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"Quando o mundo estiver unido na busca do

conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e


poder, então nossa sociedade poderá enfim

evoluir a um novo nível."


CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

H26f Harris, Robert, 1957-


O fantasma / Robert Harris ; tradução de Fabiano Morais da
Costa. — Rio de Janeiro: Record, 2008.

Tradução de: The ghost


ISBN 978-85-01-08126-1

1. Ficção inglesa. I. Costa, Fabiano Morais da. II. Título.

CDD — 823
08-2546 CDU — 821.111-3

Título original inglês: The ghost

Copyright © Robert Harris 2007

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em


parte, através de quaisquer meios.

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Brasil adquiridos pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina 171 — Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 — Tel.: 2585-2000
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Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-08126-1

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ — 20922-970
Para Gill
Nota do autor

Gostaria de agradecer a Andrew Crofts por me permitir


utilizar citações de seu excelente manual, Ghostwriting (A &
C Black, 2004). Dois outros ghost-writers de sucesso, Adam
Sisman e Luke Jennings, tiveram a gentileza de compartilhar
suas experiências comigo. Philippe Sands QC
generosamente ofereceu conselhos sobre direito
internacional. Rose Styron passou vários dias mostrando-me
a ilha de Martha’s Vineyard: eu não poderia ter tido uma
guia mais agradável e bem informada do que ela. Meu
editor americano, David Rosenthal, e meu agente
americano, Michael Carlisle, foram de grande ajuda quanto
aos aspectos americanos deste livro — embora sejam, é
claro, tão diferentes quanto possível de seus equivalentes
neste romance.

Robert Harris
Cap Bénat, 26 de julho de 2007
Eu não sou eu: vós não sois ele ou ela:
Eles não são eles.

EVELYN WAUGH,
Brideshead Revisited
Um

De todas as vantagens que a profissão de ghost-writer


oferece, uma das maiores é a oportunidade que se tem de
conhecer pessoas interessantes.

Andrew Crofts, Ghostwriting

Assim que soube como McAra morreu, eu deveria ter dado o


fora. Percebo isso agora. Deveria ter dito: “Rick, sinto muito,
isso não é pra mim, não me soa bem”, terminado meu
drinque e ido embora. Mas ele, Rick, era tão bom em contar
histórias — sempre pensei que ele deveria ter sido o escritor
e eu, o agente literário —, que quando começava a falar,
não havia a menor dúvida de que eu iria ouvir. Então,
quando ele terminou, eu já estava fisgado.
A história, da forma como Rick me contou durante o
almoço naquele dia, era assim:
McAra tinha pegado a última barca de Woods Hole,
Massachusetts, para Martha’s Vineyard dois domingos
antes. Calculei mais tarde que deve ter sido no dia 12 de
janeiro. Não se sabia ao certo se a barca iria sair ou não.
Desde o meio da tarde que estava ventando muito e as
últimas travessias haviam sido canceladas. Porém, por volta
das 21 horas, o vento diminuiu um pouco e às 21h45 o
capitão decidiu que era seguro zarpar. O barco estava
lotado: McAra teve sorte de conseguir uma vaga para o seu
carro. Ele estacionou debaixo do convés e então subiu para
pegar ar.
Foi a última vez que alguém o viu com vida.
A travessia até a ilha geralmente leva 45 minutos,
porém, naquela noite em particular, o clima retardou
consideravelmente a viagem: aportar uma embarcação de
60 metros com um vento de 50 nós, disse Rick, não é
moleza. Eram quase 11 horas da noite quando a barca
atracou no porto de Vineyard e os carros começaram a sair
— todos, menos um: um utilitário esportivo Ford Escape cor
de canela novinho em folha. O comissário de bordo pediu
pelo alto-falante que o dono retornasse ao seu veículo, pois
ele estava atravancando os motoristas de trás. Quando
mesmo assim ele não apareceu, a tripulação conferiu as
portas do carro, que calharam de estar destrancadas, e
manobrou o Ford com o motor desligado até o cais. Mais
tarde, eles vasculharam o navio com atenção: as
escadarias, o bar, os banheiros, até mesmo os botes salva-
vidas — nada. Ligaram para o terminal de Woods Hole para
confirmar se alguém havia desembarcado antes de o navio
sair ou talvez tivesse sido deixado acidentalmente para trás
— novamente: nada. Só então um oficial do Departamento
de Embarcações a Vapor de Massachusetts finalmente
entrou em contato com o posto da Guarda Costeira em
Falmouth para comunicar um possível caso de homem ao
mar.
A polícia descobriu que a placa do Ford estava registrada
em nome de um tal Martin S. Rhinehart, da cidade de Nova
York, embora o Sr. Rhinehart tenha sido localizado, algum
tempo depois, na sua fazenda na Califórnia. Àquela altura,
já era quase meia-noite na Costa Leste e cerca de 21 horas
na Oeste.
— Estamos falando do Marty Rhinehart? — interrompi.
— Ele mesmo.
Por telefone, Rhinehart confirmou imediatamente à
polícia que o Ford lhe pertencia. Ele o mantinha em sua
casa em Martha’s Vineyard para uso próprio e de seus
convidados no verão. Também confirmou que, apesar da
época do ano, um grupo de pessoas estava hospedado lá no
momento. Ele disse que pediria à sua assistente para ligar
para a casa e descobrir se alguém tinha pegado o carro
emprestado. Meia hora depois, ela ligou de volta para dizer
que havia, de fato, alguém desaparecido, um homem
chamado McAra.
Não havia mais nada a se fazer antes do raiar do dia.
Não que isso fosse um problema. Todos sabiam que, se um
passageiro tivesse caído no mar, a busca seria por um
cadáver. Rick é um desses americanos irritantemente em
boa forma de 40 e poucos anos, que parece ter 19 e faz
coisas horríveis a seu corpo com bicicletas e canoas. Ele
conhece o mar: já passou dois dias contornando os 96
quilômetros da ilha a remo em um caiaque. A barca de
Woods Hole atravessa o canal onde o estreito de Vineyard
se encontra com o estreito de Nantucket, e aquelas águas
são perigosas. Quando a maré está alta, é possível ver a
força das correntes sugar as enormes boias do canal,
entortando-as para o lado. Rick balançou a cabeça. Em
janeiro, em um vendaval, na neve? Ninguém conseguiria
sobreviver mais do que cinco minutos.
Uma moradora encontrou o corpo no início da manhã
seguinte, jogado na praia a cerca de seis quilômetros da
costa da ilha, em Lambert’s Cove. A carta de motorista na
sua carteira confirmou que se tratava de Michael James
McAra, 50 anos, natural de Balham, ao sul de Londres.
Lembro-me de ter sentido um acesso súbito de compaixão
ao ouvir o nome daquele bairro lúgubre e nada exótico: ele
certamente estava muito longe de casa, o pobre diabo. Seu
passaporte trazia o nome da mãe como parente mais
próxima. A polícia levou o corpo para o pequeno necrotério
no porto de Vineyard e então foi até a casa de Rhinehart
para dar a notícia e buscar um dos outros convidados para
identificá-lo.
Deve ter sido uma cena e tanto, disse Rick, quando o
convidado voluntário finalmente apareceu para ver o corpo:
“Aposto que o funcionário do necrotério ainda está falando
no assunto.” Havia uma patrulha de Edgartown com uma
luz azul piscante, um segundo carro com quatro guardas
armados para proteger o edifício e um terceiro veículo, à
prova de bombas, carregando o homem instantaneamente
reconhecível que, até 18 meses atrás, tinha sido o primeiro-
ministro da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.

O almoço tinha sido ideia de Rick. Eu nem sabia que ele


estava na cidade até ele me ligar na noite anterior. Insistiu
em que nos encontrássemos no seu clube. O clube não era
exatamente dele — Rick era, na verdade, membro de um
mausoléu semelhante em Manhattan, cujos membros
tinham cadeiras cativas mútuas em Londres —, mas ele o
amava assim mesmo. Na hora do almoço, somente homens
podiam entrar. Todos usavam ternos azul-marinho e tinham
mais de 60 anos: não me sentia tão jovem desde que saí da
universidade. Lá fora, o céu de inverno pesava sobre
Londres como uma enorme lápide cinza. Dentro do clube, a
luz elétrica amarela de três candelabros imensos refletia
nas escuras mesas envernizadas, nos talheres de prata e
nas garrafas avermelhadas de vinho tinto. Um pequeno
cartão entre nós anunciava que aquela era a noite do
torneio anual de gamão do clube. Era como a Mudança da
Guarda ou as Casas do Parlamento — algo que um
estrangeiro esperaria da Inglaterra.
— Estou impressionado que isso não tenha saído nos
jornais — falei.
— Ah, mas saiu. Ninguém fez segredo. Obituários foram
publicados.
E, pensando bem, eu me lembrava vagamente de ter
visto alguma coisa. Mas tinha passado um mês trabalhando
15 horas por dia para terminar meu novo livro, a
autobiografia de um jogador de futebol, e o mundo além do
meu escritório se tornara um borrão.
— O que diabos um ex-primeiro-ministro estava fazendo
identificando o corpo de um homem de Balham que caiu da
barca para Martha’s Vineyard?
— Michael McAra — anunciou Rick, usando o tom
enfático de um homem que tinha voado quase 5 mil
quilômetros para dizer esta frase — o estava ajudando a
escrever suas memórias.
E é neste instante que, em uma vida paralela, eu
expresso meus sinceros pêsames à idosa Sra. McAra (“deve
ser um grande choque perder um filho nessa idade”), dobro
meu pesado guardanapo de linho, termino meu drinque,
digo adeus e saio para a friorenta rua londrina com toda
minha medíocre carreira se estendendo inofensiva diante de
mim. Em vez disso, pedi licença, fui até o toalete do clube e
analisei um cartoon sem graça da Punch enquanto urinava
pensativo.
— Você sabe que eu não entendo nada de política, não
é? — disse ao voltar.
— Mas votou nele, não votou?
— Em Adam Lang? Claro que sim. Todo mundo votou
nele. Ele não era um político; era uma febre.
— Bem, a questão é essa. Quem liga para política? De
qualquer forma, é de um ghost-writer profissional de que ele
precisa, meu amigo, não de outra droga de político. — Ele
olhou em volta. Era uma regra pétrea do clube não falar
sobre negócios no recinto; o que era um problema para
Rick, uma vez que ele nunca falava de outra coisa. — Marty
Rhinehart pagou 10 milhões de dólares por essas memórias
sob duas condições. Primeiro, elas estariam nas livrarias em
dois anos. Segundo, Lang não pegaria leve nas críticas à
Guerra contra o Terror. Pelo que ouvi dizer, ele não está nem
perto de respeitar nenhuma delas. As coisas ficaram tão
ruins por volta do Natal que Rhinehart cedeu sua casa de
veraneio em Vineyard para que Lang e McAra pudessem
trabalhar sem nenhuma distração. Acho que McAra não
aguentou a pressão. O médico-legista do estado encontrou
quatro vezes mais álcool no sangue dele do que é permitido
para dirigir.
— Então foi um acidente?
— Acidente? Suicídio? — Ele girou a mão no ar
casualmente. — Quem vai saber? Qual a importância? Foi o
livro que o matou.
— Muito animador — falei.
Enquanto Rick continuava vendendo seu peixe, eu olhava
para o meu prato e imaginava o ex-primeiro-ministro
olhando para o rosto branco e frio de seu assistente no
necrotério — olhando para o seu fantasma,[1] poderíamos
dizer. Qual foi a sensação? Sempre faço essa pergunta aos
meus clientes. Preciso fazê-la cem vezes por dia durante a
fase de entrevistas: Qual foi a sensação? Qual foi a
sensação? E, na maioria das vezes, eles não sabem
responder, motivo que os leva a me contratarem para
providenciar suas memórias: ao fim de uma parceria bem-
sucedida, sou mais eles do que eles mesmos. Gosto
bastante desse processo, para ser sincero: a breve
liberdade de ser outra pessoa. Isto lhe parece sinistro? Caso
pareça, deixe-me acrescentar que minha profissão requer
um talento verdadeiro. Não só extraio das pessoas suas
histórias de vida, como confiro a esta vida uma forma que
normalmente ficaria invisível; às vezes lhes dou vidas que
elas nem sequer percebiam ter. Se isso não é arte, o que é?
— Eu deveria saber a respeito de McAra? — perguntei.
— Sim, então vamos evitar admitir que não sabia. Ele era
uma espécie de assistente quando Lang era primeiro-
ministro. Escrevia os discursos, fazia pesquisas, bolava
estratégias políticas. Quando Lang renunciou, McAra ficou
com ele, para administrar seu gabinete.
Fiz uma careta.
— Não sei não, Rick — falei.
Durante todo o almoço, fiquei meio que observando um
velho ator de televisão na mesa vizinha. Ele havia sido
famoso na minha infância por interpretar um pai solteiro de
filhas adolescentes em um seriado. Agora, ao se levantar
trêmulo e começar a arrastar os pés em direção à saída, ele
parecia ter nascido para interpretar o papel do próprio
cadáver. Era desse tipo de pessoa que eu escrevia as
memórias: gente que havia despencado alguns degraus na
escada da fama, ou que ainda tinha alguns degraus para
galgar, ou que estava se agarrando ao topo e tentando
desesperadamente tirar vantagem disso enquanto havia
tempo. De repente, fui invadido pelo ridículo da ideia de que
eu pudesse colaborar nas memórias de um primeiro-
ministro.
— Não sei... — comecei a falar de novo, mas Rick me
interrompeu.
— O pessoal da Rhinehart Inc. está ficando louco. Eles
vão fazer uma seleção no escritório de Londres amanhã de
manhã. Maddox está vindo em pessoa de Nova York para
representar a empresa. Lang vai enviar o advogado que
negociou o contrato original para ele, o mediador mais
quente de Washington, um cara muito esperto chamado
Sidney Kroll. Tenho outros clientes que poderia colocar
nessa disputa; portanto, se não estiver interessado, é só me
dizer agora. Mas, pelo que eles estão dizendo, acho que
você é a melhor escolha.
— Eu? Pare com isso.
— É sério. Eu juro. Eles precisam fazer algo radical, correr
riscos. É uma grande oportunidade para você. E a grana vai
ser alta. As crianças não vão passar fome.
— Eu não tenho filhos.
— Não — disse Rick, piscando o olho —, mas eu tenho.

Eu e Rick nos separamos na escada do clube. Havia um


carro esperando por ele em frente com o motor ligado. Não
me ofereceu carona para lugar nenhum, o que me fez
suspeitar que estivesse indo encontrar com outro cliente,
para o qual faria exatamente a mesma oferta que havia
acabado de fazer para mim. Rick tinha um monte de
profissionais como eu trabalhando em seus livros. Dê uma
olhada nas listas de best-sellers: você ficaria impressionado
se soubesse quantos são escritos por ghost-writers, tanto
romances quanto livros de não ficção. Somos os operários
fantasmas que mantêm o mercado editorial funcionando,
como os trabalhadores invisíveis por trás da Disneylândia.
Corremos pelos túneis subterrâneos da fama, aparecendo
aqui e ali, vestidos como um ou outro personagem,
preservando a ilusão perfeita do Mundo Encantado.
— Até amanhã — disse ele, desaparecendo
dramaticamente em uma nuvem de fumaça de cano de
descarga: um Mefistófeles com cinquenta por cento de
comissão. Fiquei um minuto parado, indeciso, e se eu
estivesse em alguma outra parte de Londres, talvez as
coisas pudessem ter acontecido de outro jeito. Porém, eu
estava naquele pequeno trecho em que o Soho deságua no
Covent Garden: uma faixa entulhada de lixo, de teatros
vazios, becos escuros, prostíbulos, pés-sujos e livrarias —
tantas livrarias que você pode ficar enjoado só de olhar para
elas; desde os pequenos livreiros da Cecil Court,
especialistas em limpar os seus bolsos, até as gigantes da
Charing Cross Road, que dão os melhores descontos.
Geralmente entro em alguma destas últimas, para ver como
meus livros estão expostos, e foi o que eu fiz naquela tarde.
Uma vez lá dentro, bastou um pequeno passo pelo tapete
gasto da seção de Biografias & Memórias para que eu fosse
de “Celebridades” para “Política”.
Fiquei surpreso ao ver quanta coisa eles tinham sobre o
ex-primeiro-ministro — uma prateleira inteira, tudo desde a
antiga hagiografia, Adam Lang: o estadista da nossa era,
até uma esculhambação recente chamada: Dá pra acreditar
nisso? As mentiras de Adam Lang, os dois do mesmo autor.
Peguei a biografia mais grossa e abri nas fotografias: Lang
quando bebê, dando mamadeira a uma ovelha diante de um
muro de pedra; Lang como Lady Macbeth em uma peça
estudantil; Lang vestido de frango em um espetáculo do
grupo de teatro amador da Universidade de Cambridge;
Lang como um banqueiro claramente chapado na década de
1970; Lang com a esposa e os filhos pequenos diante de
uma casa nova; Lang usando uma roseta e acenando de
cima de um ônibus com a capota aberta no dia em que foi
eleito para o Parlamento; Lang com seus colegas; Lang com
líderes mundiais, com pop stars, com soldados no Oriente
Médio. Um cliente careca com uma jaqueta de couro
surrada que estava vendo a prateleira ao meu lado olhou
para a capa. Ele apertou o nariz com uma das mãos e fez
como se estivesse puxando uma descarga com a outra.
Fui para o outro lado da estante e procurei McAra,
Michael no índice remissivo. Havia apenas cinco ou seis
referências inócuas — em outras palavras, não havia o
menor motivo para alguém fora do partido ou do governo
ter ouvido falar dele na vida. Então vá para o inferno, Rick,
pensei. Folheei de volta para a fotografia do primeiro-
ministro sentado sorridente na mesa do gabinete, com sua
equipe da Downing Street disposta atrás dele. A legenda
identificava McAra como a figura corpulenta na fileira de
trás. Ele estava um pouco fora de foco — uma mancha
pálida, séria, de cabelos negros. Aproximei o rosto da
página, apertando os olhos para vê-lo melhor. Ele parecia
exatamente o tipo de incompetente desinteressante que se
sente atraído pela política desde o berço e faz gente como
eu se ater ao caderno de esportes. É possível encontrar um
McAra em qualquer país, em qualquer sistema, por trás de
qualquer líder que precise operar uma máquina política: um
engenheiro sujo de graxa na sala de caldeiras do poder. E
aquele foi o homem escolhido para ser o ghost-writer de um
livro de memórias de 10 milhões de dólares? Senti-me
profissionalmente afrontado. Comprei uma pequena pilha de
material de pesquisa e saí da livraria com uma convicção
crescente de que talvez Rick estivesse certo; talvez eu fosse
o homem para aquele trabalho.
Assim que saí, ficou claro que outra bomba tinha
explodido. Na Tottenham Court Road, as pessoas se
derramavam das quatro saídas do metrô como água de
chuva de um bueiro entupido. Um alto-falante disse algo
sobre “um incidente em Oxford Circus”. Parecia uma
espécie de comédia romântica extrema: uma mistura de
Desencanto com Guerra contra o Terror. Continuei subindo a
rua, sem saber ao certo como chegaria em casa — táxis,
como falsos amigos, sempre tendem a desaparecer ao
primeiro sinal de perigo. Na janela de uma daquelas
grandes lojas de eletrônicos, a multidão assistia ao mesmo
boletim jornalístico transmitido simultaneamente por uma
dúzia de televisões: tomadas aéreas de Oxford Circus,
fumaça negra brotando da estação de metrô, explosões de
labaredas laranja. Uma tarja correndo na parte inferior da
tela anunciava a suspeita de um homem-bomba, muitos
mortos e feridos, e dava um número de emergência para se
telefonar. Acima dos telhados, um helicóptero oscilava e
voava em círculos. Conseguia sentir o cheiro da fumaça —
uma mistura amarga, de avermelhar os olhos, de diesel e
plástico queimado.
Levei duas horas para chegar em casa a pé, carregando
minha sacola pesada de livros — até a Marylebone Road e
então para o oeste, em direção a Paddington. Como de
hábito, todo o metrô tinha sido fechado para que se
pudesse verificar a existência de outras bombas; assim
como as principais ferrovias. O tráfego nos dois lados da rua
larga estava parado e, a julgar pelo passado, continuaria
assim até a noite. (Se ao menos Hitler soubesse que não
precisava de toda uma força aérea para paralisar Londres,
pensei: bastava um adolescente pilhado com uma garrafa
de solvente e um saco de herbicida.) De vez em quando,
uma viatura policial ou uma ambulância subia o meio-fio,
corria pela calçada e tentava avançar um pouco por alguma
rua secundária.
Eu continuei me arrastando em direção ao sol poente.
Devo ter chegado às seis horas da tarde ao meu flat. Eu
ocupava os dois andares de cima de uma casa de estuque
alta no que os moradores chamam de Notting Hill e os
Correios insistem em que é North Kensington. Seringas
usadas cintilavam na sarjeta; no açougue halal[2] do outro
lado da rua, eles abatiam o gado nas próprias instalações.
Era macabro. Porém, do anexo do sótão que me servia de
escritório, eu tinha uma vista do oeste de Londres de dar
inveja a qualquer arranha-céu: telhados, pátios de manobra
da ferrovia, autoestradas e céu aberto — um vasto céu
urbano salpicado de luzes de avião descendo em direção ao
Heathrow. Foi aquela vista que me fez comprar o
apartamento, e não a conversa do corretor sobre a
revitalização da área — o que foi uma boa coisa, visto que a
burguesia endinheirada não voltou mais para lá, da mesma
forma que não voltou para o centro de Bagdá.
Kate já havia chegado e estava assistindo ao noticiário.
Kate: tinha me esquecido de que ela viria passar a noite. Ela
era minha...? Nunca soube do que chamá-la. Dizer que era
minha namorada seria um absurdo: ninguém de 30 e muitos
tem namorada. Companheira também não estava certo, já
que não morávamos sob o mesmo teto. Amante? Só rindo.
Caso? Faça-me o favor. Noiva? Certamente que não.
Suponho que deveria ter percebido que o fato de 40 mil
anos de linguagem humana não ter gerado uma palavra
para o nosso relacionamento era um mau sinal. (A
propósito, Kate não é seu nome verdadeiro, mas não vejo
motivo para envolvê-la nessa história toda. De qualquer
forma, combina melhor com ela do que seu nome real: ela
tem cara de Kate, se é que você me entende — sensível,
porém ousada; feminina, porém sempre disposta a se
misturar aos marmanjos. Ela trabalha na televisão, mas não
vamos julgá-la por isso.)
— Obrigado pela preocupação em me telefonar — falei.
— Na verdade, eu estou morto, mas não esquente com isso.
— Beijei o topo da cabeça dela, larguei os livros em cima do
sofá e fui para a cozinha me servir de um uísque. — O metrô
inteiro está parado. Tive de vir andando desde Covent
Garden.
— Pobrezinho — ouvi-a dizer. — Estou vendo que foi às
compras.
Enchi o copo com água da torneira, bebi metade, então o
enchi novamente de uísque. Lembrei que deveria ter
reservado uma mesa em um restaurante. Quando voltei
para a sala de estar, ela estava tirando um livro atrás do
outro da bolsa.
— O que significa tudo isso? — perguntou, erguendo os
olhos para mim. — Você não se interessa por política. — E
então percebeu o que estava acontecendo, porque era
inteligente; mais inteligente do que eu. Sabia qual era o
meu trabalho; sabia que eu tinha ido encontrar um agente;
e sabia tudo sobre McAra. — Não me diga que eles querem
que você seja o ghost-writer do livro dele! — Ela riu. — Fala
sério. — Kate tentou fazer graça, mas eu conseguia ver sua
decepção. Ela odiava Lang; sentia-se pessoalmente traída
por ele. No passado, havia sido filiada ao partido. Eu tinha
me esquecido disso também.
— Provavelmente não vai dar em nada — falei, bebendo
um pouco mais de uísque.
Ela voltou a assistir ao noticiário, mas com os braços
cruzados com força, o que é sempre um mau sinal. A tarja
que corria na parte inferior da tela anunciou sete mortos,
número que tendia a aumentar.
— Mas se lhe oferecerem você vai aceitar? — perguntou
ela, sem olhar na minha direção.
Fui salvo da obrigação de responder pelo âncora do
jornal, que anunciou que eles estavam entrando ao vivo de
Nova York para transmitir a reação do ex-primeiro-ministro.
E, de repente, lá estava Adam Lang, em um pódio com os
dizeres “Waldorf-Astoria”, onde, aparentemente, ele tinha
ido para um almoço. “A essa altura, todos vocês já devem
ter recebido as trágicas notícias de Londres”, disse ele,
“onde mais uma vez as forças do fanatismo e da
intolerância...”
Nada do que ele falou naquela noite merece ser
republicado. Era quase uma paródia do que um político diria
após um ataque terrorista. No entanto, se o visse, você
pensaria que sua mulher e seus filhos tinham sido
eviscerados na explosão. Esta era a sua genialidade: dar
frescor aos clichês da política e elevá-los por meio do
simples poder do seu desempenho. Até Kate ficou em
silêncio por um instante. Somente depois de ele terminar e
de sua plateia predominantemente feminina e em sua
maioria idosa se levantar para aplaudir, ela murmurou:
— O que ele está fazendo em Nova York, para começo de
conversa?
— Dando palestras.
— Por que ele não pode dar palestras aqui?
— Suponho que porque ninguém aqui lhe pagaria 100 mil
dólares por aparição.
Ela tirou o som da TV.
— Houve uma época — disse Kate lentamente, depois do
que pareceu ser um grande silêncio — em que os príncipes
que levavam seus países à guerra deviam arriscar a própria
vida no campo de batalha; servir de exemplo, sabe? Agora
eles viajam pelo mundo em carros à prova de bombas com
seguranças armados e fazem fortunas a 5 mil quilômetros
de distância, enquanto o restante de nós fica preso às
consequências dos seus atos. Não entendo você —
prosseguiu ela, virando-se para me olhar diretamente pela
primeira vez. — Depois de ficar só concordando comigo
sobre tudo o que eu falei a respeito dele nos últimos anos,
enquanto eu o chamava de “criminoso de guerra” e de todo
o resto, você vai escrever essa propaganda para ele e
deixá-lo ainda mais rico. Tudo aquilo não significou nada
para você?
— Espere um instante — falei. — Você não pode falar
nada. Está tentando conseguir uma entrevista com ele há
meses. Qual é a diferença?
— Qual é a diferença? Cristo! — Ela cerrou as mãos,
aquelas mãos brancas e magras que eu conhecia tão bem,
e ergueu-as, frustrada, metade garras, metade punhos. Os
tendões saltaram em seus braços. — Qual é a diferença?
Nós queremos obrigá-lo a prestar contas; essa é a
diferença! Fazer perguntas pertinentes! Sobre torturas,
bombardeios e mentiras! E não “Qual é a sensação?” Cristo!
Mas que bela perda de tempo.
Então ela se levantou e foi ao banheiro arrumar a bolsa
que sempre trazia nas noites em que pretendia ficar. Fiquei
ouvindo-a guardar ruidosamente o batom, a escova de
dente e o spray de perfume. Sabia que, se eu entrasse lá,
poderia resolver a situação. Ela provavelmente estava
esperando por isso: já havíamos tido brigas mais feias. Eu
seria obrigado a admitir que ela estava certa, reconhecer
que não servia para o trabalho e afirmar a superioridade
moral e intelectual dela nisto e em todas as outras coisas.
Nem precisava ser uma confissão verbal: um abraço prenhe
de sentido provavelmente seria o suficiente para me
absolver. Porém, a verdade era que, naquele momento,
diante da escolha entre uma noite da presunçosa lição de
moral esquerdista dela e a perspectiva de trabalhar com um
suposto criminoso de guerra, eu preferia o criminoso de
guerra. Então, simplesmente continuei olhando para a
televisão.
Às vezes tenho um pesadelo no qual todas as mulheres
com as quais fui para a cama se reúnem. O número está
mais para respeitável do que para enorme — se fosse,
digamos, um coquetel, minha sala de estar as acomodaria
com bastante conforto. E se, Deus me livre, esta reunião um
dia acontecesse, Kate seria, indiscutivelmente, a convidada
de honra. Seria para ela que trariam uma cadeira, bem
como seria ela que teria o copo reabastecido por mãos
atenciosas e se sentaria no centro de um círculo de
mulheres céticas enquanto meus defeitos morais e físicos
seriam dissecados. Kate era a que tinha durado mais tempo.
Ela não bateu a porta ao sair; em vez disso, fechou-a
com muito cuidado. Isso é que é estilo, pensei. Na tela da
TV, o número de mortos tinha acabado de aumentar para
oito.
Dois

Um ghost-writer que não passa de um leigo no assunto será


capaz de fazer as mesmas perguntas que o leitor leigo,
alcançando, desta forma, um número muito maior de leitores
em potencial.

Ghostwriting

A Rhinehart Publishing UK consistia em cinco antigas


empresas adquiridas em um violento arroubo de
cleptomania corporativa durante a década de 1990. Depois
de arrancadas de seus sótãos dickensianos em Bloomsbury,
ampliadas, reduzidas, remodeladas, renomeadas,
reorganizadas, modernizadas e fundidas, elas finalmente
foram jogadas em Hounslow, em um prédio comercial de
ferro e vidro fumê com toda a tubulação aparente. Ele
ficava entre as casas residenciais chapiscadas como uma
espaçonave abandonada depois de uma missão
malsucedida em busca de vida inteligente.
Eu cheguei, com pontualidade profissional, cinco minutos
antes do meio-dia, apenas para encontrar a porta principal
trancada. Tive de tocar a campainha para entrar. Um quadro
de avisos na sala de espera informava que o alerta de
terrorismo estava em LARANJA/ALTO. Através do vidro
escurecido, pude ver os seguranças em seu aquário sombrio
me observando em um monitor. Quando finalmente entrei,
tive de virar os bolsos do avesso e passar por um detector
de metais.
Quigley estava esperando por mim em frente dos
elevadores.
— Quem você acha que vai bombardeá-lo? — perguntei.
— A Random House?
— Estamos publicando as memórias de Lang —
respondeu Quigley com uma voz firme. — Só isso já nos
transforma em um alvo, pelo jeito. Rick já está lá em cima.
— Quantos você já viu?
— Cinco. Você é o último.
Eu conhecia Roy Quigley muito bem — bem o suficiente
para saber que ele não gostava de mim. Ele devia ter uns
50 anos, era alto e gostava de vestir tweed. Em uma época
mais feliz, estaria fumando cachimbo e oferecendo
pequenos adiantamentos para acadêmicos modestos
durante longos almoços no Soho. Hoje, sua refeição do
meio-dia era uma marmita de plástico de salada que ele
comia sentado à mesa com vista para a M4 e recebia ordens
diretas da gerente de vendas e marketing, uma garota de
uns 16 anos. Tinha três filhos matriculados em escolas
particulares que não podia pagar. Para sobreviver, ele havia
sido obrigado a desenvolver um interesse pela cultura
popular: isto é, pela vida de vários jogadores de futebol,
supermodelos e comediantes de boca suja, cujos nomes
pronunciava cuidadosamente e cujos hábitos estudava nos
tabloides com um distanciamento acadêmico, como se
fossem membros de uma tribo remota da Micronésia. Eu
havia tentado vender-lhe uma ideia no ano anterior, as
memórias de um mágico de TV que tinha — é claro —
sofrido abuso quando criança, mas que usara seu talento
como ilusionista para invocar uma nova vida etc. etc. Ele
recusara no ato. O livro havia ido direto para o primeiro
lugar das listas: Vim, serrei e venci. Roy ainda guardava
rancor.
— Tenho de dizer-lhe — falou ele, enquanto subíamos
para a cobertura — que não acho que você seja a pessoa
certa para esse trabalho.
— Então que bom que a decisão não é sua, Roy.
Ah, sim, eu sabia muito bem qual era a estatura de
Quigley. Seu cargo era de editor-chefe da sucursal inglesa, o
que significava que ele tinha tanta autoridade quanto um
gato morto. O homem que de fato comandava o espetáculo
em escala global estava esperando por nós na sala da
diretoria: John Maddox, presidente da Rhinehart Inc., um
nova-iorquino grande, de ombros largos, com alopecia. Sua
cabeça careca brilhava sob a luz fria como um enorme ovo
envernizado. Quando jovem, ele adquirira um físico de
lutador profissional para (de acordo com a Publishers
Weekly) jogar pela janela qualquer um que olhasse demais
para seu couro cabeludo. Eu fazia questão que meu olhar
nunca subisse além do seu tórax de super-herói. Ao seu lado
estava Sidney Kroll, o advogado de Lang de Washington, um
sujeito de 40 e poucos anos, que usava óculos e tinha um
rosto pálido e delicado, cabelo preto escorrido e o aperto de
mão mais frouxo e úmido que eu havia recebido desde que
Dippy, o Golfinho, saltou de sua piscina quando eu tinha 12
anos.
— Acho que já conhece Nick Riccardelli — disse Quigley,
finalizando as apresentações com as mãos tremendo quase
imperceptivelmente. Meu agente, que vestia uma blusa
cinza brilhante e uma gravata fina de couro vermelho,
piscou para mim.
— Olá, Rick — falei.
Fiquei nervoso ao me sentar ao lado dele. A sala era
forrada, no melhor estilo Gatsby, com impecáveis livros de
capa dura não lidos. Maddox estava sentado com as costas
para a janela. Ele pousou as mãos enormes e sem pelos na
mesa de tampo de vidro, como se quisesse provar que, pelo
menos por enquanto, não tinha a intenção de sacar uma
arma e disse:
— Rick me informou que você está ciente da situação e
sabe o que estamos buscando. Então talvez possa nos dizer
o que exatamente acha que pode trazer para este projeto.
— Ignorância — falei alegremente, o que pelo menos
teve a vantagem de causar alguma surpresa, e, antes que
alguém pudesse me interromper, parti para o pequeno
discurso que eu havia ensaiado no táxi a caminho dali. —
Você conhece o meu histórico. Não faz sentido fingir que
sou algo que não sou. Serei completamente sincero. Não
leio memórias de políticos. Mas e daí? — Dei de ombros. —
Ninguém lê. Mas, na verdade, isso não é problema meu. —
Apontei para Maddox. — Isso é problema seu.
— Faça-me o favor — disse Quigley baixinho.
— E deixe-me ser mais imprudentemente honesto ainda
— prossegui. — Estão dizendo que você pagou 10 milhões
de dólares por este livro. Do jeito que as coisas estão,
quanto acha que vai conseguir de volta? Dois milhões? Três?
Isso é uma má notícia para você, e uma notícia pior ainda —
falei, voltando-me para Kroll — para o seu cliente. Porque,
para ele, não é uma questão de dinheiro. É uma questão de
reputação. Esta é a oportunidade que Adam Lang tem de
falar diretamente à história, de expor seus argumentos. A
última coisa de que ele precisa é lançar um livro que
ninguém leia. O que vai parecer se a história da vida dele
acabar sendo vendida a preço de saldo? Porém, as coisas
não precisam ser assim.
Olhando para trás, vejo que me comportei como um
baita marqueteiro. Mas lembre-se de que a intenção era
vender meu peixe — o que, como as declarações de amor
eterno na cama de uma estranha à meia-noite, não deve
necessariamente ser usado contra você na manhã seguinte.
Kroll estava sorrindo para si mesmo, rabiscando no seu
bloquinho amarelo. Maddox olhava feio para mim. Respirei
fundo.
— O fato é que — prossegui — um grande nome sozinho
não vende livros. Todos nós aprendemos isso do jeito mais
difícil. O que vende um livro, ou um filme, ou uma música...
é o coração. — Acho que cheguei até a bater no peito nesta
hora. — E é por isso que as memórias de políticos são o
buraco negro do mercado editorial. O nome do lado de fora
da barraca pode ser grande, mas todos sabem que, assim
que entrarem, verão a mesma ladainha de sempre; e quem
quer pagar 25 dólares por isso? É preciso colocar um pouco
de coração no que está escrito, e esse é o meu trabalho. E
que história tem mais coração do que a de um cara que
começa do nada e termina comandando um país?
Inclinei-me para a frente.
— É aí que está a graça: a autobiografia de um líder
precisa ser mais interessante do que a maioria das
memórias, não menos. Portanto, eu vejo minha ignorância
sobre política como uma vantagem. Eu valorizo minha
ignorância, para ser bem franco. Além do mais, Adam Lang
não precisa de nenhuma ajuda minha na parte política
deste livro; ele é um mestre no assunto. Do que ele precisa,
na minha humilde opinião, é da mesma coisa que uma
estrela de cinema precisa, ou um jogador de beisebol, ou
um astro do rock: de um parceiro experiente, que saiba
fazer as perguntas certas para extrair seu coração.
Fez-se silêncio. Eu estava tremendo. Rick deu um tapinha
tranquilizador no meu joelho debaixo da mesa. “Muito
bem.”
— Que papo furado — disse Quigley.
— Você acha? — perguntou Maddox, ainda olhando para
mim. Ele falou numa voz neutra, mas, se eu fosse Quigley,
teria detectado perigo.
— Ah, John, mas é claro — disse Quigley, com todo o
desdém de quem carrega quatro gerações de acadêmicos
de Oxford nas costas. — Adam Lang é uma figura histórica
mundial, e sua autobiografia será um evento editorial
mundial. Um pedaço da história, na verdade. Não deveria
ser abordada como uma... — ele vasculhou sua mente bem
fornida atrás de uma analogia adequada, mas concluiu de
forma medíocre — ... uma matéria para uma revista de
celebridades.
Fez-se outro silêncio. Além das janelas escurecidas, os
carros estavam engarrafando na autoestrada. A água da
chuva ondulava o brilho dos faróis parados. Londres ainda
não havia voltado ao normal depois da bomba.
— Parece-me — disse Maddox, na mesma voz lenta e
baixa, suas mãos cor-de-rosa de manequim ainda
descansando na mesa — que eu tenho depósitos inteiros
cheios de “eventos editoriais mundiais” dos quais não
consigo descobrir como me livrar. E uma porrada de gente
lê revistas de celebridades. O que você acha, Sid?
Por alguns segundos, Kroll apenas continuou sorrindo
para si mesmo e rabiscando. Fiquei me perguntando o que
ele achava tão engraçado.
— A opinião de Adam sobre este assunto é muito clara —
disse por fim. (Adam: ele atirou o primeiro nome na
conversa com a mesma casualidade com que teria atirado
uma moeda no chapéu de um mendigo.) — Ele leva este
livro muito a sério; é o seu testamento, se vocês preferirem.
Quer cumprir suas obrigações contratuais. E quer que o livro
seja um sucesso comercial. Portanto, está mais do que
disposto a ser conduzido por você, John, e por Marty
também, até certo ponto. Claro que ainda está muito
abalado pelo que aconteceu com Mike, que é insubstituível.
— Claro. — Todos fizemos os ruídos apropriados.
— Insubstituível — repetiu Kroll. — Ainda assim... ele
precisa ser substituído. — Ele ergueu os olhos, satisfeito
com seu deboche, e naquele instante tive certeza de que
nenhum horror no mundo, fosse ele guerra, genocídio, fome
ou câncer infantil, deixaria de ter um lado engraçado para
Sidney Kroll. — Adam certamente sabe ver as vantagens de
se tentar algo totalmente diferente. No fim das contas, é
tudo uma questão de afinidade pessoal. — Seus óculos
brilharam sob a luz fria enquanto ele me analisava. — Você
malha? — Balancei a cabeça. — Pena. Adam gosta de
malhar.
Quigley, ainda abalado depois do passa-fora de Maddox,
tentou voltar à conversa.
— Na verdade, conheço um bom jornalista do Guardian
que frequenta uma academia.
— Talvez — disse Rick, depois de uma pausa
constrangida — pudéssemos falar rapidamente sobre como
você vê a coisa em termos práticos.
— Para começar, precisamos do livro pronto em um mês
— disse Maddox. — Essa é a opinião de Marty e a minha
também.
— Um mês? — repeti. — Você quer um livro em um mês?
— Já existe um manuscrito completo — disse Kroll. — Só
precisa ser um pouco trabalhado.
— Muito trabalhado — disse Maddox, fechando o rosto. —
Certo. Vamos pensar ao contrário: nós publicamos em
junho, o que significa que mandamos para as livrarias em
maio; isso, por sua vez, significa que editamos e
imprimimos entre março e abril; então, precisamos do
manuscrito na editora no final de fevereiro. Os alemães, os
franceses, os italianos e os espanhóis precisam começar a
traduzir imediatamente. Os jornais precisam vê-lo para
negociar a publicação de trechos. Temos um contrato com a
TV. A turnê promocional precisa ser organizada com
bastante antecedência. Precisamos garantir espaço para o
livro nas livrarias. Então, é fim de fevereiro e ponto final. O
que eu gostei no seu currículo — disse ele, consultando uma
folha de papel na qual eu conseguia ver todos os meus
livros listados — é que você é obviamente experiente e,
acima de tudo, é rápido. Cumpre prazos.
— Nunca estourou nenhum — disse Rick, colocando o
braço ao redor dos meus ombros e me apertando. — Esse é
o meu garoto.
— E é inglês. O ghost-writer definitivamente precisa ser
inglês, na minha opinião. Para acertar o bom e velho tom.
— Estamos de acordo — disse Kroll. — Mas tudo terá de
ser feito nos Estados Unidos. Adam está totalmente
comprometido com uma série de palestras lá neste
momento e com um programa de arrecadação de recursos
para a sua fundação. Não acredito que ele volte para a
Inglaterra antes de março, no mínimo.
— Um mês na América, sem problemas. Certo? — Rick
olhou para mim avidamente. Conseguia senti-lo me
instando a dizer sim, mas tudo em que eu pensava era: Um
mês, eles querem que eu escreva um livro em um mês...
Assenti lentamente.
— Imagino que eu sempre possa trazer o manuscrito de
volta para cá para trabalhar.
— O manuscrito não sai dos Estados Unidos — respondeu
Kroll categoricamente. — Este é um dos motivos que levou
Marty a disponibilizar a casa em Vineyard. É um ambiente
seguro. Somente um pequeno grupo de pessoas tem
permissão para lidar com ele.
— Está parecendo mais uma bomba do que um livro! —
brincou Quigley. Ninguém riu. Ele esfregou as mãos
tristemente. — Bem, eu vou precisar vê-lo em algum
momento. Supostamente, eu sou o editor.
— Em teoria — disse Maddox. — Na verdade, precisamos
conversar sobre isso mais tarde. — Ele voltou-se para Kroll.
— Não temos espaço para a revisão neste cronograma.
Vamos ter de revisar durante a produção.
Enquanto eles continuavam discutindo o calendário,
fiquei analisando Quigley. Ele estava com as costas retas,
mas imóvel, como uma daquelas vítimas que nos filmes são
apunhaladas com um estilete no meio da multidão e
morrem sem que ninguém perceba. Sua boca abria e
fechava minimamente, como se tivesse uma mensagem
final para transmitir. Porém, mesmo naquela hora, percebi
que ele tinha feito uma pergunta perfeitamente cabível. Se
ele era o editor, por que não deveria ver o manuscrito? E
por que o manuscrito precisava ser mantido em um
“ambiente seguro” numa ilha da Costa Leste dos Estados
Unidos? Senti o cotovelo de Rick nas minhas costelas e
percebi que Maddox estava falando comigo.
— Quando você poderia ir para lá? Supondo que
escolhamos você, e não um dos outros...? Com que rapidez
você poderia viajar?
— Hoje é sexta — falei. — Preciso de um dia para me
organizar. Poderia estar no avião no domingo.
— E começar na segunda? Seria perfeito.
— Duvido que encontre alguém que seja mais rápido do
que isso — disse Rick.
Maddox e Kroll olharam um para o outro, e eu tive
certeza de que o trabalho era meu. Confome Rick falou mais
tarde, o truque é sempre se colocar na posição deles. “É
como entrevistar um faxineiro novo. Você quer alguém que
possa lhe contar a história e a teoria da faxina, ou quer
alguém que simplesmente arregace as mangas e limpe a
porra da casa? Eles escolheram você porque acharam que
pode limpar a porra da casa deles.”
— Vamos ficar com você — disse Maddox. Ele se
levantou, estendeu o braço e apertou minha mão. — Desde
que consigamos fechar um contrato satisfatório com nosso
amigo Rick, é claro.
Kroll acrescentou:
— Você também vai precisar assinar um termo de
confidencialidade.
— Sem problema — falei, levantando-me também. Aquilo
não me incomodava. Termos de confidencialidade eram
praxe no mundo dos ghost-writers. — Eu não poderia estar
mais satisfeito.
E não poderia mesmo. Todos — menos Quigley —
estavam sorrindo e, de repente, havia uma sensação de
cumplicidade masculina, um certo clima no ar de vestiário-
depois-do-jogo. Ficamos cerca de um minuto conversando, e
foi então que Kroll me puxou para o lado e disse, muito
casualmente:
— Tenho uma coisa aqui que talvez seja interessante
você ver.
Ele colocou a mão debaixo da mesa e puxou uma sacola
de plástico amarelo berrante com o nome de alguma loja de
roupas chique de Washington impresso em letras pretas
onduladas. Meu primeiro pensamento foi que aquilo devia
ser o manuscrito das memórias de Lang e que toda aquela
conversa sobre um “ambiente seguro” tinha sido uma
piada. Porém, quando viu a expressão no meu rosto, Kroll
riu e falou:
— Não, não. Não é isso. É só um livro de um outro cliente
meu. Gostaria muito da sua opinião, se você puder dar uma
olhada. Aqui está o meu número. — Peguei o cartão dele e
coloquei-o no bolso. Quigley ainda não havia dito uma única
palavra.
— Ligo para você quando chegarmos a um acordo —
falou Rick.
— Faça-os chorar — disse-lhe eu, apertando seu ombro.
Maddox riu.
— Ei! Lembre-se! — gritou ele enquanto Quigley me
levava até a porta. Bateu com o punho grande no peito sob
o terno azul. — Coração!
Enquanto descíamos no elevador, Quigley olhou para o
teto.
— É imaginação minha ou eu acabei de ser despedido lá
dentro?
— Eles não abririam mão de você, Roy — falei, com toda
a sinceridade que consegui reunir, o que não era muito. —
Você é o único que ainda se lembra de como o mercado
editorial costumava ser.
— Abrir mão — disse ele com amargura. — Sim, esse é o
eufemismo moderno, não é? Como se fosse um favor. Você
está pendurado na beira de um precipício, e alguém diz:
“Sinto muito, vamos ter de abrir mão de você.”
Um casal em horário de almoço entrou no quarto andar,
e Quigley ficou calado até os dois saírem em direção ao
restaurante no segundo piso. Quando as portas se
fecharam, ele disse:
— Tem alguma coisa de errado com este projeto.
— Está falando de mim?
— Não. Antes de você. — Ele franziu o cenho. — Não
consigo saber direito o que é. Essa coisa de ninguém poder
ter acesso a nada, por exemplo. E aquele tal de Kroll me dá
arrepios. Além do pobre Mike McAra, é claro. Eu o conheci
quando assinamos o contrato dois anos atrás. Ele não me
pareceu o tipo suicida. Pelo contrário. Era o tipo de cara
especialista em fazer outras pessoas quererem se matar, se
é que você me entende.
— Durão?
— É, durão. Lang ficava sorrindo para todo mundo, mas
tinha esse brutamontes do lado com os olhos iguais aos de
uma cobra. Imagino que você precise ter alguém assim por
perto quando está na posição dele.
Chegamos ao primeiro piso e saímos para o saguão.
— Você pode pegar um táxi na esquina — disse Quigley.
E por esta atitude mesquinha, de me fazer andar na chuva
em vez de chamar um táxi por conta da empresa, eu quis
que ele apodrecesse no inferno. — Diga-me uma coisa —
falou ele de repente —, quando foi que ser burro entrou na
moda? Essa é a única coisa que eu não consigo entender. O
Culto ao Idiota. A Elevação do Imbecil. Você sabia que dois
dos nossos romancistas best-sellers, a atriz peituda e o ex-
psicopata do exército, nunca escreveram uma só palavra de
ficção?
— Você está falando como um velho, Roy — disse a ele.
— As pessoas reclamam que o nível está caindo desde que
Shakespeare começou a escrever comédias.
— Sim, mas agora está acontecendo de verdade, não
está? Nunca foi desse jeito.
Ele estava tentando me provocar — o ghost-writer das
celebridades prestes a produzir as memórias de um ex-
primeiro-ministro —, mas eu estava muito satisfeito comigo
mesmo para me importar. Desejei o melhor para ele em sua
aposentadoria e comecei a atravessar o saguão balançando
a maldita sacola plástica amarela.

Devo ter levado meia hora para conseguir um táxi de volta


para a cidade. Tinha apenas uma ideia muito vaga de onde
estava. As ruas eram largas e as casas, pequenas. Havia
uma garoa constante e gelada. Meu braço doía de carregar
o manuscrito de Kroll. A julgar por seu peso, calculei que
devia ter quase mil páginas. Quem era o cliente? Tolstoi?
Acabei parando debaixo da cobertura de um ponto de
ônibus em frente de um verdureiro e uma funerária. Havia
um cartão de uma companhia de táxi preso à armação de
metal.
A viagem até minha casa levou quase uma hora, e eu
tive bastante tempo para tirar o manuscrito da sacola e
analisá-lo. O livro se chamava Um de muitos. Eram as
memórias de algum velho senador americano, famoso
apenas por ter continuado respirando por cerca de 150
anos. Estava além de qualquer escala de medição normal
de tédio — muito, muito além, até alguma estratosfera
desprovida de oxigênio de completa nulidade. O carro
estava superaquecido e cheirava a comida para viagem
velha. Comecei a me sentir enjoado. Coloquei o manuscrito
de volta na sacola e baixei a janela. A corrida custou 40
libras.
Tinha acabado de pagar ao motorista e estava
atravessando a rua em direção ao meu flat, de cabeça baixa
na chuva, procurando minhas chaves, quando senti alguém
me tocar de leve no ombro. Virei-me e dei de cara com um
muro, ou fui atropelado por um caminhão — a sensação era
essa: algum dínamo de ferro me atingiu e eu caí para trás,
nos braços de um segundo homem. (Fui informado mais
tarde de que eram dois deles, ambos na faixa dos 20 anos.
Um estava parado na entrada do meu flat, o outro apareceu
do nada e me agarrou por trás.) Dobrei o corpo, senti a
pedra arenosa e fria da sarjeta contra a bochecha, arfei,
suguei o ar e chorei como um bebê. Meus dedos devem ter
agarrado a sacola de plástico com uma força involuntária,
pois senti, em meio àquela dor muito maior, uma dor mais
fraca e aguda — uma flauta numa sinfonia — à medida que
um pé esmagou minha mão e algo foi atirado para longe.
Certamente uma das palavras mais inadequadas da
nossa língua é “resfolegar”, por sugerir algo leve e
passageiro — um arquejo, talvez, ou uma pequena falta de
fôlego. Mas eu não resfolegava. Havia levado uma bordoada
e quase fora asfixiado, tinha sido derrubado no chão e
humilhado. Parecia ter levado uma facada no plexo solar.
Arfando, tive certeza de que havia sido apunhalado. Senti
pessoas pegando meus braços e me colocando sentado.
Recostaram-me em uma árvore, seu tronco duro ferindo
minha espinha, e quando finalmente consegui mandar um
pouco de oxigênio para os pulmões, comecei
imediatamente a tatear a barriga às cegas, procurando a
ferida aberta que, tinha certeza, havia ali, imaginando meus
intestinos espalhados à minha volta. Porém, quando
vasculhei o abdome com os dedos úmidos em busca de
sangue, senti apenas a água da chuva suja de Londres.
Devo ter levado um minuto para perceber que não ia morrer
— que estava basicamente intacto — e então tudo o que eu
queria era me afastar daquelas pessoas de bom coração
que se juntavam ao meu redor e pegavam seus celulares,
perguntando se deviam ligar para a polícia ou chamar uma
ambulância.
A perspectiva de ter de esperar dez horas para ser
examinado e, em seguida, passar metade de um dia na
delegacia local para dar queixa foi o suficiente para me
fazer sair da sarjeta, subir as escadas e entrar no meu flat.
Tranquei a porta, tirei os agasalhos e fui me deitar no sofá,
tremendo. Devo ter passado uma hora sem me mexer,
enquanto as sombras frias daquele janeiro se acumulavam
lentamente na sala. Então fui até a cozinha, vomitei na pia e
depois me servi de uma dose generosa de uísque.
Pude me sentir passando do estado de choque para o de
euforia. Na verdade, com um pouco de álcool no estômago,
senti-me realmente alegre. Conferi o bolso de dentro do
paletó e depois o meu pulso: minha carteira e meu relógio
ainda estavam comigo. A única coisa que tinha sumido era a
sacola de plástico amarelo contendo as memórias do
senador Alzheimer. Soltei uma gargalhada ao imaginar os
ladrões correndo pela Ladbroke Grove e parando em algum
beco para conferir o que haviam roubado: “Meu conselho
para um jovem que pretenda entrar na vida pública hoje em
dia...” Somente depois de ter tomado outro drinque percebi
que aquilo poderia me trazer complicações. O velho
Alzheimer podia não significar nada para mim, mas Sidney
Kroll talvez encarasse a coisa de outra forma.
Peguei seu cartão. Sidney L. Kroll, da firma de advocacia
Brinkerhof Lombardi Kroll, M Street, Washington DC. Depois
de pensar a respeito por cerca de dez minutos, voltei para a
sala, me sentei no sofá e liguei para o celular dele. Ele
atendeu no segundo toque:
— Sid Kroll.
— Sidney — falei, tentado soar natural ao chamá-lo pelo
primeiro nome —, você nem imagina o que aconteceu.
— Uns caras acabaram de roubar meu manuscrito?
Por um instante, não consegui falar nada.
— Meu Deus — falei —, tem alguma coisa que você não
saiba?
— O quê? — O tom dele mudou bruscamente. — Meu
Deus — disse —, eu estava brincando. Foi isso mesmo que
aconteceu? Você está bem? Onde está agora?
Expliquei o que havia acontecido. Ele disse para eu não
me preocupar. O manuscrito não tinha importância
nenhuma. Ele só o havia me dado porque achava que talvez
fosse interessante para mim profissionalmente. Mandaria
outro. O que eu pretendia fazer? Ia chamar a polícia? Eu
disse que chamaria se ele quisesse, mas, na minha opinião,
envolver a polícia geralmente causava mais problemas do
que o necessário. Preferia encarar o ocorrido como mais
uma volta no vibrante carrossel da vida urbana:
— Sabe como é: o que será, será, uma bomba aqui, um
assalto ali.
Ele concordou.
— Foi um verdadeiro prazer conhecê-lo hoje. É ótimo ter
você a bordo. Até mais — disse ele, pouco antes de desligar,
e lá estava aquele sorrisinho na voz dele novamente. Até
mais.
Fui ao banheiro e abri a camisa. Havia uma mancha
vermelho-clara horizontal na minha pele, pouco acima do
estômago e abaixo da caixa torácica. Fui para a frente do
espelho para olhar melhor. Tinha uns 8 cm de largura e
menos de 2 cm de comprimento — e era estranhamente
pontiaguda. Não havia sido causada por algo de carne e
osso, pensei. Meu palpite seria um soco-inglês. Aquilo
parecia profissional. Comecei a me sentir estranho
novamente e voltei para o sofá.
Quando o telefone tocou, era Rick, para me dizer que
tinha fechado o contrato.
— Qual é o problema? — disse ele, interrompendo-se. —
Você está esquisito.
— Acabei de ser assaltado.
— Não!
Novamente, descrevi o que havia acontecido. Rick soltou
interjeições apropriadamente solidárias, porém, assim que
foi informado de que eu estava bem o suficiente para
trabalhar, a ansiedade abandonou sua voz. À primeira
oportunidade, levou a conversa ao assunto que o
interessava de fato.
— Então você ainda está bem o suficiente para pegar o
avião para os Estados Unidos no domingo?
— Claro, só estou um pouco chocado.
— Tudo bem, tenho outra coisa chocante para você. Por
um mês de trabalho, em um manuscrito que supostamente
já está escrito, a Rhinehart Inc. está disposta a lhe pagar
250 mil dólares, mais despesas.
— O quê?
Se eu já não estivesse sentado no sofá, teria caído nele.
Dizem que todo homem tem um preço. Um quarto de
milhão por quatro semanas de trabalho era
aproximadamente dez vezes o meu.
— Isto dá 50 mil dólares pagos semanalmente pelas
próximas quatro semanas — disse Rick —, mais um bônus
de 50 mil se você terminar o trabalho dentro do prazo. Os
custos de viagem e hospedagem são por conta deles. E
você será creditado como colaborador.
— Na folha de rosto?
— Faça-me o favor! Nos agradecimentos. Mas, mesmo
assim, as publicações do meio vão saber. Vou cuidar disso.
Embora por enquanto seu envolvimento seja estritamente
confidencial. Eles foram muito firmes quanto a isso. —
Conseguia ouvi-lo rir ao telefone e imaginei-o se recostando
na cadeira. — Sim senhor, todo um novo mundo está se
abrindo diante de você, meu garoto.
Disso ele tinha razão.
Três

Se você é extremamente tímido ou tem dificuldade em


deixar as pessoas relaxadas e dispostas a se abrirem, talvez
a profissão de ghost-writer não seja para você.

Ghostwriting

O voo 109 da American Airlines estava marcado para partir


do Heathrow para Boston às dez e meia da manhã de
domingo. No sábado à tarde, Rhinehart enviou um portador
com uma passagem de primeira classe só de ida, além de
um contrato e do termo de confidencialidade. Tive de
assinar ambos enquanto o mensageiro esperava. Confiei
que Rick tivesse entendido o contrato direito e nem me
preocupei em lê-lo; o termo de confidencialidade eu
examinei rapidamente no hall. Lembrando agora, é quase
engraçado: Tratarei todas as informações confidenciais
como estritamente privadas e confidenciais e tomarei todas
as medidas necessárias para evitar que elas sejam
divulgadas ou levadas a público por qualquer pessoa ou
terceiro... Não utilizarei, divulgarei ou permitirei que
qualquer pessoa divulgue as informações confidenciais para
beneficio de terceiros... Em hipótese alguma eu ou qualquer
pessoa deve copiar ou disponibilizar a terceiros a totalidade
ou qualquer parte da informação confidencial sem
autorização prévia do proprietário... Assinei sem medo.
Sempre gostei de poder desaparecer rapidamente. Eu
costumava levar por volta de cinco minutos para colocar
minha vida em Londres em compasso de espera. Todas as
minhas contas eram pagas por meio de débito automático.
Não havia entregas a cancelar — nada de leite nem de
jornais. Duas vezes por semana, minha faxineira, que de
qualquer forma eu não via quase nunca, traria toda a
correspondência que estivesse no andar de baixo. Já havia
limpado minha mesa de trabalho. Não tinha compromissos.
Nunca havia falado com meus vizinhos. Kate provavelmente
partira para sempre. A maioria dos meus amigos havia há
muito entrado no reino da vida familiar, de cujas margens
distantes, de acordo com minha experiência, nenhum
viajante jamais retornou. Meus pais estavam mortos. Não
tinha irmãos. Poderia morrer e, para o mundo, minha vida
continuaria seguindo normalmente. Fiz uma mala com roupa
para uma semana, um suéter e um par de sapatos
sobressalente. Coloquei meu laptop e meu gravador de
MiniDisc na bolsa a tiracolo. Usaria a lavanderia do hotel. Se
precisasse de mais alguma coisa, compraria ao chegar.
Passei o resto do dia e a tarde inteira no meu escritório,
lendo os livros sobre Adam Lang e fazendo listas de
perguntas. Não quero parecer muito “O médico e o
monstro” a respeito disso, mas, ao cair da noite — à medida
que as luzes se acendiam nos arranha-céus do outro lado do
pátio de manobra da ferrovia e as estrelas vermelhas,
brancas e verdes piscavam e caíam em direção ao
aeroporto —, eu já conseguia me sentir entrando na pele de
Lang. Ele era alguns anos mais velho que eu, mas, fora isso,
nossas origens eram parecidas. Não tinha notado as
semelhanças antes: filho único, nascido na Inglaterra
Central, formado na escola secundária da região, graduado
em Cambridge, apaixonado por teatro amador, uma total
falta de interesse por política estudantil.
Voltei para olhar as fotografias. “A atuação hilariante de
Lang como um frango encarregado de um galinheiro para
humanos no grupo de teatro amador de Cambridge em
1972 rendeu-lhe elogios.” Conseguia imaginar nós dois
atrás das mesmas garotas, levando um espetáculo ruim
para o festival de Edinburgh Fringe na traseira de alguma
van surrada da Volkswagen, dividindo um apartamento,
ficando chapados. E ainda assim, de certa forma,
metaforicamente falando, eu havia continuado sendo um
frangote, enquanto ele se tornara primeiro-ministro. Foi
então que meus habituais poderes de empatia me
abandonaram, pois não parecia haver nada nos seus
primeiros 25 anos que pudessem explicar os 25 restantes.
No entanto, pensei, haveria tempo suficiente para encontrar
a voz dele.
Dei duas voltas na chave da porta de entrada antes de ir
para a cama naquela noite e sonhei que estava seguindo
Adam Lang por um labirinto chuvoso de ruas de tijolos
vermelhos. Quando entrei em um táxi e o motorista se virou
para me perguntar para onde eu queria ir, ele tinha o rosto
triste de McAra.

Na manhã seguinte, o Heathrow parecia um daqueles filmes


de ficção científica ruins passados em um futuro próximo,
depois de as forças de segurança terem assumido o controle
do Estado. Dois veículos blindados estavam estacionados na
frente do terminal. Uma dúzia de homens com
metralhadoras estilo Rambo e cortes de cabelo horríveis
patrulhavam o local. Passageiros esperavam em filas
enormes para serem revistados e passarem no raio X,
carregando seus sapatos em uma das mãos e seus
patéticos artigos de toalete em um saco plástico
transparente na outra. Viajar é vendido como um ato de
liberdade, mas éramos tão livres quanto ratos de
laboratório. É assim que eles vão conduzir o próximo
Holocausto, pensei, enquanto arrastava meus pés para a
frente: simplesmente distribuirão as passagens aéreas e nós
faremos qualquer coisa que eles mandarem.
Assim que passei pela segurança, comecei a atravessar
os corredores perfumados do free shop em direção à sala de
espera da American Airlines, querendo apenas um cafezinho
de cortesia e o caderno de esportes do jornal de domingo.
Um canal de notícias via satélite tagarelava em um canto.
Ninguém estava assistindo. Servi-me de uma xícara de café
e estava voltando a atenção para as notícias de futebol de
um dos tabloides quando ouvi as palavras “Adam Lang”.
Três dias antes, como todo mundo na sala de espera, eu
nem teria percebido, mas agora era como se tivessem
chamado meu próprio nome. Fui até lá e parei diante da
tela, tentando entender do que se tratava a matéria.
A princípio, não parecia muito importante. Dava a
impressão de ser notícia antiga. Quatro cidadãos britânicos
tinham sido apanhados no Paquistão alguns anos atrás —
“raptados pela CIA”, de acordo com o advogado deles —,
levados para uma instalação militar secreta no Leste
Europeu e torturados. Um deles morrera durante o
interrogatório, os outros três haviam sido aprisionados em
Guantánamo. O novo desdobramento, aparentemente, era
que um jornal tinha conseguido um documento que havia
vazado do Ministério de Defesa que parecia sugerir que
Lang dera ordens a uma unidade das SAS, as Forças Aéreas
Especiais do Reino Unido, para capturar os homens e
entregá-los à CIA. Várias demonstrações de indignação se
seguiram, de um defensor dos direitos humanos e de um
porta-voz do governo paquistanês. Imagens de arquivo
mostravam Lang usando uma guirlanda em volta do
pescoço durante uma visita ao Paquistão quando era
primeiro-ministro. Segundo a matéria, uma porta-voz de
Lang havia declarado que o ex-primeiro-ministro não sabia
nada sobre os relatórios e se recusava a comentá-los. O
governo britânico havia rejeitado sistematicamente pedidos
de abertura de inquérito. O jornal passou para a previsão do
tempo, e foi isso.
Olhei em volta da sala de espera. Ninguém mais tinha se
mexido. Mas, por algum motivo, parecia que alguém tinha
acabado de arrastar uma bolsa de gelo pela minha espinha
abanco. Peguei meu celular e liguei para Rick. Não
conseguia me lembrar se ele já havia voltado para a
América ou não. Acabei descobrindo que estava a cerca de
um quilômetro e meio de distância, na sala de espera da
British Airways, esperando para embarcar no seu voo para
Nova York.
— Você viu as notícias? — perguntei a ele.
Ao contrário de mim, Rick era viciado em noticiários.
— Sobre Lang? Claro.
— Será que isso vai dar em alguma coisa?
— Como é que eu vou saber? Quem se importa? Pelo
menos está mantendo o nome dele nas primeiras páginas.
— Acha que eu devo perguntar a respeito disso para ele?
— Ninguém está nem aí pra isso! — Pelo telefone, ouvi
um alto-falante berrar algo ao fundo. — Estão chamando
meu voo. Preciso desligar.
— Antes de você ir — atalhei depressa —, posso lhe
perguntar uma coisa rapidinho? Quando eu fui assaltado na
sexta-feira, achei muito estranho eles terem deixado minha
carteira e apenas saído correndo com um manuscrito. Mas
agora, vendo essa notícia... bem, eu fiquei pensando: você
não acha que eles pensaram que eu estava com as
memórias de Lang?
— Mas como eles saberiam disso? — disse Rick com uma
voz intrigada. — Você tinha acabado de encontrar Maddox e
Kroll. Eu ainda estava negociando o contrato.
— Bem, talvez alguém estivesse vigiando a editora e
então me seguiu quando eu fui embora. Era uma sacola de
plástico amarelo berrante, Rick. Era como se eu estivesse
carregando um foguete de sinalização. — Então, outra ideia
me veio à cabeça, tão alarmante que eu nem sabia por
onde começar. — Enquanto você ainda está aí, me diga: o
que você sabe sobre Sidney Kroll?
— O jovem Sid? — Rick deu uma risadinha de admiração.
— Ora, ele é uma peça, não é? Vai acabar tirando vigaristas
honestos como eu do mercado. Ele negocia taxas fixas em
vez de comissões, e você não vai encontrar um ex-
presidente ou membro de gabinete que não o queira na sua
equipe. Por quê?
— Não é possível — falei, hesitante, verbalizando a ideia
mais ou menos à medida que ela se formava na minha
cabeça — que ele tenha me dado aquele manuscrito por
achar que, se alguém estivesse de olho, iria parecer que eu
estava saindo do prédio com o livro de Lang?
— E por que diabos ele faria isso?
— Não sei. Para tirar um sarro? Para ver o que
aconteceria?
— Para ver se você seria roubado?
— Certo, tudo bem, sei que parece loucura, mas pense
um pouco. Por que os editores estão tão paranoicos com
esse manuscrito? Nem Quigley pôde vê-lo. Por que não o
deixam sair dos Estados Unidos? Talvez seja porque acham
que alguém aqui está desesperado para colocar as mãos
nele.
— E daí?
— E daí que talvez Kroll estivesse me usando como isca
para avaliar quem estava atrás dele, descobrir até onde
eles estariam dispostos a ir.
No mesmo instante em que as palavras saíam da minha
boca, eu percebia como estava soando ridículo.
— Mas o livro de Lang é uma merda, uma chatice só! —
disse Rick. — As únicas pessoas que eles querem manter
longe do manuscrito a essa altura são os acionistas! É por
isso que estão fazendo segredo.
Eu estava começando a me sentir um idiota. Teria
largado o assunto de mão, mas Rick estava se divertindo
demais.
— Uma isca! — Eu poderia ter ouvido a gargalhada dele
vindo do outro terminal mesmo sem o telefone. — Deixe-me
ver se entendi direito. De acordo com a sua teoria, alguém
sabia que Kroll estava na cidade, bem como onde ele estava
na sexta-feira de manhã, qual o motivo da vinda dele...
— Está certo — falei. — Deixe para lá.
— ... sabia, ainda, que talvez ele desse o manuscrito de
Lang para um novo ghost-writer, sabia quem você era
quando saiu da reunião e sabia também onde você morava.
Porque você disse que eles o estavam esperando, não foi?
Uau. Deve ter sido uma operação e tanto. Grande demais
para um jornal. Deve ter sido um governo...
— Esqueça — falei, finalmente conseguindo cortá-lo. — É
melhor você pegar o seu voo.
— É, tem razão. Bem, tenha uma boa viagem. Durma um
pouco no avião. Você está soando estranho. A gente se fala
na semana que vem. E não se preocupe com isso.
Ele desligou.
Fiquei parado segurando meu telefone mudo. Era
verdade. Eu estava soando estranho. Fui até o banheiro dos
homens. A marca onde eu fora atingido na sexta-feira tinha
amadurecido — ficara preta e roxa, cercada de amarelo,
como alguma supernova explodindo em um livro didático de
astronomia.
Pouco depois, eles anunciaram o embarque para o voo
de Boston, e, uma vez no ar, meus nervos se acalmaram.
Adoro o instante em que uma paisagem cinza e sombria
oscila até desaparecer debaixo de você, e o avião abre um
túnel por entre as nuvens, emergindo sob a luz do sol.
Quem consegue ficar deprimido a 3 mil metros de altitude
com o sol brilhando enquanto os outros pobres-diabos ainda
estão presos ao chão? Pedi um drinque. Assisti a um filme.
Cochilei um pouco. Porém, tenho de admitir que também
vasculhei aquela cabine da classe econômica atrás de
qualquer jornal de domingo que pudesse encontrar, ignorei
pela primeira vez na vida as páginas esportivas e li tudo o
que havia sido escrito sobre Adam Lang e aqueles quatro
suspeitos de terrorismo.

