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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LINE

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESENTAQÁO
DA EDIQÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos estar
preparados para dar a razáo da nossa
esperanca a todo aquele que no-la pedir
(1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos conta


da nossa esperanga e da nossa fé hoje é
mais premente do que outrora, visto que
somos bombardeados por numerosas
correntes filosóficas e religiosas contrarias á
fé católica. Somos assim incitados a procurar
consolidar nossa crenga católica mediante
um aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questoes da atualidade
'~ controvertidas, elucidando-as do ponto de
vista cristáo a fim de que as dúvidas se
dissipem e a vivencia católica se fortaleca no
Brasil e no mundo. Queira Deus abencoar
este trabalho assim como a equipe de
Veritatis Splendor que se encarrega do
respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Estéváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicagáo.

A d. Estéváo Bettencourt agradecemos a confiaga depositada


em nosso trabalho, bem como pela generosidade e zelo pastoral
assim demonstrados.
Ano xl Fevereiro 1999 441
"Aspirai aos dons mais elevados..." (1Cor 12,31)

Fé e Razáo

Vinte anos de Pontificado

Frei Antonio de Sant'Ana Galváo

O Fundamentalismo Islámico, por Mons. John


Joseph

José Saramago, Premio Nobel

A Fábula das Tres Árvores


Igreja: Democracia?
PERGUNTE E RESPONDEREMOS FEVEREIRO1999
Publíca9áo Mensal N°441

SUMARIO
Diretor Responsável
Estévao Bettencourt OSB "Aspira! aos dons mais elevados..."
Autor e Redator de toda a materia (1 Cor 12,31) 49
publicada neste periódico
A Palavra do Papa:
Fó e Razáo 50
Diretor-Administrador:
D. Hildebrando P. Martins OSB Joáo Paulo II celebrou
Vlnte anos de Pontificado 61
Administrado e Distribuidlo:
Quem foi?
Edades 'Lumen Chrísti' Frei Antonio de Sant'Ana Galváo 67
Rúa Dom Gerardo, 40 - 5° andar-sala 501
Um discurso revelador:
Tel.: (021) 291-7122
O Fundamento Islámico, por Mons. John
Fax (021) 263-5679 Joseph 75

Endereco para Correspondencia: Pros e Contras:


José Saramago, Premio Nobel 86
Ed. "Lumen Christi'
Caixa Postal 2666 Imaginando:
CEP 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ A Fábula das Tres Árvores 92
Movimentos e Campanhas
Visite O MOSTEIRO DE SAO BENTO Igreja: Democracia? 95
e "PERGUNTE E RESPONDEREMOS"
na INTERNET: http://www.osb.org.br
e-mail: LUMEN.CHRISTI ® PEMAIL.NET

COM APROVACÁO ECLESIÁSTICA

NO PRÓXIMO NÚMERO:

"Urna Vida ou muitas?" (Carlos Valles). - Reencarnarlo e Fé Católica. -Venda de Indul


gencias? -O Cisma Bizantino. - A controversia do «Filioque».

(PARA RENOVACÁO OU NOVA ASSINATURA: R$ 30,00).


(NÚMERO AVULSO R$ 3,00).

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Obs.: Correspondencia para: Edicóes 'Lumen Christi*


Caixa Postal 2666
20001-970 Rio de Janeiro • RJ >
"ASPIRAIAOS DONS MAIS ELEVADOS..."
(1 Cor 12,31)

Escrevia o filósofo grego Aristóteles (t 322 a.C), baseado em seu bom


senso, palavras que o cristáo só pode endossar e desenvolver. Com efeito...
"Nao se devem dar ouvidos aqueles que aconselham ao homem, por
ser mortal, que se limite a pensar coisas humanas e mortais. Ao contrario, na
medida dopossfvel, precisamos de nos comportar como imortais e tudo fazer
para viver segundo a parte mais nobre que há em nos".
Com estes dizeres, Aristóteles opunha-se á tendencia a certa mediocri-
dade ou á falsa humildade, tendencia que leva o homem a se contentar com
valores perecíveis e ilusorios, "como se fosse mortal". Aristóteles percebia
que no ser humano existe algo de muito nobre que o deve impelir a viver
"como se fosse ¡mortal". O filósofo nao saberia definir exatamente o ideal que
ele apresentava aos seus discípulos, mas, falando em nome do homem eter
no, ele entrevia algo que toca o fundo de cada ser humano e suscita grandes
aspiracóes.

O cristáo assume a observacáo de Aristóteles e dá-lhe sentido pleno.


Ele sabe que tem urna alma ¡mortal, chamada a participar da bem-aventuranca
do próprio Deus, a máxima dádiva possível, "aquilo que o olho nao viu,... nem
o coracáo do homem jamáis percebeu" (1Cor 2,9). Daí a necessidade de
ultrapassar os bens caducos que este mundo Ihe oferece, e aspirar ao que é
mais nobre. Com outras palavras aínda: o cristáo sabe que, desde o seu Ba-
tismo, ele é chamado á santidade ou a perfeicáo; nao há vocacao para a
mediocrídade nem para a pequenez espiritual. Este chamado é dom de Deus,
nao mérito da criatura, de modo que se concilla com a humildade. É o que
lembra o Concilio do Vaticano II:
Todos os fiéis crístáos, de qualquer estado ou categoría, sao chama
dos a plenitude da vida crista e á períeigáo do amor (= santidade)" (Lumen
Gentium ns 40).
Disto se concluí que aspirar á santidade, "aos dons mais elevados", nao
é arrogancia presuncosa nem sonho inexeqüível, mas é o normal de todo
cristáo, por mais utópico que isto Ihe pareca. Se o Senhor Deus chama, Ele
tem as grapas necessárias para converter o pecador e fazé-lo chegar á plena
configuracáo com Cristo através da fidelidade e da coragem do dia-a-dia. É
esta fidelidade silenciosa e magnánima que leva á santidade. Interessante é
notar que, quando a Igreja se dispde a canonizar um(a) Santo(a), um dos
primeiros passos do processo consiste em averiguar se foi heróico(a) na prá-
tica das virtudes. Isto bem confirma que o heroísmo ou a magnanimidade e a
nobreza de atitudes pertencem ao bé-a-bá da vida do cristáo.
A Quaresma, que o mes de fevereiro vivencia, é o tempo oportuno para
refletir a respeito e sacudir todo tipo de lerdeza espiritual, para que se dilatem
os coracoes e se elevem as aspiracóes aos dons mais elevados!
E.B.

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS"

Ano XL - N9 441 - Fevereiro de 1999

A Palavra do Papa:

FÉ E RAZÁO

Em síntese: O Papa Joáo Pauto II publicou a sua última Encíclica


aos 15/10 pp., dedicando-a ao binomio "Fé e Razáo". Quer atender á
situagáo de angustia e desespero de muitos cidadáos contemporáneos,
que buscam, sem o encontrar, o sentido da vida ou a sua identidade:
"Quem sou eu? Donde venho? Para onde vou?". Está claro que somente
Deus, pela revelagáo de seu plano de amor feita mediante Jesús Cristo,
pode responder plenamente a tal anseio. Todavía a fé tem suas bases na
razáo humana, que nao é, como dizem pensadores modernos, incapaz
de reconhecera Verdade objetiva; a razáo aponta as credenciais para a
fé, a fim de que esta nao degenere em fantasía ou superstigáo. É preciso,
pois, restaurar a confianga no intelecto, que foi feito para apreender a
Verdade. Daí a necessidade de se reavivar a Filosofía, distanciando-a
dos escolhos do historicismo, do ecleticismo, do cientificismo, do niillsmo...
Razáo e Fé se complementam mutuamente, de modo que se há de dizer
Nao tanto ao fideísmo (que quer privar a fé do apoio da razáo) como ao
racionalismo (que só aceita o que a razáo pode demonstrar). A Filosofía,
que aponta na Metafísica a Causa Primeira e o Fim Último, há de ser, em
nossos dias, o terreno comum em que se realize o diálogo entre cristáos
e ateus.

Aos 14/09/1998 o Santo Padre Joáo Paulo II assinou a sua última


Carta Encíclica, que comeca pelas palavras Fides et Ratio (Fé e Ra
záo). É, de certo modo, a continuacáo da Encíclica Veritatis Splendor
(O Esplendor da Verdade), que em 1993 abordava a verdade perene
como referencial da Ética. A nova Encíclica vai ao fundo da questáo,
considerando as possibilidades de chegar o homem a atingir a Verdade.

Ñas páginas subseqüentes apresentaremos urna síntese desse


importante documento.

50
FÉ E RAZÁO

1. Introducáo: "Conhece-te a ti mesmo" (n9 1-6)

O documento parte da verificacáo de que o homem, em todos os


tempos até hoje, tem formulado questóes fundamentáis: "Quem sou eu?
Donde venho? Para onde vou? Por que existe o mal? Que haverá após a
morte?". Tanto os orientáis como os gregos e os israelitas propunham a
si mesmos tais interrogacoes que o oráculo de Delfos (Grecia) incutia ao
dizer: "Conhece-te a ti mesmo".

A resposta a tais indagacoes deveria ser dada inicialmente pela


Filosofia ou pelo raciocinio humano. Acontece, porém, que, em nossos
dias, a Filosofia é por vezes cética no tocante ás mesmas, cedendo ao
agnosticismo e ao relativismo. Isto deixa muitas pessoas angustiadas e
desesperancadas, em crise de sentido da vida, "arrestadas até a borda
do precipicio sem saber o que as espera" (ne 6). É o que move o S. Padre
a escrever a Carta Encíclica; a diaconia ou o servico da verdade o exige,
e leva o Papa a aprofundar as relacóes entre a razáo e a fé, entendida
aquela como base para urna fé esclarecida e sólida.

2. Crer para compreender. Compreender para crer (n916-48)

A partir do cap. 2 da sua Encíclica, o Papa quer mostrar que a


própria revelacao divina incita o homem a procurar a verdade mediante o
exercício da inteligencia ou da razáo. Esta é valorizada como instrumen
to precioso de acesso á verdade.

A Filosofia até o século XVI sempre atingiu a Primeira Causa e o


Último Fim em seu tratado de Metafísica; o acume da razáo, devidamen-
te cultivada, leva o homem a perceber o sentido da sua existencia, pois
Ihe aponta urna significacáo transcendental: os anseios do homem á ver
dade, á vida, ao amor, á felicidade... nao sao frustrados, pois Deus Ihes
assegura a auténtica resposta. Todavía, a partir do século XVI, a Filosofia
tem-se voltado para a crítica do conhecimento, desacreditando a razáo e
sua capacidade de chegar á plena verdade: o sensismo, o idealismo e o
existencialismo tém solapado a capacidade da razáo - o que suscita o
vazio e o desdém do viver humano.

Pois bem. O Papa deseja reafirmar a capacidade, do intelecto hu


mano, de reconhecer a verdade plena. Se o homem possui urna deman
da congénita de luz para a sua mente, nao pode deixar de ter em si urna
faculdade intelectiva, apta a captar essa luz da Verdade.

Pode-se definir o homem como aquele que procura a Verdade. É


impossível que urna busca, táo profundamente radicada na natureza hu
mana, seja frustrada e vá. A própria capacidade de procurar a Verdade e
fazer perguntas implica já urna primeira resposta. "O homem nao come-

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

caria a procurar urna coisa que ignorasse totalmente ou consjderasse


absolutamente inatingível" (ns 28s).

A Igreja desde cedo valorizou a pesquisa intelectual. Sao Justino


{t 165), Clemente de Alexandria (t 213?), Orígenes (t 253), S. Agosti-
nho (t 430) foram pioneiros desse cultivo da razáo posta á procura de
respostas fundamentáis. S. Tomás de Aqulno (t 1274) fo¡ um notável
expoente dessa tarefa.

Ocorre, porém, que a razáo, limitadacomo é, nao descobre toda a


Verdade. Ela reconhece que a Verdade continua mesmo quando seu ralo
de alcance termina. Com efeito: o Deus que a Metafísica apreende como
o Primeiro Movente Imóvel, é também o Deus que se revela aos homens
mediante os Patriarcas, os Profetas e Jesús Cristo. Assim o homem é
levado pela própria razáo a conceber a fé; esta se acha na linha mesma
do discurso racional e recebe deste as suas credenciais. Ninguém deve
crer sem se dar conta das razóes que o levam a crer; a fé nao é um ato
cegó ou sentimental, mas é um ato da inteligencia movida pela vontade a
aderir á Palavra de Deus. Alias, verifica-se que o ato de crer nao é estra-
nho a homem algum. Com efeito; todos vivem numa sociedade que tem
sua historia passada e suas tradicóes; quem as pode controlar com pre-
cisáo? Todos dependem das noticias que diariamente Ihes sao transmiti
das pelos meios de comunicacáo social; quem poderia, por conta pró
pria, avahar o fluxo de tais informales, que geralmente sao aceitas como
verdadeiras? Donde se vé que crer nao é algo que exorbite o costumeiro
da vida humana. De resto, nao há contradicho entre razáo e fé, mas, ao
contrario, convergencia em demanda da única e plena Verdade. "A luz da
razáo e a luz da fé provém ambas de Deus, argumenta Sao Tomás; por
¡sto nao se podem contradizer entre si" (ns 43).

"A fé requer que o seu objeto seja compreendido com a ajuda da


razáo; por sua vez, a razáo, no apogeu da sua indagacáo, admite como
necessário aquilo que a fé apresenta" (n° 42).

Por conseguinte, váo rejeitadas duas posicóes extremas: o fideísmo


e o racionalismo. O fideísmo priva a fé do apoio da razáo ou das suas
credenciais racionáis...; o racionalismo só aceita o que a razáo pode de
monstrar. Ao f¡deísta dir-se-á: "Intellige ut credas. Raciocina, para que
possas chegar á fé". E ao racionalista: "Crede ut intelligas. Acredita para
que possas compreender".

« 52. Nao foi só recentemente que o Magisterio da Igreja interveio


para manifestar o seu pensamento a respeito de determinadas doutrinas
filosóficas. A título de exemplo, basta recordar, no decurso dos séculos,
as tomadas de posigáo acerca das teorías que defendiam a preexistencia

52
FÉ E RAZÁO

das almas, e aínda sobre as diversas formas de idolatría e esoterismo


supersticioso, contidas em teses astrológicas; sem esquecer os textos
mais sistemáticos contra algumas teses do averroísmo latino, incompatí-
veis com a fé crista.

Se a palavra do Magisterio se fez ouvirmais freqüentemente a par


tir da segunda metade do sáculo passado, foi porque, naquele período,
numerosos católicos sentiam o dever de contrapor urna filosofía própría
as varías correntes do pensamento moderno. Daqui resuttou, para o Ma
gisterio da Igreja, a obrigagáo de vigiar a fim de que tais filosofías nao
degenerassem, porsua vez, em formas erróneas e negativas. Acabaram
assim censurados os dois extremos: dum lado, o fideísmo e o
tradicionalismo radical, pela sua falta de confianga ñas capacidades na-
turais da razáo; e, do outro, o racionalismo e o ontologismo, porque atri-
buíam á razáo natural aquilo que apenas se pode conhecerpela luz da
fé. Os conteúdos positivos deste debate foram formalizados na Constitui-
gáo Dogmática Dei Filius, por meio da qual um Concilio ecuménico - o
Vaticano I - intervinha, pela prímeira vez e de forma solene, sobre as
relagóes entre razáo e fé. A doutrina contida neste texto marcou, intensa
e positivamente, a investigagáo filosófica de muitos crentes e constituí
aínda hoje um ponto normativo de referencia para urna correta e coerente
reflexáo crista neste ámbito particular...

55. Se observarmos a situagáo atual, constataremos que os pro


blemas retornam, mas com peculiaridades novas. Já nao se trata de ques-
tóes que interessam apenas a individuos ou grupos, mas de convicgóes
táo generalizadas no ambiente que se tornam, em certa medida, mentali-
dade comum. Tal é, por exemplo, a desconfianga radical da razáo, que
evidenciam as conclusóes mais recentes de muitos estudos filosóficos.
De varias partes ouviu-se falar, a este respeito, de fim da metafísica: que-
rem que a filosofía se contente com tarefas mais modestas, tais como a
mera interpretagáo dos fatos ou apenas a investigagáo sobre determina
dos campos do saber humano ou das suas estruturas.

Também na teología, voltam a assomar as tentagóes de outrora.


Por exemplo, em algumas teologías contemporáneas comparece nova-
mente um certo racionalismo, principalmente quando assergóes, consi
deradas filosóficamente fundadas, sao tomadas como normativas para a
investigagáo teológica, teto sucede sobretudo quando o teólogo, por falta
de competencia filosófica, se deixa condicionar de modo acrítico por afir-
magoes que já entraram na linguagem e cultura corrente, mas carecem
de suficiente base racional.

