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A apropriação especular da natureza na arte contemporânea

Helena Ferreira
O Mecanismo
Especular

Reflexo, duplicação

Permite agrupar noções fragmentárias do mundo e de nós mesmos, de forma a criar uma
imagem que pensamos ser real, ainda que derivada e reflectida.

O mecanismo especular permite através do confronto entre


o espelhável e o espelhado, modalidades instáveis e
metamórficas de consciência da realidade.
O Mecanismo Especular

O espelho como ecrã

Fisicalidade e especificidade matérica

Refluxo e dissimulação
- Ora não costumamos também dizer que o artífice que executa cada um desses objectos olhando para a
ideia, é assim que faz, um as camas, outro as mesas, de que nos servimos, e da mesma maneira para os
restantes artefactos? Porque, quanto à ideia propriamente, não há artífice que possa executá-la. Pois como
havia de fazê-lo?
- De modo nenhum.
- Mas vê lá agora que nome vais dar ao seguinte artífice.
- A qual?
- Ao que executa tudo o que sabe fabricar cada um dos artífices per si.
- É habilidoso e espantoso o homem a que te referes!
- Ainda é cedo para o afirmares; em breve dirás mais ainda. Efectivamente, esse artífice não só é capaz de
executar todos os objectos, como também modela todas as plantas e fabrica todos os seres animados,
incluindo a si mesmo, e, além disso, faz a terra, o céu, os deuses e tudo quanto existe no céu e no Hades,
debaixo da terra.
- É um sábio de espantar, esse a que te referes.
- Duvidas? Ora diz-me lá: parece-te que não pode existir, de todo em todo, um artífice desses, ou que, de
certo modo, pode existir o autor de tudo isso, e de outro modo não pode? Ou não te apercebes de que, de
certa maneira, tu serias capaz de executar tudo isso?
- E de que maneira é essa?
- Não é difícil – esclareci eu – e variada e rápida de executar, muito rápida mesmo, se quiseres pegar num
espelho e andar com ele por todo o lado. Em breve criarás o sol e os astros no céu, em breve a terra, em
breve a ti mesmo e aos demais seres animados, os utensílios, as plantas e tudo quanto há pouco se referiu.
- Sim, mas são objectos aparentes, desprovidos de existência real.

Platão, A República, Livro X, Lisboa , Fundação Calouste Gulbenkian, 1983, 596 b-e.
Rui Calçada Bastos
The Mirror Suitcase Man
DVD, b/w, sound, 4´20´´, loop
http://www.ruicalcadabastos.com/works/videos/suitcase/. The Mirror Suitcase Man
2004
Platão

O Espelho é um instrumento da realidade


“3 pontos afastado do real”
aparente que mimetizava aquilo que se
encontrava no mundo das ideias

Logo um artífice que opera segundo este A realidade aparente é tomada


paradigma executava obras longe da como ontologicamente fraca e
verdade, representando “fantasmas” e irreal e desfasada da verdadeira
não coisas reais realidade

Não consideração da esfera sensível do homem


Nietzsche
“O mundo verdadeiro foi por nós destruído: que mundo resta? Talvez o
aparente?... Mas não! Com o mundo verdadeiro destruímos igualmente
o aparente!”

Como o verdadeiro mundo acabou por se tornar fábula”, in Crepúsculo dos Ídolos,
Lisboa, edições 70, s.d
O Mecanismo Especular

O espelho como ecrã Rui Calçada Bastos

• “manipulação produtora de veracidade” (Umberto Eco, in Sobre os Espelhos e outros ensaios)


• Dispositivo capaz de encenar um encadeamento de imagens especulares, dentro de uma imagem
fílmica (não especular), através da instrumentalização da própria linguagem cinematográfica

• Contém uma (sub)-linguagem própria:

-Guião
-Planos
-Movimentos
-Encenação
-Enquadramento
-Montagem

• O Espelho como prótese, segundo Eco, tem a capacidade extensiva que nos permite ver aquilo
que o nosso olhar não atinge

• Fora de campo: permite-nos tomar consciência de diferentes pontos de vista e estabelecer a relação
daquele sujeito com o respectivo mundo, através da construção de uma narrativa cinematográfica.
Rui Calçada Bastos
The Mirror Suitcase Man
DVD, b/w, sound, 4´20´´, loop
The Mirror Suitcase Man
2004
O Mecanismo Especular

Fisicalidade e especificidade matérica Anish Kapoor

• Reduz as características dos materiais como o peso, o comprimento, a distância, entre outros.

• Convexidade: retém e comprime a informação, uma vez que o seu campo de reflexão é maior.
• Concavidade: reflecte um mundo do avesso, carregado de virtualidade.
Anish Kapoor
Sky Mirror
2001
Anish Kapoor
Cloud Gate
2006
O Mecanismo Especular

Fisicalidade e especificidade matérica Anish Kapoor

• Reduz as características dos materiais como o peso, o comprimento, a distância, entre outros.

• Convexidade: retém e comprime a informação, uma vez que o seu campo de reflexão é maior.
• Concavidade: reflecte um mundo do avesso, carregado de virtualidade.

•“Não-objecto” - Estado de transição entre o espaço real e o espaço virtual

•Espelhos deformantes: “...há como que o início de um processo de universalização, um esquecer o


referente para fantasiar sobre o conteúdo...” (Umberto Eco, in Sobre os espelhos e outros ensaios).

• Michel Foucault (in As palavras e as coisas) - Emulação: Graças a esta relação de emulação, as
coisas, de uma ponta à outra do Universo, podem imitar-se sem encadeamento e proximidade: pela
sua duplicação especular, o mundo suprime a distância que lhe é peculiar...”
Dan Graham
Two-Way Mirror and Hedge Labyrinth
1989-1991
O Mecanismo Especular

Refluxo e dissimulação Dan Graham

• Capacidade de sobreposição e ocultação no meio envolvente

• Jogos perceptivos entre aproximação e distanciamento daquilo que se confronta com o objecto especular

• A especificidade dos materiais reflectores pode permitir a permeabilidade às alterações atmosféricas

• Transparência e sobreposição de imagens, que permitem um amontoamento de espectros que se


encontram sobre a influência das intempéries da natureza.
Não é uma mera duplicação especular da natureza.
O espectador entra num exercício de descodificação que obedece a um determinado tipo de regras de
projecção que temos previamente interiorizadas.

Diferentes formas de reflexão.


Duplicação “irreal” condicionada pelas potencialidades dos materiais permeáveis à “irrealidade”.
Permite igualmente a tomada de diferentes pontos de vista.

O Espelho enquanto canal-prótese é um dispositivo transmissor de informação e com capacidade


extensiva, que traz força de ilusão, surpresa e metamorfose às percepções do indivíduo que o confronta

Permite ao espectador gozar dos resultados artísticos da especularidade como se estivesse perante uma
outra natureza, um outro corpo, um outro lugar.

Abre uma diversidade de campos imagéticos, reais, simulados, de forma a enriquecer a nossa percepção
da natureza, contemplando as metamorfoses da mesma através de mecanismos também eles
metamórficos.
IV Ciclo de Conferências
Arte e Natureza
FBAUL

2009

A apropriação especular da natureza na arte contemporânea

Helena Ferreira

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