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CDD — 823
08-2546 CDU — 821.111-3
Produzido no Brasil
ISBN 978-85-01-08126-1
Robert Harris
Cap Bénat, 26 de julho de 2007
Eu não sou eu: vós não sois ele ou ela:
Eles não são eles.
EVELYN WAUGH,
Brideshead Revisited
Um
Ghostwriting
Ghostwriting
Ghostwriting
Ghostwriting
Once in a lifetime
You get to have it all
But you never knew you had it
Till you go and lose it all.[3]
Ghostwriting
Ghostwriting
27 de janeiro, 14:57
NOVA YORK (AP) — O ex-secretário de Relações
Internacionais britânico, Richard Rycart, pediu ao Tribunal
Penal Internacional de Haia para investigar as alegações
de que o ex-primeiro-ministro inglês Adam Lang teria
ordenado a entrega ilegal de suspeitos para tortura da
CIA.
O Sr. Rycart, que foi afastado do Gabinete pelo Sr.
Lang quatro anos atrás, atualmente é o embaixador
especial das Nações Unidas para assuntos humanitários
e um crítico notório da política externa dos EUA. Na
época em que deixou o governo Lang, o Sr. Rycart
sustentou que foi demitido por ser insuficientemente pró-
americano.
Em uma declaração feita de seu escritório em Nova
York, o Sr. Rycart afirmou que havia passado uma série
de documentos para o TPI algumas semanas atrás. Os
documentos — cujos detalhes vazaram para um jornal
inglês no fim de semana — supostamente revelavam que
o Sr. Lang, quando primeiro-ministro, autorizou
pessoalmente a captura de quatro cidadãos ingleses no
Paquistão há cinco anos.
O Sr. Rycart prosseguiu: “Pedi várias vezes, em
particular, que o governo inglês investigasse essa atitude
ilegal. Ofereci-me para testemunhar em um inquérito.
Ainda assim, o governo recusou-se sistematicamente a
até mesmo reconhecer a existência da Operação
Tempestade. Assim, não vejo outra alternativa, a não ser
apresentar as provas que tenho em mãos ao TPI.”
Ghostwriting
PRONUNCIAMENTO AGUARDADO
PARA HOJE
Ghostwriting
Capítulo Um
Juventude
Capítulo Um
Juventude
Ghostwriting
Ghostwriting
Para Ruth,
para meus filhos
e para o povo britânico
Ghostwriting
Ghostwriting
A CIA na Academia
A Agência Central de Inteligência atualmente está
usando várias centenas de acadêmicos americanos...
Paul Emmett...
www.spooks-on-campus.org/Church/listK1897a/html —11
k — Em cache — Páginas semelhantes
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Quando voltei para o meu flat, liguei para o celular dela. Ela
não pareceu surpresa em ter notícias minhas.
— Olá — disse ela. — Estava pensando agora mesmo em
você.
— Por quê?
— Estou lendo o seu livro, quero dizer, o livro de Adam.
— E?
— É bom. Não, na verdade, é melhor do que bom. É
como tê-lo de volta. Só está faltando uma coisa, na minha
opinião.
— O quê?
— Ah, não tem importância. Eu lhe digo se a gente se vir.
Quem sabe não conseguimos conversar hoje na festa?
— Que festa?
Ela riu.
— A sua festa, seu idiota. O lançamento do seu livro. Não
me diga que não foi convidado.
Fazia bastante tempo que eu não falava com ninguém.
Levei um ou dois segundos para responder.
— Não sei se fui ou se não fui. Para ser sincero, não
tenho conferido minha correspondência ultimamente.
— Você deve ter sido.
— Não aposte nisso. Autores costumam não gostar muito
de ter seus ghost-writers olhando para eles por sobre os
canapés.
— Bem, o autor não estará lá, não é mesmo? — disse
Amelia. Ela quis soar animada, mas acabou parecendo
deprimida e tensa. — Você deveria ir, independentemente
de ter sido convidado. Na verdade, se não tiver sido mesmo,
pode ir como meu convidado. Meu convite tem “Amelia Bly
e acompanhante” escrito nele.
