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Proust e Merleau Ponty
Proust e Merleau Ponty
No
e n t re l açame n t o
dos sentidos:
a n a r r a t i v a d e Ma r c e l
Proust no universo filosófico
de
Me r l e a u - P o n t y
Aprovado em:
Banca Examinadora
À minha mãe,
Jenny de Souza Aranha Guimarães,
por sua coragem frente às adversidades da vida,
e, sobretudo, pelo seu amor.
13
AGRADECIMENTOS
À Profa Dra. Maria Clara Cescato, por sua presença amiga e pelo entusiasmo
contagiante do seu conhecimento filosófico.
Ao Prof. Dr. Aguinaldo José Gonçalves, por sua presença em minha banca e
pelos preciosos conhecimentos literários.
Ao Prof. Dr. Sidney Barbosa e ao Prof. Dr. José de Carvalho Sombra, pelas
valiosas orientações para o exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Amilton Monteiro de Oliveira, pela amizade e pelo apoio nas
dificuldades em conciliar as atividades profissionais com a pesquisa.
Conta-se que o poeta chinês Han Fook, em sua juventude, era animado por um
maravilhoso desejo de tudo aprender e de se aperfeiçoar em tudo que dissesse
respeito à arte da poesia. (...)
Sentiu que em meio a todas as festas e alegrias desta Terra, nunca seu coração
poderia ficar tranqüilo e sereno, que ele mesmo estaria sempre no meio da
vida como solitário e de certo modo como um espectador e um estranho, e
sentiu que, entre tantas outras, apenas sua alma fora feita de tal maneira que
precisava sentir ao mesmo tempo toda a beleza da Terra e a secreta nostalgia
do desconhecido. Com isso ficou triste e ansiou por essas coisas, e terminou
pensando que, para ele, uma verdadeira felicidade e uma profunda satisfação só
poderia existir, se algum dia lhe acontecesse refletir o mundo tão
perfeitamente na poesia, que, nessa imagem, ele possuísse o próprio mundo,
purificado e eternizado.
(...)E ficou e aprendeu a tocar cítara e depois a flauta, e mais tarde sobre a
instrução do mestre começou a fazer poesia, e aprendeu lentamente aquela arte
secreta, que aparentemente só fala de coisas simples e despretensiosas, mas
com o fim de resolver a alma dos que a escutam como o vento no espelho da
água. Descreveu a chegada do sol, como ele hesita na orla da montanha, e o
silencioso deslizar dos peixes, quando fogem como sombras sob a água, ou o
balanço de um salgueiro novo no vento da primavera, e quando a gente ouve
aquilo, já não era apenas o sol e o jogo dos peixes e o murmúrio do salgueiro,
mas parecia que por um instante, o céu e o mundo de cada vez, combinavam-
se numa música perfeita, e cada um ao escutar pensava ao mesmo tempo; com
alegria ou dor, naquilo que amava ou odiava: o garoto na brincadeira; o jovem,
na amada, o velho na morte.
(...) Han Fook não sabia quanto tempo passara com o mestre, na nascente do
grande rio; com freqüência parecia-lhe ter chegado ontem à tarde naquele vale
e ter sido recebido pela música do velho; com freqüência parecia-lhe também
terem caído atrás de si todas as gerações humanas e todos os tempos se terem
tornados ilusórios.
(...) À tarde porém a Festa das Lâmpadas foi comemorada no rio e o poeta Han
Fook parou do outro lado, na margem escura, apoiado sobre o tronco de uma
velha árvore e quando começou a tocar seu pequeno alaúde, as mulheres
suspiravam e encantadas e angustiadas espiaram a noite, e os jovens rapazes
chamaram pelo tocador de alaúde, que não puderam encontrar em nenhuma
parte, e gritaram alto que nunca nenhum deles ouvira tais sons de um alaúde.
Han Fook porém sorria. Mirou a água, onde nadava a imagem das mil
lâmpadas; e como já não sabia mais distinguir a imagem da realidade, não
encontrou em sua alma nenhuma diferença entre essa festa e aquela primeira,
quando ainda jovem ele ali parou e escutou a palavra do mestre desconhecido.
RESUM O
UBIALI, E. A. G. No entrelaçamento dos sentidos: a literatura no universo
filosófico de Merleau-Ponty. 2006. f.137. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, 2006.
ABSTRACT
This work surveys some of Merleau-Ponty’s theses on the artistic doing, with special
regard to literature. The philosophical interrogations which Merleau-Ponty poses
regarding literary art have as background his investigations on language. The main
focus is on the ways in which the writer deals with the word, which is conveyed by
means of his style in the expressive act, and thus made real in the literary
phenomenon. The aim is, in the course of this study, to go through the literary
universes involved in roman gender as addressed by Merleau-Ponty, in order to
understand how artistic expression as well as questions involved in expression and
style have their place in the challenge of creating literary meaning. In order to do so,
we approach the universe of Marcel Proust’s work – a work situated in the tradition
of subjective and psychological romance – through his work In Search of Lost Time.
Merleau-Ponty’s phenomenological and ontological investigation and Marcel
Proust’s literary work have in common what we can designate as an “elaboration of
the sense of the world”, built on experiences of one’s “own body” with things and
people, which are pervaded by temporality. Making use of some of the
phenomenological and ontological principles developed by Merleau-Ponty, who
sees the body a source of knowledge and a way to give a new interpretation to
cartesian Cogito, this analysis aims to understand – taking as an example Proust’s
narrative – how one’s body apprehends meanings and recollects them through
involuntary memory. In this perspective, the dimensions of time and space emerge
in the formulation of the meaning of the world: as Proust says, we are “hung in the
past”, a past kept in the memory of our body, a past that can be evoked by an
opening to the present. The desire to write, for instance, is called for, or evoked, by
the things themselves. As in Proust’s works, Merleau-Ponty stresses the fact that we
can perceive the ways in which the roman characters and the world – and its own
author – always imply one another, so that sense always emerges as lateral, and
this is the meaning of transcendence: I perceive myself in the things and in the
others – the meaning of what we experience is always in the act of referring one
sense to another. For Merleau-Ponty, perception generates a “field of presence”
which deploys itself in two dimensions: here-there and past-present-future, and in
which acts of deciphering the signs in the roman interact through the senses – the
elected objects of Proustian narrative.
SRF À sombra das raparigas em flor. Trad. Mário Quintana. São Paulo:
Globo, 1999.
SUM ÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM 19
5 CONCLUSÃO 81
6 APÊNDICE 99
APRESENTAÇÃO
de aprofundar esse interesse pela arte por meio da filosofia. Quando Merleau-Ponty
muito o que nos ensinar; por meio dela, deparamo-nos com a possibilidade de um
diálogo fecundo com a filosofia, que enriquece e engrandece essas duas áreas e
pensamento que reflete o fazer artístico e da arte, que nos impele rumo às grandes
conquistas do pensamento.
21
APÊNDICE
literário.
