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Marta F. Topel
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Introdução
Nas últimas décadas, novos modos de compatibilizar religião, gênero e
política se incrementaram e diversificaram entre os judeus, contestando a
hetero-normatividade do judaísmo. Assim, se bem que as correntes liberais do
judaísmo aceitem as identidades LGTB, a ortodoxia continua olhando como
abominaçãoa homossexualidade masculina. Entretanto,a condena de
identidades LGBT não se expressa de forma linear na ortodoxia judaica, seja
entre as lideranças do grupo, seja entre seus membros.
2
abomináveis, como o incesto, o adultério e manter relações sexuais com
animais (Lev. 18:16-20). Ao mesmo tempo, os codificadores salientam que o
termo abominação qualifica condutas que nada têm a ver com a sexualidade,
como comer algum alimento proibido pela Lei judaica (Deut. 14:3) e adorar
ídolosdas nações conquistadas pelos israelitas (Deut. 7:25-26). O denominador
comum dos atos considerados abomináveis é a sua atribuição aos povos
pagãos e, consequentemente, a sua definição como a antítesedos valores e
ideais do monoteísmo judaico. Assim, o homossexual se distancia do povo de
Israel e do mandato de pureza exigida dele. Nessa linha, não há como não
mencionar o célebre Pureza e Castigo de Mary Douglas, que em sua análise
das leis dietéticas judaicas, conclui que elas têm como objetivo separar os
judeus dos outros povos. O mandamento do Deus de Israel de transformar o
Antigo Israel em um povo de sacerdotes, isto é, em um povo sagrado, exige de
cada indivíduo e do grupo como um todo manter-se separados dos outros
povos, de suas práticas e rituais. As análises de Mary Douglas foram
inovadoras em demonstrar o princípio de que toda religião é, simultaneamente,
um sistema classificatório, uma cosmologia e uma instância moral.
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sexual o amor marital, todas as outras formas de condutas sexuais constituem
um desvio em relação a ele. Além do mais, existe um continuum dos
comportamentos sexuais desviados que se inicia no sexo pré-marital e
continua no celibato, adultério, homossexualidade, incesto e bestialismo.
Assim, por exemplo, o homem solteiro não tem o mesmo status que o homem
casado e sua vida como judeu é considerada incompleta do ponto de vista da
ortodoxia. A mulher solteira, por sua vez, é alvo de compaixão.
1
- Na religião judaica, a masturbação e o relacionamento sexual entre homem e mulher
utilizando algum contraceptivo mecânico são categorizados como “desperdiço de sémen”,
compreendido como o impedimento de gerar novas vidas judaicas. O “desperdiço de sémen” é
uma transgressão grave da Lei judaica.
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Identidades LGBT no universo ortodoxo: uma luta pletórica em paradoxos
O grupo israelense Hod (Esplendor), criado em 2008, tem entre seus
objetivos iniciar um diálogo público com os rabinos ortodoxos que leve em
consideraçãoquestões haláchicas (relativas à Lei judaica), a fim de obter o
reconhecimento pleno dos homens homossexuais como parte da comunidade
religiosa. O grupo destaca que esse diálogo não pode ser mais protelado e
negligenciado. Poucos dias depois de ter colocado seu website no ar, Hod
estendeu suas atividades e apelou à comunidade ortodoxa para que
reconhecesse os homens gays como parte dela. Uma carta foi enviada para
vários rabinos, parlamentares de partidos religiosos, prefeitos, líderes
comunitários e chefes de diferentes organizações de judeus observantes,
destacando que só a ignorância e a falta de consciência levam ao ódio sem
sentido contra os homossexuais dentro das comunidade ortodoxas2. Nesse
mesmo dia, um operador do siteescreveu: “nossa intenção não é subverter
Halachá”, salientando que “como todas as pessoas religiosas aceitamos as
exigências rigorosas da lei da Torá e de bom grado nos sacrificaremos no altar
de Deus”.3
2
http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3504952,00.html
3
http://www.ynetnews.com/articles/0,7340,L-3504952,00.html
4
Documentário de 2001 dirigido pelo norte-americano Sandi Simcha Dubowski, ele mesmo
gay e religioso. O filme teve grande repercussão e recebeu várias nominações em prestigiosos
festivais internacionais, ganhando o prêmio de melhor documental nos festivais de Berlim e
Chicago em 2001.
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armário” ou afastar-se das comunidades ortodoxas com todas as
consequênciasdecorrentes dessa situação5.
5
Para compreender a pletora de obstáculos que devem enfrentar os dissidentes da ortodoxia
judaica, cf. Topel, M. A ortodoxia judaica e seus descontentes: dissidência religiosa no Israel
contemporâneo.
6
- Ao longo do filme o espectador assiste Leah e Malka se prepararem para o shabat
(descanso sabático cuja celebração se realiza através de diversos rituais) seguindo os
costumes ortodoxos.
