Você está na página 1de 19

I.

PRÓLOGO

(Legião de atores e público juntos, ao redor da fogueira. Cada parágrafo, uma voz)

LEGIÃO-

Antes, éramos Um.

Antes de nos separarmos, havia o lugar. Antes, havia deuses. Antes havia o homem. E então, houve o
tempo. E então, a história. E então nós.

Nós somos o Homem a quem nada aconteceu. O cento e quinze trilionésimo oitocentos e quarenta e seis
milionésimo cento e trinta e sete milésimo quadragésimo terceiro segundo primeiro homem humano.

Eu sou uma legião: eu sou gisele, antônio, leonardo, jean, joão, gustavo, ana, pedro, ulisses, deucalião,
gabriel, nilson, lourdes, pirra, augusta, evaristo, ió, thaís, luiz, heracles, prometeu. Nesse lugar, enquanto
você nos ouve, estão todos os que já fui -

fomos -

ou que já quis-

quisemos-

ser, mesmo sem saber. Eu, a legião: nós. Nós somos, agora, o verbo que nos une.

E antes desse verbo, há o túmulo de pedra de meu pai, onde está escrito: “aqui repousa o homem sem as
coisas, tudo é sem mim.” E antes, o túmulo de minha mãe com as palavras em granito: “agora, recito
todos os tempos aos meus ossos. A terra vista pelo avesso.” E antes, quando o túmulo de minha avó teve
que ser cavado, foram encontrados saindo por debaixo nada além dos oitenta e seis pregos dos sapatos de
meu avô cobertos pelas pedras. E antes, havia o epitáfio de meu avô: “Tudo o que escreve o homem pelo
homem é falso, inclusive essa inscrição.” E antes, a frase no túmulo da mulher que me criou e que ainda
reconheço no sabor de tudo o que cozinho: “essa mulher morreu quando não havia há muito tempo
ninguém dentro.” E antes, a cova de meus bisavós. E antes a sepultura dos pais de meus bisavós. E antes,
a dos seus avós. E antes, a dos netos de seus tataravós. E antes os epitáfios de suas amantes e escravos. E
antes, os túmulos dos primos e sobrinhos dos bisavós daqueles que nunca conheci. E antes e antes e antes
e antes as pedras e antes os ossos e antes a carne.

E antes de mim, há a legião que corre nas minhas veias: porque aqui passa a voz da avó proibindo de
mostrar as vergonhas ao fogo; porque aqui ainda corre a cozinha de minha mãe e a pedra do fogão onde o
fogo crepitava o seu amor. Por essas veias ainda corre a violência silenciosa do meu pai e as palavras
miúdas de meu avô. E pelas veias de meus avós, as histórias inventadas por seus pais ao redor da
fogueira. E sobre toda a pele dos meus bisavós, o fogo que clareava suas cavernas e as árvores que
queimavam suas mulheres. E ainda nas minhas veias, antes do fogo, está aquele que enxerga antes, o
guardião que sabe das coisas antes que elas aconteçam, aquele que se lembra do futuro e por isso já não
tem fígado. É essa história que eu quero lhes contar.

1
Eu estou tentando me lembrar, estou tentando me lembrar da história que eu quero contar. Eu sei que há
um precipício e há um castigo e há fogo e há separação. Talvez essa seja uma história de separações.

Antes de começar eu estou tentando me lembrar. Enquanto estou aqui, tentando lembrar da história que
preciso contar, centenas de pensamentos vêm à minha cabeça... por alguma razão, estou me lembrando do
dia seguinte ao enterro de minha mãe, quando encontrei sua caixa de convites de casamento e pensei que
não era justo que as coisas durassem mais que as pessoas.

Agora, não sei bem porquê, estou me lembrando do enterro do meu pai e de que tocavam canções
gregas.Você conhece a sensação de quando nas situações mais trágicas da vida, além do sofrimento e do
desespero, de repente nos tornamos lúcidos, indiferentes, quase animados? Por exemplo, quando
enterramos nosso ente mais querido e de súbito nos damos conta de que em casa esquecemos aberta a
porta da geladeira e o cachorro pode comer a carne fria preparada para um banquete? E, no momento da
cantoria sobre o caixão, de repente começamos a tomar providências, aos cochichos e com muita calma,
acerca do problema da geladeira? Porque esse tipo de coisa também nos habita, vivemos entre margens e
distâncias assim infinitas. Desde o primeiro banquete que nos separou.

Antes, eu preciso retornar ao princípio. Há duas horas atrás, onde você estava? Com quem? Você já sabia
que viria aqui, escutar a nossa história? E há duas semanas exatamente nesse horário? E na véspera do
ano novo de 1999? Você consegue se lembrar do que jurou nesse dia? Você consegue se lembrar de algo
há onze anos atrás? E da primeira vez que teve vontade de beijar alguém?E do primeiro encontro de um
casamento que já acabou? E quando você tinha seis anos? Que sapatos você usava? Olhe pra trás e
imagine sua mãe segurando sua mão direita, seu pai segurando sua mão esquerda. Agora, apoiados nos
ombros de sua mãe, imagine os pais dela. E sobre os ombros de seu pai, os pais dele. Seus avós. Seis
pessoas atrás de você. E atrás de seus avós, imagine os pais deles. E atrás desses oito estão outros
dezesseis. Em cem anos, quase quatro gerações. Olhe pra trás, no começo do século dezenove: 254
ancestrais. E antes, no começo do século dezoito, há uma fila de 4.096 pessoas e antes, no século
dezessete, cerca de 65 mil pessoas. E essa linha logo vai te ligar a todas as pessoas que já viveram. O que,
é claro, significa que você deve estar ligado a todos o que estão aqui hoje e a ele, o primeiro ladrão que
nos deu o fogo: nós.

Nesse tempo, já quase me lembro de toda a legião sobre meus ombros, sob meus pés. Todos os que
vieram antes. E é preciso começar a contar a história. Começar a tecer o fio que me leva a antes.

(Ouvimos o coro cantar)

Porque a Memória, quinta esposa de Zeus, é a um só tempo fogo e escuridão. E nessa árvore genealógica
que tento reconstruir agora em pensamento, genitores e gerados não são causa e efeito – os pais não são
anteriores aos filhos, mas são determinados e marcados por eles. Tempos compostos de momentos
imóveis, presenças permanentes em si mesmo, e não sucessão. Fluxo e escoamento.

