Você está na página 1de 42

INSTRUÇÕES PARA SE MONTAR UMA PEÇA ou OS PINGÜINS DO

ESTREITO DE MAGALHÃES
Por
leonardo moreira, alice nogueira, fernando frahia, thiago
amaral, marcela bannitz e verônica gentilin

Baseado e com trechos de "Histórias de Cronópios e Famas",


de Júlio Cortázar, em fragmentos de Gonçalo Tavares e
improvisações

versão 2 outubro de 2008


A. PRÓLOGO
Os três atores e o músico em cena. Eles ainda parecem
organizar o espaço, preparam alguns objetos que serão
usados mais tarde. O músico ainda não toca, mas prepara o
saxofone.
Há uma parede no fundo, com uma janela de vidro fechada.
Há uma grande escada. Há grama no chão. Há um forno, com
alguns objetos de cozinha sobre ele. Há uma geladeira, com
alguns pingüins de porcelana sobre ela.
A estampa do papel de parede é mutante.
Os atores recebem a platéia de um modo estranhamente
natural. Há uma seqüência de ações não-cotidianas que é
realizada para cumprimentar algumas pessoas que chegam e
se acomodam. Tudo muito natural, apesar da estranheza dos
movimentos.
Assim que todo o público chega. Músico começa o tocar o
saxofone. MARCELA faz uma espécie de tradução simultânea.
Papel de parede vai se diluindo em linhas, que paralelas,
parecem formar uma partitura musical.
MARCELA
(para a platéia)
Todo mundo já chegou?
(traduzindo a música)
A primeira regra é que todos
deveriam estar sentados, bem
acomodados. Aos casais, por favor
não evitem as pequenas carícias
escondidas, as mãos entrelaçadas,
os beijos nas cenas românticas -
sim, há cenas românticas; sim,
são apenas três atores...
(deixando de traduzir)
eu prevejo uma desilusão amorosa.
(música volta mais
insistente)
Desculpem-me... como eu dizia,
não evitem os sussurros e
chamegos. Aos solitários,
concentrem-se e pensem: isso é
apenas temporário, isso é apenas
temporário, isso é apenas
temporário. Aproveitem essa
meditação para olhar para o lado
e descobrir pessoas interessantes
também meditativas. Ah, é
claro...é importante que vocês
permaneçam com celulares
preferencialmente ligados.
Exatamente, ligados. Qualquer
intervenção será bem-vinda. Não
queremos que vocês esqueçam do
(MAIS...)
2.

MARCELA (...cont.)
mundo - ou percam oportunidades
afetivas - logo qualquer
participação de pessoas que não
estão nesta sala também serão
bem-vindas. Bem-vindos.
(a música pára)
Podemos começar?
Luzes da platéia se apagam. Apenas o palco é iluminado.
Sobre a parede, começam a ser projetadas imagens dos três
atores antes da apresentação: acordando, tomando café,
trabalhando, pegando o ônibus, se aquecendo... até minutos
antes da platéia entrar no espaço.

CENA 1
VERÔNICA
(microfone)
Antes de tudo, é preciso que os
atores cheguem algumas horas
antes do horário programado para
a apresentação. O ideal seria que
chegassem três horas antes, mas
respeitando a natureza
irrepreensível dos artistas, será
aceitável que cheguem até quinze
minutos antes do início da
performance. Seria de bom tom
que o texto estivesse decorado
em todas as suas vírgulas, mas
isto não é extremamente
necessário. Seria de bom tom que
as cenas tivessem sido ensaiadas
exaustivamente ou, pelo menos,
com a determinação que é esperada
das lagartas antes de serem
mariposas. Quanto ao público, ele
deve chegar em bando. Bando deve
ser entendido como o máximo de
pessoas possível, mesmo que estas
não estejam interessadas em
assistir ao espetáculo. No
entanto, devido aos tempos
terríveis em que vivemos, apenas
uma pessoa também poderá ser
considerada bando. O público
deverá entrar na sala de
espetáculos em silêncio. Serão
toleradas conversas sussurradas
ou no amistoso tom de um velório.
Gargalhadas só serão permitidas
até que se entenda o espírito da
peça. Os atores já estarão em
cena, depois de passarem
rapidamente por todo o seu rol de
(MAIS...)
3.

VERÔNICA (...cont.)
técnicas de aquecimento corporal
e vocal. Trabalha-se, neste caso,
com a perspectiva de que o bando
estará gelado: somadas, suas
temperaturas não ultrapassarão
alguns poucos graus na escala
farenheit (a não ser que na
platéia estejam, dispersos, pais,
amigos bem próximos e dispostos a
abrir mão do senso crítico ou
tias distantes em visita
orgulhosa). Esta perspectiva
pessimista é que faz com que os
atores respirem de modo
diferente, quase confundindo o
diafragma com o estômago. Sabemos
que é só por isso que existem as
técnicas de aquecimento. Uma vez
acomodado, o público deve olhar
para os atores - um de cada vez,
e na ordem em que julgar mais
conveniente. Um dos
atores levanta os olhos para a
platéia...
THIAGO olha o relógio em seu pulso, levanta os olhos para
a platéia.
VERÔNICA
(cont)
...dá um sorriso curto, desses
que costumamos identificar em
encontros simpáticos no elevador,
como se dissesse: vamos, vamos,
um pouco mais amistosos... só um
pouquinho.
THIAGO dá um sorriso curto para a platéia.Retira um OVO do
bolso.
VERÔNICA
(cont)
Respira antes de começar e
finalmente diz: "Sequencia 1.
Plano Geral. Tudo..."
THIAGO
Seqüência 1. Plano Geral. Tudo o
que será dito já foi ensaiado.
Exaustivamente. Um dos atores
confere o atraso, olha a platéia,
sorri, pega seu objeto cênico,
toma fôlego e começa dizendo:
Seqüência 1. Plano Geral. Tudo o
que foi dito já foi ensaiado.
Exaustivamente. Um dos atores
(MAIS...)
4.

THIAGO (...cont.)
confere o atraso, olha a platéia,
sorri, pega seu objeto cênico,
toma fôlego e começa dizendo:
Seqüência 1. Plano Geral. Tudo
que é dito já foi ensaiado.
Exaustivamente. Um dos atores
confere o atraso, olha a platéia,
sorri, pega seu objeto cênico
toma fôlego e começa dizendo:
Ele começa a tentar colocar o OVO de pé. A imagem dos
atores vai se tranformando num desenho e em linhas, que
formam um diagrama descritivo de um ovo, com setas e
legendas: conquilha ou casca, albumina, etc....
MARCELA
Do ponto de vista da biologia,
Ovo é o mesmo que Zigoto. É uma
célula que se forma após a fusão
do núcleo do óvulo - pronúcleo
feminino - com o núcleo do
espermatozóide - pronúcleo
masculino - por cariogamia, o que
dá origem à célula diplóide
denominada ovo ou zigoto.Nos
Seres Humanos, (pausa) e também
na maioria dos mamíferos, para
que esta célula se forme é
necessário que um espermatozóide
“atravesse” a zona pelúcida, que
reveste o ovócito II e o 1º
glóbulo polar, de modo a
“introduzir” (pausa) o seu núcleo
no ovócito II que se encontra em
metafase II. Em virtude deste
“estímulo” termina a meiose
originando o óvulo e o 2º glóbulo
polar. Como agora no interior do
óvulo se encontra o seu pronúcleo
e o pronúcleo masculino , vão-se
fundir originando o ovo ou
zigoto. Algo fundamental na
reprodução sexuada.
VERÔNICA
Eu sempre preferi o Natal, não a
Páscoa. Essa história dos ovos
entregues por coelhos sempre foi
exótica demais pra mim. Eu me
lembro de ter tido uma aula de
religião em que a professora
explicou que o ovo e o coelho
eram símbolos de Renascimento, de
Vida Nova e era isso que a Páscoa
representava, no fundo. A
metáfora do ovo não era nada
(MAIS...)
5.