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em heterossexual. Qual é, então, a soluçãoproposta pela ortodoxia para David,
homossexual que aspira a continuar sendo um judeu obserante? Tendo como
base as fontes judaicas o rabino explica que Deus não coloca um fardo mais
pesado daquele que o homem é capaz de suportar, aconselhando David a
viver em celibato7.
7
- Para uma análise aprofundada do filme Trembling before G´od, cf. Topel (2010).
8
- Nos Estados Unidos, que tem a maior diáspora judaica, existem várias sinagogas LGBT,
além de grupos que criaram espaços de estudos religiosos, cujo objetivo é prover apoio e
informação a judeus ortodoxos LGBT para reafirmarem de modo positivo a suas identidades
judaico-ortodoxa e gay.
9
- É importante salientar, entretanto, que indivíduos gays desertam das fileiras da ortodoxia por
essa causa. Cf. Topel, 2011.
10
- Dados precisos sobre o boycott a grupos israelenses LGBT se encontram no artigo de
Jason Ritchie, 2015.
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principalmente, a Autonomia Palestina e o Irão11. Em outras palavras: segundo
os Pinkwatchers, os governos israelenses fazem uma propaganda do país
apresentando-o comouma sociedade liberal e tolerante no afã de apagar a
violação dos direitos humanos nos territórios ocupados.
11
- No artigo “Israel and Pinkwashing” publicado no New York Times em 22 de novembro de
2011, Sarah Schulman, ativista no movimento de boycott ao Pinkwashing israelense, traz os
seguintes dados: “In 2005, with help from American marketing executives, the Israeli
government began amarketing campaign, “Brand Israel,” aimed at men ages 18 to 34. The
campaign, as reported byThe Jewish Daily Forward, sought to depict Israel as “relevant and
modern.” The governmentlater expanded the marketing plan by harnessing the gay community
to reposition its globalimage”.
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punidos em suas comunidades caso manifestem a abertamente a sua
identidade sexual. Por outro lado, a despeito das restrições cada vez mais
rígidas para a entrada de palestinos no território israelense, com a decorrente
repressão daqueles que conseguem burlar os postos de controle, Tel Aviv
continua sendo um polo de atração para os palestinos que se identificam como
LGBT12.
12
- No começo do longo Relatório da Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv,
assinado por Michael Kagan & Anat Ben-Dor, intitulado: Nowhere to Run:Gay Palestinian
Asylum-Seekers in Israelencontramos um resumo desta realidade: “Gay Palestinians are
caught in the middle of the Israeli-Palestinian conflict. They are persecuted in the Occupied
Territories by militant groups, Palestinian security forces and members of their own families.
When they flee, they are hunted inside Israel by police who seek to return them to the territories
from which they have escaped, usually forcing them to live in hiding and eventually run away
again” (2008:5)
9
protegidos pelos estados nacionais. A autora descreve o homonacionalismo
como uma homonormatividade de cunho nacional em cujo quadro entidades
gays “domesticadas” fornecem munição para o fortalecimento do projeto
nacionalista. Como conceito, o homonacionalismo ganhou força depois dos
ataques de 11 de setembro e o recrudecimento da guerra ao terror, sendo
utilizado para descrever diferentes situações em países ocidentais. Puar
(2013) acrescenta que na atualidade, o Estado não é exclusivamente
heteronormativo, mas, também, homonormativo. A discussão em torno do
homonacionalismo tem como objetivo destacar que o homosexualismo já não é
visto como ameaça à segurança do Estado, mas como um corpo integrado a
ele. Finalmente, o homonacionalismo e a homonormatividade são consideradas
condições necessárias para o desenvolvimento de um processo de
Pinkwashing.
10
putas de Arafat”, “inimigos de Israel”, “feministas pervertidas”, “transgênero,
não transferência”, “Palestina Livre”13 entre outros.
13
- Cf. Amalia Ziv “Performative Politics in Israeli Queer Anti-Occupation Activism”, 2010.
11
Nós publicamos nossos resultados primeiro, porque
acreditamos que é essencial que os ataques contra homens
homossexuais nos territórios ocupados sejam devidamente
divulgados e, segundo, porque acreditamos que os indivíduos
que poderiam ser torturados ou assassinados não devem ser
forçados a esperar que a paz chegue ao Oriente Médio para
ser consideradosaptosa pedir asilo em Israel... Nosso interesse
neste assunto surgiu através de palestinos que se refugiaram
em Israel. Embora as organizações palestinas nos territórios
ocupados devam carregar com a primeira responsabilidade por
perseguir os palestinos homossexuais, nosso principal
interesse é focar a resposta de Israel para aqueles que
escapam e procuram segurança no outro lado da Linha Verde
(Kagan & Ben-Dor2008:7)14.
Mas Israel não é só alvo para os palestinos gays que procuram asilo
político, mas, também, um polo de atração no sentido de expressar
abertamente a identidade sexualde milhares deles em espaços de lazer,
fenômeno que se manifesta na visita a bares e boates gays em Tel Aviv e no
conhecido bar Shushan, considerado um “oásis de tolerância em Jerusalém”.
