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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ISABELLA MARTINO

“CADA UM É UM LUGAR PARA OS OUTROS”:


o encontro de Daniel Faria com Sophia de Mello Breyner Andresen

Guarulhos
2023
ISABELLA MARTINO

“CADA UM É UM LUGAR PARA OS OUTROS”:


encontro de Daniel Faria com Sophia de Mello Breyner Andresen

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Letras da EFLCH –
Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da UNIFESP – Universidade
Federal de São Paulo como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
em Letras.
Área de concentração: Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Literatura e autonomia:
entre estética e ética.
Orientador: Prof. Dr. Leonardo Garcia
Santos Gandolfi.

Guarulhos
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais no 9610/98,
autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em
outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura,
impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a
fonte.

Martino, Isabella.
“Cada um é um lugar para os outros”: encontro de Daniel Faria com Sophia
de Mello Breyner Andresen / Isabella Martino. – Guarulhos, 2023.
139 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São Paulo,
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2023.

Orientador: Leonardo Garcia Santos Gandolfi.


Título em inglês: “Each one is a place for others”: Daniel Faria's meeting
with Sophia de Mello Breyner Andresen.

1. Daniel Faria 2. Sophia de Mello Breyner Andresen 3. Poesia portuguesa


contemporânea 4. Tradição mística 5. Escrita e atenção I. Gandolfi, Leonardo
Garcia Santos II. Título
ISABELLA MARTINO

“CADA UM É UM LUGAR PARA OS OUTROS”:


encontro de Daniel Faria com Sophia de Mello Breyner Andresen

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) como
requisito parcial para a obtenção do título
de Mestre em Letras.
Área de concentração: Estudos Literários.
Orientador: Prof. Dr. Leonardo Garcia
Santos Gandolfi.

Aprovado em:

___________________________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Garcia Santos Gandolfi (Orientador)
Universidade Federal de São Paulo

___________________________________________________________________
Profa. Dra. Francine Weiss Ricieri
Universidade Federal de São Paulo

___________________________________________________________________
Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves
Universidade Federal Fluminense
Para a minha avó, Idalina Gandolfi,
cujo maior sonho era ter aprendido a ler e a escrever.
AGRADECIMENTOS

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
Herberto Helder

Ao professor e amigo Leonardo Gandolfi, que me encorajou, desde o início, a


realizar esta pesquisa. Como ele, procuro guiar o meu caminho, comprometida com a
palavra e o pensamento e, acima de tudo, optando sempre pela coragem de construir
uma existência em que a resposta seja afirmativa àquela importante pergunta de
Herberto Helder: “tinha paixão?”. Foram anos muito difíceis de pandemia, e agradeço
ao professor por todas as conversas, aulas e indicações, que me possibilitaram um
importante crescimento pessoal e intelectual. Agradeço também por ter-me aceitado
como sua estagiária no Programa de Aperfeiçoamento Didático (PAD).
Às professoras Ida Alves e Francine Weiss Ricieri, pelas leituras generosas
desta pesquisa, indicações bibliográficas e sugestões de percurso que me fizeram
encontrar, finalmente, o tema e o formato que sinto estarem mais condizentes ao meu
interesse. Agradeço muito esse encontro que resultou em um movimento de escrita
mais próximo ao que busco realizar.
À Júlia Hansen, que me apresentou, pela primeira vez, a poesia de Daniel Faria
com a frase “creio que, para você, este poeta será um daqueles bons encontros”. À
professora Prisca Agustoni e à Jhenifer Silva, cujas conversas me foram cruciais para
tomar a decisão de adentrar e construir uma trajetória acadêmica. Ao Frederico
Spada, que me presenteou com a obra completa do autor e foi um grande interlocutor
a respeito desta poesia. À Fernanda Drummond, pelo primor das leituras e dos
comentários que me ampliaram tanto os horizontes. À Diana Carmellini, por todo o
apoio, incentivo e escuta, até, literalmente, o último dia da entrega dessa pesquisa.
Ao Dimitri Rebello e à Laura Formighieri, por estarem do meu lado, me apoiando nos
momentos mais difíceis.
À minha analista, Monica Jeanine Fichbach Saliby, um encontro fundamental
na minha existência, a quem eu devo o ensinamento profundo de adquirir força e
coragem para mudar as heranças de um destino.
Às minhas mães, Aparecida Goda e Angela Goda, e ao meu pai, Affonso de
Martino, que me apoiaram em cada instante desta trajetória árdua. Agradeço por
vocês estarem realizando comigo mais este sonho.
À Mel, vulgo Melzínea, por ser o animal mais amável e companheiro desse
mundo, que, literalmente, ficou sentadinha ao meu lado em todos os dias em que
escrevi essa pesquisa.
Por fim, agradeço também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001, na Universidade
Federal de São Paulo, pela bolsa concedida, sem a qual não poderia realizar este
estudo.
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Sophia de Mello Breyner Andresen
RESUMO

Esta pesquisa visa analisar como a poesia de Daniel Faria é ancorada por certas
referências que ecoam a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Primeiramente, elucidamos a forma epifânica com que os poetas concebem a palavra
poética, a partir de um modo de escuta atrelado a um rigoroso trabalho de escrita. Em
seguida, analisamos os principais fundamentos da arte poética de Sophia, bem como
os principais aspectos da arte poética de Daniel Faria, costurando com o que
abordamos em Sophia no tópico anterior. Apresentamos, ainda, reflexões teóricas
sobre a tradição mística e a sua relação com a concepção poética de Daniel Faria e o
modo como ambos os poetas destacam a questão do tempo dividido em suas obras
e traçam palavras de augúrios e lamentos pois visam a unidade desse tempo, a
aliança. Por fim, apresentamos as principais conclusões que este estudo alcançou. A
comparação entre as poéticas de Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner Andresen
contribui para potencializar os estudos comparados entre as literaturas modernas de
Portugal e Brasil.
Palavras-chave: Daniel Faria; Sophia de Mello Breyner Andresen; Poesia portuguesa
contemporânea; Tradição mística; Escrever e atenção.
ABSTRACT

This research aims to analyze how Daniel Faria’s poetry is anchored by certain
references that echo Sophia de Mello Breyner Andresen’s poetry. Firstly, we elucidate
the epiphanic way in which both poets conceive the poetic word, from a way of listening
linked to a rigorous work of writing. Then, we analyze the main foundations of Sophia’s
poetic art, as well as the main aspects of Daniel Faria’s poetic art, linking them to what
we discussed about Sophia in the previous topic. We also present theoretical
reflections on the mystical tradition and its relationship with Daniel Faria’s poetic
conception, and the way in which both poets highlight the issue of divided time in their
works and outline words of omens and lamentations as they aim at the unity of that
time, the alliance. Finally, we present the main conclusions reached by this study. The
comparison between the poetics of Daniel Faria and Sophia de Mello Breyner
Andresen contributes to enhance the comparative studies between the modern
literatures of Portugal and Brazil.
Keywords: Daniel Faria; Sophia de Mello Breyner Andresen; Portuguese
contemporary poetry; Mystic Tradition, Writing and attention.
SUMÁRIO

DO MECANISMO SECRETO DO AMOR, UMA INTRODUÇÃO 11

1 É AQUI, NESTA PÁGINA, ONDE ELES SE ENCONTRAM 20

2 ACONTECERAM-NOS POEMAS 20
2.1 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM SOPHIA 35
2.2 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM DANIEL 51

3 EXPLICAÇÕES PARA HABITAR A TRADIÇÃO MÍSTICA 61

4 EXPLICAÇÕES PARA HABITAR TEMPOS DIVIDIDOS 93

5 CONCLUSÃO 118

REFERÊNCIAS 123

ANEXOS 133
11

DO MECANISMO SECRETO DO AMOR, UMA INTRODUÇÃO

Não acredito que cada um tenha o seu lugar.


Acredito que cada um é um lugar para os outros.
Daniel Faria

Estudar as relações de um poeta com a tradição é uma investigação quase de


caráter arqueológico, uma tentativa de desvendar as diversas camadas sobrepostas
e os indícios de leituras literárias em um texto. Quando pensamos no diálogo com a
tradição, sabemos que adentramos um oceano vasto; como T. S. Eliot menciona no
seu ensaio “Tradição e talento individual”, a tradição é ampla, envolve um sentido
histórico e

leva um homem a escrever não somente com a própria geração a que


pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que toda a literatura
europeia desde Homero e, nela incluída, toda a literatura de seu próprio país
têm uma existência simultânea e constituem uma ordem simultânea. (Eliot,
1989, p. 39)

Com o autor, compreendemos que nenhum poeta, “nenhum artista, tem sua
significação completa sozinho” (p. 39). Consideramos interessante, por isso, uma
proposta de pesquisa que revele e traga à superfície camadas formais e temáticas de
Daniel Faria a partir da relação e do tensionamento com uma escritora da tradição
moderna de Portugal do século XX: Sophia de Mello Breyner Andresen.
Nestas páginas, algumas características temáticas e formais da obra de Daniel
Faria (1971-1999) serão discutidas a partir da leitura da obra desta outra poeta. Como
escreve Carlos Drummond de Andrade (2003, p. 180), “se eu morrer, morre comigo/
um certo modo de ver”: é a partir desse “modo de ver” a existência e de escrever
poesia que iremos comparar as obras de ambos os autores, para compreendermos,
com mais profundidade, o projeto poético de Daniel Faria.
A escolha da poesia de Sophia para justapor à poesia de Daniel não foi
aleatória. Nas poucas entrevistas que o poeta deu, ele menciona alguns nomes que o
afetam enquanto leitor, como nesta declaração feita ao jornalista Francisco Duarte
Mangas, em 1998, e republicada pelo Correio do Porto, em 2019, com o título “Daniel
Faria: o poeta que ia ser monge”:

Por incrível que pareça, não leio muita poesia. Tive a sorte de ter um prefeito
no Seminário que gostava de poesia. Uma coisa que me deu a ler foi Sophia
12

de Mello Breyner. Há outros poetas que gosto: Rilke, Ramos Rosa e, claro,
Herberto Helder […] Na adolescência li o Eugénio de Andrade. Um dia levei-
o ao seminário, foi importante esse encontro. Há outros poetas no meu
caminho: Drummond de Andrade, Cecília Meireles […] [De Ruy Belo me
aproximo] no uso que ele faz dos temas bíblicos, como um grande código,
por exemplo. Ele andou na Opus Dei, essa experiência acabou por marcar a
sua poesia. Gosto muito também do [sic] Luiza Neto Jorge e de alguns textos
de Jorge Luis Borges. (Faria, 2019c, s/p.)

A nossa hipótese é de que há uma afinidade, entre os poetas, no modo de


conceber a criação poética que se relaciona com uma postura existencial, com um
modo em que o processo criativo implica um percurso ontológico, aproximando-os de
uma tradição literária como a de Hölderlin ou de Rilke, por exemplo.
Compreendemos, também, que os poetas partilham de uma visão de mundo
dividido, em que há um lado imbuído de sacralidade e outro esvaziado. Além disso,
percebemos que há, nos dois poetas, o desejo de uma unidade, de uma busca para
estabelecer uma aliança. Por isso, consideramos alguns eixos comparativos
interessantes para traçar um caminho nesta análise: primeiro, identificar a postura de
escuta e atenção frente à criação poética em cada obra; em seguida, buscar elucidar
o modo com que ambos tematizam, em seus poemas, a procura do desvelamento do
mistério; e, por fim, como articulam, em seus textos, a concepção de um mundo
dividido, que, muitas vezes, é perpassada por angústias e esperas.
Ao longo desses tópicos principais, serão abordados temas como a relação
desses poetas com o silêncio, com a physis, com o universo mitológico, com a tradição
mística, aspectos que são mencionados no decorrer das observações dos textos
escolhidos sem a pretensão de uma análise totalitária. Os poemas que elegemos
foram aqueles que abordam os principais tópicos mencionados acima, que traduzem
a arte poética dos autores e nos servem para elucidar as aproximações e os
distanciamentos entre os poetas.
Sem dúvida, a poesia é, para Daniel e Sophia, lugar de epifania, revelação e
aparição, mas sem deixar de solicitar uma participação obstinada no labor do poeta
com a materialidade da palavra e do silêncio; ambos procuram, de forma nostálgica,
paisagens e tempos que traduzam um retorno ao primordial, mas também escrevem
paisagens desérticas e arruinadas quando se sentem desorientados e afastados de
um eixo.
Leremos, portanto, os versos de Daniel Faria sob as luzes com que Sophia de
Mello Breyner Andresen (1919-2004) os ressalta e, por que não dizer, os sombreia. A
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poética de Sophia reverbera em Daniel, assim como a dele, feita posteriormente à


dela, também altera o modo como lemos a autora, pois a tradição é viva, a “novidade
que permanece novidade”, como afirma Pound (2006, p. 33).
Com seis livros publicados – Uma cidade com muralha (1992), Oxálida (1992),
A casa dos ceifeiros (1993), Explicação das árvores e de outros animais (1997),
Homens que são como lugares mal situados (1998) e Dos líquidos (2000) –, Daniel
Faria nos deixou cedo, com apenas 28 anos, sem ter a possibilidade de escrever uma
vasta bibliografia complementar, como entrevistas e comentários a respeito de suas
obras. Há, entretanto, um texto dirigido à Associação de Jornalistas e Homens de
Letras do Porto, datado de 23 de outubro de 1998, em que ele é instigado a escrever
o seu retrato do artista enquanto jovem, ao que ele responde com um “autorretrato do
artista enquanto agora” e declara: “o meu retrato enquanto agora é um rosto que há
de vir” (Faria apud Fino, 2008, p. 428). Imagem crucial para traçarmos uma coluna
vertebral para a sua obra, textos que não devem se confinar a uma única e definitiva
análise, mas que devemos entender com um olhar que os estende em um fluxo
contínuo de pensamentos, análises e transformações, segundo o próprio autor:

[…] O tempo do retrato exposto é o do rosto assim com sede, com essa sede.
E só o conhecerá quem o reconhece, só o verá quem se aproxima pelo
interior, pela sombra, pela penumbra, onde o rosto se pode revelar e desvelar
pela escuta, porque quem começa pela escuta pode ver. (Faria apud Fino,
2008, p. 428)

É por essa postura ativa de escuta e atenção que iremos mergulhar em um


rosto que se desenha à semelhança de outras faces, para ir se autodelineando em
um constante devir. Na poesia de Daniel Faria, é através do contato com a palavra e
o pensamento não só da Sagrada Escritura, mas também de diversos textos da
mitologia, teologia, filosofia e da tradição literária, que a sua linguagem se forma e se
cria. Como um palimpsesto, o autor escreve os seus poemas em diálogo com muitos
outros textos e referências, transformando a criação poética em uma proliferação de
vozes que são continuamente transformadas e que revelam algo do próprio autor. Ruy
Belo, um poeta também muito caro a Daniel, declara, no ensaio “Da sinceridade em
poesia”, escrito em 1972, que um poeta tem a liberdade de se servir de “toda a obra
publicada de todos os autores e até poetas, utilizando palavras, conceitos, formas,
para criar um repertório que será transformado em uma nova proposta artística” (2002,
p. 321).
14

A escrita de Daniel Faria passa pelo conhecimento e pela transformação de


muitos textos distintos; como nos versos do poema “O texto de Joan Zorro", de Fiama
Hasse de Paes Brandão (2017, p. 173), Faria é um autor que “existe sobre o anterior”.
Podemos dizer, portanto, que esta é uma pesquisa “epigráfica”, “lápide e versão,
indistintamente”, que analisa e comenta, principalmente, aquilo que não está explícito
e endereçado.
O pesquisador Francisco Saraiva Fino, no seu livro de ensaios sobre Daniel
Faria, A multiplicação do espaço, considera que o autor busca, através da palavra
poética, uma forma de alcançar uma nova realidade, “uma praça fora do mundo”, e
que usará dessa intertextualidade e dessa abertura para outros textos como uma
“colaboração daquilo que essas vozes lhe poderão apontar na construção do seu
trajeto para a ‘praça fora do mundo’” (2020, p. 69).
Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu em 6 de novembro de 1919, ou seja,
52 anos antes do nascimento de Daniel Faria, na cidade do Porto, em Portugal.
Considerada uma das mais importantes poetas portuguesas, de família aristocrática,
estudou Filosofia Clássica na Universidade de Lisboa, entre 1936 e 1939, sem concluir
o curso. É a partir de 1944, quando tinha 25 anos, que se dedica à literatura e escreve
“O jardim e a casa”, “Casa branca”, “Jardim perdido” e “O jardim e a noite”, poemas
que recordam sua infância e juventude. Em 1946, ela se une matrimonialmente ao
jornalista, advogado e político Francisco Souza Tavares e muda-se para Lisboa. Em
1964, a poeta recebeu o Prêmio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores
pela obra Livro sexto (1962). Contemporânea dos escritores Jorge de Sena, Eugénio
de Andrade, Alexandre O’Neill, Tomaz Kim, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti,
António Ramos Rosa e David Mourão-Ferreira, ela compõe parte da geração de
Cadernos de poesia (1940-42), tendo colaborado nas revistas Távola redonda (1950-
54) e Árvore (1951-53).
Escrever a relação da poesia de Daniel com a de Sophia é desvendar um
instante, uma fagulha que ilumina, em seu esplendor momentâneo, um rosto em
contínua construção; é por isso que estas páginas se configuram como o início de
uma pesquisa que temos a intenção de continuar futuramente, porque há, ainda,
outras e importantes relações que visamos traçar como continuidade de um projeto
que busca elucidar, de modo progressivo, as principais características da obra desse
autor.
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A pesquisadora Paula Cristina Costa, ao escrever sobre Daniel Faria, reitera a


importância da obra que o poeta legou para a poesia portuguesa. Em seu artigo
intitulado “Algumas tendências da poesia portuguesa dos anos 50 até ao ano 2000”,
Daniel Faria é descrito como:

sem dúvida, uma das vozes mais importantes da nova poesia portuguesa da
década de 90 […] não só pelo caminho místico que a norteia e a faz elevar-
se muitas vezes sobre esse novo realismo, que vindo da década de 70 ainda
apaixona muitos poetas desta década, mas também pela especificidade
poética que esta poesia revela e constitui como um (auto)programa muito
próprio. (Costa, 2004, p. 40)

Parece-nos que ambos os autores aqui escolhidos constroem seus projetos em


uma tela constituída de um mesmo material, com alguns fios semelhantes, mas
possuindo modos de tecer as palavras de formas muito distintas. A tela é essa fibra
preenchida de atenção e silêncio, com reflexões existenciais que perpassam,
intensivamente, os sentidos sobre o ser, o estar no mundo, a passagem do tempo e a
morte. Embora apresentem uma intensa reflexividade, são ambas essencialmente
líricas, com elevado teor estético e formal, que incitam pensamentos ao redor da vida
e da experiência humana.
Visamos conceber uma análise que estabelece como fundamento o fazer
poético mediante a leitura como ato de transformação; um modo de perceber Daniel
Faria como leitor para entendê-lo como poeta, e também um modo de nos colocarmos
como leitores em uma prática e em uma postura de abertura e escuta atenta, para que
possamos reconhecer e recolher vestígios relacionais nas obras poéticas citadas,
cujos poemas, muitas vezes, são textos indiscerníveis e fluidos.
Partimos de um modo de leitura segundo os parâmetros estabelecidos por
Ingedore Villaça Koch (Koch; Bentes; Cavalcante, 2008), para quem a
intertextualidade divide-se em explícita e implícita. No modo implícito, as alusões são
as formas que ocorrem de maneira mais sutil, espécies de sinais, de pistas que são
suscitadas pela memória do leitor/ouvinte. Koch assinala que esse modo implícito “[…]
ocorre sem citação expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la na
memória para construir o sentido do texto, como nas alusões, na paródia, em certos
tipos de paráfrases e ironias” (Koch; Elias, 2012, p. 92). A autora apresenta, ainda, a
existência de uma intertextualidade temática, a qual daria conta de abordar as
relações existentes dos temas que são articulados nos textos e de uma
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intertextualidade estilística que é identificada, principalmente, na estrutura formal dos


textos.
Partimos do entendimento de que cabe a nós dispor-nos no exercício de
recolher vestígios a partir da memória de nossas leituras, reconhecendo sons,
símbolos, ritmos, imagens, lugares, paisagens, formas, temas, procedimentos mais
ou menos visíveis de outros textos e tradições, a partir de um repertório singular de
referências. É através da leitura atenta e minuciosa que os pontos de contato entre os
pensamentos e as concepções de escrita, bem como os sentimentos, as sensações,
as análises contextuais e os aspectos formais pertinentes a cada obra, serão
destacados, ou seja, todos os poemas escolhidos nesta dissertação foram
selecionados a partir de um critério e de um olhar particular que detectam um jogo de
constantes ecos e reenvios entre os autores comparados. A nossa curadoria buscou
textos que possibilitassem uma análise interpretativa capaz de apontar as relações
entre as obras e os seus distanciamentos.
Esse modo de leitura solicita uma espécie de afeto, no sentido mais literal que
essa palavra indica, o de afeição por algo, de comoção, de amizade. Luciana di Leone,
em seu livro Poesia e escolhas afetivas (2014, p. 19, grifo do original), afirma que
pensar “[…] a transitividade da palavra poética e pensar a relação entre escrita e
leitura implica pensar na capacidade de afetar – impressionar afetivamente; comover,
sensibilizar/dizer respeito a, interessar, concernir; atingir”. Por isso, direcionamos o
nosso foco para os ecos de vozes e timbres que ressoam e atravessam o texto que
estamos analisando. Como ainda menciona Leone:

O poema monta, assim, dramaticamente uma série de dúvidas e perguntas,


em torno do encontro de um eu consigo mesmo, com os outros, com a sua
voz, sua língua, e o imperativo de procurá-la, mesmo sabendo que não é sua
[…] levando a problemática do contato e da voz própria ao cerne das relações
com a tradição. E mostrando que o poema, seja ou não de poetas
consagrados, é um dispositivo de citações, de aspas, de vozes ouvidas.
(Leone, 2014, p. 23-4, grifo do original)

Somos afetados por essas outras vozes e escrevemos sob a ética do afeto, da
amizade, algo que consideramos crucial, por ter como objeto a poesia de Daniel Faria.
Para o autor, os amigos foram motes de escrita, de sentido e de existência, sua coluna
dorsal, a tal ponto que o poeta dedicou inúmeros poemas à fruição de seus amigos,
como, por exemplo, a Joaquim Nunes, cujo breve volume manuscrito denominado O
livro do Joaquim foi redigido ao longo de pelo menos três anos, entre 1993 e 1996,
17

exclusivamente para ele (e publicado postumamente, em 2019, pela editora Assírio &
Alvim, com a reprodução em fac-símile da última versão do manuscrito redigido por
Daniel Faria). Segundo Francisco Saraiva Fino, que edita o livro e escreve o seu
posfácio,

a conhecida generosidade do poeta encontra-se prodigamente atestada nas


diversas ofertas – colagens, poemas, datiloscritos, desenhos, composições
gráficas… – com que foi sublimando e, muitas vezes, amenizando o inevitável
distanciamento em relação a certos amigos, situação aludida em alguns
poemas e também nesta obra em particular. (Faria, 2019a, p. 81-2)

Daniel também dedicou outros textos a amigos, como “O país de Deus”, que foi
manuscrito num rolo de papel de calculadora e guardado num pequeno pote de barro
tapado com uma rolha de cortiça. Conforme cita Alexandra Lucas Coelho no artigo
intitulado “O rapaz raro” (2001, s/p.), é com os amigos que Daniel constrói “a sua
família de todos os dias, numa entrega e dedicação cada vez mais profunda”. Os
testemunhos dos entrevistados, neste texto, revelam uma capacidade de “dádiva
luminosa e inventiva, de que centenas de bilhetes, cartas, poemas, desenhos,
colagens são vestígios apenas mínimos sobre sua dedicação aos amigos” (Coelho,
2001, s/p.).
Segundo o bispo Carlos Azevedo, que conviveu em proximidade com o autor,
“Daniel tem a arte de criar amigos. Assim foi nos dias breves do seu itinerário entre
nós e assim continua em nós leitores” (Azevedo apud Madureira, 2021, s/p.). É a partir
dessa postura, de um poeta que existiu e exerceu a sua “arte de criar amigos”, que
nos comprometemos como leitores a promover o encontro dos textos dele com os de
Sophia, um diálogo que registra as diversas comoções oriundas desse encontro.
Como entendemos que as verdadeiras amizades prezam pela distância e pelo
delineamento da alteridade, visamos, também, ressaltar aquilo que os diferencia.
Inclusive, Daniel Faria entendia que a diferença é o que realmente une:

A diferença é a única coisa que vale.


Por ser diferença, é solitária e isolada perde sentido; só se vive
comunitariamente.
O meu melhor amigo é o mais próximo e o mais distante dos rostos que eu
amo.
A diferença é o que une.
Ela é como qualquer abertura. Marcando a diferença entre dois espaços, é o
que permite a ligação entre eles.
[…]
18

Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior


proximidade, isto é, onde a presença do outro de tão inteira já não pode ser
medida. Sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz,
porque aí sem cessar se regressa e se avista.
É como o movimento de quem caminha num espaço alto e estreito: é preciso
separar os braços e desunir as mãos, para que possa alcançar-se o equilíbrio.
(Faria, 2019a, p. 64; 67)

Ainda no mesmo livro da citação acima, O livro do Joaquim (2019a, p. 59), o


poeta declara: “Não acredito que cada um tenha o seu lugar./ Acredito que cada um é
um lugar para os outros”. Para o poeta, a sua escrita era veículo, palavras que
promoviam laços afetivos e reflexões humanas, elos com os seus amigos e com as
suas múltiplas leituras, um lugar destinado a alguém – escrever como modo de
promover a potência do encontro.
Essa nossa análise comparativa se dá, muitas vezes, de forma errante, como
um “labirinto” (estrutura arquitetônica muito preciosa para ambos os poetas) de muitas
voltas, retornos e desdobramentos. Fios que nos guiam e nos impelem a compreender
o “mecanismo secreto do amor” que Daniel Faria (2019c, s/p.), respondendo a uma
célebre entrevista a Francisco Duarte Mangas, define:

Eu escrevo para os outros. Mas quando nós publicamos, perdemos os


poemas – eu senti isso. Há uma certa fase em que eu já não consigo ler o
que escrevo, é quase um processo de desamor. Depois, os leitores
devolvem-nos o livro. O mecanismo secreto do amor é esse processo de
diálogo, com a escrita, com os poemas entre si, na intertextualidade dos
poemas com outros autores.

Adentramos esse processo de diálogo para compreender como a poesia de


Daniel Faria é ancorada por certas referências que ecoam a poesia de Sophia de
Mello Breyner Andresen e traçamos o seguinte percurso, que se traduz na estrutura
de apresentação dos tópicos: “exercícios de explicações”, conceito muito caro a
Daniel Faria, que entendia a palavra “explicar” no seu sentido etimológico, que é o de
“tornar maior e mais largo”, ou seja, ampliar as reflexões sobre os principais aspectos
que ambos os poetas articulam em suas linguagens. Uma forma de desenrolar os fios
que compõem as diversas teias daquilo que Silvina Rodrigues Lopes denomina de
“vestígios do acontecimento”,

[p]orque o poema escrito separa-se daquele que o escreveu. Dispersa-se,


distancia-se. E a beleza […] vai nele, na sua tinta de vozes, na sua escrita
que das vozes do mundo (vozes de outros poemas, vozes dos outros e voz
19

de quem escreve são indiscerníveis na memória) faz sentido. (Lopes, 2003a,


p. 63)

A estrutura, portanto, está organizada em “2 Aconteceram-nos poemas”,


momento em que analisamos a forma epifânica com que os poetas concebem a
palavra poética e buscamos compreender a participação da escuta e da atenção
nesses projetos de escrita. Em “2.1 Explicações da palavra poética em Sophia”,
visamos entender os principais aspectos que envolvem o processo de criação poética
da autora. Em “2.2 Explicações da palavra poética em Daniel”, analisamos os
principais aspectos da arte poética de Daniel, comparando-os com o que abordamos
sobre Sophia, no tópico anterior. No capítulo “3 Explicações para habitar tradições
místicas”, apresentamos reflexões teóricas sobre a mística e a sua relação com o
processo criativo de Daniel Faria. No quarto capítulo, “4 Explicações para habitar
tempos divididos”, analisamos poemas que apresentam sujeitos líricos que habitam e
expressam palavras de augúrios e lamentos quando sentem uma perda, ao habitar
um lado profano e esvaziado de um tempo dividido. E, por fim, no último tópico,
traçamos as principais conclusões que este estudo alcançou.
Ao longo do processo desta pesquisa, deparamo-nos com importantes desafios
que foram nortes para a nossa escrita, perguntas que também foram sendo
respondidas ao longo do processo: como promover uma reflexão crítica que seja
capaz de ver as marcas das aberturas do texto ao seu fora? Como observar as
conexões, os fluxos que atravessam e descentralizam tanto os textos quanto os
contextos históricos e sociais dos poetas abordados? De que forma devemos
apresentar a escrita de Daniel Faria afetada pela força e pelo pensamento de Sophia
de Mello? São muitas as indagações que nortearam as palavras a seguir, mas, assim
como os poetas elegidos nesta pesquisa, também fomos levados pela sua ânsia de
desvendar aquilo que se desconhece.
20

É AQUI, NESTA PÁGINA, ONDE ELES SE ENCONTRAM

É nesta página de paredes brancas, neste tempo primeiro, límpido, inteiro,


puro. É nesta hora perfeita, sem ruído, leve como um lenço, neste exato instante em
que este rosto vai aparecendo, desenhando-se à semelhança deste outro rosto que o
encara. Ambos tocam sombras de magnólias e rosas como se pegassem um ao outro
as mãos, inquietas de tocar e não prender, queimadas na exaltação do sol que os
consome. É aqui, nesta página 20, que dois nomes se tecem. Guardemos este início
e deixemos ressoar as palavras de Daniel Faria (2015, p. 442): “Seja o que for/ Será
bom./ É tudo”.

2 ACONTECERAM-NOS POEMAS

Versos que põem o mistério a ressoar em redor de nós


Sophia de Mello Breyner Andresen

Conforme mencionamos na introdução desta pesquisa, há inúmeros aspectos


das obras poéticas de Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner entre os quais
podemos traçar aproximações: ambos parecem lidar com um modo de atenção e de
escuta frente à decifração do mistério, uma espécie de busca de imagens que
sinalizem uma sacralização, um signo que confere encanto a um mundo
desencantado – talvez seja por isso que, ao ler os versos de Daniel Faria, Sophia
tenha afirmado: “Não são versos apenas misteriosos, mas versos que põem o mistério
a ressoar em redor de nós, poemas que nos inquietam um pouco, ou como diria
Sócrates, que ‘não nos deixam dormir’” (Andresen, 2000, p. 9). Henrique Manuel
Pereira, professor da Universidade Católica Portuguesa, afirma que tanto Sophia
como Daniel deixaram obras que apontam para o transcendente: “Quer um quer outro
põem a ressoar o mistério à nossa volta e despertam para o mistério” (Agência
Ecclesia, 2021), ressalta o professor, que, no ano de 2021, organizou um congresso
em homenagem aos dois poetas, “A violenta escuridão de se abeirar da luz”.
Essa possível aproximação entre a poesia de Daniel Faria e a de Sophia de
Mello fica evidente para os pesquisadores que mergulham com maior profundidade
na obra de Daniel. No seu estudo “Quando a poesia é um estado de espírito”, o
pesquisador Manuel Frias Martins (2010, p. 163) declara que a obra poética de Daniel
Faria propõe uma palavra escrita e formatada “pela fé viva e ideais espirituais da vida
21

infinita do amor”, oferecendo para a cultura contemporânea “o deslumbramento raro


de uma atitude da alma que é em si mesma poesia e comunhão espiritual”. Essa é a
mesma “atitude da alma” que podemos encontrar em Sophia, como a própria declara,
em entrevista a Ricardo Araújo Pereira, para o Jornal de letras, artes e ideias, em 17
de dezembro de 1997: “a poesia é uma das raras atividades humanas que, no tempo
atual, tentam salvar uma certa espiritualidade” (1997, p. 7). Essa relação entre
espiritualidade e poesia foi pensada por Octavio Paz, em O arco e a lira, que afirma
que tanto a poesia como a religião podem brotar da mesma fonte:

Por um lado, julgo que poesia e religião brotam da mesma fonte e que não é
possível dissociar o poema da sua pretensão de mudar o homem sem correr
o risco de transformá-lo numa forma inofensiva de literatura; por outro lado,
acredito que a missão prometeica da poesia moderna consiste em sua
beligerância em relação à religião, fonte da sua deliberada intenção de criar
um “sagrado”, diante do que as igrejas atuais nos oferecem. (Paz, 2014, p.
124).

O autor frisa que a principal diferença é que a “palavra poética não precisa de
autoridade divina” (2014, p. 144), mas tanto a religião quanto a poesia trazem, no
sagrado, a produção do sublime:

No sublime sempre se dá um tremor, um mal-estar, um pasmo e sufoco, que


denunciam a presença do desconhecido. Outro tanto pode-se dizer do amor:
a sexualidade se manifesta na experiência do sagrado com terrível potência:
todo amor é uma revelação, um tremor que abala os alicerces do eu e nos
leva a proferir palavras que não são muito diferentes das que o místico
emprega. Na criação poética é um pouco parecido: ausência e presença,
silêncio e palavra, vazio e plenitude são estados poéticos tanto quanto
religiosos e amorosos. (Paz, 2014, p. 149).