VERÔNICA (...cont.)
sutil, mas não entendi onde
entrava o coelho nessa história.
Precisou a tia fazer um gráfico
demostrativo da taxa de
reprodução do coelho em
comparação com a do homem.
Tenho que admitir que o ovo de
páscoa tem pelo menos uma
característica filosófica (pausa)
interessante: Ele acabava
rápido... aquela vida fugaz do
ovo de páscoa sempre me deixou
com um péssimo gosto na boca.
THIAGO
(constrangido)
Eu resolvi começar falando do
ovo, porque hoje é (número da
apresentação) vez em que falo
isso pra uma platéia, e eu
(ainda) estou nervoso. O que mais
me... Eu vou olhar pro ovo, tudo
bem? (engole seco) O que mais
fascina no ovo é que ele é sempre
inesperado. Clec no canto da
frigideira e posso fazer uma
omelete ou encontrar um filhote
de pingüim. Clec e a gema amarela
ou um começo de penas. E não
importa quantas expectativas a
gente tenha, não importa o tom de
amarelo que pensamos que vai
estar aqui dentro, não importa se
imaginamos um pintinho ou um
lagarto... o ovo é sempre uma
coisa que ainda não nasceu. E
poder segurar uma coisa que ainda
não nasceu, sem ter certeza de
como ela será, é... pelo menos,
eu acho, fascinante. Segurar o
ovo bem perto do ouvido pra
tentar uma última descoberta,
jogar fora todas as expectativas,
apertar bem firme o que ainda não
começou e ter coragem de
começar...
Ele joga o ovo pro alto, VERÔNICA apanha o ovo com um copo
de liquidificador. O ovo se quebra, há um líquido
comestível azul.
VERÔNICA
Clec. A peça começou.
6.

CENA 2
MARCELA abre a geladeira, vemos muitos ovos. A geladeira
toda repleta de ovos. Ela também tem um copo de
liquidificador, idêntico ao de VERÔNICA.
MARCELA
Acrescente mais três ovos.
(quebra mais três ovos
azuis, enquanto realiza a
receita)
Misture meia xícara de óleo. 03
cenouras médias raladas. 02
xícaras de açúcar. 02 xícaras
(pausa) e meia de farinha de
trigo. Bata no liquidificador.
O músico toca o saxofone.
MARCELA
Por último, misture 01 colher de
fermento em pó. Leve ao forno
pré-aquecido e tenha paciência.

CENA 3
MARCELA vai colocar o bolo no forno. VERÔNICA realiza as
mesmas ações de MARCELA, de forma idêntica, mas dessa vez,
seguida pela narração de THIAGO.
THIAGO
(microfone)
Acrescente mais três traumas de
infância: se for difícil
encontrar, abondone a receita e
saia cantando pelas ruas. Caso
contrário, selecione os traumas
por seu peso e textura. Prefira
os leves,macios e pouco sonoros.
(abre a geladeira, escolhe
os melhores traumas, quebra
mais três ovos azuis, de
forma cuidadosa)
Misture meia xícara de brigas
adolescentes com seus pais. 03
paixões platônicas, incluindo
celebridades e vizinhos. 02
momentos de rebeldia ou revolta
sem motivos. Prefira as revoltas
sonoras, ou a massa pode ficar
craquelada. Dois finais de
relacionamento (pausa) e uma
situação mal-resolvida. Bata no
liquidificador.
O músico toca outra música no elevador.
7.

THIAGO
Por último, escreva versos e
nunca os mostre a ninguém. Leve
ao forno e aguarde o início da
vida adulta com paciência.

CENA 4
Thiago começa a cavar a grama. Forma um pequeno monte de
grama na lateral do palco. Sobe as escadas, lá em cima há
uma colher e uma pá. Ele começa a transferir a grama
lentamente para o alto da escada, como se construísse uma
paisagem.
MARCELA
(microfone)
Para treinar os músculos da
paciência: coloque uma colher de
café, a menor que encontrar, ao
lado de uma pá gigante, dessas de
incompreensíveis obras de
engenharia. A seguir, imponha a
si próprio um objetivo
inegociável: um monte de terra -
uns cinquenta quilos de mundo -
para ser transportado do ponto A
para o ponto B - pontos colocados
a 15 metros de distância um do
outro. A enorme pá deve ficar no
chão, parada, mas visível. Então,
utilize a minúscula colher de
café para transportar o monte de
terra de um ponto para outro,
segurando-a com todos os músculos
disponíveis. Nunca, em hipótese
alguma, utilize a pá gigante.
Thiago continua a montar sua paisagem no alto da
escadaria, bastante pacientemente. (Cena do Sofá)

CENA 5
VERÔNICA encosta-se na parede. Bem devagar, as linhas
projetadas vão formando um outro rosto sobre o rosto dela.
É uma pintura bastante famosa. Enquanto isso, ela canta
bem baixinho uma música do Legião Urbana. O saxofone a
acompanha. Pára e pega o microfone. Fica muda por alguns
segundos.
8.

CENA 6
THIAGO está no alto da escada. MARCELA embaixo. Thiago
continua a montar sua paisagem, carregando um sofá.
MARCELA parece se incomodar com os barulhos que vêm de
cima.
MARCELA
Eu sempre morei em casa. Em todas
as cidades em que morei: Taubaté,
Piracicaba, Nova Hamburgo...
Sempre em casa. Eu quis me mudar
pra São Paulo por causa dos
vizinhos. Eu queria poder olhar a
janela e ver como as pessoas
vivem. Eu queria encostar um copo
na parede e ouvir as conversas
dos casais antes de dormir. Eu
queria deitar com o ouvido
encostado no chão pra ouvir a
velhinha arrastando seu andador
às seis da manhã.
VERÔNICA
Para se ouvir o vizinho do andar
de cima, é preciso, antes de tudo
e necessariamente, estar no andar
de baixo. O primeiro passo é ter
certeza de que há alguém no andar
de cima. Para esta etapa, as
alternativas possíveis são:
experimente se esconder no
corredor do andar superior pra
observar quando o vizinho vai
chegar e se há companhia. Caso
nào funcione, experimente
perguntar ao porteiro. É
importante ser discreto e não
levantar suspeitas.
MARCELA
(para Verônica)
O... ai, eu sempre me esqueço do
nome dele, eu sou péssima com
nomes... o, o rapaz que mora logo
em cima de mim... qual é o nome
dele mesmo?
VERÔNICA
...
MARCELA
Aquele que fica andando a
madrugada inteira... nossa,
parece uma dança... polca a
madrugada toda. Mas eu não estou
reclamando, não... Eu gosto de
(MAIS...)
9.

MARCELA (...cont.)
gente que tem animais. Ele tem
animais, não tem? Eu ouço latidos
quando ele vai embora, miados
quando ele chega e um relinchar
ou outro às quartas-feiras.
VERÔNICA
O senhor Thiago.
MARCELA
Senhor Thiago... Hoje eu não
escutei nenhum bicho. Você sabe
se ele está em casa?
VERÔNICA
O cachorro dele morreu.
MARCELA
Ah, por isso...E você sabe se ele
está em casa?
VERÔNICA
Se não funcionar ou se o porteiro
a olhar com um certo ar de
desconfiança, vire-se, entre no
elevador e tente o interfone.
Espere o interfone tocar três
vezes. Antes da quarta vez, se
ele ainda não atender...
O celular de Thiago começa a tocar. Marcela liga.
THIAGO
Alô.
MARCELA
...
THIAGO
Alô.
MARCELA
...
Marcela desliga o telefone.
VERÔNICA
Não se preocupe. Ele vai ligar de
volta.
Thiago volta a ligar.
THIAGO
Quem é?
10.

