos sem dar satisfações a ninguém.
— Do que é que você está falando?
— Acho que é em Bensonhurst. Uma igreja grande, esqueço o nome do
santo. Santo isso ou aquilo.
— Isso torna tudo tão mais fácil…
— Você não se lembra? Poucos anos atrás, dois garotos negros
roubaram alguma coisa do altar. Castiçais de ouro, se não me engano.
Acontece que a mãe de Dominic Tutto vai à missa lá todas as manhãs. O
capo, que manda na metade do Brooklyn.
— Ah!, sei.
— A notícia se espalhou e uma semana depois os castiçais estavam de
novo no altar. Ou seja lá o que tenha sido roubado. Acho que eram
castiçais.
— Tanto faz.
— Os punks que fizeram o roubo desapareceram. A história que ouvi,
bem, não se sabe se é história ou fato. Eu não estava lá e esqueci quem me
contou, mas seja quem for, também não estava lá, sabe como é?
— O que foi que você ouviu?
— Ouvi que carregaram os dois crioulos para o porão dos Tutto e os
penduraram em ganchos de açougue.
Um flash espocou a algumas mesas da nossa. — E os esfolaram vivos.
Mas sabe-se lá se é verdade… A gente ouve cada história, não sabe em que
acreditar.

— Você devia ter saído conosco esta tarde — disse Skip. — Keegan,
Ruslander e eu pegamos meu carro e fomos até o Big A. — Ele falou de
um jeito arrastado, imitando W. C. Fields: — Participamos do esporte dos
reis, contribuímos para o aprimoramento da raça, sim senhor.
— Estava trabalhando.
— Era o que eu deveria ter feito. Maldito Keegan, tinha os bolsos
cheios de miniaturas de bebida, a cada páreo esvaziava uma, tinha os
bolsos cheios dessas garrafinhas. E começou a apostar nos cavalos baseado
nos nomes. Tinha esse pangaré, Jill the Queen, não ganhava nada desde
que Vitória era rainha, e daí que o Keegan se lembra de uma menina pela
qual teve uma paixão alucinada na sexta série. Claro que aposta nele.
— E o cavalo vence.
— Claro que o cavalo vence. E o rateio é mais ou menos de doze por
um. Keegan tinha apostado dez dólares e ficou dizendo que se enganou. Se
enganou como? “O nome dela era Rita”, diz ele. “A irmã é que se chamava
Jill. Lembrei errado.”
— Típico do Billie.
— Bem, a tarde inteira foi assim. Ele apostando em antigas namoradas
e suas irmãs, bebendo quase que dois litros de uísque, e enquanto
Ruslander e eu perdemos sei lá, cem, cento e cinquenta dólares, o sacana
do Billie Keegan ganhou seiscentos dólares, apostando em nomes de
garotas.
— Como é que você e o Ruslander escolhiam seus cavalos?
— Bem, você conhece o ator. Curvava os ombros, começava a falar
pelo canto da boca como um velho turfista, ia conversar com uns sujeitos
com cara de entendidos em corridas e voltava com um palpite. Com
certeza esses caras também eram atores.
— Vocês dois iam atrás desses palpites?
— Tá maluco? Eu aposto cientificamente.
— Você estuda os retrospectos?
— Não entendo nada disso. Observo quais começam a ser menos
apostados e quais os mais apostados; também desço para o padoque, para
olhar os cavalos dando voltas à espera da pesagem, e presto atenção
naquele que está fazendo um bom cocô.
— Científico.
— Totalmente. Quem é que quer investir dinheiro sério num
desgraçado de um cavalo com prisão de ventre? Algum cavalo condenado
por uma anormalidade? Meus cavalos — e baixou os olhos fingindo
timidez, — estão sempre com a saúde tinindo.
— E o Keegan é maluco.
— Isso mesmo. O homem banaliza uma pesquisa científica. —
Inclinou-se para a frente e esmagou o cigarro até apagá-lo. — Nossa,
como gosto dessa vida. Juro que nasci para isso. Passo metade dos meus
dias tomando conta de meu bar e a outra metade no bar dos outros, com
uma ou outra ensolarada tarde de folga para me aproximar da natureza e
comungar com a obra de Deus. — Seus olhos se fixaram nos meus. —
Adoro, mesmo. — Falou com voz segura e calma. — É por isso que vou
pagar àqueles miseráveis.
— Eles telefonaram?
— Antes que saíssemos para o prado. Apresentaram suas exigências
inegociáveis.
— Quanto?
— Quantia suficiente para fazer com que minhas apostas percam toda
a importância. Quem se importa se você perde ou ganha cem dólares? E eu
nunca aposto muito, não tem graça nenhuma quando a gente começa a
jogar pesado. Eles querem uma quantia considerável.
— E você pretende pagar?
Ele pegou seu drinque.
— Vamos nos encontrar com umas pessoas amanhã. O advogado, os
contadores. Quer dizer, isso se o Kasabian parar de vomitar.
— E depois?
— E depois vamos tentar negociar o inegociável e depois, porra, pagar.
Que mais os advogados e contadores nos dirão para fazer? Levantar um
exército? Começar uma guerrilha? Não é esse o tipo de resposta que
advogados e contadores costumam dar. — Pegou outro cigarro, deu uma
batidinha nele, levantou-o, examinou-o, tornou a dar uma batidinha,
depois é que acendeu. — Sou uma máquina que fuma e bebe — disse
através de uma nuvem de fumaça — e, vou lhe contar, não sei por que
estou dando tanta importância a isso tudo.
— Há um minuto atrás você amava esta vida.
— Fui eu quem disse isso? Conhece a história do sujeito que comprou
um Volkswagen e seu amigo lhe pergunta se está gostando do carro?
“Bem, é como sexo”, o cara responde. “Eu adoro, mas não me orgulho
muito disso não.”
10
Telefonei para Drew Kaplan na manhã seguinte, antes de ir para o
Brooklyn. Sua secretária me disse que ele estava em reunião, se poderia
retornar a ligação. Disse-lhe que telefonaria mais tarde e foi o que fiz,
quarenta minutos depois, ao saltar na estação em frente ao Sunset Park. A
essa altura ele havia saído para o almoço Mandei dizer que tornaria a
telefonar.
Naquela tarde conheci uma mulher que era amiga da namorada de
Angel Herrera. Tinha feições marcadamente indígenas e o rosto muito
castigado pela acne. Ela disse que era uma pena o Herrera ter sido preso,
mas que provavelmente isso fora bom para a namorada dele, porque o
Herrera não ia se casar nunca, nem mesmo viver com ela, já que ainda se
considerava casado em Porto Rico.
— Mesmo que sua mulher lhe dê o divórcio, ele não vai aceitar. E a
minha amiga, ela quer engravidar, mas ele não a engravida e não se casa
com ela. O que é que ela pode querer com ele, não é? Melhor para ela que
ele desapareça por uns tempos. Melhor para todo mundo.

Telefonei novamente para o Kaplan, de uma cabine na esquina, e dessa


vez consegui falar com ele Peguei meu bloco e repassei-lhe o que apurara.
Nada do que anotei ali fazia muito sentido, a não ser a prisão anterior de
Cruz por homicídio culposo, que era uma coisa sobre a qual ele já deveria
ter sido informado, como ele próprio observou logo que lhe contei.
— Isso não é coisa para um investigador desencavar. Eles deveriam ter
posto esses dados na mesa. Claro que não é uma informação que possa ser
usada nesse processo, mas sempre pode ser útil. Com essa dica você já
pode ter feito jus ao seu pagamento. Não que eu queira desencorajá-lo de
continuar investigando.
Quando desliguei o telefone, no entanto, não tinha vontade alguma de
continuar a investigar. Fui ao Fjord, tomei uns drinques, mas depois um
garoto magrela, com uma vasta cabeleira amarela e um bigode louro a Ia
Zapata, entrou e começou a insistir para que eu jogasse com ele numa
daquelas maquinetas eletrônicas. Não me interessei, nem ninguém mais, aí
ele começou a jogar sozinho, fingindo uma bebedeira barulhenta, suponho
que numa tentativa de tentar fazer parecer que jogar contra ele era uma
barbada. O barulho me fez sair de lá e acabei indo a pé até a casa de
Tommy, na Colonial Road.
Sua chave abria a porta da frente. Entrei, meio em dúvida se iria
deparar com a mesma cena enfrentada por quem descobriu o corpo de
Margaret, mas claro que tudo tinha sido limpo e arrumado, após a equipe
de legistas e o fotógrafo terem terminado seu trabalho.
Andei por todo o andar térreo Achei a porta lateral que dava para o hall
de serviço, tornei a entrar na cozinha e na sala de jantar, tentando me
colocar na pele de Cruz e Herrera enquanto caminhavam por aquela casa
vazia.
Talvez não estivesse vazia. Margaret Tillary devia estar em seu quarto,
lá em cima. Fazendo o quê? Dormindo? Vendo televisão?
Subi as escadas. Algumas tábuas rangeram debaixo de meus pés. Será
que também rangeram no dia do assalto? Teria Peg Tillary ouvido e
reagido? Talvez pensasse que era Tommy e tivesse se levantado para
recebê-lo. Talvez soubesse que era outra pessoa. Há pessoas que
reconhecem passadas, as de um estranho, sobretudo, de tal modo que até
seu sono é perturbado.
Ela fora assassinada no quarto. Subiram as escadas, abriram uma porta,
encontraram uma mulher apavorada lá dentro e a esfaquearam? Ou talvez
ela tivesse saído do quarto, supondo que fosse Tommy, ou mesmo sabendo
que não era ele, mas sem raciocinar direito confrontasse o ladrão, as
pessoas fazem isso muitas vezes, sem pensar, indignadas com a invasão de
seus lares, agindo como se sua justa indignação pudesse servir de
proteção.
Então teria visto a faca na mão dele e voltado para o quarto, tentando
trancar a porta, mas, como não conseguiu impedi-lo de entrar, talvez
começasse a gritar e ele tivesse que calá-la e…
Continuava vendo Anita fugindo da faca, continuava imaginando a
cena em nosso quarto em Syosset.
Bobagem.
Fui até uma das cômodas, abri e fechei gavetas. A dela, comprida e
baixa. A dele, alta, no mesmo estilo provençal francês, fazendo conjunto
com a cama, com as mesinhas de cabeceira e uma penteadeira. Abri e
fechei gavetas da cômoda dele também. Ele deixara muita roupa para trás,
e provavelmente tinha mesmo um bocado delas.
Abri a porta do closet. Ela poderia ter se escondido lá dentro, mesmo
não tendo muito espaço. Estava cheio, a prateleira atulhada com umas
duas dúzias de caixas de sapatos, o cabideiro carregado de roupas em seus
cabides. Tommy deve ter levado alguns ternos e uns paletós, mas eu não
tinha tanta roupa quanto as que ele deixou para trás. Em cima da
penteadeira havia uns vidros de perfume. Levantei a tampa de um deles e
levei-a ao nariz. O aroma era de lírio-do-vale.
Fiquei muito tempo no quarto. Há pessoas que são psicologicamente
sensitivas, captam coisas em lugares onde houve crimes. Talvez todos
sejamos assim, apenas os sensitivos são mais capazes de identificar aquilo
que estão captando. Não tinha ilusões quanto à minha capacidade de
absorver vibrações do quarto ou das roupas ou dos móveis. Cheiros são o
sentido mais entranhado em nossa memória, mas tudo que o perfume dela
me lembrava era de uma tia com o perfume das mesmas flores.
Não sei bem o que pensava estar fazendo ali.
Havia um aparelho de TV no quarto. Liguei e desliguei. Pode ser que
ela estivesse assistindo à televisão, pode nem ter ouvido o ladrão até que
ele abrisse a porta de seu quarto. Mas ele não teria ouvido o som? Por que
iria entrar num quarto onde sabia que tinha alguém, quando poderia ter ido
embora sem ser descoberto?
Claro que podia estar pensando em estupro. Não houve violação, pelo
menos a autópsia não revelou nada disso, embora isso não prove a
ausência de intenção Ele pode ter obtido satisfação sexual com o
assassinato, pode ter perdido o tesão com a violência, pode…
Tommy dormira nesse quarto, vivera ali com a mulher que cheirava a
lírio-do-vale. Eu o conhecia de bares. Conhecia-o com uma garota no
braço e um drinque na mão, com sua risada ecoando pelas paredes
decoradas com painéis de madeira. Não o conhecia numa casa assim, num
quarto assim.
Entrei e saí de outros quartos no segundo andar. Onde imaginei que
fosse a sala de estar desse andar, encontrei um grupo de fotografias em
porta-retratos de prata, em cima de um console de mogno que guardava
um aparelho de som. Tinha uma foto tradicional de casamento, Tommy de
smoking, a noiva de branco, com seu buquê todo rosa e branco. Tommy
estava magro e incrivelmente jovem no retrato. Usava o cabelo à
escovinha, o que em 1975 parecia muito estranho, ainda mais comparado
às roupas formais.
Margaret Tillary — podia ainda ser Margaret Wayland quando a foto
foi tirada — fora uma mulher alta, com feições fortes, mesmo jovem.
Olhei para ela e tentei imaginá-la com alguns anos a mais. Provavelmente
ganhara alguns quilos. A maioria das pessoas engorda com a idade.
As outras fotos mostravam pessoas que não reconheci. Parentes,
calculei. Não notei nenhuma do filho que Tommy mencionou.
Uma porta dava para a rouparia, outra para um banheiro. A terceira
dava para uma escada que levava ao último andar. Havia um quarto de
dormir lá em cima, com uma boa vista do parque. Puxei uma poltrona, o
assento e o encosto bordados em ponto de cruz, e fiquei olhando o tráfego
na Colonial Road e um jogo de beisebol no parque.
Imaginei a tia, sentada como eu agora, olhando o mundo através de sua
janela. Se já ouvira seu nome, não me recordava qual era, e quando
pensava nela uma espécie de tia genérica aparecia, uma fusão de vários
rostos femininos não identificáveis nas fotos que vira lá em baixo, com
alguns traços de minhas próprias tias. Ela já não existia mais, essa
combinação sem nome de tias, e sua sobrinha também não, e antes que
muito tempo se passasse a casa seria vendida e outras pessoas estariam
vivendo nela.
Daria muito trabalho retirar todos os traços da ocupação dos Tillary. O
quarto e o banheiro da tia ocupavam toda a frente do terceiro andar; o
resto era um enorme espaço de guardados, malas de viagem e caixas de
papelão empilhadas debaixo do teto inclinado, ao lado de uns móveis sem
serventia. Alguns estavam cobertos com panos. Outros não. Tudo
ligeiramente empoeirado, podia-se sentir o cheiro de poeira no ar.
Voltei para o quarto da tia. Suas roupas ainda estavam na cômoda e no
armário, seus objetos de toucador ainda ocupavam o armário do banheiro.
Fácil deixar tudo no lugar, se você não precisa do espaço.
Fiquei imaginando o que o Herrera ajudara a jogar fora. Foi assim que
tinha entrado lá da primeira vez, depois da morte da tia, para jogar fora
aquilo que não tivesse mais utilidade.
Sentei-me novamente na cadeira. Sentia o cheiro de poeira do quarto
de guardados, o cheiro das roupas da velha senhora, mas ainda permanecia
em minhas narinas o aroma do lírio-do-vale, e esse dominava todos os
outros. Já se tornara meio enjoativo e desejei poder parar de senti-lo.
Pareceu-me estar sentindo mais a lembrança do cheiro do que o próprio
cheiro.
No parque do outro lado da rua, dois meninos brincavam de bobinho,
com um terceiro correndo de um lado para o outro, tentando pegar a bola.
Inclinei-me para a frente, apoiando os cotovelos no aquecedor para poder
vê-los. Cansei do jogo antes deles. Deixei a cadeira de frente para a janela
e desci os dois lances da escada.
Estava na sala de visitas, imaginando o que Tommy teria como bebida
em casa, e onde será que ele a guardava, quando alguém pigarreou a uns
dois metros de mim.
Gelei.
11
— Sim, senhor — disse uma voz —, achei mesmo que seria você. Não
quer sentar, Matt? Você está mais branco que um fantasma. Parece até que
viu um.
Conhecia aquela voz, mas não consegui identificar seu dono. Virei-me,
o fôlego ainda preso no peito, e reconheci o homem. Ele estava sentado
numa poltrona estofada, no canto mais escuro do salão. Usava uma camisa
de mangas curtas, aberta no pescoço. O paletó estava dobrado em cima do
braço da poltrona, e a ponta da gravata aparecia para fora de um bolso.
— Jack Diebold.
— O próprio. Como é que vai, Matt? Tenho que dizer que você daria o
pior amigo do alheio. Você fez mais barulho do que uma tropa da
cavalaria.
— Você quase me matou de medo, Jack.
Ele riu baixinho.
— O que é que você queria que eu fizesse? Um vizinho telefonou, viu
luzes acesas na casa, blablablá e, como eu estava disponível e o caso era
meu, recebi a denúncia e vim ver do que se tratava. Calculei que fosse
você. Um cara do sexagésimo oitavo me telefonou outro dia, mencionou
que você estava fazendo um servicinho para esse babaca desse Tillary.
— O Neumann telefonou? Você agora está na delegacia de homicídios
do Brooklyn?
— Faz um bom tempo. Primeiro, grande coisa, fui promovido a
detetive inspetor há mais ou menos dois anos.
— Parabéns.
— Obrigado. De qualquer modo, vim verificar, mas como não tinha
absoluta certeza de que era você, em vez de subir correndo as escadas,
pensei, ora, merda, vamos deixar Maomé vir à montanha, para variar. Não
tive a intenção de assustá-lo.
— Pois sim.
— Bem, você passou direto por mim, e parecia tão engraçado rodando
a sala toda. Que é que você estava procurando?
— Nesse momento? Tentando adivinhar onde ele guarda as bebidas.
— Bem, não deixe que eu o interrompa. E vê se encontra uns copos
também.
Encontrei duas garrafas de cristal no aparador da sala de jantar.
Plaquetas de prata penduradas em seus gargalos identificavam os
conteúdos: uísque escocês e uísque de centeio. Mas era preciso uma chave
para retirá-las de seu estojo de prata e cristal. Nas gavetas centrais do
aparador havia roupas de mesa; no lado direito, copos e outros objetos de
cristal, e no lado esquerdo, garrafas de uísque e licores. Encontrei um
Wild Turkey quase cheio e dois copos. Mostrei a Diebold. Ele concordou
com um gesto e servi dois drinques.
Era um homem grande, poucos anos mais velho que eu. Tinha perdido
algum cabelo desde que o vira pela última vez, e estava gordo. Mas gordo
ele sempre fora. Olhou o seu copo por uns instantes, ergueu-o em minha
direção, tomou um gole.
— Do bom — disse.
— Não é mau.
— O que você está fazendo aqui, Matt? Procurando pistas? —
Perguntou, alongando a última palavra.
Neguei com a cabeça:
— Somente tentando entrar na atmosfera da casa.
— Você está trabalhando para Tillary.
— Ele me deu a chave — confirmei.
— Porra, estou pouco me ligando se você desceu pela chaminé, igual
ao Papai Noel. Que é que ele quer que você faça por ele?
— Que o livre de qualquer suspeita.
— Livre? O filho-da-puta está até transparente de tão limpo. Não há
como rotulá-lo.
— Mas você acha que foi ele.
— Não acho que tenha sido — ele me olhou azedo —, se isso significa
enfiar a faca nela. Adoraria achar que foi, mas seu álibi é melhor do que o
de qualquer chefão da máfia. Ele esteve em locais públicos com sua
garota, foi visto por um monte de pessoas, tem recibo de despesa feita
num restaurante e paga com cartão de crédito, pelo amor de Deus! —
Bebeu o resto do uísque. — Acho que ele armou tudo.
— Contratou-os para matá-la?
— Qualquer coisa assim.
— Eles não são assassinos profissionais, são?
— Merda, claro que não. Cruz e Herrera, pistoleiros do sindicato de
Sunset Park! Gatunos é o que eles são.
— Mas você acha que ele os contratou.
Ele chegou mais perto, pegou a garrafa, encheu seu copo até a metade.
— Ele armou para eles.
— Como?
Sacudiu a cabeça, impaciente com a pergunta.
— Queria ter sido a primeira pessoa a interrogá-los. Os tiras do
sexagésimo oitavo obtiveram um mandado de busca de objetos roubados,
mas quando foram até lá não sabiam de onde vinha aquilo tudo. Aí o que
aconteceu é que eles falaram com os defensores públicos antes que eu
pudesse interrogá-los.
— Da primeira vez, negaram tudo. “Compramos tudo na rua.” Você
sabe como é isso.
— Depois disseram que não sabiam nada sobre uma mulher
assassinada. Ora, isso era papo furado. Contaram essa versão, depois
trocaram por outra, ou a versão morreu por falta de oxigênio, porque é
evidente que eles sabiam, saiu nos jornais e na televisão. Depois disseram
que não havia nenhuma mulher por aqui quando fizeram o assalto, e mais
do que isso, não chegaram a ir até o segundo andar. Tudo bem, só que o
quarto estava cheio de impressões digitais deles, no espelho, no topo da
cômoda e em vários outros lugares.
— Você tem impressões digitais que provam que eles estiveram no
quarto? Eu não sabia disso.
— Talvez eu não devesse contar. Mas acho que não faz a menor
diferença. Encontramos, sim, as impressões.
— De quem? Herrera ou Cruz?
— Por quê?
— Porque calculo que foi Cruz que a esfaqueou.
— Por que ele?
— Sua ficha. E porque anda com uma faca.
— Um canivete de mola. Que não foi usado na mulher.
— Não?
— Ela foi morta com uma faca de uns quinze centímetros de
comprimento por cinco ou seis de largura. Não sei exatamente. Uma faca
de cozinha.
— Que vocês não recuperaram, claro.
— Não. Ela possuía um monte de facas na cozinha, vários conjuntos
diferentes. Sabe como é, vivendo numa casa por vinte anos a gente
acumula um bocado de facas. Tillary não sabia dizer se faltava alguma. O
laboratório levou as que achamos, mas não encontrou sangue em nenhuma
delas.
— Você acha então…
— Que um deles foi à cozinha, pegou uma faca, subiu e a matou.
Depois jogou a faca num esgoto qualquer, ou no rio, ou Deus sabe onde.
— Pegou uma faca na cozinha.
— Ou trouxe com ele. Cruz tinha o hábito de andar com o tal canivete,
mas não deve ter querido usar sua própria faca para matar a mulher.
— Calculando que ele veio aqui com a intenção de matá-la.
— Qual é a outra explicação?
— Eu acho que foi um assalto e que eles não sabiam que ela estava em
casa.
— Está bem, você acha isso porque está procurando um meio de livrar
a cara do safado. O ladrão sobe e leva uma faca com ele. Por que a faca?
— Em caso de ter alguém lá em cima.
— Então para que subir?
— Ele está procurando dinheiro. Muita gente guarda dinheiro no
quarto. Ele abre a porta, ela está lá, ela entra em pânico, ele entra em
pânico…
— E ele a mata.
— Por que não?
— Droga, é uma teoria tão boa quanto qualquer outra, Matt. — Ele
pousou o copo na mesa de centro. — Uma sessão a mais com eles, e eles
teriam vomitado tudo.
— Já falaram demais assim mesmo.
— Sei disso. Você sabe qual a coisa mais importante para se ensinar a
um recruta? Ler o Miranda-Escobedo para os bandidos de tal modo que
eles não compreendam seu significado. “Você tem o direito de ficar
calado. Agora quero que você me diga o que é que aconteceu naquela
noite.” Só mais uma vez e eles veriam que o jeito de escapar era dizer que
Tillary os contratou para fazer o serviço.
— Quer dizer, admitindo que foram eles.
— Sei disso, mas eles estavam admitindo um pouco mais a cada
interrogatório. Não sei, não. Mas acho que teria tirado um pouco mais
deles. Mas no momento em que o advogado chega, merda, esse é o fim de
nossos agradáveis papinhos.
— Por que você quer que seja Tillary? Só porque ele estava traindo a
mulher?
— Todo mundo trai.
— É isso que eu acho.
— Os que matam as mulheres são os que não traem, mas gostariam de
trair. Ou os que estão apaixonados por uma gatinha doce e inocente e
querem casar-se com ela, para guardá-la para sempre. Esses não amam
ninguém, só a si mesmos. Ou médicos. Os médicos estão sempre matando
suas mulheres.
— Então…
— Temos toneladas de motivos, Matt. Ele devia um dinheiro que não
tinha. E ela estava prestes a deixá-lo.
— Quem, a namorada?
— Não, a mulher.
— Nunca ouvi falar nisso.
— Quem é que iria contar para você? Ela falou com uma vizinha, falou
com um advogado. A morte da tia fez toda a diferença. Primeiro, ela
herdou alguns bens; segundo, não tinha mais a velha para lhe fazer
companhia. Ah, nós temos muitos motivos, meu amigo. Se motivos
fossem prova suficiente para enforcar um homem, poderíamos sair para ir
comprar a corda.

