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A Teologia Mística de São Bernardo de Claraval

São Bernardo e os três beijos


do Cântico dos Cânticos

Dom Bernardo Bonowitz, OCSO


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I. PRELÚDIO AO PRIMEIRO BEIJO

1. Já nos conhecemos há tantos anos – vocês, membros da Sociedade Thomas Merton, e


eu – que eu posso já lhes ter contado esta anedota. Mesmo se for o caso, acho que ela irá nos
ajudar a começar.
Em 1996, quando cheguei ao Brasil, tentei mergulhar na literatura do país. Não que isto
fosse um fardo; pelo contrário, era, e continua a ser, um prazer. Naturalmente, eu me esforçava
para integrar ao meu vocabulário português aquilo que descobria nas obras-primas dos
escritores brasileiros. Foi o que me levou, após várias semanas lendo “O Tempo e o Vento”, de
Érico Veríssimo, a dizer a um dos monges mais velhos, enquanto o acompanhava à portaria
numa bela manhã de primavera: “Bom dia, meu bem.” Sua resposta foi ao mesmo tempo
engraçada e teologicamente perfeita: “Não tão rápido!”.
2. Veja que ele não negou a possibilidade de intimidade. Simplesmente deixou claro
que intimidade, não obstante quaisquer afirmações em contrário por parte da cultura moderna,
não é instantânea, mas progressiva. É uma meta que precisa de um caminho de aproximação. É
um longo processo, belo e correto em todos os seus passos, se cada um dos passos for dado, e
dado na ordem correta.
3. Todos nós queremos intimidade. Todos nós almejamos comunhão. Sobretudo com
Deus. Desejamos isto, pois nascemos para isto. Fomos estruturados de tal forma que nem
sequer possuímos a nossa identidade, a não ser em nosso relacionamento com Deus e através
desse relacionamento. Isto faz parte daquilo do que significa termos sido criados “à sua
imagem e semelhança”. É perseverando em sua imagem e buscando tornarmo-nos cada vez
mais como Ele que terminamos sendo nós mesmos.
4. A energia que nos impele a aderir a Ele (o versículo da Escritura absolutamente
favorito de S. Bernardo era: Mihi adhaerere Deo bonum est), a ir atrás Dele é o eros ou, no
latim de Bernardo, amor. Este amor está no centro de nosso ser; talvez possamos dizer que é o
centro de nosso ser. Mas não fomos nós que o fizemos. Foi Deus quem o formou e o colocou
em nós, e é através dele (desse amor) que mais nos assemelhamos a Deus, Ele que é o Amor
em Pessoa.
5. Este desejo de união com Deus é tão forte que é descrito pelos Padres, a partir de
Orígenes, como um inebriar-se, ou ainda mais, uma loucura (eros maniakós, amor louco). Os
loucos têm má fama por não terem discrição, paciência nem prudência. Querem o que querem
quando querem e do jeito que querem. Por esta razão, não observam as conveniências, não
aceitam a ideia de caminhar em passos, pelo me-nos no seu desejo. Querem tudo – agora. É por
isto que o Cântico dos Cânticos, texto base de todo misti-cismo cristão, começa com um pedido
do máximo: que Ele – Deus mesmo – me beije com o beijo de Sua boca.
6. Este nosso desejo não nos será concedido imediatamente – não pode sê-lo e mais
tarde veremos porque –, mas será o cume de uma série de beijos preparatórios. Mesmo assim,
de acordo com S. Bernardo e toda a tradição mística, a pessoa tem alguma justificativa para
este ardor intempestivo. Qual justificativa? Que a experiência de tal intimidade, além de ser
nosso desejo mais profundo, é também uma memória. É algo que aconteceu, algo que nós,
como parte da família humana, experimentamos. Então não se trata somente de algo que
queremos; é algo que soubemos. E sendo assim, ele muda da categoria de desejo genérico para
a categoria de saudade.
7. Para compreender isto, temos de viajar para muito atrás no tempo, para os inícios de
nossa espécie, para aquelas duas pessoas das quais proviemos e das quais somos – Adão e Eva,
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nossos protoparentes, como a tradição os denomina. De acordo com a Bíblia e com a sua
interpretação patrística, Adão e Eva eram “contemplativos por natureza”. Suas mentes e seus
corações estavam incessantemente fixos em Deus, não como um dever ou uma obrigação, mas
simplesmente como sua atividade principal – seu respirar-se espiritual. Sua vida interior era
fundamentalmente intimidade com Deus. S. Bernardo, ao comentar a referência do Gênesis que
diz que Deus colocou Adão no jardim do Éden para cultivá-lo e ará-lo, explica que o que Adão
cultivava eram pensamentos contemplativos. Seu coração e sua mente fitavam Deus e ele
crescia continuamente em sabedoria e em graça ao manter esta orientação da sua acies mentis
(Gregório de Nissa diz algo semelhante em sua Vida de Moisés ao explicar que, ao pastorear os
rebanhos de Jetro próximo ao local da Sarça Ardente, Moisés estava, na verdade, pastoreando
pensamentos contemplativos, pensamentos “noéticos”, na tradição grega). Adão foi, assim, o
primeiro a “caminhar com Deus”. Deus caminhava com ele todos os dias na brisa do fim da
tarde. A todas as outras criaturas, Deus permitiu que Adão desse um nome, mas foi o próprio
Deus quem pronunciou o nome de Adão pela primeira vez (“Onde estás, Adão?”).
8. A unidade e perseverança do olhar de Adão a Deus era o que o mantinha em sua
própria unidade. Ele era consistente e harmonioso consigo mesmo porque todas as suas
energias estavam voltadas amorosamente para o seu Criador e seu Arquétipo, de quem ele
continuamente recebia vida desimpedidamente. Todos os Padres são claros ao dizer que Deus
criou a humanidade deste modo – íntegra, reta, destinada à vida eterna. Em seus últimos
sermões sobre o Cântico dos Cânticos, Bernardo fala longamente sobre o homem tal como
Deus o criou, tal como Deus o desejou – simples, livre e imortal (Sermão 82).
9. Na grande e primordial tragédia da humanidade, o homem e a mulher desviaram o
seu olhar de Deus. Não foi um momento isolado de negligência, um erro inoportuno. Foi uma
decisão com consequências quase sem limites este desviar do olhar do coração para si mesmo e
em seguida fazer as suas escolhas não com base na comunhão com Deus, mas em termos
daquilo que parece vantajoso e desejável para si mesmo (deixando Deus fora de consideração).
É tanto a causa quanto a consequência do pecado original; o homo incurvatus in se.
10. Para os Padres, e acredito que para nós também, é importante ler esta página crucial
da Escritura não tanto etiológica quanto existencialmente. Uma das ri-mas mais antigas da
poesia inglesa coloca isto desta maneira: “Na queda de Adão/ Todos nós pecamos” (In Adam’s
Fall/ We sinned all). Esta escolha de nos distanciarmos de Deus a fim de fazer de nós mesmos
o objetivo e o objeto de nossa própria satisfação é algo que todos nós fizemos e fazemos. São
Paulo se esforça muito em comunicar isto no magnífico e difícil capítulo sexto da sua Carta aos
Romanos: “Todos morreram, porque todos pecaram.” Todos nós somos orientados a fazer a
escolha ruim entre as duas possibilidades de focalizarmo-nos em Deus ou focalizarmo-nos em
nós mesmos, e de fato todos nós a fazemos.
11. Quais são as consequências desta trágica escolha? A primeira e pior é uma alteração
profunda de nossa experiência de Deus. De objeto de nosso desejo, alegria e confiança, Ele se
transforma em temível e perigoso. A primeira coisa que Adão e Eva fazem após inventarem o
pecado é ir se esconder. “Onde estás, Adão?”. “Eu percebi que estava nu e fiquei com medo”.
O relacionamento com Deus é transformado: de um relacionamento de amor, passa a ser um
relacionamento de poder; de um relacionamento de confiança, a um de desconfiança. É uma
posição incômoda, e finalmente insustentável, viver sempre na presença-ausência de um Deus
opressor, muito poderoso. S. Bernardo afirma que o corpo não pode suportar uma ferida aberta
por muito tempo. Ele ou se curará ou vai formar uma cicatriz. Analogicamente, a ferida de
nossa ruptura com Deus não pode ser sustentada por muito tempo. Ou haverá um retorno a Ele,
ou Ele será excluído de nossa mente enquanto objeto de nossa consciência (awareness). Toda a
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tradição monástica, em particular a Regra de S. Bento no capítulo sobre a humildade, coloca


