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Reza a história que, já depois de separada a régia cabeça do seu tronco, ainda
se ouviu um real ai, mas talvez não deva ser levada a sério essa suposição. Como
também não pode ser verdadeira a piedosa lenda daquele mártir que, já degolado, tomou
a cabeça nas mãos e beijou-a, acontecimento que, de não ser metafisicamente
impossível, ganharia a palma a todos os milagres havidos e por haver.
Que o homem é, ou deve ser, principalmente, a sua cabeça, tem sido motivo de
não poucos equívocos, quase sempre provocados por essa infeliz mania de se cortarem
as cabeças aos homens que, como os mártires, fazem questão de delas se servirem mais
do que consentem as modas e os tiranos.
Que o diga São João Baptista, a quem a fúria de Herodes, atiçada pela filha da
amante, decapitou, nos excessos de uma orgia em que a abundância de vinho toldou o
que ainda lhe restava de razão e consciência.
Que o diga ainda São Thomas More, a quem o também adúltero Henrique VIII
impediu de pensar pela sua cabeça, teimosamente obstinada em não aprovar os
desatinos reais. Por isso, a mesma lhe foi, por especial privilégio, arrancada. Com
efeito, a lei exigia que o ex-chanceler fosse esquartejado, mas o rei concedeu-lhe a graça
de ser apenas decapitado. Thomas More muito agradeceu tal favor, sugerindo contudo a
sua graciosa majestade que privasse dessa mercê os seus restantes amigos, para que não
viesse a ficar sem nenhum.
Tirar cabeças era tão comum ao dito rei que várias das suas desquitadas
mulheres sofreram essa desagradável experiência. Por esta razão, uma princesa alemã,
por ele pretendida, se escusou dizendo que, tendo uma só cabeça, não podia arriscar tão
perigosas núpcias. Tivera duas cabeças – acrescentou – e uma seria, sem dúvida, do
augusto pretendente à sua mão e, quiçá, à sua cabeça.