Nao faltam também perigosas recaídas no fideísmo, que nao reco-


nhece a importancia do conhecimento racional e do discurso filosófico

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

para a compreensáo da fé, melhor, para a própria possibilidade de acre


ditar emDeus. Urna expressáo, hoje generalizada, desta tendencia f¡deísta
é o «biblicismo», que tende a fazerda leitura da Sagrada Escritura, ou da
sua exegese, o único referencial da verdade. Assim, acabase por identi
ficar a palavra de Deus só com a Sagrada Escritura, anulando deste modo
a doutrína da Igreja que o Concilio Ecuménico Vaticano II expressamente
reafirmou. Com efeito, a Constituigáo Dei Verbum, depois de recordar
que a palavra de Deus está presente tanto nos textos sagrados como na
Tradigáo, afirma sem rodeios: «A Sagrada Tradigáo e a Sagrada Escritu
ra constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado á
Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus Pas
tores na doutrína dos Apostólos». Portanto a Sagrada Escritura nao cons
tituí, para a Igreja, a sua única referencia; a «regra suprema da sua fé»
provém efetivamente da unidade que o Espirito estabeleceu entre a Sa
grada Tradigáo, a Sagrada Escritura e o Magisterio da Igreja, numa reci-
procidade tal que os tres nao podem subsistir de maneira independente.

Além disso, nao se deve subestimar o perigo que existe quando se


quer individuar a verdade da Sagrada Escritura com a aplicagáo de urna
única metodología, esquecendo a necessidade de urna exegese mais
ampia que permita o acesso, em uniáo com toda a Igreja, ao sentido
pleno dos textos. Os que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura
nunca devem esquecerque as diversas metodologías hermenéuticas tém
também na sua base urna concepgáo filosófica: é preciso examiná-las
com grande discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados.

Outras formas de fideísmo latente podem-se identificar na pouca


consideragáo que é reservada á teología especulativa, e aínda no des-
prezo pela filosofía clássica, de cujas nocóes provieram os termos para
exprimir tanto a compreensáo da fé como as próprias formulagóes
dogmáticas. O Papa Pío XII, de veneranda memoria, alertou contra este
esquecimento da tradigáo filosófica e abandono das terminologías tradi-
cionais».

A separacáo entre razáo e fé, levada a cabo nos últimos séculos,


empobreceu tanto urna como outra:

"A razáo privada do contributo da Revelagáo percorreu sendas


margináis, com o risco de perder de pista a sua meta final. A fé privada da
razáo poe em maior evidencia o sentimento e a experiencia, correndo o
risco de deixar de ser urna proposta universal. É ilusorio pensar que,
tendo pela frente urna razáo débil, a fé goze de maior incidencia; pelo
contrario, cai no grave perigo de ser reduzida a um mito ou superstigáo.
Da mesma maneira, urna razáo que nao tenha pela frente urna fé adulta,
nao é estimulada a tixaro olhar sobre a novidade e a radicalidade do ser"
(ns48).

54
FÉ E RAZÁO

E continua o Papa:

"Á luz disto, creio justificado o meu apelo veemente para que afee
a filosofía recuperen) aqueta unidade profunda que as torna capazes de
ser coerentes com a sua natureza no respeito da recíproca autonomía.
Ao desassombro (parresía) da fé deve corresponderá audacia da razáo"
(ns48).

Na verdade, o encontró entre a razáo e a fé é o encontró da criatura


com o Criador: "A razáo alcanca o Sumo Bem e a Suma Verdade na
pessoa do Verbo Encamado" (ns 41).

Estas ponderacóes levam o Santo Padre a corroborar os pronunci-


amentos de seus predecessores relativos ao valor da Filosofía e á neces-
sidade de a cultivar, especialmente na formacáo dos candidatos ao sa
cerdocio; "a Filosofía tem um caráter fundamental e indispensável na es-
trutura dos estudos teológicos" (n2 62). E concluí:

"Em virtude das razóes aduzidas, sinto a urgencia de confirmar, por


meio desta carta encíclica, o grande interesse que a Igreja tem pela filo
sofía, ou melhor, a ligagáo íntima do trabalho teológico com a investiga-
gao filosófica da verdade" (nB 63).

3. Interacio da Teología com a Filosofía (ns 64-79)

"A palavra de Deus destina-se a todo homem, de qualquer época e


lugar da térra, e o homem, por natureza, é filósofo" {n3 64). Daí a neces-
sidade de que a Teologia recorra á Filosofía.

A Teologia é intellectus fidei, reflexáo sobre as verdades da fé;


ela procura explicitar tais verdades. Donde se segué que

- a Teologia Dogmática (também dita "Sistemática") deve articular


o sentido do misterio de Deus nao só de modo narrativo (descrevendo os
fatos da historia da salvacáo), mas também e sobretudo de forma
argumentativa ou mediante "expressóes conceptuáis, formuladas de modo
crítico e umversalmente acessível... Sem o contributo filosófico nao se
poderiam ilustrar certos conteúdos teológicos como, por exemplo, as re-
lacóes pessoais na SS. Trindade, a acao criadora de Deus, a ¡dentidade
de Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem;

- a Teologia Fundamental, que procura expor as razóes ou as ere-


denciais da fé (cf. 1 Pd 3,15), deve justificar e explicitar a relacáo entre a
fé e a reflexáo filosófica. A fé, dom de Deus, apesar de nao se basear na
evidencia racional, de certo nao pode existir sem a razáo;

- a Teologia Moral tem especial necessidade de contributo filosófi


co. Com efeito, para aplicar os principios gerais as circunstancias con-

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"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

cretas da vida individual e social, o cristáo deve recorrer á sua conscién-


cia e ao vigor do seu raciocinio. Além disto, a Teología Moral deve lidar
com nocóes claras como as de lei moral, consciéncia, liberdade de arbitrio,
responsabilidade pessoal, culpa..., cuja definicáo provém da Ética filosófica.
Nao se pode negar aínda a importancia que tém para a elaboracáo
teológica a historia, as ciencias, as culturas asiáticas e africanas... Tais
elementos sao subsidiarios e nao devem fazer esquecer a necessidade
de urna reflexáo típicamente filosófica, crítica e aberta ao universal. Im
porta saber o que os homens pensam, mas mais aínda importa saber a
Verdade; nao as diversas opinióes humanas como tais fríamente
elencadas, mas a Verdade - e táo somente a Verdade - pode servir de
ajuda ao estudioso; cf. ns 70.

Quanto as culturas asiáticas e africanas, observa oportunamente o


S. Padre: "Quando a Igreja entra em contato com grandes culturas que
nunca tinha encontrado antes, nao pode por de parte o que adquiriu pela
inculturagáo no pensamento greco-latino. Rejeitar urna tal heranga seria
contrariar o designio providencial de Deus, que conduz a sua Igreja pelos
caminhos do tempo e da historia" (n3 72).

Muito importante é o que, pouco depois, o Papá escreve a respeito


do discutido conceito de Filosofía crista. Após referir-se á Filosofía pré-
cristá ou independente da revelacáo evangélica, diz Joáo Paulo II:

«76. Um segundo estágio da filosofía é aquilo que muitos desig-


nam com a expressáo Filosofía Crista. A denominagáo, em si mesma, é
legítima, mas nao deve darmargem a equívocos: com ela, nao se preten
de aludir a urna filosofía oficial da Igreja, já que a fé, enquanto tal, nao é
urna filosofía. Com aquela designagáo, deseja-se sobretudo indicar um
modo cristáo de filosofar, urna reflexáo filosófica concebida em uniáo vital
com a fé. Por conseguinte, nao se refere simplesmente urna filosofía ela
borada por filósofos cristáos que, na sua pesquisa, quiseram nao contra-
dizer a fé. Quando se fala de filosofía crista, preténdese abragar todos
aqueles importantes avangos do pensamento filosófico que nao seríam
alcangados sem a contribuigáo, direta ou indireta, da fé crista.

Assim, a Filosofía Crista contém dois aspectos: um subjetivo, que


consiste na puríficagáo da razáo por parte da fé. Esta, enquanto virtude
teologal, liberta a razio da presungáo - urna típica tentagáo a que os
filósofos fácilmente estáo sujeitos. Já S. Paulo e os Padres da Igreja, e
mais recentemente filósofos, como Pascal e Kierkegaard, a estigmatiza-
ram. Com a humildade, o filósofo adquire também a coragem para en
frentar algumas questdes que difícilmente poderia resolver sem ter em
consideragáo os dados recebidos da Revelagáo. Basta pensar, porexem-
pío, nos problemas do mal e do sofrimento, na identidade pessoal de

56
FÉ E RAZÁO

Deus e na questáo acerca do sentido da vida, ou, mais diretamente, na


pergunta metafísica radical: 'Por que existe o ser?'

Temos, depois, o aspecto objetivo, que diz respeito aos conteúdos:


a Revelagáo propoe claramente algumas verdades que, embora sejam
acessíveis a razio por vía natural, possivelmente nunca seriam deseo-
bertas por ela, se tivesse sido abandonada a siprópria. Colocam-se, neste
horizonte, questóes como o conceito de um Deus pessoal, livre e criador,
que tanta importancia teve para o progresso do pensamento filosófico e,
de modo particular, para a filosofía do ser. Pertence ao mesmo ámbito a
realidade do pecado, tal como é vista pela luz da fé, e que ajuda a filoso
fía a enquadrar adequadamente o problema do mal. Também a concep-
gáo da pessoa como ser espiritual é urna oríginalidade peculiar da fé: o
anuncio crístáo da dignidade, igualdade e liberdade dos homens influí
seguramente sobre a reflexáo filosófica, realizada pelos filósofos moder
nos. Nos tempos mais recentes, pode-se mencionar a descoberta da im
portancia que tem, também para a filosofía, o acontecimento histórico,
centro da revelagáo crista. Nao foi por acaso que aquele se tornou cerne
de urna filosofía da historia, que se apresenta como um novo capítulo da
busca humana da Verdade.

Entre os elementos objetivos da filosofía crista, inclui-se também a


necessidade de explorar a racionalidade de algumas verdades exprés-
sas pela Sagrada Escritura, tais como a possibilidade de urna vocagáo
sobrenatural do homem, e também o próprio pecado original. Sao tarefas
que induzem a razáo a reconhecer que existe a verdade e o racional,
muito para além dos limites estreitos onde ela seria tentada a encerrar
se. Estas temáticas ampliam, de fato, o ámbito do racional.

Ao refletirem sobre estes conteúdos, os filósofos nao se tornaram


teólogos, já que nao procuraram compreender e ilustrar as verdades da
fé a partir da Revelagáo; continuaram a trabalharno seu próprio terreno e
com a sua metodología puramente racional, mas alargando a sua inves-
tigagáo a novos ámbitos da verdade. Pode-se dizerque, sem este influxo
estimulante da palavra de Deus, boa parte da filosofía moderna e con
temporánea nao existiría. O dado mantém toda a sua relevancia, mesmo
diante da constatagáo decepcionante de nao poucos pensadores destes
últimos séculos que abandonaram a ortodoxia crista».

Dito isto, o Santo Padre passa a enunciar algumas exigencias que


a Palavra de Deus coloca hoje ao pensamento filosófico.

4. Exigencias e Tarefas atuais (ns 80-100)

Entre estas exigencias, está a de que a Filosofia tenha um alcance


auténticamente metafísico, isto é, capaz de transcender os dados

57
10 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

empíricos para chegar a algo de absoluto, definitivo e básico. É preciso


realizar a passagem do fenómeno ao fundamento. Nao é possível flcar
apenas na experiencia ou na descricáo do fenómeno, como faz o pensa
miento positivista de Augusto Comte. Um sistema filosófico que rejeitasse
qualquer abertura metafísica, seria inadequado para servir á compreen-
sáo das verdades da fé. Pois a Palavra de Deus alude continuamente a
realidades que ultrapassam a experiencia. Por isto a Metafísica vem a ser
urna intermediaria privilegiada na pesquisa teológica:

«84. A importancia da instancia metafísica tornase aínda mais evi


dente, quando se considera oprogresso atualdas ciencias hermenéuticas
e das diferentes análises da linguagem. Os resultados alcangados por
estes estudospodem sermuito úteispara a compreensáo da fé, enquanto
manifestam a estrutura do nosso pensar e falar, e o sentido presente na
linguagem. Existem, porém, especialistas destas ciencias que tendem,
ñas suas pesquisas, a deter-se no modo como se compreende e exprime
a realidade, prescindindo de verificara possibilidade de a razáo descobrir
a esséncia da mesma. Como nao individuar neste comportamento urna
confirmagáo da crise de confianga, que a nossa época está a atravessar,
acerca das capacidades da razáo? Além disso, quando estas teses, ba-
seando-se em convicgoes apriorísticas, tendem a ofuscar os conteúdos
da fé ou a negarasua validade universal, entáo nao só humilham a razáo,
mas colocam-se por si mesmas fora de jogo. De fato, a fé pressupoe
claramente que a linguagem humana seja capaz de exprimir de modo
universal - embora em termos analógicos, mas nem por isso menos signi
ficativos - a realidade divina e transcendente. Se assim nao fosse, a pala
vra de Deus, que é sempre palavra divina em linguagem humana, nao
seria capaz de exprimir coisa alguma sobre Deus. A interpretagáo desta
Palavra nao pode remeter-nos apenas de urna interpretagáo para outra,
sem nos fazer chegar a urna afirmagáo absolutamente verdadeira; caso
contrario, nao haveria revelagáo de Deus, mas só a expressáo de nogóes
humanas sobre Ele e sobre aquilo que presumivelmente Elepensa de nos».

A necessidade de se cultivar a Metafísica faz-se imperiosa também


pelo fato de que algumas correntes do pensamento moderno tendem a se
infiltrar na Teología, esvaziando o seu auténtico conteúdo. Tais sao:

- ecteticismo, que justapóe nocóes e teses ¡soladas de escolas


diferentes, sem se preocupar com a sua coeréncia e conexáo sistemáti
ca. Assim a pessoa fica impossibilitada de discernir entre o que haja de
verdadeiro e o que haja de falso ou inadequado num sistema. Cf. n2 86;

- historicismo, que relativiza a verdade, pois só considera a


mutabilidade dos fatos e das idéias através dos tempos. Cf. ns 87;

- modernismo, que guarda o vocabulario clássico, mas, preten-

58
FÉERAZÁO 11

dendo torná-lo mais compreensível ao homem moderno, muda ou esva-


zia o seu significado originario. Cf. ns 87;

- cientificismo, que só valoriza as teses das ciencias positivas, e


menospreza o conhecimento religioso e o saber ético: estes seriam do
dominio da imaginacáo ou do irracional. A conseqüéncia desta posicáo é
que tudo quanto se pode realizar no plano da tecnología é admissível no
plano da Moral. Cf. n2 88;

- pragmatismo, que tudo julga em funcáo da sua utilidade ou de


suas aplicacóes práticas, excluindo o recurso a reflexóes abstratas e ava-
liacóes éticas. Estas concepcóes tém tido muita voga na política: há cer
tas formas de democracia que julgam a viabilidade ética de determinado
comportamento com base apenas no voto da maioria parlamentar: a vida
humana é valorizada táo somente pela sua capacidade de produzir e ser
vir; donde se seguem a legal¡zacáo do aborto e da eutanasia. Cf. ns 89;

- nülismo, que é a negacáo de qualquer verdade objetiva e a des-


truicao da dignidade humana; a pessoa é assim levada ao desespero da
solidáo. Cf. n9 90.

Aquí se coloca urna referencia á expressáo "pós-modernidade" com


que alguns pensadores designam a nossa época. Tal locucáo é ambigua,
podendo significar tanto algo de positivo como algo de negativo. Todavía,
para alguns filósofos, tal vocábulo quer dizer que "o tempo das certezas
está irremediavelmente ultrapassado, de modo que o homem deveria vi-
ver num horizonte de total ausencia de sentido, sob o signo do provisorio
e do efémero; estariam extintas até mesmo as certezas da fé. Cf. n9 91.

É de notar, alias, que "o fato de se reconhecer urna verdade univer-


salmente válida nao é, de forma alguma, fonte de intolerancia: pelo con
trario, é condicáo necessária para um diálogo sincero e auténtico entre as
pessoas" (na 92). Só mediante esta condicáo se pode travar um diálogo
inter-religioso produtivo e fecundo.

Conclusáo (n9 100-108)

Na Conclusáo de seu alentado e precioso trabalho, Joao Paulo II


adverte que, "insistindo sobre a importancia e as auténticas dimensóes do
pensamento filosófico, a Igreja promove a defesa da dignidade humana e,
simultáneamente, o anuncio da mensagem evangélica. Ora, para estas
tarefas, nao existe, hoje, preparagáo mais urgente do que esta: levar os
homens á descoberta da sua capacidade de conhecera verdade e do seu
anseio pelo sentido último e definitivo da existencia. Á luz destas exigen
cias profundas, inscritas por Deus na natureza humana, aparece mais
claro também o significado humano e humanizante da palavra de Deus.
Gragas á mediagáo de urna filosofía que se tornou também verdadeira

59
12 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

sabedoria, o homem contemporáneo chegará a reconhecer que será tan


to mais homem quanto mais se abrir a Cristo, acreditando no Evangelho"
(ns 102).

Em conseqüéncia o Papa nota que a Filosofía é o único terreno


comum em que se podem encontrar cristáos e ateus. Daí a necessidade
de que os filósofos cristáos se empenhem por criar urna reflexáo sensata
e compreensível mesmo para quem nao tenha a graca da fé. Este terreno
comum de diálogo é especialmente fecundo em nossos dias, quando
muitos problemas urgentes da humanidade - o da ecología, o da paz, o
da convivencia das racas... - pedem a colaboracáo de crentes e nao cren-
tes, que se devem unir para renovar a face da historia do género humano.