MARCELA
Alô?
THIAGO
Quem está falando?
MARCELA
Com quem você deseja falar?
THIAGO
Eu recebi uma chamada desse
número. Apertei asterisco duas
vezes, pra ligar de volta. Em que
andar você mora?
MARCELA
Ah... quem está falando?
THIAGO
Quem está falando?
MARCELA
Senhor Thiago?
THIAGO
Eu não conheço nenhum Thiago.
MARCELA
Ah, desculpe... Achei que fosse o
THIAGO do 712. Eu sou do 612.
THIAGO
Sou do 712, mas não sou o Thiago.
MARCELA
Ah, desculpe então...
THIAGO
Mas o que você queria? Estou te
incomodando? Desculpe, é um
momento muito difícil pra mim...
(quase chora) Desculpe, por que
você me ligou mesmo?
MARCELA
Não, você me ligou.
THIAGO
Não, eu retornei a ligação.
MARCELA
Ah, é.
THIAGO
E o que você queria?
11.

MARCELA
Er... eu queria, eu queria saber
se você prefere maracujá ou
cupuaçu?
THIAGO
Como assim?
MARCELA
É que eu tenho duas opções:
maracujá ou cupuaçu...
THIAGO
...
MARCELA
maracujá ou cupuaçu... era isso.
THIAGO
Depende. É pra fazer suco?
MARCELA
Suco? Ah, não... não... é pra
passar no corpo.
THIAGO
Maracujá.
MARCELA
Mas o cupuaçu está gostoso...
parece.
THIAGO
Mas o maracujá tem sementinha.
MARCELA
É que eu ia escolher o cupuaçu,
só achei que você, enfim... a
gente mora no mesmo prédio.
THIAGO
Er... pode ser cupuaçu então.
MARCELA
Mas você prefere maracujá, é
isso?
THIAGO
Não cupuaçu tá bom.
MARCELA
É, maracujá tem sementinha. Você
tem razão.
THIAGO
...olha, eu vou desligar. É um
momento muito difícil pra mim.
12.

VERÔNICA
Uma vez certificada a suspeita de
que o vizinho está no andar de
cima. É chegada a hora de começar
o processo de escuta. Suba no
móvel mais alto que encontrar.
Incline a cabeça, apontando o
ouvido na direção do teto. E
concentre-se em todo barulho que
vier do andar de cima.
Marcela permanece parada nessa posição, enquanto Thiago
senta-se no alto da escadaria.
THIAGO
Há três dias, meu cachorro
morreu. Há dois dias, minha avô
morreu. Se eu estivesse em
qualquer uma das cidades que eu
já morei antes: Taubaté, Nova
Hamburgo ou Piracicaba... tudo
bem, eu tinha amigos lá e eu
poderia chorar e dizer "eu quero
ficar sozinho"... mas aqui é
diferente. Há um dia, eu me
sentei no alto de um penhasco e
comecei a olhar o mar. E eu me
senti tão... tão... tão... por
causa do cachorro, entende?
CENA choro/mar. Começam a ser projetadas as imagens do
Thiago chorando em frente ao mar. Marcela escuta.
THIAGO
E eu comecei a me olhar de fora,
era como se o tempo tivesse
parado e eu estivesse sentado no
cinema, me assistindo. Eu sentia
tudo girar.
VERÔNICA
"O homem é o eixo da roda, e
neste momento, sua superfície
toca o chão." Osho, outubro de
2003.
THIAGO
E quanto mais eu olhava, mais
vontade dava de chorar. Porque
era tão bonito... tinha o mar
e... era um filme, sabe? como se
eu estivesse no cinema.
MARCELA
Um cinema, Berlim, 1958. Ele está
assistindo a um documentário
sobre as formigas brasileiras.
(MAIS...)
13.

MARCELA (...cont.)
Neste momento, a rainha do
formigueiro está prestes a morrer
em favor das novas gerações.
VERÔNICA
Assim que ouvir os primeiros
sons, é hora de imaginar o que
está acontecendo. Se sentir
dificuldades nesta etapa e só o
que conseguir for uma pequena
coceirinha na orelha, use a chave
do carro para acabar com a
coceira e abrir todos os
pensamentos.
MARCELA
Um quarto de criança, Taubaté,
1985. Ele está com medo do
escuro, mas a mãe... não, o pai,
acabou de apagar a luz e fechar a
porta. E ele não está com sono e
qualquer barulho, qualquer som...
A porta do armário lembra uma
floresta.
Floresta, conto de fadas. Ele é o
lobo mau que pisa nos maracujás e
cupuaçus pra não deixar a
chapeuzinho vermelho escapar.
Ela bate com a vassoura no andar de cima, muito
incomodada.

CENA 7
Todos os atores começam a se reorganizar. Eles realizam
algumas ações. Falam simultaneamente, mas há um foco de
volume. Quem guia este jogo é o músico.
VERÔNICA
Paris. 1965. Primavera. Marcely
toma seu banho de sais na sua
banheira dentro da sua pequena
mansão na Rua Ouirevouirxxxx , n°
352. Marcely está a espera de seu
namorado, eles vão fazer um
jantar hoje à noite, então ela
está se arrumando.
THIAGO
Sala de visitas da cartomante,
Nova Hamburgo, 1974. Ele olha a
samambaia enorme pendurada no
canto. Ele e a samambaia
esperando a consulta anterior
acabar.
14.

MARCELA
Um descampado, embaixo da Rua
Major Diogo. Cartomante. Muito
velha. Ela vira duas cartas: A
Roda da Fortuna e o Enforcado.
VERÔNICA
05 de maio de 1794. Paris. Um
girondino prestes a ser enforcado
obersava um jacobino ser
guilhotinado.
THIAGO
Havana, 1984. Criança encontra
cigana: Posso ler sua mão?
Criança fala que não, minha mãe
já ta voltando. A mulher segura a
mão da criança: tem alguma coisa
que você queira saber?
MARCELA
Brasil, 22º43’31" de latitude sul
e a 47º38’57" de longitude oeste,
1775. Ainda não existia
Piracicaba.
VERÔNICA
Londres, 1838. Ela tenta remendar
o pijama de bolinhas azuis. Ela
não sabe onde ficou o pequeno
buraco que ela deveria remendar,
ela procura bolinha por bolinha
no pijama, uma a uma.
MARCELA
Rio de Janeiro, um fundo azul.
Ele grava um comercial, abre o
iogurte e lambe a tampa de
alumínio. Sorriso. Rondonópolis,
1999, hospital. Uma enfermeira
arruma os bisturis para que eles
fiquem paralelos.
THIAGO
Singapura, 1542. Um forte vento
derruba um coqueiro. Timor Leste,
2002. Ele senta-se no canto do
trailer e chora a morte do
cachorro. Cinema, Chicago, 1960.
Ele senta-se ao lado dela. Na
tela, um filme sobre alguém que
chora olhando o mar. Os dois se
olham. Ouve-se um tiro.
MARCELA
Buenos Aires, 1978. Ela vai abrir
a porta da rua, e ao colocar a
(MAIS...)
15.

