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Professora

Rildenice Santos
PARA GOSTAR DE LER VOL 10
A Aranha
Melo sempre gostava de bater um violão, diz Enéias, desde
modinhas até os clássicos Chopin, Beethoven. Uma noite, ao
tocar uma toada melancólica, viu a poucos passos, enorme,
cabeluda, uma aranha caranguejeira. A reação é de medo.
Parou de tocar e pensou em matar. Mas a aranha desapareceu,
com uma rapidez incrível, fugiu, penetrando numa flincha da
parede. Apesar da insistência, Melo não consegue matar o
insetozinho; volta para a rede e pôs-se a tocar outra vez a
mesma toada triste. A caranguejeira reaparece. Melo para de
tocar para dar um golpe, mas antes disso, ela novamente entra
no buraco. Ele fica intrigado e percebe que a aranha está
sendo atraída pelo som do violão. Então passa o caso adiante.
Isso faz sucesso. Muita gente começa a querer ver a tal aranha,
fã de O luar do sertão e de outras modinhas. Melo, que vivia
sozinho, agora tem a companhia, estranha companhia da
aranha. As pessoas começam a se afastar, já não há mais
curiosidade:
após dois ou três meses daquela comunhão - o caso não
despertava interesse, os amigos já haviam desertado. Pensa em
ter que voltar para São Paulo, mas fica preocupado em deixar
para trás a caranguejeira. Certa noite, apareceu um camarada de
fora, que não sabia da história. Hospedado ali com Melo, os dois
conversam longamente, inesperada palestra de cidades naqueles
fundos do sertão. Depois de tantas, Melo começa a tocar,
distraído. Não se lembra de avisar o amigo. Quando a aranha
apareceu, o amigo toma um susto, e, num salto violento, sem
perceber o grito desesperado com que o procurava deter o
hospedeiro, caiu sobre a aranha, esmagando-a. A reação de Melo
é um grito de dor e uma angústia mortal nos olhos. Isso acontece
justamente quando ele tocava a Gavota de Tárrega, música
preferida da coitadinha. Finalmente, o narrador consegue pegar o
elevador: - Desce! Desci.
PARA GOSTAR DE LER VOL 10
Os devaneios do General
Noutro tempo todos vinham pedir a bênção ao General Chicuta,
intendente municipal e chefe político... A oposição comia fogo
com ele... Ele mandava e desmandava. Elegia sempre os seus
candidatos: derrubava urnas, anulava eleições. Conforme a sua
conveniência, condenava ou absolvia réus. Certa vez mandou dar
uma sova num promotor público que não lhe obedeceu a ordem
de ser brando na acusação. Noutra ocasião, correu a relho da
cidade um juiz que teve o caradurismo de assumir ares de
integridade e de opor resistência a uma ordem sua. O general se
lembra do dia em que um artigo desaforado apareceu na Voz de
Jacarecanga . Sem assinatura, dizia assim. A hiena sanguinária
que bebeu o sangue dos revolucionários de 93, agora tripudia
sobre a nossa mísera cidade desgraçada. O general entende ser
com ele, não havia dúvida (corria por todo o Estado a sua fama
de degolador.) Ele fica furioso, quase estourou de raiva. Tremeu,
bufou, enxergou vermelho.
Pegou o revólver. Passado o primeiro impacto, desconfiou de
quem pudesse ter vindo tal artigo: Botou a farda de general e
dirigiu-se a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do
jornal. Pegou o revólver. Passado o primeiro impacto, desconfiou de
quem pudesse ter vindo tal artigo: Botou a farda de general e dirigiu-
se a Intendência. Mandou chamar o Mendanha, diretor do jornal. O
Mendanha veio. Estava pálido. Era atrevido, mas covarde entrou
de chapéu na mão, tremendo. O general manda Mendanha sentar,
em seguida picou a página em pedacinhos, amassou-os todos
numa bola e atochou-a na boca do outro, ordenando que comece.