22
INTRODUÇÃO
________________________________
23
1 INTRODUÇÃO
filósofo como objeto de estudo desta pesquisa concretiza o intento de estabelecer uma
ponte entre filosofia e arte, já que ele examina a obra de vários pintores e escritores,
Merleau-Ponty destaca que a linguagem não pode ser vista como uma simples
obra literária nos proporciona está menos ligada às idéias que nos são oferecidas do que
por “uma variação sistemática e insólita dos modos de linguagem e do relato ou das
formas existentes.” (PM, 8). Nesse sentido, será ressaltado o modo como o escritor lida
com a palavra, que, por sua vez, será transmitido através do ato expressivo,
que se definirá num estilo, vai aparecer como um novo idioma que emerge da
denomina “ação oblíqua”, que revela como as significações não fazem apenas parte de
que por sua vez, será inédita, com meios de expressão singulares ao universo literário do
24
autor. Pois, para esse filósofo, a grande prosa literária só pode ser aquela que capta e
transmite um sentido que até e ntão nunca foi realizado. E, por outro lado, quando o autor
literários citados por esse filósofo, serão apontados alguns ícones da literatura
Marcel Proust será considerado por Merleau-Ponty como escritor que mais
longe foi em fixar as relações entre o visível e o invisível, na descrição de uma idéia
que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e sua profundidade
(VI,144).
e terceira pessoa.
princípios, pois vai desafiar dois pontos de vista incompatíveis do ser: o lado interior
natureza e consciência, corpo e alma. Vamos encontrar então uma filosofia marcada
duplicidade na unidade.
direção a uma filosofia, que ressalta ao mesmo tempo o ponto de vista do sujeito e
considera que o mundo está presente antes de qualquer reflexão que se possa
realizar dele. Será a partir desse contato ingênuo com o mundo que vai emergir
outro estatuto filosófico, isso é, outra dimensão do sentido das essências, pois para
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir
de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual
os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo
da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos
pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido
e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (FP,3).
uma história narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um
moderno:
27
filosófico. Ele afirma em sua obra Signos que a tarefa desse novo paradigma
consiste em ampliar a nossa razão para que ela possa compreender o que em nós
PRIMEIRO CAPÍTULO:
FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM
___________________________________________________________________
29
2. FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM
por Immanuel Kant (1724-1804). Mas será com Edmund Husserl que Merleau-
do fenômeno.
filosófica a busca de uma verdade capaz de resistir a toda dúvida inaugura a longa
conhecimento, uma vez que estaria garantida contra o ataque do cético e seria
é herdeiro e que não conseguia responder aos desafios impostos pela nova ciência
sucessivas camadas, cada vez menos superficiais, nas quais ela se constitui – a
evidentes, pelo recurso ao artifício do “gênio maligno” –, sua análise nos coloca
30
diante do próprio ser que duvida. Cogito ergo sum: Penso, logo existo. Nessa
constituído por duas substâncias: espiritual (res cogitans) e material (res extensa).
A res extensa pode ser vista como objeto das ciências da natureza, que explicam o
Se for este discurso tido como demasiado longo para ser lido de
uma só vez, poderá ser dividido em seis partes. Na primeira, achar-
se-ão diferentes considerações relativas às ciências. Na segunda,
as principais regras do método buscado pelo autor. Na terceira,
algumas das regras de moral, que ele tirou desse método. Na
quarta, razões através das quais prova a existência de Deus e da
alma humana, fundamentos estes da sua metafísica. Na quinta, o
conjunto dos assuntos de física que ele estudou e, sobretudo, a
explicação do movimento do coração e de alguns outros óbices
referentes à medicina, tanto quanto à diferença que existe entre a
nossa alma e a dos animais. Finalmente, na última, o que acredita
seja necessário para sobrepujá-lo na pesquisa da natureza, e os
motivos que o induziram a escrever. (DESCARTES, 1978, p. 9).
ao sujeito que pensa o objeto, o mundo que o rodeia. Como não há nenhuma
mundo?
Percepção:
natureza. A realidade espiritual, por sua vez, não tem extensão no espaço, e assim
pois é pelo do corpo que reconheceremos uma unidade distinta daquela do objeto
científico.
Kant questiona, em sua Crítica da razão pura se é possível isolar a razão pura e
solução para esse problema, Kant transformará a razão o tribunal que deve julgar o
que podemos conhecer com legitimidade. Para tal, ele parte da distinção entre dois
tipos de juízos: os “analíticos”, a priori, nos quais o predicado está contido no sujeito
33
dependem da experiência.
conhecimento e que, por outro lado – como os juízos analíticos e ao contrário dos
a realidade não é um dado exterior ao qual o intelecto deve se conformar – quer por
uma depuração do dado empírico, como acreditava o empirismo, quer por uma
para nós, na medida em que aparece mediado por nossas formas de conhecimento
conceito de Deus será apenas uma idéia da razão de uso talvez legítimo na
mostrou que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas que a Terra gira em torno
do Sol, o conhecimento não é reflexo do objeto exterior: é nossa própria mente que
constrói o objeto.
sentido. Consciência é puro ato, não coisa, nem substância, assim ela é sempre
sujeito e objeto. Ele mostra que a res extensa está interligada à res cogitans e que
pretende ser o método que permite pensar a exterioridade do mundo que nos
e o percebido.
realidade visando captar suas estruturas para além de uma concepção puramente
que é elaborado por meio das operações sensoriais perceptivas que formam o
consciência, com seu fluir e sua temporalidade imanente, na qual estão presentes
vividas, a investigação se dirige para o ôntico puro, ou seja, o que pertence ao ente,
da redução eidética, ou seja tudo que se refere à essência e que se coloca como
próprio de cada ser ter uma essência, um eidos. Husserl inicia o estudo das
sujeito.
objeto. O realismo, por sua vez, sustenta que se tirarmos o sujeito ou a consciência,
fica nada, pois o mundo, a realidade é condição para que haja a vida. Como diz
Merleau-Ponty :
orienta-o para um diálogo cada vez mais íntimo com as ciências do homem e as
cegueira da consciência porque se volta para o mistério que faz sustentar a palavra,
entre essência e existência, não é feita por dedução como na tradição clássica, mas
perceptif. Tal conceito representa uma relação perceptiva original com o mundo
que, pressuposta por toda construção científica, não pode ser explicada ou descrita
campo da percepção. Para ele, o corpo não é somente um objeto entre muitos
38
a ele que o mundo tem um caráter perspectivo. Ele acrescenta que o único modo
coisas nem as pessoas porque elas gravitam à nossa volta e coexistimos com
difere do corpo no sentido de ser o lugar onde se entrelaçam "le corps voyant" e "le
ar, terra, fogo – e o conceito de quiasma como uma figura de linguagem que
idéia de revesibilidade.
tornar tangível ao sujeito. Para isso, ele mostra que o mundo e o eu somos um
geral, pois cada corpo tem, dentro da generalidade, suas particularidades, sua
maneira própria de sentir o mundo que o rodeia. Isso nos mostra que não há
percepção “em geral” – uma noção que poderia tornar-se uma abstração universal -
Dessa forma, não suprime o universal para colocar o particular, mas busca o
alcance da palavra poética, ou à força da pintura; como aquela em que uma cor
representa um universo, uma frase musical dá uma outra dimensão para o tempo e
espaço...
de um lado espiritual em interação com o lado material, mas como visível e Invisível
participando dos dois lados do Ser, como se fosse o avesso e o direito irredutíveis
efetua no e através do homem. Uma dimensão contém a outra, pois o visível está
linguagem, ou seja, uma análise das essências, por meio da qual se torna possível
ao contato com a língua falada, não mais como a tentativa de recolocar as línguas
existentes no quadro de uma eidética de toda linguagem possível, isto é, não mais
intemporal.
consciência. Assim, é nesse sujeito falante que encontramos a linguagem que, por
si só, também não existe, mas sim a partir de um corpo. Será o fenômeno da fala
que vai indicar essa outra dimensão do corpo: “a fala é o excesso de nossa
Entre a fala que se constrói pelo sujeito e a fala que o rodeia há uma
ser confundido com o outro e não podermos distinguir o mundo falado e o mundo
falante.