Chegamos às proximidades do aeroporto Logan a uma hora


da tarde, horário local.
Enquanto passávamos rasantes sobre o porto de Boston,
o sol que vínhamos perseguindo o dia todo parecia nos
acompanhar correndo por sobre a água, atingindo os
arranha-céus do centro da cidade um atrás do outro:
emitindo colunas brancas e azuis, douradas e prateadas, em
um espetáculo de luzes em meio ao vidro e ao aço. Oh,
minha América!, pensei, minha terra recém-descoberta —
minha terra onde o mercado editorial é cinco vezes maior
do que o do Reino Unido —, iluminai-me com vossa luz!
Enquanto esperava na fila da imigração, estava
praticamente cantarolando o hino dos Estados Unidos. Nem
mesmo o sujeito do Departamento de Segurança Interna —
uma personificação da regra de que quanto mais simples o
nome de uma instituição, mais stalinista é sua função —
conseguiu diminuir meu otimismo. Ele ficou sentado atrás
de sua tela de vidro, a cara fechada diante da ideia de que
alguém viajasse cerca de 5 mil quilômetros para passar um
mês em Martha’s Vineyard no meio do inverno. Quando
descobriu que eu era um escritor, tratou-me com mais
suspeita do que se eu estivesse usando uma roupa de
paraquedista laranja.
— Que tipo de livro o senhor escreve?
— Autobiografias.
Isto obviamente o deixou confuso. Ele suspeitou que eu
estava de brincadeira, mas não tinha certeza.
— Autobiografias, é? Não é preciso ser famoso para fazer
isso?
— Não mais.
Ele me olhou feio, então balançou a cabeça lentamente,
como um São Pedro cansado diante dos Portões do Paraíso,
que estivesse tendo de encarar mais um pecador que
tentava entrar sorrateiramente no céu.
— Não mais — repetiu ele, exibindo uma expressão de
infinito desgosto. Ele pegou seu carimbo de metal e bateu-o
duas vezes. Recebi um visto de trinta dias.
Quando passei pela imigração, liguei o telefone celular.
Ele mostrou uma mensagem de boas-vindas da assistente
pessoal de Lang, uma mulher chamada Amelia Bly, pedindo
desculpas por não ter conseguido um motorista para me
buscar no aeroporto. Em vez disso, ela sugeriu que eu
pegasse um ônibus até o terminal das barcas em Woods
Hole e prometeu que um carro estaria à minha espera
quando eu descesse em Martha’s Vineyard. Comprei um
New York Times e um Boston Globe e dei uma olhada neles
enquanto esperava o ônibus sair. Queria ver se tinham a
história de Lang, mas ou a notícia tinha chegado tarde
demais para eles ou não lhes interessava.
O ônibus estava quase vazio e eu me sentei bem na
frente, perto do motorista, enquanto seguíamos para o sul
pelo emaranhado de autoestradas que saíam da cidade em
direção ao campo. A temperatura estava alguns graus
abaixo de zero e o céu estava limpo, mas tinha nevado
pouco tempo atrás. Havia neve acumulada no acostamento
e agarrada aos ramos mais altos das árvores que se
estendiam dos dois lados da estrada em grandes ondas de
branco e verde. A Nova Inglaterra era basicamente a Velha
Inglaterra anabolizada — estradas mais largas, florestas
maiores, espaços mais amplos; até o céu parecia enorme e
brilhante. Eu tinha uma sensação agradável de estar
aproveitando meu tempo ao imaginar uma noite de
domingo escura e úmida em Londres, em contraste com
aquela tarde de inverno resplandecente. Porém, aos poucos
começou a escurecer ali também. Acho que eram quase seis
horas da tarde quando chegamos a Woods Hole e paramos
em frente ao terminal das barcas, e àquela altura a lua e as
estrelas já estavam no céu.
Estranhamente, foi apenas quando vi a placa indicando a
barca que me lembrei de McAra. Não era de espantar que
eu não quisesse pensar muito sobre o fato de estar
substituindo um homem morto neste trabalho,
especialmente depois do assalto. Porém, ao arrastar minha
mala com rodinhas até a bilheteria para comprar meu
tíquete e depois sair novamente para o vento gelado, ficou
fácil demais imaginar meu predecessor fazendo
movimentos semelhantes apenas três semanas antes. Ele
estava bêbado, claro, coisa que eu não estava. Olhei em
volta. Havia vários bares bem diante do estacionamento.
Talvez ele tivesse ido a algum daqueles. Eu mesmo bem que
gostaria de um drinque. Mas daí poderia acabar me
sentando na mesmíssima cadeira de bar que ele havia se
sentado, e isso seria mórbido, pensei, como fazer uma
daquelas excursões por locais de assassinatos em
Hollywood. Em vez disso, entrei na fila de passageiros e
tentei ler o suplemento de domingo do Times, usando o
muro para me proteger do vento. Havia uma placa de
madeira com os seguintes dizeres pintados: O NÍVEL DE
ALERTA NACIONAL ESTÁ ELEVADO. Conseguia sentir o cheiro do
mar, mas estava escuro demais para vê-lo.
O problema é que, quando você começa a pensar sobre
uma coisa, nem sempre consegue se obrigar a parar. A
maioria dos carros que aguardava o embarque estava com o
motor ligado para que os motoristas pudessem usar o
aquecedor contra o frio, e eu me vi procurando um utilitário
esportivo Ford Escape cor de canela. Então, quando
finalmente entrei na barca e subi as escadas de metal
rangentes até o convés dos passageiros, me perguntei se
aquele era o caminho que McAra havia feito. Disse a mim
mesmo para esquecer aquilo, que estava me preocupando
por nada. Mas suponho que fantasmas e ghost-writers
combinem naturalmente. Sentei-me na cabine de
passageiros abafada e analisei os rostos comuns e honestos
dos meus companheiros de viagem, e então, quando a
embarcação estremeceu e zarpou do terminal, dobrei meu
jornal e saí para o convés aberto superior.
É impressionante como o frio e a escuridão podem
mudar tudo. Imagino que a barca para Martha’s Vineyard
em uma noite de verão seja uma delícia. Há uma chaminé
listrada que parece ter saído direto de um livro de histórias
infantis e fileiras de assentos de plástico azuis que dão para
fora, correndo por toda a extensão do convés, nos quais
famílias inteiras certamente se sentam de bermuda e
camiseta, os adolescentes parecendo entediados e os pais
mal se contendo de empolgação. Porém, naquela noite de
janeiro, o convés estava deserto, e o vento norte cortante
que soprava de Cape Cod atravessava meu paletó e minha
camisa e me causava calafrios. As luzes de Woods Hole
ficaram para trás. Passamos por uma boia que indicava a
entrada do canal e balançava freneticamente na direção
dele, como se estivesse tentando se livrar de algum
monstro marinho. Seu sino badalava no ritmo das ondas
como uma marcha fúnebre e os respingos d’água que se
lançavam no ar pareciam tão vis quanto o cuspe de uma
bruxa.
Enfiei as mãos nos bolsos, ergui os ombros até o pescoço
e fui andando cambaleante para estibordo. O corrimão ia
apenas até a altura da cintura e pela primeira vez notei com
que facilidade McAra poderia ter caído. Na verdade, tive de
me esforçar para não acontecer o mesmo comigo. Rick
tinha razão. A fronteira entre acidente e suicídio nem
sempre é muito clara. Você poderia acabar se matando
antes mesmo de tomar a decisão final. O simples ato de
inclinar o corpo demais para fora e imaginar como seria
poderia jogá-lo lá embaixo. Bateria naquela água negra,
revolta e gelada com um impacto que o faria afundar três
metros, e quando voltasse à tona, o navio já poderia estar a
100 metros de distância. Torci para que McAra tivesse
bebido o suficiente para diminuir seu horror, mas duvidava
que houvesse um bêbado no mundo que não ficasse sóbrio
depois de uma imersão total em um mar a apenas meio
grau acima de zero.
E ninguém teria escutado sua queda! Este era outro
problema. O clima não estava nem de longe tão ruim
quanto há três semanas e, ainda assim, olhando em volta,
não conseguia enxergar vivalma no convés. Nesse instante,
comecei a tremer de verdade; meus dentes batiam como
algum brinquedo mecânico de bazar.
Desci até o bar para tomar um drinque.

Contornamos o farol de West Chop e entramos no terminal


do porto de Vineyard pouco antes das sete horas,
ancorando com um chocalhar de correntes e um baque que
quase me fez voar escada abaixo. Não estava esperando
um comitê de boas-vindas, o que foi bom, pois não tive
nenhum, apenas um motorista de táxi local segurando uma
página arrancada de um bloco de anotações na qual meu
nome estava escrito errado. Enquanto ele guardava minha
bagagem no porta-malas, o vento ergueu um pedaço
grande de plástico transparente e o fez sair rodopiando pelo
gelo que cobria o estacionamento. O céu estava branco de
estrelas.
Eu havia comprado um guia para a ilha, de modo que
tinha uma vaga ideia do que me esperava. No verão, a
população era de 100 mil habitantes, porém, depois que os
veranistas fechavam suas casas e migravam para o oeste
no inverno, ela caía para 15 mil. Estes compreendiam os
robustos nativos da ilha: gente que chamava o continente
de América. Havia algumas autoestradas, um semáforo e
dezenas de trilhas longas e arenosas que conduziam a
lugares com nomes como Squibnocket Pond e Jobs Neck
Cove. Meu motorista não disse uma palavra durante toda a
viagem, apenas me examinou pelo espelho retrovisor.
Quando meus olhos encontraram o olhar turvo dele pela
vigésima vez, perguntei a mim mesmo se havia algum
motivo para ele se ressentir em me apanhar. Talvez eu o
estivesse impedindo de fazer alguma coisa. Era difícil
imaginar o quê. As ruas em volta do terminal estavam
praticamente desertas, e assim que saímos do porto de
Vineyard e pegamos a estrada principal, não havia nada
para se ver além de escuridão.
Àquela altura, eu estava viajando havia 17 horas. Não
sabia onde estava, por que tipo de paisagem estava
passando nem para onde estava indo. Todas as minhas
tentativas de puxar conversa haviam fracassado. Enxergava
apenas meu reflexo na escuridão fria da janela. Senti-me
como se tivesse chegado à beirada da Terra, como algum
explorador inglês do século XVII prestes a encontrar pela
primeira vez os nativos da área. Soltei um bocejo alto e
levei rapidamente as costas da mão à boca.
— Desculpe — expliquei aos olhos sem corpo no espelho
retrovisor. — De onde eu venho já passa da meia-noite.
Ele balançou a cabeça. A princípio, não soube dizer se
ele estava demonstrando simpatia ou reprovação; então
percebi que estava tentando me informar que não
adiantava falar com ele: o homem era surdo. Voltei a olhar
pela janela.
Algum tempo depois, chegamos a uma encruzilhada e
viramos à esquerda, entrando no que imaginei ser
Edgartown, um povoado de casas brancas de madeira com
cercas brancas, pequenos jardins e pórticos, iluminadas por
postes de luz vitorianos enfeitados. Nove entre dez estavam
escuras, mas as poucas janelas que brilhavam com uma luz
amarela vislumbrei pinturas a óleo de veleiros e ancestrais
barbudos. No fim da colina, depois da antiga igreja local,
uma lua grande e nebulosa lançava uma luz prateada sobre
os telhados e recortava os mastros no porto contra o céu.
Caracóis de fumaça de lenha subiam de algumas chaminés.
Senti-me como se estivesse passando por um cenário do
filme Moby Dick. Os faróis brilharam sobre uma placa para a
barca de Chappaquiddick e, pouco depois, paramos em
frente do Hotel Lighthouse View.
Mais uma vez, posso visualizar a cena no verão: baldes,
pás e redes de pesca empilhados na varanda, sandálias de
corda diante da porta, um rastro de areia branca trazida da
praia — esse tipo de coisa. Porém, na baixa temporada, o
vento castigava e fazia ranger o antigo e enorme hotel de
madeira como se ele fosse um veleiro preso em um recife.
Imagino que a gerência estivesse esperando até a
primavera para raspar a pintura descascada e limpar a
crosta de sal das janelas. Perto dali, o mar espancava a orla
na escuridão. Fiquei parado com minha mala na varanda de
madeira e observei os faróis do táxi desaparecerem na
esquina sentindo algo parecido com nostalgia.
No saguão, uma garota vestida de empregada vitoriana,
usando um chapéu de pala com laço branco, entregou-me
uma mensagem do escritório de Lang. Eu seria apanhado às
dez horas na manhã seguinte e deveria levar meu
passaporte para mostrá-lo à segurança. Estava começando
a me sentir como um homem em uma viagem misteriosa:
assim que chegava a um local, recebia uma nova série de
instruções para me encaminhar até o próximo. O hotel
estava vazio, o restaurante, escuro. Disseram-me que eu
poderia escolher meu quarto e optei por um no segundo
andar, que tinha uma mesa na qual eu poderia trabalhar e
fotografias da Velha Edgartown na parede: a Casa de John
Coffin, circa 1890; o baleeiro Splendid, em Osborn Wharf,
circa 1870. Depois que a recepcionista saiu, coloquei meu
laptop, a lista de perguntas e as matérias que eu havia
retirado dos jornais de domingo sobre a mesa e então me
estirei na cama.
Caí no sono imediatamente e não acordei até as duas
horas da manhã, quando o alarme do meu relógio biológico,
ainda ajustado para o horário de Londres, disparou como o
Big Ben. Passei dez minutos procurando um frigobar antes
de perceber que não havia nenhum. Por impulso, liguei para
a casa de Kate. Não fazia ideia do que exatamente ia dizer.
Pretendia desligar, mas, em vez disso, me surpreendi
divagando na secretária eletrônica. Ela devia ter saído bem
cedo para o trabalho. Ou isso, ou não tinha voltado para
casa na noite anterior. Aquilo dava o que pensar e,
oportunamente, foi o que fiz. O fato de não ter ninguém
para culpar além de mim mesmo não me fez sentir nada
melhor. Tomei um banho e depois voltei para a cama,
apaguei a luz e puxei os lençóis úmidos até o queixo. De
poucos em poucos segundos, a luz lenta do farol enchia o
quarto de um brilho vermelho esmaecido. Devo ter ficado
horas deitado ali, os olhos arregalados, totalmente
desperto, porém disperso, e foi assim que passei minha
primeira noite em Martha’s Vineyard.

A paisagem que se dissolveu da aurora na manhã seguinte


era opaca e aluvial. Do outro lado da rua sob a minha
janela, havia um córrego, mais adiante um canavial e,
depois dele, uma praia e o mar. Um bonito farol vitoriano
com um telhado em forma de sino e uma sacada de ferro
batido dava vista para os estreitos até uma faixa de terra
longa e baixa a cerca de 1,5 quilômetro de distância. Aquilo,
percebi, devia ser Chappaquiddick. Um bando de centenas
de minúsculos pássaros marinhos brancos, com uma
formação tão rígida quanto a de um cardume, planou, fez
piruetas e mergulhou nas águas rasas.
Desci e pedi um café da manhã enorme. Na lojinha ao
lado da recepção, comprei um exemplar do New York Times.
A matéria que eu procurava havia sido sepultada nas
profundezas do caderno internacional e depois enterrada
mais fundo no fim da página para garantir o máximo de
obscuridade:

LONDRES (AP) — O ex-primeiro-ministro Adam Lang


autorizou o uso ilegal de tropas das forças especiais
britânicas para a captura de dois supostos terroristas da
al-Qaeda no Paquistão, que seriam posteriormente
entregues à CIA para interrogatório, segundo matérias de
jornal publicadas neste domingo.
Os homens — Nasir Ashraf, Shakeel Qazi, Salim Khan
e Faruk Ahmed —, todos cidadão ingleses, foram
capturados na cidade paquistanesa de Peshawar cinco
anos atrás. Os quatro supostamente foram transferidos
do país para um local secreto e torturados. Acredita-se
que o Sr. Ashraf tenha morrido durante os
interrogatórios. O Sr. Qazi, o Sr. Khan e o Sr. Ahmed
ficaram detidos em Guantánamo por três anos. Apenas o
Sr. Ahmed continua atualmente sob a custódia
americana.
De acordo com documentos obtidos pelo Sunday
Times de Londres, o Sr. Lang endossou pessoalmente a
“Operação Tempestade”, uma missão secreta para raptar
os quatro homens realizada pelas Forças Áreas Especiais
do Reino Unido (SAS). Uma operação deste gênero seria
considerada ilegal tanto pelas leis britânicas quanto
pelas leis internacionais.
Na noite passada, o ministro da Defesa da Inglaterra
recusou-se a tecer comentários sobre a autenticidade
dos documentos ou sobre a existência da “Operação
Tempestade”. Uma porta-voz do Sr. Lang afirmou que ele
não planejava fazer declarações a respeito.

Li a notícia três vezes. Não parecia acrescentar muita coisa.


Ou acrescentava? Já não era tão fácil saber. O
posicionamento moral de uma pessoa não era mais tão fixo
quanto antigamente. Métodos que a geração do meu pai
teria considerado inadmissíveis, mesmo na luta contra os
nazistas — tortura, por exemplo —, agora eram,
aparentemente, comportamentos civilizados aceitáveis.
Decidi que os dez por cento da população que se
preocupava com este tipo de coisa ficaria horrorizado com a
notícia, isto é, se conseguisse achá-la; os outros noventa
por cento provavelmente apenas daria de ombros. Todo
mundo sabia que o Mundo Livre está flertando com o lado
negro. O que as pessoas esperavam?
Eu tinha algumas horas livres antes de o carro vir me
buscar, então atravessei a ponte de madeira até o farol e
depois caminhei até Edgartown. À luz do dia, ela parecia
ainda mais vazia do que na noite anterior. Esquilos corriam
despreocupadamente pelas calçadas e disparavam árvores
acima. Devo ter passado por duas dúzias daquelas casas
pitorescas, estilo século XIX, de capitães de baleeiro, e
nenhuma delas parecia estar ocupada. As sacadas frontais e
laterais estavam desertas. Não havia mulheres de xale
preto olhando melancolicamente para o mar, esperando
seus homens voltarem para casa — provavelmente porque
os homens estavam todos em Wall Street. Os restaurantes
estavam fechados; as pequenas butiques e galerias não
tinham absolutamente mais nada no estoque. Eu pretendia
comprar um casaco impermeável, mas não havia nenhuma
loja aberta. As janelas estavam cheias de poeira e casulos
de insetos. “Obrigado pela ótima temporada!!!”, diziam os
cartazes. “Voltamos a nos ver na primavera!”
A mesma coisa na enseada. As cores primárias do porto
eram cinza e branco — mar cinza, céu branco, telhados
cinza, muros de madeira branca, mastros brancos lisos,
quebra-mares que as intempéries tornaram azul ou verde-
acinzentado, sobre os quais se empoleiravam gaivotas nos
mesmos tons de branco e cinza. Era como se Martha
Stewart tivesse escolhido as cores daquele lugar inteiro,
misturando a ação do homem com a natureza. Até mesmo o
sol, que pairava discretamente sobre Chappaquiddick tinha
o bom gosto de iluminar tudo com uma luz branca-clara.
Levantei a mão para proteger os olhos e apertei-os em
direção à faixa de areia distante com suas casas de
veraneio isoladas. Era lá que a trajetória do senador Edward
Kennedy tinha dado sua desastrosa guinada para o lado
errado. De acordo com o meu livro, a ilha de Martha’s
Vineyard inteira tinha sido um playground para a família
Kennedy, que gostava de vir de barco desde Hyannisport
para passar o dia nela. Dizem que certa vez Jack, quando
era presidente, decidiu atracar seu barco no cais privativo
do Clube de Iatismo de Edgartown, mas preferiu continuar
navegando depois que viu uma multidão de sócios em fila,
todos republicanos, com os braços cruzados, observando-o,
desafiando-o a aportar. Foi no verão anterior ao assassinato
dele.
Os poucos iates atracados agora estavam cobertos para
o inverno. O único movimento era o de um barco pesqueiro
solitário com um motor externo que seguia em direção às
marambaias. Sentei-me um pouco em um banco e esperei
para ver se algo acontecia. Gaivotas mergulhavam no ar e
gritavam. Em um iate próximo, o vento fazia os cabos
baterem contra um mastro de metal. Ouvia-se um martelar
ao longe à medida que alguma casa era reformada para o
verão. Um velho passou com um cachorro. Fora isso,
durante quase uma hora não aconteceu nada que pudesse
distrair um autor do seu trabalho. O lugar era a ideia que
um não escritor faria de um paraíso para escritores. Entendi
por que McAra provavelmente tinha enlouquecido.
Quatro

O ghost-writer também sofrerá pressão dos editores para


revelar alguma polêmica que eles possam usar para vender a
publicação de trechos na imprensa e gerar publicidade na
época do lançamento.

Ghostwriting

Foi meu velho amigo, o taxista surdo, que me apanhou no


hotel mais tarde naquela manhã. Uma vez que eu havia sido
instalado em um hotel em Edgartown, naturalmente havia
suposto que a propriedade de Rhinehart devia ser em algum
lugar na própria enseada. Havia alguns casarões com vista
para o porto que me pareciam exemplos perfeitos de
imóveis bilionários — o que mostra como eu era ignorante
em relação ao que a verdadeira riqueza pode comprar. Em
vez disso, pegamos a saída da cidade durante cerca de dez
minutos, seguindo placas para West Tisbury até uma região
plana, onde a mata era cerrada, e então, antes mesmo que
eu percebesse uma falha entre as árvores, dobramos à
esquerda e descemos por uma trilha arenosa não asfaltada.
Até aquele instante, eu não havia sido apresentado ao
carvalho americano. Talvez seja uma árvore bonita quando
frondosa. Porém, no inverno, duvido que a natureza tenha
uma visão mais deprimente para oferecer em toda a sua
flora do que quilômetro após quilômetro daquelas árvores
retorcidas, anãs e cinzentas. Algumas poucas folhas
marrons enroscadas eram a única prova de que um dia elas
talvez tivessem estado vivas. Chacoalhamos e quicamos por
uma trilha estreita em meio à floresta por quase cinco
quilômetros e a única criatura que vimos foi um gambá
atropelado, até que finalmente chegamos a um portão
fechado. E eis que se materializa, naquela selva petrificada,
um homem carregando uma prancheta e vestindo um
sobretudo Crombie e sapatos Oxford pretos engraxados, o
traje inconfundível de um guarda inglês à paisana.
Baixei a janela e entreguei-lhe meu passaporte. Seu
rosto grande e mal-humorado estava cor de tijolo naquele
frio, suas orelhas, cor de terracota: não era um policial
satisfeito com sua função. Pela sua cara, era como se
tivesse sido escalado para fazer a guarda de uma das netas
da rainha no Caribe por uma quinzena e então tivesse sido
transferido para aquele lugar no último minuto. Ele me
olhou feio enquanto conferia meu nome na lista em sua
prancheta, limpou uma enorme gota de umidade da ponta
do nariz e deu a volta no táxi, inspecionando-o. Pude ouvir
as ondas executando suas cambalhotas contínuas e
oscilantes em uma praia em algum lugar. Ele voltou,
devolveu-me o passaporte e disse — ou pelo menos achei
que disse isso, pois sua fala não passou de um resmungo:
— Bem-vindo ao hospício.
De repente, fiquei nervoso, coisa que espero ter
conseguido esconder, pois a primeira impressão é
importante para um ghost-writer. Tento nunca demonstrar
ansiedade. Esforço-me para sempre parecer profissional.
Meu estilo de vestir é camaleônico. Procuro usar o mesmo
tipo de roupa que imagino que o cliente estará usando. Se
for um jogador de futebol, talvez coloque um par de tênis;
se for um cantor de música pop, uma jaqueta de couro. Para
o meu primeiro encontro na vida com um ex-primeiro-
ministro, eu havia decidido não usar terno — formal demais:
teria ficado parecendo o advogado ou o contador dele —,
mas sim uma camisa azul-clara, uma gravata listrada
tradicional, um paletó esporte e uma calça cinza. Meu
cabelo estava bem penteado, escovara e passara fio dental
nos dentes, meu desodorante estava em dia. Estava mais
preparado do que nunca. O hospício? Ele falou mesmo isso?
Olhei para trás procurando o policial, mas ele tinha saído de
vista.
O portão se abriu, a trilha fez uma curva e, logo em
seguida, tive meu primeiro vislumbre do complexo
Rhinehart: quatro construções em forma de cubo — uma
garagem, um armazém, dois chalés para os funcionários —
e, mais adiante, a casa principal. Tinha apenas dois
andares, mas era tão extensa quanto uma mansão, com um
telhado longo e baixo e duas chaminés quadradas de tijolos,
do tipo que se vê em um crematório. O restante da casa era
todo feito de madeira, mas embora ainda fosse nova, o
clima já lhe havia conferido uma cor acinzentada, como
mobília de jardim deixada ao relento por um ano. As janelas
daquele lado eram altas e finas como as seteiras de um
castelo e, juntando estas com o aspecto cinza e os fortins
mais ao fundo, e com a floresta ao redor e a sentinela ao
portão, a casa parecia, de certa forma, um lugar de
veraneio projetado por Albert Speer; a Toca do Lobo veio à
mente.
Antes mesmo de pararmos o carro, a porta da frente se
abriu e outro guarda — camisa branca, gravata preta,
jaqueta cinza com o zíper fechado — conduziu-me sem
sorrir até o hall. Ele revistou rapidamente minha bolsa a
tiracolo enquanto eu olhava em volta. Eu havia conhecido
muitas pessoas ricas no decorrer de minha carreira, mas
acho que nunca tinha visto o interior da casa de um
bilionário antes. Havia fileiras de máscaras africanas nas
paredes brancas e lisas, mostruários iluminados repletos de
esculturas em madeira e cerâmicas primitivas de figuras
toscas com falos gigantescos e seios em forma de torpedo
— o tipo de coisa que uma criança travessa faria enquanto o
professor estava de costas. Era algo completamente
desprovido de habilidade, beleza ou mérito estético. A
primeira Sra. Rhinehart, descobri mais tarde, fazia parte do
Conselho do Metropolitan Museum of Modem Art; a segunda
era uma atriz de Bollywood, cinquenta anos mais nova do
que ele, com quem Rhinehart fora aconselhado a se casar
por seus banqueiros para poder entrar no mercado indiano.
De algum lugar no interior da casa, ouvi uma mulher com
um sotaque inglês gritar: “Esta é a coisa mais ridícula que
eu já vi!” Então uma porta bateu e uma loura elegante,
usando paletó e saia azul-escuros e carregando um caderno
de anotações formato A4 preto e vermelho, veio descendo o
corredor com seus saltos altos clicando no assoalho.
— Amelia Bly — disse ela com um sorriso tenso. Devia ter
uns 45 anos, mas, de longe, poderia passar por dez anos
mais nova. Tinha belos olhos grandes, azul-claros, mas
usava maquiagem demais, como se trabalhasse no balcão
de cosméticos de alguma loja de departamentos e fosse
obrigada a demonstrar todos os produtos de uma vez só.
Exalava um cheiro de perfume doce e opulento. Supus que
ela era a porta-voz mencionada no Times daquela manhã.
— Infelizmente, Adam está em Nova York e não voltará até o
fim da tarde.
— Na verdade, esqueça o que eu disse: esta é a merda
mais ridícula que eu já vi! — gritou a mulher invisível.
Amelia abriu um pouco mais o sorriso, criando pequenas
fissuras nas bochechas lisas e rosadas.
— Minha nossa. Sinto muito. Temo que a pobre Ruth
esteja tendo um daqueles dias.
Ruth. O nome ecoou brevemente, como o rufar de um
tambor ou o barulho de uma lança sendo jogada em meio à
arte tribal africana. Jamais me ocorrera que a mulher de
Lang pudesse estar ali. Tinha imaginado que ela estaria na
sua casa, em Londres. Tinha fama de independente, entre
outras coisas.
— Se não for uma boa hora... — falei.
— Não, não. Ela está louca para conhecê-lo. Entre e tome
um café. Eu vou buscá-la. Como está o hotel? —
acrescentou ela, olhando por sobre o ombro. — Silencioso?
— Como uma tumba.
Peguei minha bolsa de volta do agente das Forças
Especiais e acompanhei Amelia até o interior da casa,
perseguindo o rastro de seu perfume. Notei que tinha
pernas muito bonitas; o náilon sussurrava em suas coxas
enquanto ela andava. Ela me conduziu até uma sala repleta
de mobília em couro creme, serviu-me um pouco de café de
uma cafeteira na mesa de canto e então desapareceu.
Fiquei um tempo parado diante das janelas francesas com
minha caneca, olhando para os fundos da propriedade. Não
havia canteiros de flores — pelo jeito, nada delicado
cresceria naquele lugar desolado —, somente um longo
gramado que terminava a cerca de cem metros dali,
transformando-se em uma vegetação rasteira de um
marrom doentio. À esquerda, o terreno subia ligeiramente
até as dunas que marcavam a beira da praia. Não conseguia
ouvir o mar: as portas de vidro eram grossas demais — à
prova de balas, descobri mais tarde.
Uma transmissão em código Morse urgente que veio do
corredor anunciou a volta de Amelia Bly.
— Sinto muito. Infelizmente Ruth está um pouco ocupada
neste momento. Ela pede desculpas. Falará com você mais
tarde. — O sorriso de Amelia tinha endurecido um pouco.
Parecia tão natural quanto um esmalte de unha. — Então,
se já tiver terminado seu café, posso mostrar-lhe onde nós
trabalhamos.
Ela insistiu em que eu subisse as escadas primeiro.
A casa, explicou ela, tinha sido projetada para que todos
os quartos ficassem no primeiro piso, com a área de estar
no andar de cima, e assim que chegamos à imensa sala de
estar aberta, entendi o porquê. A parede que dava para o
litoral era toda de vidro. Não havia nada feito pelo homem
ao alcance da vista, apenas mar, lago e céu. Era algo
primordial: uma cena que permanecia inalterada havia 10
mil anos. O vidro à prova de som e o aquecimento sob o
piso criavam o efeito de uma exuberante máquina do tempo
que houvesse sido lançada de volta para a era neolítica.
— É um lugar e tanto — falei. — Você não se sente
sozinha à noite?
— Chegamos — disse Amelia, abrindo uma porta.
Entrei atrás dela em um escritório grande, contíguo à
sala de estar, que aparentemente era o local de trabalho de
Marty Rhinehart nas férias. Havia uma vista semelhante
dali, embora o ângulo favorecesse mais o oceano do que o
lago. As prateleiras estavam cheias de livros sobre a história
militar da Alemanha, as lombadas com suásticas
esbranquiçadas pela exposição ao sol e ao ar salinizado.
Havia duas mesas — uma pequena no canto, na qual uma
secretária estava sentada digitando em um computador, e
uma maior, totalmente vazia, exceto por uma fotografia de
uma lancha e o modelo de um iate. O esqueleto amargo e
velho que era Marty Rhinehart inclinava-se sobre o leme de
seu barco — uma refutação viva do antigo provérbio de que
não se pode ser magro nem rico demais.
— Somos uma equipe pequena — disse Amelia. — Eu, a
Alice aqui — a garota que estava no canto ergueu os olhos
— e Lucy, que está com Adam em Nova York. Jeff, o
motorista, também está lá; ele vai trazer o carro de volta
hoje à tarde. Seis seguranças ingleses: três aqui e três com
Adam no momento. Precisamos desesperadamente de outra
pessoa, nem que seja apenas para lidar com a imprensa,
mas Adam não consegue se convencer a substituir Mike.
Eles estavam juntos há muito tempo.
— E há quanto tempo você está com ele?
— Oito anos. Trabalhava na Downing Street. Fui
transferida do Gabinete.
— Pobre Gabinete.
Ela abriu seu sorriso de esmalte de unhas.
— É do meu marido que eu sinto mais falta.
— Você é casada? Vejo que não está usando aliança.
— Não posso, infelizmente. É grande demais. Apita
quando eu passo pela segurança do aeroporto.
— Ah. — Eu e Amelia nos entendíamos perfeitamente.
— Os Rhinehart também têm um casal de empregados
vietnamitas que vivem na casa, mas eles são muito
discretos, você mal vai notá-los. Ela cuida da casa e ele, do
jardim. Dep e Duc.
— Quem é quem?
— Duc é o homem. É claro.
Ela pegou uma chave no bolso de seu paletó bem-
cortado e destrancou um grande arquivo cinza-chumbo, do
qual retirou uma caixa de papéis.
— Este material não deve sair desta sala — disse ela,
largando a caixa na mesa. — Não deve ser copiado. Você
pode fazer anotações, mas lembre-se de que assinou um
termo de confidencialidade. Tem seis horas para lê-lo antes
de Adam voltar de Nova York. Mandarei que lhe tragam um
sanduíche para o almoço. Vamos, Alice. Não queremos que
ele se distraia por nossa causa, queremos?
Depois que elas foram embora, sentei-me na cadeira
giratória de couro, tirei meu laptop da bolsa, liguei-o e criei
um documento intitulado “Lang MS”. Então afrouxei a
gravata, tirei meu relógio de pulso e coloquei-o na mesa ao
lado do arquivo. Por alguns instantes, permiti-me ficar
balançando para a frente e para trás na cadeira de
Rhinehart, saboreando a vista para o oceano e a vaga
sensação de ser um ditador mundial. Então abri a tampa da
caixa, tirei o manuscrito e comecei a ler.

Todos os bons livros são diferentes, mas todos os livros ruins


são exatamente iguais. Sei que isso é verdade porque, no
meu ramo de trabalho, leio um monte de livros ruins — tão
ruins que nem chegam a ser publicados, o que é uma
façanha, levando-se em conta o que vai para as livrarias.
E o que todos têm em comum, estes livros ruins, sejam
eles romances ou memórias, é o seguinte: eles não soam
verdadeiros. Não estou dizendo que um bom livro é
necessariamente verdadeiro, apenas que ele parece
verdadeiro enquanto você o está lendo. Um editor amigo
meu chama isso de Teste do Hidroplano, referindo-se a um
filme que viu sobre o povo da cidade de Londres que
começava com o protagonista chegando para trabalhar em
um hidroplano que ele pousou no rio Tâmisa. Daí em diante,
segundo meu amigo, não valia mais a pena assistir.
As memórias de Adam Lang não passariam no Teste do
Hidroplano.
O problema não estava necessariamente nos fatos — eu
não tinha condições de julgá-los àquela altura —, mas sim
na questão de que, de algum modo, o livro inteiro parecia
falso, como se tivesse um buraco no meio. Ele consistia em
16 capítulos, organizados cronologicamente: “Juventude”,
“Entrando na Política”, “Luta pela Liderança”, “Mudando o
Partido”, “Vitória nas Eleições”, “Reformando o Governo”,
“Irlanda do Norte”, “Europa”, “O Relacionamento Especial”,
“Segundo Mandato”, “O Desafio do Terror”, “A Guerra contra
o Terror”, “Mantendo as Diretrizes”, “Render-se, Jamais”,
“Hora de Partir” e “Um Futuro de Esperança”. Cada capítulo
tinha algo entre 10 e 20 mil palavras e não havia sido
exatamente escrito, mas sim costurado a partir de
discursos, minutas oficiais, comunicados, memorandos,
transcrições de entrevistas, diários oficiais, manifestos do
partido e artigos de jornal. Ocasionalmente, Lang se
permitia revelar um sentimento particular (“fiquei
felicíssimo quando nosso terceiro filho nasceu”), uma
observação pessoal (“o presidente americano era bem mais
alto do que eu esperava”) ou uma declaração incisiva
(“como secretário de Relações Internacionais, Richard
Rycart muitas vezes preferiu levar a questão dos imigrantes
à Inglaterra, e não o contrário”), mas isso, além de não
acontecer com muita frequência, não surtia muito efeito. E
onde estava a mulher dele? Ela mal era mencionada.
Um pedaço merda, Rick havia dito sobre o livro. Porém,
na verdade, aquilo era pior. A merda, citando Gore Vidal,
tem sua própria integridade. Aquilo não era nada. Era
rigorosamente fiel, mas, como um todo, uma mentira —
tinha de ser, pensei. Nenhum ser humano podia passar pela
vida tendo sentido tão pouco. Especialmente Adam Lang,
cuja maior característica política era a empatia emocional.
Pulei até o capítulo intitulado “A Guerra ao Terror”. Se
houvesse alguma coisa de interessante para os leitores
americanos, certamente estaria ali. Passei os olhos por ele,
procurando palavras como “captura”, “tortura”, “CIA”. Não
encontrei nada, e certamente não havia menção alguma à
Operação Tempestade. Mas claro que havia algumas críticas
leves ao presidente dos EUA, ou ao secretário de Defesa, ou
ao secretário de Estado; algo que sugerisse traição ou
desilusão; algum furo de reportagem ou documento
confidencial fisgado dos bastidores, certo? Não. Em lugar
nenhum. Engoli em seco, literal e metaforicamente, e
comecei a ler novamente desde o início.
Em algum momento, Alice, a secretária, deve ter me
trazido um sanduíche de atum e uma garrafa de água
mineral, pois, mais tarde, percebi os dois na beirada da
mesa. Porém, estava ocupado demais para parar e, além
disso, não estava com fome. Na verdade, estava
começando a ficar enjoado à medida que folheava aqueles
16 capítulos, vasculhando aquele rochedo branco e íngreme
de prosa sem graça em busca de qualquer coisa
minimamente interessante na qual pudesse me agarrar. Não
era de surpreender que McAra tivesse se jogado da barca
para Martha’s Vineyard. Ou que Maddox e Kroll tivessem
viajado para Londres para tentar salvar o projeto. Ou que
estivessem me pagando 50 mil dólares por semana. Todos
estes acontecimentos aparentemente bizarros tornavam-se
completamente lógicos diante do horror que era aquele
manuscrito. E agora seria a minha reputação que iria por
água abaixo, presa ao banco traseiro do hidroplano
camicase de Adam Lang. Eu seria apontado pelas pessoas
nas festas das editoras — considerando que eu ainda fosse
convidado para alguma — como o ghost-writer que havia
colaborado no maior fracasso da história da literatura. Em
um súbito insight paranoico, acreditei ter descoberto o meu
verdadeiro papel na operação: eu era o bode expiatório da
vez.
Terminei a última das 621 páginas no meio da tarde
(“Ruth e eu estamos olhando para o futuro, venha o que
vier”) e, depois de largar o manuscrito, apertei as mãos
contra as bochechas, escancarei a boca e arregalei os olhos,
em uma imitação razoável de O grito, de Edvard Munch.
Foi então que ouvi alguém tossir no batente da porta e
ergui os olhos para ver Ruth Lang me observando. Até hoje
não sei há quanto tempo ela estava lá. Ela ergueu uma
sobrancelha preta e fina.
— Tão ruim assim? — perguntou.

Ela usava um suéter branco masculino, grosso e disforme,


com as mangas tão longas que apenas suas unhas roídas
apareciam. Quando chegamos ao andar de baixo, vestiu por
cima dele um casaco de chuva azul-claro, desaparecendo
por um instante enquanto o passava pela cabeça, seu rosto
pálido emergindo por fim, carrancudo. Seu cabelo preto
curto ficou em pé como as madeixas da Medusa.
Ela havia proposto uma caminhada. Disse que parecia
que eu estava precisando, o que era bem verdade.
Emprestou-me o casaco impermeável do marido, que me
serviu perfeitamente, e um par de botas de chuva que eram
da casa, e saímos juntos em direção ao ar tempestuoso do
Atlântico. Seguimos o caminho que contornava o jardim e
subimos até as dunas. À nossa direita, ficava o lago com um
ancoradouro e, próximo dele, um barco a remo que havia
sido puxado até o canavial e virado de cabeça para baixo. À
nossa frente, areia branca pura se estendia por alguns
quilômetros e, quando olhei para trás, a paisagem era a
mesma, exceto por um policial com um sobretudo que nos
seguia a uns 50 metros de distância.
— A senhora deve se cansar disso — falei, indicando com
a cabeça nosso acompanhante.
— Faz tanto tempo que é assim que eu já nem percebo
mais.
Continuamos seguindo contra o vento. De perto, a praia
não parecia tão idílica. Pedaços estranhos de plástico
quebrado, montes de areia betuminosa, um sapato de lona
azul-escuro endurecido pelo sal, um carretel de madeira,
pássaros mortos, esqueletos e pedacinhos de ossos — era
como andar pelo acostamento de uma rodovia de seis
pistas. As ondas grandes chegavam com um rugido e
voltavam como caminhões em disparada.
— E então — disse Ruth —, é muito ruim?
— A senhora ainda não leu?
— Não todo.
— Bem — falei, educadamente —, ele precisa de algum
trabalho.
— Quanto?
A palavra Hiroshima flutuou brevemente pela minha
cabeça.
— É consertável — falei, o que imagino que fosse
verdade: até Hiroshima foi consertada com o tempo. — O
problema é o prazo. Precisamos dele pronto em quatro
semanas, sem falta, e isso significa menos de dois dias por
capítulo.
— Quatro semanas! — Ela deu uma risada forte, um
tanto sacana. — Você nunca vai conseguir que ele fique
parado tanto tempo assim!
— Ele não precisa escrever exatamente. É para isso que
estão me pagando. Só tem de conversar comigo.
Ela havia colocado o capuz. Não conseguia ver bem seu
rosto. Apenas a ponta branca e acentuada de seu nariz
estava visível. Todos diziam que ela era mais inteligente do
que o marido e que adorava a vida deles no topo ainda mais
do que ele. Se houvesse alguma visita oficial a algum país
estrangeiro, ela geralmente o acompanhava: recusava-se a
ser deixada em casa. Bastava ver os dois juntos na TV para
perceber como ela se banhava no sucesso dele. Adam e
Ruth Lang: O Poder e a Glória. Então ela parou e se voltou
para o mar, as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. No meio
da praia, como se estivesse brincando de sombra, o policial
também parou.
— Você foi ideia minha — disse ela.
Perdi o equilíbrio no vento. Quase caí.
— Fui?
— Sim. Foi você quem escreveu o livro de Christy para
ele.
Levei um instante para me lembrar de quem ela estava
falando. Christy Costello. Havia muito tempo que eu não
pensava nele. Foi meu primeiro best-seller. As memórias
íntimas de um roqueiro dos anos 1970. Álcool, drogas,
garotas, um acidente de carro quase fatal, cirurgia e,
finalmente, clínica de reabilitação e redenção nos braços de
uma mulher boa. Tinha de tudo. Você poderia dá-lo de
presente para o seu filho adolescente metido a grunge ou
para a sua avó que vai à igreja, e os dois ficariam
igualmente felizes. Ele vendeu 300 mil exemplares de capa
dura somente na Inglaterra.
— A senhora conhece o Christy? — Aquilo parecia
bastante improvável.
— Ficamos na casa dele na ilha de Mustique no inverno
passado. Li as suas memórias. Estavam ao lado da cama.
— Agora eu fiquei envergonhado.
— Sério? Por quê? Achei o livro brilhante, ainda que de
um jeito horrível. Depois de ouvir as histórias confusas dele
durante o jantar e ver como você as transformou em algo
parecido com uma vida, falei para Adam: “Este é o homem
de quem você precisa para escrever o seu livro.”
Eu ri. Não pude evitar.
— Bem — falei —, espero que as recordações de seu
marido não sejam tão nebulosas quanto as de Christy.
— Não conte com isso — disse ela, puxando o capuz para
trás e respirando fundo. Era mais bonita ao vivo do que na
TV. A câmera a odiava quase tanto quanto amava seu
marido. Não capturava sua vivacidade faceira, a animação
de seu rosto. — Deus, como eu sinto falta de casa — falou.
— Mesmo com as crianças na faculdade. Vivo falando isso
para ele; é como estar casada com Napoleão em Santa
Helena.
— Então por que a senhora não volta para Londres?
Ela não disse nada por alguns instantes, ficou apenas
olhando para o mar, mordendo o lábio. Então me encarou,
analisando-me.
— Você assinou aquele termo de confidencialidade?
— Claro.
— Tem certeza?
— A senhora pode confirmar com o escritório de Sid Kroll.
— Porque não quero ler sobre isso em alguma coluna de
fofocas na semana que vem nem em algum livrinho barato
e enxerido de sua própria autoria daqui a um ano.
— Opa — falei, apanhado de surpresa pelo seu veneno.
— Pensei que a senhora tinha acabado de dizer que a ideia
havia sido sua. Eu não pedi para estar aqui. E ainda não sei
de nada.
Ela assentiu.
— Certo. Então vou lhe dizer por que não posso ir para
casa, cá entre nós. Porque tem alguma coisa errada com ele
ultimamente, e estou um pouco temerosa de abandoná-lo.
Nossa, pensei. As coisas não param de melhorar.
— Sim — respondi diplomaticamente. — Amelia contou-
me que ele ficou muito abalado com a morte de Mike.
— Ah, foi? Não sei bem quando a Sra. Bly se tornou uma
especialista tão grande no estado emocional de meu
marido. — Se ela tivesse sibilado e produzido garras, não
teria deixado seus sentimentos tão claros. — Perder Mike
certamente piorou a situação, mas não é só isso. A perda de
poder, este é o verdadeiro problema. A perda de poder e
agora o fato de ter de se sentar e reviver tudo, ano após
ano. Enquanto a imprensa não para de falar sobre o que ele
fez e o que ele não fez. Ele não consegue se livrar do
passado, entende? Não consegue seguir adiante. — Ela
gesticulou desamparadamente para o mar, para a areia,
para as dunas. — Ele está preso. Nós dois estamos presos.
Enquanto andávamos de volta para casa, ela enlaçou seu
braço no meu.
— Ai, ai — disse ela. — Você deve estar começando a se
perguntar onde foi se meter.

O complexo estava muito mais agitado quando voltamos.


Havia uma limusine Jaguar verde-escura com uma placa de
Washington estacionada na entrada, com uma minivan
preta com janelas escurecidas parada atrás dela. Quando a
porta da frente se abriu, pude ouvir vários telefones
tocando de uma só vez. Um simpático homem grisalho
vestindo um terno marrom barato estava sentado lá dentro,
bebendo uma xícara de chá enquanto conversava com um
dos guardas. Ele se levantou depressa quando viu Ruth
Lang. Todos tinham bastante medo dela, pelo que percebi.
— Boa tarde, senhora.
— Olá, Jeff. Como está Nova York?
— Um maldito caos, como sempre. Como o Piccadilly
Circus na hora do rush. — Ele tinha um sotaque londrino
manhoso. — Cheguei a pensar que não conseguiria voltar a
tempo.
Ruth voltou-se para mim.
— Eles gostam de estar com o carro a postos quando
Adam aterrissa.
Ela estava começando o longo processo de tirar seu
casaco quando Amelia Bly apareceu, com um celular preso
entre o ombro elegante e o queixo esculpido, enquanto seus
dedos ágeis abriam o zíper de uma pasta de documentos.
— Tudo bem, tudo bem. Eu vou dizer a ele. — Ela
meneou a cabeça para Ruth e continuou falando. — Na
quinta-feira ele estará em Chicago — então olhou para Jeff e
deu uma batidinha no seu relógio de pulso.
— Na verdade, acho que eu vou para o aeroporto — disse
Ruth, subitamente baixando de volta o casaco. — Amelia
pode ficar aqui e fazer as unhas ou algo assim. Por que você
não vem? — acrescentou ela para mim. — Ele quer muito
conhecê-lo.
Um a zero para a esposa, pensei. Mas não: na melhor
tradição do serviço público inglês, Amelia ricocheteou nas
cordas e voltou desferindo socos.
— Então eu vou no carro de apoio — disse ela, fechando
seu celular e sorrindo com doçura. — Posso fazer minhas
unhas nele.
Jeff abriu uma das portas de trás do Jaguar para Ruth,
enquanto eu dei a volta e quase quebrei meu braço
puxando a outra. Deslizei para o assento de couro e a porta
se fechou às minhas costas com um baque gasoso.
— Ela é blindada, senhor — disse Jeff, olhando pelo
espelho retrovisor enquanto partíamos. — Pesa duas
toneladas e meia. E ainda chega a cem por hora com todos
os quatro pneus furados.
— Oh, cale a boca, Jeff — disse Ruth, bem-humorada. —
Ele não quer ouvir nada disso.
— As janelas têm dois centímetros e meio de espessura e
não abrem, caso o senhor esteja pensando em tentar. Ela é
hermeticamente isolada contra ataques químicos e
biológicos, com oxigênio para uma hora. Dá o que pensar,
não é? O senhor provavelmente nunca esteve, ou estará,
tão seguro na sua vida quanto neste momento.
Ruth riu novamente e fez uma careta.
— Meninos e seus brinquedos.
O mundo externo parecia abafado, distante. A trilha da
floresta corria macia e silenciosa como se fosse de
borracha. Ser carregado no útero deve ser assim, pensei:
esta sensação maravilhosa de segurança total. Passamos
por cima do gambá morto e o carrão não registrou o menor
tremor.
— Nervoso? — perguntou Ruth.
— Não. Por quê? Deveria estar?
— Nem um pouco. Ele é o homem mais encantador do
mundo. Meu próprio Príncipe Encantado! — E soltou aquela
sua risada gutural e masculina novamente. — Deus — disse
ela, olhando pela janela —, como eu vou gostar de ver estas
árvores pelas costas. É como viver em uma floresta de
conto de fadas.
Olhei por sobre o ombro para a minivan não identificada
que nos seguia de perto. Conseguia perceber como aquilo
viciava. Eu mesmo já estava me acostumando. Ser forçado
a abrir mão daquilo depois de ter virado um hábito seria
como se separar da Mamãe. Porém, graças ao terrorismo,
Lang jamais teria de abrir mão daquele conforto — jamais
teria que fazer fila para pegar o transporte público; jamais
precisaria sequer dirigir. Ele era paparicado e mimado como
um Romanov antes da revolução.
Saímos da floresta para a estrada principal, viramos à
esquerda e dobramos quase imediatamente para a direita,
atravessando o perímetro do aeroporto. Olhei surpreso pela
janela para a grande pista de decolagem.
— Já chegamos?
— No verão, Marty gosta de sair às quatro horas da tarde
do seu escritório em Manhattan — disse Ruth — e estar na
praia às seis.
— Imagino que ele tenha um jatinho particular — falei,
tentando mostrar que sabia das coisas.
— É claro que ele tem um jatinho particular.
Ela olhou para mim de um jeito que fez com que eu me
sentisse como um caipira que havia acabado de usar a faca
de peixe para passar manteiga no pão. É claro que ele tem
um jatinho particular. Ninguém tem uma casa de 30 milhões
de dólares e vai até ela de ônibus. O cara sozinho devia ser
responsável pela emissão de carbono equivalente à de uma
cidade inteira. Foi então que me dei conta de que quase
todas as pessoas que os Lang conheciam àquela altura
tinham um jatinho particular. E, de fato, lá vinha o próprio
Lang, em um jato executivo Gulfstream, descendo do céu
crepuscular e planando por sobre os pinheiros sombrios. Jeff
pisou no acelerador e um minuto depois estávamos parando
em frente do pequeno terminal. Houve uma salva arrogante
de portas batendo enquanto nos amontoávamos lá dentro:
eu, Ruth, Amelia, Jeff e um dos seguranças. No terminal, um
patrulheiro da polícia de Edgartown já estava esperando. Na
parede atrás dele, vi uma fotografia de Bill e Hillary Clinton
sendo recebidos na pista de decolagem no começo de umas
férias presidenciais envoltas em escândalo.
O jatinho particular manobrou na pista. Era pintado de
azul-escuro e tinha HALLINGTON escrito em letras douradas
na porta. Parecia maior do que os símbolos fálicos
presidenciais comuns, com uma cauda alta e seis janelas de
cada lado. Quando ele parou e os motores foram desligados,
o silêncio que caiu sobre o aeroporto deserto foi
inesperadamente profundo.
A porta se abriu, os degraus foram baixados, e dois
homens das Forças Especiais saíram. Um seguiu
diretamente para o edifício do terminal. O outro esperou ao
pé da escada, fazendo uma série de movimentos:
verificando a pista vazia, olhando para cima, em torno de si
e para trás. O próprio Lang não parecia ter pressa em
desembarcar. Eu mal conseguia vê-lo nas sombras do
interior da nave, apertando as mãos do piloto e de um
comissário de bordo, então, finalmente — de forma quase
relutante, ao que me pareceu — ele saiu e parou no topo da
escada. Estava carregando a própria valise, coisa que não
fazia quando era primeiro-ministro. O vento levantou a
parte de trás do seu paletó e fez sua gravata vibrar. Ele
abaixou o cabelo com a mão. Olhou ao redor como se
tentasse se lembrar do que deveria fazer. Aquilo estava
prestes a ficar embaraçoso quando ele finalmente nos viu
observando-o pela janela de vidro grande. Ele apontou,
acenou e sorriu, exatamente como costumava fazer no seu
auge, e aquele momento — o que quer que tenha
significado — ficou para trás. Ele atravessou a pista
animadamente, trocando a valise de uma das mãos para a
outra, seguido por um terceiro agente das Forças Especiais
e por uma jovem que puxava uma mala com rodinhas.
Saímos de trás da janela bem a tempo de encontrá-lo
passando pelo portão de chegada.
— Olá, querida — disse ele, parando para beijar a
esposa. O tom de sua pele era ligeiramente laranja. Notei
que estava usando maquiagem.
Ela apertou seu braço.
— Como foi em Nova York?
— Ótimo. Eles me deram o Gulfstream Quatro, sabe?
Aquele transatlântico, que tem as camas e o chuveiro. Olá,
Amelia. Oi, Jeff. — Ele notou minha presença. — Olá —
disse. — Quem é você?
— Sou seu fantasma — falei.
Na mesma hora, me arrependi do que disse. Havia
concebido aquela frase como algo espirituoso,
autodepreciativo, para quebrar o gelo. Chegara até a
praticá-la diante do espelho antes de sair de Londres.
Porém, de alguma forma, lá fora, naquele aeroporto deserto,
em meio àquela atmosfera cinza e silenciosa, ela soou pior
do que a encomenda. Ele contraiu o rosto.
— Certo — disse ele com desconfiança e, embora tenha
apertado minha mão, também recuou um pouco a cabeça,
como se quisesse me inspecionar de uma distância mais
segura.
Cristo, pensei, ele acha que eu sou um maluco.
— Não se preocupe — disse-lhe Ruth. — Ele não é
sempre tão idiota assim.
Cinco

É fundamental que o ghost-writer deixe o autor totalmente


confortável na sua companhia.

Ghostwriting

— Maravilha de apresentação — disse Amelia no carro


enquanto voltávamos para a casa. — Eles ensinam isso na
escola de ghost-writers?
Estávamos sentados juntos na parte traseira da minivan.
A secretária, que tinha acabado de chegar de Nova York — o
nome dela era Lucy —, e os três seguranças ocupavam os
assentos à nossa frente. Através do para-brisa, eu podia ver
logo adiante o Jaguar que transportava os Lang. Estava
começando a escurecer. Sob a luz de dois pares de faróis, os
carvalhos americanos agigantavam-se e retorciam-se.
— Foi especialmente de bom-tom — prosseguiu ela —,
considerando que você está substituindo um homem morto.
— Tudo bem — grunhi. — Pare com isso.
— Mas você tem uma coisa a seu favor — disse ela,
voltando seus enormes olhos azuis para mim e falando
baixinho, para que ninguém mais pudesse ouvir. — Ao
contrário de quase todos os membros da raça humana, você
parece ter caído nas graças de Ruth Lang. Agora, por que
será, na sua opinião?
— Gosto não se discute.
— É verdade. Talvez ela ache que você vai fazer o que
ela mandar.
— Talvez. Como eu vou saber? — A última coisa de que
eu precisava era me enfiar no meio daquela briga. — Ouça,
Amelia, posso chamar você de Amelia? Meu único interesse
aqui é ajudar a escrever um livro. Não quero me envolver
em nenhuma intriga da corte.
— Claro que não. Você só quer fazer seu trabalho e cair
fora.
— Agora você está curtindo com a minha cara de novo.
— Você facilita.
Depois dessa, fiquei um tempo calado. Conseguia
entender por que Ruth não gostava dela. Sua inteligência ia
um pouquinho além do tolerável e o louro de seus cabelos,
muito além, especialmente do ponto de vista de uma
esposa. Na verdade, enquanto eu ficava sentado ali,
inalando passivamente seu Chanel, ocorreu-me que ela
poderia estar tendo um caso com Lang. Aquilo explicaria
muita coisa. Ele havia sido perceptivelmente frio com ela no
aeroporto, e este não é sempre o sinal mais garantido? De
qualquer forma, não era de espantar que eles estivessem
tão paranoicos com a questão da confidencialidade. Havia
ali material suficiente para manter os tabloides felizes por
semanas.
Estávamos na metade do caminho quando Amelia falou:
— Você não me disse o que achou do manuscrito.
— Sinceramente? Não me divertia tanto desde que li as
memórias de Leonid Brezhnev. — Ela não sorriu. — Não
entendo como isso aconteceu — prossegui. — Vocês
estavam no comando do país ainda há pouco. Com certeza
alguém da equipe tinha o inglês como primeira língua.
— Mike... — começou ela, e então se interrompeu. —
Bem, não quero falar mal dos mortos.
— Por que abrir exceção para eles?
— Então está bem: Mike. O problema foi que Adam
despejou tudo em cima dele desde o início, e o pobre Mike
ficou simplesmente soterrado. Ele sumiu para Cambridge
para fazer a pesquisa e nós ficamos quase um ano sem vê-
lo.
— Cambridge?
— Cambridge, onde os papéis de Lang estão arquivados.
Você fez mesmo o seu dever de casa, hein? Duas mil caixas
de documentos. Duzentos e cinquenta metros de arquivos.
Um milhão de papéis distintos, ou algo em torno disso,
ninguém nunca se deu ao trabalho de contar.
— McAra consultou tudo isso? — Eu não podia acreditar.
Minha ideia de pesquisa rigorosa era uma semana sentado
diante do cliente com um gravador, incrementada por
qualquer tipo de informação imprecisa que o Google tivesse
para oferecer.
— Não — disse ela, irritada. — É óbvio que ele não
vasculhou todas as caixas, mas fez o suficiente para estar
completamente perturbado e exausto quando finalmente
saiu de lá. Acho que ele simplesmente perdeu a noção do
que deveria fazer. Isso parece ter desencadeado uma
depressão clínica, embora nenhum de nós tenha percebido
na época. Ele só foi sentar com Adam para repassar tudo
pouco antes do Natal. E é claro que, àquela altura, já era
tarde demais.
— Sinto muito — falei, girando o corpo no assento para
poder vê-la direito. — Você está me dizendo que um homem
que está recebendo 10 milhões de dólares para escrever
suas memórias em um prazo de dois anos repassa o projeto
inteiro para alguém que não sabe nada a respeito de
produção de livros, a quem dá permissão para sair vagando
sozinho por 12 meses?
Amelia levou um dedo aos lábios e lançou os olhos em
direção à frente do carro.
— Você é muito escandaloso para um fantasma.
— Mas com certeza — sussurrei — um ex-primeiro-
ministro reconhece a importância de suas próprias
memórias.
— Para ser sincera, não acho que Adam tenha tido a
menor intenção de produzir este livro em dois anos. E achou
que isso não seria problema. Então deixou Mike assumir o
projeto como uma espécie de recompensa por ele ter ficado
ao seu lado até o fim. Mas então, quando Marty Rhinehart
deixou claro que ia obrigá-lo a cumprir o contrato original, e
quando os editores realmente leram o que Mike havia
produzido... — A voz dela foi sumindo.
— Ele não poderia simplesmente ter devolvido o dinheiro
e recomeçado do zero?
— Acho que você sabe a resposta para essa pergunta
melhor do que eu.
— Ele não teria chegado nem perto de um adiantamento
tão alto.
— Dois anos depois de abandonar o cargo? Não teria
conseguido nem a metade.
— E ninguém previu isso?
— Eu levantava a questão para Adam de vez em quando.
Mas ele não se interessa muito por história... nunca se
interessou, nem pela dele mesmo. Estava muito mais
interessado em estabelecer sua fundação.
Recostei-me no banco. Via a facilidade com que tudo
devia ter acontecido: McAra, o funcionário leal do partido
que virou operário stakhanovista de arquivo, rebitando às
cegas suas enormes e inúteis chapas de fatos; Lang, que
sempre foi um homem que gostava de pensar lá na frente
— “olhando para o futuro, não para o passado”: não era
esse um de seus slogans? —, sendo festejado no circuito de
palestras americano, preferindo viver, em vez de reviver,
sua vida; e então, a descoberta terrível de que o grandioso
projeto das suas memórias estava em risco, seguida,
imaginei, por recriminações, pelo fim de velhas amizades e
por uma angústia suicida.
— Deve ter sido duro para todos vocês.
— Foi. Especialmente depois que descobriram o corpo de
Mike. Eu me ofereci para ir fazer a identificação, mas Adam
achava que a responsabilidade era dele. Foi uma coisa
horrível. Suicídio sempre deixa todo mundo se sentindo
culpado. Então, por favor, se você não se importar, chega
de piadas sobre fantasmas.
Eu estava prestes a perguntar-lhe a respeito das
matérias que haviam saído no fim de semana sobre a
captura de suspeitos de terrorismo quando os faróis
traseiros do Jaguar se acenderam e nós paramos.
— Bem, aqui estamos de volta — disse ela, e, pela
primeira vez, notei um quê de cansaço na sua voz. — Lar,
doce lar.
Estava bastante escuro daquela vez — eram mais ou
menos cinco e meia — e a temperatura havia caído com o
sol. Fiquei parado ao lado da minivan e observei Lang sair
agachado do carro e ser arrastado para dentro da casa pelo
turbilhão habitual de guarda-costas e funcionários. Eles o
fizeram entrar tão rápido que parecia que um assassino
com uma mira telescópica tinha sido avistado na floresta.
Imediatamente, por toda a fachada do casarão, as janelas
começaram a se acender e, por um instante, foi possível
imaginar que havia lá dentro uma concentração de
verdadeiro poder, e não de uma mera paródia dele. Eu me
sentia um intruso, sem saber o que deveria fazer e ainda
me contorcendo de vergonha por conta da minha gafe no
aeroporto. Então me demorei um pouco mais no frio. Para
minha surpresa, a pessoa que notou minha falta e veio me
buscar foi o próprio Lang.
— Ei, cara! — chamou ele da porta. — O que você está
fazendo aí fora? Ninguém está cuidando de você? Entre,
venha tomar um drinque.
Ele tocou meu ombro enquanto eu entrava e me
conduziu pelo corredor em direção à sala em que eu tinha
tomado café naquela manhã. Já havia tirado o paletó e a
gravata e vestira um suéter cinza grosso.
— Sinto muito por não ter podido falar com você direito
no aeroporto. O que vai beber?
— O que vocês estão bebendo? — Bom Deus, pedi,
permita que seja algo alcoólico.
— Chá gelado.
— Chá gelado está ótimo.
— Tem certeza? Eu preferiria algo mais forte, mas Ruth
me mataria. — Ele chamou uma de suas secretárias. —
Luce, querida, você poderia pedir a Dep para nos trazer um
pouco de chá? Então — disse ele, afundando-se no meio do
sofá e abrindo os braços para descansá-los no encosto —,
você precisa ser eu por um mês. Que Deus o ajude. — Ele
cruzou rapidamente as pernas, o tornozelo direito
descansando no joelho esquerdo. Tamborilou os dedos,
balançou o pé e analisou-o por um instante, então voltou
seu olhar desanuviado para mim.
— Espero que seja um processo relativamente indolor,
para nós dois... — disse eu, e então hesitei, sem saber ao
certo como chamá-lo.
— Adam — falou ele. — Pode me chamar de Adam.
Acredito que quando se lida com uma pessoa muito
famosa cara a cara, sempre chega um momento em que
você se sente como se estivesse em um sonho, e, para
mim, foi aquele: uma verdadeira experiência extracorpórea.
Vi a mim mesmo como se estivesse no teto, conversando de
maneira aparentemente descontraída com um estadista
mundial na casa de um bilionário da mídia. E ele ainda
estava se dando ao trabalho de ser simpático comigo.
Precisava de mim. Que piada, pensei.
— Obrigado — falei. — Devo dizer-lhe que eu nunca tinha
conhecido um ex-primeiro-ministro antes.
— Bem — sorriu ele. — Eu nunca tinha conhecido um
ghost-writer; portanto, estamos quites. Sid Kroll diz que
você é o homem certo para o trabalho. Ruth concorda.
Então, como vai ser?
— Eu vou entrevistá-lo. Transformarei suas respostas em
prosa. Quando necessário, talvez precise acrescentar
trechos de ligação, tentando imitar seu estilo. A propósito,
devo dizer que tudo o que eu colocar no papel o senhor
poderá corrigir posteriormente. Não quero que pense que
estarei colocando na sua boca palavras que o senhor na
verdade não gostaria de usar.
— E quanto tempo isso leva?
— Para um livro grande, geralmente faço cinquenta ou
sessenta horas de entrevista. Isso me dá cerca de 400 mil
palavras, que eu então edito para cem mil.
— Mas nós já temos um manuscrito.
— Sim — falei —, mas, francamente, ele não é
publicável. São anotações de pesquisa, não é um livro. Não
tem estilo algum. — Lang fez uma careta. Estava claro que
não entendia o problema. — Apesar disso — acrescentei
rapidamente —, não é caso de se jogar o trabalho inteiro
fora. Podemos retirar fatos e citações dele, e também não
vejo problemas na estrutura de 16 capítulos, embora prefira
começá-lo de outra forma, com algo mais pessoal.
A empregada vietnamita trouxe o nosso chá. Estava toda
vestida de preto — calça de seda preta e uma blusa preta
sem colarinho. Queria me apresentar, mas ela evitou meu
olhar enquanto me entregava o copo.
— Você ficou sabendo de Mike? — perguntou Lang.
— Sim — disse. — Sinto muito.
Lang olhou para longe, em direção à janela escurecida.
— Temos de acrescentar alguma coisa simpática sobre
ele no livro. A mãe dele iria gostar.
— Isso não é problema.
— Ele estava comigo havia anos. Desde antes de eu me
tornar primeiro-ministro. Veio por indicação do partido. Eu o
herdei do meu antecessor. Você acha que conhece uma
pessoa bem, e então... — Ele deu de ombros e olhou em
direção à noite.
Não sabia o que dizer, então não disse nada. É da
natureza do meu trabalho funcionar como uma espécie de
confessor e aprendi com os anos a me comportar como um
analista — ficar sentado em silêncio e dar tempo ao cliente.
Perguntei-me o que ele estava vendo lá fora. Depois de
cerca de meio minuto, ele pareceu lembrar que eu ainda
estava na sala.
— Certo. De quanto do meu tempo você vai precisar?
— No total? — Dei um gole na minha bebida e tentei não
fazer uma careta diante do gosto doce. — Se trabalharmos
pesado, podemos terminar o grosso em uma semana.
— Uma semana? — Lang fez uma expressão de falsa
surpresa.
Resisti à tentação de comentar que 10 milhões de
dólares por uma semana de trabalho não eram exatamente
o salário mínimo do país.
— Posso precisar voltar ao senhor para tirar alguma
dúvida que surja, mas, se pudermos trabalhar juntos até
sexta-feira, terei o bastante para reescrever boa parte desta
primeira versão. O importante é começarmos amanhã, para
nos livramos logo dos anos de juventude.
— Ótimo. Quanto antes terminarmos, melhor. — De
repente, Lang estava se inclinando para a frente, uma
tentativa de intimidade sincera: os cotovelos nos joelhos, o
copo entre as mãos. — Ruth está ficando completamente
maluca aqui. Vivo falando para ela voltar para Londres
enquanto eu termino o livro, para ver as crianças, mas ela
não quer me deixar. Por sinal, adoro o seu trabalho.
Quase engasguei com meu chá.
— O senhor leu alguma coisa dele? — Tentei adivinhar
qual jogador de futebol, astro do rock, mágico ou
participante de reality show poderia ter chamado a atenção
de um primeiro-ministro.
— Claro — disse ele, sem titubear. — Teve um cara com
quem a gente passou as férias...
— Christy Costello?
— Christy Costello! Genial. Se você consegue dar sentido
à vida dele, talvez até consiga dar sentido à minha. — Ele
ficou de pé e apertou minha mão. — Foi um prazer conhecê-
lo, cara. Vamos começar amanhã bem cedo. Vou pedir para
Amelia arranjar um carro para levar você de volta para o
hotel. — E então, de repente, ele começou a cantar:

Once in a lifetime
You get to have it all
But you never knew you had it
Till you go and lose it all.[3]

Ele apontou para mim.


— Christy Costello, “Once in a Lifetime”, 197... — ele
balançou a mão especulativamente, a cabeça torta, os olhos
meio fechados em concentração — 7?
— Oito.
— Mil novecentos e setenta e oito! Que época
sensacional! Consigo sentir tudo voltando.
— Guarde para amanhã — falei.

— Como foi? — perguntou Amelia enquanto me conduzia


até a porta.
— Bem, acho. Foi tudo muito amigável. Ele ficou me
chamando de “cara”.
— Sim — disse ela —, ele sempre faz isso quando não
consegue se lembrar do nome de alguém.
— Amanhã — falei —, vou precisar de um quarto
particular, onde eu possa fazer a entrevista. Também vou
precisar de uma secretária para transcrever as respostas à
medida que prosseguimos... sempre que fizermos um
intervalo eu trarei fitas novas para ela. Vou precisar de uma
cópia digital do manuscrito para mim... sim, já sei — disse,
erguendo a mão para cortar as objeções dela —, o
manuscrito não vai sair desta casa. Mas vou ter de cortar e
colar trechos dele no novo material, além de tentar
reescrevê-lo para que pareça algo vagamente produzido por
um ser humano.
Ela estava anotando tudo aquilo no seu caderno preto e
vermelho.
— Mais alguma coisa?
— Quer jantar comigo?
— Boa noite — disse ela com firmeza, fechando a porta.
Um dos guardas deu-me uma carona de volta até
Edgartown. Ele era tão rabugento quanto seu colega que
ficava no portão.
— Espero que este livro fique pronto logo — falou ele. —
Eu e os rapazes já estamos ficando de saco cheio de ficar
presos aqui.
Ele me deixou no hotel e disse que me apanharia de
novo pela manhã. Tinha acabado de abrir a porta do meu
quarto quando meu celular tocou. Era Kate.
— Tudo bem? — disse ela. — Recebi sua mensagem.
Você parecia meio esquisito.
— Foi? Ah, me desculpe. Estou bem agora. — Resisti ao
impulso de perguntar onde ela estava quando liguei.
— E então? Já o conheceu?
— Conheci. Estava com ele ainda há pouco.
— E? — Antes que eu pudesse responder, ela falou: —
Não me diga: encantador.
Segurei o telefone longe da orelha por um instante e
mostrei o dedo médio para ele.
— O seu timing certamente é perfeito — prosseguiu ela.
— Você viu os jornais de ontem? Deve ser a primeira vez na
história em que um rato embarca em um navio que está
afundando.
— Sim, é claro que eu vi as matérias — falei, na
defensiva. — E vou perguntar sobre isso a ele.
— Quando?
— Quando chegar a hora.
Ela produziu um som explosivo que de alguma forma
conseguiu combinar hilaridade, fúria, desprezo e descrença.
— Bem, faça isso, pergunte a ele. Pergunte por que ele
rapta cidadãos britânicos ilegalmente em outros países e os
entrega para serem torturados. Pergunte se ele sabe a
respeito das técnicas que a CIA utiliza para simular
afogamento. Pergunte o que ele pretende dizer para a viúva
e para os filhos do homem que morreu de ataque cardíaco...
— Espere um pouco — interrompi. — Só consegui anotar
até “afogamento”.
— Estou saindo com outra pessoa — disse ela.
— Ótimo — respondi, e desliguei.
Depois disso, não parecia haver muito mais a fazer além
de descer até o bar e encher a cara.
O bar era decorado de modo a parecer o tipo de lugar ao
qual o capitão Ahab gostaria de ir depois de um dia difícil no
baleeiro. As cadeiras e mesas eram feitas de barris velhos.
Havia antigas redes de arrastão e marambaias penduradas
nas paredes de tábuas brutas, além de escunas dentro de
garrafas e fotografias em sépia de pescadores de águas
profundas parados orgulhosamente ao lado dos cadáveres
suspensos de suas presas: àquela altura, os pescadores
estariam tão mortos quanto seus peixes, pensei, e meu
humor estava tão ruim que a ideia me agradou. Uma
televisão grande em cima do bar transmitia um jogo de
hóquei no gelo. Pedi uma cerveja e uma tigela de sopa de
marisco e me sentei em um lugar que desse para ver a tela.
Não entendo nada de hóquei no gelo, mas esportes são
ótimos para se desligar a cabeça por um tempo, e eu sou
capaz de assistir a qualquer um.
— Você é inglês? — perguntou um homem na mesa do
canto. Deve ter me ouvido fazer o pedido. Era o único outro
cliente no bar.
— E você também — falei.
— Pois é. Está de férias?
Ele tinha aquele tipo de voz convidativa, estilo “olá, meu
camarada, que tal uma partida de golfe?” Aquilo, e mais a
camisa listrada com o colarinho liso puído, o blazer com
duas fileiras de botões e o lenço de seda azul no bolso de
cima, piscava tédio, tédio, tédio, com a clareza do farol de
Edgartown.
— Não. Trabalhando. — Voltei a assistir ao jogo.
— Então, qual é o seu ramo? — Ele tinha um copo com
algo claro com gelo e uma fatia de limão dentro. Vodca com
tônica? Gim-tônica? Eu estava desesperado para não
enganchar em uma conversa com ele.
— Nada em especial. Com licença.
Levantei-me e fui até o banheiro lavar as mãos. O rosto
no espelho era o de um homem que tinha dormido seis
horas nas últimas quarenta. Quando voltei para a mesa,
minha sopa tinha chegado. Pedi outro drinque, mas fiz
questão de não me oferecer para pagar um para o meu
compatriota. Podia senti-lo me observando.
— Ouvi dizer que Adam Lang está na ilha — falou ele.
Olhei diretamente para ele desta vez. Era um cinquentão
magro, porém espadaúdo. Forte. Seu cabelo cinza-chumbo
era lambido para trás desde a testa. Tinha um ar
vagamente militar, mas também parecia algo desleixado e
decadente, como se dependesse de cestas básicas de um
programa de caridade para veteranos. Respondi em um tom
neutro:
— É mesmo?
— É o que estão dizendo. Você por acaso não saberia
onde ele está?
— Não. Infelizmente, não. Com licença.
Comecei a tomar minha sopa. Ouvi-o suspirar alto e
depois o gelo tinir quando ele largou o copo.
— Babaca — disse ele ao passar pela minha mesa.
Seis

Muitos clientes meus já me disseram que, ao final da etapa


de entrevistas, eles têm a sensação de que fizeram uma
terapia.

