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ISABELLA MARTINO
Guarulhos
2023
ISABELLA MARTINO
Guarulhos
2023
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais no 9610/98,
autorizo a publicação livre e gratuita desse trabalho no Repositório Institucional da UNIFESP ou em
outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos autorais para leitura,
impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação intelectual, desde que citada a
fonte.
Martino, Isabella.
“Cada um é um lugar para os outros”: encontro de Daniel Faria com Sophia
de Mello Breyner Andresen / Isabella Martino. – Guarulhos, 2023.
139 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de São Paulo,
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2023.
Aprovado em:
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Leonardo Garcia Santos Gandolfi (Orientador)
Universidade Federal de São Paulo
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Francine Weiss Ricieri
Universidade Federal de São Paulo
___________________________________________________________________
Profa. Dra. Ida Maria Santos Ferreira Alves
Universidade Federal Fluminense
Para a minha avó, Idalina Gandolfi,
cujo maior sonho era ter aprendido a ler e a escrever.
AGRADECIMENTOS
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
Herberto Helder
Esta pesquisa visa analisar como a poesia de Daniel Faria é ancorada por certas
referências que ecoam a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Primeiramente, elucidamos a forma epifânica com que os poetas concebem a palavra
poética, a partir de um modo de escuta atrelado a um rigoroso trabalho de escrita. Em
seguida, analisamos os principais fundamentos da arte poética de Sophia, bem como
os principais aspectos da arte poética de Daniel Faria, costurando com o que
abordamos em Sophia no tópico anterior. Apresentamos, ainda, reflexões teóricas
sobre a tradição mística e a sua relação com a concepção poética de Daniel Faria e o
modo como ambos os poetas destacam a questão do tempo dividido em suas obras
e traçam palavras de augúrios e lamentos pois visam a unidade desse tempo, a
aliança. Por fim, apresentamos as principais conclusões que este estudo alcançou. A
comparação entre as poéticas de Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner Andresen
contribui para potencializar os estudos comparados entre as literaturas modernas de
Portugal e Brasil.
Palavras-chave: Daniel Faria; Sophia de Mello Breyner Andresen; Poesia portuguesa
contemporânea; Tradição mística; Escrever e atenção.
ABSTRACT
This research aims to analyze how Daniel Faria’s poetry is anchored by certain
references that echo Sophia de Mello Breyner Andresen’s poetry. Firstly, we elucidate
the epiphanic way in which both poets conceive the poetic word, from a way of listening
linked to a rigorous work of writing. Then, we analyze the main foundations of Sophia’s
poetic art, as well as the main aspects of Daniel Faria’s poetic art, linking them to what
we discussed about Sophia in the previous topic. We also present theoretical
reflections on the mystical tradition and its relationship with Daniel Faria’s poetic
conception, and the way in which both poets highlight the issue of divided time in their
works and outline words of omens and lamentations as they aim at the unity of that
time, the alliance. Finally, we present the main conclusions reached by this study. The
comparison between the poetics of Daniel Faria and Sophia de Mello Breyner
Andresen contributes to enhance the comparative studies between the modern
literatures of Portugal and Brazil.
Keywords: Daniel Faria; Sophia de Mello Breyner Andresen; Portuguese
contemporary poetry; Mystic Tradition, Writing and attention.
SUMÁRIO
2 ACONTECERAM-NOS POEMAS 20
2.1 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM SOPHIA 35
2.2 EXPLICAÇÕES DA PALAVRA POÉTICA EM DANIEL 51
5 CONCLUSÃO 118
REFERÊNCIAS 123
ANEXOS 133
11
Com o autor, compreendemos que nenhum poeta, “nenhum artista, tem sua
significação completa sozinho” (p. 39). Consideramos interessante, por isso, uma
proposta de pesquisa que revele e traga à superfície camadas formais e temáticas de
Daniel Faria a partir da relação e do tensionamento com uma escritora da tradição
moderna de Portugal do século XX: Sophia de Mello Breyner Andresen.
Nestas páginas, algumas características temáticas e formais da obra de Daniel
Faria (1971-1999) serão discutidas a partir da leitura da obra desta outra poeta. Como
escreve Carlos Drummond de Andrade (2003, p. 180), “se eu morrer, morre comigo/
um certo modo de ver”: é a partir desse “modo de ver” a existência e de escrever
poesia que iremos comparar as obras de ambos os autores, para compreendermos,
com mais profundidade, o projeto poético de Daniel Faria.
A escolha da poesia de Sophia para justapor à poesia de Daniel não foi
aleatória. Nas poucas entrevistas que o poeta deu, ele menciona alguns nomes que o
afetam enquanto leitor, como nesta declaração feita ao jornalista Francisco Duarte
Mangas, em 1998, e republicada pelo Correio do Porto, em 2019, com o título “Daniel
Faria: o poeta que ia ser monge”:
Por incrível que pareça, não leio muita poesia. Tive a sorte de ter um prefeito
no Seminário que gostava de poesia. Uma coisa que me deu a ler foi Sophia
12
de Mello Breyner. Há outros poetas que gosto: Rilke, Ramos Rosa e, claro,
Herberto Helder […] Na adolescência li o Eugénio de Andrade. Um dia levei-
o ao seminário, foi importante esse encontro. Há outros poetas no meu
caminho: Drummond de Andrade, Cecília Meireles […] [De Ruy Belo me
aproximo] no uso que ele faz dos temas bíblicos, como um grande código,
por exemplo. Ele andou na Opus Dei, essa experiência acabou por marcar a
sua poesia. Gosto muito também do [sic] Luiza Neto Jorge e de alguns textos
de Jorge Luis Borges. (Faria, 2019c, s/p.)
[…] O tempo do retrato exposto é o do rosto assim com sede, com essa sede.
E só o conhecerá quem o reconhece, só o verá quem se aproxima pelo
interior, pela sombra, pela penumbra, onde o rosto se pode revelar e desvelar
pela escuta, porque quem começa pela escuta pode ver. (Faria apud Fino,
2008, p. 428)
sem dúvida, uma das vozes mais importantes da nova poesia portuguesa da
década de 90 […] não só pelo caminho místico que a norteia e a faz elevar-
se muitas vezes sobre esse novo realismo, que vindo da década de 70 ainda
apaixona muitos poetas desta década, mas também pela especificidade
poética que esta poesia revela e constitui como um (auto)programa muito
próprio. (Costa, 2004, p. 40)
Somos afetados por essas outras vozes e escrevemos sob a ética do afeto, da
amizade, algo que consideramos crucial, por ter como objeto a poesia de Daniel Faria.
Para o autor, os amigos foram motes de escrita, de sentido e de existência, sua coluna
dorsal, a tal ponto que o poeta dedicou inúmeros poemas à fruição de seus amigos,
como, por exemplo, a Joaquim Nunes, cujo breve volume manuscrito denominado O
livro do Joaquim foi redigido ao longo de pelo menos três anos, entre 1993 e 1996,
17
exclusivamente para ele (e publicado postumamente, em 2019, pela editora Assírio &
Alvim, com a reprodução em fac-símile da última versão do manuscrito redigido por
Daniel Faria). Segundo Francisco Saraiva Fino, que edita o livro e escreve o seu
posfácio,
Daniel também dedicou outros textos a amigos, como “O país de Deus”, que foi
manuscrito num rolo de papel de calculadora e guardado num pequeno pote de barro
tapado com uma rolha de cortiça. Conforme cita Alexandra Lucas Coelho no artigo
intitulado “O rapaz raro” (2001, s/p.), é com os amigos que Daniel constrói “a sua
família de todos os dias, numa entrega e dedicação cada vez mais profunda”. Os
testemunhos dos entrevistados, neste texto, revelam uma capacidade de “dádiva
luminosa e inventiva, de que centenas de bilhetes, cartas, poemas, desenhos,
colagens são vestígios apenas mínimos sobre sua dedicação aos amigos” (Coelho,
2001, s/p.).
Segundo o bispo Carlos Azevedo, que conviveu em proximidade com o autor,
“Daniel tem a arte de criar amigos. Assim foi nos dias breves do seu itinerário entre
nós e assim continua em nós leitores” (Azevedo apud Madureira, 2021, s/p.). É a partir
dessa postura, de um poeta que existiu e exerceu a sua “arte de criar amigos”, que
nos comprometemos como leitores a promover o encontro dos textos dele com os de
Sophia, um diálogo que registra as diversas comoções oriundas desse encontro.
Como entendemos que as verdadeiras amizades prezam pela distância e pelo
delineamento da alteridade, visamos, também, ressaltar aquilo que os diferencia.
Inclusive, Daniel Faria entendia que a diferença é o que realmente une:
2 ACONTECERAM-NOS POEMAS
Por um lado, julgo que poesia e religião brotam da mesma fonte e que não é
possível dissociar o poema da sua pretensão de mudar o homem sem correr
o risco de transformá-lo numa forma inofensiva de literatura; por outro lado,
acredito que a missão prometeica da poesia moderna consiste em sua
beligerância em relação à religião, fonte da sua deliberada intenção de criar
um “sagrado”, diante do que as igrejas atuais nos oferecem. (Paz, 2014, p.
124).
O autor frisa que a principal diferença é que a “palavra poética não precisa de
autoridade divina” (2014, p. 144), mas tanto a religião quanto a poesia trazem, no
sagrado, a produção do sublime:
Para ele, ainda, o próprio fazer poético (2014, p. 15) “é exercício espiritual […].
Súplica ao vazio, diálogo com a ausência […]. Oração, litania, epifania, presença”.
Podemos identificar um diálogo com a ausência em ambos os projetos poéticos aqui
comparados, com a articulação de um sistema de imagens específico em cada obra.
É possível compreender que a trajetória biográfica de Daniel Faria contribuiu para
essa “atitude espiritualizada” em relação ao mundo, e isso resvala na sua criação
poética, mas esta extrapola e é ampliada pela sua erudição e pelo seu conhecimento
vasto, de modo especial, da literatura e do teatro, chegando o poeta, inclusive, a
realizar a licenciatura em Estudos Portugueses, na Faculdade de Letras do Porto. É
somente quando termina a Faculdade de Letras que ele inicia uma vida monástica
22
impediu de buscar restabelecer, através da poesia, a unidade com o mundo; como ele
afirma, a autora é:
Como, onde e por quem é feito esse poema que acontece, que aparece como
já feito? A esse “como, onde e por quem” os antigos chamavam Musa. É
possível dar-lhe outros nomes e alguns lhe chamarão o subconsciente, um
subconsciente acumulado, enrolado sobre si próprio […]. Por mim, é-me difícil
nomear aquilo que não distingo bem. É-me difícil, talvez impossível, distinguir
se o poema é feito por mim, em zonas sonâmbulas de mim, ou se é feito em
mim por aquilo que em mim se inscreve. (Andresen, 2015, p. 895-6).
A poeta traça uma reflexão sobre essa voz alheia, sem possuir nenhuma
certeza de sua origem; ela cita a concepção grega antiga a respeito do conceito de
inspiração através da imagem da Musa (a tradição grega, como veremos, é muito cara
à autora e será mencionada em inúmeros momentos na sua poética, traçando uma
relação direta com a sua escrita), e também aborda um aspecto íntimo e subjetivo
desta voz, trazendo referências ao mundo psíquico, sobre o inconsciente, aquilo que
a autora desconhece, algo obscuro que, através da criação poética, emerge e revela
algo de si. O fato é que a poeta não possui a convicção de que aquela voz é dela
própria ou exterior a ela, mas compreende que esse seu modo de escutar integra,
essencialmente, a sua maneira de escrever, conforme ela conclui:
Deixar que o poema se diga por si, sem intervenção minha (ou sem
intervenção que eu veja), como quem segue um ditado (que ora é mais nítido,
ora mais confuso), é a minha maneira de escrever. (Andresen, 2015, p. 895-
6)
Não sei quem falava que o poema se escuta. Não sei se era o Pessoa e
Sophia vem falar disso e retoma Pessoa não sei. Tenho a certeza de uma
coisa: a poesia me é dada. Eu construo-a. O poema escapa-nos
completamente. Ele, por nos ser estranho, acaba por se nos impor. Há
poemas que surgem logo; apareceram assim e não lhes posso tocar. Os
poemas de Homens que São Como Lugares Mal Situados não sei bem como
os construí – foram escritos no tempo em que eu estava para entrar no
Mosteiro, estava em estado quase de graça absoluta. Senti, então, que os
poemas nos são dados. Construí-los é um exercício de obediência. (Faria,
2019c, s/p.)