— Ele é seu amigo, não é? É por isso que você está envolvido?
Tínhamos saído da casa de Tillary lá pelo início da noite. Lembro-me
de que o céu ainda estava claro, mas estávamos em julho e anoitecia bem
mais tarde. Apaguei as luzes e guardei a garrafa de Wild Turkey. Não
deixamos muito nela, não. Diebold brincou dizendo que eu devia limpar
minhas impressões da garrafa e dos copos também.
Ele estava com o seu carro, um Ford Fairlane que já estava cheio de
ferrugem. Escolheu o lugar, um restaurante alinhado de carne e frutos do
mar, perto do acesso à ponte Verrazano. Era conhecido no lugar e percebi
que não haveria conta. A maioria dos policiais tem uns determinados
restaurantes onde pode comer um certo número de vezes sem pagar. Isso
incomoda algumas pessoas, e eu nunca entendi bem por quê.
Comemos bem — coquetel de camarão, tiras de filé, pãezinhos de
centeio bem quentes, batatas assadas recheadas.
— Quando a gente era criança — Diebold falou —, um homem que
comia assim estava se tratando muito bem. Você nunca ouvia uma maldita
palavra sobre colesterol Agora só se fala nisso.
— Verdade.
— Tinha um colega, não sei se você o conheceu. Gerry O'Bannon.
Conhece?
— Acho que não.
— Bem, ele entrou nessa onda de saúde. O que desencadeou tudo foi
ele parar de fumar. Nunca fumei, por isso nunca tive que deixar o cigarro,
mas ele deixou e aí foi uma coisa atrás da outra. Perdeu muito peso,
mudou a dieta, começou a correr Ficou com uma cara horrível, todo
retesado, sabe como é que eles ficam? Mas estava feliz, estava mesmo
feliz consigo mesmo. Não bebia, pedia apenas uma cerveja e fazia com
que durasse um tempão, ou então pedia uma só e depois trocava por club
soda. Aquele troço francês. Perrier?
— Isso mesmo.
— Muito em voga hoje em dia, é uma simples água gaseificada e custa
mais do que cerveja. Pense nisso e depois me explique. Ele se matou.
— O'Bannon?
— Foi. Não quero dizer que uma coisa tenha a ver com a outra, perder
peso e beber club soda e se matar. A vida que você vive e as coisas que
você vê, vou te contar, um tira comer sua pistola, nunca achei que isso
precisasse de uma explicação. Você compreende o que estou dizendo?
— Compreendo.
Ele me olhou.
— Claro. Claro que você compreende. — E aí a conversa tomou outra
direção, e um pouco depois, com uma fatia de torta de maçã coroada por
queijo cheddar à sua frente, e café para os dois, ele retornou ao caso
Tillary, identificando-o como meu amigo.
— Mais ou menos amigo — respondi. — Conheço-o de bares.
— Claro, ela vive na sua vizinhança, não é? A namorada, esqueço seu
nome.
— Carolyn Cheatham.
— Queria que ela fosse todo o álibi dele. Mas, mesmo ele tendo se
ausentado algumas horas, o que a mulher dele estava fazendo durante o
assalto? Esperando que Tommy voltasse para casa e a matasse? Quer dizer,
exagerando, vamos dizer que ela tenha se escondido debaixo da cama
enquanto eles pilhavam seu quarto e deixavam impressões por toda parte.
Eles saem e ela chama a polícia, certo?
— Ele não pode ter cometido o crime.
— Eu sei, e isso me leva à loucura. Por que é que você gosta dele?
— Ele não é um mau sujeito. E estou sendo pago pelo meu trabalho,
Jack. O que é um desperdício do meu tempo e do dinheiro dele, de
qualquer forma, porque vocês não têm um caso contra ele.
— Não.
— Não têm, não é?
— Nem perto. — Ele comeu um pedaço da torta, bebeu um pouco de
café. — Que bom que você está sendo pago. Não é somente porque gosto
de ver um sujeito gastar algum. Detestaria ver você se fritar de graça por
ele.
— Mas não estou me fritando.
— Você me compreendeu.
— Estou perdendo alguma coisa, Jack?
— O quê?
— O que ele fez, roubou as bolas de beisebol da Liga Atlética da
Polícia? Por que você tem tanta gana dele?
Ele pensou antes de responder. Suas mandíbulas trabalhavam. Franziu
a testa.
— Bem, posso explicar — disse, depois de um tempo. — Porque ele é
fingido.
— Ele vende ações e titica pelo telefone. Claro que sabe fingir.
— Mais do que isso. Não sei como explicar de maneira a fazer sentido,
mas, porra, você foi um tira. Você sabe como a gente tem dessas intuições.
— Claro que sei.
— Ora, eu sinto isso em relação a esse cara. Tem alguma coisa nele
que não bate, alguma coisa relacionada com a morte dela.
— Vou dizer o que é — falei. — Ele está satisfeito porque ela morreu,
mas finge que não está. Livrou-o de uma encrenca e ele ficou feliz, mas
está agindo como um filho-da-mãe santarrão, e é a isso que você está
reagindo.
— Talvez em parte seja isso.
— Acho que isso é tudo. Você sente que ele está agindo como quem
tem culpa. Bem, está mesmo. Ele se sente culpado. Está feliz com a morte
dela, mas ao mesmo tempo ele viveu com essa mulher não sei quantos
anos, viveu uma vida com ela, uma parte dele agia como marido e a outra
parte a enganava.
— Sim, sim, estou entendendo.
— E então?
— Mas é mais do que isso.
— Por que tem que ser mais? Olha, talvez ele tenha armado tudo para
o Cruz e como é mesmo o nome do outro?
— Hernandez.
— Não, não é Hernandez. Como é mesmo o nome dele?
— Angel, Angel Eyes.
— Herrera. Talvez ele tenha armado para eles entrarem, roubarem a
casa. Talvez no fundo de sua mente estivesse a esperança que ela reagisse
ao roubo.
— Continue.
— Mas acontece que é muito talvez, não é não? Acho que ele apenas se
sente culpado por ter desejado que ela morresse, ou está contente porque
isso de fato aconteceu, e você está percebendo a culpa e é por isso que
você o quer culpado pelo assassinato.
— Não.
— Tem certeza?
— Não tenho certeza de ter certeza de nada. Sabe, estou contente que
você esteja sendo pago. Espero que esteja recebendo uma tonelada de
dinheiro.
— Nem tanto.
— Olhe, arranque o quanto puder. Porque ao menos isso está lhe
custando algum dinheiro, mesmo que seja só isso, e dinheiro que ele não
precisava estar gastando. Porque não podemos tocar nele. Mesmo que
aqueles dois mudassem suas versões, admitissem o assassinato e
dissessem que ele os meteu nessa, não seria suficiente para pegá-lo. E eles
não vão mudar suas histórias, e quem é que iria contratá-los para um
assassinato, quem? E eles não aceitariam uma empreitada dessas, sei que
não. Cruz é um bastardo mesquinho, mas Herrera é apenas um cara burro
e, que merda!
— O quê?
— Fico furioso ao ver esse tipo se sair bem dessa.
— Mas ele não a matou, Jack.
— Ele está escapando de alguma coisa e detesto ver isso acontecer.
Sabe qual é a minha esperança? Que em algum momento ele ultrapasse um
sinal vermelho naquela porra daquele barco dele. O que é mesmo, um
Buick, não é?
— Acho que é.
— Espero que ele avance um sinal e eu o detenha por isso, é só o que
espero.
— É isso que a delegacia de homicídios do Brooklyn faz hoje em dia?
Lida com os problemas do trânsito?
— Só espero que isso aconteça — ele respondeu. — Só isso.
12
Diebold insistiu em me levar. Quando lhe disse que iria de metrô,
objetou que eu não fosse ridículo, que já era meia-noite e que eu não
estava em condições de viajar em transportes públicos.
— Você vai apagar e algum vagabundo vai roubar os seus sapatos.
É possível que ele estivesse certo. O fato é que cabeceei e adormeci
durante o trajeto até Manhattan, acordando quando ele estacionou na
esquina da Rua 59 com a Nona. Agradeci a carona, perguntei-lhe se tinha
tempo para um drinque antes de voltar.
— Não, para mim chega. Não posso mais virar a noite como antes.
— Sabe, acho que também vou dar os trabalhos por encerrados.
Mas não foi o que acabei fazendo. Esperei que ele arrancasse com o
carro, comecei a caminhar em direção ao hotel, mas depois dobrei a
esquina e segui para o Armstrong's. Estava quase vazio. Entrei e Billie
acenou para mim.
Fui até o bar. E lá estava ela, na ponta do balcão, sozinha, os olhos
fixos no copo à sua frente. Carolyn Cheatham. Não a vira desde a noite em
que ficamos juntos.
Enquanto eu pensava se devia ou não dizer alguma coisa, ela levantou
os olhos e seu olhar encontrou o meu. Seu rosto parecia cristalizado numa
dor obstinada e antiga. Piscou duas vezes antes de me reconhecer, e
quando o fez um músculo começou a tremer em seu rosto e os olhos se
encheram de lágrimas. Usou a mão para enxugá-las. Já chorara antes;
havia lenços de papel amassados a seu lado, manchados de rímel.
— Meu amigo bebedor de bourbon. Billie, esse homem é um
cavalheiro. Você pode, por favor, trazer para meu cavalheiro uma dose de
um bom bourbon?
Billie me olhou. Concordei. Ele trouxe uma pequena dose da bebida e
uma jarra de café.
— Chamei você de meu cavalheiro, mas sem segundas intenções. —
Ela pronunciou as palavras com o cuidado exagerado dos bêbados. — Você
é um cavalheiro e um amigo, mas não o meu cavalheiro. Por outro lado, o
meu cavalheiro não é nenhuma das duas coisas.
Bebi um gole do bourbon e despejei um pouco no café.
— Billie, sabe como podemos concluir que o senhor Scudder é um
cavalheiro?
— Ele sempre tira sua dama na presença de um chapéu.
— É um bebedor de bourbon.
— Isso faz dele um cavalheiro, Carolyn?
— Faz dele um homem anos-luz à frente de um hipócrita filho-da-
puta, bebedor de uísque escocês.
Ela não estava falando alto, mas sua voz era incisiva o suficiente para
fazer calar a sala. Havia apenas três ou quatro mesas ocupadas, e as
pessoas escolheram justo aquele momento para se calarem. Por um
instante, a música de fita ficou surpreendentemente alta. Era uma das
poucas que eu reconhecia, um dos concertos de Brandeburgo. Era tão
comum ouvi-la ali que até eu já a reconhecia.
— Suponha que um homem beba uísque irlandês, Carolyn. Isso faz
dele o quê? — Billie perguntou.
— Um irlandês.
— Faz sentido.
— Estou bebendo bourbon — ela falou e empurrou intencionalmente o
copo um pouco para a frente. — Dane-se, sou uma dama.
Ele a olhou, depois me olhou. Assenti e ele encolheu os ombros e
serviu-lhe mais uma dose.
— Por minha conta — eu lhe disse.
— Obrigada. Obrigada, Matthew. — Seus olhos começaram novamente
a lacrimejar e ela pegou um lenço limpo na bolsa.
Queria falar sobre Tommy. Ele estava sendo bom com ela, disse.
Telefonando, enviando flores. Uma cena no escritório, porém, não ia
agradar; no entanto, como talvez viesse a precisar dela para comprovar
onde estava na noite em que sua mulher fora assassinada, precisava que
ela continuasse sua amiga.
Mas não queria vê-la, pois dizia que não ficava bem. Não para um
viúvo recente, para um homem virtualmente acusado de cumplicidade no
assassinato da mulher.
— Envia flores sem cartão. Telefona de cabines públicas. O filho-da-
mãe.
— Talvez o florista tenha esquecido de juntar o cartão.
— Ah, Matt, não arranje desculpas para ele.
— Claro que só pode falar de telefones públicos, afinal ele está num
hotel.
— Podia telefonar do quarto. Ele deu a entender que não queria que as
ligações passassem pela mesa telefônica do hotel, para o caso de a
telefonista estar escutando. Não há cartões porque ele não quer nada
escrito. Veio ao meu apartamento uma noite dessas, mas não quer ser visto
comigo, não quer sair comigo, e… ah, o hipócrita. O filho-da-mãe bebedor
de uísque escocês.
Billie me chamou e disse:
— Não queria pedir a ela que saísse, uma mulher tão gentil, do jeito
que está. Mas estava com medo de ter que fazê-lo. Você a acompanharia
até a casa dela?
— Claro.
Primeiro tive que deixar que ela nos pagasse mais uma rodada. Ela
insistiu. Depois consegui tirá-la de lá e andei com ela até seu prédio. A
chuva estava a caminho, era possível sentir seu cheiro; quando saímos do
ar-condicionado do Armstrong's para a umidade opressiva que anuncia
uma tempestade de verão, ela perdeu um pouco de sua energia. Enquanto
caminhávamos, segurou meu braço, agarrando-o de uma forma que
beirava o desespero. No elevador, encostou-se na parede dos fundos e
firmou os pés no chão.
— Oh, Deus! — falou.
Tirei as chaves de sua mão, abri a porta. Ajudei-a a entrar Ela meio
que sentou, meio que se esparramou no sofá. Tinha os olhos abertos, mas
não sei se estava vendo alguma coisa. Precisei usar o banheiro. Quando
voltei, ela fechara os olhos e ressonava.
Tirei seus sapatos, levei-a para uma cadeira e lutei com o sofá até
conseguir transformá-lo numa cama Deitei-a. Achei melhor desabotoar um
pouco de suas roupas, mas acabei por despi-la. Durante todo esse tempo
ela continuou inconsciente, e lembrei-me do assistente de um agente
funerário que uma vez me contou como era difícil vestir e despir os
mortos. Senti minha garganta se revoltar ao pensar nisso, mas sentei e dali
a pouco meu estômago sossegou.
Cobri-a com o lençol de cima e tornei a me sentar. Tinha alguma outra
coisa que pretendia fazer, mas não conseguia me lembrar do que era.
Tentei lembrar e devo ter cochilado. Acho que foi só por uns minutos,
tempo suficiente para que eu me perdesse num sonho que desapareceu no
instante em que abri os olhos.
Saí de lá. A porta trancava automaticamente. Havia um ferrolho que
podia ser trancado por dentro para maior segurança, mas só o que pude
fazer foi bater a porta e verificar se estava trancada, e razoavelmente
segura. Peguei o elevador e fui para a rua.
A chuva ainda não caíra. Na esquina da Nona Avenida um jogger
passou por mim, correndo perseverantemente em direção ao norte da
cidade, no sentido contrário dos carros. Sua camiseta estava molhada de
suor e ele parecia prestes a cair. Lembrei-me de O'Bannon, o antigo
parceiro de Jack Diebold, procurando a excelência física antes de estourar
os miolos.
Foi aí que me lembrei do que queria fazer no apartamento de Carolyn.
Tinha planejado retirar de lá a arma que Tommy lhe dera Se ela ia beber
desse jeito e ficar deprimida, não precisava de uma arma na mesinha de
cabeceira.
Mas a porta estava trancada. E ela estava desmaiada, não ia acordar e
se matar.
Atravessei a rua. A grade de ferro do Armstrong's estava quase que
inteiramente puxada, os globos de luz em cima da entrada apagados, mas
via-se luz lá dentro Cheguei até a porta, vi que as cadeiras já estavam
colocadas em cima das mesas, o salão preparado para o garoto dominicano
que vinha todas as manhãs varrer o lugar. Logo de início não vi Billie, mas
depois o avistei num tamborete lá no extremo oposto do balcão. A porta
estava trancada, mas ele me viu e veio abrir.
Logo que entrei, ele trancou novamente a porta, foi até o balcão e
assumiu seu posto. Sem dizer nada, serviu-me uma dose de bourbon.
Segurei o copo com a mão, mas não o levantei.
— O café acabou.
— Tudo bem. Eu não ia querer mais.
— Ela está bem? A Carolyn?
— Bem, pode ser que amanhã ela tenha uma ressaca.
— Quase todo mundo que conheço pode ter uma ressaca amanhã. Eu
posso ter uma ressaca amanhã. Vai chover muito, o melhor que posso fazer
é ficar sentado em casa e comer aspirinas o dia inteiro.
Alguém bateu na porta. Billie sacudiu a cabeça, fez sinal para que
fosse embora. O homem bateu de novo. Billie o ignorou.
— Será que não veem que o lugar está fechado? — queixou-se —
Guarde seu dinheiro, Matt. Estamos fechados, o caixa já fechou, é hora de
festa particular. — Segurou seu copo contra a luz e olhou para ele. —
Linda cor. Ela é uma beberrona, a velha Carolyn. Um bebedor de bourbon
é um cavalheiro e um bebedor de uísque… o que foi mesmo que ela disse
que um bebedor de uísque é?
— Acho que foi hipócrita.
— Então eu lhe dei uma boa fala, não foi? Uísque irlandês faz um
homem ser o quê? Um irlandês.
— Quem mandou perguntar?
— Também faz dele um bêbado, mas de uma maneira simpática. Só
fico bêbado da melhor maneira possível. Por Deus, Matt, estas são as
melhores horas do dia. Você pode ficar com seu Morrissey's. Isto aqui é
como ter a sua própria happy-hour, sabe? O boteco vazio e escuro, a
música desligada, as cadeiras empilhadas, uma ou duas pessoas para
companhia, o resto do mundo trancado lá fora. Maravilha, não é?
— Não é mau.
— Não, não é.
Ele estava renovando meu drinque. Não me lembro de ter bebido a
primeira dose.
— Sabe, meu problema é que não posso ir para casa — falei.
— Isso foi o que Thomas Wolfe disse. “You can't go home again”. Esse
é o problema de todo mundo.
— Não, falo sério. Meus pés, em vez disso, me levam para bares.
Estava no Brooklyn. Cheguei tarde em casa, cansado, caindo de sono, já
pertinho do hotel e de repente virei a esquina e vim para cá. Agora mesmo
acabo de pôr a Carolyn para dormir, e tive que me arrancar de lá para não
adormecer na cadeira dela, e em vez de ir para casa como um ser humano
sadio, voltei para cá, como um pombo domesticado regressa ao pombal.
— Você é uma andorinha e aqui é Capistrano.
— É isso que eu sou? Já não sei mais o que sou.
— Ora, bolas. Você é um cara, um ser humano. Apenas mais um filho-
da-mãe que não quer ficar sozinho quando a taverna sagrada fecha as
portas.
— O quê? — Comecei a rir. — É isso que este lugar é? A taverna
sagrada?
— Você não conhece a música?
— Que música?
— Aquela do Van Ronk, “Então tivemos outra noite” — parou. —
Diabos, não consigo cantar. Não consigo nem acertar a melodia. Last call,
de Dave Van Ronk. Você não conhece?
— Não sei nem do que você está falando.
— Por Deus! Você tem que ouvir essa música. Tem que ouvir de
qualquer jeito. É sobre isso que estivemos conversando até agora; e, o
mais importante, esse é o maldito hino nacional. Vamos.
— Vamos, assim, sem mais nem menos?
— Só isso, vamos. — Colocou uma bolsa de viagem da Piedmont
Airlines em cima do balcão, foi mexer lá atrás do bar e voltou com duas
garrafas lacradas, uma do Jameson irlandês de doze anos que ele adorava e
uma de Jack Daniel's. — Que tal?
— Que tal o quê?
— Para jogar na sua cabeça e matar os piolhos. Para beber, foi a minha
pergunta. Você esteve bebendo Forester, mas não consigo encontrar
nenhuma garrafa fechada, e há uma lei que proíbe andar com garrafas
abertas pelas ruas.
— É mesmo?
— Deveria haver. Nunca roubo garrafas abertas. Você pode responder a
uma simples pergunta? O Jack Preto está bom pra você?
— Claro que sim, mas onde é que estamos indo?
— Para a minha casa. Você tem que ouvir esse disco.

— Barmen bebem de graça. Mesmo em casa. É uma vantagem


adicional. Outras pessoas recebem planos de aposentadoria, tratamento
dentário. Nós ganhamos toda a birita que conseguirmos roubar. Você vai
amar essa música, Matt.
Estávamos em seu apartamento, um estúdio em forma de L, com o
assoalho em madeira e uma lareira Ficava no vigésimo segundo andar e a
janela dava para o sul. Tinha uma boa vista do Empire State Building e,
mais ao fundo, à direita, via-se o World Trade Center.
Era pouco mobiliado. Na parte que servia de quarto de dormir, cama e
cômoda de madeira pintadas de branco. No centro do estúdio, um sofá e
uma cadeira de armar. No chão, pilhas de livros e discos que não cabiam
mais na estante. Aqui e ali, componentes de um aparelho de som — um
pick-up em cima de um caixote de leite, alto-falantes pousados no chão.
— Onde é que eu enfiei esse disco?
Fui até a janela, olhei para a cidade. Estava com meu relógio, mas não
olhei de propósito, pois não queria saber que horas eram. Calculo que
fossem umas quatro da manhã. Ainda não estava chovendo.
— Aqui — ele falou, segurando um álbum. — Dave Van Ronk. Você o
conhece?
— Nunca ouvi falar.
— Tem nome de holandês, parece irlandês e juro sobre os blues que ele
parece um negro cantando. Também é um extraordinário guitarrista, mas
nesse disco ele não toca. Last call. Ele canta al fresco.
— Perfeito.
— Não é al fresco. Esqueci a expressão. Como é que se diz quando
alguém canta sem acompanhamento?
— Que diferença isso faz?
— Como é que eu posso esquecer uma coisa dessas? Minha memória
está igual a uma peneira. Você vai amar essa música.
— Quer dizer, se eu conseguir ouvi-la.
— A capella. É assim que se diz, a capella. Logo que parei de tentar
lembrar, surgiu na minha cabeça. O Zen da Recordação. Onde é que eu
botei o irlandês?
— Bem atrás de você.
— Obrigado. O Daniel's está bom para você? Ah, a garrafa está bem ao
seu lado. OK, ouça isto. Opa, faixa errada. É a última do disco.
Naturalmente. Não se pode ouvir nada depois disso. Ouça.

And so we’ve had another night


Of poetry and poses
And each man knows he'll be alone
When the sacred ginmill closes

A melodia parecia uma canção folclórica irlandesa. O cantor realmente


cantava sem acompanhamento, a voz áspera, mas curiosamente suave.
— Agora ouça esse trecho.

And so we'll drink the final glass


Each to his joy and sorrow
And hope the numbing drink will last
Till opening tomorrow

— Deus do céu — Billie falou.

And when we stumble back again


Like paralityc dancers
Each knows the question he must ask
And each man knows the answer

Eu segurava uma garrafa e um copo. Servi-me de uma dose.


— Presta atenção na próxima passagem, Matt.

And so we'll drink the final drink


That cuts the brain in sections
Where answers do not signify
And there aren't any questions

Billie estava dizendo alguma coisa, mas eu não registrava suas


palavras. Só ouvia a canção.

I broke my heart the other day


It will mend again tomorrow
If I'd been drunk when
I was born I'd be ignorant of sorrow
— Repete esse trecho — pedi.
— Espera. Tem mais.

And so we'll drink the final toast


That never can be spoken:
Here's to the heart that is wise enough
To know when it's better off broken

— E então? — ele perguntou.


— Gostaria de ouvir outra vez
— “Play it again, Sam. Você a tocou para ela, pode tocar para mim. Se
ela pode aguentar, eu também posso.” Não é incrível?
— Põe de novo, está bem?
Ouvimos a música inteira outras vezes. Finalmente, ele desligou o
pick-up e guardou o disco. Perguntou se eu tinha compreendido o porquê
de ter me arrastado até ali para ouvir a canção. Só concordei com a cabeça.
— Olha, você pode acampar aqui, se quiser. Aquele sofá é mais
confortável do que parece.
— Posso chegar bem em casa.
— Não sei. Já está chovendo? — Olhou pela janela. — Não, mas pode
começar a qualquer minuto.
— Vou arriscar. Quero estar no meu quarto quando acordar.
— Devo respeitar um homem que pode planejar seu futuro dessa
maneira. Você está bem para andar pelas ruas? Está, claro que está. Olha
aqui, vou arranjar um saco de papel, você pode levar o JD para casa.
Melhor, leve a bolsa, vão pensar que você é um piloto.
— Não, Billie, guarde para você.
— O que é que vou fazer com isso? Não tomo bourbon.
— Mas eu já bebi demais.
— Você pode querer um gole antes de dormir. Pode querer um gole de
manhã. É só uma sacola, pelo amor de Deus. Quando é que você ficou tão
elegante que não pode andar com uma sacola?
— Alguém me disse que era ilegal carregar garrafas abertas pelas ruas.
— Não se preocupe. É um delito primário, com certeza você obterá a
condicional. Olhe, Matt. Obrigado por ter vindo.
Fui andando para casa com versos da canção ecoando em minha
cabeça, surgindo aos pedaços. “Se estivesse embriagado ao nascer,
ignoraria o que é amargura.” Meu Deus.
Cheguei ao hotel e subi direto, sem parar para pegar recados. Tirei as
roupas, joguei-as numa cadeira, tomei um gole direto da garrafa e me
deitei.
A chuva começou a cair quando eu estava adormecendo.
13
Choveu o fim de semana inteiro. A água chicoteava minha janela
quando acordei, mais ou menos por volta de meio-dia, na sexta-feira. Mas
deve ter sido o telefone que me despertou. Sentei na borda da cama e
decidi que não ia atender. Depois de tocar mais algumas vezes, parou.
Minha cabeça doía terrivelmente. A barriga parecia ter levado um bom
tiro. Deitei-me novamente, e levantei rápido quando o quarto começou a
girar. Fui ao banheiro tomar duas aspirinas com meio copo d'água, mas
elas não pararam no estômago.
Lembrei-me da garrafa que Billie tinha feito eu aceitar. Procurei por
ela e finalmente a encontrei dentro da bolsa de viagem. Não me lembrava
de tê-la guardado depois do último drinque da noite, mas também havia
outras coisas das quais não conseguia me lembrar, como a maior parte da
vinda para o hotel. Mas essa espécie de mini blecaute não me incomodava
muito. Quando a gente cruza o país dirigindo, não se lembra de todos os
outdoors, a cada quilômetro da estrada. Por que ficar preocupado em
recordar todos os minutos de sua vida?
Um terço da garrafa já estava vazio. Isso me surpreendeu. Lembrava-
me de ter tomado um drinque com Billie enquanto ouvíamos o disco e,
depois, de ter bebido uma dose antes de apagar as luzes. Não queria uma
dose agora, mas há as que você quer e há as que você necessita, e esta de
agora fazia parte da última categoria. Coloquei uma dose pequena no copo
d'água e estremeci ao beber. Também não ficou no estômago, mas deu um
jeito de fazer com que a dose seguinte ficasse. E aí consegui engolir mais
duas aspirinas com outro meio copo d'água, e dessa vez tudo deu certo.
Se ao nascer estivesse embriagado…
Fiquei no meu quarto. O tempo me dava todos os motivos para ficar
onde estava, mas na verdade não precisava de nenhuma desculpa Esse era
o tipo de ressaca que aprendera a respeitar. Se algum dia me sentisse
assim, sem ter bebido na noite anterior, iria direto para um hospital. Mas,
do jeito que as coisas se passaram, fiquei quieto e tratei-me como a um
homem doente, o que, em retrospecto, parece ter sido mais do que uma
metáfora.
O telefone tocou de novo lá pelo meio da tarde. Podia ter pedido à
telefonista que não passasse as ligações para o quarto, mas não me senti
disposto a dar as explicações necessárias para isso. Era mais fácil deixar o
telefone tocar.
Tocou pela terceira vez no início da noite e dessa vez atendi. Era Skip
Devoe.
— Estive procurando por você. Vai aparecer mais tarde?
— Não quero sair com esse tempo.
— É, está chovendo de novo. Deu uma parada, mas agora está
chovendo pesado. O cara do tempo disse que vai chover muito. Nós vimos
aqueles sujeitos ontem.
— Já?
— Não me refiro aos sujeitos de chapéu preto, aos maus. Os advogados
e os contadores. Nosso contador estava armado com o que ele chama de
revólver judeu. Você sabe o que é isso?
— Uma caneta.
— Já ouviu a piada, hein? De qualquer modo, tudo que eles nos
disseram foi o que já sabíamos, o que é ótimo, levando em conta que ele
vai cobrar pelo conselho. Temos de pagar.
— Bem, isso você já sabia.
— Sim, mas não quer dizer que goste da ideia. Falei com o tipo
novamente, o senhor Voz ao Telefone. Disse ao velho Telefone Tommy que
precisávamos do fim de semana para arranjar o dinheiro.
— Você disse ao Tillary?
— Tillary? Do que é que você está falando?
— Você disse…
— Ah, tem razão — interrompeu —, nem liguei uma coisa com outra.
Disse Telefone Tommy, como poderia ter dito Teddy ou qualquer nome
começando com T. Dê-me alguns nomes começando com T.
— Preciso?
Ele fez uma pausa.
— Você não está muito bem.
— Keegan me fez ficar acordado até as tantas ouvindo discos. Ainda
não estou cem por cento.
— Maldito Keegan. Nós todos bebemos pesado, mas ele ainda vai se
matar com esse negócio.
— Ele bebe bem.
— É. Ouça, não vou demorar muito. O que quero saber é o seguinte,
você pode reservar a segunda-feira? O dia e a noite. Porque acho que é
quando vamos agir e, se temos mesmo de fazê-lo, quanto mais cedo,
melhor.
— O que é que você quer que eu faça?
— Falaremos nisso depois, repassaremos o texto. O.k.?
O que eu tinha para fazer na segunda-feira? Ainda estava trabalhando
para Tommy Tillary, mas não me importava com o número de horas que
dedicava ao caso. A conversa com Jack Diebold havia confirmado a
suspeita de que estava desperdiçando meu tempo e o dinheiro do Tillary,
pois eles não tinham um caso contra ele e nada indicava que teriam um.
De qualquer modo, a crítica acerba, de Carolyn Cheatham não me deixou
inclinado a trabalhar muito pelo Tommy, ou mesmo a me sentir culpado
por receber seu dinheiro dando pouco em troca.
Tinha um par de coisas para contar a Drew Kaplan da próxima vez que
falasse com ele. E ainda descobriria mais pelo caminho. Mas não
precisava passar tantas horas nos bares e bodegas de Sunset Park.
Disse ao Skip que segunda estava bem.

Mais tarde telefonei para a loja de bebidas que fica no outro lado da
rua, encomendei dois litros de Early Times e pedi que falassem com o
entregador para parar na delicatessen e pegar um pacote com seis cervejas
e alguns sanduíches. Eles me conheciam e sabiam que eu recompensaria
bem o rapaz das entregas pelo serviço especial, que foi o que fiz. Para
mim valia muito a pena.
Fui devagar com a bebida forte, bebi uma lata de cerveja, forcei-me a
comer metade de um sanduíche. Tomei um banho quente, o que ajudou,
depois comi a outra metade do sanduíche e bebi outra lata de cerveja.
Fui dormir, e quando acordei liguei a televisão e vi Bogart e Ida
Lupino, acho que era ela, em O último refúgio. Não prestei muita atenção
no filme, mas era companhia. De vez em quando ia até a janela e olhava a
chuva. Comi parte do outro sanduíche, bebi mais cerveja, bebi uns
golinhos da garrafa de bourbon. Quando o filme acabou, desliguei a TV,
tomei duas aspirinas e voltei para a cama.
Sábado acordei um pouco melhor. Ainda precisei de um drinque ao
acordar, mas servi uma dose pequena, que parou no estômago. Tomei
banho, bebi a última lata de cerveja, desci e fui tomar o café da manhã no
Red Flame Deixei metade dos ovos, mas comi as batatas e uma porção
dupla de torradas de pão de centeio e bebi muito café. Li o jornal, quer
dizer, tentei. Não consegui compreender muito do que li.
Depois do café parei no McGovern's para um drinque rápido. Ao sair,
virei a esquina e fui para a Saint Paul, onde fiquei sentado naquele silêncio
agradável por mais ou menos meia hora.
Então voltei para o hotel.
No meu quarto, primeiro assisti a um jogo de beisebol; no Wide World
of Sports, uma luta de boxe, um campeonato mundial de luta livre, depois
umas moças exibindo um tipo de esqui aquático individual. O que elas
faziam parecia realmente difícil, mas não era muito interessante para se
assistir. Desliguei a TV e saí. Dei um pulo no Armstrong's, conversei com
uns conhecidos, depois fui ao Joey Farrell's para uma tigela de chili bem
temperado e umas doses de Carta Blanca.
Tomei um conhaque com o café antes de regressar ao hotel. Tinha
bourbon suficiente no quarto para atravessar o domingo, mas parei no
caminho e comprei umas cervejas porque meu estoque acabara e, aos
domingos, as lojas não podem vender bebida antes de meio-dia. Ninguém
sabe por quê. Talvez seja coisa das igrejas, talvez queiram os fiéis com
suas ressacas aguçadas, talvez o arrependimento seja mais fácil de vender
aos que estão muito atormentados.
Fiquei bebericando enquanto assistia televisão. Adormeci em frente ao
aparelho, acordei no meio de um filme de guerra, tomei uma chuveirada,
fiz a barba, fiquei sentado de cueca vendo o fim daquele filme e o começo
de outro, tomando goles de bourbon e de cerveja até poder voltar a dormir.
Quando acordei, já era domingo de tarde e continuava a chover.
Lá pelas três e meia o telefone tocou. Atendi no terceiro toque e disse
alô.
— Matthew? — Era uma mulher e por um instante pensei que fosse
Anita. Quando ela continuou: — Tentei falar com você anteontem, mas
ninguém atendeu — percebi o sotaque sulista.
— Queria agradecer — falou.
— Não tem nada para agradecer, Carolyn.
— Quero agradecer por você ser um cavalheiro — continuou, seu riso
acompanhando suas palavras com delicadeza. — Um cavalheiro bebedor
de bourbon. Se não me engano, parece que falei muito sobre isso.
— Segundo me lembro, você foi bastante eloquente.
— Em outros assuntos também. Pedi desculpas ao Billie por não ter
sido uma verdadeira dama e ele me assegurou que me portei muito bem,
mas barmen sempre dizem isso, não é? Queria agradecer a vocês por se
preocuparem com a minha segurança. — Fez uma pausa. — Nós não…?
— Não.
Um suspiro.
— Bem, fico feliz com isso, mas somente porque detestaria não me
lembrar. Espero não ter me comportado muito mal, Matthew.
— Você se comportou perfeitamente bem.
— Eu não me comportei bem. Disso eu me lembro. Matthew, falei
coisas duras sobre Tommy. Difamei-o ao máximo, espero que você saiba
que aquilo era a bebida falando.
— Soube disso o tempo todo.
— Ele me trata bem, sabe. É um homem bom. Tem seus defeitos. É
forte, mas tem suas fraquezas.
Uma vez, no velório de um colega policial, ouvi uma irlandesa falar
assim da bebida: “Claro, é a fraqueza de um homem forte”.
— Ele gosta de mim — Carolyn continuou. — Não leve a sério nada
do que falei antes.
Disse-lhe que nunca duvidara do afeto que Tommy sentia por ela, que
eu mesmo não me lembrava muito bem do que ela dissera ou deixara de
dizer, que também bebera muito naquela noite.
No domingo à noite fui até o Miss Kitty's. Chovia, mas não muito.
Primeiro parei por uns instantes no Armstrong's e encontrei lá o
mesmo ambiente típico das noites de domingo, que depois notei no Miss
Kitty's. Um bando de clientes habituais e de pessoas das redondezas
curtindo o estado de espírito oposto ao Graças a Deus é Sexta-Feira. Da
jukebox vinha a voz de uma garota cantando sobre seus novos patins. Sua
voz parecia deslizar por entre as notas e encontrar sons fora da escala.
Não conhecia o barman. Quando perguntei pelo Skip, ele apontou para
o escritório, nos fundos.
Skip estava lá, assim como seu sócio. John Kasabian tinha um rosto
redondo e usava óculos com armação metálica e lentes também redondas,
que aumentavam seus olhos fundos e negros. Tinha a mesma idade que
Skip, ou quase, mas parecia mais moço, um colegial com ar severo. Exibia
tatuagens em ambos os braços e não parecia, em absoluto, ser alguém que
se deixasse tatuar.
Uma das tatuagens era uma reprodução convencional, apesar de
espalhafatosa, de uma cobra enrolada em torno de uma adaga. A cobra
estava pronta a dar o bote, e da ponta de sua língua pingava sangue. A
outra era simples, até de bom gosto: uma pulseira em forma de corrente
que envolvia seu pulso direito. “Se ao menos eu a tivesse feito no outro
braço, o relógio a cobriria”, tinha dito uma vez.
Não sei como se sentia, de verdade, a respeito das tatuagens. Simulava
um certo desdém por elas, desprezo pelo jovem que tinha se deixado
marcar dessa maneira, e às vezes parecia ter mesmo vergonha delas. Em
outras ocasiões, eu percebia que se orgulhava delas.
Não o conhecia muito bem. Sua personalidade era menos expansiva do
que a de Skip. Não gostava de fazer a ronda dos bares, trabalhava no turno
da tarde e mais cedo fazia as compras. E não bebia como seu sócio.
Gostava de cerveja, mas não ia com tanta sede ao pote quanto Skip.
— Matt — me cumprimentou e apontou para uma cadeira. — Estou
contente por você nos ajudar com essa história.
— O que eu puder fazer…
— É amanhã à noite — Skip falou. — Teremos que estar nesta sala, às
oito em ponto, quando o telefone vai tocar.
— E?
— Receberemos instruções. Devo estar com um carro a postos. Isso já
faz parte das instruções.
— Você tem carro?
— Tenho, e não é problema estar com ele a postos.
— John tem carro?
— Posso tirá-lo da garagem. Você acha que vamos precisar de dois
carros?
— Não sei. Ele disse para estarem com um carro pronto e suponho que
tenha dito para estarem com o dinheiro pronto também.
— É, parece estranho, mas ele disse isso mesmo.
— Mas não deu nenhuma pista do lugar para onde ele quer que vocês
vão.
— Nenhuma. Pensei um pouco.
— O que me preocupa — comecei.
— É cair numa armadilha.
— Isso mesmo.
— Também já pensei nisso. É como estar na linha de tiro, você está lá
e vem alguém e, pimba!, Você já era. Já é péssimo pagar resgate, mas
quem é que sabe se vamos ao menos sair dessa? Pode resultar num
sequestro e eles podem acabar com a gente enquanto estão com a mão na
massa.
— Por que fariam isso?
— Não sei. “Os mortos não falam.” Não é isso que dizem?
— Talvez tentem, mas assassinatos trazem complicações. — Estava
tentando me concentrar, mas não conseguia pensar com a clareza
necessária. Perguntei se podia pedir uma cerveja.
— Por Deus, onde estão os meus modos? O que é que você quer,
bourbon, uma xícara de café?
— Só uma cerveja.
Skip foi buscá-la. Enquanto isso, seu sócio falou:
— Isso é maluquice. É irreal, sabe o que quero dizer? Livros roubados,
extorsão, vozes ao telefone. Não parece verdade.
— Também acho.
— A quantia não parece ser real. Não consigo encontrar uma conexão.
Os números…
Skip trouxe uma garrafa de Carlsberg e um copo em forma de sino.
Tomei um gole e franzi o cenho como quem está imerso em pensamentos.
Skip acendeu um cigarro, ofereceu-me o maço, depois disse:
— Não, claro que você não quer, você não fuma — e tornou a colocar
o maço no bolso.
— Não deve ser um sequestro — falei. — Mas há uma hipótese de
poder ser.
— Como assim?
— Se eles não estiverem com os livros.
— Claro que eles têm os livros. Os livros sumiram e há essa voz ao
telefone.
— Suponha que alguém não tenha os livros, mas saiba que eles
sumiram. Se não tiver que provar que está com eles, pode arrancar uns
dólares de vocês.
— Uns dólares — Kasabian repetiu.
— Então, quem é que está com os livros? Os Federais? — Skip
perguntou. — Você acha que eles podem estar com os livros todo esse
tempo, que só estão preparando o caso, e nesse meio-tempo estamos
pagando um resgate a alguém que não tem porra nenhuma? — Ficou em
pé, contornou a escrivaninha. — Amo essa ideia. Amo tanto que gostaria
de me casar com ela e ter filhinhos. Deus meu…
— É só uma possibilidade, mas acho que devemos nos precaver.
— Como? Está tudo armado para amanhã.
— Quando ele telefonar, faça com que leia uma página dos livros.
Ele ficou me olhando.
— Você pensou isso neste momento? Agora mesmo? Ninguém se
mexa.
Kasabian perguntou-lhe aonde estava indo.
— Pegar mais duas dessas Carlbergs. A maldita cerveja estimula o
raciocínio. Deveriam usar isso na publicidade deles.
Trouxe duas garrafas. Sentou-se na borda da escrivaninha balançando
as pernas, bebendo sua cerveja do gargalo. Kasabian continuou na cadeira,
tentando retirar o rótulo de sua garrafa. Ele não tinha nenhuma pressa em
beber. Estávamos em nosso conselho de guerra, traçando os planos
possíveis. John e Skip planejando, e eu também, claro.
— Achei que o Bobby ia aparecer — falou Skip.
— O Ruslander?
— Ele é meu melhor amigo, sabe o que está acontecendo. Não sei se
ele ia poder fazer alguma coisa se a merda batesse no ventilador, mas
quem pode? Vou armado, mas se for uma cilada eles com certeza atirarão
primeiro, vai ser de grande valia eu levar um revólver… Você tem alguém
que queira levar com a gente?
Kasabian sacudiu a cabeça:
— Pensei em meu irmão. Foi a primeira pessoa em quem pensei, mas
o Zeke precisa dessa merda para quê?
— E alguém precisa? Matt, tem alguém que você queira levar?
— Não.
— Estava pensando em Billie Keegan. O que é que você acha?
— Ele é boa companhia.
— Claro que é. Mas, pensando bem, quem é que precisa de boa
companhia? O que precisamos é de artilharia pesada e apoio aéreo. Marcar
o local da batalha e posicionar uma barragem de morteiros. John, conte ao
Matt sobre as pás com o morteiro.
— Ora — Kasabian resmungou.
— Conte.
— Foi uma coisa que eu vi.
— Uma coisa que ele viu. Escute só.
— Foi mais ou menos em, bem, não importa quando, mas há um mês
ou pouco mais. Estava na casa da minha namorada, ela mora no West End,
na rua oitenta e alguma coisa, e eu tinha prometido que ia passear com o
cachorro dela. Saio do prédio e do outro lado da rua, em diagonal, vejo
esses três negros.
— Aí ele voltou e entrou de novo no prédio.
— Não, eles nem me olharam. Usavam uma espécie de jaqueta militar
e um deles tinha um quepe. Pareciam soldados.
— Conte o que eles fizeram.
— Bem, é duro de acreditar que vi isso. — Tirou os óculos, massageou
o osso do nariz. — Olharam em volta, me viram, mas concluíram que eu
não lhes causaria problemas.
— Perspicazes conhecedores de tipos humanos — disse Skip.
— Então montam um morteiro, como se já tivessem treinado aquilo
mil vezes, um deles carrega a munição, atiram em curva para dentro do
Hudson, um tiro certeiro e fácil, estavam na esquina e podiam ver o rio
direitinho, todos nós podíamos, mas eles continuaram me ignorando, em
silêncio se congratulam, desmontam o morteiro, empacotam-no e saem
andando juntos.
— Meu Deus! — falei.
— Aconteceu tão depressa e tão discretamente que fiquei imaginando
se não sonhara. Mas aconteceu.
— O barulho foi grande?
— Não muito. Ouvi aquela espécie de zunido que o morteiro faz
quando atira, e, se houve uma explosão quando a munição atingiu a água,
eu não ouvi.
— Provavelmente um tiro de festim — Skip falou. — Com certeza
estavam testando o mecanismo de ignição, checando a trajetória.
— Sim, mas para quê?
— Sei lá. Você nunca sabe quando é que vai necessitar de um morteiro
nesta cidade. — Ele inclinou a garrafa, bebeu um bom gole e começou a
bater com os calcanhares na mesa. — Eu não sei — disse —, estou
bebendo esse troço, mas não estou pensando melhor do que antes. Matt,
vamos falar de dinheiro.
Pensei que estivesse se referindo ao resgate. Mas falava de dinheiro
para mim e fiquei sem saber o que dizer. Não sabia o que cobrar, disse
alguma coisa sobre estar ajudando um amigo.
— E daí? É disso que você vive, não é? De fazer favores a amigos?
— Claro, mas…
— Você está nos prestando um favor. Kasabian e eu não sabemos o que
fazer. Estou certo, John?
— Completamente.
— Não vou dar nenhum dinheiro ao Bobby, ele não aceitaria, e se
Keegan vier também não será pelo dinheiro. Mas você é um profissional e
um profissional é pago. Tillary está pagando, não está?
— Há uma diferença.
— Qual é a diferença?
— Você é meu amigo.
— E ele não é?
— Não do mesmo jeito. Na verdade, gosto cada vez menos dele. Ele
é…
— Um babaca. Isso não se discute. Mas não faz diferença. — Abriu
uma gaveta, contou umas notas, dobrou-as e estendeu-as para mim. —
Aqui tem vinte e cinco. Diga se acha pouco.
— Não sei. Vinte e cinco não parece muito, mas…
— São vinte e cinco de cem, seu burro. — Todos começamos a rir. —
“Vinte e cinco não parece muito.” Johnny, por que é que tínhamos que
contratar um comediante? Sinceramente, Matt, está bem assim?
— Sinceramente, isso parece um pouco demais.
— Você sabe qual é o valor do resgate?
Sacudi a cabeça:
— Todos têm tido muito cuidado em não mencionar isso.
— Bem, não se fala de corda em casa de enforcado, não é? Estamos
pagando a esses veados cinquenta mil.
— Meu Deus! — falei.
— Esse nome já foi mencionado hoje — Kasabian falou. — Por acaso
é algum amigo seu? Se ele não tiver nada melhor para fazer amanhã à
noite, traga-o também.
14
Tentei dormir cedo. Fui para casa, deitei-me, e lá pelas quatro da
manhã vi que não ia conseguir. Tinha bourbon suficiente para apagar, mas
não era isso que queria. Também não queria estar de ressaca quando
lidássemos com os chantagistas.
Levantei-me, tentei ficar sentado, mas não conseguia parar quieto. Não
havia nada na televisão que tivesse vontade de assistir. Vesti-me e fui dar
uma volta, e já estava a meio do caminho quando percebi que meus pés me
levavam para o Morrissey's.
Um dos irmãos estava na porta do térreo. Deu-me um sorriso
simpático e me deixou subir. Lá em cima, outro irmão estava sentado num
banco, ao lado da porta de entrada. Sua mão direita estava escondida pelo
avental de açougueiro e eu já ouvira comentários de que andava armado.
Não ia lá desde que Tim Pat tinha me falado da recompensa que ele e seus
irmãos ofereciam, mas ouvira dizer que eles andavam se revezando na
guarda do bar e que qualquer um que atravessasse a porta estaria
enfrentando uma arma carregada. As opiniões variavam quanto ao tipo de
arma; ouvi várias versões, que iam de um revólver a uma pistola
automática ou a uma espingarda de caça com cano serrado. Para mim, o
sujeito tinha que ser doido para usar uma espingarda de caça, serrada ou
não, numa sala cheia de fregueses, mas ninguém atestara a sanidade
mental dos Morrissey.
Entrei, dei uma olhada no salão, e quando Tim Pat me viu fez um sinal
para que me aproximasse; ao me dirigir para onde ele estava, ouvi Skip
Devoe chamar meu nome, de uma mesa lá na frente, perto das janelas
completamente escurecidas. Estava com Bobby Ruslander. Fiz sinal de que
iria ter com eles dali a pouco. Bobby colocou a mão na boca e um som de
um apito de polícia atravessou a sala, cortando as conversas exatamente
como um tiro o faria. Skip e Bobby riram, todos perceberam que fora uma
brincadeira e não uma batida policial, e as conversas recomeçaram assim
que os clientes asseguraram a Bobby que ele era um babaca. Segui Tim Pat
até os fundos da sala, onde nos sentamos em lados opostos, numa mesa
que estava desocupada.
— Não nos vemos desde o dia em que conversamos. Você tem alguma
notícia?
Disse-lhe que não tinha nada para contar.
— Vim apenas tomar um trago.
— E não ouviu nada?
— Nada. Andei por aí, conversei com algumas pessoas. Se houvesse
alguma coisa no ar, certamente já saberíamos. Creio que foi algum tipo de
problema irlandês, Tim Pat.
— Um problema irlandês.
— Político.
— Se fosse isso, já teríamos ouvido falar no assunto. Algum fanfarrão
já teria deixado escapar alguma coisa. — Alisava a barba com as pontas
dos dedos. — Sabiam direitinho onde procurar o dinheiro. Levaram até
aqueles poucos dólares da jarra do Norad.
— Foi por isso que pensei… Tim Pat me interrompeu:
— Se fossem os Proddies já teríamos ouvido comentários. Ou se fosse
de alguma de nossas facções. — Sorriu sem nenhum humor. — Temos
nossos desacordos partidários, sabe. A causa tem mais de uma voz falando
por ela.
— Dizem que sim.
— Se fosse “um problema irlandês” — falou, destacando bem as
palavras —, outros incidentes teriam acontecido. Mas só houve esse.
— Que vocês saibam.
— Sim, que a gente saiba.
Levantei-me e fui até a mesa de Skip e Bobby. Bobby usava uma
camiseta cinza, com as mangas cortadas. Pendurado no pescoço, um apito
de plástico azul num cordão feito de tiras de plástico trançadas, também
azuis, como aqueles que os meninos fazem nos acampamentos de verão.
— O ator está fazendo laboratório para o papel — Skip me disse,
apontando com o polegar para Bobby.
— É?
— Fui chamado para gravar um comercial. Serei o juiz de um jogo de
basquete, vou estar com umas crianças no playground. São todos mais
altos que eu, é importante para o tema.
— Todo mundo é mais alto que você. O que é que eles estão querendo
vender? Se for desodorante, é melhor você usar outra camiseta.
— Fraternidade.
— Fraternidade?
— Garotos negros, garotos brancos, garotos latinos, todos
fraternalmente unidos ao tentarem alcançar o maldito aro. É qualquer
coisa de utilidade pública, vão exibir nos trechos mais calmos do
programa de Joe Franklin.
— Você está sendo pago para isso? — Skip perguntou.
— Claro que sim, merda. Creio que as agências doam seu tempo, e as
TVS não cobram pela veiculação. Mas o talento é pago.
— O talento — Skip falou.
— Le talent c'est moi — disse Bobby.
Pedi um drinque. Skip e Bobby já estavam servidos. Skip acendeu um
cigarro e a fumaça ficou suspensa no ar. Meu drinque chegou e tomei um
gole.
— Pensei que você fosse dormir cedo — Skip comentou. Disse-lhe que
não tinha conseguido dormir. — Por causa de amanhã?
Sacudi a cabeça:
— Ainda não estava cansado. Só desassossegado.
— Fico assim também. Ei, ator. A que horas é a sua gravação amanhã?
— Dizem que vai ser às duas.
— Dizem?
— Você pode chegar lá e esperar muito. Devo estar lá às duas.
— Será que terminam a tempo de você nos dar uma mão?
— Claro que sim. Esses janotas das agências têm que pegar o trem das
cinco e quarenta e oito para Scarsdale. Tomam uns dois drinques no vagão
restaurante, depois vão para casa saber como é que foi o dia do Jason e da
Tracy na escola.
— Jason e Tracy estão em férias de verão, seu idiota.
— Então têm que ir para casa ler o cartão-postal que eles enviaram do
acampamento. Vão para esses acampamentos classudos, no Maine, os
postais já foram escritos pelos funcionários, tudo que as crianças precisam
fazer é assiná-los.
Meus meninos iriam para um acampamento, dentro de algumas
semanas. Um deles tinha trançado para mim um cordão como o de Bobby.
Estava guardado em algum lugar, numa gaveta, sei lá. Ou será que ainda
estava em Syosset? Se eu fosse um bom pai, pensei, usaria o maldito
cordão, com apito e tudo.
Skip estava dizendo a Bobby que ele precisava de seu sono da beleza.
— Tenho que parecer um atleta — foi a resposta de Bobby.
— Se não tirarmos você daqui, vai parecer mais é com um embrulho.
— Olhou para seu cigarro, jogou-o para dentro do resto de seu drinque. —
Não quero vê-lo fazendo isso, hein? — me disse. — Não quero ver
nenhum dos dois fazer isso. Hábito nojento.

