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LUIZ FELIPE PONDÉ EM

Comentários Bíblicos
A BUSCA DO FILÓSOFO HEBREU

Módulo 8
A FA C E D O F I L Ó S O F O H E B R E U I I :
4 VIRTUDES HASSÍDICAS
AULA 1
místicas, podem ter com Deus. No caso da interpretação judaica,
trata-se de um povo eleito por Deus, o povo de Israel, que é místico.
INTRODUÇÃO AO
HASSIDISMO
Considerações como esta são tanto históricas como teológicas.
Entretanto, não discordo da ideia apontada pelo filósofo Baruch
Espinoza (1632-1677), que através de sua obra “Tratado Teológico-
Político”, faz uma crítica da tradição histórica desta crença.

Independente disto, a ideia do povo de Israel como um povo que


tem mais intimidade com Deus, é uma ideia marcante nas tradições
semitas, além de ser uma espécie de eleição ainda mais radical, em
que Deus resolve te abordar.

Neste módulo, que também é o último do curso, vou tratar das chamadas
“quatro virtudes hassídicas”, que são elas: Trabalho, intencionalidade,
Na primeira aula do oitavo módulo de Comentários êxtase e humildade.
Bíblicos, será introduzida a tradição judaica
conhecida por “hassidismo”, que se origina do Ninguém sabe ao certo quem escreveu esses contos. Mas, supõe-se
termo hebraico “hesed”. que teriam sido rabinos. Há, inclusive, rabinos que são tidos como
figuras históricas e que aparecem nesses contos.
“Hesed” pode significar, dentre outras coisas,
piedade ou misericórdia. E o movimento hassídico, Mas, para nos aprofundarmos mais nesse tema, vou utilizar um livro
como também é conhecido o hassidismo, trata-se do autor austríaco Martin Buber (1878-1965), chamado “Hassidismo
de um conjunto de textos, conhecidos como “contos e o Homem Moderno”, que não tem tradução para o português..
hassídicos”, que se encaixam em uma espécie de
tradição mística judaica. Neste livro de Buber, é possível identificar uma tentativa de estabelecer
uma síntese de quais seriam as quatro virtudes básicas do homem
Esses textos foram discutidos por autores com hassídico, que é também o místico e o piedoso.
origem no leste europeu, em países que hoje
correspondem à Polônia, Lituânia, Ucrânia, Independente da crítica recebida, em que muitos clamam se tratar de
Letônia e Rússia. uma visão “buberiana” do movimento hassídico, eu e muitos outros
colegas de profissão ainda consideramos esta obra uma ferramenta
São textos que possuem um conteúdo descritivo extremamente útil para entender não só o movimento, como também
da intimidade que certas pessoas, tidas como o que ele tem de herança direta da Bíblia.
AULA 2

TRABALHO

vão surgir e fazer com que o hassidismo tenha um encontro


com o estudo da Torá e com um trabalho mais intelectualizado,
por assim dizer.

O filósofo Martin Buber, já citado na aula anterior, vai ser o


responsável, no caso, a organizar todo esse pensamento em
Na segunda aula do oitavo módulo de
quatro virtudes. Outros nomes importantes, como o historiador
Comentários Bíblicos, será abordada a
Gershom Scholem (1897-1982), também vão compactuar com
primeira das quatro virtudes hassídicas: O
essa divisão.
trabalho.

