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Impressões de Michel Foucault Roberto

Machado
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Roberto Machado

Roberto Machado não foi apenas o "amigo


brasileiro" de Foucault, porém um de seus mais
agudos intérpretes, além de responsável por
sua recepção entre nós. Neste livro, através de
uma narrativa saborosa, Roberto conduz o
leitor à atmosfera parisiense que rodeava
Foucault, povoada de cineastas, escritores,
polêmicas e anedotas. Pelas lentes desse
filósofo nascido no Recife e radicado no Rio,
apreendemos fragmentos da vida pública e
privada de um dos mais importantes
pensadores do século xx. O que surge daí
não é um monumento, mas uma aventura
intelectual e vital, graças à capacidade que
Foucault possuía de se deslocar, se desprender
de si, mudar, surpreender. Impressões de
Michel Foucault não é só o retrato de um
pensador europeu através do olhar de um
admirador, interlocutor e amigo; é o testemunho
vivo do encontro entre nossos trópicos nem
sempre tristes e a efervescência intelectual de
uma geração radical de pensadores franceses
que marcou definitivamente nossa própria
maneira de viver e de pensar. [Peter Pál Pelbart]
IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT
© n-1 edições, 2017
Roberto Machado, 2017
Roberto Machado

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito


brasileiro, a n-i edições não segue necessariamente MICHEL
IMPRESSÕES DE

FOUCAULT
as convenções das instituições normativas, pois
considera a edição um trabalho de criação que
deve interagir com a pluralidade de linguagens e a
especificidade de cada obra publicada.

COORDENAÇÃO EDITORIAL Peter Pál Pelbart e


Ricardo Muniz Fernandes
ASSISTENTE EDITORIAL lsabela Sanches
PROJETO GRÁFICO Érico Peretta

Foto capa: Michel Foucault no Hospital André Luiz,


Belo Horizonte, 1973. Acervo José de Anchieta Corrêa

Foram feitos todos os esforços para encontrar os


herdeiros ou detentores dos direitos autorais das
imagens presentes neste livro. Por favor entre em
contato para corrigirmos qualquer omissão em
futuras edições.

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos,


para uso privado ou coletivo, em qualquer meio
impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que
citada a fonte. Se for necessária a reprodução na
íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

n-1 edições
São Paulo I Junho, 2017
n-iedicoes.org
Dados Internacionais de Caralogaç-ão na Publicação (C1P/ -
M43.311
chaclo, Roberto, 1242-
. mpressões de Michel Fot{cault / Roberto Machado
ão Paulo: n-i edições, 2017

Memórias autobiográficas 3. Filosofia. 1. Machado, Roberto.


I.I. Título.

CDD: 194
CDU 1 (44)

Índices para catálogo sistemático:


1. Filosofia francesa 194
2. Filosofia francesa 1(+4)
Na PUC-RJ, o auditório estava superlotado. A algazarra era
grande. Uma multidão se espremia para tentar entrar na sala.
Foucault — magro, forte, elegante, sorriso teatral, olhos que
denunciavam a inteligência — chegava com o organizador
das conferências pelo corredor por onde quase não se podia
passar. Nesse momento, um grupo de alunos, muitos dos
quais tinham participado de meu seminário sobre As pa-
lavras e as coisas, protestou, dizendo que queria entrar, mas
não tinha como pagar. "No money", gritavam os estudantes;
"No place", replicava o organizador. Foucault se ofereceu para
pagar por eles. Mas não havia lugar. Prometeu aos estudan-
tes fazer uma palestra extra, e entrou no ambiente solene do
grande auditório, com toalha e flores na mesa e a presença
do padre vice-reitor. Mas todos estavam vestidos descontrai-
damente, de calça e camisa, alguns até mesmo de sandália de
couro. A não ser Foucault, de terno e gravata.
Então, ao começar a falar, fez uma declaração bem carac-
terística de sua elegância e de seu estilo brincalhão: "Agora
que vocês já sabem que tenho uma gravata, posso tirá-la!"
E começou por afirmar que apresentaria hipóteses possi-
velmente inexatas, falsas, incorretas, para as quais pedia
nossa indulgência e nossa maldade em forma de perguntas
e objeções para progredirmos juntos na compreensão dos
temas que abordaria. Pode-se ver nessas palavras a postura
estratégica de um grande orador em presença de uma plateia
possivelmente inóspita. Mesmo assim, ao ressaltar o caráter
hipotético de seu discurso e apelar para um trabalho co-
mum, essa primeira frase me surpreendeu e me preparou
para as novidades que viriam.
13 UM LIVRO NO INÍCIO DO CAMINHO

33 COBRA QUE PERDE A PELE

57 UMA ÉPOCA, DOIS ESTILOS

77 À SOMBRA DE UM GIGANTE

95 UM PENSADOR DESAPEGADO

113 TODA CORAGEM É FÍSICA

137 CENAS DE UM APARTAMENTO

153 O REFÚGIO DO CINEMA

167 AMIGOS SEPARÁVEIS

185 PROXIMIDADE E DISTÂNCIA

199 EM BUSCA DO DESCONHECIDO

219 NA TERRA DO SOL

237 AGRADECIMENTOS

239 SOBRE O AUTOR


Um telefonema de Chaim Katz me comunica a morte de Mi-
chel Foucault. Ficamos mudos ao telefone, perplexos diante da
notícia inesperada. Estou tonto. Sem chão. Uma morte é sem-
pre cruel. Uma morte como essa, de uma pessoa ainda jovem,
no ápice da criatividade, é revoltante.
Penso em sua importância para mim, por seus livros, seus
artigos, suas aulas, suas conferências, mas também por seu com-
portamento, suas atitudes, seu afeto. Sua obra mudou minha
vida. Desde que comecei a estudá-la, passei a pensar diferente. E
um livro foi determinante para que isso acontecesse. Ao ler pela
primeira vez As palavras e as coisas, quando procurava o assunto
para um curso de epistemologia das ciências humanas na PUC
do Rio de Janeiro, admirei a beleza e o rigor da argumentação,
mas achei absurda a análise histórico-filosófica das ciências do
homem na modernidade. Alguma coisa, no entanto, me impe-
liu a insistir na leitura — e descobri um mundo novo.
Pouco antes, eu estudava na Universidade Católica de Lou-
vain, na Bélgica, reputada como um importante centro de fe-
nomenologia. Lá estavam os Arquivos Husserl, formados com
os papéis do filósofo judeu salvos do regime nazista em 1939
por Van Breda, franciscano belga professor da Universidade. E
filósofos importantes, como Merleau-Ponty, Derrida, Ricoeur,
para citar apenas os franceses, pesquisaram lá. Meus professores
preferidos, pela maneira como vinculavam seu pensamento filo-
sófico às ciências, às artes, à política — Ladrière, De Waelhens,
Taminiaux —, tinham sido formados pela fenomenologia, e
isso me levou a pensar que a atualidade filosófica passava por analisavam os termos estruturais — dedução, indução, hipótese,
ela. Husserl era o início de tudo, e até mesmo Heidegger, que lei, explicação, teoria —, que organizam a linguagem científica
tomou um caminho tão diferente, era seu herdeiro. e expressam as operações das ciências, mas não são investigados
Graças a Jean Ladrière, interessei-me por filosofia das ciên- por elas; são justamente objeto da metodologia.
cias. Ladrière foi o primeiro professor em quem senti que toda Essa experiência acadêmica durou pouco. Senti logo que, no
grande filosofia leva em consideração a conjuntura política e período mais repressivo da ditadura militar brasileira — os anos
teórica na qual se elabora. Sua reflexão, de base fenomenoló- de chumbo —, a lógica das ciências era utilizada, em disciplinas
gica, embora atenta à filosofia social, se dava principalmente no como "metodologia científica", para tentar invalidar os estudos
campo da filosofia da física e da matemática. Isso me estimulou críticos realizados em sociologia e história, principalmente na
a harmonizar meus interesses pela fenomenologia e pela ativi- Universidade de São Paulo. No fundo, a cientificidade desses sa-
dade científica e a escrever, sob sua orientação, uma dissertação beres era questionada pela lógica das ciências por não operarem
de mestrado sobre Husserl e a fundação da ciência, baseada so- segundo critérios definidos por uma reflexão que privilegia a
bretudo no livro Lógica formal e transcendental. física matemática e pensa a racionalidade científica a partir dela.
Em seguida, saí da Bélgica para a Alemanha, onde vivi em Na época, eu via interesse num curso de metodologia que
Heidelberg o ano de 1969, quando o movimento universitário avaliasse a ciência discutindo critérios de cientificidade, sobre-
fervia em decorrência dos acontecimentos de Maio de 68, e a tudo se refletisse sobre a própria concepção filosófica proposta.
teoria crítica da Escola de Frankfurt inspirava muitos estudan- Mas não me agradava que nossas aulas fossem reduzidas, acri-
tes revolucionários. Deslumbrado com a proximidade entre ticamente, à resolução de problemas de lógica, como de fato
prática política e pensamento filosófico com que me deparei, acontecia, com o objetivo de preparar os alunos do ciclo básico
perdi o interesse não pela ciência, mas pela fenomenologia. Ela de toda a universidade para provas mensais elaboradas por ou-
não deixou nenhum vestígio no que escrevi depois. tros professores. Além disso, era doloroso sentir, nessa minha
Ao começar a carreira universitária como professor da Uni- primeira experiência letiva, que os alunos detestavam as aulas de
versidade Federal da Paraíba, em 197o, dediquei-me a estudar metodologia, contra as quais foram até mesmo escritos artigos
o neopositivismo e sua lógica da ciência por causa do curso de em jornais de João Pessoa.
metodologia científica. A disciplina estava sendo introduzida Mas, acima de tudo, a situação na Universidade Federal da
nos ciclos básicos das universidades brasileiras pela reforma im- Paraíba, assim como em quase todas as instituições acadêmicas
plantada pela ditadura militar em novembro de 1968. Quando brasileiras, era insuportável. Tínhamos um general como reitor,
cheguei, o programa do curso já havia sido feito, e minhas aulas uma diretora do Centro de Ciências Humanas e Sociais indi-
e as de meus colegas — preparadas por uma pequena equipe cada pelo Exército, professores alinhados com o governo e por-
de professores — consistiam numa reflexão sobre a atividade teiros da polícia, como se dizia à boca pequena. Impossível, por
científica caracterizada como método. Mais precisamente, exemplo, esquecer o primeiro dia em que fui à Universidade.

14 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO Is


Ao parar numa banca de jornal para comprar o Pasquim, ouvi foi aprovado seu Documento Base e eleito seu Comitê Nacio-
do professor a meu lado: "Você vai entrar com isso na Facul- nal, coordenado por Herbert de Souza, Betinho. Composta de
dade ?" Sabia que o tabloide alternativo — do qual participavam cristãos e não cristãos, a AP era orientada para a transformação
Jaguar, Ziraldo, Millôr e outros — fazia uma oposição sutil e da sociedade brasileira rumo a um socialismo democrático, e
bem-humorada ao regime militar. Por isso eu o lia. Mas aquele teve penetração sobretudo no movimento estudantil, elegendo
choque só antecipou o que viria depois. alguns presidentes da UNE, a União Nacional dos Estudantes.
Em 1964, um ano antes de sair do Brasil, eu era membro da No final dos anos 196o, a AP optou pela luta armada e se tornou
juc [ Juventude Universitária Católica], do MEB [Movimento marxista-leninista.
de Educação de Base] e da AP, a organização política Ação Po- Já o MEB foi criado em 1961 pela Conferência Nacional dos
pular. A juc existia desde 195o, seguindo o modelo da Ação Bispos do Brasil [CNBB] para desenvolver um programa de edu-
Católica, muito forte na França, sobretudo no trabalho com cação de base por meio de escolas radiofônicas. Funcionava com
os operários. Era um movimento religioso leigo ligado à Igreja, equipes locais, que preparavam e transmitiam aulas através de
voltado para uma ação pastoral no meio universitário, que pro- uma emissora; monitores pertencentes à própria comunidade,
curava pensar os problemas temporais à luz dos princípios cris- treinados para cuidar das escolas; supervisores que radicavam
tãos. Em 1954, a juc despertou para a questão social e, a partir as escolas e as visitavam para avaliar e aprimorar seu funcio-
de 1958, seus membros passaram a se engajar politicamente no namento. E o MEB do Recife — do qual eu participava como
meio universitário de modo mais intenso, por considerar que os membro de uma "Equipe de Conscientização" — trabalhava
cristãos deveriam fazer uma opção revolucionária. Tive a sorte com camponeses da Zona da Mata Açucareira. Nessa região,
de, entre 1962. e 1965, participar do momento mais importante politicamente importante na época, de engenhos e de usinas de
de sua história, quando — principalmente em cidades como cana de açúcar, ele contribuía, junto com as ligas camponesas
Recife e Belo Horizonte — a crítica da sociedade capitalista e e os sindicatos rurais, para a tomada de consciência da necessi-
a luta por justiça social fizeram dela a principal representante dade de superação da miséria e da exclusão social.
da esquerda católica. O ano de 19 64 me encontrou, portanto, fazendo um traba-
A AP era um grupo político, uma organização não confes- lho político com universitários e camponeses no Nordeste. E ao
sional, sem vínculos oficiais com a Igreja, oriunda de cristãos de participar da tentativa de organizar — com um grupo de políti-
esquerda, principalmente da juc, para quem um movimento cos, intelectuais e estudantes — uma reação ao golpe militar de
religioso, apostólico, não deveria realizar uma ação política par- 31 de março, acabei sendo detido pelo Exército com um compa-
tidária de luta pelo poder. Foi criada em 1962. num convento nheiro, quando estacionava o carro em frente à casa de um dos
de padres dominicanos, em Belo Horizonte, com grande in- secretários do governo Arraes para uma reunião. Levado para
fluência do filósofo jesuíta mineiro Henrique de Lima Vaz. Sua o quartel-general do 4Q Exército, o tenente encarregado de me
fundação oficial se deu no ano seguinte, em Salvador, quando interrogar era, para minha estupefação, um colega do curso de

16 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO


17
filosofia da Universidade Católica de Pernambuco, um homem ao golpe, na Universidade Católica, quando esperava o elevador
atarracado, de bochechas vermelhas caídas. Nunca desconfiara para me dirigir à sala de aula, ele ameaçou me denunciar, mas
que aquele sujeito mais velho, protestante e reacionário, vindo um amigo em comum o dissuadiu.
de Brasília, pudesse ser militar, e muitas vezes discutimos a si- Logo após o golpe militar, a situação era difícil. Miguel
tuação nacional, sem inimizade, cada um expondo seus pontos Arraes tinha sido eleito governador em 1961, derrotando João
de vista conflitantes. Talvez por isso, sem aparentar surpresa e Cleofas, representante das oligarquias açucareiras. Seu apoio
me tratando cordialmente, ele tenha apenas me fichado e me aos sindicatos rurais, às associações comunitárias e às ligas
mandado embora. Mas nem tudo estava resolvido, pois meu camponesas, sua luta em prol das "reformas de base" e muitas
carro continuava em frente à casa do secretário, àquela altura já de suas outras atitudes, como o fim do uso da polícia contra o
preso. Quando eu lhe disse isso, o tenente ordenou ao sargento povo, significaram um modo novo de governar. Pernambuco
responsável por minha detenção que me conduzisse de volta no foi palco de intenso conflito político e social, com greves no
jipe que me trouxera, e me autorizasse a retirar o carro. campo e na cidade, trabalhadores rurais desfilando nas ruas do
O problema era que embaixo do banco do carona havia um Recife com seus instrumentos de trabalho erguidos para o alto,
revólver da Polícia Militar, deixado pelo rapaz que me acompa- incêndios nos canaviais e invasões de terras, morte de campone-
nhava e que ainda continuava detido. Ora, eu tinha certeza de ses. Como era de esperar, o governador foi deposto com o golpe,
que o Exército havia revistado o carro. E assim que saí dirigindo depois de ter se recusado a renunciar, e preso já no primeiro
e vi o jipe atrás de mim, não tive dúvida de que servia de isca de abril de 1964. A perseguição política em Pernambuco foi
para que pudessem capturar as pessoas com quem eu tivesse truculenta, com prisões abarrotadas de intelectuais, políticos,
contato. Como o revólver ainda estava no local, interpretei que estudantes, camponeses.
eles o haviam deixado lá para que eu não desconfiasse, e fui Continuei o trabalho com camponeses e estudantes. Aquela
direto para casa — cujo endereço eu havia informado no quar- militância significava para mim um aprendizado, acrescentando
tel-general —, pois assim não entregaria ninguém. Felizmente uma dimensão política à formação humanística que havia me
eu estava enganado. A arma não tinha sido descoberta, e eu não levado a escolher estudar filosofia, e não direito, medicina ou
fui incomodado. A não ser por um estudante, filho de senhor engenharia, como era hábito em minha família e em tantas ou-
de engenho, que assistiu à palestra que dei para camponeses na tras. Um ano depois, no entanto, decidi ir para a Europa, pois
propriedade de seu pai, de noite, à luz de candeeiros, em defensa concluíra o curso e havia feito mais política do que lido filoso-
da reforma agrária e das outras reformas de base. Isso ocorrera fia. É verdade que a militância na juc e a presença constante
alguns dias antes, quando fui radicar uma escola radiofônica e generosa de seus padres orientadores, chamados "assistentes',
com membros do sindicato rural e das ligas camponesas na re- me fizeram ler teólogos como os padres franceses Congar, De
gião de Vitória de Santo Antão, a uns cinquenta quilômetros Lubac, Chenu, Daniélou, e o belga Schillebeeckx. Mas o que
do Recife. Ao encontrá-lo, nos primeiros dias que sucederam mais me interessava, e eu queria continuar a fazer, era estudar

Ió IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO '9


filosofia — e por falta de um bom curso e pelas exigências de filósofo, e não apenas uma condição necessária. Sentindo-me
uma militância política que naqueles tempos conturbados se como um carro parado num posto de gasolina para ser abas-
impunha como um dever, isso não era possível no Recife. A tecido e depois seguir viagem, aceitei o conselho do professor
bordo do Constellation que me levaria do Recife a Madri, onde designado pela Universidade como meu "tutor": "Aqui não
alguns amigos me esperavam para passear pela Andaluzia e se- importa o que você pensa; o importante é você conhecer o que
guir de carro por lugares encantadores da Espanha e da França, os outros pensaram!"
em direção a Paris e depois a Louvain, tive a sensação de que Se não fiz isso obedientemente foi porque, durante esse pe-
uma vida nova se iniciava. A alegria que senti foi inesquecível. ríodo em Louvain, participei, ao lado dos estudos acadêmicos,
Em Louvain, os assuntos dos cursos não tinham qualquer de um pequeno grupo sigiloso de militantes da Ação Popular
relação com o que eu tinha vivido no Brasil. Atestando a força que se reunia semanalmente para estudar Marx e Althusser e
de uma instituição acadêmica sobre os estudantes, abandonei discutir temas ligados à "realidade brasileira', como se dizia na
um projeto sobre a dialética e a relação entre filosofia e socie- época. Nesses encontros, procurávamos, a duras penas, articular
dade para me dedicar ao estudo da filosofia das ciências numa estudos de filosofia marxista com atividades políticas existentes
perspectiva fenomenológica, coisa que nunca teria me ocor- no Brasil. Mas, sob a influência da Universidade, sobretudo dos
rido se eu tivesse continuado no Brasil. Além disso, sentindo professores que eu mais respeitava, via aquelas leituras paralelas
a orientação histórica do ensino de filosofia na Universidade, como algo à parte de minha formação filosófica.
privilegiei o conhecimento dos clássicos, dos filósofos de todos O ano vivido em Heidelberg em 1969, em contato com
os tempos. A princípio com dificuldade e insatisfação. Ousei estudantes socialistas interessados em Marx e na Escola de
até mesmo dizer a Jean Ladrière, que não compreendia aquela Frankfurt, aumentou ainda mais meu interesse pela situação
redução da filosofia à história da filosofia. E, não sei se com sin- do Brasil no momento mais duro da repressão. Foi uma época
ceridade ou ironia, ele me respondeu: "A Bélgica é um paizinho de admiração por Marighella e Lamarca que me levou a escrever
sem imaginação." Mas, jamais tendo lido rigorosamente Platão, um pequeno texto, para ser publicado numa revista de pouca
Aristóteles, Descartes, Kant e até mesmo Marx, pouco a pouco circulação de Bruxelas, em defesa da luta armada como opção
me rendi ao princípio de que a condição necessária para alguém revolucionária, embora não sentisse nenhuma predisposição a
ser filósofo é conhecer a história da filosofia. Findei convencido esse tipo de atividade.
de que, se quisesse possuir uma boa formação filosófica, preci- Meu entusiasmo pelo movimento de Maio de 68 em Pa-
sava estudar as diversas filosofias que, em momentos e contextos ris — o belo maio — foi grande. Maio era época de exames em
diferentes, são produções históricas da verdade. Louvain. Trancado no quarto estudando, eu não esquecia de
A força dessa orientação histórica do ensino foi ainda maior, acompanhar as notícias de Paris pela rádio Europe n2 .I, com seus
pois fui levado a pensar que o conhecimento da história da jornalistas fantásticos espalhados por toda parte em que havia
filosofia era uma condição suficiente para alguém se tornar confusão. Provas terminadas, peguei o trem para Paris, onde