Merleau-Ponty vai mais além, dizendo que é por meio dele que o pensamento
tem suas regras e princípios; a fala, ou palavra, é o ato individual de uso da língua e
poderá ter alcance ontológico, e algo a dizer sobre o ser da linguagem, se houver
irredutíveis uma à outra: a que é falada por um sujeito e a que se elabora através
pois as duas devem caminhar juntas, uma vez que a relação entre língua, ou
forma:
lingüísticos convergentes, cada qual se define mais por um valor de emprego que
construído num plano rigoroso. As línguas particulares não aparecem mais como a
com os particulares.
O que está em jogo agora é uma fenomenologia enquanto uma lógica que
elementos podem ser deduzidos de uma idéia; a sustentação de uma língua não se
cadeia verbal, mas sim, cada signo, significando pela diferença de uns em relação
aos outros; na sua relação lateral a outros. O sentido surge então na intersecção,
como se fosse no intervalo das palavras, ou seja, nos silêncios. Isto impede-nos
sentido, pois o sentido não habita a cadeia verbal nem de forma transcendente,
se fosse uma espécie de texto ideal que vai ao encontro das palavras para serem
traduzidas.
de que um pensamento foi dito, não colocado no lugar de índices verbais, mas
acoplado às palavras:
Se o signo quer dizer alguma coisa enquanto se alinha sobre outros signos,
seu sentido está todo imerso na linguagem, a palavra é colocada por Merleau-Ponty
46
este imenso tecido da fala exige que nos entreguemos à sua vida, a seu momento
que se revela através do todo nas partes vai se estender por toda a história da
cultura.
qual uma língua se transforma em outra. Sabemos que do Latim veio o Francês, o
e as vozes do silêncio (1980) afirma que não se pode fixar o momento em que uma
enumeração dos meios de expressão não faz sentido, continuando os que não
estão mais em uso corrente a levar uma vida atenuada e sabendo-se a posição que
vão ter depois de serem substituídos, ainda por via de uma lacuna, de uma
A nossa verdade, está imersa em uma totalidade que não está desvinculada
SEGUNDO CAPÍTULO
que tanto na vida quanto na arte podem se concretizam num estilo. Pela arte
pensar essa unidade entre o sensível e o inteligível, uma vez que já foi submetida à
fato e do sentido.
Tal subjetividade implica num corpo que, pelo seu poder aberto e indefinido
O corpo por meio dos sentidos tem uma natureza dinâmica, uma
potencialidades que vão possibilitar uma certa organização que delineará o estilo. O
corpo e arte exercem seu poder de significação: o corpo, pelos gestos, olhar,
palavras...; a pintura, pelas cores, formas; uma peça musical, pelos sons; o poema
O corpo na sua unidade contém a diversidade dos sentidos que por sua vez
que é inerente ao corpo; tal estilo se estende analogamente ao estilo que vai se
percepção, mas o corpo a partir da expressão. Toda percepção, toda ação que a
operação primeira que inicialmente constitui os signos em signos, faz habitar neles
um sentido, inaugura uma ordem, funda uma instituição ou uma tradição. Encontra-
Assim como a fala significa não apenas pelas palavras, mas ainda
pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos e pela fisionomia, e assim
como esse suplemento de sentido revela não mais os pensamentos
daquele que fala, mas a fonte de seus pensamentos e sua maneira
de ser fundamental, da mesma maneira a poesia, se por acidente é
narrativa e significante, essencialmente é uma modulação da
existência. Ela se distingue do grito porque o grito utiliza nosso
corpo tal como a natureza o deu a nós, quer dizer, pobre em meios
de expressão, enquanto o poema utiliza a linguagem, e mesmo
uma linguagem particular, de forma que a modulação existencial,
em lugar de dissipar-se no instante mesmo em que se exprime,
encontra no aparato poético o meio de eternizar-se. Mas, se se
destaca de nossa gesticulação vital, o poema não se destaca de
todo apoio material, e ele estaria irremediavelmente perdido se seu
texto não fosse exatamente conservado; sua significação não é
livre e não reside no céu das idéias: ela está encerrada entre as
palavras em algum papel frágil. Nesse sentido, como toda obra de
arte, o poema existe à maneira de uma coisa e não subsiste
eternamente à maneira de uma verdade. Quanto ao romance, se
bem que ele se deixe resumir, se bem que o "pensamento" do
romancista se deixe formular abstratamente, essa significação
nocional é retirada de uma significação mais ampla, como a
descrição de uma pessoa é retirada do aspecto concreto de sua
fisionomia. O papel do romancista não é expor idéias ou mesmo
analisar caracteres, mas apresentar um acontecimento inter-
humano, fazê-lo amadurecer e eclodir sem comentário ideológico, a
tal ponto que qualquer mudança na ordem da narrativa ou na
escolha das perspectivas modificaria o sentido romanesco do
acontecimento. (FP, 209)
expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua
estendendo para a obra de arte traz consigo o sentido de um milagre que segundo
alguma coisa que se revela no exterior, de uma significação que abre no mundo e
começa a existir.
a noção de expressão vai designar a operação primeira, pela qual nosso corpo
corpo; surge então uma imagem fora do foco e ao mesmo tempo o ímpeto de
literatura, por meio do signo da palavra, possibilita ao leitor a entrada num outro
mundo gerando uma outra espécie de organismo que tem vida própria e é capaz de
gerar outras vidas. Por essa razão, a operação de expressão, quando é bem
sucedida, não deixa apenas um sumário para o leitor ou para o próprio escritor, ela
faz a significação existir como no próprio coração do texto, ela a faz viver em um
dos sentidos, abre para nossa experiência um novo campo ou uma nova dimensão.
linearidade são significações relevantes fazendo com que esse universo receptivo
recebido pelo leitor, ele vai se compondo até que seja por ele captado dentro do
estilo que o gerou, este por sua vez é, singular trazendo a marca do seu autor que
materialidade das palavras, ele não é interior nem exterior, assim como o corpo não
sua trilha vê-se de repente rodeado de sentido. A palavra expressiva não é definida,
direta, exata, e sim meditante, há uma reflexão implícita nesta busca, uma busca na
dimensão do silêncio, que por sua vez, pode ser tão ou mais expressivo que a
das vezes mais significativos do que as palavras, pois a significação ali presente é
sua Comédia Humana, uma coletânea de romances escrita entre 1829 e 1850. Por
meio dessa obra, ele revela um amplo painel da sociedade burguesa daquele
explorados pelos jornais. Nesse dia, foi fuzilado o ex-seminarista Antoine Berthet,
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que, em plena missa, disparara contra a senhora Michoud de La Tour, sua antiga
dessa narrativa.
narra em uma página o que poderia ser em cinco, evidenciando o silêncio de Julien
matar não constam entre as palavras, mas entre elas, permeada de silêncios tão ou
descobrir por meio dessas palavras, que muitas vezes nem pensava em proferir,
organizar meu próprio pensamento e criar um estilo que é inerente a cada indivíduo
ele desfazer e refazer, atuam juntos da mesma forma que o vestígio de um passo
uma certa paisagem, assim como à volta da palavra há uma atmosfera prenhe de
acordo com o ambiente em que ele está, a expressão por intermédio da palavra
deve aparecer também como um vestígio fugaz que se transforma de acordo com o
que a envolve.
que a reflexão não ocorre no pensamento, mas é um ato corporal. É pelo corpo que
Esta concepção remete-nos aos últimos textos de Husserl que ressaltam o retorno
linguagem falante emerge das palavras que emitem a cada unidade um som que
diversos objetos, cores, elementos da natureza, seres humanos que tocam o nosso
olhar sem necessariamente emitir um som, uma fala; toca o sentido da visão, sendo
então visível mas não audível; enquanto no primeiro toca a audição, ouve-se, mas
literatura como se apresenta como uma linguagem falante na qual o ser se deixa
intersubjetividade. Pois finalmente percebe-se que: “Na medida em que aquilo que
digo tem sentido, enquanto falo, sou para mim mesmo um outro “outro”, na medida
em que compreendo, já não sei mais quem fala e quem escuta”. (MERLEAU-
de mim em outrem.
significação que está ligado à vida humana e que revela a interação entre o natural
e o artificial (fabricado).