Lá fora o céu começava a clarear. Andamos devagar, sem falar muito.


Bobby caminhava em ziguezague, na nossa frente, imaginando uma tática,
quicando uma bola de basquete imaginária, fingindo ter um oponente
invisível, tentando alcançar o aro. Skip me olhou, encolheu os ombros e
disse:
— O que é que você quer? O homem é meu amigo. Há alguma outra
coisa a dizer?
— Você está é com ciúmes. Você tem a altura, mas não a agilidade.
Um homem baixinho pode parecer maior do que você.
— Chorei por não ter sapatos — Skip falou solenemente —, depois
encontrei um homem que não tinha meias. Que diabo foi isso?
Ouvimos o som de uma explosão, vindo de uns oitocentos metros ao
norte de onde estávamos.
— O morteiro do Kasabian — Bobby disse.
— Maldito fujão de alistamento. Você não diferenciaria um morteiro
de um pessário. Não, não é pessário que eu quero dizer. Como é o nome
daquilo que os farmacêuticos usam?
— Do que é que você está falando?
— Um pilão. Você não saberia a diferença entre um morteiro e um
pilão. Esse barulho não é de morteiro.
— Você é quem sabe.
— Parece mais dinamite para colocação de alicerces. Mas é cedo
demais para isso, os vizinhos iam matar alguém que começasse a
dinamitar a essa hora. Para falar a verdade, estou contente que tenha
parado de chover.
— É mesmo, choveu muito, não foi?
— Acho que precisávamos. É sempre o que dizem, não é? Toda vez
que chove potes, alguém diz que estávamos mesmo precisando dessa
chuva. Porque os reservatórios estavam secando, ou porque os fazendeiros
precisavam, ou qualquer coisa do gênero.
— Que conversa agradável — Bobby comentou. — Nunca teríamos
uma conversa assim numa cidade menos sofisticada.
— Vá se danar — disse Skip. Acendeu um cigarro, começou a tossir,
controlou a tosse e deu outra tragada, dessa vez sem tossir. Era igual a um
drinque pela manhã, pensei. Ao conseguir que um parasse no estômago,
você já estava melhorando.
— Depois que chove, o ar é agradável. Parece que a chuva limpa tudo.
— Lava — Bobby falou.
— Talvez. — Skip olhou em volta. — Quase que odeio dizer isso, mas
acho que vai fazer um lindo dia.
15
Exatamente seis minutos após as oito da noite, o telefone na
escrivaninha de Skip tocou. Billie Keegan estava nos contando sobre uma
garota que conhecera no ano anterior, nas três semanas de férias que
passou no Oeste da Irlanda. Parou a história no meio de uma frase. Skip
colocou a mão sobre o telefone e olhou para mim; peguei a extensão, que
ficava em cima do armário. Ele fez um sinal com a cabeça e ambos
tiramos os fones do gancho ao mesmo tempo.
— Alô.
— Devoe? — disse uma voz masculina.
— É.
— Você está com o dinheiro?
— Estou.
— Então pegue um lápis e anote. Pegue seu carro e vá até…
— Espere — Skip interrompeu. — Primeiro você tem que provar que
tem o que diz ter.
— O que é que você quer dizer com isso?
— Leia os lançamentos na primeira semana de junho. De junho último,
de 1975.
Silêncio no outro lado da linha. Depois a voz, agora tensa, disse:
— Você não nos dá ordens, cara. Somos nós que dizemos pule, são
vocês que pulam.
Skip endireitou-se na cadeira, inclinou-se para a frente. Levantei a mão
para impedir que ele falasse qualquer outra coisa.
— Queremos confirmar se estamos lidando com a pessoa certa.
Queremos comprar, se tivermos certeza de que você tem o que vender.
Assegure-nos disso, que jogaremos o jogo — falei.
— Você não é o Devoe. Quem é você?
— Um amigo do Sr. Devoe.
— Você tem nome, amigo?
— Scudder.
— Scudder. Você quer que a gente leia alguma coisa?
Skip disse-lhe, outra vez, o que queria que fosse lido.
— Telefono mais tarde — e desligou.
Skip ficou me olhando, com o aparelho na mão. Desliguei o meu. Ele
jogava o telefone de uma mão para a outra, como se fosse uma batata
quente. Tive que dizer-lhe para desligar.
— Por que eles fizeram isso?
— Talvez tenham que fazer uma reunião — sugeri. — Ou ir apanhar os
livros para ler o que você quer ouvir.
— Pode ser até que nem tenham os livros.
— Acho que não. Teriam tentado ganhar tempo.
— Desligar na cara de alguém é uma boa maneira de ganhar tempo. —
Acendeu um cigarro e guardou o maço no bolso da camisa. Usava uma
camisa do uniforme dos atendentes de um posto de gasolina, de mangas
curtas, cor verde floreia, com Alvin's Texaco Service bordado em amarelo
no bolso. — Por que ele desligou? — Perguntou, petulante.
— Talvez pensasse que pudéssemos rastrear a chamada.
— Podíamos?
— É difícil mesmo quando a companhia telefônica está colaborando
com a polícia — respondi. — Para nós seria impossível. Mas pode ser que
eles desconheçam esse detalhe.
— Nos pegar rastreando chamadas — John Kasabian falou. — Se
tivemos a maior dificuldade só para instalar esse segundo telefone aqui,
hoje à tarde.
Algumas horas antes eles tinham puxado fios do terminal na parede,
instalando como extensão o aparelho emprestado do apartamento da
namorada de Kasabian, para que Skip e eu atendêssemos a chamada ao
mesmo tempo. Enquanto John e Skip instalavam o telefone, Bobby
comparecia ao teste para o papel de juiz no comercial sobre fraternidade e
Billie Keegan procurava alguém para substituí-lo atrás do balcão do
Armstrong's. Usei esse tempo para enfiar duzentos e cinquenta dólares na
caixa de coletas de uma paróquia, acender umas velas e passar pelo
telefone outro relatório irrelevante para Drew Kaplan. Agora estávamos os
cinco no escritório dos fundos, no Miss Kitty's, esperando que o telefone
tocasse de novo.
— Um sotaque meio sulista, você notou? — Skip perguntou.
— Pareceu falso — falei.
— Você acha?
— Quando ele ficou zangado, ou fingiu estar zangado, sei lá. Naquela
hora em que falou sobre pular.
— Não foi o único a ficar zangado naquela hora.
— Eu percebi. Mas da primeira vez em que ele ficou zangado não
tinha sotaque, foi só quando começou a falar besteira sobre pulos que o
sotaque se acentuou, tentando ficar bem sulista.
Ele franziu o cenho, puxando pela memória.
— Você tem razão — disse, logo em seguida.
— Foi o mesmo cara com quem você falou antes?
— Não sei. A voz pareceu falsa antes, mas não era o mesmo falso de
hoje. Talvez seja o homem das mil vozes, todas pouco convincentes.
— O cara podia ser dublador nos malditos comerciais sobre
fraternidade — Bobby sugeriu.
O telefone tocou.
Dessa vez não nos preocupamos tanto com a sincronização, já que ele
sabia da minha presença. Quando eu já estava com o fone no ouvido, Skip
falou “Sim?” e a voz que ouvi da primeira vez perguntou o que era mesmo
que tinha que ler. Skip lhe disse e ele começou a ler os lançamentos no
livro. Skip tinha diante de seus olhos os livros falsos. Com isso podia
acompanhar o que ouvia.
Depois de meio minuto o leitor parou e perguntou se já estávamos
satisfeitos. Skip fez cara de quem ia se opor. Mas, em vez disso, encolheu
os ombros e assentiu. Fui eu quem falei, para dizer que já dava para saber
que estávamos lidando com as pessoas certas.
— Então vocês vão fazer o seguinte — começou o sujeito, e nós
pegamos lápis e papel para anotar.

— Dois carros. Eles só sabem que Matt e eu vamos, portanto nós dois
iremos no meu carro. John, você leva Bobby e Billie. O que é que você
acha, Matt, vai ter alguém nos seguindo?
— Pode ter alguém observando nossa saída. John, por que vocês três
não vão na frente, agora? Seu carro está perto?
— Está estacionado a duas quadras daqui.
— Vocês três podem sair primeiro. Bobby, você e Bill vão para o carro
e esperam lá. É melhor que os três não caminhem juntos, para o caso de ter
alguém de olho na porta. Vocês dois vão primeiro, John espera uns
minutos e depois vai encontrá-lo no carro.
— E aí seguimos para a, como é mesmo o nome, Emmons Avenue?
— Fica em Sheepshead Bay. Você sabe onde é isso?
— Mais ou menos. Sei que é no Brooklyn, onde Judas perdeu as botas.
Já fui pescar por lá, mas outras pessoas dirigiam e não prestei muita
atenção.
— Você pode pegar a marginal, a Shore Parkway.
— Está bem.
— Saia da Shore na, espere aí, na Ocean Avenue. Com certeza verá
placas sinalizadoras.
— Espere. Acho que tenho um mapa por aí. Outro dia mesmo vi um —
disse Skip.
Ele encontrou um mapa de ruas do Brooklyn e nós três o examinamos.
Bobby Ruslander debruçou-se sobre o ombro de Kasabian. Billie Keegan
pegou uma cerveja que alguém tinha deixado de lado, tomou um gole e fez
uma careta. Estudamos uma rota e Skip disse a John que levasse o mapa.
— Nunca sei dobrar essas coisas direito.
— E quem é que se importa de que maneira você dobra essa droga? —
Pegou de volta o mapa, começou a rasgá-lo bem nas linhas marcadas pelas
dobras e entregou a Kasabian um pedaço de uns cinquenta centímetros
quadrados, deixando o resto cair no chão. — Isso aqui é Sheepshead Bay
— disse. — Você quer saber como sai da marginal, não é? Para que é que
você precisa da porra do resto do Brooklyn?
— Meu Deus.
— Desculpe, Johnny. Estou muito nervoso. Johnny, você está com uma
arma?
— Não quero arma nenhuma.
Skip abriu a gaveta da escrivaninha, colocou uma pistola automática
de aço em cima da mesa.
— Nós a guardamos atrás do balcão — me explicou —, para o caso de
querermos estourar os miolos ao fazer as contas no fim do dia. Você não a
quer, John? — Kasabian sacudiu a cabeça. — Matt?
— Não acho que vá precisar.
— Você não quer levá-la?
— Prefiro não levar.
Ele sopesou a arma, ficou procurando onde enfiá-la. Era uma 45,
parecia do tipo fornecido aos oficiais do Exército. Uma arma grandalhona
e pesada, daquelas chamadas de indulgentes — seu poder de fazer o
inimigo parar compensava uma péssima pontaria, pois podia derrubar um
homem apenas com um ferimento no ombro.
— Pesa uma tonelada essa maldita — Skip colocou-a dentro do cós da
calça jeans e não gostou do efeito. Puxou a camisa para fora da calça,
deixou-a cair por sobre a arma. Não era o tipo de camisa que se usa por
fora da calça e ficou esquisito. — Droga — queixou-se —, onde vou levar
esse troço?
— Você acaba descobrindo — Kasabian lhe disse. — Enquanto isso, é
melhor irmos andando, não é, Matt?
Concordei com ele. Repassamos tudo uma vez mais, enquanto Keegan
e Ruslander seguiam para o carro. Eles iriam até Sheepshead Bay e
estacionariam do outro lado da rua, mas não bem em frente ao restaurante.
Esperariam ali, com o motor desligado e as luzes apagadas, de olho no
lugar e na gente, quando chegássemos.
— Não tentem fazer nada — eu lhe disse. — Se virem algo suspeito,
só observem. Anotem placas, coisas assim.
— Devo tentar segui-los?
— Como é que você ia saber quem está seguindo? — Ele encolheu os
ombros. — Toquem de ouvido — falei. — Fiquem por perto, isso sim, e
mantenham os olhos abertos.
— Tudo bem.
Depois que ele saiu, Skip colocou uma maleta em cima da mesa e a
abriu. Estava cheia de montes de notas presas com elástico. — Essa é a
cara de cinquenta mil dólares — falou. — Não parece grande coisa, não é?
— Só papel.
— Mexe com você olhar para isso?
— Nem um pouco.
— A mim também não. — Colocou a .45 em cima do dinheiro, tentou
fechar a maleta. Não fechava direito. Tornou a arrumar as notas, fazendo
um ninho para a arma que ficou perfeito.
— Só até chegarmos ao carro. Não quero ficar andando na rua como
Gary Cooper em Matar ou morrer. — Enfiou a camisa para dentro da
calça. No caminho, falou: — Pensei que as pessoas fossem ficar me
encarando. Estou vestido como um mecânico, carregando uma maleta
típica de banqueiro. Malditos nova-iorquinos. Podia sair fantasiado de
gorila e ninguém ia me dar a mínima. Quero tirar a arma de dentro da
maleta.
— Tudo bem.
— Já vai ser muito ruim se eles puxarem uma arma e atirarem na
gente. Pior seria fazerem isso com a minha arma.

O carro dele ficava numa garagem na Rua 55. Deu um dólar de gorjeta
ao atendente, saímos e ele dobrou a esquina, parando em frente a um
hidrante. Abriu a maleta, retirou a pistola, examinou o pente, depois
colocou a arma no assento entre nós dois; pensou melhor e resolveu enfiá-
la no espaço entre o assento e o encosto.
Seu carro era um Chevrolet Impala, modelo de uns dois anos antes,
longo e baixo, de suspensão macia. Branco, com o forro bege e branco,
parecia não ter sido lavado desde que saíra de Detroit. O cinzeiro estava
entupido de pontas de cigarros e o chão cheio de lixo.
— O carro é igual à minha vida — disse, quando paramos num sinal na
Décima Avenida. — Uma bagunça confortável. O que é que vamos fazer,
seguir o mesmo caminho que indicamos para Kasabian?
— Não.
— Você conhece um caminho melhor?
— Melhor não, diferente. Agora pegamos a West Side Drive, mas
depois, em vez da marginal, vamos por ruas internas do Brooklyn.
— Mas vai ser mais demorado, não vai?
— Provavelmente. Mas é melhor deixá-los chegar antes da gente.
— Você é quem sabe. Algum motivo especial?
— É mais fácil para perceber se estão nos seguindo.
— Você acha que estão?
— Em princípio não vejo nenhuma razão, já que eles sabem para onde
vamos. Mas não há como prever se estamos lidando com um homem só ou
com um exército.
— Tem razão.
— Vire à direita na próxima esquina e na altura da rua 56 pegue a West
Side Drive.
— Está bem. Matt, você quer alguma coisa?
— O quê?
— Tomar alguma coisa? Veja no porta-luvas, deve ter alguma bebida.
Havia uma garrafa de meio litro de Black & White. Na verdade, não
era de meio litro, era menor. Lembro-me da garrafa, de vidro verde,
ligeiramente curva, parecida com um cantil, daqueles que ficam
confortáveis no bolso de trás da calça.
— Você eu não sei — ele disse —, mas eu estou uma pilha. Não quero
ficar relaxado, mas talvez fizesse bem tomar alguma coisa para acalmar
um pouco.
— Só um golinho — concordei, e abri a garrafa.

Fomos pela West Side Drive até a Rua Canal, cruzamos o rio em
direção ao Brooklyn pela ponte Manhattan, depois seguimos pela Flatbush
Avenue até seu cruzamento com a Ocean Avenue. Pegamos uma série de
sinais vermelhos e notei que ele de vez em quando olhava para o porta-
luvas. Mas não falou nada, e assim tomamos apenas aquele gole, deixando
a garrafa de Black & White onde estava.
Ele dirigia com o vidro inteiramente abaixado e com o braço esquerdo
para fora da janela, a mão apoiada no teto do carro e os dedos de vez em
quando tamborilando no metal. Às vezes conversávamos e às vezes
rodávamos em silêncio.
— Matt, quero saber quem armou isso — falou de repente. — Deve ser
gente de dentro, você não acha? Alguém viu essa oportunidade e se
aproveitou, alguém que deu uma olhada nos livros e compreendeu logo o
que estava vendo. Alguém que já trabalhou para mim, só não sei como fez
para entrar de novo no bar. Se demiti algum idiota, um barman bêbado ou
uma garçonete estabanada, como é que eles conseguiram penetrar no meu
escritório e sair rapidinho com os livros? Você pode explicar?
— É fácil entrar no seu escritório, Skip. Qualquer um que conheça a
planta do bar pode se dirigir ao banheiro e entrar no escritório sem chamar
a atenção de ninguém.
— Acho que sim. Tive é sorte de que não resolvessem urinar na gaveta
de cima, enquanto estavam lá dentro. — Tirou um cigarro do maço que
estava no bolso da camisa, bateu com o cigarro no volante — Devo cinco
mil ao Johnny.
— Como assim?
— O resgate. Ele entrou com trinta e eu com vinte. Seu cofre estava
em melhores condições que o meu Pode até ser que ele tenha mais
cinquenta guardados, ou talvez os trinta fossem o suficiente para sua
segurança — Freou, deixando um táxi pirata trocar de pista na nossa frente
— Olha esse infeliz — disse, sem rancor — Será que as pessoas dirigem
assim em qualquer lugar ou é só aqui no Brooklyn? Juro que as pessoas
começam a dirigir de maneira esquisita assim que a gente atravessa o rio.
Do que é que eu estava falando?
— Do dinheiro que Kasabian adiantou.
— É. Ele vai se reembolsar aos poucos, a cada semana, até cobrir a
diferença de cinco mil Matt, eu tinha vinte mil dólares num cofre de banco
e agora eles estão empacotados, prontos para serem entregues, e dentro de
alguns minutos não serão mais meus e isso não parece verdade Você me
compreende?
— Acho que sim.
— Não é só papel. Dinheiro é mais do que papel, se fosse só isso as
pessoas não enlouqueceriam por ele Mas não era real quando estava bem
guardado no banco e não será real quando desaparecer Preciso saber quem
está fazendo isso comigo, Matt.
— Talvez a gente descubra.
— Preciso mesmo saber Confio no Kasabian, sabe? Nesse tipo de
negócio, você está morto se não confiar no parceiro. Dois sócios num bar,
o tempo todo um vigiando o outro, em seis meses vão estar loucos de
pedra. Nunca funcionaria, o lugar teria o tipo de vibração que nem um
mendigo do Bowery toleraria. Ainda por cima, você pode vigiar seu sócio
vinte e três horas por dia e, na única hora em que você o deixa só, ele vai
deixar você nu Kasabian é quem faz as compras, pelo amor de Deus. Você
tem ideia de quanto se pode roubar quando se faz as compras para um
boteco?
— Aonde você quer chegar, Skip?
— O negócio é o seguinte, há uma voz dentro da minha cabeça dizendo
que essa é uma maneira genial de o Johnny me livrar de vinte mil, e isso
não faz o menor sentido, Matt. Ele teria que dividir com um comparsa,
tem que pôr um bocado do próprio dinheiro em jogo, e por que iria
escolher essa maneira de me roubar’ Fora o fato de que confio nele, não
tenho nenhum motivo para não confiar nele, sempre foi um cara decente
comigo, se quisesse me arrebentar haveria mil maneiras mais fáceis de
fazê-lo e eu nem ia saber o que estava acontecendo. Mas o diabo é que a
voz continua a buzinar na minha cabeça e aposto como ele também anda
ouvindo alguma coisa, porque já o peguei me olhando esquisito e,
provavelmente, também tenho olhado para ele do mesmo modo, e quem é
que precisa dessa merda? Quer dizer, isso ainda é pior do que entregar
todo esse dinheiro. Isso é o tipo de troço que fecha um negócio do dia para
a noite.
— Acho que a próxima é a Ocean Avenue.
— Já? E pensar que estamos dirigindo há apenas seis dias e seis noites
Dobro à esquerda na Ocean?
— Não, à direita.
— Tem certeza?
— Tenho.
— Sempre me perco no Brooklyn. Juro que este lugar foi colonizado
pelas Dez Tribos Perdidas. Não conseguiram achar o caminho de volta,
tomaram posse do lugar e ergueram suas casas. Colocaram esgoto,
instalaram eletricidade. Todos os confortos do lar.
Os restaurantes da Emmons Avenue eram especializados em peixes e
crustáceos Um deles, o Lundy's, era um lugar grande como um celeiro,
onde gourmets sérios se enfiavam em mesas enormes para comer grandes
quantidades de frutos do mar. Nós estávamos indo para um outro, dois
quarteirões acima, numa esquina. Carlo's Ciam House era o nome do lugar
e um luminoso em neon vermelho piscava mostrando um molusco abrindo
e fechando sua concha.
Kasabian estacionara do outro lado da rua, a uma pequena distância do
restaurante. Paramos ao lado deles. Bobby estava no banco do passageiro.
Billie Keegan ia sozinho no banco de trás. Kasabian, claro, no banco do
motorista.
— Vocês demoraram um bocado. Se há qualquer coisa lá dentro, daqui
não dá para ver — Bobby disse.
Skip assentiu com a cabeça. Dirigimos um pouco mais para a frente e
ele estacionou ao lado de um hidrante.
— Eles não guincham os carros aqui. Guincham?
— Acho que não.
— Era só o que faltava. — Desligou o motor e nos entreolhamos. Seus
olhos se dirigiram para o porta-luvas.
— Matt, você está vendo o Keegan? No banco de trás?
— Estou.
— Pode apostar que ele bebeu uns goles desde que saíram de lá.
— Provavelmente.
— Nós vamos esperar, não é? Para comemorar depois.
— Claro.
Ele enfiou o revólver no cós da calça e deixou a camisa solta, cobrindo
a arma.
— Deve ser moda por aqui, as camisas ficarem assim — disse, abrindo
a porta e puxando a maleta. — Você está nervoso, Matt?
— Um pouco.
— Ótimo. Não quero ser o único.
Atravessamos a rua larga e nos aproximamos do restaurante. A noite
estava agradável, podia-se sentir o cheiro da água salgada. Por um instante
pensei se não era melhor a arma estar comigo. Fiquei pensando se ele seria
capaz de usar a pistola ou se a carregava apenas para se sentir mais seguro.
Será que ele sabia atirar? Servira no Exército, mas isso não significava que
fosse competente com uma arma na mão.
Eu já fora bom nisso. Excetuando os ricochetes, naturalmente.
— Olhe o luminoso. O molusco se abrindo e fechando, é obsceno.
“Vem cá, benzinho, deixe eu ver você abrir sua concha.” O lugar parece
vazio.
— Hoje é segunda-feira e já está ficando tarde.
— Com certeza o meio da manhã já é tarde por aqui. As armas pesam
uma tonelada, você já reparou? Parece que a minha calça vai cair até os
joelhos.
— Quer deixar a arma no carro?
— Você está brincando? “Esta é a sua arma, soldado. Pode vir a salvar
sua vida.” Estou bem, Matt. Só meio nervoso, só isso.
— Tudo bem.
Ele chegou primeiro e abriu a porta para mim. O lugar era nada mais,
nada menos, do que uma lanchonete metida a besta, toda de fórmica e aço
inoxidável, com um balcão comprido do lado esquerdo e reservados do
lado direito, e lá atrás algumas mesas. Quatro adolescentes estavam
sentados perto da entrada, comendo batatas fritas com as mãos, servindo-
se de um prato comunitário. Mais ao fundo, uma senhora de cabelos
grisalhos e com muitos anéis nos dedos lia um livro de capa dura, com a
encadernação típica das bibliotecas públicas.
O homem atrás do balcão era alto, gordo e completamente careca.
Acho que raspava a cabeça. Tinha a testa suada e a camisa encharcada. O
lugar era bem refrigerado, com o ar-condicionado a pleno vapor. No balcão
havia dois fregueses, um homem de ombros arredondados, com uma
camisa branca de mangas curtas, cara de contador fracassado, e uma
garota inexpressiva, com pernas pesadas e uma pele horrível Lá nos
fundos, uma garçonete fumava, com certeza era sua pausa para o
cigarrinho.
Sentamos no balcão e pedimos dois cafés. Alguém esquecera um Post,
edição vespertina, no tamborete ao lado. Skip o pegou e folheou.
Acendeu um cigarro, começou a fumar, olhando para a porta quase que
o tempo todo. Tomamos nossos cafés. Ele pegou um cardápio e examinou
o que oferecia.
— Servem milhões de coisas diferentes. Diga o que prefere,
provavelmente vai estar neste cardápio. O que é que me interessa? Não ia
conseguir comer nada.
Acendeu outro cigarro, colocou o maço em cima do balcão. Tirei um
para mim e o coloquei na boca. Ele levantou as sobrancelhas, mas não
disse nada, apenas me ofereceu fogo. Dei umas duas, três tragadas e
apaguei o cigarro.
Devo ter ouvido o telefone tocar, mas não registrei até a garçonete se
dirigir ao aparelho, atender e vir perguntar ao homem de ombros
arredondados se ele era Arthur Devoe. O homem ficou espantado com a
pergunta. Skip foi atender à chamada e eu o segui.
Ele pegou o fone, ouviu por um instante, depois começou a fazer sinais
de que queria lápis e papel. Peguei o bloco e anotei o que ele repetia para
mim.
Gargalhadas estridentes, vindas lá da frente do restaurante, chegaram
até nós. Os garotos estavam jogando batatas fritas uns nos outros. O
balconista inclinou seu corpanzil por cima da fórmica, dizendo alguma
coisa para eles. Desviei os olhos e me concentrei em anotar o que Skip
estava falando.
16
— Dezoito com Ovington. Você sabe onde fica? — perguntou Skip.
— Acho que sim. Conheço a Ovington, atravessa Bay Ridge, mas a
Décima Oitava Avenida fica para o lado oeste. Creio que isso a coloca na
altura de Bensonhurst, um pouquinho ao sul do cemitério Washington.
— Como é que pode alguém conhecer essa droga toda? Você falou
Décima Oitava Avenida? Existem dezoito avenidas?
— Acho que são vinte e oito, mas a Vigésima Oitava só tem dois
quarteirões. Vai de Cropsey a Stillwell.
— Onde é isso?
— Em Coney Island. Não é muito longe de onde estamos.
Ele sacudiu a mão, como se quisesse se livrar daquele distrito e de
todas as suas ruas desconhecidas.
— Você sabe onde estamos indo — disse. — E pegaremos o mapa com
o Kasabian. Droga! Será que isso vai estar na parte do mapa que está com
eles?
— Provavelmente não.
— Droga! Por que fui rasgar o mapa? Deus do céu. A essa altura já
tínhamos saído do restaurante. Estávamos na calçada, com o neon
piscando nas nossas costas.
— Matt, estou fora do meu elemento. Por que nos fizeram vir aqui,
depois nos telefonaram, para nos mandar para a igreja?
— Para poder dar uma olhada na gente, imagino. E interromper nossas
linhas de comunicação.
— Você acha que tem alguém nos olhando agora? Como é que vou
dizer ao Johnny para nos seguir? Não é isso que eles devem fazer, nos
seguir?
— Era melhor que fossem para casa.
— Por quê?
— Porque vão ser vistos nos seguindo ou quando formos contar a eles
o que está acontecendo.
— Você acha que estamos sendo vigiados?
— É possível. É um dos motivos para eles agirem como estão agindo.
— Merda. Não posso mandar o Johnny embora. Se eu estou
desconfiado dele, ele com certeza está desconfiado de mim e não posso…
Que tal se formos no mesmo carro?
— Seria melhor em dois carros.
— Você acabou de dizer que dois carros era pior.
— Vamos tentar desta maneira — falei, pegando seu braço para
conduzi-lo. Andamos não para o carro onde Kasabian e os outros nos
esperavam, mas direto para o Impala de Skip. Seguindo minhas instruções,
ele ligou o carro, piscou os faróis um par de vezes, dirigiu até a esquina,
virou à direita, avançou um quarteirão e estacionou.
Uns minutos depois o carro de Kasabian parou ao lado do nosso.
— Você estava certo — Skip me disse. Aos outros, falou: — Vocês são
mais espertos do que eu pensava. Recebemos um telefonema, estão nos
enviando a uma caça ao tesouro, só que o tesouro está conosco. Devemos
ir até uma igreja numa esquina na Décima Oitava.
— Esquina com a Ovington — expliquei. Ninguém sabia onde ficava
essa rua.
— Sigam-nos — falei. — Fiquem meia quadra ou uma quadra inteira
atrás da gente e, quando estacionarmos, deem uma volta no quarteirão e
estacionem atrás da gente.
— E se nós nos perdermos? — Bobby quis saber.
— Voltem para casa.
— Como?
— Se vocês nos seguirem, não vão se perder.