20 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO 21


tinha vários amigos brasileiros. Com um deles, o psicanalista Na condição de "simpatizantes", eu e esses amigos estávamos
Carlos Augusto Nicéas, ainda vi, em junho, estudantes que de- ligados à Ação Popular, que depois de 1964 mantinha contato
trás de uma barricada no boulevard Saint-Michel lançavam con- com Cuba e com a China e que agora se tornava marxista-le-
tra a polícia paralelepípedos, placas de sinalização, lixeiras em ninista. Essa ligação se dava principalmente por meio de Flávia
chamas, coquetéis Molotov, enquanto gritavam "Ce nest qu'un Martins, com quem eu estava começando a namorar, e com
début, continuons le combati" [É apenas o começo, continuemos quem eu me encontrava todo fim de semana no Recife. Devia
o combate] e "CRS, SSt; slogan que denunciava o fascismo dos ser difícil para ela, nos seus vinte anos, discutir com aqueles pro-
serviços de segurança franceses, as Compagnies Républicaines fessores recém-chegados da Europa princípios teóricos do mar-
de Sécurité. Ao mesmo tempo, a polícia, de capacete com viseira xismo, a situação política do país e as propostas de luta encami-
abaixada, cassetete e escudo, lançava bombas de gás lacrimogê- nhadas pelos dirigentes da organização. Naquela época, quem
neo e avançava. Corremos, como vários contestadores, e quando não era membro de um partido em geral não queria ouvir falar
já andávamos a mais ou menos um quilômetro de distância da de política. Mas nós, simples simpatizantes, gostávamos de dar
barricada, alguém passou esbaforido e gritou: "Corre!" Olhei nossa visão dos fatos e de nos posicionar a respeito das palavras
para trás, vi um carro blindado da polícia, tive o ímpeto de cor- de ordem comunicadas por ela, com as quais às vezes não con-
rer, mas meu amigo, mais calmo, me disse rápido: "Não corra, cordávamos por considerá-las irreais. Os militantes, sobretudo
continue andando!" Felizmente. O carro passou por nós a toda os que tinham entrado na clandestinidade, viviam quase sempre
velocidade atrás de quem estava correndo, e nos deixou em paz. isolados, e, ao saberem de nossa disposição para conversar sobre
Ao chegar ao Brasil vindo do pós-68 europeu, em fevereiro o movimento revolucionário, nos procuravam para conhecer
de 197o, eu continuava radicalmente contra a ditadura brasileira. nossas posições sobre temas teóricos e nossas análises do caso
Tinha contato com pessoas engajadas politicamente, algumas vi- brasileiro. Cheguei a andar pelas ruas da cidade acompanhado
vendo na clandestinidade; contribuía financeiramente para a luta; de um militante procurado pela polícia, discutindo, apreensivo,
discutia documentos políticos que serviam de orientação àquela temas teóricos como a sobredeterminação em Althusser. Hoje
militância... Tudo isso era feito com alguns amigos sociólogos ele é um dos "desaparecidos".
— Ivandro da Costa Sales, Rogerio Luz, Madel Luz — também A grande dificuldade vivida por Flávia dizia respeito à repres-
recém-chegados de Louvain para ensinar em João Pessoa e ainda são. Em maio do ano anterior à minha volta ao Brasil, ela fora
profundamente críticos ao regime militar. Ivandro, paraibano de cassada como estudante de economia na Universidade Federal
Taperoá, havia retornado há mais tempo e conseguia entender de Pernambuco e proibida de estudar por três anos. E como ti-
melhor o que se passava na Universidade. Suas observações so- nha voltado à Faculdade de Economia para protestar contra a
bre as posições políticas dos professores mais influentes e sobre cassação de uma amiga, foi enquadrada na Lei de Segurança Na-
suas relações com as autoridades militares e governamentais eram cional, embora tenha sido absolvida por falta de provas no jul-
muito úteis quanto à maneira como devíamos nos comportar. gamento proferido por uma junta formada por civis e militares.

IMPRESSOES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO 2.3


22
No entanto, em setembro — época do sequestro do embaixador Com essa mudança, abandonei a "metodologia científica", que
americano no Rio de Janeiro em ação conjunta do mR-8 e da havia estudado e ensinado durante minha experiência paraibana,
ALN -, foi presa num ponto de ônibus perto de sua casa com e me dediquei à epistemologia tal como praticada na França por
notas de planos para manifestações durante os festejos de Sete filósofos como Bachelard, Koyré, Cavaillès, Canguilhem... Mas
de Setembro e encarcerada na Secretaria de Segurança Pública esses filósofos pensavam a epistemologia como uma investigação
de Pernambuco. Pouco depois foi solta por interferência da fa- sobre os procedimentos de produção do conhecimento cientí-
mília, influente na cidade, mas sua situação era tensa, delicada. fico, uma avaliação da racionalidade. Não aceitavam a divisão
Uma vez, quando chegávamos de carro a sua casa, vimos da ciência em método e resultado — um relativo ao filósofo, o
uma viatura de polícia parada à porta. A tempo, mudamos de outro, ao cientista — como faziam os metodólogos. Além disso,
rumo e passamos alguns dias escondidos em Olinda, na casa de ao rejeitar a existência de critérios universais de racionalidade
Tiago Amorim, um amigo pintor. A polícia estava atrás de Vera, para definir a ciência, os epistemólogos procuravam explicitar
irmã mais velha de Flávia, que estudava arquitetura. Em outu- os fundamentos de um setor particular do saber científico. Daí,
bro de 1968, Vera havia sido presa com cerca de mil estudantes em vez de fazer uma análise lógica de legitimação ou justificação
que participavam do xxx Congresso da UNE -realizado de da ciência em geral, eles pensarem as ciências em estreita relação
forma clandestina num sítio em Ibiúna, no estado de São Paulo com sua história e privilegiarem a formação de seus conceitos es-
— por mais de duzentos policiais do Dops. O Departamento pecíficos. A epistemologia é uma história filosófica das ciências.
de Ordem Política e Social tinha sido criado na década de 19/o, Diferente das outras cidades do Brasil, havia no Rio, tanto
e seu objetivo era controlar e reprimir movimentos políticos e na ruc quanto fora dela, um grande interesse pelos filósofos da
sociais contrários ao regime no poder. Agora ele estava atrás de ciência franceses por parte de professores e alunos de filosofia
Vera no Recife. Mas, enquanto sua mãe procurava impedir a en- e de ciências da natureza, humanas e sociais. A ponto de, no
trada dos policiais na casa da avenida Dr. Malaquias, ela pulou início dos anos 197o, a revista Tempo Brasileiro ter publicado
o muro de trás e escapou. Como estar tão próximo de pessoas não só textos desses autores, como estudos sobre o pensamento
que lutavam intensamente contra o regime militar e ensinar na deles, comentados por muita gente que encontrei na época de
Universidade de uma pequena cidade, como João Pessoa era na minha chegada. Quando estudava em Louvain, eu não dava
época, sem chamar atenção? importância a esses filósofos. Compartilhava do menosprezo
No fim de 197o, fui para o Rio de Janeiro, onde um professor existente na Bélgica e na Alemanha pela filosofia francesa, con-
universitário passava muito mais despercebido do que numa siderada repetição enfraquecida de Kant, Hegel, Nietzsche ou
cidade menor. Convidado por amigos feitos em Louvai% fui Heidegger. Mas a alegria de viver numa cidade onde os pro-
ensinar na PUC, onde o clima de liberdade era bem maior que blemas filosóficos que eles abordavam a respeito da ciência ul-
o das universidades públicas. Ela acolhera inclusive vários pro- trapassavam os muros da Universidade foi determinante para
fessores cassados pelo AI-5, de 13 de dezembro de 1968. orientar meu trabalho de professor nessa direção.

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO 25


24
Estudei a história epistemológica, refletindo filosoficamente rádio France Inter em resposta aos ataques feitos por Sartre na
com os alunos do Ciclo Básico de Ciências Sociais sobre temas revista L'Arc de outubro de 1966. A crítica de Sartre consistia
científicos que eram ao mesmo tempo abordados por profes- em apresentar como característica principal do pensamento de
sores de sociologia, de história, de economia, com quem me Foucault a recusa da história. E o argumento utilizadò era que,
reunia periodicamente para planejar o trabalho em comum e por não valorizar a práxis em suas análises, Foucault era incapaz
avaliar os resultados. E, ao fazer isso, senti que podia manter, de explicar o motivo pelo qual os pensamentos aparecem e se
como professor, uma postura crítica que havia sido impossível transformam. Daí ele considerar As palavras e as coisas parte do
na experiência acadêmica anterior em João Pessoa. Mas não es- projeto de constituição de uma nova ideologia que seria uma
tava inteiramente satisfeito. Queria dar conta especificamente muralha da burguesia contra Marx.
das ciências humanas e sociais, e não das ciências da natureza ou Em sua resposta, Foucault ironiza ao dizer que Sartre tem
da vida como faziam esses filósofos, que lidavam com ciências uma obra importante por fazer e por isso não teve tempo de ler
como a matemática, a física, a biologia. seu livro. E a ironia continua com a afirmação de que Sartre lhe
Recorri, por exemplo, à pesquisa de Bourdieu, Passeron e dirigia a mesma crítica que o Partido Comunista fez ao próprio
Chamboredon exposta em Le métier de sociologue, que pretende Sartre, no início dos anos 195o, ao considerá-lo a última bar-
estabelecer os princípios de uma teoria do conhecimento socio- reira do imperialismo burguês. Mais conceitualmente, Foucault
lógico. Mas o livro me desagradou pelo ecletismo e pela falta de argumenta que os historiadores não o acusam de desprezar a
rigor. Também usei textos de Althusser, filósofo marxista que história; isso é feito por filósofos que, ignorando o exterior da
tinha uma concepção epistemológica da filosofia, pensando o filosofia, criam um mito da história, um mito filosófico, ine-
materialismo dialético como justificação do materialismo his- xistente para os historiadores, razão pela qual ele havia ficado
tórico, da ciência da história. Mas, nessa época sangrenta do go- contente de ter contribuído para destruí-lo. O tom daquelas
verno Médici e de agentes infiltrados entre os estudantes, qual- afirmações me desconcertou. Além disso, eu me sentia muito
quer referência ao marxismo era proibida. E isso nos obrigava mais próximo da defesa do marxismo feita por Sartre do que
a reduzir o estudo ao âmbito dos princípios gerais, eliminando daquelas ideias sem teor revolucionário.
todo exemplo concreto e até mesmo redigindo novamente al- Logo depois de ouvir essa entrevista, recebi As palavras e
guns textos para mudar a terminologia e despistar sua origem, as coisas de presente de um amigo belga, estudante de econo-
como aconteceu com o ensaio "Sobre o trabalho teórico', de mia que morava na mesma casa de estudante que eu, a Maison
Althusser. Foi quando, ao procurar uma reflexão filosófica mais Saint-Jean, e folheei sobretudo sua pequena conclusão. Mas,
consistente e abrangente sobre as ciências humanas, me deparei por uma formação fenomenológica humanista e por respeito
com As palavras e as coisas. pelo marxismo, achei descabida a tese defendida. A ideia de que
Quando estudava em Louvain, ouvi por acaso, pouco de- o homem fosse uma invenção recente cujo fim talvez estivesse
pois da publicação do livro, uma entrevista de Foucault na próximo — isto é, de que, se as disposições do saber moderno

2.6 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INÍCIO DO CAMINHO 27


viessem a desaparecer, "o homem se desvaneceria, como, na quem explica sua valorização da literatura como contestação do
beira do mar, um rosto de areia" — se chocava com meu pen- humanismo das ciências do homem e das filosofias modernas.
samento em formação. Soube mais tarde que Foucault tinha E isso eu ainda não sabia.
rabiscado essa frase num cartão postal ao avistar, de um avião, Ao reler As palavras e as coisas no início dos anos 197o,
uma ilha do Mediterrâneo. Mas, apesar da beleza, essa afirma- quando era professor da PUC, não entendi quase nada desse
ção não tinha sentido para mim naquele momento. Pus o livro livro difícil. E, do pouco que entendi, discordei de quase tudo.
de lado e não pensei mais nele. Mas fui seduzido pelo rigor e vigor do pensamento que se es-
Um dos motivos dessa antipatia foi certamente o fato de condia na beleza de uma linguagem bem diferente da encon-
Nietzsche — filósofo que eu ainda não conhecia — ter sido trada nos teóricos, filósofos ou não. Alguma coisa me levou a
muito importante para Foucault, sobretudo na década de pensar que havia ali algo importante e novo. Pois, lendo-o dessa
I960, no período de seus estudos "arqueológicos". Suas aná- vez com atenção, fiquei encantado com a originalidade da tese
lises histórico-filosóficas dos saberes modernos considerados defendida. O homem, objeto e sujeito do conhecimento, mas
saberes "antropológicos" foi profundamente inspirada na crí- também representação produzida pelas ciências humanas, é
tica nietzschiana do niilismo da modernidade. Pois Foucault uma invenção recente. Sem haver homem para os saberes dos
aprendeu com Nietzsche que a "morte de Deus" — anunciada séculos xvii e xviii, isto é, na época clássica, ele nasce no iní-
por ele para caracterizar a relatividade dos valores modernos cio do século xix, na modernidade, com a criação das ciências
— deve ser radicalizada com a "morte do homem": a crítica do empíricas — biologia, economia e filologia — e das filosofias
humanismo burguês que procurou ocupar o lugar dos valores pós-kantianas da vida, do trabalho e da linguagem. E isso acar-
antes fundados no absoluto. Seus três grandes livros arqueoló- reta a conclusão insinuada nas últimas palavras do livro: se as
gicos — História da loucura, Nascimento da clínica e As palavras configurações modernas dos saberes mudarem, talvez — e é
e as coisas — mostram isso muito bem. preciso não esquecer esse "talvez" — esteja próximo o fim da
Além disso, quando Foucault estuda a literatura nessa época, invenção chamada homem.
esse privilégio concedido a Nietzsche em sua análise crítica das Assim, mesmo discordando do conteúdo do livro, levei-o a
ciências do homem reaparece na importância dada aos litera- sério, e fiz um esforço desesperado não só para entendê-lo, mas
tos que introduziram na França um estilo nietzschiano — não também para compreender por que aquelas ideias eram tão dife-
dialético e não fenomenológico — de pensamento: Bataille, rentes das minhas. No semestre seguinte, estudei com afinco esse
Klossowski, Blanchot. escrito — o mais difícil e ambicioso de Foucault — em seminá-
Assim, Nietzsche é fundamental para se compreender a crí- rio com meus alunos e alguns professores de outros departamen-
tica de Foucault aos saberes sobre o homem na modernidade, tos. Foi possivelmente a primeira vez que se fez isso no Brasil.
ao que chamou de "sono antropológico" numa paródia ao "sono
dogmático" de Kant. E, em última análise, também é Nietzsche

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UM LIVRO NO INICIO DO CAMINHO 19


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Por uma feliz coincidência, ou por um acaso favorável, no ano
seguinte conheci Michel Foucault, quando ele veio ao Rio
para um curso de cinco aulas a convite do Departamento de
Letras da PUC. Esse curso, A verdade e as formas jurídicas — que
traduzi com Eduardo Jardim, antigo colega da Universidade
de Louvain e na época estudante de filosofia da PUC -, teria
grande importância para a difusão de suas ideias no Brasil.
Não era sua primeira vinda ao país. Em outubro de 1965,
na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade
de São Paulo — "um bom departamento francês de ultramar',
como chamou —, dera um curso sobre a temática de As pala-
vras e as coisas, que naquele momento escrevia. O convite viera
de Gérard Lebrun, filósofo francês, estudioso de Kant e Hegel
e ex-aluno de Foucault na École Normale Supérieure da rue
d'Ulm em 1954. Lebrun ensinou na USP, intermitentemente,
dos anos 196o aos anos 199o.
Coincidindo com a intensificação da violência da ditadura
por conta dos protestos de professores e alunos contra o en-
durecimento do golpe militar de 1964, no momento em que
foram dissolvidos os partidos políticos e estabelecidas eleições
indiretas para presidente, o curso ficou inacabado. Não sei de
sua repercussão no público paulistano, mas não deve ter sido
grande. Não creio que o pensamento de Foucault tenha sido
estudado em aula ou tenha inspirado pesquisas de professores.
Com exceção talvez do professor Bento Prado, é pouco pro-
vável que, naquela época, houvesse interesse pelo pensamento

