Você está na página 1de 4

“Carta a Matilde”

Leonardo Moreira

Prezada D. Matilde,

Sei que pode parecer estranho receber uma carta assim, depois de tanto tempo. Pra
mim também é estranho escrever para uma professora que não vejo desde os meus
catorze ou quinze anos. Talvez a última vez que nos vimos tenha sido na aula de
encerramento do ano letivo. Sétima série: é o que eu consigo me lembrar. Das suas
aulas desleixadas e preguiçosas também me lembro bem. Também do seu pouco caso
e desprezo por essa gente que freqüenta as escolas públicas. Lembro ainda de seus
lábios debochando da nossa irreproduzível pronúncia em inglês. Não me entenda mal:
não estou julgando sua atitude, nem condenando o olhar de desprezo e os apelidos
que você nos dava. Ao contrário, acho – e sempre achei – que você tem razão. É só
com esse deboche, esse desprezo e essa repulsa que podemos tratar gente como
aquela. Mais de uma vez você disse estar jogando pérolas aos porcos e era verdade, D.
Matilde. Era vergonha o que eu sentia quando você falava – no mesma cadência, como
uma música de uma nota infinita e igual – as conjugações passadas dos verbos
irregulares. Vergonha de quem eu era. Vergonha de ver nos seus olhos que você sabia
quem eu era. E esse é o primeiro motivo por que lhe escrevo: você sempre soube
quem eu era; sou.

A senhora arrastava seus tamancos com saltos de madeira pra dentro da sala e eu
podia vê-la sentir o cheiro daquela pobreza com uma certa raiva de estar lá. E eu a
entendia, eu também sentia raiva. O giz deslizava raramente pelo quadro, era mais
esforço do que gente como a gente merecia. E quando, por acaso, seus olhos se
cruzavam comigo, eu tinha certeza de que era nojo o que eu via no seu nariz franzido.
Vou repetir: não leia essa carta com um tom de ironia, como se eu quisesse te
repreender com a lei de que os pobres merecem nossa compaixão. Eu não acredito
nisso. Cada palavra aqui é só o que ela é . O que está escrito é apenas o que está
escrito, de verdade: eu sempre a admirei porque a senhora conseguia enxergar nossa
pobreza de forma justa – com repulsa e um pouco de raiva.

Eu também. Porém, com mais raiva que repulsa. E foi essa raiva que me fez querer ser
como a senhora. Se nos encontrássemos na esquina da rua do Colégio Nossa Senhora
das Graças – onde eu imagino que você ainda deva morar, com a sua mãe imóvel às
tardes na janela – você não me reconheceria. Eu poderia até falar em inglês com a
senhora: eu estenderia minha mão como se ela tivesse luvas e abaixaria a cabeça
como se usasse uma cartola e com um sorriso de poucos dentes à mostra lhe diria “do
you remember me?” e você não se lembraria e ficaria encantada com minha pronúncia
e com a agilidade com que eu me desprenderia da sua mão e continuaria a caminhar e
fugiria dos seus olhos. Porque eles, apesar da cartola e da luva e do inglês, não
poderiam deixar de reconhecer quem eu sou.

E este é o segundo motivo por que lhe escrevo: apesar de hoje eu ser uma dessas
pessoas bem-sucedidas que se escondem numa grande metrópole (chame-me de
doutor), você ainda vai me enxergar como o garoto de cabelo ruim da sétima série
daquela sala naquela “escola estadual joão lourenço”. É isso o que eu mais preciso
agora, que através do diploma, atrás do doutor e atrás da cartola imaginária, alguém
consiga me olhar com o mesmo desdém, a mesma revolta e o mesmo nojo a que me
acostumei; que eu mereço. E você, D. Matilde, é perfeita pra isso: seu olhar não
carrega aquela compaixão que nos mandam ter com os pobres, aquela piedade que
nos regojiza (veja que palavras esse menino sabe usar agora para impressioná-la). Até
hoje, só a senhora conseguiu me ver com o desprezo exigido pelo que eu sou.

Talvez eu devesse parar de chamá-la de dona e senhora: afinal, o doutor agora sou eu.
Mas não desisto tão fácil desses hábitos. Ou talvez nem seja hábito, mas prova de que
eu continuo aquele verme da terceira fileira, transpirando e cheirando a sarjeta. E,
acredite, eu nem era tão pobre quanto estou descrevendo: há sempre que se exagerar
um pouco. Só não minto no cheiro da pobreza – esse, o jeito rápido que você se
afastava quando eu ia até sua mesa entregar a avaliação bimestral não me deixa
negar.

Quem sabe esse cheiro ainda permanece: pode ser desagradável, mas experimente
cheirar o papel desta carta, talvez o envelope. Se o cheiro estiver escondido pelos
meus títulos e gravatas e sapatos brancos, não se preocupe - assim que eu lhe disser o
terceiro motivo dessa carta, tenho certeza de que será impossível não cobrir o nariz,
não prender o ar até o fim de cada parágrafo. Porque o que eu tenho que contar pra
senhora tem aquele cheiro: aquele cheiro de quem eu sempre fui e que a senhora
sempre soube.

Nunca tivemos intimidade, eu sei. Talvez a senhora tenha se dirigido a mim apenas
duas ou três vezes: pra corrigir minha pronúncia de “island” e, talvez, para se certificar
de que eu estava na sala enquanto lia em voz alta a lista de presença. E por sermos
assim – desconhecidos que se conhecem tão bem - que posso lhe contar tudo, sem
pular qualquer linha do que precisa ser dito.

