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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

No
e n t re l açame n t o
dos sentidos:
a n a r r a t i v a d e Ma r c e l
Proust no universo filosófico
de
Me r l e a u - P o n t y

ELIZABETH ARANHA GUIMARÃES UBIALI


R I B E I R Ã O P R E T O – SP
2006
As grandes banhistas I – 1898 -1905
Paul Cézanne
ELIZABETH ARANHA NO ENTRELAÇAMENTO DOS SENTIDOS: A LITERATURA DOUTO
GUIMARÃES UBIALI NO UNIVERSO FILOSÓFICO DE MERLEAU-PONTY RADO
FoUSP
2006
UNI VERSI DADE DE SÃO PAULO
FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSI COLOGI A E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSI COLOGI A

No entrelaçamento dos sentidos:


a literatura no univ erso filosófico de
Merleau-Ponty

Elizabeth Aranha Guimarães Ubiali

Tes e apres entada à Fac uldade de Filos ofia,


Ciênc ias e Letras de Ribeirão Preto da USP, c omo
parte das ex igênc ias para a obtenç ão do título de
Doutor em Ciênc ias .

Área de c onc entraç ão: Ps ic ologia


Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Furlan

RI BEI RÃO PRET O – SP


2006
FOLHA DE APROVAÇÃO

Elizabeth Aranha Guimarães Ubiali


No entrelaçamento dos sentidos: a literatura no universo filosófico de Merleau-
Ponty

Tese apresentada à Faculdade de


Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da USP, como parte das exigências
para a obtenção do título de Doutor em
Ciências.

Área de concentração: Psicologia

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição: ___________________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição: ___________________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição: ___________________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição: ___________________________ Assinatura: _____________________

Prof. Dr. ____________________________________________________________

Instituição: ___________________________ Assinatura: _____________________


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À minha mãe,
Jenny de Souza Aranha Guimarães,
por sua coragem frente às adversidades da vida,
e, sobretudo, pelo seu amor.
13

AGRADECIMENTOS

Com gratidão, expresso meus agradecimentos a todos que contribuíram, direta ou


indiretamente, para a realização desta pesquisa.

Ao prof. Dr. Reinaldo Furlan, pela oportunidade de realização e orientação


desse trabalho, unindo a filosofia à arte.

À Profa Dra. Maria Clara Cescato, por sua presença amiga e pelo entusiasmo
contagiante do seu conhecimento filosófico.

Ao Prof. Dr. Aguinaldo José Gonçalves, por sua presença em minha banca e
pelos preciosos conhecimentos literários.

Ao Prof. Dr. Sidney Barbosa e ao Prof. Dr. José de Carvalho Sombra, pelas
valiosas orientações para o exame de qualificação.

Ao Prof. Dr. Miguel Bairrão, pela contribuição de sua disciplina no programa


de pós-graduação.

Às Profas . Dras Angela Alles Bello e Marina Massimi, pela importante


disciplina no curso no programa de pós-graduação.

Ao Prof. Dr Genaro de Alvarenga Fonseca e à Profa Dra Vânia de Fátima


Martino, pelo apoio e incentivo na realização desta pesquisa.

À escritora e jornalista Jussara de Queiroz, por sua presença amiga e pelo


apoio nas dificuldades com a Língua Portuguesa.
14

Ao Prof. Dr. Amilton Monteiro de Oliveira, pela amizade e pelo apoio nas
dificuldades em conciliar as atividades profissionais com a pesquisa.

À amiga e colega Annie Simões Rozestraten Furlan, pelo apoio, amizade e


presença nesta caminhada.

Ao colega Fernando de Almeida Silveira, pelo seu entusiasmo em


proporcionar valorosos momentos de estudo da filosofia de Merleau-Ponty.

Ao psicólogo Dr. João Luiz Pastorelli, por orientar-me nos obscuros


caminhos da psique.

À fitoterapeuta Cleonice Sampaio Funes, por sua sabedoria em minimizar as


dificuldades da saúde do corpo e da alma.

À terapeuta corporal e amiga Luzia Borges Gonçalves, pelo seu valioso


trabalho e pelo carinho com que me acolheu nas dificuldades.

Ao meu marido Cesar Augusto Morgado Ubiali, pelo apoio e incentivo na


realização dos meus ideais.

À minha irmã Eliana Aranha Guimarães, pelo apoio e amizade.

Aos funcionários da seção de Pós-Graduação Faculdade de Filosofia,


Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP pela eficiência na resolução das
questões práticas e burocráticas e pelo tratamento cordial que sempre me
dedicaram.

Agradeço, sobretudo, a Deus, que nos mergulha numa dimensão existencial


plural e infinita e nos aconchega, propiciando-nos a possibilidade de criarmos, por
meio da arte e do pensamento filosófico.
15

Conta-se que o poeta chinês Han Fook, em sua juventude, era animado por um
maravilhoso desejo de tudo aprender e de se aperfeiçoar em tudo que dissesse
respeito à arte da poesia. (...)

Sentiu que em meio a todas as festas e alegrias desta Terra, nunca seu coração
poderia ficar tranqüilo e sereno, que ele mesmo estaria sempre no meio da
vida como solitário e de certo modo como um espectador e um estranho, e
sentiu que, entre tantas outras, apenas sua alma fora feita de tal maneira que
precisava sentir ao mesmo tempo toda a beleza da Terra e a secreta nostalgia
do desconhecido. Com isso ficou triste e ansiou por essas coisas, e terminou
pensando que, para ele, uma verdadeira felicidade e uma profunda satisfação só
poderia existir, se algum dia lhe acontecesse refletir o mundo tão
perfeitamente na poesia, que, nessa imagem, ele possuísse o próprio mundo,
purificado e eternizado.

(...)E ficou e aprendeu a tocar cítara e depois a flauta, e mais tarde sobre a
instrução do mestre começou a fazer poesia, e aprendeu lentamente aquela arte
secreta, que aparentemente só fala de coisas simples e despretensiosas, mas
com o fim de resolver a alma dos que a escutam como o vento no espelho da
água. Descreveu a chegada do sol, como ele hesita na orla da montanha, e o
silencioso deslizar dos peixes, quando fogem como sombras sob a água, ou o
balanço de um salgueiro novo no vento da primavera, e quando a gente ouve
aquilo, já não era apenas o sol e o jogo dos peixes e o murmúrio do salgueiro,
mas parecia que por um instante, o céu e o mundo de cada vez, combinavam-
se numa música perfeita, e cada um ao escutar pensava ao mesmo tempo; com
alegria ou dor, naquilo que amava ou odiava: o garoto na brincadeira; o jovem,
na amada, o velho na morte.

(...) Han Fook não sabia quanto tempo passara com o mestre, na nascente do
grande rio; com freqüência parecia-lhe ter chegado ontem à tarde naquele vale
e ter sido recebido pela música do velho; com freqüência parecia-lhe também
terem caído atrás de si todas as gerações humanas e todos os tempos se terem
tornados ilusórios.

(...) À tarde porém a Festa das Lâmpadas foi comemorada no rio e o poeta Han
Fook parou do outro lado, na margem escura, apoiado sobre o tronco de uma
velha árvore e quando começou a tocar seu pequeno alaúde, as mulheres
suspiravam e encantadas e angustiadas espiaram a noite, e os jovens rapazes
chamaram pelo tocador de alaúde, que não puderam encontrar em nenhuma
parte, e gritaram alto que nunca nenhum deles ouvira tais sons de um alaúde.
Han Fook porém sorria. Mirou a água, onde nadava a imagem das mil
lâmpadas; e como já não sabia mais distinguir a imagem da realidade, não
encontrou em sua alma nenhuma diferença entre essa festa e aquela primeira,
quando ainda jovem ele ali parou e escutou a palavra do mestre desconhecido.

Hermann Hesse, O Poeta


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RESUM O
UBIALI, E. A. G. No entrelaçamento dos sentidos: a literatura no universo
filosófico de Merleau-Ponty. 2006. f.137. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto, 2006.

Este trabalho pretende investigar o pensamento de Merleau-Ponty no que se refere


às questões da filosofia relacionadas com o fazer artístico, em especial, a literatura.
As questões filosóficas que Merleau-Ponty formula com relação à arte literária têm
como precedente suas investigações sobre a linguagem. Será ressaltado o modo
como o escritor lida com a palavra, que, por sua vez, será transmitida através do
estilo do ato expressivo, concretizando então o fenômeno literário. Pretende-se, no
decurso da pesquisa, ir ao encontro dos universos literários relativos ao gênero
romance apontados pelo filósofo, buscando compreender como a expressão
artística, as questões da expressão e do estilo encontram-se face ao desafio da
significação literária. Seguindo essa vertente, vamos nos aproximar do universo da
obra de Marcel Proust, que pertence à tradição do romance subjetivo e psicológico,
com a obra Em Busca do Tempo Perdido. A investigação fenomenológica e
ontológica de Merleau-Ponty e a obra literária de Marcel Proust têm em comum o
que podemos designar como “elaboração do sentido do mundo”, centrada nas
experiências do “corpo próprio” com as coisas e com os outros, atravessadas de
temporalidade. Recorrendo aos princípios fenomenológicos e ontológicos
desenvolvidos por Merleau-Ponty, que vê no corpo uma fonte de conhecimento e
uma forma de reinterpretar o cogito cartesiano, a análise vai buscar compreender,
tomando como exemplo a narrativa proustiana, como o corpo apreende sentidos os
as retoma por meio da memória involuntária. Nessa perspectiva, emergem as
dimensões temporal e espacial na formação do sentido do mundo: como diz Proust,
estamos “pendurados no passado”, um passado guardado na memória de nosso
corpo, um passado que pode ser evocado por sua abertura ao presente. O desejo
de escrever, por exemplo, é evocado pelas próprias coisas. Como na literatura de
Proust, Merleau-Ponty frisa que podemos perceber o modo como personagens e
mundo – e o próprio autor – estão sempre implicados uns nos outros, de forma que
o sentido aparece sempre como lateral, e esse é o significado da transcendência:
eu me percebo nas coisas e no outro – o sentido do vivido está sempre no reenvio
de um sentido a outro. Para Merleau-Ponty, a percepção promove um “campo de
presença” que se estende em duas dimensões: aqui-acolá e passado-presente-
futuro, nas quais interagem as decifrações dos signos que aparecem no romance,
por meio dos sentidos – objetos privilegiados da narrativa proustiana.

Palavras-chave: filosofia; literatura, fenomenologia.


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ABSTRACT

UBIALI, E. A. G. In the intertwining of the senses: the literature in the


philosophical universe of Merleau-Ponty. 2006. f.137 Thesis (Doctoral) -
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, Ribeirão Preto,
2006.

This work surveys some of Merleau-Ponty’s theses on the artistic doing, with special
regard to literature. The philosophical interrogations which Merleau-Ponty poses
regarding literary art have as background his investigations on language. The main
focus is on the ways in which the writer deals with the word, which is conveyed by
means of his style in the expressive act, and thus made real in the literary
phenomenon. The aim is, in the course of this study, to go through the literary
universes involved in roman gender as addressed by Merleau-Ponty, in order to
understand how artistic expression as well as questions involved in expression and
style have their place in the challenge of creating literary meaning. In order to do so,
we approach the universe of Marcel Proust’s work – a work situated in the tradition
of subjective and psychological romance – through his work In Search of Lost Time.
Merleau-Ponty’s phenomenological and ontological investigation and Marcel
Proust’s literary work have in common what we can designate as an “elaboration of
the sense of the world”, built on experiences of one’s “own body” with things and
people, which are pervaded by temporality. Making use of some of the
phenomenological and ontological principles developed by Merleau-Ponty, who
sees the body a source of knowledge and a way to give a new interpretation to
cartesian Cogito, this analysis aims to understand – taking as an example Proust’s
narrative – how one’s body apprehends meanings and recollects them through
involuntary memory. In this perspective, the dimensions of time and space emerge
in the formulation of the meaning of the world: as Proust says, we are “hung in the
past”, a past kept in the memory of our body, a past that can be evoked by an
opening to the present. The desire to write, for instance, is called for, or evoked, by
the things themselves. As in Proust’s works, Merleau-Ponty stresses the fact that we
can perceive the ways in which the roman characters and the world – and its own
author – always imply one another, so that sense always emerges as lateral, and
this is the meaning of transcendence: I perceive myself in the things and in the
others – the meaning of what we experience is always in the act of referring one
sense to another. For Merleau-Ponty, perception generates a “field of presence”
which deploys itself in two dimensions: here-there and past-present-future, and in
which acts of deciphering the signs in the roman interact through the senses – the
elected objects of Proustian narrative.

Keywords: philosophy; literature; phenomenology.


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LIST A DE ABREVIAT URAS

FP Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

PM A Prosa do Mundo. Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1974.

VI O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1971.

NC Notes de cours au Collége de France (1958-1959 et 1960-1961).


Preface de Claude Lefort. Text établi para Stéphanie Mésasé.
Paris:Gallimard, 1996.

SNS Sens et non-sens. Paris: Gallimard, 1996.

S Signes. Paris: Gallimard, 1960

OE L´Oeil et l´Esprit, Paris, Gallimard, 1996

SNS Sens et non sens. Paris, Nagel, 1966

FL/LIVS Textos escolhidos / Maurice Merleau-Ponty; seleção de textos de


Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

CS O caminho de Swann. Trad. Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2001.

SRF À sombra das raparigas em flor. Trad. Mário Quintana. São Paulo:
Globo, 1999.

CG O caminho de Guermantes. Trad. Mário Quintana. 5. São Paulo:


Globo, 2000.

SG Sodoma e Gomorra. Trad. Mário Quintana. São Paulo: Globo, 2001.

P A prisioneira. Trad. Manuel Bandeira e Lourdes Souza de Alencar.


São Paulo: Globo, 2002.

F A fugitiva. Trad. Carlos Drummond de Andrade. 4. ed. Porto Alegre:


Globo, São Paulo: 2003.

TR O tempo redescoberto. Trad. Lúcia Miguel Pereira. São Paulo: Globo,


2001.
19

SUM ÁRIO

1 INTRODUÇÃO 13

2 FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM 19

2.1 O PERCURSO DA HISTÓRIA DA CONSCIÊNCIA E ENCONTRO COM


A FENOMENOLOGIA 20

2.2 A LINGUAGEM E CONCEPÇÕES DA FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA


DO SER FENOMENOLÓGICO 31

3 EXPRESSÃO E ESTILO NA ARTE LITERÁRIA 38

4 PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO, ENTRELAÇAMENTO DOS SENTIDOS 64

5 A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL NO UNIVERSO FENOMENOLÓGICO


DA NARRATIVA PROUSTIANA 69

5 CONCLUSÃO 81

6 APÊNDICE 99

7.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 134


20

APRESENTAÇÃO

Meu interesse pela filosofia esteve sempre direcionado para as questões

filosóficas sobre a arte. A filosofia de Merleau-Ponty foi uma revelação no sentido

de aprofundar esse interesse pela arte por meio da filosofia. Quando Merleau-Ponty

se refere a um Ser Bruto, indiviso – em simultaneidade com todas as dimensões dos

sentidos, aproximamo-nos de um pensamento que interage com a arte; um

pensamento que considera o logos do mundo estético (Espírito Selvagem) como

fonte de conhecimento e o artista "como sentinela em vigília às portas do sensível".

Nesse fluxo do pensamento, coexistem os paradoxos e as ambigüidades, numa

dimensão espaço-temporal plural, que, ao coincidir com a do ser, o transcende,

coexistindo como uma eternidade existencial.

O pensamento desse filósofo contemporâneo revela-nos que a arte tem

muito o que nos ensinar; por meio dela, deparamo-nos com a possibilidade de um

diálogo fecundo com a filosofia, que enriquece e engrandece essas duas áreas e

que permite aos pesquisadores o prazer aliado à conquista do conhecimento.

Assim, a reflexão sobre a filosofia de Merleau-Ponty aliada ao universo

literário possibilitou-me realizar um estudo em torno dessas questões, confirmando

a importância do aprofundamento do conhecimento filosófico-literário como forma

de entender o ser humano e o mundo que o cerca.

Esse projeto, além de me encantar, deu-me a certeza da importância do

pensamento que reflete o fazer artístico e da arte, que nos impele rumo às grandes

conquistas do pensamento.
21

APÊNDICE

Apresento como apêndice as reflexões que elaborava sobre a narrativa

proustiana no decurso da pesquisa. Elas foram fundamentais para compreensão

do universo literário do qual nos reporta Merleau-Ponty; além de uma forma de

motivação para a realização da pesquisa.

Não menos importantes que o texto principal, que se limita à filosofia de

Merleau-Ponty, suas questões nos inicia para a compreensão da complexidade do

universo proustiano, além de sugerir novas investigações no universo filosófico-

literário.
22

INTRODUÇÃO

________________________________
23

1 INTRODUÇÃO

Na filosofia, Merleau-Ponty (1908-61) dedicou grande parte de seus estudos à

reflexão sobre a arte; em particular, sobre a pintura e a literatura. A escolha desse

filósofo como objeto de estudo desta pesquisa concretiza o intento de estabelecer uma

ponte entre filosofia e arte, já que ele examina a obra de vários pintores e escritores,

apresentando vasta contribuição filosófica acerca de questões artísticas, tais como

criação, significação, expressão e estilo. A proposta desse estudo é, então,

compreender, analisar e relacionar o discurso de Merleau-Ponty referente ao fazer

artístico, particularmente, à literatura.

Merleau-Ponty destaca que a linguagem não pode ser vista como uma simples

vestimenta do pensamento com o intuito de esclarecê-lo. Segundo ele, a comunicação

na literatura é algo mais complexo e especial do que a simples ligação das

significações lingüísticas e sua correlação com o homem e o mundo, e o que uma

obra literária nos proporciona está menos ligada às idéias que nos são oferecidas do que

por “uma variação sistemática e insólita dos modos de linguagem e do relato ou das

formas existentes.” (PM, 8). Nesse sentido, será ressaltado o modo como o escritor lida

com a palavra, que, por sua vez, será transmitido através do ato expressivo,

concretizando fenômeno literário. E o escritor, em seu especial modo de expressão

que se definirá num estilo, vai aparecer como um novo idioma que emerge da

criação. Tal comunicação através da arte literária implica no que Merleau-Ponty

denomina “ação oblíqua”, que revela como as significações não fazem apenas parte de

um mundo já determinado, mas emergem a partir da linguagem expressiva do escritor,

que por sua vez, será inédita, com meios de expressão singulares ao universo literário do
24

autor. Pois, para esse filósofo, a grande prosa literária só pode ser aquela que capta e

transmite um sentido que até e ntão nunca foi realizado. E, por outro lado, quando o autor

não mais é capaz de “fundar uma universalidade nova e de se comunicar no risco”, é

sinal que a decadência dessa linguagem literária está próxima.

Pretende-se então, no decurso da pesquisa, ir ao encontro dos universos

literários relativos ao gênero romance apontados por Merleau-Ponty. A proposta é

compreender como a expressão artística, as questões da expressão e do estilo

encontram-se face ao desafio da significação literária. Em relação aos universos

literários citados por esse filósofo, serão apontados alguns ícones da literatura

moderna, como Balzac, que é considerado o verdadeiro criador do romance moderno,

com sua obra Comédia Humana, ao lado de Stendhal (1873–1842), primeiro

representante do romance moderno no período da segunda metade do século XIX.

Marcel Proust será considerado por Merleau-Ponty como escritor que mais

longe foi em fixar as relações entre o visível e o invisível, na descrição de uma idéia

que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e sua profundidade

(VI,144).

As pesquisas da fenomenologia de Merleau-Ponty, em parceria com

pesquisas sobre o universo da arte, encontram seu ponto de apoio na ruptura da

filosofia clássica, que separa o sujeito do objeto. A tradição filosófico-científica,

iniciada com Descartes é rompida, libertando-se das dicotomias da realidade como

consciência ou coisa, idéia ou fato, essência ou aparência. E será o homem e,

particularmente, o corpo como fonte de conhecimento e como forma de reinterpretar

o cogito cartesiano o problema central na obra de Merleau-Ponty. Em a

Fenomenologia da Percepção, ele vai evidenciar a necessidade de compreender


25

como o homem é sujeito e objeto, agente e dependente simultaneamente; primeira

e terceira pessoa.

Para entender esse pensamento que se esboça é preciso entender a tradição

cartesiana e husserliana na qual Merleau-Ponty está inserido: o mistério da união

corpo-alma, que se apresenta como uma contradição, uma antinomia entre

princípios, pois vai desafiar dois pontos de vista incompatíveis do ser: o lado interior

ou idealista e o lado exterior ou realista. O desafio dessa nova maneira de olhar

representa a decadência do racionalismo clássico, que precisa ser revisto. Faz-se

necessário reconciliar perspectivas antagônicas, tais como: natureza e idéia,

natureza e consciência, corpo e alma. Vamos encontrar então uma filosofia marcada

pela ambigüidade, pela consideração dos paradoxos, das antinomias. Assim, ao

longo de sua obra, Merleau-Ponty tem a tarefa de interrogar e reger o diferente; a

duplicidade na unidade.

Na primeira fase de sua filosofia, no seu primeiro livro A estrutura do

comportamento (1942) ele realiza uma crítica ao behaviorismo na psicologia. Dando

continuidade a essa crítica é elaborada a obra Fenomenologia da percepção na qual

ele elabora a crítica da psicologia empirista do sensualismo e ao idealismo, e vai em

direção a uma filosofia, que ressalta ao mesmo tempo o ponto de vista do sujeito e

considera que o mundo está presente antes de qualquer reflexão que se possa

realizar dele. Será a partir desse contato ingênuo com o mundo que vai emergir

outro estatuto filosófico, isso é, outra dimensão do sentido das essências, pois para

ele todo problema se resume em definir essências. O que importa agora na

proposta da fenomenologia é “repor as essências na existência buscando

compreender o homem e o mundo a partir de sua faticidade”. (FP,1). A

fenomenologia proposta por Merleau-Ponty não subestima a exatidão das ciências,


26

mas enfatiza a importância de se considerar mundo o “vivido” buscando descrever a

experiência de cada um: “É em nós mesmos que encontramos a unidade da

fenomenologia e seu verdadeiro sentido”. (FP,1).

Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir
de uma visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual
os símbolos da ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo
da ciência é construído sobre o mundo vivido, e se queremos
pensar a própria ciência com rigor, apreciar exatamente seu sentido
e seu alcance, precisamos primeiramente despertar essa
experiência do mundo da qual ela é a expressão segunda. (FP,3).

Dessa maneira, para assimilar o conceito de mundo, precisamos ir além do

“preconceito do mundo objetivo” e atingir a consciência pré-objetiva, considerar o

“mundo em que se vive”, e no qual o corpo desempenha um papel fundamental.

É preciso então considerar as coisas mesmas, esse mundo anterior ao

conhecimento científico, do qual o conhecimento sempre fala. Para ilustrar essa

questão Merleau-Ponty apresenta em Fenomenologia da percepção o exemplo da

geografia em relação à paisagem – antes de chegar os conceitos da geografia nós

conhecemos e vivenciamos a paisagem: rios, campo, florestas, cidades... para

posteriormente compor os conceitos científicos acerca desses elementos.

Assim posto, a verdadeira filosofia ensina a reaprender a ver o mundo. E

esse aprendizado que a filosofia proporciona, Merleau-Ponty coloca no mesmo

patamar de uma narração literária, ou seja, filosofia e literatura vão exercer o

mesmo papel: a verdadeira filosofia é reaprender a ver o mundo, e nesse sentido

uma história narrada pode significar o mundo com tanta “profundidade” quanto um

tratado de filosofia (FP,19).

Então, a filosofia, no olhar de Merleau-Ponty, vai requerer as mesmas

exigências da obra de arte (literatura e pintura) no contexto do pensamento

moderno:
27

Ela é laboriosa como a obra de Balzac, Proust de Valery ou de


Cézanne – pelo mesmo gênero de atenção e admiração, pela
mesma exigência de consciência, pela mesma vontade de
apreender o sentido do mundo ou da história em estado nascente.
Ela se confunde, sob esse aspecto, com o esforço do pensamento
moderno. (FP,20). (Merleau-Ponty,1999:20).

Constata-se então que Merleau-Ponty realizou o projeto de estabelecer uma

relação de complementaridade entre a filosofia e as ciências do homem. Assim, seu

modelo teórico constrói-se a partir da interação constante com outros sistemas

conceituais. Seu diálogo com as ciências humanas é incessante, particularmente,

com a lingüística e a antropologia. Com as ciências biológicas, Merleau-Ponty trava

uma polêmica acirrada, sobretudo com a psicologia biologisante de linha

behaviorista. No diálogo com as artes, ele busca entender a construção do

fenômeno perceptivo e ontológico.

Esse esforço da reflexão merleaupontyana de se aproximar das ciências e

das artes constitui uma inversão no paradigma que inspira o conhecimento

filosófico. Ele afirma em sua obra Signos que a tarefa desse novo paradigma

consiste em ampliar a nossa razão para que ela possa compreender o que em nós

e nos outros precede e excede a razão.


28

PRIMEIRO CAPÍTULO:

FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM
___________________________________________________________________
29

2. FENOMENOLOGIA E LINGUAGEM

As questões sobre linguagem levantadas por Merleau-Ponty em sua

fenomenologia e ontologia vão apresentar uma analogia com o percurso da filosofia

a partir do pensamento de René Descartes (1596-1650) e, posteriormente ampliado

por Immanuel Kant (1724-1804). Mas será com Edmund Husserl que Merleau-

Ponty encontrará a abertura para concretização de sua fenomenologia e a ontologia

do fenômeno.

2.1 O PERCURSO DA HISTÓRIA DA CONSCIÊNCIA E ENCONTRO COM


A FENOMENOLOGIA

Descartes (1596-1650) ao apresentar como tarefa primeira de sua reflexão

filosófica a busca de uma verdade capaz de resistir a toda dúvida inaugura a longa

tradição da filosofia da consciência que vai desembocar na fenomenologia e

ontologia do fenômeno. Uma tal verdade poderia servir de solo seguro ao

conhecimento, uma vez que estaria garantida contra o ataque do cético e seria

capaz de se contrapor à esterilidade do pensamento escolástico de que Descartes

é herdeiro e que não conseguia responder aos desafios impostos pela nova ciência

de Galileu e de Copérnico. Por isso, Descartes converte a dúvida em método. O

processo da dúvida só é interrompido quando, após despir a consciência das

sucessivas camadas, cada vez menos superficiais, nas quais ela se constitui – a

percepção sensível, o conhecimento judicativo, que combina representações e por

isso pode errar, e a própria certeza matemática fundada em elementos simples e

evidentes, pelo recurso ao artifício do “gênio maligno” –, sua análise nos coloca
30

diante do próprio ser que duvida. Cogito ergo sum: Penso, logo existo. Nessa

máxima, está contido o ponto de partida, o fundamento e a base sobre a qual se

constroem todos os desdobramentos da epistemologia cartesiana. Mas a reflexão

cartesiana termina por desembocar num dualismo da mente e do corpo: o homem é

constituído por duas substâncias: espiritual (res cogitans) e material (res extensa).

A res extensa pode ser vista como objeto das ciências da natureza, que explicam o

funcionamento da máquina do corpo. A res cogitans é o lugar da liberdade, sujeito e

objeto da reflexão filosófica.

Em sua obra Discurso sobre o método (1978), Descartes explicita em detalhe

os passos em direção à busca da verdade:

Se for este discurso tido como demasiado longo para ser lido de
uma só vez, poderá ser dividido em seis partes. Na primeira, achar-
se-ão diferentes considerações relativas às ciências. Na segunda,
as principais regras do método buscado pelo autor. Na terceira,
algumas das regras de moral, que ele tirou desse método. Na
quarta, razões através das quais prova a existência de Deus e da
alma humana, fundamentos estes da sua metafísica. Na quinta, o
conjunto dos assuntos de física que ele estudou e, sobretudo, a
explicação do movimento do coração e de alguns outros óbices
referentes à medicina, tanto quanto à diferença que existe entre a
nossa alma e a dos animais. Finalmente, na última, o que acredita
seja necessário para sobrepujá-lo na pesquisa da natureza, e os
motivos que o induziram a escrever. (DESCARTES, 1978, p. 9).

O aspecto que nos interessa na formulação cartesiana é a prioridade dada

ao sujeito que pensa o objeto, o mundo que o rodeia. Como não há nenhuma

garantia de que o objeto pensado corresponda a uma realidade fora do

pensamento, surge a questão: como sair do próprio pensamento e recuperar o

mundo?

Essa dicotomia corpo-consciência que se instaura a partir do pensamento de

Descartes termina por cindir o homem em duas substâncias: a substância

“pensante” e a substância “extensa”. Essa concepção vai marcar o pensamento


31

filosófico na modernidade, como confirma Merleau-Ponty em A Fenomenologia da

Percepção:

A tradição cartesiana habituou-nos a desprender-nos do objeto: a


atitude reflexiva purifica simultaneamente a noção comum do corpo
e da alma, definindo o corpo como uma soma de partes sem
interior, e a alma como um ser inteiramente presente em si mesmo,
sem distância. Essas definições correlativas estabelecem a clareza
em nós e fora de nós: transparência de um objeto sem dobras,
transparência de um sujeito que é apenas aquilo que pensa ser. O
objeto é o objeto do começo ao fim, e a consciência é a consciência
do começo ao fim. Há dois sentidos e apenas dois sentidos da
palavra existir: existi-se como coisa ou existe-se como consciência.
A experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo
de existência ambíguo. (FP, 268).

A dificuldade de conciliação das duas substâncias demonstra que, para

Descartes, o corpo é uma realidade material: física, fisiológica e sujeita às leis da

natureza. A realidade espiritual, por sua vez, não tem extensão no espaço, e assim

não se submete às leis físicas.

É pelo corpo como matriz da percepção que Merleau-Ponty vai resolver a

questão da dualidade sujeito-objeto apresentada por Descartes. É a natureza do

corpo na filosofia de Merleau-Ponty que é o reflexo da ambigüidade e a pluralidade,

pois é pelo do corpo que reconheceremos uma unidade distinta daquela do objeto

científico.

Entretanto Merleau-Ponty considera que o próprio Descartes, em relação à

questão corporal já considerava a realidade plural do corpo:

Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento


reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que
nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em idéia, e não a
experiência do corpo ou o corpo em realidade. Descartes o sabia
muito bem, já que uma celebre carta a Elizabeth distingue o corpo
tal como ele é concebido pelo uso da vida e do corpo como ele é
concebido pelo entendimento. (FP, 269).