O Papa termina com um apelo aos teólogos, aos formadores de


seminaristas, aos filósofos e professores de Filosofía, em suma, a todos,
para que "se debrucem profundamente sobre o homem, que Cristo salvou
no misterio do seu amor, e sobre a sua busca constante de verdade e de
sentido, lludindo-o, varios sistemas filosóficos convenceram-no de que
ele é senhor absoluto de si mesmo, que pode decidir autónomamente
sobre o seu destino e o seu futuro, confiando apenas em sipróprio e ñas
suas torgas. Ora esta nunca poderá ser a grandeza do homem. Para a
sua realizagáo, será determinante apenas a opgao de viver na verdade,
construindo a própria casa á sombra da Sabedoria e nela habitando. Só
neste horizonte da verdade poderá compreender, com toda a clareza, a
sua liberdade e a sua vocagáo ao amor e ao conhecimento de Deus como
suprema realizagáo de si mesmo" (n9107).

Ao encerrar a Encíclica, o Santo Padre aponta a Virgem SSma,


como Sede da Sabedoria e modelo de vida sapiencial.
"Que a Sede da Sabedoria seja o porto seguro para quantos consa-
gram a sua vida á procura da Sabedoria. O caminhopara a Sabedoria, fim
último e auténtico de todo verdadeiro saber, possa verse livre de qual-
quer obstáculo por intercessáo daquela que, depois de gerara Verdade e
té-La conservado no seu coragáo, a comunicou para sempre á humanida
de inteira!" (ns 108).

Terminada esta breve resenha, nao se pode deixar de observar que


o documento em foco interpela nao somente os Bispos (a quem se dirige
explicitamente em seu exordio), mas também todos os filhos da Igreja e,
mais, todo ser humano que se entregue a urna reflexáo sobre o sentido
da vida e do próprio homem.

NOVIDADE!

CURSO SOBRE DEUS UNO E TRINO POR CORRESPONDEN


CIA, editado pelo Escola "Mater Eccleslae", teleFAX (021) 242-4552.

60
Joáo Paulo II celebrou

VINTE ANOS DE PONTIFICADO

Em síntese: As páginas seguintes propóem um quadro cronológi


co e estatístico do pontificado de Joáo Paulo II, enumerando os princi
páis eventos que marcam o governo eclesial deste Papa.

Aos 16 de outubro de 1998 o Papa Joao Paulo II comemorou vinte


anos de pontificado cheios de eventos importantes nao só para a Igreja,
mas também para a historia da humanidade, a ponto que já se tem dito
que Joáo Paulo II é o homem deste fim de secuto XX. Pode-se afirmar
que a historia destes últimos decenios teria sido outra e o mundo sería hoje
um tanto diferente se nao fosse tal Papa. - Eis por que, a seguir, propore-
mos alguns dados cronológicos e estatísticos referentes a Joáo Paulo II.

Dados cronológicos

2632 Sucessor de Sao Pedro


Nascido (Karol Wojtyla) aos 18/05/1920 em Wadowice (diocese de
Cracovia)
Batizado aos 20/06/1920
Ordenado presbítero a 01/11/1946
Nomeado Bispo Auxiliar de Cracovia aos 04/07/1958
Sagrado bispo aos 28/09/1958
Nomeado Arcebispo de Cracovia aos 13/01/1964
Criado Cardeal aos 26/06/1967
Eleito Papa aos 16/10/1978
Empossado aos 22/10/1978

Primeiro Papa de origem polonesa e primeiro Papa nao italiano


desde Adriano VI (1522-1523), nativo dos Países-Baixos (Utrecht).

Baleado na Praca de Sao Pedro aos 13/05/1981 em virtude de sua


acáo significativa em prol dos direitos humanos na Europa Oriental.

Eventos Religiosos Salientes

25 de Janeiro de 1983: Promulgacáo do Código de Direito Canónico


para a Igreja latina.

61
14 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

18 de outubro de 1990: Promulgacao do Código dos Cánones das


Igrejas Orientáis

24 de marco de 1983 a 22 de abril de 1984: Ano Santo comemora-


tivo do 1950a aniversario da Redencáo do género humano
07 de junho (Pentecostés) a 15 de agosto de 1988 (Assuncáo):
Ano Mariano
07 de dezembro de 1992: Promulgacáo do Catecismo da Igreja
Católica, Súmula da Fé
19 de outubro de 1997: Proclamacáo de Santa Teresa do Menino
Jesús como 33a Doutora da Igreja

No quadro de preparativos do Jubileu do ano 2000, os anos de


1997,1998 e 1999 sao, cada qual, consagrados a urna das Pessoas da
Ssma. Trindade, feita tema de especial reflexao:
1997: Jesús Cristo, Rlho de Deus feito hornera A Fé. O Batismo.

1998: O Espirito Santo. A Esperanca. A Crisma.


1999: Deus Pai. A Misericordia. O sacramento da Reconciliacáo.
2000: A SSma. Trindade. Glorificacáo do ministerio trinitario, que
está no ámago da Revelacáo crista.

As Jornadas Mundiais da Juventude

Em 1984, por ocasiáo do encerramento do Ano Santo da Reden


cáo, e em junho de 1985, por ocasiáo do Ano Internacional da Juventu
de, houve em Roma duas grandes assembléias de 300.000 jovens cada
qual aproximadamente. O éxito dessas assembléias inspirou ao Papa a
instituicáo das Jornadas Mundiais da Juventude a se realizar de dois em
dois anos numa grande cidade de um dos cinco continentes; o Papa tem
comparecido pessoalmente a esses encontros. Nos anos intermediarios
cada diocese no mundo inteiro toma suas iniciativas locáis em prol de
Encontros Jovens.

As jornadas Mundiais da Juventude ocorreram, até agora, em:


Buenos Aires (1987), Compostela (1989), Czestochwa (1991), Denver,
U.S.A. (1993), Manilha, Filipinas (1995), Paris (1997). A próxima terá lu
gar em Roma no ano 2000.

Encíclicas

Joao Paulo II publicou Treze Cartas Encíclicas (circulares):

1979 (4 de Margo): REDEMPTOR HOMINIS ( O Redentor do Ho-


mem). Trata do homem resgatado pela Cruz de Cristo e sua situacáo no

62
VINTE ANOS DE PONTIFICADO 15

mundo contemporáneo. Considera outrossim a missáo da Igreja e a vo-


cacáo transcendental do homem.

1980 (30 de novembro): DIVES IN MISERICORDIA (Rico em


Misericordia).Considera a misericordia de Deus no Antigo e no Novo Tes
tamento assim como na vida da Igreja.

1981 (14 de setembro): LABOREM EXERCENS (O Trabalhador ou


o Trabalho do Homem). Encara os conflitos entre o trabalho e o capital,
os direitos do trabalhador, o trabalho da mulher fora de casa. Termina
apresentando urna espiritualidade do trabalho.

1985 (2 de junho): SLAVORUM APOSTOLI (Os Apostólos dos


Eslavos Cirilo e Metódio). Por ocasiáo do 11S centenario da obra
evangelizadora dos Santos Cirilo e Metódio entre os povos eslavos, é
posta em relevo a importancia do evento e da tradicáo dos povos cristáos
orientáis.

1986 (18 de maio): DOMINUM ET VIVIFICANTEM (Senhor e Fon-


te de Vida). Disserta sobre a funcáo do Espirito Santo na Igreja e no
mundo. É assim completada a serie de encíclicas trinitarias, tendo sido a
primeira a Redemptor Hominis (Deus Filho feito homem) e a segunda a
Dives In Misericordia (Deus Pai).

1987 (25 de marco): REDEMPTORIS MATER (A Máe do Reden


tor). Por ocasiáo do Ano Mariano, o Papa quis enfatizar a posicáo e a
funcáo de María Ssma. na Igreja e na piedade católica.

1987 (30 de dezembro): SOLLICITUDO REÍ SOCIALIS (Solicitude


pelas questóes sociais). Por ocasiáo do 20Q aniversario da encíclica
Populorum Progressio de Paulo VI, o Papa quis lembrar os grandes
principios que regem a atuacáo dos fiéis católicos frente as necessida-
des temporais de seus irmáos neste mundo carente de solidariedade.

1990 (7 de dezembro): REDEMPTORIS MISSIO (A Missáo do Re


dentor). Joáo Paulo II explana a permanente necessidade de empenho
missionário frente a tendencias relativistas de nossos tempos.

1991 (01 de maio): CENTESIMUS ANNUS (Centesimo Ano). Co-


memorando o centesimo aniversario da primeira encíclica social - Rerum
Novarum de Leáo XIII -, o Papa atualiza os principios que norteiam a
acáo social da Igreja frente as novas conjunturas da vida contemporá
nea.

1993 (6 de agosto): VERITATIS SPLENDOR (O Esplendor da Ver-


dade). É recolocada a Moral crista sobre as bases de principios perenes,
com rejeicáo do subjetivismo e relativismo em materia moral.

63
16 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

1995 (25 de marco): EVANGELIUM.VITAE (O Evangelho da Vida).


Propoe as grandes normas que justificam a defesa incondicional da vida
do inocente.

1995 (25 de maio): UT UNUM SINT (Para que sejam um). Docu
mento que aborda o ecumenismo e dirige apelo aos cristáos nao católi
cos para que colaborem com sugestdes na grande tarefa de restauracáo
da unidade rompida.

1998 (14 de setembro): FIDES ET RATIO (Fé e Razáo). Proclama


a harmonía entre fé e razáo, procurando restaurar a conf¡anca do homem
contemporáneo no acume do intelecto, capaz de apreender a Verdade.

Exortacóes Apostólicas Pós-Sinodais

Periódicamente realiza-se um Sínodo Mundial de Bispos em Roma


para tratar de questóes de atualidade. As conclusóes do Sínodo sao en
tregues ao Papa, que na base das mesmas redige urna Exortacáo Pós-
Sinodal.

16 de outubro de 1979: CATECHESI TRADENDAE (Sobre a fun-


cáo da Catequese).

22 de novembro de 1981: FAMILIARIS CONSORTIO. Sobre a fa


milia como célula básica da vida da Igreja e da sociedade civil.

11 de dezembro de 1984: RECONCILIATIO ET PAENITENTIA (Re-


conciliacáo e Penitencia). Esclarecimentos sobre o sacramento da Re-
conciliacáo, o pecado e a penitencia na vida do cristáo.

30 de dezembro de 1988: CHRISTIFIDELES LAICI (Os Fiéis Lei-


gos). Aborda o papel do laicato na Igreja de hoje, valorizando todas as
categorías de fiéis na evangelizado da sociedade.

7 de abril de 1992: PASTORES DABO VOBIS (Dar-vos-ei Pasto


res). Considera a missáo e a formacao dos candidatos ao ministerio sa
cerdotal.

14 de setembro de 1995: ECCLESIA IN ÁFRICA (A Igreja na Áfri


ca). Conclusóes do Sínodo dos Bispos da África, tendo em vista as con-
dicóes de evangelizacáo do continente africano na atualidade.

25 de margo de 1996: VITA CONSECRATA (Vida Consagrada). A


Vida Religiosa nos dias atuais: seu valor e suas dificuldades superáveis
por renovacáo do carisma de cada Fundador de Ordem ou Congregacáo.

10 de maio de 1997: UMA NOVA ESPERANCA PARA O LÍBANO.


Leva em conta a turbulencia que afeta a populacáo libanesa, e a posicáo
da Igreja em prol de pacificacao do país.

64
VINTE ANOS DE PONTIFICADO 17

Viagens de Joáo Paulo II

Joáo Paulo II efetuou 84 viagens ao exterior, 134 na Italia e 660 em


Roma - o que perfaz um total de 1,1 milháo de quilómetros percorridos,
quase tres vezes a distancia da Térra á Lúa. Esteve em 115 países ,
visitando assim os cinco continentes: 31 países na Europa, 39 na África,
2 na América do Norte, 24 na América Latina e no Caribe, 19 na Asia, 3
na Oceania.

A Polonia e a Franca foram visitadas sete vezes; os Estados Uni


dos, seis vezes. Além disto, o Papa fez quatorze visitas a cárceres.

Diálogo Ecuménico

30 de novembro de 1979: Visita de Joáo Paulo II ao Patriarca


ecuménico Dimitrios I em Constantinopla (Istambul).

29 de maio de 1982: Visita de Joáo Paulo II ao Arcebispo Primaz


da Comunháo Anglicana, Robert Runcie, em Cantorbery (Inglaterra).

11 de dezembro de 1983: Encontró de Joáo Paulo II com a comuni-


dade luterana de Roma (Joáo Paulo II é o primeiro Papa que tenha pre
gado num templo protestante).

12 de junho de 1984: Visita de Joáo Paulo II ao Conselho Ecuménico


das Igrejas em Genebra.

01 de abril de 1994 (sexta-feira santa): O texto de meditacáo da Via


Sacra celebrada pelo Papa no Coliseu de Roma foi redigido, em tal ano,
pelo Patriarca de Constantinopla Bartolomeu I.

29 de junho de 1995: Visita do Patriarca Bartolomeu, de Cons


tantinopla, ao Papa Joáo Paulo II em Roma.

Diálogo inter-religioso (Católicos e Nao Cristáos)

19 de agosto de 1985:Encontro do Papa com a Juventude Mucul-


mana em Casablanca (Marrocos), tendo o S. Padre proferido um discur
so aberto e bem aceito.

13 de abril de 1986: Joáo Paulo II vai orar na grande sinagoga de


Roma, com o Grao - Rabino Elio Toaff.

27 de outubro de 1986: Encontró de Assis I. Oracáo em prol da paz


mundial, com os representantes das diversas confissóes cristas e das
principáis correntes religiosas nao cristas. Nao houve urna oracáo única,
eclética, mas cada delegacáo religiosa rezou no seu próprio rito em pre
serva das demais representacdes.

9-10 de Janeiro de 1993: Encontró de Assis II. Assembléia de teor


semelhante ao de Assis I.

65
18 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

Outros Dados Estátísticos

Durante os vinte anos do seu pontificado, o Papa nomeou 157


Cardeais e 2.600 dos 4.390 bispos hoje existentes. Fez 700 discursos,
em media, a cada ano; escreveu 31 Cartas Apostólicas e fez oito Exorta-
coes Apostólicas, além de 13 encíclicas, reunindo um total de 75 mil pá
ginas em 45 volumes. Em seu pontificado, a Igreja reconheceu 280 no-
vos Santos e 805 novos Bem-aventurados. O Papa participou de 877
audiencias, com 14,5 milhóes de pessoas. Joáo Paulo II tem em media
oito audiencias por dia, cada urna de 15 minutos.

O Papa criou 84 novas Nunciaturas ou represe ntacoes diplomáti


cas, dobrando o número délas.

Sonriente doze Papas governaram por mais de vinte anos

Eis os pontificados que ultrapassaram, em duracáo, por ora, o de


Joáo Paulo II:

Sao Pedro, do qual diz o Anuario Pontificio, seguindo noticia trans


mitida por Sao Jerónimo (t 420):

"Residiu primeiramente em Antioquia; depois, segundo um catálo


go cronológico datado de 354, permaneceu 25 anos em Roma, onde
morreu mártir em 64 ou 67". Tal noticia, referente á longa duracáo do
pontificado de Sao Pedro, é posta em dúvida por bons historiadores, que
porém nao negam tenha Sao Pedro morrido mártir em Roma.

Sao Silvestre: de 31/01/314 a 31/12/335.

Sao Leáo I, o Grande: de 19/09/440 a 10/11/461.

Adriano I: de 1S /02/772 a 25/12/795.

Sao Leáo III: de 26/12/795 a 12/06/816.

Alexandre III: 7/09/1159 a 30/08/1181.

Urbano VIII: de 6/08/1623 a 29/07/1644.

Clemente IX: 23/11/1700 a 19/03/01721.

Pió VI: de 15/02/1775 a 29/08/1799.

Pió VI1:14/03/1800 a 30/08/1823.

Pió IX: 16/06/1846 a 7/02/1878.

Leáo XIII: 20/02/1878 a 20/07/1903.

Somente um Papa, até hoje, renunciou: Celestino V, de 5/07/1294


a 13/12/1294. Faleceu aos 19/05/1295.

66
Quem foi?

FREÍ ANTONIO DE SANT'ANA GALVÁO

Em síntese: Freí Antonio de Sant'Ana Galváo (1739-1822) éum


frade franciscano que, depois de urna vida santa, dedicada a pregagáo e
ao atendimento aos irmáos mais carentes, foi declarado Bem-aventurado
(beatificado) pelo Santo Padre Joño Paulo II no domingo 25 de outubro
de 1998. A figura deste homem de Deus é ornamentada por narrativas
que pretendem ilustrara sua santidade, apresentando-o como dotado de
singulares carismas. Alias, ¡á em vida era honrado como santo. A sua
grande obra foi a construgáo material e espiritual do Mosteiro da Luz,
aínda hoje situado no Centro de Sao Paulo; tal empreendimento Ihe cus-
tou ingentes sacrificios e trabalhos, obrigando-o a pedir esmola - o que
bem condizia com seu espirito de pobreza franciscana, ao qual foi rigoro
samente fiel até o fim da vida. Está sepultado na igreja do Mosteiro da
Luz em Sao Paulo.
* * *

Aos 25 de outubro de 1998, o Papa Joáo Paulo II beatlficou o frade


franciscano Freí Antonio de Sant'Ana Galváo (1739-1822). A beatifica
do é a etapa ¡mediatamente anterior á Canonizacáo ou á inscricáo de
alguém no canon (catálogo) dos Santos. A cerimónia teve grande signifi
cado para a Igreja no Brasil e para o povo católico do país. Daí a conve
niencia de se apresentarem os tragos biográficos e a personalidade do
Servo de Deus.