Outro dado relevante é que a ONG Al-Qaws, organização palestina LGBTQ
que adere ao BDS contra Israel, organiza festas, não nos territórios
ocupados15, mas nas cidades israelenses de Haifa e Yaffo, duas cidades
emblemáticas da co-existência entre judeus e árabes israelenses. Não menos
importante é o fato de a ONG ter sido criada no marco da Open House,
organização israelense para os direitos LGBT em Jerusalém.
14
- Tradução do inglês da autora.
15
Cf. site da ONG Al-Qaws: http://alqaws.org/news/Palestinian-Queer-Party?category_id=0
12
para ambos lados do conflito: para a polícia palestina e para as forças de
segurança israelense, revelando a trágica situação dessas pessoas.
16
Cf. Eight questions Palestinian queers are tired of hearing IN The Electronic Intifada:
https://electronicintifada.net/content/eight-questions-palestinian-queers-are-tired-
hearing/12951Tradução da autora.
13
ortodoxos LGBT, da mesma forma em que, com exceções, é efêmero o contato
entre judeus seculares LGBT e árabes e palestinos LGBT.
14
(Rapoport, 2012:33). Mas se o posicionamento do rabino Kamenetzky revela
uma abertura na visão ortodoxa sobre a homossexualidade, o seu limite é claro
e o conselho para os homens gays é a terapia reparadora. Na visão do rabino
Kamenetzky, se todos os homens são capazes de superar adições sexuais
como a adição à pornografia na internet, assim devem agir os
homossexuais(Rapoport, 2012:35). .
17
http://www.haaretz.com/israel-news/.premium-1.669680
15
gays ortodoxos –tanto mulheres como homens- escolhem uma forma de
judaísmo que condena a homossexualidade, cuja matriz é patriarcal e que
discrimina a mulher sistematicamente, proibindo-a de exercer funções na
esfera pública. Uma resposta possível a encontramos na pesquisa de Shnoor
(2006) que relata que os informantes que escolheram uma congregação
judaica liberal, posteriormente a abandonaram por sentir-se estranhos em
comunidades que exigem um compromisso menos estreito com o judaísmo e
nas quais a liturgia é diferente; enfim: comunidades nas quais foi construída
uma visão de mundo diferente daquela das comunidades ortodoxas. Mas a
pesquisa de Schnoor (2006: 49) traz outra resposta ao mesmo interrogante que
se relaciona com o sentimento de culpa dos atores sociais pela sua orientação
sexual. Em vários depoimentos colhidos pelo antropólogo,os interlocutores
afirmaram que a identidade judaica fica em primeiro lugar vis-à-vis a identidade
gay. Por essa razão, continuar na ortodoxia e consumar os preceitos da forma
mais estritaajuda os homens gays a purgar a vergonha e a culpa suscitada por
sua orientação sexual. Um interlocutor ilustrou esta decisão ao mencionar seu
objetivo de lograr um nível superior de espiritualidade, expressada em certa
obsessão pelas leis dietéticas judaicas, pelo descanso sabático e por consumar
os rituais das festas do calendário judaico da forma mais rígida possível.
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desdobramentos- tenha mostrado a sua complexidade. É por esta mesma
complexidade que as posições que levantam a bandeira do BDS e do
Pinkwashing israelenseme parecem reducionistas, já que não é a partir de
variáveis teóricas criadas em contextos diferentes ao israelense que se possa
compreender a situação, muito menos, a partir de slogans. O reducionismo que
se observa em alguns textos acadêmicos que descrevem a situação em Israel
e na Autonomia Palestina e os alertas dos chamados Pinkwatchers desemboca
em um reducionismo perigoso que pouco ajuda a compreender em
profundidade uma situação que tem produzido numerosas injustiças das quais
são objeto os palestinos LGBT e queers, além da tentativa cínica de relativizar
o liberalismo existente em Israel com as comunidades LGBT e queers.
No seu longo artigo “The politics of LGBT rights in israel and beyond:
nationality, normativity, and queer politics”, Gross (2015: 117) salienta que a
evolução da política dos direitos LGBT como parte de um projeto e ideologia
nacionalistas, distanciada de uma agenda progressista, não é um fenômeno
exclusivo de Israel. Mas o único país a ser boycotado por essa questão é
Israel.
17
em Israel-Palestina, e muito menos sobre a realidade da
experiência dos palestinos.
BIBLIOGRAFIA
Douglas, M. Purity and Danger. London: Routledge and Kegan Paul, 1966.
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Topel, M. “Higos y dátiles: Las fuentes judías y la curiosa lucha de los que
aspiran a una identidad múltiple: los judíos-gays-ortodoxos” in Vibrant – Virtual
Brazilian Anthropology, v. 7, n. 1, 2010.
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