O que o impediu de ir a fundo nessa questão foi a subordinação à questão

metafísica que sustenta que Deus é o autor da nossa vida:


32

Mas em Descartes esse singular saber que temos de nosso corpo


apenas pelo fato de que somos um corpo permanece subordinado
ao conhecimento por idéias porque, atrás do homem tal como de
fato ele é, encontra-se Deus enquanto autor racional de nossa
situação de fato. Apoiado nessa garantia transcendente, Descartes
pode aceitar calmamente nossa condição irracional: não cabe a nós
sustentar a razão e uma vez que a reconhecemos no fundo das
coisas, resta-nos apenas agir e pensar no mundo.
Mas se nossa união com o corpo é substancial, como
poderíamos sentir em nós mesmos uma alma pura e dali ter acesso
a um Espírito absoluto? Antes de colocar essa questão, vejamos
tudo o que está implicado na descoberta do corpo próprio. Ele não é
apenas um objeto entre todos, que resiste à reflexão e permanece,
por assim dizer, colado ao sujeito. A obscuridade atinge todo o
mundo percebido. (FP, 268/9-270)

Segundo Merleau-Ponty, no processo de unir o sujeito com o objeto, será

Immanuel Kant (1724-1804) que dará um passo adiante nesse processo:

Descartes e sobretudo Kant desligaram o sujeito ou a consciência,


fazendo ver que eu não poderia apreender nenhuma coisa como
existente se primeiramente eu não me experimentasse existente no
ato de apreendê-la, eles fizeram aparecer a consciência, a absoluta
certeza de mim para mim, como a condição sem a qual não haveria
absolutamente nada, e o ato de ligação como fundamento do ligado.
Sem dúvida, o ato de ligação não é nada sem o espetáculo do
mundo que ele liga; a unidade da consciência, em Kant, é
exatamente contemporânea da unidade do mundo (...)(FP, 4).

Esse desligamento Kant desenvolve em seu idealismo transcendental.

Preocupado com a confusão conceitual a respeito da natureza do conhecimento,

Kant questiona, em sua Crítica da razão pura se é possível isolar a razão pura e

examiná-la em sua estrutura, independente da experiência. Com isso, ele coloca o

problema da crítica da razão como o de determinar a validade de nossos

conhecimentos, na medida em que devemos admitir que eles contêm certos

elementos a priori que não podem ser fundados na experiência. Na busca da

solução para esse problema, Kant transformará a razão o tribunal que deve julgar o

que podemos conhecer com legitimidade. Para tal, ele parte da distinção entre dois

tipos de juízos: os “analíticos”, a priori, nos quais o predicado está contido no sujeito
33

e a verdade é independente da experiência, e o “sintéticos”, a posteriori, que

dependem da experiência.

Segundo Merleau-Ponty, é na distinção entre esses dois tipos de juízo que

se produz a polêmica entre empiristas e racionalistas. Os racionalistas pretendem

mostrar que os juízos a posteriori seriam redutíveis aos a priori, enquanto os

empiristas defendem que todos juízos dependem da experiência. No esforço de ir

além dessa dicotomia, Kant procura demonstrar que a legitimidade do

conhecimento científico sustenta-se em juízos sintéticos a priori; isto é, juízos que –

como os juízos sintéticos e ao contrário dos analíticos – fazem progredir o

conhecimento e que, por outro lado – como os juízos analíticos e ao contrário dos

juízos sintéticos – apresentam o caráter de necessidade e universalidade que é

próprio do conhecimento científico.

A grande contribuição de Kant, segundo Merleau-Ponty, está em mostrar que

a realidade não é um dado exterior ao qual o intelecto deve se conformar – quer por

uma depuração do dado empírico, como acreditava o empirismo, quer por uma

harmonia – seja estabelecida na divindade (Descartes) seja preestabelecida

(também na divindade: Leibniz) – e que, assim, o mundo dos fenômenos só é algo

para nós, na medida em que aparece mediado por nossas formas de conhecimento

no fato de que, portanto, somos responsáveis por sua construção. O conhecimento

metafísico, por sua vez, é impossível porque, para Kant conhecimento é

conhecimento sensível de experiência – e não podemos ter experiência de Deus: o

conceito de Deus será apenas uma idéia da razão de uso talvez legítimo na

constituição de uma possível “teologia moral” (B 669) ou de uso regulador, para

orientar o uso do entendimento como “capacidade de julgar” (Crítica do Juízo), na


34

busca de “uma unidade sistemática por meio da idéia de causalidade conforme um

fim” (B 716) – mas jamais como objeto do conhecimento.

Esse é o resultado final da “revolução copernicana”, expressão com a qual

Kant avalia os resultados de sua crítica do conhecimento: assim como Copérnico

mostrou que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas que a Terra gira em torno

do Sol, o conhecimento não é reflexo do objeto exterior: é nossa própria mente que

constrói o objeto.

A fenomenologia de Husserl pretende superar os impasses deixados sem

solução nos empreendimentos de Descartes e Kant. Entretanto Husserl dá

continuidade à tradição moderna kantiana, quando dá ênfase à consciência

reflexiva ou ao sujeito do conhecimento, pois é o sujeito que estrutura a atividade

necessária e universal do saber que é o sujeito transcendental. É por meio da

consciência reflexiva que o sujeito cria ou constitui as essências, que são as

significações elaboradas pela consciência como um poder universal de doação de

sentido. Consciência é puro ato, não coisa, nem substância, assim ela é sempre

consciência de alguma coisa, o que Husserl denomina de intencionalidade.

Husserl desenvolve a análise dos atos da consciência e conseqüentemente a

analise da percepção. Ao formular os princípios do método fenomenológico,

Husserl faz uma revisão e reorganização radicais da concepção da relação entre

sujeito e objeto. Ele mostra que a res extensa está interligada à res cogitans e que

o corpo não deve mais ser considerado a prisão da alma. A fenomenologia

pretende ser o método que permite pensar a exterioridade do mundo que nos

rodeia por meio da intencionalidade. A consciência é um ato intencional, sua

essência é a intencionalidade que é o ato de visar as coisas dando-lhes

significação. O mundo é o correlato intencional da consciência, portanto o que foi


35

percebido é o resultado do ato intencional da consciência, e a percepção

representa a unidade interna e necessária entre o ato e o correlato entre o perceber

e o percebido.

Sem se fechar no interior de um pensamento que já pensa a si mesmo e

estabelece as regras de seu procedimento, a fenomenologia coloca-se frente à

realidade visando captar suas estruturas para além de uma concepção puramente

mental, mas buscando a percepção do sentido. E o método fenomenológico, deve

ser capaz de buscar a origem dos fenômenos e não só descrevê-los em sua

manifestação exterior, mas esclarecer as fontes que os produziram. O ser humano

como produtor dessas manifestações que foram observadas será examinado

cuidadosamente em suas modalidades expressivas.

Em Arquelologia fenomenológica (1998), Husserl (C 16 IV), citado por Bello

em Cultura e religiões: uma leitura fenomenológica, equipara o método

fenomenológico a uma operação de escavação dos elementos constitutivos daquilo

que é elaborado por meio das operações sensoriais perceptivas que formam o

mundo da experiência. É preciso desenvolver um trabalho de busca, uma

indagação regressiva, no sentido de ir ao encontro das fontes últimas, das matrizes,

das Archai e, a partir destas, remontar às unidades evidentes de sentido que

fundamentam as validades essenciais do nosso mundo.

Essa regressão remete à dimensão que Husserl chama de esfera da

consciência, com seu fluir e sua temporalidade imanente, na qual estão presentes

os atos ou experiências vivenciais. Ao penetrar na dimensão das experiências

vividas, a investigação se dirige para o ôntico puro, ou seja, o que pertence ao ente,

ao que supomos existir, entendido aqui como experiência singular e momentânea.


36

Com isso se evidencia o sentido ontológico da própria percepção e do que é

percebido. Husserl em Idéias para uma fenomenologia pura desenvolve o método

da redução eidética, ou seja tudo que se refere à essência e que se coloca como

objeto da investigação fenomenológica. Essa redução eidéitica vai revelar que é

próprio de cada ser ter uma essência, um eidos. Husserl inicia o estudo das

maneiras de perceber o mundo nas experiências vividas, ou seja, nas formas em

que se apresentam essas experiências. Não se trata, portanto, de um estudo

idealista, mas do estudo das condições em que a realidade é percebida. Trata-se

de uma epistemologia que examina a estrutura da percepção, mas não se

pronuncia ontologicamente sobre a existência e o ser, quer do mundo quer do

sujeito.

Ao retomar ao projeto fenomenológico de Husserl, Merleau-Ponty também

rejeita o cartesianismo e reavalia o legado kantiano; reinterpreta o cogito cartesiano

em vista de elucidar as questões vinculadas ao corpo e o mundo. Entretanto,

Merleau-Ponty modifica as idéias de Husserl na busca de liberar o dilema do

realismo e idealismo que Husserl resolveu a favor do idealismo devido ao papel

principal que deu à consciência ou ao sujeito do conhecimento. O privilégio ao

idealismo sustenta que, se eliminarmos as coisas, sobra a consciência ou o sujeito

que por meio das operações do conhecimento, coloca a realidade, ou seja, o

objeto. O realismo, por sua vez, sustenta que se tirarmos o sujeito ou a consciência,

sobram as coisas, a realidade em si. Merleau-Ponty rejeita essas duas vertentes

que aparecem em diversos momentos da história da filosofia.

A proposta da fenomenologia sustenta que os dois extremos devem

caminhar juntos; se eliminar a consciência nada resta, porque as coisas só existem

a partir de uma consciência que as percebe, e se eliminar as coisas também não


37

fica nada, pois o mundo, a realidade é condição para que haja a vida. Como diz

Merleau-Ponty :

A aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter


unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção
do mundo ou da racionalidade.(...) O mundo fenomenológico é não
o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas
experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas
do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto
inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua
unidade pela retomada de minhas experiências passadas em
minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha.
(FP,18).

Constata-se então que Merleau-Ponty, retoma o projeto de Husserl, mas

orienta-o para um diálogo cada vez mais íntimo com as ciências do homem e as

artes e se interessa privilegiadamente pelas estruturas de significação que as novas

ciências humanas lhe oferecem. Seu pensamento tem a peculiaridade de se revelar

através de muitas interrogações: “(...) interroga a experiência da própria filosofia e a

cegueira da consciência porque se volta para o mistério que faz sustentar a palavra,

o invisível sustentar a visão e o excesso das significações sustentar o conceito”.

(Chauí, 1983, p. 187).

Para Merleau-Ponty, o sensível, o que é percebido, é o objeto central da

filosofia da percepção. Para ele, a conexão entre pensamento conceitual e mundo,

entre essência e existência, não é feita por dedução como na tradição clássica, mas

por meio da experiência perceptiva.

Nessa perspectiva, ele elabora um conceito que ele denomina le milieu

perceptif. Tal conceito representa uma relação perceptiva original com o mundo

que, pressuposta por toda construção científica, não pode ser explicada ou descrita

pelas próprias ciências naturais.

É nesse contexto que Merleau-Ponty busca determinar o papel do corpo no

campo da percepção. Para ele, o corpo não é somente um objeto entre muitos
38

outros no mundo, mas o lugar no mundo onde se encontra a consciência e é devido

a ele que o mundo tem um caráter perspectivo. Ele acrescenta que o único modo

de conhecer o meu corpo é vivê-lo, confundindo-me com ele.

Quer se trate do corpo do outro ou de meu próprio corpo, não tenho


outro meio de conhecer o corpo humano senão vivê-lo, quer dizer,
retomar por minha conta o drama que transpassa e confundir-me
com ele. Portanto, sou meu corpo, exatamente na medida em que
tenho um saber adquirido e, reciprocamente, meu corpo é como
sujeito natural, como um esboço provisório de meu ser total. (FP,
269).

A percepção e o corpo constituem a experiência do ser. Há uma constante

inte-relação entre o corpo e o mundo e os outros corpos. Não podemos suprimir as

coisas nem as pessoas porque elas gravitam à nossa volta e coexistimos com

esses elementos por irradiação e transitividade de nossos corpos.

A partir do corpo, ele vai ao encontro do conceito de carne e quiasma, que

difere do corpo no sentido de ser o lugar onde se entrelaçam "le corps voyant" e "le

corps visible". Neste entrelaço estão implicados os conceitos de simultaneidade de

presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento,

totalidade e abertura, tecido conjuntivo e diferenciado. O conceito de carne que não

é substância nem espírito, mas uma forma de interioridade sensível, encontra

equivalente na velha palavra “elemento”, ou seja, os elementos da natureza: água,

ar, terra, fogo – e o conceito de quiasma como uma figura de linguagem que

significa entrelaço, entrecruzanemto que anulando a idéia de principium sustenta a

idéia de revesibilidade.

Essa noção de carne permite a Merleau-Ponty qualificar a conexão do sujeito

fenomenológico com o mundo e sugerir a maneira pela qual o mundo pode se

tornar tangível ao sujeito. Para isso, ele mostra que o mundo e o eu somos um

dentro do outro du percipere au percipi."


39

Ora, tendo o corpo como matriz da percepção a consciência que percebe

como encarnada, Merleau-Ponty vai demonstrar que a percepção não é

simplesmente o resultado do impacto do mundo exterior sobre o corpo de modo

geral, pois cada corpo tem, dentro da generalidade, suas particularidades, sua

maneira própria de sentir o mundo que o rodeia. Isso nos mostra que não há

percepção “em geral” – uma noção que poderia tornar-se uma abstração universal -

mas sim, só há percepção vivente no mundo.

Dessa forma, não suprime o universal para colocar o particular, mas busca o

que ele chama de universalidade oblíqua, uma simultaneidade de dimensões

diferenciadas e entrelaçadas que podem ser comparadas ao sentido da arte, ao

alcance da palavra poética, ou à força da pintura; como aquela em que uma cor

representa um universo, uma frase musical dá uma outra dimensão para o tempo e

espaço...

Estamos envoltos na dimensão do visível e invisível, não no senso comum

de um lado espiritual em interação com o lado material, mas como visível e Invisível

participando dos dois lados do Ser, como se fosse o avesso e o direito irredutíveis

um ao outro. O visível está além e aquém do homem, ao mesmo tempo em que se

efetua no e através do homem. Uma dimensão contém a outra, pois o visível está

prenhe de invisibilidade e aparece como poroso e lacunar, enquanto o invisível é

pleno de visibilidade e aparece como transcendente e aberto.

O invisível no e do visível faz com que “minha carne e a do mundo


comportem zonas claras, focos de luz em torno das quais giram
zonas opacas; a visibilidade primeira, a dos quale e das coisas, não
subsiste sem uma visibilidade segunda, a das linhas de força e das
dimensões, a carne maciça não subsiste sem a carne sutil, o corpo
momentâneo sem o corpo glorioso”. (VI,143/4)

A partir das considerações, desse percurso filosófico no qual Merleau-Ponty

está inserido apresentando uma contribuição inovadora e contemporânea,


40

passamos agora a examinar o sentido da linguagem, na tentativa de compreender

sua função no percurso da história da consciência; seguida de uma reflexão sobre a

literatura por intermédio da narrativa proustiana dentro do contexto fenomenológico.

2.2. A LINGUAGEM E CONCEPÇÕES DA FENOMENOLOGIA E ONTOLOGIA


DO SER FENOMENOLÓGICO

Em Fenomenologia da Percepção (1999), Merleau-Ponty busca excluir a

linguagem do contexto metafísico. Segundo ele, a partir de Platão, submetida aos

princípios metafísicos, a linguagem passa a ser considerada um instrumento de

tradução do pensamento. Ela era o objeto das investigações que buscavam a

relação entre o pensamento e o ser, mas permanecia exterior a ambos; assim, a

linguagem tinha um caráter externo e instrumental. Num segundo momento,

Merleau-Ponty recorre às interrogações feitas por Husserl sobre a fenomenologia

da linguagem. Em suas Investigações Lógicas, Husserl propõe uma eidética da

linguagem, ou seja, uma análise das essências, por meio da qual se torna possível

pensar com plena clareza as línguas empíricas como realizações “embaralhadas”

de uma linguagem essencial. Nesse sentido diz-nos Merleau-Ponty em

Fenomenologia da Linguagem (1980):

Tal projeto pressupõe uma submissão das línguas em relação à


linguagem no sentido de que a linguagem seria um dos objetos que
a consciência constitui soberanamente, enquanto a línguas
particulares, uma linguagem possível cujo segredo está inserido na
primeira – sistemas de signos vinculados à sua significação por
relações unívocas e suscetíveis de uma explicação total de sua
estrutura e de seu funcionamento. (MERLEAU-PONTY, 1980:129).

Frente a esta submissão das línguas em relação à linguagem, Husserl

considera que a linguagem também está submetida ao pensamento, exercendo

sobre ele um papel secundário, funcionando como um “lembrete secundário” de


41

comunicação. Entretanto, nos últimos textos de Husserl, a linguagem aparece como

um modo original de visar certos objetos, ou seja, dar-lhes significação. Nesse

sentido, a linguagem pode visar certos objetos como corpo do pensamento, ou

mesmo como uma operação sem a qual os pensamentos permaneceriam

fenômenos privados e graças a qual adquirem valor intersubjetivo e finalmente

essência ideal (Ursprung der Geometrie). (MERLEAU-PONTY, 1980, p. 129).

A partir dessas reflexões, Merleau-Ponty propõe o retorno ao sujeito falante,

ao contato com a língua falada, não mais como a tentativa de recolocar as línguas

existentes no quadro de uma eidética de toda linguagem possível, isto é, não mais

como tentativa de objetivá-las diante de uma consciência constituinte universal e

intemporal.

A língua reencontra sua unidade do ponto de vista fenomenológico,


isto é, para o sujeito falante que usa a língua como meio de
comunicação, como uma unidade viva, não mais como resultado de
um passado caótico de fatos lingüísticos independentes, porém um
sistema cujos elementos concorrem para um meio de expressão
voltado para o presente ou para o futuro e governado por uma
lógica atual (MERLEAU-PONTY, 1980, p.130).

Esse retorno ao sujeito falante vai coincidir com a proposta de Merleau-Ponty

do corpo como fonte da percepção e como lugar no mundo onde se encontra a

consciência. Assim, é nesse sujeito falante que encontramos a linguagem que, por

si só, também não existe, mas sim a partir de um corpo. Será o fenômeno da fala

que vai indicar essa outra dimensão do corpo: “a fala é o excesso de nossa

existência por sobre o ser natural”. (FP, 267).

Ninguém contestará que aqui a operação expressiva realiza ou


efetua a significação e não se limita a traduzi-la. O mesmo acontece
com a expressão dos pensamentos pela fala: O pensamento não é
nada de “interior”, ele não existe fora do mundo e fora das palavras.
O que nos engana a respeito disso, o que nos faz acreditar em um
pensamento que existiria para si antes da expressão, são
pensamentos já constituídos e já expressos dos quais podemos
lembrar-nos silenciosamente e através dos quais nos damos a
ilusão de uma vida interior. Mas na realidade, esse pretenso silêncio
é sussurrante de falas, esta vida interior é uma linguagem interior. O
42

pensamento “puro” reduz-se a um certo vazio da consciência, a uma


promessa instantânea. A nova intenção significativa só se descobre
a si mesma recobrindo-se de significações já disponíveis,
entrelaçam-se repentinamente segundo uma lei desconhecida, e de
uma vez por todas um novo ser cultural começou a existir. (FP,
249).

Entre a fala que se constrói pelo sujeito e a fala que o rodeia há uma

intercomunicação constante, assim como entre o corpo e o mundo, a ponto de um

ser confundido com o outro e não podermos distinguir o mundo falado e o mundo

falante.

Vivemos em um mundo em que a fala está instituída. (...) O mundo


lingüístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o
distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de um mundo já
falado e falante que refletimos. Perdemos a consciência do que há
de contingente na expressão e na comunicação, seja junto à criança
que aprende a falar, seja junto ao escritor que diz e penas pela
primeira vez alguma coisa, seja enfim junto a todos os que
transformam um certo silêncio em fala. (FP, 250).

Dessa maneira, a linguagem é o meio através do qual nosso corpo, outros

corpos e o mundo tornam-se expressivos, significativos, dotados de sentido.

Merleau-Ponty vai mais além, dizendo que é por meio dele que o pensamento

descobre e cria sentido.

Em Saussure, a língua é vista como sistema, ou uma estrutura objetiva que

tem suas regras e princípios; a fala, ou palavra, é o ato individual de uso da língua e

tem existência subjetiva, devido às diversas maneiras como os sujeitos falantes se

apropriam da língua e a utilizam. Para Merleau-Ponty, a experiência da fala só

poderá ter alcance ontológico, e algo a dizer sobre o ser da linguagem, se houver

uma comunicação entre a ciência objetiva da linguagem e o que ele chama de

fenomenologia da palavra. Saussure justapõe duas perspectivas da linguagem, ao

distinguir uma lingüística sincrônica da palavra, ou seja, uma lingüística que

considera o estado atual, a simultaneidade da língua; e uma lingüística diacrônica

da língua, que considera as transformações sofridas ao longo do tempo, na história.


43

Essa concepção divide a linguagem e revela essas duas dimensões como

irredutíveis uma à outra: a que é falada por um sujeito e a que se elabora através

do tempo. Entretanto, na concepção fenomenológica, essa divisão é inadmissível,

pois as duas devem caminhar juntas, uma vez que a relação entre língua, ou

linguagem, e pensamento é como a relação fenomenológica do corpo e alma: não

se separam. A língua é a condição e ao mesmo tempo a realização do próprio

pensamento. A fenomenologia da linguagem de Merleau-Ponty buscará mostrar

que o movimento sincrônico e o diacrônico estão envoltos um no outro. Da mesma

forma:

(...) Fatos lingüísticos fortuitos na perspectiva objetiva incorporam-


se na linguagem dentro de um sistema dotado de uma lógica
interna. Se a linguagem, num corte transversal, é um sistema
dotado de uma lógica interna, é preciso que ela o seja no seu
desenvolvimento. (FP, 131) (MERLEAU-PONTY, 1980, p.131).

Diante disso, ele se propõe a encontrar o devir na linguagem, a aceitá-lo

como um equilíbrio em movimento. Este equilíbrio implica um conjunto de gestos

lingüísticos convergentes, cada qual se define mais por um valor de emprego que

por uma significação. Nesse edifício equilibrante e em movimento, exclui-se o

sistema de formas de significação claramente articuladas, ou o edifício de idéias

construído num plano rigoroso. As línguas particulares não aparecem mais como a

realização confusa de significações ideais e universais, ou seja elas não estão

submetidas a essas significações.

A universalidade aqui é de um outro tipo: a universalidade será


alcançada por uma passagem oblíqua da língua que falo e que me
inicia no fenômeno da expressão para uma outra língua que
aprendo a falar e que pratica o ato de expressão num estilo diverso
da minha (MERLEAU-PONTY, 1980, p.132).

Essa universalidade oblíqua não está separada nem é anterior às

realizações particulares. Nós nos deparamos então com dois tipos de

universalidade: a primeira, ligada ao contexto metafísico e ao intelectualismo


44

platonizante, que separa o sujeito de seu objeto e que Merleau-Ponty denomina de

“pensamento de sobrevôo”, e a segunda, a que Merleau-Ponty denomina

“universalidade oblíqua” e que é o resultado das relações de complementaridade

com os particulares.

O que está em jogo agora é uma fenomenologia enquanto uma lógica que

revela uma nova concepção do ser da linguagem que é o lógico na contingência:

um sistema orientado que, no entanto, comporta os acasos, revela a retomada do

acidental numa totalidade dotada de sentido. Essa nova concepção do ser na

linguagem revela algumas peculiaridades: na língua falada viva, seu valor

expressivo está no conjunto, e não individualmente; o valor expressivo da língua

falada constitui um sistema na sincronia, ou seja, na simultaneidade; o todo não é o

todo explícito e articulado da língua completa como registram as gramáticas e

dicionários, tampouco é a totalidade lógica como um sistema filosófico cujos

elementos podem ser deduzidos de uma idéia; a sustentação de uma língua não se

dá sobre um sistema de idéias positivas; a unidade de uma língua está relacionada

com a união, e a coexistência dos elementos como a de uma abóbada celeste no

qual seus elementos constituintes encadeados se sustém. Assim as partes

apreendidas da língua ocorrem pela articulação interna, pela interação dos

elementos que compõem uma rede de significados onde um depende do outro e

não de uma forma individual que se acrescentaria ao todo por adição e

justaposição. Merleau-Ponty compara a apreensão do sentido da linguagem com a

compreensão de uma charada: só se deixa compreender na interação dos signos,

se isolados tornam-se equívocos e banais, apenas na interação fazem sentido.

Somente a língua em seu todo permite compreender como a


linguagem a atrai para si e como lhe sucede entrar neste domínio
cujas portas, diríamos, só se abrem por dentro. Porque antes de
mais nada é diacrítico, porque organiza consigo mesmo, por isso
45

tem o signo um interior e acaba por pedir um sentido.(MERLEAU-


PONTY, 1980, p.142).

Assim, não se considera o valor expressivo diferenciando cada elemento da

cadeia verbal, mas sim, cada signo, significando pela diferença de uns em relação

aos outros; na sua relação lateral a outros. O sentido surge então na intersecção,

como se fosse no intervalo das palavras, ou seja, nos silêncios. Isto impede-nos

conceber, como fazemos de hábito, a distinção e a união da linguagem e de seu

sentido, pois o sentido não habita a cadeia verbal nem de forma transcendente,

nem imanente propriamente ditas, embora linguagem e sentido sejam inseparáveis.

Há pois, uma opacidade da linguagem: em parte alguma pára,


impossibilitando a cristalização do sentido puro, seus limites são
sempre o que é excesso seu e o sentido só lhe transparece
engastado nos vocábulos (MERLEAU-PONTY, 1980,p.15).

Merleau-Ponty vai contestar as análises do pensamento que o colocam com

se fosse uma espécie de texto ideal que vai ao encontro das palavras para serem

traduzidas.

Dizer não é por um vocábulo sob cada coisa pensada: se


procedêssemos desse modo, nunca diríamos nada, não nos
pareceria viver na linguagem e ficaríamos em silêncio, já que o
signo desapareceria de imediato diante de um sentido que seria o
seu e que assim o pensamento encontrar-se-ia apenas com coisas
pensadas: com a que exprime e com a que formaria a partir de uma
linguagem plenamente explícita. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.144).

O que existe é uma complementação, pois se revela, às vezes, a sensação

de que um pensamento foi dito, não colocado no lugar de índices verbais, mas

acoplado às palavras:

(...) e há enfim um poder das palavras, pois operando umas contra


as outras são atraídas, visitadas a distância pelo pensamento, como
as marés pela lua, e neste tumulto evocam seu sentido muito mais
imperiosamente do que se estivessem simplesmente a trazer uma
lânguida significação de que seriam o índice indiferente e
predestinado. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.145)

Se o signo quer dizer alguma coisa enquanto se alinha sobre outros signos,

seu sentido está todo imerso na linguagem, a palavra é colocada por Merleau-Ponty
46

como uma dobra de um tecido maior que é a fala. A possibilidade de reconhecer

este imenso tecido da fala exige que nos entreguemos à sua vida, a seu momento

de diferenciação, de articulação e gesticulação eloqüente. E esta natureza do signo

que se revela através do todo nas partes vai se estender por toda a história da

cultura.

Portanto, assistimos na história da linguagem a um movimento constante no

qual uma língua se transforma em outra. Sabemos que do Latim veio o Francês, o

Português arcaico, o Português moderno. Merleau-Ponty em A Linguagem indireta

e as vozes do silêncio (1980) afirma que não se pode fixar o momento em que uma

língua se transforma na outra, pois as formas gramaticais começam a se mostrar

eficazes e a se desenhar antes de serem sistematicamente empregadas. Às vezes,

a língua permanece prenhe das transformações que vão acontecer e nela a

enumeração dos meios de expressão não faz sentido, continuando os que não

estão mais em uso corrente a levar uma vida atenuada e sabendo-se a posição que

vão ter depois de serem substituídos, ainda por via de uma lacuna, de uma

necessidade ou de uma tendência. Este processo de transformação inerente à

linguagem estende-se para outros espaços da cultura. O espaço arquitetônico da

Renascença já se delineava na Idade Média, o movimento literário Modernista

estava incubado nos princípios do Simbolismo. Assim, percebe-se que o movimento

cultural não nos revela significações absolutamente delimitadas, transparentes, a

gênese do sentido jamais se conclui, mas se move e se imiscui, transforma-se.

A nossa verdade, está imersa em uma totalidade que não está desvinculada

de um contexto de símbolos que datam nosso saber; portanto as mais diversas

arquiteturas de signos nos envolvem e nos influenciam de maneira direta e indireta.


47

SEGUNDO CAPÍTULO

EXPRESSÃO E ESTILO NA ARTE LITERÁRIA


48

EXPRESSÃO E ESTILO NA ARTE LITERÁRIA

Na tentativa de elucidar o que Merleau-Ponty refletiu sobre a arte em sua

filosofia, cabe um olhar sobre os conceitos de Expressão e Estilo. Esses conceitos

estão diretamente relacionados à necessidade de uma reflexão que restabeleça a

primordialidade da experiência na consecução dos fenômenos. Está claro na

reflexão filosófica de Merleau-Ponty que ele admite na experiência um poder criador

que desencadeia os fenômenos da vida no cotidiano e que podem se estender para

os fenômenos da arte. Esse poder é o que Merleau-Ponty denomina expressão, e

que tanto na vida quanto na arte podem se concretizam num estilo. Pela arte

literária, podemos compreender e experimentar esse processo que se inicia na

expressão do autor que organiza dentro de um estilo; esse é um exemplo do uso

criativo da palavra que é uma prerrogativa da literatura.

Para Merleau-Ponty, a verdadeira filosofia da percepção é a que possibilita

pensar essa unidade entre o sensível e o inteligível, uma vez que já foi submetida à

crítica da dualidade do sujeito com o objeto. O conceito de expressão vai

possibilitar a experiência da unidade que implica na ambigüidade, na mistura do

fato e do sentido.

Mais uma vez é importante lembrar que Merleau-Ponty é dedicado a

repensar o modo como compreendemos os fenômenos: sua crítica se dirige para a

versãos intelectualista quando rejeita que os fenômenos são tão somente o

correlativo exterior de nossas representações, e rejeita a visão empirista quando

sustenta que os fenômenos não dizem respeito às nossas experiências, mas


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apenas à nossa capacidade para representá-los. A constatação da vinculação

entre a "figura" (percebida) e o "contexto" ou “fundo” no qual nosso corpo está

inserido sustentou a idéia de que os fenômenos estão totalmente ligados às nossas

experiências. Mais precisamente, tal descoberta revela que os fenômenos estão

inabalavelemente vinculados à organização espontânea desencadeada por nosso

corpo junto aos dados sensíveis.

Tal subjetividade implica num corpo que, pelo seu poder aberto e indefinido

de significar, vai realizar a expressão que delineará o estilo. Essa significação

encarnada é o corpo humano que não é somente um espaço expressivo no meio

dos outros, mas o próprio movimento da expressão. Para Merleau-Ponty, entre os

sentidos há um entrelaço em que um se torna complementar ao outro.

