LER/DORT
Antonio Nunes Barbosa Filho
Departamento de Engenharia de Produção
Universidade Federal de Pernambuco
nunes@ufpe.br
Nas últimas décadas do século XX
vimos surgir relatos de afecções
relacionadas às atividades laborais de duas
naturezas que foram descritas como os
males ocupacionais do século vindouro. Ao
lado das questões relativas à saúde mental
no trabalho, as então chamadas lesões por
esforços repetitivos (LER) ganharam
destaque na mídia em razão dos danos que
acometiam certos trabalhadores, em especial
as mulheres (cuja prevalência pode ser
explicada em parte pelo uso excessivo de
partes do corpo em uma dupla jornada –
laboral e doméstica – e em razão de uma
compleição ou estrutura menos preparada e
fisiologicamente determinada, quando
comparada à masculina).
Por todo o mundo ecoaram relatos de
contraturas, lesões vasculares, dos tendões,
dos nervos – implicando ou não em
inflamações (tendinites, tenossinovites,
bursites etc.) – e até mesmo fraturas
associadas às condições em que certas
atividades ocupacionais eram realizadas,
com graves consequências para o
trabalhador, exigindo, por vezes, o seu
afastamento temporário ou em definitivo
daquela ocupação e, por conseguinte,
trazendo perdas aos sistemas produtivos e
prejuízos decorrentes dos gastos com
diagnóstico, tratamento e eventual
substituição da mão-de-obra afetada.
De repente, verificou-se que tais
cenários não eram mera decorrência de
tecnologias ou de condições rudimentares de
trabalho. Pelo contrário, pareciam ser
decorrentes de um conjunto de variáveis que
ganharam destaque na modernidade. Por
exemplo, o uso acentuado de
microcomputadores e a excessiva fração da
jornada – quando não exclusivamente – na
posição sentada (sem a adequação do posto
de trabalho ao seu usuário, seja em uso
sucessivo ou simultâneo).
Os sentires e as limitações foram
transmutadas em síndromes1 – pois talvez
assim se tornassem menos aparentes aos
olhos da população ou que pudessem servir
a uma outra estatística, baseada em
entidades e não em agrupamentos de
sintomas – que invadiram os noticiários e se
tornaram sentenças de afastamento e de
incapacidade laboral para muitos. De outro
lado, testes2 para avaliação de sua
ocorrência se tornariam a última esperança,
a absolvição de um suposto pecado ou a
sentença condenatória a uma vida reduzida a
um valor secundário.
Despertando o interesse de
profissionais da área médica e de áreas
correlatas à saúde e segurança do trabalho,
verificou-se que se fazia pertinente uma
abordagem multidisciplinar do problema,
uma vez que as repercussões dos efeitos
danosos das LER se davam na vida
profissional, assim como na vida privada,
seja na esfera familiar, seja na esfera social
ou pessoal. Em geral acometendo os
membros superiores, mas não tão somente
estes, as limitações funcionais de diversos
graus, afetavam a capacidade para o
trabalho, bem como para a execução de
atividades da vida diária como manipular
objetos e realizar o asseio pessoal, entre
outras, visto que as exigências sobre o corpo
nestes dois ambientes devem ser levadas em
1
Síndrome do túnel do carpo, do canal de Guyon, do
canal cubital, do pronador redondo, da arcada de
Frohse (ou do nervo interósseo posterior) e do
desfiladeiro torácico são algumas das síndromes
compressivas dos nervos periféricos que acometem as
mãos.
2
Teste de Phalen, de sensibilidade, de Allen, de
Finkelstein e outros aplicáveis à avaliação funcional
das regiões afetadas, são os mais conhecidos.
consideração no estudo ou investigação do
caso concreto.
Verificou-se, também, que não só a
repetição no uso de certas estruturas do
corpo causavam o quadro, a exemplo da
fratura de marcha há muitos anos descrita
pela literatura ortopédica, mas também
outros fatores contribuíam para a instalação
e o desenvolvimento dos sintomas.
