Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ISSN 0104-8694
SUMÁRIO
ARTIGOS
Os paradoxos da identidade e seu papel como limitadores de uma teoria 5
funcional da linguagem
Araceli Velloso
Formação da obra de arte. O formar como “fazer” que, enquanto faz, 135
inventa o “modo de fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson
Íris Fátima da Silva
TRADUÇÃO
George Berkeley e a tradição platônica 257
Costica Bradatan
Tradução de Jaimir Conte
RESENHAS
Filosofias da matemática, de Jairo José da Silva 285
Marcos Silva
Araceli Velloso *
Abstract: The Paradox of Analysis and the Antinomy of the Name-Relation are two
arguments commonly used to clear up a paradoxical aspect of the interpretation of identity.
My aim in this paper is to investigate those paradoxes and their limiting role in the
constitution of a semantic theory. I will use as a guide line of this investigation the
hypothesis that the difficulties in which all the semantics theories investigated fall are due
not to the name-relation thesis, as Carnap will say, but to the compositional character of
those theories. The investigation will take place in two stages. The first one will be an
investigation on the historical solutions that were presented to avoid those paradoxes. I will
try to show that every one of those solutions involves somehow the problem of handling
compositionality. I will pay special attention to an unsuccessful attempt of solution known
as “The Thesis of Extensionality” defended by Quine, Carnap and even Wittgenstein and
Russell, for a while. The second stage will be a critical evaluation of the cause of the
*
Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da UFG. E-mail: araceli@fchf.ufg.br.
Artigo recebido em 21.09.2009, aprovado em 30.12.2009.
paradoxes. My thesis, as I said before, is that the real cause wasn’t the name relation thesis
but a philosophical preference for a compositional semantic approach.
Keywords: Antinomy of the name-relation, Frege, Identity, The paradox of analysis, Thesis of
extensionality
Introdução
Pretendemos investigar neste artigo uma classe de paradoxos que têm em
comum estarem todos conectados (de maneiras diversas) à noção de
“identidade”. São eles: o paradoxo da análise, a antinomia da relação de
nomeação e o paradoxo do mentiroso. Nossa investigação se dará em duas
etapas. A primeira envolverá uma avaliação das soluções que foram
historicamente apresentadas para evitar esses paradoxos. Esta investigação
mostrará que todas elas propõem, em algum ponto, uma nova maneira de
lidar com termos singulares. Em especial, daremos ênfase a uma tentativa
fracassada de solução que ficou conhecida como “a Tese da
Extensionalidade”, defendida por Quine, Carnap, e mesmo Wittgenstein e
Russell, num certo período. A segunda etapa consistirá em avaliar
criticamente até que ponto o uso da identidade em uma linguagem
formalizada reflete uma preferência filosófica por uma abordagem semântica
fundacionista e composicionalista.
As duas etapas acima se dividirão em cinco seções. Começaremos
com uma breve discussão sobre a noção de “identidade”, apresentando
rapidamente três diferentes interpretações dessa noção: a “versão
ontológica”, a versão terminológica e a distinção entre sentido e referência.
Na seção 2, apresentaremos a visão funcional da linguagem, que atribuímos
a Frege. Na seção 3, investigaremos o paradoxo da análise, discutindo,
predominantemente, as soluções daquele filósofo alemão. Apresentaremos,
na seção 4, a abordagem de Carnap com relação aos paradoxos e às soluções
por ele analisadas. Finalmente, na seção 5, detalharemos a relação entre a
tese da extensionalidade e o paradoxo do mentiroso. A título de conclusão,
abordaremos ao final do artigo as implicações filosóficas equivocadas por de
trás da inclusão da “identidade” em um determinado sistema formal com
características funcionais composicionais.
1 A identidade
A concepção mais intuitiva que temos da “identidade” é como uma relação
que um objeto só pode ter consigo mesmo e com nenhum outro, uma
Os paradoxos da identidade... 7
1
Por exemplo, (Frege, 1978, p.76, § 65)
8 Araceli Velloso
2
Teríamos de aceitar, por exemplo, que se dois objetos têm as mesmas propriedades, então
eles são o mesmo em qualquer interpretação (ou modelo) da realidade (ou mesmo em
qualquer mundo possível).
3
Uma das questões centrais da nossa análise é a própria noção de “conteúdo” adotada por
Frege no Begriffsschrift, uma vez que, no decorrer da obra do autor, essa noção se duplica
passando a corresponder as noções de “sentido” e de “referência” (Bedeutung), como
discutiremos essa noção mais adiante.
Os paradoxos da identidade... 9
4
Observemos que a ocorrência do pronome demonstrativo “disso” é anafórica e, portanto, só
podemos responder a segunda pergunta, se tivermos respondido de modo positivo a
primeira.
10 Araceli Velloso
5
As duas entidades, por sua vez, objetos e funções, seriam resultantes de uma segmentação
do juízo em duas partes. Essa discussão, que aborda o que muitos chamam de “tese da
prioridade do juízo sobre suas partes”, pode ser sustentada em diversos trechos da obra de
Frege, mas principalmente na fase inicial. Ela é uma discussão importante para
compreender a visão que estamos chamando de funcional, mas não vamos nos estender
nela para não nos desviarmos no foco principal desse artigo, qual seja: uma discussão sobre
a noção de identidade e a tese da extensionalidade Cf. (Ruffino, 1991).
6
Uma das questões centrais a nossa análise é a própria noção de “conteúdo” adotada por
Frege, uma vez que essa sofre diversas modificações no decorrer da obra do autor. Como
discutiremos dessa noção mais adiante, preferimos agora tratá-la globalmente com a
expressão “conteúdo”, como o faz Frege no Begriffsschrift.
12 Araceli Velloso
7
Vamos usar a seguinte simbologia: r(n) é a referência de n, Pn é uma sentença que contém
o termo singular n e P[Sn/m] é a sentença obtida ao se substituir uma ou mais ocorrências
de n em P por m.
14 Araceli Velloso
8
O ponto crucial, a meu ver, é que o critério que viabiliza a distinção entre a = a e a = b,
descrito na primeira premissa, reapareça na terceira que contém o critério de substituição.
Os paradoxos da identidade... 15
9
A palavra usada por Frege em alemão é Erkennitswert.
16 Araceli Velloso
10
Como veremos adiante, o princípio de substituição utilizado por Frege no Begriffsschrift é
por ele considerado, em realidade, um híbrido que vai ser decomposto em dois princípios
diferentes em “Sobre o sentido e a referência”.
11
Essa explicação de porque Frege teria optado por abandonar a premissa 2 para o caso da
relação de identidade fica clara mais tarde em “Sobre o sentido e a referência”, escrita pelo
próprio filósofo.
Os paradoxos da identidade... 17
12
Não entraremos aqui em detalhes sobre as razões que levaram Frege a modificar sua
solução para o paradoxo da análise, uma vez que essa discussão seria um desvio no tema
central do artigo e será tema de outro artigo.
13
Carlo Penco, em seu artigo “Frege: Two Theses, Two Senses” discute uma aparente tensão
entre a tese fregiana de que haveria um isomorfismo entre a estrutura da linguagem e a do
pensamento e a tese, também fregiana, de que o mesmo pensamento poderia ser expresso
por mais de uma sentença diferente. Penco sugere uma reconstrução da noção de
“pensamento” que aparentemente resolveria essa tensão. (Penco 2003)
Os paradoxos da identidade... 19
24-1. O princípio da univocidade: toda expressão que for usada como um nome
(num certo contexto) é o nome de exatamente uma entidade; chamamos essa
entidade o nominatum da expressão;
24-2. O princípio de conteúdo (subject matter): uma sentença é sobre (lida com,
inclui no seu tema de discussão) os nominata dos nomes que ocorrem nela;
(11) Logo, “é necessário que a classe dos homens seja uma subclasse
da classe dos bípedes”;
(12) Porém, o fato de que os homens têm duas pernas é uma mera
contingência biológica;
14
Nessa época, Quine simplesmente sugere que não usemos contextos modais e fiquemos
apenas com os contextos extensionais.
Os paradoxos da identidade... 27
15
Cf. Carnap, 1964, p. 141, nota 49.
Os paradoxos da identidade... 29
Fato empírico:
Considerações finais
Como havíamos mencionado no inicio desse artigo, nosso interesse era
duplo. Inicialmente, pretendíamos investigar os paradoxos e as soluções que
lhes foram historicamente apresentadas. Nesse primeiro estágio, visávamos
apenas a uma reconstituição mais precisa das dificuldades e motivações que
estavam por detrás de várias tentativas heróicas de se construir uma teoria
geral do significado. Nosso segundo objetivo, contudo, era mais amplo:
pretendíamos avaliar até que ponto o uso da identidade em uma linguagem
32 Araceli Velloso
16
Cf. a discussão sobre Carnap na seção 4.
17
Davidson também sugere uma explicação semelhante (Davidson,1984, 3)
18
Estamos compreendendo funcional (ou composicional) como foi explicado no início do
artigo, ou seja, de baixo para cima, começando nas unidades semânticas mínimas e
chegando ao significado de sentenças inteiras.
Os paradoxos da identidade... 33
Referências
CARNAP, Rudolf. Meaning and Necessity A Study in Semantics and Modal
Logic. Chicago: The University of Chicago Press, 1956.
CARNAP, Rudolf. R. Carnap replies and Expositions. In The Philosophy of
Rudolf Carnap, edited by P. Schilpp, 911-914. Illinois: Open Court, 1963.
_______. The Logical Syntax of Language. London: Routledge, 1964.
DAVIDSON, Donald. The method of extension and intension. In The
philosophy of Rudolf Carnap, edited by P. Schilpp, 311-350. Illinois: Open
Court, 1963.
DAVIDSON, Donald. Theories fo Meaning and Learnable Languagens. In
Inquiries into Truth and Interpretation, by Donald DAVIDSON, 3-16.
1984.
FREGE, Gottlob. Begriffsschrift, a formula language, modeled upon that of
arithmetic, for pure thought. In From Frege to Gödel: a source book in
mathematical logic, 1879-1931, by Jean VAN HEIJENOORT, 1-82.
Cambridge: Harvard University Press, 1971.
_______. Function and concept. In Translations from the philosophical
writings of Gottlob Frege, edited by P. GEACH and M. BLACK, 21-41.
Oxford: Basil Blackwell, 1977a.
_______. Logic in mathematics. In GOTTLOB FREGE Posthumous
Writings, edited by Hans HERMES, Friedrich KAMBARTEL, Friedrich
KAULBACH and Hans HERMES, translated by Peter LONG and Roger
WHITE, 203-250. Chicago: The University of Chicago Press, 1979a.
_______. Notes for Ludwig Darmstaedter. In GOTTLOB FREGE
Posthumous writings, edited by Hans HERMES, Friedrich KAMBARTEL,
Friedrich KAULBACH and Hans HERMES, translated by Peter LONG
and Roger WHITE, 251-57. Chicago: The University of Chicago Press,
1979c.
_______. On concept and object. In GOTTLOB FREGE Posthumous
Writings, edited by Hans HERMES, Friedrich KAMBARTEL, Friedrich
34 Araceli Velloso
Resumo: O presente artigo visa a explicitar o conceito duplo de natureza do jovem Feuerbach,
em sua obra Pensamentos sobre Morte e Imortalidade (Gedanken über Tod und Unsterblichkeit):
1. a natureza como possibilidade e condição de toda existência no espaço e no tempo e 2. a
natureza como instância da negação de todo ser. A natureza oferece ao jovem Feuerbach o
modelo para a solução de várias oposições, pois nela se manifesta um processo dialético de
afirmação e negação, singularidade e pluralidade, indivíduo e gênero. Assim, o homem
experimenta na natureza não apenas a afirmação, como também a negação, de sua existência
em forma de efemeridade e morte.
Palavra-chaves: Natureza; Feuerbach; Negação da imortalidade da alma; Unidade de Natureza
e Espírito
Abstract: This article aims at clarifying the two-pointed concept of nature as proposed by
young Feuerbach in his work Thoughts on Death and Immortality (Gedanken über Tod und
Unsterblichkeit): 1. nature as possibility and condition for all existence within space and
time, and 2. nature as negation instance of all being. Nature offers young Feuerbach the
model for solution of several oppositions, for one finds within it a dialectical process of
assertion and negation, singularity and plurality, individual and gender. Thus, man
experiments within nature not only positive assertion but also negation of his existence in the
form of his ephemerality and death.
Keywords: Nature; Feuerbach; Negation of Soul’s immortality; Unity of Nature and Spirit
*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Ceará - UFC e do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação (FACED) da UFC. E-mail:
ef.chagas@uol.com.br. Artigo recebido em 26.07.2009, aprovado em 30.11.2009.
1
Na sequência do texto, a obra Gedanken über Tod und Unsterblichkeit será citada como
Todesgedanken (Pensamentos sobre a Morte). Em 1830, Feuerbach tinha publicado
anonimamente este escrito. “A reação a este escrito”, escreve Werner Schuffenhauer, in
“‘Aut Deus – Aut Natur’ – Zu Ludwig Feuerbchs Spinoza- und Leibniz-Bild”, Padova:
Archivio di Filosofia, 1978, p.271, “põe Feuerbach repentinamente no chão da realidade; o
escrito foi confiscado policialmente e o autor foi averiguado.” A autoria foi, no entanto,
logo descoberta. Esse escrito, no qual Feuerbach recusa a doutrina da imortalidade
individual, ou seja, a perduração da alma depois da morte, significava o fim de sua carreira
acadêmica.
2
Vögelli, D. Der Tod des Subjekts – eine philosophische Grenzerfahrung. Die Mystik des jungem
Feuerbach, dargelegt Anhäng seiner Frühschrft “Gedanken ¨ber Tod und Unstrblichkeit”.
Würzburg: Königshausen und Neumann, 1997, p. 66.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 37
3
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Org. por Werner. Schuffenhauer.
Berlim: Akademie Verlag, 2000, GW 1, p. 189.
4
Braun, H.-J. Ludwig Feuerbachs Lehre vom Menschen. Stuttgart-Bad Cannstartt: Friedrich
Frommann Verlag, 1971, p. 55. De forma semelhante manifesta-se Dorothee Vögeli: “A
ruptura com a consciência antiga e pré-cristã resulta nisso, a saber, que o indivíduo desliga-
se de Deus e diviniza o seu próprio eu natural, isolado.” Cf. Vögeli, D. Der Tod des
Subjekts.... Op. cit., p. 69.
5
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 189.
6
Vögeli, D. Der Tod des Subjekts.... Op. cit., p. 69.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 39
7
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 192-193.
40 Eduardo Ferreira Chagas
8
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie. Zur Genese der Anthropologie und
Religionskritik des jungen Feuerbach. In: Neue Zeitschrift für systematische Theologie und
Religionsphilosophie. Berlin, 1969, v. 11, p. 53.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 41
9
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 203.
10
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie... Op. cit., p. 68.
42 Eduardo Ferreira Chagas
11
Deus é nem pura natureza, nem puro espírito, mas Ele contém ambos os momentos
necessariamente: natureza e espírito. Cf. Ascheri, C. Feuerbachs Bruch mit der Spekulation.
Einleitung zur kritischen Ausgabe von Feuerbach: Notwendigkeit einer Veränderung (1842).
Frankfurt am Main: Europa Verlag Wien, 1969, p. 26 e 36: “O Deus de Todesgedanken é
‘espírito’, tem em sua essência ambos os polos: consciência e natureza.” Em Todesgedanken,
Deus não é, como o referido autor escreve adiante, “uma pessoa absoluta, diferente da
natureza e em oposição a ela, mas Ele comprende em sua essência também a natureza [...].
Deus é não apenas pessoa, mas também natureza, também essêncal e substância e,
enquanto tal, princípio da objetivida, por conseguinte dos limites do indivíduo.”
12
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 213.
13
Ibid., p. 213.
14
Ibid., p. 216.
15
Ibid., p. 210.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 43
16
Ibid., p. 212.
44 Eduardo Ferreira Chagas
17
Ibid., p. 218.
18
Ibid., p. 233.
19
Cornehl, P. Feuerbach und die Naurphilosophie. Op. cit., p. 59.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 45
20
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 250.
46 Eduardo Ferreira Chagas
21
Rawidowicz, S. Ludwig Feuerbachs Philosophie. Ursprung und Schicksal. Berlin: Walter de
Gruyter & CO, 1964, p. 25.
22
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 253.
23
Ibid., p. 263.
24
Ibid., p. 261.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 47
sob a condição de que ele não se mantenha como sêmen, mas se torne um
outro do que é.” 25 O jovem Feuerbach concebe, então, a finalidade como
limite e morte, pois onde não existe nenhuma destruição, nenhuma negação
e superação da existência autônoma, lá não há nenhuma finalidade. Uma
finalidade, que não põe nenhum limite, como a natureza exige, é apenas uma
finalidade imaginada, não real.
A argumentation do jovem Feuerbach insiste, aqui, no princípio
dialético (de Hegel) da contradição: no interior da limitação foi eliminada “a
negatividade” do finito e, ao mesmo tempo, elevada a positividade ao ser.
Tudo o que existe na natureza não é sem fronteira, sem limitação
(Beschränkung), pois cada coisa é já determinada. “Toda coisa é uma prova da
verdade desta afirmação.” 26 No limite, ou seja, na determinidade, encontra-
se, pois, a essência de uma coisa. A água, por exemplo, é aquilo, o que ela é,
não como água em geral, mas como uma determinada fonte de água, água do
rio ou do mar. Disso deduz o jovem Feuerbach que também a vida só é
possível e também real “no limite que a natureza tem na forma e figura da
terra”. 27 “Feuerbach vê, como Hans-Jürg Braun menciona, “já aqui a
natureza como o limite insuperável de todo ser terreno e, por conseguinte,
também como o limite do ser humano. Não apenas o homem como singular
vive sua vida na- e da natureza, mas também, em grande medida, o gênero
mesmo. O que Feuerbach nomeia espírito e pensamento, como pertence, do
mesmo modo, a vida ao todo da natureza, está fundamentado na mesma.” 28
A natureza, na qual a vida encontra seu limite, seu não-ser, é um ser
determinado, mas não um ser finitamente limitado, e sim um ser igualmente
universal, infinito, em sua determinidade. Há na natureza diferentes graus de
vida, isto é, muitos degraus e múltiplos e infinitos modos de vida. Se a
natureza fosse apenas um elemento determinado e limitado e não abrangesse
em sua determinidade, infinitamente, muitas espécies, ela seria apenas a
extensão da vida de um animal ou de única espécie de planta, apenas de um
membro particular. E, com isto, seria excluída a diferença, a particularidade,
ou seja, o rico e múltiplo conteúdo, que a natureza contém. Já que na
natureza existem, infinitamente, muitas espécies de vida no interior de um
25
Ibid., p. 233.
26
Ibid., p. 275.
27
Ibid., p. 277.
28
Braun, H.-J. Ludwig Feuerbachs Lehre vom Menschen. Op. cit., p. 61.
48 Eduardo Ferreira Chagas
29
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p. 278 e 287-288.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 49
30
Cf. Vögeli, D. Der Tod des Subjekts.... Op. cit., p. 131: O “problema da condição trágica
do homem sensível foi omitido”, no entando, na fé cristã, “na medida em que se idealiza a
pessoa sensível singular”.
31
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p.403.
50 Eduardo Ferreira Chagas
pode pensar a si mesmo como morto. “A outra vida”, que ele atribui à morte,
não tem nenhum significado positivo; ela não se diferencia, segundo seu
conteúdo, da morte; ela é apenas um euphemismus, uma “expressão poética”
do ser da morte. Mais tarde, de uma maneira literária, escreverá Feuerbach,
em A Questão da Imortalidade do Ponto de Vista da Antropologia (Die
Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie) (1846), o seguinte:
“Os mortos vivem, mas eles vivem apenas como mortos, isto é, eles vivem e
não vivem; a suas vidas falta a verdade da vida; suas vidas são apenas uma
alegoria da morte.” 32 Pode-se, então, dizer que a morte é a morte da morte,
pois, na medida em que ela acaba com a vida, ela mesma morre. A morte é,
porém, como mostrado, apenas uma negação que nega a si mesma, assim
também a imortalidade (Unsterblichkeit), como pura oposição à morte, é
uma nulidade, uma afirmação irreal, indeterminada, do indivíduo, da vida e
da existência. Da doutrina da imortalidade segue, contudo, uma moralidade,
que se fundamenta na representação de um outro mundo, de um além, que
pressupõe uma segunda vida. Esta moralidade não corresponde à liberdade
humana, que vê a si mesma na morte e reconhece nela sua ação suprema
como emancipação da limitação e, por isso, como amor. “Tua moralidade” é,
assim julga o jovem Feuerbach no final de Todesgedanken, “por conseguinte,
a moralidade imoral, deplorável, vaidosa, do mundo, se ela provém da fé na
imortalidade.” 33 Feuerbach nega, entretanto, apenas a imortalidade pessoal,
individual da alma; para ele, a verdadeira fé é nada mais do que a fé na
32
Feuerbach, L. Die Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie. Org. por W.
Schuffenhauer. Berlim: Akademie Verlag, 1971, GW 10, p. 197.
33
Feuerbach, L. Gedanken über Tod und Unsterblichkeit. Op. cit., p.342-343. Cf. Também
Die Unsterblichkeitsfragae vom Standpunkt der Antropologie. Op. cit., p. 260-261, onde
Feuerbach, contra o desejo de imortalidade, de vida no outro mundo, argunenta o seguinte:
“Como é ridículo pensar no preenchimento da lacuna imaginável do homem, deixando
despercebido a lacuna real da vida humana! Como é ridículo proporcionar ao homem uma
existência do além, antes de se pensar em proporcionar, aqui, aos homens existência, pois o
homem existe, apenas quando ele tem uma existência humana, realiza suas determinações
humanas.” Desta maneira, o desejo de imortalidade, do além, aponta para a causa da
miséria do mundo cristão. O cristão sacrifica as determinações deste mundo em nome das
determinações fictícias, imaginadas, do além; sacrifica as necessidades reais do homem em
nome das necessidades religiosas. Em vez de pensar em finalidades terrenas, que o homem
pode realmente alcançar, o cristão pensa, do seu ponto de vista supranatural, apenas em fins
que o homem não pode alcançar, para assegurar-se de uma existência do além.
A natureza como negação da imortalidade da alma... 51
34
Neste lugar, é interessante a observação de Josef Winiger, in: Feuerbachs Weg zum
Humanismus. Zur Genesis des anthropologischen Materialismus. München, 1979, p. 41-42: A
oposição de Feuerbach à teologia leva a uma diferença de opinião, entre outras, com a de
Hegel. Este tinha, assim escreve Winiger, “afirmado, com referência ao interesse comum e
ao objeto comum, a identidade do Cristianismo com a religião absoluta”. Feuerbach
acentua aqui, ao contrário, a oposição entre teologia e filosofia. “Drasticamente”, diz ainda
Winiger, Feuerbach “expõe esta oposição nos ‘Pensamentos sobre Morte e Imortalidade’, e,
na verdade, não apenas como oposição de religião e filosofia [...], mas, em geral, como
oposição entre a vida estranhada, fixada no além, e a vida amigável, afirmada no mundo.