Pegamos a Coney Island Avenue e a Kings Highway até Bay Parkway,


e depois nos perdemos; precisei de uns bons quarteirões até me localizar
novamente. Entramos numa das ruas numeradas e saímos na Décima
Oitava Avenida, onde encontramos a tal igreja na esquina com a Ovington.
Em Bay Ridge, a Ovington Avenue corre paralela à Bay Ridge Avenue, um
quarteirão ao sul. Em algum lugar perto da Fort Hamilton Parkway, ela faz
uma curva, ainda paralela à Bay Ridge Avenue, mas dessa vez um
quarteirão ao norte, onde antigamente ficava a Rua 68. Mesmo quando se
conhece a área, esse tipo de coisa leva à loucura, e o Brooklyn está cheio
disso.
Havia uma placa Proibido Estacionar bem do outro lado da igreja e foi
ali que Skip estacionou o carro. Apagou as luzes, desligou o motor.
Ficamos em silêncio até o carro de Kasabian aparecer, passar por nós e
virar a esquina.
— Será que ele nos viu? — Skip perguntou. Respondi que sim, que foi
por isso que tinham dobrado a esquina. — Pode ser — respondeu.
Olhei pela janela de trás. Dois minutos depois vi as luzes do carro
deles. Encontraram um lugar para estacionar meia quadra atrás da gente e
apagaram os faróis.
A vizinhança era, em sua maioria, de casas de antes da guerra, com
estrutura em madeira, construídas em grandes lotes, tendo na frente
gramados e árvores.
— Nem parece Nova York — comentou Skip. — Sabe o que quero
dizer, não é? Parece algum lugar típico do resto do país.
— Muitas partes do Brooklyn são assim.
— Do Queens também. Não onde cresci, mas em certas partes. Sabe o
que este lugar me lembra? Richmond Hill. Você conhece Richmond Hill?
— Não muito bem.
— Meu time de atletismo se reuniu lá uma vez, para uma caminhada
em suas trilhas. Fomos escorraçados de lá. Mas as casas eram muito
parecidas com estas — Jogou o cigarro pela janela. — Acho que podemos
começar a agir logo de uma vez. Certo.
— Não estou gostando disso.
— Você não está gostando? Eu não estou gostando desde o dia em que
os livros desapareceram.
— O outro lugar era público — falei. Abri meu bloquinho, li o que
tinha anotado. — Deve haver uns degraus no lado esquerdo da igreja que
levam ao porão. A porta deve estar aberta… Não vejo nem uma luz acesa,
e você?
— Não.
— Isso está me parecendo uma maneira muito fácil de levar uma
porrada na cabeça. É melhor você ficar aqui, Skip.
— Você acha que vai estar mais seguro sozinho? Sacudi a cabeça.
— Acho que separados ficaremos mais seguros, pelo menos por
enquanto. O dinheiro fica com você. Quero ir até lá e ver que tipo de
recepção prepararam para nós. Se houver segurança para fazermos a troca,
farei com que eles acendam e apaguem as luzes três vezes.
— Que luzes?
— Alguma luz que você possa ver. — Debrucei-me sobre ele e apontei
— Aquelas são as janelas do porão. Deve haver lâmpadas lá. E daqui você
pode ver as luzes.
— Então você pisca as luzes três vezes e eu levo o dinheiro. E se por
acaso você não gostar do ambiente?
— Aí digo a eles que tenho que vir buscar você e nós voltamos para
Manhattan.
— Desde que a gente consiga encontrar o caminho de volta. — Ele
franziu a testa. — E se esquece.
— Quê?
— Eu ia dizer se você não sair de lá.
— Você acaba encontrando o caminho da volta, pode deixar.
— Você é um homem engraçado Que é que você está fazendo?
Tinha retirado a cobertura da luminária interna do carro e estava
desatarraxando a lâmpada. — Para o caso de eles estarem olhando. Não
quero que me vejam quando abrir a porta.
— O homem pensa em tudo Que bom que você não é polonês, se não
íamos precisar de quinze homens para girar o carro, enquanto você
segurava a lâmpada. Você quer a arma, Matt?
— Acho que não.
— “Com as mãos limpas, ele enfrentou sozinho um exército.” Leve a
droga do revólver, está bem?
— Me dê…
— E quanto a um gole rapidinho?
Abri o porta-luvas.
Saí do carro e fiquei abaixado, me mantendo entre o carro e as janelas
do porão da igreja. Andei até o outro carro e expliquei-lhes a situação
Disse para Kasabian ficar no carro e ligar o motor assim que visse Skip
entrar na igreja. Mandei os outros dois para os fundos da igreja, a pé. Se os
tais sujeitos fugissem por lá, pulando uma cerca ou atravessando um
quintal, Bobby e Billie poderiam vê-los. Não sei se conseguiriam fazer
alguma coisa, mas talvez pudessem anotar a placa de um carro.
Voltei para o Impala e disse a Skip o que tinha feito. Coloquei a
lâmpada de novo no lugar e, quando tornei a abrir a porta, ela se acendeu,
iluminando todo o interior do carro. Bati a porta e atravessei a rua.
Enfiei o revólver no cós da calça, a coronha saliente, mas colocado de
modo a poder sacá-lo rapidamente Teria preferido um coldre junto aos
quadris, mas não tinha escolha Incomodava caminhar com aquilo Quando
cheguei na área sombria da lateral da igreja, tirei a arma da calça e andei
com ela na mão, mas também não gostei da ideia e tornei a colocá-la onde
estava.
Os degraus eram íngremes. De concreto, com um corrimão de ferro
enferrujado, frouxamente preso na parede de tijolos Um parafuso ou dois
já deviam estar soltos Desci a escada e me senti desaparecendo na
escuridão. Havia uma porta no fim da escada. Tateei até encontrar a
maçaneta, hesitei por uns instantes, tentando ouvir algum som que viesse
lá de dentro.
Nada.
Girei a maçaneta, abri a porta só um pouquinho, apenas para ver se
estava destrancada. Estava. Fechei-a e só então bati.
Nada.
Bati novamente Dessa vez, ouvi um movimento lá dentro e uma voz
dizendo algo ininteligível. Girei de novo a maçaneta e entrei porão
adentro.
O tempo que eu ficara no breu, naquela escada, trabalhou a meu favor.
Uma luz suave se infiltrava pelas janelas da frente para dentro do porão e
minhas pupilas tinham se dilatado o suficiente para fazer uso dela. Estava
numa sala que devia ter, aproximadamente, nove metros por quinze. Havia
cadeira e mesas espalhadas pelo chão. Fechei a porta e fui para as
sombras, encostando numa parede.
— Devoe? — falou uma voz.
— Scudder — respondi.
— Onde está Devoe?
— No carro.
— Não faz mal — disse uma outra voz. Não reconheci nenhuma das
duas como a que ouvira ao telefone, mas, como daquela vez haviam
disfarçado, era muito possível que agora também estivessem
dissimulando. Não pareciam ser de Nova York, mas também não pareciam
ser de nenhum lugar em particular.
— Você trouxe o dinheiro, Scudder? — perguntou o primeiro.
— Está no carro.
— Com Devoe.
— Com Devoe — concordei.
Continuavam a ser apenas duas vozes. Uma vinha do fundo da sala, a
outra estava à sua direita. Podia saber onde estavam por suas vozes, mas a
escuridão os encobria e um deles parecia estar falando por trás de alguma
coisa, de uma mesa revirada, por exemplo, ou coisa parecida. Se viessem
para onde eu pudesse vê-los, poderia tirar a arma, atirar em sua direção, ou
até neles, se fosse preciso. Por outro lado, era muito possível que eles
tivessem armas apontadas para mim e, portanto poderiam me derrubar
antes mesmo que eu pudesse sacar o revólver. E ainda que eu atirasse
primeiro e atingisse os dois, podia haver outra dupla de homens armados
naquelas sombras, que poderiam me encher de buracos antes mesmo de eu
saber de sua existência.
Além disso, não queria atirar em ninguém. Queria era trocar os livros
pelo dinheiro e me mandar.
— Diga ao seu amigo para trazer o dinheiro — um deles falou.
Calculei que aquela poderia ser a voz do telefone, se ele deixasse sua fala
ficar suavizada pelo sotaque sulista. — A não ser que ele queira que os
livros sejam enviados para o Serviço de Receita Interna.
— Ele não quer nada disso. Mas também não vai entrar num beco sem
saída, não — falei.
— Continue falando.
— Primeiro, acenda uma luz. Não queremos negociar no escuro.
Houve uma conferência sussurrada, depois uns ruídos de pessoas se
mexendo. Um deles acionou um interruptor e uma luminária com
lâmpadas fluorescentes, no centro do salão, começou a se acender, um
tubo de cada vez. Ficaram meio tremelicantes no início, como todas as
fluorescentes quando começam a acender.
Pisquei, tanto pelo que vi como pelo tremelicar da lâmpada. Pensei
estar diante de hippies ou montanheses, gente de uma espécie curiosa.
Depois percebi que estavam disfarçados.
Eram dois, mais baixos do que eu e mais franzinos. Ambos com barbas
cerradas e perucas assustadoras, que cobriam suas testas, escondendo não
apenas os cabelos como o formato de suas cabeças. Entre a raiz dos
cabelos da testa, ou seja, no caso deles, entre a raiz da peruca e o início da
barba, usavam uma máscara oval que cobria os olhos e a metade do nariz.
O mais alto dos dois, o que tinha acendido a luz, usava uma peruca
amarelo cromo e uma máscara negra. O outro, meio escondido atrás de
uma mesa com cadeiras empilhadas em seu tampo, estava com uma peruca
castanho-escuro e a máscara era branca. As barbas de ambos eram negras e
o mais baixo tinha uma arma na mão.
Com a luz acesa, acho que os três nos sentimos vulneráveis, quase nus.
Sei que me senti assim e havia uma tensão em suas posturas que indicava
a mesma sensação. O que estava armado não apontava a arma em minha
direção, mas também não a apontava diretamente para nenhum lugar. A
escuridão nos tinha protegido, aos três, e agora, com um peteleco, nós
tínhamos perdido essa proteção.
— O problema é que estamos com medo uns dos outros — disse a ele.
— Vocês estão com medo que a gente tente pegar os livros sem pagar. Nós
estamos com medo que vocês nos arranquem o dinheiro sem nos dar nada
em troca, tornando a nos chantagear com os mesmos livros, ou vendendo-
os a outras pessoas.
O mais alto sacudiu a cabeça:
— Este é um negócio de uma vez só.
— Para os dois lados. Pagamos uma vez e só. Se copiaram os livros,
livrem-se da cópia.
— Não fizemos cópias.
— Ótimo. Vocês estão com os livros aqui? — O baixinho, de peruca
escura, empurrou com o pé um saco de lavanderia azul-marinho. Seu
parceiro o levantou e voltou a pousá-lo no chão. Eu disse que aquilo podia
ser qualquer coisa, podia até ser roupa suja, será que poderiam me mostrar
o que estava ali dentro?
— Quando virmos o dinheiro — o alto falou —, você verá os livros.
— Não quero examiná-los. Apenas tire-os do saco antes de eu dizer a
meu amigo para trazer o dinheiro.
Eles se entreolharam. O que estava armado encolheu os ombros.
Moveu-se para apontar-me a arma, enquanto o outro afrouxava a corda do
saco, para retirar um livro grosso, com encadernação semelhante aos
falsos livros que eu vira na mesa de Skip.
— Tudo bem. Acendam e apaguem a luz três vezes.
— Para quem você está sinalizando?
— Para a Guarda Costeira.
Tornaram a se entreolhar e o que estava perto do interruptor acendeu e
apagou três vezes. As lâmpadas fluorescentes piscaram erraticamente. Nós
três ficamos meio sem jeito esperando por um tempo que pareceu
demasiado. Fiquei em dúvida: será que Skip vira o sinal, será que esse
tempo todo sozinho no carro fizera com que perdesse a coragem?
Mas logo o ouvi na escada e na porta. Falei alto, dizendo que entrasse.
A porta se abriu e ele entrou, a maleta na mão esquerda.
Olhou para mim, depois viu os dois homens com suas barbas, perucas
e máscaras.
— Meu Deus — disse.
— Cada lado vai ter um homem para fazer a troca e outro para lhe dar
cobertura. Desse modo ninguém vai poder enganar ninguém e os livros e o
dinheiro serão trocados ao mesmo tempo — falei.
— Você parece um veterano nesse tipo de coisa — disse o mais alto,
que estava ao lado do interruptor.
— Tive tempo para pensar. Skip, eu cubro você. Traga a maleta para
cá, deixe-a ao meu lado. Isso. Agora, você e um dos nossos amigos podem
colocar uma mesa no meio da sala e retirar alguns dos móveis que estão
em volta dela.
Os dois tornaram a se entreolhar e, como era de se esperar, o mais alto
chutou o saco para seu parceiro e veio para a frente. Perguntou o que eu
queria que ele fizesse e eu mandei que ele e Skip arrumassem os móveis.
— Não sei o que o sindicato vai dizer a respeito disso — ele falou. A
barba escondia sua boca e a máscara cobria o contorno de seus olhos, mas
senti que sorria.
Orientados por mim, ele e Skip colocaram a mesa no centro da sala,
quase que bem em baixo da luminária. A mesa tinha uns dois metros e
quarenta centímetros de comprimento por um metro e vinte de largura, e
fora colocada de maneira a dividir a sala em dois lados.
Agachado atrás de uma pilha de cadeiras, coloquei um joelho no chão.
No outro lado da sala, o cara com a arma se escondia de maneira
semelhante. Chamei Skip para que viesse pegar a maleta e pedi ao mais
alto, de cabelos amarelos, que fosse apanhar os livros. Movendo-se
metodicamente, cada um carregando sua parte no acordo, eles as
colocaram nos dois extremos da mesa. Skip foi o primeiro, pousou a
maleta e começou a mexer nos fechos para soltar as linguetas. O homem
da peruca amarela deixou os livros escorregarem para fora do saco e os
pousou delicadamente na mesa; deu uns passos para trás, com as mãos
pendendo, sem jeito.
Falei para ambos darem uns passos para trás e trocar de lugar. Skip
abriu o pesado livro fiscal, certificou-se de que aqueles eram os livros que
estava negociando. O outro abriu a maleta e tirou um maço de notas.
Examinou-as e, depois de guardar aquele maço, pegou outro.
— Os livros estão certos — Skip declarou. Fechou o volume pesado,
guardou-o no saco, que ergueu em seguida, e começou a caminhar em
minha direção.
— Esperem — disse o cara com o revólver.
— Para quê?
— Fiquem onde estão até que ele conte o dinheiro.
— Tenho que ficar aqui até que ele conte cinquenta mil dólares? Sério?
— Conte rápido — o cara armado disse ao parceiro. — Certifique-se
de que é tudo dinheiro Não queremos ir para casa com uma sacola cheia de
jornal picado.
— Eu ia mesmo fazer isso — Skip falou. — Ia mesmo entrar numa
sala como esta, com o maldito dinheiro do Banco Imobiliário. Aponte essa
arma para outro lugar está bem? Está me deixando nervoso.
Ninguém respondeu. Skip continuou onde estava, alternando seu peso
ora no pé direito, ora no pé esquerdo. Comecei a ter cãibras nas costas e o
joelho no qual estava apoiado já se ressentia da posição. O tempo parecia
ter parado enquanto o da peruca loura contava o dinheiro certificando-se
de que não havia papéis cortados, nem notas de um dólar. Com certeza ele
fez isso o mais rápido que pôde, mas pareceu uma eternidade até que ele
se desse por satisfeito, fechando a maleta e trancando os fechos.
— Tudo bem — falei. — Agora vocês dois…
Skip me interrompeu.
— Espere um minuto. Nós levamos o saco da lavanderia e eles levam a
maleta, não é?
— E daí?
— E daí que parece injusto. Essa maleta custou quase cem dólares e
tem menos de dois anos. Quanto pode custar um saco de roupa suja? Uns
dois dólares, certo?
— Aonde você quer chegar, Devoe?
— Vocês podiam dar algo em troca — ele respondeu, sua voz mais
tensa. — Podiam me dizer quem armou isso tudo.
Ambos olharam fixamente para ele.
— Eu não conheço vocês. Não conheço nenhum dos dois. Vocês me
arrebentaram, perfeito, talvez sua irmã caçula precise de uma cirurgia ou
coisa parecida. Quer dizer, todos temos que ganhar a vida, não é?
Nenhuma resposta.
— Mas alguém armou essa, alguém que eu conheço alguém que me
conhece. Quero saber quem foi. Só isso.
Houve um longo silêncio. Então o cara com a peruca escura disse: —
Esquece. — Seu tom era seco, definitivo.
Os ombros de Skip caíram, resignados.
— Nós tentamos — disse Skip.
Ele e o homem com a peruca amarela se afastaram da mesa, um com a
maleta, outro com o saco. Resolvi coordenar a saída, mandando Skip para
a porta pela qual entrara e vendo o outro passar, sem me surpreender, por
uma porta em arco, escondida por uma cortina, lá nos fundos da sala.
Skip já abrira a porta e começava a sair quando o sujeito da peruca
escura disse:
— Parem aí.
Ele estava com a pistola de cano longo voltada para Skip e por um
momento pensei que fosse atirar. Botei ambas as mãos na 45 e apontei
para ele. Mas ele desviou a arma, ergueu-a e disse:
— Nós saímos primeiro. Fiquem onde estão por dez minutos.
Entenderam?
— Tudo bem — respondi.
Mirou no teto e deu dois tiros. As lâmpadas explodiram, mergulhando
a sala na escuridão. Os tiros fizeram um barulhão, as lâmpadas ao explodir
um ruído ainda maior, mas por algum motivo nem o barulho nem a
escuridão me incomodaram. Fiquei olhando enquanto ele caminhava para
o arco, uma sombra entre as sombras, e continuei com a 45 apontada para
ele e o dedo no gatilho.

Não esperamos os dez minutos, como ordenado. Saímos dali bem


depressa, Skip carregando os livros naquele saco de roupa suja e eu ainda
segurando a arma com força. Antes que pudéssemos atravessar a rua para
alcançar o Chevrolet, Kasabian arrancou com seu carro e parou ao nosso
lado, com os pneus rangendo ao frear. Nós nos atiramos no banco de trás e
dissemos que desse uma volta no quarteirão, mas ele já pusera o carro em
movimento antes que conseguíssemos emitir uma palavra.
Dobramos à esquerda, depois outra vez à esquerda. Na Décima Sétima
Avenida, encontramos Bobby Ruslander agarrado a uma árvore, lutando
para recuperar o fôlego. Do outro lado da rua, Billie Keegan andou
calmamente em nossa direção, depois deu uma paradinha para proteger o
fósforo, enquanto acendia um cigarro.
— Deus do céu! Como estou fora de forma — disse Bobby. — Eles
saíram correndo pela entrada de carros, só podiam ser eles, carregavam a
maleta com o dinheiro. Eu estava a umas quatro casas lá para trás, os vi
direitinho, mas não quis correr para cima deles assim, sem mais nem
menos, sabe? Acho que um deles tinha um revólver.
— Você não ouviu os tiros, Bobby?
Não, não ouvira nada, nem nenhum dos outros dois. Não me
surpreendi. O pistoleiro da peruca escura usara uma pistola de baixo
calibre, o que a torna barulhenta num ambiente fechado, mas nem por isso
audível à distância.
— Eles pularam para dentro desse carro — disse Bobby, apontando
para a vaga onde estivera estacionado — e saíram daqui correndo,
gastando borracha. Comecei a me mexer assim que os vi dentro do carro,
achando que poderia dar uma olhada na placa, e os persegui, mas a luz
estava péssima e — encolheu os ombros. — Nada — disse.
— Ao menos você tentou.
— Estou tão fora de forma, Skip. — Bateu em sua própria barriga. —
Sem pernas, sem fôlego, meus olhos também não estão lá grande coisa.
Não poderia ser juiz num jogo de basquete de verdade, correndo para cima
e para baixo numa quadra. Ia cair duro.
— Você podia ter usado seu apito — Skip sugeriu.
— Meu Deus, se o tivesse comigo, teria usado. Você acha que eles
teriam parado e se entregado?
— Acho que provavelmente teriam atirado em você — falei. —
Esqueça a placa.
— Ao menos tentei — falou Olhou para Billie. — O Keegan estava
muito mais perto, mas nem se mexeu. Ficou sentado embaixo da árvore
igual ao touro Ferdinando, cheirando as flores.
— Cheirando estrume — Keegan respondeu — A gente se vira com o
que tem.
— Esteve ocupado com aquelas garrafinhas, Billie?
— Só na manutenção.
Perguntei a Bobby se conseguira ver a marca do carro. Ele franziu os
lábios, assoprou e sacudiu a cabeça.
— Modelo recente, escuro. Hoje em dia, são todos parecidos.
— Isso é verdade — Kasabian falou, e Skip concordou com ele. Eu ia
perguntar alguma coisa quando Billie Keegan anunciou que o carro era um
Mercury Marquis, modelo de uns três ou quatro anos antes, preto ou azul
bem escuro.
Ficamos parados, olhando para ele. Com o rosto cuidadosamente
inexpressivo, ele tirou do bolso um pedaço de papel e leu:
— LJK-914. Significa alguma coisa para vocês? — Enquanto
continuávamos a encará-lo, acrescentou: — Essa é a placa. De Nova York.
Anotei todas as marcas e placas mais cedo, para não morrer de tédio.
Pareceu mais fácil do que sair correndo por aí, como um desgraçado de um
cocker spaniel.
— Billie, seu danado — Skip falou, maravilhado, e foi até ele e o
abraçou.
— Os cavalheiros aqui presentes se apressam em julgar um homem
que bebe um pouco — Keegan falou. Pegou uma miniatura do bolso, girou
a tampa até quebrar o selo e, inclinando a cabeça para trás, bebeu o uísque.
— Manutenção — disse. — Só isso.
17
Bobby não se conformava. Parecia até magoado com a esperteza de
Billie.
— Por que você não disse nada? Eu poderia ter copiado alguns
números também, poderíamos ter anotado um número maior de carros.
— Achei melhor não falar. Assim, se eles passassem correndo por aqui
e pegassem um ônibus na Jerome Avenue, eu não ia ficar com cara de
idiota.
Alguém comentou que a Jerome Avenue fica no Bronx. Billie disse que
sabia onde ficava a Jerome Avenue, teve um tio que morou lá. Perguntei se
a dupla ainda estava fantasiada quando apareceu na rua.
— Não sei — Bobby respondeu. — Estavam fantasiados de quê?
Usavam umas máscaras pequenas. — Fez dois círculos com os polegares e
os indicadores, e colocou as mãos sobre os olhos para imitar máscaras.
— Usavam barbas?
— Claro que sim. O que é que você imaginava, que tivessem parado
para se barbear?
— As barbas eram falsas — Skip explicou.
— Ah!
— E as perucas? Uma escura e a outra clara?
— Acho que sim. Não sabia que eram perucas. Eu… A luz aqui é
fraquinha, sabe, Arthur. Um poste aqui, outro lá, mas eles surgiram de
repente, correram para o carro e não pararam para dar uma entrevista, ou
posar para os fotógrafos.
— É melhor sairmos daqui — falei.
— Por quê? Gosto de ficar em pé aqui no meio do Brooklyn, me faz
recordar o tempo em que ficava nas esquinas, quando era garoto. Você está
pensando na polícia?
— Bem, houve tiros. Não precisamos ser tão ostensivos.
— Tem razão.
Fomos para o carro de Kasabian, entramos e demos novamente uma
volta no quarteirão. Pegamos um sinal vermelho e aproveitei para ensinar
a Kasabian como voltar para Manhattan Tínhamos os livros conosco, o
resgate havia sido pago, estávamos todos vivos para contar, ou não contar,
a história Além disso, tínhamos que comemorar a engenhosidade de Billie.
Tudo isso elevou nossos espíritos e eu me sentia mais capaz de dar
instruções claras de como voltar para a cidade e, da sua parte, Kasabian
estava mais apto a absorvê-las.
Ao nos aproximarmos da igreja, vimos um punhado de pessoas na
calçada em frente, homens de pijama, adolescentes, todos ali em pé como
se estivessem esperando por alguém. Ouvia-se, ao longe, o som ondulante
da sirene de um carro da polícia.
Quis dizer a Kasabian para levar os cinco, que poderíamos pegar o
carro de Skip no dia seguinte. Mas, como estava estacionado ao lado de
um hidrante, chamaria a atenção. Ele parou o carro — talvez não tivesse
associado a aglomeração e a sirene ao longe — e Skip e eu saltamos. Um
dos homens do outro lado da rua, meio careca e com barriga de bebedor de
cerveja, ficou nos olhando.
Perguntei a ele, em voz alta, se tinha acontecido alguma coisa. Ele
perguntou se eu era da delegacia. Disse que não.
— Alguém invadiu a igreja — ele respondeu. — Garotos, com certeza.
Já cobrimos todas as saídas, os tiras estão chegando.
— Garotos — falei com ênfase, e ele riu.

— Acho que fiquei mais nervoso agora do que quando estava no porão
da igreja — Skip comentou, depois que já nos afastáramos uns bons
quarteirões. — Eu ali de pé, com um saco de roupa suja no ombro,
parecendo que tinha acabado de roubar alguma coisa, e você com uma
quarenta e cinco no cinto. Se eles tivessem visto a arma, nós estávamos
fritos.
— Esqueci que estava com ela.
— E tínhamos acabado de saltar de um carro cheio de bêbados. Um
ponto a nosso favor.
— Keegan era o único bêbado.
— E foi ele o brilhante. Você pode me explicar, pode? Falando em
bebida…
Abri o porta-luvas e destampei a garrafa. Skip tomou um bom gole,
depois passou a garrafa para mim. Ficamos assim, um passando a bebida
para o outro, até esvaziarmos a garrafa, quando Skip disse:
— Maldito Brooklyn — e jogou a garrafa pela janela. Preferiria que
ele não tivesse feito isso — estávamos com bafo de bebida, com uma arma
sem licença e sem uma explicação plausível para nossa presença nas
redondezas —, mas fiquei calado.
— Eles foram muito profissionais — Skip comentou. — Os disfarces,
tudo. Por que será que ele atirou na lâmpada?
— Para nos atrasar.
— Por um momento pensei que fosse atirar em mim. Matt?
— Quê?
— Por que você não atirou nele?
— Quando ele estava com a arma voltada para você? Podia ter atirado,
se tivesse sentido que ele ia atirar. Tinha a arma apontada para ele. Mas do
jeito que as coisas estavam, se atirasse nele, ele atiraria em você.
— Não, depois disso. Depois que ele atirou nas lâmpadas. Você ainda
estava com a arma apontada para ele. Continuou assim até ele sair.
Levei um tempo para responder. Então falei:
— Você decidiu pagar um resgate para livrar seus livros da Receita. O
que você acha que poderia acontecer se o associassem a um tiroteio numa
igreja em Bensonhurst?
— Nossa, eu não estou raciocinando.
— E dar um tiro nele não faria você recuperar seu dinheiro. Já estava
na rua com o outro sujeito.
— Sei disso. Não estou raciocinando bem. Sabe o que é, eu talvez
tivesse atirado nele. Não por ser a coisa certa a fazer, mas no calor do
momento.
— Bem, ninguém sabe o que vai fazer numa hora dessas.

No próximo sinal vermelho que pegamos, puxei meu bloco e comecei


a fazer um esboço. Skip perguntou o que eu estava desenhando.
— Orelhas.
— Quê?
— Foi uma coisa que um instrutor nos disse quando eu estava na
Academia de Polícia. O formato das orelhas varia de pessoa para pessoa e
é uma coisa raramente disfarçada ou modificada pela cirurgia plástica.
Não havia muito para ver naqueles dois. Mas quero desenhar suas orelhas
antes que as esqueça.
— Você se lembra das orelhas deles?
— Bem, fiz questão de prestar atenção.
— É, isso faz toda a diferença. — Deu uma tragada. — Eu não poderia
nem jurar que eles tinham orelhas. As perucas não cobriam tudo? Acho
que não, já que você as está desenhando. Você não pode checar as orelhas
deles num arquivo, pode? Como fazem com as impressões digitais?
— Só quero um meio de reconhecê-los. Acho que poderia reconhecer
suas vozes, se é que não estavam disfarçando, e creio que não, falavam
naturalmente. Quanto à altura, um tinha mais ou menos um metro e
oitenta, o outro era um pouco mais baixo ou parecia ser, por estar mais
afastado. — Olhei para o bloco e sacudi a cabeça. — Não sei qual par de
orelhas pertence a qual deles. Deveria ter feito este desenho logo que
saímos. Esse tipo de lembrança desaparece logo.
— Você acha que isso tem importância, Matt?
— A aparência de suas orelhas? — Fiquei pensando. — Talvez não —
confirmei. — Ao menos noventa por cento do que você faz numa
investigação não leva a nada. Olhe, pode dizer noventa e cinco, as pessoas
com quem se fala, as coisas que levamos um tempo enorme examinando.
Mas se você fizer muitas coisas, a mais importante, a que vai funcionar,
estará ali, naquele bolo.
— Você sente falta?
— De ser um tira? Nem sempre.
— Posso imaginar quando a pessoa sente falta Quer dizer, não me
refiro só às orelhas. Por exemplo, tem sentido tudo isso? Eles nos
pregaram uma boa e se saíram bem. Você acha que a placa vai nos ajudar?
— Não. Acho que foram bastante espertos e usaram um carro roubado.
— Também acho. Não quis dizer nada porque queria me sentir bem lá,
naquele momento, e não queria diminuir o feito de Billie, mas o trabalhão
que eles tiveram, os disfarces, as voltas que nos fizeram dar, não acho que
fossem se arriscar por uma placa de carro.
— Às vezes acontece, Skip.
— Pode ser. Talvez seja melhor para nós que seja um carro roubado.
— Por quê?
— É possível que um policial atento olhe aquela placa, lembre da folha
de carros roubados e os faça parar. É assim que chamam?
— Lista de carros roubados. Mas leva um tempo para um carro entrar
nessa lista.
— Talvez eles tenham planejado tudo com muita antecedência.
Roubaram o carro há uma semana, levaram a uma oficina para regular.
Pelo que mais podem ser presos? Por dessacralizar uma igreja?
— Minha nossa! — falei.
— O que foi?
— Aquela igreja.
— O que é que tem?
— Pare o carro, Skip.
— O quê?
— Pare o carro um minuto, está bem?
— Você está falando sério? — Me olhou. — Está sério. — Parou junto
ao meio-fio.
Fechei os olhos, tentando rever tudo.
— A igreja — falei. — Que tipo de igreja era, você por acaso notou?
— Para mim são todas iguais. Era de pedra, sei lá, de tijolos. Que
diferença isso faz?
— Estou perguntando se era católica, protestante ou o quê?
— Como é que vou saber?
— Havia um daqueles quadros de avisos na frente. Um quadro preto,
com porta de vidro e letras brancas, que diz o horário das missas e qual o
tema do sermão.
— É sempre sobre a mesma coisa. Pense nas coisas que você gosta de
fazer e não as faça.
Fechei os olhos e consegui visualizar o quadro, mas as letras não
apareciam. — Você não notou nada?
— Tinha outras coisas na cabeça, Matt. Que diferença isso pode fazer?
— Era católica?
— Eu não sei. Você tem alguma coisa contra ou a favor dos católicos?
As freiras bateram a régua com força em você quando era pequeno?
“Pensamentos impuros, plac, seu bastardinho!” Você vai ficar pensando
mais um pouco, Matt? — Eu tinha os olhos fechados, lutava com a minha
memória e não respondi. — Porque tem uma loja de bebidas bem do outro
lado da rua e, por mais que me custe gastar dinheiro no Brooklyn, acho
que é o que vou fazer. Está bem?
— Claro.
— Você pode fingir que é vinho de missa.