1. Esbogo biográfico

O menino Antonio nasceu em Guaratinguetá (SP) no ano de 1739,


como quarto filho do comerciante e Capitáo-mor de Guaratinguetá Anto
nio Galváo e de Da. Isabel Leite de Barros, descendente de bandeiran-
tes paulistas. A familia era muito religiosa e se reunia todas as noites, á
luz de velas, para fazer suas oracóes habituáis e novenas. Desde crian-
ca, Antonio sabia dar especial atencao aos pobres.
De acordó com seus dotes pessoais, aos treze anos de idade, foi
enviado pelos pais para o Seminario de Belém na cidade de Cachoeira
(BA), ¡nstituicáo dos jesuítas famosa pelo seu elevado nivel de estudos.
Todavía o Seminario foi fechado quando o Marqués de Pombal expulsou
os jesuítas, de modo que Antonio voltou para a casa de seu pai (sua máe
falecera dois anos antes), com dezoito anos de idade. Já que persistía
em seu intento de se consagrar totalmente a Deus, entrou no convento

67
20 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

franciscano de Macacu em Itaboraí (capitanía do Rio de Janeiro); rece-


beu o hábito da Ordem aos 15/4/1760 e o nome de Frei Antonio de
Sant'Ana, vista a grande devocáo a esta Santa existente em sua regiáo
natal. Professou a Regra de Sao Francisco aos 16/4/1761 e foi ordenado
sacerdote em julho de 1762 no convento de Santo Antonio do Rio de
Janeiro. Pouco depois os Superiores o transferiram para o convento de
Sao Francisco em Sao Paulo.

Aos 9/3/1766 fez sua consagracáo a Nossa Senhora como "servo


e escravo". A sua vida sacerdotal se destacou por grande zelo pelo bem
espiritual e temporal do próximo, assim como por seus dotes de oratoria.
Aos 23/7/1768 foi eleito pregador e confessor de fiéis seculares (leigos),
bem como porteiro do convento de Sao Francisco. A sua dedicacáo a
tais funcóes fez que a Cámara Municipal de Sao Paulo o declarasse "um
novo esplendor do convento". Por onde andasse, era aguardado com
ansiedade pelos vigários e os fiéis, especialmente ñas regióes do vale do
Paraíba; ele pregava, confessava, aconselhava, atendía aos doentes, dei-
xando por toda parte a fama de santo.

Quando se fundou a primeira Academia de Letras em Sao Paulo,


dita "Academia dos Felizes", Frei Galváo foi convidado a participar da
mesma, tendo-se em vista os seus dotes literarios, a sua oratoria famosa
e a sua veia poética. Na segunda sessao literaria, em marco de 1770, o
estimado frade declamou em latim dezesseis poemas de sua autoría,
todos dedicados a Santa Ana, além de dois belos hinos, bem metrificados
segundo as regras da poética latina.

A principal obra da vida de Frei Galváo foi a fundacáo e a constru-


cáo (arquitetónica e espiritual) do Mosteiro de Nossa Senhora da Con-
ceicáo da Luz no centro de Sao Paulo (hoje Avenida Tiradentes 676). A
obra comecou em 1774 e exigiu grandes sacrificios do homem de Deus,
que nao receou vaguear pelas rúas a pedir esmolas para a construcáo, a
qual devia ser sólida e duradoura (como é até hoje). Como arquiteto,
desenhou o frontispicio da igreja da Luz na parede de taipa de sua cela
no Mosteiro. O mesmo Servo de Deus se interessou grandemente pela
orientacáo espiritual das primeiras Irmas e colaborou na redacáo do Es
tatuto da Ordem Concepcionista, que associa entre si o carisma francis
cano e a espiritualidade mariana concepcionista. A Ordem das Irmas
Concepcionistas se expandiu para Sorocaba (em 1811, sob as vistas de
Frei Galváo), Guaratinguetá, Taubaté....

Os vereadores de Sao Paulo, ainda em vida de Frei Galváo, consi-


deravam-no "preciosíssimo á Capitanía, porque nele todos encontram
auxilio eficaz para as suas necessidades espirituais. Entre os beneficios
que prodigaliza, o maior é o da paz".

Por sua vez, o Senado da Cámara de Sao Paulo deixou registrado

68
FREÍ ANTONIO DE SANT'ANA GALVÁO

que "os moradores desta cidade nao pode rao suportar um só momento a
ausencia do dito Religioso que, pelos seus costumes e exemplaríssima
vida, serve de honra e consolacio a todos os seus irmaos e a todo o povo
da Capitania. O Senado da Cámara e o Exmo. Bispo Diocesano o res-
peitam como um santo".

O Servo de Deus passou os últimos anos de sua vida no Mosteiro


da Luz, casa que Ihe custara ingentes sacrificios e trabalhos. Em vez de
ocupar urna cela ampia e arejada, como seria justo em vista de seus
méritos e de sua avancada idade, residia num estreito corredor atrás da
igreja, onde foram colocados um leito modesto e pequeña mesa: estava
no menor e mais humilde recanto do edificio fora da clausura das Irmas.
Apesar da pobreza do local, julgava ser fidalgamente hospedado, pois se
tornara vizinho do Senhor Sacramentado em seu sacrário, que ele podía
visitar com facilidade. Nao quería para si as excecóes e regalías que ele
prescrevera em favor das Irmas enfermas.

Em testemunho de seu espirito de desprendimento, foi encontrado


no arquivo do Mosteiro da Luz um livro com a seguinte rubrica de seu
próprio punho: "Pertence a Frei Antonio de Sant'Ana Galváo, religioso
menor, 1810, que com licenca de seus prelados aplica para o uso do
Recolhimento {Mosteiro) da Conceicáo da Luz". Apesar da grande consi-
deracáo de que gozava em sua comunidade e embora já tivesse exerci-
do altos cargos, nao se dispensava de solicitar as mais comezinhas li-
cencas, ainda que fossem para o simples uso de um livro.

O Servo de Deus veio a falecer com 83 anos de idade no Mosteiro


da Luz em Sao Paulo aos 23 de dezembro de 1822, após exercer diver
sas funcóes na Ordem Franciscana e na Igreja. Passou os últimos tres
anos prostrado pela molestia. Os seus despojos moríais estáo sepulta
dos na igreja do Mosteiro.

2. Fatos Extraordinarios

Os biógrafos se esmeram em narrar nao apenas testemunhos da


virtude de Frei Galváo, mas também fatos extraordinarios, que sao sinais
de que Deus se servia do seu servo para realizar maravilhas. O extraor
dinario, na vida de alguém, nao é necessário sinal de santidade; muitos
Santos nada fizeram de portentoso. Como quer que seja, a título de infor-
macáo, referiremos, a seguir, alguns episodios que a voz do povo e a
historiografía transmitem ao estudioso contemporáneo.

1. O dom da clarividencia estaría documentado pelos seguintes


relatos:1

' Desda que nao haja outra indicagao, os seguintes relatos de fatos religiosos sao
extraídos da obra de Thereza Regina de Camargo Maia e Tom Maia: Frei Galváo,
sua Térra e sua Vida, pp. 15-20. Ed. Santuario, Aparecida, 1998,210x250mm, 78 pp.

69
22 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

a) Residía em Itu um escravo liberto que, ficando doente, fez pro-


messa de levar a Frei Galváo uma vara de frangos caso sarasse, o que
de fato ocorreu. Por essa razáo, amarrando as aves em uma vara, pós-
se a caminho. Aconteceu que, no meio da jornada, tres frangos Ihe esca-
param. Recolheu fácilmente dois. O terceiro, um carijó, fugiu velozmen
te, irritando o velho, que gritou impaciente: "Volta, frango do diabo!". Nes-
se momento, entrando em uma moita de espinhos, o frango se deixou
apanhar. Após a caminhada, o liberto foi alegremente entregar seu pre
sente ao Frade, que aceitou todas as aves, menos a carijó: "Porque, este
frango, já o deste ao diabo!".

b) Aconteceu em Guaratinguetá. Frei Galváo apenas iniciava seu


sermáo quando se formou grande tempestade. Quando viram que a tor
menta desabava, muitos fiéis pensaram em se retirar. Lendo seus pen-
samentos, Frei Galeáo disse-lhes que ficassem, pois nada sofreriam. De
fato, o temporal que assolou a cidade, nao caiu sobre o Largo da Matriz,
onde todos "puderam acabar de ouvir a prática que, como sempre, pro-
duziu grandes frutos para as almas".

c) Mons. Francisco de Paula Rodrigues (Padre Chico), capeláo do


Mosteiro da Luz de 1905 a 1915, narra o seguinte: "Passava, pela alta
madrugada, por uma das principáis rúas de Sao Paulo um cavaleiro que
viajava para um lugar das vizinhancas da cidade (nao me lembro se para
Jundiaí, Pamaíba ou Cotia). Fazia muito frío e garoava, achando-se a rúa
absolutamente deserta e as casas totalmente as escuras aínda. Com a
maior surpresa viu o cavaleiro a Frei Galváo, sentado á soleira da porta
de entrada de uma casa. Deteve a montaría a indagar, curioso, se o fran
ciscano estava a caminho da Luz, trajeto que habitualmente fazia a pé.
Ofereceu-lhe o cávalo, propondo-se a acompanhá-lo até o Recolhimen-
to, fazendo-lhe ver que ele se arriscava a adoecer, imobilizado como es
tava sob táo áspera temperatura e sob a garoa.

Agradeceu Frei Galváo a oferta, déla declinando. Precisava demo-


rar-se onde estava, tendo para tanto motivos.

Nao insistiu o cavaleiro e seguiu viagem. Déla voltando, soube do


fato que impressionara muito a cidade, e fé-lo estremecer. Fora, pela
manhá alta, encontrado morto em sua própria cama, um homem rico que
vivia solitario, era avarento e praticava a agiotagem.

Era exatamente o morador do predio a cuja soleira vira o cavaleiro,


assentado, Frei Galváo. Pelo exame procedido no cadáver do agiota,
verificou-se que deveria ter falecido murtas horas antes, de uma angina
pectoris ou acídente cardíaco qualquer.

O nome do cavaleiro, Padre Chico deu-o aos seus ouvintes, mas


infelizmente dele nao me lembro.

70
FREÍ ANTONIO DE SANT'ANA GALVÁO 23

A máe de Padre Chico nao se cansava de repetir esta historia,


acrescentou o meu venerando e saudosíssimo informante, pois fora ela
quem, devotíssima do Servo de Deus, transmitirá ao filho aquilo que nos
relatou com diversos outros fatos. Fora contemporánea de Frei Galváo e
refletia a opiniao corrente e geral entre toda a populacáo de Sao Paulo
acerca dos méritos de quem tanto venerava".
Esta narrativa se encontra na Poliantéia de Afonso d'Escragnolle
Taunary, que diz té-la recebido de Mons. Francisco de Paula Rodrigues.

2. Atribui-se a Frei Galváo o fenómeno da bilocacáo:

a) "Quando Frei Galváo residía em Sao Paulo, havia ali um soldado


seu penitente. Este foi mandado ao Rio Grande do Sul, para onde se
mudou com sua familia. Passados alguns anos, caiu este militar grave
mente doente e a familia insistiu para que recebesse os santos Sacra
mentos, mas ele recusou. Só se fosse por intermedio de Frei Galváo.
Nao sabiam como, mas o Servo de Deus ali apareceu e ouviu a confis-
sáo de seu penitente, que veio a falecer dois dias depois" (Ortmann, In-
qu¡r¡9Óes. Narracáo de D. Carolina Galváo, 1847-1950).

b) Foi por volta de 1810. Capataz de urna moncáo que vinha de


Cuiabá, abicada á noitinha em Potunduba, á margem do Tieté (municipio
de Jaú), Manoel Portes, que havia chicoteado um membro de sua flotilha,
foi por este mortalmente apunhalado. Sentindo-se perdido, invocou Frei
Galváo, para se confessar, tendo as tripulacóes, atónitas, presenciado a
chegada do frade áquele local deserto. Aproxlmando-se do agonizante,
ouviu as suas últimas palavras, absolveu-o e desapareceu de relance,
deixando a todos estarrecidos. Nesse mesmo momento, Frei Galváo, que
pregava numa igreja em Sao Paulo, interrompera a prática para pedir á
assisténcia que com ele orasse pela salvacáo da alma de um cristáo que,
longe dali, estava agonizando. Urna cápela memoriza esse episodio, sendo
um centro de devocáo a Frei Galváo.
c) Em urna fazenda, distante leguas de Sao Paulo, urna mulher,
gravemente enferma em melindroso parto, clamava por Frei Galváo. Seu
marido acorreu ao Mosteiro da Luz, á procura do Frade, que se achava,
no entanto, de viagem ao Rio de Janeiro. Retornando á fazenda, ele se
surpreendeu ao encontrar a esposa livre de todo perigo, estando muito
grata a Frei Galváo que, durante a noite, a ouvira em confissáo;... isso foi
o bastante para que se normalizasse seu estado. O homem partiu entáo
para o Rio de Janeiro para agradecer ao Frade. Lá, foi informado pelo
Guardiáo do Convento: "Frei Galváo nao arredou pé daqui". Interrogado
a respeito, Frei Galváo respondeu: "Como se deu, nao sei; mas a verda-
de é que naquela noite lá estive".
A propósito faz-se mister observar: a multilocacáo circunscritiva

71
24 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

ou local é metafisicamente ¡mpossível; um corpo nao pode estar física


mente presente em dois lugares diferentes ao mesmo tempo. O que pode
ter ocorrido, nos casos de bilocacáo de Frei Galváo, Santo Antonio de
Pádua e outros Santos, é um fenómeno de retina: ter-se-á criado, na
retina de quem estava distante do Santo, urna imagem que dava a im-
pressáo de estar o Servo de Deus físicamente presente; a absolvicáo
sacramental terá sido produzida diretamente pelo Senhor Deus como se
fosse por intermedio do Santo.

3. As Pílulas de Frei Gaiváo

Em nossos dias ouvíu-se dízer que os fiéis procuravam a pílula de Frei


Galváo para tratamento de saúde. A razáo deste costume é a seguinte:

Dois casos de risco de vida deram origem as Pílulas de Frei Galváo.


Um foi o de urna parturiente e outro foí o de um rapaz, com cálculos nos
rins. Em ambos os casos, por nao poder acudir pessoalmente aos neces-
sitados, Frei Galvao escreveu em latim urna jaculatoria, em um pequeño
pedaco de papel, que enrolou e recortou em forma de pílulas, pedindo
que as dessem aos doentes. Tanto o rapaz como a parturiente e sua
enanca se salvaram, daí partindo a extraordinaria fama das pílulas, e a
notável fé que os devotos nelas depositavam.

"Post partum, Virgo, Inviolata permansisti! Dei Genitrix, intercede


pro nobís"(Depois do parto, ó Vigem, permaneceste intacta! Máe de Deus,
roga por nos) é o texto da jaculatoria escrita por Frei Galváo no papel.

Referimos o fato sem o comentar. Está claro que hoje em día nao
se podem apresentar pílulas de papel como remedio, pois se tem a cons-
ciéncia (que devia faltar aos antepassados) de que fazem mal á saúde;
nao é lícito ao homem tentar a Deus, supondo que Ele deva fazer mila-
gres para corrigir as imprudencias de suas criaturas. As pílulas que eram
oferecidas aos fiéis, eram sacramentáis, isto é, objetos sobre os quais se
debruca a oracáo da igreja, pedindo ao Senhor que os respectivos usua
rios sejam cumulados de gracas e béncáos. Tais pílulas nada tinham de
mágico. O Sr. Arcebispo de Aparecida, por razóes compreensíveis, hou-
ve por bem vedar tal prática.

4. Conclusáo: o Ordinario e o Extraordinario

O Bem-aventurado Frei Antonio de Sant'Ana goza no céu das ale


grías do servidor bom e fiel (cf. Mt 25,21.23). O que o engrandece, é a
prática heroica das virtudes franciscanamente (ou modestamente)
vivenciadas. O povo fiel tem grande interesse pelas facanhas que ilus-
trem a virtude dos seus heróís: por isto a hagiografía está cheia de episo
dios extraordinarios que seriam sinaís de santidade. As Atas do processo
canónico do Bem-aventurado Frei Galváo nao se fundamentan! nos fa-

72
FREÍ ANTONIO DE SANT'ANA GALVÁO 25

tos extraordinarios atribuidos a este Servo de Deus, mas nos depoimen-


tos, criticamente analisados, que atestam a fidelidade generosa do frade
á sua vocacáo crista e franciscana. A Igreja costuma ser cautelosa diante
de milagre apregoado; só o aceita após rigoroso exame dos pormenores
do fato. Eis, por exemplo, o milagre devidamente comprovado e neces-
sário (tido como sinal de Deus) para a Beatif¡cacao de Frei Antonio de
Sant'Ana Galváo:

Na tenra idade de quatro anos, padecendo de hepatite aguda do


tipo A, Daniella Cristina da Silva, desengañada, foi internada na U.T.I.,
em fase terminal da doenca. Diante desse quadro, seus país e urna tia,
cheios de fé, decidiram entregar a menor á protecáo de Frei Galváo, mi-
nistrando-lhe suas pílulas e iniciando fervorosa novena ao venerável santo.

