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Arqueologias da Escravidão e

Liberdade Senzalas Cultura Material e


Pós Emancipação na Fazenda do
Colégio Campos dos Goytacazes
séculos XVIIII a XX Luís Cláudio Pereira
Symanski Flávio Dos Santos Gomes
Orgs
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Conselho Editorial Internacional

Presidente:
Rodrigo Horochovski (UFPR - Brasil)

Membros do Conselho:
Anita Leocadia Prestes (Instituto Luiz Carlos Prestes - Brasil)
Claudia Maria Elisa Romero Vivas (Universidad Del Norte - Colômbia)
José Antonio González Lavaut (Universidad de La Habana - Cuba)
Ingo Wolfgang Sarlet (PUCRS - Brasil)
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Editor Chefe: Sandra Heck


Diagramação e Projeto Gráfico: Brenner Silva e Samuel Hugo
Capa: Paula Zettel
Revisão de Texto: A autora
Revisão Editorial: Rodrigo Martins e Julia Caetano
DOI: 10.31012/978-65-5016-272-6

© Editora Brazil Publishing


Presidente Executiva: Sandra Heck
Rua Padre Germano Mayer, 407
Cristo Rei ‒ Curitiba PR ‒ 80050-270
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www.aeditora.com.br
Luís Cláudio Pereira Symanski e Flávio dos Santos Gomes

Arqueologias da escravidão e liberdade:


senzalas, cultura material e pós-emancipação na
Fazenda do Colégio, Campos dos Goytacazes, séculos
XVIII a XX
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
BIBLIOTECÁRIA: MARIA ISABEL SCHIAVON KINASZ, CRB9 / 626


S986a Arqueologias da escravidão e liberdade: senzalas, cultura material e
pós-emancipação na Fazenda do Colégio, Campos dos Goytacazes,
séculos XVIII a XX / Luís Cláudio Pereira Symanski, Flávio dos
Santos Gomes (Orgs.). – Curitiba: Brazil Publishing, 2019.
[recurso eletrônico]

ISBN 978-65-5016-272-6

1. Escravidão – Brasil – História – Séc. XVIII a XX. 2. Pesquisa


arqueológica. 3. Colégio dos Jesuítas de Campos dos Goytacazes. I.
II. Título.

CDD 981 (22.ed)


CDU 981

COMITÊ CIENTÍFICO DA ÁREA CIÊNCIAS HUMANAS

Presidente: Prof. Dr. Fabrício R. L. Tomio (UFPR – Sociologia)


Prof. Dr. Nilo Ribeiro Júnior (FAJE – Filosofia)
Prof. Dr. Renee Volpato Viaro (PUC – Psicologia)
Prof. Dr. Daniel Delgado Queissada (UniAGES – Serviço Social)
Prof. Dr. Jorge Luiz Bezerra Nóvoa (UFBA – Sociologia)
Prof. Dra. Marlene Tamanini (UFPR – Sociologia)
Prof. Dra. Luciana Ferreira (UFPR – Geografia)
Prof. Dra. Marlucy Alves Paraíso (UFMG – Educação)
Prof. Dr. Cezar Honorato (UFF – História)
Prof. Dr. Clóvis Ecco (PUC-GO – Ciências da Religião)
Prof. Dr. Fauston Negreiros (UFPI – Psicologia)
Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies (UCPel – Sociologia)
Prof. Dr. Mario Jorge da Motta Bastos (UFF – História)
Prof. Dr. Israel Kujawa (PPGP da IMED – Psicologia)
Prof. Dra. Maria Paula Prates Machado (UFCSPA – Antropologia Social)
Prof. Dr. Francisco José Figueiredo Coelho (GIEESAA/UFRJ – Biociências e Saúde)

Curitiba / Brasil
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

REITORA
Sandra Regina Goulart Almeida

VICE-REITOR
Alessandro Fernandes Moreira

COMITÊ COORDENADOR – CEA/UFMG (2019)


Marcos Alexandre (Faculdade de Letras da UFMG)
Francisca Izabel Pereira Maciel (Faculdade de Educação da UFMG)
Vanicléia Silva Santos (Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG)
Mauro Martins Teixeira (Instituto de Ciências Biológicas da UFMG)
Uende Aparecida Figueiredo Gomes (Escola de Engenharia da UFMG)

CONSELHO CONSULTIVO
Amadeu Chitacumula (Instituto Superior de Educação do Huambo, Angola)
Ana Cordeiro (Ilhéu Editora, Cabo Verde)
Odete Semedo (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Guiné-Bissau)
Rafael Díaz Díaz (Pontificia Universidad Javeriana, Colômbia)
Sônia Queiroz (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
Tukufu Zuberi (University of Pennsylvania, Estados Unidos)
Vanicléia Silva Santos (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil)
APRESENTAÇÃO DA SÉRIE ESTUDOS
AFRICANOS DO CEA/UFMG

O Centro de Estudos Africanos da UFMG foi criado oficial-


mente em 2012, e tem como missão promover o encontro de pesquisa-
dores que trabalham com a África e divulgar os resultados das pesquisas
desenvolvidas sobre o tema no âmbito da UFMG, em outros centros de
pesquisa no Brasil e no mundo, contribuindo assim para o estabelecimen-
to da área de pesquisa no interior de nossa instituição e para a consolida-
ção dos estudos africanos no País.
As parcerias com universidades e outras instituições de ensino e
pesquisa têm como objetivo a realização de atividades conjuntas, o inter-
câmbio de publicações e projetos de mobilidade acadêmica de estudantes
e professores. Por meio de acordos internacionais, estudantes e pesquisa-
dores da UFMG já puderam cursar disciplinas de sua área no exterior e
alunos estrangeiros vieram à UFMG com o mesmo intuito.
Nos primeiros anos de existência, o CEA também promoveu
conferências e seminários em torno de temas relacionados à África, além
de receber professores estrangeiros para ministrar disciplinas em nossos
programas de Pós-Graduação.
A Série Estudos Africanos do CEA/UFMG nasce com o ob-
jetivo de publicar obras que envolvam redes de pesquisadores, brasilei-
ros e estrangeiros, filiados ou não a instituições de ensino superior, e que
desenvolvem trabalhos com diferentes perspectivas, visando a formação
de um pensamento multidisciplinar, contemplando a diversidade étnica
característica de nossos povos.
Organizado por Luís Cláudio Pereira Symanski e Flávio dos
Santos Gomes, o livro Arqueologias da Escravidão e Liberdade: Senzalas,
Cultura Material e Pós-Emancipação na Fazenda do Colégio, Campos
dos Goytacazes, Séculos XVIII a XX, é o décimo título da Coleção
Estudos Africanos do CEA/UFMG.

Vanicléia Silva Santos


Universidade Federal de Minas Gerais
Os trabalhos de campo e análises de laboratório que re-
sultaram na publicação deste livro foram realizados com
o suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), sob o número de proces-
so 472181/2011-4, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), sob o número de pro-
cesso APQ-01789-14.
Apresentação
Diásporas, arqueologias e protagonismos negros:
por uma memória das experiências da escravidão e
da pós-emancipação
Flávio dos Santos Gomes

Este livro apresenta ensaios e investigações de projetos que reu-


niram arqueólogos e historiadores – com financiamentos do Fapemig,
Fapesp e CNPq – em diferentes etapas da pesquisa entre 2012 e 2018.
As ideias para esta colaboração acadêmica surgiram exatamente há uma
década. Em abril de 2009 – com apoio do CNPq – eu, Olivia Cunha
e Dale Tomich organizamos o Seminário Internacional Repensando a
Plantation: paisagens simbólicas, sociais e materiais, no Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com expectativas multidiscipli-
nares, reunimos antropólogos, arqueólogos e historiadores para explorar
com seus estudos o que avaliávamos como tempos, materiais e espaços da
(na) plantation sob dimensões atlânticas. Entre os convidados estava Luís
Claudio Symanski, que já desenvolvia pesquisas importantes e pioneiras
sobre arqueologia, escravidão e diáspora. Para além do seminário houve
uma mobilização intelectual nossa de testarmos formas de interlocução
e colaboração institucionais, visando escavações arqueológicas. Já havia
iniciativas nacionais com quilombos e fazendas, porém poucas investindo
em contextos de senzalas. Entre as possibilidades inicialmente levantadas
a respeito de áreas do vale do Paraíba cafeeiro ou as planícies açucareiras
do norte fluminense, resolvemos realizar sondagens. Uma ideia inicial que
logo nos entusiasmaria era escavar antigas senzalas de fazendas de jesuítas
e beneditinos, localizadas respectivamente nos distritos de Goitacazes e
Mussurepe, distantes de 15 a 25 quilômetros do centro do município de
Campos de Goitacazes.
Era uma ideia remota, muita antiga e que tinha história pró-
pria. Foi em 1987 – primeiro ano de graduação em Ciências Sociais na
UFRJ – que entrevistei Seu Oto, filho do escravizado Amâncio, ofício de
carpinteiro, que pertenceu à fazenda São Bento, propriedade dos monges
beneditinos. Parecia “desconfiado”, indagando por que eu vivia à procura
– com gravador e filmadora – de memórias da escravidão. Eram relatos e
memórias que fascinavam. Ouvindo tentava fazer uma viagem através da
imaginação. Às vezes parecia mesmo que eu queria me transformar em
um escravizado, voltando aquele tempo. É claro que eu não era nenhum
masoquista; talvez quisesse reviver um escravizado rebelde, não alguém
apanhando no tronco ou trabalhando incessantemente na lavoura, mas
sim, um cativo que fugia (de preferência para os quilombos, um tema
que já era uma obssessão) em uma vida heróica de aventuras. O fato é
que as memórias de Oto, Valdomira, Manoel Bentinho, Antônio, Inácio,
Geraldo, Estelita, Boaventura e outros tantos octogenários – me fazia
mergulhar na escravidão. Mais do que relatos sobre as suas infâncias, nar-
ravam estórias que seus pais – estes sim escravizados – haviam contado.
Começaria a perceber que as tais viagens que eu pensava estar fazendo so-
zinho, eram também feitas por eles. Isso mesmo! Através das estórias que
contavam, eles também viajavam ao tempo da escravidão. Havia mesmo
um recontar e reinventar memórias – com outras versões, ricas em deta-
lhes – que pareciam terem sido vividas.
Meu interesse pelo estudo da escravidão no Brasil seria avassa-
lador a partir daquele ano de 1987. Mas a vontade de ouvir memórias do
cativeiro era mais antiga. Ainda crianças, eu e minha irmã Olivia – não sei
precisar em que época – já ouvíamos com muito “interesse” e “curiosida-
de” as estórias de Tia Bá ali em São Bento. Enquanto preparava a comida,
num improvisado fogão à lenha, nos seus já 90 anos rememorava sozinha
e em voz alta – como se tivesse vasculhando um velho baú – estórias que
os seus pais lhe contaram, ou então que ouviu, na infância, da primeira
geração de libertos no início do século XX. Posteriormente, identifiquei
nos Arquivos da Ordem Beneditina de São Bento no Rio de Janeiro que
Tia Bá era prima-irmã da minha bisavó, uma crioula escravizada de nome
Dionísia – apelidada Indundê – neta da africana Martinha, do gentio da
Guiné, que morreu em 1742.
Essas estórias – um repertório de memórias – ficaram presas na
minha mente. E as pesquisas arqueológicas; as diversas equipes de gra-
duandos, mestrandos e doutorandos; os financiamentos de agências de
fomento etc. ajudaram a libertar enquanto pontos de partida para estas e
outras pesquisas. Sempre me lembrava o quanto às estórias de Tia Bá – e
outros tantos – eram profundas. Mais do que reminiscências da escravi-
dão, podiam se tornar ferramentas imprescindíveis para mergulharmos
nos arquivos e também nos registros da cultura material nos contextos
das vidas, das famílias e das comunidades de escravizados e libertos – em
Brasis, das escravidões e das emancipações – ao longo dos séculos XVII,
XVIII, XIX e XX.
Enfim, as estórias de Tia Bá embalaram os primeiros sonhos e
serviram de atalhos diante de caminhos para penetrarmos nos mundos da
escravidão pensando na arqueologia histórica.
Apresentação
Arqueologias da escravidão e liberdade na Fazenda
do Colégio
Luís Cláudio Pereira Symanski

Este livro apresenta os resultados das pesquisas arqueológicas


e históricas sobre a comunidade de senzala que viveu no Colégio dos
Jesuítas de Campos dos Goytacazes entre os séculos XVII e XIX. A
pesquisa no Colégio emergiu do nosso interesse em investigar o cotidia-
no e a vida material dos grupos escravizados nas plantations da Região
Sudeste, considerando as formas como se organizaram, se relacionaram
e interagiram entre si, com a população indígena e com a população
luso-brasileira. O Colégio se apresentou como o principal sítio de inves-
tigações por várias razões, que incluem sua significância histórica, como
o principal estabelecimento jesuítico do norte fluminense, a densidade
populacional da sua comunidade de senzala, que chegou, em fins do
século XVIII, a contar com cerca de dois mil cativos, e a profundidade
temporal de sua ocupação, que remonta a meados do século XVII. Essa
profundidade temporal teria o potencial de propiciar investigações que
contemplassem o papel de indígenas e africanos na construção da co-
munidade de senzala durante os primeiros cem anos de ocupação do
sítio, dado que, no período jesuítico, ambos os componentes teriam
compartilhado desse espaço. Um importante fator adicional foi a faci-
lidade logística, pois a sede do Colégio abriga, desde o ano de 2001, o
Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho, o qual guarda
um importante acervo documental sobre o norte fluminense, que inclui
documentos sobre a própria Fazenda do Colégio, também denominada
Fazenda de Nossa Senhora da Conceição e Santo Inácio. A administra-
ção do Arquivo incentivou e deu o apoio logístico necessário aos traba-
lhos de campo, que ocorreram em temporadas de um mês nos anos de
2012, 2014 e 2016.
As pesquisas arqueológicas que deram origem a este livro fo-
ram iniciadas em julho de 2012, dentro dos quadros do projeto Café com
açúcar: arqueologia da escravidão em uma perspectiva comparativa no Sudeste
rural escravista – séculos XVIII e XIX, financiado pelo CNPq.1 O proje-
to, coordenado pelos organizadores deste livro, tinha por foco o estudo
de senzalas de engenhos de açúcar e fazendas de café, que são contextos
ainda pouco explorados nas pesquisas arqueológicas históricas na Região
Sudeste.2 Essa ausência de pesquisas arqueológicas contrastava com a
densa produção historiográfica sobre a escravidão nessa região, com foco
em temáticas como o cotidiano, a economia, as práticas de resistência, a
conformação da família escrava, a religiosidade, e a reconstrução de iden-
tidades em cenários urbanos e rurais. Havia, assim, um descompasso, entre
a produção baseada em fontes escritas, que foram produzidas pelos seg-
mentos politicamente dominantes, e aquela baseada em fontes materiais,
referentes aos resíduos deixados pela própria população escravizada na
execução de suas práticas cotidianas. Esse descompasso gerava uma lacu-
na na compreensão da vida material dessa população, que era somente su-
prida pelas fontes iconográficas, sendo essas também, porém, produzidas
pelo olhar dominante.
O nosso interesse voltou-se, assim, para a caracterização da vida
material dessas populações, de suas especificidades, mudanças e conti-
nuidades, não somente por meio do tempo, mas também do espaço, por
meio de uma perspectiva comparativa entre unidades de produção de
açúcar, do norte fluminense, e de café, do vale do Paraíba,3 com o fim
de obter informações sobre as diversificadas configurações econômicas,
sociais e culturais desenvolvidas pelos grupos escravizados em função
tanto da estrutura produtiva quanto da composição cultural diferenciada
das senzalas.4

