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postado por terceiros à luz e sob a vigência do Marco Civil da Internet e da Lei
Geral de Proteção de Dados
Resumo: Com a difusão da internet somada à ascensão da telefonia móvel houve uma
transformação acelerada na sociedade, e, a comunicação em rede superou fronteiras,
tornando-se global. Assim, o acesso à internet foi elevado ao patamar de direito
humano, por oferecer condições insuperáveis para o exercício da liberdade de expressão
e de outros direitos fundamentais. Todavia, o exercício deste direito não seria possível
sem a existência de uma série de atores, principalmente privados, que atuam
promovendo o acesso e interconexão das múltiplas interações virtuais, dentre os quais
os provedores de aplicação. Dessa forma, das novas relações jurídicas, surge, também,
a responsabilidade civil pelos danos causados na internet, sendo a responsabilidade dos
provedores de aplicação por conteúdo postado por terceiros o ponto central deste artigo,
que sem a intenção de esgotar o tema, visa trazer reflexões sobre a extensão desta
responsabilidade à luz e o sob a vigência do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de
Proteção de Dados.
Abstract: The diffusion of the internet added to the rise of mobile telephony has
culminated in a sped of transformation in society, and network communication has
crossed borders, becoming global.
As such, Internet's access was raised to a Human right level, as it offers insurmountable
conditions for the exercise of freedom's expression and other fundamental rights.
However, the exercise of this right would not be possible without the existence of a
series of actors, mainly private ones, who work by promoting access and
interconnection of multiple virtual interactions, among them are the application
providers. Thus, from new legal relationships, civil liability for damages caused on
internet also arises, with the responsibility of application's providers for content posted
by third parties being the central point of this article, which without the intention of
exhausting the topic, aims to bring reflections over the extension of this responsibility in
the light of and under legality of the Civil rights New High terms for internet, and the
General Data Protection Regulation.
Keywords: Civil liability of application's providers for content posted by third parties.
Civil Rights High terms for Internet. General Data Protection Regulation. Freedom of
expression.
I- Introdução
2 . Idem, p. 8.
3 . Nações Unidas. Conselho de Direitos Humanos. Promoção, proteção e gozo dos Direitos
Humanos na Internet:
https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/17session/A.HRC.17.27_en.pdf. Acesso
em 01/12/2020.
4 . CIDH. Relatório Anual 2009. Relatório da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão.
Capítulo III (Marco Jurídico Interamericano do Direito à Liberdade de Expressão). OEA/Ser.L/V/II. Doc.
51. 30 de dezembro de 2009. .
democrática”. Estabelecendo o Artigo 13, da Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, o direito de toda pessoa à liberdade de expressão e que este direito
compreende “a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda
natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma
impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”, incluindo, as
comunicações, ideias e informações que são difundidas e acessadas pela internet.
Todavia, o exercício deste direito não seria possível sem a existência de uma
série de atores, principalmente privados, que atuam como intermediários na prestação
de serviços promovendo o acesso e interconexão, entre os mais relevantes e populares
estão os provedores de serviços de internet, os provedores de hospedagem de sítios de
internet, as plataformas de redes sociais, os aplicativos de mensagens instantâneas e os
de busca.
Dessa forma, as redes sociais passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas,
que começaram a criar o hábito de ter a rede social como primeiro site aberto, antes
mesmo de verificar e-mails ou notícias5.
Por conta disso, em 2006, com o explosivo crescimento e influência das redes
sociais, a revista "Time" elegeu "você" como a personalidade do ano. Na capa da revista
havia um espelho para edição da "personalidade do ano" e, à época, o seu editor
Richard Stengel chegou a afirmar, com relação à imagem, que: "literalmente reflete a
ideia de que você, e não nós, está transformando a era da informação"6, em destaque à
importância das pessoas na fundação e estrutura da democracia digital.
APOS+YOUTUBE+TIME+ELEGE+VOCE+COMO+PERSONALIDADE+DO+ANO.html
Acesso em 06/12/2020.
7 . DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Ed.
Contraponto. Rio de Janeiro, 1997. p.13.