Vencendo a hepatite aguda A, urna broncopneumonia, urna para


da cardio-respiratória, meningite, faringite e dois episodios de infeccáo
hospitalar com paralisacáo dos rins e do fígado, Daniella, semanas mais
tarde, correu e brincou; teve alta do hospital, já completamente curada.
"Atribuo á intervencáo divina nao só a cura da doenca, mas a sua recupe-
racáo geral", afirmou seu médico assistente.

Há médicos e cientistas que recusam a autenticidade dos feitos


milagrosos alegados pela Igreja, pois, dizem, o que hoje é inexplicável
pela ciencia, poderá ser elucidado científicamente dentro de alguns anos
ou decenios. - Em resposta observamos:

Basta que o feito extraordinario seja totalmente inexplicável (nem


se veja possibilidade de futuramente explicá-lo) nos dias em que ele é
examinado pelos peritos. Com efeito; o milagre nao tem significado em si
mesmo como se fosse um show da Onipoténcia Divina. Na verdade, o
milagre é um sinal (semeion, em grego; cf. Jo 2,12.23; 12,37...); é algo
de relativo,... relativo a um contexto de oracáo filial, humilde e confiante.
É a resposta de Deus a urna súplica. Quando tal súplica é feita por inter
medio de tal ou tal Santo(a), Frei Galváo por exemplo, Deus, pela sua
resposta portentosa, atesta a santidade do Servo de Deus invocado como
intercessor. É este o sentido do milagre.
Nao há dúvida, os médicos, como médicos, nao proclamam mila-
gres, mas apenas feitos extraordinarios; o aspecto de milagre (= sinal de
Deus) é investigado pela Igreja após terminada a pericia médica. O que a
Igreja pede, é que os médicos verifiquem objetivamente, sem preconcei-
tos, se tal ou tal fato é explicável pela ciencia ou poderá vir a ser explica
do pelos pesquisadores.

Em suma, a Deus seja dada gloria e gratidáo pelo que fez em seu
servo Frei Galváo. Todo santo tem tríplice significado para os fiéis católi
cos, pois suscita

73
26 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

a) adoracáo e louvor a Deus por ter feito maravilhas em seus


Santos ou por ter feito frutificar nos Santos os méritos de Cristo. O culto
aos Santos é sempre relativo a Deus e a Cristo ou é sempre teocéntrico
e cristocéntrico. Nos Santos contemplamos obras-primas da graca ad
quirida por Cristo.

b) Súplica ... Pedimos que, pela intercessio dos Santos, amigos


de Deus já existentes na gloria, o Pai nos conceda os dons necessários
para que possamos unir-nos a eles, na bem-aventuranca final ou na Je-
rusalém celeste.

c) Estímulo a imitarmos os Santos. Se eles conseguiram ser he


roicamente fiéis a Cristo, por que nao o conseguirlo os demais cristáos,
ainda peregrinos na térra? Entre os Santos há homens e mulheres, jo-
vens e anciáos, clérigos e leigos, virgens, celibatários e casados, ricos e
pobres, doutos e indoutos... Esta variedade mostra que a santidade pode
(e deve) ser cultivada em qualquer vocacáo que Deus dé á criatura.

Questóes dos Divorciados á Igrej'a, por Mgr. Armand Le Bourgeois.


Tradugáo de Comerciado B. Dalla Costa. - Ed. Ave-María, Sao Paulo 1996,
140x210mm, 112 pp.

O livro se deve a um Bispo desejoso de aliviar a angustia que afeta


multas pessoas que, depois de um casamento religioso válido e consumado,
se divorciam e contraem urna uniáo meramente civil ou simplesmente sejun-
tam a novo(a) parcelro(a). Todavía, no seu intuito pastoral, o autor deixa os
leitores um tanto confusos, pois nem sempre refere com a devida clareza a
doutrina da Igreja. Assim, por exemplo, julga que a consciéncia pode decidir
se urna pessoa divorciada e re-casada está habilitada ou nao para recebera
S. Eucaristía (cf. pp. 22.28-30); na verdade, a consciéncia é a norma ¡mediata
da moralidade, mas nao é autónoma, e sim teónoma; compete a cada fiel
católico formara sua consciéncia de acordó com as diretrízes objetivas da Lei
de Deus. A confíssáo sacramental sería vedada aos divorciados recasados
tao somente porque nao Ihes é licito comungar (a confíssáo sacramental se
ria um antecedente necessário para a Comunháo Eucarfstica, cf. pp. 23s); na
verdade, os divorciados recasados nao se podem reconciliar com Deus pelo
sacramento da Penitencia, porque vivem num estado pecaminoso que eles
nao tenclonam abandonar. O autor apregoa que a Igreja Católica reveja sua
posigáo á luz do procedimento de protestantes e ortodoxos, que admitem o
divorcio (cf. pp. 39s); deve-se dizer, porém, que a posigáo da Igreja Católica é
simplesmente a do Evangelho (cf. Me 10,9s e paralelos), que nao é lícito aos
homens retocar. Havería um ritual de béngáo para a nova uniáo meramente
civil (cf. p. 99) - o que contraría frontalmente a norma da Exortagáo Familiaris
Consortio n9 84.

Em suma, o livro nao éguia para os fiéis católicos. A doutrina da Igreja


sobre tal problemática é explícita e mantém a fidelidade ao Senhor Jesús em
seu Evangelho. Cf. PR 431/1998, pp. 162-172.

74
Um discurso revelador:

O FUNDAMENTALISMO ISLÁMICO

Em síntese: Mons. John Joseph, Bispo de Faisalabad e Presiden


te da Comissáo Episcopal dos Direitos Humanos do Paquistáo, devia
proferir em Roma urna conferencia sobre este tema. Todavia, em vista
dos acontecimentos ocorridos em abril de 1998 no seu país (um jovem
católico foi condenado a morte sob a acusagáo de ter blasfemado contra
o Coráo), resolveu nao viajar, e enviou o texto da conferencia que devia
pronunciar, á instancia devida. O texto é significativo, pois revela porme
nores muitas vezes ignorados no mundo ocidental: o radicalismo islámico
nao hesita em condenar á morte os que nao compartilhem as concep-
góes religiosas e civis do Isla - o que se verifica nao somente no Paquistáo,
mas também na Algéria, no Sudáo e em outras regióes do mundo atual.
• * *

Fundamentalísimo é o radicalismo fanático que um grupo religioso


pode assumir, chegando a matar quem nao compartilhe suas concep-
cóes. Tal atitude está assaz difundida em nossos días entre muculma-
nos, judeus e outros religiosos.

Por causa do Fundamentalismo islámico, o Paquistáo tem vivido


urna fase de terror e violencia, que se tornou patente de modo especial
quando o Bispo Mons. John Joseph, de Faisalabad, pos termo á sua vida
em 6/5/1998 como sinal de protesto contra as injusticas cometidas pelos
governantes do país. O caso já foi relatado em PR 437/1998, pp 465-
469. Completando quanto ai foi dito, segue-se em traducáo portuguesa o
texto da última conferencia que Mons. John Joseph devia proferir em
Roma, referindo a situacáo do seu país no tocante aos direitos humanos.

O Discurso de Mons. John Joseph

Mons. John Joseph, Bispo de Faisalabad e Presidente da Comis


sáo Episcopal para os Direitos Humanos, no Paquistáo, devia proferir em
Roma urna conferencia sobre este tema, todavia em vista dos trágicos
acontecimentos ocorridos em abril de 1998 (um jovem católico foi conde
nado á morte sob a acusacáo de haver blasfemado contra o Coráo), re
solveu nao deixar o país, mas enviou á instancia competente o texto da
conferencia que devia pronunciar. Tal texto é muito significativo, pois re
vela pormenores, muitas vezes, ignorados no mundo ocidental. Ei- lo:

75
28 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

Introducáo

«As circunstancias impedem-me de participar do Seminario orga


nizado pelo SEDOS. Um cristáo, Anwar Masih, acusado de blasfemia, foi
absolvido por um tribunal, mas um grupo terrorista muculmano Sipah-e-
Sahaba anunciou que havia de assassiná-lo. É este grupo que move o
processo judiciário contra ele. Por conseguinte, eu tenho que o esconder
até encontrarmos um lugar seguro para ele, sua esposa e seus filhos.
Tem aproximadamente 35 anos.

Ontem, 27 de abril de 1998, Ayub Masih (o nome Masih significa


que a pessoa é crista, nao é um nome de familia) foi condenado a urna
multa de 100.000 rupias, porque, numa discussáo com um 'amigo1 mu
culmano, o acusaram de ter dito: 'Se leres o livro de Salman Rushdie (Os
Versos Satánicos), encontrarás a figura real do Isla e do seu profeta1. Eis
ai o fundamentalismo religioso extremado. Onde quer que vivamos hoje,
somos afetados pelas atividades dos fundamentalistas. As pessoas fi-
cam perplexas em vista dos crimes desses individuos formados e mani
pulados para matar. Tais agentes nao tém medo da morte. Assim se dis
semina o terror na populacáo. Utilizam livremente a violencia. Nao tém
medo de atitudes extremadas.

Principáis Traeos do Fundamentalismo Religioso


1. Rejeicáo absoluta da racionalidade: os fundamentalistas tentam
popularizar as suas crencas, apelando para as emocóes da populacáo.
2. Já que nao confiam na razáo humana, acreditam no poder de
Deus para levar a humanidade a seguir o caminho reto.

3. Nao estáo dispostos a assumir algum compromisso que afete as


suas crencas.

4. Julgam estar na verdade e consideram-se auténticos discípulos


religiosos. Em conseqüéncia, tratam todos os outros homens como ini-
migos.

5. Estáo dispostos a sacrificar a própria vida em prol das suas eren-


cas. Também estao prontos para matar seus opositores religiosos, que
nao estáo no caminho certo.

6. Visto que monopolizam a verdade e declaram pecadores todos


os outros homens, perderam todo o respeito pelas instituicóes democrá
ticas, os direitos do homem, os valores humanos e tentam, de modo fa
nático, impor aos outros as suas idéias religiosas, mesmo pelo recurso a
métodos violentos.

Segundo a Sra. Asma Jahangir, célebre advogada dos direitos do


homem e Presidente da Comissáo Paquistanense dos Direitos Huma-
76
O FUNDAMENTALISMO ISLÁMICO 29

nos, "Os fundamentalistas islámicos nao sao outra coisa senáo pessoas
ávidas de poder, inclementes e violentas.

Sabem que existe aquí, em muitos fiéis, certo medo da moderniza-


cáo, medo do secularismo... exploram este sentimento para engrossar
as suas fileiras" (Charles M. Sennott, in: Pakistanis Underclass Targets).
Como em muitos outros países muculmanos, também no Paquistáo
é o terrorismo que mais medo incute. Em Janeiro deste ano, um relatório
preparado por um Departamento da Polícia secreta enviou uma
preocupante advertencia ao governo. O relatório chamava a atencáo para
a atividade de alguns grupos religiosos extremados, que defendem idéi-
as sectarias virulentas. Essas organizacóes tém a possibilidade de se
tornar a mais importante mafia do crime que o Paquistáo jamáis tenha
conhecido. Constituida por elementos criminosos e mandatarios dissi
mulados, essa mafia desperta o medo de que o seu crescimento
incontrolado mergulhe o Paquistáo em situacáo de violencia nunca atin
gida até agora.

A esse relatório da Polícia eu acrescentaria a noticia de que o cres


cimento descontrolado do terrorismo religioso já está acontecendo no
Paquistáo. O Governo tem medo dele ou, ao menos, por outros motivos,
deixa-o livre. Por exemplo, uma das razóes que levam o Governo a ter
medo de intervir, é a ambicáo cega e inveterada dos governantes de ficar
no poder. Porconseguinte, o Governo é vulnerável á chantagem exercida
por esses grupos. O Governo recusa tomar conhecimento das escolas
em que os meninos, desde os cinco anos de idade, sao iniciados ao odio
religioso e ao manejo de armas. Esses meninos andam com turbantes
amarrados em torno da cabeca; sao sinal de que jamáis progrediráo inte-
lectualmente. Em algumas dessas escolas, as enancas sao presas com
correntes de ferro. Os primeiros frutos desses centros de formacáo terro
rista sao visíveis e evidentes em nossos dias. Um ensinante cristáo, Nemat
Ahmar, foi assassinado brutalmente a facadas, após ter sido acusado de
blasfemia por um estudante de 24 anos. Outro estudante, Gul Mash, con
denado á morte por blasfemia, era acusado por um estudante de 25 anos.
Outro estudante ainda, de 23 anos, com turbante na cabeca e barbudo,
entrou numa de nossas igrejas aos 3 de abril de 1996, durante as cerimó-
nias da sexta-feira santa, para gritar: "A Biblia nao é um livro santo! O
Cristo nao é um profeta!".
Em geral, a populacáo tem medo de reagir, porque, se alguém fala
ou age contra os fundamentalistas, o castigo infligido pelos terroristas
religiosos é ¡mediato e terrível. Algumas vezes a familia toda é brutal
mente massacrada. Cria-se o terror. Mesmo nos, sacerdotes e Religio
sos, permanecemos em silencio e preferimos fechar os olhos, na espe-
ranca de que o horror passará.

77
30 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

Os fundamentalistas querem ressuscitar um passado glorioso e


voltar ao ensinamento do Isla. Chamam os outros muculmanos para se
reunirem á sua causa. Muitas vezes esse apelo encontra atendimento.
Isto provoca um militarismo religioso significativo. Todavía também é ver-
dade que, por causa de seus apelos e reivindicacóes em prol do ensino
do verdadeiro Isla, há divisóes entre eles. Diferentes grupos reivindicam
toda a verdade: donde resultam batalhas no bojo da casa do Isla. Gasta
se muita energía nesses duelos domésticos. Isto afeta também o setor
político.

O Isla reconhece o setor político como área legítima de empreendi-


mentos humanos. Para o muculmano, o Estado e a religiáo váo de máos
dadas e nao podem ser separados um do outro. O Isla impóe suas regras
ao jogo político.

Para o Isla, o século XX comecou com a esperanca do secularismo.


Termina com o medo do fundamentalismo. Em 1924 Kamal Ataturk abo-
liu a lei islámica nos tribunais e secularizou o maior imperio muculmano
da época, a Turquis otomana. Em 1979 o Ayatollah Komeiny levou a
revolucáo iraniana a triunfo, inspirando diversas correntes fundamen
talistas no mundo muculmano. O mundo islámico olha com nostalgia para
a Idade Media, época em que sua religiáo e sua cultura eram irmás gé-
meas, aos pés das quais o Ocidente cristáo estudava. O mundo islámico
percebeu frustrado que os ideáis ocidentais do nacionalismo, do socialis
mo e capitalismo introduzidos na sociedade muculmana nao oferecem
solugáo aos numerosos e diversos problemas que o Isla enfrenta num
mundo tecnológico. Com chavóes como 'O Isla é a solucáo1, 'Alá é a
resposta', os fundamentalistas colocam a esperanca na utopia de restau-
racáo de urna comunidade muculmana antiga e idealizada.

Outro elemento que ajudou os partidos fundamentalistas a aumen


tar a sua influencia, é o número de derrotas sofridas pelos muculmanos
no Egito, na Jordania, no Líbano, na Siria por efeito das invectivas de
Israel; também pesam a Vitoria da india sobre o Paquistáo, a indepen
dencia do Bangladesh e a recente derrota do I raque na guerra do Golfo.
Essas derrotas e humilhacóes provocaram um profundo sentimen-
to de desespero passivo entre os muculmanos. O Ocidente aparece como
inimigo do mundo muculmano - o que estimula os partidos fundamen
talistas a rejeitar tudo o que venha do Ocidente e a apresentar o Isla
como a única alternativa para salvaguardar do desastre os muculmanos.
Os partidos fundamentalistas muculmanos estimam que somente seguin-
do os ensinamentos islámicos os muculmanos do mundo inteiro poderáo
unir-se para urna revanche contra o Ocidente e os outros inimigos.
A massa ignorante da gente pobre simpatiza com esses partidos
religiosos, que despertam seus sentimentos sobre as questóes religio-

78
O FUNDAMENTALISMO ISLÁMICO

sas. No Paquistáo o Anjuman-S¡ap-e-Sahaba e o Majiis-i-Khatm-i-Nabu-


wal sao partidos desse tipo. De vez em quando levantam questóes religi
osas como sendo questSes de vida e morte. Nos conflitos sectarios em
particular encontram um terreno suficientemente rico para criar perturba-
coes religiosas. Já provocaram varios conflitos e tensóes no Paquistáo.
Muitos litigios armados ocorreram e centenas de pessoas morreram.