Mendanha suplica com o olhar, ao passo que o general encostava-
lhe o revólver no peito e rosnava com raiva. Para o general, a ordem é
“Inimigo não se poupa.” Ferro neles! Os devaneios do general o
levam a 93... Foi lindo. O Rio Grande inteiro cheirava a sangue.
Quando do ataque aos inimigos, não ficou nenhum prisioneiro vivo
para contar dos outros. Só os corvos voavam sobre o
acampamento de cadáveres. Entre os destroços, o general
encontrou conhecidos, antigos camaradas.
Teve um leve estremecimento, mas logo a frase veio a mente:
inimigos não se pouca. Não remorso. Agora, o general moribundo
está nas mãos de Pentronilho, a quem ele chama de negro safado!
Petronilho se oferecera para cuidar do velho, sabia que seu pai havia
sido morto pelo general: Quis esbofeteá- lo. O mulato reagiu,
disse-lhe desaforos, saiu altivo. No outro dia... Apesar de menino,
Petronilho entendeu tudo e pensou na vingança, mas com o correr
do tempo, esqueceu. Como enfermeiro do general, goza, provoca,
desrespeita. E fica rindo. Ao pedido de água, Petronilho traz suco
de laranja. O velho estribuça desesperado: - Eu disse água!
Petronilho encolhe os ombros e responde: - Mas eu digo suco de
laranja. Finalmente, o general se entrega. Petronilho sorri. Já faz
três anos que assiste com gozo a esta agonia. Fizera tudo de
propósito. Pediu apenas casa, comida e roupa, para cuidar do
general. Diante do bisneto, o general contempla-o com tristeza e
se perde em divagações... Num mundo de maricas, o mundo de
Chiquinho, talvez o último dos Campolargos!
De repente, a criança entra correndo: - Vovô! Vovô! Nas mãos, uma
lagartixa verde se retorce,manchada de sangue: - Degolei a
lagartixa, vovô. O general se assusta, perde a voz, no choque da
surpresa. Depois murmura, comovido: - Seu patife! Seu canalha!
Degolou a lagartixa? Muito bem. Inimigo não se poupa. Seu
patife! Feliz, afaga a cabeça do bisneto, com uma luz de
esperança nos olhos.
PARA GOSTAR DE LER VOL 10
Peru de Natal
Juca rejeitava a figura do seu pai, homem de "natureza cinzenta",
"ser desprovido de qualquer lirismo, duma exemplaridade incapaz,
acolchoado no medíocre":
"...Meu pai fora de um bom errado, quase dramático, o puro-
sangue dos desmancha-prazeres". Passavam-se cinco meses da
morte do pai e era Natal. Nas ocasiões natalinas anteriores, nada
de "gostoso" acontecia. Tudo tinha sabor de chateação. Não se
gastava dinheiro com peru. Agora, Juca queria um Natal com peru.
Era louco, sim. A família toda, mãe, irmãos, parentes chatos, todos
o tinham por doido. Ele próprio se aproveitava de tal situação para
dar explicação a seu comportamento "diferente". Absurda a idéia
de Juca venceu. Havia peru com farofa no Natal. À mesa, a mãe,
ele e os irmãos. Juca sente extrema afeição pela mãe, pela tia (que
morava com eles) e pela irmã, as três mulheres-mães dele. Peru
posto na mesa. E evocação da figura do pai. Uma raiva do defunto
toma conta de seus sentimentos. O peru morto é destrinchado. O
pai é destrinchado. É uma luta com o peru. É uma luta com a
memória do pai.
Aos poucos, diante da felicidade de ver a família reunida,
comungando a ceia de Natal, a figura indesejada do pai vai-se
anulando. A guerra vai sendo vencida. O pai agora distante: uma
estrelinha lá no céu. Acabada a refeição, todos vão descansar.
Juca sai para ver Rose. Beija as três. Para a mãe, ele pisca.
