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O âmbito de incidência da Lei 11.340/06 consoante a delimitação dada por seu art. 5º

A Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) inovou ao possibilitar à mulher vítima de violência
doméstica e familiar valer-se de institutos destinados à sua proteção e de sua família, alguns até
então inéditos, tais como medidas protetivas, assistência social especializada, peculiaridades no
atendimento pela autoridade policial etc.

Ocorre que é necessário proceder à correta adequação entre o fato concreto apresentado e os
limites impostos pela Lei com o intuito de que sua aplicação não extrapole as finalidades que
ensejaram o tratamento diferenciado.

O presente estudo, portanto, tem por objetivo identificar as situações capazes de serem regidas
pela Lei 11.340/06, tendo como ponto de partida o conceito de violência doméstica e familiar
estabelecido no seu art. 5º.

De acordo com o mencionado preceptivo legal "qualquer ação ou omissão baseada no gênero"
praticada contra a mulher e "que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e
dano moral ou patrimonial" "configura violência doméstica e familiar".

A primeira questão a ser enfrentada refere-se à expressão acima destacada ("baseada no


gênero"). Violência fundamentada no gênero é aquela cometida por pessoa de determinado sexo
contra outra de sexo oposto. No caso da Lei 11.340/06, por expressa previsão, a violência para
se enquadrar no seu conceito é a dirigida em desfavor da mulher, portanto, somente pode ser
sujeito ativo o homem, pois apenas assim pode-se falar em "violência baseada no gênero".
Contudo, principalmente pelo que dispõe o parágrafo único do art. 5º e o art. 2º, a doutrina e
jurisprudência têm ampliado o campo de atuação do novel Diploma.

Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto (2007, p. 31) assim se manifestam:

"Notável a inovação trazida pela lei neste dispositivo legal, ao prever que a proteção à mulher,
contra a violência, independe da orientação sexual dos envolvidos. Vale dizer, em outras
palavras, que também a mulher homossexual, quando vítima de ataque perpetrado pela parceira,
no âmbito da família – cujo conceito foi nitidamente ampliado pelo inciso II, deste artigo, para
incluir também as relações homoafetivas – encontra-se sob a proteção do diploma legal em
estudo."

As orientações firmadas, apesar de buscarem um tratamento equânime, não traduzem o melhor


sentido do texto legal. O mesmo pode-se dizer quando a manifestação é pelo reconhecimento de
que o sujeito ativo pode ser outra mulher, independentemente de se ter in casu um
relacionamento homoafetivo ou um vínculo parental, conforme ilustra o subseqüente julgado:

"RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. LEI 11.340/2006. SUJEITO ATIVO QUALQUER PESSOA.


DENÚNCIA. RECEBIMENTO. Não tendo a Lei 11.340/06 excluído a possibilidade de a mulher
praticar algum crime de violência doméstica e familiar, tampouco os erigiu a categoria de crimes
próprios, a ponto de considerar que apenas os homens possam figurar como sujeitos ativos
daqueles delitos, o recebimento da denúncia é providencia que se impõe. RECURSO
CONHECIDO E PROVIDO". (TJGO; 2ª Câm. Crim.; Rec. em Sentido Estrito 10071-3/220; Rel.
Des. ALUIZIO ATAIDES DE SOUSA; DJ 226 de 28/11/2008).

Ora, visou a Lei 11.340/06 a proteção do gênero (feminino) contra agressões de pessoas do
próprio gênero (feminino)? Não foi essa a motivação histórica justificadora do advento da Lei
Maria da Penha, é dizer, a violência doméstica contra as mulheres impulsionou uma censura
especial porque fatos demonstraram sua fragilidade nos relacionamentos com homens. Não é por
isso a menção expressa no art. 5º, caput, sobre violência "baseada no gênero"?