Há grupos militantes no Paquistáo que lancam bombas dentro das


mesquitas, das escolas, das estacóes ferroviarias, ñas paradas de óni-
bus, nos centros comerciáis e em outros lugares públicos. Isto gera um
sentimento de terror na populacáo. Acontece também algumas vezes
que uma seita muculmana acuse outra, como se dá, por exemplo, entre
chutas e sunitas. Por vezes, quando um incidente ocorre numa cidade
grande, a tensáo aumenta em outra cidade e um contra-ataque é organi
zado numa terceira cidade. O Irá desempenha um papel Importante no
desenvolvimento do Isla fundamentalista. Muitos govemos africanos, por
exemplo, tém medo do Irá e sabem que o Irá ajuda os fundamentalistas
dos seus respectivos países. Por ocasiáo da ¡nauguracáo de um Semi
nario em Teerá sobre o desenvolvlmento e a cooperacáo na África, o
Presidente da Cámara dos Deputados Ali Akbar Netegh Nourl discursou,
dizendo abertamente que seu país daria énfase á renovacáo do Isla: "A
renovacáo do Isla é um dos objetivos mais importantes da política inter
nacional iraniana. Devemos ajudar a África a recuperar a sua identida-
de". Nouri foi citado pelo jornal iraniano Keyhan.
Aos 27 de margo de 1993 a Algéria rompeu as relacóes diplomáti
cas com o Irá, acusando-o de interferencia e de apoio aos terroristas. Ao
mesmo tempo a Algéria chamou de volta seu embaixador no Sudáo, acu
sando os dois países de "interferencia nos assuntos internos da Algéria"
e dizendo que os dois países tinham declarado seu apoio ao terrorismo.
As Vítimas do Fundamentalismo

As primeiras vítimas dos partidos fundamentalistas sao as minori


as religiosas. Voltam sua cólera contra essas minorias e as acusam de
ser perigosas para a sociedade e o país. Por exemplo, no Paquistáo os
cristáos e os Ahmadis (seita muculmana que nao aceita Maomé como
último profeta). No Irá, após a revolucáo islámica de 1979 os bahais fo-
ram brutalmente perseguidos e excluidos de todo emprego administrati
vo. No Egito as vítimas sao os coptas.
Em segundo lugar, entre as vítimas estáo as mulheres. Os grupos
fundamentalistas acreditam que as mulheres sao inferiores aos homens
e que sao as causas do mal, iracas e estúpidas e que nada entendem
dos assuntos do mundo.
Em terceiro lugar, vém as pessoas que professam idéias secula-

79
32 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

res, liberáis e esclarecidas, especialmente os intelectuais e os militantes


dos direitos do homem.

Os grupos fundamentalistas se opóem ao Ocidente e observam


cuidadosamente o seu progresso e as suas atividades. Cada vez que é
possível, cometem ato de terrorismo para chamar a atencáo dos meios
de comunicacáo internacionais. Para eles, todo cidadao de um país oci-
dental é inimigo do Isla; por conseguinte sustentam todo tipo de atividade
violenta ou nao violenta para lutar contra seus inimigos nao muculmanos
ou muculmanos ocidentalizados.

Para popularizar sua política, eles utilizam o método do tabligh ou


da pregacáo. O seu segundo método é a violencia. Acreditam que aque
les que se opoem a eles sao os inimigos de Deus. Eles os aterrorizam
para impor-lhes silencio, e depois eles os eliminam - o que serve de
advertencia para os outros.

Os que adotam idéias seculares, sao considerados apóstatas


murtad e, conseqüentemente, punidos com a morte. Para legitimar esta
pena, urna fatwa, julgamento religioso, é tornada pública - o que obriga
todo muculmano a matar a pessoa em foco. No Irá, ao tempo do regime
do xá, um advogado liberal, Khusrau, foi assassinado quando os chefes
religiosos decretaram sua morte. De modo semelhante, o ímá Komeiny
publicou urna fatwa para mandar matar Salman Rushdie.

No Paquistáo as fatwa sao freqüentemente lancadas contra os cris


táos. Isto aconteceu no caso de Salamat Masih, um adolescente, de
Manzoor Masih, e Rehmat Masih, dos camponeses de Gujwanrala; Gul
Masih, um pequeño comerciante de Sargodha, Nemat Ahmer, um
ensinante de Faisalabad. Nehmat Ahmer foi assassinado, assim como
Manzoor Masih, Slamat Masih e Rehmat Masih foram condenados á morte
por tribunais, depois libertados pelas Cortes de Apelacáo de Lahore.
Muitas vezes as leis islámicas, particularmente as leis contra a blasfe
mia, sao utilizadas contra os cristáos por razóes de vinganca pessoal.
Isto cria um sentimento de medo entre os cristáos.

Com a influencia fundamentalista, a publicacáo de livros religiosos


aumenta e a literatura profana caí em baixa. O fundamentalismo também
afeta grandemente a música, a pintura, a escultura, a danca. De modo
geral, a sociedade perde o seu brilho; a violencia e o terror reinam com
supremacía. É o que acontece atualmente no Paquistáo.
Para o Arcebispo sul-africano Desmond Tutu, "a verdadeira ques-
tao é tomar o fundamentalismo islámico como um desafio; a maneira
mais eficaz de responder-lhe é aprofundar a fé do povo" (L'lslam en
Afrique, World Mission, Janeiro 1993).

80
O FUNDAMENTAUSMO ISLÁMICO 33

Nossa Resposta a esse Desafio

Em nosso mundo de hoje a Igreja será táo pertinente e vibrante


quanto a resposta que ela dará a essa questáo essencial do funda-
mentalismo religioso e da violencia. Estou desolado por ter que dizer que
nos, Bispos e outros dirigentes eclesiásticos, esquecemos as vezes os
feridos e os moribundos para realizar nosso dever 'religioso', como o
levita e o sacerdote no episodio do bom Samaritano. Fechamos os olhos
e julgamos que o tigre sedento do sangue da violencia religiosa se afas-
tará por si mesmo. Nao, cada um de nos tem que se comprometer e
desempenhar o seu papel.
Comprometer-se

Cada um de nos tem essa obrigacáo. Cada cristáo seja um sim


ples leigo, seja um Cardeal, ouve o Senhor Jesús dizer-lhe que nao pas-
se ao largo da pessoa ferida (física, moral, psicológicamente, social ou
financeiramente). Comprometer-se, mesmo quando isto seja perigoso.
Quantas vezes o Senhor Jesús nao nos disse que nao tenhamos medo?
Os covardes, segundo as Escrituras Sagradas, nao entraráo no Reino
de Deus (Ap 21,8).
Depois que tantas ordens de prisao foram emitidas contra mim pela
Policía de Islamabad, por ter dirigido urna manifestacáo há tres anos, um
dos meus irmáos eclesiásticos me disse que tudo isso acontecía por cul
pa minha. Dizia que devemos estar satisfeitos pela liberdade de que go
zamos no Paquistáo... 'Considera alguns dos países muculmanos como
a Algéria, o Sudáo, o Egito... Os fundamentabas extremados sao muito
poderosos e organizados no plano internacional... Nao os podemos de
safiar. É perigoso demais... A minoría crista no Paquistáo é pequeña e
fraca demais1. Respondi-lhe: 'Talvez eu seja muito fraco, mas, se nos nos
unirmos em nome de Nosso Senhor Jesús, seremos muito fortes1. Eu Ihe
disse também: 'Somos de carne e osso, é certo, mas os músculos com
os quais combatemos nao sao de carne. Nossa guerra nao se combate
com as armas da carne, mas nossas armas sao suficientemente podero
sas, pela causa de Deus, para demolir fortalezas' (2 Cor 10, 3s). A res-
posta do amigo, na presenca de cinco pessoas, foi: 'O, isso é apenas
teoría'.

Organizar-se

Nossa resposta á violencia há de ser ecuménica e inter-religiosa.


Embora nos, católicos, sejamos a maioria entre os cristáos do Paquistáo,
nao pensaríamos em organizar urna manifestacáo ou um protesto sem a
presenca oficial e plena das outras confissóes cristas do Paquistáo. Os
representantes de todas as confissóes preparam, decidem e agem con-

81
34 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

juntamente. É belo ver os majores e brigadeiros do Exército da Salvacáo


caminhar em uniforme e montar a guarda, quando nos deitamos por térra
para urna greve de fome. É maravilhoso ouvir um pastor protestante di-
zer após as ordens de prisao contra mim: 'Monsenhor, se o Sr. for preso,
urna parte de nos também será presa, porque todos juntos formamos o
Corpo de Cristo'.

Há muitos muculmanos convencidos de que cada ser humano deve


contribuir pessoalmente para a luta contra a violencia e o terrorismo, a
fim de os erradicar. Há também grupos mugulmanos de defesa dos direi-
tos do homem. Devemos contactá-los e trabalhar em plena colaboracáo
com eles. E este um dos segredos do sucesso que conseguimos até o
presente.

Nao podemos esquecer nenhum setor da sociedade. Os dirigentes


locáis chamam os chefes de seccáo, as mulheres e a juventude. Antes
de comecar urna acáo mais ampia contra a injustica, consultamos seria
mente nao somente os chefes religiosos, mas também os leigos.
A organizacáo nao deve ser apenas local, regional ou nacional,
mas deve ter liames fortes com agencias internacionais comprometidas
na luta contra todas as formas de violencia. Nos, cristaos do Paquistáo,
temos ligacáo estreita com a Amnesty International, a British
Broadcasting Corporation (BBC) de Londres, a Media Watch de Nova
lorque, as Comissóes dos Direitos Humanos do Canadá, da Australia, da
Suíca, da Holanda, da Alemanha, com Missio e Misereor, com a Solida-
riedade Crista da Austria e agora com o SEDOS de Roma. Os Governos
do Terceiro Mundo podem nao escutar os clamores dos seus povos, mas
sao extremamente atentos á opiniáo pública dos países do Primeiro Mundo.
Aos 5 de abril de 1998, quatro cristaos acusados de blasfemia fo-
ram alvo de atentados. Um deles foi assassinado de ¡mediato: os outros
foram gravemente feridos, entre os quais um menino de doze anos. Os
Bispos protestantes e católicos queriam ser recebldos pelo Presidente
ou o Primeiro-Ministro do Paquistáo, mas estes nao tinham tempo para
nos. Entáo organizamos urna manifestacáo macica do clero, dos leigos,
das mulheres e da juventude. Atiraram contra nos repetidamente, mas
continuamos a percorrer as rúas de Faisalabad. A BBC de Londres falou
disso; foi somente nesse momento que o Presidente do Paquistáo en-
controu tempo para nos. As Embaixadas estrangeiras sao de grande aju-
da, algumas vezes abertamente, mas em geral discretamente.
Nossa Resposta há de ser absolutamente nao violenta
Se, a partir das nossas manifestacoes, urna só pedra é lancada
contra urna janela, nos nao somos cristaos e perdemos todo direito de
manifestar-nos contra a violencia. Pública e abertamente sao proferidas
62
o fundamentalísimo islámico 35

injurias contra nos no decorrerdas manifestacóes fundamentalistas. Nossa


gente vem nó-lo contar. Nos os acalmamos, dizendo-lhes que essas inju
rias que sofremos por trabalhar pelos direitos do homem e a paz, sao
como medalhas de ouro para nos. Jesús dizia: 'Bem-aventurados sois
vos, quando vos insultam em meu nome'. Em caso algum, nos nos per
mitimos recorrer á vinganca.

Na véspera de urna manifestacáo reunimos todos os organizadores,


e, no decorrer de urna assembléia de oracáo, prometemos ao Senhor
Jesús que permaneceremos tranquilos, e manteremos os manifestantes
em paz. Esta promessa feita na igreja é importante para a juventude, que
tende a procurar represalias. Essa tendencia deve ser controlada pela
motivacáo, por urna longa formacáo e um compromisso cristáo. Fotogra-
famos a cerimónia no decorrer da qual, com as máos erguidas, os
organizadores prometem ficar tranquilos e controlar disciplinadamente a
manifestacáo, a fim de nos lembrarmos constantemente dessa promes
sa táo importante.

Coordenacáo e Cooperagio com as diferentes ONG


As OrganizacÓes nao Govemamentais podem desempenhar papel
muito positivo em nosso apostolado pela paz; de modo especial, aquelas
que trabalham pelos direitos das enancas, das mulheres, dos operarios...
Também os grupos que trabalham contra a tortura, os morticinios brutais
e o encarceramento sem julgamento.

Conclusáo

Para concluir, cito as palavras fortes e estimulantes do Santo Pa


dre o Papa Joáo Paulo II. Sou um grande admirador da coragem com a
qual ele proclama a verdadeira doutrina da Igreja e a auténtica mensa-
gem de Jesús Cristo nosso Salvador. Ele nao tem medo do que as na-
coes do Terceiro Mundo pensaráo a respeito da Doutrina Social da Igreja
Católica Nenhum Presidente deste mundo tem a coragem de prestar
visita ao Papa em uniforme. Os ditadores deste mundo tém medo desse
homem de paz e igualdade.
Se nos pastores da Igreja e dirigentes leigos, tivéssemos a meta-
de da coragem do Santo Padre, a graca do Salvador atingiría hoje muito
mais gente no mundo. Em sua mensagem pela paz de 1985 dirigida a
juventude, mas válida para cada um de nos, o Santo Padre escreve: O
apelo que dirijo a vos, jovens homens e mulheres de hoje, e o seguinte:
Nao tenhais medo! Quando olho para vos, sinto gratidáo e esperanca...
Nesta situacáo, alguns dentre vos poderiam ser tentados a fugir das suas
responsabilidades1 (Mensagem para a Jornada Mundial da Paz, 1a de
Janeiro 1985).

83
36 "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

Enfim apelo para todos os meus irmáos e irmás em Cristo: deixe-


mos nossos recantos de seguranca e conforto e vamos ao povo. Recen-
temente nos, comunidade crista do Paquistáo, tivemos que impugnar uma
leí injusta contraria ás minorías. Eu mesmo, Bispo católico, em compa-
nhia de numerosos cristáos de muitas cidades do Paquistáo, deitei-me
numa alameda para fazer greve de fome frente aos carrascos do Gover-
no de Faisalabad. Ocorreu entáo um dos mais estupendos acontecimen-
tos da nossa historia nacional: quase todos os Bispos do Paquistáo vie-
ram e sentaram-se conosco durante algumas horas, os Bispos católicos
de túnica branca, os Bispos protestantes de túnica roxa. A imprensa fi-
cou muito impressionada, o Governo também e, naturalmente, essa soli-
dariedade venceu. O Governo declarou que ele nao introduziria mais o
projeto de lei que consistía em acrescentar a referencia á religiáo na car-
teira de identidade: isto teria tornado oficial a discriminacáo religiosa e
teria tornado cidadáos de segunda categoría os membros das minorías.
A declaracáo do Governo foi feita no dia de Natal de 1992. Jesús, nosso
Salvador, havia rompido as barreiras da hostilidade e da discriminacáo
oferecendo o seu próprio corpo (cf. Ef 2,13-17). Ele é a nossa Paz medi
ante a sua crucifixáo, a sua morte e a sua ressurreicáo, Ele cumpriu a
missáo para a qual fora enviado, a saber: que todos sejam um (cf. Jo

Eu me darei por muito feliz se, nessa missáo de destruir as barrei


ras, Nosso Senhor aceitar o sacrificio do meu sangue em favor do seu
povo. Como escrevia Sao Paulo: 'Estou feliz por sofrer em vosso favor,
como eu sofro agora, e regozijo-me por fazer em meu próprio corpo o
que posso a fim de realizar o que deve ser realizado por Cristo em prol do
seu corpo, que é a Igreja' (cf. Cl 1,24).

É esta a única resposta eficaz para o fenómeno sempre crescente


da violencia que nos cerca. Estamos prontos para sustentar esse desafio
e seguir o Cristo, carregando a Cruz sobre os nossos ombros (Mt 16,24)?
Estamos prontos para beber a taca do sofrimento até o fim, como fez
Jesús (cf. Mt 20,22)? Que o Senhor crucificado e ressuscitado nos dé a
coragem de o fazer! Amém".

(Texto extraído de LA DOCUMENTATION CATHOLIQUE, 7/7/98 nB 2183


pp. 536-540)

Comentando...

As palavras deste discurso póem em evidencia a dolorosa situa-


cáo em que vivem as minorías religiosas do Paquistáo e de países influ
enciados pelo fundamentalismo. Foi contra tal ordem de coisas que Mons.
John Joseph quis protestar, movendo as autoridades do seu país a rever
a legislacáo vigente. Deus saberá avaliar o gesto desse lutador, gesto
84
O FUNDAMENTALISMO ISLÁMICO 37

que, objetivamente talando, nao pode ser recomendado; Mons. John


Joséph acreditava em seu íntimo que estava assim servindo a Deus.
Os Bispos do Paquistáo presentes em Roma por ocasiáo do de
senlace do Prelado emitiram urna Nota importante, que ilustra a persona-
lidade do defunto. Déla sejam extraídos alguns trechos:
"Nos, Arcebispo de Lahore, Bispo de Islamabad-Rawalpindi e Bis-
po de Hyderabad, hoje em Roma por ocasiáo do Sínodo da Asia, assim
como todos os cristáos paquistanenses de Roma, fomos profundamente
emocionados pelas circunstancias trágicas da morte de Mons. John
Joseph. Foi a extingáo repentina e cruel de 'urna luz brilhante' (Jo 5,35).
Para todos nos, ele era um homem enviado por Deus (Jo 1,6). Era
um dos mais brilhantes estudantes do Seminario Nacional de Cristo-Rei
em Karachi. Após a ordenagáo sacerdotal em 1960, obteve o doutorado
em Teología em Roma e, mais tarde, completou seus estudos de Liturgia.
Era o Decano da Faculdade Académica da sua Alma Maten a seguir, foi
nomeado Bispo de Faisalabad, tornándose assim o primeiro paquis-
táñense a dirigir a diocese e o primeiro Penjabi feito Bispo católico.
Era membro importante e reconhecido da hierarquia e, recente-
mente, fora eleito Vice-presidente da Conferencia Episcopal do Paquistáo.
Já era'Presidente da Comissáo Episcopal de Justiga e Paz. Até o mes de
abril deste ano, dirigía também a Comissáo para o Diálogo Inter-religio-
so Era o tradutor do Missal Romano, do qual foi publicada a segunda
edigáo no mes passado. Tinha comegado a tradugáo do Catecismo da
Igreia Católica e, gragas ás suas qualidades intelectuais, estava assu-
mindo a diregáo de urna equipe destinada a traduzir a Biblia para a lin-
guagem urdu, que é o idioma nacional...
No momento em que a Missa de funerais será celebrada em sua
aideia, aos 8 de maio, os Bispos do Paquistáo e os fiéis presentes em
Roma ofereceráo a Eucaristía pelo repouso de sua alma. Cremos que o
Senhor, que ele procurava táo heroicamente, Ihe manifestará a sua com-
paixáo'e Ihe dará a recompensa que ele merece.
Roma, aos 7 de maio de 1998.