MARCELA (...cont.)
mão no bolso para pegar a chave,
o que pega é uma caixa de
fósforos, então ela se aflige
muito e começa a pensar que se os
fósforos estão no lugar da chave,
pode acontecer de encontrar a
carteira cheia de fósforos, e o
açucareiro cheio de dinheiro, e o
piano cheio de açúcar, e a lista
telefônica cheia de música, e o
armário cheio de assinantes, e a
cama cheia de roupas, e os ônibus
cheios de rosas, e os campos
cheios de ônibus, e as casas
cheias de grama.
VERÔNICA
Instituto Santa Amália, escola de
freiras, 1964. Maria Augusta
amarra o seu sapato recém
engraxado. Maria Augusta observa
todas as outras meninas e os seus
sapatos. Maria Augusta acabou de
aprender a amarrar os seus
sapatos. Ela ainda não sabe muito
bem amarrar os seus cadarços.
Maria Augusta dá um nó no próprio
dedo e não consegue mais se
soltar do próprio dedo. Escola de
Ioga DeRose, 2007. Ela começa com
movimento simples. É um
alongamento de dedos. Os dedos
precisam ser muito bem alongados.
Ela se olha no espelho e pensa na
próxima aula de natação.
THIAGO
Auschwitz, 1942. Um oficial
nazista usa um saxofe para
torturar uma judia.
VERÔNICA
Nova Hamburgo, 1982. Ela imita
Edit Piaf.
Marcela está no alto da escadaria. Thiago começa cantar
bem baixinho a música "Vermelho". Verônica sobe na
geladeira e equilibra-se entre os pinguins.
MARCELA
(data de hoje), 2008. Ele
está no alto de um prédio de
24 andares. O medo é da
altura. Ninguém consegue
explicar como ele foi parar
lá. Há pessoas assistindo
16.

que não vão intervir. Voltar


é perigoso, seguir adiante é
perigoso. Só resta ficar no
lugar. E as possibilidades
são pequenas e a vertigem
aumenta e o prédio cada vez
mais parece mais alto. Olhar
pra baixo dá medo, é
perigoso demais pra se
desesperar ou fazer qualquer
movimento brusco.
Música de Thiago mais alta.
VERÔNICA
Ela recuava até ponto em que não
poderia recuar mais. Atrás havia
o precipício. Experimentava
avançar, mas só conseguia simular
meio passo. Mais nada. Avançava o
suficiente para poder recuar.
Depois de novo recuava até um
ponto em que já não poderia
recuar mais. Passava dias nisso.
Verônica quebra um pinguim. Música de Thiago pára.

CENA 8
Os atores interrompem a peça. Falam baixo, quase não
entendemos.
THIAGO
Verônica, tem que tomar mais
cuidado.
VERÔNICA
No ensaio, não tinha pingüim aí.
MARCELA
Mas nós tínhamos combinado que
haveria pinguins. Ovo também não
tinha e nem por isso deu
problema.
VERÔNICA
Eu sei. Desculpa, é que eu estou
nervosa.
THIAGO
E aí? Continuamos de onde?
VERÔNICA
A gente podia voltar um
pouquinho.
17.

MARCELA
A gente podia voltar do vizinho
do andar de cima, pode ser... eu
acho que eu me desconcentrei um
pouco na primeira vez. Pode ser?
THIAGO
Pode.
Todos voltam para suas posições anteriores.
MARCELA
É, maracujá tem sementinha. Você
tem razão.
THIAGO
...olha, eu vou desligar. É um
momento muito difícil pra mim.
Thiago se concentra em fazer sons. Permanece tentando
encontrar um som orgânico. Esforça-se.
VERÔNICA
Uma vez certificada a suspeita de
que o vizinho está no andar de
cima. É chegada a hora de começar
o processo de escuta. Suba no
móvel mais alto que encontrar.
Incline a cabeça, apontando o
ouvido na direção do teto. E
concentre-se em todo barulho que
vier do andar de cima. Dias
nisto. Confira se você escolheu
sapatos bem macios. Espere.
Espere. Espere.
MARCELA
(com a cabeça inclinada,
ouvindo)
Procure algum atrativo durante
esse tempo. E o use como relógio:
quantos segundos se demora para
fazer uma cruzadinha? Quantas
frações de cruzadinhas para
amarrar os sapatos? Quantas vezes
se amarra os sapatos enquanto o
ônibus não chega?
Outras frações de tempo... Por
quanto tempo é possível pensar
sobre o mesmo assunto?
Thiago consegue fazer um som um pouco mais alto.
VERÔNICA
Enquanto você não conseguir
distinguir a origem dos sons,
você pode aproveitar para sentir
(MAIS...)
18.

VERÔNICA (...cont.)
inveja do que imagina encontrar
no andar de cima. Imagine tudo,
tudo o que desejar
MARCELA
(olhando para o alto)
carro, casa, mulher, filhos,
viagens, quantidades exorbitantes
de dinheiro, bejos roubados,
roupas, um isqueiro zippo. uma
casa de veraneio na praia.
Thiago consegue soltar um som mais alto. Ele começa dançar
seu som. Marcela permanece encantada.
VERÔNICA
Comece por quebrar os espelhos de
sua casa, deixe cair os braços,
olhe vagamente a parede,
esqueça-se. Cante uma só nota,
escute por dentro. Se ouvir algo
como uma paisagem amedontradora,
com fogueiras entre as pedras,
com silhuetas semi-nuas de
cócoras, acho que está no bom
caminho, ou se ouvir um rio com
barcos pintados de amarelo e
preto, ou ainda se você ouvir um
sabor do pão, um toque de dedos,
uma sombra de cavalo... Depois,
compre uma casaca e deixe
Schumann em paz.
MARCELA
E então, você já pode se dizer
apaixonada. Pode passar a
escrever cartas sem remetentes,
e-mails imaginários, poemas sem
sentido. É também a hora de
começar a imaginar encontros,
ensaiar diálogos, suspirar
enquanto senta na privada, cantar
enquanto toma banho, chorar
enquanto ouve músicas, olhar o
teto antes de dormir, interromper
a leitura, deixar o livro cair
sobre o peito e imaginar os
beijos. É tempo de quebrar
pingüins e de olhar as nuvens.
VERÔNICA
Depois de alguns dias de
observação, já é possível
elaborar um pequeno relatório.
19.

CENA 9
THIAGO
Relatório diário. Todo dia acorde
na mesma hora. Defeque pela manhã
para que as toxinas do seu
intestino não fiquem fermentando
e que não sejam absorvidas pelo
seu corpo.
Escove os dentes. Vá ao trabalho.
Sempre pelo mesmo caminho. E
sempre para o mesmo trabalho.
Seja simpático com as pessoas.
Cumpra seus deveres. Atenda os
telefones, faça as ligações que
precisam ser feitas. Pague as
contas que precisam ser pagas. Vá
almoçar com seus amigos, seja
simpático, prepare bons assuntos.
Chegue à noite em casa, fale
sempre com a sua esposa, passe a
mão sobre os animais
domésticos, sente-se, assista
televisão e durma.
MARCELA
RG, CPF, tem o ECPF agora, que vc
pode tirar no correio, por 29,90.
Conta corrente, seguro de vida e
plano de saúde. A certidão de
nascimento, ela só é útil até a
certidão de casamento, depois que
você se casar a certidão de
nascimento não vale mais. A
certidão de casamento substitui a
certidão de nascimento.

CENA 10
Marcela vai olhar o bolo, pra ter certeza de que não vai
queimar. Vídeo stop-motion. Simultaneamente, Marcela ao
microfone, fala bem baixo o texto "A tarefa de...", de
Cortázar.
THIAGO
Manhã, (dia de hoje) de 2008.
Thiago realiza as ações.
VERÔNICA
Acorde oito horas após o início
de seu sono. Leve a mão até o
despertador e o programe mais dez
minutos. E mais dez minutos.
Depois deste período necessário
de protelação, levante-se da cama
(MAIS...)
20.

