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O Dia da Recriação

Quando eu e minha prima descemos do táxi, já era quase


noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas
ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma
pedrada, Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

- É sinistro.

Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra


escolha? Nenhuma pensão das redondezas oferecia um preço
melhor a duas pobres estudantes. Entramos pela porta da frente,
quase tímidas, mas com a curiosidade aflorada. Como seria este
lugar? Por fora as expectativas eram das piores. Era um sobrado
pouco iluminado, em tons pastel, sem contar que o letreiro
piscava sem parar. Lembrava muito aqueles motéis americanos
de filme de terror.

Quando entramos na pensão nos deparamos com uma sala


erma e empoeirada. Não era possível um movimento tão baixo
em pleno sábado. O chão era forrado com um carpete de
madeira velho, que rangia a cada passo que dávamos em
direção a um balcão, onde deveria estar o atendente. O
ambiente era estranhamente denso e carregado, mas seguimos
em frente.

- Erm... Alguém? – O eco me fez notar o quão estridente


minha voz era.

Ninguém respondeu. Era um silêncio que enchia os


ouvidos, e só foi cortado com o barulho de nossas respirações. As
paredes eram forradas de pequenos retratos ovais. Era como se
não estivéssemos sozinhas, pois eles nos despiam de tal maneira
que evitávamos olhar diretamente nos olhos daquelas
pequeninas pessoas. Naquele momento fiz algumas estranhas
reflexões. E se quando morresse, meu destino fosse dependurar-
me em uma parede de algum hotelzinho mofado de beira de
estrada? Valho mais do que isso. Prefiro não ser lembrada, pois
aquilo era o inferno, onde o céu era ocupado pelo anonimato.

Mas ignorei pensamentos mórbidos e seguimos em frente.


Subimos dois lances de escada e fomos parar em um
corredorzinho estreito, com quatro portas enumeradas de cada
lado. Até hoje não sei o que deu em nossa cabeça para subirmos
aquelas escadas. Tentamos abrir a primeira porta que vimos,
sem sucesso. Até uma portinha, antes não reparada, me chamar
atenção. Quando me dirigi a ela, minha prima me puxou.

- Não sei, não. Algo não está certo. Fomos longe demais,
vamos voltar. Deve haver outros hotéis nesta redondeza.

Mas não dei ouvidos a ela. Este sempre foi o meu pior
defeito, não dar ouvidos a ninguém. Na verdade, o segundo pior.
O primeiro é me envolver demais com os problemas dos outros.
Como se nada houvesse acontecido, toquei a maçaneta bamba
da portinhola e a girei, dando uma leve empurrada na porta, que
rangia mais do que o chão que nos sustinha. Entrei. A visão era
de total desespero. Era um quartinho sujo e bagunçado, onde o
assoalho não se via mais por causa dos vários papeis e livros que
o forrava. Meus olhos buscavam uma janela, pois a poluição
visual me estava sufocando, mas aquele cubículo imprestável
nem janela tinha.

E então encontrei um papel que, dentre tantos, chamou a


minha atenção. Era, provavelmente, de alguma parte de um
texto, ou algo do gênero. Na verdade, era algo encomendado.
Seja lá quem escreveu aquilo, o escrevera para mim, com o
intuito de que eu o lesse, e assim o fiz.

“Você tem que estar preparado para se queimar em sua


própria chama: como se renovar sem primeiro se tornar cinzas?“
F. Nietzsche
Nunca me esqueço daquelas palavras, mesmo depois de
tanto tempo. Então penso: E se eu tivesse voltado? E se tivesse
me acovardado, virado as costas e ido embora? E se nunca
sentisse a superfície lisa e cambaleante daquela maçaneta, ou
nunca ouvisse o barulho do carpete de madeira velho que se
retinha nas anotações, que rangia a cada movimento tímido e
intrometido? E se, daqueles milhares de páginas, nenhuma me
despertasse interesse? Seria eu, para sempre, aquela mesma
inútil paisagem, da qual ninguém se lembra sob a densa névoa
da imagem em movimento, vista uma única vez pela janela do
carro?

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