CORO-

Musáon (H)elikoniádon arkhómeth’ aeídein,

2
(h)aí th’ (H)elikónos ékhousin óros méga te zátheón te

kaí te perí krénen ioeidéa pós’ (h)apaloísin

orcheúntai kaí vomón eristhenéos Kroníonos.

II. DIVISÃO DAS CARNES

LEGIÃO-

E assim o tecido de nossa história se desdobra sem “nós”, entre o que eu me lembro e o que invento, para
que a tragédia possa ser contada. A nossa tragédia: aquilo que nos aparta do que já fomos e ainda
queremos ser. Eu ainda me lembro do cheiro da cozinha em que passei a infância. Esse lugar ainda sou
eu, mesmo que ele já não exista. Separada desse lugar, ainda posso ouvir as mesmas canções que
cozinhavam o jantar e ainda sentir o cheiro das mesmas carnes.

Eu sei que a separação é muito pior que o fim. Em duas margens opostas, as coisas continuam a existir e
somos obrigados a respirar o que nos falta – o que se perdeu. Prefiro a morte ao esquecimento.

Por muito tempo, desde que resolvi inventar essa memória, quando desperto de noite e me vem a
recordação dessa história que nunca vivi, nunca pude ver nada além de rastros - uma espécie de lance
luminoso, recortado no meio de trevas indistintas, semelhante aos desenhos que o acender de um fogo de
artifício ou alguma projeção elétrica alumiam e recortam em um edifício mergulhado na noite. Esse
banquete é a primeira imagem que se ilumina.

LEGIÃO (uma voz) - Aqui, a história começa.

Homens e deuses não podem mais pertencer a um mesmo lugar. Na primeira das muitas mortes, Zeus,
após destronar seu pai, Crono, assume o poder e pretende impor aos mortais a supremacia dos deuses,
abolindo a
convivência harmônica que há entre eles e as divindades.
Tudo por culpa dele – nossa -, Prometeu que, a pedido do Tirano –

- como eu queria ainda poder tê-lo comigo –

a pedido do Tirano, em um ritual solene para determinar que partes de um animal sacrificial

nós, o touro –

deviam ser conferidas ao deuses e quais as destinadas aos homens, divide as porções de um boi em dois
montes.

Um monte formado pelos ossos, cobertos com fina camada de gordura; e outro, pelas carnes e entranhas,
escondidas sob a pele do animal.

3
Zeus prefere a primeira.

Ao perceber que o lote por ele escolhido só contém ossos, destinando-se aos homens o melhor, o Tirano
resolve expulsar-nos de sua mesa.

(MURO)

LEGIÃO-

Senhor de sangue humano, você me pegou nesse corpo sem me ter preparado, eu te peço para me espalhar
em silêncio no espaço grande. Tenha piedade do Homem de breve. Senhor, não termina de fazer esse
mundo comendo-o.

CORO/ZEUS-

O homem foi meu maior erro.

LEGIÃO 1/2-

Houve um tempo em que nós e deuses ainda falávamos a mesma língua e lambíamos os mesmos restos.
Hoje, já somos estrangeiros - o que eu disse ou disser só pode ser meu próprio sacrífico diante ou debaixo
desses deuses que não enxergo mais. Com essa muralha, inventamos a fé.

Oferecemos nossa palavra, nosso lamento a um muro. E tentamos, como crianças que somos, acreditar
que um eco nos servirá de resposta. O sacrifício é um idioma para tentarmos falar com o outro lado da
muralha.

Talvez assim eu consiga escalar essa parede e me reencontrar com o que já não conheço: o meu outro, o
duplo.

E talvez possamos voltar a ser um. Como antes eram um Prometeu e Epimeteu.

PÚBLICO 1

III. DIVISÃO DOS DONS (EPIMETEU)

EPIMETEU -

Eu sou Epimeteu. A outra parte de Prometeu. Nada pode nos separar. Apesar dos muros, somos dois que
são um. Nossa pele entrelaçada não poderá nunca ser separada sem deixar cicatrizes. Nossa carne única
terá que ser devorada de uma só vez por um deus tirano. Em nossa veia corre sangue compartilhado. E se
4
fui eu quem quis esconder os ossos do banquete com banha, foram suas mãos que o fizeram. E se foi você
quem imaginou dar de comer aos homens, foram minhas unhas que estriparam o boi. Meu duplo, meu
verso, meu irmão.
E se um de nós for punido, Zeus, é minha boca que ao lamentar sua dor, invocará seu nome.

O tirano, enganado, expulsa a raça humana e a priva do fogo divino,que permite o amadurecimento dos
frutos, o cozimento do alimento.
Abandonados e órfãos do Tirano, é preciso que olhem a terra em que pisam e que descubram em cada
pedra um cadáver que já foram e que ainda os mantém de pé.

Aqui, a avó e suas três saias com a barra sempre úmida. Aqui, o filho que eu não deixei nascer. Aqui, o
único amor de toda a sua vida e nunca mais visto. Aqui, os dedos calejados e os panos que escondiam os
cabelos da mãe. Aqui, a cadela sacrificada no fundo do quintal.

Trabalho perdido procurar evocar o passado. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em
algum objeto material que nós nem suspeitamos.

Como todas as memórias escondidas naquele tecido antigo que minha avó guardava no meio de um livro
de receitas, que se desfez ao se desdobrar.

E se em cada ser que me cerca eu puder encontrar um pouco de Zeus, eu, Epimeteu, nem preciso pensar
antes para fazer o que tem que ser feito: dar a cada ave, a cada rã, a cada alga um pouco do que eu sou.
Por você, Tirano, eu me dou à natureza, tentando te reencontrar no que não posso ser, naquilo que não é
minha imagem nem semelhança.

(a Prometeu, que está do outro lado do muro)

Meu irmão, meu outro eu, Prometeu, esse é meu sacrifício: a natureza. Deixe que eu me distribua à
natureza.

PROMETEU-

Eu o observo, de longe.