VERÔNICA (...cont.)
e prepare-se para a primeira
refeição do dia.
Thiago abre a geladeira. Pega leite e ovos.
Cena "Leite Matinal". Cena "Jornal"- Verônica narra,
enquanto Thiago executa de forma patética as ações. No
final, ele guarda um recorte de jornal no bolso. Marcela
assume a narração. Thiago vai descer as escadas, Verônica
vai subir. Bem devagar. Eles se encontram.
MARCELA
O primeiro encontro do dia deve
ser agradável. Este encontro
geralmente deve acontecer no
elevador. Em caso de problemas
com o elevador - síndrome
bastante comum em nossos tempos -
pode-se improvisar com uma
escada. Os dois devem sentir uma
pequena falta de ar, é provável
que os olhos quase cheguem a
marejar, mas deve-se evitar isso:
olhando o chão, ou coçando
suavemente o nariz. Um pequeno
sorriso e é a hora de iniciar um
diálogo.
THIAGO
Bom dia!
VERÔNICA
Bom dia! Eu te liguei outro dia.
THIAGO
Desculpa...
VERÔNICA
Pra perguntar do cupuaçu e do
maracujá...
THIAGO
Ah! Você é do 612!
VERÔNICA
E você do 712!
THIAGO
É.
Silêncio.
THIAGO
Bom dia, então.
21.

VERÔNICA
Bom dia!
Thiago desce as escadas. Verônica sobe. Lá no alto,
Verônica.
MARCELA
Engula suavemente a frustração do
primeiro encontro e siga
normalmente sua vida social.
Ela caminha até Thiago. Verônica começa a narrar. Marcela
e Thiago executam ações narradas.
VERÔNICA
Um. Puxe conversa no ônibus.
THIAGO
Eu assisti um documentário sobre
formigas outra dia... A rainha...
Marcela ignora com um fone de ouvido.
VERÔNICA
Dois. Não puxe conversa no
ônibus. Três. Não espirre em
locais fechados.
Marcela espirra, constrangida. Sorri.
MARCELA
Desculpe.
THIAGO
Eu assisti um documentário sobre
formigas outro dia...
Marcela tirando o fone.
MARCELA
O quê?
THIAGO
Eu assisti um documentário.
Formigas.
MARCELA
Ah, legal!
THIAGO
Você tem telefone?
VERÔNICA
Quatro. Não se misturar por
dentro a partir do bom dia dos
outros. Por exemplo, em uma
padaria, você não sabe se pede
(MAIS...)
22.

VERÔNICA (...cont.)
pãezinhos sorrindo, se pede tudo
de uma vez, ou se pede pães
moreninhos de uma maneira
simpática, se pede de um jeito
que eu não vá parecer muito
arrogante. E enquanto você pensa,
a fila já andou inteira e é a sua
vez de pedir pãezinhos. E você
sabe que o padeiro pode te
desmoronar.
MARCELA
8539-1234
THIAGO
Er... Mais alguma coisa?
MARCELA
Dois pães. Moreninhos, por favor.
VERÔNICA
Cinco. Não se deixe levar por
intromissões amarelas. Seis. Não
feche a porta a desconhecidos.
Sete. Tenha coragem. Oito...
O telefone de Verônica toca.
VERÔNICA
Alô?
MARCELA
Você me deu seu telefone. Achei
que eu podia ligar.
VERÔNICA
Ah, oi. Quem é mesmo?
MARCELA
Você dá seu telefone pra muita
gente?
VERÔNICA
Não, é que... Ah, do 712, né?
MARCELA
É.
THIAGO
Telefone é um aparelho
eletroacústico que permite a
transformação, no ponto
transmissor, de energia acústica
em energia elétrica e, no ponto
receptor, teremos a transformação
da energia elétrica em acústica,
(MAIS...)
23.

THIAGO (...cont.)
permitindo desta forma a troca de
informações entre dois ou mais
assinantes. É lógico que, para
haver êxito nessa comunicação, é
preciso que haja interesse das
duas partes. Esse interesse pode
ser resultado de uma notícia
ruim...
VERÔNICA
Já deram o resultado... o
veterinário... está me ouvindo?
Parece que é aquilo mesmo.
MARCELA
...
VERÔNICA
Então, é aquilo mesmo. Você está
me ouvindo?
THIAGO
Momentos muito difíceis.
VERÔNICA
Faz algum sinal. Você está me
ouvindo? Solta algum som.
Marcela solta um pequeno choro.
VERÔNICA
Você está chorando?
Marcela chora.
VERÔNICA
Eu nem falei o que é... Seu
cachorro morreu.
THIAGO
Outros telefonemas bastante
comuns são os de fim de
relacionamento.
Toca o telefone de Thiago. Marcela permanece chorando ao
telefone.
THIAGO
Alô.
VERÔNICA
Oi.
THIAGO
Onde você está?
24.

VERÔNICA
Em casa.
THIAGO
Que voz estranha é essa?
VERÔNICA
Eu estou... eu acabei de acordar.
THIAGO
Acabou de acordar? Você saiu
ontem...
VERÔNICA
Saí.
THIAGO
Saiu?
VERÔNICA
Eu te falei, não lembra?
THIAGO
Não. Bom, estou te ligando
porque... eu estou puto com você.
VERÔNICA
er, o... o... puto com o quê?
THIAGO
Você gaguejou?
VERÔNICA
N..n... não. Pára de bobagem
MARCELA
Para se identificar uma mentira,
observe se a pessoa pega no nariz
enquanto diz algo, ou se ela toca
ou esconde a boca, ou se ela coça
com o dedo a parte de trás do
pescoço pelo lado direito, se ela
pisca mais e mais rápido que o
normal, se os pés ficam se
mexendo lateralmente, se as mãos
não ficam à mostra, se ela
gagueja antes de responder.
THIAGO
Tem alguém do seu lado.
Verônica olha o músico.
VERÔNICA
Do que você está falando?
25.

THIAGO
Quem é que está do seu lado?
Passe o telefone pra ele. Você
não está na sua casa... Eu sei.
Você não está na bosta da sua
casa. Deixa eu falar com a sua
mãe. Eu não acredito que você fez
isso comigo!
VERÔNICA
Tá bom. Você quer saber?
Verônica entrega o telefone para o músico. Que toca o
saxofone no telefone. Thiago ouve, como se entendesse que
é o fim do relacionamento.
VERÔNICA
Mas as primeiras ligações são
sempre as mais impactantes,
porque sempre são acompanhadas de
um pouco de suor e silêncios
constrangedores.
MARCELA
Você dá seu telefone pra muita
gente?
THIAGO
Não... é que eu acabei de acabar
um relacionamento e...
MARCELA
Ah, entendi...
THIAGO
Você é do 612, não é?
MARCELA
Sou.
Silêncio.
VERÔNICA
Primeiro silêncio constrangedor.
É hora de retomar o motivo da
ligação.
MARCELA
Então, eu estou te ligando...
lembra do cupuaçu, do maracujá...
THIAGO
Lembro.
MARCELA
Então... eu comprei maracujá no
final das contas.
26.

THIAGO
Que bom! Eu prefiro maracujá, não
gosto muito de cupuaçu.
MARCELA
Sério?
THIAGO
Sério.
MARCELA
Ah... é que eu comprei cupuaçu
também. Ia ser surpresa.
Silêncio.
VERÔNICA
Segundo silêncio constrangedor.
Etapa perfeita para mudança
súbita de assunto.
THIAGO
Eu te vi outro dia no elevador.
Pela câmera, sabe?
MARCELA
Sei. Eu vou dar o cupuaçu pra
minha mãe. Ela gosta dessas
coisas exóticas.
VERÔNICA
Aproveite o gancho e não
incentive a retomada do assunto.
THIAGO
Sua mãe mora com você?
MARCELA
Não, ela mora em Taubaté.
THIAGO
A minha mora em Piracicaba.
MARCELA
Legal.
Silêncio
VERÔNICA
É hora de encerrar a conversa.
MARCELA
Então, eu queria te entregar. O
maracujá.
27.

