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Atos dos Apóstolos

FABAPAR
F A C U L D A D E S B A T I S TA D O P A R A N Á
Atos dos Apóstolos

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FACULDADES BATISTA DO PARANÁ


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Autoria do Material – Lourenço Stelio Rega e Marcos de Almeida

Coordenação Editorial – Elen Priscila Ribeiro Barbosa


Coordenação de Produção – Murilo de Oliveira Rufino
Núcleo de Inovação e Desenvolvimento Educacional – Elen Priscila Ribeiro Barbosa
Revisão – Edilene Honorato da Silva Arnas
Design Gráfico e Diagramação – Thiago Alves Faria
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
Rozane Denes (Bibliotecária CRB/9 1243)

Rega, Lourenço Stelio.


Atos dos Apóstolos / Lourenço Stelio Rega; Marcos de Almeida – 1.ed.
– Curitiba : Núcleo de Publicações FABAPAR, 2019.
120 p.

ISBN: 978-85-89487-06-1

1. Bíblia. N. T. – Atos – Crítica e interpretação. I. Almeida,


Marcos de II. Faculdades Batista do Paraná. III. Título.

CDD (21. ed.) – 226.6

Elaboração da ficha: Rozane Denes CRB9/1243


Atos dos Apóstolos
Lourenço Stelio Rega
Marcos de Almeida

Núcleo Criativo de Multimeios Educacionais

FABAPAR
F A C U L D A D E S B A T I S TA D O P A R A N Á

Curitiba
2019
Atos dos Apóstolos
1. Estrutura geral do livro

Introdução
O livro “Atos dos Apóstolos” é o único escrito narrativo que realiza
a ligação entre os eventos registrados nos Evangelhos e o restante dos
textos do Novo Testamento, fechando uma lacuna com o desenvolvimento
posterior do cristianismo, especificamente da igreja primitiva.

A mensagem que o autor compartilha e o relato dos fatos são,


sem dúvida alguma, imprescindíveis para se entender as atividades e
os pensamentos das primeiras comunidades cristãs. Sem tal escrito,
certamente haveria grandes pontos obscuros logo após a morte do
Senhor Jesus Cristo.

O título Atos foi conferido pelos pais da igreja. O autor, provavelmente,


não colocou um título próprio em nenhum ponto do escrito. O que nos
chega hoje, por meio dos manuscritos, são textos sem título algum.

Escritores dos séculos II e III fizeram várias sugestões,


como “O memorando de Lucas” (Tertuliano) e “Os atos
de todos os apóstolos” (Cânon Muratoriano). O nome que
finalmente iria consagrar-se, “Os atos dos apóstolos”,
é usado pela primeira vez no prólogo antimarcionita de
Lucas (final do século II?) e em Irineu (Adv. Haer. 3.13.3).
(CARSON, 2001, p. 203)

É fato que o tema colocado não descreve os Atos dos doze


Apóstolos de Jesus, mas apenas de alguns deles. O termo Atos deriva
do substantivo grego práxis (πρᾶξις), que significa ação, prática, atividade.

Os Evangelhos expõem aos leitores do primeiro século a vida de


Jesus em quatro relatos. Atos é apenas uma narrativa exposta sobre
os registros históricos depois do anúncio das boas-novas. O leitor tem
acesso a como se deu o derramamento do Espírito Santo e como a
comunhão inicial dos cristãos foi afetada pela interferência e oposição
das autoridades judaicas.

11
A missão entre os gentios e suas primeiras ações efetivas são focos
da sequência do martírio de Estevão, da ação de evangelização de Felipe,
da ação de Jesus na conversão de Saulo e do nascimento da primeira
comunidade orgânica cristã na Cidade de Antioquia. Esta seria o polo de
onde sairiam missionários comissionados até os confins da Terra.

Os apóstolos Paulo e Barnabé levaram a semente do Evangelho até


Chipre e Galácia. Diante da ação do Espírito Santo na viagem missionária
destes enviados, o Concílio de Jerusalém reconheceu que, de fato, era
legítimo o que acontecera aos gentios e a veracidade da conversão dos
que não eram povo e agora são povo de Deus.

A segunda viagem missionária de Paulo alcança a Europa, incluindo


a cidade de Atenas e o istmo de Corinto. Na terceira viagem do apóstolo
dos gentios, a região de Éfeso é alcançada. A narrativa relata, então, a
prisão de Paulo em Jerusalém e o seu envio para a cidade de Roma.

Atos reconstrói o progresso do Evangelho por meio dos instrumentos


que Deus escolhe, bem como o desenvolvimento do ministério desses
homens que foram verdadeiros apóstolos, no sentido literal da palavra.
Eles foram os enviados para semear a Palavra de Deus, a semente da vida
aos perdidos que tiveram suas vidas tocadas e transformadas pelo poder
de Deus.

Este é um livro amplamente comentado ao longo da história do


cristianismo pelos diversos pais da igreja, teólogos, pregadores etc. Os
temas são atuais, relevantes e impactantes para o contemporâneo. É
certo que há o abismo que nos separa da intenção do autor, uma vez
que estamos separados do seu contexto original, ou seja, das inúmeras
experiências que o autor vive. É imprescindível que se compreenda
Atos em seu contexto de origem, sem manipulações nem adaptações a
qualquer tese pessoal.

A Palavra de Deus segue sendo relevante em todos os tempos e


deve ser interpretada corretamente para que se aplique de modo honesto
e preciso.

12
1.1 Autoria
A tradição tem sido unânime com relação à autoria de Lucas para o livro
de Atos. O fato é que o Evangelho de Lucas e Atos são escritos anônimos. O
autor foi uma pessoa de boa cultura, o que se percebe na introdução do escrito
em grego literário de bom nível. As informações foram transmitidas ao autor
(Lc 1.2), não sendo este, então, um dos apóstolos que andou com Cristo. O
autor conhece o Antigo Testamento, pela versão da Septuaginta, tradução
grega, sabe do contexto político e social de sua época e é alguém bem
próximo do apóstolo Paulo.

O fato de a tradição afirmar tal autoria implica que a evidência é


suficientemente forte ao associar Lucas a este escrito. Lucas foi o médico
amado e companheiro de viagem do apóstolo Paulo. Dentre outros, Irineu
e Tertuliano atestaram a autoria do seu nome. Um ponto contrário para
que Lucas fosse aceito como autor foi o critério de apostolicidade para
que um livro pudesse ser incluído no cânon das Escrituras Sagradas, uma
vez que ele não era apóstolo de Jesus, nem mesmo foi um seguidor de
alguns dos apóstolos do Mestre, de acordo com a classificação de que
um apóstolo fora, antes, discípulo de Jesus.

O apóstolo Paulo foi visto como um seguidor dos apóstolos e não


tinha autoridade igual aos doze. Mesmo assim, Lucas foi apontado como
o autor legítimo de Atos.

1.1 Evidência interna


O nome de Lucas não aparece em nenhum trecho do livro de Atos,
o qual também está relacionado com a autoria do Evangelho. A ligação
de Lucas com ambos os escritos, percebido no vocabulário, no estilo
linguístico, no encadeamento do pensamento teológico, pode sustentar
um projeto homogêneo, descrito já no prólogo:

O prólogo do evangelho de Lucas também deve


ser relacionado com Atos. A formulação περὶ τῶν
πεπληροφορημένων έν ἡμῖν πραγμάτων – peri tōn
peplērophorēmenōn em ēmin pragmatōn, “sobre os feitos

13
que aconteceram entre nós”. (Lc 1.1) ficaria inexplicável se
ela tratasse de nada mais que uma história de Jesus até
sua ascensão. (MAUERHOFER, 2010, p. 271)

A descrição do prólogo de Lucas em seu Evangelho remete a


uma segunda obra, presumidamente apresentada na narrativa de Atos,
remetida ao leitor Teófilo. Neste sentido, Lucas faz referência ao primeiro
tratado o qual teria escrito (At 1.1), o que coloca Atos como sequência de
seu Evangelho.