uma ênfase imensa na reaquisição da memoria Dei, “ter consciência de Deus”. Ao fazê-lo, ela
deseja lutar contra a tendência muito forte a “esquecer Deus” – oblivio Dei – a viver sem Deus,
como se Deus não existisse (a breve definição do salmo de um “estulto”).
12. A segunda consequência é um despedaçar de nossa unidade original. Enquanto antes
tínhamos um só pensamento e um só desejo (não que fôssemos incapazes ou nos
esquecêssemos da realidade criada, mas tudo era experimentado e fruído num “único raio de
contemplação” – Ricardo de S. Vítor), agora somos todo-dispersão, todo-distração. Queremos
uma multidão de coisas; estamos preocupados com uma infinidade de assuntos. Pensamos que
teremos paz ao atingir o objeto do desejo do momento, só para descobrirmos que, ao consegui-
lo, o desprezamos e saímos caçando outro objeto. Achamos que nossa mente terá descanso ao
resolver a preocupação do momento, só para descobrir que sempre há outra preocupação
virando a esquina e que, na verdade, aprendemos a gostar de ficar preocupados (S. Bernardo
utiliza um versículo do Antigo Testamento para descrever este hábito: “Efraim aprendeu a amar
debulhar o solo”). Numa imagem altamente violenta, Bernardo nos descreve como uma tela de
vidro, um vitral, que foi quebrado por um martelo em milhões de cacos. Nosso desejo e nossa
atenção foram quase que irremediavelmente fragmentados. É um otimismo impressionante por
parte dos Padres monásticos o fato de propor como objeto de compromisso ascético a
“reunificação do desejo”.
13. Esta fragmentação mostra-se diariamente na guerra interior que travamos conosco e
sobre nós mesmos. Introduzimos na criação o princípio da rebelião, diz Bernardo. E agora é
este mesmo princípio que se vinga de nós. Ao retirarmos o nosso espírito de ser guiado pelo
Espírito Santo, nosso corpo ia se retirando de ser orientado por nosso próprio espírito. Nossos
corpos não mais obedecem aos nossos espíritos; eles não mais “ouvem a razão”. A razão, a
presença da Inteligência Divina dentro de nós, tornou-se a mais fraca das nossas faculdades.
Para Bernardo, ela é o pai impotente de uma família desordeira. A vontade desenfreada é muito
mais forte do que ela, e ainda mais fortes são os impulsos incessantes que recebem o nome
coletivo de “concupiscência”. Nosso eu interior tornou-se uma família disfuncional. A razão,
posta no ser humano para perceber, pesar, julgar e então decidir, foi completamente subjugada
pelo desejo desfocado, não examinado e inquieto. Então não estamos em paz (o texto clássico
bernardiano sobre este tema é o seu “Sermão sobre a Conversão para os Clérigos”. A tradição
diz que, após ouvi-lo pregar, quarenta estudantes de teologia abandonaram a universidade e
voltaram com ele para Claraval).
14. Há outras duas consequências igualmente sérias: ignorância / falta de atenção e
dureza de coração. Para Bernardo, antes de empreendermos a vida espiritual, não
reconhecemos quem somos e não percebemos a realidade (e gravidade) de nossa situação. “Se
você não conhece a você mesma, ó mais bela das mulheres, tome lugar atrás do rebanho de
seus vizinhos.” A alma, o eu interior, é esta mais bela das mulheres. Mas, desviada de Deus, ela
gradualmente perde consciência da sua identidade e da sua responsabilidade. Torna-se
reducionista na sua compreensão de si mesma (cada vez mais nos tempos modernos, a ponto de
questionar a existência de uma alma, onde ela é mais ela mesma) e na sua compreensão do
propósito da vida. Sem refletir, a pessoa permite que “o mundo” defina o que é a vida:
educação, emprego, namoro, casamento e família, lazer e descanso, pôr de lado a morte para o
último (e além do último) instante ou antecipá-la porque a jornada até ela pode ser demasiado
dolorosa, física ou psicologicamente. A vida se torna barata porque a ignorância negou a sua
transcendência. A vida, ao invés de ser gloriosa, se torna tolerável, mantida através de uma
série de pequenas satisfações.
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15. E a dureza de coração? Nós mesmos somos esta dureza, na medida em que estamos
armados contra todos os apelos de Deus a despertar e voltar atrás. Algumas vezes, Bernardo vê
o próprio Deus de mãos atadas diante desta situação. Inspirações, graças ou advertências não
penetram o coração, não deixam sequer uma impressão. Do dia da queda até o dia do Juízo
Final, toda a história da salvação é “Deus em busca do homem” (como o título do livro de
Abraham Heschel o expressa), mas o homem pode se tornar impermeável, tanto que pode
continuar inacessível mesmo quando desejaria que as coisas o tocassem.
16. Nossos pontos de partida na viagem para a união mística com Deus são vários. Por
um lado, fomos feitos para ela, já a experimentamos, nunca podemos erradicar completamente
o nosso desejo dela. Por outro, nós a rejeitamos, a perdemos, fazemos o máximo para
prosseguir sem precisar dela, construímos uma casca que torna muito difícil para nós receber o
auxílio de Deus para recuperá-la. Deus é o Deus do real e não apagará a história humana para
começar tudo de novo (será que simplesmente não repetiríamos nossa performance anterior?).
Mas Ele toma o nosso desejo e faz dele uma estrada de volta a Ele, uma estrada de beijos, na
mentalidade bernardiana. Estes beijos farão o mesmo percurso que nossa alienação de Deus nos
fez cobrir, só que, desta vez, estaremos viajando na direção correta. Mestre Eckhart diz que a
distância da volta da alienação é do mesmo tamanho que a da ida. Que seja assim. Não é isto
que importa, mas sim que, através do beijo dos pés, das mãos e da boca do Cristo Deus, cada
passo dado é um passo mais para perto da união com Ele. Desde o primeiríssimo instante,
nosso desejo poderia e deveria ser o de experimentar o beijo de Sua boca. É isto que nos vai
fazer caminhar e que nos manterá em movimento. Mas, como S. Tomás disse: “Primeiro na
intenção, último na execução.” O que desejamos desde o início será o fim de nossa jornada.
Agora é tempo de começar a jornada, aos pés de Cristo. +