Em julgamento diverso prolatado pelo Tribunal de Justiça goiano foi consignada a distinção no
trato dos casos englobando violência doméstica e familiar fundada no gênero contra a mulher:

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA. VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA DE CUNHO MORAL E PATRIMONIAL. JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E
FAMILIAR CONTRA MULHER. COMPETÊNCIA DEFINIDA PELO CRITÉRIO DA
ESPECIALIDADE. LEGALIDADE DAS MEDIDAS. 1 - O tratamento diferenciado conferido à
mulher pela Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06) tem fundamento constitucional no artigo 226, §
8º da CF e em âmbito internacional na Convenção de Belém do Pará de 1994 (sobre a eliminação
de todas as formas de discriminação contra as mulheres para prevenir, punir e erradicar a
violência contra a mulher), partindo do pressuposto de que o gênero feminino precisa de
proteção, assim como as minorias que exigem cotas nas universidades, idosos, crianças,
deficientes físicos e homossexuais. (Omissis)". (TJGO; 4ª Câm. Cível; Agravo de Instrumento
65528-5/180; Rel. Des. KISLEU DIAS MACIEL FILHO; DJ 223 de 25/11/2008).

O Superior Tribunal de Justiça recentemente enfrentou uma situação em que se verificava a


existência de um conflito de competência, de um lado o Juizado Especial Criminal e de outro a
Vara Criminal comum, para apreciar um caso envolvendo agressões verbais entre irmãs.
Conforme noticiado, aquela Corte entendeu não haver incidência da Lei Maria da Penha, contudo,
não se ateve apenas ao aspecto alusivo ao gênero, mas, também, à inexistência de
hipossuficiência da vítima:

"'O objetivo da Lei Maria da Penha é a proteção da mulher em situação de fragilidade diante do
homem ou de uma mulher em decorrência de qualquer relação íntima, com ou sem coabitação,
em que possam ocorrer atos de violência contra esta mulher. Entretanto, a troca de ofensas entre
irmãs, sem a comprovada condição de inferioridade física ou econômica de uma em relação à
outra, não se insere nesta hipótese, pois, se assim fosse, qualquer briga entre parentes daria
ensejo ao enquadramento na Lei n. 11.340/06'. Assim concluiu o ministro Og Fernandes, da
Terceira Seção do Superior Tribunal (STJ), ao julgar um conflito de competência envolvendo o
Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal de Governador Valadares (MG) e o Juízo de Direito do
Juizado Especial Criminal da mesma cidade.

"Marilza S. O. ingressou com representação contra a irmã M. S. O., alegando ter sido ofendida
verbalmente na porta de sua casa. Sustentou ser vítima de constrangimento moral, uma vez que
a irmã teria feito um escândalo na rua, buzinando e gritando palavras ofensivas como "prostituta e
vagabunda" contra ela. Marilza relatou, também, que o proprietário do imóvel, ao saber do
incidente, teria solicitado que ela deixasse o imóvel, pois não pretendia que ela permanecesse
como inquilina.

"De acordo com as informações do processo, as duas irmãs sempre viveram em constante atrito.
O Juizado Especial Criminal de Governador Valadares, acolhendo parecer ministerial,
manifestou-se no sentido de que o caso se enquadraria na Lei Maria da Penha e, por isso, a
competência para julgar seria de uma das varas criminais da cidade, uma vez que a nova lei teria
retirado dos Juizados Especiais Criminais a competência para processar delitos dessa natureza.
Sendo assim, o juiz encarregado encaminhou os autos para a 1ª Vara Criminal de Governador
Valadares.

"Por sua vez, o Juízo de Direito da 1ª Vara Criminal entendeu que o caso não se enquadraria nos
termos da Lei n. 11.340/06 e suscitou o conflito de competência, determinando a remessa do
processo ao STJ. Ao se manifestar sobre o recurso, o Ministério Público Federal (MPF) deu
parecer para declarar a competência do Juizado Especial Criminal de Governador Valadares.

"Para o ministro Og Fernandes, relator do recurso, "a nova lei refere-se a crimes praticados
contra a mulher, numa perspectiva de gênero e em condições de hipossuficiência ou inferioridade
física e econômica em relações patriarcais, o que não ficou demonstrado na análise dos autos".
Segundo o magistrado, o crime praticado não envolve qualquer motivação de gênero (sexo
feminino ou masculino), mas sim um problema de relacionamento antigo entre irmãs que não se
entendem e vivem trocando ofensas.