A evidência interna de sua autoria também pode ser percebida no


fato de colocar a primeira pessoa do plural em vários capítulos (16.10
a 17; 20.5 a 1; 21.1 a 18; 27.1 a 28.16). Se o uso do pronome não foi
meramente uma convenção literária, certamente pode-se ver que o autor
fora companheiro de viagem de Paulo.

Há outras possibilidades de companheiros de viagem para Paulo,


por exemplo, Silas, Timóteo, Segundo, Gaio, Tíquico, Trófimo, Sópater
e Aristarco. O uso do pronome na primeira pessoa do plural, nós, inicia
em Troas, na segunda viagem missionária de Paulo, quando estavam
presentes apenas Silas e Timóteo, o que ajuda na exclusão da maioria
das possibilidades.

O autor fez a opção de não fazer menção de si próprio nos seus


registros da jornada de Paulo. Tal possibilidade remete a Demas, Tito,
Crescente e Lucas. Destes, Tito foi o mais presente, mencionado pelo
próprio Paulo em suas epístolas, tendo ido com Paulo e Barnabé para
a igreja de Jerusalém (Gl 2.1), e foi quem resolveu problemas na igreja
de Corinto (II Co 2.13; 8.16; 12.18), além de ter recebido de Paulo uma
carta orientando em seu pastorado em Creta. Lucas parece ser o mais
provável dos outros três companheiros de Paulo, pois Demas desertou.
Já Crescente é mencionado apenas uma vez (II Tm 4.10).

O nome de Lucas é citado em duas epístolas de Paulo (Cl 4.14 e


Fm 24) e na primeira parte do verso 11, de II Timóteo. A escolha, dentre
todos esses nomes citados para apoiar a evidência interna, fica entre Tito
e Lucas, pessoas que estavam intimamente ligadas a Paulo. É certo que
ambos poderiam ter usado o pronome “nós” em todos os capítulos da
narrativa de Atos.

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A autoria de Lucas pode ser apoiada presumindo que a sua profissão
se mostre na linguagem peculiar, que deve ser percebida no uso de termos
adequados a tal realidade, uma vez que o próprio Paulo o reconheceu
como médico. Porém não é fato definitivo, pois não há consenso se, de
fato, há usos de terminologia médica em Atos.

A escolha mais lógica recai sobre Lucas pela via da tradição que
nunca associou Tito a este escrito. Uma vez que se toma tal posição,
alguns problemas surgem, por exemplo, o da distinção entre a teologia de
Paulo em Atos e em suas epístolas e as diferenças de relatos biográficos
de Atos não coincidentes com informação nas epístolas.

1.2 Evidência externa


A tradição de que Lucas é o autor é bem antiga e não é contestada.
Temos o Cânon Muratoriano de 190 d.C., escrito de Irineu em Adversus
Haereses (3.1; 3.14.1-4), o prólogo antimarcionita do final do século
segundo, escrito de Clemente de Alexandria em Stromata (5.12), escrito
de Tertuliano em Adversus Marcion (4.2) e escrito de Eusébio em História
Ecclesiae (3.4; 3.24.15). Estes pais de igreja foram unânimes em afirmar
a autoria do médico Lucas, posição que foi contestada somente no final
do século XVIII.

Há evidências externas, extraídas dos escritores da igreja


primitiva. A evidência mais clara é aquela de Irineu (c. de
180 d.C.), que cita Lucas como sendo o autor do terceiro
Evangelho e de Atos. A partir desta altura, a tradição é
atestada com firmeza. (MARSHALL, 1991, p. 44)

O autor de Atos foi o fiel companheiro do apóstolo Paulo, o médico


amado Lucas. Esta é a posição unânime dos pais e da igreja primitiva.
Apoiado pelas evidências internas, que reforça tal proximidade pelo uso
do pronome pessoal da primeira pessoa do plural.

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1.3.1 Ano
A datação de Atos é tarefa difícil, por isso surgiram diversas teorias
que variam de uma data primitiva de antes da destruição de Jerusalém no
ano 70 d.C. até uma data posterior, perto de 130 d.C. Em aspectos gerais,
tais teorias situam Atos em três períodos: 62 a 70 – 80 a 95 – 115 a 130.

A data de 62 d.C. é apoiada pelos eruditos que entendem que Atos


contempla informações de eventos históricos que são anteriores a 60 ou
61, com o fim do período de confinamento do apóstolo Paulo, quando de
sua prisão de dois anos na Cidade de Roma. O final abrupto de Atos dá
segurança a muitos para afirmar a exatidão desta datação. O martírio de
Paulo e de Pedro e a perseguição do imperador Nero não estão na narrativa
de Atos, que também faz silêncio a respeito do martírio de Tiago, o irmão
de Jesus no ano de 62 d.C. Além destes eventos, há também o silêncio
com relação à queda de Jerusalém no ano 70 d.C., um acontecimento
catastrófico que um autor não deixaria de relatar em seus escritos.

O final de Atos é uma questão importante para os que defendem


esta data próxima a 62 d.C. Os que a defendem dizem que Lucas iria
escrever um terceiro volume, dando sequência para as narrativas do
movimento do cristianismo. Os leitores iriam permanecer num estado de
suspense até que tivessem acesso a esse terceiro volume. No início do
escrito de Atos (1.1), Lucas faz o uso do termo grego πρῶτος (prōtos), que
significa primeiro, com o qual ele descreve o seu Evangelho. Tal adjetivo
indicaria referência ao primeiro de três volumes. Além deste, não há outra
evidência de que Lucas iria escrever outro volume.

O argumento usado para o final abrupto de Atos é que Lucas não


escreve com a perspectiva biográfica, mas teológica. A narrativa aponta
para a expansão do Evangelho de Deus que acontece sem impedimento:

Por dois anos, permaneceu Paulo na sua própria casa, que


alugara, onde recebia todos que o procuravam, pregando o
reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento
algum, ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus
Cristo. (Atos 28.31, ARA)

16
Este seria o clímax necessário que configuraria o foco de Lucas no
movimento cristão e seu crescimento certo, mais do que sua preocupação
com a pessoa de Paulo. De fato, Lucas tomou a resolução de publicar sua
narrativa desta forma, sem maiores explicações.

A defesa para uma data posterior a estes eventos importantes se


dá pelo argumento de que Lucas não estava interessado nos relatos que
se sucederam ao final de sua narrativa. A preocupação de Lucas e seu
foco estão em descrever a proliferação do cristianismo de Jerusalém até
os confins da Terra, ou seja, até Roma. Para o autor, a morte de Paulo não
seria relevante.