A linguagem agora vai aparecer, não mais como um instrumento, mas como
uma forma de estabelecer uma relação viva com o sujeito que fala e com seus
semelhantes: ela se revela não mais como um meio, mas como uma manifestação,
uma revelação do ser íntimo e do elo que nos une ao mundo e aos nossos
e significativa da fala, que, por sua vez, é inerente à natureza enigmática do corpo
que separa o sujeito e o objeto. Nós nos distanciamos dessa visão do corpo como
uma soma de partes sem interior e da alma como um ser inteiramente presente a si
um não anuncia o outro, eles estão envoltos um no outro, o sentido está enraizado
na fala, a fala é a existência exterior do sentido. Não é possível admitir que a fala
palavra e a fala agora não são mais como uma maneira de designar o objeto ou o
simples signo dos objetos e das significações, mas habita as coisas e veicula as
significações. Portanto, a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito,
mas o consuma.
A fala mobiliza o corpo, tem um caminho de duas vias: a ação de falar e seu
fala, por outro lado, a ação complementar da audição entra no ser falante e se
mistura com sua palavra, formando uma só unidade. “Nos dois casos, eu me
Compreende-se então que o outro que fala entra “em meu corpo”, possibilitando ao
Vou ao livro porque montei em mim esse estranho aparelho de expressão que é
então vigente, deixando-a à disposição do leitor sem saber o que advirá a partir
dessa inovação. Pois o contato do leitor com o verdadeiro escritor é mais que o
reencontro com o que ele já sabia, é o toque nas significações existentes de modo
uma nova harmonia, que por sua vez poderá gerar nova estranheza.
O orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua
fala é seu pensamento. Da mesma maneira, o ouvinte não concebe
por ocasião dos signos. O “pensamento” do orador é vazio enquanto
ele fala e quando se lê um texto diante de nós, se a expressão é
bem sucedida, não temos um pensamento à margem do próprio
texto, as palavras ocupam todo o nosso espírito, elas vêm
preencher exatamente nossa expectativa e nós sentimos a
necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-lo e
somos possuídos por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim
de um encantamento. (FP, 245).
o que fala e o que escuta. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro.
Naquele que emite a fala existe uma intenção significativa que ele pôs em
movimento, ao mesmo tempo em que uma certa carência que procura preencher-
se. E quando retomo essa intenção significativa, estou realizando uma operação
coisas; assim, a fala, como proveniente do corpo que está inserido no mundo, está
outro por um ato de interpretação intelectual; o sentido do gesto, não está atrás
deles mesmos, confundem-se com a estrutura do mundo. A casa onde vivo não
está além do espetáculo sensível e da casa ela mesma. Não é possível dar às
encontrar um novo caminho para a concepção além das duas correntes: empirista e
intelectualista.
existe por si, e que não é com o pensamento que, em primeiro lugar, eu me
comunico, mas com um sujeito falante que busca a fala e a comunicação para
na inconsciência.
vai além dos processos intelectuais: a ligação entre a palavra e seu sentido vivo
não é uma mera forma exterior de associação. O sentido e a palavra são uma
sentido do gesto não está contido no gesto enquanto fenômeno físico ou fisiológico.
palavra enquanto som, assim como o sentido do gesto não está limitado ao
movimento do corpo, mas vai além, através das significações que são apreendidas
pelos interlocutores. Visto por esse ângulo, não se pode dizer que fala e gesto
sejam uma operação exclusiva da inteligência, nem que são um fenômeno motor:
através desta arte da palavra é o uso vivo da linguagem que está além de uma
66
que não se detém até onde vai, passando às outras que suscita, e inaugurando um
movimento constante que se constrói como uma linguagem a explorar e que nos
Nesse intercâmbio entre o que existe em nós e o que nos chega através da palavra
delineia-se um estilo que nos permite reconhecer uma maneira de existir desse
pensamento, reproduzindo seu tom, e reconhecendo seu autor. Existe algo de vivo
nessa linguagem se que se ensina por si mesma e coloca seu sentido no espírito
do ouvinte:
Tal estilo, por sua vez tem a sua fonte na percepção. Segundo Malraux,
Isto significa que a forma como algo é percebido vai culminar no estilo, que por sua
vez, não deve ser visto como algo que pudesse ser conhecido e premeditado fora
essenciais.
Por isso é que o estilo é uma construção que tem seu marco inicial nos
iniciação do escritor à sua própria voz”, ele quer dizer que o escritor elabora o seu
estilo tanto através de seus experimentos na vida quanto pela literatura dos outros
e do mundo em que vive. A obra passa pelo corpo de quem a constrói e de quem a
mundo.
de exprimir, a linguagem se dissolve. Poderíamos dizer que ela cumpriu sua função
fadas - milagre, magia, transgressão das leis naturais, criação - mas é também
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uma resposta ao mundo que envolve a obra e às obras que antecederam sua
para designar basicamente a fecundidade ilimitada de todo presente que por ser
singular e fugaz não poderá nunca deixar de ter sido e, portanto, de existir na
após sua aparição por abrir um campo de pesquisas em cujo seio revive.
Merleau-Ponty ressalta que para que a obra se realize e se amplie através de mim,
é necessário que meu pensamento seja atraído pelo pensamento da obra que, por
sua vez, entra em mim e através de palavras, frases e todos os sinais ali contidos.
A partir dessa apreensão, o meu mundo estava no livro e o livro estava no meu
A obra que cumpre sua função não é a que existe em si como coisa, mas a
reintegrando e despertando o poder de exprimir, para além do que até então foi dito
ou visto.
música, na qual não é possível pensar a significação musical de uma sonata como
separável dos sons que a conduzem: dessa forma, antes que a tenhamos ouvido,
devora os signos e o personagem Fedra tomou posse de Berma tão bem, que seu
único.
instala na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente,
aquisição cultural se mobiliza a serviço dessa lei desconhecida, assim como nosso
para que se possa propor valores em nossa história individual ou coletiva. A vida
procuramos, não obtemos, não faltando pelo contrário idéias, valores, a quem
TERCEIRO CAPÍTULO :
PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO,
________________________________________
74
indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. (FP, 14).
de reflexão, mas um produto tardio do pensamento. Tal crítica aponta para o fato
de que não se pode definir a sensação pela impressão pura. “O vermelho e o verde
sensação quando ela está relacionada ao mundo: “Nós acreditamos saber muito
bem o que é “ver”, “ouvir”, “sentir”, porque há muito tempo a percepção nos deu
mundo; o mundo do sujeito que percebe que vai de encontro a noção clássica de
sensação:
momento, pode-se entender por sensação a maneira pela qual sou afetado por algo
olhos fechados, os sons que envolvem o espaço onde estou. Entretanto, nem
mesmo essa sensação pode ser considerada pura, ela está vinculada ao mundo;
desse modo, por meio da experiência no mundo é impossível encontrar algo que
fundo, que a Gestalttheorie define como o dado sensível mais simples ao qual
temos acesso. Merleau-Ponty coloca o exemplo da figura e fundo. Ele ressalta que
Pois o “algo” perceptivo faz parte de um campo e está sempre entre um outro
objeto. A estrutura da percepção mais uma vez vai nos permitir perceber que a
(...) ver é obter cores ou luzes, ouvir é obter sons, sentir é obter
qualidades, e para saber o que é sentir, não basta ter visto o
vermelho ou ouvido um lá? O vermelho e o verde não são
sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da
consciência, é uma propriedade do objeto (...). Essa mancha
vermelha que vejo no tapete, ela só é vermelha levando em conta
uma sombra que a perpassa, sua qualidade só aparece em relação
com os jogos da luz e, portanto, como elemento de uma
configuração espacial. Aliás, a cor só é determinada se se estende
em uma certa superfície; uma superfície muito pequena seria
inqualificável. Enfim, esse vermelho não seria literalmente o mesmo
se não fosse o “vermelho lanoso” de um tapete. (apud, MERLEAU-
PONTY, 1999, p.25).
esquema corporal. O corpo não é algo que o sujeito possui, este é o próprio corpo
que, por sua vez, implica dois saberes: o que está relacionado com o mundo que o
“Mas retomando assim o contato com o corpo e com o mundo é também a nós
mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo
contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo.
Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes
à obra de arte. (FP, 208)
QUARTO CAPÍTULO
A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL NO
UNIVERSO FENOMENOLÓGICO DA
NARRATIVA PROUSTIANA
__________________________________________________________________________
79
do sujeito uma concepção tal que eles se comuniquem do interior”. (FP, 549). Há,
Nesse sentido, fica evidente que o tempo não se faz, nunca está
próprio tempo, mas apenas o seu registro final, é o resultado de sua passagem
orientação da que virá. Tanto o tempo, como o espaço, nasce da relação do “ser no
torna manifesto o tempo” que, por sua vez, aparece como uma dimensão do ser-aí,
dimensões:
questão: sua indivisibilidade, sua natureza total, assim como do mesmo modo
que traz consigo as suas retenções e que se lança no porvir a partir de suas
nós como um saber, uma vivência; daí o sentido da frase: “Passado e porvir têm
que, segundo ele diz, não é uma solução, mas um índice para designar um
distanciam da verdadeira natureza do ser. O que se busca com esse novo olhar
Maurice Merleau-Ponty:
dimensão do nosso ser. Tanto o tempo, como o espaço, nasce da relação do “ser
manifesto o tempo.
ser.
ser: sentido e verdade. Seu projeto é o de examinar, não mais os atos intencionais
da consciência e sua essência, como fazia Husserl, mas empreender uma “analítica
existencial”, ou seja, uma forma de descrever a existência. Esta, por sua vez, é um
revelação do ser – “a clareira do ser”, sendo que “aí” representa o ser de fato, seu
tempo é a essência do homem que, por sua vez, não existe em si, mas se faz na
existência.
O que nos leva a nomear juntos tempo e ser? Ser significa, desde a
aurora do pensamento ocidental-europeu até hoje, o mesmo que
84
A analítica existencial proposta por Heidegger vai partir daquilo que o homem
é na vida cotidiana, como homem enquanto “ser no mundo”. O ser, por sua vez, vai
aparecer de forma indireta, portanto precisa ser buscado. Para tal desvendamento,
Heidegger, em oposição a Husserl que afirmava que a filosofia deveria ser uma
mais que o intelecto, mais que a razão. Sua filosofia vai enfatizar a valorização da
Heidegger, é uma forma de iluminação da linguagem poética, pois para ele o ser
habita essa linguagem criadora, como ele expressa em sua obra Que é Metafísica
ele se faz, se transforma. E tal síntese temporal é inerente à própria vida. Nesse
consciência de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim existe
um mundo porque tenho um mundo”. (1999:400). Isso significa que a nova atitude
unilateralmente:
vê com proporções enormes; na idade adulta, tal cidade pode não lhe parecer tão
comparação com outro lugar. Quando, um dia, sai do seu domicílio e vê uma outra
cidade, ao retornar, vai olhar o espaço de sua residência numa outra proporção,
sua vez, não é um corpo unicamente físico, mas um corpo virtual e fenomenal, que
Pois tal obra não pode separar expressão do que foi expresso, nela há uma
significação que é irradiada por toda a atmosfera, sem entretanto deixar de estar no
diversidade na unidade:
Nesse modo de ver o corpo, ele não vai aparecer como uma coisa no espaço
objetivo, mas como o que Merleau-Ponty denomina, um corpo virtual, que vai
Esse corpo virtual desloca o corpo real a tal ponto que o sujeito não
se sente mais no mundo em que efetivamente está, e que, em lugar
de sentir suas pernas e seus braços verdadeiros, ele sente as
pernas e os braços que precisaria ter para caminhar e para agir no
quarto refletido, ele habita o espetáculo. É agora que o nível
espacial oscila e se estabelece em sua nova posição. Portanto ele é
uma certa posse do mundo por meu corpo, um certo poder de meu
corpo sobre o mundo. (FP,337).
defende que para se chegar a configurar um espaço que seria comum a todos, ou
um corpo virtual cujo “lugar” fenomenal deverá ser definido por sua situação e pela
função que ele deve desempenhar. Em relação à função que o corpo desempenha,
existe uma inerência entre o corpo e mundo no sentido de que o mundo possui o
meu corpo, ou seja, existe uma relação direta entre a constituição do meu corpo e o
mundo que o rodeia, e meu corpo, por sua vez, exerce uma ação direta no mundo.
diversos instantes, nem uma linha que marca momentos um após o outro, mas sim
movimento interno que tem o presente como centro que, por sua vez, interage com
o passado e o futuro.
utiliza a metáfora do jato d’água: a água está em constante movimento, mas o jato
conserva sua forma, desde que cada onda sucessiva se coloca no lugar da
precedente:
mesmo que ter o tempo por inteiro e estar presente a nós mesmos:
CONCLUSÃO
91
contexto, o filósofo revela seu pensamento e o autor realiza sua obra literária.
Invisível não é um vazio, como nas filosofias tradicionais da consciência, e sim uma
fenda, uma dobra que contém uma dimensão reflexiva, da qual emanam as
diferenças do sensível. As essências, por sua vez, não são as essências no sentido
sensível. Dessa forma, as essências não podem ser separadas dos fatos
conhecidos, dos objetos positivos, nem de nosso lado espiritual, o que Merleau-
Sens et non-sens:
implica na idéia que o mundo, em que estou situado, é uma unidade aberta e
92
mundo.
como as nervuras sustentam a folha de seu interior, “do fundo de sua carne”, as
proferido, em seguida.
por sua vez, revela-se na dimensão do visível e invisível, num tempo e espaço que
se manifestam na simultaneidade.
impacto do mundo exterior sobre o corpo de modo geral, pois cada corpo tem,
mundo que o rodeia. Isso nos mostra que não há percepção “em geral” – uma
noção que poderia tornar-se uma abstração universal - mas sim, só há percepção
vivente no mundo. E o corpo não é um objeto entre muitos outros no mundo, mas o
lugar no mundo onde se encontra a consciência e é devido a ele que o mundo tem
do ser.