Ele é um nó de significações vivas e não a lei de um certo de termos


co-variantes. Uma certa experiência tátil do braço significa uma
certa experiência tátil do antebraço e dos ombros, um certo
aspecto visual do mesmo braço, não que as diferentes percepções
táteis, as percepções táteis e as percepções visuais participem
todas de um mesmo braço ininteligível, como as visões perspectivas
de um cubo da idéia do cubo, mas porque o braço visto e o braço
tocado, como os diferentes segmentos do braço, fazem, em
conjunto, um gesto.(FP, 210)

O corpo por meio dos sentidos tem uma natureza dinâmica, uma

potencialidade para se desenvolver, ampliar o que mais uma vez o coloca no

mesmo patamar da obra de arte. Ele vai elaborando suas significações e

potencialidades que vão possibilitar uma certa organização que delineará o estilo. O

corpo e arte exercem seu poder de significação: o corpo, pelos gestos, olhar,

palavras...; a pintura, pelas cores, formas; uma peça musical, pelos sons; o poema

ou romance, pelas palavras; o teatro pelos gestos...

Com o olhar, dispomos de um instrumento natural comparável


à bengala do cego. O olhar obtém mais ou menos das coisas
segundo a maneira pela qual ele as interroga, pela qual ele
desliza ou se apoia nelas. Aprender a ver as cores é adquirir um
certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer
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e reorganizar o esquema corporal. Sistema de potências


motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é objeto
para um eu penso'': ele é um conjunto de significações vividas
que caminha para seu equilíbrio. Por vezes forma-se um novo nó
de significações: nossos: movimentos antigos integram-se a
uma nova entidade motora, os primeiros dados da visão a uma
nova entidade sensorial, repentinamente nossos poderes
naturais vão ao encontro de uma significação mais rica que até
então estava apenas indicada em nosso campo perceptivo ou
prático, só se anunciava em nossa experiência por uma certa
falta, e cujo advento reorganiza subitamente nosso equilíbrio e
preenche nossa espectativa cega. (PF, 212)

O corpo na sua unidade contém a diversidade dos sentidos que por sua vez

vão se entrelaçar, imiscuir-se.

Aqui, os "dados visuais" só aparecem através de seu sentido tátil,


os dados táteis através de seu sentido visual, cada movimento local
sobre o fundo de uma posição global, cada acontecimento corporal,
qualquer que seja o "analisador" que o revele, sobre um fundo
significativo em que suas ressonâncias mais distantes estão pelo
menos indicadas e a possibilidade de uma equivalência
intersensorial está imediatamente fornecida. (FP, 208).

Tal diversidade, dentro da unidade inerente ao corpo, vai delinear o estilo

que é inerente ao corpo; tal estilo se estende analogamente ao estilo que vai se

revelar na obra de arte:

O que reúne as "sensações táteis" de minha mão e as liga às


percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções dos
outros segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha
mão, que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e
contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu
corpo. Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas
antes à obra de arte. (FP, 208).

Segundo Renaud Bárbaras (1997), Merleau-Ponty ressalta que não se deve

mais pensar a expressão a partir do corpo, como uma modalidade superior da

percepção, mas o corpo a partir da expressão. Toda percepção, toda ação que a

supõe, em resumo todo uso do corpo já é uma “expressão primordial”, uma

operação primeira que inicialmente constitui os signos em signos, faz habitar neles

o exprimido e que pela eloqüência de seu arranjo e de sua configuração, implanta


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um sentido, inaugura uma ordem, funda uma instituição ou uma tradição. Encontra-

se então a analogia do corpo que comporta diversos níveis de expressão assim

como a arte (o poema, o romance):

Assim como a fala significa não apenas pelas palavras, mas ainda
pelo sotaque, pelo tom, pelos gestos e pela fisionomia, e assim
como esse suplemento de sentido revela não mais os pensamentos
daquele que fala, mas a fonte de seus pensamentos e sua maneira
de ser fundamental, da mesma maneira a poesia, se por acidente é
narrativa e significante, essencialmente é uma modulação da
existência. Ela se distingue do grito porque o grito utiliza nosso
corpo tal como a natureza o deu a nós, quer dizer, pobre em meios
de expressão, enquanto o poema utiliza a linguagem, e mesmo
uma linguagem particular, de forma que a modulação existencial,
em lugar de dissipar-se no instante mesmo em que se exprime,
encontra no aparato poético o meio de eternizar-se. Mas, se se
destaca de nossa gesticulação vital, o poema não se destaca de
todo apoio material, e ele estaria irremediavelmente perdido se seu
texto não fosse exatamente conservado; sua significação não é
livre e não reside no céu das idéias: ela está encerrada entre as
palavras em algum papel frágil. Nesse sentido, como toda obra de
arte, o poema existe à maneira de uma coisa e não subsiste
eternamente à maneira de uma verdade. Quanto ao romance, se
bem que ele se deixe resumir, se bem que o "pensamento" do
romancista se deixe formular abstratamente, essa significação
nocional é retirada de uma significação mais ampla, como a
descrição de uma pessoa é retirada do aspecto concreto de sua
fisionomia. O papel do romancista não é expor idéias ou mesmo
analisar caracteres, mas apresentar um acontecimento inter-
humano, fazê-lo amadurecer e eclodir sem comentário ideológico, a
tal ponto que qualquer mudança na ordem da narrativa ou na
escolha das perspectivas modificaria o sentido romanesco do
acontecimento. (FP, 209)

Assim como o corpo como um nó de significações vivas e, portanto, possui

uma dimensão poética, a obra de arte, seja a poesia ou o romance, ao dar às

palavras uma dimensão existencial capaz de ir além da materialidade, revelam-se

pela expressão e envoltos no estilo, a possibilidade de encontrar o meio de

eternizar-se. “Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são

indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a expressão do

expresso, cujo sentido só é acessível por um contato direto, e que irradiam sua

significação sem abandonar seu lugar temporal e espacial”. (FP, 210).


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A noção de expressão dentro da experiência perceptiva do corpo se

estendendo para a obra de arte traz consigo o sentido de um milagre que segundo

Merleau-Ponty, em A prosa do mundo (1974) pressupõe um algo além, que se

traduz como a manifestação de um excesso para além do que está dado, de

alguma coisa que se revela no exterior, de uma significação que abre no mundo e

começa a existir.

No universo de nossas experiências simbólicas, no qual a arte está inserida,

a noção de expressão vai designar a operação primeira, pela qual nosso corpo

instaura os signos em signos, dando-lhes a condição de exprimir por meio da

eloqüência do arranjo e da configuração que é realizada entre eles,

proporcionando, assim, um sentido que se revela por uma ordem expressiva.

Ao adentrar âmbito da expressão através da arte literária experimenta-se a

inte-relação entre os mundos, do escritor e o meu.

O fato é que temos o poder de compreender para além daquilo que


espontaneamente pensamos. Só podemos falar uma linguagem que
já compreendemos, cada palavra de um texto difícil desperta em
nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes
essas significações se unem em um pensamento novo que as
remaneja a todas, somos transportados para o centro do livro,
encontramos sua fonte.(FP,243).

No deleite da leitura da de uma obra literária torna-se possível desvendar as

relações linguageiras que já são do meu domínio. Entretanto, no universo de um

mundo que me é familiar surge o inusitado. Acontece um descentramento do eixo

do sujeito que experimenta a obra de arte, tal sensação reflete instantaneamente no

corpo; surge então uma imagem fora do foco e ao mesmo tempo o ímpeto de

atingir novamente o centro.

Portanto, existe uma retomada do pensamento do outro através da


fala, uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro
que enriquece nossos próprios pensamentos. Aqui, é preciso que o
sentido das palavras finalmente seja induzido pelas próprias
palavras, ou mais exatamente, que sua significação conceitual se
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forme por antecipação a partir de uma significação gestual que, é


imanente à fala. (FP, 267).

A expressão estética efetua a significação e não se limita a traduzi-la. A

literatura, por meio do signo da palavra, possibilita ao leitor a entrada num outro

mundo gerando uma outra espécie de organismo que tem vida própria e é capaz de

gerar outras vidas. Por essa razão, a operação de expressão, quando é bem

sucedida, não deixa apenas um sumário para o leitor ou para o próprio escritor, ela

faz a significação existir como no próprio coração do texto, ela a faz viver em um

organismo de palavras, ela a instala no escritor ou no leitor como um novo órgão

dos sentidos, abre para nossa experiência um novo campo ou uma nova dimensão.

A percepção do corpo pelos sentidos e o seu entrelaçamento acionando a

memória involuntária numa dimensão espaço-temporal que transcende a

linearidade são significações relevantes fazendo com que esse universo receptivo

seja assimilado gerando novas significações. Esse universo que é paulatinamente

recebido pelo leitor, ele vai se compondo até que seja por ele captado dentro do

estilo que o gerou, este por sua vez é, singular trazendo a marca do seu autor que

vai determinar a subjetividade que o executou:

E, assim, como em um país estrangeiro começo a compreender o


sentido das palavras por seu lugar em um contexto de ação e
participando à vida comum, da mesma maneira um texto filosófico
ainda mal compreendido me revela pelo menos um certo “estilo” –
que seja spninozista, criticista ou fenomenológico – que é o primeiro
esboço de seu sentido, começo a compreender uma filosofia
introduzindo-me na maneira de existir desse pensamento,
reproduzindo seu tom, o sotaque do filósofo. (FP, 244).

A operação expressiva está no mundo, não está na idéia nem na

materialidade das palavras, ele não é interior nem exterior, assim como o corpo não

é físico ou mente ou espírito; ele coexiste na materialidade e na espiritualidade.

Fica subentendido um sentido implícito da palavra, quando Merleau-Ponty

compara o trabalho do escritor com o do tecelão. Este trabalha às avessas: e em


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sua trilha vê-se de repente rodeado de sentido. A palavra expressiva não é definida,

direta, exata, e sim meditante, há uma reflexão implícita nesta busca, uma busca na

diversidade até chegar ao encontro. Existem múltiplas possibilidades no processo

da escolha do signo. Entretanto, a escolha do signo ideal pode estar imersa na

dimensão do silêncio, que por sua vez, pode ser tão ou mais expressivo que a

palavra emitida. Em Linguagem indireta e as vozes do silêncio (1980) está implícita

a questão da palavra expressiva do romance que pode ser comparada com o

trabalho do pintor por meio de seu pincel meditante.

Precisamos enfim considerar a palavra antes que seja pronunciada,


contra o fundo de silêncio que sempre a envolve e sem o qual nada
diria, ou desvendar ainda os fios de silêncio que a enredam. Este
espaço silencioso entre uma palavra e outra demonstra que há um
sentido lateral ou oblíquo, que flui entre as palavras, uma outra
maneira de percutir o aparelho da linguagem ou da narração para
fazê-la expirar um som novo. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.147).

Neste intercalar de silêncios e sons fica implícito, na linguagem, o sentido de

mistério; sendo som e sinal, presentificam-se as significações, transgredindo a

materialidade dos vocábulos no acasalamento com o visível e o invisível. A mágica

traz o sentido pelo poder encantatório dos sons e dos silêncios.

Esse espaço silencioso da palavra evidencia-se e condensa-se em algumas

modalidades de arte como a Pantomima e o teatro simbolista. Na pantomima o

silêncio é a própria significação, no Simbolismo é permeado de silêncios na maioria

das vezes mais significativos do que as palavras, pois a significação ali presente é

condensada e expressa o sentido mais profundo da narrativa. Tzvetan Todorov em

“Simbolismo e Interpretação” mostra esse sentido da significação que se oculta

através das palavras e silêncios.

A exigência de ler o texto «literalmente e em todos os sentidos» (o


que também quer dizer: em nenhum) tornou-se o traço distintivo
da poesia e, depois, da crítica modernas. Mas muitas vezes, por
trás da mesma reivindicação de indeterminação do sentido,
escondem-se e revelam-se realidades diferentes. A poesia
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simbolista tinha no seu programa uma exigência semelhante.


Primeiramente, dever-se-ia simbolizar mais do que significar .
Mallarmé dizia: «Nomear um objecto é suprimir os três quartos da
fruição de um poema, que deriva da felicidade de adivinhar pouco
a pouco; sugerir, eis o sonho», ou ainda: «Creio, que é necessário
não existir mais nada a não ser a alusão»; e Anatole France dizia,
indignado: «Deixar de exprimir mas sugerir! No fundo, aí está toda
a nova poética.» Além disso, a simbolização não devia ter objecto
preciso: é nisso que o símbolo é, justamente, superior à alegoria.
Um Maeterlinck, que retomava e assumia a tão conhecida
distinção romântica, ilustrava o ideal simbolista. Já vimos como os
«índices» que incitam à interpretação eram, nos seus textos mais
numerosos e insistentes: repetições dentro das réplicas ou entre
cenas; inutilidade narrativa das afirmações ou s equências e,
portanto, descontinuidade; desemesurada atenção concedida a
pormenores insignificantes – de que se diz que, para serem
justificados, devem ter um sentido noutro ponto do texto. Mas
justamente esse sentido nunca é especificado (TODOROV, 1978,
p.83).

Merleau-Ponty, no universo de sua reflexão sobre a arte literária, em

diversos momentos se refere aos dois ícones da literatura moderna: Stendhal

(1873-1842), considerado o primeiro grande representante do romance moderno

com as obras O Vermelho e o Negro (1830) e A Cartuxa de Parma (1839), ao lado

de Balzac, que é considerado o verdadeiro criador do romance moderno graças a

sua Comédia Humana, uma coletânea de romances escrita entre 1829 e 1850. Por

meio dessa obra, ele revela um amplo painel da sociedade burguesa daquele

momento. Graças à sua engenhosidade, tornou-se mestre dos romancistas

posteriores, como Flaubert e Zola.

Entretanto, com Stendhal o romance adquiriu as dimensões psicológicas

modernas. Por meio de suas obras O Vermelho e o Negro (1830) podemos

exemplificar a questão da palavra expressiva apontada por Merleau-Ponty em

Fenomenologia da Linguagem. O Vermelho e o Negro foi o resultado de fato

verídico, ocorrido em sua cidade natal, Grenoble no dia 23 de janeiro de 1828.

Stendhal acompanhou apaixonadamente os fatos que, durante semanas, foram

explorados pelos jornais. Nesse dia, foi fuzilado o ex-seminarista Antoine Berthet,
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que, em plena missa, disparara contra a senhora Michoud de La Tour, sua antiga

amante. Tendo na memória os traços do condenado e os episódios da história,

começou a esboçar sua personagem mais famosa, Julien Sorel, a protagonista

dessa narrativa.

Em relação a esse personagem, podemos refletir sobre o conceito de

palavra expressiva, imersa em silêncios intercalados aos signos (sons). O autor

narra em uma página o que poderia ser em cinco, evidenciando o silêncio de Julien

Sorel, o protagonista de O Vermelho e o Negro em que a vontade de morrer e

matar não constam entre as palavras, mas entre elas, permeada de silêncios tão ou

mais expressivos do que as palavras que se infiltram nas brechas do espaço e do

tempo das significações.

Julien desceu do fiacre e correu até a carruagem de posta


parada na esquina. Mathilde, que ele parecia ter esquecido, fez
alguns passos para segui-lo; mas os olhares dos comerciantes que
chegavam às portas das suas lojas e dos quais era conhecida a
forçaram a voltar precipitadamente para o jardim.

Julien partira para Verrières. Nesse rápido trajeto, não


conseguiu escrever a Mathilde como planejara, sua mão só formava
no papel uns traços ilegíveis.
Chegou a Verrières num domingo de manhã. Entrou na loja do
armeiro da cidade, que o encheu de cumprimentos pela sua fortuna
recente. Era a novidade do momento.
Julien teve muita dificuldade em fazê-lo entender que queria
um par de pistolas. A seu pedido, o armeiro carregou as pistolas.
Soaram as três badaladas; é o sinal bastante conhecido nas
cidadezinhas da França e que, após as diversas badaladas da
manhã, anuncia o começo imediato da missa.
Julien entrou na igreja nova deVerrières.Todas as janelas
altas do edifício estavam veladas por cortinas carmesim. Julien foi
parar alguns passos atrás do banco da sra. de Rênal. Pareceu-lhe
que ela rezava com fervor. A visão daquela mulher que ele tanto
amara fez tremer o braço de Julien de tal maneira que não pôde, de
início, realizar seu propósito. "Não posso", dizia consigo mesmo,
"fisicamente, não posso”.
Naquele instante, o jovem clérigo que auxiliava a missa
anunciou a Ascensão. A sra. de Renal baixou a cabeça que, por um
instante, ficou quase que inteiramente escondida pelas dobras de
seu xale. Julien não a reconhecia mais tão bem; atirou uma vez e
errou atirou uma segunda vez, ela caiu.
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(...) Foi levado á prisão. Entraram numa sala, algemanram-no


e foi deixado a sós; a porta se fechou e se trancou atrás dele; tudo
isso foi executado muito depressa e ele ficou insensível.
- Pois bem, está tudo acabado, falou alto, voltando a si... Sim,
em quinze dias, a guilhotina... Ou matar-me até lá. (STENDHAL,
2003. p.485/6/7).

Entre a intenção ainda muda ou não expressa e as palavras proferidas existe

uma intenção que Merleau-Ponty chama de linguageira, que faz a mediação. As

palavras proferidas podem me surpreender e dirigir meu pensamento, posso me

descobrir por meio dessas palavras, que muitas vezes nem pensava em proferir,

mas no exercício da fala meu pensamento se organiza e amplia a ponto de

organizar meu próprio pensamento e criar um estilo que é inerente a cada indivíduo

que trabalha com a palavra:

Relacionado ao uso criativo da linguagem está em jogo aqui a


questão do estilo: Quando falo, as palavras, os meneios
necessários para conduzir minha intenção significativa à expressão
são me recomendados apenas graças ao que Humboldt chamava
innere Sprachform (e que os modernos chamam de Wortbegriff),
isto é, graças a um certo estilo de palavra que dependem e por cujo
intermédio se organizam sem que eu precise representá-los para
mim.(MERLEAU-PONTY, 1980, p.133).

A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, deixa-se por

ele desfazer e refazer, atuam juntos da mesma forma que o vestígio de um passo

significa o movimento e o esforço de um corpo, como compara Merleau-Ponty:

Aqui o espírito do mundo somos nós, desde que saibamos nos


mover, desde que saibamos olhar. Estes atos simples incluem já o
segredo da ação expressiva: movo o corpo sem sequer saber que
músculos, que trajetos nervosos devem intervir, nem onde seria
preciso buscar os instrumentos desta ação, do mesmo modo pelo
qual o artista irradia seu estilo até as fibras da matéria que trabalha.
Quero ir até ali, e eis-me aqui sem que tenha entrado no segredo a-
humano da maquinaria corpórea, sem que a tenha ajustado aos
dados do problema. (MERLEAU-PONTY, 1980, p.162).

Na comparação que Merleau-Ponty faz entre o corpo e a palavra fica

implícito o sentido de uma atmosfera comum a ambos. Há em volta do meu corpo

uma certa paisagem, assim como à volta da palavra há uma atmosfera prenhe de

uma significação legível na própria textura do gesto lingüístico. Essa significação


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pode transformar-se a partir do tom ou da entonação da voz, da escolha das

palavras ou da sintaxe. Assim como o corpo tem diferentes comportamentos, de

acordo com o ambiente em que ele está, a expressão por intermédio da palavra

deve aparecer também como um vestígio fugaz que se transforma de acordo com o

que a envolve.

Esse retorno à palavra, ou à fala como corporal relaciona-se à concepção de

que a reflexão não ocorre no pensamento, mas é um ato corporal. É pelo corpo que

se chega a uma região mais originária, pré-refexiva e constituinte da subjetividade e

da objetividade; é o corpo que nos conduz ao ser bruto ou selvagem, anterior às

distinções que o pensamento estabelece entre o eu o outro, o sujeito e o objeto.

Esta concepção remete-nos aos últimos textos de Husserl que ressaltam o retorno

ao “mundo vivido”. Nesse contexto, o corpo como o vivemos está comprometido

com o mundo, e a palavra aparece como uma paisagem do pensamento.

Do corpo para a palavra e da palavra para a pintura, assim Merleau-Ponty

em A Linguagem Indireta e as vozes do silêncio se estende fazendo uma

comparação da literatura com a pintura. A primeira que ele considera uma

linguagem falante é a literatura, a segunda, a pintura, é a linguagem silenciosa.

Nesta segunda comparação faz-se necessário compreender o que ele chama de

linguagem falante relativa à literatura e da linguagem silenciosa, relativa à pintura. A

linguagem falante emerge das palavras que emitem a cada unidade um som que

chega até nós convertidos em sentidos. A linguagem silenciosa refere-se aos

diversos objetos, cores, elementos da natureza, seres humanos que tocam o nosso

olhar sem necessariamente emitir um som, uma fala; toca o sentido da visão, sendo

então visível mas não audível; enquanto no primeiro toca a audição, ouve-se, mas

não se vê. O corpo possui os órgãos que remetem a tal correspondência; a


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literatura como se apresenta como uma linguagem falante na qual o ser se deixa

envolver num estado que transcende o tempo e o espaço, assumindo uma

dimensão quase silenciosa como a da pintura:

Nada veríamos se não tivéssemos, em nossos olhos, um meio de


surpreender, interrogar e formar configurações no espaço e cor em
número indefinido.Nada faríamos se não dispuséssemos, junto ao
corpo, de algo que, saltando por sobre todas as vias musculares e
nervosas, nos leva a um ponto. Ofício análogo executa a linguagem
literária; da mesma maneira imperiosa e breve o escritor, sem
mediar nem preparar, nos transporta do mundo já dito ao que está
dizendo. E como o corpo que só nos leva por entre as coisas se
cessarmos de o analisar para usá-lo, a linguagem só se torna
literária, quer dizer produtiva, se deixarmos de perguntar a todo
momento por suas justificações para segui-la em suas sendas, se
permitirmos às palavras e a todos os recursos de expressão do livro
que se envolvam nesta auréola de significação que lhes vem de seu
arranjo singular, e ao escrito inteiro volver-se a este estado ulterior
em que assume, quase, a irradiação muda da pintura.(MERLEAU-
PONTY, 1980.p.171)

Torna-se claro então que o fenômeno da palavra oferece-nos uma nova

ordem que se distancia das metafísicas dogmáticas e passa a se situar no âmbito

da filosofia fenomenológica. Pois no ato da fala e da apreensão da fala do outro se

realiza a presença de outrem em mim ou de mim em outrem concretizando-se a

intersubjetividade. Frente a essa nova concepção, Merleau-Ponty confirma a

enigmática proposição de Husserl: a subjetividade transcendental é

intersubjetividade. Pois finalmente percebe-se que: “Na medida em que aquilo que

digo tem sentido, enquanto falo, sou para mim mesmo um outro “outro”, na medida

em que compreendo, já não sei mais quem fala e quem escuta”. (MERLEAU-

PONTY,1980:140). Nessa inter-relação, vivencio a presença de outrem em mim ou

de mim em outrem.

Ao colocar o corpo e, conseqüentemente, a fala, como o lugar no mundo

onde se encontra a consciência, Merleau-Ponty evidencia a distinção entre o

mundo e o objeto científico, pois se descobre aí uma intencionalidade, um poder de


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significação que está ligado à vida humana e que revela a interação entre o natural

e o artificial (fabricado).

A palavra, o gesto, está ou estão ligados ao ser biológico, mas o


transcendem, indo além e realizando um saber subjetivo por meio
de operações expressivas . A simples presença de um ser vivo já
transforma o mundo físico, faz surgir aqui “alimentos” ali um
“esconderijo” dá aos estímulos um sentido que eles não tinham.
Com mais razão ainda a presença de um homem no mundo animal.
Os comportamentos criam significações que são transcendentes em
relação ao dispositivo anatômico, e todavia imanentes ao
comportamento enquanto tal, já que este se ensina e se
compreende. Não se pode fazer economia desta potência irracional
que cria significações e que as comunica. A fala é apenas um caso
particular dela. (FP, 257).

A linguagem agora vai aparecer, não mais como um instrumento, mas como

uma forma de estabelecer uma relação viva com o sujeito que fala e com seus

semelhantes: ela se revela não mais como um meio, mas como uma manifestação,

uma revelação do ser íntimo e do elo que nos une ao mundo e aos nossos

semelhantes. Para confirmar essa visão é preciso reconhecer a função expressiva

e significativa da fala, que, por sua vez, é inerente à natureza enigmática do corpo

próprio, que a ele não se restringe:

Ele não é uma reunião de partículas das quais cada uma


permaneceria em si, ou ainda um entrelaçamento de processos
definidos de uma vez por todas – ele não está ali onde está, ele não
é aquilo que é – já que o vemos secretar em si mesmo um “sentido”
que não lhe vem de parte alguma, projetá-lo em sua
circunvizinhança material e comunicá-lo aos outros sujeitos
encarnados. Sempre observaram que o gesto ou a fala
transfiguravam o corpo, mas contentavam-se em dizer que eles
desenvolviam ou manifestavam uma outra potência, pensamento ou
alma. Não se via que, para poder exprimi-lo, em última análise o
corpo precisa tornar-se o pensamento ou a intenção que ele nos
significa. (FP,267).

Fica então evidente um afastamento da visão presa à tradição cartesiana,

que separa o sujeito e o objeto. Nós nos distanciamos dessa visão do corpo como

uma soma de partes sem interior e da alma como um ser inteiramente presente a si

mesmo, em que há apenas dois modos de existência, como coisa ou consciência.

Deparamos-nos agora com um modo de existência ambíguo: o corpo não é um


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objeto, pois a experiência do corpo próprio diverge do movimento que destaca o

objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo

ou o corpo em idéia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade.

Pela mesma razão, a consciência que tenho dele não é um


pensamento, quer dizer, não posso decompô-lo e recompô-lo para
formar dele uma idéia clara. Sua unidade é sempre implícita e
confusa. Ele é sempre outra coisa que aquilo que ele é, sempre
sexualidade e ao mesmo tempo que liberdade, enraizado na
natureza no próprio momento em que se transforma pela cultura,
nunca foi fechado em si mesmo e nunca ultrapassado. (FP,269).

A fala e o gesto como inerentes ao corpo não são o signo do pensamento,

um não anuncia o outro, eles estão envoltos um no outro, o sentido está enraizado

na fala, a fala é a existência exterior do sentido. Não é possível admitir que a fala

seja um simples meio de fixação, o invólucro e a vestimenta do pensamento. A

palavra e a fala agora não são mais como uma maneira de designar o objeto ou o

pensamento, mas como a presença desse pensamento no mundo sensível e, não

mais sua vestimenta, mas seu emblema ou seu corpo.

Aquele que escuta recebe da própria fala o pensamento. O que importa na

recepção do pensamento não é o pensamento universal, mas a sua materialização

na fala, pois nessa visão fenomenológica da linguagem, a palavra não é mais o

simples signo dos objetos e das significações, mas habita as coisas e veicula as

significações. Portanto, a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito,

mas o consuma.

É que o falar e o compreender são momentos de um só sistema eu-


outrem, e que o portador desse sistema não é um eu puro, é o eu
dotado de um corpo, e continuamente ultrapassado por esse corpo,
que às vezes lhe subtrai seus pensamentos para atribuí-los a si
próprio ou para imputá-los a um outro. Pela minha linguagem e pelo
meu copo, sou acomodado a outrem. A própria distância que o
sujeito normal coloca entre si e outrem, a clara distinção do falar e
de ouvi-lo é uma das modalidades do sistema dos sujeitos
encarnados. (MERLEAU-PONTY,1974:33/4).
62

A fala mobiliza o corpo, tem um caminho de duas vias: a ação de falar e seu

alvo, e interlocutor. Nesta atividade, há um duplo movimento: na ação de falar, para

que a comunicação seja efetivada, promove-se uma adaptação a quem é dirigida a

fala, por outro lado, a ação complementar da audição entra no ser falante e se

mistura com sua palavra, formando uma só unidade. “Nos dois casos, eu me

projeto em outrem, o introduzo em mim, nossa conversação se parece com a luta

dos dois atletas nas duas pontas da única corda”. (Merleau-Ponty,1974:20)

Compreende-se então que o outro que fala entra “em meu corpo”, possibilitando ao

pensamento do outro fazer parte de mim. Paralelamente à fala, o encontro entre o

pensamento do autor e do leitor se dá pelo ato da leitura. Esse encontro provoca

em mim um ultrapassamento da minha percepção. Vou além do meu mundo,

entrando no mundo do autor. Isso é possível devido à natureza do corpo próprio.

Vou ao livro porque montei em mim esse estranho aparelho de expressão que é

capaz não somente de interpretar as palavras segundo as acepções recebidas, e a

técnica do livro segundo os procedimentos já conhecidos, mas ainda de se deixar

transformar por ele e criar através dele. E o momento de expressão se realizou

quando o escritor, utilizando do léxico disponível dá uma virada na significação até

então vigente, deixando-a à disposição do leitor sem saber o que advirá a partir

dessa inovação. Pois o contato do leitor com o verdadeiro escritor é mais que o

reencontro com o que ele já sabia, é o toque nas significações existentes de modo

a transcendê-las, causando uma espécie de estranheza com o fim de conquistar

uma nova harmonia, que por sua vez poderá gerar nova estranheza.

A linguagem através de uma imagem, interseção de imagens,


produto do pensamento é a pulsação de minhas relações comigo
mesmo e com outrem.Se eu quero comunicar-me com outrem, é
preciso primeiro que eu disponha de uma língua que nomeia coisas
visíveis para ele e para mim. (MERLEAU-PONTY,1974,p.36).

A fala é um verdadeiro gesto e contém seu sentido, assim como o gesto


63

contém o seu. Em Fenomenologia da percepção (1999) Merleau-Ponty afirma que é

isso que torna possível a comunicação.

O orador não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala; sua
fala é seu pensamento. Da mesma maneira, o ouvinte não concebe
por ocasião dos signos. O “pensamento” do orador é vazio enquanto
ele fala e quando se lê um texto diante de nós, se a expressão é
bem sucedida, não temos um pensamento à margem do próprio
texto, as palavras ocupam todo o nosso espírito, elas vêm
preencher exatamente nossa expectativa e nós sentimos a
necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-lo e
somos possuídos por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim
de um encantamento. (FP, 245).

Vivemos em um mundo em que a fala está instituída. Há uma interação entre

o que fala e o que escuta. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro.

Naquele que emite a fala existe uma intenção significativa que ele pôs em

movimento, ao mesmo tempo em que uma certa carência que procura preencher-

se. E quando retomo essa intenção significativa, estou realizando uma operação

sincrônica de minha existência, uma transformação de meu ser, que não se

restringe ao meu pensamento.

(...) o mundo lingüístico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós


não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de um
mundo já falado e falante que refletimos. Perdemos a consciência
do que há de contingente na expressão e na comunicação, seja
junto à criança que aprende a falar, seja junto ao escritor que diz e
penas pela primeira vez alguma coisa, seja enfim junto a todos os
que transformam um certo silêncio em fala. (FP, 250).