Para ele, ainda, o próprio fazer poético (2014, p. 15) “é exercício espiritual […].
Súplica ao vazio, diálogo com a ausência […]. Oração, litania, epifania, presença”.
Podemos identificar um diálogo com a ausência em ambos os projetos poéticos aqui
comparados, com a articulação de um sistema de imagens específico em cada obra.
É possível compreender que a trajetória biográfica de Daniel Faria contribuiu para
essa “atitude espiritualizada” em relação ao mundo, e isso resvala na sua criação
poética, mas esta extrapola e é ampliada pela sua erudição e pelo seu conhecimento
vasto, de modo especial, da literatura e do teatro, chegando o poeta, inclusive, a
realizar a licenciatura em Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras do Porto. É
somente quando termina a Faculdade de Letras que ele inicia uma vida monástica
22

como noviço, no Mosteiro de São Bento de Singeverga, da ordem beneditina. Fica


evidente, em seus textos, que essas experiências o aproximaram intensamente dos
escritos de uma tradição literária cristã e mística, com leituras aprofundadas de
autores como Santo Agostinho, São João da Cruz, Santa Teresa de Ávila, além dos
inúmeros textos bíblicos. Entretanto, a escrita poética de Daniel extrapola a tradição
religiosa e cria intertextualidades com outros campos, como a mitologia, a filosofia e
as artes em geral.
Sophia e Daniel são poetas comprometidos com o mistério, concebendo o
gesto poético como modo de desvendar, de captar o inefável, no qual a escuta e a
visão participam ativamente e os fazem entrar em contato com uma unidade originária,
revelando uma postura metafísica diante da existência. São poéticas ligadas à
concepção de mundo na crença de algo maior e com o qual, para se entrar em contato,
é necessário buscar um estado de profunda atenção silenciosa e de abertura à escuta,
visando atingir a aliança com aquilo que os transcende.
Ambos parecem trazer o que Giambattista Vico (2001), filósofo italiano
setecentista, prezava: o exercício poético como elaboração de uma sabedoria da
linguagem, a sapienza poetica. Ruy Belo, um autor que teve grande relevância para
Daniel Faria, encontrou em Giambattista um diálogo frutífero. Podemos perceber o
grau de importância desta obra setecentista no processo de escrita do poeta pela
leitura dos seus ensaios, em particular “Poesia Nova”, cujo título foi inspirado no de
Vico. Os ensaios refletem o primado da palavra poética sobre a palavra prática, a
relação da infância com a escrita poética e a poesia como exercício da sabedoria da
linguagem: “talvez se possa entender a poesia como o exercício da sabedoria da
linguagem, numa definição ampla, que porventura terá o mérito de contemplar o que
de mais geral, de mais característico, de mais permanente ela contém”. (BELO, 1984,
p.89-90).
O poema, portanto, é escrito e pensado a partir de um processo de atenção e
escuta (processo este que ocorre de modo específico em cada poeta investigado) e
também é um testemunho sobre o modo de pensar e criar a palavra poética, um
registro que apresenta os principais aspectos de seus processos criativos, as suas
artes poéticas.
Fazemos uso, nesta investigação, de referências da teopoética e da teologia
para compreendermos teoricamente as relações que esses projetos poéticos traçam
com o fenômeno do sagrado. Reiteramos que não é, absolutamente, do nosso intuito
23

ou papel elucidar e comprovar algum fenômeno religioso e as implicações do sagrado


na contemporaneidade. Esta é uma análise complexa e, para refletir sobre ela, seria
preciso utilizar diversas outras áreas do pensamento como a psicanálise, a
antropologia, o marxismo, o existencialismo, em que cada uma impõe uma reflexão
que não nos cabe destrinchar e explicitar. O que nos interessa é destacar a análise
da linguagem literária construída por esses autores citados e, a partir desse
entrelaçamento entre literatura e concepções oriundas de uma tradição religiosa,
construirmos uma reflexão que revele os mecanismos presentes em cada obra
poética.
Como sabemos, é extremamente vasta e antiga a relação entre os fenômenos
religiosos e os processos de criações poéticas. Poderíamos, só a fim de explicitar um
breve pedaço desse extenso histórico, abordar poéticas como a da filósofa e mística
francesa Simone Weil; a de Santa Teresa de Ávila e a de São João da Cruz; ou, para
adentrarmos o contexto brasileiro, as de poetas como Adélia Prado, Hilda Hilst, Cecília
Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima e inúmeros outros que tiveram uma forte e
importante relação com ideias e concepções religiosas. Recentemente, em 2017, foi
publicada uma antologia de poesia intitulada Verbo: Deus como interrogação na
poesia portuguesa, organizada pelos pesquisadores José Tolentino Mendonça e
Pedro Mexia. No prefácio, eles explicam o conteúdo dos textos selecionados:

Deus como interrogação, assim se chama a antologia, porque Deus existe,


na poesia como na vida, em modo interrogativo, mesmo para quem tem fé.
Esta não é uma antologia para crentes ou para não crentes, é uma antologia
de poesia que dá exemplos de um tema, de um motivo, de uma obsessão,
exemplos portugueses, numa época que também nos deu Claudel, Eliot, Luzi
ou Miłosz, poetas com uma questão, com uma pergunta que nunca está
respondida. (Mendonça; Mexia, 2014, p. 13)

A poesia, desde sempre, esteve próxima ao pensamento e à experiência


religiosa, e é por isso que se instituiu uma área de estudos denominada teopoética,
um campo interdisciplinar que busca explorar e compreender a relação entre
fenômenos religiosos e expressões artísticas. A palavra “teopoética” é uma junção dos
termos “teologia” (estudo de Deus e das questões religiosas) e “poética” (estudo da
arte da poesia e da expressão estética) e parte do pressuposto de que a experiência
religiosa pode ser comunicada e compreendida por meio da linguagem poética, pois
reconhece que as palavras e as imagens têm um poder evocativo único que pode
24

comunicar ideias e experiências profundas relacionadas à dimensão espiritual e


religiosa.
Maria Clara Bingemer e Alex Villas Boas (2020, p. 10), organizadores do livro
Teopoética: mística e poesia, publicado em 2020, declaram, no texto de abertura, que
a teopoética “é um lugar de entrelaçamento cultural, onde se conectam teologia,
literatura, estética, espiritualidade e todas as formas de artes”. Nesse sentido, a área
procura discutir como a linguagem poética pode ampliar a compreensão da
experiência religiosa e do transcendente, não se limitando a uma única tradição
religiosa ou a uma única forma de escrita poética. As análises traçadas sob esta
perspectiva se estabelecem exclusivamente dentro da linguagem, como aponta Ceci
M. C. Baptista Mariani (2019, p. 94), “a linguagem é […] o lugar (topos) onde a
realidade se entrega a nós e, por isso, a primeira questão da teologia”; assim, “a
teopoética visa entender que tudo o que envolve o fenômeno de relação com Deus e
o mistério é situado na experiência linguística”.
Para aprofundarmos esta relação entre religião e poesia, podemos nos utilizar
também de reflexões pela ótica da filosofia. Marilena Chauí (2002, p. 252), filósofa
brasileira, no livro Convite à filosofia, dedicou um capítulo para pensar a experiência
do sagrado e a instituição da religião. Ela declara que toda religiosidade ou experiência
ligada a um sentimento religioso nascem a partir de uma consciência humana.
Consciente das coisas, dos outros e de si mesmo, o ser humano percebe que ele não
é a causa das regularidades presentes na natureza, que não é criador das coisas boas
e ameaçadoras que a constituem. E conclui que há uma realidade exterior a ele,
independentemente de sua intenção e de suas ações. Para a filósofa (2002, p. 297),
ser religioso é acreditar em um poder superior ao humano, em uma divindade que é
constituída e que extrapola o ser humano: “o sagrado é uma experiência da presença
de uma potência ou de uma força sobrenatural que habita algum ser – planta, animal,
humano, coisas, ventos, águas e fogos”. Isso estaria relacionado de forma direta com
a imaginação e com o desejo humano de habitar um outro mundo, de prolongar a
condição humana no plano terrestre. Seres humanos, imbuídos de uma concepção
religiosa do mundo, reconhecem a manifestação de uma potência ou força
sobrenatural no que é natural, e é isso que explica, para a filósofa, a experiência do
sagrado:
25

A sacralidade introduz uma ruptura entre natural e sobrenatural, mesmo que


os seres sagrados sejam naturais (como a água, o fogo, o vulcão): é
sobrenatural a força ou a potência para realizar aquilo que os humanos
julgam impossível efetuar contando apenas com as forças e capacidades
humanas […] O sagrado opera o encantamento do mundo, habitado por
forças maravilhosas e poderes admiráveis que agem magicamente. (Chauí,
2002, p. 297)

Essa ideia de encantamento do mundo se coaduna com a concepção do


sagrado e, em paralelo, com a do desencanto com a concepção profana que Mircea
Eliade, professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo e romancista romeno,
concebe em sua obra O sagrado e o profano: a essência das religiões (1959). Para o
autor (2018 [1959], p. 17), o homem toma conhecimento do sagrado porque este se
mostra como um fenômeno completamente diferente do profano, em que um ser com
uma visão não religiosa da existência se relaciona com a realidade de modo
dessacralizado, ou seja, o que o filósofo propõe, a partir de suas pesquisas com
diferentes povos e culturas da era arcaica, são duas modalidades que condizem com
dois modos díspares de existir.
Para um ser humano que possui uma concepção religiosa da existência, todo
o cosmos pode manifestar o sagrado, e, “para aqueles que têm uma experiência
religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica”
(Eliade, 2018 [1959], p. 18). O autor declara que um ser que crê no fenômeno do
sagrado – um ser religioso, portanto – entende o espaço como não homogêneo e se
utiliza de símbolos para pôr em evidência a separação desses dois espaços, “o limiar,
a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de continuidade do
espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se trata de um símbolo e, ao
mesmo tempo, de um veículo de passagem” (2018 [1962], p. 29, grifos do original).
Por sua biografia e pelas citações diretas encontradas nos diversos textos
poéticos de Daniel Faria, é evidente que ele concebe uma visão religiosa do mundo e
da existência de acordo com as afirmações de Eliade. No debate crítico de Sophia,
essa afirmação já não é tão óbvia: há autores que defendem que a escritora carregava
uma postura cética frente à existência e nada religiosa, por ser uma poeta moderna
do ponto de vista cultural e por ter levado a sério a morte de Deus, posição esta que
defende a própria filha de Sophia, Maria Andresen Sousa Tavares, que dedicou parte
da vida a estudar a obra poética de sua mãe. Outros, no entanto, como o seu próprio
editor Zeferino Coelho (2018), afirmam que o tema da morte de Deus, de fato, é
presente nos textos da poeta, mas que esse sentimento de perda irreparável nunca a
26

impediu de buscar restabelecer, através da poesia, a unidade com o mundo; como ele
afirma, a autora é:

Católica e seriamente católica, acredita num Deus católico que é um Deus


transcendente, que cria o mundo mas está fora dele, e toda a sua poesia é a
exaltação do divino como inerente ao mundo material; o divino é a perfeição
da curva da onda, a elegância da haste do trigo. (Coelho, 2018, s/p.)

Richard Zenith, ao apresentar, em 2011, uma fala no Colóquio Internacional


sobre a poesia de Sophia, defendeu que a poeta era “assertivamente cristã” (2011, p.
39), mas que sua poesia evidencia “um catolicismo que, fiel ao sentido primitivo desta
palavra, se caracteriza pela sua amplitude e abertura, preocupando-se pouco ou nada
com doutrinas ou dogmas” (p. 44). Segundo o autor, “embora não haja qualquer
menção de Deus ou de deuses”, podemos constatar “inequívocas referências à
teologia cristã e a crenças pagãs” (p. 39). O tradutor acredita que a poeta possui uma
visão sincretista que une concepções pagãs e cristãs e que essas “dualidades
associadas ao universo da autora não costumam estar nem inteiramente concordes
nem em plena oposição” (p. 41).
A partir de uma análise minuciosa de sua poética, concordamos inteiramente
com a visão apresentada por esses críticos; entendemos que Sophia é um ser
religioso, nos moldes que Mircea Eliade afirma, pois a poeta concebe, em muitos de
seus textos, imagens que simbolizam uma irrupção do sagrado, uma crença de que
há um fenômeno além do humano que confere uma dimensão divina, seja ela
originada da mitologia pagã ou oriunda de referências de uma tradição cristã.
São poetas que creem na “hierofania”, no ato da manifestação do sagrado,
naquilo que restitui o encantamento do mundo, colocando-se a escuta para detectar
e decifrar sinais que simbolizam a presença divina e que existem de modo religioso,
venerando, por exemplo, uma pedra como algo que já revela uma não pedra, porque
está constituída, coberta de um sentido adicional cósmico, mas que não deixa de se
constituir de materialidades de pedra. Poetas que enxergam a transmutação de uma
coisa em uma realidade outra. E isso irá ocorrer amplamente na poesia de Daniel
Faria e também na de Sophia, que irão eleger imagens como manifestações imbuídas
de sacralidade. Eles, como seres religiosos, também concebem uma espacialidade
dividida em profana e sagrada, de acordo com a ausência ou a presença divina, e isso
será tematizado nas obras de ambos os poetas.
27

É importante considerarmos que, conforme reitera Eliade (2018 [1959], p. 16),


“o sagrado manifesta-se sempre como uma realidade inteiramente diferente das
realidades ‘naturais’”, e a linguagem, para nomear essa experiência, nunca irá
exprimi-la de uma forma total e literal. Vivenciar e testemunhar o sagrado no mundo
equivale a vivenciar a realidade em seu âmago:

O sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo


tempo realidade, perenidade e eficácia. […] É, portanto, fácil de compreender
que o homem religioso deseje profundamente ser, participar da realidade,
saturar-se de poder. (Eliade, 2018 [1959], p. 18-9, grifos do original)

Nos três primeiros tópicos da dissertação, apresentaremos as principais


características das artes poéticas de Sophia e de Daniel, o modo como a escuta e a
atenção são reiteradas nessas poéticas, e, na última parte desta dissertação, nos
debruçaremos sobre a crise e a angústia que ambos os poetas registram quando
perdem esse sentimento de elo e conexão e se deflagram como sujeitos
desorientados, sem eixo, esvaziados de sentido.
Em “Arte poética IV”, texto publicado pela primeira vez na revista Távola
redonda, em janeiro de 1963, e incluído em sua Obra poética (2015, p. 895-7), Sophia
menciona Fernando Pessoa, quando ele declarou a frase “aconteceu-me um poema”,
e comenta que a sua maneira particular de escrever é muito próxima a esse
“acontecer”: segundo ela, “o poema aparece feito, emerge, dado (ou como se me
fosse dado). Como um ditado que escuto e noto” (p. 895). Em seguida, ela recorda
um episódio da sua infância que a marca profundamente, quando, muito antes de
saber ler, ensinaram-lhe a decorar poemas e que bastaria estar “muito quieta, calada
e atenta para os ouvir" (p. 895). Desse primeiro encontro, ficou, na autora, a noção
explícita de que “fazer versos é estar atento e de que o poeta é um escutador” (p.
895). Para Sophia, o poema nasce na condição essencial de uma escuta e atenção:

Sei que o poema aparece, emerge e é escutado num equilíbrio especial da


atenção, numa tensão especial da concentração. O meu esforço é para
conseguir ouvir o “poema todo” e não apenas um fragmento. Para ouvir o
“poema todo” é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu
própria não intervenha. (Andresen, 2015, p. 895)

A autora acredita que a poesia se revela a partir de um estado atento e


concentrado que o poeta adentra para detectar uma voz, de alguma forma “alheia”,
que “sopra” as palavras – e, para ouvir essa voz, é necessário que ela esteja em
28

profundo silêncio. Interessante notar que o silêncio é um elemento condicionante para


que a poeta consiga escutar o dizer de uma linguagem ainda não revelada. Ainda no
mesmo texto, ela continua:

Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como
já feito? A esse “como, onde e por quem” os antigos chamavam Musa. É
possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um
subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio […]. Por mim, é-me difícil
nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir
se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em
mim por aquilo que em mim se inscreve. (Andresen, 2015, p. 895-6).

A poeta traça uma reflexão sobre essa voz alheia, sem possuir nenhuma
certeza de sua origem; ela cita a concepção grega antiga a respeito do conceito de
inspiração através da imagem da Musa (a tradição grega, como veremos, é muito cara
à autora e será mencionada em inúmeros momentos na sua poética, traçando uma
relação direta com a sua escrita), e também aborda um aspecto íntimo e subjetivo
desta voz, trazendo referências ao mundo psíquico, sobre o inconsciente, aquilo que
a autora desconhece, algo obscuro que, através da criação poética, emerge e revela
algo de si. O fato é que a poeta não possui a convicção de que aquela voz é dela
própria ou exterior a ela, mas compreende que esse seu modo de escutar integra,
essencialmente, a sua maneira de escrever, conforme ela conclui:

Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem
intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido,
ora mais confuso), é a minha maneira de escrever. (Andresen, 2015, p. 895-
6)

Sophia se coloca em um estado de abertura para essa escuta, desejando


captar algo que não é audível; podemos lembrar, aqui, dos versos em que Fernando
Pessoa (2001, p. 526-7) invoca: “Deixa-me ouvir o que não ouço…/ Não é a brisa ou
o arvoredo; / É outra coisa intercalada…/ É qualquer coisa que não posso/ Ouvir senão
em segredo […]”. Esta “outra coisa”, que só pode ser ouvida em segredo, pode ser
entendida como uma experiência do inefável, daquilo que é invisível e não
materializado, algo próximo de uma revelação que está além do humano/terrestre.
Fernando Pessoa é impossibilitado de nomear com nitidez essa “outra coisa”,
justamente porque este fenômeno aborda a incapacidade humana de exprimir o
inefável: a linguagem só pode sugerir um fenômeno do sagrado, não há palavra que
o abarque em toda a sua complexidade e totalidade.
29

Para Mircea Eliade, seres imbuídos de uma concepção religiosa da existência


compreendem um lugar sagrado como “uma rotura na homogeneidade do espaço”
que é “simbolizada por uma ‘abertura’, pela qual se tornou possível a passagem de
uma região cósmica a outra (do Céu à Terra e vice-versa; da Terra para o mundo
inferior)” (Eliade, 2018 [1959], p. 38). Esse modo de atenção e escuta, em Sophia, é
uma forma de buscar e perceber essa abertura, o momento em que a poeta encontra
uma espécie de passagem, sentindo-se existir em um espaço e em um tempo que
diferem do atual e mundano, completamente dessacralizado.
Para exemplificarmos essa questão da escuta como um modo de abertura e
atenção, somente no livro Coral, lançado pela primeira vez em 1950, aparecem três
poemas com o verbo “ouvir” no modo imperativo: “Ouve:/ Como tudo é tranquilo e
dorme liso [...]” (Andresen, 2015, p. 247); em “A fonte”: “Ouve a fonte translúcida da
quinta/ Cercada de varandas onde a ausência/ De alguém eterna mora e se debruça”
(p. 248); e, em “Os pássaros”, encontramos: “Ouve que estranhos pássaros de noite/
Tenho defronte da janela:/ Pássaros de gritos sobreagudos e selvagens/ O peito cor
de aurora, o bico roxo [...]” (p. 261). É através do modo imperativo do verbo “ouvir”
que a poeta solicita um modo de atenção e presença.
A escuta também exerce um importante lugar na poética de Daniel Faria e será
abordada diversas vezes, como quando ele afirma, em entrevista a Francisco Duarte
Mangas, no ano de 1998, citando, justamente, o texto de Sophia em que ela menciona
a frase de Fernando Pessoa:

Não sei quem falava que o poema se escuta. Não sei se era o Pessoa e
Sophia vem falar disso e retoma Pessoa não sei. Tenho a certeza de uma
coisa: a poesia me é dada. Eu construo-a. O poema escapa-nos
completamente. Ele, por nos ser estranho, acaba por se nos impor. Há
poemas que surgem logo; apareceram assim e não lhes posso tocar. Os
poemas de Homens que São Como Lugares Mal Situados não sei bem como
os construí – foram escritos no tempo em que eu estava para entrar no
Mosteiro, estava em estado quase de graça absoluta. Senti, então, que os
poemas nos são dados. Construí-los é um exercício de obediência. (Faria,
2019c, s/p.)

Assim como Sophia, o poeta sente que os poemas lhe “são dados”, que eles
escapam completamente, no conceito do “aparecer”, “emergir”, “surgir”. Interessante
notar que, nesta passagem, ele descreve um aspecto do processo criativo do seu livro
Homens que são como lugares mal situados, lançado em 1998, como uma experiência
próxima ao fenômeno do êxtase (“estava quase em estado de graça absoluta”), como
30

se os poemas fossem “soprados”, jorrados em uma escrita contínua, sinalizando um


estado poético em modo de transe, conectado ao transcendente.
Há um outro trecho retirado do já citado texto “Auto-retrato do artista enquanto
jovem”, escrito para a Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, em
que Daniel Faria traça uma espécie de testemunho poético (o texto, na íntegra, poderá
ser lido no Anexo desta dissertação) no qual reitera, com uma precisão ainda maior,
este modo de escuta que ele adentra para escrever os seus poemas:

[…] E o meu retrato enquanto agora é um rosto que há-de vir.


É um rosto aparecendo, porque é o retrato de uma face que procura
desenhar-se à semelhança de outra face, o rosto do Ressuscitado, a palavra
que entregou a vida e que, aberta, é a única fonte da vida e a própria vida.
[…]
O tempo do retrato exposto é o do rosto assim com sede, com essa sede. E
só o conhecerá quem o reconhece, só o verá quem se aproxima pelo interior,
pela sombra, pela penumbra, onde o rosto se pode revelar e desvelar pela
escuta, porque quem começa pela escuta pode ver.
Falo na escuta, ouvindo repetidamente o começo do prólogo da Regra de S.
Bento, as palavras que agora, e nunca como agora e para além do agora me
proponho ouvir na fidelidade que o amor exige: Ausculta, o fili – “Escuta, filho,
os preceitos do Mestre e inclina o ouvido do teu coração”. Inclino-me, pois.
Inclino o rosto apressado de discípulo, e vejo que não tropece subindo os
doze degraus.
O autor que sou nem sempre é a minha vida subindo. Mas subo amparado
pela obediência que tento equilibrar nas mãos […] (Faria apud Fino, 2008, p.
428)

A escuta é relacionada, na declaração do poeta, à busca para ver o “Rosto do


Ressuscitado”. Há, portanto, uma relação direta com a deflagração e o desvelamento
do fenômeno sagrado – no caso de Daniel, de perceber o exato instante em que o
sinal da presença de Cristo emerge e é revelado. A palavra “sede” demonstra a ânsia,
o desejo intenso de querer ver esse rosto. Essa aproximação pela escuta se dá, para
o poeta, pelo interior, incorporada, em um modo contemplativo que atenta para o que
é obscuro, desconhecido, imagem representada pela sombra e pela penumbra, ou
seja, por aquilo que está encoberto, habitado por mistério e enigma. É nessa espécie
de trilha enigmática que o poeta poderá habitar a possibilidade de decifrar e
reconhecer o rosto dos sinais da sacralidade iminente.
Mas há outro aspecto importante nesta declaração, pois, para Daniel Faria, o
rosto do Ressuscitado é “a palavra que entregou a vida” – a palavra será entendida,
portanto, como carnalidade do verbo, como pura manifestação da “fonte da vida”. É
interessante pensarmos na referência ao trecho da Regra de S. Bento, que proclama
uma visão crucial para a poética de Daniel Faria: “inclina o ouvido do teu coração”, ou
31

seja, a escuta perpassa o órgão que simboliza o sentimento do amor, que pulsa o
sangue da vitalidade. Também nesta declaração, o poeta escreve a solicitação a que
ele deve atender: “escuta, filho”. A continuação da passagem (Provérbios 4, 20-2)
revela o motivo deste pedido de Deus: “porque [as palavras] são vida para os que as
acham, e saúde para todo o seu corpo”.
A concepção do sagrado, portanto, está completamente entrelaçada ao nome,
à palavra poética que é ouvida, gestada e comunicada. Há um poema no livro Homens
que são como lugares mal situados, publicado em 1998, com os seguintes versos: “Há
uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco/ A sede. A água
multiplica-se porque a tiro do coração/ Que escuta.// Há um espaço no corpo que pode
ser um lugar./ À sombra posso olhá-lo até o ver […]” (Faria, 2015, p. 133). Há um
lugar, uma espacialidade para onde o poeta recua a fim de entrar em contato com a
espiritualidade e elaborar o sentido. Esse espaço pode ser interpretado, também,
como um estado interior, de introspecção, “um espaço no corpo que pode ser um
lugar”, um espaço ausente de som e ruído, ou seja, silencioso, para que, desta forma,
se possa ver (reconhecer os sinais sagrados).
Em sua poesia, como na de Sophia, a concepção da presença divina será
representada por uma ausência (não à toa, ambos os poetas irão expressar, em seus
versos, a angústia ocasionada pela sensação de perda permanente). O coração, em
silêncio, “escuta”; o verbo “escutar” reforça o paradoxo da ausência de som, como se,
para ouvir o divino, nenhum ruído pudesse existir. Daniel afirma que há uma “voz” que
ele “bebe”, ou seja, essa voz é corporificada, ingerida e mesclada ao corpo do poeta
como um processo fusional.
No poema “As fontes”, do livro Poesia (1944), Sophia também escreve versos
em que “bebe” uma voz: “Irei beber a luz e o amanhecer,/ Irei beber a voz dessa
promessa/ Que às vezes como um voo me atravessa,/ E nela cumprirei todo o meu
ser” (Andresen, 2015 [1944], p. 106), revelando também uma voz ingerida, fusionada,
unificada ao corpo da poeta. Podemos identificar, nessa aproximação entre os poetas,
um desejo de realização suprema, de busca de fusão, de plenitude do ser – no caso
dos poemas ora apresentados, uma voz que se bebe, algo como uma “outra” voz,
alheia, que é fusionada com a do próprio poeta, como nos versos com que Sophia
encerra seu texto “Arte poética V” (2015 [1988], p. 898), lido na Sorbonne, em 1988:
“A voz sobe os últimos degraus/ Oiço a palavra alada impessoal/ Que reconheço por
não ser já minha”.
32

Na poética de Daniel Faria, a transcendência se desdobra como a voz do


poema, visto que, para o poeta, a palavra poética é a materialização da manifestação
divina, como o autor afirma em uma nota a Francisco Duarte Mangas:

Só depois da entrevista fui capaz de pensar em algumas coisas em que nunca


pensara: por exemplo, creio que a importância da luz se prende com a
permanente interrogação que se coloca quem, de algum modo, se sente
chamado à vocação sacerdotal ou a uma vocação religiosa – creio que, como
para nenhum outro, para esses se torna serena urgência a luz, o ver inteiro,
a presença abundante, e nunca suficiente, dos sinais; outro exemplo – a “voz
que bebo” é, antes de mais, a voz do poema; e o poema constrói-se a si
mesmo, por isso eu disse que escrever é um exercício de obediência. (Faria,
2019c, s/p.)

Daniel expressa como a luz invoca uma presença, enquanto o som, a escuta,
implicam a necessária e absoluta ausência de ruído ao redor. A materialidade das
palavras, os seus fonemas, ritmos, sons, sílabas, a disposição delas e dos versos na
superfície em branco, configuram uma tradução do inefável; por isso, para Daniel, a
escrita “é um exercício de obediência”, porque a palavra e o silêncio são matérias
artesanais do mistério e, para que o poema emerja, é preciso estar mergulhado em
atenção, silêncio e solidão.
Em muitas ocasiões, o poeta aproxima a imagem do seu ofício com a do
lavrador, aquele que lavra arduamente a terra para que dela nasça e cresça o
alimento. Conforme cita Francisco Saraiva Fino, no texto “Regressos”, do livro A
multiplicação do espaço: ensaios sobre a poesia de Daniel Faria, a escrita do poema
não depende somente do esforço pessoal, mas necessita de “um momento de
imposição ao real do olhar depurador ou transformador” (Fino, 2020, p. 66). No livro
Explicação das árvores e de outros animais, publicado em 1998, há um poema em
que a enxada é o sinônimo de trabalho e lapidação da escrita, e há a presença do
sentimento de cansaço do sujeito lírico como reiteração do trabalho extensivo e
inesgotável de cavar, ou seja, de criar, com a materialidade do silêncio, a palavra para
que a terra, o poema, frutifique:

EXPLICAÇÃO DO POETA

Pousa devagar a enxada sobre o ombro


Já cavou muito silêncio

Como punhal brilha em suas costas


A lâmina contra o cansaço
(Faria, 2015, p. 101)
33

O título do poema revela o conceito de “explicação”, muito importante para o


poeta, pois há uma espécie de postura filosófico-existencial em que os poemas se
prestam à necessidade de refletir sobre a existência, os seres, a natureza, o mundo,
a escrita e também sobre as suas concepções sobre a criação poética, inserindo os
seus versos em um campo reflexivo, do pensamento. Ou seja, há, em alguns poemas,
o registro da reflexão sobre o exercício da linguagem e, simultaneamente, sobre
aspectos da humanidade, o corpo, a metafísica etc.
Ao conceder ao poeta o “exercício obstinado de cavar silêncios”, Daniel declara
o reconhecimento absoluto do silêncio como uma materialidade em que o sagrado
habita, e, portanto, é preciso ir fundo, cavar, mergulhar nas profundezas da quietude
para que a presença divina se revele, como nestes versos que endereçam a seguinte
súplica: “Abre os ouvidos de dentro das minhas orelhas/ Que eu oiça/ A tua voz desde
o interior da lâmina – ó pastor” (Faria, 2015, p. 213). “Ouvir a voz desde o interior da
lâmina” é entrar em um modo de quietude absoluto para detectar sinais de uma
sacralidade que habita o âmago da matéria do silêncio.
Daniel Faria (2019b, p. 25), na sua única entrevista publicada em vida, declarou
que era um anjo ferido na raiz que anda mais pela terra do que pelo céu: “Mais do que
uma espécie de anjo ferido. Talvez um anjo atingido na raiz, na sua dupla dimensão:
um ser que aspira a uma certa vivência da esfera divina e alguém que recebe a sua
própria fragilidade. Um anjo ferido na raiz anda mais pela terra do que pelo céu”. Em
um breve texto para o Jornal do Comércio, em 31 de dezembro de 1967, Sophia (apud
Russell, 2017, p. 111) escreve (mencionando a poesia de Hölderlin) que “a poesia era
nele uma forma de santidade. Era a vocação do sagrado. Por isso ele era
incomparável com um mundo dessacralizado. Incompatível com tudo quanto não
tivesse sentido divino”. E, mais adiante, ela descreve a busca do poeta:

É no meio deste mundo de fúria que Hölderlin busca o seu caminho,


regressando ao ponto de partida dos gregos, ele dá ao terrestre uma atenção
religiosa. Ele é o poeta salvador do terrestre, aquele que busca o encontro
com o divino no plano da criação. [...]
Fazer com que o terrestre não se perverta em mundano é esta uma das
tarefas essenciais do poeta. Por isso ele busca o encontro inteiro, livre e
criador com as coisas. Pois a vida se encheu toda de sentido divino.
(Andresen apud Russell, 2017, p. 112-3)
34

São trechos que apresentam a visão existencial espiritualista dos poetas, como
sujeitos que carregam uma cosmovisão de matriz existencialista e também dialética,
porque habitam polos contrários. Os autores, portanto, possuem uma concepção
religiosa da existência e visam alcançar um tempo absoluto, unificado, oposto a um
tempo dividido, dessacralizado. Embora a criação poética de Daniel Faria ocorra
muitos anos depois do regime salazarista, há o testemunho de um desejo de habitar
um tempo perfeito, oriundo, principalmente, de uma fé e moral cristã, e há a angústia
de existir em um tempo marcado pela disforia e descrença.
Tanto Daniel quanto Sophia concebem a figura do poeta como medianeiro do
inefável, aquele que visa a religação com um tempo único, perfeito, sacralizado,
harmônico, belo, preenchido de plenitude. São poetas que se colocam na busca
incessante daquilo que é indescritível, porém, experenciado. Uma forma de
obstinação de encontrar a palavra para comunicar a experiência. Em “Poesia e
Realidade”, publicado em 1960, Sophia (1960, p.50) escreve: “a união com a Poesia
(…) é a finalidade do poeta. Mas por mais real que seja o encontro, nunca é total; por
mais funda que seja a união, nunca é absoluta. (…) Há sempre uma lacuna (…) nesta
distância que o separa dos deuses.”
Se essa postura é semelhante e os aproxima em alguns aspectos – como no
uso intensivo de símbolos e alegorias, na evocação de mitos e referências clássicas,
na busca por um silêncio primordial e na importância da acústica para a musicalidade
do verso –, há, na mesma medida, inúmeros e importantes distanciamentos que
articulam modos específicos de lidar com cada um desses temas e de expressá-los,
e são esses aspectos que serão detalhados nos próximos tópicos. Começaremos por
analisar o modo específico como Sophia concebe e comunica a palavra poética e
como esse processo de criação é atravessado pela escuta e atenção e conta com a
participação ativa dos sentidos da visão e da audição para possibilitar que o verso se
escreva na página em branco. Apresentaremos primeiro estes conceitos na obra
poética de Sophia para, depois, analisarmos esses mesmos aspectos na poesia de
Daniel Faria, traçando análises comparativas.
35

2.1 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM SOPHIA

A poesia é a minha explicação com o universo, a


minha convivência com as coisas, a minha
participação no real, o meu encontro com as vozes
e as imagens.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Cabe-nos, neste tópico, primeiramente, apresentar algumas reflexões sobre as


concepções poéticas na obra de Sophia, para, depois, adentrarmos, com ainda mais
afinco e profundidade, o projeto poético de Daniel, nas análises dos poemas e nos
modos de o poeta compreender a palavra poética. Sophia iniciou sua carreira literária
na década de 1940, e sua poesia, rapidamente, conquistou atenção e admiração. Os
poetas de sua geração estavam comprometidos com uma linguagem oriunda do
Neorrealismo, mas Sophia diverge dessa vertente e opta por explorar um estilo mais
lírico e simbólico. Seus poemas serão marcados por uma linguagem clara e concisa,
que expressa uma profunda sensibilidade para as questões humanas, sociais e
políticas.
Enquanto alguns poetas de sua geração estavam debruçados apenas sobre
questões de cunho nacional e político, Sophia procurou transpor esses aspectos e
contemplou também as questões universais e existenciais. Muitos de seus poemas
trabalham temáticas relacionadas à história e à identidade de Portugal, com cujas
tradições e com cuja cultura ela nutria uma profunda ligação, mas a poeta também
amplia esses assuntos, acrescentando reflexões sobre o amor, a liberdade, o tempo,
a finitude, a justiça, a busca pelo sagrado e pela transcendência.
Como vimos no tópico anterior, a escuta desempenha um papel fundamental
na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, tornando-se um elemento essencial
para a compreensão de sua obra. Em um de seus textos metalinguísticos mais
importantes, “Poesia e realidade” (1960), Sophia defende que a poesia nasce de uma
necessidade de realidade, de uma ânsia de fusão com as coisas: para ela, “o poeta é
aquele que vive com as coisas, que está atento ao real, que sabe que as coisas
existem” (Andresen, 1960, p. 53). A materialidade de cada coisa e ser, a cor, a forma,
o cheiro, a consistência, podem revelar a limpidez, o frescor do real, e é pela visão
que Sophia intensifica o real, deixa-o mais vívido.
Ou seja, a poeta nomeia a realidade, visando apreender uma imagem mais
nítida e precisa; só assim, ela consegue se relacionar com o mundo e com a própria
36

existência: “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica
preso” (1960, p. 53). Essa forma de apreender o real é o modo como a autora irá
imbuir presença no mundo e em si mesma. Tal concepção é apresentada no texto
“Arte Poética III”:

A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro
do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e
vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade
irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de
imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. (Andresen, 2015,
p. 893)

Os elementos primordiais (terra, água, fogo e ar) perpassam toda a sua obra.
A autora via, nesses elementos, aquilo que estava presente na origem do mundo;
elementos, portanto, que preservam uma gênese, que estão imbuídos de sacralidade.
Muitas vezes, esses elementos poderão ser lidos, em seus poemas, como imagens
que traduzem aspectos do seu próprio ser, traçando um jogo de identificação entre a
sua identidade e a paisagem; ela vê os elementos naturais do mundo e, através de
um espelhamento subjetivo, revela algo de si própria nesse olhar, como no poema
retirado do seu livro Coral, publicado em Lisboa, em 1950:

Chamei por mim quando cantava o mar


Chamei por mim quando corriam fontes
Chamei por mim quando os heróis morriam
E cada ser me deu sinal de mim.
(Andresen, 2015 [1950], p. 223)

Neste poema curto de quatro versos, sendo os três primeiros anafóricos, com
a repetição tripla da estrutura “chamei por mim”, reflete-se um sujeito lírico que evoca
a si mesmo através do instante, do momento (localizado pela conjunção “quando”) em
que se dá a ressonância com elementos naturais (“cantava o mar”, “corriam fontes) e
com seres humanos (no caso, os heróis que morriam). Cada um desses seres “deu
sinal”, ou seja, revelou, apontou, traduziu algo referente ao próprio sujeito lírico.
Sophia, em uma carta a Jorge de Sena, declara que as coisas do mundo
coincidem com as do ser: “[…] é possível que o nosso ser coincida com os seres. E
se assim não acontece é por erro nosso porque não estávamos suficientemente
atentos, e algumas vezes porque, por falta de fé dum momento, não ousamos
acreditar no que reconhecíamos” (Andresen; Sena, 2010, p.116-7). Essa visão de que
37

as coisas do mundo coincidem com as coisas do ser pode se relacionar ao ser humano
entregue à escuta que Jean-Luc Nancy (2013, p. 162), filósofo francês, no seu livro À
escuta, descreveu, tendo como mote a seguinte questão: “o que é um ser entregue à
escuta, formado por ela ou nela, escutando com todo o seu ser?”.
O autor chega à conclusão de que o “escutar” mantém uma relação particular
com o sentido, na acepção intelectual ou inteligível da palavra, mas não se restringe
somente a isso, porque, além do fazer sentido, todo escutar pressupõe uma
“ressonância”: “em todo dizer […] há um escutar, e no próprio escutar, em seu fundo,
uma escuta”; o que o autor expressa é que é necessário que o sentido não se restrinja
“a fazer sentido (ou de ser logos), mas que além disso ressoe” (Nancy, 2013, p. 163,
grifo do original). Desse modo, “a escuta é antes ouvida como ritmo e é como ritmo
que a linguagem falada é inaugurada no mundo, como reverberação para a fala do
que já foi ouvido e escutado anteriormente” (Wenzel; Richter, 2019, p. 8).
Em Sophia, há a tentativa de coincidir o ver e o ouvir, como a pesquisadora
Silvina Rodrigues Lopes (1990, p. 24) afirma: “a relação entre ver e ouvir participa, na
poesia de Sophia, de uma relação entre o fluir de um canto sagrado, unificador,
mágico e o visível ou aparência da diversidade”. E, ao buscar a coincidência do ver e
do ouvir, Sophia vai “sacrificar o canto sagrado ao canto do poema, canto que constrói
sobre a memória do visível, canto que torna de novo visível o que desapareceu no
instante em que o olhar o tocou” (Lopes, 1990, p. 24). Ou seja, a memória daquilo que
foi visto será evocada junto a um ritmo, a uma cadência que participa ativamente do
seu processo de criação poética.
Segundo a pesquisadora Rosa Maria Martelo (2011, p. 61), o ato da escrita, em
Sophia, percebe o poema como “imagem (perceptiva) e som, indistintamente
convergindo”, ou seja, o poema é, ao mesmo tempo, imagem sonora e visual:

O que Sophia procura nas coisas, na literalidade com que tantas vezes evoca
o visível na sua poesia, é precisamente a intensidade que nele reconhece, ou
seja, isso que o devolve ao sagrado […]. E o que parece estar em causa é
precisamente a intensidade do mundo no poema, já que apenas no poema
esta pode surgir. (Martelo, 2011, p. 61)

Esta observação é fundamental para compreendermos a ligação da poeta com


o sagrado; nesta linha, podemos afirmar que a sua concepção sincretista religiosa
entende a presença divina como intensificação do real, como um modo de percebê-lo
38

mais vívido, um real envolto da luminosidade do encanto e do assombro. Quando


Sophia adentra este modo de criação, ela habita uma presença que ressoa e reenvia:

[…] a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com


as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as
imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida
concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos,
sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das
estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão. (Andresen, 2015,
p. 891)

Reiteramos que é um ressoar que vai além do sentido intelectual; o de que


Nancy fala é de um “sentido sensível”. O sentido, assim como o som, consiste em uma
totalidade de reenvios: de um signo a alguma coisa, de um estado de coisas a um
valor, de um sujeito a outro sujeito ou a si mesmo, tudo simultaneamente. Aquilo que
ressoa, vibra de maneira que a pessoa se percebe ao mesmo tempo que se coloca
em um estado fora de si. “Estar à escuta”, para o autor, é, portanto, uma forma de
estar “à espreita”, não no sentido de vigiar, mas no sentido de adentrar um modo ativo
para identificar aquilo que ressoa fora no mundo e em si, dentro de si e fora de si
concomitantemente, “estar à escuta é, então, entrar na tensão e na espreita de uma
relação a si” (Nancy, 2013, p. 166) e, com isso, estabelecer registro da própria
presença como aquele que existe e ressoa um reenvio.
Estar à espreita para aquilo que ressoa, reenvia e revela uma presença própria
vai em direção à concepção de mundo dos seres religiosos que Mircea Eliade
comenta, que entendem todo fragmento cósmico demonstrativo de uma estrutura
particular do próprio ser e buscam identificar ritmos cósmicos na natureza. Para o
autor (Eliade, 2018, p. 116), a natureza se manifesta, para esses seres, como uma
criação divina, não como exclusivamente “natural”, e está sempre carregada de um
valor religioso, impregnado de sacralidade.
Há, ainda, um outro ótimo texto que nos ajuda a pensar esse modo de atenção
e escuta particular de Sophia. Em “Como abordar a poesia enquanto um modo de
atenção?” (2015), Hans Ulrich Gumbrecht descreve a sua fascinação pelo fenômeno
da “atenção poética”, partindo da tese central da pesquisadora Lucy Alford, para quem
a “atenção”, em suas formas diversas e em seus diversos níveis de intensidade, não
é apenas um pré-requisito “natural” para a leitura e a apreciação da poesia, mas
igualmente necessária para descrever e desfrutar a poesia como um modo de evocar
e cultivar o próprio potencial da psique humana ao qual nos referimos com o conceito
39

de “atenção”. Poesia e atenção, em sua perspectiva, não são apenas mutuamente


dependentes, mas, de certa forma, coextensivas, em vez de subordinadas uma à
outra.
Podemos entender que a poesia tanto pressupõe quanto contribui para a
formação de uma capacidade de atenção mais complexa e poderosa, e, nesse
sentido, a poesia é, de fato, inteiramente dedicada ao desenvolvimento da atenção ao
que Lucy Alford, na seção do seu livro intitulada “Atenção intransitiva”, define como
“vigilância”: “um estado da atenção no qual não há um objeto da atenção mas ao invés
a prática de uma consciência sustentada ou um estado de alerta, marcado por uma
prontidão para detectar a aparição de um potencial, embora imprevisível, sinal” (Alford
apud Gumbrecht, 2015, p. 220).
Gumbrecht destaca uma relação substancial entre corpo e mundo, ou seja, a
relação da materialidade do corpo sensível com as coisas-do-mundo. Como
presenças que nos tocam, “[…] as coisas estão a uma distância de ou em proximidade
aos nossos corpos; quer nos ‘toquem’ diretamente ou não, têm uma substância”
(Gumbrecht, 2015, p. 9), e esse pensamento reitera o efeito de presença que Sophia
sente ao se colocar à escuta para a sua realidade.
Nessa condição sinestésica e poética, a escuta se dá através da materialidade
do encontro entre o corpo de Sophia e a physis, o que a coloca para produzir, via
palavra poética, o sentido, articulando movimentos entre o sensível e o inteligível.
Sophia parte desse modo de escuta e da sua visão para captar, ao máximo, o real,
para adentrá-lo, visando atingir a maior nitidez e a maior claridade possíveis, como no
trecho a seguir, extraído de “Poema”, do livro Geografia, publicado em 1967:

POEMA

A minha vida é o mar o Abril a rua


O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro


Sabendo que o real o mostrará
[…]
(Andresen, 2015, p. 575)

Nestes versos, o sujeito lírico busca a transcendência a partir da materialidade


do mundo e revela o senso de importância em nomear (a frase “de coisa em coisa
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silabada”) para adentrar uma presença que finca uma marca (“grava no espaço e no
tempo” essa materialidade). Quando o sujeito lírico afirma “o meu interior é uma
atenção voltada para fora”, é possível pensarmos nessa escuta como uma espécie de
ressonância que vibra em conjunto com o ritmo das coisas materiais externas ao
sujeito, e, para que isso aconteça, é necessário um estado de sensibilidade e atenção
que promova a “abertura”, como tal verso declara; é nessa abertura que se dá a
ruptura, a ligação com o transcendente, o que é reiterado por uma fala da própria
autora: “o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver
que me torna sensível – como a película de um filme – ao ser e ao aparecer das
coisas” (Andresen, 2015, p. 896).
Em “Escutar, nomear, fazer paisagens”, Silvina Rodrigues Lopes (2003b, p.
57) pensa a escuta como uma ação de recepção ativa, e não somente passiva, em
que “o poeta não é o puro lugar de passagem de algo que foi destinado […]. E escutar
não é tanto somente ouvir, apreender sonoridades e sentidos, mas é essencialmente
vibrar com o exterior”. Podemos utilizar essa afirmação como complemento à análise
do poema acima; além de vibrar com o exterior, de entrar em um estado de
sensibilidade em que a materialidade ao redor reverbera no ser que a olha, é
necessário, para Sophia, comunicar, trazer à tona o nome e as reverberações dessa
materialidade, para configurar, de forma clara, o real e atingir algo próximo a um
testemunho metafísico: “a frase que de coisa em coisa silabada/ Grava no espaço e
no tempo a sua escrita”. A poeta concebe o poema como a uma inscrição ou gravura,
de modo análogo aos versos do poema “Gravura”, de Gastão Cruz, do livro A moeda
do tempo (2006), uma afirmação do poema como mecanismo contra a efemeridade:
“força as linhas do seu significado/ como se para alguma eternidade/ ilusória as
gravasse, assim o poeta” (Cruz, 2009, p. 38).
Em um outro texto, sem data, que foi encontrado entre os papéis da poeta e
publicado postumamente, vemos a nítida afirmação ôntica e religiosa sobre a pertença
do ser: “Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem
dominar porque quero ser: esta é a necessidade”, conforme explicitamos no trecho
completo abaixo:

Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa
e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que
sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas. Não quero possuir a
terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser:
esta é a necessidade. Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar
41

terrestre. O mundo do ter perturba e paralisa e desvia em seus circuitos o


estar, o viver, o ser. Dai-me a claridade daquilo que é exactamente o
necessário. Dai-me a limpeza de que não haja lucro. Que a vida seja limpa
de todo o luxo e de todo o lixo. Chegou o tempo da nova aliança com a vida.
(Andresen, 2011, s/p.)

Sophia faz um pedido veemente, articulado em um tom de oração cuja


repetição da súplica “Dai-me”, em quatro momentos distintos, estabelece um ritmo,
quase um mantra. Sophia é uma poeta sedenta de ser, e é por isso que busca a
aliança por meio da materialidade das coisas e dos seres, pois, neste instante, sente-
se preenchida de sua substância ôntica; ela visa a uma unificação, uma fusão com o
terrestre orgânico, oriundo do mundo natural. E é justamente essa natureza que é
sentida como sacralidade.
O divino, para Sophia, não só está próximo como convive com os humanos, no
mesmo plano. É nesses lugares específicos da terra que ela consegue atingir o ápice
de sua experiência ôntica, é o lugar em que ela produz sentido de existência e se
sente situada subjetivamente. O mar é um desses locais que mais se destacam na
totalidade de sua obra. Mas, como todo ser religioso, o mundo está dividido em dois
espaços, e, para a autora, tudo o que se distanciar do natural originário vai se revelar
dessacralizado (como o lucro, o dinheiro, as cidades, certos avanços tecnológicos);
nesses lugares, ela se sentirá esvaziada dessa substância ôntica, vivenciando uma
angústia, um vazio e um desamparo, porque é onde o sentido existencial se esvazia,
ocasionando, na poeta, um sentimento de estranhamento e de não pertencimento.
Vale destacar que, para a autora, a natureza e os elementos naturais são o que
traduzem a crença de que algo existe além do humano, independente do Deus ou dos
deuses em que se crê. Para Mircea Eliade (2018, p. 99), seres humanos que detêm
essa concepção compreendem o cosmos como uma criação divina: “saindo das mãos
dos deuses, o mundo fica impregnado de sacralidade”. Sophia buscará, portanto,
ressoar os ritmos e as formas dos elementos naturais que irá eleger como ressonância
do próprio ser, “a melodia que vai de flor em flor” e que reverbera em um corpo
humano, pois a poeta carrega um coração que bate em consonância e se sustenta no
ritmo das coisas que ela encontra; é preciso uma rigorosa atenção à physis para poder
desempenhar o seu papel de tradutora da ordem natural que nela se mostra:

As minhas mãos mantêm as estrelas,


Seguro a minha alma para que se não quebre
A melodia que vai de flor em flor,
42

Arranco o mar do mar e ponho-o em mim


E o bater do meu coração sustenta o ritmo das coisas.
(Andresen, 2015, p. 224)

Arrancar o significado do significante e incorporá-lo à subjetividade, encontrar


o ritmo de cada elemento e reproduzi-lo, são uma forma de se atentar para a
materialidade do mundo quando essa ressoa com e no próprio corpo. Sophia
compreende que a experiência da escuta emerge como uma materialidade “imaterial”,
por ser incorporada, por adentrar o corpo da poeta e nele permanecer. O interessante
é notar que o trabalho de Gumbrecht vai desaguar no pensamento de que, ao menos
em alguns tipos de poesia, esse modo de atenção e escuta se assemelha às práticas
de feitiços e magias presentes nas tradições religiosas arcaicas, o que reitera a visão
da concepção religiosa que Mircea Eliade traça, baseado nos estudos sobre a
religiosidade de seres humanos arcaicos oriundos de diversas culturas. Segundo
Gumbrecht (2015, p. 210):

Não por coincidência, os primeiros poemas da tradição ocidental, as canções


de Safo em louvor das lindas, jovens e bem-sucedidas atletas, pertencem a
situações rituais da fala dirigida aos deuses. As funções institucionais dessas
situações eram predominantemente mágicas, quer dizer, eram feitas para dar
presença a coisas e pessoas originalmente ausentes para nós e tornar
ausentes pessoas e coisas originalmente presentes. Não quero sugerir,
todavia, que a poesia seja “religiosa” em essência. Ao contrário, a poesia e
os textos religiosos compartilham de uma dupla afinidade: uma afinidade
através do ritmo constituído pela prosódia em primeiro lugar; e em segundo
lugar uma afinidade através da mágica, mediada pelo ritmo.

Embora o autor negue que a poesia, nestes casos, seja religiosa


(diferenciando-se, crucialmente, de Eliade, que entende que o canto possui certas
características justamente por ser religioso e que ele existe como um endereçamento
ao divino), o fato é que Gumbrecht reconhece as aproximações dos textos religiosos
a essas poéticas justamente naquilo que se relaciona com o ritmo constituído pela
prosódia (a valorização da acentuação tônica e a atenção a aspectos da oralidade do
texto) e pela afinidade com a mágica que esse ritmo visa causar.
O aspecto mágico que o autor menciona é justamente o modo de fazer o que é
ausente retornar; Gumbrecht, inclusive, irá definir algumas características de análise,
como o ritmo do poema, para estudar minuciosamente esses aspectos. Ele acredita
que o ritmo produz o efeito de percepção de um fluxo de tempo interrompido, como
uma janela que se abre para que momentos e coisas do passado (e, em princípio,
43

também do futuro) possam se tornar presentes, como se fossem tangíveis novamente.


Essas análises e aproximações são cruciais porque, pelo lado fenomenológico da
linguagem, ele explica tecnicamente como o efeito do sagrado (usando, aqui, as
concepções do estudo de Eliade) é materializado e produzido, tecnicamente, no texto.
Tais mecanismos e técnicas textuais explicam o porquê de os feitiços (aqueles
textos breves que são usados para invocar coisas e situações do passado) serem,
quase exclusivamente, escritos em linguagem prosódica (rítmica), pois essa forma de
linguagem interrompe a progressão do tempo cotidiano e torna possível produzir a
sensação de que objetos e fenômenos ocorridos no passado irrompem no presente.
O autor defende, portanto, que, contra o pano de fundo de um discurso
evolutivo, podemos caracterizar o impacto da prosódia e do ritmo como “regressivo”:
eles não apenas rompem e trazem para uma aparente paralisação do fluxo do tempo,
mas abrem uma “janela” pela qual cenas e memórias do passado são evocadas para
serem presentificadas. A memória e a imaginação participarão ativamente deste
processo analisado por Gumbrecht (2015, p. 217):

O ritmo é também responsável para que essa presentificação ocorra na


dimensão da imaginação (“substância do conteúdo”), ao invés de na
dimensão do significado (forma do conteúdo). A diferença entre significado e
imaginação pode bem ser a origem e a razão para a impressão geral de que
os poemas têm um impacto emocional mais intenso (estão mais próximos de
nossa percepção e de nosso corpo) do que textos escritos ou em prosa
recitada.

Isso entra em completa concordância com a ideia de uma rotura (abertura) para
a vivência de um tempo mítico, ou seja, sacralizado, um tempo suspenso, paralisado:
não à toa, a cadência e a medida rítmica do verso serão muito importantes para
Sophia e para Daniel, que irão produzir, em suas obras, poemas que abordam esse
tempo suspenso em sua forma e seu ritmo. Restabelecer o ritmo sagrado da origem
equivale a se tornar contemporâneo dos deuses; portanto, é uma forma de viver na
presença deles, próximo a eles – embora esta presença seja sempre misteriosa.
No texto “Arte Poética IV”, Sophia de Mello afirma a importância da percepção
do som, das vozes e dos instrumentos para, depois, transmitir uma “forma” de poema
musical na mente dos seus leitores (inscrever o ritmo e a cadência encantatória para
que, assim como ela, o leitor também reverbere o ritmo do mistério). Como vimos, o
mar, para a autora, é a hierofania suprema, o lugar, por excelência, de um tempo puro
44

e sagrado; o ritmo do mar, “a voz do mar”, serão trabalhados em muitos poemas, no


intuito de ressoar as águas misteriosas e secretas:

MAR SONORO

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim,


A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.
(Andresen, 2015, p. 128)

Com o mar, Sophia aprendeu a estética da bela forma, como ela afirma nos
versos do poema “Foi no mar que aprendi”, de O búzio de Cós (2015, p. 863, grifo
nosso): “Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela/ Ao olhar sem fim o sucessivo/
Inchar e desabar da vaga/ A bela curva luzidia do seu dorso/ O longo espraiar das
mãos de espuma […]”.
A relação entre o ver e o escutar participa, na poesia de Sophia, segundo a
pesquisadora Silvina Rodrigues Lopes, “de uma relação entre o fluir de um canto
sagrado, unificador, mágico e o visível” (1990, p. 24). Sophia deseja fundir-se com
esse espaço primordial que ela vê; nas palavras de Eliade, é, justamente, uma
paisagem em que “os deuses e os antepassados míticos estavam presentes, quer
dizer, estavam em via de criar o mundo, ou organizá-lo ou de revelar aos homens os
fundamentos da civilização” (Eliade, 2018, p. 81). No poema “Apolo Musageta”, escrito
por Sophia no livro Poesia, publicado em 1944, podemos identificar a busca do sujeito
lírico em apontar um tempo primordial, primeiro, inteiro e puro, em que estaria o “ritmo
secreto das coisas” – o que podemos ler como o ritmo “mágico” que Gumbrecht
aborda:

APOLO MUSAGETA

Eras o primeiro dia inteiro e puro


Banhando os horizontes de louvor.

Eras o espírito a falarem cada linha


Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.
45

Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.

Eras a medida suprema, o cânon eterno


Erguido puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
(Andresen, 2015, p. 70)

Apolo é conhecido como o deus da mitologia grega relacionado ao sol, à música


e à poesia; ele era visto como o líder das Musas, as deidades inspiradoras da arte, e
representava a harmonia e o equilíbrio na criação poética. Sophia escreve o poema
em quatro estrofes e dezessete versos livres, não seguindo um esquema rígido de
métrica ou rima; entretanto, os versos são curtos e concisos, favorecendo um ritmo
contínuo e compassado. A poeta revela a sua concepção sobre a sacralização da
natureza, o lugar que ela considera guardar as formas sagradas e puras, conectando
Apolo à natureza (“Eras a madrugada em flor/ Entre a brisa marinha”, “a força do mar”,
“o vento dos espaços”); com ele e nele, os ritmos secretos pulsam, ou seja, não é
somente a materialidade física dos ritmos secretos, mas também o ritmo místico e
espiritual, uma essência que vai além da terrena e que transcende os limites da
existência humana. Esse modo de se atentar para a physis busca identificar o estético,
a forma pura e bela; por isso, a poeta declara em “Arte Poética I”: “Talvez a arte deste
tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar” (Andresen, 2015,
p. 889).
Há dois ensaios com temáticas diferentes em que a autora reitera essa visão:
em “O nu na Antiguidade clássica”, texto sobre os princípios da arte grega, a autora
entende que decifrar a estrutura divina nas manifestações dos fenômenos naturais
seria uma função intrínseca do artista: “o divino é interior à natureza, consubstancial
à natureza. O ser está na physis. […] Descobrir a ordem da natureza, descobrir a
felicidade e a harmonia múltipla e radiosa da natureza, será descobrir o divino”
(Andresen, 2021, p. 443). Em “Hölderlin ou o lugar do poeta”, Sophia concebe que a
natureza revela uma ordem e uma beleza divina, sacralizada, e coaduna com a visão
de Hölderlin de que a missão do poeta é invocar, revelar essa ordem. Para ela, pureza
e beleza estão ligadas à physis; a beleza mostra a ordem, o acerto do universo, a
verdade que, nos seres e nas coisas, se manifesta:
46

Na beleza lemos algo que responde ao nosso destino, a significação do nosso


estar na terra. A beleza que está na estrutura duma flor, a beleza que está na
estrutura do corpo humano, a beleza que está na concha que apanhamos na
praia afirmam o gesto criador de onde emergem. A missão do poeta é
decifrar, revelar, mostrar e invocar essa ordem. (Andresen apud Russell,
2017, p. 113)

A autora é afetada pela visão de mundo estabelecida na Grécia Antiga que


concebia as coisas terrestres com um senso vivaz de realidade, reconhecendo o
traçado do divino que está ao redor, conforme cita Walter Friedrich Otto, no livro Os
deuses da Grécia, publicado em 2005:

A antiga religião grega concebeu as coisas deste mundo com o mais


poderoso senso de realidade que jamais houve, e todavia – quiçá por isso
mesmo! – aí se reconhece o maravilhoso traçado do divino. Ela não gira em
torno das ânsias, carências e secretas delícias da alma humana; seu templo
é o mundo, cujo transbordar de vida e agitação lhe nutre o conhecimento do
divino. Só ela não precisa refutar o testemunho da experiência pois é como
toda a gama de tonalidades claras e escuras desta que ela se liga à imagem
grandiosa dos deuses. (Otto, 2005, p. 8)

Friedrich afirma que, na visão dos gregos, não há “milagre”, pois eles negam a
transcendência; já que o mundo pagão se atém ao vivido e ao real, a divindade, para
os gregos, é imanente, está presente no mundo junto com os homens – e é por isso
que Sophia partirá da imanência para visar atingir a transcendência. Jaa Torrano
(1995, p. 30), pesquisador e tradutor da obra de Hesíodo, argumenta a respeito da
concepção do sagrado na cultura grega: “a experiência do sagrado é a mais viva
experiência do que é o mais real, e é a mais vivificante experiência de realidade”.
Seguindo a linha de pensamento do autor, Sophia estaria identificada com o espírito
grego, na ideia de que a experiência sagrada vivifica a experiência do real, e o ato de
nomear está, para a autora, relacionado diretamente com esse processo: através do
nome, da nomeação da palavra, é possível se apropriar dessa realidade.
No poema “Liberdade”, de O nome das coisas (1977), a poeta escreve os
seguintes versos: “Um poema não se programa/ Porém a disciplina/ – Sílaba por
sílaba –/ O acompanha// Sílaba por sílaba/ O poema emerge/ – Como se os deuses o
dessem/ O fazemos” (Andresen, 2015, p. 677) – não são somente os deuses que
sopram a inspiração do poema, também a poeta labuta, trabalha artesanalmente para
o poema emergir, é agente dessa criação. É por isso que Gastão Cruz afirma que o
exercício da linguagem, em Sophia, é, por excelência, a sua forma de estar atenta ao
mundo, em que cada coisa nomeada se destaca com mais clareza e nitidez:
47

“chamando a poesia pelo seu nome, Sophia de Mello Breyner situa-se imediatamente
na posição que sempre será a sua: a absoluta confiança no poder dos nomes e na
força de nomear” (Cruz, 2008, p. 159).
Sophia preza por um olhar clarificador que deixa o real mais vivo, vibrante; ela
tem, portanto, uma postura positiva diante desse real. Não que ela deixe de olhar para
o outro lado: ela não nega o que é injusto, ruim, terrível nesse real – ela, inclusive,
quer olhar para isso de modo frontal –, mas, independentemente da situação que esse
real apresentar, ela deseja vê-lo em sua inteireza, de forma transparente: “O meu
olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam”, escreve
Sophia no poema em prosa “As grutas” (2015, p. 446).
Para Gastão Cruz (2008, p. 12), “olhar, ver o mundo, muito especialmente o
mundo natural, torna-se a tarefa maior que os poetas propõem a si mesmos”. É um
exercício de contemplação, de adesão ao real, de deslumbramento perante as coisas
espantosas que a natureza exibe; vejamos o poema abaixo, do Livro sexto:

NO POEMA

Transferir o quadro o muro a brisa


A flor o copo o brilho da madeira
E a fria e virgem liquidez da água
Para o mundo do poema limpo e rigoroso

Preservar de decadência morte e ruína


O instante real de aparição e de surpresa
Guardar num mundo claro
O gesto claro da mão tocando a mesa
(Andresen, 2015, p. 453)

O poema é composto de duas estrofes e oito versos, com predominância do


decassílabo, e sintetiza uma reflexão sobre a criação poética. Sophia utiliza verbos
em estruturas no infinitivo, aludindo aos textos receituários ou de instrução
(“transferir”, “preservar”, “guardar”). Para o sujeito lírico, o poema é o lugar em que
elementos do real, do mundo físico, são preservados e eternizados. Ela evoca objetos
(“quadro”, “muro”, “flor”, “copo”, “mesa”) junto com seus aspectos sensoriais e visuais
(“o brilho da madeira”, “a fria liquidez da água”) como forma de ressaltar uma
concretude da realidade ao seu redor.
O sujeito lírico enfatiza a necessidade de uma atenção plena aos detalhes da
materialidade de um mundo cotidiano para transmiti-los da forma mais íntegra e fiel
possível para o universo do poema. Essa seria uma forma de usar o espaço do poema
48

para transcender o efêmero e efetuar uma permanência de um mundo objetivo que


não volta atrás nem se repete – tal movimento pode ser comparado a uma máquina
fotográfica que imprime instantaneamente uma imagem mais nítida e luminosa,
perpetuando um instante fugaz e fazendo o fotógrafo despertar para algo que, muitas
vezes, é despercebido, banalizado. Também é preciso atentarmos para a ausência
de pontuação dos versos como modo de promover uma leitura contínua e ritmada.
Podemos pensar que, na visão de Sophia, há uma espécie de aproximação da
figura do poeta com a do mago, em que a poeta, por meio da poesia, irá conferir magia
e encantamento ao real. Paul Valéry destacou a relação entre magia e linguagem, que
se relaciona diretamente com o pensamento de encantar e desencantar a existência;
o escritor francês acredita que “a forma poética foi utilizada durante séculos para
realizar encantamentos graças ao poder hipnótico do som das palavras proferidas
pelo encantador” (Valéry, 1991, p. 214). Portanto, para Sophia, a palavra poética é
dotada de um poder encantatório que visa tornar a experiência mais visível, mais
lúcida. Segundo o pesquisador Caio Gagliardi (2018, p. 14), nesse sentido, Sophia
“não nomeia simplesmente ‘o que’ se vê ou ‘porque’ se vê. Ela nomeia ‘para que’ se
veja”, para que a matéria manifeste a sua essência mais pura.
Podemos verificar essa concepção nos versos do poema “Lisboa”, do livro
Navegações, de 1983: “[…] Vejo-a melhor porque a digo/ Tudo se mostra melhor
porque digo/ Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência/ Porque digo/ […] Digo
o nome da cidade/ – Digo para ver” (Andresen, 2015, p. 719). Não por acaso, a poeta
citará Alberto Caeiro, aquele que também buscou a claridade nítida do real a partir da
palavra poética, tentando estabelecer uma relação imediata entre palavras e coisas.
O poema chama-se “Estrada”, do livro Dual, lançado em 1972: “Passo muito depressa
no país de Caeiro/ Pelas rectas da estrada como se voasse/ Mas cada coisa surge
nomeada/ Clara e nítida/ Como se a mão do instante a recortasse” (Andresen, 2015,
p. 616).
Novamente, identificamos a reflexão da atenção ao detalhe do real, do olhar
apurado e da nomeação análoga à realidade, o nome da matéria identificada, de tudo
aquilo por que a poeta é afetada no caminho de sua existência. A autora menciona
Caeiro porque é um poeta reconhecido por sua visão de mundo objetiva, simplificada,
prezando por um modo de ver originário. Neste olhar do primeiro ser, a autora se
aproxima do poeta, e o pesquisador José Gil reforça esse pensamento ao mencionar
o olhar de “primeiro homem” que Caeiro almeja:
49

A obra de Caeiro encontra-se com o olhar do primeiro homem, mas após a


construção e a destruição das civilizações que se sucederam na Europa. Não
houve que aprender e desaprender: ela é o resultado espontâneo de todo
esse processo, reencontrando a visão da infância e a da aurora da
humanidade como se todos os olhares adultos da história se tivessem nela
naturalmente metabolizado – ou seja, aprendidos e desaprendidos. (Gil,
1999, p. 18)

Gaston Bachelard, no livro A poética do devaneio (1988), vai revelar que esse
primeiro olhar, característico da infância, é o momento em que se encontra a
verdadeira cosmicidade, um princípio de uma vida que é sentida como profunda,
abundante. Para o autor, o poeta é aquele que cantará esse canto cósmico. Aliás, ele
é ainda mais categórico: para Bachelard, “sem canto cósmico não há poesia”,
conforme o trecho abaixo revela:

[…] os vínculos da alma humana e do mundo são fortes. Vive então em nós
não uma memória de história, mas uma memória de cosmos. […]
Os poetas, mais que os biógrafos, dão-nos a essência dessas lembranças do
cosmos. […]
[A] infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, de vida
sempre relacionada à possibilidade de recomeçar. […]
Como os arquétipos do fogo, da água e da luz, a infância, que é uma água,
que é um fogo, que se torna uma luz, determina uma superabundância de
arquétipos fundamentais. Nos nossos devaneios voltados para a infância,
todos os arquétipos que ligam o homem ao mundo, que estabelecem um
acordo poético entre o homem e o universo, todos esses arquétipos são, de
certa forma, revivificados.
[…] Gostaríamos tanto de poder demonstrar que a poesia é uma força de
síntese para a existência humana! […]
Assim, basta a palavra de um poeta, a imagem nova mas arquetipicamente
verdadeira, para reencontrarmos os universos da infância. Sem infância não
há verdadeira cosmicidade. Sem canto cósmico não há poesia. O poeta
redesperta em nós a cosmicidade da infância. (Bachelard, 1988, p. 114-21)

Importante destacar que é justamente nessa forma de “reencontrar a visão da


infância”, ou seja, de olhar para uma coisa com o espanto da primeira vez, que, para
Sophia, tal coisa se preencherá com o sentimento de religação, de aliança com o
sagrado (diferentemente de Caeiro, que carregava uma concepção dessacralizada
dos seres e da natureza). No texto “Arte poética I”, publicado originalmente na revista
Távola redonda, em 1962, Sophia descreve o modo como a materialidade de uma
coisa – no caso, a ânfora de barro pálido – é a fonte de religação do mundo, uma
materialidade que a atrai para um existir conectado com o sagrado:
50

É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa.
Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha
aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
(Andresen, 2015, p. 890)

A ânfora representa o objeto em sua forma original, não corrompida pela


tecnologia nem transformada ou aprimorada pelo tempo; a ânfora é a mesma ânfora
há milênios e, quando colocada em frente ao mar, convida Sophia a um olhar primeiro
– como ela descreve no ensaio “O nu na Antiguidade clássica”, um convite para ver
de frente, para ver as coisas em toda a sua inteireza:

a clareza, o rigor, a busca da proporção e do ritmo, o entendimento da


proporção como princípio da beleza, a capacidade de dizer com os meios
mais simples – numa economia semelhante à do poema escrito com poucas
palavras –, […] a geometria, a busca da forma necessária, justa, essencial.
(Andresen, 2021, p. 450)

O que Sophia faz com a ânfora é elegê-la como imagem de abertura, a matéria
que provoca uma janela para o sagrado em um mundo dessacralizado; encantada,
portanto, porque simboliza a forma que resistiu ao tempo e à tecnologia, a forma que
não foi corrompida, degradada, a forma bela, inteira, preservada, porque antiga e
contemporânea de uma civilização existente em tempos primordiais: “Olho para a
ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de
beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação” (Andresen, 2015,
p. 889).
A imagem poética servirá, portanto, para ampliar, para dar luz ao visível e para
religar. Como observa Manuel Gusmão (2005, p. 42, grifos do original), os adjetivos
relacionados à “nudez” e à “inteireza” perpassam em constância a poesia
andreseniana: “Nu diz ela que é o seu método. Inteira diz o uno e o maciço do todo,
diz a integridade moral, a fidelidade à promessa de ‘ver o visível’ até o fim”. As
palavras, para a poeta, detêm poder porque estabelecem uma aliança e explicam o
universo, são o encontro da poeta com o real:

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com


as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as
imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida
concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos,
sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das
estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.
51

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra
de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas
artesanato.
[…] Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas
palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não
foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas
pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de
estabelecer uma aliança. (Andresen, 2015, p. 891-2)

Agora que já entendemos alguns dos principais aspectos que circundam o


projeto poético de Sophia, o modo como a autora percebe e se relaciona com a ideia
de sagrado e a sua busca por unidade e religação, poderemos partir para o próximo
tópico, um mergulho no universo poético de Daniel Faria, para descobrirmos o que,
nele, se assemelha ou se distancia dos aspectos levantados e, até aqui, identificados
nas análises referentes à poesia de Sophia.

1.3 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM DANIEL

Ora, creio, ou melhor, também eu creio que o


auto-retrato de um artista em qualquer idade é a
sua obra e que o do poeta é a sua escrita. Por
isso, considero que, com a leitura dos poemas, o
meu auto-retrato estará feito. O que se lhe poderá
acrescentar, ainda, se não a leitura de outros ou
então dos mesmos poemas?
Daniel Faria

Daniel Faria publicou o seu primeiro livro, Uma cidade com muralha, em 1991,
ou seja, 47 anos após a primeira publicação de Sophia. Os anos 1990, em Portugal,
eram diferentes quando comparados ao contexto político e social em que Sophia
escreveu a maior parte de sua obra. Após a redemocratização, na década de 1970, e
a adesão à Comunidade Econômica Europeia, em 1986, o país enfrentou desafios e
oportunidades na busca pelo desenvolvimento econômico e social. Embora com
avanços significativos no campo da tecnologia, dos direitos civis, da implementação
de políticas de igualdade de gênero, proteção ambiental e inclusão social, o quadro
era de um pessimismo latente, relacionado ao crescente desemprego, à pobreza e à
desigualdade.
A década de 1990 se enquadra em um momento de adaptação para os
portugueses e de processar as mudanças sociais e políticas, além de redefinir o lugar
e a posição de Portugal no contexto internacional. Isso se refletiu na produção poética
do período, com uma diversidade muito ampla de vozes e visões de mundo que
52

emergiram, trazendo múltiplos estilos e abordagens. Rosa Maria Martelo,


pesquisadora de literatura portuguesa, analisou essas vozes e vertentes no seu
ensaio “Anos noventa: breve ensaio da novíssima poesia portuguesa” (1999) e
escreveu sobre os principais aspectos formais e temáticos trabalhados pelos poetas
deste período. Quando aborda a poesia de Daniel Faria, ela declara que é uma poética
“densamente metafórica”, ou mesmo abertamente “alegórica”, e a apresenta como via
para “um conhecimento unitivo e totalizante, onde a palavra ganha a consistência de
verbo absoluto” (Martelo, 1999, p. 228). Em suas palavras, a poesia de Daniel Faria

[p]ermanece acima de tudo como epifania, lugar de revelação ou de aparição,


embora sem ignorar que esta ascensão se dá sobre ruínas. Talvez por isso,
tudo se passe num tom baixo e raso – como uma espécie de abandono sem
socorro/ diferente da rendição – aliás comum nos poetas dos anos 90.
(Martelo, 1999, p. 228)

Outros poetas desta geração também foram citados no ensaio mencionado e


se aproximam desta palavra metafórica e alegórica, a partir de uma linguagem
fundante: José Guardado Moreira, Francisco Duarte Mangas, Firmino Mendes e
Agripina Costa Marques. Acrescentaríamos, nesta lista, Carlos Poça Falcão, poeta e
teólogo que aborda temáticas muito próximas às de Daniel Faria, completando os
autores da mesma geração e as proximidades poéticas com a obra de Daniel. Entre
esses escritores, Daniel Faria se destacou por apresentar um experimentalismo agudo
na linguagem poética. O pesquisador Manuel Frias Martins aborda a importância que
o escritor exerce para a sua geração e para a poesia portuguesa no seu estudo “Daniel
Faria: quando a poesia é um estado de espírito” (2010):

No início de 2001, a revista eletrónica Ciberkiosk convidava-me a destacar


três obras (de géneros diferentes) dos livros surgidos no ano anterior. Na
poesia referi Dos Líquidos, obra póstuma de Daniel Faria, assinalando-a
como pertencendo a um jovem monge que nos deixara “três dos mais
importantes livros de poesia do século XX”. (Martins, 2010, p. 163)

Se o tempo de produção difere entre Daniel e Sophia, o modo como concebem


a criação da palavra poética, as temáticas que articulam e a busca pela abertura e
pela percepção do inefável são muito similares. Ambos partem desse modo de escuta
e atenção preenchido de silêncio que será condição para as suas criações poéticas.
Além disso, a visão e a acústica dos versos são condicionantes fundamentais nesses
53

poemas. Neste tópico da dissertação, iremos nos debruçar sobre esses aspectos,
articulados, com mais profundidade, no projeto de escrita de Daniel Faria.
Em O livro do Joaquim, publicado postumamente em 2007 e reeditado em
2019, Daniel Faria declara: “Ora, o poeta justamente, não é o sábio: o que vê mais
fundo; nem é o que diz melhor: esse é o músico. O poeta é o que descobre. Isto é, o
que vê primeiro” (Faria, 2019, p. 62). Para o autor, o poeta é o primeiro vidente
espiritual, o que alcança o ato supremo, aquele que vê não somente a materialidade,
mas aquilo que não é visível. Esse ver primeiro se assemelha ao modo originário com
que Sophia visava o mundo.
Daniel, assim, parece compartilhar com Sophia a vivência de uma experiência
que utiliza a visão como descoberta, como início de uma busca do sentido visível que
deseja alcançar o âmago, o sentido “invisível”, imaterial, em cada imagem que olha.
Mas, além da visão, Daniel é um poeta que anseia compreender o sentido verdadeiro
de uma imagem, ele busca “olhar para o que ainda não foi bem visto, através de novas
experiências”, conforme cita Valéria Soares Coelho no seu artigo “Daniel Faria: Dos
Líquidos; Os anzóis profundos dos sinais” (2017, p. 209). Para o poeta e cardeal José
Tolentino Mendonça, é necessária, nesta poética, “uma conversão do olhar, que crie
uma disponibilidade para poder praticar uma hospitalidade do real, do real mais puro,
aquele que é capaz de dar o sentido do invisível” (Mendonça, 2022, s/p.).
Ou seja, Daniel e Sophia compartilham do mesmo desejo de alcançar, através
da escrita poética, um real mais puro. Como ambos concebem suas existências dentro
de um tempo dividido, eles compartilham o anseio por unificá-lo. Há, em ambos,
aquela “sede de ser” dos seres religiosos que anseiam “situar-se no próprio coração
do real” (Eliade, 2018, p. 60), mas esse desejo implicará percursos díspares de
elaboração e comunicação poética que cada poeta percorrerá para alcançar. Tanto
Sophia quanto Daniel adentram esse percurso ontológico e buscam habitar e se
conectar com uma paisagem que sinaliza o sagrado (em Daniel, esse caminho é mais
verticalizado, sendo descrito na imagem da ascese como direção para unir-se ao
divino; o céu será descrito como paisagem distante em que Deus está presente).
É possível compreendermos essa temática da busca por situar-se como uma
forma de “orientação” oriunda do comportamento religioso em relação à
espacialidade. O centro do mundo, para um ser religioso, é uma região pura, limpa,
não contaminada pelo espaço profano e, por isso, “o homem religioso [deseja] viver o
mais perto possível do Centro do Mundo […] [porque ele] experimenta a necessidade
54

de existir sempre em um mundo total e organizado, num Cosmos” (Eliade, 2018, p.