A perspectiva de voltar à sociedade fez meu coração
disparar novamente.
— Mas você não quer levar outra pessoa? E quanto ao
seu marido?
— Ah, ele. Acabou não dando certo entre nós,
infelizmente. Eu não tinha percebido como era tedioso para
ele ser o meu “acompanhante”.
— Sinto muito.
— Mentiroso — disse ela. — Encontro você no final da
Downing Street, às sete da noite. A festa é bem em frente
do Whitehall. Só vou esperar cinco minutos; então, se você
decidir ir, não se atrase.
Meu nome não era mencionado. Por mais que isso irritasse
Rick, abri mão do crédito de colaborador. Não lhe disse o
motivo, ou seja, que achei que essa era a solução mais
segura. As informações cortadas e meu anonimato, eu
esperava, serviriam como uma mensagem para qualquer
pessoa de fora que estivesse atenta de que eu não causaria
mais problemas.
Enfiei-me em um banho durante uma hora naquela tarde
e refleti se deveria ou não ir à festa. Como sempre,
consegui prolongar minha procrastinação por horas. Dizia a
mim mesmo que ainda não tinha necessariamente me
decidido enquanto tirava a barba, enquanto colocava um
terno escuro decente e uma camisa branca, enquanto saía
para a rua e chamava um táxi, e até mesmo enquanto
estava parado na esquina da Downing Street às 18h55:
ainda não era tarde demais para voltar. Do outro lado do
bulevar amplo e luxuoso do Whitehall, eu podia ver os
carros e táxis estacionando diante da Casa de Banquetes,
onde eu achava que a festa estava acontecendo. Flashes de
fotógrafos espocavam no sol de fim de tarde, uma pálida
lembrança dos dias de glória de Lang.
Continuei procurando Amelia, subindo a rua em direção
ao oficial a cavalo diante do Palácio da Guarda Montada e
voltando novamente, passando pelo Ministério das Relações
Exteriores, até o hospício gótico vitoriano que era o Palácio
de Westminster. Uma placa na entrada da Downing Street
indicava o Gabinete de Guerra, com um desenho de
Churchill, com direito ao V de vitória e charuto. O Whitehall
sempre me faz lembrar do Ataque. Consigo visualizá-lo a
partir das imagens que me foram mostradas na infância: os
sacos de areia, as fitas brancas pelas janelas, os holofotes
dedilhando às cegas a escuridão, o zumbido dos
bombardeiros, o estrondo de explosivos pesados, o brilho
vermelho dos incêndios no East End. Trinta mil mortos
somente em Londres. Aquilo sim, como diria meu pai, era o
que se podia chamar de guerra — e não esse pinga-pinga
de transtornos, ansiedade e estupidez. Mesmo assim,
Churchill costumava caminhar até o Parlamento através do
St. James’s Park, levantando o chapéu para os transeuntes,
com apenas um detetive solitário andando três metros atrás
dele.
Ainda estava pensando sobre o assunto quando o Big
Ben acabou de soar a hora. Olhei novamente para os dois
lados, mas ainda não havia sinal de Amelia, o que me
surpreendeu, pois achava que ela era do tipo pontual. Mas
então eu senti alguém tocar a manga do meu paletó, e me
virei para encontrá-la parada atrás de mim. Ela emergira do
cânion sombrio da Downing Street em seu terninho azul-
escuro, carregando uma pasta. Parecia mais velha, apagada
e, por um breve instante, vislumbrei seu futuro: um
pequeno flat, uma agenda eletrônica, um gato. Nós nos
cumprimentamos educadamente.
— Bem — disse ela —, aqui estamos nós.
— Aqui estamos nós. — Ficamos um de frente para o
outro, sem jeito, separados por alguns metros. — Não sabia
que você estava trabalhando no Número 10 — falei.
— Eu tinha sido apenas transferida do Gabinete para
trabalhar com Adam. O rei está morto — disse ela e, de
repente, sua voz falhou. Abracei-a e afaguei suas costas,
como se ela fosse uma criança que tivesse levado um
tombo. Senti sua bochecha molhada contra a minha.