É por meio do corpo que se compreende o corpo alheio, e se percebe as

coisas; assim, a fala, como proveniente do corpo que está inserido no mundo, está

além da construção dos objetos científicos, pois não compreendo os gestos do

outro por um ato de interpretação intelectual; o sentido do gesto, não está atrás

deles mesmos, confundem-se com a estrutura do mundo. A casa onde vivo não

está além do espetáculo sensível e da casa ela mesma. Não é possível dar às

palavras e aos gestos uma significação separável do mundo:


64

(...) porque o gesto se limita a indicar uma certa relação entre o


homem e o mundo sensível, porque esse mundo é dado ao
espectador pela percepção natural, e porque assim o objeto
intencional é oferecido à testemunha ao mesmo tempo em que o
próprio gesto. (FP,253).

No interior dessa dimensão do corpo próprio enfatizada por Merleau-Ponty,

no qual está implicada a linguagem através da fala e dos gestos, nós

reencontramos o impasse entre empiristas e intelectualistas, agora diretamente

ligado à temática da linguagem.

Na realidade, veremos mais uma vez que há um parentesco entre


as psicologias empiristas ou mecanicistas e as psicologias
intelectualistas, e não se resolve o problema da linguagem
passando da tese à antítese. A reprodução da palavra, a
revivescência da imagem verbal era o essencial, agora é apenas
invólucro da verdadeira denominação da fala autêntica, que é uma
operação interior. Mas as duas concepções coincidem em que tanto
para uma como para a outra a palavra não tem significação.
(FP,240).

Na visão empirista, a fala apresenta-se apenas como um fenômeno articular,

sonoro, portanto, aquém da palavra enquanto significativa. Na visão intelectualista

é dada ênfase no sujeito pensante e não no sujeito falante.

Frente ao fenômeno da fala, a fenomenologia da linguagem vai buscar

encontrar um novo caminho para a concepção além das duas correntes: empirista e

intelectualista.

Contra os intelectualistas, Merleau-Ponty assinala que o pensamento não

existe por si, e que não é com o pensamento que, em primeiro lugar, eu me

comunico, mas com um sujeito falante que busca a fala e a comunicação para

alcançar o sentido; sem essa materialização na e através da expressão, ele cairia

na inconsciência.

À famosa questão de Kant, podemos responder que pensar é com


efeito uma experiência, no sentido em que nós nos damos nosso
pensamento pela fala interior ou exterior. Ele progride no instante e
como que por fulgurações, mas em seguida é preciso que nos
apropriemos dele, e é pela expressão que ele se torna nosso.
(MERLEAU-PONTY, 1999,p.242)
65

Há um sentido de transcendência implicado no conceito de linguagem, que

vai além dos processos intelectuais: a ligação entre a palavra e seu sentido vivo

não é uma mera forma exterior de associação. O sentido e a palavra são uma

unidade, coexistem numa significação gestual e existencial da fala. A linguagem, ao

mesmo tempo em que exprime pensamentos revela a posição do sujeito no mundo

de suas significações; o sujeito pensante está fundado no sujeito encarnado. O

sentido do gesto não está contido no gesto enquanto fenômeno físico ou fisiológico.

O ato de transcendência revela que o sentido da palavra não está contido na

palavra enquanto som, assim como o sentido do gesto não está limitado ao

movimento do corpo, mas vai além, através das significações que são apreendidas

pelos interlocutores. Visto por esse ângulo, não se pode dizer que fala e gesto

sejam uma operação exclusiva da inteligência, nem que são um fenômeno motor:

eles se apresentam integralmente como motricidade e inteligência. É importante

lembrar a dinamicidade desse processo, no sentido de que as significações agora

adquiridas transformam-se em novas significações.

É preciso reconhecer então essa potência aberta e indefinida de


significar – quer dizer, ao mesmo tempo de apreender e de
comunicar um sentido – como um fato último pelo qual o homem se
transcende em direção ao um comportamento novo, ou em direção
ao outro, ou em direção ao seu próprio pensamento, através de seu
corpo e de sua fala. (FP, 263).

O interesse de Merleau-Ponty pela literatura e pela pintura não está ligado ao

propósito de explicá-las, mas de aprender com elas; o foco de interesse é a

experiência da escrita, da leitura e da recepção do ato literário como advento da

intersubjetividade. Rejeita-se o formalismo que está ligado ao empirismo, não

porque sobreestima a forma, mas porque a subestima a ponto de separá-la do

sentido. Em Linguagem Indireta ele Merleau-Ponty ressalta que o que se busca

através desta arte da palavra é o uso vivo da linguagem que está além de uma
66

linguagem que só expõe e enuncia os fatos, mas uma linguagem enquanto

experiência e invenção que atribui perspectivas às coisas, dispondo-as em relevo,

que não se detém até onde vai, passando às outras que suscita, e inaugurando um

movimento constante que se constrói como uma linguagem a explorar e que nos

conduz a perspectivas inéditas em vez de apenas confirmar as nossas.

O indispensável na obra de arte, o que a torna muito mais que um


meio de prazer, um órgão do espírito, cujo análogo há de se
encontrar em qualquer pensar filosófico ou político se for produtivo,
é que contenha, melhor que idéias, matrizes de idéias, que nos
forneça emblemas cujo sentido não cessará nunca de se
desenvolver, que, precisamente por nos instalar em um mundo do
qual não temos a chave, nos ensine a ver e nos propicie enfim o
pensamento como nenhuma obra analítica o pode fazer, pois que a
análise só revela no objeto o que nele já está. (MERLEAU-PONTY,
1980, p.170/1).

Nesse intercâmbio entre o que existe em nós e o que nos chega através da palavra

delineia-se um estilo que nos permite reconhecer uma maneira de existir desse

pensamento, reproduzindo seu tom, e reconhecendo seu autor. Existe algo de vivo

nessa linguagem se que se ensina por si mesma e coloca seu sentido no espírito

do ouvinte:

(...) existe uma retomada do pensamento do outro através da fala,


uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o outro que
enriquece nossos próprios pensamentos. Aqui, é preciso que o
sentido das palavras finalmente seja induzido pelas próprias
palavras, ou mais exatamente, que sua significação conceitual se
forme por antecipação a partir de uma significação gestual que, é
imanente à fala (MERLEAU-PONTY,1999,p.244).

Tal estilo, por sua vez tem a sua fonte na percepção. Segundo Malraux,

citado por Merleau-Ponty em O visível e o invisível (2003), “a percepção já estiliza”.

Isto significa que a forma como algo é percebido vai culminar no estilo, que por sua

vez, não deve ser visto como algo que pudesse ser conhecido e premeditado fora

de qualquer contato com o mundo, como se fosse um fim. É preciso concebê-lo


67

pespontando as lacunas da percepção de acordo com as exigências que da

percepção provêm. Todo estilo enforma elementos do mundo na forma de uma

“deformação coerente” através da qual é se orienta para uma de suas partes

essenciais.

Por isso é que o estilo é uma construção que tem seu marco inicial nos

primeiros contatos da percepção. Quando Merleau-Ponty afirma: “Quão longa é a

iniciação do escritor à sua própria voz”, ele quer dizer que o escritor elabora o seu

estilo tanto através de seus experimentos na vida quanto pela literatura dos outros

e do mundo em que vive. A obra passa pelo corpo de quem a constrói e de quem a

observa, ela é o resultado de uma constante inter-relação entre o sujeito e o seu

mundo.

Em a Prosa do mundo, Merleau-Ponty ressalta o fato de que, após a tarefa

de exprimir, a linguagem se dissolve. Poderíamos dizer que ela cumpriu sua função

e transcendeu sua materialidade: no lugar das letras, frases, parágrafos ou

quaisquer outros sinais usados para exprimir restam apenas as sensações, o

sentido, que ficou através da linguagem. Merleau-Ponty ressalta duas formas de

linguagem: a linguagem falada e a linguagem falante.

A primeira aparece como a linguagem adquirida, que desaparece


diante do sentido de que se tornou portadora, a segunda, como a
linguagem que se fez no momento da expressão, aquela que fará o
leitor deslizar dos sinais ao sentido. Rompendo com sua
materialidade, a linguagem cumpre sua grande tarefa: é ela que nos
atira ao que significa; dissimula-se aos nossos olhos por sua própria
operação, seu triunfo é se apagar e nos dar acesso, além das
palavras, ao próprio pensamento do autor, de tal maneira que após
acreditarmos ter-nos entretido com ele sem palavras, de espírito a
espírito. (MERLEAU-PONTY,1974, p.26).

Segundo Merleau-Ponty, este renovar que faz do ato expressivo uma

eternidade provisória não é somente uma metamorfose no sentido dos contos de

fadas - milagre, magia, transgressão das leis naturais, criação - mas é também
68

uma resposta ao mundo que envolve a obra e às obras que antecederam sua

criação. Husserl utilizou-se do vocábulo alemão Stiftung – fundação por doação –

para designar basicamente a fecundidade ilimitada de todo presente que por ser

singular e fugaz não poderá nunca deixar de ter sido e, portanto, de existir na

universalidade, mas, sobretudo, a dos produtos de cultura que seguem valendo

após sua aparição por abrir um campo de pesquisas em cujo seio revive.

Em A prosa do mundo - O fantasma de uma linguagem pura (1974),

Merleau-Ponty ressalta que para que a obra se realize e se amplie através de mim,

é necessário que meu pensamento seja atraído pelo pensamento da obra que, por

sua vez, entra em mim e através de palavras, frases e todos os sinais ali contidos.

A partir dessa apreensão, o meu mundo estava no livro e o livro estava no meu

mundo, mas, no encontro, há uma ampliação nos dois pólos.

O livro não me interessaria tanto, se não começasse falando de algo


que já sei, de algo que encontra eco em mim. A partir disso, vou
além: (...) ele instalou-se em meu mundo. Depois, insensivelmente,
ele desviou os sinais de seu sentido comum, e eles me arrastaram
como um turbilhão para esse outro sentido que eu vou alcançar.
(MERLEAU-PONTY,1974,p.27).

A obra que cumpre sua função não é a que existe em si como coisa, mas a

que atinge o espectador, convidando-o a retomar o gesto que a criou e ir além,

reintegrando e despertando o poder de exprimir, para além do que até então foi dito

ou visto.

Essa potência da expressão é bem conhecida na arte, especialmente na

música, na qual não é possível pensar a significação musical de uma sonata como

separável dos sons que a conduzem: dessa forma, antes que a tenhamos ouvido,

nenhuma análise permite-nos adivinhá-la; uma vez terminada a execução, só

poderemos, em nossas análises intelectuais da música, reportar-nos ao momento


69

da experiência. Durante a execução, os sons são apenas os signos da sonata, mas

ela está ali, através deles, ela irrompe neles.

Mas fazia mais de um ano que, revelando a si mesmo muitas


riquezas da sua própria alma, lhe nascera, ao menos por algum
tempo, o amor à música, e Swann considerava os motivos musicais
como verdadeiras idéias, de um outro mundo, de uma outra ordem,
idéias veladas de trevas, desconhecidas, impenetráveis à
inteligência, mas que nem por isso deixam de ser perfeitamente
distintas umas das outras, desiguais de valor e significado. Ao fazer
tocar de novo a pequena frase, após a reunião dos Verdurin,
procurava saber de que modo ela o aliciava e envolvia, como um
perfume, uma carícia, e averiguava que era ao leve afastamento
das cinco notas que a compunham e ao retorno constante de duas
entre elas que se devia aquela impressão de retraída e trêmula
doçura; mas na verdade sabia que assim raciocinava não sobre a
própria frase, mas sobre simples valores que colocara, para
comodidade da inteligência, no lugar da misteriosa entidade que
havia vislumbrado, antes de conhecer os Verdurin, naquela reunião
em que ouvira a sonata pela vez primeira. Sabia que até a
lembrança do piano falseava ainda o plano em que via as coisas da
música, que o campo aberto ao músico não é um mesquinho
teclado de sete notas, mas um teclado incomensurável, ainda quase
completamente desconhecido, onde apenas aqui e ali, separadas
por espessas trevas inexploradas, algumas dos milhões de teclas
de ternura, de paixão, de coragem, de serenidade que o compõem,
cada qual tão diferente das outras como um universo de outro
universo, foram descobertas por alguns grandes artistas que,
despertando em nós o correspondente do tema que encontraram
nos prestam o serviço de mostrar-nos que riqueza, que variedade
oculta, sem o sabermos, esconde essa grande noite indevassada e
desalentadora da nossa alma, que nós consideramos como vácuo e
nada. Vinteuil fora um desses músicos. Na sua pequena frase,
embora apresentasse à razão uma superfície obscura, sentia-se um
conteúdo tão consistente, tão explícito, ao qual emprestava uma
força tão nova, tão original, que aqueles que a tinham ouvido a
conservavam em si no mesmo plano que as idéias do entendimento
(PROUST, 2001, p. 355/6).

Outro exemplo encontra-se na expressividade no teatro: a significação

devora os signos e o personagem Fedra tomou posse de Berma tão bem, que seu

êxtase em Fedra nos parece ser o máximo do natural e da facilidade. Em No

caminho de Guermantes o narrador apresenta a obra Fedra de Racine e a brilhante

interpretação da atriz Berma no papel de Fedra.

Fedra, a “Cena da Declaração", a Berma tinham então para mim


uma espécie de existência absoluta. Situadas fora do mundo da
experiência corrrente, existiam por si mesmas, tinha de ir até elas,
penetraria delas o que pudesse, e, abrindo meus olhos e minha
70

alma absorveria ainda uma. Mas como a vida me parecia agradável!


(PROUST, 2000, p.40).

Evidencia-se a questão da inerência entre o sensível e a idéia quando o

narrador ressalta o efeito da arte, aqui especificamente, o teatro através da

interpretação de Berma e a música (piano) de Vinteuil, como algo transcendente e

único.

Outrora, para ver se isolava esse talento, eu desfalcava de algum


modo o que ouvia, o próprio papel, o papel, parte comum de todas
as artistas que representavam Fedra e que eu previamente estudara
para poder subtraí-lo, para não recolher como residuo senão o
talento da sra. Berma. Mas esse talento que eu procurava
apreender fora do papel não formava mais que um todo com este.
Tal como acontece com um grande músico (parece que era o caso
de Vinteuil quando tocava piano), sua execução é de um pianista,
porque tão grande que já nem se sabe se esse artista é mesmo
pianista, porque (não interpondo todo esse aparato de musculares,
aqui e ali coroados de brilhantes efeitos, todo esse salpicar de notas
onde pelo menos o ouvinte que não sabe a que ater-se julga
encontrar o talento na sua realidade material, tangível) esse
desempenho se tornou tão transparente, tão cheio do que ele
interpreta que não se vê mais a ele próprio e o artista não é mais
que uma janela que dá para uma obra prima. (PROUST, 2000,
p.43).

Segundo o narrador, essa possibilidade de unir o sensível à idéia leva o

espectador a transcender a vivencia da arte como um “dado da vida”.

Os braços da Berma, que os próprios versos, na mesma emissão


com que faziam sair a voz dos lábios, pareciam erguer-se-lhe sobre
o peito como essas folhagens que a água desloca ao fugir; sua
atitude em cena, que ela havia lentamente constituído, que ainda
haveria de modificar, e que era feita de raciocínios que tinham
perdido sua origem voluntária, fundidos numa espécie de irradiação
em que faziam palpitar, em torno da personagem de Fedra,
elementos ricos e complexos, mas que o espectador fascinado
tomava não como um acerto da artista, mas como um dado da vida;
mesmo aqueles brancos véus que, extenuados fiéis, pareciam
matéria viva e que tinham sido fiados pelo sofrimento semipagão,
semijansenista, em torno do qual se contraíam como um casulo
frágil e friorento; tudo aquilo, voz, atitude gestos, véus, não eram,
em redor desse corpo de uma ideia que é um verso (corpo que, ao
contrário dos corpos humanos, não está diante da alma como um
obstáculo opaco que impede percebê-la, mas como uma veste
purificada, vivificada, onde ela se difunde e onde a reencontramos),
senão invólucros suplementares que, em vez de ocultá-la,
revelavam mais esplendidamente a alma que os assimilara e neles
se expandira, senão ondas de substâncias diversas que se
tornaram translúcidas, e cuja superposição só faz refratar mais
71

ricamente o raio central e prisioneiro que as atravessa e tornar mais


extensa, mais preciosa e mais bela a matéria embebida de flama
em que está infundido. Assim a interpretação da Berma era, em
torno da obra, uma segunda obra, vivificada também pelo gênio.
(PROUST, 2000, p.44).

A expressão estética confere uma existência em si àquilo que ela exprime;

instala na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente,

arranca os próprios signos – a pessoa do ator, as cores e a tela do pintor – de sua

existência empírica e os arrebata para um “outro” mundo.

Assim como a palavra e pensamento não estão separados, a operação

expressiva da literatura não traduz a significação. Ela é a significação. O

pensamento e a expressão constituem-se simultaneamente, quando nossa

aquisição cultural se mobiliza a serviço dessa lei desconhecida, assim como nosso

corpo repentinamente presta-se a um gesto novo na aquisição do hábito.

Cada escritor tem consciência de visar o mesmo mundo, a partir de seus

antecessores. Há uma inter-relação entre os mundos dos diversos escritores, como

ressalta Merleau-Ponty sobre os ícones da literatura: Balzac e Stendhal; tais

autores aparecem como sendo tais planetas que se inter-comunicam. Ao

mencioná-los ele se refere aos dois expoentes da literatura, marcos primordiais do

gênero literário, o romance:

... cada artista retoma a tarefa no seu início, há um novo libertar,


enquanto ordem da fala cada escritor tem consciência de visar o
mesmo mundo do qual os outros escritores já se ocupavam, o
mundo de Balzac e o mundo de Stendhal não são como que
planetas sem comunicação, a fala instala em nós a idéia de verdade
como limite presuntivo de seu esforço. Ela se esquece de si mesma
enquanto fato contingente, ela repousa sobre si mesma, e é isso,
nós o vimos, que nos dá o ideal de um pensamento sem fala,
enquanto a idéia de uma música sem sons é absurda...(FP, 258)

Toda ação e todo conhecimento está ligado esse tipo de intercomunicação;

para que se possa propor valores em nossa história individual ou coletiva. A vida

pessoal, a expressão, o conhecimento, e a história avançam obliquamente, que não


72

em linha reta em direção a fins ou conceitos. O que com demasiada deliberação

procuramos, não obtemos, não faltando pelo contrário idéias, valores, a quem

souber absorver, meditando na vida, o que da sua fonte espontânea se libera.


73

TERCEIRO CAPÍTULO :

PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO,

ENTRELAÇAMENTO DOS SENTIDOS

________________________________________
74

PERCEPÇÃO, SENSAÇÃO, ENTRELAÇAMENTO DOS SENTIDOS

Na proposta de relacionar a narrativa proustiana com a filosofia de Merleau-

Ponty nos encontramos frente ao desafio de compreender o sentido da sensação

dentro universo perceptivo do qual nos fala Merleau-Ponty. A percepção, segundo

Merleau-Ponty é o fundo sobre o qual todos os atos se destacam e o homem está

no mundo, e é no mundo que ele se conhece. “O mundo é não aquilo que eu

penso, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo e comunico-me

indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. (FP, 14).

A noção clássica de sensação, para Merleau-Ponty, não é um conceito

de reflexão, mas um produto tardio do pensamento. Tal crítica aponta para o fato

de que não se pode definir a sensação pela impressão pura. “O vermelho e o verde

não são sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da

consciência, é uma propriedade do objeto”. (FP, 25). Só podemos então admitir a

sensação quando ela está relacionada ao mundo: “Nós acreditamos saber muito

bem o que é “ver”, “ouvir”, “sentir”, porque há muito tempo a percepção nos deu

objetos coloridos ou sonoros”. (FP, 25). As sensações, portanto estão ligadas a um

mundo; o mundo do sujeito que percebe que vai de encontro a noção clássica de

sensação:

A teoria da sensação, que compõe todo saber com qualidades


determinadas, nos constrói objetos limpos de todo equívoco,
puros, absolutos, que são antes o ideal do conhecimento do que
seus temas efetivos; ela só se adapta à superestrutura tardia da
consciência É ali que "se realiza de modo aproximado a idéia da
sensação.(FP,33).
75

Nesse universo perceptivo, Merleau-Ponty mostra que, num primeiro

momento, pode-se entender por sensação a maneira pela qual sou afetado por algo

e a experiência de um estado em mim mesmo, como uma espécie de puro sentir,

um sentir desvinculado do mundo: as cores que se apresentam frente aos meus

olhos fechados, os sons que envolvem o espaço onde estou. Entretanto, nem

mesmo essa sensação pode ser considerada pura, ela está vinculada ao mundo;

desse modo, por meio da experiência no mundo é impossível encontrar algo que

corresponda a esse puro sentir. A fenomenologia de Merleau-Ponty pretende,

então, estabelecer que a sensação pura, em termos absolutos, é inacessível e

impensável, porque os objetos percebidos estão em algum lugar no mundo.

“Portanto, a pura impressão não apenas é inencontrável, mas imperceptível e,

portanto, impensável como momento da percepção. Se a introduzem, é porque, em

vez de estar atentos à experiência perceptiva, esquecem-na em benefício do objeto

percebido”. (FP, 24).

A afirmação de que na experiência perceptiva não é possível distinguir uma

camada de “impressões” puras, é exemplificado por meio dos conceitos de figura e

fundo, que a Gestalttheorie define como o dado sensível mais simples ao qual

temos acesso. Merleau-Ponty coloca o exemplo da figura e fundo. Ele ressalta que

a figura e o fundo têm contornos instáveis e as partes têm um sentido particular.

Pois o “algo” perceptivo faz parte de um campo e está sempre entre um outro

objeto. A estrutura da percepção mais uma vez vai nos permitir perceber que a

percepção pura é inencontrável, imperceptível e impensável. Descartando a

sensação por impressão pura, nos aproximamos daquilo que, intrinsecamente,

compõe essa percepção, o que possibilitará a descoberta das significações

inerentes a cada qualidade. Como diz J-P Sartre em L’imaginaire:


76

(...) ver é obter cores ou luzes, ouvir é obter sons, sentir é obter
qualidades, e para saber o que é sentir, não basta ter visto o
vermelho ou ouvido um lá? O vermelho e o verde não são
sensações, são sensíveis, e a qualidade não é um elemento da
consciência, é uma propriedade do objeto (...). Essa mancha
vermelha que vejo no tapete, ela só é vermelha levando em conta
uma sombra que a perpassa, sua qualidade só aparece em relação
com os jogos da luz e, portanto, como elemento de uma
configuração espacial. Aliás, a cor só é determinada se se estende
em uma certa superfície; uma superfície muito pequena seria
inqualificável. Enfim, esse vermelho não seria literalmente o mesmo
se não fosse o “vermelho lanoso” de um tapete. (apud, MERLEAU-
PONTY, 1999, p.25).

Nesse contexto, está a teoria da percepção que implica na teoria do

esquema corporal. O corpo não é algo que o sujeito possui, este é o próprio corpo

que, por sua vez, implica dois saberes: o que está relacionado com o mundo que o

envolve e o que se tem do próprio corpo. O sujeito no mundo vai elaborar a

experiência que se realiza entre esse corpo em relação ao mundo e vice-versa.

“Mas retomando assim o contato com o corpo e com o mundo é também a nós

mesmos que iremos reencontrar, já que, se percebemos com nosso corpo, o corpo

é um eu natural e como que o sujeito da percepção”. (FP, 278).

O corpo e o mundo implicam na espacialidade que lhes são inerentes,

conseqüentemente, a sensação tem sua dimensão espacial.

Toda sensação é espacial, nós aderimos a essa tese não porque a


qualidade enquanto objeto só pode ser pensada no espaço, mas
porque a qualidade enquanto contato primordial com o ser,
enquanto retomada, pelo sujeito que sente, de uma forma de
existência indicada pelo sensível, enquanto coexistência entre
aquele que sente e o sensível, ela própria é constitutiva de um
meio de experiência, quer dizer, de um espaço. (FP, 298).

Esse espaço que compõe o corpo e o inter-relaciona com mundo, é um

espaço expressivo. Através das diversas regiões do corpo emergem as ações

que se revelam através da expressão, e consequentemente o estilo.

O que reúne as “sensações táteis” de minha mão e as liga às


percepções visuais da mesma mão, assim como às percepções
visuais da mesma mão, assim como às percepções de outros
segmentos do corpo, é um certo estilo dos gestos de minha mão,
que implica um certo estilo dos movimentos de meus dedos e
77

contribui, por outro lado, para uma certa configuração de meu corpo.
Não é ao objeto físico que o corpo pode ser comparado, mas antes
à obra de arte. (FP, 208)

A percepção é a abertura ao que existe, portanto está acoplada na dimensão

do sensível na qual o sujeito está inserido em virtude de sua existência. Merleau-

Ponty, no decurso de sua obra, ressalta a crítica em relação ao ato perceptivo no

sentido de que na experiência perceptiva, a qualidade sensível não pode ser

separada do objeto ao qual ela se refere.


78

QUARTO CAPÍTULO

A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL NO
UNIVERSO FENOMENOLÓGICO DA
NARRATIVA PROUSTIANA
__________________________________________________________________________
79

A DIMENSÃO ESPAÇO-TEMPORAL NO UNIVERSO FENOMENOLÓGICO

Para Merleau-Ponty há uma relação íntima entre o tempo e a subjetividade, o

sujeito é essencialmente temporal: “(...)Somos convidados a fazer-nos do tempo e

do sujeito uma concepção tal que eles se comuniquem do interior”. (FP, 549). Há,

portanto, uma espécie de identidade entre tempo e subjetividade no sentido de que

um vai esclarecer a natureza do outro:

Analisar o tempo não é tirar as conseqüências de uma concepção


preestabelecida da subjetividade, é ter acesso, através do tempo, à
sua estrutura concreta. Se conseguirmos compreender o sujeito,
não será em sua pura forma, mas procurando-o na intersecção de
suas dimensões. Portanto, precisamos considerar o tempo em si
mesmo, e é seguindo a sua dialética interna que seremos
conduzidos a refazer nossa idéia do sujeito (FP, 550).

Nesse sentido, fica evidente que o tempo não se faz, nunca está

completamente constituído. Merleau-Ponty ressalta que o tempo constituído,

ou seja, a série das relações possíveis segundo o antes e o depois não é o

próprio tempo, mas apenas o seu registro final, é o resultado de sua passagem

que o pensamento objetivo sempre pressupõe e não consegue apreender.

A temporalidade se apresenta como uma dimensão do nosso ser. A

percepção presente está implicada na que a antecedeu e é responsável pela

orientação da que virá. Tanto o tempo, como o espaço, nasce da relação do “ser no

mundo”. Assim posto, “o tempo não é um dado da consciência, mas a consciência

torna manifesto o tempo” que, por sua vez, aparece como uma dimensão do ser-aí,

ele é a produção da identidade e da diferença do ser consigo mesmo.

A identidade entre subjetividade e tempo revela-se através de um movimento

constante: “A subjetividade não é a identidade imóvel consigo: para ser


80

subjetividade é lhe essencial, assim como ao tempo, abrir-se a um Outro e sair de

si’. (FP, 571).

Nós não somos, de uma maneira incompreensível, uma atividade


junto a uma passividade, um automatismo dominado por uma
vontade, uma percepção dominada por um juízo, mas inteiramente
ativos e inteiramente passivos, que somos o surgimento do tempo.
(FP, 573)

Em relação à questão da intencionalidade que é o ato de visar as coisas e

lhes dar significação, esse conceito se estende às questões da temporalidade no

sentido de que o tempo não é linear, mas uma rede de intencionalidades. A

questão temporal implica em que ao evocar um passado distante, eu reabro o

tempo, recoloco-me em um momento no qual ele ainda comportava um

horizonte de porvir hoje fechado, um horizonte de passado próximo hoje

distante. Tal fato reenvia ao que Merleau-Ponty denomina “campo de

presença”, que é a experiência do sujeito que vivencia o tempo em suas

dimensões, uma deslizando na outra possibilitando uma reabertura do tempo:

o evocar do passado, um horizonte de futuro. Nessa perspectiva, o sujeito

entra em contato com os cursos do tempo, embora na indeterminação de suas

dimensões:

O passado mais distante tem, ele também, sua ordem temporal


e uma posição temporal em relação ao meu presente, mas
enquanto ele mesmo foi presente, enquanto “em seu tempo”
ele foi atravessado por minha vida, enquanto ela prosseguiu até
agora. (FP, 557).

Frente a uma possível divisão do tempo, deparamos-nos com outra

questão: sua indivisibilidade, sua natureza total, assim como do mesmo modo

está a dimensão espacial que segue na mesma estrutura:

Da mesma maneira, eu não penso na tarde que vai chegar e em


sua seqüência, e todavia ela “está ali” como o verso de uma casa da
qual vejo a fachada, ou como o fundo sob a figura. Nosso porvir não
é feito apenas de conjecturas e de divagações. Adiante daquilo que
vejo e daquilo que percebo, sem dúvida, não há mais nada de
visível, mas meu mundo continua por linhas intencionais que traçam
81

antecipadamente pelo menos o estilo daquilo que virá (embora nós


esperemos sempre, e sem dúvida até a morte, ver aparecer outra
coisa) (FP, 557/8).

Segundo Merleau-Ponty, Husserl denomina de pretensões e retenções às

intencionalidades que me ancoram em uma circunvizinhança. Elas não têm como

ponto de partida um Eu central, mas o campo perceptivo do sujeito que percebe e

que traz consigo as suas retenções e que se lança no porvir a partir de suas

protensões. Nesse processo, o eu vivencia o tempo que se escoa ao mesmo

tempo que se revela através de uma unidade:

Não passo por uma série de agoras dos quais eu conservaria a


imagem e que, postos lado a lado, formariam uma linha. A cada mo-
mento que chega, o momento precedente sofre uma modificação:
eu ainda o tenho em mãos, ele ainda está ali, e todavia ele já
soçobra, ele desce para baixo da linha dos presentes; para
conservá-lo, é preciso que eu estenda a mão através de uma fina
camada de tempo. É exatamente ele, e tenho o poder de alcançá-lo
tal como ele acaba de ser, não estou cortado dele, mas enfim ele
não seria passado se nada tivesse mudado, ele começa a se perfilar
ou a se projetar sobre meu presente, quando há pouco ele era meu
presente. Quando sobrevém um terceiro momento, o segundo sofre
uma nova modificação; de retenção que era, ele se torna retenção
de retenção, a camada de tempo entre mim e ele se espassa (FP,
558).

Percebe-se que o passado não está separado de nós, não precisamos

evocá-lo para que ele se manifeste, e se personalize no nosso presente, está em

nós como um saber, uma vivência; daí o sentido da frase: “Passado e porvir têm

uma unidade natural e primordial’.