A data de 80 d.C. para Atos tem como argumento o referencial do


Evangelho de Lucas, escrito após o ano 70 d.C. O Evangelho de Lucas
é um referencial que ajuda na datação de Atos. Este foi o primeiro
relato endereçado para Teófilo. Lucas diz que acessou outras fontes,
possivelmente o escrito de Marcos, as palavras de Jesus comuns em
Lucas e Mateus, denominada fonte Q (quelle, em alemão significa, fonte),
além de materiais exclusivos do próprio Lucas. O Evangelho de Marcos
é aceito como escrito entre 65 a 70 d.C. Kümmel defende esta datação:

Uma vez que os Atos, como segunda parte do duplo


trabalho de Lucas, deve ter sido escrito depois do
evangelho de Lucas, que foi escrito depois do ano 70, uma
data situada antes do ano 80 está fora de cogitação. Com
efeito, as diferenças linguísticas entre Lucas e Atos exigem
certo intervalo entre os dois escritos do mesmo autor.
(KÜMMEL, 1982, p. 236)

A datação próxima ao segundo século, entre 115 a 130 d.C. tem


seu argumento baseado na ideia que o autor utilizou do historiador Flávio
Josefo, Antiguidades, escritas em 94 d.C. A proposta é que Atos 5.36
seria dependente de Josefo (Antiguidades judaicas, livro XX, capítulo
2), consequentemente, devendo Atos estar situado no início do século
segundo.

O problema com datações posteriores à década de 60 d.C. se dá


porque Lucas não faz referência nem utiliza informações dos escritos de
Paulo, portanto, anterior à perseguição de Nero no ano 64 d.C. Além disto:

17
É possível constatar muito cedo vestígios de Atos que
dificilmente permitem uma datação por volta do ano
100. Em Clemente de Roma (c. 95) encontram-se tais
ressonâncias. Também em O pastor, de Hermas (c. 140),
talvez se possa atribuir uma passagem a Atos, assim como
um texto do Didaquê (c. 100), da Carta de Policarpo (m. c.
155) e das cartas de Inácio. Ainda no século II, também
Justino parece ter conhecido Atos. E na carta das igrejas
de Viena e Lião às igrejas da Ásia e da Frígia constam
semelhanças com Atos. (MAUERHOFER, 2010, p. 290)

O fato é que hoje em dia poucos eruditos ainda defendem o escrito


de Atos como um documento do segundo século.

A data provável foi 62 d.C., argumento pautado no fato de que


Lucas provavelmente desconhecia os escritos de Paulo. Além disto,
Lucas faz uma descrição da religião dos judeus ainda autorizada pelo
império, situação que iria mudar com a rebelião iniciada no ano 66 d.C.,
culminando com a queda de Jerusalém e, finalmente, Luca omite um fato
histórico relevante para os cristãos, que é a perseguição dura de Nero.

1.3.2 Autor
A origem de Lucas é quase desconhecida dos estudiosos. O que
se pode deduzir a partir da epístola de Paulo aos colossenses é que era
um gentio (Cl 4.1-14), uma vez que ele não fora inserido dentre os judeus
que cooperaram com Paulo. Outra informação relevante é que Lucas não
foi um seguidor de Jesus Cristo durante sua vida terrestre. O prólogo do
Evangelho deixa isso bem claro. A antiga tradição liga Lucas à cidade de
Antioquia da Síria.

Lucas foi um pesquisador que ouviu as testemunhas oculares


acerca dos eventos, os quais foram registrados por escrito. A escrita de
ambos os textos está em linguagem bem elaborada num grego literário de
bom nível, o que os aponta Lucas como uma pessoa de boa cultura, que
conhecia e lia a versão grega dos setenta, a septuaginta. “O texto de Lucas
varia entre a prosa grega de sua época e um modo judaico de escrever em
grego bastante influenciada pela septuaginta.” (KEENER, 2017, p. 374)

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Os acontecimentos da narrativa revelam a perspectiva de Lucas ao
mostrar que estes haviam sido previstos nas Escrituras Sagradas. Tais
acontecimentos iriam acontecer, o que incluía o sofrimento necessário
e a glorificação de Jesus e também a propagação das boas-novas para
todas as etnias. A consequência disto era o nascimento de uma igreja que
seria a expressão da comunhão entre judeus e gentios crentes. O uso que
Lucas faz da septuaginta aponta para a obra de continuidade de Deus em
plena concordância com o que havia prometido no Antigo Testamento.

O médico amado, ao qual Paulo se refere saudando os irmãos, é


Lucas, o autor de Atos e do Evangelho. O médico poderia ser de classe
social baixa e até mesmo ser um escravo de algum senhor, mas em geral
os médicos tinham boa instrução. A função de Lucas pode ser vista com
clareza no uso que faz da linguagem médica, comuns na literatura médica
da época. É importante destacar que tais termos também ocorrem em
outros tipos de texto.

A origem de Lucas como gentio pode influenciar a composição dos


seus escritos. Os assuntos dizem respeito à inclinação de Lucas, que
apontam para as realizações dos primitivos cristãos, como eles tiveram
êxito em conduzir os gentios para a fé cristã de modo direto, sem passar
pelo judaísmo. A crença em Jesus não era mais exclusiva dos judeus.

A menção que Lucas faz de muitas pessoas mostra que ele as


conhecia pessoalmente. Ele desenvolveu amizade com Barnabé, que fora
enviado para a cidade de Antioquia (At 11.22), local de onde o convertido
judeu Nicolau procedia (6.5), além de outras pessoas que Lucas cita,
como Simeão, Lucio, Manaém e o próprio Saulo (13.1). Outras pessoas
são mencionadas por Lucas, pessoas que ele também encontrou em
Antioquia, como Judas e Silas (15.22, 32) e Lídia, vendedora de tecido
da cidade de Tiatira (16.4). Lucas pode ter recebido informações sobre o
início do progresso da igreja em Samaria por meio do evangelista Filipe,
cuja casa em Cesareia ele ficou hospedado (8.5-25). O fato é que Lucas
cita mais de 100 nomes próprios. A veracidade da pesquisa de Lucas pode
ser percebida no uso que faz dos nomes próprios relacionados aos títulos,
cujos achados arqueológicos confirmam e testificam tal exatidão, além
da das informações geográficas que são registradas de modo detalhado.

19
A apresentação de Lucas de fatos históricos e geográficos
é esplêndida. Demonstra que, em muitos episódios, ele
próprio foi uma testemunha ocular. E quando não havia
estado presente, consultava pessoas que haviam estado
no local e podiam fornecer um relato preciso dos incidentes
ocorridos. (KISTEMAKER, 2016, p. 21)

Lucas é um historiador meticuloso e um diplomata cristão


preocupado com as ações das autoridades romanas para com a fé cristã.
A sua apologia contempla defesa das duras críticas contra o cristianismo,
apontando que o império nada tinha a temer, pois os cristãos não são nem
rebeldes nem subversivos. Tal defesa aponta para a perspectiva de Lucas
de que os cristãos são inocentes e moralmente inofensivos, exercendo
uma influência saudável na sociedade.

1.3.3 Gênero literário


A identificação de gênero deste tipo de escrito é antiga e parte
do emprego que historiadores fizeram do termo “atos”, para chamar
as narrativas dos feitos por heróis de indivíduos e também de cidades
inteiras. A partir desta perspectiva pode-se derivar o uso de “atos” pela
igreja primitiva, uma vez que o autor focou sua narrativa nos feitos de
personagens, a qual se encaixa nesta categoria.

“Atos” não era propriamente o nome de um gênero técnico,


de sorte que o título não ajuda muito a determinar uma
classe literária bem definida para o livro de Atos. A maioria
dos estudiosos concorda que Atos deve ser colocado na
categoria de “história”. (CARSON, 1997, p. 219)

A dedicatória que Lucas faz ao mesmo destinatário, Teófilo (Lc 1.3 e


At 1.1) no Evangelho e em Atos indicam, de fato, que não se trata de obra
literária uma à parte da outra. Ambos são uma obra literária completa,
tendo o Evangelho como o primeiro livro, descrito assim pelo próprio autor:
“Escrevi o primeiro livro, ó Teófilo, relatando todas as coisas que Jesus
começou a fazer e a ensinar”. (At 1.1). Este prólogo está em harmonia
com as aparições de Jesus aos seus discípulos, após sua ressurreição e
também de sua despedida.