Assim como Sophia, o poeta sente que os poemas lhe “são dados”, que eles
escapam completamente, no conceito do “aparecer”, “emergir”, “surgir”. Interessante
notar que, nesta passagem, ele descreve um aspecto do processo criativo do seu livro
Homens que são como lugares mal situados, lançado em 1998, como uma experiência
próxima ao fenômeno do êxtase (“estava quase em estado de graça absoluta”), como
30
seja, a escuta perpassa o órgão que simboliza o sentimento do amor, que pulsa o
sangue da vitalidade. Também nesta declaração, o poeta escreve a solicitação a que
ele deve atender: “escuta, filho”. A continuação da passagem (Provérbios 4, 20-2)
revela o motivo deste pedido de Deus: “porque [as palavras] são vida para os que as
acham, e saúde para todo o seu corpo”.
A concepção do sagrado, portanto, está completamente entrelaçada ao nome,
à palavra poética que é ouvida, gestada e comunicada. Há um poema no livro Homens
que são como lugares mal situados, publicado em 1998, com os seguintes versos: “Há
uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco/ A sede. A água
multiplica-se porque a tiro do coração/ Que escuta.// Há um espaço no corpo que pode
ser um lugar./ À sombra posso olhá-lo até o ver […]” (Faria, 2015, p. 133). Há um
lugar, uma espacialidade para onde o poeta recua a fim de entrar em contato com a
espiritualidade e elaborar o sentido. Esse espaço pode ser interpretado, também,
como um estado interior, de introspecção, “um espaço no corpo que pode ser um
lugar”, um espaço ausente de som e ruído, ou seja, silencioso, para que, desta forma,
se possa ver (reconhecer os sinais sagrados).
Em sua poesia, como na de Sophia, a concepção da presença divina será
representada por uma ausência (não à toa, ambos os poetas irão expressar, em seus
versos, a angústia ocasionada pela sensação de perda permanente). O coração, em
silêncio, “escuta”; o verbo “escutar” reforça o paradoxo da ausência de som, como se,
para ouvir o divino, nenhum ruído pudesse existir. Daniel afirma que há uma “voz” que
ele “bebe”, ou seja, essa voz é corporificada, ingerida e mesclada ao corpo do poeta
como um processo fusional.
No poema “As fontes”, do livro Poesia (1944), Sophia também escreve versos
em que “bebe” uma voz: “Irei beber a luz e o amanhecer,/ Irei beber a voz dessa
promessa/ Que às vezes como um voo me atravessa,/ E nela cumprirei todo o meu
ser” (Andresen, 2015 [1944], p. 106), revelando também uma voz ingerida, fusionada,
unificada ao corpo da poeta. Podemos identificar, nessa aproximação entre os poetas,
um desejo de realização suprema, de busca de fusão, de plenitude do ser – no caso
dos poemas ora apresentados, uma voz que se bebe, algo como uma “outra” voz,
alheia, que é fusionada com a do próprio poeta, como nos versos com que Sophia
encerra seu texto “Arte poética V” (2015 [1988], p. 898), lido na Sorbonne, em 1988:
“A voz sobe os últimos degraus/ Oiço a palavra alada impessoal/ Que reconheço por
não ser já minha”.
32
Daniel expressa como a luz invoca uma presença, enquanto o som, a escuta,
implicam a necessária e absoluta ausência de ruído ao redor. A materialidade das
palavras, os seus fonemas, ritmos, sons, sílabas, a disposição delas e dos versos na
superfície em branco, configuram uma tradução do inefável; por isso, para Daniel, a
escrita “é um exercício de obediência”, porque a palavra e o silêncio são matérias
artesanais do mistério e, para que o poema emerja, é preciso estar mergulhado em
atenção, silêncio e solidão.
Em muitas ocasiões, o poeta aproxima a imagem do seu ofício com a do
lavrador, aquele que lavra arduamente a terra para que dela nasça e cresça o
alimento. Conforme cita Francisco Saraiva Fino, no texto “Regressos”, do livro A
multiplicação do espaço: ensaios sobre a poesia de Daniel Faria, a escrita do poema
não depende somente do esforço pessoal, mas necessita de “um momento de
imposição ao real do olhar depurador ou transformador” (Fino, 2020, p. 66). No livro
Explicação das árvores e de outros animais, publicado em 1998, há um poema em
que a enxada é o sinônimo de trabalho e lapidação da escrita, e há a presença do
sentimento de cansaço do sujeito lírico como reiteração do trabalho extensivo e
inesgotável de cavar, ou seja, de criar, com a materialidade do silêncio, a palavra para
que a terra, o poema, frutifique:
EXPLICAÇÃO DO POETA
São trechos que apresentam a visão existencial espiritualista dos poetas, como
sujeitos que carregam uma cosmovisão de matriz existencialista e também dialética,
porque habitam polos contrários. Os autores, portanto, possuem uma concepção
religiosa da existência e visam alcançar um tempo absoluto, unificado, oposto a um
tempo dividido, dessacralizado. Embora a criação poética de Daniel Faria ocorra
muitos anos depois do regime salazarista, há o testemunho de um desejo de habitar
um tempo perfeito, oriundo, principalmente, de uma fé e moral cristã, e há a angústia
de existir em um tempo marcado pela disforia e descrença.
Tanto Daniel quanto Sophia concebem a figura do poeta como medianeiro do
inefável, aquele que visa a religação com um tempo único, perfeito, sacralizado,
harmônico, belo, preenchido de plenitude. São poetas que se colocam na busca
incessante daquilo que é indescritível, porém, experenciado. Uma forma de
obstinação de encontrar a palavra para comunicar a experiência. Em “Poesia e
Realidade”, publicado em 1960, Sophia (1960, p.50) escreve: “a união com a Poesia
(…) é a finalidade do poeta. Mas por mais real que seja o encontro, nunca é total; por
mais funda que seja a união, nunca é absoluta. (…) Há sempre uma lacuna (…) nesta
distância que o separa dos deuses.”
Se essa postura é semelhante e os aproxima em alguns aspectos – como no
uso intensivo de símbolos e alegorias, na evocação de mitos e referências clássicas,
na busca por um silêncio primordial e na importância da acústica para a musicalidade
do verso –, há, na mesma medida, inúmeros e importantes distanciamentos que
articulam modos específicos de lidar com cada um desses temas e de expressá-los,
e são esses aspectos que serão detalhados nos próximos tópicos. Começaremos por
analisar o modo específico como Sophia concebe e comunica a palavra poética e
como esse processo de criação é atravessado pela escuta e atenção e conta com a
participação ativa dos sentidos da visão e da audição para possibilitar que o verso se
escreva na página em branco. Apresentaremos primeiro estes conceitos na obra
poética de Sophia para, depois, analisarmos esses mesmos aspectos na poesia de
Daniel Faria, traçando análises comparativas.
35
existência: “sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi
sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica
preso” (1960, p. 53). Essa forma de apreender o real é o modo como a autora irá
imbuir presença no mundo e em si mesma. Tal concepção é apresentada no texto
“Arte Poética III”:
A coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro
do qual estava, poisada em cima de uma mesa, uma maçã enorme e
vermelha. Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade
irrecusável, nua e inteira. Não era nada de fantástico, não era nada de
imaginário: era a própria presença do real que eu descobria. (Andresen, 2015,
p. 893)
Os elementos primordiais (terra, água, fogo e ar) perpassam toda a sua obra.
A autora via, nesses elementos, aquilo que estava presente na origem do mundo;
elementos, portanto, que preservam uma gênese, que estão imbuídos de sacralidade.
Muitas vezes, esses elementos poderão ser lidos, em seus poemas, como imagens
que traduzem aspectos do seu próprio ser, traçando um jogo de identificação entre a
sua identidade e a paisagem; ela vê os elementos naturais do mundo e, através de
um espelhamento subjetivo, revela algo de si própria nesse olhar, como no poema
retirado do seu livro Coral, publicado em Lisboa, em 1950:
Neste poema curto de quatro versos, sendo os três primeiros anafóricos, com
a repetição tripla da estrutura “chamei por mim”, reflete-se um sujeito lírico que evoca
a si mesmo através do instante, do momento (localizado pela conjunção “quando”) em
que se dá a ressonância com elementos naturais (“cantava o mar”, “corriam fontes) e
com seres humanos (no caso, os heróis que morriam). Cada um desses seres “deu
sinal”, ou seja, revelou, apontou, traduziu algo referente ao próprio sujeito lírico.
Sophia, em uma carta a Jorge de Sena, declara que as coisas do mundo
coincidem com as do ser: “[…] é possível que o nosso ser coincida com os seres. E
se assim não acontece é por erro nosso porque não estávamos suficientemente
atentos, e algumas vezes porque, por falta de fé dum momento, não ousamos
acreditar no que reconhecíamos” (Andresen; Sena, 2010, p.116-7). Essa visão de que
37
as coisas do mundo coincidem com as coisas do ser pode se relacionar ao ser humano
entregue à escuta que Jean-Luc Nancy (2013, p. 162), filósofo francês, no seu livro À
escuta, descreveu, tendo como mote a seguinte questão: “o que é um ser entregue à
escuta, formado por ela ou nela, escutando com todo o seu ser?”.
O autor chega à conclusão de que o “escutar” mantém uma relação particular
com o sentido, na acepção intelectual ou inteligível da palavra, mas não se restringe
somente a isso, porque, além do fazer sentido, todo escutar pressupõe uma
“ressonância”: “em todo dizer […] há um escutar, e no próprio escutar, em seu fundo,
uma escuta”; o que o autor expressa é que é necessário que o sentido não se restrinja
“a fazer sentido (ou de ser logos), mas que além disso ressoe” (Nancy, 2013, p. 163,
grifo do original). Desse modo, “a escuta é antes ouvida como ritmo e é como ritmo
que a linguagem falada é inaugurada no mundo, como reverberação para a fala do
que já foi ouvido e escutado anteriormente” (Wenzel; Richter, 2019, p. 8).
Em Sophia, há a tentativa de coincidir o ver e o ouvir, como a pesquisadora
Silvina Rodrigues Lopes (1990, p. 24) afirma: “a relação entre ver e ouvir participa, na
poesia de Sophia, de uma relação entre o fluir de um canto sagrado, unificador,
mágico e o visível ou aparência da diversidade”. E, ao buscar a coincidência do ver e
do ouvir, Sophia vai “sacrificar o canto sagrado ao canto do poema, canto que constrói
sobre a memória do visível, canto que torna de novo visível o que desapareceu no
instante em que o olhar o tocou” (Lopes, 1990, p. 24). Ou seja, a memória daquilo que
foi visto será evocada junto a um ritmo, a uma cadência que participa ativamente do
seu processo de criação poética.
Segundo a pesquisadora Rosa Maria Martelo (2011, p. 61), o ato da escrita, em
Sophia, percebe o poema como “imagem (perceptiva) e som, indistintamente
convergindo”, ou seja, o poema é, ao mesmo tempo, imagem sonora e visual:
O que Sophia procura nas coisas, na literalidade com que tantas vezes evoca
o visível na sua poesia, é precisamente a intensidade que nele reconhece, ou
seja, isso que o devolve ao sagrado […]. E o que parece estar em causa é
precisamente a intensidade do mundo no poema, já que apenas no poema
esta pode surgir. (Martelo, 2011, p. 61)
POEMA
silabada”) para adentrar uma presença que finca uma marca (“grava no espaço e no
tempo” essa materialidade). Quando o sujeito lírico afirma “o meu interior é uma
atenção voltada para fora”, é possível pensarmos nessa escuta como uma espécie de
ressonância que vibra em conjunto com o ritmo das coisas materiais externas ao
sujeito, e, para que isso aconteça, é necessário um estado de sensibilidade e atenção
que promova a “abertura”, como tal verso declara; é nessa abertura que se dá a
ruptura, a ligação com o transcendente, o que é reiterado por uma fala da própria
autora: “o nascer do poema só é possível a partir daquela forma de ser, estar e viver
que me torna sensível – como a película de um filme – ao ser e ao aparecer das
coisas” (Andresen, 2015, p. 896).
Em “Escutar, nomear, fazer paisagens”, Silvina Rodrigues Lopes (2003b, p.
57) pensa a escuta como uma ação de recepção ativa, e não somente passiva, em
que “o poeta não é o puro lugar de passagem de algo que foi destinado […]. E escutar
não é tanto somente ouvir, apreender sonoridades e sentidos, mas é essencialmente
vibrar com o exterior”. Podemos utilizar essa afirmação como complemento à análise
do poema acima; além de vibrar com o exterior, de entrar em um estado de
sensibilidade em que a materialidade ao redor reverbera no ser que a olha, é
necessário, para Sophia, comunicar, trazer à tona o nome e as reverberações dessa
materialidade, para configurar, de forma clara, o real e atingir algo próximo a um
testemunho metafísico: “a frase que de coisa em coisa silabada/ Grava no espaço e
no tempo a sua escrita”. A poeta concebe o poema como a uma inscrição ou gravura,
de modo análogo aos versos do poema “Gravura”, de Gastão Cruz, do livro A moeda
do tempo (2006), uma afirmação do poema como mecanismo contra a efemeridade:
“força as linhas do seu significado/ como se para alguma eternidade/ ilusória as
gravasse, assim o poeta” (Cruz, 2009, p. 38).