Merleau-Ponty ressalta que essa unidade e diversidade do tempo é um

paradoxo chamado por Hussserl de “síntese passiva” do tempo – uma expressão

que, segundo ele diz, não é uma solução, mas um índice para designar um

problema. “O surgimento de um presente novo não provoca uma compreessão do

passado e um despertar do futuro, mas o novo presente é a passagem de um futuro

ao presente e do antigo presente ao passado, é com um só movimento que, de um

extremo ao outro, o tempo se põe a mover”.(FP, 561).


82

Se devemos encontrar uma espécie de eternidade, será no coração de

nossa experiência do tempo e não em um sujeito intemporal que estaria

carregado de pensá-lo e de pô-lo. “Agora o problema é explicitar este tempo

em estado nascente e prestes a aparecer, sempre subentendido pela noção

do tempo, e que não é um objeto de nosso saber, mas uma dimensão do

nosso ser”.(FP, 557).

O ser no mundo, segundo Merleau-Ponty, vivenciando as significações,

sentidos, pensamentos caminha na direção do ultrapassamento das polaridades:

realismo e idealismo, acaso e razão absoluta, não-sentido e sentido que

distanciam da verdadeira natureza do ser. O que se busca com esse novo olhar

da Fenomenologia no que diz respeito à concepção tempo-espaço é um

abarcamento de sua dimensão total, e não uma fragmentação do conceito,

assim como em relação ao “ser e o mundo”:

O mundo tal como tentamos mostrá-lo, enquanto unidade


primordial de todas as nossas experiências no horizonte de nossa
vida e termo único de todos os nossos projetos, não é mais o
desdobramento visível de um Pensamento constituinte, nem uma
reunião fortuita de partes, nem, bem entendido, a operação de
um pensamento diretriz sobre uma matéria indiferente, mas a
pátria de toda racionalidade (FP, 576).

A reformulação por Husserl da perspectiva kantiana, preservando a

prerrogativa do sujeito do conhecimento, vai resultar numa nova concepção dos

conceitos de espaço e tempo que vai ao encontro das reflexões de Heidegger.

Segundo A de Waelhens em Une Philosophie de L’ambiguïté – L’existentialisme de

Maurice Merleau-Ponty:

Cette expérience de l’unité dans la dispersion, voilà exatament ce


que Heidegger nome la temporalité. Le terme reçoit donc un sens
bien plus profond que celui où il est pris chez Aristote et Kant,
lorsqu’il est dit que toutes nos affections s’ordonnent selon l’avant et
l’aprés et que, dès lors, le temps est la forme du sens intime.
(1970:292)
83

Assim como em Heidegger, para Merleau-Ponty, a temporalidade é uma

dimensão do nosso ser. Tanto o tempo, como o espaço, nasce da relação do “ser

no mundo”. O tempo não é um dado da consciência, mas a consciência torna

manifesto o tempo.

Merleau-Ponty pelo contato com o método fenomenológico por meio de

Heidegger, se afasta da perspectiva original da fenomenologia de Husserl e busca

pela ontologia do ser como fenômeno desenvolver e aprofundar a compreensão do

ser.

Em Ser e Tempo, Heidegger, a partir do método fenomenológico de seu

mestre Husserl, privilegia como eixo da investigação fenomenológica a questão do

ser: sentido e verdade. Seu projeto é o de examinar, não mais os atos intencionais

da consciência e sua essência, como fazia Husserl, mas empreender uma “analítica

existencial”, ou seja, uma forma de descrever a existência. Esta, por sua vez, é um

campo de possibilidades que é decidido pelo homem, o qual tem sempre a

possibilidade de escolher, atualizar, modificar, arbitrar.

A existência, por seu lado, é a maneira de ser do homem, o homem seu

modo de ser, que Heidegger denomina: Dasein, o ser-aí, o lugar em que se dá a

revelação do ser – “a clareira do ser”, sendo que “aí” representa o ser de fato, seu

encontrar-se no mundo. Então, a intencionalidade husserliana será reinterpretada

por Heidegger como temporalidade.

Em Ser e Tempo, a temporalidade será analisada como a dimensão

fundamental da existência humana, ela torna possível a unidade da existência, o

tempo é a essência do homem que, por sua vez, não existe em si, mas se faz na

existência.

O que nos leva a nomear juntos tempo e ser? Ser significa, desde a
aurora do pensamento ocidental-europeu até hoje, o mesmo que
84

presentar. De dentro do presentar e da presença fala o presente.


Este constitui, segundo a representação corrente, a característica
do tempo junto com o passado e o futuro. Ser enquanto presença é
determinado pelo tempo (HEIDEGGER, 1991, p. 206).

A analítica existencial proposta por Heidegger vai partir daquilo que o homem

é na vida cotidiana, como homem enquanto “ser no mundo”. O ser, por sua vez, vai

aparecer de forma indireta, portanto precisa ser buscado. Para tal desvendamento,

Heidegger, em oposição a Husserl que afirmava que a filosofia deveria ser uma

ciência rigorosa, sustentou que os sentimentos veiculados na arte revelam o ser,

mais que o intelecto, mais que a razão. Sua filosofia vai enfatizar a valorização da

linguagem, da poesia como a possibilidade do desvendamento do ser que, para

Heidegger, é uma forma de iluminação da linguagem poética, pois para ele o ser

habita essa linguagem criadora, como ele expressa em sua obra Que é Metafísica

O pensamento dócil à voz do ser, procura encontrar-lhe a palavra


através da qual a verdade do ser chegue à linguagem. (...) O
pensamento do ser protege a palavra e cumpre nesta solicitude o
seu destino. Este é o cuidado pelo uso da linguagem. O dizer do
pensamento vem do silêncio longamente guardado e da cuidadosa
clarificação do âmbito nele aberto. De igual origem é nomear o
poeta. Mas, pelo fato de o igual somente ser igual enquanto é
distinto, e o poetar e o pensar terem a mais pura igualdade no
cuidado da palavra, estão ambos, ao mesmo tempo, maximamente
separados em sua essência. O pensador diz o ser. O poeta nomeia
o sagrado (HEIDEGGER,1991:51).

O tempo é também uma síntese constante e inacabada, pois a todo instante

ele se faz, se transforma. E tal síntese temporal é inerente à própria vida. Nesse

processo do tempo, está implicado o espaço, na medida que a relação do ser no

mundo é, ao mesmo tempo, temporal e espacial. O sujeito que percebe, coexiste no

espaço e está igualmente envolvido numa ordem temporal. O presente vivido

contém uma dimensão do passado e uma dimensão do futuro no interior, imersos

na dimensão espacial, como explicita Merleau-Ponty:

Quando digo que vejo um objeto à distância, quero dizer que já o


possuo ou que ainda o possuo, ele está no futuro e no passado, ao
mesmo tempo que no espaço. Dir-se-á talvez que ele só está ali
85

para mim: em si a lâmpada que percebo existe ao mesmo tempo em


que eu, a distância está entre objetos simultâneos, e essa
simultaneidade, está incluída no próprio sentido da percepção. Sem
dúvida. Mas a coexistência, que com efeito define o espaço, não é
alheia ao tempo, ela é pertença de dois fenômenos à mesma vaga
temporal. Quanto à relação entre o objeto percebido e minha
percepção, ela não os liga no espaço e fora do tempo: eles são
contemporâneos. A “ordem dos coexistentes” não pode ser
separada da “ordem dos sucessivos”, ou antes o tempo não é
apenas a consciência de uma sucessão. A percepção me dá um
“campo de presença” no sentido amplo, que se estende segundo
duas dimensões: a dimensão aqui-ali e a dimensão passado-
presente-futuro. A segunda permite compreender a primeira. Eu
“possuo”, eu “tenho”, o objeto distante sem posição explícita da
perspectiva espacial (grandeza e forma aparentes), assim como
“ainda tenho em mãos” o passado próximo sem nenhuma
deformação, sem “recordação interposta”. (FP, 357).

No contexto da dimensão espaço-temporal, assim como na reflexão sobre a

linguagem e a percepção, o projeto da fenomenologia de Merleau-Ponty é também

encontrar um novo cogito que não é o face a face do «pensamento com o

pensamento deste pensamento» da tradição clássica, mas sim aquele que se

realiza na situação do ser no mundo: “A consciência do mundo não está fundada na

consciência de si, mas elas são rigorosamente contemporâneas: para mim existe

um mundo porque tenho um mundo”. (1999:400). Isso significa que a nova atitude

fenomenológica deve resgatar a dimensão da experiência como horizonte da

análise e compreensão do ser da consciência. A conseqüência disso é o

distanciamento com relação ao racionalismo clássico que, por esse motivo,

segundo Merleau-Ponty, não dá conta de explicar o fenômeno e se perde no

dogmatismo e na metafísica. Exclui-se também a redução do espaço ao espaço

geométrico, que implica num pensador universal que sustenta o conhecimento

unilateralmente:

O espaço natural e primordial não é o espaço geométrico e,


correlativamente, a unidade da experiência não é garantida por um
pensador universal que exporia diante de mim os conteúdos da
experiência e me asseguraria, em relação a eles, toda a ciência e
toda a potência. (MERLEAU-PONTY, 1999:394).
86

Nas análises de Merleau-Ponty, o espaço vai então revelar uma outra

dimensão que não é a do real e do lógico, mas o lugar da possibilidade, o que

implica um sujeito que vai determinar as linhas de ação no espaço.

Tomemos como exemplo uma criança que vive em determinada cidade e a

vê com proporções enormes; na idade adulta, tal cidade pode não lhe parecer tão

grande. Ou um sujeito que sempre morou no mesmo lugar e tem o conceito de

espacialidade de acordo com sua experiência, ou seja, sem parâmetro de

comparação com outro lugar. Quando, um dia, sai do seu domicílio e vê uma outra

cidade, ao retornar, vai olhar o espaço de sua residência numa outra proporção,

talvez maior ou menor. Nessa perspectiva, Merleau-Ponty vai caracterizar a

espacialidade no contexto da experiência de cada sujeito.

Enquanto a fenomenologia de Husserl se constitui a partir da noção de

consciência e a de Heidegger se constrói a partir da noção de ser ou de uma

ontologia, a de Merleau-Ponty se desenvolve a partir da noção de corpo que, por

sua vez, não é um corpo unicamente físico, mas um corpo virtual e fenomenal, que

ele compara a uma obra de arte.

Pois tal obra não pode separar expressão do que foi expresso, nela há uma

significação que é irradiada por toda a atmosfera, sem entretanto deixar de estar no

seu lugar temporal e espacial. Nesse sentido, o corpo “é um nó de significações

vivas e não a lei de um certo número de termos co-variantes” (FP, 210).

Querendo dar ao corpo a mesma relevância da obra de arte, Merleau-Ponty

o compara à pintura, a uma peça musical, ao romance. Na diversidade da obra de

Cézanne, encontra-se o único Cézanne, pois está aí implicada, como no corpo, a

diversidade na unidade:

Um romance, um poema, um quadro, uma peça musical são


indivíduos, quer dizer, seres em que não se pode distinguir a
87

expressão do expresso, cujo sentido só é acessível por um contato


direto, e que irradiam sua significação sem abandonar seu lugar
temporal e espacial. (FP,210).

Nesse modo de ver o corpo, ele não vai aparecer como uma coisa no espaço

objetivo, mas como o que Merleau-Ponty denomina, um corpo virtual, que vai

definir sua situação nessa espacialidade. Isso nos remete à concepção de um

corpo que produz um espetáculo no mundo. Sua ação, espacialidade, sua

temporalidade serão determinadas pelo seu papel no espetáculo a ser realizado:

Esse corpo virtual desloca o corpo real a tal ponto que o sujeito não
se sente mais no mundo em que efetivamente está, e que, em lugar
de sentir suas pernas e seus braços verdadeiros, ele sente as
pernas e os braços que precisaria ter para caminhar e para agir no
quarto refletido, ele habita o espetáculo. É agora que o nível
espacial oscila e se estabelece em sua nova posição. Portanto ele é
uma certa posse do mundo por meu corpo, um certo poder de meu
corpo sobre o mundo. (FP,337).

O que importa no projeto fenomenológico de Merleau-Ponty é buscar os

horizontes de objetivação possível, dentro do universo de cada sujeito imerso em

um mundo que os envolve a todos.

O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é


senão projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas
de um mundo que ele mesmo projeta. O sujeito é ser-no-mundo, e o
mundo permanece “subjetivo”, já que sua textura e suas
articulações são desenhadas pelo movimento de transcendência do
sujeito. (FP, 576).

A partir de minhas percepções e articulações motoras, um


espetáculo se articula numa interação com o mundo. É então
através desse corpo como centro de gravidade que se organizarão
as relações entre o sujeito e o espaço. Esse poder do sujeito sobre
seu mundo dá “origem” ao espaço: “A posse de um corpo traz
consigo o poder de mudar de nível e de ‘compreender’ o espaço,
assim como a posse da voz traz consigo o poder de mudar de ‘tom’”
(FP, 338).

Merleau-Ponty argumenta contra a noção de um espaço universal. Ele

defende que para se chegar a configurar um espaço que seria comum a todos, ou

seja, o espaço com as mesmas qualidades físicas em todas as direções, seria

preciso que o ser humano abandonasse seu lugar no mundo e, conseqüentemente,


88

seu ponto de vista em relação ao mundo e se colocasse na posição de Deus que,

em sua natureza onipresente, estaria em todos os lugares ao mesmo tempo: só

assim, a largura poderia ser equivalente à profundidade.

Aqui, o corpo vai se configurar como um sistema de ações possíveis, como

um corpo virtual cujo “lugar” fenomenal deverá ser definido por sua situação e pela

função que ele deve desempenhar. Em relação à função que o corpo desempenha,

existe uma inerência entre o corpo e mundo no sentido de que o mundo possui o

meu corpo, ou seja, existe uma relação direta entre a constituição do meu corpo e o

mundo que o rodeia, e meu corpo, por sua vez, exerce uma ação direta no mundo.

O tempo, nesse viés fenomenológico não é um “lugar” que contém os

diversos instantes, nem uma linha que marca momentos um após o outro, mas sim

uma dimensão que está além da sucessividade e que se apresenta como um

movimento interno que tem o presente como centro que, por sua vez, interage com

o passado e o futuro.

Heidegger, citado por Merleau-Ponty em A fenomenologia da percepção,

confirma essa idéia sustentando que: “A temporalidade não é uma sucessão

(Nacheinander) de êxtases. O porvir não é posterior ao passado e este não é

anterior ao presente. A temporalidade se temporaliza como porvir-que-vai-para-o-

passado-vindo-para-o-presente”. (HEIDEGGER, 1999:563)

Para compreender o tempo como uma totalidade tripartida, Merleau-Ponty

utiliza a metáfora do jato d’água: a água está em constante movimento, mas o jato

conserva sua forma, desde que cada onda sucessiva se coloca no lugar da

precedente:

Onda impelente em relação àquela que impelia, ela se torna, por


sua vez, onda impelida em relação a uma outra: e enfim exatamente
isso provém do fato de que, desde a fonte até o jato, as ondas não
89

são separadas: há um só ímpeto, uma única lacuna no fluxo


bastaria para romper o jato (MERLEAU-PONTY, 1999:565).

Nessa totalidade temporal que implica a diversidade, Merleau-Ponty ressalta

a relevância do presente, o impulso, pois o movimento do tempo não passa de uma

transição de um presente a um presente e é nesse instante que se torna possível a

retomada da dimensão temporal na sua diversidade – presente, passado, futuro:

Existe tempo para mim porque tenho um presente. É vindo ao


presente que um momento do tempo adquire a individualidade
indelével, o “de uma vez por todas” que lhe permitirá em seguida
atravessar o tempo e nos dará a ilusão da eternidade. Nenhuma das
dimensões do tempo pode ser deduzida das outras. Mas o presente
(no sentido amplo, com seus horizontes de passado e de porvir
originários) tem todavia um privilégio porque ele é a zona em que o
ser e a consciência coincidem (FP, 568).

É no presente que o ser e a consciência se tornam um e o mesmo. No

mundo, os seres se comunicam mutuamente e estar presente no mundo é o

mesmo que ter o tempo por inteiro e estar presente a nós mesmos:

“Em” meu presente, se eu o retomo ainda vivo e com tudo aquilo


que ele implica, há um êxtase em direção ao porvir e em direção ao
passado que faz as dimensões do tempo se manifestarem, não
como rivais, mas como inseparáveis: ser presentemente é ser
sempre, e ser para sempre (MERLEAU-PONTY, 1999, p.566).
90

CONCLUSÃO
91

O sensível como tecido indivisível que entrelaça nosso corpo, e o mundo à

nossa volta e abre-nos uma simultaneidade que é espaço-temporal. Nesse

contexto, o filósofo revela seu pensamento e o autor realiza sua obra literária.

A subjetividade tal como Merleau-Ponty a apresenta em O Visível e o

Invisível não é um vazio, como nas filosofias tradicionais da consciência, e sim uma

fenda, uma dobra que contém uma dimensão reflexiva, da qual emanam as

diferenças do sensível. As essências, por sua vez, não são as essências no sentido

platônico, distantes da realidade concreta, mas estão ligadas à experiência, ao

sensível. Dessa forma, as essências não podem ser separadas dos fatos

conhecidos, dos objetos positivos, nem de nosso lado espiritual, o que Merleau-

Ponty designa como o invisível de nossa presença no visível, evidenciando que a

metafísica não pode estar desvinculada do ser empírico. Como se confirma em

Sens et non-sens:

Tout change lorsqu’une philosophie phenoménologique ou


existentielle se donne pour tâche, non pas d’expliquer le monde ou
d’en découvrir les “conditions de possibilité” mais de formuler une
expérience du monde, um contact avec le monde qui précède toute
pensée sur le monde. Désormais ce qu’il y a de métaphisique dans
l’homme ne peut plus être rapporté à quelque au-delà de son être
empirique, – à Dieu, à la Conscience, – c’est dans son être même,
dans ses amours, dans ses haines, dans son histoire individuelle ou
collective que l’homme est métaphisique, et la métaphisique n’est
plus, comme disait Descartes, l’affaire de quelques heures par mois;
elle est presente, comme le pensait Pascal, dans le moindre
mouvement du coeur (Merleau-Ponty ,1996, p.48).

As essências só podem ser vistas como encarnadas: num determinado

tempo e espaço, esboçam-se, delineiam-se num campo de presença alimentado

pela intencionalidade operante e são sustentadas precisamente pela transposição

da sincronia, que se refere aos acontecimentos concomitantes, e pela diacronia,

relacionada à evolução dos fatos no tempo. Tal campo, segundo Merleau-Ponty,

implica na idéia que o mundo, em que estou situado, é uma unidade aberta e
92

indefinida, e o ser está em constante abertura para a experiência perceptiva, numa

dimensão plural de tempo-espaço: aqui-ali e passado-presente-futuro. A sensação

não pode separar-se da percepção, nem, portanto, separar-se de um fundo, que é o

mundo.

Servindo-se da mesma expressão com a qual situa no presente a linguagem

falada, para pôr em evidência a inscrição do ser, Merleau-Ponty define, em O

Visível e o Invisível, a essência como “essência operante” e explica que, assim

como as nervuras sustentam a folha de seu interior, “do fundo de sua carne”, as

idéias constituem a textura da experiência, seu estilo, mudo, inicialmente, e

proferido, em seguida.

É possível dizer que essa concepção da essência operante encontra seu

duplo no primeiro volume de Em busca do tempo perdido: No Caminho de Swann,

quando Proust apresenta certas idéias e sentimentos como inseparáveis de sua

concretude, de sua forma de expressão: amor-felicidade como inseparáveis da

frase musical ou dos sons da sonata.

(...)- do que como um penhor e lembrança de seu amor, que até ao


pianista e aos Verdurin fazia pensar ao mesmo tempo em Odete e
nele; e lhes servia de traço de união; tanto assim que, cedendo a
um capricho de Odette, renunciara a pedir a um artista que lhe
tocasse a sonata inteira, da qual continuou conhecendo apenas
aquela passagem. “Que necessidade tem do resto? – dissera-lhe
Odette – Este é o nosso trecho”. E sofrendo ao pensar, quando a
frase passava tão próximo e ao mesmo tempo no infinito, que,
enquanto se dirigia a eles, não os conhecia, Swann quase
lamentava que ela tivesse um significado, uma beleza intrínseca e
fixa, estranha aos dois, como, uma jóia que damos ou mesmo na
carta que recebemos da amada, censuramos à água da gema e às
palavras da linguagem não serem constituídas unicamente da
essência de uma amor fugaz e de uma determinada criatura (CS,
216).

Dessa maneira, em Proust, a idéia e o sensível enlaçam-se numa unidade.

Esse enlace constitui, na narrativa proustiana, a fenda que, para Merleau-Ponty,

ultrapassa um mundo determinado e objetivo, encontrando um universo que se


93

constitui em uma abertura constante, na qual está envolvida a subjetividade que,

por sua vez, revela-se na dimensão do visível e invisível, num tempo e espaço que

se manifestam na simultaneidade.

No decurso de sua análise filosófica, Merleau-Ponty ressalta a primazia da

experiência, pois o estabelecimento do corpo como matriz da percepção permite

desde o início entender que a consciência que percebe é encarnada. Como

resultado, ele pôde mostrar que a percepção não é simplesmente o resultado do

impacto do mundo exterior sobre o corpo de modo geral, pois cada corpo tem,

dentro da generalidade, suas particularidades, sua maneira própria de sentir o

mundo que o rodeia. Isso nos mostra que não há percepção “em geral” – uma

noção que poderia tornar-se uma abstração universal - mas sim, só há percepção

vivente no mundo. E o corpo não é um objeto entre muitos outros no mundo, mas o

lugar no mundo onde se encontra a consciência e é devido a ele que o mundo tem

um caráter perspectivo. A percepção e o corpo, portanto, constituem a experiência

do ser.

Há uma constante inter-relação entre o corpo e o mundo e os outros corpos.

Em relação àquele que cria por meio da arte, o corpo é, para Merleau-Ponty, o

motor que vai revelar essa experiência que concentra o invisível no visível. Não

podemos suprimir as coisas nem as pessoas porque elas gravitam à nossa volta e

coexistimos com esses elementos por irradiação e transitividade de nossos corpos.

O conceito de carne, segundo Renaud Bárbaras (1997), é um termo

traduzido do alemão – Leib. Esse termo se situa na fase ontológica, significando o

corpo enquanto vivido e vivo, que se distingue do corpo objetivo e do termo corpo-

próprio usado na fase das primeiras obras. Tal corpo enquanto carne é aquele que

mistura a polaridade sujeito-objeto e que se apresenta não como substância ou


94

espírito, mas como uma forma de interioridade sensível que tem seu equivalente

na velha palavra “elemento”, os elementos da natureza: água, ar, terra, fogo. Isso é:

a meio caminho do indivíduo espaço temporal e da idéia, essa massa interior

trabalhada, entendida figuralmente da parte ao todo do homem para restituir a

complexidade de sua condição: ser de matéria e de desejo corporal e espiritual, solitário e

solidário. Tal substância não tem nome em nenhuma filosofia. Merleau-Ponty quer dizer

que carne não é só uma noção nova, estranha à história da filosofia, mas quer mostrar que

é uma noção última pensável por si mesma. Será a partir desse conceito que Merleau-

Ponty pôde qualificar a conexão do sujeito fenomenológico com o mundo e sugerir

a maneira pela qual o mundo pôde se tornar tangível ao sujeito. Para isso, ele

mostra que o mundo e eu somos um dentro do outro, du percipere au percipi."

O termo chiasme, que designa uma figura de quatro termos grupados,

entrelaçados dois a dois segundo uma relação cruzada, anula a idéia de principium

e sustenta a idéia de reversibilidade. Esse termo assegura que quatro termos estão

em jogo: o corpo que toca e, ao mesmo tempo, é tocada, o mundo contendo o

corpo, e o mundo que aparece para esse corpo. Esse recurso é usado por Merleau-

Ponty para designar a relação complexa corpo-mundo: corpo vivant x corpo

percevant. Nesse entrelaço, estão implicados os conceitos de simultaneidade de

presença e ausência, visibilidade e invisibilidade, perfeição e inacabamento,

totalidade e abertura, tecido conjuntivo e diferenciado..

A figura do empiétement revela o abandono progressivo dos conceitos

clássicos e a substituição pelo termos entrelaços, chiasmes, transposição, círculos,

enrolamentos, dobraduras, nós e outras promiscuidades, que buscam uma visão

em profundidade da relação com o outro. Saint Aubert ressalta que, sob um olhar

clássico, essas figuras têm uma posição ambígua, a meio caminho do sensível e
95

da idéia, mas, para a filosofia de Merleau-Ponty, expressam a totalidade. A carne é

assim, metonímia e metáfora, produto exemplar de condensação e de distanciamento.

Merleau-Ponty fala em motivo central de uma filosofia como uma constelação

de palavras e de idéias, uma configuração de sentido. A filosofia, por sua vez,

interroga a linguagem, e a linguagem é tema universal da filosofia. A filosofia é

interrogação, enquanto a linguagem, para Merleau-Ponty, é um tema privilegiado de

interrogação. Ele vai afirmar que se a filosofia tem a intenção de pôr-se à escuta do

ser bruto não se pode afastar da arte: do escritor, do pintor.

A proposta de entrar no universo da filosofia e da arte, em especial da

literatura, remete-nos ao que Merleau-Ponty refletiu sobre a relação da arte e

filosofia em sua obra Sens et non-sens - O romance e a metafísica (1966).

Para o filósofo, a tarefa da literatura e da filosofia não pode ser separada,

pois uma complementa a outra. A experiência do mundo será expressa junto com a

consciência deste mundo. As histórias narradas serão, portanto, veículo para a

expressão filosófica. Tanto o romance quanto a metafísica estão unidos, a tarefa

da literatura e da filosofia não pode mais ser separada. Quando se trata de falar da

experiência do mundo e de mostrar como a consciência se escapa no mundo, nós

não podemos mais nos gabar de uma transparência perfeita da expressão. A

expressão filosófica assume as mesmas ambigüidades da expressão literária, e a

primeira vai se revelar tão relevante quanto a segunda em sua qualidade

expressiva.

Tal união entre filosofia e literatura, segundo Merleau-Ponty, é uma nova

dimensão da pesquisa que se abriu: é o eclodir de uma metafísica patente ou

latente. Tal metafísica, por sua vez, não pretende explicar o mundo, mas é uma

forma de explicitação da vida humana, de formular uma experiência do mundo, um


96

contato com o mundo que precede todo pensamento sobre o mundo. De agora em

diante, o que há de metafísico no homem não pode mais ser trazido aquém ou além

de seu ser empirico — à Dieu, à Ia Conscience —, mas é no seu próprio ser, na sua

vida, na sua raiva, na sua história individual ou coletiva.

Assim posto, a escolha de uma pesquisa na qual se destaca o encontro entre

a literatura e filosofia revela que o universo literário está presente no filosófico e

vice-versa. Segundo Merleau-Ponty foi a partir do fim do século XIX, que tais

universos se aproximaram, pois tudo se passou por longo tempo anterior a este

final do século, como se existissem entre a filosofia e a literatura não somente as

diferenças técnicas tocando o modo de expressão, mas ainda uma diferença de

objeto.

Para Merleau-Ponty, a obra de um grande romancista sempre traz consigo

duas ou três idéias filosóficas. Cita como exemplo o Eu e a Liberdade, em Stendhal;

o mistério da história como aparição de um sentido no acaso dos acontecimentos,

em Balzac; o envolvimento do passado no presente e a presença do tempo perdido,

em Proust.

A função do romancista, portanto, não é a de tematizar as idéias, mas de

fazê-las existir à nossa frente como coisas. Não é papel de Stendhal discorrer sobre

a subjetividade, mas o que importa é torná-la presente.

Acontece, portanto, um parentesco entre escritores e filósofos: Stendhal

elogia os ideólogos; Balzac busca compreender as relações da alma e do corpo, da

economia e da civilização, formulando a linguagem do espiritismo; Proust traduz

sua intuição do tempo, às vezes, numa filosofia relativa e cética; às vezes, nas

esperanças de imortalidade que a deformam igualmente.


97

Está definido um sentido de mudança na concepção metafísica, pois a

metafísica clássica pode passar por uma especialidade em que a literatura não

tinha lugar, porque ela funcionava sobre o fundo de um racionalismo incontestado e

que ela era persuadida de poder fazer compreender o mundo e a vida humana por

um agenciamento de conceitos, em que os fatos não importavam, o relevante era

uma reflexão sobre a vida, sem ter lugar uma explicitação sobre ela.

Seguindo a vertente da inserção da filosofia na arte, o pensamento filosófico

de Merleau-Ponty está constantemente interrogando a atividade artística: Olha o

pintor, lê o escritor. Dessa forma, não suprime o universal para colocar o particular,

mas busca o que ele chama de universalidade oblíqua, que ele compara com uma

simultaneidade de dimensões diferenciadas e entrelaçadas que podem ser

comparadas ao sentido da arte, ao alcance da palavra poética, ou da força da

pintura; como aquela em que uma cor representa um universo, uma frase musical

dá uma outra dimensão para o tempo e espaço.

Estamos imersos na dimensão do visível e o invisível como, não no sentido

comum de um lado espiritual em interação com o lado material, mas na direção do

visível e o invisível partes indivisíveis do Ser, como se fossem o avesso e o direito

irredutíveis um ao outro. Isso significa que, o visível está além e aquém do homem,

ao mesmo tempo em que se efetua no e através do homem. Uma dimensão contém

a outra, pois o visível está prenhe de invisibilidade e aparece como poroso e

lacunar, enquanto o invisível é pleno de visibilidade e aparece como transcendente

e aberto.

O invisível no e do visível faz com que “minha carne e a do mundo


comportem zonas claras, focos de luz em torno das quais giram
zonas opacas; a visibilidade primeira, a dos quale e das coisas, não
subsiste sem uma visibilidade segunda, a das linhas de força e das
dimensões, a carne maciça não subsiste sem a carne sutil, o corpo
momentâneo sem o corpo glorioso” (VI, 143/4).
98

Na dimensão do visível e do invisível como partes de um mesmo ser,

podemos compreender o conceito de ser bruto como por Merleau-Ponty. O ser

bruto vai aparecer como verticalidade ou universalidade oblíqua, que Merleau-Ponty

compara com um corte vertical feito por um cirurgião num corpo humano, o que

torna possível a contemplação de todo o corpo em funcionamento. Esse conceito

implica numa espécie de totalidade: os seres, o mundo, as palavras, as idéias.