33
dele entre os professores da USP. Mas já nessa primeira viagem, ao ressaltar o caráter hipotético de seu discurso e apelar para
Foucault parece ter gostado dos estudantes brasileiros. Pois, em um trabalho comum, essa primeira frase me surpreendeu e me
1967, declarou a um jornal tunisiano: "Provavelmente apenas preparou para as novidades que viriam.
no Brasil e na Tunísia eu tenha encontrado tanta seriedade e Terminou de falar, respondeu a perguntas, algumas hostis,
tanta paixão entre os estudantes, paixões muito sérias e, o que sempre de bom humor, com sua voz penetrante, às vezes um sor-
mais me encanta, a avidez absoluta de saber." riso endiabrado. Depois saiu com o grupo de alunos contestado-
Na puc-rj, oito anos depois, o auditório estava superlotado. res — entre os quais se encontrava Flávia, que tinha vindo morar
A algazarra era grande. Uma multidão se espremia para ten- no Rio e vivia comigo —, para o apartamento de um deles, em
tar entrar na sala. Foucault — magro, forte, elegante, sorriso Ipanema, onde conversamos sobre o tema da palestra. Segundo
teatral, olhos que denunciavam a inteligência — chegava com o professor anfitrião, ele teria confessado, com ironia, estranhar
o organizador das conferências pelo corredor por onde quase que aqueles estudantes sem dinheiro para pagar a palestra tives-
não se podia passar. Nesse momento, um grupo de alunos, mui- sem carros tão novos e morassem em apartamentos tão grandes.
tos dos quais tinham participado de meu seminário sobre As A mim — bem na linha da declaração ao jornal tunisiano —, ele
palavras e as coisas, protestou, dizendo que queria entrar, mas disse ter ficado encantado com o conhecimento, o interesse e a
não tinha como pagar. "No money", gritavam os estudantes; radicalidade daqueles alunos, muito mais sensíveis às suas ideias
"No place", replicava o organizador. Foucault se ofereceu para do que os franceses. Ele certamente sabia que a atitude dos con-
pagar por eles. Mas não havia lugar. Prometeu aos estudantes testadores era contra o fato, incomum nas universidades, de as
fazer uma palestra extra, e entrou no ambiente solene do grande conferências serem pagas, e não por falta de dinheiro.
auditório, com toalha e flores na mesa e a presença do padre Na mesma semana, Foucault participou de uma mesa-re-
vice-reitor. Mas todos estavam vestidos descontraidamente, de donda com professores da PUC e alguns convidados, à qual
calça e camisa, alguns até mesmo de sandália de couro. A não também estive presente. Numa pequena sala do Departamento
ser Foucault, de terno e gravata. de Letras, em torno de uma grande mesa totalmente ocupada,
Então, ao começar a falar, fez uma declaração bem caracte- procurou esclarecer aspectos de seu pensamento, em geral des-
rística de sua elegância e de seu estilo brincalhão: "Agora que vo- conhecido ou não muito conhecido pelos presentes. Opôs Só-
cês já sabem que tenho uma gravata, posso tirá-la!" E começou crates aos sofistas, ou a filosofia à retórica, sugerindo "retorizar
por afirmar que apresentaria hipóteses possivelmente inexatas, a filosofia"; defendeu a materialidade dos discursos; distinguiu
falsas, incorretas, para as quais pedia nossa indulgência e nossa o método de Dumézil, de quem se disse próximo, do de Lé-
maldade em forma de perguntas e objeções para progredirmos vi-Strauss, a respeito da concepção do discurso como prática
juntos na compreensão dos temas que abordaria. Pode-se ver funcionando no âmbito das práticas sociais; explicitou seu con-
nessas palavras a postura estratégica de um grande orador em ceito de poder. Mas foi a pergunta do professor de psicologia
presença de uma plateia possivelmente inóspita. Mesmo assim, da Puc, Roberto Oswaldo Cruz, estudioso de Deleuze, sobre a

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possibilidade de desaparecimento da prática psicanalítica depois esse logo me fizeram sentir que só se trabalha bem com amigos.
de O anti-Édipo, que deu a tônica da reunião. Pois a resposta Bem mais importantes para mim do que a mesa-redonda
de Foucault ensejou a defesa do psicanalista Hélio Pelegrino, foram as conferências. Do que elas trataram? O objetivo mais
desencadeando uma polêmica, e se falou sobretudo de Édipo. geral foi investigar como domínios de saber se formaram a
A esse respeito, a estratégia de Foucault consistiu em assumir partir de práticas sociais. E como esse tema foi exposto? Com
duas posições. Embora considerando O anti-Édipo — livro pu- Foucault privilegiando, entre as práticas sociais, as práticas
blicado no ano anterior — obscuro sobre alguns pontos, como judiciárias para mostrar como elas deram origem a três tipos
a esquizofrenia e a possibilidade de um tratamento que não im- de relação com a verdade, três procedimentos de produção da
plicasse poder, utilizou o livro de Deleuze e Guattari e O psica- verdade, na Grécia, na Idade Média e na Modernidade, que
nalismo de Robert Castel — recém-lançado na França — para chamou de "prova', "inquérito" e "exame". E, dos três, o que ele
criticar a psicanálise. Defendeu que Édipo seria um tipo de coa- mais explorou — e o que mais teve incidência em sua pesquisa
ção, de relação de poder da sociedade sobre os indivíduos, em posterior — foi a análise da relação entre o poder disciplinar
vez de uma estrutura fundamental da existência humana, como moderno e o exame considerado como matriz de um novo tipo
dizia Hélio. Além disso, esclareceu que não quis falar em suas de saber, o das ciências do homem: psiquiatria, psicologia, so-
conferências do mito de Édipo, mas da tragédia de Sófocles. E ciologia, antropologia, criminologia etc.
se fez isso foi para abordar o procedimento de busca da verdade Além disso, esse tema foi abordado por uma genealogia dos
nela presente e indicar Édipo-rei como uma dramatização do poderes, justificada a partir de Nietzsche. O que fez Foucault
direito grego, ou, mais precisamente, das práticas judiciárias de na primeira conferência, como introdução às quatro seguin-
busca da verdade no século v antes de Cristo. tes? Partiu de uma concepção do conhecimento em Nietzs-
Sem dúvida a mesa-redonda da PUC serviu, não digo para es- che — como efeito de superfície de instintos em luta e sem
clarecer, mas para apresentar improvisadamente o pensamento afinidade com o mundo a conhecer — para situar o filósofo da
de Foucault no início de sua genealogia do poder. No entanto, a suspeita como modelo de uma análise histórica do que chamou
tensão presente na pequena sala, provocada pela disputa intelec- "política da verdade': Interpretou textos de Nietzsche sobre o
tual que logo se instaurou, era insuportável. E talvez explique em conhecimento, para evidenciar como por trás de todo conhe-
parte por que, durante minha vida acadêmica, convivi mais com cimento está em jogo um embate de forças. E não ficou por aí.
alunos do que com professores. Chegou-se até a acusar o pensa- Utilizou Nietzsche para justificar a abordagem de seu próprio
mento de Foucault sobre o poder de ter uma base anarquista e problema: a formação de domínios do saber a partir de relações
de ser uma versão acadêmica, erudita, de um pensamento hippie. de poder, ou, mais precisamente, de determinadas práticas so-
O que levou Chaim — no resto do tempo calado — a se posi- ciais, as práticas judiciárias.
cionar ao lado de Foucault, dizendo não ver perniciosidade al- Estava nascendo a genealogia com a qual Foucault procu-
guma nos pensamentos hippies e anarquistas. Encontros como rou explicar o aparecimento dos saberes sobre o homem como

;6 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT COBRA QUE PERDE A PELE


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elementos de um dispositivo de natureza política, como peças política concreta — não se realiza apenas em relação ao Estado.
de relações de poder. As novidades dessa abordagem histórico- Ela também se dá no cotidiano dos órgãos técnicos, científicos,
-filosófica foram muitas: rejeitar a identificação entre poder e educacionais e em todos os que vigoram em nossas sociedades e
Estado, dando importância aos micropoderes, à rede de poderes são essenciais para o seu funcionamento. E isso impede a defesa
moleculares estendida por toda a sociedade: escola, prisão, ca- de uma antinomia entre saber e poder, a reivindicação de uma
serna, hospital, hospício; caracterizar o poder não apenas como neutralidade da teoria em relação à luta política. Como a que
repressivo, negativo, destruidor, mas também como disciplinar, ouvi de uma aluna da PUC, estudante de sociologia, ao se apro-
positivo, produtivo, normalizador; analisar o saber como peça priar de urna expressão althusseriana para justificar não ter mi-
de um dispositivo político que o produz e é intensificado por litância política porque sua especialidade era a "prática teórica".
ele; defender as resistências, específicas e contemporâneas dos Essas ideias eram novas, pois, como quase todos na época, eu
variados dispositivos de poder, como modo de recusar a domi- desconhecia o conteúdo dos três primeiros cursos de Foucault
nação burguesa que os próprios saberes sobre o homem ajuda- no Collège de France, onde elas haviam germinado. Ideias no-
ram a criar e a aperfeiçoar. vas e valiosas, principalmente porque, num momento em que
O impacto dessas ideias foi grande no Brasil e no resto do já me encontrava distante da fenomenologia e tinha aversão
mundo, instrumentalizando pesquisas no campo das ciências à metodologia científica neopositivista, me permitiam pensar
humanas e sociais. Uma de suas contribuições foi mostrar que filosoficamente as ciências humanas e sociais numa perspectiva
o poder, tal como exercido na modernidade, não pode se con- teórica e política, contribuindo para a criticidade e a criativi-
tentar em reprimir; precisa gerir a vida dos indivíduos e das dade que eu procurava alcançar em meu trabalho de professor
populações para utilizá-los ao máximo, com um objetivo ao e pesquisador numa época tão difícil.
mesmo tempo econômico e político: torná-los úteis e dóceis, O pensamento de Foucault naquelas conferências era pro-
trabalhadores e obedientes. Outra contribuição foi sugerir que fundamente diferente de tudo o que ele tinha escrito antes,
não basta o controle político ou a destruição do aparelho central revelando alguém disposto a pensar diferente do que pensara,
do Estado para fazer desaparecer ou para transformar, em suas quando suas pesquisas o levavam a seguir em outra direção,
características fundamentais, a rede de micropoderes vigente destruindo evidências estabelecidas e criando novas evidên-
nas sociedades modernas. Não é tomando o poder central que cias. Como essa genealogia do poder é muito diferente de sua
necessariamente se modificam a escola, a caserna, o hospício, a arqueologia — que no momento eu estudava em As palavras e
prisão ou o hospital. Cada uma dessas instituições levanta ques- as coisas —, impressionava não só a originalidade de seu pensa-
tões específicas a respeito desses poderes que se articulam com o mento, mas também como Foucault se desapegava facilmente
poder central, mas não são a simples extensão de seu raio de ação. do passado. O surpreendente não era o fato de o saber, inclusive
Assim, a genealogia dos micropoderes realizada por Fou- o filosófico, variar com as épocas. Ele mesmo tinha mostrado
cault serviu para mostrar que a luta política — uma ação como isso se dava. O que mais me surpreendeu em A verdade e

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as formas jurídicas foi a variação de seu próprio pensamento, a saber passa a ser a existência, desde o século xvi, de um "dispo-
mobilidade que, em um curto espaço de tempo, o atingia. sitivo de sexualidade" que incita o sexo a se manifestar — pro-
Essa foi uma das lições aprendidas de imediato com Fou- cesso intensificado a partir do século xIx com o nascimento das
cault, que o convívio posterior só fez intensificar. E me foi, in- ciências humanas e posteriormente da psicanálise. Assim, com o
clusive, de grande utilidade para interpretar sua filosofia nos surgimento do capitalismo, em vez de a repressão sexual atingir
dois livros que escrevi sobre seu pensamento da década de 196o, mais fortemente a classe operária para aumentar sua força de
quando falei de uma "trajetória da arqueologia". Pois, com essa trabalho, o controle da sexualidade atingiu primeiro a burgue-
expressão, quis ressaltar as transformações sofridas pelo projeto sia, e isso por dispositivos normalizadores, e não propriamente
arqueológico de um livro a outro, até ele desaparecer ou se in- repressivos. Estamos em presença mais de uma expressão do que
tegrar a uma genealogia diferente de tudo o que Foucault havia de uma repressão, de uma vontade de saber sobre a sexualidade,
feito e original em relação ao que outros fizeram. peça das estratégias de controle dos indivíduos e das populações
Mas essa mudança, essa passagem sem continuidade da ar- características das sociedades modernas.
queologia dos saberes à genealogia dos poderes que senti em A Nesse momento, o problema de Foucault era saber o que
verdade e as formas jurídicas e depois notei em Vigiar e punir e aconteceu no Ocidente para que a questão da verdade — in-
em A vontade de saber, não é a única na obra de Foucault. Essa clusive por meio de uma medicalização da sexualidade — fosse
mudança pode ser claramente observada em seu próprio pensa- posta em relação ao prazer sexual; era saber como, em vez de
mento genealógico, por exemplo, em sua última obra, História simplesmente dar prazer, o sexo passou a ser o lugar privile-
da sexualidade, como uma passagem de uma genealogia do po- giado da verdade do homem. Esse primeiro volume da Histó-
der a uma genealogia da subjetividade. ria da sexualidade prometia, inclusive, vários outros volumes
Foucault começou a pesquisa sobre a sexualidade com A que aprofundariam essas ideias com análises concretas: sobre a
vontade de saber, uma introdução geral ao projeto. O que é me- carne e o corpo, as crianças, as mulheres, as perversões, as raças
todologicamente importante nesse livro? Sem dúvida, o uso da e as populações.
concepção do poder como disciplinar, regulador, normalizador, Enquanto seguia nessa direção — e em parte, talvez, pelas
como um controle dos indivíduos e das populações, para criticar críticas recebidas até mesmo de amigos, como Deleuze Fou-
a ideia de que o sexo teria sido reprimido pelo capitalismo, de- cault compreendeu que desse modo não daria conta do mais im-
pois de ter vivido em liberdade. E essa ideia é relativamente nova portante: o nascimento do homem de desejo, o aparecimento,
em sua reflexão, pois, entrevistado no Japão em 197o, ele ainda na história, do desejo como essência do homem, como se nota
pensava que desde o século xix a sexualidade é mais reprimida modernamente na psicanálise. O que fez então? Recuou ainda
do que em qualquer outro século. Acontece que, diferentemente mais no tempo. Primeiro ao século v, para dar conta da expe-
do que ele próprio pensara e se insurgindo contra a "hipótese riência cristã do sexo. Sobre isso, chegou a escrever um texto,
repressiva" de Reich e Marcuse, sua hipótese em A vontade de um esboço de livro, "As confissões da carne", até hoje inédito,

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cujo manuscrito alguns privilegiados leram na Bibliothèque Na- sobre os mecanismos de sujeição se converteu numa investiga-
tionale e juraram guardar segredo sobre o que ficaram sabendo. ção bem diferente — e também original — sobre os modos de
Ainda assim, encontrou uma continuidade temática entre subjetivação. Assim, a História da sexualidade, tal como efeti-
essa época e a modernidade, entre a "carne" medieval e a "sexua- vamente realizada por Foucault, atesta uma passagem, um des-
lidade" dos modernos. E também é possível supor uma conti- locamento de uma genealogia do poder, ou da sujeição, a uma
nuidade metodológica entre esse projeto de livro e A vontade de genealogia dos modos de subjetivação. E a crítica que ele faz à
saber. Pois essa introdução geral à pesquisa a ser feita está cheia sua própria tese da "morte do homem", numa entrevista de 1978,
de referências ao pecado contra a carne, à "tecnologia da carne momento em que está formulando a ideia de subjetivação, é
no cristianismo clássico"; à pastoral cristã, à confissão, ao exame bem ilustrativa da mudança de seu pensamento. Afirmando ter
de consciência e à direção espiritual quando sugere a formação se enganado em As palavras e as coisas ao apresentar, de modo
do dispositivo de sexualidade a partir da carne cristã. confuso, simplificador, a morte do homem como uma caracte-
Acontece que, incansavelmente em busca do novo, do di- rística básica da modernidade, defende, então, que seu objetivo
ferente, Foucault continuou — contra todas as expectativas — era sugerir duas coisas com esta expressão: a constituição, no
em busca da descontinuidade capaz de assinalar o nascimento mundo moderno, de uma nova subjetividade; o contínuo des-
de uma nova experiência do sexo. E descobriu que só poderia locamento da subjetividade na história humana.
realizar seu projeto de maneira radical ao contrapor a moderna Como essas, há várias mudanças em sua obra. Mas isso não
hermenêutica do desejo à estética do prazer existente na Anti- deve desconcertar, pois Foucault jamais pretendeu ser um fi-
guidade grega e romana. Isso o levou a investigar, em O uso dos lósofo da identidade. Sem fixar ou imobilizar seu pensamento,
prazeres, como a atividade sexual se constitui como domínio ele sempre aceitou o desafio de pensar diferente. Não foi ele
de prática moral e como modo de subjetivação característicos mesmo quem proclamou que se escreve para ser diferente do
do projeto de uma "estética da existência", isto é, de uma moral que se é? Seu pensamento de muitas faces multiplicava as pers-
estética, em que se elabora a própria vida como obra de arte, pectivas com grande rapidez, a ponto de ele declarar não subs-
em que se governa a própria vida para lhe dar a mais bela forma crever sem restrições as ideias de seus livros. Ele era a ilustração
possível. Mas essa descoberta também o levou a analisar, em O perfeita de que cobra que não perde a pele, morre.
cuidado de si, o desenvolvimento, nos dois primeiros séculos de Às vezes isso é claro, ou porque ele mesmo critica a posição
nossa era, da arte da existência criada pelos gregos. que defendia ou porque interpreta diferentemente o objeto
Foucault pôde, então, compreender a diferença do modo estudado, abordando-o de outra maneira. Mas às vezes é difí-
de subjetivação característico dessa época tanto em relação à cil apreender essa mudança. Quando ele diz numa entrevista:
Grécia, onde se originou a estética da existência, quanto em re- "Minha questão sempre foi o sujeito!", qual é o valor dessa
lação ao Cristianismo, responsável por sua inflexão rumo a uma afirmação, que se choca com outra: "Minha questão sempre
hermenêutica do desejo. E o que começou como uma pesquisa foi o poder!"?

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É preciso não projetar o Foucault mais recente para enten- pela primeira vez, do estruturalismo, dizendo não se interessar
der o Foucault do passado. Assim, quando salienta a importân- pelas possibilidades formais da língua, que seu objeto "não é a
cia do sujeito como ponto de convergência de suas pesquisas, língua, mas o arquivo', o "discurso em sua modalidade de ar-
isso não quer dizer que o poder também não tenha sido obje- quivo". E, dando razões diferentes para isso, a partir daí estará
tivo central de suas análises. Significa que, na época, o foco de sempre assumindo a mesma posição. Eis alguns exemplos: no
sua pesquisa não é mais o poder, e sim os modos de subjetiva- curso da PUC, de 1973, diz que nem ele nem Lyotard, Deleuze
ção. Também não quer dizer que, tais como foram estudadas ou Guattari são estruturalistas; numa entrevista de 1977, asse-
nas duas épocas, haja um entrelaçamento indissolúvel entre as vera não ver quem pode ser mais antiestruturalista do que ele;
questões do poder e da subjetividade. Basta analisar seus livros e numa entrevista tardia, publicada em 1983, é bem enfático:
para notar que a frase sobre o sujeito só poderia ter sido dita na "Nunca fui freudiano, nunca fui marxista, nunca fui estrutura-
década de 198o, quando Foucault não faz mais uma genealogia lista." Posição bem diferente da assumida apenas poucos meses
do poder, e a frase sobre o poder, na década de 197o, quando antes da entrevista a Bellour de 1967, quando afirmou a um jor-
ainda não se punha para ele, com rigor, a questão dos modos nal tunisiano que seu trabalho consistiu em procurar introduzir
de subjetivação como a formulou em seguida. Privilegiar o que análises de estilo estruturalista nos campos da história das ideias,
disse depois para esclarecer o que fez antes dificulta mais do que dos conhecimentos e da teoria em que o estruturalismo ainda
facilita a compreensão de seu pensamento. Como se pode notar não tinha penetrado, acrescentando, certamente em alusão a As
quando ele diz numa palestra em Berkeley, no início dos anos palavras e as coisas, que analisou em termos estruturalistas o nas-
198o, que o objetivo de seu trabalho nos últimos vinte anos cimento do próprio estruturalismo. E se não levarmos em conta
não foi analisar os fenômenos de poder, mas fazer uma história o fato de que mudar faz parte da natureza de seu pensamento,
dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa seria impossível compreender sua afirmação, num debate de-
cultura. Mas, curiosamente, quando se lê o texto da palestra, pois de uma conferência na Tunísia, em março de 1968: "Vou
nota-se que seu tema são as relações de poder e o poder pastoral, lhes confiar algo que parece que ainda não se sabe em Paris: não
e não os modos de subjetivação, a constituição da subjetividade. sou estruturalista. A não ser em algumas páginas que lamento
O mesmo se pode dizer a respeito de um assunto do qual ter escrito, nunca empreguei a palavra estrutura."
muito se falou e ainda se fala: sua relação com o estruturalismo. Quando se leem seus últimos livros e seus últimos cursos,
Quando Foucault diz não ter sido estruturalista, isso não signi- nota-se o quanto Foucault assume no final da vida uma perspec-
fica que efetivamente não tenha sido, mas que, tendo sido ou tiva diferente da de Nietzsche, apesar dos elogios que lhe faz e
não, naquele momento não era. E não era pelo menos desde da importância que continua a lhe dar, em algumas entrevistas,
junho de 1967. Pois, numa entrevista a Raymond Bellour — como sua principal influência. Um exemplo é quando valoriza
quando aparece, pela primeira vez, a problemática e a termi- Sócrates, a ponto de salientar que a atividade filosófica do filó-
nologia de A arqueologia do saber —, ele se distingue, também sofo grego é caracterizada pelo cuidado de si e pelo cuidado dos