Em um outro texto, sem data, que foi encontrado entre os papéis da poeta e
publicado postumamente, vemos a nítida afirmação ôntica e religiosa sobre a pertença
do ser: “Não quero possuir a terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem
dominar porque quero ser: esta é a necessidade”, conforme explicitamos no trecho
completo abaixo:
Dai-me a casa vazia e simples onde a luz é preciosa. Dai-me a beleza intensa
e nua do que é frugal. Quero comer devagar e gravemente como aquele que
sabe o contorno carnudo e o peso grave das coisas. Não quero possuir a
terra mas ser um com ela. Não quero possuir nem dominar porque quero ser:
esta é a necessidade. Com veemência e fúria defendo a fidelidade ao estar
41
Isso entra em completa concordância com a ideia de uma rotura (abertura) para
a vivência de um tempo mítico, ou seja, sacralizado, um tempo suspenso, paralisado:
não à toa, a cadência e a medida rítmica do verso serão muito importantes para
Sophia e para Daniel, que irão produzir, em suas obras, poemas que abordam esse
tempo suspenso em sua forma e seu ritmo. Restabelecer o ritmo sagrado da origem
equivale a se tornar contemporâneo dos deuses; portanto, é uma forma de viver na
presença deles, próximo a eles – embora esta presença seja sempre misteriosa.
No texto “Arte Poética IV”, Sophia de Mello afirma a importância da percepção
do som, das vozes e dos instrumentos para, depois, transmitir uma “forma” de poema
musical na mente dos seus leitores (inscrever o ritmo e a cadência encantatória para
que, assim como ela, o leitor também reverbere o ritmo do mistério). Como vimos, o
mar, para a autora, é a hierofania suprema, o lugar, por excelência, de um tempo puro
44
MAR SONORO
Com o mar, Sophia aprendeu a estética da bela forma, como ela afirma nos
versos do poema “Foi no mar que aprendi”, de O búzio de Cós (2015, p. 863, grifo
nosso): “Foi no mar que aprendi o gosto da forma bela/ Ao olhar sem fim o sucessivo/
Inchar e desabar da vaga/ A bela curva luzidia do seu dorso/ O longo espraiar das
mãos de espuma […]”.
A relação entre o ver e o escutar participa, na poesia de Sophia, segundo a
pesquisadora Silvina Rodrigues Lopes, “de uma relação entre o fluir de um canto
sagrado, unificador, mágico e o visível” (1990, p. 24). Sophia deseja fundir-se com
esse espaço primordial que ela vê; nas palavras de Eliade, é, justamente, uma
paisagem em que “os deuses e os antepassados míticos estavam presentes, quer
dizer, estavam em via de criar o mundo, ou organizá-lo ou de revelar aos homens os
fundamentos da civilização” (Eliade, 2018, p. 81). No poema “Apolo Musageta”, escrito
por Sophia no livro Poesia, publicado em 1944, podemos identificar a busca do sujeito
lírico em apontar um tempo primordial, primeiro, inteiro e puro, em que estaria o “ritmo
secreto das coisas” – o que podemos ler como o ritmo “mágico” que Gumbrecht
aborda:
APOLO MUSAGETA
Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.
Friedrich afirma que, na visão dos gregos, não há “milagre”, pois eles negam a
transcendência; já que o mundo pagão se atém ao vivido e ao real, a divindade, para
os gregos, é imanente, está presente no mundo junto com os homens – e é por isso
que Sophia partirá da imanência para visar atingir a transcendência. Jaa Torrano
(1995, p. 30), pesquisador e tradutor da obra de Hesíodo, argumenta a respeito da
concepção do sagrado na cultura grega: “a experiência do sagrado é a mais viva
experiência do que é o mais real, e é a mais vivificante experiência de realidade”.
Seguindo a linha de pensamento do autor, Sophia estaria identificada com o espírito
grego, na ideia de que a experiência sagrada vivifica a experiência do real, e o ato de
nomear está, para a autora, relacionado diretamente com esse processo: através do
nome, da nomeação da palavra, é possível se apropriar dessa realidade.
No poema “Liberdade”, de O nome das coisas (1977), a poeta escreve os
seguintes versos: “Um poema não se programa/ Porém a disciplina/ – Sílaba por
sílaba –/ O acompanha// Sílaba por sílaba/ O poema emerge/ – Como se os deuses o
dessem/ O fazemos” (Andresen, 2015, p. 677) – não são somente os deuses que
sopram a inspiração do poema, também a poeta labuta, trabalha artesanalmente para
o poema emergir, é agente dessa criação. É por isso que Gastão Cruz afirma que o
exercício da linguagem, em Sophia, é, por excelência, a sua forma de estar atenta ao
mundo, em que cada coisa nomeada se destaca com mais clareza e nitidez:
47
“chamando a poesia pelo seu nome, Sophia de Mello Breyner situa-se imediatamente
na posição que sempre será a sua: a absoluta confiança no poder dos nomes e na
força de nomear” (Cruz, 2008, p. 159).
Sophia preza por um olhar clarificador que deixa o real mais vivo, vibrante; ela
tem, portanto, uma postura positiva diante desse real. Não que ela deixe de olhar para
o outro lado: ela não nega o que é injusto, ruim, terrível nesse real – ela, inclusive,
quer olhar para isso de modo frontal –, mas, independentemente da situação que esse
real apresentar, ela deseja vê-lo em sua inteireza, de forma transparente: “O meu
olhar tornou-se liso como um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam”, escreve
Sophia no poema em prosa “As grutas” (2015, p. 446).
Para Gastão Cruz (2008, p. 12), “olhar, ver o mundo, muito especialmente o
mundo natural, torna-se a tarefa maior que os poetas propõem a si mesmos”. É um
exercício de contemplação, de adesão ao real, de deslumbramento perante as coisas
espantosas que a natureza exibe; vejamos o poema abaixo, do Livro sexto:
NO POEMA
Gaston Bachelard, no livro A poética do devaneio (1988), vai revelar que esse
primeiro olhar, característico da infância, é o momento em que se encontra a
verdadeira cosmicidade, um princípio de uma vida que é sentida como profunda,
abundante. Para o autor, o poeta é aquele que cantará esse canto cósmico. Aliás, ele
é ainda mais categórico: para Bachelard, “sem canto cósmico não há poesia”,
conforme o trecho abaixo revela:
[…] os vínculos da alma humana e do mundo são fortes. Vive então em nós
não uma memória de história, mas uma memória de cosmos. […]
Os poetas, mais que os biógrafos, dão-nos a essência dessas lembranças do
cosmos. […]
[A] infância permanece em nós como um princípio de vida profunda, de vida
sempre relacionada à possibilidade de recomeçar. […]
Como os arquétipos do fogo, da água e da luz, a infância, que é uma água,
que é um fogo, que se torna uma luz, determina uma superabundância de
arquétipos fundamentais. Nos nossos devaneios voltados para a infância,
todos os arquétipos que ligam o homem ao mundo, que estabelecem um
acordo poético entre o homem e o universo, todos esses arquétipos são, de
certa forma, revivificados.
[…] Gostaríamos tanto de poder demonstrar que a poesia é uma força de
síntese para a existência humana! […]
Assim, basta a palavra de um poeta, a imagem nova mas arquetipicamente
verdadeira, para reencontrarmos os universos da infância. Sem infância não
há verdadeira cosmicidade. Sem canto cósmico não há poesia. O poeta
redesperta em nós a cosmicidade da infância. (Bachelard, 1988, p. 114-21)
É por isso que eu levo a ânfora de barro pálido e ela é para mim preciosa.
Ponho-a sobre o muro em frente do mar. Ela é ali a nova imagem da minha
aliança com as coisas. Aliança ameaçada. Reino que com paixão encontro,
reúno, edifico. Reino vulnerável. Companheiro mortal da eternidade.
(Andresen, 2015, p. 890)
O que Sophia faz com a ânfora é elegê-la como imagem de abertura, a matéria
que provoca uma janela para o sagrado em um mundo dessacralizado; encantada,
portanto, porque simboliza a forma que resistiu ao tempo e à tecnologia, a forma que
não foi corrompida, degradada, a forma bela, inteira, preservada, porque antiga e
contemporânea de uma civilização existente em tempos primordiais: “Olho para a
ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de
beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação” (Andresen, 2015,
p. 889).
A imagem poética servirá, portanto, para ampliar, para dar luz ao visível e para
religar. Como observa Manuel Gusmão (2005, p. 42, grifos do original), os adjetivos
relacionados à “nudez” e à “inteireza” perpassam em constância a poesia
andreseniana: “Nu diz ela que é o seu método. Inteira diz o uno e o maciço do todo,
diz a integridade moral, a fidelidade à promessa de ‘ver o visível’ até o fim”. As
palavras, para a poeta, detêm poder porque estabelecem uma aliança e explicam o
universo, são o encontro da poeta com o real:
É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra
de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas
artesanato.
[…] Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas
palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não
foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas
pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de
estabelecer uma aliança. (Andresen, 2015, p. 891-2)
Daniel Faria publicou o seu primeiro livro, Uma cidade com muralha, em 1991,
ou seja, 47 anos após a primeira publicação de Sophia. Os anos 1990, em Portugal,
eram diferentes quando comparados ao contexto político e social em que Sophia
escreveu a maior parte de sua obra. Após a redemocratização, na década de 1970, e
a adesão à Comunidade Econômica Europeia, em 1986, o país enfrentou desafios e
oportunidades na busca pelo desenvolvimento econômico e social. Embora com
avanços significativos no campo da tecnologia, dos direitos civis, da implementação
de políticas de igualdade de gênero, proteção ambiental e inclusão social, o quadro
era de um pessimismo latente, relacionado ao crescente desemprego, à pobreza e à
desigualdade.
A década de 1990 se enquadra em um momento de adaptação para os
portugueses e de processar as mudanças sociais e políticas, além de redefinir o lugar
e a posição de Portugal no contexto internacional. Isso se refletiu na produção poética
do período, com uma diversidade muito ampla de vozes e visões de mundo que
52
poemas. Neste tópico da dissertação, iremos nos debruçar sobre esses aspectos,
articulados, com mais profundidade, no projeto de escrita de Daniel Faria.
Em O livro do Joaquim, publicado postumamente em 2007 e reeditado em
2019, Daniel Faria declara: “Ora, o poeta justamente, não é o sábio: o que vê mais
fundo; nem é o que diz melhor: esse é o músico. O poeta é o que descobre. Isto é, o
que vê primeiro” (Faria, 2019, p. 62). Para o autor, o poeta é o primeiro vidente
espiritual, o que alcança o ato supremo, aquele que vê não somente a materialidade,
mas aquilo que não é visível. Esse ver primeiro se assemelha ao modo originário com
que Sophia visava o mundo.
Daniel, assim, parece compartilhar com Sophia a vivência de uma experiência
que utiliza a visão como descoberta, como início de uma busca do sentido visível que
deseja alcançar o âmago, o sentido “invisível”, imaterial, em cada imagem que olha.
Mas, além da visão, Daniel é um poeta que anseia compreender o sentido verdadeiro
de uma imagem, ele busca “olhar para o que ainda não foi bem visto, através de novas
experiências”, conforme cita Valéria Soares Coelho no seu artigo “Daniel Faria: Dos
Líquidos; Os anzóis profundos dos sinais” (2017, p. 209). Para o poeta e cardeal José
Tolentino Mendonça, é necessária, nesta poética, “uma conversão do olhar, que crie
uma disponibilidade para poder praticar uma hospitalidade do real, do real mais puro,
aquele que é capaz de dar o sentido do invisível” (Mendonça, 2022, s/p.).
Ou seja, Daniel e Sophia compartilham do mesmo desejo de alcançar, através
da escrita poética, um real mais puro. Como ambos concebem suas existências dentro
de um tempo dividido, eles compartilham o anseio por unificá-lo. Há, em ambos,
aquela “sede de ser” dos seres religiosos que anseiam “situar-se no próprio coração
do real” (Eliade, 2018, p. 60), mas esse desejo implicará percursos díspares de
elaboração e comunicação poética que cada poeta percorrerá para alcançar. Tanto
Sophia quanto Daniel adentram esse percurso ontológico e buscam habitar e se
conectar com uma paisagem que sinaliza o sagrado (em Daniel, esse caminho é mais
verticalizado, sendo descrito na imagem da ascese como direção para unir-se ao
divino; o céu será descrito como paisagem distante em que Deus está presente).