43, grifos do original). O centro, portanto, é justamente o lugar onde se efetua uma
ruptura de nível, onde o espaço se torna sagrado, real por excelência.
Daniel busca direcionar-se para esse centro, um lugar mais situado, ou seja,
mais próximo ao divino, imbuído de sacralidade, e a criação poética será a forma que
o poeta utilizará para tentar alcançar este lugar. O poeta, assim como Sophia, irá
eleger imagens como hierofanias, aberturas e elos com o divino, mas,
concomitantemente, ele também irá transmutar essas imagens, deslocando os seus
contextos e buscando transfigurar os seus sentidos. Esse processo implica um olhar
“depurador” e “transformador”, porque o poeta encara o real cotidiano como
“deformado” e “degradado”, e “através da palavra poética é possível alcançar um novo
real”, um “outro sítio” (Fino, 2020, p. 66).
Podemos pensar que uma das diferenças entre Sophia e Daniel reside,
sobretudo, no estilo. Como sublinha o crítico Eduardo Lourenço, a poesia de Sophia:

foi desde o início a de uma busca no espelho do mundo e num mundo de


evidências aurorais […], evidência elementar do vento, da bruma, do mar, do
jardim exposto e secreto, com a sua divina e opaca linguagem à espera que
o poeta a descubra para aceder do seu próprio silêncio à revelação da sua
íntima e indevassável evidência. (Lourenço, 1975, p. ii)

Embora Sophia busque se afastar de um cânone realista e neorrealista, ela


almeja um olhar claro, nítido sobre o mundo e as coisas e busca comunicar, no poema,
um dizer exato e correspondente àquilo que vê, ela visa se aproximar da palavra que
traduz as coisas como elas são. É claro que a autora medeia essa imagem, filtra-a
pelo seu modo singular de olhar, contaminado por sua experiência, memória e cultura.
O poeta e pesquisador Nuno Júdice, no Colóquio Internacional sobre Sophia de Mello
Breyner, realizado em Lisboa, em janeiro de 2011, tece uma análise sobre as imagens
da poeta, declarando que “Sophia é capaz de soletrar imagens […], ensina-nos a ver
através das suas palavras e das referências extremamente pertinentes que faz”
(Júdice apud Rangel, 2011, p. 21). Júdice complementa a sua fala “referindo-se à
visibilidade da escrita da poeta […] [como] uma escrita simples e clara, através de um
olhar que soletra ou de palavras que dão sombra (Rangel, 2011, p. 83, grifos do
original).
Se Sophia mergulha o olhar no real da imagem e visa traduzir e enquadrar, no
verso, a exatidão de suas linhas precisas, geométricas, angulosas, correspondentes
55

às formas, às cores, às texturas e aos cheiros, Daniel empenha um processo


transfigurador que visa aprofundar o lado obscuro e enigmático do real, desdobrando
novas percepções, sentidos e significados da imagem; ele logra uma concepção
“outra” do real, operando uma transfiguração. Para tal, há a necessidade de um
recolhimento, de estabelecer um modo iniciático e contemplativo preenchido de
silêncio e solidão, em que o poeta adentra uma experiência próxima à do
despojamento místico. Se Sophia almeja, em seus poemas, uma comunicabilidade
clara e nítida das suas imagens, Daniel Faria mergulhará no conhecimento profundo
do real e do fenômeno da existência humana, comunicando o desconhecido, o
inefável, o mistério das coisas com novos enigmas.
Além disso, a imagem que ele captura e que participa desse processo de
transfiguração de sentido a partir de um estado contemplativo e silencioso exige uma
suspensão da visão física e da escuta em busca de imaginar novas formas e ritmos –
modo que será realizado com muitas angústias e tensionamentos, conforme
argumenta a pesquisadora Ida Ferreira Alves (2007, p. 106) quando menciona que a
palavra poética em Daniel “é gerada como espaço limite, como risco de existência,
como fronteira entre o desconhecimento e a revelação, num processo contínuo de
busca e de perda, um sacrifício permanente do sujeito para habitar de outra forma
este mundo que é uma construção de palavras”.
No seu ensaio “Daniel Faria ou a (Im)possibilidade da arqueologia da palavra”
(2010, s/p.), Maria João Cantinho declara, de forma precisa, o processo criativo de
Daniel Faria: “ele avança às cegas na linguagem, procurando a chispa de fogo na
noite, a centelha capaz de iluminar e devolver o sentido às coisas nomeadas”. Tanto
na poética de Sophia como na de Daniel, a visão participa, intrinsecamente, de um
processo reflexivo; entretanto, em Daniel, ela é a partida para um caminho meditativo
iniciático que busca, no nome, um sentido outro que mostrará o signo em sua forma
“mais verdadeira” do que o seu significado primeiro e usual. Esse “avançar às cegas”
que a autora menciona é traduzido, nos poemas de Daniel Faria, através do conceito
da cegueira, que será representada, também, com imagens relacionadas à noite, às
trevas, à escuridão completa, aos olhos cerrados, entre outras metáforas similares.
No livro Dos líquidos, por exemplo, há citações nas quais a linguagem poética é o
objeto primeiro da visão do inefável, daquilo que é “invisível”: “Escrevo do lado mais
invisível das imagens/ Na parede de dentro da escrita e penso/ Erguer à altura da
visão o candeeiro/ Branco da palavra com as mãos” (Faria, 2015, p. 277).
56

Daniel insiste “no lado mais invisível das imagens”, no lado em que há uma
obscuridade mais adensada das imagens, enquanto Sophia busca comunicar um lado
mais “visível” das imagens, conforme já mencionamos. Daniel é o poeta que busca
captar o mistério no enigma e comunica esse mistério com outros novos enigmas; é
por isso que ele adentra “imagens de violenta escuridão para conduzir ao
desvelamento dos sinais” (Fino, 2020, p. 129).
Além de refletir essa “violenta escuridão”, a imagem da cegueira faz referência
a uma tradição cristã e mística. Em um de seus poemas, Daniel fará uma citação direta
ao episódio bíblico “A conversão de Saulo de Tarso”, presente no livro dos Atos dos
Apóstolos, no Novo Testamento da Bíblia. O texto narra o caminho de Tarso a
Damasco com o objetivo de prender os cristãos e trazê-los a Jerusalém para serem
julgados. No meio do caminho, porém, Saulo foi cercado por uma luz intensa e
brilhante vinda do céu, o que o deixou completamente cego. Nesse momento de
cegueira, ele ouve uma voz que diz: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, e, ao
perguntar quem estava falando, a voz respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que deves fazer”. Saulo foi
levado pelos seus companheiros até Damasco, onde permaneceu durante três dias
sem enxergar. Nesse período de cegueira absoluta, ele passou por uma profunda
transformação interior e decidiu, posteriormente ao episódio, dedicar sua vida a pregar
o evangelho de Jesus. Um dos poemas em que Daniel aborda o episódio é “Do livro
dos Actos dos Apóstolos”, presente no seu último livro, Dos líquidos (2000):

DO LIVRO DOS ACTOS DOS APÓSTOLOS

A luz de Damasco é um grito


Para a ovelha que regressa

A luz de Damasco é um tombar do trigo, um cair


Do grão – cega tanto como os olhos
De um homem perseguido quando se volta
Para nós

A luz de Damasco golpeia. É circuncisão


Que abre, limpa, a luz de Damasco
É dura. Da dureza

Das pedras que um mártir junta com as mãos


Com que empedra o caminho para a morte. A luz
De Damasco é esse lume

Da oração de um mártir ao morrer


(Faria, 2015, p. 210)
57

O poema conta com treze versos distribuídos em cinco estrofes e faz uma
citação direta ao texto do livro dos Atos dos Apóstolos, indicado no título. O uso da
expressão “A luz de Damasco” refere-se à luz cegante que Saulo viu no momento da
sua conversão e que o levou a abandonar sua vida anterior e se tornar um fervoroso
seguidor de Jesus Cristo.
O sujeito lírico do poema aparece somente no sexto verso, indicando uma
primeira pessoa do plural (nós). A estrutura gira em torno do objeto “luz”, abrindo cada
estrofe com a anáfora “A luz de Damasco”. O recurso da repetição dos versos, que se
iniciam com uma mesma estrutura e, depois, se desdobram em outros complementos
de frase, será amplamente utilizado pelo poeta, como aquele que vai descobrindo
novos sentidos para uma mesma imagem. O vocábulo que o poeta articula apresenta
a luz como uma força brutal (a luz é “grito”, “queda”, o “tombar” do trigo), e causa
feridas no corpo (ela “cega”, “golpeia”, “circuncisa”). Esse gesto violento é o que “abre”
e “limpa”, ou seja, o que purifica, aludindo ao processo de transmutação da imagem.
O poeta usa um texto da tradição bíblica como alegoria para refletir sobre a própria
criação poética; o mártir que junta pedras com as mãos “[c]om que empedra o caminho
para a morte” pode ser lido como a função do poeta – mais precisamente, é um
espelhamento imagético subjetivo do próprio Daniel Faria, que era, ele mesmo, um
colecionador de pedras. Essa imagem de mártir vai em concordância com o que Ida
Alves (2007, p. 107) menciona sobre o poeta:

aquele que caminha em busca do que não tem limites nem respostas e se
aproxima sempre da morte, como fonte de clarividência, claridade, luz. Se
essa paisagem e essa experiência têm contornos nitidamente místicos e
cristãos, é também uma experiência de poesia, de linguagem.

Daniel utilizará um outro texto, dessa vez da tradição mística cristã, para
também servir como alegoria ao seu processo criativo metaforizado pela cegueira:
Noite escura, escrito por São João da Cruz durante seu período de encarceramento
em Toledo, entre 1577 e 1578. O autor foi um místico espanhol e um dos grandes
poetas da literatura mística. Ficou conhecido por seus escritos sobre a experiência
espiritual e a busca pela união com Deus. Entre suas obras mais famosas, está Noite
escura, na qual ele aborda o tema da cegueira espiritual e da escuridão da alma em
seu caminho em direção a Deus. Segundo o autor, para alcançar essa união mística,
é necessário passar por um processo de purificação e desapego de todos os apegos
58

terrenos e percorrer um caminho desconhecido, de breu completo, porque não são os


olhos mas a alma que experimenta uma espécie de cegueira espiritual, um período
em que todas as referências e seguranças habituais são retiradas, levando a uma
profunda sensação de vazio e escuridão.
No poema “Do livro primeiro da Noite escura, de São João da Cruz 3”, Daniel
Faria escreve os seguinte versos: “A noite a princípio é o homem sem casa, é o lugar/
Em silêncio. É a humildade humedecendo/ O corpo descalço e consumido” (2015, p.
221). Em “Do livro segundo da Noite escura, de São João da Cruz 1” (2015, p. 222),
lemos: “É preciso portanto concluir a noite para passar/ A outra noite. Quando se deixa
de mugir […]/ É preciso purificar pela sede o sangue enquanto Deus/ Exercita a noite”.
No poema de Faria “Do livro segundo da Noite escura, de São João da Cruz 3” (2015,
p. 224), há ainda os versos: “O ouro enriquece-se de trevas, a noite enriquece o
centro/ Das pupilas. O acto/ Excede o acto – só há o quieto brilho/ Do olhar infuso. A
violenta/ Escuridão de se abeirar da luz”.
Em todos os trechos acima, há um jogo entre o olhar, a noite e a presença de
um processo que purifica e transforma. Essa cegueira, articulada imageticamente por
Daniel Faria, não se refere à privação física da visão; ela é a experiência interior
próxima ao fenômeno místico em que é preciso limpar, esvaziar os referentes
habituais para se libertar de todas as ilusões e de todos os apegos que o impedem de
experimentar com clareza a verdade de cada fenômeno. Após a “noite escura”, a alma
do poeta emergirá com uma maior proximidade e união com Deus, com uma maior
clarividência, experimentando uma transformação interior e uma linguagem renovada.
Podemos notar, também, que a imagem da cegueira, muitas vezes, é atrelada
ao gesto de tatear, uma metáfora do modo como o poeta se relaciona com a criação
poética: “De noite viajo pelo tacto./ Ponho também o ouvido sobre a face dos signos/
E decifro a noite escura como um astro” (Faria, 2015, p. 81); “Se fores pelo centro de
ti mesmo/ Tactearei/ Abrirei a mão e estarás próximo” (2015, p. 151); “Pelo tacto
procuro o caminho das águas/ Cego – e os olhos a quererem abrir-se/ Como as
chagas” (2015, p. 215). Viajar de noite, pelo tato, é apurar todos os sentidos e colocar
o próprio corpo e suas sensações em estado de plena atenção para aquilo que não é
visível.
Assim como São João da Cruz vê a cegueira e a escuridão como etapas
cruciais e necessárias no caminho da busca espiritual e da união mística com o divino,
Daniel Faria acredita ser necessário, para a poesia, o movimento de trazer a palavra
59

“banalizada” (dessacralizada) para a sua “noite escura”. Isso significa que a palavra,
análoga à imagem do real, passa por um processo de transformação iniciático, em
que o corpo do poeta participa e se envolve ativamente, assemelhando-se à
experiência de despojamento presente na tradição mística, ou seja, essa ideia do
iniciático e a da transformação epifânica se relacionam com características da tradição
mística que explicam e transfiguram o real. Esse processo aparecerá, por exemplo,
no poema abaixo, retirado do livro Homens que são como lugares mal situados:

Conserto a palavra com todos os sentidos em silêncio


Restauro-a
Dou-lhe um som para que ela fale por dentro
Ilumino-a

Ela é um candeeiro sobre a minha mesa


Reunida numa forma comparada à lâmpada
A um zumbido calado momentaneamente em enxame

Ela não se come como as palavras inteiras


Mas devora-se a si mesma e restauro-a
A partir do vómito
Volto devagar a colocá-la na fome

Perco-a e recupero-a como o tempo da tristeza


Como um homem nadando para trás
E sou uma energia para ela

E ilumino-a
(Faria, 2015, p. 174)

É pelo desdobramento encadeador dos sentidos e por um excesso do dizer que


a palavra passa por um movimento autofágico, de “autodevorar-se”, pois, assim, o
poeta pode transmitir ideias complexas, despertando a imaginação do leitor. Há, na
poesia de Daniel Faria, a apresentação de um percurso tensional entre o silêncio e o
nascimento da palavra – o poeta, frequentemente, comunica essa tensão dialética
entre o que é dito e o que fica latente. E esse embate produz uma estética própria,
por isso a utilização constante de paradoxos, as marcações espaço-temporais, o uso
polissêmico das palavras, a utilização do símbolo e da alegoria – todos os recursos
como tentativas de expressar, à altura, a experiência complexa que é esse
“despojamento místico”. O poeta acredita que só conseguirá ter uma experiência mais
verdadeira com a realidade se ele transformar e transmutar as imagens desse real.
A linguagem, em Daniel Faria, portanto, visa alcançar uma outra face desse
real, mostrando os seus infinitos desdobramentos em um modo sistemático –
podemos imaginar, aqui, a imagem de um rizoma infinito de símbolos que vão
60

frutificando em outros símbolos encadeados. Francisco Saraiva Fino (2020, p. 131)


dirá, sobre esse tema, que “a prioridade da visão antecede a experiência do logos
enquanto expressão mas sem deixar de o considerar como ponto de partida”: Daniel
vê a imagem para buscar a contemplação iniciática, forma encontrada na tradição
filosófica mística em que as imagens serão um modo de coordenar a experiência dos
seres e das coisas e a experiência de si. As imagens funcionam, portanto, como
agentes e objetos do pensamento preenchido de uma mundividência simbólica que,
no caso de Daniel, é oriunda da religião cristã.
O pesquisador Carlos Nogueira, em seu artigo “A poesia de Daniel Faria:
silêncio, espiritualidade, natureza” (2014), também reflete sobre esse modo de captar
uma realidade metafísica e imaterial:

Há uma realidade metafísica e (i)material que só o poema capta, há uma


ligação do eu à essência vital do mundo que só o poema diz e estabelece.
Luz ou sombra, o eu quer ser uno com o universo: matéria fecunda para a
terra e para a sabedoria do mundo. A experiência religiosa, estabelecida em
Cristo mas vivida de maneira muito pessoal, inscreve o poeta numa ordem
cósmica que o leva a assombrar-se perante todas as coisas. A sua vivência
do sagrado também o leva a conciliar elementos contrários: a vida e a morte
e a alegria e a tristeza são a própria natureza do universo. O poeta não cai
no niilismo porque sabe que a luz e a escuridão e o nascimento e a morte
fundam o universo e a natureza da vida. (Nogueira, 2014, p. 185)

O poeta utiliza palavras e imagens visuais e acústicas para abrir múltiplos


significados, sem fixá-los ou ancorá-los em um único sentido conclusivo; ele não visa
elucidar um fenômeno de forma racionalista, como um modo de doutrinar, educar,
mas ampliar, desdobrar os sentidos, ou seja, abrir as múltiplas dobras da imagem.
Segundo Erick Gontijo (2018, p. 25), no seu artigo “Uma pedra fechada pelo lado de
dentro”, a linguagem poética, em Daniel Faria, “se virtualiza, porque o poema força o
mecanismo metafórico até seu limite. Por isso, um texto constituído no espaço de
imanência, ao se enovelar, desdobra-se em sua interioridade, espraia-se
metonimicamente”.
A coluna dorsal do texto de Faria é a necessidade de pensar os sentidos do
mundo, do homem, da existência, da morte e da poesia e ir em busca de imagens que
estejam ligadas à ordem dessas ideias. Essa busca decifratória dos sentidos é
testemunhada, em sua poesia, como uma articulação de novos enigmas. Sophia é
uma poeta que busca tornar mais nítida uma imagem; Daniel buscará sempre
enigmatizá-la, encobri-la, ainda mais, de névoas e obscuridades, porque é assim que
61

ele almeja uma comunicação mais próxima de uma experiência daquilo que é
impossível dizer.
A experiência mística, segundo o Dicionário de mística (Caruana; et al., 2003,
p. 640), diz que o místico possui uma difícil relação com a palavra: “a palavra do
místico é intimada a dizer o que é impossível de transmitir”. Ela é sempre uma barreira
difícil de superar, porque o místico “não acredita que a linguagem possua uma
onipotência semiótica” – aliás, ele chega a pôr em dúvida a possibilidade de falar.
Poetas e místicos sentem a necessidade de dizer, nomear, comunicar o que
transcende, conforme reitera Michael Sells (1994, p. 2, tradução nossa): “o
transcendente deve estar além dos nomes, inefável. Para afirmar que o transcendente
está além dos nomes, todavia, devo dar-lhe um nome – o transcendente”1.
Portanto, no próximo tópico, apresentaremos alguns pensamentos sobre a
tradição mística como modo de aprofundarmos a nossa compreensão sobre os
principais aspectos da criação poética de Daniel Faria.

1.4 EXPLICAÇÕES PARA HABITAR A TRADIÇÃO MÍSTICA

Em cada coração há uma


janela para outros corações.
Eles não estão separados,
como dois corpos.
Mas, assim como duas lâmpadas
que não estão juntas,
Sua luz se une num só feixe.
Rumi

Mestre Eckhart, professor e teólogo alemão da ordem dominicana nascido em


Hochheim, próximo a Gotha, na Turíngia, em 1260, traçou uma relação que nos
parece apropriada entre literatura e mística: mediante a via apofática dos místicos ou
pela metáfora e pelo ritmo dos poetas, todos buscam meios para chegar ao reverso
da palavra, na tentativa de poder comunicar o que “não é isto nem aquilo” (Eckhart
apud Meléndez Guerrero, 2020, p. 12, tradução nossa2). Tanto o poeta como o
místico, no seu jogo com as palavras, acabam por transgredir, transmutar a
linguagem. Como argumenta Luis Gustavo Meléndez Guerrero, pesquisador da
Universidade Iberoamericana, da Cidade do México:

1
No original: “the transcendent must be beyond names, ineffable. In order to claim that the transcendent
is beyond names, however, I must give it a name—the transcendent.”
2
No original: “que no es esto ni aquello”.
62

Místico e poeta têm uma urgência em dizer “algo”, […] e é a escrita o meio
que torna possível essa tentativa de dizer o indizível. Ao místico urge
“empalavrar” [pôr em palavras] a experiência de um encontro que por si só é
inefável; por outro lado, ao poeta compele um desejo de dizer não a realidade
mas o reverso do real, não o que é mas aquilo que está por trás do que é.
(Meléndez Guerrero, 2020, p. 13, tradução nossa3)

Narrar o reverso do real e “mostrar não o que é mas aquilo que está por trás do
que é” caracteriza a postura poética de Daniel Faria. Por essas características, o Bispo
Carlos Azevedo vai declarar que Daniel Faria foi “‘o último poeta místico do século
XX’, com uma ‘dimensão que o coloca na linha de uma Teresa d’Ávila e dos grandes’”
(Azevedo apud Marujo, 2019, s/p.). Vejamos um outro poema que traça uma citação
direta com o texto místico Noite escura, intitulado “Do livro segundo da Noite escura,
de São João da Cruz 2”:

DO LIVRO SEGUNDO DA NOITE ESCURA, DE SÃO JOÃO DA CRUZ 2

A alma que Deus leva adiante é uma pulsação


Frágil. Uma sombra cá fora incandescente do cárcere
O discurso, mesmo o interior, é um mecanismo
Engolido pelo amoroso gole. Faltam
Os mensageiros duráveis – não é uma falha
Da noite intensamente tecida. Na malha negra vê-se
Como nos limites raia
A perfeição – uma agulha
Uma mancha fresca retesada entre a raiz absoluta e o mais alto
Apagamento. A porta
É um batente no princípio. Nem todos entram
Da mesma forma. Sim
Que sabemos das aparências?

É necessário cobrir os olhos incuráveis – o manto


Abre-se à lixívia – uma estrela imensa. A união
É desposarmo-nos brancos
Sem palavras
(Faria, 2015, p. 223)

O poema de duas estrofes, sendo a primeira composta por treze versos e a


segunda por quatro versos livres, é construído em um tom reflexivo que apresenta um
pensamento de que o “discurso, mesmo o interior” é um “mecanismo engolido pelo
amoroso gole”. Aqui, o sujeito lírico dialoga com o conceito do mecanismo do amor

3
No original: “Místico y poeta tienen una urgencia por decir ‘algo’, […] y es la escritura el medio que
hace posible ese intento por decir lo indecible. Al místico le urge ‘empalabrar’ la experiencia de un
encuentro que de suyo es inefable; por su parte, al poeta le apremia un deseo por decir, no la realidad,
sino el reverso de lo real, no lo que es, sino aquello que subyace en lo que es”.
63

que também aparece em outro poema citado no livro Homens que são como lugares
mal situados: “Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado/ De
locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto/ Do amor.// Sei que
estou em viagem na palavra que se move” (Faria, 2015, p. 132). O “mecanismo
secreto do amor” (“o mecanismo engolido pelo amoroso gole”) é o mecanismo da
palavra que se move e comove (no sentido de mover junto); da palavra que adentra a
noite da transformação, essa “noite intensamente tecida”, a “malha negra”, que é o
estado interiorizado de despojamento, condição para que o poeta realize o processo
de purificação de si e, consequentemente, da palavra.
Essa noite, o manto que “cobr[e] os olhos incuráveis”, é também a imagem do
vazio e do silêncio profundo que o poeta adentra (“brancos/ sem palavras”), do repleto
esvaziamento de si e dos sentidos estáveis que visam estabelecer o contato com a
abertura (“a união”). No poema, essa união é erotizada (“desposarmo-nos”), e
podemos relacioná-la ao erotismo da linguagem, o verbo que se torna “carne”. O
sujeito lírico procura a agulha “perfeita”, aludindo ao ditado popular de “encontrar a
agulha no palheiro”, ou seja, aquele que detecta o ínfimo sinal, o inefável que está
dentro da obscuridade da noite intensa. O sinal sagrado é “uma mancha fresca”
estendida com força, tensionada entre a terra e o céu (“a raiz absoluta e o mais alto”).
Há teofanias (“a porta”, “batente do princípio”) para expressar uma reflexão sobre a
busca do sujeito lírico pelo sagrado, indo em concordância com Mircea Eliade quando
este afirma que o ser que crê no fenômeno do sagrado entende o espaço como não
homogêneo e se utiliza de símbolos para pôr em evidência a separação desses dois
espaços; nas palavras do autor:

o limiar, a porta, mostra de uma maneira imediata e concreta a solução de


continuidade do espaço; daí a sua grande importância religiosa, porque se
trata de um símbolo e, ao mesmo tempo, de um veículo de passagem”
(Eliade, 2018, p. 29, grifos do original).

Ou seja, a porta é “um batente no princípio” pelo qual só alguns podem entrar.
Importante notar a única pergunta lançada no poema, “Que sabemos das
aparências?”, porque é justamente das aparências que o poeta quer se livrar e atingir
algo menos ilusório. No símbolo representativo do amor (o coração), o sujeito lírico
poderá reconhecer o sinal que o levará à ascese, à proximidade com o divino
(novamente, aqui, a questão da busca do ser religioso para alcançar um centro, que
64

já abordamos também nos poemas de Sophia). Esse sinal que Daniel apresenta (“uma
agulha/ Uma mancha fresca retesada entre a raiz absoluta e o mais alto”) pode ser
lido como a irrupção do sagrado que diferencia um território do meio cósmico do de
um lugar não cósmico, ou seja, a irrupção é o sinal portador de significação religiosa:

[…] É que o sinal portador de significação religiosa introduz um elemento


absoluto e põe fim à relatividade e à confusão. Qualquer coisa que não
pertence a este mundo manifestou-se de maneira apodítica, traçando desse
modo uma orientação ou decidindo uma conduta.
Quando não se manifesta sinal algum nas imediações, o homem provoca-o,
pratica, por exemplo, uma espécie de evocatio com a ajuda de animais: são
eles que mostram que lugar é suscetível de acolher o santuário ou a aldeia.
(Eliade, 2018, p. 30-1, grifos do original)

Interessante notar que esse processo de transmutação da imagem exige um


despojamento, um modo de negativar a si mesmo muito similar ao que Pseudo-
Dionísio, o Areopagita, um monástico que viveu por volta de 500 d.C., compreendia
quando afirmava que a relação com o transcendente implica, necessariamente, o
êxtase operado pelo mecanismo de negação, de remoção do próprio saber, e, para
isso, é necessário abandonar-se; só assim é possível a união transformadora através
do sentimento pleno de amor a Deus (Pseudo-Dionísio, o Areopagita 2005, p. 21). Ou
seja, tanto para Daniel Faria como para certa tradição mística, entende-se que a
experiência com o inefável é impossível de ser vivida nos limites da razão; há um
processo que exige o êxodo de si, o qual o poeta metaforiza, em diversos poemas,
como essa extrema escuridão interna que a palavra adentra e percorre antes de ser
renovada.
Se analisarmos sob a ótica psicanalítica, estamos nos defrontando com um
processo de dessubjetivação e de abertura completa à alteridade. Daniel Faria
traduzirá essa experiência da perda de si por imagens negativas e sombrias (o
silêncio, a morte, a ausência, as trevas) postas ao lado de imagens de extrema
luminosidade, formando sentidos paradoxais, o que também podemos encontrar nos
escritos de Pseudo-Dionísio: “[a treva] superesplendente na mais profunda
obscuridade que é, supermanifesta e superclaríssima” (2005, p. 15). Esse paradoxo
articulado entre os elementos físicos naturais da luz e da sombra é amplamente
utilizado tanto por Daniel quanto por Sophia. Podemos dizer que ambos preenchem
as suas poéticas de luminosidades sombrias ou de sombras resplandecentes.
65

A “luz que brilha nas trevas”, a “noite iluminada”, para Daniel, é a presença
divina e, concomitantemente, pode ser lida em uma camada adicional de sentido,
relacionada à criação da palavra (que se equipara à criação divina). A luz, na poética
de Daniel, está sempre próxima do gesto de nomear: “E enxerto a luz/ Em tudo o que
nomeio” (Faria, 2015, p. 43). Daniel apresenta um sujeito lírico que transforma, nas
palavras da pesquisadora Ida Alves (2007, p. 106), “o escrever na experiência mística
da transubstanciação: palavra – sangue, palavra – corpo, uma experiência mortal,
portanto, como transformação e revelação”. E esse processo revela uma questão de
linguagem: o poeta sacrifica o próprio ser e o próprio corpo para alçar um outro modo
de habitar o mundo e a sua realidade; é pela criação da palavra poética que ele impele
este outro modo, como um sujeito que vai ao encontro do que está fora de si, conforme
analisa Michel Collot quando aborda o lirismo sublime que “supõe um ser fora de si”:

Estar fora de si é ter perdido o controle de seus movimentos interiores e, a


partir daí, ser projetado em direção ao exterior. Esses dois sentidos da
expressão me parecem constitutivos da emoção lírica: o transporte e a
deportação que porta o sujeito ao encontro do que transborda de si e para
fora de si. […] Essa possessão e esse desapossamento são tradicionalmente
referidos à ação de um Outro, quer se trate, no lirismo místico ou erótico, de
um deus ou do ser amado, no lirismo elegíaco, à ação do Tempo, ou ao
chamado do mundo que arrebata o poeta cósmico. Essa ação não se separa
da que exerce o próprio canto, que mais se apodera do poeta do que dele
próprio emana. Fazendo a experiência de seu pertencimento ao outro – ao
tempo, ao mundo ou à linguagem –, o sujeito lírico cessa de pertencer a si.
(Collot, 2004, p. 166)

Dominique Combe ressoa o pensamento de Collot no ensaio “A referência


desdobrada. O sujeito lírico entre a ficção e a autobiografia”, no qual afirma que, na
comunicação lírica, a dualidade do sujeito é uma “tensão jamais resolvida”, e que o
sujeito lírico habita uma constante tensão, em um “incessante duplo movimento do
empírico em direção ao transcendental” (COMBE, 2009-2010, p.124). Essa gênese
do sujeito lírico contínuo e ininterrupto é oriundo do dinamismo da ficcionalização, na
qual ele jamais está acabado, pois, a partir desta concepção, o sujeito lírico cria-se no
e pelo poema, caracterizando um valor performático da escrita, fora do qual o sujeito
lírico é inexistente. Ou seja, a experiência poética é necessariamente uma “saída de
si” (COLLOT, 2013, p. 221).
Na experiência e na escrita poética o sujeito situa-se fora de si, pois é levado
na travessia que visa o encontro dos outros, das coisas, da sua própria alteridade e
de seu inconsciente. O eu que aí se exprime é um Outro, estabelecendo-se, assim,
66

um espaço aberto que pode ser ocupado por qualquer um, para vivenciar a
experiência poética (COLLOT, 1998, p. 155). Collot desenvolve essa ideia ao afirmar
que, na modernidade, essa saída de si constitui-se numa condição fundamental,
inerente a sua própria condição.
Podemos relacionar tais concepções à poética de Daniel Faria e também de
Sophia de Mello Breyner Andresen. Deixar de pertencer a si é fazer a experiência de
seu pertencimento ao outro. Ao desalojar o sujeito lírico de uma pura interioridade, o
autor recorrendo, principalmente, ao pensamento de Merleau-Ponty e de Paul
Ricoeur, considera o sujeito em sua relação constitutiva com um fora, e não mais em
termos de substância, de interioridade e de identidade. A intemporalização e a
universalização tendem, com efeito, à alegoria, a tal ponto que o disfarce lírico pode
ser considerado como um processo de autoalegorização.
É pelo desdobramento encadeador dos sentidos e por um excesso do dizer que
a palavra passa por um movimento alegórico, autofágico, de “autodevorar-se”, pois,
assim, o poeta pode compor ideias complexas, despertando a imaginação do leitor. A
alegoria auxilia Daniel Faria a ressignificar os sentidos e a criar uma verdade
transcendente. A palavra é “consertada” pelo poeta, segundo Maria João Cantinho
(2016), no seu artigo “Daniel Faria ou a (Im)possibilidade da arqueologia da palavra”,
e o tom alegórico é a “pedra de toque” de toda a poética de Daniel Faria:

É, aliás, este tom alegórico a “pedra de toque” de toda a sua poética, a matriz
geradora da musicalidade da sua poesia, já que o seu frágil e precário
equilíbrio se auto-sustenta nessa dialéctica entre o que é dito e o que fica
latente, num percurso de dolorosa perda, que habita o corpo do poema. A
este propósito ocorre-me a expressão de Agamben, em que o autor fala da
“fractura da linguagem”, em todo o seu carácter inesgotável. […] Quando
Daniel Faria diz, em Homens que são como lugares mal situados, “Conserto
a palavra com todos os sentidos em silêncio/ Restauro-a/ Dou-lhe um som
para que ela fale por dentro/ ilumino-a”, é ainda dessa restauração da
plenitude do nome que se fala. Em toda a leitura, o sopro do poema remete-
nos para uma possível reabilitação, não apenas do ente e da criatura
nomeada, mas da própria linguagem, no seu esplendor. Para que, mais do
que palavra, ela se converta no “som iluminado” capaz de gerar o sentido, a
magia do dizer. E, como ele próprio o reconhece, essa palavra “não se come
como as palavras inteiras/ Mas devora-se a si mesma e restauro-a”.
(Cantinho, 2016, s/p.)
67

Embora haja uma presença muito mais nítida e direta das referências a uma
tradição mística na poesia de Daniel Faria, é possível identificá-las, também, em
alguns poemas de Sophia, como, por exemplo, nos poemas em que há uma luz
intensa provocadora de cegueira, aquela mesma que fere os olhos que citamos na
poesia de Daniel. Vejamos o seguinte trecho de “As grutas”, de Livro sexto, em que a
luz intensa “quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente” (Andresen,
2015, p. 445); ou o poema “Intervalo II”, de Coral, em que o sujeito lírico expressa o
desejo de caminhar em um tempo suspenso, como que num transe de olhos fechados:
“Eu quero caminhar como quem dorme/ Entre países sem nome que flutuam.//
Imagens tão mudas/ Que ao olhá-las me pareça/ que fechei os olhos” (p. 276); ou o
que lemos na primeira estrofe do poema “Antinoos”, de Geografia: “Sob o peso
nocturno dos cabelos/ Ou sob a lua diurna do teu ombro/ Procurei a ordem intacta do
mundo/ A palavra não ouvida” (p. 553). Há, ainda, um outro poema, sem título, iniciado
pelo verso “E só então saí das minhas trevas”, de Coral, em que Sophia expressa uma
cegueira oriunda de uma luz intensa:

E só então saí das minhas trevas:


Abri as minhas mãos como folhagens,
Intacta a luz brotava das paisagens,
Mas na doçura fantástica das coisas
As minhas mãos queimavam-se e morriam.