20
O relato que Lucas fez da subida de Jesus aos céus à vista de
testemunhas, aponta para uma referência ao primeiro volume que já tinha
sido completado, relação percebida do final do Evangelho (Lc 24.49) com
o início da narrativa em Atos (At 1.9). Tal percepção também colabora
para a possibilidade de estes escritos terem sido constituídos de uma só
obra literária. Porém a tradição não sustenta tal hipótese, pois não foram
incluídos no cânon dos primeiros pais da igreja.

A forma literária do Evangelho de Lucas já havia sido fixada no


tempo de sua composição. Este argumento colabora com a ideia de
que o gênero literário de Atos é distinto do Evangelho. O escrito de Atos
não contempla qualquer título e, portanto, não se sabe se o autor deu
um título ou uma epígrafe. Se havia um título, não chegou até os dias de
hoje. Há um título: πράξεις ἀποστόλων (práxis apóstolon), as práticas dos
apóstolos, que foi registrado a partir de Irineu e Clemente de Alexandria,
que possivelmente não é original do autor.

O uso do título “Atos dos apóstolos” entra em uso após a formação


do cânon do Novo Testamento (Século II), tema ligado aos interesses da
igreja primitiva e a dois personagens, Pedro e Paulo. A biografia destes dois
principais apóstolos de Jesus não é o alvo nem a intenção de Lucas. Em
sua narrativa, em certo momento, o autor participa da composição com
a intenção de apresentar, também, o significado dos acontecimentos. Em
seu objetivo literário, ele modela as diferentes cenas de seu relato com
objetivos teológico e apologético.

O escrito narrativo de Atos aponta para uma defesa da cristandade


frente às acusações do perigo que é para o estado e para a sociedade. Há
esta intenção de defesa dos cristãos, que eram hostis. Tais acusações
são feitas de modo deliberado pelos judeus: “Todos estes procedem
contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei” (At 17.7),
cujo relato de Lucas aponta tal defesa de Paulo: “Nenhum pecado cometi
contra a lei dos judeus, nem contra o templo, nem contra César.” (At 25.8)
Este caráter apologético remete a um posicionamento firme das verdades
ensinadas por Jesus e agora pelos seus apóstolos.

21
A intenção do autor dos Atos é a de descrever a atividade
de Deus, em Cristo, e orientada para a salvação da
humanidade. Atividade esta que alcançou pela primeira
vez seu objetivo com a pregação aos gentios em Roma.
Para atingir esse desiderato, criou uma forma literária
que não tinha precedente, nem no mundo pagão nem no
cristão, e que não deixou imitadores de nenhuma espécie.
(KÜMMEL, 1982, p. 207)

A motivação de Lucas ao apresentar as boas notícias da salvação,


proclamada por Jesus no seu Evangelho, segue avançando nas páginas
do texto de Atos. Tal abordagem teológica está presente em ambos os
escritos da vinda do messias na expectativa da vinda do Espírito Santo
e da evangelização como resposta do chamado e caráter cristão. Atos
aponta para a importância da história da salvação em sua origem, no envio
do Filho amado pelo Pai Celeste e com a sua ressureição e ascensão, o
envio do Espírito Santo.

A fidelidade dos relatos descritos em Atos vem da exatidão notável


de Lucas, num mundo complexo, escrevendo sem o auxílio de bibliotecas e
arquivo de temas ligados à topografia, política, história e náutica. Ele transita
em meio a detalhes e não escorrega nas informações que apresenta.

A exatidão histórica de Lucas é mais espantosa ainda se


considerarmos que amplidão tremenda o livro percorre,
em termos de cenários e circunstâncias, estendendo-se
de Jerusalém a Roma, incluindo tipos de povos, culturas e
administrações. (WILLIAMS, 1996, p. 19)

O caráter singular de Atos revela este escrito como um fenômeno


literário, cujo empreendimento do autor aponta para uma seleção
intencional de materiais específicos para o seu propósito. A coesão da
história da expansão do cristianismo como missão sequencial da vinda
do salvador revela não só o caráter da pesquisa, mas o tipo de escrito
que empreendeu. Atos é narrativa histórica ímpar que tem a finalidade
de apresentar ao seu leitor fatos precisos entre a ascensão e o retorno
de Jesus, movimento de Jerusalém até os confins da Terra, que seguem
sendo o propósito da missão dos que foram chamados e preenchidos
pelo Espírito Santo.

22
1.4 Divisões

1.4.1 Ascensão de Cristo


O tempo de espera entre a ressurreição e a ascensão de Jesus foi
de quarenta dias, entre a ascensão e o evento de Pentecoste foram mais
dez dias, somando assim cinquenta dias sob a instrução de Jesus de
permanecerem na cidade até que fossem revestidos de poder (At 1.8). Ao
longo deste tempo de espera os discípulos foram comissionados, viram
Jesus ser elevado às alturas, mantiveram-se unidos em perseverante
oração e escolheram Matias para tomar o lugar de Judas Iscariotes.

A narrativa de Lucas tem como característica teológica central


a história da salvação. O autor expõe o relato da vida de Jesus no seu
Evangelho e segue para os atos poderosos de Deus em Atos. A dedicatória
e os mesmos interesses apontam para a unidade entre estes escritos,
que podem ser vistos em mesma linguagem e estilo. A fé cristã tem como
base a realidade de que Deus se revelou na história como o salvador,
registrada por Lucas em dois volumes de uma única narrativa.

Fora destes fatos históricos não pode haver base alguma


para a fé. Não se quer dizer com isso que a fé cristã é a fé
em certos eventos, nem que a fé é possível somente na
condição de comprovar-se que certos eventos ocorreram
e que foram atos de Deus (MARSHALL, 1991, p. 22)

Os atos de Deus revelados na história cumprem os propósitos


por Ele designados, em que a morte, ressurreição e ascensão de Jesus
são eventos históricos que testificam sua soberania, vistos também nos
eventos da recente comunidade que crescia em número sob o conforto
do Espírito Santo (At 9.31).

A pesquisa de Lucas dedicada a Teófilo faz referência ao Evangelho


como cumprimento de fatos registrados no tempo e no espaço. É evidente
que tal narrativa leva em conta tal continuidade, numa atividade efetiva de
Jesus ao abençoar os seus discípulos e logo em seguida sendo levado
para o céu (Lc 24.51). O mesmo registro está em harmonia com o início de

23
Atos, com a informação de que Jesus deu mandamentos aos apóstolos
que ele mesmo escolheu. Em seguida, foi elevado para as alturas (At 1.2).

O tempo de quarenta dias logo depois da morte de Jesus possui


registros de sua aparição como efetivo testemunho de sua ressurreição,
uma vez que o relato destaca que ele foi visto pelas pessoas, falou, comeu,
ensinou, enfim, que Jesus estava vivo como antes. A partir daí, os seus
discípulos teriam o conteúdo a ser ensinado, a saber, que o Reino de Deus
havia chegado, que a salvação estava disponível para a humanidade.