Mons. Armando Trindade,


Presidente da Conferencia Episcopal

Mons. Anthony Lobo,


Secretario Geral

Mons. Joseph Coutts,


Presidente da Comissáo para o Diálogo
Inter-religioso»

85
Pros e contras:

JOSÉ SARAMAGO, PREMIO NOBEL

Em síntese: A premiacáo Nobel de José Saramago, escritor portu


gués comunista e blasfemo, foi aplaudida por críticos literarios como ho-
menagem, pela primeira vez concedida, a literatura portuguesa; mas foi
tida peló Vaticano como escolha ideológica, visto que Saramago é um
dos mais veementes burladores dos valores da religiáo em nossos tem-
pos. Más, os críticos afirmam que "as simpatías da Academia Sueca
tendem para a esquerda" (cf. VEJA, 14/10/98). O artigo abaixo reproduz
a crítica publicada pelo jornal L'OSSERVATORE ROMANO assim como
breve comentario do livro "O Evangelho segundo Jesús Cristo".
* * *

O escritor portugués José Saramago, aos 9/10/98, foi escolhido


para receber o Premio Nobel de Literatura. É o primeiro autor de língua
portuguesa a quem tal honra é deferida. Daí os aplausos de muitos litera
tos portugueses e brasileiros ao homenageado. Todavía o Vaticano recu-
sou-se a congratular-se com Saramago, julgando que a designacáo de
seu nome se deve a motivos ideológicos, pois Saramago é comunista
confesso e escreveu um livro blasfemo intitulado "O Evangelho segundo
Jesús Cristo". Alias, conforme a revista VEJA, de 14/10/98, p. 143, "criti-
cam-se muito as escolhas de Estocolmo, dizendo que elas sao inspira
das em bom-mocismo político... Históricamente, as simpatías da Acade
mia Sueca tendem para a esquerda".

Procuremos considerar o caso mais atentamente, cientes de que


está prevista urna versáo teatral do livro blasfemo de Saramago para
1999 no Brasil.

1. Quem é José Saramago?


Eis o que o JORNAL DO BRASIL, em sua edicáo de 9/10/98, Ca-
derno Literario, pp. 1s, escreve:

"José Saramago, 76 anos, tomou-se ontem o primeiro escritor de


língua portuguesa a ganhar o premio Nobel de Literatura. Justificando a
escolha de Saramago, a Academia Sueca de Letras declarou que 'com
parábolas sustentadas pela imaginagáo, compaixáo e permanente iro
nía, Saramago torna tangível urna realidade fugidia'. O escritor ficou sa-
bendo que tinha sido premiado no aeroporto de Frankfurt, quando se
preparava para embarcar para Madri, de onde seguiría para a pequeña e
árida ilha de Lanzarote, no arqulpélago das Canarias, onde reside, com
86
JOSÉ SARAMAGO, PREMIO NOBEL 39

sua mulher, ajornalista espanhola Pilar del Rio, num lugarejo chamado
Tais. Numa tumultuada entrevista coletiva na Feira de Frankfurt, cercado
por jornalistas de todo o mundo, que o receberam acenando com rosas
vermelhas, Saramago disse que 'o premio Nobel certamente nao iría sal
var a língua portuguesa, mas, sem dúvida, iría ajudar a protegé-la'. A
decisáo foi aplaudida em todo o mundo, com urna única excegáo: o Vati
cano, que julgou a premiagáo 'ideológica'...

O escritor portugués se define como 'feliz num mundo triste e pes-


simista, porque os otimistas sao poucos. Os otimistas estáo conten-
tíssimos. Acreditam que o mundo é táo bom que nao precisa de nenhuma
mudanca'. Se declara comunista e garante que o capitalismo sobrevive
porque 'nunca prometeu nada a ninguém'. Se descreve como um militan
te de base que contribuí disciplinadamente com o Partido Comunista de
Portugal e assegura que passaria a acreditar em Deus se Ihe mostras-
sem provas de que ele existe. 'A existencia de Deus nao me preocupa,
mas sim os homens que acreditam nele'. (E.S.)".
2. A Palavra do Vaticano

O jornal UOSSERVATORE ROMANO, edicáo de 10/10/98, publi-


cou um artigo de Franco Lanza intitulado "La morta Stagione del Nichilis-
mo" (A morta Estacáo do Niilismo), do qual extraímos o seguinte trecho:
"A fé vétero-comunista, duramente posta a prova pela queda dos
ídolos e também pela queda dos muros, fechou para Saramago os hori
zontes da esperanga, da regeneragáo social, da justiga distributiva. E
assim temos a morta estagáo do niilismo, do protesto inútil que envolve o
sagrado e o religioso. O mais discutido livro de José Saramago é 'O Evan-
gelho Segundo Jesús', datado de 1992, ano em que o escritor era candi
dato ao Premio Nobel. Mas o entao Vice-Secretário portugués da cultura,
Antonio Sousa Lara, retirou a candidatura afirmando que o volume 'afeta-
va o patrimonio religioso dos portugueses'. Daí originou-se um debate
que interessou o Parlamento Europeu. A controversia se acalmou por
iniciativa das próprias autoridades portuguesas, que remtroduzíram o
pseudo-evangelho de Saramago na selegáo. O próprio Saramago nao
gostou dessa medida, porque ele deixava de ser um perseguido pela
censura e diminuí a publicidade do livro.
É preciso dizerque 'O Evangelho segundo Jesús'pertence áquela
já nao curta lista de releituras do Evangelho em chave moderna, que
alegoriza o drama de Cristo e da sua pregagáo ou introduz no texto
canónico do Evangelho as interpolagoes mais arbitrarías e mais distan
tes da mensagem de amor que, considerada em qualquer de seus aspec
tos é a mais corajosa e flagrante novidade da literatura de todos os tem-
po's Ora aposigáo de Saramago é abertamente estranha a essa mensa-
87
"PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

gem: prefere substituir o amor pelo eros1, seguindo as pegadas de seus


inspiradores Katzantzakis e Martín Scorcese, com as conseqüéncias
dessacralizantes que todos conhecem. Mas Saramago foi aínda além dis-
so: tentou a tragedia cósmica. Eimaginou Cristo como vftima de um Deus
despótico, de um Pai soturno que, para afirmar o seu poder, reparte com
Satanás o dominio dos homens. A tragedia do ser e do nada é irreparável,
porque Deus nao perdoa os pecados que Ele manda os homens come
ter. Daí resulta urna sinistra e lívida paisagem noturna, da qual ébanida
toda expectativa de aurora ou todo anjo que anuncie a Ressurreigáo".
José Saramago respondeu ás críticas, usando de ironía: "Eu nao
precisei de deixar de ser comunista para ganhar o Premio Nobel. Se
tivesse que renunciar ás minhas conviccóes para ganhar, teria aberto
máo do Nobel, mas felizmente a Academia nao se importou com o fato
de eu ser um comunista renitente".

Todavía a revista norte-americana TIME, tida como "a revista mais


lida do mundo", por sua vez ironizou o Nobel concedido a Saramago Eis
o que se lé em VEJA, edícáo de 21/10/98, p. 148:
"O que a cantora Madonna, a drag queen Ru Paúl e o romancista
José Saramago tém em comum? Nada, é claro. A nao ser no julgamento
da revista americana Time, que faz urna piada na sua edicáo de 19 de
outubro, dizendo que Madonna, Ru Paúl e outros festivos do género po-
deriam muito bem ganhar um próximo Nobel se o portugués Samarago
levou o premio deste ano. Se Saramago ganhou, qualquer um pode ga
nhar - esta é a conclusáo implícita... E a prímeira vez que um ganhador
de Nobel recebe esta especie de tratamento por parte da Time".
Para ilustrar quanto menciona Franco Lanza, sejam recordados
alguns tópicos do livro de José Saramago "O Evangelho segundo Jesús".
3. "O Evangelho segundo Jesús Cristo": tópicos e críticas
O próprio Deus é apresentado á semelhanca de um déspota hu
mano, que quer aumentar seu imperio ás custas do sacrificio de seu
"Filho" Jesús Cristo e de quantos, por causa do Cristianismo, sofreram e
morreram no decorrer da historia. Esse Deus caricaturado parece
comprazer-se no sangue, a tal ponto que o Diabo exclama: "É preciso
ser-se Deus para gostar tanto de sangue" (p. 391). - Eis o trecho final do
diálogo-díscussao de Jesús com o Pai, ponto alto no enredo do livro:
«Jesús: "Pai, afasia de mim este cálice".
Pai: "Que tu o bebas, é a condigáo do meu poder e da tua gloria".
Jesús: "Nao quero esta gloria".

1 Amor, agápe em grego, no caso ó o querer bem gratuito, desinteressado Eros é o


amor cobigoso ou interesseiro. (N.d.R.)
JOSÉ SARAMAGO, PREMIO NOBEL 41

Pai: "Mas eu quero esse poder"...


"Entáo o Diabo disse: 'É preciso serse Deus para gostar tanto de
sangue'".1
Com esta sátira o autor quer criticar o sacrificio de Cristo, o sofri-
mento dos mártires e as facanhas heroicas de todos aqueles que, de um
modo ou de outro, padeceram por causa da mensagem crista.
Jesús Cristo
A figura de Jesús Cristo, no livro de Saramago, é a de um profeta
que nasce de Maria fecundada pela sementé de José, á qual se mésela a
sementé do Pai (!). Em conseqüéncia, Jesús tem dois pais: Sao José,
que ele reconhece desde pequeño, e o Pai do céu, que o Diabo Ihe revela
ser seu pai; cf. pp. 365s. - Vé-se ai mais urna vez a ferina sátira do autor...
Jesús Cristo escapa da morte que Herodes queria infligir aos meni
nos de Belém e arredores. Supoe-se que José, sabedor das intencóes
de Herodes (porque délas ouvira falar quando trabalhava no Templo como
carpinteiro), cuidou apenas de salvar seu filho, fugindo para o Egito; nao
comunicou aos outros pais o perigo que ameacava seus filhos pequeninos,
de modo que estes morreram por omissáo de José. Esta causou profun
do traumatismo nao só em José, mas no próprio Jesús, que tomou cons-
ciéncia de que sua vida fora trocada pela de muitas outras enancas con
denadas á morte (pp. 160-193). - Mais urna vez o autor, com isto, quer
acusar o Cristianismo de ser urna religiáo de sangue.
Jesús, aos treze anos de idade, sai de casa, onde moram sua Máe
e oito irmáos, também filhos de Maria; ele, o primogénito, nao se dá bem
com os familiares. Em suas andancas encontrou-se com Mana de
Mágdala, urna prostituta, que o acolheu quando ele precisava de cuida
dos de enfermagem por ter machucado um pé na caminhada. E com
Madalena conviveu livremente; cf. pp. 277-290.
Finalmente o Pai Ihe confia a missáo de pregar a Boa-Nova e mor-
rer por ela, a flm de fundar urna religiáo universal. Esta vocacáo, Jesús a
recebe num barco sobre o lago de Genesaré em meio a intensa nuvem,
estando sentados na canoa o Pai do céu, feito anciáo, Jesús rapaz e o
Diabo, familiar de Deus e de Jesús.
Jesús, embora recalcitrante, resolve cumprir o designio do Pai.
Saramago atribuí entáo estas palavras ao Pai:
"Sim, meu filho, o homem é pau para toda a colher, desde que ñas-
1 Eis como o texto se acha precisamente no livro de Saramago:
"Pai afasia de mim este cálice. Que o bebas ó a condigno do meu poder eda tua
gloria, Nao quero esta gloria, Mas eu quero esse poder... Entao o Diabo disse, t
preciso serse Deus para gostar tanto de sangue" (p. 391).

89
TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

ce até que morre está sempre disposto a obedecer, mandam-no para ali
e ele vai, dizem-lhe que pare, e ele para, ordenam-lhe que voltepara tras,
e ele recua, o homem, tanto na paz como na guerra, talando em termos
gerais, é a melhor coisa que podía ter sucedido aos deuses" (p. 372).
Finalmente Jesús morre na cruz - o que dá ocasiáo a que Saramago
mais urna vez derrame o seu cinismo sobre o leitor:
"Jesús morre, morre, ejá o vai deixando a vida, quando de súbito o
ceu por cima da sua cabega se abre de par em par e Deus aparece
vestido como estivera na barca, e a sua voz ressoa por toda a térra
dizendo, Tuéo meu Filho muito amado, em ti pus toda a minha compla
cencia. Entáo Jesús compreendeu que viera trazido ao engaño cómo se
leva o cordeiro ao sacrificio... e, subindo-lhe á lembranga o rio de sangue
e de sofrimento que do seu lado irá nascer e alagar toda a térra, clamou
para o céu aberto onde Deus sorria, Homens, perdoai-lhe, porque ele
nao sabe o que fez" (p. 444).

O romance termina de maneira hedionda e sem graca, como alias


decorre todo o seu enredo sarcástico e zombeteiro. Nao há referencia á
ressurreicáo de Jesús, que, como se compreende, nao pode interessar a
um autor ateu.

María e José

María é urna jovem que se casa aos dezesseis anos de idade; pes-
soa frágil, que trabalha arduamente nos afazeres domésticos. É sujeita
ao marido prepotente como os outros homens do seu tempo: "Ao contra
rio de José, seu marido, María nao ó piedosa nem justa, porém nao é sua
a culpa dessas mazelas moráis; a culpa é da língua que fala, senáo dos
homens que a ¡nventaram, pois nela as palavras justo e piedoso sim-
plesmente, nao tém feminino" (p. 31).
José é um jovem carpinteiro mediocre, "regularmente hábil no mis-
ter, porem sem talento para perfeicóes sempre que Ihe encomendem
obra de mais finura" (p. 29). Casou-se com María, da qual teve Jesús
como filho primogénito. Passou o resto da vida atormentado pelo remor-
so de nao haver contribuido para livrar da morte as outras enancas de
Belem perseguidas por Herodes. Morreu crucificado, como sedicioso con
tra os romanos: "Morreu inocente, mas nao viveu ¡nocente" (p. 192).
Eis os principáis personagens do livro de José Saramago O autor
e um escarnecedor, que marca todas as suas páginas com a nota da
zombaria cínica.
Que dizer?

Nao há dúvida, é lícito escrever romances. Mas o que nao é hones


to é escarnecer valores que sao muito caros a grande parte da humani-
dade. Alias, nao só a figura de Jesús Cristo é ferinamente atingida pela
90
JOSÉ SARAMAGO, PREMIO NOBEL 43

pena de Saramago; a ¡magem do próprio Deus é caricaturada horrenda


mente. Se o autor nao eré em Deus, exerce um direito que a lei civil Ihe
reconhece, mas lembre-se de que ele nao pode provar (como ninguém
pode provar) que Deus nao existe; o ateísmo é urna posicáo abracada
gratuitamente, ao passo que a existencia de Deus é objeto de argumen
tos filosóficos ou racionáis.
José Saramago nao somente esvazia de conteúdo transcendental
Jesús Cristo, mas ridiculariza o próprio Deus ou valores que sao o patri
monio do povo portugués e da maioria dos povos da térra.
Para nao fugir ao modismo da nossa época, o autor imagina o pró
prio Deus cedendo ao uso do sexo; Saramago nao soube ficar ácima da
onda pansexualista, mas foi vítima grotesca da mesma num contexto
totalmente despropositado ou irracional.
Estes dados nao podem deixar de suscitar a repulsa do público
honesto.