II. O BEIJO DOS PÉS

1 Começamos por baixo: pelos pés. Teologicamente, este beijo é conhecido como
“justificação”; não, entretanto, como uma declaração de “inocente” feita pelo Deus Juiz em
nosso favor, mas como uma verdadeira restauração do relacionamento entre Ele e cada um de
nós. Como esse milagre acontece?
2. Na última conferência, Bernardo (o santo, não o pecador diante de vocês hoje) nos
mostrou claramente que a ruptura no relacionamento é baseada numa “des-humanização” de
nossos corações. Esquecimento de Deus, ignorância das realidades espirituais da vida e de
nossa verdadeira identidade como seres humanos, impermeabilidade à graça – todas estas são
doenças cardíacas. Por esta razão, nenhuma declaração judicial pode arrumar as coisas entre
Deus e nós; o que é necessário é uma radical “mudança do coração” (conversio cordis).
3. De fato, o coração de Deus nunca mudou a nosso respeito. Mesmo após o nosso
afastamento Dele, continua sendo como era antes. “Os meus pensamentos são pensamentos de
paz”, diz Deus, embora estes passem despercebidos, assim como nossas existências inteiras, em
todas as suas dimensões, continuam a ser fundadas na sua benevolência. Nós aceitamos
avidamente os benefícios, mas somos cegos para com o Benfeitor por trás deles, que continua
sendo amoroso e estando de braços abertos apesar da falta de correspondência de nossa parte.
As doenças do coração acima referidas fizeram com que ficássemos quase exclusivamente
“carnais”, no sentido de tornar-nos incapazes de experimentar o espírito. Deus, como diz S.
João, é Espírito, e é, portanto, para nós, invisível, incognoscível. Somos, como Bernardo diz,
muito mais suscetíveis a interpretar as bases da existência como consistindo em destino, sorte
ou “forças” indefinidas, ou na mera atividade humana (um mundo fechado à transcendência).
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4. Deus consegue tornar-se visível a nós, comunicar a verdadeira natureza das Suas
intenções a nosso respeito e demonstrar a imensidade da Sua benevolência através da
Encarnação do Verbo. Cristo é, diz Bernardo, citando e brincando com uma citação da carta de
Paulo a Tito, a humanitas Dei – a humanidade de Deus. Em latim, no qual Bernardo era um
mestre consumado, humanitas significa tanto a “condição de ser um ser humano” quanto a
“atitude de ser profundamente humano” – isto é, ser gente e gentil ao mesmo tempo. Toda a
existência de Cristo, do berço à sepultura e à ressurreição, é uma transposição perfeitamente
bem lograda de Deus no humano. Cada uma de suas ações comunica a realidade de Deus e suas
disposições para conosco.
5. O que exatamente aprendemos sobre Deus em Cristo? Que Ele se importa conosco,
que se sente movido por todas as nossas necessidades, que toma as nossas dores sobre nós, que
nos cura, que não nos condena, que age como se fosse o nosso servo, que tem poder sobre
todas as coisas que nos atemorizam (demônios, doença e morte), que compartilha a Si mesmo
para “nos enriquecer com Sua pobreza”, que nos alimenta e nos sustenta (multiplicação dos
pães), que não nos esconde nada, mas deseja que conheçamos “os mistérios do Reino”, que nos
ama a ponto de preferir nossa alegria eterna à Sua sobrevivência humana.
6. Tudo isto bate em nosso coração, martela em nosso coração, perfura o nosso coração.
Nós não conhecíamos a Deus, ou pensávamos que Ele fosse muito diferente, um Deus abaixo
dos nossos padrões, digno de ser rejeitado por nós (como realmente o foi na Paixão). Esta luz
divina em Cristo que revela Deus a nós tem um segundo, e inseparável, efeito igualmente
importante: revela-nos a nós mesmos. Na medida em que começamos, uma vez mais, em
Cristo, a ver Deus como Ele é, novamente começamos, em Cristo, a ver-nos como somos. E
nem tudo o que vemos a nosso respeito é bonito.
7. Estas duas consciências se unem em uma – a consciência de Deus como Amor, como
Pai, como Senhor e a consciência de nossa negligência em relação a Ele e de haver levado uma
vida inteiramente autocentrada, fixada em nossos objetivos próprios e frequentemente
esquecida ou destruidora do bem real de nosso próximo. A fusão destas duas consciências é a
consciência do pecado, de ser um pecador. Interessante: só é possível ser um pecador quando
Deus existe e quando ele é radicalmente bom. Esta experiência é classicamente descrita como
compunção na Igreja Ocidental (penthos na Igreja Oriental), de pungere, perfurar. Em Cristo,
Deus operou uma ruptura na dureza de nossos corações. Colocou o dedo no velho,
maravilhoso, relacionamento, fez com que nos sentíssemos pesarosos por tê-lo perdido e, por
fim, profundamente arrependidos por tudo isto ter sido culpa nossa. É por isto que a
compunção é caracterizada por dois fenômenos físicos: uma sensação de queimação e o
derramar de muitas lágrimas.
8. Compunção, entretanto, seria insuportável – seria o próprio inferno – se fosse
somente a consciência do pecado e a experiência de perda. Seria tão terrível que, apesar de toda
a sua razão objetiva de existir, nós encontraríamos um meio de fugir dela, de endurecer o nosso
coração mais e mais decididamente. Isto é de fato o que ocorre quando falta a intuição do outro
aspecto da compunção: a segurança do perdão. O Cristo amoroso em cuja presença discernimos
a verdade sobre Deus e sobre nós mesmos é o Cristo que diz à mulher pecadora na casa de
Simão, o Fariseu (assim como a tantos outros): “Os teus pecados estão perdoados.”
9. Esta conjunção é o beijo dos pés de Cristo e a cena de Lc 7 é a base escriturística para
a descrição de Bernardo. Todos estes aspectos – encontro com Deus tal como Ele é,
experiência de si mesmo como pecador, arrependimento e a experiência do perdão – ocorrem
unidas num único fenômeno em muitos lugares do Evangelho. Pode-se pensar no Filho Pródigo
abraçando o seu pai, ou no bom ladrão recebendo a promessa do Paraíso de Cristo na tarde da
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Sexta-Feira Santa, ou no publicano pecador que ficava repetindo com os olhos baixos: “Senhor,
tende piedade de mim, pecador” e que voltou para casa “justificado”. É o ponto de virada no
destino espiritual de alguém (e, infelizmente, sempre inclui uma segunda pessoa incapaz no
momento de adentrar na experiência: Simão, o filho mais velho, o outro ladrão, o fariseu dando
graças no templo por não ser como os outros homens).
10. S. Bernardo está preocupado se este beijo não vai conseguir atrair a nossa atenção
ou se não vai interessar a Deus. Ao contrário. Esta experiência de arrependimento e perdão
marca o começo da santidade. “É aí (aos pés de Cristo) que a etíope mudou a sua pele e
recobrou a sua inocência. É aí que ela deixou o fardo dos seus pecados e se revestiu de
santidade (“Sancta peccatrix peccata deposuit, induit sanctitatem”). Quanto a Deus, temos o
testemunho dos Evangelhos de que “há mais alegria no céu entre os anjos de Deus por um só
pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos que não necessitam de conversão”.
11. Este beijo inicial de compunção não deve ser entrecortado – é um beijo demorado.
Não é preciso ter pressa para terminar com ele, para levantar a cabeça e buscar beijos melhores,
mais elevados. Devemos esperar de cabeça baixa e expressão constrangida até que Cristo diga a
palavra de perdão. Isto também é misericórdia, mais do que vingança. Arrependimento
demanda tempo. Houve um longo acúmulo de atos, atitudes e omissões que ofenderam a Deus
e, mesmo psicologicamente, precisamos de tempo para lembrar de tudo isso e lamentá-lo
devidamente. É por isto que S. Bernardo diz que o trabalho do noviço é chorar. Geralmente, o
noviciado monástico é uma experiência intensa do primeiro beijo – o escancarar do coração, o
encontro com sua própria pecaminosidade, as lágrimas, a palavra libertadora de Cristo.
Doloroso no início, torna-se consolador esvaziar o coração da culpa e da amargura acumuladas,
deixando sair tudo, “sacudido pelos soluços benfazejos” (salutaribus intra se succussa
singultibus). Guilherme de St-Thierry, grande amigo de S. Bernardo, dizia que o que ele mais
desejava era chorar no colo de Deus.
12. De fato, a compunção não chega a um fim. Não se trata aqui de insinuar que o
perdão de Deus é condicional ou revogável, mas sim que a metanóia continua sendo a base
permanente da vida espiritual. Na tradição monástica ela se torna um modo de vida. É viver em
“alegre pesar” ou “alegria pesarosa”, pesar por haver ofendido a um Deus que se torna cada vez
mais amável aos nossos olhos, pesar pelos pecados que aparecem cada vez mais claramente em
suas verdadeiras cores (Ícone de Nossa Senhora); alegria porque agora pertencemos de coração
e alma a este Deus, alegria em experimentar uma vez após a outra, e sempre como algo novo, a
graça do perdão. Seremos sempre pecadores perdoados; tire esta fundação e a casa espiritual
desmorona. Ao mesmo tempo, a experiência da compunção será gradualmente absorvida em
formas maiores de intimidade com Deus.
13. S. Bernardo, que é capaz de tomar um beijo e transformá-lo em três (raciocínio: se a
alma pede para ser beijada com o beijo da boca de Deus, coisa tão óbvia que não precisa ser
dita, deve ser porque Deus pode ser beijado em outras partes), toma aqui um pé e o transforma
em dois. Compunção, como vimos, é um equilíbrio dinâmico entre pesar e alegria – pesar por
haver abusado da santidade de Deus, alegria por ter recebido sua misericórdia (iudicium /
misericordia). Não é difícil perdermos o nosso equilíbrio; Bernardo, falando
autobiograficamente (ou pseudo-autobiograficamente) diz que, em diferentes ocasiões,
inclinou-se demais seja para um lado, seja para outro. O Cristo Senhor tem dois pés, diz
Bernardo, e devemos apegar-nos persistentemente a ambos. Com estes dois pés, Cristo
caminha em nossa mente – quer dizer, forma o conteúdo de nossa memória. Se nos apegarmos
demasiadamente ao pé da santidade de Deus, o que predominará em nós será o medo: medo do
que fizemos e daquele a quem o fizemos, e a possibilidade de condenação mesmo agora. Isto
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nos torna demasiadamente rigorosos em nossas práticas, rígidos em nossas atitudes, tensos em
nossas emoções. Se, por outro lado, pensarmos exclusivamente na misericórdia de Deus, o que
toma conta de nós é a esperança. Esperança é bom, evidentemente, mas não uma esperança não
nuançada pelo temor divino. Tal esperança nos torna laxos em nossas responsabilidades,
negligentes em nossa vida espiritual, descuidados na abordagem de nossa vocação. Esta é a
maneira como Bernardo afirma um princípio que lhe é caro ao coração: os dois piores pecados
são o desespero e a presunção. O caminho para além de ambos é atrelar em nossa mente estes
atributos gêmeos de Deus – justiça / santidade e misericórdia, como diz o salmista: “Quero
cantar a misericórdia e a justiça” (Sl 100).
14. Não obstante sua renomada (e genuína) castidade, Bernardo sabia por experiência
pessoal que um beijo cria tanto satisfação quanto insatisfação. É o cumprimento do desejo e o
estímulo do desejo – de uma satisfação ainda maior. Dificilmente poderíamos reclamar de Deus
se o máximo que ele concedesse ao pecador fosse a remissão dos pecados e a redescoberta do
relacionamento. Mas nosso amor é incansável e não pode parar por aí (na verdade, não pode
parar nunca) e nosso eros é somente um pálido reflexo do Seu eros por nós. Isto quer dizer que
chegou a hora do beijo da boca, o que quer que isto signifique (esse beijo só é conhecido por
aquele que o experimentou). Lembremo-nos da sabedoria do monge de Novo Mundo: “Não tão
rápido!”. Deus realmente deseja levar-nos a esta plenitude, mas por graus. Ainda há um grau
intermédio a ser atingido, um pulinho, mais que um pulo diretamente dos pés à boca. Este
segundo estágio, este segundo beijo, provavelmente é o que levará mais tempo para se realizar.
Compunção demora a vir, mas, uma vez que começa, adquire grande velocidade e intensidade.
O segundo beijo é mais deliberado, mais reflexivo, mais pacífico. Trata-se de um processo de
reconstrução da pessoa, e o nome de Bernardo para ele é o beijo das mãos. Nossa aceitação
deste lento estágio médio é muitíssimo agradável a Deus. Baseia-se numa das virtudes centrais
do catálogo bernardiano: modéstia (verecundia). Então, na próxima conferência, se Deus
quiser, nós beijaremos a sua mão. +