THIAGO
Ah, tá... Legal... vamos marcar.
MARCELA
Vamos.
THIAGO
Pode ser amanhã.
MARCELA
Pode. A gente pode ir ver as
nuvens.
THIAGO
(silêncio)
Er... tá bom.

CENA 11
Papel de parede de nuvens.
VERÔNICA
Você sabia que a gente pode
conhecer uma pessoa pelo que ela
enxerga nas nuvens?
MARCELA
Ah, é?
Marcela e Verônica fazem a "Cena do Urso nas Nuvens". No
final da cena:
MARCELA
Tchau, urso.
VERÔNICA
Gostei muito de te conhecer.
MARCELA
Uma experiência, né?
VERÔNICA
Uma experiência.

CENA 12
Thiago, com a ajuda da projeção (as linhas que formavam
nuvens, formam um gráfico), explica o gráfico da vida, com
a relação de experiência e tempo.
28.

CENA 13
VERÔNICA
(indo até a geladeira,
quebrando um dos ovos. Ela
deixa a geladeira aberta.)
Experiência barra trauma de
infância número 1. Meu primeiro
beijo foi só aos 17 anos.
MARCELA
Você sabe onde fica o osso
externo? Simples, é aquele bem
grande situado no meio do peito.
Sabia que ele é articulado?
Comece fazendo movimentos
vigorosos com ambos os ombros
para dentro e para fora de modo a
esquentar o coração para um
abraço. Então, pense em Gandhi ou
em Madre Teresa de Caucutá ou em
qualquer outro humanista que te
amou sem você saber.
Pronto. Agora use a percepção
para compreender o movimento do
ser ou coisa escolhida, como o
fremir de uma borboleta, quando
se descobre que ela treme de
felicidade e por necessidade de
flutuação. Após esse
procedimento, impossível não
amar.
Marcela e Thiago, pateticamente, permanecem fazendo o
movimentos vigorosos com o peito. Clímax.
MARCELA
(ainda fazendo os mesmos
movimentos freneticamente)
Eu sei que vai parecer bobagem,
você pode me achar ridícula, mas
eu não consigo esconder mais nada
de você.
THIAGO
(mais freneticamente)
Eu quero saber tudo sobre você.
VERÔNICA
O chamado diencéfalo ou cérebro
primitivo, comum a todos os
mamíferos, intervém, através do
hipotálamo, no desejo, no
interesse sexual e também recolhe
as informações que chegam do
exterior e dos hormônios,
controlando-os e dando as
(MAIS...)
29.

VERÔNICA (...cont.)
respostas da excitação sexual,
ejaculação, sensações de prazer e
regulando as respostas emocionais
e afetivas no comportamento
sexual.O sistema límbico
discrimina e seleciona os
estímulos, reconhecendo os sinais
de saciedade e inibindo o
comportamento sexual. A nossa
sexualidade apresenta-se não
apenas em nível dos
estímulos,como também na
participação muito importante da
emoção e na divisão de segredos.
Thiago e Marcela páram. Ele a pega no colo.
MARCELA
Vou te contar: eu tenho muito
medo de ser enterrada viva. Acho
que é porque eu desmaio muito. Já
te contei que eu desmaio? Eu
tenho a impressão de que não vou
acordar, porque eu acordo e não
lembro o momento que eu desmaiei.
Eu acordo e está todo mundo me
olhando com uma cara de
assustado, como se eu tivesse
morrido por um instante, porque
pra mim aquele momento não teve
utilidade , é como se eu tivesse,
..é como se eu tivesse...é como
se eu tivesse...eu tenho medo de
um dia desses apagar, como toda
vez que eu apago, mas não acordar
mais, as pessoas chegarem na
confusão e acharem que eu estou
morta e organizarem um enterro.
Thiago coloca Marcela dentro da geladeira. Entre os ovos.
Marcela continua falando, fechada. Thiago começa a falar
sobre o som abafado da voz de Marcela.
THIAGO
Existe um limite de tempo para
casais sentirem os arroubos da
paixão. Esse período deve durar
de 18 a 30 meses. Dopamina,
feniletilamina e ocitocina. Estes
produtos químicos são todos
relativamente comuns no corpo
humano, mas são encontrados
juntos apenas durante as fases
iniciais do flerte. Ainda assim,
com o tempo, o organismo vai se
tornando resistente aos seus
(MAIS...)
30.

THIAGO (...cont.)
efeitos - e toda a loucura da
paixão desvanece gradualmente - a
fase de atração não dura para
sempre. O casal, então, se vê
frente a uma dicotomia: ou se
separa ou habitua-se a
manifestações mais brandas de
amor - companheirismo, afeto e
tolerância, e permanece junto.
Verônica começa a brigar com o músico. Ele responde com o
saxofone e ela entende o que é dito. Estrutura lógica de
um diálogo. As linhas projetadas acompanham o diálogo. Os
dois brigam muito.
VERÔNICA
Eu odeio quando você me trata
assim!
Saxofone
VERÔNICA
Pára! Por que tem que colocar
minha mãe no meio da história?
Saxofone
VERÔNICA
É que a sua mãe é diferente. Você
sabe como ela me tratou aquele
dia na casa de praia? Casa de
praia é pra ser com as coisas da
gente, que a gente escolheu...
Saxofone
VERÔNICA
Ah, é? Repete isso!
Saxofone
VERÔNICA
(quase chorando)
Eu não acredito que você repetiu.
A gente perdeu o respeito um pelo
outro. Não dá mais.

CENA 14
Marcela, de dentro da geladeira.
Imagem projetada de Marcela entre os ovos. Verônica e
Thiago realizam a cena de despedida, enquanto Marcela
narra de dentro da geladeira.
31.

MARCELA
(texto da cena de despedida)
Ao final da cena, THIAGO vai até a geladeira. VERÔNICA
permanece chorando. Abre a geladeira. MARCELA lá dentro,
segurando um balão que parece um grande ovo. Ela o trata
como um ovo. Thiago pega um dos ovos de dentro da
geladeira.
THIAGO
Experiência barra trauma de
infância número dois. Quando eu
era pequena, e morava em Nova
Hamburgo, meu pai tinha uma
fábrica de calçados. E era ótimo
ele ter uma fábrica de calçados,
porque ele ia fazer calçados
macios pras pessoas esperarem
confortavelmente. E então, ele
queria divulgar em toda a região.
Pra cidade toda, porque era a
maior fábrica de calçados. De
Nova Hamburgo. E então ele fez um
outdoor...
Verônica chora.
MARCELA
(segurando o ovo-balão)
Sempre que eu penso nos pingüins
me dá uma vontade de chorar.
Porque (choro) ele é uma ave não
voadora, sabe? Sphenicidae - aves
não voadoras (chora muito). E aí
se eu penso nos pingüins, começa
a me dar um nó no pescoço. E as
minhas costelas (chora) se
contraem assim, porque o pingüim
tem asas atrofi... (chora)
atrofiadas. (chora) E o macho
fica cuidando do ovo enquanto a
fêmea... (chora convulsivamente).
THIAGO
Meu pai fez um outdoor e escolheu
a minha irmã. E era bonito. Minha
irmã estava sentada assim, de
lado, com a perna esticada. Era
bonito.
MARCELA
(vai se sentando sobre o
balão-ovo, como se fosse
chocá-lo)
E é tão gelado (chora) que o
filhotinho... (fala
incompreensível, entre lágrimas)
32.