(...) a verticalidade ainda nos diz que nós e o mundo estamos de pé


e abraçados. Laço que nos enlaça enlaçando nossa motricidade à
mobilidade das coisas e à nossa visibilidade, nossa visibilidade às
nossas palavras e estas às idéias num trânsito e numa transição
intermináveis, numa invasão de domínio que é troca interminável e
que só é possível porque somos todos, nós, as coisas, os outros, a
palavra e o pensamento, dimensões de um mesmo Ser.
Participamos de uma comunidade originária e onde nascemos por
segregação, e tudo assim nasce, por diferenciação. Essa
promiscuidade das origens, elemento e matriz, é Carne e mundo
vertical. Dimensão – diferenciação e simultaneidade – cada mundo
vertical na verticalidade da Carne é como as “estrelas de Van
Gogh, foco de irradiação do ser. (SIGNOS, 1960, p. 30).

Em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty destaca o modo como os sentidos

se entrelaçam: o olho que toca a superfície; um pensar que tateia idéias para

encontrar uma direção do pensamento; uma idéia sensível que nos possui mais do

que a possuímos, pois ela “entra em nós” e nos domina. Esse entrelaçar de

sentidos e pensamento remete ao artista que, como o pintor, sente-se visto pelas

coisas quando as mostra na sua pintura, ou como o escritor escuta enquanto fala

em seu texto.

Na contemplação de um objeto como, por exemplo, o cubo, não é possível

enxergar todas as partes; no entanto, sabemos que elas existem, constituindo tal

objeto.

Pois, se há carne, isto é, se a face escondida do cubo irradia em


algum lugar tão bem como a que tenho sob os olhos, e coexiste
com ela, e se eu que vejo o cubo também participo do visível, sou
visível de alhures; se ele e eu, juntos, estamos presos num mesmo
“elemento” – deve-se dizer do vidente ou do visível? – essa coesão,
essa visibilidade de princípio prevalece sobre toda discordância
99

momentânea (VI, 136).

Nessa reflexão sobre a dimensão do visível e invisível, Merleau-Ponty,

remete ao conceito husserliano de “horizonte das coisas”. Para ele, tal horizonte:

(...) não é uma coleção de coisas tênues, ou título de uma classe,


ou possibilidade lógica de concepção, ou um sistema de
“potencialidades da consciência”, constitui um novo tipo de ser, um
ser de porosidade, de pregnância ou de generalidade, e aquele,
diante do qual o horizonte se abre, aí é preso e englobado. Seu
corpo e suas distâncias participam da mesma corporeidade ou
visibilidade em geral que reina entre eles e ele, e mesmo além do
horizonte, aquém de sua pele, até o fundo do ser (VI, 144).

As essências revelam-se encarnadas, não mais como no idealismo

que as situa além do tempo e do espaço, e sim atuantes num campo de presença

alimentado pela intencionalidade operante e sustentado precisamente pela

transposição da sincronia sobre a diacronia, que caracteriza o campo. Em resumo,

as essências delineiam-se como o invisível ao qual o visível de nossas experiências

reenviam, conseqüentemente, não são separadas do sensível, ao contrário, são o

seu reverso. Emerge então a imagem, já mencionada, da folha e da nervura, que a

“carrega por dentro”, do fundo de sua carne: como a nervura da folha, as idéias são

a textura da experiência, seu estilo.

Essa concepção da essência encontra, segundo Merleau-Ponty, sua

experiência marcante na obra de Proust. Retomando o caso da concepção

particular do “amor felicidade”, que é encarnada na “pequena frase” da sonata de

Ventuil, os sons são inseparáveis da escuta dessa melodia. Trata-se de idéias

definidas como sensíveis, mantendo, não menos que as idéias da inteligência uma

lógica rigorosa, tendendo elas também à exploração do invisível, como Merleau-

Ponty apresenta em Notas de cours au collège de France:

(...)«...depuis plus d’une année que, lui révélant à lui-même bien


de richesses de son ame, l’amour de la musique était, pour
quelque temps au moins, né en lui, Swann tenait les motifs
musicaux pour de véritables idées, d’un autre monde, d’un autre
100

ordre, idées voilées de ténèbres, inconnues, impenétrables à


l’intelligence, mais qui n’en sont pás moins parfa itement
distinctes les unes des autres, inégales entre elles de valeur et
de signification (...). Il savait que le souvenir même du piano
faussait encore le plan dans lequel il voyait les choses de la
musique, que le camp ouvert au musicien n'est pás un clavier
mesquin de sept notes, mais un clavier incommensurable,
encore presque tout entier inconnu, ou seulement çà et lá,
séparées par d’épaisses ténèbres inexplorées, quelques-unes
des millions de touches de tendresse, de passion, de courage, de
sérénité, qui le composent, chacune aussi différente des autres
qu'un univers d'un autre univers, ont été découvertes par
quelques grands artistes qui nous rendent le service, en éveillant
en nous le correspondant du thème qu'ils ont trouvé, de nous
montrer quelle richesse, quelle variété, cache à notre insu cette
grande nuit impénétrée et décourageante de notre âme que nous
prenons pour du vide ou pour du néant. Vinteuil avait été l'un de
ces musiciens. En sa petite phrase, quoi-qu'elle présentât à la
raison une surface obscure, on sentait un contenu si consistant si
explicite, auquel elle donnait une force si nouvelle, si originale,
que ceux qui 1'avaient entendue la conservaient en eux de plain-
pied avec les idées de l'intelligence. Swann s'y reportait comme à
une conception de l'amour et du bonheur dont immédiatement il
savait aussi bien en quoi elle était particulière, qu'il le savait pour
la Princesse de Clèves ou pour René, quand leur nom se
présentait à sa mémoire. Même quand il ne pensait pás à la petite
phrase, elle existait latente dans son esprit au même titre que
certaines autres notions sans équivalent, comme la «notion de
lumière, de son, de relief de volupté physique, qui sont les
riches possessions dont se diversifie et se pare notre domaine
intérieur. (NC,191/2)

A aparência sensível da arte – seja ela a literatura por meio da palavra que

se organiza para gerar a idéia literária, seja a música que, articulada pelos modos

de exibição do som, gera a idéia musical, ou a pintura que, pelas formas, cores e

luz, revela a significação inerente às aparências sensíveis – representa, segundo

Merleau-Ponty, a ligação da carne com a idéia. No que diz respeito à arte literária,

Merleau-Ponty apresenta Proust como o autor que revelou de modo mais eficaz

essa relação entre a materialidade do signo e a sua significação. Proust é

considerado mestre em fixar as relações entre o visível e o invisível, e sua

produção literária exibe a profundidade e o duplo do sensível. Nesse sentido,

confirma Merleau-Ponty em sua obra O visível e o invisível, citando Proust, em No

caminho de Swann:
101

Não vemos nem ouvimos as idéias, nem mesmo com os olhos do


espírito ou com o terceiro ouvido: no entanto, ali estão, atrás dos
sons ou entre eles, atrás das luzes ou entre elas, reconhecíveis na
sua maneira sempre especial, única, de entrincheirar-se atrás deles,
"perfeitamente distintas umas das outras, desiguais entre si no valor
e significação (VI,146).

Nessa configuração, a idéia não é um invisível de fato, mas carrega consigo

uma outra dimensão que a sustenta, tornando-a visível, possibilitando sua

manifestação, como mais uma vez Merleau-Ponty cita Proust em No caminho de

Swann:

No instante em que se diz "luz", no instante em que os músicos


chegam à "pequena frase", não há em mim lacuna alguma; o que
vivo é tão "consistente", tão "explícito" quanto um pensamento
positivo — ou mesmo mais, um pensamento positivo é o que é, mas
precisamente é só isso, e nesta medida não pode fixar-nos. Já a
volubilidade do espírito o conduz alhures. As idéias musicais ou
sensíveis, exatamente porque são negatividade ou ausência
circunscrita, não são possuídas por nós, possuem-nos. Já não é o
executante que produz ou reproduz a sonata; ele se sente e os
outros sentem-se a serviço da sonata, é ela que através dele canta
ou grita tão bruscamente que ele precisa "precipitar-se sobre seu
arco" para poder segui-la. Estes turbilhões abertos no mundo
sonoro soldam-se num só, onde as idéias se ajustam uma à outra.
"Nunca a linguagem falada foi tão inflexivelmente necessidade,
conheceu a tal ponto a pertinência das questões, a evidência das
respostas" (VI,146).

Nessa relação sensível-idéia, Merleau-Ponty compara os momentos da

sonata com os fragmentos do campo luminoso, que se unem instantaneamente

como por “uma coesão sem conceito”. A partir desse exemplo, ele faz uma relação

com o corpo e o mundo e se interroga: o meu corpo é coisa ou idéia? O que está

em evidência aqui é uma analogia com a idéia e o sensível. E o corpo vai aparecer,

então, nem como idéia nem como coisa, mas como estando entre essas

dimensões.

A natureza do corpo vem ao encontro das idéias que emanam das

manifestações artísticas no sentido que a dimensão do invisível implica visibilidade.

É um visível que traz em sua natureza interior a presença do invisível.


102

Pela concepção fenomenológica e ontológica da linguagem, a palavra

literária de Proust revela que elementos da arte, como a exemplificada pela

pequena frase musical, são tão consistentes quanto um pensamento positivo. E que

as idéias não são possuídas por nós, mas nos possuem. Esses turbilhões abertos

no mundo sonoro soldam-se num só, onde as idéias se ajustam umas às outras.

N'est-ce pás une conception générale des idées? Car


«Princesse de Cleves»,«René» leur sont comparées- II y
a des «conceptions de l'amour et du bonheur» qui sont
enfermées en ces essences aussi bien que dans les mots -
L'écrivain lui aussi n'est-il pás à la recherche de ces
essences ?

En tout cas cette conception de l'idée s'applique aux notions du


sensible : comme la musique, le sensible donne «notions sans
équivalent"» : lumière, son, relief, volupté.
Question : que sont ces essences ?
La lumière n'est pás un quale, c'est l'impossibilité de l'obscurité,
l’entrée dans un monde, i.e. une dimension
désormais inalienable, l’initiation irréversible; Ia luminosité
est structure de 1'être:Éternité de la lumière pendant
qu'elle est. (NC,193).

Desse modo, idéias sensíveis compõem o “logos do mundo estético”,

freqüentemente retomado por Merleau-Ponty, precisamente devido à

reconsideração na relação entre o sensível e o inteligível: logos no qual o ser

encontra sua articulação bruta e selvagem. E a memória emerge como carne que

se revela pelo quiasma , na inter-relação com os tempos passado e presente,

literatura na modernidade.

Caminhou-se em direção do advento do século XIX de um saber integral em

que as determinações da filosofia clássica tomaram outro sentido: não mais o Ser

como "ser posto" pela consciência como detentora do poder absoluto, como poder

total para constituir o real enquanto conceito, idéia ou significação. Por meio da

filosofia e da arte, entramos em contato com o Ser; ele se tornou acessível;

“filosofia e arte, juntas, não são fabricações arbitrárias no universo da cultura, mas

contato com o Ser justamente enquanto criações".


103

A arte literária no universo da filosofia de Merleau-Ponty, possibilitou-nos

entender e sentir a ruptura do sujeito-objeto, para nos instalamos nos paradoxos,

nas antinomias, na dimensão da Carne do Quiasma, do Ser Bruto e do Espírito

Selvagem. Houve, então, como apresenta Merleau-Ponty, um momento instituinte

no qual o “Ser veio a ser” por meio da criação, pela manifestação da obra de arte. O

Ser Bruto, indiviso, completo, em simultaneidade e em todas as dimensões dos

sentidos – olfativas, gustativas, visuais, motrizes, sonoras, táteis e seu constante

movimento –, revela-se com o poder de duplicar todos os seres, fazendo-os ter um

fora e um dentro reversíveis e parentes. O Espírito Selvagem, como poder de

criação, concretizou-se no pensamento filosófico de Merleau-Ponty e no ato

expressivo de Marcel Proust.

Vimos que as questões filosóficas acerca da arte literária tiveram como

precedente os estudos sobre a linguagem, retirando-a do papel de simples

vestimenta do pensamento com a intenção de esclarecê-lo. Essa nova concepção da

linguagem e da literatura levou-nos ao percurso filosófico que se delineou por detrás

dessa concepção filosófica contemporânea: compreendemos o processo da ruptura da

filosofia clássica, a partir de Descartes, que sustenta o idealismo da consciência,

que separa o sujeito que conhece do objeto que é conhecido pelo sujeito. A

fenomenologia e a ontologia do ser do fenômeno, apresentada por Merleau-Ponty,

desnovelou-se no objetivo de unificar a ciência do homem, prevalecendo a visão que

totaliza o fenômeno humano, as ambigüidades de uma consciência encarnada e de

um corpo dotado de interioridade. A partir da concepção do corpo como matriz da

percepção do homem como ser-no-mundo, como sujeito consagrado ao mundo,

elaborou-se o entendimento do fenômeno literário, da lida do ficcionista com a palavra e

da sua transmissão pelo ato expressivo, que se define num estilo. Ficou evidente a
104

relação do corpo com a obra de arte, pois o corpo em si é um objeto que contém o

potencial da expressão, do estilo, assim como a obra de arte.

A obra literária revela-se, então, como o Ser Bruto e Espírito Selvagem, Carne

e Quiasma, pois estão juntos, entrelaçados, como polpa carnal do mundo, carne de

nosso corpo e carne das coisas. Vivenciamos o entrecruzamento do visível e do

invisível, que permitem o trabalho de criação, tanto a obra de arte quanto a filosofia.

Contemplamos agora uma filosofia sustentada a partir de uma interrogação

filosófica nova, na qual os “paradoxos e as ambigüidades não são elementos

estranhos e incompreensíveis, e convivemos com uma consciência encarnada e um

corpo dotado de interioridade num mundo composto pela simultaneidade de

dimensões diferenciadas”. Encontramos uma filosofia que habita as coisas, faz

parte delas, une o sujeito com o objeto, o corpo com o espírito.

Portanto, desconsidera-se o idealismo ou a significação do mundo para

privilegiar a existência como “ser no mundo” entre outros seres que, também, fazem

parte do mundo, imersos em uma situação cultural e histórica. O cogito que se

considera válido nesse momento filosófico é aquele que se revela em situação, que

possibilita a subjetividade transcendental tornar-se intersubjetividade. Confirma-se o

esforço da reflexão merleaupontyana de aproximar as ciências das artes, como a

manifestação de um novo paradigma, que amplia a nossa razão, para que ela

possa compreender o que em nós e nos outros precede e excede a razão.

A reflexão sobre a arte a partir da filosofia mergulha-nos na segunda fase da

obra de Merleau-Ponty: a ontologia do ser fenomenológico. Nessa fase, o artista

aparece como aquele que tem o corpo "como sentinela em vigília às portas do

sensível", e à filosofia coube a tarefa de recuperar a "dignidade ontológica do

sensível", que só foi possível pela interrogação filosófica por meio da arte.
105

A arte – em especial a literatura e a obra aqui em questão – mostrou à

filosofia as exigências que o pensamento precisa garantir para transitar entre as

polaridades: coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou

invisível, palavra ou silêncio, num movimento e intercomunicação constantes. Tanto o

pintor quanto o músico, o poeta e o pensador estão em ação constante em suas

atividades e, na dinâmica do tempo, em busca de novas expressões, revelam sua

relação com as expressões passadas e com o mundo presente. Desse modo, a

constante intercomunicação entre os sentidos numa dimensão espaço-temporal plural

e transcendente revela-se, na obra literária como Merleau-Ponty anunciou em sua

filosofia.

Adentramos num universo filosófico e literário em que a unidade e diversidade

do corpo pelos sentidos e seu entrelaçamento por meio de sons, de gestos, de

palavras, de imagens estiveram presentes na literatura e na relação “ser no mundo”,

levando-nos a reconhecer que, para sair de si, o narrador entra no mundo, ao mesmo

tempo que, ao entrar no mundo, ele volta a si mesmo. A arte transforma-se em tempo,

recriando-o, fazendo-o permanecer na arte que o sustém. Encontramos, assim, uma

filosofia que se une às artes, numa parceria que lhe outorga o título de filosofia do

sensível, ao mesmo tempo em que a arte se revela como pensamento.

A literatura, assim como a fenomenologia e a ontologia do ser

fenomenológico de Merleau-Ponty, demonstra-nos a verdadeira unidade do

sensível com o inteligível..

Experimenta-se o sentido do conceito de (Chair), que apontará para o corpo

vivo e vivido, ponto de encontro entre o sensível e o inteligível. A natureza que está

no interior vem à luz; a criação manifesta-se como essência, assim como o invisível

se manifesta no visível. Para esse feito, foi preciso uma falta, uma lacuna, que
106

levasse a experiência criadora a se manifestar por meio da sensibilidade do artista.

Tendo sido preenchido o espaço, emerge a significação, por meio da expressão. As

polaridades, de um lado; a falta, do outro, e o querer-poder possibilitam a ação

significadora, que resultam na presentificação da obra de arte e do pensamento: “o

pintor desvenda o visível, o escritor quebra o silêncio, o pensador interroga o

impensado”.

Percebe-se que a investigação filosófica de Merleau-Ponty, em sua parceria

arte-filosofia, é uma forma de ver o mundo por dentro sem abandonar sua inerência

a ele. Imerso no mundo, o artista ou o filósofo cria a possibilidade de elaboração de

uma linguagem peculiar que reflete a leitura do mundo, para que o sentido

abstraído venha à expressão. Pode-se, então, compreender porque a arte e a

filosofia são uma forma de reaprender a ver o mundo e porque a história narrada e

um tratado de filosofia podem significar o mundo com profundidade.

Pode-se então questionar: qual amplitude da correspondência da produção

literária com o trabalho filosófico de Merleau-Ponty? O que representa ser afetado

por imagens metafóricas da linguagem literária espelhadas no painel da história do

pensamento humano? A resposta sugere que o caminho do conhecimento é

formado por estradas paralelas que levam, muitas vezes, ao mesmo ponto – e o

que além disso?

Na fenomenologia e na ontologia, a unidade coexiste na diversidade. O

corpo é uma extensão da mente e vice-versa. O espírito está no corpo e se

manifesta por meio dele e com ele; o inteligível só existe em função do sensível, e

não existe superioridade nessa dualidade. Encontra-se enfim um pensamento que

não fragmenta a existência, mas que procura compreendê-la em sua integralidade.


107

Ouso dizer que entender e vivenciar os princípios da filosofia de Merleau-

Ponty é um meio de libertar-se do dogmatismo e do autoritarismo das doutrinas que

nos aprisionam ao privilegiar a mente em detrimento do corpo. A filosofia

merleaupontyana alertou para a questão do sujeito como ser no mundo, como

detentor de um corpo que lhe é singular. E mais: que não é possível desconsiderar

as vivências do sujeito, a constituição física e mental desse corpo e o mundo em

ele está inserido. Essa reflexão leva-nos a concluir que o filósofo contribui para uma

postura não autoritária e dogmática, pois considera as potencialidades e os limites

de cada ser, respeitando a sua singularidade. Ao considerar as condições em que

um indivíduo nasce e se constitui e a cultura na qual ele está inserido, estamos

respeitando as pluralidades e, conseqüentemente, afastando-nos do dogmatismo

ou do autoritarismo.

Ao encerrar essa reflexão sobre a literatura na filosofia de Merleau-Ponty

implica na colocação de uma pergunta que pressupõe uma resposta e que,

instantaneamente, formula outra pergunta emerge reacendendo a certeza de um

movimento constante que se renova, que se vivifica. Compreendemos, então, o que

Merleau-Ponty quer dizer quando afirma que o “mundo não é aquilo que eu penso

dele, mas aquilo que eu vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me

indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável e está em

constante transformação”.
108

APÊNDICE

1. O autor e a obra:

Marcel Proust que nasceu em Paris, no final do século XIX pertenceu a uma

família da aristocracia francesa, seu pai era um médico muito bem relacionado com

a alta sociedade e sua mãe vinha de família judia, rica e culta. Na infância teve

saúde precária que limitava sua vida, devido às constantes crises com problemas

respiratórios. Sua sensibilidade extrema revela-se através dos sentimentos mais

profundos relativos aos relacionamentos, em especial com a mãe, ao lado do ciúme

do pai e também do relacionamento extremamente sentimental com a avó materna.

As observações acirradas aos detalhes do mundo que percebia, vão direta ou

indiretamente refletir em na sua linguagem literária. No romance de Proust

vivenciamos o percurso de uma vida através da infância, adolescência, maturidade

e a reflexão sobre a arte como a saída para suas adversidades, o meio de conferir

sentido à sua existência.

No empreendimento de desvendar o sentido fenomenológico da narrativa de

Proust não nos interessam diretamente as informações exteriores a essa obra

como a biografia de Marcel Proust, mas como ressalta Merleau-Ponty toda vivência

de um autor é corporal que direta ou indiretamente vai estar presente na obra.

O fato da narrativa de A Busca ser conduzida por um narrador-personagem,

ou seja, a presença do pronome pessoal na primeira pessoa denota identidade da

personagem e do narrador, peculiaridade da narrativa proustiana e um índice da

modernidade e da pós-modernidade. Esta peculiaridade é também uma indicação

da presença da biografia na obra, embora esse fato não autoriza a afirmação de


109

que o narrador seja o personagem e que Em busca do tempo perdido seja a

biografia de Marcel Proust.

Gonçalves (2004) apresenta Roland Barthes com sua obra Proust et les

noms (1972) como um autor que discute o paralelo entre o personagem-narrador

Marcel e o narrador que se utiliza de elementos da vida do autor. Ele alerta que,

não se pretende fazer da obra Em busca do tempo perdido uma biografia de Marcel

Proust, mas também não se pode negar uma homologia entre os dois discursos,

embora não haja uma analogia.

Enquanto o narrador vai escrever num ato futuro que o coloca na


ordem da existência Marcel Proust escreve colocando-se na ordem
da palavra; o narrador se prende a uma psicologia; Marcel Proust se
mune de uma técnica: luta com as categorias da linguagem e não
com as categorias do comportamento. O universo das
reminiscências do narrador é da ordem das referências do mundo,
enquanto o universo do escritor Marcel Proust pertence a um
universo propriamente poético. Entretanto, é necessário que ambos
universos, o das reminiscências e o do fato lingüístico tenham o
poder de constituir a essência dos objetos romanescos.
(GONÇALVES, 2004:38).

Para entender o procedimento das vozes da narrativa da Busca é preciso

compreender, distinguir e relacionar o entrecruzamento dos dois discursos em

questão. É a partir dessa interação que emergiram os lampejos da memória, em

interação com a dimensão espaço-temporal que se revelou como total,

transcendendo a divisão da temporalidade, resultando no redimensionamento da

realidade pela arte:

Em suma, num como noutro caso, quer se tratassem de impressões


como as que me provocara a vista dos campanários de Martinville,
quer de reminiscências como a da desigualdade de dois passos ou
do gosto da madeleine, era mister tentar interpretar as sensações
como signos de outras tantas leis e idéias, procurando pensar, isto
é, fazer sair da penumbra o que sentira, convertê-lo em seu
equivalente espiritual. Ora, esse meio que se me afigurava o único,
que era senão a feitura de uma obra de arte? (TR, 158).

No decurso da narrativa, percebemos que o narrador e o autor vão

interagindo; o narrador dá voz ao autor no que se refere aos fenômenos da


110

memória criadora de Marcel, cujo objetivo de sua vida é ser autor de uma obra

literária. Esse objetivo é considerado, é a única saída para sua existência, o que lhe

daria sentido.

A partir do momento em que o narrador outorga seu espaço ao autor inicia-

se uma espécie de tratado sobre a arte, questões sobre a criação literária, natureza

da literatura, relação entre arte e realidade e sobre a recepção. Tais atribuições dão

à esta obra, o estatuto de um elaborado procedimento estético na literatura

moderna.

A obra de Proust emerge na história do romance no final do século XIX, após

a entrada em cena da literatura russa, que antes vivia à margem do movimento

geral de idéias na Europa e que surge com nomes como Dostoievski, Tolstoi e

Gogol. Dostoievski, em especial, trouxe a novidade da análise psicológica em

profundidade, aliada ao misticismo do povo eslavo, que conferia às narrativas uma

imprevista densidade trágica.

A novidade fascinou a Europa, e Dostoievski erigiu-se em mestre de uma

das vertentes do romance moderno, o da prospecção psicológica. Seguindo essa

vertente, Marcel Proust, vai ir além da prospecção psicológica, revelando uma outra

dimensão da narrativa romanesca, a que aqui se pretende denominar narrativa

fenomenológica. Essa forma de narrativa aprofunda a sondagem psicológica de

Dostoievski, graças à descoberta da memória como faculdade que apreende o fluxo

vital e do recurso ao conceito de tempo fora dos limites da linearidade ou do

encadeamento sucessivo dos fatos.

Instala-se o caos narrativo, propõe-se uma harmonia insólita, composta por

um tecido diversificado de circunstâncias que a memória involuntária surpreende e

trança, ao sabor do inconsciente ou dos imponderáveis cotidianos. Nesse momento


111

histórico, o romance ganha horizontes imprevisíveis e verdadeiramente modernos.

A obra de Proust, para Adorno, em Textos escolhidos, (1980) pertence à tradição

do romance subjetivo e psicológico que emprega a técnica do monólogo interior.

O narrador parece fundar um espaço interior que lhe poupa o passo


errado no mundo estranho da forma, como ele se manifestaria na
falsidade do tom que torna aquele mundo familiar.
Imperceptivelmente, o mundo é puxado para esse espaço interior –
atribuiu-se à técnica o título de monologue intérieur – e o que quer
que se desenrole no exterior ocorre no modo como na primeira
página se diz do instante de adormecer: como um retalho interior,
um momento da corrente de consciência, protegida da refutação
pela ordem espácio-temporal objetiva, para cuja suspensão está
mobilizada a obra proustiana. (ADORNO, 1980, p.271).

Essa técnica apresentada por Proust contrapõe à do romance tradicional, no

qual há uma distância estética: “O narrador ergue uma cortina: o leitor deve

participar das coisas acontecidas como se estivesse de corpo presente.”

(ADORNO, 1980, p.271)

Em Proust, o narrador vai romper com a distância fixada no


romance tradicional. O comentário do narrador interage com a ação
a ponto de se confundirem numa unidade. ”Agora ela varia como as
posições da câmara de cinema: ora o leitor é deixado fora, ora
guiado, através do comentário, até o palco, para trás dos bastidores,
para a casa das máquinas.” (ADORNO, 1980, p.272).

A leitura de uma obra como essa representa participar de um momento no

qual o autor ressalta as questões inerentes ao ser humano que, em sua

atemporalidade, encontra eco em todos nós. Evidenciam-se na narrativa as

divergências entre nobres e burgueses e uma constante valorização da arte nos

seus mais diversos setores e que vai culminar, no final do romance, num

redimensionamento do sentido da vida através da arte. A possibilidade de exprimir

através da arte transforma as vivências da realidade e permite redimensioná-las ao

possibilitar um novo olhar.

Passando-se da ordem dos acontecimentos à da expressão, não se


muda de mundo: os mesmos dados a que se estava sujeito tornam-
se sistema significante. Esfolados, refeitos do interior, liberados
enfim deste peso que os fazia dolorosos e ferinos, tornados
112

transparentes ou até radiosos e capazes de iluminar não somente


os aspectos do mundo que se lhes assemelham, mas ainda os
demais, por mais que se metamorfoseiem, nunca hão de cessar sua
presença originária. O conhecimento que deles se pode haurir não
substituirá jamais a experiência da própria obra. Auxilia-nos todavia
a medir a criação e nos ensina este salto imóvel que é o único salto
sem queda (MERLEAU-PONTY, 1980:160).

2. Entre outros expoentes literários...

A narrativa proustiana vai confirmar através da linguagem literária o sentido do

acoplamento entre o sensível e a idéia. E a questão perceptiva na narrativa de

Proust nos remete ao contexto no qual a obra está inserida. Entre outros expoentes

literários que podem ilustrar essa nova maneira de olhar, estão James Joyce, na

Irlanda e Guimarães Rosa, no Brasil; tais escritores aparecem como arautos de

uma nova maneira de pensar e narrar o mundo; uma maneira que rompe com o

estilo clássico tradicional. Como afirma Fábio de Souza Andrade, citando Donaldo

Schüler:

Mais do que o devassador, microscópico e telescópico, do 'grand


monde' francês da belle époque, Proust foi, ao lado de Joyce,
responsável pela instalação do romance moderno em seu domínio
próprio, pantanoso e movediço: o da consciência. A desconfiança
do realismo epidérmico; a obsessão em reconsiderar a experiência
do mundo através do filtro estético, livre das amarras da percepção
habitual; a rejeição da memória voluntária, com vocação de arquivo
morto; a percepção essencial da identidade como uma sucessão de
eus; a agudeza ao anotar os descompassos do desejo, tudo isso faz
do narrador de 'Em Busca do Tempo Perdido', às voltas com um
monstro 'janusiano, triádico e ágil', uma Divindade em que Tempo,
Hábito e Memória se combatem e se combinam (a imagem é de
Beckett, leitor e entusiasta de primeira hora), marco maior na
investigação dos labirintos do sujeito na modernidade.
http://www2.folha.uol.com.br/biblioteca/1/25/2002070702.ht

Proust, desrespeitando a estrutura formal da narrativa tradicional – que já

fora rompida pela narrativa psicológica de Dostoievski – aprofunda essa ruptura, ao

introduzir a memória como atividade que apreende o fluxo vital e, assim, transgride

os limites do encadeamento linear dos acontecimentos. Com isso, ele elabora uma

outra ordem narrativa, baseada numa harmonia inabitual, formada por um conjunto
113

de circunstâncias que a memória involuntária – em interação com o entrelaçar dos

sentidos. Isso resulta numa narrativa que introduz horizontes na literatura que

tornam possível uma narrativa não-linear, anti-realista e anti-determinista.

Proust desenvolve uma narrativa em estilo prismático, não linear, na qual o

mundo exterior e o próprio sujeito estão imersos num processo de simultaneidade,

em contraponto a uma sucessividade. Isso inclui a introdução da presença do

narrador, o recurso à primeira pessoa, o que lhe permite ressaltar o caráter

subjetivo do discurso, em contraposição à estética da época, que optava pela

objetividade da terceira pessoa.

Em Proust, a memória é acionada pela voz do narrador; essa voz, por sua

vez, é um produto das sensações e tem o corpo como força motriz. Tais sensações,

por sua vez, estão mais ligadas ao corpo e os sentidos do que ao intelecto, ou seja,

o pensamento, sugerindo uma inteligência corporal e não apenas intelectual como

confirma Philippe Willemart em Proust, Poeta e Psicanalista: “A definição do mundo

intelectual pelo desencadeamento das causas e efeitos e, por conseguinte, da

inteligência como sendo a qualidade que as percebe não é constante na obra

proustina”. (Willemart, 2000:35). Para melhor entender a dimensão da memória

presente na obra proustiana, vale a pena lembrar a definição dada ao termo por

Bergson, em sua obra Matéria e Memória.