III. O BEIJO DA MÃO

1. S. Bernardo, infelizmente, nunca teve o prazer de ouvir Carol Channing cantando:


“um beijo na mão pode ser muito elegante, na moda, mas diamantes são os melhores amigos de
uma moça”. Mesmo se tivesse escutado, pediria licença para discordar, ou pelo menos para
distinguir. Depende da mão de quem você está beijando. Se estiver beijando a mão de Deus
com o beijo da amizade, você não poderia desejar melhor amigo.
2. Este segundo beijo dado na mão de Deus e dado pela mão de Deus é o dom da
santificação. Pelo primeiro beijo, humilhamo-nos aos pés de Cristo em compunção e fomos
acolhidos de volta ao relacionamento filial com Ele. No segundo beijo, Sua divina mão nos
levanta (erigere) a fim de estarmos em pé diante dele, “santos e justos na sua presença, todos
os dias de nossa vida”, como cantamos no Benedictus. É-nos dada de volta a nossa beleza
moral.
3. No que esta santidade consiste? Na liberação progressiva de tudo dentro de nós que
nos faz agir contra nossos melhores interesses, nossos desejos mais profundos. Todos nós
conhecemos a famosa passagem de Rm 7 onde S. Paulo lamenta o paradoxo de não poder fazer
o que realmente quer, mas ver-se compelido a fazer o que realmente não quer. Ele vive
profundamente contrariado consigo mesmo. Seus fios elétricos foram trocados e todos os dias
ele acaba fazendo o não-desejado e deixando de fazer o desejado. “Quem poderá me libertar
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desta situação?”, exclama angustiado. “Deus que nos deu a vitória em Cristo” é sua alegre
resposta à sua própria pergunta.
4. Este é o segundo beijo – “liberdade de espírito” (libertas spiritus). Bernardo começa
chamando-a de continentia, que pode parecer um termo negativo ou repressivo, mas que está
plenamente em acordo com a tradição monástica ascético-mística. Em seus estágios iniciais,
liberdade é a capacidade de parar de fazer aquilo que involuntariamente nos vemos compelidos
a fazer (embora compelidos por nós mesmos) e que nos deforma. É liberdade permanente e
estável de tremendas pressões que até então nos têm forçado a ceder, dia após dia, a impulsos
de irritação, ansiedade, tristeza, auto-absorção, timidez, desconfiança, solipsismo, indulgência
em prazeres compensatórios. Estas eram as pressões que nos empurravam a cometer pecados
concretos dos quais nos arrependemos na época de nosso primeiro beijo. Agora nos é oferecida
a oportunidade de libertar-nos não somente das ações, mas também do impulso insistente por
trás das ações.
5. Como participamos neste processo de libertação? Num dos capítulos à sua
comunidade (De Diversis, 17), Bernardo fala de três custódias: das mãos, da língua e do
coração – de atos, palavras e pensamentos, diríamos. Estas custódias representam uma
crescente sensibilização àquilo que está dentro de nós e, de modo correspondente, a uma
capacidade maior de escolher nossos comportamentos, palavras e pensamentos, que termina
como uma escolha firme e fixa do bem. Como S. Agostinho diz: “Liberdade é a capacidade de
sempre escolher o bem.”
6. Na medida em que nos refreamos e não cometemos atos que reconhecemos como
sendo prejudiciais ou opostos à vontade de Deus, começamos a escutar-nos a nós mesmos. Não
que não falássemos antes, mas não identificávamos as forças passionais que faziam parte da
nossa fala. O autocontrole (continentia) que exercemos sobre as nossas ações torna possível
uma atenção às verdadeiras intenções daquilo que dizemos e da carga emocional por trás do
que dizemos. Todos nós já tivemos a experiência de contar uma piada que saiu pela culatra, que
o outro levou a mal. Antes, atribuíamos sua reação à sua hipersensibilidade. Agora percebemos
que realmente pode ter havido uma indireta grosseira no meio da nossa anedota. Percebemos
que grande parte do que dizemos não tem sentido: dito somente para preencher um silêncio
desconfortável ou para nos distrair de coisas que poderiam ter sido ditas dentro de nosso
silêncio interior.
7. Se formos capazes de passar da custódia das mãos à custódia da língua – se formos
capazes de falar somente o que devemos falar (pergunta feita a S. Silvano) –, começaremos a
ouvir-nos pensar. Este é um trabalho de muitos anos – a habilidade de registrar
conscientemente nossos pensamentos, de acompanhar nossos pensamentos momento após
momento – avaliá-los e fazer uma triagem. Num nível ainda mais profundo, está a percepção
dos pensamentos profundos, subjacentes, que entram na composição da nossa personalidade e
que estão sempre criando pensamentos pequenos, concretos, como epiphenomena. Segundo S.
Bernardo, pode ser difícil passar por isto, porque esses pensamentos frequentemente estão
presentes em nós não somente como produções da nossa interioridade, mas como receptividade
a sugestões demoníacas. São tentações, como as três que lemos ter Jesus experimentado no
deserto. Todavia, não está além do alcance da nossa liberdade identificar cada vez mais
perfeitamente estes pensamentos, resistir a eles e por fim conquistá-los.
8. Uma questão poderia ser colocada: com todo este trabalho requerido da nossa parte,
porque chamar este processo de beijo divino? Esta é uma pergunta importante, porque
manifesta uma compreensão inadequada do relacionamento entre graça e liberdade. A graça
nunca é uma substituição da nossa liberdade. Deus não nos pede para sacrificar ou entregar a
10