THIAGO
E eu fiquei um pouco magoada. Com
meu pai, não com minha irmã. E aí
eu inventei um modelo de sapato
com um lacinho em cima, sabe? Nem
era moda e eu coloquei um lacinho
dourado assim, no alto do sapato.
E meu pai colocou o nome da minha
irmã no modelo de sapato com
lacinho.
MARCELA
E tem os pingüins de magalhães,
que vivem no Estreito de
Magalhães e ninguém consegue
chegar lá e eles... eles... fazem
o ninho (incompreensível entre as
lágrimas)
THIAGO
Eu fiquei um pouco magoada. Com
minha irmã, não com meu pai.

CENA 15
MARCELA está chocando o ovo-balão. THIAGO quebra o ovo que
tinha na mão e se põe a chorar. VERÔNICA continua
chorando. Este choro vai se transformando. A luz se
modifica. O músico começa a tocar. Eles choram
convulsivamente, de forma expressionista.
As linhas na projeção vão formando esquemas de instruções,
enquanto VERÔNICA e THIAGO vão até a geladeira e pegam
ovos, e os quebram. Eles choram de forma variada (maratona
do choro). O que sai dos ovos é sempre AZUL. Na projeção,
gráficos do "sistema lacrimal".
Enquanto THIAGO E VERÔNICA choram e quebram ovos:
MARCELA
(microfone, sobre o ovo)
Deixando de lado os motivos,
atenhamo-nos à maneira correta de
chorar, entendendo por isto um
choro que não penetre no
escândalo, que não insulte o
sorriso com sua semelhança
desajeitada e paralela. O choro
médio ou comum consiste numa
contração geral do rosto e um som
espasmódico acompanhado de
lágrimas e muco, este no fim,
pois o choro acaba no momento em
que a gente se assoa
energicamente.
Para chorar, dirija a imaginação
(MAIS...)
33.

MARCELA (...cont.)
a você mesmo, e se isto lhe for
impossível por ter adquirido o
hábito de acreditar no mundo
exterior, pense num pingüim
coberto de formigas e nesses
golfos do estreito de Magalhães
nos quais não entra ninguém,
nunca.
Quando o choro chegar, você
cobrirá o rosto com delicadeza,
usando ambas as mãos com a palma
para dentro. As crianças chorarão
esfregando a manga do casaco na
cara, e de preferência num canto
do quarto. Duração média do
choro, três minutos.
Simultaneamente VERÔNICA e THIAGO, a cada ovo quebrado,
dizem apenas para uma pessoa da platéia, um trauma de
infância.
VERÔNICA
Sexta série, jogos do colégio.
Ginásio poliesportivo lotado. Eu
estava no último degrau com a
torcida organizada da minha
classe. Aparece minha mãe lé
embaixo e me chama. Eu começo a
descer, viro o pé e começo a
rolar e dar giros mortais até
chegar no andar que minha mãe se
encontrava. Silêncio de três
segundos no ginásio interio.
Minha mãe, constrangida, não mais
me espera no último degrau, e sim
na porta do estádio.
THIAGO
(outros traumas de infância
a serem ditos para um único
espectador)
VERÔNICA E THIAGO sugerem que o espectador também pode
quebrar ovos. A quebra de ovos atinge um clímax. O músico
também. Páram. Silêncio.

CENA 16
THIAGO
(microfone, descrevendo as
ações de Marcela)
Após o final de um
relacionamento, após muitas
sessões de terapia revirando
traumas de infância, muitas
(MAIS...)
34.

THIAGO (...cont.)
lágrimas derramadas dentro do
pote de sorvete, é hora de se
acostumar ao vazio. Ao
nada.Afinal, foi uma experiência.
MARCELA
Foi uma experiência.
VERÔNICA
(microfone, descrevendo as
ações de Marcela)
Passe uma semana inteira andando
pelas ruas gramadas levando
consigo um balão bem cheio.
Mantenha as suas atividades
normais e diárias, sem a mínima
alteração: os percursos matinais,
o alto e convincente "Boa Noite!"
MARCELA
Boa noite!
VERÔNICA
...distribuído à platéia e aos
conhecidos do bairro, os mesmos
gestos necessários, a mesma forma
discreta de se vestir.
THIAGO
Nada em você mude, desde o
momento em que se levantar até a
hora de se deitar, exceto uma
coisa: entre o polegar e o
indicador da mão direita, segure
com a precisão de um relojoeiro o
fio de um balão bem cheio. E não
o largue durante todo o dia. Até
mesmo quando a natureza interior
o solicitar, entre no banheiro
com o balão.
VERÔNICA
E com toda delicadeza, enrole o
fio na maçaneta da porta e não
resista à tentação de dizer
carinhosamente: espera um pouco.
MARCELA
Espera um pouco.
THIAGO
Dar uma atenção invulgar, mesmo
que só por alguns dias, a um
objeto como esse é um exercício
fundamental para enxergar o mundo
com outros olhos, após um trauma.
(MAIS...)
35.

THIAGO (...cont.)
No fundo, o balão é um sistema
simples de apontar para o nada.
VERÔNICA
Este sistema, a que vulgarmente
se chama balão, no fundo rodeia
com uma fina camada de látex uma
pequeníssima parte da totalidade
de ar do mundo.
THIAGO
Sem essa camada colorida, aquele
ar, agora como que sublinhado e
salientando-se do resto da
atmosfera, passaria completamente
despercebido.Escolha bem e com
cuidado, uma cor para o seu
balão. Atribua uma cor ao
insignificante: como se dissesse,
hoje o insignificante vai de
azul.
MARCELA
Hoje o insignificante se
fantasiou de ovo.
Marcela estoura o balão. Dentro dele, há um pequeno
pingüim de porcelana.

CENA 17
Verônica pega o pingüim e sobe as escadarias.
VERÔNICA
Eu vim te devolver isso.
THIAGO
Ah, não precisava.
MARCELA
(microfone)
O primeiro encontro após o fim de
um relacionamento deve parecer
casual. Utilize qualquer objeto
relevante à sua vida-a-dois como
pretexto para o reencontro.
VERÔNICA
Eu faço questão. Você gostava
tanto.
MARCELA
Utilize expressões ambíguas,
deixando sempre como subtexto o
relacionamento de vocês.
36.

THIAGO
Eu ainda gosto.
VERÔNICA
Então, é seu. Toma.
THIAGO
Você se lembra?
VERÔNICA
Lembro.
MARCELA
Não deixe que a ansiedade
atrapalhe o reencontro. Respire
fundo e evite piscar para que as
lágrimas permaneçam no globo
ocular.
THIAGO
Lembra do quê?
VERÔNICA
Ah, é que eu achei que você ia
falar do dia em que...
THIAGO
Era isso mesmo.
VERÔNICA
Era?
THIAGO
Era.
Silêncio.
MARCELA
Silêncios constrangedores, nesta
situação, não são bem-vindos, já
que trarão lembranças não
agradáveis dos momentos de tédio
entre vocês.
VERÔNICA
A gente não consegue mais
conversar direito...
THIAGO
Você sempre reclamando da gente.
VERÔNICA
Toma.
THIAGO
Obrigado. Mas esse não é o meu
pingüim...
37.