Quando ela se afastou, abriu a pasta e tirou um lenço. —
Desculpe — falou. Ela assoou o nariz e bateu com os pés de
salto alto no chão, repreendendo a si mesma. — Fico
pensando que já superei, mas aí percebo que não. Você está
péssimo — acrescentou ela. — Na verdade, parece...
— Um fantasma? — falei. — Obrigado. Já ouvi essa antes.
Ela se olhou no espelho do estojo de pó de arroz e fez
alguns ajustes ligeiros. Percebi que estava nervosa.
Precisava de alguém para acompanhá-la; até eu serviria.
— Certo — disse ela, fechando-o com um clique. —
Vamos lá.
Andamos até o Whitehall, passando pelas multidões de
turistas de primavera.
— Então, você foi mesmo convidado? — perguntou ela.
— Não, não fui. Na verdade, fiquei surpreso por você ter
sido.
— Ah, isso não é tão estranho — disse ela, tentando soar
casual. — Ela venceu, não foi? Ela é o ícone nacional. A
viúva de luto. Nossa própria Jackie Kennedy. Não vai se
incomodar comigo por perto. Nem chego a ser uma
ameaça; sou apenas um troféu na sua trajetória de vitórias.
— Atravessamos a rua. — Charles I saiu daquela janela para
ser executado — disse ela, apontando. — Era de se esperar
que alguém tivesse feito a associação, você não acha?
— Incompetência da equipe — falei. — Não teria
acontecido quando você estava no comando.
Logo que entrei, soube que tinha sido um erro vir. Amelia
teve de abrir sua pasta para os seguranças. Minhas chaves
fizeram o detector de metal disparar, e eu tive de ser
revistado. A coisa está preta, pensei, parado com as mãos
para cima, com um segurança tateando minha virilha,
quando você não pode ir nem sequer a um coquetel sem ser
revistado por alguém. No grande espaço aberto da Casa de
Banquetes, topamos com um rugido de pessoas falando e
uma muralha de costas viradas para nós. Eu fazia questão
de nunca ir às festas de lançamento dos meus próprios
livros e, naquele momento, me lembrei por quê. Um ghost-
writer é tão bem-vindo quanto o filho bastardo do noivo em
um casamento da alta sociedade. Eu não conhecia uma
alma.
Habilidosamente, agarrei duas taças de champanha de
um garçom que passava e dei uma para Amelia.
— Não estou vendo Ruth — falei.
— Ela deve estar no meio da confusão, imagino. A você
— disse ela.
Fizemos tintim. Champanha: mais sem sentido ainda do
que vinho branco, na minha opinião. Mas não parecia haver
nenhuma outra coisa.
— É Ruth, na verdade, o que está faltando no seu livro,
se eu tivesse de fazer uma crítica.
— Eu sei — respondi. — Queria colocar mais a respeito
dela, mas ela não quis.
— Bem, é uma pena. — A bebida parecia dar coragem à
geralmente cautelosa Sra. Bly. Ou talvez fosse apenas o fato
de que passáramos a ter um vínculo. Afinal de contas,
éramos sobreviventes; tínhamos sobrevivido aos Lang. De
qualquer forma, ela se inclinou para perto de mim,
oferecendo-me uma baforada familiar do seu perfume. — Eu
adorava Adam, e acho que ele sentia o mesmo por mim.
Mas eu não tinha nenhuma ilusão; ele jamais a teria
deixado. Ele me disse isso durante aquela última viagem
até o aeroporto. Eles eram uma dupla perfeita. Adam sabia
muito bem que não teria sido nada sem ela. Deixou isso
totalmente claro para mim. Ele devia a ela. Era ela quem
entendia de fato o poder. Originalmente, era ela quem tinha
os contatos dentro do partido. Na verdade, era ela quem
deveria ter chegado ao Parlamento, você sabia disso? Não
ele. Isso não está no seu livro.
— Eu não sabia.