nossa liberdade, prometendo-nos em troca que nos tornaremos “bons”. O trabalho da graça é a
progressiva capacitação da nossa liberdade. Quando Deus “beija nossa liberdade”, por assim
dizer, e nós aceitamos este beijo de Deus em nossa liberdade (que, apesar de tudo, é a escolha
básica da nossa liberdade: estar ou não aberta ao influxo de Deus), descobrimos que somos
capazes de fazer o que queremos e devemos. Deus não o faz por nós – permanece sendo nosso
dever fazê-lo. E, ao mesmo tempo, não o fazemos em isolamento – Deus não fica a uma
distância para ver se vamos fazer certo ali, mas está dentro da nossa liberdade, oferecendo-se a
ela constantemente, inspirando-a constantemente, iluminando-a constantemente, a fim de que
possamos fazer o que realmente desejamos fazer.
9. Por esta razão, Bernardo afirma que as duas dimensões deste segundo beijo são
latitudo e fortitudo. Por um lado, Deus continuamente dilata (latitudo) o espaço de nossa
liberdade. Cada vez mais, as nossas ações, palavras e mesmo os nossos pensamentos e
imaginações não são jogados sobre nós, mas são serena e refletidamente tomados por nós. Com
o passar dos anos, por exemplo, Ele lixa a nossa irritabilidade, que exercia uma influência
negativa sobre nossos relacionamentos e colocava uma margem de insatisfação em nossa
existência cotidiana, transformando-nos em resmungadores assumidos. A diminuição de nossa
irritabilidade é um aumento de liberdade. Não mais somos “programados” para ser insatisfeitos
com a nossa existência ou para tornar os outros vítimas de nosso mal-estar. Percebemos a
tendência, mas sentimos uma leveza, uma capacidade de pular isto. Por outro lado, este beijo é
uma fortitudo. Talvez pudéssemos compará-lo a uma verba bilateral (“matching grant”), onde,
se meu mosteiro conseguir levantar dez mil reais, haverá um compromisso do Banco Tal de
contribuir com outros dez mil reais. Eu atuo na minha liberdade, na medida em que sou capaz,
e Deus confirma a escolha, lhe dá substância e durabilidade, impede-a de cair para trás sobre si
mesma, capacita-me para que eu escolha corretamente numa próxima vez. Então talvez seja
ainda mais generoso do que um “matching grant”.
10. Para Bernardo, esta consciência do quanto Deus efetivamente promove / sustenta a
nossa liberdade é muito importante. Sem isto, corremos um sério risco de falta de verdade
espiritual. Lembra-se do duplo risco do primeiro beijo, de cair tanto em esperança excessiva
quanto em temor excessivo? Aqui o risco é o de receber este segundo beijo sem dar-se conta de
que ele foi dado. De certo modo, este perigo é um retrocesso ao período anterior à conversão,
quando achávamos que a existência era toda feita pelo homem e desenvolvida por ele. Aqui,
transposto em outra chave, o perigo é atribuir exclusivamente a nós mesmos a transformação
da nossa liberdade. Isto, diz Bernardo, significaria que, ao invés de beijar a mão de Deus em
gratidão (maior dentre todas as virtudes bernardianas), acabamos beijando a nossa própria mão,
agradecendo só a nós mesmos por aquilo que a graça operou em nós. Há somente uma palavra
para descrever o que tal atitude seria: feia.
11. Esta época do segundo beijo, que faz paralelo com a segunda renúncia nos escritos
de Cassiano, assim como o conteúdo básico da Regra de S. Bento, é para S. Bernardo um
tempo muito feliz. Ele não pensa tanto nele em termos de esforço, embora requeira esforço.
Não pensa tanto nele em termos de luta contra os nossos inimigos espirituais, embora a luta
seja necessária. Para ele, é um tempo de vitórias e, portanto, um tempo de cantar, um tempo de
cantos de louvor. É claro para ele que Deus será – está sendo – vitorioso na alma que Ele
trouxe de volta para si em arrependimento. Deus não vai parar na metade deste segundo beijo.
Num dado momento, Ele irá levantar decisivamente a pessoa para além do seu hábito
peca-minoso contra o qual a pessoa tem batalhado por anos. Livre! E a pessoa canta de alegria.
Em outro momento, Ele colocará em poder da pessoa a capacidade de praticar
consistentemente uma virtude que até então lhe escapava. Hora de um segundo canto. Em ainda
11

outro momento, Ele abrirá a mente da pessoa para uma compreensão muito mais profunda de
um texto da Escritura ou de um dogma em particular. Isto também será fonte de alegria e, da
mesma forma, será uma poderosa influência positiva em nossa liberdade moral. Assim como o
Antigo Testamento é um livro de cantos preliminares de louvor que conduz ao Cântico dos
Cânticos, que é a Encarnação e a união de Cristo e da Igreja, assim também esta restauração
gradual da nossa liberdade é uma série de cânticos de ação de graças e de louvor, preparando-
nos para o nosso Cântico dos Cânticos individual, a experiência do terceiro beijo. Para mim,
este é um dos aspectos mais atraentes de S. Bernardo e dos Padres Cistercienses. O esforço
ascético é colocado dentro do seu próprio contexto de renovação da plena intimidade entre
Deus e a criatura espiritual. Por esta razão, embora duro, ele não é triste ou tenso; é tocado e
tingido pela alegria do que está se realizando.
12. Crescimento em virtude, diz Bernardo, também faz crescer em confiança (fiducia).
Crescimento em confiança, por sua vez, faz crescer em ousadia de desejo. Tendo sido posto em
pé pela mão de Deus e tendo beijado a mão de Deus, a noiva não pode restringir-se a reiterar o
seu desejo inicial. Bernardo inventa um diálogo gostoso entre os anjos e a alma (o cristão
místico), que nós conseguimos compreender muito bem, porque espelha o nosso próprio
desenvolvimento. Os anjos a provocam e dizem: “Você se lembra de como prometeu que
ficaria satisfeita com o primeiro beijo, se Deus lhe desse a graça do arrependimento
vivificante?” “Sim, mas...” “E você se lembra de como deu a sua palavra que, se Deus lhe
mostrasse a imensa misericórdia de renovar a sua semelhança (similitudo) em você pela
restauração do funcionamento da sua liberdade, você nunca mais voltaria a pedir algo de
novo?”. E o que a noiva responde: “Não posso descansar enquanto ele não me beijar com o
beijo de sua boca. Não é que eu seja ingrata. Mas é que eu amo. Tento raciocinar comigo
mesma, tento manter-me dentro dos limites da modéstia, mas meu desejo me arrasta e meu
anseio me incita. Há tanto tempo que espero e vivo fielmente de acordo com a Sua vontade.
Entreguei-Lhe minha vida como oferenda. Agora quero que esta oferenda seja suculenta e
saborosa. É tudo o que eu peço: que Ele me beije com o beijo da Sua boca.”
13. Deus, que infundiu o desejo e cujos dons anteriores (compunção e liberdade / pureza
de coração) não são senão incentivos para um desejo ainda maior, não tem a intenção de
recusar à noiva o seu desejo. Era só uma questão de prepará-la. Estes dois beijos fizeram dela
outra pessoa – uma pessoa capaz de receber, de levar e de responder ao imenso privilégio que
lhe está para ser dado. Qual é este privilégio e quais efeitos ele produz na alma? Nós veremos
isto nas duas últimas conferências. Amanhã o Cristo Senhor realizará o de-sejo da sua criatura.
+

IV. O BEIJO DA BOCA

1. Numa jogada muito interessante, S. Bernardo escolhe descrever o beijo final, objeto
do desejo mais fundamental e ardente da pessoa, em termos daquilo que ele não é, mas quase é.
A tensão entre este beijo – a mais alta união atingível por uma criatura – e o outro beijo –
inatingível por qualquer criatura – marcará toda a sua abordagem desta graça sublime.
2. Ontológica e historicamente anterior a qualquer beijo – a qualquer intimidade,
qualquer união – entre Deus e Sua criatura (por mais favorecida que esta seja), é o beijo eterno
trinitário. Este “beijo” entre o Pai e o Filho é a própria mutualidade dinâmica da vida trinitária.
É o ato recíproco que constitui as relações trinitárias. Isto é, este beijo é o “conhecimento”
absoluto (abraço, posse) e doação de Si do Pai ao Filho e o “conhecimento” absoluto que o
Filho tem do Pai. É o ato eterno, primário, pelo qual o Pai, conhecendo a Si mesmo, gera o
12