O ensino de Jesus antes de sua ascensão revela instruções precisas


de um reino que não era deste mundo. Possivelmente, os discípulos ainda
estavam preocupados com uma intervenção para a libertação e união das
tribos de Israel e sua independência. O povo de Deus iria triunfar sobre
os seus inimigos. Essa era a expectativa dos que estavam reunidos na
ascensão de Jesus, percebida na pergunta se este seria o tempo em que
Jesus iria restaurar o reino de Israel (At 1.6). Diante de tal questionamento,
Jesus revela a soberania do Pai e a exclusiva atividade secreta no tempo. O
que eles deveriam saber é que, a partir deste tempo, seriam testemunhas
até os confins da terra, ou seja, para todos os judeus da diáspora e para
todos os gentios.

A vida terrena de Jesus junto aos seus discípulos chega ao fim.


Porém a ascensão de Jesus não significa ausência de sua pessoa e
seu ensino, mas ambos passam a ser uma ação do Espírito Santo cujo
papel desempenhado é de importância essencial. Os discípulos seriam
revestidos de poder, da capacidade de testemunhar, em que o testemunho
somente seria possível onde o Espírito Santo estivesse.

Jesus é recebido no céu após as necessárias instruções aos que


dariam sequência à obra de Deus.

1.4.2 Descida do Espírito Santo


O Evangelho escrito por Lucas para Teófilo destaca a escolha que
Jesus fez dos doze homens para um efetivo discipulado. Jesus mesmo
os instruiria para que pudessem ser, eles mesmos, os mestres que iriam

24
passar adiante estas mesmas instruções. Os ensinos de Jesus iriam
tornar tais discípulos aptos para serem o elo de ligação com os futuros
cristãos. Além disso, seriam eles testemunhas vivas de sua morte e
ressurreição. Lucas descreve todas estas ações como realizadas por
meio do Espírito Santo.

O derramamento do Espírito Santo é descrito como uma promessa


do Pai, por isso mesmo deveriam aguardar em Jerusalém, pois eles
seriam batizados com o Espírito Santo. Aqueles seriam dias de espera e
expectativa. Certamente, os discípulos estavam curiosos para saber se
todas estas coisas estavam ligadas à restauração de Israel. Se fosse este
o caso, o reino messiânico desceria sobre a Terra, a nação de Israel teria
uma posição restaurada e o status do povo israelita seria mudado e um
novo tempo inaugurado.

O derramamento do Espírito Santo estava relacionado com esta


coisas com a inauguração da era messiânica. De fato, o reino já estava
entre eles. Deveriam, agora, receber a capacitação para que a boa notícia
fosse espalhada por todo o mundo.

O dia de Pentecostes, a festa dos judeus que atraía muitos


peregrinos à cidade de Jerusalém, marca o momento em que a promessa
do batismo se realiza. Dentre estes peregrinos havia estrangeiros de
todas as localidades e judeus da dispersão.

Há figuras destacas no evento da descida do Espírito Santo apontando


para a profusão do ato, num jogo de palavras na língua grega, de termos
cognatos para o substantivo “vento”, num primeiro momento, veio um
“vento”, pnoé (πνοή) impetuoso, e, depois, todos ficaram cheios do “Espírito
Santo”, pneuma (πνεύμα). O termo pneuma é associado a vento e, de modo
importante de se observar, a chegada do Espírito é acompanhada com o
som de um vento que Lucas descreve como palpável quando se refere a
tal analogia enchendo a toda a casa. É o destaque do sobrenatural para o
poder que receberiam, de acordo com promessa feita em Atos 1, verso 8.

O vento é um sinal da presença de Deus como Espírito.


O segundo símbolo foi o fogo. Uma chama se dividiu em
várias línguas, de modo que cada uma delas pousou sobre
uma das pessoas presentes (MARSHALL, p. 69, 1991)

25
O Espírito Santo veio sobre este grupo que experimenta de modo
inédito sinais sobrenaturais que os leva a expressar altos louvores a
Deus. Os sinais externos apenas apontaram para uma realidade interna e
invisível do que aconteceu no interior de cada uma. Os discípulos foram
capacitados e sobre cada um deles há este sinal externo, uma chama em
forma de língua. A partir deste momento, eles passam a falar em línguas
diferentes de sua materna, passam a falar em línguas estrangeiras.

Temos aqui a universalidade da boa notícia do Evangelho que a


partir deste momento seria o poder de Deus para salvar todo aquele que
crê. Os discípulos ficaram cheios do Espírito Santo, como experiência
efetiva, e agora estavam revestidos para um serviço também inédito. Eles
falam em outras línguas humanas. Há muita admiração destes peregrinos
que visitam a cidade, e, também, os judeus da Diáspora, pois passam a
identificar as suas próprias línguas faladas por cidadãos simples da
localidade que nunca aprenderam tais línguas. Os judeus da localidade
que estavam presentes fazem esta acusação falsa, dizendo que estavam
todos tomados pela embriaguez.

Os discípulos passam a atrair a atenção das pessoas interessadas


com aquilo que eles recebiam, diante de uma situação que, num primeiro
momento, necessitava de uma explicação racional. Tal relato aponta
para a efetiva capacitação do Pai aos seus filhos, para que a tarefa do
testemunho e a missão de fazer discípulos de todas as etnias possam ser
empreendidas de modo eficaz e frutuoso.

1.4.3 Pregação de Pedro


Um dos discípulos de Jesus, Pedro, se levanta com convicção e
passa a advertir e ao mesmo tempo explicar aos presentes o fenômeno
que haviam presenciado. Lucas apresenta um resumo fiel da exposição
que Pedro faz a respeito do acontecido, com respeito à descida do
Espírito Santo. É certo que Lucas não estava presente, portanto ouvindo
as palavras de Pedro. Por isso, ele dependeu de resumos posteriores de
um dos ouvintes.

26
O enchimento que os crentes experimentaram, com a descida do
Espírito Santo, é o cumprimento da profecia do profeta Joel, cujo centro é
o derramamento que Deus faria do seu próprio Espírito sobre toda a carne.
Pedro faz a interpretação do profeta e aponta para o seu cumprimento.
Esta é a prova de que é chegado o final dos tempos e a inauguração da
era messiânica, trazendo a salvação do pecado e do julgamento a todos
os que invocarem o nome do Senhor.

Pedro entendeu que a ação de Deus envidando o seu Espírito tem o


seu cumprimento completo, e o ministério do Espírito Santo é abundante,
como uma tempestade que foi derramada e não pode ser mais recolhida.
Aqui está a generosidade de Deus: tal ato é irreversível e também um
ato para todas as etnias e não somente para os judeus. É evidente na
pregação de Pedro que não há acepção de pessoas:

Existem condições espirituais para que se receba o Espírito,


mas não há distinções sociais como sexo (vossos filhos e
vossas filhas, v. 17b), idade (vossos jovens, vossos velhos,
v. 17c), ou categoria (até sobre os meus servos e sobre as
minhas servas, v. 18 – que não são apenas “servos”, como
no hebraico, mas aqueles a quem Deus dignifica como
pessoas que pertencem a Ele). (STOTT, p. 77)

Há uma dádiva sendo disponibilizada aqui, a capacitação do ato


profético de Deus falar pela boca dos seus servos. Deus se revela e se
torna ainda mais conhecido por meio de sua palavra, e o seu conhecimento
passa a ser disponibilizado aos que são aproximados e inseridos em Seu
poderoso Reino. Esta realidade é possível por meio de Cristo Jesus, que
na plenitude dos tempos trouxe a boa notícia do Evangelho de Deus.