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outros como duas faces da mesma moeda. E chega até mesmo Nesse caso, a diferença é mais terminológica do que concei-
a dar um sentido positivo à sua última frase, "Críton, devemos tuas, pois a análise já feita não é modificada. Mas, em geral, é
um galo a Esculápio, não se esqueça de pagar a dívida", inter- preciso estar atento a essa dificuldade. E uma das maneiras de
pretando-a como expressão de uma profunda gratidão pela fi- contorná-la é situar as afirmações de Foucault na época em que
losofia, capaz de curar a doença grave das falsas opiniões e dos foram feitas. Sua vida não era um itinerário progressivo para a
preconceitos. Enquanto que, para Nietzsche, em A gaia ciência verdade. Mudar não é necessariamente progredir. Se ele estava
e em Crepúsculo dos ídolos, essa frase significaria considerar a sempre em movimento, se não cessava de se deslocar, sem saber
vida uma doença curável apenas pela morte, ou que a morte o que seria nem o que pensaria amanhã, atento ao presente, é
seria a cura da doença que é viver. Mas não se deve esquecer que, porque procurava ser diferente do que era. Não saber aonde ia
em 1963, Foucault elogiava Bataille por ser o inverso da sabe- não o desagradava.
doria ocidental desde Sócrates, e que, como já observei, opôs Também não se deve pensar seu trabalho como se fosse
Sócrates aos sofistas na mesa-redonda da PUC, ou a filosofia à orientado por um projeto unitário, formado de vários eixos,
retórica, sugerindo "retorizar a filosofia". desenvolvidos em diferentes épocas. Mesmo que ele tenha
É preciso estar atento para não criar uma "ilusão retrospectiva" chegado a afirmar a continuidade de seu projeto na década
sobre Foucault, mesmo se ele próprio algumas vezes fez isso. Du- de 1980 — quando mudou tanto a direção da pesquisa em
rante um curso no Mestrado de Medicina Social da Universidade curso —, como se vê nos cursos O governo de si e dos outros e A
Estadual do Rio de Janeiro, em 1974, alguns alunos e eu tínha- coragem da verdade e no livro O uso dos prazeres. No início da
mos posições discordantes a respeito do método de Nascimento introdução de O uso dos prazeres — intitulada justamente "Mo-
da clínica. Enquanto eles privilegiavam na análise o conceito de dificações" — ele se refere à existência de três eixos na análise
estrutura, eu valorizava o conceito de saber. Em determinado da sexualidade. E não deixa de ser curioso que proponha uma
momento, compreendi o que estava acontecendo. Eu usava a se- visão unitária e sistemática dessa pesquisa no momento em que
gunda edição do livro, de 197z, alguns deles tinham a primeira, escreve para justificar as mudanças introduzidas em seus dois
de 1963, e de fato havia entre elas algumas diferenças terminoló- últimos livros — os mais sóbrios e serenos —, só concluídos
gicas. Descobri naquele curso o que talvez nunca ficasse sabendo. oito anos depois de A vontade de saber, a ponto de Deleuze ter
De uma edição a outra, Foucault tinha eliminado as expressões visto nisso uma crise em seu trabalho intelectual.
que apresentavam o livro sobre a clínica como uma "análise es- Mas essa visão retrospectiva também pode ser encontrada
trutural do significado", próximo, a esse respeito, de História da no final da década de 197o. Um exemplo está na entrevista ao
loucura, em que a palavra "estrutura" aparece várias vezes. Na japonês Hasumi, de 1977, quando Foucault diz que seu pro-
verdade, ao introduzir o "saber" como objeto de uma "análise do blema sempre foi o poder, reconstituindo retrospectivamente
discurso', ele procurava homogeneizar a terminologia metodoló- seu trabalho teórico para mostrar que todo ele sempre foi feito
gica desse livro já antigo com a do recente A arqueologia do saber. em função desse tema. Chega então a defender que As palavras

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e as coisas — livro às vezes considerado marginal por ele em re- de poder, incluindo-os num dispositivo político — é bem dife-
lação aos outros — é a determinação dos mecanismos de poder rente. E a genealogia dos modos de subjetivação característicos
no interior dos próprios discursos científicos. Como se tivesse da "estética da existência" grega e romana, tal como realizada
esquecido que o livro analisa a constituição das ciências huma- em seus dois últimos livros, é ainda mais diferente.
nas a partir de uma inter-relação de saberes, deixando de lado as Por isso, embora os utilize tanto, em geral não valorizo
relações entre os saberes e as estruturas econômicas e políticas. muito seus ditos e pequenos escritos para entender sua obra,
E a mesma visão retrospectiva também se manifesta em 1978, quando são de épocas distintas. Foucault possuía a habilidade
quando se refere a História da loucura e a Nascimento da clínica de falar da mesma coisa de maneiras diferentes. Em geral, fa-
dizendo que, ao escrever esses livros, pensava estar fazendo uma la-se sempre do mesmo modo do que já se sabe, do que já se
história genealógica do saber, mas que o verdadeiro fio condu- formulou. Deleuze é um bom exemplo disso. Michel jamais
tor era o poder. falava do mesmo modo sobre os mesmos temas. Isso me im-
Se, nas pesquisas de Foucault, os discursos são situados his- pressionava, mas também foi importante para relativizar o que
toricamente, os seus também devem ter esse tratamento. Penso ele dizia. Sobretudo nas entrevistas, que devem ser lidas com
isso até mesmo de A arqueologia do saber, livro intrinsecamente cuidado e exigem atenção à época em que foram dadas. E, ao
relacionado às suas pesquisas da década de 196o, que se dá dizer isso, penso nele criticando, em 1973, um entrevistador por
como método dos livros anteriores mas é fundamentalmente se referir a coisas que ele nunca escrevera, ditas apenas em en-
mais uma etapa das transformações metodológicas. Pois, nesse trevistas, e que ele não tinha certeza se as repetiria.
momento, Foucault define a história filosófica dos saberes pelo Além disso, suas entrevistas e palestras dão a impressão de
discurso e pelo enunciado. E essa definição é tão diferente das que ele é um quando fala na França, outro quando nos Estados
definições — sempre diferentes — de seu método, dadas em Unidos, e ainda outro quando no Japão, na Tunísia ou no Brasil.
cada livro anterior, que os termos "discurso" e "enunciado" nem Ao ler as entrevistas em ordem cronológica pela primeira vez, as
aparecem nelas. respostas dadas no ano de 1967 a várias questões me pareceram
Assim, A arqueologia do saber, em vez da explicitação con- muito gerais e pouco nuançadas: a situação da filosofia no sé-
ceituai de um método antes aplicado e ainda não definido, é, a culo xx, do existencialismo, do marxismo, do estruturalismo. A
meu ver, a instauração de novas bases para a história arqueoló- respeito, por exemplo, da filosofia estruturalista, foi no mínimo
gica. Talvez nem mesmo isso, já que esse "discurso do método», curioso vê-la definida como uma atividade que permite diagnos-
metodológico demais, abstrato demais, nunca foi utilizado ticar o presente, a atualidade — na mesma linha em que, naquele
como tal. Nem antes nem sobretudo depois, como mostram mesmo ano, numa entrevista na Itália, ele definiria a filosofia de
os livros seguintes. Pois a genealogia praticada por Foucault Nietzsche e a sua própria atividade filosófica. Fui olhar a quem
logo após A arqueologia do saber — ao explicar a existência e a a entrevista era dada e vi que se tratava de um jornal tunisiano.
transformação dos saberes situando-os como peças das relações E a mesma coisa aconteceu algumas vezes no Brasil.

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É preciso matizar essa ideia, pois esse tipo de resposta de- da Universidade Federal de Minas Gerais José de Anchieta Cor-
pende muito da precisão ou generalidade das questões postas rêa, meu colega em Louvain. Na mesa com o conferencista, era
a Michel. Como, por exemplo, se elas são sobre sua pesquisa difícil a Anchieta, especialista em Merleau-Ponty, traduzir para
da época, sobre o conjunto de sua obra, sobre sua relação com o português suas palavras críticas à fenomenologia perante seus
outros, sobre sua visão de mundo. Mas é possível dizer que, em alunos, entre perplexos e irônicos. Cumpriu sua tarefa pacien-
certos lugares da "periferia" intelectual, nos quais em geral se temente. Depois da palestra, quando estavam a sós, perguntou
conhece pouco rigorosamente a cultura universitária francesa, a Foucault o que pensava de Merleau-Ponty. E recebeu uma res-
Michel diz certas coisas porque acha — e como estava enga- posta que até hoje o alegra e o faz se lembrar dele como mestre
nado! — que seus ditos nunca irão repercutir no "centro" do de vida e pensamento: "Merleau-Ponty é um poço do qual tiro
debate. Se nos Estados Unidos e na Europa ele é outro, é porque muitas de minhas águas!" A frase é bonita. Mas será possível
lá as pessoas pensam diferente, e ele quer atingir aquelas pessoas pensar nela sem levar em consideração o jovem, simpático e en-
de modo específico. tusiasmado professor a quem ela se dirigia? Acredito que não.
Vou além. Ouso até mesmo dizer que Michel levava em con- É verdade que, no final dos anos 194o e início dos anos
sideração com quem estava falando para saber o que dizer. E 1950, Foucault — que valorizou a chamada "análise existencial',
adaptava sua linguagem e seu comportamento a seu interlo- a "psiquiatria fenomenológica" — tinha seguido, fascinado, as
cutor. Depois da mesa-redonda de 1973, um professor da PUC, conferências e os cursos de Merleau-Ponty na École Normale e
ao participar de outra reunião com ele na casa de um colega na Sorbonne. Além disso, a fenomenologia tinha sido, ao lado
da mesma universidade, perguntou pomposamente: "Qteria da epistemologia, do marxismo e da filosofia de Nietzsche, um
que você me informasse de que lugar você fala!" Entortando dos pontos de partida de sua reflexão, como se pode notar pe-
de rir, ele respondeu simplesmente: "Daqui desta cadeira!" E los conceitos de percepção e de conhecimento em História da
não é surpreendente que, entrevistado pelo professor japonês e loucura. Mas, naquela ocasião, estávamos em 1973, quando Fou-
crítico de cinema Shigehiko Hasumi, no ano anterior, ele tenha cault já se encontrava longe da fenomenologia.
dito que uma cultura não capitalista só poderia nascer fora do É até mesmo possível dizer que toda sua trajetória foi a de
Ocidente e que a era de uma cultura não ocidental do mundo um afastamento progressivo, de uma libertação da fenomeno-
capitalista estava começando? Mas também que, ao conversar logia. No "Debate sobre o romance", organizado pela revista
com sacerdotes num templo zen do Japão, em 1978, Michel te- Tel quel e dirigido por ele em 1963, quando começava a preparar
nha dito que se vivia o fim da filosofia ocidental, e, se houvesse As palavras e as coisas, Foucault já dizia que, depois da Segunda
uma filosofia no futuro, ela deveria nascer fora da Europa ou Guerra Mundial, entre 1945 e 1955, a uma literatura da signifi-
em consequência dos encontros entre a Europa e a não Europa? cação, de pretensão humanista, correspondeu uma filosofia da
Em Belo Horizonte, depois das conferências na PUC do Rio significação, da qual Merleau-Ponty foi um dos representantes,
de maio de 1973, um de seus cicerones foi o professor de filosofia e essa concepção teve no signo e na linguagem uma forma de

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resistência. E As palavras e as coisas é um livro no qual a rejeição
da fenomenologia é patente, sobretudo quando caracteriza a
filosofia moderna, da qual procura escapar. Afinal, o capítulo ix
do livro, "O homem e seus duplos", pretende mostrar o quanto
a fenomenologia, principalmente a de Merleau-Ponty, está em
continuidade com uma antropologia filosófica, ou com o postu-
lado antropológico constitutivo da modernidade — como era o
caso do positivismo e da dialética —, ao confundir o empírico
e o transcendental em sua análise do vivido.
Além disso, esse afastamento aparece com toda força em
1978, na introdução da edição americana de O normal e o pa-
tológico de Canguilhem, quando Foucault distingue uma filo-
sofia da experiência, do sentido, do sujeito, na linha de Sartre
e Merleau-Ponty, e uma filosofia do saber, da racionalidade, do
conceito, na linha da epistemologia de Cavaillès, Koyré, Bache-
lard e Canguilhem, sem deixar dúvida de que lado está. E, numa
entrevista de 1983, ele ainda diria que o pensamento francês
dos anos 196o — dele, de Deleuze e de outros — se deve a uma
insatisfação com a teoria fenomenológica do sujeito.
Foucault foi um filósofo livre. Minha leitura de seus escritos
de épocas diferentes — esclarecida, em grande parte, por meus
contatos com ele — mostra a necessidade de não absolutizar
seu pensamento. Primeiro, compreendendo que se trata do pen-
samento de Foucault, e não da resolução de uma questão, seja
ela qual for. Segundo, compreendendo que aquele é seu pen-
samento em determinado momento de suas pesquisas. E isso
obriga quem quiser pensar os mesmos temas não certamente
a tentar esquecê-lo, mas a tomar distância e ousar expor suas
próprias reflexões.

52 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT


Os dois filósofos que eu seguia com mais interesse e assiduidade
em Paris eram Michel Foucault e Gilles Deleuze.
Quando estudava em Louvain, conheci os livros de Deleuze
sobre Kant e Espinosa. Mas o percebia apenas como historiador
da filosofia, pois ainda não tinha lido Diferença e repetição, sua
obra mais importante, na qual está exposto o essencial de seu
pensamento. Depois, sempre que ia a Paris estudar com Fou-
cault no Collège de France, seguia grande parte dos cursos de
Deleuze na Universidade de Paris vim primeiro em Vincennes,
depois em Saint-Denis, para onde a universidade se mudou em
1978. Ele tinha chegado a Vincennes em 197o, iniciando seu
ensino com o curso "Lógica do desejo", já surpreendente pelo tí-
tulo, e até 1972. seus cursos apresentaram os temas do que se tor-
naria O anti-Édipo. Fui ouvi-lo muito provavelmente por causa
dos elogios de Foucault a esse livro, quando veio ao Rio para as
conferências da PUC, mas também pela extraordinária análise
que fez dos livros de Deleuze Diferença e repetição e A lógica do
sentido no belo artigo "Theatrum philosophicum". Quando fre-
quentei Paris vim Deleuze preparava Mil platôs com Guattari,
pois seus livros sempre foram escritos a partir dos cursos.
Eram cursos fascinantes, seguidos por gente de vários países
e de várias áreas: filósofos, psicanalistas, romancistas, atores, ci-
neastas... Na França, existe a boa tradição do curso aberto, em
que as pessoas vão ouvir quem lhes interessa. Na época, Fou-
cault no Collège de France, Derrida na École Normale Supé-
rieure, Serres na Sorbonne... E na Universidade de Paris vm,

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como talvez em nenhuma outra instituição francesa, o público Não devia ser fácil ensinar nos primeiros anos de Paris
de Deleuze era variado em idade, em origem, em formação. vin. O próprio Foucault, que participou da criação do Cen-
Imaginem minha alegria ao assistir um curso ao lado de um tro Universitário Experimental de Vincennes, encarregado de
ator lendário como Alain Cuny, de Os visitantes da noite, de organizar o Departamento de Filosofia no final de 1968, sendo
Marcel Carné, e de A doce vida, de Fellini. seu primeiro diretor, só aguentou aquela experiência durante
É difícil imaginar o que era um curso como o de Deleuze na dois anos. E saiu cansado de estar o tempo todo cercado de
Vincennes da década de 1970. A pequena sala ficava abarrotada, gente amalucada. A universidade tinha começado a funcionar
apinhada de gente. Quem chegava em cima da hora às vezes não em 1969 como um dos efeitos de Maio de 68, ou, mais precisa-
conseguia nem entrar, pois do lado de dentro, por falta de espaço, mente, por uma concessão do governo ao movimento estudan-
alguns ficavam colados à porta. Quando Deleuze chegava, havia til. Devia ser um centro de excelência, mas foi se degradando
espaço apenas para ele sentar, cercado de alunos por todos os lados. por falta de apoio do governo e de verbas. Além disso, isolou
A ponto de certa vez ele dizer: "Qualquer dia vocês não vão deixar no bosque de Vincennes, longe do centro de Paris, em prédios
espaço nem para mim!" Seguir a aula sentado, próximo dele, e pré-fabricados, bastante pichados e sem manutenção, grupos
ouvir com clareza a voz fraca, arrastada, que ele deixava escapar esquerdistas em luta constante contra facções rivais. E o curso
com dificuldade, exigia chegar com antecedência de quase uma de Deleuze sentia as consequências disso.
hora. A pequena sala também era impregnada do cheiro forte da Penso no discípulo de um dos professores marxistas, inter-
fumaça de Gauloises e Gitanes. E Deleuze insistia no fechamento rompendo-o quase toda aula com objeções althusserianas. Até
da porta e das janelas por causa das correntes de ar. Um aluno as- que, alguns anos depois, vendo-o tomar a palavra e prevendo
síduo numa época, conhecido por vir de um hospital psiquiátrico, o que viria, notei surpreso sua adesão ao pensamento de De-
e
certa vez protestou agressivo, gritando, antes de ele chegar, em leuze. Penso no maoista que, durante uma aula, se levantou e
alusão ao conteúdo das últimas aulas: "Vocês não são máquinas proclamou solene: "Eu me reuni com minha célula e chegamos
desejantes; são máquinas fumantes!" Ao que outros, para meu à conclusão de que você está errado!" Penso no sujeito de cara
espanto, responderam em coro: "Queremos todos morrer! Que- enfaixada que entrou na sala durante uma aula sobre o poder
remos morrer!" Mas Deleuze se recusava a falar num anfiteatro, e o rosto, deixando-o tenso, até finalmente se retirar sem dizer
como queria a direção do Departamento de Filosofia. Precisava nada. Aliviado, Deleuze murmurou transtornado: "Ufa! Ele se
daquele ambiente para pensar. Um anfiteatro mudaria a natureza foi." Penso na aluna que gritou fora de si mais ou menos assim:
do trabalho que fazia, pois ali todo mundo podia intervir. As con- "Devolva meus trabalhos que você está copiando em seus textos!"
dições insuportáveis da sala eram melhores do que as de um anfi- Um dia, Deleuze parou a aula, pôs o chapéu como se estivesse
teatro, de um curso magistral. Ao se discutir, certa vez, a mudança para sair e perguntou o que havia de tão perigoso em suas ideias
de sala, ele chegou a argumentar que o discurso de Foucault tinha para ele ser tão agredido. E confessou que, altas horas, recebia
mudado quando ele foi ensinar no Collège de France. telefonemas com insultos. Guattari, por acaso presente, gritou