EPIMETEU-

A alguns animais, dou a força, mas não a velocidade; aos menores, que sejam velozes, mas fracos. Aos
minúsculos, a dignidade de não serem vistos. Aos gigantescos, o silêncio. Aos machos, o braço que
desbrava. Às fêmeas, o peito que acolhe. Doo as garras que deveriam ser minhas como armas aos felinos,
meu veneno como língua às serpentes, meus cascos como casa aos répteis, meu suor como pele aos
anfíbios, meus dentes como asas aos pássaros, minha cauda como alma aos escorpiões, meus pêlos como
leite aos mamíferos.

Me dando assim, eu diferencio a natureza.

PROMETEU – Meu irmão, Epimeteu, e o homem? Eles ainda estão descalços, ainda estão nus. Eu lhes
dei o melhor pedaço da carne e eles não irão sobreviver por sua imprudência?

EPIMETEU – Eu criei um outro muro, meu irmão?! Entre o homem e a natureza?!

5
PROMETEU- Você se esqueceu daqueles que não são iguais aos deuses, mas semelhantes a nós.

EPIMETEU- Irmão, não foi você que, traindo sua linhagem, afirmou sua própria natureza? Não foi você
que, por amor ao Tirano, assassinou nossos iguais? É preciso lembrar que você lutou contra nossos pais e
irmãos, titãs, para dar o cetro a Zeus?

PROMETEU- É por defender meus iguais que agora vou protegê-lo da ira do Tirano. A você, irmão
gêmeo – igual, idêntico: meu sacrifício. Por sua falha – nossa desmedida -, roubarei o fogo divino e o
esconderei no mais secreto dos abrigos, protegido de todas as barreiras: no homem.

EPIMETEU- Não é por mim seu crime, Prometeu. Mas pelo homem. Mais uma vez, nega sua linhagem.

Eu ficarei atrás de você. Em sua defesa, meu irmão, parte traidora de mim. Em defesa da nossa linhagem,
de nosso jardim. Como fazem as fêmeas.

Eu o observo, de longe.

PÚBLICO 2

III. DIVISÃO DOS DONS (PROMETEU)

PROMETEU–

Eu sou Prometeu. O outra parte de Epimeteu. Ainda não nos separaremos. Apesar dos muros, somos dois
que são um. Eu mesmo costurarei nossas feridas quando nossa pele for separada. Carregaremos na barriga
a prova de que um dia fomos o mesmo. Em nossas artérias, ainda o mesmo sangue. E se fui eu quem
escondeu os ossos do banquete com banha, foram seus olhos que vigiaram a porta. E se foi você quem
desossou o boi, fui eu quem lambeu os restos de seus dedos. Meu duplo, meu verso, meu irmão.
E se um de nós for punido, Tirano, é minha boca que nunca mais vai repetir seu nome.

O tirano, enganado, expulsa a raça humana e a priva do fogo divino,que permite o amadurecimento dos
frutos, o cozimento do alimento.
Abandonados e órfãos do Tirano, é preciso que olhem a terra em que pisam e que descubram em cada
pedra um cadáver que já foram e que ainda os mantém de pé.

Aqui, o avô e suas botas sempre úmidas. Aqui, o filho que ela não deixou nascer. Aqui, a mulher que lhe
deu filhos. Aqui, as filhas que lhe deram netos. Aqui, os dedos calejados e o resto da enxada do pai. Aqui,
o cavalo sacrificado no curral.

Trabalho perdido procurar evocar o passado. Está ele oculto, fora de seu domínio e de seu alcance, em
algum objeto material que nós nem suspeitamos.

Como todas as memórias escondidas naquele canivete gasto que meu avô guardava no bolso da caça, que
nunca mais pôde ser aberto pela ferrugem.

É só no homem em que eu posso encontrar o que eu fui ou o que eu posso ser. O homem, criado à minha
imagem e à minha semelhança. Mesmo que mais tarde, eles olhem para o céu e clamem por deuses, é a

6
mim que eles verão em seus espelhos. Mesmo que suas orações sejam ao Olimpo, serão minhas as mãos
unidas em prece.

(a Epimeteu, que está do outro lado do muro)

Meu irmão, meu outro eu, Epimeteu, essa é minha criação: o homem. Cuide das invenções a sua volta,
garantindo que ele seja o senhor do que o cerca.

Eu o observo, de longe.

E é longe da minha previdência que meu irmão distribui seus dons, esquecendo-se justamente daquele
que com terra e água eu mesmo criei. Nesta partilha o homem nada recebe.

Não é o mais forte, nem o mais veloz. Não se impõe pelo tamanho, mas também não possui a dignidade
dos insetos minúsculos. Sem cascas, espinhos e carapaças – somente pele fina que se rasga. Sem veneno,
garras ou ferrões – apenas carne pronta para ser devorada. Solto e só no mundo, meu homem caminha
sobre suas duas pobres pernas. Incapaz e inferior a qualquer bicho que o cerca.

Não se pode separar o homem da natureza.

Meu irmão, Epimeteu, e o homem? Eles ainda estão descalços, ainda estão nus. Eu lhes dei o melhor
pedaço da carne e eles não irão sobreviver por sua imprudência?

EPIMETEU – Eu criei um outro muro, meu irmão?! Entre o homem e a natureza?!

PROMETEU- Você se esqueceu daqueles que não são iguais aos deuses, mas semelhantes a nós.

EPIMETEU- Irmão, não foi você que, traindo sua linhagem, afirmou sua própria natureza? Não foi você
que, por amor ao Tirano, assassinou nossos iguais? É preciso lembrar que você lutou contra nossos pais e
irmãos, titãs, para dar o cetro a Zeus?

PROMETEU- É por defender meus iguais que agora vou protegê-lo da ira do Tirano. A você, irmão
gêmeo – igual, idêntico: meu sacrifício. Por sua falha – nossa desmedida -, roubarei o fogo divino e o
esconderei no mais secreto dos abrigos, protegido de todas as barreiras: no homem.

EPIMETEU- Não é por mim seu crime, Prometeu. Mas pelo homem. Mais uma vez, nega sua linhagem.

PROMETEU- Não é um crime, irmão, mas uma salvação. Eu roubarei o fogo. Em defesa desses que nos
ouvem. Em defesa do futuro deles, das suas guerras e das suas civilizações. Eu me dôo aos homens,
mesmo sabendo que nunca serão gratos por isso.