1 Projeto submetido ao Edital Universal 14/11 do Conselho do Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq), e aprovado sob o número de processo 472181/2011-4.
2 A única pesquisa arqueológica até então realizada em um contexto de senzala na região Sudeste
havia sido na Fazenda São Fernando, no município de Vassouras, no ano de 1992. Ver LIMA,
Tania A.; BRUNO, Maria C.; FONSECA, Marta. Sintomas do modo de vida burguês no vale do
Paraíba, século XIX: a fazenda São Fernando, Vassouras, RJ. Anais do Museu Paulista: História e
Cultura Material, n. 1, p. 170-206, 1993.
3 Além do Colégio dos Jesuítas foram realizadas escavações em espaços de senzala na fazenda São
Bento, em Campos dos Goytacazes (RJ), na fazenda Santa Teresa, em Valença (RJ), e na fazenda
Santa Clara, em Santa Rita do Jacutinga (MG).
4 Alguns resultados dessa perspectiva comparativa são apresentados em SYMANSKI, Luís C.
P. e GOMES, Flávio S. Iron cosmology, slavery and social control: the materiality of rebellion
O Colégio dos Jesuítas foi o primeiro sítio escavado nos qua-
dros do projeto em questão. A primeira temporada de campo, em julho
de 2012, contemplou uma área do espaço da senzala, que formava uma
grande quadra de cerca de 160 por 230 metros em frente ao convento
(também denominado solar), situada a cerca de 80 metros a noroeste do
mesmo (denominada área NW), assim como uma área de deposição de
refugo dos proprietários. O intervalo de ocupação desse espaço da senzala
foi estimado entre 1790 e 1850, sendo, portanto, posterior ao período je-
suítico. A temporada de campo de julho de 2014 contemplou um espaço
no outro extremo da senzala, a cerca de 100 metros a sudeste do convento
(denominado área SE). Nesse caso o intervalo de ocupação foi estimado
entre 1835 e 1950. Nessas duas temporadas, portanto, não tivemos su-
cesso em encontrar contextos referentes ao período jesuítico, o que so-
mente foi realizado na terceira temporada de campo, em julho de 2016, já
nos quadros de outro projeto, o Arqueologia das Ordens Religiosas do Norte
Fluminense: o Colégio dos Jesuítas e a Fazenda dos Beneditinos de Campos dos
Goytacazes (RJ), financiado pela FAPEMIG.5 Nesse caso foi aberta uma
área de escavação a cerca de 150 metros a nordeste do convento (denomi-
nada área NE), a qual apresentou contextos bem definidos de deposição
de material, se estendendo do final do século XVII ao começo do XX.
Maiores detalhes sobre a escavação são fornecidos no capítulo 2.
Para o caso deste livro, as contribuições se atêm aos contextos
pesquisados em 2012 e 2014, com foco, assim, na dinâmica da comu-
nidade de senzala no século XIX, dado que o material da temporada
de campo de 2016 está em processo final de análise. Os capítulos aqui
presentes compreendem pesquisas documentais, que detalham o con-
texto da escravidão no norte fluminense, em seus mais amplos aspectos
econômicos, sociais e culturais, e que se mostram, desse modo, funda-

in the coffee plantations of the Paraíba valley, Southeastern Brazil. Journal of African Diaspora
Archaeology and Heritage, v.5, n.2: 174-197, 2016.
5 Projeto submetido ao Edital Universal 01/14 Demanda Universal, da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), e aprovado sob o número de processo APQ-
01789-14. Teve por propósito investigar o processo de crioulização entre africanos e indígenas
no espaço das senzalas do Colégio e da fazenda São Bento, assim como discutir de que modo
as práticas e crenças religiosas impostas pelos padres de ambas as ordens foram incorporadas e
transfiguradas nas senzalas.
mentais para a compreensão e interpretação dos vestígios arqueológicos.
Além desses aspectos mais amplos as fontes documentais, tanto primá-
rias quanto secundárias, fornecem informações mais pontuais sobre as
práticas produtivas, a alimentação, vestuário, ornamentação e socializa-
ção da população escravizada de Campos que são contrastadas com o
quadro delineado pelas pesquisas arqueológicas, levando, desse modo, a
novas vias de entendimento sobre a vida e a dinâmica das práticas so-
ciais no espaço da senzala.
Os capítulos do livro abordam as seguintes categorias mate-
riais: louças, cerâmicas torneadas, cerâmicas artesanais, restos faunísticos,
e ornamentos de vidro e cobre. É considerada a distribuição espacial e
temporal desses itens nos espaços da senzala e, assim, as implicações da
variabilidade dos mesmos em termos de práticas cotidianas, subsistência,
e processos identitários vinculados tanto a diferentes formas de produção,
consumo e auto expressão, quanto a crenças e às relações de poder em que
esses grupos estavam imersos. Nesse sentido, os capítulos se complemen-
tam, ao abordarem as diferentes facetas da vida material dessa comunida-
de e as formas como as mesmas se articulavam.
No capítulo 1, Flávio dos Santos Gomes caracteriza o contexto
histórico da escravidão em Campos dos Goytacazes do período colonial
à pós-emancipação. O autor discute, com base em ampla pesquisa docu-
mental, a dinâmica demográfica africana na região nos séculos XVIII e
XIX, detalhando as origens e os padrões matrimoniais dessa população
que compunha a maioria do contingente populacional dos engenhos. Indo
além das senzalas, ele aborda ainda o processo de formação e expansão dos
quilombos na região, que começaram a se formar no final século XVII.
Por fim, entra no período pós-emancipatório, no qual micro-sociedades
camponesas negras, com nítidos antecedentes quilombolas, começam a se
formar nas franjas das fazendas. Esses grupos mantinham altos padrões
de mobilidade, migrando frequentemente em busca de trabalho e, quando
possível se estabelecendo nas grandes propriedades rurais da região, como
era o caso do Colégio. O capítulo de Gomes serve como um suporte para
os subsequentes, na medida que detalha as origens do substrato africano
que gerou a comunidade escravizada da fazenda do Colégio no século
XIX, cuja materialidade, evidenciada pelas pesquisas arqueológicas, é o
foco nas demais contribuições do livro.
O capítulo 2, de autoria de Luís Cláudio Symanski, detalha as
pesquisas arqueológicas realizadas no Colégio nas temporadas de campo
de 2012, 2014 e 2016. São fornecidas informações, plantas e fotografias
sobre os diferentes contextos escavados, bem como sobre a cronologia de
ocupação dos mesmos. Pelo fato dos capítulos seguintes adotarem uma
perspectiva comparativa sobre esses contextos, todos remetem às plantas e
imagens apresentadas neste capítulo.
O capítulo 3, também de autoria de Symanski, aborda a varia-
bilidade cerâmica em duas áreas de senzala e em uma área de deposição
de refugo dos ocupantes do solar, discutindo as similaridades e diferenças
entre as porcelanas, louças finas, louças portuguesas coloniais, cerâmicas
torneadas simples e vidradas, e cerâmicas artesanais presentes nesses con-
textos. A variabilidade observada é discutida em termos da construção
de universos materiais e culturais distintos, fortemente delimitadores de
fronteiras entre a casa grande e a senzala, e das formas como os mesmos
foram incorporados no habitus6 das pessoas que viveram e transitaram
nesses espaços. O autor destaca o papel dos intermediários culturais na
permeabilização dessas fronteiras e como esses podem ter utilizado a cul-
tura material em um processo de construção de identidades próprias que
dialogavam tanto com a cultura da casa grande quanto da senzala e que se
fiavam em critérios relacionados à cor da pele e à ocupação.
O capítulo 4, de autoria de Maurício Hepp, Paula Azevedo e
Victor Monteiro, discute a variabilidade da cerâmica artesanal de uma
das áreas da senzala do Colégio.7 Trata-se de uma tradição tecnológica
de herança africana e indígena que foi abandonada nessa região do nor-
te fluminense no século XX. Os autores discutem aspectos tecnológicos,
funcionais e morfológicos dessa categoria e a vinculam à prática da cocção

6 O conceito de habitus é definido por Pierre Bourdieu (Outline of a Theory of Practice. Cambridge:
Cambridge University Press, 1977), como os princípios inconscientemente aprendidos através do
processo de socialização que geram e organizam tanto as práticas quanto as representações.
7 O estudo dessa categoria material está sendo aprofundado na pesquisa de mestrado de Paula
Azevedo, que contempla as três áreas escavadas na senzala e as mudanças e continuidades na
produção e uso dessas peças no espaço do Colégio entre o final do século XVII e o começo do XX.
de alimentos pelas unidades familiares que compunham a senzala, des-
tacando o importante papel desses artefatos na criação de um senso de
identidade no interior daquela comunidade.
No capítulo 5, Geraldo Pereira de Morais Junior aborda, com
base na análise dos restos faunísticos, as diferenças e similaridades nos
padrões de consumo de proteína animal entre os grupos que viveram em
dois setores distintos da senzala durante o século XIX. A variação obser-
vada demonstra tanto o fornecimento de cortes bovinos e suínos pobres
em carne, como patas, provavelmente distribuídos pelos proprietários,
quanto a provável prática da caça e da pesca pelos escravizados, adotadas
como uma forma de diversificar a dieta. O autor considera ainda, as dife-
renças no acesso a esses recursos, demonstrando que os ocupantes de uma
das áreas mantiveram uma dieta mais diversificada que os da outra.
Isabela Suguimatsu discute, no capítulo 6, os processos de cons-
trução identitária e de autoexpressão corporal dos escravizados do Colégio
com base nas contas de colares, nos botões, nas pulseiras e anéis de cobre,
crucifixos e medalhas de santos encontrados em duas áreas da senzala. A
autora funda sua interpretação no diálogo entre essas fontes materiais e
as documentais, como anúncios de jornais de época e relatos de viajantes.
Cabe, por fim, considerar a materialidade do próprio convento,
que se mantém imponente na paisagem campista, atuando como uma
âncora temporal e exibindo, assim, uma enorme carga simbólica, que re-
mete a memórias, representações e idealizações de diferentes agentes e
grupos. Dentre esses, o mais expressivo é aquele formado pela comunida-
de descendente da senzala, a qual se manteve atrelada a esse lugar até o
começo da década de 1980, vivendo em habitações na mesma quadra que
seus antepassados dos séculos XVIII e XIX. As percepções, memórias e
representações deste grupo sobre o “arruamento do Colégio”, são abor-
dadas por Fernando Myashita no capítulo 7. Essas narrativas, como bem
demonstra o trabalho de Myashita, se revelaram fundamentais para uma
melhor compreensão não somente da significância da pesquisa arqueoló-
gica como produtora de conhecimento histórico e cultural, mas também
como potencializadora de múltiplas vozes – acadêmicas e locais –, cujo
diálogo pode levar à construção de passados mais inclusivos e que servem,
assim, para fortalecer laços identitários no presente.
Por fim, mas não menos importante, cabe destacar que as pesqui-
sas aqui apresentadas somente foram concretizadas devido à participação
voluntária de um grande número de estudantes dos cursos de ciências
sociais e de arqueologia das seguintes universidades: UFPR, UFMG,
USP, UFPEL, FURG, UFPI, PUC-GO e UFSE. Agradecemos, assim a
Bárbara de Ridder Barros, Caetano Tocchetto, Carlos Eduardo Lançoni,
Cibele da Rocha, Daniele Jesus, Fernando Cantele, Fernando Myashita,
Isabela Suguimatsu, Jean Lovato, Kendra Andrade, Luara Stollmeier,
Lucas Roahny da Silva, Monique Seidel, Patrícia Marinho, Sabrina
Andrade, Irislane Moraes, Suzana Munsberg, Tamires Lico, Luciana
Costa, Geraldo Morais Junior, Lara Espechit Gomes, Patrícia Letro, Johni
Cesar dos Santos, André Siqueira, Will Pena, Angela Varela, Nathalia
Rodrigues, Bruno Sanches Ranzini, Eduarda Rippel, Victória Ulguim,
Letícia Miranda, Leonardo Pimenta, Camila Silveira, Thaila Baiense,
Maria Heloisa Curado, Karla Bianca Oliveira, Maurício Hepp, Elber
Lima, Laura Machado, Clarice Linhales, José Reno, Bárbara Quintino,
Nilmara Pereira, Paula Azevedo e Edilaine Souza. À Sheila Felix, pelo
carinho em forma de comida que fez dos nossos intervalos para o almo-
ço momentos sempre agradáveis e aprazíveis. Agradecimentos especiais
ao diretor do Arquivo Público Municipal de Campos dos Goytacazes,
Carlos Roberto Freitas, por todo o apoio e incentivo às pesquisas, bem
como às funcionárias Rafaela Machado e Larissa Manhães Ferreira.
Abstract
During the 1970’s the historical archaeologist James Deetz ur-
ged the scholars to change the focus of their investigations to what people
of the past had been done, rather than keep constructing historical nar-
ratives based only on written sources. According to Deetz, those remains,
left by people of the past, could be very informative about their uncons-
cious expressions. In such way, the analysis could bring to comprehension
of the mental templates that guided the use of material goods. Although
the structuralist premise behind this approach have been, over the years,
subject to several criticism, it is undeniable that it has a high potential of
the historical archaeology to build alternative historical narratives, which
complement and potentialize the field research. In this sense, the slave
quarters archaeology, by penetrating in these stigmatized places by the
dominant gaze and recovering the remains of the daily lives of a popula-
tion that very rarely was able to leave written notes about itself, can reveal
facets still unknown about these groups’ experience, such as their foo-
dways, consumption patterns, aesthetic conceptions and religiosity. The
study of the variation over time and space of the material culture present
in these contexts rejects the stereotype of slave quarters as uniformed pla-
ces, in which enslaved people passively assimilated the planters’ material
impositions. Rather, the material diversity approached in this book cle-
arly demonstrates the agency of the enslaved groups, expressed in their
effort to build material and domestic world of their own, characterized
by unique body ornaments, by refined wares that appealed to their own
sense of aesthetic, by a handcraft pottery production based on ancestors’
traditions, and by the practice of hunting and fishing as strategies to com-
plement the meager ration of animal protein furnished by the planters.
Palavras-chave

Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da escravidão


africana atlântica ao campesinato no imediato pós-abolição
Campos dos Goytacazes, história, escravidão, pós-emancipação, engenhos;

As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas


Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, arqueologia, cul-
tura material;

Cerâmicas, linhas de cor e a negociação do espaço social no


Colégio dos Jesuítas
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzala, cultura material,
identidade, racialização;

Práticas e usos da cerâmica artesanal na senzala do Colégio


dos Jesuítas
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, cerâmica artesa-
nal, práticas cotidianas;

Vestígios faunísticos e práticas relacionadas à alimentação na


senzala do Colégio dos Jesuítas (RJ)
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, zooarqueologia,
hábitos alimentares;

Para além de algemas e grilhões: os objetos de vestuário e


ornamentação dos escravos
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, senzalas, ornamentos,
corporalidade;