Ele voltou com uma garrafa de Teacher's de meio litro, num saco de
papel pardo. Rompeu o selo, destampou a garrafa e, sem removê-la do
saco, tomou um gole e passou-a para mim. Eu a segurei por uns instantes,
depois bebi.
— Agora podemos ir.
— Onde?
— Para casa. De volta a Manhattan.
— Não temos que fazer meia-volta, começar uma novena ou coisa que
o valha?
— A igreja era ligada aos luteranos.
— E isso significa que podemos voltar a Manhattan?
— Isso mesmo.
Ele ligou o motor, tirou o carro da vaga. Estendeu a mão e eu lhe dei a
garrafa; depois de beber, tornou a passá-la para mim.
— Não quero meter o nariz onde não sou chamado, detetive Scudder,
mas…
— Mas do que se trata?
— Exatamente.
— Fico me sentindo bobo ao explicar. É sobre uma coisa que Tillary
mencionou alguns dias atrás. Não sei nem se é verdade, mas parece que a
coisa se passou numa igreja em Bensonhurst.
— Uma igreja católica.
— Teria que ser — respondi, e contei-lhe a história que Tillary me
contara, sobre os dois garotos que assaltaram a igreja da mãe do chefão da
máfia e o que supostamente lhes acontecera depois.
— Verdade? Será que isso aconteceu mesmo?
— Não sei. Nem Tommy. Essas histórias circulam.
— Pendurados em ganchos de açougue e esfolados vivos…
— Vai ver Tutto gosta disso. Eles o chamam de Dom, o Açougueiro.
Acho que ele tem interesses no mercado atacadista de carnes.
— Nossa. Se aquela era a sua igreja.
— A igreja de sua mãe.
— Tanto faz. Você vai ficar agarrado nessa garrafa até o vidro
derreter?
— Desculpe.
— Se aquela era a igreja dele, ou da mãe dele, ou qualquer coisa
assim…
— Eu não gostaria que ele soubesse que estivemos lá enquanto davam
tiros nela. Não é a mesma coisa que assaltar o local, mas pode ser que ele
se ofenda, sei lá. Quem sabe qual será sua reação?
— Meu Deus.
— Mas aquela era definitivamente uma igreja protestante e sua mãe
com certeza é católica. Mesmo que seja uma igreja católica, deve haver
umas quatro ou cinco igrejas católicas em Bensonhurst. Talvez até mais.
Não sei.
— Um dia desses teremos que contá-las. — Ele tragou profundamente,
tossiu e jogou o cigarro pela janela. — Por que alguém faria uma coisa
dessas?
— Você se refere ao…?
— Ao fato de pendurarem dois garotos e esfolá-los, é disso que estou
falando. Por que alguém faria isso com dois garotos, quando a única coisa
que fizeram foi roubar alguma porcaria de uma igreja?
— Não sei. Calculo qual o motivo de Tutto.
— Qual?
— Dar uma lição nos garotos. Ele ficou pensativo.
— Bem, aposto que funcionou. Aposto que esses merdinhas nunca
mais vão roubar uma igreja.
18
Quando chegamos em Manhattan a garrafa, de Teacher's estava vazia.
Eu quase não bebera. Skip ficou tomando uns goles até jogá-la, esvaziada,
no banco de trás Calculo que ele só as jogasse para fora da janela do outro
lado do rio.
Conversamos muito pouco depois de falarmos sobre Dom, o
Açougueiro. Ele já mostrava sinais da birita, via-se pelo modo como
dirigia Ultrapassou alguns sinais e entrou correndo demais numa curva,
mas não batemos em nada nem em ninguém. Nem nenhum guarda nos fez
parar. Naquele ano, na cidade de Nova York, para ser multado era preciso
que você atropelasse uma freira.
Quando estacionamos em frente ao Miss Kitty's, ele se debruçou sobre
a direção, apoiando os cotovelos.
— Bem, pelo menos o boteco ainda está aberto. Deixei um rapaz
tomando conta do bar hoje, com certeza ele nos limpou quase tanto quanto
os caras em Bensonhurst. Entre, quero guardar os livros.
No seu escritório, sugeri que ele os colocasse no cofre. Ele me olhou e
começou a girar o segredo do cofre.
— Só por esta noite — falou. — Amanhã esta merda vai para
diferentes incineradores. Não vai mais haver livros honestos. Só servem
para nos deixar com o flanco a descoberto.
Ele colocou os livros no cofre e começou a fechar a porta. Segurei seu
braço e disse:
— Talvez seja melhor guardar isso também — e entreguei-lhe a 45.
— Já tinha esquecido — disse. — Não guardamos isso no cofre. Você
vai dizer a um assaltante: “Desculpe, é só um minuto, mas vou apanhar a
arma no cofre para estourar os seus miolos”? Nós a guardamos atrás do
bar.
Tomou-a de mim e ficou procurando uma maneira discreta de levá-la
para o salão. Encontrou um saco de papel branco em cima da escrivaninha,
manchado pelos sanduíches e café que embrulhara, e guardou-a nele.
— Pronto. — Fechou o cofre, desfez o segredo, certificou-se de que a
porta estava bem trancada. — Perfeito. Agora, deixe eu pagar um drinque
para você.
Fomos para o salão e ele foi para trás do balcão e serviu-nos dois
drinques, do mesmo uísque que tomáramos no carro.
— Talvez você prefira bourbon. Não me lembrei disso, nem quando
comprei a garrafa.
— Está bem assim.
— Você tem certeza? — Foi guardar a arma em algum lugar atrás do
balcão. O barman que ele contratara para a noite se aproximou e pediu
para falar-lhe a sós, e eles se afastaram e conversaram por uns minutos.
Skip voltou, terminou seu drinque e disse que queria guardar o carro na
garagem antes que fosse guinchado, mas que voltaria rapidinho. Ou, se eu
quisesse, podia ir com ele.
— Não, obrigado. Acho que vou para casa.
— Vai dormir cedo hoje?
— Não é má ideia.
— Não. Bem, se você não estiver aqui quando eu voltar, nos vemos
amanhã.

Não fui direto para casa. Parei em alguns botecos primeiro. Não fui ao
Armstrong's. Não queria conversar. Também não queria ficar bêbado. Não
tenho bem certeza do que queria.
Quando saía do Polly's Cage, vi um carro que me pareceu o Buick de
Tommy, cruzando a Rua 57. Não vi bem a pessoa na direção. Segui o carro
e vi quando estacionou na metade do quarteirão seguinte. Quando o
motorista saltou, eu já estava perto o suficiente para reconhecer Tommy.
De blazer e gravata, com dois embrulhos nas mãos. Um, em forma de
leque, devia ser um ramo de flores.
Fiquei olhando ele entrar no edifício de Carolyn.
Por algum motivo fui para o outro lado da rua e fiquei olhando a janela
que calculei que fosse a dela. A luz estava acesa. Fiquei ali um bom
tempo, até a luz se apagar.
Fui a um telefone público, disquei 411. A telefonista me informou que
havia realmente uma Carolyn Cheatham naquele endereço, mas que o
número estava fora do catálogo. Telefonei outra vez e fui atendido por
outra telefonista. Dessa vez usei o método que os policiais usam para obter
números que não estão na lista. Consegui e anotei no meu bloco, na
mesma página do meu pobre desenho das orelhas. Eram, pensando bem,
orelhas comuns. Passariam desapercebidas no meio de muita gente.
Coloquei uma moeda no telefone e disquei o número dela. Tocou três
ou quatro vezes e ela atendeu. Não sei bem o que esperava. Não falei uma
palavra, ela disse alô outra vez e desligou o aparelho.
Sentia a tensão nas costas e nos ombros. Queria ir a algum lugar e me
meter numa boa briga. Queria bater em alguma coisa.
De onde teria vindo essa raiva? Queria subir, arrancá-lo de cima dela e
socar a cara dele, mas por quê? Poucos dias antes, tinha ficado com raiva
porque ele a negligenciava. Agora, ficava furioso porque ele estava com
ela.
Será que estava enciumado? Mas por quê? Não tinha nenhum interesse
nela.
Maluquice.
Voltei e olhei de novo para sua janela. A luz continuava apagada. Uma
ambulância do hospital Roosevelt voava pela Nona Avenida, a sirene
gemendo. De um carro esperando o sinal abrir vinha o som alto de um
rock. Depois o carro seguiu em frente, a sirene da ambulância enfraqueceu
com a distância e por um momento a cidade pareceu silenciosa. Logo, o
silêncio também sumiu, quando de novo me apercebi de todos os ruídos
que nunca desaparecem completamente.
Lembrei-me da canção que Keegan me fizera ouvir. Não dela toda. Não
conseguia lembrar direito da melodia, só recordava pedaços da letra. Algo
sobre uma noite de poesia e poses. Bem, podíamos nos referir a essa noite
assim. Sabendo que você está só quando a taverna sagrada fecha.
Comprei umas cervejas a caminho de casa.
19
O sexto distrito fica na Rua 10, Oeste, entre a Bleecker e a Hudson, no
Village. Há alguns anos, quando servi ali, ficava num prédio todo rococó,
mais para oeste, na rua Charles. Desde então aquele edifício foi
transformado em um condomínio de apartamentos e batizado de
Gendarme.
A nova delegacia fica num prédio feio, uma estrutura moderna que
jamais será convertida em apartamentos. Na terça-feira, um pouco antes
do meio-dia, estive lá e fui diretamente ao gabinete de Eddie Koehler. Não
precisava perguntar, sabia onde ficava.
Ele tirou os olhos do relatório que estava lendo e piscou para mim. —
O problema dessa porta é que qualquer um pode passar por ela — falou.
— Você está com ótima aparência, Eddie.
— Bem, você sabe. Vida saudável. Sente-se, Matt.
Sentei e conversamos um bocado. Éramos velhos conhecidos, Eddie e
eu. Mas, quando o papo furado acabou, ele disse:
— Por acaso você estava passando por aqui, não é?
— Lembrei-me de você e calculei que estivesse precisando de um
novo quepe.
— Com esse tempo?
— Talvez um chapéu panamá. A palha é bonita e protege contra o sol.
— Talvez um capacete bem resistente. Mas nesta vizinhança — falou,
imitando o sotaque local — algumas garotas poderiam soltar piadas sujas.
Estava com meu bloco na mão.
— Uma placa de carro — disse. — Pensei que você talvez pudesse
checá-la para mim.
— Quer que eu telefone para o departamento de trânsito?
— Primeiro cheque a lista de carros procurados.
— Qual é o problema, um atropelamento e fuga? Seu cliente quer
saber quem o atropelou e talvez receber um dinheirinho por fora, em vez
de registrar queixa?
— Você tem uma imaginação e tanto.
— Você tem o número de uma placa e devo checar primeiro na lista
dos procurados? Merda. Qual é o número?
Li para ele, que anotou e se levantou.
— Só um minuto.
Fiquei olhando meus desenhos enquanto ele foi telefonar. As orelhas
são realmente diferentes umas das outras. O importante é a gente aprender
a notar as diferenças.
Ele não demorou muito. Voltou e sentou pesadamente em sua cadeira
giratória. — Não está na lista — disse.
— Será que você poderia checar a licença com o departamento?
— Poderia, mas não preciso. Nem sempre os carros procurados são
colocados na lista de imediato. Então telefonei para lá, é um carro
procurado mesmo, vai aparecer na próxima lista. Só avisaram ontem à
noite, foi roubado no fim da tarde ou início da noite.
— Já calculava isso.
— Um Mercury 73, certo? Seda? Azul-escuro?
— Isso mesmo.
— Era isso que você queria?
— Onde é que foi roubado?
— Em algum lugar do Brooklyn. Na Ocean Parkway, numeração alta,
deve ser bem longe.
— Faz sentido.
— Faz? Por quê?
Sacudi a cabeça.
— Nada, não. Pensei que o carro fosse importante, mas se é roubado
não me ajuda em nada. — Tirei vinte e cinco dólares da carteira, o preço
tradicional de um quepe em linguagem policial. Coloquei as notas em
cima da mesa. Ele as cobriu com as mãos, mas não as pegou.
— Agora eu tenho uma pergunta — falou.
— É?
— Por quê?
— É confidencial. Estou trabalhando para uma pessoa e não posso…
— Por que gastar vinte e cinco dólares numa informação que você
poderia obter pelo telefone? Por Deus, Matt, por quantos anos você usou
um escudo para não se lembrar mais de como obter uma lista dessas do
departamento de trânsito? Você telefona, se identifica, você conhece os
macetes, não conhece?
— Pensei que já estivesse nos carros procurados.
— Então, se você quer saber se está na lista de procurados, telefona
para o departamento. Diz que é um policial conduzindo uma investigação,
ou alguma coisa parecida, que acaba de ver um carro que você acha que
está sendo procurado e será que podem confirmar isso para você? Isso
evitaria sua vinda até aqui e ainda por cima economizaria o preço de um
quepe.
— Mas para isso teria que me fazer passar por policial.
— Ah, não diga! — Deu uns tapinhas no dinheiro. — Se quer andar tão
na linha assim, isto é subornar um policial. Você escolheu um lugar
engraçado para estabelecer seu limite.
A conversa estava ficando desconfortável. Menos de doze horas antes
eu fingira ser um policial para obter um telefone que não constava da lista,
o de Carolyn Cheatham.
— Acho que nos afastamos muito, Eddie. Como é que isso foi
acontecer?
— Quem sabe? Talvez seu cérebro esteja enferrujando.
— Pode ser.
— Talvez você devesse largar a birita e voltar ao convívio da raça
humana. Será que ainda é possível?
Fiquei em pé.
— É sempre um prazer, Eddie. — Ele tinha mais coisas a dizer, mas eu
não era obrigado a ficar lá ouvindo.
Próximo dali havia uma igreja, Santa Verônica, uma estrutura de
tijolos vermelhos na rua Christopher, perto do rio Um pobre desafortunado
acomodara-se em seus degraus e dormia com uma garrafa de Night Train
agarrada numa das mãos. Um pensamento passou pela minha cabeça: o
Eddie tinha telefonado e armado esse cenário, como um exemplo amargo
do que me esperava. Não sabia se devia rir ou estremecer ao pensar nisso.
Subi os degraus e entrei. A igreja parecia uma caverna, vazia e
silenciosa. Sentei-me num banco e fechei os olhos por alguns minutos.
Pensei em meus dois clientes, Tommy e Skip, e em como estava
trabalhando mal para os dois Tommy não precisava da minha ajuda, que,
aliás, não estava recebendo. Quanto a Skip, podia ter colaborado para que
a troca fosse feita sem problemas, mas cometera alguns erros. Pelo amor
de Deus, quem devia ter dito a Billie e Bobby que anotassem as placas era
eu, não podia ter deixado essa iniciativa para Billie.
Estava quase contente com o fato de o carro ter sido roubado. Assim, a
pista de Keegan se tornava irrelevante e a minha falta de visão podia ter
um peso menor.
Burro. Por outro lado, fora eu quem dissera a eles para irem para a
outra rua, não fora? Eles não teriam visto o carro, muito menos a placa, se
tivessem ficado no carro de Kasabian.
Levantei-me para colocar uma moeda na caixa de coletas, pegar uma
vela e acendê-la. À minha esquerda, uma mulher estava ajoelhada. Quando
se levantou, percebi que era um transexual. Era uns cinco centímetros
mais alto do que eu. Suas feições misturavam traços latinos com orientais,
os ombros e os antebraços eram musculosos e seus seios, do tamanho de
melões-cantalupo, esticavam sua frente única estampada de bolinhas.
— Olá! — falou.
— Olá — respondi.
— Você veio acender uma vela para santa Verônica? Sabe alguma
coisa a respeito dela?
— Não.
— Nem eu. Mas prefiro pensar nela — ajeitou uma mecha de cabelo
por cima dos olhos — como Santa Verônica Lake.

O trem me deixou a alguns quarteirões da igreja na Ovington com a


Décima Oitava Avenida. Uma mulher meio desconjuntada, vestida com
jeans manchado de tinta e uma camisa do Exército, apontou onde ficava o
gabinete do pastor. Não vi ninguém na escrivaninha. Só encontrei um
jovem gorducho, de rosto franco e sardento, afinando um violão, com um
pé apoiado numa cadeira.
Perguntei-lhe pelo pastor.
— Sou eu — respondeu, saindo da posição em que estava. — Em que
posso ajudá-lo?
Disse-lhe que ouvira falar de um ato de vandalismo no porão da igreja,
na noite anterior. Ele sorriu.
— Foi isso o que aconteceu? Parece que alguém deu uns tiros em nossa
luminária. O prejuízo não foi muito grande. O senhor quer ver onde tudo
aconteceu?
Não precisamos usar a escada externa que eu usara na noite anterior.
Descemos uma escada interna, passamos por um hall e entramos na sala
pela porta em arco que nossos amigos barbudos e mascarados haviam
utilizado para escapar. A sala já havia sido limpa e arrumada, as cadeiras
empilhadas e as mesas de armar, dobradas. A luz do dia fluía através das
janelas.
— Essa é a luminária, claro — disse o padre, apontando. — Havia
vidro pelo chão, mas já foi tudo varrido. Suponho que o senhor tenha lido
o relatório da polícia.
Não respondi, apenas continuei a olhar à minha volta.
— O senhor é da polícia, não é?
Ele não estava sendo inquisitivo. Queria simplesmente tranquilizar-se.
Mas alguma coisa me impediu. Talvez o final de minha conversa com
Eddie Koehler.
— Não. Não sou.
— Ah! Então seu interesse é…
— Eu estava aqui ontem à noite.
Ele me olhou e ficou esperando que eu continuasse. Era, pensei, um
jovem bem paciente. Dava para perceber que queria ouvir o que você tinha
a dizer e que respeitava o seu tempo. Era uma qualidade, creio, muito útil
num sacerdote.
— Já fui da polícia. Agora sou detetive particular. — Isso talvez não
fosse a verdade verdadeira, mas ficava bem perto. — Estive aqui ontem à
noite no interesse de um cliente, para pagar um resgate exigido por certas
pessoas para a devolução de bens desse cliente.
— Compreendo.
— Os criminosos, os ladrões desses bens, escolheram este local para a
troca. Foram eles que deram os tiros.
— Compreendo — repetiu. — Alguém foi… ferido? A polícia
procurou por vestígios de sangue Não sei se todos os ferimentos sangram.
— Ninguém foi ferido. Eles só deram dois tiros, e ambos para o teto.
Ele suspirou.
— Isso é um alívio. Bem, senhor…
— Scudder. Matthew Scudder.
— E eu sou Nelson Fuhrmann. Creio que esquecemos de nos
apresentar. — Passou a mão na testa sardenta. — Imagino que a polícia
não saiba nada disso.
— Não, não sabe.
— E o senhor prefere que não saiba.
— Seria muito mais simples se não soubesse.
Ele pensou um pouco, depois assentiu com a cabeça.
— Duvido que eu tenha a oportunidade de me comunicar com os
policiais novamente — falou. — Creio que não voltarão, o senhor não
acha? Não foi nenhum crime grave.
— Pode ser que alguém continue a investigar. Mas não se surpreenda
se não ouvir mais nada.
— Eles vão arquivar um relatório e tudo vai ficar por isso mesmo —
suspirou de novo. — Bem, senhor Scudder, o senhor deve ter tido um bom
motivo para se arriscar, sem saber se eu falaria ou não com a polícia. O
que é que esperava encontrar?
— Gostaria de saber quem são eles.
— Os vilões? — Deu uma risada. — Não sei como chamá-los. Se fosse
da polícia, provavelmente os chamaria de perpetradores.
— Poderia chamá-los de pecadores.
— Mas isso todos nós somos, não é verdade? — Sorriu para mim. — O
senhor não sabe quem são?
— Não. Usavam disfarces, perucas, barbas falsas, portanto não sei nem
como são.
— Não vejo como poderia ajudá-lo. O senhor não acha que estão
ligados a esta igreja, acha?
— Tenho quase certeza que não. Mas escolheram este lugar, reverendo
Fuhrmann e…
— Chame-me de Nelson.
— … Isso sugere uma familiaridade com a igreja e com esta sala em
especial. Os policiais encontraram alguma prova de entrada forçada?
— Acho que não.
— O senhor se incomoda se eu examinar a porta? — Verifiquei a
fechadura da porta que dava para as escadas externas. Se fora mexida, não
deixaram rastros. Perguntei-lhe que outras portas davam para o exterior e
ele me levou até elas, mas nenhuma apresentava sinais de entrada forçada.
— A polícia acha que uma das portas deve ter sido deixada aberta.
— Seria um palpite lógico se fosse apenas um caso de vandalismo ou
uma travessura inconsequente. Uns garotos encontram uma porta aberta,
entram, bagunçam o lugar. Mas isso foi planejado, cuidadosamente. Não
creio que nossos pecadores pudessem contar com uma porta esquecida
aberta.. Ou trancar as portas não é hábito por aqui?
— Ao contrário, nós sempre trancamos. Temos que fazê-lo, mesmo
numa vizinhança decente como a nossa. Duas portas estavam abertas
quando a polícia chegou, ontem à noite, esta e a dos fundos. Com certeza
não deixaríamos as duas abertas.
— Se uma ficou aberta, a outra pode ter sido aberta por dentro mesmo
sem chave.
— Sim, é verdade. Ainda assim.
— Deve haver muitas chaves circulando por aí, reverendo. Tenho
certeza de que muitos grupos da comunidade usam este espaço.
— Lógico. Acreditamos que faz parte de nossas funções deixar que
usem esta sala quando não precisamos dela para nossos trabalhos. E os
aluguéis auferidos são parte importante da nossa renda.
— Então o porão é bastante usado durante a noite.
— Claro que sim. Vejamos. Todas as quintas, à noite, os Alcoólicos
Anônimos se reúnem aqui. Às terças é a vez dos Al-Anon; pensando bem,
hoje é dia deles. Às sextas, quem vem às sextas? Nesses poucos anos em
que estou aqui, este lugar tem sido usado por não sei quantos grupos. Já
tivemos um grupo teatral que ensaiava aqui, temos o encontro mensal dos
escoteiros, temos… Bem, já dá para ver que muitos grupos diferentes
usam esta sala.
— Mas às segundas ela não é usada.
— Não. Até uns três meses atrás havia um grupo de senhoras que se
reunia aqui às segundas, para elevar a conscientização das mulheres, mas
acho que elas preferiram se reunir em suas casas. — Ele inclinou a cabeça
para um lado — O senhor está sugerindo que os, hum, os pecadores tinham
condições de saber que esta sala estaria vazia ontem à noite?
— Passou pela minha cabeça.
— Mas poderiam ter telefonado e se informado. Qualquer pessoa pode
telefonar, se apresentar como interessada no espaço e se informar sobre a
disponibilidade.
— Vocês receberam algum telefonema nesse sentido?
— Ora, telefonam sempre. Não é coisa que ninguém daqui iria se
preocupar em registrar.
— Por que você vem aqui tantas vezes? — a mulher falou. —
Perguntando a todo mundo coisas sobre Mickey Mouse.
— Quem?
Ela deu uma risada:
— Miguelito Cruz. Miguelito quer dizer pequeno Miguel, sabe? Igual
a Mickey. As pessoas o chamam de Mickey Mouse. Pelo menos eu chamo.
Estávamos num bar porto-riquenho na Quarta Avenida, enfiado entre
uma loja que vendia artigos para plantas e outra que alugava trajes para
festas. Eu regressara de trem da minha visita à igreja luterana em
Bensonhurst com a intenção de voltar para a cidade, mas em vez disso
levantei-me abruptamente na estação da Rua 57, em Sunset Park, e saltei
do trem Não tinha mais nada a fazer durante o resto do dia, nada que fosse
positivo para Skip; pensei em usar parte do meu tempo em favor de
Tommy Tillary, para justificar o dinheiro recebido.
Além disso, era hora do almoço e um prato de feijão preto com arroz
branco me apetecia.
Estava bom mesmo. Tomei uma cerveja bem gelada, depois pedi um
pudim e tomei algumas xícaras de café expresso. Os italianos servem num
dedal, os porto-riquenhos servem numa boa xícara…
Depois pulei de bar em bar, continuando a beber apenas cerveja e
fazendo com que durassem; então encontrei essa mulher que queria saber
qual o meu interesse em Mickey Mouse. Ela devia ter uns trinta e cinco
anos, com cabelos e olhos negros e uma expressão dura que combinava
com a aspereza de sua voz. Voz que, marcada pelos cigarros, pela bebida e
pela comida apimentada, era do tipo que podia cortar vidro.
Seus olhos eram grandes e suaves, e o que se podia ver de seu corpo
sugeria uma maciez que combinaria com os olhos. Usava um monte de
cores brilhantes. O cabelo estava preso por uma faixa rosa vibrante, a
blusa era azul elétrico, a calça, justa nos quadris, era amarelo-canário e os
sapatos de salto alto eram de um laranja fosforescente. A blusa estava
desabotoada até mostrar o começo dos seios. Sua pele era cor de cobre,
mas com um rosado que parecia iluminá-la por dentro.
— Você conhece Mickey Mouse?
— Claro que sim. Vejo ele o tempo todo nos desenhos animados. É um
ratinho engraçado.
— Estou me referindo ao Miguelito Cruz. Você conhece esse Mickey
Mouse?
— Você é tira?
— Não.
— Você parece tira, anda como tira, faz perguntas como um tira.
— Já fui da polícia.
— Mandaram você embora por roubo? — Ela riu, mostrando uns dois
dentes de ouro. — Aceitando subornos?
Sacudi a cabeça:
— Atirando em crianças. Ela riu mais alto ainda.
— Essa não. Eles não mandam você embora por isso. Você é
promovido, é nomeado chefe.
Não havia nenhum sotaque ilhéu em sua voz. Era uma garota do
Brooklyn dos pés à cabeça. Perguntei novamente se conhecia Cruz.
— Por quê?
— Esquece.
— Quê?
— Esquece — falei e dei-lhe as costas, continuando a tomar minha
cerveja. Sabia que ela não ia desistir. Fiquei olhando com o canto dos
olhos. Ela bebia uma coisa colorida, com um canudinho, e enquanto eu
espiava sorveu o que restava no copo.
— Ei — falou. — Você me paga um drinque?
Olhei para ela. Os olhos negros não piscaram. Fiz um sinal para o
barman, um homem emburrado que encarava o mundo com um olhar de
completa desaprovação. Ele preparou mais uma dose do troço que ela
estava bebendo. Precisou de quase todas as garrafas da prateleira de trás
para fazê-lo. Colocou o copo na frente dela e me olhou; levantei meu copo
para ele ver que eu estava firme.
— Eu o conheço muito bem.
— É mesmo? Alguma vez ele sorri?
— Não estou falando dele, estou falando do Mickey Mouse.
— Hum.
— O que é que você quer dizer com esse hum? Ele é uma criança.
Quando ele crescer, aí vai poder vir me ver. Se crescer.
— Fale-me sobre ele.
— O que posso contar? — Ela tomou um gole do seu drinque. — Ele
se mete em confusão para mostrar a todo mundo como é durão e esperto.
Mas ele não é assim durão, sabe, nem tão esperto. — Sua boca ficou mais
suave.
— Ele é bonito, isso ele é. Sempre com roupas boas, sempre com o
cabelo bem penteado, sempre de barba feita.
— Levantou a mão e fez uma festinha em meu rosto. — Macia, sabe?
E ele é pequeno, engraçadinho, dá vontade de abraçá-lo, embrulhá-lo e
levar para casa.
— Mas isso você nunca fez. Ela riu de novo.
— Cara, já tenho todos os problemas que preciso.
— Você acha que ele seria um problema?
— Se eu o levasse para casa, ele ficaria o tempo todo pensando “O que
é que posso fazer para essa puta me deixar botá-la na rua?”
— Ele é cafetão? Essa eu não sabia.
— Se você está pensando naquele cafetão com um chapéu roxo e um
Eldorado, esquece. — Riu. — Isso é o que o Mickey Mouse queria ser.
Uma vez ele pegou uma garota, recém-chegada de Santurce, de uma aldeia
perto de Santurce, sabe? Muito novinha, e não era a senhorita Einstein,
sabe? E ele fez com que ela trabalhasse para ele, no apartamento dela
mesmo, pegava um ou dois caras por dia e levava para ela.
— “Ei, hombre, queres trepar con minha hermanita?’
— Você imita muito mal o sotaque porto-riquenho, amigo. Mas pegou
o espírito da coisa. Ela trabalhou umas duas semanas, sabe, depois enjoou
daquilo e pegou o avião de volta para a ilha. E essa é a história de Mickey,
o cafetão.
A essa altura ela já queria outro drinque e eu estava pronto para outra
cerveja. Ela pediu ao barman que nos trouxesse um saco de fatias de
bananas das Antilhas bem finas e fritas. Rasgou o saco de tal jeito que as
bananas se espalharam na nossa frente, em cima do balcão. Era um tipo
diferente de banana, com um gosto intermediário entre batatas fritas e
serragem.
O problema de Mickey Mouse, ela me contou, era que ele estava
sempre tentando provar alguma coisa. Enquanto estava no ginásio, tentara
provar o quanto era durão indo a Manhattan com uns companheiros para
costurar as ruas estreitas do West Village, à procura de homossexuais para
espancar.
— Ele era a isca, sabe? Pequeno e bonito. E quando pegavam um
homem quem ficava maluco era ele, praticamente querendo matar o
infeliz. Os caras que foram com ele da primeira vez disseram que ele não
tinha coração, mas mais tarde começaram a dizer que ele não tinha era
cérebro. — Ela balançou a cabeça. — Por isso nunca o levei para casa. Ele
é bonitinho, mas a boniteza desaparece quando a gente apaga a luz, sabe?
Não creio que ele fosse me fazer muito bem. — Esticou a mão e, com uma
unha pintada, tocou no meu queixo. — A gente não quer um homem muito
bonito, sabe?
Era uma proposta, do tipo que de algum modo eu sabia que não queria
aceitar. Essa constatação me trouxe uma onda de tristeza que não sei de
onde vinha. Eu não tinha nada para oferecer a essa mulher e ela não tinha
nada para mim. Nem mesmo sabia seu nome; se nos apresentamos, já não
me lembrava. Mas acho que não. Os únicos nomes que dissemos foram
Miguelito Cruz e Mickey Mouse.
Mencionei outro nome. Angel Herrera. Ela não queria falar sobre
Herrera. Era simpático, disse. Não era tão bonito, nem tão esperto, mas
talvez fosse uma pessoa melhor. Mas ela não queria falar sobre Herrera.
Disse-lhe que tinha de ir. Pus uma nota no balcão e falei ao barman
para manter o copo dela sempre cheio. Ela riu, me gozando ou se
divertindo com a situação, não sei bem qual dos dois. Sua risada parecia
com o som que um saco de vidro quebrado faz quando alguém o despeja
escada abaixo. Saí e continuei com esse som em meus ouvidos até sair
pela porta e ainda mais longe.
20
Quando voltei para o hotel encontrei recados de Anita e de Skip.
Telefonei primeiro para Syosset, conversei com Anita e com os meninos
Falei com ela sobre dinheiro, contei-lhe que recebera uma comissão e que
logo lhe enviaria algum. Falei com os meninos sobre beisebol e sobre o
acampamento para onde estariam indo dentro de pouco tempo.
Telefonei para o Miss Kitty's, para falar com Skip. Outra pessoa
atendeu e fiquei esperando enquanto foram chamá-lo.
— Gostaria de me encontrar com você. Hoje à noite vou trabalhar.
Você pode passar por aqui mais tarde?
— Tudo bem.
— Que horas são agora? Dez para as nove? Só estou aqui há menos de
duas horas? Parecem cinco. Matt, olha, vou fechar às duas da manhã.
Venha mais ou menos nessa hora e tomaremos uns drinques.

Assisti ao jogo do Mets. Estavam fora da cidade. Em Chicago, acho.


