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O Olhar

(Giovanni Colares – 02/abr/2023)

Na terceira vez em que pronunciou a sua negação, foi


inevitável que o olho de Pedro, ainda que de longe,
encontrasse o olhar de Jesus. Aquele olhar tão cheio de
ternura!
Um gosto amargo tomou de assalto toda a superfície
da língua de Pedro que tremeu por dentro e em impulso
descontrolado desejou que o tempo retornasse atrás para
fazer tudo de modo diferente: ser corajoso; mas o tempo
continuou a fazer o que tão somente sabe fazer: mover-se
para adiante.
Por que o Senhor o chamou de Rocha? Sentia-se tão
frágil como uma palha seca que se mexe com qualquer vento
- e o que soprara ali era um vento muito perverso e cheio de
violência, uma grande tempestade. Desejou chorar, enrolar
todo o corpo sobre si mesmo e voltar ao seio da mãe. O olhar
de Jesus abriu-lhe memória para tantos outros olhares que
presenciou, o da compaixão com os doentes, os desolados,
os que precisavam de alguma esperança. Foi quando então
o galo cantou. Tudo aconteceu com extrema rapidez.
Queria mergulhar os ouvidos no líquido materno,
negar tudo em volta de si, sair da criação em um momento
reverso para “desnascer”, mas não há tal caminho. Chorou,
como que refazendo cada gota do líquido amniótico que o
fez crescer no ventre materno. Tremeu uma duas e três
vezes. Depois tudo parou.
Ficou mergulhado em uma doença que não tem nome,
a do “Não Ser”. Não era mais ninguém, nem nada, nem coisa
alguma, nem Simão, nem Pedro, nem líder, nem amigo. Não
era mais nada.
Por fim o tempo passou, o mesmo que fere é o mesmo
que cura e só sabe fazer isso: passar...
Foi noutro olhar e tempo novo que Pedro foi curado,
agora o mestre perguntava se Pedro O amava. A princípio fez
resposta com o pai de todos os argumentos: o óbvio. Nas
repetições sentiu o amargo na língua, o ouvido querendo
fechar-se ao mundo, o corpo tremer e então voltou àquele
canto do galo em dia tão deplorável. Agora, no entanto,
estava livre, aquele olhar que tem a luz de Deus mais uma
vez o encontrou e o curou definitivamente, pensava Pedro.
Teve outras fraquezas por não ser tão pedra assim, mas
sendo fundamento deixou em si pesar a carga da Igreja
nascente e como cada um de nós desenvolveu a capacidade
de permitir que Deus faça a sua ação para que a missão seja
possível e completada. Pedro – uma vez curado - fez o que
tinha que fazer: caminhou a cada dia sob o amor do Senhor.

Alegoria escrita no Domingo de Ramos da Paixão do Senhor de 2023, inspirada em uma breve e comovente conversa,
logo após a missa, com o amigo José Luís Pereira.

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