É possível compreendermos essa temática da busca por situar-se como uma
forma de “orientação” oriunda do comportamento religioso em relação à
espacialidade. O centro do mundo, para um ser religioso, é uma região pura, limpa,
não contaminada pelo espaço profano e, por isso, “o homem religioso [deseja] viver o
mais perto possível do Centro do Mundo […] [porque ele] experimenta a necessidade
54
Daniel insiste “no lado mais invisível das imagens”, no lado em que há uma
obscuridade mais adensada das imagens, enquanto Sophia busca comunicar um lado
mais “visível” das imagens, conforme já mencionamos. Daniel é o poeta que busca
captar o mistério no enigma e comunica esse mistério com outros novos enigmas; é
por isso que ele adentra “imagens de violenta escuridão para conduzir ao
desvelamento dos sinais” (Fino, 2020, p. 129).
Além de refletir essa “violenta escuridão”, a imagem da cegueira faz referência
a uma tradição cristã e mística. Em um de seus poemas, Daniel fará uma citação direta
ao episódio bíblico “A conversão de Saulo de Tarso”, presente no livro dos Atos dos
Apóstolos, no Novo Testamento da Bíblia. O texto narra o caminho de Tarso a
Damasco com o objetivo de prender os cristãos e trazê-los a Jerusalém para serem
julgados. No meio do caminho, porém, Saulo foi cercado por uma luz intensa e
brilhante vinda do céu, o que o deixou completamente cego. Nesse momento de
cegueira, ele ouve uma voz que diz: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, e, ao
perguntar quem estava falando, a voz respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu
persegues. Levanta-te e entra na cidade, onde te dirão o que deves fazer”. Saulo foi
levado pelos seus companheiros até Damasco, onde permaneceu durante três dias
sem enxergar. Nesse período de cegueira absoluta, ele passou por uma profunda
transformação interior e decidiu, posteriormente ao episódio, dedicar sua vida a pregar
o evangelho de Jesus. Um dos poemas em que Daniel aborda o episódio é “Do livro
dos Actos dos Apóstolos”, presente no seu último livro, Dos líquidos (2000):
O poema conta com treze versos distribuídos em cinco estrofes e faz uma
citação direta ao texto do livro dos Atos dos Apóstolos, indicado no título. O uso da
expressão “A luz de Damasco” refere-se à luz cegante que Saulo viu no momento da
sua conversão e que o levou a abandonar sua vida anterior e se tornar um fervoroso
seguidor de Jesus Cristo.
O sujeito lírico do poema aparece somente no sexto verso, indicando uma
primeira pessoa do plural (nós). A estrutura gira em torno do objeto “luz”, abrindo cada
estrofe com a anáfora “A luz de Damasco”. O recurso da repetição dos versos, que se
iniciam com uma mesma estrutura e, depois, se desdobram em outros complementos
de frase, será amplamente utilizado pelo poeta, como aquele que vai descobrindo
novos sentidos para uma mesma imagem. O vocábulo que o poeta articula apresenta
a luz como uma força brutal (a luz é “grito”, “queda”, o “tombar” do trigo), e causa
feridas no corpo (ela “cega”, “golpeia”, “circuncisa”). Esse gesto violento é o que “abre”
e “limpa”, ou seja, o que purifica, aludindo ao processo de transmutação da imagem.
O poeta usa um texto da tradição bíblica como alegoria para refletir sobre a própria
criação poética; o mártir que junta pedras com as mãos “[c]om que empedra o caminho
para a morte” pode ser lido como a função do poeta – mais precisamente, é um
espelhamento imagético subjetivo do próprio Daniel Faria, que era, ele mesmo, um
colecionador de pedras. Essa imagem de mártir vai em concordância com o que Ida
Alves (2007, p. 107) menciona sobre o poeta:
aquele que caminha em busca do que não tem limites nem respostas e se
aproxima sempre da morte, como fonte de clarividência, claridade, luz. Se
essa paisagem e essa experiência têm contornos nitidamente místicos e
cristãos, é também uma experiência de poesia, de linguagem.
Daniel utilizará um outro texto, dessa vez da tradição mística cristã, para
também servir como alegoria ao seu processo criativo metaforizado pela cegueira:
Noite escura, escrito por São João da Cruz durante seu período de encarceramento
em Toledo, entre 1577 e 1578. O autor foi um místico espanhol e um dos grandes
poetas da literatura mística. Ficou conhecido por seus escritos sobre a experiência
espiritual e a busca pela união com Deus. Entre suas obras mais famosas, está Noite
escura, na qual ele aborda o tema da cegueira espiritual e da escuridão da alma em
seu caminho em direção a Deus. Segundo o autor, para alcançar essa união mística,
é necessário passar por um processo de purificação e desapego de todos os apegos
58
“banalizada” (dessacralizada) para a sua “noite escura”. Isso significa que a palavra,
análoga à imagem do real, passa por um processo de transformação iniciático, em
que o corpo do poeta participa e se envolve ativamente, assemelhando-se à
experiência de despojamento presente na tradição mística, ou seja, essa ideia do
iniciático e a da transformação epifânica se relacionam com características da tradição
mística que explicam e transfiguram o real. Esse processo aparecerá, por exemplo,
no poema abaixo, retirado do livro Homens que são como lugares mal situados:
E ilumino-a
(Faria, 2015, p. 174)
ele almeja uma comunicação mais próxima de uma experiência daquilo que é
impossível dizer.
A experiência mística, segundo o Dicionário de mística (Caruana; et al., 2003,
p. 640), diz que o místico possui uma difícil relação com a palavra: “a palavra do
místico é intimada a dizer o que é impossível de transmitir”. Ela é sempre uma barreira
difícil de superar, porque o místico “não acredita que a linguagem possua uma
onipotência semiótica” – aliás, ele chega a pôr em dúvida a possibilidade de falar.
Poetas e místicos sentem a necessidade de dizer, nomear, comunicar o que
transcende, conforme reitera Michael Sells (1994, p. 2, tradução nossa): “o
transcendente deve estar além dos nomes, inefável. Para afirmar que o transcendente
está além dos nomes, todavia, devo dar-lhe um nome – o transcendente”1.
Portanto, no próximo tópico, apresentaremos alguns pensamentos sobre a
tradição mística como modo de aprofundarmos a nossa compreensão sobre os
principais aspectos da criação poética de Daniel Faria.
1
No original: “the transcendent must be beyond names, ineffable. In order to claim that the transcendent
is beyond names, however, I must give it a name—the transcendent.”
2
No original: “que no es esto ni aquello”.
62
Místico e poeta têm uma urgência em dizer “algo”, […] e é a escrita o meio
que torna possível essa tentativa de dizer o indizível. Ao místico urge
“empalavrar” [pôr em palavras] a experiência de um encontro que por si só é
inefável; por outro lado, ao poeta compele um desejo de dizer não a realidade
mas o reverso do real, não o que é mas aquilo que está por trás do que é.
(Meléndez Guerrero, 2020, p. 13, tradução nossa3)
Narrar o reverso do real e “mostrar não o que é mas aquilo que está por trás do
que é” caracteriza a postura poética de Daniel Faria. Por essas características, o Bispo
Carlos Azevedo vai declarar que Daniel Faria foi “‘o último poeta místico do século
XX’, com uma ‘dimensão que o coloca na linha de uma Teresa d’Ávila e dos grandes’”
(Azevedo apud Marujo, 2019, s/p.). Vejamos um outro poema que traça uma citação
direta com o texto místico Noite escura, intitulado “Do livro segundo da Noite escura,
de São João da Cruz 2”:
3
No original: “Místico y poeta tienen una urgencia por decir ‘algo’, […] y es la escritura el medio que
hace posible ese intento por decir lo indecible. Al místico le urge ‘empalabrar’ la experiencia de un
encuentro que de suyo es inefable; por su parte, al poeta le apremia un deseo por decir, no la realidad,
sino el reverso de lo real, no lo que es, sino aquello que subyace en lo que es”.
63
que também aparece em outro poema citado no livro Homens que são como lugares
mal situados: “Penso velozmente que o amor, como Dante disse, é um estado/ De
locomoção. É um motor. E fico a trabalhar no mecanismo secreto/ Do amor.// Sei que
estou em viagem na palavra que se move” (Faria, 2015, p. 132). O “mecanismo
secreto do amor” (“o mecanismo engolido pelo amoroso gole”) é o mecanismo da
palavra que se move e comove (no sentido de mover junto); da palavra que adentra a
noite da transformação, essa “noite intensamente tecida”, a “malha negra”, que é o
estado interiorizado de despojamento, condição para que o poeta realize o processo
de purificação de si e, consequentemente, da palavra.
Essa noite, o manto que “cobr[e] os olhos incuráveis”, é também a imagem do
vazio e do silêncio profundo que o poeta adentra (“brancos/ sem palavras”), do repleto
esvaziamento de si e dos sentidos estáveis que visam estabelecer o contato com a
abertura (“a união”). No poema, essa união é erotizada (“desposarmo-nos”), e
podemos relacioná-la ao erotismo da linguagem, o verbo que se torna “carne”. O
sujeito lírico procura a agulha “perfeita”, aludindo ao ditado popular de “encontrar a
agulha no palheiro”, ou seja, aquele que detecta o ínfimo sinal, o inefável que está
dentro da obscuridade da noite intensa. O sinal sagrado é “uma mancha fresca”
estendida com força, tensionada entre a terra e o céu (“a raiz absoluta e o mais alto”).
Há teofanias (“a porta”, “batente do princípio”) para expressar uma reflexão sobre a
busca do sujeito lírico pelo sagrado, indo em concordância com Mircea Eliade quando
este afirma que o ser que crê no fenômeno do sagrado entende o espaço como não
homogêneo e se utiliza de símbolos para pôr em evidência a separação desses dois
espaços; nas palavras do autor:
Ou seja, a porta é “um batente no princípio” pelo qual só alguns podem entrar.
Importante notar a única pergunta lançada no poema, “Que sabemos das
aparências?”, porque é justamente das aparências que o poeta quer se livrar e atingir
algo menos ilusório. No símbolo representativo do amor (o coração), o sujeito lírico
poderá reconhecer o sinal que o levará à ascese, à proximidade com o divino
(novamente, aqui, a questão da busca do ser religioso para alcançar um centro, que
64
já abordamos também nos poemas de Sophia). Esse sinal que Daniel apresenta (“uma
agulha/ Uma mancha fresca retesada entre a raiz absoluta e o mais alto”) pode ser
lido como a irrupção do sagrado que diferencia um território do meio cósmico do de
um lugar não cósmico, ou seja, a irrupção é o sinal portador de significação religiosa:
A “luz que brilha nas trevas”, a “noite iluminada”, para Daniel, é a presença
divina e, concomitantemente, pode ser lida em uma camada adicional de sentido,
relacionada à criação da palavra (que se equipara à criação divina). A luz, na poética
de Daniel, está sempre próxima do gesto de nomear: “E enxerto a luz/ Em tudo o que
nomeio” (Faria, 2015, p. 43). Daniel apresenta um sujeito lírico que transforma, nas
palavras da pesquisadora Ida Alves (2007, p. 106), “o escrever na experiência mística
da transubstanciação: palavra – sangue, palavra – corpo, uma experiência mortal,
portanto, como transformação e revelação”. E esse processo revela uma questão de
linguagem: o poeta sacrifica o próprio ser e o próprio corpo para alçar um outro modo
de habitar o mundo e a sua realidade; é pela criação da palavra poética que ele impele
este outro modo, como um sujeito que vai ao encontro do que está fora de si, conforme
analisa Michel Collot quando aborda o lirismo sublime que “supõe um ser fora de si”:
um espaço aberto que pode ser ocupado por qualquer um, para vivenciar a
experiência poética (COLLOT, 1998, p. 155). Collot desenvolve essa ideia ao afirmar
que, na modernidade, essa saída de si constitui-se numa condição fundamental,
inerente a sua própria condição.
Podemos relacionar tais concepções à poética de Daniel Faria e também de
Sophia de Mello Breyner Andresen. Deixar de pertencer a si é fazer a experiência de
seu pertencimento ao outro. Ao desalojar o sujeito lírico de uma pura interioridade, o
autor recorrendo, principalmente, ao pensamento de Merleau-Ponty e de Paul
Ricoeur, considera o sujeito em sua relação constitutiva com um fora, e não mais em
termos de substância, de interioridade e de identidade. A intemporalização e a
universalização tendem, com efeito, à alegoria, a tal ponto que o disfarce lírico pode
ser considerado como um processo de autoalegorização.