O Peru de Natal trata de uma festa familiar, com a presença
do círculo mais familiar ao narrador, sem que dela participem
outros parentes mais distantes, excetuando-se também o pai do
narrador, falecido. Morreu meu pai, sentimos muito, etc. Quando
chegamos nas proximidades do Natal, eu já estava que não podia
mais pra afastar aquela memória obstruente do morto, que
parecia ter sistematizado pra sempre a obrigação de uma
lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da
família. Uma vez que eu sugerira a mamãe a idéia dela ir ver uma
fita no cinema, o que resultou foram lágrimas. Onde se viu ir ao
cinema, de luto pesado! A dor já estava sendo cultivada pelas
aparências, e eu, que sempre gostara apenas regularmente de
meu pai, mais por instinto de filho que por espontaneidade de
amor, me via a ponto de aborrecer o bom do morto.
Surge, então, a idéia louca de um Natal em família, sem a
parentada do diabo que costumava ofuscar o brilho da festa. O
narrador queria dar às suas três mães ( a mãe, a tia e a irmã) o
melhor que lhe era permitido, porque nunca elas tiveram a
oportunidade de saborear verdadeiramente um peru, já que nas
festas que eram servidos perus, as mulheres três dias antes não
paravam de trabalhar; a parentada devorava tudo, as mulheres
ficavam exaustas e não provavam quase nada do que haviam
preparado, entre doces e salgados finíssimos. Do peru, só
experimentavam uns nacos de carne... Não, não se convidava
ninguém, era um peru pra nós, cinco pessoas. E havia de ser com
duas farofas (...) como aprendera na cãs da Rose, muito minha
companheira. Está claro que omiti onde aprendera a receita, mas
todos desconfiaram. E ficaram logo naquele ar de incenso
assoprado, si não seria tentação do Dianho aproveitar receita tão
gostosa. E cerveja bem gelada, eu garantia quase gritando. É
certo que com meus gostos , já bastante afinados fora do lar,
pensei primeiro num vinho bom, completamente francês. Mas a
ternura por mamãe venceu o doido, mamãe adorava cerveja.
O peru foi feito, e depois da Missa do Galo, aconteceu o mais
maravilhoso Natal da família. Enquanto o peru era servido,
ficara abafada a mediocridade do quotidiano. Todos foram
sendo tomados por um milagre de amor. Juca separou o maior
e melhor prato para a mãe, sempre calada em sua cumplicidade,
sempre sofrida em sua humildade. Quando ela havia de
imaginar, a pobre! que aquele era o prato dela, da Mãe, da
minha amiga maltratada, que sabia da Rose, que sabia meus
crimes, a que eu só lembrava de comunicar o que fazia sofrer!
O prato ficou sublime. (...) Foi quando ela não pôde mais com
tanta comoção e principiou chorando. Minha tia também, logo
percebendo que o novo prato sublime seria o dela, entrou no
refrão das lágrimas. E minha irmã, que jamais viu lágrima sem
abrir a torneirinha também, se esparramou no choro. Então
principiei dizendo muitos desaforos pra não chorar também,
tinha dezenove anos... Diabo de família besta que via peru e
chorava! coisas assim. Todos se esforçavam por sorrir, mas
agora é que a alegria se tornara impossível. É que o prato
evocara por associação a imagem indesejável de meu pai
morto. Meu pai, com sua figura cinzenta, vinha pra sempre
estragar nosso Natal, fiquei danado.
Uma estranha luta é travada entre a memória do pai, que
começa dominando o campo de batalha, e o peru, inferiorizado
pelo ataque inesperado. Logo o narrador procura um meio de
afastar o pai da contenda, mas buscou estratégias que
pudessem fortalecer o peru, pois confessadamente tomara
partido da ave. Porém, o defunto ia-se insinuando entre a
memória dos membros da família, e, assim que o narrador
gabou o peru, a imagem do pai cresceu vitoriosamente.
Percebendo seu erro de estrategista, o narrador passa a fazer o
contrário, e para livrar-se da memória despótica do velho,
lamenta a morte daquele que tanto se sacrificara pela família,
daquele santo cuja imagem foi diminuindo, diminuindo.