Para Buber, portanto, essas quatro virtudes representariam o


O hassidismo é uma tradição mística que
coração e a caracterização da vida de uma pessoa que teve contato
não deixa de ser descendente da tradição
direto com Deus, e que desenvolvem um certo comportamento
cabalista medieval. Foi um movimento
a partir deste contato.
fundado pelo rabino Baal Shem Tov (1698-
1760), que desenvolve uma espécie de arco,
A separação em quatro virtudes podem servir, também, como
em sua história, que nasce fora da sinagoga
uma espécie de desdobramento do comportamento humano na
e volta até a sinagoga.
intimidade com Deus. E o primeiro desdobramento é justamente
o trabalho, que é o tema abordado desta aula.
Apesar do hassidismo nascer com a
percepção de Deus em toda parte, algo
O trabalho é colocado aqui como próximo das regras da vida
muito comum em tradições místicas, com o
monástica cristã, que são originárias de Basílio Grande, grande
passar dos anos e a chegada do século XIX,
monge da Capadócia e uma das referências a partir da qual
nomes como Rebbe de Kotzer (1787-1859)
será construída toda a tradição monástica cristã. Muitas das
regras utilizadas por Basílio Magno, inclusive, também serão as O trabalho físico, além disso, está presente no mito do Paraíso.
utilizadas por Buber. Mas, afinal, que tipo de trabalho é esse? E é herdeiro não só de uma certa intimidade com Deus, como
também apresenta a ideia de introdução do corpo na experiência
O trabalho, nesse caso, é físico. São atos como o de lavar a louça, mística.
cozinhar, tomar conta dos doentes, plantar, colher, trabalhar
com a foice e o martelo, trabalhar na lavoura, construir uma É válido dizer, então, que quando se está batendo um martelo
mesa, construir uma casa e pintar uma parede. Não se trata, ou cuidando de um jardim, você possui uma maior intimidade
portanto, de um trabalho intelectual. com Deus. Este tipo de pensamento é muito comum em diversas
tradições religiosas, como a judaica, a cristã e a islâmica. Mas
Ainda assim, isso abre outros questionamentos, como o porquê por quê?
dessa valorização do trabalho físico. Na visão hassídica lida e
interpretada por Buber, o trabalho físico está alocado na beleza Quando Deus criou Adão e Eva, e portanto a humanidade, Ele
da criação e da parceria com Deus em cuidar e continuar utilizou uma expressão conhecida por “shomer” no hebraico,
criando. que significa “guardião”. Deus utilizou essa palavra em relação
a Adão e Eva, pois os dois são os guardiões da criação.
O trabalho então, neste caso, acaba carregando uma dose de
prazer. Isto pode ser confuso, à primeira vista, já que vivemos Isto significa que quando você trabalha com a natureza, e
em uma época dominada pelo narcisismo hedonista. que a partir da associação de sua inteligência com elementos
naturais, você consegue construir coisas físicas e materiais, sua
Mas basta comparar a experiência de trabalhar no meio rural intimidade com Deus é profunda.
em um trabalho físico, e a experiência de trabalhar no meio
urbano em um trabalho intelectual, que perceberá a diferença. Pois Deus criou o universo unindo Sua inteligência e trabalho.
E é, portanto, através do trabalho que você guarda a criação, a
Pois o trabalho físico é aquele que, quando realizado, te traz um mantendo viva e fazendo com que ela dê frutos.
repouso mental. Não há, portanto, tanto esforço.
AULA 3

Ê X TA S E

uma relação entre a tradição mística e a ideia de que através do seu estudo,
você consegue se aproximar de Deus por conta do texto ser sagrado.

No âmbito das virtudes hassídicas, a ideia de oração e êxtase é também


muito referenciada porque é comumente descrito que o ato da oração é
um ato que incendeia o resto da pessoa.

Ele incendeia porque sendo Deus o fogo, metaforicamente falando, a


pessoa que fala com Deus, o estaria contemplando também. Há também
a noção de que Deus é uma pessoa, que o cristianismo radicalizou ao
dizer que Ele encarnou em um homem, mas que permanece nas outras
religiões, no sentido de Deus ser uma pessoa porque interage com o ser
Na terceira aula do oitavo módulo de humano. Dentro do universo de quem está em oração, portanto, você fala
Comentários Bíblicos, será abordada com Deus e Ele te responde.
a segunda virtude hassídica, que é o
êxtase. Mas essa interação citada no parágrafo anterior é pautada na relação entre
o nosso intelecto e o intelecto de Deus. Como uma vez disse o filósofo
Neste curso, é bom deixar claro que a René Descartes (1596-1650): “Só Deus não precisa de métodos, porque
ordem de virtudes apresentadas não se Seu intelecto é infinito”.
refere a um grau de importância pré-
estabelecido, e sim à forma como decidi Já quanto a nós, sempre precisamos de um método, porque nosso intelecto
lançar as aulas. é finito. Deus, que tem uma intuição direta, imediata e absoluta do que
importa, não necessita de um método. Mas nós somos fracos de intuição.
Retornando ao tema, o conceito de
êxtase e oração é muito importante no E assim como o trabalho físico, citado na aula anterior, é uma forma de
hassidismo, e é comum a referência dada ter parceria com Deus na criação, o êxtase é se dar conta de como Deus
ao místico hassídico, ou seja, ao judeu procede na criação.
que tem essa intimidade com Deus.
A oração ou o êxtase, portanto, é um ato de incendiar a alma, ou o rosto do
Entretanto, tanto no judaísmo, como sábio hassídico, porque este sabe que está próximo de Deus e que vai arder
também no cristianismo e islamismo, há em Sua presença, diante da força de luz gigantesca que Deus representa.
AULA 4

INTENCIONALIDADE E
HUMILDADE o coração deve estar na hora da ação, é muito importante no
judaísmo.

Afinal, se uma ação é realizada, com um interesse que não


sincero, ainda que seja uma ação dentro dos mandamentos, ela
tem a mesma validade que uma ação realizada com o coração
no lugar certo?