Mantive meu olhar na telinha, mas não consegui prestar atenção no jogo.
Sobrara uma cerveja da noite anterior Durante o jogo fiquei
bebericando, mas nem isso conseguiu aumentar meu entusiasmo. Depois,
assisti ao noticiário, desliguei a televisão e fui para a cama.
Eu tinha um livro de bolso chamado A vida dos santos e me deu
vontade de ler sobre santa Verônica. Parece que não há muita certeza sobre
sua existência; supõe-se que tenha sido uma mulher de Jerusalém que
limpou o rosto suado de Jesus Cristo com um pano, quando Ele sofria em
seu caminho para o calvário, e que uma imagem de Seu rosto ficou
impressa no pano.
Fiquei imaginando a cena que lhe deu vinte séculos de fama e tive que
rir. A mulher que eu via, tentando aliviar Sua fronte, tinha o rosto e o
cabelo de Verônica Lake.
O Miss Kitty's estava fechado quando lá cheguei, e por um instante
pensei que Skip tivesse mandado tudo às favas e ido para casa. Depois
reparei que as grades de ferro, apesar de encostadas, não estavam presas
pelo cadeado e também que uma lâmpada de baixa voltagem transluzia por
trás do balcão. Afastei as grades uns trinta centímetros mais ou menos e
bati na porta de madeira. Ele apareceu, abriu a porta, depois tornou a
cerrar as grades e fechou a porta à chave.
Parecia cansado. Bateu no meu ombro, disse como era bom me rever e
levou-me para os fundos do bar, bem longe da porta. Sem perguntar,
serviu-me uma boa dose de Wild Turkey, depois encheu seu copo com
uísque.
— Primeiro do dia — falei.
— É? Estou impressionado. Claro que o dia só tem duas horas e dez
minutos.
— Primeiro desde que acordei. Tomei algumas cervejas, mas também
não exagerei. — Bebi um pouco do meu bourbon Tinha um gosto forte,
agradável.
— Eu também. Tem dias em que eu não bebo. Tem dias em que não
bebo nem uma cerveja. Sabe o que é isso? Para você e para mim, beber é
uma coisa que a gente resolve fazer. É uma opção.
— Há manhãs em que me dou conta de que não fiz a melhor opção.
— Nossa, me conte sobre isso. Mesmo assim, é uma decisão que
tomamos. Essa é a diferença entre você e eu, e um cara como o Billie
Keegan.
— Você acha?
— Você não? Matt, o homem está sempre bebendo. Ontem à noite, por
exemplo. Todos nós somos, vá lá, bebedores da pesada. Mas ontem à noite
nós nos controlamos. Porque tem horas em que podemos beber e outras em
que não podemos. Estou certo?
— Parece.
— Depois, a história muda de figura. Depois daquilo tudo, um homem
tem que relaxar, se soltar. Mas Keegan estava totalmente embriagado antes
que chegássemos lá, pelo amor de Deus.
— E revelou-se o herói da noite.
— Vá entender. E a placa do carro, você…
— Roubado.
— Droga. Bem, isso nós já havíamos imaginado.
— Lógico.
Ele tomou um gole do uísque.
— Keegan tem que beber — prosseguiu. — Eu posso parar a qualquer
momento. Não paro porque gosto do efeito que a bebida tem em mim. Mas
poderia parar quando quisesse e acho que você também.
— Acho que sim.
— Claro que sim. Mas o Keegan, não sei não. Não gosto de chamá-lo
de alcoólatra.
— É terrível dizer isso de um homem.
— Concordo com você. Não estou dizendo que ele é, e Deus sabe que
gosto dele, mas acho que ele tem um problema. — Tirou os cotovelos do
balcão. — Ao diabo com tudo isso. Ele podia ser um desgraçado de um
mendigo do Bowery, ainda assim eu gostaria que não fosse um carro
roubado. Vamos lá para trás, podemos sentar mais à vontade e relaxar um
pouco.
No escritório, com as duas garrafas em cima da escrivaninha, ele
recostou-se na cadeira e pôs os pés em cima da mesa.
— Você checou a placa. Então imagino que já esteja seguindo essa
pista.
Concordei.
— Também fui ao Brooklyn.
— Aonde? Onde estivemos ontem à noite?
— Na igreja.
— O que você esperava encontrar lá? Pensou que um deles tivesse
deixado a carteira cair?
— Você nunca sabe o que vai encontrar, Skip. Tem que procurar.
— Acho que sim, só que eu não saberia por onde começar.
— Comece em qualquer lugar. E faça tudo aquilo que lhe ocorrer.
— Você descobriu alguma coisa?
— Poucas.
— Como o quê? Esqueça, não quero ficar pegando no seu pé enquanto
você está trabalhando. Mas encontrou algo que possa ser útil?
— Talvez. Nunca se sabe o que vai ser útil ou não até acabar a
investigação. Parta do princípio de que tudo o que você descobrir pode ser
importante. Por exemplo, só saber que o carro foi roubado já me diz
alguma coisa, mesmo que não me revele quem dirigia.
— Ao menos você pode descartar o proprietário. Você agora sabe que
uma pessoa, entre as oito milhões que vivem aqui, não é aquela que
procuramos. Quem é o proprietário? Alguma velhinha que só usa o carro
para ir até o bingo?
— Não sei, mas foi roubado na Ocean Parkway, não muito longe do
restaurante de frutos do mar onde estivemos.
— Quer dizer que eles moram no Brooklyn?
— Ou foram com o carro deles até lá, estacionaram e roubaram aquele
que nós vimos. Ou foram de metrô ou pegaram um táxi. Ou…
— Quer dizer que nós não sabemos muita coisa.
— Ainda não.
Ele inclinou a cabeça para trás e a apoiou nas mãos.
— Bobby foi chamado de novo para um teste daquele comercial. O do
juiz de basquete na luta contra o preconceito. Vai voltar lá amanhã. Agora
são apenas cinco candidatos, ele e mais quatro, e a agência quer testar
todos outra vez.
— Isso é bom, acho.
— Quem sabe? Você acredita numa profissão como essa, na qual o
cara dá um duro danado, enfrenta uma competição dos diabos, apenas para
aparecer vinte segundos na telinha? Você sabe quantos atores são
necessários para trocar uma lâmpada? Nove. Um para subir na escada e
trocá-la e oito para ficar em volta da escada e dizer “Eu é que devia estar
lá em cima”.
— Não é tão mau.
— Bem, vamos dar o devido crédito, quem me contou essa piada foi
um ator. — Renovou seu drinque e tornou a se ajeitar na cadeira. — Matt,
ontem à noite foi tudo muito estranho. Foi danado de estranho.
— No porão da igreja. Concordou com a cabeça:
— Aqueles disfarces. O que eles deveriam ter usado era o nariz, o
bigode e os óculos do Groucho Marx, sabe, aquele tipo de máscara que as
crianças usam. O que estou querendo dizer é que aquelas perucas e barbas
também não pretendiam parecer verdadeiras, só que não eram engraçadas.
O revólver impedia que fossem engraçadas.
— Por que será que usaram disfarces?
— Para que nós não os reconhecêssemos. Por que uma pessoa se
disfarça?
— Você os teria reconhecido?
— Não sei. Não os vi sem os disfarces. Estamos brincando de quê, de
Abbot e Costello?
— Não acho que eles nos conhecem — falei. — Quando entrei no
porão, um deles falou o seu nome. Estava escuro, mas eles tiveram tempo
suficiente para se acostumar à escuridão. Nós não somos nada parecidos.
— Eu sou o bonito. — Deu uma tragada e soltou uma grande baforada.
— Onde é que você quer chegar?
— Não sei. Só estou tentando descobrir por que será que eles se deram
ao trabalho de se disfarçar, se nós nem os conhecemos.
— Acho que para tornar mais difícil reconhecê-los mais tarde.
— Pode ser. Mas por que será que acharam que nós iríamos nos
preocupar em procurá-los? Não há muito que possamos fazer contra eles.
Fizemos um trato, trocamos dinheiro pelos livros. Por falar nisso, o que é
que você fez com os livros?
— Eu os queimei, como disse que ia fazer. E o que é que você quer
dizer com isso, não há nada que possamos fazer? Podíamos matá-los em
suas camas.
— Claro.
— Encontrar a igreja certa, fazer cocô no altar e dizer ao Dominic
Tutto que foram eles. Isso tem um certo charme, pensando bem. Armar
contra eles, marcar um encontro deles com o açougueiro. Talvez tenham
usado disfarces pela mesma razão pela qual roubaram o carro. Porque são
profissionais.
— Eles lhe pareceram familiares, Skip?
— Quer dizer, tirando as perucas, as barbas e todo o resto? Não sei se
consigo imaginá-los sem tudo isso. Não reconheci as vozes.
— Não.
— Havia alguma coisa de familiar neles, mas não sei o que era. A
maneira como se moviam, talvez.
— Acho que sei o que você quer dizer.
— Uma economia nos movimentos. Pode-se até dizer que pisavam de
leve. — Riu. — Telefone para eles, pergunte se querem sair para dançar.
Meu copo estava vazio Coloquei um pouco de bourbon nele, encostei
na cadeira e fiquei bebendo devagarinho. Skip afogou seu cigarro numa
xícara de café e disse o que sempre diz, que não quer me ver fazer a
mesma coisa. Disse-lhe que isso era improvável. Ele acendeu outro cigarro
e ficamos ali, num silêncio confortável.
Pouco depois ele falou:
— Explique uma coisa, esqueça os disfarces. Diga-me por que eles
atiraram nas lâmpadas.
— Para cobrir sua fuga. Para lhes dar um tempo à nossa frente.
— Você acha que eles temiam que fôssemos correr atrás deles? Correr
atrás de homens armados por quintais e entradas de carros?
— Talvez quisessem tudo escuro por achar que teriam mais chance
assim. — Fiquei matutando. — Tudo que ele precisava fazer era dar um
passo e desligar o interruptor. Você sabe qual foi a pior coisa dos tiros?
— Sei, me deixaram apavorado.
— Chamaram a atenção. Uma coisa que o profissional aprende é não
fazer coisas que possam chamar a atenção da polícia. Se puder ser evitado,
não o faça.
— Talvez tivessem pensado que valia a pena. Foi um aviso: “Não
tentem se vingar”.
— Pode ser.
— Um toque dramático.
— Pode ser.
— Deus sabe que já foi dramático que chegue. Quando apontaram a
arma para mim, pensei que fosse levar um tiro, pensei mesmo. Aí, quando
em vez de atirar em mim ele deu tiros no teto, fiquei sem saber se devia
fazer cocô ou ficar cego.
— Ah! Por Deus do céu!
— O que foi?
— Ele apontou a arma para você e depois deu dois tiros no teto.
— Isso é alguma coisa que nós não percebemos? Do que é que
estávamos falando então?
Ergui a mão:
— Pense um minuto. Fiquei imaginando qual o motivo de eles
atirarem nas lâmpadas, foi por isso que não me lembrei antes.
— Não lembrou do quê? Matt, eu não…
— Onde você esteve há pouco tempo, e um cara apontou em alguém
mas não atirou? E depois deu dois tiros no teto?
— Minha nossa!
— Então?
— Minha nossa! Frank e Jesse.
— O que é que você acha?
— Não sei o que achar. É tudo tão louco. Eles não pareciam irlandeses.
— Quem é que sabe se aqueles caras no Morrissey's eram irlandeses?
— Ninguém. Acho que calculamos. Os lenços, o dinheiro do Auxílio
ao Norte e todo o espírito da coisa parecia político. Tinham a mesma
economia de movimentos, sabe? A maneira meticulosa como agiram, não
deram nem um passo a mais, moveram-se o tempo todo como se tivessem
sido coreografados.
— Talvez sejam bailarinos.
— Pode ser. Balé dos desesperados de 75. Ainda estou tentando
acostumar minha cabeça a tudo isso. Dois palhaços com lenços vermelhos
roubam cinquenta mil dos irmãos Morrissey e depois arrancam de
Kasabian e de mim… ei, é a mesma quantia. Um padrão sutil começa a
aparecer.
— Nós não sabemos quanto os Morrissey perderam.
— Não, e eles não sabiam quanto havia naquele cofre, mas um padrão
é um padrão. Nisso eu acredito. Mas e as orelhas deles? Você desenhou as
orelhas ontem à noite. São as orelhas de Frank e Jesse? — Começou a rir.
— Não posso acreditar no que estou falando. “São as orelhas de Frank e
Jesse?” Parece frase traduzida de outra língua. São?
— Skip, não reparei nas orelhas deles.
— Pensei que vocês detetives trabalhassem o tempo todo.
— Estava mais preocupado em sair da linha de tiro.
Se é que estava pensando em alguma coisa. Tinham a pela bem clara,
Frank e Jesse. E os de ontem também.
— Claros e esquentados. Você reparou nos olhos deles?
— Não vi a cor.
— Eu estava bem perto daquele que fez a troca comigo, poderia ter
reparado em seus olhos. Mas, se olhei, nem me lembro. Não é que faça
muita diferença. Algum deles disse uma palavra que fosse, lá no
Morrissey's?
— Acho que não. — Ele fechou os olhos. — Estou tentando rever a
cena. Acho que foi tudo uma pantomima. Dois tiros e depois silêncio
enquanto eles saíam porta afora e desciam as escadas.
— Foi isso mesmo.
Ele ficou em pé, depois começou a andar de um lado para o outro. —
Coisa de louco. Olha, talvez a gente deva deixar de procurar a víbora no
meu peito. Não se trata disso. Estamos lidando com uma gangue
audaciosa, com dois membros apenas, especializados em limpar os bares
de Hell's Kitchen. Você acha que aquele grupo irlandês daqui mesmo,
como é o nome deles?
— Os Westies Não, isso já teria se espalhado. Ou Morrissey já saberia.
Aquela recompensa dele teria se evaporado num dia só, se algum deles
tivesse alguma coisa a ver com o assalto. — Peguei meu copo e acabei
com o drinque. Deus, dessa vez, que gosto bom. Nós os apanhamos, sabia
que sim. Não sabia nada sobre eles, nada que não soubesse antes, mas
sabia que estavam no papo.
— Foi por isso que se disfarçaram — falei. — Quer dizer, podiam ter
usado as máscaras de qualquer modo, mas não foi porque não queriam que
os reconhecêssemos. Cometeram um erro. Nós vamos pegá-los.
— Deus, olhe para você, Matt. Parece um velho cachorro do corpo de
bombeiros quando o alarme dispara. Como é que você vai pegá-los? Você
nem sabe quem são eles.
— Sei que são Frank e Jesse.
— E daí? Os Morrissey estão atrás deles há muito tempo. Na verdade,
eles chegaram a pedir que você os procurasse. Por que essa segurança,
agora?
Servi-me de mais um pouco do Wild Turkey.
— Quando você planta um microfone num carro e quer saber para
onde ele está indo, você precisa de dois carros. Um só não dá conta do
recado, mas com dois você pode fazer uma triangulação ao receber os
sinais e descobrir onde está o carro com o microfone.
— Não estou compreendendo bem.
— Não é a mesma coisa, mas é parecido. Nós os vimos no Morrissey's
e nós os vimos no porão da igreja em Bensonhurst. São dois pontos de
referência. Agora podemos encurralá-los, podemos fazer uma triangulação
com os sinais que nos deram. Dois tiros no teto são sua maldita marca
registrada. Dá para pensar que querem ser apanhados, deixando uma
assinatura dessas.
— Já estou com pena deles Aposto que estão tremendo de medo. Até
agora, este mês só conseguiram cem mil. O que eles não sabem é que Matt
“Buldogue” Scudder está na cola deles e os pobres dos canalhas não vão
conseguir gastar um tostão desse dinheiro.
21
O telefone me acordou. Sentei, pisquei com a luz forte do dia.
Continuou a tocar. Atendi. Era Tommy Tillary.
— Matt, aquele tira veio aqui. Ele veio aqui, dá para acreditar?
— Onde?
— No escritório, estou no meu escritório. Você o conhece. Ao menos
ele disse isso. Um detetive, um homem muito desagradável.
— Não sei de quem você está falando, Tommy.
— Esqueci o nome dele. Ele disse…
— Disse o quê?
— Disse que vocês dois estiveram juntos em minha casa.
— Jack Diebold.
— Isso mesmo. Ele falou a verdade, então? Vocês estiveram juntos lá
em casa?
Esfreguei as têmporas, peguei o relógio para olhar a hora. Passava um
pouquinho das dez. Tentei me lembrar a que horas fora dormir.
— Nós não fomos para lá juntos. Eu estava lá, examinando a casa, e
ele apareceu. Eu o conheço, mas não o via há muitos anos.
Não adiantou. Não conseguia me lembrar de nada depois de ter
garantido a Skip que Frank e Jesse estavam vivendo além da conta. Talvez
tivesse vindo para casa logo em seguida, talvez tivesse ficado bebendo
com ele até alta madrugada. Não havia meio de me lembrar.
— Matt? Ele está incomodando Carolyn.
— Incomodando?
Minha porta estava trancada. Isso era um bom sinal. Não devia ter
chegado num estado tão lastimável, senão não teria trancado a porta. Por
outro lado, minha calça estava jogada em cima da cadeira. Teria sido
melhor se estivesse pendurada no armário. Mas também não estava
embolada no chão, nem dormira com ela. O grande detetive peneirando
pistas, tentando descobrir como é que estava na noite anterior.
— Incomodando. Telefonou-lhe umas duas vezes e foi à casa dela uma
vez. Insinuando coisas, sabe, como se ela estivesse mentindo para me
proteger. Só o que ele consegue é angustiar Carolyn e me deixar numa
situação desconfortável aqui no escritório.
— Imagino que sim.
— Matt, presumo que você o conheça dos velhos tempos. Será que
você pode fazer com que ele largue do meu pé?
— Por Deus, Tommy, não sei como. Um policial não desiste de uma
investigação para fazer favor a um velho amigo.
— Não estou sugerindo nada fora das normas, Matt. Não me entenda
mal. Mas uma investigação é uma coisa, atormentar é outra, você não
acha? — Nem me deu chance de responder. — O caso é o seguinte, o cara
cismou comigo. Meteu na cabeça que sou uma pessoa do mal, e se você
pudesse, sabe, trocar umas palavras com ele, dizer-lhe que sou boa gente.
Tentei me lembrar do que contara a Jack sobre Tommy. Não consegui,
mas não creio que tenha dito nada que fosse significativo em matéria de
referência quanto ao seu caráter.
— E entre em contato com o Drew, como um favor para mim, o.k.?
Ontem mesmo ele me perguntou se eu tinha notícias suas, se você já tinha
descoberto algo mais. Sei que você está trabalhando muito para mim,
Matt, mas podemos dar um jeito de ele também ficar sabendo. Mantê-lo
informado, você sabe o que quero dizer.
— Claro, Tommy.
Depois que ele desligou, engoli duas aspirinas. Tomei uma chuveirada
e estava quase acabando de me barbear antes de perceber que tinha
virtualmente concordado em falar com Jack Diebold, para que deixasse
Tommy em paz. Pela primeira vez me dei conta de como o filho-da-mãe
era bom em fazer as pessoas comprarem ações de imobiliárias
sindicalizadas, ou fosse lá o que fosse que vendesse. Era exatamente como
todos comentavam. Ele era muito persuasivo ao telefone.

Lá fora o dia estava claro, o sol mais brilhante do que o necessário.


Parei no McGovern's para um drinque rápido, só para me dar força.
Comprei o jornal da velha senhora que ficava com sua sacola na esquina,
dei-lhe um dólar e segui andando envolto numa nuvem de bênçãos. Bem,
ia aceitar suas bênçãos. Precisava de toda ajuda que pudesse conseguir.
Tomei um café com bolinho no Red Flame e li o jornal. Incomodava-
me o fato de não conseguir lembrar como saíra do escritório de Skip na
noite anterior. Disse a mim mesmo que não podia ter ficado tão mal assim,
pois não estava com nenhuma ressaca braba, mas o fato é que nem sempre
uma coisa está ligada à outra. Algumas vezes eu acordava com a cabeça
clara, o físico em ordem, depois de uma noite de muita bebida e com uma
enorme lacuna na memória. Outras vezes, uma ressaca horrível, que me
deixava de cama um dia inteiro, seguia-se a uma noite na qual nem ao
menos me sentira embriagado, em que nada de desagradável acontecera, e
sem nenhuma perda de memória.
Deixa pra lá, Matt. Esquece.
Pedi outro café e fiquei pensando no meu discurso sobre a triangulação
em cima dos dois homens que chamávamos de Frank e Jesse. Lembrei-me
da segurança que senti e fiquei pensando no que acontecera com ela.
Talvez eu tivesse um plano, talvez tivesse tido uma percepção brilhante e
tivesse calculado direitinho como iria pegá-los. Dei uma olhada em meu
bloco de notas, podia ter anotado esse raciocínio que desde então
esquecera. Não tive essa sorte. Não anotara nada desde que saíra daquele
bar em Sunset Park.
Mas tinha outras anotações, sobre Mickey Mouse e sua carreira
adolescente como espancador violento de veados no Village. Quantos
adolescentes da classe operária dedicam-se a esse esporte, certos de que
agem em nome de uma santa indignação e de que ao mesmo tempo estão
provando aos outros sua virilidade, sem perceber que, no fundo, estão
tentando matar uma parte de si mesmos, o que não ousam admitir.
Algumas vezes se excedem, aleijando ou matando um gay. Já fiz algumas
prisões em casos assim e sempre reparei que os jovens ficavam espantados
ao descobrir que estavam metidos num grande problema, que os policiais
não estavam a seu favor, que podiam mesmo ser presos pelo que fizeram.
Ia guardar o bloco, mas em vez disso fui para o telefone e liguei para
Drew Kaplan. Pensei na mulher que me falara sobre Mickey Mouse,
satisfeito por não ter que olhar para aquelas roupas brilhantes numa manhã
como essa.
— Scudder — falei, quando a telefonista completou a ligação. — Não
sei se vai ajudar, mas tenho mais provas de que nossos amigos não são
coroinhas.
Depois disso fui dar uma longa volta. Andei pela Nona Avenida, parei
no Miss Kitty's para dar um alô a Kasabian, mas não fiquei muito tempo.
Entrei numa igreja na Rua 42, depois continuei em direção ao centro da
cidade, passei pelos fundos do terminal de ônibus da Autoridade Portuária,
andei por Eles Kitchen e Chelsea até chegar ao Village. Caminhei pela
zona dos frigoríficos e parei num bar de açougueiros na esquina da Rua
Washington com a Décima Terceira Avenida, onde fiquei entre homens
com aventais sujos de sangue, bebendo alternadamente destilados e
cerveja. Ao sair, olhei as carcaças de boi e carneiro suspensas em ganchos
de aço, com moscas voando em volta, no calor do sol de meio-dia.
Andei mais um pouco e saí do sol para tomar um drinque no Corner
Bistrô, na esquina da rua Jane com a Quarta Avenida, e depois outro no
Cookie Bar, na rua Hudson. Sentei numa mesa no White Horse para comer
um hambúrguer e tomar uma cerveja.
Durante todo esse tempo fiquei revirando cenas e palavras na minha
mente.
Juro por Deus que não sei como alguém chega a uma conclusão,
incluindo eu mesmo. Assisto a um filme no qual um personagem explica
como chegou àquela conclusão, encaixando as pistas até surgir uma
solução, e no filme tudo é perfeitamente lógico.
Mas no meu trabalho isso raramente acontece. Quando estava no
departamento, a maioria dos meus casos caminhava para uma conclusão
(se é que caminhava nessa direção) apenas de duas maneiras: ou eu não
sabia a resposta de jeito nenhum até que uma nova informação se tornasse
evidente de imediato, ou sabia desde o início quem era o culpado, só
faltando evidências suficientes para provar o caso diante do tribunal. Na
ínfima porcentagem de casos nos quais cheguei a uma solução, foi através
de um processo que não compreendia e continuo não compreendendo
agora. Pegava o material que eu tinha, ficava olhando, olhando, olhando e,
de repente, via a mesma coisa sob uma luz diferente e a resposta estava em
minhas mãos.
Você já montou um quebra-cabeça? Já ficou enrolado, pegando
diversas peças, segurando-as em diferentes posições, até que finalmente
pega uma pecinha que já deve ter pegado centenas de vezes, uma das que
você virou para cá e para lá, experimentou aqui e experimentou ali? Mas,
de repente, a peça cai no lugar certo, fica perfeita onde você jura que tinha
acabado de tentar, se encaixa perfeitamente, se encaixa de uma maneira
que deveria ter sido óbvia desde o início.
Eu estava numa mesa no White Horse, uma mesa onde alguém tinha
entalhado suas iniciais, uma mesa escura onde o verniz começava a
desaparecer aqui e ali. Terminara meu hambúrguer. Terminara a cerveja.
Tomava um café batizado com uma pequena dose de bourbon. Fragmentos
de imagens rolavam na minha cabeça. Ouvi Nelson Fuhrmann falando
sobre todas as pessoas com acesso ao porão. Vi Billie Keegan tirar um
disco da capa e colocá-lo na vitrola. Vi Bobby Ruslander pegar seu apito
azul e colocá-lo na boca. Vi o pecador de peruca amarela, Frank ou Jesse,
concordar relutantemente em arrumar os móveis. Assisti a The quare
fellow com a enfermeira Fran, caminhei com ela e suas amigas até o Miss
Kitty's.
Houve um momento em que não tinha a resposta e depois um
momento em que tinha.

Não posso dizer que contribuí para que isso acontecesse. Não
desenvolvi raciocínio nenhum. Continuei pegando as peças do quebra-
cabeça, continuei revirando-as assim e assado e, de repente, tinha o
quebra-cabeça montado, peça após peça se encaixando natural e
infalivelmente em seu lugar.
Será que tinha pensado nisso durante minha perda de consciência na
noite anterior, com os pensamentos sendo desfiados como na tapeçaria de
Penélope? Não acredito muito nisso, apesar da natureza da perda de
consciência ser tal que não sei dizer com certeza se isso é possível ou não.
Mas parecia ter sido assim. As respostas quando apareceram eram tão
óbvias — tal como no quebra-cabeça, uma vez que a peça se encaixa você
não acredita como é que não percebeu isso logo de cara. Eram tão óbvias
que me senti como se as conhecesse desde o início.
Telefonei para Nelson Fuhrmann. Ele não tinha a informação que eu
queria, mas sua secretária me deu um número de telefone e consegui falar
com uma mulher que sabia a resposta para algumas das minhas perguntas.
Comecei a telefonar para Eddie Koehler quando me lembrei de que
estava a dois quarteirões do sexto distrito. Fui para lá, encontrei-o atrás de
sua escrivaninha e contei-lhe sobre a chance que tinha de ganhar o resto do
chapéu que lhe comprara na véspera. Ele deu uns telefonemas sem se
levantar e quando saí de lá tinha mais algumas anotações em meu bloco.
Numa cabine da esquina, fiz outras ligações, depois andei até a Rua
Hudson e peguei um táxi. Saltei na esquina da Décima Primeira Avenida
com a Rua 51 e andei até o rio. Parei em frente ao Morrissey's, mas não
bati na porta nem toquei a campainha. Em vez disso, parei para ler o cartaz
do teatro lá do térreo. The quare fellow tinha encerrado sua breve carreira.
Na noite seguinte iriam estrear uma peça de John B. Keane chamada The
man from Clare. Exibia um retrato do ator que faria o papel principal. Seu
cabelo era ruivo, crespo, e o rosto atormentado, ansioso.
Tentei abrir a porta do teatro. Estava trancada. Bati e, como não
atendessem, tornei a bater. Finalmente, vieram abrir.
Uma moça bem baixinha, de vinte e poucos anos, olhou para mim e
disse:
— Sinto muito, a bilheteria só vai abrir amanhã à tarde. Estamos com
pouco pessoal no momento e nos ensaios finais e…
Falei que não viera comprar ingressos.
— Só preciso que me dê uns minutos de seu tempo.
— Isso é tudo o que todos querem e não tenho tempo suficiente para
distribuir. — Disse a frase com um jeito petulante, como se tivesse sido
escrita por um autor dramático. — Sinto muito — falou, dessa vez de
maneira mais prosaica —, mas agora não vai dar.

— Mas vai ter que ser agora.


— Meu Deus, o que é isso? Você não é da polícia, é? O que é que
fizemos, esquecemos de pagar alguém?
— Estou trabalhando para o senhor aí de cima — respondi, apontando
para o alto. — Ele gostaria que a senhora cooperasse.
— O senhor Morrissey?
— Se quiser, pode telefonar para Tim Pat e confirmar. Meu nome é
Scudder.
Dos fundos do teatro, alguém, com um forte sotaque irlandês, chamou:
— Mary Jean, por que, em nome de Deus, você está demorando tanto?
Ela levantou os olhos, suspirou e segurou a porta aberta para mim.

Depois que saí do teatro, telefonei para a casa de Skip e procurei por
ele no bar. Kasabian sugeriu que o procurasse na academia.
Primeiro tentei o Armstrong's. Ele não estava lá nem tinha estado, mas
Dennis disse que um homem passara por lá, perguntando por mim.
— Quem?
— Não deixou o nome.
— Como é que ele era?
Ele ficou pensando na pergunta.
— Se você estivesse escolhendo com quem brincar de polícia e ladrão,
você não o escolheria para ser um dos ladrões — respondeu, absorto.
— Deixou algum recado?
— Não. Nem uma gorjeta.
Fui até a academia de Skip, um loft espaçoso em cima de uma
delicatessen na Broadway. Ali funcionara uma pista de boliche que falira
havia um ou dois anos e o ginásio tinha aquele aspecto de lugar que não
vai sobreviver aos termos do contrato de aluguel. Uns homens se
exercitavam com pesos. Um negro, brilhando de suor, se esforçava num
dos aparelhos, enquanto seu colega, branco, o ajudava com os exercícios.
À direita, um grandalhão, os pés bem plantados no chão, alternava as mãos
socando um punching ball. Encontrei Skip fazendo alongamento muscular
num aparelho de pilates. Estava com calça de moletom cinza e sem
camiseta, e transpirava profusamente. Os músculos de suas costas, ombros
e braços estavam sendo bem exercitados Fiquei afastado, esperando que
ele terminasse aquela série de exercícios. Então o chamei e ele, ao se virar
e me ver, sorriu surpreso, depois fez outra série de alongamentos antes de
se levantar e vir me cumprimentar.
— O que é que há? Como é que você me encontrou aqui?
— Por sugestão de seu sócio.
— Bem, você chegou na hora certa. Uma pausa vai me fazer bem.
Deixa eu pegar meus cigarros.
Havia um espaço onde se podia fumar, umas poltronas perto de um
bebedouro. Ele acendeu um cigarro e disse:
— Fazer exercício ajuda. Quando acordei, minha cabeça estava
estourando. A gente fez o diabo ontem, não foi? Você chegou direito em
casa?
— Por que, estava tão mal assim?
— Não estava pior do que eu. Estava era se sentindo bem à beça. O
jeito como você falava… Frank e Jesse estavam com os mamilos num
espremedor e você estava prestes a girar a manivela.
— Você acha que eu estava sendo muito otimista?
— Ora, tudo bem. — Tragou seu Camel. — Quanto a mim, já estou
começando a me sentir humano de novo. O sangue começa a circular
melhor, você transpira e põe para fora um pouco do veneno, faz uma boa
diferença. Já trabalhou com pesos, Matt?
— Há muitos anos.
— Mas costumava se exercitar?
— Ah, cem anos atrás pensei em me tornar boxeador.
— Sério? Você costumava lutar?
— Isso foi na época da escola. Comecei frequentando o ginásio da
ACM, levantando uns pesos, treinando Depois lutei algumas vezes pela
Liga Juvenil da Polícia, mas descobri que não gostava de levar socos no
rosto. E era desajeitado no ringue, me sentia desajeitado e não gostava da
sensação.
— Então conseguiu um emprego onde deixavam você carregar uma
arma.
— E um escudo e um cassetete. Ele riu.
— O corredor e o boxeador — disse. — Olha os dois agora. Você veio
aqui por um motivo.
— Foi.
— E aí?
— Sei quem eles são.
— Frank e Jesse? Está brincando.
— Não.
— Quem são eles? E como é que você conseguiu?
— Estava pensando em reunir a equipe hoje à noite. Depois da hora de
fechar, pode ser?
— A equipe? Que equipe?
— Todos os que participaram daquela caçada, no Brooklyn. Vamos
precisar de ajuda e não vejo sentido em chamar gente de fora.
— Vamos precisar de ajuda? O que é que vamos fazer?
— Hoje à noite, nada, mas quero reunir um conselho de guerra. Se
você concordar, claro.
Ele esmagou o cigarro num cinzeiro.
— Se eu concordar? Claro que concordo Quem é que você quer, Os
Sete Samurais? Não, nós éramos cinco. Os Sete Samurais Menos Dois.
Você, eu, Kasabian, Keegan e Ruslander. Hoje é o que, quarta-feira? Se eu
pedir com jeito, Billie pode fechar à uma e meia. Vou telefonar para
Bobby e falar com John. Você sabe mesmo quem são eles?
— Sei mesmo.
— Quer dizer, sabe especificamente ou…
— Tudo. Nomes, endereços, tudo.
— O pacote completo. E quem são eles?
— Lá pelas duas estarei no seu escritório.
— Vá se danar. E se você for atropelado por um ônibus nesse meio-
tempo?
— Aí o segredo morre comigo.
— Cara chato. Vou levantar alguns pesos. Você quer experimentar
esses bancos de levantar peso, apenas para aquecer os músculos?
— Não. Quero é um drinque.
Não tomei o drinque. Olhei um bar, mas estava muito cheio. Quando
voltei para o hotel, Jack Diebold estava sentado numa cadeira do lobby.
— Imaginei que fosse você — falei.
— Por que, o barman chinês me descreveu?
— Ele é filipino. Disse que era um velho gordo que não dava gorjetas.
— Quem é que dá gorjeta nos bares?
— Todo mundo.
— Você está brincando? Deixo gorjetas nas mesas, mas não dou
gorjeta quando estou em pé num balcão. Pensei que ninguém dava.
— Ei, qual é? Onde é que você anda bebendo? No Blarney Stone? No
White Rose?
Ele me olhou.
— Você está esquisito — falou. — Animado, bem-disposto.
— Bem, é que estou resolvendo um assunto.
— É?
— Sabe quando tudo se encaixa e as coisas ficam claras para você?
Tive uma tarde assim.
— Não estamos falando do mesmo caso, estamos? Olhei para ele.
— Você não estava falando sobre coisa alguma — respondi. — A que
caso se refere? Ah! Tommy, claro. Não, não estava falando sobre isso. Ali
não há nada para ser descoberto.
— Sei disso.
Lembrei-me de como começara o meu dia.
— Ele me telefonou de manhã. Para se queixar de você.
— Foi mesmo?
— Você o está importunando, ele disse.
— Estou e isso não está me ajudando em nada.
— Devo dar referências sobre seu caráter, dizer a você que ele é um
bom sujeito.
— Verdade? Bem, e ele é um bom sujeito?
— Não, ele é um imbecil. Mas posso estar sendo preconceituoso.
— Claro. Afinal, ele é seu cliente.
— Isso mesmo. — Nesse meio-tempo ele se levantara e nos
encaminhamos para a calçada em frente ao hotel. No meio-fio, um taxista
e um motorista da van de uma loja de flores estavam discutindo.
— Jack, por que é que você veio me procurar, logo hoje?
— Por acaso estava nas redondezas e pensei em você.
— Conta outra.
— Está bem. Fiquei me perguntando se você não teria alguma
novidade sobre o caso.
— Do Tillary? Não vai haver nada contra ele, e se eu encontrasse
alguma coisa, bem, ele é meu cliente.
— Não, estava pensando nos rapazes latinos. — Suspirou. — Por que
estou começando a ficar preocupado. Acho que vamos perder essa no
julgamento.
— Sério? Eles já admitiram o assalto.
-Já, mas declarando-se culpados do assalto encerram o caso. A
promotoria quer uma queixa de assassinato, e se for parar no tribunal
desse jeito, já vi que vamos perder.
— Vocês têm os artigos roubados, identificados pelos números de
série, encontrados na casa deles, têm as impressões digitais, têm…
— Merda. Você sabe o que pode acontecer num tribunal. De repente os
artigos roubados não são prova de nada, porque há uma tecnicalidade a
respeito da busca e apreensão, encontraram uma máquina de escrever
quando tinham de procurar por uma calculadora, ou um diabo desses. E
quanto às impressões digitais, bem, um deles esteve lá meses atrás
fazendo faxina para os Tillary e isso pode explicar as impressões, não é?
Posso ver um advogado esperto fazendo miséria com o nosso caso. E então
pensei, bem, se Matt achou alguma coisa boa, gostaria que me contasse.
Vai ajudar seu cliente se nós trancafiarmos Cruz e Herrera, não vai?
— Acho que sim. Mas não encontrei nada.
— Nada?
— Não que eu me lembre.