Somente assim a vida vai ressurgindo sensual e vibrante,
apagando a memória do pai que gradativamente vai-se diluindo
em lembranças ocasionais. Na batalha surrealista que havia
sido travada, o peru triunfa e passa a dono da festa.
Papai virara santo, uma contemplação agradável, uma
inexorável estrelinha do céu. Não prejudicava mais ninguém,
puro objeto de contemplação suave. O único morto ali era o
peru, dominador, completamente vitorioso. Minha mãe, minha
tia, nós, todos alagados de felicidade. Ia escrever felicidade
gustativa, mas não era só isso não. Era uma felicidade
maiúscula, um amor de todos, um esquecimento de outros
parentescos distraídos do grande amor familiar. E foi, sei que
foi aquele primeiro peru comido no recesso da família, o início
de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e
inventivo, mais complacente e cuidadoso de si. Nasceu de
então uma felicidade familiar pra nós que, não sou exclusivista,
alguns a terão assim grande, porém mais intensa que a nossa
me é impossível conceber. Depois do jantar, lá para as duas da
madrugada, todos vão dormir, mas Juca vai ao encontro de
Rose.
PARA GOSTAR DE LER VOL 10
Menina
Achava péssimo ir à escola, a professora era horrível. É como se o
universo adulto, cheio de regras, podasse o que ela mais gostava;
pensar sem ninguém perto porque aí podia ir avançando até se
perder, brincar de santa, dormir, comer doce. Assim, Ana ia cada
vez sabendo mais.
A lacuna decorrente da ausência paterna revela a crise de Ana que
afinava-se embaraçada de não conseguir dizer papai do modo de
Tita ou Nina. Omitir a verdade é uma prática do universo adulto, e a
mãe de Ana não revela que é separada, desquitada. A descoberta
desta palavra (desquitada) soa para Ana como agressão e se dá
numa aprendizagem dolorosa. Para Ana, o pai está viajando, mas
não é a verdade, e os outros sabem disso: - Mentirosa! Sua mãe é
desquitada. Assim de supetão, deixou Ana impotente diante da
palavra desconhecida. E num lance de sadismo diante do
sofrimento da outra, para invocar a causa secreta machadiana, Tita
corada e brilhante de prazer na sua frente.
O prazer de ter trazido a tona uma verdade que Ana desconhecia, o
prazer no desconforto de Ana. Agora a necessidade da dimensão
semântica de desquitada. Em princípio, tenta solucionar sozinha,
mas isso extrapola sua capacidade. Sofre com as hipóteses
levantadas: Seria uma coisa como burra, feia? Flor? Flor
parecia, mas não explicava nada [ ...] Tita dissera como quem
diz [ ...] sem-vergonha. Sim! Ana tenta defender a mãe amandoa,
amou-a até sentir lágrimas, defendendo-a contra a palavra que
poderia feri-la. O aprendizado precisa ir em frente: A professora
feia! Quando ela perguntar se alguém tem dúvida. Por que não a
professora? Talvez ela fosse boa, mas veio a frustração. A
timidez produziu insegurança, e Ana não sabe se senta ou chora.
A situação se agrava diante do riso: Helenice e seus dentes
enormes impossibilitando tudo. As meninas riem,
insuportáveis. É o desmoronamento. A professora, irritada, ordena
sente-se.
Em casa Ana contempla a mãe: Que bonita que a mãe era, com
os alfinetes na boca. Ana atua como uma analista investigando o
mundo interior das pessoas: Gostava de olha-la (a mãe) calada,
estudando seus gestos, enquanto recortava retalhos de pano
com a tesoura. Agora Ana tem pressa em perguntar para a mãe:
A mãe saberia o que ela queria perguntar-lhe intensamente
agora quase com fome depressa depressa antes de morrer e
fuzila: - Mamãe, o que é desquitada?
[...]
- Desquitada é quando o marido vai embora e a mãe fica
cuidando dos filhos. Então veio o alívio: Desquitada, desquitada,
Desquitada repetiu sem medo. Sentia-se completa e nova.