É pelo desdobramento encadeador dos sentidos e por um excesso do dizer que
a palavra passa por um movimento alegórico, autofágico, de “autodevorar-se”, pois,
assim, o poeta pode compor ideias complexas, despertando a imaginação do leitor. A
alegoria auxilia Daniel Faria a ressignificar os sentidos e a criar uma verdade
transcendente. A palavra é “consertada” pelo poeta, segundo Maria João Cantinho
(2016), no seu artigo “Daniel Faria ou a (Im)possibilidade da arqueologia da palavra”,
e o tom alegórico é a “pedra de toque” de toda a poética de Daniel Faria:
É, aliás, este tom alegórico a “pedra de toque” de toda a sua poética, a matriz
geradora da musicalidade da sua poesia, já que o seu frágil e precário
equilíbrio se auto-sustenta nessa dialéctica entre o que é dito e o que fica
latente, num percurso de dolorosa perda, que habita o corpo do poema. A
este propósito ocorre-me a expressão de Agamben, em que o autor fala da
“fractura da linguagem”, em todo o seu carácter inesgotável. […] Quando
Daniel Faria diz, em Homens que são como lugares mal situados, “Conserto
a palavra com todos os sentidos em silêncio/ Restauro-a/ Dou-lhe um som
para que ela fale por dentro/ ilumino-a”, é ainda dessa restauração da
plenitude do nome que se fala. Em toda a leitura, o sopro do poema remete-
nos para uma possível reabilitação, não apenas do ente e da criatura
nomeada, mas da própria linguagem, no seu esplendor. Para que, mais do
que palavra, ela se converta no “som iluminado” capaz de gerar o sentido, a
magia do dizer. E, como ele próprio o reconhece, essa palavra “não se come
como as palavras inteiras/ Mas devora-se a si mesma e restauro-a”.
(Cantinho, 2016, s/p.)
67
Embora haja uma presença muito mais nítida e direta das referências a uma
tradição mística na poesia de Daniel Faria, é possível identificá-las, também, em
alguns poemas de Sophia, como, por exemplo, nos poemas em que há uma luz
intensa provocadora de cegueira, aquela mesma que fere os olhos que citamos na
poesia de Daniel. Vejamos o seguinte trecho de “As grutas”, de Livro sexto, em que a
luz intensa “quase me cega a perfeição como um sol olhado de frente” (Andresen,
2015, p. 445); ou o poema “Intervalo II”, de Coral, em que o sujeito lírico expressa o
desejo de caminhar em um tempo suspenso, como que num transe de olhos fechados:
“Eu quero caminhar como quem dorme/ Entre países sem nome que flutuam.//
Imagens tão mudas/ Que ao olhá-las me pareça/ que fechei os olhos” (p. 276); ou o
que lemos na primeira estrofe do poema “Antinoos”, de Geografia: “Sob o peso
nocturno dos cabelos/ Ou sob a lua diurna do teu ombro/ Procurei a ordem intacta do
mundo/ A palavra não ouvida” (p. 553). Há, ainda, um outro poema, sem título, iniciado
pelo verso “E só então saí das minhas trevas”, de Coral, em que Sophia expressa uma
cegueira oriunda de uma luz intensa:
A luz brota da paisagem e tira o sujeito lírico de suas trevas mais profundas; é
uma luz intensa e quente que “queima as mãos”; uma luminosidade tão vibrante e
clara, que mostra o “dia perfeito” e trespassa os olhos de cegueira; toma conta de
“cada voz, cada gesto, cada imagem”. Segundo Gilbert Durand (2012, p. 94), no seu
livro As estruturas antropológicas do imaginário, a cegueira é associada ao
conhecimento originário, à sinceridade, à crueza de uma verdade:
A luz intensa permite não apenas olhar as coisas em sua plenitude, como fere,
rompe, cega, atingindo o corpo e revelando aspectos do próprio sujeito; a cegueira é
uma forma de espelho, pois, segundo o autor (Durand, 2012, p. 94), ela equivale a
uma imagem do inconsciente “confuso, perturbado, decaído”, o que explica como o
simbolismo do espelho está associado ao conhecimento, a uma “verdade mais pura”.
É por isso que a figura de Narciso e o símbolo do espelho serão tematizados,
tanto na poesia de Daniel Faria quanto na de Sophia de Mello Breyner, como modos
de demarcar o mundo das aparências ilusórias e como aquilo que retorna um reflexo
“verdadeiro”. Daniel, inclusive, escreve os versos “Em silêncio onde escutamos a
palavra/ Em carne viva. Verbo/ Tão inteiro que se fez espelho” (2015, p. 194), ao falar
do lado da realidade em que Deus está presente, na imagem e no verbo, ou seja, na
palavra escrita. Embora com modos diferentes de olhar para essa realidade, há um
desejo similar, em ambos os autores, de encontrar, através da palavra poética, uma
verdade sem ilusões do mundo e também sobre si mesmos. Daniel Faria escreve os
versos “A lâmpada está no espelho e não é um rosto/ Seria um insecto mas o voo
queima./ Os filamentos mínimos das suas antenas/ Nunca poderiam ser duas asas –
ou mais – para as imagens” (2015, p. 281). Em O livro do Joaquim, ele escreve um
pensamento sobre o mito de Narciso:
Diz-se que Narciso, tendo um dia visto o seu rosto reflectido na água, ali ficou
para sempre, preso à contemplação da beleza da sua face.
Já não se diz, e talvez pudesse dizer-se que durante esse tempo Narciso
pôde verificar como envelhecia, e como a sua beleza durava menos que a
transparência da água, e do que a pedra onde a água corria.
Não se diz, e talvez pudesse dizer-se, que Narciso pôde aprender o quanto a
beleza é frágil, e como o seu único sentido é empenhar-se na salvação dos
homens e do mundo. (Faria, 2019, p. 69)
[…]
Quando a imobilidade se instaura no centro do silêncio
Que à tona dos espelhos aflora
A luz que os habita e nos apaga:
Luz arrancada
Ao interior de um fogo frio e vítreo
(Andresen, 2015, p. 542)
Quando despertam
Quando abrem as mãos à pulsação
Dos livros, eles abrem
No favo o sinal
O poema de oito versos livres distribuídos em quatro estrofes faz uma analogia
da palavra com a “pinha da infância”, momento em que os olhos carregam o peso do
ineditismo do mundo, da primeira vez dos sentidos. O primeiro verso se inicia com a
terceira pessoa do plural, aqueles que abriram os livros com as “mãos” em “pulsação”,
dando a entender que são os leitores que, ao lerem as palavras escritas, serão
atravessados pela palavra iluminada, a “pequena giesta” de luz. É no âmago da pinha-
71
palavra que está a manifestação daquilo que é sagrado. Sophia escreve um poema,
no Livro sexto, que pode ser usado como aproximação a essa pinha aberta que Daniel
Faria retrata, em que a poeta também tece a mesma relação entre a luminosidade e
o ato de nomear:
MANHÃ
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro
(Andresen, 2015, p. 440)
o universo proposto por Daniel Faria também vai nessa direção quando
constrói uma poesia repleta de imagens míticas que, além de apresentar a
inconsistência nas fronteiras entre os reinos vegetais, minerais e animais,
incluindo aí o homem e a linguagem, expõe, incansavelmente em seu labor
poético, uma necessidade incessante de explicar o mundo através da poesia,
sendo também, ela própria, uma “coisa”. (Coelho, 2017, p. 205)
Daniel é um peregrino das palavras em um percurso que se faz por dentro: pela
linguagem, ele tenta presentificar um Deus ausente; por isso, fornece à palavra
poética uma tensão e um ritmo vacilante pelas quebras dos versos e das pontuações,
em uma errância interminável, aberta e inconclusa. Um caminho, uma itinerância, que
só podem ser iniciados a partir desse “modo cerrado de não ver”. É pelo exercício da
linguagem que o sujeito e o poeta se constroem. Nesse sentido, “cada verso seu é
uma procura atormentada, é desejo motor que eleva o espírito permanentemente na
busca de preencher um vazio, e é assim que o verbo se faz carne” (Coelho, 2017, p.
206). Este modo participativo do sujeito na construção da linguagem aparece no
poema abaixo, talvez um dos mais importantes sobre esse processo, do livro Homens
que são como lugares mal situados (1998):
Tornei-me peso
Rochedo respirando para dentro nos líquenes interiores
Peso da ceguez nos meus olhos contaminados
Das pupilas inquinadas pelas pedras interiores
75
o princípio. Essa talvez seja a postura que mais aproxima os poetas da palavra que
funda a realidade, que traz à tona o silêncio como condição essencial de criação; é no
silêncio, na quietude que eles habitam a essência da linguagem. Mas eles optam por
estilos diferentes de escrita: Daniel Faria opta pela intensidade de ambiguidades,
paradoxos, aporias, contradições, e se afasta de um modo de linguagem simples,
limpo, cristalino.
A interioridade e o silêncio são traduzidos na natureza da pedra
“ensimesmada”. A sua relação com o mundo natural, assim como na poesia de
Sophia, também é intensa e está preenchida de elementos naturais oriundos dos
reinos mineral, vegetal e animal. O poeta afasta a “palavra-pedra” do seu referencial
e desdobra os seus sentidos, ela pesa, vaga, é fechada em si mesma, compacta:
“Pesa-me no bolso/ E na cabeça./ Não é um pensamento./ É uma ideia ensimesmada.
Uma pedra fechada/ Pelo lado de dentro” (Faria, 2015, p. 49). Além disso, nos versos
de Daniel, há uma presença muito intensa do corpo em suas imagens orgânicas, como
o sangue, as veias, as artérias, como se os fluxos vitais também participassem do
processo de transformação da palavra; tanto o corpo interno quanto o externo são
referidos de maneira fragmentária para reiterar a comoção de todos os sentidos
corporais no processo de escrita. Para a pesquisadora Valéria Soares Coelho, no seu
artigo “Daniel Faria: Dos líquidos; Os anzóis profundos dos sinais”, a poética de Daniel
contém uma linguagem que se afasta do descritivo ou do argumentativo e:
Em ti encontro a pulsação
Que rebenta – uma artéria como nunca
Tinha jorrado. Cratera onde durmo
Recluso, árvore à chuva
Em dificuldade extrema
De respiração
de comunicar’”. Também aqui, nós poderíamos ler o verbo de Daniel Faria como
nascente deste desejo de comunicação, uma busca por elo, laço, comunhão.
“Começa nele a primeira fonte”: novamente, a palavra é o que há de mais próximo de
uma comunicação que transmita a experiência sagrada vivida, a experiência provinda
da “fonte”. Uma escrita que propõe fermentação, ou seja, elaboração lenta, conforme
traduz o verso “começo devagar a meda rítmica", e que se localiza “no eixo que corta
dos dois lados”, o centro de dois mundos: o lado sagrado e o profano; o significado e
o significante; o silêncio e a fulguração da palavra; a folha em branco e a letra que se
materializa; a vida e a morte, entre aquele que escreve e aquele que lê.
Este fermento citado no poema é sinônimo do lugar vazio, oco, em consonância
com o quieto, o silêncio, pois aquele que está fermentando a palavra não tem
alternativa senão ficar quieto; em outras palavras, a quietude é a fulguração da palavra
vindoura, na qual está sendo gestado todo o dizer possível. Ainda, no poema,
verificamos a imagem do poeta como aquele que se dispõe a abrir as mais profundas
feridas “e fere”. Ele é atravessado e ferido pelos “pulsos primeiro e a língua”, o
movimento da própria escrita, a materialidade do traço que o pulso mobiliza, o esforço
das mãos para comunicar a palavra, um processo de sacrifício, intenso e doído. Esse
poeta ferido pode ser comparado à figura de Jacó, remetendo-nos à misteriosa luta
de Jacó com Deus (Gn 32, 25-32), na qual o encontro com o Anjo é o encontro com o
divino que carrega a mais luminosa beleza, uma beleza indizível que fere Jacó, abre-
lhe uma cicatriz e determina um antes e um depois, uma transformação.
Daniel Faria trabalha com as sensações do corpo, “[p]orque trabalh[a] com os
dedos e as veias”, metonímias que nos remetem ao entendimento da afirmação como
‘[p]orque trabalh[a] com o corpo e o sangue’, o que nos permite aludir ao sacramento
da eucaristia, um modo de afirmar que a sua escrita parte do verdadeiro corpo e
sangue de Cristo, a palavra como uma espécie de transubstanciação. O pesquisador
José Rui Teixeira, no seu artigo “Ofício de morrer: o corpo e a morte na poesia de
Daniel Faria – um tríptico para o desdobramento da imolação”, afirma que, na poesia
de Daniel Faria, o corpo desdobra-se entre o peso e a leveza. Para o autor:
a violência do amor. Como atesta o Dicionário de mística, para o místico, “as palavras
não são domésticas ou domesticáveis. O seu linguajar nunca é a fala ociosa ou
rotineira” (Caruana; et al., 2003, p. 640). Novamente, a presença de paradoxos,
indicando, sempre, a complexidade da realidade e da experiência de vida, como
“[um]a corrida quando [se] est[á] parado” ou como “viv[er] enclausurado […]/
[c]orrendo”; as marcações espaço-temporais, como dentro-fora, subir-descer,
apontam para dimensões variadas. Uma palavra “silêncios[a] e alt[a] como um pátio
interior” é uma palavra que carrega o sentimento do mistério, que está envolta de
sacralidade.