Na literatura técnica sobre o assunto
algumas denominações são corriqueira e
quase que indistintamente utilizadas, dentre
as quais listamos:
L.E.R - Lesões por Esforços Repetitivos;
D.O.R.T3. – Distúrbios Osteomusculares
Relacionados ao Trabalho;
L.T.C. – Lesões por Traumas Cumulativos;
D.C.O. – Doença Cervicobraquial
Ocupacional;
A.M.E.R.T. – Afecções Músculo-esqueléticas
relacionadas ao trabalho;
S.S.O. - Síndrome de Sobrecarga
Ocupacional;
T. T. A. – Transtorno por trauma acumulativo.
Como fatores de risco para a ocorrência
das LER/DORT, considerando-se o tempo
de exposição a tais fatores, dentre outros
potencializadores das exigências incidentes
sobre os trabalhadores, encontramos na
literatura técnica:
a) A postura adotada (e mantida) para a
realização de trabalho – as posturas
desviantes dos membros superiores,
pegas de força e em pinça, elevação
e manutenção elevada dos ombros,
torções excessivas do tronco e dos
membros superiores que são
decorrentes das características do
posto de trabalho e do ferramental
em confronto com as características
antropométricas do trabalhador em
questão;
b) O movimento e força aplicados – em
gatilho ou aplicação excessiva de
3 unicidade do corpo físico do trabalhador-
Denominação hoje preferida por especialistas por
não determinar causa ou origem (repetitividade) ou
efeitos possíveis (lesões), visto que não são únicos ou
exclusivos. Admite-se, todavia, o uso indistinto da
expressão LER/DORT.
força por contato localizado,
exposição das extremidades
superiores à vibração e a baixas
temperaturas (veja-se o capitulo
sobre vibrações decorrentes do
trabalho);
c) Fatores psicológicos – tais como as
pressões no trabalho, a
invariabilidade da tarefa (monotonia
física e/ou psicológica), a situação
social do trabalho (percepção do
contexto social, de utilidade e o
relacionamento interpessoal), o ritmo
imposto e o estabelecimento de cotas
ou volume de produção;
d) Características pessoais – o tipo de
musculatura notadamente e o preparo
para lidar com esforços físicos.
Para a adequada caracterização da
exposição a estes fatores de risco é
imprescindível determinar, assim afirma a
IN 98/03 do INSS;
a) a região anatômica exposta aos
fatores de risco;
b) a intensidade dos fatores de risco;
c) a organização temporal da atividade
(por exemplo: a duração do ciclo de
trabalho, a distribuição das pausas ou
a estrutura de horários);
d) o tempo de exposição aos fatores de
risco.
Sendo impossível desconsiderar os
esforços realizados pelo corpo fora do
ambiente laboral, atividades aparentemente
rotineiras passaram a ser alvo das atenções
preventivas visando preservar a integridade
dos trabalhadores. Até mesmo atividades de
lazer como o uso freqüente de jogos
eletrônicos com a utilização de manípulos
(joy sticks) e botoeiras de acionamento, bem
como a condução de motocicletas por longas
jornadas passaram a ser investigadas em
suas contribuições para potenciais efeitos
danosos sobre certos segmentos do corpo.
Ampliou-se e se reforçou a noção de
cidadão. De certa forma, os cuidados
pessoais no tocante aos esforços aos quais o
corpo do trabalhador era submetido no
âmbito da vida privada ganharam novos
contornos, assim como os hábitos
alimentares e demais fatores capazes de
contribuir para uma condição de vida mais
saudável, em sentido mais amplo.
Desta feita, há de se ater um novo
olhar às atividades rotineiras ou mesmo no
ambiente doméstico, posto que o seu
executar poderá originar ou agravar as
exigências sobre certos segmentos ou
estruturas de nosso corpo. Logo, se faz
necessário dedicar atenção e observar alguns
cuidados na realização de atividades tais
como:
a) Bater bolos manualmente;
b) Na amamentação ou sustentação de
cargas;
c) Na escrita de textos longos;
d) Ao andar de ônibus segurando na
alça superior (elevar os braços e
mantê-los suspensos em demasia);
e) Durante a realização de trabalhos
manuais como tricô e croché;
f) Quando da torção ou fricção de
objetos (lavagem e limpeza);
g) Na digitação por períodos
prolongados...
Neste último aspecto limitações
foram introduzidas pela legislação pátria:
pausas horárias para recuperação e descanso
(10 min/60 min), limitação ao máximo de
8.000 toques/hora e da jornada a 5 horas
diárias (NR 17).