Dia perfeito, inteiro e luminoso,


Dia presente como a morte – luz
Trespassando os meus olhos de cegueira.
Cada voz, cada gesto, cada imagem
Na exaltação do sol se consumia.
(Andresen, 2015, p. 292)

A luz brota da paisagem e tira o sujeito lírico de suas trevas mais profundas; é
uma luz intensa e quente que “queima as mãos”; uma luminosidade tão vibrante e
clara, que mostra o “dia perfeito” e trespassa os olhos de cegueira; toma conta de
“cada voz, cada gesto, cada imagem”. Segundo Gilbert Durand (2012, p. 94), no seu
livro As estruturas antropológicas do imaginário, a cegueira é associada ao
conhecimento originário, à sinceridade, à crueza de uma verdade:

é por essa razão que, nas lendas e fantasias da imaginação, o inconsciente


é sempre representado sob um aspecto tenebroso, vesgo ou cego. Desde o
Eros-Cupido com os olhos tapados, […] passando pelo tão célebre e terrível
Édipo, que a parte profunda da consciência se encarna na personagem cega
da lenda.
68

A luz intensa permite não apenas olhar as coisas em sua plenitude, como fere,
rompe, cega, atingindo o corpo e revelando aspectos do próprio sujeito; a cegueira é
uma forma de espelho, pois, segundo o autor (Durand, 2012, p. 94), ela equivale a
uma imagem do inconsciente “confuso, perturbado, decaído”, o que explica como o
simbolismo do espelho está associado ao conhecimento, a uma “verdade mais pura”.
É por isso que a figura de Narciso e o símbolo do espelho serão tematizados,
tanto na poesia de Daniel Faria quanto na de Sophia de Mello Breyner, como modos
de demarcar o mundo das aparências ilusórias e como aquilo que retorna um reflexo
“verdadeiro”. Daniel, inclusive, escreve os versos “Em silêncio onde escutamos a
palavra/ Em carne viva. Verbo/ Tão inteiro que se fez espelho” (2015, p. 194), ao falar
do lado da realidade em que Deus está presente, na imagem e no verbo, ou seja, na
palavra escrita. Embora com modos diferentes de olhar para essa realidade, há um
desejo similar, em ambos os autores, de encontrar, através da palavra poética, uma
verdade sem ilusões do mundo e também sobre si mesmos. Daniel Faria escreve os
versos “A lâmpada está no espelho e não é um rosto/ Seria um insecto mas o voo
queima./ Os filamentos mínimos das suas antenas/ Nunca poderiam ser duas asas –
ou mais – para as imagens” (2015, p. 281). Em O livro do Joaquim, ele escreve um
pensamento sobre o mito de Narciso:

Diz-se que Narciso, tendo um dia visto o seu rosto reflectido na água, ali ficou
para sempre, preso à contemplação da beleza da sua face.
Já não se diz, e talvez pudesse dizer-se que durante esse tempo Narciso
pôde verificar como envelhecia, e como a sua beleza durava menos que a
transparência da água, e do que a pedra onde a água corria.
Não se diz, e talvez pudesse dizer-se, que Narciso pôde aprender o quanto a
beleza é frágil, e como o seu único sentido é empenhar-se na salvação dos
homens e do mundo. (Faria, 2019, p. 69)

Nesta passagem, há uma reflexão interessante sobre a efemeridade da beleza


e, consequentemente, sobre a impermanência e a fugacidade do tempo. O que
podemos perceber é que esta ligação que ambos os poetas possuem com o mistério
– e que entendemos como uma ânsia de conexão com o sagrado – é um modo de
eles lutarem também contra a efemeridade, contra a passagem do tempo, contra a
própria impermanência e a constante mutabilidade de um existir. Como não lembrar,
aqui, do trecho do texto “As grutas”, de Livro Sexto, em que Sophia descreve o quão
fugaz é o instante de beleza e equilíbrio:
69

O esplendor poisava solene sobre o mar. E – entre as duas pedras erguidas


numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio
do homem com as coisas é medido – quase me cega a perfeição como um
sol olhando de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me
diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a
beleza não é só solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o
mundo nascer e ser criado. (Andresen, 2015, p. 445)

Ou quando Sophia também articula um rosto refletido narcisicamente em tantos


poemas, como em “Soneto de Eurydice” (2015, p. 338), de No tempo dividido, em que
lemos: “Assim bebi manhãs de nevoeiro/ E deixei de estar viva e de ser eu/ Em procura
de um rosto que era o meu/ O meu rosto secreto e verdadeiro”; ou no poema “Os
espelhos”, em que podemos ler:

Os espelhos acendem o seu brilho todo o dia


[…]
Como a pupila do gato
Eles nos reflectem. Nunca nos decoram

[…]
Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio
Que à tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo frio e vítreo
(Andresen, 2015, p. 542)

A mística, como forma de experiência religiosa, indica a necessidade de


empreender um caminho crítico para se chegar ao núcleo da experiência; é preciso
se esvaziar das aparências e das verdades que já se conhecem e se abrir para o início
de um novo conhecimento. É um modo de abertura ao sensível, mas, diferentemente
do que Jean-Luc Nancy mencionou sobre essa abertura que ressoa e reenvia, há, na
mística (e, de modo muito mais expressivo, na poesia de Daniel Faria), uma
necessidade de negativar, de se despojar para que as coisas ressoem e se
transformem. É interessante notarmos que Sophia abordará, em alguns poemas, o
tema do despojamento dos saberes, como, por exemplo, no poema VII do livro No
tempo dividido:

Não procures verdade no que sabes


Nem destino procures nos teus gestos
Tudo quanto acontece é solitário
Fora de saber fora das leis
Dentro de um ritmo cego inumerável
70

Onde nunca foi dito nenhum nome


(Andresen, 2015, p. 317)

O poema apresenta um sujeito lírico que testemunha um modo de se relacionar


com o mundo situado fora de um saber, movido por um ritmo cego àquilo que
desconhece. O conhecimento que o sujeito lírico busca é anterior ao racional, uma
busca por um nome primeiro daquilo que ainda “nunca foi dito”. Portanto, podemos
afirmar que os poetas aqui comparados anseiam conhecer, inteiramente, todo o
fenômeno, tanto o que passa pelo racional como também o que está além dele, o
mistério, o esplendor do dia e também da noite, o que está preenchido de luz ou o que
está preenchido de trevas, aquilo que se alcança com a visão e aquilo que a visão não
detecta. Isso é um exemplo muito característico de seres que carregam visões
religiosas da existência e que buscam abarcar todos os aspectos de um fenômeno
como forma de se apropriar de um existir pleno.
Decifrar algum sinal que possa dar conta da presença divina é, para esses
poetas, vivenciar o fenômeno da vida em sua plenitude; por isso, ela se ilumina e,
também por isso, a palavra, a possibilidade de nomear aquilo que os conecta ao
mistério, são um modo de despertar, de conhecer melhor, de se apropriar de um
existir. Daniel demonstra esse sentimento no poema abaixo, em que relaciona, de
forma direta, a palavra à luz, à pinha de uma infância:

Eles abrem a palavra


A pequena giesta – essa luz

Abrem uma pinha na infância

Quando despertam
Quando abrem as mãos à pulsação
Dos livros, eles abrem
No favo o sinal

A pequena nascente no mel


(Faria, 2015, p. 203)

O poema de oito versos livres distribuídos em quatro estrofes faz uma analogia
da palavra com a “pinha da infância”, momento em que os olhos carregam o peso do
ineditismo do mundo, da primeira vez dos sentidos. O primeiro verso se inicia com a
terceira pessoa do plural, aqueles que abriram os livros com as “mãos” em “pulsação”,
dando a entender que são os leitores que, ao lerem as palavras escritas, serão
atravessados pela palavra iluminada, a “pequena giesta” de luz. É no âmago da pinha-
71

palavra que está a manifestação daquilo que é sagrado. Sophia escreve um poema,
no Livro sexto, que pode ser usado como aproximação a essa pinha aberta que Daniel
Faria retrata, em que a poeta também tece a mesma relação entre a luminosidade e
o ato de nomear:

MANHÃ

Como um fruto que mostra


Aberto pelo meio
A frescura do centro

Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro
(Andresen, 2015, p. 440)

Se, no poema de Daniel, a metáfora é a pinha, no de Sophia, será o fruto, que


também estará aberto e iluminado, com a diferença de que é o sujeito lírico quem abre
a palavra, aludindo à figura do poeta, e não à dos leitores, como lemos em Daniel
Faria. O que destaca a importância do leitor para Daniel Faria, que conversa
diretamente, endereça a experiência através de seus poemas para aqueles que o lê.
Para ambos, a palavra poética traz uma iluminação, porque prescreve a transmissão
da presença do sagrado em um mundo terrestre e, portanto, produz uma “aura”
iluminada na realidade, um encantamento no desencantado. Comunicar a experiência
de aliança e detecção dos sinais de manifestações divinas será um mote temático
nessas poéticas, como podemos verificar neste outro poema do livro Dos líquidos
(2000), de Daniel Faria, que demonstra o mecanismo de itinerância silenciosa que
busca a ascese e a união com Deus:

DO LIVRO DAS MEDITAÇÕES 2

Portanto farei uma escada no coração.


E pelos degraus subirei da minha casa
Até bater com o pensamento no altíssimo.
Apagarei os passos e o cérebro como um rasto no deserto
Sempre atento como a águia quando fixa o sol
Sem pestanejar.
Farei portanto a escada no deserto para fixar
A luz.
Da minha casa subirei sem palavras
Em silêncio, portanto, pisando o coração.
(Faria, 2015, p. 217)
72

O poema tematiza a criação poética, o modo com o qual o poeta se empenha


na escrita da palavra poética. O primeiro verso indica uma imagem de ascese a partir
do amor (metáfora da escada e do coração). O modo como o sujeito lírico se
aproximará do verbo divino é pela experiência amorosa, um modo de ‘subir os
degraus’ de sua casa, do seu existir. O que se elevará no altíssimo é o pensamento,
o modo de desdobrar os sentidos dos enigmas existenciais. Aqui, o símbolo que
representa o limiar entre um lugar profano e outro sagrado está eclipsado pelo verbo
“bater”, no sentido amplo de bater à “porta” do altíssimo e de bater (atingir) um
pensamento elevado. A porta é o que separa o divino do mundo que o sujeito lírico
habita. O silêncio será condição para a elaboração do pensamento elucidativo e do
modo de ascese. Destacamos que hierofanias como “pedra”, “árvore”, “escada” e
“casa” são recorrentes na obra de Daniel Faria, como também reforça José Rui
Teixeira em sua pesquisa “Ofício de morrer: o corpo e a morte na poesia de Daniel
Faria – um tríptico para o desdobramento da imolação” (2019), ao escrever
observações sobre os símbolos que são essenciais para uma leitura hermenêutica da
poesia de Daniel Faria:

Outras sete vezes se escuta o rumor deste semantema [degrau] em


Explicação das árvores e de outros animais: o «degrau na vida» [em relação
com o fogo e com a bússola que arde], o poeta passageiro num «degrau
invisível sobre a terra», o degrau que é paciência, o «degrau de entrada», os
«inúmeros degraus da casa», a seta no degrau [e o «pé descendo»] e essa
canção que é a mão que se afadiga a «sarar do degrau e do perigo». Pelos
degraus se sobe e se desce, e subir e descer corresponde a um exercício de
tensão dicotómica muito característico na poesia de Daniel Faria: a treva e a
luz, a noite e a manhã, o homem e o anjo, o chão e o céu, o peso e a leveza,
o dividido e o inteiro, o exterior e o interior, o primeiro e o último, a pedra e a
nuvem, o que cai e o que ascende. Neste exercício de tensão dicotómica, o
degrau [a escada] medeia as polaridades, é um meio de passagem, um
elemento pascal. (Teixeira, 2019, p. 18)

A pesquisadora Valéria Soares Coelho, no seu artigo “Daniel Faria: Dos


Líquidos; os anzóis profundos dos sinais” (2017), exemplifica o quanto essas
hierofanias são um modo de criar correntes de sentidos, de desdobrá-los, um modo
em que o poeta comunica

a diversidade de sentidos de uma mesma palavra através de um exemplo


diferente, [do que] poderíamos citar também a “pedra”, que bastante
reincidente como “água” e seus correlatos semânticos, vai desde algo que se
opõe ao ser vivo, objeto mais inumano possível, até a pedra angular, altar
divino, incluindo aí a morte inexorável. (Coelho, 2017, p. 205)
73

Portanto, o que o poema revela é que, a partir de uma interioridade


representada pelo símbolo clássico do amor (o coração), o poeta construirá a ponte
para a união com o divino, em uma atenção absoluta (“águia quando fixa o sol”). O
caminho da ascese é percorrido em silêncio, “sem palavras”, e este elo de
comunicação é representado pela escada em que uma luz poderá se fixar, em uma
paisagem desértica (esvaziada, solitária). Isso simboliza a claridade, a esperança, a
fé, em meio a um estado de aridez, descrença, angústia daquele que está em uma
errância constante. O sujeito lírico busca acessos ao desvelamento da visão e os
sinais que o colocam em um caminho mais próximo da luz, do divino. Fica claro que
o sujeito lírico vê o que fala, lê e decifra e, justamente por isso, é um cego que segue
com as mãos e toca as superfícies das palavras.
Valéria Soares Coelho (2017) traça uma interessante definição ao apontar o
projeto de escrita de Daniel Faria como análogo ao conto “A Biblioteca de Babel”, de
Jorge Luís Borges, como ponto de partida para pensar uma arqueologia das Ciências
Humanas. Para a autora:

o universo proposto por Daniel Faria também vai nessa direção quando
constrói uma poesia repleta de imagens míticas que, além de apresentar a
inconsistência nas fronteiras entre os reinos vegetais, minerais e animais,
incluindo aí o homem e a linguagem, expõe, incansavelmente em seu labor
poético, uma necessidade incessante de explicar o mundo através da poesia,
sendo também, ela própria, uma “coisa”. (Coelho, 2017, p. 205)

Vejamos outro poema de Daniel Faria, recolhido postumamente por Vera


Vouga, organizadora do volume de sua poesia reunida, e até então inédito:

Poderia ter escrito a tremer de respirares tão longe


Ter escrito com o sangue.
Também poderia ter escrito as visões
Se os olhos divididos em partes não sobrassem
No vazio de ceguez
E luz.
Poderia ter escrito o que sei
Do futuro e de ti
E de ter visto no deserto
O silêncio, o fogo e o dilúvio.
De dormir cheio de sede e poderia
Escrever
O interior do repouso
E ser faúlha onde a morte vive
E a vida rompe.
E poderia ter escrito o meu nome no teu nome
Porque me alimento da tua boca
E na palavra me sustento em ti.
(Faria, 2015, p. 19)
74

Neste poema, podemos entender o projeto de escrita de Daniel como aquele


que visa encontrar a palavra que ilumina o mistério, que busca a palavra capaz de
criar correntes de sentidos livres das amarras cartesianas e lógicas, uma palavra que
aponte para a multiplicidade de sentidos, ressaltando os paradoxos, as contradições,
as ambiguidades que abarcam o fenômeno do existir humano. É assim que ele
encontra uma autenticidade da experiência, podendo atingir a sua multiplicidade, pois
não há um único sentido pleno, apaziguador, para compreender a existência humana.
Podemos entender, neste poema, que o sujeito poético se alimenta espiritualmente
na fonte onde nasce a palavra divina: “Porque me alimento da tua boca/ E na palavra
me sustento em ti”, e Daniel irá utilizar o pronome de segunda pessoa do singular “tu”
para se direcionar ao divino. No poema, o ato de escrever está diretamente ligado à
palavra de Cristo “porque me alimento da tua boca”: o que foi ensinado através da
tradição Cristã será usado e servirá como eixo para a palavra poética. Francisco
Saraiva Fino (2018, p. 54) dirá que Daniel

aspir[a], como na tradição filosófica neoplatónica e mística, à contemplação


da idea […] [e] [p]elo logos poético procura determinar a experiência possível
do Logos divino e igualmente comunicar as possibilidades do seu
desvelamento através do dizer poético.

Daniel é um peregrino das palavras em um percurso que se faz por dentro: pela
linguagem, ele tenta presentificar um Deus ausente; por isso, fornece à palavra
poética uma tensão e um ritmo vacilante pelas quebras dos versos e das pontuações,
em uma errância interminável, aberta e inconclusa. Um caminho, uma itinerância, que
só podem ser iniciados a partir desse “modo cerrado de não ver”. É pelo exercício da
linguagem que o sujeito e o poeta se constroem. Nesse sentido, “cada verso seu é
uma procura atormentada, é desejo motor que eleva o espírito permanentemente na
busca de preencher um vazio, e é assim que o verbo se faz carne” (Coelho, 2017, p.
206). Este modo participativo do sujeito na construção da linguagem aparece no
poema abaixo, talvez um dos mais importantes sobre esse processo, do livro Homens
que são como lugares mal situados (1998):

Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
75

Tornei os olhos muito impuros por milhares de imagens


Pedras internas golpeando-me
Tornei-os incapazes das visões
Das visões interiores e por fora
Da aparência

Afoguei os olhos no peixe das imagens


Um peixe cheio de canais mudando as suas cores
Doendo-me muito nos olhos cobertos
Por escamas

Quis abrir os olhos no meio das águas no meio das imagens


E estava cego, estava coberto de fantasmas
Quis respirar com as mãos na garganta, guelras acesas
Porque as imagens não tinham rostos nas janelas

Elas fecharam-se sobre os meus olhos, em cardume,


Elas apontaram-me aos olhos as antenas interiores
Elas propagaram-me um modo cerrado de não ver
(Faria, 2015, p. 136)

O poema de vinte versos distribuídos em cinco estrofes apresenta um sujeito


lírico em primeira pessoa que se torna pedra (“peso”, “rochedo”), uma forma de virar-
se para dentro, para o interno, vivenciando o peso das imagens que contaminam, que
são impuras, pois ainda estão do lado de fora, do lado das aparências. O sujeito lírico
transmuta a imagem para o lado interno, ou seja, ele muda o estado da imagem e o
próprio estado, iniciando o seu itinerário transfigurador. É quando se fecha, quando
está com a atenção voltada para o seu interior, que é possível respirar, adquirir fôlego,
descontaminar-se das imagens impuras. A partir desse poema, podemos
compreender que a criação poética, para Daniel Faria, exige uma espécie de
distanciamento da razão para se aproximar de uma verdade mais exata, porque ele
concebe a imagem do real como dissimulação, e, em tudo o que emerge, há sempre
algo que se vela. Daniel concebe que, em tudo o que se manifesta, algo sempre se
oculta e que, no ocultamento, é possível encontrar algo mais nítido daquilo que
emerge; não há uma concepção provinda da razão que acredita conhecer com
exatidão, distinção, clareza.
Ambos os poetas, portanto, compartilham da ideia de que a linguagem poética
é o espaço fecundo onde é possível se instaurar uma realidade, ou seja, eles se
aproximam nessa identificação ontológica entre ser e linguagem, uma linguagem
como gênese de mundo, de sentido e de vida. E também possuem o mesmo
entendimento sobre a dimensão da gênese, porque, como poetas, se impelem a
refletir, justamente, sobre a essência da linguagem e se imbricam no esforço de dizer
76

o princípio. Essa talvez seja a postura que mais aproxima os poetas da palavra que
funda a realidade, que traz à tona o silêncio como condição essencial de criação; é no
silêncio, na quietude que eles habitam a essência da linguagem. Mas eles optam por
estilos diferentes de escrita: Daniel Faria opta pela intensidade de ambiguidades,
paradoxos, aporias, contradições, e se afasta de um modo de linguagem simples,
limpo, cristalino.
A interioridade e o silêncio são traduzidos na natureza da pedra
“ensimesmada”. A sua relação com o mundo natural, assim como na poesia de
Sophia, também é intensa e está preenchida de elementos naturais oriundos dos
reinos mineral, vegetal e animal. O poeta afasta a “palavra-pedra” do seu referencial
e desdobra os seus sentidos, ela pesa, vaga, é fechada em si mesma, compacta:
“Pesa-me no bolso/ E na cabeça./ Não é um pensamento./ É uma ideia ensimesmada.
Uma pedra fechada/ Pelo lado de dentro” (Faria, 2015, p. 49). Além disso, nos versos
de Daniel, há uma presença muito intensa do corpo em suas imagens orgânicas, como
o sangue, as veias, as artérias, como se os fluxos vitais também participassem do
processo de transformação da palavra; tanto o corpo interno quanto o externo são
referidos de maneira fragmentária para reiterar a comoção de todos os sentidos
corporais no processo de escrita. Para a pesquisadora Valéria Soares Coelho, no seu
artigo “Daniel Faria: Dos líquidos; Os anzóis profundos dos sinais”, a poética de Daniel
contém uma linguagem que se afasta do descritivo ou do argumentativo e:

aspira à eliminação das fronteiras entre os corpos através da crença do poder


da palavra para presentificar, nomear elementos, imagens, símbolos e mitos
ocidentais. Água, sangue, luz, pedra, entre outros, são recorrentes e criam
pensamentos vivos em que experiências ancestrais vêm como milagres.
(Coelho, 2017, p. 202)

Os elementos naturais apresentados nesta poética funcionam, muitas vezes,


também como indícios, sinais que manifestam o inefável, como o que abordamos em
Sophia, no tópico anterior. Vejamos o poema abaixo, retirado da série “Do
inesgotável”, do último livro de Daniel Faria, Dos líquidos, publicado em 2000:

Todas as minhas fontes vêm de ti


As nascentes
E amo-te com a constância do moribundo que respira
Já sem saber de que lado o visita a morte

Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois dos temporais


Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas
77

Desconheço o colar onde unes tudo

Procuro entender como é que moldas


Os meus pés ao equilíbrio que os desloca no chão
Sei que és tu que me levantas
Que remendas o meu corpo cada dia

Em ti encontro a pulsação
Que rebenta – uma artéria como nunca
Tinha jorrado. Cratera onde durmo
Recluso, árvore à chuva
Em dificuldade extrema
De respiração

Ponho a cabeça entre os ramos, lanço os braços para fora


Como um pássaro entre um bando
De disparos

Tu moves as agulhas, tu unes de novo


As minhas asas à curva do céu
(Faria, 2015, p. 250-1)

O poema de 22 versos livres distribuídos em sete estrofes abre com o verso


“Todas as minhas fontes vêm de ti”; há, portanto, uma declaração sobre a criação e
também a construção da subjetividade desse sujeito lírico que está relacionada a um
elo divino. Interessante notarmos como os elementos naturais aparecem em
abundância, junto com os nomes do corpo humano. Em relação à natureza, temos
“fontes”, “nascentes, “luz dos temporais”; ao corpo, temos “pés”, “corpo”, “pulsação”,
“artéria”, “respiração”, “cabeça”. Há, ainda, no poema acima, sempre uma
instabilidade em jogo: o sujeito lírico ama, mas sem saber; procura, mas desconhece;
encontra, mas é recluso. Esse jogo de contradições reitera a tensão, o conflito
subjetivo daquele que se sente dividido, que se angustia entre o que é e o que deve
ser.
Podemos, ainda, observar a utilização da segunda pessoa do singular como
diálogo e identificação com o divino. Esse “tu” acompanha verbos mais inteiros e
resolutivos em suas ações do que as ações do sujeito lírico: “tu levantas”, “tu
remendas”, “tu moves”, “tu unes”, declarando, na própria forma, aquele que oferece
as fontes, a estabilidade, a costura, ou seja, a forma de unir aquilo que se divide e que
está angustiado, “em dificuldade extrema de respiração”. E o interessante é o percurso
que o sujeito traça no movimento da procura (a espinha dorsal do poema é a busca)
e que se resolve em uma simbiose humana e divina no último verso: aquilo que estava
separado, fragmentado, dividido, é unido, é costurado, literalmente, por esse “tu” que
une “as asas à curva do céu”. As asas podem ser lidas com uma abertura dupla de
78

sentidos: as asas do pássaro, mas também as asas de um anjo, como se fosse um


“anjo atingido na raiz” e, agora, unido, resgatado.
Esse espaço aberto, de respiro, é o lugar em que há a possibilidade de união
com o divino, mas também é a linguagem, que, unidos, promovem “a casa do ser”,
uma identificação ontológica entre ser e linguagem, utilizando aqui a famosa frase
heideggeriana “A linguagem é a casa do ser”. Ou seja, se esse espaço aberto para
recepção do silêncio, da revelação do outro lado das imagens, se relaciona com uma
leitura religiosa, torna-se, também, intrinsecamente, uma questão de linguagem. Em
sua poesia, o sujeito lírico é, simultaneamente, um ser de palavras e de silêncio, e é
por meio dessa junção que se torna possível a nomeação do inominável. Na quarta
seção do livro Dos líquidos, denominada “Do sangue”, há o seguinte poema:

Começa no verbo o que escrevo. A palavra


Que deixo na pequena pedra branca
Do fermento. O pão que cresce ignorado

Começo devagar a meda rítmica


No eixo que corta dos dois lados
E fere – os pulsos primeiro e a língua
Porque trabalho com os dedos e as veias
Abertas a lama onde sou terra e água

Começa nele a primeira fonte. Assim


A pedra cresce
Com seu sangue derramado. Lâmina que deixa
A sede em ambos os lábios. Começa
Assim leveda
A meda de água. E o que escrevo é a fonte
Transformada
(Faria, 2015, p. 270)

O verso “Começa no verbo o que escrevo” nos remete ao Evangelho segundo


João, capítulo 1, versículos 1 ao 4, em que podemos ler as seguintes palavras: “No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no
princípio com Deus. Tudo foi feito por ele; e nada do que tem sido feito, foi feito sem
ele. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens”. No princípio, é Deus, e a
palavra “deix[ada] na pequena pedra branca/ do fermento” é a escrita a partir de seu
próprio tempo de revelação, e o poeta a fermenta, ou seja, interioriza-a.
Sobre o versículo citado acima do Evangelho segundo João, José Tolentino
Mendonça, numa carta aberta denominada “No princípio era o desejo de comunicar”
(2014, s/p.), diz que “talvez a verdadeira tradução tenha de ser dinâmica. Não é: ‘No
princípio era o Verbo’ ou ‘No princípio era a Palavra’, mas é ‘No princípio era o desejo
79

de comunicar’”. Também aqui, nós poderíamos ler o verbo de Daniel Faria como
nascente deste desejo de comunicação, uma busca por elo, laço, comunhão.
“Começa nele a primeira fonte”: novamente, a palavra é o que há de mais próximo de
uma comunicação que transmita a experiência sagrada vivida, a experiência provinda
da “fonte”. Uma escrita que propõe fermentação, ou seja, elaboração lenta, conforme
traduz o verso “começo devagar a meda rítmica", e que se localiza “no eixo que corta
dos dois lados”, o centro de dois mundos: o lado sagrado e o profano; o significado e
o significante; o silêncio e a fulguração da palavra; a folha em branco e a letra que se
materializa; a vida e a morte, entre aquele que escreve e aquele que lê.
Este fermento citado no poema é sinônimo do lugar vazio, oco, em consonância
com o quieto, o silêncio, pois aquele que está fermentando a palavra não tem
alternativa senão ficar quieto; em outras palavras, a quietude é a fulguração da palavra
vindoura, na qual está sendo gestado todo o dizer possível. Ainda, no poema,
verificamos a imagem do poeta como aquele que se dispõe a abrir as mais profundas
feridas “e fere”. Ele é atravessado e ferido pelos “pulsos primeiro e a língua”, o
movimento da própria escrita, a materialidade do traço que o pulso mobiliza, o esforço
das mãos para comunicar a palavra, um processo de sacrifício, intenso e doído. Esse
poeta ferido pode ser comparado à figura de Jacó, remetendo-nos à misteriosa luta
de Jacó com Deus (Gn 32, 25-32), na qual o encontro com o Anjo é o encontro com o
divino que carrega a mais luminosa beleza, uma beleza indizível que fere Jacó, abre-
lhe uma cicatriz e determina um antes e um depois, uma transformação.
Daniel Faria trabalha com as sensações do corpo, “[p]orque trabalh[a] com os
dedos e as veias”, metonímias que nos remetem ao entendimento da afirmação como
‘[p]orque trabalh[a] com o corpo e o sangue’, o que nos permite aludir ao sacramento
da eucaristia, um modo de afirmar que a sua escrita parte do verdadeiro corpo e
sangue de Cristo, a palavra como uma espécie de transubstanciação. O pesquisador
José Rui Teixeira, no seu artigo “Ofício de morrer: o corpo e a morte na poesia de
Daniel Faria – um tríptico para o desdobramento da imolação”, afirma que, na poesia
de Daniel Faria, o corpo desdobra-se entre o peso e a leveza. Para o autor:

[o] corpo interage com a realidade ao modo de existir e ao modo de morrer.


É uma ferramenta de intuição, uma epifania da metáfora. O corpo desdobra-
se: é boca e voz, é grito. Gramática multidimensional – a noite, a pedra, as
mãos e a boca […] (Teixeira, 2019, p. 20)
80

Para concluir a análise do poema, na última estrofe, a imagem seminal da fonte


(“começa nele a primeira fonte”) traz consigo a indicação de sua origem: “nele” pode
nos indicar “O Verbo” – Deus e A Linguagem. É como se o poeta nos apresentasse a
sua própria gênese, o seu mundo que se cria a partir da palavra poética. A fonte é a
sua ligação com o divino, o transcendente e a palavra poética, e o poema é o que
resulta dessa experiência, uma “fonte/ [t]ransformada”.
Podemos encontrar essa mesma busca de unidade com o divino e essa relação
direta com a linguagem na poesia de Rumi, poeta persa e místico sufi que nasceu em
1207, na região atualmente correspondente ao Afeganistão, e que passou a maior
parte de sua vida na cidade de Konya, na atual Turquia. Rumi é considerado um dos
poetas mais populares e influentes da literatura persa, e sua obra transcendeu
fronteiras culturais e linguísticas, alcançando reconhecimento mundial. Conforme cita
o tradutor Marco Lucchesi em seu prefácio ao livro A flauta e a lua: poemas de Rûmî
(2016), na poesia de Rumi, o desejo de Deus é imenso, “[e], todavia, Rumi não se
debate em álgidas abstrações” (p. 22). Assim como Daniel, o poeta persa utiliza uma
linguagem rica em metáforas, imagens e simbolismos para expressar os estados
emocionais e espirituais mais profundos. Na criação poética de Rumi, também é
preciso cessar o murmúrio dos sons e das palavras para se escutar a voz de Deus:

Somos a mó, o coração é o trigo;


que sabe a mó de seu girar eterno?

A pedra é corpo, e a água, pensamento;


diz a pedra: “Não sei o que é o tempo.”

E a água responde: “Pergunta ao moleiro,


que abriu este canal por onde passo.”

Diz o moleiro: “É a fome que te move.


Se a roda não girar, o trigo morre.”

Ah! Cessa esse murmúrio de palavras:


escuta o silêncio, a voz de Deus.
(Lucchesi, 2016, p. 40)

A fome que move é o tempo e os seus movimentos cíclicos, eternos e míticos;


o silêncio, para Rumi, se equipara ao silêncio de Daniel Faria como necessário para
se ouvir os sinais e, portanto, a voz de Deus, como lugar internalizado em que a
palavra é gestada. Em muitos versos do Divān, livro escrito no século XIII, com mais
de 3239 versos e dedicado ao seu mestre, Shams de Tabriz, Rumi tematiza o silêncio:
81

no poema “O retorno da alegria” (Rumi, 1996, p. 137), por exemplo, encontramos os


versos “Não quero perturbar-te, amigo,/ com minha fala arrevesada./ Talvez escutes
somente a Deus,/ cuja fala decerto é mais clara que a minha./ Mas conseguirás
mesmo ouvi-lo/ em meio a tanto palavrório?”; no poema “Sama I” (p. 145), lemos
“Silêncio!/ Ouve apenas tua voz interior./ Recorda o primeiro instante:/ estamos além
das palavras”. Parece-nos que, tanto para Daniel quanto para Sophia e Rumi, o poema
é possibilitado a partir de um modo de silêncio necessário para se entrar em conexão
com o divino e ser atravessado pelo amor da unidade que se articula. Na já
mencionada entrevista a Francisco Duarte Mangas (Faria, 2019c, s/p.), podemos
conferir a importância que Daniel Faria concede ao silêncio:

O silêncio acaba por ser outra das palavras importantes. Na construção do


poema temos essa percepção de que andamos a trabalhar com a matéria
dos silêncios. O silêncio parece quase a palavra perfeita no seu fim. A poesia,
como já disse, é aprender a eliminar, partindo da descoberta.

Seguindo a tradição de Rumi, para Daniel, trabalhar com a matéria dos


silêncios é trabalhar nos mecanismos secretos do amor, conforme podemos verificar
no poema abaixo, do livro Homens que são como lugares mal situados (1998):

Repito que vivo enclausurado na agilidade de um animal nascido


Correndo ao lado dele, correndo para ele – era assim
Que eu queria que fosse a linguagem veloz:
Uma casa para a infância com trepadeiras
Para que as palavras ficassem como frutos no alto.

Repito a corrida na memória quando estou parado


Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado
De locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto
Do amor.

Sei que estou em viagem na palavra que se move.

Repito o trajecto para ver o poema de novo – era assim


Que eu queria que fosse a linguagem de uma coisa amada
Correndo ao meu lado, correndo para mim no mecanismo violento
Do amor. Era nele que eu queria a casa com trepadeiras
Onde as palavras ficassem silenciosas e altas como um pátio interior.
(Faria, 2015, p. 132)

“[E]nclausurado na agilidade” e “a corrida […] quando estou parado” revelam


os oxímoros da linguagem daquele que tenta expressar o inefável. Estar na viagem
da palavra que se move é estar em locomoção com a linguagem, na tentativa de
acompanhá-la, de capturar e expressar essa palavra selvagem que corre ao lado, com
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a violência do amor. Como atesta o Dicionário de mística, para o místico, “as palavras
não são domésticas ou domesticáveis. O seu linguajar nunca é a fala ociosa ou
rotineira” (Caruana; et al., 2003, p. 640). Novamente, a presença de paradoxos,
indicando, sempre, a complexidade da realidade e da experiência de vida, como
“[um]a corrida quando [se] est[á] parado” ou como “viv[er] enclausurado […]/
[c]orrendo”; as marcações espaço-temporais, como dentro-fora, subir-descer,
apontam para dimensões variadas. Uma palavra “silêncios[a] e alt[a] como um pátio
interior” é uma palavra que carrega o sentimento do mistério, que está envolta de
sacralidade.
Este modo de locomoção, de estar em viagem, de repetir trajetos, se aproxima
da figura do nômade, ou seja, o poema revela um sujeito lírico que pensa o poeta
como aquele que concebe o trabalho da linguagem como um ato solitário e
introspectivo e que empreende longas jornadas. Aqui podemos relacionar à tradição
mística as figuras do nômade, aquele que percorre o deserto para fazer a pregação
em viagem, e do eremita, que se recolhe nesse mesmo deserto, em plena solidão. A
errância é o momento em que a palavra rasga o silêncio, e este silêncio é a sua única
“pátria”, lugar onde o poeta habita a sua “casa”. Por isso, escrever é um ato sacrificial
em Daniel Faria, ato que o impele a perder a si mesmo (momentaneamente, para
depois se reconstruir), como também a perder o seu lugar ôntico, estável, a sua casa,
o seu descanso.
Como afirma Manuel Frias Martins (2010, p. 163), a poesia de Daniel Faria nos
revela “um peregrino no silêncio de deus, um nómada na solidão dos homens,
intérprete da alma do mundo e apóstolo da natureza”. A imagem do nômade é
característica tanto dos textos judaico-cristãos quanto dos místicos, e José Tolentino
Mendonça nos explica tal simbologia pelo viés cristão:

Tendo em consideração que, desde Abraão, a fé é “capacidade de viver


segundo uma promessa”, então “a espiritualidade é uma itinerância, uma
espécie de nomadismo”, e também um lugar de “desnudamento”, uma
coreografia das “mãos vazias”, disposições paradoxais na linha daquele
“aprender a desaprender” que Fernando Pessoa referia. (Mendonça, 2022,
s/p.)