Entre jongos e coisas esquecidas: por uma arqueologia da


memória na Fazenda do Colégio
Campos dos Goytacazes, Colégio dos Jesuítas, cultura afro-brasileira, me-
mória, arqueologia participativa.
Sumário

Capítulo 1
Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da escravidão africana atlântica
ao campesinato no imediato pós-abolição 21
Capítulo 2
As pesquisas arqueológicas no Colégio dos Jesuítas 51
Capítulo 3
Cerâmicas, linhas de cor e a negociação do espaço social no Colégio
dos Jesuítas 61
Capítulo 4
Práticas e usos da cerâmica artesanal na senzala do Colégio dos Jesuítas 96
Capítulo 5
Vestígios faunísticos e práticas relacionadas à alimentação na senzala do
Colégio dos Jesuítas (RJ) 126
Capítulo 6
Para além de algemas e grilhões: os objetos de vestuário e ornamentação
dos escravos 146
Capítulo 7
Entre jongos e coisas esquecidas: por uma arqueologia da memória na
Fazenda do Colégio 183
Sobre os autores 222
Capítulo 1
Planícies Goitacazes, séculos XVIII e XIX: da
escravidão africana atlântica ao campesinato no
imediato pós-abolição
Flávio dos Santos Gomes

Para o período colonial o estudo mais importante foi realizado


por Sheila Faria, analisando todo o sistema da montagem escravista, pa-
drão de posse, formas de enriquecimento, pobreza, hierarquias e estrutura
social em Campos dos Goitacazes.8 Essa vasta região – áreas ao norte da
Capitania do Rio de Janeiro – começou a ser ocupada nas primeiras dé-
cadas do século XVII. Uma vez habitada por micro sociedades indígenas
– em especial os índios Goitacás, considerados “ferozes e bravios” – havia
dificuldade de interiorização de colonos e o estabelecimento de proprie-
dades. Os jesuítas começaram se instalar no primeiro quartel do século
XVII com currais nas áreas de Campo Limpo. Em 1652 eles começaram
a construção do Solar do Colégio que seria a sede da fazenda. Ali teriam
muitos escravizados. Em 1759, os jesuítas foram expulsos e tiveram seus
bens – incluindo os escravizados – sequestrados. Em 1781 a Fazenda do
Solar do Colégio foi leiloada em hasta pública, sendo “arrematada pelo
abastado comerciante de escravos, o português Joaquim Vicente dos
Reis”. Com a sua morte em 1813, a fazenda ficou sob controle de seu
genro Sebastião Gomes Barroso, e depois com os descendentes dele.9
Em Campos dos Goitacazes, até o início do século XVIII, pre-
dominou a atividade criatória de gado. Posteriormente, desenvolveu-se
a cultura de cana-de-açúcar. Com a franca expansão, o número de fá-
bricas se multiplicou. Em 1737 havia 34 engenhos de açúcar, mas entre
1750 e 1770 pularia de 50 para 113. Já em 1779 existiam 179 fábricas de

8 FARIA, Sheila Siqueira de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano


Colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998
9 FERREIRA, Larissa Manhães. O Solar do Colégio, da fazenda jesuítica a Arquivo: uma análise
das políticas culturais em Campos dos Goitacazes de 1977 a 2001. Dissertação de Mestrado em
Políticas Sociais, UENF, 2014

21
açúcar, sendo que em 1785 a quantidade de engenhos e engenhocas de
aguardente alcançaria quase 300 unidades.10 Para os anos de 1779 a 1789,
o Marquês do Lavradio anotou que ali os engenhos produziam açúcar
“em maior abundância que o dos engenhos da capital e seu recôncavo”.
Segundo Corcino, em 1769 havia na baixada Goitacazes 55 engenhos; em
1778, 168; em 1783, 278; em 1800, 324; 1810, 400 e em 1828 esse número
chegaria a 700.11
Com o desenvolvimento açucareiro, Campos alcançaria o índice
de 52% dos engenhos do Rio de Janeiro colonial, concentrando 43,6%
da população de escravizados. Nos derradeiros anos dos setecentos exis-
tiam 324 engenhos, mais da metade dos 616 engenhos de açúcar de toda
a Capitania.12 A região produzia cerca de 128.580 arrobas de açúcar e
55.905 “medidas” de aguardente. Outras atividades econômicas também
mostravam força, como 218 currais com 55.672 mil cabeças de gado bo-
vino e 13.201 mil de gado cavalar, além de lavouras de alimentos: 12.032
alqueires de feijão, 55.109 de farinha, 17.102 de milho e 4.458 de arroz.
Sabia-se ainda que eram colhidas 2.772 arrobas de algodão, existindo na
região 99 teares, além de 51 olarias. A consequência dessa expansão eco-
nômica foi o aumento da demanda de mão de obra africana para tra-
balhar nas lavouras. Existiam quatro latifúndios escravistas na planície
Goitacazes: a) fazenda de São Bento, da Ordem Beneditina; b) fazenda
do Visconde de Asseca, descendentes de Salvador Correia de Sá; c) fazen-
da do Morgado, herdeiros de Miguel Ayres Maldonado e de sua mulher
Barbara Pinto de Castilhos; e d) fazenda do Collegio, dos jesuítas. No final
do século XVIII a população total da Capitania do Rio de Janeiro era de
179.595 pessoas, sendo 52,5% livres e 47,5% escravizados. Em Campos
havia 21.905 habitantes, representando 12,4%. A população escravizada
predominava. Enquanto que na Vila de São Salvador a porcentagem de
escravizados era de 59%, nas freguesias prósperas como São Gonçalo e

10 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988, p. 130-1
11 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, pp. 131. SANTOS, Corcino Medeiros dos. O Rio
de Janeiro..., p. 56. Ver também: CLEVELAND, Donald. Slavery and Abolition in Campos, Brazil,
1830-1888, Cornell University, 1973, p. 21
12 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 132 e SANTOS, Corcino Medeiros dos. O Rio
de Janeiro, p. 57 e CLEVELAND, Donald. Slavery and Abolition, pp. 21

22
Santo Antônio de Guarulhos alcançava 62,1% e 77,9% respectivamente.
No conjunto, manteria um dos maiores contingentes de escravizados da
Capitania, só perdendo para as áreas do recôncavo da Guanabara.13

Tabela 1 - Movimento da População escravizada em Campos dos Goytacazes, 1785-1850


Anos # escravizados % escravizados
1785 11.862 73,6
1789 12.288 56,1
1790 12.216 55,8
1799 19.058 56,9
1816 17.357 54,3
1821 19.234 53,7
1836 30.595 59,2
1850 37.747 54,5
Fonte: Márcio de Sousa Soares. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo
dos escravizados nos Campos de Goitacases, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009

Entre o último quartel do século XVIII e a primeira metade do


século XIX, a população escravizada se manteve numa média de quase
60%. A maior incidência ocorreu em 1785 e a menor em 1821. Ainda
assim em números absolutos, o número de escravizados mais que triplicou
entre 1785 e 1850. As maiores elevações apareceram em 1799 quando au-
mentou 156 % e em 1836 quando houve uma variação recorde de 159%.14

Sertões de açúcar e de Áfricas


Podemos considerar o impacto africano em Campos dos
Goytacazes entre as últimas décadas do século XVIII e a primeira meta-
de do século XIX. Dos passaportes para escravizados – especialmente os
pretos novos, qual sejam, os africanos recém desembarcados – enviados da
Corte para várias regiões do interior do Rio de Janeiro e de Minas Gerais,

13 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 134, 136 e sgs.


14 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro: a dádiva da alforria e o governo dos
escravizados nos Campos de Goitacases, c.1750- c.1830. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

23
na primeira metade do século XIX, a região de Campos recebeu de 39,2%
alcançando 52,7% no período de 1824 a 1830. Quem eram estes africanos
escravizados que vinham para Campos? Numa amostra de inventários
para o período de 1750 a 1831, Soares destacou que 90% a 97% vinha da
região de embarque da África Central, 2% a 7% da África Ocidental e
1% a 6% da África Oriental. Já numa amostra de batizados, entre 1800 a
1801, estes números passariam para 97,8% de africanos centrais, 1,2% de
africanos ocidentais e 1% de africanos orientais.15
Com base numa investigação sistemática em registros de bati-
zados e de casamentos de escravizados africanos, sugerimos movimentos
da demografia africana para a planície Goitacases. Primeiramente, consi-
deramos 29.006 registros de batizados entre 1786 a 1850.16 Em aproxi-
madamente 17,7% dos assentos não há informações a respeito da natura-
lidade dos batizados, determinando se africano ou crioulo. Ainda assim,
encontramos batizados para 6.760 africanos, sendo que desses sabemos a
naturalidade – grandes áreas de embarque – de 5.089.

Tabela 1.2 – Origens dos escravizados africanos batizados em Campos, São Salvador,
1786-1850
Nações # %
Angola 4599 90,37
Cabinda 219 4,30
Mina 90 1,76
Congo 73 1,43
Moçambique 48 0,94
Benguela 37 0,72
Monjolo 7 0,13
Rebolo 7 0,13
Cabundá 2 0,03
Cassange 2 0,03
Ganguela 2 0,03

15 SOARES, Márcio de Sousa. A remissão do cativeiro


16 Não foram registrados os dados dos anos de 1832 e 1833

24
Nações # %
Inhanbane 2 0,03
Quissama 1 0,01
Total 5089 100
Fonte: Registros de Batizados de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850

Africanos centrais – denominados Angola, Cabinda e Congo – são


destaque, também aparecendo os africanos ocidentais (identificados como
Minas) e os africanos orientais (chamados de Moçambique). Tal impacto
demográfico africano tinha outro componente. Eram majoritariamente de
sexo masculino; entre os Angolas, por exemplo, homens alcançavam 67,2%.
Já entre os africanos ocidentais era de 76,6% enquanto que nos africanos
orientais 64,5%. As indicações sobre a faixa etária são escassas, pois a maio-
ria dos africanos foi batizada como adulto. Para 72 registros de africanos
batizados com a informação sobre a idade temos uma média de 14 anos,
sendo que há tantos africanos batizados com 6 a 7 anos como aqueles de
40 anos. Com algumas variações isolamos os dados sobre as mães africa-
nas que aparecem nos registros de batismos. Embora estes dados possam
ser sobre representados (uma vez que uma mesma mulher africana podia
batizar vários filhos ao longo de duas décadas ou mais), sugerem indicações
importantes, até porque não sabemos quantos africanos introduzidos nas
áreas norte fluminense já tinham sido batizados nos portos de desembar-
que, principalmente nas paróquias centrais da Corte ou mesmo se aque-
les entrados ilegalmente (1831-1850) foram sequer batizados. O perfil das
mães ajuda na identificação dos perfis e padrões dos africanos introduzidos
– de fato – nestas planícies fluminenses, assim como mudanças nas nomen-
claturas. Vejamos os registros de 6.621 mulheres, mães africanas.

Tabela 1.3 – Origem das mães africanas nos batizados de crioulos, Campos de
Goytacazes, Paróquia da São Salvador de Campos, 1786-1850
Nações # %
Angola 6.503 98,29
Benguela 60 0,90
Congo 24 0,36

25
Nações # %
Cabinda 16 0,24
Moçambique 5 0,07
Monjolo 3 0,04
Luanda 1 0,01
Ganguela 1 0,01
Cassange 1 0,01
Calabar 1 0,01
Cabundá 1 0,01
Total 6.616 100
Fonte: Registros de Batizados de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850

As tendências de concentração dos africanos centrais – deno-


minados Angolas – mudam pouco, surgindo também ás nomenclaturas
Calabar (africano ocidental) e Luanda (africano central). Além disso,
muitos africanos batizados como Angolas podiam ser nomeados depois –
e aparecerem assim em outras fontes – como Luanda, Ganguela, Monjolo
e Rebolo. Assim como africanos ocidentais genericamente chamados de
Minas puderam posteriormente aparecer como Calabar.
Também podemos inferir o impacto africano para planície cam-
pista através da identificação da origem dos escravizados despachados en-
tre 1809 e 1831. Temos uma amostra de 2.725 africanos remetidos, sendo
2008 (73,7%) africanos centrais, 515 (18,9%) africanos orientais e 202
(7,4%) africanos ocidentais.

Tabela 1.4 - Quantidade de africanos centrais despachados para Campos dos


Goitacases do Rio de Janeiro, 1809-1831
Congo 306 Angola 376 Mossumbe 2 Mojumbe 1 Massangana 3 Camundá 5

Songo 12 Muxicongo 1 Mossanje 1 Mogumbe 6 Luanda 5 Cabundá 4

Rebolo 166 Mussumbe 1 Cassange 146 Mofumbe 1 Ganguela 20 Benguela 466

Quissama 15 Monjolo 64 Cabinda 388 Moange 8 Camundongo 10 Baca 1

Fontes: ANRJ, Códices 390, 411, 421, 424 e 425

26
Africanos com as nomenclaturas Angola (376) representavam
18,7%, enquanto aqueles, Congo e Cabinda (694) – norte de Angola – so-
mavam 34,6%. Já os africanos com nomenclaturas Benguela (466) fica-
vam com 23,2%. Essas quatro denominações juntas (1536) representavam
76,5% dos africanos centrais. As nomenclaturas Rebolo (166), Monjolo
(64) e Cassange (146) somavam mais 18,7%. Ou seja, de 24 nomencla-
turas de origens dos africanos centrais, sete somavam 95,2% dos africanos
centrais. Já os africanos orientais vão aparecer em quatro nomenclaturas
(Quilimane, Mucena, Inhambane e Moçambique), estando concentrados
com 91,6% com a terminologia Moçambique. Das sete nomenclaturas para
os africanos ocidentais, destacam-se os Minas, concentrando 72,3%, e os
Calabar com 14,8%. Cerca de 3,4% (7) dos africanos ocidentais remetidos
para Campos aparecem como Hausá, portanto africanos islamizados.17
Outro interessante fator de identificação dos africanos e também
com impacto nas nomenclaturas, nas formas de identidades e na relação
interétnica aparece nos registros de casamentos. Verificamos africanos
com as mesmas nomenclaturas de origem ou procedências (áreas e portos
de embarque) casando entre si. Também localizamos tanto casamentos
envolvendo africanos com nomenclaturas distintas, como com crioulos.
Analisamos 3.372 casamentos entre 1760 a 1880, nos quais participaram
6.304 africanos, sendo que nos enlaces matrimoniais de africanos, 93,47%
envolviam os dois conjugues africanos. Os demais cônjuges não africanos
são 24 homens, entre crioulos e cabras, e 416 mulheres entre pardas, mu-
latas, crioulas e cabras. O primeiro padrão apontado é que dos casamentos
envolvendo um dos cônjuges não africano, 94,54% era de mulheres não
africanas. Do universo de africanos com origem determinada, nesses ca-
samentos temos um total de 4.871 africanos, sendo 53,3 % de homens e
46,7 % de mulheres.

17 Os estudos pioneiros sobre tráfico atlântico, abordando os perfis dos africanos remetidos para
o Rio de Janeiro entre os últimos anos do século XVIII e as primeiras décadas Oitocentista são
da década de 1970. Ver: KLEIN, Herbert. O tráfico de escravos africanos para o porto do Rio
de Janeiro, 1825-1830. Anais de História, Assis, 1973, p. 85-101; KLEIN, Herbert. Shipping
patterns and mortality in the african slave trade to Rio de Janeiro, 1825-1830. In The Middle
Passage (comparative studies in the Atlantic slave trade). New Jersey, Princeton University Press,
1978, p. 73-93 e KLEIN, Herbert. “The trade in African slaves to Rio de Janeiro, 1795-1811”. In
The Middle Passage (comparative studies in the Atlantic slave trade). New Jersey, Princeton University
Press, 1978, p. 181-212.