Acabei por levá-lo ao Armstrong's e pagar uns drinques para nós dois.
Dei uma gorjeta boa ao Dennis, só pelo prazer de ver a reação de Jack.
Depois voltei ao meu hotel e deixei um pedido na recepção para que me
acordassem à uma da manhã, mas, para garantir, ajustei o despertador
também.
Tomei um banho de chuveiro e sentei na beira da cama, olhando para a
cidade. O céu começava a escurecer, ficando naquele azul cobalto que dura
tão pouco.
Deitei-me, estirei o corpo, mas não esperava adormecer. A próxima
coisa de que me lembro é do telefone tocando; mal atendi e desliguei, o
despertador soou. Vesti-me, joguei um pouco de água fria no rosto e saí
para fazer jus ao meu dinheiro.
22
Quando cheguei, eles ainda esperavam Keegan Skip tinha arrumado
um bar em cima de um arquivo, com quatro ou cinco garrafas, alguns tira-
gostos e um balde com gelo No chão, uma geladeira portátil, de isopor,
cheia de cervejas. Perguntei se tinha sobrado café. Kasabian disse que era
possível que tivesse sobrado um pouco, foi à cozinha, voltou com uma
jarra térmica cheia e uma caneca, um pouco de creme e açúcar. Servi-me
de café puro, no qual, pelo menos naquele momento, não coloquei
nenhuma bebida.
Tomei um gole do café e ouvimos uma batida na porta da frente. Skip
foi atender e voltou com Billie.
— O atrasado — (No original, um jogo de palavras que mostra a
implicância do personagem Ruslander com Keegan The late Billie Keegan,
que tanto pode significar atrasado como O falecido Billie Keegan —
NOTA DA TRADUTORA) Billie Keegan — Bobby falou. Kasabian
serviu-lhe uma dose do mesmo uísque irlandês de doze anos que Billie
bebia no Armstrong's.
Conversamos um bocado, com brincadeiras e piadas. De repente, fez-
se um silêncio e, antes que recomeçasse o barulho, levantei e disse.
— Há uma coisa que preciso falar com vocês.
— Seguro de vida — Bobby Ruslander falou. — Quer dizer, alguma
vez vocês já pensaram nisso? Pensar mesmo, para valer?
Continuei:
— Skip e eu conversamos ontem à noite e chegamos a uma conclusão.
Os dois tipos com barbas e perucas, nós nos lembramos de já tê-los visto
antes. Foram eles que assaltaram o Morrisey's naquela madrugada.
— Aqueles dois tinham os rostos cobertos por lenços.
— Bobby falou. — Os de ontem à noite usavam máscaras, barbas e
perucas, como é que você pode saber que são os mesmos?
— Eram eles — Skip respondeu. — Pode acreditar. Dois tiros no teto?
Lembra?
— Não sei do que você está falando — disse Bobby.
— Bobby e eu só os vimos de longe na segunda à noite; você nem os
viu, não é, Kasabian? Não, claro que não, você estava do outro lado do
quarteirão. Você estava no Morrissey's no dia do assalto? Não me lembro
de você lá — falou Billie.
Kasabian disse que nunca ia ao Morrissey's.
— Então nós três não temos que opinar. Se vocês dois dizem que eram
os mesmos homens, digo ótimo. Isso é tudo? Porque, a não ser que eu
tenha perdido alguma coisa, ainda não sabemos quem são eles.
— Sabemos, sim Todos me olharam.
— Ontem à noite fiquei muito arrogante, dizendo para Skip que nós já
os tínhamos na mão, pois, como sabíamos que eles fizeram os dois
trabalhos, era só uma questão de nos concentrarmos neles. Acho que foi o
Wild Turkey falando, mas havia uma certa verdade nisso, e hoje tive sorte.
Sei quem eles são. Skip e eu estávamos certos, eles cometeram os dois
assaltos e eu sei quem eles são.
— E agora? — Bobby quis saber. — O que é que vamos fazer?
— Depois falaremos nisso. Primeiro quero contar a vocês quem são
eles.
— Fale, fale.
— Eles se chamam Gary Atwood e Lee David Cutler. Skip os chama de
Frank e Jesse, como os irmãos James, e talvez tenha reconhecido um traço
familiar entre os dois. Atwood e Cutler são primos. Atwood vive no East
Village, lá para os lados de Alphabet City, na Nona Avenida, entre a ruas B
e C. Cutler mora com a namorada. Ela é professora e mora em Washington
Heights. Seu nome é Rita Donegian.
— Uma armênia — Keegan observou. — Deve ser sua prima, John. O
enredo fica mais intrincado.
— Como é que você os achou? — Kasabian perguntou. — Eles já
assaltaram antes? São fichados?
— Acho que não têm ficha. Não chequei isso ainda porque não me
pareceu importante. Provavelmente têm cartão Equity.
— O quê?
— Cartão de membros do Actors Equity. São atores.
— Você está brincando — disse Skip.
— Não.
— Raios me partam. Encaixa perfeitamente. Perfeitamente.
— Você percebe?
— Claro que sim. Explica os sotaques. Por isso é que pareciam
irlandeses quando assaltaram o Morrisey's. Não disseram uma palavra, não
fizeram nada irlandês, mas pareciam irlandeses porque estavam
representando. — Olhou zangado para Bobby. — Atores — disse. — Fui
assaltado por malditos atores.
— Você foi roubado por dois atores. Não pela categoria inteira.
— Atores — Skip continuou. — John, nós pagamos cinquenta mil
dólares a uma dupla de atores.
— Eles tinham balas de verdade em suas armas — Keegan lembrou-
lhe.
— Atores. Devíamos ter pago com dinheiro de mentira.
— Não sei o que me fez pensar nisso. — Servi-me de mais café. — O
pensamento simplesmente surgiu. Mas logo que apareceu vi que podia ter
muitas origens. Primeiro, uma sensação indefinível, alguma coisa estranha
neles, alguma coisa que nos dizia que assistíamos a uma performance. E a
performance no Morrissey's foi muito diferente da que nos foi oferecida
na noite de ontem. Uma vez sabendo que eram os mesmos homens, a
diferença em seus modos tornou-se digna de nota.
— Não vejo por que isso faz com que sejam atores. Só ficamos
sabendo que são trapaceiros — Bobby falou.
— Houve outros detalhes — continuei. — Moviam-se como pessoas
que estão profissionalmente conscientes de seus movimentos. Skip, você
comentou que eles poderiam ser dançarinos, que seus movimentos
poderiam ser coreografados. E um deles disse uma fala tão fora do texto
que só podia ser parte da pessoa, já que não fazia parte do papel que
interpretava.
— Que fala foi essa? — Skip perguntou. — Eu estava lá quando foi
dita?
— No porão da igreja. Quando você e o cara com a peruca amarela
começaram a arrumar os móveis, a tirá-los do caminho.
— Sim, mas o que foi que ele falou?
— Alguma coisa a respeito de não saber se o sindicato iria aprovar.
— É, eu me lembro dele dizendo isso. Foi uma frase estranha, mas não
chamou a minha atenção.
— Nem a minha, mas ficou gravada. E a voz dele estava
completamente diferente quando disse isso.
Skip fechou os olhos, rememorando a cena.
— Você está certo — falou.
— Por que isso faz dele um ator? Só o que prova é que ele é membro
do sindicato — Bobby comentou.
— O sindicato dos ajudantes de palco é muito forte — falei — e eles
se asseguram de que os atores não estão transportando cenários ou fazendo
coisas que poderiam estar tirando emprego de um ajudante Foi mesmo
uma fala de ator e o jeito como ele falou se encaixa com essa
interpretação.
— Como é que você chegou neles? — perguntou Kasabian. — Quando
soube que eram atores, ainda assim estava muito longe de descobrir seus
nomes e endereços.
— Orelhas — Skip falou. Todos olharam para ele.
— Ele desenhou as orelhas deles — disse, apontando para mim. — No
seu bloco de notas. As orelhas são a parte mais difícil de disfarçar. Não
olhem para mim, aprendi com o mestre. Ele desenhou as orelhas deles.
— E fez o quê? — Perguntou Bobby. — Anunciou uma audição
pública e saiu olhando as orelhas de todo mundo’
— Você pode folhear álbuns — Skip falou. — Olhar as fotos que os
atores tiram para publicidade e procurar o par certo de orelhas.
— Nos retratos para passaporte, as duas orelhas têm que estar visíveis
— acrescentou Billie.
— Senão?
— Eles não lhe dão o passaporte.
— Pobre Van Gogh. “O Homem Sem País” — foi o comentário de
Skip.
— Como é que você os encontrou? — Kasabian insistia em saber. —
Não pode ter sido pelas orelhas.
— Não, claro que não — respondi.
— A placa do carro. Já se esqueceram da placa? — Billie perguntou.
— A placa estava na lista dos carros procurados Quando concluí que
eram atores, fui até a igreja. Sabia que não escolheram aquela igreja ao
acaso e a invadiram. Tinham acesso a ela, com certeza até uma chave. De
acordo com o pastor, são muitos os grupos comunitários que têm ou
tiveram acesso ao porão, e provavelmente há muitas chaves em circulação.
Por acaso um dos grupos que ele mencionou era um grupo de teatro
amador que tinha usado o porão para ensaios e testes.
— Hum!
— Telefonei para a igreja, deram-me o nome de alguém ligado ao
grupo de teatro. Consegui falar com essa pessoa e expliquei-lhe que estava
tentando contatar um ator que tinha trabalhado com aquele grupo uns
meses atrás. Dei uma descrição física que servia para qualquer um dos
dois. Lembrem-se, a não ser por uma pequena diferença na altura, eles
tinham um tipo físico muito parecido.
— E deram um nome?
— Alguns nomes. Um deles foi o de Lee David Cutler.
— E acendeu-se uma luz — Skip falou.
— Que luz? Essa foi a primeira vez que esse nome apareceu, não foi?
Ou perdi alguma coisa? — Kasabian quis saber.
— Não, você está certo — respondi. — A essa altura, Cutler era apenas
um dos nomes em meu bloco de notas. O que eu precisava fazer era
associar esse nome ao outro crime.
— Que outro crime? Ah, o do Morissey's. Mas como? Ele é o único
dono de bar que não contrata garçons ou barmen. Tem a família
trabalhando para ele.
— E no térreo do Morrissey's, Skip, tem o quê?
— Ah! — ele respondeu.
— Aquele teatro irlandês. A Companhia de Repertório dos Burros, ou
seja lá que nome tenha — falou Billie Keegan.
— Fui lá hoje à tarde. Estavam no ensaio geral de uma nova peça, mas
mencionei o nome de Tini Pat e consegui conversar uns minutos com uma
jovem atriz. Eles têm fotos em exibição no hall de entrada, fotos
promocionais individuais de cada membro do elenco. Fotos só do rosto,
para publicidade. Ela me mostrou pôsteres dos vários elencos de peças que
foram encenadas no ano passado. Eles fazem pequenas temporadas,
sabem, por isso encenaram muitas peças.
— E?
— Lee David Cutler estava em Donnybrook, uma peça de Brian Friel
que puseram em cena na última semana de maio e na primeira semana de
junho. Reconheci seu retrato antes de ler o nome. E reconheci a foto do
primo também. A semelhança familiar é mais evidente quando não estão
disfarçados. De fato, é inquestionável. Talvez isso tenha contribuído para
que conseguissem papéis, já que não pertencem ao elenco regular. Mas
interpretaram dois irmãos, portanto a semelhança foi definitivamente uma
vantagem.
— Lee David Cutler. E qual é o nome do outro? Alguma coisa Atwood
— perguntou Skip.
— Gary Atwood.
— Atores.
— Isso.
Bateu a ponta do cigarro nas costas da mão, colocou-o na boca,
acendeu.
— Atores. Atuavam na peça no térreo e decidiram subir na vida, não é?
Foi ali que lhes veio a ideia de dar um golpe no Morrissey's.
— Provavelmente.
Tomei mais um gole de café. A garrafa de Wild Turkey estava bem ali,
em cima do arquivo, atraindo meus olhos, mas eu não queria tomar nada
que me deixasse menos atento. Estava satisfeito por não estar bebendo e
igualmente satisfeito por ver que os outros bebiam.
— Devem ter ido lá em cima uma ou duas vezes durante a temporada
— prossegui. — Talvez tenham ouvido falar no armário trancado, talvez
tenham visto Tini Pat guardando dinheiro ali, ou retirando. De uma
maneira ou de outra, devem ter chegado à conclusão de que era barbada
assaltar aquele bar.
— Se a pessoa viver para gastar o dinheiro…
— Talvez não soubessem o bastante para temer os Morrissey. Isso é
possível. Pode ser que tenham começado tudo como uma brincadeira,
como se encenassem uma peça, interpretando membros de uma outra
facção irlandesa, pistoleiros de alguma peça antiga sobre as convulsões
políticas no Norte da Irlanda. Depois se entusiasmaram com as
possibilidades visualizadas, saíram, compraram umas armas e encenaram
sua peça.
— Assim, sem mais nem menos. Encolhi os ombros:
— Talvez já tivessem feito outros assaltos antes. Não há nenhuma
razão para crer que aquela era sua estreia.
— Deve ser melhor do que levar o cachorro dos outros para passear ou
arranjar um emprego provisório num escritório — Bobby comentou. —
Que diabos, um ator precisa ganhar a vida. Talvez eu devesse comprar uma
máscara e uma arma.
— Você às vezes atende clientes no bar — Skip respondeu. — A ideia
é mais ou menos a mesma e você não precisa de coadjuvantes.
— Por que é que nos escolheram? Começaram a frequentar isso aqui
enquanto trabalhavam no teatro irlandês? — Kasabian perguntou.
— Talvez.
— Mas isso não explica como souberam sobre os livros. Skip, alguma
vez esses caras trabalharam para a gente? Atwood e Cutler? Nós
conhecemos esses nomes?
— Acho que não.
— Eu também não — falei. — Pode ser que eles conhecessem o lugar,
mas isso não é importante. Com certeza não trabalharam aqui, pois não
conheciam Skip.
— Isso pode ter sido parte da encenação.
— Pode ser. Mas, como já disse, isso é o menos importante. Eles
tinham um homem aqui dentro que roubou os livros e organizou tudo para
o pedido de resgate.
— Um homem aqui dentro?
— Foi isso que pensamos desde o início, lembra? Foi por isso que você
me contratou, Skip. Em parte para que a troca ocorresse sem tropeços e
também para descobrir, depois de tudo concluído, quem foi que armou
essa para vocês.
— Certo.
— Bem, foi assim que conseguiram os livros e foi assim que souberam
sobre vocês. Pelo que sei, eles nunca puseram os pés no Miss Kitty's Nem
precisavam. Tinham tudo mastigado para eles.
— Pelo tal informante.
— Isso mesmo.
— E você sabe quem é esse homem?
— Sei.
A sala ficou em silêncio. Fui até o arquivo e peguei a garrafa de Wild
Turkey. Servi uma boa dose num copo com gelo e coloquei a garrafa de
novo onde estava. Segurei o copo sem provar da bebida. Não tinha tanta
vontade assim de beber, mas de prolongar o momento e deixar a tensão
crescer.
— O informante tinha um papel importante. Avisar Atwood e Cutler
que conhecíamos a placa do carro.
— Pensei que o carro fosse roubado — Bobby falou.
— Deram queixa do roubo do carro. Por isso a placa foi parar na lista
dos procurados. Roubado entre cinco e sete da noite, na segunda-feira, de
um endereço na Ocean Parkway.
— E daí?
— Essa foi a queixa apresentada na delegacia, e quando tomei
conhecimento disso não fiz o que deveria ter feito de imediato, que era
procurar saber o nome do proprietário do carro. Mas foi o que fiz hoje à
tarde. O carro é de Rita Donegian.
— A namorada de Atwood — Skip falou.
— Do Cutler. Mas isso não faz a menor diferença.
— Não estou entendendo nada — disse Kasabian — Ele roubou o carro
da namorada? Que confusão!
— Todo mundo cisma com os armênios — foi o comentário de
Keegan.
— Eles pegaram o carro dela. Atwood e Cutler. Depois receberam um
telefonema do cúmplice dizendo que a placa tinha sido vista. Então
telefonaram e deram queixa do roubo do carro, dizendo que fora roubado
umas horas antes e de um lugar bem longe, lá na Ocean Parkway. Hoje,
quando me aprofundei no assunto, fiquei sabendo também que a queixa só
foi apresentada quase que perto de meia-noite. Estou contando as coisas
meio fora de ordem. Na lista de carros procurados, o nome do dono do
Mercury roubado não era Rita Donegian. Era um nome irlandês, Flaherty
ou Farley, já esqueci, e o endereço era o da Ocean Parkway. Havia um
número de telefone, mas o endereço e o telefone não combinavam. Não
consegui achar o telefone do Flaherty, ou Farley, no catálogo. Então me
informei no departamento de trânsito e, pelo número da placa, descobri
que o carro pertence a Rita Donegian, com endereço na Cabrini Boulevard,
que fica em Washington Heights, bem longe da Ocean Parkway ou de
qualquer outro lugar no Brooklyn.
Bebi um pouco do Wild Turkey.
— Telefonei para Rita Donegian. Apresentei-me como um policial
checando rotineiramente a lista de carros procurados, para saber quais
tinham sido recuperados e quais ainda estavam desaparecidos. Ah, sim, ela
falou, recuperamos o carro logo em seguida. Na verdade, ela achava que o
carro nem tinha sido roubado: seu marido bebera um pouco e se esquecera
de onde estacionara o carro. Mais tarde, encontrara o carro a uns dois
quarteirões de onde pensava ter estacionado, mas aí ela já tinha dado
queixa. Disse-lhe que com certeza algum funcionário cometera um erro,
pois tínhamos o carro listado como roubado no Brooklyn, quando ela
morava em Manhattan. Não, ela falou, é porque estavam visitando o irmão
de seu marido, no Brooklyn. Disse-lhe que havia um erro no nome
também, pois dava o proprietário como Flaherty, ou sei lá que nome falei.
Não, ela respondeu, não foi erro nenhum. Esse é o nome do irmão de seu
marido. Depois, meio atrapalhada, explicou que, na verdade, esse era o
nome do cunhado de seu marido, pois a irmã dele tinha se casado com um
homem chamado Flaherty.
— Uma pobre garota armênia sendo arruinada por um irlandês. Pense
nisso, Kasabian — falou Keegan.
Skip perguntou se alguma coisa do que ela dissera era verdade.
— Perguntei-lhe se ela era Rita Donegian e se era proprietária de um
Mercury Marquis, com placa LJK-914. Respondeu sim a ambas as
perguntas. Essa foi a última verdade que me disse O resto é um rosário de
mentiras e ela sabia que estava dando cobertura a eles, ou não teria sido
tão criativa. Ela não tem marido. Podia referir-se ao Cutler como seu
marido, mas só falava nele como senhor Donegian, e o único senhor
Donegian é seu pai. Não quis insistir muito, pois não queria que ela
desconfiasse que meu telefonema era mais do que uma checagem de
rotina.
— Alguém telefonou para eles depois da troca. Para contar que
tínhamos o número da placa — Skip falou.
— Isso mesmo.
— Quem sabia? Nós cinco e quem mais? Keegan, você ficou eloquente
e contou para uma sala cheia de gente como você foi o herói da noite e
anotou a placa do carro? Foi isso o que aconteceu?
— Fui me confessar e contei para o padre O'Houlihan.
— Estou falando sério, droga.
— Nunca acreditei mesmo naquele safado de olhos fugidios — Billie
acrescentou.
John Kasabian falou com delicadeza:
— Skip, acho que ninguém contou coisa alguma para qualquer outra
pessoa. Acho que é isso que Matt quer nos dizer. Que foi um de nós, não é,
Matt?
— Um de nós? Um de nós cinco? — perguntou Skip.
— Não foi isso, Matt?
— Isso mesmo. Foi Bobby — falei.
23
Fez-se um longo silêncio, com todos olhando para Bobby. De repente
Skip deu uma gargalhada assustadora, que ecoou ferozmente pelo
escritório.
— Matt, seu canalha! Você quase me pegou. Quase compro a sua
história.
— Mas é verdade, Skip.
— Por que sou ator, Matt? — Bobby sorriu para mim. — Você acha
que todos os atores se conhecem, da mesma maneira que Billie acha que
Kasabian deve conhecer a professora. Pelo amor de Deus, com certeza há
mais atores nesta cidade do que armênios.
— Dois grupos muito mal falados — Keegan declarou. — Atores e
armênios, ambos dados a passar fome.
— Nunca ouvi falar nesses caras Atwood e Cutler? São esses os seus
nomes? Nunca ouvi falar em nenhum dos dois.
— Não vai colar, Bobby. Você foi colega de classe de Gary Atwood na
Academia de Arte Dramática de Nova York. No ano passado, você
participou de uma exibição no teatro Galinda, na Segunda Avenida, e esse
é um dos créditos de Lee David Cutler.
— Você está falando daquele espetáculo sobre o Strindberg? Seis
apresentações para uma sala cheia de cadeiras vazias, em que nem o
diretor sabia do que se tratava? Ah, Cutler, um cara magro que fez o papel
de Berndt? É esse o cara?
Não falei nada.
— O Lew me confundiu. Todos o chamavam de Dave. Acho que me
lembro dele, mas…
— Bobby, seu filho-da-puta, você está mentindo! Ele virou-se, olhou
para Skip. E disse:
— Estou, Arthur? É isso que você pensa?
— É o que eu desgraçadamente sei. Conheço você Da vida inteira. Sei
quando você está mentindo.
— O Detector de Mentiras Humano. — Deu um suspiro. — Acontece
que você está certo.
— Não acredito.
— Bem, decida-se, Arthur. É difícil concordar com você. Ou estou
mentindo, ou não. O que é que você prefere?
— Você me roubou. Você roubou os livros, você me traiu. Como é que
pôde fazer isso? Seu merda, como é que você pôde fazer isso?
Skip estava em pé. Bobby ainda estava sentado, com um copo vazio na
mão. Keegan e John Kasabian estavam cada um de um lado de Bobby, mas
se afastaram um pouco, como se quisessem ficar com mais espaço.
Eu estava em pé, à direita de Skip e de olho em Bobby. Ele levou
algum tempo para responder, como se a resposta merecesse uma
consideração cuidadosa.
— Bem, para o inferno com tudo — disse, finalmente. — Por que
alguém faria isso? Eu precisava do dinheiro.
— Quanto é que eles deram a você?
— Pra falar a verdade, não foi muito.
— Quanto?
— Sabe, eu queria um terço. Eles riram. Queria dez, eles falaram
cinco, concordamos com sete. — Abriu as mãos. — Sou um péssimo
negociador, não sou um negociante. O que é que eu sei sobre barganhar?
— Você me ferrou por sete mil dólares.
— Ouça, queria que fosse mais. Acredite.
— Não brinque comigo, seu veado.
— Então pare de me dar falas tão fáceis, seu babaca. Skip fechou os
olhos. Gotas de suor se acumulavam em sua testa e os tendões do pescoço
eram visíveis. Suas mãos formaram punhos, relaxaram, tornaram a se
fechar. Respirava pela boca como um lutador entre os assaltos.
— Você precisava do dinheiro para quê?
— Ora, sabe, minha irmãzinha precisa ser operada.
— Bobby, não banque o palhaço comigo. Juro que mato você!
— É? Eu precisava do dinheiro, acredite, porque eu ia ser operado. Iam
quebrar as minhas pernas.
— Do que é que você está falando?
— Estou falando sobre um empréstimo que fiz de cinco mil dólares e
que coloquei num negócio de cocaína e deu em merda e eu tinha que pagar
os cinco mil porque não tinha feito o empréstimo no Chase Manhattan.
Não tenho nenhum amigo lá. Tomei emprestado de um cara em Woodside,
que me avisou que minhas pernas eram a única garantia que eu precisava
dar.
— E por que você se meteu num negócio de cocaína?
— Estava tentando ganhar algum, para variar. Tentando sair de baixo.
— Você faz isso parecer com o sonho americano.
— Foi é um raio de um pesadelo. O negócio desceu latrina abaixo, eu
ainda precisava pagar o empréstimo, tinha que comparecer com cem por
semana só para pagar a comissão. Você sabe como isso funciona. Você
paga cem por semana a vida inteira e ainda deve os cinco mil; não consigo
nem pagar as minhas despesas, que dirá arranjar cem por semana. Estava
atrasado e havia juros sobre juros e os sete mil que recebi do Cutler e do
Atwood já sumiram, cara. Paguei seis mil ao agiota para que largasse do
meu pé, paguei outras dívidas, fiquei com duas notas de cem na carteira.
Foi o que sobrou. — Encolheu os ombros. — Vem fácil, vai fácil. Não é
assim?
Skip pôs um cigarro na boca e ficou mexendo no isqueiro. Deixou-o
cair e, quando se abaixou para pegá-lo, sem querer jogou-o para baixo da
escrivaninha. Kasabian colocou a mão em seu ombro para ajudá-lo a se
equilibrar, depois acendeu um fósforo para ele. Billie Keegan se ajoelhou
e ficou procurando o isqueiro até achar.
— Você sabe quanto me custou? — perguntou Skip.
— Custei vinte para você e trinta para o Kasabian.
— Você custou a cada um vinte e cinco mil. Devo cinco ao Johnny, ele
sabe que vai receber.
— Você é quem sabe.
— Você nos custou cinquenta mil dólares para poder ficar com sete.
Do que é que estou falando? Você nos custou cinquenta mil dólares para
ficar liso.
— Já disse que não tenho cabeça para negócios.
— Você não tem é cabeça, Bobby. Você precisava do dinheiro, por que
não entregou seus amigos para o Tim Pat Morrissey por dez mil? Essa é a
recompensa que ele está oferecendo, três mil a mais do que os sete que
você levou.
— Não ia dedurá-los.
— Não, claro que não. Mas você nos jogaria, a mim e ao John, na
sarjeta, não é?
Bobby deu de ombros.
Skip jogou o cigarro no chão e pisou nele.
— Você precisava de dinheiro — disse —, por que não me procurou?
Quer me dizer? Podia ter me procurado antes de ir ao agiota. Ou quando o
agiota começou a pressionar, podia ter vindo a mim.
— Não queria pedir dinheiro a você.
— Não queria me pedir. Tudo bem me roubar, mas me pedir, não.
Bobby ergueu bem a cabeça e disse:
— É isso mesmo, Arthur. Não queria pedir a você.
— Alguma vez eu disse não?
— Não.
— Já fiz você rastejar?
— Já.
— Quando?
— O tempo todo. Deixa o ator representar o barman por um tempo.
Vamos colocar o ator atrás do balcão, mas vamos rezar para que ele não
distribua a loja toda. É uma piada, uma grande piada, a minha carreira.
Sou seu brinquedinho de dar corda, seu atorzinho de estimação.
— Você acha que não levo sua carreira a sério?
— Claro que acho.
— Não acredito no que estou ouvindo. Aquela droga daquela peça na
qual você trabalhou na Segunda Avenida, ferrando com o Strindberg,
quantas pessoas levei para assistir aquilo? Havia vinte e cinco pessoas na
plateia e vinte fui eu que levei.
— Para verem o seu ator de estimação. “Aquela droga em que você
atuou.” Isso é levar minha carreira a sério, Skippy querido. Isso é que é
apoio.
— Não acredito nisso. Você me odeia — Skip olhou para todos nós. —
Ele me odeia.
Bobby só ficou olhando para ele.
— Você fez isso para acabar comigo. Foi isso.
— Fiz pelo dinheiro.
— Eu teria dado o maldito dinheiro!
— Não queria pedir a você.
— Não queria me pedir. De onde você acha que saiu esse dinheiro, seu
veado? Você acha que veio de Deus? Acha que caiu do céu?
— Acho que mereci receber.
— Você o quê?
Bobby encolheu os ombros.
— Como estava dizendo, acho que mereci. Trabalhei para merecer.
Fiquei ao seu lado não sei quantas vezes, desde o dia em que peguei os
livros. Fui naquela excursão de segunda-feira, fiquei o tempo todo ali,
participei de tudo. E vocês não desconfiaram de nada. Essa não foi a pior
interpretação jamais encenada.
— Apenas uma atuação.
— De um certo ponto de vista…
— Judas também foi muito bem. Foi indicado para o Oscar, mas não
pôde estar presente no dia da cerimônia de entrega dos prêmios.
— O seu Jesus é cômico, Arthur. Não é um papel para você.
Skip encarou-o, implacável:
— Não compreendo. Você não está nem um pouco envergonhado.
— Você ficaria mais feliz? Com uma pequena demonstração de
arrependimento?
— Você acha certo, não é? Colocar seu amigo num inferno, custar a ele
um bocado de dinheiro? Roubar dele?
— Você nunca roubou, não é, Arthur?
— Do que é que você está falando?
— Como é que você conseguiu vinte mil dólares, Arthur. O que é que
você fez, economizou o dinheiro do almoço?
— Nós desviávamos um pouco do lucro. Isso não é um grande segredo.
Você se refere ao fato de eu ter roubado do governo? Mostre-me alguém
que receba em dinheiro e que não faça isso.
— E como você conseguiu dinheiro para abrir o seu negócio? Como é
que você e o John começaram? Foi sonegando, também? Gorjetas que
você não declarou?
— E daí?
— Pois sim! Você trabalhava atrás do balcão no Jack Balkin's e
roubava com as duas mãos. Você fez de tudo, só não foi às mercearias
receber o depósito quando devolvia as garrafas vazias. Você roubou tanto
do Jack que é um espanto ele não ter tido que fechar o bar.
— Ele ganhou muito dinheiro.
— Ganhou, e você também. Você roubou, o Johnny roubou onde ele
trabalhava e, pasmem!, vocês dois conseguiram dinheiro para abrir um
negocio próprio. Por falar no sonho americano, esse é o sonho americano.
Roube de seu patrão até conseguir dinheiro suficiente para abrir o seu
próprio negócio e competir com ele.
Skip disse alguma coisa inaudível.
— O que é que você disse? Não ouvi, Arthur.
— Disse que barmen roubam. Todos sabem.
— Isso torna tudo honesto, não é?
— Não ferrei o Balkin. Ganhei dinheiro para ele. Você pode torcer as
coisas o quanto quiser, Bobby, mas não pode me transformar no que você
é.
— Não, você é o próprio santo, Arthur.
— Meu Deus — Skip murmurou. — Não sei o que fazer. Não sei o que
vou fazer.
— Eu sei. Você não vai fazer nada.
— Não vou?
Bobby sacudiu a cabeça.
— O que é que você vai fazer? Vai pegar a arma que está atrás do
balcão, voltar aqui e me dar um tiro? Você não vai fazer isso.
— Mas devia.
— É, mas não vai fazer. Você quer me bater? Você já nem está
zangado, Arthur. Você acha que deve estar com raiva, mas não está. Você
não está sentindo nada.
— Eu…
— Olhem, estou pregado. Se ninguém se opuser, vou encerrar a noite.
Ouçam, vocês dois, vou pagar tudo de volta, qualquer dia desses. Os
cinquenta inteirinhos. Quando eu me tornar um astro, sabem? Eu chego lá.
— Bobby.
— Até mais.

Depois de acompanharmos Skip até sua casa, depois que John pegou
um táxi, fiquei na esquina com Billie Keegan e disse-lhe que tinha
cometido um erro, que não devia ter contado a Skip o que descobrira.
— Não — ele falou. — Você fez bem.
— Agora ele sabe que seu melhor amigo o odeia. — Olhei para o alto
do Parc Vendôme. — Ele mora num andar alto. Espero que não resolva se
atirar pela janela.
— Não faz o tipo.
— Acho que não.
— Você tinha que contar. O que é que você podia fazer, deixar que ele
continuasse a achar que Bobby era seu amigo? Esse tipo de ignorância não
leva ao nirvana. O que você fez foi lancetar um furúnculo. Agora está
doendo pra burro, mas vai passar. Se deixasse ficar, só ia piorar.
— Pode ser.
— Acredite. Se Bobby se desse bem dessa vez, tentaria outra coisa.
Até Skip descobrir, porque não era suficiente ferrar o Skip, ele tinha que
esfregar o sal na ferida. Você está compreendendo?
— Estou.
— Concorda comigo?
— Talvez. Billie? Quero ouvir aquela canção.
— O quê?
— A taverna sagrada, corta o cérebro em fatias. Aquela que você que
você me fez ouvir.
— Last Call.
— Você não se incomoda?
— Não, suba. Tomaremos uns tragos.
Na verdade, não bebemos muito. Fui com ele até seu apartamento,
ouvimos a canção cinco vezes, seis vezes. Quando saí, ele tomou a me
dizer que eu tinha feito a coisa certa ao expor Bobby Ruslander. Mas eu
ainda não me convencera.
24
Dormi até tarde no dia seguinte. À noite fui ao Sunnyside Gardens, no
Queens, com Danny Boy Bell e dois amigos dele que moravam na parte
alta de Manhattan. No programa constava um peso médio, um garoto de
Bedford-Stuyvesant no qual os amigos de Danny Boy tinham uma
participação Ganhou a luta com folga, mas não achei que fosse uma
grande promessa.
No dia seguinte, uma sexta-feira, almoçava tarde no Armstrong's
quando Skip apareceu e tomou uma cerveja comigo. Acabara de sair da
academia e estava com sede.
— Eu hoje estava com muita força, Deus do céu. A raiva vai toda para
os músculos. Podia ter levantado o teto da academia. Matt? Eu o tratava de
forma condescendente?
— O que é que você quer dizer com isso?
— Toda aquela besteira de eu o tratá-lo como meu ator de estimação.
Isso é verdade?
— Acho que ele estava procurando uma maneira de se justificar.
— Não sei. Talvez eu aja daquela maneira, exatamente como ele disse.
Lembra quando você ficou queimado porque paguei sua conta aqui?
— E daí?
— Talvez eu fizesse isso com ele. Mas numa escala maior. — Acendeu
um cigarro e teve um acesso de tosse. Ao se recuperar, falou: — Dane-se,
o cara é asqueroso. Só isso. Vou é esquecer tudo.
— O que mais você pode fazer?
— Gostaria de saber. Ele vai pagar quando for rico e famoso, gostei
dessa parte. Há alguma maneira de a gente recuperar o dinheiro daqueles
dois outros merdas? Sabemos quem são eles.
— Você vai ameaçá-los com quê?
— Sei lá. Com nada, acho. Na outra noite você nos reuniu para um
conselho de guerra, mas aquilo foi só para armar o palco, não foi? Para ter
todos a postos quando expusesse o Bobby.
— Achei que seria melhor.
— Foi. Mas quanto a formar um conselho de guerra, com esse nome ou
outro qualquer, e calcular uma maneira de coagir esses atores e recuperar
nosso dinheiro…
— Não vejo como.
— Não, nem eu. Vou fazer o que, assaltar os caras que me assaltaram?
Não faz meu gênero. E depois, é só dinheiro. Quer dizer, no fundo é só
isso. Esse dinheiro estava num cofre bancário, eu não estava ganhando
nada com ele, agora ele não existe mais e que diferença isso faz na minha
vida? Você compreende?
— Acho que sim.
— Só queria esquecer, porque isso fica girando, girando, girando na
minha cabeça. Só queria esquecer.

Meus filhos vieram passar aquele fim de semana comigo. Era nosso
último fim de semana juntos, antes que fossem para o acampamento.
Peguei-os na estação sábado pela manhã e coloquei-os no trem de volta
domingo à noite. Fomos ao cinema, disso eu me lembro, e acho que
passamos a manhã de domingo explorando Wall Street e arredores e o
mercado de peixes Fulton, mas isso talvez tenha sido em outro fim de
semana. Às vezes esses fins de semana se misturam nas minhas
lembranças.
Passei a noite de domingo no Village e só voltei para o hotel quase de
madrugada. O telefone me despertou no meio de um sonho angustiante,
um exercício de frustração acrofóbica: eu ficava tentando sair de um
passadiço perigoso, mas não conseguia alcançar o chão. Peguei o telefone.
Uma voz rouca falou:
— Bem, não foi do jeito que eu queria, mas ao menos não temos que
nos preocupar em perder no tribunal.
— Quem está falando?
— Jack Diebold. O que é que há com você? Parece que ainda está meio
dormindo.
— Agora já acordei. Do que é que você está falando?
— Você não leu o jornal?
— Eu estava dormindo. O que…
— Você sabe que horas são? Quase meio-dia. Você está fazendo um
horário de cafetão, seu filho-da-mãe.
— Nossa!
— Vá comprar um jornal. Telefono de novo dentro de uma hora.