Em relação àquele que cria por meio da arte, o corpo é, para Merleau-Ponty, o
motor que vai revelar essa experiência que concentra o invisível no visível. Não
podemos suprimir as coisas nem as pessoas porque elas gravitam à nossa volta e
corpo enquanto vivido e vivo, que se distingue do corpo objetivo e do termo corpo-
próprio usado na fase das primeiras obras. Tal corpo enquanto carne é aquele que
espírito, mas como uma forma de interioridade sensível que tem seu equivalente
na velha palavra “elemento”, os elementos da natureza: água, ar, terra, fogo. Isso é:
solidário. Tal substância não tem nome em nenhuma filosofia. Merleau-Ponty quer dizer
que carne não é só uma noção nova, estranha à história da filosofia, mas quer mostrar que
é uma noção última pensável por si mesma. Será a partir desse conceito que Merleau-
a maneira pela qual o mundo pôde se tornar tangível ao sujeito. Para isso, ele
entrelaçados dois a dois segundo uma relação cruzada, anula a idéia de principium
e sustenta a idéia de reversibilidade. Esse termo assegura que quatro termos estão
corpo, e o mundo que aparece para esse corpo. Esse recurso é usado por Merleau-
em profundidade da relação com o outro. Saint Aubert ressalta que, sob um olhar
clássico, essas figuras têm uma posição ambígua, a meio caminho do sensível e
95
interrogação. Ele vai afirmar que se a filosofia tem a intenção de pôr-se à escuta do
pois uma complementa a outra. A experiência do mundo será expressa junto com a
da literatura e da filosofia não pode mais ser separada. Quando se trata de falar da
expressiva.
latente. Tal metafísica, por sua vez, não pretende explicar o mundo, mas é uma
contato com o mundo que precede todo pensamento sobre o mundo. De agora em
diante, o que há de metafísico no homem não pode mais ser trazido aquém ou além
de seu ser empirico — à Dieu, à Ia Conscience —, mas é no seu próprio ser, na sua
vice-versa. Segundo Merleau-Ponty foi a partir do fim do século XIX, que tais
universos se aproximaram, pois tudo se passou por longo tempo anterior a este
objeto.
em Proust.
fazê-las existir à nossa frente como coisas. Não é papel de Stendhal discorrer sobre
sua intuição do tempo, às vezes, numa filosofia relativa e cética; às vezes, nas
metafísica clássica pode passar por uma especialidade em que a literatura não
que ela era persuadida de poder fazer compreender o mundo e a vida humana por
uma reflexão sobre a vida, sem ter lugar uma explicitação sobre ela.
pintor, lê o escritor. Dessa forma, não suprime o universal para colocar o particular,
mas busca o que ele chama de universalidade oblíqua, que ele compara com uma
pintura; como aquela em que uma cor representa um universo, uma frase musical
irredutíveis um ao outro. Isso significa que, o visível está além e aquém do homem,
e aberto.
compara com um corte vertical feito por um cirurgião num corpo humano, o que
se entrelaçam: o olho que toca a superfície; um pensar que tateia idéias para
encontrar uma direção do pensamento; uma idéia sensível que nos possui mais do
que a possuímos, pois ela “entra em nós” e nos domina. Esse entrelaçar de
sentidos e pensamento remete ao artista que, como o pintor, sente-se visto pelas
coisas quando as mostra na sua pintura, ou como o escritor escuta enquanto fala
em seu texto.
enxergar todas as partes; no entanto, sabemos que elas existem, constituindo tal
objeto.
remete ao conceito husserliano de “horizonte das coisas”. Para ele, tal horizonte:
que as situa além do tempo e do espaço, e sim atuantes num campo de presença
“carrega por dentro”, do fundo de sua carne: como a nervura da folha, as idéias são
definidas como sensíveis, mantendo, não menos que as idéias da inteligência uma
A aparência sensível da arte – seja ela a literatura por meio da palavra que
se organiza para gerar a idéia literária, seja a música que, articulada pelos modos
de exibição do som, gera a idéia musical, ou a pintura que, pelas formas, cores e
Merleau-Ponty, a ligação da carne com a idéia. No que diz respeito à arte literária,
Merleau-Ponty apresenta Proust como o autor que revelou de modo mais eficaz
caminho de Swann:
101
Swann:
como por “uma coesão sem conceito”. A partir desse exemplo, ele faz uma relação
com o corpo e o mundo e se interroga: o meu corpo é coisa ou idéia? O que está
em evidência aqui é uma analogia com a idéia e o sensível. E o corpo vai aparecer,
então, nem como idéia nem como coisa, mas como estando entre essas
dimensões.
pequena frase musical, são tão consistentes quanto um pensamento positivo. E que
as idéias não são possuídas por nós, mas nos possuem. Esses turbilhões abertos
no mundo sonoro soldam-se num só, onde as idéias se ajustam umas às outras.
encontra sua articulação bruta e selvagem. E a memória emerge como carne que
literatura na modernidade.
que as determinações da filosofia clássica tomaram outro sentido: não mais o Ser
como "ser posto" pela consciência como detentora do poder absoluto, como poder
total para constituir o real enquanto conceito, idéia ou significação. Por meio da
“filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas
no qual o “Ser veio a ser” por meio da criação, pela manifestação da obra de arte. O
que separa o sujeito que conhece do objeto que é conhecido pelo sujeito. A
da sua transmissão pelo ato expressivo, que se define num estilo. Ficou evidente a
104
relação do corpo com a obra de arte, pois o corpo em si é um objeto que contém o
A obra literária revela-se, então, como o Ser Bruto e Espírito Selvagem, Carne
e Quiasma, pois estão juntos, entrelaçados, como polpa carnal do mundo, carne de
invisível, que permitem o trabalho de criação, tanto a obra de arte quanto a filosofia.
privilegiar a existência como “ser no mundo” entre outros seres que, também, fazem
considera válido nesse momento filosófico é aquele que se revela em situação, que
manifestação de um novo paradigma, que amplia a nossa razão, para que ela
aparece como aquele que tem o corpo "como sentinela em vigília às portas do
sensível", que só foi possível pela interrogação filosófica por meio da arte.
105
filosofia.
levando-nos a reconhecer que, para sair de si, o narrador entra no mundo, ao mesmo
tempo que, ao entrar no mundo, ele volta a si mesmo. A arte transforma-se em tempo,
filosofia que se une às artes, numa parceria que lhe outorga o título de filosofia do
vivo e vivido, ponto de encontro entre o sensível e o inteligível. A natureza que está
no interior vem à luz; a criação manifesta-se como essência, assim como o invisível
se manifesta no visível. Para esse feito, foi preciso uma falta, uma lacuna, que
106
impensado”.
arte-filosofia, é uma forma de ver o mundo por dentro sem abandonar sua inerência
uma linguagem peculiar que reflete a leitura do mundo, para que o sentido
filosofia são uma forma de reaprender a ver o mundo e porque a história narrada e
formado por estradas paralelas que levam, muitas vezes, ao mesmo ponto – e o
manifesta por meio dele e com ele; o inteligível só existe em função do sensível, e
detentor de um corpo que lhe é singular. E mais: que não é possível desconsiderar
ele está inserido. Essa reflexão leva-nos a concluir que o filósofo contribui para uma
ou do autoritarismo.
Merleau-Ponty quer dizer quando afirma que o “mundo não é aquilo que eu penso
constante transformação”.