27
Tabela 1.5 - Origens dos africanos nos casamentos de escravizados, Campos de
Goytacazes, Paróquia de São Salvador, 1760-1880
Nação Homem # % Mulher # % Total # %
Angola 2561 (53,3) 2242 (46,7) 4803 (98,6)
Benguela 16 (59,3) 11 (40,7) 27 (0,55)
Cabinda 6 (66,6) 3 (33,4) 9 (0,18)
Congo 8 (66,6) 4 (33,4) 12 (0,24)
Mina 2 (28,6) 5 (71,4) 7 (0,14)
Ganguela 1 (14,3) 6 (85,7) 7 (0,14)
Mofumbe 1 (50) 1 (50) 2 (0,04)
Cassange 2 (50) 2 (50) 4 (0,08)
Cobu 1 (100) 0 (0) 1 (0,02)
Cabundá 1 (100) 0 (0) 1 (0,02)
Monjolo 0 (0) 1 (100) 1 (0,02)
Rebolo 0 (0) 1 (100) 1 (0,02)
Cabinda 2 (100) 0 (0) 2 (0,04)
Total 2600 (53,3) 2271 (46,7) 4871
Fonte: Registros de Casamentos de escravizados da Paróquia da São Salvador, 1786-1850

Os dados sobre as origens dos batizados – leia-se aqui nomen-


claturas e classificações e não necessariamente identidades étnicas – para
a paróquia de São Salvador são demasiadamente concentrados, especial-
mente para as classificações Angola. É certo que a presença de africa-
nos centrais era preponderante, mas certamente, assim como os dados
para o Vale do Paraíba cafeeiro, muitos dos africanos em Campos dos
Goytacazes eram também Benguelas (sul de Angola) além de Cabindas
e Congos (norte de Angola). Mesmo com tal concentração de Angolas,
13,3 % dos homens Angola casaram com mulheres não Angola, com des-
taque para 97,6% de mulheres crioulas, cabras, pardas e mulatas. Já as
mulheres Angolas que não casaram com homens Angolas, o fizeram em
90,4% dos casos com homens cabras e crioulos. Certamente essa popu-
lação de crioulos que casava com os Angolas – principalmente as mulhe-
res – era filha da primeira ou segunda geração de africanos centrais que

28
chegaram e, portanto, da mesma origem dos cônjuges africanos. Com nú-
meros limitados verificam-se indicações de padrões diferentes para outros
africanos. Por exemplo, 60% dos homens Benguela casavam com mulhe-
res não Benguela, sendo que 50% delas era de crioulas e a outra metade
de africanas de outras origens. Já as mulheres Benguela em casamentos
exogâmicos em termos de origens aparecem apenas com 10%. Também a
maior parte dos homens Congos (62,5%) e Cabindas (66%) casava com
mulheres de outra origem. As mulheres destas “nações” faziam o inverso
e casavam somente 25% e 30% com homens de diferentes origens africa-
nas. Verifica-se aqui um mercado matrimonial orientado pela demografia
africana e suas conexões com as montagens geracionais de africanos e suas
respectivas gerações de crioulos. Mulheres africanas podiam estar – como
sugere Slenes (1999) e ao contrário de análises quantitativas – controlan-
do tais escolhas, embora os padrões etários precisem ser verificados.18 Já as
mulheres crioulas podiam passar de escolhidas para aquelas que escolhiam
os homens africanos, quem sabe orientadas por seus pais, especialmente
suas mães africanas ou crioulas da primeira geração. Mercado matrimo-
nial, escolhas conjugais e padrões de compadrio e parentesco nem sempre
estiveram sobre o controle remoto – supostamente inexorável e racional
das políticas senhoriais ou reflexo quantitativo da demografia – como al-
guns estudos sugeriram. Padrões e escolhas – exogâmicos ou endogâmicos
– para arranjos conjugais podiam estar sendo orientados por preferências
identitárias, étnicas e culturais, funcionando como um complemento fun-
damental para as primeiras gerações de crioulos, especialmente aqueles
que viviam em comunidades sob o forte impacto da introdução reiterada
de africanos, jovens e de sexo masculino.
Talvez, como em nenhuma outra região do sudeste escravista na
passagem do século XVIII para o XIX, o impacto da demografia africana
foi tão considerável como em Campos dos Goytacazes. Mas como viviam
estes escravizados? Em grandes ou pequenas propriedades? Comparada
com outras regiões açucareiras coloniais – Capitanias de Pernambuco,
Bahia e mesmo São Paulo – a estrutura de posse de escravizados em
Campos era menos concentrada em grandes e médias propriedades. Em

18 SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, cap.1.

29
1779, apenas cinco engenhos funcionavam com mais de 100 escravizados.
Nessas propriedades incluíam-se a fazenda dos jesuítas com 1.400 cativos
e a fazenda dos beneditinos com cerca 430. Havia mais cinco grandes
fazendas com cerca de 50 a 100 escravizados. A maioria das fazendas e
engenhos contava com menos de 50 cativos, sendo a média de 15 escra-
vizados por plantel.19 Com base em registros de inventários post mortem,
Soares abordou a estrutura de posse dos escravizados entre 1750 a 1831.
Ele reuniu inventários relativos a 485 senhores que contavam com 8.234
escravizados. Até 1789, 90% dos escravizados viviam em escravarias de um
a 49 cativos, sendo que destes 30% vivia em escravarias com até 10 escra-
vizados. Somente 8% viviam em escravarias com mais de 50 cativos. Entre
1790 e 1808, essas tendências apareceram invertidas com mais de 48% dos
escravizados em grandes escravarias. No período de 1809 a 1825, tais ten-
dências seriam novamente reequilibradas com quase 40% trabalhando em
escravarias de 20 a 49 escravizados. No período de 1826 a 1831, o impacto
do tráfico na concentração escravizada voltaria a se destacar com quase
70% deles vivendo em escravarias de mais de 50 escravizados. No século
XIX haveria os seguintes padrões ali: alta incidência de africanos centrais,
homens, jovens, médias escravarias. Em 1826 a população escravizada já
era de 52,5%, sendo que pardos e pretos livres (muitos dos quais libertos)
perfaziam 73,8% da população total.
Sabemos pouco, porém, sobre o impacto africano na estrutura de
posse, mas é possível supor – até pelas transformações e concentração de
posse em meados do século XIX – que quanto maiores fossem as escrava-
rias, mas elas estariam repletas de africanos.

Campos dos quilombolas


Nesta vasta planície açucareira se estabeleceram comunidades
de fugitivos – mocambos e quilombos – desde o final do século XVII.
No sertão do rio Ururaí, por exemplo, havia uma localidade conhecida
como “sertão do Calhambola”. Em 1751, o Senado da Câmara da Vila de
São Salvador, admitindo que o problema dos quilombos, além de crônico

19 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 136

30
parecia fugir ao controle – uma vez que eram constantes as denúncias
de roubos, assassinatos e sequestro de mulheres – conclamava através de
Edital a “todos os moradores e capitães-do-mato para que dessem nos
quilombos”.20 Mocambos pareciam ser o principal problema da planície
Goitacazes que já dava sinais de franco desenvolvimento econômico, com
a expansão da cultura de cana de açúcar no último quartel Setecentista.
Além de fugitivos, a região era conhecida por refúgio de criminosos. O
Marquês do Lavradio afirmaria em 1779 que a região era por “muitos
anos” um “asilo de todos os malfeitores, ladrões e assassinos, que ali se
recolhiam vivendo com um despotismo e liberdade” e que “todos viviam
em bastante ociosidade, contentando-se só de cultivarem pouco mais do
que lhes era preciso para sua sustentação”.21
Além das providências costumeiras, autoridades procuravam, na
medida do possível, aumentar o alcance da repressão. Segundo Sílvia Lara
houve “medidas de tal amplitude, como autorização do uso de armas, isen-
ção de penas para as mortes de fugitivos renitentes, exposição exemplar
de cabeças [dos quilombolas] e financiamento das expedições, parecem,
entretanto, não ter tido os resultados desejados”. Sabe-se que em 1769 foi
preparada uma grande expedição para “dar nos quilombos dos pretos fugi-
dos” a ser comandada pelo Mestre-de-Campo João José de Barcelos. Em
1792, o vice-rei escreveria à Câmara da Vila de São Salvador ressaltando
a repressão efetiva a ser dada aos “quilombos que existem nos sertões deste
distrito”. Nesse mesmo ano, foi realizada uma diligência, utilizando-se
para isso mais de 200 homens. Vários mocambos foram atacados, sendo
que se conseguiu na ocasião “não só arrasá-los como prender muitos dos
seus moradores”.22 Em confrontos cotidianos, fugitivos se movimentavam
gerando tensões. Em fins de 1796, acabou sendo cercada e invadida a sen-
zala do pardo Joaquim, pertencente ao Alferes Miguel de Morais Peçanha
onde foram encontrados dois fugitivos. Joaquim acabou condenado “pelo
uso de armas curtas e acoitador e induzidor de escravizados fugidos” e re-
metido para a cadeia da Relação do Rio de Janeiro. Houve mesmo ocasiões

20 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência, p. 194 e 300


21 ANRJ, Arquivos Particulares, Marques do Lavradio, Códice 1095 e 1096
22 LARA, Silvia Hunold. Campos da Violência, p. 305 e 307

31
em que a repressão anti-mocambo serviu para justificar arbitrariedades e
mortes. Foi o que aconteceu em 1807, mais propriamente no sertão pró-
ximo ao rio Muriaé, onde Angélica, preta escravizada de Manoel Pereira
da Fonseca apareceu morta. Instaurou-se uma devassa, sendo ouvidas 15
testemunhas. Os acusados do assassinato foram João Fernandes e José
Monteiro, esse último, feitor de uma fazenda vizinha. Alegando inocência
dos acusados uma testemunha declarou que estes estando a margem do
rio perceberam que a preta Angélica “havia de ir para o quilombo, o que
ele [ João Fernandes] não quis assentir e por isso lhe fizera os ferimentos
com que a mesma apareceu morta”.23
Campos ficaria verdadeiramente – desde a segunda metade do
século XVIII – “infestada” de mocambos e quilombos. Entre 1759 e 1805,
registros prisionais da Vila de São Salvador indicavam 222 fugidos captu-
rados. Porém, apenas 11%, ou seja 25, foram presos com a indicação espe-
cífica de “quilombola” ou “preso no quilombo”. Para Goitacazes colonial
Sílvia Lara destacou a existência de três níveis diferenciados de atuação
contra fugitivos e mocambos. O primeiro seria a repressão levada à cabo
pelos capitães-do-mato e seus auxiliares. Era uma prática situada entre a
esfera pública e a privada, uma vez que, apesar de ser instituída pelo poder
público, quem pagava todas as despesas eram os proprietários em ques-
tão. A segunda seria efetivada diretamente pelos fazendeiros. Não foram
raras as ocasiões em que planejaram, prepararam e armaram agregados e
capitães-do-mato para efetuarem diligências contra mocambos. O último
nível de prática repressiva era aquele de natureza militar e administrati-
va. Também foram várias as ocasiões em que a Coroa tomava para si a
responsabilidade de perseguir quilombolas, não só legislando a respeito,
como igualmente financiando e preparando expedições militares. A atua-
ção da Coroa nesse contexto, via de regra, parece ter estado “diretamente
relacionada ao grau de periculosidade e resistência dos fugitivos ou à ne-
gligência e despreparo das forças repressivas locais”.24
Os mocambos da planície Goitacazes estavam localizados tanto
em áreas de terras devolutas e fronteiras abertas – nos “sertões” – como nas

23 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 239-240 e 320-321


24 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 310 e 317

32
margens de fazendas, currais e engenhos.25 Era fato que as principais regiões
coloniais para o estabelecimento de mocambos e quilombos mais populosos
na Capitania do Rio de Janeiro eram Campos de Goitacazes, Cabo Frio,
Saquarema e o recôncavo da Guanabara. Eram sobretudo áreas produtoras
de açúcar (algumas em franca expansão e outras de ocupação mais antiga),
aguardente e principalmente de gêneros para o abastecimento, como aque-
las do recôncavo. Com base nas informações do Marquês do Lavradio no fi-
nal do século XVIII, havia terras devolutas por toda a parte. De Saquarema
dizia-se que “no campo de Bacaxá tem o Capitão José Antônio Barbosa
uma légua de terra, onde já teve gado, escravizados, e culturas, e de pre-
sentemente não tem, e só moram na terra algumas pessoas, sem foro nem
pensão; todos os sertões estão por cultivar”.26 Já de Campos dos Goitacazes
informava-se que no “rio Imbé, para cima de uma posse que tem a Fazenda
d’El-Rey, seguem muitas terras devolutas, sem senhorios em que proxima-
mente se tem pedido três sesmarias, que ainda não vieram, e são em terras,
que dizia Diogo Álvares havia muito ouro”.27

Tabela 1.6 - Mocambos e quilombos em Campos dos Goitacazes (1750-1807)


Datas Localizações
1750 Sertões de Macaé
1751 Campos dos Goitacazes
1769 Sertões do Imbé
Campos dos Goitacazes e
1792
Recôncavo da Guanabara
1807 Muriaé e Campos dos Goitacazes
Fontes: Diversas.