"Diante de tais fatos, Og Fernandes conheceu do recurso e declarou competente para processar
e julgar a representação o Juízo de Direito do Juizado Especial de Governador Valadares. O voto
do relator foi acompanhado, por unanimidade, pelos demais ministros da Terceira Seção". (STJ,
online)

Merece destaque, outrossim, o entendimento esposado pelo Sodalício do Estado de Minas


Gerais:

"CONFLITO DE COMPETÊNCIA - LEI MARIA DA PENHA - INCONSTITUCIONALIDADE -


INOCORRÊNCIA - COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITADO. I - A ação afirmativa do Estado que
busque a igualdade substantiva, após a identificação dos desníveis socioculturais que geram a
distinção entre iguais/desiguais, não se pode tomar como inconstitucional, já que não lesa o
princípio da isonomia, pelo contrário: busca torna-lo concreto, efetivo. II - As ações políticas
destinadas ao enfrentamento da violência de gênero - deságüem ou não em Leis - buscam a
efetivação da igualdade substantiva entre homem e mulher enquanto sujeitos passivos da
violência doméstica. III - O tratamento diferenciado que existe - e isto é fato - na Lei 11.340/06
entre homens e mulheres não é revelador de uma faceta discriminatória de determinada política
pública, mas pelo contrário: revela conhecimento de que a violência tem diversidade de
manifestações e, em algumas de suas formas, é subproduto de uma concepção cultural em que a
submissão da mulher ao homem é um valor histórico, moral ou religioso - a origem é múltipla. IV -
O art. 33 da Lei Maria da Penha dispõe sobre competência de juízo, competência das varas, que
configura matéria processual, ou seja, estabelece a competência das varas criminais (ainda que
de maneira transitória) para processo e julgamento dos crimes cometidos contra a mulher no
ambiente doméstico, e estabelecida esta competência é que, conforme o disposto no art. 96, I,
CF/88, na elaboração de seu regimento interno, os tribunais disporão, com observância das
normas de processo, sobre "o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e
administrativos"". (TJMG; Proc. 1.0000.07.457002-9/000(1); Rel. Dr. ALEXANDRE VICTOR DE
CARVALHO; Publ. em 15/12/2007).

Urge lembrar que há registros articulados e até decisões judiciais no sentido de estender o campo
de incidência da Lei em hipóteses de violência perpetrada contra homem quando há vínculo
doméstico e familiar entre ele e a pessoa agressora. Entretanto, questiona-se: pode uma lei
visivelmente agravadora ser aplicada por extensão a casos com repercussão na seara criminal?
Cediço que é inadmissível a analogia in malam partem no Direito Penal. Também não se trata de
interpretação extensiva, pois a Lei não a possibilitou.

Com o intuito de equilibrar o tratamento jurídico dispensado a situações similares de violência


doméstica e familiar, apesar de visar maior proteção da vítima, ao se aplicar a Lei 11.340/06 a
casos por ela não sustentados impõe-se ao agressor normas de maior gravidade, o que fere o
princípio da legalidade.

Quando o assunto é a inconstitucionalidade de Lei, que neste contexto não será objeto de
análise, não pode o julgador tomar as vezes do legislador e criar conteúdo normativo destinado a
reger situações com a finalidade de resguardar a observância do Diploma infraconstitucional com
a Lei Maior. Se, por ferir o princípio da isonomia, a Lei Maria da Penha é taxada de
inconstitucional há de se reconhecer tal pecha e, por conseguinte, não aplicar o novel Diploma.

Portanto, sob o aspecto inaugural deste ensaio, conclui-se que a Lei 11.340/06 destina-se apenas
à proteção da mulher, independente de sua orientação sexual, vítima de violência doméstica e
familiar baseada no gênero, i.e., perpetrada por pessoa do sexo masculino.

O segundo ponto que merece destaque, com a finalidade de se poder delimitar o campo de
atuação da Lei 11.340/06, são os critérios dos incisos I, II e III, do art. 5º, que complementam o
texto do caput e possibilitam identificar os elementos espaciais e pessoais responsáveis pela
formação do conceito de "violência doméstica e familiar".