Seu racionalismo como protesto contra a religião mostra-se como elemento daquela
‘concentração indivisa ao mundo efetivo’, por causa disso ele quer superar a velha
discrepância entre o aquém e o além.” O além é, para Feuerbach, nada mais do que um
mundo da fantasia, isto é, uma representação do futuro, mas que o homem religioso
hipostasia como uma condição diferente do futuro real. Abstraído da natureza e arrancado
de sua conexão com ela, apresenta-se ao crente o além como melhor, mais bonito do que o
aquém, do que a realidade. O futuro imaginado, pintado do além, depende, então, apenas
de sua vontade; tal mundo está inteiramente no poder de sua fantaisa, na qual tudo é
possível.
Podem as serpentes conviver com as pombas?
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política
Cinara Nahra *
Resumo: O objetivo do presente artigo é discutir a relação entre ética e política a partir das
diferenças entre as visões de Kant e de Maquiavel. No artigo é discutido também o papel do
Estado contemporâneo bem como é apresentado o modelo dos 6c, que são as práticas
antiéticas que são largamente utilizadas na política brasileira, especialmente no momento
eleitoral, a saber, o clientelismo, o coorporativismo, o coronelismo, o controle e manipulação
de informações, a construção de realidades inexistentes e a corrupção. Finalmente pretende-
se mostrar a necessidade da adoção do modelo inspirado em Kant que subordina a política a
uma moral racional
Palavras-chave: Ética; Política; Corrupção; Fins e meios; Estado; Moral racional
Abstract: The purpose of this article is to discuss the relationship between ethics and politics
taking as the starting point the differences between Kant´s and Machiavelli´s views. I will
also discuss here the role of the contemporary State, as well as I will put forward what I call
the “6c model” namely the immoral practices which are largely used in Brazilian politics,
especially at the time of elections, i.e., exchange of favours, corporative vote
,authoritarianism, control and manipulation of information, fantasy and corruption. Finally,
I intend to show the necessity of adopting a model inspired by Kant that subordinates
politics to a rational morality.
Keywords: Ethics; Politics; Corruption; Means to an end; State; Rational morality
A política diz “seja prudente como as serpentes; a moral acrescenta: e sem falsidade,
como as pombas. Se ambos não podem coexistir em um único mandamento, então há
efetivamente conflito entre a política e a moral; mas se ambos devem se unir
absolutamente então o conceito do contrário é um absurdo e a questão de saber como
resolver este conflito não se apresenta nem mesmo como um problema. Ainda que a
proposição: a honestidade é a melhor política reafirme uma teoria que a prática
infelizmente contradiz frequentemente, a proposição igualmente teórica: a
honestidade é melhor que toda política esta acima de qualquer objeção. O deus limite
da moral não cede diante de Júpiter (o deus limite do poder) pois Júpiter é ele
também submetido ao destino”.
Immanuel Kant A Paz Perpétua (Apendice 1)
*
Professora do Departamento de Filosofia da UFRN. E-mail: cinaranahra@hotmail.com
Artigo recebido em 31.10.2009, aprovado em 15.12.2009 .
Uma vez que a presente investigação não visa ao conhecimento teórico como as
outras - porque não investigamos para saber o que é a virtude, mas a fim de nos
tornarmos bons, do contrário nosso estudo seria inútil- devemos agora examinar a
natureza dos atos, isto é, como devemos praticá-los 1
1
Aristóteles. A Ética a Nicômaco. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, p. 68.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 55
Uma pessoas de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns
com os outros, foi instituída por cada um como autora de modo a ela poder usar a
força e os recursos de todos, da maneira que achar conveniente, para assegurar a
paz e a defesa comum 3
2
Hobbes, T. Leviatã. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, p. 103.
3
Hobbes. Op. Cit. p.106.
56 Cinara Nahra
4
Lenin, V. O Estado e a Revolução, Cultura Brasileira. Disponível em:
www.culturabrasil.org/zip/oestadoearevolucao.pdf. p.13 “De um lado, os ideólogos
burgueses e, sobretudo, os da pequena burguesia, obrigados, sob a pressão de fatos
históricos incontestáveis, a reconhecer que o estado não existe senão onde existem as
contradições e a luta de classes, "corrigem" Marx de maneira a fazê-lo dizer que o Estado é
o órgão da conciliação das classes. Para Marx, o Estado não poderia surgir nem subsistir se a
conciliação das classes fosse possível.Para os professores e publicistas burgueses e para os
filisteus despidos de escrúpulos, resulta, ao contrário, de citações complacentes de
Marx,semeadas em profusão, que o Estado é um instrumento de conciliação das classes.
Para Marx, o Estado é um órgão de dominação de classe,um órgão de submissão de uma
classe por outra; é a criação de uma "ordem" que legalize e consolide essa submissão,
amortecendo a colisão das classes. Para os políticos da pequena burguesia, ao contrário, a
ordem é precisamente a conciliação das classes e não a submissão de uma classe por outra;
atenuar a colisão significa conciliar, e não arrancar às classes oprimidas os meios e processos
de luta contra os opressores a cuja derrocada elas aspiram".
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 57
5
Baudrillard, J. À sombra das maiorias silenciosas. São Paulo: Editora brasiliense, p. 62 e 67.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 59
3 Maquiavel X Kant
Com Kant e Maquiavel teremos dois modelos opostos para conceber a
relação entre moral e política, ou se quisermos, entre ética e política, ou em
última instância entre ética e poder. A base do modelo maquiavélico é a
concepção de que o importante é alcançar e manter-se no poder, seja a que
custo for:
6
Hobbes, T. Op. Cit. p. 6.
7
Maquiavel. O Príncipe. Editora Cultrix, p 113.
8
Lyotard, Jean F. A Condição Pós Moderna. Gradiva, p. 91.
60 Cinara Nahra
9
Kant, I. Vers La Paix Perpetuelle. Flamarion, p. 112.
10
Nahra, C. “A Megera e o Príncipe”. Princípios, n.5, 1997, p. 41-62.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 61
11
Foucault, M . Vigiar e Punir. Vozes, p. 117- 162.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 63
O próprio poder nem sempre deixa-se levar pelo poder, e o segredo dos grandes
políticos foi saber que o poder não existe. Que ele é apenas um espaço perspectivo
de simulação como foi o espaço pictórico da renascença, e que se o poder seduz é
justamente - o que os realistas ingênuos da política não compreenderão nunca-
porque é simulacro, porque se metamorfoseia em signos. O segredo da inexistência
do poder, segredo dos grandes políticos, é também o dos grandes banqueiros, de
saber que o dinheiro não é nada, que dinheiro não existe, o dos grandes teólogos e
inquisidores de saber que Deus não existe, que está morto. Isto lhes dá uma
superioridade fabulosa. Quando o poder descobre este segredo e se lança esse
próprio desafio então se torna verdadeiramente soberano. Quando desiste de fazê-
lo e procura encontrar-se uma verdade, uma substância uma representação (na
vontade do povo etc) perde então a soberania e são os outros que lhe devolvem o
desafio de sua própria morte, até que ele pereça efetivamente desta presunção,
desse imaginário, dessa superstição de si próprio como substância, desse
desconhecimento de si mesmo como vazio, como reversível na morte. Antigamente
matavam-se os chefes assim que eles perdiam este segredo. 12
12
Baudrillard, J. Esquecer Foucault. Rocco, p. 92.
64 Cinara Nahra
13
Morin, E. La rumeur d’Órleans. Seuil, p. 17.
Uma reflexão filosófica sobre a ética na política 65
Resumo: Para deleite dos religiosos, a história da filosofia oficial − que continua, ao que
parece, infectada pelo espírito teológico − consagrou a “aposta de Pascal” como uma das
soluções modelares ao problema ético suscitado pela questão clássica da existência ou não de
Deus. No raciocínio de Blaise Pascal (1623-1662), aquele que aposta na existência do deus
judaico-cristão ganhará a felicidade eterna caso ele efetivamente exista; em contrapartida,
uma vez sendo este Deus uma realidade, a aposta na sua inexistência resultará na danação do
apostador equivocado. Ocorre que a história da filosofia oficial parece desconhecer a
alternativa ateísta que Denis Diderot (1713-1784) propõe a essa questão das conseqüências
da existência ou não de Deus na vida e na morte dos seres humanos. Lançando mão de uma
fábula que permite uma analogia com o tema do ateísmo, em que um ateu, depois de
morrer, constata que a alma é de fato imortal, que Deus realmente existe, e que, portanto,
não ter tido fé em vida não foi uma aposta inteligente, Diderot, no seu Diálogo de um filósofo
com a Marechala de... (1774), reflete sobre os desdobramentos para o ateu dessa experiência
inesperada. É sobre essa não-aposta do ateu que trata este artigo.
Palavras-chave: Aposta de Pascal; Ateísmo; Deus; Diderot; Virtude
Abstract: To the delight of the religious, the official history of philosophy − which is,
apparently, infected with the theological spirit − devoted to “Pascal's Wager” as an
exemplary solutions to ethical problems raised by the classic question of whether or not God.
In thinking of Blaise Pascal (1623-1662), who bet on the existence of the judeo-christian
god will gain eternal happiness if it actually exists, however, since this God is a reality,
investing in their absence will result in damage of the bettor wrong. It turns out that the
history of philosophy seems to ignore the officially atheistic alternative to Denis Diderot
(1713-1784) proposes the question of the consequences of the presence of God in the life
and death of human beings. Drawing on a fable that allows an analogy to the topic of
atheism, in which an atheist after his death, notes that the soul is indeed immortal, that God
really exists, and therefore did not have faith in life not was a smart bet, Diderot, in his
Dialogue of a philosopher with the Marshall ... (1774) discusses the consequences for the
atheist that unexpected experience. It is about this non-wager of the atheist in this article.
Keywords: Atheism; Diderot; God; Pascal's wager; Virtue
*
Professor da Universidade São Judas Tadeu. E-mail: prof.piva@usjt.br Artigo recebido em
30.09.2009,aprovado em 30.11.2009.
Só há três tipos de pessoas: umas que servem a Deus, tendo-o encontrado; outras
que, não o tendo encontrado, se empenham em procurá-lo; outras que vivem sem
procurá-lo nem tê-lo encontrado. Os primeiros são razoáveis e felizes, os últimos
são loucos e infelizes. Os do meio são infelizes e razoáveis (Idem, p. 69, fr. 160
(257)).
infortúnio para o ateu. Afinal, como encarar com serenidade a idéia de que
os sentimentos e os pensamentos seriam simples produtos da “vil” matéria e
a vida como um fenômeno finito, terreno e efêmero? Refutando tal
concepção materialista, Pascal escreve: “Os ateus devem dizer coisas
perfeitamente claras. Ora, não é perfeitamente claro que a alma seja
material” (Idem, Ibidem, fr. 161 (221)). “Muito menos espiritual”, poderia
replicar, também com razão, um materialista ateu ou até mesmo um cético
pirrônico.
Em seguida, depois de analisar a saúde mental do ateu, de julgar o
seu comportamento moral, de constatar obscuridades em sua ontologia, e
de concluir que a sua condição existencial seria deplorável, Pascal ressalta
nos seus Pensamentos outras conseqüências nefastas do ateísmo. A recusa da
realidade de Deus provocaria estragos tanto na metafísica quanto nas
ciências. Sem a existência de uma divindade única, absoluta, onipotente e
onisciente, deixam também de existir os fundamentos ontológicos e
epistemológicos capazes de fornecerem aos homens um conhecimento
seguro acerca da natureza e da nossa mísera condição humana dentro dela.
Sem Deus, tudo se torna instável, incerto e vazio, o horizonte do homem
passa a ser sombrio, tão-somente de trevas. É o que podemos inferir do
seguinte fragmento do filósofo seiscentista: “Objeção dos ateus. Mas não
temos nenhuma luz” (Idem, p. 98, fr. 245 (228)).
Ora, se o ateísmo engendra o caos, a escuridão e o desespero, é
necessário então combatê-lo. Esta será a justificativa principal da posição de
Pascal. Entretanto, o instrumento mais adequado para tal feito parece não
ser a razão isoladamente, uma vez que o ateísmo consiste num exercício
radical da racionalidade. A opção, por assim dizer, metodológica, adotada
por Pascal para o dilema, como era de se esperar de um cristão, será o apego
à fé. Estaríamos, assim, diante do primeiro momento do que ficou
conhecido como “a aposta de Pascal”: a escolha da fé em detrimento de uma
razão. Nesse sentido, a recuperação do sentido e das certezas destruídos pela
racionalidade ateísta não poderá ser realizada mediante a elaboração de
conceitos e raciocínios. A lógica seria impotente para realizar tal tarefa. É o
que lemos em outro dos fragmentos dos Pensamentos:
Examinemos, pois, esse ponto. E digamos: Deus existe ou não existe; mas para que
lado penderemos? A razão nada pode determinar a esse respeito. Existe um caos
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 79
infinito que nos separa. Joga-se um jogo de extremidade dessa distância infinita,
em que dará cara ou coroa (Idem, p. 159, fr. 418 (233)).
Sim, mas é preciso apostar. É inevitável, estais embarcados nessa. Qual dos dois
escolhereis então? Vejamos; já que é preciso escolher, vejamos o que vos interessa
menos. Tendes duas coisas para perder: a verdade e o bem (grifos nossos), e duas
coisas a engajar: vossa razão e vossa vontade, vosso conhecimento e vossa ventura, e
vossa natureza duas coisas de que fugir: o erro e a miséria. Vossa razão não fica
mais ofendida, pois que é preciso necessariamente escolher, escolhendo um ou
outro. Aí está um ponto liquidado (Idem, p. 160, fr. 418 (233)).
Pesemos o ganho e a perda escolhendo coroa que Deus existe (grifo nosso).
Avaliemos esses dois casos: se ganhardes, ganhareis tudo, e se perderdes, não
Paulo Jonas de Lima Piva 80
perdeis nada: apostai, pois, que ele existe sem hesitar. Isso é admirável” (Idem,
Ibidem).
meio da tábua, para o alto mar, e deste, para o além do horizonte que ele
conseguia enxergar. Quando acordou, percebeu que sua avó tinha razão: o
tal do país realmente existia.
Por analogia, a situação vivida pelo jovem mexicano é como a de
um ateu que, ao morrer, despertasse para a verdade da vida após a morte,
isto é, para o fato da imortalidade da alma, no qual, aliás, ele não só nunca
havia acreditado como dele muito ridicularizou em vida. A reação do jovem
mexicano, porém, e curiosamente, não foi de desespero diante do seu
equívoco: “Eu raciocinei como um tolo, seja; mas fui sincero comigo
mesmo; e é tudo o que se pode exigir de mim. Se não é uma virtude ter
espírito, não é crime não tê-lo” (Idem, Ibidem, p. 941).
A fábula continua com uma nova e comprometedora constatação
por parte do nosso jovem perplexo: o tal velho, chefe do país que ele acabara
de descobrir, do qual sua avó lhe havia falado em várias ocasiões, também
existia. “Eu sou o soberano do país”, apresentou-se-lhe o velho (Idem,
Ibidem). “Vós negastes a minha existência?”, pergunta-lhe triunfante o
velho (Idem, Ibidem). No entanto, para a surpresa do jovem, o velho chefe
lhe diz em tom imperativo e paternal: “Eu vos perdôo, pois sou aquele que
vê o fundo dos corações, e li no fundo do vosso que vós fostes de boa-fé”
(Idem, Ibidem). E completa: “Mas o restante de vossos pensamentos e de
vossas ações não é igualmente inocente” (Idem, Ibidem). Na sequência,
Diderot promove a diversão do leitor: “Então o velho, que o segurava pela
orelha, recordou-lhe todos os erros de sua vida; e, a cada assunto, o jovem
mexicano se inclinava, batia no peito e pedia perdão...” (Idem, Ibidem).
Imaginemos, também por analogia, o ateu no lugar do jovem
mexicano e Deus no lugar do velho chefe do país descoberto. O conto do
mexicano é, no fundo, a alegoria da não-aposta do ateu. Trata-se do
encontro do ateu com Deus na vida post mortem. Ora, se esse deus não for
um mau demiurgo, uma providência sem apreço pela virtude e cruel, como
sugere o Marquês de Sade no seu Os infortúnios da virtude, de 1787 (cf.
Sade, 2009, p 159), mas uma divindade onisciente, onipotente e
absolutamente bondosa, não há razões para o ateu temer a danação caso
depare-se com ela após a morte. Se um ateu, durante toda a sua vida, foi um
homem justo, honesto e benevolente, e cujo ateísmo foi o resultado do fato
de ele não ter encontrado razões ou motivos suficientes para persuadi-lo da
existência de um deus, da imortalidade da alma e da veracidade dos
A não-aposta do ateu: Diderot e a aposta pascaliana 83
ensinamentos bíblicos, não há por que ele temer esse encontro, uma vez que
ele nada deve moralmente que justifique uma punição assim tão bárbara e
desproporcional que é a eterna estadia no inferno cristão. Um Deus assim
absolutamente sábio e bondoso, como o velho na fábula do jovem
mexicano, irá desconsiderar a falta de fé desse ateu, porém, considerará suas
ações em vida. Entre a fé e a prática do bem, Deus certamente ficará com a
segunda opção. O contrário não seria compatível com a idéia que se tem de
divindade, ao menos do deus cristão. Afinal, como pergunta o ateu, para o
embaraço da Marechala, Deus condenaria ao inferno Sócrates, Catão e
Marco Aurélio, personalidades que se eternizaram como paradigmas de
virtude, mas que foram ao mesmo tempo pagãos, ou seja, viveram antes de
Cristo e numa outra cultura, fatos estes sobre os quais eles não podem ser
responsabilizados? (cf. Diderot, 1994, p. 940).
A propósito, quanta mesquinhez e frieza calculista a aposta de
Pascal inspira! Aposta-se na existência de Deus para ganhar o paraíso; age-se
moralmente motivado pela recompensa ou constrangido pelo medo da
danação e não pelo valor intrínseco da ação, pela virtude em si mesma. É a
própria Marechala, a cristã do diálogo, quem confessa: “É que me parece
que se eu não tivesse nada a esperar nem a temer quando eu deixasse de
existir, haveria pequenas delícias das quais eu não me privaria enquanto
existisse. Confesso que empresto a Deus com juros” (Idem, p. 930).
A Marechala concorda com o seu interlocutor descrente, porém,
honesto, que Deus não condenaria ao inferno seres humanos da estirpe
moral de um Sócrates ou Catão por lhes terem faltado a fé cristã. Citando o
apóstolo Paulo, ela desperta para a ausência de vínculo necessário entre fé e
virtude: “De forma alguma! Só bestas ferozes poderiam pensar isso. São
Paulo diz que cada um será julgado pela lei que conheceu; e São Paulo tem
razão” (Idem, p. 940). Na mesma direção o ateu acrescenta: “Mas aquele
que fez os tolos os punirá por terem sido tolos?” (Idem, Ibidem).
Podemos concluir então que a aposta pascaliana consiste,
primeiramente, num terrorismo metafísico desnecessário. Sendo nossas
ações morais o mais significativo de nossas vidas e não nossas crenças
religiosas, aquele que durante toda a sua vida foi justo, honesto e solidário
não terá motivos para temores caso realmente existam outra vida e um deus,
pois, como vimos, a única idéia compatível com Deus é a de que este
expresse a suprema bondade e a onisciência, a menos que ele seja um deus
Paulo Jonas de Lima Piva 84
Referências
A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
DIDEROT, Diderot. “Diálogo de um filósofo com a Marechala de....”. In:
Textos escolhidos. Trd. J. Guinsburg. São Paulo: Abril Cultural, Col. “Os
Pensadores”, 1979.
_______. Entretien d’un philosophe avec la Maréchale de ***. In: Oeuvres,
Tome I, Philosophie. Paris: Robert Laffont, 1994.
_______. “Colóquio com a Marechala”. In: Obras I – Filosofia e Política.
Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2000.
LEBRUN, Gérard. Blaise Pascal. Trad. Luiz R. Salinas Fortes. São Paulo:
Brasiliense, Col. “Encanto radical”, 1983.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
ONFRAY, Michel. A política do rebelde: tratado de resistência e insubmissão.
Trad. Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
_______. Tratado de ateologia: física da metafísica. Trad. Mônica Stahel.
São Paulo: Martins Fontes, 2007.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
SADE, Marquês. Os infortúnios da virtude. Trad. Celso M. Paciornik. São
Paulo: Iluminuras, 2009.
A presença da história no “primeiro” Sartre:
Roquentin e a náusea frente a ilusão da aventura heróica
A filosofia de Sartre, que se inicia nos anos 30 e tem textos publicados após
sua morte, em 1980, como Cadernos para uma moral e Verdade e Existência,
costuma ser dividida pelos comentadores em dois grandes momentos: o
primeiro, representado por sua obra máxima O ser e o nada, é caracterizado
como sendo uma filosofia abstrata, metafísica e solipsista. A liberdade, aqui
definida como absoluta, passa a ser o símbolo dessa filosofia abstrata que
ignora a realidade humana, a história de nossos impedimentos e escravidões.
*
Professora adjunta do Departamento de Filosofia da UFES. E-mail:
souza_thana@yahoo.com.br Artigo recebido em 19.10.2009, aprovado em 30.12.2009.
1
Bornheim, G., Sartre: Metafísica e existencialismo, p. 230.
2
Gomez-Muller, Sartre, de La Nausée à l’engagement, p. 197
A presença da história no “primeiro” Sartre 89
C'est pourquoi je dis toujours – et j'y tiens – qu'il y a de l'unité intellectuelle dans
ma vie, depuis le départ, La Nausée, jusqu'au traité de morale à la fin, quelque
chose comme un système, qui perd certaines de ses idées et en gagne d'autres, qui
n'est pas entièrement le même, mais qui a une unité, qui suppose à chaque
moment une sorte d'idée vécue: ce ne sont pas des idées intellectuelles et logiques
s'enchaînant les unes aux autres d'après des liens logiques, ce sont plutôt des idées
vécues se présentant dans la pensée sous une forme temporelle, à un moment
donné, et qu'on retrouvera plus tard avec une forme légèrement (ou entièrement)
différente, mais remplissant le rôle qu'elles avaient au départ 4 .
3
Entretien, “L’écriture et la publication” In: Revue Obliques, p. 15
4
Ibidem, p. 21.