Na planície Goitacazes os mocambos ficariam isolados? Pouco


sabemos, embora procurassem proteção geográfica enquanto estratégia
permanecendo mais próximos de engenhos, fazendas, estradas e/ou às
áreas economicamente ativas. Assim, poderiam garantir conexões e trocas
25 GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José. Liberdade por um fio. História dos quilombos no
Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.
26 Cf. “Relações parciais apresentadas do Marques do Lavradio...”, p. 308-309
27 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, p. 344

33
mercantis, representando ainda mais solidariedade com taberneiros e os
cativos junto às plantações. Para Campos, a tentativa de interiorização
pode ter sido dificultada pela existência de micro sociedades indígenas –
consideradas hostis – que ocupavam vários sertões destas regiões. A bar-
reira indígena pode ter dificultado, inclusive, a ampliação e interiorização
da repressão. Ou mesmo a colonização do Rio de Janeiro nos séculos XVI
e XVII conheceu uma resistência indígena ainda pouco estudada. Quem
sabe mais tarde os quilombolas não procuraram tirar proveito destas expe-
riências? Em 1801, os africanos Francisco e Domingos, de nação Angola
permaneceram oito meses fugidos no sertão de São Fidélis. Consta que
estavam embrenhados nos matos, vivendo “com a gentilidade”, isto é, com
os indígenas.28 No início do século XIX as notícias sobre mocambos au-
mentaram, ou pelo menos se tornaram mais frequentes. Em 1807, alguns
lavradores – procurando desbravar o sertão do rio Imbé – descobriram
“da parte dos Campos cinco Quilombos de negros”.29 Em 1810 é enviada
uma petição ao Corregedor de Crime da Corte pedindo-se a soltura de
Caetano, de nação “Guiné”. Argumentava-se que ele – com mais de 60
anos, capturado no “quilombo d’Macabu” – já estava preso há quatro anos
sem que seu senhor solicitasse sua soltura.30 Em 1814 dizia-se que cinco
quilombolas capturados na Corte e acusados de homicídios desde 1810,
estavam “apodrecendo” na cadeia sem que fossem enviados para trabalha-
rem em presídios.31 Em setembro de 1808, noticiava-se que diligências
seguidas contra os quilombos de Macaé conseguiram capturar quarenta
negros, entre mulheres, homens e crianças. Ordenava-se que as expedições
continuassem. O Intendente Fernandes Viana informou ao Governador
Rodrigo de Sousa Coutinho das suas providências e das dificuldades en-
contradas. Dizia que algumas expedições eram fracassadas, uma vez que
os quilombolas “observam todos os movimentos, inutilizam as diligên-
cias”. Lembrava ainda que existiam tanto mocambos pequenos de “cinco

28 LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência, pp. 242


29 BNRJ, Seção de Manuscritos, Códice 20, 4, 2 n. 31, 24/04/1807
30 ANRJ, Corregedoria de Polícia. Caixa 774, Petição enviada para o Corregedor do Crime da
Corte e Casa Francisco Loppes de Souza, 03/11/1810, pacote 3
31 ANRJ, Corregedoria de Polícia Caixa 774, Ofício do Corregedor do Crime da Corte e Casa,
15/06/1814

34
negros” como aqueles “grandes”.32 Também em setembro as autoridades
tentam perseguir os quilombolas de Campos dos Goitacazes. Em outubro
é a vez de novos ataques aos mocambos de Macacu.33

Ocupação de terra e comunidades de senzalas


Em Campos dos Goitacazes, para além do abolicionismo radical
da década de 1880, houve movimentos originais de ocupação – a partir de
grupos de refugiados – nas próprias terras onde trabalhavam como cati-
vos. O episódio mais interessante aconteceu com o famoso quilombo da
Loanda, situado no interior da fazenda do mesmo nome, nas margens do
Rio Paraíba. Bem próximo à cidade de Campos, há muito tempo causava
“terror” aos habitantes locais, segundo o noticiário local. Tendo falecido a
proprietária da fazenda, libertos e escravizados que ali trabalhavam resol-
veram ocupá-la, expulsando os administradores, uma vez insatisfeitos com
a venda que dela se fizera. João Ferreira Tinoco, que a havia comprado
dos herdeiros da falecida no início de 1878, não conseguiu tomar posse, de
fato, da fazenda, que era rechaçado desde 1877.34 Em 4 de janeiro de 1878,
o Monitor Campista publicou o seguinte anúncio de venda:

Fazenda da Loanda – vende-se esta fazenda, sua à margem do


Parahyba, distante da cidade de Campos légua e meia, tendo de testa-
da 700 braços e meio légua de fundos ou 160 alqueires de terras no seu
todo, apropriadas para a cultura de cana, e pastagens nas terras planas e
nos altos e montanhosos para a cultura de mandioca e café, quem bem
quiser estabelecer-se compre-as a Julião B. P. de Almeida, residente
em Santa Cruz.

O anúncio não fazia nenhuma menção sequer da existência de


escravizados refugiados ou aquilombados ali. Várias diligências enviadas

32 BNRJ, Seção de Manuscritos, Códice I-33, 30, 19 n. 2, Ofício do Intendente de Polícia Paulo
Fernandes Viana enviado para Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, 19/09/1808
33 ANRJ, Códice 318, Registro de Avisos, Portarias e Ofícios da Polícia (1808-1809), Ofícios
do Intendente de Polícia Paulo Fernandes Viana expedidos para as autoridades de Campos,
Macaé e Macacu: 01/09/1808, fl. 68v; 01/09/1808, fl. 69v; 21/09/1808, fl. 77v; 08/10/1808, fl. 84;
18/10/1808, fl. 91 e 29/10/1808, fl. 93
34 Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro, 6.7.1879

35
para “bater” as matas conheceriam o fracasso.35 Ainda em 1877, o che-
fe de Polícia, Cavalcanti de Albuquerque, por ordem do presidente de
Província, comandou pessoalmente uma expedição, enviando cerca de “50
praças”. Os aquilombados receberam a tropa com “franqueza”, declarando
“que não entregavam e que estavam prontos para a luta”. Houve recuo so-
bre uma imediata intervenção militar, embora se destacasse a respeito de
um “grave o caso pelo exemplo para os muitos escravos que existem neste
município”. Seria solicitada autorização expressa para “fazer fogo contra
os mesmos escravos no caso continuar a resistência que fazem e visto
que declaram que não se entregam por outra forma”.36 Houve surpresas
quanto as proporções e os desdobramentos daquela ocupação. Havia sido
tentado um acordo para que se entregassem. Mas os aquilombados de
Loanda não quiseram, acreditando que, com a morte da senhora, tinham
ficado livres. Assim poderiam continuar trabalhando e administrando as
terras para si próprios. Com o malogro inicial da repressão inicial, o chefe
de Polícia decidiu aguardar novas determinações do Governo Provincial.
Por sua vez, o presidente da Província, Francisco Antônio de Souza evi-
tou uma invasão direta à fazenda, mas determinou que fosse cercada com
vistas a cortar todo e qualquer abastecimento.
A ideia era minar a disposição deles em se manter acantonados
nas terras daquela fazenda. Com a preocupação em desocupar a proprie-
dade, optava-se por vencer os aquilombados pela fome e pelo cansaço.
Impossibilitados de cultivarem suas lavouras – já que ficariam à mercê da
tropa – ou de comerciarem com outros escravizados e vendeiros, os aquilom-
bados, expostos a privações, acabariam se entregando.37 Mas, ao que parece,
aquilombados resistiriam por mais algum tempo ao bloqueio. Durante qua-
se quatro anos – de 1877 a 1880 – fazendeiros ali desfrutaram da vizinhança
daquela ocupação de terra sob forma de quilombo. Fato interessante foi
que, enquanto alguns aquilombados construíram ranchos nas matas daque-
la propriedade, outros, ao que se sabe, continuaram a habitar nas próprias
35 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo SSP, Coleção 165, pasta 3, documento
32 e o Monitor Campista, 4 de janeiro de 1878
36 ANRJ, IJ1 Maço 493, Ofício de Presidentes de Província (RJ), cópia do telegrama do Chefe
de Polícia enviado ao Presidente da Província (RJ), 18.9.1877
37 ANRJ, IJ1 Maço 493, cópia do telegrama do Presidente de Província (RJ) enviado Chefe de
Polícia, 18.9.1877 (telegrama resposta)

36
senzalas. Na planície Goitacazes, se tratava, sem dúvida, de um peculiar
aquilombamento que ampliava as dimensões políticas de protesto daqueles
cativos, já que ocupavam os próprios prédios da fazenda, assumindo o di-
reito de serem livres e trabalharem para si.38 Em meados de 1880 – não se
sabe como – o suplente do delegado de Polícia de Campos, Luiz Carlos de
Lacerda acompanhado por apenas seis soldados, prendeu 53 aquilombados
da fazenda da Loanda, que, segundo informações, estavam armados e mu-
niciados.39 O Monitor Campista, descreveu a ação:

Chegando ali às cinco horas, de improviso deram sobre o quilombo, e


com tão bem calculado plano que sem haver disparar-se nem um tiro,
capturou-se toda a gente que estava no quilombo, sendo cinco homens,
compreendidos os dois cabeças, e 18 mulheres e as crianças em núme-
ro de 28 de 14 anos de idade para baixo.40

Qual teria sido o “tão bem calculado plano” para “destruir” esse
quilombo em 1880, desocupando a fazenda sem encontrar oposição dos
escravizados? O mesmo aquilombamento nessa fazenda vinha resistindo
desde 1877. A maior parte dos capturados em 1880 – conforme o pró-
prio noticiário – era de mulheres e crianças. Havia apenas cinco homens.
É possível avaliar que estes aquilombados, sem condições de garantirem
sobrevivência, uma vez cercados na fazenda, optaram por se entregarem,
pelo menos provisoriamente. Ou, quem sabe, havia mais homens na fa-
zenda que escaparam durante a batida policial? O “apadrinhamento” pode
ter feito parte da economia política desses aquilombados que, talvez, se
viram sem recursos para continuar a enfrentar as forças policiais enviadas.
O presidente da Província, Francisco Antonio de Souza, em 1877 deter-
minou que o cerco da fazenda fosse reforçado “com força e paisanos, até
que os pretos se rendam [por] faltas de recursos”.41

38 Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro, 18.9.1879, p. 3 e Monitor Campista, 5 e 6.7.1880, p. 2


39 LIMA, Lana Lage da Gama, Rebeldia Negra e Abolicionismo, Rio de Janeiro, Achiamé, 1981, p.
84-141 e OSCAR, João, Escravidão e engenhos. Campos, Macaé, São João da Barra e João Fidélis. Rio
de Janeiro, Achiamé, 1985, esp. “Radicalização abolicionista”, p. 213-232.
40 Monitor Campista, 5 e 6.7.1880, p. 2; ver também, Jornal da Província, Campos, Rio de Janeiro,
5 e 6.7.1880, p. 1.
41 ANRJ, IJ1 Maço 493, Ofícios de Presidentes de Província (RJ), cópia do telegrama citado,
18.9.1877 (telegrama resposta).

37
Dispomos de poucas evidências sobre esse episódio do quilombo
da Loanda, em 1880. Isolar quilombolas das infinitas redes de proteção e
cumplicidades que os cercavam era uma das estratégias para capturá-los
Porém, se resistiram ao cerco por quase três anos, possuíam uma base
econômica considerável para se manter. Uma alternativa era abandonar a
fazenda e se internar nas matas. Por que não o fizeram? A crença de que
tinham “direitos” parecia mais forte e assim preferiram se manter juntos
dentro da própria fazenda e assim foram presos. Deixaram-se prender?
Negociaram a rendição? Luiz Carlos de Lacerda, o suplente de delegado
que efetuou o “tão bem calculado plano” de captura na fazenda da Loanda,
ao que tudo indica, deve ter sido louvado pelos habitantes de Campos,
principalmente pelos fazendeiros e autoridades. Dois meses depois era
condecorado com a Ordem da Rosa do Império, em virtude daquela “faça-
nha”. Afinal, tinha acabado de vez com o famoso “quilombo da Loanda”.42
Seis anos mais tarde, ou seja, em 1886, o agora Comendador Luiz Carlos
de Lacerda era considerado o líder “radical” da campanha abolicionista da
região. Mediante comícios e editoriais inflamados – publicados em seu
jornal, o Vinte e Cinco de Março – desenvolvia intensa propaganda aboli-
cionista, alarmando a população de Campos.43
Pela imprensa local conservadora, grandes fazendeiros replica-
vam aos ataques de Luiz Carlos de Lacerda e dos simpatizantes de sua
campanha. O periódico A Evolução, ferrenho opositor, atacava-o com fre-
quência os abolicionistas. As críticas eram sempre as mesmas: abolicio-
nistas manipulavam e induziam os cativos da região a fugir e até mesmo
a formarem quilombos. Afinal o que aconteceu? Tudo indica que os aqui-
lombados da Fazenda da Loanda se deixaram capturar. Se acreditarmos
no que a própria matéria destaca, eram, na maioria, velhos, mulheres e
crianças. Onde estavam os homens? Teriam eles tentado ir à Corte rei-
vindicar junto às autoridades sua condição de “livres” e de que não acei-
tavam que a fazenda da Loanda fosse vendida? Ou estariam escondidos
em matas próximas? Teriam permitido que mulheres, velhos e crianças se

42 ANRJ, Decretos Honoríficos, Caixa 789 B (1878-1889), 25.9.1880.


43 LIMA, Lana Lage da Gama, Rebeldia negra, p. 84-141 e OSCAR, João, Escravidão e engenhos,
p. 205-232.

38
entregassem à justiça, já que havia problemas de abastecimento em virtu-
de do cerco iniciado desde 1877? Pouco sabemos. E o suposto “tão bem
calculado plano” de Lacerda não teve nada de heróico, epopeia militar e
façanhas?44 É mais provável que tenha sido fruto de agenciamentos e con-
flitos entre os aquilombados, o novo proprietário da Fazenda da Loanda
– que poderia nem estar mais preocupado com a posse dos cativos, mas
sim com a desocupação de sua nova propriedade.
De qualquer modo, o episódio da fazenda da Loanda, em Campos
de Goitacases, nos revela como escravizados podiam formar comunidades
e a partir dos seus próprios interesses, forjarem e experimentarem signifi-
cados diversos para as suas visões de liberdade, escravidão, conflito, autono-
mia e negociação. Ocupando terras e fazendas – na condição de aquilom-
bados -- procuravam reverter, na medida do possível, várias situações que
pontuavam os mundos do trabalho à sua volta.45 Ali, depois da morte de
seu senhor não aceitavam que a propriedade fosse vendida, o que poderia
significar, além da mudança de costumes, a destruição de arranjos fami-
liares, já que muitos cativos poderiam ser separados. Existiam também
libertos trabalhando ali e alimentavam possivelmente a expectativa de ob-
terem alforrias incondicionais ou manterem arranjos sociais conquistados
junto à ex-senhora falecida, que com certeza acabariam desrespeitados
pelo novo proprietário da fazenda.46

44 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. “Batismo da liberdade: os abolicionistas e o destino do


negro”. Histórias, Questões e Debates, v. 9, n. 16, janeiro de 1988, p. 38-65.
45 GOMES, Flávio dos Santos. Repensando a construção de símbolos de identidade étnica no
Brasil. In: FRY, Peter; REIS, Elisa; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. Política e Cultura.
Visões do passado e perspectivas contemporâneas. São Paulo, Hucitec/ANPOCS, 1996, p. 197-221.
46 Sobre economia própria dos escravos e as formações camponesas ver: BARICKMAN, B. J. “’A
bit of land, wich they call a roça’: slave provision grounds in the Bahia Recôncavo, 1780-1860”.
Hispanic American Historical Review, v. 74, n. 4, p. 649-687; BERLIN, Ira e MORGAN, Philip
D. “Introduction”. Slavery & Abolition, v. 12, n. 1, 1991 (número especial: The Slaves Economy
Independent Production by Slaves in the Americas), p. 1-27; CARDOSO, Ciro Flamarion S.
Escravo ou Camponês? O Protocampesinato Negro nas Américas. São Paulo, Brasiliense, 1987;
GUIMARÃES, Elione Silva. Múltiplos Viveres de Afrodescendentes na Escravidão e no Pós-
Emancipação. Família, trabalho, Terra e conflito ( Juiz de Fora, MG, 1828-1928). São Paulo,
AnnaBlume, Juiz Fora, Funalfa Edições, 2006; JOHNSON, Howard. “The emergence of
a peasantry in the Bahamas during slavery”. Slavery & Abolition, v. 10, n. 2, 1989, p. 172-186;
MACHADO, Maria Helena P. T. Vivendo na mais perfeita desordem: os libertos e o modo
de vida camponês na província de São Paulo do século XIX. Estudos Afro-Asiáticos, número 25,
1993; MACHADO, Maria Helena P. T. Em torno da autonomia escrava : uma nova direção