8 Idem, p. 16.
pelo que resta claramente configurado dano moral, posto que o nome virtual do Autor permaneceu à vista
de todos como banido.” (grifos nossos)
11 . STJ. REsp 1.735.712-SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em
19/05/2020.
Por outro lado, não podemos descurar que os provedores de aplicação são
controladores de dados, conseguem produzir “bolhas virtuais” de conteúdo
personalizado, de forma a influenciar decisões sem que as pessoas necessariamente
percebam 12 e sem que haja transparência de como os dados coletados são manipulados
por algoritmos.
A Lei Federal 12.965, de 23 de abril de 2014, Marco Civil da Internet, é a lei
que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil,
determinando seu art. 6º que: “Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além
dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e
costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano,
econômico, social e cultural.”
13 . Souza, Carlos Affonso. Lemos, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação, Juiz
de Fora:Editar Editora Associada Ltda, 2016, p. 65.
Reza o art. 19 que:
“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a
censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser
responsabilizado por conteúdo postado por terceiros se, após ordem
judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos
limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar
indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as
disposições legais em contrário.
Daí vemos que com o Marco Civil da Internet, o qual foi publicado em
23/04/2014 e entrou em vigor 60 (sessenta) dias após esta data, o termo inicial da
responsabilidade do provedor de aplicação foi postergado no tempo, iniciando-se
somente após a notificação judicial. Portanto a exigência de ordem judicial passou a ser
tida como requisito para atrair a responsabilidade do provedor de aplicação, nesta
hipótese.
Por sua vez, outra forma de responsabilização por conteúdo postado postado por
terceiros é a prevista no art. 21, que estabelece que:
“O provedor de aplicações de internet que disponibilize
conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado
subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da
divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens,
de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de
atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de
notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar
de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites
técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.”
14 . STJ. REsp 1.735.712-SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em
19/05/2020
15 . Tartuce, Flávio Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2 / Flávio
Tartuce. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.519.
16 . Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz
de Fora: Editar Ed., 2016, p. 81
notificado pelo ofendido. Assim, bastava a notificação extrajudicial e a inércia do
provedor de aplicação em qualquer hipótese. Vejamos17:
“...Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em blog
por ele hospedado possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo,
deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até
que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do
denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o
vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob
pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em
virtude da omissão praticada.” (Grifo nosso)
Vemos, portanto, que o Marco Civil da Internet deu um passo atrás ao exigir o
descumprimento de ordem judicial para ensejar a responsabilidade do provedor de
aplicação.
No direito comparado18, a notificação (notice and take down - na legislação
norte-americana) é exclusivamente extrajudicial, basta à vítima comprovar que deu
conhecimento ao provedor internet, por qualquer meio, do fato ensejador da
responsabilidade civil, permitindo-lhe agir de modo a coibir tal prática.
17 . STJ. REsp 1.406.448/RJ. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em
15/10/2013
18 . Artigo 19 do Marco Civil da Internet gera impunidade e viola a Constituição. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2019-nov-21/guilherme-martins-artigo-19-marco-civil-
internet-gera-impunidade. Acesso em 02/12/2020.
19 . Souza, Carlos Affonso. Lemos, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação, Juiz
de Fora:Editar Editora Associada Ltda, 2016, p.73.
À medida que as informações sobre os comportamento de consumo dos
cidadãos, o monitoramento por geolocalização e outros dados permitem empreender de
forma mais eficiente e assertiva no mercado, é preciso repensar o papel de “mero
intermediário” do provedor de aplicação.20
Ademais, a vida virtual é uma extensão da vida real, a ponto que a dignidade da
pessoa humana alcança e deve ser garantida de forma plena em ambos espaços. Por esse
ângulo, Ana Frazão, Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva21 ressaltam que:
22 UEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau, "Término do tratamento de
dados", IN: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados
Pessoais, Editora RT: São Paulo, 2019, p. 231.
“Comparando-se o parágrafo único do art. do art. 927 do Código Civil
comesses dispositivos, é fácil perceber a diferença. No nosso sistema,
agente não se exime do dever de indenizar nem mesmo se ele
comprovar que empregou os melhores recursos disponíveis no
mercado para evitar o dano, porque a responsabilidade estabelecida no
parágrafo único do art. do art. 927 do Código Civil é objetiva e,
portanto, não pode ser afastada nem mesmo com demonstração de
que o agente atuou da melhor forma possível. Afinal, não se discute
culpa na responsabilidade objetiva.”