Ghostwriting

Não havia sinal dele quando desci para o café da manhã no


dia seguinte. A recepcionista disse-me que não havia
nenhum outro hóspede além de mim no hotel. Foi
igualmente categórica ao afirmar que não tinha visto
nenhum inglês de blazer. Eu já estava acordado desde as
quatro — o que era melhor do que duas, mas não muito — e
estava grogue o suficiente e ressacado o bastante para me
perguntar se todo o encontro não tinha sido uma
alucinação. Senti-me melhor depois de tomar um pouco de
café. Atravessei a estrada e dei algumas voltas pelo farol
para clarear a cabeça. Quando retornei para o hotel, a
minivan tinha chegado para me levar para o trabalho.
Havia imaginado que meu maior problema no primeiro
dia seria colocar Adam Lang fisicamente em um aposento e
mantê-lo lá por tempo suficiente para começar a entrevistá-
lo. Porém, o mais estranho foi que, quando cheguei à casa,
ele já estava esperando por mim. Amelia decidira que
devíamos usar o escritório de Rhinehart, e encontramos o
ex-primeiro-ministro, que vestia um moletom verde-escuro,
esparramado na poltrona grande de frente para a mesa,
com uma perna jogada sobre um dos braços dela. Ele
folheava um livro sobre a Segunda Guerra Mundial que
obviamente tinha acabado de tirar da prateleira. Havia uma
xícara de chá no chão ao seu lado. Seus tênis estavam com
areia nas solas: supus que ele tinha corrido na praia.
— Oi, cara — disse ele, erguendo os olhos para mim. —
Pronto para começar?
— Bom dia — falei. — Só preciso resolver algumas coisas
antes.
— Claro. Vá em frente. Pode me ignorar.
Ele voltou ao seu livro enquanto eu abria minha bolsa a
tiracolo e retirava cuidadosamente as ferramentas do meu
ofício de ghost-writer: um gravador digital da Sony com um
monte de MiniDiscs de 74 minutos e um carregador (aprendi
do jeito mais difícil a não confiar somente em pilhas); um
laptop cinza-metálico da Panasonic, que não era muito
maior do que um romance de capa dura, além de
consideravelmente mais leve; dois bloquinhos de anotações
pretos e três canetas esferográficas novinhas, feitas pela
Mitsubishi Pencil Co.; e, por fim, dois adaptadores brancos
de plástico, um deles um plugue de três pinos inglês e o
outro um adaptador para tomadas americanas. É uma
superstição minha sempre usar os mesmos objetos e dispô-
los na mesma ordem. Também tinha uma lista de perguntas,
retiradas de livros que eu havia comprado em Londres e da
leitura que fizera do manuscrito de McAra no dia anterior.
— Você sabia — falou Lang de repente — que os alemães
tinham caças a jato em 1944? Olha só isso. — Ele levantou
a página para mostrar a fotografia. — Foi um milagre termos
ganhado.
— Não temos disquetes — disse Amelia —, somente
esses pen drives. Salvei o manuscrito neste aqui para você.
— Ela me entregou um objeto do tamanho de um isqueiro
de plástico pequeno. — Fique à vontade para copiá-lo para o
seu computador, mas, infelizmente, se você fizer isso, o seu
laptop terá de ficar aqui, trancado até o dia seguinte.
— E pelo jeito foi a Alemanha que declarou guerra aos
Estados Unidos, e não o contrário.
— Isso tudo não é um pouco paranoico demais?
— O livro contém informações potencialmente
confidenciais que ainda precisam ser aprovadas pelo
Gabinete. Mais especificamente, há também um risco muito
grande de algum veículo de imprensa estar usando métodos
inescrupulosos para se apossar dele. Qualquer vazamento
poderia colocar em risco nossos contratos de publicação de
trechos na mídia.
Lang falou:
— Você está dizendo que o meu livro inteiro está aí
dentro?
— Cabem cem livros ali dentro, Adam — disse Amelia,
pacientemente.
— Impressionante. — Ele balançou a cabeça. — Sabe
qual é a pior coisa na minha vida? — Ele fechou o livro com
um estalo e recolocou-o na prateleira. — Você perde o
contato com as coisas. Nunca entra em uma loja. Tudo é
feito para você. Jamais carrega dinheiro; se eu quiser algum
dinheiro, mesmo agora, tenho de pedir para uma das
secretárias ou para um dos seguranças pegá-lo para mim. E,
de qualquer forma, não conseguiria pegá-lo sozinho. Não sei
o meu... como se chama mesmo? Nem isso eu sei.
— PIN?
— Está vendo? Não faço a mínima ideia. Vou lhe dar
outro exemplo. Na semana passada, Ruth e eu saímos para
jantar com algumas pessoas em Nova York. Eles sempre
foram muito generosos conosco, então, eu disse: “Certo,
esta noite é por minha conta.” E dei meu cartão de crédito
para o gerente, que voltou alguns minutos depois, todo
envergonhado e me mostrou qual era o problema. A faixa
onde a assinatura deveria estar ainda estava em branco. —
Ele jogou os braços para cima e sorriu. — O cartão não tinha
sido desbloqueado.
— Este — falei, empolgado — é exatamente o tipo de
detalhe que temos de colocar no seu livro. Ninguém sabe
sobre este tipo de coisa.
Lang pareceu alarmado.
— Não posso colocar isso. As pessoas vão achar que eu
sou um completo idiota.
— Mas é um detalhe humano. Mostra como é ser o
senhor. — Eu sabia que aquele era o meu momento.
Precisava fazê-lo se concentrar em nossas necessidades
desde o início. Saí de trás da mesa e encarei-o. — Por que
não tentamos tornar este livro diferente de qualquer
memória política já escrita? Por que não tentamos contar a
verdade?
Ele riu.
— Isso, sim, seria novidade.
— Estou falando sério. Vamos contar às pessoas qual é a
verdadeira sensação de ser primeiro-ministro. Não só os
aspectos políticos, qualquer zé-mané pode escrever sobre
isso. — Quase citei McAra, mas consegui evitar no último
instante. — Vamos nos ater ao que ninguém além do senhor
sabe: como é o dia a dia de quem realmente comanda um
país. O que o senhor sente pela manhã? Quais são as
tensões? Como é estar tão desligado da vida comum? Como
é ser odiado?
— Muito obrigado.
— O que fascina as pessoas não é a política. Quem se
importa com a política? O que fascina as pessoas é sempre
a pessoa, os detalhes da vida da outra pessoa. Porém,
naturalmente o senhor está tão acostumado a esses
detalhes, que não consegue descobrir o que o leitor quer
saber. É por isso que precisa de mim. Este não deve ser um
livro para políticos. Deve ser um livro para todos.
— As memórias do povo — disse Amelia com indiferença,
mas eu a ignorei e, o que é mais importante, Lang também.
Ele estava me olhando de um jeito bem diferente agora: era
como se uma lâmpada na qual se lia “lucro pessoal” tivesse
começado a brilhar nos seus olhos.
— A maioria dos ex-líderes não conseguiria fazer isso dar
certo — falei. — Eles são muito formais. Muito esquisitos.
Muito velhos. Se tirassem o terno e a gravata e colocassem
um... — gesticulei para a roupa dele — colocassem um
moletom, por exemplo, pareceriam falsos. Mas o senhor é
diferente. E é por isso que deve escrever um outro tipo de
memória política, para uma outra geração.
Lang estava olhando para mim.
— O que você acha, Amelia?
— Acho que vocês nasceram um para o outro. Estou
começando a achar que estou segurando vela.
— O senhor se importa — perguntei — se eu começar a
gravar? Algo de útil pode sair daqui. Não se preocupe, as
fitas serão todas de sua propriedade.
Lang deu de ombros e gesticulou para o gravador da
Sony. Quando apertei GRAVAR, Amelia saiu e fechou a porta
silenciosamente às suas costas.
— A primeira coisa que me chama a atenção — falei,
trazendo uma cadeira de trás da mesa para poder me
sentar de frente para ele — é que o senhor não é realmente
um político, no sentido convencional da palavra, embora
tenha alcançado um sucesso tão impressionante. — Este
tipo de pergunta era minha especialidade. — Quero dizer,
quando era mais jovem, ninguém poderia imaginar que
fosse entrar para a política, ou será que poderia?
— Por Deus, não — falou Lang. — De jeito nenhum. Eu
não tinha o menor interesse por política, nem quando
criança e nem na adolescência. Achava as pessoas que
eram obcecadas por política estranhas. Ainda acho, para
dizer a verdade. Gostava de jogar futebol. Gostava de teatro
e cinema. Um pouco mais tarde, passei a gostar de sair com
garotas. Nunca sonhei em me tornar político. A maioria dos
estudantes envolvidos em política me parecia um bando de
completos nerds.
Bingo!, pensei. Estávamos trabalhando há apenas dois
minutos, e eu já tinha uma frase de abertura em potencial
para o livro bem ali:
Quando era mais jovem, não tinha interesse em política.
Na verdade, achava as pessoas que eram obcecadas por
política estranhas.
Ainda acho...

— Então, o que mudou? O que despertou seu desejo pela


política?
— Desejo é a palavra — disse Lang, soltando uma risada.
— Eu me formei em Cambridge e fiquei à toa por um ano.
Na verdade, esperando uma peça em que eu estava
envolvido ser aceita por algum teatro de Londres. Porém,
isso não aconteceu, e então acabei indo trabalhar em um
banco, morando em um flat horrível, num porão em
Lambeth, e sentindo muita pena de mim mesmo, porque
todos os meus amigos de Cambridge estavam trabalhando
na BBC, ou ganhando uma fortuna fazendo narrações de
comerciais, ou qualquer outra coisa do gênero. Lembro que
era uma tarde chuvosa de domingo, eu ainda estava na
cama, e alguém começou a bater à porta...
Aquela era uma história que ele devia ter contado mil
vezes, mas nem dava para perceber se você o visse
naquela manhã. Ele estava recostado na poltrona, sorrindo
por conta da lembrança, repetindo as mesmíssimas
palavras, usando os mesmos gestos ensaiados — imitava
alguém batendo à porta —, e pensei no macaco velho que
ele era: o tipo de profissional que sempre se esforça para
oferecer um bom espetáculo, quer estivesse diante de uma
plateia de um ou de um milhão.
— ... e a pessoa simplesmente não ia embora. Toc, toc,
toc. E, você sabe como é, eu tinha bebido um pouco na
noite anterior, coisa e tal, de modo que continuei na cama,
grunhindo e resmungando. Coloquei o travesseiro sobre a
cabeça, mas começou de novo: toc, toc, toc. Então,
finalmente, e a essa altura pode ter certeza de que já
estava xingando bastante, eu me levantei, coloquei um
pijama e abri a porta. E lá estava aquela garota... aquela
garota linda. Toda ensopada de chuva, mas sem dar a
menor bola para isso, disparou a falar sobre a eleição local.
Bizarro. Devo dizer que eu nem sabia da eleição local, mas
pelo menos tive o bom senso de fingir que estava muito
interessado. Então a convidei para entrar, preparei-lhe uma
xícara de chá, e ela se secou. E aí pronto, já estava
apaixonado. Logo vi que a melhor maneira de vê-la
novamente era pegar um de seus panfletos e aparecer na
próxima noite de quinta-feira, ou sei lá quando, e me afiliar
ao partido local. E foi o que fiz.
— E essa é Ruth?
— Essa é Ruth.
— E se ela fosse membro de um outro partido político?
— Eu teria me afiliado do mesmo jeito. Mas não teria
ficado — apressou-se em acrescentar. — Quero dizer, é
óbvio que este foi o começo de um longo despertar político
para mim. Aquilo trouxe à tona valores e crenças que já
existiam em mim, mas que estavam adormecidos na época.
Não, eu não teria ficado em qualquer partido. Porém, tudo
teria sido diferente se Ruth não tivesse batido à minha porta
naquela tarde... e continuado a bater.
— E se não estivesse chovendo.
— Se não estivesse chovendo, eu teria inventado alguma
outra desculpa para convidá-la a entrar — disse Lang com
um sorriso. — Quero dizer, francamente cara, eu estava
completamente desesperado.
Sorri de volta, balancei a cabeça e rabisquei “abertura?”
no meu bloco de notas.

Trabalhamos a manhã inteira sem intervalo, exceto quando


acabava uma fita. Então eu corria até a sala do andar de
baixo, que Amelia e as secretárias estavam usando como
escritório temporário, e a entregava para ser transcrita. Isso
aconteceu umas duas vezes, e sempre que voltava
encontrava Lang sentado exatamente onde eu o havia
deixado. A princípio, achei que isso era prova da sua
capacidade de concentração. Somente aos poucos fui
percebendo que era porque ele não tinha mais nada para
fazer.
Eu o conduzi com cautela pela sua juventude, sem me
concentrar tanto nos fatos e nas datas (isto McAra havia
coletado com muito zelo) quanto nas impressões e objetos
físicos da sua infância: a casa semigeminada em um
conjunto habitacional em Leicester; a personalidade de seu
pai (um construtor) e de sua mãe (uma professora); os
valores pacatos e apolíticos das províncias inglesas na
década de 1960, nas quais os únicos sons que se ouvia em
um domingo eram os sinos da igreja e as melodias das
carrocinhas de sorvete; os lamacentos jogos de futebol no
parque do bairro nas manhãs de sábados e as partidas de
críquete à beira do rio nas longas tardes de verão; o Austin
Atlantic de seu pai e sua primeira bicicleta Raleigh; os gibis
— o Eagle e o Victor — e as comédias do rádio — I’m Sorry,
I’ll Read That Again e The Navy Lark — a final da Copa do
Mundo de 1966 e os programas de TV — Z Cars e Ready,
Steady, Go!; Os canhões de Navarone e Manda ver, doutor
na ABC local —, Millie cantando “My Boy Lollipop” e
compactos dos Beatles tocados a 45 rpm na vitrola
Dansette Capri de sua mãe.
Sentado ali no escritório de Rhinehart, os detalhes da
vida inglesa de quase meio século atrás me pareciam tão
remotos quanto os bricabraques em uma pintura trompe
l’oeil vitoriana — e, você poderia estar pensando, tão
relevantes quanto. Porém, havia astúcia no meu método, e
Lang, com seu talento para a empatia, reconheceu-a
imediatamente, pois não era apenas a infância dele que
estávamos inventariando, mas também a minha e a de
qualquer um que tivesse nascido na Inglaterra nos anos
1950 e chegado à maturidade na década de 1970.
— O que precisamos fazer — disse-lhe eu — é persuadir
o leitor a identificar-se emocionalmente com Adam Lang.
Ver além da figura distante no carro à prova de bombas. Ver
nele as mesmas coisas que vê em si mesmo. Porque, se tem
alguma coisa que sei neste negócio, é isto: uma vez que
você conquiste a simpatia dos leitores, eles o seguirão para
qualquer lugar.
— Entendi — disse ele, assentindo enfaticamente. —
Acho genial.
E assim nós trocamos memórias por horas a fio, e não
posso dizer exatamente que começamos a conceber uma
infância para Lang — tive sempre o cuidado de não me
afastar do registro histórico conhecido —, mas certamente
juntamos nossas experiências, a tal ponto que algumas das
minhas lembranças inevitavelmente se misturaram às dele.
Isso talvez seja chocante para você. Eu mesmo fiquei
chocado na primeira vez em que vi um dos meus clientes na
televisão descrevendo — às lágrimas — um momento
doloroso do seu passado, que, na verdade, fazia parte do
meu. Mas a questão é essa. As pessoas que vencem na vida
raramente são reflexivas. A atenção delas está sempre
voltada para o futuro: é por isso que elas chegam lá. Não é
da natureza delas lembrar o que sentiram, o que estavam
vestindo, quem estava com elas, o cheiro de grama recém-
cortada no adro da igreja no dia em que elas se casaram ou
a força com que seu primeiro bebê apertou-lhes o dedo. É
por isso que precisam de ghost-writers — para lhes dar vida,
por assim dizer.
No fim das contas, minha colaboração com Lang foi
curta, mas posso dizer com sinceridade que nunca havia
tido um cliente tão responsivo. Decidimos que sua primeira
lembrança seria a vez em que tentou fugir de casa aos 3
anos de idade e ouviu o som dos passos de seu pai vindo
atrás dele e a dureza de seus braços musculosos quando ele
o recolheu de volta para casa. Lembramo-nos de sua mãe
passando roupa e do cheiro das roupas molhadas secando
em uma armação de madeira diante da lareira a carvão — e
de como ele gostava de fingir que o varal era uma casa. Seu
pai usava camiseta à mesa e comia assado de porco e peixe
defumado; sua mãe gostava de beber uma taça de xerez de
vez em quando e tinha um livro de capa vermelha e
dourada chamado A Thing of Beauty. O jovem Adam ficava
horas olhando as gravuras; foi isso que lhe despertou o
interesse pelo teatro. Recordamos as pantomimas de Natal
das quais ele havia participado (fiz uma observação para
procurar o que exatamente estava em cartaz em Leicester
durante a sua infância) e sua estreia nos palcos na peça
natalina da escola.
— Eu era um dos reis magos?
— Isso me parece presunçoso demais.
— Um carneiro?
— Modesto demais.
— Uma estrela-guia?
— Perfeito!
Quando paramos para almoçar, já havíamos alcançado a
idade de 17 anos, época em que sua atuação como
protagonista da peça Doutor Fausto, de Christopher
Marlowe, havia lhe confirmado seu desejo de se tornar ator.
McAra, com a meticulosidade que lhe era peculiar, já havia
desencavado a resenha publicada em dezembro de 1971 no
Leicester Mercury, descrevendo como Lang tinha
“hipnotizado a plateia” com seu discurso final, à medida
que vislumbrava a danação eterna.
Quando Lang saiu para jogar tênis com um de seus
guarda-costas, passei no escritório do andar de baixo para
ver como estava indo a transcrição. Uma hora de
entrevistas em geral rende algo entre sete e 8 mil palavras,
e Lang e eu havíamos trabalhado das 7 horas da manhã até
quase uma da tarde. Amelia tinha escalado as duas
secretárias para o serviço. Ambas usavam fones de ouvido.
Seus dedos deslizavam pelos teclados, enchendo a sala com
um som tranquilizante de plástico. Com alguma sorte, eu
teria cerca de cem páginas em espaço duplo de material
para mostrar só por aquela manhã de trabalho. Pela
primeira vez desde que chegara à ilha, senti a brisa
aquecedora do otimismo.
— Isso é tudo novidade para mim — disse Amelia, que
estava debruçada sobre o ombro de Lucy, lendo as palavras
de Lang à medida que elas se desenrolavam na tela. —
Nunca o ouvi falar sobre nada disso antes.
— A memória humana é uma sala de tesouros, Amelia —
disse eu, friamente. — A questão é apenas achar a chave
correta.
Deixei-a encarando a tela e fui até a cozinha, que era
quase do tamanho do meu flat em Londres, com granito
polido suficiente para suprir o mausoléu de uma família
inteira. Uma bandeja de sanduíches havia sido servida.
Coloquei um deles em um prato e dei uma volta pelos
fundos da casa até chegar a um solário — imagino que
possa chamá-lo assim — com uma grande porta de vidro
corrediça que dava para uma piscina externa. A piscina
estava coberta por uma lona cinza, afundada pela chuva, na
qual flutuava um caldo marrom de folhas podres. Na outra
extremidade, havia duas construções prateadas de madeira
em forma de cubo e, além delas, carvalhos americanos e o
céu branco. Uma figura pequena e escura — tão agasalhado
contra o frio que parecia quase esférica — estava varrendo
folhas e empilhando-as em um carrinho de mão. Supus que
ele fosse o jardineiro vietnamita, Duc. Eu realmente devia
tentar ver aquele lugar no verão, pensei.
Sentei-me em uma espreguiçadeira, que soltou um
cheiro ameno de cloro e bronzeador, e liguei para Rick, em
Nova York. Ele estava com pressa, como sempre.
— Como está indo?
— Tivemos uma boa manhã. O homem é um profissional.
— Ótimo. Vou ligar para Maddox. Ele vai ficar feliz em
ouvir isso. Aliás, os primeiros 50 mil acabaram de entrar.
Vou fazer a transferência. Depois a gente se fala.
A linha ficou muda.
Terminei meu sanduíche e voltei para o andar de cima,
ainda com o telefone mudo na mão. Tivera uma ideia, e
minha confiança recém-nascida deu-me a coragem para
colocá-la em prática. Fui até o escritório e fechei a porta.
Conectei o pen drive de Amelia no meu laptop, depois liguei
um cabo do meu computador ao celular e acessei a
internet. Como minha vida seria mais fácil, pensei — e como
eu acabaria o trabalho mais rápido —, se eu pudesse
trabalhar no livro todas as noites no meu quarto de hotel.
Disse a mim mesmo que não estava fazendo nada de
errado. Os riscos eram mínimos. A máquina quase nunca
saía do meu lado. Se necessário, era pequena o bastante
para caber debaixo do meu travesseiro enquanto eu dormia.
Assim que fiquei on-line, escrevi um e-mail para mim
mesmo, anexei o arquivo do manuscrito e cliquei em ENVIAR.
O upload pareceu levar séculos. Amelia começou a
chamar meu nome do andar de baixo. Olhei para a porta e,
de repente, a ansiedade deixou meus dedos grossos e
atrapalhados. “Seu arquivo foi transferido”, disse a voz
feminina que, por algum motivo, era a mais usada pelo meu
provedor de internet. “Você tem novas mensagens”,
anunciou ela menos de um segundo depois.
Imediatamente puxei o cabo do meu laptop e tinha
acabado de remover o pen drive quando, em algum lugar
no casarão, uma sirene começou a tocar. Na mesma hora,
um zumbido e uma trepidação começaram sobre a janela às
minhas costas e eu me voltei para ver uma persiana de
metal pesado caindo do teto. Ela desceu muito rápido,
bloqueando primeiro a vista do céu, depois o mar e as
dunas, transformando a tarde de inverno em um começo de
noite, esmagando o último brilho prateado do dia até a
escuridão. Tateei em busca da porta e, quando a escancarei,
o som não filtrado da sirene foi alto o suficiente para fazer
meu estômago vibrar.
O mesmo processo estava acontecendo na sala de estar:
uma, duas, três persianas caindo como cortinas de ferro. Saí
tropeçando pela escuridão e bati com o joelho em uma
quina. Deixei cair o telefone. Quando parei para apanhá-lo
de volta, a sirene sustentou uma nota aguda e morreu com
um gemido. Ouvi passos pesados subindo as escadas e
então um facho de luz iluminou o salão, apanhando-me
furtivamente agachado, os braços erguidos para proteger
meu rosto: um arremedo de culpa.
— Desculpe, senhor — disse a voz desconcertada de um
policial, vinda da escuridão. — Não sabia que havia gente
aqui em cima.

Era um exercício. Eles o faziam uma vez por semana e o


chamavam de “confinamento”, se bem me lembro. A equipe
de segurança de Rhinehart havia instalado o sistema para
protegê-lo contra ataques terroristas, sequestros, furacões,
trabalhadores sindicalizados, a Comissão de Títulos e
Câmbios americana ou quaisquer pesadelos que porventura
atormentassem o sono agitado dos membros da Fortune
500. Quando as persianas se ergueram e a luz branca do
Atlântico voltou a banhar o interior da casa, Amelia entrou
na sala de estar para se desculpar por não ter me avisado.
— Você deve ter levado um susto.
— Pode-se dizer que sim.
— Mas, também, eu tinha perdido você de vista. — Havia
uma ponta de suspeita na sua voz irretocável.
— A casa é grande. E eu já sou grandinho. Não dá para
você ficar de olho em mim o tempo todo. — Tentei parecer
relaxado, mas sabia que estava irradiando nervosismo.
— Um pequeno conselho. — Seus lábios cor-de-rosa de
glossy se abriram em um sorriso, mas seus grandes olhos
azul-claros estavam frios como cristal. — Não fique andando
muito por aí sozinho. Os rapazes da segurança não gostam.
— Entendido. — Sorri de volta.
Houve um ranger de solas de borracha em madeira
envernizada, e Lang veio subindo as escadas numa
velocidade impressionante, saltando dois ou três degraus
por vez. Estava com uma toalha em volta do pescoço. Seu
rosto estava afogueado, o cabelo grosso e ondulado úmido
e escurecido pelo suor. Parecia irritado com alguma coisa.
— Você venceu? — perguntou Amelia.
— Acabei não jogando tênis. — Ele soltou a respiração,
jogou-se no sofá mais próximo, inclinou o corpo para a
frente e começou a passar a toalha vigorosamente pela
cabeça. — Estava na academia.
Academia? Olhei para ele espantado. Ele já não tinha
corrido antes de eu chegar? Para o que estava treinando?
Para as Olimpíadas?
Falei, em um tom jovial, para mostrar a Amelia que não
estava perturbado:
— Então... o senhor está pronto para voltar ao trabalho?
Ele encarou-me furiosamente e disse com rispidez:
— Você chama o que nós estamos fazendo de trabalho?
Foi a primeira vez que vi um rompante de mau humor vir
dele, e aquilo me atingiu com a força de uma revelação:
todo aquele negócio de correr, se exercitar e puxar ferro
não tinha nada a ver com treinar; não era nem por diversão.
Era simplesmente o que seu metabolismo exigia. Ele era
como algum espécime raro fisgado das profundezas do
oceano que só conseguia viver sob pressão extrema. Se
mantido no litoral, exposto ao ar rarefeito da vida comum,
Lang estava sob constante risco de morrer de puro tédio.
— Bem, eu sem dúvida chamo de trabalho — falei com
gravidade. — Para nós dois. Mas se o senhor não o acha
intelectualmente desafiante o suficiente, podemos parar
agora.
Pensei que talvez tivesse ido longe demais, mas então,
com um grande esforço para se controlar — tão grande que
praticamente deu para ver o complexo mecanismo dos seus
músculos faciais, todas aquelas alavancas, polias e cabos
funcionando — ele conseguiu içar um sorriso cansado até
seu rosto.
— Certo, cara — disse ele, sem emoção na voz. — Você
venceu. — Ele bateu de leve em mim com a toalha. —
Estava só brincando. Vamos voltar.
Sete

Muitas vezes, especialmente se você estiver ajudando


alguém a escrever suas memórias ou uma autobiografia, o
autor se desmanchará em lágrimas quando estiver contando
a história... Nestas circunstâncias, seu trabalho é passar o
lenço, ficar calado e continuar gravando.

Ghostwriting

— Seus pais tinham algum interesse em política?


Estávamos novamente no escritório, em nossas posições
habituais. Ele, esparramado na poltrona, ainda de moletom,
a toalha em volta do pescoço. Exalava um cheiro fraco de
suor. Eu estava de frente para ele com meu bloco de
anotações e uma lista de perguntas. O gravador de MiniDisc
estava na mesa ao meu lado.
— Não, nem um pouco. Nem sei ao certo se meu pai
votava. Ele dizia que os políticos eram todos farinha do
mesmo saco.
— Fale-me a respeito dele.
— Ele era construtor. Autônomo. Estava na casa dos 50
anos quando conheceu minha mãe. Já tinha dois filhos
adolescentes com sua primeira mulher, que o havia
abandonado pouco antes. Mamãe era professora, vinte anos
mais nova que ele. Muito bonita, muito tímida. A história era
que ele foi fazer um conserto no telhado da escola, eles
começaram a conversar, uma coisa levou à outra, e eles se
casaram. Ele construiu uma casa para a família e os quatro
se mudaram. Eu nasci no ano seguinte, o que foi um
espanto para ele, eu acho.
— Por quê?
— Ele achava que já havia tido sua cota de bebês.
— Tenho a impressão, lendo o que já escrevi, de que
vocês não eram muito próximos.
Lang levou um tempo para responder.
— Ele morreu quando eu tinha 16 anos. Já estava
aposentado a essa altura, por problemas de saúde, e meus
meio-irmãos tinham crescido, se casado e saído de casa.
Então essa é a única época em que me lembro da presença
constante dele. Eu estava apenas começando a conhecê-lo,
na verdade, quando ele teve um enfarte. Quero dizer, eu
me dava bem com ele. Mas se você quer dizer que eu era
mais próximo da minha mãe... então, sim, é óbvio.
— E seus meio-irmãos? O senhor era próximo deles?
— Por Deus, não! — Pela primeira vez desde o almoço,
ele deu uma gargalhada. — Na verdade, é melhor você
passar batido por essa parte. Podemos deixá-los de fora,
não podemos?
— O livro é seu.
— Então, deixe-os de fora. Ambos entraram no ramo da
construção, e nenhum dos dois perdeu uma oportunidade
sequer de dizer à imprensa que não votaria em mim. Faz
anos que não os vejo. Já devem ter uns 70 anos agora.
— Como exatamente ele morreu?
— Perdão?
— Desculpe-me, o seu pai. Fiquei tentando imaginar
como ele morreu. Onde foi?
— Ah, no jardim. Tentando levantar uma laje pesada
demais para ele. Velhos hábitos... — Ele olhou para o
relógio.
— Quem o encontrou?
— Eu.
— O senhor poderia descrever o momento? — A coisa
estava mais difícil, muito mais difícil do que a sessão
matinal.
— Eu tinha acabado de voltar da escola. Lembro que
fazia um belo dia de primavera. Mamãe tinha ido resolver
alguma coisa para um de seus trabalhos de caridade.
Peguei alguma coisa para beber na cozinha e saí para o
jardim dos fundos, ainda com o uniforme do colégio,
pensando em jogar um pouco de bola ou sei lá o quê. E lá
estava ele, no meio do gramado. Apenas um arranhão na
parte do rosto que levou o impacto. Os médicos disseram
que provavelmente ele morreu antes de bater no chão. Mas
imagino que eles sempre digam isso, para tornar as coisas
mais fáceis para a família. Quem sabe? Não pode ser uma
coisa tranquila, pode? Digo, morrer.
— E sua mãe?
— Todos os filhos não acham que suas mães são santas?
— Ele olhou para mim em busca de confirmação. — Bem, a
minha era. Ela parou de dar aulas quando eu nasci, e não
havia nada que não fizesse por quem quer que fosse. Vinha
de uma família quacre muito forte. Completamente
abnegada. Ficou muito orgulhosa quando fui para
Cambridge, mesmo sabendo que ficaria sozinha. Nunca me
deixou saber o quanto estava doente... não queria
atrapalhar minha vida lá, especialmente quando comecei a
atuar e passei a ficar muito ocupado. Isso era típico dela. Eu
não fazia ideia do quanto as coisas estavam mal até o final
do meu segundo ano.
— Conte-me mais sobre isso.
— Certo. — Lang pigarreou. — Deus. Eu sabia que ela
não estava bem, mas... sabe como é, quando você tem 19
anos, não presta atenção em muita coisa além de si mesmo.
Eu estava no grupo de teatro da faculdade. Saía com
algumas garotas. Cambridge era o paraíso para mim.
Costumava ligar para ela todo domingo à noite, e ela
sempre parecia muito bem, mesmo morando sozinha.
Quando voltei para casa e ela estava... eu fiquei chocado...
ela estava... praticamente pele e osso. Tinha um tumor no
fígado. Quero dizer, talvez hoje em dia eles pudessem fazer
alguma coisa, mas na época... — Ele fez um gesto de
impotência. — Ela morreu em um mês.
— E o que o senhor fez?
— Voltei para Cambridge no começo do meu último ano
e... caí no mundo, por assim dizer.
Ele ficou calado.
— Eu tive uma experiência parecida — falei.
— É mesmo? — Seu tom era inexpressivo. Olhava para o
mar, para as ondas do Atlântico que quebravam na praia,
seus pensamentos aparentemente muito além do horizonte.
— Sim. — Geralmente não falo sobre mim mesmo em
situações profissionais, nem em qualquer situação, na
verdade. Porém, às vezes um pouco de revelação pessoal
pode ajudar um cliente a se expor. — Perdi meus pais por
volta da mesma idade. E o senhor não achou,
estranhamente, apesar de toda a tristeza, que isso o deixou
mais forte?
— Mais forte? — Ele parou de olhar pela janela e fechou a
cara para mim.
— No sentido de se tornar autossuficiente. Saber que a
pior coisa que poderia acontecer com você aconteceu e que
você sobreviveu. Que pode funcionar sozinho.
— Talvez você tenha razão. Nunca pensei muito sobre
isso. Pelo menos não até recentemente. É estranho. Posso
lhe contar uma coisa? — Ele se inclinou para a frente. — Vi
dois cadáveres quando era adolescente e então, apesar de
ter sido primeiro-ministro, com tudo o que isso implica,
como ter de mandar homens para a guerra, visitar locais
bombardeados e tudo o mais, passei 35 anos sem ver outro.
— E quem foi que o senhor viu? — perguntei, como um
idiota.
— Mike McAra.
— O senhor não poderia ter mandado um dos policiais
identificá-lo?
— Não. — Ele balançou a cabeça. — Não, não poderia.
Era o mínimo que eu devia a ele. — Fez outra pausa, então
agarrou bruscamente a toalha e esfregou o rosto. — Esta
conversa está mórbida — declarou. — Vamos mudar de
assunto.
Baixei os olhos para minha lista de perguntas. Queria lhe
perguntar muitas coisas sobre McAra. Não que eu
pretendesse necessariamente utilizar as respostas no livro:
até eu reconhecia que uma visita ao necrotério após a
renúncia para identificar o corpo de um assistente
dificilmente cairia bem em um capítulo intitulado “Um
Futuro de Esperança”. Era mais para satisfazer minha
própria curiosidade. Porém, também sabia que não tinha
tempo para ser autoindulgente: precisava correr com aquilo.
Então, fiz o que ele pediu e mudei de assunto.
— Cambridge — falei. — Vamos falar sobre isso.
Sempre achei que os anos em Cambridge, do meu ponto
de vista, seriam a parte mais fácil de escrever. Eu mesmo
havia estudado lá, pouco depois de Lang, e o lugar não
tinha mudado muito. Ele nunca mudava muito: este era o
seu charme. Eu poderia incluir todos os clichês: bicicletas,
cachecóis, becas, apostas, bolos, estufas a gás, ruas
estreitas, a emoção de caminhar sobre as pedras já
trilhadas por Newton e Darwin etc. etc. E não haveria o
menor problema, pensei, olhando para o manuscrito, pois
novamente minhas memórias teriam que substituir as de
Lang. Ele havia começado a ler sobre economia, jogara
futebol por um breve período no time da universidade e
ganhara reputação como ator estudantil. Porém, embora
McAra tivesse listado com obediência todas as produções
em que o ex-primeiro-ministro havia atuado, e até incluído
citações de alguns dos esquetes que Lang fizera para o
grupo de teatro amador da faculdade, havia — novamente
— algo de ralo e apressado naquilo tudo. O que estava
faltando era paixão. Naturalmente, culpei McAra. Podia
muito bem imaginar a antipatia que aquele funcionário
carrancudo do partido nutria por todos aqueles diletantes e
suas poses adolescentes em montagens ruins de Bretch e
Ionescu. No entanto, o próprio Lang parecia estranhamente
evasivo a respeito de toda aquela época.
— Faz tanto tempo — disse ele. — Não me lembro de
quase nada. Para ser franco, eu não era muito bom. Atuar
era basicamente uma oportunidade de conhecer garotas.
Aliás, não coloque isso no livro.
— Mas o senhor era muito bom — protestei. — Quando
estava em Londres, li entrevistas com pessoas que disseram
que o senhor era bom o suficiente para se tornar um
profissional.
— Acho que teria gostado disso — admitiu Lang —
durante uma fase. Só que você não consegue mudar as
coisas sendo ator. Apenas os políticos podem fazer isso. —
Ele olhou para o relógio novamente.
— Mas Cambridge — insisti — deve ter tido uma
importância enorme na vida do senhor, considerando suas
origens.
— Sim. Gostei do meu período lá. Conheci pessoas
ótimas. Mas não era o mundo real. Era uma terra de
fantasia.
— Eu sei. Era disso que eu gostava.
— Eu também. Cá entre nós: eu adorava. — A lembrança
fez os olhos de Lang brilharem. — Subir no palco e fingir ser
outra pessoa! E os outros ainda aplaudirem você por isso!
Quer coisa melhor?
— Ótimo — falei, desnorteado pela sua mudança de
humor. — Agora, sim. Vamos colocar no livro.
— Não.
— Por que não?
— Por que não? — suspirou Lang. — Porque essas são as
memórias de um primeiro-ministro. — De repente, ele
esmurrou com força a lateral da poltrona. — Durante toda a
minha carreira, sempre que meus adversários estavam
realmente à procura de algo para me atingir, falavam que
eu era uma porra de um ator. — Ele saltou de pé e começou
a andar para cima e para baixo. — “Adam Lang?” — ele
arrastou as palavras, numa imitação perfeita de um
aristocrata inglês. — “Você já notou como ele muda de voz
para combinar com quem quer que esteja falando?” “É” —
passou a falar como um escocês grosseirão —, “não dá pra
acreditar em nada que o safado diz. O cara é um ator, uma
empulhação!” — E então se tornou pomposo, calculista,
lamuriento: — “A tragédia do Sr. Lang é que um ator jamais
consegue ir além do papel que lhe é dado e, finalmente, as
falas deste primeiro-ministro se esgotaram.” Você talvez
reconheça esta última frase das suas pesquisas, que tenho
certeza de que foram abrangentes.
Balancei a cabeça. Estava surpreso demais com aquela
tirada para falar.
— É do editorial do Times no dia em que anunciei minha
renúncia. A manchete era “Tenha a gentileza de abandonar
o palco”. — Ele voltou cuidadosamente para sua cadeira e
alisou o cabelo para trás. — De modo que não, se você não
se importa, não vamos nos ater aos meus anos de ator
estudantil. Deixe exatamente como Mike escreveu.
Ficamos os dois calados por alguns instantes. Fingi
organizar minhas anotações. Lá fora, um dos policiais lutava
para atravessar o topo das colinas, a cabeça erguida contra
o vento, mas a casa era tão eficientemente à prova de som,
que ele parecia um mímico. Lembrava-me das palavras de
Ruth Lang sobre seu marido: Tem alguma coisa errada com
ele ultimamente, e estou um pouco temerosa de abandoná-
lo. Agora eu entendia o que ela quisera dizer. Ouvi um
clique e me inclinei para a frente para conferir o gravador.
— Preciso trocar a fita — falei, grato pela oportunidade
de sair dali. — Só vou descer para levar isso para Amelia. Já
volto.
Lang estava meditabundo novamente, olhando pela
janela. Ele fez um gesto discreto e ligeiramente desdenhoso
com uma das mãos para indicar que eu deveria ir. Desci até
onde as secretárias estavam digitando. Amelia estava
parada ao lado de um arquivo. Voltou-se quando eu entrei.
Imagino que meu rosto tenha me entregado.
— O que foi? — perguntou ela.
— Nada. — Porém, senti necessidade de compartilhar
minha apreensão. — Na verdade, ele parece um pouco
tenso.
— Sério? Não é do feitio dele. Como assim?
— Ele estourou comigo por nada. Imagino que seja o
excesso de exercício na hora do almoço — falei, tentado
fazer graça com aquilo. — Não pode fazer bem para um
homem.
Entreguei a fita para uma das secretárias — acho que
para a Lucy — e peguei as últimas transcrições. Amelia
continuava olhando para mim, a cabeça meio inclinada.
— O que foi? — perguntei.
— Você tem razão. Parece que alguma coisa o está
incomodando, não é? Ele recebeu uma ligação logo depois
que vocês terminaram a entrevista desta manhã.
— De quem?
— Foi no celular. Ele não me disse. Será que... Alice,
querida, pode me dar licença?
Alice levantou-se e Amelia assumiu seu lugar diante da
tela do computador. Acho que eu nunca tinha visto dedos se
moverem tão rápido sobre um teclado. Os cliques pareciam
se unir em um ruído contínuo de plástico, como o som de
um milhão de dominós caindo. As imagens na tela
mudavam quase com a mesma velocidade. E então os
cliques desaceleraram até algumas batidinhas em staccato
quando Amelia encontrou o que estava procurando.
— Merda.
Ela girou a tela na minha direção, então se recostou na
cadeira, assombrada. Inclinei-me para ler.
O cabeçalho da página da internet dizia “Últimas
Notícias”:

27 de janeiro, 14:57
NOVA YORK (AP) — O ex-secretário de Relações
Internacionais britânico, Richard Rycart, pediu ao Tribunal
Penal Internacional de Haia para investigar as alegações
de que o ex-primeiro-ministro inglês Adam Lang teria
ordenado a entrega ilegal de suspeitos para tortura da
CIA.
O Sr. Rycart, que foi afastado do Gabinete pelo Sr.
Lang quatro anos atrás, atualmente é o embaixador
especial das Nações Unidas para assuntos humanitários
e um crítico notório da política externa dos EUA. Na
época em que deixou o governo Lang, o Sr. Rycart
sustentou que foi demitido por ser insuficientemente pró-
americano.
Em uma declaração feita de seu escritório em Nova
York, o Sr. Rycart afirmou que havia passado uma série
de documentos para o TPI algumas semanas atrás. Os
documentos — cujos detalhes vazaram para um jornal
inglês no fim de semana — supostamente revelavam que
o Sr. Lang, quando primeiro-ministro, autorizou
pessoalmente a captura de quatro cidadãos ingleses no
Paquistão há cinco anos.
O Sr. Rycart prosseguiu: “Pedi várias vezes, em
particular, que o governo inglês investigasse essa atitude
ilegal. Ofereci-me para testemunhar em um inquérito.
Ainda assim, o governo recusou-se sistematicamente a
até mesmo reconhecer a existência da Operação
Tempestade. Assim, não vejo outra alternativa, a não ser
apresentar as provas que tenho em mãos ao TPI.”

— Aquele merdinha — sussurrou Amelia.


O telefone na mesa começou a tocar. Então, outro, em
uma mesinha ao lado da porta, o acompanhou. Ninguém se
moveu. Lucy e Alice olharam para Amelia à espera de
ordens, e, enquanto o faziam, o celular de Amelia, que ela
guardava em uma bolsinha de couro presa ao cinto, soltou
seu próprio piado eletrônico. Pelo mais breve dos
momentos, eu a vi entrar em pânico — aquela deve ter sido
uma das pouquíssimas situações em sua vida em que ela
não soube o que fazer —, e, na falta de qualquer tipo de
instrução, Lucy começou a estender o braço para atender
ao telefone na sua mesa.
— Não — gritou Amelia, então acrescentou, com mais
calma: — Deixe tocar. Precisamos desenvolver uma linha de
argumentação. — Àquela altura, outros dois telefones já
estavam tocando no interior da casa. Era como se fosse
meio-dia em uma fábrica de relógios. Ela pegou o celular e
examinou o número da chamada. — A bola está rolando —
disse ela, desligando-o. Tamborilou por alguns segundos a
ponta dos dedos na mesa. — Certo. Desligue todos os
telefones — falou para Alice, com algo da sua antiga
confiança de volta na voz —, depois comece a navegar
pelos principais sites de notícia da internet para ver se
consegue descobrir qualquer outra coisa que Rycart possa
estar dizendo. Lucy, encontre uma televisão e monitore
todos os canais de notícia. — Ela olhou para o seu relógio. —
Ruth ainda está caminhando? Merda! Ela está, não está?
Ela pegou seu caderno preto e vermelho e desceu
ruidosamente o corredor com seus saltos altos. Sem saber
ao certo o que deveria fazer, e nem o que exatamente
estava acontecendo, decidi que era melhor segui-la. Ela
estava chamando um dos homens do Serviço Especial.
— Barry! Barry! — Ele botou a cabeça para fora da
cozinha. — Barry, por favor, encontre a Sra. Lang e traga-a
de volta o mais rápido possível. — Ela começou a subir as
escadas até a sala de estar.
Lang estava outra vez parado na cadeira, exatamente
onde eu o havia deixado. A única diferença era que tinha
seu próprio celular pequeno na mão. Ele o fechou com um
estalo quando nós entramos.
— A julgar por todos esses telefonemas, imagino que ele
tenha feito sua declaração — disse ele.
Amelia espalmou as mãos, irritada.
— Por que o senhor não me contou?
— Antes de contar para Ruth? Não acho que essa teria
sido uma política muito boa, concorda? Além do mais, achei
melhor não contar a ninguém por um tempo. Desculpe-me
— disse ele para mim — por ter perdido a cabeça.
Fiquei comovido pelas suas desculpas. Aquilo era
benevolência em meio à adversidade, pensei.
— Não se preocupe — falei.
— E o senhor contou? — perguntou Amelia. — Para ela?
— Eu queria contar pessoalmente. É claro que isto está
fora de cogitação, de modo que acabei de ligar para ela.
— E como ela recebeu a notícia?
— O que você acha?
— Aquele merdinha — repetiu Amelia.
— Ela deve chegar a qualquer instante.
Lang levantou-se e ficou olhando pela janela com as
mãos na cintura. Senti novamente o cheiro do seu suor.
Aquilo me fez pensar em um animal acuado.
— Ele queria muito que eu soubesse que não era nada
pessoal — disse Lang, de costas para nós. — Ele queria
muito, muito mesmo, que eu soubesse que era só por conta
da sua conhecida militância pelos direitos humanos que ele
achava que não podia mais ficar calado. — Ele riu com
desdém para seu próprio reflexo. — Sua conhecida
militância pelos direitos humanos... Bom Deus...
— O senhor acha que ele estava gravando a ligação? —
perguntou Amelia.
— Quem sabe? Provavelmente. Provavelmente vai
divulgá-la. Com ele, tudo é possível. Eu só disse: “Muito
obrigado, Richard, por me informar”, e desliguei. — Ele se
virou de volta, as sobrancelhas franzidas. — Está um
silêncio enervante lá embaixo.
— Mandei que desligassem os telefones. Precisamos
trabalhar no que vamos dizer.
— O que nós dissemos no fim de semana?
— Que não tínhamos visto o que saiu no Sunday Times e
que não pretendíamos fazer comentários.
— Bem, pelo menos agora sabemos onde eles
conseguiram a matéria. — Lang balançou a cabeça. A
expressão no seu rosto era quase de admiração. — Ele está
querendo mesmo me pegar, não é? Um vazamento de
informação para a imprensa no domingo, preparando o
terreno para um pronunciamento na terça. Três dias de
cobertura em vez de um, em direção a um clímax. Ele está
seguindo o manual a risca.
— O seu manual.
Lang reconheceu o elogio meneando de leve a cabeça e
voltou a olhar para a janela.
— Ah — disse ele. — Lá vem encrenca.
Uma figura pequena e determinada em um casaco azul
vinha descendo o caminho das dunas, movendo-se tão
depressa que o policial atrás dela teve de dar uma ou outra
corridinha para acompanhá-la. O capuz pontudo estava
baixado para proteger seu rosto, e seu queixo estava colado
ao peito, dando a Ruth Lang a aparência de um cavaleiro
medieval com uma viseira de poliéster, encaminhando-se
para a batalha.
— Adam, precisamos muito transmitir uma declaração
sua — disse Amelia. — Se você não disser nada, ou se
deixar a coisa rolar muito tempo, vai parecer... — Ela
hesitou. — Bem, eles vão tirar suas próprias conclusões.
— Certo — disse Lang. — Que tal isso? — Amelia
destampou uma pequena caneta prateada e abriu seu
caderno. — Em resposta à declaração de Richard Rycart,
Adam Lang fez as seguintes observações: “Quando uma
política que oferecia cem por cento de apoio aos Estados
Unidos na guerra mundial contra o terror era popular no
Reino Unido, o Sr. Rycart a aprovava. E quando, graças à
sua própria incompetência administrativa, foi afastado do
cargo de secretário de Relações Internacionais, ele
subitamente desenvolveu um interesse ardoroso pela
defesa dos supostos direitos humanos de suspeitos de
terrorismo. Até uma criança de 3 anos conseguiria perceber
sua tática infantil no intuito de constranger seus antigos
colegas.” Ponto final. Parágrafo único.
Amelia tinha parado de escrever o que Lang ditava na
metade. Estava olhando para o ex-primeiro-ministro e, se eu
não soubesse que isso era impossível, poderia jurar que
uma lágrima começava a despontar de um dos olhos da
Rainha do Gelo. Ele devolveu-lhe o olhar. Houve uma leve
batida na porta aberta e Alice entrou, segurando uma folha
de papel.
— Com licença, Adam — disse ela. — Isto acabou de
chegar da Associated Press.
Lang pareceu relutar em interromper o contato visual
com Amelia, e então eu soube — nunca tive tanta certeza
de algo na vida — que a relação entre os dois não era
apenas profissional. Depois do que pareceu um interlúdio
embaraçosamente longo, ele pegou o papel de Alice e
começou a lê-lo. Foi então que Ruth entrou no escritório.
Àquela altura, eu estava começando a me sentir como um
espectador que se levantou no meio da peça para procurar
um banheiro e acabou entrando sem querer no palco: os
atores fingiam que eu não estava lá, e eu sabia que tinha de
sair, mas não conseguia pensar em uma desculpa.
Lang terminou de ler o papel e entregou-o para Ruth.
— De acordo com a Associated Press — anunciou ele —,
fontes em Haia, sejam elas quais forem, estão dizendo que
a procuradoria do Tribunal Penal Internacional fará um
pronunciamento pela manhã.
— Oh, Adam! — exclamou Amelia, levando a mão à boca.
— Por que não fomos avisados sobre nada disso? —
exigiu saber Ruth. — E quanto a Downing Street? Por que
não tivemos notícias da embaixada?
— Os telefones estão desligados — disse Lang. — Eles
devem estar tentando entrar em contato agora.
— Esqueça o agora! — gritou Ruth. — De que merda nos
adianta o agora? Deveríamos ter ficado sabendo disso há
uma semana! O que vocês estão fazendo aqui? — disse ela,
voltando sua fúria para Amelia. — Pensei que todo o sentido
da sua presença fosse mantermos um vínculo com o
Gabinete. Não me venha dizer que eles não sabiam que isso
estava por vir.
— O procurador do TPI tem o cuidado de não notificar um
suspeito se ele estiver sendo investigado — disse Amelia. —
Nem o governo do suspeito, por sinal. Para evitar que eles
comecem a destruir provas.
Suas palavras pareceram abalar Ruth. Ela levou um
instante para se recuperar.
— Então é isso o que Adam é agora? Um suspeito? — Ela
se voltou para o marido. — Você precisa falar com Sid Kroll.
— Ainda não sabemos o que o TPI vai dizer, na verdade
— assinalou Lang. — Eu deveria falar primeiro com Londres.
— Adam — disse Ruth, falando bem devagar, como se
ele tivesse sofrido um acidente e pudesse estar em estado
de choque —, se acharem conveniente, eles vão crucificá-lo.
Você precisa de um advogado. Ligue para Sid.
Lang hesitou, então se voltou para Amelia.
— Coloque Sid na linha.
— E quanto à imprensa?
— Transmita uma declaração tapa-buraco — disse Ruth.
— Só uma ou duas frases.
Amelia pegou o celular e começou a correr os nomes
Estados na agenda do telefone.
— Quer que eu rascunhe alguma coisa? — perguntou.
— Por que ele não faz isso? — disse Ruth, apontando
para mim. — Não é ele o escritor?
— Ótimo — disse Amelia, mal conseguindo esconder sua
irritação —, mas preciso despachá-la imediatamente.
— Devo parecer confiante — disse Lang para mim —,
certamente não na defensiva, isso seria fatal. Mas também
não posso soar arrogante. Nada de amargura. Nada de
raiva. Mas não diga que estou satisfeito por ter esta
oportunidade de limpar meu nome nem qualquer besteira
dessas.
— Então — falei —, o senhor não está na defensiva, mas
também não quer parecer arrogante, não está com raiva,
mas também não está satisfeito.
— Isso.
— Então como é que o senhor está exatamente?
Surpreendentemente, dadas as circunstâncias, todos
riram.
— Eu falei que ele era engraçado — disse Ruth.
Amelia ergueu a mão de repente e gesticulou para que
ficássemos quietos.
— Estou com Adam Lang na linha para Sidney Kroll —
disse ela. — Não, ele não pode esperar.

Acompanhei Alice até o andar de baixo e parei atrás do seu


ombro enquanto ela se sentava diante do teclado,
esperando pacientemente que as palavras do ex-primeiro-
ministro saíssem da minha boca. Somente depois que
comecei a pensar sobre o que Lang deveria dizer percebi
que não lhe havia feito a pergunta crucial: ele tinha mesmo
ordenado a captura daqueles quatro homens? Foi então que
soube que era claro que sim; caso contrário, ele
simplesmente teria negado tudo abertamente no fim de
semana, quando a primeira matéria saiu. Não pela primeira
vez, senti-me completamente além da minha competência.
— Sempre fui um ardoroso... — comecei. — Não, risque
isso. Sempre fui um grande, não, um aguerrido defensor do
trabalho do Tribunal Penal Internacional. — (Ele tinha sido
mesmo? Eu não fazia ideia. Parti do princípio de que sim. Ou
que, pelo menos, sempre fingira ser.) — Não tenho dúvidas
de que o TPI logo perceberá que isso não passa de uma
provocação motivada por interesses políticos. — Fiz uma
pausa. Senti que precisava de mais uma frase: algo mais
abrangente, digno de um homem de Estado. O que eu
falaria se fosse ele? — A luta internacional contra o terror —
falei, em um arroubo de inspiração — é importante demais
para ser usada em prol de vinganças pessoais.
Lucy imprimiu a declaração, e quando eu a levei de volta
ao escritório, senti uma curiosa mistura de orgulho e
acanhamento, como um estudante entregando seu dever de
casa. Fingi não ver a mão estendida de Amelia e mostrei-a
primeiro para Ruth (pelo menos estava aprendendo a
etiqueta daquela corte de eLivross). Ela assentiu sua
aprovação e fez o papel deslizar pela mesa até Lang, que
estava escutando alguém ao telefone. Ele olhou para a
declaração em silêncio, pediu minha caneta com um gesto e
inseriu uma única palavra. Jogou o papel de volta e ergueu o
polegar para mim.
Ao telefone, ele disse:
— Isso é ótimo, Sid. E o que sabemos sobre esses três
juízes?
— Será que eu posso ver? — disse Amelia, enquanto
descíamos as escadas.
Ao entregar o papel, notei que Lang havia acrescentado
o adjetivo “doméstico” à frase final: “A luta internacional
contra o terror é importante demais para ser usada em prol
de vinganças pessoais domésticas.” A antítese brutal entre
“internacional” e “doméstica” fez Rycart parecer ainda mais
mesquinho.
— Muito bom — disse Amelia. — Você poderia ser o novo
Mike McAra.
Olhei para ela. Acho que sua intenção era me elogiar. No
caso dela, era sempre difícil saber. Não que eu me
importasse. Pela primeira vez na vida, estava
experimentando a adrenalina da política. Passei a entender
por que a aposentadoria deixava Lang tão agitado. Imaginei
que o esporte devia oferecer a mesma sensação, quando
praticado no nível mais extremo e veloz. Era como jogar
tênis na quadra central em Wimbledon. O saque de Rycart
passara rente à rede, e nós havíamos corrido atrás da bola,
a alcançado com a raquete e a atirado de volta para ele,
com um efeito extra.
Os telefones foram religados um a um. Eles começaram
a tocar imediatamente, exigindo atenção, e eu ouvi as
secretárias alimentando os repórteres famintos com minhas
palavras: “Sempre fui um aguerrido defensor do trabalho do
Tribunal Penal Internacional.” Vi minhas frases serem
enviadas por e-mail para as agências de notícias. E, em
questão de minutos, na tela do computador e na televisão,
comecei a vê-las e ouvi-las novamente. (“Em uma
declaração feita poucos minutos atrás, o ex-primeiro-
ministro disse...”) O mundo tinha se tornado nossa câmara
de eco.
No meio disso tudo, meu próprio telefone tocou. Grudei o
receptor a uma orelha e coloquei um dedo na outra para
ouvir a pessoa que estava ligando. Uma voz fraca disse:
— Está me ouvindo?
— Quem está falando?
— É John Maddox, da Rhinehart, em Nova York. Onde
você está? Parece um hospício.
— Você não é o primeiro a chamar isso aqui de hospício.
Espere um pouco, John. Vou tentar achar um lugar mais
silencioso. — Saí em direção ao corredor e continuei
caminhando por ele até dar a volta e chegar aos fundos da
casa. — Melhor agora?
— Acabei de ouvir a notícia — disse Maddox. — Isso só
pode ser bom para a gente. Deveríamos começar com isso.
— O quê? — Eu ainda estava andando.
— Essa coisa de crimes de guerra. Você perguntou sobre
isso a ele?
— Para ser sincero, John, não tive muita oportunidade. —
Tentei não soar sarcástico demais. — Ele está um pouco
enrolado no momento.
— Certo. Então, o que você cobriu até agora?
— O começo da vida dele, a infância, a faculdade...
— Não, não — falou Maddox, impaciente. — Esqueça
essa merda. Este negócio de agora é o que interessa. Faça
com que ele se concentre nisso. E ele não deve falar sobre
este assunto com mais ninguém. Temos de mantê-lo
absolutamente exclusivo para as memórias.
Acabei chegando ao solário, onde havia falado com Rick
na hora do almoço. Mesmo com a porta fechada, eu ainda
conseguia ouvir o barulho distante dos telefones tocando do
outro lado da casa. A ideia de que Lang conseguiria evitar
qualquer menção a capturas ilegais e tortura até o
lançamento do livro era uma piada. Naturalmente, não
coloquei a coisa exatamente nesses termos para o
presidente da terceira maior editora do mundo.
— Eu direi a ele, John — falei. — Talvez seja bom você
conversar com Sidney Kroll. Adam poderia dizer que seus
advogados o instruíram a não falar nada.
— Boa ideia. Vou ligar para Sid agora. Enquanto isso,
quero que você acelere o cronograma.
— Acelerar? — No cômodo vazio, minha voz soou fraca e
surda.
— Claro. Acelerar. No sentido de apressar as coisas.
Neste exato momento, Lang está em alta. As pessoas estão
começando a se interessar por ele novamente. Não
podemos deixar essa oportunidade escapar.
— Agora você está dizendo que quer o livro em menos de
um mês?
— Sei que é duro. E talvez isso signifique se contentar
apenas com uma ajeitada em muita coisa no manuscrito em
vez de reescrever tudo. Mas e daí? A maior parte ninguém
vai ler mesmo. Quanto mais cedo lançarmos, mais vamos
vender. Você acha que consegue?
Não, era a resposta. Não, seu careca desgraçado, seu
canalha psicopata, você leu aquele lixo para valer? Será que
perdeu a porra do juízo?
— Bem, John — disse suavemente —, eu posso tentar.
— Bom homem. E não se preocupe com a sua parte do
contrato. Vamos lhe pagar a mesma coisa por duas
semanas de trabalho que pagaríamos por quatro. Ouça o
que eu digo, se essa coisa de crimes de guerra der certo,
pode ser a resposta para as nossas orações.
Quando ele desligou, de alguma forma duas semanas
haviam deixado de ser um número fisgado ao acaso no ar e
se tornado um prazo concreto. Eu já não conduziria
quarenta horas de entrevista com Lang, abrangendo toda a
sua vida: faria com que ele se concentrasse
especificamente na Guerra contra o Terror, e nós
começaríamos as memórias com aquilo. O resto eu faria o
máximo para melhorar, reescrevendo o que fosse possível.
— E se Adam não gostar disso? — perguntei, no que
acabou sendo nossa última troca de palavras.
— Ele vai gostar — disse Maddox. — Caso contrário, você
pode simplesmente recordar Adam — seu tom sugeria que
nós não passávamos de uma dupla de ingleses frescos,
tramando para roubar um americano de sangue quente —
da sua obrigação contratual de produzir um livro que nos
ofereça um relato abrangente e franco sobre a Guerra
contra o Terror. Estou confiando em você. Certo?
É melancólico estar em um solário quando não há sol. Eu
podia ver o jardineiro no mesmíssimo lugar em que ele
havia trabalhado no dia anterior, rígido e desajeitado nas
suas roupas de frio grossas, ainda empilhando folhas no seu
carrinho de mão. Assim que ele acabava de limpar uma
parte dos detritos, o vento trazia mais. Permiti-me um breve
momento de desespero, recostando-me na parede, minha
cabeça virada para o teto, ponderando sobre a fugacidade
dos dias de verão e da felicidade humana. Tentei ligar para
Rick, mas sua assistente me disse que ele estava passando
a tarde fora, então deixei uma mensagem pedindo que ele
retornasse a ligação. Em seguida, saí em busca de Amelia.
Ela não estava no escritório, onde as secretárias ainda
atendiam ligações, nem no corredor, nem na cozinha. Para
minha surpresa, um dos guardas falou que ela havia saído.
Já devia passar das quatro da tarde àquela altura, e estava
ficando frio. Ela estava parada na rotatória em frente da
casa. Na penumbra de janeiro, a ponta de seu cigarro emitiu
um brilho vermelho forte quando ela tragou, então
desapareceu.
— Eu não teria adivinhado que você era fumante — falei.
— Fumo muito de vez em quando. E, mesmo assim, só
em momentos de muito estresse, ou de muita alegria.
— E qual deles é agora?
— Muito engraçado.
Ela havia abotoado o paletó para se proteger do
anoitecer friorento e fumava naquele curioso estilo noli me
tangere que certos tipos de mulheres têm de fumar, com
um braço apoiado frouxamente contra a cintura e o outro —
o que segurava o cigarro — enviesado diante do peito. O
cheiro perfumado do tabaco queimando ao ar livre me fez
querer um cigarro também. Teria sido meu primeiro em
mais de uma década e, sem dúvida, me faria voltar a
quarenta por dia — porém, ainda assim, naquele instante,
se ela tivesse me oferecido um, eu teria aceitado.
Ela não ofereceu.
— John Maddox acabou de ligar — falei. — Agora ele quer
o livro em duas semanas em vez de quatro.
— Cristo. Boa sorte.
— Imagino que não exista a menor chance de eu me
sentar novamente com Adam hoje para outra entrevista,
não é?
— O que você acha?
— Nesse caso, será que alguém poderia me levar de
volta para o hotel? Posso trabalhar um pouco lá em vez de
aqui.
Ela soltou a fumaça pelo nariz e me analisou.
— Você não está pensando em tirar aquele manuscrito
daqui, está?
— Claro que não! — Minha voz sempre sobe uma oitava
quando eu minto. Jamais poderia ser um político: soaria
como o Pato Donald. — Quero apenas colocar no papel o
trabalho de hoje, só isso.
— Porque você percebe como a coisa está ficando séria,
certo?
— Claro. Pode conferir meu laptop se quiser.
Ela fez uma pausa longa o bastante para transmitir sua
suspeita.
— Tudo bem — disse, terminando o cigarro. — Confio em
você. — Ela largou a guimba no asfalto e apagou-a
delicadamente com o bico pontudo do sapato, depois parou
e apanhou-a de volta. Imaginei-a na escola, removendo da
mesma forma a prova do crime: a CDF que nunca foi pega
fumando. — Apanhe suas coisas. Vou pedir para um dos
rapazes levá-lo até Edgartown.
Entramos de volta na casa e nos separamos no corredor.
Ela retornou para os telefones, que ainda tocavam. Eu subi
até o escritório e, enquanto me aproximava, ouvi Ruth e
Adam Lang gritando um com o outro. Suas vozes estavam
abafadas, e as únicas palavras que ouvi com clareza
constituíam a última parte da sua diatribe final: “Passar o
resto da minha droga de vida aqui!” A porta estava
entreaberta. Eu hesitei. Não queria interromper, mas, por
outro lado, não queria ficar ali e ser pego espiando, como se
estivesse ouvindo a conversa alheia. No fim das contas, bati
de leve e, depois de uma pausa, ouvi Lang dizer com uma
voz cansada:
— Entre.
Ele estava sentado à mesa. Sua esposa estava na outra
ponta da sala. Ambos respiravam pesado, e percebi que
algo grave — alguma explosão há muito contida — tinha
acabado de acontecer. Agora entendia por que Amelia tinha
fugido para fumar lá fora.
— Desculpe-me por interromper — falei, gesticulando
para meus pertences. — Eu só queria...
— Está bem — disse Lang.
— Vou ligar para as crianças — disse Ruth com
amargura. — A não ser, é claro, que você já tenha ligado.
Lang não olhou para ela, ele olhou para mim. E, oh,
quantas camadas de significado havia para interpretar
naqueles olhos opacos! Durante aquele longo instante, ele
me convidou a ver no que havia se tornado: destituído de
seu poder, ofendido pelos inimigos, caçado, com saudades
de casa, preso entre a esposa e a amante. Você poderia
escrever cem páginas apenas sobre aquele breve olhar e,
ainda assim, não o esgotaria.
— Com licença — disse Ruth, passando por mim com
bastante violência, seu corpo pequeno e sólido batendo no
meu. No mesmo instante, Amelia apareceu no batente da
porta, segurando um telefone.
— Adam — disse ela. — É a Casa Branca. Eles estão com
o presidente dos Estados Unidos na linha para você. — Ela
sorriu para mim e conduziu-me em direção à porta. — Com
licença? Precisamos da sala.

Já estava bem escuro quando voltei para o hotel. Havia luz


no céu suficiente apenas para mostrar as nuvens
carregadas grandes e escuras que se juntavam sobre
Chappaquiddick, vindas do Atlântico. A garota da recepção,
com seu chapeuzinho de pala com laço, disse que os
próximos dias seriam de tempo ruim.
Subi até o meu quarto e fiquei parado nas sombras por
um tempo, ouvindo o ranger da velha placa da pousada e o
implacável estouro-e-chiado, estouro-e-chiado da maré
além da estrada vazia. O farol foi ligado no exato momento
em que o facho de luz estava apontando diretamente para o
hotel, e a vermelhidão que subitamente invadiu o quarto
dissipou meus devaneios. Liguei o abajur e tirei o laptop da
bolsa a tiracolo. Estávamos juntos na estrada havia um bom
tempo, aquele laptop e eu. Tínhamos aturado astros do rock
que se achavam messias destinados a salvar o planeta.
Sobrevivido a jogadores de futebol cujos grunhidos
monossilábicos fariam um gorila adulto parecer estar
recitando Shakespeare. Suportado atores que logo seriam
esquecidos, com egos tão grandes quanto o de um
imperador romano e séquitos compatíveis. Dei um tapinha
amigável na máquina. Seu estojo de metal, que já fora
reluzente, estava arranhado e amassado: os ferimentos
honrosos de uma dúzia de campanhas. Tínhamos
sobrevivido àquelas. Daríamos um jeito de sobreviver a esta
também.
Liguei-o ao telefone do hotel, disquei meu provedor de
internet e, enquanto a conexão se completava, fui ao
banheiro pegar um copo d’água. O rosto que me encarou de
volta do espelho estava deteriorado, mesmo em
comparação ao espectro da noite anterior. Puxei as
pálpebras inferiores para baixo e examinei o branco
gelatinoso dos meus olhos antes de partir para os dentes
acinzentados e o cabelo, e daí para os pontinhos vermelhos
nas bochechas e no nariz. Martha’s Vineyard, no auge do
inverno, parecia estar me envelhecendo. Era como Shangri-
lá ao contrário.
Do outro cômodo, ouvi o aviso familiar: “Você tem novas
mensagens.”
Logo notei que algo estava errado. Havia a habitual lista
de lixo eletrônico, uma dúzia de mensagens me oferecendo
desde aumento do pênis até o Wall Street Journal, mais um
e-mail do escritório de Rick confirmando o pagamento da
primeira parte do adiantamento. A única coisa que não
estava listada era o e-mail que eu havia mandado para mim
mesmo à tarde.
Por alguns instantes, fiquei olhando como um idiota para
a tela, então abri a pasta separada no disco rígido do laptop
que armazenava automaticamente cada e-mail meu,
recebido ou enviado. E lá estava, para meu imenso alívio,
no topo da lista de “e-mails enviados”, uma mensagem
intitulada “Sem assunto”, à qual eu havia anexado o
manuscrito das memórias de Adam Lang. Porém, quando
abri o e-mail em branco e cliquei na caixa que dizia
“download”, tudo o que recebi foi a seguinte mensagem: “O
arquivo não está disponível no momento.” Tentei mais
algumas vezes, sempre com o mesmo resultado.
Peguei meu celular e liguei para a empresa de internet.
Pouparei você de um relato completo da meia hora tensa
que se seguiu — a interminável escolha dentre uma lista de
opções, a espera, a música em midi no ouvido, a conversa
cada vez mais desesperada com o representante do
provedor em Uttar Pradesh ou em qualquer outro raio de
lugar que ele estivesse.
A questão era que o manuscrito sumira e o provedor não
tinha nenhum registro de que ele houvesse existido.
Não tenho uma cabeça muito técnica, mas até eu estava
começando a entender o que devia ter acontecido. De
alguma forma, o manuscrito de Lang tinha sido apagado da
memória dos computadores do meu servidor de internet.
Havia duas explicações possíveis para isso. Uma, era que o
upload não tinha sido feito corretamente desde o início —
mas isso não fazia sentido, porque eu havia recebido duas
mensagens quando ainda estava no escritório: “O seu
arquivo foi transferido” e “Você tem novas mensagens”. A
outra era que o arquivo havia sido apagado. Mas como seria
possível? Se fosse assim, isso significaria que alguém tinha
acesso aos computadores de um dos maiores
conglomerados de internet do mundo, e era capaz de
apagar seus rastros ao seu bel-prazer. O que também
significaria — tinha de significar — que todos os meus e-
mails vinham sendo monitorados.
A voz de Rick flutuou na minha mente: “Uau. Deve ter
sido uma operação e tanto. Grande demais para um jornal.
Deve ter sido um governo...”, seguida rapidamente pela de
Amelia: “Você percebe como a coisa está ficando séria,
certo?”
— Mas o livro é uma merda! — gritei, desesperadamente,
para o retrato do baleeiro vitoriano pendurado diante da
cama. — Não tem nada nele que compense todo esse
trabalho!
O lobo do mar vitoriano, carrancudo e velho, olhou de
volta para mim, impassível. Eu havia quebrado minha
promessa, sua expressão parecia dizer, e alguma coisa lá
fora — alguma força sem nome — sabia disso.
Oito

Os autores em geral são pessoas ocupadas e pouco


acessíveis: às vezes, são temperamentais.
Consequentemente, os editores contam com os ghost-writers
para que o processo de edição seja o mais tranquilo possível.