Agora não precisava amar a mãe com aquela força de antes.
Assim, ia Ana Lúcia aprendendo, descobrindo: o que ela chama de
marido é o que eu chamo de pai. Ela sabia cada vez mais.
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Gaetaninho
Gaetaninhio era um jovem que sonhava sempre em ir na frente
de um cortejo fúnebre; atropelado por um bonde, acaba
realizando, morto, seu sonho. Observamos na obra de
Alcântara Machado, como traço mais característico o uso de
expressões italianas para marcar a influência da imigração e
da miscigenação racial na constituição da sociedade
paulistana. Em Gaetaninho há uma divisão do conto em cinco
cenas, característica notadamente cinematográfica, dada pelo
corte narrativo existente de uma cena para outra, introduzindo
uma nova situação, em um tempo e espaço também novos.
Essa superposição de cenas compõe o todo como uma
colagem, como se o narrador estive com uma câmera
fotografando cena por cena. Um dos recursos utilizados pelo
autor para ilustrar a ação do personagem é a linguagem
radiofônica. Como se fosse um locutor esportivo, o narrador
descreve os fatos.
O ambiente da trama é constituído por traços leves,
demonstrando uma certa preocupação jornalística, mas que,
no entanto, consegue identificar perfeitamente a condição
sócio-econômica das personagens, como na passagem:
“Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De
automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro
ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era
de realização muito difícil. Um sonho.” Ainda neste trecho,
notamos um certo valor social presente no desejo de
Gaetaninho de andar de automóvel e ser admirado pelas
pessoas, valor que talvez fosse associado como
representação da elite, do status econômico. O final do conto
é surpreendente, tanto pela rapidez com que se dá a morte de
Gaetaninho, quanto pela ambigüidade causada pela frase
“Amassou o bonde”. Tomando-se o sentido do verbo amassar
em português e sabendo que em italiano ammazzare significa
matar, permite uma dupla interpretação do trecho final, já que
não se sabe se foi o garoto que atropelou o bonde ou
contrário, o que garante, para um final que parecia ser trágico,
um caráter cômico.
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Aos vinte anos
E assim ele a descreve: era bonita. Delgada, sem ser magra;
morena, sem ser trigueira; afável sem ser vulgar. [ ...] uma
boquinha que era um beijo feito de duas pétalas [ ...] cabelos mais
lindos do que aqueles com que Eva escondeu o seu primeiro
pudor no paraíso. Estava enleado, fascinado nas teias da
formosura de Ester, que tinha apenas dezesseis anos. Ao se
apresentar, disse-me que era solteira, e eu jurei que seríamos um
do outro. Não contava, o apaixonado, com o fato da jovem estar
mentindo, pois ela era casada. Mas isso ele só descobre bem
depois. Antes imagina um mundo com a bela e pura Ester:
idealizei toda uma existência ao lado daquela meiga criatura
adorável. Certo dia, numa atitude louca de apaixonado, ele pula o
muro da casa da jovem e cai-lhe aos pés, humilde a apaixonado.
Ao inquirimento dela, ele responde: te amo loucamente e não sei
continuar a viver sem ti.
Confessa que precisa saber a quem deve pedir permissão para se
casar com ela. Dela, ouve apenas que vá embora. Diante da
insistência revela: - Quem dispõe de mim é meu tutor..., chamado
José Bento Furtado. Mas - se é para pedir-me em casamento,
declaro- lhe que perde o seu tempo, pois, segundo ela, o tutor a
quer como esposa: ele só tem uma preocupação na vida: ser meu
marido! Ao convite que fujam, ela responde que com isso
causaria a morte do seu benfeitor! Por isso, não está disposta a
cometer tal loucura, mas que ele não deve perder a esperança.
Deve esperar com paciência. Quem sabe um dia ele mude de
idéia, ou morra antes de realizar seu projeto... dito isto, ordena
que o louco trepe de novo ao muro e retire-se. A vizinha continua
a sorrir-me, atirar-me flores, recitava os meus versos e conversa-
me sobre o nosso amor. Arrastado pelo sentimento ultra-
romântico, resolvi dar cabo do tutor de Ester. No entanto, percebe
que não a melhor saída. Imagina que ele pode não ser tão
irredutível como a bela Ester o descreveu.
