Você está na página 1de 2

ASSINE BATE-PAPO BUSCA E-MAIL SAC SHOPPING UOL

São Paulo, terça-feira, 29 de setembro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RUBEM ALVES

A máquina de fazer salsichas

O aprendido é aquilo que fica depois


que o esquecimento fez o seu
trabalho. O objetivo será avaliar o
que sobrou

UM HOMEM RESOLVEU dedicar-se à produção de


salsichas. Aconselhando-se com técnicos e cientistas, foi
informado de que o que havia de mais moderno para tal fim
era uma máquina importada de fazer salsichas. Ele não
titubeou: comprou a dita máquina porque queria ser um
produtor de salsichas bem sucedido.
A máquina era assim: numa extremidade, havia um grande
funil onde a carne deveria ser colocada. Apertava-se um
botão e a máquina começava a funcionar. Na outra
extremidade, fim do processo, saíam as salsichas gordas e
vermelhas.
Mas não basta que a máquina produza salsichas. É preciso
que a produção seja comercialmente vantajosa. E como se
avalia isso? Comparando-se os quilos de carne colocados no
funil inicial com os quilos de salsicha que saem na
extremidade final da máquina. Se, na entrada, se colocam
cem quilos de carne e saem 95 quilos de salsichas, a máquina
é ótima. Mas se só saírem dez quilos de salsichas, a máquina
não presta.
Não estou procurando sócios para uma aventura econômica.
Minha coisa é a educação. E pensei que a educação poderia
ser avaliada por um exame parecido com a máquina de
salsichas -que comparasse os "quilos" de saberes que as
escolas colocam nos olhos, ouvidos e memória da "máquina"
chamada "aluno" com o que "sobra" ao final.
As escolas colocaram muita coisa dentro do meu funil, nos
17 anos que as frequentei. Quatro anos no curso primário,
um no curso de admissão, quatro no ginásio, três no curso
científico e cinco no curso superior.
Multipliquei o número de meses, pelo número de dias, pelo
número de horas, pelo número de anos: cheguei a 16.830 -o
número de horas que passei assentado em carteiras ouvindo a
fala dos professores.
O exame -um tipo de Enem- seria assim: Primeiro: o
programa para o exame seria constituído de tudo o que se
pretendeu ensinar nesses 17 anos, do primeiro ao último ano.
O que foi colocado no funil.
Segundo: os alunos não assinarão os seus nomes porque não
são eles que estão sendo avaliados, mas o desempenho da
máquina, isto é, do sistema escolar.
Terceiro: não haverá "cursinhos" preparatórios para tais
exames. Será proibido também recordar a matéria. Guarde
isso: o aprendido é aquilo que fica depois que o
esquecimento fez o seu trabalho. O objetivo do exame será
avaliar o que sobrou.
Eu me sairia muito mal. Não me lembro das classificações
das rochas. Lembro-me dos nomes "dolomitas" e
"piroclásticas", mas não sei o que significam. Esqueci-me do
"crivo de Erastóstenes". Não sei fazer raiz quadrada. Não sei
onde se encontra a serra da Mata da Corda.
Também me esqueci das dinastias dos faraós. Não sei a lei de
Avogadro.
Sei pouquíssimo de análise sintática. Acho que, dos 100% de
saberes que as escolas tentaram enfiar dentro de mim, só
sobrariam uns 10%.
Você depositaria suas economias mensalmente num fundo de
investimento, por 17 anos, se você soubesse que depois
desses 17 anos receberia só 10% do que você depositou?
Alguns concluirão que a culpa é dos professores. Outros, que
a culpa é dos alunos. Não creio que a culpa seja dos
professores ou dos alunos.
Acho mesmo é que a culpa é da carne que se põe na
máquina: ela está estragada. As salsichas cheiram mal.
O nariz as reprova. O jeito é vomitá-las, isto é, esquecê-las.
Concluo: a performance das escolas melhorará se a carne
estragada for substituída por uma carne que produza
salsichas apetitosas...

rubem_alves@uol.com.br

Texto Anterior: "Tumulto só mudou de lugar", diz passageira


Próximo Texto: A cidade é sua
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em
qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.

Você também pode gostar