O evento de Pentecoste é compreendido no cumprimento desta


nova era e manifestado por meio de Jesus com milagres, prodígios e
sinais. Na sequência da citação direta do profeta Joel, Pedro aponta para
a vida de serviço do Filho de Deus, do modo como foi morto e do poder de
sua ressurreição.

A soberania de Deus é o centro realizador de todas as coisas,


inclusive da morte de Jesus, evento realizado não por Judas que o traiu,

27
mas pelo determinado desígnio e presciência do próprio Deus (At 2.23). A
ressurreição é ato do poder de Deus, apontando para o renascimento da
morte para a vida, do rompimento dos grilhões para uma libertação real,
predito por Davi no Salmo 16, versos 8 a 11. Pedro liga Jesus a Davi, o
descendente Rei que passa a reinar eternamente em seu próprio trono. O
contraste entre Jesus e Davi é a evidência de que o Filho de Deus se faz
presente em sua humilhação e em sua exaltação, portanto, concretizando
Seu Senhorio e sua Unção.

A reação do povo é imediata. O pecado veio à tona e uma profunda


convicção de seus erros. A consciência acusada conduz estas pessoas a
uma questão vital: o que fazer diante desta realidade? A resposta simples,
mas profunda: arrependei-vos! E mais, que cada arrependido seja batizado
em nome de Jesus Cristo para a remissão dos pecados e, assim, receba
o dom do Espírito Santo (Lc 2.38). Aquele a quem eles rejeitaram, agora
seria o único caminho para a salvação.

É evidente agora que o acontecido no evento de Pentecoste não


era apenas para os discípulos que seguiram Jesus e não estava limitado
àquela geração ou para aquele momento apenas. O dom do Espírito e
o perdão dos pecados estariam disponíveis agora aos que estavam
expostos ao sermão de Pedro e, também, para os filhos das futuras
gerações e para todos os que estavam longe, para todos os que Deus
chamar (v. 39).

Pedro segue em seu sermão dando testemunho e exortando,


apontando a necessidade última da vida, a salvação de uma geração
perversa. Neste momento, o discurso de Pedro aponta para uma
identificação entre os salvos, cujo compromisso com Jesus Cristo é
também o compromisso e a comunhão com os chamados para serem
corpo orgânico. Um novo tempo é inaugurado, uma nova experiência de
vida surge e uma nova comunidade nasce.

As pessoas são batizadas mediante confissão de seus pecados. A


palavra de Pedro é aceita, pois dentre a multidão muitos se arrependeram
e creram. O relato aponta para quase três mil pessoas.

28
1.4.4 Formação da igreja
O evento de Pentecostes tem resultado imediato e eficaz, o
despontar de uma comunidade que passa a identificar sua existência
pela realidade de crer em Jesus Cristo e ter recebido o dom do Espírito
Santo. Esta comunidade é composta por pessoas de várias etnias que
vão sendo inseridas no corpo de Cristo.

A formação da igreja é marcada pela evidência de que o próprio


Deus é quem reúne o seu povo com diversidade de pessoas as quais
passam a perseverar no ensino dos apóstolos, os enviados de Jesus até
os confins da terra. Estas pessoas são os discípulos que se mantiveram
firmes na caminhada com Jesus entre os homens.

O ensino dos apóstolos estava pautado na compatibilidade entre


a ação poderosa e mística do Espírito Santo e a capacidade de reflexão
dos novos alunos, que iriam aprender as instruções do cristianismo
embrionário. Além disto, estes presenciavam, também, os muitos
prodígios e sinais que eram realizados por meio dos apóstolos.

As doutrinas dos apóstolos seriam a base formativa desta nova


igreja, as quais seriam canonizadas e chegariam até as pessoas no formato
definitivo do Novo Testamento. Esta é a autoridade da nova igreja cristã,
em que o próprio Deus passa a inspirar os seus escolhidos para estruturar,
de modo eficaz, a igreja orgânica e invisível, cujos membros seriam
fortalecidos no poder do Espírito Santo e na perseverança da sã doutrina.

A vida dos membros do corpo de Cristo se concretizava, também, na


comunhão com a Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e no compartilhar
uns com os outros, tanto no dar como no receber. Os primeiros cristãos
passaram a experimentar tal ato de tornar comum tudo o que tinham,
e também suas propriedades e bens, para que os menos abastados
pudessem desfrutar da igualdade e experimentar o socorro. Os mais
necessitados e o estrangeiro passaram a serem vistos pelos cristãos
como iguais diante de Deus. Isto não significa que todos vendiam suas
casas, até porque o pão seguia sendo partido de casa em casa. As
propriedades vendidas eram possivelmente ocasionais, de acordo com
necessidades específicas.

29
A igreja segue no cuidado uns dos outros, mas também persevera
nas orações, oferecendo a Deus o culto que lhe é devido nas casas, de
modo informal. O serviço a Deus era realizado com alegria e singeleza de
coração, com contentamento e sinceridade, em que os cristãos passam a
adotar um estilo de vida que chamariam de adoração. Tal referência pode
ser evidenciada no relato de que havia temor em cada alma, na realidade
que tinham da visita do Deus Todo Poderoso e que este mesmo Deus
agora resolveu se revelar e habitar em cada nova vida.

O próprio Deus ia acrescentando os que estavam sendo salvos


e libertos de seus pecados e das trevas do mundo. O Espírito Santo
agindo nos novos cristãos leva a um testemunho de impacto, tornando
a evangelização eficaz e necessária. O amor entre os cristãos também
servia de boa notícia, que Deus agia no meio das pessoas a ponto de
serem exemplos de virtude e piedade. Este novo tipo de vida é expressa
na realidade de que estes louvavam a Deus e contavam com a simpatia
de todo o povo.

1.4.5 Conversão de Paulo e suas viagens


missionárias
A conversão de Saulo de Tarso é um dos relatos mais famosos e
mais conhecidos na história da igreja, pois é o retrato impactante da ação
poderosa de Jesus sobre um implacável perseguidor que se tornaria o
apóstolo dos gentios e um doutrinador do cristianismo. A importância de
tal relato pode ser percebida no fato de o autor Lucas registrar por três
vezes o evento, uma em sua própria narrativa e duas na fala do próprio
apóstolo Paulo.

A experiência narrada por Lucas localiza o acontecido na estrada


de Damasco, apontando para um evento histórico testemunhado por
outros e não uma mera experiência subjetiva que aconteceu no interior
de Saulo. Algumas coisas fora do comum foram apontadas como uma
luz e uma voz que chama especificamente pelo nome de Saulo. Ele é
comissionado para uma atividade específica, com orientações precisas
e determinantes na vida de Saulo, que passaria a ter uma nova vida e um
novo nome, Paulo.

30
A revelação de Jesus para Paulo foi a causa de uma mudança
radical em sua existência. Paulo nunca mais seria o judeu perseguidor dos
cristãos. Ele passa a experimentar a revelação divina como característica
central dos cristãos. A graça soberana alcançou enquanto Paulo era
perseguidor de Cristo e adversário feroz com as mãos manchadas de
sangue inocente. Está narrado que foi aos pés de Paulo que as vestes
de Estevão foram deixadas (At 7.58). Paulo assolou a igreja, arrastou
pessoas de suas casas, colocou muitos na prisão (At 8.30) Paulo foi um
judeu fiel à sua religião, cheio de ódio, irritabilidade e hostilidade contra os
hereges do judaísmo.