90 Thana Mara de Souza
tese da divisão entre as duas fases, mas que servem ao menos para indicar
que de certo modo, na época em que Sartre escreveu A náusea e O ser e o
nada, já havia uma preocupação com a noção de história.
A primeira observação é a de que muitos críticos fazem essa
separação tendo como base apenas os livros filosóficos maiores, O ser e o
nada e a Crítica da razão dialética, e não consideram os textos escritos
paralelos ao primeiro livro e nos quais a história já aparece com grande
importância. No mesmo ano em que publica o ensaio de ontologia
fenomenológica, 1943, Sartre colabora na revista clandestina Lettres
françaises, participa de reuniões do Conselho Nacional dos Escritores,
basicamente formado por escritores de esquerda, e escreve Sursis, o livro
mais “histórico” da trilogia Caminhos da Liberdade. Assim, ao mesmo
tempo em que escreve seu livro de filosofia considerado abstrato e solipsista,
Sartre é um escritor que mostra o quanto a guerra modifica as pessoas e é
um homem que, mesmo que não de forma resoluta, participa da resistência.
E nos anos seguintes, funda a revista Les Temps Modernes e escreve peças
com teor explicitamente histórico e também o livro Que é a literatura? e
outros ensaios nos quais a história, e a história atual (como a questão dos
judeus) aparece. Muitas das ocupações paralelas de Sartre na época da
escrita de O ser e o nada já envolvem questões explicitamente sociais e
históricas.
Além disso, o próprio livro O ser e o nada foi escrito durante uma
guerra mundial, desde o final de 1941, depois que fora prisioneiro de
guerra. Não se trata de um livro que ignora as questões históricas, e mesmo
que não trate diretamente delas, isso não implica dizer que não há lugar
para a história ali. Pelo contrário: o que temos anunciado ali, em termos
bastante rigorosos, é a necessidade de se pensar o homem no mundo, em
situação, que sua liberdade, absoluta, só é absoluta nesse mundo em que
vivemos, nesse mundo em meio a uma guerra mundial e no qual não basta
ser pacifista para não ter relação alguma com a guerra que ocorria. Mesmo
que não concordemos totalmente com a tese de Cristina Mendonça, a de
que “são os conflitos sociais e as lutas políticas de uma época de
transformação histórica radical que põem em movimento a engrenagem
especulativa do livro” 5 , pensamos que seu estudo teve o grande mérito de
5
Mendonça, C., O mito da resistência: experiência histórica e forma filosófica em Sartre, p.
192-193.
92 Thana Mara de Souza
editores que publicam seu diário, viajou por 6 anos pela Europa Central,
África do Sul e Extremo Oriente, e como o próprio Roquentin informa nas
primeiras linhas de seu diário, viajou encantado por uma escultura oriental e
depois de tantos anos de viagem, achou-a desagradável e estúpida. Ficou
com tédio por estar na Indochina e resolveu, repentinamente, voltar à
França.
Essa questão pode parecer apenas um capricho de um indivíduo
estranho e solitário se não levarmos em consideração que numa década
anterior o tema literário da aventura, do viajante, era bastante comum na
França, e que Malraux, o escritor célebre da época, ficou conhecido
justamente por relatar personagens que vão ao encontro da História, das
guerras onde elas ocorrem, assim como o próprio autor fazia. Os romances
que Malraux publicou no final da década de 20 e início da década de 30 se
localizam todos no Oriente, em meio à Indochina e revoluções ou então,
são relatos da busca de aventureiros por estátuas, exatamente a mesma que
interessou Roquentin. Há uma referência direta ao modo de viver dos
franceses e ao gosto pelas aventuras exóticas que muitos escritores relatavam,
e como diz Michel Sicard nos comentários das Obras Romanescas da
Pléiade: há uma referência clara a Malraux e ao livro Estrada Real. “La
contestation du thème littéraire de l’aventure – thème d’époque et que les
romans de Malraux ont largement contribué à illustrer et à répandre – est
très certainement une des visées de La Nausée” 6 .
Mais para frente, podemos ver outras questões que dizem respeito
às distinções e luta de classes, à formação de uma cidade pela burguesia e
desprezo pelas ruas dos operários, a lembrança do autodidata de sua prisão
na primeira guerra mundial, o sonho de Roquentin como soldado que
espanca Barrès, o escritor símbolo do antisemitismo na França. E numa
longa passagem, da qual Roquentin se arrepende no dia seguinte por ter
sido muito “literário”, ele escreve:
Estou inteiramente sozinho, mas caminho como uma tropa que irrompe numa
cidade. Neste momento, há navios ressonantes de música sobre o mar; luzes se
acendem em todas as cidades da Europa; comunistas e nazistas trocam tiros nas
ruas de Berlim; desempregados perambulam pelas ruas de Nova Iorque; num
quarto aquecido, diante de suas penteadeiras, mulheres colocam rímel nos cílios. E
eu estou aqui, nessa rua deserta, e cada tiro disparado de uma janela de Neukölln,
6
Sicard, M., Oeuvres Romanèsques de Sartre, p. 1729.
96 Thana Mara de Souza
cada soluço sangrento dos feridos que são transportados, cada gesto preciso e
diminuto das mulheres que se enfeitam, corresponde a cada um de meus passos, a
cada batida de meu coração 7 .
7
Sartre, A Náusea, p. 88.
A presença da história no “primeiro” Sartre 97
8
Silva, F., Ética e literatura em Sartre, p. 241.
A presença da história no “primeiro” Sartre 99
9
Contat, M., De Melancholia à La Nausée In: Louette. Sartre écrivain, p. 54-55.
100 Thana Mara de Souza
10
Sartre, A Náusea, p. 68.
A presença da história no “primeiro” Sartre 101
11
Ibidem, p. 67
102 Thana Mara de Souza
valor da História. Corre-se o risco de perder o gosto por ela” 12 . Mas qual
história é essa que perde seu valor?
Nitidamente é a História Clássica, é essa História com H
maiúsculo, é essa História que pensa apenas nos grandes acontecimentos e
nos grandes homens de ação, tal como Malraux relata em seus livros e como
ele mesmo tenta viver ao lado do general De Gaulle. Ao se descobrir
contingência, Roquentin descobre que essa História é uma farsa. A vertigem
que faz Roquentin descobrir a ausência de necessidade em sua vida é a
mesma que o faz descobrir a farsa que é essa História em que acreditava.
Não há aventuras vividas, não há grandes homens que
necessariamente precisam viver em determinada época para mudar o
mundo, não há nenhuma necessidade entre um acontecimento e outro. Essa
necessidade só surge depois, quando já sabemos o resultado de tal ação e
colocamos como se ela fosse feita para inevitavelmente levar ao resultado,
como se houvesse uma Razão, um Espírito Absoluto guiando todos os atos,
todos os homens.
Mas não há: Roquentin descobre que a única necessidade é a
contingência, e com isso descobre que sua vida não tem justificativa, que a
vida do marquês de Rollebon não tem justificações, que nenhum fato
necessariamente faz surgir tal outro fato. A lei que governa nossas ações, e,
portanto, a história, é a lei da contingência, da incerteza. Por isso não se
pode pensar no tempo nem como causalidade nem como finalismo: o
passado não causa o futuro, assim como o futuro não determina o passado.
Não há determinações e necessidade na temporalidade, em nossas vidas. “O
essencial é a contingência. O que quero dizer é que, por definição, a
existência não é a necessidade” 13 .
No romance A Náusea temos a descoberta da contingência que rege
as ações humanas, e, portanto, também a história. Há a destruição do
conceito tradicional de história e alguns indícios de uma outra noção de
história, uma noção que admite “apenas indivíduos” e não só “homens com
importância social”, uma noção que admite a contingência, a inexistência
da inevitabilidade e necessidade entre os fatos; o surgimento de uma história
mais rica e mais profunda.
12
Ibidem, p. 110.
13
Ibidem, p. 193
A presença da história no “primeiro” Sartre 103
Referências
BERTHOLET, D. Sartre l'écrivain malgré lui. Paris: infolio, 2005.
CHIHEB, A. L'esthétique romanesque chez André Malraux et Jean-Paul
Sartre dans Les Conquérants, La condition humaine, L'espoir, L'âge de raison,
Le sursis et La mort dans l'ame. Tese de doutorado na Université de la
Sorbonne Nouvelle – Paris III, 1993.
FITCH, B. Le sentiment d'étrangeté chez Malraux, Sartre, Camus et Simone
de Beauvoir. Paris: Lettres modernes, 1964.
104 Thana Mara de Souza
FREITAS, Maria Teresa de. Création artistique et histoire chez Malraux: Les
Conquérants et La Condition humaine. Tese de doutorado defendida em
1984 no Departamento de Letras Modernas da USP.
GAUDEAUX, J. Engagements et marxismes chez Jean-Paul Sartre, Thèse de
doctorat d'Etat de Jean-François Gaudeaux na Universidade de Lille III,
1999-2000.
GOMEZ-MULLER, A. Sartre, de La Nausée à l'engagement. Paris: éditions
du Félin, 2004.
_______. Sartre et la culture de l’autre. Paris: L’Harmattan, 2006.
GRELL, I. Les chemins de la liberté de Sartre, genèse et écriture. Berna: Peter
Lang, 2005.
GUIGOT. Sartre, liberté et histoire. Paris: J. Vrin, 2007.
LOUETTE, J. Sartre écrivain. Paris: Eurédit, 2005.
_______. Sartre: la littérature, hermeneutique du silence, tese de doutorado
apresentado na Universidade de la Sorbonne Nouvelle (Paris III), em 1988.
MENDONÇA, C. O mito da resistência – experiência histórica e forma
filosófica em Sartre (uma interpretação de L’être et le néant). Tese de
doutoramento em filosofia na USP, 2001.
PRINCE, G. Métaphysique et technique dans l’oeuvre romanesque de Sartre.
Genève: Librairie Droz, 1968.
SARTRE, J.P. L’imaginaire. Paris: Gallimard, 1940.
_______. Qu’est-ce que la littérature?. Paris: Gallimard, 1948.
_______. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis:
Vozes, 1999.
_______. La responsabilité de l’écrivain. Lagrasse: Verdier, 1998.
_______. A Náusea. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 10 edição.
_______. As palavras. São Paulo: difusão européia do livro, 1964.
_______. Oeuvres Romanesques. Paris: Pléiade, s/d.
_______. “Penser l’art” In: Revue Obliques, n. 24/25, Sartre et les arts,
1981.
_______. “Les écrivains en personne” In Situations IX. Paris: Gallimard,
1972.
_______. “L’écrivain et sa langue” In Situations IX, Paris: Gallimard, 1972.
_______. “Coexistences” In: Situations IX. Paris: Gallimard, 1972.
_______. “L’artiste et sa conscience” In: Situations IV. Paris: Gallimard,
1964.
A presença da história no “primeiro” Sartre 105
_______. “Le peintre sans privilèges” In: Situations IV. Paris: Gallimard,
1964.
_______. “Autoportrait a soixante-dix ans” In Situations X. Paris:
Gallimard, 1976.
SILVA, F. Ética e literatura em Sartre. São Paulo: Unesp, 2004.
SOUZA, T. Sartre e a literatura engajada: espelho crítico e consciência infeliz.
São Paulo: Edusp, 2008.
_______. O mito de Er: Sartre e o platonismo às avessas? In Cadernos de
Ética e Filosofia Política, v. 8, 2006.
VERSTRAETEN. Autour de JP Sartre: littérature et philosophie. Paris:
Gallimard, 1981.
WITTMANN, H. L'esthétique de Sartre – artistes et intellectuels. Paris:
L'Harmattan, 2001.
O fim da metafísica segundo Habermas:
ponderações à luz do pensamento heideggeriano
Abstract: In his work Post-Metaphysical Thinking, the philosopher Habermas announces the
end of metaphysics as a totalizing and self-referential thinking, which intends to have a
privileged access to truth. The devaluation of this kind of thinking culminates in the passage
to what he calls post-metaphysical thinking, making a resizing of the role of philosophy
necessary considering that a new scenario of thinking is being established. This article
intends to problematize – in the light of the philosophy of Martin Heidegger – assumptions
of Habermas, which justify his proposition of the end of metaphysics. In this sense, this
article wants to show that the proposition of the contemporary empire of technique makes
the announcement of the establishment of a post-metaphysical thinking something difficult
to sustain.
Keywords: Habermas; Heidegger; Metaphysics; Post-metaphysical thinking; Technique
*
Professora do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Estadual de
Feira de Santana. E-mail: carolinevasconcelos@hotmail.com Artigo recebido em
29.09.2009, aprovado em 30.12.2009.
em seu bojo. Indica que a ideia de um sistema de razão como única forma
de interpretar a realidade está demasiado arraigada dentro da própria
concepção do fazer filosófico-metafísico. Ele efetua sua crítica à tradição
metafísica denunciando que este pensamento, ao se impor como
“fundamentação última”, fechou-se num círculo totalizante com pretensões
de legitimar todas as premissas a partir de si mesmo. Assim, direciona seus
questionamentos não só à racionalidade em sua constituição
especificamente metafísica, mas também à toda tradição filosófica que a
sustenta. Seu pensamento desenvolve-se no sentido de demonstrar os
aspectos que marcaram o estremecimento deste modo de pensar e,
conseqüentemente, minaram a razão como pretensão universal de saber; tais
aspectos são denominados por ele de “motivos de um pensamento pós-
metafísico”. (Habermas,1984, p. 37).
Falar do estremecimento do modo metafísico de pensar implica,
neste caso, dizer que esta razão não abarcou a multiplicidade do real e que a
onipotência da reflexão foi quebrada por uma realidade que não é
totalmente capturável por ela. Trata-se, portanto, de concretizar esta razão –
endeusada e abstrata – na prática do mundo da vida, fazê-la adquirir carne e
sangue em encarnações históricas. Deste modo, ao enfatizar a fragilidade da
compreensão racionalizante de mundo, Habermas (1984, p. 26) aponta
para a dimensão dos “horizontes de nossas biografias e das formas de vida
nas quais nos encontramos desde sempre e que formam um todo poroso
que se compõe de familiaridades presentes de modo pré-reflexivo, que
escapam a qualquer intervenção reflexiva”. Esta dimensão, denominada de
mundo da vida (Lebenswelt), compreende uma totalidade pré-teórica e não-
objetiva das auto-evidências cotidianas, na qual sempre se situam aqueles
que agem comunicativamente.
A metafísica como pensamento totalizador e auto-referente – que
pretende compreender o todo da natureza e da história – já não poderia
pretender um acesso privilegiado à verdade, visto que suas categorias
fundamentais não abarcam a multiplicidade da realidade. Assim, diante de
tais “embaraços”, caberia ao pensamento levar a cabo “[...] um processo de
reconstrução racional que tome como ponto de partida o saber intuitivo,
pré-teórico, de sujeitos dotados de competência de falar, agir e julgar [...]”
(Habermas,1984, p. 26).
O fim da metafísica segundo Habermas 109
Passa a valer como racional, não mais a ordem das coisas encontradas no próprio
mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida dos processos de formação
do espírito, mas somente a solução de problemas que aparecem no momento em que
se manipula a realidade de modo metodicamente correto. (Habermas, 1984, 44)[grifo
nosso]
1
Habermas diferencia o agir-racional-com-respeito-a-fins do agir comunicativo presente no
mundo da vida, caracteriza aquele como a estrutura de exercício de controle da
racionalidade tecnológica. (Habermas,1983,320 e ss.)
114 Caroline Vasconcelos Ribeiro
2
Em Platons Lehre von der Wahrheit Heidegger (1976a,231), ao analisar os estágios que
marcam a caminhada do prisioneiro desde a escuridão da caverna até a luz do sol,
interpreta a paideia platônica, descrita no Livro VII da República, como a formação
120 Caroline Vasconcelos Ribeiro
4
Julgamos pertinente trazer uma esclarecedora passagem da sexta parte do Discours de la
Méthode: “[...] il est possible de parvenir à des connaissances qui soient fort utiles à la vie, et
qu'au lieu de cette philosopie spéculative qu'on enseigne dans les écoles, on en peut trouver
une practique pour laquelle, conaissant la force et les actions du feu, de l'eau, de l’áir, des
astres, des cieux et de tous les autres corps que nous environnent, aussi distictement que
nous connaissons les divers métiers de nous arisan nous les poirrions emploiyer en même
façon à tous les usages auxquels ils sont propes, et ainsi nous rendre maîtres et possesseurs
de la nature” (Descartes,1987).
122 Caroline Vasconcelos Ribeiro
5
Numa extensa nota de rodapé do texto L’époque des “conceptions du monde” Heidegger
(2006) se debruça sobre o termo representação acentuando que Vor-stellung tem a presença
do verbo stellen que significa “localizar algo”, “por de pé” e da preposição vor que tem o
sentido de “diante de, em frente a”. Deste modo, para Heidegger, o verbo vorstellen
(representar), tem a significação de “por algo diante de si, a partir de si, se assegurando
disso, confirmando isso e garantindo o que é assim fixado.” Este garantir e fixar, prossegue
o autor, “deve ser um calcular, pois apenas a calculabilidade garante uma certeza antecipada
e constante do repraesentandum disso que deve ser representado”. Quer dizer, a
representação, a partir da ótica heideggeriana, não é uma mera apreensão do que se
apresenta, do que está aí, trata-se antes de um “procedimento, que procede desde si mesmo,
de uma investigação em um setor assegurado, devendo o setor mesmo ser
assegurado”.(Heidegger, 2006). Nos Seminários de Zollikon Heidegger enuncia que o que
está implicado na eleição da representação como índice primevo da relação com o real, é o
asseguramento de sua objetificação (Vergegenständlichung).(Heidegger, 2001,125). O
pensador Michel Haar, em Heidegger et l´essence de l´homme afirma que a representação é
uma procura indiscreta e indiscriminada que visa apossar-se totalmente do ente pela
racionalidade calculante. Segundo ele, para Heidegger, tanto o método cartesiano, quanto a
busca kantiana pelas condições de possibilidade do conhecimento em geral, quanto a
vontade de poder nietzscheana são figuras da agressividade crescente da representação.
(Haar,1990)
O fim da metafísica segundo Habermas 123
A ciência corresponde a esta regência objetivada do real à medida que, por sua
atividade, ex-plora e dis-põe do real na objetidade. A ciência põe o real. E o dis-
põe a pro-por-se num conjunto de operações e processamentos, isto é, numa
seqüência de causas aduzidas que se podem prever. Desta maneira, o real pode ser
previsível e tornar-se perseguido em suas conseqüências. É como se assegura do
real em sua objetidade. Desta decorrem domínios de objetos que o tratamento
científico pode, então, processar à vontade. (Heidegger, 2002a, 48)
6
Todas as citações deste parágrafo encontram-se em Heidegger, 2006,114.
124 Caroline Vasconcelos Ribeiro
7
Sobre a herança filosófica da qual a ciência moderna se serve, ver maiores considerações em:
Ribeiro, 2008; Loparic, 2001; Heidegger 2001
O fim da metafísica segundo Habermas 125
8
Quando Heidegger fala em técnica ou tecnologia, não se refere ao arsenal de máquinas
instaladas à nossa volta. O seu olhar é para a essência da técnica, não capturável pela ação
de técnicos e sim pela investigação filosófica. Em síntese, a essência de técnica constitui-se
num modo de desvelar tudo o que há como estoque de reserva sempre disponível ao
domínio procedimental. (Heidegger, 2002c)
9
Torna-se necessário destacar a radical diferença entre o modo grego e o modo moderno de
conceber a techne. A techne, para os gregos antigos, é um saber não tematizado que se
concretiza numa ocupação manual com as coisas, é um modo de produzir (poiesis) que se
funda num conceder ao descoberto “aquilo” que antes ainda não tinha aparecido. Mas este
produzir não vai de encontro ao que se mostra encoberto com o intuito de impor-lhe
“algo” que sobrepuje a sua essência, ao invés, em obediência à própria “natureza” da coisa
material, deixa a mesma ser o que já é, ou seja, oferece, inaugura “algo” que não se
mostrava, mas que essencialmente compunha as possibilidades do material. A techne grega
é, portanto, um saber da mão, onde “mão” é menos um órgão de preza e destreza, do que
uma abertura de possibilidades que se instauram na execução da ocupação, do fazer
artístico, da lida com as coisas do real. Assim como a techne grega, a techne moderna é um
modo de desocultamento. Entretanto, no caso da primeira não se localiza uma atitude de
agressão ao que se mostra, à physis, antes uma harmonia. Já na modernidade o
desocultamento da techne se dá sob a forma de domínio, apoderamento e manipulação do
que se mostra. (Heidegger, 1998). Sobre este tema, conferir também: Beaini, 1986.
126 Caroline Vasconcelos Ribeiro
10
Furtamo-nos, neste artigo, de polemizar acerca da relação entre o Heidegger I (até meados
da década de 30) e o Heidegger II, pós viragem (Kehre). Quer dizer: optamos por não
perguntar se depois da viragem (Kehre) seria possível localizar uma via única do
pensamento heideggeriano ou um hiato, deflagrador de mudanças radicais. Em vista da
diversidade de opinião dos comentadores, resolvemos não abordar esta questão. Sobre o
tema, pode-se conferir: Heidegger, 1977; Zarader, 2000; Beaufret, 1974 e Loparic, 1986.
11
A título de esclarecimento vale lembrar que esta conferência tem o título da última seção
não publicada da primeira parte de Ser e tempo, vindo à luz depois de um hiato de 35 anos
em relação à data em que se anunciava seu cumprimento no tratado de 1927.
O fim da metafísica segundo Habermas 131
12
Para melhor compreendermos estas épocas de destinação do ser, convém atentarmos que o
termo Época é utilizado por Heidegger em sua referência necessária ao grego Epoché,
indicando um processo de suspensão, de recolhimento. Sob esse prisma, Época nos remete
a uma subtração atrelada à doação, quer dizer, não sendo isso ou aquilo, mas doando-se
historialmente em cada Época, o ser realiza (determina) esta ou aquela possibilidade que
constitui seu destino. Neste destinar, o ser, enquanto puro poder ser, se subtrai em favor de
uma determinação, se envia e, neste envio mesmo, se furta enquanto pura possibilidade. O
que implica dizer que o ser, na verdade da sua dinâmica, só de dá retirando-se. (Heidegger,
1999d,209)
13
Sobre obras em que Heidegger se refere a tarefa para o pensamento na era do acabamento
132 Caroline Vasconcelos Ribeiro
Referências
BEAINI, T.C. Heidegger: arte como cultivo do inaparente. São Paulo: Nova
Stella,1986
BEAUFRET, J. “La fin de la philosophie comme virage du temps” in:
Dialogue Avec Heidegger – approche de Heidegger. Paris: Les editions du
minut, 1974.
DESCARTES, R. Discours de la methode : pour bien conduire sa raison et
chercher la verite dans les sciences. Paris: Fayard, 1987.