Ghostwriting

Não havia a menor chance de eu trabalhar mais naquela


noite. Nem sequer liguei a televisão. Tudo o que eu desejava
era o esquecimento. Desliguei o celular, desci até o bar e,
quando ele fechou, sentei-me no meu quarto e fui
esvaziando uma garrafa de uísque até bem depois da meia-
noite, o que, sem dúvida, explica por que finalmente dormi
uma noite inteira.
Acordei com o telefone tocando ao lado da cama. O
toque metálico estridente pareceu fazer meus globos
oculares vibrarem nas órbitas cansadas e, quando rolei para
o lado para atendê-lo, senti meu estômago continuar
rolando, arrastando-se para longe de mim e atravessando o
cobertor, indo para o chão, como um balão cheio de um
líquido intoxicante e viscoso. O quarto, que girava, estava
muito quente; o ar-condicionado estava ligado no máximo.
Notei que tinha ido dormir completamente vestido e que
havia deixado todas as luzes acesas.
— Você precisa fazer o check out do hotel imediatamente
— disse Amelia. — As coisas mudaram. — Sua voz penetrou
meu crânio como uma agulha de crochê. — Um carro está a
caminho.
Foi tudo o que ela disse. Não discuti; não tive como. Ela
já havia desligado.
Certa vez li que, no Antigo Egito, eles costumavam
preparar um faraó para mumificação retirando cérebro pelo
nariz com um gancho. Em algum momento da noite, uma
operação semelhante parecia ter sido executada em mim.
Arrastei os pés pelo carpete e puxei as cortinas, revelando
um céu e um mar cinza como a morte. Nada se movia. O
silêncio era total; nem mesmo o grito de uma gaivota o
quebrava. Não havia dúvida de que uma tempestade estava
vindo: até eu conseguia perceber isso.
Quando eu estava prestes a me afastar dali, ouvi o som
distante de um motor. Apertei os olhos para observar a rua
debaixo da minha janela e vi dois carros pararem. As portas
do primeiro se abriram e dois homens saíram — jovens,
aparentemente em boa forma, usando casacos de esqui,
jeans e botas. O motorista ergueu os olhos para a minha
janela e, instintivamente, dei um passo para trás. Quando
arrisquei olhar uma segunda vez, ele tinha aberto a mala do
carro e estava inclinado sobre ela. Ao endireitar o corpo,
segurava o que, a princípio, no meu estado paranoico,
pensei ser uma metralhadora. Na verdade, era uma câmera
de TV.
Então, comecei a me mover rápido, ou pelo menos com o
máximo de rapidez que minha condição permitia.
Escancarei a janela para deixar entrar uma lufada de ar
gelado. Tirei a roupa, tomei um banho morno e fiz a barba.
Vesti roupas limpas e arrumei as malas. Quando desci para
a recepção, eram 8h45 — uma hora depois de a primeira
barca do continente ter atracado no porto de Vineyard — e
o hotel parecia estar recebendo uma conferência
internacional de imprensa. Digam o que disserem de Adam
Lang, ele certamente estava fazendo maravilhas para a
economia local: Edgartown não ficava tão agitada desde
Chappaquiddick. Devia haver trinta pessoas por ali,
bebendo café, trocando histórias em meia dúzia de idiomas,
falando em seus celulares, conferindo equipamentos. Eu já
havia passado tempo suficiente com repórteres para saber
diferenciar um tipo do outro. Os correspondentes de TV se
vestiam como se estivessem indo a um funeral; os
repórteres de agências de notícias eram os que pareciam
coveiros.
Comprei um exemplar do New York Times e fui direto
para o restaurante, onde imediatamente bebi três copos de
suco de laranja antes de voltar minha atenção para o jornal.
Lang não estava mais enterrado no caderno internacional.
Estava bem ali na primeira página:

TRIBUNAL DE CRIMES DE GUERRA


DECIDIRÁ O DESTINO
DE EX-PREMIER BRITÂNICO

PRONUNCIAMENTO AGUARDADO
PARA HOJE

Ex-secretário de Relações Internacionais


alega que Lang aprovou
uso de tortura pela CIA

Lang havia feito uma declaração “vigorosa”, dizia o jornal


(senti um arrepio de orgulho). Ele estava “sob ataque”,
“enfrentando um golpe atrás do outro” — a começar pelo
“afogamento acidental de um assistente particular neste
mesmo ano”. O caso causava “constrangimento” para os
governos inglês e americano. “Um oficial administrativo
sênior insistiu, no entanto, em que a Casa Branca
continuava leal ao homem que, no passado, foi seu aliado
mais próximo. ‘Ele ficou do nosso lado e nós ficaremos do
lado dele’, acrescentou o oficial, falando apenas depois de
ter a garantia do anonimato.”
No entanto, foi o último parágrafo que me fez engasgar
com o café:
A publicação das memórias do Sr. Lang, que estava
prevista para junho, foi antecipada para o final de abril.
John Maddox, presidente da Rhinehart Publishing Inc.,
que supostamente pagou 10 milhões de dólares pelo
livro, afirmou que o manuscrito está recebendo os
últimos retoques. “Este vai ser um evento editorial
mundial”, disse o Sr. Maddox ao New York Times em uma
entrevista concedida ontem por telefone. “Adam Lang
será o primeiro líder a dar uma versão completa dos
bastidores da Guerra contra o Terror promovida pelo
Ocidente.”

Dobrei o jornal, me levantei e atravessei com dignidade o


saguão, pisando cuidadosamente entre as malas das
câmeras, as lentes zoom de meio metro e os microfones de
mão com suas capas de proteção contra o vento cinza e
felpudas. Um clima alegre, quase festivo, prevalecia entre
os membros do Quarto Poder, do tipo que deve ter existido
entre gente de bem do século XVIII reunida para um belo
dia de lazer em um enforcamento.
— A redação está dizendo que a coletiva de impressa em
Haia vai ser agora, às dez da manhã, horário da Costa Leste
— gritou alguém.
Passei despercebido e saí para o terraço, de onde liguei
para o meu agente. O assistente dele atendeu — Brad, ou
Brett, ou Brat: não me lembro do nome; Rick mudava de
equipe quase com a mesma rapidez com que mudava de
esposa.
Pedi para falar com o Sr. Ricardelli.
— Ele não está no escritório no momento.
— E onde ele está?
— Viajou para pescar.
— Pescar?
— Ele vai ligar de vez em quando para conferir as
mensagens.
— Que ótimo. Para onde ele foi?
— Para o Parque Florestal Bouma National Heritage.
— Cristo. Onde fica isso?
— Foi uma coisa de momento...
— Onde fica?
Brad, ou Brett, ou Brat hesitou.
— Nas ilhas Fiji.

A minivan levou-me colina acima, para fora de Edgartown,


passando pela livraria, pelo pequeno cinema e pela igreja.
Quando chegamos aos limites da cidade, seguimos as
placas à esquerda para West Tisbury em vez de pegar a
direita, para o porto de Vineyard, o que pelo menos
significava que estavam me levando de volta para a casa, e
não me deportando por quebrar a Lei de Segredos de
Estado. Eu estava sentado atrás do policial motorista, com
minha mala no banco ao lado. Ele era um dos mais jovens e
vestia o uniforme padrão que todos eles usavam quando
estavam à paisana: um casaco cinza com o zíper fechado e
gravata preta. Seus olhos buscaram os meus pelo retrovisor,
e ele comentou que tudo aquilo era uma grande furada.
Respondi brevemente que era, sim, uma furada, então olhei
explicitamente pela janela para evitar mais conversa.
Logo chegamos às planícies da zona rural. Uma ciclovia
deserta corria paralela à estrada. Além dela, estendia-se a
floresta pardacenta. Meu frágil corpo podia estar em
Martha’s Vineyard, mas minha mente estava no Pacífico Sul.
Estava pensando em Rick nas ilhas Fiji e em todas as
maneiras complexas e humilhantes que eu poderia usar
para despedi-lo quando ele voltasse. Minha parte racional
sabia que eu jamais faria aquilo — por que ele não deveria
ir pescar? —, mas era a irracional que estava no comando
naquela manhã. Imagino que estivesse com medo, e o
medo distorce o juízo de uma pessoa ainda mais do que o
álcool e o cansaço. Sentia-me ludibriado, abandonado,
ressentido.
— Depois que eu deixar o senhor — disse o policial, sem
se permitir desanimar pelo meu silêncio —, tenho de buscar
o Sr. Kroll no aeroporto. Quando os advogados começam a
aparecer, pode ter certeza de que é uma roubada. — Ele se
interrompeu e inclinou o corpo na direção do para-brisa. —
Ah, caralho, lá vamos nós de novo.
Mais adiante, era como se tivesse acontecido um
acidente de carro. As intensas luzes azuis de uma dupla de
radiopatrulhas piscavam dramaticamente na manhã
sombria, iluminando as árvores ao redor como um
relâmpago correndo pelas nuvens em uma ópera de
Wagner. À medida que nos aproximamos, pude ver uma
dúzia ou mais de carros e vans estacionados no
acostamento de ambos os lados da estrada. As pessoas
estavam paradas por ali, sem fazer nada, e eu supus,
daquela maneira preguiçosa com que o cérebro às vezes
junta as informações, que elas haviam sofrido um acidente
coletivo. Porém, quando a minivan desacelerou e indicou
que ia virar à esquerda, os curiosos começaram a apanhar
coisas do acostamento e vieram correndo na nossa direção.
— Lang! Lang! Lang! — gritou uma mulher com um
megafone. — Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!
Imagens de Lang com um macacão laranja, agarrando
barras de prisão com mãos ensanguentadas, dançaram
diante do para-brisa: PROCURADO! CRIMINOSO DE GUERRA! ADAM
LANG!
A polícia de Edgartown havia bloqueado a trilha para o
complexo Rhinehart com cones de trânsito e retirou-os
rapidamente do caminho para que pudéssemos passar, mas
não antes de sermos parados. Os manifestantes nos
cercaram e uma fuzilaria de pancadas e chutes castigou a
lateral da van. Vislumbrei um arco brilhante de luz branca
iluminando uma figura — um homem, encapuzado como um
monge. Ele se virou de costas para seu entrevistador para
olhar para nós, e eu o reconheci vagamente de algum lugar.
Mas então ele desapareceu atrás de uma massa de rostos
contorcidos, mãos que esmurravam e saliva que gotejava.
— Eles são sempre os putos mais violentos — disse meu
motorista —, os manifestantes pela paz. — Ele pisou fundo,
os pneus de trás derraparam inutilmente, então colaram no
asfalto, e nós disparamos em direção à floresta silenciosa.

Amelia recebeu-me no corredor. Ela olhou com desdém para


minha única mala, como somente uma mulher poderia
olhar.
— É só isso mesmo?
— Gosto de viajar leve.
— Leve? Eu diria flutuando. — Deu um suspiro. — Certo.
Siga-me.
Minha bagagem era uma daquelas onipresentes malas
de puxar, com um cabo retrátil e rodinhas. Produzia um
zumbido industrial sobre o assoalho de pedra enquanto eu
seguia Ameba pelo corredor e dava a volta até os fundos da
casa.
— Tentei ligar para você várias vezes na noite passada —
disse ela, sem se virar —, mas você não atendeu.
Lá vem, pensei.
— Esqueci de carregar meu celular.
— Ah, é? E quanto ao telefone do seu quarto? Tentei ligar
para ele também.
— Eu saí.
— Até a meia-noite?
Encolhi-me atrás dela.
— O que você queria me contar?
— Isto.
Ela parou diante de uma porta, abriu-a e saiu da frente
para me deixar entrar. O quarto estava escuro, mas as
cortinas pesadas tinham uma pequena fresta no meio, de
modo que havia luz suficiente apenas para eu discernir o
vulto de uma cama de casal. Senti o cheiro de roupa
guardada e sabonete velho. Ela atravessou o quarto e abriu
rapidamente as cortinas.
— Você vai dormir aqui daqui para a frente.
Era um quarto simples, com portas de vidro corrediças
que davam acesso diretamente para o jardim. Além da
cama, havia uma mesa com uma luminária regulável, uma
poltrona coberta com algo bege de tecido grosso e um
guarda-roupa embutido de parede inteira com portas
espelhadas. Também pude ver o interior de um banheiro de
azulejos brancos, formando uma suíte. Era tudo
arrumadinho e funcional; deplorável.
Tentei fazer piada.
— É aqui que vocês colocam a vovó, não é?
— Não, aqui é onde nós havíamos colocado Mike McAra.
Ela puxou uma das portas do armário, revelando alguns
paletós e camisas pendurados em cabides.
— Infelizmente ainda não tivemos a oportunidade de
limpá-lo, e a mãe dele está em uma casa de repouso, de
modo que não tem espaço para guardar nada. Mas, como
você mesmo diz, você viaja leve. E, além disso, será apenas
por alguns dias, agora que o lançamento foi antecipado.
Nunca fui particularmente supersticioso, mas acredito
que certos lugares têm uma aura e, desde o primeiro
momento em que pisei naquele quarto, não gostei dele. A
ideia de tocar nas roupas de McAra encheu-me de algo
parecido com pânico.
— É uma regra pessoal minha não dormir na casa de um
cliente — falei, tentando manter a voz tranquila e casual. —
Depois de um dia de trabalho, geralmente acho essencial
mudar de ares.
— Mas agora você pode ter acesso constante ao
manuscrito. Não é isso que você quer? — Ela abriu um
sorriso para mim e, pela primeira vez, havia uma alegria
genuína nele. Eu estava exatamente onde ela queria, literal
e metaforicamente. — Além do mais, você não conseguiria
continuar fugindo da horda de jornalistas. Cedo ou tarde
eles descobririam onde você está e começariam a aborrecê-
lo com perguntas. Isso seria horrível para você. Aqui, pode
trabalhar em paz.
— Tem algum outro quarto que eu possa usar?
— Existem apenas seis quartos na casa principal. Adam e
Ruth têm dois separados. Eu fico com um. As garotas
dividem outro. Os policiais de plantão precisam de um
quinto para o turno da noite. E o bloco de hóspedes está
todo ocupado pelas Forças Especiais. Não fique melindrado:
os lençóis foram trocados. — Ela consultou seu elegante
relógio de ouro. — Olhe — disse —, Sidney Kroll vai chegar a
qualquer momento. Devemos receber o pronunciamento do
TPI em menos de meia hora. Por que você não se instala
aqui e depois sobe para se juntar a nós? Qualquer que seja
a decisão, ela vai afetá-lo. Você é praticamente um dos
nossos agora.
— Sou?
— Claro. Você escreveu a declaração ontem. Isso o torna
cúmplice.
Depois que ela foi embora, não desfiz as malas. Estava
sem condições. Em vez disso, sentei-me cautelosamente na
ponta da cama e olhei pela janela para o gramado castigado
pelo vento, os arbustos rasteiros e o céu imenso. Uma
pequena luz branca e brilhante cruzava rapidamente a
extensão cinza, seu tamanho aumentando à medida que se
aproximava. Um helicóptero. Passou voando baixo, fazendo
tremer as portas de vidro pesadas, e então, um ou dois
minutos depois, reapareceu, pairando a mais de um
quilômetro de distância, pouco acima do horizonte, como
um cometa sinistro e agourento. Aquilo era um sinal de
como a coisa tinha ficado séria, pensei, já que um diretor de
jornalismo sob pressão e com um orçamento gordo havia se
disposto a contratar um helicóptero na esperança de
conseguir uma imagem fugaz do ex-primeiro-ministro.
Imaginei Kate assistindo, cheia de si, à cobertura ao vivo no
seu escritório em Londres e fui invadido por um desejo
extraordinário de correr lá para fora e começar a rodopiar,
como Julie Andrews em A noviça rebelde: sim, querida, sou
eu! Estou aqui com o criminoso de guerra! Sou um
cúmplice!
Fiquei um tempo sentado ali, até ouvir o barulho da
minivan estacionando diante da casa, seguido por uma
comoção de vozes no hall e depois por um pequeno exército
de passos subindo ruidosamente as escadas de madeira:
calculei que aquele devia ser o som de mil dólares por hora
em honorários em movimento. Dei alguns minutos para
Kroll e seus clientes apertarem as mãos, trocarem
condolências e manifestações gerais de confiança, então
deixei, cansado, o quarto do homem morto, que passara a
ser meu, e subi para me juntar a eles.

Kroll tinha vindo em um jato particular de Washington com


dois jovens assistentes, uma mexicana de beleza exótica
que ele apresentou como Encarnación e um negro nova-
iorquino que ele chamava de Josh. Eles se sentaram cada
um de um lado dele, com os laptops abertos, em um sofá
que os deixava de costas para a vista oceânica. Adam e
Ruth Lang ocupavam o sofá de frente para os três, Amelia e
eu, duas poltronas separadas. Uma TV de tela plana do
tamanho de uma tela de cinema do lado da lareira mostrava
o plano aéreo da casa, transmitido ao vivo do helicóptero
que ouvíamos zumbir baixinho lá fora. De vez em quando, o
canal de notícias cortava para os jornalistas que esperavam
no salão amplo e decorado com candelabros em Haia no
qual se daria a coletiva de imprensa. Toda vez que eu via o
pódio vazio com o logotipo do TPI em seu elegante azul ONU
— os ramos de loureiro e a balança da justiça —, sentia-me
um pouco mais nervoso. Porém, o próprio Lang parecia
tranquilo. Ele estava sem paletó, usando uma camisa
branca e gravata azul-escura. Aquele era o tipo de
momento de alta pressão para o qual o seu metabolismo
fora construído.
— Então, a situação é a seguinte — disse Kroll, quando
todos já havíamos nos acomodado. — O senhor não está
sendo acusado. O senhor não está sendo preso. Isso não vai
dar em nada, eu prometo. Tudo o que a procuradora está
pedindo agora é permissão para iniciar uma investigação
formal. Certo? Então, quando sairmos daqui, ande de
cabeça erguida, pareça tranquilo e fique com o coração em
paz, pois vai dar tudo certo.
— O presidente falou-me que achava que eles talvez
nem a deixassem investigar — disse Lang.
— Sempre hesito antes de contradizer o líder do mundo
livre — disse Kroll —, mas a sensação geral em Washington
hoje de manhã era de que eles vão precisar deixar. Nossa
digníssima procuradora parece ser muito habilidosa. O
governo britânico recusou-se sistematicamente a investigar
por conta própria a Operação Tempestade, o que lhe dá um
precedente legal para fazê-lo ela mesma. E, ao fazer o caso
vazar pouco antes de ele ir para o Juízo de Instrução, ela
pressionou bastante aqueles três juízes para que eles lhe
dessem, pelo menos, permissão para seguir para o estágio
de investigação. Se eles a mandarem desistir, sabem muito
bem que todos vão falar que estão com medo de ir atrás de
uma figura mais poderosa.
— Isso é uma tática grosseira de difamação — falou Ruth.
Ela estava usando calça legging e outro dos seus suéteres
disformes. Seus pés descalços estavam enfiados debaixo
das pernas no sofá, suas costas, viradas para o marido.
Lang deu de ombros.
— É política.
— É exatamente isso que quero dizer — falou Kroll. — É
melhor tratá-lo como um problema político, e não legal.
Ruth disse:
— Precisamos levar a público a nossa versão do que
aconteceu. Recusar-se a comentar já não é suficiente.
Reconheci minha chance.
— John Maddox... — comecei a falar.
— Sim — disse Kroll, cortando-me —, eu falei com John, e
ele tem razão. Agora precisamos contar essa história tintim
por tintim nas memórias; é o veículo perfeito para a sua
resposta, Adam. Eles estão muito empolgados.
— Tudo bem — disse Lang.
— Assim que possível, o senhor precisa se sentar com o
nosso amigo aqui — percebi que Kroll tinha esquecido meu
nome — e repassar tudo nos mínimos detalhes. Porém,
antes precisa se certificar de que tem o meu sinal verde
para tudo. O teste que precisamos fazer é imaginar como
cada palavra soaria se fosse lida com o senhor sentado no
banco dos réus.
— Por quê? — disse Ruth. — Pensei que você tinha dito
que tudo isso não daria em nada.
— E não vai dar — disse Kroll com brandura —,
principalmente se tivermos o cuidado de não lhes dar mais
munição.
— Dessa forma, conseguimos apresentar a questão do
nosso jeito — disse Lang. — E, toda vez que alguém me
perguntar, posso mandar a pessoa recorrer ao relato nas
minhas memórias. Quem sabe? Pode até ajudar a vender
alguns exemplares. — Ele olhou em volta. Todos sorrimos. —
Certo — disse —, vamos voltar para o presente. Pelo que
exatamente estou propenso a ser investigado?
Kroll gesticulou para Encarnación.
— Oito crimes contra a humanidade — disse ela
cautelosamente —, ou crimes de guerra.
Fez-se um silêncio. É estranho o efeito que palavras
como estas pode ter. Talvez fosse o fato de ter sido ela
quem as disse: ela parecia muito inocente. Paramos de
sorrir.
— Inacreditável — disse Ruth, por fim —, igualar o que
Adam fez ou deixou de fazer com os nazistas.
— É exatamente por isso que os Estados Unidos não
reconhecem o tribunal — disse Kroll. Ele balançou o dedo. —
Nós avisamos ao senhor o que aconteceria. Um tribunal
internacional para crimes de guerra parece, a princípio, algo
muito nobre. Porém, se você for atrás daqueles maníacos
homicidas do Terceiro Mundo, cedo ou tarde o Terceiro
Mundo virá atrás de você; se não fosse assim, pareceria
discriminação. Eles matam 3 mil dos nossos, nós matamos
um deles e, de repente, somos todos criminosos de guerra.
É o pior tipo de equivalência moral. Bem, eles não têm
como arrastar a América até a sua corte fajuta, então quem
vão arrastar? É óbvio: nosso aliado mais próximo, o senhor.
É como eu digo, não é uma questão legal, é política.
— Deve ser exatamente esse o seu argumento, Adam —
disse Amelia, escrevendo algo no seu caderno preto e
vermelho.
— Não se preocupe — disse ele, fechando a cara. — Vai
ser.
— Continue, Connie — disse Kroll. — Vamos ouvir o resto.
— O que não nos permite ter certeza de qual caminho
eles vão tomar a essa altura é que a tortura é considerada
ilegal tanto pelo Artigo 7 do Estatuto de Roma, de 1998, sob
o título de crimes contra a humanidade, quanto pelo Artigo
8, referente aos crimes de guerra. O Artigo 8 também
categoriza como crime de guerra — ela consultou seu
laptop — “Privação intencional de um prisioneiro de guerra
ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um
julgamento justo e imparcial” e “deportação ou
transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade”.
Prima facie, senhor, eles poderiam acusá-lo tanto sob o
Artigo 7 quanto sob o 8.
— Mas eu não ordenei que ninguém fosse torturado! —
disse Lang. Ele soava incrédulo, horrorizado. — E não privei
ninguém de um julgamento justo, nem aprisionei ninguém
ilegalmente. Talvez, talvez, eles pudessem fazer esse tipo
de acusação contra os Estados Unidos, mas não contra a
Grã-Bretanha.
— Isso é verdade, senhor — concordou Encarnación. —
No entanto, o Artigo 25, que se refere à responsabilidade
criminosa individual, afirma que — e novamente seus olhos
negros e frios se voltaram para a tela do computador —
“será considerado criminalmente responsável e poderá ser
punido pela prática de um crime da competência do Tribunal
quem, com o propósito de facilitar a prática desse crime, for
cúmplice, encobridor ou colaborar de algum modo na
prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente
pelo fornecimento dos meios para a sua prática”.
— Isso é bem abrangente — falou Lang, baixinho.
— É um absurdo, isso sim — atalhou Kroll. — Significa
que se a CIA manda um suspeito para algum lugar para ser
interrogado em um avião particular, os donos do avião são
tecnicamente culpados de facilitar um crime contra a
humanidade.
— Mas, legalmente... — começou a falar Lang.
— Não é uma questão legal, Adam — disse Kroll, com um
quê de irritação —, é política.
— Não, Sid — disse Ruth. Ela estava muito concentrada,
franzindo as sobrancelhas para o carpete e balançando
enfaticamente a cabeça. — É legal também. As duas coisas
são inseparáveis. O trecho que a jovem acabou de ler
esclarece perfeitamente por que os juízes terão de permitir
uma investigação, porque Richard Rycart apresentou provas
documentais que sugerem que Adam fez, de fato, todas
essas coisas: colaborou, foi cúmplice e facilitou. — Ela
ergueu os olhos. — É uma situação de risco penal; não é
assim que vocês chamam? E que leva a uma situação
inescapável de risco político. Porque, no fim das contas,
será apenas uma questão de opinião pública, e nós já
somos bastante impopulares no nosso país sem isso.
— Bem, se serve de algum consolo, Adam certamente
não está em risco enquanto continuar aqui, entre amigos.
O vidro blindado tremeu um pouco. O helicóptero estava
vindo novamente para olhar mais de perto. A luz do seu
holofote invadiu a sala. Porém, na tela da TV, tudo o que
aparecia na janela panorâmica era um reflexo do mar.
— Espere um minuto — disse Lang, levando a mão à
cabeça e agarrando os cabelos, como se percebesse a
situação pela primeira vez. — Você está dizendo que eu não
posso sair dos Estados Unidos?
— Josh — disse Kroll, assentindo para seu outro
assistente.
— Senhor — falou Josh com gravidade —, se me permite,
gostaria de ler o começo do Artigo 58, referente aos
mandados de detenção. — Ele fixou seu olhar solene em
Adam Lang. — “A todo o momento após a abertura do
inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do
procurador, emitir um mandado de detenção contra uma
pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras
informações submetidas pelo procurador, considerar que
existem motivos suficientes para crer que essa pessoa
cometeu um crime da competência do Tribunal; e a
detenção dessa pessoa se mostra necessária para garantir o
seu comparecimento em tribunal.”
— Meu Deus — disse Lang. — O que são “motivos
suficientes”?
— Não vai acontecer — disse Kroll.
— Você fica falando isso — disse Ruth, irritada —, mas
poderia acontecer, sim.
— Não vai, mas poderia — disse Kroll, espalmando as
mãos. — Essas duas afirmações são incompatíveis. — Ele se
permitiu um de seus sorrisos íntimos e voltou-se para Lang.
— Mesmo assim, como seu advogado, até que isso tudo
esteja resolvido, sugiro enfaticamente que o senhor não
viaje para nenhum país que reconheça a competência do
Tribunal Penal Internacional. Bastaria apenas que dois
desses juízes decidissem impressionar a turma dos direitos
humanos e expedissem um mandado, e o senhor poderia
ser preso.
— Mas praticamente todos os países do mundo
reconhecem o TPI — disse Lang.
— Os Estados Unidos não.
— E quem mais?
— O Iraque — disse Josh. — China, Coreia do Norte,
Indonésia.
Esperamos que Josh continuasse; ele parou por ali.
— Só isso? — disse Lang. — Todos os outros o
reconhecem?
— Não, senhor. Israel, não. E alguns dos piores regimes
da África.
Amelia falou:
— Acho que tem alguma coisa acontecendo.
Ela apontou o controle para a televisão.

E então assistimos à procuradora-geral espanhola — toda


cabeleira preta e batom vermelho berrante, tão glamourosa
quanto uma estrela de cinema sob o espocar prateado dos
flashes das câmeras — anunciar que havia recebido
permissão naquela manhã para investigar o ex-primeiro-
ministro, Adam Peter Benet Lang, sob os Artigos 7 e 8 do
Estatuto de Roma, de 1998, do Tribunal Penal Internacional.
Ou melhor, os demais assistiram à procuradora, e eu
observava Lang. “AL — concentração intensa”, escrevi no
meu bloquinho, fingindo estar anotando as palavras da
procuradora-geral, enquanto, na verdade, analisava meu
cliente em busca de algum insight que pudesse usar
posteriormente. “Estende a mão para R: ela não
corresponde. Olha para ela. Solitário, confuso. Retrai a mão.
Olha de volta para a tela. Balança a cabeça. PG diz: ‘Terá
sido este um incidente isolado ou parte de um padrão
sistemático de comportamento criminoso?’ — AL se
encolhe. Furioso. PG: ‘A justiça deve ser a mesma para ricos
e pobres, poderosos e fracos.’ AL grita para a tela: ‘E quanto
aos terroristas?’”
Jamais havia visto um dos meus autores vivenciar uma
crise verdadeira antes e, examinando Lang, aos poucos
comecei a perceber que minha pergunta genérica favorita
— “Qual foi a sensação?”— era, na verdade, uma
ferramenta grosseira e quase inútil de tão vaga. No decorrer
daqueles poucos minutos, à medida que os procedimentos
legais eram explicados, uma rápida sucessão de emoções
atravessou o rosto duro de Lang, tão fugazes quanto
sombras de nuvens passando por uma colina na primavera
— espanto, fúria, mágoa, desprezo, medo, vergonha... Como
desembaraçá-las? E se mesmo naquele momento ele não
sabia exatamente como estava se sentindo, como esperar
que soubesse dali a dez anos? Até sua reação naquele
instante eu teria de produzir para ele. Teria de simplificá-la
para torná-la plausível. Teria de recorrer à minha própria
imaginação. De certa forma, teria de mentir.
A procuradora-geral terminou sua declaração, respondeu
brevemente a duas perguntas gritadas da plateia, depois
deixou o pódio. Na metade do salão, parou para posar para
as câmeras novamente, e houve outra nevasca fosforosa
quando, antes de ir embora, ela se virou para ofertar ao
mundo seu magnífico perfil aquilino. A tela voltou para o
plano aéreo da casa de Rhinehart, no seu cenário de
floresta, lago e oceano, enquanto o mundo esperava Lang
aparecer.
Amelia diminui o volume. No andar de baixo, os telefones
começaram a tocar.
— Bem — disse Kroll, quebrando o silêncio —, não teve
nada ali que não estivéssemos esperando.
— É — falou Ruth. — Parabéns.
Kroll fingiu não ter ouvido.
— Deveríamos levá-lo para Washington, Adam,
imediatamente. Meu avião está esperando no aeroporto.
Lang ainda olhava para a tela.
— Quando Marty disse que eu poderia usar a casa de
veraneio dele, não percebi como esse lugar é isolado. Nunca
deveríamos ter vindo para cá. Agora, parece que estamos
nos escondendo.
— É exatamente o que acho. O senhor não pode ficar
simplesmente entocado aqui, pelo menos não agora. Dei
alguns telefonemas. Posso marcar um encontro para a hora
do almoço com o líder da maioria na Câmara e uma sessão
de fotos com o secretário de Estado à tarde.
Lang finalmente afastou os olhos da televisão.
— Não sei se quero fazer tudo isso. Pode parecer que
estou ficando desesperado.
— Não, não vai parecer. Já falei com eles. Estão torcendo
pelo senhor: querem fazer tudo o que estiver ao seu
alcance. Os dois dirão que os encontros já estavam
marcados há semanas, para conversar sobre a Fundação
Adam Lang.
— Mas isso soa falso, você não acha? — Lang franziu o
cenho. — Qual seria o assunto da conversa?
— Quem se importa? Aids. Pobreza. Mudanças climáticas.
Paz no Oriente Médio. África. Tanto faz. A mensagem é a
seguinte: estamos fazendo negócios como sempre, tenho
minha agenda, são coisas importantes, e não vou deixá-las
de lado por causa desses palhaços que fingem ser juízes em
Haia.
— E quanto à segurança? — perguntou Amelia.
— O Serviço Secreto vai cuidar dela. Vamos tapar os
buracos na agenda no caminho. A cidade inteira vai ficar do
seu lado. Estou esperando uma resposta do vice-presidente,
mas esta vai ser uma reunião particular.
— E a imprensa? — perguntou Lang. — Precisamos
responder logo.
— No caminho para o aeroporto, pararemos para dizer
algumas palavras. Posso fazer uma declaração, se o senhor
quiser. Tudo o que precisa fazer é ficar do meu lado.
— Não — disse Lang com firmeza. — Não. De forma
alguma. Isso, sim, vai me fazer parecer culpado. Tenho de
falar com eles eu mesmo. Ruth, o que você acha de irmos
para Washington?
— Acho uma péssima ideia. Sid, me desculpe, sei que
você está trabalhando duro por nós, mas precisamos
considerar o impacto disso na Inglaterra. Se Adam for para
Washington, ele vai ficar parecendo o bode expiatório da
América, correndo para chorar no colo do papai.
— Então o que você faria?
— Voltaria para Londres. — Kroll começou a se opor, mas
Ruth passou por cima dele. — Os ingleses podem não gostar
muito dele no momento, mas se tem algo que eles odeiam
mais do que Adam são estrangeiros intrometidos lhes
dizendo o que fazer. O governo será obrigado a apoiá-lo.
— O governo britânico vai cooperar plenamente com a
investigação — disse Amelia.
— É mesmo? — disse Ruth, com uma voz tão doce
quanto cianureto. — E o que faz você pensar isso?
— Não estou pensando, Ruth, estou lendo. Está na
televisão. Olhe.
Nós olhamos. A manchete corria na parte inferior da tela:
ÚLTIMAS NOTÍCIAS: GOV. BRITÂNICO “VAI COOPERAR PLENAMENTE”
COM INVESTIGAÇÃO DE CRIMES DE GUERRA.
— Como ousam fazer isso? — exclamou Ruth. — Depois
de tudo que você fez por eles.
— Com todo o respeito, senhora — disse Josh —, como
signatário do TPI, o governo britânico não tem escolha. Eles
são obrigados pela lei internacional a “cooperar
plenamente”. Essas são as exatas palavras do Artigo 86.
— E se eventualmente o TPI decidir me prender? —
perguntou Lang calmamente. — O governo britânico
também vai “cooperar plenamente” com isso?
Josh já havia encontrado a parte referente àquilo no seu
laptop.
— Isto está especificado no Artigo 59, senhor. “O Estado
Parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de
detenção e entrega adotará imediatamente as medidas
necessárias para proceder à detenção.”
— Bem, acho que isso resolve a questão — disse Lang. —
Vamos para Washington.
Ruth cruzou os braços. O gesto me fez lembrar de Kate:
um sinal de tempestade a caminho.
— Ainda acho que isso vai pegar mal — disse ela.
— Não tanto quanto sair do Heathrow algemado para a
prisão.
— Pelo menos mostraria que você tem alguma coragem.
— Então, por que você não pega o avião de volta sem
mim? — estourou Lang. Como na sua explosão da tarde
anterior, o mais impressionante não foi nem tanto a
demonstração de impaciência, mas a maneira repentina
como ela surgiu. — Se o governo britânico quer me entregar
para essa corte de araque, então eles que se fodam! Eu vou
para onde as pessoas me queiram. Amelia, diga aos rapazes
que vamos partir em cinco minutos. Mande uma das
meninas fazer uma mala para mim, só para uma noite. E é
melhor você fazer as malas, também.
— Oh, mas por que vocês não dividem uma mala só? —
disse Ruth. — Seria muito mais conveniente.
Depois daquilo, o próprio ar pareceu congelar. Até o
sorrisinho de Kroll congelou nas pontas. Amelia hesitou,
então alisou a blusa com nervosismo, pegou seu caderno e
levantou-se com um chiado de seda. Enquanto atravessava
a sala em direção às escadas, não desgrudou o olhar do
caminho à sua frente. Seu pescoço estava corado em um
tom bonito de rosa, seus lábios, apertados. Ruth esperou
que ela saísse, então desenrascou lentamente os pés de
debaixo de si e calçou seus sapatos lisos, de sola de
madeira, cuidadosamente. Ela também saiu sem dizer
palavra. Trinta segundos depois, uma porta bateu no andar
de baixo.
Lang encolheu-se e suspirou. Ele se levantou, pegou o
paletó que estava nas costas da cadeira e vestiu-o,
balançando os ombros. Foi o sinal para todos nos
mexermos. Os assistentes fecharam seus laptops. Kroll
levantou-se e espreguiçou, esticando bastante os dedos: ele
me lembrou um gato, arqueando as costas e mostrando
brevemente as garras. Guardei meu bloco de anotações.
— Até amanhã — disse Lang, estendendo a mão para
mim. — Fique à vontade. Sinto muito por ter de abandoná-
lo. Pelo menos toda essa cobertura deve aumentar as
vendas.
— É verdade — falei. Procurei algo para dizer que
pudesse deixar o clima menos pesado. — Talvez o
departamento de publicidade de Rhinehart tenha armado
tudo isso.
— Bem, então peça para eles pararem, sim? — Ele sorriu,
mas seus olhos pareciam feridos e inchados.
— O que o senhor vai dizer a imprensa? — perguntou
Kroll, colocando um braço em volta dos ombros de Lang.
— Não sei. Vamos conversar sobre isso no carro.
Enquanto Lang se virava para ir embora, Kroll deu uma
piscadela para mim.
— Bom trabalho — disse ele.
Nove

E se eles mentirem para você? “Mentira” é provavelmente


uma palavra forte demais. A maioria de nós tende a enfeitar
as próprias memórias para que elas nos mostrem como
gostaríamos que o mundo nos visse.

Ghostwriting

Eu poderia ter descido para acompanhá-los até a saída. Em


vez disso, fiquei assistindo à partida pela televisão. Sempre
digo que não há nada melhor do que se sentar diante da
tela da TV se você quiser vivenciar algo de forma autêntica,
em primeira mão. Por exemplo, é curioso como planos
aéreos de helicópteros conferem até às atividades mais
inocentes um ar perigoso de criminalidade. Quando Jeff, o
chofer, manobrou o Jaguar até a entrada da casa e deixou o
motor ligado, o mundo inteiro teve a impressão de que ele
estava organizando a fuga de um bando de mafiosos pouco
antes da chegada da polícia. No ar frio da Nova Inglaterra, o
carrão parecia flutuar em um mar de fumaça de cano de
descarga.
Tive a mesma sensação de vertigem que havia
experimentado no dia anterior, quando a declaração de
Lang começou a voltar para mim do nada. Na televisão, vi
um dos agentes das Forças Especiais abrir a porta traseira
do lado do carona e ficar parado, segurando-a aberta,
enquanto, no fim do corredor, ouvia Lang e os demais se
preparando para partir.
— Tudo certo, pessoal? — flutuou a voz de Kroll escadaria
acima. — Todo mundo pronto? Certo. Lembrem-se, caras
alegres. Vamos.
A porta da frente se abriu e, logo em seguida, vislumbrei
na tela o topo da cabeça do ex-primeiro-ministro, à medida
que ele, apressado, dava os poucos passos até o carro.
Então ele desapareceu, mergulhando no Jaguar, enquanto
seu advogado vinha depressa atrás dele, dando a volta até
o outro lado do carro. Na parte inferior da tela, aparecia o
texto: ADAM LANG DEIXA CASA EM MARTHA’S VINEYARD. Essa
garotada da transmissão via satélite pode saber de tudo,
pensei, mas nunca ouviu falar em tautologia.
Atrás deles, a equipe desaguou da casa em uma fila
única e apressada e seguiu em direção à minivan. Amelia a
liderava, segurando o cabelo louro imaculado para protegê-
lo da corrente de ar que as hélices mandavam para baixo;
depois dela, vinham as secretárias, seguidas pelos
assistentes de Kroll e, finalmente, por dois guarda-costas.
Os vultos longos e escuros dos carros, com os faróis
brilhando, saíram do complexo e pegaram o caminho
cinzento de carvalhos americanos em direção a autoestrada
de West Tisbury. O helicóptero os acompanhou, soprando
em espiral algumas poucas folhas de inverno e achatando a
grama esparsa. Pouco a pouco, pela primeira vez naquela
manhã, à medida que o barulho das hélices se afastava,
algo parecido com paz retornou a casa. Era como se o olho
de uma grande tempestade elétrica finalmente tivesse
passado. Perguntei-me onde Ruth estaria, e se ela também
estaria assistindo à cobertura. Levantei-me, parei no topo
da escada e fiquei ouvindo por um instante, mas o silêncio
era total e, quando retornei à televisão, a cobertura tinha
sido transferida do ar para o solo, e a limusine de Lang saía
da floresta.
Um número muito maior de policiais tinha chegado ao
fim da pista, cortesia do estado de Massachusetts, e um
cordão deles mantinha os manifestantes seguramente
encurralados do outro lado da autoestrada. Por um instante,
o Jaguar pareceu estar acelerando em direção ao aeroporto,
mas então as luzes de freio brilharam e ele parou. A minivan
deu uma guinada e estacionou atrás dele. E, de repente, lá
estava Lang, sem agasalho, aparentemente tão indiferente
ao frio quanto estava à multidão que cantava, caminhado
em direção às câmeras, seguido por dois agentes das
Forças Especiais. Procurei pelo controle remoto na poltrona
em que Amelia se sentara — ainda dava para sentir seu
perfume no couro —, apontei-o para a tela e aumentei o
volume.
— Peço desculpas por tê-los deixado tanto tempo
esperando no frio — começou Lang. — Queria apenas dizer
algumas palavras em resposta às notícias de Haia.
Ele fez uma pausa e olhou para o chão. Sempre fazia
aquilo. Seria algo genuíno ou meramente artificial, para dar
a impressão de espontaneidade? Em se tratando dele, era
impossível saber. Ouvia-se com clareza o coro de “Lang!
Lang! Lang! Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!” ao fundo.
— Vivemos em uma época estranha — disse ele,
hesitando novamente —, uma época estranha — e então
finalmente olhou para cima —, em que aqueles que sempre
defenderam a liberdade, a paz e a justiça são acusados de
serem criminosos, enquanto aqueles que incitam
abertamente o ódio, glorificam a matança e buscam a
destruição da democracia são tratados pela justiça como se
eles fossem as vítimas.
— Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!
— Como disse na minha declaração de ontem, sempre fui
um grande defensor do Tribunal Penal Internacional.
Acredito no trabalho dele. Acredito na integridade de seus
juízes. E é por isso que não temo esta investigação. Porque
sei, no meu íntimo, que não fiz nada de errado.
Ele lançou um olhar para os manifestantes. Pela primeira
vez, pareceu notar os cartazes que as pessoas balançavam:
seu rosto, as barras de prisão, o macacão laranja, as mãos
cheias de sangue. A linha de sua boca endureceu.
— Recuso-me a ser intimidado — disse ele, empinando o
queixo. — Recuso-me a ser um bode expiatório. Recuso-me
a ser afastado do meu trabalho no combate a Aids, à
pobreza e ao aquecimento global. Por este motivo, pretendo
viajar agora para Washington para dar prosseguimento à
minha agenda conforme planejado. Para todos os que
estiverem me assistindo no Reino Unido e em todo o
mundo, quero deixar uma coisa bem clara. Enquanto tiver
forças, lutarei contra o terrorismo onde quer que ele precise
ser combatido, seja no campo de batalha ou, se necessário,
nos tribunais. Obrigado.
Ignorando as perguntas que lhe eram gritadas —
“Quando voltará para a Inglaterra, Sr. Lang?” “O senhor
apoia a tortura, Sr. Lang?” —, ele deu as costas e saiu
andando, os músculos de seus ombros largos flexionando-se
debaixo do terno sob medida e seu trio de guarda-costas
formando um leque atrás de si. Uma semana atrás, eu teria
ficado impressionado, como havia ficado com seu discurso
em Nova York depois do ataque suicida em Londres, porém,
naquele instante, fiquei surpreso diante da minha
impassibilidade. Era como assistir a um grande ator na
última fase da sua carreira, emocionalmente esgotado, sem
nada mais a recorrer além da técnica.
Esperei até ele voltar para a segurança do seu casulo à
prova de gás e bombas e então desliguei a televisão.

Com Lang e os demais fora dali, a casa parecia não só


vazia, como desolada, destituída de propósito. Desci as
escadas e passei pelos mostruários iluminados de erotismo
tribal. A poltrona diante da porta, em que um dos guarda-
costas sempre se sentava, estava vazia. Refiz meus passos
e desci o corredor até o escritório das secretárias. A sala
pequena, geralmente muito bem arrumada, parecia ter sido
abandonada em um momento de pânico, como a sala de
criptografia de uma embaixada estrangeira em uma cidade
rendida. Havia uma profusão de papéis, discos rígidos e
edições antigas do Hansard e do Congressional Record
espalhados pela mesa. Lembrei-me de que não tinha uma
cópia do manuscrito de Lang para trabalhar, mas quando
tentei abrir o fichário, ele estava trancado. Ao seu lado, um
cesto cheio de lixo do fragmentador de papel transbordava.
Olhei para dentro da cozinha. Uma fileira de facas de
açougueiro estava disposta sobre uma tábua de corte; havia
sangue fresco em algumas das lâminas.
— Olá — falei, hesitante, passando a cabeça pela porta
da despensa e olhando em volta, mas a governanta não
estava lá.
Não fazia ideia de qual era o meu quarto, de modo que
minha única opção era descer o corredor e experimentar
uma porta depois da outra. A primeira estava trancada. A
segunda estava aberta, o quarto atrás dela exalando um
cheiro opulento e doce de loção pós-barba forte; um training
estava jogado sobre a cama: obviamente aquele era o
quarto usado pelas Forças Especiais durante o turno da
noite. A terceira porta estava trancada e, quando eu estava
prestes a experimentar a quarta, ouvi o som de uma mulher
chorando. Pude perceber que era Ruth: até mesmo seus
soluços soavam combativos. Existem apenas seis quartos
na casa principal, dissera Amelia. Adam e Ruth têm dois
separados. Que situação, pensei, enquanto me afastava: o
ex-primeiro-ministro e sua mulher dormindo em quartos
separados, com a amante dele no mesmo corredor. Era uma
coisa quase francesa.
Delicadamente, experimentei a maçaneta do quarto
seguinte. Aquele não estava trancado, e o cheiro de roupa
usada e sabonete de lavanda, mais até do que a visão da
minha velha mala, deixou imediatamente claro que aquele
era o antigo aposento de McAra. Entrei e fechei a porta com
muito cuidado. O grande armário espelhado cobria toda a
parede que separava o meu quarto do de Ruth, e quando
abri uma pequena fresta da porta de vidro, consegui ouvir,
ao longe, seu choro abafado. A porta rangeu sobre as
corrediças, e acho que ela ouviu, pois os soluços pararam
de repente, e eu a imaginei assustada, levantando a cabeça
do travesseiro úmido e olhando para a parede. Afastei-me.
Na cama, notei que alguém havia colocado uma caixa de
papel A4, tão cheia que a tampa não encaixava direito. Um
Post-it amarelo dizia: “Boa sorte! Amelia.” Sentei-me na
colcha e levantei a tampa. “MEMÓRIAS”, proclamava a página
título, “de Adam Lang”. Então ela não havia se esquecido de
mim, afinal, apesar das circunstâncias absolutamente
embaraçosas da sua partida. Você poderia dizer o que
quisesse da Sra. Bly, mas a mulher era uma profissional.
Percebi que me encontrava em um ponto decisivo. Ou eu
continuava às margens daquele projeto claudicante,
esperando pateticamente que em algum momento
aparecesse alguém para me ajudar, ou — e senti minha
coluna se empertigar ao considerar esta alternativa — ou eu
assumia as rédeas dele, tentava transformar aquelas 621
páginas inomináveis em algo publicável, pegava meus 250
mil e partia para um mês numa praia em algum lugar até
ter esquecido completamente os Lang.
Pensando nestes termos, nem era uma questão de
escolha. Preparei-me para ignorar tanto os vestígios de
McAra remanescentes naquele quarto quanto a presença
mais corpórea de Ruth no quarto vizinho. Retirei o
manuscrito da caixa e coloquei-o na mesa que ficava perto
da janela, abri minha bolsa e retirei o laptop e as
transcrições das entrevistas do dia anterior. Não havia
muito espaço para trabalhar, mas isto não me importava.
De todas as atividades humanas, escrever é a mais fácil de
se encontrar desculpas para não começar: quando a mesa
não é muito grande, ela é muito pequena; quando o lugar
não é muito barulhento, é muito silencioso; quando não está
muito calor, está muito frio; quando não está muito cedo,
está muito tarde. Aprendi com o tempo a ignorar todos
esses motivos e simplesmente começar. Liguei meu laptop,
acendi a luminária e contemplei a tela em branco e o cursor
pulsante.
Um livro não escrito é um delicioso universo de
possibilidades infinitas. No entanto, basta você colocar uma
palavra no papel para ele se tornar imediatamente algo
concreto. Se colocar uma frase, já é meio caminho andado
para ele ficar igual a qualquer porcaria de livro já escrito.
Porém, nunca devemos permitir que os melhores expulsem
os bons da pista. Na falta de genialidade, há sempre o
talento. Pode-se ao menos tentar escrever algo que prenda
a atenção do leitor — que o estimule, depois de ler o
primeiro parágrafo, a dar uma olhada no segundo, e depois
no terceiro. Peguei o manuscrito de McAra para me recordar
como não se deve começar uma autobiografia de 10
milhões de dólares:

Capítulo Um

Juventude

Minha família, os Lang, é originária da Escócia e se


orgulha disso. Nosso nome deriva de “long”, que
significava alto em inglês arcaico, e meus antepassados
vieram do norte da fronteira. Foi no século XVI que o
primeiro dos Lang...

Deus que me livre! Risquei aquilo com minha caneta e


passei uma linha azul grossa em zigue-zague por todos os
parágrafos subsequentes sobre a história dos antigos Lang.
Se você quer uma árvore genealógica, vá até uma loja de
jardinagem — é o que digo aos meus clientes. Só você se
interessa por isso. A instrução de Maddox era começar o
livro com as alegações de crimes de guerra, e por mim tudo
bem, embora aquilo só pudesse servir como uma espécie de
prólogo alongado. Em algum momento, as memórias
propriamente ditas teriam de começar, e, para tanto, eu
queria encontrar um tom estimulante, original — algo que
fizesse Lang parecer um ser humano normal. O fato de ele
não ser um ser humano normal era completamente
irrelevante.
Do quarto de Ruth Lang, veio o som de passos, e então
da porta sendo aberta e fechada. A princípio, pensei que
talvez ela viesse investigar quem estava se movimentando
no quarto ao lado, mas, em vez disso, eu a ouvi se
afastando. Larguei o manuscrito de McAra e voltei minha
atenção para as transcrições das entrevistas. Sabia o que
queria. Estava lá na nossa primeira sessão:

Lembro que era uma tarde chuvosa de domingo. Eu


ainda estava na cama. E eis que alguém começou a
bater na porta...

Se eu desse uma ajeitada na gramática, o relato de como


Ruth tinha pedido votos a Lang para as eleições locais,
atraindo-o dessa forma para a política, daria um começo
perfeito. Ainda assim, McAra, com sua habitual surdez para
qualquer coisa de interesse humano, não havia nem
mencionado aquilo. Pousei meus dedos sobre as teclas do
laptop e comecei a digitar:

Capítulo Um

Juventude

Entrei para a política por amor. Não por um partido ou


ideologia em especial, mas por uma mulher que veio
bater à minha porta em uma tarde chuvosa de
domingo...

Você pode alegar que era um começo piegas, mas não se


esqueça de que (a) pieguice vende como água, (b) eu só
tinha duas semanas para reelaborar o manuscrito inteiro e
(c) aquilo era muito melhor do que começar com as origens
do nome Lang. Logo estava espancando o teclado com toda
a rapidez que meu estilo “cata-milho” permitia:

Ela estava ensopada pela chuva, mas nem parecia notar.


Em vez disso, iniciou um discurso apaixonado sobre as
eleições locais. Até aquele momento, envergonho-me de
dizer, eu nem sequer sabia que elas estavam
acontecendo, mas tive o bom senso de fingir que sabia...

Ergui os olhos. Pela janela, pude ver Ruth marchando


com determinação através das dunas, contra o vento, em
outra de suas caminhadas meditativas e solitárias, tendo
apenas o guarda-costas que a seguia como companhia.
Fiquei observando-a até ela sumir de vista, então voltei ao
meu trabalho.

Continuei por mais algum tempo, até cerca de uma da


tarde, então ouvi alguém bater muito de leve, com a ponta
dos dedos, na madeira. Pulei de susto.
— Senhor? — veio uma voz tímida de mulher. — O senhor
quer almoçar?
Abri a porta e me deparei com Dep, a governanta
vietnamita, com seu uniforme de seda preto. Tinha uns 50
anos e era do tamanho de um passarinho. Tive a impressão
de que, se espirrasse, poderia fazê-la voar de uma ponta à
outra da casa.
— Seria ótimo. Obrigado.
— Aqui ou na cozinha?
— Na cozinha está bem.
Depois que ela foi embora, arrastando seus chinelos pelo
chão, voltei-me para olhar para o meu quarto. Sabia que
não podia mais adiar. Faça como quando precisa escrever,
disse a mim mesmo: meta a cara. Abri o zíper da minha
mala e coloqueia-a sobre a cama. Então, respirando fundo,
arrastei as portas do armário e comecei a retirar as roupas
dos cabides, empilhando-as sobre meu braço — camisas
baratas, paletós comprados prontos, calças de loja de
departamento e o tipo de gravatas que você encontra em
aeroportos: nada feito sob medida no seu armário, não é,
Mike? Ele era um homem grande, percebi, quando senti
todos aqueles colarinhos tamanho gigante e cintos
enormes. E, é claro, foi exatamente como eu temia: a
sensação do tecido estranho — e até mesmo o barulho que
os cabides de metal faziam contra a haste cromada — foi
suficiente para penetrar a barreira de um quarto de século
de defesas cuidadosamente erguidas e prontamente me
atirar de volta ao quarto dos meus pais, o qual tive de criar
coragem para limpar sozinho três meses depois do funeral
de minha mãe.
São os objetos pessoais dos mortos que sempre mexem
comigo. Tem alguma coisa mais triste do que os entulhos
que eles deixam para trás? Quem disse que o amor é o
nosso único legado? O legado de McAra era um monte de
coisas. Amontoei tudo na poltrona, depois alcancei a
prateleira sobre o cabideiro para puxar sua mala para baixo.
Eu havia imaginado que estivesse vazia, mas quando
agarrei a alça, algo escorregou dentro dela. Ah, pensei.
Finalmente. O documento secreto.
A mala era enorme e feia, feita de plástico vermelho
modelado, grande demais para ser manejada com facilidade
e bateu no chão com um estrondo. Aquilo pareceu
reverberar por toda a casa silenciosa. Aguardei um instante,
então deitei cuidadosamente a mala no chão, ajoelhei-me
diante dela e pressionei as fivelas. Elas saltaram para cima
com um estalo alto e simultâneo.
Era o tipo de mala que já não era produzida havia mais
de uma década, exceto, talvez, nas regiões menos
modernas da Albânia. O revestimento interno era feito de
um plástico brilhoso com uma estampa horrível, do qual
pendiam elásticos franjados. O conteúdo consistia em um
envelope acolchoado endereçado ao Ilmo. Sr. McAra, aos
cuidados de uma caixa postal no porto de Vineyard. Uma
etiqueta no verso mostrava que ele tinha vindo do Arquivo
Adam Lang, em Cambridge, Inglaterra. Eu o abri e retirei um
punhado de fotografias e fotocópias, junto com um bilhete
com os cumprimentos da Dra. Julia Crawford-Jones, PhD,
Diretora.
Reconheci imediatamente uma das fotografias: Lang em
sua fantasia de frango, no grupo de teatro amador de
Cambridge no começo dos anos 1970. Havia mais uma
dúzia de fotos da peça mostrando o elenco inteiro; uma
série de fotografias de Lang remando, usando um chapéu
de palha e um blazer listrado; e três ou quatro dele em um
piquenique na beira de um rio, aparentemente tiradas no
mesmo dia que aquelas em que ele remava. As fotocópias
eram de vários programas do grupo de teatro e resenhas
teatrais de Cambridge, além de notícias do jornal local sobre
as eleições de maio de 1977 do Conselho da Grande
Londres e do cartão original de membro do partido de Lang.
Só me toquei que havia algo errado depois que vi a data no
cartão. Ele era de 1975.
Voltei a examinar o pacote com mais atenção depois
daquilo, a começar pelas matérias sobre a eleição. À
primeira vista, achei que elas fossem do Evening Standard,
de Londres, mas então notei que eram do jornal interno de
um partido político — o de Lang — e que ele, na verdade,
aparecia como cabo eleitoral em uma foto, em meio a um
grupo de pessoas. Era difícil discerni-lo na xerox mal tirada.
Seu cabelo estava longo. Suas roupas, surradas. Mas era
ele, sem dúvida, em uma equipe que batia de porta em
porta em um conjunto habitacional. “Cabo eleitoral: A.
Lang.”
Fiquei mais irritado do que qualquer outra coisa.
Certamente não achei estranho. Todos tendemos a
engrandecer nossa própria realidade. Começamos com uma
fantasia particular sobre nossa vida e talvez um dia, por
diversão, a transformamos em uma história. Nada de mal
nisso. Com o passar dos anos, a história é repetida com
tanta regularidade que passa a ser aceita como fato. Logo,
logo contradizer este fato passa a ser embaraçoso. Com o
tempo, provavelmente chegamos a acreditar que ele
sempre foi verdade. E por meio destes pequenos
acréscimos ao mito, como um recife de corais, o registro
histórico é formado. Compreendia como seria conveniente a
Lang fingir que só havia entrado para a política porque se
apaixonara por uma garota. Era-lhe lisonjeiro, pois fazia com
que parecesse menos ambicioso, e a ela também, pois fazia
com que parecesse mais influente do que provavelmente
era. O público gostava. Todos ficavam felizes. Mas aquilo
gerava um problema: o que eu devia fazer?
Não era um dilema raro na profissão de ghost-writer, e a
etiqueta nestes casos é simples: você informa o autor da
discrepância e deixa a decisão de como solucioná-la nas
mãos dele. O papel do colaborador é não insistir na verdade
absoluta: caso contrário, o peso morto da realidade faria
nossa parte da indústria editorial desmoronar. Da mesma
forma que um esteticista não diz às suas clientes que elas
têm rosto de sapo, um ghost-writer não esfrega na cara do
autor que metade das suas queridas lembranças são falsas.
Não imponha, sugira: este é o nosso lema. Obviamente,
McAra não respeitara essa regra sagrada. Deve ter
desconfiado do que estavam lhe contando, solicitou um
pacote com material de pesquisa dos arquivos e então
retirou a história mais caprichada do ex-primeiro-ministro
das suas memórias. Que amador! Posso imaginar quão bem
aquilo havia sido recebido. Certamente ajudava a explicar
por que as relações haviam se tornado tão tensas.
Voltei minha atenção para o material de Cambridge.
Havia um tipo estranho de inocência naquela jeunesse
dorée esmaecida, encalhada naquele vale perdido, porém
alegre, em algum lugar entre os picos culturais dos hippies
e dos punks. Espiritualmente, eles pareciam muito mais
próximos dos anos 1960 que dos 1970. As garotas usavam
vestidos longos de estampas floridas, com laços e decotes
cavados, e chapéus de palha grandes para se protegerem
do sol. Os cabelos dos homens eram quase tão longos
quanto os das mulheres. Na única foto colorida, Lang
segurava uma garrafa de champanhe em uma das mãos e o
que parecia bastante um baseado na outra; uma garota
parecia estar lhe dando morangos para comer, enquanto ao
fundo um homem sem camisa erguia o polegar.
A maior da série de fotografias mostrava um grupo de
oito jovens, sob a luz de um refletor, seus braços abertos,
como se tivessem acabado de terminar um sensacional
número cantado de dança em um cabaré. Lang estava no
canto direito, usando seu blazer listrado, uma gravata-
borboleta e um chapéu de palha. Havia duas garotas de
collant, meia arrastão e salto alto: uma de cabelo louro
curto, a outra de cabelo escuro encaracolado,
provavelmente ruiva (era impossível saber pela foto preto e
branco) — as duas bonitas. Reconheci os dois homens
afastados de Lang: um havia se tornado um comediante de
sucesso, o outro era um ator. Um outro homem parecia mais
velho que os demais: um pesquisador da pós-graduação,
talvez. Todos usavam luvas.
Havia uma etiqueta datilografada colada no verso,
listando os nomes dos atores e seus respectivos colleges: G.
W. Syme (Caius), W. K. Innes (Pembroke), A. Parke
(Newnham), P. Emmett (St. John’s), A. D. Martin (King’s), E.
D. Vaux (Christ’s), H. C. Martineau (Girton), A. P. Lang
(Jesus).
Havia um carimbo de copyright — Cambridge Evening
News — no canto inferior esquerdo e, escrito na diagonal ao
lado dele com uma caneta esferográfica, um número de
telefone, com o prefixo internacional da Inglaterra. Sem
dúvida McAra, sendo o infatigável farejador de fatos que
era, tinha ido atrás de um dos membros do elenco, e fiquei
me perguntado quem teria sido e se ele ou ela se lembrava
dos acontecimentos representados nas fotografias. Por puro
capricho, peguei meu celular e disquei o número.
Em vez do habitual tom de chamada em dois toques
inglês, ouvi o toque único e prolongado americano. Deixei
tocar bastante. Quando estava prestes a desistir, um
homem atendeu, cauteloso.
— Richard Rycart.
A voz, com seu sotaque ligeiramente colonial — Richard
Roicart —, era inconfundivelmente a do ex-secretário de
Relações Internacionais. Ele parecia desconfiado.
— Quem está falando? — perguntou.
Desliguei imediatamente. Na verdade, fiquei tão
alarmado que cheguei a atirar o telefone na cama. Ele ficou
quieto ali por cerca de trinta segundos e então começou a
tocar. Corri até ele e o agarrei — o número da chamada
estava aparecendo como “confidencial” —, desligando-o
rapidamente. Fiquei meio minuto sem me mexer, de tão
abalado.
Disse a mim mesmo para não tirar conclusões
apressadas. Não podia ter certeza de que McAra tinha
anotado o número ou mesmo ligado para ele. Conferi o
envelope para ver quando ele havia sido enviado. Tinha
deixado o Reino Unido no dia 3 de janeiro — nove dias antes
de McAra morrer.
De repente, pareceu-me de vital importância remover
qualquer vestígio que restasse do meu antecessor daquele
quarto. Às pressas, tirei suas últimas roupas do armário,
virando as gavetas de meias e cuecas dentro da sua mala
(lembro-me de que ele usava meias grossas que iam até os
joelhos e cuecas brancas largas: isso é que é ser
conservador). Não consegui encontrar nenhum papel
pessoal — nada de diário, agenda, cartas ou mesmo livros
— e supus que eles deviam ter sido levados pela polícia logo
depois de sua morte. Do banheiro, retirei seu aparelho de
barbear descartável azul, a escova de dente, o pente e todo
o resto, e então pronto: todos os objetos pessoais de
Michael McAra, ex-assistente do Excelentíssimo Adam Lang,
estavam enfiados em uma mala e prontos para serem
jogados no lixo. Arrastei-a até o corredor e depois até o
solário. Por mim, poderia ficar ali até o verão: desde que eu
não tivesse de vê-la novamente. Precisei de um instante
para recuperar o fôlego.
E, ainda assim, enquanto seguia de volta para o seu — o
meu — o nosso — quarto, eu podia sentir sua presença,
seguindo-me a passos largos, desajeitado.
— Caia fora, McAra — murmurei para mim mesmo. —
Caia fora e me deixe em paz para terminar este livro e
sumir daqui.
Enfiei as fotografias e as fotocópias de volta no envelope
original e olhei ao redor em busca de algum lugar para
escondê-lo, então parei e me perguntei por que deveria me
preocupar em fazer aquilo. Não era exatamente
confidencial. Não tinha nada a ver com crimes de guerra.
Era só um jovem, um ator estudantil, na margem
ensolarada de um rio, bebendo champanhe com os amigos
mais de trinta anos atrás. Poderia haver inúmeros motivos
para o telefone de Rycart estar no verso daquela foto.
Porém, ainda assim, de alguma forma a foto pedia para ser
escondida e, na falta de alguma outra ideia brilhante, me
envergonho de dizer que recorri ao clichê de erguer o
colchão e meter o envelope debaixo dele.
— Almoço, senhor — chamou Dep baixinho, do corredor.
Virei-me para trás. Não sabia ao certo se ela havia me visto,
mas também não sabia se aquilo importava: comparado ao
que ela devia ter testemunhado naquela casa nas poucas
semanas anteriores, meu próprio comportamento estranho
deve ter parecido café pequeno.
Eu a segui até a cozinha.
— A Sra. Lang está por aí? — perguntei.
— Não, senhor. Ela foi até o porto de Vineyard. Compras.
Ela havia preparado um sanduíche enorme, com três
fatias de pão. Sentei-me em um banco alto no balcão do
café da manhã e me forcei a comê-lo, enquanto ela
embrulhava algumas coisas em papel-alumínio e as
colocava de volta em uma das seis geladeiras de aço inox
de Rhinehart. Refleti sobre o que deveria fazer.
Normalmente, eu me obrigaria a voltar para a mesa e
continuar escrevendo a tarde inteira. Porém, pela primeira
vez na minha carreira de ghost-writer, eu estava sofrendo
de bloqueio de escritor. Havia desperdiçado metade da
manhã dando forma a uma lembrança charmosamente
íntima de um momento que não tinha acontecido — que
não poderia ter acontecido, pois Ruth Lang só havia
chegado a Londres para começar sua carreira em 1976,
época em que seu futuro marido já era membro do partido
havia um ano.
Mesmo a ideia de atacar a parte sobre Cambridge, que
antes eu havia considerado dinheiro fácil, agora me levava
a dar de cara com um muro em branco. Quem era ele,
aquele aspirante a ator despreocupado, caçador de garotas
e alérgico à política? O que o transformou de repente em
um ativista político, que ficava batendo perna em conjuntos
habitacionais, se não foi o fato de ter conhecido Ruth? Não
fazia sentido para mim. Foi então que percebi que tinha um
problema fundamental em relação ao nosso ex-primeiro-
ministro. Ele não era um personagem psicologicamente
verossímil. Em carne e osso, ou na tela da TV, interpretando
o papel de estadista, parecia ter uma personalidade forte.
Porém, de algum forma, quando você se sentava para
pensar a respeito dele, era como se ele desaparecesse. Isso
tornava meu trabalho quase impossível: ao contrário de
todos os malucos do show business e do esporte com os
quais eu havia trabalhado no passado, em se tratando de
Lang, eu simplesmente não conseguia inventá-lo como
personagem.
Peguei meu celular e pensei em ligar para Rycart. Porém,
quanto mais eu pensava em como poderia ser aquela
conversa, mais relutava em iniciá-la. O que exatamente
deveria dizer? “Alô, o senhor não me conhece, mas substituí
Mike McAra como ghost-writer de Adam Lang. Acredito que
ele tenha falado com o senhor um ou dois dias antes de o
mar devolver seu cadáver na praia.” Coloquei o telefone de
volta no bolso e, de repente, não conseguia tirar da cabeça
a imagem do corpo pesado de McAra rolando para lá e para
cá na arrebentação. Ele bateu em alguma pedra ou foi parar
direto na areia macia? Qual era o nome do lugar em que ele
havia sido encontrado? Rick tinha mencionado quando
almoçamos no clube dele em Londres. Lambert alguma
coisa.
— Com licença, Dep — falei para a governanta.
Ela se desencurvou da frente da geladeira. Tinha um
rosto agradavelmente simpático.
— Senhor?
— Você saberia me dizer se tem algum mapa da ilha na
casa que eu possa pegar emprestado?
Dez

É perfeitamente possível escrever um livro para alguém


apenas ouvindo suas palavras; porém, uma pesquisa extra
geralmente ajuda a angariar mais material e ideias
descritivas.