Filho, que é a plenitude do Pai, conhecido pelo próprio Pai, conhecido como essencialmente
um e pessoalmente outro. Este ato se “completa”, por assim dizer, na resposta do Filho,
conhecer como ele é conhecido, conhecer tão completamente e tão “autodoadamente” como o
Pai o conhece. Temos a tendência instintiva de pensar em conhecimento como “aquisição”.
Conhecemos assimilando para nós. Entretanto, o conhecimento trinitário (base de todo
conhecimento) é extático. O Pai conhece o Filho ao sair de si mesmo, ao dar-Se sem limites. O
“Filho conhecido” é a autodoação ilimitada do Pai para fora de Si mesmo. O Filho conhece o
Pai ao derramar-Se radicalmente de volta no Pai, ao esvaziar-Se no Pai. Este conhecimento
como dom de si é, assim, também amor irrestrito, amor que conhecemos melhor, diz Bernardo,
quando se encarna e, portanto, do lado do Filho. A aceitação da paixão por parte do Filho é um
Liebestod, uma doação total de sua vida por amor ao Pai. Este conhecimento e este amor
essenciais e totais que o Pai e o Filho têm um do outro e um para com o outro é o seu “beijo”.
3. É isto, diz Bernardo, que nunca podemos compreender. Nunca podemos ser nem o
Pai nem o Filho, nunca poderemos ser um dos participantes deste abraço essencial. Nunca
poderemos conhecer total-mente o Pai ou o Filho (como Gilberto de Hoyland, outro Padre
Cisterciense diz, somente o consubstancial pode conhecer o consubstancial). Mesmo assim – e
eis aí o milagre –, enquanto não realizamos o beijo trinitário, não somos excluídos dele. Por
desígnio divino, somos incluídos nele. Como?
4. Pensando bem, diz Bernardo, um beijo é um ato iniciado por duas pessoas. Uma vez
que começa a acontecer, ele é também uma realidade em si – em forma física, é a unidade /
mutualidade entre os dois “beijadores”. Acontece que, neste caso (os dois beijadores sendo
ambos pessoas divinas), a unidade que os une substancialmente não é uma coisa, mas uma
pessoa. O conhecimento e amor recíproco dos dois é igualmente uma pessoa e igualmente
capaz de autocomunicação. Esta pessoa é o Espírito Santo.
5. Aqui vem a melhor notícia de todas. O êxtase desta terceira Pessoa, o Espírito de
Deus, é em nossa direção. O Espírito comunica sua pessoalidade a nós. E nós, precisamente
como espírito, como criaturas feitas à imagem de Deus, por assim dizer, caracterizadas por
inteligência e amor, somos capazes de receber esta infusão. Somos capazes de receber o
Espírito de Deus no nosso espírito. E este é o beijo da boca, que por tanto tempo desejamos.
6. Não somente somos capazes de receber o Espírito infundido: somos capazes de
responder a esta infusão com nosso próprio êxtase, nosso próprio fluir de nós mesmos para o
Espírito. A mutualidade entre o Pai e o Filho que (em linguagem teológica) “expira” (spiratio)
o Espírito, espelha-se numa mutualidade entre o Espírito de Deus e o nosso. Como vimos na
reflexão sobre os relacionamentos trinitários, a posse / recepção do outro ocorre através de um
ato de autodo-ação. De modo semelhante, nossa “tomada” do Espírito ocorre através da saída
de nós mesmos nos êxtases gêmeos do intelecto e da vontade, do conhecimento e do amor. E
este processo, como a troca entre o Pai e o Filho, não é o acontecimento de um momento. É
uma realidade que, uma vez iniciada, nunca chega a um fim. Conhecida como “união
transformativa” na tradição carmelitana (a união, uma vez estabelecida, continua a transformar
o espírito humano unido ao Espírito de Deus), é chamada de “unio Spiritus” – união do Espírito
– na tradição cisterciense. Esta união pode, e tem a intenção, de alcançar tal perfeição que nós
possamos dizer que o Espírito de Deus e o nosso espírito formam “um” Espírito. Eu, em minha
identidade espiritual, no fundo do meu ser, sou chamado a ser unus com o Espírito Santo. Este
é, sem dúvida, o ponto alto da espiritualidade cisterciense, e sua base escriturística vem de S.
Paulo: “aquele que se adere ao Senhor se torna um só espírito com Ele.” Talvez seja por isto
que o versículo favorito de Bernardo fosse: “Mihi adhaerere Deo bonum est”, “Meu bem está
em aderir-me ao Senhor”.
13

7. S. Bernardo exulta ao dizer que a nossa união com Deus no Espírito Santo dista
somente uma letra da união entre o Pai e o Filho. Sua união é essencial e pessoal, e por esta
razão eles são unum: uma mesma coisa. O Cristo joanino pode dizer muito corretamente: “eu e
o Pai somos um (unum)”. Mas nós temos o nosso já citado motivo de glória paulino. Em
termos de completa receptividade e autodoação entre as pessoas, nós também somos unus com
o Espírito Santo.
8. Voltemos à identidade do Espírito Santo. O Espírito Santo é o beijo essencial unitivo
entre o Pai e o Filho. Nele estão contidos o conhecimento e o amor do Pai ao Filho e o
conhecimento e o amor do Filho ao Pai como seu abraço incessante. Se o Espírito então é
derramado sobre nós no terceiro beijo (a propósito, o nome teológico para este estágio é
“divinização”: justificação, santificação, divinização), o conhecimento do Pai e do Filho é
derramado em nós também. “A vida eterna”, diz Bernardo, citando Jo 17,3, “é conhecer-Vos, o
único verdadeiro Deus e a Jesus Cristo, o qual enviastes”. Esta vida eterna nos é dada ao
sermos beijados pelo Espírito Santo. A maioria de vocês deve conhecer o hino Veni, Creator
Spiritus, um hino de Pentecostes dirigido ao Espírito Santo. Sua estrofe final começa assim:
“Per te sciamus da Patrem, noscamus atque Filium”, “dai-nos, ó Espírito, que por Vós
venhamos a conhecer o Pai e também o Filho”. Assim, ao sermos beijados pelo Espírito, não
somos, de maneira alguma, postos para baixo, restritos a ser cidadãos de segunda classe no
universo espiritual. Ao contrário, no Espírito chegamos a ter um conhecimento contemplativo,
experiencial, vivo, tanto do Pai quanto do Filho. Evidentemente, não estamos atrás de
conhecimento abstrato, teológico, das pessoas divinas, mas de conhecimento pessoal, unitivo,
conhecimento que é experimentado como uma fonte de água viva jorrando dentro de nós.
9. Ao mesmo tempo, este beijo é conhecimento da pessoa do Espírito também. O
Espírito é “dom” (donum Dei altissimi), e receber a infusão de conhecimento e amor do Pai e
do Filho é experimentar o que é o Espírito. O Espírito é este conhecimento e amor
precisamente enquanto “derramado”, como comunicação. Assim, cada vez que o conhecimento
e o amor mútuos do Pai e do Filho nos alcançam, nós conhecemos o Espírito. “É Ele!”
10. S. Bernardo é com frequência chamado de “o último dos Padres”. Isto significa que
ele viveu e escreveu durante uma mudança paradigmática; neste caso, de uma visão do mundo
patrística / monástica para uma escolástica. A abordagem escolástica o deixava nervoso por
diversas razões, uma delas sendo uma certa tendência, na escolástica, de separar conhecimento
e amor. O próprio S. Tomás, embora não caindo neste erro, é com razão chamado de
“intelectualista”, pelo fato de que, para ele, a Visão Beatífica era um ato do intelecto (é o
intelecto que vê: visio). Para Bernardo, vindo de uma tradição mais antiga, era crucial manter
que a experiência contemplativa é um ato tanto da vontade quanto do intelecto. Não é somente
compreender, mas compreender e amar. Por esta razão, ele encoraja o contemplativo a receber
o beijo do Espírito com ambos os lábios – o lábio da inteligência e o lábio da sabedoria, o lábio
que pega e vê e o lábio que degusta. Eu ousaria dizer que Bernardo tende a inclinar-se na outra
direção e a reafirmar a posição de Gregório Magno e frequentemente citada no século XII:
“Amor ipse notitia est”, “O amor é em si mesmo conhecimento”.
11. Devemos lembrar-nos de que cada um dos beijos tem seus perigos, e de que o
perigo geralmente brota de uma incapacidade de manter-se o equilíbrio (apegar-se aos dois pés,
por exemplo). Aqui também existe um duplo perigo espiritual, que deriva exatamente de não
manterem-se unidos os aspectos intelectual e voluntário da experiência contemplativa. Ali onde
a contemplação é buscada meramente como um conhecimento do mais alto objeto imaginável
pelo nosso intelecto, cai-se na categoria de um vício monástico tradicional: curiositas.
Curiosidade não se torna moralmente melhor só por estar direcionada ao sublime. O intelecto
14