Por conta disto, muitos cristãos fugiram de Jerusalém para outras


localidades como Damasco, por exemplo. Este foi o ambiente em que
Paulo persuadiu o sumo sacerdote a dar cartas para as sinagogas de
Damasco, de modo que ao encontrar possíveis cristãos os levasse de
volta a Jerusalém (At 9.1,2). Paulo fora um espancador e exterminador de
gente arrependida e convertida a Jesus Cristo.

Saulo caiu por terra e foi, literalmente, prostrado diante do Senhor


e Salvador Jesus Cristo. Ele entenderia rapidamente que este Jesus
estava intimamente identificado com os perseguidos e, mais ainda, que
a proclamação deles era a verdade de Deus. O paradoxo entra em cena,
o poderoso Saulo de Tarso, que deveria chegar com poder na Cidade de
Damasco, agora é conduzido humilhado, cego, atordoado e submisso
às ordens de quem ele mesmo perseguia. Paulo que havia saído para
capturar cristão foi capturado por Cristo. Isto foi ato da graça de Deus.

A causa da conversão de Saulo foi graça, a graça soberana


de Deus. Mas a graça soberana é uma graça gradual e
suave. Gradualmente, e sem violência, Jesus picou a mente
e a consciência de Saulo com os seus aguilhões. Então ele
se revelou através da luz e da voz, não para esmagá-lo, mas
de um modo que Saulo pudesse responder livremente. A
graça não a personalidade humana. Pelo contrário, faz com
que seres humanos sejam verdadeiramente humanos.
(STOTT, 2008, p. 193)

31
A conversão de Paulo teve como consequência uma mudança
fundamental que foi percebida na igreja cristã como um todo. Um novo
homem surgiu com novas atitudes que revelaram um novo caráter pautado
num relacionamento real com o seu Senhor e Deus Todo poderoso. Aqui
se tem o início do seu ministério, três dias em jejum e oração e, agora,
tinha acesso direto ao Pai Celeste (At 9.9 e 11). Paulo passa a exercer o
ministério para o qual foi chamado: a missão de proclamar o poder de
Deus para a salvação, o Evangelho de Jesus Cristo. Paulo iria cumprir
tal missão em intensas viagens que fariam dele um plantador de igrejas,
comissionado e enviado pelo Espírito Santo sob a imposição de mãos da
igreja em Antioquia (At 12.2, 3).

A importância da presente narrativa é que descreve o


primeiro ato planejado da “missão estrangeira” levado
a efeito por representantes de uma igreja específica, e
não por indivíduos isolados, e iniciado por uma decisão
deliberada da igreja, inspirada pelo Espírito Santo, mais do
que casualmente como resultado da perseguição. Lucas,
portanto, descreve com pormenores solenes como os
missionários foram nomeados numa reunião da igreja sob
a orientação do Espírito Santo. Está bem consciente que
sua descrição diz respeito a um evento crucial na história
da igreja. (MARSHALL, 1991, p. 204)

O apóstolo Paulo foi usado por Deus numa missão pioneira de levar
a semente da boa notícia aos gentios até os confins da Terra revelando as
verdades do Deus criador que não causavam qualquer ameaça ao império.
A partir da comunidade cristã de Antioquia, Barnabé e Paulo partem para a
primeira viagem missionária (At 12.25 – 13.3). Quando eles retornam, são
confrontados com o debate sobre a conversão dos gentios, que gera o Concílio
de Jerusalém o qual endossa que a boa notícia deve mesmo ser proclamada
a todos os gentios sem a imposição das leis e regras do judaísmo.

A decisão do Concílio abre as portas para o crescimento da igreja


cristã. Paulo e Barnabé partem para a segunda viagem missionária, cuja
característica é uma penetração ainda maior no mundo gentílico (At 15.36
– 18.22). O resultado é visto nas palavras de Lucas: “As igrejas eram
fortalecidas na fé e, dia a dia, aumentavam em número”. (At 16.5).

32
A terceira viagem missionária de Paulo é o relato de como Deus o
dirigiu passo a passo para a Macedônia, cujo resultado de intensa atividade
é o crescimento da Palavra de Deus que prevalecia poderosamente (At
18.24 – 19.20).

1.5 Temas centrais

1.5.1 História da formação da igreja


A igreja cristã nasce no contexto do maior e mais duradouro império
que existiu, o romano. A cronologia aponta para um processo formativo
destes impérios, em que a influência passa de povo para povo. A cultura
grega teve uma influência sem precedentes e segue tendo impacto em
todas as culturas. A intersecção entre o domínio romano com a cultura
grega proporcionou ao cristianismo um ambiente propício para a sua
expansão, pelo fato de ser um império bem organizado e protegido,
sem fronteiras que pudesse impedir tal avanço. Estes elementos foram
potencializados pela possibilidade de comunicação, pelos idiomas
presentes, particularmente o grego. Os romanos assimilaram a cultura
helênica e se mantiveram organizados de modo eficaz.

O império era uma multidão de agrupamentos étnicos,


culturais e religiosos mantidos juntos por uma submissão
política comum, pela independência econômica e
comercial e pelo compartilhar de uma cultura superior.
Politicamente, tudo dependia de Roma, seu imperador
e seus exércitos, tanto para a manutenção da ordem
interna como para a proteção das fronteiras exteriores
da civilização mediterrânea, onde a maioria das legiões
estavam estacionadas. (WALKER, 2015, p. 12)

O momento foi de unificação das nações sob esta poderosa


organização, o que Paulo chamou de plenitude dos tempos, quando Deus
enviou seu Filho ao mundo (Gl 4.4). Após a vida, morte e ressurreição
de Jesus Cristo e o derramamento do Espírito Santo no Pentecostes, a
igreja se estabelece e cresce rapidamente. O cristianismo da primeira

33
parte do primeiro século era visto como uma seita dentro do mosaico
judaico, e não uma nova religião. A igreja cristã surge dentro da cidade de
Jerusalém, composta de judeus palestinos que passaram a crer no Jesus
ressurreto e em sua volta iminente.

As viagens missionárias de Paulo garantiram que a semente do


Evangelho iria germinar e crescer sem impedimentos; e a fé cristã se
espalhou de Jerusalém até os confins da Terra. Neste momento, os
gentios foram alcançados pela graça de Deus por meio da proclamação
da boa notícia. Em pouco tempo, isso aconteceu, alcançando a Síria,
Ásia, Macedônia, Grécia e Itália, regiões onde igrejas foram plantadas
pela iniciativa do Espírito Santo ao enviar os seus apóstolos e servos
para anunciar que o Deus Pai enviou o seu único Filho para morrer pelos
pecados da humanidade. Tendo ressuscitado no terceiro dia, subiu aos
céus e foi exaltado como Rei dos reis e Senhor dos Senhores, deixando a
promessa do envio do Espírito Santo e de seu retorno em triunfo e glória,
todas estas coisas descritas e profetizadas nas Escrituras Sagradas.

A fé cristã passa a ser referencial ético de conduta, de ajuda ao próximo


desfavorecido, de condenação a toda e qualquer forma de distorção da
vida sexual e matrimonial, portanto, estabelecendo a monogamia frente à
poligamia. Além disso, avançava na formação do caráter e de virtudes que
colocavam pessoas a serviço da comunidade sem esperar nada em troca.
O império permitia todo e qualquer tipo de religião, em que o paganismo
não proporcionava aos seus adeptos nada parecido com o cristianismo.
Ao contrário, mantinham sistemas confusos e conflitantes, em que as
pessoas tinham que cumprir regras que só serviam para o exterior, sem
qualquer impacto na vida espiritual do religioso.