Ou mesmo quando ajuda alguém. Você o faz para ser


“bonzinho”? Ou a sua atitude teria o mesmo valor se seu
Na quarta aula do oitavo módulo de coração não estivesse envolvido?
Comentários Bíblicos, as duas últimas
virtudes hassídicas tecidas por Buber Praticar ações apenas pela vaidade não seria o aporte da
são abordadas: A intencionalidade e a intenção correta que o Buber entende, ou mesmo o que Heschel
humildade. entende. Porque isso é o que justamente Deus teria passado
a Bíblia inteira esperando dos homens. Tanto Deus na Bíblia
A intencionalidade pode ser Hebraica, como Jesus no Novo Testamento.
compreendida da seguinte forma: O
homem piedoso, hassídico e místico Jesus desejava que seus discípulos entendessem que não
representa as pessoas que têm uma adiantava negociar com a mentira, e que não adiantava querer
intimidade direta com Deus. Esta enganar o próprio coração, muito menos enganar a Deus. Só
proximidade com Deus causa uma há, portanto, um caminho até Deus, ou até à salvação de sua
transformação na intenção que move a alma. É quando aceita a verdade e se recusa a mentir.
vida da pessoa. Deus, então, teria uma
vocação para produzir no homem um A exigência do Deus de Israel ao longo do Velho Testamento
desejo pela verdade. sobre os seus heróis, reside no coração desta virtude descrita
por Buber. Essa descrição se resume a ideia de que um hassídico,
Pode-se concluir então que Deus como alguém místico e que tem intimidade com Deus, vai
transforma a intenção em ação, e faz passar por uma transformação no coração que faz com que ele
com que o coração esteja no lugar certo deixe de saber mentir, além de outras coisas.
na hora da ação. Este debate, sobre onde
A busca de uma vida mais saudável seria então a busca por está a consciência dessa pequenez em relação a Deus.
uma autenticidade na vida, e a virtude da intencionalidade
de Buber pode ser compreendida como um efeito de Deus Deus, neste caso então, não só cuida da sua vida, no sentido
sobre aquele que vive próximo dele, tornando este indivíduo de que Ele carrega a sua vida na mão Dele. Mas também nos
autêntico. deixa completamente à mercê de Sua vontade. Ao redor de
todo este conceito, pode ser ainda acrescentada a ideia de
O personagem bíblico que talvez seja o mais autêntico de que, através desta consciência de sua pequenez e dependência,
todos, é Davi. Não à toa, ele é considerado uma espécie de pode haver uma produção de humildade em você.
“bem amado” de Deus. Talvez o personagem bíblico que mais demonstre sua
humildade seja Abraão. Principalmente quando se reconhece
Quanto à quarta virtude hassídica, a humildade, o escritor como “pó e cinzas”, esta que talvez seja a descrição máxima de
francês George Bernanos (1888-1948) costumava dizer que a humildade ontológica na Bíblia. É uma humildade, portanto,
humildade é a maior de todas as virtudes, e ela é indestrutível. que é acompanhada de Deus, e não uma humilhação.

Nem adianta, então, tentar diminuir uma pessoa que já atingiu Este acompanhamento de Deus segue o sentimento descrito
a humildade. Pois ela já sabe que sua condição ontológica é pelo filósofo Franz Rosenzweig (1886-1929). O de que
humilde. Ela, portanto, já sabe que é uma criatura de Deus. devemos ter consciência de que viemos do milagre e vamos em
direção ao mistério, não sabendo plenamente qual é o destino
Há também a frase de Davi, em Salmos: “Deus tem a minha vida da humanidade, mas sabendo que o fazemos acompanhados
e a carrega na palma de Sua mão.” Essa ideia é profundamente de Deus.
mística, além de carregar dois grandes entendimentos.

O primeiro reside, obviamente, na diferença entre a


grandiosidade de Deus e a pequenez da criatura. E em segundo,
BIBLIOGRAFIA
A Passion for Truth, Abraham Joshua Heschel

B I B L I O G R A F I A C O M P L E M E N TA R
FILÓSOFOS E OBRAS

Baruch Espinoza (1632-1677), filósofo holandês.

“Tratado Teológico-Político”, de Baruch Espinoza.

Martin Buber (1878-1965), filósofo, escritor e pedagogo austríaco, naturalizado israelita.

“Histórias do Rabi”, de Martin Buber.

“Hasidism and Modern Man”, de Martin Buber.

Baal Shem Tov (1968-1760), rabino místico polonês, tido como o fundador do hassidismo.

Rebbe de Kotzker (1787-1859), rabino hassídico.

Gershom Scholem (1897-1982), filósofo e historiador judeu-alemão.

São Basílio Magno (330-379), bispo de Cesareia, na Capadócia.

Mircea Eliade (1907-1986), professor, cientista das religiões, mitólogo, filósofo e romancista
romeno, naturalizado norte-americano.

Abraham Joshua Heschel (1907-1972), rabino austro-americano.

“Deus de Busca do Homem”, de Abraham Joshua Heschel.

“A Passion for Truth”, de Abraham Joshua Heschel.

Bernard McGinn (1937), teólogo, historiador da religião e estudioso da espiritualidade norte-


americano.

“As Fundações da Mística: Das origens ao século V. Tomo I: A prese”, de Bernard McGinn.

René Descartes (1596-1650), filósofo, físico e matemático francês.

Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.), filósofo grego durante o período clássico da Grécia Antiga.

“Eu e Tu”, de Martin Buber.

Soren Kierkegaard (1813-1855), filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês,


amplamente considerado o primeiro filósofo existencialista.

George Bernanos (1888-1948), escritor e jornalista francês.

Frank Rosenzweig (1886-1929),


um dos mais importantes filósofos-teólogos judeus do século XX.
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