— Adam contou-me uma vez. Não é todo mundo que
sabe; pelo menos nunca vi escrito em lugar nenhum. Mas
dizem que a cadeira dele estava originalmente reservada
para ela, só que no último minuto Ruth desistiu e deixou
que ele a assumisse.
Pensei na minha conversa com Rycart.
— O Membro de Michigan — murmurei.
— Quem?
— O dono da cadeira no Parlamento era um homem
chamado Giffen. Ele era tão pró-americano que era
conhecido como Membro de Michigan. — Algo se inquietava
na minha mente. — Posso lhe fazer uma pergunta? — falei.
— Antes de Adam ser assassinado, por que você estava tão
determinada a manter a sete chaves aquele manuscrito?
— Já disse: segurança.
— Mas não tinha nada nele. Eu sei disso melhor do que
ninguém. Li cada palavra entediante dele dezenas de vezes.
Amelia olhou em volta. Ainda estávamos à margem da
festa. Ninguém prestava a mínima atenção a nós.
— Aqui entre nós — disse ela baixinho. — Não éramos
nós que estávamos preocupados. Pelo jeito, eram os
americanos. Fui informada que eles disseram ao MI5 que
poderia haver algo no começo do manuscrito que era uma
ameaça em potencial à segurança do país.
— Como eles sabiam disso?
— Quem vai saber? Tudo que posso lhe dizer é que,
imediatamente depois da morte de McAra, eles nos pediram
para tomar cuidados especiais para que o livro não
circulasse antes que eles tivessem a chance de esclarecer
isso.
— E eles fizeram isso?
— Não faço ideia.
Pensei novamente no meu encontro com Rycart. O que
ele tinha dito que McAra lhe falara ao telefone, pouco antes
de morrer? “A chave para tudo está na autobiografia de
Lang; está tudo lá no começo.”
Isso significava que a conversa deles tinha sido
grampeada?
Senti que algo importante tinha acabado de mudar —
que alguma parte do meu sistema solar tinha alterado sua
órbita —, mas não conseguia entender bem o que era.
Precisava fugir para algum lugar silencioso, para repensar
tudo aquilo com calma. O rugido das conversas começou a
diminuir. As pessoas sussurravam umas com as outras. Um
homem exclamou pomposamente: “Silêncio!”, e eu me
virei. Em um dos lados do salão, de frente para as janelas
grandes, não muito distante de onde estávamos, Ruth Lang
esperava pacientemente em um palanque, segurando um
microfone.
— Obrigada — disse ela. — Muito obrigada. E boa noite.
— Ruth fez uma pausa, e uma grande quietude espalhou-se
por trezentas pessoas. Ela respirou fundo. Havia um nó na
sua garganta. — Sinto falta de Adam o tempo todo. Mas
nunca tanto quanto esta noite. Não só porque estamos
reunidos para lançar seu maravilhoso livro e porque ele
deveria estar aqui para compartilhar a alegria da sua
história de vida conosco, mas também porque ele era tão
brilhante como orador, enquanto eu sou horrível.
Fiquei surpreso com o seu profissionalismo ao proferir
aquela última frase, como ela foi aumentando a tensão
emocional para então cortá-la. A plateia soltou uma
gargalhada. Ela parecia muito mais confiante em público do
que eu me lembrava, como se a ausência de Lang tivesse
lhe dado espaço para crescer.
— Portanto — prosseguiu ela —, podem ficar aliviados,
pois não vou fazer um discurso. Gostaria apenas de
agradecer a algumas pessoas. Gostaria de agradecer a
Marty Rhinehart e John Maddox não só por serem editores
maravilhosos, mas também por serem grandes amigos.
Gostaria de agradecer a Sidney Kroll por sua inteligência e
por seus sábios conselhos. E, caso esteja parecendo que
todas as pessoas envolvidas nas memórias de um primeiro-
ministro britânico são americanas, eu também gostaria de
agradecer em particular, e especialmente, a Mike McAra,
que tragicamente também não pôde estar conosco. Mike:
você está em nossos pensamentos.
O grande salão retiniu com um clamor de “bravo, bravo”.