Quando se utiliza a expressão "violência doméstica e familiar", simplifica-se a extensão de sua


definição legal. Assim, a violência praticada "no âmbito da unidade doméstica" (inc. I), "da família"
(inc. II) ou "em qualquer relação íntima de afeto" (inc. III), desde que observados os ditames do
caput do referido dispositivo, é considerada como "doméstica e familiar" pela Lei Maria da Penha.

Unidade doméstica é "compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com


ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas". Pelas lições de Nucci (2006, p.
864)

"Torna-se fundamental interpretar esse dispositivo, para evitar reflexos indevidos no campo penal,
de modo restrito. A mulher agredida no âmbito da unidade doméstica deve fazer parte dessa
relação doméstica. Não seria lógico que qualquer mulher, bastando estar na casa de alguém,
onde há relação doméstica entre terceiros, se agredida fosse, gerasse a aplicação da agravante
mencionada[i]".

Família, conforme a Lei, é "compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou
se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa".
Interessante é a consignação da expressão "ou se consideram aparentados" a qual permite a
ingerência da Lei Maria da Penha em violência praticada, v.g., entre os popularmente chamados
"irmãos de criação" em que, por terem sido educados desde a infância sob os mesmos cuidados
ainda que inexista consangüinidade, ter-se-á o reconhecimento do vínculo familiar pelo menos no
que tange à aplicação da Lei em comento.

Finalmente, pelo inciso III do art. 5º, também "qualquer relação íntima de afeto, na qual o
agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação", desde
que identificável de plano, é suficiente a garantir maior proteção à mulher. Contudo, vem
merecendo críticas o texto do presente preceptivo ante a amplitude que exprime e,
principalmente, quando menciona ser a coabitação um dado fático desprezível no sentido de
orientar o conceito de "violência doméstica e familiar".
Nas palavras de Nucci (2006, p. 865):

"Na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, no art.
2º, § 1º, prevê-se que a violência contra a mulher tenha ocorrido dentro da família ou unidade
doméstica ou em "qualquer outra relação interpessoal, em que o agressor conviva ou tenha
convivido no mesmo domicílio que a mulher e que compreende, entre outros, estupro, violação,
maus-tratos e abuso sexual". Logo, é bem menos abrangente do que a redação do inciso III do
art. 5º da Lei 11.340/2006. Exige-se no texto da convenção a existência de coabitação atual ou
pretérita. Na Lei 11.340/2006 basta a convivência presente ou passada, independentemente de
coabitação. Ora, se o agressor e vítima não são da mesma família e nunca viveram juntos, não se
pode falar em violência doméstica e familiar. Daí emerge a inaplicabilidade do disposto no inciso
III."

Pela Lei 11.340/06, quando se alude simplesmente à expressão "violência doméstica e familiar"
pode-se estar referindo a uma das situações elencadas nos três incisos do art. 5º. Somente
incidirá o mencionado Estatuto quando conjugadas as orientações previstas no caput do citado
dispositivo com um ou mais de seus incisos, sendo que, na trilha de raciocínio apresentada,
imprescindível a perspectiva de gênero como fundamento da violência praticada contra a mulher.

Nota:

[i] Refere-se o autor à figura agravante prevista no art. 61, II, 'f', do CP, com redação dada pela
Lei 11.340/06.

Referências bibliográficas:

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência doméstica. Lei Maria da Penha
(Lei 11.340/2006) comentada artigo por artigo. São Paulo: RT, 2007.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. São Paulo: RT,
2006.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Troca de ofensas entre irmãs não se enquadra na Lei
Maria da Penha. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=90561>. Acesso
em: 20.1.2009.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Jurisprudência. Disponível em:


<http://www.tjgo.jus.br>. Acesso em: 18.1.2009.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Consultas: jurisprudência: acórdão.


Disponível em: <http://www.tjmg.jus.br>. Acesso em 29.1.2009.
Fonte: Webartigos.com | Textos e artigos gratuitos, conteúdo livre para reprodução. 1

1 A fonte do artigo e informações do autor devem ser mantidas. Reprodução apenas na Internet.

Thiago Amorim dos Reis Carvalho

Advogado. Especializado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Católica de


Goiás e Secretaria de Segurança Pública e Justiça de Goiás.

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