Prepare-se, o cheiro já deve estar voltando, porque não há mais como fugir, eu tenho
que contar tudo. Tenho: é uma obrigação. Se eu não o fizer, não vou conseguir
continuar a ser o doutor. O que salva vidas.
D. Matilde, essa é uma grande mentira sobre os médicos. Uma enorme mentira que
precisa ser corrigida. Até hoje nenhuma vida foi salva por mim: os que estavam pouco
doentes, talvez tenham melhorado com os remédios que fui pago pra receitar; os
muito doentes, eu só prolonguei a dor; os muito graves, morreram apesar dos meus
esforços a qualquer custo para manter o coração funcionando. O coração é o último a
morrer, a senhora deve saber. Os quase cinquenta segundos que o sangue demora pra
percorrer todo o corpo, eu os prolongo a qualquer custo, a qualquer preço. O cérebro
morto, os rins mortos, o pulmão morto, a pele morta, mas o coração ainda batendo. É
por esse capricho que a medicina vive.

Depois que se pára de respirar, o coração ainda bate por quase dois minutos. Dizem
que é nesse tempo que a vida passa diante dos olhos, que nos arrependemos e que
vemos um túnel de luz. Eu não acredito, D. Matilde. Me escreva dizendo no que a
senhora acredita.

Mas não há mais como evitar o terceiro motivo. Aqui está ele: essas coisas só se
contam a pessoas como você. Só se conta segredos a desconhecidos que nos
desprezam. Essas coisas não podem ser ditas a amigos ou a sacerdotes compreensivos.
O caminho mais direto para se falar com deus é o ouvido de estranhos que não terão
vergonha de nos condenar. Esse é o tipo de confissão em que eu acredito. Todo o resto
– mãos que afagam a cabeça, ombros generosos e olhares cúmplices – é uma bobagem
que só serve para fingirmos que acreditamos no perdão. Mas eu não acredito. Eu não
mereço o perdão. Antes, eu preciso da sua condenação, D. Matilde.

Não lhe escrevo de muito longe: estou em nossa cidadezinha. Cheguei hoje e, como
não consigo dormir, aproveito para lhe escrever. Nesse momento, eu estou deitado na
cama da Irmã, com meu notebook (os privilégios da medicina) no colo. Não tenho
mais um quarto nessa casa que, em pedaços, devia ser minha. Voltei para o natal
porque é o que se deve fazer quando se sabe que vai morrer. E eu vou, logo. O que
comprova que a medicina é só um capricho inútil. Mas ainda não é hora de falar da
minha doença. Antes, é preciso espalhar o cheiro por essas linhas: antes, é preciso
irmos ao segredo.

A senhora , claro, se lembra do meu Pai. Coisas de cidade pequena, mas que talvez seja
mentira só pra acabar com sua fama de solteirona virgem: andam dizendo que vocês
dois já tiveram um romance quando bem jovens. E pode ser verdade, porque meu Pai
não carregava essa marca da pobreza que ressoa em mim. O Pai era desses homens
que mal conversam e quando falam, usam um tom grave e baixo que temos que nos
inclinar um pouco para entendermos. A senhora sabe. E pode ser verdade, porque foi
a Mãe mesmo quem me contou essa história e me mostrou que você está com uma
saia florida numa fotografia antiga da caixa azul. E na caixa azul só deveriam estar
fotografias da família.
Talvez a senhora tenha vergonha desse passado. Ou talvez tenha esquecido que já
chegou tão perto da pobreza. Mas eu garanto que sua saia florida a fazia diferente de
todo o resto daquelas mulheres pobres com “cabelos de pombo”. No canto esquerdo
de gente em preto-e-branca, enfileirada e com sorrisos maiores que o usual, você só
pode ser comparada ao Pai. Só ele tem a mesma classe que você. Só ele tem, na foto,
aquele olhar tranqüilo dos que são superiores. Não dá pra se ter certeza, mas eu
suspeito de que os braços dele estão apalpando por trás as rosas da sua saia. Não dá
pra ter certeza, mas eu queria que fosse assim. Toda a penca de tias, primos e casais
da foto pode ser esquecida: rasguem-se esses pobres.

Mas você não. Mas o Pai não. Eu preciso dizer, D. Matilde: nunca em toda a minha vida
conheci pessoa melhor que o Pai. Mais admirável. Mais generosa. Por todo o tempo
que o conheci, em nenhum momento eu deixei de amá-lo. Em nenhum momento
também deixei de sentir uma certa raiva por não ser como ele, por sabê-lo sempre
melhor. Ele não precisava ser – e não era – doutor. O cheiro do Pai era outro.

Perto da caixa azul de fotos, dentro da estante, reparei que os quadradinhos doces –
de abóbora e cidra – cobertos de açúcar ainda estão lá. Quase sete meses depois da
sua morte. Os doces que, você deve saber, meu pai comia todos os dias, em porções
minúsculas. E, antes de ver a foto em que vocês dois estão floridos, eu pensei que é
muito injusto que as coisas durem mais que as pessoas. E joguei os doces no lixo sem
deixar a Mãe vê-los.

É pelo Pai que escrevo tudo isso, D. Matilde. Por causa dele. E eu não tenho vergonha
de dizer que, sim, eu amava o Pai mais que tudo. Eu o amava como ele merecia ser
amado: inquestionavelmente – sem raiva e sem repulsa. E, se a mão dele estiver
mesmo acariciando suas ancas naquela foto, ele gostaria que eu lhe dissesse a
verdade. Que eu lhe contasse o segredo: fui eu.

Aí está o cheiro de que não consigo fugir. Fui eu quem matou o Pai.

Abraços,

Dr. L.

Dezembro de 2008

Você também pode gostar