— E agora — disse Ruth —, vocês me permitam propor
um brinde à pessoa a quem realmente devemos agradecer?
— Ela ergueu seu copo de suco de laranja macrobiótico, ou
seja lá o que fosse. — À memória de um grande homem e
um grande patriota, um ótimo pai e um marido maravilhoso;
a Adam Lang!
— A Adam Lang! — todos rugimos em uníssono, e então
batemos palmas, e continuamos, redobrando o volume,
enquanto Ruth assentia graciosamente para todos os cantos
do salão, incluindo o nosso. Neste momento, ela me viu,
piscou, e então se recompôs, sorrindo e erguendo seu copo
para mim num cumprimento.
Ela desceu do palanque depressa.
— A viúva alegre — sibilou Ameba. — A morte lhe cai
bem, você não acha? Ela está florescendo a cada dia que
passa.
— Tenho a impressão de que ela está vindo para cá —
falei.
— Merda — disse Ameba, secando sua taça. — Neste
caso, estou dando o fora. Você gostaria de me levar para
jantar?
— Ameba Bly, você está me propondo um encontro?
— Vejo você lá fora em dez minutos. Freddy! — chamou
ela. — Que bom ver você.
No mesmo instante em que ela se afastou para falar com
outra pessoa, a multidão à minha frente pareceu se abrir, e
então Ruth surgiu, muito diferente da última vez em que eu
a havia visto: os cabelos brilhosos, a pele macia, mais
magra por causa da tristeza e vestindo algo preto e sedoso,
de grife. Sid Kroll estava com ela.
— Olá, você — disse ela. Pegou minhas mãos nas suas e
cumprimentou-me com dois beijinhos, sem encostar a boca
em mim, mas esfregando seu capacete grosso de cabelo
rapidamente nas minhas duas bochechas.
— Olá, Ruth. Olá, Sid.
Assenti para ele. Ele piscou.
— Disseram-me que você não suporta esse tipo de festa
— falou ela, ainda segurando minhas mãos, e fitando-me
com seus olhos pretos brilhantes. — Do contrário, eu teria
lhe mandado um convite. Você recebeu meu bilhete?
— Recebi. Obrigado.
— Mas não me ligou!
— Achei que poderia estar sendo apenas educada.
— Educada! — Ela balançou minhas mãos por um
instante, censurando-me. — Desde quando eu sou educada?
Você precisa me visitar.
E então ela fez aquele negócio que as pessoas
importantes sempre fazem comigo nas festas: olhou por
cima do meu ombro. E eu vi no seu olhar, quase
imediatamente e de maneira bastante inequívoca, um
lampejo de temor, que foi seguido de pronto por um
balançar quase imperceptível da sua cabeça. Soltei minhas
mãos, me virei e vi Paul Emmett. Ele estava a menos de
dois metros de distância.
— Olá — disse ele. — Acho que já nos conhecemos.
Voltei-me para Ruth. Tentei falar, mas as palavras não
saíam.
— Ah — falei. — Ah...
— Paul foi meu orientador — disse ela calmamente —
quando eu era bolsista da Fulbright, em Harvard. Eu e você
precisamos conversar.
— Ah...
Afastei-me de costas de todos eles. Bati em um homem
que protegeu seu drinque e alegremente me mandou
prestar atenção. Ruth estava falando algo com intensidade,
assim como Kroll, mas havia um zumbido em meu ouvido, e
eu não conseguia escutá-los. Vi Amelia olhando para mim e
acenei debilmente as mãos, então fugi do salão em direção
ao lobby e de lá para a grandiosidade vazia e imperial do
Whitehall.
Assim que cheguei lá fora, ficou claro que outra bomba
tinha explodido. Eu podia ouvir as sirenes ao longe, e um
pilar de fumaça já tornava a Nelson’s Column pequena,
subindo de algum lugar atrás da Galeria Nacional. Saí
correndo a passos largos em direção à Trafalgar Square e
passei na frente de um casal indignado para pegar o táxi
deles. Rotas de fuga estavam sendo fechadas por todo o
centro de Londres, como em um incêndio florestal se
espalhando. Dobramos em uma rua de mão única, mas
apenas para encontrar a polícia fechando o final dela com
fita amarela. O motorista deu a ré no táxi, jogando-me para
a frente até a beirada do assento, e foi assim que fiquei até
o fim da corrida, agarrado à alça ao lado da porta, enquanto
serpenteávamos e manobrávamos pelas ruas secundárias
na direção norte. Quando chegamos ao meu flat, paguei-lhe
o dobro do preço da corrida.