EPIMETEU- Eu o observo, de longe.

IV. OS FOGOS

EPIMETEU-

7
Em busca do fogo, Prometeu percorrer gigantescas planícies, abre florestas com suas mãos. Escava
sepulturas – destruindo raízes, jogando fora carcaças e chifres. Revolve a terra que cobre cadávers.
Desenterra corpos.

Não há mais como apagar o seu crime, Prometeu alcança o esconderijo. Lá, onde habita uma única
chama, que são dois fogos: masculino e feminino. Ali, sem saber o que os espera, estão Hefesto, o ferreiro
coxo e Héstia, a árvore de fogo.

PÚBLICO 1

HEFESTO-

Antes, sempre que alguém entrasse em minha oficina de bronze, poderia ver a chama perene do meu filho
– o fogo – brilhando em minhas mãos. Antes de receber a visita daquela mulher, a ladra generosa, a
serpente de dentes dourados que me condenou à escuridão em benefício de vocês. É um gesto de
generosidade cegar o pai para dar de enxergar ao irmão?

Agora, na história que eu conto, sou Hefesto, o coxo, o que vulcão enclausurado. Filho obediente do
Tirano, eu lhe dei o maior dos presentes: o escudo para que lutasse contra os titãs. Mas uma delas resistiu,
lutou ao nosso lado contra os seus. Ele, Prometeu.

Eu sou aquele a quem o próprio pai deixou coxo e mesmo assim, fui obediente. Eu sou aquele que foi
traído por Afrodite e mesmo assim, a acolhi em meus braços. Eu sou aquele que foi renegado pela mãe e
ainda assim criarei a primeira mulher. Eu sou o artesão, o ferreiro, o capacho. Outras formas de amor não
me interessam.

Vou explicar minha história. Diante de mim, seus olhos pouco curiosos, pupilas fixas de onde escorre o
olhar, suas mãos sobre os joelhos. Diante de mim, os únicos beneficiados por um crime.

Eu era o portador do fogo, a chama, aquele que molda o ferro. Agora, já sem o fogo comigo, cego nessa
escuridão que é não ser mais útil nessa idade da vida, sou queimado por outro fogo. Animal fatigado, um
chicote de chamas me açoita os rins. Desperto cada noite sob o incêndio de meu próprio sangue.

O que acontece é que fui roubado. O meu fogo era meu trabalho. Passei noites e noites tentando domá-lo.
Como um vulcão, ele me invadia o sono. Como um feiticeiro, ele consumia meus dias.

Ele, a generosa serpente de dentes de ouro, passava por aqui e, ao ver meu fogo derretendo e moldando
espadas, resolveu tomá-lo de mim. Não acreditem quando ouvirem que eu a deixei levar, que eu doei a
melhor parte de mim.

Enquanto eu dormia, roubou o fogo que com amor cultivei. Entrou sorrateira, se arrastando entre minhas
flechas, escudos, metais. Com meu serrote, eu ainda tentei persegui-la, mas uma perna não é suficente
para alcançá-lo. O ladrão. Em sua perseguição, deixei cair metal derretido em meu olho e nem essa dor
foi maior que a perda.

Sei que vocês, premiados com a consciência que eu – e não ele - lhes deu, não se comovem com a minha
perda. Sim, não os engano: eu quero que vocês sintam pena de mim. Não é isso o amor?

8
Vocês devem suas vidas a ele, mas eu não devo senão minha morte, os sobressaltos de uma infindável
agonia. Eu tenho o direito de torná-lo responsável por um crime, mesmo que esse crime seja a
mortalidade que assombra vocês.

Como toda vítima, eu fui meu próprio carrasco. Só assim posso participar do tempo que virá, como um
vulcão extinto condenado a dormir numa terra sem noite.

Por isso, a única coisa que pode sair de meus lábios quando penso em Epimeteu/Prometeu é: muito
obrigado.

PÚBLICO 2

HÉSTIA-

Antes, sempre que alguém entrasse aqui, poderia ver a chama perene da minha filha – o fogo – brilhando
no meu ventre. Antes de receber a visita daquele titã, o assassino, o violador, o herói que me condenou a
um lugar de lâmpadas extintas, para que a raça humana fosse iluminada.

Agora na história que eu conto, sou Héstia, irmã do Bondoso tirano que me deu o maior de todos os
presentes: conservar meu corpo intocado. Não mais se dar é dar-se ainda. É fazer a dádiva do próprio
sacrifício.

Reneguei todos os touros que tentaram me seduzir. Me entreguei a minha filha – o fogo – e minha
linhagem. Não há uma só família ao redor de uma fogueira, uma só avó esquentando o ventre seco no
fogão, que não me conheça bem de perto. Eu era aquela que guardava o fogo como se guarda um filhote,
lambendo sua cria. Outras formas de amor não me interessam.

Vou explicar minha história. Diante de mim, seus olhos pouco curiosos, pupilas fixas de onde escorre o
olhar, suas mãos sobre os joelhos. Diante de mim, como eu, as vítimas desse a quem chamam de herói.

Eu era a portadora do fogo, a chama. Aquela que transforma as paredes de uma casa em um lar. Agora, já
sem minha filha comigo, cega nessa escuridão que é chegar desacompanhada a essa idade da vida, sou
queimada por outro fogo. Animal fatigado, um chicote de chamas me açoita os rins. Desperto cada noite
sob o incêndio de meu próprio sangue.

O que acontece é que fui roubada. Com meu seio seco alimentei aquela que era mais que minha vida – o
fogo - e que vi crescer do meio das minhas pernas para o mundo. Somente quem teve uma filha pode
imaginar o que é sentir o cheiro de seu cadáver.

Ele, Prometeu, o herói de dentes de ouro, passava por aqui e, ao ver a chama adormecida, se despe
rapidamente, como só um titã sabe fazer. Nu como uma pedra, deita-se sobre minha filha. Ainda
descontente, estrangula a criança agonizante. Penetra seus dentes dourados na carne rosada e quente. Esse
lobo monstruoso que é Prometeu– como tenho nojo de repetir esse nome! –, ao perceber a chama ainda
acesa sobre o altar do sacrifício, levanta a cabeça sobre a menina, como um náufrago levanta a cabeça por
cima de ondas encoleirizadas e a penetra de novo. Armado com os cascos que meu irmão lhe deu,

9
mergulha as mãos no sangue e começa a extrair pelo orifício dilatado: intestinos, pulmões, fígado e,
finalmente, o coração em brasa.