108
APÊNDICE
1. O autor e a obra:
Marcel Proust que nasceu em Paris, no final do século XIX pertenceu a uma
família da aristocracia francesa, seu pai era um médico muito bem relacionado com
a alta sociedade e sua mãe vinha de família judia, rica e culta. Na infância teve
saúde precária que limitava sua vida, devido às constantes crises com problemas
e a reflexão sobre a arte como a saída para suas adversidades, o meio de conferir
como a biografia de Marcel Proust, mas como ressalta Merleau-Ponty toda vivência
Gonçalves (2004) apresenta Roland Barthes com sua obra Proust et les
Marcel e o narrador que se utiliza de elementos da vida do autor. Ele alerta que,
não se pretende fazer da obra Em busca do tempo perdido uma biografia de Marcel
Proust, mas também não se pode negar uma homologia entre os dois discursos,
memória criadora de Marcel, cujo objetivo de sua vida é ser autor de uma obra
literária. Esse objetivo é considerado, é a única saída para sua existência, o que lhe
daria sentido.
se uma espécie de tratado sobre a arte, questões sobre a criação literária, natureza
da literatura, relação entre arte e realidade e sobre a recepção. Tais atribuições dão
moderna.
geral de idéias na Europa e que surge com nomes como Dostoievski, Tolstoi e
vertente, Marcel Proust, vai ir além da prospecção psicológica, revelando uma outra
qual há uma distância estética: “O narrador ergue uma cortina: o leitor deve
seus mais diversos setores e que vai culminar, no final do romance, num
Proust nos remete ao contexto no qual a obra está inserida. Entre outros expoentes
literários que podem ilustrar essa nova maneira de olhar, estão James Joyce, na
uma nova maneira de pensar e narrar o mundo; uma maneira que rompe com o
estilo clássico tradicional. Como afirma Fábio de Souza Andrade, citando Donaldo
Schüler:
introduzir a memória como atividade que apreende o fluxo vital e, assim, transgride
os limites do encadeamento linear dos acontecimentos. Com isso, ele elabora uma
outra ordem narrativa, baseada numa harmonia inabitual, formada por um conjunto
113
sentidos. Isso resulta numa narrativa que introduz horizontes na literatura que
Em Proust, a memória é acionada pela voz do narrador; essa voz, por sua
vez, é um produto das sensações e tem o corpo como força motriz. Tais sensações,
por sua vez, estão mais ligadas ao corpo e os sentidos do que ao intelecto, ou seja,
presente na obra proustiana, vale a pena lembrar a definição dada ao termo por
como uma forma de hábito, uma espécie de memória motora e ativa, que tem um
caráter utilitário, como por exemplo: falar, andar de bicicleta, dirigir um automóvel,
que se delineiam por via dos sentidos: “Ela é involuntária e tem um caráter não
abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer
memória ligada ao corpo por meio dos sentidos; são as sensações que são
mas se encontra adormecida em nós e que, ao menor toque no corpo, podem ser
despertadas, subir à consciência. Um objeto encontrado por acaso pode ser motivo
objetos simples, do cotidiano, sendo que tal encontro não é o resultado de uma
se, portanto, objeto das circunstâncias para seguir esse tipo de memória. Existem,
recorda como nas lendas celtas onde os entes queridos desaparecidos fazem o
Por um lado, podemos entender que a busca do passado pode estar ligada à
angústia do que passou, à inexorabilidade do tempo. Para Proust, será uma tarefa
afirma:
115
Quando o paladar é despertado pelo toque do mundo exterior como por exemplo o
sabor do bolo com o chá, há uma reação do o corpo; que coincide com o prazer que leva
desastres, ilusória sua brevidade). Assim sendo, o sujeito que experimenta o toque do
mortal) tal essência, por sua vez, é concomitante e está acoplada à materialidade da vida,
essência do mundo é ir ao encontro do que o mundo é para nós, senti-lo no corpo através
dado no corpo que se revelou através do sentido do paladar: o sabor que, por sua
vez, acionou um movimento entre o ser e o mundo como se fosse um ímã que atrai
os objetos para si. O que vibra no sujeito que experimenta o sabor é a recordação
de uma vivência ligada a esse sentido que se desvenda no ser. O toque dado pela
misturam entre os sentidos (a recordação visual que, ligada a esse sabor) que
chamam por recordações não muito claras (mal e mal percebo, não posso distinguir
a forma), mas que possuem como único norte para desvendar a imagem que
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem,
a recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até
chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado
confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se
confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso
distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que
me traduza o testemunho de seu contemporâneo, de seu
inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me indique de que
circunstância particular, de que época do passado é que se trata.
(CS, 50).
et 1960 -1961)
podem ser ilustradas por essa nova maneira de olhar e descrever o mundo, que
será uma das marcas da estética literária moderna e pós-moderna. Essa maneira
empenha-se em ser impessoal: o que importa são os fatos, a narrativa não deve
simbolista, mas sim de buscar uma outra dimensão, que se revela nessa nova
revelar seu caráter não tão claro e imediato, em contraponto ao que descreviam as
uma idéia que, sem entretanto contrariar o sensível, revela o seu duplo e sua
profundidade.
120
quais ele captura elementos do passado, que vêm à tona ao ser acionados pela
memória. Por meio desse mecanismo, o tempo presente dá uma nova configuração
passado e, portanto compreender por um outro prisma, o que outrora foi vivenciado.
da tripartição passado, presente e futuro que, por sua vez, está ligada a uma
será inteligível, não por acumulação e sucessão desses momentos isolados, mas
pela relação na qual se forma a unidade dispersa dos êxtases. Como se evidencia
em O Tempo redescoberto.
excluem, mas se diferenciam: o passado não desaparece, ele adquire uma nova
posição, deixa de ser presença, para ser herança. No ato da recordação de um fato
traços deixados sobre um objeto (escritos, desenhos, sinais) são fatos presentes
Fica evidente que o tempo de alguma forma atua sobre a vida, o corpo revela
também a vida que esse corpo leva, ou seja, o que o sujeito faz do seu corpo.
122
saudáveis ou vícios.
indiretamente, está presente na vida do sujeito. Por outro lado, o passado vivido
sentido vivido outrora, agora toma outro sentido, outro contexto, outra dimensão,
com a possibilidade de resgatar valores outrora perdidos. Pois o ser agora pode
remeter outro olhar para uma vivência do passado e dar-lhe um outro sentido
existencial. Esse outro olhar é possível através da arte, que em seu potencial
123
Esse romance, objeto de meu estudo, está aqui em minha frente, no meu
presente, mas traz consigo marcas de um passado, a obra de Marcel Proust. Está
nele o nome do autor, o título que foi por ele escolhido, as idéias que hoje podem
leitura dessa obra torna presente, através de mim, as idéias que um dia foram
passado.
verdade posta em obra”, entretanto, a imaginação artística recebe o legado das coisas,
E acrescenta que, entre arte e filosofia, existe uma extraordinária afinidade, como
implicitamente toda vez que cria um discurso. A ausência de mediação explícita se deve
ao fato de que a matriz da expressão artística é a emoção, isso é: uma outra organização
o filósofo tenta atingir com o trabalho do pensamento: "A realidade não existe para nós
teatral da atriz Berma para o personagem Fedra, de Racine. Nessa interpretação para
o teatro, assim como para a música de Vinteuil, acontece a metamorfose entre a arte
isso é, como uma interioridade sensível que não mais se divide em substância e
5. É na memória ...
essa: em dado momento, o narrador não relembra ainda determinado fato, que virá
a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vive. Daí o
abortado; mas, por outro lado, tem consciência de que a realização literária é a
única saída para revelar e fixar a grande verdade que deu sentido a sua vida: a
arte. A vida que o impediu de escrever, passa a ser a matéria de seu livro, sua vida
passada. Entretanto, muito além da descrição dos fatos, o livro interpreta tudo que
ansiedades, um olhar, um objeto, enfim tudo que viveu, observou e sentiu vai
tornar-se matéria para sua arte literária. O resultado é a grande obra da literatura
analiticamente, os seus eus do passado e, para tal, passa pelas diversas fases da
que possibilitará o resgate do tempo escoado pelos anos vividos. Por meio dessas
o ser se coincidem:
Proust, a literatura fala da literatura, ou seja, a arte fala da arte, que se apresenta
testemunho do eterno:
tempo que engendra o que foi vivenciado pelo sujeito, e por meio dele o sujeito elabora
suas vivências. A duração psicológica não é uma mera alteração de estados, mas a
confere realidade maior ao devir. Ora, o devir é aparece como uma pluralidade de
descontínuos.
temporal; porque sendo o tempo o grande personagem, será ele que vai dar
129
consistência e expressão ao ser e ao mundo em que ele vive. Ao falar dos elementos
impressões, para entender nelas a substância de que são portadoras, tanto em termos de
romance o fato de que elas são recolhidas do que o fato de que elas são narradas, e
recolhimento a si: “o narrador declara a certa altura que se mantém longe dos homens
para estar mais próximo deles do que eles estão de si próprios”. (SILVA, p.159).