Então, amanhã procuro-o; faço- lhe o pedido com todas as
formalidades. Num dia de domingo, uma hora da tarde estava ele
na casa de José Bento Furtado: mandei o meu cartão. Meia hora
depois apareceu-me o velhote, de rodaque branco, chinelas, sem
colete, palitando os dentes. O velho perguntou-me a que devia a
honra daquela visita. E ao pedido de casamento:
- Venho pedir-lhe a mão de sua filha...
- Mas eu não tenho filha, responde o velho. Como? E D. Ester...?
Neste instante, Ester vem entrando na sala: Ei- la! É essa que aí
chega! Exclamei, vendo que a minha estremecida vizinha surgiu
na saleta contígua.
- Esta?!... balbuciou o comendador, quando ela entrou na sala,
mas esta é minha mulher!...
PARA GOSTAR DE LER VOL 10
O elo partido
Em outro momento, na fila de espera do elevador, sentindo-se
aparentemente em ordem, perturba-se com a demora do elevador
que continuava parado no sétimo andar, exatamente o do seu
escritório. Em devaneio, imagina dois homens tentando a custo
enfiar dentro do carro uma mesa de escritório. Era sua mesa, mas
muito maior. Seus papéis pessoais, sua caneta, as gavetas
devassadas. Todos pareciam tranqüilos, mas ele via outra vez, viu
o contínuo segurando a porta do elevador e dois homens de
macacão tentando irritadamente encaixar lá dentro a mesa
enorme. Sente-se desconfortável, um mal-estar físico. Parecia
estar faltando alguma coisa, era como se tivesse esquecido
qualquer coisa que não identificava. Que o condenava aos olhos
da fila cada vez mais numerosa. De repente, o pensamento chega
aos pés, ocorreu- lhe que tinha esquecido de calçar as meias.
A vontade é checar, mas sente-se observado, envergonhado.
Tentava recompor o instante em que as calçara, mas em vão.
Tomado pela obsessão, tinha vontade de suspender a calça e
olhar, mas se continha. A impressão é que todos o observavam.
Foi invadido pela certeza cruel de que usava meias vermelhas.
[...] As meias berrantemente vermelhas tornavam os seus pés
alheios. Subitamente, o elevador escancara a porta no andar
térreo; paralisado, procurava, pasmo, os dois homens de
macacão, o contínuo uniformizado e a mesa, a sua mesa. Mas
diante dele, só via o elevador, como sempre, como todos os dias.
Agora no sétimo andar, suspendeu as calças, fixou com espanto
as próprias pernas: agora de novo as suas meias eram azuis.Tudo
volta à normalidade. Todavia, tempos depois, esquecera o nome
de um amigo de infância. Depois de muito sofrimento tentando se
lembrar do nome do colega de infância, Gumercindo, no meio da
noite acordou assustado e tinha na boca, de graça, atado, o nome
que em vão perseguira antes de dormir.
Também esquecera de como é mesmo que eu durmo? queria
saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir.
Toma remédio para dormir, mas não adiantou. É invadido pelo
medo de não dormir. Uma semana depois, tomado pela insônia,
esquece a posição de dormir. Aqui o elo perdido , é preciso
recuperá-lo. Começa a esquecer a cara do seu sócio, não se
lembra mais da própria mulher; tudo vai se partido; ele vai
perdendo contado com o seu mundo. Angustiado, volta às
pressas para casa. Sua mulher. Ali estava inteira, com seu rosto,
seu nome. Tranca-se no quarto e começa a ler de cabo a rabo o
jornal da tarde. [ ...] Lia e relia o mesmo texto, palavra por
palavra. Chegava ao fim e era como se não tivesse lido.