FOGEL, G. “Martin Heidegger et coetera e a Questão da Técnica “ in: O
que nos faz pensar.. Rio de Janeiro, v 2, n10, 1986.
HABERMAS, J. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro: Edições Tempo
Brasileiro, 1984.
_______ Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Edições
Tempo Brasileiro, 1990.
_______ Ciência e Técnica como Ideologia. in: Coleção Os Pensadores. São
Paulo: Abril Cultural, 1983.
Resumo: O propósito do presente texto é trazer à luz breves considerações acerca do formar como
“fazer” que, enquanto faz, inventa o “modo de fazê-lo”: uma perspectiva estética em Luigi Pareyson,
para quem, “produção é ao mesmo tempo e indivisivelmente, invenção”. A interpretação pessoal é o
tornar evidente a própria obra, isto é, o dar-se, revelar-se, o descortinar-se da obra em si. O interpretar
é de acordo com Pareyson, em si, sempre pessoal; entretanto é apenas uma forma dentre tantas outras
possíveis. A pluralidade das interpretações não deve ser considerada uma desvantagem, longe
de ser um “defeito” é já uma revelação da inexorabilidade do pensamento humano. Ao
conceber a interpretação como singular, evidencia-se a historicidade do contexto e a
personalidade do pensante. Iniciaremos com algumas considerações acerca da estética, em
seguida, trataremos da forma como execução e o formar como experimento.
Palavras-Chave: Estética; Formatividade; Interpretação, Luigi Pareyson; Obra de arte
Abstract: The purpose of the present text is to bring into light brief considerations
concerning forming as “doing” that, while it does, it invents the “way of doing it”: an aesthetic
perspective in Luigi Pareyson, for whom, “production is, at the same time and indivisibly,
invention”. The personal interpretation is the making evident of the work itself, that is,
giving, revealing, pulling the curtain of the work in itself. Interpreting is in agreement with
Pareyson, in itself, always personal; however, it is just one form among many other possible
ones. The plurality of interpretations should not be considered a disadvantage; far from
being a “defect” it is already a revelation of the inexorability of human thought. When
conceiving the interpretation as singular, it is evidenced the historicity of thinkers context
and personality. We will begin with some considerations concerning aesthetics, and treat
about the form as execution and the forming as experiment freewards.
Key words: Aesthetics; Artwork; Formativity; Interpretation; Luigi Pareyson
1 O que é estética?
A estética embora se encontre em uma daquelas zonas periféricas da filosofia
na qual não se sabe bem onde começa e/ou termina o discurso filosófico nos
remete a pergunta se temos competências técnicas para falar de criadores,
*
Doutoranda em Filosofia – PPGFIL-UFRN. E-mail: irisfsol@bol.com.br Artigo recebido
em 07.08.2009, aprovado em 15.11.2009.
1
Luigi Pareyson (1918-1991) ensinou Estética de 1945 a 1964 na Universidade de Turim,
sua terra natal, torna-se catedrático em Filosofia Teorética por longos anos e forma uma
“Escola” com nomes reconhecidos em todo o mundo como Umberto Eco, Gianni
Vattimo, Giuseppe Riconda e tantos outros. Foi um dos primeiros intérpretes italianos do
existencialismo. Em 1939, com apenas 21 anos publica a primeira edição de La filosofia
dell’esistenza e C. Jaspers, publicado em segunda edição revisado em 1940, logo em seguida:
publica Studi sull’esistenzialismo, 1943. Investiga profundamente o pensamento alemão dos
séculos XVIII e XIX e nos contempla com obras como Fichte, 1950; Shelling, 1975, Verità
e Interpretazione, 1971. Filosofia della libertà, 1989. Esistenza e Persona, (5ª Edizione),
2002. Ontologia della Libertà. Il male e la sofferenza, 1995 e 2000. Estetica dell’idealismo
tedesco III. Goethe e Schelling, 2003. Estetica dell’idealismo tedesco I. Kant e Schiller, 2005. La
sofferenza inutile in: Dostoevskij, in “ Giornale di Metafisica’, 4, 1982, 1, p. 123-170.
Heidegger: la libertà e il nulla, in: ‘Anuario filosofico’, 5, 1989, p. 9-29. La ‘domanda
fondamentale’:’Perché l’essere piuttosto che il nulla?’, in: ‘Anuario filosofico’, 8, 1992, p. 9-36.
La natura tra estetica e ontologia, in: ‘Anuario filosofico’, 9, Milano, 1993, p. 9-23. Essere e
libertà. Il principio e la dialetica, 1983, in: ‘Anuario filosofico’, 10, 1994, p. 11-88. Limito-
me aqui apenas as obras mais conhecidas. Ressalto, entretanto que as Obras Completas já
estão em vias de publicação.
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 137
3
Pareyson, Luigi. Teoria dell’Arte. Saggi di estetica, Milano, Marzorati, 1965, p. 53-54.
4
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
142 Íris Fátima da Silva
aquele que ela faz dispondo suas formas de um modo específico — e não
simplesmente o conjunto de juízos que ela eventualmente pronuncia sobre
determinado assunto. No seu conteúdo legítimo revela-se, então, o seu
próprio modo de formar, enquanto modo de ver a realidade e de atuar sobre
ela. É desse prisma que Pareyson teoriza a questão da autonomia da arte e
das suas relações com a realidade (Pareyson, ETF, 2005, 246).
De acordo com Pareyson a forma artística, é, essencialmente,
matéria formada, dizer que a forma é matéria formada significa dizer que ela
é, de per si, um conteúdo, um “conteúdo expresso”, para usar o termo de
Pareyson na forma artística, tudo está carregado de significação, até as
inflexões estilísticas mais discretas, enfim, tudo é significado. Dizer, pois,
que a forma é matéria formada é o mesmo que dizer que ela é coincidência
perfeita de forma e conteúdo: matéria formada é matéria humanizada,
espiritualizada, impregnada de significado e de expressividade. Observe-se
que essa identidade não é apenas entre forma e conteúdo, mas entre forma,
entendida como matéria formada, e conteúdo, entendido como conteúdo
expresso, o que pode ser traduzido em uma fórmula bastante ilustrativa:
forma = matéria formada = conteúdo expresso. A analogia dar-se devido ao
propósito que tudo que integra, especificamente, a composição da forma
artística ali está enquanto já assumido pelo gesto formativo do artista e em
submissão à lei orgânica que presidiu todo o processo. A obra de arte
apresenta-se, então, como uma contração orgânica de valores diversos,
dotada de legitimidade interna, de autônoma consistência e, ao mesmo
tempo, de uma basilar ligação com a realidade de onde brota. Vale dizer, ela
já insurge de suas posições com uma particularização própria (Pareyson,
ETF, 2005. PP, 46-47).
Ao que se refere à forma artística propriamente, esta apresenta-se
como resultado de uma gênese formativa que ela mesma dirige e que nela se
inclui de modo indelével. Esse acabamento, evidentemente, não é algo que
se acrescenta (como acontece, por exemplo, quando se faz consistir o
problema artístico em dar uma forma estética a um dado conteúdo), mas
subentende uma teleologia interna, explicada por Pareyson como uma
atuação da própria obra como formante, bem antes de se concluir como
forma formada. Entenda-se que o procedimento da arte contém em si
mesmo a própria direção, porque o tentar, não sendo nem preventivamente
regulado nem abandonado é por si só orientado pela passagem da obra a
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 145
Referências
PAREYSON, Luigi. La filosofia dell’esistenza e Carlo Jaspers, (1939), Napoli,
Loffredo, 1940. Marietti, Genova, 19973 (1931), è la rielaborazione del
vol. La filosofia dell’esistenza e Carlo Jaspers, Loffredo, Napoli, 1940. Si veda
in particolare l’introduzione alle p.3-29 (Lo Jaspers e l’esistenzialismo tedesco)
con continui riferimenti a Karl Barth.
_______ Studi sull’esistenzialismo, (1943), 2 ed., Firenze, Sansoni, 1971.
(nuova edizione; 1951). Si vedano in particolare i due studi su Barth:
L’esistenzialismo di Karl Barth, p.111-182, già apparso in «Giornale critico
della filosofia italiana», (1939); e La dialettica della crisi in Karl Barth,
p.183-205.
5
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sciarttext&pid=s0100_s12x2005000200018#mt10.
...uma perspectiva estética em Luigi Pareyson 147
Abstract: In this article we intent to show how called experimentalism is presented in the
written of the second period of Nietzsche’s production (1878-1882), as a strategy to fight
the “ideals” (that the result was a distancing from what Nietzsche understands as life) in the
metaphysical philosophy. Furthermore, it seeks to clarify how the use of this artifice helps to
decipher the phenomenon of life from a historical and physiological-psychological approach
to the science of art.
Keywords: Experimental procedure; Experimental; Physiological-psychology; Science
*
Professor de Filosofia da PUC-Paraná e membro do Grupo de Estudos Nietzsche. Email:
jelsono@yahoo.com.br Artigo recebido em 15. 06. 2009, aprovado em 18.12.2009.
1
Num fragmento da primavera-verão de 1888 (KSA 13, 16 [32], p. 292), Nietzsche fala em
Experimental-Philosophie. Segundo Giacóia-Júnior, “o discurso Nietzscheano
autodenomina-se ‘interpretação’, ‘experimento’, ‘ensaio’, ‘tentativa’, ‘hipótese regulativa’,
cujo resultado arrasta consigo a necessidade de um distanciamento em relação às próprias
posições assumidas. Trata-se, de um lado, de um contradiscurso, de contradicção que
dissolve pseudoevidências ou interpretações consolidadas, petrificadas, mostrando como a
elas se pode contrapor, com igual direito, interpretações subsistentes, em sentido contrário”
(1999, p. 137)
2
Nesse artigo usaremos as siglas convencionais para citação dos escritos de Nietzsche: HH I
(Humano, Demasiano Humano, vol. I); OS (Humano, Demasiado Humano II:
Miscelânea de opiniões e sentenças); AS (Humano, Demasiado Humano II: O andarilho e
sua sombra); A (Aurora); GC (A Gaia Ciência); KSA (Sämtliche Werke. Kritische
Studienausgabe – edição crítica em 15 volumes organizada por Giorgio Colli e Mazzino
Montinari); ZA (Assim Falou Zaratustra); BM (Além de Bem e Mal); GM (Para a
Genealogia da Moral); EH (Ecce Homo).
O experimentalismo contra os idealismos... 151
3
“A verdade não é algo que estaria presente aí e que deveria ser encontrado, descobreto, mas
algo a ser criado e que empresta o nome para um processo, melhor ainda, para uma vontade
de sobrepujar que propriamente não tem fim [...] (KSA 12, 9 [91], de 1887, p. 383).
152 Jelson Roberto de Oliveira
Construir novamente as leis da vida e do agir – para essa tarefa nossas ciências da
fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda
suficientemente seguras de si: somente delas podemos extrair as pedras
fundamentais para novos ideais (se não os próprios ideais mesmos). De modo que
levamos uma existência provisória [vorläufig, antes de] ou uma existência póstuma
[nachläufig, depois de], conforme o gosto e o talento, e o melhor que fazemos nesse
interregno, é ser o máximo possível nossos próprios reges [reis] e fundar pequenos
estados experimentais [Versuchsstaaten]. Nós somos experimentos [Wir sind
Experimente]: sejamo-lo de bom grado. (A, 453)
mundo” e que não pode ser alcançado pelo conhecimento a não ser em seu
caráter de inverdade, provisoriedade e desordem. Essa é a ideia que se
apresenta no parágrafo 344, de A Gaia Ciência:
Na ciência, as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas
razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um
ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser
concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento –
embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a
vigilância da suspeita.
4
São inúmeras as aparições do termo na obra de Nietzsche, com destaque especial para os
escritos do segundo período, entre os quais se destacam: AS, 267; GC, 51, 110, 324; além
de vários fragmentos póstumos desse momento. A primeira aparição da palavra, entretanto,
é do parágrafo 6 da segunda das Considerações Extemporâneas.
O experimentalismo contra os idealismos... 157
Um procedimento histórico-fisio-psicológico
Nos escritos que formam o período intermediário da obra nietzscheana, as
noções de história, fisiologia e psicologia são aproximadas e passam a definir
o que o filósofo entende como ciência. Como novo expediente de análise da
moralidade a noção de fisio-psicologia (Physio-Psychologie – BM, 23) faz ver
que os edifícios metafísicos não passam de construções históricas. Para o
5
Em HHI, 13 Erfahrung está ligado a “saber por experiência” e no § 16 associado à vida,
como ocorre em várias outras passagens de Humano, Demasiado Humano, no qual esse
termo aparece de forma constante.
6
O conceito se apresenta bastante frequentemente nos escritos de Nietzsche, mormente nos
do período intermediário, entre os quais se destacam os aforismos de Aurora: 113, 119,
137, 448; 476 (no qual estão associados os termos experiências e vivências). Além disso,
vários fragmentos póstumos trazem o termo, principalmente até os nos de 1885.
158 Jelson Roberto de Oliveira
7
Expressão também presente em ZA, I, Dos mil e um alvos. Segundo Rubens Torres Filho,
na sua tradução da obra de Nietzsche (Col. Os Pensadores), “na origem da palavra Mensch,
mannisco, substantivação do velho-alto-alemão mennisc (humano), encontra-se o radical
indogermânico men (pensar), o mesmo que em latim deu mens (mente) e mensurare
(medir). Talvez Nietzsche se refira a este último sentido, tanto mais que ‘pensar’ guarda
lembrança de: tomar o peso, ponderar. Schätzen por: estimar, avaliar, apreciar, daí
Schätzende, o que estima, o taxador” (Nietzsche, 1978, p. 233 ). É bom lembrar que a
própria ideia de moralidade em Nietzsche não é mais do que um processo de avaliação
realizado pelo “homem” a partir do “valor da vida”: “entenda-se moral como a teoria das
relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno vida” (BM, 19). Por outro lado,
lembrando a origem latina da palavra homem (humanus e homo remeteria a humus, ou seja,
terra), ou seja, aquele “nascido da terra” explica a insistência por parte de Nietzsche a
respeito da ascensão de uma moral que reconduza o homem de volta à terra, que mantenha
uma fidelidade à terra a fim de que “a terra um dia se torne do além-do-humano” (ZA,
Prefácio, 9).
160 Jelson Roberto de Oliveira
Humano são tratados os sentimentos morais a partir daquilo que ele chama
de ciência, caracterizada como uma filosofia histórico-fisio-psicológica, em
Aurora esses sentimentos são analisados em seus processos de valorações. Ou
seja, o que Nietzsche pretende mostrar nessas obras é que a base de toda a
moralidade é a interpretação e a avaliação a partir do que é humano e nelas
estão embasadas a própria razão e todas as experiências vitais.
Esse é o ensejo do experimentalismo praticado por Nietzsche e que
se confunde com a sua própria filosofia nesse segundo período: o que ele
entende como ciência é o que ele pratica como filosofia, e o que ele usa
como ciência não é um conjunto de fórmulas que conduz a uma finalidade
específica, mas um experimento rigoroso no qual não interessam os
resultados, mas a dinâmica da própria ciência como experimentalismo:
O valor de praticar com rigor, por algum tempo, uma ciência rigorosa não está
propriamente em seus resultados: pois eles sempre serão uma gota ínfima, ante o
mar das coisas dignas de saber. Mas isso produz um aumento de energia, de
capacidade dedutiva, de tenacidade; aprende-se a alcançar um fim de modo
pertinente. Neste sentido é valioso, em vista de tudo o que se fará depois, ter sido
homem de ciência. (HH I, 256)
Conhecimento e vida
Como se vê, a noção de experiência não diz respeito a algo que passa pela
racionalidade e se efetiva como uma teorização que poderia ser comunicada.
Não é algo que nasce de alguma observação racional em vista de uma meta
(seguindo um método) e, por isso, não pode ser pensado a partir de um
único significado, mas justamente aquilo que rompe com essa possibilidade
e conduz à noção de fluxo vital. É o que há de mais profundo na superfície
da existência e se efetiva de forma a caracterizar, compor e fazer parte do
experimentador, aquele que se deixa envolver no processo experimental. A
experiência, portanto, não tem neutralidade epistemológica e não se
expressa por um dualismo sujeito-mundo. Um e outro estão
interconectados para expressar um tipo de filosofia que integra pensamento
e vida, na medida em que o primeiro é sintoma da segunda e não pode
requerer qualquer estatuto de universalidade, estabilidade, unidade e
realidade (as bases da interpretação nietzcheana da metafísica e contra as
quais o filósofo dirige a sua crítica nos escritos intermediários).
A grande contribuição do “método científico” analisado por
Nietzsche nesse segundo período de sua produção, diz respeito à
possibilidade de que eles possam fomentar a desconfiança em relação às
crenças, convicções e idealismos criados pela metafísica, pela religião e pela
arte romântica. A ciência, tal como pensada por Nietzsche, ajudaria a
solapar as bases falsas que ergueram as verdades como algo último e
definitivo. Ela se apresenta como o processo pelo qual a falsa crença na
O experimentalismo contra os idealismos... 163
verdade e no ser (como algo supra-sensível) cai por terra e junto, todas as
superstições erguidas como sustentáculos de erros que se tornaram
inquestionáveis. Para isso o procedimento experimental se revela eficaz já
que é ele que possibilita a compreensão da condição perspectiva de toda a
realidade, como configuração provisória de forças em permanente conflito.
Através do experimentalismo, portanto, chega-se aos cômodos nos quais a
filosofia se torna avessa às dicotomias metafísicas e passa a reconhecer o
mundo como uma pluralidade de perspectivas e possibilidades. Algo sempre
incompleto, porque é o inacabado que serve de estimulante artístico (HH I,
199), é o incompleto que guarda uma maior eficácia (HH I, 178), pois
expressa a improvisação própria da vida, “numa miraculosa instantaneidade
da gênese” (HHI, 145). Esse processo liga o experimentalismo a uma
inspiração vital, a uma intuição repentina (HHI, 155) que expressa o prazer
com a existência (HHI, 222).
Ciência e arte
Note-se como aquilo que Nietzsche entende como experimentalismo ou
filosofia experimental, passa a articular o procedimento científico ao
procedimento artístico, já que conhecer é experimentar, experimentar é criar
e criar é viver. A compatibilidade entre o conhecimento e a criação artística
remete à necessária conciliação entre arte e ciência no que tange à
compreensão da filosofia experimental de Nietzsche.
Em primeiro lugar, é preciso constatar que Nietzsche compreende a
arte não apenas a partir das obras de arte (OS, 174), mas a partir de atitudes
artísticas. A arte das obras seriam meramente uma expressão do “excedente
de tais forças embelezadoras, ocultadoras e reinterpretantes” (OS, 174). Em
segundo lugar, é importante notar que a própria racionalidade é associada
ao gosto pelo regular, simétrico e ordenado (OS, 119) e se consolida a partir
desse impulso artístico que se encontra por trás da rotina científico-racional.
Os expedientes da ciência são fundados, portanto, por meio de uma
estruturação que remete ao sentido artístico que permeia a vida enquanto
tal. Todo gesto de conhecer, na medida em que é um gesto experimentador
(engendrador) de significado, revela o traço primodial da vida: “trata-se,
sem mais, da apropriação, por uma comunidade, de regiões ou fatias de
mundo, através da associação entre expectativas motivadas valorativamente
e tudo o que estiver disponível em termos de experiências, experimentos ou
164 Jelson Roberto de Oliveira
do que for aceito, por convenção, como fato” (Pimenta, 2000, p. 80). Todo
o conhecimento, se torna, assim, a partir do critério da utilidade para a vida,
algo arranjado segundo a função de segurança (revelada pelo gosto pelo
ordenamento, pela rotina e pela previsibilidade das formas).
É a “mentalidade artística”, portanto, que funda a prática
racionalizante. Mas é esse mesmo processo que será marcado pelo
esquecimento, em nome da formulação do status definitivo da razão. É essa
– vale lembrar – a conexão entre arte e conhecimento estabelecida no texto
Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, fazendo do ato de conhecer
um ato de criação de metáforas. Nietzsche quer mostrar o quanto a verdade
é uma criação articulada de sentidos e a filosofia uma composição de
experimentos que ganham algum significado.
O processo experimental se oferece assim, como medida de
autosuperação da verdade, por revelar que ela nasce do impulso artístico e se
expressa pela mesma transação: o que se torna erro, aqui, não é algo
contrário à verdade, mas a própria verdade – ou melhor, a crença na sua
existência e o rigor moralizante que ela inaugura. Liberada de uma
epistemologia cega e de uma moralidade corretiva, a verdade recupera o seu
caráter artístico no qual sobejam expressões do provisório e faltam
determinações de fundamentos. O recurso linguístico, agora, pela via da
retórica, experimenta a vida e ele mesmo, como forma de expressão, se torna
um experimento.
Vê-se como, então, a característica basilar do uso feito por
Nietzsche da noção de experiência é o que o autor mesmo autodenomina de
“novidade” na sua posição em relação à filosofia anterior e que serve de
antídoto ao aroma superlativo e adiposo que usualmente recobre a tarefa
científica: “a novidade na nossa atual posição sobre a filosofia é uma
convicção que ainda não teve época: a convicção de que não temos a verdade.
Todos os homens anteriores ‘tinham a verdade’, inclusive os céticos” (KSA
9, 3 [19], de 1880, p. 52). Como se sabe despossuidora da verdade, a
filosofia experimental de Nietzsche também reconhece a si mesma como
uma interpretação possível e não pretende que a sua própria assertiva seja
tida como verdade absoluta. Como interpretação, o âmbito da sua
efetivação não é a razão e sequer a comunicação linguística. A experiência
remete à vida, na sua indizível condição de fluxo de sentidos.
O experimentalismo contra os idealismos... 165
Referências
FINK, Eugen. La filosofía de Nietzsche. Versión española de Andrés Sánchez
Pascual. Madrid: Alianza Editorial, 1989.
GERHARDT, Volker. “The body, the Self, ad the Ego”. In: PEARSON,
Keith Ansell (Ed.). A Companion to Nietzsche. Oxford/Malden /Victoria:
Blackwell Publishing, 2006, p. 273-295.
GIACÓIA JÚNIOR, Oswaldo. Sonhos e pesadelos da razão esclarecida:
Nietzsche e a modernidade. Passo Fundo: UPF Editora, 2005.
_______ Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
(Col. Focus, 6)
HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
KAULBACH, Friedrich. Nietzsches Idee Einer Experimentalphilosophie.
Köln/Wien: Böhlau, 1980.
MARQUES, António. A filosofia perspectivista de Nietzsche. São Paulo:
Discurso editorial; Ijuí: Editora Unijuí, 2003. (Col. Sendas e Veredas).
MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2000.
NIETZCHE, F. Além do Bem e do Mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro.
Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2. ed., 2002.