Albertine, o narrador pôde entender quem era a verdadeira Albertine. Foi necessário o
percepção do sujeito frente à realidade vai implicar num recorte dessa realidade a
partir das expectativas que a consciência tem de agir sobre ela. Desse recorte da
passagem do tempo surge a memória, que vai trazer à tona o que foi outrora
vivenciado. Entretanto, a memória em Proust vai aparecer não apenas como forma de
percepção. È possível haver uma modificação dos valores que qualificam essas
130
memória, como as mais reais do que as que foram outrora vivenciadas, pois enquanto
foram simplesmente vividas, escuras, quase cegas, o sujeito não tinha consciência do
decurso do tempo ganham transparência. É nesse ponto que emerge a obra de arte,
Nessa interação entre os tempos e corpo por meio dos sentidos, torna-se
possível para o escritor concretizar sua obra, realizando o ideal de ser escritor por
olhar dúbio, o calor de um raio de sol, o barulho do vento nas árvores, o colorido
totalidade.
questão: como será possível reter a essência das coisas reveladas pela
Até um gozo mais profundo, como poderia ter sido o meu amando
Albertine, só se deixava, de fato, perceber inversamente, pela
angústia da ausência, pois a certeza de sua vinda, como no dia em
que voltou do Trocadéro apenas me comunicava um vago tédio, ao
passo que me exaltava cada vez mais, à proporção que analisava
mais profundamente o ruído da colher ou o sabor da infusão, a
alegria crescente de haver transportado para o meu o quarto de tia
Leonie, e, com este, todo Combray e seus dois lados. Por isso, essa
contemplação da essência das coisas, estava agora bem resolvido
a retê-la, a fixá-la, mas como? Por que meios? (grifei) Sem dúvida,
momento em que a goma do guardanapo me restituíra Balbec e me
acariciara de relance a imaginação, não somente com a do mar tal
como se mostrara naquela manhã, mas com o cheiro do quarto, a
velocidade do vento, a vontade de almoçar, a hesitação entre
diversas excursões, tudo isso preso à sensação de alto mar, como
rodas de barcas em rapidez vertiginosa; sem dúvida quando a
irregularidade das pedras prolongara em todos os sentidos e
dimensões, com todas as sensações lá experimentadas, as
imagens secas e nuas que me restavam de Veneza e de São
Marcos unindo a praça à igreja, o embarcadouro à praça, o canal ao
embarcadouro, e a tudo quanto os olhos alcançam do mundo dos
desejos, só percebido realmente pelo espírito, eu me deixei tentar
se não devido à estação, por um passeio nas águas para mim
sobretudo primaveris de Veneza, ao menos por uma ida a Balbec
(TR,156).
A arte confirma-se como o meio de fixação de tais momentos. Por meio dela,
como efêmero. Tal movimento conduzirá a outro plano, que é a dimensão da arte
Compreende-se que tempo e vida interagem para elaborar a obra de arte. A vida
habita o tempo como meio de estancá-lo; estancar o tempo é realizar a vida. A arte toma
outra dimensão além da vida, que transcende o cotidiano, a materialidade. E a arte exige
uma ação do tempo sobre a vida no sentido de realizar o esquecimento; assim uma nova
etapa emergirá numa outra dimensão temporal que é existencial e não respeita a cronologia
dos fatos, mas se rege pelo acaso, aliado à afetividade em interação com os sentidos. Esse
sim é o terreno fértil, onde é possível brotar a obra de arte. Marcel Proust, com sua obra Em
busca do tempo perdido, atingiu esse ideal, como concorda Aguinaldo José Gonçalves,
6.Proust e os signos
obra de Proust. Para ele, a Busca está voltada para o futuro e não para o passado,
pois sempre alguma coisa faz lembrar ou faz imaginar outra. Mais que o sentido
fato de intervir como o meio de um aprendizado que a ultrapassa, tanto por seus
objetivos quanto por seus princípios. A arte vai proporcionar a verdadeira unidade:
obra de arte. E os signos da arte em Proust são os mais relevantes. São eles que
humanidade passou.
aprendizado dos mais diversos signos que constituem matéria de diversos mundos,
desses signos.
Proust deixa claro que não são as sensações ou reminiscências por si mesmas que
elaboram a obra de arte, mas sim o modo como elas são captadas e processadas
ou promovem o estatuto de obra de arte ou não. O que importa não é o objeto que
Entretanto, os signos que ele apresenta como mais relevantes são os signos da
137
arte: Vinteuil (na música do piano e do violino), Berma (no teatro, serve-se de sua
escritor.
O tempo da arte é um outro tempo que se elabora no âmago da vida, uma outra
a dos outros, por meio do estilo peculiar de quem a produz. É uma forma de
transcendente, o eterno.
involuntária – revelou-se como um lugar em que não existe a ruptura entre sujeito e
realidade pela arte. O que foi vivido num determinado tempo, na infância, por
exemplo, e que teve um contexto difícil e doloroso, num outro momento, pode ser
percebido com um novo olhar, mostrando que a dor ou a dificuldade sentida não
são mais significativas e foram superadas, podendo até ser consideradas como
sujeito na totalidade do tempo, num outro tempo ou fora do tempo. Isso leva o
olhar para o que foi vivido. Ele precisa reter esse momento sublime, pois, apesar de
belo e completo, está consciente de que é efêmero, fugidio. Como reter a essência
dos sentidos? Eis que se apresenta o grande protagonista: a obra de arte. Por meio
Constata-se, também, que a obra literária escolhida para este estudo “funda
escritor que “mais longe foi em fixar as relações entre o visível e o invisível, na
descrição de uma idéia que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e
um arquétipo para todo ser humano, que busca encontrar o sentido de seu lugar no
140
mundo, que, por sua vez, não depende do lugar, mas da maneira que esse lugar é
a beleza do que está ao nosso redor. Entretanto, ele não deixa de falar da
vida no qual o ser humano está mergulhado, Marcel aponta-nos uma saída triunfal:
aspirações:
Essa leitura pode, também, ser um exercício de prazer, mas um prazer que
nos esforço, perseverança, suor e muito trabalho, mas, após essa fase, que é o
transcendência. Para o leitor comum, a obra é uma lente de aumento, que espelha
que o universo a que o autor se refere é mesmo de que fala o escritor russo L. N.
Tolstoi: “Quando falo de minha aldeia, falo do mundo todo”, ou seja, da relação
se elaborou como signos que, por sua vez, reportam-se a outros signos, em
apresenta – e da literatura – sob a óptica de obra de Marcel Proust. Uma busca que
exige esforço, mas que também que, também, leva-nos ao deleite. No processo
dessa tarefa, inserimo-nos no fluxo da vida, com toda sua potência de dinaminismo
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Études Phénoménologiques. n.31-32 . Mauro Carbone: Persone n’été plus loin que
Proust dans le miroir de la Recherche.p.35
SARTRE, J.P. Que é literatura. Trad. Carlos F. Moisés. São Paulo: Ática, 1989.