Ghostwriting

Parecia ficar a uns 16 quilômetros de distância, na margem


noroeste do porto de Vineyard. Lambert’s Cove: esse era o
nome.
Havia um certo charme nos nomes das localidades que
cercavam aquela enseada: Blackwater Brook, Uncle Seth’s
Pond, Indian Hill, Old Herring Creek Road. Era como o mapa
de uma história infantil de aventura e, estranhamente, era
assim que eu concebia meu plano: como uma espécie de
divertida excursão. Dep sugeriu que eu pegasse uma
bicicleta emprestada — ah, sim, o Sr. Rhinehart mantinha
muitas, muitas bicicletas para o uso dos convidados —, e
havia algo naquela ideia que também me agradava, muito
embora fizesse anos que eu não andava de bicicleta e
soubesse, em um nível mais íntimo, que boa coisa não sairia
daquilo. Mais de três semanas haviam se passado desde
que o corpo fora recuperado. O que teria para se ver lá?
Porém, a curiosidade é um impulso humano poderoso — um
tanto mais fraco do que o sexo e a ganância, concordo, mas
bem mais forte do que o altruísmo —, e eu estava
simplesmente curioso.
O maior impedimento era o clima. A recepcionista do
hotel em Edgartown havia me avisado que a previsão era de
tempestade e, embora ela ainda não tivesse caído, o céu
estava começando a ceder com o seu peso, como um saco
cinza frágil prestes a se rasgar em dois. Porém, a tentação
de sair da casa por um tempo era esmagadora, e eu não
aguentaria voltar para o antigo quarto de McAra e me
sentar diante do computador. Peguei o casaco impermeável
de Lang que estava pendurado no vestiário e segui o
jardineiro Duc pela frente da casa até os cubículos de
madeira castigados pelo clima que serviam como anexos e
alojamentos para os empregados.
— Você deve ter de trabalhar duro aqui — falei — para
manter tudo tão bonito.
Duc não desgrudou os olhos do chão.
— Solo ruim. Vento ruim. Chuva ruim. Sal ruim. Merda.
Depois disso, não parecia haver muito mais o que dizer
sobre o assunto horticultura, de modo que fiquei calado.
Passamos pelos primeiros dois cubículos. Ele parou diante
do terceiro e destrancou as portas duplas grandes. Arrastou
uma delas para trás e nós entramos. Deveria haver uma
dúzia de bicicletas estacionadas em duas fileiras, mas meu
olhar foi direto para o utilitário esportivo Ford Escape cor de
canela que ocupava a outra metade da garagem. Ouvira
falar tanto dele — e o havia imaginado tantas vezes na
barca para cá — que era um choque e tanto encontrá-lo de
forma tão inesperada.
Duc me viu olhando para o carro.
— Quer emprestado? — perguntou.
— Não, não — falei rapidamente. Primeiro pegava o
trabalho de um homem morto, depois dormia na sua cama,
depois dirigia seu carro; onde aquilo ia parar? — Uma
bicicleta está ótimo. Vai me fazer bem.
O jardineiro assumiu uma expressão de profundo
ceticismo ao me observar partir, oscilando com insegurança
pelo caminho em uma das mountain bikes caras de
Rhinehart. Obviamente achava que eu estava louco, e
talvez estivesse mesmo — loucura insular, não é assim que
eles chamam? Ergui a mão para o agente das Forças
Especiais em sua pequena guarita de madeira meio
escondida entre as árvores, e aquilo por muito pouco não se
mostrou um erro doloroso, pois me fez dar uma guinada em
direção aos arbustos. Porém, de alguma forma consegui
trazer a bicicleta de volta para o meio da pista e, assim que
peguei o jeito das marchas (minha última bicicleta tinha
apenas três, e duas não funcionavam), percebi que estava
me movimentando a uma velocidade razoável sobre a areia
dura e compactada.
Estava um silêncio sinistro na floresta, como se tivesse
acontecido alguma grande catástrofe vulcânica que
houvesse tornado a vegetação esbranquiçada e frágil e
intoxicado os animais selvagens. Vez por outra, ao longe,
um pombo torcaz emitia um de seus arrulhos surdos, que
pareciam uma buzina, mas isto servia mais para acentuar o
silêncio do que para quebrá-lo. Subi pedalando a pequena
inclinação até chegar ao T em que a trilha encontrava a
autoestrada.
A manifestação anti-Lang havia se reduzido a apenas um
homem do outro lado da estrada. Ele claramente tinha se
mantido ocupado nas últimas horas, erguendo alguma
espécie de instalação — murais de madeira baixos, nos
quais havia pregado centenas de imagens terríveis,
arrancadas de revistas e jornais, de crianças queimadas,
cadáveres de vítimas de tortura, reféns decapitados e
bairros destruídos por bombardeios. Espalhados por aquela
colagem de morte havia longas listas de nomes e alguns
poemas e cartas manuscritos. Tudo estava protegido das
intempéries por folhas de polietileno. Havia uma faixa
estendida por cima, como em uma barraca numa feira
beneficente de igreja, dizendo: ASSIM COMO EM ADÃO[4] TODOS
MORREM, TODOS RENASCERÃO EM CRISTO. Debaixo dela, havia
um abrigo precário feito de suportes de madeira e mais
polietileno, contendo o que parecia uma mesa de cartas e
uma cadeira dobrável. Sentado pacientemente à mesa,
estava o homem que eu havia visto de relance naquela
manhã e do qual não conseguira me lembrar. Agora, porém,
eu o reconhecia muito bem. Era o tipo militar do bar do
hotel que tinha me chamado de babaca.
Parei a bicicleta, relutante, e olhei para a esquerda e
para a direita da estrada antes de atravessar, consciente o
tempo todo do olhar dele sobre mim a menos de seis
metros de distância. E ele deve ter me reconhecido, pois vi,
para o meu terror, que havia se levantado.
— Espere um instante! — gritou ele, naquela voz
entrecortada peculiar, mas eu estava tão disposto a não me
envolver com a sua loucura que, mesmo com um carro
vindo, oscilei em direção à estrada e comecei a pedalar
para longe dele, ficando em pé no selim para tentar ganhar
mais velocidade. O carro buzinou. Houve um borrão de luz e
som, e senti o ar se deslocando quando ele passou, porém,
quando olhei para trás, o manifestante tinha desistido de
me perseguir e estava parado no meio da estrada, olhando
para mim com as mãos na cintura.
Depois disso, pedalei com força, sabendo que logo
começaria a escurecer. O ar no meu rosto era frio e úmido,
mas o bombear das minhas pernas me deixava
suficientemente aquecido. Passei pela entrada do aeroporto
e segui contornando a floresta estadual, suas pistas de
acesso para bombeiros estendendo-se largas e altas como
as naves laterais cobertas de sombras de uma catedral. Não
conseguia imaginar McAra fazendo aquilo — ele não me
parecia fazer o estilo ciclista — e novamente me perguntei o
que esperava conseguir, além de ficar encharcado.
Continuei a pedalar, passando pelas casas brancas de
madeira e pelo interior bem cuidado da Nova Inglaterra, e
não precisei me esforçar muito para visualizá-lo ainda
povoado por mulheres com severos chapéus pretos e
homens que consideravam domingo o dia para se colocar
um terno, e não para tirá-lo.
Logo depois de West Tisbury, parei na Scotchman’s Lane
para conferir meu trajeto. O céu já estava realmente
ameaçador e um vento começava a soprar mais forte.
Quase perdi o mapa. Na verdade, quase voltei. No entanto,
tinha ido tão longe que parecia idiotice retornar àquela
altura; portanto, sentei-me novamente no selim fino e duro
e voltei a pedalar. Uns três quilômetros depois, a estrada se
bifurcou, e eu saí da rodovia principal, pegando a esquerda
em direção ao mar. A trilha para a enseada era parecida
com os arredores da propriedade de Rhinehart — carvalhos
americanos, lagos, dunas. A única diferença era que havia
mais casas ali. Em sua maioria, eram casas de veraneio,
fechadas para o inverno. Algumas chaminés, no entanto,
expeliam veios finos de fumaça marrom e, de uma janela,
ouvi um rádio tocando música clássica. Um concerto para
violoncelo. Foi então que finalmente começou a chover —
pingos grossos, pesados e frios, quase granizo, que
explodiam nas minhas mãos e no meu rosto e carregavam o
cheiro do mar com eles. Num momento eles estavam caindo
esporadicamente sobre o lago e tamborilando nas árvores
ao meu redor e, no outro, a chuva começou a jorrar do céu
como se alguma enorme represa aérea tivesse rompido. Foi
então que lembrei por que eu não gostava de andar de
bicicleta: elas não têm teto, para-brisa e nem aquecedor.
Os carvalhos americanos finos e desfolhados não
ofereciam esperança de abrigo, mas era impossível
continuar pedalando — eu não conseguia ver para onde
estava indo —, de modo que desci da bicicleta e fui
empurrando-a até chegar a uma cerca de madeira baixa.
Tentei escorar a bicicleta nela, mas ela caiu ruidosamente
de lado, com a roda de trás girando. Não me dei ao trabalho
de apanhá-la, mas subi correndo o caminho de blocos de
concreto, passando por um mastro de bandeira, até a
varanda da casa. Uma vez fora da chuva, inclinei-me para a
frente e balancei a cabeça vigorosamente para tirar a água
do cabelo e, de imediato, um cachorro começou a latir e
arranhar a porta às minhas costas. Eu havia imaginado que
a casa estivesse vazia — certamente parecia vazia —, mas
um rosto como uma lua branca e enevoada apareceu na
janela poeirenta, embaçado pela tela contra mosquitos, e,
logo em seguida, a porta se abriu e o cachorro voou para
cima de mim.
Não gosto de cachorros quase tanto quanto eles não
gostam de mim, mas fiz o meu melhor para parecer
encantado com aquela bola de pelo branco repugnante que
não parava de latir, nem que fosse apenas para acalmar seu
dono, um velho não muito longe dos 90 anos, a julgar pelas
manchas na pele, pelo corpo curvado e pelo crânio ainda
bonito que forçava a pele fina do rosto. Ele usava um paletó
esporte bem cortado sobre um cardigã abotoado até a gola
e tinha um cachecol de lã em volta do pescoço. Gaguejei
um pedido de desculpas por perturbar sua privacidade, mas
ele me cortou de imediato.
— Você é inglês? — perguntou ele, apertando os olhos
para mim.
— Sou.
— Tudo bem. Pode se abrigar aqui. É de graça.
Eu não conhecia a América bem o suficiente para saber
identificar pelo sotaque de onde ele era ou o que teria feito
na vida. Porém, imaginei que fosse um aposentado, e com
uma situação bastante boa — essa é a única possibilidade
quando se vive em um lugar onde uma cabana com um
banheiro externo custa meio milhão de dólares.
— Inglês, hein? — repetiu. Ele me analisou através dos
óculos sem armação. — Tem alguma coisa a ver com esse
tal de Lang?
— De certa forma — respondi.
— Parece inteligente, ele. Por que se misturar com
aquele idiota na Casa Branca?
— É o que todo mundo gostaria de saber.
— Crimes de guerra! — disse ele, girando a cabeça, e
pude ver de relance dois aparelhos auditivos cor de pele,
um em cada orelha. — Todos poderíamos ter sido acusados
disso! E talvez devêssemos ter sido. Não sei. Imagino que
vou ter de confiar em uma justiça superior. — Ele deu uma
risadinha triste. — Não vou tardar a descobrir.
Eu não sabia do que ele estava falando. Estava apenas
feliz por estar em um lugar seco. Apoiamo-nos no corrimão
castigado pelo tempo e observamos juntos a chuva,
enquanto o cachorro corria alucinado sobre as próprias
patas em volta da varanda. Através de uma abertura nas
árvores, conseguia ver com dificuldade o mar — enorme e
cinza, com as linhas brancas das ondas que chegavam
movendo-se impiedosamente na beirada, como
interferência em uma televisão em preto e branco antiga.
— Então, o que o traz até esta parte de Vineyard? —
perguntou o velho.
Não vi sentido em mentir.
— Uma pessoa que eu conhecia apareceu morta lá na
praia — falei. — Pensei em dar uma olhada no local. Prestar
meus respeitos. — Acrescentei, caso ele pensasse que eu
era um ladrão de defuntos.
— Agora, isso, sim, foi esquisito — disse ele. — Você está
falando daquele inglês de umas semanas atrás? Não tem a
menor chance de a corrente ter carregado o corpo dele tão
para o oeste. Não nessa época do ano.
— O quê? — Eu me virei para encará-lo. Apesar da idade,
ainda havia algo de muito jovial nos seus traços fortes e no
seu jeito entusiasmado. Seu cabelo branco e fino estava
penteado para trás desde a testa. Ele parecia um escoteiro
veterano.
— Conheço esse mar minha vida quase inteira. Que
diabo, um cara tentou me jogar para fora daquela maldita
barca quando eu ainda estava no Banco Mundial, e posso
lhe dizer o seguinte: se ele tivesse conseguido, eu não teria
vindo flutuando até Lambert’s Cove.
Senti um rufar nos meus ouvidos, mas não consegui
descobrir se era meu sangue ou a chuva batendo nas
telhas.
— O senhor disse isso à polícia?
— A polícia? Meu jovem, na minha idade, tenho coisas
melhores para fazer com o pouco tempo que me resta do
que desperdiçá-lo com a polícia! De qualquer forma, contei
tudo isso para Annabeth. Foi ela quem lidou com a polícia.
— Ele notou a confusão no meu rosto. — Annabeth
Wurmbrand — disse. — Todo mundo conhece Annabeth, a
viúva de Mars Wurmbrand. A casa dela é a que fica mais
perto do mar. — Ao ver que eu não esboçava reação, ele
ficou um pouco irritado. — Foi ela quem contou à polícia
sobre as luzes.
— As luzes?
— As luzes na praia na noite em que o mar devolveu o
corpo. Não acontece nada por aqui que ela não veja. Kay
costumava dizer que nunca via problema em deixar Mohu[5]
no outono, pois tinha certeza de que Annabeth ficaria de
olho na casa durante todo o inverno.
— E que tipo de luzes eram essas?
— Lanternas, eu acho.
— Por que isso não saiu na imprensa?
— Na imprensa? — Ele deu outra de suas risadinhas
ásperas. — Annabeth nunca falou com um repórter em toda
a sua vida! Exceto, talvez, a editora daquela revista de
decoração, The World of Interiors. Ela levou uma década
para confiar em Kay, por causa do Post.
Isso o fez começar a falar sobre o antigo casarão de Kay
na Lambert’s Cove Road, do qual Bill e Hillary gostavam
tanto, e onde Lady Di tinha ficado, e do qual só restavam as
chaminés, mas, àquela altura, eu já havia parado de ouvir.
Pareceu-me que a chuva tinha diminuído um pouco, e eu
estava louco para ir embora. Então, o interrompi.
— O senhor poderia me explicar como eu faço para
chegar à casa da Sra. Wurmbrand?
— Claro — disse ele. — Mas não faz muito sentido ir lá.
— Por que não?
— Ela caiu das escadas duas semanas atrás. Está em
coma desde então. Pobre Annabeth. Ted diz que ela nunca
mais vai recuperar a consciência. Então é mais uma que se
vai. Ei! — chamou ele, mas, àquela altura, eu já tinha
descido metade dos degraus da varanda.
— Obrigado pelo abrigo — falei por sobre o ombro — e
pela conversa. Preciso ir andando.
Ele parecia tão desamparado parado sozinho ali, debaixo
do seu telhado gotejante, com a bandeira americana
pendurada como um pano de prato do seu mastro liso, que
quase voltei.
— Bem, diga ao seu Sr. Lang para ele não perder o
ânimo! — Ele prestou uma continência trêmula para mim e
transformou-a em um aceno. — Cuide-se.
Endireitei minha bicicleta e comecei a descer a trilha.
Nem notava mais a chuva. Menos de meio quilômetro
ladeira abaixo, em uma clareira próxima das dunas e do
lago, havia uma casa grande e baixa, com uma cerca de
arame em volta e placas discretas dizendo que aquela era
uma propriedade privada. Não havia lâmpadas acesas,
apesar da escuridão causada pela tempestade. Aquela,
supus, devia ser a residência da viúva em coma. Será que
era verdade? Teria ela visto luzes? Bem, certamente das
janelas do andar de cima você teria uma boa visão da praia.
Recostei a bicicleta em um arbusto e subi com dificuldade o
pequeno caminho que havia, passando pela vegetação de
aspecto doente e amarelada e por samambaias verdes.
Quando cheguei à crista da duna, o vento pareceu me
empurrar de volta, como se aquilo também fosse uma
propriedade privada que eu não tinha nada que estar
invadindo.
Já tinha visto de relance o que havia além das dunas
quando estava na casa do velho e, enquanto descia a trilha
de bicicleta, ouvira o barulho das ondas ficando cada vez
mais alto. Porém, ainda foi um choque chegar lá em cima e,
de repente, dar de cara com aquela vista — aquele
hemisfério cinza imaculado de nuvens correndo e mar
revolto, as ondas aproximando-se com violência e
quebrando na praia em explosões contínuas e furiosas. A
faixa de areia do litoral estendia-se em uma curva à minha
direita por cerca de 1,5 quilômetro e terminava no rochedo
protuberante de Makonikey Head, em meio à névoa da água
que o mar borrifava. Limpei a chuva dos meus olhos para
tentar ver melhor e pensei em McAra sozinho naquela praia
imensa — o rosto virado para baixo, inchado pela água
salgada, seus agasalhos baratos duros por conta da
salmoura e do frio. Imaginei-o vindo à tona na manhã
gelada, trazido pela maré desde o estreito de Vineyard,
raspando a areia com seus pés grandes, sendo levado pelo
mar novamente e depois voltando, o corpo arrastando-se
lentamente praia acima até finalmente ficar agarrado. E
então o imaginei sendo jogado pela lateral de um barquinho
e arrastado para o litoral por homens com lanternas, que
voltariam alguns dias depois para atirar uma testemunha
idosa e tagarela de suas escadas encomendadas a um
arquiteto.
Algumas centenas de quilômetros mais adiante na praia,
dois vultos surgiram das dunas e começaram a andar na
minha direção — escuros, pequenos e frágeis em meio a
toda aquela natureza enfurecida. Olhei na direção oposta. O
vento estava açoitando jatos d’água da superfície das ondas
e atirando-os para o litoral, como se esboçasse uma invasão
anfíbia: eles chegavam até a metade da praia e depois se
dissolviam.
O que eu devia fazer, pensei, cambaleando um pouco no
vento, era entregar tudo aquilo para um jornalista: algum
repórter obstinado do Washington Post, algum nobre
herdeiro da tradição de Woodward e Bernstein. Conseguia
visualizar a manchete. Conseguia até escrever a matéria na
minha mente.
WASHINGTON (AP) — A morte de Michael McAra,
assistente do ex-primeiro-ministro britânico Adam Lang,
foi uma operação secreta que deu tragicamente errado,
de acordo com fontes da comunidade de inteligência
americana.

Aquilo era tão implausível assim? Olhei novamente para


os vultos na praia. Pareceu-me que eles tinham apertado o
passo e estavam vindo na minha direção. O vento atirava a
chuva no meu rosto e eu tive de limpá-lo com a mão. É
melhor ir andando, pensei. Quando voltei a olhar, eles
estavam ainda mais perto, subindo, cambaleantes e com
determinação, pela extensão de areia. Um era baixo e o
outro era alto. O alto era um homem, o baixo era uma
mulher.
O vulto mais baixo era Ruth Lang.

Eu estava impressionado por ela ter aparecido por lá.


Esperei até ter certeza de que era ela, então desci a metade
do caminho até a praia para encontrá-la. O barulho do vento
e do mar encobriu nossas primeiras palavras. Ela teve de
me pegar pelo braço e me puxar um pouco para baixo, para
poder gritar no meu ouvido.
— Eu falei — repetiu ela, e seu hálito era de uma
quentura quase atroz contra minha pele gelada — que Dep
me contou que você estava aqui! — O vento tirou o capuz
de náilon azul de cima do seu rosto e ela tentou pegá-lo na
nuca, mas depois desistiu. Gritou alguma coisa, mas na
mesma hora uma onda explodiu no litoral às suas costas.
Ela sorriu desamparadamente, esperou o barulho diminuir e
então fez uma concha com as mãos e gritou: — O que você
está fazendo?
— Ah, só tomando um ar.
— Não, de verdade.
— Queria ver o lugar onde Mike McAra foi encontrado.
— Por quê?
Dei de ombros.
— Curiosidade.
— Mas você nem o conhecia.
— Estou começando a me sentir como se conhecesse.
— Onde está a sua bicicleta?
— Logo atrás das dunas.
— Nós viemos buscar você antes que a tempestade
começasse. — Ela acenou para o policial. Ele estava parado
a uns cinco metros de distância, nos observando;
encharcado, entediado, bravo. — Barry — gritou ela —,
traga o carro e nos espere na estrada, sim? Nós vamos
trazer a bicicleta e encontramos você. — Ela se dirigia a ele
como se fosse um criado.
— Infelizmente não posso fazer isso, Sra. Lang — gritou
ele de volta. — O regulamento diz que eu devo estar com a
senhora o tempo todo.
— Oh, pelo amor de Deus! — disse ela, zombando. —
Você acha mesmo que há uma célula terrorista em Uncle
Seth’s Pond? Vá apanhar o carro antes que você pegue uma
pneumonia.
Observei seu rosto quadrado e triste à medida que o
senso de dever batalhava com sua vontade de estar seco.
— Está certo — disse ele, por fim. — Encontro vocês em
10 minutos. Mas não saiam do caminho nem falem com
ninguém.
— Não vamos fazer isso, oficial — disse ela, fingindo
humildade. — Eu prometo.
Ele hesitou, depois começou a refazer o caminho de
volta.
— Eles nos tratam como crianças — reclamou Ruth,
enquanto subíamos a praia. — Às vezes penso que as
ordens deles não são para nos proteger, mas para nos
espiar.
Chegamos ao topo da duna e automaticamente nos
viramos os dois para olhar para o mar. Depois de um ou dois
segundos, arrisquei um breve olhar na direção dela. Sua
pele clara brilhava com a chuva, seu cabelo escuro e curto
estava achatado e brilhante como uma touca de nadador.
Sua carne parecia dura, como alabastro no frio. As pessoas
costumavam dizer que não conseguiam entender o que o
marido vira nela, porém, naquele instante, eu conseguia —
ela possuía uma espécie de firmeza; uma energia célere,
nervosa: era uma força.
— Para ser honesta, eu mesma voltei aqui uma ou duas
vezes — disse ela. — Em geral trago algumas flores, que
acomodo à força por baixo de uma pedra. Pobre Mike. Ele
detestava estar longe da cidade. Detestava caminhadas no
campo. Sequer sabia nadar.
Ela esfregou rapidamente as bochechas com a mão. Seu
rosto estava molhado demais para eu saber se ela estava
chorando ou não.
— Que lugar horrível para se terminar — falei.
— Ah, não. Não é, não. Quando está sol, é maravilhoso.
Faz com que eu me lembre de Cornwall.
Ela desceu a pequena trilha até a bicicleta com
dificuldade, e eu a segui. Para minha surpresa, subiu nela
de repente e começou a pedalar, parando uns cem metros
mais adiante no caminho, na beirada da floresta. Quando a
alcancei, ela me encarou com seriedade, seus olhos
castanho-escuros quase negros na luz mortiça da tarde.
— Você acha que a morte dele foi suspeita?
A objetividade da pergunta me pegou de surpresa.
— Não sei bem — falei. Foi o melhor que pude fazer para
me impedir de lhe contar lá mesmo o que tinha ouvido do
velho. Porém, senti que aquele não era nem o lugar e nem a
hora certa. Eu não estava suficientemente convencido dos
fatos e me parecia, de alguma forma, grosseiro transmitir
uma fofoca não verificada para um amigo em luto. Além
disso, sentia um pouco de medo dela: não queria ser eu o
alvo de uma de suas mordazes contrainvestigações. De
modo que tudo o que disse foi: — Não sei muito a respeito,
para ser franco. Imagino que a polícia tenha investigado
todo o caso bem a fundo.
— Sim. É claro.
Ela desceu da bicicleta, entregou-a para mim e
começamos a subir em direção à estrada em meio aos
carvalhos americanos. O clima estava muito mais brando
longe do mar. O temporal tinha quase parado e a chuva
desprendera cheiros pungentes e frios de terra, árvores e
ervas. Eu podia ouvir o tique-taque da roda traseira
enquanto caminhávamos.
— A polícia foi muito ativa no início — disse ela —, mas
ultimamente não se fala mais nada. Acho que o inquérito foi
adiado. De qualquer forma, não podem estar muito
preocupados: eles liberaram o corpo de Mike na semana
passada e a embaixada o enviou de avião de volta para a
Inglaterra.
— É mesmo? — Tentei não soar surpreso demais. — Isso
me parece meio rápido.
— Não, nem é. Já se passaram três semanas. Eles
fizeram uma autópsia. Ele estava bêbado e se afogou. Fim
da história.
Andamos em silêncio e me passou pela cabeça que
McAra poderia facilmente ter deixado a ilha por um fim de
semana para visitar Richard Rycart em Nova York. Isso
explicaria por que ele havia anotado o número de Rycart, e
também por que não tinha dito aos Lang para onde estava
indo. Como poderia?
— Até logo, pessoal, vou só dar um pulo nas Nações
Unidas para ver o pior inimigo político de vocês...
Passamos pela casa em que eu havia buscado abrigo do
temporal. Fiquei olhando para ver se o velho aparecia.
Porém, a casa de madeira branca parecia tão deserta
quanto da primeira vez em que eu a havia visto — tão fria,
trancada e abandonada, na verdade, que quase me
perguntei se não tinha imaginado todo aquele encontro.
— O funeral é na segunda-feira, em Londres — disse
Ruth. — Ele vai ser enterrado em Streatham. A mãe dele
está doente demais para comparecer. Fiquei pensando que
talvez eu devesse ir. Um de nós deveria comparecer, e não
me parece provável que vá ser meu marido.
— Pensei que a senhora tinha dito que não queria
abandoná-lo.
— Está parecendo mais que ele me abandonou, você não
acha?
Ela não falou mais depois disso, mas começou a tatear
em busca do capuz outra vez, embora não precisasse
realmente dele. Eu o peguei para ela com minha mão livre e
ela o puxou para cima bruscamente, sem me agradecer, e
então seguiu andando, um pouco na minha frente, olhando
para o chão.
Barry estava esperando por nós no fim da trilha dentro
da minivan, lendo um livro do Harry Potter. O motor estava
ligado e os faróis acesos. De vez em quando, o grande
limpador de para-brisa raspava ruidosamente o vidro. Ele
largou o livro de lado com clara relutância, saltou, abriu a
porta traseira e empurrou os bancos para a frente. Eu e
Ruth colocamos juntos a bicicleta na mala da van, então ele
voltou para o seu lugar atrás do volante e eu entrei para me
sentar do lado dela.
Pegamos um trajeto diferente daquele que eu havia feito
de bicicleta, a estrada se distanciando do mar enquanto
subia uma colina sinuosa. O anoitecer estava úmido e
sombrio, como se uma das imensas nuvens carregadas não
tivesse rompido, mas aos poucos estivesse baixando sobre
a terra como um dirigível esvaziado, assentando-se sobre a
ilha. Eu podia entender por que Ruth disse que a paisagem
fazia com que ela se lembrasse de Cornwall. Os faróis da
minivan iluminaram uma região erma, quase um pântano, e
pelo retrovisor eu conseguia ver indistintamente as
luminosas ondas espumantes manchando as águas do
estreito de Vineyard. O aquecedor estava no máximo, e eu
tinha de ficar esfregando o vidro para ver para onde
estávamos indo. Sentia minhas roupas secando, grudando
na minha pele, soltando o mesmo cheiro ligeiramente
desagradável de suor e produto para lavagem a seco que
eu sentira no quarto de McAra.
Ruth não falou nada durante toda a viagem. Ela manteve
as costas um pouco viradas para mim e ficou olhando pela
janela. Porém, assim que passamos pelas luzes do
aeroporto, sua mão fria e dura atravessou o assento e
agarrou a minha. Não sabia o que ela estava pensando, mas
podia imaginar, e apertei sua mão de volta: até mesmo um
fantasma pode demonstrar um pouco de solidariedade de
vez em quando. No retrovisor do motorista, os olhos de
Barry fitavam os meus. Enquanto dávamos seta para virar à
direita, em direção à floresta, as imagens de morte e tortura
e as palavras ASSIM COMO EM ADÃO TODOS MORREM piscaram
brevemente na escuridão, porém, até onde eu via, a
pequena barraca de polietileno estava vazia. Descemos aos
trancos o caminho em direção à casa.
Onze

Às vezes, o autor pode dar ao ghost-writer uma informação


que contradiz algo que ele disse antes ou algo que o ghost-
writer já sabe a respeito dele. Caso isso aconteça, é
importante mencioná-lo imediatamente.

Ghostwriting

A primeira coisa que fiz quando voltei foi preparar um banho


quente, jogando dentro da banheira meia garrafa de óleo
para banho orgânico (pinho, cardamomo e gengibre) que
encontrei no armarinho do banheiro. Enquanto ela enchia,
fechei as cortinas do quarto e tirei minhas roupas úmidas.
Naturalmente, uma casa tão moderna quanto a de
Rhinehart não tinha algo tão toscamente útil quanto um
aquecedor, então as deixei largadas no chão, fui para o
banheiro e entrei na banheira grande.
Da mesma forma como vale a pena ficar realmente
faminto de vez em quando apenas para saborear de fato a
comida, o prazer de um banho quente só pode ser
plenamente apreciado se você tiver passado horas de frio
na chuva. Gemi de alívio, deixei meu corpo deslizar para
baixo até apenas minhas narinas estarem acima da
superfície aromática e fiquei deitado ali por vários minutos,
como um jacaré pegando sol em sua lagoa fumegante.
Imagino que tenha sido por isso que não ouvi ninguém
bater à minha porta e só percebi que havia uma pessoa no
quarto quando vim à tona e escutei seus movimentos.
— Olá? — chamei.
— Desculpe-me — respondeu Ruth. — Eu bati. Sou eu.
Estava apenas trazendo algumas roupas secas para você.
— Não se preocupe — falei. — Eu me viro.
— Você precisa vestir algo que tenha sido devidamente
arejado, ou então vai ficar doente. Vou pedir para Dep lavar
as outras.
— Sério, não tem necessidade.
— O jantar é daqui a uma hora. Está bom para você?
— Está ótimo. — falei, rendendo-me. — Obrigado.
Esperei ouvir o clique da porta depois de ela sair. Então,
levantei-me imediatamente da banheira e apanhei uma
toalha. Na cama, ela havia colocado uma camisa recém-
lavada de seu marido (era feita sob medida, com seu
monograma, APBL, no bolso), um suéter e uma calça jeans.
No local onde eu havia largado minhas roupas, havia
apenas uma mancha de umidade. Ergui o colchão — o
envelope ainda estava lá embaixo — e então o larguei de
volta.
Havia algo desconcertante em Ruth Lang. Você nunca
sabia em que situação se encontrava quando estava em sua
presença. Em alguns momentos ela podia ser agressiva sem
motivo — eu não me esquecera do seu comportamento
durante nossa primeira conversa, quando ela praticamente
me acusara de estar planejando escrever uma memória
fofoqueira sobre ela e Lang — e então, em outros,
demonstrava um excesso de intimidade bizarro, segurando-
lhe a mão ou ditando o que você deveria vestir. Era como se
houvesse um pequeno mecanismo faltando em seu cérebro:
a parte que lhe dizia como ser comportar com naturalidade
com as outras pessoas.
Apertei mais a toalha em volta do corpo, amarrei-a na
cintura e sentei-me à mesa. Antes, eu havia ficado intrigado
por ela estar estranhamente ausente da autobiografia do
marido. Este era um dos motivos que me fizeram querer
começar a parte principal do livro com a história sobre como
os dois haviam se conhecido — até descobrir que Lang a
havia inventado. Lá estava ela, naturalmente, na
dedicatória:

Para Ruth,
para meus filhos
e para o povo britânico

... mas depois era preciso esperar outras cinquenta páginas


até ela aparecer em pessoa. Folheei o manuscrito até
chegar ao trecho.

Foi na época das eleições de Londres que conheci Ruth


Capel, uma das mais entusiasmadas integrantes da
associação local. Gostaria de poder dizer que me
interessei por ela por conta de seu comprometimento
político, mas a verdade é que a achei muito atraente —
pequena, intensa, com um cabelo preto muito curto e
olhos negros penetrantes. Ela era do norte de Londres, a
única filha de dois professores universitários, e nutria um
interesse apaixonado pela política praticamente desde
que aprendera a falar — ao contrário de mim! Ela
também era, como meus amigos nunca se cansaram de
frisar, muito mais inteligente do que eu! Na graduação
em Oxford, recebera graus de primeira da classe em
política, filosofia e economia e depois havia feito uma
especialização de um ano sobre o governo pós-colonial
como bolsista da Fulbright. Como se isso não bastasse
para me intimidar, também passara em primeiro lugar na
prova de admissão do Gabinete, embora o tenha
abandonado posteriormente para fazer parte da equipe
de política externa do partido no parlamento.
No entanto, o lema da família Lang sempre foi “quem
não arrisca, não petisca”, e consegui arranjar para que
caçássemos votos juntos. Daí, foi relativamente fácil,
depois de uma noite de trabalho duro batendo de porta
em porta e distribuindo panfletos, sugeri um drinque sem
compromisso em um pub da região. No começo, outros
membros do comitê de campanha se juntavam a nós
nessas ocasiões, porém, aos poucos, eles foram
percebendo que eu e Ruth queríamos ficar sozinhos. Um
ano depois das eleições, começamos a dividir um flat, e
quando Ruth ficou grávida de nosso primeiro filho, eu a
pedi em casamento. A cerimônia aconteceu no cartório
de Marylebone em junho de 1979, com Andy Martin, um
dos meus velhos amigos do grupo de teatro, como
padrinho. Para nossa lua de mel, pegamos emprestado o
chalé dos pais de Ruth, que ficava próximo de Hay-on-
Wye. Depois de duas semanas divinas, voltamos para
Londres, preparados para a luta bem diferente que se
seguiu à eleição de Margaret Thatcher.

Aquela era a única referência importante a ela.


Segui lentamente pelos capítulos posteriores, marcando
as partes em que ela era mencionada. Sua “relação de uma
vida inteira com o partido” foi uma ajuda “inestimável” para
que Lang conquistasse uma cadeira no Parlamento. “Ruth
percebeu a possibilidade de que eu poderia me tornar líder
do partido muito antes de mim”, dizia o começo promissor
do capítulo três, mas como ou por que ela chegou a essa
conclusão visionária não era explicado. Ela surgia para “dar
conselhos especialmente perspicazes” quando ele precisava
demitir um colega. Ela dividia com ele as suítes nos hotéis
quando havia reuniões do partido. Ela ajeitou sua gravata
na noite em que ele se tornou primeiro-ministro. Foi às
compras com as esposas de outros líderes mundiais em
visitas oficiais. Até deu à luz os filhos dele (“meus filhos
sempre mantiveram meus pés bem presos ao chão”). No
entanto, apesar de tudo isso, ela era uma presença
fantasma nas memórias, o que me intrigava, pois
certamente não o era na vida dele. Talvez tivesse sido por
isso que ela quis me contratar: por achar que eu iria querer
acrescentar mais coisas a seu respeito.
Quando olhei para o relógio, percebi que já estava lendo
o manuscrito havia uma hora e que o jantar já devia estar
servido. Contemplei as roupas que ela havia deixado sobre
a cama. Eu sou o que os ingleses chamariam de
“melindroso” e os americanos de “fresco”: não gosto de
comer comida que venha do prato de outra pessoa, beber
do mesmo copo de alguém, nem vestir roupas que não
sejam as minhas. No entanto, aquelas roupas estavam mais
limpas e quentes do que qualquer uma que eu tivesse, e ela
tinha se dado ao trabalho de buscá-las para mim, de modo
que as vesti — dobrando as mangas, pois não tinha
abotoaduras — e fui para o andar de cima.

A lenha queimava na lareira de pedra e alguém,


possivelmente Dep, acendera velas ao redor da sala inteira.
As luzes de segurança dos jardins também estavam acesas
e iluminavam os corpos brancos e delgados das árvores e a
vegetação amarelo-esverdeada que o vento curvava.
Quando entrei na sala, uma rajada de chuva açoitou a
enorme janela panorâmica. Era como o saguão de algum
hotel luxuoso fora de temporada, que contava apenas com
dois hóspedes.
Ruth estava sentada no mesmo sofá, na mesma posição
que assumira naquela manhã, com as pernas encolhidas
sob o próprio corpo, lendo The New York Review of Books.
Dispostas em leque na mesa de centro baixa diante dela
havia uma série de revistas e, ao lado destas — um
prenúncio do que estava por vir, torci —, uma taça de haste
longa do que parecia vinho branco. Ela ergueu os olhos com
um ar de aprovação.
— Ficaram perfeitas — disse ela. — E agora você precisa
de um drinque. — Ela inclinou a cabeça por sobre as costas
do sofá, e eu pude ver os músculos salientes de seu
pescoço sobressaírem enquanto ela gritava em direção às
escadas com aquela voz masculina: — Dep! — E, depois,
para mim: — O que você quer beber?
— O que a senhora está bebendo?
— Vinho branco biodinâmico — disse ela —, do vinhedo
Rhinehart, no Napa Valley.
— Ele não possui uma destilaria também, possui?
— É delicioso. Você precisa experimentar. Dep — disse
ela para a governanta, que havia aparecido no topo da
escada —, traga a garrafa, sim? E mais uma taça.
Sentei-me de frente para Ruth. Ela usava um longo
vestido vermelho transpassado e seu rosto, em geral limpo,
estava ligeiramente maquiado. Havia algo de comovente na
sua determinação em não perder a pose, mesmo enquanto
as bombas, por assim dizer, caíam ao seu redor. Se
tivéssemos um gramofone à manivela, poderíamos ter
interpretado o impetuoso casal inglês de alguma peça de
Noël Coward, mantendo as frágeis aparências enquanto o
mundo desmoronava à nossa volta. Dep serviu-me uma
taça de vinho e deixou a garrafa.
— Jantaremos em vinte minutos — instruiu Ruth —,
porque primeiro — disse ela, pegando o controle remoto e
apontando-o com violência para a TV — temos de assistir ao
jornal. Saúde — falou, erguendo a taça.
— Saúde — respondi, fazendo o mesmo.
Sequei a taça em trinta segundos. Vinho branco. Qual o
sentido em se beber isso? Peguei a garrafa e analisei o
rótulo. Aparentemente as uvas eram cultivadas em solo
tratado em harmonia com o ciclo lunar, usando adubo
enterrado dentro do chifre de uma vaca e flores de milefólio
fermentadas na bexiga de um cervo. Parecia o tipo de
atividade suspeita pela qual as pessoas costumavam, com
muita justiça, ser queimadas como bruxas.
— Gostou? — perguntou Ruth.
— Suave e frutado — falei —, com um toque de bexiga.
— Então nos sirva um pouco mais. Lá vem Adam. Cristo,
ele é a matéria principal. Acho que vou ter de encher a cara,
para variar.
A manchete atrás do ombro do âncora dizia LANG: CRIMES
DE GUERRA. Não gostei do fato de eles nem estarem mais se
incomodando em usar um ponto de interrogação. As cenas
familiares daquela manhã se sucederam: a coletiva de
imprensa em Haia, Lang deixando a casa em Vineyard, a
declaração aos repórteres na autoestrada de West Tisbury.
Em seguida, surgiram imagens de Lang em Washington,
primeiro cumprimentando os membros do Congresso sob
um brilho quente de flashes e admiração mútua e, então,
com mais sobriedade, com o secretário de Estado. Amelia
Bly estava claramente visível ao fundo: a esposa oficial. Não
ousei olhar para Ruth.
— Adam Lang — disse o secretário de Estado — ficou do
nosso lado na Guerra contra o Terror, e tenho orgulho de
estar ao lado dele na tarde de hoje e de lhe oferecer, em
nome do povo americano, nossa mão amiga. Adam. É um
prazer vê-lo.
— Não sorria — disse Ruth.
— Obrigado — disse Adam, sorrindo e apertando a mão
que lhe era oferecida. Ele escancarou o sorriso para as
câmeras. Parecia um estudante entusiasmado recebendo o
prêmio do campeonato de debates da escola. — Muito
obrigado. É um prazer vê-lo também.
— Ah, pelo amor de Deus! — exclamou Ruth.
Ela apontou o controle para a TV e estava prestes a
apertá-lo quando Richard Rycart apareceu, atravessando o
saguão das Nações Unidas, cercado pela sua habitual
falange de burocratas. No ultimo instante, pareceu desviar
da sua rota inicial e andou em direção às câmeras. Ele era
um pouco mais velho que Lang, beirando os 60 anos. Havia
nascido na Austrália, ou na Rodésia, ou em alguma parte da
Comunidade Britânica, antes de vir para a Inglaterra na
adolescência. Tinha uma cascata de cabelo cinza metálico
que se despejava dramaticamente sobre seu colarinho e
sabia perfeitamente — a julgar pela maneira como se
posicionava — qual era o seu melhor lado: o esquerdo. Seu
perfil bronzeado e aquilino lembrava-me um pouco um
chefe sioux.
— Assisti à declaração hoje, em Haia — disse ele —, com
um grande choque e pesar. — Sentei mais para a frente.
Definitivamente, aquela era a voz que tinha ouvido mais
cedo ao telefone: o resíduo de sotaque cantarolado era
inconfundível. — Adam Lang é um velho amigo...
— Seu hipócrita desgraçado — disse Ruth.
— ... e sinto muito que ele tenha optado por levar isto
para o âmbito pessoal. Esta não é uma questão individual, e
sim de justiça. A questão aqui é se deve existir uma lei para
as nações ricas e brancas do Ocidente e outra para o resto
do mundo. A questão é nos certificarmos de que cada líder
político e militar saiba que, quando toma uma decisão, deve
prestar satisfações à lei internacional. Obrigado.
Um repórter gritou:
— Se o senhor for chamado para testemunhar, vai
comparecer?
— Certamente.
— Aposto que vai, seu merdinha — disse Ruth.
O noticiário passou para a notícia de um bombardeio
suicida no Oriente Médio, e ela desligou a televisão.
Imediatamente, seu celular começou a tocar. Ela olhou para
o aparelho.
— É Adam, ligando para perguntar como eu achei que ele
se saiu. — Ela desligou aquilo também. — Deixe que ele sue
um pouco.
— Ele sempre pede seus conselhos?
— Sempre. E costumava segui-los sempre. Até pouco
tempo atrás.
Servi um pouco mais de vinho para nós. Muito
lentamente, conseguia senti-lo começando a fazer efeito.
— A senhora tinha razão — falei. — Ele não deveria ter
ido para Washington. Realmente não ficou nada bem.
— Ele nunca deveria ter vindo para cá — disse ela,
gesticulando com seu vinho para a sala. — Quero dizer, olhe
só esse lugar. E tudo em prol da Fundação Adam Lang. Que
é o que exatamente? Apenas uma atividade ocupacional de
alto nível para os recém-desempregados. — Ela se inclinou
para a frente para pegar sua taça. — Quer que eu lhe diga a
regra número um da política?
— Por favor.
— Nunca perca contato com as suas bases.
— Vou tentar.
— Pare com isso. Estou falando sério. Você pode ir além
das suas bases, sem dúvida. Precisa fazer isso, se quiser
vencer. Mas nunca, nunca perca completamente o contato
com elas. Porque, quando isso acontece, você está acabado.
Imagine se aquelas imagens de hoje à noite tivessem sido
dele chegando a Londres; voltando para combater essa
gente ridícula e suas acusações absurdas. Teria sido
magnífico! Em vez disso... Deus! — Ela balançou a cabeça e
soltou um suspiro de raiva e frustração. — Venha. Vamos
comer.
Ela se empurrou para fora do sofá, derramando um
pouco de vinho durante o processo, que pingou na frente de
seu vestido de lã. Ela não pareceu notar, e tive uma
premonição terrível de que ela ficaria bêbada. (Compartilho
do preconceito comum dos bebedores profissionais de que
não há nada pior do que um homem bêbado, exceto uma
mulher bêbada: elas conseguem, de alguma forma,
desanimar qualquer pessoa.) Porém, quando fiz menção de
encher sua taça, ela a cobriu com a mão.
— Já bebi o suficiente.
A longa mesa diante da janela tinha sido posta para dois,
e a visão da natureza revoltando-se silenciosamente para
além do vidro grosso aumentava a sensação de intimidade:
as velas, as flores, o fogo estalando. Aquilo parecia
ligeiramente exagerado. Dep trouxe duas tigelas de uma
sopa clara e, por alguns instantes, retinimos nossas
colheres contra a porcelana de Rhinehart em um silêncio
constrangido.
— Como está indo? — disse ela, por fim.
— O livro? Está parado, para ser franco.
— E por que, além do motivo óbvio?
Hesitei.
— Posso ser sincero?
— Claro.
— Tenho dificuldades em entendê-lo.
— Ah, é? — Àquela altura, ela estava bebendo água com
gelo. Por sobre a borda de sua taça, seus olhos negros me
alvejaram como uma espingarda de dois canos. — Como
assim?
— Não consigo entender por que esse garoto bonitão de
18 anos, que chega a Cambridge sem o menor interesse em
política e passa seu tempo atuando, bebendo e perseguindo
garotas, de repente acaba...
— Casando comigo?
— Não, não, não é isso. De forma alguma. — (Sim, é o
que eu queria dizer: sim, isso mesmo; é claro.) — Não. Não
entendo por que, quando ele chega aos 22, 23 anos, de
repente entra para um partido político. De onde saiu isso?
— Você não perguntou a ele?
— Ele me disse que entrou para o partido por sua causa.
Que a senhora apareceu fazendo campanha eleitoral e que
ele se sentiu atraído e seguiu-a para a política por amor,
essencialmente. Para continuar a vê-la. Quero dizer, isso faz
sentido para mim. Deveria ser verdade.
— Mas não é?
— Bem, a senhora sabe que não. Ele era membro do
partido há pelo menos um ano antes mesmo de conhecê-la.
— Era? — Ela franziu a testa e bebericou um pouco mais
de água. — Mas aquela história que ele sempre conta sobre
o que o levou à política... eu me lembro bem daquele
episódio, porque fiz campanha nas eleições de Londres de
1977 e certamente bati à porta dele. E foi depois disso que
ele começou a aparecer regularmente nas reuniões do
partido. Então tem de haver alguma verdade nela.
— Alguma — admiti. — Talvez ele tenha entrado para o
partido em 1977, não tenha demonstrado interesse quase
nenhum por dois anos, e então conheceu a senhora e
passou a se envolver mais. Mas isso ainda não responde à
pergunta essencial do que o levou a um partido político em
primeiro lugar.
— Isso é tão importante assim?
Dep chegou para retirar os pratos de sopa e, durante a
pausa na nossa conversa, refleti sobre a pergunta de Ruth.
— É — falei, quando ficamos sozinhos novamente —, por
estranho que pareça, eu acho isso importante.
— Por quê?
— Porque mesmo que seja um detalhe insignificante,
ainda significa que ele não é exatamente quem nós
pensamos que é. Nem tenho certeza se ele é exatamente
quem ele pensa que é. E isso é complicado quando você
precisa escrever as memórias do sujeito. Sinto-me como se
não o conhecesse nem um pouco. Não consigo capturar a
voz dele.
Ruth fechou a cara para a mesa e alterou minimamente a
disposição da faca e do garfo. Sem erguer os olhos,
perguntou:
— Como você sabe que ele entrou para o partido em
1975?
Por um instante, tive medo de ter falado demais. Porém,
não me parecia haver motivo para não lhe contar.
— Mike McAra encontrou o cartão original de sócio do
partido de Adam nos arquivos de Cambridge.
— Cristo — disse ela —, aqueles arquivos! Eles têm tudo
lá, desde seus boletins da escola primária até nossas contas
da lavanderia. Típico de Mike, estragar uma boa história por
excesso de pesquisa.
— Ele também desencavou um informativo obscuro do
partido que mostra Adam fazendo campanha em 1977.
— Isso deve ter sido depois que ele me conheceu.
— Talvez.
Eu podia notar que algo a incomodava. Outra saraivada
de chuva explodiu na janela e ela colocou a ponta dos
dedos no vidro pesado, como se quisesse acompanhar as
gotas de chuva. O efeito da iluminação no jardim o fazia
parecer a superfície do oceano: todo ele folhagem oscilante
e troncos de árvores finos e cinzas, erguendo-se como
mastros de navios naufragados. Dep chegou com o prato
principal — peixe defumado, talharim e algum tipo de
verdura obscura verde-clara que parecia mato:
provavelmente era mato. Derramei ostensivamente o resto
do vinho na taça e analisei a garrafa.
Dep falou:
— O senhor gostaria de outra?
— Vocês não teriam uísque, teriam?
A governanta olhou para Ruth em busca de instruções.
— Ah, traga logo um uísque para ele — disse Ruth.
Dep voltou com uma garrafa de Chivas Regal Royal
Salute 50 anos e um copo de vidro lapidado. Ruth começou
a comer. Eu preparei um uísque com água para mim.
— Está uma delícia, Dep! — gritou Ruth. Ela limpou a
boca com a ponta do guardanapo e então inspecionou a
mancha de batom no linho branco com uma expressão de
surpresa, como se achasse que talvez tivesse começado a
sangrar. — Voltando à sua pergunta — disse ela para mim
—, não acho que você deva tentar encontrar mistério onde
não há. Adam sempre teve uma consciência social... ele a
herdou da mãe... e sei que depois que saiu de Cambridge e
se mudou para Londres ele ficou muito infeliz. Acredito que
tenha até desenvolvido uma depressão clínica.
— Depressão clínica? Ele chegou a se tratar? Sério?
Tentei não soar entusiasmado. Se aquilo fosse verdade,
seria a melhor notícia que teria recebido naquele dia inteiro.
Nada vende tão bem uma memória quanto uma boa dose
de tristeza. Abuso sexual na infância, pobreza opressiva,
tetraplegia: nas mãos certas, aquilo significava dinheiro no
bolso. Devia haver uma seção separada nas livrarias
chamada Schadenfreude.
— Coloque-se no lugar dele. — Ruth continuava a comer,
gesticulando com seu garfo erguido. — Sua mãe e seu pai
estavam mortos. Ele tinha saído da faculdade, que ele
adorava. A maioria de seus amigos atores tinha agentes e
estava recebendo propostas de trabalho. Mas ele, não. Acho
que ele estava perdido e voltou-se para a atividade política
para compensar isso tudo. Talvez ele não quisesse colocar a
coisa nessas palavras, pois não é muito chegado à
autoanálise, mas essa é a minha leitura do que aconteceu.
Você ficaria surpreso se soubesse quantas pessoas acabam
na política porque não alcançam sucesso nas suas primeiras
escolhas profissionais.
— Então, conhecê-la deve ter sido um momento muito
importante para ele.
— Por que você diz isso?
— Porque a senhora era genuinamente apaixonada pela
política. E tinha experiência. E contatos no partido. Deve ter
lhe dado o equilíbrio para seguir adiante. — Sentia-me como
se uma neblina estivesse se dissipando. — A senhora se
importa se eu anotar isso?
— Vá em frente. Se você acha que pode ser útil.
— Ah, se é. — Juntei minha faca e meu garfo... afinal, não
sou exatamente um homem de peixe e verduras, peguei
meu bloco de anotações e o abri em uma página em
branco. Estava me imaginando no lugar de Lang
novamente: 20 e poucos anos, órfão, sozinho, ambicioso,
talentoso, mas não o suficiente, procurando por um novo
caminho a seguir, dando alguns passos incertos em direção
à política e, então, conhecendo uma mulher que, de
repente, tornou o futuro possível.
— Casar-se com a senhora foi uma verdadeira virada.
— Eu sem dúvida era um pouco diferente das suas
namoradas de Cambridge, todas aquelas Jocastas e
Pandoras. Mesmo quando menina, sempre me interessei
mais por política do que por pôneis.
— A senhora nunca quis ser uma política de verdade, por
seus próprios méritos? — perguntei.
— Claro. Você nunca quis ser um escritor de verdade?
Foi como levar um soco na cara. Não lembro bem se
cheguei a baixar o bloco de anotações.
— Ai — falei.
— Desculpe-me. Não quis ser grossa. Mas você precisa
entender que nós dois estamos no mesmo barco. Sempre
entendi mais de política do que Adam. E você sabe mais
sobre como escrever. Mas, no fim das contas, ele é o astro,
não é? E nós dois sabemos que nosso trabalho é servir ao
astro. É o nome dele no livro que vai puxar as vendas, não o
seu. Comigo foi a mesma coisa. Não demorei muito para
perceber que ele poderia chegar ao topo na política. Tinha a
beleza e o charme. Era um grande orador. As pessoas
gostavam dele. Enquanto eu sempre fui um pouco patinho
feio, com este maravilhoso talento para cometer gafes.
Conforme acabei de demonstrar. — Ela colocou a mão sobre
a minha novamente. Estava mais quente, mais macia. —
Desculpe-me. Eu feri seus sentimentos. Imagino que até
fantasmas tenham sentimentos, como todos nós.
— Se nos cortarem — falei —, nós sangramos.
— Já terminou de comer? Se tiver terminado, por que não
me mostra aquele material que Mike desencavou? Pode
refrescar minha memória. Fiquei interessada.

Desci até o meu quarto e resgatei o envelope de McAra.


Quando subi de volta, Ruth havia retornado para o sofá.
Lenha fresca tinha sido jogada no fogo e o vento rugia na
chaminé, sugando para cima as faíscas laranja. Dep retirava
os pratos. Consegui, por pouco, salvar meu copo e a garrafa
de uísque.
— Você quer sobremesa? — perguntou Ruth. — Um café?
— Não, obrigado.
— Já terminamos, Dep. Obrigada. — Ela se empertigou
um pouco, para indicar que eu deveria me sentar ao seu
lado, mas fingi não notar e assumi meu lugar anterior à sua
frente. Ainda estava magoado com ela por ter dito que eu
não era um escritor de verdade. Talvez não seja mesmo.
Nunca escrevi poesia, é verdade. Não escrevo análises
sensíveis sobre a minha angústia adolescente. Não tenho
opinião sobre a condição humana, exceto que é melhor não
a examinar muito de perto. Considero-me o equivalente
literário de um torneiro mecânico habilidoso ou de um
fabricante de cestos; um oleiro, talvez: crio peças de
entretenimento leve que as pessoas querem comprar.
Abri o envelope e retirei as fotocópias do cartão de sócio
de Lang e os artigos sobre as eleições de Londres. Empurrei-
os na direção dela. Ela cruzou as pernas na altura dos
tornozelos e inclinou-se para a frente para ler, e eu me
peguei olhando para o vale surpreendentemente profundo e
coberto de sombras da fenda entre seus seios.
— Bem, não dá para discutir diante disso — disse ela,
colocando o cartão de sócio de lado. — É a assinatura dele,
sem dúvida. — Ela bateu com a ponta dos dedos na matéria
sobre os cabos eleitorais em 1977. — E eu reconheço alguns
desses rostos. Eu devia estar de folga naquela noite ou
fazendo campanha com outro grupo. Do contrário estaria na
foto com ele. — Ela ergueu os olhos. — O que mais você
tem aí?
Não parecia haver muito sentido em esconder o que quer
que fosse, de modo que lhe entreguei o envelope inteiro. Ela
averiguou os nomes e endereços, depois o carimbo postal e
então olhou para mim.
— O que Mike estava tramando, então?
Ela abriu a boca do envelope e segurou-a com o polegar
e o indicador, olhando para dentro dele com cautela, como
se tivesse alguma coisa no interior acolchoado que pudesse
mordê-la. Então o virou de cabeça para baixo e espalhou o
conteúdo sobre a mesa. Eu a observava com atenção, à
medida que ela esmiuçava as fotografias e os programas,
analisando seu rosto pálido e inteligente atrás de qualquer
pequena pista que esclarecesse por que aquilo teria sido tão
importante para McAra. Vi seus traços duros suavizarem-se
quando ela pegou a fotografia de Lang com seu blazer
listrado na margem ensolarada de um rio.
— Oh, olhe pare ele — disse ela. — Não é uma graça?
Ela segurou a foto ao lado da bochecha.
— Irresistível — falei.
Ela inspecionou a fotografia mais de perto.
— Meu Deus, olhe para eles. Olhe o cabelo dele. Era
outro mundo, não era? Quero dizer, as coisas que estavam
acontecendo quando essa foto foi tirada. Vietnã. A Guerra
Fria. As primeiras greves de mineradores na Inglaterra
desde 1926. O golpe militar no Chile. E o que eles fazem?
Compram uma garrafa de champanhe e vão passear de
barco!
— Para mim, isso merece um brinde.
Ela pegou uma das fotocópias.
— Ouça isso — disse, em seguida começou a ler:

As garotas vão todas sentir saudade de nós


Quando o trem começar a partir.
Mandarão um beijo e dirão: “Voltem
Para Cambridge algum dia.”
Atiraremos uma rosa descuidadamente e nos
viraremos para
Suspirar um adeus
Pois sabemos que a chance delas
É a mesma de uma bola de neve no inferno.
Salve Cambridge, com seus jantares, bumps e
danças de maio,
Salve Trinners, Fenners, as partidas de críquete e
de tênis,
As peças e os espetáculos.
Daremos uma caminhada de despedida
Pela boa e velha KP,
E subiremos a remo o velho Cam uma última vez
Para tomar chá em Grantchester.

Ela sorriu e balançou a cabeça.


— Não consigo entender nem metade. Está no dialeto de
Cambridge.
— Bumps são as corridas de barco da faculdade — falei.
— Na verdade, vocês também tinham isso em Oxford, mas a
senhora provavelmente estava ocupada demais com a
greve dos mineradores para perceber. As danças de maio se
referem aos bailes, que são no começo de junho, é óbvio.
— Óbvio.
— Trinners é o Trinity College. Fenners é o campo de
críquete da universidade.
— E KP?
— King’s Parade.
— Eles escreveram o poema para tirar um sarro do lugar
— disse ela. — Mas agora parece nostálgico.
— O nome disso é sátira.
— E que número de telefone é esse?
Eu deveria ter desconfiado que nada lhe escaparia. Ela
me mostrou a fotografia com o número escrito no verso.
Não respondi. Senti meu rosto começar a corar.
Obviamente, deveria ter lhe contado antes. Agora me faria
parecer culpado.
— E então?
Falei baixinho:
— É de Richard Rycart.
Quase valeu a pena só pela cara que ela fez. Parecia que
tinha engolido uma vespa. Ela levou a mão à garganta.
— Você andou ligando para Richard Rycart? — falou ela,
ofegante.
— Eu, não. Deve ter sido McAra.
— Isso é impossível.
— Quem mais teria anotado este número? — Estendi
meu celular. — Pode testar.
Ela me encarou por um instante, como se estivéssemos
brincando de verdade ou consequência, então estendeu o
braço, pegou meu telefone e digitou os 14 dígitos. Levou-o à
orelha e encarou-me novamente. Cerca de trinta segundos
depois, um lampejo de pavor correu pelo seu rosto. Ela
apertou desajeitadamente o botão para encerrar a ligação e
colocou o telefone de volta na mesa.
— Ele atendeu? — perguntei.
Ela assentiu.
— Parecia estar em um restaurante.
O telefone começou a tocar, saltando pela superfície da
mesa como se tivesse criado vida.
— O que eu faço? — perguntei.
— O que você quiser. O telefone é seu.
Eu o desliguei. Fez-se um silêncio, quebrado apenas
pelos rugidos e estalos do fogo de lenha.
Ela falou:
— Quando você descobriu isso?
— Hoje mais cedo. Quando me mudei para o quarto de
McAra.
— E daí foi até Lambert’s Cove, para ver onde o mar
devolveu o corpo dele?
— Isso.
— E por que fez isso? — Ela estava falando muito baixo.
— Responda com sinceridade.
— Não sei bem. — Fiz uma pausa. — Havia um homem
lá. — Desembuchei. Não consegui mais guardar segredo. —
Um velho, que conhece bem as correntes do estreito de
Vineyard. Segundo ele, é impossível, nesta época do ano,
um corpo cair da barca de Woods Hole e vir parar em
Lambert’s Cove. E ele também disse que outra mulher, que
tem uma casa logo atrás das dunas, tinha visto luzes de
lanterna na praia na noite em que McAra desapareceu. Mas
depois ela caiu das escadas e entrou em coma. Então não
pode contar nada para a polícia. — Espalmei as mãos. — É
tudo o que sei.
Ela estava olhando para mim um pouco boquiaberta.
— Isso — falou lentamente — é tudo o que você sabe.
Jesus. — Ela começou a tatear em volta do sofá, dando
tapinhas no couro com as mãos, então voltou sua atenção
para a mesa, levantando as fotografias para olhar embaixo.
— Jesus. Merda. — Ela balançou os dedos na minha direção.
— Passe-me seu telefone.
— Por quê? — perguntei, entregando-o para ela.
— Não é óbvio? Preciso ligar para Adam. — Ela segurou o
aparelho na palma da mão com o braço esticado,
inspecionou-o e começou a digitar rapidamente o número
dele com o polegar. Chegou mais ou menos na metade e
então parou.
— O que foi? — perguntei.
— Nada. — Ela estava olhando para além de mim, por
cima do meu ombro, mordiscando a parte de dentro dos
lábios. Seu polegar pairava sobre o teclado do celular e, por
um longo instante, ficou parado lá, até que ela finalmente
colocou o telefone de volta na mesa.
— Não vai ligar para ele?
— Talvez. Daqui a pouco. — Ela se levantou. — Vou dar
uma caminhada antes.
— Mas são nove da noite — protestei. — Está caindo um
temporal.
— Vai clarear minhas ideias.
— Eu vou com a senhora.
— Não. Obrigada, mas preciso pensar nisso tudo sozinha.
Fique aqui e tome outro drinque. Parece que está
precisando. Não espere por mim acordado.

Era do pobre policial que eu tinha pena. Sem dúvida ele


estava no andar de baixo, com os pés para cima diante da
televisão, ansioso por uma noite dentro de casa. E, de
repente, lá estava Lady Macbeth novamente, saindo para
outra de suas incessantes caminhadas, dessa vez no meio
de uma tempestade atlântica. Parei diante da janela e os
observei atravessarem o jardim em direção à vegetação que
se agitava silenciosamente. Ela andava na frente, como de
hábito, a cabeça curvada, como se tivesse perdido algo de
valor e estivesse refazendo seus passos, tentando encontrá-
lo pelo chão. Os holofotes espalhavam sua sombra em
quatro direções. O agente das Forças Especiais ainda estava
colocando o paletó.
De repente, senti-me esmagadoramente cansado. Andar
de bicicleta deixara minhas pernas rígidas. Eu começava a
sentir frio. Até mesmo o encanto do uísque de Rhinehart
tinha se quebrado. Ela havia dito para que eu não a
esperasse acordado, então decidi não esperar. Guardei as
fotografias e fotocópias no envelope e desci para o meu
quarto. Quando tirei as roupas e apaguei a luz, o sono
pareceu me engolir de imediato — sugou-me para baixo
através do cobertor até suas águas escuras, como se fosse
uma corrente forte e eu, um nadador exaurido.
Vim à tona em um determinado momento e me vi ao
lado de McAra, seu corpo grande e desajeitado revirando na
água como o de um golfinho. Ele estava completamente
vestido, com uma grossa capa de chuva preta e sapatos
pesados de sola de borracha. Não vou conseguir, disse-me
ele, continue sem mim.
Acordei apavorado, sentando-me na cama. Não fazia
ideia de quanto tempo havia dormido. O quarto estava
escuro, a não ser pela faixa de luz vertical à minha
esquerda.
— Está acordado? — falou baixinho Ruth, batendo à
porta.
Ela a havia aberto alguns centímetros e estava parada no
corredor.
— Agora estou.
— Desculpe-me.
— Não tem importância. Espere um pouco.
Fui até o banheiro e vesti o roupão felpudo que estava
pendurado atrás da porta. Quando voltei ao quarto e a
deixei entrar, vi que ela estava usando um roupão idêntico
ao meu. Era grande demais para ela. Ela parecia
inesperadamente pequena e vulnerável. Seu cabelo estava
encharcado. Seus pés descalços tinham deixado uma trilha
de pegadas úmidas do quarto dela até o meu.
— Que horas são? — perguntei.
— Não sei. Acabei de falar com Adam. — Ela parecia
abalada, trêmula. Seus olhos estavam muito arregalados.
— E?
Ela olhou pelo corredor.
— Posso entrar?
Ainda grogue por conta do sonho, liguei o abajur. Saí da
frente para ela passar e fechei a porta às suas costas.
— Um dia antes de Mike morrer, ele e Adam tiveram uma
briga horrorosa — disse ela, sem preâmbulos. — Nunca
contei isso para ninguém, nem para a polícia.
Massageei as têmporas e tentei me concentrar.
— Qual foi o motivo da briga?
— Não sei, mas foi muito violenta, definitiva, e eles
nunca mais voltaram a se falar. Quando perguntei a Adam
sobre isso, ele se recusou a falar a respeito. E tem sido
assim sempre que eu levanto o assunto. Depois do que você
descobriu hoje, senti que tinha de esclarecer isso com ele
de uma vez por todas.
— O que ele disse?
— Ele estava jantando com o vice-presidente. A princípio,
aquela desgraçada não quis nem entrar para lhe passar o
telefone.
Ela se sentou na beirada da cama e colocou o rosto entre
as mãos. Eu não sabia o que fazer. Parecia impróprio
continuar de pé, agigantando-me diante dela, então me
sentei ao seu lado. Ela tremia dos pés à cabeça: poderia ser
medo, raiva, ou talvez fosse apenas o frio.
— Ele começou dizendo que não podia falar comigo —
prosseguiu ela —, mas eu disse que ele tinha a obrigação de
falar. Então ele foi para o banheiro masculino com o
telefone. Quando lhe disse que Mike havia entrado em
contato com Rycart pouco antes de morrer, ele nem mesmo
fingiu surpresa. — Ela se virou para mim. Parecia chocada.
— Ele sabia.
— Ele disse isso?
— Nem precisou dizer. Deu para eu perceber pela sua
voz. Ele disse que não deveria falar mais nada pelo
telefone. Que era melhor conversarmos quando ele
voltasse. Meu Deus do céu, no que ele foi se meter?
Algo pareceu ceder dentro dela e seu corpo caiu para a
frente, os braços estendidos. Sua cabeça veio descansar no
meu peito e, por um instante, pensei que ela tivesse
desmaiado, mas então percebi que estava se agarrando a
mim, segurando-me com tanta força que eu podia sentir a
ponta de seus dedos de unhas roídas através do tecido
grosso do roupão. Minhas mãos flutuavam uns cinco
centímetros acima dela, movendo-se indecisas para a frente
e para trás, como se ela emitisse alguma espécie de campo
magnético. Por fim, acariciei seu cabelo e tentei murmurar
palavras tranquilizadoras nas quais não acreditava de fato.
— Estou com medo — disse ela com uma voz abafada. —
Nunca tinha sentido medo na minha vida. Mas estou
sentindo agora.
— Seu cabelo está molhado — falei com brandura. — A
senhora está encharcada. Deixe-me pegar uma toalha.
Soltei-me e fui até o banheiro. Olhei minha imagem no
espelho. Sentia-me como um esquiador no topo de uma
pista desconhecida. Quando voltei para o quarto, ela havia
tirado o roupão e entrado na cama, puxando o lençol para
cima para cobrir os seios.
— Você se importa? — perguntou.
— Claro que não.
Apaguei a luz e fui para o seu lado, deitando-me na parte
fria da cama. Ela se virou, colocou a mão sobre o meu peito
e apertou os lábios com muita força contra os meus, como
se tentasse me dar o beijo da vida.
Doze

O livro não é um veículo para o ghost-writer expressar suas


opiniões sobre assunto algum.