_______ Assim Falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. 15ª
ed. Trad. de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_______ Aurora. Reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. de Paulo César
de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
_______ Ecce Homo. Como alguém se torna o que é; Trad., notas e posfácio
Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 2 ed.; 3
reimpressão.
_______ Genealogia da Moral. Uma polêmica. Trad. de Paulo César de
Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
_______ Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Trad.
de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000 (v. I) e 2008 (v.
II).
_______ Obras incompletas. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. (Col. Os Pensadores).
166 Jelson Roberto de Oliveira
Resumo: As referências a Nietzsche proliferam de tal forma ao longo dos quase trinta anos de
produção teórica de Foucault que fica evidente o forte elo que há entre ambos. Além disso,
um exame atento das análises foucaultianas sobre a emergência de um saber sobre o
indivíduo na modernidade revela que existem, do ponto de vista programático, afinidades
consistentes. No entanto, deixar de levar em conta eventuais dissonâncias ou mesmo
antagonismos resulta, ao mesmo tempo, numa abordagem superficial e incompleta. É
justamente o que se buscará evitar neste ensaio.
Palavras-chave: Afinidades; Arqueologia; Dissonâncias; Genealogia
Abstract: The references to Nietzsche proliferate in such a way along the almost thirty years
of Foucault’s theoretical work that is evident the strong link between them. Moreover, a
careful examination of Foucault's analysis on the emergence of a knowledge about the
individual in modern times shows that there are, from a programmatic point of view, solid
affinities. However, do not taking into account any dissonances or even antagonisms result,
simultaneously, in a superficial and incomplete approach. It is precisely what will look for to
avoid in this paper.
Keywords: Affinities; Archeology; Dissonances; Genealogy
1 Introdução
A data é vinte e nove de maio de 1984. Michel Foucault, ao ser levado a
falar dos filósofos que lhe parecem imprescindíveis, naquela que será a
derradeira de tantas entrevistas, acaba declarando: “sou simplesmente
nietzschiano, e tento ver, na medida do possível, sobre certo número de
pontos, com a ajuda de textos de Nietzsche – mas também com teses anti-
nietzschianas (que são completamente nietzschianas!) o que se pode fazer
neste ou naquele domínio”. 1 Num primeiro momento, essas palavras,
2
Foucault, M. Raymond Roussel, p. 10. Ressalte-se que Foucault acaba extrapolando os
limites impostos por Roussel e generaliza o “procedimento secreto”, aplicando-o
indistintamente aos demais livros dele.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 169
3
Deleuze, G. “Qu’est-ce qu’un dispositif?”, p. 192.
4
Foucault, M. “Sur la façon d’écrire l’histoire” (entrevista com R. Bellour) in Dits et écrits, I,
p. 599.
170 Luiz Celso Pinho
5
Foucault, M. “Qui êtes-vous, professeur Foucault?” (entrevista com P. Caruso) in Dits et
écrits, I, p. 613.
6
Foucault, M. “Entretien sur la prison: le livre et sa méthode” (com J.-J. Brochier) in Dits et
écrits, II, p. 753.
7
Foucault, M. “Entretien avec Michel Foucault” (com A. Fontana e P. Pasquino) in Dits et
écrits, III, p. 160.
8
Foucault, M. “Vérité, pouvoir et soi” (entrevista com R. Martin) in Dits et écrits, IV, p.
780.
9
Foucault, M. “Structuralisme et poststructuralisme” (entrevista com G. Raulet) in Dits et
écrits, IV, p. 446.
10
Essa afinidade em termos de metodologia é abordada por Machado na primeira parte de
Foucault, a ciência e o saber através do conceito científico, da descontinuidade histórica e da
normatividade epistemológica (cf. Machado, R. Op. cit., p. 15-47).
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 171
11
Foucault, M. L’ordre du discours, p. 74.
12
Foucault, M. “Revenir à l’histoire” (conferência) in Dits et écrits, II, p. 272. Na introdução
de A arqueologia do saber Althusser é saudado, indiretamente, pelo mesmo motivo (cf.
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 22).
13
Cf. Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, Primeira Conferência, p. 26-27.
14
Foucault, M. “Philosophie et psychologie” (entrevista com A. Badiou) in Dits et écrits, I, p.
446, os grifos são meus.
172 Luiz Celso Pinho
15
Foucault, M. Naissance de la clinique, p. XII.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 173
2 No labirinto discursivo
2.1 A história arqueológica
Em termos de registro temporal, o contato inicial entre Foucault e
Nietzsche ocorre, pelo que se pode apurar, no ano de 1953, com a leitura
das Considerações extemporâneas. 17 Desse encontro isolado surge, um ano
depois, Doença mental e personalidade – pequeno ensaio sobre as principais
teorias psicológicas a partir de meados do século XIX. Nada nele, porém,
tem parentesco com Nietzsche, o que, aliás, se estende aos demais ensaios
deste período. O único traço nietzschiano no trabalho de Foucault reside na
realização de alguns cursos. 18 Sua efetiva incidência ocorre somente na
passagem dos anos 50 para a década de 60, através de um duplo registro. O
mais expressivo (e difundido) diz respeito a Loucura e desrazão, publicado
em maio de 1961 como um dos requisitos necessários para a conclusão do
doutorado na Faculdade de Letras e Ciências Humanas de Paris
(Sorbonne), e que será reeditado onze anos depois com o antigo subtítulo:
História da loucura na época clássica. 19 Sua fonte de inspiração pode ser
pressentida logo no prefácio quando lemos que se trata de um
empreendimento realizado “sob o sol da grande pesquisa nietzschiana”, cuja
meta consiste, numa alusão a O nascimento da tragédia, em “confrontar as
dialéticas da história às estruturas imóveis do trágico”. 20 As páginas que se
seguem revelam um extenso estudo sobre o silêncio imposto ao louco a
partir da segregação institucional, da invalidação discursiva e do
16
Podemos incluir Raymond Roussel entre os textos metodológicos, pois, segundo Deleuze,
ele retrata uma “versão poética e cômica da teoria dos enunciados que Foucault cria em A
arqueologia do saber” (Deleuze, G. “Um retrato de Foucault”, p. 133).
17
Cf. Pinguet, M. “Les années d’apprentissage”, p. 130.
18
Cf. Defert, D. “Chronologie” in Dits et écrits, I, p. 19.
19
Nesta segunda edição Foucault redige outro prefácio (do qual desaparece qualquer menção
a Nietzsche), acrescenta dois textos em anexo e suprime algumas notas. Nas edições
posteriores a parte anexa será retirada.
20
Foucault, M. “Préface” (a Loucura e desrazão) in Dits et écrits, I, p. 162.
174 Luiz Celso Pinho
21
“A trajetória da questão: Was ist der Mensch? [O que é o homem?] no campo da filosofia se
encerra na resposta que a recusa e a desarma: der Übermensch [o super-homem] (Foucault,
M. Introduction à l’Anthropologie de Kant, p. 79). Esse ensaio teria sido batizado
inicialmente de Gênese e estrutura da Antropologia de Kant, numa alusão à obra que
Hyppolite dedica à elucidação da Fenomenologia do espírito de Hegel (cf. Defert, D.
“Chronologie” in Dits et écrits, I, p. 23).
22
Foucault, M. “Interview de Michel Foucault” (com J. François e J. de Wit) in Dits et écrits,
IV, p. 665.
23
Se bem que – como atesta o relato de Daniel Defert – no verso do original datilografado
de Doença mental e personalidade podemos ler que “existem três experiências vizinhas: o
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 175
26
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 264.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 177
27
Cf. Foucault, M. “Débat sur la poésie” in Dits et écrits, I, p. 398-9, e “Nietzsche, Freud,
Marx” in Dits et écrits, I, p. 570-1.
28
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 64-5. Foucault adota uma postura nominalista e
nega a existência do objeto “loucura” (ib., p. 45-6).
29
Foucault, M. “Les problèmes de la culture. Un débat Foucault-Preti” (entrevista) in Dits et
écrits, II, p. 372.
178 Luiz Celso Pinho
30
Foucault, M. “Qu’est-ce qu’un auteur?” (ensaio) in Dits et écrits, I, p. 817.
31
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 261.
32
Ib., p. 22.
33
Foucault, M. A verdade e as formas jurídicas, Primeira Conferência, p. 9.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 179
34
Foucault, M. L’usage des plaisirs, p. 12.
180 Luiz Celso Pinho
35
Ib., p. 12.
36
Ib., p. 21.
37
Ib., p. 13.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 181
3 Conclusão
A partir das pesquisas histórico-filosóficas de Foucault, fica patente que não
houve um diálogo ininterrupto com Nietzsche. Estamos diante de um
percurso sinuoso e intrincado, cujas peças que dispomos fazem parte de um
quebra-cabeça repleto de lacunas. Isso não significa que tenha faltado
coerência interna ao que foi dito e escrito por Foucault. O alerta feito por
Kant de que “não raro acontece, tanto na conversa corrente, como em
escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que
expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto
porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes,
falou ou até pensou contra a sua própria intenção” 38 , não se aplica a
Foucault. Vinculá-lo a uma suposta inconsistência teórica ou ausência de
rigor implica simplificação, já que ele pretendia, acima de tudo, escapar da
exigência – de cunho moral – de assumir uma identidade fixa, imutável.
Daí o desabafo na introdução de A arqueologia do saber: “que ela nos deixe
livres quando se trata de escrever”. 39
O estilo de Foucault está muito próximo de Proust, para quem “a
obra de um escritor é apenas uma espécie de instrumento ótico, oferecido ao
leitor a fim de lhe permitir discernir o que, sem o livro, ele não teria, talvez,
visto em si mesmo [...]: experimente se você enxerga melhor com esta lente,
com aquela, ou com outra”. 40 Também se aproxima do método de colagem
filosófica desenvolvido por Deleuze, no qual o texto estudado sofre
“pequenas ou grandes torções”, sendo “muitas vezes extraído de seu
contexto”, pois “os conceitos – considerados como objetos de um encontro,
como um aqui e agora, como coisas em estado livre e selvagem – são
38
Kant, I. Crítica da razão pura, p. 309.
39
Foucault, M. L’archéologie du savoir, p. 28.
40
Proust, M. A la recherche du temps perdu (“Le temps retrouvé”), p. 307-8.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 183
41
Machado, R. “A geografia do pensamento”, p. 16.
42
Heidegger, M. “Le mot de Nietzsche ‘Dieu est mort’”, p. 176.
184 Luiz Celso Pinho
43
Na questão do eterno retorno “o acento deve ser colocado sobre a perda da identidade
dada” (Klossowski, P. “Oubli e anamnèse dans l’experience vécue de l’eternel retour du
Même”, p. 94).
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 185
44
Nietzsche, F. Assim falou Zaratustra, I, “Da virtude que dá”, § 3.
45
“Qual grande filósofo foi casado? Heráclito, Platão, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant,
Schopenhauer não o foram. Um filósofo casado é coisa de comédia, eis minha tese”
(Nietzsche, F. Genealogia da moral, III, § 7).
186 Luiz Celso Pinho
4 Referências
DELEUZE, G. “Qu’est-ce qu’un dispositif?”. In: VV. AA. Michel Foucault
philosophe – rencontre internationale: Paris 9, 10, 11 Janvier 1988. Paris:
Seuil, 1989, p. 185-193.
_______. “Um retrato de Foucault”. In: Conversações (1972-1990).
Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: 34, 1992, p. 127-147.
FOUCAULT, Michel. Naissance de la clinique: une archéologie du regard
medical. Paris: PUF, 1972, edição modificada [1ª ed.: 1963].
_______. Raymond Roussel. Paris: Gallimard: 1992 [1ª ed.: 1963].
_______. L’ordre du discours: leçon inaugurale au Collège de France, 2
décembre 1970. Paris: Gallimard: 1971.
_______. Le mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris:
Gallimard, 1966.
_______. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
_______. A verdade e as formas jurídicas – conferências de Michel Foucault
na PUC-RJ de 21 a 25 de maio de 1973. Tradução de Roberto Machado e
Eduardo Jardim. Rio de janeiro: Nau, 1996 [1a impr.: 1974].
_______. Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975
(Coleção Tel, edição de bolso).
_______. La volonté da savoir (Histoire de la sexualité, t. I). Paris: Gallimard,
1976.
_______. L’usage des plaisirs (Histoire de la sexualité, t. II). Paris: Gallimard:
1984 (Coleção Tel, edição de bolso).
_______. Dits et écrits (1954-1988). Volumes I, II, III e IV. Paris:
Gallimard, 1994.
_______. “Introduction à l’Anthropologie de Kant”. In: KANT, E.
Anthropologie du point de vue pragmatique. Paris: Vrin, 2008, p. 11-79.
HEIDEGGER, M. “Le mot de Nietzsche ‘Dieu est mort’”. In: Chemins qui
ne mèment nulle part. Paris: Gallimard, 1962, p. 173-219.
KANT, I. Crítica da razão pura. 2ª ed. Tradução de Manuela Pinto dos
Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre
Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1989]
KLOSSOWSKI, P. “Oubli et anamnèse dans l’expérience vécue de l’éternel
retour du Même”. Nietzsche et le cercle vicieux. Paris: Mercure de France,
1969, p. 93-103.
A presença de Nietzsche na obra de Foucault 187
Abstract: This paper analyzes the indeterministic view of the epistemology of Karl Popper.
Since the unit understanding of Critical Rationalism, as epistemology and political
philosophy at the same time, the article shows in what sense the Popper's proposal reveals an
ethical issue of broad scope and interest in contemporary philosophy, particularly in the
analysis of the crisis of modern scientism.
Keywords: Critical Rationalism; Ethics; Indeterminism; Popper
*
Professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. E-mail: oliveira.p@pucpr.br.
Artigo recebido em 29.10.2009, aprovado em 19.12.2009.
em que eu havia crescido. Teve início a fase da guerra civil, que culminou com a
invasão da Áustria pelas tropas de Hitler e deu margem à Segunda Guerra
Mundial. Eu estava com 16 anos quando a guerra terminou, e a revolução incitou-
me a preparar minha própria revolução 1 .
Continuei socialista por vários anos, mesmo após rejeitar o marxismo. E se existisse
um socialismo capaz de combinar-se com a liberdade individual, eu seria ainda
hoje socialista. De fato, nada poderia ser mais aprazível do que viver uma vida
modesta, simples e livre, numa sociedade igualitária. Foi necessário algum tempo
para que eu percebesse que isso não passava de um sonho; que a liberdade é mais
importante do que a igualdade; que a tentativa de chegar à igualdade põe em
perigo a liberdade e que, perdida esta, aquela nem chega a implantar-se entre os
não-livres 3 .
1
Popper, 1977, p. 38.
2
Popper, 1977, p. 40-41.
3
Popper, 1977, p. 42-43.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 191
Por fim, Popper destaca, ainda nos relatos de 1919, seu encontro
com Einstein e a teoria da relatividade. Sem dúvida, este foi o encontro
decisivo de sua formação intelectual e não é exagero dizer que ali se deu o
início da formulação indeterminista do pensamento de Popper.
Einstein fez uma preleção em Viena a que compareci. Lembro-me apenas de que
fiquei deslumbrado.[...] Entretanto, o que mais me impressionou foi a explícita
asserção de Einstein, de que consideraria insustentável a sua teoria caso ela viesse a
falhar em certas provas. [...] Aí estava uma atitude completamente diversa da
atitude dogmática de Marx, Freud, Adler e mesmo de alguns de seus sucessores.
Einstein procurava experimentos cruciais, cujo acordo com suas previsões não
bastaria para estabelecer a teoria da relatividade, mas cujo desacordo, como ele
próprio insistia em acentuar, revelaria a impossibilidade de aceitar-se a teoria 5 .
Essa era, sentia eu, a verdadeira atitude científica. Ela diferia por completo da
atitude dogmática, que constantemente proclama haver encontrado ‘verificações’
de teorias prediletas. Cheguei, assim, em fins de 1919, à conclusão de que a
atitude científica era uma atitude crítica, em que não importam as verificações,
mas as provas cruciais – provas que poderiam refutar a teoria em exame,
conquanto jamais pudessem estabelecê-la ou prová-la 6 .
4
Popper, 1977, p. 43.
5
Popper, 1977, p. 43-45.
6
Popper, 1977, p. 45.
192 Paulo Eduardo de Oliveira
assumiu diante de tais fatos: ele não se tornou dogmático, assumindo o ideal
que lhe era apresentado; nem tampouco se tornou cético diante dos limites
teóricos que percebia. Ao contrário, assumiu uma posição ativa diante da
ciência e da ética, contribuindo para a construção de um modelo
epistemológico que minimizasse os limites observados até então.
7
Prigogine, 1996.
194 Paulo Eduardo de Oliveira
8
Popper, 1977, p. 43-54.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 197
9
Deve-se considerar, ainda, que o desenvolvimento das lógicas não-clássicas também
contribuiu para o desenrolar da crise que atingiu a ciência clássica. Frege, Gödel,
Lukasiewski, Cantor, entre outros, são nomes representativos que devem ser considerados.
De modo particular, deve-se ainda lembrar a contribuição do brasileiro Newton da Costa na
criação da lógica paraconsistente.
10
Popper, 1992, p, 115.
11
Popper, 1992, p, 115. (Popper faz referência à página 72 da versão inglesa de Conjecturas e
refutações).
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 199
seu racionalismo crítico. Isso nos impede de afirmar que há dicotomia entre
a epistemologia e a filosofia política popperianas. Ao contrário, há uma
unidade profunda, um vínculo estreito entre a “busca da verdade”, numa
natureza indeterminista, e a “busca de um mundo melhor”, no qual a
liberdade é o valor primeiro.
12
A esse respeito, cf. Oliveira, Paulo Eduardo. O critério de falseabilidade de Karl Popper: um
estudo crítico. Dissertação. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
1996.
13
Ver a esse respeito a obra de Imre Lakatos, o qual denomina falseacionismo ingênuo ao
método de Popper. Lakatos, Imre. La falsación y la metodología de los programas de
investigación científica. In: Lakatos , I. e Musgrave, A., 1975, p. 290.
14
Entre outros textos que discutem esta questão, veja-se Newton-Smith, W.H. Popper,
ciência e racionalidade, p. 21-40. In: O’Hear, 1997.
15
Thomas Kuhn mostra exemplos de mudanças de teorias na ciência que se deram por
razões que não se enquadram no modo de Popper compreender a “sucessão de teorias” na
200 Paulo Eduardo de Oliveira
história da ciência. Cf. a esse respeito: Kuhn, Thomas. A estrutura das revoluções
científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975.
16
Zahar, E. G. O problema da base empírica. p. 57 a 90. In: O’Hear, 1997.
17
Popper, En busca de un mundo mejor. Barcelona: Paidós, 1992, principalmente o Capítulo
6, “Contra as grandes palavras”.
18
Veja-se o texto de Popper “Replies to my Critics”, in Schilpp, 1974.
19
Popper, Karl. En busca de un mundo mejor. Barcelona: Paidós, 1992, p. 48.
20
Popper, 1974.
21
Popper, 1977.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 201
vai além dos muros da ciência, pois não é apenas uma teoria, mas uma
“atitude” 22 .
Da mesma forma como a temática epistemológica, a filosofia
política de Popper é alvo de críticas que, ao que nos parece, só contribuíram
para o debate ainda mais frutuoso das mesmas idéias. Pode-se citar, por
exemplo, as críticas à sua atitude de defesa do individualismo ético ou do
liberalismo, ou ainda a sua análise histórica do texto A miséria do
historicismo 23 . Tais críticas, reafirmamos, não foram capazes de encobrir a
importância da dimensão política de seu pensamento.
As proporções tomadas pela epistemologia e pela política na
filosofia de Popper não permitem uma separação entre o “filósofo da
ciência” e o “filósofo político”. Não há uma sobreposição entre estas duas
abordagens e nem mesmo a superioridade de uma em relação à outra. Em
alguns textos, percebe-se a tentativa de analisar separadamente as “duas
filosofias de Popper”. 24 Contudo, acreditamos que essa tentativa tem
somente uma função didática, permitindo uma análise mais detalhada de
um e de outro aspecto da obra popperiana.
Recentes estudos, aos quais vamos nos referir mais adiante,
mostram que a unidade da filosofia da ciência e da filosofia política de
Popper está no próprio conceito de racionalidade crítica. Porém, tal unidade
não é simplesmente metodológica, ela afirma-se sobre uma base ética,
anterior à própria epistemologia de Popper. A partir dessa perspectiva é que
queremos desenvolver a nossa investigação.
22
Popper, K. Texto da participação de Popper no seminário em Kyoto. In: Artigas, Mariano.
Lógica y ética en Karl Popper. Pamplona: EUNSA, 1998.
23
Um texto interessante sobre esse assunto pode ser encontrado em Minogue, Kenneth.
Popper explica a explicação histórica? p. 267 a 285. In: O’Hear, 1997.
24
Pereira, 1993.
202 Paulo Eduardo de Oliveira
25
Esta expressão denota uma referência à teoria darwiniana, a qual é muito cara a Popper.
Analogamente ao processo biológico onde as espécies melhor adaptadas superam as mais
fracas, no campo da ciência há um confronto entre teorias e as mais fortes sobrevivem.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 203
A teoria segundo a qual as nossas ações são determinadas por certas causas, e que
estas causas, por seu lado, são motivadas, ou causadas, ou determinadas por outras,
26
Popper, Um mundo de propensões. Lisboa: Fragmentos, 1991.
27
Idem, p. 46-48.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 205
etc., parece ser, na verdade, ela própria motivada pelo desejo de estabelecer a
ideologia do determinismo nos assuntos humanos. Mas, com a introdução das
propensões, a ideologia do determinismo evapora-se. Situações passadas, quer
físicas, quer psicológicas, quer mistas, não determinam uma situação futura. Mais
propriamente, determinam propensões inconstantes que influenciam situações
futuras sem as determinar num só sentido. E todas as nossas experiências,
incluindo os nossos desejos e os nossos esforços, podem contribuir, umas vezes
mais outras vezes menos, conforme o caso, para essas propensões 28 .
Esta visão das propensões permite-nos encarar de uma nova forma os fenômenos
que constituem o nosso mundo. O mundo já não é uma máquina causal – pode
ser visto agora como um mundo de propensões, como um processo de
possibilidades que se vão concretizando e de novas possibilidades que se revelam.
No mundo da física tudo isso é muito claro pois nele se produzem novos
elementos – novos núcleos atômicos – sob condições externas de temperatura e
pressão; elementos que só sobrevivem se não forem muito instáveis. E com estes
novos núcleos, com estes novos elementos, criam-se novas possibilidades,
possibilidades essas que pura e simplesmente não existiam antes. Finalmente, nós
próprios nos tornamos possíveis 29 .
28
Idem, p. 30.
29
Idem, p. 31.