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com voz aflita esganiçada: "Vocês estão vendo o que estão fa- minoria é desviar-se do modelo, surpreendia ao dar uma dimen-
zendo? Deleuze pode ir embora e nunca mais voltar! É isso que são histórica e filosófica ao tema. Para fundamentar sua ideia de
vocês querem?" Mas ele não aceitava provocações, e, incapaz de que maioria hoje é ser homem, branco, ocidental, adulto, racio-
arrogância, continuava a falar com o fio de voz serena e avelu- nal, heterossexual, morador de cidade, formulava sua crítica do
dada que expressava a delicadeza de seu pensamento e de sua modelo e sua proposta de um pensamento capaz de dar conta
relação com os outros. da diferença sem subordiná-la à identidade, referindo-se a Pla-
Deleuze era um professor extraordinário. Trazia um es- tão. Sua ideia de que devir é se desterritorializar em relação ao
quema de aula manuscrito, fruto de longa preparação, com se- modelo era esclarecida por contraposição à hipótese de que o
tas apontando em várias direções, e o desenvolvia com calma, principal objetivo da distinção entre modelo e cópia, proposta
humor e exemplos. Demonstrava assim grande consideração por Platão, é produzir um critério de seleção entre cópias. Assim,
pelos alunos, muitos dos quais jamais haviam estudado filoso- enquanto umas cópias mantêm com a Ideia, considerada como
fia. Seus cursos tinham a intensidade de um show de música. modelo, uma relação de semelhança, que as funda como cópias
Quando começava a falar, dava prazer ver o seu pensamento se bem fundadas, outras são desclassificadas por não serem funda-
construindo, como se nascesse na hora, buscando novos cami- das pela semelhança interna com a identidade superior da Ideia.
nhos, lançando, ainda hesitante, novas hipóteses. Depois era Ouvir as aulas de Deleuze foi um dos grandes prazeres inte-
possível reencontrar, em seus livros, aquelas ideias expostas sin- lectuais que tive. Pois, apesar de todos os seus conhecimentos,
teticamente — e por isso de modo bem mais difícil, até mesmo ele não era propriamente um erudito. Pode-se notar isso por
enigmático. Às vezes, uma aula se resumia a uma nota de rodapé. seus livros, mas, principalmente, por suas aulas, que expressa-
Pelos temas que abordava — o corpo, o rosto, o devir, o mi- vam ainda mais a alegria de fazer filosofia e o prazer de trans-
noritário, a intensidade, as forças, a multiplicidade, o limite, a mitir seu pensamento. Seu interesse não era estudar um autor,
diferença — e pelo modo como os expunha, evidenciando sua cercado de todo aparato crítico existente e de maneira distan-
importância para a vida, Deleuze encantava. ciada, para explicar ou aprofundar uma ou mais de suas ideias.
Por exemplo, se comparava Espinosa e Descartes, distin- O que fazia — em geral com perfeição, humor e delicadeza —
guindo a ontologia de um da metafísica do outro, de repente era entrar no pensamento de outro para explorar sua potência
dizia: "É muito diferente sentir-se como substância ou como e sua força a partir da explicitação das questões e problemas
modo!" E, então, até mesmo quem não estava entendendo que desejava pensar. E para utilizar um pensador na criação de
muito bem sua exposição — a grande maioria — sentia a re- sua própria filosofia, ele estava sempre atento à maneira como
lação profunda da filosofia com a vida, descobria que um pen- seu aliado considerava a vida. Nenhum pensador que estudasse,
sador do século )(VII tinha algo importante a nos dizer hoje, filósofo ou não, clássico ou moderno, era tido como múmia; era
e a escuta se modificava. Ou, ao tentar mostrar que maioria e alguém que lhe transmitia vida e por ele era animado. A grande
minoria, pensadas qualitativamente, implicam modelo, e que ser alegria produzida por um curso de Deleuze provinha do fato

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UMA ÉPOCA, DOIS ESTILOS 6i


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de estarmos presenciando alguém usar a filosofia como foi feita durante uma aula temática, ele voltou à ontologia de Espinosa
por outros e os saberes de domínios diversos para pensar por si para fundamentar sua posição, um de seus alunos diletos, ainda
próprio com prodigiosa intensidade. hoje ligado a seu nome, protestou e abandonou a sala ruidosa-
Esses cursos encantavam pelas sugestões que davam, possi- mente por discordar daquela volta ao passado, como se Espi-
bilitando a muitos se apropriarem de seus conceitos para ali- nosa não nos tivesse nada a dizer. Parecia impossível prolongar
mentar seu próprio pensamento, pensar suas próprias questões seu discurso, colocar-se no mesmo diapasão, no mesmo ritmo
em diversas áreas. Uma vez, depois de uma aula sobre o devir, que ele. Mas Deleuze era sempre respeitoso com as pessoas que
perguntei a uma moça que vinha regularmente assistir os cursos: intervinham, mesmo não concordando com elas, e muitas ve-
"Você estuda filosofia?" E ela me respondeu: "Não, faço televi- zes modificava os termos das questões ou das observações dos
são! Mas você não imagina quantas ideias interessantes me vêm, outros para continuar sua exposição.
durante as aulas, para meu trabalho." Mesmo não conhecendo Essa dificuldade de entender mais profundamente seu pen-
muito filosofia, nem a filosofia de Deleuze, as pessoas extraíam samento talvez estivesse ligada à ideia, bastante difundida na
muitas ideias de seu ensino. época, de que sua filosofia teria mudado radicalmente depois
Deleuze é um filósofo instigante, sugestivo. Muita gente, de O anti-Édipo e de seu encontro com Félix Guattari. Havia
cada vez mais, se apropria de seus conceitos para pensar. Mas, até mesmo quem reproduzisse, para justificar essa compreensão,
apesar da importância que eles tiveram para mim e para mui- sua afirmação, em Diálogos, de que havia procurado nos livros
tos outros, seu pensamento era difícil, enigmático. Estávamos anteriores ao Anti-Édipo descrever um exercício do pensamento,
encantados com suas aulas, mas não éramos capazes de enten- e descrever o pensamento ainda não era exercê-lo, havendo en-
der bem o modo como ele pensava e o que pretendia pensar. tre as duas posturas uma diferença como entre gritar "viva o
Compreendíamos superficialmente sua filosofia. E isso era múltiplo" e fazer o múltiplo.
bem diferente de minha atitude em relação ao pensamento de No meu caso, a dificuldade também estava no fato de, na
Foucault, pois, nesse caso, eu sabia perfeitamente o que fazer época, eu só me interessar por O anti-Édipo e Diálogos — livro
com ele. Talvez, inclusive, esse tenha sido um dos motivos pelos publicado em 1977 como uma prévia, talvez pouco rigorosa,
quais não me aproximei muito de Deleuze. de Mil platôs. Ia a Paris antes de tudo para seguir os cursos e
Em meu primeiro curso com ele, em 1973, quando discorria os seminários de Foucault. Além disso, no Brasil, fazia com
sobre o devir animal, alguém procurou ilustrar esse conceito mais três amigos uma pesquisa sobre a medicina social e a psi-
contando que, em sua cidade natal, um homem passava diaria- quiatria brasileiras e, para conhecer melhor a metodologia de
mente em frente à sua casa trotando e relinchando como um Foucault, estudava sua arqueologia do saber e sua genealogia
cavalo. Ao que Deleuze respondeu: "Ah, bom, mas isso não do poder. Depois, graças à importância que lhe davam Fou-
basta para alguém se tornar cavalo!" O desconcertante é que ele cault e Deleuze, me voltei para Nietzsche e a relação entre arte,
dava respostas como essa o tempo todo. De outra vez, quando, ciência e moral, ou para sua crítica da verdade. Só então senti a

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6z
necessidade e a disposição de estudar Deleuze como tinha es- Logo depois de conhecê-lo, e até 1981, aproveitei quase todas
tudado Foucault e Nietzsche, e comecei a dedicar meus cursos as férias de verão para seguir seus cursos e seminários no Col-
e minha pesquisa à sua filosofia. lège de France. Nos cursos, magistrais, as ideias trazidas manus-
Fui levado a estudar Deleuze, sem dúvida, pelo encanto de critas de casa eram expostas solenemente, como se fossem uma
suas aulas, cheias de sugestões sobre como pensar filosofica- oração fúnebre. Embora algumas vezes ele tenha lamentado as
mente os vários temas que abordava. Mas, sentindo que, como poucas trocas de palavra com seu público, Foucault não criava
os outros, eu não compreendia muito bem seu pensamento, a um clima propício para isso, como era possível sentir quando
motivação para me dedicar a seu ensino e a seus escritos foi, so- alguém ousava levantar alguma questão. Aliás, era muito simpá-
bretudo, o desejo de conhecê-lo de modo mais profundo. Pois, tica e inventiva a estratégia de Barthes para manter contato com
mesmo notando o quanto suas aulas e seus textos eram suges- seu imenso público do Collège, ao responder, no início de cada
tivos, senti necessidade de esclarecer o que possibilitava todas aula, as cartas endereçadas durante a semana por seus ouvintes.
aquelas ideias, isto é, como ele criava seu pensamento e por que Como também a de Derrida, na École Normale Supérieure, ao
esse pensamento é tão instigante e capaz de proporcionar tanta comentar, no início de cada aula, as notas que lhe eram entre-
alegria. Assim, em meus cursos, e no livro que escrevi sobre ele, gues no final da aula anterior.
não quis me apropriar de suas ideias — sobre a filosofia, a ciên- Mas Foucault tinha outro lado, igualmente importante. Era
cia, a política, a literatura, a psicanálise — como instrumentos homem de passar o dia inteiro na Bibliothèque Nationale lendo
para a produção de outros conhecimentos. Procurei investigar textos que ninguém mais lia. Manuseava, às vezes, dez, vinte
em que sentido ele é filósofo: compreender qual é o sistema livros por dia, ou até mais. Certa vez me disse: "Quase não leio.
deleuziano de pensamento e, sobretudo, que procedimento lhe Ler pelo prazer de ler, quase não faço mais isso. Na Nationale
permite criar seus conceitos. eu não leio; eu procuro." E efetivamente, quando estive a seu
Já Foucault era mais um conferencista do que propriamente lado pesquisando no "hemiciclo" da antiga biblioteca nacional
um professor. Algumas vezes o ouvi, exultante, dizer: "Não sou da rue de Richelieu, perto do Palais Royal, pude ver, ao olhar
professor; não tenho alunos." O grande auditório do Collège sorrateiramente para sua mesa, a pilha de livros consultados por
de France, apinhado de gente sentada nas cadeiras e no chão, ele para encontrar o que procurava.
em pé ao redor da grande mesa de onde ele falava, era frio, sé- Sempre percebi em Foucault esses dois lados, que se comple-
rio, atento. E a atitude de Foucault não destoava do ambiente. mentavam perfeitamente: orador fúnebre e rato de biblioteca.
Até mesmo quando o vi falar em lugares nada imponentes seu O grande conferencista se harmonizava perfeitamente com o
estilo não variava. Teatral, debruçado sobre seus papéis, mãos pesquisador de fontes, com uma facilidade extraordinária para
espalmadas, semblante crispado, olhos vivos e tímidos, ele tra- encontrar e valorizar documentos esquecidos pelo tempo. E,
zia tudo pronto de casa e lia seu texto com uma habilidade tão sobretudo, dar-lhes sentido. Possuía como ninguém o poder de
extraordinária que nem parecia olhar o que tinha escrito. criticar e criar evidências. Queria pôr em questão justamente o

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que era tido como certeza inquestionável. Certa vez lhe pergun- das tecnologias disciplinares — que atuam para formar e trans-
tei: "Quando você começa a estudar um assunto, o que o move ?" formar o indivíduo pelo controle do tempo, do espaço, da ati-
Ele foi rápido: "Provar que aquilo do qual todo mundo fala não vidade e pela utilização de instrumentos como a vigilância e o
existe." Essa vontade de subverter as certezas é apaixonante. E exame —, despontava o biopoder. E com esse termo Foucault
isso ele fazia o tempo todo. Ele não é um filósofo da fidelidade, queria se referir a um poder sobre a vida, sobre a população,
nem a si mesmo. que age sobre a espécie humana, sobre o corpo como espécie,
Fiz cinco ou seis cursos com Foucault no Collège de France. com o objetivo de assegurar sua existência e de defender a so-
Aproveitava as férias e, ainda que não goste de frio, ia para Paris, ciedade contra "germes" ameaçadores. Questões como as do
pois geralmente eles começavam no início de janeiro e termina- nascimento e da mortalidade, do nível de vida e da duração da
vam na semana anterior à Páscoa. Uma das exigências da pres- vida estão ligadas não apenas a um poder disciplinar, mas a um
tigiosa instituição é que o professor desse doze aulas por ano. tipo de poder que se exerce no âmbito da espécie, da população,
Um curso, Em defesa da sociedade, de 1976, me impressionou com o objetivo de gerir a vida do corpo social.
por um aspecto bem interessante. Era muito centrado na his- O último capítulo de A vontade de saber e os cursos seguin-
tória e nos historiadores do século )(vim como Boulainvilliers, tes dos anos 197o evidenciam o quanto essa ideia foi impor-
historiador da aristocracia, crítico do absolutismo monárquico. tante, o quanto, durante determinado momento, ela reorientou
Um dos temas importantes era sua valorização dos conceitos de sua pesquisa. Na verdade, Foucault era capaz de dar um ano de
raça e de guerra de raças como princípios de inteligibilidade da curso para só no final descobrir o tema que estava querendo
história, que, segundo Foucault, depois seriam retomados por expor, e, numa aula, orientar sua pesquisa numa direção intei-
Marx e transformados em classe e luta de classes. ramente nova. Essa busca do novo, esse desejo de não ficar re-
Durante as aulas eu me dizia: "Meu Deus, troquei o verão petindo o que já se sabe — e até mesmo o que ele já sabe — é
carioca para ouvir Michel falar de Boulainvilliers, que nem sei marcante em seu pensamento. E foi importante para minha
quem é, em quem não tenho o menor interesse..." Estava decep- maneira de lê-lo.
cionado, e não fazia segredo disso. Depois da penúltima aula, E os seminários? Os seminários eram descontraídos, com todo
confessava a um amigo francês meu desapontamento com o mundo falando livremente, expondo as descobertas da semana.
curso daquele ano, que não valia as praias de verão do Rio, e Mas, talvez por ser um pensador solitário — embora vivesse cer-
esse amigo me interrompeu dizendo, quase sussurrando, para cado de amigos e soubesse coordenar muito bem lutas políticas
eu ter cuidado, pois Foucault estava perto e poderia ouvir. É específicas Foucault não me parecia um homem de trabalho
pouco provável que isso tenha acontecido. Mas, coincidente- em grupo. É verdade que, em seminário, no Collège de France, fez
mente, a aula seguinte, a última do ano, foi especial. Em meio um ótimo trabalho editando as memórias de Pierre Rivière e os
àquela factualidade, surgia uma nova ideia importante de sua autos do processo que ele sofreu, além de publicar notas bastante
análise do poder. Além da noção de disciplina, bem diferente esclarecedoras sobre o caso, escritas por ele e por participantes

66 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UMA ÉPOCA, DOIS ESTILOS 67


do grupo. Cheguei logo depois desse momento, quando mem- e colaboradores. Mas como seus critérios de escolha eram mui-
bros importantes da pesquisa sobre Rivière ainda continuavam tas vezes mais afetivos do que operacionais, e como as pessoas
o estudo das relações entre psiquiatria e justiça penal. Mas essas estavam mais interessadas nele do que no assunto dos seminá-
pessoas foram desaparecendo, e o seminário foi se tornando um rios, esses grupos em geral não deram certo. Então encontrou
desencontro, onde só era relevante o que Foucault dizia de tem- a fórmula de distribuir temas a pesquisadores próximos dele, e
pos em tempos. Mesmo assim, aprendi muito ali: a busca inces- cada um dava uma das aulas do seminário — o que significou o
sante dos textos importantes; a preocupação maior com fatos, fim da tentativa de trabalho em comum.
acontecimentos, do que com teoria; a apresentação cautelosa de Foucault possuía como poucos a capacidade de dramatizar
uma possível hipótese. Enfim, a cozinha do trabalho de pesquisa. as ideias e criar novos conceitos. Suas aulas e seus livros, ao re-
Depois, a fama começou a perseguir Foucault, fazendo as vestir de imagens a precisão conceitual, acrescentando-lhe uma
salas do Collège pequenas demais para os que desejavam ou- dimensão literária, são de uma beleza extraordinária. Talvez
vi-lo. Levando-o, em 1976, a mudar o horário da aula do final tenha sido o maior orador e escritor francês contemporâneo.
da tarde para as 9h3o da manhã, na esperança vã de as pessoas Sabia dizer as coisas como ninguém: com beleza e rigor. Falava
não acordarem a tempo de chegar a um anfiteatro menor para como se estivesse escrevendo. Basta ler suas entrevistas para
o qual o curso havia sido transferido, e logo depois abando- perceber isso. E, ao traduzir algumas de suas conferências e de
nado. Além disso, com o sucesso da publicação da pesquisa so- suas aulas, notei claramente como a passagem da linguagem
bre Pierre Rivière, em 1973, o trabalho em grupo começou a se oral para a escrita se dava com naturalidade.
tornar impossível. Mas seus cursos eram bastante diferentes de seus livros. Os
Certa vez, Foucault tentou diminuir o número dos que acor- cursos eram factuais e históricos, baseados em fontes de pri-
riam ao seminário, pedindo para cada um dizer por que estava ali. meira mão, sempre em busca das grandes hipóteses capazes de
Quando chegou a vez de me justificar, não sabia o que dizer. Não subsumir e explicar os fatos revelados. Já os livros — embora
queria declarar que meu interesse era sobretudo metodológico, não se componham de ideias nascidas no banho ou em sonho —
que estava ali para fazer melhor minha pesquisa no Brasil. Então são organizados a partir dessas hipóteses, e os fatos que as origi-
me calei. E o silêncio perdurou até ele dizer que ninguém era naram aparecem bastante resumidos ou nem mesmo são men-
obrigado a falar, que se tinha o direito de ficar calado, e deu início cionados. Interessado na relação entre fatos e teoria, para meu
ao seminário. Sem jeito, comecei a frequentar somente o curso. próprio trabalho de pesquisa, uma vez lhe fiz a observação —
Até ele notar e me dizer que, se eu estivesse interessado, seria um numa reunião da equipe de trabalho sobre história da medicina
prazer se eu voltasse. Ele entendia bem por que eu estava ali. e da psiquiatria, em 1975, no Rio de Janeiro — que havia poucos
Nos anos seguintes, com o aumento do interesse pelos semi- fatos num livro como Vigiar e punir. Ele me respondeu que se
nários tornando impossível pesquisar com tanta gente, ele pas- fosse citar todos os documentos pesquisados para lançar suas
sou a organizar vários grupos de trabalho dirigidos por amigos hipóteses não haveria livro possível.