Este modo de locomoção, de estar em viagem, de repetir trajetos, se aproxima
da figura do nômade, ou seja, o poema revela um sujeito lírico que pensa o poeta
como aquele que concebe o trabalho da linguagem como um ato solitário e
introspectivo e que empreende longas jornadas. Aqui podemos relacionar à tradição
mística as figuras do nômade, aquele que percorre o deserto para fazer a pregação
em viagem, e do eremita, que se recolhe nesse mesmo deserto, em plena solidão. A
errância é o momento em que a palavra rasga o silêncio, e este silêncio é a sua única
“pátria”, lugar onde o poeta habita a sua “casa”. Por isso, escrever é um ato sacrificial
em Daniel Faria, ato que o impele a perder a si mesmo (momentaneamente, para
depois se reconstruir), como também a perder o seu lugar ôntico, estável, a sua casa,
o seu descanso.
Como afirma Manuel Frias Martins (2010, p. 163), a poesia de Daniel Faria nos
revela “um peregrino no silêncio de deus, um nómada na solidão dos homens,
intérprete da alma do mundo e apóstolo da natureza”. A imagem do nômade é
característica tanto dos textos judaico-cristãos quanto dos místicos, e José Tolentino
Mendonça nos explica tal simbologia pelo viés cristão:
Há uma voz que bebo. Há um espaço entre as mãos mas não perco
A sede. A água multiplica-se porque a tiro do coração
Que escuta.
[…] Tento, também, explicar que procuro o silêncio para quem sobe de noite,
e a noite, digo, é a pergunta: será que, falando, impedirei que se oiça a
palavra que é Princípio e Fim?
Podem responder-me que não tenho poder para tanto. Mas tenho, entretanto,
poder para calar-me, e é estranho que haja homens que não se assustem
com um poder assim. […] (Faria apud Fino, 2008, p. 429-30)
Conforme cita Patrícia Lino (2018, s/p.), em seu estudo “Daniel Faria e o
complexo de Sísifo: o processo cíclico da poesia a partir da palavra e do silêncio”,
[o] propósito poético [de Daniel Faria] é não dizer. […] O indizível nega,
porém, a linguagem; o que significa que o propósito poético se nega e
reafirma toda a vez que o poeta tenta apreendê-lo pela palavra. O silêncio e
a palavra são dois veículos comunicativos válidos e coexistentes.
Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou um cego
seguindo as mãos – sim, toco as palavras nas suas superfícies
e utensílios.
Sim, agora vejo que falo, embora possas pensar que sigo pelo tacto a escrita.
Sim, eu leio e decifro. E agora sei que oiço as coisas devagar.
(Faria, 2015, p. 175)
[…] o corpo se desdobra nas mãos, as mãos desdobram-se nos gestos e tudo
resulta num sistema simbólico surpreendente e impressivo: o silêncio é o
lugar onde baterão as mãos, a casa vem das mãos e o poeta estende a mão
para estar vivo.
É a mão que toca e tateia, particularmente na noturna experiência de uma
cegueira consentida: “De noite viajo pelo tato”. Mesmo com os olhos
fechados, Daniel Faria é um poeta vidente: vê não como quem vê, mas como
quem tem visões. Por todo o lado os olhos: “Há nos meus olhos dois poços”,
“Na sombra gero os olhos cheios de água/ Apago a casa cheia de janelas”,
os olhos do mocho e os olhos da criança, a consciência de que “Diante dos
olhos só se repete o passar”. (Teixeira, 2019, p. 22)
É a mão que toca e tateia, ou seja, decifra, que “segue pelo tacto a escrita”.
Além disso, se, no poema anterior, o poeta era equiparado ao nômade, nesse, ele é
o arqueólogo, aquele que escova, pacientemente, o osso da palavra para ver melhor,
de tal forma que se torna um vidente, aquele que vê além, que consegue cavar
86
camadas subterrâneas até encontrar e fazer emergir o inefável. Portanto, temos, aqui,
um outro poema que nos revela uma questão importante sobre o modo de ver do
poeta: trata-se de um olhar de decifração que o corpo inteiro executa, um olhar que
incorpora, digere e vê além; é com esse olhar aprofundado que se chega à
sensibilidade de escutar com atenção e demora: “E agora sei que oiço as coisas
devagar”. É nesse estado de escuta, isto é, em um modo de despojamento, que o
sujeito lírico adentra o instante para nomeá-lo através da escrita. Também é
importante notarmos o endereçamento a um “tu” no poema, ou seja, fica evidente que
sempre há um “outro” com o qual o poeta escreve em diálogo, como se o sujeito lírico
estivesse a falar não só com Deus, mas também com aquele que o lê, o leitor como
testemunha do processo de criação poética enquanto ela se dá na escrita, de forma
simultânea ao ato de escrever, procedimento que será encontrado em inúmeros
poemas de Daniel.
Para o pesquisador José Rui Teixeira (2016, s/p.), Daniel Faria “guarda uma
poesia invulgarmente sinestésica […] que v[ai] estabelecendo um universo de
aparições poéticas profundamente idiossincrático”. Neste contexto, Carlos Nogueira
entende que estamos perante uma poética em que:
acústica no seu formato. Como o próprio poeta revela na seção “Últimas explicações”,
do livro Explicação das árvores e de outros animais, publicado no verão de 1998,
encontramos versos como: “O homem é uma caverna/ O cântaro o seu segredo”
(Faria, 2015, p. 94); na seção “Para encontrar o golpe do sono”, do livro Homens que
são como lugares mal situados, lemos versos como: “Com a boca cheia de búzios em
forma de palavras./ Soube que era possível respirar dentro das palavras” (p. 143); no
livro Dos líquidos: “Não adormeces com o ruído das conchas/ Desenrolando-se. As
pálpebras. O poema/ Indo e regressando nas pupilas” (p. 283); ou, ainda, em outro
poema do mesmo livro: “A concha acústica do búzio que ritma a embarcação/
Sanguínea” (p. 306).
A decifração é o modo pelo qual o poeta capta uma presença e coloca o ouvido
na face dos signos: “Anoitece como num dia de acidentes./ De noite viajo pelo tacto./
Ponho também o ouvido sobre a face dos signos/ E decifro a noite escura como um
astro” (Faria, 2015, p. 81). Conforme bem explicitado por Francisco Saraiva Fino:
Sem divisões
É ESTA A HORA…
Este lado mais taciturno do lirismo sublime pode ser atribuído a uma outra
importante poética da literatura portuguesa do século XX: Herberto Helder. É como se
o modo de explicar o mundo de Daniel Faria estivesse mais perto do de Herberto
Helder, numa explosão cósmica multissensorial e quase onírica (uma poesia
assombrosa, desmedida, sensorial e hipersimbólica), preenchida de uma lógica
ambivalente, paradoxal, atingindo um desconcertante trânsito entre o absurdo e o
sublime. Daniel, assim como Herberto Helder, seria um poeta que revela o processo
de escrita como se estivesse no instante exato do pensamento, no puro movimento
do devir, no qual o ser do pensamento é o mesmo ser do poema. Vejamos, pois, o
que Herberto declara sobre caráter enigmático de sua linguagem:
Essa declaração poderia servir também a Daniel. Se, de um lado, Sophia luta,
em sua poesia, para que os objetos da linguagem se equiparem com máxima
proximidade aos objetos do mundo, de outro, Herberto nos mostra que os signos não
nos remetem inteiramente às coisas, que podem significar outra coisa – aqui há um
efeito de distorção do “real”. Não seria possível, obedecendo às propostas já
delineadas nessa dissertação, adentrar com profundidade a análise comparativa da
poesia de Daniel Faria com a de Herberto Helder; vale, porém, reiterar que tanto ele
quanto Sophia são poetas que lançam fortes luzes para enxergarmos, em detalhes,
os mecanismos do projeto poético de Daniel Faria quando colocados em comparação.
Daniel se situaria em um lugar entre esses dois poetas, porque ele não possui
a claridade da linguagem que Sophia almeja, mas tampouco chega a adentrar o
extremo, condensado matiz de Herberto. Daniel habita um lugar próprio, com uma
ênfase mais latente nas referências e nas experiências religiosas e místicas, mas com
uma extrema consciência de uma materialidade da linguagem. O pesquisador Pedro
Mexia, no artigo “O Eixo e a lava”, também intuiu essas mesmas aproximações que
identificamos na obra de Daniel Faria com esses dois poetas:
92
Daniel Faria, no seu processo de escuta e atenção interiorizada, irá buscar essa
aliança adentrando um estado voltado para dentro com intensa percepção de seu
corpo vivo, aberto aos sentidos, percebendo os microcosmos e o macrocosmos,
expressando uma linguagem erótica do verbo que se fez carne mais latente; ao passo
que Sophia, embora também se ligue a um estado de interioridade e de
espiritualidade, expressa, em seu processo, o mistério através dessa ressonância com
o deslumbramento dos sinais, assombrada com aquilo que, em si, ressoa e reverbera
na imanência, um processo de escuta e atenção constantemente alertado para o ritmo
secreto do real e que leva a uma intensificação da “metáfora de uma clareza
fundacional”, como apontou Tavares (2015, p. 9), uma busca para encontrar a palavra
poética precisa, livre dos excessos, conferindo significância e literalidade poéticas.
Entre tantas aproximações, Sophia e Daniel parecem, também, compartilhar o
fato de se sentirem mal adaptados ao seu tempo, como se abordassem uma visão de
mundo a contrapelo do progresso e do desenvolvimento técnico, desse lado profano
que a modernidade lhes destinou. Por isso, ambos partem em busca daquilo que
retorna aos fundamentos mais originais do ser humano na sua simplicidade; através
da poesia e da linguagem, eles buscam aproximar o ser humano moderno da escuta,
para recuperar uma ligação sagrada, herança velada pela teologia. Tal sensação
constante de estranheza e deslocamento, no entanto, também será amplamente
abordada em seus poemas.
Se, até o momento, descrevemos o apelo dos poetas visando o sentido do ser
e do sagrado, no próximo tópico, analisaremos poemas preenchidos por tormentas,
versos que refletem a intensa luta interior desses poetas que possuem a consciência
de uma promessa não cumprida e a espera exasperadamente prolongada.
Discutiremos o fato de a poesia de Sophia de Mello Breyner e a de Daniel Faria
também estarem rodeadas de angústia e espera, mostrando um tipo de desamparo
que podemos identificar como causador de uma melancolia, de uma espécie de
saudade do que já passou ou do que não aconteceu.
De modo diverso daquele da poesia de Sophia (em que muitos poemas fazem
referências históricas e citações diretas sobre Portugal e os portugueses), os poemas
de Daniel Faria não apontam para uma nacionalidade explícita (não há referências
diretas nem presença de personagens históricos); entretanto, podemos afirmar que
ele descreve paisagens e sentimentos que simbolizam aspectos muito característicos
da tradição da cultura portuguesa. Segundo a pesquisadora Ana Catarina Milhazes
(2017):
EXPLICAÇÃO DA AUSÊNCIA
Esse sentimento – observe-se bem, porque nisso reside todo o seu caráter
trágico e o sentimento trágico da vida – é um sentimento de fome de Deus,
de carência de Deus. Crer em Deus é, em primeira instância, querer que haja
Deus, não poder viver sem Ele. Enquanto peregrinava pelos campos da razão
em busca de Deus, não O pude encontrar, porque a ideia de Deus não me
enganava, nem pude tomar por Deus uma ideia. […] Mas ao ir afundando no
ceticismo racional, de um lado, e no desespero sentimental, de outro,
abraçou-me a fome de Deus e a sufocação do espírito me fez sentir, com sua
falta, sua realidade. Quis que houvesse Deus, que existisse Deus. E Deus
não existe, mas antes sobre-existe, e está sustentando nossa existência
existindo-nos. (Unamuno, 2013, p. 24)
É por isso que podemos ler esses poemas agônicos de Daniel Faria a partir da
perspectiva de um sujeito melancólico, em quem há uma falta latente de integração e
96
[…]
É verdade que desde a minha infância oiço falar
E sei que para lá dele, na minha pátria, há outro
E que é por esse que aspiro cada dia.