"O Deus que gosta de sangue"


É errónea a tese de que, segundo o Cristianismo, Deus gosta de
sangue e morte.
Diz o livro da Sabedoria que Deus nao fez a morte nem se compraz
em destruir os viventes:
"Deus nao fez a morte, nem tem prazer em destruir os viventes.
Judo crioupara que subsista... Foiporinveja do diabo que a morte entrou
no mundo" (Sb 1, 13s; 2,24).
Com efeito. O homem, cedendo ao tentador, afastou-se de Deus e
incorreu na morte dolorosa e violenta, como hoje ela é. Precisamente
para recriar o homem, o Filho de Deus assumiu a natureza humana no
seio de Maria, percorreu as etapas da vida humana e morreu num ato de
amor e entrega ao Pai, que foi o antídoto do desamor do primeiro ho
mem Com outras palavras: o primeiro Adáo foi até a morte numa atitude
de des-amor ao Pai; por isto o segundo Adáo (Jesús Cristo) foi também
até a morte, mas numa atitude de total amor ao Pai. Vé-se assim que
realmente nao é o gosto do sangue nem o prazer de ver alguém morrer
que explica a morte de Cristo, mas, sim, o sabio designio, de Deus, de res
taurar o homem mediante o próprio homem ou fazendo da sentenca de
morte (acarretada pelo primeiro Adáo) um caminho de Vitoria sobre a própria
morte. Tal plano do Pai torna o nome preciso de "recapitulacáo" (cf. Ef 1,9s).
Estas explicacóes tendem a dissipar a tese central do livro de
Saramago, que ridiculariza o sacrificio e a ascese.
Ulteriores consideragóes sobre a obra em foco encontram-se em
PR 358/1992, pp. 111-124.

91
Imaginando:

A FÁBULA DAS TRES ÁRVORES

Em síntese: Urna fábula narra que cada qual de tres árvores so-
nhava com um futuro grandioso, que preencheria seus anseios quando
se tornassem grandes. Todavía atingirán) a sua "maior idade"sem que se
realizasse o respectivo belo sonho. Eis, porém, que tres lenhadores pou-
co ecológicos as cortaran) e transformaran! em instrumentos de pouco
valor aparente, instrumentos, porém, imprevistamente elevados a coope
rar na salvagáo do mundo... Na verdade, diz o Senhor: "Os meuspensa-
mentos nao sao os vossos pensamentos e os vossos caminhos nao sao
os meus caminhos" (Is 55,8). Os meus pensamentos, paradoxais como
parecem, sao mais abrangentes e sabios do que os vossos pensamentos.
* * *

As figuras de linguagem falam ás vezes tanto quanto a linguagem


direta, se nao falam mais ainda... Por isto vale a pena, de vez em quan
do, deixar-se interpelar por alguma ¡magem de locucáo, portadora de
significativa mensagem. - É o que vamos fazer ñas páginas subseqüentes.
A Fábula
"Havia, no alto da montanha, tres pequeñas árvores que sonha-
vam o que seriam depois de grandes. A primeira, olhando as estrelas,
disse: "Eu quero ser o baú mais precioso do mundo, cheio de tesouros.
Para tal, até me disponho a ser cortada". A segunda olhou para o riacho
e suspirou: "Eu quero ser um grande navio para transportar reís e rai-
nhas". A terceira árvore olhou o vale e disse: "Quero ficar aqui no alto da
montanha e crescer tanto que as pessoas, ao olharem para mim, levan-
tem seus olhos e pensem em DEUS".

Muitos anos se passaram e certo día vieram tres lenhadores pouco


ecológicos e cortaram as tres árvores, todas ansiosas de ser transforma
das naquilo que sonhavam. Mas lenhadores nao costumam ouvir nem
entender sonhos!... Que pena!

A primeira árvore acabou sendo transformada num coxo de ani


máis, coberto de feno. A segunda virou um simples e pequeño barco de
pesca, carregando pessoas e peixes todos os dias. E a terceira, mesmo
sonhando em ficar no alto da montanha, acabou cortada em grossas
vigas e colocada de lado num depósito. E todas as tres se perguntavam
desiludidas e tristes: "Para que isso?"
Mas, numa certa noite, cheia de luz e de estrelas, onde havia mil
melodías no ar, urna jovem mulher colocou seu bebé recém-nascido na-
quele coxo de animáis. E, de repente, a primeira árvore percebeu que
92
A FÁBULA DAS TRES ÁRVORES 45

continha o maior tesouro do mundo...


A segunda árvore, anos mais tarde, acabou transportando um ho-
mem, que acabou dormindo no barco, mas, quando a tempestade quase
afund'ou o pequeño barco, o homem levantou-se e disse: "PAZ!". E, num
relance, a segunda árvore entendeu que estava carregando o Reí dos
Céus e da Térra.
Tempos mais tarde, numa sexta-feira, a terceira árvore espantou-
se quando suas vigas foram unidas em forma de cruz e um homem foi
pregado nela. Sentiu-se horrível e cruel. Mas, logo no Domingo, o mundo
vibrou de alegría e a terceira árvore entendeu que nela havia sido prega
do um homem para a salvacao da humanidade e que as pessoas sempre se
lembrariam de DEUS e de seu Filho JESÚS CRISTO ao olharem para ela.
As árvores haviam tido sonhos... Mas a sua realizacáo fora mil ve-
zes melhor e mais sabia do que haviam imaginado.
Nao importa o tamanho do seu sonho. Acreditando nele, a vida fica
sempre mais bonita!"
Tal fábula, aparentemente infantil, tem sua rica mensagem.
Ela nos lembra que murtas vezes as criaturas tém seus sonhos
relativos ao futuro, e pedem a Deus que os realize. Pedem, pedem... e
parece que nao seráo atendidas. Muitos se deixam levar pela impacien
cia e "brigam" com Deus por causa disto. Mal sabem, porém, que Deus
tem um plano muito mais sabio e grandioso do que imaginam. Por isto
Ele adia o atendimento, mas nao deixa de atender e beneficiar magnáni
mamente os seus filhos... Possa a fábula ser útil a quem se senté tentado
ao desánimo e á prostracáo!
Fazendo eco á fábula, segue-se um poema do Pe. Orlando Gambi
C.SS.R. em seu livro "Gosto de que me falem de amor", pp. 24s:
SE EU NAO PUDER...

Senhor, eu te glorifico!
Se eu nao puder ser o que desejo,
que eu seja o que desejas de mim.
Se eu nao puder ser a árvore que dá frutos,
que eu seja o arbusto que dá sombra.
Se eu nao puder ser o rio que inunda a térra,
que eu seja a fonte que dá de beber.
Se eu nao puder ser urna estrela no céu,
que eu seja urna luz que anima as esperancas.

Se eu nao puder ser o teto que abriga a todos,

93
46 TERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

que eu seja a porta que se abre a quem bate.


Se eu nao puder ser o sol que ilumina o mundo,
que eu seja a fresta por onde ele penetra.
Se eu nao puder ser o mar que liga os continentes,
que eu seja o porto que recebe a nave.
Se eu nao puder ser o bosque que floresce,
que eu seja o pássaro que nele canta.
Se eu nao puder ser a roseira carregada,
que eu seja o perfume de urna flor.
Se eu nao puder ser a melodía que enleva,
que eu seja a ¡nspiracáo de cada verso.
Se eu nao puder ser o vento que arrebata,
que eu seja a brisa que acaricia.

Se eu nao puder ser o livro que ensina,


que eu seja a palavra que comove.

Se eu nao puder ser a messe que promete,


que eu seja o trigo que vai ser o pao.
Se eu nao puder ser o fogo que incendeia,
que eu seja o óleo que mantém a chama.

Se eu nao puder ser a estrada que conduz,


que eu seja o sinal que marca a direcáo.
Se eu nao puder ser o rico que tudo pode,
que eu seja o pobre que nao nega nada.
Se eu nao puder ser a chuva que irriga o solo,
que eu seja o orvalho que umedece a flor.
Se eu nao puder ser o tapete no palacio dos reis,
que eu seja o agasalho na casa dos pobres.
Se eu nao puder ser o sorriso que encanta,
que eu seja a impressao que ele-deixa.
Se eu nao puder ser a felicidade que todos buscam,
que eu seja feliz em ser tudo para todos.
Se eu nao puder ser toda a bondade do mundo,
que eu seja bom como todo o mundo espera.
Se eu nao puder ser a eternidade,
que eu seja o tempo em que tu nos falas.
Se eu nao puder ser o amor que tudo comeca,
que eu seja o amor que faz chegar ao fim!

94
Movimentos e campanhas...

IGREJA: DEMOCRACIA?

Em síntese: Nos últimos anos tém-se registrado movimentos di


versos que tendem a fazerda Igreja Católica urna democracia. Foi parti
cularmente candente o caso dos católicos austríacos, que publicaran) a
respeito o Manifestó "Nos somos Igreja". O Santo Padre Joao Paulo II
tem considerado as suas reivindicagóes com zelo pastoral e clareza de
principios. O pronunciamento mais significativo de S. Santidade ocorreu
aos 20/11/98 no final da visita "ad limina" dos Bispos austríacos á Santa
Sé; o discurso do Papa explana o sentido de "povo de Deus" tal como
es'sa expressáo é entendida no Novo Testamento.
* * *

A populado austríaca compreende oito milhoes de habitantes, dos


quais 77% se declaram católicos. O país conta doze dioceses, 2862 sa
cerdotes diocesanos, 1955 sacerdotes religiosos e 361 diáconos perma
nentes. As Religiosas e os leigos muito trabalham na animacáo das pa-
róquias e na catequese.
Nos tres últimos anos o Movimento "Nos somos Igreja" lancou um
Manifestó que reivindica mudancas na disciplina da Igreja, tais como a
abolicáo do celibato sacerdotal, a ordenacáo de mulheres... O Papa es-
teve em visita apostólica naquele país de 19 a 21/06/98, ocasiáo em que
atguns fiéis exaltados lancaram ao ar balóes pretos e pediram a demis-
sáo do Sr. Bispo Mons. Kurt Krenn, de Sankt Pólten, tido como conserva
dor. O Papa tem sustentado os Bispos austríacos no seu empenho de
manter a unidade dos fiéis.
Aos 20/11/98 o episcopado da Austria encerrou sua visita oficial á
Santa Sé, tendo o Santo Padre aproveitado o momento para proferir um
discurso assaz veemente a propósito das tendencias democratizantes
dos fiéis europeus e norte-americanos. Eis o que se lé em mensagem
proveniente via internet, da Cidade do Vaticano com a data de 20/11 pp.:
Dura resposta do Papa ao pedido de maior participagáo democrá
tica que foi crescendo em varios países europeus com o abaixo-assinado
promovido pelo grupo "Nos Somos Igreja", que na Austria conseguiu mi-
Ihares de adesóes. Falando hoje aos bispos austríacos, recebidos cole-
tivamente no final da visita "ad limina", Joáo Paulo II repetiu especialmen
te que a Igreja nao pode ser considerada como urna democracia igual ás
outras e as bases nada podem decidir num contexto majoritário ou de
pesquisa de opiniáo, porque a verdade revelada, confiada á Igreja, é um
dom do Alto confiado a hierarquia. Também aproveitou a oportunidade
95
*? "PERGUNTE E RESPONDEREMOS" 441/1999

para sublinhar alguns pontos desta verdade a ser garantida, "mesmo se


a maiorparte da sociedade decidisse diferentemente"; isto é, "a dignida-
de de cada ser humano continua inviolável desde o inicio da vida no seto
materno até seu fím natural, desejado por Deus". E aínda: apesar das conti
nuas manifestagoes, como se se tratasse de urna questáo disciplinar, "a
Igreja nao recebeu do Senhora autoridade de conferirá ordenacao sacerdo
tal as mulheres". "A expressáo bíblica «povo de Deus» (laós tou Theou) -
afirmou o Pontífice - foi entendida no sentido de um povo estruturado politi
camente (demos) de acordó com as normas válidas para todas as socieda
des. E, como a forma de regime mais próxima da sensibilidade atual é a
democracia, difundiu-se entre um ceño número de fiéis a exigencia de urna
democratizagáo da Igreja. Vozes neste sentido se multiplicaram também em
seu país, como além de suas fronteiras". Existe aqui um mal-entendido
pluralismo "pelo qual se pensou poder individuar a verdade revelada através
das sondagens de opiniáo e democracia". Mas tratase de "conceitos erra
dos" que criampena e tristeza. "Em relagáo á verdade revelada, nenhuma
base popular- insistiu com forga o Pontífice -pode decidir. A verdade nao é
urna criagáo humana, mas um dom do céu". É preciso - concluí o Papa -
redescubrir o sentido conciliar da "Igreja como misterio", saindo das torres
do Catolicismo austríaco para se abrirá comunháo com a Igreja universal.
Neste discurso o Papa lembra que há dois vocábulos gregos para
designar "povo": laós e demos. Todavía os escritos do Novo Testamento
usam exclusivamente o termo laós quando descrevem o povo santo de
Deus. De laós deriva-se o adjetivo laíkós, leigo, membro do povo santo
de Deus, povo santo que corresponde á qahal do Antigo Testamento.
Esse povo santo tem sua organizacáo hierárquica instituida pelo próprio
Deus, diferente da constituícáo democrática do demos ou do povo civil.
Na verdade, a Igreja nao é nem república nem monarquía; é um
sacramento, ou seja, urna realidade divino-humana, que tem seu princi
pio de autoridade em Jesús Cristo. Este se faz representar por ministros
que Ele escolhe, tendo á frente o sucessor de Pedro ou o Papa. Todavía
o Papa governa a Igreja com o colegiado dos Bispos, que sao os suces-
sores dos demais Apostólos; procuram colaborar Papa e Bispos, como
Pedro e os demais Apostólos deviam colaborar.
O ministerio dos Bispos nao excluí, mas antes requer, a partícípa-
cáo dos fiéis leigos na procura de caminhos novos para a evangelizacáo
dos povos; cf. Lumen Gentfum ns 32. Contudo nao se pode deixar de
lembrar que o governo da Igreja difere dos governos civis, pois deriva de
Jesús Cristo e é por Este orientado; urna visáo de fé inspira Bispos e fiéis
para que nao procedam como num regime republicano, com todas as
campanhas e contestacoes que o caracterizam, mas saibam que a
colegialidade intencionada por Cristo transcende as categorías e os es
quemas meramente humanos e mundanos.
Estéváo Bettencourt, O.S.B.
96
N O V I D A D E

- "OS PRINCÍPIOS DA FILOSOFÍA DE SAO TOMÁS DEAQUINO" (As vinte e quatro


teses fundamentáis) - Padre Édouard Hugon O.P.
Traducáo e introducáo: D. Odiláo Moura O.S.B. (da Academia Brasileira de Filosofía).
EDIPUCRS-1998.320 págs R$ 16,00.
Obra de grande utilidade para a compreensáo da doutrina de SAO TOMÁS DE AQUINO,
de autoría de um dos mais eminentes tomistas do século, ela analisa e explica em
termos acessíveis, em síntese completa, essa doutrina.
As "vinte e quatro teses" foram formuladas por notáveis mestres católicos, a pedido do
Papa Sao Pió X, e, após, aprovadas e promulgadas pelo seu sucessor, o Papa Bento XV.
Do Padre Hugon esse Papa solicitou explicar aquelas teses em um livro, e assim
surgiu a obra, que, escrita em francés e agora traduzida em nosso idioma, foi publicada
pela P.U.C. de Porto Alegre.
Embora o seu conteúdo seja filosófico, incursos muito valiosos e esclarecedores nela
estáo referentes á Teología.
Em tempos passados o livro do Padre Hugon foi usado como texto de aula em nossos
Seminarios e Ginásios. A atual traducáo facilitará o entendimento da doutrina do Angélico
para os leigos e seminaristas interessados na esséncia do Tomismo.
Além desta obra, encontram-se ñas Edicóes "Lumen Christi" os seguintes escritos de
Sao Tomás, traduzidos por Dom Odiláo Moura O.S.B.:
- SUMA CONTRA OS GENTÍOS, Volume I - Livros I9 e IIa. Traducáo de Dom Odiláo Moura,
OSB Baseada em parte em traducáo de Dom Ludgero Jaspers, OSB. Revisado por Luis A.
de Boni. Co-edicáo 1990. EST/Sulina/UCS. Edicáo bilingüe. 377 págs R$ 28,00.
- SUMA CONTRA OS GENTÍOS, Volume II - Livros IIIB e IV8. Traducáo de Dom Odiláo Moura,
OSB Baseada em parte em traducáo de Dom Ludgero Jaspers, OSB. Revisáo de Luis A. de
Boni. Edicáo bilingüe 927 págs. Edicáo de 1996. EDIPUCRS/EST. R$ 45,00.
- COMPENDIO DE TEOLOGÍA, Traducáo e ¡ntroducáo de Dom Odiláo Moura, OSB,
EDIPUCRS 1996.287 págs. Segunda edicáo da última obra de Sao Tomás, contendo o
seu último pensamento teológico. Apresentacáo de Mons. Urbano Zilles R$ 14,00.
- O ENTE E A ESSÉNCIA, Traducáo e ¡ntroducáo com notas de Dom Odiláo Moura, OSB.
Edicáo bilingüe. Comentario Ed. Presenca. 1991 - 180 págs. Constituí esta obra, a
primeira escrita por Sao Tomás, urna síntese de sua doutrina filosófica R$ 15,00.
- EXPOSICÁO SOBRE O CREDO, Traducáo e notas de Dom Odíláo Moura OSB. Terceíra
edicáo. Ed. Loyola. 1995.120 págs R$ 9>90-
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Matías de Medeiros, OSB. Publicacáo da Escola Teológica da Congregapáo Beneditina
do Brasil. Esta obra foi feita em homenagem a Dom Estéváo. Além do esboco bio-
bibliográfico de Dom Estéváo, encontram-se artigos de amigos e admiradores de Dom
Estéváo. Sao professores da Escola Teológica, do Pontificio Ateneu de Santo Anselmo
em Roma, que ministraram varios cursos nesta e outros que o estimam. Sumario: His
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