23 . MORAES, Maria Celina Bodin de; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação
informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGDP. IN:
Cadernos Adenauer, volume 3, Ano XX, 2019.
Nesse “diálogo das fontes”, teoria que foi introduzida no Brasil pela professora
Cláudia Marques, a qual o Min. Joaquim Barbosa fez menção, em seu voto, no
julgamento da ADI 2.591, o atual paradigma é de que as normas caminhem lado a lado,
aplicando-se ao mesmo tempo na mesma situação jurídica, sendo que, de forma
prioritária ou subsidiária, vejamos25:
“[...]Entendo que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do
consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver.
Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que
conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do
conhecimento jurídico.
E, observa:
Dessa forma, o art. 19, do Marco Civil da Internet, deve ser relido à luz do
Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados, que não exigem
do titular dos dados a notificação judicial para exercício dos seus direitos e consagram a
25 . STF, ADI 2.591 DF, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 07 de junho de 2006, publicado
no D.J. em 29-09-2006.
facilitação deste exercício, não havendo razão de existir óbices para tal, ainda mais,
quando se tratam de dados sensíveis. Nesse passo, não há como afastar a
responsabilidade civil objetiva dos provedores de aplicação pelo risco da atividade.
Note-se que os princípios explícitos no próprio MCI, como na LGPD e CDC não
estão adstritos às suas próprias normas, mas, sobretudo, na Constituição que os
fundamenta e que confere unidade a todo sistema jurídico.
Neste sentido, com muita precisão Alinne Arquete Leite Novais26 leciona que:
26 . NOVAIS, Alinne Arquette Leite. O Princípio da Boa-fé e a Execução Contratual. Revista dos
Tribunais, ano 90, volume 794, dezembro de 2001. p. 151.
954/2020, que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem ao IBGE dados
identificados de seus consumidores de telefonia móvel, celular e endereço durante a
situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do
coronavírus (covid-19). E, mesmo diante da situação de emergência, os Ministros
decidiram pela suspensão da eficácia da MP 954/2020, levando em consideração o
fundamento quanto ao risco de ferir o direito fundamental à proteção de dados, à
privacidade e à autodeterminação informativa, a ponto de gerar um regime de
incompatibilidade com a proteção de tais direitos fundamentais27
Tema a ser enfrentado, em breve, pelo STF será a Repercussão Geral 98728, na
qual se questiona a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet.
Esperamos que seja dada interpretação conforme com redução de texto, declarando-se a
inconstitucionalidade da expressão “após ordem judicial específica”, possibilitando a
partir daí uma interpretação compatível com a Constituição.
IV- Conclusão
A tecnologia trouxe inúmeras facilidades, mas, por outro lado, a pessoa humana
está cada vez mais exposta à violação da sua intimidade, da vida privada, da honra e da
imagem, bem como, do sigilo de seus dados e da autodeterminação informativa.
27 . STF, ADI 6387 MC-REF / DF. Relatora Ministra Rosa Weber. Julgado em 07/05/2020,
Publicado em 12/11/2020.
Dessa forma, não faz sentido exigir que somente com o descumprimento de
ordem judicial o provedor de aplicação seja responsabilizado, quando seria bastante a
notificação extrajudicial e seu descumprimento, ainda mais considerando a morosidade
da justiça frente à velocidade da internet. Enquanto se desenrolam os trâmites judiciais,
fake news, campanhas de desinformação, de difamação, de cancelamento e etc
propagam-se de forma assustadora causando graves danos.
A Carta Magna de 1988 dispõe em seu inciso III, do art. 1º, que constitui
fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, e no
inciso I, do art. 3º, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Assim sendo, não se pode
pensar numa sociedade livre, justa e solidária onde a vulnerabilidade do usuário da
internet, equiparado a consumidor, é potencializada ao extremo. É preciso equilíbrio
nessa balança!
Esperamos, portanto, que, diante da ponderação de valores fundamentais ao
Estado democrático de Direito, prevaleça a dignidade da pessoa humana.