39
Migrações e vésperas da Abolição
Para a região de Campos dos Goitacazes há vários registros de
quilombos volantes na última década da escravidão. Destaque para aque-
les que se formaram na localidade de Travessão. Vários anúncios de fugas
– destacadamente no Monitor Campista – mencionavam o fluxo de fugi-
tivos para esta região. Da freguesia Morro do Coco, 1877, tinha fugido o
crioulo Zacarias e constava que teria passado no início de 1878 para os
“lados da Lagoa da Saudade, no Travessão”. Em 1880, era mencionado o
fugido José, pardo que andava pelos “arrabaldes de Travessão”.47 Entre os
anos de 1879 a 1884, os quilombolas do Travessão foram temas diários
da imprensa de Campos – dividida entre facções abolicionistas e fazen-
deiros escravistas – com denúncias e repressão. Nas retóricas jornalísti-
cas – de terror e denúncias – percebe-se que a acusação principal a esses
quilombos eram as suas supostas atividades de roubos e assassinatos. Os
quilombolas – conheciam-se seus nomes próprios – eram mesmos classi-
ficados como bandidos comuns e salteadores.48 Muitos outros quilombos
– volantes e combinados com deserções em massa e migrações de grupos
familiares – surgiriam em Campos, principalmente nas áreas de Pádua,
São João da Barra, Miracema e Itabapoana, quase nas fronteiras com o
Espírito Santo.49 Em 1883, o foco era no distrito de Miracema onde “an-
dam diversos escravizados fugidos, os quais tem dado o que fazer aos la-
vradores”.50 Ainda no final de 1884, surgiriam na freguesia de Guarulhos
“vários quilombos”, sendo que uma expedição contra “um desses quilom-

para a história social da escravidão. Revista Brasileira de História, volume 8, número 16, 1988, p.
143-160; MINTZ, Sidney W. Slavery and the rise of peasantries. Historical Reflections, v. 6, n. 1,
1979, p. 213-253; MINTZ, Sidney W. Caribbean Transformations. Baltimore, The Johns Hopkins
University Press, Baltimore, 1974 e PALACIOS, Guilhermo. Campesinato e Escravidão: Uma
proposta de periodização para a história dos cultivadores pobres livres no Nordeste Oriental do
Brasil, C. 1700-1875. DADOS, Revista de Ciências Sociais, v. 30, n. 3, 1987, p. 325-356
47 Monitor Campista, 07.02.1878 e 04.03.1880
48 Ver Monitor Campista, 02.09.1879; 30.09.1883; 12.03.1884; 01.04.1884; 25.03.1884 e
21.11.1884
49 Para a abolição e o pós-emancipação na Província do Espirito Santo, ver: ALMADA, Vilma
Paraíso Ferreira de. Escravismo e Transição: O Espírito Santo (1850/1888). Rio de Janeiro, Graal, 1984
e MARTINS, Robson Luís Machado. Os caminhos da Liberdade. Abolicionistas, escravos e senhores na
Província do Espírito Santo (1884-1888). Campinas, Centro de Memória/Unicamp, 2005.
50 Correio de Pádua, 13.09.1883

40
bos” conseguiu “apreender 11 indivíduos, tendo fugido mais de 30”.51 Da
mesma forma, o Correio de Pádua, em agosto de 1885, publicaria que um
grupo de quilombolas estava escondido “na mata que circunda” a fazenda
do Comendador Francisco Thomaz Leite Ribeiro”. Entre os quilombolas
havia “alguns indivíduos forros que convivem com eles e assistem aos seus
misteriosos canjerês”.52 No ano seguinte era noticiado o envio de tropas
para São João da Barra, para “ser dispersado um quilombo que ali tem
praticado muitos furtos e raptado mulheres brancas que encontram nas
suas excursões”.53 A ação repressiva duraria todo o mês de janeiro, sendo
invadido um grande quilombo onde “encontraram cinco casas de palha,
sendo uma delas grande e bem feita, um forno e mais utensílios de fazer
farinha, umas gamelas de pão, espingarda e grande plantação de mandioca
e milho”. A tropa teria “incendiado e devastado” tudo.54
Os noticiários sobre os quilombos tanto chamavam a atenção
para os ataques, assassinatos e roubos que supostamente realizavam os
quilombolas, como destacavam a estrutura da sua organização social em
pequenas comunidades agrárias com casas e plantações de farinha. Enfim,
o que tudo isso sugere é que era pouco provável que fossem apenas ban-
dos de salteadores. Em Morro do Coco, tentava-se prender dois cativos
fugidos acusados de assassinatos, que se ocultavam em ranchos no lugar
denominado Vila Nova.55 Na localidade de Guaxindiba, em Itabapoana,
seria desencadeada repressão contra os “quilombolas que tem atacado os
viandantes”.56 Na mesma região, na fazenda do Limão, pertencente ao
Tenente-Coronel José Fernandes Lima, aconteceria o assassinato do seu
administrador, “crime perpetrado a foice por quilombolas que se acham
foragidos nas matas da mesma fazenda”.57
Certamente, em termos de atmosfera e percepção política, a
formação de quilombos volantes, aquilombamentos em fazendas, deslo-
camentos, migrações e fugas em massa se articulavam. Nos derradeiros

51 Monitor Campista, 21.11.1884


52 Correio de Pádua, 23.08.1885
53 Monitor Campista, 24.01.1886
54 Monitor Campista, 31.01.1886
55 Monitor Campista, 08.04.1886
56 O Progressista, 26.05.1887
57 O Progressista, 23.06.1887

41
anos de 1887 e 1888 – o cenário foi também da movimentação de “reti-
rantes”, isto é libertos alforriados que agiam coletivamente. Autoridades,
fazendeiros e mesmo abolicionistas tentavam garantir o controle sobre o
processo de abolição na região. O “fantasma da desordem” – entre o fim
inevitável e ao mesmo tempo imprevisível da escravidão – aparecia em
diferentes narrativas e argumentos. Foram pioneiros os estudos de Lana
Lage sobre o abolicionismo e o de Hebe Mattos em abordar a atmosfera
da região – tendo como contraponto áreas e periódicos de Minas Gerais
– articulando inclusive com as repercussões – publicadas nos jornais – dos
episódios que ocorriam em São Paulo.58 Mas de uma maneira geral, a
historiografia analisou tal processo muito mais como uma disputa pela
memória da abolição e das primeiras décadas do pós-emancipação.59
Mas quais os significados destes movimentos e deslocamentos
que envolviam assenzalados, aquilombados, libertos e “retirantes” de fazen-
das? Para Campos dos Goitacazes é possível propor uma interpretação que
articule os movimentos de deserção, quilombos volantes e deslocamentos
de recém alforriados que suplanta a memória abolicionista construída por
meio da imprensa local. Embora alardeada pela imprensa, talvez a abolição
– definitiva e incondicional – não fosse um fato consumado. Além disso,
poderia haver um cenário dialógico entre essas ocorrências e os episódios
do Oeste paulista, que também eram noticiados no Rio de Janeiro. É in-
teressante verificar como as notícias sobre os “quilombos” e seus supostos
crimes desaparecem dos jornais em 1888 e 1889 ao mesmo tempo em que,
em Campos, os fazendeiros realizaram congressos agrícolas e transcreveram
nos jornais suas atas e discussões. Tais posicionamentos podem ter espe-
lhado mais um discurso pedagógico para os próprios fazendeiros – suas
expectativas de manter a estrutura de trabalho feitorizado, parceria, meação
e salários – do que um diagnóstico da situação ainda em 1888.
Destacamos aqui a série de reportagens já bastante utilizada
por Sheila Faria e Hebe Mattos sobre a “Lavoura no Estado do Rio

58 MACHADO, Maria Helena P. T. O Plano e o Pânico. Os movimentos sociais na Década da


Abolição. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ/EDUSP, 1994.
59 LIMA, Lana Lage da Gama. Rebeldia Negra e MATTOS, Hebe M. de. Das Cores do Silêncio:
os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil, Século XIX. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1998

42
de Janeiro”, assinadas por Arrigo de Zetirry, publicadas no Jornal do
Commércio, no segundo semestre de 1894.60 Tais reportagens descreviam,
além de Campos, vários municípios de fronteiras abertas no Norte flu-
minense, como Itaperuna, São João da Barra e localidades de Carangola
e Muriaé. Nessas, seu autor, entre observador e analista, “relatando as
condições em que atualmente se acham o trabalho e o trabalhador, a
lavoura e o produto”, destacaria como os libertos tinham abandonado
as senzalas e procuravam negociar novas formas de trabalho, que in-
cluía a retirada da mulher e dos filhos nas empreitadas nas lavouras.61
Na divisa do norte fluminense com Minas Gerais, na fazenda de Três
Barras, Arrigo de Zetirry encontrou 128 famílias de trabalhadores, sen-
do 73 delas de libertos, entre as quais 11 eram de libertos oriundos de
outras propriedades. Ali trabalhavam como meeiros, plantando café e
com inúmeras roças de milho e feijão. Comparando com as condições de
trabalho em São Paulo com a utilização de imigrantes italianos criticaria
os libertos por se recusarem ao trabalho familiar pois “acharemos as mu-
lheres dos negros sentadas á porta, com as mãos no colo, mulheres tão
fortes como os homens, completamente inertes”. Além disso, acrescen-
tava o autor, “o nacional, especialmente liberto, parece ignorar que possa
haver no coração humano um desejo de mudar de vida, de melhorar de
posição social”.62 Outras transcrições poderiam ser feitas das observa-
ções daquele cronista, todas oscilando entre o abandono das fazendas, a
falta de interesse dos libertos, sua rejeição ao trabalho na grande lavoura
em detrimento as suas roças de alimentos e as comparações com traba-
lhadores chineses e com outros cenários do Norte fluminense.
Como especulação analítica seria interessante pensar o que
Zetirry não viu na sua viagem. Ao contrário da imprensa em 1887 e
1888 – antes do 13 de maio – que produzia uma narrativa pedagó-
gica, articulando acontecimentos, cenários e expectativas sobre Norte
fluminense e o Oeste paulista através de rumores, indícios e denúncias,
Zetirry em 1894 – através do Jornal do Commércio – propunha uma ava-

60 FARIA, Sheila de Castro. Terra e Trabalho em Campos dos Goytacazes, Mestrado em História,
Universidade Federal Fluminense, UFF, 1986 e MATTOS, Hebe M. de. Das Cores do Silêncio, 1998.
61 Jornal do Commércio, 20.06.1894
62 Jornal do Commércio, 28.07.1894

43
liação sobre a lavoura fluminense, colocando como exemplo a ser segui-
do aquela de São Paulo, com a extensa utilização de trabalho imigrante
sendo arregimentado nas frentes de trabalho. Assim escolheria como
modelo para a região de Campos as grandes fazendas articuladas às usi-
nas. O que aconteceria em outras áreas? Argumentamos – levantando
hipótese – que o que ele não viu foi o esparramar de micro-sociedades
camponesas negras – organizadas em núcleos familiares e muitas das
quais invisíveis – que podiam estar nas franjas de algumas fazendas e/ou
nas fronteiras, sem falar da migração constante. Qual seja, as “grandes
propriedades que existiam ao tempo da escravidão” estavam “desde anos
completamente abandonadas ou tratadas por um limitadíssimo núme-
ro de trabalhadores libertos” mas outros tantos povoados negros – de
um campesinato itinerante – ainda existiam fornecendo mão de obra
de jornaleiros ou trabalhadores sazonais. Inclusive os libertos que for-
mavam tais povoados negros tinham tanto “internado-se” para Minas,
enquanto outros tantos viviam de produção familiar de alimentos. 63 O
cronista acaba sugerindo o seguinte quadro desalentador para a grande
propriedade e para a usina: de um lado libertos, individualmente ou em
famílias, ora ausentes, ora em população rarefeita devido a arregimenta-
ção de outros municípios que os recompensavam melhor, de outro lado,
colônias de libertos de parceria ou de meação, dedicadas a uma agri-
cultura familiar, arruinavam os interesses da economia açucareira e as
usinas vizinhas. Comentou Zetirry a respeito dos trabalhadores de uma
fazenda articulada a Usina das Dores: “Os libertos, como a generalidade
deles aqui no município, trabalham para e quanto é preciso a subsistên-
cia, não manifestam empenho em querer melhorar a própria condição,
nem amor a economia”.64 Consideramos que parte desse processo de ca-
rência de mão de obra de libertos arregimentados em sistemas de traba-
lho tutelados e de disciplina férrea, similar ao da escravidão, foi também
motivado por ou surgiu como um desdobramento da movimentação,
deslocamento e migrações de escravizados, retirantes, aquilombados, e
das fugas em massa da década da abolição.

63 Jornal do Commércio, 21.10.1894.


64 Jornal do Commércio, 04.08.1894

44
Anatomias de crioulização entre gerações africanas: sugestões e
hipóteses para mais investigações
Micro comunidades camponesas negras que se espalharam na
região, migrando constantemente a procura de trabalho e terra, consti-
tuíram-se a partir de um processo complexo, do qual ainda conhecemos
pouco. Esse certamente foi o caso da antiga Fazenda do Collegio. Com a
emancipação os libertos permaneceram morando com famílias. Em agos-
to de 1894, Zetirry igualmente produziu um olhar sobre uma comunidade
camponesa negra.65 Na sua descrição, ficava a “dois terços de légua das
duas estações consecutivas de S. Gonçalo e Campos Limpos, no ramal
de S. Sebastião, território da freguesia de S. Gonçalo e do terceiro distrito
do município” Situava-se a “fazenda do Collegio, antiga propriedade dos
padres da Companhia de Jesus”, sendo que o “Sr. João Batista de Paula
Barroso e parentes seus são os atuais donos – quartos herdeiros de gera-
ção em geração”. Se havia gerações e gerações de proprietários – depois
da administração jesuítica finalizada em 1755 – certamente devia existir
gerações e gerações de escravizados e depois libertos que continuariam
morando naquela propriedade quase no alvorecer do século XX.
Para Zetirry a fazenda do Collegio era “um admirável exemplo de
resistência”. Segundo ele, o “sistema ali seguido pelos jesuítas no século
passado foi, quanto era possível, conservado; a educação religiosa sempre
de um indubitável e benéfico poder moral sobre as classes menos cultas,
da sociedade continuou a exercer o seu influxo sobre a colônia da fazenda
de Collegio”. Listaria as consequências dessa tradição e costume, destacan-
do o “grande número de ex-escravos e ex-escravas do Collegio que nunca,
depois da abolição, abandonaram os seus antigos senhores”. Zetirry ao
que parece colheu detalhes que nos leva exatamente às condições daquela
propriedade nas vésperas da Abolição. Segundo ele, ali “havia no dia 12
de Maio de 1888 - 68 escravos e 80 escravas”, sendo que “desses só 5
homens e 3 mulheres abandonaram a fazenda depois da abolição e não
voltaram mais”. E que teria acontecido com os libertos da fazenda do
Collegio? Zetirry conseguiu verificar que “todos os outros, e não foram