[…]
O poema apresenta um sujeito lírico em primeira pessoa que afirma ser gêmeo
de si mesmo, fornecendo-nos a ideia de que há dois sujeitos separados que vivem
distantes e divididos. O sujeito que existe neste sítio é “urgência/ [d]e outro sítio”. É
por isso que ele se coloca em uma busca incessante e sem descanso por este “outro
sítio”, por “aquilo que une” e “é um rumor”, ou seja, um sítio em que há a presença
divina.
Sobre os versos e os poemas que apresentamos até aqui, há similaridades com
poemas de Sophia em que há figurações de desorientação, de exílio e de falta de
pertencimento ontológico figurado também na imagem da “névoa”, assim como Daniel
escreveu neste país “coberto por espesso nevoeiro”, em um dos versos já citados.
100
Como exemplo, temos o poema “Nevoeiro”, do livro Dia do mar (1947), que se inicia
com os seguintes versos: “Quem poderá saber que estranha bruma/ Brotou
caladamente em minha volta/ Pra que eu perdesse as horas uma a uma/ Sem um
gesto, sem gritos, sem revolta” (Andresen, 2015, p. 207); ou, ainda, o trecho do poema
(sem título) “Há cidades acesas na distância”, de Poesia (1944): “[…] E eu tenho de
partir para saber/ Quem sou, para saber qual é o nome/ Do profundo existir que me
consome/ Neste país de névoa e de não ser” (p. 110).
Somente pelos trechos acima, já podemos perceber como o sujeito lírico
estabelece uma relação direta com uma perda sentida de modo ontológico e subjetivo;
um “país de névoa” é um país difuso, com pouca claridade e nitidez. Essa angústia se
dá em um contexto semelhante ao de Daniel Faria, quando o sujeito lírico se afasta
de uma sacralização e mergulha no lado profano de um existir que está ausente de
deuses e de sentido. É uma melancolia latente vivida quando os sujeitos líricos se
sentem distantes, separados de um mundo encantado, ou seja, preenchido de
significado, conforme podemos exemplificar no poema sem título a seguir, do livro
Coral (1950):
pesquisador Carlos Ceia, no seu artigo “Monólogo Crítico – nos 50 anos de vida
literária de Sophia de Mello Breyner Andresen” (1996), declara:
Este poema curto, de apenas quatro versos, inicia-se como uma súplica direta
à Poesia, pois o sujeito lírico conta com a escrita poética para recuperar o
conhecimento sobre quem se é, para regressar a uma terra outra, já que aquela em
que vive é uma “Terra de ninguém”, uma terra cujo rei já não existe (aludindo à
concepção moderna e à declaração de Friedrich Nietzsche de que “Deus está morto”).
Há outros poemas de Sophia que expressam essa perda e reverberam o sentimento
de exílio, como nos versos do poema “Exílio”, do livro O nome das coisas: “Exilámos
os deuses e fomos/ Exilados da nossa inteireza” (Andresen, 2015, p. 692).
Parece que Daniel e Sophia articulam a típica ideia de crise da Modernidade e
a substituem por um sentimento nostálgico que solicita um mundo outro. Segundo
102
Marcos Siscar (2010, p. 10), no seu livro Poesia e crise: ensaios sobre a “crise da
poesia” como topos da modernidade, “a crise é um dos elementos fundantes de nossa
visão da experiência moderna” e a poesia irá apresentá-la “em tom desiludido ou
reciclada como estratégia de entusiasmo renovador”. Hugo Friedrich segue a mesma
linha de pensamento quando, no seu texto Estrutura da lírica moderna: da metade do
século XIX a meados do século XX (1991), afirma que a dissonância é uma das
características principais da poesia moderna:
[…] traços de origens arcaica, mística e oculta, contrastam com uma aguda
intelectualidade, a simplicidade da exposição com a complexidade daquilo
que é expresso, o arredondamento linguístico com a inextricabilidade do
conteúdo, a precisão com a absurdidade, a tenuidade do motivo com o mais
impetuoso movimento estilístico. (Friedrich, 1991, p. 16, grifo do original)
Este também é um poema curto em que fica evidente a angústia do sujeito lírico
diante da passagem do tempo e da irredutível certeza de que não é possível ‘nenhum
regresso’ ao que se foi antes. A temporalidade é sentida a cada dia e a cada hora que
passam, como se o sujeito percebesse que, quanto mais longe e distante ele se
encontra de um tempo primeiro, de um tempo de infância, mais “despido” ele estará
do “alimento” espiritual. No último verso, Sophia descreve uma “saudade” e um “terror”
muito semelhantes aos que destacamos na obra de Daniel Faria. Entretanto, muitos
críticos da obra de Sophia afirmam que, apesar de reconhecer e sentir a divisão, o
terror da distância e o vazio, há, predominantemente, uma espécie de confiança e de
otimismo em relação ao real, pois Sophia acredita, de forma vívida, na possibilidade
de união, na aliança e na unidade, como declara em uma entrevista à jornalista Maria
Armanda Passos: “Eu acredito na unidade, acredito na possibilidade, mesmo que
seja… Toda a minha poesia oscila entre a confiança nessa unidade e uma espécie de
pânico do seu fracasso” (Andresen, 1982, p. 5).
Essa declaração aponta para um mesmo sentimento presente na poética de
Daniel. Afinal, são poetas que confiam na possibilidade de aliança, mas que oscilam
no terror quando se atentam para a impossibilidade dessa união. E essas concepções
articulam e demonstram as suas relações subjetivas com a memória e com o tempo,
podendo caracterizá-los a partir de um desamparo muito característico de um sujeito
que está inserido na modernidade, dividido e desamparado pela consciência de uma
solidão atroz. O pesquisador Piero Ceccucci, no seu artigo “Trazer o real para a luz: o
104
Até hoje vivi mais das possibilidades do que das certezas, das esperanças
mais do que das decisões. E agora que decidir é irremediável e o tempo para
mim se fez lugar de angústia mais do que de redenção, invejo Moisés que
tendo vivido o tempo da promessa, morreu antes de chegar à terra prometida.
(Faria, 2021, p. 85)
Ou ainda: “Imagino os olhos daqueles que abanam com a cabeça, dos que têm
força para abanar a cabeça, nos olhos dos que já tendo nascido no deserto entraram
na Terra da Promessa. Olhos tão grandes que quase cego de os ver” (p. 100); ou
“Nunca cumpras todas as promessas. É um modo muito triste de morrer” (p. 108); ou,
105
finalmente, “É por entre os meus dedos que eu vejo o que passou. Não se passou
nada ainda. Ainda nada aconteceu” (p. 151).
São todos trechos que reiteram a angústia de aguardar a chegada da Terra
Prometida, “uma vida vivida como um interminável prometer” (Faria, 2021, p. 96). Para
o teólogo Leonardo Boff, no livro A ressurreição de Cristo: a nossa ressurreição na
morte (1974), é próprio da condição humana sentir a espera e existir em um lugar
onde “tudo é promessa”:
Para o autor, a espera é o sentimento humano vivido por seres que não
possuem “o centro em si mesmo” e que necessitam da experiência da transcendência
justamente para poder recuperar uma orientação em si, um centro próprio. Isso fica
explícito nos versos de um poema presente no livro Explicação das árvores e de outros
animais (1998): “O meu projecto de morrer é o meu ofício/ Esperar é um modo de
chegares/ Um modo de te amar dentro do tempo” (p. 85). A promessa cristã do
reencontro, ou seja, de ver, de encontrar Jesus Cristo, é, sem dúvida, uma das
principais angústias comunicadas na poética de Daniel Faria, e foi reiterada de forma
recorrente no livro Sétimo dia, publicado em 2021 pela editora Assírio & Alvim.
Pouco tempo após o falecimento do poeta, no dia 9 de junho de 1999, as
primeiras incursões ao espólio recolhido no mosteiro de Singeverga revelaram, entre
outros papéis, um conjunto de catorze folhas, do qual saiu o livro de textos inéditos
Sétimo dia, organizado e editado por Francisco Saraiva Fino. São breves fragmentos
de um projeto que o poeta ainda revisitava às vésperas da sua morte e que apresenta
o caminho enigmático dos primeiros homens. Segundo o organizador:
que entorpecido” (Ez 3, 15) junto às margens do rio Cobar, findos os quais
Deus lhe dirigiu a palavra. A experiência repartida pelos dias assume pontos
de vista monológicos sobre a ferida de morte que é característica da
existência contingente, cuja tristeza, como aceno ao final do poema de Ruy
Belo, o poeta sabe que nem sempre é capaz de administrar sabiamente.
(Fino, 2021, p. 20)
Penso sem certezas que sensato é abrir a porta e deixar entrar, pôr a mesa
e guardar um lugar para quem vier. É acreditar no milagre.
E sei, sem duvidar, que a espera, desde Ítaca, não se alimenta do que se faz,
mas sobretudo do que se desfaz.
Mas calar-se não foi um destecer. (Faria, 2021, p. 116)
ÍTACA
O que dói
É não poder apagar a tua ausência
e repetir dia após dia os mesmos gestos
O que dói
é o teu nome que ficou como mendigo
Descoberto em cada esquina dos meus versos
O que dói
é tudo e mais aquilo que desteço
Ao tecer para ti novos regressos
(Faria, 2015, p. 379)
Se ser poeta é tentar estabelecer uma relação justa, exacta, digna, com o
mundo, assinalando os contornos, fixando as cores adequadas, a verdade é
que não podemos apenas conceber o mundo como presença a referências.
As coisas que nos rodeiam estão trabalhadas pela ausência, ausência que
em cada instante as expõe na claridade do sol para logo as dissimular no
labirinto da noite. (Coelho,1972, p. 227, grifos do autor)
EXPLICAÇÃO DA ESPERA
Quando repousarei
Ausente sem sofrer
Qualquer ausência?
(Faria, 2015, p. 111)
A morte é uma forma de dar fim à angústia, mas também uma possibilidade de
encontro com o divino. Nessa agônica angústia, há a presença de um sentimento de
cansaço, um desânimo, uma tristeza extrema. Sophia declara esse sentimento em
versos como: “A raiz da paisagem foi cortada./ Tudo flutua ausente e dividido,/ Tudo
flutua sem nome e sem ruído” (Andresen, 2015, p. 284). Ou, ainda, num outro poema
de Daniel, do livro Explicação das árvores e de outros animais, em que o sentimento
de angústia, de cansaço e de descrença também são identificados:
EXPLICAÇÃO DO HOMEM
No poema, o corpo do sujeito lírico não está cansado, “vergado” pela velhice
ou pela passagem do tempo, mas pela “dor de te não ver”. O verso sobre o chão que
se transforma na última passagem remete à morte como lugar último onde o corpo
repousa, mas também pode ser entendido como os olhos direcionados para baixo,
num aspecto que remete à melancolia e à falta de horizonte. A visão de erguer a poeira
dos pés equivale à visão de Jesus sobre as nuvens, encontrada no Velho Testamento,
no livro de Naum 1, 3, em que se lê que “o Senhor tem o seu caminho na tormenta e
na tempestade, e as nuvens são o pó dos seus pés”, ou seja, as nuvens são o pó dos
pés de Deus, e o sujeito percebe uma distância muito longínqua e demorada para o
reencontro divino.
Ainda sobre o cansaço, no livro Homens que são como lugares mal situados,
na série “Para o instrumento difícil do silêncio”, há o seguinte trecho:
[…]
De estar sentado e inútil – como se tudo à minha volta me cegasse –
Apodrecendo a cadeira e o soalho.
E de me erguer como um odor da terra – como a tempestade –
Cansado, cansado.
Sem força para ver a tua face.
(Faria, 2015, p. 190)
Mas tu existes.
Os dias somam ruína à ruína
E o a vir multiplicará
A miséria.
Apodreço não adubando a terra
E cada dia somado a cada hora
Não completa o tempo.
Sei que existes e multiplicarás
A tua falta.
Somarei a tua ausência à minha escuta
E tu redobrarás a minha vida.
(Faria, 2015, p. 184)
NO TEMPO DIVIDIDO
de morte. Jorge de Sena faz o seguinte comentário sobre o salmo e seu valor literário
para Portugal:
“Sôbolos rios que vão” é composto por 365 versos em redondilhas, dispostos
em 37 estrofes, sendo 36 décimas e uma quintilha, e se constrói em torno do Salmo
137, estabelecendo com ele relações intertextuais. Nele, há dois temas que
sobressaltam, o tema da memória e o da mudança. A memória é desenvolvida por
meio da saudade de um povo de sua terra natal e de um passado transformado em
saudade, em um não conformismo nostálgico. Assim como no soneto anteriormente
comentado, há uma antítese entre o bem e o mal, entre presente e passado. O mal é
a realidade deste presente. O poema canta o desterro geográfico, o exílio (tanto
emocional quanto físico), paixões frustradas, a saudade do que foi perdido. Especula-
se, ainda, que é um dos últimos poemas de Camões.