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Para quem deseja pesquisar utilizando suas ideias, os cursos a saber pelos primeiros cursos do Collège de France e pelo
de Foucault são até mais importantes do que seus livros, por- curso da PUC, passa a ser falso, para Foucault, definir o poder
que nos cursos se sente mais o modo como ele trabalhava. Um moderno como um aparelho repressivo, cujo modo básico de
dia, eu e Pasquale Pasquino, filósofo italiano próximo dele, al- intervenção sobre os cidadãos se daria em forma de violência,
moçávamos com Michel num restaurante chinês do Quartier coerção, opressão. O poder, tal como se exerce na moderni-
Latin, perto do Collège de France. No ambiente descontraído dade — e que ele chama de disciplinar — é positivo no sentido
daquela tarde, perante nossas questões, ele nos disse que éramos de produtivo, a ponto de explicar o nascimento de ciências do
como estudantes medievais, de universidade em universidade homem. Assim, num livro como Vigiar e punir, "normalização',
para ampliar nossa formação. Durante a conversa, Pasquale, na "sociedade disciplinar', "panoptismo" são grandes conceitos que
época pesquisando o conceito de polícia no século )(VIII, reco- subsumem uma poeira de fatos e de instituições capazes de ex-
nheceu a importância de seu ensino oral ao lhe dizer, enquanto plicá-los de maneira global.
mordia os lábios e afagava a barba de nervosismo, que aprendia Mas,quando Foucault começava a pesquisar um tema, tudo
mais em seus cursos do que em seus livros. Os cursos eram pro- era muito colado aos documentos. Além de ser capaz de ler uma
visórios, hipotéticos, empíricos, factuais, sem o arcabouço das quantidade espantosa de livros, ele tinha faro para descobrir as
grandes teses encontradas nos livros, que eram mais um ponto coisas que lhe interessavam. E porque se rendia ao que o docu-
de chegada, uma conclusão, do que um ponto de partida. Por mento trazia de novo, sem querer a todo custo permanecer fiel
isso, o processo da pesquisa era mais visível nos cursos, que per- ao que já pensava, pensou o novo, o diferente. Pois, nos traba-
mitiam notar com mais clareza seu pensamento se desenvolver. lhos que geralmente se faz, não há muita novidade; diz-se com
Não que o pensamento nascesse na hora, é certo, pois sua ex- mais ou menos rigor o que todo mundo mais ou menos já sabe.
posição era preparada de antemão e profundamente baseada na Muito diferente é sacudir as evidências, desconcertar, suspeitar
pesquisa documental. Mas, de um curso a outro, e até mesmo das verdades estabelecidas — característica que ele herdou de
de uma aula a outra, podíamos perceber as modificações, pois, Nietzsche, o filósofo da grande suspeita.
uma vez que não partiam de ideias preconcebidas, as hipóteses Como Nietzsche, Foucault era um filósofo sem aliados, um
mais gerais e ousadas apareciam sempre em último lugar. pensador solitário. Queria sempre ser diferente dos outros, pen-
A novidade de Vigiar e punir, publicado em 1975, foi a intro- sar da maneira mais original, o mais singularmente possível. Se
dução, nas análises históricas de Foucault, da questão do poder lançava uma hipótese — propondo, por exemplo, conceitos
como instrumento capaz de explicar a produção dos saberes como disciplina, normalização, biopoder — já não estava mais
e de contribuir para a realização de combates. E para isso foi lá quando as pessoas começavam a falar dela. Já não se interes-
preciso se insurgir contra a ideia de que o Estado seria o órgão sava mais por aquilo, já encontrava outra maneira de pensar.
único de poder e defender a existência de uma rede de poderes Mas quando vivia a descoberta de suas hipóteses, que pululam
específicos nas sociedades modernas. Pois, como já se começava em seus livros e projetos — pois estava sempre pensando em

70 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT UMA ÉPOCA, DOIS ESTILOS 71


novos projetos de pesquisa —, aferrava-se a elas com ferocidade.
Durante sua passagem pelo Recife, em 1976, um sociólogo
professor da Universidade, que frequentou suas aulas sobre a
história da sexualidade e lhe mostrou a cidade e seus arredores,
teria dito, anos depois, que ele queria sempre ter a última pala-
vra. Ao saber disso, pensei se não seria mais correto dizer que
ele queria ter sempre sua palavra. E, para isso, sem privilegiar
a bibliografia secundária, as pesquisas já feitas, baseava-se nos
próprios documentos. Não adiantava, por exemplo, apontar
periodizações estabelecidas por outros — até os maiores —
para contestar as que ele tinha criado a partir de suas próprias
pesquisas. Também de nada servia lhe sugerir periodizações
globais — nem mesmo priorizando critérios econômicos —,
quando ele estava convencido de que cada tipo de aconteci-
mento exige sua própria periodização. Mas, depois, novas
pesquisas podiam levá-lo a pensar diferente. Ele estava sempre
procurando pensar a partir de um novo ângulo, sob uma luz
que lhe parecesse mais clara.
Isso a respeito de tudo. No final da entrevista com psicana-
listas da Universidade de Vincennes sobre A vontade de saber,
quando o livro foi publicado, Alain Grosrichard, filósofo inte-
ressado no século )(viu, sobretudo em Rousseau, e influenciado
por Lacan, cita um livro de 1786 que menciona pela primeira
vez a mamadeira. E Michel encerra a conversa com seu humor
característico: "Renuncio a todas as minhas funções públicas
e privadas! A vergonha se abate sobre mim! Cubro-me de cin-
zas! Não sabia a data da criação da mamadeira." Ele pode se sair
com essa tirada, mas era alguém para quem importava saber a
data da invenção da mamadeira. Daí viver formulando projetos
de pesquisa que iam muito além da possibilidade de realização.
Nada lhe era indiferente. Tudo lhe interessava.

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT


7z
Estudar em Paris durante as férias, estendendo às vezes um
pouco mais a permanência na Europa, foi essencial. A pas-
sagem brusca de professor a aluno era estimulante e fecunda.
Permitia que eu me dedicasse exclusivamente aos estudos,
longe de outras tarefas acadêmicas, e refletisse com liberdade
sobre o trabalho a fazer quando voltasse. Possibilitava não só
conhecer os conteúdos dos cursos frequentados, mas também
observar o estilo dos professores que eu admirava e costumava
acompanhar: Derrida, Serres, Barthes, Deleuze, Foucault.
Favorecia o contato com alunos e professores presentes nos
mesmos cursos, com trocas de informações e reflexões, prin-
cipalmente antes e depois das aulas. quando olho retrospec-
tivamente para esses anos, sinto-me feliz por ter descoberto
logo, com essa mudança de papel, que um professor é antes de
tudo um aluno capaz de escolher o tema de seus estudos e se
dedicar a ele enquanto lhe interessa. E ainda tem a chance de
contar com outras pessoas interessadas em acompanhá-lo e em
aprender com seu exemplo.
Meu primeiro curso com Foucault foi o de 1973-1974, sobre o
poder psiquiátrico. Era uma retomada, de modo diferente — ge-
nealógico —, da História da Loucura, que li na mesma época. O
livro defende duas teses originais. Primeiro, a "doença mental» é
uma invenção recente. A loucura só se tornou doença mental na
modernidade, com Pinel, Esquirol e os psiquiatras do final do sé-
culo )(vil' e início do século xnc. Segundo, o hospício também é
uma invenção recente. Antes da modernidade, ou da Revolução

77
Francesa, não havia hospital psiquiátrico, uma instituição tera- para ligar o discurso filosófico a um conteúdo exterior à filo-
pêutica própria para os loucos considerados doentes mentais. sofia e relacionado ao Brasil, como o dele levava em conside-
O curso de 1973 retoma a problemática do livro de 1961. Mas, ração os saberes extrafilosóficos e a França. Minha motivação
diferente dele, escrito havia mais de uma década, Foucault não era não ficar repetindo o pensamento dos filósofos; era usar o
estuda mais as concepções de loucura e as práticas de interven- instrumental filosófico — ou histórico-filosófico — desenvol-
ção sobre os loucos antes do nascimento da psiquiatria. Seu obje- vido por ele para produzir um conhecimento novo. Foi o livro
tivo, agora, é analisar a dominação do psiquiatra sobre o doente Danação da norma.
mental, e a produção de conhecimento daí decorrente; é estudar, Contribuiu certamente para essa decisão, tão importante
através de uma microfísica do poder disciplinar e de sua instân- em minha vida, o encontro com o psicanalista Jurandir Freire,
cia normalizadora, o tratamento dos loucos de Pinel a Charcot que já se interessava pelo conhecimento da psiquiatria brasi-
para dar conta da psiquiatria como teoria e como prática. leira. Jurandir é pernambucano, estudou medicina no Recife,
Esta é, sem dúvida, uma perspectiva bem diferente da as- entrou na juc e na Ação Popular em 1964. Depois de Célia,
sumida por ele em História da loucura. E a diferença aumenta sua mulher, ter sido presa por sete meses e ele, detido por três
ainda mais quando se pensa no desaparecimento, nesse curso, dias, resolveu estudar em Paris em 1970. Em sua casa, quando
do que — inspirado em Nietzsche, ou mais precisamente no o encontrei na cidade, em 1973, fiquei sabendo que escrevia
Nascimento da tragédia — Foucault chamou, no livro, de "ex- sua dissertação de mestrado na École Pratique de Hautes Étu-
periência trágica da loucura". Não existe mais para ele uma des de Paris, sob orientação de Georges Devereux. Esse tra-
experiência trágica considerada como valor positivo capaz de balho foi apresentado no ano seguinte e publicado em 1976
avaliar as teorias e as práticas históricas sobre a loucura, como no Rio de Janeiro, com o título de História da psiquiatria no
as da psiquiatria. O trágico tinha deixado de ser um critério de Brasil. Ele analisa o pensamento psiquiátrico da Liga Brasileira
avaliação da racionalidade. de Higiene Mental durante os anos 192.0 e 1930 para mostrar
O primeiro seminário do qual participei, em torno da grande como suas ideias psiquiátricas — organicistas e cientificistas —
mesa de uma pequena sala do Collège de France, como se esti- dependem da noção de eugenia, tão importante no contexto
vesse no Santo dos Santos, foi seguido por filósofos, historiadores, cultural daquela época.
sociólogos, como Robert Castel, Jean-Pierre Peter, Alexandre Sugeri, então, a Jurandir, que acompanhasse o curso de Fou-
Fontana etc. Esse grupo havia acabado de publicar o livro sobre cault sobre o poder psiquiátrico. Ao chegar a Paris, ele esteve na
Pierre Rivière e procurava dar continuidade a essa pesquisa com aula inaugural do Collège de France, publicada depois como A
uma história da perícia médico-legal em matéria psiquiátrica. ordem do discurso, mas não tinha entendido muita coisa. Tentou
Tocado pela maneira como Foucault trabalhava nos semi- ler História da loucura, sem muito sucesso. O curso de 1973,
nários, mas sobretudo nos cursos, achei que poderia ser eficaz no entanto, virou-o pelo avesso, fazendo-o compreender a im-
usar aquela "metodologia", aqueles procedimentos provisórios, portância daquele pensamento novo, como tinha acontecido

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT A SOMBRA DE UM GIGANTE


78 79
comigo com As palavras e as coisas. Nos encontrávamos sema- no nível dos saberes quanto no das práticas. É uma análise na
nalmente naquele auditório repleto. Ali, esperando o curso, qual a dimensão política é considerada constitutiva dos saberes.
tivemos a ideia de ler e discutir História da loucura, e de usar É uma análise crítica, esclarecida por lutas políticas da atuali-
aquelas ideias para estudar a psiquiatria brasileira em seus pri- dade brasileira e internacional, que, ao mesmo tempo, esclarece
mórdios. Em 1974, quando Jurandir e Célia decidiram morar como, historicamente, a psiquiatria se articula a mecanismos de
no Rio, começamos a fazer isso conjuntamente. Pouco depois, poder. Mas isso não significou seguir por completo os resulta-
alguns amigos e alunos se integraram ao projeto e passamos a dos da pesquisa de Foucault sem dar conta de nossa especifici-
ter o apoio institucional e financeiro do Instituto de Medicina dade. Pois só é possível compreender o nascimento da psiquia-
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — na época tria brasileira a partir de um tipo de medicina que incorpora a
Universidade do Estado da Guanabara. Dividimos o trabalho sociedade como seu novo objeto e se impõe como instância de
em dois grupos: um analisava a relação da higiene médica com controle social dos indivíduos e das populações — ideia que
a família; o outro, da medicina social com a transformação da não aparecia nos estudos do filósofo, e que foi formulada ao
cidade e a criação da psiquiatria. Daí saíram dois livros: Ordem analisarmos os documentos que coletamos.
médica e norma familiar, escrito por Jurandir e publicado em Para escrever Danação, durante quase cinco anos nos reuni-
1979, e Danação da norma, medicina social e a constituição da mos semanalmente, e diariamente íamos a arquivos e bibliote-
psiquiatria no Brasil, escrito por mim e mais três amigos, Ân- cas cariocas: Arquivo Público, Biblioteca Nacional, Academia
gela Loureiro, Kátia Muricy, Rogério Luz, publicado em 1977. Nacional de Medicina, Instituto Histórico Geográfico etc.
Em Danação da norma estudamos como, em meados do Trabalhar nesse livro nos deu grande alegria. E essa alegria só
século xix, surgem no Brasil os primeiros trabalhos teóri- aumentou ao notarmos o quanto ele motivou pesquisas e teses
cos sobre a alienação mental, inspirados nas teorias francesas, universitárias e funcionou como instrumento em lutas anti-insti-
principalmente na de Esquirol, o primeiro grande teórico da tucionais. Ao lembrar esse momento intenso do início de minha
psiquiatria. Mas também analisamos como na mesma época é vida intelectual, concordo com a observação de Jorge Luis Bor-
criado, em Botafogo — onde hoje se encontra parte do campus ges, em seu ensaio autobiográfico: escrever em colaboração exige
da Universidade Federal do Rio de Janeiro —, o primeiro hospi- o abandono do eu, da vaidade e talvez até mesmo da cortesia.
tal para doentes mentais do Brasil. Seguindo o modelo francês, Após Danação da norma, ainda continuei a pesquisar as-
o Hospício de Pedro ii inaugura uma nova etapa da história pectos da medicina brasileira utilizando o instrumental con-
da loucura e do louco em nosso país, assinalando, como marco ceitual de Foucault. Por exemplo, o trabalho teórico e polí-
institucional, o nascimento da psiquiatria. tico de Oswaldo Cruz, mais precisamente o protagonismo de
Danação da norma deve muito a Foucault. É uma análise Oswaldo Cruz no caso da febre amarela e da vacina contra a
histórica conceituai, e não apenas descritiva, factual. É uma varíola. Meu interesse era mostrar que, ao se tornar científico,
análise descontínua, que procura estabelecer rupturas tanto um discurso tido antes como não científico não adquire uma

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT A SOMBRA DE UM GIGANTE


8o
neutralidade política; ao contrário, tem seu poder político importância que ele parece ter como inspirador daquelas aná-
exacerbado. Pesquisei por mais de um ano na biblioteca da lises, sobretudo as arqueológicas.
Fundação Oswaldo Cruz, na Biblioteca Nacional etc. Investi- Também não queria morar por alguns anos em Paris, cidade
guei, por exemplo, o debate parlamentar em torno da vacina, que, apesar da beleza de cenário de filme americano dos anos
levado pelos positivistas ao Congresso Nacional. Obtive uma 195o, sempre senti intelectual demais. Gosto do Rio de Janeiro.
bolsa da Capes para estudar em Paris. E o próprio Michel cer- Preciso do jeito descontraído do Rio, cidade que pode não
tificou em papel do Collège de France, em setembro de 1977, ter muito de nada, mas tem um pouco de tudo. Em que outra
que eu preparava sob sua direção uma tese sobre as transfor- cidade grande do mundo pode-se viver como num balneário,
mações produzidas na higiene pública pela microbiologia, e indo ao banco ou ao restaurante de sandálias e calção de banho,
que, indo à França, eu poderia consultar arquivos importantes andando a pé ou de bicicleta, de bermuda e sem camisa, com
e pouco conhecidos. o corpo à mostra? Em que outra cidade grande pode-se sair
Mas notei que, se continuasse esse tipo de trabalho, viveria de casa junto a uma floresta, perto de uma cachoeira, passar
eternamente à sombra de um gigante. Estaria fadado a projetar ao lado de um jardim botânico, margear uma lagoa e chegar
ideias filosóficas de Foucault para esclarecer determinadas ques- ao mar? Muitos certamente dirão que isso não tem a menor
tões históricas, mesmo se esta não fosse minha intenção. Senti a importância. E eu concordaria com eles. Mas eu preciso disso
necessidade de estudar mais filosofia, porque era um jovem pro- para me sentir vivo e poder trabalhar. Correndo cada vez mais
fessor que ainda não tinha "o rosto batido pelos ventos da vida'', o risco, é verdade, de ser esfaqueado por um ladrão ou atingido
como diz Machado de Assis, e percebi que só estava lendo tex- por uma bala perdida.
tos sem muito interesse para minha formação. Não queria mais Em Paris sempre vivi para estudar e fazer programas culturais,
continuar a ler médicos do século xIx e do início do século xx. até mesmo quando ia encontrar amigos. Certa vez fui convidado
Queria ler filósofos e grandes pensadores — sobretudo literatos. para jantar na casa de um amigo, Robert Castel, que não via há
Como os utilizados nas pesquisas de Deleuze, cujas referências, anos, com mais três ou quatro amigos comuns. Assistimos na te-
abundantes nas notas de rodapé de seus livros, em geral lia com levisão a uma entrevista do filósofo e musicólogo francês de ori-
empolgação, sentindo o quanto eram importantes para o apro- gem russa Vladimir Jankélévitch, que tinha acabado de morrer;
fundamento de temas que eu sabia não conhecer bem. passamos à mesa e a entrada foi Foucault, o prato principal, De-
Além disso, o pensamento filosófico de Foucault em sua leuze e a sobremesa, Bourdieu. Quem não tinha medo de insônia
arqueologia dos saberes e em sua genealogia dos poderes era tomou um cafezinho, nos despedimos e fomos embora. Também
sobretudo crítico, demolidor, deixando pouco à mostra os não gosto do tempo nublado e chuvoso de Paris. Ao morar lá por
princípios a partir dos quais a crítica era feita. E isso passava um ano, vivendo num apartamento de parede e porta de vidro,
a ser o que mais me interessava. Se Nietzsche, por exemplo, que dava para um terraço, passei três meses — eu contei — sem
veio a se tornar relevante para mim foi porque vislumbrei a ver o sol. E quando ele surgiu foi para sumir logo depois.