Para Bergson, existem dois tipos de memória: a “memória voluntária”

(consciente) e a “memória espontânea” (inconsciente). A primeira, apresenta-se

como uma forma de hábito, uma espécie de memória motora e ativa, que tem um

caráter utilitário, como por exemplo: falar, andar de bicicleta, dirigir um automóvel,

ou mesmo lembrar de um fato acontecido. Em contrapartida, a memória

espontânea – a memória que está em questão na obra de Proust – é aquela que


114

faz um registro fiel de todos os acontecimentos e os evoca por meio de imagens

que se delineiam por via dos sentidos: “Ela é involuntária e tem um caráter não

pragmático, pois, para recuperar o passado em forma de imagem, é preciso poder

abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer

sonhar”. (BERGSON, 1990:64).

A memória aqui em questão não é produto de nossa inteligência, mas uma

memória ligada ao corpo por meio dos sentidos; são as sensações que são

despertadas pela memória que surgem instantaneamente independente da

vontade, portanto, involuntária, não depende da nossa consciência para emergir,

mas se encontra adormecida em nós e que, ao menor toque no corpo, podem ser

despertadas, subir à consciência. Um objeto encontrado por acaso pode ser motivo

do despertar de uma sensação proveniente dos sentidos fazendo emergir a

memória escondida na sensação. Tal memória que se desvenda, em geral, parte de

objetos simples, do cotidiano, sendo que tal encontro não é o resultado de uma

busca, mas sim de um encontro casual, involuntário, acidental. “O narrador torna-

se, portanto, objeto das circunstâncias para seguir esse tipo de memória. Existem,

entretanto; laços entre o objeto provocador de lembranças e a pessoa que se

recorda como nas lendas celtas onde os entes queridos desaparecidos fazem o

primeiro movimento e são reconhecidos”. (WILLEMART, 2000:54).

Por um lado, podemos entender que a busca do passado pode estar ligada à

angústia do que passou, à inexorabilidade do tempo. Para Proust, será uma tarefa

da memória ir em busca dos verdadeiros paraísos, aqueles que no decurso da vida

se perderam. Um sabor, um perfume, uma carícia, um olhar, no presente, pode

resgatar vivências do passado. Nesse sentido, Willemart citando Julia Kristeva,

afirma:
115

Sabemos também que, "para a filosofia contemporânea de Proust,


uma inteligência involuntária aparentada à vontade do Ser, articula
em imaginação e a sensibilidade que constitui a profundidade da
memória. (Willemart, 2000, p. 35)

Tal experiência remete ao que Merleau-Ponty aponta sobre o ser e o mundo

que se enlaçam numa unidade, confundindo um com o outro: o mundo desperta o

corpo e o corpo se volta ao mundo. A sensação despertada a partir do sabor, é um

exemplo clássico da obra proustiana, apresentada no primeiro volume de Em busca

do tempo perdido: No caminho de Swann.

Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas


do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de
extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem
noção de sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às
vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal
como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou, antes,
essa essência não estava em mim, era eu mesmo. Cessava de me sentir
medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa
alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que a
ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde
vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole que
me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que
está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro
não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e
só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força,
esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a
solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intato a minha disposição, para
um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito.
É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza, todas
as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando
ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde
todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas
explorar: criar. Está diante de qualquer coisa que ainda não existe e a que
só ele pode dar realidade e fazer entrar em sua luz.(CS, 49).

Quando o paladar é despertado pelo toque do mundo exterior como por exemplo o

sabor do bolo com o chá, há uma reação do o corpo; que coincide com o prazer que leva

o sujeito a uma sensação de plenitude (indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus

desastres, ilusória sua brevidade). Assim sendo, o sujeito que experimenta o toque do

paladar experimenta o sentido da essência (cessava de me sentir medíocre, contingente,

mortal) tal essência, por sua vez, é concomitante e está acoplada à materialidade da vida,

como resultado do toque no corpo através do paladar.


116

Constamos então que a essência encontra a existência confirmando o pensamento

fenomenológico proposto por Merleau-Ponty: a fenomenolgia é uma filosofia que repõe as

essências na existência e compreende o homem e o mundo a partir de sua faticidade.

Desse modo, buscar a essência da consciência não é fugir da existência. E buscar a

essência do mundo é ir ao encontro do que o mundo é para nós, senti-lo no corpo através

dos sentidos como revela Proust em sua narrativa.

O primeiro passo para essa sensação de eternidade, plenitude foi toque

dado no corpo que se revelou através do sentido do paladar: o sabor que, por sua

vez, acionou um movimento entre o ser e o mundo como se fosse um ímã que atrai

os objetos para si. O que vibra no sujeito que experimenta o sabor é a recordação

de uma vivência ligada a esse sentido que se desvenda no ser. O toque dado pela

madalena ou pelo chá ultrapassa o objeto revelando a dimensão essencial da

materialidade como explicita outro trecho de No caminho de Swann.

E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele era o gosto do


pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray
(pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia
Léonie me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da
Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto. O
simples fato de ver a madalena não me havia evocado coisa alguma
antes de que a provasse; talvez porque como depois tinha visto
muitas, sem as comer, nas confeitarias, sua imagem deixara
aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; (...)
E mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá
que minha tia me dava (embora ainda não soubesse, e que motivo
aquela lembrança me tornava tão feliz), eis que a velha casa
cinzenta, de fachada para a rua, onde estava seu quarto, veio
aplicar-se como um cenário de teatro, ao pequeno pavilhão que
dava para o jardim e que fora construído para meus pais aos fundos
da mesma (esse truncado trecho da casa que era só o que eu
recordava ate então) ; e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã
à noite, por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam
antes do almoço, as ruas por onde eu passava a as estradas que
seguíamos quando fazia bom tempo. E, como nesse divertimento
japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia d'água
pedacinhos de papel, até então indistintos a que, depois de
molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam,
tornam-se flores, casas, personagens consistentes a reconhecíveis,
assim agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do sr.
Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas
117

pequenas moradias e a igreja e toda a Combray a seus arredores,


tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha
taça de chá.(Proust, 2001: 51).

Outros sentidos como o tato e a visão (tropecei na pedras irregulares do

calçamento) são acionados revelando o mesmo sentido de plenitude a partir do

acionar da memória involuntária, como em O tempo redescoberto.

(...) entrara eu no pátio da residência dos Guermantes, e com minha


distração não vi um carro que se aproximava; ao grito do wattman
só tive tempo de afastar-me rapidamente, recuando tanto, sem
querer, que tropecei na pedras irregulares do calçamento em frente
à cocheira. Mas no momento em que, procurando equilibrar-me,
firmei o pé numa pedra um pouco mais baixa que a vizinha, todo o
meu desânimo se desvaneceu, ante a mesma felicidade em épocas
diversas de minha vida suscitada pela vista das árvores que eu
julgara reconhecer num passeio de carro pelos arredores de Balbec,
ou dos campanários de Martinville, pelo sabor da madeleine
umidecida numa infusão por tantas sensações das quais já falei e
me pareciam sintetizar-se nas últimas obras de Vinteuil. Como
quando provei a madeleine, dissiparam-se quaisquer inquietações
com o futuro, quaisquer dúvidas intelectuais. (...) a felicidade que
acabava de experimentar era, efetivamente, a mesma que sentira
ao comer a madeleine, e de cujas causas profundas adiara então a
busca. (TR,149).

Entretanto, as sensações nem sempre são claras, elas se embaralham, se

misturam entre os sentidos (a recordação visual que, ligada a esse sabor) que

chamam por recordações não muito claras (mal e mal percebo, não posso distinguir

a forma), mas que possuem como único norte para desvendar a imagem que

emergiu pela memória involuntária, o sentido (como ao único intérprete possível)

que foi acionado.

Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem,
a recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até
chegar a mim. Mas debate-se demasiado longe, demasiado
confusamente; mal e mal percebo o reflexo neutro em que se
confunde o ininteligível turbilhão das cores agitadas; mas não posso
distinguir a forma, pedir-lhe, como ao único intérprete possível, que
me traduza o testemunho de seu contemporâneo, de seu
inseparável companheiro, o sabor, pedir-lhe que me indique de que
circunstância particular, de que época do passado é que se trata.
(CS, 50).

A memória já foi acionada quando o narrador-personagem busca recuperar


118

seus eus anteriores: na infância, na adolescência e na maturidade. Esse olhar para

passado torna possível um redimensionamento da realidade no presente. Tal

resgate está ligado a um ideal protagonista: o desejo de realizar-se através da arte

literária em interação com a sensação de plenitude, que o invade em certos

momentos em que a arte se manifesta em sua vida.

Essa narrativa se elabora num processo no qual se dá o enlace entre o

pensamento do narrador – que também se apresenta como personagem – e as

sensações provenientes do mundo exterior, no qual se encontram os diferentes

personagens da narrativa. Esse enlace se desenrola nos mais diversos planos do

cotidiano da aristocracia francesa urbana. O texto apresenta uma complexa

estrutura espaço-temporal, a presença da ubiqüidade temporal e de anacronias,

como explicita Merleau-Ponty em Notes de cours au Collège de France (1958-1959

et 1960 -1961)

Aprés Proust, Joyce, les Americains, le monde de signification est


indiret: moi–autrui-le monde delibérément mélangés, impliqués l´un
dans l´autre, exprimes l´un par autre, dans [un] rapport lateral –
Proust: l´appel à ecrire lancé para lês choses (Clochers de
Martinville, 3 arbres): évidence de l´être là muet des choses
exigeant parole, parole dont le but est de restituer leur silence -
L´essence dans l´apparence, paradoxalment – la transcendence
comme ce paradoxe – on la retrouve partout: en moi, je suis
intermittent, micro-description montrant [la] discontinuité, et pourtant
(mort de la grand mère retrouvée plusieurs mois plus tard) je me
trouve dans se discontinu). (NC,49)

As considerações de Merleau-Ponty acerca da percepção e da sensação

podem ser ilustradas por essa nova maneira de olhar e descrever o mundo, que

será uma das marcas da estética literária moderna e pós-moderna. Essa maneira

de narrar representa a ruptura com a grande tradição literária anterior, o realismo.

Sabemos que, em geral, o movimento realista tem como ideal apresentar a

realidade da forma mais fiel possível, preferindo imitar a inventar. É o positivismo

que dá suporte ao realismo, ao privilegiar as ciências naturais ou experimentais e


119

sustentar a tese de que o conhecimento científico é o padrão das análises e

descrições que devem guiar a narrativa. O positivismo admite unicamente a

indução e a dedução como instrumentos de conhecimento e análise, excluindo todo

outro tipo de conhecimento, inclusive o conhecimento adquirido por meio da

intuição. Em conseqüência disso, a narrativa realista busca apenas a objetividade,

empenha-se em ser impessoal: o que importa são os fatos, a narrativa não deve

perturbá-los. nem interpretá-los.

A criação literária no âmbito do movimento modernista no qual se insere a

narrativa proustiana deve buscar apoio numa reflexão a respeito da necessidade de

se efetuar uma ruptura com os princípios deterministas e objetivistas da estética

realista. No entanto, não se trata de mergulhar no subjetivismo, como faz a estética

simbolista, mas sim de buscar uma outra dimensão, que se revela nessa nova

maneira de olhar e narrar apontada em Notes de cours au Collège de France

(1958-1959 et 1960 -1961)

Donc ni subjectif ni objectif, mais implication et rapport lateral des


personnages l´un dans l´autre et dans le monde et de tous dans
l´auteur , et par là signification indirecte. [En marge:] Relativisation
du signifiant et do signifié: recherche d´une parole des choses
(Martinville – le livre écrit en nous), on ne se contente plus de leur
parallèle. Ici, comme ci-dessus, il y a en surface destruction,
dissociation, - et recherche d’un lien, d’une solidité, plus
fondamentaux. (NC, p. 50).

Nesse sentido, ao reconfigurar as análises da sensação e da percepção e

revelar seu caráter não tão claro e imediato, em contraponto ao que descreviam as

análises clássicas, Merleau-Ponty lança um novo olhar sobre esses fenômenos da

consciência que encontra seu paralelo na narrativa literária de Marcel Proust, na

medida ele consegue fixar as relações entre o visível e o invisível na descrição de

uma idéia que, sem entretanto contrariar o sensível, revela o seu duplo e sua

profundidade.
120

3. O tempo na narrativa proustiana

Em Proust, encontramos implícita a identificação estabelecida por

Heidegger: ser é tempo. Proust, narrador-personagem, apresenta os

acontecimentos por meio de uma cadeia de associações espontâneas, a partir das

quais ele captura elementos do passado, que vêm à tona ao ser acionados pela

memória. Por meio desse mecanismo, o tempo presente dá uma nova configuração

ao passado, pois vai possibilitar o redimensionamento dos acontecimentos do

passado e, portanto compreender por um outro prisma, o que outrora foi vivenciado.

Esse mecanismo relativo à ordem temporal leva a um tratamento do passado que

recusa a idéia de continuidade e situa os acontecimentos numa outra ordem, na

qual está implicada a unidade e a não-compartimentação da temporalidade. Em O

Tempo Redescoberto, Proust deixa-nos entrever o tempo não como um atributo da

realidade, mas como a própria realidade:

Era essa noção do tempo incorporado, dos anos escoados porém


inseparáveis de nós que eu tencionava fazer ressaltar em minha
obra. (...) Experimentava uma sensação de imenso cansaço ao
verificar que todo esse tempo tão longo não só fora, sem
interrupção, vivido, pensado, segregado por mim, era minha vida,
era eu mesmo, como ainda o devia incessantemente manter preso a
mim, pois me sustentava, eu me via jungido a seu cimo vertiginoso,
não me podia locomover sem comigo o deslocar (TR:291).

O projeto fenomenológico pretende pensar o tempo em sua totalidade, antes

da tripartição passado, presente e futuro que, por sua vez, está ligada a uma

unidade antes de serem considerados como momentos isoláveis. O tempo real só

será inteligível, não por acumulação e sucessão desses momentos isolados, mas

pela relação na qual se forma a unidade dispersa dos êxtases. Como se evidencia

em O Tempo redescoberto.

(...) - exatamente como se achasse fastidiosos o mundo e a vida por


julgá-los através de falsas recordações, quando ao contrário, tinha
tanta sede de viver, agora que, por três vezes, renascera em mim o
momento passado. Apenas um momento passado? Muito mais,
121

talvez: alguma coisa que, comum ao passado e ao presente, é mais


essencial do que ambos. (TR, 153)

E é nessa unidade que está presente a experiência da temporalização, que

se apresenta como o deslizamento e permanência entre os momentos: do futuro

em direção ao presente e ao passado. Não há, portanto, instantes separáveis, mas

deslizamento contínuo da temporalidade em que acontece uma total interação,

cada extensão para diante tornou-se insensível à retenção, cada retenção a

retenção de uma retenção.

Portanto, tudo me reenvia ao campo de presença como à


experiência originária em que o tempo e suas dimensões aparecem
em pessoa, sem distância interposta e em uma evidência última. É
ali que vemos um porvir deslizar no presente e no passado (FP,
55P).

Percebe-se, então, que não há instantes separáveis, mas um entrelaçar

contínuo da temporalidade, em que tudo se mistura. Assim, os instantes não se

excluem, mas se diferenciam: o passado não desaparece, ele adquire uma nova

posição, deixa de ser presença, para ser herança. No ato da recordação de um fato

já vivido, por exemplo, ao se elaborar na consciência, ele se torna efetivamente

presente. Dessa maneira, o “passado” torna-se “presente” ou nunca deixou de ser

presente, embora um presente escondido na dimensão existencial do sujeito.

Assim, uma cicatriz no corpo é um presente que se explica como passado.

Esse sinal corporal representa o sentido vivido da temporalidade, assim como os

traços deixados sobre um objeto (escritos, desenhos, sinais) são fatos presentes

entendidos como testemunhas de um passado. Tal marca, de certa forma é um elo

que coloca o sujeito na dimensão do passado no presente.

Fica evidente que o tempo de alguma forma atua sobre a vida, o corpo revela

os sinais do tempo, corpo está submetido ao tempo, entretanto o corpo expressa

também a vida que esse corpo leva, ou seja, o que o sujeito faz do seu corpo.
122

Proust em O tempo redescoberto revela marcas do tempo tais como o

envelhecimento, a maneira como o sujeito conduziu a vida, como a adoção de atos

saudáveis ou vícios.

Envelhecendo, pareciam ganhar uma personalidade nova, como as


árvores às quais o outono, alterando as cores, parece mudar a
essência. Neles a velhice se manifestava realmente, mas como uma
coisa moral (que antes não possuíam). Em outros, era sobretudo
física, e tão nova que a pessoa – a sra. De Souvré, por exemplo –
se me afigurava ao mesmo tempo conhecida e desconhecida
(TR,205).

É, porém, mister ressalvar a aceleração que sofrem, para


certas pessoas, as medidas do próprio tempo. Eu encontrara
por acaso, na rua, haveria quatro ou cinco anos, a
viscondessa de Saint-Fiacre (nora da amiga dos Guermantes).
Seus trabalhos esculturais pareciam assegurar-lhe eterna
mocidade. Era, aliás, ainda jovem. Ora, não consegui, a
despeito de seus sorrisos e cumprimentos, vislumbrá-la numa
senhora de feições desfeitas que não se lhe poderia recompor
a linha do rosto. É que há três anos tomava cocaína e outras
drogas. Os olhos, afundados em negras olheiras, eram de
alucinadas. A boca tinha um ricto estranho. Deixara, segundo
me contaram, só para esta recepção a cama ou a chaise-
longue onde passava meses. O tempo possui assim trens
expressos e especiais, que conduzem à velhice prematura.
Mas em trilhos paralelos circulam trens de volta, quase
igualmente velozes. Tomei o sr de Courgivaux pelo filho, tão
remoçado o achei (já devia ter ultrapassado os cinqüenta anos
e estava mais jovem do que aos trinta). Encontrara um médico
inteligente, suprimira o álcool e o sal; voltara à casa dos trinta,
que, hoje, nem parecia haver atingido. É que de manhã
cortara o cabelo (TR,212).

O passado torna-se presente, ou nunca deixou de ser presente, pois embora

indiretamente, está presente na vida do sujeito. Por outro lado, o passado vivido

pode se tornar presente e implicar num redimensionamento da realidade, ou seja, o

sentido vivido outrora, agora toma outro sentido, outro contexto, outra dimensão,

com a possibilidade de resgatar valores outrora perdidos. Pois o ser agora pode

remeter outro olhar para uma vivência do passado e dar-lhe um outro sentido

existencial. Esse outro olhar é possível através da arte, que em seu potencial
123

criativo e transformador pode se tornar o veículo que conduzirá o sujeito ao

redimensionamento da realidade, a atribuir à sua vida um outro sentido.

Esse romance, objeto de meu estudo, está aqui em minha frente, no meu

presente, mas traz consigo marcas de um passado, a obra de Marcel Proust. Está

nele o nome do autor, o título que foi por ele escolhido, as idéias que hoje podem

ter sido superadas, remetendo assim ao passado. Ao mesmo tempo, a minha

leitura dessa obra torna presente, através de mim, as idéias que um dia foram

elaboradas pelo autor. Essas idéias, sendo hoje lidas, compreendidas, e

relacionadas a um pensamento filosófico como a fenomenologia é uma forma de

poder ser reformuladas, vindo a construir um porvir. Portanto só se pode pensar em

explicar a relação do porvir ao presente, assimilando a relação do presente ao

passado.

Não há instantes separáveis, mas deslizamento contínuo da


temporalidade onde tudo se mistura, onde cada extensão para
diante tornou-se insensível à retenção, cada retenção a retenção de
uma retenção. Portanto, tudo me reenvia ao campo de presença
como à experiência originária em que o tempo e suas dimensões
aparecem em pessoa, sem distância interposta e em uma evidência
última. É ali que vemos um porvir deslizar no presente e no
passado. (FP, 557).

4. Filosofia e literatura “almejam a verdade posta em obra”

Segundo Franklin Leopoldo Silva, em seu artigo Bergson e Proust: o impressionismo

como obstáculo e transparência (1996), é preciso buscar a unidade entre o trabalho

da literatura e da filosofia. Segundo ele, tanto a filosofia como a literatura “almejam a

verdade posta em obra”, entretanto, a imaginação artística recebe o legado das coisas,

enquanto a imaginação filosófica precisa buscá-las.

“Talvez nunca se saberá a razão pela qual a imaginação artística


recebe o legado das coisas, enquanto a imaginação filosófica
necessita buscá-lo. Ou porque o filósofo deve partir para a conquista
daquilo mesmo de que o artista é o herdeiro natural.” (SILVA: 1996,
p.155).
124

E acrescenta que, entre arte e filosofia, existe uma extraordinária afinidade, como

também a arte se põe como paradigma do discurso filosófico. O artista a realiza

implicitamente toda vez que cria um discurso. A ausência de mediação explícita se deve

ao fato de que a matriz da expressão artística é a emoção, isso é: uma outra organização

das impressões representativas. Proust, em Sodoma e Gomorra, revela na literatura o que

o filósofo tenta atingir com o trabalho do pensamento: "A realidade não existe para nós

enquanto não recriada pelo nosso pensamento".

Como a música que aparece em No Caminho de Swann como a idéia que se

identifica com o sensivel formando uma unidade, em O Caminho de Guermantes,

Proust revela a unidade do visível e do invisível, quando apresenta a interpretação

teatral da atriz Berma para o personagem Fedra, de Racine. Nessa interpretação para

o teatro, assim como para a música de Vinteuil, acontece a metamorfose entre a arte

e o artista ao ponto de um se confundir com o outro, manifestando-se como carne;

isso é, como uma interioridade sensível que não mais se divide em substância e

espírito, mas que se revela numa unidade:

Outrora, para ver se isolava esse talento, eu desfalcava de algum


modo o que ouvia, o próprio papel, o papel, parte comum de todas as
artistas que representavam Fedra e que eu previamente estudara
para poder subtraí-lo, para não recolher como residuo senão o
talento da sra. Berma. Mas esse talento que eu procurava
apreender fora do papel não formava mais que um todo com este.
Tal como acontece com um grande músico (parece que era o caso de
Vinteuil quando tocava piano), sua execução é de um pianista, porque
tão grande que já nem se sabe se esse artista é mesmo pianista,
porque (não interpondo todo esse aparato de musculares, aqui e ali
coroados de brilhantes efeitos, todo esse salpicar de notas onde
pelo menos o ouvinte que não sabe a que ater-se julga encontrar o
talento na sua realidade material, tangível) esse desempenho se
tornou tão transparente, tão cheio do que ele interpreta que não se
vê mais a ele próprio e o artista não é mais que uma janela que
dá para uma obra prima.(...) (CG, 43).

O narrador mostra a sensação de plenitude e de felicidade que a arte lhe

proporciona e que provém do sensível e inteligível enlaçados. Desse encontro,


125

emerge a sensação de plenitude que vai ao encontro da eternindade existencial que a

arte é capaz de proporcionar:

Fedra, a “Cena da Declaração", a Berma tinham então para mim


uma espécie de existência absoluta. Situadas fora do mundo da
experiência corrrente, existiam por si mesmas, tinha de ir até elas,
penetraria delas o que pudesse, e, abrindo meus olhos e minha alma
absorveria ainda uma. Mas como a vida me parecia agradável. (CG,
40).

Os elementos da arte da interpretação teatral revelam-se concomitantes com

o personagem a ser interpretado pela atriz Berma, levando o espectador à

sensação de que Berma e Fedra se confundem num mesmo ser:

Os braços da Berma, que os próprios versos, na mesma emissão com


que faziam sair a voz dos lábios, pareciam erguer-se-lhe sobre o peito
como essas folhagens que a água desloca ao fugir; sua atitude em
cena, que ela havia lentamente constituído, que ainda havia de
modificar, e que era feita de raciocínios que tinham perdido sua
origem voluntária, fundidos numa espécie de irradiação em que
faziam palpitar, em torno da personagem de Fedra, elementos ricos e
complexos, mas que o espectador fascinado tomava não como um
acerto da artista, mas como u m dado da vida; mesmo aqueles
brancos véus que, extenuados fiéis, pareciam matéria viva e que
tinham sido fiados pelo sofrimento semipagão, semijansenista, em torno
do qual se contraíam como um casulo frágil e friorento; tudo aquilo,
voz, atitude gestos, véus, não eram, em redor desse corpo de uma
ideia que é um verso (corpo que, ao contrário dos corpos humanos,
não está diante da alma como um obstáculo opaco que impede
percebê-la, mas como uma veste purificada, vivificada, onde ela se
difunde e onde a reencontramos), senão invólucros suplementares que,
em vez de ocultá-la, revelavam mais esplendidamente a alma que os
assimilara e neles se expandira, senão ondas de substâncias diversas
que se tornaram translúcidas, e cuja superposição só faz refratar mais
ricamente o raio central e prisioneiro que as atravessa e tornar mais
extensa, mais preciosa e mais bela a matéria embebida de flama em
que está infundido. Assim a interpretação da Berma era, em torno
da obra, uma segunda obra, vivificada também pelo gênio. (CG, 43/4).

5. É na memória ...

É na memória assim configurada que, segundo a hipótese do narrador proustiano,

“a realidade se forma”, ou em outros termos – operando na indistinção entre

atividade e passividade – ela se transforma no seu próprio transcendental, como se

evidencia em No caminho de Swann:


126

Mas é principalmente como se pensasse em jazidas perfumadas de


meu solo mental, como no terreno firme a que me apóio, que devo
eu pensar no lado de Méséglise e no lado de Guermantes. É
exatamente porque eu acreditava nas coisas, e nos seres, quando
percorria aqueles caminhos, é que as coisas que eles me deram a
conhecer são os únicos que ainda tomo a sério e ainda me
proporcionam alegria. Ou porque a fé que cria se haja estancado
em mim, ou porque a realidade só se forme na memória, as flores
que hoje me mostram pela primeira vez não me parecem flores de
verdade (CS,181).

Confirma-se então que realidade em Proust se concretiza por meio dos

sentidos que, involuntariamente, passam pelo corpo num entrecruzamento

constante configurando-se como idéias sensíveis.

A partir dessas considerações sobre o visível e invisível, dos dois lados da

realidade emerge o sentido do redimensionamento da realidade proposto por

Proust Em busca do tempo perdido que, freqüentemente, aborda situações como

essa: em dado momento, o narrador não relembra ainda determinado fato, que virá

a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vive. Daí o

movimento de decepções e revelações, que dá ritmo a toda a obra.

Proust «La réalité ne se forme que dans le souverir» • Il ne s'agit


pas d'une illuision de la réalité. Non, c'est bien de ce qui fut
qu'on se souvient. Par Ia distance, le present « développe» tout son
sens. Le passé non pas souvenir pur (immatériel), et non pas
souvenir image (conserve ou recréé au présent), mais passé-ombre,
visibilité inscritc pour toujours, chair devenue essence. Le passé est
une autre invisibilité du visible (il y a l'invisibilité de latence présente
:ce qui est, derrière moi - Ce qui est entre les visibles) (RC,202).

O narrador de Em busca do tempo perdido , muitas vezes, duvida de sua

capacidade literária e chega a acreditar que seu ideal literário é um projeto

abortado; mas, por outro lado, tem consciência de que a realização literária é a

única saída para revelar e fixar a grande verdade que deu sentido a sua vida: a

arte. A vida que o impediu de escrever, passa a ser a matéria de seu livro, sua vida

passada. Entretanto, muito além da descrição dos fatos, o livro interpreta tudo que

ele vivenciou: os fatos mais corriqueiros do cotidiano, como as refeições, os


127

passeios, os encontros com os familiares, a contemplação das obras de arte, a

convivência com a alta sociedade e com os criados, os divertimentos levianos, as

férias na praia, o quarto onde dormia, a insônia, as carências, angústias, as

ansiedades, um olhar, um objeto, enfim tudo que viveu, observou e sentiu vai

tornar-se matéria para sua arte literária. O resultado é a grande obra da literatura

francesa na qual o narrador-protagonista, Marcel, empreende a tarefa de recuperar,

analiticamente, os seus eus do passado e, para tal, passa pelas diversas fases da

vida: a infância, que é descrita em O caminho de Swann; a adolescência, em À

sombra das raparigas em flor e No caminho de Guermantes; a maturidade, em A

prisioneira e A fugitiva; a velhice, em O tempo recuperado. E será essa arte literária

que possibilitará o resgate do tempo escoado pelos anos vividos. Por meio dessas

ligações entre tempo e vida elabora-se uma outra realidade. Tal

redimensionamento vai depender da interação entre representação e realidade,

realidade primeira como interioridade, articulação entre o subjetivo e o objetivo:

Como aponta Franklin Leopoldo Silva em Bergson e Proust: o impressionismo

como obstáculo e transparência.

Isso significa que o encontro da realidade no seu sentido mais


verdadeiro e originário depende desse esforço de transcendência
interna pelo qual se dissolve a realidade segunda da representação
e se acede à realidade primeira como interioridade pura, aquém da
articulação entre o subjetivo e o objetivo. (SILVA,p.151).

Fica implícita no redimensionamento da realidade uma forma de superação,

a caminho da interioridade, que vai encontrar a dimensão temporal em que tempo e

o ser se coincidem:

A superação da condição humana, que define a Filosofia, é esse


esforço de transcendência para escapar à subjetividade
representativa a atingir o núcleo de uma interioridade em si, única
dimensão em que se pode ao menos suspeitar que o ser é o tempo
e o, tempo é o ser (SILVA, p.151).
128

A ação do artista faz com que a palavra poética se revele em transparência,

a verdade; desse modo, a manifestação da verdade pela criação da palavra é o que

distingue a obra literária do mero documento escrito. É nesse sentido que, em

Proust, a literatura fala da literatura, ou seja, a arte fala da arte, que se apresenta

no romance como a possibilidade do mais efêmero e fugidio sustentar o

testemunho do eterno:

(...) pela tentativa de superar o tempo através da desorganização


das impressões temporais no que têm de sucessão e linearidade, e
pela recriação do tempo como ontologia, significação e valor. Mais
precisamente: pela transubstanciação do instante em eternidade,
pela exploração da vivência da transitoriedade, visão nítida da
dissolução do humano, e finalmente pela transformação valorativa
da dissolução temporal na eternidade da obra. Resultados esses
somente alcançados através do itinerário da transcendência interna,
única maneira de visar por transparência a verdade nas
impressões.(SILVA, p155).

A realidade redimensionada implica em entrar na dimensão do tempo, pois é o

tempo que engendra o que foi vivenciado pelo sujeito, e por meio dele o sujeito elabora

suas vivências. A duração psicológica não é uma mera alteração de estados, mas a

inserção da consciência no tempo, que para uma consciência finita significa

envelhecimento e dissolução, isso é, experiência íntima de transitoriedade, inseparável

do movimento qualitativo da substância vital. É a substancialidade do tempo que

confere realidade maior ao devir. Ora, o devir é aparece como uma pluralidade de

impressões, cuja característica comum é passar. Deter-se nas impressões implica no

risco de substancializá-la e trazer do tempo uma sucessão de momentos

descontínuos.

