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Cena 1

A- Ninguém diria que somos irmãs.


B- É porque não somos.
(Silêncio)
A- Ninguém diria/que somos...
B-Não somos.
A- Você podia se esforçar? (Silêncio) Só mais um pouco.
(Silêncio) Por favor.
(Silêncio)
B- Tá. Recomece.

Cena 2

A- Ninguém diria que somos irmãs.


B- Ninguém diria.
A- Acho que é por causa dos meus olhos.
B- O que é que tem os meus olhos?
A- Os meus olhos. É bem difícil acreditar que alguém de
olhos claros seja de uma família pobre.
B- Você não é pobre.
A- Somos.
B- E quem decide isso?
A- Eu decidi e você tem que aceitar.
B- Tenho?
A- Tem.
B- Por quê?
A- Porque são as regras.
B- Quem disse?
(Silêncio)
A- Apenas improvise.
B- Desculpa. É que nosso pai fugiu da Alemanha.
A- O quê?
B- Alemanha. Nosso pai / fugiu da Alemanha.
A- Claro. Ainda me lembro de como a voz dele ficava um
pouco abafada, como se ele estivesse prendendo a fumaça do
cigarro na garganta.
B- Papai nunca fumou.
A- Você tem razão. Mas era como se tivesse prendendo
fumaça, a voz abafada, sempre que falava de como se
escondeu feito tapete debaixo da cama, enquanto sua avó era
arrastada pelos policiais nazistas.
A- Pára.
B- Eu sei que essa história te emociona também.
A- Meloso demais. Recomece.
B- Só é meloso se você não conhece a história dos/ judeus.
A- É meloso. Recomece. (Silêncio)
B- Tá.

Cena 3

A- Ninguém diria que somos irmãs.


B- Se você pintasse os cabelos, talvez dissessem.
A- Talvez se usássemos roupas iguais, nos confundiriam com
gêmeas.
A- Você acha?
B- Acho.
A- Anteontem, me disseram que eu me pareço com a Grace
Kelly.
A- Disseram?
B- Disseram.
A- Quem “disseram”?
B- No “Caramelo”.
A- Você voltou naquele supermercado? / Eu não acredito.
B- É um mercado grande. / Eu me escondia entre os iogurtes/
quando via alguém conhecido.
A- Eu não acredito. Tinha gente conhecida?
B- As pessoas não se lembram mais. / Já faz tanto tempo..
A- Tinha gente conhecida?
B- Tinha.
A- Quem?
B- As pessoas não se lembram mais, tenho certeza.
A- Quem?
B- A mãe dos enroladinhos.
A- Eu não acredito nisso. / Os do pré-escolar?
B- É.
A- Eu não acredito nisso.
(Silêncio)
B- Eu não quero mais improvisar.
A- Eu não estou improvisando.
(Silêncio)
B- Ninguém se lembra, te juro. Eu sei pelo jeito que me
olham.
A- Ela te olhou? (Silêncio) Ela não poderia ter se
esquecido.
B- Ela esqueceu.
A- Eram filhos dela. Ela não esqueceu.

Cena 4

B- Eu me esqueço de quase tudo.


A- Até dos seus filhos?
B- Eu não tenho filhos.
A- Tem sim.
B- Não tenho, não.
A- Improvise.
B- Eu me esqueceria dos meus dois filhos.
A- E do bebê?
B- É impossível se esquecer do que ainda não nasceu.
A- Você se esqueceria das vezes que ele dança aí na sua
barriga? Você se esqueceria das estrias explodindo ao redor
do seu umbigo? Você se esqueceria da sua barriga aumentando
e das vezes que você ficou deitada na cama inventando que
tinha comido uma melancia? Você se esqueceria de quando
fechou as pernas, fingindo que as contrações eram só
apendicite pra não deixar ele sair? Você se esqueceria de
quando tiraram / ele morto...
B- Eu nem me lembro disso.
A- Eu não me esqueço.
B- Eu me esqueci de uma coisa... Quantos anos Ruth tem?
A- Ruth?
B- A minha mais nova.
A- Doze.
B- Não é possível. Não é verossímil. Eu não tenho idade pra
isso.
A- Isso é só um detalhe.
B- E o mais velho?
A- Hoje dezoito. Quando aconteceu tudo, ele tinha
dezesseis.
B- “Quando aconteceu tudo...”. Odeio quando você se refere
àquela terça-feira assim.
A- É o melhor jeito.
B- Quem disse.
A- Se eu ficar repetindo as pessoas não vão se esquecer.
B- Elas não vão se esquecer de qualquer jeito. (Silêncio)
Foi ele? O mais velho?
A- Ele era um monstro.
B- Não. Ele é um assassi

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