Com o fogo em suas mãos, o assassino se afasta. Cega, recolho os restos do que foi meu fogo. Só assim
posso participar do tempo que virá: como uma sombra que carrega os restos do passado, as marcas de um
crime e as cicatrizes de uma mãe.

Por isso Prometeu deve ser punido com a pior das dores. Eu, de olhos abertos, o declaro culpado e um
abutre que venha a dilacerar seu fígado eternamente é um castigo bondoso demais para pagar esse crime.

V. PANDORA

PROMETEU – Oculto retinham os deuses o vital para os homens; senão comodamente em um só dia
trabalhariam para ter por um ano, podendo em ócio ficar, trabalhos de bois e inscansáveis mulas se
perderiam.

EPIMETEU – Mas Zeus encoleirizado em suas entranhas ocultou o fogo, pois foi logrado por nós -

PROMETEU – Por Prometeu. Roubei o fogo do tramente Zeus em uma férula oca, dissimulando-o de
Zeus.

EPIMETEU-

Mais uma vez enganado, cercado pela escuridão dos lamentos de sua irmã Héstia e de seu capacho
Hefesto, o Tirano quer se vingar.

CORO-

Como castigo, um presente dos deuses. “Filho duplo de Jápeto, sobre todos hábil em tuas tramas, apraz-te
furtar o fogo de Hefesto e Héstia, fraudando-me as entranhas: grande praga para ti e para os homens
vindouros! Para esses em lugar de fogo, eu darei um mal e todos se alegrarão do ânimo, mimando muito
este mal.”

PROMETEU – Disse assim e gargalhou o pai dos homens e dos deuses; ordenou então a Hefesto

EPIMETEU – seu capacho.

PROMETEU – Ordenou que muito velozmente misturasse terra à água e aí pusesse voz e força humana

EPIMETEU – e que assemelhasse de rosto às deusas imortais esta bela e deleitável forma virgem;

PROMETEU – Aí pôr espírito de cão e dissimulada conduta determinou ele a Hermes Mensageiro.

EPIMETEU – E todos obedeceram ao Deus Cronida Rei.


10
PROMETEU – Rápido, o fiel Coxo da terra plasmou-a conforme recatada virgem, por ordem de Zeus.
Com um sopro.

EPIMETEU – Atena, deusa de glaucos olhos, cingiu-a e adornou-a.

PROMETEU - Então em seu peito, Hermes Mensageiro, mentiras, sedutoras palavras e dissimulada
conduta forjou, por desígnios do baritonante Zeus.

EPIMETEU - Fala o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou Pandora, porque todos os que têm
olímpia morada deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão.

PROMETEU-

E quando terminou o íngreme invencível ardil, a Epimeteu o pai enviou o Mensageiro veloz, o presente
levando.

(A caixa de Pandora)

PANDORA – Antes, sou a primeira mulher: Pandora. Aquela que será amarrada na árvore por um
homem e permanecerá calada enquanto ele colocar fogo em meus cabelos e em meus galhos. Antes de
mim, vivia sobre a terra a grei dos humanos, o recato dos males, das terríveis doenças que ao homem
põem fim; mas eu, a primeira mulher, a grande tampa do jarro alçando, dispersei-os e para os homens
mostrei tristes pesares.

PROMETEU - Epimeteu não pensou no que Prometeu lhe dissera jamais dom do olímpio Zeus aceitar -
mas que logo o devolvesse para mal nenhum nascer aos homens mortais.

PANDORA –

Agora, Epimeteu, eu o guardo no meu ventre. O fogo roubado por Prometeu é a serpente que incendeia
minha coluna. E sempre que desejar um lance luminoso, uma fagulha do que já foi seu é entre minhas
pernas que terá que buscar. Enfie suas mãos em minhas coxas e sinta o calor de meu pai Hefesto, roubado
por você. Com sua língua, tente recuperar a chama de minha mãe Héstia. Esse é o seu castigo, Epimeteu:
eu permitirei que você visite meu útero em busca do fogo mas, como um fósforo, ele logo se apagará.

PROMETEU – Por que ficou surdo ao meu conselho, irmão? Não sabe que eu sou o previdente? Não é
justo saber das coisas um pouco antes que elas aconteçam.

Outra separação se anuncia. Antes, Prometeu era a um só tempo, dois: Prometeu e Epimeteu. Prometeu
era ontem e amanhã. Não somos todos o que já vivemos e o que desejamos viver? Agora Prometeu é luz e
Epimeteu sombra.

EPIMETEU - Depois de aceitar, sofrendo o mal, ele compreendeu.

PANDORA – É preciso fechar o vaso antes que tudo se perca. Sozinha, aqui em minhas mãos, a
Expectação – esse bondoso mal que é o tempo –o antes e o depois. Em meu ventre, oculto, o fogo de
Héstia. Mas outros mil pesares erram entre os homens; plena de males, a terra, pleno, o mar; doenças aos
homens de dia e de noite, vão e vêm, espontâneas, levando males aos mortais, em silêncio.

11
Agora, Prometeu, beije meus lábios em agradecimento, porque eu aos homens dei os males, mas os
poupei do conhecimento antecipado deles. Faça isso em agradecimento, me felicitando por ter livrado
seus homens da obsessão com a própria morte. Em agradecimento por manter escondido o fogo em meu
ventre para que a sua ciência possa ser iluminada.

Esse é meu presente aos seus queridos protegidos, a quem deu o que não era seu, mas da minha mãe
Héstia e de meu pai Hefesto.