automaticamente deseja conhecer e, conhecendo, dominar (como “dominar” uma língua). Isto,
para Bernardo, tomado isoladamente, não é um exercício de virtude, mas um tipo de libido, um
tipo de concupiscência, e pior ainda quando aplicada a Deus, como se Ele fosse um pico a ser
escalado. A motivação do amor está faltando e, assim, a busca de Deus torna-se outra forma de
autoafirmação, ao invés de uma expressão de adoração. Isto, penso eu, é o que mais irritava
Bernardo em Abelardo: a ideia de fazer de Deus “um objeto de estudo”; poderíamos talvez
dizer hoje: fazer seu doutorado sobre Deus.
12. Mas Bernardo não é cego em relação ao perigo inverso, onde é o sentimento que
prevalece e de onde a compreensão está ausente. Neste caso, o resultado é o que veio a ser
conhecido como “entusiasmo”: uma abordagem da religião que supervaloriza o subjetivo, que
faz do sentimento religioso um objetivo em si, que não busca conhecer a Deus ou sequer unir-
se a Deus, mas somente ter a sua própria interioridade estimulada. “Vamos ter um êxtase.”
Tomando novamente Paulo como sua base escriturística, Bernardo diz que essa atitude mostra
“zelo, mas não de acordo com o conhecimento” – um zelo não inteligente. É melhor, de todos
os pontos de vista, manter ambos os lábios funcionando em conjunto.
13. A experiência contemplativa de Deus, quando genuína, leva a relacionamentos
purificados e estabilizados com as pessoas da Trindade. Se realmente começarmos a viver esta
fusão de conhecimento e amor de Deus (que, mais uma vez, não é tanto uma experiência
pontual discreta, mas uma união que perdura e que constantemente se intensifica), nos
experimentaremos (os termos femininos sem serventia de Bernardo, a fim de permanecer
consistente com suas imagens nupciais) como filha (filia) do Pai Celestial e irmã / noiva (soror,
sponsa) do Filho Eterno. A experiência contemplativa procede de e existe para estes
relacionamentos. Não lutamos pela contemplação; lutamos pela união pessoal com o Pai, o
Filho e o Espírito Santo. Isto é divinização.
14. Em conferências anteriores, afirmei que cada beijo gera satisfação e insatisfação. E
aqui? Para onde iríamos? O que seria ainda maior? Por um lado, a única coisa maior está
fechada para nós. Bernardo diz que nem Paulo subindo ao terceiro céu foi capaz de erguer sua
boca alta o suficiente para beijar diretamente o Pai ou o Filho, e que nem os anjos jamais o
fizeram. Da mesma forma, este algo maior não é pró-prio a nós, não nos convém, e a pessoa
com qualquer conhecimento real ou amor a Deus não teria qualquer interesse em aspirar a isso.
Dado o que temos na unio Spiritus, uma tal hybris seria um “crime sem causa”. O desejo
persiste, mas não o de escalar mais alto, simplesmente o de viver cada vez mais completamente
aquilo que nos foi dado, vivê-lo com mais conhecimento, por assim dizer, vivê-lo com mais
amor. E, obviamente, vivê-lo face a face, quando a insatisfação perderá todo o seu aspecto de
frustração e será simplesmente um desejo de continuidade eterna e de crescimento, um desejo
imediatamente satisfeito assim que for sentido, e imediatamente sentido de novo assim que for
satisfeito.
15. Há uma etapa maior a ser vivida, mas externamente, ao invés de para cima. É um
êxtase horizontal. É como uma pessoa profundamente unida com o Espírito chega a viver e a
relacionar-se com os seus irmãos seres humanos. Na última conferência, tentaremos ver como
essa pessoa partilha o dom do Espírito. +

V. EPÍLOGO: APÓS O BEIJO DA BOCA

1. Com tanto beijo acontecendo, o inevitável sucede: a noiva engravida. O beijo do


Espírito Santo é sempre procriativo, assim como nupcial. Ele une a alma a Si (ao Espírito), cria
dentro da alma as capacidades espirituais necessárias para a maternidade e dá filhos à alma.
15

É um casamento místico muito tradicional. Não há os anos de um só curtindo o outro


para o Espírito Santo e a alma unidos como um; imediatamente há fertilidade e fecundidade. Os
anos de intimidade a dois foram os anos que levaram ao beijo consumador, não os anos que o
seguem. E mesmo estes anos de intimidade eram uma preparação para a frutuosidade ainda por
vir.
2. Assim, a alma descobre que é mãe. Literalmente, é uma alma mater. Como toma
consciência da sua condição? Seu seio intumesce. Esses seios representam sua capacidade de
exercer a função de maternidade na vida espiritual de outras pessoas. Bernardo (que tem nomes
para tudo, como temos visto repetidamente) chama-os de congratulação e compaixão. O
elemento chave é o prefixo que os dois termos têm em comum e que, em si mesmo, significa
algo em comum: con. Unida íntima e estavelmente com o Espírito, a pessoa humana se torna
“transpessoal”: vive como suas próprias as experiências daqueles que lhe são confiados. Trata-
se, para S. Bernardo, do cumprimento do mandamento de amar ao próximo como a si mesmo.
O Espírito Santo estica a pele de nossa subjetividade a fim de que os outros caibam por dentro,
de que sinta-mos como próprias as alegrias e tristezas das outras pessoas. Elas são tão reais, tão
imediatas, tão profundamente tocantes. Quantas vezes, no corpus de seus escritos, Bernardo
cita este versículo de S. Paulo aos Romanos: “Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com
os que choram.” Sem esta identificação espontânea e de todo o coração com o estado do outro,
com o seu bem-estar genuíno e com o que ele está passando na sua caminhada rumo a ele, a
pessoa humana não é ainda mãe ou pai (Seleções: Pai).
3. Quem são os filhos dessa pessoa, de alguém beijado três vezes pelo Verbo e
finalmente com o beijo do Espírito? Bernardo está obviamente escrevendo no contexto de uma
comunidade monástica; é bem provável que os sermões do seu comentário sobre o Cântico dos
Cânticos representem uma forma mais desenvolvida e polida dos capítulos que dava aos seus
monges. Para ele e para o auditório em cuja intenção falava, portanto, os filhos são os
principiantes na vida espiritual; os noviços, certamente, assim como os irmãos ainda lutando
por maturidade espiritual (ainda passando pelos dois primeiros beijos), algum irmão em crise.
Bernardo levou muito a sério seu papel como abba, pai espiritual. Ele intuía (ou talvez
soubesse) o que os estudos recentes tornaram claro: que no título “pai espiritual”, a palavra
“espírito” não é genérica, mas se refere ao Espírito Santo. “Pai no poder do Espírito Santo”, pai
capaz de ser pai por causa da luz interior da graça e do discernimento dados pelo Espírito
Santo. O título dado na tradição monástica e na Regra de São Bento ao superior – “abba” (pai)
– não é honorífico, um nome jurídico ou mesmo uma expressão de grande responsabilidade
moral / espiritual. É mais que isto. A tarefa do abade é dar à luz e nutrir em maturidade aqueles
que o Senhor lhe confiou enviando-os à comunidade monástica. Na Igreja Ocidental, em
relação aos leigos, diminuímos esta noção ao nível de “direção espiritual”; na Igreja Oriental,
ela permanece mais vital na pessoa do “ancião” que exerce uma paternidade / maternidade
espiritual.
4. Juntamente com este estado de paternidade conferido à pessoa pelo Espírito Santo,
vem uma maior liberdade interior, uma maior despreocupação para consigo. Antes, a atenção
era toda focada em Deus e em si mesmo. Agora, Deus redireciona a atenção da pessoa para o
próximo, para os pequeninos. Não é que a pessoa misticamente unida a Cristo tenha se
esquecido de Deus. Ao invés disto, ela é atenta a Deus na medida em que o amor de Deus pela
humanidade passa através dela. Ela olha para o próximo com compaixão ou congratulação;
experimenta esta compaixão ou congratulação como o Espírito do Cristo Ressuscitado tomando
conta dos outros em e através de sua pessoa.
16