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT À SOMBRA DE UM GIGANTE 83


8z
Além disso, é difícil viver num país em que não se conhecem aceito na família Poirot-Delpech, e passei a frequentar a casa de
bem os códigos. Sobretudo se eles são mais rígidos do que os praia de Saint Pair, na Normandia, a casa de campo em Bassus-
do lugar de onde se vem. Certa vez, chegava a Paris, passando sarry, no País Basco, e sua casa, a de seus pais e a de seus irmãos,
por Lisboa, e desejei telefonar. Em Lisboa os telefones públicos em Paris. Participei das projeções de filmes no Marlene Bon
ficavam nos restaurantes. Entrei num restaurante do Qt_iartier Cinéma, cineclube onde o charmoso apartamento de François,
Latin para telefonar e fui grosseiramente repreendido por um um de seus primos, se transformava em sala de cinema, e éramos
garçom: "Não se telefona em restaurante. Telefona-se em café". recebidos com bebida, comida, um petitjoint, e, no momento
De outra vez, num intervalo de trabalho na Bibliothèque Na- de trocar o rolo do filme, um picolé Esquimo Gervais.
tionale, convidei um rapaz, um dos próximos de Michel, para Juntos vimos filmes clássicos, ouvimos jazz de vanguarda,
almoçar. Era filho de diplomata, tinha vivido em vários países, e andamos ao léu por lugares menos conhecidos da cidade. Mas
a conversa foi boa, com várias histórias sobre suas experiências. também trabalhamos em colaboração. Em 198o, fizemos a
Mas, quando pretendi pagar a conta, ele reagiu indignado, argu- tradução para o francês do meu estudo sobre a importância
mentando que aquele era um encontro de trabalho, e portanto da epistemologia francesa para a criação da arqueologia de
cada um pagava a sua parte. Foucault. Em 1985, preparamos uma coletânea de ensaios sele-
Não quero que o clichê e o preconceito definam minhas cionados dos cinco Hermes, em que Michel Serres propõe um
impressões. Evidentemente Paris não é apenas isso. Havia os conceito de razão que funcione como invariante das variedades
brasileiros que ali moravam ou estavam na cidade para estudar. culturais, sem que haja entre elas importação de modelo, e sim
E, por sorte, depois de lhe falar de minha experiência com os comunicação, interferência, tradução, distribuição, passagem,
franceses, Aurélio Guerra, o amigo brasileiro que fiz nos cursos como indicam os subtítulos dos livros de onde os ensaios fo-
de Deleuze e de Foucault, me indicou o mapa do tesouro, ou ram extraídos. E, para essa coletânea, Hermes, uma filosofia das
da mina de ouro. Apresentou-me à sua amiga Sophie Poirot- ciências, Serres escreveu um prefácio simpático no qual se refere
-Delpech, estudante de história, de uma família de várias ge- à musical e bela língua portuguesa, rememorando os meses que
rações de médicos do Faubourg Saint-Germain, bem antes de ensinou em São Paulo, cercado de amigos inesquecíveis, feliz
as roupas de grife terem substituído os livros no comércio do por estar no Brasil.
bairro. Encontrei-a em Montparnasse, tomamos o ônibus para Não quis, portanto, morar alguns anos em Paris para fazer
o Marais, em direção à casa de sua irmã Caroline, conversamos uma tese. Preferi ficar no Brasil, em efervescência intelectual e
sobre cinema. Anos depois ela me disse: "No final do percurso, política no momento da crise econômica que se anunciava —
você já era meu amigo e não mais o amigo de um amigo!" sensível com a alta da inflação —, criando um crescente descon-
Através dela, comecei a frequentar a confraria dos alunos tentamento popular, e levando os militares liderados pelo pre-
mais próximos de Michel Serres, que se reunia no L'Écritoire sidente Geisel a propor uma abertura política "lenta, gradual e
antes e depois de suas aulas na Sorbonne. Mas sobretudo fui segura". Ainda continuei a ir algumas vezes à França para seguir

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT A SOMBRA DE UM GIGANTE 85


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os cursos dos mesmos professores. Mas desisti das pesquisas em- considerados desmistificadores. Pois, para Deleuze, enquanto
píricas em história das ciências para estudar filosofia. E como Freud e Marx são guardiões de códigos, recodificadores, Niet-
os filósofos que mais me interessavam — Foucault, Nietzsche, zsche é o arauto da decodificação absoluta, é alguém que tenta
Deleuze —, além de muito sugestivos e mal compreendidos, embaralhar todos os códigos, que busca o que não pode ser co-
são de difícil compreensão, resolvi escrever sobre eles, dando a dificado. Vivia-se então o pós-Maio de 68, época na qual, como
possibilidade de outros conhecerem o resultado de meus cur- prova a experiência de Vincennes, universidade impregnada da
sos. Ao refletir sobre a medicina e a psiquiatria no Brasil, eu energia das barricadas do Qaartier Latin, o desejo de subverter
estava continuamente estudando a metodologia de Foucault os códigos institucionais — as relações de poder, as práticas
em minhas aulas na PUC e no Mestrado de Medicina Social — tradicionais — era grande.
onde lecionei de 1974, quando foi criado, até 19 78 — para fazer Aliás, em Vincennes, eu sentia os efeitos de um patético de-
melhor meu trabalho de pesquisa. Decidi então, logo depois de sejo subversivo, quando queria ir ao banheiro. Pois, conside-
Danação da norma, preparar Ciência e saber, livro que traduz rando o fato de haver banheiros masculino e feminino algo bur-
todo o meu fascínio com a descoberta de sua filosofia. guês, os esquerdistas não só acabaram com essa divisão, como
Com alguma relutância, apresentei esse estudo como tese destruíram as portas para que tudo fosse feito às claras. Mas
de doutorado. Hoje, a institucionalização existente na universi- isso, na verdade, não é nada quando comparado à experiência
dade é muito forte. Até mesmo num departamento de filosofia, contada por meus amigos, estudantes socialistas de Heidelberg
em que também impera uma concorrência feroz, as pessoas pas- encarregados de um Jardim da Infância antiautoritário. Que-
sam a se comportar e a pensar a partir de critérios formulados rendo usar Reich para acabar com o complexo de Édipo, eles
pela instituição. Bem diferente de quando comecei a ensinar, faziam as mães terem relações sexuais com outros homens em
pois naquela época se dava pouca importância a critérios ins- frente aos filhos.
titucionais de avaliação como titulação, currículo, produção Também não é sem interesse, para compreender essa época,
acadêmica, classificação de revistas. Michel ter declarado para mim que se fosse um Nietzsche ja-
Não por acaso, na palestra "Pensamento nômade», de 1973, mais estaria no Collège de France. Confessou algumas vezes
no Colóquio de Cerisy, Deleuze afirma que, por conceber o que tinha planos de abandonar a instituição e, mesmo que isso
pensamento como máquina de guerra, Nietzsche é a aurora de não tenha se realizado, a simples manifestação desse desejo in-
uma contracultura que desrespeita as leis, os códigos, as insti- dica o quanto sua posição institucional o desagradava. E não
tuições. E um jovem nietzschiano não é necessariamente quem seria um sintoma dessa exigência de radicalidade ele dizer, em
prepara um trabalho sobre ele, mas quem produz enunciados 1981, numa entrevista em Toronto — ao situar a transformação
nietzschianos durante uma ação, uma paixão, uma experiência. de si como ética, e bem próxima de uma experiência estética —,
Perspectiva bem diferente da exposta por Foucault em 1964, no não se importar com o estatuto universitário de seus estudos,
Colóquio de Royaumont, quando Nietzsche, Freud e Marx são porque seu problema era sua própria transformação?

SOMBRA DE UM GIGANTE 87
86 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT
Esses me parecem sintomas de um comportamento anti-ins- critérios de cientificidade definidos por uma ciência em sua atua-
titucional difícil de encontrar hoje. A conduta que prevaleceu, lidade, a última linguagem falada por uma ciência, como norma
como se Maio de 68 não tivesse acontecido, pode ser ilustrada para avaliar o seu passado. O que faz Foucault com o método
com o exemplo de um professor recém-chegado dos Estados epistemológico para dar conta historicamente das ciências do ho-
Unidos, depois de defender tese sobre a filosofia de Foucault. mem, e não mais das ciências da natureza e da vida? Duas coisas:
Pretendendo se candidatar a uma bolsa do cNPq para continuar conserva as exigências de a história ser conceitual, descontínua e
seus estudos sobre o tema, foi dissuadido pelos colegas com o normativa; desloca essas exigências da questão da cientificidade
argumento de que jamais ganharia uma bolsa de pesquisa para e da ideia de pensar em termos de processo finalizado. Assim,
estudar Foucault. Deram-lhe a sugestão de elaborar um projeto a arqueologia teve como condição a maneira como Foucault
sobre Habermas. Ele seguiu o conselho, obteve a bolsa e se tor- repensou as exigências metodológicas elaboradas pela história
nou um especialista no filósofo alemão. epistemológica para criar um novo tipo de análise histórica.
Além disso, no caso dos departamentos de filosofia, pouca Mas ele não elabora um método de investigação rígido, inva-
gente, naquela época, tinha doutorado no Brasil. Eu, por exem- riável, universalmente válido. Sua atitude teórica, ao contrário,
plo, fui um dos criadores da pós-graduação da PUC tendo ape- é a tal ponto marcada — de maneira assumida e refletida —
nas o mestrado. Fazer uma pesquisa de história das ciências era pelo provisório, que é impossível definir global e sistematica-
muito mais importante para mim do que defender uma tese. Se mente um termo como "arqueologia". O que há é um processo,
acabei cedendo, foi porque no início dos anos I980 a PUC pre- ele mesmo histórico, pelo qual a arqueologia foi definida de
tendia criar o doutorado, e como sem o título eu não poderia modo diferente em cada obra: como "arqueologia da percepção"
ensinar no curso, meus colegas insistiram para que eu obtivesse em História da loucura, "arqueologia do olhar" em Nascimento
o diploma. Aproveitei meus estudos sobre a epistemologia e da clínica e, finalmente, "arqueologia do saber" em As palavras
sobre Foucault e defendi, na Universidade de Louvain — onde e as coisas. Ao mesmo tempo, além de todas essas transforma-
já havia feito os cursos do doutorado, no final dos anos 196o —, ções metodológicas, existe um importante invariante; é sempre
uma tese sobre a relação entre arqueologia e epistemologia. a busca de uma dimensão de profundidade — da percepção
Dava forma, assim, aos principais temas de minhas aulas na PUC em relação ao conhecimento, do olhar em relação à linguagem,
na década de I970, relacionando-os. do saber em relação à ciência — que permite à arqueologia
A história epistemológica analisa a ciência a partir do con- definir a especificidade de seu objeto, a singularidade de seu
ceito considerado como o elemento que melhor expressa a racio- método e sua diferença em relação à história epistemológica. E
nalidade, a normatividade interna do discurso científico. Além fiquei muito contente de Michel ter concordado com minhas
disso, ela pensa a ciência como um processo finalizado, mas des- hipóteses depois de ler meu texto.
contínuo, isto é, que se dá por rupturas sucessivas. Finalmente, Mesmo quando abandonei a pesquisa de documentos mé-
ela é judicativa, normativa, recorrente, no sentido de que parte de dicos e psiquiátricos, o encontro com Michel continuou a me

88 IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT A SOMBRA DE UM GIGANTE 89


mostrar a importância de relacionar a filosofia com outros mesmo tempo, a crítica mais radical do projeto moderno. Crí-
saberes. Não só os produzidos pelas ciências, mas sobretudo tica que marcou profundamente o pensamento de Foucault na
pelas artes e pela literatura. E isso me levou a privilegiar temas época da História da loucura.
estéticos e ontológicos, como o trágico, sobre o qual comecei
a escrever.
Com efeito, concebi esse estudo sobre o trágico como uma
arqueologia, uma análise histórico-filosófica do conceito de trá-
gico, mais ou menos como Foucault havia feito com os concei-
tos de loucura, doença, ciências do homem. Essa proximidade,
essa convergência está em eu ter procurado fazer uma análise
que privilegiasse o conceito, o sentido conceitual das palavras,
atento a seu aparecimento e a suas transformações no tempo.
Assim, as exigências metodológicas que detectei na arqueolo-
gia — as exigências de a análise ser conceitual, descontínua e
normativa — estão presentes nessa pesquisa.
Mas Michel também está presente na minha decisão de fazer
um estudo mais temático do que monográfico. Pois, embora em
geral se pense em trágico quando se pensa em Nietzsche, procu-
rei mostrar que, além de não ser o único a ter pensado o trágico
na época moderna, Nietzsche se insere perfeitamente em um
projeto existente na Alemanha desde o final do século xviii.
E esse projeto de interpretar a tragédia como um documento
filosófico que apresenta uma visão trágica do mundo antes não
existia. Pensadores importantes como Peter Szondi, Lacoue-
-Labarthe e Jacques Taminiaux me ensinaram isso e muito mais
a esse respeito. Mas minha admiração pelos trabalhos de Fou-
cault foi em parte responsável pelo desejo de investigar a cons-
tituição histórica do pensamento sobre o trágico desde o seu
surgimento na modernidade — em Schiller, Schelling, Hegel,
Hõlderlin, Schopenhauer — até Nietzsche, filósofo que talvez
represente o ápice da trajetória de todo esse movimento e, ao

IMPRESSÕES DE MICHEL FOUCAULT o


90 A SOMBRA DE UM GIGANTE 91
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beautiful. As he thinks of her, he who writes feels young again,
and remembers a paragon.”

Esmond falls instantly in love with the dazzling beauty, and the rest
of the book, down to nearly the end of the last chapter, has for its
theme his fruitless devotion to this brilliant, volatile, imperious, and
capricious girl, and her mother’s sympathy with him in his vain suit!

He again betakes himself to the army to win a rank and a name so


as to lay them at her feet. He takes part in the great campaigns of
Marlborough in Flanders—at Donauwörth, Blenheim, Ramillies,
Oudenarde, Wynendael, Malplaquet. He is wounded at Blenheim,
and again (near the close of the war) at Mons, and he is promoted
until he reaches the rank of colonel. He returns to England from time
to time, meets the brilliant girl (now maid of honor to the Queen) to
whom his life is devoted, only to have his heart torn by her coldness
and her caprices. Once for a moment she relents, but the mood
passes and she pursues her schemes of ambition. First she is
betrothed to Lord Ashburnham, then to the Duke of Hamilton, and
when that nobleman falls in a duel with Lord Mohun, it is Esmond
who has to bring her the news of this crushing blow to her ambition.

And now he will attempt one brilliant feat to win her. Queen Anne is
near her end. Esmond will bring back to England the Pretender, the
exiled King (to whose cause the family are deeply devoted) to take
the vacant throne. Here follow the details of this scheme, and a
description of the king’s dissolute and fickle character. He is brought
to the house of Lady Castlewood, where he shows too plainly his
fancy for Beatrix, who on her part is far too compliant. She is sent
away to Castlewood, and becomes furious at the suspicions of her
family. When the plot of the king’s friends is ripe the Pretender can
not be found. A letter from Beatrix informing him that she is a
prisoner is intercepted, and Esmond and her brother Frank ride all
night to Castlewood, where they find the young king, and although
they are in time to save her honor, yet this crowning infidelity has
crushed out the last spark of Esmond’s love. On their return to
London the Queen is dead and George is proclaimed King.
Let the concluding scenes of the story be told in Esmond’s own
words:

“Ever after that day at Castlewood, when we rescued her, she


persisted in holding all her family as her enemies, and left us, and
escaped to France, to what a fate I disdain to tell. Nor was her
son’s house a home for my dear mistress; my poor Frank was
weak, as perhaps all our race hath been, and led by women....
’Twas after a scene of ignoble quarrel on the part of Frank’s wife
and mother (for the poor lad had been made to marry the whole of
that German family with whom he had connected himself) that I
found my mistress one day in tears, and then besought her to
confide herself to the care and devotion of one who by God’s help
would never forsake her. And then the tender matron, as beautiful
in her autumn, and as pure as virgins in their spring, with blushes
of love and eyes of meek surrender yielded to my respectful
importunity, and consented to share my home.”

If Esmond had shot himself, or turned monk, or spent his last days
alone, or lived with Lady Castlewood as her son, the artistic harmony
of the book would have been preserved, but to marry one who had
been in the place of a mother to him all these years—Faugh! not
even the genius of Thackeray can make such a match attractive.
This dreadful anticlimax mars what would otherwise be beyond all
question (and what may be still in spite of it) the most beautiful work
of fiction ever written.

Thackeray knows better than any other novelist, except perhaps


Cervantes, how to describe a gentleman. That peculiar aggregation
of qualities so unmistakable, yet so elusive of definition, which go to
make up this character, appear more clearly in his novels than
anywhere else in English fiction. Henry Esmond, Colonel Newcome
and Major Dobbin are almost as perfect examples of this as the
Knight of the Sorrowful Countenance himself. And Thackeray (in
another work) thus speaks to us of gentlemen:

“Perhaps these are rarer personages than some of us think for.


Which of us can point out many such in his circle, men whose
aims are generous, whose truth is constant, and not only constant
in its kind but elevated in its degree; whose want of meanness
makes them simple; who can look the world honestly in the face
with an equal manly sympathy for the great and small? We all
know a hundred whose coats are very well made, and a score
who have excellent manners, and one or two happy beings who
are what they call in the inner circles, and have shot into the very
centre and bull’s eye of the fashion; but of gentlemen how many?
Let us take a little scrap of paper and each make out his list.”

The diction of Thackeray is exquisite beyond all comparison with that


of any other author. There are some repetitions, and many marks of
carelessness, but Thackeray does not suffer because he is careless,
he seems rather to gain by it. Henry Esmond is full of digressions; for
example, the historical accounts of the campaigns in Flanders have
little to do with the main purpose of the story. But where else can we
find history written with such a charm? You seem to be in the midst
of the events it chronicles, beholding its great scenes and listening to
contemporary gossip and criticism. Where else is any such
description of a hero like that of Marlborough:

“Our chief, whom England and all Europe, saving only the
Frenchmen, worshiped almost, had this of the godlike in him, that
he was impassible before victory, before danger, before defeat.
Before the greatest obstacle or the most trivial ceremony; before a
hundred thousand men drawn in battalia, or a peasant
slaughtered at the door of his burning hovel; before a carouse of
drunken German lords, or a monarch’s court, a cottage-table,
where his plans were laid, or an enemy’s battery, vomiting flame
and death, and strewing corpses round about him—he was
always cold, calm, resolute, like fate. He performed a treason or a
court-bow, he told a falsehood as black as Styx, as easily as he
paid a compliment or spoke about the weather. He took a mistress
and left her, he betrayed his benefactor and supported him, or
would have murdered him, with the same calmness always, and
having no more remorse than Clotho when she weaves the
thread, or Lachesis when she cuts it....

“His qualities were pretty well known in the army, where there
were parties of all politics, and of plenty of shrewdness and wit;
but there existed such a perfect confidence in him, as the first
captain in the world, and such a faith and admiration in his
prodigious genius and fortune, that the very men whom he
notoriously cheated of their pay, the chiefs whom he used and
injured (for he used all men, great and small, that came near him,
as his instruments alike), and took something of theirs, either
some quality or some property—the blood of a soldier it might be,
or a jeweled hat, or a hundred thousand crowns from a king, or a
portion out of a starving sentinel’s three farthings; or (when he
was young) a kiss from a woman and the gold chain off her neck,
taking all he could from woman or man, and having, as I said, this
of the godlike in him, that he could see a hero perish or a sparrow
fall with the same amount of sympathy for either. Not that he had
no tears; he could always order up this reserve at the proper
moment to battle; he could draw upon tears or smiles alike, and
whenever need was for using this cheap coin. He would cringe to
a shoe-black, as he would flatter a minister or a monarch; be
haughty, be humble, threaten, repent, weep, grasp your hand, or
stab you, whenever he saw occasion—but yet those of the army
who knew him best, and had suffered most from him, admired him
most of all; and as he rode along the lines of battle, or galloped up
in the nick of time to a battalion reeling from before the enemy’s
charge or shot, the fainting men and officers got new courage as
they saw the splendid calm of his face and felt that his will made
them irresistible.”

What a description of the destruction of the French army after


Ramillies:

“At first it was a retreat orderly enough; but presently the retreat
became a rout, and a frightful slaughter of the French ensued on
this panic; so that an army of sixty thousand men was utterly
crushed and destroyed in the course of a couple of hours. It was
as if a hurricane had seized a compact numerous fleet, flung it all
to the winds, shattered, sunk, and annihilated it: Afflavit Deus et
dissipati sunt.”

The author is not so successful in the introduction of his literary


characters, one of whom, Joseph Addison, not only has no relation
to the story, but adds little to the merit of the work.

A peculiarity of Thackeray is the subtle manner in which the motives


and passions of his various personages sometimes reveal
themselves. For instance, Lady Castlewood’s intense love for
Esmond in the early part of the book is altogether a matter of
inference from her strange conduct, and might very easily be
overlooked or misunderstood by persons who lack insight and keen
perception. Indeed, in some places the indications of the motive as
drawn from the words and actions of his heroines are so delicate and
shadowy, that we can not always quite tell what the author would
have us infer, or perhaps we even come to the conclusion that there
is no accounting for a woman. And yet, even when we are thus at
fault, how entirely natural it all seems!

Thackeray never wanders into unknown territory. He writes about the


people he knows and describes the things with which he is in close
contact. In the development of the story there is a blending of
experience and imagination, which mutually aid each other in the
creation of characters that are marvelously ideal and true to nature
at the same time.