Nenhum homem saberá, antes, o que espera, mas conhecerá o temor do depois. O conhecimento que vai
condená-los a se lembrar do pai já morto; a nunca conseguir jogar no lixo aquele paletó embolorado que o
avô gostava de usar; a guardar pequenos tecidos no meio dos livros; a não se esquecer dos abandonos e
dos casamentos finalizados; a temer os seus sessenta anos solitários refazendo os mesmos caminhos
errados e frequentando as mesmas festas de aniversário; a não perdoar as feridas; e a se culpar ao notar a
mãe chorando debruçada na mesa de mármore com alguns figos no ponto de colher na figueira ao fundo e
a ouvir o relógio antigo da sala dando as seis horas da tarde. De novo e de novo e de novo e de novo.
Depois e depois e depois.

Agora, Prometeu, eu condeno os homens ao tempo.

Agora, eu os condeno, Prometeu e Epimeteu, a não serem mais Um. O que vocês foram não é mais o que
você será.

O que antes era Epimeteu, agora é só um pensamento fortuito que me assombra o ventre, lembrança
vigiada no meu útero. Um fóssil nunca descoberto. Uma memória que, apesar das fotografias e histórias
compartilhadas, logo será esquecida, condenada à escuridão, ao fundo do palco enquanto as luzes
iluminam Prometeu.

EPIMETEU –

Você conhece a sensação de que seus pés ainda estão no passado, enterrados na lama do que nos
aconteceu e não pode ser mudado? E, por mais que você tente se agarrar a uma esperança de sair dali, por
mais que tente acreditar que é no amanhã que as grandes coisas serão feitas, a lama já alcança seu pescoço
e quando você percebe, você só pertence a outra época, a outra história. Quando alguém não pode mais
alterar determinada forma é então que a forma modifica esse alguém.

PANDORA-

Agora, Prometeu, na legião do que ainda somos, eu sou a mulher e você é o homem. E nunca mais
seremos os mesmos.

VI. DISTRIBUIÇÃO DO FOGO


12
PROMETEU-

“Aos mortais, com a luz da minha chama presenteio.” “Mas tomem cuidado para que o fogo não se
aproxime de suas bocas, porque morde amargamente e seus vapores os torturarão horrivelmente.”

E assim eu, Prometeu concedo aos mortais a criação. Antes, o que vocês viam, não viam. O que ouviam,
não ouviam e, semelhante às formas dos sonhos, a vida escorria-lhes ao acaso. Não mais. Serão os
primeiros a subjugar os animais, aliviando o peso de suas costas, inventarão a matemática, as letras do
alfabeto. Eu os presenteio com a memória do mundo. Da navegação à agricultura, da carpintaria à
astronomia, do estábulo à fábrica: tudo vem de Prometeu. Agora, o meu presente os condena a não ter
mais noite. Hoje e amanhã e amanhã e amanhã.

CORO1- (cantando)

Com amigável beleza [nós] dançamos.

Vestiremos a túnica brilhante ao lado

Do incansável brilho do fogo.

E quando uma das Naiadas,

Escutar o que estamos dizendo, correrá

(perto de mim) aqui, à luz do fogo.

(..) as ninfas Juntar-se-ão em danças,

Em sinal de respeito ao presente de Prometeu.

E espero que entoem

Uma bela canção para ele, dizendo isto:

Que Prometeu, ávido, deu a vida

E muitos presentes aos mortais.

Pastores chegarão na festa

E dançarão enlouquecidos,

Com as cabeças adornadas com folhas frescas...

E ainda digo que os Pãs,

1
Prometeu portador do fogo
13
Aproximar-se-ão do fogo,

Para encontrar os bêbados nas grutas,

Quando Zeus despejará das nuvens

Chuvas e neves.... E a cabeça se encharcará de águas.

Encontrem-se ao redor deste altar

E ao brilho do fogo e

Rezem (aos deuses) tal

Denso rebanho.

VII. PRISÃO DE PROMETEU / HERMES

HERMES-

Na legião dos que sou, sou Hermes: o mensageiro, o primeiro e o último a ser invocado. Trago amarrados
em meus calcanhares os bodes e galos que um dia foram oferendas a mim. Trago em meu pescoço as
contas vermelhas e pretas que um dia foram prêmios por minha lealdade a meu pai. Trago em minhas
costas, a culpa por ter roubado as vacas de meu irmão Apolo. Trago em minhas mãos, a lira – o meu falo -
que um dia seduziu Afrodite, Penólope, Hécate, Daeira, Peitho, Karmentis, Dáfnis, Ocirroé, Aglauro,
Ibéria, Antianira, Creusa, Iphtime, Lykos, Quione, Líbia, Anfião. Em meu peito, a reijeição de Perséfone
e em meus olhos o assassinato de meu amante Krokos. Em minha língua, trago as palavras de meu pai
Zeus. As palavras que te condenarão, Prometeu.

PROMETEU-

Ninguém pode ser mais cruel que Zeus. Eu hoje sei, eu sempre soube. Eu lutei por ele e, agora, por um
bem que fiz aos homens, serei punido. Mas eu não me lamentarei, nem uma só lágrima cairá perto de
meus pés. Não me curvo: antes, eu cuspo sobre as palavras do Tirano, eu gargalho do seu futuro, eu me
enojo de tanto amor que desperdicei por ele.

Eu gritarei meu epitáfio até que você nunca mais possa esquecê-lo, Tirano covarde:

Nada mais pobre conheço / Sob o sol do que vós, ó deuses!/ Mesquinhamente nutris / De tributos de
sacrifícios / E hálitos de preces/ A vossa majestade; /E morreríeis de fome, se não fossem / Crianças e
mendigos.

Eu venerarte-te? E por quê? Suavizaste tu jamais as dores Do oprimido? Enxugaste jamais as lágrimas Do
angustiado? / Pois aqui estou! Formo Homens À minha imagem, Uma estirpe que a mim se assemelhe:
Para sofrer, para chorar, Para gozar e se alegrar, E para não te respeitar.

14
HERMES –

Essa é a sentença que o aparta dos homens, Prometeu: Primeiro, o pai partirá esse áspero precipício, com
trovão e fulminante raio, e cobrirá teu corpo, um abraço de pedras cobrindo teus ombros. Cumprida longa
longura de tempo acorrentado a essas pedras, voltarás à luz, e o cão alado de Zeus, sangrenta águia,
retalhará, voraz, grande lasca do teu corpo, visitando-o todos os dias e devorando o seu negro roído
fígado.