O News trazia a notícia na primeira página. “Suspeito de assassinato


enforca-se na cela”, com chamada para a página três.
Miguelito Cruz tinha rasgado sua roupa em tiras, amarrado as tiras
com nós, colocado sua cama de ferro deitada de lado, subido nela,
enrolado em um cano no teto a corda que fizera e saltado da cama revirada
para o outro mundo.
Jack Diebold não me telefonou de volta, mas naquela tarde, no jornal
das seis, a TV mostrou o resto da história. Ao saber da morte do amigo,
Angel Herrera resolvera desmentir a versão original e confessou que ele e
Cruz tinham concebido e realizado o assalto na casa dos Tillary. Miguelito
ouvira barulho no andar de cima, pegara uma faca e subira para ver o que
era. Havia esfaqueado a mulher até a morte enquanto Herrera olhava
apavorado. Miguelito sempre tivera um temperamento irascível, Herrera
disse, mas eram amigos, mais do que isso, primos, e tinham combinado
aquela versão para proteger Miguelito. Mas, agora que Miguelito estava
morto, Herrera podia confessar o que realmente acontecera.

O mais engraçado é que me deu vontade de ir a Sunset Park. O caso


estava encerrado para mim, para todo mundo, mas eu me sentia como se
tivesse que percorrer os bares da Quarta Avenida, pagai drinques com rum
para as damas e comer daquelas fatias de bananas fritas.
Claro que não fui. Nem pensei nisso a sério. Tive apenas a sensação de
que era algo que deveria fazer.
Naquela noite fui ao Armstrong's. Não estava bebendo nem muito
pesado, nem muito depressa, mas estava me dedicando ao assunto, quando,
lá pelas dez e meia ou onze horas, a porta se abriu e eu soube quem era
antes mesmo de me virar e olhar. Tommy Tillary, todo enfatiotado e
recém-barbeado, fazia sua primeira aparição no Armstrong's desde que sua
mulher fora assassinada.
— Ei, olhem quem voltou — declarou alegremente e riu aquele seu
riso largo. As pessoas se levantaram para ir apertar sua mão. Billie estava
no bar e, mal acabou de oferecer uma dose por conta da casa para nosso
herói, Tommy insistiu em pagar uma rodada para todos. Um gesto caro,
eram umas trinta ou quarenta pessoas, mas acho que ele não se importaria
se fossem trezentas ou quatrocentas.
Fiquei onde estava, deixando que os outros o cercassem, mas ele abriu
caminho até onde eu estava e passou um braço em volta dos meus ombros.
— Esse é o homem — anunciou. — O melhor detetive que já pisou
nesta cidade. O dinheiro desse homem não vale nada nesta noite. Não pode
comprar um drinque, não pode comprar uma xícara de café e, se desde a
última vez em que estive aqui, vocês resolveram cobrar pelo uso do
banheiro, o dinheiro dele não vale para isso também.
— O banheiro ainda é de graça, mas não ponha ideias na cabeça do
Jimmy ou na minha — Billie falou.
— Não me diga que ele ainda não pensou nisso. Matt, meu menino, eu
amo você. Eu estava a perigo, parecia que o mundo ia desabar sobre mim e
você me salvou.
O que é que eu tinha feito? Não tinha enforcado Miguelito Cruz nem
arrancado uma confissão do Herrera. Não cheguei a pôr os olhos em
nenhum dos dois. Mas recebera dinheiro dele e parecia que ia ter que
aceitar sua generosidade.
Não sei quanto tempo ficamos lá. Curiosamente, o ritmo de minha
bebida diminuía enquanto o dele aumentava. Fiquei me perguntando por
que ele não trouxera Carolyn, não creio que desse muita importância às
aparências agora que o caso estava encerrado. E pensei na possibilidade de
ela aparecer. Era, afinal, o bar perto da casa dela, e não seria a primeira
vez que ela iria ter ali sozinha.
Não demorou muito e Tommy começou a me empurrar para fora do
Armstrong's; talvez eu não fosse o único a pensar que Carolyn poderia
aparecer. — Hoje é dia de festa — falou. — Não queremos ficar num lugar
até criar raízes. Queremos sair e agitar a noite.
Ele estava com o carro e eu fui, assim, à toa. Fomos a alguns lugares.
A um bar grego, barulhento, no East Side, onde todos os garçons pareciam
pertencer a uma gangue de pistoleiros. Também a dois bares de solteiros,
da moda, inclusive o de Jack Balkin, de onde Skip teria tirado dinheiro
suficiente para abrir o seu Miss Kitty's. Finalmente, a uma cervejaria
cavernosa, no Village; depois de estar lá algum tempo, reparei que aquele
lugar me lembrava o Fjord, o bar de noruegueses em Sunset Park. Naquele
tempo eu conhecia bastante bem os bares do Village, mas aquele ali era
novidade para mim e nunca mais consegui achá-lo. Talvez não ficasse no
Village e sim em Chelsea. Era ele quem estava dirigindo e eu não prestei
muita atenção no trajeto.
Fosse onde fosse, era um lugar tranquilo, onde era possível conversar.
Quando dei por mim, estava perguntando ao Tommy o que eu fizera para
merecer tão generosos elogios. Um homem se matara e o outro acabara
confessando; qual fora a minha parte nesses incidentes?
— As coisas que você descobriu.
— Que coisas? Deveria ter conseguido restos de unhas cortadas, você
podia ter pedido a alguém que fizesse um vodu contra eles.
— Sobre Cruz e os veados.
— Ele estava sendo acusado de assassinato. Não se enforcou porque
ficou com medo que o pegassem por espancar gays quando era um
delinquente juvenil.
Tommy bebeu um gole de uísque. Depois contou:
— Há uns dois dias, um negrão chegou perto de Cruz na fila do rango.
Um crioulo enorme, grande como o edifício Seagram's. Disse ao Cruz:
“Espere até você ir para a Prisão Estadual de Green Haven. Todos vão
querer você como namorada. Antes de sair de lá, os médicos vão ter que
lhe fazer um rabo novo”.
Não falei nada.
— Kaplan falou com alguém, que falou com alguém e pronto. Cruz
pensou bem na hipótese de ser a boneca de metade dos irmãos de sangue
na cadeia, e a próxima notícia que tivemos foi que o maldito assassino
estava balançando no ar. E para o inferno com ele!
Eu quase não conseguia respirar. Fiquei tentando soltar minha
respiração enquanto Tommy foi ao bar buscar outra rodada. Não tinha
tocado ainda na que estava na minha frente, mas deixei que fosse comprar
outra dose para nós dois.
Quando ele voltou, falei:
— Herrera.
— Mudou a história. Contou tudo.
— E botou a culpa no Cruz.
— Por que não? Cruz não estava mais ali para se queixar. Foi Cruz
mesmo, mas quem é que vai saber ao certo quem foi que a matou e,
francamente, quem se importa? O fato é que você nos deu a alavanca.
— Para Cruz. Para que ele se matasse.
— E para Herrera. Os filhos dele lá em Porto Rico. Drew falou com o
advogado de Herrera e o advogado de Herrera falou com Herrera e a
mensagem foi, olhe, de qualquer modo você vai pagar pelo assalto e talvez
até pelo assassinato, mas, se contar a história certa, talvez pegue um
tempo menor do que se não contar e, o mais importante, aquele simpático
senhor Tillary já disse que o que passou, passou, e que todos os meses
haverá um bom cheque para sua mulher e filhos lá em Santurce.
No bar, dois velhos estavam revivendo os lances da luta Louis-
Schmeling. A segunda luta, aquela em que Louis puniu deliberadamente o
campeão alemão. Um dos velhos socava o ar, demonstrando o que dizia.
— Quem matou a sua mulher?
— Um dos dois. Se tivesse que apostar, apostaria no Cruz. Com
aqueles olhinhos parecendo duas contas, você olhava para ele de perto e
via logo que era um matador.
— Quando é que você o viu de perto?
— Quando estiveram lá em casa. Da primeira vez, quando fizeram a
faxina no porão e no sótão. Não contei que andaram retirando coisas
velhas lá de casa?
— Contou.
— Não da segunda vez, quando me limparam mesmo. Ele deu um
sorriso largo, mas continuei a olhar para ele até que seu sorriso ficou meio
inseguro.
— Foi Herrera quem trabalhou na sua casa. Você nunca viu Cruz.
— Mas Cruz também foi, deu uma mão ao amigo.
— Você nunca mencionou isso.
— Devo ter falado, Matt. Ou me esqueci. Que diferença isso faz?
— Cruz não era muito chegado ao trabalho braçal. Não teria ido ajudar
a carregar coisas pesadas. Quando foi que você olhou nos olhos dele?
— Deus do céu. Talvez tenha sido quando vi sua foto nos jornais,
talvez tenha ficado impressionado com ele e imaginado que tivesse os
olhos assim. Esqueça isso, sim?
Seja lá que tipo de olhos tinha, agora não estão enxergando mais nada.
— Quem a matou, Tommy?
— Ei, não disse para esquecer esse assunto?
— Responda à pergunta.
— Já respondi.
— Você a matou, não foi?
— Você está louco? E fale baixo, pelo amor de Deus. As pessoas
podem ouvir.
— Você matou sua mulher.
— Cruz a matou e Herrera confessou sob juramento. Isso não é
suficiente para você? E aquele desgraçado daquele seu amigo policial
revirou meu álibi de cabeça para baixo, fuçando tudo como um macaco
procurando piolho. Não há como eu ser o assassino.
— Claro que há.
— O quê?
Uma cadeira forrada em ponto de cruz, uma vista do Owl's Head Park.
O cheiro de poeira e, sobrepondo-se a isso, o cheiro de um raminho de
florzinhas brancas.
— Lírios-do-vale — falei.
— O quê?
— Foi assim que você a matou.
— Do que é que você está falando?
— O terceiro andar, o quarto onde a tia dela vivia. Senti seu perfume lá
em cima. Pensei que estivesse sentindo seu perfume por ter estado em seu
quarto antes, mas não era nada disso. Ela esteve lá em cima e eu percebi
vestígios de seu perfume. Foi por isso que aquele quarto me prendeu, senti
sua presença ali, o quarto estava tentando me dizer algo, que não consegui
captar.
— Não sei do que você está falando. Sabe o que é, Matt? Você está
meio embriagado, é isso. Amanhã, quando acordar, vai…
— Você saiu do escritório no fim do dia, correu para casa e a escondeu
no terceiro andar. O que é que você fez, drogou-a? Talvez tenha dado a ela
um “Boa-noite, Cinderela”, e a tenha deixado amarrada no terceiro andar.
Amarrada, amordaçada e desacordada. Depois voltou para Manhattan
correndo e saiu para jantar com Carolyn.
— Não estou ouvindo essa merda.
— Herrera e Cruz chegaram por volta da meia-noite, conforme
combinado. Achavam que estavam assaltando uma casa vazia. A sua
mulher estava amordaçada e escondida no terceiro andar e eles não tinham
nenhum motivo para ir até lá. Muito provavelmente, você, para ficar ainda
mais tranquilo, trancou a porta. Eles roubaram o que quiseram e foram
para casa, achando que tinham conseguido um dinheiro da melhor e mais
segura maneira que se podia imaginar.
Peguei meu copo. Depois me lembrei de que ele pagara pela bebida e
comecei a pousar o copo. Mas decidi que isso era ridículo. Da mesma
maneira que dinheiro não conhece o dono, o uísque também não se lembra
de quem pagou por ele.
Bebi.
— Algumas horas depois você pegou o carro e correu de volta para
Bay Ridge Talvez até tenha dado alguma coisa para sua namorada
adormecer Você só precisava de uma hora, hora e meia, e no seu álibi há
espaço suficiente para encontrar noventa minutos sobrando. A viagem não
demora tanto assim, não naquela hora da noite. Ninguém ia ver você
chegar. Só precisava ir ao terceiro andar, carregar sua mulher para o quarto
no segundo andar, esfaqueá-la até a morte, livrar-se da faca e voltar para a
cidade. Foi assim que você fez, Tommy. Não foi?
— Você é um merda, sabia?
— Diga-me que não foi você.
— Já disse.
— Diga de novo.
— Eu não a matei, Matt. Não matei ninguém.
— De novo.
— O que é que há com você? Eu não a matei. Deus, foi você quem me
ajudou a provar e agora tenta torcer tudo e botar a culpa em mim. Juro por
Deus que não a matei.
— Não acredito em você.
Um homem lá no bar falava sobre Rocky Marciano. Foi o melhor
boxeador que jamais houve, ele dizia. Não era bonito, não era elegante,
mas tinha uma coisa curiosa, estava sempre em pé no fim das lutas e o seu
oponente, não.
— Deus do céu. — Tommy fechou os olhos e colocou a cabeça entre as
mãos. Suspirou fundo, me olhou e disse: — Sabe, tem uma coisa
engraçada comigo. Pelo telefone sou tão bom vendedor quanto Marciano
era lutador. Sou o melhor que você pode imaginar. Juro que consigo vender
areia para os árabes. Posso vender gelo no inverno, mas cara a cara não
sou nada bom. Se não fosse pelos telefones, não conseguiria vender nada.
Por que será?
— Você é quem sabe.
— Juro que não sei. Costumava pensar que era o meu rosto, os olhos
ou a boca, sei lá. Eu não sei. Mas pelo telefone é uma barbada. Estou
falando com um estranho, não sei quem ele é ou que cara tem, ele não está
me vendo e não tem problema. Mas cara a cara, com alguém que conheço,
não sou nada bom. — Ele me olhou, seus olhos se desviando dos meus. —
Se estivéssemos falando pelo telefone, você compraria a minha história.
— É possível.
— Tenho certeza absoluta. Palavra por palavra, você compraria o
pacote inteiro. Matt, suponha que, só para argumentar, eu diga que a
matei. Foi um acidente, um impulso, estávamos ambos chateados por
causa do assalto, eu tinha metade da culpa e…
— Você planejou tudo, Tommy Estava tudo preparado e funcionou.
— A história que você contou, do jeito que contou, não há nada que
você possa provar.
Fiquei calado.
— E você me ajudou. Não se esqueça dessa parte.
— Não vou esquecer.
— De qualquer modo, eu não seria preso por isso, com ou sem sua
ajuda, Matt. O caso nem chegaria aos tribunais e, se chegasse, não daria
em nada. Você só me livrou de uma chateação. E quer saber mais?
— O quê?
— Tudo que aconteceu agora foi a bebida falando, a minha e a sua,
duas garrafas de uísque conversando. Foi só isso. Amanhã de manhã,
teremos esquecido tudo que dissemos aqui esta noite. Eu não matei
ninguém e você não disse que eu matei, está tudo bem, continuamos
camaradas. Certo? Certo?
Só fiquei olhando para ele.
25
Isso aconteceu na segunda à noite. Não me lembro exatamente quando
foi que falei com Jack Diebold, mas deve ter sido na terça ou na quarta.
Tentei achá-lo no serviço, mas acabei por encontrá-lo em casa. Jogamos
um pouco de conversa fora, depois falei:
— Sabe, pensei num jeito de ele ter cometido o crime.
— Onde é que você tem andado? Temos um morto e um que confessou
tudo; isso já é história.
— Sei disso, mas ouça. — E expliquei-lhe, como num exercício de
lógica aplicada, de que maneira Tommy Tillary poderia ter matado sua
mulher. Tive que repetir várias vezes até que ele pegasse o sentido, mas
assim mesmo ele não ficou entusiasmado.
— Não sei. Parece muito complicado. Você acha que ela ficou presa no
terceiro andar quantas horas, oito, dez? É muito tempo para ela ficar
assim, sem ninguém tomando conta. Suponha que ela acordasse, que desse
um jeito de se soltar? Aí ele ia estar com o dele na reta, não é não?
— Não por assassinato. Ela podia apresentar queixa por ter sido
amarrada, mas qual foi a última vez que um marido foi preso por isso?
— É, ele não correria nenhum risco até matá-la, e a essa altura ela já
estaria morta. Faz sentido. Mas assim mesmo, Matt, é um pouco forçado,
você não acha?
— Bem, só estava pensando de que maneira ele poderia ter agido.
— Na vida real as coisas nunca são assim.
— Acho que não.
— E se fossem você não ia conseguir nada com isso. Olhe só o tempo
que você levou explicando tudo para mim, que sou do ramo. Experimente
contar isso num tribunal de júri, com um advogado metido a besta
interrompendo a cada trinta segundos, contestando tudo? Do que os
jurados gostam é de alguém com cabelo gorduroso e pele azeitonada, uma
faca na mão e sangue na camisa, é disso que eles gostam.
— Tem razão.
— De qualquer maneira, o caso já é história. Sabe o que tenho agora?
Aquela família em Borough Park. Você leu?
— Dos judeus ortodoxos?
— Três judeus ortodoxos, mãe, pai e filho, o pai de barba, o filho com
os cabelos cacheados, sentados à mesa de jantar, os três levando um tiro na
nuca. É nisso que estou trabalhando. Quanto ao Tommy Tillary, agora não
me importa se ele matou Cock Robin ou os dois Kennedy.
— Bem, foi apenas uma ideia.
— E bem arrumadinha, concordo. Mas não é muito realista e, mesmo
que fosse, quem é que tem tempo para ela agora? Você entende?

Achei que era hora de uma bebedeira. Meus dois casos estavam
encerrados, embora não satisfatoriamente. Meus filhos estavam a caminho
do acampamento. O aluguel estava pago, minhas contas nos bares
acertadas, alguns dólares guardados no banco. Tinha, era o que me parecia,
todos os motivos do mundo para desaparecer por uma semana ou mais e
me embriagar.
Mas meu corpo parece que sabia que ainda ia acontecer alguma coisa
e, apesar de não ter ficado inteiramente sóbrio, também não me atirei na
bebedeira a que me julgava inteiramente merecedor. E foi mais ou menos
um dia ou dois depois dessa decisão que Skip me apareceu, quando eu
cuidava com carinho de uma xícara de café batizada com bourbon, em
minha mesa no Armstrong's.
Cumprimentou-me da porta. Foi até o balcão, tomou um drinque,
esvaziou o copo de uma vez Depois veio até a minha mesa, puxou uma
cadeira e caiu sentado nela.
— Tome — disse, e colocou um envelope pardo na mesa, entre nós
dois. Um envelope pequeno, do tipo que os bancos dão.
— O que é isso?
— Para você.
Abri. Estava cheio de dinheiro. Tirei um maço de notas e me abanei
com elas.
— Pelo amor de Deus, não faça isso, quer todo mundo seguindo você
pelas ruas? Guarde no bolso, conte quando chegar em casa.
— O que é isso?
— A sua parte. Guarde, está bem?
— Minha parte do quê?
Ele suspirou, impaciente comigo. Estava com um cigarro aceso e
tragou raivosamente, virando a cabeça para não soprar a fumaça
diretamente no meu rosto. — Sua parte nos dez mil. Você fica com a
metade. Metade de dez mil é cinco mil e é isso que tem dentro desse
envelope, e quer nos fazer um grande favor e guardar isso?
— Mas o que é isso de “minha parte”, Skip?
— A recompensa.
— Que recompensa.
Seus olhos me desafiaram:
— Ora, eu podia receber algum de volta, não é não? Não devia nada
àqueles veados. Não é?
— Não sei do que você está falando.
— Atwood e Cutler. Eu os entreguei ao Tim Pat Morrissey Pela
recompensa.
Olhei para ele.
— Não podia chegar para eles e pedir meu dinheiro de volta. Não
podia tirar um tostão do desgraçado do Ruslander, ele já tinha gastado
tudo. Fui lá e me sentei com Tim Pat. Perguntei-lhe se ele e os irmãos
ainda estavam dispostos a pagar a recompensa. Os olhos dele se
acenderam como duas estrelas. Dei-lhe os nomes e os endereços e pensei
que ele fosse me beijar.
Coloquei o envelope na mesa. Empurrei-o para perto dele e ele o
empurrou de volta.
— Isso não é meu, Skip.
— É seu, sim. Já contei a Tim Pat que metade era seu, que foi você
quem fez todo o trabalho. Pegue.
— Não quero. Já fui pago pelo que fiz. A informação era sua. Você a
comprou. Se você a vendeu para Tim Pat, a recompensa é sua.
Ele tragou mais uma vez.
— Já dei metade para Kasabian. Os cinco mil que lhe devia. Ele
também não queria receber. Eu lhe disse, ouça, pegue isso e estamos
quites. Ele pegou. E essa parte aqui é sua.
— Eu não quero.
— É dinheiro. Qual é o problema? Não falei nada.
— Olhe, só pegue, está bem? Se não quiser guardar, não guarde.
Queime, jogue fora, dê para alguém, não me importa a mínima o que você
vai fazer com ele. O que eu não posso é ficar com isso. Não posso. Você
compreende?
— Por que não?
— Que merda. Que boa merda. Não sei por que fiz isso.
— Do que é que você está falando?
— E eu faria tudo de novo. Isso é que é pior. Está me roendo, mas, se
tivesse que fazer tudo de novo, eu o faria.
— Faria o quê? Ele me olhou.
— Dei a Tim Pat três nomes e três endereços. — Pegou o cigarro entre
o polegar e o indicador e ficou olhando para ele. — Não quero ver você
fazendo isso — disse, e jogou o cigarro na minha xícara. Em seguida
falou: — Deus meu, o que foi que eu fiz? Sua xícara ainda estava pela
metade. Pensei que fosse a minha xícara e nem sequer tenho uma xícara. O
que é que há comigo? Desculpe, vou pegar outra para você.
— Esqueça o café.
— Foi reflexo, não estava pensando, eu…
— Skip, esqueça o café. Sente aí.
— Você tem certeza que não quer?
— Esqueça o café.
— Certo, está bem. — Pegou outro cigarro, bateu com ele na parte
interna do pulso.
— Você deu a Tim Pat três nomes.
— Foi.
— Atwood, Cutler e?
— E Bobby — falou. — Vendi Bobby Ruslander para ele.
Pôs o cigarro na boca, pegou o isqueiro e o acendeu. Com os olhos
semicerrados por causa da fumaça, falou.
— Eu o traí, Matt. Meu melhor amigo, só que ele não é meu amigo e
eu o delatei. Contei a Tim Pat que Bobby era o informante, que ele armou
tudo. — Olhou pra mim. — Você acha que sou um canalha?
— Não acho nada.
— Era uma coisa que eu tinha que fazer.
— Tudo bem.
— Mas você vê que eu não posso ficar com esse dinheiro.
— Parece que não.
— Mas ele pode escapar, sabe. Ele é ótimo em sair do aperto. Na outra
noite, meu Deus, ele saiu do escritório como se fosse o dono do lugar. O
Ator, agora vamos ver se ele tem uma atuação que o faça escapar dessa,
hein?
Não falei nada.
— Pode acontecer. Ele pode se safar.
— Pode.
Ele secou os olhos com as costas da mão.
— Eu amava aquele cara. Pensei, pensei que ele também me amasse.
— Inspirou bem fundo, depois soltou o ar. — Daqui em diante, não vou
amar mais ninguém. — Levantou-se. — De qualquer modo, acho que ele
tem uma chance razoável. Talvez saia dessa. — Talvez.

Mas não saiu. Nenhum deles. Lá pelo fim de semana os três


apareceram nos jornais, Gary Michael Atwood, Lee David Cutler e Robert
Joel Ruslander, os três encontrados em partes diferentes da cidade, as
cabeças cobertas por capuzes pretos, as mãos amarradas nas costas com
arame, cada um com um tiro na nuca, todos vindos da mesma pistola
automática, calibre 25. Rita Donegian foi encontrada ao lado de Cutler,
também encapuzada, com as mãos amarradas e com o mesmo buraco de
bala na nuca. Acho que ela estava atrapalhando.
Quando li sobre o caso, ainda estava com o dinheiro no envelope pardo
do banco. Ainda não tinha decidido o que fazer com ele. Não creio que em
algum momento tenha tomado uma decisão consciente, mas no dia
seguinte coloquei meu dízimo de quinhentos dólares na caixa de esmolas
da Saint Paul. Afinal, precisava acender um monte de velas. Enviei uma
parte do dinheiro para Anita, outra parte foi para o banco; em algum ponto
do caminho o dinheiro deixou de ser dinheiro de sangue e passou a ser,
bem, apenas dinheiro.
Achei que aquilo era o fim da história. Mas pensei assim o tempo todo
e o tempo todo me enganei.
O telefone tocou no meio da noite. Estava dormindo havia algumas
horas, mas o telefone me acordou e tateei até encontrá-lo. Levei um
minuto para identificar a voz do outro lado.
Era Carolyn Cheatham.
— Tinha que falar com você — falou —, porque você é um bebedor de
bourbon e um cavalheiro. Devia esse telefonema a você.
— O que foi?
— Nosso amigo comum me largou e conseguiu que me demitissem da
Tannahill & Company, para não ter que me ver no escritório. Uma vez que
eu já não era necessária, cortou o laço que nos unia. E sabe que ele fez isso
pelo telefone?
— Carolyn.
— Está tudo no bilhete — ela continuou. — Estou deixando um
bilhete.
— Escute, não faça nada agora — falei enquanto saía da cama,
procurando pelas minhas roupas. — Vou já para aí. Vamos nos sentar e
conversar calmamente sobre tudo isso.
— Você não pode me impedir, Matthew.
— Não vou tentar impedir nada. Vamos conversar e aí você vai fazer o
que acha que deve fazer.
Um clique e o telefone ficou mudo.
Vesti-me às pressas, corri para lá, esperando que fossem pílulas,
alguma coisa que demorasse a agir. Quebrei uma pequena vidraça na porta
do prédio, consegui entrar e, com um cartão de crédito velho, empurrei a
lingueta da fechadura automática da porta do apartamento. Ela não tinha
passado o ferrolho, senão eu teria que arrombar a porta, mas ela não o fez
e assim foi mais fácil.
Senti o cheiro da pólvora antes mesmo de abrir a porta. Lá dentro, o
cheiro tomara conta de tudo. Ela estava estendida no sofá, com a cabeça
pendendo para um lado. Sua mão, caída de lado, ainda segurava a arma e
na sua têmpora havia um buraco com as bordas pretas.
Havia um bilhete, sim, escrito numa folha arrancada de um caderno
espiralado. Estava na mesa de centro, com uma garrafa vazia de Maker's
Mark, um bourbon, fazendo as vezes de peso. Ao lado da garrafa, um copo
vazio. A bebida era aparente em sua caligrafia e no texto ressentido e triste
do seu bilhete de despedida.
Li o bilhete. Fiquei em pé ali, alguns minutos, não por muito tempo,
não. Depois peguei um pano na cozinha, limpei a garrafa e o copo. Peguei
outro copo, igual àquele, lavei, sequei e coloquei no escorredor em cima
da pia.
Enfiei o bilhete no bolso. Tirei o revólver de sua mão, chequei seu
pulso, mais por hábito do que por qualquer outra coisa, depois peguei uma
almofada no sofá e dei dois tiros, abafados pela almofada. Um no tecido
mole logo abaixo das costelas e outro em sua boca aberta.
Meti a arma no bolso e saí de lá.

Acharam o revólver na casa de Tommy Tillary, na Colonial Road,


enfiado entre as almofadas do sofá da sala. Por fora, a arma estava sem
impressões digitais, limpinha, mas em seu interior, no pente de balas,
encontraram uma impressão claramente identificável. Era de Tommy
Tillary.
A balística verificou a bala encontrada no corpo de Carolyn. As balas
geralmente se estilhaçam quando perfuram um osso, mas o tiro no
abdômen não atingiu nenhum osso, por isso encontraram uma bala em
perfeito estado. Saíra indubitavelmente daquela arma.
Depois que a história saiu nos jornais, telefonei para Drew Kaplan.
— Eu não compreendo — falei. — Ele estava livre de qualquer
acusação, por que será que foi matar a garota?
— Pergunte a ele — foi sua resposta. Kaplan não parecia muito feliz.
— Quer a minha opinião? Ele é maluco. Sinceramente, não achava isso.
Pensei que ele pudesse ter matado a mulher, talvez sim, talvez não, não é
meu papel julgá-lo, certo? Mas não imaginava que o filho-da-mãe fosse
um maníaco homicida.
— Não há nenhuma dúvida de que foi ele quem matou a garota?
— Nenhuma que eu veja. A arma é uma prova muito forte. Sabe
quando se fala que fulano foi encontrado com a arma ainda fumegante em
sua mão? Foi o caso de Tommy, com a arma em seu sofá. O imbecil.
— Curioso ele guardar a arma.
— Talvez quisesse matar outras pessoas. Vá entender um maluco. Não,
a arma é uma prova danada, e também houve uma denúncia pelo telefone,
um homem telefonou avisando que ouvira uns tiros e que vira um homem
sair correndo do edifício, com uma descrição que servia melhor ainda no
Tommy do que suas roupas. Na realidade, as roupas fazem parte da
descrição. Estava com aquele seu blazer vermelho, aquela coisa cafona
que faz com que fique parecendo um lanterninha do antigo Brooklyn
Paramount.
— Vai ser difícil armar essa defesa.
— Bem, outra pessoa vai ter que fazê-lo. Disse ao Tommy que não
seria apropriado eu defendê-lo neste caso. O que significa que lavo minhas
mãos.

Pensei nisso tudo quando li que Angel Herrera saiu da cadeia há


poucos dias. Ficou preso dez, dos cinco a dez anos a que fora condenado,
porque era tão bom em se meter em confusão dentro como fora da cadeia.
Alguém matou Tommy Tillary com uma faca feita à mão, depois que
ele já cumprira dois anos e três meses da sentença a que fora condenado
por homicídio doloso. Na ocasião fiquei imaginado se não teria sido o
Herrera, para se vingar, mas suponho que nunca saberei ao certo. Talvez os
cheques para Santurce tivessem parado de chegar e Herrera tenha se
irritado. Ou talvez Tommy tenha feito o comentário errado para algum
outro cara da pesada, cara a cara, em vez de pelo telefone.
Tantas coisas mudaram, tantas pessoas foram embora.
O Antares and Spiro's, o bar grego da esquina, fechou. No local uns
coreanos abriram uma loja de frutas. O Polly's Cage agora é o Café 57,
mudou de desleixado para chique, o papel de parede vermelho, ondulado, e
o papagaio de néon há muito trocados. O Red Flame fechou e o Blue Jay
também. Há uma steak house chamada Diamond onde antes ficava o
McGovern's. O Miss Kitty's fechou um ano e meio depois de eles terem
recuperado os livros. John e Skip passaram o contrato de arrendamento e
desistiram do negócio. Os novos proprietários abriram um clube gay
chamado Kid Gloves, fechado dois anos depois, e outro estabelecimento
ocupou o lugar.
A academia onde eu vira Skip fazer seus exercícios fechou naquele
mesmo ano. Um estúdio de dança moderna ocupou o local e alguns anos
depois botaram o edifício abaixo e ergueram outro. Dos dois restaurantes
franceses que ficavam porta com porta, aquele onde jantei com Fran
fechou e o último inquilino do lugar é um restaurante indiano muito
elegante; o outro ainda está funcionando, mas nunca jantei lá.
Tantas mudanças.
Jack Diebold morreu. Ataque do coração. Morreu seis meses antes de
eu ficar sabendo, mas também não tivemos muito contato depois do caso
Tillary.
John Kasabian deixou a cidade depois que ele e Skip venderam o Miss
Kitty's. Abriu um boteco parecido nos Hamptons e ouvi dizer que se casou.
O Morrissey's fechou lá pelo fim de 1977. Tim Pat não compareceu ao
tribunal numa acusação federal de contrabando de armas e seus irmãos
desapareceram. Curiosamente, o teatro no térreo ainda funciona.
Skip morreu. Ficou meio perdido depois que o Miss Kitty's fechou,
passando cada vez mais tempo sozinho em seu apartamento. Então um dia
teve um ataque de pancreatite aguda e morreu na mesa de operação do
hospital Roosevelt.
Billie Keegan deixou o Armstrong's no início de 76, se bem me
lembro. Deixou o Armstrong's e deixou Nova York também; a última
notícia que tive foi que deixara definitivamente a bebida, que vivia ao
norte de San Francisco, fazendo velas ou flores de seda ou qualquer coisa
assim incongruente. Esbarrei em Dennis há um mês, mais ou menos, numa
livraria na Quinta Avenida, carregado de livros estranhos, sobre ioga,
espiritualismo e cura holística.
Eddie Koehler aposentou-se da polícia há uns dois anos. Recebi seus
cartões nos dois primeiros Natais, postados numa pequena aldeia de
pescadores situada naquela faixa estreita de terra na Flórida. Não soube
dele no ano passado, o que provavelmente significa que me retirou de sua
lista, que é o que acontece com quem não retribui cartões.
Meu Deus, onde é que foram parar os últimos dez anos? Já tenho um
filho na faculdade e outro servindo o Exército. Não sei dizer qual foi a
última vez que fomos a um jogo de beisebol juntos, que dirá a um museu.
Anita casou de novo. Ainda vive em Syosset, mas não envio mais
dinheiro para lá.
Tantas mudanças, desgastando o mundo como água que pinga num
rochedo. Deus sabe o porquê, mas no último verão a taverna sagrada
fechou, se você quiser chamá-lo assim: era época da renovação do
arrendamento do Armstrong's e Jimmy resolveu largar o lugar e agora há
um maldito restaurante chinês onde era o nosso boteco. Ele reabriu a um
quarteirão a leste, na esquina da Rua 57 com a Décima Avenida, mas fica
um pouco fora do meu caminho.
Em mais de um sentido. Porque eu não bebo mais, cada dia é um dia,
portanto não tenho mais nada que fazer em tavernas, sejam elas sagradas
ou profanas. Passo menos tempo acendendo velas e mais tempo nos porões
das igrejas, bebendo café sem bourbon e em xícaras de plástico.
Quando olho esses dez anos do meu passado, posso dizer que com
certeza agora teria agido de modo diferente, mas hoje está tudo diferente.
Tudo. Está tudo mudado, inteiramente mudado. Moro no mesmo hotel,
ando pelas mesmas ruas, vou a umas lutas ou a um jogo de beisebol como
sempre fiz, mas há dez anos estava sempre bebendo e agora não bebo
mais. Não me arrependo de nenhum dos drinques que tomei e confio em
Deus que nunca mais tomarei nenhum.
Porque esse, sabe, é o caminho menos percorrido no qual me encontro
hoje em dia, e ele fez toda a diferença. Ah, se fez! Toda a diferença.
Revisão: Mara Cristina Moro Daldin

Você também pode gostar