30
Popper, 1975, p. 193 e seg.
206 Paulo Eduardo de Oliveira
31
Popper, O mito do contexto, p. 9.
... a questão ética da posição indeterminista de Karl Popper 207
E outro não poderia ser um seu conselho senão que devemos estar
sempre em busca e jamais satisfeitos com nossas próprias soluções para os
problemas que enfrentamos. Essa é a atitude popperiana, a atitude da
modéstia intelectual, a atitude que compreende o mundo como uma
realidade aberta, sem determinismos e, por tanto, sem donos da verdade:
... por muito satisfeitos que estejam com uma solução, nunca a considerem como
sendo a final. Existem excelentes soluções, mas não existe uma solução final. Todas
as nossas soluções são falíveis. Este princípio tem sido freqüentemente confundido
com uma forma de relativismo, mas é exactamente o oposto do relativismo.
Procuramos a verdade e a verdade é absoluta e objectiva, como o é a falsidade. Mas
qualquer solução para um problema abre caminho a um problema ainda mais
profundo. Que o meu conselho seja um marco no vosso caminho para uma vida
feliz e criativa 33 .
Referências
ARTIGAS, Mariano. Lógica y ética en Karl Popper (se incluyen unos
comentarios inéditos de Popper sobre Bartley y el racionalismo crítico).
Pamplona: Eunsa, 1998.
_______ Lógica y ética en Karl Popper. Conferencia proferida em Pamplona,
em 13 de janeiro de 1999.
_______ Karl Popper: búsqueda sin término. Madrid: Magisterio Español,
1979.
BOUVERESSE, R. (org). Karl Popper et la science d’aujourdhui. Aubier,
1989.
_______ y BARREAU, H. (org). Karl Popper. Science et philosophie. Vrin,
1991.
BOYER, A. Introduction à la lecture de Karl Popper. Presses de L’École
Normale Supérieure, 1994.
32
Popper, 1996, p. 114.
33
Popper, A vida é aprendizagem, p. 214.
208 Paulo Eduardo de Oliveira
*
Doutor em Filosofia pela Unicamp. E-mail: schererfabio@hotmail.com Este texto é fez
parte de uma pesquisa mais ampla (de doutorado) sobre a “teoria kantiana dos juízos
jurídico-políticos a priori”, desenvolvida na Unicamp e na Humboldt-Universität zu Berlin.
O trabalho doutoral foi orientado pelo Prof. Dr. Zeljko Loparic e pelo Prof. Dr. Volker
Gerhardt, e financiado pela FAPESP (2006 e 2009) e pelo DAAD (2007 e 2008). Artigo
recebido em 20.09.2009, aprovado em 10.12.2009.
Introdução
O procedimento categorial foi empregado por Kant somente parcialmente
em sua doutrina do direito. Todavia, nos Manuscritos da Rechtslehre é
possível encontrar pelo menos sete tentativas de construir uma tabela de
categorias do direito (cf. AA XXIII) 1 . A maior parte desses esboços (seis)
refere-se ao direito privado. A razão “oficial” pela qual Kant não adotou
essas tabelas de categorias no texto jurídico publicado é desconhecida. Sem
dúvida, não teria sido por tal emprego causar uma incoerência com o
sistema crítico, já que há, por um lado, a pretensão das categorias da
liberdade de fornecer não somente um plano de divisão de toda a ciência
prática deduzida de princípios, mas também a ordem que esta filosofia
prática deverá assumir (cf. KpV, 118-9) e, por outro lado, o fato das
categorias serem concebidas no plano geral do “sistema” crítico, enquanto
guias (Leitfaden) de toda investigação metafísica, garantindo, assim, a
aprioridade no campo científico. Consequentemente, se a doutrina do
direito for compreendida enquanto campo a priori de uma metafísica
especial, ela (doutrina do direito) deveria também ser construída a partir de
categorias 2 . Sou partidário de que esses Manuscritos são valiosos para a
interpretação da obra Metaphysik der Sitten.
O critério para a determinação da seqüência de abordagem das
tabelas de categorias 3 , adotado neste trabalho, foi a ordem dos conteúdos
1
Salvo indicação expressa, as referências aos textos de Kant serão realizadas a partir da edição
das obras completas, segundo Wilhelm Weischedel (Werke in sechs Bänden. Darmstadt,
Wissenschaltliche Buchgesellschaft, 1983). As indicações a Kant serão feitas por abreviação
do título original da obra e página. Já as referências a outros autores serão realizadas por
nome do autor, ano de publicação da obra e página.
2
Segundo Ritter, o texto Kritik der praktischen Vernunft e o Metaphysik der Sitten carecem de
uma dedução das categorias. As determinações categoriais nessas obras, bem como nos
manuscritos da Rechtslehre, podem ser caracterizadas somente enquanto uma transferência,
no primeiro caso, das categorias especulativas, e, no segundo caso, das categorias
especulativas e das infundadas categorias práticas (cf. Ritter, 1971, 282-7). Contra essa
crítica, vale lembrar que as categorias não são suscetíveis a meramente transcrição. Elas
deixam serem deduzidas somente sob determinados pressupostos teóricos fundamentais,
como é explicitado por Kant em vários exemplos.
3
Esses esboços de categorias do direito e sua organização numa possível tabela – tal como a
determinação categorial do conceito de direito enquanto categoria da possibilidade de
arbítrio em comum - é fruto da década de 90 (não podendo ser encontrado nas reflexões
pré-críticas entre 1772-5, como sugere Ritter, 1971, 88).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 213
4
Esses “Rascunhos” chamam a atenção pela sua coesão e sistematicidade. Eles são marcados
pela tentativa kantiana de classificar os conceitos fundamentais da doutrina do direito
numa tabela, pela reflexão sobre uma possível esquematização dos conceitos jurídicos e das
proposições sintéticas a priori resultantes desta simbolização, bem como pelo problema de
aplicabilidade desses conceitos e proposições.
214 Fábio César Scherer
Tabela I
Essa modalidade refere-se quer à relação do arbítrio para a coisa, quer ao arbítrio
para com o arbítrio, quer à pessoa para com a pessoa enquanto (instar) coisa, e a
aquisição é:
a) a apreensão
b) a aceitação
c) a constituição, isto é, a constituição na relação privada da pessoa (AA XXIII,
238/9) 5 .
5
Einteilung der allgemeinen Rechtsgesetze:
„Denn zwischen Freyheit und Willkühr finden vierley Beziehungen statt. 1. Der Freyheit
zur Freyheit. Allgemeinheit des Rechtsprinips überhaupt 2. Die Übereinstimmung der
Willkühr mit der Freyheit die qvalität des Rechts 3. Der Freyheit mit der Willkühr eines
jeden die Relation der Willkühr zu Objecten. 4. Der Willkühr mit der Willkühr a. die
Möglichkeit der Vereinigung derselben b. die Wirklichkeit (actus) der Vereinigung c.
Nothwendigkeit die Beharrlichkeit die schon im Begriffe liegt. - Diese Modalität betrift
entweder das Verhältnis der Willkühr zu Sachen, oder der Willkühr zur Willkühr oder der
Person zur Person als (instar) Sache und die Erwerbung ist a) der Apprehension b) der
acceptation, c) der Constitution d.i. der Verfassung im Privatverhältnis der Person” (AA
XXIII, 239).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 215
Tabela II
6
Die Rechtsbegriffe sind Kategorien der Möglichkeit dieser gemeinschaftlichen Willkür:
„1. Der Qvantität nach die der Allgemeinheit der Einstimmung zu diesem Gesetze 2. der
Qvalität nach die des Besitzes, der Beraubung desselben (res nullius) der Einschränkung 3.
der Relation a, zu Sachen, b Personen c, der Personen als Sachen 4. der modalität, a
mögliche Vereinigung b, wirkliche c nothwendige nach den drey Categorien der relation.
Alle diese gehen vor dem Verhältnis in Raum und Zeit voraus und das Mein und Dein in
Raum und Zeit wird durch jene Categorien bestimmt” (AA XXIII, 302).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 217
Tabela III
a) Relação: direito a uma coisa, direito a uma pessoa e direito a uma comunidade.
7
Kategorien der Quantität und Qualität des Rechts:
„1.) Mathematische der Freyheit eines jeden in der synthetischen Einheit der Willkühr zur
formalen Bestimmung des Rechts damit niemand dem Andern Unrecht thue.
a Einseitige, Vielseitige allseitige Bestimmung der Willkühr zu synthetischer Einheit b)
Geboth, Erlaubnis und Verboth.
2.) Dynamische der Relation und Modalität in Ansehung der Realität der Willkühr in
Absicht auf ihr Object. Ein Recht der Materie nach (nicht blos der Form dadurch
vorgestellt wird daß etwas Recht sey) a Relation. Sachenrecht, persönliches Recht
Gemeinschaftsrecht. b) Modalität. Möglichkeit der Vereinigung der Willkühr über ein
Object, Wirklichkeit dieser Vereinigung (im pacto) und Nothwendigkeit dieser Vereinigung
in der vnione civili als dem einzigen statu legali” (AA XXIII, 218).
218 Fábio César Scherer
8
Sob “forma” do direito está subentendido a forma das relações da vontade e não das
proposições jurídicas formais.
9
Uma das vantagens da estruturação dos conceitos em categorias é o auxílio na completude
das formulações. Um exemplo disso pode ser verificado na categoria de qualidade da tabela
II (comando, permissão e proibição). As leis permissivas, abordadas pelos teóricos do
Esboços de categorias no direito privado kantiano 219
Tabela IV
As categorias são 10 :
direito natural enquanto exceções às leis passam a ser vistas, através da “estrutura
categorial”, enquanto necessárias. No geral, é exigido que as leis devam ser fundamentadas
na necessidade prática objetiva. O seu poder de coagir advém de sua aprioridade. Ocorre
que as leis permissivas se fundamentam na contingência prática de certas ações; sendo
introduzidas na lei pela tradição jurídica, somente de modo causal (principalmente, no
direito estatutário). O filósofo Königsberg encontra a solução desse problema numa razão
sistematicamente classificadora. A derivação segundo um princípio, por fornecer um ponto
de partida a priori, assegura a necessidade das leis permissivas. De acordo com a
reivindicação kantiana, as leis permissivas devem ser tratadas enquanto condições
limitativas da lei imperativa (cf. EwF, Anm., BA 16-7). Na introdução à obra Metaphysik
der Sitten, Kant caracteriza uma ação que não está ordenada ou proibida enquanto
simplesmente permitida, uma vez que não há nenhuma lei que limite a liberdade
(permissão) e, logo, qualquer dever (cf. MS, AB 21-22). Quanto à função das leis
permissivas da razão prática, veja MS R, AB 58.
10
Tomei a liberdade de introduzir acréscimos (entre parênteses), visando favorecer fluidez na
leitura desse fragmento.
220 Fábio César Scherer
posse) não reduz a liberdade de ninguém que esteja conectado com a ação justa
(actione iusta), (porém limita), já que a liberdade de cada um é restringida
através desse direito.
11
Die Kategorien des Rechts, welche die Willkür schlechthin bestimmen:
„Diese Categorien sind 1. der Größe Allgemeinheit, jeden zu zwingen, der im physischen
Besitz der Sache ist die mir angehört 2.) der Qvalität wie Rechte erworben verlohren
eingeschränkt werden als Realität eines Besitzes nicht blos der Freyheit der die Negation
blos Keinem seyne Freyheit zu schmälern entgegen steht, die mit der actione iusta
verbunden ist u. die limitation da die Freyheit eines jeden durch dieses Recht eingeschränkt
wird. 3. der Relation a) der Sachen in Substanz (die auch für sich ohne Wirkung meiner
Willkühr existiren b) der Handlung eines andern: wozu ihn meine Willkühr nöthigt c) der
Gemeinschaft da einer des andern Person d. i. einen gewissen Zustand desselben von ihm
abhängig macht in welchem jener blos durch die Willkühr des andern ist.
d) der Modalität da dieses Recht entweder selbst blos möglich oder auch wirklich oder auch
jedem Menschen nothwendig zukommt” (AA XXIII, 298).
12
Embora essa ordem categorial não seja adotada no texto publicado do direito, há alguns
aspectos similares. Por exemplo: no § 2 do direito privado quanto à categoria de quantidade
e qualidade (cf. MS R, AB 57) e o § 4 no que diz respeito à categoria de relação (cf. Ibid.,
AB 59-60).
13
Esta analogia foi utilizada no § E do texto da introdução à doutrina do direito (cf. MS, AB
37).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 221
Tabela V
Quantidade
1. arbitrário
2. consentido (permitido) por um outro
3. deduzido da posse de todos
Qualidade
1. da faculdade do emprego
2. da independência de uma coisa do uso de outro, isto é, da liberdade
3. da restrição do arbítrio dos outros através da minha liberdade
Relação
14
“Handle so, daß nach Prinzipien der Freiheit deine Willkür mit anderer ihrer in Ansehung
ihrer Objekte überhaupt zusammen bestehen kann” (AA XXIII, 297).
222 Fábio César Scherer
Modalidade
1. direito provisório (estado de natureza “facto”)
2. direito adquirido (direito privado “pacto”)
3. direito externo inato (direito público “lege”) (AA XXIII, 218) 15
15
Tafel der „12 Categorien des blos-rechtlichen Besitzes”:
„Mein Recht ist der Qvantität 1.) eigenmächtig 2.) eingewilligt von einem anderen 3.
abgeleitet vom Besitz aller - der Qvalität 1.) des Vermögens des Gebrauchs 2) der
Unabhängigkeit einer Sache vom Gebrauch anderer d.i. der Freyheit 3.) der Einschränkung
der Willkühr anderer durch meine Freyheit. - Der Relation 1.) der Substanz d. i. der
Sachen 2. der Caußalität, des Versprechens Anderer 3. der Gemeinschaft, des
wechselseitigen Besitzes der Personen. - Der Modalität 1.) provisorisches Recht. 2.
erworbenes 3. angebohrnes äußeres Recht” (AA XXIII, 274).
Esboços de categorias no direito privado kantiano 223
diferentes status jurídicos que uma declaração sintética de posse poder ter:
possível, efetivo e necessário. No estado de natureza, em que a posse e o
poder estão concentrados nos singulares, o direito pode ser somente
provisório, isto é, possível. No estado privado (quase-civil), através da
adesão a um contrato jurídico privado, no qual há uma mediação com a
vontade de outros sujeitos, o direito passa a ser efetivo, contudo, a posse é
ainda vulnerável. É somente com o estado civil e com o poder de coerção
pública (possibilidade real de impedimento de qualquer obstáculo ao uso
externo da minha liberdade) que fica garantido, de forma necessária, o meu
direito de posse.
Há alguns aspectos simétricos dessa tabela V que devem ser
observados. Primeiro, a correspondência das subdivisões de cada uma das
quatro posições categoriais com os três momentos distintos do direito. As
primeiras subdivisões referem-se ao estado de natureza, ainda na ausência do
direito. As segundas subdivisões tratam do direito privado interpessoal,
marcado pelo direito contratual. Já as terceiras subdivisões pressupõem uma
constituição civil, condição necessária para o asseguramento da posse
inteligível. Essa classificação kantiana é realizada com o intuito de demarcar
os três momentos elementares da efetivação do direito (não havendo relação
direta com momentos históricos passados). Segundo, somente com a
instauração do direito público é que o direito alcança a sua efetividade
completa. Terceiro, é através dessa efetividade que pode se estabelecer uma
teleologia histórico-universal; como Kant, de fato, faz sobre a perspectiva do
direito das gentes. Quarto, à efetivação do direito irão sempre pertencer
momentos do estado de natureza e do direito privado. Não é à toa que o
direito natural é dividido, por Kant, em direito privado e direito público (cf.
MS, AB 52). Quinto, o direito privado é construído e validado pelo seu
enfoque na constituição civil. O direito privado não desaparece com a
entrada em vigor do direito público. O que deixa claro a simultaneidade dos
vários status do direito em Kant. A tabela das categorias indica que essa
simultaneidade tem também motivos lógico-transcendentais.
Ainda, quanto à tabela V, pode se constatar que os seus conceitos
jurídicos, analogamente à estrutura das categorias especulativas, também
deixam ser divididos em dois grupos: matemáticos e dinâmicos. O primeiro
grupo trata da determinação da unidade do arbítrio em vista da posse de um
objeto e, o segundo grupo, que se preocupa com a existência dos objetos,
224 Fábio César Scherer
Tabela VI
16
Kategorien der Gewalt über Sachen (Besitz eines Objekts):
„1.) Der Besitz einer Sache 2.) des erklärten Willens einer Person 3. der Besitz einer Person
gleich als der Besitz einer Sache. In Beziehung auf den ersteren darf die Vereinigung der
Willkühr nur als möglich auf den zweyten Besitz muß sie als wirklich in Beziehung auf den
dritten als nothwendig angesehen werden. Die erste geht aufs Object als Substanz, die
zweyte als Handlung, die dritte als wechselseitiger Einflus, die erste ist Gründung eines
Besitzes die zweyte Ausschließung die dritte Einschränkung eines Besitzes durch das Recht
Esboços de categorias no direito privado kantiano 225
A posse de um objeto é:
1. enquanto posse de uma coisa (direito a uma coisa)
a) da quantidade segundo unidade (um contra um)
b) da qualidade segundo realidade (fundamentação de uma posse)
c) da relação segundo substância (tratamento do objeto enquanto substância)
d) da modalidade segundo possibilidade (associação possível do arbítrio)
3. enquanto a posse de uma pessoa igual posse de uma coisa (direito a uma pessoa
em afinidade com um direito a uma coisa)
a) da quantidade segundo totalidade (um contra todos)
b) da qualidade segundo limitação (restrição de uma posse através do direito do
outro)
c) da relação segundo comunidade (objeto enquanto influência recíproca)
d) da modalidade segundo necessidade (associação necessária do arbítrio em vista
da posse) (Sänger, 1982, 217).
des andern. Endlich Eines gegen Einen oder eines gegen viele oder eines gegen jedermann”
(AA XXIII, 216).
226 Fábio César Scherer
Considerações finais
A validade (legitimidade), consequentemente, a utilidade dos esboços
categoriais jurídicos depende da demonstração da necessidade das categorias
no contexto de fundamentação sistemática da doutrina do direito
apriorística. Em outras palavras, deve-se demonstrar como é possível extrair
das categorias proposições sintéticas a priori do direito enquanto princípios
da possibilidade de experiência, já que, do ponto de vista dos objetos do
arbítrio livre em geral, as proposições são analíticas (cf. AA XXIII, 276).
Esse quadro conceitual delimitado a priori é pressuposto na resposta do
problema central da Rechtslehre: como são possíveis proposições sintéticas a
priori do direito 18 ?
17
De acordo com Kant, “os conceitos do direito se tornam conhecimento somente se for
apresentada a vontade do outro, como ela aparece (erscheint) e como se manifesta
(offenbart) externamente aos sentidos” (cf. AA XXIII, 277).
18
As resoluções dos problemas da validade de proposições jurídicas analíticas e os das
Esboços de categorias no direito privado kantiano 227
Referências
BUCHDA, Gerhard. Das Privatrecht Immanuel Kant (Der erste Teil der
Rechtslehre in der Metaphysik der Sitten). Ein Beitrag zur Geschichte und zum
System des Naturrechts. Jena, Frommann, 1929.
DULCKEIT, Gerhard. Naturrecht und positives Recht bei Kant. Leipzig,
Deichert, 1932.
HANNA, Robert. Kant and the foundations of analytic philosophy. Oxford,
sintéticas a priori (do direito) são distintas. A determinação da verdade das proposições
analíticas pode ser dada, conforme a Kritik der reinen Vernunft, segundo leis da lógica e de
regras de significação da linguagem. No caso das proposições jurídicas analíticas, elas se
mostram evidentes a partir do direito inato e podem ser decididas quanto a sua verdade
mediante o princípio de contradição. Já quanto à verdade das proposições sintéticas a
priori, elas não podem ser extraídas somente por leis lógicas. É necessário também outros
princípios de validade, tais como a relação (direta ou indireta) com o campo da experiência,
possibilitada pelo esquematismo (em geral).
228 Fábio César Scherer
Martha de Almeida *
Resumo: O sublime vem sendo analisado desde a antiguidade com uma marcante relação
com a tragédia, seja como gênero literário, seja por meio da Poética, de Aristóteles que nos
traduz pela catarse o sentimento do sublime. Na modernidade, novos nomes foram
chegando para colaborar com esta teoria: o próprio Hume, em seu ensaio Da tragédia,
mostrou-se impressionado com a capacidade que esta forma de arte tem de produzir efeitos
tão intensos no espectador. Porém, quem mais fortaleceu a análise do sublime na
modernidade, servindo de base para o próprio Kant foi Edmund Burke, com sua obra Uma
investigação filosófica sobre as idéias do sublime e do belo. A terceira crítica de Kant dedicou um
momento especial à analise do sublime, a qual já havia servido como base também para
Schopenhauer que, no entanto, a partir dela, construíra sua própria estética que viria a ser de
suma importância para o jovem Nieztsche, sobretudo devido à consideração da música como
arte sublime. Nietzsche, então, construiu sua sabedoria trágica,com base na experiência
sublime da tragédia. A questão que este artigo quer tratar é exatamente: é possível pensar
numa metafísica do sublime ,com base em Nietzsche ?
Palavras-chaves: Kant; Metafísica; Nietzsche; Schopenhauer; Sublime
Abstract: The sublime has been analyzed since ancient times with a striking compared with
tragedy, whether as a literary genre, whether through Poetics, Aristotle's catharsis we translate
the feeling the sublime. In modernity, new names were coming to work with this theory:
Hume himself, in his essay The Tragedy, was impressed by the ability of this art form has to
produce such strong effects on the viewer. But who else has strengthened analysis of the
sublime in modernity, providing the basis for their own Kant was Edmund Burke, with his
piece A philosophical investigation on the ideas of the sublime and the beautiful. The third
criticism of Kant devoted a special moment to the analysis of the sublime, which had served
as basis also for Schopenhauer, however, from her built his own aesthetic that would be of
paramount importance Nieztsche for the young, mainly due to the consideration of music as
sublime art. Nietzsche, then built his tragic wisdom, with based on the experience of the
sublime tragedy.The question this paper wants to treat it exactly: It is possible think of a
metaphysics of the sublime, based on Nietzsche?
Keywords: Kant; Metaphysical; Nietzsche; Schopenhauer; Sublime
*
Doutoranda do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro- bolsista do CNPq. E-mail: marthinhadealmeida@gmail.com Artigo recebido
em 15.09.2009, aprovado em 20.12.2009.
1
Cf. Aristóteles, Poética 14, 1453 b 10
2
Cf.Barbas, 2006.