Esse silêncio, enquanto matriz de todo o processo poético, pode aproximar


Daniel Faria também do poeta António Ramos Rosa (1991, p. 26), que diz que “é o
silêncio que converte a palavra numa palavra poética, tornando-a assim irredutível à
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significação e à determinação do sentido”. Podemos pensar, também, na proximidade


com Herberto Helder, outro poeta importante para Daniel Faria: ambos concebem a
poesia como essa itinerância permanente, como erotismo da linguagem e como gesto
sacrificial, “a poesia como canto, um canto que não é de plenitude, mas de falta, de
ânsia, e por isso contínuo, permanente”, conforme cita Ida Ferreira Alves (2007, p.
114).
Esse modo de criar implica uma superabundância de realidade, ou, em outras
palavras, uma irrupção do sagrado no mundo, a experiência de dar nome ao que
emerge do vazio, do absoluto; para exemplificar isso, vejamos o poema retirado do
livro Homens que são como lugares mal situados (1998):

É por isso que adormeço numa luz em movimento


E escolho um espaço para ver o espaço de frente
A sua cor de silêncio nocturno e desenho
Uma maneira quieta de estar nele tranquilo

Há nesse espaço uma fonte, um animal que desperta


Uma criança que navega com as próprias mãos.
Bebo com as mãos juntas.

Há uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco
A sede. A água multiplica-se porque a tiro do coração
Que escuta.

Há um espaço no corpo que pode ser um lugar.


À sombra posso olhá-lo até o ver
Posso tocar as chagas no corpo

E posso beber dele morrendo


Nele como quem entra de tanto
O desejar.
(Faria, 2015, p. 133)

“[A]dorme[cer] numa luz em movimento” e buscar neste espaço “uma maneira


quieta de estar nele” seria a posição de contemplação, equivalente à dos monges
budistas, que medem suas vidas pela luz que emitem e pela sua propagação. É neste
estado interiorizado, de escuta interna, que o sujeito lírico adentra o instante, o real
por excelência. Há a presença da fonte como um lugar de inauguração, originário, de
onde a água inicia e jorra, um aspecto que interliga a dependência da existência, do
movimento fluido da água com o todo, com a eternidade. Conforme cita a
pesquisadora Ana Catarina Marques (2010, p. 20), “toda a poesia de Daniel Faria
caminha no sentido de encontrar ou reconstituir a fonte inaugural da linguagem”. Este
modo de preparo e atenção é rodeado de silêncio, um silêncio com a “cor […]
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nocturn[a]”: há, novamente, a atmosfera da noite aguçando as percepções sensoriais


do sujeito poético. Os sentidos tornam-se o fio condutor, “um espaço no corpo que
pode ser um lugar”, um espaço sem ruído, possibilitando a escuta da palavra divina,
o contato com o sagrado representado, no poema, pela imagem das “chagas”,
referindo-se à imagem da crucificação de Cristo.
O poema termina em uma fusão erótica da união divina e da linguagem, um
“entrar nele” como se estivesse “morrendo nele”. Há o despojamento, e a diluição
subjetiva está no gerúndio “morrendo”: quanto mais o sujeito lírico desaparece, em
sacrifício, renunciando a si próprio (como a figura do mártir que citamos
anteriormente), mais ele se une, se fusiona a Deus. O silêncio, a ausência de som, é
condicionante para o poeta entrar em um modo de escuta e atenção interiorizado, e é
nesse lugar, entre “o silêncio e a fulguração ruidosa da palavra”, que Francisco
Saraiva Fino (2020, p. 37) dirá situar o projeto poético de Daniel Faria. Esse mesmo
pensamento foi destacado pelo próprio Daniel Faria, no texto “Auto-retrato do artista
enquanto jovem”, em que ele afirma:

[…] Tento, também, explicar que procuro o silêncio para quem sobe de noite,
e a noite, digo, é a pergunta: será que, falando, impedirei que se oiça a
palavra que é Princípio e Fim?
Podem responder-me que não tenho poder para tanto. Mas tenho, entretanto,
poder para calar-me, e é estranho que haja homens que não se assustem
com um poder assim. […] (Faria apud Fino, 2008, p. 429-30)

Conforme cita Patrícia Lino (2018, s/p.), em seu estudo “Daniel Faria e o
complexo de Sísifo: o processo cíclico da poesia a partir da palavra e do silêncio”,

[o] propósito poético [de Daniel Faria] é não dizer. […] O indizível nega,
porém, a linguagem; o que significa que o propósito poético se nega e
reafirma toda a vez que o poeta tenta apreendê-lo pela palavra. O silêncio e
a palavra são dois veículos comunicativos válidos e coexistentes.

Outro aspecto importante a ser reiterado é o ato de decifrar, que vamos


encontrar em inúmeros poemas de Daniel Faria, para quem a decifração é análoga
aos mecanismos para se alcançar uma transformação interior:

Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou um cego
seguindo as mãos – sim, toco as palavras nas suas superfícies
e utensílios.

A primeira palavra que os olhos viram, agora que a recordo,


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parecia uma imagem – sim, um som desenhado como um fóssil


(falo de fóssil, mesmo
que ele demore muito a aparecer no que digo),
um som do tamanho de um azulejo: agora que me lembro que era uma
[palavra
que brilhava nos meus olhos ao vê-la
(ver uma palavra era uma planta muito diferente,
um oxigénio muito difícil de se respirar).

Sim, agora vejo que falo, embora possas pensar que sigo pelo tacto a escrita.
Sim, eu leio e decifro. E agora sei que oiço as coisas devagar.
(Faria, 2015, p. 175)

O poema de treze versos distribuídos em três estrofes apresenta um sujeito


lírico que traça um testemunho sobre o seu modo de escrita poética, no qual revela a
importância de sentidos como a visão (“Falo daquilo que vejo”, “agora vejo que falo”),
o tato (“toco as palavras na sua superfície”) e a escuta (“oiço as coisas devagar”), ou
seja, aquilo que já mencionamos sobre a participação aguçada dos sentidos corporais
como atenção absoluta. O sujeito lírico afirma, logo no primeiro verso, que aquilo que
pronuncia, o que fala, está diretamente ligado ao que vê. Assim como em Sophia, o
som é crucial para este modo de escrita, porque apenas ver a palavra revela um modo
sufocado, com um “oxigénio muito difícil de se respirar”. É preciso, pois, tatear e dizer
a palavra com “um som do tamanho de um azulejo”, ou seja, um som ressonante. É
tocando a materialidade das palavras, suas “superfícies e utensílios”, utilizando do seu
corpo e dos sentidos, que acontece a criação poética. José Rui Teixeira irá destacar
a importância das mãos e dos olhos na corporeidade desta poética:

[…] o corpo se desdobra nas mãos, as mãos desdobram-se nos gestos e tudo
resulta num sistema simbólico surpreendente e impressivo: o silêncio é o
lugar onde baterão as mãos, a casa vem das mãos e o poeta estende a mão
para estar vivo.
É a mão que toca e tateia, particularmente na noturna experiência de uma
cegueira consentida: “De noite viajo pelo tato”. Mesmo com os olhos
fechados, Daniel Faria é um poeta vidente: vê não como quem vê, mas como
quem tem visões. Por todo o lado os olhos: “Há nos meus olhos dois poços”,
“Na sombra gero os olhos cheios de água/ Apago a casa cheia de janelas”,
os olhos do mocho e os olhos da criança, a consciência de que “Diante dos
olhos só se repete o passar”. (Teixeira, 2019, p. 22)

É a mão que toca e tateia, ou seja, decifra, que “segue pelo tacto a escrita”.
Além disso, se, no poema anterior, o poeta era equiparado ao nômade, nesse, ele é
o arqueólogo, aquele que escova, pacientemente, o osso da palavra para ver melhor,
de tal forma que se torna um vidente, aquele que vê além, que consegue cavar
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camadas subterrâneas até encontrar e fazer emergir o inefável. Portanto, temos, aqui,
um outro poema que nos revela uma questão importante sobre o modo de ver do
poeta: trata-se de um olhar de decifração que o corpo inteiro executa, um olhar que
incorpora, digere e vê além; é com esse olhar aprofundado que se chega à
sensibilidade de escutar com atenção e demora: “E agora sei que oiço as coisas
devagar”. É nesse estado de escuta, isto é, em um modo de despojamento, que o
sujeito lírico adentra o instante para nomeá-lo através da escrita. Também é
importante notarmos o endereçamento a um “tu” no poema, ou seja, fica evidente que
sempre há um “outro” com o qual o poeta escreve em diálogo, como se o sujeito lírico
estivesse a falar não só com Deus, mas também com aquele que o lê, o leitor como
testemunha do processo de criação poética enquanto ela se dá na escrita, de forma
simultânea ao ato de escrever, procedimento que será encontrado em inúmeros
poemas de Daniel.
Para o pesquisador José Rui Teixeira (2016, s/p.), Daniel Faria “guarda uma
poesia invulgarmente sinestésica […] que v[ai] estabelecendo um universo de
aparições poéticas profundamente idiossincrático”. Neste contexto, Carlos Nogueira
entende que estamos perante uma poética em que:

Este eu inscreve o seu corpo na escrita, no divino e na natureza […]


Esta poesia é um universo de coincidências intensas mas dolorosas entre o
corpo que se diz no verso e os elementos da natureza, que tanto lhe atraem
o olhar, os sentidos e o pensamento como o colocam em diálogo com o
transcendente: seja enquanto mundos autónomos através dos quais o eu
enunciador diz a sua ontologia, seja enquanto realidade de inscrição
metafórica e essencial de um sujeito que se dirige a um tu. (Nogueira, 2014,
p. 186; 192)

O verbo “decifrar” presente no poema recém-citado revela, também, a


concepção de Daniel Faria sobre a palavra poética: ela é o lugar que o poeta irá
habitar para ressoar o mistério e, a partir dessa detecção, decifrá-lo, para, depois,
propagar o que foi reverberado (comunicar a experiência). A palavra, portanto, é tida
como uma materialidade côncava. É interessante notarmos que símbolos côncavos
são amplamente citados na obra poética de Daniel Faria – a pedra representa o modo
voltado para si, o interior silencioso que o poeta visa habitar para encontrar uma
conexão espiritual com o mundo. É por isso que as imagens de cântaros, conchas e
búzios são recorrentes em sua poesia. De forma simples, os símbolos referem-se
àquilo que é emitido dentro de um interior, o mundo interno, e ressoam, vibram a
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acústica no seu formato. Como o próprio poeta revela na seção “Últimas explicações”,
do livro Explicação das árvores e de outros animais, publicado no verão de 1998,
encontramos versos como: “O homem é uma caverna/ O cântaro o seu segredo”
(Faria, 2015, p. 94); na seção “Para encontrar o golpe do sono”, do livro Homens que
são como lugares mal situados, lemos versos como: “Com a boca cheia de búzios em
forma de palavras./ Soube que era possível respirar dentro das palavras” (p. 143); no
livro Dos líquidos: “Não adormeces com o ruído das conchas/ Desenrolando-se. As
pálpebras. O poema/ Indo e regressando nas pupilas” (p. 283); ou, ainda, em outro
poema do mesmo livro: “A concha acústica do búzio que ritma a embarcação/
Sanguínea” (p. 306).
A decifração é o modo pelo qual o poeta capta uma presença e coloca o ouvido
na face dos signos: “Anoitece como num dia de acidentes./ De noite viajo pelo tacto./
Ponho também o ouvido sobre a face dos signos/ E decifro a noite escura como um
astro” (Faria, 2015, p. 81). Conforme bem explicitado por Francisco Saraiva Fino:

Se esta poesia encontra e se serve das palavras, entre outras motivações,


como recetáculos ou recipientes preferencialmente côncavos, é porque neles
providencialmente encontra a imagem perfeita da dimensionalidade do objeto
no mundo, resiliente e suficientemente vazio para lhe provocar a ordenação
de um novo mistério, mas ainda por se adequar a uma visão da condição do
ser, entre a exterioridade resistente e o interior pleno de recantos silenciosos
cuja natureza aguarda o momento propício de uma deflagração. (Fino, 2019b,
s/p.)

Sophia, também, utiliza imagens côncavas como conchas, búzios, cavernas e


grutas, como ela descreve no poema em prosa “As grutas”, num processo
interiorizado, contemplativo, muito similar ao que Daniel Faria aborda:

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim.


Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser
apenas água.
[…]
Um fio invisível de deslumbrado espanto me guia de gruta em gruta. Eis o
mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetrar na habitação secreta da
beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de
frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento.
[…] Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que
jamais se viu.
[…]
E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. (Andresen, 2015, p. 445-
6)
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Neste texto, o sujeito lírico metaforiza o processo de contemplação a partir da


imagem da gruta, lugar côncavo e obscuro, permeado de silêncio e solidão, em que
se pode “penetrar na habitação secreta” das “imagens mais interiores […] do que o
[…] próprio pensamento”. Ambos os poetas articulam o tema da verdade e do
conhecimento, colocam-se na busca contínua de encontrar a verdade no mundo mas
também em si mesmos, num caminho de desvelar o próprio ser. São dois poetas que
vão atravessar grandes mares e desertos nessa busca, paisagens abertas, amplas,
desérticas e infinitas.
Além dos símbolos que ressoam e habitam o mistério, tanto Daniel quanto
Sophia almejam habitar um tempo e um lugar “sem divisões”, perfeito, pleno,
iluminado, conforme Daniel revela no poema abaixo:

Este é o dia novo. Sei-o pelo desejo


De o transformar. Este é o dia transformado
Pelo modo como apoio este dia no chão.
Coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na terra
Abro-o com os olhos que retiro de todas as coisas quando os fixo
Na atenção.

E fico atento, fico deitado porque não sei crescer


Num terreno que se levante.
Cresço na clareira de um homem que é uma palavra
Na sua túnica inteira
Porque este é o sítio do dia sem horário

Sem divisões

E ponho-me de frente no seu lado,


Nos seus braços abertos para me unir
E entro pelo lado aberto e ardo – como Elias
Em chamas subindo para o céu.
(Faria, 2015, p. 192)

O poema de dezesseis versos distribuídos em quatro estrofes apresenta um


sujeito lírico em primeira pessoa narrando o dia “transformado”. No primeiro verso, o
sujeito lírico é o agente do saber de uma transformação, porque ele parte da principal
evidência desse acontecimento: o desejo. Aqui, há um importante sentimento descrito
que, muitas vezes, passa despercebido pela crítica. A intensidade do desejo de
transformar é correlacionada à transformação que será operada. Quando há desejo
intenso, há a possibilidade de transformação. Podemos relacionar esse desejo ao
ímpeto da escrita e, por que não, pensar na “Musas” que Sophia evocava para o canto,
a força que impele um escritor a escrever.
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O desejo é a presença da “Musa”, a “inspiração” da criação. E parte desse


desejo, o indício do que revela a “inauguração” do dia. Há, neste poema de Sophia, a
clara menção ao despojamento (“coloco-o na posição humilde dos meus joelhos na
terra”) com o fim de se adentrar um modo de atenção, essa humildade daquele que
parte do pressuposto de que não conhece, e é nesse modo que o sujeito vai perceber
um lugar do dia “sem horário”, sem “divisões”, ou seja, um lugar em que se instaura
uma temporalidade suspensa.
Como não pensar, aqui, no poema “Apolo Musageta”, de Sophia, que vimos no
tópico anterior, e em seu primeiro verso – “Eras o primeiro dia inteiro e puro” – ou
quando, no mesmo poema, a autora escreve: “Eras o gesto luminoso de dois braços/
Abertos sem limite./ Eras a pureza e a força do mar/ Eras o conhecimento pelo amor”
(Andresen, 2015, p. 70). O conhecimento pelo amor é semelhante ao mecanismo do
amor que Daniel cita, e a figuração da união luminosa de braços abertos é utilizada
pelos dois poetas, em idêntica imagem. A noção de pureza, de purificação, perpassa,
em ambos, a experiência.
Retornando ao poema de Daniel Faria que vimos acima, há, nele, uma imagem
que faz referência à passagem bíblica de Elias, traduzindo a intensidade da
experiência de “abertura”, de contato com o transcendente. A partir desse contato, a
temporalidade não é sentida como duração, mas sim como intensidade, como algo
que se suspende no tempo – lembrando aqui a suspensão temporal e mágica que
Gumbrecht descreve e que abordamos nos primeiros tópicos desta pesquisa. Esse
poema pode ser aproximado ao poema “É esta a hora…”, de Sophia de Mello Breyner,
publicado em 1947, no livro Dia do mar:

É ESTA A HORA…

É esta a hora perfeita em que se cala


O confuso murmurar das gentes
E dentro de nós finalmente fala
A voz grave dos sonhos indolentes.

É esta a hora em que as rosas são as rosas


Que floriram nos jardins persas
Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.
É esta a hora das vozes misteriosas
Que os meus desejos preferiram e chamaram.
É esta a hora das longas conversas
Das folhas com as folhas unicamente.
É esta a hora em que o tempo é abolido
E nem sequer conheço a minha face.
(Andresen, 2015, p. 132)
90

A autora faz citação direta e associa “a hora perfeita” ao poema “A hora da


união”, de Rumi, em que constam os seguintes versos: “Limpa bem teus ouvidos/ e
recebe nítida essa voz/ – o som do céu chega como um sussurro” (Rumi, 1996, p.
158). Percebemos, então, que Sophia e Daniel seguiram de forma exemplar a
solicitação de atenção, silêncio e escuta que Rumi legou. Esse tempo estático é, para
ambos, próprio da poesia e da palavra, um espaço de criação que se configura entre
o sujeito poético e o exterior, um lugar branco, liso, perfeito, sagrado, suspenso. É
dentro desse tempo sacralizado que se escuta o desejo deles por unidade e inteireza,
mas não sem incertezas – e é por isso que as sombras permeiam as luzes
esplendorosas que os poetas articulam, sempre transitando entre o utópico e o
distópico, entre poéticas habitadas por luzes, sombras, verticalidades (asceses) e
magias.
Nos projetos poéticos de Sophia e Daniel, há a ideia de uma perfeição dos
primórdios, da possibilidade de viver a experiência de um tempo mítico a partir da
nomeação que só é possibilitada quando se adentra a experiência do sagrado, quando
há a vivência de um encontro com uma realidade transumana. Ambos compartilham
essa concepção de mundo que compreende um existir de caminhos e de valores
capazes de guiar, orientar os seres humanos para que eles fiquem mais preenchidos
de significação, vivendo uma existência desperta, valorizada.
Como vimos até aqui, Daniel Faria almeja comunicar a experiência com o
inefável de forma explosiva, repleta de símbolos que encadeiam outros símbolos,
utilizando uma obscuridade vocabular que joga com o enigma, ou seja, ele não busca
a precisão do nome. Ele visa trabalhar com a opacidade do discurso linguístico, com
o desencontro entre o referente e o seu significado, com a crença de que o referente
não se equivale à linguagem do real: o simbolismo denso, enigmático, taciturno.
Embora ambos os poetas anseiem explicar as questões humanas em suas poesias,
Daniel estaria mais próximo do enigmático, conforme cita Luís Adriano Carlos (2004):

Tal como o profeta, o poeta explica os enigmas através de novos enigmas


que são palavras aéreas sem o peso taciturno das palavras com sono.
Porém, ao contrário do profeta, renuncia à transformação do discurso numa
semiótica ou numa hermenêutica, explicando a própria explicação como puro
movimento da visão que ensina a ver por cima de todas as coisas. Por isso
ele mora entre a terra e o céu, no meio dos pássaros: «Ando um pouco acima
do chão/ Nesse lugar onde costumam ser atingidos/ Os pássaros/ Um pouco
91

acima dos pássaros/ No lugar onde costumam inclinar-se/ Para o voo».


(Carlos, 2004, p.1)

Este lado mais taciturno do lirismo sublime pode ser atribuído a uma outra
importante poética da literatura portuguesa do século XX: Herberto Helder. É como se
o modo de explicar o mundo de Daniel Faria estivesse mais perto do de Herberto
Helder, numa explosão cósmica multissensorial e quase onírica (uma poesia
assombrosa, desmedida, sensorial e hipersimbólica), preenchida de uma lógica
ambivalente, paradoxal, atingindo um desconcertante trânsito entre o absurdo e o
sublime. Daniel, assim como Herberto Helder, seria um poeta que revela o processo
de escrita como se estivesse no instante exato do pensamento, no puro movimento
do devir, no qual o ser do pensamento é o mesmo ser do poema. Vejamos, pois, o
que Herberto declara sobre caráter enigmático de sua linguagem:

O mundo repõe-se na qualidade de enigma jamais decifrado.


O mundo é a linguagem como invenção.
A escrita é a aventura de conduzir a realidade até ao enigma, e propor-lhe
decifrações problemáticas (enigmáticas).
(Helder, 1995, p. 145)

Essa declaração poderia servir também a Daniel. Se, de um lado, Sophia luta,
em sua poesia, para que os objetos da linguagem se equiparem com máxima
proximidade aos objetos do mundo, de outro, Herberto nos mostra que os signos não
nos remetem inteiramente às coisas, que podem significar outra coisa – aqui há um
efeito de distorção do “real”. Não seria possível, obedecendo às propostas já
delineadas nessa dissertação, adentrar com profundidade a análise comparativa da
poesia de Daniel Faria com a de Herberto Helder; vale, porém, reiterar que tanto ele
quanto Sophia são poetas que lançam fortes luzes para enxergarmos, em detalhes,
os mecanismos do projeto poético de Daniel Faria quando colocados em comparação.
Daniel se situaria em um lugar entre esses dois poetas, porque ele não possui
a claridade da linguagem que Sophia almeja, mas tampouco chega a adentrar o
extremo, condensado matiz de Herberto. Daniel habita um lugar próprio, com uma
ênfase mais latente nas referências e nas experiências religiosas e místicas, mas com
uma extrema consciência de uma materialidade da linguagem. O pesquisador Pedro
Mexia, no artigo “O Eixo e a lava”, também intuiu essas mesmas aproximações que
identificamos na obra de Daniel Faria com esses dois poetas:
92

Pareceu-me que nestes poemas de Daniel convergiam Sophia e Herberto, o


desassossego sereno de uma, até com referências à Antiguidade clássica, e
a expansividade cosmogónica e a linguagem inusitada de outro, os meteoros,
as mulheres que “aspiram a casa para dentro dos pulmões”. (Mexia, 2021,
s/p.)

Daniel Faria, no seu processo de escuta e atenção interiorizada, irá buscar essa
aliança adentrando um estado voltado para dentro com intensa percepção de seu
corpo vivo, aberto aos sentidos, percebendo os microcosmos e o macrocosmos,
expressando uma linguagem erótica do verbo que se fez carne mais latente; ao passo
que Sophia, embora também se ligue a um estado de interioridade e de
espiritualidade, expressa, em seu processo, o mistério através dessa ressonância com
o deslumbramento dos sinais, assombrada com aquilo que, em si, ressoa e reverbera
na imanência, um processo de escuta e atenção constantemente alertado para o ritmo
secreto do real e que leva a uma intensificação da “metáfora de uma clareza
fundacional”, como apontou Tavares (2015, p. 9), uma busca para encontrar a palavra
poética precisa, livre dos excessos, conferindo significância e literalidade poéticas.
Entre tantas aproximações, Sophia e Daniel parecem, também, compartilhar o
fato de se sentirem mal adaptados ao seu tempo, como se abordassem uma visão de
mundo a contrapelo do progresso e do desenvolvimento técnico, desse lado profano
que a modernidade lhes destinou. Por isso, ambos partem em busca daquilo que
retorna aos fundamentos mais originais do ser humano na sua simplicidade; através
da poesia e da linguagem, eles buscam aproximar o ser humano moderno da escuta,
para recuperar uma ligação sagrada, herança velada pela teologia. Tal sensação
constante de estranheza e deslocamento, no entanto, também será amplamente
abordada em seus poemas.
Se, até o momento, descrevemos o apelo dos poetas visando o sentido do ser
e do sagrado, no próximo tópico, analisaremos poemas preenchidos por tormentas,
versos que refletem a intensa luta interior desses poetas que possuem a consciência
de uma promessa não cumprida e a espera exasperadamente prolongada.
Discutiremos o fato de a poesia de Sophia de Mello Breyner e a de Daniel Faria
também estarem rodeadas de angústia e espera, mostrando um tipo de desamparo
que podemos identificar como causador de uma melancolia, de uma espécie de
saudade do que já passou ou do que não aconteceu.

1.5 EXPLICAÇÕES PARA HABITAR TEMPOS DIVIDIDOS


93

Amo o caminho que estendes por dentro das


[minhas divisões.
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo
Se se recorda dos movimentos migratórios
E das estações.
Mas não me importo de adoecer no teu colo
De dormir ao relento entre as tuas mãos.
Daniel Faria

Se, até o momento desta pesquisa, apresentamos aproximações e


distanciamentos referentes à criação e às concepções poéticas e demos destaque a
um modo mais harmonioso com que os sujeitos líricos presentes nos poemas se
relacionavam com o mundo e com o tempo, parte em que destacamos a forma com
que eles se sentem situados quando próximos de uma presença divina, preenchidos
de sentido ontológico, iremos apresentar, neste tópico final, o outro lado: os momentos
de angústia, melancolia, desorientação, saudade, falta de sentido e estranhamento
quando os sujeitos líricos de certos poemas de Sophia e de Daniel percebem uma
ausência e vivem um tempo cíclico (sagrado e mítico), dividido, separado.
Selecionamos alguns poemas que expressam uma espécie de luta interior com
a consciência de uma promessa ansiada de unidade, mas que não foi cumprida,
gerando uma espera prolongada e angustiada. Embora Daniel Faria tivesse nascido
no começo dos anos 1970 e começado a publicar os seus livros em meados dos anos
1990, percebemos paradoxos e tensões, angústias similares às de Sophia quando há
uma ausência latente. Visamos, portanto, analisar poemas que articulam uma
desestabilização no que tange aos mundos exterior e interior dos sujeitos líricos e que
tematizam o desamparo, a busca agônica por Deus e a saudade melancólica de um
outro tempo e espaço.
A saudade é um tema intrínseco à cultura portuguesa, compreendida como
uma espécie de mitologia fundante do país, conforme cita a pesquisadora Isabel
Allegro de Magalhães no seu estudo “Indícios do divino na poesia portuguesa do
século XX” (2012). Para ela, o sentimento melancólico de saudade, ou de um
desassossego, é inerente a cultura portuguesa, devido à forte herança de um sentido
messiânico de raiz judaica, em que os portugueses se colocavam na busca incessante
de um além inatingível:

É verdade que, na cultura portuguesa, em parte devido à forte herança de um


sentido messiânico, de raiz judaica, o sentido de um “descontentamento” ou
94

de um “desassossego”, ou então de nostalgia ou saudade, é uma constante


em vários autores, traduzindo-se na consciência de um irremediável ficar
aquém ou no adro, e na constante busca de um além inatingível, que são
elementos matriciais da nossa cultura. O “mito sebástico” parece dar
sequência, imaterial mas intensa e constante, a essa antiga expectância
perante “outra coisa ainda”. (Magalhães, 2012, s/p.)

De modo diverso daquele da poesia de Sophia (em que muitos poemas fazem
referências históricas e citações diretas sobre Portugal e os portugueses), os poemas
de Daniel Faria não apontam para uma nacionalidade explícita (não há referências
diretas nem presença de personagens históricos); entretanto, podemos afirmar que
ele descreve paisagens e sentimentos que simbolizam aspectos muito característicos
da tradição da cultura portuguesa. Segundo a pesquisadora Ana Catarina Milhazes
(2017):

A paisagem, provinciana e pastoril, fixa as imagens do despovoamento (ou


do exílio) e da rotina. Toda a paisagem, em Daniel Faria, é o lugar da espera.
Os traços muito minorados da paisagem – a terra e o mar sem características,
os bichos só da pecuária, as árvores sem família, os pássaros sem espécie,
a pedra sem referência ao tipo de rocha –, transformam a paisagem num
lugar simbólico e profético, no qual os elementos não falam de si mas de
qualquer coisa além de si. […] Os tópicos, que são aqueles que a literatura
portuguesa tem escrito e reescrito – o desamparo, o exílio, a esperança e a
espera, a casa (a saudade e o regresso a ela), o além-mar – configuram
igualmente a imagética profética, messiânica e apocalíptica. (Milhazes, 2017,
p. 38-9)

Ou seja, as paisagens que encontramos em Daniel Faria revelam um lugar


simbólico que pode ser analisado como figurações de um lugar subjetivo. Vejamos,
então, um dos poemas do livro Explicação das árvores e de outros animais, publicado
em 1998, em que essa saudade e são melancolia são explícitas:

EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA

Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou


Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer – fosse abertura –
E a saudade é tudo ser igual.
(Faria, 2015, p. 110)

A utilização da segunda pessoa do singular, presente no verbo “deixaste”,


revela um tratamento agônico perante a ausência de Deus; há uma nítida percepção
95

de estagnação temporal reiterada por aquilo que não aconteceu, ressaltando a


repetição da negatividade: “o tempo nunca mais se transformou”, “não rodou”, “não
irrompeu”, “nunca mais se abeirou”. Essas sentenças negativas retratam uma
desesperança de um tempo em que não há acontecimento e, portanto, não há
experiência nem sentido existencial. Essa temporalidade estagnada é oriunda de um
desamparo, de uma perda: “desde que nos deixaste”, a ausência divina origina uma
saudade incurável de Deus.
Podemos nos valer do pensamento de Miguel de Unamuno (2013, p. 13) para
ler essa angústia do sujeito lírico quando ele discorre sobre “um sentimento trágico
pela vida”:

Esse sentimento – observe-se bem, porque nisso reside todo o seu caráter
trágico e o sentimento trágico da vida – é um sentimento de fome de Deus,
de carência de Deus. Crer em Deus é, em primeira instância, querer que haja
Deus, não poder viver sem Ele. Enquanto peregrinava pelos campos da razão
em busca de Deus, não O pude encontrar, porque a ideia de Deus não me
enganava, nem pude tomar por Deus uma ideia. […] Mas ao ir afundando no
ceticismo racional, de um lado, e no desespero sentimental, de outro,
abraçou-me a fome de Deus e a sufocação do espírito me fez sentir, com sua
falta, sua realidade. Quis que houvesse Deus, que existisse Deus. E Deus
não existe, mas antes sobre-existe, e está sustentando nossa existência
existindo-nos. (Unamuno, 2013, p. 24)

A sentença do último verso, “E a saudade é tudo ser igual”, refere-se à saudade


como o sinal de um esforço de superação em relação ao trágico da condição humana.
Interessante notarmos que a percepção da falta, da ausência divina está
frequentemente associada à percepção da passagem do tempo e a uma memória
primeira (que é justamente essa saudade).
Eduardo Lourenço, um dos maiores estudiosos do tema da saudade
portuguesa, comenta que a saudade, a nostalgia e a melancolia são modalidades,
modulações da “relação de seres de memória e sensibilidade com o tempo” (1999, p.
12). O autor afirma, ainda, que:

No seio do mundo cristão, o fenômeno da melancolia só podia ser entendido


como misterioso e incompreensível “abandono” de Deus – a perda do gosto
da vida e a perda do gosto de Deus (acedia) confundem-se – ou como castigo
de uma falta, em suma, como um pecado. (Lourenço, 1999, p. 22).

É por isso que podemos ler esses poemas agônicos de Daniel Faria a partir da
perspectiva de um sujeito melancólico, em quem há uma falta latente de integração e
96

apropriação subjetiva, o que causa a melancolia e a letargia representadas por um


tempo paralisado, de espera.
Como Daniel Faria está completamente imerso no universo cristão e simboliza
essa crise a partir de uma percepção de desconexão com a presença divina,
poderíamos também tecer relações com a obra camoniana, que, no limiar do Barroco
e com uma visão neoplatônica cristianizada, instaura uma “mitologia da saudade” na
qual Camões experimenta o paradoxo de um tempo prometido pela aposta na
eternidade e pela latência de quem deseja uma “felicidade fora do mundo”. A saudade
das “origens” portuguesas equivale a uma saudade religiosa. É uma espécie de
nostalgia da perfeição que pretende recuperar uma situação paradisíaca, conforme
afirma Teixeira de Pascoaes no livro Regresso ao paraíso, escrito em 1912: “é, no
fundo, uma forma de obsessão ontológica: é sede do sagrado e nostalgia do ser. É,
em última instância, saudade de Deus” (Pascoaes, 1986, p. 164).
A pesquisadora Ida Alves (2007) já havia defendido, em seu estudo, uma
relação de Daniel Faria (poeta que teve suas obras publicadas nos anos 1990) com a
tradição maior da lírica portuguesa: Camões. Para a autora, o poeta escreve:

a experiência do amor como experiência limite do ser/da linguagem, a energia


propulsora da máquina do mundo camoniana, em que Eros e Tanatos se
misturam na medida humana refigurada no canto de Orfeu, canto do sujeito
dilacerado pela perda amorosa, cujo corpo se torna a memória da morte,
quando o ser está ao “desabrigo completo”. (Alves, 2007, p. 113)

Neste sentido, a perda amorosa é literalmente o sentimento da perda de Deus


e, em consequência, o da perda da possibilidade da palavra, o que irá gerar, no sujeito
lírico, a experiência de desamparo. José Ruy Teixeira (2016), no seu artigo “Um modo
de te amar antes do tempo: sobre a saudade de Deus na poesia de Daniel Faria”,
afirma que é especialmente no livro Explicação das árvores e de outros animais (1998)
que esta saudade de Deus está mais acentuada nos poemas de Daniel Faria:

As estruturas sintáticas e semânticas são cuidadosamente definidas e a


profusão da metáfora serve a abertura do ângulo do arrebatamento, do
êxtase tantas vezes contido por um rumor de melopeia que, particularmente
em Explicação das Árvores e de Outros Animais, resulta de uma premente
saudade de Deus, condição disfórica que permite situar Daniel Faria numa
família de poetas dissidentes, heterodoxos, tão atormentados com a ausência
de Deus que a espera se tornou insuportável e a oblação se realizou na
vertigem suicidária que fez com que Unamuno escrevesse que somos um
povo de suicidas, um povo suicida. (Teixeira, 2016, s/p.)
97

Vejamos um poema retirado do livro citado em que podemos identificar esse


sentimento agônico perante a uma ausência não anunciada:

Tenho aflição por tudo o que morre


Como tenho pavor por cada noite que cai.
Como fui esquecer o caminho para fora?

Infeliz que esqueci as sendas da caça.


Comerei erva? Sol? Comerei estepes e estepes
A arder?

Vou-me pôr à mesa e esperar.

Tenho aflição por toda a ausência não anunciada.


Acendi a luz por toda a casa e electrifiquei a voz
Agora posso ampliar o clarão dos gritos.

Posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da mão exacta


Que fez o povo atravessar enxuto o interior da água.

Vou-me sentar à mesa. Vou deixar arrefecer a comida.