VERÔNICA
É que o seu, eu quebrei. Quer
dizer, quebrou. Caiu da geladeira
e... eu comprei outro, é bem
parecido.
THIAGO
Obrigado, mas eu não quero outro.
VERÔNICA
Mas é quase igual.
THIAGO
Quase, quase... você não muda,
né?
MARCELA
Momento ideal para encerrar o
reencontro.
VERÔNICA
A gente se fala, então. Até.
THIAGO
Até.
Os dois se afastam. Thiago coloca o pingüim sobre a
geladeira.
MARCELA
Não é hora de evitar a pieguice e
o otimismo. Saiba, tenha a
certeza, acredite que há um novo
encontro à sua espera.
VERÔNICA
Isso é apenas temporário. Isso é
apenas temporário.

CENA 18
Thiago se aproxima de alguém da platéia. Trocam olhares.
Os dois - Thiago e público - estão constrangidos. Thiago
puxa conversa com a pessoa da platéia.
THIAGO
Você prefere maracujá ou cupuaçu?
Texto improvisado de acordo com as respostas da platéia.
38.

CENA 19
VERÔNICA
Esqueça-se. Coloque fones de
ouvidos. De preferência,
esteja em um carro em uma
rodovia livre.Apóie-se no
volante, sinta a janela aberta,
deixe cair a cabeça pra trás e
cante.
Marcela e Verônica, com fones de ouvidos, ouvem em
silêncio. Felizes, movimentam-se como se dançassem
discretamente a música que só elas ouvem. Dublam alguns
trechos. De forma inesperada, cantam um ou outro verso bem
alto. Marcela ouve uma música sertaneja. Verônica, uma
música do Legião Urbana.
Thiago continua sua conversa individual com alguém da
platéia. Thiago começa a dançar, cantando trechos das
respostas dada pelo espectador. Eles parecem felizes.

CENA 20
Silêncio grande.
VERÔNICA
Sugestões para um recomeço. Se
desconfiar que está cometendo um
erro, erre um pouco mais.
Durma de sapatos.
Quando chorar, não se esqueça,
experimente as próprias lágrimas
e secreções nasaias.
MARCELA
Encontre um mendigo, de
preferência com algum distúrbio
mental causado pela solidão e
pela convivência com os cães e
lhe faça um convite para tomar
algo em algum lugar social da
cidade, como se ele fosse seu
amigo de colégio, desses que você
nunca mais encontrou.
Ou então, aja com naturalidade
perante algum problema bancário,
em frente ao gerente. Siga seus
instintos. Diga a ele aos berros,
segurando seu colarinho: “Por que
eu?” enquanto mastiga a borracha
encontrada em sua mesa e que foi
parar sem querer na sua boca.
Pode-se chorar por tomar um fora
do quinquagésimo amante,
soluçando com as mãos no peito à
(MAIS...)
39.

MARCELA (...cont.)
luz da lua, ao som de alguma
dupla sertaneja.
Ou passar dias em estado febril
pensando no sentido da vida em
relação à descoberta de uma nova
estrela...
THIAGO
Sugestões para um fim. Comece se
esquecendo de todas as
instruções. Sempre que fizer
alguma coisa, lembre-se de que
não há como instruir alguém a dar
instruções, logo quem inventou as
instruções não deve ter sido
instruído adequadamente a dar
instruções. Lembre-se da
inutilidade de uma instrução
diante da experiência. Instruir,
dar uma instrução faz do
instrutor a própria instrução, já
que não fomos instruídos a
receber instruções.
VERÔNICA
Clec. A peça está quase no fim.

CENA 21
MARCELA
Falta pouco, falta pouco.
THIAGO
Eu não vou suportar os aplausos.
MARCELA
Quem disse que vai haver
aplausos? Está quase.
THIAGO
Quase, quase. Você não muda... Já
chega. Vamos deixá-los ir embora.
Já viram demais, parecem
cansados.
VERÔNICA
Últimas palavras? Temos mais três
minutos
THIAGO
Estou pensando apenas em
respirar. Já que é o fim da peça.
Três minutos para eu me preparar.
Dois. Não dá tempo de fazer nada.
Dois minutos. Não dá mais tempo
(MAIS...)
40.

THIAGO (...cont.)
de fazer nada. Qualquer atitude
de emergência não resolveria. Uma
ligação que eu queria ter feito,
uma janela que eu gostaria de ter
quebrado. Não tem nada pra
fazer.Queria poder pensar melhor
nas palavras que eu estou falando
pra ser uma última fala poética,
mas acho que não importa. Eu
estou falando só pra poder me
organizar e me concentrar. Porque
são muitas coisas. Estou olhando
o céu azul de São Paulo, uma
nuvem branca, pra onde eu
possivelmente vou. Pelo menos era
assim que eu pensava quando era
criança. Só quero dizer que eu,
pelo menos nesse tempo em que
passamos juntos...(para a pessoa
com quem conversou na platéia)
Nesse tempo, eu fui, era, seria.
Não vou me esquecer do seu
maracujá/cupuaçu.
Verônica pega o pinguim na geladeira. E senta-se no alto
da escada.
VERÔNICA
No primeiro segundo ela percebe
que precisa se preparar para o
caminho. No quinto segundo ela
constata que se esqueceu do que
ia fazer. No décimo segundo ela
decide que o momento é triste
demais para ela chorar. Vai um
pouco pra frente, recua. Atrás,
o precipício. No décimo segundo,
lembra da vida fugaz do ovo de
páscoa e sente um péssimo gosto
na boca. Nos últimos
segundos,mais nada. Isso é apenas
temporário. Isso é apenas
temporário.
MARCELA
Eu sei que vai parecer bobagem,
vocês podem me achar ridícula,
mas eu vou contar: eu estava
fazendo esse bolo pra vocês. Não
vai dar tempo de esperar o bolo
ficar pronto. Um bolo azul tão
bonito. A peça vai acabar, eu não
vou estar mais aqui. Mas vocês
podem comer o bolo. E comam com
vontade. Saboreando cada
pedacinho, esquecendo as
(MAIS...)
41.

MARCELA (...cont.)
instruções de etiqueta e
colocando grandes pedaços,
pedaços enormes de uma só vez na
boca. Respirando ruidosamente
antes de engolir, como se fosse
um grande esforço. Levante o
pescoço pro bolo deslizar mais
suavemente pela garganta, como
fazem os pingüins quando comem
peixinhos. E então, quando
sentirem o gosto azul no
estômago, soltem um sonoro
arroto. Destes de satisfação e
que são prazerosamente nojentos.
E, se não for pedir muito, vocês
podem se lembrar de mim enquanto
mastigam. Eu ia gostar disso.
Os três atores realizam as mesmas ações estranhas do
início. Dessa vez, elas fazem sentido com o que o acabou
de ser dito por cada um deles. Eles repetem a partitura de
movimentos que fizeram enquanto falavam. A luz vai se
apagando, fazendo com os atores desapareçam. Fica apenas a
luz do forno acesa. Vemos o bolo azul quase pronto dentro
dele. O músico vai encerrando sua música.

B. EPÍLOGO OPCIONAL
VERÔNICA
(microfone)
Assim que o espetáculo acabar, a
platéia deve respirar uma última
vez. Não haverá blackout. Os
aplausos devem ser espontâneos e
educados. Mesmo os que não tenham
gostado do que foi visto e dito,
deveriam, por educação, bater
palmas, mas num ritmo mais lento
e com pouca vontade. Os atores
permanecerão imóveis um segundo
e, então, quando ouvirem os
aplausos (eles contam com a ajuda
dos familiares presentes) se
levantarão e agradecerão
formalmente. A platéia somente
terá certeza de que é o fim,
quando isso lhe for dito. Assim,
uma atriz no escuro dá as últimas
instruções, avisa que o bolo está
pronto e decreta o... FIM.
O bolo está pronto. O forno apita. A platéia pode comê-lo.

Você também pode gostar