A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está
tudo lá no começo.
Apanhei meu exemplar final do livro, levei-o até minha
mesa e comecei a folhear os capítulos iniciais. Corri meu
dedo depressa até o meio das páginas, passando os olhos
por todos aqueles sentimentos inventados e lembranças
feitas de meias-verdades. Minha prosa profissional,
impressa e encadernada, havia transformado a aspereza de
uma vida humana em algo tão regular quanto uma parede
rebocada.
Nada.
Atirei o livro longe, enojado. Que lixo imprestável ele era:
que exercício comercial sem alma. Fiquei feliz por Lang não
estar mais lá para lê-lo. Na verdade, preferia o original: pela
primeira vez, reconheci algo de honesto na sua laboriosa
sinceridade. Abri uma gaveta e peguei o manuscrito original
de McAra, desgastado pelo uso e com alguns trechos
praticamente ilegíveis sob meus cortes e correções.
Capítulo Um. Minha família, os Lang, é originária da Escócia
e se orgulha disso. Lembro-me daquele começo imortal que
eu havia cortado de forma tão implacável em Martha’s
Vineyard. Porém, pensando melhor, todos os começos de
capítulo de McAra eram particularmente horrorosos. Não
tinha deixado um só intacto. Vasculhei as páginas soltas, o
manuscrito volumoso abrindo-se em um leque e se
contorcendo nas minhas mãos desajeitadas como se fosse
uma coisa viva.
Capítulo dois. Mulher e filho a reboque, decidi me instalar
em uma cidade pequena, onde pudesse viver longe da
agitação da vida em Londres... Capítulo três. Ruth
reconheceu a possibilidade de eu me tornar líder do partido
muito antes de mim... Capítulo quatro. Estudante das falhas
dos meus antecessores, decidi ser diferente... Capítulo
cinco. Em retrospecto, nossa vitória nas eleições gerais
parecia inevitável, porém, na época... Capítulo seis. Setenta
e seis agências distintas administravam a previdência
social... Capítulo sete. Foi com a Irlanda do Norte, de todos
os países, que a história decidiu ser mais inclemente...
Capítulo oito. Recrutada a dedo e composta dos mais
diferentes estilos, nossa equipe de candidatos para as
eleições europeias me deixava orgulhoso... Capítulo nove.
Como se sabe, via de regra as nações agem em benefício
próprio no que diz respeito à política externa... Capítulo dez.
Uma das questões problemáticas enfrentadas pelo novo
governo... Capítulo onze. Novas avaliações da CIA sobre a
ameaça terrorista... Capítulo doze. Agentes da CIA no
Afeganistão... Capítulo treze. Quando decidi lançar um
ataque em áreas civis, eu sabia... Capítulo quatorze. Nos
Estados Unidos, há uma grande necessidade de aliados
preparados... Capítulo quinze. Por volta da época da
conferência anual do partido, aqueles que exigiam minha
renúncia... Capítulo dezesseis. Paul Emmett, professor da
Universidade de Harvard, escreveu sobre a importância...
Peguei todos os 16 começos de capítulo e espalhei-os na
mesa em sequência.
A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está
tudo lá no começo.
No começo, ou nos começos?
Nunca fui muito bom em enigmas. Porém, quando reli as
páginas circulando as primeiras palavras de cada capítulo,
até eu não conseguia deixar de ver a frase que McAra,
temendo por sua segurança, tinha embutido no manuscrito,
na voz de Lang, como uma mensagem do além-túmulo:
“Minha Mulher Ruth Estudante em Setenta e Seis Foi
Recrutada Como Uma das Novas Agentes da CIA Quando
Nos Estados Unidos por Paul Emmett, professor da
Universidade de Harvard.”