Dickens’s men and women are frequently types. You can predict with
great confidence what each will do under given circumstances.
Thackeray’s characters are more uncertain and elusive. But is not
this the way of the world? Those of us who have been mistaken in
the conduct of our friends or enemies (and who has not?) must
acknowledge the essential truthfulness of many a portrait which at
first blush appears inconsistent.

And in this novel, in which Colonel Esmond tells his own story, the
author shows his surpassing power in making us see his principal
characters, especially his dear mistress and her daughter, not so
much as they really were, but as they appeared to the man who
loved them. Thackeray gives to our understanding very good reason
to doubt whether Lady Castlewood had all the perfections he
attributes to her, but he compels our hearts to join in Esmond’s
worship, and to feel even toward the wayward Beatrix a share of the
passion of her lover.
UNCLE TOM’S CABIN
HARRIET BEECHER STOWE

“Uncle Tom’s Cabin” is a novel which was written for a purpose. It


was an attack upon the system of negro slavery and was intended to
awaken the people of the North to a realization of the horrors and
essential wickedness of that institution. So well did it accomplish its
purpose that it became an important feature of the history of the
abolition movement, which led to the organization of the Republican
party and finally to the overthrow of slavery. No other American novel
had such a circulation nor left so deep an impression upon its time.
But it has long outlived its moral purpose, and the persistent demand
both for the book and for the play which is taken from it shows that
“Uncle Tom’s Cabin” has a vitality of its own, which entitles it to a
high rank among works of fiction. What are the elements of its
excellence?

It is not in all respects a finished production. The style is uneven and


marred by occasional crudities and weaknesses. The author
evidently lacks a good deal in the matter of literary education. Words
are used unnecessarily which are colloquial, very rare, or perhaps
not found in the dictionary at all. Thus: “The rocking chair of the good
Quakeress Rachel Halliday kept up a subdued creechy-crawchy”;
Rachel collects “needments” for Eliza out of her household stores;
St. Clare speaks of the “cheatery” of his negroes, and other phrases
are used which are equally obsolete or unconventional. Some of the
sentences are awkward in the extreme, and there are involved
paragraphs, with inconsistent similes and metaphors.

Besides this, there is a certain femininity pervading the book, which


appears in minute descriptions of household duties and utensils, and
in a certain religious flavor of the Sunday-school variety, which
obtrudes itself in inappropriate places.

But although the mere literary quality of “Uncle Tom’s Cabin” is not
high, the work is characterized by great dramatic power, and
permeated with a feeling so intense that the expression of it rises in
many places into eloquence. The great feature of this somber and
absorbing novel is its convincing character. The truth of the dreadful
facts which it recounts are shown, not merely by contemporary
records, but the events are described in such a way as to bring with
them the consciousness that they must have occurred. This
overpowering impression of reality and the tragic pathos of the tale
itself contain the secret of its power.

The main plot of the novel flows on in a very natural manner. Uncle
Tom, a faithful, conscientious negro, is the property of a Kentucky
master who is compelled by necessity to tear him away from his
family and sell him “down the river.” First he becomes the property of
St. Clare, an excellent man, upon whose death he is purchased by
one Legree, an incarnate fiend, by whom he is whipped to death for
refusing to become the instrument of his master’s cruelty. Other
incidents, like the escape of Eliza and her husband, who finally
obtain their liberty in Canada, are subsidiary to the main design.

Many of the characters are so natural that they must have been
taken from living models. The cultured, cynical, yet sensitive and
kindly St. Clare, and his querulous wife Marie; Eva, their affectionate,
spiritual, fairy-like child; the grotesque Topsy; the prim and precise
Miss Ophelia, with strong New England instincts and prejudices;
Haley the slave-trader, the “man of humanity,”—seem especially
lifelike. Legree’s brutality is almost inconceivable, and its only
justification is found in the fact that such men, abnormal as they
were, actually existed and controlled the destinies of great numbers
of human beings.

Some of the episodes are quite as effective as the main current of


the narrative; for example, the stealing of Lucy’s baby by the slave
trader on the way down the Ohio, followed by the suicide of the
mother. We know that children were sold in just that fashion, and the
simple narrative tells us exactly what it meant. There is a terrible
power, too, in the whispered story about poor Prue: “She’s got drunk
again and they put her down cellar, and they left her all day, and I
hearn them saying that the flies had got to her, and she’s dead.” No
detailed account of the actual barbarities inflicted upon the wretched
creature could give a stronger impression of the hideous reality than
the whispers of the other slaves who knew of it and yet were afraid
to speak.

To make a fine work of art, the subject ought to be worthy and the
treatment artistic. Mrs. Stowe fails a little in the latter point, but there
was never a novelist with a more impressive theme. It is that theme,
after all, which has given to her work the chief part of its permanent
value.
CRANFORD
MRS. GASKELL

“Cranford” is a novel of somewhat the same character as “Pride and


Prejudice.” There are few pictures more true to life than Mrs.
Gaskell’s description of the small town and the little ladies who
inhabit it. It was a town from which men were mostly absent, and
where it was felt that they would be quite useless even if they were
there. The little women were filled with great love for gentility and a
distrust of mankind so great that they almost persuaded themselves
that to be a man was to be vulgar. They practiced “elegant
economies”—for money-spending was “low and ostentatious.” They
never admitted their poverty, and were greatly shocked when
Captain Brown came to town and openly confessed his own. They
were so refined that they had to retire to the privacy of their own
rooms to suck an orange, and were filled with dismay when at the
house of Mr. Holbrook peas were placed upon the table to be eaten
with a two-pronged fork.

We have delicious bits of rambling and inconsequent talk, delicate


descriptions of the various strata of respectability in Cranford, and of
the autocratic social dominion exercised by one Mrs. Jameson, who,
although a great tyrant over her neighbors, lived in abject fear of her
own butler. The author portrays graphically the superstitions of the
ladies in this little community, their belief in a “murderous gang”
which was always upon the point of committing some desperate
robbery, their terror of footpads who never appeared, their various
opinions upon the subject of ghosts, and the ingenious scheme of
rolling a ball under the bed so as to find whether a robber was
hidden there, without stooping down to look. The author describes
vividly the character of the small economies in which each person is
said to have some specialty of his own; while one preserves bits of
paper, another saves up all the strings; with a good housekeeper it is
butter or cream, while with Miss Mattie Jenkyns, the heroine of the
story, if the story can be said to have a heroine, it was in the matter
of candles. This Miss Mattie is a lovable character, very self-
depreciating and always submissive to her older sister Deborah.
Miss Mattie had had a lover in her youth, one Mr. Holbrook, an old-
fashioned country farmer who was found lacking in gentility by the
rest of the family, therefore her days ebbed away in single
blessedness.

Realistic pictures are given of the difficulties of the little ladies with
servants and their “followers,” who were always forbidden by the
strict rules prevailing in Cranford, but who never could be kept out.

There are episodes filled with very real and tender pathos—the
sacrifices made by Miss Jessie Brown for her invalid sister, the sad
picture of the suffering of the mother whose boy, after a public
flogging by his father, ran off to sea. This same boy, later in life,
reappeared in Cranford, ever true to his character as a practical
joker, and astonished the ladies by his accounts of the hunting of
cherubim among the heights of the Himalayas, a kind of sport which
seemed to them little better than sacrilege.

The whole book is a delicious epitome of the narrow life of a small


town, and is an ample refutation of the curious dogma, lately
announced, that women are deficient in the sense of humor!
BARFÜSSELE
BERTHOLD AUERBACH

I hardly know whether Auerbach will always be regarded as one of


the great masters of fiction, but to me his simple village stories take
a higher rank than many works that are far more pretentious. They
are filled with infinite tenderness, and are true to the essential traits
of human nature. Auerbach has an intimate knowledge of the village
life in the Black Forest, of which he writes, and he is able to combine
universal characteristics with local peculiarities in such a way that
the picture becomes vivid and convincing.

“Barfüssele” is the story of a little orphan girl, a wise child, clear-


headed and reflective, who develops under the solemn training of
poverty and sorrow into a character of great sweetness, self reliance,
and heroism.

In the opening chapter we see her with her younger brother walking
to the house where they have always lived, knocking at the door and
calling for their father and mother. The children do not understand
the meaning of the funeral they have attended, nor why they have
been separated and given to the care of others, and they are looking
for their parents to come home again. But there is no answer to their
calling, so they go off to the pond and amuse themselves by
throwing stones and making them skip across the water. Here Amrei,
the girl, pretends to be more awkward than she really is, in order to
give Dami, her little brother, the pleasure of showing his greater skill.
Many charming incidents of childhood follow—accounts of the
riddles that she gives and guesses, descriptions of her quaint
childish philosophy regarding the birds, the dogs, the trees, and the
deep problem of human sorrow.

After a while she begins to earn her living by tending a flock of


geese, and when the Rodelbauer, her guardian, wants her to give up
such work because it is a reproach to her, she answers steadfastly, “I
must carry out what I have begun.”

It is a sad life she leads with the Black Marann, a widow, who
through long years has been waiting for the return of an only son,
from whom she hears nothing. The boy has in fact been killed in
Algiers, yet no one in the village dares to tell her, though they tell
Amrei, and the child has to bear the burden of this secret. But amid
all this gloom, the heart of the orphan girl is strengthened by the
precepts of her melancholy companion, who tells her how much
better it is to be sufficient to one’s self than to depend upon another
for happiness. And when at the wedding at the Rodelbauer’s no one
will dance with “Little Barefoot” (for so the girl is called), she dances
by herself and dances well, and says “It is better to dance alone, for
then I do not need to wait for a partner.”

But the main purpose of her life is to cheer and stimulate her
younger brother, a boy who is weak-spirited, complaining and
unsteady, whose character is indeed a sharp contrast to her own.
Into his mind she tries to instil her own spirit of independence. He
finds service in a neighboring village, and she will not weep at
parting with him until after he is gone, and then the world seems very
empty to her. Dami is unjustly turned away from his situation and
loses all his little belongings in a fire. He works for a while with a
charcoal-burner, and then resolves to go to America. His sister
secretly rejoices at his bold purpose, but reproves him severely
when he wants to revenge himself upon the master who has
discharged him. It is largely through her efforts that his passage
money is raised. She gives him his father’s ax and sack, and tells
him that these two things mean that he must work and gather and
save the results of his labor, and that they must be the inspiration of
his life.

Meanwhile she has been taken into service at the Rodelbauer’s, and
her goodness and skill have made her indispensable, though she
suffers much from the taunts and scolding of Rosel, the daughter of
the household. Her clothing is poor, but always very neat, for, says
the author, “Neatness is the ornament of poverty, costing nothing,
but not to be purchased.”

On one occasion Amrei is unexpectedly asked to accompany her


master’s family to a wedding party in a neighboring village, and while
there, when she overhears Rosel’s remark, “It is only our serving
maid,” she says to herself, “Don’t let a word spoil all your pleasure. If
you begin that you will walk everywhere upon thorns.”

An unknown youth, who comes riding a gray horse, dances with her.
There is a lively description of the festival, of her enthusiasm and the
joy of that dance, and of her thoughts in her little room in the still
night when she returns.

The scene now changes to the house of the Landfriedbauer, a


wealthy peasant, whose son Johannes is sent out to seek a wife. His
mother follows the boy down the road and has a long confidential
talk with him, which is charming for its naïvete and shrewdness. Her
description of the signs by which a good wife may be told is quite
elaborate. Johannes must notice how she behaves towards her
servants, how she blows out the light; he must observe her if he can
in anger, “when the hidden inner man leaps out”; he must notice how
she laughs, whether her flowers thrive, whether she is willing to sing
a second part or always wants to set the key. “A girl should never go
with empty hands, and she must leap three hedges to pick up a
feather.” But in her doings she must be quiet and constant, not filled
with mad eagerness, “as if she would tear down a piece of the
world.” He must notice whether she unties a knot or cuts it, whether
she keeps her copybooks and early treasures, whether she wears
her shoes inside or outside, and whether she cares for the poor.
Thus furnished with much useful information, Johannes rides forth
on his gray horse to seek his wife.

Now the father of Johannes has written to the Krappenzacher in


Amrei’s village, to take his son to the best houses there, and the
Krappenzacher, by agreement with the Rodelbauer, is to have a
hundred kronenthalers if Johannes marries Rosel. The young man is
ostensibly looking for another gray horse, so a horse of that color is
put into the Rodelbauer’s stable and the young man is brought
thither to examine him. On this occasion Rosel is to come out and
milk the cows as proof of her housewifery, but as she knows nothing
about milking, the experiment is made with a full pail and with a cow
already milked. While the men are discussing their horse trade,
Rosel’s voice is heard in song near by, and “Little Barefoot” sings the
second part. Johannes asks who they are, and the Rodelbauer tells
him that Amrei is an adopted child of whom his father was once the
guardian, for he knows that this will sound better than to say she is a
servant.

In the meantime Amrei has discovered that the visitor is the same as
he who has danced with her at the wedding, and whose mother it
was that gave her a necklace when she was a child; and Johannes
on his part finds in Little Barefoot the qualities of which his mother
has spoken. In a sudden outbreak of rage and jealousy Rosel strikes
Amrei to the ground. Just at that moment Johannes appears, and
naturally it is not Rosel but Little Barefoot whom he chooses for his
wife.

The lovers’ talk, their riddles and their songs as they ride off together
on the gray horse, are set forth in a narrative of singular beauty, and
when she reaches his home it is the girl and not Johannes who has
to break the news to the Landfriedbauer and his wife and seek their
blessing, while the young man stays at the miller’s in much anxiety
as to the outcome of her mission. Her plea is really eloquent in its
simple pathos. She is accepted, and the Landfriedbauer and his
wife, being anxious to avoid the reproach of having let the boy marry
a penniless girl, each gives her in secret a store of coins which has
been laid by, and when both stores are spread upon the table at a
family reunion, each parent really begins to believe what they both
say, that their new daughter-in-law has come to them with a dowry of
her own.

This modern “Cinderella” is written in a style of great simplicity, and


in my view, the village heroine, the counterpart of whom no doubt
exists in many similar communities, is entitled to a high place in
literature.
EKKEHARD
JOSEPH VON SCHEFFEL

“Ekkehard” is a novel derived very largely from mediæval records


that are now little remembered. It attempts to reproduce for the
modern reader the political and social conditions of the tenth century,
and the story is accompanied with numerous notes and references,
giving evidence of the careful researches of the author. It is to
German scholarship, indeed, that one would naturally look for a work
of this description, for although many novelists elsewhere use
historical materials for certain parts of their works, there are few who
would follow the records with such fidelity.

The scene opens at a castle on a lofty eminence near the lake of


Constance. Hadwig, the young and not inconsolable widow of the old
duke, resolves for diversion to go with her train to the monastery of
St. Gallus on the other side of the lake. This visit, illustrating many of
the details of monastic life, is graphically and attractively described.
According to the rules of the order, no woman’s foot may pass over
the threshold of the cloister, but as the duchess is the protectress of
the convent, it is determined that she may be carried over, and the
duty falls upon the young monk Ekkehard, whose flattering words
win him such favor that he is commanded to go to her castle of
Hohentwiel to instruct her in Latin and read Virgil to her. The
development of a very natural romance follows. Ekkehard is as
innocent as a child, and for a long time his mistress vainly tries to
awaken in him the passion that rises in her own heart. When a horde
of barbarous Huns attacks her possessions, and the monks of
Reichenau and St. Gallus betake themselves to the castle for
defense, she gives him the sword of her late husband and bids him
distinguish himself in the combat. The Huns are defeated, but
Ekkehard has not signalized himself by any remarkable exploit. In a
contest of story-telling, too, he fails to meet the expectations of his
mistress, and when at last his own passion is fully aroused, it is too
late. He seizes an inopportune moment to declare it. He is detected
in the chapel in most unmonastic behavior, and Hadwig is
inexorable. He is imprisoned, he escapes and flees to the regions of
the higher Alps, where he dwells in a cave, and for his own
consolation composes the “Waltharïlied,” a short epic, full of much
slaughter, in which heads and hands and feet are hacked off, eyes
put out, and other unappetizing feats of arms performed amid the
lusty merriment even of those who suffer from these mutilations. This
work is an actual reproduction of a poem of the time, but many will
consider it a blemish in a romance with which it has little connection.

When the winter comes and the flocks on the mountains descend to
the valleys, Ekkehard leaves his hermitage, and passing, on his way
to distant parts, the castle which had witnessed his discomfiture, he
fastens his parchment to an arrow which he sends as a farewell
greeting to his former mistress, whose resentment has softened and
who receives it with tears.

There are many striking episodes in the book. The stern fury of the
hermit Wiborad, immured in a living tomb near the monastery of St.
Gallus; the encounter between the coarse cellarer, Rudiman, and
Kerhildis, the chief serving-maid of the monastery of Reichenau; the
delightful pastoral scenes between the two children Audifax and
Hadumoth, bond-servants of the castle; the elaborate and learned
lampoon written against Ekkehard by the monk Gunzo in revenge for
catching him in a grammatical error; the realistic accounts of certain
ridiculous superstitions; the lifelike description of the preparations for
a German Christmas—these things give the book a deservedly high
rank as a faithful reproduction of the customs of the time. Von
Scheffel has invested mediæval monasticism with a fine poetic grace
and charm. But it is seldom that a story which is used largely as a
means of conveying historical information concerning a remote
period is as vivid in the delineation of character as one where the
scene is laid amid the immediate surroundings of the writer, and it
can not be said that the two chief figures of the novel, Hadwig and
Ekkehard, are at all impressive as portraits of actual life.
THE ROMANCE OF A POOR YOUNG
MAN
OCTAVE FEUILLET

“The Romance of a Poor Young Man” is a charming tale, and quite


free from the cynicism which pervades much of modern French
fiction. The hero (who tells his own story in his diary) is the young
Marquis d’Hauterive, who, reduced to extreme poverty by the
extravagance of his father, assumes the name of M. Odiot, becomes
the manager of the estate of M. Laroque, and falls in love with
Marguerite, the beautiful heiress of the house. She secretly returns
his passion, but treats him oftentimes with great cruelty from the
suspicion that he, like others, is seeking her hand in order to
advance his fortunes. The noble character of both the chief
personages of the novel appears naturally and simply from the
recital of the things they say and do, and the narrative of the
expeditions to some of the Celtic ruins in Brittany upon which he
attends her has all the charm of a pastoral. The ridiculous M.
Bevallan, his rival, who reveals most opportunely his commonplace
character and sordid motives; the romantic Mme. Laroque, the
mother of Marguerite; the ancient spinster, Mlle. de Porhoet, who
bears with dignity her triple burden of high lineage, age, and poverty
—indeed all the characters are skillfully drawn, and their doings form
an excellent background for the action of the two chief personages of
the story.
“The Romance of a Poor Young Man” is emphatically a work of
exquisite finish and high creative art. Yet it does not wholly lack the
extravagances which seem inevitable in modern French fiction.
When the hero has been unjustly reproached by the proud beauty,
who suspects his mercenary designs, he vows in his rage and
despair that he will never wed her, even if she were to implore him
upon her knees, unless his fortune should be equal to her own; and
after every other obstacle is cleared away, he persists in adhering to
this unreasonable vow. Then he learns that Marguerite and her
mother propose to give their fortune to charitable uses, so as to
remove the last hindrance to their union. But this, too, he will not
permit, and it requires a tour de force to straighten out these
complications.

Mlle. de Porhoet has been conducting a long litigation to recover a


certain inheritance in Spain. At the moment of her death the property
becomes hers, and although she had designed it for the erection of a
magnificent cathedral (the dream of her life), she now bequeaths it to
the young marquis, and thus the novel has an appropriate and happy
termination. But it is hard to resist the conclusion that the outcome
would have been more natural if no such extraordinary event had
been necessary to bring it about, but only a little more common
sense on the part of the hero!

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