(...) Aquele movimento de transcendência interna de que falamos


consiste, pois em apreender intuitivamente a interioridade como
temporalidade. Diríamos que a tarefa filosófica é resgatar o efêmero
sob a ilusória permanência com que as coisas se nos apresentam e
na qual o entendimento se compraz (156/7)

Desse modo, a efemeridade e a eternidade organizam-se numa unidade que é

temporal; porque sendo o tempo o grande personagem, será ele que vai dar
129

consistência e expressão ao ser e ao mundo em que ele vive. Ao falar dos elementos

mais simples do cotidiano, das questões da mundanidade, reconhecemos nesse universo

algo de transcendente, eterno; mas para transcendê-la, o sujeito se detém nas

impressões, para entender nelas a substância de que são portadoras, tanto em termos de

realidade como em termos de significação.

A narrativa proustiana constrói-se como reflexão sobre a imaginação realista

dos eventos. Assim, o estrato descritivo da narrativa é, na verdade, a narração do

recolhimento das impressões. E importa muito mais para a significação global do

romance o fato de que elas são recolhidas do que o fato de que elas são narradas, e

o romance vai se construindo num processo de decifração das impressões. Tal

decifração acarreta um recolhimento das impressões e, ao mesmo tempo, um

recolhimento a si: “o narrador declara a certa altura que se mantém longe dos homens

para estar mais próximo deles do que eles estão de si próprios”. (SILVA, p.159).

Desse modo, o narrador, vai decifrando, gradativamente, o significado nas

impressões até que elas venham a se revelarem em imagens significativas.

Percebemos que, somente depois do afastamento e, finalmente, da perda de

Albertine, o narrador pôde entender quem era a verdadeira Albertine. Foi necessário o

distanciamento da realidade para que a verdade viesse à tona.

Existe uma realidade e existe uma configuração do sujeito que a vivencia; a

percepção do sujeito frente à realidade vai implicar num recorte dessa realidade a

partir das expectativas que a consciência tem de agir sobre ela. Desse recorte da

passagem do tempo surge a memória, que vai trazer à tona o que foi outrora

vivenciado. Entretanto, a memória em Proust vai aparecer não apenas como forma de

conservar o passado, mas de iluminar a significação do presente, complementando a

percepção. È possível haver uma modificação dos valores que qualificam essas
130

vivências, pois a captação dos traços essenciais da verdadeira realidade nas

impressões é, ao mesmo tempo, a negação do significado eventual da sucessão.

O significado dos eventos não coincide com a realidade aparente


de cada um deles na sucessão e nem com a valorização
espontânea da realidade presente. Somente a memória como visão
espiritual de essências pode conferir o verdadeiro significado aos
eventos, transfigurados em lembranças. (SILVA, 160)

Tal como Bérgson, em Proust a plenitude da memória é signo do


espírito e do absoluto. Por isso, o como presente é uma realidade
irreal e o passado uma irrealidade real. Assim, a lembrança não é a
representação do presente, mas a apresentação da verdade que o
presente encobre. Essa descoberta da eternidade no instante é obra
da imaginação, na medida em que ela irrealiza o presente e cria
significações que transcendem a transitoriedade. E por isso que todo
o trabalho de decifração das impressões se faz a partir de uma
atitude fundamental de desencantamento. (SILVA, 160)

Podemos considerar as impressões metamorfoseadas pelo tempo, pela

memória, como as mais reais do que as que foram outrora vivenciadas, pois enquanto

foram simplesmente vividas, escuras, quase cegas, o sujeito não tinha consciência do

que significavam, mas, ao serem acionadas pela memória involuntária, perdem a

opacidade e seus significados criados pela imaginação e pela experiência adquirida no

decurso do tempo ganham transparência. É nesse ponto que emerge a obra de arte,

como um meio de compreensão da verdadeira realidade.

Nessa interação entre os tempos e corpo por meio dos sentidos, torna-se

possível para o escritor concretizar sua obra, realizando o ideal de ser escritor por

meio de uma obra que se identifica com os princípios da filosofia de Merleau-Ponty.

Dévoilement du monde visible. Et: la parole comme "bouchée


intelligible" [est] [une] signification qui est jetée comme impure para le
corps et consommée para lui; Parole portant "hors du temps l´essence
commune aux sensations du passé et du present " (Proust, T.R.,II,p.47)
plus généralment “l´essence commune” à l´espace et au temps,
“l´essence commune” aux personnages appuyés l´un sur autre,
confondus l´un dans autre, l´essence commune au réel et à imaginaires.
Bref, portant non signification qui soit "idée de l´intelligence", mais
signification quie est métáphore, mise en relation de tout ce que nos
habitudes et nos contrôles séparent, tandis que l´intelligence "dégage
directement de la réalité" ses vérites – La parole signifie par contexte,
comme lambeau. (NC: p.202)
131

A inovação literária realizada por Proust revela um narrador-personagem e

que, ao se projetar, registra imagens que são precisas, móveis e variáveis, ao

mesmo tempo, de modo semelhante à dinâmica da vida, que se apresenta cheia de

imprevistos e pequenas epifanias, que, muitas vezes, passam despercebidas em

sua totalidade: um sabor aconchegante, um cheiro de chá, um toque de carinho, um

olhar dúbio, o calor de um raio de sol, o barulho do vento nas árvores, o colorido

das flores, um sentido do gesto...

Donc ni subjectif ni objetif, mais implication et rapport latéral des


personnages l´un dans l´autre et dans le monde et tous dans l’auteur, et
par là signification indirecte.
[Em marge:]Relativization du signifiant e du signifié: recherche d´une
parole des choses (Martinville – le livre écrit en nous), on ne se
contente plus de leur parallèle.
Ici, comme ci-dessus, il y a en surface destruction, dissocitiation, - et,
recherche d´un lien, d´une solidité, plus fondamentaux (NC,50)

Dessa maneira, essa obra vai se revelar além de mera fixação de

sensações do passado, mas como forma de descrição e análise em profundidade

das impressões vividas e ressurgidas pela memória involuntária.

No entoar da leitura da obra literária, é possível “entrar” em uma narração

que se movimenta como se algo narrado lembrasse um fato vivido ou fizesse

imaginar outro. Nesse fluxo, encontramos a unidade, a essência que se realiza na

materialidade e imaterialidade do signo, revelado pela arte literária. Como compilou

Souza Aguiar em “Introdução a Proust”:

Paisagem de Montjouvain, banhada de sol e de cuja lagoa


ensolarada o segredo da oculta analogia entre o céu, a terra e água
parece emergir; pilriteiros róseos, distinguindo-se dos brancos, e
entreabrindo a sua intimidade para comunicar a intenção de festa
que os anima; torres distintas de Martinville e Vieuxvicq quando a
impressão de se unirem para formar o espaço interno de uma figura
triangular onde a essência da solidão se acha contida; notas
distintas da frase da Sonata de Vinteuil, unindo-se para servir de
invólucro material à entidade abstrata que nela se manifesta;
representações de Berna, de cuja voz e gestos a verdade do
personagem parece surgir; marinha de Elstir, fundindo terra e mar
no interior do quadro onde se abriga a essência do porto de
Carquehuit; madalena semelhante a uma concha que, aliando-se ao
132

chá num único sabor liberta o mundo de Combray guardado dentro


dela; paredes do pavilhão dos Campos Elíseos unificando-se no
cheiro de mofo e conservando internamente a lembrança do quarto
do tio Adolfo; árvores de Hidimesmil sugerindo um segredo oculto
dentro do desenho que formavam; água e cano do aquecedor, de
onde parte o som semelhante a um soluço, guardião das
lembranças de Doncières; botão de couro e sapato, retendo no seu
bojo a imagem da avó; pedras desiguais do pátio da mansão de
Guermantes escondendo nas fendas que as separa a miraculosa
possibilidade de fazer ressurgir Veneza; faces de um guardanapo
engomado que, dobradas, encerram o mundo de Balbec e das
raparigas em flor; prato contra o qual bate a colherinha e onde se
acha circunscrita a imagem recente do trem e da estrada; volume de
François le Champi, de cujas páginas salta a noite de insônia de
outrora (SOUZA-AGUIAR,1979, p.108/9).

No último romance, O Tempo Redescoberto, é enfatizado o sentido do

encontro do narrador-personagem com a obra de arte como um caminho para

recuperar o tempo que se considerava perdido, que deságua na descoberta da

verdade, que as ressurreições do passado trazem em si. Essa descoberta é

coincidente ao ideal de ser escritor, que dá sentido completo à sua existência.

Nessa obra, confirma-se o senso de que a arte é o meio de se sair de si mesmo,

adentrar num outro universo, perceber os sentimentos alheios. Graças à arte,

multiplicam-se as vivências dos diversos mundos, colocando o espectador livre das

amarras de concepções parciais e unilaterais e possibilitando uma visão da

totalidade.

Vimos, anteriormente, que o sujeito que participa das artimanhas da memória

involuntária vivencia um tipo de recordação que o coloca em face de uma

experiência de plenitude. No entanto, tal plenitude é efêmera e, por mais que se

queira conservá-la, estendê-la, depende do acaso para emergir. Surge então a

questão: como será possível reter a essência das coisas reveladas pela

recordação? Imerso nas lembranças das sensações, o narrador questiona: como

reter a essência desse universo que se elaborou pelos sentidos e seu

entrecruzamento? O narrador dá os primeiros passos na reflexão sobre o seu


133

projeto de eternizar a vida por meio da obra de arte.

Até um gozo mais profundo, como poderia ter sido o meu amando
Albertine, só se deixava, de fato, perceber inversamente, pela
angústia da ausência, pois a certeza de sua vinda, como no dia em
que voltou do Trocadéro apenas me comunicava um vago tédio, ao
passo que me exaltava cada vez mais, à proporção que analisava
mais profundamente o ruído da colher ou o sabor da infusão, a
alegria crescente de haver transportado para o meu o quarto de tia
Leonie, e, com este, todo Combray e seus dois lados. Por isso, essa
contemplação da essência das coisas, estava agora bem resolvido
a retê-la, a fixá-la, mas como? Por que meios? (grifei) Sem dúvida,
momento em que a goma do guardanapo me restituíra Balbec e me
acariciara de relance a imaginação, não somente com a do mar tal
como se mostrara naquela manhã, mas com o cheiro do quarto, a
velocidade do vento, a vontade de almoçar, a hesitação entre
diversas excursões, tudo isso preso à sensação de alto mar, como
rodas de barcas em rapidez vertiginosa; sem dúvida quando a
irregularidade das pedras prolongara em todos os sentidos e
dimensões, com todas as sensações lá experimentadas, as
imagens secas e nuas que me restavam de Veneza e de São
Marcos unindo a praça à igreja, o embarcadouro à praça, o canal ao
embarcadouro, e a tudo quanto os olhos alcançam do mundo dos
desejos, só percebido realmente pelo espírito, eu me deixei tentar
se não devido à estação, por um passeio nas águas para mim
sobretudo primaveris de Veneza, ao menos por uma ida a Balbec
(TR,156).

A obra literária elaborada por Proust vai se configurar no ideal do

protagonista de ser escritor, articulado nas descrições das sensações de plenitude

afloradas a partir da memória involuntária. Em relação às sensações apreendidas, o

narrador distingue as verdades da inteligência como sendo mais superficiais,

menos capazes de se transformar em arte do que aquelas que são comunicadas

despercebidamente numa impressão, pois, dessa simples impressão, podemos

extrair o espírito, ou seja, a obra de arte.

Lembrei-me com prazer, porque significava que eu já era então o


mesmo, e se marcava assim um traço fundamental de minha
natureza, com tristeza também, porque não fizera nenhum
progresso, de em Combray ter fixado atentamente em meu espírito
uma imagem qualquer que se me impusera à vista, uma nuvem, um
triângulo, um campanário, uma flor, um seixo, sentido que talvez
houvesse, sob esses sinais, algo diferente que devia procurar
descobrir, uma idéia traduzida à maneira dos hieróglifos, que se
suporiam representar apenas objetos materiais. Decifração sem
dúvida difícil, mas que unicamente nos permitia ler a verdade.
Porque as verdades direta e claramente apreendidas pela
134

inteligência no mundo da plena luz são de qualquer modo mais


superficiais do que as que a vida nos comunica à nossa revelia
(despercebidamente) numa impressão física, já que entrou pelos
sentidos, mas da qual podemos extrair o espírito (TR,158).

A arte confirma-se como o meio de fixação de tais momentos. Por meio dela,

eternizam-se as recordações recuperadas, torna duradouro o que foi percebido

como efêmero. Tal movimento conduzirá a outro plano, que é a dimensão da arte

em que o tempo vencido será substituído pelo intemporal, e a realidade

transfigurada se tornará indestrutível.

Compreende-se que tempo e vida interagem para elaborar a obra de arte. A vida

habita o tempo como meio de estancá-lo; estancar o tempo é realizar a vida. A arte toma

outra dimensão além da vida, que transcende o cotidiano, a materialidade. E a arte exige

uma ação do tempo sobre a vida no sentido de realizar o esquecimento; assim uma nova

etapa emergirá numa outra dimensão temporal que é existencial e não respeita a cronologia

dos fatos, mas se rege pelo acaso, aliado à afetividade em interação com os sentidos. Esse

sim é o terreno fértil, onde é possível brotar a obra de arte. Marcel Proust, com sua obra Em

busca do tempo perdido, atingiu esse ideal, como concorda Aguinaldo José Gonçalves,

em sua obra Museu Movente, o signo da arte em Marcel Proust (2004):

Tornou-se um campo blindado propenso a metamorfoses; tornou-se a


poção dialética entre a arte e a vida. Não consiste numa inferência
indeterminada o fato de julgarmos o texto de Marcel Proust um grande
ensaio ficcional. Trata-se de um fenômeno ímpar na literatura
(Gonçalves, 2004, p.53).

O tempo prossegue inexoravelmente e o único meio de estancá-lo é


integrar-se a ele, é habitá-lo. Mas habitá-lo implica espacializá-lo,
colocando-lhe rédeas, por meio de finas agulhas, com linhas tênues:
fabricação do tecido, ou da rede da própria vida. Esse gesto de criar
coincide com o gesto de viver: indissolubilidade apreendida e empreendida
no exercício de profunda identidade do ser que acaba sendo de
extremo alheamento. Para a realização desse movimento, o escritor deve
descobrir que a realização artística consiste no produto de um outro eu
que não aquele das vicissitudes mundanas, dos hábitos e dos
sentimentos pessoais. Para que se desse essa transformação do ser
social Marcel Proust para o narrador de Em busca do tempo perdido, a
extensão temporal de natureza cronológica passou pela engendragem da
máquina do tempo outro, o do esquecimento. Dentro da perda da
135

memória, deu-se início à emersão do novo universo e outra viagem se


inaugurou. Nela o roteiro já não é mais delimitado, pois isso significaria
a submissão à própria dimensão cronológica da existência. A busca do
eu profundo equivale ao exercício do narrador, em prática as suas
iluminações, ou as iluminações da memória involuntária, para recriar as
experiências da vida num trabalho de arte, É esse o fio condutor dessa
viagem. O acaso assessorado pela inteligência compõe o trabalho de
criação. Mais importante que o recordar pela memória voluntária, estão
os cinco sentidos, despertos, disponíveis, e integrados para a composição
associativa dos fluxos da realidade literária. O olho desse artista viu na
tradição caminhos, por formas de reação, caminhos possíveis de se iniciar
essa viagem sem retorno. (Gonçalves, 2004, p.52/3)

6.Proust e os signos

Deleuze em Proust e os signos (1987) revela a importância dos signos da arte na

obra de Proust. Para ele, a Busca está voltada para o futuro e não para o passado,

pois sempre alguma coisa faz lembrar ou faz imaginar outra. Mais que o sentido

platônico de que aprender é relembrar, o mais importante no papel da memória é o

fato de intervir como o meio de um aprendizado que a ultrapassa, tanto por seus

objetivos quanto por seus princípios. A arte vai proporcionar a verdadeira unidade:

a essência é exatamente essa unidade do signo e do sentido, tal qual se revela na

obra de arte. E os signos da arte em Proust são os mais relevantes. São eles que

dão a sensação de eternidade, que promovem a sensação de ser supraterreste,

assim como a arte rompe as barreiras do tempo, para se instalar em todos os

tempos, possibilitando ao ser humano conhecer os diversos momentos pelo qual a

humanidade passou.

Tornando a pensar na alegria extratemporal determinada, já pelo


tilintar da colher, já pelo sabor da madeleine, dizia para mim
mesmo: "Seria esta a felicidade sugerida pela frase da sonata a
Swann, que errou assimilando-a ao prazer amoroso, e não a soube
encontrar na criação artística; a felicidade que, ainda mais do que a
frase da sonata, me fez pressentir supraterrestre o apelo rubro e
misterioso do septeto que Swann não chegou a conhecer, tendo
morrido, como tantos outros, antes de ser revelada a verdade para
ele feita?" Aliás, de nada lhe valeria a frase, já que podia simbolizar
um apelo, mas não suscitar forças e transformá-lo no escritor que
não era (TR,157).
136

E Em busca do tempo perdido não uma exposição da memória, mas o

aprendizado dos mais diversos signos que constituem matéria de diversos mundos,

e o meio para a compreensão desses mundos é a decifração e a interpretação

desses signos.

Entretanto, na elaboração dos signos da arte em O tempo redescoberto,

Proust deixa claro que não são as sensações ou reminiscências por si mesmas que

elaboram a obra de arte, mas sim o modo como elas são captadas e processadas

ou a interpretação das sensações enquanto signos de outras idéias que emergem

ou promovem o estatuto de obra de arte ou não. O que importa não é o objeto que

causou a sensação ou a reminiscência, mas o que se processou a partir do que foi

vivenciado e o modo como foi expresso.

Em suma, num como noutro caso, quer se tratassem de impressões


como as que me provocara a vista dos campanários de Martinville,
quer de reminiscências como a da desigualdade de dois passos ou
o gosto da madeleine, era mister tentar interpretar as sensações
como signos de outras tantas leis e idéias, procurando pensar, isto
é, fazer sair da penumbra, o que sentira, convertê-lo em seu
equivalente espiritual. Ora, esse meio que se me afigurava o único,
que era senão a feitura de uma obra de arte? E já as conseqüências
me enchiam a mente; pois, reminiscências como o ruído da colher e
o sabor da madeleine, ou verdades escritas por figuras cujo sentido
eu buscava em minha cabeça, onde campanários, plantas sem
nome, compunham um alfarrábio complicado e florido, todas, logo
de início, privavam-me da liberdade de escolher entre elas,
obrigavam-me a aceitá-las tais como me vinham. E via nisso a
marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pedras em que
tropeçara no pátio. Mas o modo fortuito, inevitável por que surgira a
sensação constituía justamente uma prova da verdade do passado
que ressuscitava, das imagens que desencadeava, pois
percebemos seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do
real recapturado. A sensação assim vinda atesta a legitimidade do
quadro de impressões contemporâneas, que arrasta após si com
aquela infalível proporção de luz e sombra, de relevo e omissão, de
lembrança e olvido, que a memória ou a observação consciente
sempre ignorarão (TR, 158/9).

Constata-se que os signos encontrados em A Busca são Norpois (código

diplomático), Saint Loup (signos estratégicos), Cottard (sintomas médicos).

Entretanto, os signos que ele apresenta como mais relevantes são os signos da
137

arte: Vinteuil (na música do piano e do violino), Berma (no teatro, serve-se de sua

voz, de seus braços, mas os gestos em vez de testemunhar “conexidades

musculares”, constituem um corpo transparente que mostra uma essência, uma

idéia). Bergotte (com a sua palavra poética).

Desse modo, a presença da arte é uma constante no romance, pelas

pinturas de Elstir, a música de Vinteuil, a interpretação de Berna, ao mesmo tempo

em que o objetivo do narrador-personagem é realizar-se na arte, ou seja, tornar-se

escritor.

Éclatement du monde visible qui s'offre à moi comme monde de


tous (en dépit de la réflexion qui m´apprend que ce n'est peut-
être que monde prive). Éclatement du langage ou de la parole
qui vient ranimer et recommencer ce prodige en touchant en
moi ce que je croyais le plus caché et qui se revele participable
et en cette mesure «idée». (NC, 197)

O tempo da arte é um outro tempo que se elabora no âmago da vida, uma outra

ordem se instaura para que o efêmero se metamorfoseie no eterno como arte e

transcenda o os limites do espaço e do tempo.

Agora, a relação que se instaura é de outra ordem. Da janela do quarto


que se emoldura a paisagem lá fora, que, na verdade, são realidades
perpassadas pelo crivo da linguagem; são realidades emolduradas pela
linguagem que são tão reais quanto aquelas das flores e dos pássaros
advindas das decorações das paredes, pois, na verdade, a uma
realidade ao menos sugerida, a mesma realidade é a construída pelas
vivências articuladas pela arte. Essa concepção de moldura é de
fundamental importância nesse processo de invenção em que a
memória criadora realiza no momento em que se coloca em ação e
consegue absorver aquilo que as mitologias constroem,
aparentemente de fora, mas na verdade do lado de dentro de nossa
realidade interior, tão profusa e ao mesmo tempo tão real, tão pulsante no
dinamismo das leis incontroláveis de nosso espírito. É como se fossem
pulsões extraídas de universos recônditos, de mundos perdidos em
mundos outros, todos eles integrados em caracóis que se enovelam e
nos fazem revitalizar os percursos distantes e próximos, numa mesma
instância, profunda e harmônica de nossos universos interiores. Por esse
prisma, não se pode falar em cronologia, não se pode falar em espaço
físico, pois eles apenas atuaram c omo simulacros onde se
desenvolveram os istmos de nossas vivências. E elas todas voltam na
imagem. Só são possíveis de se tornarem presenças reais na imagem
(Gonçalves, 2004, p. 92).
138

A arte vai aparecer como a possibilidade de apreender a própria vida e

a dos outros, por meio do estilo peculiar de quem a produz. É uma forma de

revelação que não se manifesta somente por meios diretos e conscientes,

mas que habita a totalidade do ser; promovendo a comunicação entre os

seres humanos no tempo e no espaço. Sem a arte, vigoraria um segredo

eterno entre os seres humanos, porque a comunicação estaria suspensa; mas

com a arte, temos o acesso ao nosso verdadeiro ser: o humano, o

transcendente, o eterno.

7. Logos do mundo estético

No universo literário de Marcel Proust encontra-se esse “logos do mundo estético”,

do qual nos fala Merleau-Ponty, como um mundo sensível indiviso, interligado ao

ser no mundo. Vivenciamos uma consciência encarnada em um corpo dotado de

interioridade que, pelos sentidos e seu entrelaçamento – acionados pela memória

involuntária – revelou-se como um lugar em que não existe a ruptura entre sujeito e

objeto e como uma dimensão espaço-temporal na qual o presente refere-se

igualmente ao futuro e contém a dimensão do passado.

Nesse universo, constatamos a possibilidade do redimensionamento da

realidade pela arte. O que foi vivido num determinado tempo, na infância, por

exemplo, e que teve um contexto difícil e doloroso, num outro momento, pode ser

percebido com um novo olhar, mostrando que a dor ou a dificuldade sentida não

são mais significativas e foram superadas, podendo até ser consideradas como

momentos importantes ou necessários para fazer brotar o sentimento de felicidade

ou plenitude. Na narrativa de Marcel Proust, o acionamento dos sentidos – que

aflorou a partir da memória involuntária – possibilitou, por intermédio de um novo

olhar lançado ao passado, o renascimento de um novo instante, que inseriu o


139

sujeito na totalidade do tempo, num outro tempo ou fora do tempo. Isso leva o

protagonista a sentir-se indiferente às vicissitudes da vida, livre da morte, elevado à

dimensão da eternidade existencial, em que se manifesta o sentimento da extrema

felicidade. Imerso nessa atmosfera, tornou-se possível ao narrador redimensionar o

olhar para o que foi vivido. Ele precisa reter esse momento sublime, pois, apesar de

belo e completo, está consciente de que é efêmero, fugidio. Como reter a essência

do que foi revelado pela memória involuntária e pelo acionamento e entrelaçamento

dos sentidos? Eis que se apresenta o grande protagonista: a obra de arte. Por meio

da literatura, o autor resgata o tempo escoado, recupera-o pela ressurreição do

passado. A feitura da escrita de ficção possibilita a recuperação desse tempo, no

qual o escritor encontra sua eternidade existencial.

Constata-se, também, que a obra literária escolhida para este estudo “funda

uma universalidade nova” e de se “comunica no risco”, como nos aponta Merleau-Ponty.

Pelos exemplos apresentados por ele, na narrativa proustiana, observa-se a união

do sensível com o inteligível, do sujeito com o objeto, confirmando que Proust é

escritor que “mais longe foi em fixar as relações entre o visível e o invisível, na

descrição de uma idéia que não é o contrário do sensível, mas que é seu dúplice e

sua profundidade (VI,144).

8. A experiencia da leitura da obra proustiana

Ler Em busca do tempo perdido pode ser de difícil compreensão e, ao

mesmo tempo, uma experiência de ternura e de afeto. Compreende-se que a

Combray, do narrador Marcel, existe em qualquer lugar e para qualquer ser

humano, independentemente de onde ele tenha nascido e crescido. Esse lugar é

um arquétipo para todo ser humano, que busca encontrar o sentido de seu lugar no
140

mundo, que, por sua vez, não depende do lugar, mas da maneira que esse lugar é

vivenciado, do olhar que é lançado sobre ele.

O narrador Marcel desperta-nos para os detalhes, para as minudências, para

a beleza do que está ao nosso redor. Entretanto, ele não deixa de falar da

perversidade do ser humano, do universo de dúvidas e incertezas e da dor que

habita a alma humana. Entre as polaridades da positividade e a negatividade da

vida no qual o ser humano está mergulhado, Marcel aponta-nos uma saída triunfal:

o encontro de um sentido para a vida, o alívio para as nossas adversidades, a

descoberta de uma divindade ou de uma oração confortadora para a dolorosa

existência humana. Aqui, a obra de arte surge como revelação do ser-no-mundo,

que possibilita a vivência de uma eternidade existencial.

Concomitantemente à filosofia de Merleau-Ponty, ser leitor de Proust: é

instaurar uma polifonia ou policromatismo entre os mais diversos discursos e

emergir desse universo mais consciente de si mesmo e dos caminhos de suas

aspirações:

Ser leitor de Proust não pode corresponder a ser superior, no


sentido mais erudito ou fazer da erudição um valor. Ser leitor de
Proust é voltar muitas vezes em certas passagens, parar e
compreender este sem saída de uma condição existencial.
(Gonçalves,2004,p.246).

Essa leitura pode, também, ser um exercício de prazer, mas um prazer que

não vem instantaneamente, precisa ser conquistado. Podemos comparar essa

empreitada com a decisão de aprender uma arte; no início do aprendizado, exige-

nos esforço, perseverança, suor e muito trabalho, mas, após essa fase, que é o

domínio da técnica, vem o infinito prazer, o deleite da execução da obra.

Analogamente, ao ler Proust e vencer os desafios da leitura, vem o prazer de se

poder vivenciar o sentido do que Merleau-Ponty denomina “eternidade existencial”:


141

Muitas vezes, o envolvimento com seu discurso é difícil, pois é


difícil suportar o que nos mostra; é fatigante, moroso, intrigante.
Quase sempre, no decorrer das páginas de Em busca..., as
antivirtudes humanas afloram, a inveja, a usura, a ignorância
fantasiosa, o espírito de supremacia dos seres, enfim, todas as
condições que determinam uma excentricidade, um voltar-se para
si mesmo, que corrói. (Gonçalves, 2004, p.247).

Ler Proust pode ser um exercício que exige perseverança e


humildade: verificando leitores de Proust, seus críticos, seus
descortinadores, não posso compreender como alguns saem da
obra "sabidos”, falando alto de sua poltrona favorita sobre os
conteúdos presentes na obra. Entendo, de outro modo, que é
realmente difícil ler Proust. (Gonçalves, 2004, p.247).

A dificuldade na leitura da obra de Proust advém do embate do ser humano

consigo mesmo, do enfrentamento de suas próprias dificuldades e limitações físicas

e psíquicas, que o impelem e o impedem a um salto fenomenal rumo à

transcendência. Para o leitor comum, a obra é uma lente de aumento, que espelha

o desregramento e o desgarramento do ser humano, ou seja, a sua própria vida,

como ressalta Gonçalves, citando Proust em O tempo recuperado:

Muitas catedrais permanecem inacabadas. Longamente nutrimos


um livro assim, fortalecemos os trechos fracos, mas depois é ele
que nos engrandece, que assinala túmulo, que o defende do ruído
e um pouco do esquecimento. Mas para voltar a mim, pensava
mais modestamente em meu livro, e seria inexato dizer que me
preocupavam os que o leriam, os meus leitores. Porque, como já
demonstrei, não seriam meus leitores, mas leitores de si mesmos,
não passando de uma espécie de vidro de aumento, como os que
oferecia a um freguês o dono da loja de instrumentos ópticos em
Combray, o livro graças ao qual eu lhes forneceria meios de se
lerem. Por isso não esperaria deles nem elogios nem ataques, mas
apenas que me dissessem se estava certo, se as palavras em si
lidas eram mesmo as que empregara (as possíveis divergências
não provindo, aliás, sempre de erros meus, mas, algumas vezes,
de não serem os olhos do leitor daqueles aos quais meu livro
conviria para a leitura interior).(apud,GONÇALVES, 240).

Enfim, a literatura e a filosofia revelaram-nos o entrelaçamento dos sentidos;

a existência do ser bruto e do espírito selvagem da narrativa; a sensação da

pluralidade na unidade, do sujeito no objeto, da mente no corpo, do sensível no

inteligível e a dimensão integral espaço-temporal. A narrativa de Proust reproduz os

conflitos da alma numa sociedade decadente e superficial, fazendo-nos acreditar


142

que o universo a que o autor se refere é mesmo de que fala o escritor russo L. N.

Tolstoi: “Quando falo de minha aldeia, falo do mundo todo”, ou seja, da relação

simbiótica entre o particular e o universal.

Assim como na Fenomenologia, na narrativa ficcional de Proust,

experimenta-se o de "descrever as coisas" sem se deter nelas. O que foi descrito

se elaborou como signos que, por sua vez, reportam-se a outros signos, em

movimento constante que se renova a cada momento.

Submeter-se à experiência desse movimento sem se deter nele, sem se

paralisar, é compreender a natureza da filosofia – como Merleau-Ponty nos

apresenta – e da literatura – sob a óptica de obra de Marcel Proust. Uma busca que

exige esforço, mas que também que, também, leva-nos ao deleite. No processo

dessa tarefa, inserimo-nos no fluxo da vida, com toda sua potência de dinaminismo

e de imobilidade e nela ficamos ao mesmo tempo em que por ela caminhamos.


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ensaísta e tradutor de "Finnegans Wake" Fábio de Souza Andrade, professor de
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