Fazer de conta que estou a esperar.
(Faria, 2015, p. 41)

A angústia já é revelada, no início do poema, pelos substantivos que refletem


tal sentimento: “aflição”, “pavor”, “esquecimento”. O esquecimento, no poema,
transparece um desnorteamento geográfico, e tal desorientação é traduzida em forma
de questões colocadas em sequência: “Como fui esquecer o caminho para fora?”,
“Comerei erva? Sol?”. O desamparo que o sujeito lírico sente o faz esquecer o
caminho, demonstra uma espécie de desorientação momentânea; há, portanto, a
perda de um saber sobre aquilo que o alimenta, preenche. E, sem saber do que se
alimentará ou a direção que irá tomar, o sujeito poético declara: “vou-me pôr à mesa
e esperar”. A espera é a decisão para lidar com a angústia. Mircea Eliade mostra de
que forma os seres religiosos, quando habitam experiências profanas, produzem uma
desorientação de estado ontológico:

a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha um “ponto fixo”,


possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a “fundação
do mundo”, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a
homogeneidade e portanto a relatividade do espaço. Já não é possível
nenhuma verdadeira orientação, porque o “ponto fixo” já não goza de um
estatuto ontológico único; aparece e desaparece segundo as necessidades
diárias. (Eliade, 2018, p. 27, grifos do original)
98

Continuando a análise do poema, o sujeito lírico declara: “Tenho aflição por


toda a ausência não anunciada”, com direta alusão ao episódio referente ao segundo
regresso de Cristo. Como forma de diminuir a escuridão em que se encontra, o sujeito
acende uma luz artificial e, com ela, “eletrifica” a própria voz para ampliar o chamado,
a súplica, “o clarão dos gritos”. No verso “posso abrir trilhos no fogo: sei o ritmo da
mão exacta”, o fogo possui um grande significado espiritual, revela o poder da fé, a
transformação, o desejo, a purificação. O enjambement do verso nos remete a dois
possíveis sentidos: “Sei o ritmo da mão exacta / Que fez o povo atravessar enxuto o
interior da água”; como uma mão que remete diretamente ao episódio bíblico da
travessia do rio Jordão, que diz que, após quarenta anos vagando pelo deserto, Josué
ordenou que o povo caminhasse até as margens do rio, pois Deus dividiria as águas
e todos poderiam atravessá-lo a pé (esta passagem simboliza a peregrinação pelo
mundo e a possibilidade do encontro com a Terra Prometida).
Saber “o ritmo da mão exacta” é um modo de perseverar na peregrinação, de
orientar-se novamente, mas também podemos lê-lo sob a ótica do ofício da escrita
poética, em que há a possibilidade de reorientar-se e retomar a escrita. Isso nos atenta
para a leitura de que a ausência divina também pode ser lida de forma análoga a uma
ausência de estado criativo poético, como se o poeta estivesse em um momento de
paralisia criativa, e “colocar-se à mesa e esperar” é aguardar que o estado em que a
fulguração da palavra retorne, em que o ímpeto do processo de transformação do
nome se inicie. Inclusive, se pensarmos na palavra “ritmo”, podemos entendê-la como
um compasso, uma frequência constante, uma alusão aos movimentos que colocam
o corpo e o pensamento em um fluxo de jorro de escrita e criatividade. No último verso,
“Fazer de conta que estou a esperar", a expressão “fazer de conta” demonstra que,
apesar das melhores intenções e tentativas do sujeito lírico em pacificar essa espera,
há um medo latente e uma ansiedade de este estado de esvaziamento não passar.
Se pensarmos na relação do sujeito lírico com o pertencimento a um lugar,
poderíamos afirmar que, em muitos poemas de Daniel, o ser humano é estrangeiro
de sua própria pátria, de sua terra, é um homem sem uma casa fixada, que lida com
a angústia e a agonia de não pertencer. Vejamos um trecho do poema em que ele cita
a palavra pátria, “Do manuscrito C de Santa Teresa do Menino Jesus 2”, encontrado
no livro Dos líquidos (2000):

Imagino que nasci num país coberto por espesso nevoeiro


99

[…]
É verdade que desde a minha infância oiço falar
E sei que para lá dele, na minha pátria, há outro
E que é por esse que aspiro cada dia.
[…]

[…] – há por certo


Uma região mais íntima na circulação das minhas veias
Uma outra terra que pensa a minha morada
[…]
(Faria, 2015, p. 228).

Há uma crença articulada na obra poética de Daniel Faria que concebe a


existência de um outro lugar, e o sujeito lírico irá buscar, incessantemente, essa
paisagem análoga à ideia de paraíso, uma busca metafísica do poeta pela “Terra
Prometida”. Muitas vezes, esse lugar é descrito como se estivesse dentro do corpo do
poeta (como no processo de interiorização já citado anteriormente), preenchido de
absoluto silêncio, visando decifrar sinais da presença divina. Há um poema inédito do
autor, publicado postumamente por Vera Vouga, em que ele escreve:

Sou gémeo de mim e tudo


O que sou é
Distância.
Estou sentado sobre os meus joelhos
Separado.
Aquilo que une
É um rumor.
Não descanso. Sou urgência
De outro sítio. E pudesse velar-me
Longe
Dos homens como se neles
Adormecesse.
(Faria, 2015, p. 21).

O poema apresenta um sujeito lírico em primeira pessoa que afirma ser gêmeo
de si mesmo, fornecendo-nos a ideia de que há dois sujeitos separados que vivem
distantes e divididos. O sujeito que existe neste sítio é “urgência/ [d]e outro sítio”. É
por isso que ele se coloca em uma busca incessante e sem descanso por este “outro
sítio”, por “aquilo que une” e “é um rumor”, ou seja, um sítio em que há a presença
divina.
Sobre os versos e os poemas que apresentamos até aqui, há similaridades com
poemas de Sophia em que há figurações de desorientação, de exílio e de falta de
pertencimento ontológico figurado também na imagem da “névoa”, assim como Daniel
escreveu neste país “coberto por espesso nevoeiro”, em um dos versos já citados.
100

Como exemplo, temos o poema “Nevoeiro”, do livro Dia do mar (1947), que se inicia
com os seguintes versos: “Quem poderá saber que estranha bruma/ Brotou
caladamente em minha volta/ Pra que eu perdesse as horas uma a uma/ Sem um
gesto, sem gritos, sem revolta” (Andresen, 2015, p. 207); ou, ainda, o trecho do poema
(sem título) “Há cidades acesas na distância”, de Poesia (1944): “[…] E eu tenho de
partir para saber/ Quem sou, para saber qual é o nome/ Do profundo existir que me
consome/ Neste país de névoa e de não ser” (p. 110).
Somente pelos trechos acima, já podemos perceber como o sujeito lírico
estabelece uma relação direta com uma perda sentida de modo ontológico e subjetivo;
um “país de névoa” é um país difuso, com pouca claridade e nitidez. Essa angústia se
dá em um contexto semelhante ao de Daniel Faria, quando o sujeito lírico se afasta
de uma sacralização e mergulha no lado profano de um existir que está ausente de
deuses e de sentido. É uma melancolia latente vivida quando os sujeitos líricos se
sentem distantes, separados de um mundo encantado, ou seja, preenchido de
significado, conforme podemos exemplificar no poema sem título a seguir, do livro
Coral (1950):

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo.

Mal de te amar neste lugar de imperfeição


Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa.
(Andresen, 2015, p. 237)

Há um lugar de imperfeição, onde tudo se “quebra” e se “separa”, palavras que


ressoam a divisão e a distância também sentidas e escritas nos poemas de Daniel
Faria. Esse terror e este medo de existir neste “sítio tão frágil” estão relacionados com
a impermanência que o sujeito moderno sente frente à passagem de um tempo que
não volta:

Cada dia é mais evidente que partimos,


Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
(Andresen, 2015, p. 287)

Podemos ler o poema de Sophia relacionando-o à espiritualidade daquele que


vive as horas de um profano “despido do alimento” e também a uma forma de habitar
a experiência temporal humana. Sobre essa questão da passagem do tempo, o
101

pesquisador Carlos Ceia, no seu artigo “Monólogo Crítico – nos 50 anos de vida
literária de Sophia de Mello Breyner Andresen” (1996), declara:

Tudo está dividido, incluindo o próprio tempo. Este é um princípio de


organização interna do mundo de Sophia. A própria unidade original tão
ambicionada se dividiu em si mesma, porém a poeta garante-nos que assim,
através da tensão entre as partes, maiores serão as probabilidades de
percebermos a unidade que as formou. Tudo está dividido mas também
relacionado entre si, pois que tudo está sujeito a uma contínua transformação
no seu oposto: o activo em passivo, a vida em morte, a ordem em caos etc.
(Ceia, 1996, p. 146)

A instabilidade da passagem do tempo e sua permanente transformação


desencadeiam um sentimento de desencontro entre o sujeito e o mundo e,
consequentemente, entre o sujeito e a poesia. Ambos os poetas, porém, utilizam-se
desse momento para descrever o canto perdido, como podemos verificar em versos
de “Poema”, do livro O nome das coisas (1977): “Cantaremos o desencontro:/ O limiar
e o linear perdidos// Cantaremos o desencontro:/ A vida errada num país errado/
Novos ratos mostram a avidez antiga” (Andresen, 2015, p. 715). Há, ainda, dois
poemas que Sophia publicou, em sequência, no livro Poesia (1944) que testemunham
a desorientação, a angústia extrema, a crise existencial e a saudade. Vejamos o
primeiro:

Ó Poesia – quanto te pedi!


Terra de ninguém é onde eu vivo
E não sei quem sou – eu que não morri
Quando o rei foi morto e o reino dividido.
(Andresen, 2015, p. 285)

Este poema curto, de apenas quatro versos, inicia-se como uma súplica direta
à Poesia, pois o sujeito lírico conta com a escrita poética para recuperar o
conhecimento sobre quem se é, para regressar a uma terra outra, já que aquela em
que vive é uma “Terra de ninguém”, uma terra cujo rei já não existe (aludindo à
concepção moderna e à declaração de Friedrich Nietzsche de que “Deus está morto”).
Há outros poemas de Sophia que expressam essa perda e reverberam o sentimento
de exílio, como nos versos do poema “Exílio”, do livro O nome das coisas: “Exilámos
os deuses e fomos/ Exilados da nossa inteireza” (Andresen, 2015, p. 692).
Parece que Daniel e Sophia articulam a típica ideia de crise da Modernidade e
a substituem por um sentimento nostálgico que solicita um mundo outro. Segundo
102

Marcos Siscar (2010, p. 10), no seu livro Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da
poesia” como topos da modernidade, “a crise é um dos elementos fundantes de nossa
visão da experiência moderna” e a poesia irá apresentá-la “em tom desiludido ou
reciclada como estratégia de entusiasmo renovador”. Hugo Friedrich segue a mesma
linha de pensamento quando, no seu texto Estrutura da lírica moderna: da metade do
século XIX a meados do século XX (1991), afirma que a dissonância é uma das
características principais da poesia moderna:

[…] traços de origens arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda
intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade daquilo
que é expresso, o arredondamento linguístico com a inextricabilidade do
conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais
impetuoso movimento estilístico. (Friedrich, 1991, p. 16, grifo do original)

Ainda segundo Friedrich (1991, p. 22), as categorias usadas para apresentar a


poesia moderna são colocadas de modo negativo: “desorientação, dissolução do que
é corrente, […] fragmentação, […] modo de ver astigmático”, são característicos de
uma lírica dita moderna (no caso de Sophia, esta situação está diretamente ligada ao
salazarismo e ao contexto histórico de Portugal). Essa visão entra em concordância
com a de Marshall Berman (1986, p. 14) ao descrever as características do moderno
no seu livro Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade (1986):
para ele, ser moderno é partilhar um conjunto de experiências – “experiência de tempo
e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida” – abarcadas
pela modernidade. É possível perceber que tanto Sophia quanto Daniel lutam por
diminuir a estranheza e a distância oriundas dessa crise, a sensação constante de
esvaziamento, a falta de sentido e de deslocamento, propondo um apelo do sentido
do ser e do sagrado, uma nostalgia do ser situado em uma pré-modernidade.
Podemos lembrar aqui do filósofo alemão Martin Heidegger que, em 1946, em
uma célebre conferência a respeito da obra de Rilke, traça uma preocupação sobre a
indigência do homem contemporâneo, sobre o futuro do progresso e do
desenvolvimento técnico e sobre a angústia da decadência espiritual que, para ele,
seria um modo de enfraquecer o espírito. Para o filósofo, o homem moderno enfrenta
uma indigência da modernidade, em que “a morte retira-se para o enigmático [,] [o]
segredo da dor permanece velado. […] O tempo é indigente porque lhe falta o não-
estar-encoberto da essência da dor, da morte e do amor” (Heidegger, 1998, p. 315-
6).
103

Ou seja, o homem moderno sente dificuldade em discernir o sentido da sua


própria existência, e, com a organização, a automatização, a funcionalização, o
consumo, a produtividade, o controle cibernético, fica ainda mais afastado do sentido
de existir. Friedrich irá mencionar essa mesma dificuldade, alertando para o perigo de
uma civilização que se deixa conduzir pelo ritmo do tempo mecânico, da
temporalidade imposta pelos avanços industriais e pela ideia de progresso. Sophia
escreve o seguinte poema ainda no livro Coral (1950):

Cada dia é mais evidente que partimos,


Sem nenhum possível regresso no que fomos,
Cada dia as horas se despem mais do alimento:
Não há saudade nem terror que baste.
(Andresen, 2015, p. 287)

Este também é um poema curto em que fica evidente a angústia do sujeito lírico
diante da passagem do tempo e da irredutível certeza de que não é possível ‘nenhum
regresso’ ao que se foi antes. A temporalidade é sentida a cada dia e a cada hora que
passam, como se o sujeito percebesse que, quanto mais longe e distante ele se
encontra de um tempo primeiro, de um tempo de infância, mais “despido” ele estará
do “alimento” espiritual. No último verso, Sophia descreve uma “saudade” e um “terror”
muito semelhantes aos que destacamos na obra de Daniel Faria. Entretanto, muitos
críticos da obra de Sophia afirmam que, apesar de reconhecer e sentir a divisão, o
terror da distância e o vazio, há, predominantemente, uma espécie de confiança e de
otimismo em relação ao real, pois Sophia acredita, de forma vívida, na possibilidade
de união, na aliança e na unidade, como declara em uma entrevista à jornalista Maria
Armanda Passos: “Eu acredito na unidade, acredito na possibilidade, mesmo que
seja… Toda a minha poesia oscila entre a confiança nessa unidade e uma espécie de
pânico do seu fracasso” (Andresen, 1982, p. 5).
Essa declaração aponta para um mesmo sentimento presente na poética de
Daniel. Afinal, são poetas que confiam na possibilidade de aliança, mas que oscilam
no terror quando se atentam para a impossibilidade dessa união. E essas concepções
articulam e demonstram as suas relações subjetivas com a memória e com o tempo,
podendo caracterizá-los a partir de um desamparo muito característico de um sujeito
que está inserido na modernidade, dividido e desamparado pela consciência de uma
solidão atroz. O pesquisador Piero Ceccucci, no seu artigo “Trazer o real para a luz: o
104

olhar e o ouvido voltados para os seres e as coisas na poética de Sophia” (2011),


afirma:

Sophia nunca se abandona definitivamente à desistência inútil e


desesperada, à renúncia pessimista. A sua poesia, mesmo nos momentos
mais sombrios, deixa sempre entrever aquele locus amoenus mítico, aquele
lugar do uno, que há-de chegar; aquela pátria luminosa, governada pela
verdade e pela justiça; pátria identificada e convocada como paradigma de
um tempo vivido e reencontrado, de um tempo absoluto, de uma unidade
recuperada. (Ceccucci, 2011, p. 24)

A espera também aparecerá na obra poética de Sophia, ora como modo


angustiado e preenchido de terror ora como lugar em que se cultiva a esperança de
uma “fantástica vinda”, conforme podemos verificar no poema abaixo, sem título, do
livro Poesia (1944):

Espero sempre por ti o dia inteiro,


Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.
(Andresen, 2015, p. 71)

Já nos poemas de Daniel Faria, destaca-se o sentimento pessimista de


angústia e o desconforto em viver em estado de espera e de “promessa”. São
inúmeros os trechos que traduzem isso, como nestes de sua obra póstuma Sétimo dia
(2021):

Até hoje vivi mais das possibilidades do que das certezas, das esperanças
mais do que das decisões. E agora que decidir é irremediável e o tempo para
mim se fez lugar de angústia mais do que de redenção, invejo Moisés que
tendo vivido o tempo da promessa, morreu antes de chegar à terra prometida.
(Faria, 2021, p. 85)

Já disse que gosto de prometer, mas detesto que me façam promessas e


incomoda-me muito esta ideia de uma recompensa no céu. Não suporto
esperar que algo se cumpra e não suporto cumprir-me. Queria ser só uma
promessa, uma vida vivida como um interminável prometer. (p. 96)

Ou ainda: “Imagino os olhos daqueles que abanam com a cabeça, dos que têm
força para abanar a cabeça, nos olhos dos que já tendo nascido no deserto entraram
na Terra da Promessa. Olhos tão grandes que quase cego de os ver” (p. 100); ou
“Nunca cumpras todas as promessas. É um modo muito triste de morrer” (p. 108); ou,
105

finalmente, “É por entre os meus dedos que eu vejo o que passou. Não se passou
nada ainda. Ainda nada aconteceu” (p. 151).
São todos trechos que reiteram a angústia de aguardar a chegada da Terra
Prometida, “uma vida vivida como um interminável prometer” (Faria, 2021, p. 96). Para
o teólogo Leonardo Boff, no livro A ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na
morte (1974), é próprio da condição humana sentir a espera e existir em um lugar
onde “tudo é promessa”:

O homem é projeção e tendência para um sempre mais, para a surpresa que


está fora de sua pré-visão, para um Incógnito, para o Novum, para o Ainda
não. O melhor é sempre e apenas um esboço. A meta alcançada fica,
continuamente, um meio para um objetivo mais alto. Estamos sempre na
espera. Encontramo-nos permanentemente na pré-história de nós mesmos.
Estamos ainda nascendo. Tudo é sempre promessa. O ponto de chegada é
de novo ponto de partida. Daí é que tudo ainda se encontra em aberto. Por
isso pode haver temor, ansiedade, insegurança, risco, coragem, ousadia,
esperança. Essas reflexões mostram que o homem vive num permanente
excesso. Não possui o centro em si mesmo, mas fora dele numa
transcendência. Vive sua vida como existência. […] É um ser assintótico
sempre a caminho de si mesmo. (Boff, 1974, p. 19-20)

Para o autor, a espera é o sentimento humano vivido por seres que não
possuem “o centro em si mesmo” e que necessitam da experiência da transcendência
justamente para poder recuperar uma orientação em si, um centro próprio. Isso fica
explícito nos versos de um poema presente no livro Explicação das árvores e de outros
animais (1998): “O meu projecto de morrer é o meu ofício/ Esperar é um modo de
chegares/ Um modo de te amar dentro do tempo” (p. 85). A promessa cristã do
reencontro, ou seja, de ver, de encontrar Jesus Cristo, é, sem dúvida, uma das
principais angústias comunicadas na poética de Daniel Faria, e foi reiterada de forma
recorrente no livro Sétimo dia, publicado em 2021 pela editora Assírio & Alvim.
Pouco tempo após o falecimento do poeta, no dia 9 de junho de 1999, as
primeiras incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga revelaram, entre
outros papéis, um conjunto de catorze folhas, do qual saiu o livro de textos inéditos
Sétimo dia, organizado e editado por Francisco Saraiva Fino. São breves fragmentos
de um projeto que o poeta ainda revisitava às vésperas da sua morte e que apresenta
o caminho enigmático dos primeiros homens. Segundo o organizador:

Na sujeição ao chronos, ao tempo quantificador das suas tribulações, a


condição ou lugar de cada homem é o centro preferencial da meditação e da
espera. No Antigo Testamento, Ezequiel aguardou sete dias exilado “como
106

que entorpecido” (Ez 3, 15) junto às margens do rio Cobar, findos os quais
Deus lhe dirigiu a palavra. A experiência repartida pelos dias assume pontos
de vista monológicos sobre a ferida de morte que é característica da
existência contingente, cuja tristeza, como aceno ao final do poema de Ruy
Belo, o poeta sabe que nem sempre é capaz de administrar sabiamente.
(Fino, 2021, p. 20)

No mesmo livro, Daniel Faria escreve:

Penso sem certezas que sensato é abrir a porta e deixar entrar, pôr a mesa
e guardar um lugar para quem vier. É acreditar no milagre.
E sei, sem duvidar, que a espera, desde Ítaca, não se alimenta do que se faz,
mas sobretudo do que se desfaz.
Mas calar-se não foi um destecer. (Faria, 2021, p. 116)

A imagem de destecer é predominante na poética de Daniel Faria e está


relacionada diretamente a essa questão do desaparecimento, do ‘desfazer do tempo’,
do aprender a desaprender. Ítaca servirá de alegoria para o sentimento de espera: há
um poema que a leva no título, presente no livro Oxálida, publicado em 1992:

ÍTACA

O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos

O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos

O que dói
é tudo e mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
(Faria, 2015, p. 379)

O sujeito lírico faz emergir a imagem de um personagem mitológico para


também revelar a dor da ausência impossível de ser apagada. O poeta se utiliza da
anáfora para reiterar a dor, abrindo as três estrofes com o verso “O que dói”. Sabemos
que Ítaca é uma das ilhas gregas, destino de Ulisses no seu longo retorno ao lar, após
a Guerra de Troia, narrado numa das obras iniciadoras da literatura grega escrita: a
Odisseia, de Homero. É intrínseco a Ulisses o sentimento de exílio e nostalgia, uma
saudade constante da terra deixada. Conforme afirma Marco Lucchesi:

[…] Ulisses é um ser nostálgico da Casa, de sua fiel Penélope, de sua


rochosa Ítaca. […] O nóstos não se inclui apenas no proêmio da Odisseia: é
o tema fundador. Tanto assim que, embora Calipso lhe prometa a
107

imortalidade (isotheós), a Ulisses importa o regresso à Casa, ainda que venha


a naufragar nas ondas pela vontade de um deus. Ao desejar a Nausícaa bom
marido, casa e concórdia, Ulisses fala com certa melancolia, exatamente ele,
que amarga um longo e doloroso exílio. (Lucchesi, 2001, p. 171)

Podemos perceber, portanto, que a dor intensa de Ulisses sinaliza um desejo


de retorno, de reencontro, uma situação análoga à condição da saudade de Deus e
da promessa de reencontro com a qual Faria se identificou. É por isso, também, que
muitos outros textos clássicos e bíblicos que apresentam a situação do exílio e o
sentimento de desamparo serão usados como intertextualidades pelo poeta. Trechos,
salmos, personagens, narrativas em que o poeta consegue articular aquilo que mais
lhe dói: a ausência divina. Miguel de Unamuno nomeará essa dor como “dor de Deus”
(2013, p. 24): “Assim como os outros têm dor numa mão, num pé ou no coração,
Espinosa tinha dor de Deus. Pobre homem! E pobres os outros homens!”.
Não é por acaso que essa sensação de perda de pertencimento ontológico fará
com que Sophia e Daniel escrevam em seus poemas incessantes imagens labirínticas
além de retomarem mitos relacionados a essa imagem, como por exemplo a figura do
Minotauro e a de Ariadne. Como sabemos, o Minotauro é um monstro com cabeça de
touro e corpo de homem, fruto da relação entre a mulher do rei Minos, Pasifae, com
um touro. Ao nascer, a criatura foi confinada em um labirinto construído por Dédalo, e
todos os anos sete jovens e sete donzelas de Atenas para que o monstro as
devorasse. No mito, o herói Teseu é o único que consegue matar o monstro com a
ajuda de Ariadne que o ensina a sair do labirinto seguindo um novelo de lã.
Há um poema em prosa do livro Geografia (1996) intitulado “Epidauro”, em que
encontramos um sujeito poético feminino identificado com a figura de Teseu, onde o
grito, a palavra que se lança altiva e comunicável é a arma para a destruição do
monstro que é a violência dos homens:

(…) Eis-me vestida de sol e de silêncio. Gritei para destruir o Minotauro e o


palácio. Gritei para destruir a sombra azul do Minotauro. Porque ele é
insaciável. Ele come dia após dia os anos da nossa vida. Bebe o sacrifício
sangrento dos nossos dias. Come o sabor do nosso pão a nossa alegria do
mar. Pode ser que tome a forma de um polvo como nos vasos de Cnossos.
Então dirá que é o abismo do mar e a multiplicidade do real. Então dirá que é
duplo. Que pode tornar-se pedra com a pedra alga com a alga. Que pode
dobrar-se que pode desdobrar-se. Que os seus braços rodeiam. Que é
circular. Mas de súbito verás que é um homem que traz em si próprio a
violência do toiro. (…) (Andresen, 1996, p. 65).
108

Há um outro poema do livro Dual (2004), nomeado como “O poeta trágico”, em


que Sophia metaforiza a imagem do poeta ao ser que exterioriza, expõe o medo,
confronta de forma límpida e nua a sua condição humana:

No princípio era o labirinto


O secreto palácio do terror calado
Ele trouxe para o exterior o medo
Disse-o na lisura dos pátios no quadrado
De sol de nudez e de confronto
Expôs o medo como um toiro debelado
(Andresen, 2004, p. 60)

Nesse aspecto, Eduardo do Prado Coelho no seu ensaio “O real, a aliança e o


excesso na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen” (1972), comenta que ser
poeta para Sophia é perceber a ausência que rodeia cada instante:

Se ser poeta é tentar estabelecer uma relação justa, exacta, digna, com o
mundo, assinalando os contornos, fixando as cores adequadas, a verdade é
que não podemos apenas conceber o mundo como presença a referências.
As coisas que nos rodeiam estão trabalhadas pela ausência, ausência que
em cada instante as expõe na claridade do sol para logo as dissimular no
labirinto da noite. (Coelho,1972, p. 227, grifos do autor)

Já na poética de Daniel Faria podemos constatar uma secção inteira no livro


Explicação das Árvores e de Outros Animais (1998), intitulada “Explicação do
labirinto”, em que o poeta escreve a busca incessante de um caminho com entradas,
saídas, bifurcações, subidas, descidas, horizontes e verticalidades próprios de um
labirinto. Há três poemas subordinados ao tema do labirinto, em “Labirinto II”, em que
podemos ler o mito de Teseu e Ariadne explicitamente. Entretanto, destacamos como
é a figura do poeta que oferece ao leitor uma meada que se enrola silenciosamente,
equiparando-o à figura de Ariadne, proporcionando-nos uma leitura de que os poemas
são os gestos amorosos que orientam os leitores em um caminho de poesia permeada
do indizível:

A meada doba e roda a mão fechada


Em seu silêncio de coisa destruída
Como despetalada uma corola aberta
Boca, ferida, cratera
Círculo que resiste à forma da palavra.

A teia é movimento que persiste


Em sua paciência.
Como Ariadne costurando umbrais
Para que Teseu possa vir do nada.
109

(Faria, 2015, p. 67)

Nesta condição da espera oriunda de uma busca agônica divina, escrever


torna-se o ato que persiste a paciência e que traça uma resistência à desesperança.
Como Ariadne espera que Teseu saia do labirinto, graças ao seu novelo, o poeta
parece esperar que a poesia torne possível o regresso, conforme Nuno Higino Teixeira
da Cunha comenta no seu texto “O tempo desquiciado de Daniel Faria” (2010, p. 208):
“a obra de arte, a poesia, especialmente a poesia de Daniel Faria, é uma despedida
necessária, uma educação para o regresso”.
Tanto Sophia como Daniel articulam a possibilidade de reencontrar o tempo
absoluto de uma unidade recuperada e escrevem cantos de angústias e lamentos pelo
sentimento de perda desse elo original. Vejamos o poema retirado do livro Explicação
das árvores e de outros animais (1998), de Daniel Faria, quando o poeta tinha 27
anos:

EXPLICAÇÃO DA ESPERA

Quando me sentarei ao sol


Despido
Líquen vivendo
Da inclinação dos ramos?

Quando crescerei como nuvem


Mão leve sobre a fronte
Da doença?

Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?
(Faria, 2015, p. 111)

Os três versos que se repetem com a pergunta “Quando” revelam o motivo


principal dessa espera repleta de angústia e transcrita como tempo de promessa. O
poeta utiliza imagens metafísicas de fusão com a natureza – “líquen vivendo/ da
inclinação dos ramos”, “cresce[r] como nuvem” –, podendo ser interpretado tanto
como uma experiência mística fusional com o todo, o universo e o divino, como com
o último tempo de ascensão: a morte. É como se o poeta se questionasse: “quando
encontrarei Cristo?” e, para isso, emanasse a questão: “quando morrerei?”, como
podemos verificar na última estrofe: “Quando repousarei/ Ausente sem sofrer/
Qualquer ausência?”.
110

A morte é uma forma de dar fim à angústia, mas também uma possibilidade de
encontro com o divino. Nessa agônica angústia, há a presença de um sentimento de
cansaço, um desânimo, uma tristeza extrema. Sophia declara esse sentimento em
versos como: “A raiz da paisagem foi cortada./ Tudo flutua ausente e dividido,/ Tudo
flutua sem nome e sem ruído” (Andresen, 2015, p. 284). Ou, ainda, num outro poema
de Daniel, do livro Explicação das árvores e de outros animais, em que o sentimento
de angústia, de cansaço e de descrença também são identificados:

EXPLICAÇÃO DO HOMEM

Não me verga a velhice nem o peso do crâneo


Mas os olhos cansados na dor de te não ver.
O chão tornou-se a última paisagem.
No mais longínquo da terra te levantas
E vejo erguer-se a poeira dos teus pés.
(Faria, 2015, p. 98)

No poema, o corpo do sujeito lírico não está cansado, “vergado” pela velhice
ou pela passagem do tempo, mas pela “dor de te não ver”. O verso sobre o chão que
se transforma na última passagem remete à morte como lugar último onde o corpo
repousa, mas também pode ser entendido como os olhos direcionados para baixo,
num aspecto que remete à melancolia e à falta de horizonte. A visão de erguer a poeira
dos pés equivale à visão de Jesus sobre as nuvens, encontrada no Velho Testamento,
no livro de Naum 1, 3, em que se lê que “o Senhor tem o seu caminho na tormenta e
na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus pés”, ou seja, as nuvens são o pó dos
pés de Deus, e o sujeito percebe uma distância muito longínqua e demorada para o
reencontro divino.
Ainda sobre o cansaço, no livro Homens que são como lugares mal situados,
na série “Para o instrumento difícil do silêncio”, há o seguinte trecho:

[…]
De estar sentado e inútil – como se tudo à minha volta me cegasse –
Apodrecendo a cadeira e o soalho.
E de me erguer como um odor da terra – como a tempestade –
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.
(Faria, 2015, p. 190)

O tempo se faz ruína, a cadeira e o soalho apodrecem, passam abandonados,


esquecidos, colocando o sujeito lírico em uma situação de melancolia, um sentimento
111

distópico do tempo e da existência. O verbo “apodrecer” e a imagem da ruína também


aparecerão em um outro poema do mesmo livro:

Mas tu existes.
Os dias somam ruína à ruína
E o a vir multiplicará
A miséria.
Apodreço não adubando a terra
E cada dia somado a cada hora
Não completa o tempo.
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.
(Faria, 2015, p. 184)

O poema se inicia com a conjunção adversativa “mas”, como se estivesse na


metade de um contra-argumento, em um tom dialógico. O sujeito lírico clama que,
apesar de tudo, Deus existe e que, portanto, só resta esperar a sua volta. Nessa
espera há, novamente, a imagem do acúmulo de ruínas (“Os dias somam ruína à
ruína”), como também se somam as horas aos dias. O tempo não é completo porque
há uma ausência latente. A escuta opera, no poema, como expectativa angustiada; a
própria escuta está à espera; no poema, há uma desintegração temporal, um elo
quebrado – “E cada dia somado a cada hora/ Não completa o tempo” –, e isso o acerca
de um sentimento melancólico.
Freud (2006, p. 249), em seu canônico texto “Luto e melancolia”, propõe que o
luto, por mais que possua semelhança com a melancolia em seu caráter doloroso,
dela se diferencia por sua aderência ao tempo e pela clareza de qual objeto se perdeu.
Já a melancolia é difusa, com uma temporalidade expandida, pois possui caráter mais
ideal, em razão da impossibilidade de distinção daquilo que foi perdido, “mesmo que
o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no
sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém” (Freud,
2006, p. 251).
São, portanto, poemas que revelam sentimentos como melancolia, cansaço,
tristeza e tédio, ou seja, o aspecto letárgico predominante na poesia de Daniel Faria
é intrínseco ao estado de melancolia. E é possível analisá-la também em Sophia:

NO TEMPO DIVIDIDO

E agora ó Deuses que vos direi de mim?


112

Tardes inertes morrem no jardim.


Esqueci-me de vós e sem memória
Caminho nos caminhos onde o tempo
Como um monstro a si próprio se devora.
(Andresen, 2015, p. 340)

Encontramos, também, em muitos poemas de Daniel Faria, uma espécie de


ressonância com o canto bíblico dos exilados, dos peregrinos saudosos da terra de
Deus. Daniel Faria escreve um sujeito lírico sem lar que deseja regressar à casa do
Senhor e que atravessa desertos áridos de angústia, lamentando a trágica situação
de existir em um lugar estranho. Em Homens que são como lugares mal situados
(1998), Daniel Faria inclui dois poemas com referência nítida ao Salmo 136, o salmo
considerado “o canto dos cantos” dos exilados, aquele que expressa o lamento do
povo judeu em exílio após a conquista de Jerusalém, em 586 a.C.
Camões, também, escreveu diversos sonetos inspirados neste salmo, além do
famoso poema “Sôbolos rios que vão”. É importante analisá-los, ainda que
brevemente, para adicionarmos as camadas de sentidos que ressoam nos poemas
de Daniel Faria, numa conversa direta com o salmo e com Camões. Os nove
versículos do salmo revelam a lamentação dos judeus com saudade de Sião, o monte
do templo dos Judeus em Jerusalém, após a invasão da Babilônia. Os judeus que
sobreviveram à guerra contra a Babilônia tornaram-se cativos dos babilônios, e estes,
talvez por curiosidade ou para se divertir com o sofrimento dos seus cativos, pediram
a eles que cantassem seus hinos. Os judeus não conseguiram, por entenderem que
estavam longe da terra de seu Deus. O verso “Como cantaremos o cântico do Senhor,
em terra alheia?” inspirou diversos compositores e poetas, ao longo da história,
representando um grito dos submissos e exilados. Há uma versão do salmo
apresentada e traduzida por Jorge de Sena, na obra Trinta anos de Camões. Vejamos:

Junto dos rios de Babilónia, ali nos assentámos e pusemos a chorar,


lembrando-nos de Sião./ Nos salgueiros que há no meio dela, pendurámos
nossas harpas./
Porque ali nos pediram, os que nos levaram cativos, palavras de canções; e
os que por força nos levaram, disseram: – Cantai-nos um hino dos cânticos
de Sião./
Como cantaremos o canto do Senhor, em terra alheia?/
Se me esquecer de ti, Jerusalém, a esquecimento seja entregue a minha
direita./ Fique pegada a minha língua às minhas faces, se eu me lembrar de
ti, se eu não me propuser a Jerusalém, como principal objeto da minha
alegria./
Lembra-te, Senhor, dos filhos de Edom, no dia de Jerusalém, os que dizem:
– Arruinai, arruinai nela, até os fundamentos./ Filha desastrada de Babilónia;
bem aventurado o que te der o pago que tu deste a nós outros./
113

Bem aventurado o que apanhar às mãos, e fizer em pedaços numa pedra,


teus tenros filhos. (Sena, 1980, p. 131)

O Salmo 137, ou 136 segundo a Septuaginta, é um dos mais conhecidos do


Livro de Salmos. Podemos pensá-lo como uma arte poética do exílio, um texto que
fala sobre o cantar e que nos coloca a reflexão da possibilidade de se cantar uma
ausência. O Salmo 136 (137) representa um metacanto poético: ele canta sobre o
cantar. As suas linhas de abertura – em latim “Super flumina Babylonis”, em inglês “By
the rivers of Babylon”, em português “Sôbolos rios que vão por Babilônia” – foram
reproduzidas diversas vezes dentro do repertório cultural do Ocidente. Na história da
literatura portuguesa, diversos autores utilizaram o salmo como inspiração. Desde
Camões (1524-1579) ao próprio Daniel Faria, como também José Saramago (1922-
2010), e, na prosa, podemos citar também Super flumina Babylonis, livro de contos
de Jorge de Sena, e o romance Sôbolos rios que vão, publicado, em 2010, por António
Lobo Antunes. Sabemos que o sentimento de exílio é intrínseco à biografia de
Camões, que teve uma vida repleta da experiência de exílio e que escreveu três
poemas que referenciam diretamente o Salmo 136.
O soneto 155 de Camões (1963, p. 541), “Na ribeira de Eufrates assentado”,
apresenta situação similar à do salmo: o sujeito lírico está sentado à beira do Eufrates,
lembrando dos tempos bons vividos na própria terra, quando, então, lhe são feitas
duas perguntas em verso: “– Como não cantas a história/ De teu passado bem, e da
vitória/ Que sempre de teu mal hás alcançado?” e “Não sabes que a quem canta se
lhe esquece/ O mal, inda que grave e rigoroso?”. Neste sentido, a voz que levanta tais
questões sugere que cantar, colocar em palavras a memória, relembrar aquilo que foi
perdido, é um alívio, uma forma de espantar o mal, a angústia e a tristeza da
catástrofe.
Mas é nos três últimos versos que o eu lírico responde: “– Quando cre[s]ce/ A
muita saudade, o piedoso/ Remédio é não cantar senão a morte”, ou seja, há uma
amargura, uma tristeza e um saudosismo melancólico de se estar longe da sua terra,
numa reminiscência de um passado perdido, de um tempo que não voltará mais.
Camões realiza uma transposição de aspectos da sua obra biográfica metaforizados
em termos de subjetividade. O autor, como os judeus, também experimentou o
desterro de seu país. O soneto utiliza, nas vozes dos personagens do salmo, a sua
própria voz. Babilônia, por ser o espaço e o tempo do exílio, mostra um sujeito lírico
condenado a lamentar as suas memórias e a emitir um canto de falta, de ausência,
114

de morte. Jorge de Sena faz o seguinte comentário sobre o salmo e seu valor literário
para Portugal:

Este tema, de grande importância na tradição judaica e na cristã, assume


crucial valor literário em Portugal, Camões transformou o Salmo numa
pessoal e individualizada expressão do seu pensamento poético, que é uma
das mais extraordinárias criações poéticas não só da sua obra, como do seu
tempo ou da poesia universal, a oposição simbólica entre Babilônia e
Jerusalém. (Sena, 1980, p. 113)

Um dos poemas mais famosos de Camões é justamente “Sôbolos rios que


vão”, que se inicia assim:

Sôbolos rios que vão


Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.