VIII. PROMETEU ACORRENTADO

PROMETEU – (em grego)

DIÁLOGO COM OCEANINAS – (em grego)

(Do meio das Oceaninas, surge a vaca)

IÓ-

Nessa legião de infinitos que O visita, eu sou Ió: a donzela-vaca. A,à, eé, pica-me de novo dolorido
ferrão! Vai! Saio infeliz à caça e vago faminta pela beira-mar. Que mal fiz para merecer ser essa vaca,
atormentada de moscas a mascar a ruminar o meu passado?

Sempre visões noturnas a rondar minha virgindade me aconselhavam com lisas palavras: “Ó bem
destinada moça, por que alongas a virgindade se pode obter núpcias máximas? Zeus no dardo do desejo
por ti arde e contigo partilhar Cípris quer. Tu, tu ó filha, não rejeites o leito de Zeus.” De tais sonhos todas
as noites eu era presa infeliz. Até que ousei contar a meu pai os pesadelos. Ele consultou Delfos para
saber o que fazer. Voltaram mensageiros de variados oráculos com ditos distintos, ordenando que meu
pai, da casa e da pátria me expulsasse, solta a errar até extremos limites da terra, se não quisesse vir de
Zeus o raio flamejante que destruiria toda a sua casa. Obrigado por tais adivinhações, meu pai expulsou-
me e interditou o palácio. Zeus me transformou em uma vaca para me tornar invisível aos olhos
ciumentos de Hera, sua esposa e irmã. Ela acrescentou, por capricho, às minhas dores, o envio de um
ruidoso inseto que me persegue a golpes de aferroadas por onde quer que eu vá. Iò moi moi, eé.

Eé, senhor, ouve a voz dessa vaca infeliz e da doença que me pica e consome com aguilhões volteantes?

PROMETEU– Como não ouvir a voz da moça de aferroados volteios - a donzela que, por aquecer o
coração de Zeus de amor, agora sofre como bovina a violência de Hera?

IÓ- Não venho me lamentar, procuro uma resposta. Iò iò pòpoi! Aonde me levam longínguas errâncias?
Que erro, afinal, que erro, Zeus descobriu para subjugar-me a tais dores? Hé, hé. Mais vale morrer de uma
vez que sofrer todos os dias.

15
PROMETEU- Morrer não é a porção que me cabe, pois seria livrar-me dos males, mas nenhum termo se
propôs a minhas dores, antes que Zeus caía da tirania.

IÓ- Mas há a vez de Zeus cair do poder? Por quem o régio cetro será roubado?

PROMETEU – Por ele mesmo. Por suas núpcias. Ele irá parir um filho mais forte que o pai. Um filho
entre os seus. Esse é o segredo que deves ruminar eternamente, mesmo que Hermes implore para que seja
regurgitado: Ió, ainda precisarás enfrentar o mundo, das ruas mais estreitas às montanhas mais altas,
povoando toda a terra, até cumprires seu destino, que se dará quando Zeus cair do poder pelas mãos de
um descendente teu, daqui a treze gerações! Um filho teu, fecundado pelo próprio Zeus, irá destroná-lo,
confirmando o ciclo iniciado com seu pai Cronos e anunciando o fim de uma era.

IÓ- Elleü, eleleu! Convulsão e atordoantes delírios acendem, a ponta do aguilhão pica-me sem fogo, o
coração de pavor golpeia o peito, os olhos se reviram em giros, fora da trilha me leva o louco sopro da
fúria, sem o domínio da língua, turvas palavras ao acaso colidem com as ondas de horrenda erronia.

(Ió sai)

PROMETEU-

E nessa nova era, será minha vez de ser esquecido. Como foi Epimeteu. O homem, a quem eu ensinei a
construir civilizações, será o primeiro a destruir minhas estátuas. A mim não serve a morte, mas castigo
pior: o esquecimento.

CORO (ÚLTIMO LAMENTO)- em grego

(Retorna Hermes)

HERMES- Ao voltar a visitá-lo, pareço falar muito e em vão. Não o tocam nem o abrandam minhas
preces, mas morde o freio como potro novo em jugo, infringe e rejeita rédeas. Continua obstinado e
imprudente. Não sabe, previdente que é, que assim os males contra você serão inevitáveis? Diga logo o
que Zeus quer ouvir: o Pai o exorta a dizer que núpcias anuncia, por que ele cai do poder; e nada disso,
todavia, por enigmas, mas diga cada item, e não duplique meus percursos.

PROMETEU – Não o ouço enquanto servir a Zeus. Nunca por temer ânimo de Zeus, eu me tornarei
feminino nem suplicarei ao detestado inimigo imitando mulher, com mãos supinas, que ele me livre
destas cadeias. Longe disso!

PROMETEU –. Não considere a obstinação melhor que a prudência. A boca de Zeus não sabe mentir,
mas cumpre toda a sua palavra e, diante do seu silêncio e obstinação, eu repito sua sentença:

Prometeu, que entregou o raio aos homens, mas não lhes ensinou como usá-lo contra os deuses, porque
participava das refeições dos deuses, as quais, divididas com os homens, ficariam menos abundantes,
será, por causa de sua ação, melhor dito, por causa de sua omissão, por ordem dos deuses, por Hefesto de

16
ferreiro, fixado ao Cáucaso, onde uma águia de cabeça de cão comerá diariamente do seu fígado, que
crescerá sem cessar.

A águia já se aproxima. Traz em seu vôo todos os que foram esquecidos: os restos do que foi Epimeteu
sob as asas, os caninos de Pandora na boca, as cinzas do que eram Héstia e Hefesto manchando as garras
e as penas.