De acordo com NICOLETTI, as
lesões por esforços repetitivos podem ser
definidas como “afecções que podem
acometer as estruturas anatômicas
localizadas no interior das articulações
(ligamentos, sinóvias, cápsulas) ou ao seu
redor (tendões, músculos, fáscias e nervos),
isolada ou associadamente, com ou sem
degeneração dos tecidos, atingindo
principalmente, porém não somente, os
membros superiores, região escapular e
pescoço”. E têm origem ocupacional,
decorrente, de forma combinada ou não, de:
1. uso repetitivo de grupos musculares;
2. uso forçado de grupos musculares;
3. manutenção de postura inadequada.
Os tendões e ligamentos são
estruturas adaptadas para exercer a função
de transmitir as cargas do músculo para o
osso (tendão) ou de osso para osso
(ligamento). A função principal de ambos é
modular a transmissão das forças, de
maneira que não haja concentração brusca
de cargas entre os vários componentes do
sistema músculo-esquelético. As
propriedades físicas e químicas dos tendões
e ligamentos variam com diversos fatores
como a idade, o sexo, a temperatura, a
presença de fatores hormonais, atividade,
etc. E existe um limiar particular de
atividade necessária para manter a
homeostase4 de cada tendão e ligamento.
Segundo a IN 98/03 do INSS as
LER/DORT “São resultado da combinação
da sobrecarga das estruturas anatômicas do
sistema osteomuscular com a falta de tempo
para sua recuperação. A sobrecarga pode
ocorrer seja pela utilização excessiva de
determinados grupos musculares em
movimentos repetitivos com ou sem
exigência de esforço localizado, seja pela
permanência de segmentos do corpo em
determinadas posições por tempo
prolongado, particularmente quando essas
posições exigem esforço ou resistência das
estruturas músculo-esqueléticas contra a
gravidade”.
Como sintomas das LER/DORT, de
ocorrência isolada ou em conjunto, podemos
citar:
a) Dor;
b) Crepitação5;
c) Tumoração (aumento do volume
localizado em razão de uma lesão);
4
Constância das condições do ambiente interno para
que a ação dos mecanismos do corpo humano se dê
de maneira adequada, inclusive a própria restauração
desse equilíbrio que pode ser alterado por fatores
externos ou pelos efeitos originados na própria ação e
que, portanto, devem ser compensados. Adaptado de
REY (1999: 413).
5
Sucessão de pequenos ruídos finos e secos nas
articulações. Adaptado de REY (1999: 188).
 d) Formigamento;
e) Redução da função;
f) Sensação de peso;
g) Incapacidade temporária.
E como regiões acometidas com maior
freqüência pelas LER/DORT, mas não as
únicas, destacam-se:
1. A região cervical;
2. Os membros superiores: os ombros,
a mão e o punho, e o cotovelo;
3. A região lombar.
Embora a ocorrência das LER/DORT
esteja intimamente relacionada à a.3) Adequação do ferramental, cabos e
suscetibilidade e características individuais,
não raro estas se processam em um quadro
de múltiplos casos, pelo que é possível
creditar que a incidência decorre em grande
parte de fatores organizacionais, tais como o
ritmo imposto para a produção e as suas
formas de controle, bem como os
investimentos em condições materiais de
trabalho, incluindo-se, para tanto, a análise
ergonômica das tarefas. Assim sendo, se
nada for feito para alterar tal cenário, novos
casos surgirão. Portanto, se requer uma
cuidadosa investigação das potenciais
ocorrências para o planejamento das
intervenções necessárias, qual seja:
a) Identificar a incidência e a
natureza dos sintomas;
b) Levantar e caracterizar os postos
de trabalho que possivelmente originam os
casos;
c) Quantificar, identificar e avaliar
funcionalmente os trabalhadores que
apresentam sintomas.
Feito isso, deve se proceder a uma
análise de severidade dos casos, a partir do
levantamento das queixas (aparentes ou não)
e do histórico médico-ocupacional de cada
trabalhador envolvido. Para tanto, podem ser
utilizados questionários de levantamento de
dados em relação ao conteúdo e duração das
tarefas, bem como no tocante ao
ferramental, ao método de trabalho e, ainda,
quanto às exigências que são impostas ao
trabalhador para a sua execução.