Ali, o rio corrente


De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
[…]
(Camões, 1963, p. 497)

“Sôbolos rios que vão” é composto por 365 versos em redondilhas, dispostos
em 37 estrofes, sendo 36 décimas e uma quintilha, e se constrói em torno do Salmo
137, estabelecendo com ele relações intertextuais. Nele, há dois temas que
sobressaltam, o tema da memória e o da mudança. A memória é desenvolvida por
meio da saudade de um povo de sua terra natal e de um passado transformado em
saudade, em um não conformismo nostálgico. Assim como no soneto anteriormente
comentado, há uma antítese entre o bem e o mal, entre presente e passado. O mal é
a realidade deste presente. O poema canta o desterro geográfico, o exílio (tanto
emocional quanto físico), paixões frustradas, a saudade do que foi perdido. Especula-
se, ainda, que é um dos últimos poemas de Camões.
Daniel Faria situa-se, também, entre a terra prometida e a terra perdida, entre
a presença e a ausência, entre a certeza do reencontro divino e a ruína da espera, e,
embora nunca tenha saído de seu próprio país, carrega o sentimento do não
pertencimento dos exilados. O desassossego de sua alma é a ânsia de completar o
tempo com a presença divina, e, por isso, a espera se torna tão vazia e angustiante.
115

Em Homens que são como lugares mal situados (1998), o autor dedica dois poemas
em referência direta ao salmo, colocados um seguido do outro em seu livro. Vejamos
o primeiro poema:

JUNTO DOS RIOS DA BABILÓNIA [Sl 136 (137)]

Nas margens dos rios imaginando pontes


Quando já só no nosso pensamento deslizavam
Debaixo da sombra das nossas liras
Ali nos pediam – em solo alheio –
Que cantássemos canções da nossa terra.
Como poderíamos cantar a nossa infância
Tão longe, num país estranho?

Os salgueiros têm folha persistente

Sob a sombra persistente a mudez


Junto dos rios da Babilónia
Foi a única das nossas alegrias
(Faria, 2015, p. 156)

O poema faz uma alusão direta ao salmo, como um paratexto, incluindo-o no


título. Com versos escritos na primeira pessoa do plural, o sujeito lírico fala a voz dos
cativos e os coloca na mesma cena do salmo: na beira dos rios da Babilônia. Os
primeiros versos de Daniel Faria apresentam uma reencenação dos babilônios
pedindo que os judeus cantassem e, num tom de indignação, em coro, eles
respondem em verso: “Como poderíamos cantar a nossa infância/ Tão longe, num
país estranho?”. O poeta introduz, após esse questionamento, em um verso solto,
afastado dos demais, a seguinte declaração: “Os salgueiros têm folha persistente”. É
importante lembrarmos, aqui, que, no Salmo, as harpas são penduradas nos
salgueiros, e o poeta alude à resistência para que o canto da própria terra permaneça:
enquanto os galhos dos salgueiros não caírem, o canto, os instrumentos da própria
terra, não serão esquecidos. Ele simboliza, no salgueiro, a persistência da memória.
Por fim, então, o poema se conclui com três importantes versos que
exemplificam a relação do projeto poético de Daniel Faria com o silêncio: “Sob a
sombra persistente a mudez/ Junto dos rios da Babilónia/ Foi a única das nossas
alegrias”. O poeta defende o silêncio e a resistência de não cantar as lembranças da
própria terra como a única alegria possível aos cativos. Como uma forma de os cativos
permanecerem conectados com Deus, o silêncio impera como comunhão em uma
terra estranha. Como temos demonstrado nos muitos poemas já apresentados, o
silêncio é o espaço ao qual o poeta recua para poder entrar em contato com a
116

espiritualidade e elaborar o sentido; podemos pensar que os cativos estarão alegres


porque estarão próximos a Deus, em silêncio – ao menos, um sentimento de
completude quando se está em condição de exílio.
Além disso, o silêncio pode ser lido como uma forma ou um gesto de
resistência, uma ação que nunca poderá ser arrancada dos homens. Podemos
pensar, também, que essa mudez persistente está relacionada não ao esquecimento,
mas à memória; uma memória ainda não expressa em palavras que os babilônios não
conseguirão destruir, porque, para Daniel Faria, a condição de cantar, nessa situação
em que se encontram os cativos, equivale a uma canção de morte, a matar o último
gesto resistente que resta: o silenciar. Cantar é dar ao inimigo o que se tem; o silêncio,
aqui, é o lugar para se habitar, é a única casa possível onde habita Deus. O sujeito
lírico é, simultaneamente, um ser de palavras e de silêncios, e é por meio dessa junção
que se torna possível a nomeação do inefável. Neste sentido, esta parte que a
linguagem não consegue comunicar é dita em ausência. Este modo de leitura
direciona o olhar para aquilo que está em falta, para o negativo da linguagem poética.
Vejamos, agora, o segundo poema em referência ao Salmo 136 (137)
apresentado por Daniel Faria:

O REGRESSO DOS RIOS DA BABILÓNIA

Se a chama não contiver o fogo


E transbordar
Se a morte da semente
Enegrecer até ao luto os campos

Se a agulha entre os novelos


Brilhar ainda
Se o regresso abrir o pesponto
Da nossa boca fechada

Se o silêncio for quebrado


Por chamar-te
E se enxugar os olhos for rever-te
Ó bem-amada
(Faria, 2015, p. 157)

É interessante notar a repetição das sentenças condicionais iniciadas pela


conjunção “se”, colocando toda a forma do poema em uma condição passível de
acontecer. As imagens da primeira estrofe revelam um espaço amplo sendo tomado;
“transbordar” indica esse excesso, assim como a imagem de uma semente que
escurece campos inteiros, simbolizando a descrença, a angústia do exílio, o tempo
117

sombrio que se alastra. A imagem da agulha entre os novelos revela a atividade de


tecer, simbolizada pela esperança do reencontro. E, se a agulha, o instrumento que
tece, ainda brilhar, significa que há caminho, há obra, há esperança.
Interessante notar que é no verso seguinte que aparece o pronome possessivo
“nossa”, revelando a enunciação de um coletivo no poema. O verso ainda revela a
quebra do silêncio na condição de regresso à própria casa. Na última estrofe, há uma
amplitude de sentidos, e o direcionamento do “tu” pode aludir a “pátria”, ou seja, no
regresso, com o silêncio quebrado, é possível anunciar o nome da própria terra como
sinal de pertencimento e retorno. O verbo “rever-te” também pode aludir à terra que
se perdeu. Rever a terra é transformar as lágrimas de tristeza em lágrimas de alegria:
um poema otimista que se contrapõe ao primeiro poema de Daniel Faria e também
aos de Camões analisados neste capítulo.
Podemos, porém, pensar esse “tu” aludindo a Deus, e, assim, o sentido do
poema se expande tanto para um exílio terrestre, reforçado pela situação apresentada
no salmo, como para um exílio divino: estar apartado de Deus é estar em desamparo,
em uma terra em luto. Podemos perceber que tanto Camões quanto Daniel Faria
cantam o exílio, a partir do texto do salmo, como uma forma de expressar a melancolia
daquilo que foi perdido, e fazem, assim, ambos, um coro de perdas, de ausências e
de silêncios. Embora Camões utilizasse o salmo para expressar o sentimento de exílio
e de desamparo muito atrelado à sua biografia, Daniel Faria utiliza-o para expressar
o seu sentimento de desamparo e de angústia perante a espera do reencontro com
Deus.
A escrita de Daniel Faria se coloca em busca de um lugar: “[…] lembrar-te-ás
de que existir é procurar um lugar” (Faria apud Vouga, 2009, p. 50) – a casa terrestre
não bastava, o poeta tinha urgência de outro sítio. Rosa Maria Martelo declara que,
especialmente no Portugal pós-1974, os poemas adquiriram um recorte mais
narrativo, em que “a temporalidade mais se apresenta como uma experiência de perda
irredimível” (Martelo, 2009, p. 14). É a partir dessa “perda” que se abririam espaços
para o “olhar alegorista” como reação a um tempo vazio, de perdas e de melancolia.
Entretanto, peregrinar em busca deste outro lugar é, necessariamente, ir ao encontro
do outro, sair de si, despojar-se para conhecer a verdadeira casa. Não à toa, o poeta
é convicto: “Não acredito que cada um tenha o seu lugar./ Acredito que cada um é um
lugar para os outros” (Faria, 2019a, p. 59).
118

5 CONCLUSÃO

Em conclusão, este trabalho sobre a poesia de Daniel Faria e sua relação com
a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen buscou proporcionar uma visão mais
ampla e significativa do universo poético desses dois grandes escritores. Ao
analisarmos a forma epifânica com que ambos concebem a palavra poética,
percebemos como suas poéticas estão enraizadas em um modo de escuta apurado e
em um rigoroso trabalho de escrita. Buscamos entender os fundamentos da arte
poética de Sophia e de Daniel Faria, identificando pontos de convergência e de
diferenciação entre suas abordagens. Também trilhamos reflexões teóricas sobre a
tradição mística, com o intuito de entender as possíveis aproximações dessa tradição
com a concepção poética de Daniel Faria.
Diante das reflexões apresentadas, podemos concluir que o processo criativo
de Daniel Faria revela um poeta que, ao buscar o inefável, o invisível, o que há de
mais obscuro nas imagens do real, cria uma experimentação poética da linguagem,
atribuindo novos sentidos às palavras e à realidade que ele busca compreender. Seus
poemas, permeados de imagens relacionadas à noite, às trevas e à escuridão,
demonstram seu esforço em encontrar o mistério no enigma e em comunicá-lo através
de novos enigmas, conduzindo o leitor ao desvelamento dos sinais.
Essa condução que o poeta proporciona de “dar as mãos” aos seus leitores é
uma das características mais relevantes da sua poesia. Daniel Faria revela-nos,
através da sua poética, um verbo de carne, uma palavra-corpo que transcende e para
atingi-la é necessário sacrificar-se, somente desta forma o poeta é capaz de fornecer
ao leitor a experiência reveladora do universo sensível. Vimos também que, em seus
versos, Daniel insiste no lado mais invisível das imagens, adentrando as profundezas
da obscuridade para revelar significados ocultos. Enquanto isso, Sophia busca
comunicar o lado mais visível das imagens, buscando uma clareza e uma justeza
poética que ressaltem a beleza e a luz.
Ao compararmos as poéticas de Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner
Andresen, percebemos que ambos os poetas utilizam a visão como uma ferramenta
reflexiva, mas, enquanto Sophia busca a clareza e a visibilidade das imagens, Daniel
mergulha na obscuridade, ele desafia os limites do conhecido e revela o poder da
palavra como uma fonte inesgotável de mistérios e significados. Por esse motivo,
identificamos um ponto de conexão da abordagem poética de Daniel à de outro poeta,
119

Herberto Helder, ambos revelando um processo de escrita enigmático, em que o


mundo é percebido como um enigma jamais decifrado e concluído. Suas imagens
conduzem o leitor por caminhos complexos, estimulando a reflexão e a contemplação
do inefável. Essa riqueza de abordagens nos convida a apreciar a diversidade e a
profundidade da poesia lusófona e a reconhecer a singularidade do trabalho desses
dois grandes mestres da palavra. A habilidade de Daniel Faria em entrelaçar
significados e em explorar camadas de interpretação na palavra poética reflete sua
busca incessante por uma linguagem que vá além do óbvio e do imediato. Essa
capacidade de ir além do visível, de desvelar o que está oculto, torna sua poesia uma
experiência profunda e enriquecedora para o leitor.
Sua poesia nos convida a adentrar um universo simbólico complexo, onde a
palavra é transformada em uma ferramenta poderosa para transcender o cotidiano e
alcançar novas dimensões de significado. Nesse sentido, a obra de Daniel Faria
reafirma a importância da poesia como um meio de expressão artística que vai além
da superfície, alcançando os recônditos da alma humana. Sua abordagem alegórica
do sujeito que sai de si em direção ao outro, carregada de simbolismo, desperta, no
leitor, a curiosidade e o desejo de se envolver em uma jornada poética única, em que
as palavras se tornam pontes para a compreensão do mundo interior e da condição
humana.
Podemos afirmar, ao final desse estudo, que há uma tensão recorrente em sua
poesia posicionada no cerne da estética que o poeta cria em seus poemas e é
expressa por meio de recursos poéticos como paradoxos, marcações espaço-
temporais, polissemia das palavras e símbolos. Esses elementos são utilizados como
tentativas de traduzir e comunicar, de forma autêntica, a complexidade da experiência
que se assemelha ao fenômeno do despojamento místico. Concluímos que o poeta
apresenta a concepção de que, para ter uma experiência mais verdadeira com a
realidade, é preciso transformar e transmutar as imagens do real. Sua linguagem
busca, portanto, atingir outra face desse real, explorando seus infinitos
desdobramentos de maneira sistemática. Podemos imaginar sua poesia como esse
rizoma infinito de símbolos que se interconectam e frutificam em novos significados
encadeados.
As imagens desempenham um papel essencial em sua poesia, funcionando
como agentes e objetos de um pensamento repleto de uma mundividência simbólica,
enraizada na religião cristã. Essa abordagem poética conecta-se com uma dimensão
120

espiritual profunda, permitindo que o leitor se entregue a uma viagem pela riqueza dos
significados simbólicos e de sua relação com o mundo. O uso frequente de símbolos
côncavos, como pedras, cântaros, conchas e búzios, evidencia a busca de Daniel
Faria por conectar-se ao interior, ao âmago de seu ser, onde encontra uma conexão
mais profunda com o mundo e seus mistérios. Esses símbolos representam o que é
emitido e que ressoa no mundo interno, vibrando em sua acústica particular, como se
fossem instrumentos capazes de transmitir a experiência do poeta. A decifração é a
forma pela qual o poeta captura a presença do mistério e coloca seu ouvido na face
dos signos, buscando desvendar a noite escura. Através desse ato de escuta
profunda, o poeta revela e comunica o que foi decifrado, oferecendo aos leitores uma
visão singular e poética da realidade.
Em suma, a poesia de Daniel Faria revela-se como uma jornada de decifração
do mistério por meio da palavra poética, a qual é concebida como um lugar onde o
poeta habita para ressoar o inefável. Essa materialidade côncava da palavra
representa sua capacidade de emitir e reverberar a experiência interior, comunicando
aos leitores novos mistérios encontrados em seu mundo silencioso e espiritual.
Tanto a poesia de Daniel Faria como a de Sophia de Mello Breyner Andresen
se aproximam na busca por transmitir a experiência de um tempo mítico e atemporal;
ambos compartilham a concepção de uma perfeição dos primórdios, em que a
nomeação é a chave para acessar uma realidade originária e pura, conectada a uma
sacralidade e preenchida de sentido. Suas poéticas convergem em direção a uma
existência desperta, valorizada e conectada ao âmago do ser.
No entanto, enquanto Sophia busca uma clareza poética visual, aproximando
os objetos da linguagem aos objetos do mundo, Daniel Faria explora a invisibilidade,
a obscuridade vocabular, trabalhando com o enigma e a opacidade do discurso. Sua
poesia é, ainda que contida, uma explosão cósmica, quase onírica, repleta de
simbolismo e ambiguidade, que transcende o real e alcança o sublime.
Ambos os poetas também enfatizam a questão do tempo dividido em suas
obras, buscando a reunião, a aliança. Suas palavras transmitem não apenas
angústias, mas ambicionam costurar, remendar, religar, unir, novamente, aquilo que
se dividiu na modernidade, retratando profundas reflexões sobre a condição humana
e a passagem do tempo. Os dois autores exprimem uma voz poética que canta uma
ausência, com a qual nunca desistem de dialogar. São poetas que encaram a poesia
como a possibilidade de descortinar/regressar à Ítaca da linguagem, sempre
121

tensionando o desejo do reencontro simbólico com a angústia da ausência e da


espera. Sophia e Daniel adquirem, portanto, o estatuto de uma nova teia de Ariadne,
uma teia mais próxima a Penélope, um lugar de espera na esperança de um regresso,
e usam a linguagem poética como um trabalho de recuperar, de presentificar aquilo
que já se encontra ausente e perdido.
Uma outra característica estética que aproxima os dois autores é que a
linguagem do poema exerce um papel autoconsciente e autorreflexivo. Ambos os
autores escrevem poemas metapoéticos, demonstrando suas concepções sobre a
criação poética, além de exporem, analiticamente, as suas visões sobre o escrever
(Sophia em suas “Artes poéticas” e em seus ensaios e Daniel através das entrevistas
que cedeu, aqui citados). São poetas que escrevem a partir de uma fome ontológica,
de uma permanente e inquietante reflexão sobre o lugar do ser na linguagem. Como
poetas modernos, escrevem poemas que guiam seus leitores pela mão, mostrando
os próprios caminhos de seus processos criativos. Cantam na completa abertura de
si, a própria subjetividade, mas também a alteridade, o encontro com o mundo, com a
palavra, com o silêncio, com outros seres e outros textos. São poetas que evocam
personagens, tempos e textos do passado e que tecem diálogos profundos com eles.
Sophia e Daniel concebem a linguagem como desvelamento, como um lugar que abre
o ser, que dá ao mundo o próprio ser: a linguagem, para ambos, é uma forma de
habitação.
Podemos afirmar que Sophia transfere o mundo da realidade concreta para o
mundo do poema, recriando o primeiro no segundo. O poema é, para a autora, uma
“forma justa”, pois nasce a partir de uma coisa, daquilo que o mundo tem de mais
substancial, espesso e visível. Isso não significa, porém, que a poesia seja ou
pretenda ser uma cópia do real, mas o contrário: é uma poesia que se concebe
enquanto representação criadora.
Diante dessa rica discussão, abre-se a possibilidade de continuação dessa
pesquisa, um modo de oferecer novas perspectivas para se entender, ainda mais, os
mecanismos do projeto poético de Daniel Faria, partindo do destaque de seu lugar
singular para prosseguir com a comparação da sua obra com a de Herberto Helder,
podendo, assim, estabelecer um quadro analítico de semelhanças e diferenças entre
as poéticas de Daniel Faria, Sophia de Mello Breyner Andresen e Herberto Helder.
Em conclusão, a poesia de Daniel Faria transcende fronteiras linguísticas e
temporais, conectando-se com as tradições poéticas de outros mestres da palavra
122

como Rumi, Rilke, Hölderlin etc. Sua obra ressoa mistérios, simbolismos e uma
espiritualidade única, convidando-nos a contemplar o mundo através de uma lente
poética que nos estimula a um modo de existência mais atento, presentificado, mais
lento, sensível e profundo. Com Daniel, aprendemos a habitar o âmago do silêncio e
as palavras geradas deste lugar.
Ao final deste estudo, podemos afirmar que a comparação entre as poéticas de
Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner Andresen contribui significativamente para
o aprofundamento dos estudos comparados entre as literaturas modernas de
Portugal. Essa abordagem comparatista, baseada na intertextualidade explícita e
implícita, amplia nossa compreensão das relações e, dessa forma, a pesquisa destaca
a importância de reconhecer e valorizar as conexões poéticas entre autores de
diferentes contextos. Espera-se que a dissertação estimule futuras investigações e
debates sobre a poesia portuguesa, ressaltando a relevância contínua dessas duas
expressões artísticas na cultura lusófona.
Essa dualidade na abordagem poética de Daniel Faria e de Sophia de Mello
Breyner Andresen enriquece o panorama literário lusófono, mostrando que a palavra
poética pode ser criada de múltiplas maneiras, ora revelando o visível, ora desvelando
o invisível. Estamos diante de dois poetas cuja palavra poética se debruça sobre a
experiência humana, seus anseios, suas reflexões e sobre questões ligadas a uma
visão de mundo religiosa que relaciona a poesia como modo de encantamento do real.
Suas obras deixaram um legado significativo, inspirando-nos a explorar as
profundezas da linguagem e a decifrar os enigmas do mundo que nos cerca, em uma
jornada poética repleta de beleza e mistério.
123

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133

ANEXOS

ANEXO I – TEXTO PARA A ASSOCIAÇÃO DE JORNALISTAS E HOMENS DE


LETRAS DO PORTO, 23 DE OUTUBRO DE 1998

AUTO-RETRATO DO ARTISTA ENQUANTO JOVEM

Se eu fosse pintor, há dois quadros que nunca pintaria: um auto-retrato e uma


natureza morta. Acontece, porém, que não o sou e que, hoje, me é pedido um auto-
retrato. O retrato do artista enquanto jovem.
Ora, creio, ou melhor, também eu creio, que o auto-retrato de um artista em
qualquer idade é a sua obra e que o do poeta é a sua escrita. Por isso, considero que,
com a leitura dos poemas, o meu auto-retrato estará feito. O que se lhe poderá
acrescentar, ainda, se não a leitura de outros ou então dos mesmos poemas?
E, no entanto, no jogo dos reflexos ou do olhar mais uma vez, não exactamente
como uma moldura, mas como uma certa memória de ter visto, talvez se possa tentar
aquilo a que poderíamos chamar – se me é permitido, por momentos, alterar o título
deste encontro – um auto-retrato do artista enquanto agora. E o meu retrato enquanto
agora é um rosto que há-de vir.
É um rosto aparecendo, porque é o retrato de uma face que procura desenhar-
se à semelhança de outra face, o rosto do Ressuscitado, a palavra que entregou a
vida e que, aberta, é a única fonte da vida e a própria vida. O retrato, por isso, é um
rosto com os olhos, os lábios, o pensamento, todo o retrato à procura do silêncio
ressuscitado, como Sábado Santo esperando em seu coração, em sua garganta, em
suas mãos, em cada sopro do barro, o canto novo e, necessariamente, pascal.
Nesse rosto, todo desejo de se ver configurado, não são os espinhos, devo
dizer, o que aflige mais. O que mais aflige é o coração aberto; depois de tudo
consumado, do último suspiro na única palavra de tal maneira dada, o silêncio
escorrendo como o sangue: saciando.
O tempo do retrato exposto é o do rosto assim com sede, com essa sede. E só
o conhecerá quem o reconhece, só o verá quem se aproxima pelo interior, pela
sombra, pela penumbra, onde o rosto se pode revelar e desvelar pela escuta, porque
quem começa pela escuta pode ver.
134

Falo na escuta, ouvindo repetidamente o começo do prólogo da Regra de S.


Bento, as palavras que agora, e nunca como agora e para além do agora me proponho
ouvir na fidelidade que o amor exige: Ausculta, o fili – “Escuta, filho, os preceitos do
Mestre e inclina o ouvido do teu coração”. Inclino-me, pois. Inclino o rosto apressado
de discípulo, e vejo que não tropece subindo os doze degraus.
O autor que sou nem sempre é a minha vida subindo. Mas subo amparado pela
obediência que tento equilibrar nas mãos. Tento, também, explicar que procuro um
silêncio para quem sobe de noite, e a noite, digo, é a pergunta: será que, falando,
impedirei que se oiça a palavra que é Princípio e Fim?
Podem responder-me que não tenho poder para tanto. Mas tenho, entretanto,
poder para calar-me, e é estranho que haja homens que não se assustem com um
poder assim.
O retrato do poeta enquanto agora é a minha mudez interrogando esta
pergunta. É um rosto que espera e medita paciente, porque sabe que nem sempre
por onde existe a luz é que passa o caminho.
O meu retrato é um homem que observa as suas mãos. É um coração que
repete os versos de Herberto Helder: “Encontrei depois o lugar/ onde deitar a cabeça
e não ser mais ninguém/ que se saiba”.
Encontrei depois, porque, de facto, só encontrei depois.
Eu já sabia que o lugar era a pedra, mas só depois fiz da pedra o meu lugar.
Encontrei como entrar nela pelo seu lado aberto, descansar em sua pulsação até não
ser mais ninguém. A completa presença na única presença, para ser, à sua
semelhança, tudo em todos.
Tento dizer, finalmente, que procuro cada dia um modo de engolir a voz, até
que esse pulsar ocupe todos os movimentos do corpo, da memória, do amor. Até não
ser mais ninguém que se saiba, peregrino perdendo tudo e até o caminho, que só a
planura da sua mão detém.
O retrato do artista – o meu – agora, é um rosto desviando-se.
Não se esconde. Não se afasta. Apenas olha numa outra direcção.
135
136

ANEXO II – DANIEL FARIA: O POETA QUE VAI SER MONGE

Entrevista de Francisco Duarte Mangas e foto de Augusto Baptista


23 de junho de 1998
A cara da notícia: Daniel Faria 27 anos poeta.

«Guarda a manhã/ tudo mais se pode tresmalhar» É esta a forma de Daniel Faria
estar na vida. Natural de Baltar (Paredes), foi para o seminário aos 12 anos. Tirou
teologia e vai licenciar-se em estudos portugueses. Em novembro entra como noviço
no Mosteiro de Singeverga. Lê Herberto Hélder, Ruy Belo, Sophia, Rilke, Borges,
Luísa Neto Jorge e Cecília Meireles, entre outros. Lê e escreve para «explicar o
inexplicável». Se não tivesse perdido uma disquete com poemas, não teria publicado
Homens que São como Lugares mal Situados e Explicações das Árvores e de Outros
Animais (Fundação Manuel Leão). Por vezes, os acidentes são bons.

«Trazer um poema à superfície é uma experiência» e um exercício de obediência, diz


o futuro noviço de Singeverga. O seu funcionamento interior «é muito do fogo» diz
Daniel Faria. Poeta surpreendente, futuro monge beneditino.

Ao escrever está a «trabalhar no mecanismo secreto do amor»?


Eu escrevo para os outros. Mas quando nós publicamos, perdemos os poemas – eu
senti isso. Há uma certa fase em que eu já não consigo ler o que escrevo, é quase um
processo de desamor. Depois, os leitores devolvem-nos o livro. O mecanismo secreto
do amor é esse processo de diálogo, com a escrita, com os poemas entre si, na
intertextualidade dos poemas com outros autores.

Os monges de Singeverga gostaram de ler os livros?


É uma comunidade envelhecida. O tipo de leitura de fizeram é muito diferente. Esta
poesia é para eles um pouco estranha. Foi muito bonito, uma lição de humildade:
vieram ter comigo a pedir que eu lhes explicasse ou ensinasse a ler este tipo de
poesia. A sensibilidade também se educa.
137

Os seus poemas são feitos de luminosidade («se acender uma luz/ não morrerei
sozinho»). Porquê essa obsessão da claridade?
Eu nunca tive medo do escuro. Mas acho que tem a ver com um fascínio de infância.
A minha primeira ida à igreja foi um fascínio: o fascínio da luz. A luz dos azulejos, a
luz da vela, das vestes.

Eu fiquei perturbado com o olhar dos santos…


Foi? A mim foi a luz. Como a minha casa é humilde, o brilho da talha ainda me
impressionou mais. Claro que, depois, toda a nossa formação está ligada à dimensão
da luz, mas isso já tem referências bíblicas. Há outra coisa: o meu funcionamento
interior é muito do fogo.

Julguei que essa obsessão vinha da Regra. No prólogo, São Bento diz: «Correi
enquanto tiverdes a luz da vida.»
Exato. Mas São Bento apareceu mais tarde. Em Explicação das Árvores e de Outros
Animais, a luz tem a ver com a escrita, sobretudo com o aprender a eliminar. Os
poemas surgem, mas depois temos de aprender a enxugá-los; a dar-lhes claridade.
Trazer um poemas à superfície é uma experiência única.

O ambiente rural também está presente. É este, ainda e sempre, o mundo dos
despojados beneditinos?
A vida monástica está muito ligada ao mundo rural. Mas esse mundo rural, que
aparece nos livros, vem da minha infância. Vivi num lugar rodeado de montes e
campos, a nossa família sempre trabalhou a terra: isso marcou-me; queria ver os
desenhos animados e tinha que ir apanhar erva. Essa vivência do ritmo da lavoura
acaba por interferir com a nossa vida, é das coisas que dá mais equilíbrio à vida
monástica.

«Há uma voz que bebo», diz num dos poemas. Quem é a voz?
Não sei quem falava que o poema se escuta. Não sei se era o Pessoa e Sophia vem
falar disso e retomar Pessoa não sei. Tenho a certeza de uma coisa: a poesia me é
dada. Eu construo-a. O poema escapa-nos completamente. Ele, por nos ser estranho,
acaba por se nos impor. Há poemas que surgem logo; apareceram assim e não lhes
posso tocar. Os poemas de Homens que São Como Lugares Mal Situados não sei
138

bem como os construí – foram escritos no tempo em que eu estava para entrar no
Mosteiro, estava em estado quase de graça absoluta. Senti, então, que os poemas
nos são dados. Construí-los é um exercício de obediência.

Que outros poetas lê?


Por incrível que pareça, não leio muita poesia. Tive a sorte de ter um prefeito no
Seminário que gostava de poesia. Uma coisa que me deu a ler foi Sophia de Melo
Breyner. Há outros poetas que gosto: Rilke, Ramos Rosa e, claro, Herberto Helder…

A sua poesia entra no universo de Herberto.


Claro. Depois do Pessoa não há muitas dúvidas, é o Herberto.

E a seguir é o Daniel Faria.


Não, não sou. De maneira nenhuma. Na adolescência li o Eugénio de Andrade. Um
dia levei-o ao seminário, foi importante esse encontro. Há outros poetas no meu
caminho: Drummond de Andrade, Cecília Meireles…

E o Ruy Belo?
É um poeta fabuloso…

Há pontos comuns no vosso trabalho poético.


Sim. No uso que ele faz dos temas bíblicos, como um grande código, por exemplo.
Ele andou na Opus Dei, essa experiência acabou por marcar a sua poesia. Gosto
muito também do Luísa Neto Jorge e de alguns textos de Jorge Luís Borges.

Você é o «anjo ferido na raiz», que menciona num dos poemas?


Mais do que «uma espécie de anjo ferido». Talvez um anjo atingido na raiz, na sua
dupla dimensão: um ser que aspira a uma certa vivência da esfera divina e alguém
que recebe a sua própria fragilidade. Um anjo ferido na raiz anda mais pela terra do
que pelo céu.

É esse anjo que «conserta as palavras com todos os sentidos em silêncio.»


O silêncio acaba por ser outra das palavras importantes. Na construção do poema
temos essa perceção de que andamos a trabalhar com a matéria dos silêncios. O
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silêncio parece quase a palavra perfeito no seu fim. A poesia, como já disse, é
aprender a eliminar, partindo da descoberta.

«Guarda a manhã tudo o mais se pode tresmalhar.» É essa a sua forma de estar
na via?
É, mas tem a ver com o só Deus basta. Tudo o mais se pode tresmalhar. É preciso
guardar a luz essencial, e para mim a luz essencial é sempre a luz da manhã.

Porque razão publicou os dois livros em simultâneo?


Foi um acidente. Nas últimas férias um amigo emprestou-me um computador para eu
bater a minha tese de licenciatura em teologia. Foi nesse tempo que passei os dois
livros. Depois devolvi o computador e guardei os poemas em disquete. Um dia levei a
disquete para a faculdade e perdi-a. Confesso que me fez alguma mossa pensar que
os poemas podiam ser publicados por outra pessoa. Não havia outra solução:
publiquei os livros.

É um homem feliz?
Sim. E bem situado.

«Tive de deixar muitas coisas de que gostava»

Na opinião de Daniel Faria a vida monástica não é «uma espécie se mina antipessoal:
quem calca fica amputado»

O que o levou a seguir a vida monástica?


Eu não tenho uma explicação para isso. Lá está: é explicar o inexplicável. Nunca
percebi muito bem aquilo que diziam de «ser chamado» ou isso de ter uma vocação.
Nós somos mais empurrados porque chamados. Sinto, isso sei, que o meu lugar é na
vida monástica. O que se pretende na vida monástica é o testemunho do inexplicável.
Santa Teresa dizia que só Deus basta – o monge tem que testemunhar antes de mais,
que só Deus basta. Há coisas muito importantes na vida, de facto. Coisa de que
gostava muito, mas tive de deixar…
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Quais?
O cinema, por exemplo; o teatro. A possibilidade de ir a uma livraria comprar um livro.

Vai deixar de poder comprar livros?


Vou deixar de o fazer com esta liberdade, porque preciso de pedir dinheiro para os
comprar. No mosteiro os livros vêm para a biblioteca, são pedidos pela biblioteca. Se
chegar a uma livraria e tiver trazido dinheiro posso comprar, mas terei sempre de pedir
autorização para comprar esse tipo de livros. Ir para monge hoje é um bocadinho
explicar o inexplicável; há muita gente que tem a perceção de que a vida monástica é
uma espécie de mina antipessoal: quem calca fica amputado.

Mas fica um pouco «amputado».


Como todas as opções: é escolher entre várias possibilidades. A gente escolhe, deixa
outras. Mas isto significa encontrar o seu lugar, um caminho de felicidade. Digo
felicidade no sentido que tem o latim felix. No latim, feliz está ligado à lavoura, significa
ser fértil. Ser feliz é ser fecundo. Só um homem no seu lugar, que encontra o seu
espaço, o lugar de ter raiz, é que é capaz de fortificar e de completar-se em todas as
suas dimensões. Aquilo não me limita, completa-me.

Só Deus basta, portanto.


Só Deus basta. Só Deus basta, de facto. Mas é possível testemunhar que só Deus
basta vivendo de outra maneira. Nós testemunhamos desta forma mais radical…

…e isolada.
Sim, é um pouco mais estranha. Nós estamos numa época que aprendeu a valorizar
– e a igreja também o fez – as solidariedades humanas, o estar presente. Então, as
pessoas perguntam-me o que eu vou fazer para um mosteiro quando é preciso ficar
cá fora. Nós acreditamos na dimensão da oração. Através dela se santifica o mundo,
no sentido de que a santidade de um homem atinge outros homens…

Não acha, por exemplo, que a teologia da libertação é mais eficaz para salvar o
mundo?
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Se tivermos uma visão pragmática da vida, por ser mais visível imediatamente. Esse
é um modo possível, há outros. A iniciativa é sempre de Deus – a ação é de Deus, a
reação é do homem.

[Fonte: Gazeta literária, n. 5, p. 25, primavera/verão 2019. Edição da AJHLP.]


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ANEXO III – CARTA DE DANIEL FARIA A FRANCISCO DUARTE MANGAS

Singeverga, 9 junho 1998

Francisco

Eu bem sabia que existiam explicações de outros animais e que não as


conhecia. Poemas/animais tão vivos e tão frágeis que se encostam à margem da
página, quase fugindo, porque também eles “procuram para morrer/ a solidão
aromática/ das urzes”. “O lince/ tem os olhos em extinção”: para que o visível se veja,
também os poemas!
Apreciei o teu – permite a liberdade de te retribuir a gentileza deste tratamento
– ofício executado entre “o murmúrio triste/ do choupo/ junto à poça” e o latir dos cães
nunca mais alto do que a árvore. A tarefa humilde de “pouco mais [saberes] dizer/ da
transumância da água”. E o que disseste nos basta. Porque a poucos é dado num
“pequeno livro da terra” – e térreo! – dizer, tão sossegadamente, “as coisas pobres e
simples”.
Fico-te grato pelo livro*, pela entrevista e por tudo o mais.
Um abraço

Daniel

P.S. Só depois da entrevista fui capaz de pensar em algumas coisas em que nunca
pensara: por exemplo, creio que a importância da luz se prende com a permanente
interrogação que se coloca quem, de algum modo, se sente chamado à vocação
sacerdotal ou a uma vocação religiosa – creio que, como para nenhum outro, para
esses se torna serena urgência a luz, o ver inteiro, a presença abundante, e nunca
suficiente, dos sinais; outro exemplo – a “voz que bebo” é, antes de mais, a voz do
poema; e o poema constrói-se a si mesmo, por isso eu disse que escrever é um
exercício de obediência.
Já agora, queria também aproveitar para corrigir uma injustiça: os mais novos da
comunidade, isto é, postulante, noviço e os dois monges mais novos, não só
apreciaram os livros, como os restantes monges, como gostaram dos poemas.
Finalmente, convido-te a visitares Singeverga. Terei muito gosto em te receber.
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*Pequeno Livro da Terra, ed. Teorema, 1996.

[Fonte: Gazeta literária, n. 5, p. 25, primavera/verão 2019. Edição da AJHLP.]

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