Ghostwriting

Quando acordei na manhã seguinte, esperava que ela não


estivesse mais lá. Não era esse o protocolo habitual nesse
tipo de situação? Uma vez concluídas as negociações
noturnas, o visitante retorna para seu próprio aposento,
com a ânsia de um vampiro que quer evitar os inclementes
raios da alvorada. Mas não Ruth Lang. Na penumbra pude
ver seu ombro nu e sua cabeleira preta e percebi, por sua
respiração irregular, quase inaudível, que ela estava tão
acordada quanto eu, deitada lá, me ouvindo.
Deitei de costas, as mãos cruzadas sobre a barriga, tão
imóvel quanto uma efígie de pedra no túmulo de um
cavaleiro das Cruzadas, fechando os olhos periodicamente à
medida que um novo aspecto daquela confusão me vinha à
mente. Na escala Richter de ideias ruins, aquela certamente
chegaria a dez. Era como a queda de um meteoro de
estupidez. Alguns instantes depois, deixei minha mão andar
como um caranguejo até o criado-mudo e procurar pelo
meu relógio. Aproximei-o do meu rosto. Eram 7h15.
Cuidadosamente, ainda fingindo não saber que ela
estava fingindo, saí da cama e arrastei os pés em direção ao
banheiro.
— Você está acordado — disse ela, sem se mexer.
— Desculpe, não quis incomodar — falei. — Estava só
indo tomar um banho.
Fechei a porta às minhas costas, liguei a ducha o mais
forte e o mais quente que pude aguentar e deixei que ela
me castigasse — costas, barriga, pernas, couro cabeludo. O
banheiro pequeno logo ficou cheio de fumaça. Depois,
quando fui me barbear, tive de ficar esfregando minha
imagem no espelho para não desaparecer.
Quando voltei ao quarto, ela tinha colocado o roupão e
estava sentada à mesa, folheando o manuscrito. As cortinas
ainda estavam fechadas.
— Você cortou a história da família dele — disse ela. —
Ele não vai gostar disso. Tem muito orgulho dos Lang. E por
que você sublinhou meu nome sempre que ele aparece?
— Quis ver quantas vezes você era mencionada. Fiquei
surpreso por não haver mais a seu respeito.
— Isso é um efeito retardado dos grupos de pesquisa.
— Como assim?
— Quando estávamos na Downing Street, Mike
costumava dizer que cada vez que eu abria a boca Adam
perdia dez mil votos.
— Tenho certeza de que isso não é verdade.
— Claro que é. As pessoas estão sempre procurando
alguém para odiar. Muitas vezes penso que minha principal
utilidade, no que diz respeito a ele, era servir de para-raios.
Eles podiam descontar sua raiva em mim em vez de
descontarem nele.
— Mesmo assim — falei —, você não deveria ser excluída
da história.
— Por que não? A maioria das mulheres o é. Até as
Amelia Blys do mundo são excluídas no fim das contas.
— Bem, então eu vou colocá-la de volta. — Na pressa,
abri a porta do armário com tanta força que ela bateu. Eu
precisava sair daquela casa. Precisava me distanciar um
pouco daquele ménage à trois destrutivo antes que
acabasse tão louco quanto eles. — Gostaria de me sentar
com você, quanto você tiver tempo, e fazer uma longa
entrevista. Acrescentar todos os momentos importantes dos
quais ele se esqueceu.
— Quanta gentileza sua — disse ela com amargura. —
Como a secretária do chefe cujo trabalho é lembrá-lo do
aniversário da esposa?
— Algo assim. Mas, como você diz, não posso me chamar
de um escritor de verdade.
Percebia que ela estava me observando atentamente.
Vesti uma cueca, puxando-a para cima por debaixo do
roupão.
— Ah — disse ela, secamente —, o recato da manhã
seguinte.
— Um pouco tarde para isso — falei.
Tirei o roupão e procurei uma camisa, e quando o cabide
produziu seu tilintar surdo, pensei que uma saída discreta
no meio da noite tinha sido inventada justamente para
evitar aquele tipo de cena infeliz. Típico dela não perceber o
que a ocasião pedia. Agora, nossa intimidade de antes se
estendia entre nós como uma sombra. O silêncio se alongou
e ficou mais pesado, até eu conseguir sentir sua raiva quase
como uma barreira sólida. Já não podia me aproximar e
beijá-la tanto quanto não podia no dia em que nos
conhecemos.
— O que você vai fazer? — disse ela.
— Vou embora.
— Por mim, isso não é necessário.
— Infelizmente, por mim é.
Puxei minhas calças para cima.
— Você vai contar para Adam o que aconteceu? —
perguntou ela.
— Oh, pelo amor de Deus! — exclamei. — O que você
acha?
Deitei minha mala na cama e abri o zíper.
— Para onde você vai? — Tive a impressão de que talvez
ela estivesse prestes a chorar novamente. Esperava que
não; eu não aguentaria isso.
— Vou voltar para o hotel. Posso trabalhar muito melhor
lá. — Comecei a jogar minhas roupas dentro da mala, sem
me importar em dobrá-las, tamanha era minha pressa em ir
embora. — Desculpe. Nunca deveria ter ficado na casa de
um cliente. Isso sempre termina... — hesitei.
— Com você comendo a mulher dele?
— Não, claro que não. Só torna difícil manter uma
distância profissional. E, além disso, a ideia não foi só
minha, caso você tenha se esquecido.
— Que falta de cavalheirismo da sua parte.
Não respondi. Continuei fazendo as malas. Seu olhar
acompanhava cada movimento meu.
— E quanto às coisas que lhe contei na noite passada? —
disse ela. — O que pretende fazer a respeito delas?
— Nada.
— Não pode simplesmente ignorá-las.
— Ruth — disse eu, finalmente parando. — Eu sou o
ghost-writer dele, não um repórter investigativo. Se ele
quiser contar a verdade sobre o que está acontecendo,
estou aqui para ajudá-lo. Se não, ótimo. Sou moralmente
neutro.
— Esconder os fatos quando você sabe que algo ilegal
aconteceu não é ser moralmente neutro, é crime.
— Mas eu não sei se aconteceu algo ilegal. Tudo o que
tenho é um número de telefone no verso de uma fotografia
e a fofoca de um velho qualquer que pode muito bem estar
senil. Se alguém tem provas, esse alguém é você. Essa que
é a questão, na verdade: o que você vai fazer a respeito?
— Não sei — disse ela. — Talvez escreva minhas próprias
memórias. “Mulher do Ex-Primeiro-Ministro Revela Tudo.”
Voltei a fazer as malas.
— Bem, se um dia você decidir fazer isso, ligue para
mim.
Ela emitiu uma daquelas risadas guturais que eram sua
marca registrada.
— Você acha mesmo que eu preciso de alguém como
você para escrever um livro?
Então ela se levantou, desfez o nó do cinto e, por um
instante, pensei que fosse ficar nua, mas estava apenas o
afrouxando para colar mais o roupão ao corpo. Ela apertou
bastante o cinto, refazendo o nó, e a determinação daquele
gesto de alguma forma restituiu sua superioridade em
relação a mim. Com aquilo, meu direito de acesso estava
revogado. Sua resolução foi tão firme que me deixou quase
triste e, se ela tivesse estendido os braços, teria sido a
minha vez de me deixar cair contra o seu corpo. Porém, ela
se virou e, com a prática de uma esposa de primeiro-
ministro, puxou o cordão de náilon para abrir a cortina.
— Declaro este dia oficialmente iniciado — disse ela. —
Deus o abençoe, e a todos que tenham de passar por ele.
— Bem — falei, olhando a paisagem —, esta é mesmo a
manhã do dia seguinte.
A chuva havia se misturado à neve e o gramado estava
coberto com os detritos da tempestade — pequenos galhos,
ramos, uma cadeira de bambu branca virada de lado. Aqui e
ali, pelas beiradas da porta, onde havia cobertura, a mistura
de chuva e neve tinha se acumulado e congelado em listras,
como pedaços de embalagem de poliestireno. O único brilho
na escuridão era o reflexo da luz do nosso quarto, que
parecia um disco voador pairando sobre as dunas. Eu podia
ver o rosto de Ruth com bastante clareza no vidro: vigilante,
pensativo.
— Não vou lhe dar entrevista nenhuma — disse ela. —
Não quero estar nesta droga de livro para receber a
condescendência e os elogios dele por intermédio das suas
palavras. — Ela se virou e passou roçando em mim. Parou
na porta do quarto. — Ele está sozinho agora. Vou pedir
divórcio. E então ela pode visitá-lo na prisão.
Ouvi o som da sua porta abrindo e fechando e, logo
depois, o som quase inaudível de uma descarga. Eu estava
quase acabando de fazer as malas. Dobrei as roupas que
ela havia me emprestado na noite anterior e coloquei-as na
cadeira; em seguida, coloquei meu laptop na bolsa a
tiracolo e, então, a única coisa que restava era o
manuscrito. Ele estava em uma pilha grossa sobre a mesa
onde ela o havia deixado, quase oito centímetros mal-
encarados de papel — meu fardo, meu estorvo, meu ganha-
pão. Eu não poderia trabalhar sem ele, mas não deveria
tirá-lo da casa. Ocorreu-me que talvez eu pudesse
argumentar que a investigação sobre crimes de guerra tinha
mudado as circunstâncias da vida de Lang de tal forma que
as regras antigas não se aplicavam mais. De qualquer
forma, poderia usar aquilo como desculpa. Certamente não
aguentaria o constrangimento de ficar ali e topar com Ruth
várias vezes por dia. Coloquei o manuscrito na mala, bem
como o envelope do arquivo, fechei o zíper e saí para o
corredor.
Barry, o agente das Forças Especiais, estava sentando na
cadeira de frente para a porta de entrada com seu livro do
Harry Potter. Ele ergueu o rosto enorme das páginas e me
lançou um olhar aborrecido de censura, com um sorrisinho
de desdém para completar.
— Bom dia, senhor — disse ele. — Chega de trabalho por
uma noite, não chega?
Pensei: Ele sabe. E então pensei também: É claro que ele
sabe, seu idiota; o trabalho dele é saber. Num flash, eu o vi
conversando às risadinhas com seus colegas, o registro das
suas observações oficiais sendo transmitido para Londres,
um comentário discreto em um arquivo qualquer, e senti
uma pontada de fúria e ressentimento. Talvez devesse ter
respondido com uma piscadela ou um ditado em tom
conspiratório — “Bem, oficial, sabe como é: panela velha é
que faz comida boa”, ou algo do gênero —, porém, em vez
disso, respondi friamente:
— Por que você não vai se catar?
Não era exatamente Oscar Wilde, mas me ajudou a sair
da casa. Passei pela porta e segui em direção à trilha,
percebendo com algum atraso que, infelizmente, uma nobre
indignação moral não oferece proteção contra lufadas
cortantes de chuva e neve. Caminhei penosamente por
mais alguns metros, em uma tentativa de manter a
dignidade, depois corri com a cabeça abaixada para me
abrigar a sotavento da casa. Água da chuva transbordava
da calha e se infiltrava no chão arenoso. Tirei meu paletó e
segurei-o sobre a cabeça, pensando em como faria para
chegar até Edgartown. Foi então que a ideia de pegar o Ford
Escape cor de canela emprestado teve a bondade de
pipocar na minha cabeça.
Como a trajetória da minha vida teria sido diferente —
muito diferente — se eu não tivesse imediatamente saído
correndo em direção àquela garagem, desviando das poças
e segurando meu paletó como uma tenda sobre a cabeça
com uma das mãos, enquanto com a outra arrastava minha
pequena mala. Vejo-me agora como se estivesse em um
filme, ou talvez, melhor dizendo, em uma daquelas
reconstituições de programa de TV: a vítima seguindo
inocentemente rumo ao seu destino, enquanto violinos
agourentos compõem a trilha sonora. A porta ainda estava
destrancada do dia anterior e as chaves do Ford estavam na
ignição — afinal, para que se preocupar com ladrões quando
se vive no final de uma trilha de três quilômetros, protegido
por seis guarda-costas armados? Ergui minha mala até o
banco do carona, coloquei meu paletó de volta e deslizei
para trás do volante.
Estava frio como um necrotério, aquele Ford, e
empoeirado como um sótão abandonado. Corri as mãos
sobre o painel de controle não familiar e meus dedos
voltaram empoeirados. Na verdade, não tenho carro —
nunca senti muita necessidade, vivendo sozinho em Londres
—, e nas raras ocasiões em que alugo um, sempre me
parece que outra fileira de engenhocas foi acrescentada, de
modo que o painel de um automóvel de família comum hoje
em dia me parece a cabine de um Jumbo. Havia uma tela
misteriosa à direita do volante, que acendeu quando liguei o
motor. Arcos verdes pulsantes que estavam sendo enviados
da Terra para uma estação espacial em órbita surgiram
nela. Enquanto eu observava, o pulso mudou de direção e
os arcos passaram a descer do céu. Logo em seguida, a tela
mostrou uma seta vermelha grande, um caminho amarelo e
uma listra azul grossa.
Uma voz feminina americana, suave, porém imperativa,
disse, de algum lugar atrás de mim:
“Pegue a estrada assim que possível.”
Eu a teria desligado, mas não conseguia ver como, e
sabia que, provavelmente, o barulho do motor logo faria
Barry vir andando da casa com seus passos pesados para
investigar. A ideia do seu olhar obsceno foi o suficiente para
que eu me mexesse. Engatei rapidamente a ré e saí da
garagem. Em seguida, ajustei os retrovisores, liguei os faróis
e os limpadores de para-brisa, passei a marcha e segui para
o portão. Ao passar pela guarita, a imagem no meu
pequeno monitor de navegação via satélite girou de forma
agradável, como seu eu estivesse jogando um fliperama, e
então a seta vermelha parou no centro do caminho amarelo.
Eu estava fora.
Havia algo de estranhamente tranquilizador em dirigir
vendo todas aquelas pequenas pistas e rotas,
ordenadamente classificadas, aparecendo no topo da tela e
rolando para baixo até desaparecem no fundo. Dava a
impressão de que o mundo era um lugar seguro e ordenado,
com cada uma de suas características rotuladas, medidas e
armazenadas em alguma sala de controle celestial, na qual
anjos de fala mansa vigiavam com bondade os viajantes
abaixo.
“Daqui a 180 metros”, instruiu a mulher, “vire à direita”.
Depois:
“Daqui a 45 metros, vire à direita.”
E, finalmente:
“Vire à direita.”
O manifestante solitário estava aconchegado em sua
barraca, lendo um jornal. Ele se levantou ao me ver no
cruzamento e saiu para a chuva. Percebi que tinha um carro
estacionado lá perto, uma van grande e velha da
Volkswagen, e me perguntei por que ele não ficava dentro
dela. Quando dobrei à direita, dei uma boa olhada no seu
rosto macilento e cinza. Ele estava imóvel e inexpressivo,
dando tanta importância à chuva torrencial quanto uma
escultura de madeira em frente a uma farmácia. Pisei no
acelerador e segui em direção a Edgartown, aproveitando a
ligeira sensação de aventura que dirigir em um país
estrangeiro sempre gera. Minha guia sem corpo ficou em
silêncio mais ou menos pelos seis quilômetros seguintes, e
havia me esquecido completamente dela até que, quando
cheguei às cercanias da cidade, ela começou a falar
novamente:
“Daqui a 180 metros, vire à esquerda.”
Levei um susto com a voz.
“Daqui a 45 metros, vire à esquerda.”
E repetiu, quando chegamos ao cruzamento:
“Vire à esquerda.”
Ela já estava começando a me dar nos nervos.
— Sinto muito — murmurei, pegando a direita em direção
à Main Street.
“Dê meia-volta assim que possível.”
— Isso está ficando ridículo — falei em voz alta e parei o
carro. Apertei vários botões no painel de controle, na
intenção de desligá-lo. A tela mudou e me ofereceu um
menu. Não me lembro de todas as opções. Uma era
INFORMAR UM NOVO DESTINO. A outra, acho, era VOLTAR PARA O
DESTINO INICIAL. E uma terceira — a que estava selecionada
— era RECUPERAR DESTINO ANTERIOR.
Fiquei olhando para ele por alguns instantes, enquanto
as possíveis implicações se infiltravam lentamente em meu
cérebro. Com cautela, pressionei SELECIONAR.
A tela se apagou. O dispositivo obviamente estava com
defeito.
Desliguei o motor e procurei o manual de instruções.
Cheguei até a encarar a chuva com neve e abrir o porta-
malas do Ford para ver se ele estava guardado lá dentro.
Voltei de mãos vazias e liguei a ignição. Novamente, o
sistema de navegação se acendeu. Enquanto ele passava
por sua rotina de inicialização, comunicando-se com a nave
mãe, passei a marcha e comecei a descer a colina.
“Dê meia-volta assim que possível.”
Tamborilei no volante com a ponta dos dedos. Pela
primeira vez na vida, confrontava-me com o verdadeiro
significado da palavra predestinação. Tinha acabado de
passar pela igreja vitoriana. Diante de mim, a colina
mergulhava em direção ao porto. Via-se com algum esforço
alguns mastros brancos através da cortina rendada e suja
de chuva. Eu não estava longe do meu antigo hotel — da
garota com o chapéu de pala branco, das gravuras de
navegação e do velho capitão John Coffin encarando-me
com severidade da parede. Ainda não eram oito da manhã.
Não havia tráfego na estrada. As calçadas estavam
desertas. Continuei descendo a ladeira, passando por todas
as lojas vazias com seus avisos alegres de “fechado para o
inverno, nos vemos no ano que vem!”
“Dê meia-volta assim que possível.”
Com desânimo, me rendi ao destino. Dei a seta, virei em
uma pequena rua residencial — Summer Street, se não me
engano, por mais inapropriado que fosse a rua se chamar
“verão” — e pisei no freio. A chuva castigava o teto do Ford;
o limpador de para-brisa batia para lá e para cá. Um
pequeno terrier branco e preto defecava na sarjeta, com
uma expressão de concentração profunda no seu rosto
velho e inteligente. Seu dono, encapotado demais por causa
da chuva e do frio para que eu pudesse identificar sua idade
ou seu sexo, virou-se desajeitadamente para olhar para
mim, como um astronauta manobrando a si mesmo na lua.
Em uma das mãos, carregava uma pá de catar cocô, na
outra, um saco plástico com merda de cachorro. Voltei
rapidamente de ré para a Main Street, girando o volante
com tanta força que por um instante subi no meio-fio. Com
um emocionante cantar de pneus, comecei a subir a colina
de volta. A seta girou alucinadamente, antes de parar com
satisfação sobre a rota amarela.
Até hoje não sei bem o que exatamente estava passando
pela minha cabeça. Eu não tinha nem como saber ao certo
se realmente havia sido McAra o último motorista a inserir
um endereço no sistema. Poderia ter sido algum dos demais
convidados de Rhinehart; poderia ter sido Dep ou Duc;
poderia ter sido até a polícia. Fosse como fosse, eu
certamente pensava, no fundo, que se as coisas
começassem a ficar remotamente alarmantes, poderia
parar a qualquer momento, e imagino que isso tenha me
dado uma falsa sensação de confiança.
Depois que saí de Edgartown e segui em direção à
Vineyard Haven Road, fiquei vários minutos sem ouvir mais
nada da minha guia celestial. Passei por trechos escuros de
floresta e pequenas casas brancas. Os poucos carros que se
aproximavam estavam com os faróis acesos e seguiam
devagar, zumbindo pela estrada escorregadia por conta da
chuva. Sentei-me bem na ponta do banco, espreitando a
manhã suja. Passei por uma escola secundária, que
começava a se preparar para aquele dia, e pelo semáforo
da ilha (ele aparecia no mapa como uma atração turística:
algo para se visitar durante o inverno), que ficava ao seu
lado. A rua dobrou acentuadamente, as árvores pareceram
se fechar sobre ela; a tela mostrou uma nova série de
nomes sugestivos: Deer Hunter’s Way; Skiff Avenue.
“Daqui a 180 metros vire à direita.”
Em seguida:
“Daqui a 45 metros, vire à direita.”
E por fim:
“Vire à direita.”
Desci a colina até o porto de Vineyard, passando por um
ônibus escolar que subia com dificuldade. Vislumbrei
brevemente uma rua comercial deserta à minha esquerda, e
então estava na área plana e decadente que cercava a
enseada. Dobrei uma esquina, passei por um café e parei
em um estacionamento grande. A cerca de cem metros dali,
além do asfalto enlameado e varrido pela chuva, uma fila de
veículos subia a rampa de uma barca. A seta vermelha
apontava o meu na direção dela.
No calor do Ford, da maneira como era mostrada na tela
de navegação, a rota proposta era convidativa, como o
desenho de uma criança sobre as férias de verão — um píer
amarelo se estendendo pelo azul berrante do porto de
Vineyard. Porém, a realidade que se via através do para-
brisa não era nada atraente: a boca preta aberta da barca,
manchada de ferrugem nas beiradas e, além dela, a
ondulação cinza do mar e o cordame de chuva e neve a se
debater.
Alguém bateu no vidro ao meu lado, e eu tateei em
busca do botão para baixar a janela. Ele usava uma capa de
chuva azul-escura com o capuz levantado, que precisava
segurar firme com uma das mãos para que ele não saísse
voando de sua cabeça. Seus óculos estavam pingando de
chuva. Um distintivo anunciava que ele trabalhava para o
Departamento de Embarcações a Vapor.
— É melhor se apressar — gritou ele, dando as costas
para o vento. — Ela vai sair às 8h15. O tempo está
piorando. A próxima deve demorar a sair. — Ele abriu a
porta para mim e quase me empurrou na direção da
bilheteira. — Vá pagando. Vou dizer a eles que o senhor está
indo.
Deixei o motor ligado e entrei na pequena estação.
Mesmo diante do balcão, ainda estava indeciso. Pela janela,
podia ver os últimos carros embarcando e o funcionário do
estacionamento parado ao lado do Ford, batendo os pés no
chão para se proteger do frio. Ele viu que eu estava olhando
para ele e acenou insistentemente para que eu me
apressasse.
Pela cara da senhora atrás da mesa, ela também parecia
conseguir pensar em lugares melhores para se estar às
8h15 de uma manhã de sexta-feira.
— Vai pegar a barca ou não vai? — perguntou ela.
Soltei um suspiro, peguei minha carteira, atirei cinco
notas de dez na mesa e recebi um bilhete e algumas
moedas de troco.

Depois que subi com o carro a rampa de metal barulhenta


até o interior escuro e oleoso da embarcação, outro homem
com capa de chuva me conduziu até uma vaga, e guiei
devagarzinho para a frente até ele erguer a mão, me
mandando parar. Por todo lado, motoristas saíam de seus
veículos e se espremiam pelos corredores estreitos em
direção às escadas. Fiquei onde estava e continuei tentando
entender como o sistema de navegação funcionava. Porém,
após cerca de um minuto, o tripulante bateu na minha
janela e indicou com gestos que eu precisava desligar o
motor. Quando obedeci, a tela apagou-se novamente. Atrás
de mim, as portas traseiras da barca se fecharam. Os
motores da embarcação começaram a pulsar, o casco se
inclinou e, com um desanimador ranger de metal,
começamos a nos mover.
De repente, senti-me aprisionado, sentando no
crepúsculo frio daquele porão, com seu fedor de diesel e
fumaça de cano de descarga, e a sensação era mais do que
uma simples claustrofobia por estar sob o convés. Era
McAra. Eu podia sentir sua presença ao meu lado. Suas
obsessões tenazes e opressivas agora pareciam ter se
tornado minhas. Ele era como um estranho grandalhão e
burro com o qual você cometeu o erro de conversar durante
uma viagem e que depois se recusa a deixar você em paz.
Saí do carro, tranquei a porta e subi em busca de um café.
No bar do andar de cima, entrei na fila atrás de um homem
que lia o USA Today e, por cima do seu ombro, vi uma foto
de Lang com o secretário de Estado, LANG ENFRENTARÁ
JULGAMENTO POR CRIMES DE GUERRA, era a manchete.
WASHINGTON ACENA COM APOIO. A câmera o pegara sorrindo.
Peguei meu café, fui me sentar em um canto e refleti
sobre até onde minha curiosidade havia me levado. Para
começar, eu era tecnicamente culpado por roubar um carro.
Devia pelo menos ligar para a casa e avisá-los que o
pegara. Porém, aquilo provavelmente envolveria falar com
Ruth, que exigiria saber onde eu estava, o que eu não
queria lhe contar. E também havia a questão de se o que eu
estava fazendo era ou não inteligente. Se eu estava de fato
seguindo o mesmo trajeto de McAra, tinha de encarar o fato
de que ele não tinha voltado vivo daquela viagem. Como
poderia saber o que havia no final do caminho? Talvez
devesse contar meus planos para alguém ou, melhor ainda,
levar outra pessoa comigo como testemunha. Ou talvez
devesse apenas desembarcar em Woods Hole, esperar em
algum bar, pegar a próxima barca para a ilha e planejar a
coisa toda direito, em vez de me lançar no desconhecido tão
despreparado.
Por estranho que pareça, eu não me sentia
especialmente em perigo — talvez por tudo parecer tão
comum. Olhei em volta para o rosto de meus companheiros
de viagem: trabalhadores, em sua maioria, a julgar por suas
calças de brim e botas — sujeitos cansados, que tinham
acabado de fazer uma entrega de manhã cedo na ilha, ou
pessoas indo para o continente para fazer compras. Uma
onda grande bateu na lateral da embarcação, e todos
balançamos juntos, como algas oscilando no fundo mar.
Através da janela coberta de salmoura, a linha cinza e baixa
do litoral e o mar revolto e gelado pareciam completamente
genéricos. Poderíamos estar no Báltico, no canal de Solent
ou no mar Branco — em qualquer extensão sombria de
litoral plano, onde as pessoas têm de encontrar uma
maneira de ganhar a vida no ponto mais extremo da orla.
Alguém saiu para fumar um cigarro no convés, deixando
entrar uma lufada de ar frio e molhado. Não tentei segui-lo.
Tomei outro café e relaxei na segurança da atmosfera
quente, úmida e amarelada do bar, até que, meia hora
depois, passamos pelo farol de Nobska Point e um alto-
falante nos instruiu a voltar para nossos veículos. O convés
arfava sem parar nas ondas e bateu na lateral do cais com
um estrondo que reverberou por toda a extensão do casco.
Fui atirado contra o batente de metal ao pé da escada.
Alguns alarmes de carro começaram a uivar, e minha
sensação de segurança desapareceu, sendo substituída pelo
pânico de que o Ford tivesse sido arrombado. Porém,
quando cambaleei mais para perto dele, o carro parecia
intocado e, ao abrir minha mala para me certificar, vi que as
memórias de Lang ainda estavam lá dentro.
Liguei o motor e quando emergi para a chuva cinza e o
vento de Woods Hole, a tela do satélite já me oferecia seu
familiar caminho dourado. Teria sido simples parar o carro e
entrar em um dos bares próximos dali para tomar o café da
manhã, porém, em vez disso, continuei acompanhando o
tráfego e o deixei me levar adiante — adentrando o inverno
sujo da Nova Inglaterra, subindo a Woods Hole Road até a
Locus Street, a Main Street e além. Tinha meio tanque de
gasolina e o dia inteiro pela frente.
“Daqui a 180 metros, no trevo, pegue a segunda saída.”
Obedeci e, durante os 45 minutos seguintes, segui por
duas grandes autoestradas na direção norte, mais ou menos
refazendo meu trajeto de volta para Boston. Aquilo parecia
solucionar pelo menos uma questão: McAra podia estar
fazendo qualquer coisa pouco antes de morrer, mas não
estava indo para Nova York ver Rycart. Perguntei-me o que
poderia tê-lo atraído a Boston. O aeroporto, talvez? Deixei
minha mente se encher de imagens suas esperando alguém
sair de um avião — vindo da Inglaterra, talvez? —, seu rosto
solene voltado ansiosamente para o céu, uma recepção
apressada no saguão de desembarque e, de lá, para algum
ponto de encontro clandestino. Ou talvez ele tivesse voado
para algum lugar sozinho. Porém, no momento em que
aquele cenário ganhava consistência na minha imaginação,
fui orientado a seguir para o oeste, em direção à rodovia
interestadual 95, e, mesmo com meu parco conhecimento
da geografia de Massachusetts, eu sabia que aquilo me
afastaria do aeroporto Logan e do centro de Boston.
Segui o mais lentamente possível pela estrada ampla por
cerca de 25 quilômetros. A chuva tinha diminuído, mas
ainda estava escuro. O termômetro indicava uma
temperatura de -3,8°C. Lembro-me de grandes extensões
de floresta, intercaladas por lagos, com prédios comerciais e
fábricas de alta tecnologia brilhando intensamente em meio
a áreas ajardinadas, instalados com a delicadeza de um
country club ou de um cemitério. Quando estava
começando a pensar que talvez McAra estivesse tentando
fugir para a fronteira canadense, a voz atrás de mim me
disse para pegar a próxima saída da interestadual, e eu
desci em outra autoestrada grande de seis pistas, que, de
acordo com a tela, era a Concord Turnpike.
Conseguia ver muito pouco através da cortina de
árvores, mesmo que seus galhos estivessem nus. Minha
lentidão estava enfurecendo os motoristas atrás de mim.
Uma série de caminhões enormes se amontoou na minha
traseira, piscando os faróis e buzinando, antes de
manobrarem para me ultrapassar jorrando água suja para
todo lado.
A mulher no banco de trás voltou a falar.
“Daqui a 180 metros, pegue a próxima saída.”
Passei para a pista da direita e desci a estrada
secundária. No fim da curva, me vi em um bairro rústico de
casas grandes, garagens duplas, entradas para carros
largas e gramados sem cercas — um lugar de gente rica
porém amistoso, as casas separadas umas das outras por
árvores, quase todas as caixas de correio exibindo uma fita
amarela em homenagem às Forças Armadas. Se não me
engano, tinha “agradável” até no nome — Pleasant Street.
Uma placa indicava o Belmont Center, e foi mais ou
menos naquela direção que eu segui, por estradas que iam
ficando cada vez menos povoadas à medida que o preço
das propriedades subia. Passei por um campo de golfe e
dobrei à esquerda, entrando em um bosque. Um esquilo
vermelho atravessou a estrada na minha frente, pulando em
cima de uma placa que proibia fogueiras de piquenique, e
foi então que, no meio do que parecia ser lugar nenhum,
meu anjo da guarda finalmente anunciou, em um tom calmo
de inevitabilidade:
“Você chegou ao seu destino.”
Treze

Por ser um entusiasta tão grande da profissão de ghost-


writer, posso ter dado a impressão de que se trata de um
jeito fácil de se ganhar a vida. Neste caso, devo acrescentar
às minhas palavras uma pequena advertência.

Ghostwriting

Parei no acostamento e desliguei o motor. Olhando em volta


para a floresta cerrada e gotejante, senti uma profunda
decepção. Não sabia ao certo o que estava esperando —
não necessariamente uma Garganta Profunda em um
estacionamento subterrâneo, mas certamente mais do que
aquilo. No entanto, McAra tinha me surpreendido mais uma
vez: estamos falando de um homem que supostamente era
mais avesso ao campo do que eu e, no entanto, seu rastro
tinha simplesmente me levado ao paraíso dos amantes de
trilhas.
Saí do carro e tranquei as portas. Depois de duas horas
dirigindo, precisava encher os pulmões com o ar frio e
úmido da Nova Inglaterra. Espreguicei-me e comecei a
descer a estrada molhada. O esquilo observou-me de seu
poleiro do outro lado da rua. Dei alguns passos na direção
dele e bati palmas para o roedorzinho fofo. Ele subiu
correndo uma árvore próxima, balançando o rabo para mim
como um dedo médio inchado. Olhei em volta em busca de
um graveto para jogar nele, então parei. Estava passando
tempo demais sozinho no meio do mato, concluí, enquanto
continuava descendo a estrada. Ficaria feliz em não ouvir o
silêncio profundo e vegetativo de 10 mil árvores por muito
tempo depois daquilo.
Continuei andando por uns 50 metros até chegar a uma
falha quase invisível entre as árvores. Ligeiramente
afastado da estrada, um portão eletrificado de cinco barras
bloqueava o acesso a uma entrada particular para carros,
que fazia uma curva fechada depois de alguns metros e
desaparecia atrás das árvores. Não conseguia ver a casa. Ao
lado do portão, havia uma caixa de correio de metal cinza
sem nenhum nome nela, apenas um número — 3551 — e
um pilar de pedra com um interfone e um teclado numérico.
Um aviso dizia: ESTA ÁREA É PROTEGIDA PELA CYCLOPS SECURITY;
o número de um telefone de ligação gratuita estava escrito
sobre um globo ocular. Depois de hesitar um instante,
apertei a campainha. Enquanto esperava, olhei à minha
volta. Havia uma pequena câmera de vídeo instalada em
um galho próximo dali. Apertei novamente a campainha.
Não houve resposta.
Dei um passo para trás, sem saber ao certo o que fazer.
Passou brevemente pela minha cabeça escalar o portão e
fazer uma inspeção não autorizada da propriedade, mas não
gostei da cara daquela câmera e nem de como Cyclops
Security soava aos meus ouvidos. Percebi que a caixa de
correio estava entupida demais para fechar direito e não vi
mal algum em descobrir o nome do dono da casa. Depois de
olhar mais uma vez para trás e dar de ombros para a
câmera, como se pedisse desculpas, puxei um punhado de
cartas. Estavam endereçadas, de várias maneiras
diferentes, ao Sr. e Sra. Paul Emmett, ao professor e Sra.
Paul Emmett, ao professor Emmett e Nancy Emmett. A
julgar pelos carimbos do correio, parecia que ninguém
apanhava a correspondência havia pelo menos dois dias. Os
Emmett estavam viajando ou... o quê? Estavam mortos lá
dentro? Eu estava desenvolvendo uma imaginação mórbida.
Algumas cartas tinham sido encaminhadas com um adesivo
cobrindo o endereço original. Puxei um deles para trás com
o polegar. Emmett, descobri, era presidente emérito de algo
chamado Instituto Arcadia, que ficava em Washington DC.
Emmett... Emmett... Por algum motivo aquele nome me
era familiar. Enfiei as cartas de volta na caixa e voltei para o
carro. Abri minha mala, peguei o envelope endereçado a
McAra e, dez minutos depois, descobri do que havia me
lembrado vagamente: P. Emmett (St. John’s) fazia parte do
elenco do grupo de teatro amador, na foto com Lang. Ele
era o mais velho, o que eu havia achado que era um aluno
da pós-graduação. Tinha o cabelo mais curto do que os
outros, parecia mais convencional: “quadrado”, como se
dizia naquela época. Era isso que tinha levado McAra tão
longe: pesquisar ainda mais sobre Cambridge? Pensando
melhor, Emmett também era mencionado nas memórias.
Peguei o manuscrito e folheei a parte sobre os dias de
universitário de Lang, mas o nome dele não aparecia ali. Em
vez disso, ele era citado no último capítulo:

Paul Emmett, professor da Universidade de Harvard,


escreveu sobre a excepcional importância dos povos
anglófonos na disseminação da democracia no mundo:
“Enquanto estas nações permanecerem unidas, a
liberdade estará garantida; sempre que elas vacilaram, a
tirania ganhou força.” Concordo profundamente com
este sentimento.

O esquilo voltou e encarou-me com malevolência do


acostamento.
Estranho: essa era a esmagadora sensação que eu tinha
a respeito de tudo naquele momento. Estranho.
Não sei exatamente por quanto tempo fiquei sentado ali.
Lembro-me de que estava tão pasmo que me esqueci de
ligar o aquecedor do Ford e que apenas quando ouvi o som
de outro carro se aproximando percebi quão frio e rígido eu
tinha ficado. Olhei pelo retrovisor e vi dois faróis, então um
carro japonês pequeno passou por mim. Uma mulher
morena, de meia-idade, estava ao volante e, ao seu lado,
um homem por volta dos 60 anos, de óculos, paletó e
gravata. Ele se virou para me olhar, e eu soube
imediatamente que era Emmett, não por tê-lo reconhecido
(o que não foi o caso), mas porque não conseguia imaginar
quem mais estaria passando por uma estrada tão erma
quanto aquela. O carro parou diante da entrada para carros,
e vi Emmett saltar para esvaziar sua caixa de correio. Mais
uma vez, ele olhou na minha direção, e pensei que talvez
fosse vir tirar satisfação comigo. Em vez disso, voltou para o
carro, que seguiu adiante, saindo do meu campo de visão e
indo, ao que tudo indicava, em direção à casa.
Enfiei as fotografias e a página das memórias na minha
bolsa a tiracolo, dei aos Emmetts dez minutos para abrirem
a casa e se instalarem, então liguei o motor e segui até o
portão. Desta vez, quando apertei a campainha, a resposta
veio imediatamente.
— Alô?
Era uma voz feminina.
— Estou falando com a Sra. Emmett?
— Quem fala?
— Eu gostaria, se possível, de falar com o professor
Emmett.
— Ele está muito cansado. — A voz dela era arrastada,
algo entre uma aristocrata inglesa e uma belle do sul dos
Estados Unidos, o que era acentuado pelo som metálico do
interfone.
— Não tomarei muito do tempo dele.
— Você tem hora marcada?
— É sobre Adam Lang. Estou ajudando-o a escrever suas
memórias.
— Aguarde um instante, por favor.
Sabia que eles estariam me observando pela câmera de
vídeo. Tentei assumir uma postura respeitável, condizente
com a situação. Quando o interfone estalou novamente, foi
uma voz masculina, americana, que falou: ressonante,
adocicada, de ator.
— Aqui é Paul Emmett. Acredito que você tenha se
enganado.
— O senhor estudou em Cambridge com o Sr. Lang,
correto?
— Fomos contemporâneos, sim, mas eu não diria que
nos conhecemos.
— Eu tenho uma foto dos senhores juntos em uma peça
do grupo de teatro da faculdade.
Fez-se uma longa pausa.
— Suba até a casa.
Um motor elétrico rangeu e o portão abriu lentamente.
Enquanto eu seguia pela entrada para carros, o casarão
de três andares ia aparecendo por entre as árvores: um
conjunto central de pedra cinza, flanqueado por alas feitas
de madeira e pintadas de branco. A maioria das janelas era
arqueada, com vidro canelado e grandes persianas de ripas
de madeira. Ela poderia ter qualquer idade, de seis meses a
um século. Um pequeno lance de degraus levava a uma
varanda sustentada por pilares, na qual o próprio Emmett
me esperava. A extensão do terreno e as árvores que o
invadiam davam uma grande sensação de isolamento. Parei
diante da garagem, ao lado do carro de Emmett, e saí
carregando minha bolsa.
— Perdoe-me se pareço um pouco grogue — disse
Emmett, depois de trocarmos um aperto de mãos. —
Acabamos de voltar de Washington, e estou me sentindo
um pouco cansado. Geralmente não recebo ninguém sem
hora marcada. Mas sua menção à fotografia atiçou bastante
a minha curiosidade.
Ele se vestia com o mesmo esmero com que falava. Seus
óculos tinham uma armação moderna de casco de
tartaruga, seu paletó era cinza-escuro, a camisa era de um
azul-claro meio esverdeado e a gravata vermelha tinha uma
estampa de faisões em voo; um lenço de seda no bolso de
cima do paletó combinava com ela. Ao me aproximar dele,
pude perceber o jovem que havia por trás dos olhos do
homem mais velho: a idade apenas o embotara, só isso. Ele
não conseguia parar de olhar para a minha bolsa. Sabia que
ele queria que eu retirasse a fotografia ali mesmo nos
degraus da entrada. Porém, eu era esperto demais para
fazer isso. Esperei — e continuei esperando — até ele se ver
obrigado a dizer:
— Certo. Por favor, entre.
A casa tinha um piso de madeira brilhante e cheirava a
cera de polimento e flores secas. Havia um clima sinistro de
abandono nela. Um relógio de pêndulo fazia um tique-taque
alto no patamar. Eu conseguia ouvir sua mulher ao telefone
em outro cômodo.
— Sim — disse ela —, ela está aqui agora.
Então deve ter se afastado. Sua voz ficou indistinta, e
então desapareceu de todo.
Emmett fechou a porta às nossas costas.
— Posso ver? — perguntou ele.
Retirei a fotografia do elenco e a entreguei a ele. Paul
Emmett levantou os óculos até o emaranhado de cabelos
grisalhos e encaminhou-se com ela até a janela do hall.
Parecia em boa forma para a sua idade e imaginei que
praticasse algum esporte regularmente: squash,
provavelmente; golfe, sem dúvida.
— Ora, ora — disse ele, segurando a imagem em preto e
branco sob a luz fraca de inverno, inclinando-a para um lado
e para o outro, fitando-a de cima do seu nariz grande, como
um especialista conferindo se uma pintura é autêntica. —
Eu, absolutamente, não me lembro disso.
— Mas é o senhor?
— Ah, sim. Eu fazia parte do conselho da Dramat nos
anos 1960. Que foi uma época e tanto, como o senhor pode
imaginar. — Ele trocou uma risadinha de cumplicidade com
sua imagem juvenil. — Ah, sim.
— A Dramat?
— Perdão. — Ele ergueu os olhos. — A Associação de
Artes Cênicas de Yale. Pensei que daria prosseguimento ao
meu interesse pelo teatro quando fui para Cambridge, para
minha pesquisa de doutorado. Infelizmente, só consegui
ficar um período no grupo de teatro de lá, antes de a
pressão do trabalho colocar um ponto final na minha
carreira dramática. Posso ficar com isso?
— Infelizmente, não. Mas certamente posso conseguir
uma cópia para o senhor.
— Você faria isso? Seria muita gentileza. — Ele virou a
fotografia e examinou o verso. — Cambridge Evening News.
Precisa me contar como encontrou essa foto.
— Seria um prazer — falei. E, novamente, esperei. Era
como jogar cartas. Ele não abriria o jogo se eu não o
forçasse. O relógio grande tiquetaqueou algumas vezes.
— Venha até o meu escritório — disse ele.
Ele abriu uma porta e eu o segui até uma sala que
parecia ter saído do clube de Rick em Londres: papel de
parede verde-escuro, livros do chão ao teto, escadinha de
biblioteca, mobília de couro marrom estofada demais, um
púlpito de latão em forma de águia, um busto romano; um
leve aroma de charutos. Uma parede era dedicada às
lembranças notáveis: condecorações, prêmios, títulos
honorários e um monte de fotografias. Pude ver Emmett
com Bill Clinton e Al Gore, Emmett com Margaret Thatcher e
Nelson Mandela. Eu lhe diria o nome dos demais se
soubesse quem eram. Um chanceler alemão. Um presidente
francês. Havia também uma fotografia sua com Lang, um
aperto de mão sorridente no que parecia ser um coquetel.
Ele notou que eu estava olhando.
— A parede do ego — disse ele. — Todos temos uma
dessas. Pense nela como o equivalente ao aquário no
consultório de um dentista. Por favor, sente-se.
Infelizmente, posso lhe dar apenas alguns minutos.
Sentei-me no sofá marrom duro enquanto ele assumia a
cadeira do comandante atrás da mesa. Ela deslizava com
facilidade para a frente e para trás. Ele colocou os pés em
cima da mesa, oferecendo-me uma bela vista das solas
ligeiramente gastas de seus sapatos.
— Então — disse. — A foto.
— Estou trabalhando com Adam Lang nas suas
memórias.
— Eu sei. Você disse. Pobre Lang. Um negócio muito sujo,
este embuste em Haia. Quanto a Rycart, a meu ver ele foi o
pior secretário de Relações Internacionais desde a guerra.
Foi um erro terrível tê-lo nomeado. Porém, se o TPI
continuar se comportando de forma tão ridícula, eles vão
conseguir apenas transformar Lang em um mártir, depois
em herói e, daí — acrescentou ele, gesticulando
graciosamente na minha direção —, em um best-seller.
— Qual o seu grau de amizade com ele?
— Com Lang? Mal o conheço. Você parece surpreso.
— Bem, para começar, ele menciona o senhor nas
memórias.
Emmett pareceu genuinamente admirado.
— Agora é minha vez de ficar surpreso. O que ele diz?
— É uma citação, no começo do último capítulo. —
Peguei a página em questão na bolsa. — “Enquanto estas
nações”, o senhor se refere a todas as nações que falam
inglês, “permanecerem unidas”, abre aspas, “a liberdade
estará garantida: sempre que elas vacilarem, a tirania
ganhou forças.” E então Lang diz: “Concordo profundamente
com este sentimento.”
— Bem, é muita gentileza da parte dele — falou Emmett.
— E seus instintos como primeiro-ministro eram bons, na
minha opinião. Mas isso não significa que eu o conhecesse.
— E tem aquilo ali, também — falei, apontando para a
parede do ego.
— Ah, aquilo. — Emmett abanou a mão com desdém. —
É apenas um foto tirada em uma recepção no Claridge’s,
para registrar o décimo aniversário do Instituo Arcadia.
— O Instituto Arcadia? — repeti.
— É uma pequena organização que eu costumava
administrar. Ela é muito seleta. Você não tem motivos para
ter ouvido falar dela. O primeiro-ministro nos honrou com
sua presença. Foi uma coisa meramente profissional.
— Mas o senhor deve ter conhecido Adam Lang em
Cambridge — insisti.
— Não exatamente. Durante um período de verão,
nossos caminhos se cruzaram. Foi só isso.
— O senhor não se lembra bem dele? — Peguei meu
bloco de anotações. Emmett encarou-o como se eu tivesse
sacado um revólver. — Desculpe-me — falei. — O senhor se
importa?
— Em absoluto. Vá em frente. Só estou um pouco
perplexo. Durante todos esses anos, ninguém mencionou
nossa ligação através de Cambridge. Eu mesmo mal tinha
pensado sobre isso até agora. Não acho que possa dizer
nada que valha à pena colocar no papel.
— Mas os senhores atuaram juntos?
— Em uma peça. Um espetáculo de verão. Nem me
lembro mais o nome. O grupo tinha umas cem pessoas.
— Então ele não causou impressão nenhuma no senhor?
— Nenhuma.
— Mesmo ele tendo se tornado primeiro-ministro.
— É claro que se eu soubesse que ele iria chegar a isso,
teria me dado ao trabalho de conhecê-lo melhor. Porém, no
meu tempo, conheci oito presidentes, quatro papas e cinco
primeiros-ministros ingleses, e nenhum deles me pareceu o
que eu chamaria de verdadeiramente extraordinário em
pessoa.
Sim, pensei, mas nunca lhe passou pela cabeça que
talvez eles não o tenham achado grande coisa, também?
Mas não falei isso. O que disse foi:
— Posso lhe mostrar outra coisa?
— Se você achar mesmo que pode me interessar. — Ele
conferiu ostensivamente as horas no relógio.
Peguei as outras fotografias. Olhando-as novamente, era
óbvio que Emmett estava presente em várias delas. Na
verdade, ele era inequivocamente o homem no piquenique
de verão que fazia sinal de positivo com o polegar atrás das
costas de Lang, enquanto o futuro primeiro-ministro fazia
uma imitação de Bogart com seu baseado e recebia
morangos e champanhe na boca.
Estendi o braço e entreguei as fotos a Emmett, que fez
sua pequena atuação afetada novamente, puxando os
óculos para cima para poder analisá-las com os olhos nus.
Eu podia vê-lo agora: sagaz, rosado e imperturbável. A
expressão dele não vacilou, o que me pareceu estranho,
pois a minha certamente teria vacilado, em circunstâncias
semelhantes.
— Minha nossa — falou ele. — Isso é o que eu estou
pensando? Espero que ele não tenha tragado.
— Mas é o senhor que está atrás dele, não é?
— Creio que sim. E creio também que estou prestes a
adverti-lo severamente sobre os perigos do abuso de
drogas. Não consegue perceber as palavras se formando
nos meus lábios? — Ele me devolveu as fotografias e puxou
os óculos de volta para o nariz. Inclinando-se mais para trás
na cadeira, ele me examinou com atenção. — O Sr. Lang
quer mesmo que essas fotos saiam nas memórias? Se ele
quiser, eu preferiria não ser identificado. Meus filhos
ficariam mortificados. Eles são muito mais puritanos do que
eu.
— O senhor saberia me dizer o nome de qualquer outra
pessoa na foto? Da garota, talvez?
— Sinto muito. Aquele verão não passa de um borrão
para mim... um longo e alegre borrão. O mundo podia estar
desmoronando à nossa volta, mas nós estávamos
festejando.
As palavras dele me fizeram lembrar de algo que Ruth
havia dito: sobre todas as coisas que estavam acontecendo
na época em que aquela foto foi tirada.
— O senhor deve ter tido a sorte — falei —, já que estava
em Yale no fim dos anos 1960, de não ter sido convocado
para o Vietnã.
— É como aquele velho ditado: “Se você fosse
endinheirado, não precisava virar soldado.” Fui dispensado
por ser estudante. Agora — disse ele, girando na cadeira e
tirando os pés de cima da mesa. De repente, ficou muito
mais sério. Pegou uma caneta e abriu um bloco de
anotações. — Você estava para me dizer onde conseguiu
essas fotos.
— O nome Michael McAra significa algo para o senhor?
— Não. Deveria?
Ele respondeu só um pouquinho depressa demais,
pensei.
— McAra foi meu predecessor no que diz respeito às
memórias de Lang — falei. — Foi ele quem solicitou as fotos
da Inglaterra. Ele veio de carro até aqui para ver o senhor
umas três semanas atrás e morreu poucas horas depois.
— Veio me ver? — Emmett balançou a cabeça. — Temo
que você esteja enganado. De onde ele estava vindo?
— De Martha’s Vineyard.
— Martha’s Vineyard! Meu caro, não tem ninguém em
Martha’s Vineyard nesta época do ano.
Ele estava me provocando novamente: qualquer pessoa
que tivesse assistido ao noticiário no dia anterior saberia
onde Lang estava hospedado.
— O veículo que McAra estava dirigindo tinha o endereço
do senhor programado no sistema de navegação — falei.
— Bem, não consigo imaginar o porquê disso. — Emmett
acariciou o queixo e pareceu refletir cuidadosamente sobre
a questão. — Não, realmente não consigo. E, mesmo que
isso seja verdade, certamente não prova que ele tenha de
fato feito a viagem. Como ele morreu?
— Afogado.
— Sinto muito. Nunca acreditei no mito de que a morte
por afogamento é indolor, você acredita? Tenho certeza de
que deve ser excruciante.
— A polícia nunca falou com o senhor a respeito disso?
— Não. Não tive nenhum tipo de contato com a polícia.
— Onde o senhor estava no fim de semana dos dias 11 e
12 de janeiro.
Emmett suspirou.
— Um homem menos moderado do que eu estaria
começando a achar suas perguntas insolentes. — Ele saiu
de trás da mesa e caminhou até a porta. — Nancy! —
chamou. — Nosso convidado quer saber onde estávamos no
fim de semana dos dias 11 e 12 de janeiro. Nós temos esta
informação? — Ele ficou parado segurando a porta aberta e
lançou-me um sorriso inamistoso. Quando a Sra. Emmett
surgiu, ele não se deu ao trabalho de me apresentar. Ela
carregava uma agenda.
— Foi o fim de semana que passamos no Colorado —
disse ela, mostrando a agenda ao marido.
— É claro — falou ele. — Estávamos no Instituto Aspen —
disse ele, sacudindo a página para mim. — Relações
bipolares em um mundo multipolar.
— Parece divertido.
— E foi. — Ele fechou a agenda com um estalo que
encerrava a questão. — Eu fui o palestrante principal.
— O senhor passou o fim de semana inteiro lá?
— Eu, sim — disse a Sra. Emmett. — Fiquei para esquiar.
Emmett voltou no domingo, não foi, querido?
— Então o senhor poderia ter encontrado McAra — disse-
lhe.
— Poderia, mas não encontrei.
— Retornando para Cambridge... — comecei a falar.
— Não — retrucou ele, erguendo a mão. — Por favor. Se
você não se importa, gostaria de não retornar para
Cambridge. Já disse tudo o que tinha a dizer sobre o
assunto. Nancy?
Ela devia ser vinte anos mais jovem que Emmett e pulou
ao ser chamada por ele de um jeito que nenhuma primeira
esposa jamais faria.
— Emmett?
— Você poderia acompanhar nosso amigo até a saída?
Enquanto trocávamos um aperto de mãos, ele disse:
— Sou um leitor assíduo de memórias políticas. Com
certeza comprarei o livro de Lang quando for lançado.
— Talvez ele lhe mande um exemplar — falei —, pelos
velhos tempos.
— Duvido muito — respondeu ele. — O portão abrirá
automaticamente. Não se esqueça de pegar à direita no fim
da entrada para carros. Se pegar a esquerda, a estrada o
levará para as profundezas da floresta e o senhor nunca
mais será visto novamente.

A Sra. Emmett fechou a porta às minhas costas antes


mesmo de eu chegar ao último degrau. Eu podia sentir seu
marido me observando da janela do escritório enquanto
andava pela grama úmida até o Ford. No fim da entrada
para carros, enquanto eu esperava o portão abrir, o vento
soprou de repente pelos galhos das árvores altas dos meus
dois lados, fazendo a água da chuva açoitar com violência
todo o carro. Levei um susto tão grande que senti os pelos
da minha nuca se levantarem, transformando-se em
pequenos espinhos.
Parei na estrada vazia e comecei a voltar pelo mesmo
caminho. Sentia-me um pouco nervoso, como se tivesse
acabado de descer um lance de escadas na escuridão e
dado falta dos últimos degraus. Minha prioridade imediata
era deixar aquelas árvores para trás.
“Dê meia-volta assim que possível.”
Parei o Ford, agarrei o sistema de navegação com as
duas mãos e o torci e puxei ao mesmo tempo. Ele se
desgrudou do painel de controle com um barulho
gratificante de cabos se partindo e eu o atirei no vão para
os pés do carona. No mesmo instante, percebi que um carro
preto grande com faróis altos se aproximava por trás de
mim. Ele ultrapassou o Ford rápido demais para que eu
pudesse ver quem estava dirigindo, acelerou até o
cruzamento e desapareceu. Quando olhei para trás, a pista
estava deserta novamente.
É curioso como o medo funciona. Se uma semana antes
tivessem me pedido para prever o que eu faria numa
situação dessas, eu teria dito que voltaria direto para
Martha’s Vineyard e tentaria tirar tudo aquilo da minha
cabeça. Porém, descobri que, na verdade, a natureza
mistura um elemento inesperado de raiva ao medo,
supostamente para incentivar a sobrevivência da espécie.
Como um homem das cavernas diante de um tigre, meu
instinto naquele momento foi não fugir, mas sim, por algum
motivo, voltar até o arrogante Emmett — o tipo de reação
louca e atávica que leva chefes de família normalmente
sãos a perseguir ladrões armados pela rua, na maioria das
vezes com consequências desastrosas.
Então, em vez de agir com sensatez e tentar encontrar o
caminho de volta para a interestadual, segui as placas até
Belmont, uma cidade desenvolvida, arborizada e rica, de
uma limpeza e ordem aterrorizantes — o tipo de lugar em
que você precisa de licença até para ter um gato. As ruas
bem cuidadas, com seus mastros de bandeiras e veículos
com tração nas quatro rodas, passavam uma atrás da outra,
aparentemente idênticas. Segui pelos bulevares, sem
conseguir me encontrar, até que finalmente cheguei a algo
que parecia ser o centro da cidade. Desta vez, quando
estacionei o carro, levei minha mala comigo.
Eu estava em uma rua chamada Leonard Street, na qual
uma série de lojas bonitas com toldos coloridos contornava
um pano de fundo de árvores grandes e desfolhadas. Um
dos prédios era rosa. Uma camada de neve, derretida nas
pontas, cobria os telhados cinza. Poderia ser uma estação
de esqui. Ela me oferecia várias coisas das quais eu não
precisava — um agente imobiliário, um joalheiro, um
cabeleireiro — e uma de que eu precisava: um cyber café.
Pedi um café e um bagel e sentei-me o mais longe possível
da janela. Coloquei minha mala na cadeira à minha frente,
para desencorajar qualquer pessoa que pensasse em se
sentar comigo, beberiquei meu café, dei uma mordida no
meu bagel, cliquei no Google, digitei “Paul Emmett”
“Instituto Arcadia” e inclinei-me em direção à tela.

De acordo com o www.arcadiainstitution.org, o Instituto


Arcadia foi fundado, em agosto de 1991, no quinquagésimo
aniversário da primeira reunião de cúpula entre o primeiro-
ministro Winston S. Churchill e o presidente Franklin D.
Roosevelt, em Placentia Bay, Newfoundland. Havia uma
fotografia de Roosevelt no convés de um encouraçado
americano, usando um elegante terno cinza, recebendo
Churchill, que era cerca de uma cabeça mais baixo e vestia
um estranho uniforme naval azul-escuro amarrotado e um
quepe para completar. Ele parecia um jardineiro-chefe
matreiro cumprimentando um proprietário de terras local.
O objetivo da instituição, segundo a página na internet,
era “aprofundar as relações anglo-americanas e fomentar
os eternos ideais da democracia e da liberdade de
expressão que as duas nações sempre defenderam em
tempos de paz e guerra”. Isto seria conquistado “por meio
de seminários, ações políticas, conferências e iniciativas de
desenvolvimento de lideranças”, assim como pela
publicação de uma revista semestral, The Arcadian Review,
e pelo financiamento de dez Bolsas Arcadia, concedidas
anualmente, para pesquisas de pós-graduação sobre
“assuntos culturais, políticos e estratégicos de interesse
mútuo para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos”. O
Instituto Arcadia possuía escritórios em St. James Square,
Londres, e em Washington, e os nomes que constavam em
seu conselho de administração — ex-embaixadores,
presidentes de corporações, professores de universidade —
pareciam uma lista de convidados para a festa mais
entediante que você suportaria na sua vida.
Paul Emmett foi o primeiro presidente e diretor-executivo
da instituição, e a página na internet oferecia, de forma
muito útil, sua vida em um parágrafo: nascido em Chicago,
em 1949, formado pela Universidade Yale e pelo St. John’s
College, Cambridge (bolsista da Rhodes); palestrante sobre
política externa na Universidade Harvard, 1975-79 e,
subsequentemente, professor de relações internacionais,
1979-91; posteriormente fundador do Instituto Arcadia;
presidente emérito desde 2007; publicações: Para onde
vais: o relacionamento especial 1940-1956, O enigma da
mudança; Perdendo impérios, descobrindo papéis: alguns
aspectos das relações EUA-Reino Unido desde 1956; As
correntes de Prometeu: limitações da política externa na era
nuclear; A geração triunfante: América, Inglaterra e a nova
ordem mundial; Por que estamos no Iraque. Havia um perfil
na revista Time, que descrevia seus hobbies como sendo
squash, golfe e as óperas de Gilbert & Sullivan, “que ele e
sua segunda esposa, Nancy Cline, uma analista de
segurança de Houston, Texas, geralmente pedem que seus
convidados representem no final de seus famosos jantares
na próspera cidade-dormitório de Belmont, MA”.
Vasculhei as primeiras das 37 mil entradas que o Google
prometia sobre Emmett e o Arcadia.

Mesa-redonda sobre a Política no Oriente Médio —


Instituto Arcadia
O estabelecimento da democracia na Síria e no Irã...
Paul Emmett em sua palestra de abertura afirmou sua
crença...
www.arcadiainstitution.org/site/roundtable/A56fL%2004.h
tm — 35k — Em cache — Páginas semelhantes

Instituto Arcadia — Wikipédia, a enciclopédia livre


O Instituto Arcadia é uma organização sem fins
lucrativos anglo-americana fundada em 1991 sob a
presidência do professor Paul Emmett...
en.wikipedia.org/wiki/Arcadia_Institution — 35k — Em
cache — Páginas semelhantes

Instituto Arcadia/Grupo Estratégico Arcadia —


SourceWatch
O Instituto Arcadia descreve a si mesmo como
dedicado a fomentar... O professor Paul Emmett, um
especialista em assuntos anglo-americanos...
www.sourcewatch.org/index.php?title=Arcadia_Institution
— 39k — Em cache — Páginas semelhantes

USATODAY.com — 5 Perguntas para Paul Emmett


Paul Emmett, ex-professor de relações internacionais
em Harvard, agora comanda o influente Instituto
Arcadia...
www.usatoday.com/world/2002-08-07/questions_x.htm?
tab1.htm — 35k — Em cache — Páginas semelhantes

Quando fiquei entediado com aquela ladainha sobre


seminários e conferências de verão, mudei minha pesquisa
para “Instituto Arcadia” “Adam Lang” e encontrei uma
matéria na página do Guardian sobre a recepção de
aniversário do instituto e o comparecimento do primeiro-
ministro. Mudei para o Google Imagens e recebi um mosaico
de imagens bizarras: um gato, uma dupla de acrobatas de
collant, um cartum de Lang respirando em um saco com a
legenda: “Prestes a ser humilhado.” Este era o problema
com a pesquisa na internet, pela minha experiência. A
proporção entre o que é útil e o que é lixo degringola muito
depressa, e de repente é como se você estivesse
procurando por algo que caiu pelo vão de trás do sofá e
achasse um punhado de moedas, botões, sujeira e doces
chupados. O importante é fazer a pergunta certa, e de
algum modo eu percebi que estava indo pelo caminho
errado.
Parei para esfregar meus olhos doloridos. Pedi outro café
e outro bagel e dei uma olhada nos outros clientes. Eram
poucos, levando-se em conta que era hora de almoço: um
senhor com seu jornal, um homem e uma mulher de 20 e
poucos anos de mãos dadas, duas mães — ou, mais
provavelmente, babás — fofocando enquanto seus três
bebês brincavam discretamente debaixo da mesa e dois
rapazes com cabelo cortado à escovinha, que poderiam ser
das Forças Armadas, ou de um dos serviços de emergência,
talvez (eu tinha visto um corpo de bombeiros lá perto):
estavam todos sentados em banquinhos no balcão, as
costas viradas para mim, conversando animadamente.
Retornei à página do Instituto Arcadia e cliquei no
conselho administrativo. E então todos eles vieram à tona,
como espíritos conjurados das vastas profundezas
transatlânticas: Steven D. Engler, ex-secretário de Defesa
dos EUA; lorde Leghorn, ex-secretário de Relações
Internacionais britânico; Sir David Moberly, GCMG, KCVO, o
centenário ex-embaixador britânico em Washington;
Raymond T. Streicher, ex-embaixador americano em
Londres; Arthur Prussia, presidente e diretor-executivo do
Grupo Hallington; professor Mel Crawford, da John F.
Kennedy School of Government; Dame Unity Chambers, da
Fundação de Estudos Estratégicos; Max Hardaker, da
Godolphin Securities; Stephanie Cox Morland, diretora
sênior da Manhattan Equity Holdings; Sir Milius Rapp, da
Faculdade de Economia de Londres; Cornelius Iremonger, da
Cordesman Industriais; e Franklin R. Dollerman, sócio
principal da McCosh & Partners.
Diligentemente, comecei a digitar seus nomes, juntos
com o de Adam Lang, na ferramenta de busca. Engler havia
elogiado a coragem inabalável de Lang na página de
opinião do New York Times. Leghorn havia feito um discurso
constrangido na Câmara dos Lordes, lamentando a situação
no Oriente Médio, porém chamando o primeiro-ministro de
“um homem honesto”. Moberly sofrera um derrame e não
tinha nada a dizer. Streicher tinha expressado seu apoio na
época em que Lang viajou até Washington para receber sua
Medalha Presidencial da Liberdade. Eu estava começando a
me cansar de todo aquele processo quando digitei Arthur
Prussia. Foi então que encontrei um press release de um
ano atrás.

LONDRES — O Grupo Hallington tem o prazer de anunciar


que Adam Lang, o ex-primeiro-ministro da Grã-Bretanha,
se juntará à companhia como consultor estratégico.
O cargo do Sr. Lang, que não será em tempo integral,
envolverá o fornecimento de consultoria e assessoria a
investidores sênior do Grupo Hallington em todo o
mundo.
Segundo Arthur Prussia, presidente e diretor-executivo
do Grupo: “Adam Lang é um dos estadistas mais
respeitados e experientes do mundo, e estamos
honrados de poder contar com sua vasta experiência.”
Adam Lang disse: “Recebo de braços abertos o
desafio de trabalhar com uma companhia de alcance
global, comprometida com a democracia e de renomada
integridade como o Grupo Hallington.”

Eu nunca tinha ouvido falar do Grupo Hallington, então


fui pesquisar. Seiscentos funcionários; 24 escritórios em
todo o mundo; meros quatrocentos investidores, quase
todos sauditas — e 35 bilhões de dólares em caixa. A
listagem das companhias controladas por ele parecia ter
sido selecionada por Darth Vader. Os subsidiários do Grupo
Hallington produziam bombas de fragmentação, morteiros
de autopropulsão, mísseis interceptadores, helicópteros
antitanque, bombardeiros com asas de geometria variável,
tanques, centrífugas nucleares, porta-aviões. Ele era dono
de uma companhia que fornecia segurança para
empreiteiras no Oriente Médio, de outra que executava
operações de vigilância e checagem de dados nos Estados
Unidos e em todo o mundo e de uma construtora
especializada em bunkers e pistas de decolagem. Dois
membros do seu conselho principal haviam sido diretores da
CIA.
Sei que a internet é a mãe dos delírios de todos os
paranoicos. Sei que ela coloca tudo no mesmo pacote — Lee
Harvey Oswald, princesa Diana, al-Qaeda, Israel, MI6,
círculos que aparecem no meio de plantações — e o amarra
com belas fitas azuis de hyperlinks, criando uma grande e
única conspiração. Mas também sei da sabedoria daquele
velho ditado de que um paranoico é simplesmente uma
pessoa que conhece todos os fatos, e quando digitei
“Instituto Arcadia” “Grupo Hallington” “CIA”, notei que algo
estava começando a vir à tona, como os contornos de um
navio-fantasma, da neblina de dados na tela.

washingtonpost.com: Jato do Grupo Hallington


relacionado aos “voos de tortura” da CIA
A companhia negou qualquer conhecimento do programa
de “captura extraordinária” da CIA... membro do
conselho do prestigioso Instituto Arcadia...
www.washingtonpost.com/ac2/wp-dyn/A27824-
2007Dec26language= — Em cache — Páginas
semelhantes

Cliquei na matéria e desci a barra de rolagem até a parte


que me interessava:

O jato Gulfstream IV do Grupo Hallington foi fotografado


clandestinamente — menos o logotipo da empresa — na
base militar de Stare Kiejkuty, na Polônia, onde a CIA
manteria um centro de detenção secreto, no dia 18 de
fevereiro.
Isto aconteceu dois dias depois de quatro cidadãos
britânicos — Nasir Ashraf, Shakeel Qazi, Salim Khan e
Faruk Ahmed — terem sido supostamente raptados por
agentes da CIA em Peshawar, no Paquistão. Segundo
informações, o Sr. Ashraf morreu de falência cardíaca
depois de ser submetido à técnica de interrogatório
conhecida como “water boarding”.
Entre fevereiro e julho daquele mesmo ano, o jato fez
51 visitas a Guantánamo e 82 visitas ao Aeroporto
Internacional Washington Dulles, além de aterrissagens
na base aérea de Andrews, fora da capital, e em bases
aéreas americanas, em Ramstein e Rhein-Main, na
Alemanha.
A caixa-preta do avião também registra visitas ao
Afeganistão, Marrocos, Dubai, Jordânia, Itália, Japão,
Suíça, Azerbaijão e República Tcheca.
O logotipo do Grupo Hallington estava visível em
fotografias tiradas em uma exposição de aviões em
Schenectady, NY, em 23 de agosto, oito dias depois de o
Gulfstream voltar para Washington de um voo que deu a
volta ao mundo, incluindo paradas em Anchorage;
Osaka, Japão; Dubai e Shannon.
O logotipo não estava visível quando o Gulfstream foi
fotografado durante uma parada para abastecimento,
em Shannon, no dia 27 de setembro. Porém, quando o
avião chegou ao Aeroporto Internacional de Denver, em
fevereiro deste ano, uma foto mostrava que ele trazia
não só o logotipo do Grupo Hallington, como também um
novo número de registro.
Um porta-voz do grupo confirmou que o Gulfstream
havia sido alugado com frequência para outros
operadores, mas insistiu em que a companhia não tinha
conhecimento dos usos que foram feitos dele.

Water boarding? Eu nunca tinha ouvido falar daquilo.


Parecia bastante inofensivo, uma espécie de esporte
exclusivo dos americanos, uma mistura de windsurfe com
rafting. Procurei em um site.

Water boarding consiste em amarrar com firmeza um


prisioneiro em uma tábua inclinada, de maneira que seus
pés fiquem mais altos que a cabeça, imobilizando-o por
completo. Um pedaço de pano ou celofane é então usado
para cobrir o rosto do prisioneiro, sobre o qual o
interrogador derrama um fluxo constante de água.
Embora um pouco do líquido possa entrar nos pulmões
da vítima, é a sensação psicológica de se estar debaixo
d’água que torna o water boarding tão eficiente. Um
reflexo de vômito é desencadeado, o prisioneiro sente
que está literalmente se afogando e quase
imediatamente pede para ser libertado. Agentes da CIA
que foram submetidos ao water boarding como parte do
seu treinamento suportaram uma média de 14 segundos
antes de sucumbir. O prisioneiro mais imperturbável da
al-Qaeda e suposto mentor dos ataques de 11 de
setembro, Khalid Sheik Mohammed, ganhou a admiração
dos seus interrogadores da CIA ao conseguir suportar
dois minutos e meio antes de começar sua confissão.
O water boarding pode causar dores fortes e danos
aos pulmões e ao cérebro graças à falta de oxigenação,
fraturas e deslocamentos nos membros graças ao
esforço para se libertar e traumas psicológicos
duradouros. Em 1947, um oficial japonês foi condenado
por crime de guerra a 15 anos de trabalhos forçados por
ter submetido um cidadão americano ao water boarding.
De acordo com uma investigação realizada pela ABC
News, a CIA autorizou o início da utilização do water
boarding em meados de março de 2002 e recrutou um
grupo de 14 interrogadores treinados na técnica.

Havia uma ilustração do Camboja de Pol Pot de um


homem amarrado pelos pulsos e tornozelos a uma mesa
inclinada, deitado de costas, de cabeça para baixo. Ele tinha
um saco na cabeça. Seu rosto estava sendo encharcado por
um homem que segurava um regador. Em uma outra
fotografia, um suspeito vietnamita, preso ao chão, recebia
um tratamento semelhante de três soldados americanos
que usavam água de uma garrafa. O soldado com a garrafa
estava sorrindo. O homem sentado na cadeira do prisioneiro
segurava um cigarro casualmente entre o segundo e
terceiro dedos da mão direita.
Recostei-me na minha cadeira e pensei em várias coisas.
Pensei, especialmente, no comentário de Emmett sobre a
morte de McAra — que se afogar não era indolor, mas
excruciante. Naquela hora, pareceu-me estranho que um
professor dissesse uma coisa daquelas. Flexionando os
dedos, como um pianista de concerto que se prepara para
tocar um movimento final desafiador, digitei uma nova
pesquisa na ferramenta de busca: “Paul Emmett” “CIA”.
Imediatamente, a tela se encheu de resultados, todos
eles, à primeira vista, lixo: artigos e resenhas de livros
escritos por Emmett nos quais ele calhava de mencionar a
CIA; artigos de outras pessoas sobre a CIA que também
continham referências a Emmett; artigos sobre o Instituto
Arcadia em que as palavras “CIA” e “Emmett” apareciam.
Devo ter passado por trinta ou quarenta entradas ao todo,
até chegar a uma que parecia promissora.

A CIA na Academia
A Agência Central de Inteligência atualmente está
usando várias centenas de acadêmicos americanos...
Paul Emmett...
www.spooks-on-campus.org/Church/listK1897a/html —11
k — Em cache — Páginas semelhantes

O cabeçalho da página dizia “Em quem Frank estava


pensando???” e começava com uma citação do relatório do
comitê legislativo sobre a CIA do senador Frank Church,
publicado em 1976:

A Agência Central de Inteligência atualmente está


usando centenas de acadêmicos americanos
(“acadêmicos” inclui funcionários administrativos,
professores e estudantes da pós-graduação que fazem
parte do corpo docente) que, além de fornecerem pistas
e, quando necessário, apresentarem pessoas para fins de
inteligência, ocasionalmente escrevem livros e outros
materiais que são usados para propaganda no exterior.
Além disso, um pequeno grupo adicional é usado
involuntariamente para atividades menores.

Abaixo, em ordem alfabética, havia uma lista com links


para cerca de vinte nomes. Um deles era o de Emmett e,
quando cliquei nele, me senti como se tivesse caído em um
alçapão.

Segundo o informante da CIA Frank Molinari, Paul


Emmett, formado em Yale, entrou para a CIA como
agente em 1969 ou 1970, sendo designado para a
Divisão de Recursos Internacionais do Diretório de
Operações. (Fonte: Dentro da Agência, Amsterdã, 1977)

— Ah, não — falei baixinho. — Não, não. Isso não pode


estar certo.
Devo ter ficado um minuto inteiro olhando para a tela,
até que o barulho repentino de uma louça se quebrando me
arrancou dos meus devaneios. Olhei em volta e vi que uma
das crianças que estavam brincando debaixo da mesa havia
derrubado tudo. Enquanto uma garçonete vinha correndo
com uma pá de lixo e uma vassoura e as babás (ou mães)
ralhavam com as crianças, percebi que os dois homens de
cabelo à escovinha no balcão não estavam dando a menor
atenção àquele pequeno drama: em vez disso, olhavam
fixamente para mim. Um deles estava com um celular na
orelha.
Muito calmamente — torci para que mais calmamente do
que eu estava me sentindo — desliguei o computador e fingi
dar um último gole no café. O líquido tinha esfriado
enquanto eu trabalhava, e eu o senti gelado e amargo nos
lábios. Então, peguei minha mala e coloquei uma nota de
vinte dólares na mesa. Já estava pensando que, se alguma
coisa acontecesse comigo, a garçonete aborrecida
certamente se lembraria do inglês solitário que pegara a
mesa mais longe da janela e dera uma gorjeta
absurdamente alta. Não faço a mínima ideia de que bem
isto poderia me fazer, mas me pareceu inteligente na hora.
Fiz questão de não olhar para os dois homens de cabelo à
escovinha quando passei por eles.
Na rua, sob a luz cinza e fria, com o Starbucks de toldo
verde algumas portas para trás, o tráfego que passava
lentamente (“Bebê a Bordo: Por favor, Dirija com Atenção”)
e os pedestres idosos com seus chapéus e luvas de pele,
pude imaginar por um instante que havia passado a última
hora jogando algum jogo caseiro de realidade virtual. Mas
então a porta do café se abriu atrás de mim e os dois
homens saíram. Subi depressa a rua em direção ao Ford e,
assim que estava atrás do volante, tranquei-me lá dentro.
Quando olhei pelos retrovisores, não consegui ver nenhum
dos meus companheiros de café.
Fiquei parado por algum tempo. Sentia-me mais seguro
simplesmente sentado ali. Fantasiei que, talvez, se eu
ficasse na mesma posição por tempo suficiente, de alguma
forma seria absorvido por osmose pela vida pacífica e
próspera de Belmont. Poderia fazer o que todos aqueles
aposentados se dedicavam a fazer — jogar uma partida de
bridge, talvez, ou assistir a um filme na matinê, ou passear
pela biblioteca local para ler os jornais e balançar a cabeça
diante da maneira como o mundo estava todo indo para o
inferno, agora que minha geração imatura e mimada estava
no comando. Fiquei olhando as mulheres com seus cabelos
recém-cortados saírem do cabeleireiro e tatearem de leve
seus penteados. O jovem casal que antes estava de mãos
dadas no café examinava alianças na vitrine da joalheria.
E quanto a mim? Eu sentia uma pontada de
autocomiseração. Estava apartado de toda aquela
normalidade como se estivesse em uma bolha de vidro.
Retirei as fotografias do envelope novamente e peguei a
de Lang e Emmett juntos no palco. Um futuro primeiro-
ministro e um suposto agente da CIA desfilando com luvas e
chapéus em um espetáculo cômico? Parecia não só
improvável, como grotesco, mas lá estava a prova nas
minhas mãos. Virei a fotografia e analisei o número escrito
no verso, e quanto mais o analisava, mais óbvio parecia que
só havia uma atitude a tomar. O fato de que eu iria,
novamente, seguir os passos de McAra era inevitável.
Esperei os jovens amantes entrarem na joalheria e então
peguei meu celular. Desci a barra de rolagem até onde o
número estava gravado e liguei para Richard Rycart.
Catorze

Metade do trabalho do ghost-writer é descobrir sobre a vida


de outras pessoas.

Ghostwriting

Dessa vez, ele atendeu em poucos segundos.


— Então você ligou de volta — disse com tranquilidade,
naquela sua voz nasalada e monocórdia. — De certa forma,
tinha a sensação de que ligaria, seja você quem for. Poucas
pessoas têm esse número. — Ele esperou que eu
respondesse. Eu conseguia ouvir um homem falando ao
fundo... dando uma palestra, pareceu-me. — Bem, meu
amigo, vai ficar na linha desta vez?
— Vou — respondi.
Ele esperou novamente, mas eu não sabia como
começar. Não parava de pensar em Lang — no que ele
pensaria se me visse falando com o seu aspirante a
nêmesis. Eu estava quebrando todas as regras do manual
dos ghost-writers. Estava violando o termo de
confidencialidade que havia assinado com Rhinehart. Era
um suicídio profissional.
— Tentei ligar para você algumas vezes — continuou ele.
Detectei um quê de repreensão.
Do outro lado da rua, os jovens amantes haviam saído da
joalheria e andavam na minha direção.
— Eu sei — disse, encontrando finalmente minha voz. —
Desculpe-me. Eu encontrei o seu número anotado em um
lugar. Não sabia de quem era, então arrisquei ligar. Não me
pareceu correto falar com o senhor.
— E por que não?
O casal passou. Eu os segui pelo retrovisor. Estavam com
as mãos um no bolso de trás do outro, como batedores de
carteira em um encontro às escuras.
Mergulhei de cabeça.
— Estou trabalhando para Adam Lang. Meu...
— Não diga seu nome — apressou-se ele em dizer. — Não
use nenhum nome. Não especifique nada. Onde exatamente
encontrou meu número?
A pressa dele me irritou.
— No verso de uma fotografia.
— Que tipo de fotografia?
— Da época em que meu cliente estava na universidade.
Ela estava com meu antecessor.
— Estava com ele? Deus do céu. — Então foi a vez de
Rycart fazer uma pausa. Ouvi pessoas aplaudindo do outro
lado da linha.
— O senhor parece chocado — falei.
— Sim, bem, isso explica algo que ele havia me dito.
— Eu fui ver uma das pessoas na fotografia. Pensei que
talvez pudesse me ajudar.
— Por que você não conversa com o seu empregador?
— Ele está viajando.
— É claro que está. — Sua voz traía um sorriso de
satisfação. — E onde você está? Sem ser muito específico.
— Na Nova Inglaterra.
— Você conseguiria vir até a cidade em que eu estou,
imediatamente? Sabe onde eu estou, certo? Onde eu
trabalho?
— Imagino que sim — falei, em dúvida. — Tenho um
carro. Poderia ir com ele.
— Não — disse Rycart —, não venha de carro. Voar é
mais seguro do que pegar a estrada.
— Isso é o que dizem as companhias aéreas.
— Preste atenção, meu amigo — sussurrou ele,
ferozmente —, se eu estivesse no seu lugar, não estaria
fazendo piadas. Vá até o aeroporto mais próximo. Pegue o
primeiro avião disponível. Mande uma mensagem de texto
para mim com o número do voo, e mais nada. Vou mandar
alguém buscá-lo quando você aterrissar.
— Mas como eles vão saber quem sou eu?
— Eles não vão saber. Você é quem vai ter de achá-los.
Houve uma explosão renovada de aplausos ao fundo.
Tentei começar a levantar uma nova objeção, mas era tarde
demais. Ele tinha desligado.

Saí de Belmont sem fazer a mínima ideia de como pegar a


rota que deveria seguir. Conferia o espelho retrovisor
neuroticamente a cada poucos segundos, mas, se estava
sendo seguido, não conseguia perceber. Vários carros
diferentes apareceram atrás de mim, mas nenhum pareceu
ficar lá por mais do que alguns minutos. Fiquei atento às
placas para Boston e, algum tempo depois, atravessei um
rio grande e peguei a interestadual, na direção leste.
Ainda não eram três da tarde, mas o dia já começava a
escurecer. À minha esquerda, ao longe, os prédios
comerciais brilhavam dourados contra um céu atlântico
intumescido, enquanto mais adiante as luzes dos aviões
grandes caíam em direção ao Logan como estrelas
cadentes. Mantive minha habitual velocidade prudente
pelos próximos poucos quilômetros. O aeroporto Logan,
para os que nunca tiveram o prazer de conhecê-lo, fica no
meio do porto de Boston, e quem vem do sul chega a ele
por um túnel aparentemente interminável. À medida que a
estrada descia para a pista subterrânea, eu me perguntava
se iria mesmo levar aquilo até o fim, e o fato de que, mais
de um quilômetro e meio depois, quando voltei à superfície
para a penumbra mais espessa da tarde, ainda não havia
decidido dava uma boa medida da minha incerteza.
Segui as placas até o estacionamento e estava entrando
de ré em uma vaga quando meu telefone tocou. O número
de chamada era desconhecido. Quase não atendi. Quando o
fiz, uma voz agressiva perguntou:
— O que diabos você está fazendo?
Era Ruth Lang. Ela tinha aquela presunção de começar
uma conversa sem falar primeiro quem estava ligando: uma
falta de educação da qual — eu tinha certeza — seu marido
nunca tinha sido culpado, nem mesmo quando era primeiro-
ministro.
— Trabalhando — respondi.
— É mesmo? Você não está no hotel.
— Não estou?
— Você está? Eles me disseram que nem fez o check in.
Procurei uma mentira adequada e acabei usando uma
meia-verdade.
— Decidi ir para Nova York.
— Por quê?
— Achei melhor me encontrar com John Maddox,
conversar sobre a estrutura do livro, tendo em vista —
decidi que precisava de um eufemismo diplomático — as
novas circunstâncias.
— Fiquei preocupada com você — disse ela. — Passei o
dia inteiro andando para cima e para baixo nessa praia de
merda pensando na nossa conversa da noite passada...
Eu a interrompi.
— Eu não falaria nada a respeito disso por telefone.
— Não se preocupe, não vou falar. Não sou uma
completa idiota. É só que, quanto mais repasso as coisas na
minha cabeça, mais preocupada eu fico.
— Onde está Adam?
— Ainda em Washington, até onde eu sei. Ele continua
tentando me ligar e eu continuo não atendendo. Quando
você volta?
— Não tenho certeza.
— Hoje à noite?
— Vou tentar.
— Volte, se conseguir. — Ela baixou a voz: imaginei que o
guarda-costas estivesse por perto. — É a noite de folga de
Dep. Eu vou cozinhar.
— Isso era para ser um incentivo?
— Seu grosso — disse ela, soltando uma risada. Então
desligou tão abruptamente quanto tinha ligado, sem se
despedir.
Dei umas batidinhas nos dentes com o telefone. A
perspectiva de uma conversa confidente diante da lareira
com Ruth, e de talvez ser envolvido por seu abraço vigoroso
uma segunda vez, não deixava de ter seus atrativos. Eu
poderia dizer a Rycart que tinha mudado de ideia. Indeciso,
tirei minha mala do carro e arrastei-a pelas poças em
direção ao ônibus que esperava no ponto. Uma vez dentro
dele, acomodei-a ao meu lado e analisei o mapa do
aeroporto. Naquele momento, outra escolha me foi
apresentada. Terminal B — o avião para Nova York e Rycart
— ou Terminal E: partidas internacionais e um voo noturno
de volta para Londres? Não tinha pensado naquela
possibilidade antes. Tinha meu passaporte e tudo o mais.
Poderia simplesmente dar o fora.
As portas do ônibus se abriram com um suspiro profundo.
Desci no Terminal B, comprei minha passagem, enviei
uma mensagem de texto para Rycart e peguei o avião da
US Airways para o aeroporto La Guardia.