5. Bernardo tem uma referência escriturística encantadora confirmando isto. Fala das
santas mulheres indo ao túmulo na manhã de Páscoa para ungir o corpo de Cristo e de como
encontraram o túmulo vazio. Qual era o significado do túmulo vazio? Que a partir de então
Cristo preferia ser ungido em Seu Corpo vivo, a Igreja, ao invés de em seu corpo humano
individual. A mulher pecadora do primeiro beijo não somente beijou os pés de Cristo, mas os
ungiu também; a pessoa em processo de alcançar a continentia unge a cabeça de Cristo com
louvor e gratidão. Ela beijada pelo Espírito Santo precisa de muito unguento porque tem todo o
Seu corpo místico para ungir.
6. Será que é possível que uma pessoa tenha unguento suficiente para sair por aí?
Bernardo tem confiança que sim. Não no começo da vida espiritual, obviamente; não antes que
a caridade divina tenha se enraizado na alma (e isto ocorre após o nascimento de muitas
virtudes preliminares). Dedicar-se a gerar e criar outros antes do devido tempo pode resultar no
próprio empobrecimento pessoal, assim como num cuidado pastoral que realmente não é
proveitoso para aqueles que estão sendo cuidados. Mas se a pessoa tiver a paciência necessária,
o Espírito Santo gradualmente encherá a bacia da fonte do seu coração até a borda. De lá ele
transbordará incessantemente em atenção ativa e produtiva para com os outros, sem, de modo
algum, reduzir a abundância de água encontrada no centro da fonte.
7. Comecei falando da liberdade interior da pessoa agraciada com o terceiro beijo. O
que acontece essencialmente é que a auto-referência foi banida da vida pessoal e, em particular,
foi banido o medo da dispersão e da perda do tesouro interior. Não há mais te-ouro interior e
tesouro exterior; o bem-estar espiritual dos discípulos é vivido como inseparável do bem
espiritual do abba. Em algum momento da carreira de S. Bernardo, ao que parece, alguém na
sua comunidade aconselhou os monges a darem ao seu abade um pouco de paz e de sossego
(pode ser que tenha sido o seu celeireiro e irmão de sangue Gerardo, famoso por sua
preocupação com seu irmão caçula, o abade, e a quem S. Bernardo enalteceu
inesquecivelmente após a sua morte, num dos sermões da série do Cântico dos Cânticos).
Bernardo não gostou do gesto, embora o tivesse apreciado, quem quer que tenha sido o seu
autor. “Vocês não conseguem entender”, reclamou, “que a única vez que vocês me incomodam
é quando não me incomodam?”
8. E como poderia ser diferente? Como Deus pergunta retoricamente no livro de Isaías
“Pode uma mãe esquecer-se de seus filhos?”, Bernardo apresenta a situação imaginária de uma
mãe sendo convidada a participar de um banquete esplêndido com a condição de que deixe
seus filhos esquálidos do lado de fora. Será que alguma mãe de verdade faria isto? - pergunta
Bernardo, enraivecido. Algum pai ou mãe espiritual abandonaria seus filhos num momento de
necessidade para dedicar-se exclusivamente aos deleites da oração? (visão do Abade Geral
sobre S. Bento nos portais de pérola).
9. Este cuidado com os outros da parte da pessoa beijada pelo Espírito não se limita às
coisas do espírito. Há uma famosa troca de correspondência entre Bernardo, alguns meses antes
da sua morte, e seu prior. Ele estava fora, numa última missão de paz, e havia escrito para casa
para saber como as coisas estavam indo. O prior respondeu que todos estavam jejuando,
rezando, trabalhando e guardando silêncio, como deveriam. Bernardo não ficou satisfeito.
Sabia que alguns dos irmãos não estavam no melhor da sua saúde. “Você não me contou tudo”,
reclamou. “Você não me contou se a digestão deles melhorou.”
10. Isto quer dizer, então, que o fruto da vida contemplativa é a renúncia à vida
contemplativa? De jeito nenhum. Quer dizer que, através da unio Spiritus, a pessoa veio a
confiar suficientemente em Deus a ponto de deixar que Ele lhe providencie tempos de
contemplação. Em seu comentário sobre o versículo do Cântico dos Cânticos, “Eu te conjuro
17

pelos cervos e pelas gazelas da floresta: não provoque, não desperte o amor até que lhe pareça
bem”, Bernardo diz que quem está falando é o próprio Cristo Senhor, que proíbe solenemente
os discípulos de incomodarem sua mãe. “Sua mãe está num sono místico”, ele diz. “Está
descansando em mim. Minha mão esquerda está sob a sua cabeça e a minha direita a abraça.
Deixe-a estar até que eu retire a minha mão. Então ela despertará por si só e lhes dará a atenção
necessária.” Pode ser que os discípulos não estejam explicitamente cônscios desta proibição.
Mesmo assim obedecem. A alma mística é deixada por um tempo na paz que supera todo
entendimento e, ao sair dela, está pronta para retornar ao seu dever e para guiar os seus filhos
melhor e para mais longe do que era capaz de fazer antes.
11. Sabemos que um dos títulos de Bernardo era doctor marianus. Havia três figuras no
Novo Testamento que o fascinavam infinitamente: Jesus, Maria e Paulo. Jesus era o noivo da
sua alma, Paulo, o modelo de zelo apostólico e de caridade; e Maria, o modelo de vida
esposada do Espírito, simultaneamente voltada para o interior e o exterior. Parece-me claro
que, tanto na sua vida interior quanto no seu ministério abacial, ele se identificava mais com
Maria. Há uma tradição da Idade Média segundo a qual Maria não está somente no centro do
grupo dos discípulos recebendo o Espírito Santo no dia de Pentecostes, mas recebe a plenitude
do Espírito, e é através dela que os outros vêm a recebê-lo. Ela media o Espírito. Bernardo diz
a mesma coisa num sermão bem conhecido para o domingo após a Assunção, quando compara
Maria com um aqueduto. Toda a graça de Cristo flui na Igreja através da mediação de Maria. É
de modo análogo que, o Espírito opera na comunidade monástica / eclesial. Ele Se dá em união
íntima ao pneumatikós (homo spiritualis) e é ele que se torna “cheio de graça” e agracia os
outros no seu ensinamento, oração e caridade.
12. S. Bernardo amava brincar com as palavras (como o faz seu xará). Ele inventou um
par de frases: caritas veritatis e veritas caritatis. A caritas veritatis é o amor pela verdade, o
voltar-se, cheio de desejo, da face e do coração para ela em suas formas mais altas, mais puras.
Quanto melhor e mais nobre algo é, mais o coração será atraído para esse algo, e, acima de
tudo, para Deus. Nesta ótica, o santo será mais amado que o pecador, o belo mais que o feio, o
perfeito mais que o imperfeito. Mas há também a veritas caritatis, a verdade da caridade, a
verdade de amar como Cristo amava. E em virtude disto, nós amamos o que precisa de nós, o
que não pode ficar sem nós: o pecador antes que o santo, o bagunceiro antes que o bem-
comportado, o frágil antes que o forte, o ignorante antes que o iluminado. Nosso coração
achará todas as formas de pobreza irresistíveis – irresistíveis no sentido de se sentir solidário
com elas e de querer consolá-las. A pessoa beijada pelo Espírito vive o amor e a verdade em
ambas as suas combinações. Assim como o pró-prio Espírito vive completamente em Deus
como o beijo que une o Pai e o Filho e ao mesmo tempo é incessantemente derramado na Igreja
e na humanidade, assim a pessoa que vive na unio Spiritus vive inteiramente em Deus e
inteiramente para os homens. Quando lemos os Evangelhos, vemos que esta aparente
contradição nunca foi contradição para Cristo. Porque Ele era o “ungido do Espírito”: toda a
sua humanidade era ungida pelo Espírito.
13. Muitas vezes me perguntei por que, de todos os Padres Cistercienses, somente S.
Bernardo é “Doutor da Igreja”. Ele não era o mais inteligente (Guilherme), nem o mais místico
(Isaac), nem o mais jovial (João de Ford), nem o mais atraente humanamente (Elredo). Mas era
aquele para quem vida mística em Deus e vida na e para a Igreja eram uma coisa só, algo
indivisível. Ele foi beijado pelo Espírito. Fico feliz por ele ser meu santo padroeiro. +

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