Daniel Faria situa-se, também, entre a terra prometida e a terra perdida, entre
a presença e a ausência, entre a certeza do reencontro divino e a ruína da espera, e,
embora nunca tenha saído de seu próprio país, carrega o sentimento do não
pertencimento dos exilados. O desassossego de sua alma é a ânsia de completar o
tempo com a presença divina, e, por isso, a espera se torna tão vazia e angustiante.
115
Em Homens que são como lugares mal situados (1998), o autor dedica dois poemas
em referência direta ao salmo, colocados um seguido do outro em seu livro. Vejamos
o primeiro poema:
5 CONCLUSÃO
Em conclusão, este trabalho sobre a poesia de Daniel Faria e sua relação com
a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen buscou proporcionar uma visão mais
ampla e significativa do universo poético desses dois grandes escritores. Ao
analisarmos a forma epifânica com que ambos concebem a palavra poética,
percebemos como suas poéticas estão enraizadas em um modo de escuta apurado e
em um rigoroso trabalho de escrita. Buscamos entender os fundamentos da arte
poética de Sophia e de Daniel Faria, identificando pontos de convergência e de
diferenciação entre suas abordagens. Também trilhamos reflexões teóricas sobre a
tradição mística, com o intuito de entender as possíveis aproximações dessa tradição
com a concepção poética de Daniel Faria.
Diante das reflexões apresentadas, podemos concluir que o processo criativo
de Daniel Faria revela um poeta que, ao buscar o inefável, o invisível, o que há de
mais obscuro nas imagens do real, cria uma experimentação poética da linguagem,
atribuindo novos sentidos às palavras e à realidade que ele busca compreender. Seus
poemas, permeados de imagens relacionadas à noite, às trevas e à escuridão,
demonstram seu esforço em encontrar o mistério no enigma e em comunicá-lo através
de novos enigmas, conduzindo o leitor ao desvelamento dos sinais.
Essa condução que o poeta proporciona de “dar as mãos” aos seus leitores é
uma das características mais relevantes da sua poesia. Daniel Faria revela-nos,
através da sua poética, um verbo de carne, uma palavra-corpo que transcende e para
atingi-la é necessário sacrificar-se, somente desta forma o poeta é capaz de fornecer
ao leitor a experiência reveladora do universo sensível. Vimos também que, em seus
versos, Daniel insiste no lado mais invisível das imagens, adentrando as profundezas
da obscuridade para revelar significados ocultos. Enquanto isso, Sophia busca
comunicar o lado mais visível das imagens, buscando uma clareza e uma justeza
poética que ressaltem a beleza e a luz.
Ao compararmos as poéticas de Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner
Andresen, percebemos que ambos os poetas utilizam a visão como uma ferramenta
reflexiva, mas, enquanto Sophia busca a clareza e a visibilidade das imagens, Daniel
mergulha na obscuridade, ele desafia os limites do conhecido e revela o poder da
palavra como uma fonte inesgotável de mistérios e significados. Por esse motivo,
identificamos um ponto de conexão da abordagem poética de Daniel à de outro poeta,
119
espiritual profunda, permitindo que o leitor se entregue a uma viagem pela riqueza dos
significados simbólicos e de sua relação com o mundo. O uso frequente de símbolos
côncavos, como pedras, cântaros, conchas e búzios, evidencia a busca de Daniel
Faria por conectar-se ao interior, ao âmago de seu ser, onde encontra uma conexão
mais profunda com o mundo e seus mistérios. Esses símbolos representam o que é
emitido e que ressoa no mundo interno, vibrando em sua acústica particular, como se
fossem instrumentos capazes de transmitir a experiência do poeta. A decifração é a
forma pela qual o poeta captura a presença do mistério e coloca seu ouvido na face
dos signos, buscando desvendar a noite escura. Através desse ato de escuta
profunda, o poeta revela e comunica o que foi decifrado, oferecendo aos leitores uma
visão singular e poética da realidade.
Em suma, a poesia de Daniel Faria revela-se como uma jornada de decifração
do mistério por meio da palavra poética, a qual é concebida como um lugar onde o
poeta habita para ressoar o inefável. Essa materialidade côncava da palavra
representa sua capacidade de emitir e reverberar a experiência interior, comunicando
aos leitores novos mistérios encontrados em seu mundo silencioso e espiritual.
Tanto a poesia de Daniel Faria como a de Sophia de Mello Breyner Andresen
se aproximam na busca por transmitir a experiência de um tempo mítico e atemporal;
ambos compartilham a concepção de uma perfeição dos primórdios, em que a
nomeação é a chave para acessar uma realidade originária e pura, conectada a uma
sacralidade e preenchida de sentido. Suas poéticas convergem em direção a uma
existência desperta, valorizada e conectada ao âmago do ser.
No entanto, enquanto Sophia busca uma clareza poética visual, aproximando
os objetos da linguagem aos objetos do mundo, Daniel Faria explora a invisibilidade,
a obscuridade vocabular, trabalhando com o enigma e a opacidade do discurso. Sua
poesia é, ainda que contida, uma explosão cósmica, quase onírica, repleta de
simbolismo e ambiguidade, que transcende o real e alcança o sublime.
Ambos os poetas também enfatizam a questão do tempo dividido em suas
obras, buscando a reunião, a aliança. Suas palavras transmitem não apenas
angústias, mas ambicionam costurar, remendar, religar, unir, novamente, aquilo que
se dividiu na modernidade, retratando profundas reflexões sobre a condição humana
e a passagem do tempo. Os dois autores exprimem uma voz poética que canta uma
ausência, com a qual nunca desistem de dialogar. São poetas que encaram a poesia
como a possibilidade de descortinar/regressar à Ítaca da linguagem, sempre
121
como Rumi, Rilke, Hölderlin etc. Sua obra ressoa mistérios, simbolismos e uma
espiritualidade única, convidando-nos a contemplar o mundo através de uma lente
poética que nos estimula a um modo de existência mais atento, presentificado, mais
lento, sensível e profundo. Com Daniel, aprendemos a habitar o âmago do silêncio e
as palavras geradas deste lugar.
Ao final deste estudo, podemos afirmar que a comparação entre as poéticas de
Daniel Faria e de Sophia de Mello Breyner Andresen contribui significativamente para
o aprofundamento dos estudos comparados entre as literaturas modernas de
Portugal. Essa abordagem comparatista, baseada na intertextualidade explícita e
implícita, amplia nossa compreensão das relações e, dessa forma, a pesquisa destaca
a importância de reconhecer e valorizar as conexões poéticas entre autores de
diferentes contextos. Espera-se que a dissertação estimule futuras investigações e
debates sobre a poesia portuguesa, ressaltando a relevância contínua dessas duas
expressões artísticas na cultura lusófona.
Essa dualidade na abordagem poética de Daniel Faria e de Sophia de Mello
Breyner Andresen enriquece o panorama literário lusófono, mostrando que a palavra
poética pode ser criada de múltiplas maneiras, ora revelando o visível, ora desvelando
o invisível. Estamos diante de dois poetas cuja palavra poética se debruça sobre a
experiência humana, seus anseios, suas reflexões e sobre questões ligadas a uma
visão de mundo religiosa que relaciona a poesia como modo de encantamento do real.
Suas obras deixaram um legado significativo, inspirando-nos a explorar as
profundezas da linguagem e a decifrar os enigmas do mundo que nos cerca, em uma
jornada poética repleta de beleza e mistério.
123
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ANEXOS
«Guarda a manhã/ tudo mais se pode tresmalhar» É esta a forma de Daniel Faria
estar na vida. Natural de Baltar (Paredes), foi para o seminário aos 12 anos. Tirou
teologia e vai licenciar-se em estudos portugueses. Em novembro entra como noviço
no Mosteiro de Singeverga. Lê Herberto Hélder, Ruy Belo, Sophia, Rilke, Borges,
Luísa Neto Jorge e Cecília Meireles, entre outros. Lê e escreve para «explicar o
inexplicável». Se não tivesse perdido uma disquete com poemas, não teria publicado
Homens que São como Lugares mal Situados e Explicações das Árvores e de Outros
Animais (Fundação Manuel Leão). Por vezes, os acidentes são bons.
Os seus poemas são feitos de luminosidade («se acender uma luz/ não morrerei
sozinho»). Porquê essa obsessão da claridade?
Eu nunca tive medo do escuro. Mas acho que tem a ver com um fascínio de infância.
A minha primeira ida à igreja foi um fascínio: o fascínio da luz. A luz dos azulejos, a
luz da vela, das vestes.
Julguei que essa obsessão vinha da Regra. No prólogo, São Bento diz: «Correi
enquanto tiverdes a luz da vida.»
Exato. Mas São Bento apareceu mais tarde. Em Explicação das Árvores e de Outros
Animais, a luz tem a ver com a escrita, sobretudo com o aprender a eliminar. Os
poemas surgem, mas depois temos de aprender a enxugá-los; a dar-lhes claridade.
Trazer um poemas à superfície é uma experiência única.
O ambiente rural também está presente. É este, ainda e sempre, o mundo dos
despojados beneditinos?
A vida monástica está muito ligada ao mundo rural. Mas esse mundo rural, que
aparece nos livros, vem da minha infância. Vivi num lugar rodeado de montes e
campos, a nossa família sempre trabalhou a terra: isso marcou-me; queria ver os
desenhos animados e tinha que ir apanhar erva. Essa vivência do ritmo da lavoura
acaba por interferir com a nossa vida, é das coisas que dá mais equilíbrio à vida
monástica.
«Há uma voz que bebo», diz num dos poemas. Quem é a voz?
Não sei quem falava que o poema se escuta. Não sei se era o Pessoa e Sophia vem
falar disso e retomar Pessoa não sei. Tenho a certeza de uma coisa: a poesia me é
dada. Eu construo-a. O poema escapa-nos completamente. Ele, por nos ser estranho,
acaba por se nos impor. Há poemas que surgem logo; apareceram assim e não lhes
posso tocar. Os poemas de Homens que São Como Lugares Mal Situados não sei
138
bem como os construí – foram escritos no tempo em que eu estava para entrar no
Mosteiro, estava em estado quase de graça absoluta. Senti, então, que os poemas
nos são dados. Construí-los é um exercício de obediência.
E o Ruy Belo?
É um poeta fabuloso…
silêncio parece quase a palavra perfeito no seu fim. A poesia, como já disse, é
aprender a eliminar, partindo da descoberta.
«Guarda a manhã tudo o mais se pode tresmalhar.» É essa a sua forma de estar
na via?
É, mas tem a ver com o só Deus basta. Tudo o mais se pode tresmalhar. É preciso
guardar a luz essencial, e para mim a luz essencial é sempre a luz da manhã.
É um homem feliz?
Sim. E bem situado.
Na opinião de Daniel Faria a vida monástica não é «uma espécie se mina antipessoal:
quem calca fica amputado»
Quais?
O cinema, por exemplo; o teatro. A possibilidade de ir a uma livraria comprar um livro.
…e isolada.
Sim, é um pouco mais estranha. Nós estamos numa época que aprendeu a valorizar
– e a igreja também o fez – as solidariedades humanas, o estar presente. Então, as
pessoas perguntam-me o que eu vou fazer para um mosteiro quando é preciso ficar
cá fora. Nós acreditamos na dimensão da oração. Através dela se santifica o mundo,
no sentido de que a santidade de um homem atinge outros homens…
Não acha, por exemplo, que a teologia da libertação é mais eficaz para salvar o
mundo?
141
Se tivermos uma visão pragmática da vida, por ser mais visível imediatamente. Esse
é um modo possível, há outros. A iniciativa é sempre de Deus – a ação é de Deus, a
reação é do homem.
Francisco
Daniel
P.S. Só depois da entrevista fui capaz de pensar em algumas coisas em que nunca
pensara: por exemplo, creio que a importância da luz se prende com a permanente
interrogação que se coloca quem, de algum modo, se sente chamado à vocação
sacerdotal ou a uma vocação religiosa – creio que, como para nenhum outro, para
esses se torna serena urgência a luz, o ver inteiro, a presença abundante, e nunca
suficiente, dos sinais; outro exemplo – a “voz que bebo” é, antes de mais, a voz do
poema; e o poema constrói-se a si mesmo, por isso eu disse que escrever é um
exercício de obediência.
Já agora, queria também aproveitar para corrigir uma injustiça: os mais novos da
comunidade, isto é, postulante, noviço e os dois monges mais novos, não só
apreciaram os livros, como os restantes monges, como gostaram dos poemas.
Finalmente, convido-te a visitares Singeverga. Terei muito gosto em te receber.
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