Por algum motivo, nosso avião sofreu atraso na decolagem.


Taxiamos no horário, mas então paramos pouco antes da
pista, abrindo passagem com cavalheirismo para deixar a
fila de jatos atrás de nós nos ultrapassar. Olhei pela janela
para a grama achatada e para o mar e o céu como duas
chapas soldadas. Veios claros de águas pulsavam contra o
vidro. A cada vez que um avião decolava, a pele fina da
cabine tremia e os veios quebravam e voltavam a se juntar.
O piloto surgiu no sistema de comunicação interna e pediu
desculpas: segundo ele, estava havendo algum problema
com o nosso certificado de segurança. O Departamento de
Segurança Interna tinha acabado de elevar o nível do
sistema de alerta de amarelo (elevado) para laranja (alto), e
ele agradecia nossa paciência. A irritação cresceu entre os
homens de negócios à minha volta. O olhar do homem ao
meu lado encontrou o meu por cima da beirada do seu
jornal cor-de-rosa e ele balançou a cabeça.
— Pior impossível — disse ele.
Ele dobrou seu Financial Times, largou-o no colo e fechou
os olhos. A manchete era LANG GANHA APOIO DOS EUA, e lá
estava aquele sorriso novamente. Ruth tinha razão. Ele não
devia ter sorrido. Aquilo tinha rodado o mundo.
Minha mala pequena estava no compartimento de
bagagem sobre minha cabeça, meus pés descansavam na
bolsa a tiracolo debaixo do assento à minha frente. Tudo
estava em ordem. Porém, eu não conseguia relaxar. Sentia-
me culpado, mesmo sem ter feito nada de errado. Meio que
esperava que o FBI invadisse o avião e me arrastasse para
fora. Depois de cerca de 45 minutos, de repente os motores
começaram a rugir outra vez, e o piloto quebrou o silêncio
do rádio para anunciar que finalmente tínhamos recebido
permissão para decolar e novamente nos agradeceu pela
compreensão.
Seguimos pela pista e ganhamos as nuvens, e meu
cansaço era tão grande que, apesar da ansiedade — ou
talvez por causa dela —, eu caí no sono. Acordei com um
espasmo quando senti alguém se inclinado sobre o meu
corpo, mas era apenas o comissário de bordo, conferindo se
meu cinto de segurança estava colocado. Parecia-me que
não tinha ficado inconsciente por mais do que alguns
segundos, mas a pressão nos meus ouvidos me disse que já
estávamos nos aproximando para aterrissar no La Guardia.
Tocamos o solo às 18h06 — lembro-me exatamente da hora:
olhei no relógio — e às 18h20 eu já estava evitando a
multidão impaciente em volta da esteira de bagagens e
saindo do portão de desembarque.
Era um fim de tarde agitado, e as pessoas estavam
ansiosas para chegar ao centro ou em casa para o jantar.
Passei os olhos pela desconcertante sucessão de rostos,
perguntando a mim mesmo se o próprio Rycart não teria
vindo me receber, mas não conseguia reconhecer ninguém.
A habitual fileira lúgubre de motoristas estava à espera,
segurando os nomes dos passageiros contra seus
respectivos peitos. Eles olhavam direto para a frente,
evitando contato visual, como suspeitos enfileirados para
reconhecimento, enquanto eu, como uma testemunha
nervosa, andava diante deles, examinando-os com atenção,
querendo ter certeza. Rycart havia insinuado que eu
reconheceria a pessoa certa quando a visse, e foi o que eu
fiz, com meu coração quase parando. Ele estava separado
dos demais, dentro de seu próprio espaço — rosto pálido,
cabelo negro, alto, forte, 50 e poucos anos, em um terno de
loja de departamentos que lhe caía mal —, e segurava um
pequeno quadro-negro com “Mike McAra” escrito a giz. Até
seus olhos eram como eu imaginara os de McAra: ardilosos
e sem cor.
Ele estava mascando um chiclete. Acenou a cabeça para
a minha mala.
— Você pode levar isso.
Era uma afirmação, não uma pergunta, mas não dei
importância. Nunca tinha me sentido tão feliz em ouvir um
sotaque nova-iorquino na vida. Ele virou-se de costas e eu o
segui pelo saguão até sairmos no pandemônio da noite:
gritos, apitos, portas batendo, gente lutando para pegar um
táxi, sirenes ao longe.
Ele trouxe o carro até ali, baixou a janela e gesticulou
para que eu entrasse rápido. Enquanto eu lutava para
colocar minha mala no banco de trás, ele olhava direto para
a frente, as mãos no volante, sem dar corda para conversa.
Não que tivesse havido muito tempo para conversar. Mal
saímos do perímetro do aeroporto e já estávamos parando
diante de um hotel grande de fachada de vidro e um centro
de conferências dando vista para a Grand Central Parkway.
Ele grunhiu ao virar seu corpo pesado para trás para falar
comigo. O carro fedia ao seu suor, e tive um instante de
puro terror existencial quando olhei para além dele, através
da garoa, para aquele prédio sombrio e sem nome: o que,
em nome de Deus, eu estava fazendo?
— Se precisar entrar em contato, use isto — disse ele,
dando-me um celular novo em folha, ainda na sua
embalagem de polietileno. — Tem um chip com vinte
dólares de crédito nele. Não use seu celular antigo. A coisa
mais segura a fazer é desligá-lo. Você vai pagar o seu
quarto adiantado, em dinheiro. Tem o suficiente? Vai dar
umas trezentas pratas.
Assenti.
— Você vai ficar uma noite. Tem uma reserva no seu
nome. — Ele arrancou sua carteira gorda do bolso de trás.
— Este é o cartão que você vai usar para fazer o check in.
Use um endereço no Reino Unido que não seja o seu. Se
houver algum extra, não se esqueça de pagar em dinheiro.
Este é o número de telefone que você vai usar para fazer
contato no futuro.
— Você era policial antes — falei. Peguei o cartão de
crédito e uma tira de papel na qual havia um número escrito
em letra infantil. O papel e o plástico estavam quentes com
o calor do seu corpo.
— Não use a internet. Não fale com estranhos. E,
principalmente, evite qualquer mulher que tente se
aproximar de você.
— Você está parecendo minha mãe.
O rosto dele continuou impassível. Ficamos sentados ali
por alguns segundos.
— Bem — disse ele, com impaciência. Acenou sua mão
grande na minha direção. — É isso.
Assim que passei pela porta giratória e entrei no lobby,
conferi o nome no cartão. Clive Dixon. Uma grande
conferência tinha acabado de terminar. Um monte de
delegados vestindo ternos pretos com crachás amarelos
berrantes atravessavam numa enxurrada a grande extensão
de mármore branco, tagarelando entre si como um bando
de corvos. Eles pareciam ávidos, confiantes, motivados,
com os ânimos recém-renovados para alcançarem suas
metas corporativas e objetivos pessoais. Vi pelos seus
crachás que pertenciam a uma igreja. Sobre nossas
cabeças, enormes globos de luz de vidro estavam presos ao
teto, reluzindo nas paredes de cromo. Eu já não estava
apenas além da minha competência; estava a anos-luz dela.
— Imagino que eu tenha uma reserva — falei para o
atendente à mesa — em nome de Dixon.
Aquele não era um pseudônimo que eu teria escolhido.
Não consigo me ver como um Dixon, seja lá o que um Dixon
for. Porém, o recepcionista não pareceu se incomodar com o
meu constrangimento. Eu estava no computador dele, e isso
era tudo com que ele se importava, de modo que meu
cartão foi aceito. O quarto custava 275 dólares. Preenchi
meu formulário de reserva e dei como endereço falso o
número da casinha com varanda de Kate em Shepherd’s
Bush e a rua do clube de Rick em Londres. Quando falei que
queria pagar em dinheiro, ele pegou as notas entre o
indicador e o polegar como se fossem a coisa mais estranha
que tinha visto na vida. Dinheiro? Se eu tivesse amarrado
uma mula na sua mesa e oferecido peles de animais e
cajados que havia passado o inverno inteiro entalhando
como pagamento, ele não teria ficado tão impressionado.
Recusei quando quiseram me ajudar com a bagagem,
peguei o elevador até o sexto andar e enfiei a chave
eletrônica na porta. Meu quarto era bege e suavemente
iluminado por abajures, com uma vista para além da Grand
Central Parkway até o La Guardia e o negrume insondável
do East River. A TV estava tocando “I’ll Take Manhattan”
com uma mensagem que dizia “Bem-vindo a Nova York, Sr.
Nixon”. Eu a desliguei e abri o frigobar. Nem me dei ao
trabalho de procurar um copo. Tirei a tampa e bebi direto da
garrafa em miniatura.
Deve ter sido depois de uns vinte minutos e uma
segunda garrafa em miniatura que meu novo telefone ficou
azul de repente e começou a emitir um ruído eletrônico
ligeiramente agourento. Saí de onde estava na janela para
atendê-lo.
— Sou eu — disse Rycart. — Você já está instalado?
— Estou — respondi.
— Está sozinho?
— Sim.
— Abra a porta, então.
Ele estava parado no corredor, com o celular na orelha.
Ao seu lado, o motorista que havia me buscado no La
Guardia.
— Certo, Frank — disse Rycart para o seu subordinado. —
Eu assumo a partir daqui. Fique de olho no lobby.
Rycart guardou o telefone no bolso do seu sobretudo
enquanto Frank caminhava penosamente em direção aos
elevadores. Ele era o que minha mãe teria chamado de “um
bonitão, e sabe muito bem disso”: tinha um perfil que
impressionava, olhos azuis apertados acentuados por um
bronzeado alaranjado e aquela cascata de cabelos
penteados para trás que os cartunistas tanto adoravam.
Parecia ter bem menos de 60 anos. Acenou a cabeça para a
garrafa vazia na minha mão.
— Dia difícil?
— Pode-se dizer que sim.
Ele entrou no quarto sem esperar ser convidado, foi
direto para a janela e fechou as cortinas. Eu fechei a porta.
— Peço desculpas pelo local — disse ele —, mas costumo
ser reconhecido em Manhattan. Especialmente depois de
ontem. Frank cuidou bem de você?
— Raras vezes fui tão calorosamente recebido.
— Sei do que você está falando, mas ele é útil. Ex-
policial. É responsável pela logística e segurança para mim.
No momento, não sou o garoto mais popular do bairro,
como você pode imaginar.
— Quer beber alguma coisa?
— Água está ótimo.
Ele rondou pelo quarto enquanto eu lhe servia um copo.
Conferiu o banheiro e até o armário.
— O que foi? — falei. — Está achando que isso é uma
armadilha?
— Passou pela minha cabeça. — Ele desabotoou o
sobretudo e estendeu-o cuidadosamente na cama. Imaginei
que seu terno Armani tivesse custado mais ou menos o
dobro da renda anual de um pequeno vilarejo africano. —
Vamos encarar os fatos, você trabalha para Lang.
— Meu primeiro contato com ele foi na segunda — disse.
— Nem o conheço.
Rycart riu.
— E quem conhece? Se foram apresentados na segunda,
você provavelmente o conhece tão bem quanto qualquer
outra pessoa. Trabalhei para ele por 15 anos, e certamente
não tenho a mínima ideia do que se passa na sua cabeça.
Mike McAra também não tinha... e estava com ele desde o
início.
— A mulher dele insinuou mais ou menos a mesma coisa.
— Bem, então pronto. Se alguém tão inteligente quanto
Ruth não o entende, e, pelo amor de Deus, ela é casada
com ele, que esperança o restante de nós pode ter? O
homem é um mistério. Obrigado. — Rycart pegou a água e
deu um gole, pensativo, me analisando. — Mas você parece
estar começando a destrinchá-lo.
— Para ser franco, parece que sou eu que estou sendo
destrinchado.
— Vamos nos sentar — disse Rycart, dando um tapinha
no meu ombro —, e você pode me contar tudo.
O gesto me fez lembrar de Lang. O charme de um
grande homem. Eles me faziam sentir como um peixinho
nadando em meio a tubarões. Teria de manter minhas
defesas erguidas. Sentei-me cuidadosamente em uma das
duas poltronas pequenas — era bege, como as paredes.
Rycart sentou-se de frente para mim.
— Então — disse ele. — Como começamos? Você sabe
quem eu sou. Quem é você?
— Sou um ghost-writer profissional — respondi. — Fui
contratado para reescrever as memórias de Adam Lang
depois que Mike McAra morreu. Não entendo nada de
política. É como se eu tivesse ido parar atrás do espelho.
— Conte-me o que você descobriu.
Até eu era esperto demais para fazer isso. Demorei
bastante para responder.
— Talvez o senhor pudesse me falar sobre McAra antes —
falei.
— Se você preferir. — Rycart deu de ombros. — O que
posso dizer? Mike era o funcionário perfeito. Se você
colocasse uma roseta naquela mala ali e lhe dissesse que
ela era o líder do partido, ele a seguiria. Todo mundo achava
que Lang o despediria assim que se tornasse um líder para
trazer seu próprio homem. Mas Mike era útil demais. Ele
conhecia o partido de cabo a rabo. O que mais você quer
saber?
— Como ele era como pessoa?
— Como ele era como pessoa? — Rycart lançou-me um
olhar estranho, como se aquela fosse a pergunta mais
esquisita que já tinha ouvido na vida. — Bem, ele não tinha
vida fora da política, se é disso que você está falando, então
se poderia dizer que Lang era tudo para ele: mulher, filhos,
amigos. Mais o quê? Ele era um homem obsessivo,
detalhista. Quase tudo que Adam não era. Talvez tenha sido
por isso que Mike durou, fazendo todo o caminho até
Downing Street e todo o caminho de volta novamente,
muito depois de todos os outros terem pedido as contas e
ido embora para fazer algum dinheiro. Nada de cargos
corporativos sofisticados para Mike. Ele era muito leal a
Adam.
— Nem tão leal assim — falei. — Não se ele esteve em
contato com o senhor.
— Ah, mas isso só é verdade muito no final. Você
mencionou uma fotografia. Posso vê-la?
Quando peguei o envelope, seu rosto tinha a mesma
expressão gananciosa de Emmett, porém, quando ele viu a
foto, não conseguiu esconder sua decepção.
— É isso? — disse ele. — Só um bando de garotos
brancos privilegiados fazendo um número de dança?
— É um pouco mais interessante do que isso — falei. —
Para começar, por que seu número de telefone está no
verso?
Rycart lançou-me um olhar malicioso.
— Por que exatamente eu deveria ajudá-lo?
— Por que exatamente eu deveria ajudá-lo?
Ficamos olhando um para o outro. Depois de um tempo,
ele sorriu, revelando dentes brancos grandes e brilhantes.
— Você deveria ter sido político — disse ele.
— Estou aprendendo com o melhor.
Rycart fez uma pequena mesura, pensando que eu
estava falando dele, mas, na verdade, era Lang que eu
tinha em mente. Vaidade, esta era a sua fraqueza, percebi.
Eu podia imaginar a habilidade com que Lang o bajulara,
bem como o golpe que devia ter sido para o seu ego ser
despedido. E, agora, com seu rosto fino, seu nariz imenso e
aqueles olhos penetrantes, ele estava tão determinado a
conseguir sua vingança quanto qualquer amante
abandonado. Ele se levantou e foi até a porta. Conferiu o
corredor nas duas direções. Quando voltou, parou na minha
frente, apontando um dedo bronzeado bem na minha cara.
— Se você me trair — falou —, vai pagar por isso. E caso
duvide da minha capacidade de guardar rancor e, no final,
acertar as contas, pergunte a Adam Lang.
— Certo — falei.
Àquela altura, ele já estava agitado demais para ficar
quieto, e aquilo foi outra coisa que só percebi naquele
instante: a pressão à qual ele estava submetido. Você tinha
de dar o braço a torcer. Era preciso alguma coragem para
arrastar o ex-líder de seu partido e primeiro-ministro até um
tribunal de crimes de guerra.
— Essa coisa do TPI — disse ele, andando para cima e
para baixo diante da cama — só chegou aos jornais na
semana passada, mas, acredite, eu venho correndo atrás
disso por debaixo dos panos há anos. Iraque, captura,
tortura, Guantánamo, o que tem sido feito nesta suposta
Guerra contra o Terror é ilegal mediante a lei internacional,
da mesma forma como tudo o que aconteceu em Kosovo ou
na Libéria. A única diferença é a seguinte: somos nós que
estamos fazendo. A hipocrisia é de dar engulhos.
Ele pareceu perceber que estava começando um
discurso que já havia feito muitas vezes antes e se
interrompeu. Bebeu um gole d’água.
— Enfim, retórica é uma coisa e apresentar provas é
outra completamente diferente. Eu pude sentir o clima
político mudando: isso foi útil. Cada vez que uma bomba
explodia, cada vez que outro soldado morria, cada vez que
ficava um pouco mais claro que tínhamos começado outra
Guerra dos Cem Anos sem ter a mínima ideia de como
terminá-la, as coisas pendiam mais para o meu lado. Já não
era mais inconcebível que um líder político do Ocidente
pudesse acabar no banco dos réus. Quanto maior ficava a
bagunça que ele deixava atrás de si, mais as pessoas
estavam dispostas a vê-la, queriam vê-la. O que eu
precisava era apenas de uma prova que pudesse ser aceita
dentro dos parâmetros legais, um só documento com seu
nome nele bastaria, e eu não tinha isso.
“E então, de repente, pouco antes do Natal, lá estava
ela. Nas minhas mãos. Simplesmente veio pelo correio. Sem
nem mesmo uma carta de apresentação. ‘Confidencial:
Memorando do primeiro-ministro para o secretário de
Defesa do Estado.’ Era um documento de cinco anos atrás,
escrito na época em que eu ainda era secretário de
Relações Internacionais, mas eu não fazia nem ideia da
existência dele. Aquilo, sim, era uma arma quente; por
Deus, o cano ainda estava pelando. Uma ordem do
primeiro-ministro britânico para que aqueles quatro pobres-
diabos fossem apanhados das ruas do Paquistão pelas SAS
e entregues à CIA.”
— Um crime de guerra — falei.
— Um crime de guerra — concordou ele. — De pequeno
porte, tudo bem. Mas e daí? No fim das contas, eles só
conseguiram pegar Al Capone por sonegação de impostos.
Isso não significava que Capone não fosse um gângster. Fiz
algumas verificações discretas para confirmar a
autenticidade do memorando, então o levei para Haia
pessoalmente.
— O senhor não fazia ideia de onde ele tinha saído?
— Não. Não até meu informante anônimo me ligar para
contar. E espere só para ver quando Lang ficar sabendo
quem era. Isso vai ser o pior de tudo. — Ele se inclinou mais
para perto de mim. — Mike McAra!
Pensando agora, acho que eu já sabia disso. Porém,
suspeitar é uma coisa, receber a confirmação é outra, e
testemunhar o júbilo de Rycart naquele momento era
compreender o grau da traição de McAra.
— Ele me telefonou! Dá para acreditar nisso? Se
qualquer pessoa tivesse previsto que eu um dia eu
receberia ajuda justamente de McAra, eu teria gargalhado
na cara dela.
— Quando ele ligou?
— Umas três semanas depois de eu receber o
documento. Oito de janeiro? Nove? Por aí. “Olá, Richard.
Recebeu o presente que eu lhe enviei?” Quase tive um
enfarto. Então eu tive de fazê-lo calar a boca depressa.
Porque é claro que você sabe que todas as linhas telefônicas
da ONU são grampeadas, certo?
— São? — Eu ainda estava tentando digerir tudo.
— Oh, completamente. A Agência Nacional de Segurança
monitora cada palavra que é transmitida no hemisfério
ocidental. Cada sílaba que você diz em um telefone, cada e-
mail que você envia, cada transação com cartão de crédito
que você faz, é tudo gravado e armazenado. O único
problema é fazer a triagem disso tudo. Na ONU, somos
informados que o jeito mais fácil de contornar o
monitoramento é usar telefones celulares descartáveis,
tentar evitar mencionar detalhes e mudar de número com a
maior frequência possível; assim, conseguimos ficar pelo
menos um pouco à frente deles. Portanto, eu disse para
Mike parar por ali mesmo. Depois lhe dei um número
novinho em folha, que eu nunca tinha usado antes, e pedi
que ele me ligasse de volta imediatamente.
— Ah — falei. — Agora estou vendo. — E estava mesmo.
Conseguia visualizar perfeitamente. McAra com o telefone
preso entre o ombro e a orelha, segurando sua caneta
esferográfica barata. — Ele deve ter escrito o número no
verso da foto que estava segurando na hora.
— E então daí me ligou — disse Rycart. Ele tinha parado
de andar e estava se olhando no espelho sobre a cômoda.
Colocou as duas mãos na testa e alisou o cabelo para trás
das orelhas. — Cristo, estou um bagaço — falou. — Olhe só
para mim. Nunca cheguei a esse ponto quando estava no
governo, nem quando estava trabalhando 18 horas por dia.
Sabe, as pessoas entendem tudo errado. Não é o poder que
deixa as pessoas exauridas; fatigante é não ter poder.
— O que McAra disse quando ligou?
— A primeira coisa que me chamou a atenção foi que ele
não parecia nem um pouco o McAra de sempre. Você me
perguntou como ele era. Bem, não era nada sutil, e isso,
obviamente, era o que Adam gostava nele: ele sabia que
sempre podia contar com Mike para fazer o trabalho sujo.
Ele era ríspido, sério. Quase brutal, você poderia dizer,
especialmente ao telefone. O pessoal do meu gabinete
costumava chamá-lo de McMedonho: “McMedonho acabou
de ligar para o senhor...” Porém, naquele dia, eu me lembro,
a voz dele estava completamente fora de tom. Ele soava
arrasado, na verdade. Disse que havia passado o ano
anterior nos arquivos de Cambridge, trabalhando nas
memórias de Adam, repassando todo o nosso período no
governo, e que havia ficado cada vez mais desiludido com
tudo. Falou que foi lá que encontrou o memorando sobre a
Operação Tempestade. Porém, o verdadeiro motivo de sua
ligação, segundo ele, era informar que aquilo era apenas a
ponta do iceberg. Pelo que disse, ele havia descoberto algo
muito mais importante, algo que explicava tudo que dera
errado enquanto estávamos no poder.
Eu mal conseguia respirar.
— O que era?
Rycart deu uma gargalhada.
— Bem, estranhamente, foi o que eu lhe perguntei, mas
ele não quis me contar pelo telefone. Disse que queria me
encontrar para conversarmos cara a cara: para você ver o
tamanho da coisa. Falou apenas que a chave para aquilo
poderia ser encontrada na autobiografia de Lang, se alguém
se desse o trabalho de conferir... que estava tudo lá no
começo.
— Essas foram as palavras exatas dele?
— Basicamente. Anotei enquanto ele falava. E então foi
isso. Ele disse que me ligaria em um ou dois dias para
marcar um encontro. Porém, não tive notícias, e então, mais
ou menos uma semana depois, os jornais noticiaram sua
morte. E ninguém nunca mais me ligou naquele telefone,
porque nenhuma outra pessoa tinha o número. Então você
pode imaginar por que fiquei tão empolgado quando ele
começou a tocar de novo de repente. E aqui estamos nós —
disse ele, gesticulando para o quarto —, no lugar perfeito
para se passar uma noite de quinta-feira. E, agora, acho que
você deveria me contar exatamente o que diabos está
acontecendo.
— Eu vou contar. Mas antes, só mais uma coisa. Por que
o senhor não contou isso para a polícia?
— Você está brincando, certo? O debate em Haia estava
em um estágio muito delicado. Se eu tivesse contado que
McAra havia entrado em contato comigo, naturalmente eles
iriam querer saber o motivo. Então, a coisa estaria fadada a
voltar para Lang, e ele teria sido capaz de tomar alguma
atitude preventiva contra o Tribunal de Crimes de Guerra.
Ele ainda é um jogador e tanto, você sabe. Aquela
declaração que veiculou contra mim anteontem... “A luta
internacional contra o terror é importante demais para ser
usada em prol de vinganças pessoais domésticas”... nossa...
— ele tremeu, admirado... — foi cruel.
Eu me contorci um pouco na cadeira, mas Rycart não
pareceu notar. Havia voltado a se examinar no espelho.
— Além disso — falou ele, jogando o queixo para frente
—, para mim, a versão de que Mike tinha se matado, fosse
porque estava deprimido, ou bêbado, ou os dois, já havia
sido aceita. Eu teria apenas confirmado o que eles já
sabiam. Ele certamente estava em péssimo estado quando
me ligou.
— E eu posso lhe dizer por quê — falei. — O que ele tinha
acabado de descobrir era que um dos homens naquela
fotografia com Lang, em Cambridge, a foto que McAra tinha
em mãos quando falou com o senhor, era um agente da CIA.
Rycart estava analisando seu perfil. Ele parou. Sua testa
se enrugou. E então, com muito vagar, ele virou o rosto
para mim.
— Ele era o quê?
— O nome dele é Paul Emmett. — De repente, não
conseguia falar depressa o bastante. Estava absolutamente
desesperado para tirar aquele peso das minhas costas,
dividi-lo com alguém, deixar alguma outra pessoa tentar
entender o que aquilo significava. — Mais tarde, ele se
tornou professor em Harvard. Então foi administrar algo
chamado Instituto Arcadia. O senhor já ouviu falar desse
instituto?
— Já ouvi falar, claro que sim, e sempre quis distância
daquele lugar, exatamente porque sempre achei que ele
tinha CIA escrito na testa.
Rycart sentou-se. Parecia chocado.
— Mas isso é mesmo plausível? — perguntei. — Não sei
como essas coisas funcionam. Uma pessoa pode se juntar à
CIA e depois ser imediatamente enviada para fazer uma
pesquisa de pós-graduação em outro país?
— Eu diria que isso é altamente plausível. Quer disfarce
melhor que esse? E que lugar é melhor do que uma
universidade para se ver o futuro com mais precisão e
clareza? — Ele estendeu a mão. — Mostre-me a fotografia
de novo. Qual deles é Emmett?
— Pode ser tudo besteira — avisei, apontando Emmett na
foto. — Não tenho provas. Apenas encontrei o nome dele
em uma dessas páginas paranoicas de internet. Lá se dizia
que ele se juntou à CIA após sair de Yale, o que deve ter
sido uns três anos depois de essa fotografia ter sido tirada.
— Ah, mas eu acredito — disse Rycart, examinando-o
com atenção. — Na verdade, agora que você falou, acho
que já ouvi uma fofoca sobre isso antes. Porém, o mundo do
circuito internacional de conferências está apinhado deles.
Eu os chamo de “o complexo militar-industrial-acadêmico”.
— Ele sorriu para a própria espirituosidade, então ficou sério
novamente. — O que é verdadeiramente suspeito é ele ter
conhecido Lang.
— Não — falei —, o que é verdadeiramente suspeito é
que, poucas horas depois de McAra localizar Emmett na sua
casa perto de Boston, ele foi encontrado morto em uma
praia em Martha’s Vineyard.
Depois disso, contei a ele tudo o que eu havia descoberto.
Contei-lhe a história sobre as marés e as luzes de lanterna
na praia em Lambert’s Cove, bem como sobre a curiosa
maneira como a investigação policial havia sido conduzida.
Contei-lhe a versão de Ruth da briga de McAra com Lang na
véspera de sua morte e a respeito da relutância de Lang em
falar sobre seu período em Cambridge, e a maneira como
ele tentou esconder o fato de que havia se tornado
politicamente ativo logo depois de deixar a universidade em
vez de dois anos mais tarde. Descrevi como McAra, com sua
habitual minúcia e tenacidade, havia descoberto isso tudo,
revirando detalhe atrás de detalhe que aos poucos
destruíram o relato de Lang sobre sua juventude: que,
presumivelmente, foi isso que ele quis dizer quando falou
que a chave para tudo estava no começo da autobiografia.
Contei-lhe sobre o sistema de navegação via satélite do
Ford e sobre como ele havia me levado até a porta de
Emmett, e como Emmett tinha se comportado
estranhamente.
E, é claro, quanto mais eu falava, mais empolgado Rycart
ia ficando. Imagino que era como se o Natal tivesse
chegado para ele.
— Vamos imaginar — disse ele, andando de um lado para
o outro novamente —, que tenha sido Emmett quem sugeriu
para Lang que ele deveria pensar em fazer carreira na
política. Convenhamos, alguém deve ter colocado a ideia
naquela cabecinha dele. Eu era membro júnior do partido
desde os 14 anos de idade. Em que ano Lang entrou?
— Mil novecentos e setenta e sete.
— Setenta e sete! Está vendo? Faz todo o sentido. Você
se lembra como era a Inglaterra em 1975? As agências de
segurança estavam fora de controle, espionando o primeiro-
ministro. A economia estava em colapso. Tivemos as
greves, os protestos. Não seria exatamente uma surpresa
que a CIA decidisse recrutar algumas cabeças jovens e
brilhantes e incentivá-las a fazer carreira em lugares
estratégicos: no funcionalismo público, na mídia, na política.
Afinal de contas, é isso que eles fazem no mundo inteiro.
— Mas certamente não na Inglaterra — falei. — Somos
um aliado.
Rycart olhou para mim com desdém.
— A CIA estava espionando estudantes americanos
naquela época. Você acha mesmo que eles teriam
escrúpulos em espionar os nossos? É claro que eles
estavam em atividade na Inglaterra! Ainda estão. Eles têm
um chefe de operações em Londres e uma equipe enorme.
Agora mesmo posso lhe dar o nome de uma dúzia de
membros do Parlamento que estão em contato constante
com a CIA. Na verdade... — Ele parou de andar e estalou os
dedos. — Aí está! — Ele girou o corpo e olhou para mim. —
O nome Reg Giffen lhe diz algo?
— Vagamente.
— Reg Giffen, Sir Reginald Giffen, posteriormente lorde
Giffen e atualmente morto, graças a Deus, passou tanto
tempo discursando na Câmara dos Comuns em prol dos
americanos que costumávamos chamá-lo de Membro de
Michigan. Ele anunciou sua renúncia como parlamentar na
primeira semana da campanha das eleições gerais de 1983,
o que foi uma surpresa para todos, exceto para um jovem
membro do partido, muito empreendedor e fotogênico, que
tinha acabado de chegar àquela zona eleitoral seis meses
antes.
— E que então conseguiu a indicação para ser o
candidato do partido, com o apoio de Giffen — falei —, e
que depois ganhou uma das cadeiras mais seguras do país
quando tinha apenas 30 anos de idade. — A história era
lendária. Foi o começo da ascensão de Lang em âmbito
nacional. — Mas o senhor acha mesmo que a CIA pediu para
Giffen mexer os pauzinhos para que Lang pudesse entrar no
Parlamento? Isso me parece bastante forçado.
— Ah, por favor! Use sua imaginação! Imagine que você
é o professor Emmett e agora está de volta a Harvard,
escrevendo asneiras incompreensíveis sobre a aliança entre
os povos anglófonos e a necessidade de se combater a
ameaça comunista. Você tem ou não tem, potencialmente,
o agente mais extraordinário da história nas suas mãos? Um
homem que já começa a ser cogitado como futuro líder do
partido? Um possível primeiro-ministro? Você não vai
convencer os detentores do poder na Agência a fazerem
tudo o que puderem para impulsionar a carreira deste
homem? Eu mesmo já estava no Parlamento quando Lang
chegou. Eu o testemunhei vir do nada e nos deixar a todos
comendo poeira. — Ele fechou o rosto diante da lembrança.
— Claro que ele teve ajuda. Não tinha nenhuma verdadeira
ligação com o partido. Não conseguíamos nem começar a
entender o que o motivava.
— Sem dúvida é este o problema dele — falei. — Ele não
tinha uma ideologia.
— Ele podia não ter uma ideologia, mas aposto o que
você quiser que tinha uma pauta. — Rycart sentou-se
novamente. Ele se inclinou na minha direção. — Certo. Vou
lhe fazer uma pergunta. Fale para mim uma decisão que
Adam Lang tenha tomado como primeiro-ministro que não
fosse de interesse dos Estados Unidos da América.
Fiquei mudo.
— Vamos lá — disse ele. — Não é uma pegadinha. É só
me dizer uma coisa que ele tenha feito que Washington não
teria aprovado. Vamos pensar. — Ele ergueu o polegar. —
Um: envio de tropas britânicas para o Oriente Médio,
contrariando quase todos os comandantes seniores das
nossas Forças Armadas e todos os nossos embaixadores
que conhecem a região. Dois — e lá estava o seu indicador
direito —, fracasso total em exigir qualquer forma de quid
pro quo da Casa Branca em relação a contratos de
reconstrução para empreiteiras britânicas ou a qualquer
outra coisa. Três: apoio irrestrito à política externa
americana no Oriente Médio, mesmo sendo claramente uma
loucura para nós nos colocarmos contra todo o mundo
árabe. Quatro: implantação de um sistema de defesa
antimíssil americano em solo britânico que não faz
absolutamente nada para a nossa segurança; na verdade,
faz o contrário: nos torna um alvo mais óbvio para um
primeiro ataque... e só pode fornecer proteção para os EUA.
Cinco: a compra, por 50 bilhões de dólares, de um sistema
norte-americano de mísseis nucleares que chamamos de
“independente”, mas que jamais poderíamos disparar sem a
aprovação dos EUA, o que prende os sucessores dele a mais
vinte anos de subserviência a Washington no que diz
respeito à política de segurança. Seis: um tratado que
permite aos EUA extraditarem nossos cidadãos para serem
julgados na América, mas não nos permite fazer o mesmo
com os cidadãos deles. Sete: conivência com a captura
ilegal, a tortura, o aprisionamento e até mesmo com o
assassinato de nossos próprios cidadãos. Oito: uma tradição
de despedir qualquer ministro, e falo por experiência
própria, que demonstre menos de cem por cento de apoio à
aliança com os Estados Unidos. Nove...
— Está bem — falei, erguendo a mão. — Já entendi a
mensagem.
— Tenho amigos em Washington que simplesmente não
conseguem acreditar na maneira como Lang conduziu a
política externa britânica. Quero dizer, eles ficaram
constrangidos com a quantidade de apoio que ele ofereceu
e como recebeu pouco em troca. E onde isso nos fez parar?
Presos numa suposta guerra que não temos como ganhar,
sendo coniventes com métodos que não usamos nem
quando estávamos lutando contra os nazistas! — Rycart riu
com tristeza e balançou a cabeça. — Sabe, de certa forma,
estou quase aliviado em descobrir que pode haver uma
explicação racional para o que fizemos no governo
enquanto ele era primeiro-ministro. Se você parar para
pensar, a alternativa é pior, na verdade. Se ele estava
trabalhando para a CIA, pelo menos faz sentido. Então,
agora — disse ele, afagando meu joelho —, a questão é: o
que nós vamos fazer a respeito?
Não gostei daquela primeira pessoa do plural.
— Bem — falei, contorcendo um pouco o rosto —, eu
estou numa situação delicada. Deveria estar ajudando-o
com suas memórias. Tenho a obrigação legal de não
divulgar a terceiros nada do que ouvir no decorrer do meu
trabalho.
— Tarde demais para parar agora.
Também não gostei daquilo.
— Mas não temos nenhuma prova — apontei. — Nem
sabemos ao certo se Emmett estava na CIA, muito menos
se ele recrutou Lang. Quero dizer, como essa relação teria
funcionado depois que Lang foi para o Número 10 da
Downing Street? Ele tinha um transmissor de rádio
escondido no sótão ou o quê?
— Isso não é piada, meu amigo — disse Rycart. —
Aprendi um pouco sobre como essas coisas são feitas na
época em que estava na Secretaria de Relações
Internacionais. A questão do contato pode ser resolvida com
bastante facilidade. Para começo de conversa, Emmett
estava sempre indo a Londres, por conta do Arcadia. Era a
fachada perfeita. Na verdade, eu não ficaria surpreso se o
instituto inteiro tivesse sido criado para fazer parte da
operação clandestina para controlar Lang. O timing
combinaria. Eles podem ter usado intermediários.
— Mas ainda não há provas — repeti —, e a não ser que
Lang confesse, ou Emmett confesse, ou a CIA abra seus
arquivos, nunca haverá.
— Então você vai ter de arranjar alguma — disse Rycart,
sem rodeios.
— O quê? — Meu queixo caiu; tudo meu caiu.
— Você está numa posição perfeita — prosseguiu Rycart.
— Tem a confiança de Lang. Ele deixa você perguntar o que
quiser. Até lhe permite gravar suas respostas. Você pode
colocar palavras na boca dele. Vamos ter de desenvolver
uma série de perguntas que o enredem aos poucos, e
depois você finalmente vai poder confrontá-lo com a
alegação, e veremos como ele vai reagir. Ele vai negar, mas
isso não tem a menor importância. O simples fato de você
colocar as provas diante dele vai servir para deixar a
história registrada.
— Não vai, não. As fitas são de propriedade dele.
— Vai, sim. As fitas podem ser intimadas pelo Tribunal de
Crimes de Guerra, como prova da sua cumplicidade direta
com o programa de captura da CIA.
— E se eu não fizer fita nenhuma?
— Neste caso, eu vou sugerir à procuradora que você
seja intimado.
— Ah — disse eu, com astúcia —, mas e se eu negar a
história toda?
— Então eu vou entregar isto a ela — falou Rycart,
abrindo o paletó para mostrar um pequeno microfone preso
na frente da sua camisa, com um fio entrando no seu bolso
interno. — Frank está gravando cada palavra lá embaixo no
lobby, certo Frank? Ah, por favor! Não faça essa cara de
chocado. O que você esperava? Que eu viesse para um
encontro com um completo desconhecido, que está
trabalhando para Lang, sem me precaver? Bem, mas só que
você não está mais trabalhando para Lang. — Ele sorriu,
mostrando mais uma vez aquela fileira de dentes de um
branco mais reluzente do que qualquer outra coisa na
natureza. — Está trabalhando para mim.
Quinze

Autores precisam de ghost-writers que não os confrontem,


mas que simplesmente ouçam o que eles têm a dizer e
entendam por que agiram da forma que agiram.

Ghostwriting

Depois de alguns segundos, comecei a xingar, fluente e


indiscriminadamente. Estava xingando Rycart e minha
própria idiotice, Frank e quem quer que um dia fosse
transcrever aquela fita. Estava xingando a procuradora de
crimes de guerra, a corte, os juízes, a mídia. E teria
continuado xingando por muito mais tempo se meu telefone
não tivesse começado a tocar — não o que haviam me dado
para eu contatar Rycart, mas o que eu tinha trazido de
Londres. Desnecessário dizer que eu esquecera de desligá-
lo.
— Não atenda — advertiu Rycart. — Vai trazê-los direto
até a gente.
Olhei para o número de chamada.
— É Amelia Bly — falei. — Pode ser importante.
— Amelia Bly — repetiu Rycart, sua voz uma mistura de
temor e cobiça. — Faz tempo que não a vejo. — Ele hesitou:
era óbvio que estava louco para saber o que ela queria. —
Se eles estiverem monitorando você, serão capazes de
localizá-lo com uma precisão de até cem metros, e este
hotel é o único prédio em que você estaria.
O telefone continuou a pulsar na minha palma estendida.
— Bem, vá para o inferno — falei. — Não aceito ordens
suas.
Pressionei o botão verde.
— Alô — falei. — Amelia.
— Boa noite — disse ela, sua voz clara como o uniforme
de uma enfermeira-chefe. — Estou com Adam na linha para
você.
Fiz “É Adam Lang” com a boca para Rycart, abanando a
mão a fim de alertá-lo para que não dissesse nada. Logo em
seguida, sua voz familiar e sem classe definida encheu meu
ouvido.
— Estava falando agora com Ruth — disse ele. — Ela me
disse que você está em Nova York.
— Isso mesmo.
— Eu também. Em que parte você está?
— Não sei exatamente onde eu estou, Adam. — Fiz um
gesto desesperado para Rycart. — Ainda não me hospedei
em hotel nenhum.
— Nós estamos no Waldorf — disse Lang. — Por que você
não vem até aqui?
— Espere um segundo, Adam. — Pressionei MUDO.
— Você — disse Rycart — é um grande idiota.
— Ele quer que eu vá encontrá-lo no Waldorf.
Rycart sugou as próprias bochechas, avaliando as
opções.
— Você deve ir — falou ele.
— E se for uma armadilha?
— É um risco, mas vai ficar estranho se você não for. Ele
vai suspeitar. Diga-lhe que sim, rápido, e desligue em
seguida.
Pressionei MUDO novamente.
— Alô, Adam — falei, tentando manter a tensão longe da
minha voz. — Por mim, está ótimo. Já vou para aí.
Rycart passou o dedo pela garganta.
— Por sinal, o que o traz a Nova York? — perguntou Lang.
— Achei que você já tivesse bastante coisa para fazer lá na
casa.
— Eu queria me encontrar com John Maddox.
— Certo. E como está ele?
— Bem. Ouça, tenho de desligar agora.
Rycart estava passando o dedo pela garganta cada vez
com mais insistência.
— Tivemos dois dias ótimos — continuou Lang, como se
não tivesse me ouvido. — Os americanos têm sido
fantásticos. Sabe, é nos momentos difíceis que você vê
quem são seus verdadeiros amigos.
Era minha imaginação ou ele tinha dado uma ênfase
extra àquelas palavras especialmente para mim?
— Maravilha. Estarei aí o mais rápido possível, Adam.
Encerrei a ligação. Minha mão tremia.
— Muito bem — disse Rycart. Ele estava de pé, pegando
seu sobretudo na cama. — Temos cerca de dez minutos para
sair daqui. Junte suas coisas.
Mecanicamente, comecei a reunir as fotografias.
Coloquei-as de volta na mala, que fechei enquanto Rycart ia
ao banheiro e mijava fazendo barulho.
— Como ele estava? — perguntou Rycart lá de dentro.
— Animado.
Ele deu a descarga e ressurgiu abotoando as calças.
— Bem, vamos ter de fazer alguma coisa a respeito
disso, não é?
O elevador para o lobby estava cheio daqueles
investidores online da igreja mórmon, ou seja lá o que
fossem. Ele parou em todos os andares. Rycart foi ficando
cada vez mais nervoso.
— Não podemos ser vistos juntos — murmurou ele
enquanto saíamos no primeiro piso. — Fique para trás.
Encontro você no estacionamento.
Ele apertou o passo, afastando-se de mim. Frank já
estava de pé — ao que tudo indicava, tinha ficado ouvindo e
sabia dos nossos planos —, e os dois partiram sem trocar
nenhuma palavra: Rycart, enérgico e grisalho, e seu
companheiro inseparável taciturno e moreno. Que dupla,
pensei. Agachei-me e fingi amarrar meu cadarço, então
atravessei o lobby sem pressa, circulando deliberadamente
pelos grupos de convidados que conversavam entre si,
mantendo a cabeça abaixada. Havia algo de tão ridículo em
toda aquela situação que, quando me juntei ao grupo
amontoado diante da porta, esperando para sair, me peguei
sorrindo. Era como uma comédia de Feydeau: cada nova
cena era mais absurda que a última, mas, ainda assim, se
você a examinasse, veria que não passava de um
desdobramento lógico da anterior. Sim, era isso que tudo
aquilo era: uma comédia! Fiquei na fila até minha vez
chegar, e foi então que vi Emmett, ou pelo menos foi
quando pensei ter visto Emmett, e de repente não estava
mais sorrindo.
O hotel tinha uma daquelas portas giratórias grandes,
com compartimentos que acomodavam cinco ou seis
pessoas de cada vez, sendo que todas eram obrigadas a se
atirar para dentro deles e arrastar os pés para a frente para
não bater umas nas outras, como detentos acorrentados.
Para minha sorte, eu estava no meio do grupo que saía, e
este provavelmente foi o motivo pelo qual Emmett não me
viu. Ele estava com um homem de cada lado, no
compartimento que girava para dentro do hotel, e todos os
três empurravam o vidro diante de si, como se estivessem
extremamente apressados.
Saímos para a noite e, na minha pressa em me afastar
dali, tropecei e quase caí. Minha mala tombou de lado e eu
a arrastei atrás de mim, como se ela fosse um cachorro
teimoso. O estacionamento era separado do átrio do hotel
por um canteiro, porém, em vez de contorná-lo, passei
andando por cima dele. Do outro lado do estacionamento,
um par de faróis se acendeu, e então um carro veio
correndo para cima de mim, desviando no último segundo.
À porta de trás do lado do carona voou para fora.
— Entre — disse Rycart.
A velocidade com que Frank saiu acelerando fez a porta
bater depois que eu entrei e me atirou para trás no assento.
— Acabei de ver Emmett — falei.
Richard trocou olhares com seu motorista pelo retrovisor.
— Tem certeza?
— Não.
— Ele viu você?
— Não.
— Tem certeza?
— Sim.
Eu estava agarrado à minha mala. Ela havia se tornado
meu objeto transacional. Aceleramos pela estrada
escorregadia e pegamos um tráfego pesado em direção à
Manhattan.
— Eles podem ter nos seguido desde o La Guardia —
disse Frank.
— E por que ficaram esperando? — perguntou Rycart.
— Poderiam estar esperando Emmett chegar de Boston,
para identificá-lo.
Até aquele instante, eu não havia levado a espionagem
amadora de Rycart muito a sério, porém, naquela hora,
senti uma nova onda de pânico.
— Olhem — falei —, acho que não é uma boa ideia eu ir
me encontrar com Lang agora. Se aquele era mesmo
Emmett, Lang certamente já foi alertado sobre o que eu fiz.
Ele vai saber que eu fui até Boston e mostrei as fotografias
a Emmett.
— E daí? O que você acha que ele vai fazer a respeito? —
perguntou Rycart. — Afogá-lo na banheira dele no Waldorf-
Astoria?
— É — disse Frank. Ele riu, balançando um pouco os
ombros. — Até parece.
Fiquei enjoado e, apesar do frio da noite, baixei a janela.
O vento soprava do leste, vindo em rajadas do rio,
espalhando pela sua margem fria e industrial o fedor
enjoativo de combustível de avião. Ainda consigo senti-lo na
minha garganta sempre que penso nele, e este, para mim,
será sempre o gosto do medo.
— Eu não preciso ter uma história na manga? — falei. —
O que vou dizer para Lang?
— Você não fez nada de errado — disse Rycart. — Está
apenas dando prosseguimento ao trabalho de seu
antecessor. Está tentando pesquisar os anos dele em
Cambridge. Não aja com tanta culpa. Lang não tem como
saber ao certo que você está querendo pegá-lo.
— Não é com Lang que estou preocupado.
Nós dois ficamos em silêncio. Alguns minutos depois, o
horizonte noturno de Manhattan surgiu, e meus olhos
imediatamente encontraram a falha na fachada reluzente. É
estranho que algo que não está lá possa ser um ponto de
referência. Era como um buraco negro. Pensei: como uma
lágrima no cosmos. Poderia sugar tudo — cidades, países,
leis; certamente poderia me engolir. Até mesmo Rycart
parecia oprimido pela visão.
— Você pode fechar essa janela? Estou congelando.
Fiz o que ele pediu. Frank tinha ligado o rádio baixinho —
uma estação de jazz, tocando suavemente.
— E quanto ao carro? — falei. — Ele ainda está no
aeroporto Logan.
— Você pode pegá-lo pela manhã.
A estação passou a tocar blues. Pedi para Frank desligar
o rádio. Ele me ignorou.
— Sei que Lang acha que isso é pessoal — disse Rycart
—, mas não é. Tudo bem, existe um elemento de vingança,
eu admito; afinal, quem gosta de ser humilhado? Mas se
continuarmos permitindo tortura, e se simplesmente
julgarmos quem é o vencedor pelo número de caveiras
inimigas que trazemos de volta para decorarmos nossas
cavernas... bem, o que será de nós?
— Vou dizer-lhe o que será de nós — falei, descontrolado.
— Vamos ganhar 10 milhões de dólares pelas nossas
memórias e viveremos felizes para sempre. — Percebi
novamente que minha ansiedade estava me deixando com
raiva. — O senhor sabe que isso é inútil, não sabe? No fim
das contas, ele vai simplesmente se aposentar aqui com
seu salário da CIA e mandar o senhor e seu maldito Tribunal
de Crimes de Guerra se ferrarem.
— Talvez ele faça isso. Porém, os antigos consideravam o
exílio uma punição pior do que a morte; e Lang vai ser um
baita eLivros. Ele não poderá viajar para lugar nenhum do
mundo, nem mesmo para o punhado de países de merda
que não reconhecem o TPI, porque estará sempre correndo
o risco de seu avião ter de aterrissar em algum lugar com
problemas no motor ou para reabastecer. E nós estaremos
esperando por ele. E vai ser aí que o pegaremos.
Olhei para Rycart. Ele estava olhando direto para a
frente, assentindo discretamente.
— Ou o clima político aqui pode mudar um dia —
prosseguiu ele —, e haverá um clamor público para que ele
seja entregue à justiça. Eu me pergunto se ele já pensou
nisso. A vida dele vai ser um inferno.
— O senhor quase me faz sentir pena dele.
Rycart lançou-me um olhar penetrante.
— Ele deixou você encantado, não foi? Charme! O mal
inglês.
— Existem doenças piores.
Atravessamos a ponte Triborough, os pneus batendo nas
junções da pista como um pulso acelerado.
— Sinto-me como se estivesse sendo levado para a
guilhotina — falei.
Levamos algum tempo para chegar ao centro. Todas as
vezes que o carro parava no tráfego da Park Avenue, eu
pensava em abrir a porta e sair correndo. O problema era
que eu conseguia imaginar muito bem a primeira parte —
disparar em meio aos carros parados e sumir em alguma
das ruas secundárias —, mas, depois, não conseguia pensar
em nada. Para onde iria? Como pagaria por um quarto de
hotel se meus perseguidores sabiam o número do meu
próprio cartão de crédito e, era de se imaginar, também do
cartão falso que eu havia usado antes? Minha conclusão
relutante, de qualquer ângulo que examinasse minha
enrascada, era que eu estava mais seguro com Rycart. Pelo
menos ele sabia como sobreviver naquele mundo alienígena
em que eu tinha me metido por burrice.
— Já que você está tão preocupado, podemos combinar
um código à prova de erros — disse Rycart. — Você pode me
ligar usando o telefone que Frank lhe deu, vamos supor, aos
dez minutos de cada hora. Não precisamos
necessariamente nos falar. Só deixe o telefone tocar
algumas vezes.
— O que vai acontecer se eu não ligar?
— Eu não farei nada se você não ligar uma vez. Se deixar
de ligar uma segunda vez, vou telefonar para Lang e dizer-
lhe que o considero pessoalmente responsável pela sua
segurança.
— Por que será que não acho isso muito tranquilizador?
Àquela altura, estávamos quase chegando. Pude ver
mais adiante, do outro lado da estrada, uma grande
bandeira americana iluminada por holofotes e, ao lado dela,
flanqueando a entrada do Waldorf, uma bandeira inglesa. A
área em frente do hotel era isolada por blocos de concreto.
Contei meia dúzia de motocicletas da polícia esperando,
quatro viaturas, duas limusines pretas grandes, uma
pequena multidão de cinegrafistas e outra um pouco maior
de curiosos. À medida que observava aquilo, meu coração
começou a acelerar. Fiquei sem fôlego.
Rycart apertou meu braço.
— Coragem, meu amigo. Ele já perdeu um ghost-writer
sob circunstâncias suspeitas. Não pode se dar ao luxo de
perder outro.
— Isso com certeza não pode ser tudo por causa dele,
pode? — perguntei, impressionado. — Qualquer um
pensaria que ele ainda é primeiro-ministro.
— Parece que eu só consegui torná-lo uma celebridade
ainda maior — disse Rycart. — Vocês deviam era me
agradecer. Certo, boa sorte. Voltamos a nos falar mais
tarde. Pare aqui, Frank.
Ele levantou o colarinho e afundou no assento, e aquela
precaução trazia ao mesmo tempo pathos e ridículo para a
situação. Pobre Rycart: eu duvidava que uma em 10 mil
pessoas em Nova York soubesse quem ele era. Frank parou
por um instante na esquina com a East 50th Street para me
deixar sair e então voltou habilidosamente para o tráfego,
de modo que a última visão que tive de Rycart foi a parte de
trás da sua cabeça grisalha afastando-se na noite de
Manhattan.
E então eu estava sozinho.
Atravessei a grande extensão da rua, amarela de táxis, e
passei pela multidão e pela polícia. Nenhum dos policiais
parados por ali me interpelou: ao verem minha mala, devem
ter imaginado que eu era apenas um hóspede fazendo o
check in. Passei pelas portas art déco, subi a escadaria de
mármore e adentrei o esplendor babilônico do lobby do
Waldorf. Normalmente, teria usado meu celular para entrar
em contato com Amelia. Porém, até eu tinha aprendido a
lição. Andei até um dos recepcionistas e pedi para ele ligar
para o quarto.
Ninguém atendeu.
Ele desligou, franzindo o cenho. Estava começando a
conferir seu computador quando uma detonação alta veio
da Park Avenue. Vários hóspedes que estavam fazendo o
check in se agacharam, apenas para se endireitarem de
forma lamentável quando a explosão se provou um
bombardeio de motores de motocicleta disparando. De
dentro do hotel, atravessando a imensa extensão do lobby
dourado, veio um bando de seguranças, das Forças
Especiais e do Serviço Secreto, com Lang enclausurado no
meio deles, marchando com determinação no seu habitual
jeito gingado e musculoso. Atrás dele, vinham Amelia e as
duas secretárias. Amelia estava ao telefone. Andei em
direção ao grupo. Lang passou direto por mim, olhando com
firmeza para a frente, o que não era do seu feitio.
Geralmente, gostava de fazer contato com as pessoas
quando passava por elas: lançar-lhes um sorriso que elas
jamais esqueceriam. Assim que ele começou a descer as
escadas, Amelia me viu. Parecia, pela primeira vez,
desconcertada; chegava a estar com alguns fios de seu
cabelo louro despenteados.
— Estava tentando ligar para você agora mesmo — disse
ela ao passar. Não diminuiu o passo. — Houve uma
mudança de planos — disse ela por sobre o ombro. —
Estamos voltando agora para Martha’s Vineyard.
— Agora? — corri atrás dela. — Está um pouco tarde,
não?
Começamos a descer as escadas.
— Adam está insistindo. Consegui arranjar um avião para
nós.
— Mas por que agora?
— Não faço ideia. Alguma coisa aconteceu. Você vai ter
de perguntar a ele.
Lang estava abaixo e à frente de nós. Já havia chegado à
entrada principal. Os guarda-costas abriram as portas e
seus ombros largos foram subitamente enquadrados por um
brilho halogênico de luz. Os gritos dos repórteres, o
fuzilamento dos obturadores das câmeras, o estrondo das
Harley Davidsons — era como se alguém tivesse descerrado
as portas do inferno.
— O que eu faço? — perguntei.
— Entre no carro de apoio. Imagino que Adam vá querer
falar com você no avião. — Ela percebeu minha expressão
de pânico. — Você está muito estranho. Algum problema?
E agora, o que eu faço?, perguntei a mim mesmo.
Desmaio? Imploro para conversar com ele antes? Eu parecia
estar numa passarela movediça sem maneira de escapar.
— Tudo parece estar acontecendo muito rápido — falei,
cansado.
— Isso não é nada. Você precisava ter estado com a
gente quando ele era primeiro-ministro.
Emergimos no tumulto de som e luz, e foi como se toda a
controvérsia gerada pela Guerra contra o Terror, ano após
ano, tivesse convergido por um instante sobre um homem e
o feito em chamas. A porta da limusine de Lang estava
aberta. Ele parou para acenar brevemente para a multidão
além do cordão de segurança, então mergulhou dentro dela.
Amelia pegou meu braço e me empurrou em direção ao
segundo carro.
— Ande! — gritou ela. As motocicletas já estavam se
afastando. — Não se esqueça, não podemos parar se você
ficar para trás.
Ela deslizou para o lado de Lang, e eu me vi entrando na
segunda limusine, ao lado das secretárias. Elas se moveram
alegremente pelo banco para abrir espaço para mim. Um
agente das Forças Especiais entrou na frente, ao lado do
motorista, e então estávamos a caminho, acompanhados
pelo vup vup de uma das motocicletas, que ressoava como
o apito alegre de um pequeno rebocador escoltando um
transatlântico para o mar.

Em outras circunstâncias, eu teria me deliciado com aquela


viagem: minhas pernas esticadas diante de mim; as Harley
Davidsons deslizando por nós para conter o tráfego; os
rostos pálidos dos pedestres, vislumbrados pelo vidro
escurecido, virando para nos olharem à medida que
irrompíamos adiante; o barulho das sirenes; a intensidade
das luzes piscantes; a velocidade; a força. Só consigo
pensar em duas categorias de seres humanos que são
transportados com tanta pompa e circunstância: líderes
mundiais e terroristas capturados.
No meu bolso, dedilhei às escondidas meu novo celular.
Será que eu deveria alertar Rycart do que estava
acontecendo? Decidi que não. Não queria ligar para ele
diante de testemunhas. Eu me sentiria muito
desconfortável, e minha culpa ficaria evidente. A traição
pede privacidade. Rendi-me aos acontecimentos.
Voamos pela ponte da 59th Street como deuses — Alice
e Lucy dando risadinhas de empolgação —, e quando
chegamos ao La Guardia alguns minutos depois,
atravessamos o terminal por um portão de metal aberto e
seguimos diretamente para a pista, onde um jato particular
grande estava sendo abastecido. Era um avião do Grupo
Hallington, com sua carcaça azul-escura e o logotipo da
empresa pintado na cauda alta: a Terra rodeada por um
círculo, como o do logo da Colgate. A limusine de Lang fez
uma curva e parou, e ele foi o primeiro a saltar. Mergulhou
através do portal do detector de metais móvel e subiu a
escada do Gulfstream sem olhar para trás. Um guarda-
costas veio correndo atrás dele.
Enquanto lutava para sair do carro, eu me sentia quase
artrítico de tanta ansiedade. Somente dar os passos até
onde Amelia estava já foi um esforço. O ar noturno tremia
com o barulho de jatos se aproximando para aterrissar. Eu
conseguia vê-los, empilhados em cinco ou seis sobre a
água, como uma escada de luz subindo na escuridão.
— Isso, sim, é jeito de viajar — falei, tentando parecer
tranquilo. — É sempre assim?
— Eles estão querendo mostrar a Adam que gostam dele
— disse Amelia. — E, sem dúvida, isso ajuda a mostrar aos
outros como eles tratam os amigos. Pour encourager les
autres.
Seguranças com bastões de metal inspecionavam todas
as bagagens. Acrescentei minha mala à pilha.
— Ele está dizendo que precisa voltar para Ruth —
continuou ela, erguendo os olhos para o avião. As janelas
eram maiores do que as de uma aeronave comum. O perfil
de Lang estava claramente visível perto da cauda. —
Precisa conversar sobre alguma coisa com ela. — Sua voz
soava intrigada. Ela estava quase falando para si mesma,
como se eu não estivesse lá. Perguntei-me se eles teriam
brigado no caminho para o aeroporto.
Um dos seguranças me mandou abrir a mala. Abri o zíper
e a segurei aberta para ele. Ele levantou o manuscrito para
olhar debaixo dele. Amelia estava tão preocupada que nem
notou.
— É estranho — disse ela —, porque correu tudo tão bem
em Washington. — Ela lançou um olhar inexpressivo para as
luzes da pista.
— Sua bolsa — disse o segurança.
Entreguei-a para ele. Ele retirou o envelope de
fotografias e, por um instante, pensei que ia abri-lo, mas
estava mais interessado no meu laptop. Senti necessidade
de continuar falando.
— Talvez ele tenha recebido alguma notícia de Haia —
sugeri.
— Não. Não tem nada a ver com isso. Ele teria me
contado.
— Tudo bem, você está liberado para embarcar — disse o
guarda.
— Não vá falar com ele ainda — advertiu ela, enquanto
eu passava pelo detector. — Não no atual estado de humor
dele. Eu chamo você se ele quiser conversar.
Subi a escada.
Lang estava sentado no último lugar, o mais perto da
cauda, com o queixo apoiado na mão, olhando pela janela.
(Os seguranças sempre preferiam que ele se sentasse na
última fileira, descobri mais tarde: significava que ninguém
poderia vir por detrás dele.) A cabine tinha sido projetada
para levar dez passageiros, dois em cada um dos dois sofás
que corriam pela lateral da fuselagem, e os demais em seis
poltronas grandes. As poltronas ficavam aos pares, uma de
frente para a outra, com uma mesa de centro entre as duas.
Parecia um anexo do lobby do Waldorf: acessórios dourados,
mobília de nogueira envernizada, couro estofado cor de
creme. Os agentes das Forças Especiais estavam sentados
em um dos sofás. A comissária de bordo de paletó branco
inclinava-se sobre o ex-primeiro-ministro. Não conseguia ver
qual drinque ela lhe servia, mas conseguia ouvir. O seu som
favorito pode ser uma dupla de rouxinóis cantando em um
anoitecer de verão ou o repique de sinos de igreja em um
vilarejo. O meu é o tinir de gelo em um copo de vidro
lapidado. Nisto, sou um especialista. E aquilo soava
claramente aos meus ouvidos como se Lang tivesse trocado
o chá por um uísque puro.
A comissária me viu olhando e veio pelo corredor na
minha direção.
— Posso lhe oferecer algo, senhor?
— Obrigado. Sim. Quero o que o Sr. Lang estiver
bebendo.
Eu errei: era conhaque.
Quando a porta se fechou, havia 12 de nós a bordo: três
tripulantes (o piloto, o copiloto e a comissária) e nove
passageiros — duas secretárias, quatro guarda-costas,
Amelia, Adam Lang e eu. Sentei-me de costas para a cabine
do piloto para poder ficar de olho no meu cliente. Amelia
estava bem de frente para ele e, quando os motores
começaram a zumbir, tive de me conter para não me jogar
em direção à porta e escancará-la. O voo me parecia
condenado desde o início. O Gulfstream tremeu um pouco e
o terminal pareceu afastar-se lentamente. Eu podia ver a
mão de Amelia fazendo gestos violentos, como se ela
estivesse explicando alguma coisa, mas Lang apenas
continuava olhando para a pista de decolagem.
Alguém tocou o meu braço.
— Você sabe quanto custa um desses?
Era o policial que tinha vindo no meu carro do Waldorf.
Ele estava no assento do outro lado do corredor.
— Não, não sei.
— Tente adivinhar.
— Realmente não faço ideia.
— Vamos lá. Dê um chute.
Dei de ombros.
— Dez milhões de dólares?
— Quarenta milhões de dólares. — Ele soava triunfante,
como se saber o preço implicasse de alguma forma que ele
também era um pouco dono. — O Grupo Hallington tem
cinco desses.
— Faz você se perguntar para que eles precisariam de
tantos.
— Eles os alugam quando não estão precisando.
— Ah, sim, é verdade — falei. — Ouvi dizer.
O barulho dos motores aumentou quando começamos a
acelerar pela pista. Imaginei os suspeitos de terrorismo,
algemados e encapuzados, presos em suas poltronas de
couro confortáveis, enquanto decolavam de alguma pista
militar suja de terra vermelha perto da fronteira do
Afeganistão, com destino às florestas de pinheiros do leste
da Polônia. O avião pareceu saltar no ar, e eu fiquei
observando pela minha janela as luzes de Manhattan se
espalharem, enchendo a janela e depois deslizando e se
inclinando, para então finalmente piscarem até sumirem na
escuridão enquanto subíamos para as nuvens baixas. Tive a
impressão de que estávamos subindo às cegas por um
longo tempo em nosso vulnerável tubo de metal, mas então
toda aquela nebulosidade ficou para trás e emergimos em
uma noite clara. As nuvens eram tão maciças e sólidas
quanto os Alpes, e a lua aparecia de vez em quando por
detrás dos picos, iluminando vales, geleiras e ravinas.
Algum tempo depois de o avião estabilizar, Amelia se
levantou e desceu o corredor na minha direção. Seus
quadris balançavam, involuntariamente sedutores, com o
movimento da cabine.
— Certo — disse ela —, ele está pronto para conversar.
Mas pegue leve, sim? Os últimos dias foram um inferno para
ele.
Para nós dois, pensei.
— Pode deixar — respondi.
Fisguei minha bolsa do lado do meu assento e comecei a
me espremer para passar por ela. Ela agarrou meu braço.
— Você não tem muito tempo — alertou ela. — Este voo
é um pulo. Vamos começar a descer a qualquer momento.