IX. LIBERTAÇÃO DE PROMETEU

ÁGUIA/ EPIMETEU-

A águia, que tomou Prometeu por um pedaço de rocha, parcialmente comestível, capaz de pequenos
movimentos e de cantinas dissonantes especialmente quando se comia dela, defecou também em cima
dele. As fezes eram seu alimento. Ele passava-as adiante, transformadas em suas próprias fezes, para a
pedra debaixo de si, de maneira que 3000 anos depois, quando Héracles, o seu libertador, subia a
montanha despovoada, já podia enxergar o algemado refletindo o brilho alvo das fezes da ave, de uma
distância grande, mas, rejeitado repetidamente pelo muro de fedor, circunvolteou a montanha por mais
três mil anos, enquanto a cabeça de cão continuava a comer o fígado do algemado e o alimentava com
suas fezes, de maneira que o fedor aumentava na mesma medida em que o libertador se acostumava a ele.
Finalmente, beneficiado por uma chuva que durou 500 anos, Héracles pôde se aproximar à uma distância
de tiro. Nesse procedimento, ele tapava o nariz com uma mão. Três vezes não acertou a águia porque ele,
atordoado pela onde do fedor, que caía sobre ele quando tirava a mão do nariz para retesar o arco, fechava
os olhos involuntariamente. A terceira flecha feriu o algemado levemente no pé esquerdo, a quarta matou
a águia. Contam que Prometeu chorava alto por causa da ave. Devo comer as suas flechas, ele gritava,
esquecendo-se de que conheceria outros alimentos: Você sabe voar, camponês, com seus pés de bosta? E
ele vomitava por causa do cheiro doe estábulo que se fixara em Héracles desde que ele limpou os
estábulos de Augias, porque a bosta fedia até o céu.Coma a águia, disse Héracles. Mas prometeu não
conseguia captar o sentido de suas palavras. Também sabia muito bem, que a águia fora a sua última
ligação com os deuses, e que suas bicadas diárias eram a memória deles nele. Mais ágil do que nunca em
suas correntes, ele xingou seu libertador de assassino e tentou cuspir em sua cara. Héracles, curvando-se
de nojo, procurava enquanto isso as algemas com as quais o furioso estava ligado a sua prisão. O tempo,
clima e fezes haviam tornado carne e metal indistiguíveis um do outro, e ambos da pedra. Afrouxados
pelos movimentos violentos do algemado, eles tornaram-se, então reconhecíveis. Constatou-se que eles
foram corroídos pela ferrugem. Somente no sexo a corrente juntou-se à carne, porque Prometeu, ao
menos nos seus primeiros dois mil anos na pedra, de vez em quando se masturbava. Mais tarde,
provavelmente ele também esquecera o seu sexo. Da libertação ficou uma cicatriz. Prometeu teria podido
libertar-se, ele mesmo, caso não tivesse tido medo da águia, sem armas e exausto dos séculos como
estava. Que ele tinha mais medo da liberdade do que da ave, mostra seu comportamento durante a
libertação. Gritando e espumando de raiva, com dentes e unhas, defendeu suas correntes contra a
investida do libertador. Liberado, de quatro sobre as mãos e os joelhos chorando na tortura do movimento
de seu membros entorpecidos ele gritou por seu lugar tranqüilo na pedra, debaixo das asas da águia, sem
nenhuma mudança do local além das decretadas pelos deuses através de terremotos ocasionais. Mesmo
quando já podia andar erguido, opôs-se à descida como um ator que não quer sair de seu palco. Héracles
teve que carregá-lo nos ombros montanha abaixo. Mais três mil anos demorou a descida até os homens.
17
Enquanto os deuses arrancavam a montanha do chão, de maneira que a descida parecia mais uma queda
por causa do turbilhão das pedras, Héracles carregava sua pedra preciosa, aconchegada a seus peito, como
uma criança, para que não sofresse danos. Pendurado no pescoço do seu libertador, Prometeu indicava-lhe
a direção dos projéteis, com voz baixa, de modo que eles puderam evitar a maioria deles. Nesse
entretempo ele reafirmava, gritando alto contra o céu escurecido pelo turbilhão de pedras, a sua inocência
na libertação. Seguiu-se o suicídio dos deuses. Um a um, jogavam-se do seu céu, Sobre as costas de
Héracles, e esmagavam-se nas pedras. Prometeu esforçou-se para voltar a seu lugar no ombro de seu
libertador, e assumiu a postura do vencedor, que sobre o cavalo encharcado de suor cavalga de encontro
ao júbilo da população.

X. EPÍLOGO

LEGIÃO-

Héracles, ao trazer nos seus braços de homem aquele velho titã miúdo com o fígado exposto, ele nos
oferecia Prometeu em sacrifício – pronto para ser esquecido. E o trouxe tão próximo a sua carne, que
pareciam uma só pessoa.

O fígado exposto era de Héracles ou de Prometeu?

E, se eu me lembro bem, dizem até que Prometeu agarrou-se tão forte a seu salvador que desapareceu,
deixou de ser quem era para se transformar em uma idéia de Héracles.

O que antes era Prometeu.

Aqui termina a história.

Agora, tudo pode ser esquecido. Como é nosso hábito fazer.

O caminho que nos trouxe até aqui vai ficar gravado em algum muro manchado com a terra de nossas
unhas.

Marcadas no muro: a excitação produzida pelos lugares novos, os atos inabituais, nossa recente conversa
e as confissões trocadas à luz de lâmpadas estranhas que ainda nos acompanharão no silêncio da rua,
cruzando a ..., virando as esquinas, nos semáforos e sob a chuva, até o próximo encontro e o próximo
regresso. Talvez essa seja uma história de reencontros.

E ainda que daqui a alguns anos, esse encontro talvez não seja mais do que uma marca invisível em nós, e
ainda que nossos sentidos nos enganem e inventem um encontro que não aconteceu, existem coisas de
que não se pode duvidar: do que nos lembramos sem nunca ter experimentado.

Os lugares que conhecemos não pertencem ao espaço, onde os costumamos situar com facilidade. A
recordação de certa imagem não é senão saudade de certo instante.

Estamos no deserto. Não há uma legião nos acompanhando.

18
Basta que vocês agora fechem os olhos e chegarão até o Olimpo, por trás dos muros que nós mesmos
construímos, e reencontrarão aquele Prometeu que inventaram das minhas palavras. E que eu inventei das
palavras de outros. E que outros inventaram das palavras de antes.

Talvez essas palavras só sirvam para reencontrarmos esses deuses ausentes, dos quais fomos separados e
que estamos por gerações e gerações à procura. Perseguindo que foi tão bem escondido por Prometeu.

O presente tão bem escondido: o fogo –

que só agora, no fim, sabemos onde está.

No peito. Dentro.

FIM

19

Você também pode gostar