Resignado, entrega-se à amnésia: desprendera-se de tudo. a
longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a
lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar no quarto. Era a
esposa, não mais reconhecida. - Quem sou eu? ele perguntou
num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao
menos quis saber seu nome.
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Herança
À história do namoro da irmã, inquirido pela mãe, ele responde: E
eu com isso! A indecisão da mãe, vende ou não a casa; abre ou
não a loja precisava de respaldo, de apoio, mas eu não sabia o
que era preocupação. E não era obrigado a saber. Nas indecisões
da mãe, no desamparo, na falta de jeito, eu não era apoio nem
companhia. Com relação à loja, minha irmã se animava, ela que
sempre se imaginou cercada de filhos, e eu calado, nem sim nem
não. O narrador nunca se imaginara ganhando dinheiro vendendo
coisas. Diante da pressão da mãe, que precisava de ajuda, eu me
sentia covarde, inútil, diminuí demais. E talvez por isso não
dissesse nada. A mãe começa a comparar as atitudes do filho ou
a falta de atitude com as atitudes do pai. E de repente a acusação
da mãe você sempre teve um problema com seu pai. Mas como
podia ter lá problema com o velho? Logo ele, ausente e sem dizer
nada, visto de longe.
É evidente a secura na relação familiar como um todo. A secura
da figura paterna mina os demais membros da família.
Percebendo que o filho não participava mesmo das decisões,a
mãe deixa de perguntar as coisas a ele. Tudo vai entrando nos
trilhos; vendeu-se a casa, por um bom preço. Financia-se um
apartamento; compra-se uma loja, e a renda que meu pai deixara
ficou maior. O narrador termina os estudos e começa a trabalhar
de corretor; por isso, ficava dias sem ver a mãe e a irmã, que se
revezavam na loja. Tudo andava muito bem, e vez por outra, os
três juntos em casa, conversávamos como nunca. Creio que
nunca tirada irônica, o narrador afirma que o dinheiro ajuda
muito, chega a melhorar as pessoas, e isso acontece até com os
parentes. A mãe retoma o hábito das perguntas, mas tudo já
decidido antes. Na verdade, perguntava por perguntar. Um dia, a
propósito de uma partida qualquer que se atrasara, ela quis
saber: - Devo aceitar? Eu que não entendo de roupas, fiquei um
instante pensando, seria vantagem ou não. E ela rindo: - Já
aceitei. Se fosse esperar sua opinião, fechava a loja. Você é
igualzinho a seu pai.
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O Herói
Ele é o herói; todavia, a viagem pela imaginação é truncada com o
atropelamento de um cachorro; o cachorrinho vacila com o rabo
nas pernas e procura uma saída, correndo curto pra lá e pra cá,
bombardeado pelas luzes [ ...] voa atropelado num ganido seco,
quase um estralo e cai aos pés do menino. Para cessar o
sofrimento do cachorro, este é sacrificado: o homem do posto de
gasolina vem andando devagar. [ ...] toca na barriguinha pelada, o
filhote estremece. [ ...] O homem vai até o posto, volta de revolver
na mão. O menino volta para casa. Fica desanimado, silencioso,
impressionado com a cena que presenciara, sem querer comer: A
colher, o cachorrinho ao lado. A carne sangra pelos olhos, pelo
focinho. Na toalha, o pão soluça se arrastando, os pais discutem,
se acusam mutuamente de mimar o menino. A insistência dos
pais, faz que o menino acabe derrubando a panela, por isso é
castigado outra vez:
ficou uma hora no quarto, só com o abajur aceso e os olhos
abertos. E a lembrança do cachorro invade os pensamentos do
menino: o cachorrinho vinha rastejando na penumbra, soluço a
soluço, até tocar nele com focinho frio. Novamente, o menino
mergulha no sonho, na fantasia, e conta aos amigos de como
presenciara o acidente com o cachorro e de como teve sangue
frio para sacrificá-lo com duas espetadas. As crianças querem
ver o espeto, ele apenas diz que vai mostrar, e sonha com o dia
em que será o líder dos meninos de sua rua

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