65 Jornal do Commércio, 13.08.1894

45
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augur that the effect of the evening’s entertainment might be of
benefit to the Canon’s spirits.
From placidity he passed to tolerance, and from tolerance to
endurance. In the course of the short play that concluded the
performance, Lucilla perceived with resigned dismay that endurance
was turning rapidly to serious vexation.
“Extravagant, vulgar, decadent nonsense,” was the Canon’s verdict,
and Lucilla’s critical faculty endorsed the trenchant adjectives that he
had selected, although she was devoid of her parent’s apparently
acute sense of disgust.
“Olga Duffle is a good actress,” she said.
“One dislikes the levity of it all so profoundly,” said the Canon. “I
believe I am the last man in the world to hold back from any cheerful,
innocent amusement at fit and proper times and seasons, but I
cannot but regret that Adrian, naturally gifted as he is, should turn his
talents to no better account than mere buffoonery.”
The part relegated to Adrian in the little play was indeed of no
exalted order, and the most subtle display of humour conceded to
him was concerned with the sudden removal of a chair behind him
and his consequent fall on to the floor.
The audience laughed, with mild amusement.
Lucilla dared not look at her father.
A spirited speech from Olga Duffle, who had shown no signs
whatever of the stage fright that had caused her fellow-actor so
much solicitude, brought down the curtain. Lucilla’s applause was
rendered vigorous by an impulse of extreme thankfulness.
She was also grateful to the Canon for the measured clapping of the
palm of one hand against the back of the other, with which he
rewarded a performance that he had certainly found to be neither
instructive nor amusing.
Adrian sought no parental congratulations, when the performers, still
in theatrical costume, came down amongst the audience, but Olga
Duffle made her way towards the Canon.
She looked, as usual, more attractive than any of the prettier girls
present, and spoke with her habitual childlike, almost imperceptible,
suggestion of lisping.
“Didn’t you think us all very silly? I’m afraid we were, but so few
people care for anything else, nowadays.”
Her glance and gesture eloquently numbered the Canon in the few,
though she did not extend the implication quite so far as to include
Lucilla.
“You are a good actress, Miss Duffle. Have you had training?”
“Oh, no, nothing to speak of,” said Olga modestly. “They did offer to
give me a year at the big Dramatic Training place, free, after I’d
acted in a charity matinée a few years ago in London. They said I
could easily play juvenile lead in any theatre in London at the end of
a year, but of course that was all nonsense. Anyway my people
naturally wouldn’t hear of it.”
“Indeed. Certainly it is a very moot point how far the possession of a
definite talent justifies embracing a life such as that of a professional
actress must needs be.”
“Yes, isn’t it?” said Olga.
Her big dark eyes were fixed on the Canon’s face, her lips parted
with the expression of absorbed interest that lent her charm as a
listener.
Lucilla was not surprised to see that the Canon’s face relaxed as he
looked down at the small up-gazing figure.
She left them, in response to an imperious glance directed upon her
from the other end of the room.
“I particularly want the old man to get to know Olga,” said Adrian with
agitation. “It’d do him all the good in the world to have some of his
ideas about the modern girl put straight, and if anyone can do it, she
can. Wasn’t it priceless of her to make straight for him like that?”
“Perhaps she likes to talk to a distinguished man.”
“My dear old thing, don’t be absurd. Why, Olga has half London at
her feet.”
Lucilla felt unable to make any display of enthusiasm at the
announcement, although she saw no reason to doubt that a
substratum of fact underlay Adrian’s hyperbole.
“I suppose Father thought the whole show utter tripe?”
“He didn’t say so,” Lucilla observed drily.
“Well, for goodness sake get him away as soon as Olga’s had her
talk with him. The Admastons are determined to turn the whole thing
into a glorious rag, and it’ll go on till all hours. Father would be
wretched, and besides I should have him on my mind the whole
time. I daresay I shan’t have many more opportunities of enjoying
myself, so I may as well make the most of this,” said Adrian in a
voice charged with meaning, that Lucilla understood to be an
allusion to his recent ecclesiastical ambitions.
When she found herself beside her father again, he was in
conversation with a short, fat, dark man whom he made known to his
daughter with a somewhat abstracted air.
“Mr. Duffle, Lucilla.”
She was rather amused at the ease with which Olga’s parentage
could be traced, although in her, a retroussé nose replaced the wide
and upturned pug of her father, and her dark, intelligent gaze was an
unmistakably improved edition of his shrewd black eyes. From both
faces shone the same ardent, restless, and essentially animal,
vitality.
Mr. Duffle, however, had none of Olga’s claims to social charms and
talents. Lucilla knew him to be a successful building contractor, who
had amassed a fortune during the war, and decided that he looked
the part.
“I’ll come along one morning then, Canon, and have a little chat with
you,” Mr. Duffle was declaring with a breezy assurance that could
hardly have been derived from the Canon’s expression.
“You’re kept pretty hard at it, I daresay?”
“The man who wants me is the man I want,” quoted the Canon, with
his grave smile.
“Capital. I’ll blow along then, and give you a call. My big car is in
London, but we’ve got a little Daimler down here that does very well
for country lanes. My daughter, of course, runs her own little two-
seater. These young people, nowadays, there’s no end to what they
expect. Not that I grudge Olga anything in reason, you understand.
She’s our only one, and naturally her mother and I think the world of
her.”
A very simple pride beamed in his face as he spoke of Olga, and
Lucilla congratulated him upon her acting.
“She’s pretty good, isn’t she? I believe she could take her place
amongst professionals any day, so she tells me. But of course we
shouldn’t hear of anything like that for her. In fact, her mother and I
look very high for our little girl, very high indeed, I may say, after all
that Nature’s done for her, and the advantages we’ve given her as
well.”
He laughed heartily, and then leaning confidentially towards Lucilla
he said in a semi-whisper:
“Whoever gets our little Olga, young lady, will be a very lucky fellow.
There’ll be a little bit of—” he tapped his forehead knowingly “and a
little bit of—” the tap was repeated, against his coat pocket this time.
Lucilla required no very acute powers of intuition to refer these
demonstrations to her brother’s intention.
She wondered whether the Canon had made a similar deduction.
He was silent during their long drive home, but it was the silence of
thoughtfulness rather than that of depression. The Canon’s intimates
could generally interpret without difficulty the nature of his silences.
On the morning following he called Lucilla into the study.
“I had no word with Adrian last night,” he said wistfully. “I saw you
talking to him, my dear. Did he tell you what day he is coming home
again?”
“No, Father.”
“I confess that I am perturbed. Are these new friends of his
gentlefolk, are they church people, are they even Christians?” said
the Canon, walking up and down. “If only the boy would be more
unreserved with me! One is so terribly anxious.”
“I don’t think he wants to be reserved. He really has no serious
suggestion to offer, as to the future.”
“My poor lad! He is not sufficiently in earnest. I have blinded myself
to it long enough. His early piety and simplicity were so beautiful that
perhaps I dwelt upon them as tokens of future growth more than I
should have done. But there was a levity of tone about these
intimates of his that displeased me greatly. It must cease, Lucilla—
this intercourse must cease.”
Lucilla dreaded few things more than such resolutions, from which
she knew that her father, at whatever cost to himself or to anybody
else, never swerved.
“The Admastons are neighbours,” she pointed out.
“All the more reason for Adrian to be content to meet them in the
ordinary course of events, without treating their house as an hotel.
But there is a further attraction, Lucilla, I am convinced of it.”
The Canon dropped his voice to impart his piece of penetration.
“That little Miss Duffle is undoubtedly attractive, but can the boy have
the incredible folly to be paying his addresses to her?”
It did not seem to Lucilla that any such formal term could possibly be
applied to Adrian’s highly modern methods of displaying his
admiration for Olga, and she informed her father so with decision.
“He must at all events be aware that he is in no position to render
any young lady conspicuous by his attentions,” said the Canon. “I am
displeased with Adrian, Lucilla.”
Canon Morchard was not alone in his displeasure. Two days after
the theatricals, Olga Duffle’s father appeared at St. Gwenllian, and
was shown into the study.
The Canon greeted him, his habitual rather stately courtesy in strong
contrast to his visitor’s bluff curtness of manner.
“Sit you down, my dear sir.”
The Canon took his own place on the revolving chair before the
writing-table, and the tips of his fingers were lightly joined together
as he bent his gaze, benignant, and yet serious, upon the little
building contractor.
“You’ve got a nice little old place here. Needs a lot of seeing to,
though, I daresay. I see you haven’t the electric light.”
The Canon glanced round him as though he had hardly noticed, as
indeed he had not, the absence of this modern advantage.
“It wouldn’t cost you more than a couple of hundred to put it in,” said
Mr. Duffle negligently.
The Canon was not in the least interested in the problematical
expense to be thus incurred, but he replied gently that perhaps one
of these days his successor might wish to improve St. Gwenllian,
and be in a position to do so.
“Ah,” said Mr. Duffle. “That brings me to my point, in a roundabout
sort of way. Your young man, Canon, has no particular inheritance to
look forward to, if I understand rightly?”
“My young man?”
“Your boy Adrian. Not even your eldest son, is he?”
“Adrian is the youngest of my five children,” said the Canon with
peculiar distinctness. “I have two sons and three daughters. May I
enquire the reason of this interest in my family?”
“No offense, I hope, Canon. I thought you’d have guessed the
reason fast enough—my girl Olga. Now mind you, I know very well
that boys will be boys, and girls girls, for the matter of that. I’m not
even saying that the little monkey hasn’t led him on a bit—she leads
’em all on, come to that! But Master Adrian has been talking of an
engagement, it seems, and that won’t do at all, you know. So I
thought you and me, Canon——”
“Stop!” The Canon’s face was rigid. “Am I to understand that your
daughter has reason to complain that my son presses undesired
attentions upon her, or causes their names to be coupled together in
a manner displeasing to her?”
The builder’s stare was one of honest bewilderment.
“Coupled together!” he repeated derisively. “Why, the lad follows her
about like a little dog. I should think old Matthew Admaston is as
easy going as they make ’em, but even he thought it a bit thick to
have your young moon-calf, if you’ll excuse the expression, on his
doorstep morning, noon and night, while my girl was in the house, till
they had to ask him to stay, to save the front-door bell coming off in
his hand.”
Mr. Duffle’s humourous extravagance of imagery awoke no response
in Canon Morchard.
“My son’s impertinent folly shall be put a stop to immediately,” he
said, through closely compressed lips.
“Bless me! there’s nothing that needs a rumpus made about it, you
understand. Only when it comes to prating about being engaged,
and promising to marry him in goodness knows how many years,
and goodness knows what on—why, then it’s time us older folk
stepped in, I think, and I’m sure you’ll agree with me.”
“Do I understand that my son—without reference to me, I may add—
has asked Miss Duffle to do him the honour of becoming his wife?”
Mr. Duffle stared at the Canon blankly.
“Ill though he seems to have behaved, you will hardly expect me to
accept, on his behalf, an entire rejection of his suit, without reference
to the young lady herself.”
A resounding blow from Mr. Duffle’s open palm onto his knee startled
the Canon and made him jump in his chair.
“Good God!” roared the builder, causing Canon Morchard to wince a
second time, “is this talk out of a novel? How in the name of all that’s
reasonable can the boy marry without a profession or an income? I’ll
do him the justice to say that I’ve never thought him a fortune hunter.
(He’s not got the guts for that, if you’ll excuse me being so plain-
spoken.) He’s besotted about the girl, and not the first one either,
though I do say it myself. But my Olga is our only child, and will get
every penny I have to leave, and the fact of the matter is that she’ll
be a rich woman one of these days, in a manner of speaking.
Therefore, Canon, you’ll understand me when I say that Olga can
look high—very high, she can look.”
The Canon’s countenance did, indeed, show the most complete
comprehension of the case so stated. His face, in its stern pallor,
became more cameo-like than ever.
“Sir, do you accuse my son of trifling, of the unutterable meanness of
endeavouring to engage a young lady’s affections without any
reasonable prospect of asking her in marriage like an honourable
man?”
“Bless me, Canon, I don’t accuse the young fellow of anything,
except of being a bit of an ass,” said the builder. “I daresay it’s been
six of one and half a dozen of the other. He’s a nice-looking boy, and
all this play-acting has thrown them together, like; but that’s over
now, and Olga comes back to London with us next week. But I
thought I’d throw you a hint,” said Mr. Duffle delicately, “so that
there’s no nonsense about following us to town, or anything of that
sort. Her mother’s going to speak to Olga about it, too. Bless me, it’s
not the first time we’ve had to nip a little affair of this sort in the bud.
The fellows are round our little girl like flies round a honey-pot. We
give her a loose rein, too, in a manner of speaking, but as the wife
pointed out to me last night, it only keeps off better chances if a girl
is always seen about with lads who don’t mean business.”
The Canon groaned deeply, and Mr. Duffle, fearing himself
misunderstood, hastily interposed:
“Don’t run away with the idea that I’ve anything against the boy, now,
Canon. I’m sure if he was only a year or two older, in a good job, and
with a little something to look to later on, I’d be only too glad of the
connection. But as things are, I’m sure as a family man yourself you
see my point.”
He looked almost pleadingly at the Canon as he spoke.
“You did perfectly right to come to me, Mr. Duffle; you did perfectly
right. Unspeakably painful though this conversation has been to me,
I fully recognize the necessity for it.”
If Mr. Duffle still looked perplexed, he also looked relieved.
“That’s right, Canon. I felt you and me would understand one
another. After all, we’ve been young ourselves, haven’t we, and I
daresay we’ve chased a pretty pair of ankles or said more than we
meant on a moonlight night, both of us, once upon a time.”
So far did Canon Morchard appear to be from endorsing this view of
a joint past that his visitor added an extenuation.
“Of course, before you turned parson, naturally, I mean. I know you
take your job seriously, if you’ll excuse me passing a personal
remark, and that’s not more than’s needed nowadays. There’s no
idea of young Adrian going in for the clerical line, I suppose?”
“What I have heard today would be enough to convince me that it is
out of the question,” said the Canon bitterly. “But my son has evinced
no such desire.”
“H’m. There was some nonsense talked amongst the young people
about a fat living at Stear being ready for him if he chose to step into
it. I daresay there was nothing in it but a leg-pull, as they say. In any
case, my girl wouldn’t look at a country parson. No offence to you,
Canon, but it’s best to have these things out in plain English.”
“Enough,” said the Canon with decision. “You may rest assured that
my son will cease this insensate persecution of——”
“Excuse me interrupting, but why make a mountain out of a molehill?
There’s been no persecution or any of that talk out of books, in the
case. Why, my Olga can’t help making eyes at a good-looking lad,
and letting him squeeze her hand every now and then.”
The Canon gave utterance, irrepressibly, to yet another groan.
Mr. Duffle looked at him with compassion.
“Why make a mountain out of a molehill, as I said before?” he
repeated. “There’s been no harm done, except maybe a little
gossiping among the Admaston lot, and if you tip the wink to your
lad, and mother and I trot Olga back to London again, we needn’t
hear any more of it. We’re old-fashioned people, and brought up the
child old-fashioned, and she’s not one of these modern young
women who can’t live at home. I give her the best of everything, and
a pretty long rope, but she knows that as long as she’s living under
my roof and spending my money she’s got to obey me and her
mother when we do give an order.”
The builder’s face, momentarily dogged, relaxed again and he
laughed jovially.
“Though I’m not saying the little puss can’t get most things out of us
by coaxing! But we’re set on a good marriage for her, that I tell you
straight.”
“There is only one foundation for the sacrament of marriage,” said
the Canon sombrely, “and that is mutual love, trust and esteem.”
“Quite, quite; the wife always takes that line herself. ‘When the heart
is given, let the hand follow,’ she always says, and Olga knows well
enough that she’ll have a free choice, within reason. But love in a
cottage isn’t her style, and things being as they are, there’s no
reason, as I said before, why she shouldn’t look high. She’s a
sensible girl, too, and if there is a bit of the flirt about her, she doesn’t
lose her head. I will say that for her.”
“I wish that I could say the same of my son,” bitterly rejoined the
Canon.
“Well, well, don’t be too hard on the lad. Human nature is human
nature all the world over, is what I always say. All the parsons in
Christendom can’t alter that, if you’ll excuse the saying. It’s natural
enough your son should lose his head over a pretty girl like my
Olga,” said Miss Duffle’s parent indulgently. “All I mean is, that it
must stop there, and no nonsense about being engaged, or anything
of that kind.”
“Do these unhappy young people consider themselves bound to one
another, as far as you know?”
“Bless me, Canon, they’re not unhappy. At least, my Olga certainly
isn’t, and if your lad throws off a few heroics, he’ll soon get over it.
Why, I remember threatening to blow out my brains—as I chose to
call them—when I was no older than he is, and all for the sake of a
lady ten years older than myself, and married and the mother of
three, into the bargain!”
Mr. Duffle was moved to hearty laughter at this reminiscence,
although it failed signally to produce the same exhilarating effect
upon Canon Morchard.
Perhaps in consequence of this, his mirth died away spasmodically,
with a rather apologetic effect.
“Well, well, Canon, take a tip from me, if I may suggest such a thing,
and don’t take this business too seriously. He’ll be head over ears in
love with somebody else before you can look round, and it’ll all be to
do over again.”
Before this luminous vista of future amatory escapades, the builder
appeared to feel that the interview had better be brought to its
conclusion, and he rose.
An evident desire to console and reassure his host possessed him.
“Get the young fellow a job of work, if I may advise. It’s wonderful
how it steadies them down. He’ll have no time to run after the
petticoats when he’s tied by the leg to an office, or roughing it in one
of the Colonies.”
“The choice of a career lies in my son’s own hands,” said the Canon
stiffly. “But you may rest assured, Mr. Duffle, that he will be allowed
no further occasion for misusing his time and abusing other people’s
hospitality as he appears to have been doing. I am obliged to you,
painful though this conversation has been to us both, for treating me
with so much frankness in the matter.”
“Don’t mention it,” said Mr. Duffle.
The Canon bowed slightly and escorted his visitor to the door.
The Daimler car was in waiting, but the builder paused with one foot
on the step.
“I’ll tell you one thing, Canon,” he remarked confidentially.
The Canon, with extreme reluctance in his demeanour, signified
attention.
“If you should think of having that little improvement made to the
place that I suggested—you know, the electric light put in—I can tell
you the very people to go to—Blapton & Co. They’ve done a lot of
work for our firm, and they’ll do it as reasonable as you can hope for.
Don’t hesitate to mention my name.”
He nodded, and got into the car.
The Canon stood upon the front doorstep, his face pale and
furrowed, his lips compressed.
“Stop!” shouted Mr. Duffle, suddenly thrusting his head from the
window of the slowly moving car.
The Daimler stopped.
Mr. Duffle descended from it nimbly and once more approached the
Canon.
He looked, for the first time, heated and confused.
“It slipped my memory that I wanted to give you this trifle. Perhaps
you’ll see to some of those poor fellows who are out of work through
no fault of their own, having the handling of it for the wives and
kiddies. I’ve been lucky myself, and I never like to leave a place
without what I may call some sort of thanksgiving. Not a word,
please. Ta-ta.”
The Daimler made another sortie, and the Canon was left, still
standing motionless on the doorstep, with the builder’s cheque for
twenty-five pounds in his hand.