Quanto às intervenções requeridas
para a melhoria das condições de trabalho,
com o intuito de minimizar as oportunidades
da ocorrência das LER/DORT, podemos
citar algumas preconizadas por MACIEL
(1997), de três ordens, a saber:
a) Quanto ao posto de trabalho:
a.1) Modificar as posturas que impõem
carga de trabalho estática;
a.2) Observar as dimensões físicas do posto
em relação à adequação antropométrica
ao(s) usuário(s);
controles ao(s) usuário(s).
b) Quanto à organização do trabalho ou
medidas de caráter administrativo:
- Reciclagem ou treinamento no fazer:
melhoria ou estabelecimento de um método
adequado de trabalho;
- Incentivar a rotatividade de tarefas com o
intuito de reduzir a exposição de certos
trabalhadores a determinados tipos de
exigências;
- Modificação dos postos de trabalho e do
conteúdo da tarefa, incluindo:
b.1) modificações no mobiliário e no layout
do posto de trabalho;
b.2) planejamento dos métodos de trabalho:
- colocação de suportes sempre que possível
para minimizar a elevação e manutenção em
suspensão dos membros superiores;
- ressequenciamento (e modificação) da
tarefa para evitar repetições no uso de
grupos musculares;
- efetuar a combinação de funções (ou
operações);
- substituir a ação humana pela automação
em tarefas altamente repetitivas;
- não determinar o ritmo das tarefas, deixar
que este seja autodeterminado (segundo
necessidades e características de cada
individuo ao longo da jornada de trabalho);
- estabelecer programação de pausas durante
a jornada para permitir o descanso ou
recuperação quanto ao esforço realizado
pelos segmentos do corpo.
c) Quanto à escolha de ferramentas e suas
pegas:
c.1) Evitar forças excessivas de contato ou
de compressão e a carga estática;
c.2) Evitar posições desviantes das juntas;
c.3) Evitar os movimentos repetidos dos
dedos;
c.4) Evitar vibrações.
Sem dúvida, este conjunto de
cuidados pode ser de utilidade na prevenção
da ocorrência das LER/DORT no ambiente
laboral. Todavia, convém, mais uma vez,
relembrar que estes de nada adiantarão se, a
qualquer título, no restante de seu cotidiano
os trabalhadores estiverem sujeitos a
exigências que possam levá-los ao
desenvolvimento destas afecções. E isto, por
vezes, deve ser investigado pelas empresas
quando o trabalhador apresentar sintomas
condizentes e não resultar nexo causal com a
investigação do trabalho realizada por seu
setor de saúde e segurança ocupacional.
Sugestões de leitura:
BRASIL. INSTITUTO NACIONAL DO
SEGURO SOCIAL. Instrução Normativa da
DIRETORIA COLEGIADA nº 98, de
05.12.2003. Norma Técnica sobre Lesões
por Esforços Repetitivos - LER ou
Distúrbios Osteomusculares Relacionados
ao Trabalho – DORT. [D.O.U.: 10.12.2003].
BRASIL. MINISTÉRIO DO TRABALHO
E EMPREGO – Secretaria de Inspeção do
Trabalho. Manual de aplicação da NR 17.
Disponível em:
http://www.mte.gov.br/seg_sau/pub_cne_ma
nual_nr17.pdf
CODO, Wanderley et al. Indivíduo, trabalho
e sofrimento - uma abordagem
interdisciplinar. 3. ed. Petrópolis: Vozes,
1998.
_____, ALMEIDA, Maria Celeste C. G.
(orgs.). L.E.R. – diagnóstico, tratamento e
prevenção: uma abordagem interdisciplinar.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
LIMA, Maria Elizabeth Antunes et al.
L.E.R.. – dimensões ergonômicas e
psicossociais. Belo Horizonte: Health, 1997.
MACIEL, Regina Heloísa. Ergonomia e
lesões por esforços repetitivos. In CODO,
Wanderley, ALMEIDA, Maria Celeste C. G.
(orgs.). L.E.R. – diagnóstico, tratamento e
prevenção: uma abordagem interdisciplinar.
2. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. pp. 163-201.
NICOLETTI, Sergio. Lesões por esforço
repetitivo – literatura continuada de L.E.R.
Fascículo 2. Publicação técnica da Bristol-
Myers Squibb Brasil, [s/d].
OLIVEIRA, Chrysóstomo Rocha et al.
Manual prático de lesões por esforços
repetitivos. Belo Horizonte: Health, 1998.
REY, Luís. Dicionário de termos técnicos
de medicina e saúde. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1999.
SEIXAS, Roberto Senna. Universo das
síndromes e doenças. Salvador: EdUFBa,
2000.
SINDICATO DOS METALÚRGICOS DE
OSASCO E REGIÃO. Vítimas dos
ambientes de trabalho rompendo o silêncio.
7. ed. Osasco, 2002.