As cartas destinadas às igrejas foram o fundamento doutrinário


para a compreensão mais profunda a respeito desta nova maneira de
existir. O corpo de escritos seria mais tarde o cânon do Novo Testamento,
que as igrejas cristãs iriam reconhecer como textos inspirados por Deus
e útil para ensino, correção e instrução na justiça (2 Tm 3.16). Tais textos
sagrados se tornariam a fonte de autoridade para reger a vida dos cristãos
do mundo todo, são reconhecidos como Palavra de Deus soprada em
seus apóstolos, que influenciaram e influenciam até hoje na piedade,
reverência, adoração, louvor, reflexão, estudo, pensamento etc.

34
O cristianismo passa a ser uma religião independente após o ano
64 d.C., por causa do incêndio terrível na cidade de Roma, onde muitos
suspeitaram que foi o próprio imperador Nero quem fez isso, pois desejava
reconstruir Roma num estilo melhor.

A resposta de Nero para esse rumor foi encontrar bodes


expiatórios: “aqueles a quem a população chamava de
cristãos, que eram detestados por causa de suas obras
vergonhosas”. Os cristãos foram aprisionados e julgados,
nem tanto por causa do incêndio, estamos informados,
mas por causa do “ódio à raça humana”; eles foram
condenados à morte e executados por métodos calculados
para fornecer diversão sensacionalista para o público.
(WALKER, 2015, p. 45)

A partir deste momento histórico, o Império Romano passa a


reconhecer o cristianismo como uma religião distinta do judaísmo. Em
seguida a esta situação, veio a queda de Jerusalém e do Templo no ano
70 d.C., o que não afetou diretamente a igreja cristã nem a destruiu, mas
a libertou para que se tornasse uma religião universal.

O grande ponto de transição representado pela destruição


de Jerusalém iria impulsionar o cristianismo para fora,
transformá-lo de uma religião moldada em quase todos
os detalhes por seu antigo ambiente judaico em uma
religião que avançava para uma significação universal nas
fronteiras mais amplas do mundo mediterrâneo, e depois
além das mesmas. (NOLL, 2000, p. 29)

A igreja, aos poucos, vai se estabelecendo em torno da doutrina


dos apóstolos, mantendo a comunhão no partir do pão, cultuando ao
Senhor ressurreto nas casas, servindo a sociedade por meio da ética e da
moral e, assim, estabelecendo um novo modo de viver que iria impactar
o mundo todo. O cristianismo teve que encontrar estabilidade e manter o
seu crescimento depois da morte dos apóstolos. A igreja fundamentou a
sua teologia na revelação de Deus, reconhecendo a herança judaica na
revelação de Deus no Antigo Testamento, também; validou a revelação do
Novo Testamento como escritos inspirados por Deus, bem como colocou
em prática os ensinos transmitidos por Ele através dos autores bíblicos,

35
organizando a vida em torno da vida comum, numa comunidade que, aos
poucos, foi se estruturando e estabelecendo diáconos, pastores e bispos
como servos e líderes eficazes que realizariam a excelente obra para a
glória de Deus.

1.5.2 Continuidade da igreja


A narrativa de Lucas, ao longo do seu escrito, informa ao leitor que a
igreja cristã crescia de tal modo que passou a existir uma multidão, tanto
homens como mulheres, que formava uma grande congregação, um povo
que ia sendo separado pelo próprio Deus (At 5.14). O crescimento da igreja
estava diretamente ligado ao crescimento da Palavra de Deus. O relato
de Lucas harmoniza tal crescimento, deixando claro que se multiplicava o
número dos discípulos e, acrescenta que muitos sacerdotes passavam a
obedecer a fé cristã (At 6.7). A igreja desfrutou de paz por toda a Judeia e
promoveu a sua própria edificação no temor do Senhor, cujo resultado era
o crescimento em número, sendo confortada pelo Espírito Santo (At 9.31).

A igreja cristã cresceu de maneira impressionante e inesperada


aos olhos da sociedade vigente. O império não podia entender como uma
religião que nascera tão frágil pudesse ser expandida em tais proporções.
Pode-se ver este crescimento em termos de estatística:

No início do século III, havia no Império Romano cerca de 60


milhões de habitantes; menos de 1% dessa população era
cristã. Essa proporção chegou a 10%, pouco antes do fim
desse século, no período imediatamente anterior à última
e maior perseguição aos cristãos. (FERREIRA, 2013, p. 29)

O crescimento alcançou quase sessenta por cento do império


quarenta anos após a última perseguição. Porém, isso não significou
que o cristianismo estava tendo tempos de sucesso e tranquilidade, ao
contrário, com o crescimento vieram também outros tipos de ataques,
internos e externos. Com a intensa proliferação, o cristianismo sofre
com o perigo do sincretismo religioso, pois seguia plantando as igrejas
em meio a uma enorme diversidade de religiões, as quais iriam diluir as
verdades cristãs. Isso geraria heresias e controvérsias internas e abalaria
a unidade e comunhão dos membros do corpo de Cristo.

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A teologia cristã é construída aos poucos, como resultado de
tais controvérsias e das inúmeras tentativas de diluir os ensinamentos
cristãos, pelas diversas distorções e heresias. Os pais da igreja teriam
muito trabalho para realizar uma apologia bem fundamentada, frente aos
ataques e ao sarcasmo que colocavam o cristianismo como uma religião
de ignorantes e imorais.

Aos poucos, a igreja vai se estabelecendo e ocupando o seu espaço


no império, o que desagrada alguns imperadores que iriam deflagrar
severas perseguições com o intuito de, não somente abafar, mas eliminar
toda e qualquer tentativa de suplantar a divindade do imperador. A igreja
perseguida e sofredora segue firme na força do Espírito Santo e, sob uma
forte organização e doutrina consolidada, espalhada em todo o império,
aos poucos, se tornaria a maior instituição e a tábua de salvação de um
império que seguia rumo à decadência.

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Síntese
A boa notícia de que Deus tomou a iniciativa de resgatar pecadores
se torna disponível a toda a humanidade pela realidade dos Evangelhos,
textos inspirados por Deus em autores humanos. O ministério de Jesus
na Terra foi registrado nestas páginas, numa narrativa sem igual, numa
progressão real entrelaçada com a história mundial. Por conta disto,
aqueles discípulos desconhecidos do nazareno se tornariam conhecidos
de todos os tempos e em todos os lugares.

O escrito de Atos dos apóstolos, longe de ser uma unidade isolada,


é a narrativa fundamental que faz a ligação dos Evangelhos com a história
da igreja cristã até os dias atuais. A narrativa de Lucas é sequência lógica
do seu Evangelho. Apesar de atualmente estar apresentada em dois
volumes, trata-se de uma mesma obra, cujo alvo cumpre o propósito de
revelar como a promessa da vinda do paracletos se cumpriu no tempo
e no espaço, ato capacitatório a pessoas simples que se tornaram
testemunhas efetivas na propagação da semente do Evangelho no
anuncio e ensino efetivo da Palavra de Deus, o poder para a salvação de
todo aquele que crê.

O fato é que se cumpriu o tema de Atos: que pessoas receberiam o


poder com a descida do Espírito Santo, tornando-as testemunhas vivas na
cidade de Jerusalém, em toda a região da Judeia, na cidade de Samaria e
até os confins da Terra. A narrativa de Atos registra estes movimentos, do
início em Jerusalém, depois os trabalhos em Samaria, na planície costeira
e em Casareia e, por fim, o crescimento da Palavra de Deus espalhada às
cidades do mundo mediterrâneo, chegando até a capital do império, Roma.

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