(iii)
“Dear Lucilla,
“I think you’d better not expect me till you see me, if that’ll
be all right. I may be going up to London for a day or two
when the party breaks up here tomorrow, as I really must
see about a job of some kind. I’m sure Father will approve
of this, so mind you tell him it’s the reason. I hope he
wasn’t frightfully sick at the way we all played the fool the
night of the show, but really it was his own fault for
coming, and if he didn’t like it, he must just do the other
thing.
“Cheerio.
“Yours,
“Adrian.”
“My Dear Adrian,
“It would be better if you could come back here before
deciding to go to London. Father is writing to you, and you
will probably see from his letter that he particularly wants
you at home. I hope you are not in trouble, but Father is
certainly upset about something, and you will only make
matters worse by going off in a hurry. Besides, I think he
would quite likely follow you.
“Your affectionate sister,
“Lucilla Morchard.”
“Dear Lucilla,
“If you hear of me doing something desperate, you may
tell Father that he has only himself to thank! I now know
what he and old Duffle have been up to, between them,
and I may tell you that I do not intend to put up with this
sort of thing any longer. Father doesn’t seem to realize
that I am a man, and in grim earnest over some things,
and he and old Duffle have now utterly scotched my
chances of happiness for life, although I daresay without
realizing what they were doing. Olga is the only girl I shall
ever love, and if I have lost her I do not care what I do or
what becomes of me, and you may tell Father so. If this is
what religion leads to, you can also tell him that I am
utterly off it for life. That is what they have done, by their
interference with my affairs, because I am almost sure
Olga would at least have become engaged to me, if she
had been let alone, and not bullied by her father and
mother, and threatened with poverty if she married me. As
you know, it needn’t have been anything of the sort, if my
plans had worked out all right, and we could have had
Stear, but I am completely off the Church, in any shape or
form, so that is what Father has done, whether he knows it
or not!!!
“You will, I suppose, be upset at this letter being so bitter
in tone, but I may say that my faith in human nature is
utterly shattered for good and all, and this has been done
by my own father!! I am coming home on Monday and not
before, so it’s no use father dictating to me.
“Yours,
“Adrian.”
“My Dearest Adrian,
“I don’t understand why Lucilla tells me that you are
returning home on Monday, when you know it is my wish,
distinctly expressed in my letter to you two days ago, that
you should be here on Saturday, so that we may spend
the Sunday together. Unless you have a very valid reason
for disregarding my wishes, I must insist, for your own
sake, upon your complying with them. I do so want you to
be considerate, quite apart from the question of
dutifulness—for instance, it is quite a little thing, but you
don’t say what time you are arriving here, and yet you
surely know that this makes a difference with regard to
questions of meals, etc., in a small household such as
ours. It is only want of thought, dear lad, but do try and
correct this fault. I have so often had to reprove myself for
the like small negligences that it makes me anxious to see
the same tendency in you. This is not a lecture, my dear
boy, but only a reminder, from one who has had to be both
mother and father to you.
“I have other, and very much more serious, matters to talk
over with you when we meet, but all shall be done in the
spirit of love and confidence, I do trust, and if I am obliged
to inflict pain upon you, you must remember that it is
multiplied ten-fold upon my own head.
“I shall expect a line, sent either to myself or to Lucilla,
announcing the hour of your arrival on Saturday. God by
you, dearest of lads, until we meet.
“Your devoted
“Father.”
“Dear Lucilla,
“On second thoughts, I shall come home on Saturday, in
time for dinner. Most likely I shall go straight off to London
on Monday morning, but you needn’t say anything to
Father about this. If you can, persuade him to have up the
port on Sunday night.
“Yours,
“Adrian.”
“Dear lad! He is all anxiety to do right, at bottom,” said the Canon
tenderly to Lucilla, when a censored version of this communication
had been passed on to him. “You see how readily he submits to
returning on Saturday, in order to please me.”
If Lucilla thought this act of submission inspired by fear, rather than
by a desire to please, she did not say so.
The Canon had said nothing to her of his interview with Mr. Duffle,
and made only one remark which might be held to refer to his visitor:
“We are all of us apt to set a false value on appearances, I suspect.
Aye, my daughters, in spite of his ‘forty years in the wilderness,’ it is
so with your father. Trivial vulgarities, or mere superficial coarseness,
have blinded one time and again, till some sudden, beautiful impulse
or flash of generous delicacy comes to rebuke one. Well, well—each
mistake can be used as a rung of the ladder. Always remember that.”
That trivial vulgarities and superficial coarseness were
characteristics of Mr. Duffle was undeniable, but Lucilla deduced that
these had been redeemed in the manner suggested, since the
builder’s prolonged visit to her father had left him, though grave,
singularly calm. He had, indeed, summoned Adrian to St. Gwenllian,
but his manner showed none of the peculiar restrained suffering that
was always to be discerned when the Canon felt one of his children
to be in serious fault.
“It is more than time that Adrian found his vocation,” said the Canon.
“I have been to blame in allowing him to drift, but it has been an
unutterable joy to have him with us, after these terrible war years.
However, there is no further excuse for delay. He and I must have a
long talk.”
Lucilla could surmise only too well the effect of a long talk upon
Adrian, if his frame of mind might be judged correctly from his
impassioned letter to her.
As usual, however, she said nothing.
The Canon’s mood of mellow forbearance continued to wax as the
day went on, and he met his favourite son with a benign
affectionateness that contrasted strangely with Adrian’s dramatically-
restrained demeanour.
Flora, as a rule utterly incurious, asked Lucilla what was the matter.
“I don’t quite know. Something to do with Olga Duffle, I imagine.
Probably Adrian has proposed to her, or something foolish of the
kind, and the Duffles want it stopped.”
“Has he said anything more about his idea of taking Orders?”
“I hope not,” said Lucilla rather grimly.
She preferred not to imagine the Canon’s probable reception of an
ambition thus inspired.
The long talk projected by Canon Morchard was impracticable on a
Sunday, always his busiest day, until evening.
As the Canon rose from the late, and scrupulously cold, evening
meal, he said:
“Daughters, you will not sit up beyond your usual hour. Adrian, my
dear—come.”
The door of the study shut, and Lucilla and Flora remained in the
drawing-room.
Lucilla occupied herself with note-books and works of reference, and
Flora, in the exquisite copper-plate handwriting that the Canon had
insisted upon for all his children, in close imitation of his own, wrote
out an abstract of her father’s sermon, as she had done almost every
Sunday evening ever since she could remember.
The silence was unbroken till nearly an hour later, when Lucilla
observed:
“Do you know, Flossie, that Father’s book is very nearly finished?
There are only two more chapters to revise.”
“‘Leonidas of Alexandria,’” said Flora thoughtfully.
The subject of the Canon’s exhaustive researches and patient
compilations was known to the household.
“He’ll publish it, of course?”
“He hopes to. But Owen told me that there isn’t a very great demand
for that kind of work, nowadays.”
Flora looked inquiringly at her sister.
“I hope Father isn’t going to be disappointed,” she said, half
interrogatively.
“I’m very much afraid that he is.”
On this encouraging supposition of Miss Morchard’s, the
conversation ended.
In accordance with their father’s desire, both sisters had gone
upstairs before the conference in the study came to an end.
There came a knock at Lucilla’s door.
She opened it.
“Come in, Adrian.”
“It’s all up,” said Adrian, in the eloquent idiom of his generation, and
made a melodramatic gesture of desperation.
Lucilla closed the door and sat down, seeming undisturbed by so
cataclysmic an announcement of finality.
“I’m off on my own, after this. Father has utterly mucked up my entire
life, as I think I told you in my letter, and he can’t see what he has
done!”
Lucilla wondered whether Adrian had spent two and a half hours in
endeavouring to open his parent’s eyes to his own work of
destruction.
“Would you mind telling me exactly what has happened?”
Adrian embarked upon a tone of gloomy narrative.
“Well, I don’t know whether you had any idea that I am—was—well,
frightfully hard hit by that girl Olga. Not just thinking her pretty and
clever, and all that sort of thing, you know, though of course she was
—is, I mean. But simply knowing that she was the one and only
person I should ever care for. Of course, I know now that I was
mistaken in her, to a certain extent, and I can tell you, Lucilla, that it’s
very hard on a man to be as thoroughly disillusioned as I’ve been.
It’s enough to shatter one’s faith in women for life.”
“But what did Father do?” said Lucilla, as her brother seemed
inclined to lose himself in the contemplation of his own future
mysogyny.
“What did he do?” echoed Adrian bitterly. “He and old Duffle had the
—the audacity to meet together and discuss my private affairs, and
take upon themselves to decide that anything between me and Olga
ought to be put an end to. I must say, I thought that kind of thing had
gone out with the Middle Ages, when people walled up their
daughters alive, and all that kind of tosh. And how Olga, of all
people, put up with it I can’t imagine; but they seemed to have
pitched some yarn about my not being able to afford to marry, and
frightened her with the idea of my being after her money, I suppose.”
“But Adrian, had you asked her to marry you?”
“No, of course not. But I did think we might have been engaged.
Then I wouldn’t have had to put up with seeing a lot of other fellows
after her,” said Adrian naïvely.
“And did you explain that to Father?” Lucilla inquired, not without a
certain dismay in picturing the Canon’s reception of these strange
ideals.
“More or less; but you know what he is. He always does most of the
talking himself. I can quite understand why we were so frightened of
him as kids, you know. He seems to work himself up about things,
and then he always has such a frightfully high-faluting point of view.
We might really have been talking at cross-purposes, half the time.”
“I can quite believe it.”
“Of course, I’m not exactly afraid of him now, but it does make it a bit
difficult to say what’s in one’s mind.”
“That’s just the pity of it, Adrian. He always says that he does so
wish you were more unreserved with him. He does very much want
you to say what’s in your mind.”
“But he wouldn’t like it if I did—in fact, he probably wouldn’t
understand it.”
Few things could be more incontrovertible.
“The fact is that father has quite a wrong idea of me. He seems to
expect me to have all the notions that he had, when he was a young
high-brow at Oxford, about ninety years ago. As I told him, things
have gone ahead a bit since then.”
Lucilla, for her consolation, reflected that few people are capable of
distinguishing accurately between what they actually say, and what
they subsequently wish themselves to have said, when reporting a
conversation. It was highly probable that Adrian had been a good
deal less eloquent than he represented himself to have been.
“You didn’t say anything, did you, about your idea of taking Orders?”
“No,” said Adrian rather curtly. “I did begin something about it, just to
show that I hadn’t been the unpractical ass he seemed to think I
was, but he went off at the deep end almost directly. I said
something about going into the Church, you see, and he didn’t wait
for me to finish, but started away about our all being ‘in the Church’
from the day of our baptism, and so on—splitting hairs, I call it. As if
everyone didn’t know what is generally meant by going into the
Church.”
“Well, in this case, I really hope he didn’t know. Flossie and I always
told you that Father would be very much shocked at your way of
looking at the priesthood.”
“Anyhow, it’s all off now,” said Adrian gloomily. “There wouldn’t be
the slightest object in it, and besides I’m thoroughly off religion at the
moment, as I think I told you. No, I shall go to London.”
Lucilla looked further inquiry.
“No, I’m not going after Olga; you can be quite easy about that. In
fact, I may say I don’t ever want to set eyes on her again, after the
way she’s let me down. No, I’m going to try journalism, or something
like that. Anyhow, I mean to be a free lance for a bit.”
The first note of real resolution that Lucilla had heard there, crept
into Adrian’s young voice.
“Father really can’t go on running the show for me like this. It’s me
that’s got to decide what to do with my life, and I’m going to get a bit
of experience on my own. I know I had six months in France, but that
isn’t going to be the whole of my life. In fact, Lucilla, I’ve decided,
though I’m sorry in a way, to say such a thing, that Father has got to
be taught a lesson, and it’s me that’s going to do the teaching.”
Iron firmness, denoted by a closely compressed mouth and a rather
defiant eye fixed glassily upon Lucilla’s, characterized Adrian’s

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