232 Martha de Almeida
nos estudos sobre o sublime que se apontava como um tema próprio para
um estudo psicológico a ser estudado por filósofos que se interessavam pela
relação entre as emoção humana e seu objeto.
Burke acreditava que os antigos não haviam separado
adequadamente o belo do sublime, e que por alguma falha ou necessidade
de valorizar a arte na antiguidade estes a teriam associado a sentimentos
morais. 3 Como podemos ver nas palavras do autor:
a aplicação geral desta qualidade (a beleza) à virtude alimenta uma forte tendência
para confundir as nossas idéias das coisas; e tem dado origem a uma quantidade
infinita de teoria excêntricas; como a de atribuir a beleza à proporção, congruência
e perfeição, bem como a qualidade das coisas ainda mais remotas das nossas idéias
delas, e umas das outras; tenderam para confundir as nossas idéias de beleza, e
deixaram-nos sem padrão ou regra para julgar, que não fosse ainda mais incerta e
falaciosa que nossas próprias fantasias . 4
3
Cf Burke.p.112
4
Idem.p.112.
Por uma metafísica do sublime 233
5
Ibidem.Edição de 1756, III, p. 27
234 Martha de Almeida
6
Kant, 1995 p. 89-90.
7
Idem,p. 104-105.
8
Ibidem.Cf.§ 25 p.93
Por uma metafísica do sublime 235
9
Ibidem.p. 93-99
10
Ibidem.p.107-108.
11
Ibidem. .p.14.
236 Martha de Almeida
12
Schopenhauer, 2005 § 1.
Por uma metafísica do sublime 237
13
Machado, 2006, p.167-168.
238 Martha de Almeida
rege nosso mundo submete todos os indivíduos à roda de desejo que nunca
cessa, fazendo que os indivíduos só busquem a satisfação de suas
necessidades. Como tão bem retrata as palavras do próprio Schopenhauer:
14
Schopenhauer, 2005, p. 266
15
Nunes, 2000 p.66.
16
Silva, 1891.p.583.
17
Idem. p. 872.
Por uma metafísica do sublime 239
18
Schopenhauer 2005, p. 14.
240 Martha de Almeida
19
Cf.Schopenhauer, 2005, § 25.p.191 e achado,2006, p. 172.
Por uma metafísica do sublime 241
20
Schopenhauer, 2005, p. 252.
21
Idem § 34 p. 246.
Por uma metafísica do sublime 243
individualidade é que o sujeito, como puro sujeito que conhece, deixa de ser
um sujeito, tornando-se capaz de contemplar as essências, ou seja, as idéias,
e de produzir arte a partir de sua contemplação. Neste sentido, a memória
desta momentânea contemplação é responsável pelas manifestações artísticas
que tem lugar no mundo do ponto de vista da representação.
Esse momento de contemplação estética é prazeroso, já que todo
indivíduo sente no próprio corpo a necessidade imposta pela vontade, neste
sentido, a contemplação garante ao homem uma pausa em seu sofrimento
existencial por meio da suspensão do querer.
Neste momento, entra em cena o gênio artístico como aquele que
tem a aptidão de conhecer as idéias como puro sujeito do conhecimento,
independente do princípio de razão, ou seja, das relações de espaço, tempo e
causalidade.
Schopenhauer entende o homem comum como um produto de
fabrica da natureza produzido aos milhares todos os dias, incapaz de deter-se
numa contemplação estética desinteressada, completamente preso ao
mundo dos fenômenos e das suas relações. 22 Porém, embora pareça
paradoxal, Schopenhauer acredita que todo o homem possui a capacidade
de contemplar as idéias ainda que não a utilize. Por mais que Schopenhauer
apresente o gênio, como um representante dessa facilidade que é a captação
das idéias através do rompimento das malhas individuais, o filósofo acredita
que todos os homens possuem essa capacidade em diferentes graus,
argumentando que se estes não a tivessem, eles seriam completamente
insensíveis a tudo que é belo e sublime. Assim, Schopenhauer acredita que
devemos conceder a todos os homens o poder de separar as idéias das coisas
através da capacidade de elevação, ainda que momentânea, da própria
individualidade.
Porém, ao analisarmos as artes, que nos são trazidas pelo gênio,
temos que reconhecer que não podemos entendê-lo como um criador, já
que este não faz mais do que trazer para o mundo fenomênico aquilo que
conseguiu apreender através da contemplação da Idéia. 23 Na descrição dada
por Schopenhauer em suas anotações de aula que foram publicadas na obra
Metafísica do belo, onde encontramos a genialidade muito bem definida,
22
Ibidem.Cf.§ 37.
23
Pernin, 1995, p. 120
244 Martha de Almeida
24
Machado, 2006, p.181
25
Schopenhauer, 2005 p. 103
Por uma metafísica do sublime 245
26
Kant,1995,p..93-123
27
Nabais, 1997, p. 39
246 Martha de Almeida
28
Cf. Schopenhauer, 2005, p.274.
Por uma metafísica do sublime 247
29
Cf. Schopenhauer, 2001, § 39. p. 214, e 2005, mesmo parágrafo
30
Idem. pág.217
248 Martha de Almeida
31
Nabais, 1997, p. 50
Por uma metafísica do sublime 249
filósofo entende que o conflito trágico traduz o conflito da Vontade com ela
mesma.
Desta forma, o filósofo afirma que querer que a tragédia pratique o
que entendemos como justiça poética significa desconhecer profundamente
sua essência tanto no que diz respeito ao mundo transcendental da Vontade
quanto ao mundo das representações ao qual todos nós estamos presos.
Desta maneira, Schopenhauer tem uma visão pessimista do mundo
e da tragédia, na medida em que esta forma de arte expressa os infortúnios
da humanidade diante da existência, sempre presa à necessidade de uma
Vontade que só sabe querer, sentida no homem como incessante angústia,
desejo latente, sofrimento gerado pela eterna insatisfação. Neste
movimento, a tragédia expressa seu conflito consigo mesma seja na
dimensão humana e porque não dizer, em todo o plano fenomênico.A
tragédia é, então, reconhecida como o ápice da arte poética exatamente por
retratar a essência da nossa visão de mundo: o lado mais terrível da vida, o
sofrimento e a miséria humana, a vitória da maldade, a soberania do acaso, e
a inevitável queda do justo e do inocente.O conflito da Vontade consigo
mesma, essa vontade única que vive e reaparece em fenômenos que se
combatem e se devoram.
Assim, de tanto sofrimento o indivíduo se enobrece atingindo um
ponto onde o fenômeno do mundo não mais o ilude.
Neste sentido, na tragédia os heróis não expiam seus pecados
individuais, mas sim o pecado original, a culpa pela existência.
A tragédia possui um alto grau de objetivação das Idéias, enquanto
manifestações mediatas da Vontade, mais só a música expressa a vontade
diretamente. A música apropriada a um espetáculo, como no caso da
tragédia, é capaz de nos revelar o sentido mais profundo de cada
acontecimento narrado, promovendo uma ilustração mais clara, mais exata
do espetáculo permitindo que o espectador consiga acessar o sentido mais
íntimo desta manifestação artística, fazendo com que este se identifique com
o espetáculo através de sua identificação com as situações e personagens que
aparecem ao longo da narrativa. Nas palavras de Schopenhauer 32 :
O que distingue a música das outras artes é que ela não é uma reprodução do
fenômeno, ou melhor dizendo, da objetividade adequada da Vontade; ela exprime
32
Schopenhauer, 2001, § 52, p.276.
250 Martha de Almeida
33
Cf. Nietzsche, 1992, p. 56.
34
Cf. Brum,1998, p. 101.
Por uma metafísica do sublime 251
35
Cf. Nietzsche, 1992, p. 30.
36
Idem, p..30-31, 34.
252 Martha de Almeida
Referências
ALLlSON, Henri E. El idealismo transcendental de Kant: uma interpretácion
e defensa. Barcelona: Anthropos, México, 1992
ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pensée. 3 vols. Paris:Gallimard,
1958.
BARBAS, Helena.O sublime e o belo: de Longino a Edmund Burke.
Universidade de Nova Lisboa: Portugal, 2006.
BARBOZA, Jair.A Metafísica do Belo de Arthur Schopenhauer.São Paulo:
Humanitas/ FFLCH/USP, 2001.
BAYER ,Raymond. História da Estética.Lisboa:Estampa,1979.
BRUM, José Thomaz. O pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e
Nietzsche. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
_______ “Visões do sublime: de Kant a Lyotard”. In: Kant - crítica a
modemidade. São Paulo: SENAC, 1999.
BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias
do sublime e do belo. Trad. Enid Abreu Dobianszky. São Paulo: UNICAMP,
Papiros, 1993.
CASANOVA, Marco Antônio. O instante extraordinário: vida, história,
valor na obra de Friedrich Nietzsche. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche et Ia philosophie.Paris:PUF, 1985.
_______ Nietzsche.Lisboa, Edições 70, s/d.
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
_______ Nietzsche educador. São Paulo: Scipione, 1993.
_______ “Música e tragédia no pensamento de Nietzsche”. In: Cademos de
Memória Cultural 3, voI. I, n03, p. 1-80, outubro 1997/março 1998, p.58.
FOGEL, Gilvan. Nietzsche e a arte. Rio de Janeiro: Funarte, 1984.
254 Martha de Almeida
Costica Bradatan *
A tradição platônica
Definindo a tradição platônica
Não é fácil definir o “platonismo” ou a “tradição platônica”. Mais ainda
num texto que não trata do platonismo enquanto tal, mas principalmente
da filosofia de Berkeley e de uma possível conexão entre esta e certos
elementos da tradição platônica. Parece-me nesse ponto que uma solução
razoável (ainda que oblíqua) para a dificuldade consistiria em simplesmente
começar esta discussão sem tentar oferecer uma definição completa,
*
Assistant Professor, The Honors College, Texas Tech University. E-mail:
costica.bradatan@ttu.edu O texto aqui traduzido corresponde ao Capítulo 1 do livro The
Other Bishop Berkeley: An Exercise in Reenchantment, Fordham University Press, New York,
2006, ISBN: 082-322-693-X, p. 18-39. Tradução: Jaimir Conte.
1
‘‘Os neoplatônicos enfatizaram e desenvolveram alguns aspectos da metafísica de Platão e
da visão do homem resultante. Para eles a principal parte do homem é a sua alma e
qualquer discussão dos dons e aspirações da alma deve ser compreendida no contexto do
universo como um todo’’ (Sheppard 1994: 6).
George Berkeley e a tradição platônica 259
2
Este tópico é amplamente desenvolvido no Capítulo 5 do livro The Other Bishop Berkeley
(p. 116-145) dedicado precisamente a situar Berkeley na tradição cristã da filosofia
apologética.
3
Obviamente, a relação foi mais complexa do que ela poderia parecer à primeira vista. O
cristianismo tomou emprestadas algumas ideias do platonismo, ao mesmo tempo criticou
ou rejeitou abertamente outras: “Algumas doutrinas platônicas foram bastante
invariavelmente rejeitadas, particularmente a doutrina da pré-existência das almas;
gradualmente a doutrina cristã da creatio ex nihilo chegou a distinguir a teologia cristã dos
desenvolvimentos no platonismo, principalmente no neoplatonismo. [...] Esta adaptação
gradativa do platonismo tornou difícil, na verdade, identificar claramente os elementos
platônicos no cristianismo” (Louth 1994: 53).
262 Costica Bradatan
4
Por exemplo, sobre o problema particular dos arquétipos na filosofia de Berkeley existem já
vários estudos de Peter S. Wenz (1976), Charles J. McCracken (1971), C. C. W. Taylor
(1985), Stephen H. Daniel (2001), e outros.
George Berkeley e a tradição platônica 263
5
‘‘À medida que ele cresce e ganha confiança ele dissimula menos os motivos prudenciais; ele
faz cada vez menos uso do jargão corrente (e confuso) dos filósofos; e ele alarga seu
horizonte e descobre com mais segurança sua afinidade com os antigos filósofos” (Ardley
1968: 10).
264 Costica Bradatan
as coisas sensíveis não podem existir senão em uma mente ou em um espírito. Por
isso concluo não que elas não têm nenhuma existência real, mas que, vendo que
elas dependem de meus pensamentos e que têm uma existência distinta de ser
percebidas por mim, deve existir alguma outra mente onde elas existam. Portanto,
tão certo como que o mundo sensível realmente existe, é igualmente certo que
existe um espírito infinito onipresente que o contém e mantém. (Berkeley 1948–
57, 2:212 [Três diálogos])
De certo modo, no que diz respeito a nós seres humanos, as coisas existem
somente à medida que nós as percebemos, de acordo com nossas limitadas
faculdades e – em algum sentido – “para nosso próprio bem”, mas no que
diz respeito às próprias coisas, elas devem necessariamente ser pensadas por
uma mente infinita, em conformidade com seus poderes infinitos, e para
seu próprio bem. Sua plenitude ontológica é assegurada unicamente por elas
serem percebidas pela mente divina. Para colocar isso de uma maneira um
pouco diferente, a fim das coisas existirem objetivamente e de forma
autônoma, a existência e as operações de Deus são necessárias. Deus é o que
dá às coisas um status ontológico estável e as faz verdadeiramente “coisas”
(rei) reais. Numa passagem similar, Berkeley enfatiza que quando
eu nego às coisas sensíveis uma existência fora da mente, não quero dizer minha
mente em particular, mas todas as mentes. Agora, é claro que elas têm uma
existência exterior à minha mente, pois descubro pela experiência que elas são
independentes dela. Existe, portanto, uma outra mente na qual elas existem
durante os intervalos de tempo em que as percebo: assim como existiam antes do
meu nascimento e continuarão a existir depois de minha suposta aniquilação. E
como o mesmo é válido relativamente a todos os outros espíritos criados e finitos,
necessariamente concluímos que existe uma Mente onipresente e eterna que conhece
e compreende todas as coisas e as exibe para nossa vista de certa maneira e de
acordo com suas regras, pois Ela mesma as estabeleceu, e que são por nós
chamadas de Leis da Natureza. (Ibid: 230–31)
6
Ele constantemente afirmou que a sua visão imaterialista é, e deve ser considerada,
perfeitamente compatível com os princípios básicos de uma cosmovisão cristã: “para um
cristão, certamente não deve ser chocante dizer que a árvore real, existindo fora da sua
mente, é realmente conhecida e compreendida pela (ou seja, existe na) mente infinita de
Deus. Provavelmente ele pode, mas não à primeira vista, estar ciente da prova direta e
imediata que existe acerca disso, visto que a própria existência de uma árvore, ou de
qualquer outra coisa sensível, implica uma mente na qual ela está”. Berkeley (1948-57,
2:235 [Três Diálogos]).
7
Ver o capítulo 5 do meu livro The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006, p. 116-145) para
uma discussão detalhada deste problema.
266 Costica Bradatan
Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem, a
fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame. Mas, ela está tão
apagada em minha mente por causa dos vícios, tão embaciada pela névoa dos
pecados, que não consegue alcançar o fim para o qual a fizeste, caso tu não a
renoves e a reformes. (Anselmo, 1962, 6) [Proslógio]
George Berkeley e a tradição platônica 267
premências das necessidades da carne” (ibid: 95). Portanto, estar “em casa”
para nossa mente significa repousar em Cristo como a razão (Logos) do
mundo. A razão individual retorna à Razão divina, e se dissolve nela,
alcançando assim um estágio em que ela quase não imita mais os seus
processos, mas une-se a ela, tornando-se “carne e sangue” dela.
Em vista dessas breves considerações, a abordagem de Berkeley da
relação entre a mente divina e a sua contraparte humana adquire, assim se
espera, uma compreensão mais completa, e uma contextualização mais
adequada. Pois seu argumento não era de modo algum parte de um
brilhante raciocínio sofístico, ou apenas um artifício filosófico
engenhosamente empregado a fim de rejeitar as acusações de solipsismo,
mas – quando usou esse argumento – Berkeley realmente seguiu um
modelo de pensamento antigo e consagrado. Tratava-se de um modelo cuja
praticabilidade e força já havia sido testada por uma longa tradição de
platonistas e pensadores cristãos, que adotaram basicamente a mesma visão
de Berkeley: uma visão segundo a qual a mente humana realmente funciona
como um speculum Dei, como um espelho vivo de Deus. E é precisamente
essa função que dá à mente (“a Vela do Senhor em nós”, para usar a frase de
Benjamin Wichcote) um caráter muito especial, transformando-a em um
domínio privilegiado. Nossa percepção das coisas, no sentido muito
particular que a palavra “percepção” tem em Berkeley, é a nossa mais
profunda maneira de “imitar” Deus. Feitos como somos à “Sua imagem” e
“à Sua semelhança” nós queremos reproduzir fielmente, en miniature, o
processo divino através do qual o mundo vem a ser.8 Assim, a filosofia de
Berkeley parece esconder jóias teológicas nunca antes apreciadas.
Os arquétipos
No entanto, a simples asserção da mente de Deus como um “lugar” onde as
coisas existem não é suficiente: deve haver alguma modalidade imediata
através da qual a mente de Deus pode perceber os objetos, ou, em outras
palavras, um meio pelo qual os objetos existem na mente divina. Daí a
introdução da noção antiga de arquétipos. Na tradição cristão-platônica os
8
Para maiores detalhes sobre essa questão e suas outras ocorrências na história da filosofia
ocidental, ver meu ensaio “‘God Is Dreaming You’: Narrative as Imitatio Dei in Miguel de
Unamuno”. (Bradatan, 2004). [“Deus está sonhando você: narrativa como Imitatio Dei em
Miguel de Unamuno” (http://www.principios.cchla.ufrn.br/24P-249-265.pdf).]
George Berkeley e a tradição platônica 271
criou tudo, porque nessa Mente ele criou as Ideias e as Formas de todas as coisas.
Há, portanto, nessa Mente a Ideia do sol, a Ideia da lua, do homem, de todos os
animais, das plantas, das pedras, dos elementos, e em geral de todas as coisas. Da
Ideia do sol ser um sol mais verdadeiro que o sol sensível, e assim por diante,
segue-se não só que Deus criou todas as coisas, mas também que Ele as criou com
o mais verdadeiro e mais perfeito ser que elas podem ter, ou seja, o ser ideal e
inteligível. (Pico della Mirandola, 1986: 16)
9
Ver, por exemplo, a crítica apresentada por Robert McKim contra os argumentos de Wenz
(McKim 1982).
272 Costica Bradatan
quem quer que reflita e procure compreender o que diz, reconhecerá [...] que todas
as qualidades sensíveis são igualmente sensações, e igualmente reais; que onde há a
extensão, há também a cor, isto é, na sua mente, e que seus arquétipos podem
existir somente em alguma outra mente. (Berkeley 1948–57: 2:84)
as coisas que percebo devem ter uma existência, elas ou seus arquétipos, fora da
minha mente, mas sendo ideias, nem elas nem seus arquétipos podem existir de
outra forma senão em um entendimento; existe, portanto, um entendimento. Mas
vontade e entendimento constituem, no sentido mais estrito, uma mente ou
espírito. Assim, a causa poderosa das minhas ideias é, no sentido estrito e próprio
da palavra, um espírito. (Ibid.: 240)
as coisas que percebo são as minhas ideias, e [...] nenhuma ideia pode existir a
menos que seja em uma mente. Tampouco é menos claro que essas ideias ou coisas
por mim percebidas, elas mesmas ou seus arquétipos, existem independentemente
de minha mente, já que sei que não sou seu autor, estando fora de meu poder
determinar, como me aprouver, com que ideias particulares devo ser afetado ao
abrir meus olhos e ouvidos. Elas devem, portanto, existir em uma outra mente,
cuja vontade é que elas devem ser exibidas a mim. (Ibid: 214-15)
Não tenho objeção alguma em chamar de arquétipos das nossas as ideias na mente
de Deus. Mas objeto contra os arquétipos que os filósofos supõem que são coisas
reais e que têm uma existência racional absoluta diferente do fato de serem
percebidos por qualquer mente que seja. (Ibid.: 292)
Esta afirmação é muito importante, pois ela nos permite perceber que
Berkeley era contra o uso do termo “arquétipo” com um sentido Lockeano,
ou seja, contra “arquétipo” como se referindo simplesmente a um objeto
externo, a uma “coisa real”, cuja imagem mental (ou ideia) é refletida em
nossa mente, e que pode ser considerada como o “modelo”, “original” ou
“arquétipo”, em que a imagem é moldada. Dada a influência então
predominante das opiniões e da linguagem de Locke entre os círculos
intelectuais e filosóficos, isso explica a hesitação de Berkeley e por que ele
foi tão relutante em utilizar o termo “arquétipo”, embora não o tenha
rejeitado completamente. Por um lado, Berkeley estava sem dúvida
inclinado a lançar mão do termo devido a suas implicações metafísicas e por
causa dos problemas que, com sua aplicação, teria resolvido em sua própria
filosofia. Por outro lado, ele estava consciente de que “arquétipo” ainda
tinha conotações Lockeanas que ele não desejava assumir. Isso é exatamente
o que os comentadores têm notado sobre o assunto em questão. T. E.
Jessop, por exemplo, diz: “Sobre os arquétipos não como supostos originais
corpóreos de cópias mentais, mas como modelos no intelecto divino,
Berkeley parece ter tido uma mente aberta” (Jessop 1949a: 78 n. 1). Como
acontece, em geral, com aqueles filósofos que desejam afirmar-se contra
certo ambiente intelectual e encontrar sua própria maneira irredutível entre
os seus contemporâneos, Berkeley teve de resolver uma série de problemas
274 Costica Bradatan
Todos os objetos são eternamente conhecidos por Deus ou, o que quer dizer a
mesma coisa, têm uma existência eterna em sua mente. Mas quando coisas antes
imperceptíveis às criaturas se tornam perceptíveis por uma lei de Deus, então
dizemos que elas iniciaram uma existência relativa com respeito às mentes criadas.
(Berkeley 1948– 57, 2:252 [Three Dialogues])
George Berkeley e a tradição platônica 275
existe uma mente que me afeta a todo momento com todas as impressões sensíveis que
percebo. E, a julgar pela sua variedade, ordem e modos, concluo que o Autor dessas
impressões é sábio, poderoso e bom além da compreensão. [...] as coisas por mim
percebidas são conhecidas pelo entendimento e produzidas pela vontade de um
espírito infinito. (Berkeley 1948–57: 2:215)
nos com sua presença sonora. Nós simplesmente não podemos deixar de
perceber Deus; basta apenas abrir nossos olhos e a evidência de sua
existência e benevolência nos dominará. O mundo de Berkeley não é um
lugar frio e hostil; é um reino caloroso e sorridente, nascido de um abraço
divino. Como tal, além de todas as outras semelhanças que se poderia
encontrar em Berkeley e Plotino, existe uma que faz suas filosofias tão
notavelmente semelhantes. Ou seja, nas palavras de Dillon,
para ‘outro mundo’ que nunca deixou de atrair ou repelir as emoções tanto
quanto o intelecto” (Cooper 1996: 107). À luz deste duplo estado de
realidade, os seres humanos devem agora ser definidos pela sua dupla
natureza:10
Nós, seres humanos, pertencemos a dois mundos: é evidente que a este mundo (é
por isso que o chamamos este mundo), mas em virtude de possuirmos (ou
estritamente: termos) uma alma (estritamente: um intelecto, nous), nós
pertencemos ao mundo espiritual. Para Platão, a tarefa principal da filosofia é a de
garantir nossa passagem para o mundo espiritual: a filosofia é “um exercício para a
morte” melete thanatou (Fédon, 81a), pois a morte é a separação da alma do corpo.