Com certeza era um pulo. Conferi mais tarde. Menos de 420


quilômetros separavam a cidade de Nova York de Martha’s
Vineyard, e a velocidade média de um Gulfstream G450 é
de 882 quilômetros por hora. A união destes dois fatos
explica por que a gravação da minha conversa com Lang
tem meros 11 minutos. Provavelmente já estávamos
perdendo altitude enquanto eu me encaminhava para ele.
Ele estava de olhos fechados, ainda segurando o copo na
mão estendida. Havia tirado o paletó, a gravata e os
sapatos e estava estatelado na poltrona como uma estrela-
do-mar, como se alguém o tivesse empurrado nela. A
princípio, pensei que tinha pegado no sono, mas então
percebi que seus olhos estavam apertados até virarem
pequenas frestas e que ele me observava com atenção.
Gesticulou vagamente com seu drinque para a poltrona
diante de si.
— Oi, cara — disse ele. — Sente-se comigo. — Ele abriu
os olhos por completo, bocejou e levou as costas da mão à
boca. — Desculpe.
— Olá, Adam.
Eu me sentei. Estava com a bolsa no colo. Tateei dentro
dela para pegar meu bloco de anotações, o minigravador e
um disco sobressalente. Não era isso que Rycart queria?
Fitas? O nervosismo me deixou desastrado, e se Lang
tivesse apenas erguido uma sobrancelha, eu teria guardado
o gravador de volta. Porém, ele não pareceu notar. Devia ter
passado muitas vezes por aquele ritual ao fim de alguma
visita oficial — o jornalista trazido à sua presença para
alguns minutos de exclusividade; o gravador conferido com
nervosismo para garantir que estava funcionando; a ilusão
de informalidade durante o drinque relaxante do primeiro-
ministro. Na gravação, dá para ouvir o cansaço na sua voz.
— E então — falou ele —, como está indo?
— Está indo — respondi. — Certamente está indo.
Quando ouvi a fita, minha voz estava tão aguda por
conta da ansiedade que parecia que eu havia inalado gás
hélio.
— Descobriu algo de interessante?
Havia o brilho de alguma coisa nos seus olhos. Desprezo?
Diversão? Percebi que ele estava jogando comigo.
— Uma coisinha ou outra. Como foi em Washington?
— Washington foi ótimo, na verdade. — Ouve-se um
rangido quando ele se empertiga um pouco na cadeira,
endireitando-se para mais uma performance antes de o
teatro fechar o expediente. — Recebi um apoio maravilhoso
em todos os lugares, no Capitólio, é claro, como você
provavelmente assistiu, mas também do vice-presidente e
do secretário de Estado. Eles vão me ajudar de todas as
maneiras possíveis.
— E isso significa que o senhor poderá ficar na América?
— Oh, sim. Se o pior acontecer, eles certamente me
oferecerão asilo. Talvez até algum tipo de função, desde que
não envolva viagens para o exterior. Mas não vai chegar a
tanto. Eles me fornecerão algo ainda mais valioso.
— É mesmo?
Lang assentiu.
— Provas.
— Certo. — Não fazia ideia do que ele estava falando.
— Esse negócio está ligado? — perguntou ele.
Na gravação, ouve-se um barulho metálico ensurdecedor
de quando eu pego o gravador.
— Sim, acho que está. Tudo bem?
Com um som de pancada, eu o coloco de volta.
— Claro — disse Lang. — Só quero me certificar de que
você vai registrar isso, porque acho que definitivamente
podemos usá-lo. É importante. Devemos manter exclusivo
para as memórias. Vai fazer maravilhas para o contrato de
publicação em série. — Ele se inclinou para a frente para
frisar as suas palavras. — Washington está disposto a
testemunhar sob juramento que nenhum agente britânico
esteve diretamente envolvido na captura daqueles quatro
homens no Paquistão.
— É mesmo? — É mesmo? É mesmo?, fiquei repetindo
como um papagaio, e me encolho toda vez que ouço o
servilismo na minha voz. O cortesão bajulador. O ghost-
writer acanhado.
— Pode apostar. O próprio diretor da CIA prestará um
depoimento para o tribunal em Haia, dizendo que aquela foi
uma operação secreta exclusivamente americana e, se isso
não resolver, eles estão dispostos a permitir que os próprios
agentes que estavam no comando da missão forneçam
provas filmadas. — Lang recostou-se e bebericou seu
conhaque. — Isso deve dar a Rycart o que pensar. Como ele
vai fazer para uma acusação de crimes de guerra me atingir
agora?
— Mas o seu memorando para o ministro da Defesa...
— Aquilo é autêntico — admitiu ele, dando de ombros. —
É verdade, não posso negar que recomendei o uso das SAS.
E é verdade que o governo britânico não pode negar que
nossas forças especiais estavam em Peshawar na época da
Operação Tempestade. E também não podemos negar que
foi o nosso serviço de inteligência que rastreou aqueles
homens até o local em que eles foram presos. Porém, não
existe prova de que passamos a informação para a CIA.
Lang sorriu para mim.
— Mas nós passamos?
— Não existe prova de que passamos a informação para
a CIA.
— Mas se nós passamos, certamente isso ainda configura
colaboração e cumplicidade...
— Não existe prova de que passamos a informação para
a CIA.
Ele ainda sustentava o sorriso na cara, embora já
estivesse com um pequeno vinco na testa causado pelo
esforço, como um tenor ao sustentar uma nota no fim de
um ária difícil.
— Então como a informação chegou a eles?
— Essa é uma pergunta difícil. Certamente não foi por
meio de nenhum órgão oficial. E certamente não teve nada
a ver comigo. — Fez-se uma longa pausa. O sorriso dele
morreu. — Bem — falou ele. — O que você acha?
— Parece um pouco — tentei encontrar uma maneira
diplomática de dizer aquilo — técnico.
— Como assim?
Minha resposta na gravação é tão evasiva, tão cheia de
rodeios apreensivos, que faria qualquer pessoa morrer de
rir.
— Bem, quero dizer, o senhor admite que queria que as
SAS os capturassem, sem dúvida que... bem... por motivos
compreensíveis, e mesmo que eles não tenham feito o
serviço eles mesmos, o ministro da Defesa, no meu modo
de ver, não teve como negar que eles estavam envolvidos,
porque pelo jeito eles estavam, mesmo que estivessem
apenas dentro de um carro parado na esquina. E,
aparentemente, a... bem... a inteligência britânica informou
à CIA o local em que eles poderiam ser capturados. E
quando eles foram torturados, o senhor não se posicionou
contra.
Falei depressa a última frase. Lang disse com frieza:
— Sid Kroll ficou muito satisfeito com o compromisso que
a CIA assumiu com ele. Sid acredita que talvez a
procuradora tenha até que abandonar o caso.
— Bem, se Sid está dizendo...
— Mas eu estou pouco me fodendo — falou Lang de
repente. Ele bateu com a mão na beirada da mesa. Na fita,
parece uma explosão. O agente das Forças Especiais que
cochilava no sofá próximo ergueu os olhos bruscamente. —
Não me arrependo do que aconteceu com aqueles quatro
homens. Se tivéssemos confiado nos paquistaneses, eles
nunca teriam sido pegos. Precisávamos apanhá-los
enquanto tínhamos a chance. Se não tivéssemos feito isso,
eles teriam se escondido, e a próxima notícia que teríamos
deles seria quando estivessem matando nossa gente.
— O senhor não se arrepende mesmo?
— Não.
— Nem do que morreu durante o interrogatório?
— Ah, esse — falou Lang com desprezo. — Ele tinha
problemas no coração, uma doença cardíaca não
diagnosticada. Poderia ter morrido a qualquer momento.
Poderia ter morrido saindo da cama pela manhã.
Não disse nada. Fingi que estava fazendo uma anotação.
— Olhe — disse Lang —, eu não acho que a tortura seja
justificável, mas deixe-me lhe dizer uma coisa. Em primeiro
lugar, ela realmente dá resultados; eu tive acesso aos dados
da inteligência. Em segundo lugar, ter poder, no fim das
contas, se resume em calcular qual o pior dos males, e, se
você pensar bem, o que são alguns poucos minutos de
sofrimento para alguns indivíduos comparado à morte, e,
veja bem, estou falando de morte, de milhares de outros?
Em terceiro lugar, não me venha dizer que isso é
exclusividade da Guerra contra o Terror. A tortura sempre
fez parte da guerra. A única diferença é que no passado não
havia a porra da imprensa em volta para divulgá-la.
— Os homens presos no Paquistão dizem que são
inocentes — apontei.
— É claro que eles dizem que são inocentes! O que mais
iriam dizer? — Lang examinou-me com atenção, como se
me visse de fato pela primeira vez. — Estou começando a
achar que você é muito ingênuo para esse serviço.
— Ao contrário de McAra? — falei.
— Mike! — Lang riu e balançou a cabeça. — Mike tinha
outro tipo de ingenuidade.
O avião havia começado a descer com bastante rapidez.
A lua e as estrelas tinham sumido. Estávamos despencando
pelas nuvens. Eu conseguia sentir a pressão mudar nos
meus ouvidos e tive de apertar o nariz e engolir com força.
Amelia veio andando pelo corredor.
— Está tudo bem? — perguntou ela. Parecia preocupada.
Devia ter ouvido a explosão de Lang; todos deviam ter
ouvido.
— Só estamos trabalhando um pouco nas minhas
memórias — disse Lang. — Estou contando a ele o que
aconteceu na Operação Tempestade.
— Você está gravando? — perguntou Amelia.
— Se não houver problema — falei.
— O senhor precisa tomar cuidado — disse ela a Lang. —
Lembre-se do que Sid Kroll falou.
— As fitas ficarão com o senhor — interrompi —, não
comigo.
— Elas ainda podem ser intimadas.
— Pare de me tratar como se eu fosse uma criança —
disse Lang bruscamente. — Eu sei o que quero dizer. Vamos
acabar com isso de uma vez por todas.
Amelia permitiu-se arregalar ligeiramente os olhos e foi
embora.
— Mulheres! — murmurou Lang. Ele tomou outro gole de
conhaque. O gelo tinha derretido, mas o líquido continuava
escuro. Deve ter sido uma dose e tanto, e ocorreu-me que
nosso ex-primeiro-ministro estava ligeiramente bêbado.
Percebi que aquele era o meu momento.
— Em que sentido — perguntei — Mike era ingênuo?
— Esqueça — resmungou Lang. Ele bebericou seu
drinque, o queixo no peito, refletindo. De repente, voltou a
levantar a cabeça. — Quero dizer, pegue, por exemplo, toda
essa conversa sobre liberdades civis. Sabe o que eu faria se
estivesse no poder novamente? Eu diria, então tudo bem,
vamos ter duas filas nos aeroportos. À esquerda, teremos
filas para voos em que não fizemos investigação alguma
sobre os passageiros, nenhum perfil, nada de análise
biométrica, nada que possa infringir as preciosas liberdades
civis de ninguém ou use informações obtidas sob tortura;
nada. À direita, teremos filas para os voos em que fizemos
todo o possível para torná-los seguros para os passageiros.
Então as pessoas poderiam decidir qual avião queriam
pegar. Não seria ótimo? Recostar na cadeira e ver em qual
fila os Rycart deste mundo de fato escolheriam colocar seus
filhos na hora da verdade?
— E Mike era assim?
— Não no começo. Porém, infelizmente, Mike descobriu o
idealismo depois de velho. Eu falei para ele, no que foi
nossa última conversa, na verdade: se nosso Senhor Jesus
Cristo não conseguiu resolver todos os problemas do mundo
quando Ele desceu dos céus para viver entre nós, e veja
bem, Ele era o filho de Deus, não era um pouco irracional da
parte de Mike esperar que eu tivesse resolvido tudo em dez
anos?
— É verdade que o senhor teve uma briga feia com ele
pouco antes de ele morrer?
— Mike fez algumas acusações levianas. Eu não podia
ignorá-las.
— Posso perguntar que tipo de acusações?
Eu conseguia imaginar Rycart e o procurador especial
sentados escutando a gravação, empertigando-se em suas
cadeiras ao ouvir aquilo. Tive de engolir novamente. Minha
voz me soava abafada, como se eu estivesse falando em
um sonho ou gritando para mim mesmo de muito longe. Na
fita, a pausa que se segue é muito curta, mas, naquela
hora, pareceu interminável, e quando Lang falou, sua voz
saiu extremamente baixa.
— Prefiro não repeti-las.
— Elas tinham algo a ver com a CIA?
— Mas a essa altura você já sabe, não sabe? — disse
Lang com amargura. — Já que foi ver Paul Emmett.
E, desta vez, a pausa é tão longa na gravação quanto na
minha memória.
Tendo lançado sua bomba, Lang olhou para fora pela
janela e bebericou seu drinque. Algumas luzes isoladas
haviam começado a aparecer debaixo de nós. Olhei para ele
e percebi que a idade finalmente o alcançara. Via-se isso na
bolsa de carne que pendia sob seus olhos e na pele solta
debaixo da mandíbula. Ou talvez não fosse a idade. Talvez
ele estivesse simplesmente exausto. Eu duvidava que ele
estivesse dormindo direito nas últimas semanas,
provavelmente desde que McAra o confrontara. Certamente,
quando ele finalmente voltou a olhar para mim, não havia
raiva na sua expressão, apenas um grande cansaço.
— Quero que você entenda — disse ele, frisando
bastante as palavras — que tudo o que fiz, tanto como líder
do partido quanto como primeiro-ministro, tudo, eu fiz por
convicção, por acreditar que era certo.
Murmurei uma resposta. Estava em estado de choque.
— Emmett disse que você mostrou algumas fotos para
ele. É verdade? Posso vê-las?
Minhas mãos tremiam um pouco quando eu as retirei do
envelope e as empurrei pela mesa na direção dele. Ele
passou pelas primeiras quatro muito rapidamente, deteve-
se na quinta — na qual ele aparecia junto com Emmett no
palco — e então voltou ao início e começou a olhá-las
novamente, demorando-se em cada uma das imagens.
Então falou, sem erguer os olhos:
— Onde você as conseguiu?
— McAra as requisitou do arquivo. Eu as encontrei no
quarto dele.
Pelo alto-falante, o copiloto nos pediu para colocar o
cinto.
— É estranho — murmurou Lang. — É estranho como
todos nós mudamos tanto, mas, ainda assim, continuamos
exatamente os mesmos. Mike nunca mencionou nada para
mim sobre fotografias. Ah, aquela praga de arquivo! — Ele
apertou os olhos para ver melhor uma das fotografias da
margem do rio. Eram as garotas, notei, mais do que ele
mesmo ou Emmett, que pareciam fasciná-lo mais. — Eu me
lembro dela — falou, batendo com os dedos na foto. — E
dela. Ela me escreveu uma vez, quando eu era primeiro-
ministro. Ruth não gostou nada. Oh, Deus — disse ele,
passando a mão pelo rosto. — Ruth. — Por um instante,
achei que ele fosse desmoronar, mas quando olhou para
mim, seus olhos estavam secos. — E agora? Existe alguma
rotina no seu ramo de trabalho para lidar com esse tipo de
situação?
Àquela altura, já havia padrões de luz muito claros na
janela. Eu podia ver os faróis de um carro em uma estrada.
— O cliente sempre tem a última palavra sobre o que
entra no livro — falei. — Sempre. Porém, obviamente, neste
caso, levando-se em conta o que aconteceu...
Na gravação, minha voz se perde, e então há um baque
alto, de quando Lang se inclinou para a frente e agarrou
meu antebraço.
— Se você está falando sobre o que aconteceu com Mike,
então deixe que eu lhe diga que fiquei completamente
horrorizado com aquilo. — Seu olhar não desgrudava do
meu: ele estava empregando todas as suas últimas forças
na tarefa de me convencer, e devo confessar abertamente
que, apesar de tudo o que eu tinha descoberto, ele
conseguiu: até hoje, tenho certeza de que ele estava
dizendo a verdade. — Mesmo que não acredite em mais
nada, você deve, por favor, acreditar que a morte dele não
teve nada a ver comigo, e que eu carregarei aquela imagem
de Mike no necrotério até o dia da minha própria morte.
Tenho certeza de que foi um acidente. Mas, tudo bem,
digamos, em prol da discussão, que não foi. — Ele apertou
meu braço com mais força. — O que estava passando pela
cabeça dele para ir até Boston confrontar Emmett? Ele já
estava na política há tempo suficiente para saber que não
se faz uma coisa dessas, não quando os riscos são tão altos.
Sabe, de certa forma, ele se matou mesmo. Foi um gesto
suicida.
— É isso que me preocupa — falei.
— Você não está pensando a sério — disse Lang — que a
mesma coisa pode acontecer com você, está?
— A ideia passou pela minha cabeça.
— Você não tem nada a temer neste sentido. Eu garanto.
— Acho que minha descrença ficou patente. — Ah, por
favor, cara! — disse ele com urgência. Novamente, seus
dedos se enfiaram na minha carne. — Nós temos quatro
policiais viajando neste avião conosco agora mesmo! Que
tipo de pessoa você acha que nós somos?
— Bem, a questão é toda essa — falei. — Que tipo de
pessoa é o senhor?
Estávamos descendo por sobre os topos das árvores. As
luzes do Gulfstream brilhavam pelas ondas negras de
folhagem. Tentei libertar meu braço.
— Com licença — falei.
Lang largou-me com relutância, e eu coloquei meu cinto
de segurança. Ele fez o mesmo. Olhou pela janela para o
terminal, depois de volta para mim, apavorado, à medida
que mergulhávamos graciosamente na pista.
— Meu Deus, você já contou para alguém, não contou?
Pude me sentir ficando vermelho.
— Não — falei.
— Contou, sim.
— Não contei. — Na gravação, eu soo tão impotente
quanto uma criança pega no flagra.
Ele se inclinou para a frente mais uma vez.
— Para quem você contou?
Enquanto eu olhava para a floresta negra além do
perímetro do aeroporto, onde nada poderia estar à espreita,
ela parecia ser a única coisa que poderia me dar segurança.
— Richard Rycart — disse.
Deve ter sido um golpe devastador para Lang. Ele deve
ter percebido no mesmo instante que aquilo significava o
fim de tudo. Na minha mente, ainda consigo vê-lo como um
daqueles edifícios que já foram grandiosos, mas que agora
estão condenados, momentos depois das bombas de
demolição explodirem: por alguns segundos, a fachada
continua intacta de forma bizarra, antes de começar a
deslizar lentamente para baixo. Com Lang foi igual. Ele me
lançou um longo olhar vazio, depois afundou de volta na
poltrona.
O avião parou diante do prédio do terminal. Os motores
morreram.

Neste instante, por fim, fiz algo de inteligente.


Enquanto Lang ficava sentado contemplando sua ruína e
Amelia vinha correndo pelo corredor para descobrir o que eu
tinha dito, tive a presença de espírito de ejetar o disco do
minigravador e colocá-lo no bolso. No seu lugar coloquei
outro em branco. Lang estava abalado demais para se
importar, e Amelia, vidrada demais nele para perceber.
— Certo — disse ela com firmeza —, já chega por hoje. —
Tirou o copo vazio da mão dele, que não esboçou
resistência, e entregou-o à comissária. — Temos de levá-lo
para casa, Adam. Ruth está esperando no portão. — Ela
estendeu o braço e tirou seu cinto de segurança, então
pegou seu paletó do encosto da poltrona. Segurou-o já
pronto para ele vestir e balançou-o um pouco, como um
toureiro com uma capa, mas sua voz era muito delicada. —
Adam?
Ele se levantou, como se estivesse em transe, para
obedecer, lançando um olhar vazio para a cabine do piloto
enquanto ela colocava seus braços nas mangas. Ela me
fuzilou com o olhar por sobre o ombro dele e fez com a
boca, furiosamente, com muita clareza e com sua dicção
habitualmente precisa: “Que merda é essa que você está
fazendo?”
E aquela era uma boa pergunta. Que merda era aquela
que eu estava fazendo? Na parte da frente do avião, a porta
tinha se aberto e três dos agentes das Forças Especiais
estavam desembarcando. Uma rajada de ar frio correu pela
cabine. Lang começou a andar em direção à saída,
precedido pelo seu quarto guarda-costas, com Amelia atrás.
Enfiei rapidamente o gravador e as fotografias na minha
bolsa a tiracolo e os segui. O piloto tinha saído da cabine
para se despedir, e vi Lang claramente endireitar os ombros
e seguir na direção dele com a mão estendida.
— Foi ótimo — disse Lang, vagamente —, como sempre.
Vocês são minha companhia preferida. — Ele apertou a mão
do piloto, então se inclinou por cima dele para agradecer ao
copiloto e à comissária. — Obrigado. Muito obrigado. — Ele
se virou para nós, ainda com seu sorriso profissional nos
lábios, mas o sorriso sumiu rápido; ele parecia chocado. Os
guarda-costas já estavam na metade da escada. Apenas
Amelia, eu e as duas secretárias esperávamos para segui-lo
para fora do avião. Eu conseguia ver indistintamente,
parado na janela de vidro iluminada do terminal, o vulto de
Ruth. Ela estava longe demais para eu saber qual era a
expressão de seu rosto. — Você se importa de esperar aqui
um instante? — disse ele para Amelia. — E você também?
— acrescentou ele para mim. — Preciso conversar em
particular com a minha mulher.
— Está tudo bem, Adam? — perguntou Amelia. Ela
estava com ele havia muito tempo, e imagino que o amasse
demais, para não perceber que havia algo de terrivelmente
errado.
— Vai ficar tudo bem — falou Lang. Ele tocou seu
cotovelo de leve, então fez para todos nós, inclusive para
mim e para a tripulação, uma pequena mesura. — Obrigado,
senhoras e senhores, e boa noite.
Ele passou abaixado pela porta e parou no topo das
escadas, olhando em volta, alisando o cabelo para baixo.
Amelia e eu o observamos de dentro do avião. Ele estava do
mesmo jeito de quando eu o vi pela primeira vez — ainda,
por uma questão de hábito, procurando uma plateia com a
qual pudesse fazer contato, embora o pátio castigado pelo
vento e iluminado pelos holofotes estivesse deserto, exceto
pelos guarda-costas que o esperavam e por um funcionário
do aeroporto de macacão, fazendo hora extra, sem dúvida
louco para chegar em casa.
Lang também deve ter visto Ruth esperando na janela,
pois de repente levantou a mão para acenar, então
começou a descer os degraus, graciosamente, como um
dançarino. Ele ganhou a pista e tinha andado cerca de dez
metros na direção do terminal quando o funcionário do
aeroporto gritou “Adam!” e acenou. A voz era inglesa, e
Lang deve ter reconhecido o sotaque de um conterrâneo,
pois se separou de repente dos seus guarda-costas e
caminhou em direção ao homem com a mão estendida. E
esta foi minha última imagem de Lang: um homem que
estava sempre com a mão estendida. Ela está gravada na
minha retina: sua sombra aflita contra a bola crescente de
fogo branco brilhante que o engoliu; e então havia apenas
os estilhaços voando, as partículas alfinetando nossa pele, o
vidro, o calor intenso e o silêncio da explosão, como se
estivéssemos debaixo d’água.
Dezesseis

Se você ficar minimamente aborrecido com a ideia de não


ver seu nome nos créditos ou não ser convidado para a festa
de lançamento, então a profissão de ghost-writer lhe trará
muitas tristezas.

Ghostwriting

Não vi mais nada depois daquele clarão inicial de luz: havia


muito vidro e sangue nos meus olhos. A força da explosão
atirou todos nós para trás. Amelia, descobri mais tarde,
bateu com a cabeça na lateral de um dos assentos e caiu
inconsciente, enquanto eu fiquei estirado no corredor em
meio à escuridão e ao silêncio pelo que podem ter sido
minutos ou horas. Não senti dor, exceto quando uma das
secretárias apavoradas pisou na minha mão com seu salto
alto no desespero para sair do avião. Porém, eu não
conseguia enxergar, e também se passaram várias horas
até que eu pudesse ouvir direito. Até hoje, de vez em
quando, escuto um zumbido nos ouvidos. Ele me isola do
mundo, como uma interferência de rádio. Depois de um
tempo, fui levantado e retirado dali e recebi uma
maravilhosa injeção de morfina, que explodiu como fogos
de artifício quentes no meu cérebro. Então fui levado de
helicóptero com todos os demais sobreviventes para um
hospital perto de Boston — muito próximo, por sinal, do
lugar onde Emmett morava.
Você já fez algo escondido quando criança que parecia
muito ruim na época e pelo qual você tinha certeza de que
seria punido? Eu me lembro de ter quebrado um velho e
precioso disco de vinil de meu pai e o colocado de volta na
capa sem dizer nada a respeito. Durante dias, vivi sob
terror, convencido de que o castigo viria a qualquer
momento. Porém, ninguém nunca falou nada. Da próxima
vez em que tive coragem de olhar, o disco tinha
desaparecido. Ele deve tê-lo encontrado e jogado fora.
Senti algo parecido depois do assassinato de Adam Lang.
Nos dois dias que se seguiram, deitado no meu quarto de
hospital, com o rosto enfaixado e um policial montando
guarda no corredor, repassei várias vezes em minha cabeça
os acontecimentos da semana anterior, e sempre me
pareceu óbvio que eu jamais deixaria aquele lugar vivo. Se
você pensar bem, não existe lugar mais fácil de se livrar de
alguém do que em um hospital: imagino que seja quase
rotineiro. E quem melhor para servir de assassino do que
um médico?
No entanto, acabou sendo parecido com o incidente do
disco quebrado de meu pai. Nada aconteceu. Enquanto eu
ainda estava vendado, fui interrogado gentilmente pelo
agente especial Murphy, do departamento de Boston do FBI,
que perguntou do que eu conseguia me lembrar. Na tarde
seguinte, quando os curativos foram retirados dos meus
olhos, Murphy retornou. Ele parecia um jovem padre
musculoso em um filme da década de 1950 e, daquela vez,
estava acompanhado por um inglês melancólico do Serviço
de Segurança Britânico, o MI5, cujo nome nunca entendi
direito — o que, suponho, seja mesmo a intenção.
Eles me mostraram uma fotografia. Minha vista ainda
estava embaçada, mas, ainda assim, consegui identificar o
maluco que eu havia conhecido no bar do meu hotel, e que
tinha montado aquela vigília solitária, com o slogan bíblico,
no fim da trilha para o complexo Rhinehart. Seu nome,
disseram eles, era George Arthur Boxer, ex-major do
Exército britânico, cujo filho havia sido morto no Iraque e
cuja mulher morrera seis meses depois em um ataque de
um homem-bomba em Londres. O major Boxer considerava
Adam Lang pessoalmente responsável pelas mortes e o
havia seguido até Martha’s Vineyard logo depois que a
morte de McAra fora divulgada pelos jornais. Estudara as
táticas dos homens-bomba em páginas jihadistas na
internet. Tinha alugado uma cabana em Oak Bluffs, para a
qual levara carregamentos de solvente e herbicida,
transformando-a em uma pequena fábrica de explosivos
caseiros. E teria sido fácil para ele saber quando Lang
estava voltando de Nova York, pois veria o carro à prova de
bombas seguindo para o aeroporto para buscá-lo. Como ele
chegara à pista, ninguém sabia ao certo, mas estava
escuro, havia uma cerca de quase 6,5 quilômetros em volta
do local, e os especialistas sempre partiram do princípio de
que quatro agentes das Forças Especiais e um carro
blindado eram proteção suficiente.
Porém, era preciso ser realista, disse o homem do MI5. A
segurança também tinha seus limites, especialmente contra
um homem-bomba determinado. Ele citou Sêneca, no
original em latim, e então teve a bondade de traduzir:
“Aquele que despreza a própria vida é dono da sua.” Tive a
impressão de que todos estavam um pouco aliviados pela
maneira como as coisas tinham acontecido: os ingleses
porque Lang tinha sido assassinado em solo americano; os
americanos porque ele tinha sido explodido por um inglês; e
ambos porque não haveria mais julgamento por crimes de
guerra, nenhuma revelação constrangedora e nenhum
convidado abusando da hospitalidade alheia, vagando pelas
mesas de jantar de Georgetown pelos próximos vinte anos.
Poderíamos quase dizer que era a relação especial em
prática.
O agente Murphy perguntou-me sobre o voo de Nova
York e se Lang havia expressado algum temor sobre sua
segurança pessoal. Respondi com sinceridade que não.
— A Sra. Bly — disse o homem do MI5 — disse-nos que
você gravou uma entrevista com ele durante a parte final
do voo.
— Não, ela está enganada — falei. — Eu estava com o
gravador na minha frente, mas não cheguei a ligá-lo. De
qualquer forma, não foi exatamente uma entrevista. Foi
mais um bate-papo.
— Você se importa se eu der uma olhada?
— Vá em frente.
Minha bolsa estava no armário ao lado de minha cama. O
homem do MI5 pegou o minigravador e ejetou o disco.
Fiquei observando-o, com a boca seca.
— Posso levar isso emprestado?
— Pode ficar com ele — falei. Ele começou a remexer o
resto dos meus pertences. — Por sinal, como está Amelia?
— Ela está bem. — Ele colocou o disco na sua maleta. —
Obrigado.
— Posso vê-la?
— Ela pegou o avião de volta para Londres na noite
passada. — Imagino que minha decepção deve ter ficado
clara, pois o homem do MI5 acrescentou, com um prazer
frio. — Não é de surpreender. Ela não via o marido desde
antes do Natal.
— E quanto a Ruth? — perguntei.
— Ela está voltando para casa com o corpo do Sr. Lang
agora — disse Murphy. — O seu governo mandou um avião
para apanhá-los.
— Ele receberá a mais alta honraria militar —
acrescentou o homem do MI5 —, uma estátua no Palácio de
Westminster e um funeral na Abadia, se ela quiser. Ele está
mais popular do que nunca, depois da morte.
— Ele deveria ter feito isso anos atrás — falei. Eles não
sorriram. — E é mesmo verdade que ninguém mais morreu?
— Ninguém — disse Murphy —, o que foi um milagre,
acredite.
— Na verdade — falou o homem do MI5 —, a Sra. Bly tem
dúvidas se o Sr. Lang não teria reconhecido o assassino e
seguido deliberadamente na direção dele, sabendo que algo
parecido poderia acontecer. Você conseguiria ajudar a
esclarecer isso?
— Parece-me forçado — falei. — Achei que um caminhão
de combustível tivesse explodido.
— Foi mesmo uma explosão e tanto — falou Murphy,
fechando sua caneta com um clique e deslizando-a para
dentro de seu bolso interno. — Acabamos encontrando a
cabeça do assassino no telhado do terminal.

Assisti ao funeral de Lang na CNN dois dias depois. Minha


vista estava mais ou menos recuperada. Pude ver o bom
gosto de tudo: a rainha, o primeiro-ministro, o vice-
presidente dos EUA e metade dos líderes da Europa; o
caixão envolvido na bandeira inglesa; a guarda de honra; o
flautista solitário tocando uma elegia. Ruth ficava muito
bem de preto, pensei: era definitivamente sua cor. Fiquei
procurando por Amelia, mas não a vi. Durante um intervalo
na cerimônia, houve até uma entrevista com Richard Rycart.
Naturalmente, ele não tinha sido convidado, mas se dera ao
trabalho de colocar uma gravata preta e prestar uma
homenagem muito tocante do seu gabinete nas Nações
Unidas: um grande colega... um verdadeiro patriota...
tínhamos nossas desavenças... continuamos amigos... meu
coração está com Ruth e a família... no que me diz respeito,
todo este episódio chegou ao fim.
Encontrei o celular que ele havia me dado e atirei-o pela
janela.
No dia seguinte, que era o dia em que eu receberia alta
do hospital, Rick veio de Nova York para se despedir e me
levar até o aeroporto.
— Você quer a notícia boa ou a ruim? — falou ele.
— Não tenho certeza se sua ideia de boa notícia é a
mesma que a minha.
— Sid Kroll acabou de ligar. Ruth Lang ainda quer que
você termine as memórias, e Maddox vai lhe dar um mês
extra para você trabalhar no manuscrito.
— E qual é a boa notícia?
— Ah, muito engraçadinho. Olhe, não seja tão metido.
Este é um livro muito quente agora. É a voz de Adam Lang
vindo do além. Não precisa mais trabalhar nele aqui: pode
terminá-lo em Londres. Aliás, você está péssimo.
— A voz dele vindo do além? — repeti, sem acreditar no
que estava ouvindo. — Então agora eu devo ser o fantasma
de um fantasma?
— Ora, o que é isso? A situação toda é cheia de
possibilidades. Pense um pouco. Você pode escrever o que
quiser, até certo ponto. Ninguém vai impedi-lo. E você
gostava dele, não gostava?
Pensei naquilo. Na verdade, vinha pensando naquilo
desde que acordara da anestesia. Pior do que a dor nos
meus olhos e o zumbido nos meus ouvidos, pior até do que
o meu medo de jamais sair do hospital, era minha sensação
de culpa. Isso pode parecer estranho, levando-se em conta
o que eu havia descoberto, mas não conseguia inventar
nenhuma desculpa para mim mesmo e nem ficar ressentido
com Lang. Eu era o culpado. Não era só o fato de eu ter
traído meu cliente, pessoal e profissionalmente: mas
também a série de acontecimentos que meus atos haviam
desencadeado. Se eu não tivesse ido ver Emmett, Emmett
não teria contatado Lang para avisá-lo sobre a fotografia.
Então talvez Lang não tivesse insistido em voar de volta
para Martha’s Vineyard naquela noite para ver Ruth. Então
eu não teria sido obrigado a lhe contar sobre Rycart. E
então, e então...? Aquilo me atazanava enquanto eu ficava
deitado na escuridão. Simplesmente não conseguia apagar
a lembrança de como ele parecera desolado no avião nos
últimos instantes.
A Sra. Bly tem dúvidas se o Sr. Lang, na verdade, não
teria reconhecido o assassino e seguido deliberadamente na
direção dele, sabendo que algo parecido poderia
acontecer...
— Sim — falei para Rick. — Sim, eu gostava dele.
— Bem, então pronto. Você lhe deve isso. E, além do
mais, tem outra coisa.
— O quê?
— Sid Kroll está dizendo que, se você não cumprir suas
obrigações contratuais e terminar o livro, ele vai jogar um
processo nas suas costas.

E assim eu retornei para Londres e, durante as seis


semanas que se seguiram, mal saí do meu flat, exceto uma
vez, logo no início, para jantar com Kate. Nos encontramos
em um restaurante na Notting Hill Gate, a meio caminho de
nossas casas — um território tão neutro quanto a Suíça... e
quase tão caro quanto. A maneira como Adam Lang morreu
parecia ter silenciado até mesmo a hostilidade dela, e
acredito que o fato de eu ter sido testemunha ocular me
conferiu um certo glamour. Eu recusara uma série de
pedidos de entrevistas, de modo que ela foi a primeira
pessoa, além do FBI e do MI5, para quem eu descrevi o
ocorrido. Queria desesperadamente lhe contar sobre minha
última conversa com Lang. E teria contado. Porém, no meio
disso tudo, quando estava prestes a abordar o assunto, o
garçom veio oferecer a sobremesa, e quando ele foi
embora, ela anunciou que queria me contar algo antes.
Ela estava noiva.
Confesso que fiquei chocado. Não gostava daquele outro
homem. Você o conheceria se eu dissesse seu nome: ele
tinha traços fortes, era bonito, vibrante. Era especialista em
viajar brevemente até os locais mais cheios de problemas
do mundo e voltar com relatos comoventes sobre o
sofrimento humano, geralmente o dele.
— Meus parabéns — falei.
Pulamos a sobremesa. Nosso caso, nosso relacionamento
— nosso o que quer que fosse — terminou dez minutos
depois com um beijinho na bochecha na calçada diante do
restaurante.
— Você ia me contar alguma coisa — disse ela, pouco
antes de entrar no táxi. — Por favor, me desculpe, eu cortei
você. Só não quis que dissesse nada, sabe, muito pessoal
antes de eu contar como as coisas estavam entre eu e...
— Não tem importância — falei.
— Tem certeza de que está tudo bem? Você parece...
diferente.
— Estou bem.
— Se você precisar de mim, eu sempre estarei lá para
você.
— Lá? — disse eu. — Não sei quanto a você, mas eu
estou aqui. Onde é lá?
Segurei a porta do táxi aberta para Kate. Não pude
deixar de ouvir que o endereço que ela deu ao motorista
não era o seu.
Depois disso, me desliguei do mundo. Passava todas as
horas do meu dia com Lang e, com ele morto, percebi que
subitamente havia encontrado sua voz. Era mais como se
eu me sentasse diante de um tabuleiro Ouija do que diante
de um teclado de computador todas as manhãs. Se meus
dedos digitassem uma frase que soava errada, eu podia
senti-los sendo quase fisicamente arrastados para a tecla
DELETE. Eu era como um bom roteirista escrevendo falas
com um astro particularmente exigente na cabeça: eu sabia
que ele diria isto, mas não aquilo; faria esta cena, mas
nunca aquela.
A estrutura básica da história continuou tendo os 16
capítulos de McAra, e meu método foi trabalhar sempre com
o manuscrito dele à minha esquerda: para redigitá-lo de
cabo a rabo e, enquanto o passava pelo meu cérebro e
pelos meus dedos até o computador, livrá-lo dos clichês
idiotas de meu antecessor. Não fiz menção a Emmett, claro,
cortando até a sua citação anódina que antes abria o último
capítulo. A imagem de Adam Lang que apresentei ao mundo
foi em grande parte a do personagem que ele sempre optou
por interpretar: o cara comum que caiu na política quase
por acaso e subiu ao poder porque não era nem tribal e nem
idealista. Encaixei isto na cronologia aceitando a sugestão
de Ruth de que Lang se voltara para a política para aliviar
sua depressão quando chegou a Londres. Não precisei
exagerar na tristeza neste caso. Afinal de contas, Lang
estava morto, o livro inteiro era permeado pelo fato de que
o leitor sabia o que estava por vir, e calculei que isso
deveria ser suficiente para deixar os mórbidos de plantão
satisfeitos. Porém, ainda era útil ter uma ou duas páginas de
luta heroica contra demônios internos etc. etc.

No trabalho superficialmente tedioso da política,


encontrei alívio para minha dor. Encontrei energia,
companheirismo, uma maneira de dar vazão à minha
paixão por conhecer pessoas novas. Encontrei uma
causa que era maior do que eu. E, acima de tudo,
encontrei Ruth...

Na minha versão da história, o envolvimento de Lang com a


política só deslanchou de verdade quando Ruth veio bater à
sua porta dois anos mais tarde. Parecia plausível. Quem
sabe? Poderia até ter sido verdade.
Comecei a escrever Memórias de Adam Lang no dia 10
de fevereiro e prometi a Maddox que estaria com tudo
pronto, todas as 160 mil palavras, no fim de março. Isso
significava que eu precisava produzir 3.400 palavras por
dia, todos os dias. Eu tinha uma tabela na parede e a
marcava todas as manhãs. Eu era como o capitão Scott
voltando do polo sul: precisava vencer aquelas distâncias
diárias, ou ficaria irrevogavelmente para trás e morreria em
uma selva branca de páginas vazias. Era um caminho
árduo, principalmente porque não dava para salvar quase
nenhuma frase de McAra, exceto, curiosamente, a última do
manuscrito, que me fizera soltar um gemido quando a li em
Martha’s Vineyard: Ruth e eu estamos olhando para o
futuro, venha o que vier. Leiam isso, seus desgraçados,
pensei, enquanto a digitava na noite de 13 de março: quero
ver vocês lerem isto e fecharem este livro sem um nó na
garganta.
Acrescentei FIM e então, creio eu, tive uma espécie de
colapso nervoso.

Despachei uma cópia do manuscrito para Nova York e outra


para o escritório da Fundação Adam Lang em Londres, aos
cuidados da Sra. Ruth Lang — ou, como teria sido mais
adequado chamá-la àquela altura, baronesa Lang de
Calderthorpe, uma vez que o governo havia acabado de lhe
dar uma cadeira na Câmara dos Lordes, como prova do
respeito da nação por ela.
Não tivera notícias de Ruth desde o assassinato. Havia
escrito para ela enquanto ainda estava no hospital: uma das
mais de cem mil pessoas que, segundo informações, lhe
mandaram suas condolências, de modo que não fiquei
surpreso quando tudo que recebi como resposta foi uma
carta impressa padrão. Porém, uma semana depois que ela
recebeu o manuscrito, uma mensagem escrita à mão
chegou no papel de carta gravado em relevo vermelho da
Câmara dos Lordes:

Você fez tudo que eu sempre esperei que fizesse — e


mais! Captou o tom dele maravilhosamente bem & o
trouxe de volta à vida — todo o seu extraordinário humor
& compaixão & energia. P.f., venha me ver aqui na C dos
L quando tiver uma folga. Seria ótimo colocar o papo em
dia. Martha’s V. parece tão distante, como se tivesse
acontecido há tanto tempo! Parabéns novamente pelo
seu talento. E este é um livro de verdade!
Com muito amor,
R.
Maddox foi igualmente efusivo, porém sem o amor. A
primeira tiragem seria de 400 mil exemplares. A data de
publicação seria fim de maio.
Então era isso. O trabalho estava feito.
Não demorei muito para perceber que eu estava em
péssimo estado. Meu combustível vinha sendo, suponho, o
“extraordinário humor & compaixão & energia” de Lang,
porém, assim que acabei de tirá-lo de mim para o papel,
desabei como um terno vazio. Por anos, sobrevivi habitando
uma vida depois da outra. Porém, Rick insistiu em que
esperássemos até o lançamento das memórias de Lang —
meu “livro da virada”, como ele o chamava — antes de
negociar contratos novos e melhores, e isso fez com que,
pela primeira vez desde que eu conseguia me lembrar, eu
não tivesse trabalho a fazer. Mal conseguia juntar forças
para sair da cama antes do meio-dia, e quando conseguia,
ficava deprimido de pijama no sofá, assistindo à
programação diurna da TV. Não comia muito. Parei de abrir
a correspondência ou atender ao telefone. Não fazia a
barba. Só deixava meu flat por algum tempo nas segundas
e quintas-feiras, para evitar ver minha faxineira — eu queria
despedi-la, mas não tinha coragem —, e então eu me
sentava no parque, se o tempo estivesse bom, ou em um
café seboso próximo dali, se não estivesse; e, como
estamos falando da Inglaterra, ele geralmente não estava.
E, ainda assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo que
estava afundado em um estupor, também me sentia
constantemente agitado. Tinha perdido as proporções de
tudo. Ficava preocupadíssimo com banalidades — onde
havia colocado um par de sapatos, por exemplo, ou se era
uma boa ideia manter todo o meu dinheiro em um só banco.
O nervosismo deixava-me fisicamente trêmulo, muitas
vezes sem fôlego, e foi neste estado de espírito, tarde da
noite, cerca de dois meses depois de terminado o livro, que
fiz o que, para mim, naquelas condições, foi uma
descoberta calamitosa.
Meu uísque havia acabado e eu sabia que tinha cerca de
dez minutos para ir até o pequeno supermercado em
Ladbroke Grove antes de ele fechar. Era fim de maio, estava
escuro e chovia. Peguei o paletó mais próximo e já havia
descido metade da escada quando percebi que aquele era o
paletó que eu estava usando quando Lang foi assassinado.
Estava rasgado na frente e manchado de sangue. Em um
dos bolsos, estava a gravação da minha última entrevista
com Adam, e no outro as chaves do Ford Escape.
O carro! Tinha me esquecido completamente dele. Ainda
estava estacionado no aeroporto Logan! E custando US$18
por dia! Eu devia estar devendo milhares de dólares!
Tenho certeza de que para você — e, na verdade, para
mim também agora — meu pânico parece ridículo. No
entanto, eu subi aquelas escadas de volta correndo, com
meu pulso martelando. Já passava das seis em Nova York, e
a Rhinehart Inc. tinha encerrado o expediente.
Desesperado, liguei para a casa de Rick e, sem preâmbulos,
comecei a balbuciar os detalhes da crise. Ele ouviu por
cerca de trinta segundos, então me mandou calar a boca
com rispidez.
— Isso tudo foi resolvido há semanas. Os caras do
estacionamento começaram a achar estranho e ligaram
para a polícia, e eles ligaram para o escritório de Rhinehart.
Maddox pagou a conta. Não quis incomodá-lo com isso
porque sabia que você estava muito ocupado. Agora preste
atenção, meu amigo. Acho que você está com um caso
grave de choque pós-traumático. Precisa de ajuda. Eu
conheço um analista...
Desliguei.
Quando finalmente adormeci no sofá, tive meu sonho de
sempre com McAra — aquele em que ele boiava vestido dos
pés à cabeça no mar ao meu lado e me dizia que não ia
conseguir: continue sem mim. Porém, daquela vez, em vez
de terminar comigo acordando, o sonho durou mais. Uma
onda levou McAra embora, com sua capa de chuva pesada e
botas de sola de borracha, até ele se tornar apenas um
vulto escuro ao longe, com o rosto virado para baixo na
espuma rasa, deslizando para a frente e para trás na beira
da praia. Caminhei na água até ele e consegui passar
minhas mãos pelo seu corpo volumoso e, com um enorme
esforço, rolá-lo para cima; então, de repente, ele estava
deitado em uma mesa branca, olhando para cima, com
Adam Lang inclinado sobre seu corpo.
Na manhã seguinte, saí cedo do flat e desci a colina até a
estação do metrô. Não precisaria de muito para me matar,
pensei. Um pulo rápido diante de um trem chegando e,
então, o esquecimento. Muito melhor do que se afogar.
Porém, aquilo não passava do mais breve dos impulsos,
principalmente porque não conseguia suportar a ideia de
alguém tendo que me limpar depois. (“Encontraram a
cabeça dele no telhado do terminal...”) Em vez disso,
embarquei no trem e viajei até o fim da linha em
Hammersmith, depois atravessei a rua para a outra
plataforma. Movimento, esta é a cura para a depressão,
concluí. É preciso se manter em movimento. Na estação de
Embankment mudei de linha novamente para Morden, que
sempre me soou como o fim do mundo. Atravessamos
Balham e eu saltei duas paradas depois.
Não demorei muito para encontrar o túmulo. Lembrava-
me de que Ruth havia dito que o funeral tinha sido no
cemitério Streatham. Procurei pelo nome dele e um
funcionário me apontou o caminho da sepultura. Passei por
anjos de pedra com asas de águia e querubins cobertos de
musgo com cachinhos cheios de liquens; sarcófagos
vitorianos do tamanho de cabanas de jardim e cruzes
decoradas com rosas cor de mármore. No entanto, a
contribuição de McAra para a necrópole era
caracteristicamente simples. Nada de dizeres floreados —
nada de “Não digas que a luta foi em vão” ou “Bem fizeste
tu, bom e fiel servo” para o nosso Mike. Apenas uma lápide
de pedra calcária com seu nome e as datas.
Era um fim de manhã de primavera, o pólen e a fumaça
de gasolina deixavam o ar pesado. Ao longe, o tráfego subia
a Garratt Lane em direção ao centro de Londres. Agachei-
me e apertei a palma das mãos contra a grama orvalhada.
Como já disse anteriormente, não sou do tipo supersticioso,
mas, naquele instante, senti de fato uma corrente de alívio
passar por mim, como se tivesse fechado um ciclo, ou
cumprido uma tarefa. Senti que ele queria que eu fosse até
ali.
Foi então que notei, recostado na pedra, meio escondido
atrás da grama malcuidada, um pequeno buquê de flores
murchas. Havia um cartão nele, escrito com uma caligrafia
elegante, quase ilegível depois de sucessivos temporais
londrinos. “Em memória de um bom amigo e um colega leal.
Descanse em paz, querido Mike. Amelia.”

Quando voltei para o meu flat, liguei para o celular dela. Ela
não pareceu surpresa em ter notícias minhas.
— Olá — disse ela. — Estava pensando agora mesmo em
você.
— Por quê?
— Estou lendo o seu livro, quero dizer, o livro de Adam.
— E?
— É bom. Não, na verdade, é melhor do que bom. É
como tê-lo de volta. Só está faltando uma coisa, na minha
opinião.
— O quê?
— Ah, não tem importância. Eu lhe digo se a gente se vir.
Quem sabe não conseguimos conversar hoje na festa?
— Que festa?
Ela riu.
— A sua festa, seu idiota. O lançamento do seu livro. Não
me diga que não foi convidado.
Fazia bastante tempo que eu não falava com ninguém.
Levei um ou dois segundos para responder.
— Não sei se fui ou se não fui. Para ser sincero, não
tenho conferido minha correspondência ultimamente.
— Você deve ter sido.
— Não aposte nisso. Autores costumam não gostar muito
de ter seus ghost-writers olhando para eles por sobre os
canapés.
— Bem, o autor não estará lá, não é mesmo? — disse
Amelia. Ela quis soar animada, mas acabou parecendo
deprimida e tensa. — Você deveria ir, independentemente
de ter sido convidado. Na verdade, se não tiver sido mesmo,
pode ir como meu convidado. Meu convite tem “Amelia Bly
e acompanhante” escrito nele.
A perspectiva de voltar à sociedade fez meu coração
disparar novamente.
— Mas você não quer levar outra pessoa? E quanto ao
seu marido?
— Ah, ele. Acabou não dando certo entre nós,
infelizmente. Eu não tinha percebido como era tedioso para
ele ser o meu “acompanhante”.
— Sinto muito.
— Mentiroso — disse ela. — Encontro você no final da
Downing Street, às sete da noite. A festa é bem em frente
do Whitehall. Só vou esperar cinco minutos; então, se você
decidir ir, não se atrase.

Depois que acabei de falar com Amelia, vasculhei


atentamente minhas semanas de correspondência
acumulada. Não havia nenhum convite para a festa.
Levando em conta as circunstâncias do meu último
encontro com Ruth, não fiquei muito surpreso. Havia, no
entanto, um exemplar final do livro. A capa, tendo em vista
o mercado americano, era uma fotografia de Lang,
parecendo charmoso, numa sessão conjunta do Congresso
americano. As fotografias internas não incluíam nenhuma
das de Cambridge descobertas por McAra: eu não as havia
passado para o pesquisador responsável. Passei os olhos
pelos agradecimentos, que eu havia escrito na voz de Lang:

Este livro não existiria sem a dedicação, o apoio, a


sabedoria e a amizade do falecido Michael McAra, que
colaborou comigo da primeira à última página. Obrigado
Mike — por tudo.

Meu nome não era mencionado. Por mais que isso irritasse
Rick, abri mão do crédito de colaborador. Não lhe disse o
motivo, ou seja, que achei que essa era a solução mais
segura. As informações cortadas e meu anonimato, eu
esperava, serviriam como uma mensagem para qualquer
pessoa de fora que estivesse atenta de que eu não causaria
mais problemas.
Enfiei-me em um banho durante uma hora naquela tarde
e refleti se deveria ou não ir à festa. Como sempre,
consegui prolongar minha procrastinação por horas. Dizia a
mim mesmo que ainda não tinha necessariamente me
decidido enquanto tirava a barba, enquanto colocava um
terno escuro decente e uma camisa branca, enquanto saía
para a rua e chamava um táxi, e até mesmo enquanto
estava parado na esquina da Downing Street às 18h55:
ainda não era tarde demais para voltar. Do outro lado do
bulevar amplo e luxuoso do Whitehall, eu podia ver os
carros e táxis estacionando diante da Casa de Banquetes,
onde eu achava que a festa estava acontecendo. Flashes de
fotógrafos espocavam no sol de fim de tarde, uma pálida
lembrança dos dias de glória de Lang.
Continuei procurando Amelia, subindo a rua em direção
ao oficial a cavalo diante do Palácio da Guarda Montada e
voltando novamente, passando pelo Ministério das Relações
Exteriores, até o hospício gótico vitoriano que era o Palácio
de Westminster. Uma placa na entrada da Downing Street
indicava o Gabinete de Guerra, com um desenho de
Churchill, com direito ao V de vitória e charuto. O Whitehall
sempre me faz lembrar do Ataque. Consigo visualizá-lo a
partir das imagens que me foram mostradas na infância: os
sacos de areia, as fitas brancas pelas janelas, os holofotes
dedilhando às cegas a escuridão, o zumbido dos
bombardeiros, o estrondo de explosivos pesados, o brilho
vermelho dos incêndios no East End. Trinta mil mortos
somente em Londres. Aquilo sim, como diria meu pai, era o
que se podia chamar de guerra — e não esse pinga-pinga
de transtornos, ansiedade e estupidez. Mesmo assim,
Churchill costumava caminhar até o Parlamento através do
St. James’s Park, levantando o chapéu para os transeuntes,
com apenas um detetive solitário andando três metros atrás
dele.
Ainda estava pensando sobre o assunto quando o Big
Ben acabou de soar a hora. Olhei novamente para os dois
lados, mas ainda não havia sinal de Amelia, o que me
surpreendeu, pois achava que ela era do tipo pontual. Mas
então eu senti alguém tocar a manga do meu paletó, e me
virei para encontrá-la parada atrás de mim. Ela emergira do
cânion sombrio da Downing Street em seu terninho azul-
escuro, carregando uma pasta. Parecia mais velha, apagada
e, por um breve instante, vislumbrei seu futuro: um
pequeno flat, uma agenda eletrônica, um gato. Nós nos
cumprimentamos educadamente.
— Bem — disse ela —, aqui estamos nós.
— Aqui estamos nós. — Ficamos um de frente para o
outro, sem jeito, separados por alguns metros. — Não sabia
que você estava trabalhando no Número 10 — falei.
— Eu tinha sido apenas transferida do Gabinete para
trabalhar com Adam. O rei está morto — disse ela e, de
repente, sua voz falhou. Abracei-a e afaguei suas costas,
como se ela fosse uma criança que tivesse levado um
tombo. Senti sua bochecha molhada contra a minha.
Quando ela se afastou, abriu a pasta e tirou um lenço. —
Desculpe — falou. Ela assoou o nariz e bateu com os pés de
salto alto no chão, repreendendo a si mesma. — Fico
pensando que já superei, mas aí percebo que não. Você está
péssimo — acrescentou ela. — Na verdade, parece...
— Um fantasma? — falei. — Obrigado. Já ouvi essa antes.
Ela se olhou no espelho do estojo de pó de arroz e fez
alguns ajustes ligeiros. Percebi que estava nervosa.
Precisava de alguém para acompanhá-la; até eu serviria.
— Certo — disse ela, fechando-o com um clique. —
Vamos lá.
Andamos até o Whitehall, passando pelas multidões de
turistas de primavera.
— Então, você foi mesmo convidado? — perguntou ela.
— Não, não fui. Na verdade, fiquei surpreso por você ter
sido.
— Ah, isso não é tão estranho — disse ela, tentando soar
casual. — Ela venceu, não foi? Ela é o ícone nacional. A
viúva de luto. Nossa própria Jackie Kennedy. Não vai se
incomodar comigo por perto. Nem chego a ser uma
ameaça; sou apenas um troféu na sua trajetória de vitórias.
— Atravessamos a rua. — Charles I saiu daquela janela para
ser executado — disse ela, apontando. — Era de se esperar
que alguém tivesse feito a associação, você não acha?
— Incompetência da equipe — falei. — Não teria
acontecido quando você estava no comando.
Logo que entrei, soube que tinha sido um erro vir. Amelia
teve de abrir sua pasta para os seguranças. Minhas chaves
fizeram o detector de metal disparar, e eu tive de ser
revistado. A coisa está preta, pensei, parado com as mãos
para cima, com um segurança tateando minha virilha,
quando você não pode ir nem sequer a um coquetel sem ser
revistado por alguém. No grande espaço aberto da Casa de
Banquetes, topamos com um rugido de pessoas falando e
uma muralha de costas viradas para nós. Eu fazia questão
de nunca ir às festas de lançamento dos meus próprios
livros e, naquele momento, me lembrei por quê. Um ghost-
writer é tão bem-vindo quanto o filho bastardo do noivo em
um casamento da alta sociedade. Eu não conhecia uma
alma.
Habilidosamente, agarrei duas taças de champanha de
um garçom que passava e dei uma para Amelia.
— Não estou vendo Ruth — falei.
— Ela deve estar no meio da confusão, imagino. A você
— disse ela.
Fizemos tintim. Champanha: mais sem sentido ainda do
que vinho branco, na minha opinião. Mas não parecia haver
nenhuma outra coisa.
— É Ruth, na verdade, o que está faltando no seu livro,
se eu tivesse de fazer uma crítica.
— Eu sei — respondi. — Queria colocar mais a respeito
dela, mas ela não quis.
— Bem, é uma pena. — A bebida parecia dar coragem à
geralmente cautelosa Sra. Bly. Ou talvez fosse apenas o fato
de que passáramos a ter um vínculo. Afinal de contas,
éramos sobreviventes; tínhamos sobrevivido aos Lang. De
qualquer forma, ela se inclinou para perto de mim,
oferecendo-me uma baforada familiar do seu perfume. — Eu
adorava Adam, e acho que ele sentia o mesmo por mim.
Mas eu não tinha nenhuma ilusão; ele jamais a teria
deixado. Ele me disse isso durante aquela última viagem
até o aeroporto. Eles eram uma dupla perfeita. Adam sabia
muito bem que não teria sido nada sem ela. Deixou isso
totalmente claro para mim. Ele devia a ela. Era ela quem
entendia de fato o poder. Originalmente, era ela quem tinha
os contatos dentro do partido. Na verdade, era ela quem
deveria ter chegado ao Parlamento, você sabia disso? Não
ele. Isso não está no seu livro.
— Eu não sabia.
— Adam contou-me uma vez. Não é todo mundo que
sabe; pelo menos nunca vi escrito em lugar nenhum. Mas
dizem que a cadeira dele estava originalmente reservada
para ela, só que no último minuto Ruth desistiu e deixou
que ele a assumisse.
Pensei na minha conversa com Rycart.
— O Membro de Michigan — murmurei.
— Quem?
— O dono da cadeira no Parlamento era um homem
chamado Giffen. Ele era tão pró-americano que era
conhecido como Membro de Michigan. — Algo se inquietava
na minha mente. — Posso lhe fazer uma pergunta? — falei.
— Antes de Adam ser assassinado, por que você estava tão
determinada a manter a sete chaves aquele manuscrito?
— Já disse: segurança.
— Mas não tinha nada nele. Eu sei disso melhor do que
ninguém. Li cada palavra entediante dele dezenas de vezes.
Amelia olhou em volta. Ainda estávamos à margem da
festa. Ninguém prestava a mínima atenção a nós.
— Aqui entre nós — disse ela baixinho. — Não éramos
nós que estávamos preocupados. Pelo jeito, eram os
americanos. Fui informada que eles disseram ao MI5 que
poderia haver algo no começo do manuscrito que era uma
ameaça em potencial à segurança do país.
— Como eles sabiam disso?
— Quem vai saber? Tudo que posso lhe dizer é que,
imediatamente depois da morte de McAra, eles nos pediram
para tomar cuidados especiais para que o livro não
circulasse antes que eles tivessem a chance de esclarecer
isso.
— E eles fizeram isso?
— Não faço ideia.
Pensei novamente no meu encontro com Rycart. O que
ele tinha dito que McAra lhe falara ao telefone, pouco antes
de morrer? “A chave para tudo está na autobiografia de
Lang; está tudo lá no começo.”
Isso significava que a conversa deles tinha sido
grampeada?
Senti que algo importante tinha acabado de mudar —
que alguma parte do meu sistema solar tinha alterado sua
órbita —, mas não conseguia entender bem o que era.
Precisava fugir para algum lugar silencioso, para repensar
tudo aquilo com calma. O rugido das conversas começou a
diminuir. As pessoas sussurravam umas com as outras. Um
homem exclamou pomposamente: “Silêncio!”, e eu me
virei. Em um dos lados do salão, de frente para as janelas
grandes, não muito distante de onde estávamos, Ruth Lang
esperava pacientemente em um palanque, segurando um
microfone.
— Obrigada — disse ela. — Muito obrigada. E boa noite.
— Ruth fez uma pausa, e uma grande quietude espalhou-se
por trezentas pessoas. Ela respirou fundo. Havia um nó na
sua garganta. — Sinto falta de Adam o tempo todo. Mas
nunca tanto quanto esta noite. Não só porque estamos
reunidos para lançar seu maravilhoso livro e porque ele
deveria estar aqui para compartilhar a alegria da sua
história de vida conosco, mas também porque ele era tão
brilhante como orador, enquanto eu sou horrível.
Fiquei surpreso com o seu profissionalismo ao proferir
aquela última frase, como ela foi aumentando a tensão
emocional para então cortá-la. A plateia soltou uma
gargalhada. Ela parecia muito mais confiante em público do
que eu me lembrava, como se a ausência de Lang tivesse
lhe dado espaço para crescer.
— Portanto — prosseguiu ela —, podem ficar aliviados,
pois não vou fazer um discurso. Gostaria apenas de
agradecer a algumas pessoas. Gostaria de agradecer a
Marty Rhinehart e John Maddox não só por serem editores
maravilhosos, mas também por serem grandes amigos.
Gostaria de agradecer a Sidney Kroll por sua inteligência e
por seus sábios conselhos. E, caso esteja parecendo que
todas as pessoas envolvidas nas memórias de um primeiro-
ministro britânico são americanas, eu também gostaria de
agradecer em particular, e especialmente, a Mike McAra,
que tragicamente também não pôde estar conosco. Mike:
você está em nossos pensamentos.
O grande salão retiniu com um clamor de “bravo, bravo”.
— E agora — disse Ruth —, vocês me permitam propor
um brinde à pessoa a quem realmente devemos agradecer?
— Ela ergueu seu copo de suco de laranja macrobiótico, ou
seja lá o que fosse. — À memória de um grande homem e
um grande patriota, um ótimo pai e um marido maravilhoso;
a Adam Lang!
— A Adam Lang! — todos rugimos em uníssono, e então
batemos palmas, e continuamos, redobrando o volume,
enquanto Ruth assentia graciosamente para todos os cantos
do salão, incluindo o nosso. Neste momento, ela me viu,
piscou, e então se recompôs, sorrindo e erguendo seu copo
para mim num cumprimento.
Ela desceu do palanque depressa.
— A viúva alegre — sibilou Ameba. — A morte lhe cai
bem, você não acha? Ela está florescendo a cada dia que
passa.
— Tenho a impressão de que ela está vindo para cá —
falei.
— Merda — disse Ameba, secando sua taça. — Neste
caso, estou dando o fora. Você gostaria de me levar para
jantar?
— Ameba Bly, você está me propondo um encontro?
— Vejo você lá fora em dez minutos. Freddy! — chamou
ela. — Que bom ver você.
No mesmo instante em que ela se afastou para falar com
outra pessoa, a multidão à minha frente pareceu se abrir, e
então Ruth surgiu, muito diferente da última vez em que eu
a havia visto: os cabelos brilhosos, a pele macia, mais
magra por causa da tristeza e vestindo algo preto e sedoso,
de grife. Sid Kroll estava com ela.
— Olá, você — disse ela. Pegou minhas mãos nas suas e
cumprimentou-me com dois beijinhos, sem encostar a boca
em mim, mas esfregando seu capacete grosso de cabelo
rapidamente nas minhas duas bochechas.
— Olá, Ruth. Olá, Sid.
Assenti para ele. Ele piscou.
— Disseram-me que você não suporta esse tipo de festa
— falou ela, ainda segurando minhas mãos, e fitando-me
com seus olhos pretos brilhantes. — Do contrário, eu teria
lhe mandado um convite. Você recebeu meu bilhete?
— Recebi. Obrigado.
— Mas não me ligou!
— Achei que poderia estar sendo apenas educada.
— Educada! — Ela balançou minhas mãos por um
instante, censurando-me. — Desde quando eu sou educada?
Você precisa me visitar.
E então ela fez aquele negócio que as pessoas
importantes sempre fazem comigo nas festas: olhou por
cima do meu ombro. E eu vi no seu olhar, quase
imediatamente e de maneira bastante inequívoca, um
lampejo de temor, que foi seguido de pronto por um
balançar quase imperceptível da sua cabeça. Soltei minhas
mãos, me virei e vi Paul Emmett. Ele estava a menos de
dois metros de distância.
— Olá — disse ele. — Acho que já nos conhecemos.
Voltei-me para Ruth. Tentei falar, mas as palavras não
saíam.
— Ah — falei. — Ah...
— Paul foi meu orientador — disse ela calmamente —
quando eu era bolsista da Fulbright, em Harvard. Eu e você
precisamos conversar.
— Ah...
Afastei-me de costas de todos eles. Bati em um homem
que protegeu seu drinque e alegremente me mandou
prestar atenção. Ruth estava falando algo com intensidade,
assim como Kroll, mas havia um zumbido em meu ouvido, e
eu não conseguia escutá-los. Vi Amelia olhando para mim e
acenei debilmente as mãos, então fugi do salão em direção
ao lobby e de lá para a grandiosidade vazia e imperial do
Whitehall.
Assim que cheguei lá fora, ficou claro que outra bomba
tinha explodido. Eu podia ouvir as sirenes ao longe, e um
pilar de fumaça já tornava a Nelson’s Column pequena,
subindo de algum lugar atrás da Galeria Nacional. Saí
correndo a passos largos em direção à Trafalgar Square e
passei na frente de um casal indignado para pegar o táxi
deles. Rotas de fuga estavam sendo fechadas por todo o
centro de Londres, como em um incêndio florestal se
espalhando. Dobramos em uma rua de mão única, mas
apenas para encontrar a polícia fechando o final dela com
fita amarela. O motorista deu a ré no táxi, jogando-me para
a frente até a beirada do assento, e foi assim que fiquei até
o fim da corrida, agarrado à alça ao lado da porta, enquanto
serpenteávamos e manobrávamos pelas ruas secundárias
na direção norte. Quando chegamos ao meu flat, paguei-lhe
o dobro do preço da corrida.
A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está
tudo lá no começo.
Apanhei meu exemplar final do livro, levei-o até minha
mesa e comecei a folhear os capítulos iniciais. Corri meu
dedo depressa até o meio das páginas, passando os olhos
por todos aqueles sentimentos inventados e lembranças
feitas de meias-verdades. Minha prosa profissional,
impressa e encadernada, havia transformado a aspereza de
uma vida humana em algo tão regular quanto uma parede
rebocada.
Nada.
Atirei o livro longe, enojado. Que lixo imprestável ele era:
que exercício comercial sem alma. Fiquei feliz por Lang não
estar mais lá para lê-lo. Na verdade, preferia o original: pela
primeira vez, reconheci algo de honesto na sua laboriosa
sinceridade. Abri uma gaveta e peguei o manuscrito original
de McAra, desgastado pelo uso e com alguns trechos
praticamente ilegíveis sob meus cortes e correções.
Capítulo Um. Minha família, os Lang, é originária da Escócia
e se orgulha disso. Lembro-me daquele começo imortal que
eu havia cortado de forma tão implacável em Martha’s
Vineyard. Porém, pensando melhor, todos os começos de
capítulo de McAra eram particularmente horrorosos. Não
tinha deixado um só intacto. Vasculhei as páginas soltas, o
manuscrito volumoso abrindo-se em um leque e se
contorcendo nas minhas mãos desajeitadas como se fosse
uma coisa viva.
Capítulo dois. Mulher e filho a reboque, decidi me instalar
em uma cidade pequena, onde pudesse viver longe da
agitação da vida em Londres... Capítulo três. Ruth
reconheceu a possibilidade de eu me tornar líder do partido
muito antes de mim... Capítulo quatro. Estudante das falhas
dos meus antecessores, decidi ser diferente... Capítulo
cinco. Em retrospecto, nossa vitória nas eleições gerais
parecia inevitável, porém, na época... Capítulo seis. Setenta
e seis agências distintas administravam a previdência
social... Capítulo sete. Foi com a Irlanda do Norte, de todos
os países, que a história decidiu ser mais inclemente...
Capítulo oito. Recrutada a dedo e composta dos mais
diferentes estilos, nossa equipe de candidatos para as
eleições europeias me deixava orgulhoso... Capítulo nove.
Como se sabe, via de regra as nações agem em benefício
próprio no que diz respeito à política externa... Capítulo dez.
Uma das questões problemáticas enfrentadas pelo novo
governo... Capítulo onze. Novas avaliações da CIA sobre a
ameaça terrorista... Capítulo doze. Agentes da CIA no
Afeganistão... Capítulo treze. Quando decidi lançar um
ataque em áreas civis, eu sabia... Capítulo quatorze. Nos
Estados Unidos, há uma grande necessidade de aliados
preparados... Capítulo quinze. Por volta da época da
conferência anual do partido, aqueles que exigiam minha
renúncia... Capítulo dezesseis. Paul Emmett, professor da
Universidade de Harvard, escreveu sobre a importância...
Peguei todos os 16 começos de capítulo e espalhei-os na
mesa em sequência.
A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está
tudo lá no começo.
No começo, ou nos começos?
Nunca fui muito bom em enigmas. Porém, quando reli as
páginas circulando as primeiras palavras de cada capítulo,
até eu não conseguia deixar de ver a frase que McAra,
temendo por sua segurança, tinha embutido no manuscrito,
na voz de Lang, como uma mensagem do além-túmulo:
“Minha Mulher Ruth Estudante em Setenta e Seis Foi
Recrutada Como Uma das Novas Agentes da CIA Quando
Nos Estados Unidos por Paul Emmett, professor da
Universidade de Harvard.”
Dezessete

Um ghost-writer não deve esperar a glória.

Ghostwriting

Deixei meu flat naquela noite para nunca mais voltar. Desde
então, um mês se passou. Até onde sei, minha falta não foi
sentida. Algumas vezes, especialmente durante a primeira
semana, sentado sozinho no meu quarto de hotel imundo,
tive certeza de que tinha enlouquecido. Deveria ligar para
Rick, disse a mim mesmo, e pegar o nome do analista dele.
Estava sofrendo delírios. Mas então, cerca de três semanas
atrás, depois de um dia de trabalho duro escrevendo,
quando já estava pegando no sono, ouvi no noticiário da
meia-noite que o ex-secretário de Assuntos Internacionais,
Richard Rycart, tinha morrido em um acidente de carro na
cidade de Nova York, juntamente com seu motorista. Foi
apenas a quarta notícia do jornal, se não me engano. Não
há nada mais ex do que um ex-político. Rycart não teria
gostado.
Depois disso, soube que não tinha mais volta.
Embora não tenha feito nada além de escrever e pensar
no que aconteceu, ainda não sei dizer com precisão como
McAra desvendou a verdade. Imagino que tenha começado
ainda na época dos arquivos, quando ele topou com a
Operação Tempestade. Ele já estava desiludido com os anos
de Lang no poder, incapaz de entender por que algo que
tinha começado de forma tão promissora havia resultado
numa bagunça tão grande. Quando, do seu jeito obstinado,
pesquisando a época de Cambridge, ele descobriu aquelas
fotografias, elas devem ter lhe parecido a chave do
mistério: certamente, se Rycart tinha ouvido boatos sobre a
ligação de Emmett com a CIA, é razoável supor que McAra
também os tivesse ouvido.
No entanto, McAra também sabia de outras coisas. Ele
sabia que Ruth tinha sido bolsista da Fulbright em Harvard,
e lhe bastariam dez minutos na internet para descobrir que
Emmett estava ensinando sua especialidade no campus em
meados da década de 1970. Também sabia melhor do que
ninguém que Lang raramente tomava uma decisão sem
consultar a esposa. Adam sabia vender ideias políticas de
forma brilhante, enquanto Ruth era a estrategista. Se você
tivesse de escolher qual deles tinha a inteligência, a ousadia
e a impiedade para ser um recruta ideológico, só haveria
uma escolha. McAra não pode ter sabido ao certo, mas
acredito que ele tenha juntado uma quantidade de peças
suficiente do quebra-cabeça para desembuchar sua
suspeita para Lang durante aquela discussão acalorada na
noite anterior à sua viagem para confrontar Emmett.
Tentei imaginar como Lang deve ter se sentido quando
ouviu a acusação. Desdenhoso, sem dúvida; furioso,
também. Porém, um ou dois dias mais tarde, quando um
corpo surgiu na praia e ele foi até o necrotério identificar
McAra — o que ele pensou naquela hora?
Venho ouvindo quase todos os dias a fita da minha
última conversa com Lang. A chave para tudo está lá, tenho
certeza, mas a história completa sempre continua
sedutoramente fora de alcance. Nossas vozes estão baixas,
porém reconhecíveis. Ao fundo, ouve-se o barulho dos
motores do avião.

EU: É verdade que o senhor teve uma briga feia com ele
pouco antes de ele morrer?
LANG: Mike fez algumas acusações levianas. Eu não
podia ignorá-las.
EU: Posso perguntar que tipo de acusações?
LANG: Prefiro não repeti-las.
EU: Elas tinham algo a ver com a CIA?
LANG: Mas a essa altura você já sabe, não sabe? Já que
foi ver Paul Emmett.
[Uma pausa de 75 segundos de duração]
LANG: Quero que você entenda que tudo o que fiz, tanto
como líder do partido quanto como primeiro-ministro,
tudo, eu fiz por convicção, por acreditar que era certo.
EU: [inaudível]
LANG: Emmett disse que você mostrou algumas fotos
para ele. É verdade? Posso vê-las?

E então, por um tempo, não se ouve nada além do som


do motor, enquanto ele as analisa, e eu avanço para a parte
em que ele fica olhando as garotas no piquenique às
margens do rio. Sua voz é de uma tristeza inenarrável.

Eu me lembro dela. E dela. Ela me escreveu uma vez,


quando eu era primeiro-ministro. Ruth não gostou nada.
Oh, Deus, Ruth...

Oh, Deus, Ruth...

Oh, Deus, Ruth...

Ouço essa frase várias vezes. Está óbvio na sua voz,


agora que já a ouvi o suficiente, que, naquele momento,
quando ele se lembra da esposa, está preocupado apenas
com ela. Imagino que ela tenha telefonado para ele em
pânico no fim daquela tarde para informá-lo que eu tinha
ido me encontrar com Emmett e havia mostrado algumas
fotografias. Ela deve ter sentido necessidade de falar com
ele cara a cara o mais rápido possível — toda a história
estava ameaçando ser desfiada —, daí a pressa para pegar
um avião. Só Deus sabe se ela sabia o que poderia estar
esperando pelo marido na pista de voo: na minha opinião,
com certeza não sabia, embora as perguntas sobre as falhas
na segurança que permitiram o ocorrido nunca tenham sido
plenamente respondidas. Porém, é o fato de Lang não ter
conseguido completar a frase que eu acho tocante. “O que
você fez” certamente é o que ele pretendia acrescentar.
“Oh, Deus, Ruth — o que você fez?” Este, imagino, é o
instante em que os dias de suspeita se cristalizam
bruscamente na sua cabeça, em que ele percebe que as
“acusações levianas” de McAra deviam ser verdade, afinal,
e que a mulher que era sua esposa havia trinta anos não
era a pessoa que ele achava ser.
Não é de espantar que ela tenha sugerido que eu
concluísse o livro. Ruth tinha muito a esconder — e deve ter
tido a certeza de que o autor das memórias nebulosas de
Christy Costello seria, no mundo todo, a pessoa com a
menor probabilidade de descobrir seus segredos.
Gostaria de escrever mais, porém, olhando para o
relógio, temo que isto vá ter de bastar, pelo menos por
enquanto. Como você deve ter percebido, não gosto de me
demorar por muito tempo em um só lugar. Já sinto que
estranhos estão começando a se interessar demais por
mim. Meu plano é colocar uma cópia deste manuscrito em
um envelope e enviá-lo para Kate. Pretendo largá-lo na sua
porta daqui a uma hora, antes de as pessoas acordarem,
com uma carta pedindo que ela não o abra, mas o guarde
para mim. Somente se não ouvir notícias minhas depois de
um mês, ou se descobrir que algo me aconteceu, ela deve
lê-lo e decidir qual a melhor maneira de torná-lo público. Ela
vai pensar que estou sendo melodramático, e estou mesmo.
Mas confio nela. Ela vai fazer isso. Se existe alguém teimoso
e espírito de porco o suficiente para conseguir que isto aqui
seja publicado, essa pessoa é Kate.
Pergunto a mim mesmo para onde vou agora. Não
consigo decidir. Certamente sei o que gostaria de fazer. Isso
talvez o surpreenda, mas eu gostaria de voltar para
Martha’s Vineyard. É verão lá agora, e tenho uma estranha
vontade de ver aqueles tristes carvalhos americanos
cobertos de folhas e os iates saírem deslizando em
velocidade máxima de Edgartown pelo estreito de
Nantucket. Gostaria de voltar àquela praia em Lambert’s
Cove, sentir a areia quente sob meus pés descalços,
observar as famílias brincando nas ondas, e esticar minhas
pernas e meus braços no calor do sol límpido da Nova
Inglaterra.
Isso me coloca em uma espécie de dilema, como você
deve notar, agora que chegamos ao parágrafo final. Devo
ficar satisfeito que você esteja lendo isto ou não? Satisfeito,
é claro, por finalmente estar falando com minha própria voz.
Desapontado, é óbvio, pois isto provavelmente significa que
estou morto. Porém, como minha mãe costumava dizer,
infelizmente não se pode ter tudo nesta vida.
ROBERT HARRIS nasceu em Nottingham, Inglaterra, em 1957, e é
formado na Universidade de Cambridge. Foi repórter da BBC nos
programas Newsnight e Panorama editor político do Observer e
colunista do Sunday Times e do Daily Telegraph. Em 2003, foi
indicado ao Colunista do Ano no British Press Awards. É autor dos
best sellers Pátria amada, Enigma e Pompeia, bem como de cinco
livros de não ficção. Em breve a Editora Record publicará Império,
primeiro volume da trilogia sobre Cícero. O escritor é casado com
Gill Hornby e mora com os quatro filhos próximo a Hungerford.
[1] Aqui, o autor brinca com a palavra “ghost”, “fantasma”, fazendo um
trocadilho com “ghost-writer”, profissão do morto e do protagonista,
jogo de palavras recorrente no livro. (N. do. T.)
[2] Açougues muçulmanos que abatem e cortam a carne de acordo com
os preceitos do Corão. (N. do. T.)
[3] “Uma vez na vida/ Você consegue ter tudo/ Mas não percebe isso/
Até o dia em que perde tudo.” (Tradução livre) (N. do. T.)
[4] Em inglês, “Adam”, como Adam Lang. (N. do. T.)
[5] Nome da mansão de Katharine Graham em Martha’s Vineyard. A
jornalista, que foi presidente do jornal Americano The Washington Post,
teve um papel crucial na revelação do escândalo Watergate, que
culminou na renúncia do presidente Richard Nixon, em 1974. (N. do. T.)

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