Dezessete
Ghostwriting
Deixei meu flat naquela noite para nunca mais voltar. Desde
então, um mês se passou. Até onde sei, minha falta não foi
sentida. Algumas vezes, especialmente durante a primeira
semana, sentado sozinho no meu quarto de hotel imundo,
tive certeza de que tinha enlouquecido. Deveria ligar para
Rick, disse a mim mesmo, e pegar o nome do analista dele.
Estava sofrendo delírios. Mas então, cerca de três semanas
atrás, depois de um dia de trabalho duro escrevendo,
quando já estava pegando no sono, ouvi no noticiário da
meia-noite que o ex-secretário de Assuntos Internacionais,
Richard Rycart, tinha morrido em um acidente de carro na
cidade de Nova York, juntamente com seu motorista. Foi
apenas a quarta notícia do jornal, se não me engano. Não
há nada mais ex do que um ex-político. Rycart não teria
gostado.
Depois disso, soube que não tinha mais volta.
Embora não tenha feito nada além de escrever e pensar
no que aconteceu, ainda não sei dizer com precisão como
McAra desvendou a verdade. Imagino que tenha começado
ainda na época dos arquivos, quando ele topou com a
Operação Tempestade. Ele já estava desiludido com os anos
de Lang no poder, incapaz de entender por que algo que
tinha começado de forma tão promissora havia resultado
numa bagunça tão grande. Quando, do seu jeito obstinado,
pesquisando a época de Cambridge, ele descobriu aquelas
fotografias, elas devem ter lhe parecido a chave do
mistério: certamente, se Rycart tinha ouvido boatos sobre a
ligação de Emmett com a CIA, é razoável supor que McAra
também os tivesse ouvido.
No entanto, McAra também sabia de outras coisas. Ele
sabia que Ruth tinha sido bolsista da Fulbright em Harvard,
e lhe bastariam dez minutos na internet para descobrir que
Emmett estava ensinando sua especialidade no campus em
meados da década de 1970. Também sabia melhor do que
ninguém que Lang raramente tomava uma decisão sem
consultar a esposa. Adam sabia vender ideias políticas de
forma brilhante, enquanto Ruth era a estrategista. Se você
tivesse de escolher qual deles tinha a inteligência, a ousadia
e a impiedade para ser um recruta ideológico, só haveria
uma escolha. McAra não pode ter sabido ao certo, mas
acredito que ele tenha juntado uma quantidade de peças
suficiente do quebra-cabeça para desembuchar sua
suspeita para Lang durante aquela discussão acalorada na
noite anterior à sua viagem para confrontar Emmett.
Tentei imaginar como Lang deve ter se sentido quando
ouviu a acusação. Desdenhoso, sem dúvida; furioso,
também. Porém, um ou dois dias mais tarde, quando um
corpo surgiu na praia e ele foi até o necrotério identificar
McAra — o que ele pensou naquela hora?
Venho ouvindo quase todos os dias a fita da minha
última conversa com Lang. A chave para tudo está lá, tenho
certeza, mas a história completa sempre continua
sedutoramente fora de alcance. Nossas vozes estão baixas,
porém reconhecíveis. Ao fundo, ouve-se o barulho dos
motores do avião.
EU: É verdade que o senhor teve uma briga feia com ele
pouco antes de ele morrer?
LANG: Mike fez algumas acusações levianas. Eu não
podia ignorá-las.
EU: Posso perguntar que tipo de acusações?
LANG: Prefiro não repeti-las.
EU: Elas tinham algo a ver com a CIA?
LANG: Mas a essa altura você já sabe, não sabe? Já que
foi ver Paul Emmett.
[Uma pausa de 75 segundos de duração]
LANG: Quero que você entenda que tudo o que fiz, tanto
como líder do partido quanto como primeiro-ministro,
tudo, eu fiz por convicção, por acreditar que era certo.
EU: [inaudível]
LANG: Emmett disse que você mostrou algumas fotos
para ele. É verdade? Posso vê-las?