(Louth, 1994: 54)
10
Para um comentário mais detalhado sobre o dualismo platônico, ver o capítulo 7 do livro
The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006, p.173-192).
George Berkeley e a tradição platônica 279
Em outras palavras, na medida em que as coisas são percebidas por nós elas
são ideias, realidades “de segunda mão”, “imitações”, ao passo que, na
medida em que são compreendidas por Deus, elas são arquétipos, modelos
eternos sobre os quais, e em cuja imagem, as coisas sensíveis são feitas.
Mais do que isso, no Alcifron, escrito cerca de vinte anos depois,
Berkeley expressaria opiniões não apenas em consonância com o que disse
280 Costica Bradatan
nos seus primeiros escritos, mas também platônicas num sentido muito
mais profundo e de longo alcance. A atitude metafísica fundamental
revelada por uma passagem como a seguinte é provável que seja encontrada
em qualquer escrito importante da tradição platônica: “Parece-me que
quem não tem consciência de sua própria miséria, pecado, dependência e,
quem não percebe que este mundo não foi projetado ou adaptado para
tornar as almas racionais felizes, não vê profundamente, nem muito bem.”
Berkeley (1948-57, 3:178). Em certo sentido, é esse tipo de angústia
existencial e sentimento de desconforto fundamental que confere ao
pensamento de Berkeley um aspecto platônico mais forte; passagens como
esta provam o mais genuíno “aspecto platônico”. Em outras palavras,
enquanto em seus primeiros escritos o platonismo de Berkeley era antes
teórico, concebido apenas como um sofisticado sistema de noções
metafísicas por meio do qual ele explicava a existência e a natureza das
coisas, no Alcifron Berkeley permitiu-se expressar algumas das preocupações
específicas e atitudes existenciais que tipicamente acompanham uma forma
platônica de “sentir” o mundo.
Com certeza, existe certa ambiguidade na doutrina de Berkeley do
“duplo estado das coisas”, o que dá origem a uma tensão entre suas próprias
opiniões e a concepção platônica corrente dos “dois mundos”. Essa
ambigüidade tem origem na sua negação radical da existência da matéria. O
próprio Platão admitia que a matéria (hule) tinha algum tipo de existência,
ainda que uma existência problemática, inferior e obscura, e o mesmo
fizeram muitos platônicos depois dele, embora alguns outros, incluindo
Plotino, tinham uma concepção mais próxima da visão de Berkeley11.
Berkeley em vez disso não admite qualquer forma de existência material e
reduziu a tradicional oposição platônica entre “os dois mundos”, o mundo
das ideias e o mundo dos objetos físicos, a uma oposição (de alguma forma
menos dramática do que a de Platão) entre um reino dos arquétipos,
existente na mente de Deus, e um reino dos objetos sensíveis, ocasionados
pela nossa percepção dos arquétipos de Deus. A este respeito, como John
Dillon sugere, Berkeley é ainda mais radical que Plotino:
11
Dillon fala de uma série de “procedimentos filosóficos para ‘desconstruir’ o mundo
material objetivo [pour ‘déconstruction’ Du monde matériel objetif] que os dois filósofos
[Berkeley e Plotino] partilharam” (Dillon 1997: 100).
George Berkeley e a tradição platônica 281
Para Berkeley, até mais do que para Plotino, o mundo externo dos objetos físicos
[....] representa uma ameaça. Para ele, se admitirmos a existência de uma camada
de matéria inferior [une couche matérielle inférieure], algo que possui qualidades
primárias e secundárias [...] isso desafiaria a onipotência e a providência de Deus.
Esses objetos materiais Lockeanos seriam entitades extramentais que existiriam a
despeito de sua percepção por parte de uma mente [en dépit de la connaissance de
quelque esprit]. Elas seriam entidades cuja existência seria completamente
independente da mente, inclusive da mente de Deus. (Dillon 1997: 100-1)
“O Livro do mundo”
Por mais dramática que a diferença entre “os dois mundos” possa parecer no
platonismo tradicional, há, não obstante, maneiras de superá-la.12 Uma
delas consiste, para colocá-la de maneira muito esquemática, em considerar
a realidade imediatamente visível (“o mundo”) como um amplo sistema de
signos, ou símbolos, por meio do qual Deus se comunica conosco,
mantendo uma relação ativa com as suas criaturas, informando-as sobre si,
sobre seu caráter, sua natureza e seu funcionamento. Embora Platão não
tenha, ele mesmo, tratado do tema enquanto tal, na Idade Média os
platônicos cristãos recorreram em grande medida ao tema na forma da
metáfora do “livro da natureza” ou “livro do mundo” (liber naturae ou liber
mundi). Como A. E Taylor apontou, por trás do emprego cristão-platônico
desta metáfora havia a ideia de que a natureza “é apenas metade do real”, e
12
O capítulo 3 do meu livro The Other Bishop Berkeley (Bradatan, 2006 p. 57-86) é dedicado
precisamente ao lugar que Berkeley ocupa na tradição do liber mundi.
282 Costica Bradatan
que ela apontava para a existência de uma “outra realidade que está além
dela mesma”. A natureza é “um sistema de símbolos”, e nossa ascensão à
realidade última ocorre como resultado de “aprender a passar dos símbolos
às realidades não-sensíveis simbolizadas” (Taylor, 1963: 41-42). Conhecer o
mundo é essencialmente um processo de leitura, ou, para falar de modo
mais geral, de interpretação. Vivemos no meio de um livro vivo, e neste
livro, se prestarmos atenção, podemos encontrar tudo o que Deus deseja
que saibamos. São Boaventura, por exemplo, diz que “a criatura do mundo
é como um livro em que a Trindade criativa é refletida, representada, e
escrita” (Creatura mundi est quasi quidam liber, in quo relucet,
repraesentatur et legitur Trinitas fabricatrix) [Breviloquium 2.12]). Como
podemos facilmente ver, o mundo físico é, por assim dizer, “resgatado” no
platonismo cristão, sendo radicalmente transformado em algo muito mais
significativo.
É precisamente a este tema antigo do “livro do mundo” que George
Berkeley recorre com muita frequência. Na forma de uma “linguagem
divina”, ou de uma “linguagem óptica”, Berkeley emprega o tema em quase
todos os seus principais escritos filosóficos e considera-o como expressando
adequadamente a essência de sua filosofia. Em seu primeiro escrito
filosófico, Um ensaio para uma nova teoria da visão (1709), ele diz que
13
Cerca de vinte anos depois, no Alcifron, or, The Minute Philosopher (1732), ele reafirma a
importância do tema Liber Mundi: “Deus fala aos homens por interseção e uso de sinais
George Berkeley e a tradição platônica 283
Referências
ARDLEY, Gavin. 1968. Berkeley’s Renovation of Philosophy. The Hague: Martinus
Nijhoff.
ANSELM, St. 1962. Basic Writings. 2d ed. Trans. Sydney N. Deane. LaSalle: Open
Court.
ARSIC´, Branka. 2003. The Passive Eye: Gaze and Subjectivity in Berkeley (via
Beckett).Stanford: Stanford University Press.
AUGUSTINE, Aurelius. 1963. The Confessions of Saint Augustine. Trans. Rex
Warner. New York: New American Library.
BERKELEY, George. 1948–57. The Works of George Berkeley Bishop of Cloyne. Ed.
A. A. Luce and T. E. Jessop. 9 vols. London: Thomas Nelson.
BRADATAN, Costica. 2004. ‘‘ ‘God Is Dreaming You’: Narrative as Imitatio Dei
in Miguel de Unamuno.’’ Janus Head: A Journal of Interdisciplinary Studies in
Continental Philosophy, Literature, Phenomenological Psychology, and the Arts 7, no. 2
(winter): 453–67.
COPLESTON, Frederick Charles. 1993–94. A History of Philosophy. 9 vols. New
York: Doubleday. (Original edition: 1946–74)
COOPER, David E. 1996. World Philosophies: An Historical Introduction. Oxford,
Eng.: Blackwell.
DANIEL, Stephen H. 2001. ‘‘Berkeley’s Christian Neoplatonism, Archetypes, and
Divine Ideas.’’ Journal of the History of Philosophy 39, no. 2: 239–58.
sensíveis, visíveis e arbitrários, não tendo qualquer semelhança ou conexão necessária com
as coisas que eles representam e sugerem [...] por inúmeras combinações destes sinais, uma
variedade infinita de coisas nos é revelada e dada a conhecer [...] somos instruídos e
informados, assim, sobre suas diferentes naturezas [...] e orientados a como regular nossos
movimentos, e a como agir em relação às coisas distantes de nós, tanto no tempo como no
espaço” (Berkeley 1948-57, 3:149).
284 Costica Bradatan
DILLON, John M. 1997. The Great Tradition: Further Studies in the Development
of Platonism and Early Christianity. Aldershot, Eng.: Ashgate.
EVANS, Gillian Rosemary. 1993. Philosophy and Theology in the Middle Ages.
London: Routledge.
FEIBLEMAN, James K. 1971. Religious Platonism: The Influence of Religion on
Plato and the Influence of Plato on Religion. Westport, Conn.: Greenwood Press.
FICINO, Marsilio. 1985. Commentary on Plato’s Symposium on Love. Trans. Sears
Jayne. Dallas: Spring.
INGE, W. R. 1926. The Platonic Tradition in English Religious Thought: The
Hulsean Lectures at Cambridge, 1925–1926. London: Longman.
LOUTH, Andrew. 1994. ‘‘Platonism and the Middle English Mystics.’’ In
Platonism and the English Imagination, ed. Anna Baldwin and Sarah Hutton, 52–
64. Cambridge: Cambridge University Press.
McCRACKEN, Charles J. 1971. ‘‘What Does Berkeley’s God See in the Quad?’’
Archiv für Geschichte der Philosophie 61: 280–92.
McKIM, Robert. 1982. ‘‘Wenz on Abstract Ideas and Christian Neo-Platonism in
Berkeley.’’ Journal of the History of Ideas 43, no. 4: 665–71.
MUIRHEAD, John H. 1931. The Platonic Tradition in Anglo-Saxon Philosophy:
Studies in the History of Idealism in England and America. London: George Allen
and Unwin.
PICO DELLA MIRANDOLA, G. 1986. Commentary on a Poem of Platonic Love.
Trans. Douglas Carmichael. Lanham, Md.: University Press of America.
PLATO. 1997. Complete Works. Ed. John M. Cooper and D. S. Hutchinson.
Trans. G. M. A. Grube. Indianapolis: Hackett.
PLOTINUS. 1966–88. Plotinus with an English Translation. Ed. and trans. A. H.
Armstrong. 6 vols. London: Loeb Classical Library.
SHEPPARD, Anne. 1994. ‘‘Plato and the Neoplatonists.’’ In Platonism and the
English Imagination, ed. Anna Baldwin and Sarah Hutton, 3–18. Cambridge:
Cambridge University Press.
SHOREY, Paul. 1938. Platonism: Ancient and Modern. Berkeley and Los Angeles:
University of California Press.
TAYLOR, Alfred E. 1963. Platonism and Its Influence. New York: Cooper Square
Publishers.
TAYLOR, Charles C.W. 1985. ‘‘Berkeley on Archetypes.’’ Archiv für Geschichte der
Philosophie 67: 65–79.
WENZ, Peter S. 1976. ‘‘Berkeley’s Christian Neo-Platonism.’’ Journal of the
History of Ideas 37, n. 3: 537–46.
RESENHAS
Marcos Silva * 1
*
Doutorando pela PUC-Rio. E-mail: marcossilvarj@hotmail.com Resenha recebida em
07.10.2009, aprovada em 02.03.2010.
1
Agradeço aos professores Luiz Carlos Pereira e Oswaldo Chateaubriand tanto pela
indicação deste livro quanto pelo incentivo para esta resenha.
público amplo. Pode, então, ser lida por neófitos procurando panoramas
conceituais e históricos acurados ou ser adotada por professores procurando
textos-base para suas aulas de graduação e pós-graduação. Pode ser lida sem
prejuízos tanto por estudantes de matemática interessados nos fundamentos
e problemas teóricos de sua disciplina quanto por estudantes de filosofia
interessados pelo terreno preciso e bem comportado da matemática, onde
todos os temas tradicionais da filosofia reaparecem, seminais.
De Platão aos contemporâneos, de ontologia à epistemologia, de
realismos ingênuos a idealismos radicais, de perspectivas intensionais a
elogios à extensionalidade, de proponentes a detratores da metafísica, são
todos temas e tensões revisitados de maneira profícua pelo livro. Aliás, aqui
temos um ponto de fascínio que estimula o interesse pelo pensamento em
geral e pela filosofia da matemática em particular: todas as grandes questões
e debates filosóficos encontram acolhida e resurgem, caprichosamente,
repaginados, mesmo em um domínio marcado pela exatidão, formalismos e
objetividade. É interessante e revelador poder discutir filosofia em terreno
que deveria sempre, por princípio, primar pela clareza e certezas.
Apesar de introdutório o “Filosofias da Matemática” apresenta e
defende uma tese de seu prólogo ao epílogo, iniciando e perfazendo cada
capítulo, a saber, a necessidade de se tomar a matemática e sua filosofia em
diacronia. Com efeito, Jairo da Silva defende a importância da historicidade
da matemática no estudo de sua filosofia, ponderando suas crises, fracassos,
retomadas e evoluções. A matemática, segundo o autor, reflete a cultura
onde é criada, sendo inútil, então, procurar uma essência que poderia ser
revelada pela filosofia ou qualquer investigação mais sistemática de seus
amplos domínios. Coerente com esta proposta, para cada autor ou corrente
filosófica apresentada, há em seu livro uma introdução histórica onde se
mostra, em panorama, o nível de evolução das técnicas e procedimentos
matemáticos e os debates teóricos e técnicos contemporâneos a eles. A partir
de uma chave de perguntas bem determinada o autor apresenta e analisa a
atividade filosófica que perscruta a matemática em suas teorias. De fato,
perguntas sobre o que são os objetos matemáticos (ontologia matemática),
como conhecê-los (epistemologia matemática) e por que podem ser
aplicados de maneira sistemática à realidade empírica, uma vez que sejam
independentes dela, são (e devem ser) itens permanentes em qualquer pauta
de discussão sobre a filosofia da matemática.
Resenha 287
quanto à coleção. Assim, deve existir algo que tanto a seqüência quanto a
coleção que corresponde a ela tem em comum. É apenas em virtude dessa
identidade formal que a teoria das seqüências de barras pode ser aplicada.”
Com efeito, Wittgenstein, em seu Tractatus, defende uma concepção
metafísica de simbolismo que demanda uma relação biunívoca preservativa
entre representação e representado que evidenciaria uma forma lógica
comum entre seus elementos componentes (cf. Tractatus 2.18).
Além disso, aqui não é um caso de falta, mas, talvez, de excesso, a
fenomenologia de Husserl aparece com certa insistência em muitos
momentos na obra do professor Jairo e em alguns pontos, de maneira
surpreendente, porque pouco usual na literatura, por exemplo: no apêndice
à teoria da abstração aristotélica, numa analogia ao logicismo de Frege, na
menção ao formalismo do grupo Bourbaky e na recomposição do programa
de Hilbert pós-teoremas de Gödel. Em quase todos os pontos em que
Husserl é mencionado, Jairo da Silva o defende como autor que influenciou
diretamente teses defendidas ao longo do século XX, mas que nunca foi
referenciado devidamente pela literatura especializada. Esta insistência em
Husserl mostra que o livro de Jairo não é inteiramente isento, apesar de
introdutório, e seu panorama tende a privilegiar elementos fenomenológicos
e epistemológicos da matemática. A par disso, este elogio tácito à
fenomenologia contrasta com um tom jocoso e desencaminhador em tratar
outras teorias da ordem do dia, com acentos mais ontológicos que
epistêmicos, como o platonismo. Refere-se a estas teorias tradicionalíssimas
como “teorias de lugar nenhum”, de “lugares celestes” ou “puramente
utópicos” (cf. p. 178). O platonismo é conhecido, por dentre outras
qualidades: explicar a visão ingênua do matemático, não restringindo sua
atividade; ter como base a intuitiva verdade por correspondência; aceitar
procedimentos usuais como provas indiretas; apresentar certo otimismo
epistemológico, por acreditar que as verdades da matemática já estão todas
determinadas independentes da atividade humana. Apesar de ser difícil
identificar o locus dos objetos matemáticos e de determinar o tipo de acesso
epistêmico a estes objetos, o platonismo é uma saída interessante para os
problemas matemáticos. Aliás, estas perguntas, como feitas pelo professor
Jairo, sobre que lugar ocupariam estes objetos matemáticos independentes,
parecem excessivamente contaminadas por imagens e intuições espaciais,
exigindo justamente de objetos abstratos o que não podem dar. Ora, se
290 Marcos Silva
forem entes abstratos, não são físicos, logo não faz sentido perguntar onde
estariam como perguntamos sobre objetos materiais. Além disso, a
insistência no problema do tipo de acesso que teríamos a estes objetos
mostra uma intrusão epistemológica, que tem como marco questões
kantianas, num terreno propriamente ontológico.
Portanto, há claramente certo desequilíbrio no panorama do livro,
tanto em conteúdo no caso da filosofia de Wittgenstein como em tom
evidenciado pelo tratamento diferenciado e elogioso à fenomenologia,
mesmo que não explícito, e indevido quanto ao platonismo matemático. A
omissão de Wittgenstein, por exemplo, mereceria ao menos uma nota que a
justificasse. Entretanto este fato certamente não compromete o brilhantismo
da sua obra quanto à erudição e domínio do autor em relação à matemática,
à filosofia e à articulação seminalíssima entre as duas.
* * *
2
Indico, aqui, o trabalho de Casanave, Sautter e Secco publicado na revista O que nos faz
pensar n.24, de 2008, onde este tema da assunção de uma abstração lógica na composição
da geometria e da aritmética é retomado. Ali, a prova sugerida por Jairo da Silva é
confrontada com a de J.Lear, mostrando-se que a partir da definição deste podemos ter a de
Jairo, mas sem a recíproca. Há ainda neste trabalho, uma importante correção ao itinerário
da prova proposta pelo professor Jairo.
Resenha 293
*
Professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e da UNIRIO. E-mail:
p.d.andrade@gmail.com. Resenha recebida em 30.10.2009, aprovada em 15.12.2009.
Sandra S. F. Erickson *
*
Professora do Departamento de Línguas e Literaturas Estrangeiras Modernas, UFRN. E-
mail: ericksons@ufrnet.br Resenha recebida em 30.10.2009, aprovada em 15.12.2009.
dialéticos que culminaram nas noções desse pensador de corpo como coisa
universal e a de que o mundo também tem carne; o presente leitor (não
filósofo, mas diletante Merleau-Pontiano) teria preferido maior ênfase nesse
pensamento tardio (para o tema). As citações do autor (Cardim) de
Merleau-Ponty se referem ao “ser em si” e “ser para si” (p. 89), e aí fica mais
visível a falta que faz Martim Heidegger (p. 101 e 102), que só aparece de
raspada para contextualizar a noção de corpo como um “terceiro gênero de
ser” (p. 88) desenvolvida em Fenomenologia da percepção. É difícil (imagino)
de se triar o que Heidegger diz de corpo, mas o próprio Cardim não pode
esconder Heidegger, não apenas pela influência do pensador em Merleau-
Ponty, mas por sua contribuição no pensamento contemporâneo do corpo
como abertura, como estado de ser-no-mundo; muito embora, talvez para
Heidegger o corpo fosse mais um modo de ser do que um ser, ou seja, um
lugar (a clareira) de habitação do ser, que é a visão que Merleau-Ponty quer
destituir.
Merleau-Ponty desenvolve seus conceitos sob o agon do fenômeno
designado pelo crítico e teórico Harold Bloom de inveja criativa e/ou
angústia da influência. Ele tenta se esquivar da influência do outro
(Heidegger) revisando, com vários tipos de substituições, seu esquema;
assim, ele não tanto “emprega o velho termo ‘elemento’ no sentido em que
é empregado para falar da água, do ar, da terra, e do fogo” como Cardim
suspeita, em Visível e invisível (136; Cardim p. 123), mas ele quer revisar o
esquema heideggeriano de terra-céu, deuses-mortais (que por sua vez revisa
o esquema dos antigos gregos). Merleau-Ponty trata a corporeidade como
uma dimensão (bi-polar já que o corpo e o mundo, cada um, possui sua
própria corporeidade). Mas, isso seria outra estória...
O Epílogo (p. 127-146) tem três capítulos: Foucault: a história do
corpo – disciplina e regulamento; e Deleuze: o corpo sem órgãos; e é
seguindo por uma pequena parte autônoma intitulada Ensaiando leituras
(p. 147-173) onde há uma espécie de rascunho de algumas discussões mais
contemporâneas sobre o tema, mas que o autor não substancia, nem
desenvolve, apenas... ensaia ...
O recorte de tudo que Foucault disse sobre o corpo (e foi um
caldeirão de coisas!) foi perfeito! É muito difícil se resumir, sem perder a
inteligibilidade e sem sair do tema em si, o que Foucault diz e fez pelo
assunto e Cardim consegue, escrevendo ainda um texto bonito que faz
Resenha 311
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
Chefe: Prof. Dr. Antônio Basílio Novaes Thomaz de Menezes
EDITORA DA UFRN
Diretor: Prof. Dr. Herculano Ricardo Campos
Editor: Francisco Alves da Costa Sobrinho
Revista de Filosofia
Departamento de Filosofia
Campus Universitário, UFRN
CEP: 59078-970 – Natal – RN
Tel: (84) 3215-3643 / Fax: (84) 3215-3641
E-mail: princípios@cchla.ufrn.br
Home page: www.principios.cchla.ufrn.br
Ficha Técnica
Formato: 15X 22
Tipologia: Adobe Garamond pro
Número de páginas: 312
Impressão e acabamento
Oficinas Gráficas da EDUFRN
Campus Universitário – Lagoa Nova, s/n
Natal/RN – CEP 59.072-970
Fone: 84 3215-3236 / Fax: 84 3215-3206
E-mail: edufrn@editora.ufrn.br