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SANTOS SEM CORPO E POLÍTICOS SEM CABEÇA

Ao contrário do que é comum dizer-se, Luís XVI, ao ser guilhotinado, não


perdeu a cabeça. Aliás, a única coisa que não perdeu foi, precisamente, a cabeça. Com
efeito, em virtude da sua degolação, perdeu certamente o trono, a coroa e o corpo, mas
não a cabeça, porque é de supor que um homem é, sobretudo, a sua cabeça.

Reza a história que, já depois de separada a régia cabeça do seu tronco, ainda
se ouviu um real ai, mas talvez não deva ser levada a sério essa suposição. Como
também não pode ser verdadeira a piedosa lenda daquele mártir que, já degolado, tomou
a cabeça nas mãos e beijou-a, acontecimento que, de não ser metafisicamente
impossível, ganharia a palma a todos os milagres havidos e por haver.

Que o homem é, ou deve ser, principalmente, a sua cabeça, tem sido motivo de
não poucos equívocos, quase sempre provocados por essa infeliz mania de se cortarem
as cabeças aos homens que, como os mártires, fazem questão de delas se servirem mais
do que consentem as modas e os tiranos.

Que o diga São João Baptista, a quem a fúria de Herodes, atiçada pela filha da
amante, decapitou, nos excessos de uma orgia em que a abundância de vinho toldou o
que ainda lhe restava de razão e consciência.

Que o diga ainda São Thomas More, a quem o também adúltero Henrique VIII
impediu de pensar pela sua cabeça, teimosamente obstinada em não aprovar os
desatinos reais. Por isso, a mesma lhe foi, por especial privilégio, arrancada. Com
efeito, a lei exigia que o ex-chanceler fosse esquartejado, mas o rei concedeu-lhe a graça
de ser apenas decapitado. Thomas More muito agradeceu tal favor, sugerindo contudo a
sua graciosa majestade que privasse dessa mercê os seus restantes amigos, para que não
viesse a ficar sem nenhum.

Tirar cabeças era tão comum ao dito rei que várias das suas desquitadas
mulheres sofreram essa desagradável experiência. Por esta razão, uma princesa alemã,
por ele pretendida, se escusou dizendo que, tendo uma só cabeça, não podia arriscar tão
perigosas núpcias. Tivera duas cabeças – acrescentou – e uma seria, sem dúvida, do
augusto pretendente à sua mão e, quiçá, à sua cabeça.

Quando a cabeça é separada do respectivo tronco, nem sempre é fácil saber


onde subsiste o sujeito em questão. Por exemplo, quando João Paulo II nomeou São
Thomas More padroeiro dos políticos, quis conceder-lhes como protector a cabeça que,
num acto de heróica fidelidade à fé e aos próprios princípios morais, antes preferiu
renunciar à sua vida, do que comprometer a consciência. Só que a grande maioria dos
políticos aceitou por modelo, não a cabeça sem corpo, como era de supor, mas o corpo
sem cabeça.

Quando um político estorva, é quase sempre por causa da sua consciência, ou


seja, por razão da sua cabeça. Um Luís XVI guilhotinado, um São João Baptista
degolado ou um São Thomas More decapitado não incomodam ninguém. Por isso,
alguns políticos, para evitarem dores de cabeça, não quiseram a do mártir, preferindo
para seu padroeiro o corpo, sem cabeça, do ex-chanceler. Muitos aliás, diga-se de
passagem, têm sido extraordinariamente devotos do decapitado corpo do seu santo
intercessor.

Em Fátima, Bento XVI recordou a necessidade de governantes que sejam


«verdadeiras testemunhas de Jesus Cristo», deplorando os que, embora aparentemente
católicos, «dão as mãos ao secularismo, construtor de barreiras à inspiração cristã».
Abundam os políticos, mas quase todos são incrédulos assumidos ou «crentes
envergonhados». Falta quem seja um autêntico seguidor de Cristo e defenda, «com
coragem, um pensamento católico vigoroso e fiel».

Sobram corpos decapitados pelo pragmatismo das conveniências, mas faltam


políticos com alma. E com cabeça, claro!

Gonçalo Portocarrero de Almada

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